Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÚLTIMA FEITICEIRA - p.2 / Sandra Carvalho
A ÚLTIMA FEITICEIRA - p.2 / Sandra Carvalho

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SAGA DAS PEDRAS MÁGICAS

 

 

Livro I / Parte 2

A ÚLTIMA FEITICEIRA 

 

Arrastada pelo inesperado sopro de confiança, voltei para casa. Os meus pés descalços não arrancavam um sussurro ao chão de pedra e madeira. Era tarde quando dei por eles. Quinn e Myrna estavam abraçados ao coberto da escuridão, beijando-se e acariciando-se com um ardor que me fez corar. Não se encontravam ali há muito, pois as roupas ainda os cobriam, mas o vestido de Myrna já revelava os seus seios voluptuosos às mãos e aos lábios ávidos do meu irmão.

Eu não podia mover-me. Se avançasse, eles notariam a minha presença; se recuasse, também. Interroguei-me sobre a força da loucura que corroía Quinn, que o levava a expor-se abertamente, arriscando-se a ser surpreendido pelos criados e pelo próprio pai.

De repente, os olhos de Myrna brilharam como os de um gato e caíram sobre mim. O seu rosto odiosamente belo abriu-se num sorriso; a prova de que este percalço fora planeado. A bruxa desejava que eu os encontrasse... Queria forçar-me a enfrentar Quinn! Certamente enviou uma mensagem corporal ao meu irmão, pois ele ergueu-se de entre os seios alvos e virou-se devagar. Mesmo na penumbra, observei o seu rosto a mudar da cor do fogo para a cor da neve quando me encarou.

 

Não tive alento para reagir. Myrna ajeitou o vestido e virou-nos as costas, subindo as escadas sem proferir uma palavra, altiva e, eu sabia, vitoriosa. Quinn quedou-se onde estava. Eu imaginava o que se passava na sua cabeça, mas neste momento não conseguia sentir pena dele... Só raiva! Muita raiva! Raios! Não podia passar o resto da vida a desculpar as fraquezas de Quinn e Aled! O mal estava diante deles, assim como estava diante de nós. Se não o viam, era porque não desejavam vê-lo!

Acometida por uma energia frenética, passei por Quinn e corri pelas escadas em direção ao meu quarto. Tentei trancar a porta, mas ele foi mais rápido e empurrou-a, entrando e fechando-a com um baque surdo e mórbido. Ficou diante de mim, pálido de morte, respirando com dificuldade. Eu sentia o peso do seu olhar esmagar-me. Quinn estava possuído por Myrna. Seria capaz de matar por ela... Matar-me-ia e ao seu próprio pai, sem hesitar, se a amante lho pedisse. E, se o amuleto da minha avó me protegia dos ataques da bruxa, o mesmo não sucedia em relação ao meu irmão. Como podia defender-me de Quinn? Como conseguiria levantar a mão contra ele, se o amava tanto?

- Catelyn, vais esquecer o que viste! - Apontou-me um dedo, tão ameaçador como a sua voz. - Ouviste? Se contas uma palavra a alguém, eu...

Deteve-se, incapaz de concluir a ameaça. A decisão da disputa estava nas minhas mãos. Eu podia reverter a situação, agindo com inteligência, ou podia combater o ódio com ódio, deitando tudo a perder. Era isso que Myrna pretendia! Pois eu não iria tombar no abismo! Nem permitiria que o meu irmão tombasse! Se havia alguém capaz de salvá-lo, esse alguém era eu. A pedra azul latejava com a força do meu coração, quando retorqui num tom firme e calmo:

- Há muito que eu sei o que vós andais a fazer e, se não o contei então, não o farei agora. O que ganharia com isso? A destruição do que resta da nossa família? Esse é o objetivo da tua amante, não o meu! Guarda as tuas ameaças para os teus inimigos. Eu não te quero mal, mano!

Depois de um momento de hesitação, Quinn abanou a cabeça completamente desnorteado.

- Tu odeias a Myrna... Como podes entender? Como podes compreender o amor se nunca o sentiste, Cat?

- Estás enganado! Eu posso ser inexperiente, mas não sou tola! O amor é algo bonito e puro, que nos enche de felicidade e dá alento para viver. O que tu sentes pela Myrna é doentio, frustrante e angustiante. Como pode ser amor? Chama-lhe cegueira, obsessão... Chama-lhe loucura, mas não lhe chames amor!

- Tu não sabes o que estás a dizer!

- Sei perfeitamente! - continuei, sem permitir que me interrompesse. - Essa mulher só está a servir-se da tua inocência...

- Mentira! - Ele quase gritou. - A Myrna ama-me!

- Sim? - ripostei. - Foi por te amar que se casou com o nosso pai?

- Ela não teve escolha! - A indignação de Quinn apossava-se da sua voz. - Não sei por que defendes a Melody e atacas a Myrna! A situação é igual...

- Igual? A Melody não se agarrou ao braço do Aled quando o Edwin enfrentou Lorde Garrick. A Melody não fez do seu casamento o acontecimento da Grande Ilha, nem saltitou de felicidade até ao altar. E muito menos atraiçoou o Aled pelas costas para satisfazer o seu desejo. A Melody está a aprender a amar o Aled. Não compares alguém que atravessou um martírio e trava uma luta diária para sobreviver, com alguém que se diverte a destruir os que a rodeiam.

- Isso não é verdade...

- Lorde Garrick não é tolo! Mais tarde ou mais cedo acabará por descobrir o que se passa e o que te restará, Quinn? Manchar as mãos com o sangue do nosso pai?

- Se tiver de ser!

Desta vez, fui eu que fiquei muda. Quinn estava para além de qualquer argumentação. Aproximou-se e agarrou-me pelos ombros, sacudindo-me enquanto rosnava:

- A Myrna é minha! Muito antes de conhecê-la, tive uma Visão que ma revelou como a mulher que mudaria a minha vida. Não permitirei que nada nem ninguém se intrometa entre nós, ouviste? Um dia, Lorde Garrick finará. Se não morrer na guerra, morrerá de velhice, e nós poderemos declarar o nosso amor ao mundo. Até lá, continuaremos a encontrar-nos. E tu vais ficar de boca fechada! Proíbo-te de voltares a falar deste assunto, Cat! Se o fizeres, não respondo por mim!

Empurrou-me com tanta violência que tombei sobre a cama. Enfrentei o seu semblante enraivecido, lutando a muito custo contra as lágrimas, e supliquei:

- Escuta a tua voz, Quinn! Pensa no significado das palavras que cospes com tamanha indiferença. Abre os olhos e vê para além do desejo que te domina. A Visão que tiveste foi um aviso e não uma premonição boa. Vê o que essa mulher está a fazer, a ti e a esta família!

- Queres que veja o quê? - desafiou ele jocosamente, com as mãos nos quadris. - Que a Myrna é uma bruxa? - Riu-se alto.

- Não sejas ridícula, Cat! Guarda o teu despeito, o teu ciúme e a tua inveja! Alegra-te por estares prestes a fazer um casamento fabuloso e deixa-te de delírios, antes que seja o Conde de Goldheart a abrir os olhos e a perceber que está noivo de uma louca!

O meu irmão bateu com a porta ao sair. Eu fiquei sentada na cama, perdida no silêncio. As sombras da lareira bailavam na parede e depressa se transformaram numa elegante rapariga que dançava, rodopiava e ria, ria e girava, saltava e assumia uma forma longa e fina, como uma serpente gigante prestes a precipitar-se sobre mim. A porta abriu-se de rompante, salvando-me do delírio. Sem hesitar, Stefan envolveu-me nos braços.

- O que aconteceu, irmãzinha? Que gritaria foi esta? Por que discutiste com o Quinn?

Eu não respondi, mas Stefan compreendeu tudo com um simples olhar. Escondi a cabeça no seu peito e desejei adormecer e acordar noutro sítio, noutro tempo, quando o lago era o nosso refúgio e o som da mais pura alegria vibrava pela floresta.

- Não vás, Stefan - supliquei. - Fica comigo esta noite!

O meu irmão assentiu e estreitou-me com mais força. Deslizou os lábios pela minha testa, depositando pequenos beijos na pele febril. Percebi que soluçava. A sua voz soou enrouquecida e abafada pelo choro:

- Perdoa-me, Cat! Perdoa-nos a todos, por não sermos capazes de te proteger e libertar deste pesadelo. Há momentos em que perco toda a esperança e só a tua determinação me dá força para continuar a lutar. A nossa vida deveria ter sido diferente. Os nossos pais deviam ter continuado juntos e felizes. O Aled seria o administrador do império de Lorde Garrick, e o Quinn um grande guerreiro, reconhecido como o maior herói de sempre. O Edwin teria sossegado o coração e criado uma dezena de filhos ao lado da Melody. O Berchan seria o mais poderoso de todos os druidas, e eu, o seu discípulo. A Fiona seria a donzela mais cobiçada da região e viriam reis de todo o mundo suplicar a sua mão. E tu... Tu, minha doce irmãzinha, serias tudo o que quisesses ser, porque, sem a menor sombra de dúvida, és a melhor de todos nós.

A manhã seguinte nasceu cinzenta; um augúrio de desgraça.

Lorde Garrick e os seus convidados reuniram-se no salão para discutir os pormenores da próxima batalha. Era prioritário que se preparassem para surpreender os Nórdicos quando estes atacassem. O desejo de esmagar Gunnulf declarava-se em todos os rostos.

A Senhora Myrna estava na sala de refeições a tomar o pequeno-almoço, com uma expressão angelical. Sorriu quando entrei e cumprimentou-me com palavras mansas, como se a noite anterior não tivesse existido. Ignorei-a e sentei-me no extremo oposto da mesa. Pouco depois, chegou Melody. A minha cunhada tencionou sentar-se perto de mim, mas Myrna chamou-a para o seu lado, e ela pareceu incapaz de resistir ao apelo. Assim que olhou para a fatia de bolo que a bruxa lhe estendia, eu percebi que o seu segredo se perdera para o inimigo. Melody começou a ficar branca e os vômitos sucederam-se, sacudindo-lhe o corpo frágil com espasmos. Horrorizada, observei os olhos de Myrna a esbugalharem-se de surpresa e encanto.

- Estás grávida, Melody!? - exclamou deleitada. - Mas que boa notícia!

Sim, para ela devia ser uma excelente notícia! Depois dos sucessivos azares que haviam assombrado os partos na Aldeia do Lago, as mulheres em idade fértil tinham abandonado o povoado, fixando-se noutras aldeias. A voz do pavor erguia-se contra a jovem esposa do senhor da terra, e só Lorde Garrick é que não a escutava. Este êxodo deixara a bruxa que se alimentava de vidas sem recursos e, consequentemente, os seus poderes haviam enfraquecido. Só assim se explicava o fato de ainda não ter consumado as suas ameaças. Agora, este bebê dar-lhe-ia a possibilidade de arrasar com qualquer inimigo. A situação evoluiu depressa demais. Melody recuou instintivamente, mas Myrna não desistiu. Avançou, decidida a cravar as garras no ventre da jovem mãe.

- Deixa-me tocar na tua barriga, querida! - silvou. - Há muito que não sinto um bebê...

- Não!

O grito desesperado da minha cunhada dilacerou-me o coração. Corri em seu auxílio, enquanto ela se defendia debilmente do ataque feroz, acabando por cair da cadeira, derrubada pelo ímpeto assassino da predadora. A bruxa saltou-lhe para cima com um rugido ardoroso. Não desistiria enquanto não alcançasse o seu objetivo. Estava tão concentrada na sua vítima, que se esqueceu de mim.

Quando cheguei junto delas, Melody debatia-se desesperada, com os olhos cheios de lágrimas, e Myrna quase a pisoteava para tentar tocar-lhe no ventre. Sem hesitar, agarrei a bruxa pelos ombros e arranquei-a de cima da minha cunhada. Quando a tive diante de mim e encarei o seu rosto, estranhamente distorcido pela raiva e pela surpresa, não consegui conter o ódio que me engasgava há muito. Puxei o punho atrás da cabeça e lancei-o em frente, com quanta força tinha, desferindo-lhe um golpe certeiro e poderoso numa das faces.

Myrna guinchou... Não um grito normal de dor, mas o uivo de uma besta enraivecida. Caiu no chão com aparato, e o seu primeiro reflexo foi ripostar. Que viesse! Eu estava pronta para recebê-la com mais socos, pontapés e o que quer que fosse necessário!

Só quando a expressão da bruxa se alterou bruscamente é que eu percebi o que sucedia nas minhas costas. Duas mãos fortes seguraram-me pelos ombros, e o perfume inconfundível de Oliver inundou-me o nariz. O seu toque não foi rude, mas firme. Lorde Garrick correu até Myrna e envolveu-a nos braços. De imediato, ela enlaçou-o pelo pescoço, desatando num pranto convulsivo. Procurei Melody com o olhar, sentindo um medo descomunal a trepar pelas entranhas. Aled estava junto da esposa, e ela chorava de alívio. Experimentei uma calma arrebatadora que me deixou dormente. Pelo menos, o meu sacrifício salvara uma vida.

- Enlouqueceste, Catelyn? - gritou o meu pai, enquanto ajudava a esposa a erguer-se. - Que louca selvagem abrigo sob o meu teto? Olha para o estrago que tu fizeste no rosto da Senhora Myrna! Nenhuma discussão justifica isto! O que é que te passou pela cabeça? Fala, rapariga!

Havia triunfo no olhar da bruxa. Tal como ela, eu sabia que os meus argumentos apenas piorariam a situação, por isso permaneci em silêncio.

O alarido atraíra não só o meu pai e os seus convidados, mas também alguns criados da casa. Bretta estava entre eles, lívida, com as mãos trêmulas cobrindo os lábios e os olhos esbugalhados de horror, temendo pela minha sorte. E com razão!

- Não tens nada para dizer? - troou Lorde Garrick, enraivecido.

- Espero que saibas que não ficarás impune!

Como num sonho, ouvi a voz de Melody, fraca de início, mas ganhando convicção à medida que falava:

- A culpa não foi da Cat! Ela só me defendeu! A Senhora Myrna estava a atacar-me!

Um silêncio sepulcral alagou a sala, enquanto os olhos de Myrna deixavam o meu rosto e fixavam-se em Melody, raiados de sangue, brilhantes de ira.

- O que está a dizer, Senhora Melody? - replicou Lorde Garrick num tom incrédulo e perigoso. - A minha esposa estava a atacá-la? E posso saber por que razão?

Fechei os olhos, sentindo-me afundar num poço escuro, com a água fétida fechando-se à minha volta. Estava tudo perdido! Por que não ficara Melody calada? A sua tentativa de ajudar-me seria desastrosa para todos nós.

 

”Por favor” supliquei mentalmente. ”Não digas mais nada!”

 

- Porque a Senhora Melody está grávida, e essa mulher quer roubar-lhe a vida do filho de dentro do ventre.

Escancarei os olhos com horror e pasmo, enquanto me virava para encarar Bretta, num apelo mudo ao seu silêncio. Ela continuou, ignorando o choque geral e o olhar pejado de ódio da patroa:

- Meu senhor... O senhor casou com uma feiticeira! A Menina Catelyn tem razão. A Senhora Myrna matou a sua esposa e dezenas de outros inocentes, roubando-lhes a vida no momento do nascimento.

- O burburinho que agora se erguia sufocava-lhe a voz. - O meu senhor já se interrogou por que as suas terras estão desertas de crianças e as mulheres fogem aterradas quando a sua esposa se aproxima?

- As mulheres têm inveja da minha esposa! - trovejou Lorde Garrick, provocando um novo silêncio. - Odeiam a Senhora Myrna, porque é perfeita! - Estreitou o corpo da bruxa contra o seu. - Eu não tolerarei mais ataques à dona desta casa! Estou farto do comportamento desvairado da minha filha, que já contaminou a esposa do Aled! - Encarou o primogênito, ordenando: - Leva a tua mulher daqui para fora! Se a Senhora Melody acredita que não está segura na minha casa, o melhor é arranjares outro teto para abrigá-la. E tu, velha demente - voltou-se para Bretta - parte imediatamente desta terra. Se voltares a cruzar o meu caminho ou o da minha esposa, matar-te-ei sem piedade!

- Pai... - A voz de Stefan conseguia tremer mais do que ele próprio. - Suplico-lhe que reconsidere! A Bretta vive nesta casa desde sempre. Ajudou a nossa mãe a nascer e cada um dos vossos filhos...

- Não contestes as minhas decisões, Stefan! - rugiu Lorde Garrick. - Quem ofende a minha esposa e põe em causa a sua honra, tem de pagar pela ousadia! Só não mato imediatamente essa velha caduca e petulante, por considerar aos serviços que prestou a esta família. Mas a minha clemência finará se se atrever a desobedecer-me! Ainda estás aqui? Desaparece da minha vista, mulher!

Com o coração a sangrar e a cabeça a latejar, vi Bretta abandonar a sala com a cabeça erguida. Percebi que, com ela, partia a esperança da própria Casa Grande. Mas a tempestade ainda mal começara...

- E tu, Catelyn, vai para o teu quarto! Ficarás lá até que eu decida em contrário!

Lorde Garrick saiu da sala amparando a dócil e ultrajada esposa, deixando para trás um desconforto esmagador. A pressão das mãos de Oliver encorajou-me a encará-lo. Ao contrário do que seria esperado, não havia reprovação no seu olhar.

- Eu vou ver o que posso fazer por ti, Catelyn, mas não prometo muito! Colocaste-te numa posição muito delicada! O teu pai não te perdoará facilmente a ofensa e a vergonha...

Soltei-me com um simples movimento do corpo, e o Conde não tentou deter-me. Pelo canto do olho, vi que Melody enfrentava uma nova dificuldade. Aled tomara conhecimento da gravidez da pior maneira imaginável. Mas eu já não podia ajudá-los. Melody e Aled deviam partir, e eu esperava que o meu irmão tivesse o bom-senso de levar a esposa para longe. Quanto a mim, só me restava aguardar a sentença do meu pai. No mínimo, Lorde Garrick iria condenar-me a passar o resto da vida fechada numa cela escura, a pão e água.

Refugiei-me no quarto e arrastei-me penosamente até à cama; cada passo, um sacrifício. Sentia que toda a esperança era vã. Já não vislumbrava uma saída desta calamidade.

A porta abriu-se de rompante, e eu voltei-me devagar, debilitada pelo nervosismo, esperando encontrar Stefan ou Quinn. Um soco violento colheu-me de surpresa e arremessou-me pelo ar, desferido com tanta destreza e força que acreditei que fora um homem o autor da agressão. Porém, quando consegui recuperar do susto e abrir os olhos, encontrei o rosto de Myrna debruçado sobre o meu, desfigurado pelo rancor.

- Feiticeira? - rosnou. - Bruxa? Eu vou ensinar-te a não me desafiares, sua decrépita imbecil! Pensas que és uma rival à minha altura? Acreditas que os teus truques ridículos podem superar a mais poderosa das magias?

A voz fina penetrava-me na mente e dilacerava-me os sentidos. Fiquei pregada ao chão, com os ossos moles e a cabeça a estalar. Enquanto falava, Myrna divertia-se a dar-me pontapés. E eu recebia-os como se estivesse amarrada. Se fosse coiceada por um cavalo selvagem, as conseqüências não seriam maiores. Sentia o sabor do sangue na boca, o ventre em fogo e o peito prestes a rebentar. Por fim, a bruxa deu-se por satisfeita e afastou-se, mas eu estava tão ferida, que não tive alento para mover-me. Ouvi a voz musical como se viesse de muito longe:

- Julgas que essa pedra irá proteger-te de mim? Estás enganada! Existem muitas formas de atingir um objetivo... E tu estavas a pedir para sofrer, sua miserável! És tão ridícula, que me dás vontade de rir! Posso esmagar-te como se fosses um piolho! E é o que farei, acredita! Mas antes, tenho algo para te oferecer; algo para te recordares de mim na curta vida que te resta. Alegra-te! Depois disto, não terás de passar pelo suplício de casar com o Oliver. Ele fugirá assim que te olhar. Todos os homens fugirão! - O estrondo da sua gargalhada pôs a minha cabeça a girar. - Pobre Catelyn McGraw! Um rosto tão bonito completamente desfigurado! Que lamentável acidente...

Descobri finalmente o que a bruxa pretendia. Aquecera um ferro no fogo da lareira e empunhava-o com firmeza. Ia encostá-lo ao meu rosto, e eu estava impotente para detê-la. Via, ouvia, sentia, mas não podia falar e muito menos mover-me. De certeza fora vítima de um feitiço poderoso!

- O papá nem quererá saber o que aconteceu - continuou Myrna, aproximando-se devagar, gozando a sua vitória. - Eu certificar-me-ei disso! E o imbecil do Aled será banido quando ousar enfrentá-lo. Mas antes, aquela criança será minha! Pobre Melody, as emoções fortes provocam abortos horríveis! Não sabias? Quanto ao teu querido Stefan, também ele sofrerá um acidente. Parece que as fatalidades são banais nesta família! Talvez a sua morte chegue pelas mãos do irmão gêmeo! Seria poético! O Quinn é o meu fantoche. Fará tudo o que eu mandar como um cão obediente... Quanto aos outros, não terei com que me preocupar. A coroa ocupar-se-á do druida, e os bárbaros, do filho rebelde... E, com esse bastardo arrogante que se atreveu a desprezar-me, morrerá também o teu dedicado amor. - Deteve-se, com o ferro incandescente apontado à minha testa. - E tu viverás para assistir a tudo isto, esmagada pela dor e deformada como um monstro...

O que se passou a seguir foi tão rápido, que mal consegui assimilar as informações que os meus olhos recebiam. Quinn surgiu do nada e lançou-se sobre a bruxa, derrubando-a. O ferro rolou para longe. Myrna ergueu-se com um salto e preparou-se para enfrentar o amante. Mas, surpreendentemente, o meu irmão parecia sóbrio e fora do seu domínio. O encantamento estava quebrado. Ou, talvez não...

- Sai daqui, Myrna! - berrou ele, dividido entre a ira e o desespero. - Sai daqui, antes que eu faça uma loucura, sua pérfida traiçoeira! Como foste capaz...?

Os seus braços protetores resgataram-me ao chão gelado. Temi que Myrna apelasse a algum truque para seduzi-lo, mas a bruxa recuou, subitamente enfraquecida. Talvez a energia que utilizara para me enfrentar a tivesse desviado de outros domínios, como o controlo da vontade de Quinn e a força que necessitava agora para mudar o rumo dos acontecimentos. Sem uma palavra, segurou nas saias e deixou o quarto.

O meu irmão sentou-se na cama comigo ao colo. O seu rosto era uma máscara de desgosto, e as lágrimas caíam-lhe dos olhos em bátegas de agonia. Stefan chegou nesse instante e estacou surpreendido. Depois, avançou até nós, temendo o pior.

- Vi a Myrna sair daqui... O que foi que aquela desgraçada fez à nossa irmã?

Esbocei um gesto fraco, tentando sossegá-lo. Quinn respondeu num fôlego enrouquecido:

- Felizmente cheguei a tempo de impedi-la de magoar a Cat... Continuou, explicando que me seguira assim que Lorde Garrick o dispensara e, ao irromper pelo quarto, surpreendera o discurso da bruxa. Ela estava tão cega pelo desejo de vingança, que nem se apercebera da sua presença. Quinn ouvira o suficiente para ser forçado a engolir o logro e a traição. Mas admitia que não tivera coragem para fazer justiça. O seu coração atraiçoara-o. Amava aquela mulher... Amava-a com loucura! E descobrir que caíra na armadilha de um ser tão cruel e desprezível, fazia-o desejar a morte.

- Limpa as lágrimas, irmão - replicou Stefan. - A revelação do mal salvou a tua vida, não a perdeu! Não podes entregar-te ao desespero, agora que te libertaste. Tens de lutar ao nosso lado para arrasar com a ameaça que pende sobre nós.

- E o que posso eu fazer? - arfou Quinn angustiado. - Não conseguirei erguer a mão nem a voz contra Myrna! Apesar de saber quem ela realmente é, arrancarei o coração do peito antes de tocar-lhe num fio de cabelo. Imagino que a minha fraqueza faça parte do feitiço que me lançou... Ou talvez eu seja apenas um fantoche, como ela própria declarou!

- Pára de te martirizar, Quinn! Para já, é imperativo cuidar da Cat...

Apesar de debilitada, eu sentia-me feliz por ter recuperado Quinn. A descoberta da verdadeira personalidade de Myrna abrira-lhe os olhos, e as suas afirmações comprovavam essa mudança:

- A Cat não pode casar-se com o Conde de Goldheart! Foi esse homem quem plantou a semente da nossa desgraça, introduzindo a Myrna nas nossas vidas. Temos de opor-nos...

- Contrariar a vontade de Lorde Garrick não nos conduzirá a lugar nenhum! - objetou Stefan. - Ter uma filha casada com um parente do rei dará ao nosso pai o poder que almeja. E, neste momento, além da sua adorada esposa, o poder é tudo o que lhe importa. Depois do que aconteceu, terá pressa em tirar a Cat desta casa. Não arriscará outro confronto com a Myrna. Resta-nos esperar que o Conde desista do casamento.

Os meus irmãos cuidaram de mim com muito carinho. Stefan preparou um chá forte com as ervas curativas que eu cultivava em vasos. Assim que o bebi, senti-me melhor. Consegui suster-me em pé e clarear a mente. Todavia, falar era outra história! A minha língua estava solta, mas a garganta não emitia um som. Gesticulei, explicando a minha aflição. Stefan tentou sossegar-me:

- Talvez a tua dificuldade seja conseqüência do susto que sofreste. Se não melhorares dentro de alguns dias, apelaremos a Berchan. Tenho a certeza de que ele saberá como proceder.

- E o que faremos agora? - questionou Quinn, impaciente e amargurado. - Não podemos cruzar os braços!

- Tu próprio admitiste que não há nada que possamos fazer contra a Myrna - respondeu Stefan. - Ela controla o nosso pai, o Goldheart e os restantes Aliados, os guerreiros e até os criados. Os que não estão enfeitiçados pela sua beleza, morrem de medo das suas habilidades. Temos de esperar pela resolução de Lorde Garrick sobre o destino da Cat e, só então, poderemos tomar uma decisão.

Interroguei-me por que razão Stefan lhe ocultara o plano de Edwin. Talvez ainda não acreditasse que o irmão estava livre da influência da feiticeira. Mas eu já não duvidava. A alma dilacerada de Quinn era visível no seu olhar. Ele teria preferido morrer, a descobrir que a mulher que amava, e em quem confiava cegamente, apenas o usava para atingir os seus propósitos funestos. De certa forma, a vida fora mais cruel com Quinn do que conosco.

Não tivemos de aguardar muito pela sentença de Lorde Garrick. Melody teria de regressar à casa de Lorde Cearnach e, como Aled se recusava a abandonar a esposa, viajaria com ela. Quanto a mim, o meu pai pregou-me um sermão sobre a fraqueza e o negrume do meu caráter. Um período longe de casa ajudar-me-ia a organizar as idéias. O Conde de Goldheart fora generoso em oferecer-me a sua hospitalidade. Assim, eu partiria com a próxima caravana. Stefan iria acompanhar-me e ficaria comigo até ao dia do casamento. Esse pormenor significava que o designado ”período” era definitivo. Eu não voltaria à casa onde nascera, como Catelyn McGraw.

Mas as revelações não terminavam aí. Visto eu ir morar para a fortaleza, tornava-se absurdo esperar dois meses para a celebração do casamento. Oliver solicitara que este se realizasse com a maior brevidade, garantindo que, dentro de um mês, todos os preparativos estariam ultimados. E Lorde Garrick anuíra.

Entrei em pânico. A antecipação do casamento era uma catástrofe! Edwin encontrava-se longe e com tudo preparado para agir na altura combinada. Quando chegasse, seria tarde demais. Só Berchan sabia como contatar o nosso irmão, mas Stefan não podia avisá-lo, já que estaria debaixo do olhar atento de Goldheart. Aled já tinha problemas suficientes, além de continuar convencido de que o meu casamento era uma oportunidade preciosa, principalmente depois dos meus ataques de loucura, que pareciam já ter contagiado a sua esposa. Posto isto, Stefan não teve outra opção senão colocar Quinn ao corrente do nosso plano.

O Sol brilhava no dia em que fui forçada a dizer adeus ao túmulo da minha mãe, à casa onde nasci, à minha terra e a todos os que amava e ficavam para trás. Os criados choravam copiosamente, e os soldados mal escondiam a indignação. Até os cachorros da herdade ganiam e tentavam saltar-me para o colo, como se compreendessem o meu tormento.

Na despedida, Lorde Garrick manteve uma pose solene e fria.

- Espero que não demores a admitir que erraste e a pedir perdão à Senhora Myrna. Ficarei muito desapontado se te encontrar tão obstinada como partes. O teu voto de silêncio não te favorecerá, Catelyn!

Mesmo que Lorde Garrick percebesse que eu não falava, porque não conseguia, e não por teimosia e irreverência, ter-se-ia importado? Já duvidava seriamente do seu amor por qualquer um dos filhos, à exceção talvez de Fiona, que crescia resplandecente debaixo da alçada da madrasta. Havia uma nova ordem na Casa Grande. A feiticeira assumira o domínio absoluto.

Nem me dignei a olhar para a causadora da nossa desventura. Agora que lhe declarara o meu ódio, nada mais havia a dizer. Myrna ganhara batalha após batalha, mas eu ainda não perdera a esperança de vencer a guerra. Quinn partira há dois dias, mal tomara conhecimento do plano de Edwin para me resgatar às garras de Goldheart. Eu tinha fé que, neste preciso instante, Berchan já estivesse a tomar as providências necessárias. É claro que, na fortaleza de Oliver, a fuga seria mais difícil, mas não era impossível. Talvez esta tragédia tivesse vindo pelo melhor! Assim, estaria junto dos meus irmãos mais cedo do que o planeado e poderia treinar a sério para derrotar a ardilosa bruxa. Além disso, o bebê de Aled ficaria em segurança.

No último momento, tencionei despedir-me da minha irmã e inclinei-me para beijar-lhe a face. Fiona distorceu o rosto numa careta de repugnância e empurrou-me com brusquidão, guinchando na sua voz infantil:

- Deixa-me, sua maluca! Vai-te embora! És má!

Correu a esconder-se atrás da saia da madrasta. Stefan aproximou-se e rodeou-me com o braço, murmurando:

- Vamos, irmãzinha! Não temos mais nada que fazer aqui!

O olhar de Myrna trespassou-me, vitorioso perante a minha mortificação. Stefan aumentou a pressão no meu ombro, e forcei-me a segui-lo, ciente de que a partida da Casa Grande significava uma reviravolta total nas nossas vidas e o abandono definitivo de tudo o que, até então, eu conhecera e amara.

Sempre guardei e acarinhei a certeza de que a floresta era o meu lar. Enquanto percorria os caminhos sombrios e sinuosos, encobertos pelas copas oscilantes das árvores, escutava os murmúrios daquelas que me tinham visto nascer e crescer e interrogava-me se, algum dia, voltaria a trepar os troncos sólidos, a balouçar-me nos ramos, a nadar no rio ou a meditar na Pedra dos Sábios. Não guardava rancor à floresta por todo o mal que acontecera debaixo da sua alçada. A natureza não podia ser culpada pela maldade de Homens e Feiticeiros.

A caravana avançava devagar, porque Melody e eu não podíamos acompanhar o passo acelerado dos guerreiros. Além disso, o Conde de Goldheart fizera questão de trazer todos os meus haveres. Juntando as minhas malas às de Aled e Melody, que também tinham carregado tudo o que lhes pertencia, sem intenção de regressar à Casa Grande, tínhamos uma carruagem cheia de bagagem, que se movia com dificuldade pelo carreiro estreito.

Eu só estivera na Aldeia da Fortaleza uma vez, há muitos anos, quando a Enseada da Fortaleza ainda pertencia a Lorde Cearnach e Lorde Garrick nem sonhava em possuí-la, quanto mais em cedê-la a um estrangeiro. Era um lugar com um clima próprio, muito diferente do ar sempre úmido da floresta. Ali, os dias eram tórridos ou gelados, conforme as estações do ano, e tanto se podia olhar para o mar e ver o céu refletido qual espelho, como observar as ondas gigantescas fustigando o penhasco e varrendo a praia. No rigor do Inverno, os pequenos barcos não podiam sair para pescar. Então, os pescadores ficavam em terra, remendando as redes e preparando artes novas para a estação quente.

Tudo isto me foi explicado por Edwin, no dia em que nos aventuramos até à costa. Recordo-me de que estava tanto calor, que os cavalos suavam e resfolegavam para se arrefecerem. Nesse dia não vi pescadores. Todos os barcos se encontravam no mar, e a aldeia parecia deserta. Depressa descobri que as mulheres se atarefavam em casa, fugindo ao calor da rua, e as crianças dormitavam. Edwin foi muito bem recebido, e eu andei de colo em colo. Apesar de estarmos nas terras dos McKie, todos respeitavam e amavam os McGraw. Para aquela gente simples, Lorde Garrick era um deus, belo, corajoso, altivo e poderoso.

Edwin levou-me até à barreira rochosa, e eu vi a Aldeia dos Sábios pela primeira vez. Era um pequeno aglomerado de construções de madeira, visível do mar e daquele ponto do penhasco. Dissimulava-se de tal forma na vegetação da floresta, que, se não fosse a indicação do meu irmão, nunca o teria descoberto. Ele explicou-me ainda que no coração do penhasco existia um emaranhado de grutas e passagens. Esse labirinto atravessava a floresta e um homem podia esconder-se no seu interior durante anos, sem ser descoberto. Mas, para tal, era necessário saber os segredos que albergava. Um incauto curioso perderia facilmente a vida se se aventurasse demasiado. Depois dessa explicação, fiquei com a certeza de que o penhasco não lhe guardava segredos.

Os meus pensamentos foram quebrados pelo retorno do batedor que seguia na frente. As suas novas eram inquietantes. Encontrara um homem morto no trilho. A mensagem foi entregue ao Conde de Goldheart, que franziu o sobrolho bruscamente. Impeliu o cavalo na direção de Aled e segredou-lhe algo. As faces do meu irmão perderam a cor e as suas mãos crisparam-se. Incitou o cavalo a avançar num galope desenfreado, sem esperar pela permissão de Oliver.

A caravana agitou-se nervosamente. Receosa, Melody chegou-se para mais perto de mim. Stefan aproximou-se de um dos soldados que ouvira a confidência do batedor, e observei, com o sangue a gelar, o seu sobressalto. O meu irmão não era hábil a disfarçar as emoções. Um olhar bastou para que eu soubesse que o inaceitável acontecera. Quando Stefan lançou o cavalo em perseguição de Aled e Oliver, eu incitei o meu a galopar no seu encalço, antes que alguém pudesse deter-me.

O meu coração batia descontrolado, e a respiração fazia-se aos borbotões. Enquanto percorria a distância que nos separava do cadáver, repetia para mim própria que não podia ser. Não podia sequer admitir tão abominável possibilidade...

Dobrei a curva e lá estavam Aled e Oliver debruçados sobre o corpo. Stefan acabara de desmontar e, apercebendo-se da minha chegada, recuou, tentando evitar que me aproximasse. Ignorei os seus apelos. Toda a minha atenção estava concentrada no homem que jazia no solo, vestido de verde e vermelho, as cores da guarda de Lorde Garrick. O cabelo comprido tapava-lhe o rosto, mas eu não precisava de vê-lo para reconhecer o nosso irmão Quinn.

- Toma! Bebe devagar...

Fitei Melody sem vê-la. Por muito boa que fosse a vontade da minha cunhada, eu não conseguia reagir, comer ou sequer beber. Atingira um desespero extremo. Perdera toda a esperança. Perdera toda a fé.

Stefan chegou nessa tarde e veio de imediato ao meu encontro. Abraçou-me com força e não houve necessidade de proferir uma palavra. A minha agonia era a sua agonia. Ambos partilhávamos um segredo, uma culpa que nenhum conforto no futuro das nossas vidas poderia compensar. Nós tínhamos enviado Quinn para a morte.

Algum tempo depois, Stefan conseguiu que eu bebesse um chá. Contou-me que o regresso à Casa Grande fora penoso e que o nosso pai pusera toda a guarda no encalço dos assassinos. Lorde Garrick acreditava que Quinn fora vítima de uma emboscada preparada por salteadores e interrogava-se dolorosamente sobre o que fazia o filho sozinho na floresta, desobedecendo às suas instruções. Nós sabíamos a resposta, mas duvidávamos de que os mentores da atrocidade tivessem sido salteadores. A floresta estava fortemente guardada por soldados de Lorde Garrick e do Conde de Goldheart. Não cairia um alfinete no chão, sem que estes se apercebessem. Quinn fora assassinado pelos guardas de um dos senhores da terra; por alguém que recebera instruções precisas para detê-lo. Alguém que sabia para onde o nosso irmão se dirigia e, talvez, com que propósito. Nenhum de nós podia conceber que Lorde Garrick tivesse mandado executar o próprio filho. Portanto, restavam dois suspeitos: o Conde de Goldheart e a Senhora Myrna. E falar nestes dois era falar de um só mal, pois eram vermes da mesma podridão.

 

Eu negara-me a abandonar Quinn, mas Goldheart insistira para que seguisse em frente com a caravana, acompanhada por Melody e pela escolta. Aled concordara, e eu tivera de obedecer. Talvez, no fundo, eles estivessem certos. Ser-me-ia impossível suportar a visão de Quinn baixando à terra; uma vida perdida no auge da juventude, ceifada pela foice da traição.

- A pedra violeta foi entregue ao nosso pai. Eu não podia discordar sem uma justificação. Tenho a certeza de que já está nas mãos de Myrna!

Não tive coragem de encarar o meu irmão. As suas palavras estavam carregadas de pesar e envolvidas por uma bruma densa. Por mais que a morte de Quinn me ferisse, sabia que nem podia imaginar a profundidade do sofrimento que dilacerava o peito de Stefan. Ele era o gêmeo de Quinn, o companheiro de todos os momentos, o cúmplice de todas as confidências. Apesar de possuírem personalidades distintas, sempre haviam sido partes de uma só peça.

Stefan manteve-se silencioso por algum tempo. Ambos sabíamos que as palavras tinham de ser proferidas, mas a dor era demasiado intensa, e o medo enraizava-se nas nossas almas. Por fim, continuou trêmula e fracamente:

- Se a Myrna deu a ordem por vingança, o Goldheart pode estar inocente. É nisto que devemos acreditar, pois pensar que o nosso plano é do conhecimento do inimigo, será o mesmo que perder toda a esperança e abandonar-nos ao desespero. Recuso-me a fazê-lo! O Quinn teria morrido em vão. Vamos prosseguir, mantendo a decisão firme e o olhar erguido. Eu irei até à Aldeia dos Sábios e falarei com o Berchan. Depois do que aconteceu, a minha necessidade de procurá-lo não parecerá suspeita. Tu terás de agüentar-te, irmãzinha. Sem a tua força, estaremos condenados!

Onde se encontrava essa força de que todos falavam? Eu não a sentia! Até a expressão de Berchan, que eu acreditara pejada de magia e que tantas vezes me dera alento para avançar, deixara de fazer sentido. Já não éramos seis e jamais voltaríamos a ser um só. Quinn estava morto, e todos os irmãos, separados. A minha resistência extinguia-se com a vontade de lutar. Sentia-me desnorteada, suspensa sobre um abismo sem fundo e oscilando precariamente, aguardando a inevitável queda fatal. A esperança de recuperar a nossa felicidade expirara com Quinn. Por mais que nos debatêssemos contra o infortúnio, as sombras que encobriam o nosso sol nunca se dissipariam.

Antes de partir para a herdade de McKie, Aled fez questão de passar algum tempo comigo. Enquanto ouvia as suas recomendações sobre como comportar-me junto de Goldheart, pensava no quanto ele mudara. A disputa por Melody tornara-o duro e amargo. A sua sensatez transformara-se em arrogância, a calma em intolerância e o carinho em rancor. Sabendo que de nada me valeria argumentar, escutei em silêncio e condescendi a tudo com o coração a sangrar.

Melody despediu-se com a alma carregada de amargura. Há muito que eu me apercebera de que a sua relação com o pai era ainda pior do que a que eu mantinha com Lorde Garrick. Para Melody, fora um alívio libertar-se da sombra de Lorde Cearnach... mas, ei-la de volta, renegada pelo sogro e acompanhada por um marido frio e inconstante.

Stefan deixou a fortaleza acompanhado por uma pequena escolta e dirigiu-se à Aldeia dos Sábios, onde a floresta se fundia com o penhasco. O Conde de Goldheart não recebeu a sua decisão com agrado, mas, devido às circunstâncias, não teve como opor-se. Afinal, Stefan ia apenas visitar o irmão.

Eu fiquei sozinha, entregue aos caprichos de Oliver, sem nada para me suster além do fio com a pedra azul. A cada momento do dia e da noite, dava por mim a segurar o amuleto e a murmurar uma prece de proteção. Se Stefan estivesse enganado e o Conde fosse cúmplice da desgraça de Quinn, então, também ele corria perigo de morte.

 

O Conde de Goldheart transformara parte da fria e inóspita fortaleza numa habitação luxuosa, quente e confortável. Durante os nossos passeios pelo jardim interior, deixou claro que o fizera a pensar exclusivamente em mim, para que eu me sentisse uma rainha no seu castelo.

 

Sempre que podia, eu sentava-me nas ameias do forte, olhando o mar interminável, procurando por sinais de barcos na linha do horizonte. Tudo isto era novo para mim e representava uma beleza que feria o olhar. O azul do céu confundia-se com o azul do mar, até se perder a noção de onde um começava e o outro terminava. As aves marinhas lançavam-se em vôos picados, do topo do penhasco, mergulhavam na água e tornavam a subir até aos ninhos, transportando pequenos peixes nos bicos para alimentar os filhotes.

À tarde, quedava-me a observar os pescadores que regressavam da faina, as mulheres na praia esperando ansiosas pelos homens e as crianças correndo e brincando na areia. Contudo, essa rotina não me ajudava a esquecer que a guerra estava iminente. Por todo o lado, guardas vestidos com as cores da coroa vigiavam e aguardavam em silêncio por uma ameaça invisível.

Quando a noite descia, Oliver pedia-me que eu me sentasse junto dele, no grande salão. Às vezes falava sobre a sua terra, o rei, a corte, a família, mas quase sempre ficava em silêncio, apreciando o que dizia ser ”o prazer da minha companhia”. Em tempo algum foi inconveniente ou atrevido. O meu temor pelos seus avanços acabou por transformar-se numa tênue confiança. Apesar de tudo, Goldheart honrava a sua palavra.

Embora o meu corpo estivesse são, eu sentia a alma despedaçada. A voz regressava muito lentamente, e cada som representava um esforço que me deixava a garganta irritada e dorida. O médico do Conde observou-me e aconselhou que não me esforçasse, pois poderia causar lesões irreversíveis na fala. Confiando cegamente na sua competência, Oliver não voltou a insistir para que eu falasse. Parecia sincero na vontade de ver-me totalmente restabelecida.

Os dias passavam-se numa lenta agonia, e houve momentos em que pensei enlouquecer ao recordar a perda de Quinn. Sabia que tinha de treinar a Arte com afinco para a batalha que se adivinhava, mas era-me quase impossível desfrutar de um instante de privacidade. Havia criados por toda a parte vigiando os meus passos; soldados deambulando, perscrutando os cantos com o olhar tenaz... e a presença discreta mas eficaz do Padre Sebastião, o mentor espiritual das tropas de Goldheart.

- Eu consigo fazer isto! - resmunguei entredentes, enquanto mergulhava o olhar na vasilha onde

acabara de lavar o rosto. - Eu sei que consigo!

Respirar fundo... Acalmar-me... Respirar fundo, uma e outra vez. Tinha de esquecer tudo e concentrar-me na missão da qual dependiam as vidas dos que amava. Limpei a mente. Pequenas partículas... Pequenas gotas... Cada vez menores...

De súbito, a água começou a agitar-se, e um esguicho atingiu-me o rosto. Fiquei imóvel, atônita e incrédula. Depois, deixei escapar uma exclamação de contentamento. Eu conseguira!

Voltei a esforçar-me. No início não obtive resultados, mas, com disciplina, o efeito repetiu-se - uma perturbação e um repuxo, que subia cada vez mais alto, até todo o líquido ser sugado para fora da vasilha e ficar suspenso no ar. Eu mal continha a excitação. Como desejava que Stefan estivesse presente para partilhar da minha vitória! Após tanto tempo e empenho, eu domara a água! E agora, quando repetia a habilidade, parecia-me tão fácil!

A satisfação foi breve. Quando a água caiu na vasilha, soltei um longo suspiro e fechei os olhos. Esta era uma vitória amarga! Se eu tivesse sido mais célere na aprendizagem, certamente teria adivinhado a desgraça que se abatera sobre Quinn, e o meu irmão estaria vivo.

Fui alertada pelo som borbulhante. A água agitava-se, mas sem a intervenção da minha vontade. Senti um arrepio gelado fluir-me pelo corpo, dos pés até à cabeça e de regresso aos pés. Na superfície transparente distinguia-se perfeitamente o reflexo de um rosto, como se eu estivesse a olhar-me num espelho... Só que esse rosto não era o meu!

Sem ar, absorvi a imagem de um céu limpo, do Sol brilhante e de um homem. Ele tinha as faces molhadas, como se tivesse acabado de lavá-las, e fitava-me com o mesmo assombro que eu lhe devolvia. O seu cabelo, louro e comprido, estava encharcado e pingava, assim como a barba curta e encrespada. Os seus olhos possuíam um azul único, que reconheci de imediato. Já não havia dúvida de que o desconhecido das minhas Visões era um Viking. Observei os seus lábios a apertarem-se, até formarem uma linha fina. Só quando a testa alta se franziu numa ruga profunda é que me apercebi de que, em algum lugar, neste preciso instante, aquele homem também me estava a ver... E não estava nada satisfeito! Uma mão poderosa socou a água, e a imagem desvaneceu-se.

Pisquei os olhos e recuei, fulminada pelo medo. Poderia questionar-me mil vezes sobre a identidade do estranho, mas não obteria resposta. E a razão destas manifestações era outro enigma indecifrável.

A porta do quarto abriu-se, e uma criada entrou para me ajudar a vestir. Eu tinha de descer para tomar o pequeno-almoço com Oliver. Acabara-se a privacidade, mas, de qualquer forma, mesmo que tencionasse prosseguir o treino, não poderia. A Visão do Viking perturbara irremediavelmente o meu equilíbrio.

A ansiedade que me devorava piorou com o regresso da escolta de Stefan. O meu irmão não os acompanhava. Mandou um recado a dizer que o ar do mar lhe causara distúrbios na saúde e que ficaria na aldeia até se restabelecer. Não devíamos esperá-lo antes do casamento. Se eu recebesse um pontapé na barriga, não me sentiria pior. Stefan jamais me abandonaria por sua livre vontade! O que teria sucedido? Estaria realmente doente? Ou teriam os tentáculos de Myrna feito mais uma vítima?

Depois de tantos infortúnios, a última coisa que me apetecia era receber, por isso foi com desagrado que tomei conhecimento da chegada de uma prima afastada. Aparentemente, a jovem fizera uma paragem nas terras de Goldheart para descansar e pernoitar, mas o seu verdadeiro destino era a Floresta Sagrada e a casa de Lorde Garrick.

Belinda McGraw era filha de um dos incontáveis primos do meu pai. Eu nunca ouvira falar dela e não entendia como podia trazer o meu nome como referência, como se fôssemos grandes amigas. Todavia, proferir uma palavra significava um esforço tremendo, por isso, não me dei ao trabalho de argumentar. Devia haver um equívoco, e eu deslindá-lo-ia no momento próprio.

Quando pousei os olhos na minha prima, estaquei abismada. Era um pouco mais alta e robusta do que eu, mas poderiam confundir-nos facilmente no meio de uma multidão. Contudo, não foi a semelhança que me espantou e sim o entusiasmo com que avançou para me cumprimentar. De onde a conhecia eu? Por fim, vi que no pulso que Belinda quase enfiava dentro dos meus olhos, ao acariciar-me o rosto incessantemente, estava uma pulseira igual à que Tristan me oferecera. Se as nossas pulseiras eram únicas, então como...? Finalmente a evidência atingiu-me. Não me recordava desta prima, porque ela não existia. A rapariga diante de mim só podia ser uma mensageira enviada por Tristan. E eu quase deitara tudo a perder!

Alinhei no jogo de imediato, retribuindo o seu entusiasmo, e o Conde, que nos observava atentamente, deu-se por satisfeito. Pediu-me que acompanhasse a minha prima ao quarto preparado para acolhê-la, ao que obedeci com satisfação e alívio. Assim que ficamos sozinhas, os modos delicados e refinados de Belinda desapareceram. Sacudiu os pés, atirando os sapatos para longe, sem se coibir de praguejar:

- Pelas barbas dos demônios marinhos! Que tortura! Como é possível que as mulheres suportem esta porcaria e ainda o odioso espartilho e os vestidos que só atrapalham? Maldito dia em que nasci mulher!

Belinda sabia que eu já me apercebera da farsa e não tinha pejo em despir o disfarce. O meu queixo caiu quando ela arrancou a longa cabeleira negra e encaracolada. O seu cabelo verdadeiro era castanho-claro e tão curto como eu nunca vira numa rapariga - menor do que a ponta do meu dedo!

- Depois de tantas pieguices, temos direito a uma apresentação decente! - Estendeu-me a mão, com um sorriso enfeitando-lhe o rosto corado e bonito. - O meu nome é Pulga. E um prazer conhecer-te finalmente, Cat! Nem imaginas o quanto já ouvi falar de ti!

Eu tinha de engolir depressa as colheradas de espanto para não me engasgar. A custo repeti o seu nome, sem disfarçar a incredulidade. A rapariga soltou uma gargalhada com cheiro de maresia e explicou, num tom pejado de orgulho:

- Os meus amigos chamam-me assim, porque sou rápida e esquiva. Quando quero, consigo desaparecer depressa e ninguém me encontra. E, quando me arreliam, também pico e deixo marcas.

Parecia um rapaz. Aliás, se eu não tivesse assistido ao seu excelente desempenho de uma donzela delicada, jamais acreditaria que pudesse encarnar tal personagem. Esta rapariga conseguia ser mais rebelde e indomável do que eu alguma vez fora. Todavia, esses pormenores pouco importavam. Eu queria saber a razão por que viera e como podia trazer consigo a pulseira de Tristan. Segurei-lhe no pulso, apontando determinada, e ela riu-se da minha impaciência.

- Alegra-te, miúda! Não tarda estarás junto dos teus irmãos, a navegar rumo à liberdade...

Pasmei quando me contou que fazia parte da tripulação de Edwin e que fora enviada para libertar-me. Isso significava que Stefan fora bem sucedido. Então, por que não voltara para junto de mim? A custo, balbuciei o nome do meu irmão. A reação de Pulga foi imediata:

- O bonitão? Abençoados pais que vos puseram no mundo! Eu, que pensava que o Edwin era divino, quase caí dos pés quando vi o Stefan! E o druida também é muito giro! Um bocado sisudo para o meu gosto, mas...

A tagarelice de Pulga, apesar de lisonjeira, espezinhava ainda mais a minha impaciência. Por que razão Edwin a enviara ao meu encontro? O que podia ela fazer, além de falar pelos cotovelos? Finalmente chegou aonde me interessava:

- O Tristan quase teve de amarrar o Stefan para impedi-lo de regressar! Ele ficou desesperado com a idéia de deixar-te. Acho que não está convicto do sucesso do nosso plano. Mas isso é porque não me conhece!

Quando Pulga explicou o dito plano, eu compreendi as dúvidas de Stefan e estremeci de pavor. Aquilo jamais resultaria! O Conde de Goldheart não era tolo!

Tamanha loucura era conseqüência da necessidade de atuar rapidamente. Edwin ainda estava longe e não regressaria antes da nova data do casamento. Mas Tristan mantivera-se por perto e recebera o recado de Stefan, agindo de imediato. Contudo, por mais que eu quisesse confiar no seu discernimento, achava-o demasiado ousado. Desejei ardentemente ter Stefan ao meu lado, mas, nesse ponto, tinha de admitir que Tristan estava correto. Os meus irmãos deviam manter-se afastados do forte, de modo a permitirem uma fuga rápida. Com Stefan presente, o plano de Tristan seria impraticável.

Era, no mínimo, interessante observar a facilidade com que Pulga, ou antes, Belinda, contornava a conversa do Conde. Pensei estar diante de uma versão leve e fresca da Menina Myrna, no seu melhor. O rosto bonito da rapariga estava sempre iluminado por um sorriso provocante e sensual, do qual Oliver não desviava o olhar, completamente esquecido da minha existência, enquanto a ouvia descrever as viagens que fizera, na companhia do pai. Está claro que aquela não era a vivência apropriada para uma donzela, e Belinda recusara-se a acompanhá-lo nesta última aventura, que os conduziria ao interior de terras selvagens e inexploradas. Por essa razão, viera pedir guarida a Lorde Garrick, o parente mais próximo. Desejava abandonar a vida nômada que sempre conhecera, casar e constituir família. Pulga era tão convincente, que eu interroguei-me se, lá bem no fundo, não estaria a dizer a verdade.

Depois do jantar, o Conde desafiou-a para um jogo de tabuleiro. Seguindo as indicações de Pulga, mantive-me afastada e simulei uma indisposição como desculpa para recolher-me ao quarto. Eles ficaram, rindo e jogando, um bebendo mais do que o outro.

Deitei-me na cama, à espera, fustigada pela angústia e pela indignação. Como poderia Pulga ajudar-me se estivesse embriagada? Da maneira como soltava a língua, não me admiraria se denunciasse os nossos planos a Oliver e nos condenasse.

Era noite avançada quando parei de escutar as gargalhadas estridentes dos dois jogadores. Sustive a respiração. Queria confiar em Pulga, como Tristan aparentemente confiava, mas o meu coração já estava tão magoado e traído, que não me permitia semelhante entrega. Pouco depois, a porta do quarto abriu-se, e a rapariga esgueirou-se silenciosamente para junto de mim. Tresandava a bebida, e interroguei-me como ainda se sustinha de pé.

- Apressa-te, Cat! - apelou tão baixo que tive dificuldade em escutá-la. - Não temos muito tempo!

Belinda McGraw insistira na necessidade de partir cedo, pois desejava encontrar-se com os parentes antes que estes viajassem para a Enseada da Fortaleza, para assistirem ao casamento. O Conde não levantara objeção, convidando-a a regressar para a cerimônia. Assim, o Sol ainda não nascera quando abandonei o forte, rodeada pela escolta daquela estranha rapariga, deixando-a para trás à mercê de um destino imprevisível e aterrador.

Apesar de Pulga me ter assegurado de que os homens que me rodeavam eram de absoluta confiança, companheiros de Edwin e Tristan, eu sentia-me apavorada. Tentei manter uma postura firme, a cabeça erguida e a convicção que a situação exigia, rezando para que a capa que me protegia do frio também me ocultasse do reconhecimento de algum soldado mais atento.

Enquanto trocávamos de roupa, Pulga repetira as instruções que me dera nessa tarde. Eu sairia da fortaleza como Belinda McGraw, e a escolta conduzir-me-ia em segurança até à floresta. Lá, Tristan estaria à minha espera. E ela, questionei, o que lhe aconteceria? O Conde de Goldheart não hesitaria em matá-la quando descobrisse o logro. Pulga sorrira perante essa ameaça terrível. Pretendia ficar no quarto, a coberto da indisposição que eu simulara. Como eu não podia falar, não existia o risco de a reconhecer pela voz. Debaixo das cobertas, com o disfarce, nenhum criado nos distinguiria. Só o próprio Conde representava perigo. Mas eu não devia preocupar-me. Ela sabia desvencilhar-se muito bem.

A noite começava a desvanecer-se. Os cavaleiros seguiam disciplinadamente, adiante e atrás de mim. A fortaleza ficara por trás da primeira colina, e a floresta já parecia um alvo atingível. O meu coração saltou quando aquele que eu já percebera ser o chefe dos cavaleiros abrandou o passo da montada para ficar a par comigo. O elmo prateado escondia-lhe as feições, e eu sentia-me muito insegura e incapaz de encará-lo.

- A Menina McGraw está confortável? Deseja descansar um pouco?

Quase caí do cavalo. Aquela voz era-me tão familiar como o nascer do Sol. Apesar de não vislumbrar o rosto do cavaleiro, tive a certeza de que sorria, troçando da minha ingenuidade. Desta vez, enfrentei o seu olhar, receando estar enganada, ansiando por uma confirmação.

- Tristan?

- Quem esperavas que fosse, Cat? O rei dos Saxões? - Riu-se baixinho e o seu olhar negro cintilou. - Pensavas que eu te deixaria sozinha, entregue aos caprichos do destino? Estive sempre do teu lado... - A emoção sufocou-lhe a voz. Fez uma pausa para recuperar o controlo e depois estendeu-me a mão. - Sei que tens algo que me pertence e que me tem feito muita falta!

Com um sorriso tolo bailando nos lábios e o corpo a tremer, procurei, na bolsa que trazia a tiracolo, pela pulseira que Pulga me entregara. Estendi-lha e, por um breve instante, os dedos de Tristan enlaçaram os meus.

- Já falta pouco, meu amor! - murmurou baixo, para que só eu escutasse. Depois, incitou o cavalo a avançar para a cabeça da coluna.

Eu continuei onde estava, com mil perguntas afogadas na garganta. Afinal, Tristan viera com Pulga! Não se dera a conhecer, certamente temendo uma reação mais efusiva da minha parte, que deitaria tudo a perder. Ao seu lado, eu conseguia sentir finalmente o doce odor da liberdade e acreditar que tudo ia correr bem.

A manhã esgotava-se quando avistamos os cavaleiros. A caravana saía ordeiramente da floresta: soldados vestidos com as cores de Lorde Garrick, o estandarte da casa - com o escudo brilhante, o carvalho majestoso e o lago protetor, bordados sobre o verde da mãe floresta e o vermelho do sangue dos seus filhos - orgulhosamente erguido diante daquele que eu sabia ser o meu pai, as carruagens transportando a Senhora Myrna, Fiona e as criadas, seguidas por mais guerreiros.

Senti o corpo gelar. Só os esperávamos dentro de dias! Por que tinham vindo tão cedo? Olhei para Tristan, dominada pelo medo. Ele continuou impassível como todos os outros, mas abrandou o passo até ficar ao meu lado.

- Não demonstres nervosismo e mantém a cabeça tapada - ordenou num tom firme e quase ríspido. - Estamos muito perto do acesso à Aldeia dos Sábios e podemos chegar lá em segurança, se Lorde Garrick não desconfiar. Tem calma, é tudo o que te peço!

Calma? Eu estava em pânico! O meu pai trazia consigo soldados suficientes para dizimar vinte vezes a força que me acompanhava. Além disso, nenhuma capa me protegeria da percepção da feiticeira! Instintivamente, levei a mão ao amuleto, orando pelo auxílio da minha avó.

 

Continuamos com aparente normalidade. Dois batedores de Lorde Garrick desviaram-se da caravana e galoparam na nossa direção. Um dos nossos ficou para trás, para recebê-los. Mais tarde, Tristan explicou-me que previra o contratempo. O homem tinha instruções para explicar que acompanhavam uma senhora portadora de uma doença grave, e altamente contagiosa, que procurava a cura dos velhos Druidas. Por essa razão não se detinha para cumprimentar o senhor da terra.

Não olhei para trás. Concentrei-me em domar a respiração e as batidas frenéticas do coração. Pouco depois, o homem regressou, e Tristan esboçou um sinal, indicando-me que tudo correra como planeado. Porém, o meu instinto berrava que a resolução do percalço fora demasiado simples.

É difícil descrever o que senti quando entrei na Aldeia dos Sábios pela primeira vez. Paz e euforia, alegria e nostalgia, segurança e temor, curiosidade e respeito por algo que me transcendia, eram sensações que se revolviam no meu corpo e espírito.

As casas dos druidas eram pequenos abrigos de madeira, feitos com ramos e pedaços de casca de árvore. Apesar disso, tinham um aspecto extraordinariamente sólido. De dentro de uma delas fluía o canto delicado de uma harpa, resultante da mestria e do amor de muitos anos de devoção. Outra respondeu-lhe... e ainda outra. A música flutuava no ar, doce e harmoniosa; uma melodia tocada por vários instrumentos, em locais distintos, que se encontrava e enlaçava com perfeição e deleite, quais amantes apaixonados. No centro da aldeia, sobre um montículo de pedras dispostas em círculo, acendia-se uma fogueira para preparar a refeição comum. Grupos de homens e mulheres, vestidos de branco e cinzento, ocupavam-se com as tarefas usuais de qualquer outra comunidade. Porém, a sua atitude era diferente, como se todos os gestos fossem delicadamente embalados pelo som que refrescava a brisa.

Retive o fôlego ao ver os canteiros e os vasos de ervas curativas, bem cuidadas e viçosas, algumas delas desconhecidas aos meus olhos. Desejei aproximar-me para examiná-las melhor, mas um grupo de anciãos veio ao nosso encontro, e tive de concentrar-me nas homenagens.

Stefan saiu a correr de dentro de uma das casas e acolheu-me nos braços. Depois, rever Berchan, aninhar-me no seu abraço e sentir as batidas fortes do seu coração junto do rosto, fez-me jubilar. Foi como se um vento forte dissipasse todas as nuvens que ensombravam a minha existência; como chegar a casa depois de um longo período de ausência forçada. Já não duvidava do sucesso do nosso plano. No dia seguinte partiríamos juntos, rumo à liberdade.

