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A ÚLTIMA DONA
"...A Casa do Leborão é um local da Terra e existe. Se não existisse aí não teria chegado o Engenheiro Geraldes ao cair de uma noite do fim de Inverno, acompanhado por uma rapariga a quem chamavam Anita Starlet, para desfrutar com serenidade de cinco dias de bom lazer. E bem merecidos, já que sempre tinha sido um cultor da ciência e da técnica, um estudioso, e ultimamente um administrador de reputação assinalável, sem que jamais a desordem o tivesse visitado com a sua vassoira de lenha. Mas alguma vez a fragrância da aventura haveria de lhe bater à porta e agora ali estava ela, imperiosa, levando-o para um local secreto..."
Sou testemunha de que antes de se atingir as praias e o caos, a poente dos cruzamentos que conduzem a Duas-Pias, deixando para trás a velha linha do telégrafo que ainda delimita a zona do sossego, A Casa do Leborão é um local da Terra e existe. Se não existisse aí não teria chegado o Engenheiro Geraldes ao cair duma noite de fim de Inverno, acompanhado por uma rapariga a quem chamavam Anita Starlet, para desfrutar com serenidade de cinco dias de bom lazer. E bem merecidos, já que sempre tinha sido um cultor da ciência e da técnica, um estudioso, e ultimamente um administrador de reputação assinalável, sem que jamais a desordem o tivesse visitado com sua vassoira de lenha. Mas alguma vez a fragância da aventura haveria de lhe bater à porta e agora ali estava ela, imperiosa, levando-o para um local secreto, uma casa disfarçada, a que a sua recordação no futuro haveria de recorrer sempre que necessário, com seu passinho de aranha ou de serpente. "Meu Deus, como existia essa casa!" - Recordaria depois.
Na altura, porém, o Engenheiro havia planeado o percurso com a minúcia que lhe ficara do estágio em hidrologia ocorrido à beira dos Alpes, imaginando no caso concreto as horas, os subterfúgios e os locais possíveis, bem como os pequenos eventos previstos e o espaço para os imprevistos, com a minuciosa ponderação própria não só dum engenheiro mas também dum legislador. A sua percepção centrava-se na certeza rigorosa de que um bem lhe acontecia demasiado tarde, para que alguma coisa pudesse ficar na mão descuidada do acaso. Receava sobretudo que a surpresa, com a sua cauda peluda, pudesse atravessar-se no caminho que imaginava fazer ao lado de Anita Starlet, quando apenas dispunha de escassos cinco dias de lazer.
"Pois o que eram cinco dias?"
Mesmo assim, o Engenheiro achava que muito poucos poderiam vir a desfrutar dum tempo como aquele. Era um segredo, e a sua lembrança recomeçava sempre no meio duma estrada, dentro dum opulento Rover, em pleno campo e em pleno percurso. Recomeçava ao fim do dia. O soberbo casaco branco e preto que a rapariga vestia nessa primeira corrida, todo ele de lã mohair como ao tempo não era hábito ver, continuava a brilhar entre os vidros do carro, e apesar de a penumbra já então se ter abatido sobre os campos por onde passavam, ele prosseguia a conduzir sem acender os faróis. Era como se o bem estar que sentia por levar consigo a Anita Starlet, e por ter a certeza de que em breve mergulhariam os dois na estrada da mata completamente sozinhos, lhe apurasse desusadamente a vista. A certa altura também a estrada por onde avançavam tinha começado a ondular, e depois de recuperarem a recta, a partir da qual ainda se via a lista lilás do sol-posto, a florestação de pinus pinea surgira e de repente a atmosfera enverdecera. Não se via quase nada. Mas ele tinha sentido que era bom conduzir assim, até porque se dava o acaso de não surgirem viaturas em sentido oposto. Também a rapariga não tinha medo, já que fora prevenida de que além daqueles ziguezagues, um caminho liso haveria de surgir ladeado de árvores copadas, até que depois dum portão que eles mesmos iam abrir e fechar, como se fosse a portada duma propriedade sua, A Casa do Leborão os esperava por cinco dias e cinco noites. "Meu Deus! Eu e a coquine!" - Tinha ele dito, parecendo-lhe irreal a aproximação da primeira noite do primeiro dia, como gostava de dizer.
Curiosamente, o Engenheiro falava desse percurso como se fosse um homem enfático - Não era.
Habituado à orografia e aos grandes percursos, ao estudo das linhas de água e de terra, a que nos últimos anos se tinha vindo juntar a visão dos conjuntos cada vez mais vistos por cima e de forma indirecta, ele havia esquecido a emoção que se poderia sentir ao avançar-se por uma estradinha entre árvores, no fim da qual pudesse existir um hotel, prometendo uma feliz pausa para pensar no amor. Mas durante aquele percurso havia recuperado um pedaço dessa feliz desordem. O texto em que trabalhava havia mais de dois meses para fazer parte do Simpósio sobre a Qualidade da Água, e que ele contava ler a uma mesa coberta de saia plissada diante de quinhentas cabeças ligadas a aparelhos, a ser traduzido em cinco línguas, parecia-lhe então uma preocupação longínqua, inebriado que se sentia pela proximidade da rapariga junto de quem conduzia tão facilmente. Ela, o rosto dela de perfil, com o cabelo caído na cara tal qual como a vira numa revista de roupas leves, cheirando um perfume, de olhos fechados e boca vermelha, tinham-no feito conduzir daquele modo, e só para não se sentir ridículo e se manter racional, ele não pronunciava palavras tontas como seria planar. Ou fluir, ou nadar. Pois não era desse modo que o seu carro, como prolongamento da vitória íntima, avançava naquele fim de dia? Mas ele não queria proferir um único som que pudesse denunciar a perturbação que o assaltava, enquanto o escuro alastrava, e ele mesmo conduzia o carro a caminho d'A Casa do Leborão. Aliás, de algum modo a estrada por onde corriam lhe era familiar.
"Uma estrada estreita a caminho dum vago clube! E no entanto..." - Não se lembrava de por ali alguma vez ter passado, mas a carta topográfica que lhe haviam entregue pessoalmente, ainda que de forma indirecta, preparava bem qualquer pessoa, quanto mais um engenheiro habituado à decifração dos esquemas! Aliás, o mapa, de dimensões razoáveis, era deveras um objecto interessante, e Anita Starlet, como ficara conhecida - o seu verdadeiro nome era Ana Palma - prendendo o cabelo atrás da orelha, tinha-o desdobrado sobre os joelhos para confirmar que o era. "Veja aí, minha querida, se não parece um objecto de colecção!" - Tinha ele.dito, com a respiração larga das pessoas bem humoradas.
Curiosamente, o esquema estava concebido numa escala de 1/2 000 o que permitia que as próprias bombas de gasolina aparecessem representadas com sua garganta e mangueira, bem como os velhos paus de telégrafo saindo duma produção vegetal parecida com uma seara, concretamente traçados a ponta-seca e concebidos com realismo assinalável. O autor de semelhante reprodução do local havia posto no desenho um cuidado tão minucioso que resultava cómico, e o Engenheiro Geraldes tinha começado a rir como não ria havia muitos anos, quando a rapariga lhe havia mostrado como uma mancha oblonga, dir-se-ia uma imperfeição do desenhador, representava um camaleão entre as árvores com sua pata e sua unha. Parecia um desenho de crianças! - Tinha ele dito, no momento em que ela ainda abria o mapa no colo e a luz já pouco iluminava.
Mas não, não era um desenho ingénuo. Tratava-se por certo dum mapa destinado a veraneantes. Aquela era a época mais baixa do ano, e esses pequenos lagartos deveriam estar a dormir o seu sono profundo enroscados em buracos, e por certo seriam tão poucos que bem se poderia falar duma pequena espécie em vias de extermínio. Para os nórdicos em busca de outros climas, contudo, a invocação de um descendente do velho sáurio do sul deveria servir de atracção para os seus sonhos estivais. Os negociantes do lazer tinham-se transformado em exploradores semelhantes a piratas. Aliás, as espécies cinegéticas da região, como a perdiz e a lebre, também se encontravam representadas no mapa em estado de marcha e de voo, e desenhado sobre elas, o esboço duma caçadeira deitava fumo. Num outro canto, a forma dum caçador apontava a espingarda para o ar e um bico tombava a pique na direcção de onduladas letras. Como era interessante! Por antecipação, só faltava ele com a rapariga, sentados no automóvel, com as malas de viagem arrumadas atrás e a aparelhagem soltando música de câmara pelos campos fora. A Casa do Leborão, porém, essa naturalmente não constava da carta, nem tampouco o portão de ferro que dois quilómetros antes lhe tinha dado acesso. O Engenheiro havia parado com a sombra da terra a perder nitidez. Acaso estariam perdidos? E se estivessem o que fariam? - Tinha ele perguntado, simulando um risco que não havia. A rapariga dava pequenas gargalhadas, olhando pelo campo fora.
"Às vezes tudo isto me parece doido!" - Dizia ela.
Mas não estavam perdidos, não. Uma ousadia semelhante à dos corredores, face à contínua sebe de vegetação que ladeava o caminho, impelia-o a levar o carro daquele modo, ora atravessando clareiras onde a luz ainda entrava com algum vigor, ora ultrapassando por cálculo pequenas zonas em que o percurso já se fazia sob treva. E de novo penumbra e de novo treva, até que a Anita Palma se agarrou ao tablier, soltando um pequeno guincho com a sua voz especialíssima. "Ora bolas, quer matar-nos?" Ele, porém, tinha-a protegido com o braço. "Ah! Não tenha medo" - Havia dito rindo, cheio de coragem. "De há um tempo para cá só as coisas boas vêm ter comigo!"
Mas não era apenas porque se sentia como se mergulhasse num lugar protegido, ao lado duma criatura muito especial, que ele mesmo havia feito vestir de lã mohair, que o Engenheiro teimava em não acender os faróis. Era sobretudo porque assim havia imaginado. Queria - estava habituado não só a disciplinar-se mas também imperativamente a querer - chegar À Casa do Leborão à hora do crepúsculo, para ver de longe as janelas surgirem entre os pés das árvores, em forma de quadrângulos foscos, como se dentro a iluminação se fizesse a petróleo ou a vela, invocando contos de fada. Era uma aposta que tinha feito consigo mesmo. A pessoa que o havia aconselhado a fugir dos aeroportos, das cidades e mesmo das praias para procurar o campo, e no vasto campo lhe havia sugerido aquela casa, entre hotel e albergaria, tinha-lhe dito que a iluminação exterior das janelas, como tudo o mais, era fruto da proficiência dos gestores da casa que assim sabiam atrair hóspedes muito especiais ao acolhimento de um refúgio absolutamente discreto. E ele tinha imaginado parar o carro, ficar a contemplar o exterior por um minuto, virar a cabeça, tirar os óculos, e na penumbra resguardada do automóvel, procurar a boca vermelha da rapariga. Em sua ideia assim merecia que acontecesse, pois inteligentemente o tinha previsto e preparado. Aliás, previra mais, previra tudo em relação ao percurso e à chegada. Também havia decidido que o encontro se daria perto das bombas da gasolina, à saída de Duas-Pias, exactamente às seis em ponto. Mas uma pessoa que uma vez se tornou imprescindível, dificilmente consegue chegar a horas à sua própria vida, ainda que à sua volta não se fale noutro assunto mais premente do que o calendário e o tempo. Essa era a peste bubónica da recente civilização. E então o Engenheiro havia chegado atrasado.
A passagem pela Barragem da Açucena tinha trazido surpresas. As novas fábricas eléctricas ameaçavam desdobrar-se em lucros dentro de poucos anos - a prova é que as vertentes se encontravam cobertas de garfos gigantes levantados no ar, levando a corrente consigo em sinal de abundância - e no entanto, ao aproximar-se o grupo do paredão, de entre a assistência, um pobre homem deitara fora o seu chapéu de campónio e havia-se atirado sob os olhos de todos para a espuma da cascata.
A água havia-o engolido como uma pequena asa. No meio da agitação, o Engenheiro tinha feito um considerável esforço para não se deixar impressionar, apesar de saber que o aparato da administração por mais discreto que seja, desperta nos homens comuns o apelo a sentimentos extremos. Desde sempre os suicidas aguardam os dias de circunstância para sentirem os seus actos acompanhados de rumor. De qualquer modo, tinha sido obrigado a dizer palavras necessárias, tendo o grandioso espectáculo de engenharia atrás do ombro, e essa meia hora havia feito falta à perfeição do encontro marcado junto às bombas de gasolina, no cruzamento de Duas-Pias. De regresso à Praceta dos Ruivos, ele bem tinha insistido com o Mourato - "Mais depressa, mais depressa!" No gabinete tudo estava disposto para partir, sob o pretexto de que ele - também ele, como pessoa de carne e osso - ao fim de cinco anos precisava descansar. Mas na precipitação tinha esquecido os papéis onde havia começado a redigir a introdução ao relatório e fora obrigado a regressar. Não deixava de ser, contudo, mais uma contrariedade, e ao descer apressadamente as escadas do palacete, não pôde deixar de ler pela centésima vez o que um cínico havia deixado inscrito entre dois querubins que desenrolavam uma faixa - DEUS EMPRESTA-TA NÃO TA DÁ. Ainda que esse aviso espalhado ao alto da escadaria pelos anjos rubicundos não lhe dissesse respeito, já que tudo estava previsto e preparado. Depois, ele mesmo, como havia alguns anos não acontecia, tinha corrido pela estrada fora a velocidade pouco aconselhável. Seu carro cinzento escuro, de vidro fumado e persiana, corria e corria. Seu pequeno chapéu tombado tirava-lhe a feição, mas quando por fim avistara a coquine na berma com sua mala e seu casaco, já ele o havia guardado dentro do saco de viagem.
Aí, sem querer, seu coração tinha-se enrugado ao avistá-la. Como era possível? - Pergunta inútil. Num país acabado de emergir da desordem e da pilhagem, como costumava dizer, tudo era de esperar. E em breve acabaria por saber o que se tinha passado. Ao contrário do que havia sido combinado, o chauffeur tinha largado Anita Starlet junto ao paredão, sem mais nem menos, tal como se fosse um pacote, invocando outros afazeres, como se um homem de táxi tivesse deveres mais importantes do que servir quem o sustentava. Era indesculpável. Fora-lhe recomendado por interposta pessoa a necessidade de aguardar, tinham-lhe pago o percurso integral com antecedência, e ainda havia sido sobejamente gratificado, mas a civilidade, infelizmente para todos, era um preceito que demorava séculos a transmitir. Ele bem imaginaria depois, deprimido, como àquela hora os camionistas teriam abrandado a marcha para verem a rapariga com a mala, embrulhada no majestoso casaco de lã, a andar de lá para cá, junto ao alpendre luminoso. Por certo que teriam deitado as cabeças mal lavadas de fora para dizerem obscenidades mais pesadas do que as bombas. E tudo isso por causa daquela incrível meia hora! Ainda por cima, julgava vir encontrá-la cansada de esperar, sim, mas no banco de trás dum carro, resguardada e protegida. Ora, pelo contrário. Quando ele mesmo, conduzindo o seu automóvel, já sem chapéu, a avistara junto duma berma onde havia nódoas de gasolina do tamanho de lagunas, o Engenheiro tinha sentido um baque. Não havia perdoado o gesto do estúpido suicida. Estaria ela irremediavelmente agastada? Estaria só triste? Teria o pé gelado, a boca fria?
Mas não. A rapariga que o esperava à beira da estrada, não era apenas uma figura ocasional que ele tivesse encontrado de passagem na casa de Fausto Maia. Muito pelo contrário, ela correspondia a alguma coisa efervescente que tinha dificuldade em definir, e quando definia, de si mesmo queria afastar ou esconder. Uma espécie de tentação para alguma coisa desconhecida e rumorosa que o chamava sem se desvendar e por isso o atraía de forma insuperável como se lhe queimasse os dedos. "Ah! Sim, sim!" - Tinha ele dito finalmente. O que podia fazer, senão cair na tentação de experimentá-la, conhecê-la, e depois de conhecida, guardá-la na totalidade ou em parte na casa vasta da sua memória? Contava passar com ela momentos bons, durante aqueles cinco dias. Enquanto tudo isso não tinha início, o melhor era deixar que Anita aparecesse idêntica a si mesma, vária e rumorosa como era. Tinha procurado outras qualificações mas havia regressado ao velho termo das cartilhas - deslumbrante. E a prova é que apesar do atraso, ali estava intacta, esperando por ele ao cair da tarde, sem qualquer tipo de ressentimento, como numa película. Quando tinha avistado o carro, a rapariga havia corrido para a porta e na precipitação, sua boca parecia imensamente viva. Lembrava-se como se tivesse acontecido no dia anterior - Já aí as cores da terra perdiam luz a cada instante, e no entanto, à medida que essa transformação se operava, mais o casaco da Starlet parecia branco e mais a boca ficava vermelha. A sua respiração alta lembrava uma pomba. Então o Engenheiro tinha descansado, pois nada de importante se havia perdido, e alguma coisa se havia ganho, o que não impedia que de qualquer modo faltasse meia hora, a meia hora roubada indevidamente pelo campónio da cascata. Era por causa do gesto aleatório desse homem doente que o grande carro do Engenheiro havia chegado a passo à porta d'A Casa do Leborão, de faróis apagados, correndo o risco de roçar numa parede, ao contrário do que havia imaginado.
"Tratava-se, contudo, duma pequena dificuldade sem relevância" - Dizia o Engenheiro.
Sim, tinha chegado atrasado, mas ali estava o clube com suas luzes foscas espalhadas entre os pés das árvores como olhos de lobos bons, esperando. Ali estava. Ao contrário do que havia chegado a suspeitar, de ínvia que fora a reserva, a estalagem absolutamente discreta sempre era um lugar identificado da terra. Deveria beijá-la como tinha imaginado? Não sabia. Com o carro parado na ligeira rampa que conduzia às imediações do clube, ele tinha desejado tirar os óculos e procurar, no escuro do automóvel, a boca que o atraía, pois por mais íntimo que fosse o ambiente onde iriam entrar, o regresso aos móveis e às paredes sempre lhe traria de volta a imagem da cidade que haviam deixado ao fundo dos quilómetros, com suas praças, seu trânsito caótico, sua via de aeroporto, seus ministérios fúnebres e sua grande intriga. Ao apertar a mão da rapariga a quem gostava de chamar coquine, o Engenheiro queria que todas essas figuras humanas e não humanas se confundissem numa praia indistinta, sem designações próprias nem epígrafes. Os nomes das pessoas familiares, todas unidas sob o mesmo apelido como debaixo duma sombrinha, passando sob a vista de relance, incomodavam-no como agulhas. Tinha suspirado - Ah! Quem pudesse usar um separador na cabeça de modo a alojar toda essa vasta vida num pequeno canto dela, ficando todo o resto disponível para aqueles cinco dias que estavam a começar! Que pena a memória não poder ser separada como uma régua que divide a folha e a corta! Para que queria a baleia da lembrança a navegar na alma, no momento em que apenas desejava comportar-se como uma pessoa decente, junto da rapariga a quem chamavam Starlet? E o Engenheiro havia feito avançar a mão, nada mais do que a mão como nos filmes da sua juventude, na direcção do perfil da rapariga que havia encontrado na casa do Fausto Maia. Ela, porém, inclinada para a sombra do clube pouco iluminado donde provinha o sinal de bom acolhimento, não dava pela sua posição. Mas na imaginação prévia do Engenheiro Geraldes, ela dava. Ela facilitava inclinando a cabeça sobre o encosto, com um pequeno suspiro, e era aí, abandonada na pequena almofada de veludo, que ele procuraria, anelante - tinha aprendido a palavra havia muitos anos - a boca vermelha da rapariga. Porque não o fazia? Porque não se sentava sobre o seu lado direito e naturalmente não lhe procurava a boca? Porquê? - Perguntava ele. Porque ela não suspeitava. Com a mão inerte posta no colo, continuava inclinada para o exterior donde provinham as luzes foscas, e a sua cabeça movia-se como se estivesse ocupada numa observação completa. Falava. Ela falava. Ao contrário do que ele havia imaginado para esse momento, dizia palavras sobre o aspecto nocturno da pousada térrea onde iriam entrar. A coquine movia a boca e dizia palavras. O Engenheiro ainda tinha pensado fazer avançar a testa - nada mais do que a testa - na direcção do ombro dela, nem que fosse para encontrar o enchumaço do casacão, e naquele instante, pedir-lhe que se calasse, que deixasse o silêncio brutal da mata tomar conta deles. E a sua testa queria, todo ele queria. Apenas ao contrário do que havia imaginado, nem por um instante Anita inclinava a cabeça. Mas não tinha importância. Ficaria para depois. Afinal o clube existia e ainda agora os cinco dias começavam.
"Vamos então entrar?" - Tinha ele dito, por fim, retomando o pequeno percurso que faltava percorrer.
Mas o coração do Engenheiro Geraldes continuava a bater a grandes golfadas como se jogasse ténis. Já tinha ligado os faróis e já se via o muro branco que indiciava a aproximação das garagens, acontecendo exactamente o que lhe haviam prometido. Tanto ele quanto ela podiam descansar porque os princípios de salvaguarda funcionavam por si. Ali estava como tudo batia certo - Tinha pensado. A forma de manter os hóspedes incógnitos, no momento da chegada, assentava num sistema que parecia perfeito. Havia-lhe sido assegurado que os próprios clientes costumavam eles mesmos retirar as malas, arrumar o carro e guardar a chave da garagem com toda a liberalidade, que ninguém os incomodava nem os via. De resto, como Anita Palma podia constatar, nenhuma lâmpada especial iluminava a entrada e as árvores que subiam junto da casa raspavam as paredes com volumes negros de escuridão. O acesso exterior não podia ser mais discreto. A segunda chave era precisamente a da portaria. Servia à medida, rodava. Como fora garantido, na recepção não havia ninguém para observar quem chegasse, e no entanto, o ambiente aquecido, apesar da sobriedade, apresentava um luxo forrado de madeiras e tecido que parecia habitado. As paredes confirmavam que deveria ter servido de local de acesso ao antigo pavilhão de caça, quando o javardo, cem anos antes, se afoitava até às ravinas mais próximas, de que haviam ficado gravuras dos irmãos Kunzli Éditeurs espalhadas pela parede. Também à direita da pequena mesa onde se tinha de preencher uma ficha, como num hotel vulgar mas com nome suposto, sobre uma espécie de montra coberta de verdura, duas lebres empalhadas, com as grandes orelhas esticadas sobre o lombo, pareciam pastar.
"Que interessante!" - Tinha dito a coquine, distraída, a observar os animais imóveis. "Parecem mesmo vivas! Acha que os olhos são de vidro?"
Por outro lado, também as paredes grossas dispostas em geometria regular facilitavam a entrada, e tendo preparado com antecipação o percurso, era-lhe fácil empurrar pelo ombro a rapariga, seguindo a seu lado, como se o espaço lhe fosse familiar. Curiosamente a sua mão tremia, mas só a mão. De resto, caminhava seguro, caminhava quase solene, ouvindo o fru-fru do casaco dela, e ao senti-la avançar ligeira pelo corredor, era como se avançasse para dentro de si mesmo. Também o Engenheiro caminhava leve como não acontecia há muito, nem sabia quanto - Por onde tinham andado o corpo e a alma do Engenheiro, durante todos aqueles anos? - "Por onde? Por onde andaste, perdulário?" - Dizia para si.
Mas aquele não era o momento de se questionar. Ele precisava conferir o que lhe tinha sido prometido - bem pago e por antecipação - com a qualidade das instalações que o clube na realidade proporcionava. E de facto, o conforto sólido do antigo, acabado por certo de renovar, não lhe era estranho como se fizesse parte duma casa que há muito tivesse frequentado, houvesse esquecido os seus cantos de todo, e agora os tivesse de reconhecer. Pretendia mesmo assim tomar a sua precaução, conferindo o que via com o que havia sido descrito, à medida que acompanhava a rapariga encontrada na mansarda de Fausto Maia. O Engenheiro era um homem enérgico e por isso, ao entrar no clube desconhecido, transportando ele mesmo a bagagem, caminhava circunspecto como se dividido em dois ou em três. E só não se dividia em quatro porque a questão da segurança não se punha. Recordaria, sim, recordaria posteriormente como era agradável constatar que o longo corredor estava deserto, que as portas não tinham número nem óculo espreitador e que o silêncio da intimidade era total - Para que Anita Starlet, caminhando enrolada no magnífico casaco, pudesse compreender que estavam completamente seguros, o Engenheiro havia feito tilintar com suavidade a terceira e a quarta chave. Batera com o pé no soalho e abrira a primeira porta naturalmente, com a calma de quem entra em quarto próprio, ou com o regozijo de quem depois da fuga por mar, entra no porto seguro.
"Que belo recanto!" - Havia pensado. Os tecidos tinham ali dentro lugar de relevo e à primeira vista era como se não houvesse móveis. "Um sítio decente! Não?" - Tinha perguntado em seguida, muito próximo da rapariga.
Mas aquele não era o quarto dele, era o dela, todo de tons suaves, avultando o branco e o pérola, e o momento seria embaraçoso se o Engenheiro não tivesse previamente estipulado um plano. Entraria, acenderia uma a uma as luzes baixas, levantaria a ponta do cortinado para que ela pudesse ver onde se encontrava, abriria o guarda-fato e as gavetas para a deixar segura, e tendo colocado a bagagem no lugar devido, assim fez. "Muito, muito bem!" - Voltava a dizer só para si. De tal modo tinha preparado esses primeiros gestos que todos eles lhe saíam com perfeição de filme, dividido em dois e em três. Enquanto isso, vendo a rapariga apreciar o conforto do quarto onde nem o aquecimento em boa temperatura faltava, conseguia entregar-se ao destemor que o levava não sabia para onde. Ou melhor, sabia para onde. O lugar que não via encontrava-se inscrito em redor do corpo da coquine, escondido debaixo daquele comprido casacão de princesa que ela ainda não tinha retirado. Pensando melhor, ainda bem que atabalhoadamente não a tinha beijado no carro, cobrindo a chegada de desajeitamento e imperfeição. Aliás, se bem recordava, no seu plano, esse gesto sempre lhe parecera um tanto precipitado, e numa versão mais cautelosa, ele aproximava-se dela, precisamente ao entrarem no primeiro quarto. Assim, o Engenheiro tinha ficado junto da porta e ela havia avançado na direcção da espécie de boudoir com espelho. "Oh, meu amor!" - Apetecia-lhe dizer mas não dizia, ainda que pudesse. Tinha muito tempo e ela estava ali, oferecida.
"Anita?" - Havia dito o Engenheiro, enquanto a rapariga deixava o casaco escorregar pelas costas.
Para já não a beijaria, nem sequer tencionava tocar-lhe. Como um cavalheiro que se resguardasse, havia mesmo recuado na direcção da saída onde mantinha os seus volumes pessoais. Mas logo de seguida - lembrar-se ia depois - tinha parado. Acabava de ver o casaco branco de lã mohair com uma mancha de terra, e o facto de não a ter ainda abraçado fazia que o volume da sujidade crescesse, como se a lama alastrasse e o impedisse para sempre de a beijar.
"Não se mexa!" - Tinha ele dito, com demasiada energia.
Surpreendida, a rapariga que havia encontrado em casa do Fausto Maia tinha-se imobilizado junto à cama - "Porque não me mexo?"
"Pare, pare, por favor!" - Pedia de novo, enquanto se aproximava, tomava o abafo pela zona da bainha, e chegando-o perto da luz, sacudia a branca aba do casaco.
A vista do Engenheiro tinha-se toldado como havia meses não sucedia, nem com as piores contrariedades acontecidas no edifício da Praceta dos Ruivos. Era um exagero que a sensibilidade atabalhoava para nada, e contudo produzia os seus efeitos. Bem queria minimizá-los e não conseguia. Parecia-lhe mentira. "Lama, meu amor!" - Como era possível que Anita Starlet tivesse lama na bainha das saias? Dizia contrafeito, enquanto a segurava e a sacudia. Como era possível? Se o casaco branco por fora e preto por dentro, todo de pura lã mohair, ele mesmo o havia mandado embrulhar em Isadora's House, e tinha voado por cima de um oceano inteiro com ele escondido na bagagem só para ela? A deliberação sobre o modo de lho fazer chegar às mãos custara-lhe uma noite inteira de treva com prejuízo para alguns assuntos inadiáveis, e depois de tudo isso, ali estava o casaco sobre o seu corpo como ele tanto havia desejado e tinha lama.
"Sujou o seu casaco, minha querida, sujou!"
Tinha dito o Engenheiro, curvando-se para o chão e recomeçando a sacudir a mancha de terra fresca, embora percebesse que se tratava dum exagero estúpido da sua propriedade ou da sua imaginação. Pois o que era um pedaço de lã mais do que uns pêlos de cabra entrançados num tear mecânico? Um pedaço de tecido, um pano, um trapo? Sabia-o bem, e no entanto, não tinha podido deixar de se sentir desolado naquela hora da chegada. Mas havia sido brando. "Sua marota, sua grande marota, logo ter sujado o seu casaco..." - Dizia ajoelhado, ao passar pela bainha o seu próprio lenço, sentindo que ela se tinha deixado vulnerabilizar pela lama, e ocorrendo-lhe o dever de olhar para debaixo dos móveis e accionar os interruptores para que visse como funcionavam todas as luzes. Já agora também queria dizer-lhe que não deveria esquecer-se de pôr o duche a correr, pois era hábito nos alojamentos de província a água trazer a princípio abundante terra.
"Terra?" - Tinha perguntado Anita Starlet admirada.
"Sim, terra. É sempre conveniente abrir a torneira e deixar correr um bom bocado antes de utilizar. Só depois se deve entrar na banheira".
"E quanto tempo se deve deixar correr?" - perguntou ela, de sobreaviso sobre a casa.
"Ah!" - Tinha respondido o Engenheiro, disperso, à medida que era atingido pela impressão de que alguma coisa abjecta havia tocado na rapariga do Fausto Maia, enquanto a todo o custo queria evitar que de novo um pedaço de terra, diluído que fosse, se lhe chegasse à pele e se lhe impregnasse no ser, como a lama havia entrado na superfície macia do mohair. A clarividência do Engenheiro dizia-lhe que jamais aquele abafo voltaria a ter o negro escuro e o branco imaculado que o tinham atraído irresistivelmente para a montra distante de onde o havia trazido. Por isso, curvado para a banheira, ele tinha experimentado o correr do duche para que a rapariga visse. Uma borra castanha de facto girou primeiro e depois depositou-se no leito da grande vasilha do banho. Era preciso renovar a água com o chuveiro, limpá-la, e se possível ainda, secá-la com uma das cinco toalhas expostas. "Agora sim, já pode" - E o Engenheiro preparava-se para sair para o corredor protegido, quando a rapariga o encarou.
"Quer dizer que tem assim tão pouco movimento, esta casa, meu bem?" - Havia perguntado.
O Engenheiro tinha começado a rir. Segurava as mãos da querida coquine. Que tonta que ela era! O movimento da casa onde se encontravam era intenso, só que não parecia por se tratar de um serviço discreto. As pessoas que ali se acolhiam como eles, vinham para descansar, divertirem-se à sua maneira e partirem sem serem vistas, e por isso havia meia dúzia de regras simples que permitiam manter o silêncio e a distância, como ela mesma poderia verificar. Não era isso exactamente que tinham desejado? Um sítio discreto, fora dos olhares perversos da vizinhança tagarela e traiçoeira? Não era verdade também que ultimamente o mundo se tinha tornado uma só rua circular, onde a maior distância possível era a que ia dum passeio a outro dessa rua? Então? Era perigoso viajar de avião, por exemplo. Ele podia dar exemplos de encontros surpreendentes com pessoas que não via para cima de vinte anos, que na altura precisava não encontrar, e logo tinham aparecido por pura traição do acaso, mostrando o passaporte no mesmo balcão do mesmo aeroporto. Ele mantinha a teoria de que nos aeroportos as pessoas do mesmo país se atraem pelo cheiro. Ora eles ambos, como ela bem sabia, não podiam estar sujeitos a essa espécie de contingência, e por isso ele havia recorrido À Casa do Leborão - O que importava um casaco? O que importava? Tinha ele dito percorrendo-a toda com o olhar, embora receasse que o vidro dos seus óculos fosse demasiado espesso para deixar passar o envolvimento que punha nela, no corpo dela, e no quarto onde a ia deixar, cheio de tecidos e acolchoados, macios, cor de leite. Ia sair. Estava perto da porta. E quando ele já não esperava que o plano se cumprisse, Anita Starlet tinha-se aproximado e encostado a cabeça despenteada, no volume do seu ombro esquerdo - Haveria depois de lembrar, quando falasse do seu segredo.
E no entanto, o Engenheiro Geraldes tinha ficado imóvel a olhar para fora do quarto, parado como um bengaleiro que sua mãe possuía à entrada, na casa de Colares, com um espelhinho renitente, de braços esticados, indiferente ao que se lhe pendurasse.
ALGUÉM DAS ESCADAS
Indiferente como o bengaleiro da casa de Colares? - Sim, o seu relatório haveria de começar por invocar a água no estado líquido como privilégio da Terra, referindo-se à corrente, tal como existe nas torneiras, nas fontes cantantes e nos mares por onde correm os grandes navios. Mas aí, seu dedo indicador deveria apontar na direcção dum lugar abstracto, para lembrar que ela também existe em certas estrelas sob a forma de atmosfera, e em muitíssimos satélites do Sol sob a forma de pesado gelo. Porém, em estado líquido, fresco e cristalino, senhoras e senhores, só na Terra, exclusivamente na Terra. E haveria de desenvolver essa evidência comum de forma a fazer sentir como a água era o princípio e a condição da vida. Sonhava com a leitura dessa introdução pensada propositadamente com mais sentimento do que ciência a ser traduzida em cinco línguas. Tinha força, sentia poder. No entanto, uma inofensiva rapariga havia colocado a cabeça no seu ombro esquerdo, e ele não tinha sabido o que fazer com esse inesperado gesto, tendo deixado que o cabelo dela fosse escorregando sem amparo, pela aba do casaco. Nem ao menos havia erguido uma mão. Pelo contrário, como a porta se encontrasse aberta, tinha alcançado o corredor deserto e entrado no quarto ao lado sem acender uma luz sequer. Havia ficado no escuro, trancado, ouvindo o rumor da sua própria respiração, sentindo-se uma caricatura de tudo o que alguma vez tinha lido sobre a efervescência do amor, até que finalmente acendeu uma lâmpada de cabeceira do quarto ainda desconhecido, e olhou surpreendido para si mesmo. Não se lembrava - Era aquilo a visita da paixão.
Indecorosa paixão. Para não voltar a conhecê-la, tantos anos havia passado a evitá-la sabiamente, a entretê-la, a iludi-la, a afastá-la do seu caminho com a força de quem segue o nobre instinto da pobreza, e agora ali estava na penumbra, com o coração a bater como um motor acelerado. Seria ele um homem? Pertencia ao grupo de pessoas que em qualquer ocasião sempre elege o simples em nome da eficácia, o claro em nome da certeza, o racional em nome do produto e a vontade humana contra todo o tipo de destino, e agora o supérfluo e o obscuro, reais como a verdura da mata, eram a estrada larga que se sobrepunha a tudo - No entanto, maravilhosa estrada! No meio do quarto, o Engenheiro dava largas passadas e sorria. Pois que importava não ter sido capaz de um gesto adequado sobre Ana Palma, momentos antes, se tinha cinco dias para reparar com redobrado ímpeto a falha cometida? E depois? - Depois, o desmiolado sentimento acabaria. E pondo um pé aqui, um pé além, por entre os móveis, ele imaginava a reparação fazendo deslizar a mão sobre cabelo, lã e seda, e outras superfícies suaves de que se havia afastado para nada, como um tonto perdulário. Sim, por onde tinha andado o olhar, a pele, o corpo do Engenheiro Geraldes durante todos aqueles anos? Cego, surdo e mudo atrás dos seus deveres para quê? De repente, era como se os seus sentidos todos renovados o revestissem duma outra ligação com o mundo, e o entusiasmo pela Starlet tinha sido a ponte que unificara tudo. Como parar de o dizer se o sentia, e se tinha vindo ter àquela casa exactamente para esclarecer a si mesmo o que sentia? A verdade é que desde que a rapariga o alvoroçara, sem fazer nada por isso observava os ambientes, percebia os detalhes, compreendia o sedoso universo da roupa e da fantasia de viver, como se tivesse voltado a ter vinte anos. "De novo sou rapaz!" - Tinha dito para si, fazendo passadas largas no soalho, sabendo que ninguém o espiava, ninguém o via.
"Interessava-me por isso A Casa do Leborão" - Disse ele.
Pois no momento em que havia acendido a luz, tinha deparado com um quarto bastante diferente daquele onde havia deixado a rapariga, mas só agora se entregava aos objectos junto dos quais iria ser feliz. Sendo contíguo ao da Starlet, o aposento que lhe haviam reservado parecia maior e o ambiente era dominado por uma mesa-escrivaninha muito sóbria como se tivesse pertencido a um lavrador ou um recluso. Sobre o tampo, havia pratos de cobre com armas, e um velho arcabuz de mecha montado em serpentina enfeitava a parede onde passava a trave. Também a cama estava longe da imponência folhuda da que deixara do outro lado, amparando o casaco de lã mohair, e atrás da cabeceira pendia uma tapeçaria ampla com uma agressiva cena de caça, já que a meio da figuração, dois lebreiros em posição de salto corriam sobre as lebres espavoridas. Mas em contraste, aos pés, uma poltrona de veludo, sobre uma pequena carpete de guedelha como num país frio, parecia um ninho onde apetecia uma pessoa, depois de abrir a mala e despir-se, ficar esticada para dormir um belo sono. Aliás, nem era esse apenas o único sinal de amenidade. Ali estava a bandeja com vinhos como num quarto antigo e ao lado, disposta em pirâmide, a fruta. O distintivo da casa também ele era redondo, como a abóbada da entrada e como a cabeceira da cama onde havia ficado estendido o casaco de Anita Palma. Nele, a figura de dois lepus timidus dormindo enroscavam-se estilizados como o símbolo da harmonia oriental. E sob esse distintivo concebido com a singeleza de dois traços, em letra manuscrita, tombada para diante, alguém havia desejado as boas-vindas. O Engenheiro sentiu-se seguro, conseguindo imaginar os dias que iriam vir - Olhava para aquelas letras frescas, e parecia-lhe incrível como um homem de bem podia passar a vida tão longe da verdadeira suavidade.
E pensando leve como se fumasse, tinha rodopiado no meio do quarto, olhado ao lado e em frente. Porque havia um pesado reposteiro de fustão cobrindo toda a parede? Já de roupa mudada, envergando coisas quentes e ligeiras apropriadas à descontracção, o Engenheiro levantou o pano e encontrou uma porta. Como uma criança que brincasse, soltou um pequeno grito de alegria. "Ah! Ah!" - disse, entusiasmado com a vida. Acabava de descobrir a estreita porta sem manípulo, entalhada na placa de madeira de que lhe haviam falado na noite da combinação, e sem saber como, tinha-se esquecido de que estando em quartos separados, havia esse delicioso obstáculo a uni-los. Sem querer, como se alguém o visse, ele se tinha ruborizado. Pois talvez de repente, ao sair do banho ela tivesse medo do silêncio que fazia n'A Casa do Leborão, abrisse a porta do seu lado e viesse até ele em camisinha. Talvez aparecesse descalça, talvez tivesse frio e tiritasse. Talvez viesse para junto dele encolher-se e pentear-se. Mas no pressuposto de que tudo isso talvez acontecesse, dali em diante o Engenheiro teria de ter um plano.
Tinha-se sentado diante da mala aberta onde sua mulher havia colocado os objectos que removia. Lá estavam as alpergatas de flanela, lá estava o seu robe cor-de-vinho. À luz directa do pequeno candeeiro, desdobrou o robe que não iria usar. Essa peça de roupa iria ficar ali, quente, com sua gola de xadrez direita, pendida junto à cama. Se a querida coquine abrisse a porta e se tremesse, ele haveria de a recolher não só com os braços mas também com o robe. E se viesse descalça? O Engenheiro ainda virou as restantes roupas à procura dos chinelos mas rendeu-se. Só dispunha das débeis alpergatas. Sim, mas tinha meias. Alpergatas e meias muito unidas ele as colocou abertas, expostas entre o reposteiro e a porta. Se ela entrasse na ponta dos pés, descalça, caminhando no soalho, ali tinha que vestir e que calçar. Mas se demorasse, se não viesse antes da hora do jantar? Ou se vestida e composta como se nada fosse aparecesse do outro lado e nem desse pela porta de ligação escondida debaixo do fustão? - Passados anos, o Engenheiro ainda se lembraria de como se tinha aproximado da madeira, disposto a bater e a chamá-la. Ainda havia retirado o pano e encostado o ouvido, mas depois tinha hesitado. Devagar, havia deixado cair o pano de fustão.
De facto, não era altura de se precipitar. Chamá-la daquele modo, além de não o ter previsto era uma imprudência de rapaz. Além disso, A Casa do Leborão estava mergulhada num silêncio maravilhoso e tudo o que chegava até si parecia dizer-lhe maliciosamente que tivesse calma e cuidado extremo. Também se lembrava de seu tio Hugo Geraldes Maia. O hemisfério direito da sua cabeça trazia a lembrança desse tio, incitado sem dúvida pelo silêncio da casa, quando até nem era necessário. No entanto, um raciocínio claro bastava para demonstrar que, se não a tinha beijado no carro e não a tinha acolhido no quarto, no momento em que o havia procurado para lhe pedir perdão da lama, começar por bater com os nós dos dedos a uma porta que possivelmente a Starlet ainda nem dera por que existia, pressupunha uma velocidade disparatada, para quem fazia uma pausa com a duração de cinco longos dias. Mesmo assim, o Engenheiro havia-se sentado no sofá, comodamente pensando na razão por que, depois de tantos anos, se lembrava das palavras desse tio, sempre que se precipitava na direcção de Anita Palma. Tinha durado pouco, o tio. Aos vinte e oito anos esse irmão de sua mãe havia sido atacado de cirrose. Mas antes de ter ficado amarelo como a cera, era costume declamar versos de sua autoria à mesa dos banquetes da família. Sentava-o então a ele e não a Fausto Maia na sua frente, e enquanto toda a gente se afastava das imediações como se ameaçada por um alimento venenoso, sob um chapéu de feltro cor de pombo, gritava - Nino!
A grande estrela vem montada num caracol gigante - Para tê-la, nino, não o espante, não o espante!
Cantava o magro perdulário, o libertino. A essas frases soltas, com palavras de outras línguas pelo meio, chamava ele os seus Inéditos, mas todos diziam então que não significavam nada. Eram criações suas que a partir da quarta frase degeneravam em repetições e sopros, e das quais, sem saber porquê, se lembrava particularmente desde que havia conhecido aquela rapariga. Ou talvez soubesse. Seu tio sentava-o no cadeirão de verga, e dizia que aquele sobrinho iria longe, quando ninguém mais o dizia. Muito, muito longe! O seu braço vestido de fato claro como um brasileiro, apontava para lonjuras de honras e delícias. O seu dedo etilizado furava o futuro com a gostosa premonição de um triunfo para seu sobrinho. Na direcção do seu dedo luzia a estrela dum destino bom. Depois recolhia o dedo sobre a mesa, na qual havia pratos repletos em que não tocava. Mas na ponta da sua unha já deveria existir o caminho que se abriria ao sobrinho preferido até ao Palacete dos Ruivos ou, num outro plano - um secreto e passageiro plano - até À Casa do Leborão.
Meu Deus, como se lembrava ! Viviam todos em Colares, e tendo então o tio ficado definitivamente doente, tinham-no levado de casa numa manhã de sol quase sem gente, e ninguém mais havia falado dele, como se tivesse sido tragado por uma onda justa. Ou tivesse vindo a este mundo para provar a paciência das pessoas durante os banquetes, e eis que passado tanto tempo, de forma esclarecida, a bebedeira da sua existência pelo menos tinha um sentido. Ali estava ele travando-o, incitando-o à persistência e à espera que ele mesmo não tinha usado, protegendo-o no desarrazoamento de que era acometido face à sua aventura com Anita Palma. Não era estranho que o seu hemisfério direito juntasse os dois sob o mesmo impulso? Afastava-se do pano que cobria a porta intermitente.
Não, não era estranho - Tinha pensado o Engenheiro, envergando ele mesmo o robe cor-de-vinho, com as bandas abertas e o cinto rojando pelo chão. Se ela viesse, se ela batesse e o chamasse, então despi-lo-ia, ou melhor, deixaria que a coquine colocasse a cabeça no seu ombro esquerdo, e com a mão direita, envolvê-la-ia no amplo tecido do robe que penderia por acaso. As pontas do cinto andariam pelo soalho. Então fecharia as duas bandas, ataria as pontas, e a Starlet ficaria entre ele e o robe como afinal, para uma hora posterior, ele havia imaginado. "Ok, ok" - Murmurou o Engenheiro, na certeza absoluta de que ninguém o ouvia, rodeado de móveis que lhe delimitavam o passo. Sentia vontade de abandonar uma parte daquela noite ao sabor do acaso. Não tinha sido exactamente por obra da coincidência que ela afinal havia acabado por vir sentar-se no veludo do seu Rover? - Perguntava ainda, deambulando entre a janela e a escrivaninha, nesse primeiro dia, sendo cedo para procurar a sala de jantar, e tarde demais para pensar num novo plano.
Porque Anita Starlet, que do outro lado por certo se mudava, ele a tinha encontrado por alguma coisa ainda mais frouxa do que o acaso, no sótão da casa do Fausto Maia, e contudo, poderia nem ter aparecido nesse banquete de anos, detestando como detestava os desperdícios da autoglorificação do seu parente. Ainda por cima nem coincidia com o verdadeiro dia de aniversário. A casa possuía dois brutos mármores suportando a porta da entrada, que era de xadrez. Mas as mesas estavam espalhadas fora, sob parreiras onde haviam deixado as uvas mais serôdias, e as folhas velhas tinham sido cortadas uma a uma, de modo a que o esplendor dos sarmentos estivesse exposto. Esse cruzamento entre a elegância e a fartura havia dado imensa paz ao banquete que era volante, e tudo havia sido tão perfeito, desde o peixe vermelho à fruta, que se diria estar a viver num local destinado à intemporalidade.
O único senão havia consistido numa pedra, uma só, mas pesada e atirada sem dúvida por mão vigorosa, que tinha caído sobre a travessa onde se encontrava a espinha do grande peixe. Era surpreendente que assim fosse, pois à volta do gradeamento apenas um bando de garotos muito pequenos e tisnados tinha passado a tarde a olhar.
Mas já haviam sido enxotados e naquele momento, andavam longe, a brincar na linha. Quem tinha atirado a pedra? Fausto Maia havia mandado vigiar o jardim e o quintal - que afinal era também um jardim - e tudo tinha serenado. Ele mesmo, o aniversariante, em camisa de seda, se metera num carro a patrulhar as imediações, sem qualquer resultado. Mas estava tão agradável esse fim de tarde que o incidente da pedra havia servido admiravelmente para se falar, sob o último raio de sol, da decadência do respeito do homem pelo homem. Disseram-se a propósito palavras graves, e algumas expressões em italiano e inglês. Excelentes gargalhadas. A propósito do peixe, a vida e o seu fulgor excitavam-se assim no lindo pátio - E ele?
Com as mãos atrás das costas, o Engenheiro havia entrado em casa e começado a subir, e então tinha ouvido música enquanto percorria as escadas na direcção do mezzanino. Não era, contudo, verdadeira música, era antes uma voz. Uma voz ao mesmo tempo quente e fria que Fausto Maia havia sem dúvida deixado por negligência a rodar no prato. Aproximou-se. Seria um disco? O Engenheiro tinha subido dois degraus. Era pelo menos uma gravação, mas na gravação havia ruído de outras vozes, suspiros, talvez. Não distinguia bem. Os suspiros vinham dali ou de muito longe? De longe vinham as gargalhadas das mulheres sentadas nas vergas do jardim. Subiu mais. Subiu ainda e percebeu que a voz era impelida por uma respiração. A respiração fazia-se ouvir como um sopro que acompanhasse e modulasse a voz, independentemente dela. Subiu mais dois degraus. A voz crescia, descia, vibrava, desaparecia e depois da aspiração de novo recomeçava. Por mais esforço que fizesse não conseguia perceber a língua que ouvia. Aliás, não sabia se era uma língua, sabia que era uma voz. Aproximou-se da porta. A voz saía da boca vermelha duma rapariga.
"Era alguma coisa bem mais ligeira do que o acaso" - Tinha lembrado.
Sim, estava encostada a uma estante do sótão, e sentadas sobre umas pequenas camas, havia mais três ou quatro raparigas da mesma idade que se viraram quando ele apareceu no limiar. Mas aquela que assim proferia aqueles sons estruturados por uma respiração tão activa como se movida por uma branda tempestade, continuava sem desviar os olhos da janela por onde a tarde desaparecia a pino sobre o mar. Visto de lado, o cabelo escorrido parecia negro, e a pele do rosto era dum bege cor-de-rosa. Trajava um pequeno vestido de praia, mas não devia ter apanhado muito sol, e o Engenheiro teve a visão de que se encontrava nua. Branca, cor-de-rosa e lisa como uma estátua em sabonete saindo da espuma, a rapariga estava nua. Como era possível? Na totalidade de mulher e voz, a nudez imaginada da rapariga era uma figura gloriosa, pois não incluía sombras nem fendas, e uniformemente, era toda da cor da cara por onde a voz saía. Ele estava na porta, no seu limiar, e a nua não se calava. "Este momento é retirado dum outro tempo, dum outro lugar, dum outro sótão, duma outra vida e pertence a uma outra rapariga que eu conheço..." - bizia consigo, ferido e torturado. Imensamente ferido, a maçã-de-adão esmagada, ensanguentada por dentro, caindo-lhe no colo do corpo, derretida, surpreendida e envenenada. A imagem que via encostada ao móvel, que não se calava nem se movia, ou era fictícia ou estava repleta de veneno. "Veneno, veneno!" - tinha ele dito, percebendo que o seu próprio pescoço, tanto quanto os seus pés, não conseguiam mover-se sobre o limiar.
Mas tinha sido ele quem havia gritado por veneno? Ele, Geraldes, o Engenheiro? Acaso dentro da tranquilidade de si mesmo existia a pessoa que tinha tido a ousadia de vir à porta de um sótão, onde quatro raparigas ateavam o clube da sua juventude, e era ele quem estava a dizer veneno? Sentia as faces arderem sob os óculos. Sentia sim, e porque sentia, ia descer as escadas de madeira como se nada fosse, pondo um pé aqui, o outro ali em cada degrau, despedindo-se a cada passada da volúpia provocada pela visão. E os seus sapatos começaram a dizer, à medida que ele inteiro descia - Mais longe, mais longe, cada vez mais longe, Engenheiro Geraldes.
Elas, porém, tinham assistido o suficiente para se alvoroçarem, e com guinchos que eram verdadeiras chamadas, colocaram-se na escada. Riam. Filhotes de milhafre, trinavam, batiam as asas, sacudiam as caudas, e depois os seus gorjeios dispersaram-se pela sala onde os convidados de Fausto Maia se tinham acoitado da noite já fresca que caía, e do perigo de estúpidas pedradas. Com o desaparecimento do sol, as mulheres sobretudo, estavam augurando um enorme assalto àquela vivenda rica e às suas próprias, sentindo-se ameaçadas nos haveres. Deliciosamente perseguidas e intimadas por vultos escuros que as invejavam. Também os homens se preveniam contra os vultos com pedras a que a mudança conseguia felizmente tirar a voz mas não a violência. E no meio de toda aquela gente comendo em pratinhos de fina porcelana, e ocupada com presumíveis furtos, as quatro ou cinco raparigas descidas do sótão, eram as únicas que olhavam a manhã seguinte sem receio de qualquer risco.
Sentavam-se dispersas, depois uniam-se, para voltarem a dispersar-se, combinadas, as filhotes de milhafre. Ela mesma, a rapariga da voz, era outra. Tinha-se vestido de preto, tinha pintado a boca de vermelho mais vermelho, e com passo largo, atravessava a sala sacudindo o cabelo dum modo estranho. Metia a mão por dentro dele, virava-o, repunha-o no lugar e havia nesse gesto uma excitação de frívola que magoava muito. O que tinha feito a ilusão do seu ouvido! E a pouco e pouco, como se concertadamente alguma coisa de propósito o castigasse, tinha sabido que se tratava da anfitreã dum restaurante, e que entre as onze e a meia-noite, às quintas e sextas-feiras, com acompanhamento de piano, durante meia hora, cantava. Também havia ficado a saber que fora o Fausto Maia quem a tinha encontrado desorientada numa praia próxima e lhe havia arranjado o restaurante, e que por isso, a ele e à mulher, ela dava beijos a qualquer hora e chamava salvadores. O restaurante, apenas com dez mesas espalhadas por um vasto espaço, tinha o nome de Toque-de-Classe. À mesa central do restaurante, Fausto Maia fazia girar, ia para um ano, a sua corte mais discreta. E ela? Ah! Ela era uma pena não dispor de letras próprias, nem melodias suas. Ainda por cima tinha começado por cantar o reportório duma cantora ligeira com nome de gata e ares de duquesa, a fútil Milva, intérprete dumas óperas cujo nome era indecente dizer em português. A imitar-se deveria ser alguém superior. Porque essa, por muito que se pintasse de ruivo, jamais perderia o salitre adquirido enquanto filha de peixeiros. Porque não mudava ao menos de modelo? No entanto, cinco anos atrás, toda a gente ouvira falar de Anita Starlet. Quem não se lembrava de como dizia bem Jenny dei Pirati e Barbara Song?
"Pero ha perduto la voce, l'intonazione..."
"Si, ha perduto tutto. Adesso è una pallida ombra..."
"Una puttana..."
Pelos cantos da sala onde se impregnava a festa de anos de Fausto Maia, a aparição do Engenheiro ia recebendo machadadinhas, uma a uma, até ao assassínio completo da primeira imagem. Meu Deus, o que fazia a vista e o ouvido a um homem sadio com o sentido das realidades! Mas era preciso ser modesto e aceitar a vida com sua mistura de estrume. Cada pessoa superior devia ter dentro de si imagens inestrumáveis para se salvar. Ele tinha, ele sabia que tinha, que junto do seu raciocínio claro dispunha de figuras salvadoras que o levavam sem peso para o lugar da felicidade completa. Não precisava daquela rapariga vestida de preto que por acaso tinha encontrado, durante instantes - três, quatro, cinco instantes - depois do mezzanino, no último lance das escadas. Na noite do aniversário, a rapariga concreta, com boca vermelha e cabelo em movimento, despenteado para um lado como uma copa de árvore desengonçada, sentava-se nos braços dos sofás, fechava um olho mais do que o outro, tinha aceite uma cigarrilha que não fumava, e à sua volta as outras, da mesma idade, sacudiam-se e agitavam-se. Ele bem as via. Rondavam-no, traziam-lhe de comer e de beber, depois aproximavam-se de Fausto Maia como aias, mas era a ele, o Engenheiro, que queriam capturar para troça das suas noites destemidas.
Não ia nessa, não. Como um homem digno, consciente da sua taxa de bolor, distanciava-se do bulício. Mas aí, a rapariga a quem uns tratavam por Anita e outros por Starlet tinha-lhe estendido um copo com pé alto que por ali havia, e posto nele uns olhos faiscantes. Meu Deus, seria que ninguém naquela sala entendia o que se passava? Fausto Maia, que em pessoa havia comunicado à polícia e patrulhado o quarteirão munido da defesa necessária, de vez em quando atravessava os grupos, chamava o Engenheiro, punha-lhe a mão pelo ombro, puxava-o para si e falava dos grandes cães ferozes que haveria de prender nos quatro cantos do jardim. E sob um rasgo de impulsividade, havia-lhe falado em irem os dois sozinhos jantar despreocupadamente no Toque-de-Classe. E ainda tinha tido tempo de o prevenir - "Mas nunca se sabe bem quando ela vai. Ora aparece, ora desaparece, essa coquine".