Todavia, a minha felicidade revelou-se tão efêmera como o rasto de espuma que um navio deixa na água. Ao cair da noite, um dos homens que Tristan deixara de vigia fez-nos chegar a seguinte mensagem: um grupo considerável de soldados de Goldheart e de McGraw deixara o forte e dirigia-se para a aldeia, liderados pelo próprio Conde.

Fôramos descobertos.

Eu sabia que aqueles que se aproximavam só desejavam um fraco pretexto para destruir a Aldeia dos Sábios e expulsar os que nela viviam. Não me custava imaginar Oliver, possuído pelo ódio, a trespassar os druidas com a lâmina da sua espada. Só nos restava fugir e permanecer escondidos nas grutas do penhasco até ao nascer do dia. Os sábios diriam que nunca nos tinham visto. Seria mais seguro para todos.

No meio da aflição, sofri um violento abalo quando Berchan anunciou que não nos seguiria. Só tencionava partir quando a sua instrução estivesse concluída. De outra forma, todos os anos de estudo teriam sido em vão. A decisão do meu irmão revoltou-me, pois sempre tomara como certa a sua tutela. Ele seria o meu professor e juntos enfrentaríamos Myrna. Berchan brincava com a sorte; brincava com a vida! Teimava em atingir a perfeição numa Arte que não nos pertencia. Nós não éramos deuses nem feiticeiros! Éramos apenas humanos com talentos especiais, forçados a desempenhar uma tarefa gigantesca. Se ele dizia que tudo dependia de mim, que eu era a mais forte, por que não vinha conosco para ensinar-me?

Mas os sobressaltos estavam longe de terminar. Stefan também se recusou a acompanhar-nos. O Conde sabia que ele estava na aldeia e, se não o encontrasse cuidando da saúde, teria a confirmação da nossa passagem por ali, o que colocaria os sábios em grande perigo.

 

Tristan não me deixou argumentar. Em menos de nada, já estava na garupa do seu cavalo, galopando rumo ao penhasco. Atrás de nós, os seus companheiros imitaram-nos e dispersaram-se, enquanto os sábios e os aprendizes se apressavam a dissimular os vestígios da nossa presença.

O tempo escapou-se como areia por entre os dedos, enquanto o vento me açoitava o rosto com tanta força que quase me impedia de respirar. Imaginei Oliver irrompendo pela Aldeia dos Sábios, quebrando, destruindo, queimando e matando, no ardor da fúria. Não me sentia segura pelos que deixava para trás. Temia pelos meus irmãos e pelos druidas que nos tinham ajudado de coração aberto.

O braço de Tristan mantinha-me presa contra o seu corpo. Apesar de ele me assegurar de que tudo correria bem, eu percebia-o tenso. O mais dedicado dos meus amigos receava que eu não fosse suficientemente forte para enfrentar o que nos esperava. Forcei-me a concentrar-me no desafio que se erguia diante de nós. Não o decepcionaria!

Por fim, chegamos às rochas, e tornou-se impossível prosseguir a cavalo. Tristan ajudou-me a desmontar e mandou o animal embora. Este obedeceu-lhe como se falassem a mesma língua. Durante uma eternidade, escalamos e descemos, apalpando o caminho à pálida luz que mal conseguia romper as nuvens negras. Tive de livrar-me dos sapatos e segurar na saia que me causava um equilíbrio muito precário, avançando sempre com a ajuda de Tristan sobre o terreno lamacento e traiçoeiro que se desfazia debaixo dos pés, e as pedras aguçadas que rasgavam a carne quais adagas. O vento desalinhou-me os cabelos e atirou-mos para o rosto, cegando-me por completo. Abaixo de nós, o mar estourava contra os rochedos, com tal violência que me ensurdecia. Uma queda seria fatal. Para piorar a situação, a Lua escondeu-se. Seguiu-se uma escuridão total, que não se desvaneceu. Acreditei que a nossa fuga chegara ao fim.

- Vem... - A mão de Tristan fechou-se na minha. - Já falta pouco. Palma a rocha com cuidado. Logo acima de nós existe uma gruta. Lá estaremos a salvo até o dia nascer.

Começou a chover; primeiro pequenas gotas de água, que logo se transformaram numa cascata, tombando sobre as nossas cabeças. Chegamos à gruta ensopados e exaustos, mas isso pouco importava. Por enquanto, estávamos em segurança. Nem um louco se atreveria a seguir-nos, debaixo de tamanho vendaval.

Tristan suspirou de alívio e estreitou-me nos braços. Estremeci involuntariamente quando me murmurou ao ouvido:

- Sei que estás com medo... Sei que não é fácil acreditar, mas prometo-te que não regressarás àquela maldita fortaleza. Juro-te que não tornarás a enfrentar aquele canalha! Só terás de agüentar esta noite, meu amor. Amanhã iremos ao encontro do Edwin, e o teu pesadelo terminará.

As suas palavras confortaram-me. Eu continuava a tremer, mas não de medo e sim de frio. Agora que o esforço terminara, o corpo arrefecera debaixo das roupas encharcadas, e eu tiritava.

- Vem - incentivou Tristan. - Vou acender uma fogueira antes que morramos gelados. Esta gruta só é visível do mar, por isso não corremos riscos. - Guiou-me às cegas, como se conhecesse o lugar de olhos fechados. - Fica aqui. Eu volto já.

Ouvi-o mover-se na escuridão. O meu discernimento começava a funcionar, agora que o perigo se dissipara. Tristan já devia ter utilizado este esconderijo antes. Escutei as pancadas surdas da madeira no chão de pedra e logo uma chama tímida iluminava em redor. Havia muita umidade escorrendo pelas paredes, raízes de árvores pendendo do teto e incontáveis espécies de bolor, mas pareceu-me a mais acolhedora das salas. A minha teoria confirmou-se quando Tristan se aproximou com uma manta.

- Lamento não poder oferecer-te algum conforto, Cat. Nunca imaginei ter o azar de ser forçado a regressar aqui! - Entregou-me a coberta, forçando um sorriso que se distorceu de nervosismo. - É melhor tirares a roupa. Estende-a perto da fogueira para que seque.

Agarrei na manta, fitando-o interrogativamente enquanto me esforçava para falar:

- Tu...?

- Eu estou bem, não te preocupes. Despacha-te, antes que fiques doente!

 

Voltou-se, despiu a capa e a túnica, e sentou-se junto da fogueira, de costas para mim. Eu respirei fundo e comecei a despir-me devagar, sentindo o rosto enrubescer. E se ele espreitasse? Estava nervosa e encabulada, mas também excitada. As emoções do dia apossavam-se da minha vontade. Era fustigada por sensações que nunca experimentara antes. Ansiava pelo aconchego dos braços de Tristan e pela doçura da sua voz.

Sentei-me diante dele, e Tristan só teve coragem para mirar-me de relance. Eu questionava-me sobre o que lhe passaria pela cabeça. Talvez o nosso beijo... Eu também não conseguia esquecê-lo! Talvez algo mais ousado... Imaginaria que me tomava nos braços, assim como eu fantasiava que o apertava contra o meu corpo?

Tristan inspirava-me confiança e segurança. Além disso, era muito atraente! Os cabelos negros caíam-lhe sobre os ombros nus, modelando os músculos firmes. As suas tatuagens ganhavam vida ao clarão da fogueira. Era este o homem que arriscava cada sopro da sua existência para me salvar! Era este o homem que me declarava o seu amor, como se eu fosse a sua única salvação, da forma mais pura e arrebatada...

Corei violentamente, e ele também ficou desconcertado ao surpreender o meu olhar. Levantou-se e afastou-se, regressando com um pedaço de pão seco.

- Vamos comer o que restou, antes de irmos dormir. Precisamos de recuperar as forças.

Ficamos em silêncio, ouvindo o fogo estalar enquanto roíamos o pão duro sem nenhuma vontade. Havia tanta coisa que eu queria perguntar-lhe. Por fim, arranjei coragem para deslizar até ele, surpreendendo-o com a minha iniciativa. Gesticulei, indagando sobre o que deixáramos para trás. Pulga continuava no meu pensamento. O meu estômago revirava-se só de imaginar o que podia ter acontecido. Via Oliver a derrubar a porta do meu quarto com um pontapé e a erguer a rapariga no ar, pelo pescoço, sacudindo-a como se fosse uma galinha e ameaçando que a mataria se não falasse. Tristan apressou-se a sossegar-me:

- Não temas pela Pulga. Tenho a certeza de que está bem. Aquela miúda é mais desenrascada do que eu!

Por entre gestos e palavras doridas, interroguei-o sobre a estranha jovem que arriscara a vida para me salvar. Tristan contou-me que Pulga não revelava o verdadeiro nome a ninguém e que falava pouco acerca do seu passado. O que se sabia, era muito triste. Desde criança que ela vivia na rua e aprendera a sobreviver à sua custa. Quando Edwin começara a reunir homens, aparecera-lhe aquela criatura franzina e arrapazada, pretendendo um lugar na tripulação. Mais por troça do que por simpatia, ele concordara em levá-la consigo se superasse uma série de provas, aparentemente fora do alcance de qualquer rapariga. No final, quando Pulga o forçara a engolir a ironia, ultrapassando os desafios com relativa facilidade, o meu irmão fora obrigado a manter a palavra. Agora, Pulga era um deles, e Edwin estava muito satisfeito com o seu desempenho.

- Acho que ela tem um fraco pelo Edwin - concluiu Tristan com um meio sorriso. - Já a vi realizar o impossível pelo teu irmão. Mas o Edwin continua ligado à Melody e não se apercebe de que pode ter a felicidade debaixo do nariz. Contudo, não posso censurá-lo por isso! O verdadeiro amor só nos bate à porta uma vez e é para toda a vida, quer se concretize ou não.

Disse as últimas palavras com os olhos fixos nos meus. Senti um arrepio quente a percorrer-me, o meu coração disparou e quase parei de respirar. Tristan desviou o olhar e tentou erguer-se. Instintivamente agarrei-lhe o braço, impedindo-o de se afastar. A manta escorregou com a brusquidão do gesto, revelando parte do meu ombro e do seio nu. Ele ficou paralisado pela visão, com o peito oscilando ao sabor da respiração descompassada.

- Cat... - protestou roucamente. - Não...

Não sei qual de nós tomou a iniciativa, mas, no instante seguinte, eu estava nos braços de Tristan, entregando os lábios aos beijos sôfregos, enquanto as suas mãos fortes me afagavam por cima da coberta, descobrindo as formas do meu corpo de uma maneira ousada e quase desesperada. Nem sequer pensei em afastá-lo. Todos os meus sentidos vibravam de alegria. Eu queria mais. Queria ficar ainda mais próxima.

 

Perdi a inibição e enterrei os dedos nos seus ombros, apreciando o calor da pele macia. Deslizei as mãos pelo seu peito e costas, enquanto devorava os lábios doces que cobriam os meus, como uma criança lambuzando-se num pote de mel. Tristan sabia-me bem e provocava-me sensações deliciosas por todo o corpo.

- Não... Cat... - O seu protesto penetrou na névoa que cobria a minha razão, fraco e rouco, tão inseguro como vão. - Não!

Afastou-se aos tropeções e atirou-se para o chão, junto da parede da rocha, enrolando-se sobre si próprio como se padecesse de uma dor insuportável. Curiosamente, eu também sentia essa dor. O meu corpo suplicava por continuar junto do dele, ansioso por ceder às suas carícias. Agora que Tristan se apartara, eu sofria de frio, desconforto, angústia e raiva, por não ter conseguido segurá-lo.

Sem pensar duas vezes, segui-o e abracei-o pelas costas, afastando-lhe o cabelo negro para beijar-lhe a pele macia do pescoço. Tristan ficou tenso e parou de respirar. As suas mãos tremiam quando esboçou um movimento fraco para evitar-me. O seu olhar estava luminoso, atormentado por um fogo que o tornava ainda mais belo.

- Não faças isso, Cat... Tu não percebes...

É claro que percebia! Tristan desejava-me. Eu sabia-o, porque também experimentava o ardor da paixão, tal e qual como ele próprio mo descrevera há muitos anos, na pele, no coração, na respiração... Era algo forte e irracional, que me impedia de pensar em outra coisa que não a necessidade de tocar e ser tocada. Era óbvio que me tinham ensinado que uma mulher se devia manter casta até ao casamento; que apenas se devia entregar ao homem que a desposasse. Mas não íamos nós casar? Eu tinha a certeza! Não queria outro marido que não Tristan! Jamais outro homem me faria sentir assim!

Tapei-lhe os lábios com os dedos e abri a manta para convidá-lo a partilhar do meu calor. Tristan estremeceu, como se devastado por uma tempestade. A sua fragilidade provocou-me um sorriso. Para um homem, ele era terrivelmente tímido. Qualquer outro teria orgulho em exibir a sua experiência e em afirmar que era o melhor de entre os machos, tal como o Conde de Goldheart fizera. Mas não o meu Tristan! Ele engoliu em seco e arquejou roucamente:

- Se eu voltar a tocar-te, Cat, não conseguirei controlar-me... Silenciei-o com um beijo, e Tristan soltou um gemido. Deslizou para dentro da coberta e rendeu-se ao que ambos desejávamos. Logo, a sua pele tocava a minha, sem nenhuma barreira, sem nenhum pudor. Os seus lábios moviam-se pelo meu pescoço, até à orelha, murmurando palavras de amor que eu retribuía com carícias. Era impossível dizer qual de nós tremia mais. O desejo era tão forte, e o prazer, tão doce...

- Eu não te quero magoar, meu amor - sussurrou. - Tens a certeza?

Ergui-me ao encontro dele e todas as hesitações se tornaram vãs. O corpo de Tristan entrou no meu qual ferro quente. Enterrei as unhas nas suas costas, arfando em busca de ar. Se pudesse teria gritado, mas não podia; e logo percebi que queria gritar, mas não de dor. Esta fora tão forte como breve. Agora, o meu corpo era percorrido por ondas de um prazer intenso e irracional. Isto era paixão? Não! Isto era loucura!

De súbito, ele clamou o meu nome e estremeceu como se estivesse a partir-se. Fiquei decepcionada quando parou e tombou sobre mim, ofegante e trêmulo. Eu sentia-me tonta, a arder por dentro e por fora. Queria mais! Forcei-me a recuperar a razão. Sabia que haveria mais assim que nos encontrássemos em segurança. Então, não permitiria que Tristan parasse!

Permanecemos juntos, abraçados, trocando carícias e apreciando a calma doce que nos limpava a alma. Aquele instante fora mágico... E fora só nosso!

- Amo-te, Cat! Amo-te desde sempre! Esperei tanto por este momento...

Coloquei a sua mão sobre o meu peito para que sentisse as batidas do coração. O meu sentimento era tão forte que não podia exprimi-lo por palavras. Tristan fora um amigo, um irmão e agora, além de tudo isso, era também o homem que eu desejava.

- Assim que aportarmos em segurança, iremos casar - continuou ele. - Não voltaremos a separar-nos. O Edwin não irá opor-se. Há muito que sabe o quanto eu te amo.

 

Permanecemos deitados no chão de pedra, enrolados à manta, o meu corpo aconchegado no dele. Tristan falou sobre a casa que iria construir para nós e nos seus planos para o futuro. Queria criar cavalos. Queria ter muitos filhos... Por fim, reuniu coragem para perguntar-me se me magoara. Sorri e confortei-o. Achava a sua insegurança deliciosa. Pasmei e emocionei-me quando confessou que também fora a sua primeira vez. Afinal, a insegurança de Tristan resultava da inexperiência. Amava-me tanto que, durante muitos anos, negara os seus impulsos de homem. E não estava arrependido! A nossa união podia não ter sido como ele sonhara, num quarto perfumado, entre lençóis de linho; mas fora arrebatada, apaixonada, espontânea...

Teríamos muitas oportunidades de nos amarmos como ele idealizara. Contudo, a primeira vez ficaria para sempre na nossa memória como a mais especial de todas.

 

Encontrei Fiona a brincar no jardim da nossa mãe. Segurei-a ao colo e contei-lhe uma história de amor. Falei-lhe acerca da luta que a Senhora Edwina travara para proteger a sua bebê do grande mal que se abatera sobre a nossa família. A minha irmãzinha deixou o meu colo para colher flores e enfeitou a campa da mãe. Depois, voltamos para casa de mãos dadas. Lorde Garrick esperava-nos de braços abertos e com beijos cheios de amor. Regressara de viagem e trazia um presente para Fiona: uma boneca de pano muito bonita, com longos cabelos pretos encaracolados e enormes olhos verdes.

- É linda! - gritou a menina, delirando de felicidade. - É parecida contigo, Cat! Vou dar-lhe o teu nome.

A noite caiu. Eu acabara de deitar-me quando ouvi Fiona gritar aflitiva e insistentemente. Corri em socorro da minha irmãzinha e encontrei-a no quarto, rodeada por um círculo de fogo. As chamas já se alastravam à cama e às cortinas, devorando tudo com as línguas impiedosas. Chamei por Fiona, mas ela continuou parada no centro do flagelo, berrando por mim, de costas voltadas. Tentei, em vão, penetrar por entre as labaredas. Então, muito devagar, a minha irmã voltou-se ao meu encontro e, enquanto o seu corpo girava, ia-se modificando, crescendo, ganhando as formas de uma mulher. Os seus cabelos louros assumiram a cor do fogo e um olhar castanho-avermelhado trespassou-me a alma, dilacerando-me por dentro. Quem estava ali era Myrna, e não Fiona. Na mão, segurava a boneca que tinha o meu nome. Os seus lábios rubros abriram-se num sorriso escarninho, enquanto vomitava na voz musical:

- É inútil esconderes-te, Catelyn! Não podes fugir de mim! Vais morrer, maldita!

Com um gesto rápido de profundo desprezo, arremessou a boneca para as chamas. De imediato, o fogo começou a consumir-me a carne. Gritei, trespassada por uma dor insuportável. E o choque brutal forçou-me a escancarar os olhos à realidade.

O grito morreu-me na garganta muda, enquanto os olhos se esbugalhavam de susto. Acabara de despertar de um pesadelo para tombar noutro muito pior, pois não havia como escapar do horror que me esperava.

- Assustada, querida? Estavas a sonhar comigo?

A lâmina fria da espada de Oliver, Conde de Goldheart, pressionava o meu pescoço. Rodei os olhos, procurando por Tristan. O seu corpo nu jazia muito perto, afundado numa poça de água tingida de sangue. Estendi uma mão ao encontro do meu amor, sem me importar com a própria vida. O Conde empurrou-me com violência, forçando-me a cair desamparada.

- Muito bem! Que demonstração comovente de afeto! Não te preocupes, Catelyn! O teu amante está apenas desacordado. Por enquanto... Olha bem para ele, sua reles traidora, porque será a última vez que lhe pões a vista em cima!

A um gesto seu, os guardas que se encontravam na gruta desapareceram, arrastando o corpo de Tristan. Eu recuei sob a pressão da lâmina, com o desespero a dominar-me os sentidos. Oliver ia matar Tristan! Ele ia...

 

- Dói, querida? - troçou abertamente do meu pavor, encostando o rosto ao meu. - Acredita que dói muito mais encontrar a noiva deitada com outro homem; ver na manta que lhe cobre a nudez o testemunho da sua virgindade perdida... - Os seus olhos metálicos brilharam perigosamente, e os dentes perfeitos rangeram de fúria. Como te atreveste, fedelha? Imaginas como me foi difícil manter as mãos afastadas desse corpo provocante, aguardando, respeitando, lutando contra o desejo? - Deslizou a lâmina da espada pelo meu peito, até ao ventre. - Eu devia pôr-te a marca do meu gado, para que todos soubessem que me pertences. Mas teremos tempo de nos divertirmos!

- Recuou com brusquidão, ordenando secamente. - Veste-te! E é bom que sejas rápida, porque, enquanto espero por ti, estarei a brincar com o teu amante.

Enfiei-me no vestido o mais rápido que consegui, tremendo, tropeçando, caindo, dominada pela aflição. A luz entrava pela abertura da gruta, revelando que o dia nascera havia muito. Por que nenhum de nós despertara? Como era possível que o meu sono leve e a percepção aguçada não tivessem denunciado a aproximação do perigo? Como pudera um homem experiente como Tristan deixar-se capturar tão ingenuamente? Estávamos tão confortáveis com a nossa felicidade, que esquecêramos o quanto a realidade era cruel. E esta não nos perdoara!

O céu estava cinzento, e o mar, agitado e escuro. As aves marinhas gritavam uma melodia estridente, solidárias com a minha dor. De Tristan, nem sinal. Goldheart arrastou-me até onde os cavalos nos esperavam, sem me dar hipótese de protestar ou interrogá-lo sobre o destino do homem que eu amava. Senti dentro do peito a agonizante certeza de que o perdera para sempre.

Fiz o caminho de regresso à fortaleza com o coração a escamar, pele a pele, mortalmente ferido. A minha horrenda desconfiança ganhava sustento à medida que avançávamos. Avistei vários cadáveres sobre as rochas e reconheci neles os guerreiros que me tinham acompanhado nesta derradeira aventura. Oliver caçara-os como animais e deixara-os a apodrecer, à mercê dos caranguejos e dos pássaros, que se refestelavam com o inesperado e macabro festim.

- Estás a contá-los? - Escarneceu o monstro, sem um vestígio de humanidade. - Quantos faltam? Dois? Três? Não faz mal! Esses irão relatar aos demais o que acontece com aqueles que se atrevem a desafiar o Conde Oliver de Goldheart.

Fui empurrada para uma cela do forte, escura, úmida e gelada, tão pequena que mal podia abrir os braços e suster-me de pé. Ali fiquei durante muito tempo, deitada no chão de pedra irregular e encharcado, sem comida nem água, no mais profundo silêncio. O dia passou sem que me apercebesse. Dentro da mente, revivi a noite anterior até à exaustão. Vi o sorriso luminoso de Tristan, os seus olhos doces e profundos, brilhando de contentamento. Senti o calor do seu toque na minha pele, o deslizar suave do seu corpo sobre o meu. E ouvi a sua voz enumerando os sonhos, os planos para a nossa felicidade... Sonhos e planos que jamais se realizariam! Não haveria casa na montanha, nem negócio de cavalos, nem dezenas de crianças felizes no nosso futuro. Toda a esperança perecera naquela gruta. Tristan morrera, e o meu coração finara com ele. Amaldiçoei o momento em que fechara os olhos e adormecera, permitindo que o pérfido destino usurpasse o meu bem mais precioso.

E, à medida que a noite avançava, percebi que o martírio que eu vivia estava longe de resumir-se à morte de Tristan. Primeiro que

Goldheart chegasse até nós, passara pela Aldeia dos Sábios. A imaginação mostrava-me as casas destruídas e os cadáveres dos sábios empilhados... e, entre eles, Berchan e Stefan.

As dores da minha carne não se comparavam com as dores do espírito. Sabia-me à beira da loucura e não queria lutar pela lucidez. Diante de mim só existia sofrimento e solidão. Desejei com todas as forças que Oliver viesse falar-me e que, num ímpeto de raiva, pusesse termo à minha vida. Esperei com uma ansiedade obcecada. Esperei e esperei...

A manhã nasceu, e a luz tornou a espreitar pela estreita fresta da cela. Um homem veio ao meu encontro e pareceu surpreendido por não encontrar resistência. Segui-o sem um protesto, sentindo que o meu corpo não me pertencia. Tinha a alma seca, consumida pela dor. Não temia o que me esperava. Só desejava que fosse rápido.

 

Fui conduzida ao meu quarto, onde as jovens criadas me aguardavam. Deram-me banho e vestiram-me, tagarelando com o entusiasmo habitual, como se esta fosse uma manhã igual às outras. Quando terminaram de arranjar-me, um guarda apareceu, avisando que tinha ordens para levar-me à presença do Conde. Segui-o com uma pose altiva, preparada para enfrentar qualquer castigo terminal. Oliver privara-me da felicidade, mas não podia usurpar-me o orgulho.

A besta sanguinária esperava-me na sala de reuniões. Um tabuleiro repleto de iguarias fora deixado sobre a mesa. Havia leite, sumos de frutas, pão quente, bolo, geléia, mel e vários tipos de queijos. Convidou-me a sentar diante dele e a servir-me. Fiquei de pé, ignorando o convite, apesar de sentir-me fraca e tonta devido ao jejum. Não me sentaria à mesa com o algoz de Tristan e dos meus irmãos. Goldheart encolheu os ombros e começou a comer, observando-me em silêncio. Quando terminou, recostou-se na cadeira e falou devagar, saboreando as palavras:

- Apesar de tudo o que aconteceu, Catelyn, devo fazer-te justiça. Tu és uma mulher de vontade forte e digna da minha admiração. Foi lamentável, não saberes escolher os teus amigos! Realmente deplorável! Nós dois poderíamos ter feito grandes coisas...

Ergueu-se devagar e pairou à minha volta, como um grande corvo esfomeado cobiçando a carniça. Subitamente, aproximou os lábios e murmurou-me ao ouvido:

- Lorde Garrick ainda não conhece toda a história. Só lhe contei os pormenores suaves: a fuga, a conspiração... Poupei-o ao desgosto de saber que a filha é uma rameira que se deita com vagabundos, com renegados, com traidores, com a escória desta terra maldita! Acariciou-me o cabelo delicadamente, afastando-o para descobrir o pescoço. - Acredita que pouco me importa a tua traição. Já fui atraiçoado antes! As mulheres não passam de cadelas no cio, que desconhecem o significado da palavra lealdade. O que me magoa é ter acreditado que tu eras diferente! Parecias tão sincera, sem medo de me olhar nos olhos, sem medo de exprimir os teus pensamentos. Pensei que podia confiar em ti, Catelyn... E é isso que me enlouquece! Afastou-se devagar, deu dois passos e voltou-se de repente, com o braço erguido e a mão aberta como uma lança na direção do meu rosto.

- Puta!

A bofetada atirou-me pelo ar. Caí desamparada, sentindo o sabor do sangue na boca e a mente invadida por pequenas luzes brilhantes que piscavam como estrelas. Dentro dos meus ouvidos ecoavam gargalhadas, finas e melodiosas... as gargalhadas de Myrna.

Enquanto eu jazia no chão, lutando para manter a consciência, Goldheart aproximou-se, rosnando e espumando como um cão raivoso:

- Eu não quis acreditar, mas a feiticeira tinha razão. Tu nunca me amaste! Apenas cedeste à minha corte para ganhares tempo, até que o teu amante viesse resgatar-te. Não é verdade, Catelyn?

Fiquei gelada, por dentro e por fora. Oliver chamara feiticeira a Myrna... Então, ele sabia! Como era possível negar a velha fé e a existência de semelhantes criaturas, se se relacionava com uma? A não ser que...

- Vejo que o meu conhecimento da habilidade de Myrna te surpreendeu - replicou com um sorriso escarninho. - É claro que sempre soube! Por quem me tomas? Por um tolo? Só uma louca, imprudente e ingênua se atreveria a tentar enganar-me, como tu fizeste! A Myrna não é nenhuma dessas coisas. Nós temos um entendimento. Ela pretendia influência na sociedade; eu desejava controlar a força estranha e poderosa que a move. Estás a imaginar, Catelyn? Eu, Oliver, Conde de Goldheart, administrando tamanho poder? E essa força será herdada pelos meus filhos. Não existirá rei ou exército que se oponha ao poder do meu sangue. O mundo estará ao alcance das minhas mãos! E tu podias ter ficado do meu lado, como minha rainha... Como minha igual!

Fui sacudida por um frêmito de repulsa. Como era habitual, tudo se resumia à obsessão pelo poder! Encontrei na ira alento para reagir e gesticulei devagar para que ele me compreendesse.

- Casar-me com a Myrna? - revidou de imediato. - Isso seria inviável para os meus planos, querida! Nunca te interrogaste por que razão a jovem e linda esposa de Lorde Garrick ainda não lhe deu os filhos que assegurariam a sua posição na família? A Myrna mantém o aspecto de uma bela ninfa, mas, na realidade, não passa de uma velha decadente, amaldiçoada pela sua raça. E, se não pode procriar, não serve os meus intentos! - Agarrou-me o braço e forçou-me a ficar de pé, presa no seu olhar. - Por isso nos unimos. A Myrna queria vingar-se da tua família, e eu desejava que os meus filhos possuíssem as suas habilidades. - Os olhos cinzentos adquiriram o brilho enlouquecido que me causava arrepios. - E tê-las-ão, porque a futura mãe dos meus filhos é descendente da mesma raça maldita.

Finalmente se desvendava a enigmática motivação do Conde de Goldheart. E não podia ser mais odiosa.

- Magia... - contrapus a custo, com a garganta a rasgar-se.

- Ensinar... Nunca!

Oliver podia violar-me e engravidar-me, mas jamais me forçaria a ensinar uma arte de destruição. Para minha surpresa, ele respondeu com uma gargalhada:

- Acreditas que deixarei os meus herdeiros ao teu cuidado? Que permitirei que lhes envenenes o espírito contra mim? Que terás liberdade para te moveres no meu mundo? És mesmo ingênua e estúpida, rapariga! Depois do que fizeste, o teu quarto será na torre do forte. Ficarás trancada, esperando que eu deseje usar o teu corpo. E, quando os nossos filhos nascerem, serão entregues àquela que domina a Arte e não a uma aprendiz inábil.

Estremeci aterrada. Esta era uma sentença pior do que a morte! Forcei a garganta mais uma vez:

- Tu... não... controlar... Myrna...

Oliver empurrou-me para longe, cuspindo com desprezo:

- Não te preocupes comigo, querida! A Myrna está controlada. Sem mim, não é nada, tal como tu! A partir de hoje, saltarás quando eu te mandar, rebolarás quando eu te ordenar, comerás e beberás quando eu entender, dormirás quando eu quiser, respirarás se eu permitir! A tua vida pertence-me, Catelyn! Atreve-te a contrariar-me, e farei com que me supliques pela morte mil vezes antes de te matar!

Saiu e bateu com a porta. Porém, antes que eu pudesse respirar fundo, Myrna irrompeu pela sala. Fui fulminada pelo brilho das duas pedras que pendiam do seu colar: uma laranja e uma violeta. A bruxa percebeu o meu sobressalto e afagou-as, escarnecendo abertamente:

- São perfeitas, não é verdade? Nunca deveriam ter sido separadas! Mas eu encarregar-me-ei de juntá-las e, quando forem todas minhas, nada nem ninguém poderá deter-me! - Diante de mim, estendeu a mão para tocar-me nos cabelos. - Não passas de uma tola, romântica e fraca, como a tua avó! Sei que não percebes a verdadeira razão desta guerra, mas eu também não perderei tempo a explicar-te. Já não representas uma ameaça, Catelyn! Em breve morrerás... E contigo extinguir-se-á a petulância e a esperança dos que ousaram desafiar-me!

Não fui capaz de reagir; nem mesmo quando Myrna rolou a pedra violeta entre os dedos.

- O Quinn era o mais fraco de todos vós. Invejava a destreza do Aled e a força do Edwin. Esforçava-se tanto para ser como eles, que se esqueceu de procurar o seu próprio rumo. Eu ofereci-lhe um objetivo... O Quinn poderia ter ficado ao meu lado, enquanto me aprouvesse, eliminando todos aqueles que se opusessem ao nosso amor. Mas até nisso falhou! E a culpa foi tua! Não sentes remorsos por teres enviado o teu irmão para a morte? Eu sei que sentes! Mas acredita que ainda agora só comecei! O Edwin vem a caminho... O grande herói! Porém, só chegará depois do casamento e, então, será tarde! - Gargalhou, sacudida por uma excitação que não conseguia ocultar. - Eu preparei uma surpresa para todos vós, principalmente para o querido Oliver! Ordinário insolente! Irei mostrar-lhe a fragilidade do seu poder!

Myrna estava verdadeiramente eufórica. Qualquer que fosse este novo plano que a sua mente diabólica idealizara, fazia os seus olhos brilharem como rubis. Era uma visão aterradora! Deleitada com a comoção que provocava, ela aproximou o rosto do meu e acariciou-me a face com as unhas afiadas, enquanto miava sedutoramente ao meu ouvido:

- Estás a pensar que irás revelar esta nossa conversa ao teu ultrajado noivo? Julgas que ele acreditará em ti? Houve um tempo em que talvez acreditasse! Sabes, todos os homens têm as suas fraquezas, até mesmo o poderoso Conde de Goldheart. Eu ainda não compreendi como, mas tu tocaste o seu coração. Até descobrir a tua traição, ele teria feito tudo o que lhe pedisses! E eu não podia permitir tal coisa, entendes? Acabarias por voltá-lo contra mim! Felizmente, a tua precipitação e burrice acabaram por ajudar-me. Confiaste que não te reconheci na planície? Pensaste que não senti o teu cheiro? A tua fuga poupou-me uma mão carregada de trabalho. Em vez de ter de provar a Oliver que a sua noiva não passava de uma pérfida mentirosa, ansiosa por enfiar-se na cama do primeiro vagabundo que lhe aparecesse, pude conceder-lhe o desgosto de te surpreender no ato. Foi glorioso! A porta abriu-se, e uma cabeça loura, repleta de caracóis, introduziu-se no interior.

- Mamã? Vem, mamã! O papá está à espera.

Fervi por dentro. Escutara o discurso vitorioso de Myrna sem pestanejar, mas ouvir Fiona chamar-lhe ”mãe” era mais do que podia suportar. Esforcei-me para libertar-me da rigidez que me paralisava. Contudo, o corpo recusava-se a obedecer-me, tal como na noite em que a bruxa tentara marcar-me com o ferro da lareira. Seria um feitiço ou apenas uma reação física, um medo irracional, o cansaço e a fraqueza? Myrna sorriu, desdenhando da minha aflição, enquanto respondia melosamente ao apelo da criança:

- Vou já, querida! Não queremos que o papá se aborreça! Empinou o nariz, em desafio. - Não vens dizer ”olá” à tua irmã, Fiona?

Na minha impotência, vi o rosto infantil distorcer-se no já familiar esgar de repulsa.

- Ela não é minha irmã! - objetou Fiona, com absoluta convicção. - Eu não gosto dela!

Myrna gargalhou e desapareceu pela porta entreaberta, abanando as saias com uma vaidade orgulhosa. Fiona ficou onde estava, fitando-me com um olhar atemorizador, antes de agitar os punhos cerrados e gritar:

- Vais morrer queimada!

Depois que ela saiu, os meus ossos transformaram-se em papas. Estatelei-me no chão, com a sua voz vibrando dentro da cabeça como um presságio funesto. Fiona falara com a convicção da verdade, porque, assim como eu, também ela já vira a minha morte.

Corria sem rumo. Corria pela vida, sabendo que não podia escapar à morte. Corria com toda a força do desespero. Corria, porque nada mais podia fazer.

Ao meu redor, os corpos tombavam com gemidos de dilacerante dor, trespassados pelo ferro das espadas, decepados pelo corte dos brutais machados de guerra. Chovia torrencialmente, mas a água que ensopava a terra jamais conseguiria lavar o sangue que se entranhava no solo. O ar estava empestado por um cheiro nauseabundo; uma mistura de suor e madeira queimada, a que se juntava a peste da carne carbonizada. O fumo erguia-se numa muralha de denso nevoeiro e impedia-me de ver um palmo diante do nariz. De entre o fragor, pareceu-me que alguém gritava o meu nome.

Um homem vestido com as cores de Goldheart surgiu no meu caminho. Estaquei com brusquidão e escorreguei na lama, caindo desamparada. Um pânico ancestral apoderou-se do meu ser. Enquanto lutava para respirar, escutei mais uma vez o meu nome. O apelo vinha de tão perto, que não suscitava dúvidas. Era Edwin...

Esbracejei aflita, tentando impedir que o soldado do Conde me agarrasse. Foi inútil! Os olhos pejados de ódio do desconhecido deixavam uma mensagem clara. Só não me matava, porque temia a ira do seu senhor. Debati-me furiosamente, esforçando a garganta para emitir um som que revelasse a minha posição a Edwin. Como poderia o meu irmão encontrar-me no meio desta batalha sangrenta?

Então, a força insuportável que o homem exercia nos meus braços abrandou bruscamente, com um estremecimento violento. O som seco e frio que me assobiara aos ouvidos só abalou a minha consciência quando uma golfada de sangue me banhou a pele, odiosamente quente e viscosa. O rosto enraivecido do meu captor desaparecera, assim como a cabeça de cima dos seus ombros. Não contive um vômito de repugnância, enquanto empurrava o tronco para longe de mim. Olhei em frente, sufocada pelo horror, rezando em agonia pela imagem de Edwin. Porém, a visão que me esperava era diferente.

O guerreiro que matara o soldado estava montado num garboso cavalo branco. Não usava as cores de Goldheart nem as de nenhum outro aliado da casa do meu pai. Trajava de forma grosseira, como os bárbaros que invadiam as nossas terras, mas a sua beleza e força eram estonteantes. Os seus cabelos dourados esvoaçavam-lhe sobre os ombros, e os seus olhos tinham o azul irreal dos meus sonhos. Era ele!

Gritou uma ordem numa língua incompreensível e estendeu-me a mão. O meu olhar quedou-se no pulso grosso, onde uma tatuagem de grande minuciosidade e beleza lhe enfeitava a carne. Era a representação de um animal semelhante a uma serpente marinha, mas sem o ser. O corpo longo enrolava-se sobre si próprio, e o focinho assustador encontrava-se com a cauda debaixo da representação do Sol, como se a gigantesca e poderosa besta fosse saltar subitamente e engolir a bola de fogo. Senti a minha vontade esvair-se, arrastada pelo aguaceiro que tombava sobre nós. O desejo de segurar aquela mão e deixar-me içar para junto dele era tão primário, que bloqueava qualquer réstia de razão...

Acordei alagada em suor, com o coração a tentar saltar por entre os dentes que batiam. Levantei-me da cama e forcei o corpo dorido a dirigir-se à janela. Precisava de certificar-me de que tudo o que vira não passara de um sonho.

 

Um sonho... Ou um presságio? Um sonho... Um pesadelo! Ou uma premonição?

 

Tinha de haver uma explicação para o mistério que me assombrava. E a chave era aquele desconhecido que tanto surgia a salvar-me a vida como a terminá-la. Estremeci horrorizada ao recordar a ferocidade da batalha revelada no pesadelo. Seria este o negro destino da minha terra e do meu povo?

 

”Onde estás avó? Preciso de ti! Preciso de respostas!”

 

”Em breve...”

 

Sobressaltada, olhei para todos os cantos procurando por Aranwen. Mas fora o vento que eu ouvira. A brisa gelada que invadia o quarto e me fazia tiritar também troçava da minha angústia e desencanto.

Nos últimos dias, suplicara muitas vezes pelas explicações da minha avó. Os discursos de Myrna e Oliver haviam deixado claro que as duas feiticeiras se conheciam e que algo suscitara o ódio e o desejo de vingança da bruxa de cabelos de fogo. Agora, Myrna andava atrás das pedras que guardavam o poder de Aranwen. E isso provava que não era tão poderosa como apregoava. Eu tinha de impedi-la de atingir o seu objetivo. Mas como fazê-lo sozinha? Os meus irmãos estavam mortos ou condenados... Myrna só se apiedava de Fiona, porque era a guardiã da sua alma, e a minha irmã seria sempre uma inimiga e nunca uma aliada.

Acariciei a pedra azul, minha companheira e protetora desde o nascimento, sentindo uma estranha calma fluir pelo corpo. Porém, sabia que qualquer esperança era mera ilusão. Aos poucos recuperava a força, mas não conseguia falar e tinha a mente e o coração destroçados. Diante de mim, estendia-se a perspectiva de uma existência tortuosa, vivendo ao sabor dos caprichos de Goldheart, desejando a morte como única forma de libertação.

 

Somos seis, mas somos um só...

 

Fôramos ingênuos e presunçosos, ao sonhar que podíamos insurgir-nos contra uma feiticeira e um homem com o poder do Conde. E tínhamos sofrido as conseqüências da nossa inocência. Brevemente, seria a minha vez de pagar pelo orgulho de ser uma McGraw.

A manhã do meu casamento acordou fria, mas sem vestígios da chuva que caíra nos últimos dias. O ar estava impregnado com um forte cheiro a maresia. Da janela do meu quarto, olhei para o mar assustadoramente calmo e para a linha do horizonte que se confundia com o céu, ambos cinzento-avermelhados. Mesmo nos dias de grande tormenta, nunca os vira desta cor. Dir-se-ia que os Elementos estavam reprimidos e que, brevemente, se revoltariam e castigariam implacavelmente os mortais.

 

As criadas da Senhora Myrna pairavam ao meu redor, ajeitando-me o vestido, o cabelo, o rosto, as unhas... Dentro de mim, uma voz revoltada clamava: Por que não te manifestas, avó? Por que não fazes nada para impedir esta desgraça?

A Senhora Myrna organizara um casamento digno de um rei. Todas as personalidades da Grande Ilha marcariam presença, assim como as mais altas figuras da corte. A cerimônia realizar-se-ia fora da fortaleza, junto da aldeia, com a praia e o mar como fundo. Além da beleza que o lugar oferecia, seria ótimo para a influência e para o prestígio do Conde partilhar este momento tão especial com o seu povo. O altar foi montado próximo do penhasco, onde poderíamos fazer os nossos votos de olhos postos no mar, e as grandes tendas, armadas à entrada da aldeia, para dar apoio aos convidados. Seria muito romântico, assegurava a minha madrasta.

Só havia duas coisas que podiam estragar a festa: a chuva e a chegada de Edwin McGraw. Quanto à primeira, a bruxa assegurava que não cairia uma gota do céu. E os espiões de Goldheart confirmaram-lhe que Edwin jamais chegaria a tempo de impedir o casamento. Mesmo assim, Oliver plantou um soldado em cada canto. Não gostava de correr riscos, e distanciar-se do forte implicava vulnerabilidade. Com tanta segurança e todos os pormenores cuidados até ao mínimo detalhe, eu não imaginava o que Myrna podia ter preparado contra o seu cúmplice.

Segundo Oliver fizera questão de salientar, Lorde Garrick só ficara na Enseada da Fortaleza para manter as aparências e por gratidão para com o aliado que, apesar de atraiçoado, cumprira a sua palavra e levara adiante o casamento com uma mulher perversa e desonrada. Eu ainda não o vira, mas, mesmo que tivesse oportunidade de me justificar e suplicar pela sua ajuda, sabia que seria inútil. Tal como Edwin, aos olhos do meu pai, eu deixara de ser uma McGraw.

Aled e Melody haviam chegado na noite anterior e sido imediatamente informados do meu ato condenável. Melody manifestara vontade de ver-me, mas fora proibida. Eu devia permanecer sozinha até provar arrependimento. Quanto a Aled, eu não imaginava o que se passava na sua cabeça. Temia que ele e a sua família fossem as próximas vítimas da bruxa. Myrna jamais deixaria o primogênito do herdeiro dos McGraw escapar com vida.

Quando pensava nos meus irmãos mortos, no meu amor perdido e em todos os que tinham perecido para alimentar a ambição dos dois conspiradores, eu sentia-me à beira da loucura. Estava tão vulnerável como um animal atado, conduzido para a matança. Iria assistir impotente ao princípio do meu fim, plenamente consciente de que o tormento ainda mal começara.

E o momento tão temido chegou.

Ajudaram-me a subir para a carruagem e conduziram-me até ao local onde o noivo, as nossas famílias e os convidados me aguardavam. Os aldeões pasmavam, maravilhados com a magnitude e a beleza do acontecimento. Os nobres elogiavam a distinção do primo do rei. Por toda a parte se comentava a minha sorte. O Conde de Goldheart era um homem bom e poderoso, e eu, a mais afortunada das mulheres.

Enquanto avançava aos solavancos, a exaltação da multidão começou a sacudir-me o espírito. Todos pensavam que eu era uma noiva feliz. E se descobrissem que a verdade era o oposto? Oliver estava seguro da minha submissão e da sua vitória. Mas eu não tinha de render-me à sua vontade! Afinal, já não tinha nada a perder!

Assim que os meus pés tocaram a terra, tomei a decisão final. Só teria de esperar até que todos os olhos estivessem postos em mim e não fosse possível silenciar-me. Cuspiria na cara do Conde, mal o padre me pedisse para confirmar os votos. Perante o meu desprezo, Oliver seria forçado a tomar uma posição. Se me matasse, seria o fim do meu martírio.

O Padre Sebastião falava, mas eu não o escutava. Nos últimos instantes de vida preferia recordar os magníficos dias da minha infância. Encontrei-me de novo junto dos meus irmãos, rindo e brincando no lago. Os rapazes formavam um círculo e atiravam-me ao ar. Eu pulava de colo em colo, até mergulhar na água. Evoquei o abraço da minha mãe e o calor dos seus beijos. Relembrei o carinho no olhar do meu pai, quando a guerra ainda não era um veneno letal na nossa terra. E chamei à memória o amor de Tristan. O meu coração sabia que, onde quer que ele estivesse, não gostaria de ver-me prostrada e derrotada. Os meus companheiros de batalha não me veriam de cabeça baixa. Se estava condenada, morreria amaldiçoando os nossos inimigos!

Berchan e Stefan não se encontravam entre os convidados, o que era conclusivo quanto ao seu destino. Não consegui evitar que a imagem dos seus corpos empilhados sobre os destroços da aldeia e os cadáveres dos sábios, depois do ataque feroz do monstro que sorria candidamente ao meu lado, me roubasse o fôlego. Em breve, estaríamos juntos e em paz.

Não muito longe, Melody chorava baixinho; sofria por mim, impotente para ajudar-me. Aled estava pálido e respirava com dificuldade, como que mergulhado num dilema profundo... Porém, era demasiado tarde para arrependimentos.

O Padre Sebastião aguardava por uma resposta. Eu nem ouvira a pergunta, mas sabia que chegara o momento. Os olhos de Oliver tinham o brilho da vitória, e os seus lábios, o trejeito escarninho que me ensandecia de raiva. Esse sorriso ia morrer! Tinham-me sufocado a voz, para que não pudesse gritar a minha revolta aos quatro ventos, mas jamais me domariam a vontade.

A multidão esperava a minha confirmação em silêncio. E eu cuspi na cara do meu noivo.

Enquanto a saliva escorria pela face do altivo Conde, ergueu-se um breve murmurinho ao nosso redor, que finou no instante seguinte. Todos sustiveram a respiração, demasiado assombrados para reagir.

Oliver de Goldheart ficou lívido. O seu olhar revelou que esperava muito da vida, mas nunca imaginara esta minha reação. Enquanto o burburinho carregado de pasmo subia de tom, o rosto do Conde desfigurou-se num esgar de ódio, a sua boca deixou escapar um urro irado e a mão abriu-se para me agredir. Enrolei-me sobre mim própria e esperei pelo impacto da bofetada.

- Não te atrevas a tocar-lhe!

Abri os olhos e vi que Aled segurava a mão do Conde, com uma postura ameaçadora. Oliver rangeu os dentes e rosnou em resposta:

- Se não me soltares imediatamente, McGraw, mandar-te-ei abater como um cão vadio!

- Porquê? - desafiou o meu irmão. - Não és homem suficiente para fazê-lo sozinho?

Goldheart berrou ferozmente e recuou um passo, desembainhando a espada. Aled imitou-o. Nesse instante, do meio da multidão levantou-se um clamor tempestuoso. Por toda a parte, homens bronzeados e tatuados deixavam cair as capas que os haviam confundido com os aldeões. Todavia, quem primeiro avançou não foi um homem e sim uma rapariga esbelta, de cabelo castanho muito curto. Eu ainda não recuperara da surpresa de rever Pulga quando uma mão se fechou sobre o meu braço. Encarei o meu captor com os olhos arregalados de temor, mas logo uma luz se acendeu no fundo do meu coração enegrecido, que me ressuscitou a alma. Quem me segurava era Edwin. O meu irmão viera em meu auxílio, tal como prometera.

A confusão rebentou. Os homens de Edwin enfrentaram sem receio a tropa organizada de Goldheart, enquanto a guarda dos senhores da guerra da Grande Ilha se entreolhava confusa, aguardando as ordens dos seus chefes. Os aldeões dispersaram-se, fugindo em pânico para longe da contenda. Edwin entregou-me aos cuidados de Pulga e mergulhou na batalha, abrindo à força um corredor seguro por onde eu podia escapar.

- Vamos - gritou a rapariga. - Não temos muito tempo!

Esgueiramo-nos por entre o brilho das lâminas e os gritos incendiados. Instintivamente, os meus olhos foram atraídos por um ponto vermelho-berrante que rasgava o verde-pálido da planície. A Senhora Myrna McGraw abandonava o cenário, galopando ferozmente rumo à floresta. Levava Fiona consigo, assim como alguns soldados de Lorde Garrick. E o meu pai, onde estava? No meio do conflito, empunhando a arma contra os seus próprios filhos?

- Vem, Cat! - berrou Pulga, puxando por mim. - Temos de sair daqui...

Então, o som de uma trompa de guerra rasgou o ar, sobrepondo-se à voz da guerreira. Ecoou pela planície, afundou-se nas brumas da floresta, embateu no penhasco e escorreu para o mar. Os meus olhos encontraram os de Pulga, e vi o horror refletir-se neles. Eu sabia o que aquilo significava, embora nunca tivesse pensado enfrentar semelhante calamidade.

 

Os guerreiros detiveram-se e olharam incrédulos para o mar. Mas as ondas não eram as únicas condutoras da ameaça anunciada. Eles estavam por todo o lado! Palmavam a planície a pé, com tal velocidade que dir-se-iam montados em cavalos alados. Vestiam peles de animais e empunhavam armas poderosas e escudos sólidos. Os seus cabelos compridos esvoaçavam como bandeiras coloridas. Os seus corpos eram altos e largos como os troncos das árvores antigas. Espalhavam-se em círculo, encurralando os soldados da aliança contra o mar. Eu nunca vira nórdicos, mas reconheci-os de imediato e não tive dúvidas de que o guerreiro que corria diante deles, devorando o terreno com a força de um demônio, era o terrível Gunnulf.

- Cat!

O apelo de Pulga despertou-me. Esforcei-me por acompanhá-la, mas a saia comprida e pesada do vestido dificultava-me os movimentos. Ao meu lado, a guerreira de Edwin ergueu a arma, defendendo-se intrepidamente da investida de um dos homens do Conde.

- Protege-te, Cat!

O grito ficou suspenso no ar. Presa ao chão, vi a espada de Pulga trespassar o soldado. O sangue esguichou e manchou o branco imaculado do meu vestido. Olhei para baixo, sentindo o ar solidificar e todos os sons resumirem-se às batidas do meu coração. Quando voltei a respirar, Pulga desaparecera e, a poucos passos de distância, o Conde de Goldheart insurgia-se do calor da batalha, rasgando caminho com a destreza da sua espada. A mão de um homem foi brutalmente decepada e rebolou até aos meus pés. Gritei, sem emitir um som e desatei a correr às cegas.

Mas era impossível escapar ao horror. Estaquei, dominada pelo desespero, ao surpreender a onda de guerreiros bárbaros prestes a tombar sobre mim. O instinto forçou-me a saltar para o lado e a procurar abrigo nas sombras da parede de uma casa. Os Nórdicos passaram como uma praga de insetos gigantes. A tremer, vi a vaga de morte colidir contra os guerreiros da Grande Ilha, com um estrondo ensurdecedor. Senti o estômago trepar até à garganta, enquanto a vista se turvava. A minha consciência ameaçava desmoronar-se, e eu ansiava pelo desconhecimento. À minha frente, os homens caíam quais folhas secas no Outono, o sangue jorrava como água de uma fonte e a poeira consumia o ar. A confusão instalara-se, e eu já não distinguia os amigos dos inimigos. Os gritos misturavam-se com o estridor do ferro. Havia casas em chamas e o fumo engolia o pó.

Livres do que eu acreditara ser o domínio de Myrna, os Elementos soltaram a sua fúria. O vento soprou em desvario e trouxe consigo uma chuva torrencial. O céu ficou da cor da terra, tingido de sangue, enquanto chicotes de fogo vergastavam as nuvens.

Uma dor forte retorceu-me as entranhas, e o vômito venceu. Contraí-me em espasmos de agonia, libertando o fel que me queimava viva. Por fim, tombei no chão, sem ânimo. Onde estavam os meus irmãos? íamos morrer todos!

- Não!

Levantei o rosto, alertada pelo brado de aflição. Melody acabara de passar a correr, perseguida por um bárbaro. Não sei aonde fui buscar força. Ergui-me decidida e agarrei numa espada abandonada por algum infeliz. Apesar dos esforços de Quinn, eu nunca fora hábil no manejo das armas. Porém, hesitar era morrer.

Rodeei a casa no sentido inverso. Melody surgiu afogueada e desta vez viu-me. O sobressalto fê-la tropeçar e cair. O bárbaro nada mais viu além da presa indefesa. Quando a lâmina lhe trespassou o ventre, os seus olhos esbugalharam-se de assombro. Eram verdes como os meus. Soube, de imediato, que carregaria esse olhar na consciência para o resto da minha vida. O corpo fenomenal tombou aos meus pés com uma pancada seca.

- Cat!

Melody abraçou-me e desatou a chorar. Olhei em redor, sentindo o instinto de sobrevivência aguçar-se. Os soldados de Goldheart, os Aliados e os homens de Edwin enfrentavam agora o mesmo inimigo, adiando a batalha inicial por uma questão de sobrevivência. Segurei na mão da minha cunhada e forcei-a a correr.

 

A chuva transformava o solo num lamaçal. Um relâmpago caiu muito próximo, e a luz cegou-me. Tapei os olhos, reprimindo um gemido de dor, enquanto cambaleava, esforçando-me por manter o equilíbrio. O vestido encharcado mal me permitia andar. Um cavalo passou por nós e quase me esmagou debaixo dos cascos. Outros seguiram-no. Os animais tinham-se libertado e fugiam, desorientados e apavorados. Conseguir montar um era ilógico. Nós precisávamos de encontrar um abrigo onde nos pudéssemos esconder. Mas onde?

Por cima de nós, outro raio rasgou o céu. Destacando-se da multidão, um dos Vikings içou-se sobre um magnífico cavalo branco. Com o impulso, os seus cabelos espalharam-se pelo ar, rivalizando com as faíscas dos relâmpagos. Girou o grande machado de ferro e forçou o cavalo a rodar sobre si próprio, repelindo com eficácia aqueles que se atreviam a aproximar-se. Só então vi o seu rosto. Era ele! O homem que povoava os meus sonhos e que carregava a minha morte na ponta da espada, estava ali, em carne e osso!

Fiquei paralisada, revivendo o sonho da noite anterior e todos os outros, por entre o fumo e o fogo. Não tinham sido meros pesadelos, mas premonições...

- Venham! Depressa!

O apelo provinha de um dos companheiros de Tristan, que me escoltara na malograda fuga. Corremos ao seu lado até que um bárbaro nos barrou o caminho. O homem enfrentou-o e derrubou-o. Mas não nos foi permitido continuar. Diante de nós surgiu um cavalo branco, e, num simples piscar de olhos, o corpo do nosso defensor tombou.

Os gritos de Melody quase me ensurdeceram. Sem hesitar, agarrei na espada do morto e protegi o corpo da minha cunhada com o meu. Quando encarei o agressor, sabia quem iria encontrar.

Os olhos do guerreiro possuíam um azul intenso que dilacerava a alma. Fiquei paralisada só de encará-lo. O machado que empunhava estava manchado de sangue em toda a extensão da lâmina. Ele mirou-me de cima a baixo, e eu imaginei como devia parecer-lhe insignificante: uma fedelha baixa e franzina, suada e suja, segurando uma espada tão pesada que mal conseguia equilibrá-la; porém, atrevida o bastante para enfrentá-lo, na vã esperança de salvar a amiga e a própria vida. Surpreendentemente, os lábios do Nórdico entreabriram-se, e o seu semblante carregou-se diante da visão da próxima vítima. Enquanto tentava compreender a sua hesitação, ouvi o meu nome rasgar o ar, abafando a percepção de tudo o resto.

Pensei que estava a sonhar. Talvez tivesse recebido uma pancada na cabeça, e este fosse o meu delírio! Não era possível que aquele apelo, feito pela voz tão querida que eu julgara jamais voltar a ouvir, fosse real! Porém, do interior da ativa destruição, o chamamento repetiu-se. Melody também o escutou e gritou em resposta:

- Tristan!

E os meus olhos viram finalmente o que os ouvidos se recusavam a aceitar. Aparecendo do nada, Tristan colocou-se entre nós e o bárbaro, criando uma barreira com o seu corpo. Senti as pernas bambearem. O meu amor estava vivo!

- Para trás, Cat! - ordenou ele, mas eu não me mexi. Estava em choque, sem saber se devia rir ou chorar. Tinha medo de piscar os olhos e perdê-lo.

A pé, Tristan não era adversário para o colosso. O Viking poderia tê-lo decapitado com o magnífico machado, com a mesma facilidade com que eu afastaria o cabelo do rosto. Mas não o fez. Mirou-nos com um trejeito indecifrável e incitou o cavalo a afastar-se num galope rápido.

- Cat!

Fiquei suspensa nos braços de Tristan e mergulhei nos seus lábios. Foi um beijo rápido e desesperado, esfomeado e dorido. Ele tremia tanto como eu quando murmurou:

- O Goldheart deixou-me a definhar, mas o Edwin encontrou-me a tempo. Perdoa-me...

- Tristan! - O apelo agoniado de Melody despertou-nos para a realidade.

- Vamos - gritou ele, amparando-me na força da sua decisão.

 

- O barco está à nossa espera.

- E o Aled? - Questionou Melody, aflita. - Onde está o Aled? Tristan incitou-nos a avançar, sem lhe responder.

A minha cabeça latejava. As cores e os sons sucediam-se, tremidos e roucos. A cada passo vacilante, perdia a noção das formas, como se fosse desmaiar. Obriguei-me a clarear a mente. Não podia fraquejar agora que reencontrara o meu amor; tão próximo da liberdade!

O horror que nos rodeava atingira proporções infernais. O mundo ruía à nossa volta, e tornava-se impossível adivinhar o desfecho da batalha. Temi pelas nossas vidas quando um bárbaro bloqueou o caminho a Tristan. Porém, no último instante, um jovem alto e robusto veio em nosso auxílio e resolveu a disputa.

O meu alívio ao encontrar Aled só foi comparável ao de Melody. Mesmo no meio de tamanha desgraça, caíram nos braços um do outro. Estávamos finalmente juntos.

- Vamos! - gritou Edwin do meu lado. - Se os reforços dos Vikings desembarcarem, estaremos perdidos!

Não corremos dez passos sem sermos detidos. Os bárbaros atacavam como um enxame de vespas. Os nossos guerreiros dispuseram-se em círculo para nos protegerem, e a matança recomeçou. Horrorizada, tomei consciência de que os selvagens ganhavam vantagem. À custa de muito esforço e sangue, os nossos homens abriram caminho e pudemos retomar a fuga. Mas o pesadelo repetiu-se. Por entre a malha humana, fechava-se o cerco. E, desta vez, não haveria salvação. O próprio Gunnulf avançava de espada em punho.

O chefe viking era uma visão irreal, um verdadeiro gigante de força e poder. Compreendi por que o confundiam com um animal no campo de batalha. Gunnulf usava sobre os ombros a pele de uma fera que devia ter sido tão robusta e aterradora como ele... a pele de um urso!

- Ide! - ordenou Aled, com o rosto transtornado pelo cansaço e pelo desgosto. - Eu ficarei para segurá-lo...

- Não! - contrapôs Edwin no mesmo tom, berrando para se fazer ouvir sobre o fulgor do mar e da batalha. - Lutaremos lado a lado até ao fim! O Tristan pode levá-las para o barco...

- O Tristan mal se agüenta em pé, Edwin! - objetou Aled.

- Por uma vez, faz o que eu te digo! Salva as nossas mulheres!

Os bárbaros estavam cada vez mais perto. O afamado líder vinha reclamar vitória. Diante de nós surgia o penhasco e, rasgando o cinzento tempestuoso do mar, três majestosos navios aproximavam-se destemidamente da praia, com a célebre vela nórdica, quadrada e colorida, ondulando orgulhosamente ao sabor do vento. Em cada proa erguia-se uma cabeça de dragão esculpida em madeira, altiva e ameaçadora, com a morte no olhar e a bocarra escancarada, sustendo o destino do meu povo nos dentes.

Melody caiu nos braços de Aled, carpindo o seu desespero. Eu teria feito o mesmo, se Tristan não me segurasse, impedindo-me de demonstrar a minha agonia. O meu irmão mais velho foi rápido na despedida. No instante em que retirou do pescoço o fio que sustinha o amuleto da nossa avó e o entregou à esposa, eu soube que não tornaria a vê-lo.

- Entrega-o ao nosso filho e fala-lhe de mim. Eu irei amar-te sempre!

- Aled, por favor... - vociferou Melody, num soluço agoniado.

- Não, Aled... - tornou Edwin, num veemente protesto. Aled empurrou Melody gentilmente para os braços do irmão e exclamou, rouco de emoção:

- Cuida dela!

- Tu tens de fugir - insistiu Edwin com convicção. - Eu ficarei!

- Não! Sem ti, o barco não zarpará!

- Pensa no teu filho! Pensa na tua mulher!

- Ela nunca foi minha, Edwin! - replicou Aled. - E esta é a única maneira de salvá-los! Perdoa-me irmão! Perdoem-me todos vós!