Fora ao Toque-de-Classe, sim. A princípio com Fausto Maia, depois de moto próprio com convidados especiais, passado algum tempo tinha ido sozinho, e a coquine, de meia preta e boca vermelha, lá estava sempre, repleta. Tomava os casacos e as pastas como as secretárias, perguntava pela saúde como as filhas, e narrava a ementa como um conto. Debruçava-se para o interior das mesas como as meninas, falava com as duas mãos entre os joelhos como as crianças e às quintas e sextas-feiras, cantava de pescoço comprido como as divas. Curiosamente, porém, cantava em alemão. Ela mesma anunciava, como num serão doméstico - Kleiner Haushalt, Loewe! Ich atmet' einen linden Duft, Mahler! E Pimpinella de Tchaikovsky. Pequenos Lieder, composições que se recusava a repetir para não maçar. Parecia outra. Mas a voz era a mesma do sótão. Desamparada, estruturada sobre uma tessitura mais grave do que a melodia impunha, por vezes quebrada a meio como se a respiração faltasse e um sopro que não houvesse lhe acudisse. Ela chamava a voz que de repente ficava branca e fria e logo terminava. Havia quem fechasse os olhos de transporte quando as gotinhas de canto se extinguiam sobre as toalhas rosa do Toque-de-Classe. Eram sobretudo homens burocratas. Depois, retomavam o jantar. Mas quando o Fausto Maia estava presente, ela cantava para ele e o seu grupinho endinheirado Och Mod'r, ich well en Ding han!, com pequenos saltos como os grilos. A cidade enchia-se agora de recintos caros pagos por conta de outrém onde era possível comer e conversar como os Romanos, e nos Ruivos marcavam-lhe encontros nos restaurantes mais diversos. Era um homem de compromisso e de rigor consigo. Aceitava. Mas quando a porta do carro se fechava, ele sabia que só no Toque-de-Classe existia um fósforo que, iluminando o escuro, o chamava como se fosse um sótão. Incomodava-o essa dependência e ele mesmo tinha dado instrução para que não mais se marcasse jantar naquele restaurante onde esse estranho calor luzia. Tinha decidido mesmo que seria aquela noite a última vez. Era Novembro, chovia desabaladamente contra os vidros do Toque-de-Classe. Fausto Maia estava presente com uns italianos magros e pediu que excepcionalmente ela dissesse a Balllata per una Ragazza Annegata.
Ele mesmo havia começado a cantar antes dela, mas a rapariga havia-se negado e Fausto Maia, chamando-lhe mundana, partira os copos como um selvagem. Ele tinha-se interposto entre a Starlet e os vidros. Chovia como um dilúvio. Então, o Engenheiro havia enfrentado a realidade como era.
Na manhã seguinte, com a maior discrição, tinha mandado sondar sobre o passado da rapariga rumorosa. Contudo, só passados três meses, haveria de a trazer sentada-no veludo do seu carro, em segredo, até À Casa do Leborão.
E agora ali estava ela ao lado, à sua espera, por certo acabada de mudar, e de novo abusando do acaso, o Engenheiro Geraldes não tinha combinado nada, nem tinha um plano. O telefone poisado na escrivaninha nua não ligava de quarto para quarto, apenas chamava a portaria. Deveria afastar o fustão e bater à porta intermitente? Deveria sair pé ante pé e bater por fora? Não queria precipitar-se.
Fez algumas voltas diante da tapeçaria lebreira, de robe aberto, com as pontas rojando o chão, até que a meio do recinto que lhe parecia familiar, teve uma ideia reparadora.
Tomou uma daquelas folhas com timbre e escreveu rapidamente - Esta casa tem silêncio em demasia. Se jantássemos? Empurrou a folha sob a porta. Esperou. Seria que a coquine ainda não havia dado pela porta? Mas havia dado, sim, pois não tardou que a folha regressasse - E este quarto tem conforto em demasia. Como pode uma pessoa despegar-se dele? O Engenheiro correu para a escrivaninha nua, de monge. Sim, a coquine havia dado pela porta. E teria a porta do lado dela também uma chave? Com sua letra certa, virou a folha e escreveu - E o seu quarto confortável - não o meu - tem demasiadas portas. Sob a porta, a folha de papel regressou. Ah! Ah! Mas as portas têm demasiadas chaves. O Engenheiro sentiu a alegria absoluta apoderar-se de si, como num jogo. Escrevia agora, atravessando a folha - E há quem tenha duas mãos para as rodar. Com a mesma letra, grande e redonda, ela respondeu - Ah! E há também quem tenha um sono de morrer! Ele leu. E leu ainda. Sabia que se tinha desembaraçado de todos os olhares, que se encontrava protegido de toda a intromissão alheia, mas mesmo assim, olhou em redor antes de beijar o papel. Aliás, não só desejava beijá-lo, mas amarrotá-lo e comê-lo. Impregná-lo na circulação do seu corpo como um álcool. Em frente ficava o espelho onde se via. Não tinha pudor? Não, não tinha pudor porque tinha paixão, esse sentimento transitório que era necessário saciar antes que destruísse a pessoa de reclamação.
Aliás, se ninguém ali estava para testemunhar, ele bem podia dobrar em quatro e em dez aquele papel, e amarrotá-lo entre os dedos como se fosse cabelo ou seda dela mesma. Não era um simplório que ignorasse as coisas da paixão. Sabia muito bem que tanto a palavra quanto o sentimento que lhe haviam dado origem existiam, mas constituindo um perigo para o equilíbrio da construção sadia, não tinha cabimento mostrá-los no mundo que passava. Onde teriam as pessoas escondido esse sentimento e essa palavra que não se via? Possivelmente, envergonhadas, as pessoas deveriam escondê-los no fundo das carteiras, ou entre a cinza do tabaco. E desembaraçar-se-iam dele no lixo ou junto às fezes, o único produto humano que ainda verdadeiramente se escondia. Tinha pensado nisso de relance ao escrever a primeira parte do seu discurso sobre a preservação da água. Mas agora, um desejo enorme de silêncio e intimidade o assaltava diante do papel dobrado em dezasseis, como um rapaz. E sentindo-se de novo impelido para uma região secreta, fechada a sete chaves como uma latrina, mas rodeada de panos móveis como uma tenda, tomou nova folha e sob os coelhinhos adormecidos, o Engenheiro escreveu - Boa noite, minha querida, durma bem!
"Fosse como fosse, era preferível controlar o acaso".
Com muita cautela, espreitando-se a si mesmo, colocou o robe aberto no seu sítio, mudou de calçado, e esfregando as mãos, preparou-se para entrar no corredor escuro. Tinha olhado em volta. Tudo se encontrava em ordem à imagem dum transferidor. Levantou então o telefone interno para saber se o corredor se encontrava livre. Tocou. Como se o hotel da mata estivesse desabitado, ninguém respondia, mas o Engenheiro tinha a ideia de que muito ao longe, o eco da campainha ressoava. Até que finalmente, um homem com respiração ofegante, como se tivesse acabado de correr, surgiu na linha, pediu que esperasse um instante, para em seguida lhe dizer que o corredor estava livre, indicando-lhe o percurso passo a passo, até atingir o recinto dos privados - Contava fazer uma espécie de reconhecimento do local, tomar alguma coisa leve, e rapidamente voltar ao ponto de partida.
Mas não seria com essa simplicidade que a primeira noite n'A Casa do Leborão iria acontecer.
O LUGAR PRIVADO
Não, não seria, porque o clube da mata, inexistente na carta rústica que os havia trazido até ali, não só se estendia por uma superfície plana na base dum declive, como também se espalhava por vários corpos que se tornava difícil encontrar.
Assim, o Engenheiro tinha avançado pelo corredor pouco iluminado, sabendo que deixava bem guardada a pessoa por quem havia iniciado aquela aventura passageira, mas esse corredor ainda desembocava num outro, de luzes tão foscas quanto as do primeiro, ao fundo do qual existia um guarda-vento, e só depois se iniciava a área dos privados, construída a partir do primitivo pavilhão de caça. Tratava-se por certo de alas recentes ligando corpos antigos espalhados entre o arvoredo, e só assim se entendia que o novo corredor que dava acesso aos pequenos recintos onde se tomavam as refeições, fosse uma construção quase circular, uma espécie de passagem exterior à casa. Desse modo, mais do que uma entrada furtiva que desse para um restaurante discreto, como havia imaginado, o local onde tinha parado para se certificar do percurso lembrava o acesso a uma ordem especial de camarotes, erguidos por engano num pinhal. "Manhosos!" - Tinha pensado o Engenheiro, sentindo os seus passos sumirem-se na passadeira do percurso e reparando nas armas de fogo que enfeitavam as paredes. Os autores daquele empreendimento, para protegerem a intimidade dos seus hóspedes, tinham por certo desejado que a demonstração da segurança se fizesse de forma ostensiva, e ainda que lhe parecesse exagerada a escassez deliberada de luz, não podia deixar de aceitar como boa a forma palpável de discrição que vinha ao seu encontro, protegendo-o a si e a Anita Starlet de possíveis coisas viperinas. Sobretudo, uma grande sensação de conforto o invadiu, no momento em que fechou a porta cujo número lhe fora atribuído, e se viu resguardado dentro dum pequeno recinto como num comboio antigo. "Finalmente!" - Tinha dito, amornecido de descanso.
De facto, o privado era um recinto de madeira e alvenaria, fechado dum lado pela porta que dava para o corredor circular por onde havia entrado, e do outro, por um pesado reposteiro de linho e seda adamascada com passamanaria de reflexos amarelos. Parte desse reposteiro, sendo mais curto, caía na direcção dum parapeito, formando uma espécie de janela por onde uma garrafa sobre uma bandeja seria introduzida sem dificuldade. A mesa, talvez demasiado estreita para se comer frente a frente, estava posta com rigor, e sobre ela era perfeitamente equilibrada a distribuição dos panos e dos brilhos. Em cada uma das paredes de madeira havia quadros que pela dimensão e proximidade se avolumavam como paisagens naturais. Eram vistas calmas que não tinham a ver com lembranças venatórias. De um lado, entre árvores avassaladoras, o Outono chegava com a recolha dos rebanhos, e do outro, a Primavera brotava a partir dum extenso lago. Tratava-se de gravuras a preto e branco, datadas dum outro fim de século, e o Engenheiro sentou-se sob a que representava o tempo das flores, para que no dia seguinte a vaidosa pudesse ter diante dos olhos a imagem da renascença e do vigor. Era então assim, o astuto equilíbrio dos privados.
"Gente espertalhona!" - Tinha pensado.
E quantos privados haveria? Do recinto comum apenas se conseguia observar o tecto de madeira, e através do reposteiro via-se um pedaço de pavimento de lajes aparadas. Tratava-se sem dúvida duma adaptação astuciosa, e o aproveitamento prático bastante produtivo. Sentado à estreita mesa, onde por certo o rosto da pessoa que se colocasse em frente ficaria inevitavelmente próximo, o Engenheiro não podia deixar de sentir que a Humanidade, apesar da assimetria na distribuição das águas e dos detritos de vária natureza, em matéria de conforto, tendia para a absoluta perfeição. Não revelava esse equilíbrio completo o ténue calor que ali se conseguia? O fumo duma vela que alguém tinha acendido ainda antes de ter entrado subia na direcção do tecto, e como se a chama se prolongasse, mas doutro modo, ouvia-se por perto arder uma lareira com seus pequenos estoiros. Era uma pena que Anita Palma tivesse chegado cansada e sentisse necessidade de dormir. Imaginava-a ao fundo dos corredores, sozinha, e agora que tinha visto o restaurante e o seu recolhimento, sentia vontade de voltar.
Mas não, o Engenheiro não ia abandonar o local ao mesmo tempo amplo e estreito onde se encontrava, até porque sem dar por isso, o primeiro empregado d'A Casa do Leborão tinha-se vindo colocar junto do pano do privado. Mas a pessoa que o tinha encaminhado para aquele clube de caçadores havia prevenido que não era preciso dizer nada. Discretos, os criados costumavam ficar de lado, apresentavam a lista e aguardavam que a pessoa indicasse a escolha como quisesse, com uma curta palavra ou apenas com um gesto. O Engenheiro havia ficado a observar a nesga da figura que entretanto não se movia e também não se aproximava, como se empurrada por um cuidado escrupuloso de distância. Até que por fim, nitidamente grande, o homem de que só via uma parte havia feito avançar uma mão pela abertura do privado, e tinha colocado a lista em pé, no meio dos pratos, pronunciando palavras soltas, com um tartamudear de pessoa que cumpre naturalmente o seu papel. Incomodava-o aquela presença. Rapidamente, o Engenheiro Geraldes tinha devolvido a lista e indicado um prato ao acaso. A figura corpulenta, porém, demasiado próxima, atrás do reposteiro, não se afastava. Pelo contrário, tinha antes colocado a mão sobre o parapeito e a sua voz mudou de altura.
"Desculpe a intromissão, mas se eu fosse o senhor escolhia uma refeição diferente..."
O Engenheiro não esperava entabular conversa com a pessoa, e imobilizado no seu posto de vigia, decidiu escutar.
"Se eu fosse o senhor, preferia verdura ou caça."
Verdura ou caça? O Engenheiro fazia um esforço para se lembrar do que tinha escolhido. Deveria pedir de novo o menu? Deveria perguntar onde o acaso o levara a colocar o dedo sobre a lista? Deveria responder? - A pessoa que o havia instruído tinha-lhe dito que sobre assuntos anódinos se poderia trocar impressões rápidas com o pessoal d'A Casa do Leborão, uma vez que se tratava de gente segura, mas preferível era mantê-los à distância sempre que possível. O Engenheiro ainda não sabia se aquele seria um assunto anódino, e o criado enorme tinha-se aproximado mais.
"O senhor sabe ...É uma questão de precaução. Desde que os barcos petroleiros andam a descarregar ramas pelos oceanos, só não me importo de servir peixe aos clientes pouco especiais... Nunca se sabe ao certo quando um peixe foi apanhado em condições. Quem pode saber concretamente o que existe na água? Enquanto que na terra já não é bem assim! Sobretudo a caça, a nossa caça, apanhada em zonas demarcadas, resguardadas do todos os venenos... Ah! A nossa caça é boa como no tempo dos Cartagineses!" Sem esperar, com sua voz que era gutural como a de um negro ou de um gordo muito gordo, tinha continuado - "Caça! Um prato absolutamente leve, cozinhado com um bocadinho daqui, um bocadinho dali, seleccionado entre o melhor! Uma Fantasia de Caça, eu aconselho ao senhor..."
Mas o Engenheiro Geraldes não se tinha movido. Tratava-se duma situação tão nova e tão inesperada que se sentia no direito de continuar calado. Além disso, queria ficar prevenido para os momentos em que viesse a estar acompanhado por Anita Palma, pelo que deveria saber até onde aquele homem grande e gutural gostava de se imiscuir na vida das pessoas que não lhe respondiam. Mas a criatura imensa, vestida de casaca, por certo apenas um chefe-de-mesa protector, havia tomado uma nota em frente do parapeito com sua grande mão, e tinha-se afastado. Não tardou que o mesmo acontecesse com o vinho. Como nos momentos especiais, o Engenheiro escolhera um branco de Colares, mas o escanção, uma figura que se aproximava com sobriedade, desaconselhou a escolha com o cuidado duma dona de família. Tinham Colares só que infelizmente não garantia que em matéria de temperatura estivesse acima dos doze graus. Além de que casava mal um branco com a caça. Também falava imenso, também se debruçava, a sua mão ia e vinha com a cartilha dos vinhos acenando como um professor. O especialista do álcool d'A Casa do Leborão aconselhava naquela noite, e com a caça desfiada, uma cepa bordalesa. E depois, entre os estoiros da lenha crepitando, também o seu pé tinha desaparecido além do privado, pelo pavimento de pedra da sala de jantar.
"Um pouco exagerado, não?"
Tinha pensado o Engenheiro, acolhido no canto da sala que não via. Era a primeira noite que usava um restaurante concebido com semelhante resguardo, e por instantes, pareceu-lhe a protecção excessiva, e o esforço que havia feito para se encontrar ali, até uma imprudência. Seria necessário tanto para uma pessoa se manter tranquila? Talvez alguma coisa tivesse mudado desde que o amigo que lhe indicara o clube o havia deixado de frequentar. No entanto, o silêncio era tão grande e os pequenos ruídos ganhavam ali dentro um eco tão intenso, que rapidamente tinha mudado de opinião. Na verdade, agora que se encontrava no local onde parecia não haver mais ninguém, concluía que se o pessoal fosse parco de palavras, talvez o aparato de protecção ao encobrimento exercesse um efeito pernicioso sobre quem procurava paz e distensão. Se de moto próprio não falassem, se não se intrometessem, não se arriscaria a ser aquele salão pouco mais do que um recinto onde os sapatos dos criados faziam rataplam pelo pavimento? Espreitou de novo pela abertura do pano, na direcção de onde provinha a luz vermelha do fogo. Não, aquele exagero não era um exagero, era uma exigência da totalidade dum serviço de mesa naquelas condições, e mesmo que fosse um exagero, o que ele pressupunha era-lhe agradável. E à medida que os homens vestidos a rigor serviam pela sala onde apenas deveriam jantar duas ou três pessoas a avaliar pelas vozes, a sua reserva amolecia. "Que bom! Que bem!" - Pensava. E assim, quando a figura parcimoniosa se inclinou para despejar um Château de Beau Rivage cor de beringela, levado por uma onda de inteira confiança e desejo de troca de palavras cúmplices com quem quer que fosse, o Engenheiro deixou que o acaso se intrometesse no meio daquela primeira noite. Então, como o homem corpulento acompanhava a operação do vinho, tinha-o chamado. Perguntou pouco.
"Ouça! Pode dizer-me porque está o hotel tão mal iluminado?"
O homem enorme inclinou-se. Havia colocado as mãos possantes no parapeito. No anelar esquerdo um anel de oiro brilhava de amarelo. Junto do reposteiro, o seu vulto também recrudesceu. Tinha-se inclinado todo para diante junto do pano, como se pretendesse que a resposta fosse vasta.
"O senhor não sabe porque está pouco iluminada?"
"Não sei" - Mentiu o Engenheiro.
"Pois bem!" - Tinha dito o homem cheio de espanto. "Vai ser então uma boa surpresa para o senhor..."
- O criado grande havia de tal modo arrumado a cabeça ao pano separador que nele praticamente se lhe desenhava a testa. E de algum modo perplexo, como se quisesse explicar com rigor alguma coisa de importância decisiva, o chefe - pelo jabot que usava não podia deixar de ser o chefe - disse, baixando a voz até ao limite de se ouvir - "Está assim, quase sem luz, porque nós queremos combater o excesso de visibilidade..."
"O excesso de visibilidade..." - Tinha dito o Engenheiro, surpreendido com o aparato de secretismo.
"Sim, sim! Sabe-se, desde há uns anos a esta parte, que a visibilidade do dia que se prolonga pela noite está trucidando o equilíbrio das pessoas e alterando o comportamento das sociedades humanas. E o senhor sabe porquê?" - Tinha-se inclinado mais. "Porque todos vemos tudo durante o dia e todos vemos tudo durante a noite, independentemente do dia e do local que for. Ora ainda que não queiramos, dentro da nossa mente, a noite está a confundir-se com o dia e o dia com a noite e isso não é bom. Por alguma razão o planeta ora está na claridade ora na sombra como um pião. O senhor não acha que a continuarmos deste modo, a configuração das pálpebras poderá mudar?"
"Acho, realmente eu acho..." - Tinha dito o Engenheiro, levado pela fantasia extravagante de falar contra a razão, com um homem de quem não via o rosto nem conhecia o nome.
"Ainda bem que acha!" - Respondeu o criado de corpo imenso. "Só que os biólogos hesitam se será no sentido de as perdermos como os peixes, se no sentido de se reforçarem como unhas. É horrível imaginar a deformação da espécie e a alteração de todos os hábitos que nos constituem, incluindo o amor. É por isso que mantemos o mais possível, nesta casa, a distância entre a noite e o dia. Pela beleza das pálpebras e pelo amor!"
"Pelo amor?" - Perguntou involuntariamente, sentindo-se levar pela imagem abstracta duma felicidade estranha, pois provinha apenas da elocução dum nome. Fechou os olhos.
"Senhor, aqui mantemos tudo o que diz respeito à natureza do amor, incluindo a sombra e a penumbra ... Onde não há sombra nem penumbra como pode realizar-se o amor?" - Atrás dos tecidos pendurados, a quente voz de homem forte demais parou também. ele parecia hesitar. "Interessante que o senhor não tenha sabido desta finalidade, e no entanto, tenha procurado a nossa casa! Porque a procurou então?" - E curvando-se até mostrar por completo o papo da camisa, mas nada mais que o papo, tinha saído da estreita nesga da janela do privado, deixando passar livremente a crepitação do fogo.
"Cretino, grandessíssimo cretino!" - Tinha pensado o Engenheiro Geraldes, enquanto ouvia o homem. Havia, contudo, naquele serviço alguma coisa indefinida, ao mesmo tempo estúpida e ao mesmo tempo coerente, que lhe conferia segurança sem saber porquê.
Aliás, cheio duma bonomia que o punha de bem com tudo e todos, mesmo com aqueles a quem naquele instante traía, o Engenheiro deixou-se levar pelas garfadas soltas da Fantasia de Caça e pela protecção daquele ambiente onde a sua alma amornecia. Mas Anita Palma, o que iria ela achar? O que diria? Teria medo daquela sala invisível e quase vazia onde os sapatos mais do que as vozes batiam no antigo lajedo como pancadas de tambor? O que pensaria daquelas figuras que falavam encobertas? Sentiria como ele que eram sombras boas tutelares, movidas por línguas vivas e raciocínios pobres? Ah! A coquine por certo iria compreender que era necessário que assim fosse para se protegerem, e sentindo-se defendida, iria até apreciar. Além disso, com a aproximação da sexta-feira, por certo que haveria bulício suficiente para que se sentisse o restaurante d'A Casa do Leborão como um recinto vivo. Várias vezes ela havia mostrado desejo de tranquilidade, mas ele conhecia suficientemente a juventude para saber que aos vinte anos o sossego não podia ser nem intenso nem prolongado, sob o perigo de nele avistarem os jovens uma aparência de fim. A prova disso é que ela se havia inquietado com a frequência da casa, a propósito dum .indício tão insignificante quanto a terra na água das torneiras. De facto, além do rumor do fogo, nada se ouvia naquele recinto como se fosse fora de horas. Os pequenos grupos - possivelmente entre três a cinco pessoas na totalidade – deveriam ter abandonado a sala de jantar enquanto se entretinha na conversa com o chefe de corpo grande. Além dos seus próprios talheres não ouvia outro tinido contra o prato, nem uma palavra, nem um chamamento. Apenas os sapatos de um ou dois criados afastando-se. Então, quando um outro rapaz que perfilava o corpo na janela como um junco lhe veio estender um prato, com mão franzina, e o seu pequeno peito apareceu até ao pescoço na abertura do reposteiro, o Engenheiro chamou-o.
"Este silêncio é sempre assim?" - Tinha perguntado.
O estreito peito deveria ter sido treinado pelo chefe. Usava a mesma postura, imitava aquela mesma voz sem o conseguir, só que ao contrário do criado grande, não parecia querer falar.
"É sempre, sempre assim?" - Insistiu o Engenheiro.
O homem pequeno voltou a hesitar. Deveria ter colocado as mãos atrás das costas, pois seu ventre esticado fazia agora um arco.
"O que quer que lhe diga?"
"A verdade! "
"A verdade..." - O franzino pôs-se a rir atrás do pano.
"Sim, a verdade sobre este silêncio" - O Engenheiro pensava em Anita Palma com alguma tortura. Supondo uma queixa que a rapariga viesse a apresentar com ou sem razão, imaginava-se de volta, levando-a para um sítio concorrido, muito longe, entre gente duma outra raça, uma cidade onde ninguém os pudesse reconhecer, mas entre pessoas, gente, se necessário um formigueiro de gente, cheio de rumor e vida. Pensando nesse recurso, a sua inquietação subiu de tom.
"Diga-me se é sempre assim este silêncio! "
"Nós bem gostaríamos, mas não senhor..."
"E não senhor, porquê?"
"Porque infelizmente nem todos vêm para descansar. Há pessoas, por exemplo, que só conseguem partir dos locais onde se encontram trazendo também os cães. Mas os hóspedes que não conseguem desembaraçar-se dos animais e dos apetrechos de caça, esses ficam doutro lado..."
"Quer dizer que há outro lado..."
"Há quatro lados, mas só um deles é reservado às pessoas que trazem cães. Há mais pessoas que trazem cães do que quartos livres desse lado. Por vezes é difícil distribuir tudo isso em conformidade com o silêncio..."
"E partem muito cedo com os animais para as batidas?"
O rapaz do peito estreito falava de frente, como se quisesse colocar a boca dentro do privado, mas tinha suspendido o que ia a dizer, sem dúvida porque alguém atravessava a sala. Deixou que os passos desse outro se sumissem. Deveria haver ao fundo uma porta bailarina. Então continuou.
"A questão é que não partem para a caça, não senhor. Ficam ali os cães o dia inteiro. E como vêm nas noites de luar, os animais ladram, ladram desesperadamente. Por mim não os posso ouvir. Nessas noites, tomo a minha carripanazinha ao fim do meu serviço, faço trinta quilómetros, mas durmo descansado..."
"Muito bem!" - Tinha dito o Engenheiro generoso, com a cabeça quase encostada ao quadro onde estava gravada a linda Primavera. "E essa lua?"
"Oh! Ainda está muito longe! Mas mesmo assim, amanhã, já o senhor não terá este silêncio. Como se sabe, o ser humano é sempre ruidoso. Tenho pena das pessoas que aqui vêm à procura do silêncio completo. Não há, senhor, não há ... "
"Não, não há..." - Tinha repetido.
Mas então haveria de acontecer um pequeno incidente - A mão franzina e pelada do criado estreito tinha-se introduzido pela abertura do privado, e fazendo um côncavo com a palma, não se movia. Persistente, sem rosto que se intimidasse, a desavergonhada mão avolumava-se no interior do recinto oculto com uma imobilidade que parecia uma ameaça.
"Está bem, está muito bem..." - Começou por dizer o Engenheiro, escandalizado.
Durante os últimos anos, o Palacete dos Ruivos tinha-lhe proporcionado o afastamento de cenas daquele tipo, e havia-lhe feito esquecer a realidade do vício pedinte do seu povo, próprio das sociedades raquíticas em haveres. Mas o regresso à convivência com o hábito vicioso fazia-se rápido. Quem poderia esquecer esse espectáculo inevitável? O presente caso apenas se tornava chocante pela circunstância insólita em que acontecia. Deveria dar-lhe uma moeda? Duas? Três? Por outro lado - a mão permanecia estendida o tempo suficiente para que se examinasse duma outra perspectiva - sucedia que estava ali, longe de todos os deveres, faltando em lugares inadiáveis, mentindo contra seu hábito e formação, por ela, por Anita Palma, a Starlet que dormia, e esse facto não o deixava indiferente. Avaliando tudo isso, o Engenheiro depositou, no meio da mão estendida, uma valiosa nota dobrada em quatro. "Deixá-lo!" - Era curioso o rumor do seu novo estado. A sua nova vida. Assim, quando o rapaz franzino desapareceu, ainda se arrependeu de não ter duplicado a nota. Apesar de tudo, A Casa do Leborão oferecia-se-lhe como um lugar maravilhoso onde o essencial se encontrava à mão. A cada pessoa amável que se encontrasse dever-se-ia dar não duas, mas três ou quatro notas. Acaso cinco dias de lazer resguardados de tudo e todos tinham preço? - Divagava o Engenheiro, descobrindo em si, tardiamente, a natureza rumorejante dum amante perdulário.
"Que bom! Sinto-me bem, bem!" - Tinha dito. O fluxo de bondade que em si crescia provinha sem dúvida do ambiente que o rodeava, uma espécie de mistério feito de propósito, e contudo morno, indispensável.
E um grande reconhecimento para com a pessoa que lhe tinha aconselhado aquele lugar o tomava por inteiro, agora que percorria de volta os corredores tranquilos bem atapetados, como se tivessem aguardado desde sempre o seu passo lépido e furtivo, para o abafarem e protegerem como uma capota interminável. Perto do guarda-vento, o relógio de parede soltava um tiquetaque compassado de seu longo pêndulo como numa casa de família. Batia as meias horas. Era tal qual o que o Moura lhe dissera - "Em chegando lá, uma pessoa compreende como por aí fora nos desviam e maltratam. Vai, vai..."
"Sim..." - Tinha ele dito em seguida, procurando no soalho do quarto o possível lugar para as alpergatas onde Anita Palma poria os pés, se acordasse e batesse à porta intermitente, coberta pelo fustão, e sobretudo se depois quisesse entrar.
Agora uma pequena auréola da luz espalhava-se na tapeçaria lebreira, e o fundo criava uma sombra quente também acolchoada. Era tudo verdade o que o Moura tinha prometido, à excepção do silêncio e da loquacidade do criado grande. E pensar que durante anos e anos havia feito parte do grupo dos que haviam engrossado um caudal de suposições estranhas sobre a figura enigmática do ex-sócio, a pessoa que o tinha encaminhado. Não parecia tragicómico, passado tanto tempo, vir a visitar essas suspeitas de devassidão, no lugar próprio? Equívocos, só equívocos... - Concluía à medida que invocava o Moura, e a curiosa história do cruzamento de números de que se falava sobre si, à hora do café.
Era nessa altura um tipo interessante - Havia lembrado. Mas ninguém tinha a certeza se era verdade o que constava. Dizia-se que aos dezanove anos o Moura havia casado com uma mulher de quarenta e cinco, que o tinha recebido numa vivenda onde havia de tudo, desde uma gloriette a um cavalo que reconhecia os donos pelo fumo. Aos trinta havia feito entrar pela porta da primeira uma rapariga de dezanove, e aos quarenta, uma outra de dezassete anos e um mês. Quando o Moura contava quarenta e oito, a mulher de dezassete tinha vinte e cinco, a gloriette havia sido corroída de ferrugem e o cavalo havia desaparecido havia muito. Então - e só então - se tinha mudado, mas o mais importante é que ao tempo da mudança, possuía dois Panhards e tinha fama de levar crianças de treze anos para lugares longínquos. Havia mesmo quem falasse duma menina de onze. E outros duma menina negra. Riam, as pessoas riam e desconfiavam.
Se assim era, na altura em que se constituíra sociedade com a firma onde também trabalhava o Engenheiro Geraldes, essas práticas deveriam fazer-lhe bem, pois apesar de ser um homem atarracado e de grande nariz mouro, mantinha o cabelo luzidio e o bigode aparado como um sedutor dos anos trinta. A boca era carnuda. Progredia na vida, tinha bons modos, falava imenso do mundo e pouco de si. Não mantinha caso amoroso com quem quer que fosse da empresa. A polícia, que se soubesse, nunca o incomodava a não ser por irregularidades de estacionamento, já que por vezes, deixava o Panhard indecentemente estacionado diante de garagens. E se era verdade nunca ficar na firma para além das seis da tarde - porque tinha o hábito de massajar-se, banhar-se e nutrir-se antes da noite - esses costumes deviam ser profícuos. De manhã aparecia dinâmico e empreendedor. O rasto que existia dessa vida secreta, quanto muito, poderia ser o modo voluptuoso como se sentava e se movia, sem jamais mover o pescoço. Mas não eram esses gestos o efeito da elegância sobre um corpo baixo e atarracado? Um dia, o Moura despedira-se da empresa comum sem explicações. Ah! O que as línguas viperinas tinham dito! Constava que iria viver de negócios estranhos e casas secretas, e uma aura de prestígio e de mistério se tinha construído em torno da sua imagem como o desenho dum puzzle resplandecente. Mesmo durante o jantar de despedida, corria que teria dito para as senhoras escutarem - "Serviço é serviço, mas o amor, esse só se experimenta sob o vapor do crime". Parece que o teria dito chocarreiramente, contudo, o que então a si lhe parecera mentira e depois enigmático, tornava-se-lhe agora compreensível e desculpabilizador como uma carta de alforria. Fugir, fugir através da superfície da Terra com lindas raparigas, de repente parecia-lhe não só natural e legítimo como absolutamente imprescindível à compreensão do ser humano. Ao fim duma corrida partilhada desse modo, rematada por pleno descanso numa pousada escondida, deveria existir para além do puro bem-estar, uma fórmula que era desvendada, e nisso também consistiria parte substancial do prazer. Uma coisa e outra não tinham distinção nem término, só que uns sabiam-no desde sempre e outros precisavam de chegar ao fim do tempo para entenderem o fascínio vital desse sonho onde deveria existir observação e nunca crime. Ainda tinha duvidado se procuraria o Moura, mas ao chegar aí, havia apertado as mãos - O Moura era um pesquisador que se tinha assumido, não era um criminoso. Numa tarde de morrinha tinha-o procurado receoso apesar de tudo, sem saber de quê. Mas o Engenheiro, que naquele instante sem princípio nem fim olhava para o fustão, esperando ver o pano separar-se em dois, e de entre eles sair a Starlet tiritando, ria-se do receio que tinha experimentado ao procurar o ex-sócio.
Como estaria o Moura?
Iria ele ouvi-lo? Abrir-lhe-ia a porta? E abrindo estaria disposto a ajudá-lo? Se era verdade que nem sempre o defendera, por outro lado, também nunca abertamente o afrontara. Até porque, no íntimo do seu íntimo, sempre havia admirado o Moura pela coragem de não ser comum nem ter medo da censura alheia. No momento em que havia imaginado um-lugar longínquo para onde fugir com a rapariga do Fausto Maia, o compromisso subterrâneo que sempre havia mantido com esse homem, sem nunca lhe ter dito uma palavra conivente, acentuou-se. Ou melhor, tornou-se obsessivo e único, no pressuposto de que além dele ninguém mais estaria em condições de o ajudar. Olhava da janela do gabinete para a Praceta, e daí estendia a vista a toda a cidade, e não encontrava um rosto em que pudesse confiar mais do que nele. Ou não queria encontrar, pois secretamente possuía a certeza de que o Moura tinha uma chave. Tinha uma chave simples para o seu caso e iria recebê-lo. Mas se assim fosse, ele não iria pronunciar uma única vez o nome dela junto do Moura. Isso não! Sentado diante do telefone do gabinete, com a mão sobre o bucal, o Engenheiro tinha a impressão de que se viesse a pronunciar o nome de Anita Palma na conversa que viria a fazer com ele, seria o mesmo que mergulhá-la numa maré viva onde boiassem coisas estranhas. Então, movido de cautelas, tinha discado sobre a roseta do telefone o número que guardava.
"Moura? Há tanto tempo, caramba, como vais?" - Tinha perguntado.
Agora de novo com a cabeça encimada pela tapeçaria lebreira, o Engenheiro ria do cuidado austero que tinha congeminado antes de se dirigir ao Moura. Como a vida era tecida de surpresas idiotas! Afinal, ao aparecer ao fim de um dia de irritante ping-pong à porta do ex-sócio, acabaria por duvidar se aquela era a pessoa que havia conhecido. Um sofrimento havia tomado conta do Moura já que se deslocava devagar, deixando atrás um pé, e na fronte, agora menos morena, o cabelo preto rareava. Rebocara consigo o mesmo telefone, mas tinha-se mudado recentemente para um estreito apartamento, perto da Infante Santo, donde se ouviam os automóveis apitar com histeria. Percebia-se, contudo, que acabava de sair dum pequeno ginásio que por certo tinha montado em casa, embora o pijama e o robe continuassem a ser de seda. Os pés, ele os havia cruzado sobre um tamborete, não tinha sapatos e estava calçado com umas meias de lã rústica, por cima de outras de lã fina. Ao cruzá-los não procedia como um doente mas como uma pessoa tomada por um achaque passageiro, e desse gesto resultava uma compostura sóbria, própria de quem sabe que no dia seguinte pode correr e até saltar. As mãos, muito ágeis, ele movia-as com a mesma elegância de antigamente, e sem dúvida que por compensação da imobilidade inferior, eram agora muito mais expressivas. O pescoço rodava, os olhos haviam adquirido um outro brilho. Aliás, não conseguia esconder a alegria que experimentava ao receber em casa o visitante que se sentava na sua frente.
Mas essas mesmas mãos tinham ficado imóveis e os olhos haviam começado a crescer e a brilhar, quando o Engenheiro lhe tinha dito por que razão o procurava. Engoliu em seco, levantou o rosto até mostrar as narinas onde havia um pelo preto, e por fim concluiu com ar absolutamente grave.
"Certo! Se bem entendo, o que pretendes é um encontro secreto..."
"Sim, absolutamente secreto" - Tinha dito o Engenheiro, sem pretender disfarçar a importância que tal encontro tinha para si. O ex-sócio moveu-se na cadeira e descruzou os pés.
Falavam num escritório particular, cheio de restos de cabedais e tão fora de moda quanto o penteado do próprio dono. Havia ali, contudo, uma sabedoria ou um mistério posterior à sabedoria que levava o Engenheiro a entregar-se completamente. Esse saber do Moura atraía-o. O Moura olhava-o com os olhos pretos.
"Entendo. Precisas dum encontro absolutamente secreto, um encontro de alto risco, e entre todas as pessoas que conheces, lembraste-te de mim..."
"Assim é".
"Porque te lembraste de mim?" - Tinha perguntado com os olhos brilhantes como se tivesse febre.
"Não sei. Precisei dum encontro secreto e pensei em ti".
"Sim. Podias ter pensado em tantos outros e no entanto, entre todos, escolheste-me a mim..."
O facto parecia lisonjeá-lo. O Moura havia levado a mão à cabeça como se dentro dela alguma coisa corresse com velocidade. A mão parecia assegurar a velocidade do que depressa se movia. Tinha afastado a gola do pijama que ressumava a seda e era dum vermelho que continha púrpura. O robe, largo e amplo era da mesma cor, e a ambos ele cingiu à cintura espessa. Percebia-se que colocava naquele diálogo toda a sua diligência e toda a sua sabedoria. Tinha-se aproximado o mais possível do Engenheiro.
"Não vais para fora. Não te metas em sítios que te vejam... Não te esqueças que para o fim do Mundo que vás, sempre entras e sempre sais pelos mesmos sítios, e quando ocorre um deslize, é sempre longe que te procuram. Escuta..." - Tinha ele dito recostado, de narinas frementes como quem aspira uma rosa farfalhuda. "Lugar como o que procuras, que eu saiba, para uma pessoa como tu, há um só. Pága-lo bem, é certo, mas estares lá é o mesmo que deixares de existir, ou não existires em lugar nenhum... "
A respiração do ex-sócio era viva embora falasse em voz baixa. Contudo, não se ouvia ninguém em qualquer divisão da casa nem afastada nem contígua. O Moura tinha posto os olhos nos olhos do Engenheiro para que percebesse bem que no clube para onde o mandava, ele próprio não veria ninguém, ninguém o veria a ele, e ninguém ficaria a saber nem donde vinha nem para onde iria, e o modo intenso como falava, incutia no Engenheiro fúria de aproveitar e de viver.
"Mas onde é, e como é?" - Tinha perguntado.
"Schiu!" - Disse o Moura. Depois fez um gesto largo com a mão, e a direcção do seu braço levava a existência do Engenheiro para longos espaços e longos tempos.
"É isso mesmo" - Respondeu o Engenheiro percebendo.
"Meu filho..." - Disse o Moura. A chuva miudinha engrossava. Ouvia-se pingar em qualquer parte sobre um papel ou uma lata.
Mas nesse momento o ex-sócio já se tinha curvado sobre o telefone para discar os números, havia começado ora a dizer ora a escutar, e tomava notas num papel com sua mão ágil, como se a casa a que se referia tivesse estado sempre à sua espera, e houvesse chegado a hora aprazada há muito tempo. Depois tinha-lhe passado os dados que fora apontando com satisfação, e falara-lhe do recato, do silêncio, dos corredores libertos, da configuração dos privados, e sobretudo da segurança absoluta que permitia a um homem descobrir-se no local que tão vivamente lhe recomendava. E já na despedida, enquanto o Engenheiro procurava o guarda-chuva, arrastando a perna que cinco anos atrás tão lestamente subia as escadas da empresa, dispensando o ascensor, ainda lhe tinha dito para o deixar seguro - "Olha que é um clube, mas não é um clube. Também não é bem um hotel, nem uma albergaria. É e não é tudo isso, ao mesmo tempo. Mas não receies nada, absolutamente nada... Olha que n'A Casa do Leborão, quando necessário, para que te não vejam, os próprios criados servem vendados!" E havia falado das suites separadas por uma porta intermitente e por um pano que ele dizia ser vermelho e de veludo, mas que naquele caso não era assim. Pobre Moura! Por alguma coisa que não sabia definir ele lhe lembrava o seu tio. Era talvez a ideia de que ambos constituíam uma espécie de húmus tornado passivo, em prol da sua própria fertilidade. Mas isso eram imagens naturais que ele retirava indevidamente das colheitas. A verdade era bem diversa - o fustão azulado encontrava-se caído em largas pregas que rojavam pelo chão, o Moura estava ausente com suas meias duplas, e o Engenheiro imaginava a mão branca de Anita Palma a afastar os panos e sozinha, completamente sozinha, sem intervenção da lembrança de ninguém, a pôr um pé adiante e a entrar.
O BANHO
Mas como dormiria Ana Palma? Como seria a sua entrega à roupa? A sua respiração, o seu sono profundo e o seu sono leve? O cheiro do corpo ao acordar? Deitar-se-ia de lado com a cabeça apoiada sobre as mãos? Naquele mesmo instante, estaria ela quente, branca, rosada? E continuaria com a boca vermelha como ele tanto desejava? - O Engenheiro era um homem racional interessado na evolução imparável da ciência e atento às questões da humanidade, mas fazia essas conjecturas contando pelos dedos, à medida que se familiarizava com os cantos do quarto sóbrio como se fosse um esconderijo longamente premeditado. "Apetecia-me permanecer aqui. Ficar aqui escondido por um infinito tempo além de cinco dias..." - Dizia, com a respiração solta de expectativa e acolhimento, junto do tapete guedelhudo. "Ficar muito, ficar para depois..." - E olhava para o fustão pesado, completamente unido.
Na verdade, sobre a cama, o robe preparado para qualquer surpresa que viesse, encontrava-se aberto como uma figura humana. "Será aqui" - Continuava a dizer o homem apaixonado, sem ainda ter decidido verdadeiramente nada sobre a noite. Aliás, pensamentos, palavras e gestos que nem na morte revelaria a alguém surgiam-lhe num amoroso turbilhão, derrotando o esforço que fazia para se disciplinar. Sobretudo os pensamentos, desencontrados, ele os via passar em complacência, como um manso vento que em seu redor soprasse, enquanto procurava reservar uma divisão incólume, um canto livre no espírito onde construísse um plano. Mas havia momentos naquela noite em que o inquilino do Palacete dos Ruivos não conseguia concentrar-se, ainda que o entusiasmo que o conduzia nessa dispersão, ao mesmo tempo lhe ditasse a consciência clara de que até ali havia escolhido bem. No entanto, tudo o que pressupunha para o futuro era miúdo e vago, ou corria ao simples sabor do acaso, transferindo para pequenos gestos a ênfase que desejaria pôr em qualquer coisa grande como um nascimento ou uma partida a dois para sempre - Esperaria pela manhã seguinte, levantar-se-ia cedo, tomaria um banho, vestir-se-ia, leria um pouco, tomaria algum apontamento sobre o discurso e calmamente, sem tossir nem tirar os óculos, faria o encontro com ela.
Como seria, no entanto, a voz de Anita Palma pela manhã? Como seria o seu primeiro riso? As suas mãos mornas de suor? Como seriam? Como? - De novo as mesmas perguntas voltavam, enroladas e aquecidas na moleza da poltrona. Só que o Engenheiro sabia que elas constituíam em si uma parte da finalidade, não um plano. Então abriu de novo a cama com cuidado como se fosse uma mulher, e sem ruído, meteu-se entre as roupas com a respiração suspensa. O objecto do seu amor transitório também assim deveria estar do outro lado, e ambos se encontravam mergulhados no mesmo escuro da casa onde o silêncio agora, passada a meia-noite, era mortal. Naturalmente que o resto da escuridão até ao sono iria ser ocupado pelo vapor do seu desejo. Porém, mal havia fechado os olhos sob a tapeçaria lebreira, quem se acercara dele não tinha sido a rapariga do Fausto Maia, mas o homem da barragem, dançando, pulando e atirando ao ar o preto chapéu de feltro na direcção da sua cabeça. Estava vivo o homem da barragem, e tudo o que fazia era oferecer-lhe o estranho objecto escuro. Quanto tempo teria dormido? Dois, três minutos? O Engenheiro tinha-se voltado para o lado, tentando afastar aquele pensamento estúpido que inoportunamente o visitava. E regressava à figura de Anita Starlet - Como seriam os seus braços doces? O seu erguer a meio da noite? A sua postura de sono? O último suspiro antes de acordar?
Mas de novo a imagem voluntária da rapariga do Fausto Maia era substituída pela figura do homem da barragem sob a acção dum pequeno coice. Só que da segunda vez quem entregava o chapéu não era o homem da barragem. Era ele mesmo quem retirava da sua própria cabeça essa peça arcaica de vestuário e a si a entregava. Com esse objecto ora na mão ora nos olhos andava sobre a albufeira da barragem, aproximava-se das comportas, e depois, em sonho, o Engenheiro voava. E voava bem, pois voava alto, voava sem medo de cair, vendo a espuma rodar sobre as turbinas, pequeninas e distantes, como um grão de milho. E no sonho o voo do Engenheiro, ora com chapéu ora sem ele, era simultaneamente uma delícia e um pesadelo, já que o voador sabia ao mesmo tempo que existia um abismo e que não voava. E se não voasse cairia. Estava deliciosamente caindo a pique sobre o abismo da barragem, quando de novo o Engenheiro acordou.
Acordou cansado, com a circulação acelerada e o coração a bater. "Ora esta!" - Pensou para si, no meio do escuro. Era injusto que um pesadelo daquele tipo o visitasse numa noite em que procurava um projecto de conduta para concretizar o amor. Injusto, sobretudo, porque essa visita poderia muito bem estragar-lhe o descanso e perturbar as horas definitivas do dia seguinte. Com esse cuidado ficou de novo, tentando descansar, só que o esforço de querer dormir o impedia de adormecer. Seria que se inaugurava um novo período de sonhos obsessivos? Sentia-se um homem perfeitamente equilibrado, e no entanto, de vez em quando, padecia desse tipo de perseguição sem compreender porquê. A mais persistente havia começado tantos, tantos anos atrás, que nem saberia dizer se não provinha de antes de si mesmo. Fechava os olhos e entrava .na escuridão da inconsciência pelo tempo indefinido que ela dá. Uma figura encapotada caminhava sobre uma superfície alta e serpenteante, como a Muralha da China. A figura caminhava, caminhava, com seus braços estendidos, chamando-o. Sob o capote todo o corpo ondeava como uma enguia irresistível atrás da qual corria. Mas quando cansado de correr ele a atingia sobre o alto muro que parecia de pedra e não tinha fim, a figura mostrava o rosto e era a sua mãe, admoestando-o - "Para trás!"
Mais recentemente, a obsessão organizava-se em torno de outra pessoa de família. Havia começado na noite em que a sua filha mais velha tinha casado. Escapulindo-se das mãos do noivo, a rapariga com os véus de casamento voando pelo ar, caminhava na sua direcção. De braço dado faziam então um passeio sob árvores, até que a filha começava a tirar as meias, a cinta e a grinalda e no escuro lhe dizia - "Papá, papá, o Luisinho é afinal um carniceiro..." Sem respiração, acordava. Mas tratava-se dum pesadelo absolutamente injusto, pois nem o seu genro era uma pessoa rude, nem ele desejava a filha como faria depreender o sonho. E tanto assim era que já ela lhe havia dado dois netos, redondos e macios como sabonetes molhados, para sua felicidade. Até que ultimamente essas duas estúpidas obsessões o tinham abandonado.
Seria que um novo tempo de perseguição estava por vir? E que surgia em simultâneo com a figura de Ana Palma de propósito para o perturbar? Com essa dúvida que formulava entre a vigília e o sono, se deixou o Engenheiro escorregar de novo na zona líquida da laguna da barragem. E aí patinava, corria, fazia crawl em várias direcções, até que ouviu nitidamente, junto dos seus ouvidos, uma queda de água desferindo sobre o mecanismo das turbinas. Sobressaltado, no calor do esconderijo, sentou-se, com a metade esquerda do seu cérebro embrulhada na escuridão, incapaz de distinguir o real como devia. "Não gosto de me sentir perturbado!" - Dizia para si, ouvindo a água.
Mas por certo que a outra metade de si se encontrava vigilante, pois em alguma parede da casa um fio de água tinha começado a correr, no momento em que sacudia aquele sonho e despertava. Era impossível dizer qual dos dois - se ele ou o fio de água - havia emergido primeiro da escuridão. O Engenheiro acendera a luz. Confirmava. Alguém tinha aberto uma torneira, e em qualquer lugar muito próximo, um líquido solto, sob pressão, corria. - Quem tomaria banho àquela hora, se a avaliar pelo silêncio e pela falta de movimento durante o jantar, ninguém além deles parecia ocupar aquela ala d'A Casa do Leborão? Teve um pressentimento. Espreitou na direcção da porta intermitente, e pôde observar que uma réstea de brilho se espalhava rente ao chão. Não havia dúvida que era Anita Palma, o hóspede que às duas e meia da manhã enchia a banheira e se lavava. Achava curiosa aquela ligação com o seu discurso. De vários modos já Anita Starlet fazia parte intrínseca do seu speech. Tinha acendido então uma segunda luz.
"É a coquine!" - Disse ele.
De um salto se tinha aproximado da porta, encostado a cabeça ao tecido de fustão e escutado. Sim, não era uma ilusão dos seus sentidos. Possuía agora a certeza de que a água corria sobre a banheira que ele mesmo, horas antes, havia preparado no quarto de banho simétrico ao seu. Ela corria, ora batendo sobre a superfície sólida da tina com vigoroso chiado, ora produzindo um frio ruído de percurso constante sobre o esmalte. Dependeria com certeza da forma como a vaidosa apontava o chuveiro sobre o corpo, a cabeça e os braços que tinha de mover. Por momentos, o fluxo era contínuo, quase estridente, mas depois, de súbito, toda a queda e escorrimento de água se ocultavam para só persistir um outro som, longo e cavo, a caminho do escoamento subterrâneo. Agora o Engenheiro, com o coração a bater como um tambor, encontrava-se completamente desperto, e com os olhos fechados, imaginou que o banho, descendo do chuveiro manual, deveria estar a correr sem velocidade, rente à pele, composto de perfume e espuma, caindo como cascata por todo o corpo desde o cabelo todo virado para o mesmo lado, até aos pés que ela manteria por certo unidos, no fundo da banheira.
"Os pés?" - Disse em voz baixa, para dentro das duas mãos unidas que mantinha junto ao queixo.
Sim, era inevitável imaginar que também os pés deveriam ser brancos e cor de rosa, com as unhas pequenas, os dedos unidos, poisados no esmalte da banheira. E o corpo, naturalmente o via como da primeira vez, inteiro, sem fendas nem sombras mais claras e mais escuras. Podia no entanto ver de outro modo, mas o Engenheiro face a essa proximidade - afinal entre os dois só havia uma parede com uma madeira de permeio - tinha ficado paralisado, e agora receava levantar os olhos para cima. Receava que ela não se parecesse com determinada figura da sua vida com a qual em parte se parecia. Por isso, mesmo que Anita Palma do outro lado tomasse banho completamente nua, ele apenas ficava rente aos pés. Naquele momento, não queria subir um milímetro o ângulo do olhar. "Ah! Os pés, os pés..." E mantinha o pano de fustão a proteger a porta. Além disso, se retirasse o pano e aplicasse directamente a orelha na madeira, uma prematura ousadia lhe pareceria esse gesto. Sempre tinha sabido qual o momento em que a ousadia deixava de ser premiada para ser punida. Não afastaria o pano, não cometeria essa imprudência. Permaneceria mais ou menos acautelado se continuasse a ouvir, daquela forma distante e velada, o ruído da água sobre o corpo, querendo imaginar apenas o jacto, nada mais do que o jacto sobre os pés. E tinha sorte, pois o silêncio era completo, e só a água passava sem cessar, com os mesmos intervalos de som, fustigando ora a banheira ora o que ela continha, correndo interminavelmente, do outro lado de lá. Como na introdução do seu relatório, ele mesmo dizia por outras palavras.
"E agora vai parar, vai sair..." - Disse o Engenheiro, em alpergatas, com o ouvido colado ao pano.
Mas um banho tão prolongado não lhe faria mal? Não lhe provocaria uma descida de tensão? Uma dor de cabeça? Um amolecimento no corpo? Uma pontada, uma constipação? - A coquine havia acordado -sobrecarregada pelos factos daquele dia intenso, tal como ele também não conseguiria conciliar o sono, e tinha ido tomar um novo banho, sendo contudo daquele modo demorado, por certo que poderia não lhe fazer bem. O Engenheiro mudou de ouvido, ajustou o corpo inteiro ao pano e à porta, e escutou. Como demorava o ruído do líquido a passar! Era tão longo aquele duche! Se aquela noite fosse já a noite seguinte, ou quando muito uma noite depois, talvez ele pudesse aproximar-se e franquear a porta para lhe lembrar que um banho não deve ser demasiado prolongado. Mas ele não podia tomar uma atitude dessas mal tendo acabado de chegar ao hotel da mata, e no entanto, angustiava-o aquela persistência da água correndo ao lado. A entrega de Anita Starlet ao banho, daquela forma contínua, parecia-lhe uma fuga em relação a ele e assemelhava-se a um percurso que fizesse, parada, em direcção a alguma coisa que se movia como uma nuvem e a levava de si como um vapor. Imaginá-la entre o fumo do vapor de água era-lhe desagradável e sugeria-lhe uma ameaça que a pudesse evaporar e desfazer, enquanto molhada e amolecida. Para ser franco consigo mesmo, ele a preferia limpa e seca, embrulhada em roupas, com a cabeça adormecida entre os panos e as guarnições de renda. Queria silêncio à volta. Nada que passasse, nada que corresse. Nenhum som que não fosse contido no casulo dos tecidos. Nem mesmo música longínqua que fosse, ele queria imaginar ouvir. Só o ar suspenso e morno em seu redor ondeando como uma coisa. Assim, sob um chuveiro que não parava, feito fonte enervante, era como se a Starlet chamasse um evento líquido desnecessário em seu auxílio.
"Mas para quê?"
Perguntou em voz alta, mudando de ouvido. Aliás, agora o Engenheiro tinha afastado o pano, colado todo o corpo à madeira, e aí, rente à porta intermitente, a sua circulação batia. A água não parava. Por isso, o inquilino do Palacete dos Ruivos começou a ver o quarto desandar, sentindo que iria quebrar um dos princípios do clube da mata, uma vez que era impossível não gritar para a salvar do banho. "Pára, querida, minha querida!" - Iria dizer, em pijama, completamente colado à porta de madeira. Não deveria, contudo, afastar-se primeiro e bater na porta ao mesmo tempo que desse um grande brado para que ela ouvisse? Sim, deveria, e consciente dos passos que tinha de dar, tinha-se afastado para meter aquele quadrângulo de madeira dentro. No entanto, afastado, a porta surgiu na sua frente, o tecido de fustão ondulou, e o Engenheiro não escutou nenhum outro ruído além do que ele mesmo produzia. Não havia mais nenhuma água correndo. O duche da rapariga do Fausto Maia tinha parado.
Mas quando havia parado? Em que momento da sua exaltação ela havia rodado o manípulo da torneira? Alcançado a toalha? Se havia coberto por ela? - Não sabia dizer, não dera pelo instante em que o som da água havia cessado, primeiro no esmalte, depois no cano, até atingir aquele silêncio absoluto. Não sabia. Estava exausto. O Engenheiro pensou que transportava em si um perigo. Um cuidado excessivo que de novo assomava à sua vida e o fazia perder o controlo pela segunda vez desde que ali chegara. Como se a felicidade de atingir o quarto prometido o estivesse a colocar na beira de uma exaltação desmedida, e o impedisse de simplificar a realidade. Quando afinal a realidade era serena: e amável como um campo de golfe bem tratado - Ambos tinham chegado À Casa do Leborão, ambos estavam desfeitos pelo percurso fugidio, ambos não conseguiam dormir, e enquanto, ela tomava um demorado banho, ele espreitava os sons e assumia o cuidado. "E agora?" - Perguntou no quarto iluminado, sem qualquer plano. Mas não podia delinear nada, porque se encontrava colado à porta, enquanto que do outro lado, ignorando a exaltação dele, por certo que ela se vestia e perfumava.
Claro que sim. Anita Palma, a coquine, antes ou depois de se vestir com suas roupas de dormir, perfumava-se. Ele tinha a certeza. O cheiro do floral era suficientemente forte para conseguir atravessar a porta de ligação. O Engenheiro retirou a chave sem ruído e aproximou o rosto da fechadura, mas logo chegou à conclusão de que não era por aí que o aroma passava. Era sem dúvida sob a porta de madeira. Ajoelhado junto da porta, cheirou o chão e a própria especiaria mais lenta passava e rescendia por fim. Não lhe restavam dúvidas. Depois de perfumada, a rapariga do Fausto Maia já havia vestido a sua camisa, e seu pé sem som passava. Mas a luz não se extinguia.
"A marota está aqui, perto de mim..." - Dizia, encostado à porta. Para que o aroma dela pudesse rescender daquele modo, por certo se tinha perfumado, e se tinha vindo colocar junto ao fustão, na ideia de se aproximar dele, embora sem coragem para bater na porta ou para abri-la. Mas era coragem o que estava em causa ou era apenas o prolongamento do preliminar do amor que assim acontecia? - Era o preliminar separado pela porta. Maravilhosa porta, maravilhoso fustão! Pensava ele, com o peito entregue a uma tábua, como nunca tinha imaginado, sentindo-se tão perto de Anita Palma como se estivesse dentro. O Engenheiro nem sabia se por acaso aquela não seria a forma mais definitiva de se encontrar no interior da rapariga que verdadeiramente amava, pois não a via, não a tocava, e no entanto, atraia-o de modo completo. Tacteou com a mão a porta intermitente, e ainda que soubesse que se comportava como um louco, colocou os lábios no local onde previa que ela tivesse encostado o rosto. "Pequenina Starlet?" - Chamou ele devagar, procurando atravessar a tábua, com a mesma força silenciosa do perfume que passava. Ou talvez devesse descer aos pés. Pensando melhor, o Engenheiro preferia tomar-lhe os pés descalços que não via, mas tomá-los, e de pijama cintado, encostou-se ao chão, junto da porta. Por debaixo dela passava o perfume - Mas a luz? O que fora feito da luz? Agora tinha a impressão de que não havia mais claridade do outro lado do quarto. Era necessário apagar a do seu para verificar. Apagou. Voltou ao lugar da porta intermitente - Do outro lado, nem provinha o indício de uma frouxa lâmpada. "Essa agora!" - Não estava mais ali. Sem ele dar conta, a rapariga tinha-se então deitado.
Mas ele não podia adormecer - Tinha a certeza de que não viria, de que preferindo aproximar-se da porta sem bater nem entrar, Anita Palma correspondia por inteiro a uma ideia mais perfeita do que aquela que a sua imaginação compunha. Por certo havia de novo aberto a cama farfalhuda e entre os lençóis que imaginava brancos, finalmente, amornecida e perfumada, vencida pelo cansaço de esperar, uma vez que ele não a havia chamado suficientemente alto, tinha-se deitado. Ora ele naquele momento desejava-a deitada. Descobria, movimentando-se no quarto escuro sem um plano, que desde o primeiro instante não a vira nua, vira-a primeiro ondulante, próxima de certo sonho que tinha, e depois deitada. Felizmente que o silêncio morno d'A Casa do Leborão lhe trazia essa certeza, para se saber determinar e criar o plano que faltava. Não importava como despi-la, mas como deitá-la, ainda que a desejasse tanto precisamente porque sabia que no momento em que a vira no sótão, já fazia tempo que ela se inclinava para essa posição irreversível - Pensava o Engenheiro, encostado à cama sobre a qual pendia a tapeçaria lebreira com seus galgos.
E sabia, não porque o Fausto Maia lho tivesse dito, mas porque ele mesmo tinha mandado investigar o périplo daquela mulher formosa. Nada melhor do que um bom método. Havia levantado o telefone, pedido ao Mourato que mergulhasse na intriga e em oito dias descobrira a verdade. O Mourato era alguém excelente. O apuramento tinha vindo despido dos aspectos menores e adjacentes, tal como havia desejado. Lembrava-se perfeitamente. Tinha-se sentado direito, ausente, no meio do seu gabinete de trabalho, como se ouvisse por dever. Mas mentia, o Engenheiro Geraldes, desde o passado mês de Novembro, praticava dolo consigo mesmo e mentia. "Certa espécie de dolo e certa espécie de mentira... " - Haveria depois de dizer, quando finalmente falasse do seu segredo.
Assim tinha ficado a saber que aos dezasseis anos alguém a havia apresentado como sósia duma cantora italiana que pintava os cabelos de ruivo e ela também. Sem acompanhamento, a rapariga imitava a voz da italiana cantando de olhos fechados canções de rebeldia que emocionavam muito mais pela voz quente, abrindo-se em amplitude como um leque, e em reverberação como uma corda solta, do que pelas palavras em italiano mal pronunciado que dizia. A voz desacompanhada era agradável como a duma criança de repente crescida e que ainda não estabilizou no timbre. Ela cantava a troco de nada nas noites do Cassiopeia e o seu ruflar embora selvagem era amplo e harmonioso. Havia quem ficasse a ouvir embevecido, ousando augurar-lhe, se trabalhada, uma voz de mezzo inconfundível. Na vitrina, em vez do nome de família, alguém desvanecido com a ardilosa tinha escrito Anita Starlet. Então tinha gravado um single cantando Brecht e Weill. Durante um mês fora vedeta. Mas no dia em que aparecera no Cassiopeia, com acompanhamento, e as composições tinham passado a incorporar letra e contorno nacionais, o encantamento havia desaparecido. Era como se tivesse passado de estrela distante ainda por vir a uma pegada entre muitas, feita de passagem. As qualidades da sua voz não estavam lá, ficavam fora. Aquele número, pago pela primeira vez, não havia aguentado vinte dias. E durante eles, ela completara dezoito anos. Então alguém lhe havia dito que se tinha uma voz parecida com a da cantante italiana, e queria ser tão rumorosa quanto ela, deveria dar-se ao trabalho de ir ouvi-la, em vez de se enxovalhar numa carreira sem referências nem modelo inspirador. Era Verão. Entre esse momento e aquele em que se deixara fotografar em Turim, a dormir 'na cabine dum camião, apenas tinham passado três meses. Porém, não se sabia se ela havia alguma vez chegado às portas de Milão. A verdade é que a Interpol, passado um ano, a procurava nos países nórdicos, e nesse tempo é que haviam recolhido a fotografia de Turim. Não fora porém a policia internacional quem a fizera regressar a casa mas sim um pêndulo.
Nessa altura, um vidente do Bairro das Colónias, debruçado sobre um mapa e agitando um pêndulo, descobria o paradeiro de mortos e desaparecidos. Ora o pêndulo tinha oscilado, durante vários dias, sempre na mesma direcção, mas a sua rota na carta caía sobre o pedaço azul. O vidente havia dito à mãe da Palma desesperada que a filha vinha andando - já que a emanação do seu corpo se deslocava - mas não vinha por terra, vinha por mar. Verdade ou não, o facto é que ela tinha acabado por desembarcar num navio de carga que aportara de noite com uma bandeira sueca volitando à proa. O primeiro telefonema que havia feito para casa tinha sido só na tarde do dia seguinte. A mãe havia ido buscá-la à gare e encontrara-a disfarçada de barrete. Quando colocara a cabeça no ombro da mãe, o barrete caíra e o cabelo, como se viesse de ter tinha, não aparentava mais do que a altura dum centímetro. O que era, contudo, um corte raso de cabelo na vida duma mulher mais do que um tempo de espera como tantos outros?
A mãe de Anita Palma achava até que era a forma duma mulher perfeita mostrar a configuração do crânio. Cobrira-lhe a cabeça rapada e o barrete de sôfregos beijos. O perdão da Sr.a Palma era húmido e tinha tido a dimensão da terra e do mar que a filha havia atravessado. O do pai também, mas exprimia-se de forma diferente, ou pelo menos, havia procurado retirar obscuros dividendos a favor da própria filha. O Sr. Palma exigira que a explicação não fosse apenas domiciliária e quis que houvesse nela alguma coisa de público, na ideia de que assim expiasse para sempre aquela fuga para nunca mais cair em tentação. Sem o barrete, ela teria de ir em pessoa à polícia cumprir todas as formalidades, e retomar todos os seus papéis um a um, além de se matricular nos locais onde ele queria. E foi assim que de novo ela saíra de casa. Mas depois, muito depois, tinha voltado.
Porém, quando havia voltado, o Sr. Palma já ali não morava, ao contrário da mãe que tinha ficado fixa, junto ao telefone a emagrecer. De modo que no dia em que de novo havia telefonado, pôde dizer de longe que regressava de avião e não de barco, e assim foi. Mas dessa segunda vez, não só ninguém lhe tinha tirado o cabelo, como alguém lhe havia dado um filho. Ela não vinha, porém, com o pai do filho, cujo rosto de moreno e nariz alto lembrava um pequeno menino turco. Acompanhava-a um homem loiro que falava alemão e apostava nela como talento que não precisava ultrapassar fosse quem fosse, quanto mais cantoras ligeiras e frívolas com as quais a comparavam. Era um empreendedor incansável e trazia dinheiro com a efígie invisível de Bismark. Conseguira um compositor para Anita Palma, movimentava um pequeno conjunto, e levava-a a actuar numa casa que ele mesmo dirigia com organização de ferro. Era um piano-bar snob, pintado em tons agressivos de verde e de castanho como num ambiente militar, perto dos cais. Uma grande águia, olhando de lado, abria as patas sobre os copos. Aí mesmo, entre a águia e a louça dispunha-se a orquestra e ela actuava com a seriedade de uma cantora lírica. Nessa altura, ele achava que ela viria a ser uma nova Schwarzkopf, de voz mais grave mas com um fogo interior muito mais iluminado. Em italiano apenas permitia que de corrida ela dissesse as Italian Songs. A curiosidade acercava-se da casa snob como duma lenda. É que o alemão não permitia que ela editasse. Tampouco que gravasse. À entrada, as pessoas eram revistadas como num aeroporto de país em guerra para que ninguém entrasse com o mais pequeno aparelho de gravação. Diziam-no um filósofo verdadeiro. Durante o Inverno a lenda avolumara-se. A casa onde não era permitido o fumo, e as pessoas eram contadas uma a uma para acondicionamento do som, enchia. Falava-se devagar. Nessa altura, porém, a imagem dela havia preenchido a cores vastas laudas de revistas. Numa dizia-se que jamais seria possível fazer passar a epígona duma coquete de efeitos fáceis como Milva à gravidade de Elisabeth Schwarzkopf. Era como pedir dum tambor a metafísica. Mas ele achava que não era verdade, não. Convicto, fazia-a ouvir o seu modelo de sentimento, horas a fio, e munido de paciência infinita ensaiava-a como um frade. Tinha outros, mas constava que lhe colocava todas as noites junto da cabeça o Método Prático de Vaccai. Na Primavera, sim, Anita Palma iria ter o seu Liederabend. Dia a dia ele preparava esse facto com a minúcia de uma invasão por terra.
Subitamente, porém, o loiro grande havia partido com a águia e aquele menino escuro que não parecia ser seu filho. Ela não. A casa dos recitais aparecera selada. A polícia tinha vindo cheirar os fundos da vida do bar com interrogatório de máquina e olhar de lince. Afinal, um negócio estranho que não se conseguia apurar qual fosse sustentava aquele amor à arte pela arte. Anita Palma que já não teria nem recital, fora à procura deles. Mas sem efeito. Quando regressara, trazia o cabelo apanhado por um elástico como as prisioneiras, tinha-se tornado adulta, não tinha filho, e desde que pela primeira vez havia imitado o olhar lânguido de Milva, haviam passado sete anos. Fazia anúncios a troco de roupas e dormidas. Fora então que o Fausto a tinha encontrado a comer sanduíches numa praia próxima. Ela havia feito de tudo na sua aventurosa vida, e ele tinha-a levado para anfitriã do Toque-de-Classe. Sobejara-lhe o suficiente para isso - um corpo belíssimo que engrandecia, uma voz reverberada como uma cana ao vento, e a desistência própria de quem havia atravessado a morte.
"Basta!" - Tinha gritado o Engenheiro. "Tudo isso é mentira! "
E não tinha querido saber mais. Ou melhor - o resto sabia ele. Mas quando havia dito que bastava era honesto consigo mesmo. A história dessa rapariga que tanto o tinha fascinado, resumida daquele modo, parecia conter coisas estranhas, parentes do queimado e do estrugido. Ele sabia. Mas exactamente porque sabia, tinha ficado contente consigo mesmo. Para que serviria a coragem senão para fechar o cofre onde se encerram para sempre as verdades cruas? Ele era um homem metódico e achava-se ao mesmo tempo positivo e idealista. Uma vez que conhecia a síntese das cenas furiosas a que rapariga do Fausto Maia se tinha devotado, podia fechar a porta do devaneio e dormir a sono solto. Porém, não sucedera assim.
"Pelo contrário" - Lembraria depois.
A história rocambolesca de saídas e revezes, partidas e chegadas, garganteios italianos e alemães que lhe pareciam além. do mais traições nacionais sem remissão, à medida que os dias daquele Inverno se tinham ido sucedendo, criariam em torno dela primeiro uma auréola de nódoa, depois uma aspereza de álcool, e em seguida, sem saber como, uma fragância parente do perfume. Passadas duas semanas, tinha desaparecido tudo o que não era o frasco de cristal de onde rescendia o perfume. "Irra, que perseguição!" - Dizia, curvado para os papéis da secretária, onde entre os dossiers sobre a qualidade e distribuição natural da água, o encanto da história de Anita Palma se levantava com o ruído dum banho de imersão, até que esse périplo da rapariga lhe parecera tão maravilhoso de recordar como se ele mesmo fosse seu autor.
E contudo, agora que se aproximava o momento de agir não tinha um plano. O que havia elaborado reportava-se apenas à saída e à entrada e à anulação de todas as marcas daquele devaneio, mas para agir propriamente junto de Anita Starlet, encontrava-se indeciso sobre se havia ou não necessidade absoluta de arquitectar uma previsão de actos.
A Casa do Leborão proporcionava-lhe uma estadia tão pacífica, tão resguardada do mundo e das suas preocupações que lho dispensava. O silêncio era completo como se não houvesse árvores com ramaria, e todos os motores da casa tivessem descansado. Não haveria objectos ligados à corrente? Aparelhos que consumissem gás? Alguma coisa mecânica que cortasse aquela quietação? A ausência de ruído despertava-o e ao mesmo tempo levava-lhe as pálpebras para o sono, sob a lebreira. Levava-o devagar para uma zona entre a lembrança e o esquecimento, onde tudo era doce e pacífico como o quarto sóbrio onde se encontrava. O Engenheiro sem querer, fugia das coisas que o prendiam à Terra como os seus deveres quotidianos jamais idênticos. Via de longe, cada vez mais longe, a sua enorme mesa de família, e cada vez mais perto o pequeno quarto quente onde se acolhia. "Ainda bem que vim..." - E suspirava vergonhosamente, sabendo que ninguém o via. Ninguém sabia onde se encontrava. E de novo regressava ao local sem limites onde figuras tutelares o aguardavam.
Boas figuras - Rescendia delas um cheiro doce a erva que o chamava. Primeiro por ordem, depois por uma desordem que logo se transformava numa nova ordem, o campónio da manhã tirava o seu chapéu, o Moura sussurrava-lhe conselhos que entendia mesmo sem distinguir nenhum dos sons, e ambos vestidos de calça branca aproximaram-se de seu tio. Logo de seguida, os três, sentados sobre um caracol de algodão gigante, como uma onda feita de espuma, desapareciam para colocarem Anita Palma na crista do vapor branco. Deveria ele levantar a rama de algodão? Descobrir o corpo cor-de-rosa que o algodão encobria? "Não, não..." - Pensava, no limiar da dúvida voluptuosa que o envolvia. Mas os seus três anjos - o homem da cascata, o Moura coxo e o tio desaparecido - traziam lúbricas asas. "Atira-te! Então? Atira-te..." - Dizia agora, contrariamente ao que lhe tinha aconselhado o antiquíssimo e inconstante tio Hugo Geraldes Maia. Mas ele não estava dormindo, não, e por isso se afastava daqueles conselhos que o regavam de indecente volúpia e o empurravam de forma precipitada para o coração da pequena Palma.
"Anita Starlet?" - Tinha ele dito, erguendo-se na cama.
Mas perguntou de seguida, sobressaltado - "Quem vem lá?"
Completamente acordado, havia ficado a ouvir. Era uma maçada, pois mesmo para fazer face a um qualquer imprevisto, a insónia não lhe permitira gizar um plano. A verdade, é que tinha razão para se sobressaltar. Alguém entrava no corredor contíguo. Alguém chegava. Ou melhor, duas pessoas chegavam. Os passos de ambos eram lestos, e enquanto uns, mais largos, caminhavam pelo centro da passadeira, outros mais miúdos batiam ao lado sobre o ladrilho do corredor. Depois, parecia-lhe ouvir poisar as malas e em seguida tilintar as chaves. O Engenheiro esperou que se abrissem duas portas. No entanto, só uma se abria, e quem chegava entrava ali ao lado, com cautela, e colocava os objectos com cuidado, parecendo que o fazia rente à sua própria cabeceira. "É do estúpido silêncio" - Pensou. Na verdade, a voz do homem era tão abafada quanto os passos, e no entanto, a dada altura, distinguia-se perfeitamente.
"Que horas são?"
"Cinco e meia" - Tinha respondido uma voz feminina, acrescentando outras palavras que se esbatiam sem sentido. Mas a voz do homem era mais nítida.
"Tão cedo!"
"Tão escuro..." - De novo a voz da mulher, falando sem dúvida muito próximo da parede meia, a princípio era clara e em seguida desaparecia. Depois, tinha sido como se os recém chegados tivessem adormecido ou de algum modo paralisado.
Só que passadas horas - incalculáveis horas, já que finalmente tinha adormecido - o Engenheiro acordaria com um esverdeado raio de sol no quarto, e o ruído mais indecente que já alguma vez ouvira na sua vida. Vivendo o seu amor com uma intrepidez selvagem, alguma coisa como um móvel junto da parede comum batia, a mulher que tinha dito as horas falava, e o homem dos passos largos respirava com o sopro dum ser furioso que acordasse sem ar. E sem repouso, durante minutos, como se a parede desabasse, essa fúria carnal tinha aumentado e progredido, até que um gemido profundo soltou de um deles, o móvel parou e a casa de novo mergulhou no silêncio total - Lembrava-se.
O Engenheiro era um homem sério. A princípio tinha ficado estarrecido, mas depois correra para a porta de comunicação intermitente, levando à passagem os tecidos que encontrava para cobrir a madeira e impedir que o som passasse. Teria Ana Palma ouvido aquela expressão horrível de cio? Uma vergonha imensa lhe assaltava a mente e uma vontade enorme de abandonar aquele lugar o tinha tomado. Não era sítio onde um homem decente ficasse com uma rapariga cansada que ali vinha para repousar. O rosto móvel, a boca vermelha, o olhar escuro de Anita Palma não mereciam emprestar a sua vida a um lugar onde se albergavam pessoas daquele modo brutais. O Engenheiro não sabia se eram pessoas se baleias. E movido por um desejo enorme de fazer justiça, levantou o telefone que ia ter àquele recinto dos privados, de onde afinal tudo lhe parecia ser guiado. Depois hesitou. Desnorteado com a insónia, não se havia apercebido que acabava de acordar à hora em que serviam o almoço, nem se lembrava que à cautela, de véspera, tinha pedido que fosse servido nos quartos. Espreitou pela porta. De facto, a sua bandeja, abafada sobre a mezinha, lá estava. E Anita Palma?
Por certo que a rapariga já teria recolhido a sua e já se servira. Ele é que havia perdido o rumo do tempo, envolvido na alternativa de silêncios e ruídos singulares. Sim - Iria recolher a bandeja, mas isso não impediria que se dirigisse imediatamente ao recinto dos privados. Assim que obteve o corredor livre, o Engenheiro avançou com pressa, ultrapassou o segundo corredor, o guarda-vento, e abrindo a porta que dava para a coroa circular do recinto, sentou-se na mesa, atrás dos panos. Eram três horas da tarde e algumas pessoas por certo tomavam a refeição protegidas em seus cantos. Respirava-se um ambiente tranquilo. Aliás, visto de dia, os panos ganhavam outra naturalidade, e a lareira, crepitando embora, era menos activa como se a luz do dia, que também ali chegava esverdeada, apaziguasse a atmosfera do antigo pavilhão de caça. Mas o mesmo já não se poderia dizer sobre o quarto contíguo ao seu, e quem dizia desse, dizia do seu próprio, e possivelmente dizia do de Ana Palma. Por isso mesmo, ele ali estava.
Assim, quando o chefe de mesa ou mordomo se aproximou do reposteiro, foi o Engenheiro quem primeiro encostou a cabeça ao pano. Tinha pressa e possuía a voz cheia de fúria e inquisição. Não fora aquela gente que de momento abandonava a sala pelo corredor circular, e agora passava ao lado, ele teria falado bem alto como por vezes - muitas vezes - acontecia, ao dirigir-se a seus colaboradores e subordinados indolentes. Conteve-se.
"Ouça!" - Disse o Engenheiro. "O senhor o que é aqui? É mordomo?" - Perguntou à figura que mesmo de dia parecia agigantada.
"Não, senhor, sou chefe".
"Chefe de mesa?"
"Pode ser..."
"Pois bem" - Tinha dito o Engenheiro, sem o ouvir, agitando-se dentro do privado. "Há pessoas que vêm a este clube para descansar. Mas outras que aqui se albergam, produzem ruídos absolutamente intoleráveis!"
O chefe do grande corpo tinha parado com sua lista e demais instrumentos no parapeito do privado.
"Ruídos intoleráveis?" - Balbuciou o chefe, baixando a grossa voz, junto do reposteiro.
"Exacto! "
"Desculpe" - Disse o homem corpulento, curvando-se. "Infelizmente nós sabemos que há pessoas que não sabem respeitar o lugar onde se encontram e ofendem a moral. Nós sabemos... Mas antes, quando podíamos escolher os nossos clientes - porque podíamos - não sucedia assim. Um dia, porém, voltaremos como antes. Também antes tínhamos escargot importado e bom pâté de fígado de ganso com mostarda preta, e agora, com todas estas restrições, nada. Não temos nada..."
"Não me importa o comer. Só vim aqui para protestar" - Disse o Engenheiro, com a boca rasando o pano. A ideia de que na sua ausência aqueles dois pudessem encarniçar-se de novo, tornava-se-lhe intolerável. "Eu desejo protestar..."
"Muito, muito bem. As pessoas decentes que aqui vêm, se são ofendidas, devem protestar". "Eu vim".
"Sim..." - Disse o chefe corpulento, com sua mão com anel colocada sobre a outra onde não havia anel nenhum. O embaraço do empregado latagão parecia inultrapassável. Entretanto, ele deveria ter chamado um outro criado que levantasse os talheres, pois uma mão ossuda e nodosa como de cavador havia entrada pela janela recortada no pano, e sem dizer palavra, tinha começado a recolher o prato e as facas. Isso queria dizer que o corpulento tinha já desaparecido, e contudo, ele desejava continuar a protestar.
"Espere!" - Disse o Engenheiro.
"Sim, senhor..." - Respondeu, não o chefe, mas o criado magro.
"Onde está o chefe?"
"Foi lá dentro, meu senhor..."
Então o Engenheiro, lembrando-se como na noite anterior havia aprendido com o rapaz subalterno, interpelou o ossudo e magro, directamente. Não havia dúvida de que se tratava dum camponês, pois suas unhas grossas tinham sido raspadas, vendo-se perfeitamente os interstícios donde havia sido removido o lixo. Mas a voz não era marcada pela localidade como deveria ser a voz dum camponês. Nem tinha o ritmo cantante da região. Era uma figura especial. Não o podia perder. O Engenheiro encostou-se ainda mais ao pano. "Diga-me então você! Como procedem com as pessoas que produzem ruídos intoleráveis na Casa do Leborão?"
"Como procedem, meu senhor? Francamente, não sei..." - Tal como o chefe, o homem magro pareceu hesitar. Depois, como o subalterno da noite anterior, tinha descido a cabeça até onde seria possível descer sem se tornar visível, nem alcançar com a vista o que se passava no interior do privado e prosseguiu - "Tomamos nota, pois o que podemos fazer mais além de tomar nota, se as pessoas pagam a sua estadia adiantada? Como o senhor sabe, ultimamente, há pessoas imundas que invadem todos os locais. Ora o senhor, melhor do que eu, sabe porquê..."
O Engenheiro esperou - "Porquê?"
"Porque o mal existe. Porque o demónio aloja-se nas pessoas e toma o lugar da sua carne. Ai de quem deixa que a carne apodreça com o micróbio do demónio! Tudo o que uma pessoa honesta tem a fazer é evitar que nos contaminem, senhor, e esperar que a eles o Inferno os tome rápido no seu fogão..." - O cavador não tirava os talheres mas tinha as duas mãos dentro do privado e também um dos seus dedos se agitava. "Com que então, ruídos... Como disse o senhor?"
"Intoleráveis! "
"Sei o que são. Tome nota, meu senhor, que esses que o senhor não viu mas ouviu, hão-de soltar os mesmos ruídos sobre a chama. A vida é breve, ainda que os dias sejam longos para quem trabalha de manhã na terra e à hora do comer, serve junto de tanta imperfeição..." O homem parecia chorar, e o Engenheiro Geraldes pela primeira vez, experimentou o desejo de levantar o pano.
"Com sua licença, senhor..." - Disse o homem arrebanhando de qualquer modo o talher e o prato.
"Espere!" - Disse o Engenheiro.
O homem pareceu esperar.
"E o que devo fazer se chegarao quarto e ouvir o mesmo?" - Tinha perguntado junto da janela, colado ao reposteiro de seda adamascada.
"Tudo menos justiça por suas mãos, senhor! Quem somos nós para fazermos justiça por nossas mãos se nem sabemos o que é a justiça?"
"Mas então quem a fará?"
"Ele!" - Respondeu pressuroso como se estivesse à espera. Só Ele tem a capacidade de levantar o braço de fogo e colocar as almas na carvoeira onde cada uma delas se consumirá lentamente, tão lentamente como a madeira verde que se queima debaixo do chão. Assim como uma carvoeira de azinho arde durante três dias e três noites até que a combustão incompleta transforme a árvore em carvão, para de novo se acender e consumir de vez, assim esses cães terão de passar por várias queimas até a moral ser vingada, e desaparecer a raiz do mal..."
E o homem com mão e braço de camponês esgueirava-se sem chamar o chefe. Era curioso como aquela fala parecia não pertencer àquela mão. Deveria insistir? Naquele momento já não havia qualquer hóspede por perto, ou pelo menos assim parecia. Quando o Engenheiro obteve passagem pelo corredor, amenizado pela verde luz que vinha do pinhal, ainda o chefe grande não havia voltado. O tacão dos seus sapatos sem altura tinha-se apagado no lajedo. E o ruído da porta bailarina que deveria haver por próximo tinha parado. "Indecentes!" - O Engenheiro sentia-se ofendido.
O SILÊNCIO
Mas as palavras persecutórias daquele criado que supunha cavador, ainda que de algum modo coincidissem com os seus próprios desígnios de justiça, proferidas com semelhante veemência, pareciam arrastá-lo a ele mesmo para um retábulo incómodo onde houvesse uma cena medieval de condenados. Admirava-se, porém, que um homem daquela configuração falasse com tanta desenvoltura sobre assunto tão melindroso. Por certo se fazia eco de alguém a quem escutava, e de tanto ter ouvido exposições sobre o tema, havia incorporado meia dúzia de juízos imperativos, com o mesmo gosto que outros decoram letras de canções e narrativas de filmes. Fora um erro não ter limitado a discussão ao chefe. Mas os panos e os passos de pessoas que não via por inteiro perturbavam-no, e de algum modo o tinham levado 'a confiar em demasia. A forma como aquele homem de mãos nodosas, arrebanhador de pratos, invocava um castigo tão eterno e violento para com os devassos, embora continuasse a repelir o indecoro dos seus vizinhos, faziam-no amenizar a sua posição. "Ora bem!" - Disse ele para si.
"Tem de haver uma diferença entre um homem como eu e um cavador..."
E a sombra das mãos gretadas do homem magro e nodoso que retirava pratos como se apanhasse gravetos na mesa dos privados, cujo rosto não vira nem imaginava, trazia consigo a figura inteira do campónio da manhã anterior, atirando-se para o fundo da cascata. Um estava morto, o outro vivo. Un tinha falado, o outro não. De um ele conhecia a silhueta de casaco aberto no ar, fazendo voltas. Do outro apenas o papo da camisa e as singulares mãos. E no entanto, ao Engenheiro, regressando ao quarto através do corredor por onde a luz do dia entrava coada pelo arvoredo, os dois homens pareciam ser um só. Duas expressões diferentes de um homem caído em desuso e oportunidade, face ao qual a terra há muito teria traçado o fim. "Camponeses!" - Pensava. "Por mais que se lhes faça não terão remédio..." A prova era Açucena. Afinal tinham construído um bairro com vista para o rio, erguido casas brancas e modernas em substituição das suas que eram velhas e desconjuntadas, quase pretas. Haviam reproduzido um largo com o mesmo volume, os mesmos bancos. Com todo o cuidado tinham conseguido transplantar a igreja pedra a pedra, anjo a anjo. Haviam mesmo transferido os mortos, osso a osso, campa a campa para um novo campo santo, e ainda tinham pago quinhentos contos por cada agregado familiar, e mesmo assim, esses homens de chapéu passavam as tardes de domingo a imaginar as velhas casas verdes entre os limos. De quando em quando, sobretudo no final do Inverno, faziam esperas na barragem e matavam-se. Era uma resistência incontrolada. Viviam desajustados do real como vacas velhas. E agora, ele, o Engenheiro, no súbito desejo de coibição dos gestos amorosos, assemelhava-se aos camponeses que pegavam nos pratos e os retiravam pelo postigo do privado como quem ainda toma uma aguilhada.
"Se não sou estúpido desempenho bem o papel!" Disse para si. Na verdade, alguma coisa não batia certo. Ele que defendia o princípio de que o ressentimento dos camponeses só terminaria quando os descendentes - todos os descendentes - se deslocassem para outros espaços, limpando-se da relação dramática com a terra e com as nuvens, e quando inversamente as gerações dos serviços, cansadas de relações fictícias com o mundo artificial, quisessem voltar por opção à natureza, ele mesmo estaria a ser tão retrógrado quanto os pais dos primeiros e os bisavós dos segundos. Ou tão antigo quanto os tímpanos persecutórios das velhas catedrais. Por isso nada tinha que impor aos seus vizinhos de hospedagem. Que fossem livres, pois. Não era também na prática de um exercício de ousada liberdade que ali se encontrava na companhia de Anita Palma? Não era apenas em nome dum ímpeto incontrolável e duma paixão de passagem que tinha desaparecido? Que lei ou que moral absolvia as
paixões de cinco dias? - E entre várias outras perguntas que fazia, todas elas desabonatórias para a cólera, o Engenheiro abria a porta do seu quarto com a sagacidade de quem entra no refúgio. Sim, mas ao regressar ao ponto de partida, havia-se imposto um limite que considerava inviolável. No caso de ouvir de novo ruídos obscenos, tomaria pela mão a rapariga que havia encontrado na casa do Fausto Maia, e acontecesse o que acontecesse, levá-la-ia dali para um lugar diferente. Talvez um hotelzinho branco, à beira-mar, de onde se vissem os barcos e o sol. Na época baixa, deveria haver casas de hospedagem sem ninguém, e por certo que os recepcionistas eram gente tão labrega que nem conheciam as pessoas públicas. Seria assim tão perigoso? Talvez não. Sairiam os dois d'A Casa do Leborão, e em Duas-Pias, ela tomaria um táxi e ele seguiria, um quilómetro atrás, ou mais distante, sem a perder de vista. Começava a almoçar no quarto, o prato esfriado, sentado à escrivaninha. Mas o Engenheiro fez a primeira garfada, sem suspender o olhar da parede da cabeceira, donde o pano protector pendia, e atrás do qual deveriam agora dormir criaturas exaustas de fadiga tão carnal. A paz dum doce acolhimento tinha descido sobre a casa. Desfrutaria dela. Mas se dum momento para o outro os ruídos intoleráveis surgissem, num ápice recolheria as suas coisas, sairia para o corredor, bateria com os nós dos dedos à porta da coquine e diria - "Querida, vamos embora, isto não é um local onde você se encontre, meu amor! Enganei-me!" E sério, com seu cabelo grisalho apartado ao alto, caindo sobre o colarinho, levá-la-ia pela mão, até ao local onde tomaria a viatura para regressar.
Mas a verdade é que dificilmente poderia imaginar um ambiente tão envolvente quanto aquele onde se havia recolhido para se aproximar de Anita Starlet. O recanto onde se encontrava, ao mesmo tempo dentro do mundo, e dele separado pela fina macieza de panos, colocava-o numa fronteira de liberdade e risco que o faziam corar como não acontecia desde menino. A luminosidade que provinha do exterior, coada pelas agulhas imóveis dos pinheiros, chamava-o para um desfruto manso, ainda que sob um impulso súbito de clareza, ele houvesse aberto a janela gradeada. Já se sentia aproximar a tarde. Seria que alguma vez a rapariga do Fausto Maia bateria à porta intermitente?
"Talvez..." - Pensava o amante passageiro. Nunca se sabe o que pode acontecer entre dois quartos ligados por uma porta, estando dum lado um homem e do outro uma mulher, pensava ainda. Até poderia ser ela quem agora andava dum lado para o outro, pois num sítio impreciso da casa, na verdade, alguma coisa se movia. Talvez até aquilo que se movesse fosse roupa e calçado de mulher. Talvez fossem objectos dela. Pequenos metais e redondas fivelas escorregando pelo soalho. O Engenheiro suspendeu a respiração para ouvir melhor. Não era, contudo, do quarto de Ana Palma que os ruídos provinham. Era do lado oposto. Era atrás da cabeceira da sua cama, que de novo os objectos se moviam. "Meu Deus! Outra vez aqueles cães!" - O Engenheiro arrumou o tabuleiro e ergueu-se para agir. Sabia que iria tomar uma decisão, mas não estava certo de que antes de ouvir os vizinhos indecentes iniciarem de novo aquela função destemida, não soltasse uma cascata de pancadas e imprecações contra a parede. Devassos! Pegaria na cadeira da escrivaninha e com as quatro pernas alçadas, gritaria - "Cães! Seus cães! " E ficaria esperando. Só depois juntaria as suas coisas, fecharia a mala e sairia. Contudo, o Engenheiro continuava a esperar, pois ninguém falava, ninguém gemia. Nenhum móvel batia contra o tijolo e a madeira. Pelo contrário, misturada com o ruído próprio de quem reúne as suas coisas, guarda sapatos e retira roupas de cruzetas, a voz de uma daquelas duas pessoas que três horas antes haviam respirado com fúria, soltou um choro alto, a princípio apenas rouco, mas logo aberto e desbordado, como só em pequeno tinha ouvido.
O Engenheiro havia ficado em pé no meio do quarto. "É uma mulher ou é um homem?" - Era um homem. Tratava-se da voz grossa dum homem, uma voz cheia que provinha do fundo da garganta como se raspasse, e o efeito era o de um choro semelhante ao desespero que acompanha o incêndio ou o fim. Mas sem um grito. Uma coisa seca e tensa, lembrando o escorregar duma pedra, ou o vento a passar num cabo. Contudo, esse som de desgosto que parecia brutal, ou então esse enervamento histérico que se parecia com um desgosto, não demoraria mais de um minuto. A pessoa que assim soluçava assoou-se, ainda fungou, logo em seguida uma porta se abriu, e quem quer que fosse, apressadamente, fez sumir os passos ao longo do corredor, passadeira fora. O Engenheiro encontrava-se em pé, ouvindo. "Nada disto estava previsto! Nada semelhante a isto!" - De algum modo o que acabava de testemunhar anulava os ruídos intoleráveis acontecidos duas horas antes, e pela cabeça do Engenheiro chegou a passar a ideia de que a sua queixa pudesse estar na origem daquele desfecho. Mas pôs de lado essa hipótese, embora não encontrasse enquadramento razoável que explicasse manifestações tão opostas. A não ser constituirem ambas duas expressões de limites. Limites ultrapassados, transgredidos, pensava. E pela sua cabeça aguilhoada, perpassava a ideia de que se tratava dum homem parecido consigo mesmo, e duma rapariga semelhante a Ana Palma que ali tivessem vindo despedir-se.
"Encontraram-se e despediram-se!"
O Engenheiro viu-se a si mesmo, do outro lado, atrás da parede. Mas não podia ser. A voz masculina coadunava-se com um homem do seu próprio porte e da sua própria idade, mas a mulher era sem dúvida uma pessoa mais madura que Anita Palma. Era mesmo capaz de ter idade para ser sua tia ou sua mãe. A voz da rapariga do Fausto Maia de timbre velado, quando falava, ainda tinha requebros como de adolescente e fracturava-se a meio como se por vezes lhe faltasse o ar, ou a sequência veloz do pensamento a quebrasse de juventude. Esse mesmo sufoco ela transferia para o canto. Nunca a coquine teria perguntado pelas horas com a voz serena com que a mulher o havia feito, ao chegarem de madrugada. Tratava-se por certo duma pessoa dum outro talhe, um outro porte, uma outra relação com a vida. Mas agora o Engenheiro dispunha duma ideia mais plausível. Tratar-se-ia possivelmente dum casal de meia idade que se despedia.
"Mas despedia-se porquê?"
Porque um deles estava cansado do outro e desejava inaugurar nova vida. Ou porque um deles desistia do amor.
Ou porque experimentavam ciúme, ódio, melancolia. Havia pessoas que sentindo que o tempo tinha irremediavelmente passado o gume pela maçã do desejo, abandonavam o terreno e partiam com a altivez de quem sabe desistir no momento definitivo. Naquele caso, não tinha dúvida de que se assim fosse, era ela e não ele quem desistia e essa certeza, sem saber porquê, regozijava-o. Fazia conjecturas. A mulher das horas teria abandonado A Casa do Leborão antes do homem, e o desespero de que tinha sido testemunha involuntária pertencia afinal mais a ela do que a ele. Sabia de casos semelhantes. O momento de despedida desses casos cujos desfechos conhecia, bem que poderia ter sido idêntico àquele que ali viera surpreender. Mas tinha outra hipótese - Tinha pensado o Engenheiro, colocando o pé numa escada de caracol que não sabia onde o levava.
Um deles poderia estar condenado a morrer em breve, e o que deveria partir tinha procurado aquele clube escondido, para se encontrarem pela última vez num lugar suave, separado do mundo. Sim, porque aquele era um lugar delicioso, disfarçado sob a mão das árvores. Nesse momento, o Engenheiro encontrava-se sobre a carpete guedelhuda e tinha parado. A metade esquerda da sua cabeça funcionava a velocidade acelerada. E se o encarniçamento que ouvira ao acordar não tivesse correspondido a um acto selvagem de amor? Se tivesse sido antes o ruído de alguém lutando contra alguém? Ou mesmo - porque não dizê-lo se essa ideia lhe atravessava o pensamento, com a pressa duma doninha? - alguém tivesse vindo ali assassinar o amante?
A princípio, o Engenheiro achou que enquanto esperava pela rapariga, o seu espírito criava para nada uma espécie de diversão sem controlo nem sentido, mas passado algum tempo, compreendeu que essa ideia não o podia largar. A hipótese criava-lhe uma espécie de quadro estimulante para onde ia e vinha num movimento pendular, e em aí chegando, sempre o tomava a inquietação. Era preciso reconstituir o ruído - Pensou, estendendo-se no sofá que emergia da carpete. E meticulosamente, tentou recordar o que ouvira desde o momento em que havia sido acordado até ao fenecer da função, mas não lograva reconstituir a sequência. Reconstituía muito melhor os sentimentos alterados de que fora sujeito, e os movimentos que fizera quarto fora, entre a cabeceira da cama e o reposteiro de ligação, do que o encadeamento dos sons que tanto o tinham perturbado. E desses, lembrava-se muito melhor do somatório de todos do que da composição das partes que procurava entender. "Ora esta!" - Dizia em voz alta, surpreendido com a memória que se lhe afigurava inquietantemente frágil. Parecia impossível. Os ruídos selvagens que tinha considerado intoleráveis haviam ocorrido quanto muito umas três horas antes, e já não era capaz de os decompor, de modo a distinguir se se tinha tratado duma luta, um crime, ou simplesmente um acto de desejo, anúncio da Primavera. Não conseguia, mesmo que produzisse um grande esforço de concentração. Tirou os óculos, deixou caí-los sobre a carpete de guedelha. Não, de facto não era capaz, embora lograsse reconstituir a batida dos móveis, e na ampla maré do movimento, representasse o último, o grande, o ruidoso suspiro.
"Podia ter sido uma morte! " - Pensou, mergulhado no quadro motivador que o seu pensamento criava, e pelo qual se sentia atraído num estúpido vaivém jocoso. Depois ficou a olhar para a parede da cabeceira onde pendia a teia peluda com as assustadas lebres, e invocou por fim o ruído dos beijos. Estava louco. Tinham sido grandes beijos, sonoros beijos, beijos longos, sufocados. Não havia direito de duvidar. Esses beijos tinham sido tão reais que o haviam empurrado para a sala de jantar, precisamente por invocação de despudor. Parecia ter esquecido tudo. Que ideia mórbida era aquela que lhe passava agora pela cabeça?
"Não, não foi uma luta nem uma morte!" - Disse para si, troçando da parte do pensamento que lhe excitava essa loucura.
Mas condescendendo com a indisciplina a que era votado naquele quarto sóbrio, onde tudo no entanto lhe parecia terno e preparado para os encontros, deixou que o espírito de novo vagueasse, desta vez, à procura de Ana Palma. Junto dela, não só a vida dos outros se reduzia à sombra duma maçaneta, como a coerência em relação ao mundo visível se recompunha, organizando-se em torno da linda boca que ela tinha. Aí iria colocar o seu pensamento esfalfado de ruídos singulares, pessoas encobertas, lugares por desvendar. Aí o colocou e aí o deixou permanecer. A tarde corria, trazendo sombras verdes e ele tinha pena que corresse, mas não a ia perturbar. Queria que ela percebesse que ele lhe dedicava um sentimento de porte superior, face ao qual a imagem do seu cortejo de homens violentos, incluindo o Fausto Maia, teria necessariamente de se esfumar e desaparecer. Ou se não desaparecesse, o pedaço deles que ficasse, como um só olho ou uma só orelha de fotografia, apenas serviria para sublinhar a excelência do que ele mesmo lhe dava e tinha, ainda que não estivesse disposto a ultrapassar o risco daqueles cinco dias. De qualquer modo, nunca mais Anita Starlet iria esquecer o encontro vivido no clube da mata. Ficaria pois ali, à espera que ela batesse na porta do meio, coberta com o pano de fustão. Era imperioso. Ela viria, com a sua voz de mezzo e dedos lisos, chamando-o como ela lhe chamava - "Engenheiro!" Claro que tinha escondido o robe e as alpergatas porque se tratava dum cavalheiro com o sentido das realidades. De dia, seria extremamente pernicioso proporcionar à rapariga a aproximação esperada desses objectos, e ele mesmo havia disposto o quarto com ordem, para que se sucedesse ela vir, não o apanhasse desprevenido, apesar de ainda não possuir um plano.
Um plano - De facto, continuava a não dispor dum simples esboço quanto mais dum plano, mas agora começava a achar que era pernicioso não ter. O recente assalto das ideias mórbidas relacionadas com os ruídos intoleráveis resultava por certo da falta de previsão dos momentos próximos. Possivelmente estava a deixar-se conduzir pelas circunstâncias com a inocência dos jovens ou a lentidão das velhas donas, quando ele nem dispunha do tempo dos primeiros nem da desistência das segundas. E desse modo, porque esperava? Àquela hora - o Engenheiro observava o mostrador do relógio com precisão de ourives - se ele tivesse um plano já os dois poderiam estar pelo menos a olhar-se sem paredes e panos de permeio. Mas de facto não possuía um esboço sequer. Aliás, mesmo que desejasse naquele instante sair para o corredor e bater à porta, tampouco dispunha do pretexto que balbuciaria. A menos que a fosse prevenir das imperfeições d'A Casa do Leborão. Isto é, poderia muito bem, como pessoa responsável que era, tomar um casaco, colocar uma gravata, bater à porta de Ana Palma, e calmamente dizer-lhe - "Estive a reflectir, minha querida, e previno-a que poderemos ter de abandonar esta albergaria que afinal não é de caçadores."
Aliás, preveni-la não era um dever? Quem saberia se do outro lado ela mesma não se teria apercebido de qualquer vizinhança menos recomendável e não se encontrasse inibida? Quem poderia garantir que não estivesse a ser assaltada por dúvidas sobre a casa sem coragem para lhas transmitir? Quem saberia se não se encontrava agastada e a sofrer? E num ápice, o Engenheiro Geraldes abandonou a ideia de que deveria esperar disciplinadamente o primeiro sinal que ela lhe desse, para se arrepender de não o ter já feito. Sentia-se merecer reprimenda de si mesmo e tomava-se por culpado - O sobressalto que o atingia, contudo, não tinha qualquer fundamento, pois quando finalmente saiu para o corredor silencioso e bateu à porta exterior do quarto, Anita Starlet apareceu distante do mundo que assaltava o Engenheiro, como se acabada de chegar do Toque-de-Classe.
Lembrar-se-ia depois, ao falar do seu segredo Quando viera abrir a porta em roupa interior, dela ou de todo o quarto através dela se desprendia o perfume que durante a noite havia aspirado rente ao chão. Na obscuridade percebia-se também que os olhos tinham marcas de sono, mas a boca, ela a tinha pintado de vermelho coincidindo de muito perto com certa rapariga do seu sonho. Como se ainda precisasse descansar, com o robe pela mão, adiante dele, havia procurado a cama que tinha deixado aberta, e tal como ele previa, também as roupas eram brancas, cor de leite. Depois a rapariga tinha-se atirado para dentro da cama desfeita, preguiçosa e cansada, a rir para ele como se não o visse. Bocejava. Os dois punhos saíam da dobra do lençol é o cabelo tinha-se espalhado pela almofada. Tal como ele tinha imaginado, ela ria. Ria, a coquine bocejava, ouvia-o espantada e ria.
"Porquê?"
Não, ela não tinha ouvido nada de especial. Não dera por que nenhum hóspede, de madrugada, tivesse chegado a não ser pelo ladrido da matilha. Não tinha registado nenhum ruído além do pio dos pássaros e os cães, sempre os cães. Ele não tinha ouvido, perto das oito da manhã, junto das janelas o chilreio duns pássaros? A Starlet tinha aberto a janela, tinha estado a ouvir. De dia, segundo ela, a casa perdia o ar soturno da noite, e a rama verde dos pinheiros deixava passar a luz com alegria. Tinha reparado que entre os pinheiros parecia haver uma vereda e ela gostaria imenso de passear. Ali dentro sentia-se bem. O quarto era bom. Os cobertores macios, a água do banho tinha vindo clara. Tinha acordado, comido, colocado o tabuleiro fora. E o casaco?
"Ah! Consegui!" - Disse ela, encostando-se mais entre a roupa. "Secou, sacudi, saiu tudo. Como pode ver! Se abrir o armário, pode verificar com os seus próprios olhos!
Mas o Engenheiro não precisava. Pelo soalho atapetado havia revistas de mulher espalhadas, algumas abertas em páginas onde raparigas como ela mostravam partes do corpo descobertas. Por cima dos móveis havia objectos pessoais colocados ao acaso, e de uma das ca deiras, a roupa dela pendia como se debruçada. Também o casaco de lã mohair não se encontrava no armário mas pendurado duma porta como um gigante branco. E o aroma? "Não o sinto mas está!" - Pensava o Engenheiro Geraldes querendo perceber porque razão o perfume tinha desaparecido em redor. Não tinha desaparecido. O perfume do quarto da rapariga era a sua própria atmosfera. Anita Starlet dominava a vida do seu quarto, mas em relação a tudo o mais, ela estava alheia com seu sono trocado - Não, ela não tinha dado por nada, não ouvira nada, não soubera de ninguém que tivesse chegado e partido. Muito menos tinha ouvido ruídos intoleráveis. Bocejava, mostrava os dentes sem defeito e ria. E se tivesse dado por ruídos o que é que tinha? Ela achava que as pessoas de vez em quando gostavam de procurar a solidão mas não o apagamento. Encostada, com o cabelo espalhado, quase troçava e quase dormia. A coquine fechava uma pálpebra mais do que a outra e fazia que dormia. O Engenheiro Geraldes naquele instante receava ter percebido em que consistia a insuperável grandeza da juventude - "Leva-me contigo, leva-me contigo, pelo menos durante cinco dias... Não me deixes ficar..." Dizia para si, sentindo que dois carros em sentidos diversos poderiam levá-los para direcções distintas, a velocidades diferentes, enquanto a ouvia, sentado na cadeira de cochins folhudos. De repente assaltava-o a ideia de que nunca dormiriam juntos. Seria que ainda era um homem recuperável? Transportável na cadeira macia do quarto dela?
"Sabe..." - Tinha dito a coquine, recostada. "Uma pessoa anda por tanto sítio, passa por tanta coisa. O Hans era um homem muito bom. Nunca lhe falei do Hans?" - A ardilosa tinha fechado os olhos.
Lembrava-se muito bem desse primeiro encontro em que havia posto tanta esperança! Como tinha sonhado durante toda a sua vida de homem, a rapariga muito pouco vestida estava ali ao seu alcance, e os dois encontravam-se longe de todo o bulício, como se acontecesse durante uma imaginação nocturna. Se não se enganava, também o perfume que já não sentia, mas o envolvia como tudo o resto, era exactamente aquele por que tinha esperado desde sempre. Os seus próprios músculos estavam cheios duma energia de vinte anos, e sem o menor esforço, poderia aproximar-se de Anita Palma e erguê-la enrolada nas mantas até à altura do coração. Talvez pudesse até erguê-la segurando por baixo da própria cama, levantando a cama com sua cabeceira e sua tapeçaria.
Também a cama dela tinha uma tapeçaria mas não representava lebres nem galgos, representava flores. Pois ele sentia os músculos violentos dentro da roupa, a ponto de ser capaz de arrancar a cama, com a mulher, o perfume e as peludas flores. E tinha a certeza de que seria capaz porque não era a primeira vez que faria isso. Num tempo que não sabia qual, mas ocorrera no encantamento de um lugar escuro, ele fora capaz dessa proeza. Tinha a certeza de que fazê-la seria apenas repeti-la. O seu coração batia acelerado. Mas não era fácil, não.
"Coquine?"
Não era fácil porque ela tinha continuado. a falar de várias viagens que no seu relato, feito entre o sono e a languidez, pareciam ser só uma, e contava como tinha conhecido o Hans junto de uma igreja com cúpula doirada do feitio de meia esfera. Tinham ido a um parque onde uns cisnes brancos eram lindíssimos vistos de longe, mas de perto abriam a goela descomunal e ele a tinha retirado da berma dos animais que ela sempre supusera angélicos. Depois ele havia-a levado a recitais. Contava, contava, com os braços levantados em torno da cabeça como se tivesse calor. Como todas as raparigas, contava a sua história num acto preliminar de confiança que ele conhecia. A rapariga do Fausto Maia esperava por certo que o Engenheiro se movesse, ou pelo menos falasse, anunciando um movimento. No entanto, não era fácil nem uma coisa nem outra. Como iria falar? O que lhe acontecia com Anita Starlet, posta de repente à sua mercê, era como se ele mesmo o tivesse planeado e exercido, correspondia exactamente ao momento que havia desejado, e sem saber porquê, de repente sentia que lhe faltavam todas as palavras cultas e todas as combinações inteligentes. A fala, diante duma mulher que havia imaginado deitada quase como a vinha encontrar, tinha-se-lhe reduzido a frases convencionais, e não encontrava espírito capaz de reproduzir lugares-comuns ouvidos a outros, em situações mais ou menos risíveis do passado. Com Anita Palma, não podia. E de forma alarve, na iminência da proximidade dela, sentia-se fazer parte dum sentimento que não pertencia mais ao presente. Não queria supor que Fausto Maia ouvisse! Se os seus interlocutores o vissem, se as figuras diante das quais dentro dum mes iria ler o seu discurso sonhassem! Se alguém pudesse imaginar que desejava dizer as frases desordenadas de paixão que tinha para dizer! "Nunca! Não!" - Dizia para si, fechando com força os lábios para não poder pronunciar. Não diria nada. Não queria dizer nada. Se dissesse, um sopro da sua voz poderia fazer evaporar o momento que o Engenheiro vivia.
"Não estou bem..." - Pensou. "Eu devia ser directo e dizer-lhe que me apaixonei por ela, e que naturalmente me quero despir e dormir com ela antes que terminem estes cinco dias". Mas o Engenheiro não dizia. Mais forte do que a vontade de mover a língua era o desejo de permanecer calado, desfrutando duma espécie de perfeição que nunca tinha imaginado atingir, pois a respiração dela, ritmada, fazia do quarto o centro dum incomensurável pulmão. Ora para a ter e ser uma história verdadeira como tanto queria, teria de passar por cima dum cadáver de decisões intermináveis que exigiriam despedaçar a harmonia daquela respiração. Ficaria quieto, ficaria calado. De longe, muito longe, atravessando o silêncio, provinha a batida do relógio colocado no caminho da cozinha. Como um cronómetro para o sangue. Começava a compreender a singularidade d’A Casa do Leborão. Nada de mais difícil para um homem consciente do que atravessar de actos o que a realidade ocasionalmente oferece de perfeito. Anita Palma parecia adivinhar.
"Ele queria que eu fosse além de mim. Acha, Engenheiro que alguém pode ir além de si?"
Fingia choramingar a ladina. Mas não chorava, ria. Queria por certo Anita Starlet que ele se levantasse, se aproximasse, ou então se encolhesse ou abalasse. Pretendia sem dúvida que ele agisse. Só que ele estava sentado diante dela, era um homem permanentemente a preparar a introdução a um discurso sobre a água para ser divulgado dentro dum mês, e por isso não lhe respondia. Aliás, quanto mais Anita Starlet contava de si, menos ouvia os episódios longínquos que invocava. O discurso dela lembrava-lhe uma cena vivida antes, e sem querer, desejava que ela por sua vez se calasse e em volta tudo fosse planície e silêncio. Ou um vale, um longo vale, sulcado pelo ruído dum comboio equivalente ao murmúrio do silêncio.
Lembrava-se de certa vez ter viajado de comboio ao longo dum caudaloso rio. Tinha sido tantos anos antes, que as casas ainda estavam em ruínas à entrada das cidades, como se a Guerra que as havia destruído quisesse estender a mão até à próxima, através do século. Mas já na altura, os magazines de fim de semana entretinham-se com biografias de carrascos exilados na América do Sul com o mesmo esplendor com que exploravam as aparições do monstro em Loch Ness. Acabava de ler uma dessas ficções rocambolescas onde a componente da vingança assumia um merecido ritual de opróbio, quando, felizmente, ao levantar os olhos, vira que na sua frente um casal se beijava. Eram duas pessoas regularmente belas, rondando os trinta, que se beijavam sem pudor como se tivessem- quinze anos, mas curiosamente não falavam. O Engenheiro Geraldes tinha continuado a ler o magazine, fingindo-se indiferente, e eles haviam continuado ora beijando-se ora não, como se na carruagem não estivesse mais ninguém, e isso impressionava-o. Mas mais do que tudo o que o impressionava era que ela, a mulher, não falasse. Porque ele sempre havia tentado não que não falassem, mas que expusessem menos, e em determinados momentos que não sabia prever mas conseguia posteriormente identificar, se calassem. Contudo, as mulheres com quem havia partilhado os momentos íntimos da sua vida, embora sempre se aproximasse das silenciosas, um dia pelo menos, todas haviam acabado por expor à velocidade das metralhadoras quando disparadas. E por episódicos que fossem esses momentos, daí em diante, ficava a imaginar a vibração das suas línguas como alguma coisa próxima da chacina. Então, a certa altura o comboio havia parado durante uma hora, e ele tinha ficado a vê-los até porque não desejava sair dali sem saber pelo menos em que língua se exprimiam. Mas não, nunca chegariam a falar. Olhavam-se ternos, moviam as mãos com languidez, estreitavam-se, tinham os corpos juntos, testas juntas e não diziam nada. Os seus olhos encontravam-se ora frente a frente de pálpebras descidas, ora no rodado da paisagem com seu rio e suas casas. Era verdade que as casas tinham ainda marcas, mas eles, a natureza verde e o rio pareciam ter encontrado, à sombra duma ameaça, um armistício eterno. Sem palavras. Durante muito tempo imaginou que poderia um dia desfrutar duma viagem assim. Tinha a certeza absoluta que nesse dia havia visto a verdadeira expressão do amor. Porque teria então de falar com Anita Starlet tão próxima da rapariga do seu sonho, se suspeitava que as palavras cedo ou tarde se transformavam na inimizade do amor?
"Anita Palma!" - Disse ele baixo para ter a certeza de que existia e se encontrava n'A Casa do Leborão. Se ele fosse outro, se ele tivesse a coragem que tinha exercitado, faria Anita Palma calar-se fechando-lhe os lábios com a boca. Mas não, mais uma vez, além de silencioso estava parado.
"Imagine, Engenheiro, que aquele bandido meteu na cabeça que eu era a reincarnação antecipada da Schwarzkopf! Não é uma tragédia uma pessoa meter uma coisa dessas na cabeça? Sobretudo quando uma pessoa nasceu para ser outra?"