 

E desatou a correr ao encontro de Gunnulf; um bravo ao encontro da morte. Edwin ficou petrificado, segurando Melody nos braços. A minha cunhada estava enlouquecida de dor e bradava o nome do marido por entre as lágrimas. Eu estrebuchava, tentando libertar-me de Tristan. Isto não podia estar a acontecer! Não era verdade!

- Vamos, Edwin! - apelou Tristan. - Vamos, antes que o sacrifício do Aled seja vão!

Os bárbaros alcançaram-nos, e a desordem sucumbiu ao caos. Eu só podia entregar-me ao desgosto e renegar a vida ou erguer a cabeça e resistir até ao último fôlego. Tristan dava o seu melhor para proteger-me, mas estava cada vez mais fraco. Oliver espancara-o e deixara-o a morrer, sangrando, à mercê dos predadores. As marcas da tortura a que fora sujeito e a debilidade do seu corpo eram evidentes, mas não deixara de intervir para me salvar. E nada voltaria a separar-nos! Se ele tombasse, eu tombaria ao seu lado! Empunhei uma espada e defendi-me fracamente. Perdemos Edwin e Melody na confusão. Estávamos a ser empurrados de volta à aldeia, para longe do nosso objetivo, juntamente com os poucos soldados que ainda resistiam. De repente, Tristan soltou um gemido abafado, e o seu corpo deslizou pelo meu. O desespero assolou-me ao perceber a gravidade do seu ferimento. Acreditei que fora um bárbaro o causador da desgraça. Porém, aguardava-me a mais terrível das surpresas. Diante de mim, com uma expressão de ódio demente, estava o Conde de Goldheart.

Fui arrastada pelos cabelos, sem alento para opor resistência. Confirmei que Oliver era um excelente guerreiro, pois mantinha-me prisioneira com um dos seus braços, enquanto guerreava com o outro. Mas a situação depressa escapou ao seu controlo, e foi forçado a soltar-me para enfrentar os bárbaros, que eram em número superior. Assim que me senti livre, fugi às cegas por entre as nuvens de fumo que a chuva não conseguia dissipar. O ar estava irrespirável, empestado de morte. Os pulmões ardiam-me, mas continuei a correr, tanto quanto o amaldiçoado vestido permitia, evitando as espadas que se chocavam demasiado perto. Por entre a aflição, quase podia jurar que ouvira alguém gritar o meu nome.

Um soldado de Goldheart surgiu de dentro de uma coluna de fumo e lançou-se sobre mim qual lobo esfomeado. Eu estaquei, escorreguei na lama e caí desamparada. Enquanto tornava a escutar o meu nome e reconhecia a voz de Edwin, tive a arrepiante percepção de que tudo o que me estava a suceder era familiar. Tossi e cuspi a água lamacenta que me entrara para a boca, enquanto o soldado me puxava pelo braço e forçava a ficar de pé, berrando:

- Não sei para que o Conde te quer, sua cabra! Mas não escaparás...

Ao encarar o esgar furioso, senti o meu espírito gelar de horror.

 

”Vais morrer..,”, pensei.

 

Quando o esguicho de sangue me atingiu, eu já fechara os olhos para evitar a visão grotesca da cabeça decapitada. Um vômito sacudiu-me quando o corpo estropiado tombou, mas já não havia nada no meu estômago para enjoar. Um grito de comando, proferido numa voz forte e limpa, forçou-me a reagir. Montado no cavalo branco, o bárbaro dos meus sonhos estendia a mão, ordenando-me que o seguisse. Fixei o olhar no seu pulso, quase temendo confirmar o pormenor da tatuagem que tanto me impressionara. Lá estava, muito mais bela e terrível do que um sonho podia revelar. Sem vestígio de domínio sobre a consciência, vi a minha mão subir ao encontro da dele, como se nenhuma vontade pudesse impedir a nossa união.

No instante em que os nossos dedos se tocaram, o cavaleiro foi atacado por dois soldados de Goldheart. Desprevenido, desviou-se dos golpes com destreza, mas não conseguiu agüentar-se sobre a montada. Caiu numa poça de lama, com um aparato que arrancou urros vitoriosos aos homens do Conde. Eu comecei a recuar, movendo as pernas com grande esforço. Por mais que a minha mente berrasse que o corpo tinha de fugir depressa, sentia-me presa ao solo por raízes profundas. Um terceiro guerreiro veio saborear a presa. Para mim, a condenação do bárbaro era inevitável. Porém, quando se ergueu segurando a espada na mão, a sua expressão não era a de um homem assustado com a perspectiva de enfrentar três guerreiros bem treinados. O Viking sorria...

 

O clamor incessante de Edwin libertou-me do encantamento. Ele regressara para me buscar e estava perto, forçando passagem por entre os bárbaros. Porém, antes que o meu irmão me visse, dois braços de ferro suspenderam-me no ar. Arfei em pânico, temendo ter caído finalmente nas garras de um selvagem. Porém, a minha sorte era bem pior!

O Conde de Goldheart arrastou-me para o interior de uma cavalariça. Os meus olhos esforçaram-se por distinguir o que me rodeava. As baias encontravam-se vazias, os arreios espalhados pelo chão e havia feno por toda a parte. Não consegui ver mais nada, pois Oliver empurrou-me com violência e saltou sobre mim, completamente ensandecido, lutando com o meu vestido e a roupa interior, tentando rasgá-los à força.

- Eu não morrerei sem te possuir, maldita! - rosnava enlouquecido, espumando pela boca como um animal raivoso. - Tens de ser minha, Catelyn McGraw! Perdi tudo por tua causa...

Qualquer outro estaria à procura de um cavalo para fugir. Mas o obcecado conde nada mais desejava, além de submeter-me à sua vontade. Continuou a praguejar, enquanto eu me debatia mesmo sabendo que era inútil, decidida a enfrentá-lo até ao fim. Se o meu destino era morrer, pois morreria! Porém, esse aleivoso não me tocaria sem receber luta. Esperneei e esmurrei, com os gritos presos na garganta. Recebi tantas bofetadas que os meus lábios ficaram desfeitos. Mas resisti! Resisti o tempo suficiente para o inesperado acontecer.

Subitamente, Goldheart foi içado de cima de mim e demorou para acreditar no que os seus olhos revelavam. A luz difusa que penetrava pelas fendas da madeira iluminava o rosto de Tristan desfigurado pelo ódio que devotava ao inimigo. Contudo, a sua fraqueza declarava-se em cada fôlego. Cambaleava, mal se sustendo de pé, com as roupas encharcadas em sangue. O meu amor estava mortalmente ferido, mas não desistia... nunca desistia de me salvar! Não disse uma palavra, mas eu percebi a sua mensagem: Foge, Cat! Foge!

- O que é que eu tenho de fazer para que morras, maldito? uivou o Conde. - Quantas vezes terei de te matar?

Em choque, vi Oliver agarrar na sua espada e arremeter contra Tristan. Sabia que o monstro seria rápido e brutal. O pouco que sobrara da minha consciência ordenava-me que fugisse, antes que o último esforço do meu homem se tornasse vão. Todavia, não pude mover-me. Estava fraca e dorida em cada osso, em cada pedaço de pele. Sentia os gritos presos na garganta e as lágrimas alagando-me a cabeça, ameaçando arrasar-me a mente se não as libertasse. Mas não conseguia chorar. Não conseguia...

Goldheart não correu riscos. Enterrou a espada profundamente no peito de Tristan, trespassando-lhe o coração. O olhar do meu amor percorreu a distância que nos separava, e as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto, antes de o seu corpo tombar sem vida sobre o colchão de feno.

O meu espírito quebrou-se, e a loucura extravasou. Enquanto Oliver festejava a vitória, os meus olhos voltaram-se para as ervas secas. Afinal, o meu destino estivera escrito desde o início! Se o conde demoníaco queria partilhar de alguma coisa comigo, partilharia a morte, dolorosa e horrenda, até ao último instante em que a carne se separaria dos ossos.

Um calor abrasador partiu do meu âmago, libertou-se da pele e atingiu o feno, que se incendiou de imediato. Ignorando os urros de Goldheart, ergui a mão e espalhei a erva pelo ar, para que as chamas se propagassem rapidamente por toda a cavalariça.

- O que estás tu a fazer? - bradava Oliver. - Sua bruxa! Saltou sobre mim e derrubou-me com uma bofetada. - Queres morrer? Pois morrerás latindo de prazer, cadela maldita! Eu vou mostrar-te o que é um verdadeiro homem!

Recomeçou a luta para arrancar-me a roupa, mas o vestido ensopado tornava-se impossível de manusear com toda a minha resistência. Ao nosso redor, as chamas devoravam o que lhes era aprazível. Contudo, não era só o meu mundo que finava. Do exterior troavam clamores de agonia. Os bárbaros atacavam o coração indefeso da aldeia. Não havia salvação para o meu povo.

Subitamente, a louca sensação de alívio repetiu-se. O Conde de Goldheart fora arrancado de cima de mim! Mas, se Tristan estava morto...

A custo, apoiei-me sobre um braço. A cavalariça era a imagem do inferno. Tudo perecia debaixo das línguas gulosas e vorazes das chamas. E, tal como no meu pesadelo, o guerreiro nórdico avançava, sulcando as labaredas como se fizesse parte delas. Aguardei de olhos bem abertos, sabendo que chegara o momento de unir-me aos meus antepassados e confessar-lhes o meu fracasso. Por trás de mim, Oliver gritou quando o guerreiro de fogo levantou a arma e a lâmina longa assimilou as chamas. Subjugada pelo delírio, pensei que esta era a mais bela das visões. Então, o rosto desafiador do Viking decompôs-se num esgar de ódio, e a espada agitou-se sobre a minha cabeça. Instintivamente, fechei os olhos e sustive a respiração, aguardando o fim.

O eco das espadas que gladiavam arrancou-me da inércia. O bárbaro combatia com Goldheart, e os seus gritos misturavam-se com o estralejar da madeira. Afinal, o destino concedera-me uma última oportunidade de salvar a honra. E eu não a desperdiçaria esperando pelo resultado da contenda, quando o vencedor viria reclamar o seu prêmio: a minha vida.

Decidida, arrastei-me até Tristan e surpreendi-me ao constatar que o seu semblante estava sereno. Talvez tivesse finalmente encontrado a paz que lhe fora negada nos últimos anos! Eu imaginava como ele sofrera quando se vira forçado a matar. Tudo o que Tristan sempre desejara fora uma casa num monte verde, muitos cavalos e filhos... os nossos filhos! O seu amor viveria para sempre na minha alma, pois eu fora a mais amada das mulheres.

Sem hesitar, apossei-me do punhal que ele trazia na dobra da bota, tal como os meus irmãos. Já que a vida nos separara, pelo menos morreríamos juntos, e as chamas uniriam os nossos corpos. Beijei-lhe levemente os lábios e segurei o punhal com as duas mãos, apontando a lâmina ao meu coração. Fixei o olhar no rosto amado... Um último fôlego e estaria pronta.

No preciso instante em que reunira a coragem para finar o meu tormento, o Nórdico lançou-se sobre mim, clamando estridentemente. Arrancou-me o punhal das mãos e arremessou-o para longe. Sem saber como, eu estava de pé, prisioneira das mãos fortes. Ele agarrou-me pelos ombros e sacudiu-me. O seu olhar cortou-me a respiração. Disse algo que não compreendi, mas fê-lo com tal intensidade, que deixou cada uma das suas palavras marcadas no meu espírito.

À nossa volta, a estrutura cedia e, em breve, o telhado ardente ruiria sobre nós. Sem perder tempo, o Viking lançou-me sobre um ombro. Fui transportada numa corrida vertiginosa, qual saca de farinha, com o sabor do sangue na boca, o vômito na garganta e o corpo a desfalecer.

A última coisa que recordo é o rugido do fogo; os braços das chamas reclamando as nossas vidas, enquanto o novo senhor do meu destino as atravessava com um salto impossível.

Depois veio a noite... Escura. Densa. Infindável...

 

- Cat...

- Cat...

Eram as vozes dos meus irmãos que me chamavam. Abri os olhos e encontrei os seus rostos sorridentes e as suas mãos estendidas.

- Cat...

Aled, Edwin, Berchan, Stefan e Quinn, juntos, partilhando a mesma alegria e convicção.

- Salta, Cat!

- Vem!

- Junta-te a nós...

Estiquei-me para tocá-los, mas desvaneceram-se como névoa. Dedos suaves e quentes entrelaçaram-se nos meus, e o rosto doce da minha mãe aproximou-se para beijar-me.

 

- Minha querida, Catelyn... Não resistas ao inevitável! Deixa o corpo descansar... Vem! Eu posso acabar com a tua dor...

Fechei os olhos e respirei fundo, permitindo que o meu espírito flutuasse. A dor acalmava, devagarinho... até quase não existir...

- Catelyn!

Este apelo nada tinha de carinhoso. Era imperativo e brusco, violento como uma bofetada. Confusa, encontrei o rosto da minha avó distorcido por uma expressão mista de decepção, raiva e aflição.

- Como te atreves a falhar-me, criança? Como te atreves a desistir?

Todo o meu corpo estremeceu, e a dor regressou. A custo consegui responder:

- Eles estão a chamar-me... Preciso de ir...

- Não prestes atenção às vozes, Catelyn! Nem todas são verdadeiras, e muitas têm a única finalidade de te enganar e atrair para o abismo! Tu tens uma missão a cumprir...

- Que missão? - Desta vez, a minha voz soou irada. - Todos aqueles que amo estão mortos! Eu falhei! Só me resta segui-los...

- Nem todos os que amas estão mortos.

- Mente! Mente como sempre me mentiu!

- Quando foi que eu te menti, neta?

- A avó disse que me ajudaria quando o momento chegasse...

- As minhas palavras tropeçavam no ardor da fúria. - Prometeu que estaria do meu lado! E deixou-os morrer...

- É verdade que nem todos podem ser salvos! - O semblante de Aranwen entristeceu. - Não me é permitido mudar o destino. Essa é a tua tarefa! Se renunciares a ela, o mundo que conheces perecerá. A noite triunfará sobre o dia; a dor, sobre o contentamento; a morte, sobre a vida. Nada restará senão as cinzas das recordações, na memória dos que sobreviverem para enfrentar a escravidão. Irás abandonar o teu povo, Catelyn?

- Não o abandonou a avó primeiro? - acusei. - Não está esta guerra perdida? O que posso fazer sozinha?

- Deves acreditar na tua força, no teu poder! A magia vive dentro de ti e só tu poderás alcançá-la!

- Como? - Apelei desesperada. - Mostre-me como!

- Eu não posso... - Lentamente, a sua imagem começava a esfumar-se. - Mas brevemente encontrarás alguém que pode...

- Espere! - Estendi a mão, aflita. - Não me deixe!

- Sobe a montanha, neta... - A sua voz era um suspiro no vazio.

- Sobe a montanha...

- Avó!

Aranwen partira. Eu estava, de novo, sozinha.

O burburinho aumentou até me ferir por dentro. Já não era um sussurro e sim um clamor estridente e poderoso. Tentei mover-me e surpreendi-me apertada, como se estivesse presa dentro de uma caixa. Cada um dos meus ossos bradava por clemência. O fogo consumia-me as entranhas enquanto o gelo me rasgava a pele.

Cheirava a maresia. Abri os olhos a custo e deparei com uma bruma turva, salpicada de estrelas. Cheirava a suor. Os gritos continuavam. Uma voz forte incitava e as outras respondiam-lhe. Cheirava a sangue e a imundície.

Recuperei a percepção lentamente. Enquanto os meus olhos se habituavam à obscuridade, o meu coração batia com tanta força que me magoava o peito. Encontrei-me dentro de um barco, entalada num espaço exíguo entre caixotes de madeira, encharcada até à alma. A água entrava por todos os lados e tudo estremecia, como se o mundo fosse desabar. E lá estavam eles, os homens do Norte, os bárbaros, os selvagens, tal como o meu pai os descrevia: altos como torres e fortes como touros. Não passavam de sombras sob a luz das estrelas - as sombras da morte.

 

Os Vikings levantaram-se de repente, e o barco oscilou tão violentamente que pensei que as ondas fossem engoli-lo. Dei graças por não poder gritar ou não me teria contido. A voz de comando continuou a clamar, a incitar. Eu reconheci nela a voz do homem que me perseguia em sonhos, que matara Oliver e me resgatara das chamas, livrando-me da morte certa para enfrentar um destino mais cruel. As estrelas foram cobertas por uma sombra de cores que brilhavam mesmo na cegueira da noite. E a escuridão tornou a envolver-me no seu abraço gélido.

A maresia embriagava-me os sentidos. O vento soprava-me no rosto com a mesma força de há muitos anos, enquanto eu pairava sobre as ondas, deleitando-me com a leveza do meu ser. Vi uma luz à distância e tentei alcançá-la. Estava a chegar quando um remoinho feroz me interceptou. Perdi o domínio do corpo e tombei a pique no vazio. Já não havia mar para me receber; apenas o imenso nada onde eu caía... e uma voz... uma voz há muito esquecida que ressuscitava para assombrar-me:

 

”Quando a luz se apagar... é chegado o reino das trevas...”

 

A neblina da inconsciência devolveu-me o meu próprio grito. A dor regressou com uma intensidade insuportável, e o murmúrio continuou, desenrolando a ladainha sem sentido:

 

”A laranja será corrompida, para sempre perdida...”

 

Do nada que me absorvia, surgia a figura frágil e sorridente de Fiona, enlaçando o pescoço de Myrna com um arrebatamento apaixonado. Perdi-as na tontura do rodopio e fui envolvida pela floresta densa. Ao meu lado cavalgava um guerreiro que envergava as cores dos McGraw. O meu coração parou ao reconhecer Quinn. Berrei um aviso com todo o vigor da minha alma, mas de nada lhe valeu. Três homens irromperam das sombras e, num piscar de olhos, o rosto do meu irmão contorcia-se num suplício agoniado, enquanto o corpo possante ruía pesadamente no colchão de folhas mortas.

 

”A violeta tombará, decepada pela traição...”

 

Eu continuava a cair, a remoinhar dentro do pesadelo que era a minha própria vida. A batalha vivida intensamente em cada gota de suor e sangue repetia-se para meu tormento. Sem ânimo para reagir, vi Aled interceptar Gunnulf e as suas espadas chocarem, ferro contra ferro, projetando faíscas de ardor e ódio. O meu irmão resistira bravamente... Mas a ferocidade do chefe viking era inigualável.

 

”A verde penderá sem glória, sob a lâmina gelada...”

 

No auge do meu delírio escaldante, as palavras assumiam um significado atroz. A ladainha era uma maldição lançada sobre os portadores da magia de Aranwen! Sete cores para sete pedras. Sete destinos corrompidos, sete vidas condenadas. E, na noite em que Fiona nascera, por algum capricho da sorte, eu apossara-me da sabedoria para contrariá-la. Porém, não fruíra do engenho para decifrá-la, e o tempo encarregara-se de diluí-la no meu esquecimento. Só após ter perdido três irmãos; só depois do meu mundo destruído, eu divisava finalmente para além da bruma da percepção e me libertava da cegueira do sortilégio que me condenava a falhar por fraqueza e inaptidão. Mas agora era tarde demais!

Ao olhar dentro dos meus olhos, vi o rosto de Edwin. A vermelha sucumbiria, vítima da própria condição. Talvez a morte já tivesse encontrado o guerreiro... Esperei pela odiosa revelação, mas a bruma envolvera-me, e a voz tenebrosa silenciara. Perante a verdade incorruptível, eu caía desamparada dentro de mim mesma e enfrentava o mais feroz dos medos: a solidão, o vazio, o nada que me devorava... O nada que jamais me libertaria.

Os berros finaram quando a minha cabeça ameaçava explodir. Ou talvez tivessem parado antes? Eu não tinha certeza de coisa nenhuma! A luz vencera a escuridão, e a escuridão devorara a luz, uma e outra vez. Seria o passar dos dias ou uma conseqüência do meu delírio? A dor física perdera a importância. Já não sentia o corpo. O amanhecer chegava tão lento como o regresso dos sentidos. Comecei a raciocinar à custa de um esforço extremo. Era óbvio que estava a arder em febre.

O movimento enfurecido, que de início me despertara, havia cessado. Os homens já não remavam. Era uma gigantesca vela garrida que impulsionava o barco. Fechei os olhos quando uma sombra se aproximou. Senti uma mão fresca sobre a fronte e escutei um desenrolar de apelos incompreensíveis. O homem que me assistia não era o mesmo que me salvara. Esse chegou depois. Reconheci-o quando respondeu ao primeiro, mas não me atrevi a mover. Nem queria imaginar o que me fariam, se descobrissem que eu recuperara a consciência.

Não sei quanto tempo permaneci imóvel. Percebia o Sol cada vez mais alto e ouvia os guerreiros gralhando incessantemente. Muitas vezes, apenas um falava e só era interrompido por exclamações ou gargalhadas, mas, de quando em quando, generalizava-se a confusão. Talvez contassem histórias para passar o tempo, como os jovens da minha terra. Ou talvez discutissem o êxito da batalha que vitimara o meu povo e a partilha do valioso saque.

A dormência imposta pela febre fustigava-me com pensamentos soltos. Mais do que com a precariedade da minha situação, eu era afrontada com a descoberta da maldição que pendia sobre os McGraw. Agora, depois de tudo perdido, atormentava-me a questionar o que poderia ter feito para evitar a desgraça. Como pudera esquecer-me de algo tão grave? Eu era a principal responsável pela ruína da minha família! Mesmo que ainda existisse alguma esperança de salvar os meus irmãos, eu estava condenada à impotência, à inércia da impossibilidade de qualquer intervenção, pois distanciava-me cada vez mais da vida que conhecera e amara.

O guerreiro responsável por mim tornou muitas vezes. Tocava-me na testa e umedecia-me os lábios com água doce, o que era um alívio, pois eu tinha uma fogueira a arder no peito e a garganta tão seca como se tivesse engolido um punhado de areia.

O outro Viking não estava longe. Eu já distinguia a sua voz de entre as demais. Interroguei-me muitas vezes acerca do significado da sua existência e da finalidade do nosso encontro. As razões por que me poupara e depois me salvara estavam para além da minha compreensão. O reconhecimento do seu rosto tornava-o diferente dos companheiros, mas não menos perigoso e assustador. Talvez eu fosse a última sobrevivente do massacre e carregasse a responsabilidade de vingar o meu povo e a minha família! Essa era a única justificação para a forma como a sorte manipulara a vontade do selvagem que me fizera prisioneira.

O homem que cuidava de mim regressou. Segurou-me na cabeça, que eu forcei a pender inerte, e tocou-me nos lábios com algo sólido e fresco. O outro estava com ele. Então, uma voz fez-se ouvir, sussurrada, mas tão clara como o dia que se abria diante de nós:

- Vais continuar a fingir que estás desmaiada? Ou preferes beber um trago de água fresca e esticar os ossos? Ninguém te fará mal, rapariga! Bebe!

Aterrada, eu não pude evitar que a minha respiração acelerasse. O bárbaro falara com um sotaque acentuado, mas fizera-o na minha língua! E o que é que isso tinha de estranho? Não falava eu própria vários idiomas? Habituara-me a pensar nestes homens como bestas ignorantes ou animais primitivos, que a simples suposição da sua inteligência parecia-me ridícula.

Não me movi, e ele insistiu:

- Estás a arder em febre. Se não beberes água, em breve morrerás. Talvez seja esse o teu desejo! Eu posso facilitar-te as coisas...

Eu teria gritado se pudesse. O meu corpo foi arrancado com brusquidão do espaço exíguo onde permanecera entalado, e todos os meus ossos estalaram. Abri os olhos instintivamente e gelei com a vertigem. Por baixo de mim, as ondas lambiam a madeira do barco, ansiosas por saborearem a presa. O homem sustinha-me no ar, pendurada sobre a sua cabeça, e ia lançar-me para a água. Esbracejei fracamente, apercebendo-me da minha debilidade. Como podia suplicar-lhe pela minha vida, se não conseguia falar? Mas um gesto foi suficiente para que ele depositasse o meu corpo inerte nos braços do companheiro.

 

Os olhos do gigante de cabelos dourados brilharam, e os seus lábios entremostraram um sorriso trocista. Os restantes explodiram em gargalhadas e numa graelada de exclamações incompreensíveis. Um gesto com a cabeça, acompanhado por um olhar acutilador, foi quanto bastou para impor o silêncio. O guerreiro das minhas visões ordenou algo ao companheiro, ao que este obedeceu prontamente:

- O meu nome é Krum e este é o Throst, o nosso capitão. O Throst dá a sua palavra que ninguém te fará mal. Agora, beberás a água?

O que sabia eu acerca do valor da palavra de um Viking? O que sabia eu acerca do valor da palavra de Throst? Nesse instante tive de escolher entre beber a água fresca ou afogar-me no mar gelado. Não foi uma decisão difícil!

Throst entregou-me a Krum e afastou-se, retomando o seu lugar ao leme. Krum colocou-me nas mãos um corno de animal cheio de água. Bebi com tanta sofreguidão, que me engasguei, despertando novamente as atenções. Porém, desta vez, ninguém se atreveu a zombar.

Eu tremia dentro do vestido encharcado e rasgado, tingido de sangue e lama. Krum gritou algo para Throst e obteve uma resposta imediata. Um dos homens que envergavam peles de lobo sobre as túnicas, levantou-se e abriu o caixote de madeira onde estava sentado, retirando do interior uma coberta de lã miraculosamente seca.

Entregou-a a Krum com uma espécie de gracejo, ao qual este retribuiu com um sorriso e uma palmada amigável.

- Terás de despir o vestido. Ensopada como estás, de nada te valerá cobrires-te.

Não permiti que a fraqueza ocultasse a minha indignação. Pensaria realmente que eu iria desnudar-me diante de dezenas de homens? Bem que podia lançar-me ao mar! Neguei energicamente com a cabeça, e Krum encolheu os ombros, replicando num tom monótono:

- Tu é que sabes, rapariga! Será como queres!

Enrolou-me a manta em volta do corpo como se cuidasse de uma criança.

- Como te chamas?

A pergunta apanhou-me desprevenida, e o seu interesse levantou outra questão: saberiam os Vikings que tinham capturado a filha de Lorde Garrick McGraw? A intenção de pedir um resgate explicaria o meu rapto. O que me fariam quando descobrissem que o meu pai pouco se importava com a minha sorte?

- Não tens nome?

A minha sobrevivência dependia da velocidade do meu raciocínio. Se a minha identidade fosse conhecida, matar-me-iam logo que percebessem que não haveria negócio. Porém, se conseguisse despistá-los da verdade, talvez se esquecessem de mim e me permitissem viver o suficiente para encontrar Gunnulf. O assassino não estava a bordo, como eu começara por temer. Mas havia mais barcos, e eu acabaria por descobri-lo. E, quando o tivesse diante de mim, cortar-lhe-ia a garganta, vingaria Aled e todas as vítimas do insaciável ferro do chefe bárbaro. Para já, devia inventar um nome. Talvez Melody! A esperança de que o filho de Aled tivesse sobrevivido, ajudar-me-ia a suportar os horrores que me aguardavam. Esforcei a garganta, mas não se ouviu um som. Arfei aflita. Teria a feiticeira destruído o pouco que restava da minha voz? Ao observar a minha angústia, Krum avançou com uma explicação:

- O frio deve ter tomado a tua garganta. Não desesperes. Recuperarás a voz assim que ficares boa. Até lá, acho que o nome com que o Throst te apelidou é adequado: Pequena! Serve-te na perfeição!

Senti as faces corarem e uma raiva súbita aquecer-me o sangue. Pequena? O Viking apelidara-me de ”Pequena”? Quem pensava ele que era, para humilhar-me desta maneira? Não passava de um gigante ignorante, de um selvagem, de um bruto ordinário...

Krum retornou a sua posição no navio, e eu recuei para a proa, de onde desfrutava de uma vista privilegiada sobre o inimigo. Contei-os. Eram trinta e nove, mais do que imaginara. O barco tinha quinze pares de remos e cada homem ocupava uma posição junto deles, sobre caixas de madeira que já sabia conterem os seus haveres. Os outros dividiam-se como podiam pelo restante espaço. A maior parte atarefava-se a devolver ao mar a água que entrava a bordo.

Pelo que observara da batalha, os soldados da Aliança e os guerreiros de Edwin haviam dizimado dezenas de Nórdicos. Apesar de este barco não transportar mortos, alguns dos homens apresentavam ferimentos graves. Depressa percebi que Krum era o curandeiro. Os meus olhos febris observaram-no a executar curativos complicados com uma perícia invejável. Também me surpreendi ao constatar a existência de ervas curativas a bordo, que o Viking misturava nas porções corretas e aplicava com precisão. Quando terminou, tive de admitir que eu pouco mais poderia ter feito com os parcos recursos que possuíam.

Não era fácil manter-me desperta. Sentia-me fraca e exausta. Forçava-me a concentrar a atenção nos movimentos dos homens para me impedir de adormecer e ficar à mercê da execrável ladainha. Que monstro lançaria uma maldição sobre sete jovens, com o claro intento de destruir toda uma família? Não me foi difícil encontrar a resposta. Myrna não pudera aniquilar-nos com as próprias mãos, então manipulara o destino para obter a sua vingança. Eu tinha de regressar à minha terra... Tinha de deter a feiticeira! Mas como? Só conseguiria escapar aos Vikings se me crescessem asas!

O dia estava limpo, e eu vislumbrava os barcos que nos seguiam, rasgando o azul do céu e do mar. Podiam ser cinco, seis ou mais. Não tinha a certeza, pois tanto surgiam como desapareciam, conforme a oscilação do navio. Mas eram todos semelhantes a este, baixos, compridos e velozes, com um único mastro e uma grande vela quadrada.

Os guerreiros haviam-se esquecido da minha presença, enquanto cortavam com as facas afiadas pequenos pedaços de carne e peixe de aspecto duvidoso, para depois devorá-los com satisfação. Eram homens altos e encorpados, com ombros largos, peitos vigorosos, braços e pernas compridos e mãos capazes de derrubar uma árvore com um bofetão. Uns tinham cabelo curto e outros comprido, com cores que iam do escuro ao vermelho e ao amarelo, que predominava. Todos eles usavam barba; umas mais curtas e aparadas, como as de Throst e Krum; outras, longos e espessos mantos de pêlo, por vezes entrançados como os cabelos. A maior parte possuía olhos claros e vivos. As suas roupas eram feitas de lã e peles de animais. Além de Throst e Krum, quatro guerreiros pareciam gozar de tratamento especial. Distinguiam-se pelas peles de lobo que lhes cobriam os ombros.

- Sentes-te melhor? Deves estar cheia de fome! Toma...

Eu estava tão absorvida na contemplação, que nem vira Krum aproximar-se. Fitei o pedaço de peixe cru que me estendia e senti-me enjoada, apesar de nada guardar no estômago. Neguei com a cabeça, e a sua repreensão não se fez esperar:

- Tens de te alimentar! Nós só pararemos ao cair da noite. Até lá, mirrarás de fraqueza.

Por que não se ia embora? Por que continuava a esforçar-se para ser simpático? Não percebia que eu jamais confiaria na sua boa vontade? Podia dizer o que quisesse com o seu sotaque forte! Dele, eu só esperava o pior! Os seus olhos podiam ser ternos, os seus gestos cuidadosos, mas eu nunca esqueceria que as suas mãos estavam manchadas com o sangue do meu povo; talvez com o sangue da minha família! Além disso, já provara do que era capaz, quando me suspendera fora da borda só para me quebrar a teimosia.

- Imagino que os nossos modos rudes te deixem melindrada - continuou com a calma habitual, mas subitamente ríspido. - Deves estar habituada a jovens príncipes de armadura polida, curvando-se diante dos teus pés. Sinto muito, Pequena, mas isso acabou! Para onde vamos, a vida é dura e todos trabalhamos, desde o mais rico ao escravo. O peixe fica aqui. Espero que decidas depressa se queres viver ou morrer. A comida é pouca, e cada pedaço que te damos sai da barriga de um de nós.

Voltou-me as costas e foi ao encontro de Throst, que presenciara a minha recusa em silêncio. Desviei o olhar e fixei-o no mar cada vez mais bravio. O que raio lhes importava se eu comia, bebia ou morria? Aos poucos, a revolta instalava-se no meu espírito. Recordei a Visão da minha avó e senti-me desamparada. Quem falava a verdade? As vozes dos meus queridos mortos, chamando-me para junto deles, ou Aranwen, que garantira que ainda valia a pena lutar? Estaria a ser egoísta, consumindo-me de dor e esquecendo o meu povo? Afinal, quantas mulheres já haviam padecido do desgosto que me vergastava? Quantas já tinham sido despojadas de tudo o que amavam e arrastadas para um destino incerto?

Instintivamente, levei a mão ao peito em busca do conforto do amuleto da minha avó. Toquei na pele e agarrei o vazio. O meu coração engasgou-se ao descobrir que a pedra sumira.

Procurei e tornei a procurar. O fio não estava no meu pescoço. Não escorregara para dentro do vestido. Não caíra no fundo do barco, onde eu despertara. Desaparecera simplesmente. Tê-lo-ia perdido durante a batalha ou enquanto lutava com Oliver?

Levantei o rosto e encontrei o olhar de Throst cravado em mim. A sua expressão vazia parecia alheada da confusão e da angústia que me consumiam. Contudo, por algum motivo inexplicável, outra questão surgiu na minha mente. E se a pedra fora roubada?

O que fazer? Não podia atravessar um barco cheio de selvagens e confrontar o seu chefe! Em sobressalto, procurei pela pulseira que Tristan me oferecera e experimentei um alívio descomunal ao encontrá-la no pulso. O mesmo já não sucedia com o rico anel de noivado que o Conde de Goldheart me enfiara no dedo, mas essa jóia não me deixaria saudades.

O tempo foi passando, e o dia começou a esmorecer. Reparei que os Nórdicos nunca se afastavam demasiado da costa. Os outros barcos seguiam o de Throst como se este indicasse o caminho. O guerreiro-lobo, que gracejara com Krum a meu respeito, estava sempre perto do capitão, substituindo-o no controlo do leme quando necessário. Prestando atenção aos apelos, descobri que se chamava Sven. Os seus cabelos eram castanhos, assim como a longa barba entrançada, e os seus olhos eram azuis. Se cortasse o excesso de pêlo, tomasse banho e vestisse uma roupa civilizada, seria um belo homem.

A fome apertava tanto que o peixe cru deixado por Krum já me parecia uma iguaria. Mas eu era demasiado orgulhosa para ceder. Por uma única vez, o curandeiro esboçou a intenção de se aproximar, mas Throst impediu-o. Enquanto a minha sorte navegava ao sabor do vento, distraí-me a observá-los. Krum tinha cabelos castanhos e olhos verdes, da cor das folhas da minha floresta. Talvez por se ter aproximado tanto, suscitava-me uma estranha e indesejada simpatia. Por vezes, surpreendia-o em expressões que me faziam recordar Aled. A febre já baixara, mas ainda me provocava delírios!

Agora que o mistério que envolvia Throst fora desvendado, eu mal conseguia encará-lo. Tudo nele era intenso: a fala, os gestos, mas principalmente o olhar que parecia rasgar-me a alma, ver através de mim e decifrar todos os meus segredos, deixando-me embaraçada e desconfortável. Eu não queria saber das manhas do destino! Quanto mais depressa o capitão viking desaparecesse da minha vida, melhor!

Não sei quanto tempo dormi. Acordei com a gritaria dos guerreiros e percebi que haviam regressado aos remos. Pouco depois, sucedeu algo espantoso. O fundo do barco arranhou a terra e pensei que tínhamos batido numa rocha e que iríamos afundar-nos. Mal acreditei quando vislumbrei copas de árvores ondulando ao vento, debaixo da luz das estrelas.

Os homens saltaram para o mar; uns carregavam archotes para iluminar o caminho; outros, com água pela cintura, arrastavam o barco para a praia.

Enquanto a confusão se instalava, ocorreu-me uma idéia brilhante. Com os bárbaros atarefados e distraídos, eu não teria dificuldade de fugir para a floresta. Uma vez que estivesse debaixo do manto protetor das árvores, ninguém me encontraria. Os selvagens não perderiam tempo a procurar-me e, assim que partissem, eu correria a buscar ajuda. Nenhum dos aliados do meu pai me recusaria abrigo e proteção. Neste momento, a fuga e a sobrevivência eram muito mais importantes do que uma vingança que dificilmente se concretizaria.

Um homem aproximou-se, e eu não precisei da luz dos archotes para reconhecê-lo. Enquanto hesitava entre oferecer resistência e caminhar sozinha, já Throst me agarrava e carregava sem dificuldade. O meu nariz foi invadido pelo cheiro intenso do seu corpo e descobri que não era desagradável. Um leve torpor tomou conta de mim e tive de forçar as mãos a manterem-se prostradas para não buscar o apoio do seu peito. Surpreendi-me ao pensar que os braços do bárbaro tinham a mesma firmeza aconchegante dos braços de Aled e Edwin.

Na praia, o Viking permitiu que os meus pés tocassem a areia, mas manteve-me prisioneira do seu abraço. Não fora por capricho que me alcunhara de Pequena. A minha cabeça mal lhe chegava ao peito. Comecei a tremer tanto, que percebi que, no momento em que ele me soltasse, eu cairia pesadamente no chão. O meu coração batia no fundo do estômago e de encontro à garganta. Mal podia respirar e sentia-me tonta, terrivelmente desequilibrada. Pensei que devia afastá-lo, mas não tinha força para fazê-lo. Era uma traça fascinada pela luz intensa do olhar azul, que nem a noite conseguia ensombrar.

Até nós, chegou um apelo forte. Os braços do capitão afastaram-me relutantemente e só depois respondeu a Sven. Tornou a exigir a minha atenção, apontando para a areia enquanto desferia um turbilhão de palavras num tom imperativo. Assim que se assegurou de que eu compreendera a sua ordem para que me mantivesse quieta, misturou-se com a multidão.

Mais barcos encalhavam na praia. Ao meu redor, os homens atarefavam-se como formigas. Já haviam reunido lenha suficiente para acenderem várias fogueiras. Um grupo embrenhou-se na floresta e voltou com uma barrica cheia de água fresca. Outros imitaram-nos e regressaram com peças de caça. Krum não descansava um instante, sempre atento às necessidades dos feridos. Eu já ouvira os meus irmãos descreverem um acampamento, mas nunca vira nenhum. Estava abismada com a velocidade e a eficiência com que os Nórdicos se organizavam. Todos sabiam o que deviam fazer e faziam-no bem e depressa.

O aroma delicioso da carne cozinhada espalhou-se pelo ar. O meu estômago começou a retorcer-se, a pulsar, a doer... Há quanto tempo não comia? Embora o jejum não me assustasse, as privações a que fora sujeita haviam deixado mossa. Desejei estar no calor da cozinha da Casa Grande, junto dos meus irmãos, enquanto a refilona e sorridente Bretta nos servia o jantar. Esses tempos não mais voltariam...

- Toma! - Era de novo Krum. - Fiz um caldo que irá baixar-te a febre e restituir-te as forças.

Custava-me a acreditar que um bárbaro pudesse dominar os segredos das ervas, mas assim parecia. Forcei-me a conter o sorriso de reconhecimento que nascia nos meus lábios. Eu devia estar a estudar qual o momento certo para fugir e não a confraternizar amistosamente com selvagens! Aliás, tinha a certeza de que bastaria um gesto do seu líder para que o afável Krum se transformasse numa besta sanguinária e me cortasse a garganta.

Neguei com convicção e afastei a malga. Ele insistiu. Eu tornei a negar. Então, uma voz inconfundível ecoou sobre as nossas cabeças. Krum fitou Throst e suspirou resignado. Respondeu-lhe, depois de uma leve hesitação, mas uma ordem direta fê-lo afastar-se sem olhar para trás. E eu fiquei sozinha com o gigante louro.

Throst carregava uma trouxa, que pousou antes de sentar-se ao meu lado. Certamente Krum já o avisara de que eu não podia falar, pois começou de imediato a desenhar com o dedo na areia fina, iluminado pela luz bruxuleante da fogueira. Verifiquei que esboçava um mapa e explicava que ainda nos encontrávamos longe do destino. Se esse esforço tinha por finalidade convencer-me a comer, era uma perda de tempo! Desviei-me obstinadamente assim que me estendeu a malga. Enfrentamo-nos com o olhar, e eu percebi que ele estava zangado. Pior para ele! O capitão fez um movimento brusco na direção dos meus lábios, como se pretendesse forçar-me a beber o caldo. Não estive com contemplações e derrubei a mistela com um supetão. Isto devia chegar para que me deixasse em paz!

Pareceu resultar. Throst ergueu-se de um salto e gritou uma ordem para um homem que se encontrava próximo. De seguida, agarrou na trouxa e meteu-a debaixo do braço. Porém, quando eu já pensava que me livrara dele, saltou sobre mim e lançou-me por cima do seu ombro, como um simples fardo. Esperneei o mais que consegui e soquei-o nas costas com toda a força. Tudo em vão. Não o incomodei mais do que uma mosca importunaria uma ovelha.

O bárbaro carregou-me para o interior da floresta, e as luzes das fogueiras enfraqueceram. As minhas forças abandonaram-me, e senti a cabeça a rodopiar. Iria violar-me? Iria matar-me? Caí quando me pousou no chão. Sem o menor vestígio da cortesia que usara até então, Throst arrancou-me a manta que me protegia do frio e atirou-me a trouxa para cima. Vi que se tratava de roupa; trajes de homem: calças e uma túnica de lã. Decerto pretendia que eu as vestisse.

Seria agradável livrar-me do vestido imundo, mas eu estava decidida a não colaborar com o inimigo. Se ele pensava que iria dobrar-me à sua vontade, estava muito enganado! Pedi-lhe por sinais que se voltasse e, surpreendentemente, Throst condescendeu. Ergui-me e testei a força das pernas. Bastaria uma corrida...

Enchi o peito de ar e lancei-me em frente. Ainda não dera dois passos e já estava presa nos braços do Viking. Encontrei a sua expressão dura e percebi que fora longe demais. Ele enfiou as mãos pelo decote do meu vestido e, com um único impulso, rasgou o tecido em todo o comprimento do corpo. A saia, muito maltratada pelos esforços de Oliver, também não lhe opôs resistência. No instante seguinte, eu estava em roupa interior, caída no chão, à mercê dos olhos ávidos de Throst.

Qualquer mulher na minha situação teria gritado, chorado, implorado... Eu não podia fazer nenhuma dessas coisas e, mesmo que pudesse, não as faria. Sustive o seu olhar e enfrentei-o com altivez. Fora para me violar que me salvara das garras do Conde de Goldheart? Pois que viesse! Enquanto houvesse um sopro de vida em mim, nenhum homem abusaria do meu corpo!

Os olhos de Throst percorreram-me. A sua respiração, já alterada pela fúria, tornou-se ainda mais pesada. Enquanto se mantinha imóvel, esmagando-me com a percepção do seu tamanho colossal, surpreendi-me a recordar o que sentira, há pouco, nos seus braços. Agora, o capitão era apenas um assassino igual aos outros. A sensação de conforto desaparecera, a magia fora desfeita e só restara medo e asco.

Então, Throst fez algo surpreendente. Apanhou a roupa e entregou-ma, recuando depois até à sombra das árvores, de onde podia ver o acampamento e acautelar uma nova tentativa de fuga. Eu permaneci imóvel, segurando a túnica macia entre os dedos. Na minha cabeça, a confusão estalava como bolhas de ar. Por que recuara ele? Eu vira o desejo no seu olhar! Naquele momento de hesitação, o instinto animal quase vencera. Senti a ira envenenar-me o sangue. Pretenderia que eu acreditasse que ele era um cavalheiro? Nunca na vida! Raios! Por que não conseguia odiar este bárbaro?

Vesti-me contrariada, sabendo que, se não o fizesse, Throst voltaria para fazê-lo por mim. Tive de dobrar as pernas das calças e usar a túnica como vestido. Assim que terminei, o capitão estava do meu lado. Antes que me segurasse ao colo, empurrei-o e caminhei aos tropeções de regresso ao acampamento. A primeira coisa que vi foi o rosto preocupado de Krum abrir-se num sorriso. Uma malga cheia de caldo substituía a primeira. Throst agarrou-me o braço e forçou-me a sentar. Desta vez apontou simplesmente para a malga, com uma expressão que não dava azo a discussões. Como reagiria ele se eu lhe atirasse o caldo para a cara? Atrever-me-ia a tanto?

Com a malga nas mãos, enfrentei o olhar azul, e a minha resolução finou. Eu não podia vencer a sua vontade. Não era à toa que os companheiros lhe obedeciam cegamente. Percebi-lhe uma determinação inamovível. Throst estava habituado a obter o que desejava. Usar a força não era a melhor forma de enfrentá-lo. Só faria com que se zangasse e apertasse a vigilância. Eu tinha de utilizar a cabeça e distraí-lo da minha pessoa, ou jamais conseguiria escapar-lhe.

Bebi a mistela. Ao contrário do que esperava, não era desagradável. Reconheci o sabor de ervas que eu própria utilizava. Krum continuava a surpreender-me. Instantes depois, já me sentia melhor. Assim que terminei, Throst misturou-se com a multidão e fez-se substituir por um guerreiro de aspecto pouco amistoso. Comecei a desejar não ter desprezado a companhia de Krum. Afinal, falava a minha língua e poderia explicar-me o que se passava.

Estavam cinco barcos na praia, e o número de homens era incontável. Não vi prisioneiros. Aparentemente, eu era a única a usufruir dessa honra! Os feridos foram acomodados em abrigos feitos com peles de animais. Em redor das fogueiras, os guerreiros reuniam-se a comer, a beber e a conversar. Eu testemunhara os atos de que se gabavam. Pelos gestos, percebi que falavam da luta inglória dos resistentes, da pilhagem, da destruição maciça de uma aldeia.

Os companheiros de Throst não faziam alarido. O assunto que debatiam parecia sério. Era um grupo estranho, composto pelo líder, um curandeiro e quatro homens cobertos com peles de lobo: Sven, Durin, Sigmund e Ormarr, sem dúvida guerreiros especiais, talvez a guarda pessoal do capitão. Enquanto falavam, iam cuidando das armas. Sobressaltei-me ao verificar que a minha análise não lhes passara despercebida. Senti o rosto aquecer quando os olhares se cravaram em mim e as gargalhadas soaram em uníssono. Certamente Throst lhes descrevera o nosso confronto - o meu corpo frágil prostrado no chão, os meus seios mal cobertos pelo corpete, ondulando ao sabor da respiração acelerada... E mais coisas que provavelmente inventara.

Não muito longe, iniciaram-se duelos amigáveis que não duraram muito. O cansaço era declarado. Os homens enrolaram-se às mantas para dormir, e eu imitei-os, ciente do olhar intenso do guerreiro que me vigiava. Estava plenamente consciente do perigo de ser a única mulher no acampamento.

Mal tinha fechado os olhos quando senti movimento ao meu lado. O guarda sinistro partira, e Throst tomara o seu lugar. Deitara-se tão perto que eu poderia tocá-lo se estendesse um braço. Fingi estar adormecida. Apesar de o meu coração galopar, forcei-me a manter-me quieta e ponderei as hipóteses de fuga. Estava habituada a dormir pouco e certamente acordaria a meio da noite. Nessa altura, esgueirar-me-ia para a floresta e desapareceria sem que ninguém notasse. Fugir agora era irrealista. Por que raio o capitão viking não me esquecia?

Fui assaltada pelas recordações, embora me esforçasse arduamente por evitá-las. Se a sorte não nos tivesse abandonado; se a hedionda bruxa não nos tivesse amaldiçoado, eu estaria no aconchego quente dos braços de Tristan, rodeada pelos meus irmãos. Talvez se chorasse, a dor se tornasse suportável. Contudo, apesar da grande necessidade que sentia, não conseguia libertar as lágrimas. Este tormento iria acompanhar-me até ao último suspiro.

Levei a mão ao peito, onde o amuleto da minha avó morara desde o dia em que eu nascera. Onde poderia estar? Na sacola que o capitão carregava presa no cinto? Parecia-me pouco credível. Certamente um Viking sabia distinguir uma jóia de uma pedra sem valor! Não, não podia ter sido ele! E isso significava que o amuleto mágico se perdera para sempre.

Espreitei o inimigo por entre as pestanas semicerradas. Aparentemente, Throst adormecera. A sua respiração estava pesada, e o corpo, descontraído. A sua mão enorme descansava a um palmo do meu nariz, com a tatuagem exposta. Percebi finalmente porque a serpente marinha me parecera tão diferente de todas aquelas que eu já vira. Era original, porque tinha asas e as suas quatro patas tornavam-na um animal único, nem da terra, nem do céu, nem do mar, mas soberana dos três reinos: um dragão - a mais poderosa das criaturas.

Adormeci sem querer, por força do cansaço e da satisfação provocada pelo caldo de ervas e pelo calor da manta de lã. Mas, tal como previra, acordei cedo, rodeada pela escuridão e pelo silêncio. Só três fogueiras ainda ardiam, dispersas pelo acampamento. Os guardas de vigia também deviam ter cedido à exaustão, pois não os via de pé.

Comecei a erguer-me devagar. Mal me sentei, uma mão fechou-se sobre o meu pulso. Se eu pudesse gritar, teria acordado todo o acampamento. O aperto de Throst era quase doloroso. Deslizou para o meu lado e fitou-me interrogativamente. Com o coração aos saltos, eu gesticulei para explicar-lhe que precisava de atender às necessidades do corpo. O capitão hesitou. Questionei-me sobre como agir se ele insistisse em seguir-me.

Mas não. A mão de ferro libertou-me, e eu levantei-me e comecei a andar, o mais segura que consegui, para o interior da floresta. Sabia que Throst se mantinha sentado, com o olhar aguçado cravado em mim, mas não tive coragem de mirá-lo uma última vez.

Acabei por aliviar-me o melhor que pude, pois não sabia quando voltaria a ter oportunidade de fazê-lo. Quando terminei, continuava sozinha. Com um pouco de sorte, Throst teria adormecido.

Era imperioso decidir o que fazer. Não dissera a minha avó que a magia vivia em mim? Que tudo o que eu precisava era de confiar na minha força? Então, eu devia regressar a casa, enfrentar o meu destino e contrariar a maldição. Tinha de derrotar a feiticeira, ou todo o mundo ficaria coberto pelas trevas e as mortes dos meus irmãos e de Tristan teriam sido vãs.

Convicta de que tomara a decisão certa, desatei a correr para o interior do bosque. Graças ao caldo de Krum sentia-me como nova, preparada para enfrentar quaisquer obstáculos.

Ninguém sabia como desbravar caminho numa floresta melhor do que os McGraw. Ouvi o cântico do ribeiro, de onde os homens haviam recolhido a água, e afastei-me sem hesitação. Esse seria o primeiro lugar onde iriam procurar-me. Como era pequena e leve, não deixava muitos rastos que pudessem seguir. Só tinha de controlar a respiração e continuar a avançar.

Fiz uma pausa quando os pulmões e o coração já ameaçavam rebentar. Estava a recuperar o fôlego quando escutei vozes no meu encalço, não muito longe. Throst não desistira de mim.

Recomecei a correr. Tinha de afastar-me o suficiente para executar o meu plano. Escolheria uma árvore alta e treparia até ficar longe do alcance da vista dos guerreiros mais atentos. Não era difícil. Já o fizera algumas vezes. Depois, só me restaria esperar. Imaginava o quanto os Vikings desejavam regressar a casa. Por mais teimoso que Throst fosse, não poderia perder muito tempo comigo. Se o fizesse, teria centenas de homens impacientes a pressioná-lo. Não havia como falhar...

Pânico? Euforia? Excesso de confiança? Desespero? Jamais poderei explicar por que razão não vi o que se encontrava um palmo à frente do meu nariz. De repente, os pés da perita em florestas falharam o chão. A luz encandeou-me e, enquanto caía e rebolava pelo barranco, percebi que saíra inesperadamente do bosque. A areia entrou-me para a boca e cegou-me. Esforcei-me por travar a queda. Se não voltasse rapidamente para a segurança das árvores, estaria metida em sarilhos.

Assim que recuperei a visão, gelei de horror. Diante de mim, estendia-se uma praia tão grande como a que deixara para trás. A hipótese de ter andado às voltas e regressado ao ponto de partida nem sequer se punha, pois havia apenas um barco encalhado na areia e os homens que desmontavam o acampamento não eram mais do que três dezenas. Alguns gritaram e apontaram na minha direção, mas não esperei para confirmar se me seguiam. Subi a duna, tão depressa quanto consegui, sabendo-me presa entre dois fogos. Desconhecia o que Throst planeara para mim, mas não me custava adivinhar o que estes homens me fariam se me apanhassem. Num piscar de olhos, as minhas prioridades inverteram-se. Tinha de ir ao encontro do capitão. Se a sua fúria o instigasse a matar-me, pelo menos seria rápido.

Porém, eu não estava a lidar com rapazes púberes com pretensões a soldados e sim com predadores habituados a perseguir, capturar e matar. Mal começara a correr, e já o meu corpo era arrebatado ao chão. Suspensa nos braços de um homem, senti as mãos rudes percorrerem-me o corpo, e uma sonora gargalhada não se fez esperar. O selvagem confirmara que eu era uma mulher e louvava a sua sorte diante dos companheiros. Eu só podia supor as grosserias que os seus lábios proferiam. A presa chegava para todos.

Fui arremessada contra o solo. A minha cabeça bateu com tanta força, que o dia escureceu e as copas das árvores encheram-se de estrelas.

Respirando medo, dor e angústia, eu vi que o homem desamarrava o cinto e deixava cair as calças. Outro começou a lutar com a minha roupa. Esbocei um gesto de resistência que só provocou mais gargalhadas. Subitamente, as risadas foram talhadas por um grito de raiva, que estrondeou como um trovão. Fechei os olhos e suspirei de alívio. Throst chegara.

Eu não precisava de conhecer a língua para saber que Throst lhes ordenara que me soltassem. O selvagem que estava sobre mim recuou de imediato. Eu consegui apoiar-me nos braços e rastejar um pouco, mas não fui longe. O guerreiro que baixara as calças já as vestira, e só teve de estender a mão para agarrar-me os cabelos. Os meus lábios escancararam-se num gemido silencioso de dor. Entretanto, Krum e os quatro guerreiros-lobo reuniram-se ao capitão. Senti um aperto no peito ao ver a palidez do rosto sempre corado do curandeiro. Desta vez, a resolução do problema não seria fácil.

O meu agressor respondeu a Throst no mesmo tom. Fisicamente, nada ficava a dever-lhe, mas o seu aspecto era repelente, e o odor que exalava pestilento, como se o corpo nunca tivesse conhecido água. Eu imaginava os seus argumentos - quem encontrava um tesouro tornava-se seu dono. O homem reclamava a minha posse e ameaçava o rival com a força dos guerreiros que se aglomeravam por trás de si.

Olhei para o capitão, tentando, de alguma forma, fazê-lo entender que eu lhe suplicava que não desistisse de me salvar. Ormarr segurou o braço do chefe e pigarreou algo que me soou a: ”Deixa-a ir! Não vale o trabalho que dá!” Acreditei que fossem desistir. O próprio Krum desviou o rosto, como se estivesse desolado mas nada mais houvesse a fazer. No meu desespero, dei por mim a estender a mão a Throst.

 

Então, o gigante de cabelos dourados avançou e iniciou o que percebi ser um ritual, longe de imaginar a sua importância e gravidade. As palavras que proferiu soaram ásperas e decididas. Ergueu-se um burburinho em redor do Viking desafiado. Sven chamou por Throst, mas este deteve-o com um gesto brusco. O guerreiro-lobo recuou. A vontade do líder era incontestável.

Por cima dos meus cabelos, que ameaçavam quebrar-se pela raiz, o homem gargalhou e a sua exclamação soou incrédula. Não acreditava que Throst assumisse uma posição de força por causa de uma coisa tão insignificante. Mas a resposta do capitão foi ainda mais dura, e, desta vez, o outro já não teve vontade de rir. Soltou-me com um safanão brusco e revidou no mesmo tom. Ambos desembainharam as espadas e seguiu-se uma saraivada de provocações e insultos. Por fim, o metal rasgou o ar.

Eu tremia horrorizada, consciente de que seria entregue ao vencedor do confronto. Pensei estupidamente que não queria que Throst morresse por minha causa. O que eu sentia por ele era tão intenso como contraditório. O Viking salvara-me a vida e, dentro dos seus padrões, tratara-me com cuidado e respeito. Todavia, a situação não era bonita. Depressa percebi porque Krum e os outros se haviam mostrado tão apreensivos. O rival do capitão era um guerreiro de soberba habilidade. Os momentos em que Throst parecia fraquejar sob a força da sua espada eram cada vez mais freqüentes. Ao contrário do que seria de esperar num duelo, não havia exclamações de entusiasmo ou apostas sobre a identidade do vencedor. A assistência estava mortificada; ambos os lados cientes de que a perda seria irreparável.

De súbito, Throst desequilibrou-se, e o ferro do adversário levou a melhor, ferindo-o no ombro direito. A espada do capitão caiu no manto de folhas mortas, enquanto uma mancha vermelha lhe tingia a túnica. Aflita, levei as mãos à boca e pensei que o meu coração se partia. O odioso guerreiro voltou a atacar, confiante na vitória. Com uma velocidade que julguei humanamente impossível, Throst desviou-se e recuperou a espada coberta de folhagem castanha. Escapou de outro golpe, enquanto mudava a arma para a mão esquerda e, com um movimento rápido de exímia perícia, trespassou o tronco do rival.

De onde estava, eu vi o olhar de ambos e percebi que este duelo fora um erro grotesco. Não existia ódio entre eles, e era até possível que fossem amigos. O capitão puxou pela espada, e o outro tombou, agonizante. Os companheiros do derrotado agitaram-se, e temi o pior. Contudo, quanto Throst falou, eles apressaram-se a recolher o corpo e a regressar à praia.

Tentei levantar-me, mas o esforço da fuga e as emoções extremas haviam arrasado comigo. Uma nova tentativa foi interrompida por duas mãos decididas, que me ergueram sem dificuldade. Apesar de ferido, o capitão não perdera a força descomunal. Desta vez, não contive o impulso de aninhar-me nos seus braços. Escondi o rosto no seu peito e inspirei o seu cheiro com um alívio inconfessável. Era a segunda vez que ele se arriscava para me salvar! Porquê?

Se durante a travessia da floresta o tempo me parecera suspenso, o regresso à praia foi um sopro de vento. Só quando ouvi o fragor do mar e a luz fulgente nos envolveu, é que eu reuni coragem para encarar o capitão. O que encontrei deixou-me confusa e receosa. O seu olhar revelava o oposto do que o conforto dos seus braços me transmitia. Throst estava furioso.

Largou-me na areia e pretendeu afastar-se. Detive-o com a firmeza possível, explicando que queria cuidar do seu ferimento. O mínimo que eu podia fazer era ajudá-lo! A brusquidão da sua recusa deixou-me a tremer. O seu rosto estava vermelho, os olhos azuis tinham escurecido e no interior relampejavam clarões de tormenta. Throst devia ter planos muito importantes para mim, pois, de contrário, ter-me-ia torcido o pescoço.

Uma mão tocou-me nas costas, incitando-me a andar. Tive esperança de que fosse Krum, mas era Sven. Throst desceu à beira mar e começou a distribuir instruções aos capitães dos outros barcos, que já se preparavam para partir. Krum andava de roda dele, como um grande cão de guarda, tentando observar-lhe o ombro mas sem nenhum resultado.

Pouco depois, o grande navio de guerra fez-se ao mar. Eu encolhi-me no canto da proa que já me era familiar e que, por ora, ainda estava seco. Mantive os olhos no céu, evitando fixar a praia, pois teria de enfrentar a expressão reprovadora do gigante louro, que segurava no leme enquanto os seus homens remavam. Como podia ele compreender o que me ia na alma? Como podia eu explicar-lhe que tinha de me deixar regressar a casa? Agora era tarde para qualquer entendimento! Se Throst possuía alguma consideração por mim, perdera-a na floresta.

O dia não foi diferente do anterior, à exceção do distanciamento de Krum, cuja companhia eu julgava perdida. Ao cair da tarde, Throst permitiu finalmente que o amigo lhe tratasse da ferida. Depois, Krum veio dar-me água, uma perna de coelho que sobrara da noite anterior e uma manta para cobrir-me. O ar arrefecera abruptamente, e eu não conseguia impedir o queixo de tremer. Contudo, dir-se-ia ser a única a sofrer com a mudança brusca de temperatura.

- Acabarás por habituar-te - explicou o curandeiro. - Na minha terra, os dias são muito mais frios...

Por que deixara a frase a meio? Tive de pensar para compreender a razão por que ele sorria. Eu estava a fazer uma triste figura, agarrando-me aos ossos do coelho como um cão esfomeado, lambendo os dedos, esganada de fome. Senti as faces enrubescerem. Ao sorriso de Krum juntaram-se as exclamações espirituosas da tripulação. Só

Throst não achara piada. Continuava com uma expressão cortante que se agravava quando me encarava. Muito a custo, reuni coragem para interrogar Krum acerca do ferimento do capitão.

- O Throst irá sobreviver - gracejou. - Foi um corte simples e limpo, que sarará rapidamente. Mas se te interessa saber, ele está furioso contigo. Por que fugiste, Pequena? Algum de nós te maltratou?

Neguei com a cabeça e apontei para o mar sem fim, na direção onde pensava que ficava a Grande Ilha, esperando que ele compreendesse que eu tinha de regressar a casa.

- Sinto muito - respondeu prontamente -, mas isso não é possível! É melhor que te habitues à idéia e não piores a tua situação. Se tentares fugir outra vez, serás castigada.