Encostada na cama, Anita Starlet tinha começado a entoar devagar, na direcção do Engenheiro, alguma coisa que deveria ser a tal história da Barbara Song. Aproveitando os lugares esconsos da voz, distribuindo o sopro de forma assimétrica e ruidosa, durante um instante, o canto dela preencheu o ar com uma esquina de boémia. ó durante um instante. Entoava de forma muito diferente daquela que o atraíra para as escadas do sótão na tarde de Setembro. O Engenheiro Geraldes, no entanto, sabia que o que ela pretendia não era entoar para ele ouvir, era apenas narrar a sua vida.
Mas a sua boca vermelha era mais importante do que aquilo que entoava e que dizia. Ele via-a mover-se, separar unir-se, vir na sua direcção, tremer, repousar, e as palavras que pronunciava, num fio de canto que era de confidência, transformavam-se mim ornato. Meu Deus! Por um pouco, Anita Starlet não correspondia completamente à rapariga do seu sonho. Porque falava? Porquê? Porque lhe mandava recados, lamentos, reivindicações através de histórias heróicas de massacre? Jenny dei Pirati? Surubaya Jonny? Se ao menos ele tivesse força, se ao menos se levantasse e a erguesse no ar, e de novo a depositasse, e quando esse segundo momento viesse ele caísse junto dela. Se ao menos. Naquele momento, porém, não queria ter pena nem dela nem de si. Talvez fosse até um bem que assim acontecesse. Talvez. De outro modo, poderia ter a tentação de voltar a encontrar-se de novo com aquela rapariga tão semelhante à imagem do seu sonho. Poderia querer repetir aquele tempo. Ora ele era um homem sério. Era útil que encontrasse dificuldades, pois nem sequer podia desejar voltar a repetir aqueles cinco dias.
"Você que me tem ouvido, acha que alguma vez eu poderia ser um soprano? - Tinha perguntado Anita Palma, do côncavo da sua cama.
Ele havia retirado os óculos de aro de oiro, tinha-os posto nos joelhos e havia-lhe respondido com silêncio.
Sim, porque ele tinha a certeza absoluta de que o bem resultava do silêncio entre as pessoas. Muito, muito antes de ter visto o casal a beijar-se em silêncio absoluto, no distante comboio que subia o Reno, com pouco mais de vinte anos, ele o sabia através de seu pai e sua mãe. Raramente se lembrava deles vivos, e raramente queria imaginá-los mortos. Se mortos, dificilmente conseguia afugentar a imagem da consumição dos restos, e vivos, dificilmente conseguia afastar a poderosa contenda que havia sido a sua vida. Viviam em Colares. Desde que se encontravam entre a cozinha e a sala, que as palavras de cada um pareciam levar gotas de veneno para atingir não o ouvido, mas directamente o corpo de um e outro. Sua mãe ofendia menos, mas gritava mais. Os seus gritos eram violentos, subiam e desciam como o vapor numa chaleira. O seu pai falava depois, em síntese, e reduzia a mãe ao papel de causa do seu mau humor. Chamando-lhe caruncho e carpinteira. Por isso não os imaginava nem vivos nem mortos. E contudo, a partir do seu retrato, de cabeças unidas, em pé, apoiando-se seu pai na sua bengala, e sua mãe com as mãos cruzadas, cobertas por um ramo de rosas, conforme a moda antiga, o amor evolava-se das suas figuras vivas com um silêncio de valor exemplar. O seu pai tinha os lábios escondidos sob o bigode, e olhava para ela como se fosse terno. Sua mãe tinha os lábios fechados, sorridentes, como se fosse muda.
Pois bem - Nunca deveriam ter nascido nem morrido. Apenas deveriam ter vindo a este mundo para tirarem aquele daguerreotípico retrato. Essa era a expressão perfeita que ele imaginava do amor. Por que razão durante aquele primeiro encontro Anita Palma resolvia então falar? Perguntava o Engenheiro, dificilmente respondendo à torrente de palavras de Anita, outra coisa que não fosse, querida, minha querida.
"Anita Palma!" - Tinha ele dito.
Sim, tinha mandado saber da vida dela e por isso não precisava que ela lha contasse. Porque contaria? Entre ele e Anita Palma regressava de novo a sua mãe. O cabelo de sua mãe era longo, apanhado num chignon cujas madeixas caíam sobre a testa tal como tinha ficado no retrato. Mas se ela se movesse, e se seus olhos escuros pudessem descolar-se do papel onde atingia a perfeição, e se com uma tesoura o seu cabelo se pudesse aparar à altura das espáduas, seria uma mulher feliz. Pela primeira vez ousava imaginá-la fugindo de seu pai, acoitada numa casa entre a penumbra, dormindo diante dum homem, pela tarde, entre roupas cor de leite. O homem dir-lhe-ia - Schiu! E imediatamente se calava. Ou se não se calasse, e movesse os lábios, e todo o corpo, seria em silêncio, longe, longe. A sua imaginação tremia. Compreendia o sentido do seu desejo. Podia expressá-lo ali sem temor, porque ninguém o via nem ouvia. Estendia a mão sem atingir a ladina que falava. Estava resguardado de toda a suspeita, acolhido atrás das árvores e dos panos, n'A Casa do Leborão.
"Um horror! " - Murmurou para dentro da sua alma embevecida.
"Porque eu não era um verdadeiro soprano. A voz passava de repente dos médios para os altos e em ali chegando, enfraquecia. Entre os dois registos, alastrava-se o meu vazio, espesso como o escuro. Insuperável mesmo que me esgotasse em exercício. E em baixo, como vê, excesso de vibrato! Escute!" - Tinha ela dito.
E o Engenheiro Geraldes podia tê-la calado e para tanto bastava tirar os óculos de cima dos joelhos, poisá-los em qualquer parte e imobilizar a boca de Anita Palma sob a sua, mas sem querer, aquele clube da mata lembrava-lhe um outro quadro perfeito. "Não podia, não podia" - Tinha dito.
Haviam acabado de casar e ainda não tinham filhos. Por essa altura iam passar um mês inteiro a uma praia do poente. Mesmo em Agosto, por vezes, o sol chegava a nunca aparecer. Os veraneantes andavam vestidos de casaco de malha até ao meio do dia. Perto, uma mulher da idade da sua, sem casaco, encontrava-se deitada na areia. Tinha os braços levantados em torno da cabeça como se não sentisse frio. Porém, quando um homem da sua idade se aproximou, a largos passos, completamente vestido, ela erguera-se. Ele levantou a mão e socou-lhe a cara. A cara dela rodopiou, mas ela respondeu, batendo-lhe também. Enovelaram-se em luta na areia. Havia alguma coisa de boxe naquela luta que corria. O chapéu dele rolou até ao barco, junto das ondas ora descia ora subia. Então ele, de chapéu perdido, brutalizou-a. Era suficientemente longe para que a cena fosse vista seminterferência, mas suficientemente perto para se poder constatar que a cena não produzia som. Nem ela nem ele falavam. Era como se tivessem aquele encontro marcado exactamente para se baterem. Espancaram-se até que ele a venceu, sem falarem. Então, quando ele a soltou, ela tinha começado a caminhar ao longo da praia, adiante dele, rapidamente, como se fossem para um lugar derradeiro. Ela, porém, caminhava dentro de água e ele fora, pois ele encontrava-se vestido e ela quase nua. Mesmo assim, caminhavam rapidamente, como se tivessem combinado dirigirem-se para esse incógnito lugar, deixando ela o saco sobre a areia e ele o chapéu a boiar, a ir e vir à tona de água. Ele imaginava esse local no escuro. Lá dentro, no fundo do escuro, estava ele e estava ela. Ninguém no mundo podia saber, mas ele era ele, o Engenheiro, e Anita Starlet poderia ser ela se quisesse. Nesse caso, ele era capaz, no futuro, de repetir aqueles cinco dias. Mas não sabia ainda se ela era ela.
"E agora não sei dele! Imagino a Terra inteira, cheia de vilas, cidades, estradas, aeroportos e nessa imensidade, não sei onde se encontra mais. É sobretudo muito injusto ter-se perdido um filho como se fosse na Idade Média".
Então por que razão não se debruçava sobre o ondeado da camisa e não lhe explicava que se se calasse, se deixasse de mover os lábios enquanto ele a via, ela corresponderia à imagem dos seus mais profundos sonhos? Por que razão, se tudo se organizava afinal em torno daquela rapariga deitada, fingindo-se preguiçosa, como se fosse o centro dum universo que em vez de se espalhar pelo espaço se espalhava pelo tempo? - Contudo, era verdadeiro o seu desgosto. A mão direita dela tinha-se estendido sobre a dobra do lençol, à mercê do acaso e a respiração era alta e arrastada como se à mercê do peito. Anita Starlet tinha pegado na dobra do lençol e limpava a cara numa ponta. Devagar, fazia estremecer os folhos. Chorava para dentro deles. Tal e qual como tinha imaginado. O Engenheiro ficara em pé, de cabeça longe, sem saber como se comportar. Acontecia assim porque não era capaz de traçar uma linha de conduta. A sua cabeça, como as fracas pessoas emotivas, só dispunha de fantasias, não dispunha dum plano. Se tivesse um qualquer, esquemático que fosse, saberia quando se debruçar para ela, em que momento aproximar a boca da sua boca e dizer-lhe, mais que não fosse - "Não precisamos falar, meu amor! Estamos os dois onde queríamos - Sozinhos, ternos, resguardados de todos os intrusos, n'A Casa do Leborão".
"Pode ir!" - Tinha ela dito, saindo do enrolado novelo da sua cama. "Você, meu bem, bem sabe como tudo passa..." - Tinha dito ainda. "Agora vá-se embora e venha só à hora do jantar..."
O Engenheiro havia regressado ao quarto com as passadas mais lestas que conseguia dar. Não queria que uma célula parasse ou um cabelo caísse. Tinha a certeza de que estava a ficar estonteado com as paredes e os quartos onde se encontrava fechado havia um dia, e o turbilhão das divagações e sentimentos ele os associava ao limite geográfico a que estava confinado.
Além disso, sob a aparência de que o mundo havia parado e que nada tinha acontecido, suspeitava que insignificantes factos se sucediam a um ritmo intenso, enfileirados de propósito para lhe causar um desnorte. E para além deles, alguma coisa acontecia que o ultrapassava, ou pelo menos corria a seu lado de forma invisível e indomável. "Senão vejamos..." - Dizia o Engenheiro, circunspecto, desconfiando dos móveis, dos quartos e da própria mata. O banho de Ana Palma, o perfume, o corredor, o vaivém oculto dos criados com suas estúpidas respostas, o fulgor dos hóspedes vizinhos, o choro de um deles, as idas e as vindas pela madrugada, os cães que mesmo sem perspectiva de lua alguém tinha trazido, e que soltavam rosnados a partir de qualquer canil, a insónia dele, o sono dela, eram elementos insignificantes duma casa de bonecas e contudo, no conjunto, pareciam-lhe manobra duma propositada concentração, e explicavam sem dúvida, que pela primeira vez na vida tivesse dificuldade em dominar o seu destino. Como uma criança que crescesse, oscilava entre uma alegria que estalava explosiva, e uma melancolia sem limites, parente da tristeza.
"Inconcebível!"
A rapariga tinha estado à sua mercê, ele podia ter aproveitado esses momentos com naturalidade, como qualquer amante vulgar, e no entanto, havia-se embrulhado numa luta de evocações paralisantes. Como qualquer pessoa apanhada nas malhas do difícil ou do inexplicável, o seu despeito não se virava contra o mundo e a realidade que poderiam esconder a explicação, mas contra o seu próprio entendimento. "Com que então?" - Tinha dito, percorrendo o quarto e magoando as mãos. Acontecia assim, porque havia anos ou décadas que não sabia o que era uma fuga real para o amor, nem mesmo passageira. Tudo se passava apenas dentro da sua cabeça. E agora não sabia como agir, cercado de sombras, naquele clube incomum. O inquilino do Palacete dos Ruivos durante um instante duvidou daquele lugar como se tivesse sido apanhado num labirinto. Lembrava-se da conversa que tinha tido com o Moura. A certa altura a chuva mansa de Inverno caía persistente contra os vidros e o ex-sócio tinha-se referido À Casa do Leborão, onde agora se encontrava, como de um lugar inesquecível.
"É assim um lugar tão incomum?" - Tinha perguntado.
"Não te posso dizer o contrário. De algum modo é um lugar incomum" - Havia respondido o Moura, com os olhos matreiros a prometerem alguma coisa mais para além duma pousada discreta. "E digo de algum modo porque o lugar que te aconselho permite experimentar em três dias o que naturalmente se vive em dez anos, o que é útil. Há uma altura na vida em que um homem não tem mais tempo a perder" - Tinha ainda dito.
"Sim, o tempo passa a uma velocidade terrível".
"Mais terríveis são as experiências que se sucedem, logo começam e logo acabam, mas demoram o tempo suficiente para evitar o encontro definitivo. O último, o grande, aquele que o homem deve guardar para quando finalmente não quer mais mudar. Uma experiência assim não pode ocorrer numa rua, num café, num canto de esplanada. Tem de ter lugar num sítio como esse, resguardado, incomum... "
Se se lembrava - O pescoço do Moura tinha voltado a ser hirto e o olhar voltado a ser escuro, sentado, imóvel, naquela cadeira em frente da qual, ainda sem ruído, caía a chuva. Perante a segurança do ex-sócio, o Engenheiro Geraldes curvava-se de respeito pela experiência que lhe era vedada mas o Moura possuía. Sentia-se desprovido dum saber primordial. Mais do que um ingénuo, era um ignorante e experimentava vergonha como se estivesse a mostrar-se nu. Mas para além desse desconforto, ainda alguma coisa mais o inquietava.
"E não se fica desajeitado, sabendo que se vive tão intensamente uma prova?"
O ex-sócio tinha-se posto a rir. A rir, de rosto aberto, sem mover o pescoço. O seu riso fornecia a segurança necessária para se crer em absoluto não só no que dizia no momento, como em tudo o que havia dito até ali.
"Entende, homem! Não és tu quem vai estar à prova, e quem vai estar desconhece o fim para que está, simplesmente porque tu não lho dizes. De resto, entrega-te como se o encontro acontecesse num mundo à parte onde tudo é possível, sem ênfase, sem compromisso. Quanto ao tempo, deixa-o correr. Se for bom, voltas com a pessoa. Se não for, mudas de companhia. Alguém estabelece um plano por ti. Segue as sugestões da casa, os rumores, a protecção que te for oferecida. Estou mesmo a ver que vais voltar muitas, muitas vezes, À Casa do Leborão... " Agora ria mais, ria muito, transmitindo inteira confiança - "Mete-te na mata e procura o caminho. Anjos que tu não vês estendem a sua asa sobre ti..." Ria ainda. "Foi bom que tivesses procurado este teu amigo..."
"Mas e eu? Como procedo eu?"
O Moura ria muito, ria ainda mais.
"Ora, ora! Como se não estivesses lá, naturalmente, agindo e reagindo tal como és. Observando a pessoa, não a ti..."
"Sem um método? Sem um plano?"
"Deixa-te de fantasias absurdas! NA Casa do Leborão, o importante é regulado por outrém, não por ti, exactamente por respeito a ti! - Ah! Que dias, que noites! Espero poder lá ir a partir do próximo Agosto..." - O falador erguia no ar o pé, como se o mostrasse à chuva caindo em forma de morrinha. Depois havia colocado a mão no ombro do Engenheiro, havia baixado a voz - "Queres um conselho? Se procuras a felicidade é porque não a levas contigo. Deixa que ta dêem ou ta devolvam. Não te faças desentendido!"
"Entendo".
Mas o Moura queria saber alguma coisa de importante e havia feito descer a voz até ao segredo, enquanto na marquise uma goteira pingava - "Escuta aqui! Trata-se de homem ou de mulher?"
"Trata-se de mulher!"
O ex-sócio falava entre dentes.
"Fazes muito bem, fazes mesmo muito bem! Pessoa do mesmo sexo acarreta imensa complicação..." -- E como se tivesse ficado suspenso, à espera de outros dados, o amante desnorteado sentira que devia pagar a ajuda incondicional que lhe estava dando com a confidência do nome que tanto o perturbava. O sócio, porém, parecia incrédulo.
"Cuidado! Uma rapariga dessas pode ser tão perigosa quanto um homem. Também pode trazer complicações!"
Mas tudo iria correr bem se o Engenheiro Geraldes seguisse escrupulosamente as instruções da casa. Como estava contente pelo amigo, como o Geraldes tinha subido na vida! Que júbilo experimentava por ser ele e não outro a indicar-lhe aquele clube para o encontro! E que local! E que encontro! E que rapariga! "Schiu!" - Tinha dito baixinho, mas de modo a ser ouvido, contra a chuva que engrossava. "Sê livre em relação a ti e em relação a ela. Deixa que o instinto da sobrevivência fale por ti e por ela. Pensas que há muitas situações em que se possa ser livre? Abandona-te ao acaso..." - Havia dito por fim.
"Sim, uma vez lá, vou abandonar-me ao acaso como dizes".
O acaso, sempre o acaso. Tinha-lhe parecido desajustada a insistência obsessiva da última recomendação sobre o acaso. Ao abrir o guarda-chuva, junto da porta, do cimo das escadas, grato, ternurento, com o braço no ar, ainda o Moura lhe tinha feito o mesmo aviso.
Abandonar-se era exactamente o que não havia feito. Encontrava-se diante do espelho do armário e envergava um fato deslocado para um salão de caçadores dividido em pequenas mesas resguardadas por privados. Tinha vestido o fato escuro com bandas de cetim. Sabia que era impróprio, mas estava na disposição de fazer tudo o que lhe ocorresse de forma desprevenida, desafiando todo e qualquer cuidado. Estava farto de reservas, passos lentos, esperas, medos. Com tudo isso, iria por certo deixar passar a hora e o dia, e o momento exacto começaria a declinar. Porque estava parado? Nem parecia um homem que geria, a partir duma cadeira de couro brochada de amarelo, tudo o que se passava no Palacete dos Ruivos, na sequência duma vida de estudo e não da arte da política que muitas vezes julgava ser um parente próximo de artes baixas. E pensando nessas circunstâncias abonatórias da sua vida e outras - havia muitas outras - a pouco e pouco os passos de Engenheiro tinham ficado leves. Pegou no lenço e colocou-o na botoeira. Fez várias passadas lestas diante dos galgos esticados na tapeçaria, e marcou por telefone interno a saída para o corredor, com a determinação de quem se desembaraça da roupa para mergulhar na praia, numa linda tarde de sol. Não podia haver mais delongas. Caminhariam quase às escuras na direcção da sala e seria lá, ou em local nenhum, que a aproximação entre ambos se iria dar. Se até ali se tinha comportado de alma parada como um anho, finalmente outro instinto acordava sob as bandas de cetim, pois de outro modo arriscava-se a ver o seu desejo cair por terra. E foi assim que o Engenheiro se sentiu na disposição de ser livre, junto da vela que acendiam no privado.
A FIGURA
Mas a noite de novo tinha caído sobre a mata. Além do rumor dos cães ladrando era como se a vida estivesse esperando por alguma coisa exterior que a tornasse sonora. Apenas de onde em onde um lampejo de vento ondulava as copas, e o sussurro era tão breve que o Engenheiro pensava processar-se não fora, mas dentro da sua orelha.
Na verdade, a última determinação havia-lhe feito acelerar o sangue pelo corpo de forma audível. Tinha aberto a pequena janela gradeada para respirar melhor. Havia meses, anos, décadas, que não respirava assim. Longe, para além da auto-estrada, aquela era a hora em que os carros começavam a sair da Praceta dos Ruivos, esperando vinte minutos para entrarem na circulação viária. Parecia-lhe mentira que aquela fosse exactamente a mesma hora em que a cidade fervia de barulho e inquietação. As filas em torno das paragens deveriam enrolar-se como corpos de serpente. A pressa do fim do dia espalhava uma histeria que era palpável mesmo do interior dos carros de serviço. A cidade, todas as cidades, pareciam-lhe sítios infectados por um deus absurdo que deixasse a perdição crescer como uma nuvem contra a montanha. Teria de dizer isso no seu discurso a propósito da água. Agora o desejo de escrever um texto condenatório de todos aqueles que malevolamente confundiam a purificação da água com o verdadeiro estado de pureza, para a poderem deteriorar na impunidade, era para ele importante. Em certa passagem avisaria - "Senhoras, senhores! Uma água reciclada e lexivosa é uma água de estrutura morta! Acaso se poderá dizer que é pura?" - Pensava, e como se o próprio tempo o aplaudisse, o relógio do guarda-vento tinha começado a bater as horas.
"Uma, duas, oito horas!" - Tinha dito o Engenheiro.
Lembrava-se - Envergava uma comprida casaca e tinha corrido a fechar a janela. Havia-se tornado supersticioso como um primitivo, mas não importava porque ninguém o via. Fizera descer o bacamarte, havia-o apertado entre as mãos, voltara a pendurá-lo e só depois tinha saído. Fez dois passos largos. Ia vencer a inépcia. Bateu à porta e esperou por fora. A rapariga do Fausto Maia não tardou a aparecer. "Que pontualidade! São exactamente oito horas!" - Havia ela dito. Tinha graça, pois também ela parecia outra. Trazia um pequeno vestido que lhe apertava o corpo como se fosse de elástico e lhe punha os seios espremidos, atirados para diante, como se fosse seu propósito uni-los. A cintura estava marcada como se por baixo do tecido justo, ainda tivesse colocado um cinto. Não era a primeira vez que a via com um vestuário assim, de algum modo sobejo, mas a intenção que revelava - pois sabia que não seria vista por mais ninguém - era-lhe imensamente grata. Afinal a intenção de Anita Starlet parecia-se com a sua. Também ele se encontrava com banda de cetim apenas para ser visto por ela e por si mesmo. Empurrava-a devagarinho ao longo do corredor com sombra. Era a primeira vez que ela andava pelo corredor e ultrapassava o guarda-vento. Por isso, ao acomodar-se finalmente sob o quadro que representava a Primavera, o Engenheiro não conseguia retirar os olhos da chama que se movia nos olhos dela. A vela batia e fumava. Num primeiro instante, a rapariga do Toque-de-Classe achou que poderia vir a ter falta de ar, e havia até agitado o fio de fumo com a mão.
"Está tão escuro, meu bem!" - Disse ela.
Mas o Engenheiro tinha pressa em tomar a palavra, em encher logo de início o espacinho reservado por si e não por outrém, com a presença da sua explícita vontade. Era agora ou nunca que tinha de o dizer a fim de reinaugurar a condução dos cinco dias. Sem perder um segundo que fosse, desejava ser o senhor do lugar e do percurso. Inclinou-se para diante, a meio da estreita mesa porque queria falar o mais baixo possível, embora de modo a que ela ouvisse. Como se não dissesse, só respirasse, mas a respiração tivesse a energia duma trombeta de caça. Ou o relógio batendo as oito horas à ideia do seu discurso. Tinha a impressão de que era a primeira vez que falavam.
"Diga se aqui não estamos completamente resguardados... "
"Completamente!" - Tinha respondido ela, também muito baixo.
"E no entanto, não estamos sós. Estamos acompanhados por outros foragidos como nós dos locais onde não é possível uma pessoa encontrar-se e ser feliz..."
"Quer dizer que não estamos sós?"
"Claro que não!" - Disse ele com veemência, aproximando-se do rosto onde a boca vermelha brilhava. "Como no Paraíso, estamos entre outros, mas nós dois, juntos, completamente sós".
Anita Palma, entalada entre os panos, as paredes e estreita mesa, com os olhos quase fechados, ria. O Engenheiro também, pois finalmente começava a sentir que conduzia o destino de ambos na direcção do local seguro.
"Acha então que é assim o Paraíso?"
"Acho, claro que acho" Era como se alguém ditasse o que nunca tinha pensado. Uma parte da sua cabeça falava por alguém. O Engenheiro, com todas as faculdades reunidas em torno dela, deixava-se conduzir pelo sopro que lhe vinha dessa parte desconhecida de si. "Minha querida, minha querida" - Dizia no interior do privado onde chegavam vozes de alegria. "A ideia de que o Paraíso é um espaço aberto com gente enfileirada, disposta em bancadas sobre nuvens, boa, muito boa, a olhar para a eternidade, é uma mentira. O Paraíso é um espaço aberto dividido em casinhas onde, duas a duas, as pessoas olham uma para a outra como nós, e a eternidade fazêmo-la aqui se nos amamos. Será que existe outra unidade mais perfeita do que o equilíbrio de dois? Será?" - E ria. E logo aí podia ter tomado as mãos dela nas dele, mas o Engenheiro era um cavalheiro discreto e preferia esperar a hora de se curvar para elas com propriedade, para lhas beijar com amor. Sabia que não era assim que os jovens procediam, pois esses não se curvavam sobre nada a não ser directamente sobre o congote. A horrível materialidade tinha minado com sua nódoa de gordura a limpidez da decência. Mas ele não, e a Anita Palma nunca. Por alguma coisa se encontravam resguardados num privado. Precisamente porque ele era um cavalheiro. E também por alguma coisa ela o tinha escolhido a ele, depois de ter passeado pelos países disciplinados do Norte e os turbulentos do Sul. O que a querida coquine desejava para sua intimidade era pois um homem elegante, não importava a data do seu nascimento nem o local de origem. Ele tinha essas qualidades, e por isso estavam ali. Os dois, só os dois, sabendo que no antigo pavilhão de caça, atrás dos panos, existia naquela noite de sexta-feira, uma vasta companhia que se alegrava e mutuamente não se via.
"Ouve?" - Perguntou Anita Starlet.
"Sim, sim, ouço..."
De facto, para alegria do Engenheiro, as presenças no restaurante do clube tinham sofrido alteração substancial desde a noite anterior, quando todo aquele espaço lhes parecera um local deserto, o que significava que a movimentação que na madrugada havia sentido, provocava ali o seu efeito. Não saberia avaliar, contudo, se estava cheio, pois embora os privados fossem abertos na parte superior, pelo recinto que se pressupunha bastante vasto, as vozes abafadas espalhavam-se quase sem ruído e os risos fugidios, quando os havia, soavam perto mas reprimidos. No entanto, mesmo sob a labuta de resguardar a voz diante da rapariga do Toque-de-Classe, não lhe passava despercebido o tinir dos copos e a explosão das rolhas. Os pés dos criados deslizavam rápidos e também um carrinho afadigado passava tilintando. A mancha vermelha da fogueira continuava a agitar-se além dos pa nos como na noite precedente, mas o som da lenha havia diminuído, abafado sob o ruído das facas. Anita Palma tinha aproximado a boca pintada de vermelho do rosto do Engenheiro.
"E os criados não nos vêem?"
"Não, minha querida, passam, servem, vão-se embora e não nos vêem..."
"E não nos falam?"
"Não, não nos falam" - Mentiu o Engenheiro, na firme determinação de ele mesmo não falar. "E se nos di rigirem a palavra, nós indicamos o que queremos mas não lhes respondemos directamente..."
"Interessante, meu bem!" - Respondeu Anita Palma, rindo até fechar os olhos.
A luz avivava-lhe o vermelho dos lábios, ao mesmo tempo que lhe fechava os olhos da forma como ela bem sabia fechar, assemelhando-se em tudo aos olhos que durante toda a vida o Engenheiro tinha beijado. A rapariga do Fausto Maia metia as mãos no cabelo e virava-o todo dum lado para o outro como se o lavasse. Também esse cabelo correspondia ao cabelo onde ele mesmo tinha mergulhado os dedos da mão direita durante toda a vida.
Ainda bem pois que tinha pesquisado aquela casa a ponto de se saber desenvencilhar na hora decisiva. Estava contente consigo. Além disso sabia muito bem o que representava na Praceta dos Ruivos. Não olharia para as mãos dos criados, não precisaria, e ao receber a ementa, indicaria com o dedo simplesmente, como tinha sido sua intenção desde a conversa com o Moura, e depois sem saber como, havia alterado uma conduta que afinal deveria ter mantido. Mas ainda aí, o que havia feito e dito, fora feito por atenção a ela. Não queria agora identificar nem o que lhe parecera chefe de mesa, e horas antes o deixara a falar sozinho, nem o rapaz dos vinhos, nem tampouco o cavador melancólico de mão nodosa que indirectamente o havia ameaçado. Assim, quando o grandalhão veio plantar o ventre de gigante no quadrângulo do privado, o Engenheiro tomou a lista e apenas indicou os pratos escolhidos. Ele queria concentrar todos os sentidos na rapariga que ondeava o corpo no centro do privado. Mas ela seguia com interesse a nesga daquele ventre grande.
"Quer dizer que só lhes vemos a barriga e as mãos!" - Tinha ela dito, divertida. "Como os mágicos..."
"Como os homens, minha querida, como quase todos os homens. O que lhes conhecemos mais do que a barriga e as mãos?"
"Conhecemos-lhes as caras..."
"Não lhes conhecemos as caras, meu amor. Julgamos que conhecemos as caras. As caras das pessoas são na verdade um centro de sinais, mas não serão também o maior espaço de dissimulação?"
"Ah! Não diga isso!" - Tinha dito Anita Starlet, falando agora mais alto. "Pelo menos isso não é verdade quando se canta. Como se pode dissimular o que se é quando se canta, Engenheiro? Ali é a verdade nua e crua, Ainda que a voz seja uma coisa diferente da garganta..."
"Aceito" - Disse o Engenheiro receando que ela enveredasse de novo para a região de onde a queria desviar "As pessoas conhecem-se pelas barrigas, pelas mãos pelos rostos quando cantam".
"Sim, sim!" - Disse ela sem resistência, encostand -se ao espaldar. O escanção, com seu corpo sóbrio passava rápido diante do privado e voltava atrás para servir. "Quando cantam!" - Era delicioso. Acima da sua cabeça, fechada na moldura, a gravura dos Kunzli Éditeurs apresentava a imagem do Outono, Fim do Dia.
"Escute!" - Disse ele tomando a dianteira e prendendo-lhe uma das mãos.
Mas o Engenheiro tomou não uma, mas ambas as mãos de Anita Starlet, sabendo que finalmente caminhava para o centro do centro do local secreto, pois as palavras deles enrolavam-se em torno da mesa como uma onda que os unisse. A rapariga do Toque-de-Classe já não sufocava sob a vela que tremia nem via na penumbra uma ameaça de morcegos. Agora deixava-se apertar nos dedos como uma mulher que entende de preliminares. Ria, Anita Starlet devia estar feliz porque ondeava o cabelo e ria. Podiam rir porque estavam resguardados e embora completamente protegidos, havia um som de festa que se transmitia através do ar. E os panos? Tampouco os panos lhe metiam medo como ele tinha pensado. Pelo contrário. Ela achava que as pessoas viviam enroladas em panos, sentavam-se em móveis feitos de panos, dormiam em panos, nos desertos as casas eram feitas de panos e até mesmo os palcos eram fechados por panos. Ela estava habituada a panos. Adorava panos. E Anita Palma, a coquine, fechava um olho mais do que o outro como era seu hábito e ria. Passava a mão pelo tecido adamascado que os separava do local comum onde os pedaços das figuras pretas deslizavam e serviam.
"Não!" - Disse ele, a tremer, como num tempo muito antigo, receando que ela fugisse para um local da lembrança que não lhe pertencia.
"Escute, escute!"
Naturalmente, ele queria que ela estivesse ali, só ali, sem outra recordação além da que decorria dentro daquele espaço. Ora para que ela não invocasse nada fora do quadrângulo onde a vela ardia - pois nunca se sabia quando poderia querer de novo recordar o caótico passado - o Engenheiro, movido de ímpeto, beijou-lhe as mãos. Mas depois de as ter beijado, de novo ficou indeciso. Em seguida o que faria? Deveria procurar sob a mesa a superfície lisa das meias postas? Aproximaria a sua boca seca dos lábios vermelhos de Anita Palma? Afagar-lhe-ia os olhos? Beijar-lhe-ia os braços? Passaria o polegar pelo seio redondo ali tão perto, tão espremido, tão exposto? E se um gesto seu fosse repelido? Ou pior? - Se fosse consentido, e outro fosse possível, e outro e outro até onde iria? E o que sucederia ali no quadrângulo do privado? E se não sucedesse, o que iria pensar dele aquela rapariga conhecedora do mundo, embora disfarçasse? O Engenheiro amava pois aquele corpo, e no entanto, desejando-o tocar na totalidade inalcançável, preferia pela primeira vez na vida que uma mulher não fosse um corpo. Ela não retirava as mãos, não as movia, não as puxava, tinha-as deixado imóveis como se adormecidas sob as suas. Mas tudo corria como num sonho. A rapariga do Fausto Maia, de vestido preto esterlicado, na sua frente, por momentos parecia ter adormecido. Como ele queria, tal como ele sempre tinha querido. O Engenheiro experimentava a angústia de se sentir entre o tempo e a eternidade. A angústia do Engenheiro, porém, era leve como uma gaze.
"Vai, vai... " - Tinha ele dito, à medida que a sala se enchia de rumor.
Também o carrinho tinha parado junto da fresta cortada no pano, e o chefe de papo branco, com voz cava de pessoa agigantada, fez entrar dois pratos já servidos. A sua mão com velo preto onde o anel de pedra azul brilhava, ficou pousada no parapeito e atrás do pano, o homem disse alguma coisa. Mas o Engenheiro tinha dobrados motivos para não lhe responder. Afastadas das mãos de Anita Palma, as mãos do Engenheiro, apesar do ligeiro calor, ficaram frias. Não falava. Também pouco comia. Diante da rapariga a quem tanto queria consagrar cinco dias inteiros da sua vida, a alma do Engenheiro, como uma coisa simples, levando atrás de si tudo o que os rodeava, voava para longe. Mas não era uma fuga. Era a incapacidade humana de enfrentar o verdadeiramente bom e o verdadeiramente belo. Reparou que ela tinha os olhos descidos ou fechados. Fechou também os seus. Cerrou as pálpebras. Meu Deus, o que seria do Engenheiro se não tivesse pálpebras? Era bom aquele embaraço prócino do arrebatamento, o que não queria dizer que para o Engenheiro não constituísse um perigo, pois de novo, possuindo uma fonte inesgotável de palavras para dizer, encontrava-se imóvel, diante dos pratos servidos, atrás da pequena janela de pano, sem ser capaz de pronunciar um nome.
Então, lentamente, começou a mastigar, pois também Anita Palma havia desfiado a sua carne e comia. Não diziam nada mas era como se dissessem. Levantavam o garfo, a faca, bebiam, em sintonia um com o outro como se se entendessem. Como se partilhassem alguma coisa de comum que os unisse mais do que as mãos sobre as mãos ou as pernas entaladas entre as pernas. "Espera!" - Pensava o Engenheiro, descobrindo alguma coisa de precioso na sua vida. A boca da rapariga do Toque-de-Classe sob a luz directa e única da vela perdia a tinta e ganhava uma cor de rosa natural que lhe era conhecida. O Engenheiro tinha metade da cabeça repleta de fantasias que a boca da rapariga provocava. O Engenheiro lembrava-se de Rosina.
"Rosina!" - Disse ele sem dizer, enquanto comiam e justamente não conseguiam falar. "Rosina, Rosina!" O hóspede proveniente da Praceta dos Ruivos erguia os olhos, descia-os, de novo poisava-os sobre o prato e o copo. Bebia. Voltava atrás, emergia-os na espuma do futuro, e Rosina que tinha sido a sua primeira rapariga estava ali. Anita Palma não saberia jamais até que ponto incorporava e era também em si a figura de Rosina.
Mas deveria dizer-lhe? O Engenheiro Geraldes lembrava-se da sua dúvida. Na verdade, ainda que quis não o poderia fazer. Rosina era uma serviçal e havia chegado à sua vida com baldes de esterco e de leite. O quarto dele, nas férias de Colares, era dividido com Fausto Maia, e a janela dava sobre o pátio da cavalariça. Aí, diante desse pátio, iam passar os meses de calor e ambos tinham possuído Rosina no celeiro. Tinha sido necessário fechar os olhos às teias e às traças até encontrarem os sacos fofos onde estava a lã. O cheiro do trigo e da cevada era porém mais forte, e no meio dessa fartura os lábios vermelhos dela haviam sido dos dois primos. Ela, porém, só exigira que se deixasse encostada a pequena janela por onde entrava a luz. Os arneiros eram de zinco, estavam pendurados na parede e na penumbra tiniam como se por eles passasse uma santa tempestade. Já nessa altura, porém, ele e Fausto Maia não partilhavam da mesma ideia sobre os haveres. E no entanto tinham andado nas mesmas escolas, tinham lido os mesmos papéis, aprendido o mesmo solfejo, ouvido o mesmo tio, com os mesmos pés metidos no tanque, à sombra das mesmas árvores, atirando as mesmas pedras às caudas dos mesmos pavões. Ele tinha querido dar-lhe um lenço roubado a uma tia, ou uma saia, ou uns brincos. Alguma coisa leve, perfumada que a compensasse do híman que lhes tinha dado. Mas o Fausto achava que bastaria abastecer-lhe o regaço de favas do celeiro para os porcos de seu pai. Sobre uma mesa havia uma caixa de lata do tamanho dum sabonete onde se podia ler Strawberry. A caixinha tinha desaparecido, embora Rosina não soubesse ler. O fruto desenhado era da cor da boca de Rosina. Tinha sido com essa discrepância que ele e Fausto Maia haviam atravessado a vida. E agora, eis que ambos disputavam, passado tanto tempo, de novo, a mesma boca.
"Sim!" - Mas o Engenheiro só queria a parte de Rosina que sobrevivia no seu sonho de homem e por fim reencontrava em Anita Starlet. Seriam todas elas uma só? Felizmente tinha trazido Anita Palma até ali e um outro regozijo somava-se ao primeiro, embora não lhe quisesse atribuir um nome. Ao apertar a mão livre de Anita apertava também o corrimão. Àquela mesma hora o Fausto Maia teria subido ao quarto além do mezzanino, e tendo visto o espaço abandonado, imaginaria tudo menos a verdade e olhava-o de longe com certa pena. Segundo o Engenheiro, na sua cabeça de cioso, deveria haver uma fantasia irrealista que imaginada ao longe metia dó. Como combinado, Anita não havia deixado rasto da sua saída no pequeno quarto do sótão que ela habitava. Tampouco no Toque-de-Classe havia deixado uma palavra. Ninguém sabia dela, ninguém sabia dele, e como ninguém os associava, estavam seguros em todos os sentidos. Não era maravilhoso?
Aliás, para o Engenheiro, a fuga de cinco dias que a rapariga empreendia sem compromisso de qualquer tipo, colocavam-na na beira da deriva como se a tivesse encontrado solitária, perdida no meio do mar. Gostava de ter sido ele e não o Fausto Maia a tê-la apanhado numa praia. Toda a vida havia imaginado voltar a encontrar a sombra duma pessoa assim. Agora ali estava movendo os braços cobertos pelo pedaço do vestido preto. Acompanhado não só por Anita Palma, mas também pela lembrança viva de Rosina, o avançar da noite, como numa festa oculta, também através dos outros panos transbordava. Alguém ria, e por vezes o som que chegava parecia ser não só de satisfação mas também de humor. Alguém contava alguma narrativa a alguém que, por sua vez, interrompia com vivacidade. Chegava a parecer que a conversa, embora velada, se estabelecia entre várias pessoas. Era mesmo possível ouvir distintamente a voz de um homem dizer - "César? Querido? Que exagero!" E outro responder - "Então não vá..." Depois de novo o discurso apagava-se, coibido. Anita Palma tinha-se aproximado da janela do privado sob o impulso de espreitar. A sua boca sem a tinta continuava a ser vermelha e brilhava - "Não pode, meu amor, não pode..."
Mesmo que fosse permitido, não podia, pois atrás do pano amarelo encontrava-se uma nova figura parada. Ou melhor, um homem de estatura média e ventre médio, mãos escondidas, possivelmente penduradas, ou apenas unidas atrás das costas, numa postura que parecia desportiva. A avaliar pelo corte do casaco, não deveria tratar-se dum criado mas dum superintendente. O Engenheiro não pôde deixar de se sentir indisposto, ao imaginar que aquela criatura poderia abrir uma questão que o obrigasse a pronunciar palavras. Aliás, poderia recusar-se. Não constava de nenhuma regra a obrigatoriedade de responder a pessoas que até revelavam incompetência e falta de qualidade, embora o não dissesse a Anita Starlet. Em matéria de conversa já havia dado alguns passos inúteis de que se arrependia. Tinha ido longe demais, e tendo regressado à indiferença absoluta, não voltaria a repetir a confiança dada. Como se o não visse nem ouvisse, continuava a apertar as mãos e os braços de Anita Palma. Mas o homem do ventre médio, muito próximo do parapeito sobre o qual caía o pano, aparecia agora de lado. Era evidente que não pretendia apenas desejar boa-noite. Já havia desejado três ou quatro vezes, roçando-se pelo reposteiro.
"Uma boa noite, uma boa estadia!" - Tinha dito mais uma vez.
Porque não desistia? Por mais que se repetisse, num fio de voz que lembrava um cumprimento de chinês, nem ele nem ela responderiam. A pessoa, porém, deveria querer dizer alguma coisa para além de pequenas palavras de cortesia, pois de repente, aproximando o ventre médio coberto pelo casaco assertoado, tinha pronunciado de forma perfeitamente audível - "Soubemos que esta manhã, uns hóspedes foram longe demais. Perto, muito perto do senhor..." - Disse o homem de silhueta média, e havia continuado - "Infelizmente assim sucede por vezes. Temos pensado muito sobre o assunto. A coberto da protecção irrepreensível que esta casa proporciona, há quem abuse dos outros impondo-lhes com agressividade as manifestações da sua natureza... "
Agora já não se repetia em tom titubeante de chinês, mas mesmo assim, a voz serpenteava, ia e vinha como se a sua frase tivesse sido arrancada dum canto gregoriano.
Depois, aproximando-se mais da pequena abertura, desencadeou o seu raciocínio em catadupa, como se despejasse um saco de palavras esguias que quisesse transmitir duma só vez.
"Creia o senhor! Temos pensado, pensado, e chegámos à conclusão de que de duas uma. Ou deixamos ficar como está, à mercê da discrição de cada um, ou criamos nós mesmos um ruído de água, vento ou chuva, onde todos os outros se esbatam. Mas é uma opção difícil. Entre as duas possibilidades optámos pela primeira. Por mmuito natural que fosse um ruído, sempre seria artificial e não resultaria, já que o nosso ouvido associa o som produzido à música, e a música não existe na natureza ... Mas é com pena que se tem de concluir que afinal o ser humano mesmo quando deseja o silêncio dos outros, é em si um ser ruidoso..."
O Engenheiro havia tirado os óculos. Tratava-se por certo dum gestor formado em cursos relâmpago de fim-de-semana, dirigidos por orientadores incultos, praticantes do pragmatismo universal que na sua forma mercantil havia criado determinados tipos melosos cujo raciocínio era duma clareza matemática e a filosofia recuava à dimensão adolescente. O Moura não tinha falado na presença de pessoas daquele tipo na Casa do Leborão. Apesar de tudo, era só uma impressão que sobrevinha, e em outra situação, até que desejaria confirmar. Não queria, porém, desperdiçar com aquela figura falante um centésimo que fosse da sua vida concentrada por inteiro entre os olhos e a boca de Anita Palma. Ou no cabelo farto onde ele metia os dedos e encontrava a curva da cabeça até às orelhas de onde havia retirado um brinco. Um comprido brinco que ele mesmo tinha depositado junto ao pé dum copo, enquanto aquele homem que parecia ter muitas faces, todas elas disfarçadas sob o mesmo ventre médio, em vários tons ascendentes, se exprimia. O outro brinco estava lá, pendurado da outra orelha, e ampliava-lhe o movimento da cabeça como um pêndulo. Para não falar nos brancos seios da rapariga do Toque-de-Classe, espremidos entre o elástico do vestido, unidos debaixo da luz da vela. Não, não responderia.
Então o homem de estatura média aproximou-se completamente, colocando o médio ventre rente ao parapeito e ao pano. Apesar do recorte utilitário do raciocínio, havia alguma coisa de sobejo no seu discurso que afastava. O afadigoso senhor era colocado em espaços desnecessários como se ao dizê-lo tantas vezes o quisesse capturar, e porque o dizia em voz baixa para tornar o recado íntimo, a aproximação resultava intrometedora e insinuante.
Não parava - "Como o senhor já comprovou, trata-se duma casa concebida para preservar a natureza humana ...Sim, senhor, porque hoje em dia há planos para preservar os campos, as florestas, as lagunas, os rios, os mares, e as diferentes espécies de animais em seu habitat, mesmo os que se encontram em vias de extinção. Mas o homem, esse, perdido entre torturas de vária ordem, não se preserva. E dirá o senhor. .. Não se preserva? Como assim? ...E eu explicarei ... Procura-se preservar o corpo, criar bem-estar e desenvolver os meios de locomoção, et cetera, mas não se preserva o mais importante que é a natureza da nossa própria natureza. Ora esta casa preserva-a ... "
O Engenheiro escutava o homem intruso, sem afastar a mão do rosto de Anita Palma. Tinha formado com os dedos uma pequena concha e aí segurava o queixo da rapariga do sótão, como se de seguida a fosse beijar, mas não podia parar de ouvir o superintendente. O que quereria aquele homem?
Cada vez mais confiante, essa pessoa prosseguia "Esta casa, senhor! Nós todos os que constituímos a equipa desta casa pensamos que um dia não distante, seremos não só entendidos como premiados, e homólogos deste clube hão-de aparecer pelo mundo inteiro civilizado, tornando-o então mais humano e pacífico do q hoje. Não duvidamos mesmo que num futuro muito próximo, casas como a nossa venham a ser consideradas de utilidade pública. E eu me pergunto... porque não foi esta iniciativa pelo menos considerada indispensável, se as pessoas que aqui vêm sabem que seria merecido? Porquê? Porquê?" - Dizia o homem, atrás do reposteiro, e o curioso é que parecia haver amargura verdadeira na voz daquela figura mediana.
A própria rapariga do Toque-de-Classe que não havia assistido a nenhum dos embates entre o Engenheiro e o pessoal, encontrava-se prisioneira daquela fala copiosa. O homem da barriga média tinha-se virado do outro lado. A sua voz, porém, provinha da mesma direcção do pano. Continuava como se fosse impossível calar-se.
"Pois deveria, e no entanto, por ironia, a situação é bem diversa! Por isso, para mantermos esta empresa, deixámos de poder seleccionar os hóspedes como antes. O resultado está à vista ... Há pessoas que vêm de propósito para produzirem, a coberto da nossa discrição, ruídos que, tal como o senhor disse, são intoleráveis ... Mas hóspedes há que poderiam ajudar a recuperação do sentido desta casa ... Hóspedes há..."
O homem médio tinha deixado a voz descer até ao murmúrio e ao pedido. Por fim, parecia querer paralisar de novo num sussurro de chinês - "Hóspedes cuja identidade sempre ignoramos mas cuja finura é manifesta.. .Pessoas há como o senhor, que nos poderiam ajudar".
"Hóspedes como eu?" - Deixou o Engenheiro cair sem querer.
"Exactamente. Figuras públicas como o senhor, e naturalmente com poder, como uma pessoa como o senhor deve ter..." - Respondeu o homem médio.
"Sim, mas um hóspede nessas condições o que faria?"
"Ah! Tão pouco! Trata-se dum caso de salvaguarda da natureza, mas da mais importante natureza, como o senhor bem sabe..."
Com as mãos separadas das de Anita Palma, o Engenheiro esperou. Tê-lo-iam identificado? Aborrecia-o suspeitar que pudesse não passar incógnito, mas ao mesmo tempo, agradava-lhe saber que tinham em conta a sua reclamação, e sobretudo, que apenas a sua conduta, nada mais do que ela, parecia inspirar confiança naquele homem pragmático que não o via. Não conhecia o alcance do que poderia fazer, mas se era necessário deixar que aquelas pessoas mantivessem a casa e se com isso pudessem apurar uma clientela que afinal fora outra, não se importaria de colaborar. Isso mesmo acabou por prometer - "Se assim é, farei o que puder".
"Ah! Eu sabia que dirigindo-me ao senhor alguma coisa de bom para esta casa haveria de resultar... Eu sabia... "
E o homem de ventre mediano ainda pronunciou outras frases curtas, menos audíveis, parecidas com as primeiras, e como tinha surgido assim se havia afastado, desaparecendo devagar da pequena janela aberta no pano amarelo adamascado. A sala havia readquirido entretanto parte do silêncio, e dava a impressão de que o tacão do seu sapato se ouvia mais do que tudo, ao percorrer o amplo espaço que se não via.
"Curiosa esta pessoa, meu bem!"
"Curiosa não, impertinente ... De qualquer modo, meu amor, fiz bem ter-lhe respondido, para que nos deixasse em paz. Agora deixou-nos, é o que importa!" - Mas o Engenheiro não dizia a verdade.
O que importava ter atendido durante uns minutos um homem mediano, pragmático, talvez fingido e talvez frenético, com seus passos e palavras curiosas, se em frente, quase nua, diante da luz da vela que diminuía, se encontrava a rapariga que ele tinha visto no sótão do Fausto Maia? Convinha que um homem praticasse a altivez apenas em quantidades razoáveis. Não seria bom que no meio da felicidade que se preparava ou que já se tinha, se menosprezasse a apoquentação dos outros, e aquele gerente ou equivalente deveria encontrar-se em dificuldade, pois não era a primeira vez que se apercebia da referência explícita a uma qualquer degradação. Também Anita Palma podia daquele modo testemunhar como ele era um homem bondoso para com o género humano, mesmo quando encapotado. Não falharia - Alguém estava a levantar dificuldades à manutenção daquela casa disfarçada à sombra dos pinheiros? Onde se dormia na penumbra e se vivia tranquilo para se poder ler o amor como no fundo dum regaço? Pois bem, ele ajudaria para que Anita Palma visse. Talvez bastasse um telefonema de dois minutos, durante a pausa do café, dirigido ao comando-geral. Sim, se o gerente ou semelhante a isso se queixava daquele modo, deveria tratar-se de vigilância abusiva da polícia. Indagaria das circunstâncias. Ele entendia. De facto, era impossível que as pessoas abrutalhadas da ordem pudessem alguma vez entender o espírito delicado que impelia hóspedes cultos para encontros discretos, à sombra daquele disfarce. Para a polícia, claro que todo o disfarce, fosse de que natureza fosse, sempre andaria associado ao crime. E agora que tinha as mãos de Anita entre as suas e os joelhos dela entre os seus, ligeiramente presos, apenas como se os amparasse de qualquer aragem que sob a mesa corresse, e os olhos dele estavam inclinados para os dela como a chuva para a terra, pensar em policiamento era uma ideia repelente. "Caramba, que indecência!" - O Engenheiro apertou-a mais e mais, protegendo toda a parte do corpo de Anita Palma que a mesa não separava.
"Tome!" - Tinha ele dito, oferecendo-lhe do seu copo. Estava feliz consigo mesmo, mas ainda não sabia como proceder:
Não importava. Alguém que não via, ou alguma coisa cujo nome não lhe era dado conhecer, o encaminhava para o verdadeiro início daquele encontro de cinc dias - Pensava ele, sentindo que eram horas de abando nar a sala dividida e ainda não tinha um plano. Já não comiam, e o álcool afinal ele o bebia em pequenos golos, devagar. O escanção tinha-lhe servido a seu bel-prazer. Duas, três, várias vezes. Não tinha escolhido. Para ser franco, nem sabia o que estava a beber através do copo. Deixando que a alma amornecesse, bebia só com a ponta dos lábios, sem os óculos. Era desse modo que o Engenheiro entretinha aquela hora que amava e não sabia como não deixar fugir. Bom mesmo, contudo, era o modo como ela não bebia nem falava. Só ria, e só se encolhia no cadeirão por cima do qual, o quadro com o rebanho fugindo sob as descomunais árvores, dizia em capitulares Outono, Fim do Dia, contrastando com o riso dela, à beira da gargalhada. Não fazia mal. Na sua frente, aquele era o espelho dele que se invertia. Uma fúria imensa de vencer o tomava nos punhos e pensava até que a magoava. Era a força da branda Primavera sob a qual estava sentado. Ou era a energia do local. Ressumava por certo do verde dos pinheiros escondidos agora sob a noite, ou da memória dos caçadores que ali, durante séculos, teriam vindo comer as partes do javali. Era uma força poderosa. O Engenheiro apertava os joelhos de Anita Palma entre os seus, e ouvia detonações longínquas que traduzia em pequenos estalidos dentro da sua própria boca, para que ela não ouvisse. Desejava, contudo, desdramatizar o momento, banalizar as palavras. Pôs os óculos - "Acha, querida, que estarei com um grão na asa?" - Perguntou.
Mas não, Anita, a coquine, achava que a alegria não era um grão na asa. E se fosse, que importava? Tendo prestado serviço em bares e restaurantes, sabia que muitas vezes, um perfume de álcool a mais poderia significar um elogio a um homem ou uma mulher. A coquine ria - Porque sabia tanto aquela rapariga?
Talvez soubesse mesmo muito mais do que ele quereria que soubesse, porque naquela noite, ele gostaria que ela soubesse pouco ou mesmo nada. Gostaria que falasse, que movesse os lábios vermelhos, ou até mesmo que cantasse em voz baixa junto da orelha dele, mas que não dissesse nada, ou o que dissesse fosse sem saber. Acaso tinha percebido alguma palavra quando a tinha ouvido pela primeira vez e se tinha apaixonado no alto da escada do mezzanino? Naquele fim de jantar n'A Casa do Leborão, ele queria que por dentro da cabeça dela não houvesse nada. Não, não o horrorizava a cabeça vazia de Anita Palma. Era até bom mesmo imaginar não existir lá dentro a memória de nenhum homem, nenhuma rua, nenhum filho, nenhuma cantoria, não existir nada a não ser as imagens que guardasse a partir daquele momento que lhe estava dando. O privado, o corredor, o quarto, a banheira, as duas camas. Ele desejava imenso que ela o seguisse e ambos, sem precisarem de sair do privado, nem percorrer o corredor e abrir as portas, nem puxar águas, se encontrassem os dois, sós, debaixo do mesmo pano. Seria que a coquine teria outra qualquer ideia na cabeça? Por certo que não tinha. Ela também lhe dizia do outro lado da mesa - "Vamos indo, meu bem?"
"Espere!" - Disse ele, olhando para a beleza a levantar-se. "Espere um pouco. Por acaso já perguntámos como proceder se amanhã sempre quisermos passear na sua vereda?" E sem dar tempo a que ela respondesse, nem se importar com a determinação de silêncio que havia feito em relação aos empregados do serviço, no princípio do jantar, tinha enfiado a mão pela abertura do privado, e contra o que era permitido, acenou. Viria alguém? O Engenheiro não ouvia nada. Mas como se andasse por perto e estivesse completamente desocupado, o chefe apareceu. O quadrângulo cortado no pano ficou repleto do peito farfalhudo daquela pessoa agigantada."O senhor chamou?" - Tinha perguntado a figura.
"Chamei! Queria que me dissesse como deve uma pessoa proceder para passear pelos pinheiros..." - O facto de se sentir eufórico não o impedia de falar baixo, e ser breve com quem devia ser.
O grandalhão, com sua mão peluda colocada no parapeito, solícito como um humilde vendedor de enciclopédias, tinha-se posto a dizer que havia de facto muito boas veredas, caminhos entre os pinheiros devidamente assinalados, que permitiam idas e vindas sem o incómodo de se encontrar alguém. O chefe parecia aceitar a pergunta do Engenheiro com todo o entusiasmo - "Ah! Eu sabia que o senhor iria aproveitar a natureza! Pois então? O senhor sai, o senhor passeia por um tempo determinado, o senhor decide voltar, o senhor entra, e nada mais é preciso do que marcar. Tomamos nota..." Mas depois, curvando o grande corpo no parapeito estreitinho, quis saber se de momento era preciso ajuda para regressar.
"Que ajuda?" - Perguntou o Engenheiro, falando muito mais alto do que tinha prometido.
O grande explicou que em geral conduziam as pessoas de regresso aos quartos com a discrição que cada hóspede merecia. A princípio essa assistência destinava-se só às pessoas do clube, mas depois tinha-se estendido sobretudo a certos hóspedes. A casa era assim, era completa, entendia e protegia os que a ela se entregavam.
"Não! Nenhum de nós dois precisa!" -Tinha respondido o Engenheiro, de mau modo. Aliás, não estava sozinho, e tanto ele quanto a rapariga que o acompanhava eram pessoas sóbrias.
Mas do outro lado dos panos que pareciam de repente fazer o ar irrespirável, a criatura ainda insistia, dando a entender que por vezes os clientes pensavam que não precisavam, precisando. O papel dele consistia tão somente em advertir por bem. O que não queria dizer que em qualquer momento não fosse altura de o hóspede voltar atrás. Se pensasse melhor, e quisesse pedir uma ajuda, seria só dizer. Depois, tinha deslizado para o lado, o seu braço direito ainda havia ficado por um instante no espaço vazio do pano, e em seguida desaparecera de todo. Voltava-se a ouvir de novo o fogo crepitar.
Porque a maior parte dos hóspedes já havia abandonado o antigo pavilhão de caça na direcção das zonas de dormida. Com alguma regularidade tinham vindo a passar pelo corredor, embora não se soubesse dizer se saíam dois a dois, se três a três. Por vezes, ainda que sem ruído, o Engenheiro suspeitava que abandonavam o local grupos mais numerosos, como se fosse quatro a quatro. Por certo que ao longo do tempo, havia pessoas que se aproximavam umas das outras, e fechadas em círculo reduzido, acabavam por passar fins de semana jogando às cartas ou xadrez, longe dos olhares do mundo. Mas o que ele mesmo queria, no seu caso, era que houvesse apenas dois, nada mais que dois, saindo pelo corredor escurecido, sozinhos, lado a lado, sobretudo depois do guarda-vento, e que os deixassem percorrer a passadeira, livres, até às duas portas geminadas, sem um plano. Pois para quê um plano, se dentro do privado, readquirindo a confiança em si mesmo, Anita Palma tinha ficado ao alcance da sua mão como uma pequena lâmpada entre folhagem? Senhor absoluto da situação, sem sentir a ponta dos pés, o que ele desejava era que ela caminhasse pelo corredor fora para vê-la andar na sua frente. "Não!" - Disse ela, ficando para trás.
"Sim, sim".
Disse ele, colocando-a adiante. E ela, compreendendo, como ele nunca tinha imaginado que uma rapariga real pudesse compreender, havia obedecido. Anita Palma dizia não e obedecia, caminhando sobre a passadeira do corredor onde incidia a pouca luz que irradiava dos candeeiros baixos, colocados sobre as mesas curtas. Andava. Viam-se-lhe as pernas, os sapatos, a cintura movendo-se. E depois para cima, o corpo era um esboço e a cabeça não se via, apenas o rosto quando se virava para trás, olhava e ria. Aliás, coincidindo surpreendentemente com a imagem que o tinha conduzido para o escuro de todos os quartos, a rapariga que caminhava passadeira adiante, tinha despido o casaco de mohair e arrastava-o atrás de si, como uma cauda, ondeando. Não se importava que o sujasse. Para onde o levava aquele sonho? Para que local? Até que porta? Muitos anos depois, ele haveria de suspender a sua lembrança exactamente aí, a meio da passadeira, ainda sem avistar a porta. E suspendia porque não tinha a certeza se era ele mesmo quem protagonizava a aventura de viver o que sempre supusera inalcançável. Mas se não passava duma divagação sua, sem consistência real, como era possível que estivesse a andar ao longo dum corredor onde se movia, verdadeiro, o objecto do seu sonho? Ninguém estava pelo corredor e o Engenheiro suspeitava de si mesmo como duma sombra que por si passasse. Conhecia-se - Sua mulher cerca das onze horas da noite apagava o último cigarro e começava a preparar o outro dia, intrometendo-se nas fechaduras, nas roupas e na cozinha. Do escritório onde trabalhava - quando ficava disponível para trabalhar em casa - ouvia cair sobre pratos coisas materiais como o grão e a carne e outros objectos que conduziriam a um futuro jantar. Depois a pouco e pouco fechava a luz, passava a outra divisão. A sua mulher precisava dum foco luminoso intenso para se lavar e vestir. Ouvia a água e o interruptor do foco a abrir e a fechar. Só então ele abandonava a mesa de trabalho, e caminhava para o quarto extinguindo as luzes. À medida que as fechava, o sonho vaporoso do Engenheiro acontecia, sem base no real.
Sem qualquer base - Na década de cinquenta ele havia estado em certa cidade portuária do Mar do Norte. Paralela ao cais, a rua do prazer tinha mulheres em suas casinhas engaioladas numa das quais ele havia entrado. Mas não era do transe comercial longínquo que ele se lembrava, e sim da rapariga que se encontrava à porta servindo de isca, falando uma língua bárbara e aquecendo-se junto dum fogareiro de carvão. O corredor era longo como se tivesse sido uma cordoaria, e ela tinha-o levado, entre paredes de luz diminuta, quase nua, arrastando uma cauda-de-sereia. Não era a outra, a que o esperava, que ele queria. Era a ela. Havia sido violento. Mas a rapariga tinha dado meia volta para nunca mais, e ao passar pela porta onde supunha ainda vê-la ou mesmo tocar-lhe com um dedo, veria que em seu lugar estava um homem com olhar de cão cor-de-rosa, enraivecido. Tinha então vinte e seis anos. Dela havia guardado o corpo e o pano arrastado pelo chão. Depois, com o tempo, no seu corpo havia colocado os lábios encarnados de Rosina. Mas essas duas imagens tinham sido apenas o início da perfeição.
Sobre elas ele colocava, quando tinha tempo e ocasião, pedaços esquartejados de outras figuras, de outrosbraços, outras cabeças que ia retirando de mulheres hospedeiras, tradutoras, secretárias, ocasionais vendedoras de perfumes, pessoas que jamais saberiam para que tinham servido face à sua imaginação, ainda que a lembrança das primeiras fosse um modelo que se sobrepunha a tudo. Esse modelo mutante e perene, assim que ele apagava as luzes principais, vinha sempre buscá-lo à porta de corredores maravilhosos, cheios de verde e de vermelho como um bosque entre o perene e o maduro. Ora sua mulher desconhecia que a voz dele rodando o pé do despertador proviesse de tão longe, e sob uma inocência lírica de fazer estremecer, dizia-lhe de perto boa-noite, enquanto o Engenheiro chamava a si a fina imaterialidade do seu sonho. Com pequenas variáveis, o mesmo acontecia com as amantes, quando ainda não tinha decidido que por tão pouco, não valia a pena correr o risco de não parecer um chefe de família irrepreensível. Era a mesma, sempre a mesma, sempre outra, a rapariga que o servia. E contudo, meu Deus, só agora essa figura feita de várias se esclarecia em todo o seu esplendor como se A Casa do Leborão tivesse sido reconstruída para lhe devolver uma verdade que de si involuntariamente tinha afastado. Havia quantos anos não se lembrava dessa casinha de delírio em Amsterdão? De agora em diante não precisava mais de pedaços de mulheres. Havia uma que era a reunião de todas as parcelas, que real como o relógio se bamboleava entre a mulher e a criança à sua frente, e tinha de tudo o que as outras tinham aos pedaços, até mesmo as pernas altas, agitando-se sob o rabo-de-seroa. Nada tinha que temer, nada tinha que ousar. Tinha vindo por cinco dias, e aquele era o princípio do prolongado prazer. Iam agora no fim do corredor.
"Espere, espere!"
Havia ele gritado, percebendo que o seu pé era mais pesado do que o dela. Tinha de facto gritado. Mas não devia tê-lo feito. Anita Palma atingiu a porta muito antes dele, rapidamente meteu a chave na fechadura e como se o Engenheiro Geraldes não existisse, abriu-a, fechou-a. A rapariga tinha-se escondido.
AS PORTAS INVISÍVEIS
"Abra! Se sou eu, porque não abre?" - Pela ideia do Engenheiro Geraldes passava a hipótese de se tratar dum pequeno jogo, mas a verdade é que Anita Palma havia fechado a porta sem hesitação, e ao batê-la tinha-o feito com firmeza.
Lembrava-se. Ele tinha corrido, e havia pedido que esperasse, percebendo que de repente o percurso através do corredor se desfazia em nada. Mas agora diante da porta batida, sem óculo, gémea da que dava acesso ao seu próprio quarto, passavam-lhe pensamentos violentos pela cabeça, como o impulso de meter a porta dentro, ou chamar por ela em voz alta. Contudo, a parte vigilante de si, apesar da neblina que o copo de álcool a mais lhe tinha posto no corpo, logo se sobrepôs a tudo. Rapidamente viu as consequências dum gesto desses. A rapariga do Fausto Maia arrumaria as roupas e as revistas, e como não dispunha de telefone, dirigir-se-ia directamente à sala de jantar. Imaginava a catástrofe. A coquine com a mala e o casaco de mohair, entre criados saídos da cozinha, completos em suas fardas ou talvez já sem elas, pedia-lhes um táxi que viesse de noite através do camp Não queria imaginar. O risco que corria era grande e nã podia correr. Também com alguma veemência ele tinha aberto a porta do seu lado. Tinha entrado.
"Sinceramente, não esperava..."
O Engenheiro Geraldes sentou-se na poltrona, descalçou os sapatos, massajou as fontes e pensou com a cabeça fria. Das duas uma - Ou se tratava duma troça abominável que a amante de Fausto Maia lhe tinha preparado com o requinte de todas as maldades, obedecendo a um plano, ou desejava dele um papel diferente do qual constasse porventura, em vez da delicadeza e da ternura, a impetuosidade e o assalto. Ela bem lhe tinha dito, alguns dias depois de o ter procurado na Praceta dos Ruivos, que não eram as pessoas violentas que se abeiravam dela, não. Estava convencida que era a própria violência que a perseguia na figura dos que a amavam. Bastava cruzar as pernas numa esplanada para que um violento se aproximasse. Pois agora ele achava que talvez ela assim o preferisse. Nunca se sabia. Ou então, a súbita fuga da rapariga poderia explicar-se de um outro modo - A coquine esperava que ele a visitasse pela porta de ligação. Esta terceira hipótese parecia-lhe a mais razoável, ou pelo menos a mais consentânea com o percurso do corredor, e devolvia alguma coerência à estadia dos dois n'A Casa do Leborão. De qualquer modo, não podia deixar de sentir ridícula a banda preta de cetim de que se havia munido para uma rapariga que no último momento lhe batia com a porta. Estava indeciso sobre se deveria desistir, despindo-se, ou se deveria manter-se daquelemodo à espera dum sinal. Tornava-se difícil romper a penumbra do quarto. O Engenheiro voltava a ser assaltado pela ideia de artimanha.
"Ardilosa!" - Disse.
Mas se assim era, o que faria ela naquele momento além da parede com porta coberta pelo pano de fustão? Deitar-se-ia a ler, troçando da imbecilidade de quem se tinha vestido de casaca escura para que ela o visse no privado? - O Engenheiro tinha-se dirigido até ao reposteiro que cobria a porta de ligação, havia afastado o pano, e como na noite anterior, tinha encostado o ouvido à madeira. Passos. Ainda vestida como durante o jantar, a coquine andava pelo quarto em saltos altos. A casa estava em silêncio quase completo e conseguia ouvir-se distintamente como em seguida retirava os sapatos. Primeiro um, depois o outro. Arrumava-os. Possivelmente tirava as roupas. Talvez agora as dobrasse junto do aquecimento e procurasse a camisa e o robe. A sua imaginação trabalhava com avidez. Se não se ouvia nada, ela teria ido à janela espreitar as árvores. Quem saberia se entre o escuro dos troncos não estaria alguém que a visse? Os lugares comuns alimentados ao longo dos anos pelos filmes de sábado atacavam-no, mordendo-lhe devagar o coração. Sim, não achava completamente estúpido que ela mudasse de roupa e de seguida saltasse o gradeado. Ele esperava daquela rapariga alguma coisa de extravagante que não sabia explicar. Tinha-se aproximado da janela, espreitando através do reposteiro. Mas o que ouvia agora era distinto. Tal como na noite anterior, Anita Palma deixava correr água à solta no esmalte da banheira.
"Um novo banho?"
Sim, era de novo um longo banho. A água escorria cano abaixo, junto de si, separados agora que estavam por uma parede, pois ao contrário da noite anterior, o Engenheiro havia abandonado a porta de ligação para ir escutar contra os azulejos na direcção de onde corria. Imaginava-a ou via-a? Lá estava ela, movendo agora os braços, ensaboando-se, sentando-se no pequeno lençol de água da banheira. Ana Palma deitada, de olhos fechados, debaixo de água. Deixaria também correr sobre a cabeça? Mas porque lhe lembrava a banheira que não via a queda de água da Barragem da Açucena, e de novo a figura do homem sem chapéu enrolado na espuma como um pássaro lhe assaltava a ideia? E lhe fazia ter de novo receio por ela? Porquê? Como se tivesse feito uma guerra com a imagem dela, e aleatoriamente se reconciliasse, de novo tinha medo que algum mal lhe acontecesse. Com ela outra vez fazia as pazes, e agora achava que um motivo óbvio afinal a tinha feito fugir de si - A amante do Fausto Maia seria apenas uma rapariga delicada. Possivelmente não era o corpo que ela receava partilhar mas sim, o momento em que julgava que ele a levaria até ao passado do seu corpo. Era isso. Como não lhe tinha ocorrido?
De modo que o Engenheiro esperou que o banho terminasse, e paciente, como uma pessoa que sabe o que faz e com a medida com que o faz, tinha-se preparado para sair por um momento até ao corredor. Bater-lhe-ia à porta. Por tão pouco não iria pedir passagem nem avisar quem quer que fosse. Naturalmente iria para o corredor, e bateria com os nós dos dedos. Uma, duas, três vezes, as que fossem necessárias para que ela abrisse e ele lhe dissesse que desejava tê-la visto caminhar adiante de si, durante toda a vida. Não lhe diria, porém, como ela realizava um sonho que sempre tinha tido, tão antigo que o sentia milenar. Exagerava. Mas ela vê-lo-ia ainda vestido de casaca, determinado a entrar, e abrir-lhe-ia com certeza uma frincha, talvez os seus lábios e talvez todo o seu corpo.
"Anita?" - Ia dizer, sufocado de paixão.
Mas ainda aí, aquele falso clube de caçadores lhe reservava uma surpresa - Quando abriu a porta do seu quarto, percebeu que não podia cumprir o pequeno plano. Uma figura de comédia, seguindo a parede com a mão, vinha a caminhar na sua direcção ao longo do corredor, quase em luz. A princípio teve vontade de se intrometer, como havia feito na noite anterior ao chegar pela primeira vez ao restaurante escondido d'A Casa do Leborão, e pensou avançar na direcção da figura e arrancar-lhe o pano que trazia na cabeça. Olhar quem quer que fosse olhos nos olhos, e desfazer ali uma precaução que lhe parecia um equívoco. Em vez disso, porém, o Engenheiro Geraldes tinha ficado a observar o homem a desaparecer no escuro.
Mas porque caminhava assim aquele homem vestido de criado? Era inacreditável. A pessoa cómica avançava como se segurasse a parede porque possuía uma venda que lhe tapava grande parte da testa e do restante rosto. Aliás, o seu passo era ridículo mas a venda deveria ser real, já que avançava não como um míope que tivesse perdido as lentes, ou um cego que tivesse perdido a casa, mas como uma pessoa treinada para andar às escuras pela casa. Andava desembaraçado entre as portas, como se as conhecesse de cor ao tocar no umbral, e de novo parava, para de novo voltar a andar, rapidamente e sem ruído. Hesitando, porta a porta. O aspecto daquela figura absolutamente deslocada fazia o Engenheiro sentir -se prisioneiro dos movimentos tontos que produzia, como se fascinado. Na verdade, o Moura havia-lha dito que n'A Casa do Leborão o serviço era tão discreto que sempre que necessário os criados serviam vendados. Na altura parecera-lhe um detalhe inofensivo, mas agora, vendo desaparecer aquela figura, percebia que o sócio havia tentado preveni-lo. Mas tinha-o feito em vão. Sentia-se chocado. Pois seria que o homem meio tropeçante que produzia aquela estranha corrida ao longo do corredor escurecido era de facto um acompanhante válido que pudesse levar alguém a um lugar seguro? Não podia ser! E ainda que a ideia de serem conduzidos os hóspedes por pessoas resguardadas, lhe tivesse vindo à mente durante a conversa com o chefe de papo enorme, ver passar alguém daquele modo apressado e titubeante, tacteando fechaduras, parecia-lhe um modo exorbitado e corriqueiro de proceder. Mais corriqueiro ainda era supor que aquelas criaturas vendadas - não sabia quantas outras mais haveria - poderiam estar num local qualquer da casa à espera de clientes bem comidos e bem bebidos, para lhes fornecerem semelhante escolta. Ao vê-lo desaparecer ao fundo do corredor já familiar, uma espécie de indignação o tinha possuído. E sem se conter, avançou mais sobre a passadeira disposto a espreitar. Recuou, porém. Ao fundo, junto do guarda-vento, proveniente sem dúvida dum outro ponto daquele refúgio de falsos caçadores, uma figura semelhante à primeira também passava. Do local onde se encontrava não era possível distinguir se levava ou não uma venda, mas os passos rápidos e tropeçantes, semelhantes aos do homem com o qual por um pouco não se cruzara, denunciava o mesmo tipo de serviço.
"Deve-os haver por toda a parte!"
Pensava escandalizado, correndo o risco de ser visto e reconhecido por alguém. Mas alguma coisa tinha mudado. Precisava sobretudo de reflectir. Precisava desistir, para já, de ir bater na porta de Anita Palma.
Pois que espécie de invisibilidade era aquela que tinham inventado, se se tornava necessário anunciar as pessoas visíveis para que outros desaparecessem? Não era bastante absurdo que se tapasse os olhos a criaturas para se produzir invisibilidade? Um sistema, radicado menos na discrição do que na simulação e profunda desconfiança, fazia que os hóspedes rondassem pelos corredores como criminosos. Não, ele não rondaria. Ele não faria o papel de criminoso. Aliás, só imaginar que ele e Anita Palma se encontravam num local onde pessoas vagueavam de noite daquele modo, lhe criava uma amargura estranha. Imaginar criados naquele ridículo preparo, lembrava-lhe uma intentona, depois um pelotão de fuzilamento, ou condenados de qualquer tipo, e em seguida braços brancos contra a parede, uma carreta. E em vez de os supor a conduzir pessoas que se perdiam naquela casa secreta, via-os de dia a serem treinados corredor fora. Era tão violento, tão brutal. Era tão senil. A sua cabeça tinha começado a doer. Por acaso não teria sido atraído até àquele lugar para o condenarem? Empurrado pelos seus inimigos, ou simplesmente uma força obscura do destino? Estava de pé, no meio do quarto sóbrio ainda vestido de casaca, e a figura da coquine, durar um instante, havia-lhe parecido a efígie duma inocente rapariga, arrastada pela mesma obscuridade, para o encurralarem dentro daquela casa, e sobretudo, dentro daquele quarto, que em princípio deveria ser para o amor. Por isso mesmo, ele avançava e recuava, num exercício involuntário, assaltado pela ideia de que lhe teciam alguma coisa de mortal.
"Os cobardes tecem-me alguma!"
Tinha dito em voz alta, sem conseguir despir a casaca de banda de cetim. Mas depois recostou-se na poltrona. Queria ver bem ou pelo menos ver melhor, perguntar-se e responder como costumava diante dum problema. Porque estava ali? Estava ali porque se tinha apaixonado por uma rapariga medianamente conhecida e lhe haviam aconselhado aquele local como absolutamente seguro. Como garantia de absoluta segurança, dispunha da experiência e amizade dum amigo especial. Ele havia-lhe dito - "Existires lá é como não existires em lugar nenhum". Tinha sido um risco, mas ele mesmo havia preferido esse tipo de segurança. Para alguma coisa um homem elege sobre todos os valores a idoneidade. Já que havia decidido curvar-se durante cinco dias diante de Anita Palma, imaginar que a sua vida tivesse de ficar com a nódoa do que haveriam de chamar uma aventura, de tal modo indelével que lhe manchasse a imagem, levava-o a preferir desaparecer para sempre, com seus dossiers abertos sobre a secretária. Desaparecer era o menos. Havia pessoas que eram raptadas e nunca mais ninguém as encontrava. Contavam-se casos de extraterrestres que levavam seres humanos não se sabia para onde - Pensava o Engenheiro, procurando uma explicação futura para o seu imaginado desaparecimento. A sua família a quem havia falado do conteúdo do seu speech incómodo, imaginaria um rapto ou um assassínio perpetrado por gente ligada a violentas hordas internacionais. Ora a ter de pagar um elevado preço, preferia uma espécie de desaparecimento, e aquela casa onde se encontrava permitia-o. Então porque temia? Perguntava ainda sem retirar a casaca. Apertou-a, compôs o lenço. Acontecesse o que acontecesse, por suas mãos não a retiraria. Isto é, desapareceria n'A Casa do Leborão vestido de casaca. E viu-se reflectido no vidro da janela, despenteado e lívido.
Desapareceria?
Sim, poderia acontecer que alguma coisa o tivesse empurrado até ali para ele ter de escolher entre a idoneidade e a morte, mas esse dilema seria um caso *extremo limite dos limites, e poderia não se verificar. Pois quê, necessariamente? - Perguntou o Engenheiro, ganhando razoabilidade à medida que atravessava o quarto de canto a canto. Vendo bem, sem nenhuma comiseração por si mesmo, era um homem cheio de vida, amando, encontrando-se disposto a provar que assim era até ao desaparecimento, o Engenheiro era a própria vida. que jamais diria isso em voz alta, nunca o poderia escrever nem sequer insinuar. Resumindo, quem o trouxera fora ela. E ela, conhecedora do risco, sabia disso. Então porque lhe fugira? Porque tinha desaparecido depois do jantar e do percurso maravilhoso ao longo do corredor; Porque se tinha trancado por dentro? Tomado um novo banho como se quisesse retirar o perfume que por sua vez ele lhe tinha colocado sobre as mãos? "Ah! Vai'dosa!" - Pensando bem, sem pressa, afugentando do ângulo de visão a ridícula figura das pessoas com venda que imaginava a prestarem serviços vários pela noite, o Engenheiro julgava perceber. Tratava-se duma artimanha dela. Esfregava as mãos, indo e vindo de parede a parede, passando junto da porta de comunicação com olhar de entendimento. "Artifício! Artimanha da vaidosa!" - Dizia, como se do estrume dos pensamentos tristes que acabava de ter, desabrochasse a verdade em flor.
E a verdade para o Engenheiro, evadido da Praceta dos Ruivos pelo escasso período de cinco dias, era a seguinte
- Ela queria-o e amava-o, sabendo em contrapartida que ele lhe estendia os braços da quietude e da felicidade, mas tomava-o por um homem antigo que não era. Por isso, ela colocava o vestido esterlicado para o atrair, mas depois trancava-se no quarto como se fosse por pudor. Naquele instante, tinha a certeza de que se encontrava sentada, a olhar para a porta de comunicação, tão ansiosa quanto ele. Ardilosa! Bem dizia o tio Hugo Maia que em cada mulher existia um ser que desmaiava quando queria. Sua coquine ardilosa! Mostrava-se calma, recatada, para dar garantia de espera e fidelidade - Que melhor garantia de fidelidade do que o recato permanente, perante o próprio? - Dizia-se antes. Só que ele já não era esse homem. Ele sabia, tanto quanto ela que o caminho até à pessoa que se deseja não tem distância. Tinhath caído em desuso, como uma vasilha antiga, o recato e a espera. A expressão mais clara ele a ouvira num museu em Washington. Passava por Boudin e contemplava a harmonia d'A Praia de Villerville, com seu frisozinho humano e suas nuvens alongadas, acompanhado por uma funcionária do Palacete dos Ruivos. A funcionária havia achado que aquele era o melhor quadra da National Gallery, e que se identificava perfeitamente com a figura daquelas senhoras de saia branca arrumadas ao cavalheiro mais esguio. Não queria sair da sua frente. Na confusão das raças a funcionária tinha ar de eslava. Um rapaz sem sobrancelhas que a observava da porta, entre turistas metodicamente alegres, aproximou-se e disse-lhe em língua franca - «Via-a entrar para o Ladies. Logo o meu papagaio levantou vou. Vens?» E a funcionária tinha ido. Depois havia sabido que aquela era uma forma bem suave. Ele poderia ter dito - "Via-a entrar para o Ladies. Logo tive uma erecção. Vens?" Ora o Engenheiro era contra esse tipo de afeição, mas também não se encontrava no extremo oposto em que Anita Palma o colocava.
E com plena consciência da sua própria volubilidade, de novo se tinha deixado arrastar pela suavidade da lembrança da rapariga do Toque-de-Classe, com os óculos pousados sobre os joelhos, as luzes acesas, sem ouvir nada que não fosse um suave sussurro dos pinheiros Caía, de novo caía, como se contivesse um homem desconhecido dentro de si que ali se revelava, caía. O verde perene das árvores adensado em redor do clube vinha ter com ele na hora do descanso e levava-lhe o corpo cansado de suspeita para o lugar da reparação feliz. Agora ouvia um cão, dois cães respondendo-se. Um parecia tão perto e o seu grito tão fino que imaginava haver algures uma senhora com galgos no regaço. Calavam-se os cães. Tinha perdido o rumo. Esperava por ela. O sono ia e vinha, e no meio dele, quando apareciam os vendados, o Engenheiro acordava para se certificar de que só existiam a dormir. Também acordava com águas próximas a correr. O ladrido dos cães, o mais longínquo, com o ligeiro vento que se tinha levantado, parecia próximo da sua cama e ondeava. Talvez fosse o latido da lebreira. Anita Palma jamais viria. Além do fustão, era insondável o que aquela cabeça pensava e aquele coração queria. A dada altura, porém, acordado em sobressalto, percebeu que alguém em vez dela batia à porta intermitente.
O Engenheiro ainda duvidou, mas não havia matéria para dúvida. Alguém tinha arredado o pano da separação e batia. Era então verdade. O Engenheiro afastou o pano, rodou a chave, empurrou a porta e atrás dela, saída do quarto fofo e umbroso, cor de leite, a rapariga do Fausto Maia apareceu transpondo o limiar da separação. Devia ser da mata ou da noite. Aberta a porta, como se sonhasse, todo o espaço tinha ficado diferente. Só que Anita Starlet não aparecia na sequência natural do corredor. Havia deixado de ser a rapariga viciosa e risonha do jantar para ser outra. "Meu bem! " - Tinha ela dito. "Veja só! Tomei várias pastilhas para dormir, e sem saber porquê, não durmo" - A cabeça dela estava molhada e a boca não tinha tinta.
"Não sei porquê!" - Dizia ela.
"Não sabe porquê? Mas é claro que sabe porquê! Foi porque eu a trouxe para esta casa estúpida!" - Disse o Engenheiro, cheio de alegria e punição, agarrando-a, e procurando protegê-la com o robe e as alpergatas. Como havia imaginado, ela tinha aparecido descalça e em camisa. "Meu Deus!"
"São aqueles cães!" - Disse ela. "Não se compreende que as pessoas precisem ainda de cães para caçar. Não há outros meios?"
"De facto não se compreende!"
Anita Palma caiu sobre a cama sóbria.
"E sabe onde vão caçar essas pessoas?" - Perguntou
a coquine. "Não quero que seja perto! Detestava ouvir ti
ros e latidos de animais, amanhã, quando saíssemos". "Também eu, também eu..."
Tinha-se debruçado para ela. O que queria ela? O que exigia a coquine? - Era tão maravilhoso aquele momento depois das suspeitas que nem sabia o que responder. - "A coutada fica longíssimo do caminho que nos vão dar..." - Disse ele sem saber para que lado ficavam esses campos nem onde corriam as lebres, único resto duma fauna que fora intensa e se perdera. A verdade é que ela se tinha deitado sobre a cama dele, com os olhos quase fechados, e o Engenheiro olhava-a sem saber como proceder, percebendo que tudo acontecia daquele modo por não dispor dum plano.
"Sim, claro..." - Tinha ela dito, entregando-se completamente à cama sóbria.
"Querida, minha querida! Amanhã, logo pela manhã, vamos fazer o nosso passeio entre as árvores..."
Mas seria que ela o ouvia? Por certo que não. O Engenheiro aconchegava-a e aconchegava-a. Tinha a ideia de já se ter visto a si mesmo, vestido daquele modo, junto duma rapariga de cabeça molhada, representado num grande quadro. Quem o havia pintado tinha sabido embelezar as feições de forma a realçar o natural e em volta, possivelmente, alguém da sua família tinha tido o bom gosto, no século passado, de colocar uma moldura em talha. A mancha mais fosforescente do quadro era a camisa dela e as bandas de cetim do fato dele. A emoção fazia-o corar sem a ajuda de qualquer gota de cognac. Não se lembrava de alguma vez ter sido um homem importante num gabinete do Palacete dos Ruivos. Haveria por acaso essa praceta? No interior da mata, lembrava-se desse seu importante papel pátrio como se duma vida anterior, de que fora reincarnação, se tratasse. Tinha tirado os óculos e arrastado o aquecimento para junto da cama. Ela havia erguido os braços cor-de-rosa em redor da cabeça. Estava de bruços. Com a boca junto da orelha pequenina, queria agora dizer-lhe a verdade, nada mais do que a verdade - "Minha querida, minha querida, é forçoso repetir estes cinco dias!"
O Engenheiro Geraldes tinha acabado de decidir. Mas como era decidir? A sua inteligência luzidia como uma bolha de azeite gigante, deslizando no lago da penumbra que os envolvia, aconselhava-o. Chamaria a sua mulher pela manhã, quando estivesse a regressar do duche, e ainda rescendesse a sabonete, e dir-lhe-ia - "Peço-te que tenhas paciência e não me compliques a vida, mas agora, de vez em quando, preciso sair com certa pessoa durante uns cinco dias!"
A sua mulher era uma pessoa educada, deixar-se-ia cair na bergère de gorgorão e ele reiteraria duma vez por todas, como quem corta rápido uma unha - "Entre nós, Lurdinhas, nada muda, nada acaba! Mas para viver, preciso de vez em quando de ficar diante da cama de Anita Palma, do seu cabelo molhado, vendo-a dormir, sentindo-a respirar, com seus olhos grandes fechados, estendida sobre a cama. Não tentes impedir - Quero ficar com ela durante cinco dias!"
E depois aguardaria a tempestade. Sabia que não iria ser espectacular mas minaria por dentro como a combustão do cianeto. Não faria mal. Toda a luta que se viesse a travar lhe parecia insignificante. A mulher teria de entender, e se não entendesse resultaria igual. Ele conhecia--a, sabia como proceder, esconder e rodear. Desta vez, e, porém, tratava-se dum assunto inconcebível e por isso seria directo e livre para não deixar espaço para dúvidas - pensava, vestido de casaca. A sua mulher era uma pessoa, - medida - por isso ela era sua mulher - mas geralmente anunciava-lhe as contrariedades por telefone. Resulta muito mais prático e permitia antever o futuro. Fora assim, sem qualquer tipo de introdução, que tinha prevenido que não se encontraria durante aqueles cinco dias. Depois, de viva voz, tinha explicado a razão. O subterfúgio não - dele, era do Fausto Maia. Ao chegar a casa, havia-lhe surgido a ideia de copiar o Fausto e deixar cair um copo. A mulher tinha-lhe dito - "Cansado?" "Muito!" - Havia respondido. "É por isso que depois da Açucena preciso retirar-se, longe de tudo e de todos, por uns dias. Preciso escrever o seu discurso". E havia deixado cair segundo copo agora sobre a mesa. A mulher tinha corrido ` com o guardanapo. "Parece de propósito! Queres partir a loiça duma vez?" O Engenheiro olhara-a sobranceiro, sem lhe responder. "Óptimo!" - Tinha pensado. A conversa deveria ficar naquele ponto ideal, nem demasiado obscuro nem demasiado esclarecido. Sentindo-se ofendido, pouco mais havia falado. Folheava, compenetrado, os volumosos papéis da Açucena. Tenso, ausente. "Por quantos dias, querido?" - Tinha a mulher perguntado da porta do escritório. "Cinco, cinco dias se não mais". Era surpreendente uma ausência daquele tipo no percurso do Engenheiro - "E podes ficar cinco dias fora?"
Ele tinha erguido os olhos dos dossiers e recortes dos jornais - "Pode-se ficar fora toda a eternidade quanto mais cinco dias!" Percebia que sua mulher o olhava sobressaltada. Mas ele tinha um plano - "Coloca roupa de campo, velha mesmo. Coloca um fato liso. Coloca também um fato completo de casaca. "Querido!" - Havia a mulher dito, minada por um súbito caroço de terror. "Pois para onde vai você, meu querido?"
"Não sei, não sei. Mas faz o que te peço".
Essa cena ambígua, porém, de regresso não iria repetir-se. Seria directo como uma lâmpada de muitas velas que se acende e ilumina a realidade. Na hipótese de ela lhe dizer palavras feias como caducidade, desejo, cio, carne, ele até podia não responder, pois não correspondiam ao real. Para quê negar quando não há matéria a desmentir? A realidade era aquela - Anita Palma ali estava, enrolada nos lençóis da sua cama, e tudo a que ele, o Engenheiro, aspirava consistia em se aproximar para a cobrir melhor como um pai vigilante, ouvindo o sono daquela casa surpreendente. Jurava. O único desejo de movimento que possuía nascia-lhe no pulso e apenas lhe atingia a mão. A sua mão direita, sim, ele gostaria de a fazer avançar na direcção da coquine, tocando-lhe na seda molhada do cabelo. Apertá-lo, levantá-lo, secá-lo entre os dedos, e depois de seco, deixá-lo de novo cair sobre a nuca e a cara com a destreza dum cabeleireiro. Não podia dizer-se dele essa palavra pequenina e enroscada como um verme - cio. Se sua mulher o pudesse ver enquanto contemplava a rapariga, entenderia.
Suspeitava que sim, que sua mulher, mesmo que dissesse o contrário, iria compreender. Pois como não?
No meio da obscuridade, no centro da cama, descansando com os braços levantados em redor da cabeça, Anita Palma parecia suspensa. Como sempre que tinha a boca nua, os olhos ficavam imensos e pareciam incompatíveis com o pequeno rosto, e era precisamente essa incompatibilidade que lhe conferia o ar de irrealidade que tanto amava. Mas agora as pálpebras dela estavam completamente descidas e a boca rosada criava na penumbra a ilusão de ter tinta. A primeira vez que a amasse desejaria que tivesse os lábios vermelhos como a ginja. Queria com os seus arrastar a tinta dessa cor para os ombros, os artelhos, as plantas dos pés da Starlet. "Porque não dormes pintada?" - Tinha perguntado, debruçando-se sobre ela sem a acordar. Respirando tão perto como agora acontecia, cheirava a uma mistura de rosas e sal que em algum ponto secreto se avolumava e curtia. Era tão forte, tão intenso, tão idêntico ao sentimento que a figura imaginada sempre lhe proporcionara no escuro das noites da sua vida, que não podia caber nessa palavra cheia de sebo e de verrina - cio. Sua mulher havia de entender e nunca lho diria. Aliás, se sua mulher não entendesse, ele então teria de contar a sua vida, a outra vida, a que corria silenciosa à margem do seu doméstico entendimento, onde a crueldade da existência havia misturado coisas fétidas como cebola e gasolina, atrás dos seus passos de casados. E ele, o Engenheiro, não tinha culpa.
"Nem responsabilidade nem culpa!"
Sim, nem podia de modo nenhum confinar o encontro com Anita Starlet a cinco dias, apenas porque ela não era só Anita Starlet. Ela era muito mais. O cabelo dela, escorrido, lembrava-lhe por exemplo a trança duma viúva que em estudante nunca tinha tido, e que todas as manhãs limpava a Pastelaria Inglesa. Ora como podia deitar fora essa lembrança se a viúva era robusta, andava de joelhos com um pano, e ao passar a primeira vez com a cara junto ao chão, já a trança vinha desmanchada ? Rodava silenciosa sob as mesas, e o cabelo farto ia-se soltando até ficar com a forma dum arbusto. Cobria-lhe a cara, rojava pelos mosaicos húmidos e enfiava-se pelo balde onde molhava o pano. Depois partia, desgrenhada, de lado, com uma bolsa às costas. Um dia tinha descoberto como depois da limpeza ela se enfiava no vão duma escada para se pentear. Debruçava o cabelo todo para um lado, e com a travessa, alisava-o e escorria-o. Não se lhe via a cara. Dela havia guardado esse cabelo posposto para o lado com suas ondas. Só muito depois encontraria a pessoa que viria a ser sua mulher. Era preciso ser realista, pois quando a tinha encontrado já ele possuía uma figura onde existia, desmanchada, a mesma trança. Agora ou nunca, iria ter de explicar quem era Anita Starlet.
"Tudo, tinha de dizer tudo..."
Sentia-se cheio de coragem para o fazer. Pois antes de encontrar a mulher tinha namorado uma rapariga de olhar parecido com o de Anita Palma. Era uma morena pequenita que escutava admiravelmente e respondia com sínteses delicadas. Tomavam café juntos pelas pastelarias.
Por vezes, porém, o seu olhar era tão penetrante que o fazia sentir ser inútil discorrer com a conclusão antecipada à vista. Tinha assim concluído que ela era inteligente. Ora viver com uma mulher inteligente era o mesmo que viver com a mãe. E só se pode viver o dia-a-dia com a nossa mãe, mesmo que fale muito pouco, quando ela já se encontra aniquilada. Tinha deixado à porta do Palace-Hotel a morena fortemente delicada. Anita Palma possuía os mesmos olhos, embora não o mesmo olhar, já que felizmente não podia fazer sínteses antes da hora, porque olhava o mundo como se de nada se lembrasse. Nesse aspecto a Anita Palma estava próxima de Rosina. Aproximava-as alguma coisa mais, além da boca. E pensar que tinha sido necessário vir fechar-se num clube de caçadores acachapado sob a mata, para compreender a única visita fiel da sua vida.
"E mais, mais..."
Tudo? Então diria tudo ou pelo menos quase tudo - A figura que se movia quando necessário, e intrometia no escuro dos seus quartos quando útil, entre si e as pessoas imperfeitas, como a mulher, tinha sempre componentes rotativas como os renovos da Primavera, mas não dispensava a boca de Rosina, o cabelo escuro da servente, e os olhos da morena pequenina de memória interrompida. No entanto - já agora diria tudo, absolutamente tudo - toda essa perfeição se movia sobre a coluna majestosa e altiva da rapariga-isca que ao longo dos anos nunca tinha parado de ondular o corpo de serpente, corredor adiante, naquele bordel com fogareiro, virado para o Mar do Norte. Fiel como uma escrava, permitia que se servisse de suas componentes conforme o mês, a hora, o local e a companhia. Mas n'A Casa do Leborão, percebendo que a figura de Ana Palma era a soma superada das partes de todas as outras mesmas, um golpe de inteligência fazia que a evasão lhe viesse à vista com a clareza absoluta do achado. Que carne? Que cio? Que desejo que não proviesse da inteligência? - Como se tivesse encontrado uma fórmula miraculosa de reter a água e redistribuí-la melhor que Deus, sem auxílio de barragem, a sua alegria não era material, era inumana. Pensava, aproximando-se do vulto de Anita Palma, sem desejo. Era isso que tentaria explicar à compreensão infaustosa da mulher, perplexa, quando numa manhã próxima lhe pedisse que se sentasse sobre a bergère de gorgorão.
"Cinco dias de vez em quando. Não, não me perguntes nem porquê, nem por onde. O que são cinco dias durante um mês, ou dois meses? - Ficam para ti, querida mulher, em dois meses, cinquenta e cinco dias..."
Mas parou. Na casa que se percebia povoada, o relógio do guarda-vento batia poucas horas. Por que diabo trazia ali para dentro a figura da mulher? Onde estava o seu equilíbrio e a sua força de vontade? Ainda por cima Anita Starlet abria os braços e descobria o corpo. Ele cobria-a. Naquela imobilidade, não estaria ela esperando que ele procedesse como um homem vulgar em idênticas circunstâncias? Não deveria tirar o laço e o casaco e aproximar-se dela em slip? "Não. Se ela veio, foi porque percebeu exactamente que não sou um homem comum..."
- Mas o Engenheiro não conseguia deixar de aproximar-se, e ia para lhe passar a mão de leve pela cabeça ainda húmida, quando ela de novo se moveu, ficou de costas, e o cabelo se espalhou na almofada. "Não lhe toques. Ouviste?" Mesmo alongado, o corpo dela ocupava afinal um espaço estreito na cama sóbria. Era aquele cabelo que ele queria percorrer, queria ver lavar, era aquele cabelo que ele queria que se espalhasse no seu ombro. "É com o perfume do cabelo dela que eu quero ficar!" Diria sem vacilar diante da mulher. Era impossível o Engenheiro expulsar dum momento para o outro a visita da mulher. Então foi cruel com a visita que não permitia que ele se despisse e se deitasse como um homem livre sobre a Starlet. Tendo-se virado de costas para a tapeçaria com lebres, ele entregou a justificação completa e verdadeira - "Porque todas as outras, as inspiradoras dos pedaços, souberam desaparecer antes do tempo, mas tu, Lurdinhas, ficaste para mo lembrar! Não tens vergonha de ter ficado a desempenhar esse papel? És o cronómetro vivo da minha vida. As tuas feições registam os minutos do meu destino como um punhal! Fizeste mal, muito mal. Ora Anita escolheu-me na hora exacta para me mostrar que não há tempo que passe enquanto a mulher se renovar! "
"Querido! Como assim, querido?" - Haveria de lhe perguntar a mulher, começando a acender cigarros matinais sob a chama do isqueiro tremeluzente.
"Vai, vai, vai!" - Pensava o Engenheiro com seu raciocínio gelado de vidente, ouvindo de longe em longe águas correntes passando nas estruturas horizontais d'A Casa do Leborão. Um ou outro casal teria acordado. Os criados deveriam dormir com a venda posta ao lado, preparados como bombeiros silenciosos de serviço - Sim, diria à sua legítima mulher. Sabendo que seria impossível dizer-lho quando estivesse sentada na bergère. Não podia ser tão cruel como desejaria. A verdade - a outra verdade - é que o tempo havia enfiado os dedos no seu cabelo e ela tinha deixado que ele aí plantasse as marcas, não por falta de luta mas por desigualdade de forças. Lembrava-se bem de como tinha começado. De repente, durante um Verão, a mulher havia aparecido com o cabelo pintado de vermelho. "Porque pintas dessa cor?" - Tinha perguntado, num fim de dia de cansaço. "Porque quero, porque quero!" Porém, sua mulher deitava-se, e enquanto o cabelo vermelho da cabeça cobria a almofada, seu púbis até há pouco tempo atrás escuro, parecia cor de cinza. Esse contraste era tão chocante que impedia a visita das figuras ondulantes. Passados oito dias, sua mulher despira-se e ele tinha podido ver que ela havia pintado o cabelo do corpo da mesma cor. "Sim" - Tinha dito, diante das duas manchas cor de fogo. Sua mulher deitava-se com o cigarro aceso, e era como se um monte de palha numa planície que fora verde ardesse. "Eu estou no meio da mesma planície!" - Tinha pensado. E a palha tinha passado a areia e a areia a neve. O sussurro da verdura ondulante ficava longe, longe, nem existia cercado que vivia pelos problemas racionais da Praceta dos Ruivos. "Nunca mais..." - Nunca mais desafiaria a sua fiel visita. Mesmo que desafiasse ela não vinha. E de repente, numa tarde de Setembro, ele havia subido além do mezzanino e Anita Starlet, como se tivesse aparecido para o recompensar, era o retrato vivo da ondulante figura dos seus sonhos, a parte rumorejante da sua vida.
Podia por acaso o Engenheiro abandonar a sua própria vida? Sua mulher aí tinha por castigo, sem merecer. Eis que iria ser uma manhã completamente iluminada, ela estaria sentada na bergère de gorgorão com o cinzeiro ao colo, e ele, com o gelo da inteligência, friíssimo e transparente entre ele e ela, dir-lhe-ia - «Eia! É preciso ter coragem para viver!"
"Vês, querida coquine, a coragem que vou ter?" - Murmurou para dentro da orelha da vaidosa.
E se mesmo sem desejo, se aproximasse, a virasse e a beijasse? E se ao acordar ela se encontrasse fechada no interior dos seus braços? Se a despertasse colocando a boca dentro da sua orelha, para lhe dizer que se tratava da sua definitiva dona? Se deixasse que a intrepidez o tomasse por inteiro e ousasse declarar como a última, suprema e desejável imagem da curva da sua vida? - Pensava ele, em pé, completamente imóvel, com os braços prontos para uma acção que tardava. Anita Palma tinha deslizado para o meio da cama, entregue à roupa como se nadasse. Ou se cega e muda, cantasse para ele e o que dissesse não se ouvisse. O cabelo ainda colado junto às têmporas. Deveria beijá-la. O que era um beijo? Se ela acordasse apenas beijada, e ele se se encontrasse em pé, apenas curvado, vestido e composto como um cavalheiro respeitoso, não só lhe daria ideia da sua compostura, como lhe permitiria adivinhar que sob a compostura existia um verdadeiro homem. Completamente lúcido, percebia que estava a dois passos de estabelecer um plano. Mas também era fácil de compreender que não poderia cingir-se mais a escassos períodos de cinco dias - "Cinco dias? Ah! Cinco dias!"
Nesse instante, o amante transitório tinha-se sobressaltado.
"Geraldes! Para onde queres ir, estúpido Geraldes?" - Tinha dito para si, admoestando-se. "Tens a cabeça cheia de parvoíces que nem uma hidra. Em tempos, quando passavas os teus dias na Praceta dos Ruivos, mantinhas a ordem! Fala baixo!"
"Estou ouvindo..." - Havia respondido para si.
"Não, não quero ouvir. É possível conciliar tudo o resto com os meus indispensáveis cinco dias".
Sim, deveria começar pela organização da vida imediata. Não era sensato passar a noite a braços com a suposição, e o dia surpreendê-lo estafado como um libertino. A Starlet afinal estava ali. Tinha decidido retirar a casaca, vestir um blusão, e desse modo encostar-se sobre a cama folhuda, do outro lado, longe da rapariga. A sua cabeça andava à roda. Tinha a certeza de que não dormiria. Mas o pensamento havia esgotado o seu corpo e o Engenheiro tinha passado do estado de vigília ao sono sem transição possível, naquela segunda noite.
"E depois, como se não estivesse no clube da mata, tinha havido aqueles sinos!"
A princípio vinham de longe, de muito mais longe do que o latido dos cães e o ruído de jipes partindo. "Sinos?" - Era surpreendente que se ouvissem sinos e música com eles harmonizada num clube de caçadores, antes de amanhecer. Aliás, não se percebia se o som provinha de longe se de perto, embora abafado pelas paredes da casa. Haveria ali uma capela? Um carrilhão?
O Engenheiro sentou-se na cama folhuda com a sensação de que não havia chegado a adormecer. Sentado, contudo, ouvia pior. O som parecia perder parte das ondas antes de o atingir. Experimentou deitar-se de novo. Encostado à madeira da cama, certificava-se, porém, que a música tinha origem numa fonte próxima. E afinal não era um sino, era antes o som dum sino, reproduzido por um aparelho abafado por uma caixa. E deveria tratar-se dum registo intermitente, já que só os graves se escutavam bem, como se proviesse dum espaço cavo.
Mas de repente o registo tinha subido e a música havia começado a correr através da parede e da madeira, organizada em círculos como uma girândola. Demorava a repetição contínua como um fogo preso. Subitamente o fogo preso apenas por uma haste rodou, subiu em espiral até o círculo inicial se unir ao último, e no momento supremo, produziu-se um espaço branco e uma bateria de guerra disparou. A girândola então perdeu o seu único pé preso, rodou, desfez-se e os sinos de novo tocaram e seguiu-se um final feito da respiração dum corpo colectivo que depois da glória fechasse o acto em fumo. E tudo isso acontecia agora extraordinariamente perto. O Engenheiro havia começado a rir - Conhecia, opus quarenta e nove. Conhecia. Tratava-se duma composição vistosa que fora ganhando fortuna junto do grande público, ao mesmo tempo que os cultos a iam menosprezando. Não se importava. O Engenheiro teria gostado que o seu país tivesse merecido não só aquela batalha como aquela abertura. Durante um certo tempo da sua vida, fizera a barba trauteando a ascensão que conduzia os metais. Mas só em frente do espelho da sua casa. Em público, nunca exibira apego a coisa tão longínqua - Quem tinha então trazido aquela abertura para ali? Quem sabia da sua inclinação para os sentimentos heróicos? Estendera a orelha. Ficara de novo a ouvir porque o aparelho a repetia. O seu coração na madrugada batia acelerado como se fosse um atleta. Parecia-lhe correr através da parede uma assunção perfeita e sentia remorsos da sua indignidade por esconder dos outros a chã inclinação - Sim, sim, era verdade que gostava daquela composição cuja coerência assentava em histórias a que se podia dar nomes como uma fábula dirigida para a honra. Dois exércitos, uma resistência, uma batalha, a dúvida, o caos, a luta, a fuga e o êxito, passos com legenda que iluminavam a emoção cerebral dum homem como ele, um prático que gostava da ciência. No entanto, ouvida daquele modo, no segredo da madrugada, a composição feita sobre o largo tapete do triunfo e da grandeza, acenava ao Engenheiro um outro motivo. Possivelmente tratava-se não só duma ideia mas dum sentimento, e não um sentimento de glória mas de nostalgia. A nostalgia que invadia a madrugada do Engenheiro era maravilhosa e rodeava-o de deslumbramento quieto. Nunca havia imaginado que uma abertura dirigida para os foguetes dum faustoso jardim imperial se adequasse tão intensamente com a atmosfera cálida de dois quartos unidos por uma porta aberta. Era como se essa grandeza tornada excelente tudo tocasse mesmo a miúda intimidade. O facto de alguém lhe ter enviado aquela música exterior obedecia sem dúvida ao plano invisível que o Engenheiro sabia existir, e cujo alcance ainda não podia ver de todo em todo. E achava matemático que esse plano se organizasse de modo a proporcionar-lhe tanto bem-estar.
"Alguém que não vejo me acompanha!" - Tinha dito.
Mas passados uns minutos, o Engenheiro percebeu que não era bem assim. Que o plano só em parte se organizava em torno dele, dirigindo-se principalmente para a satisfação de outros, pois alguém fazia o aparelho regressar atrás e repetir as últimas sequências de forma maçadora. Não se ouvia, mas era como se se ouvisse a fita a retardar e a correr. Voltava e voltava, tornando aquele fim delicioso numa obsessão defeituosa. Porque lhe faziam aquilo, a ele, o Engenheiro? E ficou à espera duma resposta, mas ele mesmo, sem ajuda de ninguém a encontrava. O seu coração tinha travado como um carro - Alguém utilizava o final do trecho glorioso para acompanhar um coito. A recepção não era bem clara, mas por isso mesmo a constatação resultava indesmentível. De novo era indesmentível. Desta vez o Engenheiro Geraldes não tinha pressa porque não lhe era possível fazer nada. De que se poderia queixar se a música de novo chegava baixo como se transmitida em segredo através da cabeceira, para ele escutar o efeito sobre alguém, não sobre si? E ficaria bem, um engenheiro culto, habitante da Praceta dos Ruivos, queixar-se de acordar com o sussurro de música tão bem amada pelo mundo fora? Queixar-se da repetição dum trecho patriótico? Não podia, a menos que caísse no ridículo. Repetiam de novo, recuando e repetindo sem intervalo. O Engenheiro teve então a ideia de que ninguém voltava atrás - Os trechos haviam sido previamente gravados para o efeito. Seria ou não seria? Ergueu-se na cama de Anita Palma e encostou a cabeça à parede. Para sua admiração, sob a tapeçaria da cabeceira, havia uma porta idêntica à da comunicação e não uma parede. Era através da madeira da porta que a música estava passando. Então o Engenheiro teve uma suspeita.
Levantou-se, alcançou o extremo do aposento onde a rapariga do Toque-de-Classe dormia inocente de tudo, e curvando-se sobre a cama austera, afastou a tapeçaria lebreira. Debaixo dela também existia uma tábua em vez de parede. Tinha ficado a olhar, indeciso. "O que pretendem eles?" - A ideia que lhe ocorria continha duas hipóteses. Ou A Casa do Leborão estava concebida para que fosse um lugar onde todas as condições inibidoras do amor se sucediam, e então permanecer ali e sair vivo era uma prova, ou pelo contrário, aproximava-se duma fórmula naturalista absolutamente cretina de conceber a passagem. O que desejavam? Reproduzir ali a vida? E que vida? Ele bem sabia como várias teorias idiotas haviam procurado defender que a complexidade das sociedades se reproduzisse em todas as outras como uma míriade de reflexos. A verdadeira degradação da Terra tinha começado com esse tipo de exigência reprodutiva de totalidades. Mas que numa casa de descanso e de segredo as paredes fossem de tábua, com suas pequenas casinhas particulares, onde tudo se ouvisse ou se fizesse para ser ouvido, parecia-lhe um absurdo e não vislumbrava como essa prática se coadunava com a escolta dos vendados. Por acaso aquela casa onde se encontravam era apenas inimiga do reconhecimento pelo olhar? Permitindo que todos os outros sentidos ficassem à solta, no pressuposto de que só a vista permitia identificar? De novo estava chocado e retirava as palavras da noite anterior, quando sob o efeito do entusiasmo, havia falado de Paraíso - Conjecturava o Engenheiro, ajoelhado sobre a cama que lhe havia sido destinada, mas onde a rapariga, sob a acção das pastilhas, continuava a dormir de bruços, sem se mover. Não queria que ao acordar, Anita o encontrasse naquela posição de espia. Agora tinha-se desinteressado pela música e pelo próprio sentido do seu sonho, para pensar nas portas que existiam por todo o lado. Porém, no meio de todas essas portas que sentia como uma ameaça de absoluto desamparo, inquietava-se por ela, a rapariga do Fausto Maia que tinha vindo com ele, sob a promessa de ser de tudo protegida. Não sabia como proceder. Acordá-la e sacudi-la, se fosse necessário, e abalar com ela antes que o dia se erguesse sobre o pinhal era todo o seu desejo. A imagem dum hotelzinho branco com quartos sobre varandas voltava a brilhar-lhe na imaginação. Era sábado, ainda teriam tempo. Queria sair do fundo dos pinheiros, onde uma força ao mesmo tempo o encantava e repelia. Mas não podia assustá-la, até porque explicar-lhe agora a razão que o levava a querer fugir dali, significava reconhecer o colapso do seu primeiro plano. Ora ele não desejava que ela olhasse para ele como um homem talhado para sofrer um revés tão evidente.
Ainda não tinha escovado o cabelo, nem lavado os dentes e as mãos, nem colocado uma gota de água de colónia no pescoço. Tampouco se havia sentado à secretária para estabelecer um plano. Tinha pressa. Anita Palma ao acordar deveria encontrá-lo preparado, acontecesse o que acontecesse. Mas entretanto precisava decidir alguma coisa de inadiável, fora do recinto geminado, onde já não chegava o eco da abertura poluída. A grandes passos, sem avisar ninguém, o Engenheiro Geraldes tinha atravessado os corredores e ultrapassado o guarda-vento, com a determinação que as pessoas diligentes sabem, em certos momentos, colocar nos actos.
O GERENTE
Percorreu o primeiro corredor, o segundo corredor, virou à esquerda, ultrapassou o guarda-vento onde batia o relógio, e como se entrasse num recinto devassado, não se inibiu com o ruído.
"Escute aqui!" - Disse o Engenheiro Geraldes. "Pretendo tomar o pequeno-almoço no quarto como combinado, mas antes quero falar com aquela pessoa de fato cinzento que ontem à noite fez o favor de vir trocar impressões comigo, junto desta mesa!"
O chefe de mesa encontrava-se em mangas de camisa e carregava uma pequena leiteira sobre bandeja. Parecia inclinar-se à medida que o Engenheiro falava.
"Ah! Que pena! A esta hora ainda não se encontra. Mas quem sabe? Talvez eu mesmo possa ser útil."
"Talvez não! Mas o caso é o seguinte - Eu não gostaria que esta estadia terminasse sem compreender o que me parece incompreensível".
A camisa do chefe enorme alvejava além do privado. Do braço mais próximo pendia um guardanapo branco. Perto deveria existir uma mesa, pois o chefe havia-se desembaraçado da bandeja com leiteira sem se afastar do pano.
"Disse incompreensível?"
"Sim, disse!" - Respondeu o Engenheiro, decidindo: definitivamente questionar o chefe. "A questão é esta - não percebo se me encontro numa casa de férias e de lazer, ou numa casa de enigmas e falsidades!"
O chefe tinha recuado atrás do pano, para depois fazer abater o volume do braço com o guardanapo contra o franzido enfunado. Havia eloquência naquele gesto invisível, pois com ele o chefe parecia querer estancar a formulação duma ideia absurda.
"Saiba o senhor que A Casa do Leborão não é uma casa de falsidades!"
"Então o que é?"
"É um clube de caça, uma casa de recato, um local de descanso e de sono. Começou de facto por ser apenas um modesto clube de caça, mas logo os clientes e associados se aperceberam de que se tratava dum local para dormir. A maioria das pessoas por esse mundo fora está cansada de não descansar..."