Krum só confirmava o que eu já desconfiara. E não tive de esforçar-me para que me explicasse a consternação que a morte do guerreiro provocara.

- O nosso povo tem costumes que eu não espero que entendas de imediato. A honra é mais importante para um homem do que a água para a boca. Pode ser duro para uma rapariga da tua condição aceitar isso... mas tu agora pertences ao Throst. Se ele tivesse permitido que os homens te levassem, deixaria a idéia de que, em qualquer altura, qualquer um poderia atacar impunemente a sua propriedade. Seria um sinal de fraqueza! Então, fez o que tinha de ser feito, apesar de contrariado. O homem que tombou era um bom chefe. Deveria ter morrido num campo de batalha e não numa rixa ridícula.

Eu pertencia ao Throst... Era freqüente os Vikings raptarem mulheres e crianças e levarem-nas para as terras geladas do Norte. Para quê, ninguém sabia ao certo, mas teciam-se histórias de horror, que iam desde os sacrifícios aos seus deuses sanguinários, até ao consumo de carne humana. Como fora ingênua e estúpida, ao acreditar que ele era diferente dos animais selvagens das narrativas de pesadelo! Não o vira a matar e a pilhar como todos os outros? Não vira o seu machado descomunal a separar membros dos corpos e a decepar cabeças? Não vira as suas armas a pingar sangue? Agora, eu era uma escrava dessa besta ignorante... Tão importante como qualquer outra ”coisa”; um ”produto” do saque de uma aldeia destroçada.

 

Os Vikings utilizavam os pontos de referência da linha recortada da costa para se orientarem durante o dia. À noite, quando a terra desaparecia encoberta pela escuridão, as estrelas indicavam-lhes o caminho. Em velocidade, eram insuperáveis. Eu nunca imaginara que existissem semelhantes barcos, tão rápidos e eficientes; os únicos que podiam transportar um tão grande número de guerreiros, encalhar numa praia e seguir viagem com a maré, navegar em pequenos cursos de água, ou mesmo ser transportados em terra pelos seus tripulantes. A instabilidade era a única fraqueza dos poderosos Draàkar, mas, com um homem experiente como Throst no comando, ninguém parecia recear o que quer que fosse, nem mesmo uma tempestade.

 

Por Krum, fiquei a saber tudo isto e muito mais. A praia onde tínhamos aportado pertencia a uma das muitas ilhas de um grande arquipélago desabitado, apenas utilizado pelos Nórdicos. Os povos da região consideravam o lugar amaldiçoado e não se atreviam a desafiar os rochedos aguçados, capazes de afundar qualquer navio incauto. Mas isso não assustava os Vikings. Conheciam o caminho seguro por entre as rochas e sabiam que a única maldição existente nas ilhas eram eles próprios. Calculei que fora nesse arquipélago que Gunnulf se ocultara quando a frota dos Aliados partira no seu encalço, depois dói ataque a Lorde Berry.

De acordo com a minha preciosa e única fonte de informação, em breve embarcaríamos num navio de transporte. O Knarr, como articulava na sua pronúncia arrastada, era maior e mais confortável do que o Drakkar e servia não só para transportar mercadorias, mas também animais e pessoas. Concluí que os cavalos e o gado da Aldeia da

Fortaleza seguiam nesses barcos para o Norte. Perguntei se existiam prisioneiros, e Krum confirmou. Renasceu em mim a esperança de encontrar algum dos meus irmãos entre os desafortunados.

Agora, que eu pouco mais podia fazer além de refletir, não me parecia credível que Goldheart tivesse assaltado a Aldeia dos Sábios. Apesar do medo que a nova religião gerava, o meu povo continuava a amar e a respeitar os homens sagrados. Se algum mal se tivesse abatido sobre a aldeia, ter-se-ia levantado um clamor de revolta que me chegaria aos ouvidos. E o fato de Oliver reconhecer a habilidade de Myrna, também me forçava a encarar o seu pensamento de outra forma. Ele não se atreveria a atacar os druidas, pois temia o poder antigo. Posto isto, faltava-me descobrir o paradeiro de Berchan e de Stefan. Se nada de ruim lhes sucedera, por que não haviam lutado ao lado de Edwin na Enseada da Fortaleza? Teria a maldição da feiticeira imposto a sua ruína? Se, por vezes, eu era acometida por uma confiança doce, que me ajudava a acreditar na sobrevivência dos meus irmãos, noutras, mergulhava num abismo negro, sem esperança, que me martirizava até ao desespero. Talvez nunca descobrisse a verdade.

Krum contou-me que, normalmente, seguiriam no Drakkar até casa. Porém, Throst decidira alterar os planos para poupar-me à violência da viagem. O seu cuidado, depois de tudo o que acontecera, suscitou o meu assombro. Apesar da incerteza e do medo, a perspectiva de viajar num barco maior e mais confortável deixou-me aliviada. Eu estava cansada de passar os dias entalada entre duas tábuas, encharcada até aos ossos e sem a menor privacidade. Já que o capitão se preocupava com o meu bem-estar, talvez me cedesse um quarto, para que eu não tivesse de viver debaixo dos olhares curiosos de dezenas de homens. Sentia-me imunda e desconfortável. Estupidamente, sonhei com uma tina de água quente, um pedaço de sabão e roupas lavadas.

O motivo por que eu desfrutava de um tratamento diferente dos restantes prisioneiros avivava a questão do protecionismo de Throst. O capitão não quisera perder-me de vista. Mas porquê? Se a minha identidade fora a causa do rapto, ele deveria estar a exigir um resgate aos Aliados e não a tomar-me para sua escrava! Por outro lado, se desejava uma criada, deveria ter escolhido uma rapariga robusta e não alguém como eu! Pensar que o Viking reconhecera o meu rosto, tal como eu reconhecera o dele, e que não pudera ficar indiferente ante esse enigma, era inaceitável. Tolerar tal explicação seria admitir uma inevitabilidade que ultrapassava os limites da razão; era só o que me faltava para enlouquecer! Mas, se tudo isto era improvável ou falso, para que raio me queria Throst?

O que sabia eu acerca do capitão? Throst era um chefe... Isso era indiscutível! E tinha de ser um homem de poder e riqueza, pois o Drakkar onde navegávamos era seu, assim como o Knarr para onde nos íamos mudar. O proprietário de dois barcos não era um homem do povo! Seria um líder como Gunnulf, apenas menos afamado aos olhos da minha gente? Não me atrevia a interrogar Krum a este respeito.

Tudo o que aprendera acerca dos Vikings era posto em causa a cada instante, a cada gesto. A noção de uma sociedade desorganizada, onde não existiam soberanos e a lei era imposta pelas freqüentes quezílias, parecia-me incoerente. Do que já observara, o que não lhes faltava era organização e um respeito profundo pelas hierarquias dentro dos grupos. E a percepção da inteligência e eficiência de um inimigo tão aguerrido era deveras inquietante.

Eu nunca vira um cenário de tamanha grandeza. Habituada à pequenez e quietude das aldeias da Grande Ilha, deslumbrei-me com a vastidão de casas que se estendia diante de mim. Mesmo do interior do barco, com a luz a morrer, eu abria e fechava a boca perante o movimento, a imensidão de cores e a diversidade de formas. Estávamos a atracar num porto de comércio que certamente era neutro ou amigo dos Vikings. Viam-se muitos navios iguais ao Drakkar onde eu viajava, mas outros, bem diferentes, provavam que não era só esse povo que aportava e comercializava nestas águas.

- Prepara-te - avisou Krum. - Vamos descer.

O meu coração sobressaltou-se quando o capitão se aproximou. Nos últimos dias, erguera-se entre nós uma barreira silenciosa e gelada que aniquilara todas as minhas esperanças de apelar à sua compreensão e bondade, para que me permitisse retornar para junto dos meus. Apesar de me ter sido revelado em sonhos, Throst não passava de um Viking; e isso tornava-o tão terrível como Gunnulf.

Achei melhor não protestar quando ele me pegou ao colo para me ajudar a sair do navio. Furioso como estava, seria capaz de me atirar ao mar! Eu não tive coragem de encará-lo e percebi que os seus braços não possuíam a delicadeza de outrora. Entregou-me a Sven, que aguardava no ancoradouro, com a mesma indiferença com que descarregaria um fardo de trigo.

Mal os meus pés pisaram a madeira do ancoradouro, senti-me melhor. Espreguicei-me sem cerimônias, inspirando o ar com força. Pela primeira vez, em muito tempo, agradeci por estar viva. Teria de suportar a dor e a mágoa cravadas no meu peito, como um punhal afiado, até ao fim dos meus dias, mas já não desejava morrer. A minha curiosidade insaciável devorava a visão de cada rosto que passava, das carroças carregadas de mercadorias, dos barcos majestosos e das casas incontáveis, sobrepostas como cogumelos.

Dei um salto quando um laço me apertou o pescoço. Engasguei-me e agarrei o cinto de pele com as mãos, aflita e confusa por verificar que era Throst quem o segurava. O capitão fazia questão de mostrar ao mundo que era o meu proprietário, por isso ia forçar-me a atravessar o porto amarrada como um cavalo. Quis assegurar-lhe de que aquilo não seria necessário, mas desisti ao deparar-me com a sua ironia. Throst não me prendera por temer que eu fugisse. Fazia-o para me envergonhar, para me castigar, para me provar que era ele quem mandava. Cerrei os dentes e os punhos. Resistir só pioraria a minha situação. Por enquanto, eu teria de alinhar nesta farsa ridícula. Mas a besta pagaria caro por tamanha humilhação!

O percurso entre o Drakkar e o Knarr pareceu-me infindável. As mulheres, ricamente vestidas e com penteados espalhafatosos, apontavam-me o dedo e riam-se às gargalhadas. Os homens dirigiam-me palavras de escárnio, muitas delas em línguas que eu compreendia. Ninguém esboçou um gesto de simpatia, um olhar de conforto ou piedade. Ao meu redor, todos lutavam por algo e apenas os melhores prevaleceriam. Os demais afogavam-se em frustração e contentavam-se em insultar os mais fracos e desfavorecidos, sem compaixão ou remorso.

Os cinco guerreiros que sempre acompanhavam o capitão subiram para o Knarr, reunindo-se à tripulação que os aguardava. Um homem baixo e gordo, de tez escura, dirigiu-se a Throst e cumprimentou-o com entusiasmo. A sua cabeça estava coberta por uma trouxa colorida que descobri chamar-se turbante, as suas vestes eram mais ricas do que as dos restantes homens e do cinto pendia-lhe uma espada como eu nunca vira outra igual, larga e curva, com o punho cravejado de jóias de valor incalculável.

Eles conversaram durante bastante tempo, e, nem por um instante, o desconhecido tirou os olhos de mim. Por fim, aproximou-se subtilmente, e, quando dei por ele, já punha as mãos nos meus cabelos e examinava-me como se eu fosse um animal raro. Reagi por instinto, empurrando-o e assumindo uma posição defensiva. Os dois homens gargalharam, deixando-me ainda mais furiosa. O olhar com que fulminei Throst não escondia a minha mágoa.

Estupefata, vi o gordo retirar uma bolsa da sacola que lhe pendia a tiracolo e abri-la diante do meu captor. Estava cheia de moedas de prata. A ira subiu por mim e explodiu-me no rosto. O que pretendia aquele porco bastardo? Comprar-me? Os meus olhos chispavam de raiva, enquanto esperava que Throst rejeitasse duramente. Fiquei chocada ao defrontar a sua indecisão, como se ponderasse o negócio. Claro está que não entendi a resposta que deu, mas o outro não hesitou em estender-lhe mais uma bolsa igual à primeira.

O alarido da negociação atraiu as atenções dos homens que nos rodeavam. Apercebi-me de diferentes opiniões, mas a maioria aconselhava Throst a vender-me, opinando que era um ótimo negócio. Krum observava divertido, sem esconder o riso. Senti-me ultrajada e atraiçoada, ardendo com vontade de esbofeteá-lo. Como pudera confiar na proteção daqueles monstros? Eu não passava de uma ”coisa” e estava a ser negociada como tal!

A oferta ia em três bolsas de prata; uma verdadeira fortuna! De certeza o capitão ia aproveitar para livrar-se da minha presença incômoda. Uma gargalhada pôs fim à questão, e eu senti uma pontada no peito quando vi o comprador avançar. Sem pensar no que fazia, recuei instintivamente para perto de Throst e procurei-lhe a mão, apertando-a com força, qual criança procurando a proteção do pai. O homem escuro aproximou o rosto do meu e, para minha surpresa, falou na língua da Grande Ilha:

- Não te preocupes, rapariga! Não irás mudar de dono. Deves ser realmente muito especial! Acabei de oferecer o resgate de um rei ao nosso amigo, e ele recusou-o. Compensa-o bem. Homens como o Throst contam-se pelos dedos de uma mão.

Fervi ao escutar o riso do capitão. Se ele nunca planeara vender-me por que me submetera a tamanha tortura? Tentei libertar a mão da dele, mas os seus dedos apertaram-me. Antes que tivesse tempo para espinotear, Throst segurou-me ao colo. Eu tremia. Tremia tanto que teria caído, prostrada pelo meu próprio peso, se ele me tivesse forçado a andar. Com os nervos em farrapos, desisti de lutar e aninhei-me nos seus braços. Nem percebi para onde íamos. A noite caíra, e os meus olhos receberam a escuridão absoluta.

Throst pousou-me com delicadeza e acendeu uma lanterna. O cheiro forte do óleo queimado despertou-me os sentidos. Nós estávamos no porão do grande barco e diante de mim empilhavam-se dezenas de caixas, arcas e sacas. Era impossível que tudo isto tivesse vindo da Aldeia da Fortaleza. Os Nórdicos andavam ocupados havia meses. Se procurasse bem, talvez conseguisse encontrar os pertences de Lorde Berry.

O capitão apelou com a palavra que eu já me habituara a identificar como o meu nome: Pequena. Na sua língua e na sua voz, era estranhamente bonito. Voltei-me para encará-lo, como um cachorro obediente. Ele deixou claro, por gestos, que eu devia permanecer quieta. Só depois de obter a minha confirmação se decidiu a libertar-me do horrível cinto que me estrangulava. Fê-lo metodicamente, como se estivesse a soltar um animal, e desapareceu sem mais reparos.

O porão era escuro, úmido e irrespirável. Era este o navio luxuoso onde eu sonhara ter um quarto só para mim? Temi que Throst me fechasse ali durante o resto da viagem. Avancei com cautela até aos caixotes e procurei um sítio confortável onde instalar-me. Não estava em condições de desobedecer às ordens que recebera. Aliás, qualquer curiosidade que pudesse mover-me fora definitivamente adiada. O cansaço imperava por todo o meu corpo e não tardei a adormecer, embalada pela canção meiga que o mar me dedicava.

Abri os olhos devagar, desperta pelo barulho. Vi quatro guerreiros no porão e ter-me-ia assustado se não reparasse que um deles era Krum. Mal podia acreditar que haviam trazido uma tina de madeira cheia de água quente. Ao lado desta estava uma arca aberta, com tecidos de belos padrões caindo do interior. Krum mandou os homens sair e estendeu-me a mão para ajudar-me a descer dos caixotes.

- Vem, Pequena! Este é um luxo sem preço. Aproveita enquanto está quente. Eu estarei lá fora, certificando-me de que ninguém te incomodará. Escolhe um vestido desta arca e veste-o. Mas lembra-te de que vamos ao encontro do gelo e não para um baile na corte!

Fiquei sozinha e muito pouco convencida. Não ia tomar banho num navio cheio de homens! E se decidissem irromper por ali dentro? Mas o vapor que saía da água chamava docemente:

 

”Vem, Catelyn... Vem...”

 

Quem preparara o banho, aromatizara-o com pétalas de flores e um óleo que cheirava divinamente. Há quanto tempo eu não me lavava? Desde a manhã do meu casamento, se não contasse com as enxaguadelas na água gelada do mar, e isso fora há uma eternidade. A partir desse dia, cada batida de coração recordava-me tudo o que perdera. A proteção de alguém que só podia ser meu inimigo não era um consolo e sim uma inquietação. Throst salvara-me por algum motivo que eu ainda não compreendera. No momento em que decidisse cobrar a dívida, certamente amaldiçoá-lo-ia por não me ter concedido o conforto da morte.

 

”Vem, Catelyn... Vem,.,”

 

Deliciei-me no prazer morno. A sujidade saiu facilmente, e as escoriações também começavam a desaparecer. As feridas do espírito é que jamais sarariam. Fui novamente desassossegada por perguntas sem resposta. Teria o meu pai perecido na batalha? Desde que o caos se instalara, eu não tornara a vê-lo. Se estivesse vivo, seguiria os Vikings até às Terras do Norte para resgatar a filha que tanto o desiludira? E o que fariam os Aliados, depois de tão selvática afronta ao seu poderio?

A lembrança da noite de amor que vivera com Tristan trouxe-me um aperto ao peito e um suspiro aos lábios. Aquele calor doce, aquela recordação de felicidade, teriam de chegar para me ajudar a viver o tempo incerto que me restava. Enquanto as minhas mãos deslizavam pelo ventre plano, acudiu-me a idéia de que talvez estivesse grávida.! O pensamento era assustador, mas deveras agradável. Poderia dar vida a Tristan através do nosso filho?

Melancólica, levei a mão ao peito à procura da pedra da minha avó. Sofri novo sobressalto ao lembrar-me de que a perdera. Não sabia como interrogar Throst acerca disso, mas teria de fazê-lo rapidamente.

Escolhi um vestido simples, quente e confortável. Não queria, de forma nenhuma, atrair as atenções masculinas. O cabelo levaria algum tempo a secar, por isso decidi subir ao encontro de Krum.

A noite gélida era uma bênção depois do porão empestado de mofo. Fechei os olhos e inspirei com força, sentindo a vida fluir por mim. O ar estava impregnado de energia. O arrepio chegou instintivamente com a percepção. A energia que eu sentia não era natural. Havia magia por perto! Magia forte e poderosa... A mais poderosa que eu jamais sentira! E não era boa! Nenhuma magia boa me causaria esta súbita apreensão.

Quando fitei Krum, percebi que estivera demasiado tempo alheia à realidade e que despertara a sua curiosidade. Caminhei até ele, ignorando o olhar de admiração. Nunca me habituaria a que os homens me mirassem como miravam Myrna ou Melody. Eu não era igual a elas! Era pequena e desengraçada... O Conde de Goldheart só me quisera para fruir do meu talento. Tristan amara-me, porque me conhecia desde bebê. Contudo, estes homens estavam tão desesperados por companhia feminina, que qualquer uma serviria!

- O tempo está propício à navegação - comentou Krum, forçando-se a desviar os olhos da propriedade do seu capitão. - Se se mantiver assim, em breve estaremos em casa. Estou tão ansioso, que mal consigo pensar noutra coisa!

Era-me muito difícil imaginar a vida dos Vikings fora do mar. Mas não era mais do que natural! Muitos seriam casados, teriam filhos... Surpreendi-me a questionar Krum acerca de Throst. Como era a sua casa, a sua família...? Não consegui fazer-me entender. Ele pensou que eu o interrogava sobre o paradeiro do capitão.

- O Throst foi a terra com os homens - respondeu. - Há muito tempo que não desfrutamos dos prazeres de um porto seguro... comida, bebida, água quente e... - hesitou, detendo a língua a tempo

- e um pouco de diversão!

Eu imaginava o tipo de diversão de que os homens desfrutavam. Podia ver as luzes das tabernas do porto, ouvia a música, as gargalhadas... e via alguns homens agarrados a mulheres de pouco respeito, das quais só ouvira falar recentemente. Que um homem mantivesse uma amante, eu não aceitava, mas entendia. Mas, que as mulheres recebessem dinheiro para os servir na cama, era algo tão grotesco que eu nem podia conceber. Como é que elas toleravam as mãos peçonhentas de bêbados e assassinos sobre os seus corpos?

E tu? - perguntei por gestos.

Krum sorriu, encolhendo os ombros.

- Eu irei quando os outros regressarem. Só quero tomar banho e comer uma refeição decente. - Hesitou antes de continuar. - A única mulher que desejo está à minha espera, com o nosso filho nos braços. Ainda não o conheço. Ela estava grávida quando parti... Encarou a escuridão do mar com uma expressão saudosa. - A minha esposa chama-se Signy e tem mais ou menos a tua idade. Casamos no princípio do Inverno, vai fazer um ano. Partiu-me o coração deixá-la, mas... não tive alternativa! O meu pai já faleceu, e o meu irmão é o senhor da herdade. Eu tenho de ganhar o suficiente para estabelecer a minha própria quinta e criar o meu filho. Dentro de dois ou três anos, poderei abandonar as campanhas e dedicar-me à terra.

Fiquei quieta, calada, suspensa nas suas palavras, emocionada como pensava que jamais voltaria a ficar. Este homem tinha coração! Talvez por isso me sentisse tão bem junto dele! Krum era inteligente e não apenas um guerreiro obcecado pela cobiça. Como aprendera a minha língua, é que eu ainda não sabia. Esforcei-me para que me entendesse e, desta vez, fui bem sucedida.

- A minha mãe nasceu na tua terra. Os seus cabelos já estão da cor da neve, mas um dia foram negros, encaracolados e cheios de vida como os teus. Sempre que olho para ti, tenho a ilusão que estou a vê-la com quinze anos... linda e encantadora! - Sorriu perante o meu embaraço. - O meu pai apaixonou-se por ela no primeiro momento em que a viu e não descansou enquanto não a fez sua. Porém, como já era casado, não pôde dar-lhe os privilégios do casamento. Mas a minha mãe não se importou. Ela e a mulher do meu pai foram grandes amigas, e eu nunca fui considerado inferior aos meus irmãos. Quando o meu pai morreu, ambas tiveram o conforto da amizade que as unia. A mulher do meu pai também já faleceu, e, agora, é a minha mãe que governa a casa. Além da língua do vosso povo, também me ensinou a aplicação das ervas para curar as maleitas do corpo e do espírito. Será uma pena se essa arte se perder! Infelizmente, a minha irmã não quer aprendê-la. A irmã do Throst é a única...

Calou-se subitamente ao dar-se conta do quanto me revelava acerca da sua privacidade. Ou assim pensei no momento. Ficavam explicadas a sensibilidade e a bondade que o distinguiam. A sua mãe fizera um excelente trabalho ao transmitir-lhe a excelência do nosso povo.

Um apelo vindo de trás de mim fez-me saltar e revelou a verdadeira razão por que Krum. se calara. Throst estava de regresso. Eu fiquei suspensa na visão da figura estupenda recortada contra as luzes do porto, como se envolta por uma aura de magia. Ele tomara banho e vestira roupa lavada. A capa que lhe cobria os ombros esvoaçava ao vento, rivalizando com os seus cabelos longos e ondulados. Quando chegou mais perto, reparei que tinha aparado minuciosamente a barba. O que diriam as assanhadas que se babavam pelo Conde de Goldheart, se vissem um homem tão belo e perfeito? Senti o coração acelerar e baixei os olhos, horrorizada pelos meus próprios pensamentos.

Os guerreiros trocaram algumas palavras, e Krum acenou-me em jeito de despedida.

- O banho espera-me - gracejou. - Deixo-te em boa companhia! Ouvi os passos afastarem-se, mas não tive coragem de erguer o olhar. Não vira mais ninguém no barco enquanto conversara com Krum e sentia-me consternada por estar sozinha com o capitão. Para piorar, comecei a tremer descontroladamente, como se o vento soprasse apenas para mim. Com um pouco de sorte, ele não repararia...

Enganei-me desastrosamente. Mal tiritei, Throst despiu a sua capa e cobriu-me com ela. Enquanto o calor e o cheiro doce do seu corpo se entranhavam em mim, fui forçada a reagir ao apelo da sua voz.

Percebi, no momento em que o encarei, que ele não desviara os olhos da minha figura. O seu olhar interrogava se o que me fustigava era raiva ou medo... e havia uma luz que perguntava muitas coisas para as quais eu não tinha resposta.

As mãos do capitão permaneceram sobre os meus ombros. Eu continuei a tremer como um pássaro à mercê do caçador. Então, Throst fez a última coisa que eu esperava. Deslizou as suas mãos pelos meus braços e agarrou as minhas. Depois, tão devagar que me fez perder o fôlego, levou-as aos seus lábios e beijou-as carinhosamente.

As minhas pernas bambolearam. Que espécie de homem era este, que tanto me subjugava com um cinto como me beijava respeitosamente? Enquanto o meu olhar refletia o assombro, Throst soltou-me uma mão e gesticulou devagar, algo que compreendi de imediato: ”Quem me dera que pudesses falar!” Forcei a garganta para responder-lhe, mas não saiu nem um som.

- Chhh! - O seu tom era baixo e quente.

Tocou-me nos lábios, pedindo que não me esforçasse, e entrelaçou os dedos nos meus. Deu um passo em frente e esperou que eu o seguisse. Ao meu olhar interrogativo, explicou que era melhor descermos por causa do frio. O que podia eu fazer, senão obedecer-lhe?

A luz bruxuleante da lanterna ainda iluminava o porão. A tina de água quente continuava a libertar fumo e perfumava o ar com um vapor muito agradável que abafava o cheiro a mofo. Throst abriu uma das arcas e retirou de lá de dentro uma manta de lã. Estendeu-a no pequeno espaço livre e convidou-me a sentar junto dele. Apesar do calor da sua capa, eu não parava de tremer. Aquiesci, sem força para protestar, saltando alarmada sempre que ele se movia.

Vi que buscava dentro da sua bolsa e não escondi o espanto quanto me estendeu um pedaço de bolo, embrulhado num pano impecavelmente limpo. Depois, entregou-me o cantil onde guardava a água. Eu aceitei agradecida, subitamente esfomeada. O bolo era delicioso, mas a bebida não era água e sim algo forte que sabia a mel. Ele insistiu que a bebesse, apontando para a garganta. Aparentemente, estava ansioso por que eu recuperasse a voz. Pensaria que eu possuía algum segredo de guerra que o favoreceria?

A hipótese de não voltar a falar entristecia-me, mas restavam-me poucas dúvidas de que assim seria. Recordei quantas vezes detestara Melody por me obrigar a cantar e a dançar. Naquele tempo, não soubera dar o devido valor à felicidade. Tivera de perder tudo para perceber...

Os meus pensamentos refletiam-se nos olhos. Tentei desviá-los, mas Throst não permitiu, segurando-me levemente no queixo. O meu coração desatou num galope desvairado, ao encontrar o brilho do seu olhar. O capitão era, sem dúvida, o homem mais belo que eu já vira na vida. Eu tinha de esforçar-me por recordar que ele era um selvagem, tão responsável como os outros pela minha desgraça. Perdi o fôlego ao constatar que a sua atenção ficava presa nos meus lábios. Estaria a pensar...? Não! Eu tinha de impedi-lo de avançar, fosse de que maneira fosse! Então, lembrei-me do amuleto da minha avó.

Gesticulei fervorosamente e, com as mãos sobre o peito, desenhei a pedra com os dedos. Esperei que Throst me ignorasse ou que negasse o conhecimento, mas, em vez disso, ele levou as mãos ao pescoço e retirou de dentro da sua túnica o fio que a minha mãe tecera, de onde pendia o amuleto azul. Indignada, estendi a mão para recuperá-lo. Throst recuou, sorrindo. Eu investi, repleta de frustração, e ele tornou a desviar-se, divertido com a brincadeira de ”gato e rato”. Senti o sangue a ferver. Por que me roubara? Para ele, a pedra não tinha nenhum valor! Tentei explicar-lhe a importância de reavê-la, sem resultados. O capitão continuava a sorrir, abanando o cordão diante dos meus olhos, no claro intuito de provocar-me.

Perdi as estribeiras e lancei-me sobre ele, empenhando-me na inglória tentativa de recuperar o amuleto. Throst gargalhou e deixou-me batalhar e espernear, sová-lo e arranhá-lo, troçando dos meus esforços vãos. Eu tinha consciência da minha figura ridícula. Mesmo que conseguisse arrancar-lhe a pedra, ele acabaria por reclamá-la para si. Porém, a ira cegava-me e forçava-me a lutar com redobrada convicção.

De repente, o capitão gemeu de dor; uma exclamação instintiva de um homem apanhado desprevenido. As minhas unhas haviam-se enterrado profundamente na sua ferida. Eu recuei assustada, enquanto ele me voltava as costas, zangado por ter revelado a sua fraqueza.

A confusão apossou-se do meu discernimento, e a raiva desapareceu como por encanto. Aproximei-me preocupada, mas Throst evitou-me, tentando esconder o rubor das faces. Eu insisti e, quando obtive a sua atenção, expliquei-lhe que sabia como ajudá-lo. Mais do que tudo, ele pareceu ficar curioso. Mesmo relutante, permitiu que o examinasse. Verifiquei que, apesar do bom trabalho de Krum, o corte infectara. Se o deixasse assim, a febre prostrá-lo-ia pela manhã. Gesticulei, pedindo-lhe o que necessitava para fazer um novo curativo. Ele hesitou, ainda surpreendido. Depois desapareceu, para regressar passado pouco tempo com o que eu lhe solicitara.

Deitei mãos à obra e, depois de tudo preparado, debrucei-me sobre ele para auxiliá-lo a despir a túnica. Fi-lo instintivamente, com a inocência e o profissionalismo de uma curandeira. Porém, o meu gesto surpreendeu-o tanto, que se retraiu, deixando-me desconcertada e corada até à alma. Durante esse instante de extremo embaraço, questionei-me acerca do que lhe passaria pela cabeça. Eu própria pensava que só podia estar louca, dispondo-me a cuidar de um bárbaro ao invés de vingar-me, mas, quando Throst se decidiu a colaborar, o meu rancor desvaneceu-se.

O capitão possuía um corpo perfeito, digno do mais nobre dos guerreiros. Os seus ombros eram largos e tinha os músculos bem desenhados. Uma fina camada de pêlos louros cobria-lhe o peito e descia-lhe pelo ventre, até desaparecer dentro das calças. Em contraste com a maioria dos seus companheiros, ele não tatuara o tronco. Os únicos desenhos visíveis na sua pele eram os dos pulsos, que eu já conhecia de cor. Além do meu amuleto, Throst trazia outro fio suspenso ao pescoço, com um pendente de metal em forma de machado. Fiquei curiosa acerca do seu significado e imaginei que fosse um talismã da sua raça, destinado a protegê-lo dos incontáveis perigos que enfrentava. Contudo, mesmo que pudesse perguntar-lhe se isso era verdade, não compreenderia a resposta.

O meu rosto picava com a força do rubor. Obriguei-me a concentrar no curativo, apesar de as mãos me tremerem e não conseguir dominar a respiração. Este homem transtornava-me; perturbava-me como nenhum outro! Era ridículo comparar o que sentia perto dele com o sentira ao lado de Tristan, porque Tristan fora como um irmão. Entre nós, tudo acontecera naturalmente, sem constrangimentos. Com Throst era diferente. Por mais que tentasse negá-lo, eu estava encantada por um homem a quem devia odiar e não sabia lidar com esse sentimento. Maldisse o momento em que permitira tão grande aproximação. Tinha de afastar-me antes que...

Sobressaltei-me quando os dedos do capitão tocaram nos meus cabelos, desenhando os contornos dos cachos ainda molhados com carícias. Se eu não fugisse já...

O rosto de Throst tocou o meu. Pulei como se me tivesse queimado e tentei afastar-me, mas ele prendeu-me pela cintura e atraiu-me para mais perto. Arrisquei-me a encará-lo, decidida a protestar, mas estaquei paralisada debaixo do olhar profundo, que o brilho da pedra azul não conseguia ensombrar. A sua expressão estava séria, sem o menor vestígio de troça ou arrogância. Segurou-me nas mãos e colocou-as sobre o seu peito. Os nossos corações batiam ao mesmo ritmo, a sua pele estava quente e os pêlos acetinados envolveram os meus dedos.

Senti-me tonta, à beira de um desmaio, sem alento para respirar. Arrepiei-me da cabeça aos pés quando a sua face deslizou pela minha, acariciando-me com a barba suave. Throst deteve-se junto da minha orelha e murmurou algo na sua língua, longe da minha compreensão. Eu fui forçada a cerrar os olhos, sacudida por um estremecimento violento, perante a rouquidão da sua voz. O meu corpo ardia como se estivesse cheia de febre. Os lábios masculinos desceram pelo meu pescoço, enquanto as suas mãos subiam para me abraçar, com muito cuidado e carinho, quase temendo assustar-me ou magoar-me.

Quando Throst se afastou, fui trespassada por uma angústia enfurecida. Estava a voar e não queria regressar à terra. Estava a sonhar e não queria despertar. Abri os olhos e encontrei o seu rosto a um palmo do meu. Parecia que também ele travava uma violenta batalha interior. Todavia, quando se deparou com a minha ansiedade arrebatada, esqueceu-se do que quer que fosse que ainda o segurava. Os seus lábios tocaram nos meus com uma leveza celestial. Afastaram-se e regressaram, tantas vezes que se tornou impossível contá-las. As nossas respirações competiam e cada contacto era mais demorado, mais profundo e quente. A língua morna pediu permissão para se instalar em mim... E a razão desvaneceu-se.

Afundei-me nos braços de Throst com um suspiro de rendição e os nossos lábios uniram-se finalmente, com uma sofreguidão devastadora. Nada do que eu provara na vida se comparava ao seu sabor. O prazer era tão violento, que me forçava a ignorar quem éramos e onde estávamos. Perdi a inibição e acariciei a sua pele com a satisfação latente nas pontas dos dedos. Ele sorvia cada gota da minha saliva e eu correspondia com igual avidez. Não opus resistência quando me deitou na manta e começou a desapertar os cordões do vestido. Eu queria sentir o seu calor. Queria sentir a força do seu corpo sobre o meu. Queria...

Não sei explicar o que aconteceu. Talvez a energia libertada pelo amuleto da minha avó me resgatasse à loucura e chamasse à razão. Eu estava a entregar-me a Throst sem hesitações! Estava a oferecer-me a um homem que não conhecia, do qual nada sabia, a não ser que era um bárbaro, um assassino e um ladrão! Das mãos que me acariciavam ainda pingava o sangue do meu povo... o sangue da minha família!

Reuni vontade para quebrar o beijo e empurrei-o. Throst não desistiu. A força do seu desejo estava descontrolada. Tentou recapturar os meus lábios, e a pressão das suas mãos tornou-se rude e exigente. Só se deteve quando eu comecei a espernear. Fixou-me incrédulo e percebi a sua confusão ao deparar-se com a minha súplica.

Eu conhecia o suficiente acerca do corpo de um homem para saber que estava a impor-lhe uma dolorosa privação. Eu também a sentia, mas não podia prosseguir. Porém, Throst não conseguia ou não queria entender e agarrou-me as mãos, sacudindo-me. O seu semblante escureceu, e os seus olhos brilharam perigosamente. Tentou beijar-me, mas eu desviei o rosto e tornei a debater-me. Por fim, enfrentei-o e ouvi a minha voz berrando dentro da mente, com tal clareza, que me pareceu ecoar por todos os cantos do porão: ”Se quiseres possuir-me, terás de usar a força! Terás de fazer o que impediste os outros canalhas de fazer! E não serás melhor do que eles!”

Como se me tivesse escutado, Throst libertou-me, rugindo de raiva e insatisfação. Quedou-se sentado, com a cabeça enterrada nas mãos, e quando agarrou a túnica, reparei que tremia. Senti uma vontade quase incontrolável de tocar-lhe, de voltar a acariciá-lo, de mergulhar nas sensações extremas que me faziam delirar. Contudo, se eu cedesse novamente, perderia todo o respeito por mim própria e odiar-me-ia até à morte.

O capitão enfiou a túnica pela cabeça e desapareceu, levando consigo o amuleto da minha avó. Eu sentei-me e abracei os joelhos, movimentando-me para trás e para diante, de olhos fechados. As emoções misturavam-se no meu corpo e mente, massacrando-me até ao desespero. A minha cabeça latejava e sentia as lágrimas na garganta, impedindo-me de respirar. Pedi perdão a Tristan, enquanto acariciava a pulseira de madeira. Como pudera esquecer um amor tão puro por causa de... Por causa do quê? O que fora aquilo? Loucura? Sim, porque o que acabara de suceder só podia ser justificado com a adulteração da razão! Como pudera eu corresponder com tamanho arrebatamento aos avanços de um Viking?

Definhei de vergonha e medo ao perceber as conseqüências do interesse revelado por Throst. Eu não passava de uma escrava, forçada a cumprir a vontade do seu dono e senhor. O seu respeito pela minha recusa era assombroso e contrariava a própria Natureza da sua raça. Todavia, eu não guardava ilusões! O capitão voltaria a atacar, e eu não teria como escapar-lhe. Se queria preservar a vida, devia submeter-me, assumir uma atitude passiva e rezar para que se desinteressasse depressa do meu corpo. Tal resposta ao seu ardor não podia repetir-se, pois representava uma aberração à minha educação e uma traição contra todos os que amava.

”Onde estás Berchan? Preciso tanto de ti! Stefan...” O que eu não daria pelo seu abraço? E pelo sorriso de Edwin, pelas brincadeiras de Quinn e os conselhos prudentes de Aled? Eu queria os meus irmãos! Desejava desesperadamente que tudo voltasse a ser como era, antes de a bruxa devassar a nossa existência! Como pudera esquecer-me da única razão para a qual vivia?

Pelo menos descobrira onde estava a pedra de Aranwen. Agora, só teria de esperar que Throst se distraísse para recuperá-la... Esta resolução afundou-se na lama da impossibilidade, ao interrogar-me sobre como fazê-lo. Eu aprendera à minha custa que o capitão dormia com um olho fechado e outro aberto. Também sabia que uma aproximação subtil não resultaria. Eu estava de mãos e pés atados... Eu estava a ficar doida!

 

A chama apareceu diante dos meus olhos, flutuando, crescendo e alimentando-se do ar, até transformar-se numa bola gigante. Eu não me lembrava de tê-la chamado. A magia que vivia em mim começava a agir por sua própria vontade.

”Eu posso afundar este navio! Posso matar estes selvagens! Ficarei livre para...” Afoguei a bola de fogo na tina e deitei a cabeça nos joelhos, devorada pelo desespero. A mente mandava-me avançar sem piedade e fazer tudo o que fosse necessário para atingir os meus objetivos. O coração reclamava que eu não podia magoar ninguém com tamanho desprendimento. Matar Krum, cuja mulher o esperava com um filho nos braços, ou matar Throst que já me salvara por duas vezes, eram hipóteses dolorosas. Se, por um lado, era massacrada pela recordação da batalha da Enseada da Fortaleza e da crueldade destes homens, por outro, não me esquecia de que cada um deles tinha uma vida, uma casa e uma família. Por mais que tentasse, eu não conseguia encará-los com a frieza que outrora sentira sempre que ouvia falar do povo viking. Os dias de convívio haviam-me ensinado uma nova realidade impossível de ignorar. O ódio não se combatia com ódio! Jamais me tornaria igual a Myrna! Jamais!

 

Acordei com o balanço do navio e os gritos dos homens, com o rugido da trovoada e os gemidos dolorosos do casco, encharcada até aos ossos pela água que escorria do convés. Emaranhada no caos, interroguei-me por que não despertara antes, mal a agitação começara. Eu devia estar realmente exausta! Teríamos partido há muito? Como se justificava que estivéssemos a enfrentar uma tempestade, se o próprio Krum confirmara que existiam boas condições para navegar?

Subi precariamente, com as tábuas a fugirem-me debaixo dos pés, e deparei com um cenário horrendo de luta acerada pela sobrevivência. Cada homem dava o seu melhor para impedir que o barco se afundasse. As ondas varriam o convés, e a chuva fustigava-o com violência. Os relâmpagos mergulhavam no mar e iluminavam os rostos cansados e esforçados da tripulação. Os trovões estouravam dentro da minha cabeça, com tanta força que me bloqueavam a audição. Distingui Throst e Sven, segurando o leme com grande dificuldade. Depois, a onda apanhou-me pelas costas e derrubou-me.

O meu corpo foi varrido pelo convés como uma folha. Fiquei coberta pela água gelada, cega, sufocada e engasgada pelo gelo salgado. Embati contra várias superfícies e pensei que ia tombar no vazio e ser sugada pelo mar indomável. Porém, a sensação de desamparo e queda foi substituída pela percepção do abrigo de um corpo forte. Não via a identidade do meu salvador, pois o cabelo cobria-me o rosto, mas sabia que era ele. Era sempre ele! Apertei os braços em redor do pescoço de Throst e recebi com alívio a segurança relativa do porão. Assim que ele me pousou no chão, o meu estômago cedeu ao enjôo. A água salgada queimava-me por dentro e pensei que ia morrer de agonia. Escutei outra voz, e os braços de Throst foram substituídos pelo apoio de Krum.

- Por que saíste daqui, Pequena? Por pouco não foste arrastada pela borda fora!

Não foi fácil acalmar os vômitos e a tosse. Como explicar-lhe que eu não imaginara a gravidade da situação? Ao largar o leme para me salvar, Throst arriscara as vidas de todos nós.

- Eu tenho de subir, Pequena. Promete-me que não sairás daqui! Prometi. A única maneira de ajudá-los era não atrapalhá-los ainda mais. Desejei possuir o poder dos antigos feiticeiros. Berchan contava que eles podiam criar tempestades com a força da mente, provocando descargas de energia no ar, deslocando as nuvens, movendo as águas turbulentas do mar. E assim como as criavam, também conseguiam controlá-las e apaziguá-las. Afastavam os ventos, empurravam as nuvens, absorviam a energia dos relâmpagos nos seus corpos...

Arrepiei-me desde as raízes dos cabelos até às unhas dos pés, quando as palavras do livro de feitiçaria de Berchan me inundaram a mente. A sabedoria que eu ambicionava estava na minha posse! Eu sabia o que fazer, como fazê-lo... Atrever-me-ia a tentar? Teria força suficiente para executar algo tão prodigioso?

 

”A azul falhará, por fraqueza e inaptidão...”

 

Tão rapidamente como me assolou, a excitação finou. Eu não passava de uma fraca e incompetente aprendiz de Sábio. Ousar desafiar os Elementos estava muito para além do alcance das minhas habilidades. Se ao menos tivesse o amuleto da minha avó...

 

”A magia vive dentro de ti... Dentro de ti...”

 

De repente, o mundo revirou e o meu corpo ficou submerso. Não me importei, porque não precisava de respirar. O barco ia afundar-se, e todas as vidas que protegia seriam engolidas pelo abismo. Era essa a vontade dos Elementos. O Knarr desafiara a fúria do gigante de sal, e este reclamava vítimas para saciar a fome. O meu tormento finava no meio da escuridão impenetrável.

- Não!

Do nada ecoou a voz zangada da feiticeira Aranwen: ”Irás abandonar o teu povo, Catelyn?”

- Não! Não!

A voz profunda e grave de Berchan:

 

”Tu és a luz que brilha dentro de cada um de nós. Se te apagares, estaremos perdidos.”

 

- Mano...

 

”Na vida e na morte... Somo seis, mas somos um só!”

 

Um clarão tímido iluminou o porão e dois rostos que identifiquei de imediato. Eu estava sentada sobre uma manta de tons vermelhos, castanhos e verdes, bem próxima de Throst. Sobre nós, a lanterna abrilhantava a pele rosada do guerreiro. Os seus olhos azuis encontravam-se presos às minhas faces incandescentes, e eu apertava um pano em redor do seu ferimento, com as mãos a tremer. Tentei fugir quando o rosto dele tocou no meu, mas era tarde. Throst abraçou-me e capturou-me o olhar. As minhas mãos pousaram no seu peito e deleitaram-se com as batidas do seu coração. Os lábios quentes do capitão roçaram no lóbulo da minha orelha, libertando a voz rouca e arrebatada:

 

”É por ti que ele bate, mulher! Tu és a minha loucura... E eu quero enlouquecer!”

 

Mergulhei numa vertigem onde não existia princípio nem fim. Respirei fundo e estendi as mãos. A minha avó agarrou-as. Olhei dentro dos olhos de Aranwen e percebi que eram os meus próprios olhos.

 

”Chegou o momento de mostrares o que aprendeste, Catelyn!”

 

”Eu não aprendi o suficiente! Não serei capaz...”

 

”Se falhares, este será o teu fim e o fim dos que partilham o teu destino. Irás entregar a vitória aos teus inimigos? Desistirás sem lutar?”

 

- Não!

Gritei tão alto, que o trovão recuou. De pé, na proa do Knarr, abri os braços e enchi o peito de ar. O céu abriu-se, e um raio desceu até mim. Enquanto a energia fluía através da minha essência, senti a cólera do vento, a fúria do mar, o tormento das nuvens... Fechei as mãos por cima da cabeça e apertei a pedra azul brilhante. Quando o interior do meu corpo se transformou em fogo líquido, devolvi a energia ao céu. O relâmpago ardente cortou o ar e rasgou as nuvens. Nas minhas mãos, a pedra de Aranwen tinha as sete cores do arco-íris. Movi os lábios num último encantamento, proferindo palavras sem sentido para o comum mortal. Estava feito!

As nuvens afastaram-se, e os primeiros raios de Sol pairaram sobre o mar. O vento sacudiu os meus cabelos e a saia rodada do vestido quando fugiu para longe. As ondas acalmaram-se e cingiram carinhosamente o minúsculo navio que o seu regaço albergava. Ao meu lado, Aranwen sorria. Apertou-me as mãos e não disfarçou o orgulho:

 

”Só tens de confiar na tua força para vencer! Deixa-te guiar pelo coração...”

 

O porão continuava mergulhado na mais profunda escuridão, apesar de o Sol brilhar no firmamento. Lá em baixo, envolvida pela água gelada, estava eu, Catelyn McGraw, assimilando dolorosamente que é necessário perder para aprender, chorar para rir, odiar para amar, confiar para avançar e lutar... para vencer.

Quando despertei, demorei a perceber onde me encontrava e a recordar o que acontecera. Alguém retirara a água do porão e estendera mantas sobre os caixotes, onde eu dormira com algum conforto. A luz do dia trespassava a madeira, levantando dúvidas acerca da ocorrência de uma tempestade. Teria eu sonhado? A única maneira de saber era enfrentar os meus raptores. Escorreguei para o chão e testei a força das pernas. Estava tonta, mas consegui agüentar-me.

No convés, vivia-se um alvoroço ordenado. Todos se atarefavam e era difícil dar um passo sem esbarrar em alguém. Havia reparações por toda a parte, e a própria vela era grosseiramente remendada. Alguns homens pescavam, o que significava que as provisões se tinham perdido. Era óbvio que a tormenta ocorrera, mas a natureza escondera demasiado bem a sua fúria. Até perder de vista, o céu estava limpo e o mar agitava-se mansamente.

O capitão apareceu do nada e arrastou-me por um braço de volta ao porão. Os meus pés mal tocavam o chão e teria protestado de dor se pudesse fazê-lo. Quando nos enfrentamos, libertei o braço e esfreguei-o com uma expressão dorida, enquanto o fulminava com o olhar. Por que me tratava com tamanha ferocidade?

Krum chegou atrás de nós. Não hesitou em dirigir-se a Throst com um palavreado que não ocultava a reprovação pelo modo como o amigo agira.. Sem deixar-se comover, o capitão deu-lhe uma ordem ríspida, que denunciou a sua raiva. Krum suspirou e falou-me, num tom baixo e ponderado:

- O Throst quer saber se tu tiveste alguma coisa a ver com a tempestade desta noite.

Pisquei os olhos abismada. Por que me perguntavam aquilo? Esbracejei aflita, tentando convencê-los de que não compreendia o que se passava. Throst ripostou algo que me soou muito mal e voltou-nos as costas, pisando o chão com a impaciência de uma fera amarrada. Senti-me transparente quando Krum fixou o olhar verde em mim.

- Não ganharás nada em mentir, Pequena! O que se passou esta noite colidiu com as regras da razão. Nós sabemos que a tempestade que fustigou o barco não teve causas naturais. Foi fruto de uma magia poderosa que quase nos matou a todos.

Como podiam eles saber tanto? Além de curandeiro, seria Krum um vidente como Berchan? Recordando o que eu já vira e a forma como ele me influenciava, essa hipótese era consistente... e preocupante. Enquanto divagava, os acontecimentos da noite anterior tombaram sobre mim qual pedregulho num charco. Teria sido a força maligna que eu pressentira no porto que desencadeara a tormenta? Tão grande poder pertencia a ”alguém” que dominava muito bem a Arte Superior. As razões por que esse ”alguém” quisera afundar o Knarr e matar os seus marinheiros, iam além da minha compreensão. E partilhar as minhas suspeitas com os dois guerreiros que me cercavam seria uma insensatez descomunal. Quem me garantia que não me acusariam de ser a causadora da desgraça e não me cortariam a garganta sem sequer me escutarem? Ganhar tempo era a única solução. Gesticulei atabalhoadamente, replicando que continuava sem entender. O capitão resmungou qualquer coisa, à qual Krum reagiu de imediato:

 

- Depois da tempestade, o Throst veio assegurar-se de que estavas bem e encontrou-te a boiar, sem sentidos. Foi uma sorte não te afogares!

E depois? O que tinha o meu desmaio a ver com o temporal ou com a prática de magia? Em resposta, Krum abriu a mão e revelou a pedra da minha avó.

- O Throst encontrou isto entre os teus dedos. Como foi que lhe tiraste o colar do pescoço sem que ele se apercebesse? Qual é o significado desta pedra?

Empalideci, trespassada pela clara percepção de estar de pé na proa do Knarr, apertando o amuleto com toda a força. Não sabia como o recuperara e, naquele momento, esse pormenor era de somenos importância. O meu sobressalto resultava das lembranças soltas que me invadiam. Eu travara a tempestade! Eu usara os conhecimentos do livro de Berchan como uma verdadeira feiticeira! O uso da magia implicava recursos físicos e um controlo firme que eu estava longe de possuir. Por isso desmaiara! Por isso tinha tantos lapsos de memória! Como fora possível...?

O capitão destruiu a distância que nos separava e segurou-me pelos ombros, sacudindo-me com brusquidão e exigindo uma resposta. Talvez devido à proximidade do seu corpo, ocorreu-me uma explicação verossímil: ele salvara-me de morrer afogada e, enquanto estivera nos seus braços, eu aproveitara para tirar-lhe a pedra. Justifiquei-me com tanta convicção, que fiquei certa que ambos haviam acreditado. Throst soltou-me e arrancou a pedra da mão de Krum, levando-a consigo de regresso ao convés. Quando eu pensava que podia respirar livremente, o curandeiro tornou a prender o meu olhar, declarando:

- O Throst só vê o que quer... mas eu vejo mais longe! Nem só forças más andaram à solta esta noite. Durante a tempestade, um relâmpago atingiu a proa do navio e manteve-se suspenso como a chama de uma lanterna, brilhando com uma forte luz azul que se desdobrou em muitas cores. Depois, regressou ao céu qual seta disparada por um arqueiro exímio. Nunca, nenhum de nós observara algo assim. O céu abriu-se, como se duas mãos gigantes o rasgassem, o vento desapareceu e o mar serenou. Os homens clamam que o prodígio foi obra de Thor, o nosso deus da tormenta, mas eu desconfio de que não foi! Contudo, não irei julgar-te ou pressionar-te. Apenas te questionei, porque o Throst mo ordenou, mas não precisava de fazê-lo. Sei que tu não és má! Entendo que te seja impossível confiar em nós, mas o tempo mostrar-te-á que não somos melhores nem piores do que aqueles que conheces e amas... No fundo, até não somos assim tão diferentes!

Krum partiu, e eu fiquei onde estava, tremendo e arquejando, sem alento para reagir. Tudo isto era demasiado para mim! Eu só sabia levitar objetos, provocar fogos e agitar a superfície da água! No entanto, perante uma ameaça destruidora, vencera miraculosamente um poder muito superior ao meu. No fim da batalha, o meu corpo cedera à exaustão e, quando Throst me encontrara, tirara conclusões erradas. Acreditar que me encontrava entre selvagens só atrapalhava o meu discernimento. A Arte também vivia entre os Vikings, e as histórias que se contavam a respeito de Gunnulf e dos seus horrendos atos de magia negra provavam-no. O instinto avisava-me que Krum era mais do que um simples curandeiro, mas também me garantia que não era mau... E se estivesse enganada? As conseqüências de confiar na pessoa errada seriam fatais! Já estava demasiado exposta perante Krum para me arriscar a dar-lhe as confirmações que buscava. A afinidade que nos unia era pura ilusão, provocada pela minha fraqueza e carência de afetos. Krum podia falar a minha língua e ser filho de uma mulher do meu povo, mas não deixava de ser um bárbaro, de regresso a casa depois de uma campanha sangrenta. Não! Eu não podia confiar! Nem em Krum, nem em Throst, nem em nenhum outro Viking!

Passar o dia sem nada para fazer era um tormento. Apesar de chamar a mim todo o tipo de cogitações, acabava sempre a pensar em Throst, na razão por que o seu rosto me fora revelado há tanto tempo, na desconfiança cada vez mais fundamentada de que também ele já me conhecia, o que significava que possuía uma percepção muito maior do que eu me atrevia a imaginar. Por que motivo os nossos destinos se haviam cruzado? Por que é que um Viking, responsável pela matança do meu povo, já pusera a sua própria vida em risco para me proteger? E por que é que eu não conseguia desprezá-lo por tudo o que destruíra; odiá-lo pelo sangue que derramara? A noite anterior era um punhal cravado no meu orgulho. O capitão devia achar-se irresistível, já que a escrava moralmente obrigada a conspirar contra a sua vida, mal pudera esperar para desfrutar da sua luxúria. Raios! O que é que se passava comigo? Perdera a memória? Perdera o juízo? Perdera o rumo? Eu era Catelyn McGraw, órfã de uma terra destroçada, amaldiçoada pela sorte, vivendo para a vingança contra os Vikings... e contra Myrna!

A hipótese de existir um pacto entre a pérfida feiticeira e os meus raptores não era disparatada. Ela profetizara uma surpresa que esmagaria os seus inimigos. O ataque dos Nórdicos à Enseada da Fortaleza realizara os seus desejos: dera o golpe fatal na minha família, livrara a bruxa do domínio de Goldheart e enfraquecera os Aliados. Além disso, o arrojo com que os bárbaros haviam atacado, por terra e por mar, presumia um conhecimento da nossa vulnerabilidade. Porém, apesar de tudo sugerir que isto era mais do que provável, o meu coração recusava-se a admiti-lo. E a grande responsável pelas minhas dúvidas era Aranwen.

A minha avó insinuara que o destino me aguardava nas Terras do Norte. Como Myrna não se arriscaria a enviar-me ao encontro de um aliado, o meu rapto afigurava-se um percalço nos seus planos. Mas esta viagem também não podia ter sido idealizada pela minha avó, já que era conseqüência da desgraça do nosso povo e da nossa família.

O mistério adensava-se a cada oscilação do Knarr.

Decidi quebrar a reclusão antes que enlouquecesse. Afinal, não fora proibira de sair e já estava cansada de agir como uma prisioneira. Revelei-me à luz, prevendo que Throst teria um ataque de fúria e me empurraria de novo para o porão. Porém, ele ignorou-me simplesmente.

A tempestade arrastara-nos para alto mar, e o capitão esforçava-se por recuperar o rumo, guiando-se pela posição do Sol. Ninguém contestava as suas ordens. A fidelidade que os guerreiros lhe devotavam era digna de admiração. Baseava-se na confiança e na amizade; não no medo, como sucedia com o Conde de Goldheart e, mais recentemente, com o meu pai.

Apesar de a minha mente me ordenar que não levantasse um dedo para auxiliar o inimigo, eu não conseguia ficar indiferente ao cansaço dos que me rodeavam. Alegando a mim mesma para me tranqüilizar a consciência que só o fazia para garantir a minha própria sobrevivência, ofereci-me para ajudar em tarefas simples. Ao contrário do que esperava, a iniciativa foi recebida com agrado.

No final da tarde, avistamos finalmente terra. O acontecimento foi celebrado com euforia. Apesar de estarmos longe de um porto, encontrávamo-nos na rota certa.

O capitão mandou baixar a âncora, para que os companheiros desfrutassem de um merecido descanso. Os homens dispuseram algumas pedras sobre as tábuas do convés e colocaram sobre elas um enorme caldeirão de metal, dentro do qual deitaram toros de madeira. Tentaram pegar fogo à lenha, mas estava demasiado encharcada. Não resisti a dar-lhes uma mãozinha, certificando-me de que passava despercebida. Instantes depois, senti-me recompensada quando utilizaram a fogueira para assar os peixes que haviam pescado.

Surpreendi-me com o convite para juntar-me à elite. Comi e bebi com prazer, até pensar que ia rebentar. O meu súbito apetite divertiu-os, e cada um insistiu para que comesse um pouco mais. Tantas atenções constrangeram-me, mas acabei por descontrair-me como nunca pensara ser capaz. Prestando atenção às conversas que fluíam em redor, surpreendi-me ao decifrar algumas palavras. Talvez a língua viking não fosse difícil de aprender! Se ficasse algum tempo entre os Nórdicos, teria todo o interesse em fazê-lo. Não sabia se, no futuro, encontraria alguém tão solícito como Krum para me orientar.

Ouvi falar de Gunnulf e apercebi-me de opiniões contraditórias. Nem todos concordavam com as ações do líder. Sven era um fervoroso dissidente, mas Throst apressava-se a esfriar os ânimos. Steinarr era outro nome repetido com freqüência, o que me levava a questionar a importância desse homem. Contudo, não possuía dados suficientes para tirar conclusões.

Krum surpreendeu-me ao solicitar a minha ajuda para cuidar dos feridos. Justificou-se dizendo que ficara impressionado com o curativo que eu fizera a Throst, mas eu sabia que o pedido era, acima de tudo, uma artimanha para testar a minha habilidade. Mesmo assim, decidi aceitar. Afinal, não havia nada de errado no desempenho de uma curandeira. Talvez Krum caísse na própria armadilha e denunciasse a sua destreza.

Apesar de o trabalho ser sempre uma satisfação, senti-me apreensiva ao verificar que tinha a curiosidade da tripulação depositada em mim. Percebendo o meu desconforto, Krum apressou-se a explicar-me que, entre o seu povo, o nosso ofício era merecedor de grande respeito. Seria preferível que os homens me encarassem como uma curandeira e não como uma mulher. Não que eu tivesse de preocupar-me com o entusiasmo masculino, continuara. Era público que o capitão cortaria a garganta de quem se atrevesse a encostar-me um dedo.

O lume aceso foi útil para a confecção de chás que os homens beberam com satisfação. Graças ao efeito das ervas, as suas forças seriam restabelecidas e as feridas sarariam mais depressa. Eles conversavam entre si e com Krum, agradecendo-me polidamente com gestos de reverência. Dei por mim a sorrir em resposta e a recriminar-me por esquecer que estava a servir o inimigo. Talvez o tempo compensasse o sacrifício do meu orgulho! Este não era o momento certo para me revoltar. O meu pai sempre dizia que se deviam manter os amigos próximo e os adversários ainda mais próximo. Em breve, descobriria se Lorde Garrick tinha razão.

Fiquei perplexa quando Krum me comunicou que o capitão solicitava os meus serviços. Pensei em recusar-me, mas calculei que, se o fizesse, seria recambiada para o porão. Aproximei-me contrariada. Throst já despira a túnica, nada incomodado pelo vento gélido. Falava com Sven e continuou como se eu não existisse. Mesmo dominada pelo nervosismo, esforcei-me por fazer um bom trabalho. Este homem punha-me doente! Detestava perder o controlo diante dele, tanto como me irritava por ver a pedra da minha avó suspensa ao lado daquele machado ridículo. Forcei-me a terminar, tremendo estupidamente, rubra de vergonha e raiva. Afastei-me sem ouvir uma palavra de apreço pelo meu empenho e, enquanto cuidava de outro guerreiro, remoí a frustração de ser ignorada pelo gigante louro e censurei-me por isso.

A noite fechara-se, mas o barco continuava iluminado pela fogueira que ardia dentro do caldeirão. Quando Krum dispensou os meus serviços, percebi que me sentia muito cansada. Porém, não queria recolher-me. Apreciava observar o rebuliço daqueles homens que nunca paravam. Agora dedicavam-se a afiar as poderosas armas e a remendar as roupas. Throst não foi exceção e concentrou-se na lâmina do seu temível machado. Krum surpreendeu-me ao retirar uma pequena flauta da sacola, que levou aos lábios com o cuidado de um amante. Logo, um som doce pairava sobre nós e envolvia a bruma

O meu coração apertou-se. A melancólica melodia trazia-me à lembrança os serões quentes da Casa Grande. Provavelmente, Krum também sentia saudades de casa e pensava na esposa e no filho. Descobrir que os Vikings dominavam algo tão delicado e profundo como a música foi uma revelação estranha. Interroguei-me se o curandeiro não teria razão quando afirmava que os nossos povos não eram muito diferentes.

Krum chamou por Throst, mas o amigo negou o pedido. De imediato, ouviram-se solicitações por todo o convés, e o capitão foi persuadido a condescender. Também ele trazia uma flauta consigo. As surpresas nunca mais acabavam! Throst era quase tão habilidoso como Krum. Satisfazendo os companheiros, tocaram uma música alegre que pôs a tripulação a bater com os pés e a acompanhar com palmas. Dois jovens ariscos vieram dançar para junto de mim. Aplaudi-os com gosto, depois de premiá-los com as minhas gargalhadas silenciosas mas sinceras.

A festa continuou, e eu acabei por ceder ao cansaço. Acordei quando Throst me pegou ao colo. Tentei esbracejar um protesto, mas não tive força. Desprovida de vontade, aninhei-me nos seus braços e adormeci profundamente.