Mas o chefe parecia embaraçado. Devia estar preparado com frases feitas que não encontrava prontas na memória àquela hora da manhã, apesar da actividade ter começado algum tempo antes, não só pelo ruído das saídas que tinha registado, como pelo facto de a lareira furiosamente arder. A sala estava aquecida tanto ou mais do que na noite anterior. O Engenheiro encheu-se de paciência.
"Acho que você não diz a verdade. Ouça - Porque não diz a verdade? A Casa do Leborão não é apenas uma casa de caça nem um local de sono. É outra coisa, contém uma outra realidade de que você não fala".
O chefe enorme havia-se encostado completamente ao pano do privado onde se encontrava o Engenheiro, e tinha feito desaparecer da vista não só a leiteira mas também o guardanapo. Na sua voz perpassava inquietação.
"Vou ver se me faço entender. É uma casa de descanso, de caça e de lazer. Mas tudo depende dos hóspedes que dormem. Há os que dormem mais do que caçam, e há os que só caçam e há os que só dormem. Conforme a necessidade de descanso e de invisibilidade que cada um sente".
"Que invisibilidade?" - O Engenheiro não conseguia deixar de ser cáustico apesar de não saber até onde poderia chegar. "Ah! Invisibilidade! Pois também sobre isso, ontem, você mesmo mentiu!"
"Ontem? Não deve ter sido aqui! Que eu saiba, durante o serviço, ninguém mente... "
Disse o homem em camisa, recuperando de qualquer lado o guardanapo e a leiteira, e elevando-os na direcção do corpo onde o Engenheiro presumia que o chefe teria o coração. A corpulência do chefe fazia que o centro do seu peito se encontrasse próximo da parte superior da abertura do privado, e ao homem público aquele gesto parecia ser o esboço dum princípio de contrição. Ele sabia que o chefe de mesa estava mentindo.
"Mente! Porque me falou na obscuridade como sendo um privilégio da casa, quando os quartos estão esventrados por portas que os tornam vulneráveis a tudo, incluindo o som?"
"O senhor disse som?" - Perguntou o chefe. Mas logo em seguida a ter perguntado, o Engenheiro percebeu que o criado ria. Não porque soltasse gargalhadas, mas porque atrás do pano, a voz dele saía livremente por entre os dentes. Deveria ser senhor dum bigode farto e dum dente ralo. De certeza que os lábios estavam afastados, a sua língua de gordo vibrava e o homem ria. Parecia reprimir a custo uma espécie de gargalhada.
"Desculpe, mas o senhor não entende nada d'A Casa do Leborão! As portas a que se refere estão fechadas, como sabe, e só são abertas quando as pessoas em comum o querem. Já reparou como seria se nesta casa, quem se quisesse encontrar o não pudesse fazer livremente? Com que direito privaríamos sócios e clientes de se entenderem?"
Durante um momento, o Engenheiro calou-se, pois acabava de imaginar a possibilidade de as portas se abrirem ao longo de toda a ala para uma grande orgia. Como é que ainda não lhe tinha ocorrido que o mesmo que havia sucedido entre o seu quarto e o quarto de Anita Palma, pudesse acontecer entre três, quatro ou dez quartos sucessivos? O colectivo no amor sempre lhe havia parecido um horrível reencontro com a barbárie e por isso se indignava. Não precisaria conhecer mais ninguém.
"Só preciso encontrar-me com a pessoa que me acompanha! Porque quereria encontrar-me com gente que não estimo nem conheço?"
"Que não conhece!" - O chefe tinha colocado seus ademanes e corpulência o mais perto possível dos panos amarelos do privado que desse modo fazia inchar, e falava alto como se respondesse com a força da evidência - "Ah! Como o senhor está enganado! Por mais que um homem julgue o contrário, nunca se conhece ninguém. Ah! Ah! Tanto quanto a nós próprios! Na interioridade, somos um astro por descobrir e ainda está por inventar o transporte para lá chegar. E pretende o senhor conhecer a pessoa que traz consigo! E pretende evitar a aproximação dos outros nessa falsa base! Mas que engano! Que mistificação..."
A forma emproada como se exprimia revelava uma instrução banal, colmatada por juízos feitos em sessões contínuas, conduzidas de modo a proporcionarem resposta a clientes surpreendidos, e aprofundada em magazines de fim-de-semana, concebidos de propósito para entreterem as longas noites de Inverno na província. O Engenheiro perdeu a paciência. Protegido por panos que mal tinham uma abertura, poderia soltar uma pancada sobre a mesa sem correr risco algum.
"Horrível! Muito horrível! A sua explicação é tão indecente quanto aquelas portas colocadas atrás das camas. Quem pensa que eu sou?" - O Engenheiro Geraldes, à medida que desferia um punho sobre a mesa, deixava-se invadir pela cólera. A pretensão e a falsidade eram os dois vícios que mais o indignavam.
Afastado dos panos, o chefe tinha esperado que a explosão passasse e que os dois copos deixassem de tinir. A camisa demasiado larga ampliava o peito do chefe. Pela abertura só se lhe via o papo. Mas o Engenheiro, enervado com a bruta corpulência parada, repetiu a pancada sobre a pequena mesa.
"Não o quero a si! Quero aquela outra pessoa! Esteja onde estiver. Acorde-o, e chame-o. Quero vê-lo aqui, à minha frente! " - A mão do Engenheiro ainda ficou a tremer sobre a toalha. Estava visto que a casa assentava sobre uma organização invulgar, mas os agentes, além de maus defensores do sistema, também mentiam e por isso se sentia duplamente logrado. Não havia dúvida que iria ter de esperar. O fogo àquela hora da manhã ainda por romper laborava rápido e espalhava um agradável calor, embora não se ouvisse ninguém ateá-lo. O gerente deveria estar longe. Até talvez nem estivesse. Até talvez todos eles tivessem desaparecido de propósito para ele ficar à espera sem a resposta que exigia. Mas o Engenheiro Geraldes, sentindo-se com direito à explicação, estava disposto a perder o início da manhã. Aliás, alguém forçosamente teria de se aproximar, mais que não fosse para atear a lareira. Esperaria. Com a determinação que o havia levado à Praceta dos Ruivos, ele esperaria. Tinha cruzado as mãos sob o queixo, disposto a isso. Mas não tardou que o homem do ventre médio aparecesse. Já se encontrava de fato cinzento assertoado, e sob o casaco, o ventre afinal era menos médio. Uma certa proeminência indiciava até uma pessoa atarracada. Tinha começado a falar muito baixo, apesar de mais ninguém parecer encontrar-se na sala. Como no dia anterior, o gerente colocava-se de lado. Deveria ser um cínico. Agora não miava como um súbdito, antes empurrava as palavras como um gestor treinado em inglês.
"Estamos com um Inverno muito prolongado" -Começou por dizer. "Temos a casa completamente aquecida, e tudo em ordem, mas por algum motivo que não conheço o senhor sente-se perplexo".
"Muito" - Respondeu o Engenheiro. "O antigo sócio que me indicou esta casa criou-me a expectativa dum local bem diferente".
"Diferente?"
"Sim" - Continuou ele. "Falou-me dum estabelecimento único, onde tudo estava previsto no sentido de que a intimidade ficasse resguardada. Segundo ele, haveria aqui o sossego necessário para que uma pessoa pusesse o sentimento em ordem. Como o senhor, aliás, ontem aqui mesmo propagandeou, também ele me disse que A Casa do Leborão era uma homenagem à natureza..."
O gerente interrompeu-o - "E o senhor acha então que não é assim?"
"Não, não é. Desde que aqui cheguei que me sinto rodeado de portas por todos os lados, perseguido por criaturas de olhos tapados que andam a vaguear de noite, panos ridículos que não sei se nos tapam se nos destapam, ruídos obscenos, latidos de cães que parecem estar alojados com os donos, telefonemas intermináveis para se obter uma passagem discreta através dum corredor, águas demasiado ruidosas..."
"É tudo?"
"Não, ainda não é tudo..."
O gerente deixou que o Engenheiro expusesse as queixas à vontade, que as repetisse e acusasse. Só depois se apoiou no parapeito do privado, e com uma voz que ao contrário do que lhe era habitual não imitava nada, em vez de se defender, aproximou-se demais do janelão.
"Cuidado, senhor! Talvez o senhor tenha vindo enganado. Talvez o senhor já não tenha idade para amar..."
E prosseguiu no mesmo tom neutro, como se o atrevimento o conduzisse ao horizonte zero da melodia "Talvez não".
E mais.
"De onde estou, olhando para as suas mãos, elas parecem-me pertencer a uma pessoa de poder e decisão, mas receio que tenham perdido o vigor vital do amor. Aliás, desculpar-me-á que lhe diga, mas em certos cavalheiros, o difícil processo da responsabilidade afecta gravemente o ímpeto do amor. Só assim se compreende o volume de pedidos que se amontoam sobre a nossa mesa... "
O Engenheiro Geraldes mantinha-se calado, ouvindo, pois mais do que o atrevimento, o homem que assim falava sem o conhecer, franqueava um outro limiar. Nunca tinha imaginado que as suas mãos vistas pelo buraco do privado, também elas estivessem em exposição e fossem objecto de sinais. Olhava-as agora surpreendido, sem saber se as deveria esconder ou não. Felizmente que tinha deixado de ouvir o gerente. Mas seria verdade o que aquele homem mediano dizia? O que sabia aquela pessoa barriguda de engenharia, pesquisa e administração para lhe falar daquele modo? Com que direito? Com que ciência? Perguntava. O gerente, porém, percebendo sem dúvida que o hóspede que se encontrava dentro do privado acabava de ser vencido, ou pelo menos profundamente abalado, avançou com seu chicote de ferro disfarçado sob melodia. As suas perguntas, feitas em voz baixa escondiam mal o limite da dureza.
"Diga-me - Veio com cavalheiro ou com dona?"
Era tão ofensivo, tão indecoroso, tão contra os princípios que o tinham atraído àquela casa que o Engenheiro não podia responder.
"Muito bem! Tenho a certeza que veio com dona. Mas aposto a minha cabeça como nada fez a essa dona..."
Sim, nada tinha feito à dona, mas não lho ia dizer. Esse era um segredo da sua vida. Essa era a questão em torno da qual a sua respiração se sustinha. O gerente não obteria a mais pequena palavra.
"Aposto que só a contemplou!"
Sim, era verdade. Até ali só a tinha contemplado, mas preparava o futuro. Tinha um plano. Também sobre a contemplação e o futuro, não produziria um som. A voz do gerente, no entanto, tinha deixado de ser melódica para ser gradualmente altiva.
"Não! O senhor não preparou o futuro! O senhor não tem um plano, o senhor encontra-se completamente perdido, o senhor não fez o que devia! "
Felizmente que a morna vaga onde se encontrava levava o Engenheiro para longe e nem por sombras sofria. Apenas a outra metade de si se encontrava subjugada, suspensa do que lhe diria o gerente, no momento seguinte, atrás do pano adamascado. A voz que parecia adivinhar a realidade, com mais clareza do que a verdade que ocorria no tempo e no espaço, fascinava-o. O Engenheiro estava sentado e ouvia com coragem, e a coragem era tão forte que se parecia com a alegria.
"Ah! Se o senhor tivesse feito o que devia sobre a sua dona, teria feito um bem a si, um bem à dona e aos outros que ocasionalmente o escutam além das portas ... Mostre-me as suas mãos!"
As mãos do Engenheiro tremiam. O Engenheiro expô-las. As médias mãos do gerente, nem gordas nem magras, nem pequenas nem grandes, nem peludas nem lisas, pegaram nas do Engenheiro, de unhas luzentes, bem tratadas. O gerente parecia observá-las, pois virava-as de um lado e de outro como um quiromante ou um clínico. Mas atrás dos panos, não dizia nada. Movia-lhe os ossos, sopesava-os, passava o polegar pelas intumescências, vinha até ao pulso, regressava às unhas e não dizia nada.
"Dá-me licença?"
Disse o gerente por fim, abandonando as mãos do Engenheiro e apoiando-se numa das suas sobre o parapeito, enquanto fazia avançar a outra, a direita, na direcção da cabeça do homem da Praceta dos Ruivos. Colocou-lhe a mão na testa, passou-lhe um dedo entre os olhos, avançou pela cabeça, procurou-lhe a altura do crânio, a implantação do cabelo, o pavilhão da orelha. Tomando entre os dedos uma madeixa da nuca, apalpou minuciosamente o cabelo. Demorou tempo. Parecia querer encontrar através do tacto uma textura de outra natureza. Procurou depois encontrar o volume total e o comprimento da cabeleira. Mas não dizia nada. O seu ombro havia-se introduzido pelo buraco do privado e o pano ondulava sob o seu movimento, escondido atrás como um fotógrafo antigo. Com a cabeça movendo-se ao sabor daquele exame exterior, o Engenheiro sentiu-se reduzido a uma figura de barro avaliada pelo som e pelo tacto. Mas se entre a mão do gerente e a pele do Engenheiro havia uma chapa invisível que o impedia de sofrer, não existia nenhuma razão para sentir a voz aniquilada, e no entanto, não conseguia dizer fosse o que fosse. Como o homem médio já havia guardado as suas mãos, o reposteiro tinha parado de ondular, e como não falasse, desejou perguntar alguma coisa, com voz inaudível. Custava-lhe mas tinha de ser. Era um imperativo. Alguma coisa o tinha empurrado até ali - "Acha que ainda vou a horas?"
Naturalmente que o gerente não podia ouvir.
"Pergunto-lhe se ainda vou a horas" - A coragem do Engenheiro aumentava.
"Vai" - Respondeu por fim o gerente. "Creio que ainda se encontra deste lado. Mas se eu estivesse no seu lugar, entregava-me completamente à Casa do Leborão". E começou a afastar-se. Afastava-se. Afastava-se. Devia usar sapatos de sola volumosa, pois ao andar o som repercutia-se como se saísse dum salto de mulher.
"Espere! Onde vai? Pelo amor de Deus, espere, responda!" - Pediu.
Mas o gerente parecia não ouvir a voz enfraquecida do homem público, ou ouvia e não queria responder. Assim como tinha desaparecido atrás dos panos, se sumiu no salão circular onde ninguém mais parecia estar, nem hóspedes, nem chefe, nem criados e contudo a lareira luzia. Os seus passos ecoavam no recinto, cada vez mais longe, apagando-se no chão. Depois o Engenheiro viu as chamas mas não ouviu mais nada. Nem sapatos, nem talheres, nem sequer o crepitar da lareira que por certo esmorecia por falta de cuidado. Se a sala estava deserta, talvez ele pudesse, sem risco, levantar o pano, abrir o parapeito de madeira e dirigir-se à lareira para a atiçar. Perto dum homem válido, um fogo não deve esmorecer. Essa tentação passou-lhe pela cabeça, mas logo percebeu que estava completamente sentado à mesa e que afinal se encontrava imóvel. Não admirava. Nunca havia passado por uma prova tão rude. Por instantes, tinha tido a impressão de que alguém lhe havia atingido o âmago da vida com um garfo, estraçalhando-lhe precisamente a ligação com o som. Ele não ouvia o próprio ruído da sua vida.
"Que atrevimento!" - Disse para si. "Que vexame, que atrevimento! "
E eram-no tanto mais que não restavam dúvidas ao Engenheiro de que aquele homem não sabia nada nem sobre o corpo nem sobre o espírito dos seus clientes, pois se soubesse, não diria o que tinha dito sobre ele, um vigoroso homem de estudo que se tinha tornado uma figura pública, ali hospedado apenas por uma questão do acaso. O vexatório tinha procedido daquele modo por simples abuso da situação. O que sabia aquela mãozinha medianamente sapuda da sua beleza e da sua vitalidade? O que sabia do seu poder, do seu amor à vida e à actividade? Como calculava a sua energia? Como media a sua saúde? Como podia avaliar se o não via da própria força do seu olhar? Acaso podia imaginar, mediante aquelas indecentes apalpadelas, o que na sua cabeça existia de força de interpretação sobre a deriva da Terra? Do seu conhecimento dos solos? Da força da técnica na recomposição dos mares? Das correntes, da água? Da engenharia da gestão da coisa pública e tudo o mais? E o que sabia ele da qualidade do seu afecto por Anita Palma? Sabia ele por que em segredo lhe chamava última dona? Porque tinha vindo ela parar nos seus braços? Dormir na sua cama? Estava perplexo - Não compreendia como tinha consentido que aquele homem reles lhe tivesse dito coisas tão desagradáveis sobre a contemplação dum cavalheiro perante uma rapariga. Aquele grosso, de barriga com proeminência, desconhecia que certas pessoas superiores são capazes de olhar para as que amam com a leveza da imaterialidade. Aquele ignorante nada sabia, pois, que justificasse ter metido o braço pelo janelo do privado, para lhe apalpar o corpo. Agora o Engenheiro estava tão indignado que passava a mão pela cabeça como se a sentisse profanada, e quisesse com esse gesto retirar a presença das mãos insidiosas. "Indecente!" - Dizia o Engenheiro. "Ainda ontem ter pedido protecção para esta casa, e sujeitar-me hoje a semelhante abuso! É preciso descaramento! É quase criminoso!" - E indignado, ia pedir passagem, pois percebia que dentro de instantes se encontraria apto para andar.
"Indecentes! "
Sim, agora tinha a certeza de que o haviam visto. Podiam não identificar os outros, mas a ele, a quem afinal tinham reservado um privado em lugar de privilégio, haviam-no visto e identificado ainda antes da primeira hora. Fora por isso que no dia anterior, aquele homem médio lhe tinha pedido ajuda. Vendo, porém, que ele inquiria, polemizava e pedia explicação contra um serviço tão deficiente, o gerente havia investido na estratégia da ameaça, de modo a atingi-lo na virilidade e no poder. Era necessário, porém, ser muito atrevido para ter ousado agir daquele modo. Ou tinha as costas quentes, ou tratava-se dum homem ressentido, possivelmente um presumido arrivista, oriundo duma classe miserável, que uma vez na posse de instrumentos de coacção muito fortes sobre pessoas influentes, se vingava da humilhação genética, lançando aquelas armadilhas aos clientes que ali vinham e eram representantes do poder. Talvez nem tivesse tido pai. Figuras assim, por vezes, provinham dos orfanatos. A sua inteligência - pois também a tinham - fazia-os não raras vezes atingir profissões contíguas ao corredor dos poderosos que aí ficavam a fingir venerar, mas laborando na sombra vinganças e tramóias com o silêncio dos submarinos. Nisso consistia o seu fim, e por vezes permaneciam nesses subterrâneos toda a vida, perfeitamente realizados.
"Ah! Sim, sim..."
Havia, porém, os que emergiam à luz e falavam de si e de todos os encobertos, mostrando como o seu salto na vida se fazia sem escrúpulos nem princípios. Ultimamente, um desses, tornado um mundano magnata, havia ameaçado as pessoas decentes - "Tenham cuidado comigo! Olhem que eu não passei pela sala, vim directamente do lixo!" - Tinha declarado o filho damãe! Um homem a quem os melhores fatos não retiravam da testa as rugas de filho de torneiro. Ah! Sim, regressando agora à realidade, e ouvindo o ligeiro mugido da lareira, tinha a certeza de que uma cabeça semelhante à do destemido magnata vindo da lixeira estava colocada no corpo medianamente barrigudo do gerente. Podia de novo pedir passagem e levantar-se lesto, pois o que ali se passara dentro do privado, não fora um gesto contra ele, o Engenheiro, mas um acto contra a representação que transportava em si. O que aquele ressentido tinha feito equivalia a vexar de forma ignominiosa não a sua testa mas a do estudo e do fomento. De todas os fomentos e de todos os estudos. Uma troça formidável havia ali acontecido contra a virilidade da ciência, da administração e do poder. E ele, representante duma classe e duma força que mantinha com dignidade os estados de técnica e de direito, deveria encarar com a seriedade necessária um gesto que sendo ofensivo, afinal o investia de representatividade universal. Eis como tudo se esclarecia! Se tivesse ouvido a um outro o pensamento que formulava agora, tê-lo-ia, provavelmente apodado de imbecil ou megalómano. Mas agora já duvidava. Quantas vezes esses defeitos não corresponderiam a virtudes cujos fundamentos um ouvinte desprevenido desconhece! Perigos e perigos espreitavam qualquer pessoa destacada. Quanto mais importante e mais destacada maiores os perigos.
E como já dispunha de passagem, o engenheiro Geraldes Maia ia levantar-se da sua cadeira e regressar aos quartos, atingido de vexame mas aureolado de representação. Seguiria corredor adiante, sobranceiro. Simplesmente, enquanto saía e não saía, do lado de onde o Engenheiro presumia que se encontrava a cozinha, as passadas de sapato de salto enchumaçado começaram a fazer-se ouvir. Em passadas lentas, certeiras como as dos guardas, ecoando na placidez da manhã pequena que rompia - Para onde iriam? Seria o gerente chamando a si a manutenção da lareira que sem dúvida se apagava? Ou seria para de novo se aproximar de si? Preso pela dúvida e pelo perigo, o Engenheiro esperou. O senhor do tacão tinha-se aproximado.
"Ainda aí está?"
Afastado do pano, ou entre ele e a lareira, o gerente parecia esperar uma resposta. Porque razão não respondia? Não dizia - "Sim, ainda aqui estou!" Ao menos poderia dar sinal da sua presença e da sua resistência. Mas não, o Engenheiro não conseguia balbuciar uma palavra para produzir uma ideia débil que fosse, como se decepado pela intimidação daquele homem barrigudo que afinal nunca vira.
"O senhor ainda aí está! Isso é tudo renitência ou igrorância?" - E depois, mudando de tom - "Volte, volte para a sua cama! Vê-se que não entende absolutamente nada d'A Casa do Leborão".
A MATA
"Volte para a sua cama! Porque perde tanto tempo?"
Insistiu de novo o gerente, num tom de voz que nem ondulava nem feria. Era clara e neutra como a de qualquer voz de industrial hoteleiro, e no entanto, para o Engenheiro Geraldes agora traduzia alguma coisa de bom como se houvesse nela um cuidado familiar.
"Gerente! "
Protegido no canto privado do restaurante, o Engenheiro ouvia aquele homem de muito longe, de tão longe que lhe permitia fazer contas de cabeça.
Era um facto que o Moura lhe havia dito que ali se vivia em três ou cinco dias o que em circunstâncias comuns se experimentava em quinze ou vinte anos. Ora tomando por base a última proporção, isso queria dizer que a hora que estava perdendo equivalia a dois meses, e se se encontrava a vaguear pel'A Casa do Leborão ia para dia e meio, significava que havia já gasto o correspondente a cinco anos de realidade, e tudo absolutamente para nada. Perdia anos, meses e horas a cada minuto que hesitava. No entanto, o corredor encontrava-se vazio à espera da sua passagem e Anita Starlet dormia ao fundo enroscada na sua cama. Pois não era isso que lhe dizia o gerente, do outro lado do pano? Com o fato cinzento assertoado, comprimindo a cintura, ali estava aquela pessoa, posta de guarda, incitando-o a um comportamento cujo alcance em parte desconhecia.
"Volte!" - Dizia ele.
Mas por que se interessava assim o gerente? Seria d facto uma figura perversa como tinha deduzido, ou es condido atrás dos panos e zonas de desvio, se disfarçava um homem bom que o aconselhava a estreitar nos braços, quanto antes, a amante do Fausto Maia, impelindo -o a que esquecesse o passado de conluios com mulheres imperfeitas, todas aquelas que haviam deixado que o tempo e as esperas transformassem as suas vidas em lastros de término e desilusão, obrigando-o a refugiar-se, noite a noite, na luminosidade duma figura imaginada? Possivelmente tinha sido injusto. Possivelmente a pessoa' que o impelia agora com voz quase familiar, junto da' boca da janela, tê-lo-ia identificado e queria verdadeira mente oferecer-lhe ajuda. Era muito provável que assim fosse.
"Porque não volta? Há uma hora que tem o caminho aberto!"
"Gerente!" - Disse de novo, baixíssimo.
Sim, tinha obedecido ao gerente. Aliás, uma vez saído do pavilhão, era-lhe fácil andar ao longo do corredor, onde as pequenas luzes de vigia já haviam sido apagadas e as janelas ainda não tinham sido definitivamente abertas. O receio de que à saída da mesa resguardada, um daqueles criados, parecendo foragido dum pelotão de fuzilamento, o esperasse e conduzisse ao quarto, fazia que o Engenheiro reunisse todas as forças e passasse apressadamente entre as paredes donde pendiam descarregadas, as velhas carabinas. À sua passagem o relógio bateu as oito horas. Mas era manhã. A voz do gerente, impelindo-o a que disfrutasse da vida e do tempo, ia com ele. Os quartos encontravam-se fechados como se ninguém lá dormisse, mas alguns tabuleiros já arrumados sobre as mesinhas de apoio e outros sobejados da véspera, indicavam que estavam repletos. Aliás, as portas duas a duas enfileiradas lembravam casais unidos de passagem. Pessoas como ele e como ela, Anita Starlet, deveriam estar a dormir descansadas, com a naturalidade de quem sabe construir causas prósperas para o ser. O Engenheiro não podia continuar a ser quem era. Todos aqueles hóspedes - e os corredores tinham um comprimento razoável - entendiam o funcionamento do clube menos ele. O que teria ele de especial para ser uma pessoa renitente? Teimosia, excesso de força de vontade e desejo de dominar os outros, era o que era! Não deveria ter-se irado com a música dos seus vizinhos, nem com os ruídos viciosos de quem quer que fosse. Nem com as águas, nem com os cães. Nem tinha que se intrometer no serviço de criados incultos que apenas ganhavam daquela forma caricata a sua vida. Não tinha esse direito. Se havia acontecido a si e não sucedia a mais ninguém, era por ser um homem lamentavelmente destreinado no amor. Mas agora, acontecesse o que acontecesse, não queria sair dali sem se deitar com a rapariga do Fausto Maia, tão perto, tão perto da figura que toda a vida lhe tinha preenchido a neblina do seu sonho. Afinal, pouco mais sobejava que dois dias.
"Aposto que ainda não fez nada sobre a dona!" -Tinha dito o gerente.
Sim, não tinha feito, mas não iria precipitar-se contrariando a única peça de que dispunha na organização dum plano que afinal ainda não constituíra. Porque estruturado, premeditado e com reserva dispunha apenas desse passo e dele não abdicaria - Acontecesse o que acontecesse, às dez em ponto, iriam ambos passear entre os pinheiros. Estava marcado desde a noite anterior, ela mesma tinha pedido e ele desejava. O que não queria dizer que não obedecesse ao conselho do gerente. Obedeceria sim, mas a seu tempo, até porque talvez não dispusesse apenas de cinco dias. Ali ou noutra parte, possivelmente, iria encontrar muitos, muitos mais. Ao chegar ao fundo do corredor onde uma luminosidade provinda do exterior, ainda que escassa, entrava, o Engenheiro Geraldes olhava para o futuro como uma estrada verde, ponteada de centenas e centenas de cinco dias, levando à sua frente Anita Starlet.
Mas agora, cauteloso, ia entrar no quarto. Havia rodado a chave sem ruído. O acolhimento daquele local obscurecido depois da cena do pavilhão parecia-lhe outro. O Engenheiro tinha a certeza de que tudo obedecia a uma ordem, ele é que não via. Tendo trocado as camas, sobre a farfalhuda onde ele tinha dormido, havia roupa da Starlet, e dentro da cama austera dele, estava ela, ignorando por força do comprimido, o lugar em que se encontrava. E apesar de tudo, ele não via a ordem.
De facto, agora as tapeçarias que cobriam as paredes, esticadas sobre as portas disfarçadas, invocavam-lhe uma zona de proibição que desafiava um risco e o atirava para a frente. O perfume dela voltava a ter volume. O contraste entre os quartos proporcionava uma dissemelhança calorosa, e o Engenheiro pensou que era fácil obedecer ao gerente, deitando-se sobre a rapariga do Toque-de-Classe, a pequena Starlet que tinha vindo procurar o aconchego da sua personalidade forte. No meio dos dois quartos - mesmo no conjunto não formavam um recinto demasiado amplo - sentia-se enorme e poderoso, mas adiava não sabia para quando. Talvez o silêncio e não o espaço lhe criasse a sensação de labirinto. O facto de não se dispor de telefone, nem de rádio, nem de televisor, nem de qualquer aparelho que produzisse música é que o levava àquele extremo. Bem tinham feito os hóspedes que do outro lado dormiam a sua manhãzinha a sono solto. Às vezes olhava para si e achava-se limpo, mas agora, de repente, tinha vergonha, porque sem saber como, sentia-se um inábil puritano. O Engenheiro Geraldes havia começado a andar, em seu fato de campo, bota de caoutchouc, entre a cama sóbria onde a Starlet dormia e a poltrona de veludo, e ao passar, quase roçava na escrivaninha.
"Gerente?" - Tinha dito.
Sobre a bandeja ainda estava o cartão com as letras manuscritas inclinadas para a frente. Tinham sido desenhadas pelo punho dele, o homem de ventre médio que o incitava, o gerente, aquele ambíguo gerente! E o timbre? Aproximara-se da janela para observar a letra do gerente e o timbre. Olhando bem para o timbre, contudo, o Engenheiro parou. "Maroto!" - Disse. E tinha começado a rir porque também os coelhinhos eram ambíguos. Enroscados um no outro, possivelmente dormiam e não dormiam. Agora lhe parecia que os estilizados coelhinhos afinal faziam mas era cunniligus. "Maroto! Grande maroto!" - Dizia, benevolente. Claro que o logotipo daquela casa não podia coadunar-se com o adormecimento simples da paz do sono que tinha imaginado. Como tinha sido estúpido! Afinal, antes, muito antes daquela madrugada já o gerente lhe mandava um recado. Mas seria aquele um bom recado? Não importava, pelo menos para outros serviria, e além do mais, agora percebia que tinha sido tudo premeditado num bom sentido. Então é porque deveria mesmo haver uma ordem que ele ora via ora não via. Aceitava, pois, que tinha entrado ali como se fosse um cego, mas não se importava. Não podia rasgar na sua cabeça um olhar que se tinha tido - e era natural que sim - dele não se lembrava. Para já, achava interessante, mas era preciso esconder aquele cartão da vista de Anita Star let. Rápido, escondeu-o. Mas voltou atrás para rasgá-lo antes de escondê-lo. Tinha escondido os bocados do cartão rasgado em pedacinhos dentro dos seus papéis. Mas ainda bem que tinha visto o timbre. Ainda bem. De algum modo as figurinhas enroscadas lhe diziam que se todos os outros hóspedes entendiam A Casa do Leborão menos ele, não era por falta de inteligência, não, era por amar, conforme uma ideia que tinha imaginado.
"Volte, volte para a sua cama!"
De facto, o gerente tinha dito para voltar para a cama e não para a paisagem, e de algum modo o tinha ameaçado de fracasso para sempre, se não cumprisse. Mas não tinha culpa. A sua determinação era mais forte - Precisava acordar a dorminhoca. Queria vê-la livre de paredes, andando naturalmente entre as árvores. O gerente que desculpasse, porque ele aceitava e compreendia mas tinha o coração entalado entre tempos e emoções, e desejava por isso cumprir a única parte previsível do seu plano, acontecesse o que acontecesse. Não tinha outra forma de se entregar ao acaso.
Então mantendo a rapariga do Toque-de-Classe muito junto de si, havia aguardado que o som do carrinho da arrumadeira se sumisse na direcção oposta à dos seus quartos, e ambos alcançaram sem dificuldade a porta de saída para a vereda. Tratava-se dum caminho razoavelmente pisado, e iniciava-se quase junto às paredes, a uns quatro metros duma pérgola muito baixa. A ramaria vivaz que a adornava pegava com as copas dos pinheiros, e com elas fazia arco. Como no interior da pousada, dava a impressão de que não seria natural que fossem vistos por ninguém. Àquela hora da manhã o sol ainda entrava de forma oblíqua entre os troncos,. e aqui e além, pequenas flores amarelas dispersas, como dizia o folheto rústico, anunciavam a aproximação da Primavera. A caruma, contudo, era mais forte e constituía o único tapete contínuo onde o pinus pinea atarracado e erecto vicejava. As rasteiras paredes do clube sumiam-se entre os pés das árvores mas a sombra protectora do gerente alongava-se para além delas.
"Sim, ainda está deste lado. Entregue-se, pois, À Casa do Leborão".
De facto, também Anita Palma tinha calçado sapatos de sola de borracha e tendo-se libertado por um instante da mão dele, caminhava à frente, quase sem ruído. Quando se voltava, a pele do rosto estava pálida pelo frio, e a boca vermelha adquirira no meio do verde, o volume duma flor carnuda. Caminhava enrolada no casaco branco e preto de lã mohair cuja gola unia à garganta para se preservar da humidade. Era demasiado alvadio aquele abafo para um passeio discreto. A coquíne levava ainda um bornal ao ombro e uma boina na cabeça. Andava rápido como se dia e meio de imobilidade lhe tivesse acumulado uma energia imensa, e por vezes a senda era tão estreita e o pinheiro tão cerrado que o Engenheiro pensava que ela poderia até perder-se. Mas de vinte em vinte metros, uma pequena placa de madeira indicava o número da senda como se se tratasse dum discreto percurso de manutenção, sem se cruzar com nenhum outro. E de tal modo tudo isso se encontrava incluído na paisagem terrestre, que o Engenheiro voltou a pensar em eficácia e em gerência. O próprio pinhal parecia não ter sido limpo naquele ano mas no anterior. Não apresentava pois o ar escalvado do poisio nem o desleixo da lenha partida e dos ramos secos despregados. Anita Palma como se tivesse um desejo expresso de corrida, continuava a caminhar adiante. Por vezes parava sem se virar, parecendo esperar por ele, mas depois acelerava o passo, assimilando na pressa a riqueza e o viço húmido da manhã. Caminhavam trinta passos distanciados. Ela passava agora sob uma clareira, mas logo a sua cabeça era encoberta por contínua sombra verde, e por outra e outra sucessiva, para depois reaparecer de novo, na alvura do casaco branco de mohair. Mas já não deveria estar completamente limpo, o casaco. Na noite anterior, por exemplo, ela tinha-o arrastado pela passadeira pisada do corredor, antes de desaparecer na porta, e tinha sido bom. Não se importava mais com a limpeza dum casaco que não passava dum adereço. A certa altura, a vereda quase imperceptível produzia um pequeno declive. Anita Palma estava no meio dele, e ao fundo, onde a terra de novo começava a elevar-se, ela virou-se. Depois, como se tivesse sido acometida por uma alegria selvagem, pendurou dum galho o casaco branco e preto, e tendo abandonado a senda embrenhou-se nos pés das árvores laterais. A marota saltava e corria, -fazia voltas e desaparecia como se fosse marta. O Engenheiro tinha agarrado no abafo.
"Anita! "
Chamou o Engenheiro sem elevar a voz, pois também ali havia o silêncio absoluto dos campos. Uma detonação tinha terminado mas fora um som tão esparso e tão longínquo que nem contava. Nas imediações, nem um cão se ouvia e os passos dela apenas levantavam uma ligeira restolhada menor do que a da lebre - "Anita querida, onde vai você, meu amor?"
E continuava. Se não fosse o volume do bornal já ela teria desaparecido. Era uma imprudência aquela corrida sem saber para onde.
"Anita! Oh, Anita! " - Tinha chamado de novo. Não deixava de ser bom vê-la correr mas começava a inquietar-se.
"Tonta! "
Como lembrar-lhe àquela distância que não podia afastar-se da vereda encomendada? Como explicar-lho que de repente, àquela hora, um tractor carregado de camponeses poderia aproximar-se por uma carreteira in visível e por acaso reconhecê-los? O mundo tinha-se modificado. Os campónios agora já não dormiam à lareira mas diante do rosto dos homens que faziam mover o mundo, mantendo com eles uma familiaridade indecente como de vizinhos. A tonta não via como era perigoso? "Anita Palma!" - Chamava ainda sem sair da senda. Inquietou-se demais e saiu também. Tendo saltado por cima duma sebe, via-a ao fundo, andando dum lado para o outro, abraçando os pés de pinheiro e girando em torno deles como se brincasse ou fosse fotografada, e não era capaz de se aperceber do perigo. Com o casaco ao ombro, correu pois para o local onde a amante do Fausto Maia dava espectáculo de si ao arvoredo. Cantaria? Seria que aquela tonta cantalorava no meio dos pinheiros? Dali de onde estava não ouvia. Tinha-se aproximado mais. Mas ela de novo se afastava. O Engenheiro parou. Entristeceu. De facto ele estava à espera de ver surgir a imperfeição de Anita Starlet e possivelmente tinha chegado a hora de se mostrar. Aquele era o sangue que a fizera correr mundo, e o que a travara tinha sido a agressividade do mundo, não a sua vontade. Quem sabia quantas vezes não se teria esgueirado com más companhias entre os pés dos pinheiros? Segurando o mohair, encontrava-se parado sobre a caruma por onde a sombra cerrada das árvores fazia um tecto, indeciso muito mais sobre a totalidade de Anita Palma do que sobre aquela corrida. Talvez tudo fosse mais simples, talvez em três dias tudo se resolvesse. Mas aí sucedeu que a rapariga do Toque-de-Classe surgiu dum outro lado, a correr na direcção dos braços dele.
Vinha alegre, com os olhos cheios de brilho e trazia as mãos ao alto como quem acaba de se divertir até à exaustão e antes de atingir os braços do Engenheiro, encostou-se ao tronco duma árvore onde havia uma larga toca. Tinha-se abraçado à árvore e colocado a cabeça no vão da toca. O Engenheiro precipitou-se para o seu corpo mas sobretudo para a sua cabeça, receando que a invadissem formigas e aranhas. A ideia de que a atingissem imundos bichos diminutos pareceu-lhe intolerável. Tapou-lhe os olhos, sacudiu-lhe o cabelo e a saia. Também na saia ele pressentia insectos e praganas. Resistentes à água do Inverno, ervas espinhosas largavam extremidades defensivas que se pregavam nas roupas. Tinha os punhos da camisola cheia delas. O homem público em férias soprava-as, tirava-as. Havia terra nas meias pretas de Anita Palma. Aquela incursão na mata aparecia-lhe incompreensível. "Porque fez isto, Anita, porque resolveu emporcalhar-se no campo? Não sabe que temos hora marcada?" - Dizia o Engenheiro. Sacudia-a e sacudia-a. Mas também agora reparava que a marota havia perdido objectos. Onde estava o seu boné e o seu bornal? Ela, porém, não sabia. Como uma alegre irresponsável, não sabia. E o Engenheiro não conseguia ultrapassar as brandas queixas - "O seu boné e o seu bornal, Anita! Isto faz-se?"
Mas ela não estava disposta a procurar. Encostada a uma outra árvore, tinha os olhos meio fechados e descuidadamente ria. A coquine ria. Ele mesmo começou a procurar o boné. Encontrou-o numa moita muito próxima, mas o bornal, esse não. "Onde deixou você o seu bornal, Anita?" Ora o bornal não estava caído entre os dois pés de árvores que ela assinalava com o braço. Encontrava-se muito mais longe.
"Deixe o saco, Engenheiro! Eu não me importo mesmo nada com o saco!" - Dizia ela.
Não, não ia deixar o bornal abandonado entre os pastos e as carumas. Abandonar ao sopro do Inverno um objecto que tivesse andado ao ombro de Anita Palma, parecia-lhe uma enormidade sem sentido. A profanação duma coisa casta. A morte duma coisa viva. Tinha de o achar. Havia-se curvado sobre a terra cheia de sombra, espreitado em redor e finalmente, quando desesperava, achou-o no meio dos pastos.
"Isto faz-se?" - Perguntou de novo, regressando com o casaco de mohair ao ombro, o bornal no braço e o boné na mão como os criados de antigamente. "Que leviandade, Anita! Aposto que perdemos o caminho. Sabe ao menos em que direcção vamos?" - Mas a amante do Fausto Maia não sabia nem se importava de não saber, caminhando de novo adiante do Engenheiro, agora em sentido oposto. Não caminhava, contudo, à toa.
O seu sentido de orientação levava-a na direcção certa, como se A Casa do Leborão que não se avistava estivesse nos seus sentidos. A vaidosa caminhava. A anca fina movia-se, os ombros agitavam-se, o boné que ela tinha retomado soltava-se-lhe da mão para a cabeça e da cabeça para a mão. Lembrava-se. Ah! Como se lembrava! - A traquinice da rapariga levava-a a um tempo de fulgor onde as corridas tinham existido como um imperativo. Um tempo ainda antes de Rosina, do estrume e do leite. Aquela época em que o seu tio afugentava os pavões em Colares com o seu grito de álcool. Não se lembrava de nenhuma mulher haver guardado, para lhe dar, tão puro divertimento. Ainda por cima, como numa cena imaginada, o cabelo dela traduzia o andamento. O que lhe dizer? Como explicar-lhe que gostaria de andar a seu lado, apesar da estreiteza da senda? Que queria oferecer-lhe o braço, apertar-lhe a mão? Não faria isso. O Engenheiro olhava em todas as direcções, e como a sua alegria era leve e espumosa como o champanhe, não conseguia de novo encontrar palavra que prestasse. "Pede-me e eu faço. Perde as tuas coisas e eu procuro. Viste, viste como fiz? ...Então! Eu vou pelas veredas mais estreitas até te encontrar. Ouves-me? Ouves-me querida, minha única dona?" - O Engenheiro ia murmurando, vinte passos atrás no interior da mata. "Perde, perde as tuas coisinhas..." Estava orgulhoso de si mesmo, pois era a primeira vez que a via completamente feliz. Ele era capaz de a fazer feliz! A anca estreita de Anita Starlet ondulava como um gamo ou como a lembrança da rapariga do Mar do Norte, a nua imperatriz que havia encontrado no bordel. Tinha tido razão em não abdicar do passeio. Apesar da dúvida que havia formulado, aquele era o caminho que se não fosse real e humano, ele queria que fosse eterno.
Mas aí o Engenheiro parou.
Lembrava-se - Tinha parado a meio da vereda porque acabava de ouvir um ruído e não sabia de que lado provinha. Anita Palma devia ter tido a mesma impressão, pois também ela escutava. Não havia dúvida. Tanto ele quanto ela ouviam passos. O Engenheiro aproximou-se dela, tomou-a pelos ombros e colocou-a atrás de si. Naquele ponto, a senda escurecia, para depois alternar em troços mais claros e mais escuros. Do troço mais escuro que um novo renque de árvores abria, dois homens, um deles com as mãos nas algibeiras, e um outro segurando um setter quase vermelho junto às calças, avançavam na sua direcção.
O primeiro impulso do Engenheiro foi o de repor a indignação contra' o falso clube de caçadores, e ainda pensou desviar caminho, passar ao largo, atravessar as árvores e procurar outra vereda. Arriscava-se, porém, a encontrar outros hóspedes. Quem lhe iria assegurar que aqueles dois estavam a invadir o seu percurso exactamente porque outros já teriam feito o mesmo à vereda! que lhes fora reservada? Não, o Engenheiro julgava compreender o propósito do gerente e não queria contribuir para o caos dos hóspedes no que respeitava a coisa nenhuma, quanto mais às veredas. Ele continha um cavalheiro educado caminhando dentro da sua pessoa, em todas as circunstâncias. Ultrapassaria aquela dificuldade com lisura. Eram os primeiros rostos que avistavam desde que haviam chegado À Casa do Leborão.
"Não importa, minha querida!"
Tinham-se dado as mãos como se nada fosse. Os dois homens, de idades diferentes e corpulências distintas, já os haviam avistado, e embora não tivessem deixado de caminhar, percebia-se que também o faziam contrafeitos. Mas deveriam ter formulado raciocínios análogos, pois sempre acompanhados pelo cão que abanava as orelhas e trotava, avançavam, falando e olhando em redor, como se o par que estivessem para encontrar lhes fosse de todo invisível. Ao passarem, apenas o mais jovem se baixara para segurar o setter pela coleira. Nesse momento, as calças de suspensório elevaram-se ligeiramente e o Engenheiro pôde ver que havia nele um olho azul claro. Parado, segurava o bicho. O cão, sem dúvida distraído pelo trajecto, olhou o Engenheiro com menos interesse do que se fora um insecto, e só quando já se haviam cruzado, o animal se virou, puxou a trela, arrastou o jovem, e fez um solitário ladro. As quatro pessoas olhavam para o animal fugazmente insubmisso e viram-se de relance. Depois, em sentido contrário, ambos os grupos se afastaram.
"Tennessee!" - Chamou um deles.
Mas o Engenheiro tinha ficado inquieto. Não o rapaz do cão, mas o outro, o mais pesado, esse parecia uma figura que lhe lembrava alguém. Anita Palma tinha o mesmo sentimento e embora ambos fizessem esforço para repararem no percurso do regresso, a imagem daqueles dois homens diferentes, elegantes, que tinham a ideia de haverem visto em sítios diversos, inquietava-os, sobretudo porque também eles os poderiam ter identificado. E se não é no momento é no seguinte, ou passados vinte dias, que a pessoa recorda. Por nada deste mundo o Engenheiro desejava que aquelas duas pessoas os tivessem reconhecido. Aliás, de momento - sabia que era só de momento - não queria imaginar gente na sua vida. Longe, o mundo parecia-lhe um formigueiro explosivo agitado pela pressa e pela reivindicação de bens, e a ele, por ora, nada mais interessava do que uma finalidade colocada acima de si, chamada Anita Starlet. Ao pensar desse modo, sabia aproximar-se perigosamente das pessoas banais, mas não se importava, já que assim mesmo era único. Por si, podiam, pois, cortar todas as estradas que vinham ter aos pinheiros a partir de Duas-Pias, para ele ali permanecer e ter justificação. Longe, podiam morrer todos os transeuntes em redor das praças. A portaria do Palacete dos Ruivos podia ir pelo ar com uma bomba. E mesmo a água podia ir apodrecendo junto das embocaduras e das praias e as crianças inocentes chapinharem nos detritos como peste, que de momento não se importava. Desde que isso tudo acontecesse longe, ele não soubesse os nomes de quem sofresse, e ninguém adivinhasse o que dizia para si, ao caminhar sob a paz dos húmidos verdes, não se importava. Era criminoso o seu pensamento, mas era-o assumidamente, andando pelo passeio à sombra d'A Casa do Leborão. Não se importava. A esse desejo que tinha de se desembaraçar do mundo ele chamava apenas uma outra consciência. Mulher? Nunca tinha tido. Mulheres? Um painel de minúsculos retratos que se haviam dispersado. Mãe? Tinha desaparecido há muito tempo. Filhos? Tinham a sua vida. E o Mundo? - O Mundo passava bem sem ele. Sabia, pois, que era livre. De momento, não queria gente. E quanto àquele par com cão vermelho que acabavam de encontrar, não se importava, já que faziam parte da mesma ilha silenciosa onde afinal, além dos próprios, ninguém mais existia.
"Porque não anda de novo à minha frente?"
Sim. Anita Palma estava em segurança. Como uma verdadeira starlet caprichosa que não se importasse de fazer de borboleta, criava gestos, obedecia. Estavam muito perto da entrada d'A Casa do Leborão. O Engenheiro correu atrás da rapariga sem boina, pois ele a segurava, alcançou-a, apertou-a nos braços, e levou-a pela senda e pelo corredor das armas velhas até aos quartos ofuscados de penumbra. Alguém tinha arrumado os aposentos e as superfícies lisas olhavam como seda. Infelizmente a linguagem, toda a linguagem era boçal. "Facilite-me a vida, Anita, querida Anita..." - Dizia ele, procurando no meio do corpo da rapariga a passagem estreita para um momento desconhecido. A coquine só levemente se debatia. A coquine tinha tudo quanto ele tinha imaginado. Ela havia guardado durante o passeio o bâton vivo que ele agora transportava com a sua boca para o ombro e para a orelha da coquine. Sempre tinha tido a impressão de que quanto mais pintada mais nua estava, e que o inverso não era verdadeiro. Agora confirmava.
Mas o que ele dizia era muito diferente - Indo à fonte das flores e pousando aqui e ali como uma abelha seu mel derretia. Eram imagens que ele havia guardado desde o tempo antigo do indirecto e do pudor. Desde o tempo da quinta de Colares. E fazia parte do seu modelo de ternura procurar, nos cabelos de Anita Palma, patas de aranha e barrigas de formiga que ele receava que tivessem sobejado do seu passeio pela terra.
Mas ainda assim, precisava certificar-se se era aquela a mulher que queria - No meio da cama enfeitada ela permanecia nua. Olhou-a longamente. Era tal como supunha. Nem criança nem dona, nem alegre nem triste, nem filha nem mãe, nem quente nem fria, e enroscada a seu lado, não era nem morta nem viva. "Graças a Deus!" - O Engenheiro tinha suspirado muito, muito fundo.
O SERÃO
Pois na verdade ela mantinha os olhos meio abertos meio fechados, e o mesmo se poderia dizer da sua boca, dos seus ouvidos, das suas narinas, e até das superfícies lisas e conclusas do seu corpo, como se a totalidade daquela pessoa tivesse uma porta entreaberta em cujo limiar ele se encontrava, e onde podia entrar e sair quando quisesse, tal como havia anos e anos tinha sonhado na escuridão do seu segredo. A única diferença consistia num ponto, um único, e que resultava na forma como ele mesmo, depois do amor, descansava. Na sua imaginação, ao longo do tempo vivida e reiterada, a rapariga ondulante por fim transformava-se num golfo de água e espuma, e ele, redondo e adormecido, era cercado por ela como se fosse um filho. Ora naquela tarde de Inverno, ao contrário, ainda que também houvesse alguma reprodução dessa parte deliciosa do sonho do Engenheiro, a posição relativa de ambos invertia-se. Anita Palma tinha-se colocado entre o seu sovaco e a elevação branca da almofada, e ela era ao mesmo tempo sua mãe e sua filha.
Mas não fazia mal. No sonho, o bem-estar que lhe sobrevinha por acréscimo era descontado no embate frio contra o corpo de outrém ou de ninguém, enquanto ali, para reaver a jovem amante que sempre lhe havia povoado território tão precioso, bastava aproximar os lábios da sua pele, cheirá-la e senti-la. Não se evaporava contra as paredes. E contudo, correspondia de tal modo à sua fantasia, que estendida e imóvel, a ladina nem abria os olhos.
Ele próprio tinha vontade de não abrir os seus. Havia colocado os óculos sobre a mesa de cabeceira, e com as pálpebras maceradas pelas noites não dormidas, via ao longe o quarto onde se encontrava como se fosse através dum fumo. Ora não via. Dormitava. Para depois ver, e dividido em migalhas não reunidas, experimentava juízos dispersos - Os panos de fustão arredados, as cabeceiras da cama dando para portas de madeira disfarçadas, o contraste entre um e o outro quarto. As paredes possivelmente pouco espessas através das quais os sons passavam. Águas continuavam a correr. Talvez até um outro chamamento baixo, talvez uma porta de armário, e de novo uma respiração e um suspiro. Esses sons, que ora aconteciam perto ora mais longe, embora quase imperceptíveis, como se a sua orelha com o silêncio se tivesse apurado, vinham visitá-lo, no seu sítio clandestino.
Mas agora não se importava mais. Mesmo que voltasse a ouvir um pedaço duma abertura adulterada, compreendia. O que não compreendia agora o Engenheiro Geraldes? Um fio de delícia prendia-o à Starlet, e a ambos à cama, e a cama ao quarto, e o quarto à mata protegida e cerrada até à beira das paredes e às veredas, como túneis de verdura. Aquele era o local para voltar com ela, nem que para tanto fosse necessário comprar indumentária de caçador, espingarda e cão, e adquirir até um pequeno Land Rover que deixasse disfarçado numa garagem em Duas-Pias. "Eh! Eh! " - Dizia na fluida sonolência. Antevia-se com Anita Palma, a chegar, a tomar a ala ocidental, a cuidar de belos galgos e depois a correr, a correr e a disparar atrás das lebres. A voltar para o quarto que já não precisaria ser comunicante, e a atirar um cinto de leporídeos sobre a pedra da cozinha sem que ninguém o reconhecesse. Entretanto, Anita Starlet esperaria por ele, sentada nas cadeiras de cochins folhudos, de boca vermelha, com sua pequena saia.
No entanto, podia fugir da sua vida de compromissos e deveres, sucedendo-se dia e noite, públicos e inadiáveis? Não podia. Pestanejando à beira do sono, como se brincasse com hipóteses sem sentido, espalhava pelos cantos dos quartos os obstáculos à felicidade que naturalmente vencia. Vencia Fausto Maia. Enfrentava-o diante duma mesa, em pé, olhando-o olhos nos olhos, admoestava-o e vencia-o. Ele não o tinha traído, ela é que o tinha trocado. A Starlet não voltaria ao Toque-de-Classe. Mudá-la-ia para uma casa com relva e uma escada, iria vê-la ao fim do dia e marcaria hotéis para ambos através do Palacete dos Ruivos, de vez em quando, de cinco em cinco dias. E assim por diante, até que o Engenheiro se apercebeu de que estava à beira de construir um plano. "Já era tempo" - Tinha dito o Engenheiro.
Pois na verdade o plano do futuro surgia no momento em que se tornava activamente necessário. Não precisava de papel nem esferográfica, os principais contornos estavam clarificados na sua cabeça organizada de engenheiro, e contudo a configuração tinha a simplicidade dum risco direito sobre uma superfície plana. Objectivamente era assim - Primeiro, Anita, o objecto, e como tê-la. Segundo, como retirá-la e mantê-la. Terceiro, como justificá-la e preservá-la. E só o quarto, em aberto, continha uma pergunta - Até quando? Procurando preencher a última coluna, era obrigado a responder - Até ao fim. Mas em tudo isso havia um obstáculo a vencer. O Engenheiro despertou completamente, e pensou que não saberia o que pensar em relação ao destino da mulher.
Via-a de cabeça envolvida na toalha, sentada sobre a bergère, estática, olhando para ele como se pela primeira vez e precisava dizer-lhe - "Pois é, Lurdinhas, as coisas são como são..." Mas mesmo assim não pretendia fazer um balanço negativo da sua relação com ela. Era um homem bom e desejava que ela encarasse Anita Starlet, mais como uma exigência do destino, do que como um efeito da sua involuntária imperfeição. O facto de ter a rapariga do Toque-de-Classe encostada sobre o seu ombros dormitando, dava-lhe um desejo de compreensão quê não tinha fim, e obrigava-o a pensar com dobrada confiança naquele clube, onde o que se desejava acontecia com a alacridade dos vinte anos. Mas o facto de precisar de equacionar o plano empurrava-o para um balanço realista. Era como se o corpo morno da rapariga nua o ajudasse a ver claro, e como se de si para si mesmo fosse obrigado a fazer uma confidência. Em silêncio, ali estava a verdade cruel e muito dura de dizer - "Geraldes, há muitos anos que deixaste de amar a tua mulher".
"Sim, deixaste".
Mas estava a tempo, e para pensar bastava apoiar de novo a cabeça na almofada da cama cor de leite. Era curioso como só agora o sabia. A clareza na penumbra daquele quarto, depois do amor, parecia um estado inevitável. Não a amava porque desde a primeira hora de intimidade, ele havia compreendido que a natureza dela estava para a tentação de ter filhos como para certos dependentes está uma garrafa de álcool. Sim - pensava com pena de si e dela - ele os tinha feito, mas ela é que os tinha querido. Uns atrás dos outros, sem dar tempo a que entre uns e outros tivesse havido uma pausa para um cruzeiro de Verão, ou para irem juntos a Itália, por exemplo. Reportava-se, contudo, a um tempo longínquo e nítido como uma funesta estrela, e o que estava feito estava feito. No entanto, ele tinha-a avisado de que desse modo seriam envolvidos pela vida de crianças como carne picada num empadão grotesco. E de facto, a meninice de um havia começado quando a adolescência do outro já estava a despertar, e a adolescência do terceiro rodeava-se de crises e de filmes perigosos, quando dois dos outros percebiam, já com imenso ruído, que era mais difícil crescer do que morrer, e inclusive começavam a amar. E ela, a sua mulher, em vez de ficar a ver de longe vestida de noite, como afinal ele tinha suposto, havia ido de rastos atrás dos passos deles, para os proteger de um medo que só ela experimentava. Não queria dizer que não amasse a todos, mas ele a culpava daquele mundo, daqueles filhos, daqueles netos, daquela casa cheia de portas a bater, onde ela julgava que ele vivia, mas onde ele, a pouco e pouco, havia deixado só ficar a roupa e os livros.
"Pouco mais!"
Como manter-se, então, quando voltasse dali a dois dias, entre Anita Starlet e a existência das suas coisas naquela casa povoada como um serviço de buffet, à hora das refeições? De repente, o Engenheiro tinha receio de que alguma coisa ignara levasse Anita Palma até ao barulho estranho que se produzia no piso onde viviam, e um pedaço dele se encontrava aprisionado. Nunca o tinha dito a ninguém, nem a si mesmo, mas havia chegado a hora de se esclarecer. Era verdade, a sua mulher mantinha-o aprisionado com armas minúsculas e indeléveis que uma pessoa como a Starlet nunca poderia imaginar E não se tratava duma questão de época, tratava-se duma questão de talento.
Podia-se modificar alguém no seu talento? Claro que nunca o diria à Starlet, mas a Lurdinhas havia tido cultura em línguas e desenho, e no entanto, tinha renunciado à prática de qualquer profissão, para superintender sobre a sua indumentária, as suas meias, as suas trusses, os vincos das suas calças, o seu Gibbs e olhar pelo seu pequeno almoço, como um génio de organização analfabeta. Essa constelação de gestos que não eram dela mas de milénios pesando nos seus dedos, ela os tinha depois multiplicado à medida que a casa ia enchendo. O seu talento inscrevia-se na herança sem lhe acrescentar um arrepio. E por isso, naturalmente, sem que ninguém, nem muito menos ele lho pedisse, tinha-se coroado rainha e dona imprescindível desse reino de comidas e de trajos, domínio balizado pelos móveis da casa e o caminho dos abastecimentos, de forma perigosa. Só agora, porém, ele experimentava a evidência de que não tinha sido uma faculdade de doação mas de domínio. "Perigoso, muito perigoso o domínio- da Lurdinhas!" - Como uma contadora de objectos, nessa labuta empregava os seus dedos, os seus números, todas as suas faculdades físicas e mentais. Talvez exagerasse, mas supunha que sua mulher não saberia já contar para além do número de botões e a única geometria que conhecia deveria ser a ordem simétrica das mangas penduradas! Os fatos arrumados por ela ficavam tão erectos que adquiriam a parecença de braços de soldado. Também as chávenas ela as alinhava com noção de perspectiva. Ultimamente, em torno dele, todo esse cuidado se tinha agudizado. Retirava-lhe o vinho com a perícia dum criado. Cheirava-lhe a urina com olho de enfermeiro. Lia-lhe os espirros com devoção de mãe. Conhecia-lhe a altura exacta da almofada com o rigor dum ortopedista. Cosia-lhe as varetas dos guarda-chuvas com a liberalidade do amola-tesouras. E oferecia-lhe agendas com a eficácia duma empresa. Era rainha dessas pequenas coisas com uma tenacidade de formiga. Sob esse estado diligente, o Engenheiro suspeitava agora, pela primeira vez, ali n'A Casa do Leborão, haver uma perversão escondida. E contudo não se enxergava, não se via. O seu rosto permanecia doce e era a chave trivial do seu segredo, e o seu estado de vítima vencida pela natureza, pelo útero, pelo temperamento indomável de alguns filhos, pela família toda, antecedente e consequente, duas gerações entre as quais ela abria os braços em cruz para sustentar os embates, e beber o fel da esponja, tudo isso lhe tinha acarretado um poder excessivo que se estendia sobre todos, principalmente sobre ele. Agora já nem sabia por que motivo lhe tinha sido fiel durante tantos, tantos anos, menos no escuro. O Engenheiro Geraldes rendia-se à evidência que a penumbra daqueles quartos lhe trazia e confessava de repente - Tinha medo!
Sim, apertando nos braços a rapariga, de boca tão vermelha quanto a antiga Rosina, receava obstáculos indefinidos e previa situações difíceis de ultrapassar. A Lurdinhas não era uma pessoa com a agilidade da mulher de Fausto Maia que havia proposto a coabitação de todos, como as pessoas civilizadas faziam. A dele - a Starlet teria de contar com isso - poderia vir até a escrever-lhe uma carta muito terna, muito doce, pedindo que nunca desistisse, que o tomasse por inteiro, oferecendo para tanto a maior compreensão e até mesmo o carro para transporte de objectos. Mas Anita Palma deveria estar prevenida, pois a sua mulher rapidamente passaria de vítima primorosa a dona, com a prestidigitação dum mágico. Isto é, previa que sua mulher escrevesse duas páginas. Numa ela diria como estava desistindo de tudo e de todos, especialmente dele, e na outra, ela demonstraria apenas como ele, o Engenheiro, dependeria dela. E a Starlet que escolhesse.
"Mas não era verdade - Ele não dependia de ninguém!"
Contudo, sua mulher numa hora dessas iria demonstrar que dependia, sim. Que dependia nas gripes, nas febres, nas perturbações do fígado que o corroíam sem motivo. Esses males do corpo ela os iria querer para ela, e era preciso evitar que alguma vez Anita Palma viesse a saber dessa pretensão. De facto - agora via claro como se um filme cru passasse na parede daquele quarto escurecido - não era em vão que ela esperava pelos seus achaques, os desejava e rezava por eles como garantia. Prevenia-se com remédios e limão. Aguardava pelas noites frias e pelas viagens de longo curso de grandes variações de temperatura, com a perícia dum carrasco. Esperava por ele, sabia as horas, telefonava para os aeroportos e aguardava com ansiedade atrás dos vidros pelos primeiros espirros que ele desse. O seu dia de glória havia acontecido um ano antes, quando lhe dissera que existia um problema com uma glândula. Os olhos dela tinham ficado com a opacidade baça de quem não disfarça a alegria. Estendido, durante uma semana, sem querer revelar o seu estado a ninguém nem mesmo a ela, só agora sabia como a mulher tinha feito versos com essa palavra esdrúxula de forma indecorosa. O dreno havia sido para ela um imenso objecto de lascívia. Anita, porém, não podia saber de nada. "Nada, absolutamente nada!" -- Mas o surpreendente é que só agora, estendido na cama acolchoada, pudesse compreender pensamentos que nunca tinha formulado, ou se tinha, a metade lúcida do seu cérebro os havia omitido de si mesmo. Sim, sim, agora tudo era mais fácil porque revelador. Apetecia-lhe acordar Anita Palma e dizer-lhe de súbito - "Afasta-me leva-me, tem força, agarra-me, muda-me contigo para um bairro oposto da cidade, meu amor! Mas cautela".
Disse o Engenheiro para si, no quarto de cores suaves d'A Casa do Leborão. De repente, a certeza de que a paixão por Anita poderia não se mitigar nunca, quanto mais em cinco dias, trazia-lhe para aquele local a visão cruel da realidade, porque precisava avaliar o seu estado de defesa. O Engenheiro havia-se recostado, com os óculos postos para avaliar melhor. Era preciso ter cuidado! Imenso cuidado, porque Anita Palma ainda poderia vir a receber uma outra carta saída da perplexidade do pacifismo voluntário da mulher. Poderia receber uma missiva perfumada em que lhe anunciasse que a sua última vontade era de se ir matar na casa da Quinta da Torrinha. Mas nesse caso, a sua despedida iria ser ondulada como uma ode às vinhas. Nela invocaria indistintamente o sol brilhante da Linha, a soleira da porta do andar, ou o carro para a compra dos víveres tão querido como gente. De todos esses seres e objectos ela se despediria com organização. Adeus parque, adeus plátanos, adeus escadas, adeus janelas onde mandei colocar vidraça dupla por tão poucochinho tempo! Adeus, pai, adeus mãe, adeus filhos, adeus marido, adeus peixes do aquário, adeus gatinho persa tão azul! Adeus! - Escreveria ela, se acaso de viva voz lho não dissesse, debruçada sobre o telefone. Se assim acontecesse, Anita Palma não poderia comover-se com uma sílaba que fosse. "Minha querida! Não acredite - É uma farsa! " - Dir-lhe-ia. Mas o Engenheiro parou.
Imaginar a conduta de alguém poderia tornar-se um acto imparável, e sem querer, tinha a ideia de que o remate da conversa terminaria com a Lurdinhas de cigarro na mão, ateando primeiro fumo e depois fogo, ao estofo da bergère. O seu cabelo vermelho ultimamente havia adquirido os reflexos ferruginosos do feno, e o fumo evolava-se dele em espiral, ganhando altura, como se nela lavrasse sempre um pequenino incêndio.
Sim, tinha de ter cautela. O Engenheiro encostou-se à cabeceira da cama, com o robe pelos ombros, admirado com o rosto da mulher que pela primeira vez não via de perfil. Era estranho que só agora e naquelas circunstâncias a enxergasse daquele modo completo. Suspeitava que a tapeçaria lebreira que pendia ao fundo sobre a cama sóbria tivesse a ver com tanta clarividência. Alguma coisa daqueles galgos abocanhando a lebre referiam ò seu temperamento, mas não via como, nem era capaz de relacionar as partes. Seu cérebro direito misturava ideias como a penumbra as cores. Faria bem trazer para o interior secreto daqueles quartos comunicantes uma realidade tão hostil? Não seria um exagero em relação à sugestão invocada pelo plano?
"Mas havia ali um tipo de erro a evitar..."
Pensando bem, ao longo da sua vida, nunca as -mulheres em quem tinha procurado por antecipação a rapariga do Toque-de-Classe, haviam sabido da existência umas das outras. Seus leitos sempre tinham sido margens invisíveis entre as quais cuidadosamente se deitava. Por isso mesmo, excluíra desses encontros a paixão. A variedade chegava-lhe desde que fosse exercida em segurança. Procurava pessoas amarradas a medos e respeitos ainda mais fortes do que os seus. O rumor dum sentimento de verdade tinha-o associado ele a uma luta insuperável, e quando suspeitava de emoção, falava de dever. Sempre havia resultado bem, e quando se tinha entregue ao Palacete dos Ruivos com o ardor de coisa única, havia-se sentido salvo duma armadilha donde escapara ileso. Agora, porém, que tinha uma paixão e um plano, não podia deixar que a matéria ultrapassada se aproximasse de Anita Starlet. Não podia sobretudo transmitir-lhe nenhuma inquietação. Sem lhe dizer nada, iria pôr em venda a quinta de Colares. Era um homem prático. A mulher ficaria com a casa da Torrinha. E ele, em vez de vir disfarçar-se de caçador, só quando o tempo da sua vida perturbada o permitisse começaria a procurar uma vivenda, onde houvesse uma salinha e um salão. Com escada. A coquine passaria a vida toda a subir e a descer, com seu robe comprido, ondulado, e seus braços abertos como num cinemascope, datado do tempo em que a qualidade da água ainda não estava em perigo. Muitas vezes ouvi-la-ia assim, de cima, saindo da sua boca vermelha, como dum disco de setenta e oito rotações. Criaria um sistema de luzes que apagassem à medida que a Starlet subisse, subisse até ao patamar e depois, abriria a porta do quarto eterno e atrás dela, e o Engenheiro Geraldes entraria.
"Querida coquine?"
Disse ele, movendo-lhe os cabelos com um gesto que era dela - "Acorde, meu amor! Tenho um plano!"
Lembrava-se perfeitamente. Encontrava-se no Palacete dos Ruivos quando alguém se tinha aproximado dele com uma folha estendida que dizia urgente, e no meio da folha estava um nome de pessoa. Ele havia olhado sem entender, pois o nome era nem mais nem menos que o de Ana Palma, e ninguém neste mundo sabia da ligação silenciosa e unilateral que ele mantinha com a figura da Starlet, desde a tarde de Setembro. Só depois se tinha apercebido que ela se encontrava sentada, a esperar por ele, aos pés da escada.
Tinha-a feito subir. Não se lembrava de alguma vez ter acontecido uma surpresa assim. Como era possível que uma pessoa, com quem praticamente não tinha trocado uma palavra, viesse daquele modo ao seu encontro? O Engenheiro havia sentido a mão doce do acaso afagar-lhe a cabeça e o ouvido. Ali estava ela. Nunca a tinha visto daquele modo. Encontrava-se em fato de ginástica, e na claridade fria do meio-dia, a sua figura aproximava-se duma desportista. Estava ofegante. Tinha acabado de correr num estádio entre atletas para publicitar sapatos. O seu casaco de sintético igualava-a duma forma tão brutal a toda a gente que não parecia a rapariga que entoava Lieder no Toque-de-Classe. A sua vida deveria ser dispersa como a dum boletineiro. Ele esperou que ela se queixasse. Pois o que vinha ela ali fazer com a respiração alterada se não era para se queixar ou pedir alguma coisa? O que a magoava? O que lhe doía? - Nada, absolutamente nada. Anita Palma tinha vindo para nada. Tinha passado ali em fato de ginástica e tinha entrado. Não sabia como era o Palacete nem porque se chamava assim. Não se sentava, movia-se. Apesar da indumentária desconexa, parecia uma onda de desordem fosforescente que tinha entrado. Ele havia deixado o cadeirão de coiro e brochas e tinha-a levado junto das janelas. Os plátanos da praceta não haviam guardado uma única folha para amostra.
"Que triste!" - Disse ela. "Gosto das folhas sempre verdes. E o senhor?"
"Não acho" - Havia ele dito.
Tinha-a levado pelos corredores oitocentistas que por mais que se fizesse sempre cheiravam a bafio e a rato, mas Anita Palma gostava dos azulejos representando flora. Tinha passado por eles o seu dedo branco. Lembrava-lhe paredes que vira em Viena de Áustria. E ao fundo do corredor tinha tido frio. O casaco sintético esbandalhado só a cobria até à cintura como se fosse um moço. O Engenheiro havia imaginado que sobre os ombros dela ficaria bem um casaco espesso que a cobrisse de alto a baixo como uma imperatriz. Aquele fato de manutenção era uma indumentária de passagem que não se coadunava com a sua voz. Não sabia porque a amava tanto e imaginava que não poderia deixar de ser apenas uma espécie de fugaz fulgor, pois de outro modo, o ser humano não aguentaria a existência. Ela então havia reentrado no gabinete onde se encontrava a cadeira de brochas do Engenheiro e tinha pedido - "Engenheiro, leve-me para uma cidade que fique muito longe. O senhor conhece Nápoles, por exemplo? Sinto-me tão depressiva!"
O coração dele havia começado a bater descompensadamente. Uma batida aqui, uma batida ali, como se avariado.
Era difícil responder. Aliás, o Engenheiro Geraldes era um homem cercado, e não podia partir para longe sem deixar marcas - Quando? Onde? Como? Ouvindo-a, a sua cabeça estoirava de prazer, mas não podia, não. Anita Starlet, contudo, parecia ter a certeza extraordinária de que ele a levaria. Tudo o que ela queria era que ele aparecesse no Toque-de-Classe para conversarem, e depois a levasse para um sítio longe onde ninguém os conhecesse. Insistia e voltava a insistir com o ímpeto de quem não mede consequências. Tinha-a mandado acompanhar à porta de confuso que se encontrava. A sua mão havia agarrado um tinteiro que enfeitava a secretária. Ela não sabia que ele lhe conhecia a vida, e essa ignorância estimulava-o como se um vento de fantasia lhe entrasse pela alma e o levasse. Mas a rapariga afinal era uma aventureira. Não devia ceder à tentação. Como uma pessoa disciplinada havia afastado com gravidade todo o pensamento perigoso sobre o convite de Ana Starlet. Parecia-lhe que alguma coisa lhe era dada de barato. A clandestinidade afigurava-se-lhe desde há muitos anos um lago untuoso onde se nadava contra os princípios da verdade. Não podia ser, por isso tinha telefonado a sua mulher nessa tarde com especial carinho - "Lurdinhas? Apetece-me lulas para o jantar!" A noite tinha-se fechado, fazendo ondular as árvores despidas do jardim - "Que triste! Gosto das árvores sempre verdes!" - Era assim que a Starlet tinha dito?
Entretanto a luz da tarde espalhava-se sobre os dossiers do seu metódico trabalho. As estantes luziam sob as lâminas dos vidros, separadas em quatro colunas correspondentes a outras tantas ordens, identificadas por áreas que ele mesmo havia definido - De um lado os processos relativos à Água - com suas divisões por Mares, Lagos, Rios, Embocaduras - Depois a Terra, as Cidades, os Animais e a Vegetação, e num quadro ao lado, como se tipificasse as qualidades do bicho que corrompiam os vários domínios, encontravam-se enumeradas, uma a uma, e por ordem alfabética, as diversas espécies de atentados. Fogos, venenos, derrames, sucata... O Engenheiro Geraldes tinha passado um olhar lúbrico sobre a materialidade do seu desempenho. Sentia-se honrado. Era como se tivesse conseguido durante aqueles poucos anos de dedicação, miniaturizar o segredo da sobrevivência da vida física do seu país graças à sua própria ordem, e ainda naquela mesma manhã, antes da entrada impetuosa da Starlet, ele tinha salvo a água cristalina dum rio. Alguém desejava abrir uma fábrica de curtumes junto dum afluente azul, e havia sido uma manhã difícil - Ora nesse instante, o Engenheiro deu um pequeno salto. Tinha reparado que um dos interlocutores, na sequência do indeferimento irreversível, tinha deixado uma pasta junto ao sofá de coiro.
Então havia pegado na pasta do inimigo, folheando-a com displicência, e havia encontrado dentro apontamentos soltos que nada tinham a ver com a ordinária fábrica. Abria e vasculhava aquela pasta contra os seus princípios, mas mesmo assim abria, era como se o enjoasse a ganância contra os rios e o seu rasto material devesse ser devassado. E vasculhava também porque a ele agora, sem saber porquê, não lhe apetecia lulas. O azeite em que teriam sido fritas atacava-lhe antecipadamente as vísceras. Nem desejava voltar para casa. Fazia um esforço sério sobre a parte inconveniente do seu cérebro. Mas entre os papéis para os quais olhava como lixo, havia um bilhete de alguém para alguém com uma sentença decisiva - "Vai lá. Olha que o Óscar disse que o único modo que temos para nos libertarmos de uma tentação é cedermos a ela. Mas o Óscar que o disse não foi o nosso tio, foi o Wilde!" O Engenheiro tinha ficado a olhar para as sanefas vermelhas de veludo muito altas que ondulavam com o vento cru que ia entrando pelas frinchas do outro século, e sem compreender como, sentia que o acaso lhe tecia uma espécie de conjura embora, de repente, aquela pasta parecesse possuir um valor insuperável. Havia copiado o texto manuscrito para as suas notas e fazendo tempo, tinha deixado que fosse tarde, tão tarde, que ao subir a sua casa só tomaria chá sem cafeína e leite. A tentação era tão forte que o empurrava com a mão e lhe dava ideias ousadas havia muitos anos ausentes da sua vida. Pedia o impossível - Uma cidade longínqua onde ninguém os conhecesse como a Anita queria ou então, um local secreto, escuro e denso como um sonho onde fosse, por um dia pelo menos, matar a tentação. O Engenheiro tinha escrito sobre a pasta do inimigo, com letra ponteaguda - Processo a rever. Alguma chance. Contudo, agora que havia passado dois dias n'A Casa do Leborão, não podia deixar de rir do desconhecimento que tinha sobre si mesmo e a sua própria vida.
Mas seria que tudo quanto havia sucedido durante aquele dia era verdade, e o que acabava de decidir viria a concretizar-se se o gerente não soubesse? E tendo esse homem que não conhecia desempenhado um papel tão decisivo na ligação entre ambos, não merecia em absoluto que se entregassem de olhos fechados a todas as sugestões daquele casa onde a raiz do seu afecto se havia esclarecido? - Sim. De novo o Engenheiro tinha posto a casaca de banda acetinada e Anita tinha mudado para um vestido cor-de-pombo. O Engenheiro levava-a tão junto de si através dos corredores que um ao outro se impediam de andar.
"Vê? Vê?" - Dizia ele sem perceber onde punha os pés.
Aliás, ao entrarem de novo no pequeno recinto, que lhes cabia no antigo pavilhão de caça, ambos se aperceberam de que a lareira não estava acesa e se não fosse a chama das velas a mover-se sobre os castiçais de água, a claridade seria exageradamente escassa. A meio do recinto, uma espécie de tablado redondo indicava uma alteração que lhes poderia vir a retirar intimidade. Mas para quem está entretido com a sua própria alteração, a mudança do que o rodeia não se vê. "Vê?" - Perguntava ele, apercebendo-se vagamente de que a escuridão da sala significava uma festa idêntica ao alvoroço que lhes ia no íntimo. Os criados, evitando por certo o estrado, passavam roçando a protecção que os escondia. Não importava. Importava apenas que a figura mediana do gerente estava próximo e o Engenheiro Geraldes tinha apertado as mãos de Anita Starlet entre as suas, colocando-as alto, à boca da janela. Esfregava-as, massajava-as. Tendo tirado os óculos e curvado o rosto sobre elas, cobria-as de beijos molhados para que ele visse. Tinha pressa que ele compreendesse o que havia acontecido entre ele e a sua dona. E o homem, de quem injustamente havia pensado mal, tinha compreendido. Fazia escuro, mas mesmo assim percebia-se que havia mudado de fato embora não de corte, e conservava os botões do assertoado fechados como de manhã. Aproximou-se.
"Gerente?" - Perguntou o Engenheiro, sentindo-o quase visível. Aproximava-se mais e ainda mais. Esperava com certeza uma confidência, mas como fazê-la, senão mostrando as mãos completamente enlaçadas? De resto, pretendia ser directo e seco.
"Já me parece outra A Casa do Leborão. Precisa de mim?"
"Sim, preciso muito do senhor!"
"Pois diga então..."
O responsável pela pousada rodeava-se de cautela e as primeiras palavras tinham sido imperceptíveis.
"É simples. Como agora pode avaliar, precisamos de total liberdade de acção".
"E como se traduziria na prática a minha ajuda?"
O gerente, cuja voz tinha deixado de ser ondulada e havia ultrapassado o ritmo de tradução das línguas francas, tinha retomado a afabilidade que caracterizara pela manhã a sua última fala junto do Engenheiro.
"Fazendo que nos deixem em paz! Que o formigueiro pardo passe por outra estrada. A comarca está cheia de gatunagem, indigentes, traficantes que medram dia a dia.
Outros que caçam sem licença de porte de arma, outros que abatem os bichos fora da época. E nós, honestos, respeitadores da lei, somos os únicos castigados com a visita da formiga parda! Que deixem de chafurdar com' as mãos sebentas nos nossos papéis, nos nossos nomes limpos, na nossa escrita, nas nossas contas, e mesmo o' nosso pinhal onde não há nada além de ervas! O que pode haver num pinhal além de pinheiros, pinhas e arbustos que de vez em quando têm de ser cavados? Nada! Mas a formiga parda adora passear nas nossas veredas e farejar as nossas vidas. Chega a interromper as nossas festas! A entrar pelos quartos dos nossos hóspedes e associados! A pedir-lhes os papéis e a virar-lhes as roupas e os colchões! É uma indecente humilhação. É preciso pôr-lhes cobro! "
Deveria encontrar-se completamente debruçado. A sua voz soava muito perto e o seu discurso era cada vez mais intencional.
"Cobro! É preciso pôr-lhes cobro, meu amigo!"
"E então?"
"Que não nos vigiem, que não nos macem, que não nos impeçam de receber quem queremos, quando queremos. Se apenas proporcionamos descanso e naturalidade, e temos a individualidade como meta, porque nos perseguem como se fôssemos um lugar de perversão? Porque nos confundem? Confundem-nos a ponto de terem afugentado as pessoas mais distintas, as que procuravam este lugar como quem procura o silêncio dum templo livre... Porque nós não queremos liberdade para nós mesmos, mas para proteger quem nos procura... Há crime nisso? Então porque nos persegue o formigueiro pardo, cor de cinza, com suas perguntas indecentes?"
"Compreendo!" - Tinha respondido o Engenheiro. "É pouco o que afinal me pede... "
"E no entanto, seria tanto para nós... Tudo o que o senhor aqui vê poderia ser como já foi. Os pratos retomariam a sua qualidade, as normas voltariam a ser outras, e as queixas deixariam de ter sentido. Assim, por vezes, há queixas que não deixam de ser oportunas, como sabe..." - O Gerente havia colocado as duas mãos medianas sobre o parapeito do privado - "Senhor...?"
"Sim".
"Sei que fará alguma coisa pel'A Casa do Leborão. Aliás, gabo-lhe a energia, a determinação, o bom gosto de viver..."
Mas o Engenheiro precisava colocar-se alto, onde era o seu lugar, e embora se sentisse comovido, comparando o momento que vivia com a humilhação da madrugada, teria de responder com a secura que era exigida a uma pessoa da sua posição. Não podia, contudo, deixar de ser reconhecido para com aquele homem inteligente, manifestamente em apuros.
"Há palavras certas, em momentos decisivos, para os quais não existe retribuição à altura, mesmo que passe muito tempo!"
"Tudo fazemos pela felicidade alheia!"
"E há quem tudo faça para o retribuir".
"Eu sabia..." - Tinha respondido o Gerente, tão perto que parecia morder o pano. Via-se-lhe os lábios moverem-se e o tecido unir-se, depois soltar-se. Mas não se chegava a determinar que tipo de fisionomia possuía aquele homem de estatura mediana. "Eu pensei logo assim que pela primeira vez observei as suas mãos..." - Disse ainda, muito baixo, aproximando-se cada vez mais do miado do chinês, enquanto o rumor da sala crescia como uma espécie de quermesse. E só depois, chamando para junto do janelo vários criados duma só vez, entre eles o chefe agigantado, tinha começado a afastar-se.
"Sim, queremos jantar! E que jantar, meu bem! Não é assim?"
"Este!" - Tinha ela indicado com o dedo.
"Caça, verdadeira caça!" - Tinha ele dito. "E quanto a vinhos?"
"Um Colares bem dormido! " - Disse ele para o escanção.
O Engenheiro Geraldes deveria ter os lábios com tinta de tanto ter beijado a boca da rapariga, pois agora reparava que as mãos dela tinham marcas nas palmas e nos pulsos. Entretanto tinha decidido definitivamente que ia fazer alguma coisa de importante em favor daquela casa. Porque era bom pagar-se o bem com o bem, o amor com o amor e os favores com as oportunidades. Mas por vezes, um simples incentivo poderia ser tão determinante que a pessoa que o recebesse nunca encontrasse favor suficiente para dar em troca. Em relação ao gerente, o Engenheiro tudo faria, porque além do mais, casas discretas como aquela tinham todo o direito de existir. Anita Starlet podia confirmar. Ali ninguém espreitava ninguém, ninguém maltratava ninguém. Muito pelo contrário, o clube permitia que as pessoas se esclarecessem e voltassem para os seus desempenhos com a certeza do que eram e do que queriam. Mas isso só era possível se aquela estrutura se mantivesse resguardada e contida. O que tinha a formiga cinzenta de passear suas ancas de lateiro pelo território do pinhal onde ele e Anita haviam, por exemplo, perdido e achado a boina e o bornal? O Engenheiro sentiu vontade de ali mesmo pegar no telefone, discar um número e admoestar o formiga parda de Duas-Pias. Mas não, nunca o faria. Só depois, quando regressasse e não directamente. Consultaria o Mourato que por certo lhe diria que intercedesse de viés ou de lado, mas nunca face a face, voz a voz. Aquela ideia de discar o número era uma fantasia sem sentido, como outras que lhe passavam pela cabeça, diante de Anita Starlet, cada vez mais dócil, cada vez mais querida. Ela própria não compreendia por que razão ele queria sair dali, quando o restaurante acabava por ser festivo e ela se sentia protegida de um modo agradável e incomum.
"Não fale, meu amor!" - Tinha ele respondido no escuro onde as chamas das velas muito tensas pareciam enormes línguas. "Para quê falar, se nos entendemos?"
"Parece que vai haver uma farra..."
O Engenheiro Geraldes agora tinha um plano em aberto que se avolumava, e dele fazia parte o regresso de ambos no mesmo carro. A sua cabeça prática já tinha gizado os passos que seria necessário dar. Dispensaria o táxi que havia marcado com a devida antecedência a partir de Duas-Pias, e ele mesmo levaria Anita Palma sentada a seu lado, através das estradas, até à porta do Fausto Maia, com toda a naturalidade. Se acontecesse que alguém estivesse à porta e os visse, seria igual. Anita também iria ser corajosa. Subiria a escada, pegaria nos seus haveres e explicando o que quisesse, desceria como tinha entrado. Ele estaria com o carro encostado na berma, colocado na direcção da Linha. Alojá-la-ia entretanto muito perto da Praceta dos Ruivos. De tal modo esses primeiros passos se lhe afiguravam importantes, que havia deixado de reparar nos grandes braços do chefe, agitando-se junto dos panos do privado. Havia um rumor de festa que enchia a sala. Perto, muito perto mesmo, o Engenheiro jurava que alguém tinha uma voz que ele reconhecia.
"Está ouvindo, meu bem?" - Perguntou ela, querendo espreitar através do adamascado.
Mas o Engenheiro não se interessava pelo que se fosse passar ali. Aliás, a movimentação que sentia sobre o estrado do qual se via uma parte iluminada, não lhe dizia respeito nem lhe era agradável que sobreviesse, precisamente naquela noite. Imaginou uma sessão de variedades e rudes gorgeios de pessoas sem treino nem educação que olhassem pelo canto do olho na direcção das mesas protegidas, e achou que se tratava duma quebra de sigilo. Se bem que em relação a ambos não se importasse. Tinha resolvido que tornaria pública a sua ligação com Anita Starlet dentro de dois ou três dias. Para tanto, também ele sairia de casa e sobre esse ponto já tinha decidido que não daria explicações. Mas para que ficasse bem claro, ele não sairia de casa como um Quixote montado numa pileca. Primeiro faria valer os seus direitos. A coragem é de quem a pratica e ele afinal tinha descoberto que no mundo real em que se vivia e lutava• dia a dia, existia a pessoa do seu sonho. O que lhe tinha acontecido era demasiado sério e por isso não se importava nem com o que comia nem com o que se passava. Entretanto, uma voz de homem de algum lugar do pavilhão dizia, sem inibição - "Amigos, se não nos vemos, porque não nos divertimos?" O Engenheiro media os acontecimentos passados e futuros como devia ser, desejando que Anita Palma se imobilizasse, não comesse - "Querida, ouça-me ... "
Mas tinha-se tornado difícil falar, porque uma barulhenta tuna havia começado a repercutir cordas num qualquer lugar da sala, e saltitante como era ameaçava aproximar-se. O escanção, que havia trazido um branco e um tinto, ambos de Colares, para essa noite, tinha falado na prática usual de apagar as velas e correr os panos nas noites de serão, ficando todos resguardados. Ele mesmo, com sua silhueta sóbria, se tinha oferecido e de facto ouvia-se, noutras partes da sala o rodado dos rodízios, mas o Engenheiro não permitia. Queria falar e queria que Anita Starlet ouvisse com atenção o que tinha para lhe dizer. Já que não podia evitar aquela fretenir de cega-rega, ao menos que os deixassem quietos, protegidos nos seus lugares. Até porque a bandolineira orquestrada deveria ser tão falsa quanto o mapa rústico, e não deveria corresponder a nenhuma tradição da terra. Ou se correspondia
- na sua juventude tinham sido populares as tunas - o impulso que movia os executantes não poderia ser outro além do vil dinheiro. "Anita, minha querida..." - Tinha ele dito, percorrendo-a com os olhos. O Engenheiro não se importava com o ruído das cordas que crescia. Prático e objectivo, ele encontrava-se antes preocupado com o nome dos advogados que ia escolher. Passava-os em revista entre os amigos. Havia os que eram mais seus amigos do que de sua mulher, e outros, pelo contrário, inclinar-se-iam para a proteger a ela. Preferia então dois desconhecidos. Ora sendo desconhecidos, teriam de ser causídicos de importância, e ao passar por aí a sua cabeça via outras dificuldades que era preciso prevenir, como fosse um bom médico na área neurológica, por exemplo. A sua mulher por certo seria atacada por uma depressão reactiva. Talvez não fosse mais às compras e talvez deixasse de pintar o cabelo de vermelho. Conhecia pessoas a quem iria expor a situação, mas as coisas tinham de correr com naturalidade, ainda que devesse começar a tomar nota de todas as ideias numa coluna que criaria à direita do plano. A essa coluna ele chamaria Ajuda para Lurdinhas.
"Porque não abrimos o reposteiro, meu bem?" - Tinha perguntado Anita Starlet.
"Acha importante, meu amor?"
"Acho que pode ser diferente".
"Está bem" - Tinha condescendido.
Mas não deixava de ser uma maçada a invasão do barulho estrídulo duma tuna, no momento em que tomava decisões tão importantes. Ele mesmo tinha soprado as velas e corrido os panos, e a sala escura tinha aparecido. Não se distinguiam os limites, mas era amplo o espaço, e sobre o estrado, de facto, a vulgaridade do número que a coquine queria ver metia dó. "Porque perde o seu olhar com isso?" - Ele não perdia, antes olhava para ela, a rapariga que conhecia para cima de mil anos. De algum modo, porém, o espectáculo caseiro demasiado próximo incomodava. Era um pequeno quadro falado com três pessoas de sexo indistinto vestidas de orelha e cauda como lebres, e caras mascaradas com olhos de pessoa. A tuna tinha desaparecido. Do diálogo feito de vozes grasnadas entendia-se muito pouco, mas a avaliar por um pequeno foco luminoso que subia pela parede como uma lua, compreendia-se a traquinice da parábola, enquanto não chegava uma outra figura que entretanto aparecia. Um latagão enorme, vestido de leporídeo, saltou no ar e caiu sobre as tábuas com um estrondo. Tinha deixado cair as longas orelhas sobre a máscara que lhe ocultava a face.
"Gostava de ficar aqui para sempre!" - Disse Anita Starlet, distraída com aquele número para crianças.
"Espere!" - Respondeu ele. "E você vai voltar para o Toque-de-Classe?"
Mas rapidamente o número tinha deixado de ser inocente. Agachadas, de braços-patas junto ao chão, as três figuras indistintas tinham o traseiro levantado como as lebres no sono, e a figura aparentemente macha, movendo o focinho e fingindo descobrir os três animais escondidos, de cauda em riste como couves, havia iniciado uma pequena fuga sobre o tablado, que por sua vez, como um pequeno carrocel, rodava. A perseguição tinha um efeito cómico, pois o lebrão corria, levantava-se, caía e produzia trejeitos vários com os braços, suas únicas partes nuas. E a pouco e pouco, como o Engenheiro esperava, o macho tinha iniciado uns passos pélvicos que roçavam o indecoro e a indecência, perseguindo as figuras andróginas que soltavam pequenos guinchos desiguais. O quadro criava hilaridade e a sala, às escuras, descomprimida, ria. Os criados tinham deixado de passar.
"Não volte para o Toque-de-Classe, meu amor! Eu conheço alguém que sabe dum professor de canto que vai tomar conta de si!"
Em relação aos filhos a questão era diferente. Era-lhe caro o amor deles e receava que não o entendessem, mas aguardaria para um dia, no futuro das suas vidas, a compreensão que por certo agora não lhes poderiam dar. Não queria cenas. Haveria de convidá-los para um jantar que eles nunca mais esquecessem e falaria pouco. Talvez até nem se referisse à situação real. Pois como iria poder explicar o íntimo do seu íntimo, e a sua descoberta preciosa e inefável? Era a parte mais dolorosa do seu plano. Criaria uma coluna ao lado que haveria de se chamar Como não ferir meus Filhos. Mas se acaso se opusessem, não vacilaria. Anita Starlet era a razão da sua vida, embora só o tivesse compreendido à medida que havia avançado na estadia n'A Casa do Leborão - O que tinha de diferente aquela casa?
Agora o lebrão era a única figura iluminada no pequeno espaço circular, e sob a luz que lhe ia no encalce, havia transformado o aparato. De qualquer sítio da indumentária cor de cinza, haviam-se-lhe soltado balões vermelhos que, inchados, criavam sugestões orgânicas obscenas, e aparelhado desse modo, perseguia as três figuras que continuavam correndo, rasteiras junto à tábua. Durante alguns segundos, a sugestão de cópula foi espectacular e descarada. Sobejava dela uma onda de lascívia rústica que devia incomodar pessoas. Involuntariamente, o Engenheiro lembrou-se das mãos do criado cavador. Seria ele a outra face daquela outra rusticidade? Na sala, porém, sob o escuro dos panos entreabertos, a assistência submersa era numerosa e aplaudia. O inquilino do Palacete dos Ruivos era tomado pelo receio de que uma melancolia grave invadisse o rosto de Anita Starlet.
"Não, meu bem, isto é uma passagem. O que importa é que por dentro nos sintamos bem!" E tinha ainda acrescentado - "Um dia, porém, vai mudar. Quando o gerente dispuser, como antigamente, de outros meios".
Mas em breve o grupo tinha feito meia revolução sobre o estrado, tinha rastejado, e em cena havia aparecido um caçador com cartuchos e caçadeiras, de pernas nuas. Então tinha-se estabelecido um número terminal. O caçador atirava sobre as lebres que fingiam morrer e se erguiam a rir, e por fim, no meio duma agitação que deveria ser mais espontânea que estudada, o lebrão vencia o caçador saltando-lhe para cima das costas com seus balões vermelhos - Era um cómico furioso. O próprio Engenheiro Geraldes havia achado interessante.
Aliás, no Palacete dos Ruivos não iria comunicar a ninguém. Nunca misturaria a sua vida privada com a profissional para obter o respeito das pessoas. Dissessem o que dissessem e constasse o que constasse, estava na disposição de manter silêncio absoluto. Via-se a si mesmo sentado, com seus óculos de aro de oiro, na cadeira de brochas, respeitoso, não permitindo a ninguém a mais pequena interferência. Agora lembrava-se de que haveria de pedir uma outra extensão particular. Lembrava-se sobretudo porque a tuna tinha-se instalado sobre o estrado e fazia a sua ronda. Era estranho como as cordas juntas embora desarmonizadas produziam uma sensação de movimento como se prolongassem de algum modo os sinos e os metais da abertura da manhã. Estaria a sua cabeça tão leve que bastasse o som da tuna para o levar dali? Ou era porque mantinha Anita Starlet na sua frente e ela o empurrava para um percurso de regresso? Os tocadores passavam de lado, sacudindo-se, e as suas mãos agitavam-se como se movidos por uma tremura que não parasse. Não era belo aquele cortejo, e no entanto, feria uma ponta da carne onde o pensamento não estava. Lembrar-se-ia desse momento imperfeito - A certa altura, um banjo repicou sozinho como se fosse uma voz pequenininha desafiando o ardor. O homem de quem só se viam as costas esgrimia sobre as cordas uma força de pedreiro. Quando tinha terminado, o pavilhão de caça que dois dias antes estava deserto, encheu-se de aplausos como se tudo fosse a sério.
Mas verdadeiramente nada tinha a ver com aquele rumor primitivo, e por isso a sua imaginação criava um quadro de silêncio em torno duma mesa grande onde ele e ela, com aqueles mesmos trajos, jantassem com amigos.
Aí o reconhecimento da sua ligação era feito com uma decência grave e tensa diante duma multidão de olhares. Não se ia importar de ser reconhecido. Seria no Castelo, na Cozinha Velha? Decisões dessas ficavam para depois. Aliás, agora os executantes da tuna tinham as caras na sombra e as mãos na luz. Alguns afinavam os instrumentos. A mesma voz que havia anunciado a diversão caseira, tinha então interrompido com alegria - "Pois bem, senhoras e senhores! Se nos divertimos porque não nos vemos? Quem tem coragem, quem?" E a voz tinha começado a lamentar que ninguém tivesse. Porque um dia, sim, um dia. haveria de haver alguém que iria ter a coragem de assumir ali mesmo o encontro feito n'A Casa do Leborão. Quando viria o dia?
O Engenheiro, porém, levado pelo impulso de arrumar a sua vida, pensava na introdução do discurso. Agora corrigia-se. Em vez da ideia de pureza contra a de purificação que poderia não resultar tão clara, porque não falar antes do conceito de finitude da água? Porque não dizer que na globalidade da atmosfera, dos rios e dos mares e das fontes, ela era a mesma, sempre fora a mesma, e que de futuro só seria a mesma se se deixasse ser? E como falar desse facto duma forma directa e pessoal que atingisse todos, sobretudo os que estivessem distantes da mesa plissada da conferência, porque a esses sobretudo é que interessava? Como? O Engenheiro ia pensando. Era preciso fazer compreender deforma definitiva como a mesma água que vira nascer o primeiro organismo unicelular, servira de tina aos animais pré-históricos e empurrara o cestinho de Moisés, fora a mesma que os aliados tinham nos cantis no dia D e era ainda a mesma que cada um dos conferencistas tinha sobre a mesa para beber! Era isso, senhoras e senhores! E talvez cada um deles, olhando para a sua garrafa, experimentasse um pequeno frémito. Conhecia bem - Em geral esse frémito costumava ser acompanhado de silêncio.
Também no recinto se produzia uma pausa, e as faculdades do Engenheiro sobrexcitadas encontravam-se perigosamente reunidas, constituindo o impulso que nuns faz apenas o bem-estar, mas noutros o denodo e a coragem, quando o notou. Tinha-se enchido de coragem. A vida e até mesmo a introdução ao speech estava arrumada. Assim, quando a voz repetiu a mesma pergunta - "Quando virá o dia em que alguém tem a coragem?" - Ele tinha olhado para a rapariga do Toque-de-Classe - "Porque não nós, minha querida?"
A voz passava perto e repetia - "Quando? Quando?" Quase roçava os panos do privado. "Quando virá o dia, meus amigos?" Era um repto demasiado forte. À medida que o silêncio se prolongava, o Engenheiro mais julgava tratar-se dum desafio que alguém de propósito lhe propunha, e queria que Ana Palma aparecesse. Se ela fosse, se ela quisesse - e ela tinha um vestido cor-de-pombo que brilharia no estrado - ele mesmo acenderia as velas para dizer - "Sou eu quem está aqui!" Não se importava. E o Engenheiro começou à procura dum isqueiro. Mas não valia a pena procurar porque Anita Palma, rebelde, tinha fugido para o corredor comum.
O DESEJO
Já o tinha dito várias vezes, mas não se importava de repetir - Os dois corredores cruzavam-se na perpendicular junto do guarda-vento, e para o Engenheiro era fácil percorrê-los, mas Anita Palma tinha passado junto do relógio das meias-horas como uma seta e havia penetrado num acesso desconhecido. Para quem amava nela a figura tranquila de determinados momentos, não era fácil compreender como de repente, um pedido feito com uma intenção de desassombro podia criar uma reacção tão intempestiva. "Espere, querida, espere! Não vê que vai por um corredor errado?" - Ainda tinha chegado a dizer. Mas ela parecia não se importar. Seria que desejava de novo encontrar uma porta para sair para os pinheiros? Fora, o escuro era da cor do breu. O som da tuna, tocando no pavilhão com a vivacidade própria dos campos, metia-se por dentro do corredor, mas à medida que ambos se distanciavam, transformava-se em alguma coisa de plangente. Sobretudo, quando ela se virou, revolvendo o cabelo todo da direita para a esquerda como era seu hábito, e disse muito alto sem se importar que alguém por perto pudesse estar a ouvir - "Seu grande louco!" E depois, como de novo o corredor desembocava num outro, o som longínquo tinha-se apagado.
Mas ele era um homem com serenidade, e não tinha sido em vão que desde sempre havia exercitado o autodomínio e a circunspecção sobre os outros. Por isso andava apressado atrás dela, tentando não lhe provocar uma corrida desenfreada que pudesse chamar a atenção dos hóspedes que já descansassem àquela hora. Tratava-se dum percurso feito completamente contra o estipulado e não se admirava que dum momento para o outro, alguém aparecesse a travar-lhe o caminho. A coquine queria dar a volta À Casa do Leborão. "Seu louco!" - Tinha chamado ainda, contra tudo o que previra que alguma vez lhe chamasse. O Engenheiro Geraldes, porém, não se sentia atingido, preocupado que se encontrava em determinar a zona da casa por onde iam passando. Parecia-lhe infinita a casa. Anita Palma parou para o acusar e os braços dela agitavam-se como nunca tinha imaginado. Obrigava-o a manter-se à distância e falava dele como se fosse outro. A própria linguagem tinha perdido a compostura - "Louco varrido! Leva três semanas para encontrar um sítio onde ninguém saiba quem somos e passados três dias, quer expor-se a ele e a mim, diante de gente que nem vemos nem sabemos quem são! Não tenho motivos para dizer que você não está bem?"
Tinha razão, havia sido um impulso absurdo que já lamentava, mas a verdade é que não se encontravam ali fechados apenas desde há três dias, e sim o equivalente a seis anos. Claro que ela não podia perceber, nem ele conseguiria explicar naquelas circunstâncias. Eram seis anos completos, com seus invernos e verões, equinócios e solestícios, dias de Pentecostes e missas de Natal. Talvez nem devesse jamais explicar porquê a Anita Palma. Ela tinha-se encostado à parede de um daqueles corredores e como se de facto achasse que ele se comportava como uma pessoa sem juízo, havia troçado - "Ah! Seis anos!" Mas era difícil segurar a Starlet, e o Engenheiro tinha sido obrigado a persegui-la.
Aliás, a bandolineira que de novo se ouvira tinha voltado a desaparecer, perdidos que andavam por recintos recentes que ligavam as instalações antigas, e a má iluminação perturbava a perseguição que de repente era obrigado a fazer no encalce de Anita Palma. Parecia admirável, contudo, como apesar do alvoroço criado pela rapariga que falava alto e corria, completamente fora de si, não aparecesse ninguém admoestando-os. A decoração, executada afinal por toda a parte na base de pequenas cenas de caça e armas velhas, uniformizava os corredores e não permitia descobrir onde se encontravam. Ela mesma tinha retirado os sapatos, e descalça, parecia procurar as portas dos quartos onde se encontravam alojados. Ou a casa era muito mais extensa do que julgava, ou se tratava dum labirinto. O som da tuna de novo chegava, mal abrandavam os passos. Mas a certa altura, o Engenheiro tinha reparado que em sentido oposto ao da manhã, estavam dando sobre a porta cujo exterior era protegido pela pérgula. Junto da porta podia ler-se - VEREDAS. O Engenheiro tinha-se aproximado de Anita Palma e havia-a segurado. Rodou a chave com violência.
"Como foi injusta!" - Disse ele quando finalmente se viram no interior dos quartos em desalinho. "Bem sei que era uma imprudência, mas afinal não seria um acto de coragem assumirmos a nossa ligação?" - Perguntou. "E mesmo que não estivesse de acordo, acha que um homem como eu merecia os insultos que acabou de fazer pelo meio dessa casa? Também aí você não sabia quem nos escutava".
"Ai um acto de coragem!" - Tinha ela respondido. "Ai um acto! Oh que acto!" - A Starlet chorava e ria. "A mim ninguém me ama! O que sabe você de mim?"
Ele desembaraçava-se da casaca, atirava-a para qualquer lugar e olhava benevolente para ela, pois na verdade se nunca tinha falado no seu próprio passado era pela simples razão de que não apreciava esse tipo de lavagem de roupa onde sempre existe sua mancha renitente, mas sobre ela sabia tudo, ainda que Anita Palma não acreditasse.
"O senhor de mim não sabe nada quanto mais tudo. A verdade é que ninguém me ama!" - Dizia de novo, ficando vermelha e desfazendo-se em lágrimas. "Ninguém, ninguém! E foi por isso que eu lhe pedi que me trouxesse, e fiquei muito feliz por vir ter aqui... Porque ninguém me ama!" - Os seus braços abriam-se como se diante de uma multidão imensa. "Nesta casa uma pessoa percebe bem como é viver sem que ninguém nos ame!"
Mas o Engenheiro tinha sido assaltado de novo pelas dúvidas da manhã - "Este não é um bom sítio, meu amor. Devíamo-nos ir embora. Alguma coisa nos está desgastando e faltam ainda dois dias para terminar. Corremos aqui um perigo. Se não corrêssemos, nunca você teria dito o que me disse no meio dos corredores. Pela simples razão de que você não pensa aquilo que disse de mim. Agora mesmo devíamos pegar nas malas e abalar! Há um vício nesta casa, Anita, de que o gerente provavelmente não tem culpa, mas há. Estamos a ficar perturbados com o silêncio e o escuro. Voltei a ter a impressão de que esta casa é postiça, de que esta casa mente..." - O Engenheiro misturava o falso e o real com o suposto, duma forma indecorosa para uma pessoa como ele. Doía-lhe a cabeça de ver Anita Starlet, a rapariga que havia encontrado no alto do corrimão de Fausto Maia, rebentar em lágrimas sobre a sua cama sóbria. Ela não havia procurado sequer reencontrar a sua, a do outro lado. Fazia tremer, pelo contrário, as madeiras direitas sobre as quais caía a tapeçaria com as lebres, porque chorava - "Ninguém, ninguém mais no mundo me ama..."
Era uma injustiça.
O Engenheiro Geraldes encostou-a ao ombro, e deixou que a Starlet expressasse a mágoa que tinha naquele instante, e ele concretamente não sabia bem qual fosse. Mas devia ser grande, pois todo o corpo da Anita Palma se sacudia e era como se quisesse expulsar um ser que tivesse dentro do seu corpo, ou como se um objecto grande demais a possuísse, embora ele acolhesse em paz a corrida abundante das lágrimas da rapariga. Os seus beijos apanhando-as molhadas, junto dos olhos, faziam sons que lhe lembravam chuva. Aliás, também no seu sonho, com frequência, a rapariga ondulante não era apenas uma figura tranquila embora não pudesse dizer com clareza naquele momento se chorava ou não. Tinha a certeza, contudo, de que por vezes ela se voltava do fundo da sua ondulação maravilhosa como se o seu corpo estreitinho na cintura, como no tempo dos espartilhos, por ali se quebrasse, e atirando-se a ele, arranhava-o num ponto do coração. Debatia-se a rapariga do seu sonho, socava-o, porque ela queria alguma coisa vasta, vasta, muito mais vasta do que ele. Só que ele tomava-a nos braços e apertando-a, mostrava-lhe que tudo aquilo que ela procurava nas montanhas escuras para onde se encaminhava no sonho, ele tinha - Por isso o Engenheiro tirou os óculos, desceu a boca sobre a de Anita Palma e fechou-a com a sua.
Era preciso sair quanto antes daquele recinto fechado onde tinham vindo fazer uma prova e nada mais. O Moura havia-o enganado por certo, não deliberada
mente, mas porque não pernoitava ali havia vários anos. Precisava conduzir Anita Starlet à sua cama, a fofa, a branca, junto da qual ela tinha seus lenços e objectos. A tapeçaria que lhe pendia atrás da cabeça era absolutamente inofensiva e ele queria o bom e o bem para ela. Perdoava-lhe aquela raiva destemida, cuja razão próxima não entendia, mas pela qual, aliás, esperava. Conhecia o suficiente do género humano para saber que todo o homem que se habitua a ser amado por muitos em simultâneo, sê-lo por um número reduzido ou mesmo não o ser, como sucede a qualquer pessoa, parece constituir um ultraje insuportável. Não era, porém, a primeira vez que lhe passava pela cabeça procurar um professor para Anita Starlet. Ela, aliás, não se chamaria mais assim. Não usaria mais aquele nome de fancaria. Ele iria procurar um outro nome para ela, um nome sério, compatível com uma nova dignidade. Renunciava então à casinha das relvas e à cozinha onde pacatamente ambos tomassem sumo de fruta, rodeados de calma e ela fosse só para ele e para os próximos dele, como havia chegado a imaginar. Era isso, aquela rapariga precisava ser amada por imensa gente, e ele levá-la-ia até onde ela desejasse. Pois sempre haveria momentos como o presente, em que lhe ofereceria a inocência da criança e o involuntarismo da imagem, como a rapariga ondulante do seu sonho de quem nunca falaria nem na morte. O homem público tinha-a conduzido de olhos inchados até à cama clara - "Amor, você vai ter um outro nome - Ana Geraldes! Como lhe soa?" - Parou.
Anita Palma tinha começado a repetir esse nome novo. Soava-lhe bem, de facto. Era sonoro e amplo e no seu conjunto alguma coisa lembrava palmas. Mas mesmo assim chorava. Queria chorar.
Aliás, o Engenheiro não se importava que chorasse. Também a sua mãe tinha chorado, e a sua avó e as suas tias, e a própria Rosina o tinha feito, quando no dia seguinte o pai lhe havia colocado a roupa numa cesta e a mandara ir servir para um local que não se sabia onde ficava. A última vez que a vira com um balde de limpeza ela chorava. E quando ela se havia despedido, sentada sobre um animal de quatro patas que a iria transportar de Colares até ao sítio para nem mais se verem, era para ele e não para o Fausto que ela tinha feito adeus. Um breve aceno choroso. Sua mãe no retrato estava sempre silenciosa à excepção dos momentos em que chamava por ele, e lhe dizia, choramingando - "Sê sempre bom com a Lurdinhas! Cuidado com as derivas, desnaturado..." Tinha sido tão injusta a sua mãe, tão desconhecedora da natureza humana quanto de si própria e mesmo da sua imagem! E aquela fora a última vez que lhe falara. A morena delicada que deixara à porta do Palace nunca tinha chorado. Parecia-lhe ao longe uma figura demasiado estóica para ser mulher. Mas no dia em que se separara dela, a sua noiva, para compensá-lo, tinha chorado de alegria. Havia decidido ficar com a Lurdinhas nessa hora. A rapariga de Amsterdão sempre tinha rido, coleante como uma espanhola superada, mas a cara encarnada daquele Robin Hood sentado em frente do fogareiro, guardador de prostitutas, haveria de a fazer pagar por toda a vida a sua submissão. Via-a sempre com a mesma idade, na otomana vermelha do serralho, chorando. Lembrava-se agora, enquanto encostava Anita Starlet e lhe trazia o copo e as pílulas para dormir. De facto, de repente tinha a impressão de que pela altura em que havia aceite o convite para dirigir o Palacete dos Ruivos, a figura maravilhosa dos seus sonhos por vezes chorava. Tinha a certeza. Porque razão ainda não se tinha lembrado dessa época, meu Deus? Claro que chorava.
A prova é que por esse tempo havia até desaparecido como imagem e tinha ficado apenas como voz e ora ria ora chorava. Não falava, não lhe dizia as palavras deliciosas que tanto gostava de ouvir dentro do seu ouvido.
O facto de não a vislumbrar, nem entender o que lhe dizia daquele modo excessivo, tinha-o perturbado no trabalho difícil de se adaptar a uma nova realidade. Havia procurado ajuda junto dum homem, sem bata branca, que ao fim do dia o tinha feito sentar num sofá-cama a que chamava intencionalmente de divã. Não, não tinha explicado que se tratava duma figura irreal, tinha mentido. E o cavalheiro, ao fim do dia, havia começado a rir na sua cara. "Mas é normal que seja assim. Você nunca se debruçou sobre o sentido de hystéro?" Lembrava-se dele, um tipo bem parecido com um dente sobreposto - "Não queira mudar tudo, Engenheiro. Quando as mulheres perderem a histeria, o mundo acaba como o conhecemos. Deixa de haver este fru-fru que nos anima. Deixa de haver a agitação das suas saias. Deixe correr a lágrima. Deixe andar..." Era um prático, esse homem médico bem vestido. Interpretava os sonhos inquietantes com a desdramatização dum cómico. Agora o Engenheiro tinha-se curvado para Anita Starlet, reconciliado com tudo o que ela lhe havia dito.
"Meu amor" - Disse ele. "Pode dormir descansada que você vai ser amada, infinitamente amada se é isso que procura. Preferia doutro modo, mas compreendo o seu vício. Eu tenho um plano!"
E de novo o Engenheiro percebia que ali dentro d'A Casa do Leborão, sem que nada de visível se movesse, a vida esclarecia-se como através dum cristal que girasse contra a luz. Ele próprio, completamente volúvel, estava mudando de opinião sobre o gerente e o serviço, com a velocidade das meias horas que batiam no relógio. Aliás, não era só o som do relógio batendo as horas que se ouvia. Eram também os banjos e as violas agora com sua espécie de seguidilha doce. O Engenheiro Geraldes tinha a sensação de que. as figuras armadas de instrumentos de corda teriam deixado o recinto fechado do pavilhão para deambularem pelos corredores escuros. E não se enganara. Dava a impressão de que depois de terem passado perto - possivelmente pela zona do guarda-vento - ter-se-iam afastado, para de novo regressarem por algum corredor mais distante. Por vezes era como se tivessem saído para a rua e andassem na humidade dos pinheiros. Mas não era verdade. O clube é que deveria ser maior do que constava no mapa que lhe tinham fornecido, e onde não estava impresso nada que se parecesse com a quadratura dos corredores de que lhe tinha falado o criado frágil logo na primeira noite, o que ele mesmo acabava de confirmar, ao seguir atrás da Starlet, injustamente descontrolada. Era seguro que aquela casa mentia. Mesmo a prática de silêncio e elogio ao repouso absoluto, de que lhe tinha falado o chefe-de-mesa grande, não correspondia à verdade. Se correspondesse, por que razão um grupo de pessoas percorria os corredores do clube com harmonias dirigidas aos primeiros sentidos dos hóspedes, entretanto resguardados não só de toda a música como de toda a comunicação? A ele próprio lhe haviam feito vibrar uma emoção de denodo escondido de que afinal Anita o desviara a horas. Em breve o grupo passaria pela porta.
"É terrível essa chinfrineira!" - Disse Anita Starlet. "Esses tambores não terminam mais?"