Sonhei com Stefan. Estávamos deitados na margem do ribeiro, exaustos de tanto nadar. Eu descansava a cabeça no seu peito e abraçava-o pela cintura. Ele acariciava-me os cabelos e beijava-me a testa. Eu sentia-me protegida. Sentia-me em paz...

Acordei com os primeiros raios de Sol brincando com o meu nariz e percebi que o Knarr já navegava. Todavia, não foi esse pormenor que me sobressaltou. Eu não me encontrava sozinha! Throst estava deitado ao meu lado! Ou melhor, Throst estava deitado debaixo de mim; a minha cabeça repousava no seu peito, o meu braço envolvia-lhe a cintura e as nossas pernas entrelaçavam-se.

O meu alvoroço despertou-o, e o olhar azul tirou-me o fôlego. O capitão não se moveu, como se esperasse que eu tomasse a iniciativa. Ficar ou fugir? Nunca me sentira tão confusa! Se, por um lado, sabia que devia afastar-me, por outro, rendia-me à emoção da proximidade quente e doce. E, depois de tanta hesitação, era tarde para recuar. Aguardei inerte, sem saber por que coisa, e foi ele quem se levantou e partiu, deixando-me trêmula, angustiada e com o orgulho desfeito. era fácil avistar esses animais perto da costa. Tal visão, era um sinal de que estávamos a aproximar-nos.

Estremeci, apreensiva com a alusão ao fim da viagem. O que me aconteceria então? O abrigo dos braços de Throst era um conforto para o corpo e um tormento para a mente. Quais seriam os seus planos para mim?

O Knarr atracou num porto muito menor do que aquele onde tínhamos parado para trocar de barco. Um homem muito alto e gordo veio receber-nos. Possuía uma grande barba loura, que começava a ficar grisalha, separada em duas tranças que lhe passavam o peito. Também usava o cabelo entrançado. A sua riqueza era evidente, pois as roupas que vestia não eram simples e práticas como as dos guerreiros. A capa que o cobria estava presa por um broche de prata maior do que a palma da minha mão e a sua túnica tinha aplicações de metais nobres, com desenhos e bordados belíssimos.

As conversas que os homens mantinham eram animadas, mas incompreensíveis, por isso, preferi prestar atenção ao que me rodeava. No porto só se encontrava outro barco de mercadorias, e os dedos de uma mão sobravam para contar os navios de guerra. Em contrapartida, as águas estavam infestadas por pequenos barcos de dois remos, o que indicava que esta era uma aldeia de pescadores. As casas eram semelhantes às da Grande Ilha, pequenas e retangulares, feitas de madeira e com telhados de colmo muito inclinados. Saía fumo da maior parte das chaminés. O ar era gelado, e a escuridão da noite, contrariada por archotes. À medida que avançávamos, os guerreiros foram já se recolhendo, agradecendo a hospitalidade dos amigos. Os habitantes da aldeia eram tão robustos como os guerreiros que me acompanhavam. Fiquei boquiaberta diante das mulheres, quase tão altas como os homens e igualmente encorpadas. Possuíam ombros largos, peitos volumosos como eu nunca vira, ancas avantajadas e longos cabelos de cores claras e brilhantes. Os seus vestidos eram simples e garridos, feitos de lã e sem grandes feitios, direitos ou pregueados, caindo pelo corpo até aos pés, os mais ricos enfeitados com aventais bordados. Também usavam botas de pele, capas e gorros, tal como os homens. Não vi crianças. Deviam estar recolhidas, pois já era muito tarde.

Paramos diante de uma casa central, maior do que as restantes. Pertencia ao chefe da aldeia, o homem que nos guiava. Assim que entramos, fomos rodeados por uma multidão de jovens escravas, que se apressaram a atender aos desejos dos guerreiros cansados. Levaram-me com elas, tagarelando sem parar e esperando resposta. Não foi fácil explicar-lhes que não podia falar. Depressa perderam o interesse, e eu senti-me grata por isso. Estava nervosa e assustada. Os meus olhos deambulavam em busca de Throst ou de Krum.

Toda a extensão da casa era composta por uma única sala. Entre os pilares que sustentavam o telhado pendiam cortinas que, uma vez fechadas, dividiam o espaço originando zonas privadas. Não existiam camas. Calculei que se deitassem sobre as arcas de madeira onde guardavam os haveres. Vi uma mesa grande e bancos compridos e grosseiros, mas nem uma única cadeira. Uma fogueira central era usada não só para cozinhar, mas também para aquecimento e iluminação. O caldeirão de metal suspenso sobre o fogo libertava um cheiro intenso e agradável a guisado.

O anfitrião, Throst e os seus cinco companheiros habituais sentaram-se em redor da mesa. O capitão parecia esquecido da minha existência. À sua volta pairavam duas raparigas altas e muito louras, desfazendo-se em sorrisos melosos, piscando os olhos sedutoramente e bamboleando as ancas generosas, tal como Myrna fazia quando caçava.

Foi Krum quem me chamou, e depressa percebi que era eu o assunto da conversa. Throst disse algo que provocou uma gargalhada geral. Não consegui evitar que o dono da casa me agarrasse, mas, quando decidiu inspecionar-me os cabelos, não estive com rodeios e ferrei-lhe os dentes com toda a força. O homem gritou, e os convidados desataram a rir, à exceção do capitão. Nada incomodado com as marcas na carne, o anfitrião bateu-lhe nas costas, como se o felicitasse. Throst continuou a dardejar-me com o olhar, enquanto Krum me empurrava para perto das outras raparigas, replicando:

- Esse mau feitio acabará por meter-te em sarilhos! Fica quieta e não saias daí!

Fitei-o magoada. O que esperava de mim? Que eu deixasse aquele homem horroroso passar-me a mão pelo pêlo como se eu fosse um cavalo ou uma ovelha? Se os meus irmãos estivessem por perto tê-lo-iam cortado às postas... Detive o pensamento, magoada pela dura percepção do meu desamparo. Eu era tudo o que me restava.

Enquanto as raparigas serviam o jantar aos senhores, o meu estômago revolvia-se com fome. Apesar disso, cumpri a ordem e mantive-me quieta. Com um pouco de sorte, em breve estariam todos a cair de bêbados ou a dormir, e eu poderia rapar o tacho à minha vontade.

De onde estava, via Throst comendo com satisfação, dispensando atenções às escravas que, depois de o servirem, voltavam para junto das amigas, sussurrando e suspirando, levando as mãos ao peito, revirando os olhos com expressões sonhadoras e sorrisos enlevados. Mesmo entre o seu povo, a beleza e o encanto do capitão distinguiam-se. Comprovei também que Krum fora sincero quando dissera que a única mulher que desejava era a esposa. Ao contrário dos companheiros, nunca se revelou atrevido ou disponível.

O tempo foi passando, e o meu estômago, resmungando. A iniciativa de alimentar-me partiu de Throst. Instruiu uma das raparigas para que me servisse, ao que ela obedeceu com evidente desagrado. Desafiou-me com o olhar, pousou a malga aos meus pés e virou-me o traseiro. Se pensava que o seu despeito me incomodava, estava muito enganada! Eu queria era comer!

A comida tinha um sabor forte, demasiado salgado para o meu paladar. Mas, com a fome que me atormentava, teria devorado de bom grado um pedaço rançoso de peixe cru.

A noite adivinhava-se longa. A comida nunca faltava na mesa, e a bebida escorria pelas gargantas como o meu ribeiro no Inverno. Apesar disso, aqueles homens pareciam nunca ficar embriagados. As gargalhadas ecoavam pelos quatro cantos da casa, acompanhando as histórias sem fim. Krum tocou a sua flauta, e os homens agarraram-se às escravas e dançaram. Throst manteve-se sentado com uma rapariga sobre cada perna, desfrutando das suas carícias.

Comecei a sentir-me desconfortável, doente de raiva e sem argumentos para justificá-la. O meu estômago revirou-se quando a grande loura, que me tratara, com despeito, beijou os lábios do capitão. Recriminei-me impiedosamente. O que me importava se aquela oferecida devorava aquele imbecil? O que me importava...?

Quando dei por mim, já as chamas da fogueira se erguiam até ao teto, engolindo o caldeirão e provocando um clarão tão violento que despertou as atenções. As escravas gritaram e fugiram para o lado oposto da casa, enquanto os guerreiros corriam a buscar água. Eu forcei-me a acalmar e amansei as labaredas. Instantes depois, o incidente era esquecido por todos, à exceção de Throst e Krum. Mantive o olhar no chão, repreendendo-me pela falha imperdoável. Eu vira bem as reações de ambos: Throst ficara furioso, e Krum sorrira. Se eles precisavam de uma confirmação das minhas habilidades, eu oferecera-a numa bandeja.

Por fim, a maior parte dos homens já mal se sustinha de pé. A fogosa escrava tentou regressar para o colo do capitão, mas foi dispensada.

Sem parecer incomodada com a mudança de planos, arrastou uma tina até um dos cubículos privados, encheu-a com água quente e perfumou-a. Pelos vistos, o grande senhor planeava banhar-se! E certamente não o faria sozinho, pois a risota entre as raparigas não cessava.

À luz tremeluzente da fogueira, Throst deixou os amigos entregues aos prazeres mundanos e dirigiu-se ao compartimento que lhe fora destinado. As duas raparigas que haviam pairado à sua volta, durante toda a noite, mais pareciam predadoras esfomeadas. Sem nenhum pudor, o capitão permitiu que o despissem e ficou nu diante de todos.

Pensei sufocar, estrangulada por garras gigantes e invisíveis. O meu coração ameaçava saltar pela boca, e toda eu tremia. Não sabia o que mais me incomodava, se a visão do corpo masculino, se a forma como as escravas o devoravam com as mãos e a boca, desafiando a imaginação mais ousada. Quando Throst entrou na tina, as duas libertinas apressaram-se a esfregar-lhe a pele, guinchando de satisfação por entre beijos e toques incendiados. Eu não tinha alento para desviar o olhar. Recordava o quanto penara ao surpreender Myrna com Quinn e depois com Lorde Garrick. Throst não me pertencia, mas eu sentia-me insanamente irada, com vontade de ferver a água e cozê-lo dentro dela, como se o seu prazer significasse uma traição.

De súbito, no auge de um beijo ardente, o capitão encarou-me. Continuou a beijar a escrava com os olhos presos nos meus, enquanto a outra lhe acariciava o peito, mergulhando uma mão dentro de água e soltando risadas histéricas. Ao afastar-se, o sorriso de Throst revelou-se provocante e vitorioso, enquanto a sua voz pisoteava os meus miolos: ”Eu estou a dar-lhes o que tu rejeitaste. Elas estão a gostar, e tu estás mordida de inveja, roxa de ciúme, agoniada de arrependimento, louca de raiva...”

Tentei silenciar o eco dentro da minha cabeça, mas os berros continuaram. Já não era a voz de Throst. Era a minha própria voz! E clamava: ”Tu gostavas de estar no lugar delas! E por isso que estás furiosa! Tu queres a atenção dele só para ti! Tu desejas os seus beijos, as suas carícias...”

Quebrei com o nervosismo. Sem me importar de denunciar a perturbação, decidi afastar-me para bem longe. Qualquer refúgio serviria, desde que me poupasse àquela perversão. Nem quis acreditar quando ouvi o capitão chamar-me. Desejava o quê? Que lhe lavasse os pés? Eu não recuara dois passos, e já as raparigas me agarravam e arrastavam até ele, esperneando e estrebuchando como um potro bravo.

Quando Throst me prendeu o pulso, soltei a fúria e arremessei a mão livre contra a sua face. A bofetada ecoou tão alto que a algazarra por trás de nós cessou. O capitão ficou lívido, mal acreditando no meu atrevimento, e o seu olhar tornou-se escuro como a noite. Reiniciei a luta inglória para me libertar, enquanto ele gritava ordens num tom furibundo. As escravas nem se atreveram a hesitar. Da mesa chegou um estardalhaço de gargalhadas. Percebi que a cortina se fechava e entrei em pânico. Throst ia terminar o que deixara incompleto. Ia violar-me! E mesmo que eu pudesse clamar por socorro, quem viria em meu auxílio?

 

O gigante viking puxou-me para junto dele. Senti a madeira da tina pressionar-me o peito e soube que estava prisioneira da vontade do capitão. Uma escrava tinha o dever de servir o seu senhor. Throst não era melhor do que Oliver! O que esperara eu de um bárbaro assassino? Proteção? Respeito? Compreensão?

Enfrentamo-nos com o olhar. Os meus pulsos doíam, esmagados pelos dedos de ferro, mas eu ainda não estava derrotada!

O súbito aquecimento da água começou a incomodá-lo, e a confusão substituiu o seu ar de desafio. Ao vê-lo esboçar um movimento de desconforto, o meu olhar brilhou vitorioso. E foi esse olhar que me perdeu! Em menos de nada, fui içada por cima da tina e caí dentro de água.

Estava quente. Demasiado quente! Enquanto lutava por respirar, fui forçada a desfazer o truque. Throst arrancou-me da prisão molhada, rindo-se abertamente da minha miséria. Tentei agredi-lo, mas desta vez não tive hipótese. Com uma mão apenas, ele prendeu-me os dois pulsos e, com a outra, imobilizou-me o rosto. A sua boca capturou a minha, enquanto me puxava para cima do seu corpo. Num abrir e fechar de olhos, o meu mundo estava desfeito.

Eu sentia toda a extensão do corpo nu e excitado do capitão viking por baixo do meu, enquanto os meus sentidos se embriagavam com o seu hálito impregnado de bebida. Queria afastá-lo, mas não tinha força. Toda a frustração e raiva sufocadas durante a noite rebentavam no meu peito. Quando tornei a mim, já correspondia ferozmente aos seus beijos, com as mãos libertas enterradas nos cabelos dourados e na carne rija dos seus ombros poderosos. Percebi que ele me segurava ao colo e transportava para fora da tina. Pouco importava, desde que não parasse de me beijar!

Há muito que Throst deixara de impor-me a sua vontade. As minhas mãos percorriam-no livremente e deliciavam-se com as formas do seu corpo. Os nossos lábios não se separavam, sorvendo e mordiscando.

 

Cada instante nos seus braços representava a descoberta de novas carícias, de uma sensação mais maravilhosa e devastadora do que a anterior. Perdi a razão e nem notei que me desapertara o vestido, até que o tecido tombou no chão com uma pancada molhada. Tentei cobrir-me, mas Throst impediu-me. Afastou-me apenas o suficiente para mirar-me de alto a baixo. Quedamo-nos nus, um diante do outro, e o seu rosto corado e sorridente não escondia o quanto apreciava a visão. Com uma exclamação baixa e rouca, ergueu-me nos braços e depositou-me sobre a arca forrada com lã de ovelha.

Eu tremia sem controlo e sentia as faces a arder. Throst cobriu-nos com uma manta e deitou-se sobre mim com cuidado, para não me esmagar com o seu peso. Depois de beijar-me até perdermos o fôlego, desceu os lábios até ao meu peito e explorou cada pedaço da carne, acariciando com as mãos, os lábios, os dentes e a língua... O meu corpo recusava-se a obedecer às ordens angustiadas da mente. Eu não conseguia parar! Cada carícia trocada era um doce tormento que eu desejava que jamais terminasse. O capitão era um homem experiente e sabia como agradar uma mulher; como provocar delírio a cada toque, a cada beijo...

Entreguei-me sem reservas. Recebi Throst no meu corpo e arqueei-me ao seu encontro, arfando de felicidade. Jamais sonhara que pudessem existir semelhantes sensações. Cada movimento era uma escalada para um contentamento sem fim. Depressa ultrapassei o muito que experimentara da primeira vez. E Throst não parava!

Dentro do meu ventre formava-se uma bola de fogo que crescia até me enlouquecer. Eu estava prestes a desmaiar... Eu ia morrer! Desnorteada, procurei o olhar azul e percebi que ambos enfrentávamos o mesmo doce tormento. O sorriso de Throst foi a última coisa que vi, antes de perder o discernimento. As estrelas explodiram dentro de mim. Desejei poder gritar, mas senti-me feliz por receber os seus gemidos dentro da minha boca, por cravar as unhas nas suas costas e aprisioná-lo no aperto desesperado das minhas pernas. Os nossos corpos fundiram-se numa dança louca e violenta. O prazer era tão intenso que me quebrava pelo meio... e durava... e repetia-se... e repetia-se... até consumir a última gota da minha consciência.

Acordei com a luz penetrando pelas frestas da madeira. Espreguicei-me languidamente, apreciando a doce dormência, e procurei pelo aconchego dos braços que me tinham envolvido durante toda a noite. Não os encontrei. Throst desaparecera.

A cortina continuava fechada, e aos meus pés estava um vestido dobrado, semelhante aos que as raparigas da casa usavam. Comecei a tremer, agoniada e aterrada. Ter-me-ia Throst abandonado? Não passaria eu de um presente para o chefe da aldeia que nos abrigara?

Com o coração aos pulos, enfiei o vestido pela cabeça, atirei a capa sobre os ombros, calcei as botas de pele e atravessei a casa, sem me importar com os olhares desdenhosos das escravas que já labutavam. Abri a porta de rompante, disposta a correr até ao porto e confirmar a minha desgraça. Na cegueira da angústia, acabei por chocar com Krum. Estava tão aflita que permiti-me abraçá-lo com força, temendo que não fosse real. O curandeiro percebeu o meu sobressalto e replicou carinhosamente:

- Não pensaste que te iríamos deixar para trás, pois não? Confirmei com a cabeça. Fora exatamente isso que eu pensara!

- Sua tola! - ripostou ele. - Por quem nos tomas? Por selvagens sem coração? Vem... O Throst pediu-me para te acompanhar ao barco.

A simples alusão ao nome do capitão fez o meu sangue ferver. Estremeci ao interiorizar que nada sabia acerca dele. Devia ter a idade de Berchan... E se tivesse mulher e filhos à espera, como Krum? Corei violentamente ao recordar a noite anterior. O que começara por ser um duelo de vontades, terminara com uma demonstração de paixão avassaladora. Eu compreendia finalmente os sentimentos irracionais que moviam os amantes. Bastava Throst encostar-me um dedo para que eu esquecesse que ele era um carrasco; que eu desonrava a memória da minha família apenas por partilhar do seu sorriso. Eu fora impotente para combater o ardor de Throst, para lutar contra o fascínio que me devastava quando ele estava presente... E contra a percepção irracional de que a nossa união fora prevista por aqueles que governavam o nosso destino, muito antes de nos encontrarmos.

 

A emoção e o entusiasmo eram grandes entre os homens. Afinal, iriam dormir em casa nessa noite, nos braços doces e perfumados das suas mulheres e amantes, após longos meses de ausência. Surpreendentemente, nenhum deles me mirou de forma diferente, como eu temia.

Não consegui evitar um sorriso estúpido quando encarei Throst. A brisa gelada da manhã passou por mim e desejei correr para os seus braços, em busca de calor e abrigo. Essa mesma brisa pegou nos seus cabelos e fê-los ondular numa chuva de ouro. O seu olhar azul trespassou-me como uma lâmina gelada e revelou-me que tudo estava errado.

O capitão ignorou-me. Gritou uma ordem para Krum e voltou-nos as costas, misturando-se com os companheiros. Eu fui conduzida ao porão, mastigando uma confusão e uma dor demasiado fortes para exteriorizar. Krum afirmou que regressaria em breve e traria comida. Agora, a prioridade era seguir viagem.

Quedei-me na penumbra, ardendo por dentro e gelando por fora; a mente clamando o quanto fora louca por entregar-me a um selvagem. Eu rejeitara o capitão, e ele divertira-se a provar que podia domar-me, usando-me para aplacar a febre do seu corpo. Contudo, ao mesmo tempo, o meu coração bradava que não era possível alguém enganar tão friamente. Eu vira o brilho dos olhos azuis, sentira o carinho do seu abraço, o ardor dos seus beijos... Throst poderia ter satisfeito o desejo e dispensado a amante. Mas não o fizera! Preocupara-se com o meu conforto, fora carinhoso e, no final, estreitara-me e embalara-me com palavras doces, que eu ansiara por compreender. Não! Throst não me desprezara! Ele viria assim que pudesse e sossegaria o meu coração. Ele viria!

Krum regressou muito depois. Deu-me comida e água e fugiu do meu olhar atormentado. Não disse uma palavra.

Passei o dia sozinha, consumindo-me em desespero. Perdera eu o juízo? Se os meus irmãos estivessem vivos, morreriam de vergonha! Eu destruíra a minha dignidade, arruinara a minha honra... Aranwen devia estar furiosa! Eu falhava os objetivos que me haviam sido propostos e ainda desgraçava os que dependiam de mim. A cada batida de coração perguntava-me como pudera trair tão cobardemente a memória de Tristan. E agora, qual seria a minha sorte?

Anoitecia quando Krum me chamou para subir ao convés. Não reparou que os caixotes haviam mudado de posição, nem que a água salgada estava colada ao teto do porão. Eram truques simples, que a prática tornava cada vez mais fáceis, e que serviam para manter a minha mente ocupada e disciplinada.

Throst segurava no leme e os homens recolhiam a vela. Brevemente iriam pegar nos remos e preparar a aproximação ao porto. Sustive a respiração ao ver a paisagem que se estendia diante de mim. A reclusão fizera-me perder um espetáculo de indescritível beleza. Apesar da penumbra, era possível vislumbrar as montanhas rochosas que se erguiam em terra, com os cumes cobertos de neve. Lá longe, uma imensidão de penhascos de gelo aguardavam silenciosos. Até a cor do céu e do mar eram diferentes. O vento soprava forte, por isso calculei que tivéssemos percorrido uma grande distância. Seria esta a terra dos Vikings? Sempre a imaginara muito distante... E afinal, já estávamos a chegar!

Krum esperou que eu recuperasse do assombro para murmurar:

- A Terra Antiga é linda, não é? Custa a acreditar que tanta beleza esconda uma vida tão dura e cheia de sacrifícios. Aqui, o Sol não aquece, e a sua luz é pálida, mesmo durante o Verão. O nevoeiro é sempre tão cerrado, que nos venda os olhos. A chuva e a neve também não nos dão descanso. Mas o que mais estranharás será a pouca diferença entre os dias e as noites. Nós vivemos meses de luz e meses de escuridão, dias intermináveis sem que o Sol se ponha e noites intermináveis sem que o Sol nasça...

Como era possível que o Sol se comportasse tão levianamente? Eu já ouvira falar desse fenômeno, sem que conseguisse imaginá-lo. Essa era uma das razões por que o mundo civilizado acreditava que a morada dos Vikings estava amaldiçoada. Talvez por isso os seus habitantes fossem homens cruéis, desprovidos de alma e coração!

 

- Daqui a pouco abraçarei o meu filho - continuou. Entregarei o seu destino a Thor e dar-lhe-ei o nome dos meus antepassados. Esta noite dormirei nos braços da minha mulher...

Eu tentei que as suas palavras não me comovessem. Aprendera dolorosamente o quanto custava confiar num selvagem.

O capitão mantinha o olhar preso em nós. Eu não precisava de vê-lo para sentir a pressão na minha pele. Desejei cravar-lhe as unhas no rosto e desfigurá-lo. Eu não fora mais do que uma carcaça que Throst devorara para saciar a fome, livrando-se dos despojos da sua conquista sem nenhuma contemplação ou remorso. Jurei que, se mais alguma vez o grande senhor me encostasse um dedo, proporcionar-lhe-ia tormentos que ele jamais esqueceria.

- Compreendo a tua apreensão, mas não te preocupes. O Throst não permitirá que sofras nenhum tipo de provação ou necessidade. E eu prometo-te que, no que depender de mim, serás muito bem tratada na minha casa, na Herdade de Grim.

Fitei Krum incrédula. Eu ia viver com ele? Mas com que justificação, se era escrava de Throst? Então, percebendo a minha perplexidade, o curandeiro revelou o inimaginável:

- O Throst está noivo da minha irmã mais nova. Foi para lhe fazeres companhia que te trouxe para junto de nós.

Halldora, a meia-irmã de Krum, filha de Halla e de Arngrim, era, segundo as próprias palavras do curandeiro, uma menina tão bonita como caprichosa, talvez por ser a mais jovem e a única mulher numa vasta descendência de filhos homens. Vivia num mundo só seu, repleto do melhor que a vida tinha para lhe oferecer e mimada por todos os que a rodeavam.

- A Halldora gostará de aprender contigo acerca de música, dança, costura... Por isso, não trabalharás na casa como os outros escravos. Tal como eu, o Throst ambiciona estabelecer-se próximo da Grande Ilha e quer que a esposa conheça a cultura do teu povo. Quando se casar, no Outono do próximo ano, irás acompanhá-los e cuidarás dos seus filhos. Não ficarás desamparada.

Eu estava demasiado horrorizada para reagir. Krum falava como se eu devesse agradecer a honra concedida. Mal conseguia digerir as informações que me eram lançadas à cara, a sangue-frio. Throst ia casar-se com a irmã de Krum! E eu não passava de um presente para a noiva... como um cão! Além disso, ele esperava que eu ensinasse à sua prometida tudo o que eu própria nunca quisera aprender. Quem pensava o capitão que raptara? Uma dama da corte? Uma princesa? Eu não passava de uma rapariga arrapazada, que nem uma feiticeira tivera o poder de amansar, e Throst pretendia que eu ensinasse a namorada a bordar? Mas isso não era o pior! Como podia entregar-me à mulher com quem se ia casar, depois de dormir comigo? Não receava que eu denunciasse à virginal noiva, o porco desgraçado e sem coração que ele era?

Krum garantia que Signy e Anna, a sua mãe, iam adorar-me:

- A minha mãe, é uma excelente professora. Tu depressa aprenderás a língua e os costumes do povo viking. Talvez também te possa ajudar a tratar o teu problema de voz, pois possui grandes habilidades curativas. Muito do que eu e a Ingrior sabemos foi a minha mãe que nos ensinou.

 

Ingrior? Quem é a Ingrior?

 

- A Ingrior é a irmã do Throst - respondeu ele ao meu gesto quase inconsciente. - É a melhor curandeira que eu conheço. Vais gostar dela! Imagino que vós tendes muitas experiências para partilhar. Na minha opinião, o Throst deveria pôr-te a ajudá-la e não entregar-te à Halldora. A Ingrior está sobrecarregada com o trabalho da quinta, a banca no mercado, a casa, o bebê... Além disso, a curandeira da aldeia faleceu na Primavera, deixando os aldeões aos seus cuidados. Nem imagino como a Ingrior conseguiu dar conta de tudo, durante o Verão!

Senti a cabeça latejar. Isto era um pesadelo! Se beliscasse um braço, iria acordar... Mantive os olhos postos no mar. O que faltava acontecer-me?

Krum continuou a falar, enquanto os homens remavam e o porto se aproximava. Contou-me que Grim, o seu bisavô, fora o senhor de toda aquela região. Tivera um único filho, Eric, que lhe seguira as pegadas. Após a sua morte, as propriedades haviam sido herdadas por Arngrim, o seu primogênito e pai de Krum.

- Quando o meu pai faleceu, a herdade passou para o domínio do filho mais velho. Mas o Gunnulf não tem apego à terra. As campanhas são a sua única paixão. A minha mãe teve de assumir a administração das propriedades, para que estas não se perdessem para algum oportunista. O tempo que lhe sobra mal chega para respirar...

O sangue fugiu-me do rosto. Teria percebido mal? Gunnulf era um dos meios-irmãos de Krum? Afinal, talvez todo o sofrimento e vergonha por que passara tivessem um propósito! Eu ia viver na casa de Gunnulf! O demônio viking estaria ao alcance da minha vingança!

 

Não foi preciso entrarmos na casa para ouvirmos os clamores. Uma mulher em pranto saiu ao nosso encontro e prostrou-se aos pés de Krum. Eu vi as cores morrerem no rosto do curandeiro, antes de ele se precipitar para o interior, seguido pelos companheiros.

A casa de Gunnulf era de construção idêntica àquela onde passáramos a noite, porém mais confortável e rica em tapeçarias e bordados, objetos de cerâmica, estátuas de madeira e bronze. Foi o que apreendi por entre o caos que reinava. Muitas mulheres corriam qual rebanho tresmalhado. Num compartimento isolado por uma cortina encontrava-se uma jovem em grande sofrimento. Krum tentou entrar, desatinado de aflição, mas as mulheres não permitiram. Throst e os outros seguraram-no, esforçando-se por acalmá-lo.

Fiquei esquecida junto da porta. Do lado oposto, surgiu uma rapariga que se pendurou no pescoço de Throst, soltando um guincho de entusiasmo. O seu cabelo avermelhado voou com o impulso e cobriu-os como um manto. Ela podia ser mais nova do que eu, mas era muito mais alta e encorpada. O carinho com que o capitão a recebeu deixou-me arrasada. Só podia tratar-se de Halldora. Desviei o olhar, engolindo o rancor. Neste instante, a vida amorosa de Throst era de somenos importância.

O filho de Krum já deveria ter nascido há algum tempo. O que teria corrido mal? Aproveitei a confusão e aproximei-me da entrada do quarto. Uma mulher de cabelos grisalhos, compridos e encaracolados, dava ordens a outras duas. Uma delas era de meia-idade e grande como um urso; a outra era jovem, pouco mais velha do que eu. Os resultados estavam longe de ser satisfatórios. As forças da esposa de Krum esgotavam-se, e a vida pendia-lhe por um fio, sem que ninguém conseguisse minorar-lhe o sofrimento.

Enquanto eu espreitava, as parteiras decidiam se deviam cortar a carne da jovem para arrancar-lhe a criança. Esse era o último recurso quando toda a esperança se perdia. Recordei a única vez que assistira a uma calamidade semelhante. Lavada, em lágrimas, ouvira a minha mãe explicar que era melhor salvar uma vida do que perder duas. Eu não compreendia o que estas mulheres diziam, mas podia adivinhar-lhes cada palavra. A esposa de Krum não sobreviveria, mas o bebê teria uma hipótese.

Vi a corajosa rapariga, esboçar um débil assentimento, disposta a sacrificar a vida para salvar o filho, e não fui capaz de continuar quieta. Dei um passo adiante, e as curandeiras encararam-me surpreendidas. A mulher mais velha abriu a boca para protestar, mas quedou-se a mirar-me com uma expressão de indecifrável assombro. A mais jovem lançou-me um olhar curioso e não se manifestou. Era muito bela, com cabelos amarelos como o trigo maduro e olhos da cor do meu amuleto. Engoli em seco, perante a semelhança inconfundível. Esta era a irmã de Throst, e a senhora só podia ser a mãe de Krum...

Sem aviso, a ursa caiu-me em cima, berrando mais alto do que a moribunda, e derrubou-me com um simples safanão. Não compreendi o seu palavreado, mas era evidente que pretendia expulsar-me do quarto. Encontrei o olhar de Anna, tão verde como o meu, e gesticulei desastradamente, com as mãos a tremer de nervosismo: Eu posso ajudar... Deixe-me tentar!

 

Pensei que seria expulsa a pontapé, mas o inesperado aconteceu. A mãe de Krum fez sinal para que me aproximasse e dispensou a ursa. De imediato, Ingrior cedeu o seu lugar. Eu respirei fundo e deitei todas as hesitações e receios para trás das costas. Mergulhei as mãos na vasilha de água fervida e ajoelhei-me entre as pernas da jovem.

Ergueu-se um burburinho ensurdecedor de entre as mulheres mais próximas, provavelmente familiares de Signy. Mostravam-se indignadas, sem compreenderem como é que a dona da casa permitia que uma estranha invadisse a privacidade da família num momento tão crítico. Anna disse algo que as silenciou e encorajou-me a prosseguir.

Eu sabia a responsabilidade que pesava sobre a minha cabeça. Só um milagre salvaria a mãe e o filho, e, se a esposa de Krum morresse, todos me culpariam pela sua morte. Forcei-me a esquecer o medo. Eu nunca perdera uma vida num parto, e esta não seria a primeira!

A minha mãe ensinara-me bem. O momento do nascimento era crucial, pois aí recebíamos as graças divinas que nos guiariam através da vida. Bastava de morte e sofrimento! Esta criança tinha de viver! E eu devia a vida de Signy a Krum, pela generosidade e pelos cuidados que o curandeiro me dedicara durante a atribulada viagem.

Anna ajudou-me, acompanhando os meus gestos com a experiência de quem já trouxera muitas almas ao mundo. Ingrior fez algo ainda mais fabuloso. Colocou uma mão sobre o ventre de Signy e a outra no meu ombro, unindo-nos numa corrente de energia. De imediato o meu cansaço dissipou-se, e fui invadida por uma sensação morna de restabelecimento e conforto. Só Berchan me fazia sentir assim!

Enquanto eu punha em prática uma sabedoria milenar, os desenhos que enfeitavam os pulsos de Ingrior, iguais aos do irmão, ganhavam vida diante dos meus olhos. O majestoso dragão despertava, abria as asas e estendia-as ao vento como duas grandes velas, lançando-se ao encontro do Sol para banhar-se na sua luz.

Não foi uma tarefa fácil. Signy estava exausta e muito assustada. Eu rezava para que as minhas mãos não perdessem a firmeza. O suor escorria-me pela testa e ardia-me nos olhos, enquanto o sangue da jovem me tingia a pele e a roupa. Torcer um pouco... Puxar com cuidado... Um último esforço... e o choro agudo e fresco do recém-nascido abençoou a casa.

Tal como Krum predissera, era um rapaz perfeito e forte. De imediato, Anna segurou no neto e prestou-lhe os devidos cuidados. Agora, eu precisava de agulha, linha e ervas. Ingrior deslizou para o meu lado, atenta aos meus gestos apressados e respondendo de imediato às solicitações.

No instante em que sentira que a sua missão fora cumprida, Signy perdera os sentidos. Deixei a agulha e a linha ao cuidado da irmã de Throst, aliviada com a sua perícia, e dediquei-me à mistura das ervas. Eu tinha de acreditar! Se acreditasse, venceria!

Enquanto preparava o chá que daria a Signy a força necessária para lutar pela vida, senti o peso do silêncio que me rodeava. Todas as atenções estavam presas à minha figura cansada, desgrenhada e suja. Ignorei-os. Só tinha uma prioridade na mente. Krum dormiria em breve nos braços da sua amada. Signy não ia morrer! Não ia! Não era eu Catelyn McGraw, neta da feiticeira Aranwen da Grande Ilha e irmã do sábio Berchan McGraw?

- O meu filho contou-me que tu és filha da Grande Ilha...

Pousei o olhar exausto na mãe de Krum, e o meu peito encheu-se de calor. Esforcei-me por combater essa sensação de aconchego e simpatia. Eu não podia confiar nesta gente! Apesar de Anna ter nascido na minha terra, trocara-a por um solo selvagem, unira-se a um bárbaro e tivera filhos dele. Esta era a casa de Gunnulf, o monstro que matara Aled. E era também a casa da mulher que ia casar-se com Throst e a quem eu devia servidão.

Os olhos de Anna eram verdes e brilhantes como as folhas frescas das árvores da Floresta Sagrada. Num louco devaneio pensei que, se a minha mãe tivesse vivido o suficiente para envelhecer, seria tão bonita como ela. Senti-me subitamente desconfortável e desviei o rosto. Esta mulher parecia ver através de mim!- Sei que a tua jornada não foi fácil - continuou. - Percebo em ti uma dor muito forte. Todavia, o teu ressentimento não foi suficiente para te impedir de praticares o bem. E esta casa não esquecerá o que fizeste.

 

Krum foi ainda mais emotivo. Ajoelhou-se aos meus pés e colocou a sua espada diante deles.

- Tens a minha eterna gratidão, Pequena. Dou-me a minha palavra de honra que, em qualquer lugar, em qualquer momento, sempre que precisares, eu estarei ao teu lado.

Eu teria chorado se conseguisse. O meu esforço foi recompensado quando Krum me deixou embalar o seu filho. Eric era um bebê maravilhoso e tinha os olhos do pai; os olhos dos filhos da Grande Ilha. Todavia, eu pressentia que a sua história estaria sempre ligada à do povo viking.

As escravas da casa prepararam-me um banho, deram-me roupa lavada e serviram-me uma refeição quente. Por algum tempo, esqueci que também eu era uma escrava nesta terra hostil. Mas não por muito! Halldora assegurou-se disso.

Mal a oportunidade surgiu, a noiva de Throst caiu sobre mim como uma ave de rapina voraz. Passou as mãos pelos meus cabelos, cacarejando descaradamente, desdenhando da minha altura, da minha figura... e imaginei do que mais. Eu estava tão cansada, que nem tinha alento para protestar. Observei boquiaberta quando Ingrior a afastou. As duas trocaram palavras azedas, e Halldora virou-lhe as costas, dirigindo-se para junto dos homens e para os braços do noivo.

Sem cerimônias, a irmã de Throst deu-me a mão e conduziu-me ao fundo da casa, onde me tinham preparado uma cama. Deitei-me, agradecendo com um gesto débil, emocionada pelo seu cuidado.

Pasmei quando ela me segurou no rosto e despediu-se com um beijo na face, antes de fechar a cortina para conceder-me privacidade.

Ingrior era especial! A energia que brotava do seu espírito impressionava-me. Sem a sua ajuda, eu não teria conseguido salvar Signy e o bebê. Já Halldora era o oposto. O pouco tempo que estivéramos juntas provara que o nosso convívio seria impossível. Confirmava-se que as mulheres de cabelo vermelho eram a minha maldição. Myrna estava longe, mas fazia-se representar divinamente por esta fedelha embirrante. Fora essa a mulher que Throst escolhera para se casar? Pois, estavam perfeitos um para o outro!

O sono vencia a última batalha quando o meu corpo se manifestou. Eu conhecia bem aquelas dores, seguidas de uma sensação de desconforto úmido. As minhas regras tinham aparecido. A esperança de salvar um pedaço do meu amor acabara de morrer. Tristan não viveria através do nosso filho, como eu sonhara. Porém, depois de tudo o que acontecera e diante das dificuldades que se adivinhavam, seria loucura desejar uma criança. Mas, alegar que o destino decidira pelo melhor também não me confortava. Eu estava condenada ao negrume da solidão e do ódio, perdida uma terra hostil e prisioneira na casa do meu maior inimigo.

Halldora era insuportável, mimada, caprichosa, mesquinha, má... Tratava as escravas da casa como se fossem lixo, e eu não era exceção. A sua atitude só mudava quando Throst estava presente. Diante dele, derretia-se em sedução. Observá-los, causava-me náuseas. Doía-me ver o quanto Throst a estimava, mas, logo de seguida, a raiva vencia, e eu só desejava que eles se afogassem no seu próprio veneno. O tempo também evidenciou a adoração de Halldora por Throst e a antipatia que a jovem viking me devotava. Eu jamais conseguiria ensinar-lhe o que quer que fosse. Mesmo que me dispusesse a fazê-lo, a ”princesinha” não se rebaixaria a receber lições de uma criada.

Throst raramente parava em casa. Passava o tempo com Krum na quinta, na aldeia, no mercado ou no porto. Longe dele, a sua prendada noiva não precisava de fingir que me tolerava. O desprezo que Halldora sentia era recíproco. Eu preferia seguir a mãe de Krum e atender às suas solicitações, a respirar o mesmo ar que a intragável fedelha.

Anna era uma lutadora. O respeito que impunha a homens e mulheres era exemplar e ninguém contestava a sua autoridade. Só existia uma pessoa a quem devia obediência: Gunnulf, seu enteado e atual dono da interminável propriedade.

A compreensão da intricada rede familiar dos meus captores revelou-se mais simples do que eu supusera. Eric, filho de Grim, o senhor da Terra Antiga, deixara apenas dois herdeiros ao falecer: Arngrirn e Thorgrim. Como seu primogênito, Arngrim herdara a maior parte dos bens e tornara-se, durante muitos e prósperos anos, o homem mais poderoso da região. Imaginei que seria o equivalente ao meu pai, o que contrariava a teoria dos Aliados sobre a desordem social dos Vikings. A Thorgrim coubera um pequeno pedaço de terra que por sua vez, fora herdado por Throst, o seu primeiro filho.

Gunnulf era o primogênito de Arngrim e o seu maior herdeiro. Aos irmãos estavam destinadas porções menores de terreno e sortes distintas. Halldora iria viver com o marido, após o casamento. Krum desejava fixar-se noutras paragens e já manifestara a vontade de vender a sua parte da herança. Arnorr, o irmão mais novo de Gunnulf e seu companheiro inseparável, só se preocuparia com a terra quando decidisse constituir família. Entretanto, a Herdade de Grim era administrada por Anna e providenciava o sustento de muitos homens livres.

A organização dos afetos na casa de Arngrim começou por causar-me grande assombro, até familiarizar-me com a cultura do povo viking. Os homens não tinham necessidade de esconder as amantes e os bastardos da família legítima. A um Viking era permitido ter várias mulheres, apesar de só poderem contrair matrimônio com uma delas. Geralmente, casavam-se com aquela que a família escolhia e que, muitas vezes, lhes fora prometida no nascimento. Depois, quando se enamoravam de outra jovem, livre, criada ou escrava, tomavam-na para companheira e concediam-lhe a proteção do lar. Os filhos bastardos, desde que reconhecidos pelo pai, tinham os mesmos direitos que os legítimos, à exceção da herança, que era menor.

Arngrim tivera seis filhos com Halla e dois com Anna. Três dos filhos de Halla haviam falecido: um fora engolido pelo mar quando ainda era pequeno e dois, mais recentemente, tinham tombado nas batalhas de conquista. Anna também sofrera a mesma infelicidade de Halla. Trygve, o seu filho mais jovem, fora brutalmente assassinado pelos Vândalos, um povo vizinho dos Vikings, com cultura e tradições muito semelhantes, mas seus inimigos mortais.

Tal como Krum me dissera, o nascimento do pequeno Eric estava previsto havia uma lua, mas a gravidez de Signy prolongara-se quase tragicamente. Ingrior viera para assistir ao parto, mas, com a chegada do irmão e do primo, acabara por ficar mais uns dias, auxiliando-me a cuidar da esposa de Krum. Conversávamos muito, com a ajuda de Anna, trocando experiências na arte de curar, até que o nosso entendimento por gestos tornou desnecessária qualquer tradução.

Ingrior vivia com Throst, com Bjorn, o irmão mais novo, e com Trygve, o seu bebê. A coincidência de nomes levou-me a deduzir que ela fora casada com o filho de Anna. O amor de ambos adivinhava-se tão intenso como breve. Ingrior estava grávida quando a tragédia ocorrera. Lamentei a sua perda, mas não me atrevi a pedir-lhe pormenores. O assunto era evitado por toda a família, já que as feridas ainda sangravam.

Cada dia que passava, eu sentia-me mais próxima da irmã de Throst. Ingrior era toda alma e coração e a sua bondade transparecia-lhe no olhar e em cada gesto. Tinha o dom de ensinar e foi pela sua mão que dei os primeiros passos na aprendizagem da língua Viking. Existia entre nós uma empatia singular, uma compreensão silenciosa, uma harmonia que eu só experimentara ao lado dos meus irmãos. Mas havia algo mais! Se eu reconhecia em Krum algum conhecimento da Arte Superior, em Ingrior essa habilidade estalava na pele, o que me levava a acreditar que também ela possuía sangue feiticeiro. Sempre que estávamos juntas, as palavras da minha avó sacudiam-me o espírito. Seria em Ingrior que eu iria encontrar o auxílio que buscava? Contudo, apesar de o meu coração estar rendido, eu tinha de conhecê-la melhor antes de arriscar-me a abordá-la. Afinal, o instinto também me instigara a confiar em Throst... e as conseqüências haviam sido desastrosas!

Gunnulf ainda não regressara. Pelo que eu entendi, o chefe viking fizera algumas paragens para dividir o lucro da estação com os seus aliados de campanha. Para mim, a sua delonga era um alívio! Eu precisava de tempo para me habituar a esta gente, à sua cultura estranha e, principalmente, ao frio brutal que me congelava os ossos, a razão e a vontade. E só estávamos no princípio do Outono!

Ingrior ficou desgostada quando Throst prometeu a Halldora que esperaria por Gunnulf, provavelmente porque deixara o filho entregue aos cuidados das criadas da sua casa. Ainda assim, ela condescendeu em ficar com o irmão, para minha satisfação. A sua companhia ajudava-me a subsistir e a restaurar o equilíbrio.

Signy estava a recuperar bem e já tinha força para amamentar o bebê. Krum era um pai babado, inchado de orgulho e contentamento. Sempre que o via com Eric, eu recordava-me de Aled. Como o meu irmão teria sido feliz, se pudesse acalentar o filho! O meu sorriso enternecido finava no instante em que me lembrava de Gunnulf avançando com a espada erguida.

Na solidão das noites intermináveis, eu planeava exaustivamente a melhor maneira de matar o odioso chefe viking. Contudo, sem querer, o meu coração apertava-se ao imaginar o que Anna, Krurn e Ingrior iriam pensar... Mas logo a revolta se acendia. O que me importava isso? Eu não pedira para ficar órfã, ser raptada e arrastada para esta terra selvagem! Não pedira para ser violada por uma besta e entregue à sua detestável noiva! Porém, quando a mágoa se dissolvia no desalento, a voz perdida no meu espírito recomeçava a tortura: ”Tu entregaste-te ao Throst de livre vontade... E gostaste...”

Estúpida! Mil vezes estúpida!

Berchan e Stefan sentir-se-iam orgulhosos da facilidade com que eu decifrava a língua nórdica, sem desgaste e com crescente satisfação. Decidi-me a não demonstrar que já compreendia as conversas mais elementares. Se todos falassem livremente diante de mim, eu poderia usar as informações daí extraídas para meu próprio proveito.

Ingrior recebeu o anúncio da chegada de Gunnulf com um sobressalto que não me passou despercebido. De imediato, procurou o irmão e exigiu que partissem. Throst respondeu-lhe que não deixaria a herdade sem falar com o primo e que esperava que ela o acompanhasse. Apesar de contrariada, Ingrior acabou por resignar-se.

Para mim, o aparecimento do verme significava o fim da adaptação e o início da vingança. Só teria de aguardar o momento certo para esmagá-lo. Depois de muito pensar, decidira não agir precipitadamente, correndo o risco de ser descoberta. Não podia morrer na Terra Antiga, sabendo que Myrna se banqueteava com a minha desgraça.

Nessa noite, Halldora fez questão de mostrar ao noivo a sua habilidade no toque da harpa. Ao ouvi-la arranhar o instrumento, eu recordei as melodias perfeitas executadas por Melody nos serões da Casa Grande, para deleite da minha família.

Sentia saudades de casa... Sentia uma agonizante sensação de abandono e uma infindável tristeza, que se agravavam quando Throst estava presente. Ele não voltara a aproximar-se, embora eu o surpreendesse muitas vezes a observar-me. Porém, mesmo que tencionasse esboçar um gesto na minha direção, não conseguiria fazê-lo. A noiva só lhe permitia que respirasse o seu ar.

Porque eu comia com as escravas, que depois se embrenhavam em tarefas das quais eu estava dispensada, não me foi difícil lançar a capa por cima dos ombros e sair despercebida. Fui de imediato envolvida pela umidade gelada do nevoeiro imenso que se formava sobre o mar e cobria a terra. A floresta chamava-me. Podia entrar nela e desaparecer...

Quando vi Ingrior, era demasiado tarde para evitá-la. Ela encostou-se à cerca, ao meu lado, e suspirou profundamente, antes de murmurar num tom dorido:

- Tu és um pássaro magnífico encarcerado numa gaiola, sem espaço para estender as asas... Não pertences a esta terra! O Throst cometeu um grande erro... As suas intenções foram boas, como sempre! O meu irmão vive para fazer o bem, para cumprir o que esperam dele... justiça e honra! - Sorriu ironicamente. - E a própria felicidade escapa-se-lhe por entre os dedos!

O que significava isto? Forcei-me a não denunciar a minha vantagem. Porém, quando ela me estreitou num abraço puro e sincero, foi-me impossível esconder a emoção.

- Desejava que viesses para a nossa casa - continuou, como se soubesse instintivamente que eu a compreendia. - A Halldora só está à espera de que o Throst volte as costas para fazer-te mal. Ela não pode evitá-lo! Está-lhe no sangue! E o Gunnulf... Eu nem quero pensar! Se, ao menos, o Throst me desse ouvidos...

As suas palavras ficaram suspensas na bruma. Por fim, com um suspiro esmorecido, tentou convencer-me a entrar, mas eu recusei. Preferia sentir o gelo a cortar-me a pele do que a música de Halldora a rebentar-me os ouvidos. Ingrior respeitou a minha vontade e deixou-me só.

 

Alheada da realidade, caminhei junto da cerca, deixando a casa para trás. Nesta terra, os ruídos noturnos soavam tenebrosos e sinistros. O vento era o uivo de uma miríade de almas penadas. Havia lobos por perto. Eu sentia-os deambulando em redor da vedação. Dor, fome e frio... raiva... muita raiva... Pele, músculos, ossos... A escuridão... O medo... Fome, frio e dor...

Duas estrelas romperam as trevas. Ele estava diante de mim, mirando-me com o seu olhar sem idade, belo e letal. Enfrentei-o sem receio e estendi a mão para tocar no focinho gelado.

 

”A noite espera por nós, Irmãzinha... Vem!”

 

Seria tão bom esquecer tudo e vencer a noite ao seu lado. Seria tão fácil perder-me da memória dos homens...

- Pequena!

O apelo de Throst despertou-me. Pisquei os olhos, ofegante. O grande lobo cinzento desaparecera.

- Pequena! Volta aqui!

Eu não queria vê-lo. Doía-me demais estar perto dele; pensar como fora tola ao entregar-lhe a minha confiança, contra tudo e contra mim própria. Tamanha estupidez era digna de desprezo!

- Pequena!

Saltei a cerca e embrenhei-me no bosque. O nevoeiro envolveu-me nos seus dedos molhados. Parei de sentir frio. A minha mente fundia-se com a noite e mostrava-me claramente o que me rodeava. A voz de Throst desvaneceu-se e só restaram as batidas do coração selvagem da terra. Ingrior estava enganada. Onde quer que existisse uma floresta, eu estaria em casa!

Os troncos largos das árvores altas denunciavam a idade de muitas gerações de homens. Os animais rodeavam-me, aceitando-me como um elo da grande família. Seguiam-me curiosos. Saltitavam à minha frente como se me guiassem a um lugar especial. Adiante, sempre em frente...

E, no cerne da floresta, o nevoeiro transformou-se em anéis brilhantes, de todas as cores, que brincavam em redor das minhas mãos, do rosto, da cintura, das pernas... O ar ganhava vida, e a sua força magnífica erguia-me do solo e fazia-me flutuar. Fui envolvida por uma dormência doce. Tinha os olhos pesados e o corpo lânguido e aconchegado. O líder dos lobos cinzentos aproximou-se e rasgou um sorriso afetuoso.

 

”Vieste, Irmãzinha... Não temas! Nós tomaremos conta de ti!”

 

Mais lobos chegaram. Formaram um círculo, e eu deitei-me no centro, como se assim tivesse feito durante toda a minha vida. Entre os corpos quentes e macios, senti-me um bebê protegido dentro do regaço da mãe. O grande lobo deitou a cabeça no meu peito, fixou em mim os enormes olhos de luz e declarou:

 

”Este é o lugar onde o bem e o mal se anulam; onde a vida e a morte se confundem; onde não existe princípio nem fim..." Este é o lugar onde os espíritos saram...»

 

Estaria adormecida? Ou apenas prisioneira do mais profundo dos encantos? Já não sentia tristeza, desilusão ou dor. Embalada pela calma restauradora, permiti-me esquecer tudo e mergulhar numa paz doce, que se entranhava na pele e espalhava pelo sangue. O meu espírito estava prestes a atingir a luz morna que me atraía irresistivelmente, quando um apelo rasgou a inconsciência e destroçou o equilíbrio, empurrando-me para o caos:

- Pequena! Onde estás? Por favor... Volta! Pequena...

No meu delírio movediço, vi Throst trespassar a fronteira proibida. O cavalo da Herdade de Grim protestou e tentou recuar, mas o cavaleiro forçou-o a avançar.

- Pequena...

 

Eu sabia o quanto ele era obstinado. Só descansaria quando me encontrasse. Ignorava os avisos da floresta, não porque não os escutasse, mas porque não os temia. Throst desafiava a morte e a morte caminhava lenta e silenciosamente ao seu encontro.

Os lobos moviam-se devagar, invisíveis na penumbra. O nevoeiro não levantara, e o ar da manhã gelava o sangue. As mãos do Viking estavam roxas, e as suas pernas, dormentes. Mas ele continuava...

Acordei sobressaltada. Estava sozinha, mas sabia que a experiência que vivera fora muito mais do que um sonho. Uma morte terrível aguardava por Throst, ao coberto da névoa. Abanei a cabeça, estrangulada pela emoção, com o coração clamando: ”Não! Ele não!”

Enquanto corria por entre as árvores, vi com os olhos da mente a matilha cercar o gigante louro. Eu tinha de chegar a tempo de impedi-los!

Os lobos deram-se a conhecer, surgindo do nada, em todas as frentes. O rosto de Throst crispou-se, e, instintivamente, ele desembainhou a espada. Os lobos não recuaram. Em pânico, o cavalo pisoteou a terra. Throst tentou controlar a montada; encontrar uma saída... Mas já não havia fuga possível.

Ao mesmo tempo, os lobos rosnaram, exibindo os dentes aguçados, salivando de antecipação. O frenesi das feras era suficiente para gelar a ousadia do mais bravo dos heróis. O cavalo da Herdade de Grim ergueu-se nas patas traseiras, possuído por um medo instintivo e ancestral, espinoteou e relinchou. Dormente e exausto, Throst foi incapaz de segurar-se. Projetado pelo ar, caiu no centro da matilha que fechava o cerco e ficou estendido, inconsciente, aguardando a morte, enquanto a sua montada fugia num galope desnorteado.

Eu cheguei de rompante e abri caminho até ao guerreiro viking. Ajoelhei-me ao lado do seu corpo gelado e protegi-o com o meu. Os lobos cinzentos estacaram e o grande líder ordenou, desgostoso e zangado:

 

”Afasta-te, Catelyn! Este homem quebrou as regras. Terá de morrer para que o equilíbrio seja reposto e um novo caminho traçado.”

 

Enfrentei-o com o olhar chispando de raiva e ressentimento:

 

”E que regras são essas? De que caminho falais? Que mal vos fez este homem?”

 

A sua resposta foi imediata:

 

”Apenas os eleitos podem pisar o solo sagrado. O guerreiro perdeu esse direito quando mergulhou na bruma e traiu o seu destino, manchando as mãos com o sangue que estava obrigado a proteger, A morte será um conforto para a sua alma atormentada.”

 

Eu tremia ao sentir o coração de Throst pulsando fracamente por baixo dos meus dedos. Era óbvio que ele estava a ser julgado por muito mais do que a simples transgressão do solo sagrado. Apesar de desconhecer os motivos dos lobos, dei por mim a revidar com a mais pura das convicções:

 

”Eu não permitirei que o magoem!”

 

E, de novo, o grande lobo não hesitou:

 

”Este homem feriu a tua alma, destroçou o teu coração, profanou o teu corpo e mantém-te prisioneira da sua vontade. Não o odeias por isso? Não desejas a sua morte? Não encontrarás no seu sangue o conforto da vingança? Pensa no que o teu povo sofreu às suas mãos. Quantas vidas o seu aço extinguiu? Homens... Mulheres... Crianças... Não sentes o ódio fluir por ti?”

 

Na minha mente, Throst surgia montado num belo cavalo branco, agitando o seu terrível machado sobre a cabeça, desferindo golpes fatais naqueles que cruzavam o seu caminho. Que diferença existia entre ele e Gunnulf? A diferença residia na dor que trespassava o olhar azul e que eu já testemunhara na ilha. Throst era um guerreiro, mas não jubilava diante do sangue que cobria as suas armas. E a simples percepção desse fato distinguia-o dos demais. Eu só poderia julgá-lo quando todos os mistérios que envolviam o nosso encontro caíssem por terra.

 

”Ordena a sua morte, Irmãzinha!”

 

À insistência do lobo, retorqui exasperada:

 

”Se eu não estou a julgá-lo pela desventura do meu povo, com que direito o fazeis vós?”

 

Depois de um breve silêncio, o lobo rugiu num tom arrepiante e raivoso de ressentimento:

 

”Porque ele é um de nós... O filho de Thorgrim traiu o seu sangue quando voltou as costas à missão para a qual nasceu. A sua vida será um preço menor a pagar por tamanha leviandade!”

 

Recordei tudo o que vivera junto de Throst, num pulsar do coração. Impelida pelo instinto, deslizei sobre o seu corpo inconsciente, cobrindo-o com o meu.

 

”Se vós quiserdes matá-lo, tereis de matar-me primeiro!”

 

Desenhei um anel de energia protetora à nossa volta que se expandiu até tocar nas patas dos lobos, forçando-os a recuar. Imune à minha manifestação, o líder trespassou-me com a luz do seu olhar.

 

”É esta a tua escolha, Catelyn da Floresta Sagrada da Grande Ilha?”

 

A forma como disse o meu nome perturbou-me tanto, que eu nem tive força para responder-lhe. Engoli em seco, confirmando com a cabeça. Para minha surpresa, o focinho selvagem serenou, e o olhar da criatura tornou-se quase humano.

 

”As garras da Lua estão prestes a dilacerar o Sol. Temo que seja tarde para recuperar o muito que se perdeu... Contudo, se o teu coração continua a lutar pelo que deveria ter sido, talvez ainda haja esperança de salvar o pouco que resta! Mas a responsabilidade desta decisão será inteiramente tua, Irmãzinha! Se o filho de Thorgrim não responder ao chamamento do sangue, nós voltaremos para cobrar a sua traição! E tu responderás pela escolha que acabaste de fazer...”

 

Num piscar de olhos os lobos haviam desaparecido, como se nunca tivessem existido. Eu permaneci inerte, dividida entre o alívio e o temor. Crescera a ouvir as histórias de Berchan acerca dos Lobos Cinzentos, os guardiões das almas atormentadas, mas jamais pensara encontrá-los, quanto mais cometer a imprudência de enfrentá-los. Como pudera eu comprometer-me perante as criaturas sagradas, defendendo um Viking com tamanha convicção? Por que sujeitara a minha palavra... a minha vida, aos caprichos do seu futuro, sem conhecer o seu passado; a razão que motivara este confronto? Quem era este homem? Que força excepcional nos unia contra toda a lógica?

A claridade rompia finalmente o nevoeiro e rasgava as sombras. Junto de mim, Throst gelava a uma velocidade assustadora, como se uma entidade maléfica lhe tivesse sugado a essência da vida. Reparei que a umidade formava cristais no seu cabelo e na barba dourada. Eu sabia que tinha de despertá-lo rapidamente, mas todos os meus esforços se revelaram infrutíferos. O que mais podia fazer? Jamais conseguiria transportá-lo até casa, mesmo recorrendo à magia. Acabei por despir a minha capa e cobri-o com ela, na tentativa de mantê-lo vivo enquanto buscava ajuda.

- Não te preocupes. O Throst ficará bem.

Ergui o rosto, sobressaltada, e o meu coração falhou uma batida ao ver Anna, contemplando-me com o seu olhar verde-floresta. O cavalo que abandonara Throst estava ao seu lado, ainda um pouco inquieto. Perdi o fôlego, esmagada por outra avalanche de interrogações. Se o fato de nos ter encontrado já era assombroso, o que dizer da sua postura? Eu não estava diante da senhora da propriedade de Grim, mas perante uma entidade muito mais poderosa. Anna pisava solo sagrado sem sofrer quaisquer conseqüências pela transgressão.

Continuei a fixá-la, demasiado confusa para esboçar um gesto, mantendo a cabeça de Throst apertada contra o meu peito. Anna aproximou-se um pouco mais, e tive a ilusão de que pairava sobre uma nuvem, tal era a leveza dos seus passos.

- Então, é verdade! - exclamou num tom grave. - A neta de Aranwen está aqui, diante de mim! Que caprichoso é o destino que revolve as nossas vidas, ao fim de tantos anos!

Senti-me gelar por dentro. Ela conhecia a minha identidade. Anna conhecia a minha avó!

- Quando as tuas mãos tocaram em Signy, pensei que tal poder só podia pertencer à neta de Aranwen. - Deteve-se a um passo de mim. - Mas não consegui acreditar... Agora, interrogo-me como pude duvidar! Tu és exatamente igual à tua avó, como duas gotas de água que se fundem numa só. Não tens por que temer, Catelyn! Eu não te farei mal. Sabes quem eu sou?

Neguei com a cabeça, sentindo um aperto no peito quando ela se ajoelhou e me acariciou a face com a mão pequena e delicada.

- Isso não me surpreende, já que os Homens da Grande Ilha devotaram tudo o que é sagrado ao esquecimento. A tua presença aqui só pode significar que os planos daqueles que governam o destino do mundo falharam. Não posso dizer que lamente por eles... Mas lamento pelo sofrimento daquela que foi a minha terra, pelo povo e por ti, pela responsabilidade que pende sobre os teus ombros. Sei quê não tiveste escolha.

Agora eu estava aflita! Como podia ela saber tanto? Diante da estranha que tinha os meus olhos, eu descobri a resposta para a pergunta que me torturava a mente. A mãe de Krum era uma filha da Grande Ilha, e as suas mãos guardavam os segredos da Arte Superior. Anna era uma feiticeira! Uma das irmãs de Aranwen... Anna era minha tia!

Com a ajuda de Anna, não foi difícil deitar Throst em cima do cavalo. Regressamos a casa num passo lento, porque o estado do capitão assim o exigia e porque tia e sobrinha tinham muito para esclarecer.

O verdadeiro nome de Anna, Mairwen, fora esquecido com o passar do tempo. Tal como a minha avó, também ela tivera de fazer uma escolha dolorosa, quando confrontada com a lei do seu povo e o amor humano. A paixão vencera. O seu homem, apesar de não poder desposá-la, amara-a intensamente até ao último suspiro. Essa era a sua recompensa... e o seu castigo.

- Eu sofro a cada instante, atormentada pela memória do amor que não voltará. Mas é também essa recordação que me mantém viva, alimenta e faz sorrir ao nascer de cada novo dia. Troquei uma vida longa e cheia de glória, pela curta e atormentada existência humana. Mas fui imensamente feliz... E continuarei a ser, com a dádiva do afeto do meu filho e dos meus netos.

O castigo imposto pelos feiticeiros privara-a do seu poder. A minha tia não era mais forte do que uma aprendiz druida. Se eu não tivesse chegado à Casa de Grim a tempo de salvar Signy, Mairwen teria sido forçada a assistir impotente à morte da nora. Contudo, o seu reconhecimento não tinha a extensão que eu esperava. Antes que pudesse regozijar-me pelo seu apoio, já ela refutava:

- Lamento desapontar-te, mas não foi da minha ajuda que Aranwen te falou. Nada tenho para ensinar-te que tu própria já não domines. - Conteve a minha decepção com um gesto firme.

- Certamente sabes que a força não é igual em todos nós. E eu nunca fui muito hábil, devo confessar. Tudo o que posso fazer é proteger-te enquanto buscas o teu rumo. Devo-te isso pelo muito que já fizeste pela minha família. Todavia, não seria sincera se não te dissesse que penso que a tua vinda para a Terra Antiga foi um grande erro!

 

Senti-me sufocar perante a crueza das suas palavras. Mal tive tempo para recuperar do choque, e já ela prosseguia:

- Enquanto estiveres comigo, existem regras que terás de respeitar. Tal como na Grande Ilha, aqui vivem-se tempos de turbulência, decisivos para este povo que agora é o meu. Por essa razão, a nossa identidade deve permanecer intocada. Se me desobedeceres colocarás em perigo a tua missão e provocarás a morte de muitos inocentes. Fui clara?

Claríssima! Depois desta conversa, Mairwen continuaria a ser Anna, a senhora da Terra Antiga, e eu a escrava de Throst. Era evidente que a minha presença a desgostava, mas a gratidão forçara-a a estender-me a mão. Quanto a mim, só podia vergar-me às suas condições, até encontrar a ajuda que a minha avó prometera. Sentia-me dividida entre o apelo do sangue e o ressentimento pela sua frieza. Mas as desilusões ainda não haviam terminado:

- Presta atenção a tudo o que se refere aos meus enteados. Mantém-te afastada do Throst ou terás sérios problemas com a Halldora. - Ergueu a mão para impedir o meu protesto. - Não te dês ao trabalho de negar o que existe entre vós. Não o encontrei no teus braços?

Depois de tudo o que já fora dito, qualquer tentativa de justificação parecia-me ridícula, por isso deixei-a continuar, ciente de que o pior ainda estava para vir:

- E, acima de tudo, mantém-te longe do Gunnulf e nada faças para contrariá-lo! Tu és uma coelha na toca do lobo... Esperemos que ninguém descubra de quem és filha, ou a minha proteção de pouco te valerá! - O brilho enfurecido do meu olhar fê-la acrescentar:

- Eu compreendo o teu rancor, Catelyn. Porém, aviso-te de que qualquer vingança que planeies irá voltar-se contra ti. O Gunnulf é um homem poderoso, destinado a grandes feitos. O futuro do povo viking depende da sua força. Além disso, goza da proteção de Sigarr, um mestre da Arte Obscura muito mais forte do que a feiticeira que enfrentas. Ele saberá quem tu és, assim que colocar os olhos em ti. O que fará, eu não posso prever.

Eu ainda não conhecia a ameaça e já gelava de medo só de ouvir o seu nome. O meu instinto berrava mais alto do que as advertências da minha tia. Se eu não podia esconder a minha identidade desse feiticeiro, então era uma coelha morta! De certeza Sigarr iria denunciar-me a Gunnulf! Apesar de tudo, Mairwen sossegou-me. Acreditava que o bruxo não ergueria a voz contra mim. Perante a minha incredulidade aterrada, ela explicou-me que o fato de eu ser escrava de Throst desencorajaria a agressividade. Não fiquei convencida, mas compreendi o porquê do seu desagrado pelo meu aparecimento e a exigência de ocultar a nossa identidade. Eu própria tinha a sensação de que caíra dentro de um vespeiro. Também entendi a importância do pouco que ela podia fazer por mim. A educação e a proteção tornavam-se indispensáveis para a minha sobrevivência e acarretavam um grande risco e um fardo pesado para quem desejava que a sua velhice humana decorresse sem sobressaltos.

Estávamos prestes a chegar a casa quando fiz menção de recuperar a pedra da minha avó. Mairwen deteve-me:

- O Throst voltará a reclamá-la e enfrentarás a sua ira. Não te preocupes, Catelyn. Essa pedra está ligada a ti e, no momento certo, regressará às tuas mãos. - Tocou-me levemente na garganta, franzindo o sobrolho. - Agora, o importante é restaurarmos a tua voz. Mais algum tempo e não haveria cura para esse mal. Contudo, aviso-te de que será muito doloroso!

Eu não tinha medo. Depois de tudo o que já enfrentara, pouco podia assustar-me. Com as recordações, surgiram as perguntas para as quais Mairwen certamente possuía as respostas. Quem era Myrna? Por que perpetuava uma vingança tão vil? Por que nos odiava? Contudo, a minha tia tornou a surpreender-me:

- Um dia saberás a verdade, mas não por mim. Esse assunto é demasiado delicado e doloroso para que eu me atreva a aflorá-lo. Aceita e respeita a minha decisão, porque ela é indiscutível!

Mal controlei a indignação perante esta recusa. A minha insistência foi suficiente para que Mairwen desse por encerrada a conversa. A sua palidez revelava temor... Talvez receasse a vingança de Myrna, quando a bruxa descobrisse que ela me ajudara. Mas não devíamos unir-nos contra esta ameaça terrível? Eu não tinha tempo para decifrar enigmas! Enquanto brincava às escravas na terra dos Vikings, Myrna destruía a Grande Ilha e esmagava a minha família com a sua maldição. Contudo, eu não podia revoltar-me contra Mairwen. Talvez, assim que ganhasse a sua confiança, eu conseguisse convencê-la a contar-me a malfadada história que justificava tamanha destruição.

Depois de tantos sobressaltos e revelações, eu não tinha força para enfrentar o ódio de Halldora. Angustiada e triste, quedei-me sem reação enquanto ela vomitava o seu veneno:

- A escrava tem de ser castigada! E a punição deverá ser severa para que não torne a fugir!

- Não achas que uma noite passada ao relento foi castigo suficiente? - retorquiu a minha tia, cumprindo

a sua palavra. - Certamente a Pequena já percebeu que não pode afastar-se...

- E o Throst? - insistiu Halldora, com a voz tinindo de raiva.

- O Throst quase morreu por causa dessa ranhosa!

- Não exageres! - Estremeci ao ouvir a voz ainda combalida do capitão soar por trás de mim. - Eu só caí do cavalo! Além disso, se a Pequena não me tivesse encontrado, eu teria servido de pasto para os lobos!

- Vós estais cegos? - berrou a jovem, descontrolada pela ira.

- Não vedes o incômodo que esta criatura causou? Quantos homens se arriscaram na floresta, por sua causa? Que exemplo daremos aos outros escravos se não a castigarmos?

- Procurar a Pequena foi o mínimo que pudemos fazer - objetou Krum, suscitando a minha gratidão. - Esqueceste o muito que ela já fez pela nossa família?

- A Pequena não é uma cativa aqui! - resmungou Throst impaciente. - Não tem por que fugir! E fugiria para onde? Tenho a certeza de que apenas pretendia dar um passeio...

- Um passeio? - desdenhou Halldora. - Um passeio numa noite gelada de nevoeiro, para lá da cerca de proteção! Ouçam o que eu vos digo! Esta rapariga é estranha! Estou certa de que atrai os maus espíritos...

- Se é isso que pensas, eu vou levá-la para a minha casa. - Desta vez, a voz de Throst ribombou como um trovão. -Julguei que a sua companhia te agradasse. Jamais imaginei que a Pequena te suscitasse tamanha antipatia!

Senti o coração tropeçar. O meu destino estava a ser decidido diante dos meus olhos, mas fora do alcance das minhas mãos. Anna ordenou-me subtilmente que me mantivesse quieta e tornou a falar, dirigindo-se ao capitão:

- A Halldora está perturbada, porque se assustou quando te viu desacordado. Depois de se acalmar, vai reconsiderar e desejará manter a Pequena. Além disso, o que faria a rapariga na tua casa durante o Inverno?

A insinuação da minha tia tinha o intuito de espicaçar o ciúme de Halldora para que ela mudasse de atitude e convencesse Throst a deixar-me ficar. Ingrior foi a primeira a reagir, replicando com entusiasmo:

- Pois eu acho muito boa idéia! A ajuda da Pequena ser-me-á de grande valia...

- Não! - cortou Halldora, engolindo a ira e o orgulho. - A escrava deve ficar aqui para cuidar da minha educação, como o Throst deseja. - Aproximou-se do noivo e abraçou-o melosamente.

- Perdoa a minha ingratidão, querido! Sei que só queres o melhor para mim. Mas fiquei tão preocupada quando partistes! E ver-te chegar naquele estado... Nem sei o que pensei!

A vitória que brilhava no olhar de Anna era fel na minha boca. Os noivos celebraram o fim da desavença com um beijo apaixonado. Este povo não tinha o menor pejo em demonstrar o afeto, em qualquer parte e diante de quem quer que fosse. Ingrior não disfarçava a decepção. Pensei que, noutras circunstâncias, poderíamos ter sido boas amigas. Krum estava satisfeito com o resultado da discussão. E eu percebia finalmente a nossa empatia. Nós partilhávamos o mesmo sangue.

- Então, está decidido! - arrematou ele. - A Pequena ficará conosco por mais um tempo...

- Por mim, pode ficar aqui definitivamente - ronronou Halldora, num tom velado e perigoso. - Depois do meu casamento, não voltarei a necessitar dos seus serviços.

 

Esperei que Throst me defendesse, que declarasse que eu era sua escrava e não escrava de Halldora. Porém, ele nada disse. Engoli em seco e forcei-me a concentrar no que realmente me importava. Provavelmente, no próximo Outono, quando Throst se casasse, eu já nem estaria na Terra Antiga! Não podia dar-me ao luxo de planear o amanhã da minha vida.

Nessa noite, Anna cumpriu o prometido e preparou-me um chá com uma mistura de ervas que eu desconhecia. Esperou que Throst e Krum fossem verificar se as cercas estavam fechadas e disse na nossa língua:

- Assim que engolires o primeiro gole, enfrentarás um grande sofrimento, como se tivesses a garganta cravejada de espinhos e tos arrancassem um a um, lenta e dolorosamente; como se a tua carne fosse separada dos ossos e uma fogueira ardesse no teu ventre. Sinto muito, mas é a única maneira de contrariar o feitiço.

Aquilo tinha de ser feito e pronto! Bebi de um só fôlego, tão rápido que nem senti o que Mairwen predissera. O sabor era horrível, amargo como fel. Então, a dor atingiu-me qual machadada na garganta. Eu presumira um tormento, mas nada assim, tão insuportável. Encarei a minha tia, sufocada e com os olhos esbugalhados de aflição. Tentando não atrair as atenções das escravas, ela murmurou:

- A dor passará à medida que fores sarando. Vai à rua e respira o ar frio. Sentir-te-ás mais aliviada.

Obedeci, esforçando-me para que ninguém percebesse a agonia que me consumia viva. Já não era só a garganta! As entranhas também me ardiam violentamente. Tive de agarrar-me à cerca com toda a vontade para não tombar no chão. O intolerável piorava a cada instante.

 

”Maldita feiticeira! Não conseguirás dobrar-me, Myrna! Não conseguirás vencer-me! Eu viverei para o dia em que estivermos frente a frente! Eu viverei para o dia em que te matarei! Não falharei! Não falharei!”

 

Passado muito tempo, o ar gelado amenizou-me a dor. Ouvi Krum e Throst regressarem da ronda e soltei uma prece para que não me vissem. Depois da noite anterior, o capitão seria capaz de arrastar-me para dentro de casa, presa por uma orelha. Não tive sorte. Num abrir e fechar de olhos, Throst estava ao meu lado. Encostou-se à cerca e fixou o olhar no vazio negro, indagando:

- Não estás a planear outra fuga, pois não?

Ia negar, mas contive-me a tempo. Era suposto não entender o que ele dizia. O capitão continuou num sussurro lento, como se temesse que mais alguém o escutasse:

- Ontem fiquei desesperado quando percebi que tinhas desaparecido. Enquanto percorria a floresta, por entre a escuridão e a névoa só te imaginava caída num buraco, ferida ou magoada, à mercê dos animais selvagens, sem conseguires gritar por ajuda... Essa idéia quase me enlouqueceu!

Era a primeira vez que Throst me procurava, depois da noite em que a vergonha descera sobre mim. Para que servia esta sua conversa mansa? O que esperava ganhar com este monte de mentiras? Como se me lesse o pensamento, ele prosseguiu num tom irônico e amargo:

- Se me compreendesses, pensarias que sou louco! Sei que me odeias. Não entendes... Eu não tive escolha! Junto de ti, perco a razão, esqueço tudo... Mas a realidade não perdoa! As famílias devem permanecer unidas... E a Halldora não tem culpa! Não tem culpa de que eu...

As palavras perderam-se por entre a respiração acelerada. Senti a força do seu olhar, mas não tive coragem para encará-lo. Saltei quando a sua mão cobriu a minha. Libertei-me com brusquidão e enfrentei-o com um esgar fulminante. Eu já tinha muito com que me preocupar sem que ele voltasse a torturar-me com a sua atenção!

Com os olhos cravados nos meus, Throst insistiu num tom rouco e ofegante:

- Eu não estive sempre inconsciente... Sei que foram Lobos Cinzentos que assustaram o cavalo. Eu vi-os, como há muitos anos... E tu avançaste por entre eles incólume... e protegeste-me. Um longo suspiro denunciou a confusão que o afligia. - Eu não sonhei! Não delirei! Que poderes escondem esses olhos verdes, capazes de enfeitiçar as feras mais temíveis?

 

- Throst! Amor... onde estás?

A voz de Halldora ecoou na noite. Agradeci pelo esconderijo da penumbra. Enfrentar a fúria da fogosa noiva de Throst era só o que me faltava! Ele respondeu ao apelo, mas não se moveu. Por fim sussurrou, intensa e determinadamente:

- Um dia, iremos entender-nos e haverá muito para explicar!

- Tornou a capturar-me a mão, com uma segurança que não admitia protestos. - Mas, até lá, espero que compreendas que te sou grato por me teres salvo a vida.

Arrepiei-me com o toque do seus lábios na minha mão. Que loucura era esta? Incapaz de enfrentar as emoções contraditórias que batalhavam dentro do meu peito, fechei os olhos e recuei. Quando os abri, Throst desaparecera. As minhas pernas estavam moles e tive de apoiar-me na cerca para manter o equilíbrio. Sentia a cabeça a rodopiar. Havia demasiadas coincidências nesta história. E quanto mais eu descobria, mais confusa ficava.

Throst salvara a minha vida. Eu salvara a vida de Throst. Nenhum de nós entendia porquê. Nenhum de nós desejava aproximar-se, mas o destino contrariava todos os nossos esforços. O capitão viking descobrira que a rapariga que raptara era diferente. Eu descobrira que existia muito mais nele, para além do guerreiro e do homem. Se a revelação da sua ligação aos Lobos Cinzentos não fosse suficientemente assombrosa, o líder da alcatéia ainda associara a nossa sorte. A defesa acalorada que eu empreendera e que não conseguia justificar devolvera-lhes uma esperança para além do meu entendimento. A única certeza que retirara do incidente fora o tremendo peso que lançara sobre os meus próprios ombros. Se Throst não cumprisse a enigmática missão, as criaturas sagradas responsabilizar-me-iam pela sua falha.

Às questões que sempre me acompanhavam, juntavam-se outras igualmente espinhosas. Prostrava-me pensar que as respostas estavam fora do meu alcance, pois a única que podia elucidar-me recusava-se a fazê-lo. A euforia que sentira ao descobrir que Mairwen era minha tia não tardara a finar. Encontrar a irmã da minha avó na terra dos meus raptores e na casa do assassino de Aled era algo que jamais imaginaria. Contudo, tal prodígio provava que a minha viagem até esta terra selvagem não fora um mero acaso.

Depois da nossa conversa, eu matutara na necessidade de falar à minha tia acerca da maldição das pedras mágicas. Todavia, cada vez que pensava em fazê-lo, a voz sumia-se da minha mente. De qualquer forma, seria inútil. Mairwen enterrara o seu passado na Grande Ilha e pouco se importava com a sorte da nossa família. Agora, ela era Anna do povo viking, e só a manutenção da posição que conquistara entre esta gente lhe interessava. O seu apoio cessaria no instante em as suas regras indiscutíveis fossem quebradas.

 

Se a sociedade viking se assemelhava, em alguns aspectos, à minha cultura de berço, noutros, era tão distinta, que eu sentia dificuldade em conceber os próprios conceitos.

Depressa descobri que os excêntricos afetos de Arngrim não eram uma exceção e sim a regra nas famílias de maiores posses. Porém, se existiam casos como o de Halla e Anna, em que a esposa legítima aceitava a presença da amante do marido, noutros o ódio sobrepunha-se à razão. As discussões entre rivais podiam ser violentas e acabar num banho de sangue.

O modo como Throst agira com as escravas e comigo, na casa do seu amigo, apesar do compromisso com Halldora, era trivial. Um bom anfitrião punha sempre as suas escravas à disposição dos convidados. E um homem deitar-se com uma mulher socialmente inferior não significava um desrespeito para com a sua noiva ou esposa.

As raparigas que não estavam presas às amarras dos casamentos por conveniência, podiam escolher os seus maridos. A união dos corpos, mesmo nas mulheres, era encarada com naturalidade. Por isso, se uma donzela se apressasse a descobrir os segredos do amor, ninguém a condenaria, se bem que a castidade fosse encorajada e desejável. Existia sempre o perigo de o rapaz arisco se recusar ao casamento, depois de obtido o doce troféu. É claro que, provavelmente, não se vangloriaria do fato, já que teria toda a família da jovem desonrada no seu encalço, ansiosa por cravar-lhe o aço na carne. A gravidez era evitada, como na minha terra, através de uma mistura de ervas e raízes, mas não se falava desse assunto mais do que o necessário.

A dissolução do casamento, à qual chamavam ”divórcio”, foi um conceito novo. Quando me esclareceram que, se um Viking desgostasse da pessoa com quem se casara ou tivesse alguma razão válida contra ela, podia separar-se e voltar a casar com outra, eu mal consegui segurar o queixo. A facilidade com que tal era feito ainda me deixou mais perplexa. Bastava que o homem ou a mulher descontente declarasse essa vontade e justificasse as suas queixas perante três testemunhas. Claro está que, na prática, isto não era assim tão linear. Por que iria um homem divorciar-se, se podia ter quantas mulheres desejasse? E o inverso era complicado, porque uma mulher que deixasse o marido voltaria a tornar-se um fardo para a sua família, a não ser que já tivesse um homem solteiro em vista. Mas os homens solteiros não abundavam na Terra Antiga, e sair de uma posição social privilegiada para se tornar uma segunda ou terceira mulher numa casa estranha não era uma opção inteligente. Além disso, ainda havia a questão dos filhos... Mesmo assim, o conhecimento desta possibilidade provou-me que as mulheres vikings possuíam direitos à luz da lei, pessoais e sociais, que na Grande Ilha seriam inimagináveis.

Tudo isto explicava por que ninguém questionara o relacionamento de Throst com a sua escrava. Halldora também não podia fazê-lo, por isso esforçava-se para provar-lhe que eu não prestava e tentava convencê-lo a vender-me. O seu receio era legítimo. Mesmo depois de casado, Throst podia manter-me como amante e até ter filhos comigo. Fiquei indignada quando Anna opinou que era essa a sua intenção. E prosseguiu, avisando-me de que Halldora jamais admitiria dividir o seu homem. Por mais que eu argumentasse que a sua suspeita era infundada, a minha tia não se demoveu. Acreditava que Throst representava uma ameaça ao desempenho da minha missão... e que eu representava uma ameaça ao seu equilíbrio familiar.

Gunnulf chegou finalmente; um homem enorme, tão alto e musculado que metia medo. Os seus cabelos e a barba encrespada tinham reflexos de fogo, e os seus olhos eram de um verde estranho, da cor indefinida do mar tempestuoso. Nas faces e na testa tatuara símbolos negros, que o tornavam ainda mais ameaçador. Apesar de tudo, as mulheres da sua raça achavam-no muito atraente. Eu espantei-me com a sua semelhança com Halldora, e Anna confiou-me que o enteado era igual ao falecido pai.

Arnorr também herdara as feições de Arngrim, mas o seu temperamento era suave e subtil. Parecia a sombra de Gunnulf, sempre atendendo aos desígnios do irmão sem possuir vida própria. Vi nele um baú fechado, cheio de segredos. O seu olhar recordava-me o de Oliver e causava-me arrepios.

Mas a verdadeira definição da palavra sinistro estava personificada em Sigarr. Mal pousei o olhar no feiticeiro a quem Gunnulf confiava a vida, fiquei petrificada. Apesar das recomendações de Anna, não pude desviar a atenção do homem alto e magro, de olhos azuis vivos e cabelos louros, lisos e compridos, que lhe passavam a cintura. E ele correspondeu à minha curiosidade. Eu sentia a força da sua mente trespassar-me, mas, ao contrário do que seria lógico e previsível, o rosto de Sigarr abriu-se num sorriso irônico, de puro deleite, como se tivesse acabado de descobrir uma ovelha premiada no seu rebanho. O meu instinto deveria estar a vibrar em alarme. Porém, estranhamente, sosseguei, com a clara impressão de que não precisava de temê-lo.

Tal como Throst, também Gunnulf se fazia rodear por uma guarda pessoal de guerreiros-lobo. Contudo, apenas um deles era jovem como os amigos do capitão; os outros eram homens maduros, com o aspecto tenebroso salientado por cicatrizes horrendas que eles ostentavam com vaidade.

Ingrior limitou-se a cumprimentar friamente os recém-chegados e afastou-se. Reparei que os olhos de Gunnulf não a abandonavam por um instante, mas não consegui deslindar o que se escondia por trás deles. Nasceu em mim a convicção de que sucedera algo entre ambos, no passado, que suscitava a antipatia e o receio da rapariga.

 

Halldora mal cabia em si de contentamento pela chegada do irmão mais velho. Foi ela a primeira pessoa a despertar a atenção de Gunnulf sobre mim. O monstro franziu o sobrolho, mas não tardou a soltar uma gargalhada de desprezo, certamente interrogando como era possível que a irmã se sentisse incomodada ou ameaçada por uma mulher como eu.

Os guerreiros trocaram impressões acerca do sucesso da campanha de Verão. Fora uma estação afortunada, onde não só tinham acumulado riquezas inestimáveis como também haviam eliminado adversários de peso. Mais do que uma vez, ouvi falar no Conde de Goldheart. Não fiquei surpreendida quando felicitaram Throst pela sua morte. O valor de um guerreiro também se media pela quantidade de inimigos que abatia. Porém, quando o nome de Garrick McGraw se destacou dos demais, fiz-me branca como leite e pensei que ia desmaiar. Fechei os olhos e respirei fundo. Eu tinha de resistir até ao fim. Por mais que isso me doesse, eu tinha de saber...

Gunnulf extravasava um grande ódio e muita, muita frustração. Tivera Lorde Garrick ao alcance da sua espada... Por entre berros e murros que faziam saltar tudo o que se encontrava em cima da mesa, percebi que o líder viking medira forças com o líder dos Aliados da Grande Ilha e o ferira. Porém, a guarda pessoal de McGraw intervira e defendera-o. No último instante, o meu pai escapara ao ferro da besta e desaparecera.

Eu não consegui descobrir a extensão da gravidade dos ferimentos de Lorde Garrick. Estava tonta e sem força nas pernas. Anna compreendeu o meu sofrimento, levou-me para o lado oposto da casa e começou a ensinar-me como trabalhar a lã para posteriormente a tecer nos grandes teares. A minha tia não sabia que, além dos nomes, eu entendera o conteúdo da conversa. Como podia concentrar-me em fiar, quando a sorte da minha família era o assunto discutido à mesa dos bárbaros?

Também não obtive nenhuma pista que me elucidasse acerca do paradeiro dos meus irmãos. Pensei ouvir Gunnulf falar de Aled, mas fiquei sem a certeza de o ter compreendido bem. Para o chefe viking, só o célebre Garrick McGraw importava. Todas as outras vítimas do seu aço não passavam de carne inimiga.

A noite foi avançando lentamente, qual agonia mortal. Os homens continuaram a conversar, a rir, a festejar, a beber e a comer, depois de as senhoras se recolherem. Apesar de eu usufruir de um tratamento superior ao das escravas, que dormiam no chão por entre mantas, também dormia junto delas, sobre um caixote de madeira, sem uma cortina para garantir a privacidade. As escravas continuariam acordadas, a servir os homens de quantas maneiras eles desejassem, mas eu tinha permissão para descansar. Senti vontade de suplicar à minha tia que me deixasse dormir aos pés dela, mas, ao fazê-lo, atrairia sobre mim a atenção do inimigo, e isso era a última coisa que eu pretendia.

Apesar de tremer tanto que mal conseguia dar um passo, forcei-me a atravessar a casa para procurar o abrigo das cobertas. Ao passar pela mesa, ouvi um apelo que me gelou:

- Pequena! É assim que te chamam? Vem cá!

Fiquei onde estava, olhando para Throst e Krum numa súplica silenciosa de socorro.

- Ela não te entende, Gunnulf - começou Throst. - E não esperes que fale. É muda.

A gargalhada do monstro transformou-me em geleira. Com apenas dois passos, agarrou-me o pulso e arrastou-me sem contemplações até à mesa, enquanto escarnecia:

- Muito se falou a respeito da mulher que escolheste trazer para casa... E, afinal, olhem para isto! Tem um corpo de criança; mais parece um cão esfomeado! E, ainda por cima é muda? - Hesitou antes de ironizar. - Se bem que isso pode ser uma vantagem! Quantas vezes vós já desejastes arrancar a língua a uma mulher?

Todos riram, sem exceção, e isso magoou-me mais do que o aperto que me esmagava o pulso.

- Solta-a, Gunnulf - apelou Krum finalmente. - Estás a aleijá-la!

Além de ignorá-lo, a besta ainda aumentou a pressão dos dedos. Torci-me de dor. Pelo menos, ele não teria o prazer de me ouvir gritar.

- O que pensas fazer com ela, Throst?

 

Reconheci o perigo na voz de Gunnulf, no momento em que comecei a ver estrelas. A resposta de Throst pareceu-me um murmúrio longínquo:

- Eu trouxe a Pequena para a tua casa para que ensine à Halldora os costumes da sua gente. Depois do casamento, decidirei se ela virá viver conosco ou se ficará com a minha irmã.

- Não estás a pensar torná-la tua amante, pois não? - A pergunta de Gunnulf soava como uma ameaça. - A minha irmã ficaria muito contrariada! E sabes como a felicidade da Halldora é importante para mim... primo!

- Já te confiei os meus planos.

- Dá-me a tua palavra!

Foi uma pausa quase imperceptível, como um bater de Coração, mas eu senti nas minhas entranhas que o sangue de Throst fervia.

- Tens a minha palavra.

Gunnulf libertou-me com um safanão, e eu caí, prostrada pela dor. Ouvi-o replicar, enquanto retomava o seu lugar à mesa:

- Eu sei que tu és um homem de palavra, Throst, e que não te esquecerás do compromisso que acabaste de assumir. Agora, falemos de assuntos mais importantes...

O tempo pareceu deter-se enquanto eu agonizava, caída no chão, magoada no braço, ferida no orgulho e paralisada pelos nervos que me mastigavam a consciência. Desejei morrer. Só a morte poria um fim a este martírio.

Quando duas mãos macias e quentes me envolveram, acreditei que estava a sonhar. Os meus olhos revelaram-me Ingrior e uma paz doce não tardou a invadir-me. Devagar, consegui caminhar até à cama. Ingrior sentia o meu sofrimento e esforçava-se para amenizá-lo com o seu talento, enchendo-me de energia curativa. Por que o fazia, talvez nem ela soubesse. O fato é que deixara a segurança e o conforto da sua cama para acudir a uma escrava estrangeira que fora humilhada pelo senhor da terra.

Deitada, meio moribunda, reparei que Gunnulf não desviava o olhar da sua graciosa figura, enquanto a irmã de Throst atravessava a casa, de regresso à cama. E, de repente, exclamou:

- Vejo que o tempo não endureceu o teu coração, querida prima!

Todas as vozes feneceram, como se da reação de Ingrior dependesse o nascer de um novo dia. Ela continuou a afastar-se num passo rápido, com um esgar de declarado desprezo distorcendo-lhe as faces perfeitas, sem sequer se dignar a olhá-lo. E foi Throst quem tomou a iniciativa de prosseguir com a conversa, rasgando o silêncio que solidificava o ar.

Apesar de o meu pulso não estar partido, não poderia mexê-lo durante dias. O meu ódio por Gunnulf atingiu proporções imensuráveis. As revelações que eu escutara em nada amenizavam a minha agonia. Pelo contrário, deixavam-me prisioneira da incerteza e com a terrível convicção de que, se Gunnulf desconfiasse de que albergava a filha de Garrick McGraw sob o seu teto, me mataria de imediato. Por isto, concluí que Throst desconhecia a minha identidade. Ele já provara que não me queria mal e, se soubesse que eu era uma McGraw, não me deixaria à mercê do primo.

O meu segredo estava nas mãos de Sigarr. Se o feiticeiro decidisse denunciar-me ao seu protegido, poderia a minha tia valer-me? Era óbvio que não! Desejei partir com Throst e Ingrior, mas até isso já se tornara impossível. Halldora espalhara bem o seu veneno. Throst não voltaria a aproximar-se de mim. A palavra de um Viking era sagrada e a sua quebra podia ser punida com a morte.

Throst regressou à sua casa, levando consigo a pedra de Aranwen e deixando-me afogada numa sensação de angústia e abandono. Ingrior despediu-se de mim com pesar. Depois de certificar-se que estávamos sós, gesticulou enquanto falava para que não restassem dúvidas:

- Tem cuidado com o Gunnulf! Mantém-te longe dele... E nunca, nunca o contraries!

O seu beijo carinhoso fez-me sentir ainda mais desamparada e triste.

O meu receio de ficar sozinha com Gunnulf não se justificou, pois ele partiu no mesmo dia que os filhos de Thorgrím, a fim de visitar a sua extensa propriedade. Após tantos meses de ausência, queria assegurar-se de que as suas quintas estavam a ser bem administradas.

 

Halldora manteve a decisão de fazer-me a vida negra. Era a única pessoa na casa que não trabalhava. Passava os dias a dar ordens ridículas às escravas, a experimentar os vestidos que Gunnulf e Throst lhe tinham oferecido, a exibir-se em frente do espelho, a encher a cara com cremes e tintas e a experimentar penteados. Eu reconheci algumas das roupas e só contive a ira a custo. Quase gargalhei de despeito quando surpreendi Halldora a tentar enfiar-se à força dentro de um dos vestidos de Melody. A avantajada viking teria de nascer de novo, para sonhar ter a figura elegante da minha cunhada! Por fim, acabou por escolher alguns trajes e ordenou a uma escrava que os desmanchasse e ajustasse ao seu corpo.

Mairwen cumpriu a promessa e resgatou-me das garras da enteada. Sozinhas nos campos, no estábulo ou no celeiro, executando as tarefas diárias, ela concedeu-me liberdade para praticar a Arte, ajudou-me a aperfeiçoar a técnica e ensinou-me pequenos truques, cuja importância viria a revelar-se inestimável para suprir as falhas do meu verdadeiro treino.

A minha primeira lição foi especial, pois forçou-me a enfrentar um dos meus maiores temores. Mairwen estendeu a mão com a palma virada para cima, murmurou um pequeno encanto e ordenou-me que o repetisse. Eu começara o tratamento da garganta, há poucos dias e estava longe de conseguir falar. A minha tia explicou-me que a magia não precisava de ouvir a nossa voz. Eu só tinha de esboçar os movimentos dos lábios para que as palavras se enraizassem em mim. E, com a prática, acabaria por fazê-lo apenas com a ajuda da mente.

Obedeci e observei uma pequena chama nascer do nada, dentro da minha mão. A primeira reação foi de temor. Eu sabia lidar com o fogo, mas nunca me atrevera a tocar-lhe. Depois de tantos pesadelos que profetizavam que morreria queimada, era-me impensável imaginar uma chama em contacto com a pele, sem me magoar. No entanto, ali estava! Mairwen explicou-me que o lume mágico só era quente quando nós o desejávamos. A nascente de fogo escorreu-me por entre os dedos; um ribeiro de vermelho-vivo que eu podia arrefecer ou aquecer, conforme a minha vontade.

Berchan ensinara-me pequenos truques para ajudar o próximo, restabelecer a força e curar maleitas. Com Mairwen, aprendi a provocar incômodos e a criar ilusões. Isso era mais difícil, mas muito divertido. Quantas vezes tive a tentação de usar os novos ensinamentos em Halldora! Imaginava o que a irritante fedelha faria, se se olhasse no espelho e visse os seus belos cabelos coloridos de verde, azul ou o vermelho garrido usado para tingir a lã. Todavia, consegui vencer a tentação de revidar, testando o meu controlo sempre que ela me inferiorizava. Depois de conviver com Myrna, ignorar a vaidosa noiva de Throst era uma brincadeira!

Na Terra Antiga, as raparigas casavam-se a partir dos doze anos. Throst fazia questão de aguardar até que a noiva completasse os quinze, no próximo Verão. Mas Halldora estava impaciente. Fora prometida ao primo no berço e crescera na expectativa de possuí-lo como homem. Eu compreendia a sua ansiedade, pois cedera ao encanto de Throst poucos dias depois de conhecê-lo. E essa recordação ainda fazia o meu sangue ferver, embora amargasse como fel, pois era o testemunho da minha fraqueza, da minha traição, uma grande mácula na minha alma. Felizmente, não voltaria a acontecer. Gunnulf assegurara-se disso.

Gunnulf... Mesmo ausente, esse homem era como um deus, sempre presente no pensamento de todos, influenciando cada gesto. Ninguém escondia a admiração pelo poderoso líder. Ao aperceber-se da confusão que o culto desse bárbaro cruel me provocava, Anna contou-me uma história que esclareceu o fascínio do povo:

Na sociedade viking, os jovens do sexo masculino tinham de sujeitar-se a duras provas de força e coragem para merecerem o respeito dos adultos. Essas provas consistiam em lutas com os mais velhos, na resolução de enigmas, em provas de natação e caçadas na floresta. Mas os candidatos a guerreiro tinham de fazer ainda mais.

Esses rapazes temerários eram abandonados em parte incerta da floresta, sem mantimentos, apenas com uma arma na mão. Era-lhes imposto que encontrassem o caminho de volta, antes de os mais velhos partirem no seu encalço e os resgatarem, por vezes mortos pelas feras ou gelados pelo frio. Aqueles que saíam vitoriosos da floresta eram louvados pelo povo. Mas, de entre estes, era a própria natureza quem decidia quais os mais capazes, os mais corajosos, os melhores entre os melhores.

Os Vikings acreditavam na partilha da alma entre o guerreiro e o animal selvagem. Segundo eles, a fera escolhia o seu homem e não o contrário. Ao abrigo da escuridão pura e implacável da floresta o guerreiro travava uma batalha, de igual para igual, com um espírito poderoso, que quase sempre assumia a forma de um lobo. Se o lobo vencesse, reclamava a alma do homem. Se o homem vencesse seria considerado excepcional entre os seus.

Poucos guerreiros tinham a honra de enfrentar e vencer este desafio. Em batalha, eles eram os primeiros a avançar, os mais intrépidos e os mais temidos. Assim nascera a crença de que os guerreiros vikings se transformavam em animais, alimentada pelo medo que a visão das peles que usavam como troféu suscitava nos seus inimigos. Eu já conhecera alguns desses guerreiros, companheiros de Throst e de Gunnulf.

A história de Gunnulf poderia ter sido igual à dos guerreiros-lobo... Mas fora diferente! O desafio que a natureza lhe impusera fora excepcional. Na sua transição para a idade adulta, a fera manifestara-se-lhe de uma forma singular. Gunnulf não enfrentara um lobo. Enfrentara um urso... e vencera-o! Era a pele desse fabuloso animal que o acompanhava nas batalhas e consolidava a convicção da sua transformação de homem em besta. Ficava explicado por que razão Gunnulf era adorado pelo seu povo e temido pelos seus rivais e inimigos.

Depois da noite em que o chefe viking quase me partira o braço, eu refletira nas minhas hipóteses de sobrevivência e concluíra que o pânico não era um bom conselheiro. Mesmo que Gunnulf descobrisse a minha identidade, certamente desejaria usar-me em seu benefício. Matar-me não lhe traria nenhum proveito. Pelo contrário, colocá-lo-ia numa posição delicada perante o primo, já que Throst era o meu senhor. Tomar conhecimento da força da sua essência não diminuiu a minha resolução de enfrentá-lo. Agora, a minha vantagem aumentara, porque sabia que Gunnulf não era um homem vulgar. Aled não conseguira subjugar o colosso, porque não estava preparado para enfrentar a fera na sua alma. Mas, quando o momento chegasse, eu olharia o urso nos olhos... E venceria!

Fiquei satisfeita quando Krum voltou para casa. Signy sarara bem, mas estava saudosa do marido. Halldora era insuportável para com a cunhada, e esta pouco ou nada fazia para se defender. Signy era uma menina simples e sossegada, sem o espírito e a vivacidade da tirana. Eu gostava de ajudar a jovem mamã a cuidar do seu bebê, mas, sempre que me aproximava deles, Halldora lembrava-se de solicitar-me uma mesquinhice.

Não fiquei contente com o regresso de Gunnulf e de Arnorr e, menos ainda com a sombra de Sigarr, que carregou o ar e tornou-o irrespirável.

Nessa noite, os senhores da casa e os seus convidados sentaram-se à mesa e fizeram um pandemônio ensurdecedor. Eu estava sozinha no cubículo das escravas, enquanto elas serviam os homens. Fechara a cortina que Anna me autorizara a colocar e não podia vê-los, mas ouvia-os com clareza. A privacidade era um conforto que os Vikings desconheciam. Se bem que os quartos de Anna e Halldora ficassem do lado oposto da casa, era-lhes impossível não escutar tamanha algazarra. Gunnulf podia, pelo menos, coibir-se de falar tão rudemente, empregando termos que eu nem me atrevia a adivinhar o significado, sabendo que a madrasta e a irmã dormiam tão perto.

Ao escutar o meu apelido, pensei que cedera ao cansaço e caíra num pesadelo. Porém, a ameaça adivinhava-se real. Sigarr parecia muito interessado na minha sorte. Krum recordou-lhes que eu pertencia a Throst e que ele não estava presente para se pronunciar. Gunnulf concordou:

- ...não quero que o meu primo me acuse de molestar a sua propriedade.

Ouvir isto foi um tremendo alívio... que durou muito pouco!

- Vais permitir que uma escrava desfrute da tua casa, sem que experimente a tua cama? - perguntou Freysteinn, o jovem guerreiro-lobo, espevitado e maldoso, que fazia parte da guarda pessoal do chefe viking. - O que falarão as más-línguas acerca do poderoso Gunnulf? Isto destruirá a tua reputação!

A gargalhada do líder despedaçou-me os nervos. A sua voz ecoou, carregada de despeito:

 

- Eu não gosto de crianças, meu amigo! Deixo esses prazeres estranhos para o nosso Sigarr. O que faria eu com uma coisa tão pequena? Quando entrasse nela, partir-se-ia pelo meio!

Os reparos sobre a minha pessoa, nessa linguagem suja e crua, continuaram até me gelarem de horror e nojo. Ouvi uma das escravas a rir e os grandes senhores a imitá-la, quando Gunnulf terminou:

- Para que quereria eu uma amostra de pele e osso, quando posso encher as mãos com mulheres a sério?

Imaginei a escrava sentada no colo de Gunnulf, com as mãos do asqueroso assassino a percorrerem-lhe o corpo, e fiquei enjoada.

- Dizem que as mulheres da sua terra são muito quentes e fogosas! - insistiu Freysteinn, decidido a arruinar-me. - Talvez te enganes ao pensar que a escrava não presta! O Throst apreciou-a tanto que a trouxe consigo!

Agora eu ia morrer de vergonha!

- Imagino que sim! - replicou jocosamente o líder. - Deve ser tão bom como cobrir um cadáver!

Seguiu-se uma nova descarga de reparos impróprios para repetir. A voz de Arnorr soou fraca e esbatida por entre as demais:

- Eu gosto dela! A Pequena agrada-me muito...

- Então vai servir-te, homem! - gritou Gunnulf impaciente.

- Queremos ver se consegues fazer a muda gritar!

Pânico. Revolta. Asco.

Tudo aconteceu demasiado rápido. A cortina escancarou-se, e eu fiquei exposta aos olhos da multidão que rodeava a mesa. Arnorr estava tão embriagado, que mal se sustinha em pé. Atirou-se para cima de mim e magoou-me com o peso do seu corpo possante. As suas mãos enormes cobriram-me de imediato os seios, esmagando-os entre os dedos, enquanto a sua boca, com um hálito de fazer inveja a um bode, se impunha à minha, roubando-me o ar e provocando-me vômitos. Estrebuchei um pouco, apenas para concluir que estava à mercê do selvagem.

 

”Pensa, Catelyn! Tu podes lidar com isto!”

 

Forcei-me a rasgar a névoa que o pavor lançava sobre a minha mente. Jamais venceria Arnorr pela força. A bebida não lhe cortara a excitação, e ele iria violentar-me se eu não o impedisse. Restava-me duas opções: tirar-lhe o entusiasmo, de modo que lhe fosse impossível concretizar o ato, ou, simplesmente, adormecê-lo. Qual delas seria mais rápida? O que me causaria menos dor?

 

Um olhar, e Arnorr ficou paralisado. Os meus lábios fecharam-se. O feitiço fora lançado. Lentamente, as mãos rudes do Viking perderam o vigor, enquanto os seus olhos cediam ao cansaço. Escorregou de cima de mim e estatelou-se no chão, profundamente adormecido.

- Ora, ora! - exclamou Freysteinn, sem esconder o despeito. Parece-me que é preciso o empenho de um verdadeiro homem para satisfazer o instinto da estrangeira!

Quando é que este pesadelo chegaria ao fim? Incentivado pelas gargalhadas dos amigos, o bárbaro avançou, libertando-se da túnica pelo caminho e desapertando o cinto de pele. A minha mente estrebuchava em busca de uma solução. Um homem cair inconsciente aos meus pés podia ser um percalço do destino. Dois, era demasiada coincidência. Além disso, da maneira como os ânimos se incendiavam, depressa outro Viking viria provar que tinha melhor desempenho que os anteriores.

Senti a parede de madeira esmagada contra as costas. Eu não tinha para onde fugir. Aterrada, fechei os olhos para não ver a besta que se aproximava, com o ardor de um boi excitado. Nesse instante, Krum levantou-se, corado de indignação, e enfrentou Gunnulf num tom enraivecido:

- Já não basta, irmão? O que pensará o nosso primo deste ataque grosseiro à sua propriedade?

Quando eu já perdera todas as esperanças, a voz de Gunnulf ribombou como um trovão:

- Espera, Freysteinn!

 

O selvagem deteve-se a dois passos de mim, fulminando Krum com o olhar e aguardando pelo consentimento do líder. Sem parar de comer a perna assada do veado que lhes servia de repasto, Gunnulf dirigiu-se ao irmão com a irritação abrasando-lhe a voz:

- Estás a intervir em nome do Throst ou em teu nome?

O olhar de Krum encontrou o meu. O que ele estava a fazer exigia muita coragem.

- Esta rapariga salvou o meu filho e a minha mulher - respondeu com firmeza. - Eu não admitirei que lhe toquem num fio de cabelo.

Enquanto falava, a sua mão pousou no punho da espada. Freysteinn imitou-o. Eu pensava que havia atingido um limite de horror, mas enganara-me. Ver Krum sacrificar-se por minha causa acrescentava mais angústia ao meu desespero. Então, Gunnulf surpreendeu-me. Pousou a carne e fez sinal a Freysteinn para que recuasse, exclamando no seu vozeirão de comando:

- Esta é uma noite de festa! Não se derramará sangue na minha casa. Vamos comer e beber, e, se algum homem desejar uma mulher, poderá escolhê-la de entre as minhas escravas. Essa criatura não me pertence e está sob a proteção da minha família. Debaixo do meu teto, ninguém lhe encostará um dedo.

A vontade de Gunnulf era lei. Freysteinn mirou-me de esguelha e resmungou irado. Porém, acabou por acatar e regressou à mesa, onde o líder recomeçara a comer e dera o assunto por encerrado.

O meu corpo estava tão tenso que se recusava a obedecer às ordens da mente. A muito custo, deslizei para debaixo da manta e tapei a cabeça, tremendo sem parar. Mais tarde, ouvi que arrastavam o corpo de Arnorr e fechavam a cortina. Não me atrevi a espreitar, mas o meu coração disse-me que fora Krum. A minha boa estrela voltara a proteger-me. Eu começava a acreditar que, apesar de caprichosa, existia uma força divina que velava por mim.

Krum procurou-me no dia seguinte e foi explícito. O que acontecera voltaria a repetir-se, e talvez ele não estivesse por perto para proteger-me. Aconselhou-me a nunca me afastar de Anna. Gunnulf tinha uma grande estima pela madrasta e não se atreveria a desgostá-la. No exterior da casa, eu também não devia andar sozinha. A ordem do líder fora clara. Ninguém me molestaria debaixo do seu teto. Fora da quinta, eu estava por minha conta.

Quanto a Arnorr, não necessitava de me preocupar. Ele era um homem com coração e, se eu lhe despertara o afeto, não me trataria mal. O seu entusiasmo devera-se à bebida, e Krum já se assegurara de que não se repetiria. Todavia, no que respeitava a Freysteinn, tudo mudava. Era imperioso que me mantivesse longe dele... a qualquer custo!

Freysteinn era um homem poderoso e um guerreiro letal. Percebi que, se a briga se tivesse concretizado, provavelmente eu não estaria a falar com Krum. Por essa razão, Gunnulf interferira. Mas, depois desta afronta, o capricho do jovem guerreiro-lobo iria transformar-se em obsessão, e eu não podia ignorar a sua ameaça.

- Há muito que o Freysteinn e o Throst não se suportam e o confronto só ainda não ocorreu, porque o Gunnulf está constantemente a evitá-lo. O Freysteinn inveja e odeia o Throst, por cobiça da Halldora e rancor pela posição que o meu primo ocupa na liderança da frota e dos homens. Tu és apenas mais um pretexto para a provocação.

Agradeci pela proteção e pelo aviso de Krum, comovida com o seu cuidado. Eu compreendia perfeitamente a precariedade da minha situação. Mas como podia defender-me, se não passava de uma escrava? O uso declarado das minhas habilidades condenar-me-ia à morte. Ainda me interrogava por que Sigarr não avançara para acusar-me, quando eu usara a magia contra Arnorr. Para meu total assombro, o feiticeiro não se revelava interessado na minha desgraça. Parecia... curioso e até divertido com a minha presença na casa de Gunnulf.

Esse era apenas outro enigma a juntar aos demais. Cada dia, um novo sobressalto destruía o parco equilíbrio que, tão dolorosamente, eu me esforçava para atingir. A minha existência transformara-se numa dança alvoroçada sobre a ponta de um punhal e, mais dia menos dia, eu acabaria por escorregar e cair.

 

As Assembléias eram reuniões de homens livres, onde os crimes, contendas e agravos eram submetidos à consideração e ao julgamento dos senhores da terra. Na Aldeia de Grim, era Gunnulf quem as presidia. Em redor do líder juntavam-se os seus homens de confiança, para emitirem opinião. O povo podia assistir, mas só os interessados intervinham. O lesado apresentava a queixa, o acusado defendia-se, a assembléia decidia e o presidente tinha a palavra final. Parecia simples e justo, se fosse verdadeiramente isento.

Eu pouco sabia acerca das leis dos Vikings, mas assisti com interesse às questões apresentadas: uma dívida de jogo que não fora paga, porque o derrotado acusava o vencedor de fazer batota; uma camponesa que se esquecera de fechar a porta de casa e vira a galinha que preparara para o jantar a fugir nos dentes do cão do vizinho; uma manta roubada de um estendal, que fora encontrada à venda no mercado; uma troca de palavras, regada com cerveja, que punha em causa a honra de dois rivais... E outros tantos casos; uns bem divertidos, que arrancavam gargalhadas da assistência; outros bastante graves, que podiam colocar em risco a vida de um homem.

No geral, achei que Gunnulf fora justo nas resoluções e compreensivo nas penas que aplicara. Fiquei tão envolvida no desenrolar dos acontecimentos, que nem me apercebi de que exteriorizava demasiado as emoções. O meu entusiasmo traiu-me perante Mairwen, que não tardou a confrontar-me com a descoberta do meu claro entendimento da sua língua adotiva. A minha tia não teve dúvidas quanto à razão por que eu lho ocultara. A minha desconfiança forçou-a a uma limpeza da honra nórdica, que resultou em declarações surpreendentes, que mais uma vez provaram a perversidade e ironia do destino:

- Eu compreendo a tua revolta, Catelyn, mas, pelo menos até à próxima Primavera, terás de viver aqui, quer gostes ou não! Desconfiança, ressentimento e rancor só te trarão dissabores. Odeias os Vikings, porque atacaram o mundo onde te sentias protegida. Pois as mulheres desta terra sentem o mesmo agravo pelos homens da Grande Ilha!

”Arngrim, o meu senhor, era um comerciante, um homem inteligente que aumentou o legado do seu pai à custa de muito trabalho e esforço". Um dia, os Aliados da Grande Ilha não esperaram para perguntar-lhe se a frota que liderava era de guerra ou de comércio Dezenas de homens indefesos foram assassinados. Thorgrim morreu nessa sangrenta e estúpida batalha, ainda antes de o Bjorn nascer. Os poucos homens que regressaram à Terra Antiga trouxeram a morte no coração, e os anos que se seguiram desencadearam o conflito que tão bem conheces.

”O ódio não nos conduz a um porto seguro". Se dois desconhecidos ao invés de empunharem as espadas, parassem para conversar, talvez descobrissem que podiam ser amigos. Mas quando a razão sobrevêm, a terra já está manchada de sangue. Eu não pretendo justificar as ações dos homens da minha casa e desta terra. Só quero que tu entendas que um Homem é sempre um Homem, onde quer que nasça e cresça. No fundo, somos todos movidos por uma fome insaciável de poder, de conquista e vingança. Não é isso que também te move? Devotas o teu tempo a alimentar o ódio por aquela que destruiu o que tu tanto amavas. Essa determinação forçar-te-á a combatê-la, sem olhares a meios ou conseqüências. Se tu não conseguires reconquistar o que acreditas ser teu por direito, irás morrer tentando.

Eu escutei o discurso de Mairwen com o coração apertado. Conhecia bem os pormenores da batalha em questão, pois crescera a ouvir a descrição inflamada da luta com os poderosos e sanguinários Vikings, que resultara numa vitória esmagadora das forças aliadas. Só agora compreendia por que o triunfo fora tão fácil e igualmente o porquê de a minha mãe e de Berchan não tolerarem o relato. Os gigantes do Norte haviam sido massacrados só porque pertenciam ao mesmo povo que atacava esporadicamente as nossas fronteiras. Nesse dia, Lorde Garrick instigara um ódio profundo, que levava esta gente às nossas costas, em busca, não somente de riqueza, mas também de vingança. A recordação de Gunnulf, avançando para Aled de espada em punho, estava sempre presente na minha mente... Mas ficavam explicados o rancor e a determinação no seu olhar.

O Inverno chegara com uma força brutal. Chovia e nevava, de dia e de noite. Os dias eram cada vez mais curtos e escuros. O frio cortava os ossos e avermelhava-me o rosto. Anna deu-me um óleo pestilento para aplicar na pele e prestou pouco caso ao meu desconforto. Segundo ela, seria uma questão de tempo até que eu me acostumasse. Mas eu tinha a certeza de que jamais me habituaria a um clima tão rigoroso.

O ribeiro que alimentava a casa gelara. O trabalho nos campos terminara e todos os alimentos haviam sido armazenados e conservados para a estação que se adivinhava dura. Os animais com idade e peso foram abatidos, as peles retiradas e a carne salgada. Agora, a prioridade era a produção de roupas, mantas e velas para os barcos.

Mas o império de Gunnulf ia muito além da quinta onde eu vivia. Apesar de a Herdade de Grim ser a maior, com mais instalações e trabalhadores, o guerreiro era proprietário de mais sete quintas, administradas por homens livres, na sua maioria amigos e companheiros de armas, que pagavam com o seu trabalho e parte dos lucros. Poucos homens na Terra Antiga possuíam a sua própria propriedade. Throst e Freysteinn eram exceções. Gunnulf também herdara grande parte da frota de pesca e de guerra e as casas da aldeia. Era, de longe, muito mais rico do que o meu pai e tornava-se impressionante quando se percebia que não estava satisfeito. Como quase tudo o que o rodeava era seu, ele estava determinado a invadir outros reinos para conquistar novas terras.

A Aldeia de Grim, plantada à beira-mar, era essencialmente composta por casas de pescadores, os quais, na estação gelada, pouco mais podiam fazer do que remendar as redes e consertar os barcos. Nesses pequenos abrigos viviam as várias gerações da família, dos avós aos netos. Havia também na aldeia algumas casas de artesãos, uma grande ferraria, onde se trabalhava sem cessar, pois era necessário restaurar as armas dos guerreiros e fabricar outras novas, uma casa onde as peles dos animais recebiam um tratamento especial, outra onde se fabricava utensílios de madeira para uso doméstico e outra onde se moldava e cozia o barro. No enorme estaleiro junto do porto, muitos homens trabalhavam na construção e reparação dos majestosos navios. Uma coisa era certa: eu nunca vira um Nórdico de braços cruzados, aborrecido por não ter o que fazer.

Os Vikings eram um povo muito crente e devoto aos seus deuses, os quais estavam presentes, não só nas conversas do dia-a-dia, mas também fisicamente, em locais de culto que me causavam arrepios. As divindades eram tantas, que eu pensei que nunca conseguiria conhecê-las todas. Sobre cada uma contavam-se histórias fantásticas, umas bonitas e outras abomináveis. E, na prática, essas narrativas e a vontade dos deuses influenciavam cada gesto do povo. Dos muitos deuses destacavam-se quatro, cujos nomes eram repetidos sem cessar:

Odin, o pai dos deuses e o seu governante, era, sem dúvida, o mais respeitado. As suas histórias intrigavam-me, principalmente uma que relatava como se pregara com uma lança a uma árvore durante nove dias e noites, para adquirir o Conhecimento e desvendar os mistérios das Runas, a fim de transmiti-lo ao povo. As Runas eram os caracteres do alfabeto viking - um conjunto de traços verticais e horizontais, que os Nórdicos acreditavam possuir poderes mágicos. Mas Odin não era apenas o deus do saber e da poesia. Era também o deus da guerra. Os guerreiros adoravam-no, e era para o seu lado que sonhavam ir quando encontrassem a morte, combatendo ferozmente com o machado e a espada na mão. Eu divertia-me ao ouvi-los falar com luxúria das Valquírias, as guerreiras voluptuosas que os viriam buscar no último sopro de vida, para conduzi-los ao rei dos deuses que os aguardava no seu castelo, em Valhalla.

Thor era o deus trovão, que cavalgava os céus numa carruagem puxada por duas cabras gigantes; o defensor dos deuses e do povo; o detentor da força de vontade, cujo símbolo era o grande machado Mjollnir, que nunca falhava um alvo e regressava sempre à mão do seu senhor. Era a divindade mais querida do povo e, devido ao seu poder para controlar o mar e as tempestades, era também o guardião dos viajantes e dos aventureiros. Como um deus protetor, cumpridor e leal, Thor tornou-se simpático aos meus olhos.

Frey era o caprichoso deus da fertilidade. Tinha de estar satisfeito para que as colheitas fossem boas, os animais crescessem saudáveis, o peixe abundasse no mar e as famílias recebessem a bênção de uma descendência numerosa. Era um deus estranho, que se zangava na presença de armas. Eu acreditava que os Vikings deviam ter grande dificuldade em agradar-lhe.

 

Todavia, de todas as divindades e por razões evidentes, a minha favorita era Freya, deusa da concepção, do amor e da magia. Fisicamente, imaginava-a parecida com Ingrior, alta e linda, com longos cabelos louros e olhos azuis, seduzindo os guerreiros para garantir os seus favores.

Os templos vikings encontravam-se espalhados pela Terra Antiga. Tal como as habitações, eram casas sombrias e amplas, com uma fogueira central. No altar, uma grande figura de madeira com a representação do respectivo deus impunha um respeito silencioso e temeroso. As pessoas procuravam-nos com freqüência, em busca de conselhos e proteção. Eu tinha de admitir que, apesar de a religião me ser estranha, a magia era muito forte nesses locais e a energia fluía pelo ar de forma inebriante.

O mercado da Aldeia de Grim era um acontecimento sempre barulhento e excitante, onde as pessoas aproveitavam para trocar os excedentes por um ou outro utensílio há muito cobiçado, uma peça de roupa mais rica, um acessório especial de fabrico caseiro ou os produtos do espólio da última campanha. Nesse dia, muitos comerciantes vinham de longe, em trenós puxados por cães robustos, carregados com tecidos deslumbrantes, peles de animais e presas de morsa.

Anna costumava ir ao mercado com os criados, pois Signy não queria deixar o bebê por tanto tempo, e Halldora fazia questão de proclamar que aquele era um lugar pouco digno para uma mulher da sua classe. Apesar de ainda temer as multidões, eu fiquei entusiasmada quando a minha tia me convidou a acompanhá-la. Assim que aceitei, Halldora foi possuída por uma vontade avassaladora de juntar-se a nós e teimou tanto para que a cunhada também viesse, que acabou por vencê-la pelo cansaço.

A excursão começou por ser divertida. Eu nunca vira tanta gente no mesmo sítio. Em algumas ruas era impossível avançar sem ser a passo. Anna explicou que assim era, porque, neste dia, os trabalhadores das quintas faziam uma pausa nas suas tarefas e vinham fazer compras, visitar os amigos, ou simplesmente beber uma caneca de cerveja.

Enquanto Halldora se concentrava na satisfação da sua vaidade insaciável, eu mantinha-me atenta aos pormenores que alimentavam a minha curiosidade cultural. No ar pairava o cheiro forte da madeira queimada em casa, misturado com o odor da comida da primeira refeição do dia. Havia muitas crianças na rua, chocando contra os adultos nas suas incansáveis correrias, fazendo traquinices e até tentando roubar um queijo ou um bolo de um comerciante mais distraído. Em quase todas as portas repetia-se o mesmo: as raparigas ajudavam as mães, enquanto os rapazes exibiam ferozmente as suas habilidades na arte da guerra, diante dos amigos do pai. Os mais pequenitos usavam espadas de madeira, e os jovens, as armas verdadeiras, protegidas pelas bainhas. Pensei que seria impossível incutir o significado da palavra ”paz” no espírito desta gente. Eles já nasciam com o machado ao peito e a espada na mão.

Um dos gaiatos atirou a bola de pele com que brincava contra uma banca de pequenos utensílios de madeira e osso, derrubando-a com um aparato estrondoso. A dona, uma mulher grande como uma vaca, gritou tão alto, que mais parecia que lhe arrancavam as entranhas. Num piscar de olhos, agarrara o rapaz e sacudia-o por uma orelha. Da multidão que assistia divertida, surgiu outra mulher tão alta, gorda e corada com a primeira que, sem hesitação, lhe lançou as mãos ao pescoço. Engalfinharam-se como galos rivais, socando e sovando, puxando os cabelos e distribuindo pontapés e insultos. Foram necessários dois homens possantes para separá-las.

No meio da confusão, eu reparei que Halldora se apropriara de um bonito pente de osso e o enfiara disfarçadamente no bolso do bibe que lhe ornamentava o vestido. Fiquei tão indignada, que pensei denunciá-la a Anna. Halldora era irmã do homem mais rico da região. Não tinha a menor necessidade de roubar! Ela surpreendeu o meu olhar e percebeu que eu conhecia o seu segredo. Ameaçou-me de imediato passando a mão sobre o pescoço num gesto rápido e significativo Voltei-lhe as costas, rangendo os dentes para conter a raiva.

Tornara-se impossível avançarmos sem que antes desobstruíssem a passagem. Enquanto aguardávamos, eu cedi à incontrolável tentação de utilizar a força da mente para fazer com que o pente roubado deslizasse para fora do bolso de Halldora. A ladra não se deu conta, e o pente foi recuperado pela comerciante, deixando-me com um sorriso a bailar nos lábios.