Havia gestos ridículos que o Engenheiro nunca tinha feito na sua vida, não só porque os não concebia, mas também porque nunca tinha precisado. Havia gestos que se os fizesse, mesmo que se encontrasse só, coraria, de tal modo iriam contra a sua concepção de pessoa autodeterminada e segura do que queria. Assim, era impossível para ele imaginar que algum dia passasse a língua pela orelha duma rapariga para que ela não ouvisse uma tuna bandolejando à sua porta. E agora, tendo afastado o cabelo para o lado, passava as mãos, os lábios e a língua no pavilhão da sua orelha. Queria preservar completamente, com o ruído da pele contra a pele, a ausência de ruído que ela desejava. Tinha decidido protegê-la dos sons maus por meio da sua lingua. O Engenheiro Geraldes, por sua vez, não voltaria para casa nem para ir buscar as roupas. Iria com Anita Starlet para um hotel donde haveria de telefonar a uma pessoa, que por sua vez haveria de conhecer alguém que a ajudasse a restabelecer o pleno da sua voz. Era por isso que não queria que a coquine ouvisse as guitarradas espúrias. E ele não era ridículo porque apesar de tudo, ali ninguém o espreitava, ninguém sabia. Nem ele mesmo a si se via. E ela?
Tinha os olhos grandes negros, um deles mais fechado do que o outro, como nas horas de sedução, mas havia-se entregue às almofadas sem resistência alguma. Tal como no sonho com a rapariga ondulante, havia de facto um momento, em que sob o cuspo dele, ela dormia. E não era um sono do qual, sozinha, ela acordasse. Era um sono tão pesado que ele e só ele ficava com o poder de a acordar na estação seguinte. "Meu Deus! Quando o Fausto souber de quem é agora e para sempre Anita Palma, a rapariga que por engano ele tinha alojado no segundo andar, e obrigava a fazer de anfitriã no Toque-de-Classe!" - Era preciso sair da sombra daquela pousada quanto antes, se possível nas primeiras horas da manhã seguinte.
Sim, na manhã seguinte, assim que os jipes partissem, ele iria pela última vez até ao privado para se despedir do gerente, pois era um facto que lhe devia alguma coisa, mas não tencionava voltar mais. Experimentava naquele clube uma espécie de temor que o incomodava e lhe retirava o sossego. No entanto, desde que se havia entregue à casa, mesmo sem plano, a sua vida tinha-se esclarecido. Não duvidava que havia vivido ali, sem saber como, o equivalente a muitos, muitos anos. E desejava assegurar a sua intervenção junto da formiga parda. Não voltaria com a palavra atrás. No dia seguinte, antes de saírem para Duas-Pias, contava ir até ao pavilhão. Mas agora tinha voltado a vestir a casaca e posto os óculos porque pretendia descobrir alguma coisa que lhe escapava, e uma pessoa como ele não podia abalar daquele local sem tentar pelo menos dar uma volta, mais que não fosse, para calcular a verdadeira extensão do clube. Estava determinado.
"Amanhã, logo pela manhã, arrumamos as nossas coisas, tomamos o pequeno-almoço e partimos".
"Amanhã" - Tinha ela dito, desembaraçando a orelha da sua língua. "Amanhã ainda é o quarto dia. Estamos aqui bem. Não percebo para onde me leva".
"Para dentro de mim mesmo!"
"E o que tem você dentro de si mesmo? Um tabernáculo?"
O Engenheiro tinha ficado apreensivo, mas agora, ao contrário de antes de Setembro, o Engenheiro possuía uma paciência ilimitada. E não a queria ofender jamais.
"E você, meu amor, o que tem você dentro de si?"
"Nada, absolutamente nada" - Voltava de novo com a história de nada como no dia em que o tinha procurado. Onde ela dizia nada era preciso saber ler tudo. "Nada, nada, não tenho nada..." - Dizia a Starlet sentada. A coquine mentia, ela tinha um desejo imenso de ter tudo e ser do mundo inteiro.
"É preciso ter calma" - Tinha ele repetido. Encontravam-se sobre a cama arrebicada de esponjas e almofadas. "Você tem tudo. Ah! Se soubesse como maravilhosamente você para mim não só tem tudo, como é tudo! Se soubesse... "
"Sim..." - Tinha ela respondido por sua vez, entregando-lhe de novo o pavilhão da orelha.
Era tal e qual como no sonho. Fazia-se insubmissa e ameaçadora, como se levasse um chicote alçado numa das mãos calçada com uma luva, e bota alta, para depois rodar sobre os tacões e descobrir a outra, a verdadeira face submissa da mulher - Pensava o Engenheiro. Bons tempos iam correndo sem se dar por isso. Só lamentava não compreender A Casa do Leborão.
"Não demoro nada!" - Disse ele.
Tinha então saído para o corredor, pé ante pé, receando a todo o instante encontrar um daqueles funcionários de venda, mas disposto a defender-se se algum aparecesse. Sentia-se até suficientemente ágil para surpreender um deles, retê-lo junto da porta e inquiri-lo. Aliás, desde que tinha conhecido Anita Palma que havia perdido quilos suficientes para se sentir leve, e durante as últimas três semanas, quando havia percebido que era provável um encontro particular com ela, tinha procurado uma sala de massagem e ginástica, e de facto não só resistira bem ao esforço anímico que aquela casa exigia, como se sentia musculado. Se não era impressão sua, até enxergava melhor, o que lhe permitia fazer face à exigência brutal da penumbra que para dizer a verdade, começava a ser excessiva e a cansar. Por isso caminhava devagar ao longo do corredor, talvez pela última vez, com os punhos cheios de vitalidade. Felizmente, agora sentia-se com a juventude dum mancebo e o vigor dum desportista, sem ter a ignorância do primeiro nem a falsa finalidade do segundo. Se visse um daqueles tipos a rondar, a mover-se junto às portas e a reconhecer as paredes pelos umbrais, encostá-lo-ia à parede, pelo menos para assustar. Não lhes tiraria o trapo com que tapavam os olhos, não - Mas aquele que conseguisse imobilizar seria obrigado a explicar-lhe o que se passava atrás daquela treva.
Porque entretanto a tuna havia-se dispersado, mas não por certo todos os hóspedes. Ora era os hóspedes que ele procurava e tinha a certeza absoluta de que em algum local os haveria de encontrar, já que não acreditava ser em vão que os quartos comunicavam uns com os outros por portas encobertas. Depois de ultrapassar a zona que supunha ser a das imediações da despensa e da cozinha, e ter vagueado à toa pela ala oposta à dos quartos onde Anita Palma tinha ficado, percebeu, por fim, que uma porta dava para uma zona exterior à casa. A avaliar pela luminescência, deveria tratar-se dum terraço coberto. Estava escuro mas aproximando-se mais tinha percebido que dentro encontrava-se gente, bastante gente mesmo.
"Cobardes! Vêm para aqui semana após semana, meses e anos, e não resolvem a situação das suas vidas! Por isso mesmo, mantenho a admiração que sempre tive por mim próprio! Grandes cobardes!" - Tinha pensado o Engenheiro completamente lúcido do seu valor não só como estudioso e cidadão, mas também como pessoa humana. "Cobardolas! Aposto que são banqueiros e homens de negócios que esgotam no jogo do dinheiro a coragem de ser gente. Gente com medo, gente envergonhada, não assumida. Pois eu vou ser livre!" - Pensava o Engenheiro, entrando no terraço concebido sem dúvida para as noites de luar.
De facto não se via nada. Apenas o resplendor dos aquecimentos espalhados fazia reverberar as mesas que deveriam ser de vidro como os copos. Também o brilho dos copos, espalhados pelas mãos, luzia. Adivinhavam-se vultos mas não se percebia se eram ou não harmoniosos. Ninguém servia porque os hóspedes deveriam estar tão habituados àquele espaço que sabiam onde se encontrava o bar e as garrafas - "Isto é uma loucura, porque não se vêem mas sem dúvida que alguns se conhecem. É um jogo, um estúpido jogo..." E como o acesso não era guardado por ninguém, tinha vagueado sem dificuldade entre pessoas sentadas. Do lado esquerdo, provinha a conversa mais audível. Seria possível entenderem-se? O Engenheiro pensou que dificilmente poderia ser integrado em qualquer um dos grupos. Aliás, não se percebia onde começava nem onde acabava cada mesa, e contudo, em torno delas, aquela gente murmurava e 'murmurava sem se ouvirem as palavras. Mas também não era natural que fingissem falar sem dizer nada.
Por certo que se encontravam tagarelando dois a dois e que o sussurro que se ouvia provinha da multiplicidade dos segredos. No entanto, havia vozes que riam. Sobretudo, pequenas gargalhadas de raparigas eram perceptíveis, depois as mesmas desapareciam e sumiam-se sob as vozes dos homens. O Engenheiro tinha certezas. Eles sabiam alguma coisa que não diziam em voz alta. O que sabiam eles, meu Deus, o que sabiam eles para assim se resguardarem? O homem público tinha sido assaltado por uma tentação enorme de conhecer o sentido daquelas conversas feitas rente às mesas. Seria que todos ali se entendiam uns com os outros e que só ele estava excluído? O receio que o gerente lhe incutira, nesse dia de madrugada, dentro do privado, voltava a aflorar-lhe o espírito. Ele não queria ser excluído de nenhum bem da vida, sobretudo, não queria ser privado de nenhum segredo do amor.
Aliás, se ninguém guardava a porta e ninguém era verdadeiramente visível, também ele mesmo poderia participar. Encheu-se de intrepidez. Tacteou com o pé. Havia vaga numa mesa. Sentou-se. Encostou-se sobre o cotovelo. Esperou. Era um entre muitos e se ninguém lhe perguntava nada, também ninguém o coibia. Afinal vinha surpreender a meio um diálogo cujo sentido lhe escapava. Lembrar-se-ia-se depois. A mesa era pequena mas em seu redor parecia haver duas filas e ele encontrava-se numa ponta. A conversa, porém, seguia como um jogo, mas não sabia ainda se se tratava de palavra-puxa-palavra ou ideia-puxa-ideia. Algumas eram frases feitas ou pelo menos tinha a impressão de já as ter ele mesmo dito ou ouvido alguma vez. Outras não. Uma voz tinha subido acima das outras - "Pois é, nunca se resolve tudo, nunca existe alguma coisa decidida para sempre..." Tinha dito essa voz de homem com vivacidade, em redor da mesa. Era um jogo, sim. Outro tinha rido. "O que você quer dizer é uma coisa muito diferente. O que você quer dizer é o que o outro diz - Que ainda não se descobriu um elixir tão potente quanto a noite na união dos pares..." A pessoa seguinte ou muito próxima tinha perguntado - "Pares, que pares?" Era de facto um jogo ideia-puxa-ideia. Aproximavam-se perigosamente do lugar do Engenheiro Geraldes. Agora tinha mudado de opinião e jurava que era um jogo palavra-puxa-palavra. De qualquer modo, o Engenheiro não desejava ficar de fora, e porque tudo lhe parecia desconexo - não podiam ser pessoas ligadas nem à ciência positiva nem à administração - tinha dito bastante baixo, receando ser excluído do jogo - "É por isso que a lua desapareceu..." Nesse instante, uma voz jovial parecera alvoroçar-se - "Está a tomar a razão pela consequência porque quer, mas a verdade é que quando a tonta aparece, o serviço desta casa ilumina-se. Tudo é mais amável". "Sim, sim" - Disse alguém que se confundia com a última voz. "As pessoas gostam da solidão mas não do escuro, ainda que o firmamento iluminado seja uma ilusão. É escuro como a sombra sobre a sombra. Agora a lua está escondida". E uma terceira voz que parecia de homem mas era de mulher, a avaliar pela cabeça volumosa, acrescentou - "Deveriam colocar vergas lá fora como num terraço tropical..." Outra mulher tinha-a interrompido - "Nesse caso, nos dias de lua-cheia, poderiam distribuir máscaras de Veneza..." Quando havia dito Veneza, a voz de mulher tinha-se erguido acima do sussurro em que tudo isso acontecia. "Com máscaras tudo ficava resolvido, podíamos ir por onde quiséssemos e estar com quem gostássemos! E pensar que já foi assim... Perdeu imensa qualidade, esta casa!" O Engenheiro julgou que de novo tinha chegado a sua vez - "Se colocassem pequenas lâmpadas junto às bermas das veredas, mesmo sem lua, uma pessoa podia passear de noite..." - E levado por um arrebatamento que nascia fora de qualquer parte da sua cabeça, acrescentou - "A verdade aparece a meio caminho entre o dia e a noite..." - Então, alguém tinha dado um salto perfeitamente audível. "Eh! Eh! Espere um pouco!" - Devia tratar-se de um homem extremamente jovem, e de repente o jogo não era mais nem palavra-puxa-palavra nem ideia-puxa-ideia.
Agora não parecia um jogo.
"Compincha! Eh!" - O Engenheiro tinha percebido que a pessoa muito jovem se aproximava, proveniente de outra mesa. "Vais então resolver a cena que se segue - Um estúpido que está sentado ali na outra mesa ama o seu cão. Como deve proceder?"
Em redor tinha-se feito uma pausa. A voz do jovem tinha a alegria que antecede ao banho e ao álcool.
"Depende de como ama o cão, poças!" - Respondeu outra voz, do outro lado, cujo vulto também se aproximava. Continuava a existir o mesmo escuro mas na sua mão o vidro, colocado alto, reverberava.
"Ora, ora, ama-o! Ama-o! Ouviste? Será preciso outra definição?"
"Amo-o acima de tudo!" - Disse uma terceira voz de homem, muito fina, com timbre de entre homem e mulher.
"Se o amas acima de tudo, deves então exterminá-lo!" - Disse o do vidro. Todas as vozes tinham começado a ganhar altura.
"Cretino!" - Disse o de timbre fino com uma coragem que não se adequava com a elocução. "Se se passa, o melhor da nossa vida para encontrar o objecto perfeito do amor, não me digas, cretino, que o devo exterminar!
O Tennessee espera-me sentado à porta do quarto e quando está em casa da minha querida mãe, levanta auscultador e virando-o com a pata atende o telefone. Quando ouve a minha voz do outro lado da linha, o meu Tennessee chora! O meu Tennessee late e chora! De tal modo gosta de mim que se recusa a comer refeição que não tenha sido feita pelas minhas mãos. Quando fica em casa da minha mãe, mando-lhe uma tigela lavada por mim para não jejuar durante os dias todos. Certa vez que me esqueci de deixar a gamela lavada por mim, foi necessário envolvê-la com uma meia suja pelos meus pés! Este é um afecto comovente. Como pode uma pessoa castigar com a morte uma criatura assim? Em nome de quê? De quem?" - A voz fina do rapaz tremia.
"Tem calma, garotão! Tu gostas é de ti! " - A voz de ambos tinha ganho a altura normal duma discussão de pub.
O quê, o quê? Sabes alguma coisa de sentimentos? Toda a gente prevenida conhece quantas vezes aqui entraste acompanhado e daqui saíste sozinho. Mas a mim e ao meu Tennessee não me apanhas tu, não!"
"Inculto!" - Respondeu aquele em cuja mão o brilho do copo se movia- "Estúpido inculto. O corpo é o cemitério da alma e tu não sabes!"
"Não sei? Escolástico mentiroso, ultrapassado encorneador de coisas velhas. Olha, olha... Se tivesses este corpo percebias bem como o corpo é o jasmim da alma. Cheira-me, cheira-me ! Tem inveja!" - O rapaz da voz entre homem e mulher deveria despir-se.
Uma peça de roupa tinha sido atirada sobre a mesa onde o Engenheiro se mantinha sentado entre outros, e era macia. Seria uma camisa? O corpo branco do amante do cão brilhava muito mais do que o vidro que o outro ia brandindo. Percebia-se que havia gente a rir. Porém, riam de novo muito baixo, e voltavam a falar tão em surdina que mal se ouvia mesmo o que os mais próximos diziam - "Tennessee! Se pouco se sabe sobre o homem e nada sobre a pessoa, o que se pode dizer então que se saiba sobre o cão?" E de novo o jogo fazia uma ronda em torno das mesas. "Sim, mas uma coisa é discorrer sobre a morte dum animal qualquer que seja, e outra é discorrer sobre o seu fim! São dois assuntos totalmente diferentes". Tinha chegado a vez do inquilino do Palacete dos Ruivos. "Passo" - Havia dito, perplexo. Só agora deduzia que se estava a falar daquele modo abstracto sobre um animal de pêlo vermelho que vira naquela manhã refulgir sob o sol entrando por entre as pernadas do pinus pinea, o cachorrão que tinha dado um único ladro. "Passo!" - Havia dito outra pessoa, parecia uma mulher. Um homem precipitou-se do lado esquerdo - "Não passo! Entenda-se uma vez por todas que entre uma mulher e um homem existe sempre uma mamadeira. Percebeu? Só homem com homem ou mulher com mulher se encontram por si mesmos, para mais nada". Nessa altura, um vulto forte tinha-se erguido de um lugar qualquer onde se encontrava, possivelmente perto, e havia dito abertamente para a sala escura ouvir. Falava muito alto como se tivesse tomado uma decisão definitiva - "Pois o meu homem ama mulheres. Há aí então uma mulher formosa para o meu homem? Há aí alguma?"
A princípio a pausa que se tinha criado era gelada, como se o pedido daquela mulher tivesse alterado tudo, mas depois alguém tinha começado a rir e a hilaridade havia-se propagado como uma onda, até se perceber que o próprio rapaz do Tennessee também ria desabaladamente, ainda nu.
Mas a conversa feita naquela escuridão não explicava nada e o jogo depois da alegria provocada pela pergunta da pessoa forte parecia ter-se deteriorado irremediavelmente. Os grupos tinham-se partido e reorganizado. E nem mesmo quando o estupor da tuna, reduzida a uns três instrumentos, harpejou à porta, alguma coisa mudou. Só o rapaz do cão continuava a discutir em dueto junto de um móvel que estaria a servir de aparador, ao fundo, e parecia ainda não ter recuperado a sua roupa. Agora duas raparigas por certo muito jovens dominavam a fala feita de exclamações. Percebia-se que nunca se tinham visto, nem sabiam mutuamente quem eram, mas aproveitavam o escuro para falarem de ídolos onde avultavam. nomes de negros célebres que desejavam escutar ao vivo. Um deles era negro mas tinha-se plastificado de branco. Combinavam entre si estenderem os braços e gritarem - "Uh! Uh!" Mas nada mais parecia ligá-las, a não ser esses cantores atléticos que viviam do outro lado do oceano. Certos homens, esses sim, deveriam ter alguma coisa em comum e haviam enveredado pela discussão banal dos interesses. Dividiam-se, como sempre, como desde o princípio do mundo, para falarem, homens e mulheres, juntos, dividiam-se. Queria dizer que nem mesmo ali alguma coisa se conseguia esclarecer? Não - Fazia escuro, mas ao contrário do que diziam os criados instruídos de propósito para dizer, nada se esclarecia. A situação daquela penumbra apenas acentuava o que à luz do dia, fora da mata, se passava entre os cidadãos comuns. Nada mais, absolutamente nada mais.
E todavia, quando se dispunha a sair, uma figura cheia havia-lhe posto a mão no ombro e colocado o rosto muito próximo - "Engenheiro!" Tinha-lhe dito a pessoa que o havia reconhecido. Tal como o Moura havia aconselhado, em caso semelhante, não iria responder. Manter-se-ia imóvel. O outro aproximou-se mais. Era uma figura atarracada.
"Reconheci-o, Engenheiro, mas tê-lo reconhecido é o mesmo que ter visto a sombra de um pato. Não reconheço ninguém pela pena..."
O homem que assim falava devia encontrar-se bem comido e bem bebido. Vagamente, parecia engolir ou arrotar. Pedia licença.
"Veio sozinho?"
Não, o Engenheiro Geraldes não responderia. Aliás, ao lado da pessoa cuja voz já alguma vez teria ouvido em qualquer parte, encontrava-se uma figura pequena com silhueta de criança. O homem tinha continuado - "Veio sozinho tomar o seu uísquezinho e fazer dois dedos de conversa, mas por certo que lá dentro tem alguém especial consigo. Podíamo-nos entender..." O homem público mantinha-se insensível. Fosse quem fosse aquela pessoa que ali estava no escuro abraçando pelo pescoço uma cabeça de criança, não responderia. Com pequenos gestos bruscos, a silhueta da pessoa criança puxava-o pela mão, no entanto o homem de ventre avantajado parecia não sentir.
"É a maldita da tuna! Nas noites desta malvada coisa fica-se assim, envenenado. Mas por acaso os nossos quartos não são próximos? Se vamos todos na mesma direcção, dispenso a figura daqueles tipos de olhos tapados que me enjoam... Fazem lembrar que um dia uma pessoa cai. Ai cai, cai... Acho que nos puseram mesmo lado a lado. Pois é, Engenheiro, eu conheci-o em cinquenta e nove, se não me engano..."
De facto lembrava-se da voz mas não reconhecia a pessoa nem desejava reconhecer, e por isso tinha-o afastado do caminho. Sem saber porquê, sentia vontade de socar aquela boca que não enxergava mas que estendia ali o seu epíteto com um à vontade tosco e uma familiaridade desagradável. Era como se a figura quase obesa o levasse a ele e a si para um lugar de fundos que a ambos engolia. Recusava-se, contudo, a ter qualquer sentimento que o pudesse conduzir a ver-se ao espelho através do homem que tombava.
"Toma-me por uma pessoa errada, cavalheiro! Vá andando, vá andando..." - Tinha dito, entre dentes, ameaçador, disposto a empregar naquela figura a energia que lhe sobejava e não sabia como utilizar.
"Ah! Desculpe, tomei-o de facto por outra pessoa... Desculpe então, se faz favor..." - Empurrado pelo próprio peso e puxado pela silhueta da pequena companheira, os dois tinham-se encostado um ao outro, e haviam começado a descrever um percurso inverso ao do Engenheiro Geraldes.
Repulsa, agora bem poderia dizer que sentia repulsa por aquela casa falsa onde se estava permanentemente entre a mentira e a verdade, a impostura e a pretensão. Não, ele não iria interceder junto da formiga pardacenta. Queria que A Casa do Leborão seguisse o caminho natural do seu descrédito até ficar em nada. Não se admirava se um dia aqueles bêbados, depois das indecentes posições das lebres sobre o palco e da tuna corriqueira, não pegassem fogo aos móveis. Teria de dizer ao Moura que a casa que ele tinha aconselhado não era mais a mesma, ainda que se compreendesse como havia sido antes da degradação - Pensava ao percorrer pela décima quinta vez os mesmos corredores. Não deixava de ser verdade que havia conseguido provar o que pretendia, mas num hotelzinho branco à beira duma praia onde ninguém o conhecesse não teria ocorrido exactamente igual? Ao regressar aos quartos intermitentes, o Engenheiro experimentava o desejo de ver ondas. Perto delas, cinzentas, brancas e imparáveis, aquele homem que havia encontrado no meio do escuro, por exemplo, não ousaria levar pelo pescoço o pequeno corpo da criança. Nunca! Como as coisas eram! - Depois do percurso até ao que julgava ser um pátio sobre a mata, voltava ao sentimento fortíssimo da madrugada. Queria partir.
Melhor fora ter viajado para longe como ainda havia projectado. Agora imaginava que se assim tivesse sido, estaria a chegar com Anita ao aeroporto, sério, partilhando os pesos e os carrinhos. Talvez tivessem vindo do outro hemisfério onde as pessoas se bronzeavam pelas praias, e tivessem trazido objectos vistosos comprados à sombra de coqueiros. Talvez ela chegasse a seu lado com um chapéu de palha das Antilhas. Eram sonhos. Mas estava ansioso por actos de coragem. A verdade é que ao regressar ao quarto, os seus pulsos ferviam de poder e a cabeça, fresca como nunca, tinha a lucidez a trabalhar ao lado da euforia como havia muito não se lembrava. Apesar de não entender nada sobre aquela casa nem sobre as pessoas que ali vinham, fazia-lhe bem descobrir tanto em tão pouco tempo sobre si. Aliás, era isso que lhe interessava.
Agora tinha um plano - Era assim.
Não iria sequer buscar qualquer objecto a casa do Fausto Maia porque não precisava de nada que tivesse pernoitado junto dele a não ser ela, Anita Starlet. Também não passaria na rua do Talante onde morava. Se se queimassem as casas não viveriam todos sem o recheio delas? Começariam de novo com as aves e para ser franco, a sua cabeça estava cheia de voos. Venderia, isso sim, a casa de Colares e compraria um pequeno apartamento com um mínimo de manutenção, desde que desse para que nele se abrisse o corpo branco e preto dum piano. Queria todos os dias treino. Tinha mais trinta e cinco anos do que ela e precisava dar-lhe tudo o que pudesse. Agora percebia que nunca havia sido generoso, mas apenas pela intransitividade da sua doação. Nunca ninguém o tinha merecido. Ninguém na totalidade tinha correspondido à pessoa dos seus sonhos - Concluía, pronunciando todas as sílabas mesmo as veladas, como um professor de línguas. E ao entrar de novo nas mesmas portas, apesar da imperfeição do clube, indo de encontro ao perfume dela, a paz como uma folha de papel que lentamente cai, havia baixado ao espírito.
"Coquine!" - Tinha ele dito, estendendo-se a seu lado, na cama acolchoada.
A BAGAGEM
"Lembrava-se?"
Sim, lembrava-se muito bem, como se tivesse acontecido um dia antes de ter resolvido falar do seu segredo - Ele havia dormido muitas horas, sem interrupção, sem sonho, sem qualquer lembrança verdadeira ou falsa. Era domingo. Tinham todo o tempo para acordar porque não havia compromisso. Aquele ainda era o quarto dia. Em breve estaria longe para tomar decisões definitivas e entretanto, o seu espírito descansava como as crianças depois do banho. "Coquine?" - Tinha perguntado, achando que havia dormido dez, vinte horas ou um dia inteiro. "Coquine!" - Anita Starlet, porém, ainda dormia mais do que ele. A sua vida onde a noite tinha um especial relevo obrigava-a a dormir de dia como as preguiçosas, e ele gostava de a ver dormir. Apesar do sono reparador, porém, o inquilino da Praceta dos Ruivos mantinha a decisão de deixar naquele mesmo dia o clube de caçadores e era preciso anunciar-lho.
"Querida Anita?" - O Engenheiro Geraldes iria explicar a Anita Starlet por que razão não poderiam continuar naquela casa. Tinha de se reportar ao encontro no terraço. Tinha de dizer que estavam rodeados de pessoas conhecidas cuja finalidade da sua estadia, naquele clube, não conseguia compreender. "Falavam baixo, coquine, para não falar!" Aliás, estava convencido que os hóspedes d'A Casa do Leborão traziam cães que ladravam mas não vinham nem para correr nem para ladrar. Encontravam-se ali para alguma coisa que ele não conseguia entender, e no entanto, na noite anterior tinha ouvido elogiar abundantemente algumas habilidades de animais. "Tenho receio, coquine! " - Estava convencido que as pessoas que saíam de jipe de madrugada não saíam de jipe de madrugada. Eram falsas partidas, depois do que na noite anterior ouvira. E acreditava sobretudo que se encontravam ali não porque se amassem mas por algum outro motivo que ele não entendia. Ou se se amavam, procuravam um limite cujo fim lhe era encoberto. Tornava-se necessário arrumar as roupas e partir. Era preciso dizer a Anita que na noite anterior tinha tido a ideia de que as pessoas vinham ali para ficar. Não sabia dizer porquê, nem como chegara a essa conclusão, mas era como se A Casa do Leborão, entre a finalidade exposta pelo Moura e a actual, tivesse criado uma frincha por onde entrava uma outra vida. Ele era um homem prático, uma pessoa da ciência construtiva, um lúcido. Ele queria a luminosidade das intenções. Ainda bem que na noite anterior ela, com sua maravilhosa intuição de rapariga, havia evitado que ambos se expusessem. Meu Deus, o que teria acontecido se ambos se mostrassem naquela casa onde se amontoava o equívoco e a imperfeição? Se se tivessem exibido diante daquele homem que levava pelo pescoço uma criança, por exemplo? Aquela não era a casa que o ex-sócio havia anunciado, ou então apenas se lhe parecia vagamente. "Coquine?" - O Engenheiro estendeu a mão e não encontrou a de Anita Palma.
"Coquine?" - Chamou de novo.
Não estava. Uma picada de alfinete tinha-lhe ferido o coração. "Onde está, querida coquine?" De facto, mais distante, a porta do quarto sóbrio, meio aberta, deixava entrever o corredor, e sobre a passadeira, Anita Starlet encontrava-se deitada como se ao sair tivesse tropeçado e caído no chão. A mão direita tinha os dedos cravados nas pernas da pequena mesa - "Coquine!"
Era inacreditável, completamente inacreditável. Para trazer Anita Starlet para dentro dos quartos comunicantes parecia ser necessário trazer a mesa onde se punha o tabuleiro, e àquela hora da tarde ainda ninguém tinha trazido tabuleiro algum. Seria por ser domingo? Por toda a gente se ter metido naquela farra escura? De qualquer forma, porque não largava Anita Starlet a insignificante mesa? Como é que uma pessoa se agarrava daquela forma a uma perna de móvel, e para quê? Sem pijama nem robe, o Engenheiro tinha ficado longo tempo a descobrir por que razão Anita Starlet, num domingo de manhã, estava agarrada por cinco dedos a um móvel. Tinha ficado longo, longo tempo a pensar sobre a causa da estúpida queda e também à procura do motivo pelo qual não havia ligado o aquecimento. Ele próprio sentia frio, imenso frio, e ia buscar o aparelho para junto de ambos, quando reparou no frasco. Não tinha nem tampa nem conteúdo. Então seu pé encostou-se à beira do abismo, e ele gritou - "Ah! Grande puttana!"
"Puttana falsa!"
"Gerente!" - Tinha gritado ainda.
"A coquine, sem eu saber porquê, matou-se!"
E havia ficado à espera de resposta. Teria de vir uma resposta. Aliás, sabia que A Casa do Leborão estava repleta de gente que dormia e não iria suceder que todos tivessem um sono de penedo. O Engenheiro Geraldes ainda se encontrava nu e tinha batido com os punhos na porta de ligação, escondida sob a lebreira. Bateu uma, duas, várias vezes, sem que ninguém respondesse, até que lhe doeu a mão. Não deveria estar ninguém no quarto contíguo ao sóbrio. Talvez no outro estivesse. Tinha-se aproximado da tapeçaria das flores peludas e batido com os dois punhos. Ouvia o som dos punhos repercutir-se pela madeira. Mas ninguém respondia, ninguém no corredor passava. Era tudo realidade.
Uma realidade clara como o dia aberto a pino sobre os pinheiros, e ele não sentia mais a picada de alfinete, fina e rápida. Agora experimentava a profunda revolta dos traídos.
Falsa! Tinha vindo atrás dele para preparar aquele trabalho! Quando o tinha procurado nos Ruivos já ela engendrava uma forma de lhe pregar uma partida! E durante aquele tempo todo, a viagem toda, a estadia inteira, não havia deixado cair um único indício que fosse. Afinal era uma cerebral premeditada, uma pessoa estranha, uma fria calculista. Se não se tivesse passado consigo mesmo não iria acreditar. Com que então o casaco, o perfume, o vestido esterlicado, a conversa sobre a tipa alemã de nome inarticulável e mais melancólica do que um bode solitário, o seu passeio, o seu sono, o seu contínuo sono, tudo fazia parte dum articulado plano. Ela sim, ela tinha vindo munida dum plano para se desembaraçar de si mesma e lhe fazer mal a ele. Fora paga, nem se sabia se pelo Fausto Maia, para vir aprontar-se naquela casa e o fazer sofrer. E agora ali estava ela.
"Um plano!" - Tinha pensado o Engenheiro.
O seu ânimo endurecia, imóvel, diante da escrivaninha rústica, onde luzia o prato com as armas e dentro do qual o gerente havia deixado a mensagem inclinada sob o lepidus tímidos de cujo alcance só tardiamente tinha suspeitado. Possivelmente tudo fora combinado entre ele e ela, incluindo aquela forma de se ir agarrar no corredor à perna duma mesa. Então o homem público de novo se tinha debruçado sobre a estrutura daquele ridículo móvel e havia-o separado definitivamente da mão de Anita Starlet. No momento em que o tinha conseguido, porém, havia-se aberto uma pequena frincha na sua revolta, e à medida que o Engenheiro se endireitava no meio dos quartos comunicantes, deitando a mesa para um canto qualquer, mais essa frincha se abria - E se tivesse sido um acidente?
"Sim, podia ter sido um acidente!"
Sobre as cadeiras de coxim, havia roupa espalhada, meias expostas, o bornal e as bolsas estavam colocados sobre o toucador numa desordem estúpida. Os sapatos encontravam-se caídos a um canto, e o casaco de mohair pendia da porta do armário. No quarto de banho havia boiões abertos e cosméticos entornados como costumava acontecer com a sua filha. Pois devia vasculhar esses objectos todos. Tinha a certeza de que haveria de ter provas de que fora um miserável acidente. Mergulhou as mãos nas roupas e nas malas, percorreu todos os cantos, debaixo da cama encoberta por matelassés até ao chão, nos fundos das gavetas dos móveis de cocotte, junto da banheira e mesmo no saco das meias e não encontrou nada. O próprio nécessaire estava vasado. Nenhum sobrescrito, nenhum papel, nenhuma carta. As próprias revistas tinham os cantos dobrados em páginas refulgentes de criaturas a rir em tons que superavam a realidade. Não surgia da parte alguma um recado, uma agenda. Não havia deixado nenhum, absolutamente nenhum indício de premeditação. Sacudiu o mohair. Sim, das algibeiras desse tinha caído um pequeno caderno de endereços pejado de números de telefone, alguns com indicativos que levariam a voz para países distantes. Muitos, imensos, de continentes diferentes, como se os tivesse copiado directamente duma lista de assinantes. Na sua rota havia cidades imprevisíveis. O caderno estava repleto desses números escritos em firma redonda de rapariga e a capa tinha desenhos juvenis. Também havia notas à margem que se reportavam a circunstâncias indecifráveis, tomadas sem dúvida sobre o joelho ou em pé. Mas mais nada, nenhuma palavra, nenhum sinal coerente. A frincha sobre a alma devagar abria-se. O Engenheiro Geraldes sentiu uma espécie de doçura cobri-lo de fora para dentro e atingir-lhe os braços. "Então fora assim - Enquanto ele dormia, ela havia sido vítima de acidente!"
Tinha ido ao telefone - "Chame o Gerente! Gerente? Preciso falar com o senhor!"
"Agora já?" - Tinha ele perguntado no tom inicial de miado de chinês.
"Agora mesmo! "
O corredor que percorria pela décima quinta ou vigésima vez estava tranquilo, e os tabuleiros devolvidos junto às portas revelavam que o mundo dos outros ia bem. Aliás, as janelas perto do relógio tinham sido completamente abertas e a claridade entrando, apesar de esverdeada, trazia menor melancolia. Deveria ser do calendário a subir na direcção da Primavera. Uma modorra lenta caía. Não devia estar ninguém no pavilhão além dos criados e do gerente.
"Pode-se falar?" - Perguntou o Engenheiro, entrando no privado.
"Claro que pode!"
Tinha ele dito, chinês e afável.
"É preciso ter coragem para o dizer... Aconteceu um percalço com a minha dona! Esta casa matou a minha dona! ".
O gerente fora apanhado desprevenido. "Não foi a casa, foi o senhor!"
"Posso mostrar os apontamentos dela. Foi um acidente motivado pelo espectáculo, pela tuna, pelo segredo desta casa. O senhor, por acaso, sabia que nos íamos casar?"
O superintendente d'A Casa do Leborão tinha colocado as duas mãos sobre o parapeito. O fato que lhe cobria o médio ventre era mais leve e mais claro - "Vamos ser realistas, até porque existem compromissos entre nós. O senhor sabe que a morte antecipada é a chamada dos que desistem. Mas porque desistem? Aí é que está o turning point da questão - Há os suicidas que partem porque acham que a terra os não merece e são os orgulhosos, e há os que partem porque não conseguem vencer a terra e são os submissos. Em que lugar a colocaria a ela?"
"Entre os segundos, senhor gerente!"
"Que pena! Entre os primeiros encontram-se os que sonham com a utopia. É mais alegre, mais humano, o caso dos segundos. Sete anos de casa, e aprende-se de tudo. Mas ainda não se sabe se terá sido um acidente..."
"Eu sei, eu deduzo que tenha sido soporífero a mais. Ontem ela não dormia por causa daquela impressionante tuna".
"A tuna! Não me diga de novo, por favor, que foi a tuna!" - Mas depois, mudando de tom, o gerente fez-se ameaçador. "Cautela com o que diz. O senhor mente, e sabe muito bem que mente! Porque entre os casos que nos surgem, há dois tipos de acidente - o acidente provocado pelo próprio e o acidente provocado pelo companheiro. Para nós tanto faz, mas já que me procura para lhe dizer o que penso, digo que o autor do acidente foi o senhor! Mostre-me as suas mãos..."
"Não posso!" - Disse ele escondido num labirinto sem fim, ainda que os panos amarelos naquela hora de almoço, sob a luz do próximo equinócio parecessem transparentes. Adivinhava-se atrás do reposteiro um rosto pálido e forte, olhos pequenos cor de pimenta, cabelo liso abrilhantinado puxado para trás, no interlocutor que sabia tanto sobre mãos. Não, não mostraria novamente as mãos.
"Como queira. Os actos podem ser nossos, mas neste caso a ciência só ao senhor aproveita. Se desiste dela o problema é seu... Falando dos actos que nos pertencem, hoje, domingo, temos um pequeno problema".
"Domingo, era domingo" - Disse o Engenheiro, diante da gravura com o lago. "Caramba, o que uma pessoa tinha pensado para domingo! Mas há então um outro problema..."
"A questão é que ao domingo não sabemos a que horas vamos apanhar o choramingão do padre!"
"Tem um padre?" - Havia perguntado o Engenheiro Geraldes, ainda preso da representação da natureza suave que tinha à sua frente.
"Favor com favor se paga! Sim, temos um padre para resolver toda e qualquer situação. O clube é grande, e necessariamente são muitas as situações que acontecem. Neste caso, o senhor causou o acidente".
"Não causei qualquer acidente. O acidente é que veio ter comigo e com ela. Quando estávamos a dormir".
O homem encoberto, porém, não tinha deixado margem para dúvidas. Havia-se curvado no fato cinza claro e a sua mão crispava-se sobre o parapeito. Os quatro nós dos dedos tinham-se tornado brancos - "Engenheiro, foi o senhor quem causou o acidente!"
"Sim, eu causei o acidente" - Tinha aceite o Engenheiro Geraldes, sentindo-se do tamanho da pequena faca.
Mas não era verdade, não. Ele nunca havia causado a morte de ninguém. Tinha começado por ser um estudioso dos cursos de água e da forma de os desviar para regar as províncias secas e reparar a natureza onde havia desequilíbrio e desordem involuntária. Ele mesmo tinha congeminado um plano que desviaria por completo a rota dos cursos de água do seu país, que passavam exactamente pelas zonas onde menos falta fazia, para irem a correr mergulhar no mar. E sobre a matéria havia escrito um opúsculo importante com o título de Três Rios, Uma Questão Mais Que Peninsular, que incluía propostas generosas para uma multidão imensa. Muitas vezes o Engenheiro tinha-se achado um pedaço dum bom deus em luta contra a injustiça da própria natureza. E se tinha aceite a cadeira de coiro e brochas amarelas situada na Praceta dos Ruivos, não era por ter deixado de considerar a política uma herdeira directa da pirataria, mas porque sua mulher havia começado a pintar todos os cabelos do corpo de vermelho. Tinha sido numa manhã apenas, num só acto, dois actos de coragem ambos relacionados com a vida. Mesmo a vida que não se parecia com os objectos imaginados. Não podia aceitar que alguém o supusesse ligado, pois, à estúpida morte duma rapariga que tinha a particularidade de se parecer com a figura do seu sonho.
"Espera bem, gerente!" - Havia dito, em voz alta, ao regressar ao quarto pela última vez.
Num ápice, tinha metido todos os objectos seus e dela misturados nos sacos e malas de viagem. Para fechá-los havia mesmo empurrado os objectos com o pé e havia tido o cuidado de reunir os papéis rasgados de modo a não deixar rasto. Colocando a colcha da cama sóbria no chão, havia nela embrulhado a rapariga. Era grande a rapariga, talvez um palmo maior do que ele e agora, sem movimento, media como uma trave e pesava como chumbo. Respirava mais alto do que devia para conseguir enrolá-la no pano sóbrio. Mas não importava. Pediria passagem, alcançaria as chaves na portaria onde não havia ninguém, levá-la-ia através dos corredores até à garagem, e pô-la-ia estendida no banco de trás do carro. "Jamais!" - Dizia. Jamais desejaria ficar com semelhante labéu. A coragem tinha-o assaltado de forma súbita, como se a tivesse bebido por um jarro. Não era só a escusa dum epíteto, era também a defesa da verdade e do amor que nutria pela rapariga do Toque-de-Classe, local onde já não voltaria. Ele precisava confessar o que tinha acontecido junto de agentes da policia. Precisava encarar a família, o Fausto Maia, os amigos e o mundo inteiro lhe parecia pequenino para ouvir a verdade que tinha para dizer. Vistas de fora, as janelas d'A Casa do Leborão pareciam encontrar-se corridas como se ninguém lá estivesse. Precisava quanto antes alcançar a estrada.
Lembrava-se muito bem. Como se tivesse sido na tarde do dia anterior.
Cerca das quatro horas da tarde, Duas-Pias deveria encontrar-se a abarrotar de gente rústica pelas ruas. As casas desencontradas estariam refulgentes de cores tão variadas quanto as araras, conforme o gosto dos sentimentos pobres. Os cafés deveriam encontrar-se cheios de lama e moscas, espaços naturais onde costuma nascer a alegria de domingo. Magotes de campónios com chapéus pretos estariam à espera dos passantes com seu braço levantado. Nessa altura, ele passaria no interior do carro protegido, consumindo gasolina e coragem. Mais do que coragem, ousadia. Não é todos os dias que um homem atravessa ao domingo uma povoação em semelhantes circunstâncias.
Aliás, nem sabia se alguma vez teria acontecido. Rodava, rodava, em direcção a Duas-Pias, por entre a mata onde suspeitava não existir camaleão nenhum. E de repente ouvia dizer - Vai ali fulano com uma colcha atrás. Sim, porque ao atravessar aquele local pouco desenvolvido, pelas ruas estreitas, as manobras teriam de ser feitas lentamente. Os olhos dos especados segui-lo-iam com a curiosidade dos ociosos e um deles, o mais expedito, reconhecê-lo-ia. Seria melhor, talvez, voltar atrás e esperar que a noite descesse e ele pusesse um sobretudo sobre a colcha. E como se o próprio percurso o sugerisse, ali estavam as bombas fechadas onde poderia, com facilidade, dar meia volta para pensar melhor. Meter-se-ia pela estrada às curvas que havia feito em sentido inverso, quatro dias antes, e em escassa meia hora voltaria ao ponto de partida. É que de repente o Engenheiro Geraldes fora assaltado por uma outra ideia.
Quando depois de atravessar Duas-Pias, já fosse noite e procurasse o desvio para a auto-estrada, demoraria umas três horas a atingir a Ponte. Seria fácil, e nessa altura os relógios electrónicos marcariam onze horas. Onde iria, com o corpo de Anita Starlet, bater a essa hora? Esquecia-se que a amava? Nada sabia das relações entre o corpo e o espírito - nem queria saber por demasiado misterioso e mesmo metodicamente insondável - mas acaso não mantinha respeito pelo corpo dela? Ela, a quem tinha ouvido murmurar sons num sótão como se tivesse dentro - ela sim e não ele - um pequeno tabernáculo? O Engenheiro Geraldes não era um homem melancólico, não. Mas havia encostado o carro contra uma sebe onde os braços duma árvore se abriam para deixar correr um pensamento triste por ela e por si. "Caramba! Oh! Caramba!" - Que ironia, agora que ele iria ter força para viver em liberdade!
Pois bem, se a amava tanto devia respeitar então o que sobejava dela, e era muito. Ora mesmo na hipótese de que ela tivesse tido medo dele, dos seus óculos grossos, do seu corpo, e até de toda a sua forma de existir - era uma pessoa realista e por isso o admitia - e o acidente tivesse sido um propósito deliberado, isso significava que Anita Starlet quereria ficar n'A Casa do Leborão. Sendo assim, se a conduzisse até à porta da pérgula, tudo seria mais fácil e o gerente mandaria levá-la em segredo para Duas-Pias.
Nesse caso - o Engenheiro andava agora por uma carreteira da mata - era bom proceder do seguinte modo. Primeiro, parar. Segundo, abrir a mala do carro e retirar toda a bagagem para fora. Terceiro, separar os objectos dele e dela, bem como todas as roupas e colocá-las em seus sacos distintos e o mesmo quanto às malas.
Quarto, arrumar os pertences de ambos, dentro do carro. Quinto, providenciar por colocar as bagagens separadas em sítios diferentes. Deixaria, contudo, num saco à parte o frasco de perfume dela, o caderno dos telefones e o amplo casacão. Sim, jamais se separaria daquele pedaço de mohair.
O Engenheiro tinha aberto o porta-bagagens e havia começado a separar as roupas e os frascos. A desarrumação tinha sido tão grande que se tornava necessário espalhar objectos pelo chão, naquele local todo feito de erva. Era como se um batedor eléctrico lhes tivesse misturado de propósito os haveres de viagem. Felizmente que era um homem com ideias sobre orografia e havia escolhido um declive onde não seria natural alguém passar àquela hora, e ainda por cima encontrava-se protegido pelos pés de três árvores que se encostavam umas às outras como gente. E ainda bem, porque demorava. Os próprios papéis onde já havia escrito a introdução do seu discurso apareciam misturados com as revistas dela. As suas próprias peúgas encontravam-se dentro de um dos seus sapatos. De interior do bornal de argolas saía o isqueiro dele. Mas ao fim de algum tempo tinha conseguido. Num saco à parte, para mover como entendesse quando ultrapassasse a Ponte, estava o perfume, o caderninho e o abafo dela. De novo ia voltar À Casa do Leborão. A angústia empurrava-o devagar.
"Que ironia, Hugo Geraldes Maia, que ironia! Que ironia, meu tiozão! "
E depois?
Lembrava-se como se tivesse sido, não no dia anterior, mas naquele mesmo. O Engenheiro não era um homem enfático, como disse, e detestava o drama por inoperante, mas as suas frases eram curtas e entre elas parecia haver uma ligação por vezes inexacta, ou demasiado rápida ou corroída. Mesmo assim, diante da pequena mesa onde conversava, ele tomava o frasco da pimenta e comia o seu ovo quente com perícia de inglês - Então não se lembrava? O facto de ter guardado aqueles cinco dias só para si, durante tanto tempo, permitira manter sobre eles a memória fresca, como se no interior duma pirâmide. Pois claro que se lembrava. Quando finalmente tinha chegado, havia uma carripana sob a pérgula e dois tipos que nunca tinha visto estavam lá dentro, fingindo não o olharem. Um deles descia pelo outro lado, era ainda moço, escarranchava os sapatos para fora e olhava para dentro do automóvel onde estava a colcha. Tinha uma voz local.
"Porque será que fazem todos o mesmo, pá? Fogem todos da mesma maneira e regressam todos de volta? É ar que lhes dá, mal lhes cheira a Duas-Pias!" - O rapaz tinha aberto a porta de trás com ar de pirraça e pusera-se a puxar a colcha devagar.
"Há mais alguma coisa?" - Tinha perguntado, sempre de lado.
O Engenheiro percebeu que o seu sonho estaria prestes a desaparecer para sempre. Tinha-se precipitado para o porta-bagagens. Lá dentro havia a mala e o saco de Anita Starlet. "Um momento, por favor!" Era preciso prestar atenção. Os objectos de Anita Starlet distribuíam-se por três volumes distintos, um dos quais seria para ficar - "Um momento! " Tinha entregue a mala e o saco ao outro rapaz, o que não carregava com a colcha. O dos sapatos havia posto a colcha às costas com imensa agilidade. Tão velozes, que enquanto colocava os três objectos retirados da bagagem de Anita Palma no banco da frente, junto aos seus próprios objectos, os dois tinham-se sumido na cabine da carripana. Era uma carrinha velha que fedia a diesel.
"Eh! Feche esse badoque, prenda com a lingueta e dê a volta, senão temos mulher pelo caminho!" - Disse o de sapato escarranchado, assomando pelo vidro.
O inquilino dos Ruivos queria obedecer àquele comando estranho, mas todos os trinques do carro estavam emperrados. O rapaz por sua vez tinha um punho no volante e o outro, ele o esgrimia no ar. "Rápido, homem, rápido!" Ao dar a volta, o braço do terceiro ocupante, encoberto até aí, saía fora da janela da carripana. A mão do braço era expressiva, ossuda, ao mesmo tempo estreita e desconjuntada, branca no pulso, saindo fora duma sobrepeliz. Pois não era aquela a mão do criado cavador? A mão fez-lhe sinal. O Engenheiro pensou ir com o seu carro a passo, atrás, estrada fora, até onde fosse necessário, porque existia dentro de si um grande copo de coragem. Mas a carripana não procurava a estrada. Nenhuma estrada do mapa. A carripana dirigia-se com ligeiros solavancos para dentro do pinhal.
Lembrava-se? Sim, muito bem - Cada dia um ovo quente, nada mais que um, mas sempre um. Não sabia porquê, mas era a hora em que mais gostava de lembrar esses cinco dias da sua vida, à luz ainda parda da manhã. Lembrava pela primeira vez em voz alta, lembrava lentamente para não se evaporar, porque o Engenheiro conhecia bem o efeito do calor sobre os fluidos mesmo os imateriais como são os pensamentos. Ele lembrava. Era o décimo segundo ovo que ele quebrava com uma pancada certa à minha frente. Pousava a colher de alpaca, e sobre o prato, a casca branca ficava em pé como uma pequenina coroa.
"Mas meu Deus, sim, porque não dizê-lo? São coisas que não se dizem todos os dias e deve-se ir até ao fim..."
Tinha passado tempo e o Engenheiro reconhecia não haver compreendido nada do que se passava n'A Casa do Leborão além dos factos, e mesmo esses, para entendê-los, era preciso uni-los, desafiando mais uma vez um deus desumano de inteligente. Aceitava com a humildade dos sensatos que de todos aqueles dias, ele tinha apenas deduzido que o rapaz de olhos azuis era o admirador incondicional do cão chamado Tennessee. E de resto? O que sabia ele?
Tinha ultrapassado Duas-Pias já de noite, quando as janelas do clube de caçadores, vistas de fora, começavam a ficar amareladas, fechadas sobre si. Mas ele levava consigo o frasco de perfume que ela anunciava. Iria colocá-lo dentro duma gaveta no gabinete do Palacete dos Ruivos. Iria. Agora as estradas melhoravam, o território ia ficando riscado de corredores fugindo duns locais para outros sem passarem por lugar nenhum e por ninguém. Só de onde em onde, mantendo a ordem do rodado, emergindo do escuro, se via a pala branca dum carro de polícia. No seu caso, bastaria parar e exibir a identificação. Sorria triste o Engenheiro - Nunca imaginariam que vinha duma casa proibida e que tinha deixado, onde tinha deixado, a apresentadora do frasco de perfume.
Mas se houvesse um catano daqueles, com uma pinga a mais ou um grau de inteligência a menos, que resolvesse revistá-lo? E decidisse, por exemplo, inquirir da origem daquele caderninho? Não era provável, era apenas a hipótese um tanto delirante dum homem que havia horas e horas não comia. Mesmo assim, rodando, rodando, sem interrupção, o Engenheiro chegava à conclusão de que deveria desembaraçar-se daquele caderno que já não serviria mais para a sua dona. Certos endereços deviam desaparecer enterrados sob o solo. Enterrados mesmo. Mas também não diria tanto. A estrada não fazia nem curvas nem lombas e atravessava uma região tão seca que nem pontes tinha. Esperaria então por que a orografia começasse e enrugar e aí sim, haveria por certo, mais que não fosse, um pontão. O Engenheiro agora corria com os olhos no limiar exterior da estrada e mudava o alcance dos faróis continuamente. "Espera, Geraldes, espera um pouco..." De súbito, a berma subia, a estrada alteava a envergadura, curvava para a direita, e por baixo um leito qualquer passava. O Engenheiro tinha alcançado o primeiro desvio, voltado atrás, parado sobre a ponte, e com a mão certeira tinha desembaraçado Anita Starlet daquela hipótese de perturbação do seu sono, possivelmente voluntário. Aliás, agora encontrava-se em sentido oposto, como se de novo se dirigisse para sul ou mesmo Duas-Pias.
"Não!" - Tinha ele dito. "Não é justo mortificarmo-nos ambos, ela e eu desta maneira. É muito injusto mesmo!" - Injusto era até levar consigo um frasco de perfume que pudesse denunciar o percurso de Anita Starlet. Gostaria de ficar com ele. Gostaria. Mas para quê? Sem um plano, uma pessoa racional fica tão à deriva na vida quanto um gamo! - De novo tinha invertido a marcha numa zona descampada, na direcção exacta apontada a norte. O frasco era redondo, do tamanho duma pequena maçã camoesa. Com suas delicadas mãos, ela havia oferecido o perfume diante do fotógrafo e tinha ficado a cheirá-lo, de olhos fechados, eternamente. Sim, sim, essa era a única hipótese que havia de transformar alguma coisa de humano em menos passageiro para não dizer essa palavra fácil - eterno. O engenheiro ia pensando, rodando agora devagar.
Depois duma povoação comprida esticada à beira da via, um magote de rapazes fogosos passava, enfrentando os olhos do tráfego. "Eh! Eh!" - Diziam, de braços abertos, sumindo-se em seguida na escuridão da estrada. E de repente, o Engenheiro sentiu medo por si e por ela de levar consigo o frasco de perfume donde rescendia sobretudo o floral mais leve e a especiaria lenta, impregnada e segura, que por certo deveria encontrar-se entranhada na medula da roupa que trazia. O Engenheiro, assim que viu desaparecer ao fundo a povoação dos moços joviais, tinha aberto o vidro e atirado para fora o frasco, num gesto de quem oferece uma dádiva ao mundo. Pela frente, a estrada não tinha fim.
"Meu Deus, mas porque nem aparece um pedaço de lua?" - Tinha parado. Alguma coisa havia acontecido que não compreendia. Era preciso voltar À Casa do Leborão, entrar de novo nas suas entranhas, afastar aqueles panos nos quais nunca tinha tido coragem de tocar com um dedo e havia-a proibido a ela, a sua última dona, de afastar também. Queria ver com os seus próprios olhos o tamanho do gigante, a língua do escanção e os olhos, os olhos por certo escuros do criado cavador. Queria olhá-los de perto como irmãos e inimigos. De novo havia enchido o depósito de gasolina numa bomba permanente e tinha rumado na direcção de Duas-Pias. Ficava ao fundo do país, a dez quilómetros do mar. Corria, o Engenheiro Geraldes precisava retomar a mata, e ainda que tivesse percebido que a estrada era naturalmente a continuação do labirinto, percorria-a de volta e entretanto, fazia-se madrugada.
"Outra vez!" - Tinha sido tudo tão rápido que só agora se iniciava o quinto dia. A lista malva da manhã ainda não transparecia, mas no sopé dum monte escalvado, um homem dava fogo a um monturo. De cócoras atiçava o lume, depois tinha andado a olhar de longe a sua obra e por certo encaminhava-se para dormir em paz, o sono da manhã. A terra húmida do Inverno ainda dava segurança. O Engenheiro deu de novo volta ao carro e subiu a estrada devagar. Trancou o carro, e naturalmente, dirigiu-se para a combustão escondida e enfumarada com o casaco trazido de Isadora's House. Sem querer escorregava na lama por onde o casaco também seguia, ficando da cor da terra. Mas uma carvoeira não se define precisamente como uma combustão enfraquecida sob terra? Era uma contrariedade não ser uma fogueira verdadeira. Tinha começado a dirigir em frente. Ele bem quereria voltar À Casa do Leborão, mas para isso ainda teria de virar de novo e ele encontrava-se pela terceira vez de costas para o sul. Ainda tentou. Era tão difícil virar naquela estrada como virar na vida, para não dizer que era impossível. Assim, quando o monte, onde ficava a última prova real do seu sonho desaparecendo, se sumiu, o Engenheiro sentiu o ar bater-lhe liberto pelo rosto, e por isso tentou ver surgir ao fundo, sobre a linha da colina, um bom sinal. "Nunca mais, meu amigo!" - E tinha repetido o nunca estrada fora. Começava o quinto dia. Tinha pena, tinha muita pena.. Mas era como se já fosse plena Primavera, e ouvisse um cuco cantar junto da orelha.
Lídia Jorge
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