 

Enquanto as minhas companheiras inspecionavam os padrões e as cores das mantas de lã e linho, eu reparei que não muito longe, num espaço aberto, se realizava um torneio de arco. Os participantes estavam muito entusiasmados e divertidos. O meu coração saltou ao reconhecer Throst entre eles. Instintivamente, escondi-me atrás de Signy. A jovem aproveitou para mostrar-me uma pequena manta que ficaria muito bem sobre Eric. Eu tentei sorrir e prestar-lhe atenção, mas os meus olhos desobedeciam-me e fugiam na direção do torneio.

Chegara a vez de Throst atirar. Em cheio no centro do alvo! Ele mudou de campo, mas a sua pontaria não piorou. A história repetiu-se até ao limite dos cinco alvos, colocados em posições diferentes. A sua eficácia foi premiada com palmadas nas costas e um corno cheio de cerveja fresca. Eu pedi por tudo para que ele não nos visse ou uma das mulheres o distinguisse por entre a multidão. Felizmente avançamos e mudamos de rua.

Eu não via Throst desde o dia em que ele partira da casa de Gunnulf, há mais de um mês. Já me esquecera de como o capitão era bonito, forte e o quanto me perturbava. Revê-lo fez-me mal. Trouxe-me à lembrança o calor dos seus braços, o ardor dos seus beijos e a força do seu corpo dentro do meu - coisas que eu tentava desesperadamente esquecer. Acariciei a pulseira que Tristan me oferecera e engoli em seco. Mesmo que pedisse perdão à memória do meu amor pelo resto da minha vida, não seria suficiente.

Fiquei abismada ao ouvir a voz de Ingrior chamando por Anna. E o meu assombro aumentou ao verificar que ela tinha uma banca onde vendia enfeites de madeira, cobre, osso e âmbar, de uma qualidade extraordinária: broches, pulseiras, anéis, colares... e ganchos de cabelo belíssimos, em tudo semelhantes ao que Edwin me oferecera. Estava tão encantada, que não resisti a segurar num deles. De imediato, Halldora bateu-me na mão. Fitei-a, indignada e magoada. Eu só estava a ver! Não era uma ladra como ela! Ingrior veio de imediato em meu auxílio:

- Não há necessidade disso, Halldora! Gostas, Pequena? Toma, ofereço-te. Sim, é para ti! Aceita!

Eu encontrei os seus olhos azuis e mal consegui esconder a emoção. O sorriso da irmã de Throst era tão franco, que não deixava dúvidas quanto à grandeza do seu coração. Retribuí-lhe o sorriso e devolvi-lhe o gancho, apesar de agradecida. Este não me serviria para nada, nesta terra selvagem.

- Se ela não o quer, eu fico com ele!

Halldora arrancou-me o gancho da mão e colocou-o nos seus cabelos, deixando-nos estupefatas. Os lábios de Ingrior estreitaram-se, mas não contrariou a futura esposa do irmão. Em vez disso, voltou-se para Signy e disfarçou a irritação:

- Já compraram muita coisa?

- Uma manta para o meu bebê. Queres vê-la? Instantes depois, Anna fazia a pergunta inevitável:

- Onde estão os teus irmãos? Não vieram contigo?

- Vieram, sim - respondeu Ingrior. - O Bjorn pediu ao Throst para participar no torneio dos arqueiros. Sabe como são as crianças...

- Eu vou até lá - cortou Halldora, corando de exaltação.

- Estou a morrer de saudades do meu amor! Signy, vem comigo!

Contrariada, Signy foi forçada a acompanhá-la. Uma mulher que passava solicitou a atenção de Anna, e duas clientes envolveram-se numa conversa animada com Ingrior. Eu fiquei absorta nos meus pensamentos, recordando a noite em que Tristan me entregara o gancho de Edwin e a sua pulseira. Então, sempre era verdade que o meu irmão mantinha contactos com os Nórdicos! Talvez estivesse a tentar emendar o destino, quando Gunnulf lançara o caos ao atacar Lorde Berry!

- Mas que surpresa! Como tens passado, Pequena?

Gelei. Throst estava ao meu lado! Eu só tinha de voltar o rosto para encará-lo. Detestei-me por sentir as faces arderem. Talvez, se o ignorasse, ele me deixasse em paz! Eu não estava de todo preparada para ser assimilada pelo entusiasmo de um Throst em ponto pequeno.

- Então, tu é que és a Pequena? Olá! O meu nome é Bjorn.

 

Fixei-o de queixo caído. As semelhanças eram surpreendentes! Se eu encontrasse este rapaz no meio de uma multidão, não teria dificuldade em reconhecê-lo como irmão de Throst e Ingrior. Que idade teria? Doze? Treze? Já era detentor de um físico invejável!

- Já te expliquei que a Pequena não pode falar e não percebe a nossa língua - replicou Throst num tom que pretendia severo, mas que soou divertido perante o entusiasmo do irmão.

- Não percebe? - repetiu Bjorn, sinceramente desapontado. Que pena! Eu queria que ela me contasse sobre a sua terra...

- Não tenhas pressa! - interrompeu o mais velho. - Terás tempo de sobra para conhecer a terra da Pequena. Pede ao Thor que, quando o momento chegar, só tenhas de prestar atenção à sua grande beleza.

O meu sobressalto devia ser evidente, pois Ingrior rodeou-me protetoramente com o braço e exclamou num tom amargo:

- Foi uma maldade trazê-la para aqui, Throst! Olha como está magra e assustada! Eu tenho a certeza de que a Halldora está a fazer-lhe a vida negra!

O olhar do irmão estreitou-se, e a sua voz soou fria:

- Quantas vezes terei de explicar-te, Ingrior? Se eu a deixasse para trás, os outros acabariam por matá-la!

O esgar que Ingrior lhe devolveu fez os meus sentidos tinirem alarmados. Era óbvio que esta justificação não a satisfazia. Suspirou e tomou o meu rosto entre as suas mãos, murmurando:

- Ela é tão bonita! Os seus traços são perfeitos, tão delicados...

- Ela é mais do que bonita! - corrigiu Bjorn, entusiasmado.

- É linda!

O rapaz tentou tocar-me nos cabelos, mas a irmã sacudiu-o com uma palmada. Ele voltou-se para o mais velho em busca de apoio:

- Não concordas, Throst? O irmão não conteve o riso.

- Sim... suponho que sim! Para quem gosta de peixe miúdo, não está mal!

Senti vontade de esmurrá-lo, de dar-lhe um pontapé entre as pernas, de furar-lhe os olhos, de... Peixe miúdo? Quando se servira de mim, o brutamontes não reclamara do meu tamanho nem da minha magreza! Enquanto me forçava a engolir a afronta, Bjorn afirmava:

- Eu gosto dela! Por que não ma deste, em vez de a ofereceres à emproada da Halldora?

Ingrior sacudiu-o, fingindo-se zangada apesar de estar morta de riso.

- Estou cansada de avisar-te de que não deves chamar nomes à Halldora! Para que querias tu a Pequena, afinal?

A resposta dele foi imediata:

- Para que quer um homem uma mulher? Throst não conteve uma gargalhada.

- Olhem para isto! A formiguinha já tem catarro!

Ingrior deu outra palmada no braço de Bjorn, ripostando severamente:

- Deixa-te de parvoíces! Ainda és um bebê!

- Não sou, não! - contrapôs o ultrajado rapaz, enchendo o peito.

- Eu sou um homem!

- Basta! - Desta vez Ingrior parecia mesmo zangada. - Com toda esta algazarra., a Pequena vai pensar que nós estamos a troçar dela. Pobrezinha! Eu queria tanto poder ajudá-la!

- Traga-a para junto de nós, Throst! - suplicou Bjorn. - Por favor...

- O que se passa aqui? - indagou Anna, aproximando-se com um largo sorriso. - Olá, Bjorn! Cresceste muito desde a última vez que eu te vi! Já estás um homem!

- Vêem!? - exclamou ele triunfante, corando de satisfação.

- Eu não vos disse?

Quando eu pensava que eles se tinham esquecido de mim, o pequeno insolente deu mais um ar da sua graça:

 

- Eu estava a dizer ao Throst que não gostei que ele tivesse oferecido a Pequena à Halldora. Eu quero casar-me com ela!

As suas palavras estavam carregadas de convicção. Ninguém foi capaz de argumentar. A voz estridente de Halldora quebrou o nosso pasmo. Olhei para o lado e vi a insuportável criatura saltar para o pescoço de Throst e procurar-lhe os lábios.

- Por onde tens andado, meu amor, que não apareceste para visitar-me? - ronronou por entre beijos desprovidos de pudor.

- Queres enlouquecer-me de saudades?

Throst afastou-a docemente, tentando quebrar-lhe o entusiasmo.

- Halldora... Toda a Terra Antiga está a olhar para nós!

- E depois? - objetou ela, zangada.. - Não vamos casar? Ou tu já não gostas de mim?

O seu beicinho foi suficiente para que o noivo voltasse a abraçá-la. Eu estremeci sem querer e fui forçada a desviar o rosto para não explodir de raiva. Anna avisou que nós devíamos regressar, e Ingrior despediu-se pesarosamente. Bjorn piorou o meu embaraço ao segurar na minha mão e levá-la aos seus lábios. Halldora não lhe perdoou.

- Throst, o teu irmão está a beijar a escrava! Como podes permitir tal coisa?

O noivo franziu o sobrolho, mas, em vez de lhe responder, voltou-se para Anna e apelou:

- Venham! Eu acompanho-as a casa.

Assim que chegamos a casa, eu fui ajudar Anna a organizar a refeição, e Signy correu para o filho, que choramingava esfomeado ao colo de uma escrava. Halldora ficou no exterior, a despedir-se do noivo. Devia estar furiosa, pois Throst viera todo o caminho a conversar com Anna sobre a herdade e a preparação para o Inverno rigoroso; coisas insignificantes para a sua fogosa noiva, que fazia questão de declarar que não tinha necessidade de aprender o trabalho doméstico, já que estaria sempre rodeada de escravos que a serviriam. E não precisava de aprender a dar ordens! Nessa arte, já era especialista! No entanto, o que mais a irritara, fora o cuidado de Throst para comigo. Até o meu coração saltara quando ele perguntara se Anna sabia por que eu emagrecera tanto. Estaria doente ou a necessitar de algum cuidado? Ele providenciaria tudo o que fosse necessário!

A minha tia não podia confiar-lhe a verdadeira razão da minha fraqueza, nem falar-lhe do meu sofrimento e agonia. Desde que iniciara o tratamento, eu praticamente não conseguia comer e já só tinha pele sobre os ossos. Bebia leite e hidromel para manter as forças e nada mais. Mas sentia os resultados positivos. Aos poucos, a minha garganta sarava. Além disso, o aspecto físico não me incomodava. Eu não tinha ninguém a quem agradar e não me sentia fraca. O meu espírito estava forte, e toda a energia, canalizada pára o cumprimento da missão que abraçara. Treinava de dia e de noite e realizava proezas que sempre considerara fora do meu alcance.

Halldora entrou desembestada. A despedida não fora amistosa.

- O Throst declinou o meu convite para almoçar! - respondeu frustrada ao olhar interrogativo da madrasta. - Pensei que podíamos passear à tarde...

- O Throst tem muito trabalho à sua espera na quinta - atalhou Anna. - Além disso, ainda tem de ajudar a irmã...

- A Ingrior é a mulher mais estúpida que existe! - O ressentimento de Halldora estalava-lhe na voz. - Imaginem! Preferir misturar-se com as feirantes, a ser a senhora da Terra Antiga...

- Chega, Halldora! - O corte da madrasta foi quase violento.

- Sabes bem que o Gunnulf não admite esse assunto nesta casa!

O silêncio tombou sobre nós como uma mortalha. A minha mente fervilhava em busca de uma solução para o mistério que circundava a questão que Halldora se atrevera a aflorar. Como justificar a agitação de Gunnulf e Ingrior quando partilhavam o mesmo espaço, o ardor masculino e a repulsa da jovem? A insinuação de Halldora era clara: Gunnulf cortejara a prima e fora rejeitado! Ingrior preferira manter-se fiel a um amor perdido do que aceitar toda a riqueza que ele tinha para lhe oferecer. Eu imaginava os danos que isso causara no orgulho do chefe viking.

 

- O meu pente...

O berro estridente de Halldora arrancou-me do devaneio. O meu coração sofreu um sobressalto, porque, ao contrário das restantes mulheres, eu sabia do que ela falava.

- Levaste o teu pente para o mercado? - perguntou Signy, incrédula.

- Não! - A outra revirava o bolso do bibe, procurando por um buraco na costura por onde o pente pudesse ter caído. - Foi... Foi o Throst mo deu!

- Quando foi que o Throst te deu um pente? Eu não vi...

- Estás a duvidar de mim? - A voz de Halldora trovejou num timbre idêntico ao de Gunnulf, e Signy encolheu-se. - O Throst ofereceu-me um lindo pente de osso e eu guardei-o no bibe. O bolso não está roto... Roubaram-mo de certeza!

O meu coração ameaçou rebentar-me o peito. Senti-me pequena e indefesa quando vi a possante Viking arremeter para mim com a ferocidade de um touro bravo.

- E eu sei quem foi! Vede como ela está vermelha! Devolve-me o pente, sua ladra invejosa!

Noutros tempos, Catelyn McGraw teria investido contra a ignóbil criatura, sem se importar com o seu tamanho, e ter-lhe-ia furado os olhos. Mas eu não estava em condições de enfrentar Halldora, e o tempo ensinara-me que a impetuosidade só me trazia dissabores. Fiquei onde estava. Eu era culpada, sim, mas de ter devolvido o pente à sua legítima dona!

Anna impediu a enteada de agredir-me e enfrentou-a com um ar severo.

- Tu estás a fazer uma acusação muito grave! Tens a certeza do que dizes?

- Está claro que tenho! Só pode ter sido a escrava! Ela foi a única que viu o pente!

Anna encarou-me e não precisou de questionar-me.

- A Pequena não te tirou coisa nenhuma, Halldora.

- Eu quero provas! Vou revistar as suas coisas...

- Ela ainda não saiu do meu lado.

- É verdade! - confirmou Signy. - A Pequena não pode ter escondido o teu pente.

- Então, tem-no com ela! Deve estar na sua roupa.

- Acalma-te, Halldora! - ordenou Anna, irritada. - A Pequena não é uma ladra!

- Pois que se dispa e prove!

A voz da irmã de Gunnulf estava tão incendiada quanto o seu rosto e o seu olhar. Como podia uma jovem tão afortunada ser tão detestável, execrável, repugnante, malvada...?

- Faz o que a Halldora te pede, Pequena - mandou Anna mansamente. - Tira a roupa.

Fitei-a, surpreendida e magoada. Se não duvidava da minha sinceridade, por que me submetia a tamanha humilhação?

- Estais a ver? Não obedece, porque não pode! É uma ladra!

O meu sangue ferveu e só me segurei a custo. Enfrentei o olhar triunfante da tirana e comecei a despir-me, até ficar completamente nua, exposta ao frio e à vergonha. Sem se importar por estarmos em público, Anna cobriu-me com uma manta quente e macia, apertou-me nos seus braços e acariciou-me os cabelos. Eu tinha os olhos cheios de lágrimas que não caíam e doía-me a cabeça. Aos meus pés, Halldora revolvia ferozmente as simples roupas domésticas, procurando algo que não podia encontrar. Por fim, foi forçada a admitir a derrota.

- Acho que deves um pedido de desculpa à Pequena! - declarou Anna friamente. - O que tu fizeste foi muito cruel!

Halldora esquartejou-nos com o seu olhar, empinou o nariz e cuspiu o ódio nas palavras:

- Eu, pedir desculpa a uma escrava? Eu sou irmã de Gunnulf, filha de Arngrim, neta de Eric, bisneta de Grim, senhor da Terra Antiga, e noiva de Throst, filho de Thorgrim! Estou ligada a todos os líderes desta terra. Jamais me rebaixarei perante essa... ”estrangeira”! - Era evidente que o insulto também se destinava a atingir a madrasta. - Além disso, não estou convencida! Essa ranhosa deve ter deixado cair o pente pelo caminho, para ir buscá-lo mais tarde.

Anna estremeceu. Eu nunca a sentira tão irada. Contudo, a sua voz soou gélida:

 

- Talvez desejes fazer o caminho de volta à aldeia para procurares o pente, Halldora! Assim, poderás comprar um, para provares que tens razão.

Se o olhar da enteada matasse, Anna teria caído fulminada.

- O que é que estás a insinuar?

- Eu não estou a insinuar nada, querida! - A minha tia tinha todas as almas da casa suspensas nas suas palavras. - Mas, assim que estiver com o Throst, não deixarei de manifestar-lhe o meu pesar por tu teres perdido o seu presente debaixo do meu nariz.

Halldora fez-se subitamente pálida. Parecia que só agora compreendia que construíra a sua mentira em cima de um monte de palha, num dia de vento forte. Bastava uma palavra de Throst sobre o pente que nunca lhe oferecera, para que fosse desmascarada. Com um rugido enraivecido, rodou nos calcanhares e saiu, batendo com a porta.

Ninguém voltou a falar do pente. Penso mesmo que Anna nunca esclareceu esse assunto com Throst. Todos tinham questões mais importantes às quais atender do que os caprichos de Halldora. Mas havia duas pessoas que não podiam esquecer o incidente. Uma era a própria Halldora, que, a partir desse dia, não mais se aproximou de mim. A outra... A outra era eu!

Eu sentia uma sensação de desconforto sempre que Halldora estava presente. Sabia que ela acirrava Gunnulf contra mim. Via o olhar feroz do gigante estudando os meus gestos, como se só esperasse por um pequeno deslize para cortar-me a garganta. Outro homem que me causava arrepios era Freysteinn. O bárbaro não se esquecera da afronta que sofrera. Sempre que freqüentava a casa do chefe, eu fugia para junto de Anna. Agora tornara-se mais fácil, porque, depois da história do pente, que me desvinculara da tutela de Halldora, a minha tia autorizara-me a dormir junto dela. Eu repousava no chão, entre mantas de pele e lã, mas não me importava. Seria preferível dormir ao relento, a continuar vulnerável junto das escravas.

Não tornei a ver Sigarr. A sua propriedade ficava longe do rebuliço das aldeias, no interior da floresta. Eu horrorizava-me com as histórias contadas sobre o feiticeiro, quando os homens se reuniam à mesa de Gunnulf. Os seus feitos em batalha eram dignos de ser eternizados em poemas negros. Ele não tinha vocação para guerreiro, apesar de saber utilizar a espada quando necessário, pois o vigor da juventude ainda lho permitia. O seu trabalho era diferente! Curava os feridos e os doentes com uma eficácia inigualável. Quanto aos inimigos, já lhe conheciam a fama. Os guerreiros juravam que o bruxo era capaz de paralisar um homem, quebrar-lhe e roubar-lhe a vontade, só com um olhar. Quando a mente do adversário era demasiado forte para que pudesse usurpar-lhe as informações que desejava, ele sangrava-o e banhava-se com o sangue. Se isso não lhe trouxesse a Visão, esventrava a vítima e lia-lhe nas entranhas os planos ocultos.

Gunnulf gostava especialmente de recordar uma vez em que, diante da perspectiva de uma derrota iminente, eles haviam capturado um inimigo, no qual Sigarr usara as suas habilidades. Depois, cozinhara os órgãos do infeliz e dera-os a comer aos guerreiros, antes de estes partirem para a batalha. Se os homens sabiam do que se alimentavam, nunca foi mencionado. O fato enaltecido era a inércia encontrada ao enfrentarem uma força muito maior e mais poderosa. A derrota inevitável transformara-se numa vitória avassaladora.

Sigarr era altamente considerado e ninguém se atrevia a contestar os seus modos estranhos. Na sua casa não morava uma única mulher. Rodeava-se de rapazes novos - escravos e filhos de aldeões de classe inferior, oferecidos como pagamento por qualquer tarefa realizada. Não os tratava mal. Demorei algum tempo a compreender o que lhes fazia e, quando finalmente percebi, senti vontade de vomitar. Porém, nunca um dos rapazes se queixara do seu senhor e toda a Terra Antiga parecia tolerar a aberração.

Não mais deixei de pensar nas revelações de Anna sobre a batalha que opusera os Vikings aos Aliados da Grande Ilha, como se nesse acidente grosseiro da história residisse a solução para todos os enigmas que me atormentavam. Até que ponto eram os Homens donos da sua sorte? Poderia a morte de Aled ter sido evitada? Ou teria Lorde Garrick condenado o seu primogênito, quando atacara a frota de Arngrim? Mas, se a sede de vingança de Gunnulf não o tivesse levado à Enseada da Fortaleza, não estaria Aled destinado a morrer na lâmina do guerreiro-urso, num outro dia, condenado pela maldição que pendia sobre nós? Estariam os Vikings a ser manipulados pelo sortilégio de Myrna? Ou existiria uma vontade ainda mais forte que já ditara a minha viagem às Terras do Norte, antes de a bruxa aparecer?

Quanto mais descobria, mais me convencia de que o que estava a acontecer não podia ser uma simples coincidência. A maldição fora lançada muito depois da morte de Thorgrim, portanto o meu destino e o de Throst estavam ligados antes de o seu rosto me ser revelado.

Por que salvara ele a filha do carrasco do seu pai, quando toda a lógica o impeliria a matar-me? Como podia eu justificar o meu encontro com Mairwen sem ficar louca? E as misteriosas declarações do líder dos Lobos Cinzentos? Onde estava a ajuda que a minha avó me prometera?

Nada fazia sentido... E as perguntas amontoavam-se na minha mente, sem resposta.

A pequena coruja branca chegou quando as sombras se instalaram na região. Dias intermináveis de bruma seguiam-se a noites geladas de intensa queda de neve e a outros dias de cegueira. O pássaro acomodou-se sobre uma das vigas de madeira que sustinham o telhado de colmo e ali ficou, observando a vida da família do senhor da Terra Antiga, com os seus enormes olhos amarelos e brilhantes.

Certa noite, Gunnulf recebeu os seus homens de confiança. Throst estava inevitavelmente presente. Eu mantive-me afastada, sem largar Anna por um instante. Além das escravas, só Halldora se pavoneava em redor da grande mesa, atiçando o desejo do noivo e a cobiça e a raiva de Freysteinn. Ela sabia que o jovem guerreiro-lobo a desejava e o quanto odiava Throst por sua causa, mas o fato parecia diverti-la. Todos os seus movimentos e palavras eram intencionais, para piorar a situação. Despertar o ciúme de Throst revelava-se uma das suas obsessões.

A festa estava animada quando a coruja branca fez algo inesperado. Desceu a pique do seu poleiro e sobrevoou a mesa, soltando pios estridentes. Halldora assustou-se e desatou num berreiro histérico, que só cessou quando Gunnulf perdeu a paciência e a mandou calar.

- Mas, mano - argumentou ela, alvoroçada -, o pássaro tentou atacar-nos! É perigoso! Temos um bebê na casa...

- Não digas asneiras! - cortou Gunnulf, impaciente. - Há semanas que o pássaro está ali. Deve ter avistado um rato e tentou a sua sorte.

Entretanto, a coruja regressara à viga e entretinha-se a limpar as penas, como se desdenhasse da comoção que provocara. Eu senti dó do pequeno animal. Ele condenara-se ao despertar o ódio caprichoso de Halldora.

- Mata-o, Gunnulf! - suplicou ela, sem a menor intenção de desistir. - É melhor!

- Não me aborreças, rapariga! - ripostou o irmão, num tom que não admitia contestação. - O pássaro é bom para caçar os ratos!

Pensei que o assunto estivesse encerrado, mas subestimei a crueldade da jovem. Halldora correu a buscar um arco e flechas e dirigiu-se ao noivo, premiando-o com o seu olhar sedutor e miando na voz que o derretia:

- Por favor, Throst! Eu tenho medo daquele bicho nojento! Mata-o para mim!

Eu teria gritado se pudesse. Dei um passo em frente, mas Anna puxou-me para si com um estirão violento que me imobilizou. Mesmo assim, atraí a atenção de Throst e supliquei-lhe com o olhar. Halldora sorriu maldosamente, atenta à minha reação, e murmurou-lhe algo ao ouvido. O noivo ergueu-se e segurou no arco, colocou a flecha e esticou a corda. Eu já o vira atirar e sabia que ele não falharia. Como era capaz de semelhante covardia, só para atender a um capricho daquela miserável? Até Gunnulf se apiedara da pobre criatura! Olhei para a coruja num apelo desesperado: ”Foge! Por favor, foge!”

A flecha assobiou. Eu virei o rosto, sem coragem para enfrentar a visão do pequeno animal trespassado pelo meio, pingando sangue para o chão, enquanto as minúsculas penas brancas, tingidas de vermelho, pairavam sobre o ar quente da fogueira.

 

- Falhaste de propósito!

A acusação irada de Halldora forçou-me a abrir os olhos. E mal pude acreditar no que via. A flecha acertara a um palmo do pássaro, mas este não se movera. Continuava a limpar a plumagem, impávida e serenamente, como se nada se tivesse passado.

- Olhai! - gargalhou Arnorr. - O atrevido não tem amor à vida! Enquanto a noiva o fustigava com a sua indignação, Throst fitou-me e percebi-lhe um tímido sorriso. Por fim, encarou a tirana e justificou-se:

- Desculpa, querida! Parece que a destreza me falhou!

As gargalhadas rodearam a mesa. Todos sabiam que, se quisesse, Throst seria capaz de acertar no pássaro, mesmo com os olhos vendados. Defraudada, Halldora cuspiu o veneno que lhe fervilhava no sangue:

- Acho que não é apenas no arco que a tua destreza anda a falhar! Silêncio total. Até as escravas calaram a sua alegre algazarra.

O rosto de Throst endureceu e ficou rubro. Os seus olhos adquiriram uma cor que eu conhecia bem. Vira-a no dia em que ele enfrentara o guerreiro na ilha, para me salvar. Do pasmo geral, Freysteinn ergueu-se e agarrou no arco.

- Eu mato a coruja para ti, Halldora!

Ainda as suas palavras ecoavam no ar e já o pequeno animal voara pela chaminé, como se soubesse que Freysteinn não possuía a mesma generosidade de Throst.

- Parem de falar de pássaros! - rugiu Gunnulf. - Sai daqui, Halldora! Estás a incomodar-nos! Sentem-se homens! Sentem-se!

Freysteinn e Throst mediam forças com o olhar. Halldora virou-lhes as costas, com um sorriso maldoso bailando nos lábios. Aquela birra nada tivera a ver com a coruja. O seu único objetivo fora inflamar a relação dos dois rivais. E conseguira-o!

Acordei antes das escravas, com a garganta colada devido à sede. Saltei da cama e espevitei o lume que morria na fogueira. Em breve, todos acordariam e pediriam água quente. Eu tinha de recolher neve para encher o grande caldeirão de ferro. Agarrei na tina de madeira e saí para a rua, movendo-me com dificuldade. Estava a perder a força! Devia esforçar-me por comer, apesar de as dores serem atrozes sempre que me atrevia, ou não viveria até enfrentar Myrna.

Principiara a recolher a neve quando fui alertada por um movimento. Voltei-me assustada, temendo encontrar Freysteinn. O meu coração falhou uma batida ao ver Throst, que se ajoelhava ao meu lado e começava a ajudar-me.

- Como esperas carregar com a tina cheia, se mal podes com ela vazia, pequena tonta? - ralhou numa voz doce que me arrepiou da cabeça aos pés. - Olha para ti! Estás a tremer! Pára já com isso e vai para dentro. Eu farei o resto...

Não perceberia ele que eu só tremia porque a sua presença me perturbava? Continuei obstinada, negando-me a obedecer-lhe.

- Pára!

Fui forçada a enfrentá-lo quando as suas mãos agarraram as minhas. Começou a esfregá-las energicamente, resmungando de mansinho:

- Estás gelada, sua teimosa! Eu não te trouxe para aqui para trabalhares! Por que insistes? E não comes nada! Vais acabar doente. Eu já mal te reconheço! Onde está a menina cheia de garra que me deu tantas dores de cabeça?

Fiquei presa ao seu olhar brilhante, tão lindo como o céu de Verão da terra que me viu nascer. Através dele, a luz da sua alma chamejava como um sol. Throst era um homem bom... Um dos melhores! Não conseguiria odiá-lo, mesmo que me esforçasse. E se me esforçara!

Throst parou de esfregar-me as mãos quando as sentiu quentes, mas não me largou. Os seus dedos moveram-se sobre a minha pele numa carícia. Eu corei, diante da mensagem declarada no seu rosto. Tinha de afastar-me. E rápido!

Curiosamente, foi ele quem se desviou, suspirando longamente enquanto murmurava:

- Sei que tu pensas que eu sou um monstro sem coração! Deves odiar-me...

 

Os nossos dedos enlaçaram-se, num gesto inconsciente que me surpreendeu. Neguei com a cabeça, enquanto os meus olhos replicavam: ”Não, eu não acho que tu és um monstro. E não te odeio! Não te odeio...” E diziam mais; tanto mais que ele denunciou o pasmo, antes de retrucar:

- Tu percebeste tudo o que eu disse, não é verdade? Tu já entendes a minha língua?

Fui incapaz de mentir-lhe, nesse momento em que tudo era intenso, quente, doce e perfeito. Confirmei e recebi um sorriso de satisfação. Antes que pudesse reagir, já Throst me afagava, o pescoço.

- E falar? Podes falar?

A sua ânsia declarava a inocência da carícia. Neguei com a cabeça, perturbada pelo contacto. O seu rosto entristeceu, e a sua mão regressou às minhas.

- É pena! Gostava que pudéssemos conversar! Desejo saber o teu nome... tanto, que te ouço a murmurá-lo nos meus sonhos. Mas, quando acordo, não consigo recordar-me...

Eu estava tão transtornada, que, quando dei por mim, já deslizava os dedos pela barba curta e suave que lhe enfeitava o rosto. Throst fechou os olhos e pressionou a face contra a palma da minha mão. Os seus lábios murmuraram uma prece a Thor e, quando me encarou, já não havia inocência na sua expressão. A sua mão regressou ao meu pescoço, atraindo-me para mais perto. Eu queria fugir... Não! Eu não queria fugir!

Esperei pelo contacto quente dos seus lábios, com o coração a martelar o peito. Então, por cima de nós, um pio estridente agitou o ar fresco da manhã. Reagimos ao mesmo tempo, recuando com igual pressa. Eu corri aos tropeções para casa, enterrando as botas na neve. A coruja acompanhou-me, voando baixo sobre a minha cabeça. No momento em que ia empurrar a porta, Gunnulf surgiu à minha frente, com o semblante enraivecido com que sempre despertava. Passei por ele, forçando-me a manter a postura. Gunnulf não podia saber... Nunca!

A pequena coruja desceu pela chaminé e pousou no seu poleiro. Acenei-lhe um agradecimento. Se não fosse a sua intervenção, Throst ter-me-ia beijado, e eu corresponderia com todo o ardor. Gunnulf iria surpreender-nos e acusaria o primo de quebrar a palavra dada. Já conhecia o suficiente acerca desta cultura bárbara, para saber que disto resultaria um combate até à morte. E eu não tinha ilusões! Throst era um excelente guerreiro, mas não podia vencer Gunnulf. Nenhum homem podia! Ele era o guerreiro-urso.

 

Centenas de pessoas chegavam, vindas de todas as direções. Anna estava tão atarefada, que mal conseguia explicar-me o que se passava.! Ia haver uma grande festa para festejar o fim do Inverno; um ritual sagrado, como os que existiam na Grande Ilha. As pessoas comeriam e beberiam até não poderem mais, trocariam prendas com os amigos,! sacrificariam animais aos deuses e, no final, fariam uma romaria até à praia, onde os barcos que partiriam na campanha do próximo Verão seriam abençoados.

Todos trabalhavam na preparação das iguarias, na organização dos eventos e na montagem dos abrigos que acolheriam os visitantes. Halldora recebia quem chegava e distribuía atenções pelos jovens guerreiros, que se babavam diante da solteira mais cobiçada da região. Throst não sabia que a noiva namoricava abertamente com outros homens, pois partira com Krum e Arnorr, a fim de prepararem a frota para o grande encerramento.

Bjorn visitara a casa de Gunnulf, mas por tão pouco tempo, que eu não chegara a vê-lo. Ingrior explicou-me que o irmão estava ao cuidado de uma ”família adotiva” e que era junto desta que iria passar estes dias. Eu já sabia o que isso significava. Mal as crianças vikings aprendiam a falar e a andar, os adultos atribuíam-lhes tarefas simples, como tomar conta dos gansos e das galinhas. Cedo, os rapazes eram iniciados na arte da guerra, pelos pais e irmãos. Mais tarde, saíam de casa e iam viver com outra família, parentes ou não, para aprenderem a desvencilhar-se sozinhos e treinarem novas técnicas de combate. A família que acolhera Bjorn tratava-o como um verdadeiro filho, e Ingrior estava muito satisfeita com a evolução do irmão.

A expectativa de conhecer o filho de Ingrior, que se revelara meu primo, foi gorada. Fiquei intrigada ao verificar que, apesar de ser uma mãe dedicada, ela preferira deixar o menino ao cuidado das criadas da sua casa, do que trazê-lo para junto da avó e dos tios. E Anna também não reclamava da ausência do neto! Isto só podia estar relacionado com o mistério que envolvia Gunnulf e Ingrior! Porém, eu tinha de sufocar a curiosidade, porque não me atrevia a questionar ninguém acerca das minhas suspeitas.

Durante dias vivi dentro de um sonho e, pela primeira vez, não me senti perdida nesta terra estranha. Envolvida pela simpatia do povo viking, observei e escutei, aproveitando para conhecê-los melhor. À noite, havia festa em todas as casas, com os familiares e amigos. A herdade de Gunnulf estava cheia, e os guerreiros, as suas esposas e filhos misturavam-se com grande alegria. Montavam-se tendas em redor da casa e contavam-se histórias de grandes feitos de homens, deuses, criaturas malditas e encantadas, elfos, gigantes e dragões.

O relato mais apreciado era o de uma experiência vivida na última campanha. A assistência arregalou os olhos ao escutar um guerreiro narrar a tempestade maldita que se abatera sobre o barco onde viajava de regresso a casa. Quando ele e os seus companheiros já temiam encontrar a morte nas águas geladas ou no estômago de um monstro marinho, eis que o próprio Thor viera em auxílio do seu povo, manifestando-se na proa do navio sob a forma de um grande relâmpago azul, que ficara suspenso no ar como que prisioneiro de uma mão gigante. O homem coloriu a história, tornando-a quase irreconhecível. Um Skald, um jovem talentoso que seria chamado bardo na minha terra, compôs uma canção para perpetuar a aventura.

Escutei extasiada, como se não tivesse vivido a situação na carne. Arrepiei-me quando o guerreiro descreveu como Thor lhes salvara as vidas, limpando o céu e o mar de quaisquer vestígios de tormenta. Eu ainda não percebera que força me movera naquela noite. Mas, com ajuda divina ou sem ela, o fato é que me transcendera. Felizmente, a força maléfica que quase nos perdera não voltara a manifestar-se. Talvez o sortilégio não fosse destinado ao barco e este só tivesse sido apanhado por infortúnio! Quem poderia desejar a morte destes guerreiros, se eram estimados e idolatrados por todos os companheiros?

As noites terminavam invariavelmente com corpos empilhados pelo chão da casa, dormindo a sono solto, ao sabor de grandes bebedeiras.

O ressonar dos homens era tão forte que, por vezes, interrogava-me como é que a estrutura de madeira resistia. Até a pequena coruja desaparecera, afugentada pela confusão. Eu imaginava que ela se tivesse refugiado no celeiro e tê-la-ia seguido com agrado, para desfrutar de um sono tranqüilo, se não temesse que Freysteinn ou algum dos outros me molestasse. Felizmente, o cansaço acabava sempre por vencer e eu adormecia na segurança da presença de Anna.

De dia, assistia aos jogos presididos por Gunnulf. Throst e os companheiros já haviam regressado e participavam entusiasticamente nos 9 torneios. Pude observar a destreza dos homens com a espada, no lançamento do dardo, com o arco e na luta corpo a corpo. A habilidade dos guerreiros-lobo era indiscutível e apenas superada pelos dois senhores da terra. Durante uma breve pausa, Krum contou-me que nem todos se encontravam ali para se divertir. Muitos queriam revelar-se aos olhos do líder e conquistar a honra de conduzir os seus barcos durante a campanha do próximo Verão.

O ponto alto da luta corpo a corpo deu-se quanto Gunnulf desafiou Throst. A palavra passou de boca em boca, e as pessoas correram para assistir. Os meus ouvidos apanhavam pedaços de informação, e os olhos não perdiam pitada. Throst crescera na casa do tio, e o seu tutor fora o próprio Gunnulf. Por conseqüência, Throst nunca conseguira vencer o primo.

Fiquei a observar, com a respiração suspensa, enquanto os dois se batiam. Os seus corpos jovens, fortes e perfeitos, arrancavam suspiros às raparigas em idade casadoira. Pelo menos, isto era igual em qualquer cultura! Entre socos, pontapés e encontrões, tudo era permitido, exceto o uso de armas. O chão pisoteado transformou-se num lamaçal. As peles brancas depressa ficaram castanhas, rasgadas aqui e além pelo vermelho-vivo de um corte que sangrava. Os olhos dos adversários brilhavam. Os seus golpes eram violentos e impiedosos. Como podia o povo sugerir que esta era uma luta amistosa, uma simples brincadeira?

Pasmei ao ver o guerreiro-urso erguer o corpo de Throst acima da cabeça, como se este não tivesse peso. Depois, arremessou-o para o chão e sentou-se em cima das suas costas, recebendo os aplausos da assistência. Isso poderia ser uma grande humilhação, se no final Gunnulf não estendesse a mão ao primo e o presenteasse com um abraço apertado.

- Estás cada ano melhor, Throst! - elogiou bem alto para que todos ouvissem. - No futuro, terei de ter cuidado contigo!

Nestas circunstâncias, as palavras do líder representavam o maior dos elogios. Os primos abandonaram o recinto de combate e foram felicitados pelos amigos e presenteados com chifres cheios de cerveja fresca.

Eu permaneci afastada, mas algumas raparigas solícitas correram entusiasmadas ao encontro dos heróis, carregando água para lavar as suas feridas. Mal acreditei quando Throst me chamou. Porém, o apelo repetiu-se e tive de forçar as pernas a moverem-se. Ao examiná-lo, verifiquei que tinha um corte feio no canto da boca que não parava de sangrar e vários lenhos no corpo, causados não só pelos golpes rudes de Gunnulf, mas também por pedras e pedaços de madeira que se escondiam na lama. As raparigas pareciam mais interessadas em apalpar-lhe as carnes do que em limpar-lhe as feridas, por isso afastei-as com um gesto severo e assumi a tarefa. Throst chamou-me a atenção, apelando com um sorriso:

- Muitos homens irão ferir-se com gravidade durante os torneios. Quero que cuides deles com o mesmo cuidado com que cuidas de mim. Farás isso, Pequena?

Confirmei com a cabeça e fiquei presa ao seu olhar, deslumbrada pela luz brilhante que refletia o meu rosto corado. O sorriso de Throst foi esmorecendo até desaparecer. Eu sabia o que lhe ia na mente, porque estava a ser assaltada pelas mesmas lembranças.

- Eu vinha ajudar-te! - A voz estridente de Halldora fez-me saltar para trás. - Mas vejo que já não precisas de assistência!

A sua ironia deixou-me gelada. Estremeci ao ver a raiva subir às faces de Throst quando encarou a namorada.

- Terias chegado a tempo... se não estivesses tão ocupada com o teu amigo!

Era a primeira vez que o ouvia revidar com aspereza, movido pelo ciúme. Também se apercebera de que a noiva passara a manhã esvoaçando em redor de Freysteinn. A situação estava a ficar feia.

- Talvez a Halldora prefira a companhia de um vencedor, para variar! O tom jocoso do pérfido guerreiro-lobo, que surgia por trás da irmã de Gunnulf, levantou uma muralha de silêncio ao nosso redor. Fitei Halldora, suplicante. Bastar-lhe-ia saltar para o pescoço do noivo e cobri-lo com os seus beijos envenenados, para evitar uma desgraça. Halldora devolveu-me um sorriso vitorioso, e eu percebi que a última coisa que ela tencionava fazer era arrefecer os ânimos. Throst mirou Freysteinn de alto a baixo e desafiou-o:

- Pois decidamos, de imediato, quem é o digno companheiro da donzela!

Freysteinn cuspiu uma gargalhada de desprezo, com os olhos brilhando perigosamente.

- Queres bater-te comigo agora, Throst? Olha para ti! Mal te susténs de pé, depois da surra que o Gunnulf te deu! Não me vencerias como um homem, quanto mais a valer por meio...

Throst moveu-se tão rápido que mal o vi. Quando pisquei os olhos já Freysteinn estava no chão, com a boca a sangrar. O aleivoso guerreiro levantou-se com um salto e lançou-se sobre o rival. Halldora desencadeara uma avalanche!

Assisti impotente à disputa dos dois homens, fisicamente equivalentes, pela posse de uma mulher que não gostava de ninguém, além de si própria. Era evidente que Halldora só usava Freysteinn para provocar Throst. Mas também não amava o noivo, ou não o submeteria a tamanha afronta.

 

Numa coisa Freysteinn estava correto. Throst encontrava-se tão cansado e magoado que ser-lhe-ia difícil prevalecer. E, da forma como a disputa começara, o vencedor não se contentaria em subjugar o vencido. Era uma questão de honra! Halldora podia ter condenado o noivo à morte. Mas o sorriso de puro deleite que ela exibia, enquanto os dois guerreiros se massacravam por sua causa, era revelador do pouco que isso lhe importava.

Gunnulf surgiu, e eu tive esperança de que estancasse a loucura. Porém, apesar de apreensivo, ele não moveu um dedo para deter os companheiros. Em redor, vários rostos conhecidos partilhavam o meu receio. Krum estava pálido como se a morte tivesse passado por ele. Curiosamente, Sven, Durin, Ormarr e Sigmund não pareciam preocupados. Saltavam, gritavam e gesticulavam, dominados por um grande entusiasmo, incitando Throst a abater Freysteinn. Percebendo a minha aflição, Sven premiou-me com uma pancada nas costas que quase me partiu os ossos.

- Não te preocupes, Pequena! Um rafeiro miserável não pode vencer o líder da alcatéia!

Não tive tempo para pensar nesta afirmação estranha, pois Throst tombara e parecia incapaz de se levantar. Freysteinn ria desalmadamente e batia no seu próprio peito com os punhos, uivava e voltava a fustigar o corpo prostrado com pontapés. O rosto de Throst cobria-se de vermelho, devido ao sangue que lhe escorria do nariz e da boca. O branco imaculado da neve estava manchado... manchado de lama... manchado de vida...

O brilho da pedra da minha avó entrou-me nos olhos. Sobressaltei-me ao recordar que o amuleto tinha o poder de fortalecer e sarar.

Podia estar no pescoço de Throst, mas continuava a pertencer-me. Através dele, eu conseguiria dar ao capitão a força necessária para reagir. Enchi o peito de ar e concentrei a minha atenção na luz que cintilava entre sangue, suor, lama e neve. Senti-a tão viva e quente como se estivesse na minha mão.

- Não confias nele... na sua força... nas suas capacidades?

Fui percorrida por um calafrio. Tentei virar-me para encarar o dono da voz, mas Sigarr cravou os dedos, como garras, nos meus ombros e impediu-me.

- O teu conhecimento da magia é ainda muito fraco, mas possuis uma excelente compreensão da força do coração dos homens, minha querida. O Throst não é um guerreiro normal. É um líder! Acreditas que te perdoará quando descobrir que a sua honra foi salva devido à tua interferência?

Eu sabia a resposta. Esta luta pertencia a Throst, e ele tinha de vencê-la... ou perdê-la... mas sozinho!

- Os teus mestres nunca te explicaram por que falhas, jovem filha da Grande Ilha? Nunca te disseram qual é a tua maior fraqueza? - Os lábios de Sigarr colaram-se ao meu ouvido, mas permaneceram imóveis. - Tu não confias em ti própria, nem nas tuas capacidades. Os teus inimigos são sempre mais fortes, os teus objetivos inatingíveis. Caminhas pela vida de olhos vendados a tudo o que não consegues agarrar. Olha para ele... Sabes o que o torna poderoso? Aquilo que te falta! Enquanto houver um sopro de vida no seu corpo, o Throst não estará derrotado. No seu lugar, há muito que te terias entregue aos braços gélidos da morte. Enfrenta a Gwendalin com esse espírito, e ela esmagar-te-á com um olhar!

E sumiu tão subitamente como aparecera. Enquanto a minha cabeça estalava, num tumulto, os meus olhos recuperavam a visão da contenda. Os dois homens continuavam na mesma posição, como se o discurso de Sigarr tivesse decorrido num tempo só nosso. E o seu alerta ardia-me na mente. Utilizar ou não o poder da pedra?

Freysteinn esboçava uma nova agressão, mas, como se uma força divina o carregasse de energia, Throst agarrou-lhe na bota e rodou o seu próprio corpo, forçando o adversário a escorregar e cair. Dominado pela surpresa e aturdido pela queda, Freysteinn nem se apercebeu da derrocada que o esmagava. Throst imobilizou-o e pressionou-lhe um joelho contra o pescoço, até deixá-lo inconsciente.

- Mata-o! - gritavam vozes que eu já reconhecia.

- Sim! Mata esse cão!

- Mata-o, Throst!Throst ergueu-se e inspirou o ar com força, como se a vida regressasse lentamente ao seu corpo. Por fim, olhou para Gunnulf, esperando pelo veredicto do líder. As palavras do colosso tornaram a surpreender-me:

- Se não acabares com isto agora, voltarás a ter problemas! Apesar de tudo, eu só podia revoltar-me. Como é que este homem conseguia ser tão frio? Não era Freysteinn um dos seus guerreiros de confiança? Não era seu amigo? Por que não pedia pela sua vida em vez de incentivar a sua desgraça?

- A sua família não merece tamanha dor! - ripostou Throst, deixando-me atônita e sem fôlego. - O Freysteinn é demasiado jovem e irrefletido. Terá uma nova oportunidade. Se não a aproveitar, voltaremos a ajustar contas.

Halldora saltou para os braços do noivo, berrando hilariante:

- Eu estou tão orgulhosa de ti! E tão feliz por ser tua mulher! Na minha indignação, pensei que Throst seria tão sensato como sempre provara ser em todas as decisões que tomava. Iria afastar aquela ordinária e dir-lhe-ia que fosse abraçar o seu campeão, que jazia inconsciente com o focinho enterrado na lama. O meu coração contraiu-se e sangrou ao constatar que ele estreitava Halldora e aceitava os seus beijos melosos. Este homem não tinha orgulho? Estaria tão cego, que não via a fera traiçoeira que segurava nas mãos, pronta a cravar-lhe os dentes no pescoço?

Rasguei a multidão e corri para casa. Sentei-me onde costumava dormir e envolvi-me na manta de lã. Sentia-me gelada e doía-me a cabeça. A intervenção de Sigarr atormentava-me o espírito. O feiticeiro sabia demasiado acerca de mim, das minhas fraquezas, temores e anseios. Respirei fundo com dificuldade, preparando-me para dissecar o novo enigma que ele plantara na minha mente, qual erva daninha que se multiplicava e crescia, absorvendo tudo o resto. Quem era essa mulher que Sigarr declarava que eu tinha de enfrentar? Quem era Gwendalin? Não me chegava Myrna? Ou estaria eu enganada desde o início? Seria Myrna apenas uma desgraçada com habilidades mágicas que resolvera estragar-nos a vida, e não a verdadeira ameaça, aquela que a minha avó temia?

Quando a porta se abriu, eu tremia tanto, que os meus ossos rangiam. Krum aproximou-se, franzindo a testa de preocupação.

- Então, foi aqui que te escondeste? Olha para ti! Vais morrer gelada, rapariga!

Num abrir e fechar de olhos, já preparara um chá e forçava-me a bebê-lo.

- O Throst pediu-me que te procurasse. - Esboçou um gesto para evitar o meu protesto. - E eu preciso da tua ajuda para tratar dos feridos...

Gesticulei exprimindo negação. Ele não precisava de mim!

- Estás enganada. A tua ajuda é tão preciosa como a tua companhia... prima!

Eu parei de respirar. Teria ouvido bem? Krum acariciou-me a face de cera e explicou:

- Há muito que descobri a minha origem e, assim que te vi, fiquei impressionado com a tua parecença com Mairwen. Depois, verifiquei a tua habilidade e domínio da Arte e poucas dúvidas me restaram. O mundo é pequeno, não é? - Sossegou-me com um sorriso apaziguador. - Quando pressionei a minha mãe, ela confessou-me a verdade. Não receies, Catelyn! Enquanto o desejares, este será o nosso segredo.

O cerco fechava-se. Quanto mais eu tentava apartar-me deste lugar e do seu povo, mais ligações criava. Como podia evitar cair nos braços de Krum e cingi-lo com força? Como podia impedir que a doce ternura, que sempre me invadia quando abraçava os meus irmãos, regressasse numa saudosa recordação?

- Eu conheço a tua missão, prima, e tudo farei para aliviar-te. Se isso significar seguir-te através do mar, também o farei. Sempre sonhei com a terra da minha mãe e desejei criar raízes no chão dos meus antepassados; ver os meus filhos a correr pelos montes e vales repletos de verde e luz. Quando o momento chegar, estarei ao teu lado. Mas, agora, terás de ser forte e enfrentar a vida que te espera lá fora.

O meu rosto escureceu, e Krum suspirou resignado. Hesitou muito, antes de acrescentar:

- Eu sei que te é difícil superar o que deixaste para trás, mas pensa que, se o destino quis que encontrasses uma família entre os Vikings, alguma razão teve. Acredita que também não me é fácil recordar o que aconteceu. Eu não sabia que Garrick McGraw, o homem que eu cresci a odiar, era o pai dos meus primos. Gostaria de te abraçar sem que o sangue derramado entre Vikings e Aliados nos separasse. Infelizmente nós não podemos mudar o passado... Mas podemos aprender com os nossos erros e tentar construir um futuro de união e paz.

O que Krum dizia era bonito, mas a batalha da Enseada da Fortaleza continuava na minha mente, como uma ferida infectada que não parava de purgar. Por muitos anos que vivesse, eu não esqueceria a dor nos olhos de Aled ao despedir-se dos que amava, antes de entregar a vida para nos salvar. Agora, que podia abordar Krum sem receio, só ansiava por descobrir a sorte dos meus entes queridos. Como já era hábito, ele entendeu-me sem dificuldade. Tornou a hesitar, talvez procurando as palavras certas para não piorar o meu tormento:

- O teu pai escapou com vida das mãos do Gunnulf. Dos teus irmãos, eu nada sei. Entendo que, para ti, a dúvida seja mais angustiante do que a certeza e lamento nada poder acrescentar ao que já sabes. Contudo, estou convicto de que os deuses não te deixaram desamparada.

Eu assim esperava, com todas as forças da minha alma! O meu queixo tremia, enquanto movia as mãos num gesto simples: Porquê?

Krum suspirou longamente, antes de responder num murmúrio quase imperceptível, como se ele próprio procurasse uma justificação:

- Nós não tencionávamos invadir o reduto de Goldheart nesta campanha. Preparávamo-nos para retornar a casa, quando recebemos a ordem de Gunnulf para atacar. Foi tudo tão estranho! Surpreender Aliados guerreando entre si era a última coisa que eu esperava! Mas as surpresas não terminaram aí! De regresso ao barco, vi o meu irmão de criação e noivo da minha irmã carregando uma rapariga nos braços e impondo regras sobre a conduta dos homens. Em toda a sua vida, o Throst nunca agira assim... Mas agora eu compreendo a vontade que o moveu!

Então era verdade! Algo manipulara a sorte e unira os destinos de Vikings e Aliados, no dia do meu casamento. Era óbvio que tamanha desgraça só podia ter sido obra de Myrna. O clamor das suas ameaças ainda me arrepiava. Como ela chegara até Gunnulf estava para além da minha imaginação, e Krum também desconhecia quem fora o delator da vulnerabilidade dos Aliados. Dei por mim a gesticular dolorosamente: O Throst sabe... quem eu sou?

Krum encolheu os ombros, enquanto raciocinava em voz alta:

- Se ele possui esse conhecimento, nunca mo revelou. Porém, não acredito que nenhum desígnio, divino ou terreno, pudesse persuadi-lo a ajudar-te, se soubesse que tu és uma McGraw! Quanto ao Gunnulf... eu não sei o que dizer! Quero acreditar que o Sigarr não te denunciou, porque reconheceu em ti o sangue da sua raça. Todavia, não tenho certezas. Por isso, peço-te que te mantenhas perto da minha mãe e longe de sarilhos... longe do Throst!

Eu tentei desviar-me do seu olhar, sobressaltada com o rumo da conversa, mas Krum segurou-me o queixo, enquanto insistia:

- Tu tens de arrancá-lo do teu coração, Catelyn! Fá-lo por ti, para que não sofras mais do que já estás destinada a sofrer.

Corei desalmadamente. Como podia Krum declarar algo que eu nem admitia a mim própria?

- Há muito que eu percebi, prima - prosseguiu ele com convicção. - Sei que estás confusa... O Throst também está dividido, mas jamais quebrará o juramento que fez à minha irmã. E o Gunnulf já se assegurou de que tu não serás uma rival para a Halldora. Além disso, o teu destino levar-te-á para onde o Throst não te poderá seguir. Eu acredito que os deuses lhe confiaram a missão de te trazer para a Terra Antiga, a fim de completares o teu treino em segurança, longe da feiticeira que te ameaça. Agora, deves afastar-te dele, antes que a força que vos atrai provoque um banho de sangue.

Passei a tarde com Krum e Ingrior, cuidando dos feridos como me fora solicitado. No torneio, cada homem esforçava-se ao extremo, o que significava que todos acabavam por necessitar de assistência. Freysteinn recuperara os sentidos, e foi Krum quem o socorreu. Mas eu não estava longe, apelando ao poder da minha mente para que cada toque do curandeiro lhe doesse como um pontapé nas ventas; pensando: ”Imbecil! Volta a encostar-lhe um dedo e verás o que eu te faço!”

Por fim, fui acometida por um ataque de despeito. Não tivera Throst o que merecera? Não tornara a enroscar-se na noiva qual cão fiel, depois de ela lhe ter cuspido para a cara?

 

Nessa noite, Halldora deleitou os convidados com a visão do seu corpo favorecido, dentro dos despojos de alguns vestidos saqueados na Grande Ilha. As costureiras haviam feito uma mistura berrante e feia, mas os homens ficaram extasiados com o resultado, e as mulheres não pararam de cochichar, inchadas de inveja.

Eu decidi não dormir na casa. Sentia-me incapaz de encarar Anna sem forçá-la a contar-me toda a verdade. O que diria ela quando soubesse que Sigarr me abordara? Certamente ficaria em pânico! Não, este não era o momento certo para um tão grande exercício de vontade!

Refugiei-me no celeiro, após certificar-me de que ninguém me seguia. Na mais completa escuridão, trepei pelas sacas de cereal até ao topo. Ora, aqui estava uma boa cama! Mesmo que me procurassem, jamais me descobririam. Adormeci de imediato e consegui descansar um pouco. Acordei com o ruído da porta a fechar-se e com o som de risos disfarçados. Cheguei-me à frente, o suficiente para averiguar quem invadira o meu esconderijo. Uma lanterna foi acesa e pendurada, revelando os intrusos. Era um casal de namorados: Throst e Halldora.

- O que é que tens para me dizer, que justifique tanto segredo?

- perguntou ele.

- Isto! - respondeu ela prontamente, atirando-se ao seu pescoço. Se eu conseguisse chorar, as minhas lágrimas teriam caído em cima dos dois como um aguaceiro. Eu não podia conceber tal coisa! Throst parecia enfeitiçado por Halldora, como Quinn ficara por Myrna. Que poder tinha esta fedelha fria e egoísta, para confundir o juízo de um homem de bom senso?

O beijo durou para sempre. Ouvi as suas respirações a acelerarem e Halldora a ronronar:

- Casa comigo agora, Throst! Eu não quero esperar mais!

Ele devia estar com dificuldade para dominar o instinto, ante o decote interminável do vestido garrido, que revelava os seios enormes e carnudos da noiva qual saboroso prato de carne quente servido a um peregrino esfomeado.

- Já te expliquei mil vezes, Halldora! Eu tenho de fazer, no mínimo, mais uma viagem. Devo-o ao teu irmão. Se nos casarmos e eu tombar, tu ficarás viúva...

- Pelo menos, conhecerei o prazer de possuir o teu corpo!

Não teria esta mulher um pingo de vergonha? Contudo, Throst pareceu apreciar a sua resposta. Procurou os lábios da oferecida e beijou-os com ardor, enquanto eu mastigava o despeito:

 

”Espero que te doa, desgraçado! Espero que ela te morda em cima da ferida...”

 

Halldora mordeu. Throst soltou um queixume, e a noiva gargalhou, provocadora e vitoriosa. Caíram os dois sobre o feno e rebolaram numa disputa incendiada, inflamando o desejo. Inevitavelmente, o macho venceu e prendeu a fêmea sob o seu corpo. Halldora arrancou-lhe a túnica, e Throst rendeu-se às suas carícias ousadas.

Eu não queria ver. Sentia-me mal; doíam-me o peito e a cabeça. Que maldição era esta, que me forçava a surpreender aqueles que me eram queridos, a fazer... coisas, com mulheres malditas? Primeiro Quinn, depois o meu pai, agora Throst...

Colocar Throst ao nível do meu irmão e do meu pai deixou-me ainda mais agoniada. Eu tinha de afastar-me. Porém, se me movesse de alguma forma, denunciaria a minha presença. Só me restava fechar os olhos. Tentei com toda a força, mas dir-se-ia que sofrera uma paralisia que me impedia até de os piscar. Estava condenada! Este era o meu castigo por ter permitido que um bárbaro se alojasse no meu coração!

Subitamente, o capitão afastou a noiva e forçou-se a recuperar o fôlego. De onde estava, eu conseguia vislumbrar o ardor das suas faces e o brilho dos seus olhos.

- Throst...

- Chega, Halldora! - atalhou ele, com a voz enrouquecida.

- Nós não podemos continuar!

Ela sorriu meigamente e abraçou-o pelo peito, mergulhando a cabeça no seu pescoço.

- E por que não? Só mais um pouquinho...

- Não...

- Sabe tão bem!

- Não, Halldora! Não!

A noiva prendeu o seu olhar e insistiu:

- Mas, porquê?

Throst hesitava, respirando aos bocejos. Como sempre, ia cair na armadilha!

- Porque... Porque eu estou muito perto de perder o controlo.

- E eu quero que tu percas esse maldito controlo!

Halldora saltou sobre o noivo como uma loba esfomeada; a boca devorando-o, impedindo-o de protestar, enquanto as mãos se moviam sobre o seu peito musculado, descendo, descendo sempre, até penetrarem no interior das suas calças. O meu queixo tombou com o choque. Eu não acreditava no que via! Como é que ela ousava...?

Throst deu um salto. A sua mão caiu sobre a de Halldora, impedindo-a de continuar.

- Pára! Tu não sabes o que estás a fazer!

Ela sorriu e lambeu-lhe os lábios com a ponta da sua língua, retorquindo:

- Pelo contrário, meu amor! Sei muito bem... Já vi as escravas com os homens, dezenas de vezes. Deixa-me dar-te prazer...

Os seus beijos silenciaram os argumentos do noivo. Sem mais cortesias, Throst subjugou-a, rugindo incendiado:

- Tu és um demônio! A resposta foi imediata:

- Eu amo-te! Quero ser tua! Faz-me tua...

Eu sabia que Throst já perdera toda a vontade de resistir. Os suspiros do casal eram adagas arremessadas ao meu coração. Eu iria enlouquecer se assistisse àquilo! Mas, se me desse a conhecer, as conseqüências seriam certamente terríveis...

A sombra apareceu do nada e acometeu sobre mim. Fiquei cega e asfixiada num monte de penas. O sobressalto fez-me perder o equilíbrio precário que me mantinha suspensa na beira das sacas. Despenquei às cambalhotas e estatelei-me aos pés dos amantes. Enquanto eu tentava perceber se estava inteira, ouvi os berros irados de Halldora:

- Mas o que é isto? Esta vagabunda, outra vez? Faz qualquer coisa, Throst, ou não respondo por mim!

Consegui sentar-me e fixei o gigante louro, aterrada. O seu rosto estava quase tão rubro como o meu, e os seus olhos ardiam com mais fulgor do que o lume da lanterna.

- O que é que tu estás a fazer aqui, Pequena?

Throst falava baixo, mas eu cheirava a sua fúria. Confessei-lhe a verdade, com os gestos atrapalhados pelo pavor. Por cima das nossas cabeças, a pequena coruja branca, que provocara toda a comoção, encontrou o pouso ideal para a sua vigília noturna.

- O que é que ela está a fazer aqui? - repetiu Halldora. - É claro que veio espiar-nos!

Os seus gritos troavam no silêncio. Throst mirou-a com o sobrolho franzido e retrucou:

- Baixa a voz e não digas asneiras! Tenho a certeza de que a Pequena já aqui estava quando chegamos. Deve ter fugido da confusão da casa para tentar dormir...

- Ou para praticar bruxarias! - cortou a noiva, cuspindo maldade. - Olha para ela, Throst! Só tu é que não vês que essa criatura é uma bruxa!

Recuei instintivamente quando a irmã de Gunnulf avançou, tentando agredir-me. De imediato, Throst impediu-a, segurando-lhe o braço.

- Volta para casa, Halldora - ordenou num tom que não admitia contestação. - Nós não devíamos ter vindo para aqui! No fim, este incidente acabou por evitar um erro irreparável!

- Como podes dizer isso? - rugiu ela, com os olhos chispando de rancor. - Não acredito que tu vás defender esta cadela ordinária...

- Pára de ofender as pessoas! Eu vou falar com a Pequena...

- Ela não é uma pessoa - vomitou a grande figura, transbordando o seu ódio. - Ela é... é uma escrava! Eu não permitirei que tu a mantenhas depois do casamento! E não vou deixar-vos sozinhos! Sei perfeitamente que ela pretende seduzir-te para parir o teu bastardo e garantir a sua situação. Mas eu não consentirei! Jamais admitirei outras mulheres entre nós...

- E eu não admito que tu me digas o que eu devo ou não devo fazer! - O grito de Throst sacudiu a chama da lanterna. - O teu ciúme e a tua obsessão estão a pôr-me doido! Vai-te embora! Falaremos amanhã quando estiveres mais calma.

Halldora estremeceu da cabeça os pés. Ergueu um dedo e abanou-o, ameaçadora:

- Eu vou chamar o Gunnulf! Dir-lhe-ei que te fechaste aqui para emprenhares a escrava.

Throst nem se moveu.

- Faz isso, Halldora! Desafio-te! O Gunnulf virá, nós lutaremos e eu morrerei. É isso o que tu desejas? Foi a minha morte que planeaste esta tarde, quando provocaste aquela confusão com o imprestável do Freysteinn?

- Throst... - A expressão feminina mudou de ira para indignação e, por fim, para súplica.

- Se queres matar-me, espeta-me um punhal no peito!

- Num abrir e fechar de olhos, a arma que ele guardava na bainha da bota estava na sua mão. - Toma! - provocou-a. - Dou-te a minha palavra em como não resistirei. Então? Não tens coragem para cumprir as tuas ameaças?

- Throst! - Halldora saltou para o seu pescoço e abraçou-o, desesperada. - Como podes falar-me assim? Eu amo-te tanto!

O meu semblante devia ser uma máscara de sofrimento, pois Throst evitou o meu olhar e afundou o rosto no cabelo da noiva.

- Eu também te amo, querida! Sabes bem... Por favor, vai para casa!

Halldora cedeu finalmente, passando por mim como se eu não existisse. Throst guardou o punhal, vestiu-se e encarou-me em silêncio. Eu temia o que me esperava. Depois das exigências da noiva, Throst iria vender-me ou oferecer-me a algum monstro...

- Vem cá... Não tenhas medo, Pequena! Senta-te ao pé de mim. Obedeci. Se continuasse de pé, provavelmente acabaria por cair.

- Há coisas que têm de ser esclarecidas...

Throst falava, mas eu não tinha coragem de enfrentá-lo. Mantive os olhos nas minhas botas e as mãos apertadas com força, para que ele não se apercebesse do meu pavor.

- Eu sei que os costumes do teu povo são diferentes dos nossos. Entendo que tu estás a sofrer e que te é difícil compreender... o que se passou conosco e o que eu sinto pela Halldora.

Fechei os olhos. Desejei tapar os ouvidos e fugir. Será que ele não percebia que estava a ferir-me? Mas, por que é que a sua rejeição me magoava? Por que é que eu não conseguia declarar-lhe a minha indiferença, o meu desprezo? Que praga era esta que se alojara no meu peito? Pensei em Tristan... As emoções que lhe devotava eram diferentes. Se eu amava Tristan, então não era amor o que sentia por Throst! É claro que não era! Eu jamais seria louca ao ponto de me apaixonar por um bárbaro!

- Eu tinha dez anos quando a Halldora nasceu - prosseguiu ele, alheio ao meu dilema. - Estava a morar na casa do Gunnulf, a ser treinado por ele. Quando uma criança nasce, os familiares fazem-lhe votos de amor e proteção. Eu fiz esses votos por Halldora e, a partir desse dia, soube que seria ela a minha mulher, a mãe dos meus filhos... É óbvio que a família não iria impor-lhe um marido que ela não desejasse! Mas a Halldora nunca contestou essa decisão, e o nosso casamento irá realizar-se no próximo Outono, assim que eu regressar.

Fez uma pausa e suspirou profundamente, antes de continuar:

- Quando eu te encontrei, senti que não podia deixar-te morrer... Era tarde demais para tudo, por isso trouxe-te comigo, sem pensar nas conseqüências. Porém, cada dia que passávamos juntos tornava-se mais complicado. Tu eras... Tu és diferente de todas as mulheres que eu conheço! Os teus olhos são doces como o mel, mas, ao mesmo tempo, selvagens... As tuas mãos fazem coisas maravilhosas e... Tocou-me sutilmente, provocando-me um sobressalto. - Estás a entender o que eu estou a dizer?

Confirmei sem encará-lo, sentindo-me perdida no mundo. Desejava chorar, chorar muito! Mas não havia alívio para a minha alma. A dor que me possuía estava para além de qualquer pranto.

- O que aconteceu conosco... não foi planejado! - Throst segurou no meu queixo e forçou-me a olhá-lo. - Eu sabia que tu estavas magoada e não pretendia impor-me a ti, mas não resisti... Depois... - Hesitou, o seu rosto endureceu e a voz tornou-se áspera, enquanto a razão aniquilava as emoções. - Eu posso ter quantas mulheres quiser, mesmo casando com a Halldora. Elas podem viver comigo e ter os meus filhos, aos quais darei o meu nome... - Soltou-me o queixo subitamente, como se o contato o incomodasse.

- Mas entre nós dois não voltará a haver intimidade... porque eu dei a minha palavra ao Gunnulf. Compreendes?

Perfeitamente! Quem pensava este imbecil que era, para falar-me como se eu estivesse louca de amores por ele, a tentar intrometer-me no seu casamento perfeito? Depois do sermão de Krum, só me faltava enfrentar a vaidade de Throst! Por acaso, estaria escrito na minha testa que eu desesperava por um homem? Mesmo que estivesse, eles seriam incapazes de o ler! Não passavam de selvagens ignorantes, que só sabiam rebentar-se à pancada, roubar o bem alheio e chacinar inocentes. Enfrentei o gigante louro com altivez e tentei transmitir-lhe que, se existisse um inferno, quer este fosse druida, viking ou cristão, eu esperava que ele e a sua maravilhosa noiva lá ardessem, até ao fim dos tempos! O que Throst viu no meu semblante fê-lo desviar o olhar, antes de murmurar mais para si próprio do que para mim:

- Eu sei que tu não compreendes! Como podes aceitar que um homem tenha sentimentos por duas mulheres? - Fitou-me subitamente, e as suas palavras perturbaram-me tanto quanto o atormentado azul do seu olhar. - Eu amo a Halldora! Tenho a certeza de que é ela que eu quero, mas... quando estou contigo... sinto que posso dizer-te o que nunca disse a ninguém! Sinto que nem preciso de falar, porque tu entendes o meu silêncio, como se nos conhecêssemos desde sempre! Como se tu estivesses presente em mim desde o dia em que eu nasci... E destinado que nos iríamos encontrar... Acreditas no destino, Pequena?

Se eu acreditava no destino? O que diria Throst se soubesse que a sua imagem povoava os meus sonhos, muito antes de eu imaginar a sua existência? Como não lhe respondi, ele continuou:

- A atração que nos une é tão forte, que eu tenho de travar uma batalha para não te tocar sempre que estou contigo. O Gunnulf percebeu isso e receou pela Halldora. A Halldora percebeu isso e odeia-te. O Krum aconselha-me a libertar-te... Mas eu não posso! Não, sem antes encontrar uma explicação...

Calou-se bruscamente e escondeu a cabeça por entre as mãos, deslizando os dedos pelos anéis dourados dos seus cabelos. Depois, suspirou e ergueu-se devagar, como se o esforço deste dia louco o esmagasse. Por fim, estendeu-me a mão, mas eu recusei a sua ajuda. Sentia-me pequena e indefesa, devorada pela vontade de lançar-me nos seus braços, como a Halldora fazia. Porém, isso nunca aconteceria! Não porque o Gunnulf o proibira, mas porque eu era a mulher de Tristan. Não voltaria a desonrar a sua memória e a trair a minha família e o meu povo!

- De qualquer forma, foi a sorte que te trouxe até aqui - disse ele, novamente como se pensasse em voz alta. - Se não me tivesses caído aos pés, eu teria feito uma grande asneira. Acabaria por casar-me já, porque não me arriscaria a partir para o mar e deixar a Halldora desonrada... Mas, mesmo que eu sobrevivesse à campanha, os meus irmãos matar-me-iam quando regressasse, depois de terem sido forçados a conviver com a personalidade forte da Halldora, durante todo o Verão.

Throst sorria e fixava o vazio, como se imaginasse o que descrevia. Eu fui percorrida por um calafrio ao interiorizar a convicção com que ele teimava que a morte o aguardava nesta última viagem. Parecia-me quase uma premonição...

- Tenta não criar mais conflitos com a Halldora - pediu, interrompendo os meus pensamentos sombrios. - Ela não é má, mas, quando se sente ameaçada, é capaz das piores loucuras. Não posso levar-te para a minha casa enquanto eu lá estiver. Mas, depois de eu partir, tu irás fazer companhia à Ingrior. Estou certo de que vós ireis entender-vos muito bem!

 

Eu gostava de Ingrior, mas não tinha nenhuma intenção de permanecer na Terra Antiga ao seu serviço. A minha prioridade era regressar à Grande Ilha e descobrir o que acontecera à minha família. Krum iria ajudar-me! E a minha tia também, a bem ou a mal!

- Vamos para casa - concluiu Throst, acusando cansaço.

- Aqui não estás em segurança. O Freysteinn será capaz de te magoar só para me contrariar... E ninguém o castigará por isso! - Franziu o sobrolho, perante o meu recuo. - Virás pelo teu pé ou terei de carregar-te?

Por cima de nós, a coruja soltou um pio estridente e desapareceu na noite. Eu segui Throst, qual cachorro bem treinado. Quando entramos na casa, já a ave pousara na sua trave favorita. Fiquei a mirá-la, à luz viva da fogueira, e quase ia jurar que ela me piscava um olho! De novo, a sua intervenção decidira o rumo da minha vida. Começava a questionar-me se não estaria perante demasiadas coincidências.

Não percebi a atitude de Halldora. Mais tarde, justifiquei-a com o seu desejo fervente de humilhar-me e reduzir-me à minha condição de escrava que jamais poderia sonhar com o afeto do seu senhor. No fim, talvez ela estivesse apenas a ser movida pela mão firme da vontade que governa os destinos de todos nós!

Eu já ouvira falar no grande poder das videntes vikings. Geralmente, elas eram mulheres muito reservadas, de idade avançada e sabedoria indiscutível. Eu admirava-as e temia-as. Sabia que lhes bastaria um olhar para que descobrissem a minha natureza, por isso mantinha-me afastada. Foi com apreensão que recebi a ordem de Halldora para acompanhá-la na consulta de uma dessas adivinhas, que viera assistir às comemorações. E a minha surpresa aumentou ao saber que Throst também fora apanhado na rede da sua maquiavélica noiva.

A vidente tinha a idade do mundo. Eu nunca vira uma mulher tão velha, com as peles pendendo como farrapos. Porém, quando se moveu, confirmei que ainda havia muito vigor no seu corpo esquelético e encarquilhado. Os seus olhos eram um céu de tormenta, e, quando os pousou em mim, eu acreditei que estava perdida. Se ela me denunciasse perante Halldora, a fedelha iria berrar a plenos pulmões por Gunnulf, que pouco se importaria com os argumentos do primo. Talvez, sabendo a verdade, o próprio Throst quisesse livrar-se de mim!

- O meu nome é Halldora e sou irmã do senhor desta terra começou a jovem viking, sem hesitação. - E este é Throst, o meu noivo. Ouvi dizer que és a melhor da tua espécie... Quero que prevejas o nosso futuro.

Largou uma moeda de cobre sobre a manta da anciã com uma desenvoltura altiva. A vidente agarrou nos pequenos ossos que jaziam espalhados pela coberta de lã e voltou a lançá-los, sem se dignar a fitar a petulante rapariga. Depois de uma longa espera, em que pensei que Halldora fosse impacientar-se e gritar-lhe, a mulher perguntou rispidamente:

- E ela, quem é? O que me pedes não é um espetáculo público!

As minhas entranhas revolveram-se, enquanto Throst murmurava friamente:

- Manda a Pequena embora, Halldora! Para que queres forçá-la a assistir a esta tolice?

A noiva silenciou-o com um gesto impaciente e irritado, dirigindo-se à vidente:

- Não lhe prestes atenção! Ela é só uma escrava sem importância!

Eu sustive a respiração quando o olhar cinzento-escuro da adivinha me invadiu. Podia jurar que os seus lábios ressequidos esboçavam um sorriso trocista.

- Uma escrava... - repetiu e, depois de outra pausa em que tudo ficou por dizer, voltou-se para Throst. - Ter-me-ão as velhas orelhas enganado ou acabei de ouvir o neto de ”O Que Tudo Vê” a desdenhar da minha arte?

Sem que houvesse uma explicação, a minha pele arrepiou-se. Fixei o olhar em Throst, confusa. A anciã chamara ao seu avô ”O Que Tudo Vê”? Mas não era o seu avô o mesmo de Halldora? Ainda mais estranho foi constatar que Throst se tornava tão rubro como a capa que lhe cobria os ombros. Os seus olhos brilharam perigosamente e pensei que iria pôr fim ao capricho da noiva. Porém, a vidente antecipou-se:

 

- Não queres saber o teu futuro, filho de Thorgrim?

Throst estava tão nervoso, que teve de baixar a voz para que esta não lhe tremesse, ao responder:

- Eu já vi o meu futuro, anciã, e não desejo revê-lo!

Fez menção de partir, mas a noiva protestou e segurou-lhe o braço. Enquanto isso, a velha lançava os ossos sobre a manta e replicava mansamente:

- O que tu viste foi um dos caminhos... Aquele que teimas em trilhar cegamente! Contudo, existe outro... Um caminho que te levará para longe e fará de ti o pai de três reinos: um para a profecia, outro para a união e outro para a paz...

Eu mal conseguia respirar. Primeiro, fora o Lobo Cinzento; agora, a vidente... Era óbvio que, em algum momento do passado, Throst se afastara do seu objetivo de vida. Seria verdade que o seu futuro já lhe fora revelado, como ele próprio afirmara? Uma coisa era certa: ele estava muito perturbado. Completamente alheada da comoção do noivo, Halldora guinchava excitada:

- Estás a dizer que eu darei três filhos ao Throst? E que os nossos filhos serão reis?

Os ossos espalharam-se mais uma vez, e os caracteres rúnicos formaram um padrão aos meus olhos. Por um instante, a manta transformou-se no céu e os ossos em estrelas, cada uma com luz própria, cada uma com um significado explícito. Estremeci quando a vidente replicou:

- Eu estou a ver o futuro do homem... ”Mas a mãe dos três reinos está presente...”

Pisquei os olhos, temendo ver mais do que desejava, sem perceber se as últimas palavras haviam sido proferidas ou apenas escutadas pela minha mente. O meu coração apertou-se quando surpreendi o olhar de Throst cravado em mim. Senti-me enrubescer e arfei em busca de ar. Ao meu lado, Halldora continuava a saltitar de alegria, enquanto a vidente profetizava que ela seria rainha. Para a irmã de Gunnulf não restavam dúvidas sobre o significado das adivinhações: Throst seria o seu rei, e os filhos de ambos conquistariam três reinos.

Baixei o rosto, lutando contra a vertigem que ameaçava dominar-me. Por que raio Throst não desviava o olhar? Eu sabia que era tolice, mas quase acreditara que a vidente se referira a nós dois.

Halldora deu-se por satisfeita e enfrentou-me abertamente, sem esconder o seu desdém:

- Ouviste? Eu serei rainha! E tu? - Extravasou o seu entusiasmo infantil diante da anciã: - Diz-me, o que o futuro reserva para a minha escrava?

De novo, os olhos cinzento-escuros da vidente invadiram a minha alma, e os seus lábios distorceram-se. Eu tremia tanto, que acreditei que iria desmaiar. Como num sonho, ouvi a voz harmoniosa retrucar:

- E o que importa a uma rainha o futuro de uma escrava? A sorte desta rapariga foi decidida há muito. Eu nada mais tenho a acrescentar.

Senti-me inundar por um alívio imenso. Ela não me denunciara!

Halldora sacudiu os ombros com despeito e deu-se por satisfeita. Agarrou o braço de Throst e arrastou-o na direção de um grupo de jovens que tocavam e dançavam. Eu inclinei-me diante da vidente, grata pelo seu silêncio. Ela retribuiu com um aceno e exclamou:

- Não permitas que a rapariga te distraia! O falcão só desce ao encontro dos ratos quando tem de se alimentar.

Não compreendi o que ela queria dizer, mas não tive tempo para indagar, porque os ossos já rolavam sobre a manta e os meus olhos voltavam a vislumbrar um céu carregado de estrelas. Como uma música celestial, a anciã declamou solenemente na sua voz sem idade:

- O teu caminho não é tão direito como imaginas, e a tua missão não é tão simples como desejas. Está escrito no tempo que a revelação do passado irá corrigir o futuro e que o sangue de dois deve mergulhar como um, para sarar a ferida aberta no mar... Mas poderá uma alma perdida unir uma alma quebrada? Conseguirá a escolhida alterar a sorte do mundo, quando todas as forças foram desequilibradas? Prepara-te, filha da Grande Ilha! O destino com que as estrelas te brindaram, galopa ao teu encontro. Está a chegar o momento de decidires entre o que deveria ter sido e a nova vontade imposta.

 

Em toda a minha permanência na Terra Antiga, eu nunca ouvira tão extremo silêncio. Os Vikings eram barulhentos por natureza e, quando não estavam a gritar, estavam a cantar, a assobiar, a declamar uma patetice... Mas não nesta noite de completa escuridão.

As centenas de pessoas, que se reuniam em volta do templo e no seu interior, retinham a respiração perante a solenidade do momento.

Este era o maior templo da Terra Antiga, erguido em honra do deus da guerra. E era ao próprio Odin que se prestava homenagem. Os guerreiros e os homens fortes da região enchiam a casa de culto até à porta. O povo tinha de assistir à cerimônia no exterior.

Eu aproximara-me por curiosidade. Havia uma fenda numa tábua da parede do templo, mesmo ao nível dos meus olhos, e foi por aí que espreitei. No interior, a grande fogueira central iluminava os rostos solenes dos senhores da guerra e a imponente e atemorizadora estátua do seu deus. Sigarr, que presidia ao ritual, deu a ordem para que a lâmina afiada da faca de bronze ceifasse a vida do bode que se agitava nervoso, como que adivinhando a negra sorte. Um jovem alto e possante para a idade que os olhos denunciavam, agarrou na cabeça do animal e desferiu-lhe um único golpe na garganta, rápido e preciso, que fez o sangue jorrar em vermelho-vivo para dentro da taça de cobre que Bjorn segurava.

Desviei o olhar à pressa. Eu já assistira ao abate de muitos animais, mas nenhum me perturbara assim. A minha pele estava suada e gelada, o meu coração batia a rebate e as entranhas remexiam-se. Se eu não tivesse o estômago vazio, teria sucumbido ao vômito. Desejei afastar-me, mas surpreendi-me aprisionada pela multidão. Dentro do templo, o bode parara de estrebuchar. Bjorn entregou a taça com o líquido viscoso que fumegava a Sigarr, e o feiticeiro ergueu-a acima da cabeça. Entoou um cântico sonoro e profundo a que todos, no interior e exterior, responderam a uma só voz, invocando e louvando o deus. Depois, fez-se silêncio, enquanto o feiticeiro levava a taça aos lábios e bebia dela, para que o espírito que chamara se apossasse do seu corpo.

A noite foi iluminada por um relâmpago colossal que me fez saltar de susto. Aproximava-se uma tempestade violenta e sobrenatural. A energia que se concentrava sobre o templo era tão forte que tombava sobre nós como poeira, brilhante e quente ao toque. Se os deuses vikings eram reais, deviam estar bem despertos e com os olhos postos nos seus súbditos.

Sigarr mergulhou a mão na taça e tocou na fronte do deus de madeira, entoando um novo cântico. Eu engoli em seco quando as centenas de vozes se ergueram em coro. E já não pararam. O feiticeiro encarou a assistência: os guerreiros escolhidos pára comandar os navios de guerra e, por detrás deles, os audaciosos companheiros. A um só tempo, todos desembainharam as espadas e o rugido do aço misturou-se com o clamor do povo. Sobre nós, um relâmpago encheu a escuridão de luz, e o trovão abafou a potente ovação. Desprovida da vontade gritante que me ordenara que fugisse sem olhar para trás, eu interiorizava cada pormenor do cerimonial.

Sigarr deteve-se perante Gunnulf, segurando a taça de cobre. A ladainha arrepiante subiu de tom quando o feiticeiro mergulhou a mão na taça e besuntou a testa do líder com o líquido da vida. Eu sustive a respiração, enquanto o guerreiro-urso lhe respondia, erguia a espada, cortava a palma da mão com a lâmina, unia o seu sangue ao sangue do animal sacrificado e besuntava a arma com essa mistura.

Rebentou outro relâmpago. Estourou outro trovão.

Sigarr deu um passo ao lado, parou em frente de Throst e o ritual repetiu-se. A minha atenção estava presa às sombras que o fogo desenhava no rosto belo do guerreiro e no brilho intenso do seu olhar azul. Quando o filho de Thorgrim rasgou a carne na lâmina afiada, eu senti uma dor fina, aguda e fria na minha própria mão. Apertei o punho com força, até os dedos me doerem, e testemunhei o momento em que Throst mergulhou a mão na taça e besuntou a sua espada com o sangue.

O ardor sufocava-me, mas eu só me atrevi a espreitar quando Sigarr parou diante do guerreiro seguinte. O sangue que vertera da minha mão fechada já me manchara o vestido. Como pudera isto acontecer? A resposta estourava com o fulgor da trovoada. Negar veementemente a força que me ligava a Throst não fora suficiente para contrariar o destino caprichoso que teimava em unir-nos, contra tudo e todos, combatendo a nossa própria vontade.

 

Enrolei a mão à capa e forcei-me a conter a tontura, mas esta não desapareceu. No interior do templo, o altar rodopiava por entre o fumo da fogueira e o colossal deus ganhava vida, estendendo os seus braços intermináveis sobre a multidão; as paredes rachavam-se, as colunas partiam-se e o sangue escorria. Muitas vidas perder-se-iam no próximo Verão. Quando Odin olhou dentro dos meus olhos, eu vi o campo de batalha.

Esta terra não era a minha, mas poderia muito bem ser. Um manto verde estendia-se até perder de vista; o céu e o mar tinham o azul da pedra mágica de Aranwen...

 

- Throst!

 

O eco da minha voz propagava-se pelo ar. Surpreendi-me perdida entre uma amálgama de corpos quentes e suados. As espadas embatiam, e o metal denso brilhava ao Sol. Os escudos chocavam e partiam-se como se fossem brinquedos. Os homens tombavam ao meu redor, e eu sofria a dor de cada um deles - uma vida desperdiçada, um sonho perdido, um amor desfeito...

De repente, sem aviso, um grito dilacerou-me o coração. Eu senti o corte da lâmina através do ventre, com a mesma precisão que sentira o golpe na mão. Olhei para baixo, mas não era o meu sangue que manchava a terra. O corpo de Throst dobrava-se, caía de joelhos e depois de costas, com a espada cerrada dentro do punho. Os olhos azuis escancaravam-se ao céu, e os seus lábios deixavam escapar um murmúrio:

 

- Pequena...

 

Um guerreiro robusto debruçou-se sobre ele. Agarrou-lhe no queixo e empunhou um punhal com destreza, rasgando-lhe a garganta de lado a lado. O sangue vermelho vida, jorrou como água da fonte. Os olhos de Throst reviraram-se, e o azul desapareceu.

A dor no meu peito era tão forte, que me enlouquecia. Não existia ar para respirar. O deus imponente permanecia inerte, no altar. A multidão corria para o porto, berrando em êxtase. Era liderada pelos guerreiros abençoados no ritual, que empunhavam archotes flamejantes. Um a um, arremessaram o fogo para dentro de um majestoso Drakkar, enfeitado para a cerimônia. O barco incendiou-se e iluminou o mar, revelando dezenas de outros semelhantes, que assistiam ao seu sacrifício. O velho navio não tornaria a ver uma batalha.

O céu explodiu num abismo de luz. Os relâmpagos cruzavam-se, formando símbolos singulares - as Runas do povo viking. Os trovões sufocavam o clamor de homens e mulheres que se despediam do Inverno e da escuridão. Para alguns, esta era a última vez que celebravam o ritual centenário. Para muitos, este era o início de uma grande aventura.

 

Abri os olhos a muito custo. A minha cabeça ainda rodopiava, e as formas resistiam a definir-se. Senti o cheiro da madeira queimada e da carne cozinhada. Estava em casa.

Quando a memória regressou, o meu primeiro reflexo foi erguer a mão à altura dos olhos para certificar-me de que tudo não passara de um horrível pesadelo. Encontrei-a entrapada com um lenço manchado de sangue.

- Devagar, Catelyn... - A voz suave da minha tia confirmou os meus temores. - Ainda não estás bem. Encontraram-te desmaiada, caída na neve, com um golpe feio na mão. Lembraste do que te aconteceu? Quem foi que te feriu?

Aceitei a sua ajuda para sentar-me na cama. Além de nós, não havia ninguém na casa; nem mesmo a pequena coruja branca. A custo, expliquei-lhe o inexplicável. A minha carne rasgara-se sem que ninguém me tocasse, no momento em que Throst fizera o juramento de sangue, perante o seu deus da guerra. Anna estava pálida, estranhamente agitada e apreensiva.

- O Throst não deve saber disto! - declarou com a voz a tremer. - Tens de afastar-te dele, Catelyn, antes que suceda uma desgraça! O Throst deve casar-se com a Halldora e ajudar o Gunnulf na liderança do povo. E tu tens de regressar à Grande Ilha e concretizar a tua missão. É necessário impedir a todo o custo a consumação do elo que vos une! Ouviste?

Era óbvio que a minha tia tinha planos definidos para o seu mundo e que estava determinada a contrariar tudo o que pudesse ameaçá-los. Mas eu fartara-me do seu egoísmo! Cansara-me de acatar as suas ordens sem uma justificação! Eu não podia simplesmente ignorar o corte na minha mão como se este não existisse! Precisava descobrir o seu significado e exigia resposta para as outras questões que mantinham a minha vida suspensa. Não continuaria a pactuar com este silêncio absurdo, que me impedia de avançar. Mairwen ia responder-me... E já! Enfrentei o seu olhar, enquanto desferia a pergunta que pressentia ser a chave do enigma:

 

”Quem é a Gwendalin?”

 

O rosto de Anna fez-se mais branco do que o manto de neve que cobria a Terra Antiga. Voltou-me as costas e dirigiu-se à fogueira, começando a espevitar o fogo.

- Creio que tu não percebeste o que eu disse! - A sua voz soou ríspida e gélida. - Ou não quiseste perceber! Eu tinha a certeza de que a tua presença aqui não nos traria nada de bom. Os teus tutores enviaram-te para uma espera inútil! Ele não virá ao teu auxílio! Se pretendesse fazê-lo, já se teria manifestado...

Ela sabia! Ela conhecia a identidade daquele que eu buscava, cuja ajuda a minha avó me prometera! E nada dissera! E nada fizera para me orientar! Saltei da cama, impulsionada pela ira. Puxei-lhe pelo braço e forcei-a a encarar-me. A minha paciência chegara ao fim.

 

”Quem é esse homem de quem falais? Onde posso encontrá-lo? Eu exijo...”

 

- Eu não vou dizer-te, Catelyn! - cortou Mairwen, com uma violência que me sobressaltou. - A Aranwen não tem o direito de impor-me tal sacrifício! Eu desisti de tudo por esta vida! Lutei muito para chegar onde estou e não irei perder o que conquistei para ajudar aqueles que me desprezaram. Agora, esta é a minha família! Não me arriscarei mais por ti!

Recuei como se tivesse levado uma bofetada. Vi o arrependimento no olhar da minha tia, mas, antes que ela pudesse reagir, já eu fugira para a rua. Anna só me ajudara, porque não tivera alternativa e, agora, deixava claro que me queria fora da sua vida. Depois disto, nada voltaria a ser igual. A confiança que eu depositava nela estava desfeita.

Pareceu-me ouvir o apelo de Ingrior, mas não olhei para trás. Corri, fustigada por uma energia avassaladora, impossível de conter dentro de mim. Pulei a cerca, e a floresta abriu-me os braços. Avancei descalça sobre a neve, na mais completa escuridão. Eu não sabia para onde ia, mas os meus pés conheciam o caminho e os meus olhos viam tão distintamente como num dia ensolarado.

Passado um tempo irreal, encontrei um ribeiro de água morna. Segui-o sem hesitação, como se esse fosse o caminho para casa.

Apesar de subir, cada vez mais e mais, eu não acusava o cansaço. Só parei quando uma grande pedra me bloqueou a passagem. Era da mesma forma e cor da Pedra dos Sábios e erguia-se no centro do ribeiro, com a água fluindo em seu redor. Eu chegara até aonde me era permitido.

Trepei para a pedra e coloquei-me em posição de meditação. Os meus sentidos estavam tão despertos que conseguia escutar o coração da floresta, batendo ao ritmo da vida que nascia e fenecia a cada instante; o rugido zangado do mar, enquanto açoitava as escarpas geladas; as gargalhadas dos aldeões, de regresso a casa após uma noite de festa... Os homens da família Grim cavalgando lado a lado, guerreiros imponentes sobre cavalos possantes; Ingrior correndo ao seu encontro, com os longos cabelos revoltos pelo vento; atrás dela, Halldora gritando furiosa; Throst e Krum virando as montadas na direção da floresta; o olhar furibundo de Gunnulf; os berros tresloucados da sua irmã...

Eu queria que Throst me encontrasse! Desejava estar junto dele, sentir o calor dos seus braços, ver o brilho dos seus olhos, ouvir o som da sua voz. Desta vez não iria negá-lo! Enquanto as árvores desviavam Krum do carreiro e abriam os ramos para indicar o caminho a Throst, o cântico doce do ribeiro trazia um murmúrio suave de uma voz sem idade:

 

”O destino com que as estrelas te brindaram galopa ao teu encontro... Chegou o momento da decisão, Catelyn da Floresta Sagrada da Grande Ilha...”

 

Não tardei a ouvir as passadas do robusto cavalo malhado. Mesmo de olhos fechados, vi o clarão do archote de Throst. Em menos de nada, ele chegara à margem do ribeiro. Desmontou, prendeu o cavalo a uma árvore e enterrou o facho na neve. Hesitou, perante a necessidade de entrar na água, mas acabou por trepar para a pedra. Encontrei o seu olhar azul consumido pelo tormento.

- Não sei como vim até aqui...

Não o deixei concluir. Lancei os meus braços em redor do seu pescoço e estreitei-o com toda a força. Throst correspondeu com o mesmo ardor, respirando pesadamente, enquanto me aninhava de encontro ao seu peito. Eu senti os seus lábios nos meus cabelos e inspirei felicidade. Como era possível que algo tão errado me parecesse tão certo?

O tempo passou por nós como uma brisa de Verão. Por fim, foi ele quem tomou a iniciativa de se afastar.

- Por que fugiste, Pequena? Tu prometeste...

Toquei nos seus lábios para silenciá-lo. Devagar, expliquei-lhe que eu não pudera resistir ao apelo deste lugar. Porém, a atenção de Throst estava presa à minha mão e ao sangue seco que manchava o lenço. Segurou-a com cuidado, murmurando com a voz a tremer:

- A Ingrior contou-me que te feriram durante o ritual. Quem foi, Pequena?

Quando eu comecei a negar, a expressão de Throst modificou-se, e a sua voz denunciou a perturbação e a raiva que o engasgavam.

- Eu preciso saber! - insistiu imperativamente. - Juro que matarei o desgraçado que te magoou! Diz-me quem foi!

Eu não sabia como contar-lhe a verdade. Suspirei, em busca de coragem, e coloquei a minha mão sobre o seu peito, mergulhando no olhar azul. Throst estremeceu, e o seu coração debandou a galope debaixo dos meus dedos. Abanou a cabeça, sem esconder a confusão.

- Eu? Mas, como...?

Lentamente, retirei o lenço e revelei-lhe a palma da minha mão. Respirando aos borbotões, Throst examinou o corte com cuidado. Por fim, colocou a sua mão ao lado da minha e abriu-a devagar. A sua ferida começara a cicatrizar, mas ainda estava ensangüentada. A lâmina lacerara um padrão estranho, arredondado, como uma lua crescente... igual ao que se encontrava na minha carne. Percebi que ele tremia. A sua expressão estava inundada de dúvidas, crispada por um sofrimento inconfessável e uma ansiedade palpável.

- Como é possível? - Gemeu num sussurro. - Eu não entendo...

A minha cabeça também latejava, cheia de interrogações. Contudo, neste instante de pura perfeição, questionar a nossa união era uma ofensa à magia que nos acalentava. Nos braços do poderoso Viking, eu sentia-me maior do que a vida, capaz de ultrapassar todos os obstáculos, apta para vencer qualquer desafio. E a segurança que ele me inspirava confrontava-me com a revelação da sua morte. Eu tinha de impedir essa desgraça! Mas como? Além disso, mesmo que possuísse o poder de salvá-lo, teria o direito de interferir nos desígnios do destino?

Berchan sempre me avisara de que as Visões eram perigosas e mutáveis, dependentes da interpretação de cada indivíduo. Consequentemente, ao tentarmos impedir uma fatalidade, podíamos estar a desencadeá-la. Cada um devia enfrentar a sua própria sorte, afirmava o meu irmão. Por essa razão, nunca me escutara quando eu quisera contar-lhe sobre a voz da maldição que me assombrara na noite em que Fiona nascera. Também por isso, eu não devia revelar a Throst a Visão que tivera do seu futuro.

- Pequena... - começou ele subitamente, arrastando-me de volta à realidade. - Como posso explicar-te? Eu sou um homem racional... Sempre encarei a magia como algo perigoso... mesmo abominável! Algo que tinha de ser evitado a todo o custo! E agora... Parece que os fantasmas do passado regressaram para me assombrar e estão a usar-te para me enlouquecer. Sinto muito! Eu jamais te magoaria...

A sua perturbação era tão extrema, que eu apressei-me a gesticular: Eu sei! A culpa não foi tua... Está tudo bem!

Perdi o fôlego quando Throst me segurou as mãos e as beijou longamente, antes de exclamar:

- Gostava tanto que pudesses falar!

Ficamos presos pelo olhar e quase nos sobressaltamos com o pio melódico que eu já conhecia bem. A pequena coruja pairou com elegância por cima das nossas cabeças e pousou num ramo da árvore mais próxima, com o olhar brilhante competindo com a luz bruxuleante do archote. Quando tornei a encarar Throst, surpreendi-lhe um sorriso trêmulo.

- Encontraste uma companheira para a vida! - murmurou. - Acho que ela gosta de ti!

Correspondi ao seu sorriso, mas não consegui sustentá-lo. Throst colocou as minhas mãos sobre o seu coração. Eu não precisava senti-lo para saber que batia tanto como o meu. Fechei os olhos, comovida, e respirei o seu cheiro com declarada satisfação. Os seus dedos fortes deslizaram pelo meu rosto e entrelaçaram-se nos anéis dos meus cabelos. O suspiro do guerreiro viking pairou, acompanhado por um sussurro rouco:

- Eu acho... que... Acho que... eu também gosto de ti!

O coração da floresta parou, os seus filhos silenciaram e até o vento se acalmou. Apenas o ribeiro mantinha o seu sussurro insistente que despertava os espíritos.

Não se pode mentir numa floresta encantada, diante de um ribeiro virgem e sobre uma pedra sagrada, tão antiga como a própria Terra. Este era um lugar onde todo o bem e o mal podiam tomar forma. Mas não havia maldade em Throst. Ele era um homem puro. E negá-lo seria uma aberração contra mim própria; a rejeição de tudo o que eu aprendera. Lenta e dolorosamente, Throst alojara-se no meu peito e ganhara o meu afeto. Nós estávamos prisioneiros de algo que nunca poderia ser. Mas a magia do momento suplantava-me e sugava qualquer intenção de resistir ao impulso de entregar-me às emoções.

- E tu? - insistiu, perante o meu silêncio. - Gostas de mim? Só um pouco?

Ele parecia tão vulnerável como uma criança! Eu sabia que iria arrepender-me de tudo isto quando a magia se esgotasse e a realidade nos batesse na cara, qual onda bravia contra um rochedo. Mas a minha vontade já não me pertencia. Confirmei com a cabeça, e Throst estreitou-me nos braços, afundando o rosto nos meus cabelos. A sua voz soou tão débil que mal consegui escutá-la:

- Acreditarás se eu te disser que já te conhecia? Que, antes de te encontrar, há muito que vivias nos meus sonhos?

Cerrei os dentes para dominar a emoção que me arrasava. Esta era a prova de que nenhum de nós controlava a sua própria vida; de que o nosso encontro era tão inevitável como a seqüência das marés, o nascer e o pôr do Sol... Nem a distância que separava as nossas terras, nem o ódio que opusera os nossos povos, impedira que, neste instante da história do mundo, um poder divino nos juntasse de forma inexplicável, mas definitiva.

- Não quero saber o que isto significa - segredou ele docemente.

- Não me importam as coisas estranhas e ilógicas que têm acontecido. Não me importa quem tu és... ou quem eu sou! Pouco interessa que amanhã a realidade nos separe, porque nós já vivemos este momento... este sonho... E este sonho é só nosso!

Os nossos corações batiam como um só. Sem hesitação, Throst separou a carne do seu corte, até o sangue tornar a verter. De imediato, a minha ferida também se abriu. Fiquei a olhar para a sua mão estendida, com a respiração suspensa, temendo e desejando. Lentamente, entreguei-lhe a minha mão, e Throst apertou-a. Os nossos olhos não se separaram, enquanto a essência da vida se misturava, e os seus lábios ditavam a nossa perdição:

- A partir deste instante estaremos ligados, em corpo e em espírito, como nenhum homem e nenhuma mulher jamais estiveram. Eu juro pelo meu sangue, sobre o teu sangue, que nunca te abandonarei. A minha vida pertence-te. Irei até ao fim do mundo para te proteger. Lutarei pela tua honra e morrerei pela tua vida. A partir deste instante, faço parte de ti... É esta a vontade dos deuses. E é esta a minha vontade!

Para mim, um pacto de sangue era algo sagrado, e eu não tinha a menor dúvida de que também o era para Throst. Enquanto ele levava a minha mão aos lábios, a minha mente berrava que nós estávamos a fazer uma loucura; que Throst jamais conseguiria cumprir este juramento; que o meu destino se encontrava muito longe do seu; que nós estávamos a confundir a vontade dos deuses; que eu não devia retribuir os votos...

Era tarde! Beijei-lhe a mão e apertei-a contra a minha face. Eu desconhecia o que o futuro nos reservava, mas sabia que esta escolha acabara de traçar um novo rumo para as nossas vidas.

Throst soltou uma exclamação imperceptível e abraçou-me. Sentia-se atordoado, prestes a tombar na água. Eu sabia, porque partilhava dessa sensação. A nossa relação nunca seria física, pois o juramento feito a Gunnulf não podia ser desfeito, mas nem Halldora romperia este elo espiritual. E eu já não tinha medo, nem sequer de regressar e enfrentar a censura de Anna, a fúria de Halldora ou a maldade de Gunnulf, porque Throst estaria sempre comigo.

A brecha de luz que rasgava a bruma despertou-nos. Era o primeiro raio de Sol que rompia a escuridão do Inverno.

Throst não tornou a falar. Ajudou-me a montar e subiu para trás de mim, envolvendo a minha cintura com um braço protetor. Depois, incitou o cavalo a andar, e eu despedi-me da floresta, sem saudade, pois pressentia que muito em breve regressaria.

Ao entrarmos na Casa de Grim, fomos surpreendidos pela multidão que nos aguardava. Mairwen estava visivelmente angustiada. Krum e Signy suspiraram de alívio. Ingrior abraçou-nos com igual carinho. Quanto aos outros, eu nem precisava encará-los para perceber-lhes o rancor e o desprezo.

O ódio de Halldora era tão intenso que empestava o ar. O meu olhar incrédulo ficou preso no brilho da pedra azul-celeste que lhe pendia do pescoço, ornamentando o decote generoso do vestido novo. Senti o estômago contrair-se como se tivesse recebido um pontapé. Throst dera o amuleto da minha avó àquela criatura hedionda! Como fora capaz de fazer um pacto de sangue comigo, depois de tão abominável desfeita? Esta era uma traição que eu não podia perdoar!

Talvez devido à harmonia de que havíamos partilhado durante a noite, Throst apercebeu-se do meu sobressalto. Murmurou baixinho, com a voz carregada de constrangimento:

- A Halldora pediu-me tanto que eu lhe oferecesse o colar, que não fui capaz de negar-lhe... Julguei que não tinha importância! A pedra não tem nenhum valor...

Se eu pudesse, tê-lo-ia esbofeteado. O meu olhar declarou-lhe que ele jamais entenderia o valor da minha pedra. Magoada, não resisti quando Anna me amparou nos braços com um cuidado sincero.

Era óbvio que a casa já ouvira muitas considerações acerca do nosso paradeiro. Halldora estava rubra, ofegava e batia no peito com os punhos cerrados, num nervosismo crescente, qual fera enraivecida, prestes a investir sobre mim com a morte no olhar. O semblante gelado de Gunnulf também não ocultava a sua ira e a voz de trovão não se fez esperar:

- Quebraste o teu juramento, Throst?

O olhar azul do primo estreitou-se, enquanto a sua resposta surgia fria e impaciente:

- É essa a fé que depositas em mim? Então, deves reconsiderar a decisão de combater ao meu lado! Não é prudente arriscar a vida junto de um homem em quem não se confia.

- Estais a ver? - guinchou Halldora ardorosamente. - O Throst revolta-se contra nós! Ainda alguém duvida de que esta mulher é uma bruxa? Olhai para eles, todos sujos de sangue! Tenho a certeza de que esta maldita enfeitiçou o meu noivo!

 

Eu senti-me gelar, ao compreender a gravidade da situação que fora lavrada nas nossas costas. As faces de Throst enrubesceram, enquanto rosnava ameaçadoramente:

- Eu já te pedi que parasses com esses delírios, Halldora! Estou farto da tua impertinência!

- Começo a acreditar que a minha irmã tem razão! - O tom de Gunnulf deixou as minhas pernas bambas. - Como explicas o teu protecionismo para com essa escrava, Throst? Escuta a tua voz! Estás a insurgir-te contra a tua noiva e o teu próprio sangue, por causa de uma mulher que nada vale e da qual não podes desfrutar. Livra-te dela! Entrega a escrava ao meu cuidado e põe fim a esta desconfiança.

- Não! - revidou Throst, com a fúria a estalar na pele. - Esta discussão é ridícula! Eu não posso acreditar que te deixes influenciar pelos ciúmes infundados da tua irmã, Gunnulf! Não irei dar-te a Pequena, porque tenciono oferecê-la à Ingrior. E estou cansado desta embirração! Se a presença da escrava te aborrece, levá-la-ei para a minha casa.

Fez-se um silêncio tenebroso. Anna tremia quase tanto como eu. Krum estava pálido. Signy recolhera-se a chorar. Throst e Halldora bufavam de raiva. E Gunnulf... Eu sentia que a sua exigência não fora inocente. Gunnulf desejava separar-me do primo. Talvez já soubesse que eu era filha do seu maior inimigo! De qualquer forma, nas mãos do implacável assassino e longe da proteção de Throst, a minha vida valeria menos do que um cabelo. Foi pois, com enorme surpresa, que o vi recuar, admitindo num tom perfeitamente controlado:

- Tens razão! Por vezes, a Halldora cega-me! - Avançou para o primo e estreitou-o com força. - Esqueçamos o que se passou. Este é o último dia em que poderemos apreciar a união de toda a família, por isso vamos comer, beber e festejar...

- Gunnulf!

O protesto de Halldora magoou-me os ouvidos. Pensei que o guerreiro-urso fosse reavaliar a sua decisão, mas limitou-se a replicar:

- Este assunto está encerrado! Eu não tenho razões para questionar a palavra do Throst. E tu, Halldora, se não confias no teu noivo, deves repensar o vosso casamento.

Eu vi no olhar de Throst que a brusca mudança de atitude de Gunnulf não o convencera. Eles deviam conhecer-se bem, porque, além de partilharem o mesmo sangue, haviam crescido juntos como homens e guerreiros, travado muitas batalhas, repartido alegrias e tristezas. Todavia, Throst não insistiu em arrancar-me das garras da fera. Voltou-me as costas, como se, subitamente, eu tivesse perdido toda a importância.

Enquanto regressava para junto das escravas, mastiguei o quanto fora tola por confiar no capitão viking. Todos aqueles que me prometiam amizade recuavam diante do esgar mortífero de Gunnulf. Agora, além de encontrar-me sozinha, eu ainda perdera o meu único tesouro. Halldora obtivera sem esforço o que Myrna tentara durante anos, sem sucesso.

Bjorn apareceu de manhã cedo. Animou-me um pouco com as suas tropelias e galanteios, mas a tristeza permanecia cravada no meu peito. Throst e Ingrior arrumaram os haveres e prepararam-se para partir. Em breve, eu ficaria à mercê dos caprichos de Halldora e dos humores de Gunnulf. O comportamento de Anna também mudara. A minha tia estava arredia e assustada. O nome que eu atirara para o ar caíra sobre a sua cabeça como uma muralha de pedra. Até Signy me parecia diferente no trato. Eu sabia que Halldora envenenava a cunhada com a desconfiança de que Krum nutria uma paixão por mim. Em breve, o meu primo também se afastaria, pois não podia explicar à esposa, que tanto adorava, quão inocente era o nosso afeto.

Throst não se despediu de mim. Além de estar controlado pelo olhar dominador da noiva, eu sabia que o desgostara pela forma violenta como reagira por causa do amuleto. Mas, o que mais podia fazer? Mairwen convencera-me de que Throst haveria de devolver-me a pedra mas, ao invés, ele oferecera-a à noiva. Agora, a tirana jamais se separaria dela. Pior; se descobrisse que a pedra me pertencia, seria capaz de destruí-la só por despeito!

Esse dia foi um suplício. Halldora divertiu-se a fazer pequenas maldades que me feriram o corpo e a alma. Para terminar em beleza, espalhou as folhas espinhosas de uma planta venenosa pela minha manta. Eu só me apercebi do ardil depois de receber muitas picadas inevitáveis, mas não esbocei um queixume. Retirei os picos da carne, quando todos já dormiam, e dispus-me a enfrentar uma noite tormentosa de dores e febre.

O tempo passou lentamente, troçando da minha agonia. Eu acabei por levantar-me sem ter pregado olho e embrenhei-me nas tarefas diárias, acreditando que a distração do trabalho poderia amenizar o meu sofrimento.

Passei a manhã no estábulo e, quando voltei, encontrei a casa deserta. Na fogueira, o grande caldeirão cozia a carne para o almoço. Provavelmente, Anna fora ao mercado com as raparigas.

Quando passei pela mesa das refeições, o meu coração falhou uma batida. A pedra de Aranwen jazia abandonada, com o fio tecido pela minha mãe pendendo para o chão. Tombei num abismo de possibilidades. Teria Halldora desgostado do presente do noivo? Ou seria uma armadilha? Apesar dos avisos que a mente me berrava, eu não resisti a segurar na pedra, que se moldou à minha mão como se suplicasse por proteção. Sobre a minha cabeça, a coruja branca esvoaçava numa algazarra aflitiva, mas eu não lhe prestei atenção. O dilema que enfrentava era muito mais importante. O que fazer com o amuleto? Conseguiria escondê-lo? Se o enterrasse na floresta, poderia voltar para buscá-lo, antes de partir. Não seria um roubo... A pedra era minha!

Enquanto me afundava em hesitações e mágoas, a porta escancarou-se sem aviso. As senhoras da casa entraram, seguidas por uma escrava que trazia Eric ao colo. Instintivamente, escondi a pedra atrás das costas e pasmei ao perceber a razão por que Halldora retirara o fio do pescoço. Durante a noite, a pedra provocara-lhe uma violenta infecção.

A pele do seu peito, sempre imaculadamente branca, estava vermelha, queimada, carregada de pontos amarelos e espessos de vurmo. O simples toque da roupa devia ser insuportável. Anna segurava uma combinação de ervas curativas, e Signy tentava confortar a afogueada cunhada, garantindo-lhe que ficaria boa. Sem delonga, Halldora dirigiu-se à mesa, resmungando:

- Onde está essa porcaria? Vou atirá-la para a fogueira! E o Throst vai ouvir das boas!

Estacou ao deparar-se com o vazio. Num piscar de olhos, virou-se para mim, bradando:

- O que estás a esconder atrás das costas? Mostra-me as tuas mãos! Neguei com a cabeça e tentei recuar, mas a tirana foi mais rápida e agarrou-me o braço, com tanta força, que quase mo deslocou. Apesar de enraivecida, os seus olhos brilhavam de satisfação. Sabia que, finalmente, a vitória lhe pertencia.

- Abre a mão! - ordenou. - Abre!

Fraca como estava, eu não opus muita resistência. Halldora vislumbrou uma ponta do fio e puxou-o com ferocidade. A pedra escapou da minha mão e ficou suspensa nos seus dedos.

- Ladra! - berrou triunfante, enquanto exibia o amuleto. - Eu não vos disse que esta peçonhenta era uma ladra? Vós não acreditastes em mim! Pois, aqui está a prova!

Fitei Anna em busca de auxílio. A minha tia era a única pessoa que podia desfazer o terrível equívoco. Gesticulei aflita e suplicante.

- O que é que ela está a dizer? - perguntou Signy, angustiada. Anna estava lívida, enfrentando um dos maiores dilemas da sua vida. Contrariar a enteada para me defender significava pôr em causa todas as suas preciosas conquistas.

- Ela está a dizer... que a pedra lhe pertence - respondeu a meia voz.

- Mentirosa!

A bofetada de Halldora apanhou-me desprevenida. O impacto foi tão violento, que me atirou ao chão.

- Mentirosa! - repetiu. - Este colar era do Throst! Toda a gente sabe disso, sua ladra!

Içou-me pelos cabelos e forçou-me a suster de pé. Depois, arrastou-me sem dificuldade até à fogueira, onde o guisado de carne fervia no caldeirão, enquanto rugia:

- Sabes como se castigam as ladras nesta terra? Vais ficar a saber, miserável!

Eu tentei debater-me, mas estava imobilizada. A minha cabeça rodopiava. Ainda não comera nada e já trabalhara muito. Eu só tinha pele sobre os ossos, e Halldora possuía a força do seu povo, aliada ao furor do ódio. Jamais conseguiria escapar-lhe! Bater nela com a minha mão livre era o mesmo que pretender arrombar uma fortaleza a murro. Os meus lábios escancararam-se num grito de mortificante horror que ninguém escutou, quando o vapor começou a queimar-me. Quis evocar um feitiço para causar-lhe uma dor de barriga e forçá-la a libertar-me, mas a minha mente estava toldada pela aflição. Quando eu já pensava que ia perder os sentidos, Anna veio ao meu auxílio:

- Solta a Pequena, Halldora! Isso não se faz! Deixa-a...

Mas a tirana chegava bem para nós duas. Eu ia perder a mão! Halldora iria mergulhá-la no caldeirão, e a carne largaria dos ossos... O meu sofrimento era tão extremo que não me permitia raciocinar. Senti-me desfalecer.

- Por Thor... O que diabo se passa aqui?

A confusão era tanta, que nenhuma de nós ouvira a porta abrir-se. Throst quedava-se na entrada, sem acreditar no que os seus olhos revelavam. Krum chegou nesse instante. Com o susto, Halldora libertou-me, e Anna conseguiu arrastar-me para longe do tormento.

- Que barbaridade é esta, Halldora? - perguntou Throst, sem fôlego. - Enlouqueceste?

A tirana recuou hesitante, mas recuperou depressa e cobriu-se com a máscara de vítima, correndo para o noivo enquanto choramingava:

- Esta criatura é uma ladra, meu amor! Apanhei-a a roubar o colar que tu me ofereceste!

Ingrior surgiu por trás de Krum. Aproximou-se, arquejando de aflição:

- O que foi que aconteceu? Pequena... Que os deuses te ajudem!

Anna aplicou-me um ungüento para aliviar as dores, e Ingrior ajudou-a a fazer o curativo. Aos poucos, eu recuperava a lucidez. Throst retorquia:

- Mesmo que isso seja verdade, Halldora, achas que justifica o que acabaste de fazer?

Krum tremia de indignação. Sem se importar com as conseqüências, pousou a mão sobre o meu ombro, esforçando-se para me confortar.

- Como é que a Halldora pôde ser tão cruel? - mastigou entredentes.

- Se vós não tivésseis chegado, teria havido uma tragédia! - declarou Anna, profundamente abalada.

- Foi o pássaro que nos avisou - explicou Krum, despertando a perplexidade geral. - Nós íamos a caminho do mercado quando a coruja apareceu, piando como louca. O Throst percebeu que algo de grave se passava...

A coruja salvara-me! Como eu não dera ouvidos ao seu alarme, ela voara em busca de socorro. E, mais uma vez, Throst não me falhara.

Halldora continuava a choramingar, tentando pendurar-se no pescoço do noivo:

- Eu perdi a cabeça, amor! Desculpa! A idéia de ficar sem o teu presente cegou-me de raiva! Mas prometo que irei pagar pelos danos que causei à tua escrava...

- Não percebes nada, pois não? - Throst afastou-a com um empurrão. - Achas que pieguices e mimos me farão esquecer as tuas atrocidades? Tu és má, Halldora!

- Throst... - argumentou ela, ultrajada. - O que é que se passa contigo? Eu estou a dizer-te que surpreendi esta escrava a roubar-me! E, além de ladra, ela é mentirosa! Tentou convencer-nos de que o colar lhe pertencia!

Throst engoliu em seco e encarou-me pela primeira vez. A expressão do seu rosto era um pedido de perdão, repleto de arrependimento e comiseração.

- E é verdade! Eu gostei tanto dessa pedra, que a reclamei para mim... Não devia ter cedido ao teu pedido! Dei-te algo que não me pertencia e fui mais uma vez responsável pelo sofrimento desta rapariga.

Halldora calou-se, assombrada com a reação do noivo. Sabia que estava a perder, mas jamais admitiria a derrota. Rapidamente, mudou de estratégia:

- Então, está explicado por que a proteges tão cegamente! Esta criatura é uma bruxa e usou a influência da pedra para te manter em seu poder. Desperta do feitiço, Throst! Eu sou a tua noiva! A mulher que te ama! A mulher que tu amas! Vamos casar! Não podes colocar-te contra mim para defenderes uma desconhecida! Tens de matar a escrava! Tens de matá-la já!

 

Throst fixou a noiva como se a visse pela primeira vez. Sem uma palavra, estendeu a mão reclamando o colar. Receosa, ela devolveu-lho.

Na casa reinava um silêncio arrepiante. Throst apertou a pedra entre os dedos e aproximou-se de mim num passo incerto. Eu testemunhei a tensão no seu corpo e a emoção no seu olhar. Por trás dele, Halldora abriu um sorriso deliciado, confiante no seu poder, e insistiu efusivamente:

- Mata-a! Só assim nós voltaremos a ter paz! Liberta-nos da bruxa...

Throst observou a minha mão, que Anna e Ingrior haviam ligado com perícia. Depois, murmurou comovido, enquanto colocava o colar no meu pescoço:

- Eu sei que as minhas desculpas não acalmarão a tua dor. Mas acredita que lamento sinceramente! Esta pedra nunca deveria ter saído do teu...

O guincho de Halldora cortou-lhe a fala. Throst virou-se, a tempo de evitar o ataque da noiva enraivecida. Prisioneira dos seus braços fortes, ela debateu-se, esperneando e tentando atingi-lo com os punhos, enquanto berrava, possuída pelo ódio e pela frustração:

- Tu não podes fazer isso! Esse colar é meu! Tu ofereceste-mo!

- E tu não o mereceste! - trovejou Throst, perdendo a paciência. - Assim como não mereceste as atenções desta rapariga, que tanto te podia ter ensinado. Mas tu nunca quisestes aprender, pois não, Halldora? Achas que sabes tudo! Pensas que o mundo te pertence! Pois não é assim! Não passas de uma criança mimada e egoísta, que tudo pede e nada dá em troca!

Halldora libertou-se com um safanão. O que restava da sua compostura esfumou-se, quando cuspiu desdenhosamente:

- Se é isso que pensas, não sei por que queres casar-te comigo!

- Sinceramente, eu também já não sei! - retrucou ele, no mesmo tom. - Só sei que tu não és a mulher que eu acreditava que fosses. Desculpei as tuas birras, os teus caprichos e manhas, durante demasiado tempo! Agora, basta! Estou farto!

Halldora nem se apercebia de que estava a enterrar-se num pântano de veneno. O furor da sua ira forçava-a a enfrentar o noivo, sem medir as conseqüências:

- Estás a terminar o nosso namoro, Throst?

Tal como eu, todos sustiveram a respiração. Vi a esperança brilhar no olhar de Ingrior. Teria Throst coragem? Esta era a sua oportunidade de escapar da perpétua infelicidade ao lado da vil tirana!

- Isso só depende de ti - respondeu ele amargamente. - Eu gosto muito de ti, Halldora! Mas a mulher em que te transformaste não é a que eu desejo para companheira e mãe dos meus filhos. Se não mudares de atitude, podes escolher outro marido.

O silêncio ruiu sobre a casa. Num piscar de olhos, as faces de Halldora passaram de um vermelho intenso para um branco cadavérico, ao compreender que fora longe demais. Ainda tentou apelar, mas Throst ignorou-a. Dirigiu-se à irmã, sem sequer consultar a vontade de Anna:

- Ajuda a Pequena a reunir o que lhe pertence. Vamos levá-la para a nossa casa.

Fechei os olhos, atordoada. Ouvir isso era o que eu mais desejava, mas também o que mais temia. Quando procurei a opinião da minha tia, Anna limitou-se a confirmar com a cabeça. Depois do que acontecera, nada mais havia a fazer.

- A bruxa não levará um fio de lã desta casa! - berrou Halldora, empurrando Signy que tentava acalmá-la. - Vais assumir a tua amante, Throst? Eu não me submeterei a tão grande humilhação! Podes esquecer que eu existo!

Gesticulei devagar para que Throst e Ingrior percebessem que eu só desejava acabar depressa com este suplício. Krum tomou a iniciativa de conduzir-nos à porta.

- Eu vou acompanhá-los - decidiu. - É o mínimo que posso fazer!

Na despedida, Anna suspirou emocionada, engolindo em seco antes de murmurar:

- Perdoa a minha fraqueza! Estou velha e cansada...

Apertei a sua mão, esforçando-me para afogar o ressentimento. Afinal, Anna era apenas uma humana. Mairwen, ao contrário do que eu pensara e desejara, há muito que perecera.

 

Fizemos o caminho até à propriedade dos filhos de Thorgrim em silêncio. Throst sentara-me no seu cavalo, diante dele, e mantinha-me apertada junto do corpo. Sem me importar com o que quer que fosse, deixei a cabeça pender e aninhei-me no seu peito. A minha dor era grande, quase insuportável, mas o pior já passara. A mão sararia com cuidados, recuperara o amuleto da minha avó, ia viver pacatamente na boa companhia de Ingrior e estava nos braços de Throst, escutando as batidas fortes do seu coração, sentindo os seus músculos controlando o robusto cavalo malhado. Tudo isto, era muito mais do que ousara desejar.

- Perdoa-me por não ter chegado a tempo de evitar a tua dor murmurou ele ao meu ouvido, forçando-me a regressar à realidade.

- E perdoa-me por não ter visto o quanto sofrias naquela casa! Isto só aconteceu por minha culpa! Se eu não tivesse oferecido o teu colar à Halldora...

Desejei dizer-lhe que nada havia para perdoar. Afinal, segundo a Lei Viking, os haveres dos escravos tornavam-se propriedade do seu senhor. Logo, como meu dono, ele podia fazer o que entendesse com o colar. Se o oferecera a Halldora, eu realmente cometera um furto. Seria assim que todos interpretariam a história. Mas Throst via mais longe!

Sensibilizada com o seu cuidado, ousei tocar-lhe no canto dos lábios, puxando-o para cima para forçá-lo a sorrir. Queria que entendesse que eu estava bem e que ele não necessitava de preocupar-se mais. Throst ergueu as sobrancelhas, surpreendido pelo meu olhar ansioso. Voltou a fixar a sua atenção no carreiro, mas não sem antes abrir um largo sorriso.

- Que Thor me ajude! - suspirou, num desabafo bem-humorado e repleto de calor. - Isto vai ser muito, muito complicado!

Complicado? Sim, talvez fosse. Porém, quando voltei a mergulhar a cabeça no seu peito, todos os problemas se desvaneceram e permiti-me flutuar num mar de tranqüilidade. Mais tarde, pensaria nas novas dificuldades e desafios que se erguiam diante de mim, e teria tempo de sentir-me assustada e miserável.

 

                                                                                            Sandra Carvalho  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades