Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ÚLTIMA TAÇA - P.2 / Emile Richards
A ÚLTIMA TAÇA - P.2 / Emile Richards

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                             Capítulo 2 1

Peggy e Bridie vestiam shorts, e as duas tinham as pernas brancas como a espuma das ondas de Clew Bay. O vento soprava em rajadas suaves, mas o sol de agosto compensava. Bridie virou o rosto para o céu e fechou os olhos de satisfação.

— Adoro a luz do sol. Eu queria poder colocar um pouquinho numa garrafa e guardar para os dias de chuva.

— Eu também. Quando você mora num lugar onde o sol não é garantido, aprende a valorizá-lo.

— Kieran gosta.

Peggy olhou para o lado e viu seu filho vestido de short, sentado sobre um montinho de areia, com um balde e uma pá de brinquedo. Estava cercado de blocos de madeira, mas até o momento só se interessara pelos raios de luz, que atravessavam os galhos das árvores e faziam desenhos no chão. Banjax estava deitado na sombra, aproveitando o calor do verão.

— Pelo menos ele não está com medo do vento como tinha, logo que chegamos.

— Ele aprende as coisas. — Bridie fez uma pausa. — Só não é muito rápido.

E esta, pensou Peggy, era a razão pela qual ela acordava todas as manhãs com o coração apertado. Bridie estava certa. O progresso de Kieran era tão lento que ela já não tinha mais nenhuma novidade para contar às irmãs. Chegava quase a ter medo das ligações e perguntas, que provavelmente fariam, a respeito de seu filho.

 

 

 

 

— Fiquei contente que pudesse passar o dia comigo. — Peggy fez sinal para que Bridie se aproximasse e, quando ela o fez, Peggy desmanchou a trança malfeita, penteou-lhe os cabelos com os dedos e a trançou novamente. O gesto foi quase automático. Ela e Bridie se tornaram mais próximas durante o verão e pequenos gestos de carinho passaram a ser algo comum.

— A minha mãe fazia isso — disse Bridie. — O papai tenta, mas ele não é muito bom. E acho que também não gosta gosta.

A retração de Finn em relação à filha preocupava Peggy, mas nunca haviam discutido sobre esse assunto. Ela sabia que ele amava Bridie e que a menina o amava também, mas os dois eram como estranhos, que caminham na mesma floresta, porém em trilhas paralelas.

— Ninguém ensina meninos a fazer trancas. — Peggy amarrou o elástico na ponta e afagou o ombro de Bridie. Ela não voltou ao seu lugar, apenas aconchegou-se encostada a Peggy, que passou o braço ao seu redor, dando-lhe um abraço camarada. Bridie precisava de um adulto que lhe demonstrasse amor, e Peggy precisava de uma criança que retribuísse. O relacionamento era mutuamente gratificante.

Depois de um instante, Bridie lançou-se à areia, deitando de bruços.

— Quando eu crescer quero ir morar bem, bem longe.

— Quer? Longe da Irlanda?

— Por que deveria ficar? Aqui é um lugar em que acontecem coisas ruins.

Por um momento Peggy não entendeu. Depois percebeu que Bridie não estava falando de política, ou da história de fome e miséria do país. Ela se referia a si mesma, à sua família.

— Mas seu pai mora aqui — disse Peggy. — E sentiria saudades de você.

— Acho que não. — Bridie rolou, ficando de barriga para cima. — Ele não repara muito em mim.

Peggy teria preferido ouvir um tom de raiva na voz da menininha à mágoa. Estava claro que Bridie via pouca chance de mudar a maneira como o pai se sentia.

— Pode até parecer assim. — Peggy foi sentindo a menina. — Quando coisas tristes acontecem, como aconteceu com sua família, todos ficam abalados. Às vezes as pessoas não sabem como seguir em frente, que passos devem tomar, como agir, ou até como pensar.

— Foi assim que se sentiu quando Kieran nasceu? Porque não parece. Acho que você o ama mais ainda, só porque as coisas não deram muito certo para ele.

— Seu pai a ama, Bridie, ele apenas esquece de demonstrar isso com freqüência.

— O que faremos com Kieran hoje?

Peggy havia planejado uma aula. Ela o havia trazido ao ar livre para trabalhar com habilidades de imitação, sem palavras. Ter uma sala de aulas era importante, mas Kieran precisava ser ensinado a evitar as distrações e também a aprender em outros lugares. Então havia escolhido o montinho de areia e fizera uma lista de comportamentos para que ele copiasse. Se aprendesse a imitar comportamentos sem ter que usar as palavras, então, outros comportamentos poderiam vir em seguida, com mais naturalidade.

É claro que de uma forma ou de outra, eles já faziam exercícios de imitação há meses, e com muito pouco sucesso. Nos seus melhores dias, ele prestava atenção e colaborava, chegando a parecer gostar da atividade. Mas era mais freqüente ficar irritado, ou frustrado, recusando-se a acompanhar.

— Por que não vê se ele quer fazer com você hoje? Ele está cansado de mim. — A manhã que Peggy passara sozinha com o filho não tinha sido boa.

— O que devo fazer?

— Vamos começar colocando brinquedos no balde. Você põe um no seu e vê se ele põe no dele.

— E aí eu o elogio se ele fizer.

— Você é muito boa nisso.

Bridie foi sentar-se de frente para ele. Kieran desaprovou, porque ela atrapalhava as sombras que tanto o fascinavam. Bridie impôs seu território, achando que, se não o fizesse, Kieran ficaria tão absorvido pela luz que nada que ela fizesse chamaria a sua atenção.

— Não — disse ele.

— Sim — respondeu Bridie. Ela pegou o balde e colocou um cubo dentro dele. Depois, suavemente, levantou a mão dele, aproximando-a de um cubo. Quando ele finalmente o pegou, ela moveu-lhe a mão sobre o balde e esperou que ele soltasse o cubo ali dentro.

Kieran deu um puxão para trás e jogou o cubo nela. Depois encheu as mãos de areia e começou a jogar no rosto de Bridie.

Peggy levantou-se como um raio, mas antes que chegasse até as crianças, Bridie encheu a mão de areia e jogou de volta nele. A areia caiu em seu colo. Kieran olhou para baixo, depois para ela. Ele pegou outro punhado de areia, mas, dessa vez, em vez de jogar no rosto, ele mirou-lhe o colo, exatamente como ela havia feito com ele. Em seguida deu uma risadinha, como qualquer criança faz, quando entretida por uma nova brincadeira.

Agora Bridie pegou um cubo e jogou-lhe no colo. Kieran pegou outro e jogou de volta para ela.

Peggy estava tão fascinada com esses novos acontecimentos, que não ouviu os passos, até que Finn já estivesse quase sobre ela.

— O que vem depois? Bombas e granadas? A atividade do dia é sobre os conflitos do nordeste da Irlanda? — Ele se abaixou ao lado dela.

Peggy perdeu o fôlego. Ela e as crianças não eram os únicos usando shorts. As pernas longas e musculosas de Finn estavam à mostra e, ao contrário das dela, eram bem bronzeadas. As horas que ele passava ao ar livre também refletiam o sol em seu rosto. Ela olhou para os lábios dele e sorriu.

— Olá.

— Olá para você. — O olhar dele era terno, mas não a tocou. Pelo que Peggy sabia, ela e Finn eram as duas únicas pessoas sabendo que o relacionamento deles havia desabrochado em algo além de tolerância. Desde que se beijaram olhando a vista, já se passara um mês e durante esse tempo a intimidade deles não parava de crescer. Eles arranjavam desculpas para se encontrar sempre que podiam. A atração sexual, que começara morna entre eles, chegava quase a um ponto de fervura.

— Não me diga que veio para levar Bridie para casa. — Ela olhou para ele. — Você não pode. Quem vai atirar coisas em Kieran?

— Ela vai passar uma semana em Dublin com a prima de Sheila e a família. Não lhe contou?

— Eu me esqueci que ela estava indo hoje.

— Vamos encontrá-los mais tarde, na cidade. Vão parar em Shanmullin, a caminho de Westport.

— Vou sentir falta dela.

Finn não disse nada a respeito. Ela lembrou dos comentários que Bridie fizera a respeito do pai e se perguntava como ele poderia ser tão abstraído em relação às necessidades da menina.

As crianças ainda jogavam os cubos alegremente. Era um pouco primitivo, mas certamente era imitação. Oito a dez repetições seria o razoável, e Kieran já havia excedido esse limite. Era hora de passar para outra coisa, mas Peggy não tinha energia para uma mudança.

— Você veio ver a Irene? — perguntou ela.

— Parei lá e ela me viu, mas acenou para que eu fosse embora. Estava vendo algo na TV. Na verdade vim ficar um pouco com a Bridie, antes que ela vá passar uma semana longe.

Ela gostou daquilo. Afinal ele não era tão alheio à filha.

— Acho que posso abrir mão de minha assistente por um bom motivo como esse.

— De modo nenhum. Pensei em ficar aqui e trabalharmos com Kieran, e você poderia ficar um tempo lá dentro, com Irene. Sei que às vezes ela adora tê-la só para si.

Ela não tinha certeza se havia entendido.

— Você vai trabalhar com Kieran?

— O trabalho pode não ser tão preciso, já que duvido muito que eu consiga alcançar as metas louváveis que você tem para ele. Mas me diga o que planejou para hoje e eu tento. A Bridie pode ajudar.

Ela entendeu muito bem. Entendeu que Finn queria aliviar um pouco de sua carga com a terapia de Kieran. Que queria ficar um tempo com a filha. Que precisava de algo que pudesse fazer com Bridie. Sem isso, não saberia o que dizer, nem como tratá-la.

— Mas isso é muito luxo.

— Você merece Peggy-o. — Ela sorriu para ele.

— Então vou confiar em você. Sei que ele estará em boas mãos.

Kieran estava começando a ficar cansado. Bridie percebeu, pegou um cubo e jogou dentro do balde de novo. Dessa vez ele seguiu o que ela fazia. E Peggy saiu de cena com essa visão positiva.

Irene vibrou ao vê-la. Sentaram-se como velhas amigas e assistiram à novela preferida de Irene, "Crossroads". O programa se passava em um hotel movimentado, na remontagem de uma versão anterior, passada num albergue — uma atualização criativa, a ser considerada pelos sociólogos irlandeses. Irene tentava inteirar Peggy a respeito da vida confusa dos personagens. O cachorro de alguém havia sido usado em rinhas ilegais. Outra pessoa havia se escondido dentro de uma mina de pedras preciosas. Quando o capítulo chegou ao fim, a única coisa da qual Peggy tinha certeza era que não querer passar férias no Hotel Crossroads.

Elas desligaram a televisão e Peggy trouxe um lanche, que Nora havia deixado para Irene. Meia maçã, um biscoito de aveia e um copo de leite.

Irene aceitou agradecida, mas Peggy notou sua falta de interesse.

— O que quero mesmo — Irene confirmou — é um bom pedaço de queijo cheddar e uma fatia de torta cremosa. Não fique velha, querida Peggy.

— Dizem que não há muita escolha.

— Há sim. Principalmente quando se têm motivos para continuar vivendo. Desde que você chegou, todas as manhãs acordo ansiosa para saber o que dia trará. As pequenas informações que levantou sobre meu pai fizeram bem ao meu pobre coração.

Peggy ficou emocionada. Não tinha certeza se Irene ficaria contente em saber os detalhes do passado sombrio do pai, que estavam vindo à luz.

— Eu gostaria de poder levá-la até Cleveland, Irene. Há tantas pessoas por lá que querem conhecê-la.

— Só em saber que estão lá já fico satisfeita, embora quisesse conhecer suas irmãs.

Elas conversaram até que os olhos de Irene começaram a fechar sozinhos. Peggy a levou até a cama e assegurou-se de que a cabeceira móvel estava na altura ideal para facilitar sua respiração.

Assim que fechou a porta do quarto, Finn e Bridie chegaram com Kieran. Peggy se despediu de Bridie, que estava quase dançando de felicidade por causa da viagem. Bridie foi para o carro esperar pelo pai, enquanto ele entregava Kieran a Peggy, que iria colocá-lo na cama para um cochilo.

— Foi uma hora e pouco, acho — disse Finn. — Ele usou a pá para cavar a areia e até fez um monte, conforme a Bridie lhe mostrava.

— Muito obrigada, Finn. Foi uma folga bem-vinda.

— Irene foi dormir?

— Você a perdeu por um triz.

— Então também perdi a chance de fazer seu check-up. Vou ter que voltar mais tarde.

— Posso verificar a pressão e o coração para você, se preferir.

— Prefiro voltar e jantar com vocês duas. — Ela tocou-lhe o rosto.

— Dê a ela um tempinho para descansar um bocado. Hoje ela parece cansada. Talvez minha companhia a tenha esgotado.

— Disso eu duvido. — Ele a beijou no rosto e saiu. Peggy deu um banho rápido em Kieran e depois um lanche, mas o sono chegou na metade do biscoito. Ela o carregou até a cama e resolveu ficar com ele. Acordou uma hora depois. A casa estava em silêncio e, na ponta dos pés, ela foi até a sala para ver se Irene havia se levantado. Quando viu que estava sozinha, procurou o que Nora havia deixado para o jantar, e fez uma salada de cenouras com passas para acompanhar.

A tarde havia sido cansativa. Kieran acordou manhoso e inconsolável. Ela ficou surpresa de ele não ter acordado Irene com sua lamúria e uma birra que quase fazia a casa cair. Finalmente conseguiu acomodá-lo na varanda da frente, com um pote de cubos de gelo e uma jarra d'água. Quando todas as pedras haviam derretido, ela lhe deu uma caixa de carrinhos para brincar no chão de pedra. Depois de mostrar como eles deslizavam no chão, ele parou com a lamúria e a afastou. Virou todos de cabeça para baixo, um a um, depois os chutou.

Ela estava tão absorta pela rebeldia do filho que nem ouviu o carro de Finn. Ficou surpresa ao vê-lo se aproximar.

— Tenho a impressão de que não era isso que pretendia para ele — disse Finn.

Ela balançou a cabeça. Depois se abaixou e recolheu todos os carrinhos e os colocou de volta na caixa. Ela falou calmamente:

— Kieran, você pode brincar com os carros se não chutá-los.

— Quer uma ajuda? — perguntou Finn.

— Pode apostar.

Finn curvou-se em frente ao garotinho, que ameaçava dar início à outra crise de rebeldia.

— Kieran, gostaria de escolher um dos carrinhos para brincar?

Kieran o encarava desconfiado, mas ao menos a birra parecia ter sido suspensa.

Peggy sabia que dar escolha às crianças era uma parte importante no crescimento e no aprendizado, e não era diferente com o autismo. No entanto, quando ela procurava oferecer-lhe opções, isso geralmente provocava rompantes de raiva.

Finn pegou dois carrinhos na caixa e os segurou em frente ao menino.

— Qual dos dois você quer?

Os olhinhos de Kieran se estreitaram e a boquinha franziu.

— Você pode ficar com este. — Finn esticou a mão mostrando. — Ou este. — Mostrou o outro.

Kieran parecia esforçar-se. Peggy quase podia ler sua cabecinha. Jogar-se no chão, que já era algo familiar e até certo ponto confortante, ou participar desse novo jogo suspeito. Finalmente, quando a paciência dela já começava a desmoronar, ele deu um passo à frente e pegou o carrinho na mão esquerda de Finn. Em seguida, como se já soubesse o que fazer com ele há muito tempo, o colocou no chão e começou a deslizá-lo sobre as pedras.

Finn se levantou e largou o outro carrinho na caixa.

— Carros demais? — Ela conhecia o filho melhor do que ninguém, mas nem sempre tinha acesso à maneira como seu pequeno cérebro funcionava.

— Talvez, mas acho que ele fez aquela cena porque me viu chegando.

— Não entendi. Ele não o queria aqui?

— Ao contrário. Lembra-se do dia em que o levei para passear, quando teve aquela crise?

Ela lembrava muito bem. Foi o dia em que Kieran usou a boneca de pano como uma arma.

— Você acha que ele estava pretendendo fazer o mesmo?

— Fazer manha, associado a Finn, resulta em passeio nos ombros. Faça a conta.

— Mas ele é fogo mesmo, não é?

— Acho que podemos deduzir que ele é bem esperto, porém alheio às maneiras de expressar a sua inteligência.

Ela ficou confortada por aquelas palavras. Inteligência era difícil de se medir em crianças autistas, principalmente as dessa idade. Mesmo que o QI não fosse uma garantia de sucesso na vida, ter um índice alto já seria um dado a favor de Kieran.

— Agora vamos esperar que ele fique um rapaz bonzinho por alguns minutos, depois vamos levá-lo juntos para um passeio.

— Às vezes me sinto como a protagonista da nova versão do filme O milagre de Anna Sullivan. É como se ele pudesse ver e ouvir, mas estivesse separado por uma barreira invisível, assim como a Helen Keller, no filme.

— Mas veja o que ela conseguiu — disse Finn.

— Sim, mas onde está Ann Bancroft quando precisam dela?

Ele alisou uma mecha de cabelos na testa dela.

— Bem aqui.

Antes de saírem, ela foi ver se Irene já levantara, mas ainda não havia nenhum som vindo de seu quarto. Quando voltaram, com Kieran contente e calmo, Irene ainda não aparecera e Peggy começou a ficar preocupada.

— Acho que vou dar uma olhada nela — disse Peggy. Finn não contestou. Ela bateu de leve na porta e como não teve resposta, abriu e foi até o lado da cama de Irene.

Irene abriu os olhos, mas, por um momento, pareceu não reconhecê-la.

— Desculpe tê-la acordado — disse Peggy —, mas você dormiu por tanto tempo que fiquei preocupada.

Um momento longo se passou. A respiração de Irene acelerou.

— Não estou me sentindo muito bem — disse ela, finalmente.

— Finn! — Peggy foi em direção a ele, para que viesse vê-la. — Ela disse que não está se sentindo muito bem.

— Olá querido — disse Irene suavemente, quando Finn chegou junto a elas. — Não há nada com que se preocupar.

— Vou verificar, se não se importa. — Finn sentou-se ao lado e pegou seu punho para medir a pulsação.

Sem que ele pedisse, Peggy foi buscar a maleta de medicamentos. Ele a recebeu acenando a cabeça.

— Me chame, se precisar — disse a ele. — Posso colocar o Kieran no berço.

Como ele não chamou, ela pôs Kieran na mesa da cozinha, com pedacinhos de queijo e uvas, mas seu pensamento não estava no filho. Estava em Irene, que tinha uma palidez acentuada e respirava com dificuldade. Peggy não era tola. Sabia da gravidade da doença de Irene. Cada dia era um presente. Peggy só não estava pronta para abrir mão dela.

Finn surgiu alguns minutos depois.

— Ela precisa ficar no hospital.

— Deixe-me adivinhar. Ela não quer ir.

— Isso mesmo. Está apavorada de morrer lá.

— Ela quer morrer em sua própria cama. — Peggy sabia que este era o seu desejo e, teoricamente, era admirável. De qualquer forma, Peggy não estava pronta para sua morte.

Finn enfiou as mãos nos bolsos.

— Há um medicamento novo no mercado. É uma injeção, que eu poderia lhe dar, e tem uma boa taxa de sucesso. Se eu aplicar aqui, vou precisar ficar e monitorar a pressão sangüínea. Sei que você poderia fazer isso, mas é bom que eu esteja aqui, no caso de uma queda acentuada.

- Você pode ficar?

- Posso.

Ela percebeu que ele estava pedindo permissão para cuidar de Irene em casa. Peggy era a sua parente mais próxima. Se fizesse objeção, Irene ainda poderia passar por cima de sua decisão, mas, ao permitir, tornaria a tarefa dele mais fácil.

— Há algo que eu possa fazer? Podemos nos revezar ficando com ela, se você quiser.

Ela concordou com a cabeça.

— Tem o medicamento com você?

— Eu sabia que esse dia estava próximo — ele saiu da cozinha. Ela esperou até que Kieran terminasse, então o colocou no chão e limpou tudo.

Na sala de visitas, ela ligou a televisão e pôs uma fita de Vila Sésamo, um agrado que ele raramente recebia. Kieran tinha muito a fazer para ficar assistindo a imagens saltando na tela, mesmo que fossem programas educacionais. Mas esse bônus inesperado o manteria ocupado, pelo menos por um tempo.

Quando ele já estava instalado e murmurava empolgado consigo mesmo, ela foi até a porta do quarto de Irene.

— Como você está, Irene?

— Não quero ir para o hospital.

— Sei que não quer. Mas também não quero perdê-la.

— Eu... eu quero saber o que aconteceu...

— Com seu pai, eu sei. Estamos bem perto. Você tem que agüentar firme, mesmo que precise fazer uma viagem rápida, até um lugar onde possam cuidar de você.

— Não vou... a lugar algum.

— Bem, se eu ainda abrigasse dúvidas quanto ao seu parentesco comigo e minhas irmãs, agora teria certeza. — Peggy foi até a cabeceira da cama. — Olhe, quero que prometa me deixar resolver com Finn, caso você piore. Por favor? Sabe que faremos o que for melhor para você, não sabe?

Enquanto Irene pensava, podia-se ouvir a melodia vindo da sala, a música era "Uma dessas coisas é diferente das outras".

— Vamos... ver — disse Irene.

Peggy franziu a testa para Finn, mas ele concordou com a cabeça.

— Acho que a injeção que apliquei vai funcionar. Se não, dou-lhe uma pancada na cabeça, jogo-a nas costas e largo no banco traseiro do meu carro.

Irene sorriu e adormeceu.

— Conte-me a respeito do remédio — disse Peggy, baixinho.

— É uma versão sintética de hormônio humano. Essencialmente, dilata as artérias e veias. É elaborada com a utilização da tecnologia de DNA e, em casos de problemas respiratórios relevantes, ou em circunstâncias como essa, comprovou-se mais efetiva do que nitroglicerina. No entanto, precisa ser ministrada em baixa dosagem, ou pode haver hipotensão. Isto é o que vou estar monitorando.

Mesmo sob essas circunstâncias, ela vibrava em poder discutir medicina com ele. Algumas mulheres queriam rosas e música suave. Peggy achava química e fisiologia muito estimulante. Baixinho, porém avidamente, eles discutiram tratamentos alternativos enquanto Irene dormia. Peggy achou que a respiração da anciã já havia desacelerado quando Finn se levantou.

— Ela ainda está na escuridão da floresta, mas talvez tenhamos revertido o quadro. — Ele deu um sorriso triste. — Perdoe-me a mistura de metáforas. Eu era um médico, não um professor de gramática.

— Você é um médico. — Ela considerou suas próximas palavras com cautela, mas se ela e Finn iriam ter um relacionamento, precisava falar o que pensava. — Você não teve qualquer problema em tomar uma decisão sobre isso, Finn. Agiu com determinação e rapidez.

— Ela não me deu outra opção.

— Se tivesse dado, você teria feito algo diferente?

— Teria feito isso no hospital, onde ela poderia ser acompanhada com mais cuidado.

— Mas o tratamento teria sido o mesmo.

— Como é mesmo que vocês americanos dizem? "Sou fanático por tecnologia"

— Uma das coisas mais importantes que aprendi na escola de medicina foi não cuidar em excesso. Um médico tem de saber quando alcançou o seu objetivo. Às vezes é fácil presumir a doença, quando a saúde está boa.

— Acho que você não está falando de Irene.

— Não, estou falando de você.

— Uma decisão não faz um médico.

— Uma após a outra faz.

— Aqui não, Peggy, nem agora. Esse não é o momento para essa conversa.

— Não, mas era o momento de começá-la. — Ela se levantou, foi até ele na ponta dos pés e deu-lhe um beijo. Quase achou que seria repelida, mas ele colocou o braço ao redor de sua cintura e a puxou para mais perto.

Quando Peggy se afastou, olhou para Irene. Ela estava de olhos abertos e sorria.

 

                               Capítulo 22

Quando Irene já havia mergulhado em um sono mais profundo, Peggy deu outro banho em Kieran e serviu seu jantar. Todas aquelas brincadeiras ao ar livre haviam surtido efeito e naquela noite ele foi para a cama mais cedo do que de costume.

Ela estava lavando dois pratos quando Finn entrou na cozinha.

— Como ela está? — Peggy pôs mais uma porção de batata assada no prato dele. As que Nora fazia eram soberbas, mesmo quando requentadas.

— Acho que ela exagerou.

— Ela não comeu nada agora à noite.

— Almoçou bem? — Peggy tentou lembrar-se.

— Apenas sopa, mas tomou um prato eheio, e Nora a prepara com bastante carne magra e legumes frescos. Também tomou um lanche à tarde.

— Ela está bebendo goles de água toda vez que acorda. Acho que vai ficar bem. Prefiro deixá-la dormir a forçá-la a comer. Ela está exausta.

— Nosso jantar está pronto. — Peggy levou os pratos até a mesa e fez sinal para que ele sentasse.

— Quer ir lá para fora?

Peggy gostaria de ter tido essa idéia. Com as janelas abertas, eles poderiam ouvir Irene ou Kieran caso acordassem, e o sol estava se pondo tão tarde que ainda havia luz.

— Vou pegar uma bandeja.

— Vou abrir um cobertor.

Ela o encontrou do lado de fora alguns minutos depois. Salmão cozido não era exatamente comida de piquenique, mas ficava mais gostoso na brisa noturna. Eles comiam e ouviam o som das ovelhas nos pastos próximos, e o sinal de um relógio cuco, que nunca deixava de encantar Peggy. A temperatura estava caindo e as nuvens se aproximavam. Peggy havia trocado de roupa e colocara calças de moletom, e agora estava feliz por tê-lo feito.

Antes de voltar ele havia trocado o short, o que a fez lamentar em silêncio — mas o homem também fazia justiça a uma calça jeans.

— Acho que vai chover — ela disse a ele, olhando para o céu.

Tufos de nuvens ganhavam força e, por experiência, ela sabia o que aquilo significava no oeste da Irlanda.

— Então será uma boa noite para acender a lareira. Você gostaria?

Ela gostava do cheiro das toras de madeira queimando, algo que lhe pareceu familiar desde o primeiro dia de sua estada. Achava que a fragrância marcante havia se fixado permanentemente nos genes dos Tierneys. Os séculos de vida das plantas, agora condensados naquela lenha, haviam presenciado as glórias e o pesar da Irlanda, e de sua família também.

— Tem certeza de que quer ficar? — perguntou ela. — Porque posso monitorá-la a noite toda, e a sua distância é apenas um telefonema.

— Vou me sentir melhor se estiver por perto. Tire o seu prato.

Ela olhou para o colo.

— Por quê?

— Porque vou colocar a cabeça aí.

Ela ficou feliz por ele não estar monitorando o coração dela.

— E se eu disser não?

— Como posso lhe contar histórias se não estiver olhando para o céu?

— Histórias?

— A maioria de nossas histórias leva anos para ser contadas. Somos um povo falante.

— Levamos isso conosco para o Novo Mundo. Você precisa ouvir a minha família.

— Posso contar-lhe um pouco a respeito de Fionn Mac Cumhain, que inspirou a escolha do nome, mas ainda estaríamos aqui na semana que vem.

— Finn McCool, o gigante?

— O próprio. Mais ou menos. — Ela sorriu.

— Conheço algumas dessas histórias. Cresci ouvindo-as. O que a sua mãe estava pensando?

— Ela deixou que minha avó fizesse as honras. Eu seria um gigante, da maneira que quisesse. Você quer ouvir sobre nossas estrelas, ou não?

Ela removeu o prato vazio sem qualquer resistência. Ele deitou com os joelhos flexionados, a cabeça aconchegada em seu colo.

— Vamos começar com o sol, já que está à espreita, na linha do horizonte. Você sabia que, se uma mulher adormecer sob a luz do sol, a gravidez é praticamente garantida?

— O filtro solar não previne? — Ela passou a mão nos cabelos dele, alisando para trás os que estavam na testa. Ela gostava do desenho de sua testa e da forma como o contorno dos cabelos fazia um formato parecido com um bico-de-viúva. A intimidade dessa posição certamente não passou despercebida para ela. Dava uma sensação tão boa.

— Não há pesquisas sobre isso — disse ele. — Talvez possamos nos inscrever para uma concessão.

— O que mais?

— A lua também tem suas histórias. — Peggy tinha as dela.

— Ouvíamos histórias sobre a lua na sala de emergências onde trabalhei. Quando era lua cheia, tínhamos que fazer triagem de tão cheio que ficava. O lugar parecia um zoológico.

— Deve ser universal e infinita. Os antigos acreditavam que a lua causava a insanidade.

— É aquela velha lua do diabo... — Ela cantou algumas notas até que ele estremeceu. — Você vai ter que se acostumar com meu jeito de cantar.

— Acho que vou e estou apavorado.

Ela deu uma risada e mexeu num cacho dos cabelos dele.

— E as estrelas?

— A sorte, ou falta dela na vida, depende do astro sob o qual você nasceu.

— Astrologia? Ao estilo irlandês?

— Quando uma alma migra do purgatório para o céu, um meteoro atravessa o céu. — Ele fez uma pausa. — Acho que acabou minha coletânea sobre o céu.

— Onde aprendeu tudo isso?

— Minha avó — a que escolheu meu nome — morou em Inis Mor, as ilhas Aran. As estrelas são o entretenimento noturno. Eu passava os verões com ela e aprendi sobre todas as constelações. Se estivesse mais escuro, poderia apontá-las.

— Sempre um cientista, não é?

— Prefiro a mitologia à ciência. A alma irlandesa romântica. Nasci um contador de histórias.

— Você conta histórias a Bridie?

— Não mais.

Ela esperou, dando-lhe um tempo para pensar. Falar a respeito de si mesmo era a maior provação para Finn.

— Eu costumava contar histórias para os três — disse ele, por fim. — Toda noite. Mark era o que mais gostava, mesmo antes de entender o sentido das palavras, acho. Ele gostava do ritmo, da oscilação do volume da minha voz. Ficava sentado, os olhos bem abertos, balançando a cabeça, como se eu estivesse falando de um de seus heróis. — Imaginar aquela cena partiu o coração dela.

— Conte-me mais sobre ele.

— Por quê?

— Porque é a única maneira com que poderei conhecê-lo. A única maneira que qualquer um tem para conhecê-lo agora. Você tem que contar a história de Mark e de Brian também. Para que sejam lembrados. É o jeito irlandês.

— E se falar deles for como andar sobre brasas?

— Não será assim para sempre.

— Você saberia? Por experiência própria? — Ela passou a mão nos cabelos dele.

— Finn...

Ele ficou em silêncio por tanto tempo, que ela achou que ele não iria mais falar. Quando falou, tinha a voz embargada.

— Os cabelos dele eram mais escuros que os de Bridie. Mais para castanho-dourado, e seus olhos eram escuros como os meus. Ele tinha um narizinho empinado, e sardas. Tinha muita cólica quando era bebezinho e Sheila disse que ia devolvê-lo. Prometi que faríamos isso se as cólicas continuassem depois que ele tivesse três anos.

Peggy sorriu.

— Ele adorava o pônei de Bridie. Prometi que lhe daria um em seu próximo aniversário.

— A expectativa deve ter sido maravilhosa.

— Ele riscava os dias no calendário. Foi a primeira coisa que vi quando voltei para casa, depois do acidente. O calendário de Mark, a letra infantil, um xis após o outro.

— Cada um deles escrito com alegria, Finn.

— Se ao menos eu tivesse comprado o pônei para ele no Natal.

Ela alisava-lhe a testa.

— Conte-me sobre Brian.

— Ele era menor que Mark, quando tinha a mesma idade. O cabelo mais escuro dos três. Provavelmente teria ficado quase tão escuro quanto o meu. Mais precoce, mais manhoso também. Ele gostava da maneira como todos o rodeavam. Mark o tolerava, quando ficava assim. Mas à medida que Brian foi crescendo, eles mostravam sinais de que estavam se tornando amigos.

— Como Bridie se dava com eles?

— Bridie tinha o comando e ninguém disputava com ela. Para uma menina de aparência tão frágil, ela é surpreendentemente forte.

— Acho que ela é a garotinha mais encantadora que já conheci.

— Ela não fala de outra coisa a não ser de você e Kieran.

— Ela é tão paciente com ele! — Peggy hesitou, mas foi em frente. — Acho que Bridie sente certa solidariedade pela sensação de viver num mundo que não pode entender. Os dias de Kieran são uma mistura de sinais confusos e, de certa forma, os dela também. Não tenho certeza se a vida parece segura para eles.

— Pelo fato de ter perdido tanto?

— Sim, e por estar incerta do que ela ainda tem.

— Presumo que esteja se referindo a mim.

— Não o estou julgando. Seria uma tolice acreditar que você poderia simplesmente se adaptar e seguir em frente depois de algo tão terrível. O mundo mudou para vocês dois. Vocês têm que ir sentindo o caminho.

— Ela precisa mais do que posso dar. Sei disso.

— Vocês eram próximos antes do acidente?

— Me apaixonei por Bridie no momento em que a vi. Eu era muito jovem quando ela nasceu. Estava casado com uma mulher que não conhecia de verdade e a gravidez foi difícil. Entre isso e os meus estudos, não tivemos muita chance de nos conhecer. Sheila passava mais tempo na casa dos pais do que comigo. Até chegar a hora do parto eu já estava bem certo de que não queria um recém-nascido tumultuando a nossa vida. Aí vi Bridie, e isso bastou.

— Fiquei contente por você ter vindo ajudar com Kieran hoje. Foi uma boa maneira de passar um tempo com ela.

— Acho que não poderia ficar muito com seu filho, caso ele quisesse mais de mim.

Estava claro que Finn era um homem de abismos ocultos. Ela só não havia percebido como ele os conhecia tão bem.

— Não acho que Kieran saiba o que quer — disse Peggy. — E não tenho certeza de haver livros que possam me ajudar a ensiná-lo. Mas se pudermos ensiná-lo a reagir externamente como a maioria das crianças, talvez um dia ele seja capaz de entender e expressar seus sentimentos.

— Nós?

— Não se preocupe. Sei que hoje foi algo excepcional. Não estou contando com uma hora diária de sua ajuda.

— Ajuda para você ou para Kieran?

— Ambos.

— Fico impressionado com a maneira como você está conduzindo a sua vida e a dele. Você corre riscos que poucas mulheres correriam, como vir até aqui, desistir daquilo que ama para dedicar-se a ajudá-lo.

— Eu amo a medicina. O amo mais.

— Será que realmente tem de ser um ou outro?

— Dentro de meu orçamento, sim. Ele precisa de intervenção agora, não quando eu tiver terminado a minha residência e puder pagar pelos melhores tratamentos.

— Como é que ele está indo?

— Nada bem.

— Então qual é o próximo passo?

— É muito cedo para pensar sobre isso. Três meses não é tempo suficiente para ver uma evolução concreta. Se nada tiver mudado até a primavera, vou ter que reavaliar.

— Você vai embora da Irlanda de qualquer forma?

— Está querendo se livrar de mim?

Ele chegou para o lado, saindo do colo dela e apoiou a cabeça numa das mãos.

— Cheguei a lhe dizer qual parte do céu que mais gosto?

— Fale, vamos ver.

— Venha até aqui primeiro.

A idéia de deitar ao lado dele em um cobertor emitia sinais de aviso que irradiavam por todos os nervos do corpo de Peggy. Ela olhou para ele, entre os cílios.

— O que acontece a uma mulher que se deita ao lado de um homem quando a lua nasce?

Ela se perguntava se os sinais de aviso eram uma explicação correta para o que ela estava sentindo. Expectativa talvez fosse um termo melhor. Ela desceu para o lado dele, no chão, e as coxas dos dois se encostaram carinhosamente na lateral, entre o jeans e moletom.

Ele apontou para o alto.

— Olhe para o céu.

O sol finalmente tinha ido embora, levando consigo os magníficos feixes coloridos. A claridade ia diminuindo rapidamente, e o céu parecia escurecer enquanto ela olhava, vendo as nuvens que se aglomeravam.

— O que é que estou procurando? — perguntou ela.

— A primeira estrela.

— Mas está muito nublado.

— Não, se você for observadora.

Ela aceitou o desafio. Eles estavam deitados lado a lado, em silêncio, olhando para cima, até que ela achou que mil estrelas poderiam surgir e ela seria cega demais para vê-las. Ela fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, uma luz fraca apareceu no céu, diretamente acima deles.

— Olhe — apontou ela. — A primeira estrela.

— Muito bom.

— E agora, qual é a história?

— Bem, se uma mulher vê a primeira estrela da noite em companhia de um homem que a beija, ela irá realizar seu maior desejo.

O ar saiu de seus pulmões num suspiro profundo.

— Essa parte da companhia do homem, é nova para mim.

— Você ainda tem coisas a aprender.

— Quanto tempo pode demorar o meu pedido?

— Não perca a chance. Uma frase comprida é o padrão.

Ela fez o pedido e ele se debruçou sobre ela, um pedido que começou com a melhora de Irene e terminou com a de Kieran. E no meio estavam pedidos para Bridie e um para ela. Eles flutuavam juntos naquela torrente de prazer, enquanto ela passava os braços ao redor do pescoço dele.

Finn estava satisfeito com o progresso de Irene. Sua cor estava melhor, sua respiração bem mais fácil. Ela acordou quando ele foi verificar sua pressão, parecendo coerente e bem orientada. Tão logo ele terminou, ela voltou a dormir sem problemas.

Ele foi ficar com Peggy na cozinha, enquanto ela lavava a louça.

Ela era uma mulher moderna, sem futilidades, que ainda parecia sentir prazer nas coisas mais simples. Seus cabelos balançavam no ritmo de seus movimentos, lavando e enxaguando as travessas. As mangas estavam arregaçadas até os cotovelos, deixando seus punhos delicados à mostra. Não havia nada em seu físico que o desagradasse.

Ela se virou e viu que ele estava em pé, junto à porta.

— Como é que ela está?

— Acho que saiu da floresta. Por enquanto.

— Mas essas crises vão se tornar mais comuns, não vão?

— É um coração idoso. E bem fraco. Pode ser que quando for acordá-la da próxima vez descubra que ela se foi.

Ela parou de enxaguar o prato no meio.

— Ela precisa de um controle contínuo, não é? Eu prejudiquei isso vindo ficar aqui com ela?

— Ela precisa estar aqui. Acrescentar alguns meses à vida que ela despreza não é uma dádiva. Só quero que você entenda seu próprio risco. Vai se sentir culpada. Terá certeza de que poderia ter feito mais, que se tivesse ido vê-la mais cedo, ou deixasse a porta aberta para que pudesse ouvi-la, ou não tivesse vindo levar Kieran para dar uma volta... ela estaria viva.

— Obrigada. — Ela respirou fundo, tão intensamente, que pareceu querer inspirar o que ele havia dito. — É um bom aviso. E você? Irá conseguir se desprender de Irene sem achar que falhou com ela?

Ele já havia pensado bastante a respeito e agora sabia que sim.

— Eu falharia com ela se insistisse para que saísse daqui. Se não tivesse concordado em cuidar dela, provavelmente já estaria morta. E óbvio que me fazer tratá-la aqui foi apenas para me mostrar que ainda sou competente. Dois coelhos com uma cajadada só. Ela nunca foi uma mulher de medir as palavras ou perder tempo.

— Ou talvez seja seu jeito de ajudá-lo a se desprender. De uma forma mais gradual e natural do que aquela que você foi forçado a passar.

— É assim que as pessoas deveriam morrer. Após uma vida longa, vivida em grande parte da maneira como quiseram. Cercados de pessoas que as amam. Felizes pelo que tiveram tempo de realizar. — Ele não queria parecer amargo, mas a amargura estava nas entrelinhas.

— Oh, meu Deus, eu quero a lareira! — Peggy arrepiou-se. O vento ficou mais forte depois que o sol se pôs e, mesmo acostumado, Finn podia sentir o frio entrando pelas paredes antigas. Eles não precisavam ligar o aquecimento, mas era uma noite perfeita para acender a lareira.

— Kieran tem sono pesado? — perguntou ele.

— Por quê?

— Porque tenho uma idéia de como entretê-la esta noite. — Ela ergueu uma sobrancelha e ele riu, porque sabia que Peggy estava pensando no beijo, no cobertor.

— Bem pesado? — repetiu ele.

— Se eu jogá-lo de cabeça no chão talvez ele acorde. Ou se acender fogos embaixo de sua cama...

— Ótimo. E o quarto de Irene fica bem longe da lareira, então também duvido que iremos perturbá-la.

— Estou morrendo de curiosidade.

— Posso terminar aqui, caso queira dar uma olhada em Kieran.

— Deixe que eu termino e você acende o fogo. Olhei o Kieran agora há pouco. Durante o sono é o único tempo em que ninguém lhe faz exigências. Ele dorme com gosto.

— Então vejo você em alguns minutos.

Quando ela terminou, alguns tufos de capim seco já queimavam para dar combustão ao fogo. Finn estava deitado no tapete macio em frente à lareira e fez sinal para que Peggy viesse se juntar a ele. Ela acomodou-se ao seu lado, mas não tão perto como ele teria gostado.

— Mais histórias? Vinte perguntas? Relatos de infância? Você não me contou nada sobre sua família, e eu falei tanto sobre a minha.

— Sou filho único, criado numa pequena fazenda. Eu brincava com os passarinhos e insetos feridos, fazendo hospitais para eles. Depois de todos aqueles anos, meus pais resolveram achar que não gostavam mais do campo. Foram para Cork e montaram uma pequena floricultura. Não são bons com crianças e Bridie não vai visitá-los, a não ser que eu vá junto. Só voltam a Shanmullin se são obrigados. São boa gente, apenas um pouco esquisitos.

— Isso explica por que não estão por perto para ajudá-lo com Bridie.

— Eles não teriam a menor idéia do que fazer com ela. Os pais de Sheila mudaram-se para Belmullet depois do acidente, para se afastar da cena do crime. Eles queriam levar Bridie. Se eu não tivesse parado de beber, teriam levado.

— Ela os vê?

— Eles me culpam pelo que aconteceu, portanto, evitam me ver, se puderem. Não vêm aqui para visitar Bridie e fico com receio de mandá-la para lá sozinha. Não tenho certeza se iriam devolvê-la e a lei é muito lenta.

— Ela merece mais que isso, e você também. — Ele ouviu o tom de raiva na voz dela.

— Lidamos com isso da melhor maneira possível. Eles eram próximos de Sheila e das crianças. Acho que pelo fato de Bridie se parecer tanto com a mãe se torna difícil ficarem com ela, e mais difícil ainda para deixá-la ir embora depois.

— Isso não é entretenimento. Precisamos nos divertir. O que vem agora?

Ele ficou feliz por mudar de assunto. Apesar do que havia dito, sentia a falta dos pais e dos sogros, e sabia que Bridie também se sentia assim.

— Feche os olhos.

— Já o conheço bem para isso?

— Não confia em mim?

— É, já conheço bem. — Ela fechou os olhos apertados. Ele já havia visto aquela expressão antes, no filho dela.

— Fique aí e não se mexa.

— Só vou conseguir agüentar esse suspense por, no máximo, um minuto. Eu era a filha caçula e não gostava de esperar pela recompensa. — Ela fez uma pausa. — Razão pela qual tive um filho.

— Fui filho único. Parece ter muito pouco a ver com autocontrole, basta olhar para Bridie.

— Mais trinta segundos e meus olhos vão se abrir. Desculpe, mas você está me forçando a ir contra a minha natureza.

Ele deixou à mostra algo que ela não percebera ao entrar na sala. Depois se sentou atrás dela, recostado na poltrona, colocando os braços ao seu redor e puxando-a para perto, de costas para ele.

— Está certo, pode olhar agora.

— Parece uma flauta. — Ela passava os dedos de um lado, em toda a sua extensão. — Parece mesmo ser uma flauta.

— O seu poder de observação é extraordinário.

— Também fico pasma.

Quando ela pegou a flauta nas mãos, ele a soltou.

— Você adora música e diz que o problema não está em seus ouvidos. Estou certo?

Ela se aconchegou mais perto dele.

— Mozart cantava? E Beethoven? Podemos julgar a musicalidade deles por vozes que jamais ouvimos?

— Não me diga que você se acha um Mozart. Por favor, diga que não.

— Bem, talvez um Elton John. — Ela riu com a forma como ele resmungou. — Minha tia me fez ter aulas de piano, mas eu não era muito boa. Sou ligeiramente disléxica. Levei um ano a mais para aprender a ler e decorar qual era minha mão direita e qual era a esquerda foi uma provação.

— Eu descartaria uma especialização cirúrgica para você. Principalmente cirurgia cerebral.

— Mas isso foi há muito tempo. Passei dois anos com um "d" escrito numa das mãos e um "e" escrito na outra. Vou ser muito boa nisso.

Ele realmente não se importava se seria boa. Ele se sentia bem em seus braços, aliás, muito mais que bem. Ela se sentia natural e indispensável. Ele já não fazia sexo havia uns dois anos, apesar das ofertas de viúvas mais velhas e de uma jovem mãe, que escandalizara a aldeia pedindo o divórcio, quando a lei foi aprovada na Irlanda.

Ele considerou as duas ofertas, já que nenhuma delas veio acompanhada pelo desejo de compromisso. Mas acabou recusando, com receio de que o sexo recreativo fosse afundá-lo ainda mais na depressão. Não estava pronto para se sentir bem, ou se perder em sensações fortes.

Agora parecia estar.

— Está bom. Agora vamos ao que precisa saber. — Ele tinha os braços ao redor dela. — Há dois tipos de flauta. Esta é uma de nota ré, que será a sua chamada quando estiver tocando com outros.

— Quando eu era criança, ganhei boas notas por trabalhos com outros.

— Então esta certamente é a flauta certa para você. — Ele movimentou o bocal.

— Isso é móvel, para que a flauta possa estar em sintonia com os outros instrumentos.

— Também acredito estar em sintonia. Eu disse que seria algo natural para mim.

— Peggy, você ainda nem pôs o instrumento na boca.

— Técnicas. Eu tenho o que é necessário.

— Está bem. Aqui vai o teste. Coloque no meio dos lábios e o que quer que aconteça, não morda. Apenas segure suavemente, depois sopre. E tente não acordar a casa inteira.

— Não preciso saber como segurar ou mudar de nota? Esse tipo de coisa?

— Você está me ensinando, ou sou eu que estou ensinando você?

— Mas que mestre severo. — Ela fez o que ele pediu, soprando suavemente. O tom saiu constante e límpido.

— Estou impressionado. — Ele estava mesmo.

— Tenho certeza que sim. Você pensou que eu fosse desafinar, não é?

— Agora vou ensiná-la a como segurar. — Ele demonstrou. — Há seis furos, três para cobrir com os dedos de cada mão. Pouse os dedos atrás do indicador, assim. — Ele mostrou para que ela pudesse ver, depois passou-lhe o instrumento.

Os dedos dela caíram em cima dos furos e os polegares se encaixaram no lugar certo, naturalmente.

— Assim?

— Perfeito. Agora mantenha todos os furos cobertos e sopre devagar. Isto será um ré.

— Imploro para que veja a diferença, se quiser tirar uma nota boa no teste.

— A nota será um ré. A qualidade, ainda veremos. Você vai ficar criando problemas a cada passo do caminho?

— Espero que sim. — Ela colocou a flauta nos lábios e soprou um ré redondinho. — Isso é divertido.

Os braços dele se apertaram ao redor dela, que, ao chegar para trás, acomodou-se melhor, encostando-se ao peito dele. Os cabelos dela tocavam-lhe o queixo, os quadris entre as coxas dele. Seu corpo reagia de forma notória.

Ele engoliu, tentando molhar a garganta, que ressecara de repente.

— Com o quarto dedo da mão direita, feche o furo de baixo, então você terá um mi.

Ela o fez e soprou. Outra nota pura e doce. Ela abria outros furos, de acordo com as instruções dele e tocava outras notas.

— Agora tente todas elas, começando de novo, com todos os furos cobertos e vá subindo a escala.

Ela o fez, com uma variação mínima no tom. Ele demonstrou como usar a língua de forma a finalizar as notas com clareza. Ela não era ruim, mas precisava treinar.

— Agora vem a parte mais difícil para a maioria das pessoas. Para tocar quase todas as músicas, você irá precisar de mais notas do que essas que aprendeu, notas mais altas. E a única forma de consegui-las é soprando com mais força. Não é algo que se aprenda logo de início e as primeiras tentativas não são agradáveis ao ouvido humano.

— Em outras palavras, você não quer que eu tente as notas altas aqui e agora.

— Você já tem bastante para praticar, não acha? Vou deixar essa flauta com você, para que possa treinar sozinha. Tenho mais de uma.

— Não confia em mim, não é?

— Confiança não tem nada a ver com isso. Apenas acho... — Ela se contorceu no meio dos braços dele, virando-se de frente, de forma que seus seios ficassem apertados contra o peito dele.

— Você pensa que vou fazer um estardalhaço e acordar Irene e Kieran e cada um dos Tierneys no cemitério da paróquia.

— Está determinada a me mostrar o contrário, não é? — Ela o encarou bem nos olhos por um instante, depois levou a flauta aos lábios. Então, com o olhar fixo no dele, tocou "The Foggy Dew", do começo ao fim, na versão mais bela que Deus já permitira.

— Você nunca me perguntou se eu sabia tocar — disse ela, ao abaixar o instrumento.

Ele tentou não rir.

— Não ponha a culpa em mim. Você estava me deixando pensar que não sabia, me fazendo de bobo.

— Insolência, Finn. Pura e simples.

— Fale de você, Peggy-o.

— Por quê? E só para que saiba, essa é a única música que sei tocar. Portanto, a aula não foi em vão.

— Onde aprendeu?

— Uma prima. Ela toca numa banda irlandesa. Tinha esperanças de que eu aprendesse rápido, para que também pudesse entrar na banda. Mas logo após me ensinar a tocar "Foggy Dew" ela se mudou para Milwaukee. Hoje em dia está envolvida com algo que chama de rap céltico. É um negócio de dar medo. — Ela pôs a flauta de lado. — Sabe, Finn, essa não foi uma forma tão má de se aproximar de mim.

— Você acha que foi para isso? — Ela tocou-lhe o rosto.

— Fico me perguntando quanto tempo vamos prosseguir assim.

Ele sabia do que ela estava falando, mas não tinha uma resposta. Nesses últimos dias andava num estado de excitação total. Ele a queria, pensava nela noite e dia, mas em seguida vinham os pensamentos em Sheila e nos filhos. Ele não tinha direito de sentir nada.

— Será que Sheila iria querer que você morresse com ela, se soubesse que não iria salvar os meninos? — perguntou Peggy, suavemente. Ela tocou-lhe os lábios antes que pudesse responder. — Não se o amasse, Finn. Ela o amava?

Depois daquela primeira explosão de paixão e fertilidade, o amor veio devagar. Ele passou a amar Sheila também, mas talvez não da forma como teria amado uma mulher com quem tivesse mais em comum, porém a amava como a mãe de seus filhos, que mantinha a suavidade e a ordem em sua vida, a doce fada celestial que o encantava com sua harpa e sua voz triste.

Ela viu a resposta nos olhos dele.

— Ela também não iria querer que você estivesse vivo pela metade — disse Peggy. — Não iria lhe negar isso. Deite-se. — Ela pôs as mãos no peito dele e o empurrou devagar, de encontro ao tapete.

Ele não podia deixar isso acontecer. Não estava pronto, não para Peggy. Ela era muito mais do que apenas um rostinho bonito e um corpo a dar prazer. Sim, seu corpo gritava pela libertação, mas ele também a desejava de outras formas, que tinham pouco a ver com sexo. Peggy o fazia sentir-se jovem e vivo, e ele sabia que isso, em parte, o fazia lutar tanto para se manter longe dela.

Agora estava deitado de costas, ela acima dele, desabotoando-lhe a camisa. Ela a abriu com carinho e tocou-lhe o peito, depois deitou o rosto ali. As mãos dele subiram, afagando-lhe os cabelos sedosos e fartos. Quando Peggy começou a beijá-lo, todas as suas dúvidas o atingiram de uma só vez, como se tivessem planejado um ataque final.

— Shhh... — sussurrou ela. — Você não pode trazê-los de volta com sua infelicidade. Você está vivo e não há nada de errado nisso.

Ele a virou num único movimento, colocando-a de costas no chão.

— Isso é sexo, ou terapia pós-luto?

— É o encontro de duas pessoas que precisam uma da outra, aqui e agora. Somos apenas eu e você, Finn. Mas não faça amor comigo se houver qualquer outra pessoa nesta sala.

Ele esperou até que a culpa lhe desse o golpe fatal e que as lembranças se entalassem em sua garganta. Mas percebeu que só sentia o coração de Peggy disparado contra seu peito e o calor de sua respiração em seu rosto. Depois a beijou e não havia mais nada entre eles, a não ser a roupa. Pouco tempo depois, nem isso.

Ele não lhe disse que a amava, mas quando finalmente mergulhou dentro dela, por um instante passageiro de lucidez, soube que sentia mais que apenas desejo ou gratidão. E o medo veio em seguida, após encontraram a liberdade, e ele ficou ali deitado, com a cabeça de Peggy em seu ombro.

 

                                 Capítulo 23

A cozinha do Whiskey Island Saloon estava pronta. Megan jamais poderia imaginar que teria um local tão bonito e organizado para trabalhar. Tudo estava à mão e, pela primeira vez na história, havia espaço suficiente para que ela e sua equipe não precisassem fazer malabarismos entre panelas e mantimentos.

— O único problema é que não há ninguém para quem eu possa cozinhar — Megan disse a Casey, enquanto lhe mostrava tudo. — A não ser a própria equipe da cozinha, mas eles são mais de sanduíches e pizza. Ninguém a está derrubando para exigir minhas sopas e meus ensopados.

Casey encostou-se na beira do balcão, tomando cuidado para não marcar o armário com os sapatos sujos. O lado oeste de Cleveland estava em meio a um aguaceiro. O outono e a queda da temperatura não estavam muito distantes.

— Quando está programado para reabrir? — perguntou ela.

— Nick acha que no máximo em mais um mês.

— Vai reinaugurar com promoção especial?

— Comida grátis e Guinness de um dólar para todos os clientes cativos e a família. Isso certamente irá liquidar o que houver sobrado do dinheiro do seguro.

— Vai ficar lindo. Nick e os garotos estão fazendo um ótimo trabalho. — Casey havia aceitado o chá de ervas que Megan fizera para ela. — O lugar agora está sofisticado até para receber homens de negócio. Talvez devêssemos acrescentar tapas espanhóis ao cardápio, ou uma tarde de degustação de vinho, aos sábados.

— Você seria a primeira a entrar pelos portões do céu e seria obrigada a desviar do fogo hostil de nossos antepassados. Não vou querer prestar contas aos Donaghues que cuidaram do lugar antes de mim por ter servido tapas.

— Você acha que perdemos clientes?

Esta era uma preocupação verdadeira, que minava a confiança de Megan. E se Nick, Marco e os garotos tivessem realizado todo esse trabalho e o lugar não vingasse, pelo fato de as pessoas esquecerem de voltar?

Ela procurou ser positiva.

— Todo santo dia ouço reclamações a respeito dos outros lugares aonde as pessoas têm de ir. Recebo umas cinco ou seis ligações por semana de gente querendo saber quando iremos reabrir.

Casey foi ficando mais tranqüila.

— Então, se abrirmos logo, vai dar tudo certo. Para muitos de nossos clientes o Whiskey Island é como a casa da vovó. Talvez a casa da tia Fifi tenha um elevador elegante, com uma bela vista, mas não tem o aconchego do lar.

— Se eu tivesse uma tia Fifi, me mudaria para algum lugar bem longe sem deixar o endereço.

Casey deu um gole no chá enquanto Megan passava um pano nos balcões imaculados e desinfetava a pia. Niccolo e Marco haviam saído para comprar material e prometeram voltar uma hora atrás. Ela se perguntava se Niccolo estaria evitando sua companhia ou analisar a situação.

— O que ele iria evitar pensar?

— Sua decisão de deixar o sacerdócio. Sua decisão de se casar.

— Ora, vamos! Ele é louco por você.

— Casey, eu poderia deixá-lo e ele levaria dias para notar.

— Isso é loucura.

— Ele deveria estar de volta uma hora atrás. Íamos sair para almoçar juntos. Acabei tomando uma sopa antes de você chegar.

— Talvez tenha acontecido alguma coisa.

— Tenho certeza de que aconteceu. Ele e o Marco lembraram de mais alguma coisa que precisavam do outro lado da cidade. Em breve ele irá entrar aqui com um saco do McDonald's para jogar no lixo. Vai me ver e lembrar. Então vai se sentir mal e me pedir desculpas. E como uma tola, irei desculpá-lo.

Como se ela tivesse o dom da profecia, a porta da frente bateu e Niccolo entrou, seguido pelo irmão.

Os dois eram parecidos, embora as feições de Niccolo fossem ligeiramente mais definidas e ele fosse mais magro que Marco, que estava um pouco acima do peso. Marco parecia um jogador de defesa, meio fora de forma. Niccolo estava mais para um atacante, no auge de seu condicionamento.

— Megan me desculpe. O tempo voou. Você comeu?

— Hã-hã. — Ela pegou o saco de papel amassado, quando ele o arremessou na lixeira da cozinha. Ergueu para que Casey visse.

— Burger King. Mas cheguei perto.

— Isso é do Marco. Achei melhor ver se você ainda estaria me esperando — disse Niccolo.

Ela sabia que uma mulher melhor teria oferecido a ele um pouco da sopa. Mas ela apenas deu de ombros, virando-se para o cunhado.

— Para que tipo de enrascada ele o arrastou?

— Foi um telefonema de uma instituição católica de caridade. — Marco piscou rapidamente. — Esse seu marido faz sucesso. Ainda bem que tem um celular.

— Instituição católica de caridade? — Megan virou-se para Niccolo. — Eles ainda estão atrás de você?

Ele levantou as mãos como se estivesse espantando um enxame de abelhas.

— Eu disse a eles que não poderia fazer parte do quadro diretor.

Ela sentiu um momento de puro prazer. Ele a ouvira e havia recusado a função, mesmo significando contatos valiosos.

— Há um conflito de interesses — continuou Niccolo. — Estou pedindo patrocínio a eles e parece que tenho uma boa chance de conseguir.

O prazer morreu. Ele não fizera isso para agradá-la e nem mesmo por admitir estar sobrecarregado. Provavelmente percebera o que ela estava pensando, porque colocou a mão em seu ombro.

— Eu teria dito não de qualquer forma.

— Claro que teria. É apenas uma palavra difícil de ser pronunciada.

— Pelo que estou vendo, todas as empresas por aqui querem um pouco da Tijolo. — Marco foi até a geladeira, pegou dois refrigerantes e deu um ao irmão. — Mais alguém?

— Estou bem — disse Megan. — O que quer dizer?

— O jeito como esse telefone toca. Toda aquela propaganda não foi nada mal.

— Já passei por essa situação de ter que levantar fundos. — Casey se levantou para lavar sua xícara. — Quando eu estava tentando reerguer a Albaugh. Nosso problema era que cada quantia que eu solicitava como ajuda, vinha com um milhão de condições. Tínhamos que fazer tantas mudanças na equipe e no trabalho que, a cada vez que recebíamos um cheque, era quase preciso recomeçar tudo.

— Isso também é um problema para nós. — Niccolo abriu a latinha e deu um prolongado gole, como se não tivesse bebido nada o dia todo.

Megan suspirou e foi até a geladeira, cutucando Marco para que ele saísse do caminho, para que ela pudesse pegar a sopa.

— Quer um pouco disso? — Ela segurou no alto, para que ele pudesse ver.

— Com certeza. — Ele se virou de volta para Casey. — Já dispensei ofertas que aparentemente seriam boas. A minha preferida foi uma que insistia que nenhum dos garotos usasse ferramentas elétricas.

— Você irá encontrar o dinheiro certo na fonte certa. — Casey consultou o relógio. — Tenho uma consulta médica. Vejo vocês depois. — Ela viu a cara que Megan fez e sorriu. — É só uma consulta de rotina.

Marco arremessou sua latinha no lixo.

— Preciso ir andando se quiser chegar a Pittsburgh para o jantar. Carrie prometeu fazer massa. Vejo você na próxima quarta, Nick. — Ele pegou Megan pelo braço para dar-lhe um beijo de despedida. — Até lá.

Megan esquentou a sopa no microondas enquanto Niccolo os levou até a porta. Quando ele voltou, estava pronta e ela pôs em cima do balcão. Ele puxou uma banqueta.

— Parece ótima.

— É um dia bom para sopa.

— Desculpe pelo almoço. Usei tanto o telefone que acabou a bateria e não pude ligar para dizer que não chegaria a tempo. Procurei um telefone público, mas não tive sorte.

— Não é a primeira vez que fico esperando, e tenho certeza que não será a última.

— O resto da semana está terrível. Não tenho nenhuma tarde livre.

Havia uns cem clichês para uma ocasião como essa. Qual é a novidade? Já vi esse filme. Conta outra. As possibilidades eram infinitamente embaraçosas e chegava ser difícil escolher. Ela simplesmente concordou com a cabeça, conformada, os lábios apertados.

— Mas não tenho absolutamente nada programado para o fim de semana — disse Niccolo, quando viu que ela não respondeu. — Estou livre sexta e sábado à noite. Vamos planejar algo divertido para um desses dias. Só eu e você. Em algum lugar legal.

Um aviso pareceu prudente.

— Porém barato.

Ele pousou as mãos nos ombros dela.

— Legal e nem tão barato assim. Só nós, uma garrafa de vinho e frutos do mar. Que tal?

Ela fez um movimento rotativo com a cabeça, quando ele começou a massagear-lhe os ombros.

— Você tem certeza de que vai ter tempo?

— Vou arranjar tempo, Megan. Nós precisamos sair uma noite. Vamos nos arrumar e podemos até ir dançar depois.

Ela gostou da forma como aquilo soou, embora pudesse passar sem a parte de se arrumar.

— Então negócio fechado.

— Ótimo. — Ele a puxou para perto e pôs a boca bem pertinho de sua orelha. — Você quer cuidar da programação? Ou prefere que aja como um cavalheiro à moda antiga e tente descobrir o que irá agradá-la?

— Eu cuido disso. — Ela se virou para fitá-lo. — Talvez deva me deixar esperando para almoçar com mais freqüência.

— Nunca desejo fazê-la infeliz. Sabe disso, não é? Quero lhe dar tudo que você sempre quis.

— Nesse momento me contento só com você, Nick. — Quando ele a beijou, ela sentiu que havia pedido algo que ele poderia lhe dar, afinal.

Niccolo havia sugerido jantar e dançar. Megan optou por algo um pouquinho mais romântico. Havia um hotel-fazenda a uma hora e meia de distância, ao sul de Cleveland, no coração da zona rural de Ohio. Ela ouvira dizer que os quartos no Inn at Honey Run eram adoráveis, que havia trilhas nos bosques ao redor e algumas lojas próximas. Melhor ainda era o fato de que Niccolo não poderia voltar para Cleveland facilmente, caso alguém precisasse dele. O hotel não era caro e provavelmente não haveria um lugar para dançar, ou comprar uma garrafa de vinho a pelo menos uns 80 quilômetros. Mas ela aceitaria de bom grado, duas noites de sexo glorioso.

Ela ligou, soube que eles tiveram uma desistência de último minuto e reservou uma suíte, com seu próprio cartão de crédito.

Seu bom humor durou até as quatro horas, quando Niccolo ligou para casa avisando que teria um jantar de negócios. Foi de repente, não deu para recusar, estaria em casa somente na hora de apagar as luzes e trancar a porta.

Josh tinha ido para Niagara Falls para aproveitar o finzinho do verão e Rooney, que devia estar jantando na casa de Deirdre e Frank, ainda não tinha voltado.

Megan comeu a sobra de uma salada e assou uma batata no microondas. Depois de ter uma revista Newsweek como companhia, começou a trabalhar nas cartas de Maura McSweeney, com seu dicionário irlandês sobre a mesa e seus livros de gramática irlandesa abertos ao lado. Até então, as cartas que havia conseguido traduzir não faziam mais nenhuma menção a Liam Tierney, mas mesmo assim ela as achava interessantes. Lamentava por jamais ter conhecido Maura McSweeney.

Após uma hora de frustração, tentava reunir forças para assistir a Humphrey Bogart seduzir Lauren Bacall, quando Rooney entrou pela porta.

Ela deu o suspiro habitual de alívio por seu pai ter chegado em casa. Os cabelos dele estavam despenteados pelo vento e as bochechas vermelhas do sol. Mais uma vez ele havia deixado o boné que ela lhe comprara em casa, mas aparentava ter tido um bom dia. Ele entrou na sala e sentou na poltrona que alegava ser sua.

Ela nunca tinha certeza quanto à resposta que teria, caso fizesse uma pergunta ao pai, mas ultimamente Rooney andava mais em sintonia do que fora dela. Medicamentos melhores, uma dieta saudável e a ausência de preocupação quanto a um lugar para dormir, pareciam estar fazendo diferença em sua vida. O amor que auxiliava sem sufocá-lo também aparentava estar ajudando. Ela arriscou puxar uma conversa.

— Ainda está chovendo?

— Não muito.

— Espero que tenha sido um bom jantar.

— Filé.

— Eu comi alface murcha e uma batata seca.

Ele deu uma gargalhada e ela se animou. O Rooney de sua infância fora um homem de grande senso de humor e habilidade para compartilhá-lo.

— A Dee mandou um "oi" — disse Rooney. — Frank também.

Rooney estava tendo um bom dia. Ele não estava apenas bem situado quanto à realidade, mas parecia feliz por estar com ela. Megan ficava muito grata por momentos como esse, que outras pessoas pareciam nem dar importância.

Ela aproveitou seu bom humor.

— Tive uma boa conversa com a tia Dee há algumas semanas, sobre seu pai.

— O que ela lhe disse?

— Bem, conversamos sobre a época em que ele era agente federal. Você sabia que ele se apaixonou por Clare McNulty, a filha do contrabandista?

— Claro que sim.

— Não conseguimos terminar a nossa conversa. Só fiquei sabendo disso. — Deirdre e Frank haviam saído para um cruzeiro dois dias depois e Megan não tivera a chance de encontrar a tia novamente, para saber o que mais ela teria para contar.

— Eu sei bem mais que isso. Sei mais que Dee. — Megan ficou intrigada.

— Você sabe?

— Ele conversava comigo. — Rooney sorriu. — Achou que eu estava me apaixonando pela mulher errada.

— A mamãe não!

— Não a Kathleen. Que vergonha.

Ela pôs a mão sobre o coração.

— Ah, bom, você me deixou preocupada.

— Ela se mudou para longe. — Rooney franziu o rosto. — Não lembro bem o nome dela.

— Eu lhe digo. Você não me engana. Nem Casey ou Peggy.

Rooney deu um sorriso fraternal e Megan sorriu de volta.

— Você se lembra das histórias que seu pai lhe contou sobre Clare McNulty?

Rooney ficou em silêncio por tanto tempo que ela achou que havia mergulhado num mundo onde ninguém mais podia entrar com ele.

Depois concordou com a cabeça.

— Agora você já tem idade para saber. Mas é triste. — Ela ficou comovida, porque essa última parte era obviamente um aviso. Ele se preocupava com os sentimentos dela.

— Tudo bem — disse ela. — Às vezes a vida é assim.

— Uma boa mulher, mas a mulher errada para amar — disse Rooney. — Vou lhe contar o que me lembro.

Ela não sabia em relação a que deveria ter mais gratidão. Pelo fato de seu pai ter lembrado da história, ou por ele conseguir se articular e contá-la.

 

                       1925, Castlebar, Condado de Mayo

                       Meu querido Patrick,

Tenho um grande temor e tenho dúvidas quanto a lhe escrever a respeito. No entanto, que notícias lhe envio, a ponto de fazê-lo sentar-se para tomar conhecimento? Então devo contar. Antes que eu conte, esteja certo de que agora estou bem, e mais sábia do que era há uma semana.

Talvez você se lembre da família Fitzgerald, que morava no fim da Ballinrobe Road. Sean Fitzgerald e Rose, sua esposa, tiveram doze filhos, e cada um deles se estabeleceu aqui nessa área, alguns na própria terra da família. A terra nunca produziu bem e cada um ia trabalhar fora de tempos em tempos. Eles são um grupo admirável. Fazem qualquer coisa para alimentar a família, esses Fitzgeralds, até mesmo os trabalhos mais duros. O filho mais velho, Hugh, teve também dois filhos. E é sobre ele, Jack, que recai a minha história.

Eu sempre ouço, como a maioria das mulheres idosas, as notícias trazidas por meus vizinhos. É um passatempo um tanto inofensivo, na maioria dos dias de hoje. Não foi inofensivo no dia em que ouvi que Jack estava determinado a casar-se com Fiona Õ'Shea. Você não conheceu os O'Sheas. Eles são da Igreja da Irlanda e recém-chegados a Castlebar. Ainda preciso saber de que forma Jack conheceu Fiona, ou como teve o tempo necessário em sua companhia, para se apaixonar. Mas é suficiente dizer que ambas as coisas aconteceram. E os dois decidiram se casar.

Às vezes Jack faz trabalhos para mim. Ele é um jovem encantador e decidido a traçar seu próprio caminho pelo mundo. Possui alguma educação e deseja mais. Já leu todos os livros que tenho e absorveu cada porção de meu conhecimento. Fiona, eu conheço menos. Sei apenas que é tão gentil quanto espirituosa. Quando Jack confessou que iriam fugir para se casar, eu tentei dissuadi-lo. Talvez, algum dia, nosso povo irá lembrar de que louvamos o mesmo Deus e temos mais em comum do que séculos de discordância. Mas esse tempo ainda não chegou e temi pelos dois.

É claro que eu estava certa em sentir medo. Jack confiou na minha amizade e, na noite em que iam fugir, a trouxe aqui para permanecer até que sua família os procurasse, achando que não viriam tão longe. Após o anoitecer, evitariam o risco de ser pegos nas estradas.

Estavam errados, é claro. Fugiram apenas alguns minutos antes que o pai e os irmãos dela chegassem, acompanhados pelos pais e irmãos de Jack. Alguém os havia visto por perto e sentiu-se no dever de relatar.

Eu estava sozinha quando as famílias chegaram, uma após a outra, e posso apenas dizer que o bom Deus prevaleceu, para que eles não ateassem fogo na casa. Não posso dizer o que houve com Jack e Fiona. Pois, se fossem pegos, alguém saberia? Será que estão dividindo uma sepultura, em algum lugar dos campos da Irlanda, em vez de uma cama? Às vezes sinto-me envergonhada por ser cristã, querido Patrick. Somos constantemente o povo mais pagão que há.

             Sua querida irmã, Maura McSweeney.

 

                                     Capítulo 24

Glen havia se apaixonado por Clare McNulty à primeira vista, e mesmo negando a força de seus sentimentos, encontrava inúmeros meios para vê-la. Depois que Niall Cassidy fora levado para a delegacia para interrogatório, o pai de Clare ficou ainda mais cuidadoso quanto a perdê-la de vista. Mas Clare era inteligente e desembaraçada, e Tim um homem ocupado. Glen e Clare se encontravam onde podiam e, cada vez mais, ele tinha certeza de ter encontrado a mulher com quem queria se casar, apesar dos obstáculos.

Hoje iriam a um piquenique e Glen pedira à avó que preparasse o lanche. Lena Donaghue era adorada pelos netos e louca por todos eles. Sua própria mãe iria questioná-lo implacavelmente até que arrancasse dele cada pensamento que tivera sobre uma mulher. Mas Lena era mais discreta e mais propensa a preparar um verdadeiro banquete para impressionar Clare.

Ele parou na casa da avó na manhã em que iria se encontrar com Clare no Edgewater Park. Como sempre, foi forçado a abrir caminho em meio a um batalhão de netos que brincavam e jogavam dominó na varanda da frente. Na sala, precisou pular por cima de duas primas adolescentes, que cantarolavam uma balada romântica de John McCormack, tocando no rádio novinho em folha de Lena.

Ele a encontrou na cozinha, como já esperava. Seus cabelos eram brancos, com apenas algumas mechas ruivas, e usava-os preso num coque, no alto da cabeça. Nada de grandes modismos para sua avó, que apesar de ter dado à luz seis filhos, ainda era esbelta, e as rugas de seu rosto não apagavam a beleza que ainda tinha.

Seu avô Rowan, que falecera há quase dez anos, insistia para que a esposa ensinasse as crianças a cozinhar, assim teria ajuda tanto no salão quanto em casa. Com uma exceção, Lena havia ensinado todos os seus rebentos apenas o básico e praticamente mais nada. Ela passara suas receitas sagradas de família apenas para o seu filho mais velho e Terence, pai de Glen. Pelo fato de não concedê-las a todos, Glen desconfiava que Lena estaria garantindo a continuidade das reuniões em família no salão, depois que ela morresse. Seriam forçados a fazê-lo, se quisessem o sabor verdadeiro do lar.

— Mas que cheiro maravilhoso, Mamo. — Ela sempre fora a Mamo Lena para ele e seus outros netos, uma palavra que havia trazido do velho país. Era apenas uma das muitas maneiras pelas quais se mantinha irlandesa, além da entonação musical de sua voz, quando falava.

— E não deveria ser, querido? — Ela inclinou-se para beijá-lo no rosto quando ele veio ao seu lado, no fogão. — Estou fazendo o suficiente para todos os Donaghues que já nasceram até hoje.

Glen achava que a avó sentia saudades de cozinhar para os clientes do salão, mesmo após a luta contra uma pneumonia violenta que enfraqueceu seus pulmões, forçando sua aposentadoria. Mas ela tinha muitos netos para fazê-la feliz, além de um filho e uma nora que mantinham o salão funcionando conforme seus padrões exigentes. E sempre havia alguém da família, como Glen, que precisava que ela cozinhasse algo especial.

Ele avistou um cesto de palha em cima do balcão e olhou dentro. Já estava cheio de comida. Se ele e Clare começassem a comer no instante em que se encontrassem e continuassem até se despedirem, talvez conseguissem consumir a metade.

— Não venha me dizer que é muito — Lena disse a ele. — Leve tudo o que sobrar para aquele quartinho na casa de um estranho, que você chama de lar.

Glen havia se mudado da casa dos pais quando se tornou um agente federal. Ele achava que sua família entendia, embora tivesse sido um grande alvoroço. Mas ele achava melhor não morar num lugar onde iria ter que ouvir histórias que colocariam seu caráter à prova. Ia visitá-los com freqüência, mas a atitude era um lembrete à família para que tomassem cuidado, ou corriam o risco de uma batida.

— Tenho certeza que vamos comer até a última garfada — disse ele. — Parece maravilhoso.

— Essa sua garota, ela gosta de cozinhar?

— Não sei. Nunca comemos juntos.

— E por que ela ainda não o convidou para ir jantar em sua casa no domingo? Já conheceu a família dela?

Ele não estava certo de quanto deveria contar-lhe. Lena poderia ser discreta caso ele pedisse, porém, se ficasse muito preocupada com ele, talvez compartilhasse seu receio com os pais dele.

— O pai dela não me aprovaria — disse ele, tentando o mínimo possível de explicações.

Lena olhou para ele.

— Apenas diga que ela é uma boa moça católica.

— Isso ela é. Nos conhecemos na igreja.

— Então pode ser que eu a conheça.

— Mamo, há outras complicações. Ela é tudo que você gostaria para mim. O pai dela é outra história.

— Talvez seja porque você ainda não lhe deu uma oportunidade para conhecê-lo. Como pode saber que ele é tão ruim? Ou talvez não goste de irlandeses?

— Ele é irlandês.

Lena fez uma expressão de felicidade, como se ele a tivesse dado o céu e as estrelas.

— Ele é um contrabandista, Mamo.

— Tim McNulty! — O sorriso dela se transformou numa careta. — Glen, você enlouqueceu, menino? Já vi a filha. É uma moça adorável, mas certamente há moças adoráveis por toda parte em West Side, cujas famílias não andam pela rua com guarda-costas.

— Você é a única que sabe. Por favor, não conte a mais ninguém. Não sei o que vamos fazer. O pai dela quer casá-la com um homem de Chicago, outro contrabandista, e ela o despreza.

— Ela o está usando para se livrar de uma situação ruim?

— Ela não é assim. Não sei como se transformou no que é, mas é meiga, gentil e bem-educada. Você irá amá-la assim que conhecê-la.

— Vou amá-la? Isso significa que você já se decidiu, Glen? Vai lutar por ela?

Ele estava decidido, mas não era fácil encarar o fato. Ele era um homem à moda antiga e o mundo estava mudando. Não gostava do fato de estar agindo pelas costas de McNulty para cortejar sua filha. Não gostava do fato que, se Clare casasse com ele, o pai iria repudiá-la.

E acima de tudo, não gostava do fato desse relacionamento colocar a vida de Clare em perigo. Ele conhecia a fama de McNulty e sabia que não iria permitir que a filha destruísse os planos que fizera para ela, não facilmente. McNulty era perigoso e tinha pouca consideração pela filha. Era uma combinação apavorante.

— Vou lutar por ela — disse Glen. — Mas não sou um tolo. Posso não ganhar.

— E isso seria uma pena, porque ela parece precisar de você.

— Vai manter isso entre nós?

— Por enquanto. — Lena voltou à panela borbulhante no fogão.

Tim McNulty estava em Chicago, e Clare também deveria ter ido. Ela concordara alegremente e havia feito as malas, mas, no último instante alegou problemas femininos, uma desculpa que Tim não iria investigar nem discutir.

Ele a insultou por permitir que tal coisa acontecesse, mas acabou deixando-a para trás.

Jerry deveria ficar cuidando dela, mas ele era um pateta, fácil de ser enganado e tinha medo das mulheres. Quando ela lhe disse que iria passar o dia dormindo em seu quarto — e após dar alguns bocejos quando ele passou por perto — ele rapidamente abandonou o andar superior. Por experiência, ela sabia que ele iria instalar-se confortavelmente na sala, com um baralho e uma garrafinha de bebida. Se ela descesse pela escada dos empregados, que dava na parte traseira da casa, ele jamais daria falta dela. E se descobrisse, ela simplesmente lhe diria que precisava desesperadamente de um pouco de ar fresco, por estar se sentindo mal.

Não era o tipo de coisa que iria dizer a Tim.

Ainda faltava uma hora para o meio-dia e Clare conseguiu chegar até a cozinha sem ser descoberta. Estava com a mão na maçaneta quando percebeu que havia outro homem vigiando no quintal dos fundos. Ele era alto e esguio, mais jovem que Jerry e visivelmente mais ágil que ele.

Ela não contava com isso. Com seu pai em Chicago, deduziu que o número de guarda-costas seria mínimo. Se por um lado os gângsteres matavam uns aos outros sem escrúpulos, eles raramente voltavam sua fúria para membros das famílias. Não estava de fato em perigo. Ela desconfiava que Tim estava mais receoso que ela saísse.

Matutava o que fazer quando o homem se virou e foi andando em direção à frente da casa. Ele ouviu um carro estacionar e o som abafado de alguém conversando. Sua chance havia chegado.

Clare fechou a porta atrás de si com todo cuidado e se esgueirou juntou à cerca feita de pequenas árvores alinhadas, ao longo do caminho. Os cães de guarda de Tim a ignoraram quando passou em frente ao canil, e já estava fora do portão e na metade do caminho, quando se arriscou a olhar para trás. Ninguém por perto. Cortou caminho passando por dentro de alguns jardins, procurando se manter o mais afastada possível da rua, até que chegou à esquina, onde podia pegar o bonde. Esperou até que ele estivesse bem próximo, para sair de trás de uma cerca de madeira e embarcar para a viagem até o Edgewater Park.

Glen temia que Clare não viesse, mas quando a viu esperando ao lado do pavilhão, ficou tão contente que sua própria reação o espantou. Desde o começo ele havia tentado levar o romance calmamente, sendo cuidadoso e sensível. Mas só em olhar para seus lábios rosados e cabelos reluzentes, soube que havia ultrapassado uma linha importante. Clare também, a julgar pela expressão em seu rosto.

Ele a beijou sem se importar com as pessoas que circulavam ao redor. Sentia-se como um homem que havia jejuado por duas semanas e finalmente estava se sentando para um banquete.

— Quase não consegui sair. — Ela ficou na ponta dos pés e o beijou novamente, depois lhe deu o braço. — Meu pai mandou vigiar a porta dos fundos também. Um sujeito que não conheço.

Glen sabia que McNulty tinha um pelotão de boçais trabalhando para ele. Duvidava que McNulty deixaria Clare sob os cuidados de qualquer um. O cara novo devia ser algum novato promovido.

— Vamos achar um lugar para sentar. — Glen a conduziu até chegarem diante do lago. O dia era ensolarado e estavam cercados de gente que aproveitava o clima de agosto ao redor da margem. Uma brisa fresca soprava da água, deixando a temperatura quase perfeita. Eles avistaram uma árvore com sombra, destacada da via principal, e abriram o cobertor que Glen havia trazido.

Ele tirou os pacotes da cesta e contou sobre a conversa que tivera com a avó.

— Você vai amá-la — prometeu ele. — E ela vai amar você. Todos vão.

— Glen... — ela baixou o prato. — Quando meu pai descobrir a nosso respeito, não vai haver volta para mim. Você compreende isso, não é? Se eu desafiar meu pai e sobreviver, ele jamais voltará a me reconhecer como filha. Estarei morta para ele, que irá tentar se vingar. Você sempre estará em perigo, enquanto ele for vivo e estiver solto. Essa tem que ser a última vez em que nos vemos. Seria melhor.

— Para quem? Para você? Para mim? Para ele?

— Para você.

Ele ergueu o queixo dela, para olhar dentro de seus olhos.

— E quanto a você, Clare? O que seria melhor para você? — Ela tentou olhar para longe.

— Não me pergunte.

— Preciso saber.

— Você sabe como me sinto.

— Apenas diga.

— Eu te amo. Não dá para notar?

— Eu esperava que me amasse. Eu te amo.

— Nunca deveríamos ter começado isso.

Ele baixou a mão. Claro que ela estava certa, mas eles tinham começado e o resto ficou para trás.

— Talvez esteja certa. Mas o que faria se não tivesse me conhecido? Casado com Cassidy? Pelo menos agora temos uma chance de felicidade verdadeira, Clare. E se nunca achássemos um ao outro?

— O que vamos fazer?

— Vamos casar. Não ganho muito dinheiro e não posso mantê-la no mesmo estilo de vida de seu pai, mas nós podemos morar com a minha família até que tenhamos um lugar nosso. Minha avó tem bastante espaço em casa, e depois de conhecê-la, vai nos querer morando lá. Fará questão.

— E meu pai irá tentar dar o troco.

— Talvez não. Quando estivermos casados, os nossos filhos serão os netos dele. Não irá querer perdê-los. E talvez se importe com você mais do que pensa.

Ela sacudiu a cabeça.

— Você não sabe.

— Então vamos nos mudar para longe. Se ficar ruim aqui, peço uma transferência para outra cidade. Case comigo, Clare. Assim que arranjarmos tudo.

— Você deixaria Cleveland e a sua família?

— Você será a minha família.

As lágrimas brotaram em seus olhos, mas ela concordou. E quando ele se inclinou para beijá-la, sua resposta foi apaixonada.

Comeram o almoço de Lena e fizeram planos. Ele disse que o padre Patrick McSweeney, que havia se aposentado da igreja Sta. Brígida, havia casado seus avós e seus pais, e Glen queria que ele os casasse também.

— A saúde dele não está boa, e agora ele só participa de casamentos e funerais esporadicamente, mas irá conduzir uma cerimônia particular para nós. Sei que vai. Ele sempre foi um bom amigo da família. E talvez tenha alguma influência com seu pai também.

— Ou meu pai talvez tenha influência sobre ele — disse Clare tristemente.

— Não com o padre McSweeney. Não importa quanto seu pai tenha doado a Sta. Brígida, ou quem intercede por ele. Ele fará o que julgar certo.

— Sua família irá?

— É claro que sim. Há alguém de sua família que poderia ir?

— Ninguém. Mas minha mãe vai estar vendo do céu. Sei que vai. E vou usar o seu vestido. Ela o guardou para mim.

Ele pegou a mão dela.

— Temos que ter cuidado, Clare. Talvez tenha sido imprudente nos encontrarmos num lugar tão público. Até nos casarmos, precisamos ser mais cuidadosos do que nunca. Não quero que seu pai a machuque ou mande-a para algum lugar distante, onde eu não possa achá-la.

— Como iremos fazer nossos planos?

— Se for preciso, encontrarei alguém para enviar-lhe recados. E se você puder escapar para ir à missa cedo, sem despertar a curiosidade de seu pai...

— Eu vou. Você sabe que vou.

— Você disse que há um novo homem vigiando?

— Escapei dele hoje. Vou escapar de novo.

— Não acha que precisa ir agora?

Ela parecia arrasada, mas por fim concordou com a cabeça.

— E melhor.

— Vou levá-la até o bonde. — Ele começou a se levantar, mas ela pôs a mão em seu braço.

— Não. Fique aqui. Vou desaparecer na multidão. Você estava certo. E melhor que não sejamos vistos juntos.

Ele pegou a mão dela.

— Vai ser apenas por um tempinho. Depois estaremos casados pelo resto de nossas vidas. Vamos fazer dar certo. Você vai ver.

Ela levou a mãos dele até os lábios e depois levantou. Num instante havia se misturado à multidão e sumiu.

Glen ficou sentado, olhando para o local onde a viu por último. Primeiro ele não viu a sombra sobre o cobertor. Quando percebeu que tinha companhia, o homem estava em pé acima dele.

Era um homem familiar. Glen percebeu isso imediatamente, mas o resto, onde o havia visto, lhe fugia à memória.

— No galpão de Donatone — o homem informou. Glen começou a se levantar, mas o homem gesticulou para que sentasse e juntou-se a ele, puxando as pernas junto ao corpo, como se estivesse aproveitando o sol, com um amigo íntimo.

— Da última vez em que o vi — disse o homem —, tive que derrubá-lo.

Pensar naquilo fez o pescoço de Glen doer. Quando voltou a si, ele teve dificuldade para digerir aquele fiasco. Não se atreveu a contar a ninguém que o mesmo homem que o havia deixado inconsciente, salvara-lhe da bala de um contrabandista. Apesar de glórias passadas, ele duvidava que o departamento voltaria a mandá-lo para outra incursão.

— O que está fazendo aqui? — perguntou Glen, exigente. — Eu poderia arrastá-lo para a cadeia.

— Estou aqui para ficar de olho na srta. McNulty. — Glen ouviu o sotaque irlandês em sua voz. Também ouviu o aviso. Ele não se deu ao trabalho de mentir.

— Ela não está aqui.

— Eu sei. Eu a vi indo embora.

— Você era o valentão no quintal dos fundos. Ela acabou não se livrando de você. Você a seguiu.

O homem sorriu.

— Eu mesmo.

— Você tem nome?

— Quem não tem?

— Creio que eu seja o último cara para quem gostaria de dar seu nome, não é?

— Liam basta.

— Prazer em conhecê-lo "Liam Basta". — O sorriso de Liam se alargou.

— E você? Perdoe-me por esquecer.

— Glen Donaghue.

— Bem, Glen Dohaghue, estou aqui para lhe dar um aviso.

— Só isso? Tem muita gente aqui em volta, para me dar uma surra também?

— Você mesmo poderia evitá-la, acho.

— Poderia.

— O sr. McNulty tem planos para a filha. Eles não incluem você.

— E os dela não o incluem. É o século XX. Mulheres como a Clare votam. Elas tiram as meias, enrolam os cabelos, fumam cigarros. Freqüentam a escola e escolhem com quem irão se casar. Não deixam que seus pais imponham homens que elas desprezam.

— É mesmo? — Liam arrancou um graveto de capim e o colocou entre os lábios. — Ela despreza esse tal de Cassidy?

Glen percebeu como esse encontro estava sendo estranho. Liam era um assassino e todos os assassinos são perigosos. Mas desde o primeiro instante em que o vira, ele sentiu uma sinergia com o homem. E óbvio, Liam lhe salvara a vida imediatamente, o que já era meio caminho para se criar um elo.

— Ela o odeia — disse Glen.

— E te ama. — Liam mastigava o graveto.

— Eu não disse isso.

— Não precisava. Ela não é o tipo de garota que sairia escondida por qualquer outra coisa.

— Como é que você sabe? Ela disse que nunca o viu antes.

— Eu ouço. Presto atenção.

— Bem, você já deu o seu conselho. Pode ir agora. Faça com que ela chegue em casa em segurança.

— Isso não foi um conselho. Foi um aviso, Donaghue. Já disse, eu presto atenção. E o que sei é o seguinte: Tim McNulty não é um homem com quem se brinque. Não se iluda com a piscada de olhos, o charme. Ele é inescrupuloso como um soldado prussiano. Não pensará duas vezes em mandar matá-lo. E irá matá-la também, se achar que deve. E pior, vai fazê-la desejar que a tivesse matado. Você está colocando ambos em risco.

As conversas que Glen tivera com os criminosos de Cleveland jamais haviam sido como essa. Liam quem-quer-que-fosse parecia sinceramente preocupado com ele.

— Por que está me dizendo isso? — perguntou Glen. — Está tentando poupar trabalho? Ou não tem estômago para matar mulheres jovens?

— Não tenho estômago para matar ninguém.

— Então está no negócio errado.

— Até agora, não. E quero manter as coisas assim. — Liam jogou o graveto mastigado no chão e levantou-se, se espreguiçando. — Salvei sua vida uma vez. Talvez me sinta responsável por assegurar que não a jogue fora.

— Você não me deve nada e nunca deveu. — Glen o encarava, olhando para cima. Depois franziu o rosto. — Mas obrigado por aquela última vez e pelo aviso.

Liam olhava para ele com uma expressão estranha no rosto.

— Você disse que seu nome é Donaghue?

— Isso mesmo, por quê?

— Nada. Você se parece um pouquinho com alguém que conheci. Só isso. — Liam ergueu o chapéu num gesto de despedida.

— Se mantiver Clare longe de mim, estará garantindo a ela uma vida infeliz. Sou a única esperança que ela tem para uma vida de verdade, Liam.

— Não. Mantendo-a longe de você estou garantindo uma vida de verdade para minha esposa e minha filha. Faço o que me mandam. E, pelo menos, tenho bom senso para não atravessar o caminho de Tim McNulty.

 

                               Capítulo 25

A história de Rooney terminou subitamente. Ele se levantou e espreguiçou-se.

— Rooney, o que aconteceu a Clare? — perguntou Megan. — Ela decidiu obedecer ao pai e casou-se com Niall Cassidy? — Ela pensava rápido. — Já que não era minha avó, presumo que não se casou com o vovô. A não ser que tenha sido sua primeira esposa e ninguém tenha me falado que ele fora casado duas vezes.

— Vou para a cama. — Ela receava que Rooney subisse as escadas sem perceber que a estava deixando sem respostas. A narração da história havia sido confusa, mas a idéia básica ficou clara. Infelizmente ele agora estava fantasiando, como ainda acontecia com freqüência.

Ela sabia que não valeria a pena pressioná-lo. Já estava com sorte por ter descoberto tudo aquilo.

— Boa noite, Rooney. Durma bem. — Ela ficou vendo-o sair.

Ainda estava olhando para os degraus quando a porta da frente abriu e Niccolo entrou. Ele parecia tão cansando que, apesar de tudo, sentiu uma ponta de compaixão por ele. Além disso, ficar zangada seria contraproducente, já que tinha um fim de semana romântico a caminho.

Ela se levantou e o beijou no rosto. Se ele carregasse uma pasta, ela teria pegado de sua mão. Se usasse chinelos, teria ido buscá-los.

— Como foi a reunião?

— Longa e exaustiva. Como foi a sua noite?

Ela queria contar sobre Rooney, mas achou que isso podia esperar. Receava ouvir alguns hã-hãs e amanhã, quando perguntasse algo a respeito, ele não tivesse a menor idéia do que se tratava.

— Acho que vou fazer um Toddy para nós — disse ela. — Você irá dormir melhor.

— Acho que eu poderia dormir bem aqui, em pé.

— E o Toddy?

— Hã-hã. Ótimo.

Ela estava junto ao fogão mexendo o leite com mel, quando ele entrou na cozinha. Ele estava descalço e havia tirado a gravata e o blazer. A camisa estava aberta no pescoço e para fora das calças.

— Vejo que já está mais à vontade. — Ela pegou as canecas no armário. — Isso vai curar o que te aflige.

— O que me aflige são muitas noites longe de casa.

— Isso me aflige também.

— Iria incomodá-la tanto se o salão estivesse aberto?

— Talvez não tanto. Estaria lá fazendo inventário ou verificando outras coisas. Mas sempre iria preferir estar com você.

— Isso é bom de ouvir. — Niccolo debruçou-se sobre a mesa. — A boa notícia é que o pior já está próximo do fim.

— É mesmo? Como assim? — Ela desligou o fogo e deixou o leite no fogão.

— Talvez eu tenha encontrado a fonte de recursos de que preciso.

— É mesmo?

— Uma empresa sediada em Indiana. Eles financiam projetos para jovens ao redor do país e estão interessados na Tijolo. Estão focados na prevenção criminal. O mote deles é "Mantenha as crianças ocupadas, dê habilidade e atenção e serão cidadãos produtivos".

— Isso é ótimo. Parece que tem tudo a ver com o que quer. E não há condições impostas que o desagradem?

— Há muitas condições. Só vou descobrir, se serei capaz de conviver com elas no fim de semana.

Um alarme disparou na cabeça dela.

— Neste fim de semana?

— Eu sei, eu sei. — Ele passou as mãos nos cabelos. — Eu disse que estaria livre.

— Na verdade você prometeu que estaria livre. — Ela manteve a voz calma, mas fazia um esforço enorme.

— E estava, quando prometi. Olhe, Megan, por favor entenda. Eu não faria isso com você se não fosse absolutamente necessário. Mas vou ter que voar para Indianápolis na sexta-feira à tarde e não volto até segunda. A reunião de diretoria será no fim de semana, e se eu não estiver lá, vou ter que esperar pela próxima, que será somente daqui a três meses. Eles têm uma série de perguntas para mim, e eu para eles. Isso irá acelerar as coisas.

— Não pode fazer perguntas pelo telefone?

— Claro, eu poderia, mas isso faz mais sentido.

— O que sabe a respeito deles?

— Muito menos do que preciso saber. O que sei é bem promissor. Eu...

— Então está indo para Indiana sem ao menos ter garantia dos fatos? Deixando para trás o único fim de semana que terá em meses, por algo que mais parece uma aventura?

— Olhe, você pode vir comigo, se quiser. Pode fazer compras. Relaxar na piscina, enquanto eu for às reuniões.

— Nossa, como isso parece divertido. É sempre tão bom estar sozinha numa cidade estranha.

— Achei que você seria um pouco mais compreensiva, sabe, em vista do que pode estar a caminho para a Tijolo. É apenas uma noite. Haverá outras.

— Nick, fiz reserva no Inn at Honey Run para o fim de semana todo.

— Eu nunca disse que poderia dispor de um fim de semana inteiro. Disse que sairíamos uma noite.

Ela pensou em cem coisas para dizer em relação a isso, mas se restringiu ao mais prático.

— Se eu cancelar a essa altura, não vou mais conseguir o depósito de volta.

— Então deixe para lá. Sinto muito, mas é só uma viagem. Temos o resto da vida.

— Não conte com isso.

— O que isso quer dizer?

— Quer dizer não conte com isso, Nick. — Por um instante achou que iria explodir, mas, agora, uma calma polar se apossou dela. Olhou para o relógio acima da mesa. — Vou passar a noite na Casey. Não se preocupe comigo. Nem por um instante do resto de sua vida.

— Isso é inacreditavelmente infantil.

Ela não respondeu. Foi até lá em cima, arrumou uma muda de roupas e a escova de dentes. Ele não estava à vista quando ela fechou a porta da frente e saiu em direção à casa da irmã.

Casey fez a cama de hóspedes e indicou no corredor, para que Megan pegasse toalhas limpas.

— Você tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou ela, quando Megan voltou do banheiro de hóspedes.

— Tenho certeza. — Megan sentou-se na cama recém-arrumada. A colcha sob ela era vermelho-tomate e as paredes do quarto de hóspedes tinham um tom profundo de mostarda. Acima da cama havia uma tela em batik hindu, com deuses em posições comprometedoras. Ela esperava que conseguisse dormir.

— Esta não é a maneira de resolver as coisas.

— Olha, sem sermões, está certo? Só preciso de um tempo longe do Nick para repensar as coisas.

— Quanto tempo vai ficar?

— Depende.

— Você sabe que é bem-vinda para se mudar para cá permanentemente, mas não quero que Nick me culpe por isso.

— Casey, estou indo para a Irlanda.

Casey pareceu intrigada, como se as palavras de Megan tivessem sido pronunciadas numa língua desconhecida. Megan falou de novo.

— Irlanda. A ilha Esmeralda?

— Vou ficar com Peggy e Irene. Não vou poder fazer isso depois que o salão estiver pronto. Vou ficar atolada até o pescoço, portanto, a hora é perfeita. Peggy tem insistido tanto conosco para visitá-la. Sei que a saúde de Irene piorou e ela teme que não possamos ter a chance de conhecê-la. Então vou aceitar o convite.

— Já falou com Nick?

— Não, mas irei assim que conseguir uma reserva. Amanhã, se puder.

— Assim, em cima da hora, vai custar uma fortuna.

— Sabe de uma coisa? Não ligo. Vou pagar com meu cartão de crédito. Pago aos pouquinhos. Que se dane, não vou contratar um cozinheiro noturno quando o salão abrir. Farei tudo sozinha por uns meses até conseguir tirar a diferença. Nick nem vai perceber que não estou em casa.

Casey sentou-se ao lado de Megan e pegou a mão da irmã.

— Você não acha perigoso sair meio brigada assim? Não deveria primeiro resolver isso e depois ir para a Irlanda, se ainda tivesse vontade? Mas, por favor, não vá zangada. Você se lembra do que fez com o nosso relacionamento quando fui embora de Cleveland?

Ainda adolescente, Casey ficou com raiva de Megan por ela não vender o salão e dar a cada irmã a sua parte. Foi embora de Cleveland, jurando nunca mais voltar. Levou anos até que as irmãs tivessem maturidade para resolver suas diferenças.

— Éramos crianças — disse Megan. — Eu e Nick não somos. E estou tão perto das árvores que não consigo enxergar meu caminho pela floresta. Preciso de algum tempo e distância para resolver as coisas em minha cabeça. Preciso me afastar para não se tornar algo pessoal.

— Vocês precisam resolver as coisas juntos.

— Nesse momento estou com muita raiva para tentar. — Casey apertou a mão dela, depois soltou.

— Então, o que posso fazer?

— Tome conta de Rooney. Faria isso para mim?

— Claro que sim.

— Como Josh e Nick estão por perto e ficam de olho nas coisas, ele ficará bem. Mas se você puder visitar, principalmente nesse fim de semana, que Nick estará fora, só para ver se precisam de alguma coisa. Cuide para que Rooney tome os remédios e veja se eles não precisam de mantimentos.

— Passo lá todos os dias e posso cozinhar para eles enquanto Nick estiver longe. Rooney gosta muito do frango com páprica que Jon faz. Posso trazê-lo para cá, se precisar.

— Obrigada. — Megan procurou algo mais para dizer. — Vai ser tão bom ver a Peggy. — Os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Claro que vai.

— E vou poder averiguar esse tal de Finn 0'Malley.

— Não faça averiguações demaig. Ela não vai gostar. Seja amiga dela, não a irmã mais velha.

— Detesto que seja assim, Casey.

Casey passou o braço ao redor da irmã e apertou.

— Eu sei.

— Deixe-me sozinha, está bem?

— Já estou saindo. — Casey levantou e saiu. Megan se trocou e vestiu uma camiseta comprida. Seus olhos estavam quase transbordando. Ela conseguiu ir até o banheiro, lavou o rosto e escovou os dentes. Mas quando deitou-se não conseguiu evitar as lágrimas.

— Maldito Niccolo Andreani - sussurrou ela, furiosa, a começar, por que quis se casar?

 

 

                       Capítulo 26

Peggy não estava bem certa quanto ao que sentir em relação à chegada súbita de Megan. Ela estava vibrando por vê-la e também pela irmã ter a chance de conhecer Irene, mas, obviamente, a decisão de vir tinha sido bem repentina. Ela estava sozinha e Niccolo se encontrava em Cleveland. Isso não parecia um bom sinal para os recém-casados.

Entre o vôo longo e as horas de direção à esquerda na estrada de um país desconhecido, Megan estava exausta, mas ainda muito agitada para descansar. Irene a cumprimentara com carinho, em seguida se retirara para o seu cochilo, deixando as irmãs pondo as vidas em dia. Peggy fez um bule de chá e serviu os bolinhos de aveia que Nora havia feito. Kieran também estava dormindo, o que era propício.

— Isso é tão pitoresco. — Megan andava de um lado para o outro, agitada, examinando cada buraquinho e cantinho do chalé. — Sei de pessoas que passam a vida à procura de suas raízes irlandesas e as nossas foram entregues numa bandeja de prata. Não uma pilha de pedras cobertas de mofo, em algum campo vazio, mas isso aqui. — Ela abanou a mão no ar, dando ênfase.

— Você deve estar faminta. Sente-se e tome um chá.

— Acho que se me sentar vou pegar no sono e perder o resto da viagem.

— Quanto tempo pode ficar?

— Ainda não resolvi. Tenho um bilhete em aberto.

— Megan, deve ter custado uma fábula.

— Não me importo. Sempre quis conhecer a Irlanda. Agora farei isso.

— Sei que queria vir para cá na sua lua-de-mel...

— Mas somos muito práticos, eu e o Nick. Tiramos alguns dias e fomos para Michigan e achamos que seria o bastante.

Peggy esperou, torcendo para que aquilo fosse o início de algo, mas Megan apenas andava ao redor em silêncio, pegando cada bibelô, examinando com cuidado.

— Como vai o Nick? — perguntou Peggy, quando Megan chegou ao último objeto de uma fileira, uma torre Eiffel de cerâmica que Irene havia comprado ainda menina, numa viagem à Paris. — Você não falou muito.

— Ocupado. Você precisa ver o salão. Vai ver quando voltar para casa. Ele e os meninos da Tijolo fizeram um trabalho fantástico. A cozinha está pronta e tem espaço para todas as panelas e travessas. E o forno novo esquenta tão rápido que estou com medo de queimar tudo até me acostumar.

Havia um tom meio frenético na história de Megan, como se ela estivesse com medo de parar de falar das coisas maravilhosas e fosse tropeçar na verdade. Peggy entendia em parte como Megan funcionava. Peggy era a "irmãzinha", aquela que deveria ser protegida e afagada. Não importava o fato de que Peggy havia enfrentado seus próprios problemas com maturidade e estava lidando com eles. Não importava se ela já era uma mulher madura aos 23 anos e capaz de oferecer apoio também. Para Megan, ela ainda era a pequena Peggy, como sua filhinha, que Megan ainda não tinha.

— E como está a Tijolo? — sondou Peggy.

— Nick está trabalhando duro para levantar fundos. Ele irá para Indianápolis esse fim de semana, para se encontrar com uma empresa que talvez possa financiá-los.

— Então pensou em vir para a Irlanda enquanto ele está longe? Uma boa justificativa.

— Eu sabia que não poderia fazer isso após o salão reabrir. Pareceu a hora certa.

— Não consigo deixar de pensar que há mais alguma coisa.

— Já falei sobre Rooney? Ele parece cada vez melhor. Outro dia me contou uma história sobre nosso avô. E afirma ser o único a saber. Ele não terminou, mas foi um bom começo. Está tomando novos remédios, que o ajudam a manter a concentração. Também parece feliz e até menos propenso a devaneios.

Peggy ficou radiante ao saber que o pai estava feliz. Só temia que ele talvez fosse o único a estar feliz na casa da Hunter Street.

— Pode me contar a história?

— É o que descobri até agora. E Casey está indo bem. A barriga ainda não está aparecendo muito. Ela tem aquele corpo esbelto e comprido e aposto que não vai aparentar a gravidez por um bom tempo. Se eu um dia ficasse grávida, o bebê provavelmente estaria visível no segundo dia.

Peggy ouviu o "se" mais alto que o resto da frase.

— Quando vai parar de tagarelar?

Megan virou-se, movida principalmente pelo tom na voz de Peggy.

— Tagarelar? Eu estava apenas contando sobre a família.

— E nada a seu respeito.

— Não há nada para contar.

— Acho que para mim, não.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que chegamos a um limite, Megan. Posso passar o resto da minha vida como uma menininha para você proteger e cuidar, ou posso finalmente ser uma parceira igual nesse relacionamento. Você me fala dos seus problemas, eu falo dos meus. Você me conforta, eu aceito. Eu ofereço consolo...

— Aceito. — Megan puxou a cadeira e olhou para a fumaça que saía da xícara de chá à sua frente.

— Está certo — disse Peggy. — Você sabe que a amo e que faria qualquer coisa por você. Mas uma coisa que não farei mais é jogar esse joguinho. Sou uma adulta, você é adulta. Nunca fui sua filha. Sou sua irmã. Trate-me como tal.

A mão de Megan tremeu ligeiramente, quando foi pegar o chá. Peggy sabia que o cansaço fazia isso às pessoas. A tristeza também.

— Não sei o que dizer. — Megan levou a caneca aos lábios e pôs sobre a mesa. — Não estamos felizes. Não sei ao certo por quê. Nick trabalha muito e acho que é porque não quer ficar comigo. Acho que ele se arrepende por termos casado.

Peggy sabia que não podia dizer à irmã que aquilo era ridículo. Ela sabia o quanto Niccolo amava Megan, mas Megan obviamente não tinha mais certeza.

Megan ergueu os olhos.

— No momento em que eu conseguir tocar no assunto, vou falar com você. Feito? Nesse momento simplesmente não sei o que dizer. Por isso estou aqui.

— Feito. — Peggy ofereceu o prato de bolinhos. — Coma alguma coisa, depois vou colocá-la para tirar um cochilo com Kieran.

— Vou querer as duas coisas. — Megan conseguiu dar um sorriso. — Peggy, hábitos antigos são difíceis de perder. Se eu te pegar para atravessar a rua, pode dar um tapa na minha mão, está bem?

— Enquanto você estiver na Irlanda, eu é que estarei pegando a sua mão. Na primeira semana você vai olhar para o lado errado e pode ser atropelada.

Irene era amistosa e espontânea como Peggy havia descrito, e Megan gostou dela instantaneamente. O chalé era encantador e a paisagem de tirar o fôlego.

E ela estava profundamente deprimida por estar aqui.

— Então conseguiu dormir um pouquinho? — perguntou Irene, quando Megan saiu do quarto.

— O suficiente para perceber quanto sono perdi. — Megan espreguiçou-se. — Mas me sinto melhor. E você?

— Já passo muito tempo na cama, de qualquer forma. Dormir não é a melhor maneira de passar o tempo que ainda me resta.

Peggy veio da cozinha.

— E a melhor forma de fazer com que você tenha mais tempo.

Megan havia saído do quarto na ponta dos pés para não acordar o sobrinho. Mas, apesar de seus melhores esforços, algo o despertara. Os novos sons vindos de trás da porta fechada eram inconfundíveis.

— Posso ir pegá-lo? Será que ele vai se lembrar de mim? — Peggy pareceu confusa.

— Nem sempre tenho certeza se ele se lembra de mim, Megan.

Megan esqueceu seus próprios problemas por um instante.

— As coisas não estão indo tão bem quanto você esperava?

— Talvez você possa me dizer. Pode ser que perceba algumas mudanças que não vemos por estarmos tão perto. Vá pegá-lo, se quiser.

Megan gostou. Ela voltou ao quarto e agora Kieran estava em pé no berço, fazendo barulho nas grades.

— Oi, companheiro, é a tia Megan. — Ela se moveu devagar, sabia que ele precisava de um tempo para se acostumar.

— Ainda sonolento?

A boquinha de Kieran franziu, como se ele fosse chorar.

— Shhh... — Ela pegou um urso de pelúcia com uma roupa laranja e preta, que havia comprado ao sair de Cleveland, e balançou para ele. — Olhe o que eu trouxe para você, Kieran. Só para você.


Ele a encarava como se ela tivesse vindo de outra galáxia. Depois começou a lamúria.

Ela jogou o urso na cama e atravessou o quarto, em direção ao berço, pegando-o nos braços.

— Está tudo bem, docinho, eu sei como se sente.

Ela o balançava sem sucesso quando Peggy veio socorrê-la. Kieran continuou a gritar enquanto Peggy trocava sua fralda.

Ele se acalmou um pouco quando Peggy o levou até a cozinha e lhe deu um pouco de suco. Mas se recusava a olhar para as duas, mantendo-se fixo nos raios de sol que entravam pela janela, mesmo depois que ela lhe deu um biscoito e algumas uvas.

— Sei que você vai querer trabalhar com ele hoje à tarde — disse Megan. — Não vou atrapalhar.

Peggy tentava não parecer desanimada, mas Megan a conhecia bem demais para acreditar.

— Acho que vamos tirar uma folga hoje. A Bridie vem para uma aula de culinária. E Finn virá para o jantar, embora ainda não saiba disso. Nora ensinou algumas coisas a Bridie e ensinei o pouco que sei, mas ela parece ter um talento natural. E quer impressionar o pai. Teremos truta fresca, trazida por um amigo de Irene, e purê de batatas com alho.

— Enquanto estiver aqui, talvez eu possa aprender alguns segredos com Nora e compensar o valor da passagem. Novas especialidades autênticas para o salão.

— Ela é ótima, mas acho que você é que poderia ensinar uma ou duas coisinhas a ela. Não se preocupe quanto a Kieran. Ele precisa de um descanso e eu também.

— Então vamos conhecer Finn?

— Hã-hã.

— E vocês dois ainda estão saindo?

— Eu não colocaria dessa forma. — Peggy juntou-se à irmã na janela, mas chegou para a direita quando Kieran começou a reclamar. Ela havia atrapalhado o reflexo da luz na parede.

— Como você colocaria?

— Somos amigos. Amigos próximos. Estamos levando as coisas bem devagar. Ele está apenas começando a se recuperar, depois de uma fase muito difícil.

Megan achou que Peggy já havia tido sua cota de homens complicados. Megan jamais gostara de Phil e apesar das justificativas de Peggy e da ajuda modesta que ele dava, Megan o considerava irresponsável e egoísta. Sua irmã sempre fora compreensiva e paciente demais com ele e Megan temia que ela tivesse adotado outro parasita, só que desta vez, um parasita com sotaque irlandês.

— Você também teve suas dificuldades — Megan ressaltou. — Alguém está cuidando de você?

— Não é assim, juro. Você vai ver quando conhecê-lo. E o que ele passou não foi exatamente uma crise existencial. Não está tentando descobrir o sentido da vida. Ele perdeu a família.

— Conte-me sobre Bridie.

— Eu a adoro. — Os olhos de Peggy brilharam. — Ela é maravilhosa, e muito boa para Kieran.

— Está se apaixonando pelo pai? Porque já se apaixonou pela filha.

O rosto de Peggy ficou vermelho.

— O que a faz pensar que me apaixonei por ele?

— Não sei ao certo. Mas até a hora de ir embora saberei.

— Você não pode saber o que nem eu sei.

Ouviram a porta da frente bater, depois uma voz de criança. Irene e uma das meninas mais bonitas que Megan já vira entraram na sala.

— Vejam quem veio cozinhar para nós — disse Irene.

— Eu trouxe um livro de receitas de casa, vovó Irene. — Sorridente, ela mostrou o livro grosso, que aparentava ter servido como inspiração de muitas refeições. — Você deve ser a Megan. Peggy sempre fala de você. Nunca achei que iria conhecê-la. Oi, Kieran. — Sem esperar por uma resposta, ela foi até o menininho, perturbando sua concentração. — Olhe para mim, não para a parede, garotão.

Kieran olhou para ela acima, as sobrancelhas franzidas. Depois se inclinou à frente e começou a dar socos. Como se esse fosse o cumprimento mais comum que existe, Bridie sentou-o em seu colo e, bloqueando os socos com uma das mãos, passou-lhe um guardanapo no rosto, com a outra.

Megan olhou para Peggy e viu que a irmã a observava. Megan deu ombros.

— Às vezes o amor é como uma bomba de sabedoria. Aponta em sua direção e não há nada que possa fazer.

Finn não tivera um bom dia. Por duas vezes já havia recusado uma posição de supervisor na companhia de construção onde trabalhava, mas ultimamente estava desconfiado de que lhe dariam o cargo assim mesmo, porém sem o aumento no salário.

Ele gostava do trabalho braçal e descobriu que esta era uma boa maneira de tirar todas as outras coisas de sua mente. Não gostava de dizer aos outros homens o que fazer, nem como fazê-lo, e não gostava de tomar decisões a respeito do que deveriam fazer a seguir. Hoje ele havia sido forçado a fazer os três.

Jamais tivera a intenção de manter o emprego, nem por muito tempo. Ele precisara de tempo para reconsiderar sua vida e suas escolhas. Um ano havia se passado, depois dois, e ainda estava instalando encanamentos hidráulicos e se esquivando de responsabilidades, sempre que podia.

O emprego era apenas parte da insatisfação de hoje. Ele havia trabalhado duro fazendo seu trabalho e o do mestre-de-obras, mas não conseguira tirar Peggy da cabeça. Não tivera a intenção de se envolver com ela. Mas havia entrado no relacionamento, apesar de todo o esforço para que isso não acontecesse. Se ao menos não fossem forçados a estar juntos, cada vez que ele ia ver Irene... Se sua filha não preferisse a companhia de Peggy a estar com qualquer outra de suas amiguinhas...

Se ele não a tivesse achado tão arrebatadora e atraente...

Finn tinha consciência do terreno escorregadio embaixo de seus pés. Até a morte de sua esposa e filhos ele era forte e confiante, o aluno mais provável de ser bem-sucedido, o formando cortejado por hospitais que se estendiam a uma distância que chegava a Edimburgo e Londres. Como um jovem pai, foi incansável na solução de problemas e distribuíra recompensas merecidas. Como marido, havia apoiado e incentivado Sheila a encontrar seu próprio lugar ao sol.

O jovem autoconfiante morrera na costa da Irlanda e a casca vazia que sobrou suava frio a cada manhã, pensando em qual dos cadarços amarrar primeiro. Aquele jovem, que esporadicamente compartilhava um drinque social com amigos num pub, foi substituído por um alcoólatra desesperado e falido, que se esforçava a cada dia para se manter sóbrio.

E em sua vida — ou aquilo que aparentava ser uma — ele havia convidado uma mulher a entrar. Não uma mulher qualquer, é claro, mas a mãe de uma criança que, mesmo na melhor das hipóteses, iria exigir atenção permanente e doses extra de amor e iniciativa. Peggy precisava de um homem que tivesse os dois de sobra.

Peggy não precisava dele.

Ele, é claro, não precisava das complicações de nenhum relacionamento, ou a carga adicional de uma criança autista. Ele conseguia viver um dia de cada vez, colocando comida na mesa e fazendo com que sua filha tivesse o que vestir. Evitava os bares e, quando não podia, encontrava forças para recusar os drinques. Cuidava de Irene, mas ninguém sabia o quanto ele duvidava de sua habilidade para fazê-lo.

O que um homem como Finn O'Malley tinha a oferecer a uma mulher como Peggy Donaghue?

A pergunta o havia assombrado o dia todo. A resposta parecia simples, mas não era. Ele tinha que dizer adeus. Não haviam feito promessas, nem trocaram juras. Peggy sabia o quanto seu potencial de amante a longo prazo era limitado. Não fizera segredo de suas batalhas e perdas. Ela talvez ficasse triste, mas não ficaria surpresa.

O problema é que ele não queria terminar algo que mal havia começado. Desde o começo do caso vivera momentos de prazer dolorosamente intenso. Fazer amor com Peggy era como ter o sangue fluindo novamente em seu membro adormecido. Ele temia não conseguir voltar à forma de sua existência anterior a ela. Ao se afastar do mundo, ele havia criado uma camada protetora, mas agora voltara a viver e temia ter perdido a proteção para sempre.

Ele dirigia rumo à casa de Irene na incerteza de sua decisão, como havia passado todo o dia. Quanto mais se aproximava da casa dela, mais seus problemas pareciam se dissolver. Ele imaginava sobre o que iriam conversar, se ela contaria pequenos detalhes de seu dia, se teriam um instante ou outro a sós. Antes que pudesse parar de pensar, imaginou como seria voltar para casa todos as noites e encontrá-la.

Ele achou que talvez Bridie o estivesse esperando do lado de fora, mas, com exceção de Banjax, ninguém estava por perto. O cachorro velho e bobão estava deitado à sombra e quando Finn se aproximou ele abanou o rabo, sem sequer dar-se ao trabalho de levantar a cabeça.

Finn se agachou para lhe fazer um afago nas orelhas.

— Se você fizer essa cara de coitado mais um pouquinho, ela vai levá-lo lá para dentro.

Banjax abanou o rabo novamente, como em sinal de gratidão pelo conselho.

Finn deu uma batidinha na porta e entrou. Ele ouviu o riso vindo da cozinha e, apesar de tudo, seu moral levantou. Lembrou-se da festa de aniversário de quatro anos de Bridie e da quantidade de balões que foram pendurados pela mãe de Sheila. Eles quase carregaram a menina pelo ar. Agora seus sentimentos eram como balões que flutuavam sobre ele e, mesmo com todo peso que pudesse pendurar, não conseguia trazê-los de volta à terra.

— Oi, Finn. — Peggy pôs a cabeça no corredor da cozinha. — Temos uma surpresa para você. Aliás, duas.

Seu coração acelerava quando ele a via. Ela estava vestindo um short verde, que deixava as suas pernas torneadas e longas à mostra, e uma blusa verde mais clara, revelando parte de seu abdômen. Os cabelos estavam amarrados para trás num coque, e ele desejou soltá-los para que caíssem sobre os ombros. Ela iria gostar disso. Peggy agora podia parecer uma garota do campo, mas era uma jovem surpreendentemente sofisticada e sensual. Ele tinha uma enorme desconfiança de que havia apenas começado a conhecer as profundezas de sua sexualidade.

— Bridie faz parte disso? — Ele não se atreveu a chegar mais perto. Não sabia quem mais estaria ali ou o que poderiam vê-lo fazer.

— Parte de uma das surpresas. Vou lhe dar uma dica. Você vai ficar para o jantar.

Não era uma pergunta. Ele franziu a testa. Tinha a intenção de ver Irene, depois levar a filha para casa. Ela já estivera ali quase o dia todo e apesar de Peggy afirmar que Bridie ajudava com Kieran, ele sabia que, como qualquer criança, ela também dava trabalho.

— Não faça essa cara — avisou Peggy. — Você vai gostar — ela se virou e fez sinal para que alguém viesse ao seu encontro, junto à porta.

Outra mulher, mais baixa e mais atarracada que Peggy, chegou a seu lado. Os cabelos eram um emaranhado de cachos curtos, e o rosto, praticamente um quadrado. Parecia haver muito pouco de Peggy nela, mas, de alguma forma, sabia ser de uma de suas irmãs.

— Esta é Megan — disse ela. — Minha maravilhosa irmã Megan.

Não havia nada a fazer a não ser dar um passo à frente, enquanto Megan estendia-lhe a mão.

— Estou feliz em finalmente conhecê-lo, Finn.

Por um instante, ele imaginou se Megan teria percorrido esse caminho tão longo, vindo da América, para persuadir a irmã caçula a não se envolver com um irlandês. Ele apertou a mão dela e murmurou os cumprimentos. Os olhos dela não saíram do rosto dele. Estava certo de que havia sido julgado e pronunciado, embora o veredicto fosse um mistério.

— Eu não sabia que viria — disse Finn.

— Nem eu — Megan falou. — Me deu na veneta.

— Sei que Peggy deve estar radiante. Já havia estado na Irlanda antes?

— Mal saí de Cleveland.

— Então terá muita coisa a ver. — Já havia esgotado o que tinha a dizer. Em outros tempos tivera uma quantidade infinita de conversa, capaz de fazer qualquer pessoa se sentir à vontade. Agora ele pensava em monossílabos e somente os dizia quando absolutamente necessário.

— Já vou ficar feliz em estar aqui em Shanmullin e conhecer a vila e os amigos de Peggy.

Isso ele compreendia, sem problema. Ele não sabia a razão por trás de sua vinda, mas ao menos em parte era para ver como a irmã estava indo.

— Papai. — Bridie espremeu-se entre as irmãs e Peggy pôs a mão em seu ombro. — Você vai ficar para o jantar?

Ele olhou para baixo e viu o rostinho iluminado da filha e sentiu que não tinha escolha.

— O jantar é a surpresa?

— Eu que fiz! — Ela cobriu a boca com a mão. — Oh. — Peggy riu.

— Não faz mal, Bridie. Ele teria que saber, mais cedo ou mais tarde. Agora pode sentar-se na sala e pensar em como é um homem de sorte.

Finn sabia que algo era esperado dele.

— Você mesma cozinhou?

— Hã-hã. Truta e batatas e um monte de coisas.

Ela estava começando a falar como uma americana. Televisão demais, ou Peggy demais, não estava bem certo, mas seu entusiasmo era sem tamanho.

— Estou ansioso para ver — disse ele.

— Usei a receita da mamãe para a sobremesa.

Nos segundos seguintes, ele pensou em cem coisas enquanto ela esperava por uma resposta. Como Sheila ficaria orgulhosa de Bridie. Como ficaria feliz em saber que Bridie queria fazer suas comidas preferidas. Como era injusto o fato de Sheila jamais saber que a filha, tão parecida com ela, estava crescendo e se transformando numa menina linda e generosa.

As palavras emperraram na garganta dele. Peggy viu seu dilema e falou por ele.

— Sua mãe ficaria emocionada em ver que suas receitas estão sendo tão bem utilizadas — disse. Peggy. — Vamos lá ver se tudo está saindo perfeito. — Elas entraram.

Megan ficou na porta.

— Ela é uma garotinha ótima.

— Eu sei.

— Peggy tem muito carinho por ela.

Ele esperou pelo restante da frase, mas ela não disse.

— Fiquem à vontade — disse ela. — Posso levar o Kieran até lá fora, se for o caso. Irene está tentando distraí-lo com colheres de pau e uma chaleira virada ao contrário. Nossa sessão particular de percussão.

Ele queria demonstrar que não tinha intenção de ferir sua irmã, mas o que poderia dizer? Mais do que qualquer outra pessoa, ele sabia que boas intenções podiam se reverter em algo totalmente inverso, de uma forma dramática.

— Terei prazer em levar Kieran para um passeio, se houver tempo — disse ele.

— Ele está feliz. Você parece ter tido um dia difícil. Por que não descansa? — Megan sumiu em direção à cozinha.

Ele viu que não foi convidado a segui-la. Sentou-se na poltrona mais confortável da sala e instantaneamente caiu em sono profundo.

Acordou quando Peggy entrou e colocou um dos discos antigos de Irene para tocar no gramofone, que até então, achara servir apenas de decoração. O som do disco arranhado dos anos 40 tomou conta da sala.

— Achei uma pilha de discos antigos no armário essa semana. Não é legal?

Parecia que jovens de vestidos cintilantes e acompanhadas por pajens iriam entrar dançando foxtrote pela sala.

— Brilhante.

— Estamos prontas para você.

Ele a seguiu até a pequena cozinha para encontrar a mesa posta com louça especial, flores e velas, colocadas em castiçais de prata. Bridie havia dobrado os guardanapos em formato de pequenos cisnes e mal podia conter-se de tanta ansiedade. As panelas que ela havia usado, que pareciam ser em número considerável, estavam escondidas embaixo de uma toalha, em cima do balcão.

— Não está bonito? — perguntou Bridie.

— Lindo — confirmou ele. Ele se lembrava de outras noites como essa, em que Bridie estivera fora de si de tanta alegria, mas não a via assim desde a morte de Sheila. Não havia percebido como ela já havia superado bem. E agora tinha dúvidas de quanto teria contribuído para isso.

— Vai sentar-se na cabeceira da mesa? — perguntou Peggy. — Irene ficará na outra ponta. — Ele não queria o lugar de honra. Noite após noite havia sentado na cabeceira de sua própria mesa de jantar, observando seus filhos rindo e brincando. Ele e Sheila trocavam olhares que só os pais compreendem. As refeições estavam entre os momentos mais felizes que tiveram.

Ele aceitou o lugar porque esta noite o importante não era o que ele queria. Lembrou a si mesmo que estava fazendo isso pela filha e, de certa forma, por Peggy.

Bridie chegou ao seu lado e segurou seu guardanapo no alto, fez um movimento rápido e ele se abriu, caindo em seu colo como um pára-quedas.

Até Kieran pareceu interessado na manobra. Todos estavam sentados e Bridie trouxe sozinha a comida do balcão. Ela colocou cada bandeja e travessa o mais perto possível de seu pai. Truta no vapor, batatas cremosas, legumes assados com ervas e algo que pareciam ser amêndoas. O cheiro era de dar água na boca. Seus dedos cocaram para pegar o garfo.

— Bridie, você se superou. — Ele sorriu para ela. — Isso parece delicioso.

Bridie estava radiante de orgulho.

— Ela é uma cozinheira natural — disse Megan. — Isso não é algo que se ensine. Você pode ensinar alguém a técnica e como seguir uma receita, e a pessoa até pode ser razoável, mas Bridie entende de comida, sabor e textura.

Finn serviu-se de um filé e passou a travessa de truta. Os momentos seguintes foram em silêncio e os convidados serviam seus pratos. Quando todos já haviam se servido, Irene olhou para ele.

— Finn, você pode fazer a oração?

Ele não fazia a oração desde o acidente. Bridie já havia feito algumas vezes e ele ficara ali sentado, fingindo rezar. Mas Irene nunca o havia pedido. Ele se perguntava o que haveria dado nela para pedir agora.

— Eu diria que temos um motivo especial para dar Graças esta noite — ela explicou, como se estivesse respondendo uma pergunta que não havia sido feita.

Assim como se sentar à cabeceira da mesa, isso também não era uma opção. Ele esperou que todos juntassem as mãos, depois fez o sinal-da-cruz e o restante da mesa o seguiu. Ele lembrou de duas Graças. Sem se permitir tempo para pensar, ele começou por uma que usava com mais freqüência.

— Agradecemos Senhor, Ó Deus Poderoso, por todas as Tuas Graças. Tu, que Viveste e Reinaste neste mundo sem fim. Amém. Que as almas dos que têm fé e partiram com a piedade de Deus, descansem em Paz. Amém.

As palavras pareceram ecoar por um longo tempo depois que ele as dissera. Ele trouxera a esposa e os filhos ali para dentro, depois os deixado descansar. Pensou se alguém teria percebido. Deu uma olhada em Peggy, que estava à sua esquerda, e viu que ela certamente havia notado. Ela balançou a cabeça levemente. Finn sentiu como se ela tivesse lhe apertado a mão para confortá-lo, sem sequer tê-lo tocado.

Percebeu que os outros estavam comendo e começavam a conversar.

Peggy virou-se para pôr uns pedacinhos de peixe e legumes no prato de Kieran. Bridie e Megan discutiam os prós e os contras do alecrim e Irene, em seu vestido azul preferido, ouvia atentamente, falando bem da salsa, sempre que podia.

O aroma que exalava de seu prato era de dar água na boca. O barulho amigável das conversas era como em um milhão de lares ao redor do mundo, quando as famílias se sentavam para falar de seu dia e interagir, nesta forma mais básica da comunicação.

Quando pegou o garfo a fome se transformou em bílis. Ele estava passando mal e por um instante duvidou que conseguiria sair da mesa a tempo.

Empurrou a cadeira para trás e saiu depressa, a cabeça girando, passando a latejar, e seu estômago embrulhado dando um nó. Do lado de fora, na brisa fresca da noite, ele encostou o rosto contra o pilar da varanda e respirou fundo, várias vezes. A náusea teve uma melhora mínima, mas seus joelhos estavam mais fracos. Pôs o braço ao redor do pilar e recostou-se nele.

— Pai?

Ele fechou os olhos.

— Volte para dentro, Bridie.

— Você está bem?

— Vá.

— Não. — Ela veio para o lado dele. — Você está passando mal?

— Eu disse para ir para dentro.

— E eu disse não!

Os olhos dele se arregalaram e a encarou. Não se lembrava de jamais tê-la ouvido dirigir-se a ele naquele tom.

— Meu jantar deixou-o enjoado. — Bridie cruzou os braços. — Trabalhei o dia todo fazendo e você não comeu. Então eu gostaria de saber por quê. É porque fui eu que fiz?

Ele percebeu que estava respirando depressa demais. Entendia de hiperventilação e de seus efeitos. Pensou em quanto tempo estaria engolindo ar para conter seu pânico. Sua pele estava fria e as mãos formigavam num aviso.

Havia um banco embaixo da mesma árvore onde ele vira Banjax pela última vez. Conseguiu chegar até lá e caiu sobre ele, colocando a cabeça nas mãos, e a mão sobre o nariz e a boca. Respirava com dificuldade e depois de um minuto a pior sensação recaiu sobre ele. Bridie parou diante dele.

— É por minha culpa que eles estão mortos. Sei que é, e por isso você me odeia.

Quando o turbilhão em sua cabeça diminuiu, em seu lugar ele ouviu as palavras. Por um instante ficou confuso.

— Sua culpa?

— Acha que já não tenho idade para entender? Você põe a culpa da morte da mamãe em mim. E de Mark e Brian. Se eu estivesse com você naquele dia, poderia ter ajudado a salvá-los. Sou uma boa nadadora. Poderia ter pegado um dos meninos e você cuidava do outro. E a mamãe poderia ter agüentado segurar no barco até que fosse resgatada! Mas eu não estava lá. Fui egoísta, queria brincar com as minhas amigas. Queria andar no pônei da Sally. Então fiquei lá, e todos morreram, menos você! E por isso me odeia desde então!

Ela começou a soluçar.

Ele não conseguia chegar até ela. Seus braços pareciam de chumbo, da forma como os sentiu na tarde em que tentou desesperadamente arrastar seu filho mais velho até a costa. Ele havia tentado salvar Mark e falhara. E sabia que agora estava falhando com Bridie da mesma forma. Mas ele estava paralisado.

— Bridie... — O nome parecia ter sido arrancado dele. — Não, não. Você está errada.

— Não estou errada! Sei o que aconteceu. E sei que não teria acontecido se eu estivesse lá, mas não estava!

Ele achou forças para alcançá-la e a puxou para seus braços, forçando-a a sentar em seu colo. Ele começou a niná-la, sem saber para quem era o consolo.

— Você está errada, está tão errada. — Ele beijou-lhe os cabelos e a apertou mais forte. — Eu agradeço a Deus todos os dias, a cada dia, por você não ter estado conosco. O que eu faria sem você, Bridie? E você teria morrido também, não tenha dúvidas quanto a isso. Você não poderia ter me ajudado com os outros. Mesmo sendo a boa nadadora que é, as ondas estavam muito altas, e a água muito forte e fria. Você teria morrido como eles. Não vê que você salvou a mim, querida? Você salvou minha vida porque eu sabia que tinha de voltar para casa por sua causa. Eu teria desistido se você não estivesse me esperando. Por isso você salvou uma vida, só por ficar em casa naquele dia. Salvou a minha vida.

Ela virou a cabeça para o ombro dele e soluçava tão forte, que quase não conseguia falar.

— Mas... mas... você... me odeia! Ele a segurou com mais força.

— Como pode dizer isso?

— Você age... como se me odiasse!

— Bridie... Bridie. — Ele afagava-lhe os cabelos, depois a beijava e tentava lembrar de quando fora a última vez que a havia segurado dessa forma. Após o acidente ele ficou muito doente. Após sua recuperação sentia muita culpa. — Não sei explicar isso muito bem — disse ele. — Eu me culpo, Bridie. Como você fez. Eu... eu não poderia salvá-los. E a cada vez que olho para você, me lembro que sou a razão por eles terem partido e você não os ter mais aqui.

Ela pôs os braços ao redor do pescoço dele.

— Mas eu ainda tenho você. — Ele a beijou no rosto.

— Ah sim, claro que tem. — repetiu com vigor. — É claro que tem!

— E não foi culpa sua. Todos sabem que não foi. Você é a única pessoa no mundo que pensa assim. Até a vovó diz. Ela diz que não pode viver com a sua dor e com a dela também. Por isso que ela e o vovô se mudaram para Belroullet,

Ele não podia acreditar que a mãe de Sheila teria dito tal coisa a uma criança. Mas teria sido pior do não dizer nada? Deixar Bridie acreditar por tanto tempo que ela havia sido responsável pelas mortes?

Ao deixar de falar abertamente sobre sua própria dor e culpa, não teria ele impingido isso a ela?

— Nenhum de nós compartilhou nosso sofrimento da forma como deveríamos. — Finn continuou ninando-a. — Deixamos o sofrimento nos corroer separadamente. Lamento muito, lamento tanto, por você ter acreditado, mesmo que por um momento, que não a amo. Eu a amo tanto, que às vezes chega a doer, Bridie. Mas também me dá uma imensa alegria.

— Por que você não conseguiu comer o meu jantar? — Ela ainda era uma criança e esta era a pergunta do dia.

Ele tentou pensar numa justificativa, mas havia muitas. Optou pela verdade.

— Eu me lembrei de outras épocas. E foi me apertando por dentro, até que chegou uma hora em que comecei a passar mal, não conseguia respirar nem engolir. Você consegue entender isso?

— Às vezes, à noite, me sinto como se alguém estivesse sentado no meu peito. Foi isso que sentiu?

Ele alisou os cabelos dela para trás e beijou-lhe a testa.

— Foi sim.

— Vai ser sempre assim?

Ele sacudiu a cabeça, mas não em negação. Ele realmente não sabia.

— Bridie, à noite, quando isso acontecer com você, venha me acordar. Vou também levantar e nós vamos fazer um chocolate quente. Vou contar histórias do Fionn Mac Cumhail e vai passar.

Ela recostou-se nele, e ele a segurou assim por bastante tempo. O jantar estava frio quando voltaram para dentro. Mas nem eles, nem os que estavam esperando que voltassem, pareceram se importar.

 

                               Capítulo 27

— Me sinto no topo do mundo esta noite — disse Irene. — Eu e Nora temos que tricotar luvinhas para o bazar anual da paróquia. Ela vai me fazer companhia e me ajudar com Kieran.

Megan deu uma olhada na irmã para ver se o que Irene dissera havia surtido algum efeito. Era seu segundo dia na Irlanda e já havia percebido como aquela senhora de aparência dócil era terrivelmente teimosa. Irene queria que as irmãs fossem para a aldeia para uma noitada nos pubs, mas Peggy estava preocupada em deixar Kieran.

— Quando ela vem? — perguntou Peggy. — Ela não me disse nada hoje de manhã.

— A qualquer momento. E hoje à tarde confirmamos o combinado por telefone.

— Peggy, você perdeu — disse Megan. — E Irene provavelmente quer passar uma noite sossegada, sem nós. Ontem à noite houve emoção demais.

— A noite de ontem foi um marco — disse Irene. — E fico feliz que eu tenha vivido para ver isso. Há dois anos que observo Bridie e Finn andando como se fossem sombras, um ao lado do outro, e já estava preocupada se nunca iriam voltar a se achar. — Ela hesitou. — Mas meu pobre coração quase parou. Mas uma noite tranqüila é tudo.

— O que você acha? — Megan perguntou à irmã. — Você quer me mostrar os lugares?

— Eu adoraria. Só queria que Finn fosse tocar no Tully's esta noite, para que você pudesse ouvi-lo. Mas ele e Bridie foram visitar os avós dela esse fim de semana.

— E já não era sem tempo. — Irene caminhou com dificuldade em direção ao seu quarto para se arrumar, pois teria visitas.

— Ela ficará bem sem Finn por perto? — perguntou Megan quando Irene já não podia ouvir.

— Vou ficar de olho nela e ligo para ele em Belmullet, se for preciso. Há um outro médico para quem posso ligar, caso haja uma emergência.

Elas combinaram o horário de sair. Megan pôs Kieran para dormir em seu berço, com seu urso novo e seu cobertor predileto. Ele parecia alheio à sua presença, mas quando ela saiu do quarto ele disse "oi" não apenas uma vez, mas duas. Ela ficou radiante. Depois percebeu como suas expectativas tornaram-se limitadas. Peggy havia partido para a Irlanda certa de que poderia operar milagres no filho. Porém, Megan receava que nos meses em que ela estivera longe, havia conquistado muito pouco.

Megan procurou tirar aquilo da cabeça ao dirigir rumo a Shanmullin. Elas andaram pela aldeia, deram comida aos cisnes no riacho da praça e conversaram com estranhos que paravam para bater papo. Todos pareciam conhecer Peggy. Megan não estava surpresa pela irmã já ter causado uma boa impressão. Ela tinha uma ternura profunda, além de curadora. Depois de dois minutos de conversa já despertava o fluir de histórias de vida, sem sequer demonstrar a intenção. Sabia o que dizer e o que não deveria, quando o silêncio era preciso. As pessoas se sentiam melhor apenas pelo fato de conversar com ela. Pelo menos esta era a forma como sua irmã enxergava a questão.

— Você gosta daqui, não é? — Megan agachou-se para afagar um gato deitado na calçada, sob os últimos raios de sol. Uma janela se abriu acima delas e alguém chamou "Blackie". O gato olhou em volta como se quisesse ter certeza de que nenhum outro felino havia notado, depois se levantou majestosamente e seguiu em direção à porta aberta da loja.

— Eu gosto. E não tinha certeza se iria gostar. Achei que eu fosse uma garota urbana, mas gosto do ritmo mais lento e da chance de me concentrar em um número menor de pessoas.

Megan ficou em pé.

— Acha que iria gostar de trabalhar como médica numa cidade pequena? Algum lugar fora de Cleveland em vez do coração da cidade?

— Tudo depende de Kieran. Não sei se um dia será possível deixá-lo sozinho por tempo suficiente para que eu possa terminar a medicina.

Elas caminhavam devagar e Megan sabia que era hora de contar a verdade à irmã.

— Tenho procurado sinais de evolução.

— E não achou muitos. Eu sei. — Peggy balançou a cabeça. — Às vezes acho que estou conseguindo chegar até ele. Quando seus dentes estavam nascendo ele teve uma melhora acentuada. Não sei por quê. Mas já se passaram semanas e agora que está se sentindo melhor, pouca coisa mudou além disso. Nem mesmo sua terapeuta parece ter novas respostas nas ligações interurbanas.

— Talvez você devesse voltar para casa, onde poderia colocá-lo num bom programa de tratamento.

— Não, preciso tentar mais aqui. É muito cedo para aceitar a derrota.

Megan rebateu seu comentário seguinte. O dia todo ela havia procurado uma forma de inserir o relacionamento com Finn Ò'Malley na conversa. Megan tinha expectativas de alguém muito diferente para Peggy, um super-herói romântico, de ombros largos, que pudesse carregar o mundo nas costas, um cavaleiro que pudesse arrebatá-la e oferecer-lhe uma vida tranqüila. Por mais que Megan amasse Kieran, não era cega quanto à vida problemática que estaria por vir para mãe e filho. Peggy iria precisar de muito apoio no futuro.

E o que Finn poderia oferecer?

Megan achou que a oportunidade havia chegado.

— E você não quer deixar Irene. Nem Bridie — ela fez uma pausa. — Nem Finn.

— Aqui é o Tully's. — Peggy parou em frente a uma porta amarela. — É o meu favorito. — Ela ficou ouvindo. — Não há música hoje. Talvez comece mais tarde. Pode ser às dez horas, mas acabou de escurecer.

Megan sabia que não deveria forçar o assunto de Finn aqui e agora, depois de ter sua primeira tentativa rejeitada com tanta firmeza.

— A Guiness é por minha conta.

— Você ganhou na loteria, Megan?

— Só se vive uma vez.

— Segundo os adeptos da Nova Era, não. Quem sabe se talvez já tenhamos passado por aqui umas cem vezes?

Discutiram sobre essa possibilidade enquanto achavam lugar para sentar junto ao bar. Essa noite não estava tão cheio quanto Peggy esperava, mas o homem a seu lado explicou, antes de sair. Havia um velório na igreja e o falecido era conhecido de todos. Elas foram convidadas a participar e prestar homenagem, mas Peggy declinou educadamente.

O bartender chegou e se apresentou como Jimmy. Era um homem grande, com um narigão vermelho e cabelos cor de pêssego. Megan o teria contratado para o Whiskey Island por nada além de seu sorriso. Alguns minutos depois ele voltou com duas canecas cheias até a borda.

Peggy pediu licença para ir ao banheiro e Jimmy voltou para conversar com Megan, quando viu que sua irmã havia saído.

— Então, o que a traz à Irlanda?

Ela viu uma boa chance de obter informações. Por experiência própria, sabia como as fontes de um bartender eram vastas.

— Bem, estou na Irlanda para visitar minha irmã e conhecer seus amigos. Ela mora com Irene Tierney e passa bastante tempo com Finn O'Malley e a filha dele. Eu os conheci ontem.

— Ah, sim, a americana que estava bem aqui com você.

— Ela mesma.

— Sim, ela parece ter fisgado o velho Finn — Jimmy piscou.

— Mas ele é um estranho e isso me preocupa.

— Preocupa-se por causa de Finn? Ele já teve maus momentos, mas não há com que se preocupar agora.

— Então gosta dele?

— Melhor médico que já tivemos na aldeia. Todos gostavam dele, dos recém-nascidos aos que estavam morrendo.

Megan estava menos interessada em suas aptidões profissionais do que em sua saúde emocional.

— É que ela ainda é tão jovem, sinto-me responsável por ela. — Esperava que isso o fizesse falar mais e que Peggy a perdoasse, se ouvisse a conversa.

Em vez disso, ele perguntou:

— Então você também está no chalé Tierney?

— Hã-hã.

— Se quiser saber os segredos de Shanmullin, aquele é o lugar por onde começar. Pergunte a velha Irene sobre seu pai. Vai ouvir muita coisa.

Megan havia ponderado em perguntar mais a respeito de Finn, mas parou.

— Muita coisa?

— É, ali tem uma história e tanto. O velho Liam Tierney era o diabo em pessoa ou um herói republicano, dependendo de quem contar a história.

— Não sei muito a respeito dos anos que Liam passou na Irlanda. — Megan percebeu que acabara de se tornar a campeã de frases de persuasão. — Eu queria saber mais. Irene não parece saber muito.

Ele franziu o rosto, como se aquilo fosse impossível.

— Bem, não é nenhum segredo, isso é certo. Ele foi embora daqui quando ainda era jovem e o chalé ficou vazio por muitos anos, cheio de ratos e morcegos, sabe?

— Parece que talvez tenha se mudado para Cleveland e a certa altura ele morreu. Sou de lá.

Alguém chamou Jimmy para fazer um pedido. Megan deu um gole em sua Guiness e esperou que Peggy retornasse. Ficou claro que a única história que ela iria tirar de Jimmy essa noite era de Liam, não de Finn.

— Voltei. — Peggy sentou-se na banqueta ao seu lado.

— Escute, Jimmy estava me contando sobre Liam. Parece que há uma história real ali. E parece que Irene talvez saiba mais do que está nos contando.

Peggy pareceu surpresa.

— Não vejo como, Megan. Ela diz que sabe muito pouco.

Jimmy voltou.

— Posso trazer outra cerveja para as damas?

Megan declinou, já que sua caneca ainda não estava vazia.

— Mas gostaríamos de saber a respeito de Liam, se você souber mais alguma coisa.

— Ah, tem muito mais coisa. Depois que a mãe dele foi embora da aldeia sem uma palavra a ninguém, ele foi mandado para longe pelo padre, que o enviou a um orfanato no sul. Ele voltou aqui alguns anos depois, já era casado e tinha um bebê, e pôs-se a consertar o chalé Tierney para Brenna, sua esposa, e a pequena Irene. Mas não pôde fugir ao destino.

Quando Jimmy parou de falar, saboreando o que ele sabia e elas não, Peggy perguntou o óbvio.

— Que destino?

— Ele era um homem do IRA, vocês não sabiam? E não temia fazer o que fosse preciso para que pudesse libertar a Irlanda. Foi assim que me contaram. Em 1923 ele matou um homem durante uma emboscada, deixando Mayo e toda a Irlanda a um passo da lei.

Megan tentava se lembrar das aulas de história sobre a Irlanda, um tema sem muito destaque na formação escolar americana.

— Mas a Irlanda não se tornou independente em 1921 ou 1922, quando o tratado com a Grã-Bretanha foi assinado?

— Não da maneira como contaram. Ainda fomos obrigados a manter os laços com a Inglaterra. Naquele dia, alguns acharam que as coisas estavam no caminho certo, que iríamos evoluir um pouco mais devagar, mas, a longo prazo, alcançaríamos um estado absoluto de independência, o que conseguimos, em 49, com exceção do Norte, é claro. Mas alguns, como o pai de Irene, estavam convencidos de que as coisas deveriam acontecer de uma vez por todas. E procuraram assegurar que fosse assim. Tivemos a nossa própria guerra civil, vocês lembram.

— Então ele matou alguém que não concordava com ele?

— Não apenas alguém, mas um policial. Os republicanos tiraram Liam e sua família secretamente do país, e os enviaram para a América.

— Mas isso foi muito caridoso da parte deles. — Megan achou que deveria ter aceitado a oferta de Jimmy. Sua caneca agora estava vazia e a história só começando. — E perdoe-me se eu estiver errada, mas nunca ouvi dizer que o IRA fosse uma organização filantrópica.

— Ah, mas posso dizer-lhes que era uma organização diferente naquela época. Mas ajudá-lo a deixar a Irlanda foi mais do que caridoso. — Jimmy virou-se para pegar um pano e limpar o balcão, enquanto prosseguia falando. — Eles o mandaram para a América para levantar fundos para a causa Republicana.

— Em Cleveland?

— Não me recordo de ter ouvido para onde foi o jovem. Só sei que alguns anos depois Brenna voltou sem ele e Irene já era uma menininha. Voltaram a morar no chalé Tierney, do jeito que estava na época. Segundo me disseram, Brenna era uma jovem adorável, embora eu seja muito jovem para saber em primeira mão. Mas um homem local se apaixonou por ela e os dois se casaram bem aqui, na igreja da aldeia. Ele era um homem de alguma posse, e juntos compraram a terra ao lado, transformaram o chalé no que é hoje. — Com uma saudação amistosa, Jimmy saiu para ir conversar com outro cliente.

Megan virou-se para a irmã.

— Peggy, isso é um histórico e tanto, que Irene nunca se deu ao trabalho de mencionar.

— Você não acha que talvez tenha sentido vergonha do que Liam fez e por isso não quis nos contar?

— Dois motivos por que não: Um, mesmo que Liam tenha matado alguém, isso poderia ser considerado um ato de guerra. Tenho certeza de que tem gente, muita gente em Shanmullin que deve considerá-lo um herói, ou pelo menos um homem que tentou fazer o que era certo. Dois, Irene tinha de saber que você descobriria a verdade através de alguém, após vir morar aqui. Só é surpreendente que não tenha descoberto até agora.

Peggy pôs a caneca no balcão.

— Eu não perguntei a ninguém a respeito de Liam. Acreditei em Irene quando ela me disse não saber nada além do que havia me contado. Apenas imaginei que ninguém na aldeia soubesse de nada.

Megan tentava encontrar uma explicação louvável.

— Talvez ela realmente não saiba como ele morreu. Desde o começo foi isso que pediu para descobrirmos.

— Se ela não foi franca em nos contar as razões de Liam para libertar a Irlanda, então talvez não tenha sido franca quanto a isso também.

Megan reconheceu a possibilidade balançando a cabeça.

— Nada de interessante por aqui esta noite — disse Peggy. — Mas pode haver algo interessante à nossa espera no chalé. Vamos para casa ver se Irene e Nora já terminaram de tricotar.

Nora e Irene haviam concluído um par de luvas brancas. Ainda meninas, no colégio, foram ensinadas a tricotar pelas freiras, que viam os pontos perfeitos na lã como um degrau na escada para o céu. Embora os anos letivos das duas mulheres tivessem sido separados por vários anos, as luvas do par combinavam perfeitamente.

— Vocês não imaginam quantas fileiras nós tivemos que desmanchar, apenas porque nossa medida do ponto tinha uma diferença de fração de centímetro. — Irene pôs o tricô de lado. — Eu poderia dar continuidade a qualquer peça que Nora começasse sem que ninguém notasse a diferença.

Nora já havia juntado suas coisas e estava a caminho da porta. Megan ofereceu-se para levá-la, mas Nora insistiu que preferia pedalar.

— Ela tem um carro, sabe? — Irene disse a Megan, depois que Nora já havia saído. — Apenas prefere a bicicleta. Ela afirma que vê mais coisas ao longo do caminho.

Peggy fez sinal para que Irene ficasse onde estava.

— Parece que há muito que as irmãs Donaghue não sabem sobre muitas coisas. Vou preparar-lhe um lanche, antes que vá para a cama.

— Ôh, obrigada, querida, mas eu e Nora comemos torrada com leite não faz muito tempo. Vocês se divertiram na cidade?

— Foi uma noite muito agradável. Não havia muita gente, pois muitos foram para o velório.

— Ah, sim, para Thomas Harrigan, pobre homem. Irei ao enterro amanhã. Nora irá me levar. Caiu morto quando ordenhava a vaca e ninguém soube, até que não apareceu para o jantar.

— Ouvimos umas fofocas interessantes — disse Megan. Os olhos de Irene cintilaram. Por um instante, Peggy teve uma visão da jovem que não tivera o privilégio de conhecer.

— Tem certeza de que não quer um chá ou outro copo de leite? — perguntou Peggy.

— Não, mas um relato seria bom. Tenham pena de uma velha que depende dos outros para se manter informada.

— Bem, sei como deve se sentir. — Peggy acomodou-se no sofá. — Depender dos outros pode ser complicado, porque nem sempre contam tudo.

— Esta é a própria verdade de Deus.

— Hoje, por exemplo, quando ouvi que seu pai deixou a Irlanda a um passo antes da lei, fiquei surpresa, porque em nenhuma de nossas conversas você mencionou isso.

Irene não pareceu surpresa nem mesmo culpada.

— Será que esqueci de dizer?

— Irene! — Irene sorriu.

— Bem, creio que a princípio não vi muito sentido em contar que seu próprio primo era um homem procurado.

— E estou certa de que ele não foi o único parente procurado. — Megan sentou-se ao lado da irmã. — Eu poderia lhe contar algumas coisas sobre o clã Donaghue que a deixariam de cabelos em pé, mas a questão é: o que mais deixou de nos contar? Sabemos que Liam era envolvido com o IRA, que foi mandado para a América para levantar fundos, após matar um homem aqui...

— Ele nunca teve a intenção de matar ninguém. Minha mãe me disse que ele estava defendendo outro homem do IRA e, ainda assim, tinha apenas a intenção de ferir o homem no qual atirou. Ele jamais gostou de armas.

— Tenho certeza de que tudo isso é verdade — disse Peggy — e, mesmo que não fosse, foi há tanto tempo que não chega a nos afetar. Então por que não nos contou? — Ela fez uma pausa, de efeito. — E o que mais deixou de nos contar?

Irene não parecia ofendida, embora a pergunta que Peggy formulara suavemente, de certa forma, fosse um desafio.

— Não fui honesta a respeito das atividades de meu pai em Cleveland. Eu sabia, por exemplo, sobre o contrabando de bebidas e seu emprego com Timothy McNulty.

Peggy levou um instante para digerir aquilo.

— Mas não entendo. Por que não nos contou logo no começo? Quando não tínhamos por onde começar? Isso iria nos ajudar tanto na pesquisa.

Irene não respondeu diretamente.

— Na verdade, sei mais a respeito daqueles anos com o sr. McNulty do que vocês. Esta noite vocês souberam da ligação de meu pai com o exército republicano. E como eles o ajudaram a fugir. No entanto, ainda não ligaram os outros fatos, mas posso ajudar. Meu pai aceitou trabalhar com Tim McNulty porque o sr. McNulty era um patriota, ou pelo menos era isso que meu pai pensava. E esperava que, uma vez que ganhasse a total confiança do sr. McNulty, talvez ele pudesse dar um pouco de sua considerável fortuna para a causa.

— A causa do IRA?

— A própria. Papai estava convencido de que a única esperança verdadeira para a Irlanda seria expulsar os britânicos ainda vivos. Lembrem-se de que ele cresceu com um pai que tinha a cabeça fraca, depois de tantos anos passados numa cadeia inglesa. Meu pai não era um grande admirador da Grã-Bretanha.

— E? — Megan aguardava, e como Irene não respondia, ela acrescentou: — McNulty deu o dinheiro para o IRA? E isso teve algo a ver com a morte de seu pai?

— O sr. McNulty era um exemplo desprezível da raça humana. Depois de algum tempo, isso ficou bem claro para meu pai. Perdoem-me pela expressão, mas ele é um papo-furado.

Peggy dobrou as pernas, sentando sobre elas e puxou uma almofada, abraçando-a contra o peito. Tinha a impressão de que esta seria uma longa história.

— Acho que não precisamos de uma tradução para essa. — Irene fez um gesto com a cabeça.

— E como muitos outros homens de sua geração envolvidos na política, papai resolveu não se zangar. Decidiu conseguir tudo o que pudesse — continuou Irene.

Ao contrário de Peggy, Megan não se sentia confortável. Ela inclinou-se para a frente.

— Irene, você se esquivou quando Peggy perguntou por que não nos contou isso antes. Acho que precisamos saber. Acho que há duas histórias aqui. A sua e a de Liam. Eu gostaria de ouvir ambas.

— Cada uma na sua hora. — Irene levantou um dedo para cessar a retaliação de Megan. — Vou contar isso a vocês. De fato omiti, admito. E as iludi. Admito isso também. Mas não há nenhum motivo hediondo por trás disso. Foi a minha maneira de conhecê-las. Nós podemos ser relacionadas pelo sangue, mas não havia nenhuma razão pela qual eu devesse confiar em vocês. Então pedi sua ajuda e aguardei. E vocês se dispuseram a ajudar uma velha que nem conheciam. Que prova maior eu poderia ter?

— Você precisava confiar em nós? Por qual razão? Tinha receio que pensássemos mal de você se soubéssemos os verdadeiros motivos de Liam ao partir para Cleveland? Isso foi há oitenta anos. Por que iríamos nos importar com o passado de um homem que nunca conhecemos? Você mal o conheceu.

— Tudo será esclarecido. No entanto, por agora, vocês se contentam com mais um pouco da história de Liam?

— Está bem tarde. — Peggy olhou para o relógio e percebeu que já havia passado uma hora do horário habitual de Irene ir se deitar. Por mais que quisesse saber de toda a história, ainda se sentia responsável pela saúde de Irene.

— Dormi bastante esta tarde e dormirei melhor ainda por ter contado mais a vocês.

— Mais? — perguntou Megan. — Não tudo!

— Você quer ouvir o que tenho forças para contar essa noite, querida?

Megan pareceu querer falar algo mais, porém conformou-se, como Peggy havia feito.

— Está bem. Manda bala. — Ela estremeceu. — Opa, essa não é a melhor expressão nessas circunstâncias.

— É bom ver que seu senso de humor não a abandonou, querida. — Irene fechou os olhos e recostou a cabeça na poltrona. — Há muito tempo eu já sabia que era parente dos Donaghues, donos do Whiskey Island Saloon, em Cleveland. Vou lhes contar como soube.

 

                    1925, Castlebar, Condado de Mayo

                   Meu querido Patrick,

Em sua última carta, você solicitou que eu pedisse informações a respeito da famflia Tierney, em Shanmullin. Temo que tenha esquecido de quão desconexas são nossas distâncias, e primitivas as nossas comunicações. Mas você se lembrou muito bem da forma como nós irlandeses adoramos saber das idas e vindas de todos ao nosso alcance. A Irlanda pode ainda ser um país pobre (sem agradecimentos aos senhorios, que estão apenas começando a ser dispensados, o que já não era sem tempo), mas somos ricos em relação ao que sabemos uns dos outros, e ao que compartilhamos com um ouvido ávido. Portanto, pelas conversas que tive com meus vizinhos, já posso dizer-lhe o que se segue.

Anos atrás houve uma famflia chamada Tierney, que morou próximo à vila de Shanmullin. Uma gente boa, segundo relatos, mesmo nos dias em que a bondade significava passar fome. Após a escassez absoluta eles se dispersaram, como nossas famílias pobres freqüentemente eram obrigadas a fazer. Por muitos anos o chalé ficou vazio e o senhorio criava ovelhas na propriedade. Então um dos filhos voltou e o senhorio compadeceu-se, deixando que ele cuidasse da terra. Ele se casou e um de seus filhos, que veio a ficar órfão mais tarde, foi mandado para Cork. Este filho voltou adulto, mas por qual motivo, não tenho idéia. A vista do oceano não pode alimentar um pardal faminto. O jovem, porém, parecia alheio a esse pequeno detalhe e voltou com a esposa e uma criança.

Houve problemas, querido Patrick. Ainda tenho que descobrir de que natureza, porém, obviamente tenho minhas suspeitas. Há algumas coisas sobre as quais ainda não se fala livremente na Irlanda. Só sei que o jovem Liam Tierney desapareceu com a esposa e filha uma certa noite, após o assassinato de um policial. E o chalé dos Tierneys, ficou mais uma vez abandonado ao vento, no alto da colina.

Qual estranho não seja, que o nome de seu jovem fosse Tierney? Não teria sido este o nome daquele jovem do Whiskey Island, sobre o qual você me escrevera, tantos anos atrás?

Sim, meu Patrick. Minha memória é tão comprida quanto minha vida. Vejo isso como uma maldição e uma bênção.

                                     Sua irmã.

 

                                 Capítulo 28

Liam sondou discretamente, fazendo perguntas a respeito da família de Glen Donaghue, mas não descobriu nada de interessante. Ninguém lembrava exatamente quando os Donaghues haviam chegado a Cleveland. Muitos anos, era certo. Os próprios Donaghues haviam construído o Whiskey Island e fizeram dele um grande sucesso, trabalhando duro e transformando homens sedentos em seus amigos. Alguém achou que Rowan Donaghue havia sido o primeiro a vir do velho país. Até mesmo aqueles que tinham idade suficiente para saber, pareciam considerar o salão e as pessoas que o fundaram parte do patrimônio histórico de Cleveland. Ali desde sempre. Sempre acessível. Talvez erguido antes mesmo da primeira destilaria de Whiskey Island, dando a terra o seu nome.

— Seria bom você falar com o padre McSweeney — aconselhou uma senhora que morava numa casa de esquina da rua dos Tierneys.

Liam havia parado para conversar, ao sair para dar uma volta com Irene pelo novo bairro. As casas eram recém-construídas e espaçosas e, do outro lado da rua, algumas ainda estavam em obras. Havia árvores antigas como carvalhos, que faziam sombra nas varandas imensas, de onde se podia admirar a fragrância das rosas, e nas noites de verão, o canto dos cardeais. Depois de seis meses morando ali, Brenna ainda se maravilhava com o verde do jardim e o brilho de seu chão de madeira. Liam raramente conseguia persuadi-la a deixar a cozinha, onde ficava entretida fazendo seus assados e cantarolava os hinos que as freiras haviam lhe ensinado.

Liam procurou visualizar o padre McSweeney em sua mente.

— O velho padre, que aparecia nos dias santos? — Era esse mesmo.

Liam ia à igreja porque Brenna disse que deveriam ir, pelo bem de Irene. Ele achava pouca coisa interessante, pois havia se distanciado da religião no dia em que fora condenado a crescer sob o olhar rigoroso dos Irmãos Cristãos. Agora ele tentava se lembrar de como era a fisionomia do padre McSweeney. Só se recordava que o padre era frágil e curvado, e tinha a voz trêmula quando entoava os cânticos.

— Eu o vi apenas algumas vezes — disse Liam, esperando por alguma informação.

— Oh, ele era um padre magnífico, de verdade — disse uma velha senhora. — Ele podia torná-lo temente a Deus e, ao mesmo tempo, ajudá-lo a ver que Deus o ama. Ele casou minha Colleen com Arthur. Costumavam dizer que ser casado pelo padre McSweeney já era uma bênção de Deus, pois todos os casamentos que ele realizava eram uniões felizes.

— E ele sabe alguma coisa da história dessa região, não sabe?

— Ah sim, muito mais que alguma coisa. Ele sabe tudo. — Ela se inclinou para a frente, para confidenciar. — Se eu fosse você me apressaria. Sua saúde não é das melhores. E ele não quer ir para o sul, onde o clima é mais ameno. Diz que sua vida é aqui.

Liam imaginava se um padre teria uma vida. Ele duvidava, mas talvez o velho tivesse amigos, talvez até mesmo pessoas que passara a amar. Ele certamente não teria ficado por achar o clima agradável.

— Talvez eu pergunte a ele, embora não seja tão importante — ele disse a ela.

— Você deve ter uma razão para estar interessado — disse ela, estreitando os olhos numa expressão interrogativa.

— É apenas porque o jovem Glen se parece com alguém que eu conhecia. — Liam suspendeu Irene, colocou-a sobre os ombros despedindo-se e seguiu seu caminho de volta para casa. Mas a sugestão da velha deíxou-o intrigado. Por que não havia pensado no padre? Os padres se intrometiam na vida de todos que conheciam. Os crismados e os casados, os absolvidos e enterrados. Ele resolveu ir visitar o padre McSweeney para descobrir o que o velho sabia sobre Glen Donaghue.

Encontrou uma oportunidade mais tarde, naquela semana. McNulty e seus guarda-costas haviam ido para Nova York para uma reunião e Clare, que passara a ser uma responsabilidade pessoal de Liam, estava visitando a irmã da mãe, em Buffalo. O próprio McNulty a deixaria lá, a caminho da cidade grande, e os olhos atentos de Liam não seriam necessários. Quando eles não estavam na sua lista de responsabilidades era curta e simples.

Ele ligou para a residência paroquial e falou com a empregada, que transmitiu seu recado. Surpreendentemente, o padre McSweeney concordou em vê-lo naquela mesma tarde, às quatro horas.

Liam aguardava com o chapéu na mão, quando o padre entrou na sala. Cada passo era medido e arrastado, mas quando Liam ofereceu-lhe o braço para ajudá-lo a se sentar, o padre acenou para que ele saísse de perto. Não era só a idade que afligia McSweeney. Um tipo de paralisia restringia seus movimentos e debilitava seu corpo aos poucos. Mas os olhos azuis do homem permaneciam límpidos, e quando ele começou a falar ficou óbvio que a mente por trás daqueles olhos ainda estava bem aguçada.

— Você é bem-vindo aqui, mas creio que tenha me procurado por algo além de querer ver a residência paroquial.

— Sim, padre. — Liam estava sentado na beirada da poltrona, que tinha os braços cobertos por panos bordados, e ele receava derrubá-los no chão. Também ainda não havia superado seu desconforto em relação a padres, e à punição que eram capazes de impor.

— Você tem perguntas para mim? — Padre McSweeney pareceu tentar acalmar Liam, para que se sentisse mais aliviado. Não havia o menor tom de impaciência em sua voz.

— Nossa conversa não sairá desta sala?

— Bem, aqui não é o confessionário, mas é quase tão bom quanto. — Padre McSweeney observou o rosto de Liam. — Mas você não vai a um confessionário há um bocado de tempo, não é?

— Como o senhor sabe disso? — Padre McSweeney sorriu.

— Não posso ler sua mente, filho. Nem as manchas de sua alma. E apenas porque nunca o vi por lá.

— Ah. — Liam percebeu que estava torcendo o chapéu nas mãos. — Conheci um homem. Glen Donaghue é seu nome. E estou tentando descobrir algo a respeito de sua família. Alguém me disse que o senhor seria a pessoa a quem eu deveria perguntar.

— Eu sei algo sobre você.

Liam ficou surpreso. Por isso ele não esperava.

— Sabe?

— Fiz algumas perguntas semanas atrás. Na Irlanda. — Liam estava mais surpreso ainda, e agora também começava a ficar alarmado.

— E por que faria tal coisa?

— Talvez pelo mesmo motivo que o trouxe aqui para perguntar dos Donaghues.

Liam ficou considerando aquela possibilidade, enquanto o padre se esforçava para ficar mais confortável.

O padre McSweeney finalmente suspirou resignado e parou de se remexer. Visivelmente o conforto não era possível.

— Eu o vi na missa de Páscoa e você me lembrou alguém. Perguntei seu nome a outro padre. Você é de uma aldeia chamada Shanmullin?

— Está correto, padre. — Liam pôs o chapéu no chão e inclinou-se para a frente. — Quem eu o fiz lembrar?

— Alguém morto há tempos. Também chamado Tierney. — Liam esperou com a respiração presa.

— Um homem chamado Terence Tierney — disse o padre. — Seu tio, se minha informação estiver correta.

— Morto... há tempos. — Liam já sabia, mas a notícia ainda era um golpe, embora não soubesse dizer por quê.

O padre McSweeney prosseguiu.

— Entretanto, Terence tinha um filho, que por sua vez, ainda está vivo. E aquele filho tem dois filhos.

Liam achou que sabia o nome de um deles.

— Glen Donaghue?

— Sim.

— A esposa casou-se novamente? — Era a única explicação que Liam podia encontrar.

— Sim. Lena Tierney deu à luz o filho de Terence, após a sua morte. Ela também lhe deu o nome de Terence, mas logo após casar-se com um homem chamado Rowan Donaghue, ele adotou o pequeno Terry. Terry sempre foi chamado Donaghue.

— Quando cheguei, perguntei por aí pelos Tierneys, mas não havia nenhum a ser encontrado. Então esta é a razão. E por que o senhor perguntou por mim? Antes mesmo de saber meu nome?

— Vi algo de Terence em você. Um traço, um gesto. Por um instante, você me levou a uma outra época. Achei que fosse apenas a ilusão de um velho, mas perguntei, só para garantir. Quando descobri seu nome, perguntei com mais interesse.

— E eu vi algo de meu pai em Glen Donaghue. Glen é muito parecido com o que papai deve ter sido na sua idade, mas não vi nenhuma semelhança entre nós dois.

— Talvez não, mas cada um de vocês lembra um pouco do ancestral do outro.

Liam ficou pensando como tudo aquilo era estranho. Ele salvara a vida de Glen sem saber que eles eram primos. Agora Liam trabalhava para Tim McNulty, e Glen esforçava-se para acabar com o negócio de Tim.

— Não tive certeza do que fazer com o que havia descoberto — disse padre McSweeney. — Fico feliz por você ter vindo a mim. Irá contar a Glen?

— O que mais sabe a meu respeito? — perguntou Liam.

— Receio que sei o bastante.

— Então o senhor irá entender por que eu não posso contá-lo. Será que ele irá querer saber que seu primo é um contrabandista?

— Os pais dele mantêm um salão. Sua avó que deu início.

— Os pais dele não trabalham para Tim McNulty.

— Você também não precisa trabalhar.

Liam pensou naquilo. Se ele saísse, poderia contar a Glen quem era, e a forma como tinham laços em comum. Ironicamente, o trabalho de Liam era manter Glen e Clare McNulty separados, uma missão que ele já havia achado desagradável, antes mesmo de saber que ele e Glen eram primos. Agora parecia pior, e ele poderia acabar com isso ao deixar o emprego de Tim McNulty.

No entanto, será que poderia deixar o emprego? Mesmo que quisesse? Será que McNulty permitiria que ele simplesmente saísse andando, sabendo tudo que sabia? E havia outras considerações. Brenna, Irene e a casa maravilhosa que agora podiam pagar. E homens na Irlanda, esperando sua demonstração de gratidão, por ajudá-lo a se esquivar dos procedimentos tradicionais da imigração da América.

Além disso, é claro, havia a causa do IRA. Algo maior do que ele próprio, a única coisa maior na qual acreditava.

— Talvez romper com Tim McNulty não seja tão fácil quanto parece? — perguntou padre McSweeney. — Gostaria de rezar por isso comigo?

— Obrigado, mas não. Não sou um crente, padre, e se há um Deus, Ele deixou de me ouvir muito tempo atrás.

— Impossível.

Liam pegou seu chapéu e levantou-se.

— Sou muito grato ao senhor por ter falado comigo. Não irá contar a Glen nem aos outros Donaghues, não é?

— Eles o ajudariam a começar de novo, sabe. É uma boa família. E Lena, esposa de Terence, ficaria feliz em saber que alguém da família Tierney sobreviveu. Somos velhos amigos e eu a vejo sempre. Ela cresceu na sua aldeia. Creio que ela tenha conhecido seu pai, quando ele era jovem.

— Talvez, mas ela jamais conheceu o homem no qual ele se tornou. Essa história é melhor ela não saber.

Padre McSweeney se esforçou para levantar.

— Já que você não quer rezar comigo, vou rezar por você — Ele ergueu a mão trêmula quando Liam tentou retrucar. — Não há de fazer mal, não é? E irá preencher os dias finais de um velho, com algo além de cartas e meditação sem fim.

— Então reze por Glen e pela filha de Tim McNulty também. Faria isso, padre? Ela e Glen acham que estão apaixonados. E se realmente estiverem, vão precisar mais do que orações. Irão precisar da intervenção de todos os anjos do céu para evitar a retribuição de McNulty.

— E você permitiria algo assim? Para seu próprio primo? — Liam pôs seu chapéu na cabeça.

— Faço o que sou mandado.

— E isso já lhe causpu problemas antes, não foi, filho? Na Irlanda, antes de vir para a América. É por isso que acredita que Deus se afastou de você.

Liam não podia pensar em nada para dizer sobre aquilo. Antes que pudesse, ele se virou e saiu.

Tim McNulty era um homem rico que queria ficar mais rico. Não era uma doença rara. Liam vira freqüentemente esta enfermidade em sua terra natal. A Irlanda havia chegado a um estado lamentável por conta da ganância, tão perversa e destrutiva quanto as pragas que infestavam e destruíam as colheitas.

A ganância de McNulty era combinada a uma necessidade voraz de poder.

Não era à toa que seu império de contrabando de bebidas prosperava e ele era o imbatível rei do crime de West Side, Cleveland. Ele queria mais, precisava de mais. Assim como alguns homens precisam de uísque e uma mulher desejosa. E a única forma de garantir mais de tudo, era correndo riscos.

McNulty, nascido para ser um jogador, estava prestes a correr um grande risco.

— Não vou fingir que esta é uma jogada comum, rapazes. — McNulty disse aos homens reunidos dentro de um de seus galpões. — Se eu fizer isso, vocês não saberão que têm que dar tudo de si desta vez. Então estou lhes dizendo agora. Hoje à noite é para valer. Terão que pôr a vida em jogo se for preciso. Porque, se tudo correr bem — ele estreitou os olhos —, e é bom que corra, então cada homem aqui voltará para casa muito mais rico. Haverá um bônus polpudo para cada um de vocês, se sairmos dessa sem problemas.

Liam estava mais interessado na aparência de McNulty do que em suas palavras. McNulty estava suando como uma lavadeira debruçada num tanque. E o sorriso que caracterizava todos os seus negócios, até mesmo os mais terríveis, havia desaparecido, dissolvido em seu dilúvio pessoal.

McNulty pegou um lenço no bolso e esfregou a testa.

— Então se alguém tiver alguma pergunta, esta é a hora de fazê-la. Do contrário, estão por sua conta, rapazes.

Ninguém disse uma palavra.

— Então está certo. — McNulty acenou para que saíssem. — Voltem com toda a mercadoria ou irei achá-los, e irão voltar numa caixa de pinho. — Dessa vez ele riu, uma imitação repugnante de sua risada habitual. Depois deu as costas a eles, saindo do galpão para entrar em seu Cadillac. Os homens esperaram até que o carro se afastasse, antes que alguém se movesse.

— O que é que está acontecendo, exatamente? — Liam perguntou a Jerry. — Por que ele está tão agitado?

— Você está criticando o chefe?

— Não, mas se estou prestes a arriscar minha vida, quero saber minhas chances.

Jerry fez sinal para ele se afastar dos outros três dos "assistentes", que eram protegidos de McNulty e conversavam entre si.

— Posso lhe dizer o que ouvi.

— Já está bom.

— Esse negócio que estão trazendo hoje do Canadá é melhor que o de sempre, entende? Muito melhor, e tem muito mais. O chefe está com tudo arranjado para a transação. — Ele olhou em volta antes de falar, para ter certeza que ninguém estava ouvindo. — Ele pegou dinheiro emprestado para fazer esse negócio. Por isso foi a Nova York, mas sua fonte no Bronx o rejeitou. Então ele pegou uma grana preta com Bugs Moran e sua gangue, e eles não dão nada, a não ser que ganhem muito mais em troca, entende o que estou dizendo?

Liam sabia. McNulty obviamente havia se comprometido com uma dívida grandiosa para obter o dinheiro para esse carregamento. Se tudo corresse bem, ele iria reaver o dinheiro e arranjar muito mais, além de ganhar força com as gangues do lado norte de Chicago. Mas se as coisas não fossem bem...

Jerry puxou seu relógio.

— Precisamos ir andando. Um de cada vez. — Ele sinalizou para um dos outros homens, que concordou com a cabeça. Jerry vírou-se para Liam e piscou.

— Você é o último da fila. Tire o carro e tranque tudo bem trancado. Te vejo lá.

Liam forçou um sorriso.

— Você verá.

Os outros foram embora, um a um, em quatro veículos, com um intervalo de cinco minutos entre eles. Liam esperou mais dez minutos antes de sair do galpão escuro. Mandaram que ele andasse até Whiskey Island, onde o carregamento estaria chegando. A caminhada levou mais vinte minutos, ao longo de trilhas escabrosas, iluminadas apenas por um luar empoeirado e uma ou outra lâmpada acesa por algum morador dos barracos.

As nuvens se condensavam e ganhavam força à medida que caminhava, e ele torcia para que a tempestade que se armava no céu esperasse até que os negócios daquela noite tivessem terminado. Ele foi margeando uma fábrica que havia ali, e também os trilhos da ferrovia, sendo obrigado, duas vezes, a chutar um bando de vira-latas que estavam à procura de ratos no lixo. Por conta da Lei Seca, os bares que antes ladeavam a paisagem já não existiam. Mas para ele isso era melhor, pois menos gente iria perceber sua presença.

Os outros estavam bem escondidos na área mais deserta da margem, encobertos pelo céu, que se tornava cada vez mais ameaçador.

A luz dos raios iluminava o horizonte distante e por enquanto era a única luz que via.

Esse local era o destino preferido dos contrabandistas e não era a primeira visita de Liam. Se ele estivesse no comando dos agentes federais, iria designar um homem para morar ali e cuidar da colheita de toda a safra da birita canadense. Mas ele não estava no comando e provavelmente havia muitos outros locais como esse, à margem do lago Erie, para esse tipo de negócio. Ele ficou atrás de uma moita e aguardou que outros se mostrassem.

Eles o fizeram, um a um, materializando-se como nas histórias que ele ouvira sobre o grogoch, que só surgia quando se sentia confortável com os arredores.

— Alguém viu alguém que não deveria ver? — perguntou Jerry, quando eles se reuniram, formando uma massa humana de nervos à flor da pele.

Ninguém havia visto. Os homens estavam inquietos, temendo fumar e chamar atenção indesejada. Quando falavam, o faziam em voz baixa, encurtando as palavras, como se fossem ser presos, caso pronunciassem a última sílaba.

Liam não conseguia enxergar seu relógio, que havia ganhado de Brenna em seu último aniversário, mas imaginava que mais de meia hora havia se passado, antes que Jerry sacudisse seu braço.

— Olhe.

Liam olhou na direção para onde Jerry apontava. Alguma coisa estava se movendo na água, bem junto à margem. Duas "algumas" coisas, se ele estava certo.

— Dois barcos?

— Três. Olhe adiante, naquela direção.

Liam voltou-se para a esquerda e viu o contorno de outra embarcação, no encalço da segunda. Liam assoviou baixinho. McNulty tinha razão. Essa seria uma jogada e tanto.

— O primeiro barco encosta e você faz com o Slim. Descarregue tudo o que puder e ponha no primeiro caminhão. Você vai fazer o último também. Depois seguem armados.

Liam sabia que o plano não era levar o primeiro caminhão para o galpão, que poderia estar sendo vigiado, e sim para um restaurante em Lakewood, de alguém que devia um favor a McNulty. O primeiro caminhão tinha as laterais pintadas com o nome da Companhia de Frutas Finegan. Os engrada-dos de "frutas" passariam a noite na adega desativada do restaurante, até que pudessem ser entregues em diversos pontos de comércio clandestino. Dois outros negociantes iriam receber os caminhões dois e três, e, por último, uma funerária seria igualmente abençoada com a surpreendente carga de caixões novinhos em folha, entregues pelo quarto caminhão.

— E você, vai estar aonde? — perguntou Liam.

— Entregando o dinheiro. — Jerry deu um tapinha no bolso interno do paletó. — E conferindo, para ver se recebemos por tudo que pagamos. Irei fazer a conferência do que vocês trouxerem, mas eles terão que vir até a margem para pegar o dinheiro. Não vou correr o risco de ficar preso no barco.

Jerry podia não ser o mais brilhante dos homens de McNulty, mas Liam calculou que ele fosse o mais leal.

— Apenas preste atenção — disse Liam.

— É, eu sei. — Jerry sumiu na escuridão. — Está certo, vá andando. Slim irá levá-lo até lá.

O plano era usar um pequeno bote a motor para chegar até os barcos maiores. Outros dois homens de McNulty os haviam trazido logo após escurecer. No instante em que Liam subiu a bordo do maior dos dois, ambos já foram empurrados afastando-se da costa, e em seguida estavam a caminho. A equipe do barco canadense começou a entregar os engradados antes mesmo que eles terminassem de amarrar a corda à embarcação. Os homens a bordo estavam em silêncio e de cara fechada e, a julgar pela eficiência com que trabalhavam, Liam saberia que eram profissionais, mesmo se McNulty não tivesse feito negócio com eles pelo menos uma dúzia de vezes. Ele voltava veloz para a margem, antes que suas costas começassem a doer.

Jerry ajudou a puxá-los para encostar. Contou os caixotes usando um pé-de-cabra para tirar a tampa de alguns, aleatoriamente, para ver se continham o que deveriam. Algumas garrafas foram abertas e provadas. Quando ele terminou de vistoriar aquele lote e sinalizou para que seguissem ao caminhão, o segundo bote já regressava. A hora seguinte foi quase toda usada para ir e vir, carregando e descarregando, empacotando os engradados de uísque nas embalagens condizentes às companhias descritas na pintura de cada caminhão. O primeiro caminhão estava pronto para seguir seu itinerário, assim como o segundo, mas havia os retardatários que tinham de garantir não haver problemas até que a transação estivesse concluída. Os dois primeiros barcos já haviam partido na viagem de regresso.

Na última viagem do bote até o terceiro barco, Liam foi com Slim e silenciosamente descarregou os engradados que foram entregues. Depois sinalizou para um membro da equipe.

— Você é o responsável pelo recebimento do dinheiro?

— Não. — O homem se virou e, num instante, o capitão grisalho e forte chegou ao lado do barco.

— Sou quem você está procurando.

Liam calculou que uma boa porcentagem do dinheiro deveria ter sido paga à vista, quando McNulty fez o negócio. Agora era a hora de entregar o restante.

— O meu encarregado está na margem — disse Liam. — Nós o levamos até lá e já trazemos de volta.

— É bom não ter nenhuma gracinha. Estes caras têm armas apontadas para vocês. Além disso, se McNulty ainda quiser uma gota do Canadá, é melhor que paguem como combinaram.

— Acho que o cara do dinheiro tem medo da água — disse Liam — Ele é um cara grandão, iria flutuar, mas não se sente seguro.

— Vamos fazer isso rápido, antes que a chuva comece.

Liam concordava plenamente. Até então, as coisas transcorriam sem nenhum contratempo, no entanto, quanto mais tempo levassem, maior o risco de problemas.

O capitão pulou por cima da lateral e entrou no bote, e Slim partiu rumo à costa. Jerry esperava em terra firme e, no momento em que já estavam em águas rasas, o capitão saltou e foi na direção dele.

Dirigiu-se a ele ainda distante.

— Você fez a conferência?

— Fiz. — Jerry puxou um pacote de notas do bolso interno do paletó. — Conte. Está tudo aí.

O capitão apanhou o dinheiro e folheou as notas. Liam nunca havia visto tantas assim, num só lugar. Sua boa secou de repente. Ele pensava em cem coisas que podia fazer com aquele dinheiro, que não incluía dá-lo aos canadenses.

— Parece tudo certo. — O capitão acenou com a cabeça na mesma hora em que o céu se abriu e a tempestade começou a cair.

Jerry xingou, colocando o paletó sobre a cabeça para proteger-se. A sua volta, os outros homens faziam o mesmo.

— Slim vai levá-lo de volta. Vá rápido.

O capitão embolsou o dinheiro cuidadosamente e os dois homens apertaram as mãos. O capitão voltou-se em direção ao bote. Luzes se acenderam no alto, acima deles, e uma voz berrou em meio à tempestade:

— Vocês estão cercados! Mãos para o alto e não se mexam!

— Merda! — falou Jerry por todos.

Num lampejo, Liam desviou o olhar para o lago. Através da cortina de chuva torrencial, adiante, na água, ele viu luzes que antes não estavam lá. Dois barcos se aproximavam da terceira embarcação canadense e dos botes. A incursão foi coordenada. Ninguém havia simplesmente chegado a eles por acaso.

— Dispersar!

Liam não seria tolo de encarar a guarda costeira e os agentes federais. Ao ser capturado enfrentaria a deportação ou iria para cadeia. Se fosse mandado de volta para a Irlanda, iria para a forca. Melhor morrer aqui.

Mergulhou de cabeça numa moita atrás dele, e, apesar disso colocá-lo temporariamente mais próximo aos homens que queriam prendê-lo, tinha esperanças de não ser um alvo tão visível. A tempestade lhe daria proteção. À sua volta ouvia os outros correndo em todas as direções, o som dos passos apressados, o murmúrio dos juramentos.

Tiros foram disparados e uma bala resvalou na areia, bem à sua frente. Ele se arrastou para mais longe mato adentro, movendo uma mão e um joelho de cada vez. Ele seguia o mais rápido que podia, escorregando e deslizando para longe dos tiros e dos agentes, que brandiam lanternas, mas tinha certeza de que não estava indo rápido o suficiente. Chegaria a um ponto onde teria que ficar agachado para depois correr, e esperava não ser avistado até que pudesse alcançar um terreno mais seguro e fugir para a liberdade.

Alguém entrou voando pelo mato próximo a ele e, por um momento, ele achou que a perseguição havia terminado e seria obrigado a lutar. Depois olhou rapidamente e viu os cabelos grisalhos e os ombros largos, percebendo que o capitão canadense estava fugindo na mesma direção que ele. O homem estava tão concentrado em achar seu caminho pelo mato em meio à chuva grossa, que nem viu Liam. Liam não o perdeu de vista, deixando que o capitão abrisse a trilha pelo mato e levasse a primeira rajada de tiros, se viesse uma, mas os instintos do homem eram infalíveis e ele zigueza-gueou entre os arbustos mais densos. Liam o seguia, distante apenas alguns metros e segundos.

Liam ouvia gritos e passos correndo atrás dele. Acima, os relâmpagos iluminaram o céu, seguidos de um raio estrondoso, como o rugir de um leão. Soaram mais tiros e ele estremeceu. Ele estava armado, como todos os homens da gangue de McNulty, mas não tinha nenhuma intenção de abrir fogo sobre homens sem rosto. Disse a si mesmo que era simplesmente por humanidade e isso nada teria a ver com o fato de que um desses homens poderia ser seu primo. Seguiu adiante, mantendo os olhos no capitão, deixando o barulho dos tiros mais longe.

Não sabia que distância eles já haviam percorrido, quando o capitão diminuiu o ritmo e parou. Os gritos e as luzes tinham ficado para trás, porém a chuva estava mais forte, uma cortina sólida e negra. Sem plano algum e só pelo instinto, parecia que eles haviam talhado uma boa rota de fuga, apesar de ainda não estarem fora de perigo.

O capitão também parecia saber disso. Enquanto Liam observava, o homem enfiou a mão na jaqueta e agachou-se, simultaneamente. Então, sob seu olhar, o capitão ficou em pé e foi entrando novamente pelo mato. Intrigado, Liam pretendia segui-lo, mas quando o homem já havia se distanciado uns vinte metros, gritos o impediram de continuar.

— Nós o pegamos! Não se mova, nem um milímetro. — Liam deu um passo adentrando o mato mais alto. Percebeu que estava tremendo, embora não soubesse dizer se era do esforço, do frio ou da reação. Pegou sua arma e esperou, mas ninguém apareceu.

— Mãos na cabeça. Veja, Jake. Temos um contrabandista de verdade aqui.

O capitão estava preso e Liam sabia que as chances de virem em sua direção eram enormes. Ele olhou em volta, procurando um lugar melhor para se esconder. Havia um barranco logo abaixo de onde estava. Uma árvore grande havia sido derrubada e o tronco estava no chão, ao lado de um buraco raso. Ele foi se esgueirando e rastejou silenciosamente, até estar embaixo dela, permanecendo deitado, paralelo ao tronco. A chuva despencava sobre ele, e sabia que a água ao seu redor provavelmente estava subindo. O buraco era raso o bastante para que em breve fosse totalmente coberto. Antes que isso acontecesse, é claro que ele iria se afogar.

Ele se perguntou o que seria pior. Morrer afogado ou enforcado?

A chuva caía contra o tronco da árvore e ecoava ao seu redor. Dali não era possível ouvir mais nada, apenas o barulho do dilúvio enviado pelo céu, desaguando no refúgio onde ele estava deitado.

Ele ficou imaginando se Glen estaria nesta operação, e como os agentes do Tesouro poderiam ter conseguido a informação. Alguém da confiança de McNulty havia falado. Mas quem? McNulty jamais descansaria até que descobrisse. E se, de alguma forma, McNulty descobrisse que Liam era parente de Glen Donaghue? A essa altura Liam seria o principal suspeito, apesar de nem sequer ter ficado sabendo do plano até a reunião no galpão. Mas McNulty poderia pensar que ele havia arrancado isso de alguém, Jerry, talvez, ou alguém mais alto que ele. Liam estaria condenado se algum dia McNulty viesse a descobrir sua ligação com Glen.

Disse a si mesmo para não ficar chutando cachorro morto. Não fazia sentido ficar preocupado com algo que jamais iria acontecer. Somente ele e o padre McSweeney sabiam da verdade. E por que o padre iria contar a alguém?

A água estava subindo. A noite havia sido bem quente, mas havia esfriado quando a tempestade se aproximara. Agora a chuva dava a sensação de neve denetida, escorrendo pelo seu colarinho e pelos braços.

Ele se perguntava há quanto tempo estaria ali deitado, e por quanto mais deveria ficar.

Fechou os olhos e pensou no capitão contrabandista, que agora era um convidado do governo dos Estados Unidos. O que será que ele havia deixado lá embaixo, no mato? Enquanto a água subia e a tempestade caía enfurecida, Liam pensava se conseguiria encontrar esse lugar novamente. Se continuasse a ser um homem livre, planejava dar uma volta pelo lago em breve, quando o céu estivesse limpo e a área também.

 

                                 Capítulo 29

Nicolo estava em pé junto ao altar, olhando para os pilares de madeira que cortavam o teto. Um vitral glorioso de Jesus abençoando três pequenas crianças iluminava o espaço onde ele estava. Sua voz ecoava e as mãos estavam petrificadas.

— E olhando para o céu, para Seu Pai Poderoso, Ele deu graças e rezou. Partiu o pão e deu aos seus discípulos dizendo...

Um rangido agudo interrompeu o discurso. Ele fez uma pausa, na tentativa de se virar e averiguar de onde viera, mas seus membros estavam pesados e sua cabeça se recusava a mover-se. O coração começou abater mais rápido e seu peito ficou apertado. Sua túnica parecia puxá-lo em direção ao chão, enquanto as pontas paralelas da estola pareciam mantê-lo no lugar. Ele não conseguia respirar. Não conseguia lutar para livrar-se daquela situação. O medo o envolvia, tanto quanto sua indumentária.

Enquanto se esforçava para se soltar, acordou com o som do despertador e uma das pontas do lençol enrolada ao redor de seu quadril.

No momento em que percebeu onde estava e quem ele era, parou de lutar.

Às cegas, esticou-se por cima do telefone, quase o derrubando do gancho, e desligou o alarme. Ele havia esquecido de reprogramar na noite anterior e agora pagara o preço. Ele respirava rápido e seu coração estava acelerado. Abriu os olhos à força e olhou para um teto tão diferente. Ele mesmo havia feito o reboco deste, ainda sem muita experiência. Agora já trabalhava melhor com, a massa, estava melhor em tantas coisas, mas era um fracasso nas coisas que mais queria que dessem certo.

Não tinha pressa para se levantar. Havia tão poucos motivos para levantar hoje. Reuniões no fim da manhã. Telefonemas tediosos. Mais gente ansiosa para ver a mancha na parede, que lhes daria fé em algo além deles próprios. Ele não tinha nenhuma missa a celebrar, nem confissões a ouvir, nem ligações pastorais, ou reuniões com os sacerdotes oficiais da igreja.

Tornara-se um leigo. Não era um padre praticante. Era seu próprio chefe, deitado em sua própria cama.

Sem sua esposa ao seu lado.

Seus olhos se fecharam involuntariamente. Megan se fora e, de repente, a borbulha de sua vida havia sido reduzida a nada. Quase nada havia mudado desde a sua partida. A organização filantrópica de Indiana, na qual ele havia depositado tanta esperança, concordara em ajudar a financiar a Tijolo, e o quadro diretor dispusera-se a ouvir todas as solicitações, mas ele resolveu deixá-los de lado. Não apenas por serem mesquinhos e absurdos, mas porque ele iria instantaneamente se tornar um burocrata. E Niccolo sabia que sua verdadeira missão era mudar vidas e não documentar as mudanças feitas por outros.

Portanto, sua própria vida não havia mudado desde que Megan partira para a Irlanda. A Tijolo continuou cambaleando em direção a uma linha de chegada imaginária. O túnel dos contrabandistas continuou a atrair visitantes. E Niccolo Andreani, que sentia falta do sacerdócio, mas não se arrependia por tê-lo deixado, continuou a sonhar que celebrava missas.

Ele sentiu uma sensação de solidão tão profunda quanto sentia na época em que vivia na residência paroquial, em Pittsburgh. Queria sua esposa ao seu lado. Queria ter seus próprios filhos. Queria ter certeza de que os garotos com quem ele trabalhava tinham toda a chance de crescer e honrar seus talentos. Queria tempo para interagir com eles, para ouvir e aconselhar. E vê-los se formando do segundo grau e da faculdade, e queria saber que havia feito o possível para encaminhá-los ao rumo certo.

E agora, cada um desses sonhos estava em perigo.

O telefone tocou e por um instante ele hesitou quanto a atendê-lo. Mas atendeu depois do terceiro toque, sabendo que poderia acordar Rooney ou Josh, ou, mais importante, que poderia ser Megan.

Ela havia ligado para casa ao chegar à Irlanda, para que ele não se preocupasse, e não mais, desde então. Megan obviamente não tinha vontade de conversar a longa distância, já que eles não foram capazes de conversar dentro do mesmo quarto.

Iggy estava do outro lado da linha, e quando acabaram de falar, Niccolo tinha uma razão para levantar e se vestir.

— Croissants — disse Niccolo, colocando o saquinho branco cheio de folhados, em cima da mesa de jantar da residência paroquiana de Santa Brígida. — Da padaria da esquina de minha casa.

Iggy ficou extasiado.

— Tenho café e ovos para acompanhá-los.

A empregada havia feito um café bebível, e ovos excelentes. A manhã parecia promissora.

Eles se serviram da panela que estava no fogão, depois colocaram café nas xícaras, em seguida levaram tudo para a mesa. Iggy abriu um croissant ao meio e o segurou no alto, para que Niccolo visse.

Niccolo olhou para as mãos dele elevadas e lembrou de seu sonho, vendo que a toda hora lembrava e lembrava, e isso o estava deixando alarmado.

— Você sempre sabe exatamente o que comprar — disse Iggy. — Tem um gosto infalível para comida. Apenas o melhor, o mais fresco. Os italianos e os franceses. O que seria do mundo sem eles? — Deu uma mordida no pãozinho e seus lábios sorriram em deleite. — O que seria de mim sem você, Niccolo?

Niccolo havia planejado uma conversa. Discussões a respeito do levantamento de fundos para a semana seguinte, destinados à melhoria da paróquia. Resolveriam se seria ou não necessário cortar uma árvore que ameaçava o estacionamento da Santa Brígida, se a Tijolo deveria seguir em frente com as reformas, mesmo sabendo que teriam que fazê-lo dispondo apenas de fé e oração.

E agora ele não conseguia pronunciar uma sílaba.

— Niccolo?

Niccolo ergueu os olhos e sabia que só poderia falar de uma coisa.

— Sonhei que estava celebrando uma missa. É um sonho que tenho freqüentemente. — Ele fez uma pausa e inalou o ar de forma audível. — Todas as noites.

— Desde que deixou de ser um sacerdote ativo? — Niccolo gostou da forma como Iggy formulou a frase.

— Não.

— Quando começou? — Niccolo não respondeu.

— Com seu casamento. — Iggy não disse em forma de pergunta.

— Sim. — Niccolo levantou o garfo, pegando os ovos mexidos. Eles pareciam de borracha.

— Deixe-me adivinhar mais — disse Iggy, colocando mais um pedaço de croissant na boca. — Não imediatamente, mas depois da lua-de-mel.

— Sim.

— Entendo.

— Eu não! — Niccolo ergueu os olhos, envergonhado por seu tom extravagante. — Desculpe. De onde veio isso?

— Creio que esteja zangado, Niccolo. Daí que veio. Mas não se preocupe. Sei que a raiva não está direcionada a mim.

— Estou com raiva. Sinto-me como se estivesse sendo punido. Não preciso desses lembretes do que deixei para trás. Não preciso andar por aí com sentimento de culpa.

— Acha que Deus o está punindo?

— Não. Deus e eu estamos bem. Eu estou me punindo. E não entendo por quê.

— Claro que não, porque isso não é o que está acontecendo. — Niccolo não sabia o que dizer diante daquilo. Ele havia ponderado sobre seus sonhos muitas vezes e não chegara a lugar algum. E agora Iggy, que acabara de ouvir a história, parecia entender o que Niccolo não conseguia.

— O que é que está acontecendo? — perguntou Niccolo.

— Acho que temos que regressar. — Iggy começou a comer os ovos.

— Regressar para o quê?

— Até aqueles momentos, não muito tempo atrás, quando você estava no altar.

— No sonho? — Iggy ergueu o olhar.

— Não, na vida real. Nos dias em que você realmente celebrava missas.

Niccolo sorriu pesaroso.

— Posso regressar até o útero, se acha que isso irá ajudar.

— Acho que isso é um pouco prematuro. Comece com a missa.

— O quer que eu diga?

— Lembra-se com se sentia naqueles momentos?

— Unido a Deus. Como se Ele estivesse trabalhando através de mim. Humilde. Reverente. — Niccolo deu de ombros.

— Sempre?

— Sinceramente?

— Acho que assim seria melhor, não acha?

— Não. Às vezes eu ficava pensando em todas as outras coisas que tinha a fazer naquele dia. E ao fim de minha época em Santa Rose de Lima, quando sabia que estaria indo embora em breve, eu pensava em como seria triste não estar mais num altar.

— Apenas triste?

— Aliviado também.

— E?

Niccolo tentou procurar mais fundo, sem sucesso. Ele deu de ombros.

— Coloque-se lá, Niccolo. Coloque-se de volta vestido de túnica, por um instante. O que está fazendo no sonho?

— Segurando a hóstia.

— Então imagine.

Niccolo baixou o garfo. Ele não estava confortável com isso, mas conforto não tinha nada a ver com a superação do problema. Ele já havia aconselhado muita gente, para não saber disso.

— Estou no altar. Sinto-me triste porque não estarei fazendo isso por muito mais tempo, porém feliz, pois minha decisão já foi tomada. — Ele chegava quase a sentir o ar fresco e úmido de Santa Rose o envolvendo, ouvia o barulho das vestes arrastando no chão de madeira, o choro ocasional de um bebê.

— É fácil dizer as palavras. Eu as conheço tão bem. E as repeti tantas vezes. Poderia fazer isso até o dia que morresse, sem tropeçar numa só palavra.

— E o que as pessoas na igreja pensam sobre você?

— Que sei exatamente o que estou fazendo. Que sou seu líder e podem confiar em mim para fazerem o que é certo.

— Você sabe que estará partindo em breve. Está feliz por ter tomado sua decisão...

— Estou. — Niccolo lembrava bem do alívio. A decisão não havia sido nada fácil, mas, com ela, ele havia finalmente encontrado a paz.

— O que mais? — incitou Iggy.

— Medo. — Niccolo ergueu os olhos. — Não, terror.

— Ah...

— Não o terror por haver feito a escolha errada, mas o terror pelo que fazer a seguir. A partir do momento em que já tinha idade para pensar a respeito de uma vocação, eu soube que deveria ser padre. Meus pais também queriam isso para mim, assim como meus avós. E achei que queria isso para mim.

— E quando descobriu que isso não era o certo para você, Niccolo, quanto tempo levou para pensar no que era certo?

— Dei tempo a mim mesmo depois, lembra-se? Por isso vim aqui para Cleveland. Eu queria um tempo para pensar sobre o que fazer em seguida. Comprei minha casa e comecei a trabalhar nela, como um meio de preencher o vazio. Eu ia vendê-la quando terminasse.

— E aos poucos os garotos do bairro vinham ver o que você estava fazendo e pouco tempo depois, nascia a Tijolo.

— A Tijolo parece ser algo correto, Iggy. A Tijolo é a coisa certa para eu fazer.

— Não tenho dúvidas disso.

— E me apaixonei por Megan. E sabia que isso também era certo.

— Mais uma vez não tenho dúvidas.

— E depois?

— Niccolo, você está no altar e sente grande confiança por saber o que está fazendo. Poderia fazer isso todos os dias, pelo resto de sua vida, sem cometer um erro. O povo tem confiança em você. — Iggy ergueu uma sobrancelha em tom interrogativo. — Seria essa, talvez, a última vez em que soube exatamente o que fazer?

Niccolo não podia acreditar que ele próprio não percebera. A verdade o arrebatou. As portas se escancararam e, por um momento, ele foi tomado de medo. Ele não podia falar.

Iggy falou por ele.

— Você sabia como ser um padre. Foi moldado para que se tornasse um, ensinado, supervisionado, incentivado ao longo de toda a sua trajetória. Mas quem lhe ensinou a se tornar um marido?

Niccolo fechou os olhos.

— Ao contrário — disse Iggy. — Ensinaram-lhe as melhores formas de não ser um. A evitar a intimidade. A ser celibatário. A evitar amar uma mulher.

Então, em seus sonhos, Niccolo sentia seu caminho no casamento, tentando e... sim, falhando terrivelmente, e retornando aos momentos em que sabia exatamente o que fazer, quando as pessoas ao seu redor acreditavam em seu poder e competência.

O medo diminuía um pouco e o alívio preenchia as lacunas deixadas pelo temor. O alívio porque o sonho não era um autoflagelo, mas um esclarecimento.

— Eu não sei como ser um marido. Estou fazendo um péssimo papel.

— Diga-me como foi tentar ser um padre.

— Não sei o que quer dizer.

— O que tentou fazer por sua paróquia?

Isso parecia tão óbvio que Niccolo não entendia por que deveria citar.

— Esforcei-me para fazer dela a melhor paróquia que pude, como qualquer padre faz. Trabalhava o dia todo, todo dia, aconselhei, rezei, visitei, administrei...

— Isso parece familiar?

Agora Niccolo entendeu. Essa verdade também havia sido tão fácil de enxergar e ainda assim ele não vira.

— Tenho sido um marido, da mesma forma como fui um padre.

— Exatamente. — Iggy voltou a comer seus ovos mexidos, que agora estavam relativamente frios, assim como os de Niccolo.

— Porque era a única coisa que eu sabia fazer — continuou Niccolo. — É a única coisa que sei fazer.

— Claro que é. Você foi treinado para o sacerdócio praticamente desde o berço. Então pegou aquilo que sabia fazer tão bem e transferiu tudo para seu casamento.

— Não sei como ser um bom marido. — A verdade era difícil de engolir. Niccolo acreditava ser uma boa pessoa. Certamente era um bom homem, com boas intenções, deveria saber como dar à mulher que ama aquilo que ela precisa.

— Diga-me. O que Megan quer de você?

A verdade era tão simples que Niccolo estremeceu.

— Intimidade.

— E o que tem dado a ela?

— Tenho tentado fazer tudo de maneira perfeita de novo. Reformando o salão, fazendo com que a Tijolo seja algo que dê orgulho. Queria que tivéssemos uma família imediatamente. Queria que tudo fosse perfeito.

— Você quer o que um casamento parece ser, não o que um casamento o faz sentir.

— Megan me quer. Ela não se importa com as armadilhas. Elas vêm com o tempo. Mas sou bom com as armadilhas. Estou em casa, quando deveria estar trabalhando duro.

— E onde a imagem do túnel se encaixa em tudo isso?

— Eu estava dando à imagem e às pessoas que vinham em bando para vê-la, mais atenção e amor do que estava dando a ela. — Niccolo não precisava que Iggy indicasse o motivo. — Porque a imagem era algo que eu entendia. A necessidade que as pessoas têm quanto à fé e à esperança é algo que eu entendia.

— E um casamento não.

— Intimidade. — Niccolo sacudiu a cabeça. — Não era um projeto tão grande. Não era algo a que eu pudesse me atirar e ver os resultados.

— Portanto? — Iggy ergueu o olhar.

— Sinto-me um tolo. Quanto mais me esforcei para que as coisas dessem certo, mais elas pioraram. Tudo que eu tinha a fazer era parar de trabalhar e passar a ouvir.

— Ela vai voltar para casa, você sabe.

— É, eu sei. Ela tem um salão para administrar.

— E nesse meio tempo você vai poder pensar sobre isso. — Niccolo pensou sobre tudo que quase perdera. Apenas esperava que não fosse tarde demais para recuperar.

Esperava que não fosse tarde demais para aprender como fazê-lo.

Casey estava chegando a pé na casa de Niccolo e ele encostava de carro. Ele ficou surpreso ao vê-la, mas imaginou que ela teria vindo dar uma olhada no pai.

Ele não falava com ela fazia alguns dias, porque estivera muito ocupado. Nenhuma novidade até aí.

Niccolo estacionou na frente da casa e desceu do carro.

— Ele está ótimo — disse Niccolo, vindo por trás dela. — Eu deveria ter ligado para lhe dizer. Desculpe.

Casey virou-se. Ela ainda não estava vestindo roupas de gestante, mas usava uma camiseta bem grande e calças de malha, provavelmente para ter mais conforto. Ela parecia descansada e contente. Ele esperava que o pior do enjôo matinal já tivesse passado.

— Rooney? Nem se preocupe com isso. Eu o tenho visto todos os dias. Venho até aqui no fim da tarde, antes de ir para casa. Trago algo para ele jantar ou o convido para nossa casa, mas, à sua maneira, ele me disse que a comida da Megan é melhor. Ele sente saudades dela.

— Eu também. — Ele fez uma pausa. — Demais.

— Que bom. — Ela esperou na varanda até que ele destrancasse a porta, e entrou antes dele.

— Posso lhe oferecer alguma coisa? — perguntou Niccolo. — Eu tenho café descafeinado, caso não esteja tomando café comum ultimamente. Suco...

— Nada. Apenas vim lhe dizer que estou indo para a Irlanda.

— Não acredito. Você também?

— Por que só elas podem se divertir?

Ele sinalizou para que ela passasse a sua frente, rumo à sala de visitas e Casey deixou-se cair no sofá, automaticamente abraçando uma das almofadas de Megan, como se fosse o bebê que estava para nascer.

— Megan ligou ontem à noite. A saúde de Irene está bastante precária e fiquei pensando. E se ela morrer antes que eu possa fazer a viagem para conhecê-la? Quando minha gravidez estiver mais adiantada não poderei viajar distâncias longas. E quando o bebê já estiver aqui, não vou querer viajar até que ela ou ele esteja pronto. Tenho um crédito no trabalho. Juntado aos dias de férias, posso passar uns dias lá, depois alguns dias aqui, para me recuperar do fuso horário, antes de voltar a trabalhar.

— E você não quer perder nada. Elas lá, você também.

— Você me conhece bem. — Os olhos dela se iluminaram. — Quer vir comigo? Largar tudo e vir?

Ele pensou, mas no fim sacudiu a cabeça.

— Não, tenho muita coisa para fazer.

— Nick, eu...

Ele levantou a mão.

— Eu sei, Casey. Sei o que está pensando. Eu realmente tenho sido um idiota. Mas tenho arestas a aparar antes que minha esposa volte para casa. Acho que agora posso entender as coisas muito melhor do que antes de ela partir. E quero que nosso reencontro seja aqui em Cleveland. Só nós dois. — Ele sorriu um pouquinho. — Não cercado por anglo-irlandesas raivas e vingativas.

— Você não tem graça. — Mas ela riu também. — Ela te adora, você sabe.

— Eu a adoro.

— Bom. — Casey se levantou. — Rooney está acordado? Será que ele vai ficar bem com vocês por uma semana? Jon disse que virá dar uma olhada nele todo dia.

— Vamos todos colaborar. Tomaremos conta dele direitinho. Por que não explica a ele? Mas venha me ver antes de ir, está bem? Acabei de vir da Santa Brígida. O padre Brady encontrou mais cartas de Maura McSweeney e essas estão traduzidas. As cópias estão no meu carro. Quando a vi na calçada, esqueci de trazê-las, mas pode levá-las para a Irlanda com você. Tem uma pilha. Espero que possam ajudar a esclarecer. — Ele fez uma pausa. — E se você ficar um tempinho com seu pai, também posso escrever uma. Para Megan.

Ela concordou com a cabeça, compreensiva.

— Vou lê-las no avião, com exceção da de minha irmã.

— Obrigado.

Ela atravessou a sala e beijou-lhe o rosto.

 

                   1925, Castlebar, Condado de Mayo

                   Meu querido Patrick,

Suas cartas são minha maior indulgência, tanto as que leio quanto àquelas que lhe escrevo. E foi com muita alegria que abri a última. Preparei um bule de chá e levei para a sala, onde a luz é melhor. Oh, como eu gostaria de não ter visto aquela carta junto com outras, que tivesse caído no chão, para que nunca mais fosse achada.

Eu me sinto como se conhecesse esses jovens de quem você sempre escreve, cada um deles tão promissor quanto às rosas selvagens do verão. O vento pode bater, a chuva pode açoitar, mas as rosas, fortes e perfumadas, tornam-se melhores ainda, por sua experiência.

Nem tanto, meu querido irmão, ocorre com as almas frágeis dos amantes.

Para o momento, não consigo encontrar mais nada a dizer.

                   Sua querida irmã, Maura McSweeney.

 

                           Capítulo 30

Embora não tivesse participado, Glen ficara sabendo tudo a respeito da batida policial em Whiskey Island. Os agentes que estiveram presentes estavam orgulhosos como pavões e não tinham medo de se gabar. Com o trabalho de apenas uma noite, eles foram capazes de apreender bebida suficiente para impedir o abastecimento de mais de uma dúzia de estabelecimentos ilegais da classe alta. Os jornais só falavam disso e, mesmo sem que ninguém tivesse provas de que Tim McNulty estava por trás do carregamento, havia uma grande especulação de que o flagrante o tiraria dos negócios.

Dois homens locais foram capturados, mas ambos haviam sido soltos sob fiança, sem que dissessem uma sílaba sequer. Uma tripulação canadense e seu capitão estavam presos aguardando o parecer da justiça internacional, e também não falavam. Contudo, a bebida agora era inútil para McNulty, assim como a grande quantia em dinheiro que ele concordara em pagar aos canadenses.

Ao ouvir a grande aventura ser contada pelos colegas, o primeiro pensamento que veio à cabeça de Glen foi Clare. McNulty era um péssimo pai sob qualquer circunstância, porém, perturbado e ansioso, ele certamente seria pior. Agora Clare seria mantida trancada a chave. Seria impossível encontrá-la.

Mas, como se revelou, suas preocupações eram por nada. Apenas três dias após a batida, ele voltou do trabalho uma noite e, ao chegar em casa, encontrou Clare no corredor de seu prédio.

— Clare. — Ele olhou em volta, depois destrancou a porta do apartamento e a puxou para dentro. — O que você está fazendo aqui?

— Não se preocupe, ninguém me seguiu.

— Tem certeza? Aquele cara que a vigia é bem esperto.

— Há uma reunião esta noite. Todos estão lá, com exceção de um inútil, meio cego e preguiçoso também. Ele estava dormindo quando saí. Além disso, acho que meu pai nem se lembra que devo ser vigiada.

Glen desconfiava saber a pauta da reunião de McNulty.

— Você está bem? — Ele segurou-lhe o rosto com as duas mãos, olhando para ela. Ela parecia cansada, mas sorriu.

— Ah, agora estou. Mas as coisas têm andado tensas lá em casa. Tenho certeza de que sabe por quê.

Ele não queria falar a respeito dos negócios do pai dela. Apesar do que Clare representava para Glen, ela também era filha de McNulty.

— Fiquei preocupado com você.

— Meu pai tem me ignorado a maior parte do tempo. Tem tido coisas mais importantes para pensar. Mas não sei por quanto tempo isso irá continuar. Eu... — ela suspirou. — Eu preciso ser franca. Tenho bisbilhotado, Glen. — Ela pôs o dedo sobre seus lábios quando ele começou a falar. — Não, não fale. Também não gosto disso, tanto quanto você, mas a verdade é que se eu não souber o que meu pai está tramando, não vou poder me proteger. Não poderei proteger a nós.

Infelizmente ela estava certa. Ele não podia contestar.

— Ele teve um grande revés financeiro — continuou Clare — e o dinheiro não era dele. Pertence a uns homens de Chicago, os mesmos para quem Niall Cassidy trabalha.

Até aquele momento Glen, essencialmente idealista, acreditara que poderia administrar seu emprego, o salão da família e seu amor por Clare, separadamente. Mas acabara de descobrir que isso era uma ilusão, porque não havia como se recusar a ouvir o restante do que ela tinha a dizer. E uma vez que tivesse ouvido, não iria poder fingir ignorar. Ele havia jurado cumprir a lei.

Afastou-se dela e enfiou a mão no bolso para pegar seu distintivo, que ingenuamente achou poder manter junto às outras complicações de sua vida. Colocou-o sobre a mesa.

— A partir desse momento não sou mais um agente do Tesouro.

— Não, Glen.

— Clare, está tudo bem. Não posso ser seu marido e um agente federal ao mesmo tempo. Já era difícil demais pelo negócio de minha própria família. Impossível, com o negócio da sua.

— Então vou embora — ela se virou para seguir em direção à porta.

— Pare — ele pôs a mão em seu ombro. — Será que não sabe que prefiro ter você ao emprego? Além disso, não vamos poder ficar em Cleveland. Precisamos ir para um lugar onde não seremos encontrados. E uma vez que estivermos estabelecidos, no oeste ou no sul, irei me inscrever para outro emprego na polícia.

Ela já balançava a cabeça antes de ele terminar.

— Estou pedindo que você abra mão de muita coisa. Sua casa, seu emprego, sua família.

— Abro mão de tudo por você, sem sequer olhar para trás. Não tenho escolha. Eu te amo. Isso é a única coisa da qual não posso me afastar.

Ela olhou para ele, relutante.

— Mas é tanta coisa, coisas demais.

— Nem de longe. Farei qualquer coisa para tê-la comigo. — Ela ainda parecia arrasada.

— O que quer que seja, querido, temos que fazê-lo em breve. Os homens de quem falei, os de Chicago, virão depois de amanhã para pegar o dinheiro. A reunião é sobre isso. Meu pai está tentando desesperadamente levantar o que deve a eles. Mas não vai conseguir. Não tão rápido. Ele terá que vender tudo, incluindo a nossa casa, e isso leva tempo. Mesmo assim, talvez ainda fique faltando.

— E eles não são homens pacientes. — Glen sabia disso.

— Creio que eu seja o objeto de barganha. — Glen sentiu-se como se tivesse sido esmurrado.

— Com Cassidy?

— Niall tem influência suficiente com seus patrões para segurá-los por um tempo. Se for um homem feliz. E sou a única coisa que o fará feliz.

— Você sabe disso com certeza?

— Ouvi o suficiente para juntar os fatos. Meu pai está louco o bastante para me sacrificar em qualquer altar. Cassidy é a bola da vez.

— O patife.

Ela não perguntou a qual dos homens ele se referia.

Glen pensou na ganância de um homem como McNulty, capaz de colocar em jogo a vida e a felicidade de sua única filha, dessa forma.

A perda da bebida canadense havia sido mais do que ele podia bancar, mas deveria saber dos riscos desde o início. Ele era um jogador da pior espécie.

— Amanhã — disse Glen. — Vou falar com o padre McSweeney esta noite e lhe contar tudo. Vou pedir que ele nos case sem os procedimentos habituais. Se ele se recusar, vou encontrar um juiz de paz, mas estaremos casados amanhã à noite. Depois vamos sumir.

— Eu tenho algum dinheiro. Minha mãe sempre escondia um pouco, para uma necessidade. Depois que ela morreu, sempre que eu podia, juntava mais um pouco. Não é muito, mas vai ajudar.

Ele era um homem tradicional, que acreditava ser capaz de sustentar e cuidar de sua esposa, mas não era um tolo.

— Algum dia vou fazer com que tenha cada centavo de volta.

— Considero minha vida com você um investimento que vale a pena.

Ele a beijou com força. Ela se apertou contra ele. Quando se separaram, ambos tinham a respiração acelerada.

— Amanhã? — sussurrou ela.

Ele a queria agora. Não amanhã, após a cerimônia, mas agora, em seu apartamento. Ele nunca estivera tão tentado a ir contra tudo em que acreditava.

Com muito esforço ele lhe deu as costas.

— Sim, amanhã.

— Onde devo encontrá-lo?

— Quero que minha família esteja lá, Clare. Quero que a conheçam antes de partirmos. Você quer?

— É claro!

— Então vamos nos casar no salão.

— Você consegue fazer os preparativos tão depressa?

— Com a ajuda deles. E eles irão ajudar. Pode estar lá amanhã, após escurecer? Vai conseguir sair?

Ela concordou com a cabeça.

— Glen, quando estiver tudo certo, quando meu pai esfriar, talvez possamos voltar.

Ele sabia que a única forma que poderiam um dia regressar a Clevelend seria se o pai dela fosse morto ou preso. E ainda assim, Niall Cassidy continuaria a procurá-la. Não era o tipo de homem que aceitaria a rejeição com facilidade.

— Já aconteceram coisas mais estranhas. — Ele respirou fundo e virou-se para ela, mas foi cuidadoso para não tocá-la novamente. — Não importa em que lugar iremos viver, vamos ter um ao outro, e nossos filhos, e uma vida da qual podermos nos orgulhar.

— Será o suficiente?

Ele tocou-lhe os cabelos. Um toque rápido.

— Por favor, acredite em mim. Será mais que suficiente.

Clare passou a manhã seguinte se preparando para partir com Glen. Tinha tão pouco o que queria levar, que uma mala era tudo de que precisava. Incluiu o vestido de noiva da mãe, para usar naquela noite, fotografias da mãe e uma de seu pai, ainda jovem, segurando a filha bebê. Tinha esperanças de que ele tivesse sido um homem melhor naquela época, um homem ainda não corrompido. Era apenas um pequeno alento, mas um pensamento ao qual se apegar.

Ela arrumou algumas roupas, o dinheiro que mencionara a Glen, o rosário e o missal da mãe e alguns itens pessoais de que iria precisar. Estava se casando com tão pouco, mas, de certa forma, gostaria de ter menos ainda. Lamentava ter que levar com ela qualquer coisa de sua vida com o pai. Pretendia repor cada peça de roupa no instante em que pudesse.

Ela se preparava para se vestir para passar o dia quando alguém bateu na porta de seu quarto. Antes que pudesse perguntar quem era a porta se abriu e seu pai entrou.

Ficou feliz por ter escondido a mala. Ainda criança, ela aprendera que qualquer coisa pessoal, qualquer coisa importante, era para ser mantida em segredo. Hoje a lição lhe valera.

— Por que ainda não se trocou? — perguntou ele, exigente.

Esse era um momento em que a verdade não serviria a ninguém além do homem à sua frente, e ela mentiu sem receio.

— Eu estava com dor de cabeça. Preferi esperar um pouco, para ver se passava.

— Sua saúde parece precária ultimamente, filha. Ou pegou a mania de dar desculpas?

— Foi apenas uma dor de cabeça. Não acho que seja contagioso ou fatal. — Ela sorriu, para que ele visse que estava encarando aquilo com descontração.

— Sente-se melhor agora?

Ela se sentia pior a cada momento que passava. Perguntava-se por que havia permanecido na casa deste homem por tanto tempo. Por que não tomara as rédeas de sua própria vida?

— Estou bem — disse ela. — Acho que preciso apenas tomar café. Vou me trocar e descer. Você deve ter comido horas atrás.

— Você tem alguma idéia do que está se passando por aqui? — Ele bateu com o punho fechado no móvel mais próximo, que, por acaso, era sua penteadeira. Os vidros saltaram e caíram, em protesto.

Ela não tinha medo. Ergueu o queixo.

— E como eu deveria saber? Você já me incluiu em algo importante?

Os olhos dele se estreitaram.

— Você gosta de morar aqui, não gosta? Gosta de ter tudo o que quer. Gosta da forma como as pessoas a olham e sabem que você é alguém!

Ela sabia que ele estava procurando uma briga. Também sabia que se partisse para a briga todo o seu futuro poderia mudar para pior. Ainda assim, queria dizer-lhe o que pensava da vida que ele lhe dera. Ela queria, apenas uma vez, dizer a Tim McNulty como ela desprezava o homem no qual ele havia se transformado, que desprezava seu próprio pai e tudo aquilo que ele defendia.

Ela abriu a boca para dizer, mas percebeu que se o fizesse jamais conseguiria sair de casa à noite.

— Eu nunca reclamei, não é? — Ela apenas lamentava por ser verdade.

— Bem, então chegou a hora de retribuir por tudo que lhe dei, filha.

Sabia exatamente o que queria que ela desse, mas fingiu ignorar.

— Achei que cuidar da casa e fazer com que todas as suas necessidades pessoais fossem atendidas seria uma forma de dar algo em troca.

Ele a encarava e um músculo saltou em seu rosto. Ficou claro que estava furioso. Ele queria continuar atacando, porque seu pai era um brigão por excelência. Mas também era um homem engenhoso, e sabia que esse encontro exigia um pouco de elegância.

— Em relação a isso, sua mãe lhe ensinou muito bem — disse ele, com um esforço perceptível. — Você dará uma boa esposa.

Sim, pensou ela, mais breve do que ele imaginava.

— Niall Cassidy está de olho em você — disse ele finalmente. A voz dele estava mais suave, em tom mais apelativo do que exigente.

— Eu sei.

— Se você o encorajasse, me ajudaria.

— Encorajá-lo?

— Suas intenções são honrosas, Clare. Ele quer uma esposa. Não estou lhe pedindo que faça nada que sua amada igreja irá reprovar. Diga-lhe que se casa com ele.

— Ele não pediu.

— Ele está vindo hoje à tarde! — Tim passou os dedos pelos cabelos oleosos. — E preciso que o incentive um pouquinho, deixe que ele saiba que você está querendo... casar-se com ele.

— Essa tarde?

— O que acha que acabei de falar?

— Estou surpresa, apenas isso. É um aviso tão em cima da hora, não é?

— Não importa o tipo de aviso! Dê ao homem o que ele quer!

— Por que não coloca uma maçã em minha boca e me serve numa bandeja de prata?

Ele ergueu a mão para bater nela, mas pareceu pensar melhor.

— Não vou aceitar que você fale comigo dessa maneira em minha própria casa!

— Me parece uma pergunta bastante razoável. Você tem o mínimo de interesse sobre os meus sentimentos em relação a isso?

Ele franziu o rosto, como se a idéia nunca tivesse lhe passado pela cabeça.

— Ele está se sobressaindo, tem influência com pessoas que podem torná-lo um homem rico e seu casamento irá me beneficiar. Além disso, ele irá garantir que você tenha tudo que sempre quis, assim como fiz.

Havia tanto que ela poderia dizer em relação a isso, mas não era tola. Já havia falado demais.

Ela precisou de tudo que tinha por dentro para sorrir suavemente.

— Só quero saber se a forma como me sinto é importante para você. — Ela pôs levemente os dedos sobre seu braço. — Quero saber que sou importante.

Ele fez um barulho na garganta, como se tentasse limpar qualquer vestígio de sentimentalismo.

— Apenas me diga o que pretende fazer. Porque se não fizer o que estou pedindo...

Ela cortou sua ameaça.

— Vou encorajar Niall. Isso deve ser importante para você.

Ele tomou-lhe a resposta como uma dívida.

— Sim, muito bem. Vista algo bonito e diga sim quando ele a pedir em casamento.

O absurdo disso tudo a estarreceu. Ela, que havia pensado seriamente em entrar para um convento antes de conhecer Glen Donaghue, agora estava prestes a ficar noiva de dois homens simultaneamente. Pelo menos por questão de horas.

Parecia tão absurdo, que a desonestidade, e até o perigo de tal atitude chegava a ser inconseqüente, até engraçado. Ela era a protagonista de uma piada de mau gosto. Uma vez que ela tivesse desaparecido, Cassidy iria merecer toda a decepção que ele tivesse. E seu pai? Ela esperou por uma ponta de afeição filial. A culpa era o único antídoto possível para as mentiras que ela se preparava para contar.

Ao contrário, olhou para Tim McNulty e não sentiu nada além de pena. Ele era um homem abstraído de tudo o que realmente importava. Talvez não tivesse sido dessa forma no começo, mas, a uma certa altura de sua vida, ele deu conta de aniquilar todo o seu instinto humano. Ela não era nada para ele além de um objeto de penhora em seu jogo de poder. Ela conseguiu dar um último sorriso.

— Usarei o meu vestido mais bonito. A que horas devo esperar Niall?

— Não sei. Apenas esteja pronta. — Ele se virou e deixou o quarto.

Ela não iria olhar para trás hoje à noite, quando escapasse dessa casa, desse homem e dessa vida. Ela jamais olharia para trás.

 

Glen esperava resistência de sua família. Como sempre, resolveu ir primeiro à sua avó. Lena entenderia por que o casamento tinha que ser realizado hoje à noite e porque eles precisavam deixar a cidade imediatamente depois. Ele esperava que ela intercedesse junto aos seus pais e desse uma palavra com o padre McSweeney, que parecera relutante na noite anterior, mesmo quando Glen explicou a situação.

Lena era uma amiga próxima do padre. Ele sabia que os velhinhos freqüentemente passavam a tarde juntos, conversando sobre épocas que viveram, sobre a política e escândalos do mundo. Ele sempre achou o relacionamento deles esquisito, o padre honrado e culto e a irlandesa quase sem instrução, dona de um salão de danças. No entanto, o padre visivelmente admirava as mesmas coisas que Glen via na avó: virtude, inteligência pura e força para fazer tudo o que fosse preciso.

Ele contava com que sua força estivesse particularmente à altura desta incumbência.

Foi à casa dela na manhã seguinte, depois de acordar bem cedo, pois queria falar-lhe antes que o restante da família descesse. Encontrou-a na cozinha, o que não foi surpresa. Mas ela não estava cozinhando. Estava lendo o jornal.

— Algo interessante? — perguntou ele. Ela ergueu os olhos e sorriu.

— Meu neto predileto.

— Você diz isso para todos nós.

— E é sempre verdade. — Ela deu um tapinha no lugar ao seu lado e já ia se levantar para pegar-lhe um chá.

— Não, já tomei café. Por favor, sente-se.

— Más notícias ou um pedido?

Ela o conhecia bem demais. Ele deu de ombros.

— Um pouco de cada, acho.

— Daqui a pouco começa o movimento — ela o induziu. — Bote para fora.

— Mamo, vou me casar esta noite. — Ela ergueu os olhos do jornal.

— Eu ouvi certo?

— Não tenho escolha. — Quando a expressão dela ficou sombria, ele sorriu. — Não, não é o que está pensando, juro. Tem lido o jornal? E leu sobre a batida policial em Whiskey Island?

— Vi no jornal e eu mesma ouvi o tiroteio.

— Estava no salão?

— Sim, ajudando seu pai e sua mãe com um banquete. — Não ficou surpreso por ela ter ouvido os tiros, já que houvera uma batalha feroz diante da água. Ele só estava surpreso pelo fato de que nenhum homem morrera.

— O pai de Clare perdeu tudo. É uma questão de tempo para que ele insista que ela se case com um de seus cúmplices. Ele tomou dinheiro emprestado e acha que esse é o meio garantido de ganhar tempo para pagar sua dívida.

— Que tipo de pai faz tal coisa?

— Do tipo mau. Eu amo a Clare. Quero me casar com ela e levá-la embora daqui. Esta é a única chance que ela tem de escapar. E tem de ser hoje à noite, antes que as coisas piorem em sua casa. Enquanto ainda tem uma chance de fugir.

— Ela lhe pediu isso?

— Não. Ela não pediria nada a ninguém. Já faz semanas que quero me casar com ela. Eu preferia não fazer isso desta forma, mas não temos escolha.

— Confio em você. Sei o tipo de homem que é. Exatamente onde e quando?

— Esta noite, após escurecer. Mamo, você falaria com o padre McSweeney para fazer a cerimônia sem a antecedência apropriada? No salão, hoje à noite? Ele sabe da história. E quero minha família lá. Pode ser a última vez em que vão me ver por um bom tempo.

— Não tenho muito tempo nessa terra. Não me diga isso.

— Voltaremos no momento em que for seguro, prometo.

— Há a questão da licença matrimonial.

— Creio que eu possa conseguir isso sem a Clare. Tenho amigos no palácio da Justiça.

— Se eu for falar com o padre McSweeney... e os seus país?

— Por favor, é uma hora muito difícil. Perdoe-me por pedir tanto, mas preciso tentar pôr a minha vida inteira em ordem hoje.

— Você irá precisar de dinheiro.

— Vivi com modéstia e guardei alguma coisa. Clare também tem um pouco.

— Vocês terão mais hoje à noite.

Glen sabia que não valeria a pena discutir. Ninguém discutia com a Mamo. Ele se levantou e beijou-lhe o rosto.

— Vou sentir sua falta mais do que de todos.

— Isso é a mesma coisa quando digo que você é meu neto favorito. Meu querido rapaz, eu o conheço. Nos perder será como perder um membro. Você sentirá falta de nós todos, cada um de nós.

 

                               Capítulo 31

Clare pôs um vestido sério, cor de alfazema, com decote discreto e botões perolados. Achou que esse vestido a faria parecer jovem e virginal, jovem demais, esperava ela, para se casar tão cedo. A manhã havia transcorrido tensa. Até mesmo com a porta de seu quarto fechada, ela podia ouvir seu pai gritando com os homens que trabalhavam para ele. Não conseguia identificar muito bem o que estava sendo dito, já que queria ficar fora de seu caminho. Mas ela achava que Tim estava exigindo que eles repetissem, mais uma vez, exatamente o que haviam visto e ouvido na noite da incursão.

Quando ele saiu, ela foi sorrateiramente até lá embaixo almoçar. Pensou em ir direto para o Whiskey Island Saloon, antes que Niall Cassidy chegasse, mas encontrou seu guardião sentado ao pé da escada. Esse homem era mais gentil que os outros, pensou ela, mas talvez isso fosse apenas sentimentalismo. Talvez pensasse assim em relação a ele pelo fato de ser da Irlanda e ela achar seu sotaque tão encantador.

— Meu pai saiu? — perguntou ela.

— Saiu sim. E a senhorita não estaria pretendendo sair também, não é, srta. McNulty?

— Estou pretendendo almoçar. Acompanha-me?

— Duvido que seu pai aprovasse, mas posso me sentar com a senhorita.

Ela duvidou que a oferta de sua presença fosse apenas companhia. As janelas da sala de jantar eram baixas, até o chão, e fáceis de abrir.

Ele a seguiu até a cozinha, onde ela falou com a cozinheira, que prometeu fazer sopa e sanduíches. Depois Clare fez um pouco de chá e levou o bule e duas xícaras para a sala de jantar. Ela pôs o bule na mesa e esperou a infusão do chá.

— Então parece que as coisas não vão como deveriam por aqui — disse ela, casualmente. — Por acaso você esteve em Whiskey Island duas noites atrás?

— Whiskey Island? — Ele pareceu pensativo. — Ainda sou tão novo neste país, senhorita, não aprendi bem onde ficam todos os lugares. Mas Whiskey Island parece ser um lugar que vale a pena conhecer.

— Nós dois sabemos do que estou falando.

— Eu não. — Ele balançou a cabeça.

Ela imaginou que se estivesse em seu lugar também não estaria falando a respeito disso.

— Acho que teremos visitas essa tarde. Um homem chamado Niall Cassidy.

— Já ouvi o nome.

Ela achou que o chá já estava bom e serviu duas xícaras.

— Seu nome é Liam, correto? Como você gosta do chá, Liam?

— De jeito nenhum.

Ela pôs açúcar e creme e empurrou a xícara na direção dele. Ele suspirou e levou a xícara aos lábios.

— Sei que não faz muito sentido manter amizade com a filha do patrão — disse ela. — Principalmente quando a sua função é tornar a vida dela a mais infeliz possível.

— É uma pena que eu tenha que fazer isso, senhorita.

— Você tem esposa e filhos?

— Faz diferença?

— Não, mas um homem que ama sua esposa geralmente trata bem as outras mulheres, e sente-se um pouco protetor em relação a elas.

— Meu trabalho é proteger a senhorita.

— Seu trabalho é me proteger de mim mesma e de qualquer dos meus instintos que possam ir contra os de meu pai. Instintos como não casar com Niall Cassidy.

— Eu não saberia nada a respeito disso.

— Bem, então vou informá-lo. Acho que meu pai perdeu tudo exceto os cabelos de sua cabeça Liam. E para garantir que não seja morto por causa de suas dívidas, ele precisa de tempo para pagar o dinheiro que pegou emprestado. Ele acha que se eu aceitar me casar com o Sr. Cassidy, isso irá dar-lhe mais tempo. Está claro até agora?

— Isso não é da minha conta.

— Ah, mas é sim. Porque é você que me segue por toda parte, e você sabe que não é Cassidy que eu amo.

Liam estava em silêncio. Ela baixou a voz.

— Não o conheço bem para pedir favores, mas preciso, porque não tenho outra escolha. Hoje, será que você pode, por favor, ficar por perto quando o sr. Cassidy vier? Eu não... eu não confio nele. Entende? Não quero ficar sozinha com ele.

— Irá dizer não ao homem?

Ela balançou a cabeça tristemente.

— Não. Vou dizer sim, e isso irá encorajá-lo a coisas das quais não quero fazer parte.

— Elas vêm com o casamento. — Ela se retesou.

— Sim, bem, se for como eu quero, não nos casaremos por um bom tempo.

Liam considerou. Ela podia ver o esforço em seus olhos. O interesse pessoal em conflito com os bons princípios. Ela tinha certeza que havia bons princípios ali — até os dela estavam em ação.

— Ficarei por perto — prometeu ele. — Qualquer sinal de problema e eu a tiro dali.

— Oh, obrigada. — Ela sentiu-se verdadeiramente aliviada. A cozinheira chegou com dois pratos de sopa e uma bandeja de sanduíches.

— Por favor, me acompanhe. Fará me sentir melhor por ter pedido a sua ajuda.

Liam parecia saber que aceitar sua hospitalidade iria fazê-lo se aproximar dela. Ele suspirou, mas pegou um sanduíche e terminou numa mordida faminta.

Liam não gostou de Niall Cassidy desde o momento em que os dois foram apresentados. Cassidy era um homem que não dava espaço em seu mundinho para ninguém além de si mesmo. Liam desconfiava que o homem não amasse Clare McNulty. Ao contrário, ele amava sua beleza, inteligência e estabilidade, e o que essas coisas poderiam fazer pelo futuro dele. Liam também tinha a impressão de que Cassidy, quando menino, provavelmente havia sido daqueles que arrancavam asas de borboletas e jogavam gatinhos no lago, por pura diversão.

Não era função de Liam gostar ou desgostar dos homens com quem Tim McNulty fazia negócios. Por que deveria gostar deles, se desgostava do próprio McNulty? Infelizmente, ele gostava de Clare, porque ela o fazia lembrar Brenna. As circunstâncias de suas vidas eram bem diferentes, mas nenhuma das duas havia recebido o amor que merecia. Agora Brenna tinha Liam, mas e Clare, o que tinha? A promessa de um casamento infeliz, com um homem detestável?

Ele não queria se importar, mas se importava.

Na noite do flagrante, Liam teve muita sorte de escapar de Whiskey Island. Ele esperou por horas, fugindo pouco antes do amanhecer. Jerry não tivera tanta sorte, mas já havia sido solto, sob fiança. Juntos, eles ouviram McNulty tendo acessos de cólera, falando sobre o destino e a incompetência. Se eles tivessem sido mais ágeis, espertos ou seguros, insistia McNulty, jamais teriam sido pegos. A bebida estaria nos pontos-de-venda e o lucro nos bolsos dele. Eles tiveram sorte por McNulty não os estrangular com suas próprias mãos.

Liam ficou surpreso por McNulty deixar um estabanado com a incumbência de vigiar sua filha, mas ele havia chamado Liam de lado naquela manhã e recomendado que ele não perdesse Clare de vista, pelo menos até que Cassidy aparecesse. Depois Liam deveria fingir que não via ou ouvia o que acontecesse.

Quando Cassidy chegou à porta da frente, Liam ainda tinha esperanças de que sua promessa a Clare e o seu trabalho não fossem entrar em conflito. Apenas uma olhada ao tipo presunçoso de Cassidy e seu aceno de dispensa quando Liam o seguiu até a sala, para que soubesse que o conflito seria inevitável.

— Srta. McNulty, posso lhe servir alguma coisa? — perguntou Liam, ignorando a tentativa de expulsão de Cassidy.

Ela pareceu grata.

— Um pouco d'água seria ótimo, Liam. Mas traga daqui a pouco, sim?

Cassidy poderia achar que ela queria ficar a sós com ele, mas Liam sabia que, na verdade, ela estava arranjando um motivo para que ele pudesse intrometer-se, caso as coisas ficassem tempestuosas. Ele acenou com a cabeça e partiu, mas não foi longe. Depois de pegar a água, sentou-se no corredor e ouviu atentamente, enquanto o gelo derretia no copo.

— Gostou das flores que lhe trouxe? — Niall perguntou a ela.

Liam havia notado as flores. Um arranjo espalhafatoso, cheio de flores exóticas, que combinava com a recepção de um bordel. Qualquer homem sensível perceberia que uma mulher como Clare iria preferir rosas, ou até mesmo um pequeno arranjo de violetas.

— Elas irão irradiar qualquer lugar onde eu as puser — disse ela.

No corredor, Liam sorriu pelo tato da jovem e a ligeira irritação escondida em sua voz.

— Tem pensado em mim?

— Você nunca está distante dos meus pensamentos — disse Clare, com doçura.

Liam sorriu de novo. Dois pontos para a senhorita, duas bolas fora para Cassidy, que era estúpido demais para saber.

— Eu lhe trouxe outra coisa.

— Um presente por visita já é bem generoso.

— Ah, é? Mas isso não é um presente. Não exatamente. É como um contrato.

Houve silêncio. Liam podia imaginar Niall Cassidy tirando algo do bolso. Ele esperava que, apesar de suas origens humildes, ele tivesse sido mais elegante do que isso, ao pedir Brenna em casamento.

— Você gosta?

Clare ficou em silêncio por um momento, depois disse:

— Realmente não sei o que dizer.

— É uma beleza, quase perfeito. Conheço um cara no lado norte, e ele fez uma jogada comigo. Eu disse que queria algo grande. Ele me deu grande.

— Sim, ele certamente deu. Esse anel pode causar uma distensão no dedo.

— Você não gosta? — Cassidy já não soava tão agradável ou orgulhoso.

— Oh, é um anel notável. Eu é que nunca havia visto um tão...

— Grande?

— Sim, grande.

Liam tentou imaginar a pedra em questão e achou que, para Clare soar daquela forma, a jóia devia combinar com as flores.

Cassidy pareceu mais feliz.

—Por que não experimenta? Veja se eu trouxe o tamanho certo.

— Sr. Cassidy... Niall, é tão generoso. Não posso aceitar algo... assim.

— E de que outra forma as pessoas saberão que vamos nos casar?

— Casar?

— É claro, isso é um anel de noivado. Eu e você. Pensou que fosse para quê?

— Bem, você não me pediu exatamente em casamento. — Liam tentava não rir.

— Mas é garantido, certo? — disse Cassidy, exigente.

— Não sei. Ainda nem chegamos a conversar sobre isso.

— Bem, quero que se case comigo. Logo. Você não vai ser feliz se ficar por aqui. Isso é certo. Os caras para quem trabalho não estão muito contentes com seu pai agora e não vai ser divertido morar aqui. Você tem sorte porque ainda quero casar com você. Ele tem sorte.

— É mesmo? Verdade?

— Ele ficou com fama de lambanceiro e lá onde eu moro ninguém gosta de lambanceiros. E a filha de um lambanceiro, então? — Liam quase podia ouvi-lo dar de ombros. — A filha de um lambanceiro também não é muito bem cotada — terminou Cassidy.

— Eu detestaria rotulá-lo com a filha de um lambanceiro.

— Ei, escute, esse troço vai passar depois que a gente casar. Vou fazer com que passe. Mas seu pai vai ter que me ouvir. Não tenha dúvida disso. Vou ser o dono dele.

— Bem, então boa sorte. Ele não é muito de escutar.

— Então? Vamos marcar uma data agora?

Houve uma longa pausa. Liam quase podia ler os pensamentos da pobre jovem. Ela estava presa a uma armadilha que tentara evitar, que fora imposta em seu caminho, e agora era forçada a entrar.

— Vou me casar com você... Niall, mas não imediatamente. — Sua voz ficou mais suave, como se ela estivesse se afastando da porta e, provavelmente, de Niall. — Até alguns meses atrás eu ia me tornar uma freira. E agora vou ser uma mulher casada. Entende? Preciso de um tempinho para me acostumar.

— Quanto tempo? — Ele não parecia feliz.

— Apenas um tempo para saborear o fato de ser uma futura noiva. Você certamente não irá me tolher à empolgação de planejar o casamento, escolher o vestido, ir até Chicago conhecer seus amigos?

— Que tipo de casamento? Tim não vai poder fazer muito por você.

— Oh, simples e pequeno, mas são os detalhes que importam. Quero casar na minha própria igreja, com meus amigos ao redor. Quero que você sinta orgulho de mim e que nossa vida tenha um bom começo. Talvez eu seja supersticiosa, mas creio que uma boa união começa com um bom casamento. E precisamos nos conhecer um pouquinho mais. Quero saber como agradá-lo.

— Ah, isso eu posso lhe mostrar como fazer isso agora, mas ponha o anel antes.

Liam inclinou-se para a frente em sua cadeira. Houve silêncio, depois Clare deu um gritinho.

— Oh, lamento, Niall, mas é muito grande. Se eu usar, vai cair do meu dedo.

— Vamos cuidar disso amanhã. Eu te levo na cidade para consertar. Bem apertado.

— Sim, bem, está certo... — Houve uma pausa. — Niall, eu não...

— Ora vamos, você não acha que mereço um beijo por isso? Um beijo pelas flores e um pelo anel, e um porque vamos nos casar. — Ele não parecia contente. Niall obviamente escolhia mulheres para quem não precisava pedir.

Houve silêncio e Liam se levantou. Mas não entrou na sala. Ainda não. Não faria sentido fazer um escarcéu, desnecessário. E um beijo, ou até três, não justificariam a interrupção.

— Agora chega, Niall. — Clare parecia estar sem fôlego e determinada. — Lembre-se de que não somos casados ainda.

— É, bem, mas vamos ser. Não sei por que precisamos esperar, a não ser que você queira escapar. Conheço uma centena de garotas que se casariam comigo num piscar de olhos.

Liam esperou que Clare dissesse a Niall que fosse à procura delas, mas, obviamente ela não era boba.

— Que tipo de esposa você quer, Niall? O tipo que se joga em cima dos homens?

— Não. Eu me contento com uma que se jogue em cima de mim.

Algo se arrastou no chão e a mão de Liam voou até o copo de água.

— Você precisa aprender umas coisas. É bom até que aprenda logo agora.

Liam escancarou a porta com tanta força que ela bateu na parede.

— Aqui está sua água, senhorita. — Ela estava imprensada contra a parede, com o corpo de Cassidy impedindo-a de se mover e a cabeça virada para longe dele. Liam sentiu o ódio crescendo por dentro. O homem era um animal e não merecia uma mulher como essa.

— Espere um minuto — disse Liam. — Sou o guarda-costas da srta. McNulty e o senhor parece estar se excedendo.

— Saia! — gritou Cassidy. — Ou não vai mais ser guarda-costas de ninguém!

Liam não queria briga.

— Vamos com calma, amigo. Uma bela mulher pode fazer coisas a um homem. Eu sei...

Cassidy investiu sobre ele antes que terminasse a frase. Mas antes que o alcançasse, Liam atirou o copo de água em seu rosto. Do canto do olho ele viu Clare sair correndo para a sala de jantar.

Cassidy espumava quando a água se espalhou sobre ele, mas seguiu adiante, bufando como um touro. Liam se perguntou qual das duas instituições teria sido uma escola melhor. As ruas do lado norte de Chicago ou o orfanato Irmãos Cristãos?

Ele deu um salto para o lado e deixou uma das pernas no caminho. Como esperava, Cassidy caiu, mas levou Liam com ele, e os dois saíram rolando pelo chão várias vezes, antes que Liam conseguisse ver onde havia parado.

Um soco explodiu em seu rosto. Liam passou o braço ao redor do pescoço de Cassidy e apertou. Cassidy deu-lhe outro soco, mas Liam apertava mais forte. Finalmente, Cassidy foi forçado a pegar as mãos de Liam para tentar puxá-las, livrando-se delas. Liam rolou novamente e, desta vez, ficou em cima. Ele bateu com a cabeça de Cassidy no chão enquanto espremia seu pescoço. Uma, duas, até que Cassidy conseguiu soltar as mãos dele. Ele agarrou os punhos de Cassidy enquanto rolavam de novo, mas foi tudo que conseguiu fazer para mantê-las afastados.

Cassidy sorria como um louco. Ele tinha a posição de cima e em instantes teria a mão de cima também. Houve um estrondo e o sorriso desfez-se devagar. Ele desabou devagar, soltando Liam, que ainda segurava forte em seus antebraços.

Clare estava em pé acima deles. Os cacos de vidro que sobraram de um imenso vaso de cristal caíram da mão dela. Liam olhou para ela, acima.

— Que pena, não é? — disse ela, fracamente. — Esse vaso era o único grande o suficiente para aquelas flores hediondas que ele me trouxe.

Liam ficou momentaneamente mudo. Parte dele queria rir. A outra parte, que via as repercussões do ato dela, estava paralisada de incredulidade.

— Tome cuidado quando você levantar — ela avisou. Ele empurrou Cassidy para o lado e sentou-se.

— Você sabe o que fez, não sabe?

— Acho que posso ter salvado a sua vida. — Ela estava muito pálida. Ele temia que ela não conseguisse se manter empe.

— Eu teria ido bem sem você — disse ele, com o orgulho ferido.

— Talvez, talvez não. — Ela deu um passo para trás e encostou-se ao braço de uma poltrona. — O que vamos fazer?

Liam não sabia. Ele não podia jogar Cassidy na grama da frente, embora não houvesse ninguém — principalmente Cassidy, inconsciente — que pudesse impedi-lo. McNuty ficaria furioso. E, obviamente, agora o acordo estava desfeito. Quando Cassidy recobrasse a consciência, iria se dar conta do que havia acontecido com ele. Não adiantaria Clare alegar com toda veemência que outra pessoa o teria acertado na cabeça com o vaso, pois ele saberia.

— Não vou fingir que não fui eu — disse Clare, como se tivesse lido seus pensamentos. — Chega de mentir para o homem.

— O que vamos fazer?

— Estou indo embora. — Ela esticou a mão. — E não má diga que irá me impedir. Você ainda acha que tem um lugar aqui depois disso? Além disso, não há mesmo emprego, Liam. Meu pai quebrou. Ele terá sorte se sobreviver. Certamente não poderá mais pagá-lo. — Ela engoliu com força.

— Você já arrumou suas coisas?

— Sim.

— Vou fazer com que chegue aonde planeja ir.

— Você não precisa... — ela começou.

— Pegue suas coisas agora mesmo. Ele vai acordar e as portas do inferno irão se abrir no momento em que isso acontecer.

Ela se virou e saiu correndo da sala, voltando com uma valise de bom tamanho. Liam já estava em pé. Ele havia saído do meio dos cacos com sucesso e a esperava no corredor. Cassidy começava a gemer.

— Siga-me — disse ele. — Iremos sair pela porta dos fundos. Vá pensando onde irá querer se esconder.

— Sei para onde vou. O Whiskey Island Saloon.

Ela estava fugindo para a família dele. Liam não podia se dar ao luxo de gastar nem um minuto saboreando essa ironia.

 

                            Capítulo 32

Clare olhou em volta para ter certeza de que não havia sido vista, depois empurrou a porta do Whiskey Island. A porta estava trancada.

Por um instante, o pânico a dominou. Niall já estaria acordado agora e não era o tipo de homem que sairia conformado. Iria atrás dela e era apenas uma questão de tempo para que seu pai também estivesse envolvido. Tim perceberia imediatamente que Liam também teria partido. E se Liam tivesse mencionado para alguém, para qualquer pessoa, a respeito de seu piquenique com Glen? Será que eles ligariam os fatos e viriam procurar aqui?

Desta vez ela sacudiu a porta, na esperança de que estivesse enganada e que a porta estivesse apenas emperrada. Mas a porta estava muito bem trancada.

Ela poderia ir até o apartamento de Glen, mas e se ele não estivesse lá? Estariam deixando a cidade à noite. Certamente o seu dia estaria cheio de compromissos. Então quais eram as suas opções? As poucas amizades que ela tivera a chance de cultivar a receberiam, mas esses seriam os primeiros lugares onde seu pai iria procurar. Ela pensou na igreja, mas não sabia se o padre iria acreditar na sua história. Seu pai dava grandes quantias em dinheiro para ajudar os pobres da paróquia.

Com tão poucas alternativas, ela se virou para seguir em direção ao apartamento de Glen. Quando deu alguns passos, ouviu a porta atrás dela se abrir e virou-se de volta.

— Oh, pensei que não havia ninguém aqui.

— Nós estamos fechados por hoje. Há um... evento à noite.

Clare sorriu aliviada.

— Oh, acho que estou convidada.

A mulher franziu o rosto. Era uma mulher de meia-idade, com olhos verdes e as pálpebras pesadas.

— Nós a conhecemos?

— Ainda não. Sou Clare McNulty. É a sra. Donaghue?

— Clare... — A mulher a estudava, depois sorriu um pouquinho. — Bem, posso ver o porquê do estardalhaço. Entre. Você chegou um pouco cedo, não?

— Eu precisei. — Clare não tinha certeza do quanto podia contar a ela. Queria alertar a todos que poderia haver problemas, caso seu pai a encontrasse, mas não queria que sua futura sogra soubesse que ela acabara de atacar um homem com um vaso de cristal Waterford, que era herança de família.

O sorriso sumiu e, com um solavanco, a mãe de Glen a puxou para dentro.

— Você não está em segurança, não é?

— Não exatamente, não.

— Alguém sabe que está aqui?

— Sinceramente, espero que não, pelo menos ninguém que possa me machucar. — Clare estava cheia de culpa. — Lamento muito. Não quero colocar ninguém mais em perigo. Talvez melhor eu ir. Talvez nós possamos pensar em algum lugar onde eu possa me encontrar com Glen. Podemos nos casar depois que nos estabelecermos.

— De jeito nenhum. Sou a mãe de Glen, Fenola. — Ela deu um assovio forte e em instantes estavam cercadas. — Esta é a futura esposa de Glen — anunciou Fenola, tão logo a sala ficou repleta. Clare ficou com a face vermelha de vergonha. — Alguém deve levá-la até lá em cima e ajudá-la a desfazer sua mala e pendurar o vestido. Maryedith, será você.

Uma jovem muito parecida com Glen deu um passo à frente.

— Espero que saiba o que está fazendo. Que Deus a ajude se algum dia pensar em querer conversar quando o rádio estiver transmitindo a decisão do campeonato. E espero que goste de bolo de carne com purê de batatas, pois pelo que sei, é o que Glen come em todas as refeições.

— Agora já chega, Maryedith. — disse Fenola. — Você pode educar a pobre moça mais tarde. Nesse momento ela precisa de um tempo para se recuperar por ter-nos conhecido. Depois pode descer para saber o nome de todos nós.

Com apenas um aceno de mão de Fenola, a família se dividiu como o trigo caindo no debulhador e Maryedith conduziu Clare em direção a uma porta, que aparentemente levava ao andar de cima.

Clare virou-se para trás e olhou para todos eles. Ninguém havia se mexido.

— Espero que um dia eu possa saber tudo sobre vocês. Cada um de vocês. — Ela virou-se de volta e seguiu Maryedith escada acima. Atrás dela, ouviu Fenola.

— O que estão olhando que nem bobos? Ela é adorável, tem boas maneiras e Glen está apaixonado por ela. O que mais precisam saber?

Liam sabia que seus dias em Cleveland agora estavam contados. Mesmo tendo salvado a própria filha de McNulty, ele sabia que o chefe não iria entender. Todo o futuro do homem estava em jogo. As virtudes de sua filha eram menos importantes.

Apesar disso, Liam achava ter menos a temer de McNulty do que de Cassidy. McNulty não era homem de sujar as próprias mãos e seus empregados tinham poucos motivos para manter-lhe lealdade. Muito em breve McNulty estaria fora dos negócios definitivamente. Liam era benquisto e duvidava que McNulty conseguisse induzir qualquer um a matá-lo por simples prazer. No entanto, Cassidy era um homem que iria buscar a vingança à sua maneira. Iria encontrar Liam, ou talvez até mesmo sua família e o resto. Preferia nem pensar.

Liam deixou Clare no Whiskey Island e seguiu para casa. No instante em que entrou gritou por Brenna. Quando ela desceu as escadas com Irene em seu encalço, a garganta dele quase se fechou de remorso.

— Brenna...

Ela estudou-lhe o rosto depois balançou a cabeça.

— Para onde devemos ir?

Ele não havia pensado em outra coisa, além disso, no caminho de casa.

— Quero que você pegue um trem até Toledo. Eu vou encontrá-la assim que puder.

— Não.

— Brenna...

Ela ergueu a mão para fazê-lo parar.

— Não vou deixar a cidade. Não até que você esteja seguro.

— Você precisa pensar em Irene.

— Não vou fazer isso.

Ele tentou pensar em outra solução, mas ela pensou primeiro.

— Aquelas velhas senhoras, para quem trabalhei. Elas podem me acolher. Ninguém irá me encontrar. Você pode me ligar, mesmo que não possa me ver. Prometa que irá ligar.

O plano parecia bom. As velhas moravam do outro lado da cidade e ninguém no novo bairro de Tierney sabia que Brenna havia trabalhado como empregada doméstica, e muito menos para quem. Mesmo que Cassidy conseguisse chegar ao antigo bairro, era pouco provável que qualquer pessoa pudesse lembrar detalhes de seus empregos antigos.

— Eu a levo até lá, mas você precisa se apressar.

— Tenho uma mala pronta, e brinquedos para Irene.

— Como soube?

— Eu sei ler, Liam. Você não acha que imaginei o seu envolvimento na confusão em Whiskey Island? Não acha que tenho morrido de preocupação com você? — Ela saiu apressada escada acima e ele a deixou ir. Por ora era melhor deixá-la pensar que só tinham a polícia a temer.

Após o cair da noite Glen chegou ao salão da família e não sabia o que esperar. Ele certamente não esperava pelo clima de empolgação com o qual foi recebido, nem o cheiro dos pratos especiais de sua avó que aromatizavam o ambiente. Sua mãe o levou para um canto e lhe passou um sermão por ele não ter ido primeiro procurar os pais. Terry, seu pai, era um homem alto e vistoso, que ultimamente andava um pouco mais encurvado e se preocupava com a queda de cabelos, o chamou de lado para acusá-lo de tentar partir o coração da mãe.

Sua avó saiu apressada da cozinha, para dizer-lhe que Clare havia chegado horas atrás.

— É mesmo? — Glen ficou atordoado e instantaneamente aflito. Ele esperava que Clare fugisse ao escurecer, para que seu pai não desse por sua falta até a manhã seguinte. Até lá, já estariam bem longe.

— Vou dizer a ela que volte para casa. Você não parece feliz em saber que ela está aqui — disse Lena. Ela estava usando o seu melhor vestido de domingo e presilhas de marcassita nos cabelos.

— Estou transbordando de alegria por ela estar aqui. Mas não gosto de pensar no que possa tê-la obrigado a fugir em plena luz do dia.

— Ela está um pouco abalada, mas está viva e bem. — Ele pretendia mantê-la assim.

— Vou vê-la.

— Pense bem, garoto — disse seu pai. — As mulheres vão lhe arrancar os olhos, se tentar vê-la antes do casamento.

Ele e Clare tinham tanto a discutir e planejar, mas sabia que seu pai estava certo. Eles precisavam estar dentro da normalidade, mesmo que apenas numa simples tradição como aquela.

— O padre McSweeney está aqui?

— Ainda não, mas está a caminho — disse Lena. Glen pensava se teria sido inteligente convidar o velho padre para conduzir a cerimônia. Será que McNulty teria calculado que a essa altura Clare estaria apaixonada por outro homem e tentaria se casar com seu amante essa noite? Liam, o guarda-costas, certamente sabia e não teria remorso em relatar. E inúmeras pessoas viram os dois juntos na igreja, onde se conheceram. Será que o padre poderia ser seguido até o salão? É claro que isso seria pouco provável, mas agora Glen gostaria de ter pensado em outra forma menos óbvia de levar o velho padre até lá.

Achou que estava se preocupando demais. No máximo, seu pai iria ver que ela fugira de casa. Com um pouco de sorte, ele não iria ligar o seu desaparecimento a nenhum homem, mas ao desejo de livrar-se de Cassidy.

— Você conseguiu a licença? — perguntou Lena.

— Dei um jeito, sim.

— E um anel?

— Não houve tempo. Vou lhe comprar um depois que estivermos instalados.

— Não, eu tenho um para você. — Lena pôs a mão no bolso do vestido e tirou uma caixinha de papelão. — Este era meu. Do meu primeiro casamento, com Terence, seu avô. Guardei quando me casei com Rowan. Pertenceu à mãe de Terence. É um anel pobre, gasto e arranhado, mas faz parte de sua história. E tendo conhecido Clare, acho que ela irá aceitar com grande estima.

Ele ficou comovido.

— Ela irá adorar. Obrigado, do fundo de meu coração. — Lena sorriu.

— Você tem o dom de saber como agradar uma mulher. Terence também tinha.

— O que devo fazer agora?

— Sente-se e fique preocupado. É o que vai fazer de qualquer forma, não importa o que eu diga.

Um primo Donaghue — particularmente musculoso — estava de guarda junto à porta. Glen observava quando ele abriu uma fresta para em seguida deixar o padre McSweeney entrar. Glen foi cumprimentá-lo seguido pela avó, que vinha logo atrás.

— O senhor está prestando um grande préstimo, padre — disse ela, depois que Glen agradecera.

O padre parecia cansado da viagem, embora a Sta. Brígida não fosse longe e o motorista o tivesse trazido.

— Vai ser bom casar esses dois e fazer com que saiam da cidade.

Lena conduziu o padre a uma poltrona confortável. O pai de Glen o puxou de lado para saber quais eram os seus planos.

— Devolvi meu distintivo esta manhã e comprei bilhetes de trem para Los Angeles. Meu chefe me disse que pode dar boas referências minhas para a polícia local de lá. — Ele fez uma pausa. — E deixou que eu ficasse com a minha arma até que me arranje por lá, embora isso seja contra o regulamento.

Terry preferiu não comentar nada a respeito disso.

— Los Angeles é muito longe.

Glen temia que não fosse longe o bastante, mas era a melhor oportunidade. Seu amigo do palácio da Justiça prometeu "perder" todos os registros matrimoniais dos últimos seis meses. Portanto, os arquivos estariam inacessíveis, caso Cassidy ou McNulty pensassem em verificar essa possibilidade.

— Quero lhe dar isto — disse seu pai. Ele deu a Glen um pacote embrulhado em papel branco. — Abra agora.

Glen o fez. Dentro, ele encontrou o relógio de seu avô Rowan.

— Ele iria querer lhe dar — disse Terry. — Você é o único neto na polícia. Ele teria muito orgulho de você.

Glen pensou se os netos biológicos de Rowan não deveriam receber essa herança, mas obviamente Rowan o tinha dado a Terry, seu filho adotivo. Jamais houvera qualquer favoritismo na família.

— Irei guardá-lo com todo carinho — disse Glen.

— E tome isto. — Terry puxou um envelope do bolso. — É de nós todos. Para ajudá-los a começar. Vão manter contato?

Glen já havia arranjado uma forma de escrever para a família através de um amigo, que entregaria as cartas. Precauções demais, talvez, porém melhor do que de menos.

Ele pegou o envelope e folheou as notas.

— Obrigado. É muito generoso de todos vocês.

O silêncio começava a tomar conta do salão. Glen ergueu os olhos e viu que todos o observavam.

— Sua noiva está vindo — disse Terry. — Vá até a frente e fique ao lado do padre, filho.

Clare imaginava como sua mãe teria ficado usando esse vestido. Era de cetim-marfim, forrado de tule bordado, e tinha um contorno deliciosamente fora de moda para esses tempos, em que não se usava um estilo tão feminino. A gola era alta, mas a parte acima dos seios era transparente. As mangas também eram transparentes, mas o que ela mais gostava era o delicado acabamento em renda pendurado nos ombros. Ela se sentia como um anjo com asas.

— Sua mãe é falecida? — perguntou Fenola.

Clare já gostava da mãe de Glen. Ela tinha os pés no chão e não hesitava em dizer o que sentia. Também era justa e Clare podia perceber isso, e por baixo da fachada de durona, era meiga.

— Ela morreu quando eu tinha oito anos. Ainda sinto saudades dela.

— Bem, ela estaria chorando de alegria ao ver que linda noiva você é.

Num impulso, Clare pegou as mãos de Fenola.

— Vou cuidar tão bem dele e vou amá-lo até o dia em que morrer.

— Posso sentir isso. Mas não irá nos condenar por nos preocuparmos um pouquinho, não é?

— É claro que não. E prometo que tão logo seja seguro, voltaremos aqui. Não vou impedir que ele mantenha contato com vocês.

— Iremos vê-los se pudermos. Quando vocês estiverem estabelecidos e tiverem certeza de que ninguém está vigiando.

Clare sabia como isso seria financeiramente difícil para eles. A Lei Seca certamente teria causado um corte no orçamento da família, mas essas eram pessoas que fariam qualquer sacrifício por seus filhos.

Clare olhou para baixo, vendo o vestido. Suas mãos estavam tremendo, mas não de medo.

— Desisti da esperança de ser feliz muito tempo atrás. — Não havia autopiedade em sua voz, apenas alegria. — Sou a mulher mais sortuda do mundo em me casar com Glen.

— Sim, bem, antes que eu comece a chorar aqui e agora, vamos lá para baixo, onde terei companhia. Vou na frente e abro a porta.

Fenola inclinou-se e deu um beijo no rosto de Clare.

— Ele também tem muita sorte por estar se casando com você. — Ela saiu do quarto.

Clare esperou um minuto inteiro antes de segui-la. Desceu as escadas lentamente, embora quisesse sair correndo para os braços de Glen. Não havia música nem flores, pois ninguém tivera tempo de providenciar. Mas o silêncio a agradou. Ela não conseguia se lembrar de quando havia sido o centro de tantas atenções e não se sentia acanhada em aproveitar.

Chegou ao último degrau e entrou pela porta. O som do ar sendo inspirado foi audível, mas não podia olhar para as dúzias de pessoas que estavam em pé nos dois lados do corredor provisório. Procurou pelo futuro marido e o viu ao lado do padre McSweeney, posicionado de forma a poder vê-la caminhando em sua direção. Ele sorria abertamente.

Ela caminhava como se ao som de música e, quando chegou ao lado dele, agarrou-lhe a mão. O padre McSweeney olhou para os dois com orgulho, depois começou a falar.

Clare queria ouvir. Ela só se casaria uma vez, Deus permitisse, e queria absorver cada palavra. Mas não conseguia pensar em nada exceto Glen, no quanto o amava e como havia sido improvável, desde o começo, que o amor dos dois terminasse em casamento. Ela se sentia como se estivesse flutuando no ar sobre a cerimônia, longe da família reunida e do padre, bem acima do salão. Ela sentia-se leve e celestial, com a personificação da alegria.

Tiros foram disparados. Vidro explodiu e mulheres gritavam. Clare estava no chão, o corpo de Glen parcialmente cobrindo o seu.

— Cassidy. — Ele proferiu a palavra como um juramento. — Fique aqui.

Ela agarrou-lhe o braço.

— Não, Glen!

— Preciso detê-lo. — Ele se afastou, levantando-se. Quando ela tentava se levantar também, ele puxou uma arma de dentro do paletó.

Ela não sabia que ele estava armado.

— Glen!

Ele olhou para ela abaixo, como se dissesse que ficaria tudo bem, em seguida arrancou rumo à porta da frente. Clare tentou segui-lo, mas o padre McSweeney agarrou-a pelo braço.

— Fique aqui.

Alguém já estava ao telefone chamando a polícia. Outra pessoa juntava os demais, nos fundos do salão. O padre McSweeney arrastou-a também. Com o canto dos olhos, ela viu que vários homens seguiam em direção à frente do salão. Viu que pelo menos um estava armado.

— Glen... — Ela tentou ficar para trás, mas, para um homem velho e frágil, o padre McSweeney era surpreendentemente forte.

— Ele vai estar mais seguro sem você, Clare — disse o padre.

Ela sabia que não era verdade. Cassidy era um homem insano e, mais do que qualquer coisa, queria Clare. Sua intenção primordial seria matá-la e por isso teria vindo. Em vez disso, outros inocentes iriam morrer. Tudo porque ela havia se apaixonado por Glen.

— Lá embaixo — gritou Terry.

Clare foi levada pela cozinha com os outros, para depois descerem uma escada que daria, pensou ela, num porão.

O que parecia ser uma parede normal era uma porta em direção a uma passagem, iluminada apenas por algumas lâmpadas. Ela imediatamente soube com que finalidade aquilo era usado.

— Aonde vai dar? — O padre McSweeney estava atrás dela agora, mas ela se dirigiu a um dos primos mais novos de Glen, que se apressava ao seu lado.

— Na colina e na estrada que passa acima de Whiskey Island.

Ela ficou imaginando quanta bebida de seu próprio pai já teria passado por ali. Não havia tempo para pensar na ironia de que os bens mais valiosos de Tim entraram e saíram por aquele túnel. Sua bebida e a sua própria carne, tudo o que ele esteve tão ávido em vender. Ela não queria sentir raiva, não nesse momento, em que o homem que amava estava enfrentando as balas de um maníaco. Queria rezar, implorar a Deus que poupasse a vida de Glen. Mas não havia tempo para mais nada, além de fazer o sinal-da-cruz e murmurar um apelo fervoroso enquanto corria.

Pararam próximo ao fim do túnel. Terence estava no comando e ergueu a mão, pedindo silêncio.

Clare viu a porta no fim, fechada pelo lado de dentro com uma barra. Ela percebeu que eles não iriam fugir, mas ficar aqui até que a polícia chegasse. Glen e os outros estavam do lado de fora lutando por suas vidas e também pela dela. Estava encurralada com a família dele.

Eles permaneceram em absoluto silêncio. Clare podia sentir a batida trovejante de seu coração, o tremor de suas mãos. Estava aterrorizada e resignada e rezava em silêncio.

O barulho de passos veio do final do túnel, pela escada. Dois homens ficaram à sua frente para protegê-la.

— Está tudo bem — um homem gritou. — Parece que os espantamos. Achamos que o cara que estava atirando foi atingido, e parece que apagou. Eles estão checando, mas parece que vocês poderão voltar em alguns minutos.

Os outros começaram a falar baixinho entre eles. Clare sentiu a mão em seu braço. Sob a luz fraca vindo de cima, viu Fenola.

— É culpa minha — disse Clare. — Tudo culpa minha.

— Nada disso, garota. É culpa daqueles homens lá em cima, que não sabem aceitar um não como resposta. E está tudo bem. Você não ouviu? Todos se saíram bem. Vamos terminar o casamento e tirá-los daqui. Vocês dois. O mais rápido possível.

— Mas agora vocês vão estar em perigo.

— Não há nada com que se preocupar. Os Donaghues têm amigos. Vamos nos cuidar, não se preocupe.

Mas Clare estava preocupada. Essa gente a acolhera com tanto carinho, mesmo ao vê-la roubar seu único e amado filho. E agora ela os havia colocado num risco terrível. Depois que ela partisse, em quem Niall Cassidy iria descarregar seu ódio? Seu pai? Sim, provavelmente Tim, pois Clare havia conquistado o ódio de Cassidy. Mas também era muito provável que Niall buscasse vingança em cima dos Donaghues.

O homem que havia se juntado a eles falou alguns instantes depois.

— Acho que podemos começar a voltar. Vou lá em cima para ter certeza. Não subam até que eu dê o sinal.

Em grupos de três ou quatro, começaram o caminho de volta pelo túnel, em direção ao salão. Clare parou e Fenola ficou ao seu lado.

— Você está bem? — ela perguntou a Clare.

— Acho que foi muito susto. Estou me sentindo um pouco tonta.

Clare não estava mentindo, embora pudesse ter facilmente continuado a caminhar.

— Ficarei com você até que se sinta melhor.

— Não, acho que preciso ficar sozinha por um momento. Por favor...

Fenola concordou.

— Está bem. Mas se não estiver lá em cima em alguns minutos, vou mandar alguém vir buscá-la.

— Sim, obrigada. — Clare recostou-se na parede e fechou os olhos. Ela ouvia os outros caminhando pelo túnel e os passos arrastados de Fenola, que não queria abandonar a futura nora.

Clare não estava certa do que fazer. Só sabia que precisava pensar. Como poderia se casar com Glen e pôr tanta gente em perigo? Será que sua felicidade pessoal era mais importante? Ela e Glen estariam longe e em segurança, mas essas pessoas seriam forçadas a ficar para trás e pagar pela decisão deles.

Imaginou o rosto de Glen, o querido rosto de Glen. Ela não queria mais nada além de ser sua esposa e mãe de seus filhos. Fechou os olhos e rezou novamente, esperando por uma resposta.

A resposta veio em forma de tiros, só que desta vez, próximo à porta do túnel que abria para a estrada. Ela ouviu gritos e mais tiros, e soube o que deveria fazer.

Junto à porta, ela agarrou a barra, suspendendo-a com um esforço enorme, girando-a para o lado esquerdo, para desimpedir a passagem. A chave estava na fechadura e fez um som estridente quando a girou. A noite caía, nos últimos momentos do crepúsculo. Primeiro, ela não enxergava direito, enquanto seus olhos se acostumavam, depois viu dois homens. Reconheceu um deles como Liam.

O outro era Niall.

— Pare! — Ela foi até o lado de fora, com tanta certeza quanto ao que fazer agora, quanto a certeza do amor que sentia e por quem. Niall virou-se e ela o olhou diretamente nos olhos. Ele virou a arma em sua direção e ela não recuou.

— Você vai morrer, Cassidy — gritou Liam. Depois houve tiros, três estampidos.

Ela não percebera o bom amigo que Liam havia se tornado. Ele ficara para protegê-la, suspeitando que Cassidy pudesse encontrá-los. Por uma fração de segundo, sentiu gratidão.

Depois não sentiu nada. Nem dor, nem surpresa. Apenas as pernas dobrando lentamente, enquanto caía no chão.

— Clare!

Ela ouviu mais tiros, porém pareciam vir de outro mundo. Ouviu a correria e os gritos e, depois, a voz de Glen.

— Clare. Clare!

Ela parecia flutuar, até que o sentiu pegá-la nos braços. Com toda a força que lhe restava, abriu os olhos.

— Glen...

— Vamos arranjar um médico. Vamos salvá-la. Agüente firme.

Ela sentiu outro par de braços embaixo dela e, com grande esforço, virou os olhos para ver Liam ajudando Glen. Por um instante, eles pareceram tão próximos, mais que irmãos, unidos. Não parecia estranho para ela. Homens bons, ambos.

— Niall? — ela sussurrou.

— Vou achá-lo. Disso ele não vai escapar.

Ela começava a perceber como aquilo era insignificante. Niall havia conseguido o que viera buscar. Agora iria voltar sua atenção para outras coisas.

Eles seguiam pelo túnel, mas quando ela deu um grito baixinho, eles a baixaram no chão, ainda a vários metros da porta. Ela não conseguia sentir o chão embaixo de si, mas podia ver o rosto de Glen.

— Case...

— Não fale. Vou casar com você assim que estiver bem e os médicos disserem que podemos.

— Não. Case... com outra.

Ele estava chorando. Isso era algo que ela nunca esperou ver. Ela queria dizer-lhe para que não ficasse tão triste, que lhe dera mais alegria naqueles momentos que passaram juntos do que ela jamais esperou ter. Dera-lhe uma família, também. Ela fazia parte deles. Tão pouco tempo... mas tão certo.

— Não se vá, Clare. — Ele esfregava-lhe as mãos. Ela ouviu Liam subir as escadas gritando.

— Eu... te amo. Não fique triste — ela sussurrou.

Era estranho. Ela estava usando o vestido de casamento da mãe, mas quando seus olhos se fecharam achou que via a mãe, vestida como ela, no dia de seu casamento.

Clare sorriu ao vê-la.

 

                             Capítulo 33

Peggy raramente se levantava antes da chegada de Nora. Esta manhã ela levantou antes do sol, vestiu uma calça jeans e uma blusa, para saudar o dia, sozinha. Megan dormia profundamente do outro lado da cama de casal e Kieran fazia uns barulhinhos que pareciam miados, como se estivesse sonhando com algo que lhe desse prazer.

O que será que agradava seu filho? Ela não estava mais perto de saber disso do que quando chegara. Nas coisas mais importantes, Kieran permanecia um estranho. Ela não havia conseguido destrancar as portas que ele usava para se esconder do mundo. Não havia revelado os mistérios sobre as melhores formas de chegar até ele. Podia contar as evoluções nos dedos de uma das mãos. Agora, às vezes ele comia com a colher e reconhecia as cores. Também havia criado um certo tipo de apego a Bridie. Como um pequeno caranguejo trapaceiro, ele saía de lado de seu buraquinho e corria em sua direção, chegava bem perto depois saía correndo de volta.

Em algumas semanas Kieran teria seu segundo aniversário. Os seus atrasos ainda passavam despercebidos e seu comportamento estranho poderia ser uma peculiaridade natural em crianças com muita sensibilidade. Mas o que aconteceria quanto ele fizesse três, ou quatro anos? Quanto mais ficasse para trás e se recusasse a interagir, quanto mais ficasse se balançando e seguindo sua própria mão, ou hipnotizado pelos reflexos da luz na parede, mais iria ser rejeitado.

Ela não havia esperado que as fadas irlandesas o raptassem, deixando outro em seu berço. Esperava que o progresso fosse lento, mas que, algum dia, com a ajuda apropriada, Kieran pudesse freqüentar aulas comuns em escolas públicas, ou entrar para o clube de escoteiros, ou cantar no coral da igreja. Ela não entendia mais o conceito de "normal", mas sabia que queria para seu filho, o que outras mães nem davam importância. As coisas mais simples que eram negadas a ele.

Caía uma chuva fina lá fora. Já tinha visto chuva demais durante a sua estada aqui, além de muito vento e muitos céus negros. No entanto, adorava como a neblina matinal flutuava sobre a ilha Clare, a forma como a vista se modificava a cada piscar de olhos, o frescor enchia o ar, e como a chuva irlandesa escorria por sua pele. O oeste da Irlanda não era verde. Era formado por uma infinidade de tons de marrom e cinza, pedras assimétricas e ondas bravias, um lugar selvagem.

Ela seguiu pelo caminho que subia pelo alto da colina, de onde se via a ilha Clare e podia-se contar as ovelhas do vizinho. Ela pensou que se realmente morasse aqui, também ia querer criar ovelhas, não para alimentação, mas pela lã. Iria aprender a tecer e a tingir a fiação e quando não estivesse prescrevendo antibióticos ou realizando cirurgias...

Ela cruzou os braços sobre o peito e olhou para a ilha Clare, a visão que deveria ser como sal, no machucado do pobre coração de Finn. Sonhos eram difíceis de morrer. Os dele haviam perecido numa tempestade. Certamente, com uma graça divina e alguma coragem, ela poderia abrir mão de seu sonho de criança, que era ser médica. Não sabia o que estava reservado ao futuro de Kieran, mas sabia que precisava estar ali, caminhando ao lado dele. Não por obrigação, mas por seu amor maternal.

Megan tomou banho e se vestiu. Kieran ainda dormia agitado quando ela saiu do quarto nas pontas dos pés e foi até a cozinha, onde Nora fazia café. Deu-lhe bom dia depois fez a pergunta óbvia.

— A Peggy saiu?

— Eu a vi subindo a colina quando cheguei.

— Está chovendo?

Nora pareceu intrigada, como se essa fosse uma conexão difícil de estabelecer.

— Sim, acho que está.

— Ela está andando na chuva? — Nora concordou com a cabeça.

— E você diz que é cem por cento irlandesa?

— Não, acho que noventa e nove por cento. O um por cento é a parte que gosta de ficar seca e aquecida.

— Uma pena. É uma chuva bem suave, e a vista que se tem na neblina é perfeita. É como espiar dentro do céu.

Megan ficou imaginando se a irmã gostaria de companhia. Havia assessórios para chuva pendurados no galpão.

— Posso ficar prestando atenção no rapazinho — disse Nora —, se você criar coragem.

Megan sabia que Kieran não iria acordar por pelo menos mais meia hora.

— Tem certeza de que não quer uma ajuda? — disse Megan.

— Tenho.

— Então vou procurá-la.

Megan pôs uma capa e um chapéu, mas recusou-se a calçar as galochas, que pareciam ser do seu tamanho. Seus tênis estavam aptos para a tarefa.

Lá fora, ela teve de admitir que Nora estava certa. E não era uma novidade, como se ela jamais tivesse andado na chuva. Cleveland não era conhecida como a cidade do sol. Ela sentia-se florescer na escuridão e trocaria a chuva de Cleveland pela chuva da Irlanda sem pestanejar. Niccolo, que tinha suas raízes fincadas no oeste encharcado da Pensilvânia, sempre dizia que os filhos deles iriam ter barbatanas nos pés e respirar por guelras. Niccolo, que lhe fazia tanta falta, imprescindível como as batidas de seu coração.

A essa altura, Peggy já estaria descendo a colina e Megan subia para encontrá-la. Megan viu que a irmã nem sequer vestia um casaco. Estaria molhada e alheia a isso. Megan passara toda a adolescência tentando manter a pequena Peggy sequinha.

Peggy já estava a uma distância em que podia ouvir se ela gritasse.

— Nem está parecendo você, Megan. Você notou que está chovendo?

Megan esperou até que a irmã estivesse mais perto.

— Achei que você fosse escorregar montanha abaixo e cair com o traseiro no chão. Estou aqui para pegá-la.

— Suba para ver a vista.

Relutante, Megan subiu. Ela não conseguia entender por que as pessoas faziam alpinismo ou escalavam para se divertir. Ela passava o dia todo em pé no Whiskey Island e "diversão", às vezes, parecia uma contradição.

— Está certo. O que é que vou ver? — resmungou ela, ao chegar junto a Peggy.

— Veja lá longe. — Peggy apontou para a ilha Clare. Enquanto olhavam, a névoa que subia da água e as nuvens acima pareciam mudar de lugar, movendo-se para o lado, depois para o outro, entrelaçando-se como amantes. — Eu nunca poderia me cansar dessa vista.

— Você pegou mesmo. Febre Irlandesa. É o terceiro dia seguido que chove e você está ensopada. Isso teria curado a maioria das pessoas.

— Você não está gostando?

Ela não estava, mas não era culpa da Irlanda. Ela estava feliz por ter conhecido Irene, contente por ter visto a aldeia e a zona rural onde seus ancestrais viveram e grata por ter dormido no chalé onde moraram — embora fosse bem diferente nos dias de hoje.

Porém, por mais feliz que estivesse em passar um tempo com a irmã caçula e o pequeno sobrinho, ela só pensava que Niccolo também deveria estar aqui. Eles deveriam estar compartilhando estas experiências, construindo lembranças, acumulando histórias para contar aos seus próprios filhos, nas noites de nevasca do inverno.

Ela havia deixado Cleveland, mas não deixara seus problemas para trás.

— Você sente falta dele, não é? — Peggy continuava a olhar para o oceano, dando à irmã uma sensação de privacidade.

— Sinto. — Megan lamentou ter dito.

— Você só me falou um pouquinho a respeito do que houve de errado. Vocês chegaram a brigar?

Megan não havia contado muitos detalhes a Peggy. Agora, em pé, na chuva, ela tentava.

— De certa forma. Eu lhe disse que ele ficava fora muitas noites e, mesmo quando estava em casa, não estava lá, de verdade. Eu o alertei para isso. Não foi muito bonito, mas ele provavelmente já esqueceu. Fico pensando se ele sequer percebeu que não estou.

— Qual é realmente o problema? Você sabe?

Megan ficou feliz por Peggy não ter tentado defender ou justificar o comportamento de Niccolo.

— Não tenho certeza. Ele me ama. Afirma estar feliz por termos casado.

— Ele está. — Peggy parecia ter certeza.

— Você já percebeu como os homens são criaturas confusas e frustradas?

— Eu notei.

— Veja o seu Finn, por exemplo. — Peggy virou-se para olhar para a irmã.

— Nossa, essa foi rápida.

— Rápida?

— Como atropelar e fugir: "Este é o meu problema. Agora vamos falar do seu, Peggy."

Megan mordeu o lábio inferior.

— Não sei o que dizer. Vim para tentar analisar as coisas, só que me sinto um pouco como Kieran, com sua caixa de modelar.

— Como assim?

— Ontem eu estava trabalhando com ele. Aquele danadinho é muito esperto, Peggy. Sei que ele é, mas ele não consegue fazer tudo funcionar ao mesmo tempo e pôr as peças nos lugares certos.

— Em outras palavras, você tem as peças que precisa repor em seu relacionamento com Nick, mas não sabe onde colocá-las.

— É isso.

— Quando Kieran fica cansado, ele começa a tentar enfiar as peças no lugar errado, só para se livrar delas.

— Ele fez isso ontem.

— Também como você, não é? Mesmo quando sabe onde dever pôr as peças da sua vida com Nick, você está muito frustrada para colocá-las no lugar certo. Apenas quer tirá-las do caminho.

Peggy havia aproveitado a metáfora para dar um passo além do que Megan havia planejado. Ela parou de morder o lábio e franziu o rosto.

— Não sei quanto a isso.

— Há peças faltando?

— Bem, ele sonha que é um padre novamente — prosseguia Megan. — Quero que ele sonhe comigo.

— Claro que quer.

Admitir seu egoísmo, sua carência, foi difícil. Isso Peggy havia entendido e imediatamente aceitado como um alívio natural.

— Você acha?

— Eu sei. Megan, você tem todo o direito de vir em primeiro lugar. Você acabou de se casar e Nick está ocupado com tudo exceto você. Tem de ser frustrante. O que acontece quando você diz a ele como se sente?

— Quando fico zangada com ele?

— Você está zangada?

— Estou.

— O que mais você sente? — Peggy esperava, a sobrancelha arqueada, ar inquisitivo.

Após um momento Megan suspirou.

— Sinto-me magoada e rejeitada. Como se de alguma forma eu não merecesse a atenção dele. Como se eu tivesse fracassado antes mesmo de começar.

— E você disse isso a ele?

— Não em tantas palavras.

— Você acha que isso é algo que ele tem de descobrir sozinho?

— Gostaria que fosse.

— Não seria um mundo perfeito?

Mais uma vez, Megan se conscientizava de uma imensa inversão de papéis. Peggy não precisava mais da irmã mais velha para mantê-la seca ou pegá-la quando caísse. Mas Megan precisava de uma amiga. E aqui estava uma prontinha. Que sistema.

Megan resolveu dar mais um passo adentrando a intimidade.

— Tenho medo de contar como estou me sentindo e ele deixar passar, como tem feito com todas as coisas que falo desde que nos casamos. Se eu contar e ele me ignorar, não vou conseguir conviver com isso.

— Então você está tentando salvar seu casamento deixando de falar com ele?

— Peggy, você faz isso parecer fácil.

— Confie em mim, sei por experiência própria como é difícil falar sobre coisas importantes com o homem que amamos.

— E você não está falando sobre Phil.

Peggy olhou para a ilha Clare.

— Phil não. Phil nunca.

— Finn?

— Há coisas maravilhosas sobre ele que você nunca viu.

— Apenas me diga uma coisa. Você quer amá-lo ou quer salvá-lo?

— Megan, você não acha que já tenho trabalho suficiente? Não estou à procura de outro projeto.

— Mas ele é um projeto, não é? Ele ainda está lastimoso pelo que perdeu. Ele está pronto para encontrar um novo amor?

— Às vezes o amor apenas acontece, mesmo quando não é a hora certa. Não queríamos achar um ao outro, mas de alguma forma aconteceu.

— E o futuro?

Peggy virou-se para ela novamente.

— Megan, tenho sorte de conseguir passar por um dia de cada vez e ele também. Temos isso em comum.

— Algum dia irá querer mais, Peggy. Você quer ficar com um irlandês temperamental, que vê na punição algo que não pôde evitar?

— Não. Não quero. Mas talvez eu possa querer Finn O'Malley. Só o tempo irá dizer.

Kieran acordou com as faces rosadas e os olhos brilhando, mas, pelos seus instintos maternais, Peggy desconfiou que isso fosse mais que bom humor. Sentiu-lhe a testa, ao erguê-lo do berço. Ele estava morno e recostou-se sobre ela, deixando que ela o abraçasse, o que em si, já era sinal de que algo estava errado.

Ela mediu sua temperatura e trocou-lhe a fralda e não se surpreendeu ao ver que ele estava com quase 38. O nariz estava entupido e os olhos vermelhos, embora não tivesse chorado. Ela imaginou que talvez ele tivesse contraído a gripe de Maeve, filha de Tippy, quando os dois estiveram juntos na semana passada.

Na cozinha ele recusou tudo, mesmo suco de maçã, e sentou-se apático na cadeirinha, enquanto todos tomavam café da manhã.

— Ele realmente não está sendo ele mesmo — disse Irene. — Nós até podemos nos ouvir esta manhã.

— Espero que seja apenas um resfriado — disse Peggy. — Mas vou checar a garganta depois do café, se Megan segurá-lo para mim.

— Talvez Finn dê uma olhada.

Peggy não sabia se ele daria, mas não estava tão preocupada. Resfriados eram comuns em crianças e Kieran teria os dele. Mesmo assim, é claro que não se importaria com uma consulta, principalmente se sua garganta ficasse inflamada.

Após o café, ela descobriu que a garganta estava vermelha e durante essa última hora, desde que havia medido sua temperatura, a febre já havia subido. Deu a ele um antitérmico e um pouco mais de suco, depois se sentou com ele no colo, ninando, enquanto Kieran permanecia inerte junto a ela.

Quando Finn chegou para ver Irene ela já estava ficando mais preocupada. Ele parou para dar olá e franziu o rosto, ao vê-la ninando Kieran.

— Essa não é uma cena que vejo com freqüência — disse ele.

— Ele está doente. — Peggy ajudou o menininho a se virar. — A garganta dele está vermelha e inchada e a última vez em que medi sua temperatura ele estava com quase trinta e nove.

— Isso seria alto para um adulto, mas nem tanto para uma criança.

Ela ficou irritada por ver que ele estava tentando acalmá-la.

— Sei disso, mas receio que ele tenha uma infecção e por isso precise tomar antibióticos. E antes que me diga que os médicos não prescrevem mais antibióticos para cada espirro, já sei disso.

— Bom.

Ele não se ofereceu para olhar Kieran e ela suspirou.

— Finn, você se importaria em dar só uma olhadinha nele?

Ele ficou em silêncio tanto tempo que ela já sabia qual seria a resposta.

— Não pratico mais medicina, Peggy. Você sabe disso.

— Você cuida da Irene. Ainda tem uma licença para exercer. Tem até um consultório que nem vendeu ainda. Não estou lhe pedindo que faça uma cirurgia, mas apenas para ver a garganta dele e prescrever alguma coisa, caso ele precise.

— Você precisa levá-lo para ver Beck. Posso lhe dar o número. Hoje ele está fazendo cirurgias em Westport, mas se disser à enfermeira que lhe pedi para levar Kieran, tenho quase certeza que ele irá vê-lo.

Ela pensou na longa viagem dirigindo até Westport, com uma criança doente, e não uma criança doente qualquer, mas uma criança autista, com quem já vivera experiências penosas. Ela nem teria pensado duas vezes, se Finn não estivesse em pé à sua frente. Mas ele estava e tinha o conhecimento e a licença para prescrever. Apenas não tinha a coragem.

Ela se arrependeu por ter pedido.

— Então é isso que vou fazer.

Ele não disse mais nada, não desejou melhoras, nem a encorajou. Foi ver Irene e Peggy não o viu novamente.

Megan os acompanhou até Westport e as duas levaram Kieran até a recepção para esperar pelo dr. Beck. Depois, enquanto Megan saiu para ver as lojas e ruas da cidade, Peggy ficou aguardando.

Duas horas mais tarde, quando o médico finalmente o atendeu, Kieran estava frenético e exausto. O dr. Beck era jovem, arrogante, presunçoso e superficial. Ele deu a Peggy uma receita de um descongestionante e um xarope, em seguida, olhou por cima de seus óculos sem armação com uma expressão gélida, quando ela pediu um antibiótico.

— Prescrever medicações é o meu trabalho, srta. Donaghue.

Ela disse a si mesma para se manter calma.

— Certamente compreendo isso e agradeço pela sua precaução. Mas ele é meu filho e acho que isso é mais do que um simples resfriado. O senhor poderia fazer uma cultura na garganta, só para garantir?

— Creio que sei identificar a diferença entre uma infecção grave e um vírus à toa. — Ele se levantou e a conduziu para a saída da sala. — Tenho visto a mesma coisa se repetir pelas últimas duas semanas. Não é nada para se preocupar.

— Sei como o senhor é ocupado, com tantos pacientes e tão pouco tempo. Compreendo isso. Mas por favor...

Ele sacudiu a cabeça e saiu da sala antes dela.

Megan estava na sala de espera quando Peggy voltou, fumegando. A essa altura Kieran já estava tão cansado e febril que adormeceu nos braços de Peggy, que o carregou até o carro que Megan havia alugado.

Quando chegaram à casa de Irene, a raiva de Peggy havia se intensificado. Ela tentou entender o lado de Finn quanto a isso, mas não conseguiu. Kieran não era qualquer criança. Era o filho de sua amante. Certamente Finn sabia o que havia imposto a ela, ao se recusar a atender Kieran. Ele conhecia Beck. Sabia que o homem era seriamente assoberbado de trabalho e muito carente de boas maneiras. Beck nem sequer percebera o autismo de Kieran, chegando a dar a entender que ele era mimado e precisava de disciplina. Foram apenas a sua boa educação de berço e seu bom senso que a impediram de falar exatamente o que achava dele. E Finn sabia o que ela iria enfrentar.

Estava sozinha na cozinha quando Finn chegou para a visita noturna. Megan havia ido até a cidade comprar sorvete, na esperança que Kieran comesse um pouco no jantar. Irene estava em seu quarto descansando e lendo, e Kieran dormia profundamente.

— Você levou Kieran para ver Beck hoje?

Ela estava lavando copos para o jantar e não se virou para falar com ele.

— Levei, pelo menos tentei fazer o melhor.

— Ele até que é um bom médico.

— Talvez seja verdade, quando ele não está sendo um filho da puta arrogante, ou quando não está tão cheio de trabalho que uma cultura na garganta possa fazer desabar o mundo. Mas pela ótima viagem que fiz, podia ter deixado o pobre do Kieran aqui mesmo e ter comprado um remédio no balcão da farmácia.

— Você está com raiva.

— Estou pê da vida. — Desta vez ela se virou. — Você poderia tê-lo olhado. Poderia ter poupado o pobrezinho de passar horas esperando num consultório estranho. Poderia ter poupado a mim de ser obrigada a lidar com o Doutor Deus. Mas você não pôde encontrar um meio de fazer isso, não é?

— Não.

Estava exausta e sentia que algo poderia explodir dentro dela e que aquilo não teria conserto.

— Quando é que esse medo de cometer erros passa do limite e invade a fronteira da autopiedade, Finn? Você tem medo, ou apenas sente pena demais de si mesmo para seguir em frente? Essa aldeia precisa de seu próprio médico. E não de qualquer um. Eles precisam de Finn O'Malley. Kieran é apenas uma criança, que teve que fazer essa viagem a Westport ou Castlebar, ou sabe Deus onde, para ser tratado por Deus sabe quem. E você está consertando canos, ou martelando madeira, ou instalando fogões, sei lá o que você faz. E todos aqueles anos de treinamento e todo aquele talento nato estão sendo jogados fora.

— Você terminou?

Ela olhou para ele por um bom tempo.

— Sim, receio que sim.

— Isto está começando a envolver mais do que apenas a minha decisão de não ser médico.

— Talvez seja. Talvez seja a respeito de você pensar se algum dia vai se desprender do passado e abraçar o futuro.

— No entanto, não é qualquer futuro, certo? Mas aquele que você planejou para mim.

— O que isso quer dizer?

— Você me quer inteiro. Quer o homem que eu era antes de afogar minha esposa e filhos.

— Não. Quero um homem que possa seguir adiante e parar de se lamentar por um acidente que não foi culpa sua, o homem que vê que seu futuro pode ter muito mais do que auto-aversão e desespero, se ele apenas parar de se punir.

Ela havia ido longe demais. Não ficou surpresa quando ele saiu da cozinha sem dizer mais nada.

Em algum lugar no caminho entre o chalé e Shanmullin, Megan percebeu de tinha que ir para casa. Algum dia iria querer fazer uma viagem de verdade pela Irlanda, mas agora precisava estar com Niccolo. Peggy estava certa. Ela havia deixado que o medo a impedisse de dizer a ele o que realmente precisava. Niccolo a amava — a distância havia lhe esclarecido isso — mas ele não sabia ser um marido, mais do que ela uma esposa. Isso era tão fácil de enxergar agora. Ela tinha que se arriscar a ser honesta com ele e, em troca, precisava de fato ouvir o lado dele em relação às coisas.

Tão simples, tão complicado. Ela não tinha certeza de como a raça humana conseguira sobreviver por milhares de anos.

No caminho de volta à casa de Irene, levando o sorvete de baunilha e mais suco de fruta, ela se sentia pronta para ligar para a companhia aérea e reservar o vôo.

Quando encostou junto ao chalé, percebeu um carro estranho estacionado ao lado da porta. O pára-choque tinha um adesivo da mesma empresa onde ela havia alugado o seu. Por um momento sentiu um êxtase absoluto, imaginando se seu marido viera à Irlanda atrás dela. Mas ficou igualmente contente quando viu Casey de pé na porta.

— Case! — Nem parecia que elas haviam estado juntas tão recentemente, pois Megan saiu correndo para dar um abraço na irmã. — Que raios...?

— Achei que só vocês duas estavam se divertindo aqui e isso não é justo. Então peguei um avião.

Os planos de Megan para voltar a Ohio desapareceram. Ela não poderia ir agora, não quando isso havia se transformado numa reunião das irmãs Donaghue. Seus sentimentos estavam todos embaralhados.

— Não vou ficar muito tempo — avisou Casey, antes que Megan pudesse responder. — Mas pretendo fazer o máximo que puder em alguns dias.

Megan esperava que seu alívio não fosse apenas momentâneo. Ela poderia voltar para casa quando Casey fosse e teria companhia durante a viagem.

— Daqui a pouco você vai me dizer que o Rooney e a tia Dee também estão a caminho, e que toda a família Tierney de Shanmullin estará sob o mesmo teto.

— Acho que jamais conseguiríamos pôr Rooney dentro de um avião, mas a tia Dee está planejando vir visitar a Peggy no outono. O que é bom, pois não acho que esse chalé incrível poderia agüentar todos nós de uma só vez.

— Agüentou nossos ancestrais e quem sabe quantos, ao mesmo tempo?

Peggy juntou-se a elas. Ela estava visivelmente radiante por ter Casey com elas, mas parecia exausta. O dia havia sido frustrante e difícil.

— Kieran está acordando. Vamos ver se conseguimos fazê-lo beber um pouco de suco e tomar um pouquinho de sorvete. Depois podemos pôr o papo em dia.

Elas conversaram ao redor do fogo, que acenderam mais para dar um clima do que para aquecer. Irene recusara-se a ir para cama antes delas e ficou ouvindo as novidades que Casey havia descoberto no avião, a respeito da nova pilha de cartas de Maura McSweeney. Primeiro Casey contou sobre o envolvimento de Liam com o IRA e de sua esperança de que McNulty contribuísse com a causa.

— Mas McNulty perdeu tudo durante a batida policial em Whiskey Island — finalizou Megan. — Então não havia sobrado nada para ser doado a ninguém. E Liam quase foi apanhado e preso.

Casey se acomodou com mais conforto às almofadas do sofá de Irene.

— Há muitas cartas. Tenho as cópias comigo. Tive que montar esse quebra-cabeça, juntando as peças. Um pouquinho daqui, um pouquinho dali. Mas parece que nosso avô Glen se apaixonou pela filha de McNulty e ela por ele. McNulty tinha outras idéias para a filha, principalmente depois que seu império contraventor desmoronou. Queria que Clare, sua filha, se casasse com outro contrabandista. Em vez disto, ela fugiu para se casar com nosso avô. Agora adivinhem onde?

Megan olhou para Irene, que se recusava a contar qualquer coisa.

— Você sabe, não é? Esta é mais uma coisa que guardou para si.

Os olhos de Irene se arregalaram inocentemente.

— Sou uma velha. Sei de muita coisa. Nem sempre consigo me lembrar de onde arquivei tudo isso.

Megan não era tola, mas não a desafiou.

— Onde? — perguntou ela a Casey.

— No salão. No nosso salão. O padre McSweeney em pessoa foi celebrar a cerimônia, quando outro bandido, um cara chamado Cassidy, começou a atirar nas janelas da frente. Eles fugiram... — Ela fez uma pausa e sorriu com tristeza. — Adivinhe por onde?

Peggy respondeu.

— Há somente um lugar por onde fugir. Nós mesmas descobrimos. O túnel?

— Exatamente. Quando acharam que estavam seguros, foram lá para cima novamente, mas Clare ficou para trás, afirmando precisar um momento para se recuperar. Enquanto isso, Glen estava do lado de fora tentando achar Cassidy. Ela ouviu os tiros. Ninguém sabe exatamente por que ela foi até lá fora. Talvez para se oferecer em sacrifício? Ninguém tem certeza. Mas Cassidy a matou. E adivinhem o que aconteceu?

Casey virou-se para Irene antes que elas respondessem.

— Seu pai estava lá. Liam ajudou Clare a fugir da casa do pai e a levou até o salão. E aparentemente ficou atrás da casa para ter certeza de que ela estaria segura. Juntos, ele e Glen estavam tentando deter Cassidy quando ela foi morta. Eles levaram Clare para dentro do túnel. Juntos. Mas ela morreu nos braços de Glen.

Ficaram todas em silêncio. Na lareira, uma tora fez um estalo bem alto.

Peggy finalmente falou:

— Essa é provavelmente a história mais triste que já ouvi. E não posso entender por que nunca ouvi antes. Este era nosso avô. E eu que achava ter ouvido todas as histórias da família pelo menos umas cem vezes.

— Acho que sei — disse Megan. — O vovô deve ter ficado arrasado. Ele se casou tarde, lembram-se? E quando casou e finalmente encontrou a felicidade ao lado de nossa avó, ninguém queria lembrá-lo da tragédia de sua juventude. Como uma família, somos tão bons em guardar o que é segredo quanto tagarelamos sem parar a respeito do que não é.

— Mas ele já morreu há muito tempo.

— Imagino que a história tenha simplesmente evaporado, em respeito à nossa avó. E os que viveram a história já se foram. Ninguém fala da Lei Seca, nem do bar clandestino no andar de cima, que não era para ser lá. Época diferente, em que se mantinha o silêncio.

— Havia mais alguma coisa, Casey? — perguntou Peggy. — Irene ainda não sabe como seu pai morreu.

Irene falou antes que Casey pudesse.

— Na verdade, querida, eu sei.

Peggy não pareceu surpresa. Ela viu um xale no encosto da poltrona e o levou até Irene, enrolando-o ao redor de suas pernas.

— Então é melhor que nós a façamos bem confortável, porque essa será uma noite longa. Que tal começar dizendo por que tem nos contado uma história quando a verdade é obviamente outra? Se você sabia o tempo todo como seu pai morreu, então tem representado mais do que pensei. E não venha com aquela desculpa de que queria saber que tipo de mulheres nós somos. Isso você já sabe.

— E não há melhor maneira de descobrir o caráter de uma pessoa do que pedindo ajuda. — Irene confirmou. — Mas há algo, além disso. Vou deixar que o resto da história seja revelado sozinho, acho. Agora é a hora. Aliás, não poderia haver hora melhor do que com Casey aqui. — Ela sorriu para Casey. As duas haviam tido uma afinidade instantânea.

— Vai ser agora mesmo? — Megan encolheu as pernas embaixo de si e encostou a cabeça no sofá. — Porque vou ter que ir embora algum dia sabe? Todas nós teremos.

— Ah, sim, vocês têm mesmo que ir para casa, querida. Na verdade precisariam, mesmo que não houvesse outra razão que não fosse descobrir o fim da história.

— Achei que fosse nos contar o final.

— Bem, muito em breve. Apenas seja paciente. Você verá o que quero dizer.

Megan fechou os olhos e pensou em Niccolo, esperando por ela em Cleveland.

 

                     1925, Castlebar, Condado de Mayo

                     Meu querido Patrick,

Como a família é querida e quão facilmente a deixamos para trás quando somos jovens. Tenho muitos amigos e vizinhos, mas em minhas horas finais é você que verei em pé, ao lado de minha cabeceira, assim como fiz por você, quando era um jovem rapaz, sofrendo com uma ou outra enfermidade.

Os cuidados com você recaíram sobre mim porque nossa mãe fazia o trabalho de quatro mulheres a cada dia e não podia vacilar. Ainda assim, não lamento pelas longas horas que passei cuidando de você, Patrick. Mais tarde eu não teria filhas ou filhos meus, mas tinha as lembranças de ter compartilhado a sua infância. Se esta for a última carta que lhe escrevo, por favor saiba que o seu amor e o amor de nossas irmãs me fizeram a mulher que sou. Sou feliz por ser essa mulher e morrerei pensando em todos vocês.

                     Sua querida irmã, Maura McSweeney.

 

                       Capítulo 34

Liam não gostava de acordar cedo. O amanhecer não era nada romântico. Quando criança, era sua função ordenhar a vaca da família e se ficasse deitado na cama mais do que deveria, levava uma surra por isso. Seus dias com os Irmãos Cristãos também começavam antes do amanhecer. Colhendo ovos no galinheiro, a missa antes do mingau no café da manhã minguado, fazendo com que os meninos freqüentemente desmaiassem antes, ou depois. Ele não via prazer algum no céu azul ou no canto dos pássaros. Hoje, no entanto, ele saudou ambos com algum entusiasmo. Havia se escondido por três dias e essa era sua primeira aventura externa desde então.

Depois da morte de Clare McNulty, Liam desaparecera no interior de Cleveland, mas ficara sabendo pelos jornais que horas após o tiroteio fatal Cassidy fugira da cidade.

Liam estava certo de que Cassidy jamais voltaria a mostrar sua cara por ali e estava igualmente certo de que a justiça de Chicago não seria enérgica o bastante para mandá-lo de volta a essa direção. Cassidy se fora de vez.

McNulty não. Sua grande oportunidade de ganhar um favor da gangue do lado norte morrera dentro de um túnel. Talvez ele tivesse lamentado pela morte da filha por algo, além disso, mas Liam não estava em posição de descobrir. Sua função havia sido vigiar Clare, depois desaparecer quando Cassidy entrasse em cena. Ao contrário, ele havia contribuído para que ela fugisse de casa para se casar com outro homem. Se McNulty soubesse a verdade — e certamente ele teria adivinhado parte dela — jamais o perdoaria. Já havia passado da hora para que Liam pegasse sua família e deixasse Cleveland.

A não ser por um detalhe.

À medida que o céu ia clareando, aquele detalhe estava quase ao seu alcance. Ele estava deitado de bruços nos arbustos de Whiskey Island, lembrando-se da noite do flagrante e do caminho que o capitão canadense traçou por aquela mata. Suas lembranças haviam sido elaboradas na escuridão, mas, mesmo em meio ao caos, ele havia tentado perceber marcas no terreno. Achava estar perto do local onde o capitão havia agachado, quase o fazendo perdê-lo de vista, pelos instantes em que levou para realizar alguma tarefa. Liam tinha uma boa idéia do que o homem havia feito. Agora ele só precisava encontrar o lugar certo e desfazer.

Ele havia ficado escutando atentamente por dez longos minutos, mas o único som que ouvira fora o barulho solitário de algo no rio, o ruído de pequenos animais e dos pássaros em revoada, e o apito agudo do trem. Ele rastejou mais adiante, uns dez metros, esperou e retomou sua jornada.

Finalmente chegara ao local onde planejava dar início à sua busca. Isso era o mais perto que sua memória o levaria. Ele se ergueu para ficar agachado e começou a remexer as folhas e a terra com os dedos. Procurava por buracos no chão, pedras que pudesse deslocar, por rachaduras e galhos mortos. Ele ia cobrindo cada centímetro, parando a cada minuto ou dois para ouvir e detectar a possível presença de intrusos.

Dez minutos se passaram, depois mais dez. A frustração o corroía, embora ele já esperasse por isso. Sabia que sua busca poderia ser em vão. Outros poderiam ter passado por aqui antes dele. Certamente, mesmo encarcerado, o capitão teria tido a oportunidade de se comunicar com alguém. O próprio McNulty provavelmente teria vindo vasculhar esse mato com Jerry. Pior de tudo, talvez Liam estivesse errado desde o início, interpretando mal o que vira naquela noite.

Ele avançou para a direita e continuou cavando e examinando, cuidadosamente. Meia hora se passou enquanto ele fez um círculo, depois mais uma, enquanto o círculo aumentava. Agora já duvidava estar no lugar certo. Achava ter sido a única testemunha da fuga do capitão, mas a tempestade e a escuridão poderiam ter pregado uma peça no seu senso de direção.

O sol estava para nascer no horizonte. Ele sabia que tinha de ir embora. Ultimamente andava a pé, pois seu amado modelo T havia sido abandonado numa rua qualquer, caso alguém estivesse procurando pelo carro — ou por ele. Poderia continuar amanhã, mas isso significava outro dia em Cleveland. Brenna e Irene ainda estavam escondidas com as ex-patroas, porém quanto mais tempo permanecessem ali, maior a probabilidade de McNulty descobri-las. E McNulty usaria a família de Liam para vingar-se dele. Isso era uma coisa que Liam sabia com certeza.

Ele correu para a direita e resolveu investigar mais uma área. Levantou uma pedra e não achou nada, passou os dedos entre as raízes grossas de uma árvore, mas também não achou nada. Quando estava a ponto de desistir, percebeu um galho podre ao seu lado. Devia estar ali há anos, pensou ele, a casa de uma família de formigas-carpinteiras e besouros decididos pela sua destruição. Ainda não haviam alcançado seu objetivo, mas o galho se desintegrou abaixo de seus dedos quando o levantou. Ao fazer aquilo, ele soube que não fora o primeiro. Partes da casca e o pó da madeira estavam espalhados embaixo, como se o galho tivesse sido deslocado centemente.

A princípio nada lhe chamou a atenção, depois ele viu um desnível no chão. Não chegava a ser fundo e estava quase coberto de mais cascas podres. Ele afastou os fragmentos com o pé e encontrou o prêmio que procurava.

O pacote de notas o deixou perplexo. Ele esperava menos, pois tinha certeza de que McNulty pagara os atravessadores a maior parte do dinheiro à vista. Agora ele entendia porque seu ex-patrão estava tão determinado a encontrar o que o capitão havia aproveitado para pegar após a transação. Com certeza ali havia dinheiro o suficiente para que McNulty pagasse grande parte do que havia pedido emprestado. Com o que ele poderia vender, e mais alguma coisa que pudesse juntar, McNulty estaria salvo. Mas agora não. Não quando o dinheiro estava nas mãos de Liam e não nas dele.

Esse pensamento deu um imenso prazer a Liam.

Ao embolsar o dinheiro, olhou em volta mais uma vez. Os pássaros estavam mais barulhentos e trombetas dos sapos cessara. O dia começava a clarear e em breve ele estaria inteiramente visível. Agachado, traçou o mesmo caminho que antes usara para a sua fuga.

Quando pôde se erguer, percebeu que não estava mais sozinho. Sob os galhos de uma árvore, Glen Donaghue o observava.

— Quando eu era menino — disse Glen — havia histórias de pessoas enterradas aqui. Os irlandeses famintos eram muito pobres para funerais e túmulos sagrados. Portanto, quando um de nós morria, nós mesmos os enterrávamos. Depois, se surgisse um padre com uma alma generosa, ele poderia ir até o local fazer algumas orações e jogar um pouco de água benta.

Liam pensou em Clare, que morrera não muito longe dali e amanhã seria enterrada no mausoléu da família McNulty.

— É um lugar assombrado — concordou ele.

— De muitas, muitas maneiras. — Glen afastou-se do tronco da árvore. Havia rugas recentes em seu rosto de garoto, cicatrizes de batalha. Não havia luz em seus olhos.

— Então, por que um irlandês supersticioso como você escolheu a madrugada para perambular por aqui? Os espíritos ainda estão vagando. Nessas horas a pooka pode muito bem surgir no meio da floresta, procurando por pessoas de intenção maligna.

— Será que eu devo temer?

— Sua ficha está suja, Liam. Você estava na folha de pagamentos de McNulty.

— Dizem que o diabo também vai cair.

— E, no entanto, você foi contra ele para defender Clare. — Liam esperou. Ele estava certo de que Glen sabia por que ele estava ali e o que havia encontrado. Sentia-se como um camundongo sob o olhar sagaz da mulher do fazendeiro. Ele estava armado, mas jamais usaria uma arma contra esse homem. É claro que Glen não sabia disso, o que tornava a situação ainda mais perigosa.

— Você esteve me seguindo — disse Liam, finalmente.

— Não foi fácil, isso eu posso te dizer.

— O que quer de mim?

— Quero ver o que está no seu bolso.

— E o que isso tem a ver com você?

— Mostre-me e veremos.

Até então Glen não havia puxado uma arma. Mas que diferença fazia? Liam não ia lutar com ele e não ia lhe dizer por quê. Estava num impasse. Pensou em Brenna e Irene. Esperava que após pegar o dinheiro o deixaria ir embora sem prendê-lo. Glen era um homem honrado, mas talvez pudesse ser persuadido pelo fato de que Liam não fizera nada além de procurar e achar o dinheiro.

— Pegue — disse Liam, erguendo os braços para os lados. — Tenho uma arma. Não planejo usá-la em você.

— Por que não? — Glen deu um passo à frente e alcançou o bolso de dentro do paletó de Liam.

— Porque não tenho nenhuma rixa com você.

Glen puxou o maço de notas. Estava equilibrado, porém tenso. Visivelmente estava pronto para o que Liam pudesse tentar. Quando Liam simplesmente ficou ali em pé, Glen deu um passo atrás. Ele segurou as notas onde podia vê-las e manter os olhos em Liam. E assoviou baixinho.

— Mais do que jamais vi de uma só vez. — Liam sorriu. — É claro que apenas tropecei nisso por estar fazendo minha caminhada matinal.

— É mesmo?

— Não tenho idéia de como veio parar aqui.

— Isso é algo para a polícia descobrir.

— Eu tinha esperanças de que não fosse chegar a tanto. Esperava que, em nome da amizade, talvez pudesse dizer que você mesmo encontrou, quando entregasse às autoridades.

— Amizade?

— Minha amizade com Clare. A sua com Clare. Ela era uma boa mulher. Eu sinto muito... — Liam balançou a cabeça.

— E você acha que por tê-la ajudado no final eu devo deixá-lo ir?

Liam não estava certo quanto ao rumo que esta conversa estava tomando. A voz de Glen não deixava transparecer nada. Ele podia muito bem estar planejando matar Liam por vingança a qualquer um ligado a McNulty e Cassidy. Ou poderia estar planejando tornar-se um herói local, como o homem que devolveu o dinheiro que afundou para sempre o império de McNulty.

— Eu não acho nada — disse Liam, finalmente. — A única coisa com que sempre contei na vida foi a surpresa.

— Por que foi trabalhar para ele?

— Nas palavras de minha esposa, é preciso sujar as mãos para limpar uma lareira. Tenho uma família para sustentar.

Glen mostrou-lhe o maço de notas.

— Isso teria sido mais que o suficiente, não é? Se pusesse tudo no mercado de ações se tornaria um milionário.

— Não, eu também teria outros destinos para esse dinheiro.

— Andei pesquisando um pouquinho. Seus registros de imigração dizem que seu nome todo é William Francis Tierney, tendo entrado aqui pelo Canadá. Estranhamente, um homem da sua idade e descrição, com o nome de Liam Patrick Tierney é procurado pelas autoridades na Irlanda. Ele matou um homem apenas um mês antes de você aparecer por aqui.

— Mas é mesmo? E quantos irlandeses vieram para este país na mesma época que eu?

Glen ignorava isso.

— Ele era um homem do IRA. Não seria o IRA o outro destino para o qual você daria a esse dinheiro, seria?

— Como lhe disse, tropecei nele por acidente. Tive muito pouco tempo para pensar na melhor forma de usá-lo.

Glen folheava as notas com o polegar.

— E uma dessas formas seria o próprio McNulty?

— McNulty? Não tenho a menor lealdade ou afeição pelo homem. Ele obrigou sua única filha a fugir. Ia dá-la a um homem que era tudo do que deveria protegê-la. É um bandido e um mentiroso, e se um dia conseguisse um centavo desse dinheiro, seria sobre o meu cadáver. — Liam ficou surpreso com a ferocidade em sua própria voz. Com esforço, suavizou seu tom. — Eu preferia que a polícia ficasse com o dinheiro, já que chegamos a isso.

— Se a polícia ou o Departamento do Tesouro ficassem com ele, o que acha que isso faria ao caso de McNulty?

Liam não entendeu.

— O caso dele?

— Com os homens de Chicago, que lhe emprestaram o dinheiro, para começar.

Liam não estava surpreso que Glen soubesse disso. A essa altura imaginou que restaria muito pouca lealdade na organização de McNulty. As pessoas certamente estariam falando com as autoridades em troca da liberdade.

— Não sei o que isso faria a McNulty. O que você acha?

— Acho que se aqueles meninos de Chicago soubessem que o dinheiro realmente desapareceu naquela noite, da forma como McNulty disse, e se a polícia o tivesse agora, eles estariam menos inclinados a acabar com McNulty. Pegariam tudo que pudessem como pagamento. Poderiam matá-lo também, como um aviso aos outros, mas, por outro lado, poderiam não fazê-lo. É um risco. — Liam entendeu.

— Mas se acreditarem que McNulty ainda pode ter o dinheiro, ou que ele não fez o bastante para encontrá-lo, então certamente o matariam?

— Incompetência é uma coisa. O destino pode intervir até mesmo nos planos mais bem traçados e eles são bastante espertos para saber disso. Mas a falta de lealdade, ou tratar os caras do lado norte como um bando de tolos, é outra coisa.

Liam não sabia aonde Glen pretendia chegar com isso. Esperou para ver. Glen continou:

— Você sabia que entreguei meu distintivo no dia em que ia me casar com Clare? Eles me deixaram ficar com a arma, embora não devessem, mas sabiam que estávamos em perigo. Eu deveria devolver a arma depois.

— Acha que me importo por você estar armado? A não ser que esteja pretendendo apontá-la para mim.

— Fiquei surpreso que seu nome fosse Tierney. Há Tierneys na minha família. Sabia disso?

— Como saberia?

— Todos mortos. Nem eu mesmo tenho o nome da família. Diga-me, porque não consigo me lembrar da sua ficha. Você tem um filho?

— Uma filha.

Glen concordou com a cabeça.

— Sim, está certo. Também não tem ninguém para levar adiante o seu nome de família.

— Eu espero remediar essa situação algum dia. Mas é claro que se me entregar e, de alguma forma, as autoridades me confundirem com esse outro homem da Irlanda e me mandarem de volta, vão me pendurar numa corda em Dublin.

— Vou pegar meu distintivo de volta, sabe. Em uma semana, ou um mês. Após o funeral e depois que tiver um pouco de tempo para mim.

Liam esperava novamente.

Glen folheou as notas mais uma vez.

— Mas por ora, sou apenas um cidadão comum, sem a obrigação de juramento a lei alguma, boas ou más. A Lei Seca é uma tolice, porque cria homens como McNulty e Cassidy e arruina os negócios dos destiladores e distribuidores honestos, assim como muitos donos de bares também honestos, como meus pais. Mas agora criamos uma nova raça de criminosos e alguém terá que caçar os contrabandistas de bebidas. Pode muito bem sobrar para mim. E agora que Clare está morta, tenho muito mais em jogo do que a maioria.

— Lamento por você.

Glen olhou o pacote de dinheiro em suas mãos, depois olhou para Liam. Deu um passo à frente e estendeu-lhe a mão, segurando as notas.

— Já houve morte e destruição suficiente na Irlanda, não acha... Liam Patrick Tierney? Há dinheiro mais que suficiente em minha mão para que você comece uma nova vida e construa a vida de outros.

— Está me dando de volta?

— Faça bom uso, para que McNulty não faça uso algum. — Glen enfiou as mãos nos bolsos, deu as costas a Liam e se afastou. Em alguns instantes ele havia sumido na floresta.

 

                             Capítulo 3 5

Quando Liam deixou Whiskey Island a cidade já despertava. Ele havia pretendido ir buscar Brenna e Irene enquanto ainda estivesse escuro. Não sabia exatamente do que Tim McNulty tinha conhecimento em relação à sua participação na fuga e morte de Clare, mas certamente McNulty achava que no mínimo ele não a teria vigiado com cuidado e isso já era o bastante. Parecia improvável que McNulty fosse dispor de qualquer um de seus escassos colaboradores para procurar por Liam, em vez do dinheiro, mas todo o cuidado não seria demais.

Ele pensou onde passaria as horas até o anoitecer. Não havia voltado para casa desde a noite da morte de Clare. Precisava tomar um banho e trocar de roupa, e queria algumas coisas que Brenna deixara para trás. Durante um breve telefonema, ela teria lamentado por ter esquecido várias pequenas lembranças. Ele queria recuperá-las, como gratidão por tudo aquilo de que ela estava abrindo mão. Agora tudo era muito perigoso, mas pensava se naquela noite seria seguro. O velório de Clare começaria por volta do pôr-do-sol, provavelmente seria na casa de McNulty. Todos que a conheceram, e todos que haviam feito negócios com o pai dela estariam lá.

Se os comparsas de McNulty estivessem no velório, as chances de Liam entrar em casa sem ser notado seriam melhores. Depois, na escuridão da noite, ele chegaria até Brenna e Irene, e pela manhã a família Tierney estaria a caminho do oeste em segurança. Liam não tinha certeza de para onde iriam, talvez o Colorado ou Wyoming, longe da vida da cidade e da tentação. Mas assim que os Tierneys estivessem fora de Cleveland, eles teriam tempo para decidir onde e como passar o resto de suas vidas.

Achou que a melhor forma de passar o dia seria em uma das casas vazias, no fim de sua quadra. Daquele ponto sua casa seria plenamente visível e ele poderia observar, caso alguém chegasse. Foi caminhando pelo bairro a pé, seguindo pelas ruas de trás para não chamar atenção sobre si. Chegou sem nenhum incidente e entrou por uma janela dos fundos. Com exceção de armários e acabamentos, a casa estava quase pronta. Durante uma de suas andanças pela vizinhança, ele ficara sabendo que os carpinteiros iriam dar início à fase final da obra na semana seguinte.

Ele procurou ficar o mais confortável que podia. Ainda estava com fome, embora tivesse devorado pãezinhos e leite que comprara no caminho.

A fome era uma velha amiga e o ajudaria a manter-se acordado. Sentou-se a uma boa distância das janelas do quarto dos fundos, para que não pudesse ser visto, mas mantendo uma boa visão dos arredores. E começou a sua espera.

O dia felizmente foi sossegado. Conforme a tarde transcorreu, ele cochilou duas vezes e acordou num estalo, para ver que a rua continuava igual. A atividade estava reduzida a uma mãe que empurrava um carrinho de bebê e o passeio dos cachorros dos vizinhos. Pela hora em que o céu voltou a escurecer e os homens já estavam em casa, de volta do trabalho, ele estava faminto e sem paciência. Ele saiu da casa da mesma forma como havia entrado e seguiu cuidadosamente o seu caminho. Havia trancado todas as portas e janelas no dia em que deixou para trás a casa e quase tudo que possuía. Agora a porta dos fundos estava entreaberta. Ele sacou seu colt 45, que McNulty havia fornecido tão atenciosamente, e ouviu com cuidado antes de entrar. A casa estava em silêncio. Já do lado de dentro, ele viu que tudo estava revirado. Alguém havia posto abaixo quase tudo que tinha ali. Brenna havia cuidado de tudo com tanto carinho, a sua Brenna, que começara a vida sem nada e parecia ainda não ter nada de valor, depois de todos esses anos.

Isto não havia sido um ato de vandalismo. Alguém havia vasculhado a casa inteira em busca de alguma coisa. E o que ele teria de valor?

Nada que não estivesse queimando no bolso de suas calças.

Só havia uma explicação. McNulty suspeitava de que Liam achara o dinheiro. Se os homens de McNulty tivessem vindo até aqui apenas para procurá-lo, não teriam revirado tudo dessa maneira. Na tentativa de recuperar o dinheiro para pagar a gangue no lado norte, McNulty não deixaria pedra sobre pedra.

Liam imaginava se na visão de McNulty ele seria uma pedrinha ou um pedregulho. A busca teria sido de rotina, ou cuidadosamente planejada? E se a última fosse verdade, quais seriam as suas chances de sair sem ser visto? Se McNulty realmente suspeitasse dele e ainda pudesse contar com seus homens, ele teria deixado alguém vigiando a casa. Alguém poderia estar vigiando agora.

Ele ficou considerando as possibilidades para pegar as lembranças de Brenna. Um cachinho do primeiro corte de cabelos de Irene, um laço do vestido que Brenna usara quando se casaram, uma fotografia de uma amiga de infância, já falecida. Ela tinha tão pouco, mas queria apenas essas coisas simples. Ele sabia onde ela as guardava e resolveu arriscar. Estava armado e só levaria alguns instantes.

Dava dois passos de cada vez. Em seu quarto, encontrou as coisas de Brenna no chão, sob a caixa de charutos que estava virada e era onde ela as guardava. Recolheu tudo, embrulhou num lenço limpo que achou no chão e as colocou no bolso das calças. Não havia tempo para tomar banho, mas vestiu uma camisa limpa, penteou os cabelos, limpou os sapatos. Rasgou um pedaço do lençol e embrulhou meias limpas, juntando-as aos pertences de Brenna. Era hora de partir.

Infelizmente, não era o que achava um velho amigo.

— Achei que você voltaria — disse uma voz conhecida. Liam virou-se e viu Jerry bloqueando a porta. Só ficou surpreso pelo fato de um homem tão grande ter conseguido subir as escadas sem fazer barulho. Todos os sentidos de Liam estiveram bem sintonizados.

Jerry deu de ombros, como se soubesse que deveria explicar essa questão.

— Não se preocupe, você não poderia ter me ouvido. Fiquei esperando no quarto da garotinha. Acho que peguei no sono.

— Por quanto tempo?

— Não muito. Cheguei aqui antes de escurecer. — Liam amaldiçoou seus próprios cochilos.

— Isso aqui foi trabalho seu?

— Pode guardar a arma. Não vim aqui para atirar em você. — Jerry mostrou as mãos vazias. — Está vendo? Se quisesse atirar, teria feito isso antes que você soubesse que eu estava aqui.

— Então o que veio fazer aqui?

— Isso não fui eu. — Jerry gesticulou para a baderna em volta. Até o colchão havia sido retalhado, assim como a colcha que Brenna fizera, usando retalhos dos vestidos dela e de Irene.

— Acho que posso adivinhar o que eles estão procurando — disse Liam.

— Eu também não achei nada. Disse a eles que você não tinha roubado o dinheiro. Estava correndo como nós todos naquela noite, só teve a sorte de não ser pego.

Liam sabia que aquilo não era um encontro social.

— Por que não está no velório?

— Por que você não está?

— Um homem que manda seus capangas para destruir a minha casa, não é um homem que me queira no velório de sua filha.

— Está certo quanto a isso. Não importa o que eu diga, o sr. McNulty acha que você tem o dinheiro.

— O que o faz pensar isso?

— Por que não estava lá para impedir que a srta. Clare fugisse no dia em que foi morta. Você deveria estar na casa, vigiando. Por que outra razão teria ido embora deixando-a sozinha, a não ser que não precisasse mais de seu emprego?

Por um instante, Liam ficou surpreso. McNulty acreditava que ele abandonara Clare e esta teria sido a razão para que ela fugisse para o Whiskey Island?

— Como é que ele sabe que eu não estava lá?

— Porque você e a srta. Clare já haviam ido embora quando Cassidy chegou à casa.

— Ele falou com Cassidy? O próprio homem que assassinou sua filha?

— Cassidy mandou notícias depois de tudo, sabe. Disse que quando chegou à casa aquele dia, encontrou um bilhete de Clare para o pai, dizendo que estava indo embora. Cassidy apenas tentou achá-la e impedi-la. Só isso. Ela ficou no caminho da bala que era para seu novo namorado.

Da maneira como Jerry colocou, Cassidy havia sido o homem que tentara consertar o malfeito, impedindo o ato impulsivo de uma mulher. Uma espécie de herói. O assassinato de repente passou a ser acidental e os dois verdadeiramente culpados eram Liam e Glen Donaghue, agora conhecido como o novo namorado.

Cassidy obviamente não queria que ninguém soubesse que Clare havia quebrado um vaso em sua cabeça, nem que o próprio Liam estivera ali para frustrar suas investidas e ajudá-la a fugir. Liam imaginou como a empregada não teria relatado a verdade, já que por certo teria ouvido da cozinha. Achou que, depois que ele e Clare haviam fugido da casa, ela provavelmente teria espiado e visto Cassidy prostrado, para depois juntar suas coisas e abandonar a casa de McNulty de vez.

Então Liam sentiu o terreno, ao fazer uma pergunta.

— Então McNulty acredita que achei o dinheiro? Ele tem motivo?

— O capitão, o cara canadense, disse a ele que escondera o dinheiro em Whiskey Island antes que o prendessem.

— Mesmo que isso fosse verdade, por que ele diria a McNulty?

— Porque o estão mandando de volta e ele jamais poderá vir aqui buscá-lo.

Aquilo não surpreendeu Liam. O capitão achou que seria melhor que McNulty encontrasse o dinheiro do que deixá-lo apodrecer embaixo de um galho morto. Talvez McNulty lhe tivesse oferecido um acordo, ou talvez o capitão achasse que este seria um pequeno preço a pagar por sua própria segurança. Se McNulty pegasse o dinheiro, vingança seria uma coisa a menos com que o capitão teria que se preocupar.

— Mas isso ainda não explica por que ele pensa que eu peguei —disse Liam.

— Algumas pessoas viram você e o capitão desaparecendo na mesma direção. Acham que você talvez tenha visto onde ele o escondeu.

— Talvez tenhamos seguido na mesma direção, só que nunca mais vi o homem. Você sabe como estava escuro e quantos caminhos são possíveis para sair de lá. Eu estava preocupado em não ser apanhado e nada mais.

— Sabe, esse seria um bom momento para que você tirasse o que tem nos bolsos e apenas me mostrasse, pode ser?

— Mostrar o quê?

— Que você não está com o dinheiro. Já sabemos que não está na casa.

— Jerry, se eu estivesse com a grana, acha que a estaria carregando comigo por aí?

— Não está aqui. Você faz isso e posso dizer a McNulty mais uma vez que acho que você não pegou.

— Se eu realmente tivesse achado o dinheiro, ele poderia estar escondido em qualquer lugar.

— Apenas mostre, está certo?

Era Liam quem tinha a arma em punho, mas ele desconfiava que Jerry estivesse armado, embora não o demonstrasse. Ele queria evitar um confronto. O outro homem era grande como um touro e provavelmente não seria detido com apenas um tiro. Pelo menos não tão rápido.

Liam pôs a arma no peitoril da janela, depois tirou as meias, abanou-as para que Jerry visse e as pôs na janela também. Ele tirou o lenço cuidadosamente, com as preciosidades que tinha dentro e as desembrulhou. Também colocou na janela.

Depois, lentamente, puxou o forro dos bolsos para fora. Uma chave caiu no chão, algumas moedas e nada mais.

— Satisfeito?

— Tire os sapatos também, está bem? Liam riu.

— Você não vai gostar do cheiro.

— Apenas faça isso para mim.

Liam concordou, segurando-os à frente, para que Jerry visse que estavam vazios. Depois puxou a camisa de dentro das calças e as sacudiu, para mostrar que não havia nada escondido nas pernas.

— Por que ficou na cidade depois que Clare foi morta?

— Boa pergunta. Primeiro, se eu tivesse achado o dinheiro antes que Clare morresse, acha que ficaria em Cleveland? Não, fiquei porque tinha um emprego aqui e achei que McNulty iria se recuperar de suas perdas.

— E depois?

Liam contou-lhe a história que havia inventado, caso se deparasse com McNulty.

— Depois que Clare foi morta eu sabia que McNulty iria me responsabilizar, mas leva tempo para organizar as coisas e sair da cidade. Não tinha um monte de dinheiro à minha disposição. Tive que vender algumas coisas, resolver para onde ir, providenciar para que minha família estivesse segura...

— Talvez isso faça sentido, mas você deixou a srta. Clare sozinha.

— Cassidy é um mentiroso. Quando ele chegou, eu estava lá e Clare também. Ele foi violento com ela e tentei impedi-lo. Ele ficou estirado no chão quando saímos da casa.

— E você a deixou correr para os braços de outro homem?

Liam rezava para que Jerry tivesse algum vestígio de romantismo em sua alma.

— Sim, deixei, e sabia que o sr. McNulty jamais me perdoaria por isso. Sabia que tinha de sair daqui.

— Então voltou e tirou sua família.

— E também pretendo me mudar, se você deixar.

— Você poderia ir até McNulty e contar a verdade.

— O quê? Que ajudei sua filha a fugir do homem que McNulty havia escolhido para ela? Ele não vai acreditar que Cassidy atacou Clare, porque não convém a ele. Você sabe como ele tinha pouca consideração por ela. Talvez esteja fazendo o papel de pai sofredor esta noite, mas nós dois sabemos a verdade.

Jerry franziu o rosto.

— Sim, está certo. Você estará morto aqui. Acho que tem razão.

— Alguém se importaria se eu estivesse realmente morto? — Jerry ergueu seu ombro enorme.

— Eu me lembro daquele dia no galpão de Frank Chiador. Você me tirou de lá, quando poderia ter me largado para os agentes federais.

— Só quero recomeçar em outro lugar, Jerry. Só isso.

— É, acho que você não está com o dinheiro. Acho que pode ir embora.

Liam começou a sentir um certo alívio.

— Mas aquele tal de Donaghue não vai ter tanta sorte — disse Jerry. — O sr. McNulty vai fazer com que ele não viva por muito tempo.

— E qual seria o sentido disso?

— Se não fosse por ele, a srta. Clare agora estaria noiva de Cassidy.

— Mas que sorte a dela, hein?

— Você alguma vez parou para pensar quem teria nos entregado na noite da batida?

— Acho que eles devem ter avistado os barcos antes de chegarem à costa, apenas isso.

— Aqueles canadenses eram bons, os melhores até hoje. Nunca haviam sido pegos. Não, o sr. McNulty acha que a srta. Clare ficou sabendo do carregamento de alguma forma. Ela morava na casa dele, e afinal de contas, tinha ouvidos. Pode ter ouvido e contado ao namorado, que armou tudo. — Jerry ergueu os ombros outra vez. — Donaghue vai ter que morrer. Se não fosse por ele, o sr. McNulty não estaria nessa encrenca, estaria? E a srta. Clare não estaria morta.

— Creio que Donaghue vai arriscar as suas chances. McNulty não é um homem com tanta força ultimamente.

— Talvez não, mas ele tem um ás na manga. O túmulo da srta. Clare. Donaghue a amava, ele irá visitá-la ali. O sr. McNulty fará com que ele seja apanhado com como abelha no mel.

— Duvido que esse Donaghue seja tão burro. Ele não irá ao enterro?

— Quem falou em enterro? — Jerry sorriu um pouquinho. — Agora vou indo. Tome cuidado. Faça o que tiver de fazer esta noite e caia fora daqui. Não vou dizer que o vi. Mas é tudo que posso fazer por você. — Ele se virou e espremeu-se para passar na porta.

— Jerry?

— Sim?

— Obrigado.

Jerry ergueu os ombros mais uma vez e foi embora.

Liam esperou até ter certeza de que estava sozinho antes de pôr as coisas de Brenna nos bolsos e cobri-las com as meias que guardavam o tesouro de um contraventor.

Se Glen fosse qualquer outra pessoa, Liam lhe teria desejado sorte e esqueceria dele. Teria ido buscar sua família, diria às senhoras onde encontrar seu carro, trocaria de carro de novo e seguiria até Toledo, para pegar um trem rumo ao oeste. Mas do jeito que as coisas estavam, ele mal tinha certeza se Glen seria inteligente para não visitar o túmulo de Clare. O desgosto faz coisas estranhas a um homem. Ele baixa a guarda e os impulsos assumem o controle. Quando Glen deu as costas ao dinheiro dos bandidos, também fez isso com seu propósito. Compreensível, sim, mas também arriscado. E o que mais ele arriscaria enquanto a lembrança da morte de Clare estivesse tão recente?

Liam não poderia arriscar saber um dia que um simples recado para ficar longe do túmulo e manter o olho vivo poderia ter salvado a vida de seu primo.

Liam sabia mais a respeito de Glen do que realmente deveria.

Sabia onde Glen morava, o restaurante chinês onde às vezes jantava, onde era o seu barbeiro e o seu jornaleiro preferido. Ele havia ficado de olho no primo, em parte por causa de Clare, mas também por querer estar perto de seu próprio sangue. Agora os detalhes que havia descoberto o ajudariam. Ele circulou pelo bairro de Glen, mantendo-se nas sombras, olhando às suas costas. Apesar das garantias de Jerry, Liam não confiava completamente no colega. A lealdade de Jerry seria sempre para McNulty em primeiro lugar.

Foi até o apartamento de Glen, mas ele não estava em casa. Um bilhete já daria conta, mas não tinha papel e nem a camisa limpa havia melhorado seu aspecto e aroma, para que pudesse pedir algo emprestado aos vizinhos de Glen.

Quando uma senhora abriu a porta do outro lado do corredor e o ficou espiando, ele achou melhor ir procurá-lo em outro lugar, antes que ela resolvesse chamar a polícia. Ele havia checado a Santa Brígida, mas voltou lá. Duas mulheres estavam sentadas em bancos opostos, ocupadas com seus terços, e à frente, próximo ao altar, um homem de macacão polia as peças de cobre. A casa da paróquia estava fechada com o padre McSweeney lá dentro. Ele poderia deixar um recado com o velho padre e saberia que seria transmitido, mas quando passou pela casa, todas as luzes estavam apagadas. Se ele batesse e fizesse estardalhaço, chamaria muita atenção sobre si.

Havia mais um lugar para tentar. Ele seguiu em direção ao Whiskey Island Saloon.

Agora ele era conhecido lá. Não como membro da família, mas como o homem que havia ajudado Glen a salvar a vida de Clare. Em respeito a ela, o estabelecimento havia ficado fechado desde o dia de sua morte, mas hoje havia algumas luzes acesas do lado de dentro. Como vinha fazendo desde o começo de sua busca, ele olhou os arredores cuidadosamente antes de tentar a porta. Estava trancada, mas lá de dentro um homem gritou que eles estavam fechados até a semana seguinte.

Liam deu a volta e foi até os fundos, onde ficava a cozinha, bateu novamente, e continuou batendo até que a porta foi aberta. O pai de Glen estava do outro lado.

— Você — disse Terry Donaghue.

— Posso entrar?

Donaghue deu um passo para o lado.

— Você está em péssimas condições.

— Estou procurando por seu filho. O senhor o viu esta noite?

— Ele não está no velório, isso é certo.

Liam tinha a sensação de que Terry sabia onde Glen estava, mas não queria dizer.

— Preciso vê-lo. — Ele pensou no quanto deveria falar. — Preciso preveni-lo.

— De quê?

Liam mordeu o lábio inferior. Terry era seu primo em primeiro grau — embora o homem mais velho jamais iria saber. Ele desejou que as circunstâncias fossem diferentes, que pudesse contar tudo a Terry e oferecer-lhe sua ajuda. A necessidade da família, uma família boa e sólida, era uma dor que ele havia apenas acabado de admitir. Agora estava a um braço do alcance da família, e o que poderia contar a este homem que pudesse lhe trazer algo além de vergonha? Liam era um rebelde, um assassino, um contrabandista. E Terry, há tanto tempo longe das confusões da Irlanda, não entenderia nada daquilo.

— Não vou lhe contar onde ele está a não ser que eu saiba o motivo — disse Terry, tentando instigá-lo a falar.

Liam sabia que sua credibilidade estava se esvaindo a cada segundo de silêncio.

— Fui encurralado por um dos homens de McNulty essa noite — disse ele, antes que sua credibilidade sumisse para sempre.

— Você trabalhava para McNulty.

Liam calculou que Glen havia contado apenas isso.

— Trabalhava. Agora ele está à minha procura por ter ajudado Clare. — Ele ergueu as palmas juntas, suplicando. — Preciso encontrar seu filho. Ele também está em perigo.

— Por causa do McNulty?

— McNulty culpa Glen pela morte de Clare. Ele irá cercar o cemitério, vai deixar um homem aguardando até que Glen vá visitar a sepultura.

— E se arriscou a vir até aqui para contar isso a ele?

— Ele não está raciocinando com clareza, não é? — A expressão de Terry já foi o bastante.

— Vou dizer a ele o que você falou.

Isso deveria ter sido o suficiente. Agora Liam estava livre para fugir. Mas havia algo na expressão de Terry que o preocupava. Terry acreditava nele, mas parecia acreditar ainda mais no bom senso do filho. Ele daria o recado para Glen, mas talvez só amanhã. Terry estava certo de que Glen não arriscaria uma visita ao túmulo de Clare até alguns dias depois do enterro, se muito.

— Não estou certo se me fiz bem claro — disse Liam. — Não é apenas a questão do cemitério. Ele está em perigo em qualquer lugar que vá, pelo menos por enquanto. Pelo que sei, estão procurando por ele nesse momento.

— Glen é inteligente e cuidadoso.

— McNulty não tem homens sobrando, mas vai colocar um no cemitério. Isso é uma indicação clara de que a coisa é séria.

— Glen ia até a casa da avó.

— Então vou...

Terry ergueu a mão.

— Depois ele ia ver um amigo. É lá que deve estar agora. — Liam sabia onde a avó de Glen morava. Já havia passado por lá a pé uma vez apenas para ver, um gesto desesperado de sentimentalismo.

— Me diga aonde devo ir e irei.

Terry franziu o rosto, visivelmente arrasado.

— As duas casas ficam do outro lado da cidade. — Liam sentia que a noite estava passando rápido.

— Eles têm telefone?

— Sim, minha mãe tem, mas ela não atende depois de escurecer. Diz que não há nenhuma notícia que não possa esperar até a manhã seguinte, boa ou má. E o amigo dele não tem.

— Então não perca nem mais um minuto. Diga-me aonde devo ir. Não tenho carro, mas se tiver sorte, os bondes ainda estarão funcionando.

— Não, deixe comigo. Posso dirigir. Vou tentar primeiro o amigo dele, já que é mais provável, depois a casa de minha mãe.

— E se não os encontrar?

— Então irei até o apartamento dele e deixo um bilhete para me telefonar.

Liam havia feito o que podia.

— Então vou indo. No entanto, há uma coisa que podia fazer por mim.

Terry levantou a cabeça em interrogação.

— Deixe-me passar pelo túnel onde Clare morreu.

— E por quê?

— Porque se fui seguido até aqui, eles estarão vigiando a porta da frente.

— Seguido?

— Tomei cuidado. Tome você também.

Terry atravessou a cozinha e abriu a porta que ia lá para baixo.

— Consegue achar o caminho?

— Consigo.

— Não acenda as luzes ou será visto ao sair. Há velas perto da porta na descida. Pegue uma e sopre antes de sair.

— É exatamente o que vou fazer. — Liam estendeu a mão quando a porta já estava aberta. — Não menospreze a situação, sr. Donaghue. McNulty é homem desesperado e às vezes tudo que resta aos homens em desespero é a vingança.

— Glen tomará cuidado, faz parte de sua natureza. — Liam o encarou por um instante e viu o que mais temia.

Terry confiava no filho cegamente. Pior, acreditava que o bem sempre vence o mal. Já havia esquecido da lição demonstrada pela morte de Clare McNulty.

Eles se apertaram as mãos e Liam desceu os degraus. A porta foi fechada assim que a vela estava acesa.

Liam quase foi até o lado leste. Ainda havia tempo para ir buscar Brenna e Irene e depois seguir para Toledo. Fizera o que podia por Glen, e agora era hora de se proteger.

Em vez disso, ficou em pé do lado de fora da casa de Lena, perguntando-se por que mais uma vez havia posto a segurança de Glen em primeiro lugar. Seria medo de que a fé de Terry pelo filho fosse diluir o aviso de alerta? Ou seria esta uma última oportunidade de ver seu primo cara a cara? Tinha certeza de que havia escapado à maldição irlandesa do sentimentalismo, mas agora receava ter sido vítima, afinal. Glen provavelmente estaria do outro lado da cidade, mas, Liam estava de pé ali, olhando para a casa de Lena Donaghue, a casa da tia que ele nunca havia conhecido.

A casa era maior do que ele havia imaginado, mas ainda pequena para uma família em crescimento. Ele podia visualizar as crianças dos Donaghues saindo aos montes, pela varanda, nas manhãs de verão, brincando no gramado, girando seus bambolês na rua larga. Imaginou como teria sido crescer aqui. Vira o resultado de sua vida no semblante de Terry Donaghue quando ele falou do filho. Amor, respeito e fé. Elementos ausentes em sua própria infância e também na de Brenna, mas presentes na de Irene, pelo menos assim ele esperava.

Uma lâmpada brilhou sobre o console do corredor e, em algum lugar da parte dos fundos, outra foi acesa. Ele estudava qual seria a melhor forma de tornar sua presença conhecida. Não queria amedrontar Lena Donaghue, mas tampouco queria esperar e ficar vigiando a casa, na esperança de que Glen pudesse aparecer. Tinha visto um cachorro atrás da cerca do vizinho e sabia que se tentasse chegar à porta dos fundos para espiar lá dentro, o alarme canino ecoaria por toda a vizinhança.

Subiu os degraus da varanda e bateu delicadamente à porta. Após um instante, ouviu passos e a porta se abriu. Glen estava na soleira.

— O que está fazendo aqui? — Ele manteve a voz baixa.

— Procurando por você.

O olhar de Glen percorria a rua atrás de Liam.

— Para quê?

— Posso entrar?

— Minha avó não está se sentindo bem. Ainda está muito aborrecida por causa de Clare. Ela precisa dormir e não quero perturbá-la.

Liam apenas desejava que pudessem ir lá para dentro, onde era mais seguro. Havia uma centena de coisas que queria dizer a ele. O quanto sentia por Clare, que merecera todas as coisas boas que a vida podia oferecer. O quanto ficava feliz em finalmente saber que viera de uma família tão boa, mesmo que aqueles que o criaram tivessem sido menos que perfeitos.

Ele não disse nenhuma delas. Não tinha palavras, nem oportunidade e nenhuma vontade de ver a expressão de Glen quando soubesse que ele era seu primo. Ele enfiou as mãos nos bolsos e encolheu os ombros. Falou bem depressa.

— McNulty está atrás de você. Ele acha que a batida foi por sua culpa, que você descobriu a respeito da entrega através da própria Clare. Entre isto e o fato de você tentar fugir com ela, ele está à sua procura para matá-lo. Não vá ao cemitério. Ele terá alguém vigiando o túmulo de Clare de agora em diante. Fique alerta e preste atenção ao seu redor, pelo menos até que Moran e os seus rapazes dêem um jeito nele de uma vez por todas. Então estará seguro.

— Achei que depois de hoje de manhã você estaria indo embora da cidade.

— Não podia ir embora sem avisar você.

— Por quê? Você não me deve nada.

— Já houve bastante violência, não acha? Não gostei da possibilidade de haver mais ainda, depois que eu já tivesse ido.

— Está bem. — Glen fez uma pausa, depois esticou a mão. — Obrigado.

Liam apertou a mão dele.

— Você vai se cuidar?

— Não quero trazer mais dor de cabeça para minha avó. — Liam largou a mão de Glen, depois se virou e desceu os degraus, apressado.

— Liam? Ele se virou.

— Sim?

— Precisa de uma carona?

Liam hesitou. Uma carona tornaria possível a fuga hoje à noite. Se fosse de carro, poderia estar com Brenna e Irene em menos de uma hora e depois pegaria a estrada para Toledo.

Glen deve ter percebido como ele estava tentado.

— Vou pegar minhas chaves. — Ele fechou a porta atrás de si antes que Liam pudesse recusar.

Liam olhava para os dois lados da rua, mas nada parecia fora do normal. Havia tomado cuidado desde que deixara sua casa, e até agora a sorte estava do seu lado. Glen também sabia ser cuidadoso. Claro que uma carona não colocaria a vida de nenhum dos dois em perigo.

Contudo, ele ficou sob a sombra da casa, tornando-se imperceptível junto ao tronco da árvore imensa e antiqüíssima. Acima de sua cabeça, havia uma pequena casa fixada nos galhos. Imaginou Irene brincando ali com seus primos.

Esforçava-se para pensar em outras coisas, no carro que passou em frente, antes de parar e deixar várias meninas na casa do vizinho. No cachorro no fim da rua que começou a latir, até que uma luz se acendeu na varanda da casa e uma voz masculina e zangada ordenou-lhe o silêncio.

Ele estava atento para possíveis passos, ruídos de carros, vozes sussurrantes. Mas não ouvia nada exceto as batidas de seu coração e, finalmente, o chiado da porta da frente de Lena Donaghue. Enquanto observava, Glen parou na soleira da porta, examinando a rua, ouvindo, dando um passo à frente e começando tudo de novo. Obviamente havia encarado o aviso de Liam com seriedade.

Glen olhou para Liam, ainda encostado à árvore, e acenou com a cabeça em direção à rua. Ele seguiu para um Ford azul estacionado em frente à casa de um vizinho, e Liam foi atrás. Já na metade do caminho, ouviu o barulho da cantada dos pneus e os estouros do motor, enquanto um carro saía do local onde estava estacionado e vinha em disparada na direção deles. Ele soube que, apesar do imenso cuidado, havia levado os homens de McNulty direto até Glen, o que ele mais temera.

Ainda estava meio protegido pela cerca, mas Glen estava no descampado. Liam puxou o revólver, mas da posição onde estava não havia como ter uma boa pontaria. Num milésimo de segundo ainda havia escolha e ele pensou em Irene e Brenna, que mereciam muito mais do que tiveram.

Correu a céu aberto, plantou-se entre Glen e o carro que se aproximava e disparou na direção do motorista. Por um instante ficou cego pela luz dos faróis. Ouviu Glen gritando, depois o estampido dos tiros. Rodopiou pelo impacto e viu Glen correr para abrigar-se atrás da porta do carro.

Liam morreu sem saber que seu corpo serviu de escudo para quase todas balas e salvou a vida do primo.

 

                        Capítulo 36

Ninguém alimentou o fogo. Ninguém fez chá. As irmãs ouviam atentamente e perguntavam algo a Irene quando os detalhes eram nebulosos, mas não interrompiam mais que o necessário. Agora, o único som na sala era o ronco de um cachorro velho, que entrara sorrateiramente mais cedo, naquela noite e, recusando-se a ser despejado, dormia contente aos pés de Irene.

— Já pensei numa dúzia de respostas — disse Peggy, finalmente. — Mas ainda não consegui aquela com o verdadeiro significado. Creio que "sinto muito" é o que pode dizer melhor.

A reação de Megan foi semelhante.

— Se o seu pai não o protegesse, nosso avô teria morrido naquela noite e não estaríamos aqui.

— Fico feliz por estarem aqui — disse Irene. — Não há razão para lamentar, você está viva. Meu pai fez uma escolha, não fez? Ele não queria morrer. Estou certa de que esperava o contrário. Mas ele defendeu um homem que admirava, talvez até amasse. Esta não é uma forma ruim de deixar esse mundo. Tantas pessoas partem sem ter feito ao menos uma única coisa que não tenha sido egoísta.

As pálpebras de Casey estavam caindo, pelos efeitos do fuso horário.

— Irene, como sabe tanta coisa? Seu pai não viveu para contar a história. Quem contou?

— Glen foi atrás de minha mãe depois que meu pai morreu. Ele também ficou no hospital por um dia, ferido pelos tiros, mas não gravemente. Quando teve alta foi procurar pela mamãe e eu. A essa altura, ela já havia reconhecido o corpo de meu pai e não foi difícil achá-la. Ele contou a ela o que havia se passado e ajudou-a a enterrá-lo.

Megan tinha que saber.

— Nosso avô chegou a...

— Chegou a saber que Liam era seu primo? — Irene balançou a cabeça. — Minha mãe não contou. Achou que era assim que ele queria.

— E ela a trouxe de volta para a Irlanda? Aqui para esse chalé?

— Mamãe não quis ficar na cidade onde meu pai havia morrido. Havia muito pouco esperando por ela aqui, mas era melhor do que ficar na América. A vida era difícil, mas em Mayo ela estaria no meio de gente que a compreendia. E aqui havia gente que ainda se lembrava de que meu pai havia lutado pela liberdade da Irlanda, e esjavam dispostos a ajudá-la no que pudessem. Ela conseguiu se virar e por fim se casou com um homem que era bom e rico, pelo menos para os padrões da época. Seus últimos anos foram felizes.

— Se virar... — Megan esperou, mas Irene não comeu a isca. — E o dinheiro? — perguntou ela, diretamente. — O dinheiro dos contrabandistas? Você disse que Liam o guardara enrolado numa meia. A polícia achou no corpo de seu pai e calculou de onde viera? Foi por isso que não o deram a ela? Ou os bandidos o pegaram de volta?

— Acho que posso responder a isso — disse Casey. — Pelo menos uma parte. McNulty jamais teve seu dinheiro de volta, não é, Irene? Porque ele desapareceu numa certa noite, mais ou menos um mês após a batida em Whiskey Island. Desde então ninguém jamais ouviu falar dele novamente. Jon pesquisou e me disse isso. A princípio, a polícia achou que Tim havia partido com destino ignorado, mas naquele outono um pescador encontrou próximo à margem do lago, um sapato masculino caro, do tipo que McNulty mandava buscar especialmente em Nova York. Também descobriram uma camisa manchada de sangue que julgavam ser dele. O seu alfaiate jurou ser.

— E se ele tivesse achado o dinheiro, pagaria à gangue de Chicago — disse Megan. — Eles provavelmente não o teriam matado.

Peggy falou por todas.

— Parece que ele teve o que mereceu.

— Cassidy também teve — disse Casey. — Vocês ouviram falar no Massacre do Dia de São Valentim?

— Você está brincando. — Megan cutucou o ombro da irmã.

— Ele foi um dos mortos. Morto e esquecido.

— Voltando ao dinheiro — disse Megan. — Irene, você sabe o que aconteceu? É a parte final do quebra-cabeça, não é?

— Bem, eles não o encontraram no corpo de meu pai — disse Irene. — Isso eu posso lhes garantir.

— Então não sabe o que aconteceu a ele?

— Eu não disse isso.

Irene pareceu estar se divertindo, agora que recontar a história da morte do pai já havia ficado para trás. Ela não parecia cansada, embora provavelmente estivesse, após uma narrativa tão arrebatadora. Mas a história era nova para elas, não para Irene. Ela dissera adeus a Liam Tierney muitos anos antes.

— Minha mãe falou com meu pai pelo telefone apenas uma hora antes de sua morte — disse Irene. — Ele disse a ela que havia escondido o dinheiro e revelou onde, caso algo acontecesse a ele. Ela não queria ouvir, mas ele a fez escutar.

— Foi mesmo? — perguntou Casey.

— Ele receara ser apanhado quando fosse à procura de Glen, mesmo com todo o cuidado que estava tomando. Por isso escondeu o dinheiro e depois foi procurá-lo. Tenho certeza de que sua intenção era voltar para pegá-lo após transmitir o seu recado. Ele teria pedido a Glen para desviar o caminho quando estivesse indo nos buscar. Mas ele havia aprendido a treinar a precaução quando estivera no IRA, e isso acabou servindo de lição, receio.

— Ele contou à sua mãe onde o havia escondido? — Megan estava começando a pensar que sua função nessa conversa era fazer com que todos mantivessem o foco. — Ela o achou!

— Ela nunca nem procurou. — Irene balançava a cabeça concordando, como se entendesse perfeitamente os motivos da mãe. — Era um dinheiro de sangue, entende? Ao seu modo de ver, meu pai morreu por causa dele. Mesmo quando precisamos de dinheiro, ela não quis. Então, assim que pôde comprar as passagens, voltamos de navio para a Irlanda, tão pobres como havíamos chegado à costa de Cleveland.

— E ela nunca contou a ninguém. — Megan fez uma pausa. — Exceto você, é claro.

— Oh, ela tentou contar a alguém, ao que parece. — Irene respirou fundo, apenas para dar ênfase, pensou Megan. Ela era profissional quando se tratava de aumentar o suspense. — Ela tentou contar ao seu avô — Irene terminou.

As irmãs estavam em silêncio, aguardando.

— No dia em que sepultaram meu pai, minha mãe chamou seu avô de lado e disse que o dinheiro era dele. Ela se propôs a contar-lhe seu paradeiro.

— Mas ele não quis — disse Megan, certa de que Irene estaria finalmente terminando a sua história.

— Para que McNulty levasse a culpa. — Casey pegou o fio da meada. — E, no fim, isso provavelmente selou a sua sentença de morte. Foi por esse motivo que o vovô havia deixado Liam ficar com o dinheiro, em primeiro lugar.

— Deve ter sido um grande dilema moral — Megan tentou imaginar.

— Ele era um homem absolutamente íntegro, mas também um homem que vira sua noiva ser assassinada. Então agiu contra McNulty ao não agir. Posso entender isso.

— O vovô foi trabalhar com Eliot Ness após o fim da Lei Seca — Casey disse a Irene. — Ele teve uma carreira longa e renomada na polícia. E eu me lembro da tia Dee nos contando que, quando a bebida voltou a ser permitida durante o dia, ele era o primeiro a chegar ao salão para esperar pelo seu drinque.

— E isso é toda a história — disse Irene. — Contada a mim no leito de morte de minha mãe. Ela queria que eu soubesse que meu pai era mais que um contrabandista e um pistoleiro do IRA. Tanto o seu avô quanto meu pai, bons homens que já se foram, além dos outros, ficaram para trás, catando os pedaços que sobraram de suas vidas. Minha mãe encontrou a felicidade, o seu avô se casou, e agora vocês estão aqui por causa disso.

— O vovô teve um bom casamento, inclusive — disse Casey. — Ouvi dizer que ele e a vovó foram muito apaixonados.

— Irene, você incentivou esse encontro porque quer que encontremos o dinheiro para você? — perguntou Peggy. — Foi esse o seu propósito do começo? Você precisa dele?

— Pareço precisar, querida? Tenho tudo que sempre quis. E agora tenho vocês, todas vocês, a família que sempre desejei ter.

— Então nos contou apenas por ser parte de nossa história?

— Sei que vocês são boas moças e sei que jamais irão contar a ninguém sobre a participação de meu pai na vida do crime, embora isso tenha sido tanto tempo atrás. Acho que nem faz mais tanta diferença, não é?

Megan olhou diretamente para Irene.

— Mas essa não é a história toda, não é, Irene? Você esqueceu de algo, não foi?

— E o que seria?

— O paradeiro do dinheiro. — Os olhos de Irene cintilaram.

— Ah, mas eu lhes contei onde está. Não prestaram atenção? Contei porque quero que o tenham. São boas e farão boas coisas com ele. É isso que eu queria.

— Eu preferia saber da localização diretamente dos seus lábios. — Megan inclinou-se para a frente e falou pausada-mente: — Onde exatamente o seu pai escondeu o dinheiro?

— Será que eu me esqueci de algo? Eu disse onde ele estava antes de ser morto. — Irene fez uma pausa pela última vez, para causar mais sensação. Depois sorriu. — A verdade é pura como o pão preto, querida, como o repolho e o purê de batatas. Papai o escondeu no último lugar onde esteve procurando o seu avô. O dinheiro está escondido no Whiskey Island Saloon.

Megan e Casey tinham ido embora não fazia nem uma hora e Peggy já sentia saudade delas. Em sua última tarde juntas, após uma investigação telefônica, as irmãs foram de carro até um pequeno cemitério ao lado de uma igreja, próximo a Castlebar, para visitar o túmulo de Maura McSweeney. Elas olhavam a sepultura com a lápide simples, cada uma delas silenciosamente agradecendo àquela mulher, cujas cartas haviam ajudado a montar o quebra-cabeça de seu passado. Depois depositaram um buquê de margaridas e foram almoçar e ter a última conversa.

Esta manhã Peggy havia ficado tentada a voltar para Cleveland no vôo delas. A lista de seus fracassos na Irlanda já estava muito extensa. Sabia que havia conquistado muito pouco com Kieran e quase não havia sentido em continuar o programa que havia elaborado com tanto cuidado. Ela agora questionava todas as decisões que havia tomado em relação a ele.

Também questionava o seu relacionamento com Finn. O que teria se apossado dela para se envolver com um homem tão submerso em seu passado, a ponto de não haver possibilidade de um futuro juntos? Ela não havia planejado se apaixonar por Finn O'Malley. Lutara contra isso, sabendo não estar pronta para amar de novo, e talvez nunca estivesse. Mas seus esforços despertaram sentimentos que os uniu por um laço cada vez mais forte.

Talvez ela tivesse visto qualidades em Finn que não existiam de fato. Talvez a cura dentro dela tivesse sido atraída à alma ferida dele.

Apesar do que a vitimou, na noite em que ele se recusou a ajudar Kieran, ela foi arrebatada por uma verdade maior.

Ela não estava nem um pouco feliz.

Permaneceu na Irlanda, apesar da tentação de voltar para casa, é claro. Ela havia concordado em ser acompanhante de Irene por um ano, e Irene tivera tanto esmero em organizar tudo, sem jamais reclamar do comportamento difícil de Kieran, de suas crises ou de seu choro.

Peggy lhe devia muito para ir embora.

E com tão pouco tempo, não haveria mesmo possibilidade de partir com suas irmãs. Kieran ainda estava doente e sem condições de viajar de avião. Ele estivera apático, com febre baixa e falta de apetite desde a ida ao médico em Westport. E o sono profundo que antes era sua salvação, passou a iludi-lo.

— Ele ainda não está se sentindo melhor, está? — Irene estava de pé à porta, apoiada por uma bengala, enquanto Peggy ninava o filho, que havia acordado de seu sono matinal instantes atrás.

— O que quer que seja, ele parece não conseguir se livrar totalmente.

— Ele é tão dócil quando está doente, quase carinhoso. — Peggy não estava feliz por seu filho estar doente, mas tirava vantagem dessa rara oportunidade de abraçá-lo e confortá-lo. Aliás, a única coisa boa em relação à sua doença, foi o fato de ter sido considerado parte da raça humana comum.

— Eu o levaria de volta ao médico, se soubesse que isso faria algum bem — disse Peggy.

— Seria bom você lhe dar um telefonema e dizer que Kieran não melhorou.

Peggy já havia tentado, mas sua ligação fora interceptada por uma enfermeira ríspida, que retransmitiu a opinião do médico, dizendo que o vírus simplesmente não havia completado seu curso. Peggy não contara a Irene sobre a ligação, mas sua expressão contava agora.

— Você poderia falar com Finn novamente — disse Irene.

— Finn deixou sua posição bem clara. Não tenho certeza se ele olharia Kieran se o pobrezinho estivesse tendo uma convulsão aos seus pés.

— Você parece amarga.

Peggy não tivera a intenção. Irene e Finn já eram amigos muito tempo antes de sua entrada em cena.

— Desculpe, sei que ele é bom para você. Apenas acho uma pena que ele se recuse a ajudar qualquer outra pessoa.

— Até você.

— Principalmente eu. — Peggy desviou o olhar dos cabelos macios de Kieran para sua testa febril. — Eu não deveria estar surpresa. Ele nunca mentiu quanto ao que sente. Acho que apenas pensei que tivéssemos algo especial e que ele pudesse abrir uma exceção.

— Você é muito especial para ele, tenho certeza disso.

— Mas não especial o bastante para que ele arrisque de coração.

— Ele tem uma alma complexa, nosso Finn.

— Receio que não seja nosso Finn. — Irene pareceu triste.

— Eu esperava algo melhor do que ressentimento entre vocês.

— É algo com que você não deve se preocupar, Irene. Há coisas que mesmo a alma mais gentil e bem-intencionada não consegue mudar. Sei que pediu a Finn que fosse me buscar no aeroporto, esperando que a longa viagem se tornasse o início de um romance.

— Como pode pensar algo assim de mim?

Faltava convicção nas palavras de Irene. Peggy tentou sorrir.

— Porque é verdade. E quem sabe, se as coisas tivessem sido diferentes, se eu tivesse conseguido fazê-lo deixar o passado para trás, talvez você houvesse causado uma fogueira. Mesmo assim, houve uma centelha entre nós. — Ela deu de ombros, hesitante em expressar em palavras.

— Apagou? — perguntou Irene. Peggy deu de ombros novamente.

— Acho que talvez não seja tão fácil deixar para trás como você está pretendendo.

— Não é nem um pouco fácil. — Peggy olhou para Kieran e seus olhos se encheram de lágrimas. — Mas é necessário.

Ela deu um jeito de estar em outro lugar quando Finn viesse ver Irene naquela noite. De manhã ela o evitara também, fingindo-se muito ocupada ajudando as irmãs a fazer as malas para sair do quarto e dar um olá. Mas dessa vez saiu de casa e foi dar um passeio com Kieran, pelo caminho com vista para o mar. Ele ainda estava febril, apesar da dose recente de remédio que lhe dera. Ela torcia para que a brisa do mar pudesse baixar um pouco a febre. Ele não estava inquieto, nem quis descer do carrinho, como de costume. Estava inclinado para a frente, escorando-se nos braços, permanecendo nessa posição como uma pequena massa humana, que parecia ter desistido do mundo ao seu redor.

Quando voltaram, Finn já viera e tinha partido novamente.

Ela deu suco de maçã e cereal para Kieran, que recusou, e aqueceu o jantar de Irene, que apenas beliscou. Peggy comeu um pouquinho, depois preparou outro banho frio para o filho, esperando que isso fosse baixar sua temperatura e proporcionar-lhe uma noite de sono mais confortável.

Quando ela o colocou na cama, sua temperatura estava apenas ligeiramente acima do normal e ela conseguiu fazê-lo beber um pouco de suco de frutas. Ele deitou sem protestos e fechou os olhos exausto, antes que ela o cobrisse com uma manta leve. Ele tossiu, balbuciou com a voz rouca e adormeceu inquieto.

Ela jogou cartas com Irene por um tempinho, com os ouvidos atentos ao quarto. Irene se cansou rapidamente e Peggy ajudou-a a se preparar para ir deitar.

Irene desculpou-se.

— Foram muitas noites até tarde com suas irmãs. Receio que eu esteja um pouco cansada.

— Durma bem e fique na cama até mais tarde amanhã. A casa não vai cair por causa disso.

— Foi tão divertido tê-las aqui, como uma casa cheia de filhas.

— Achei que fosse um pouco de excesso para você.

— Me fez um bem imenso. Há muito tempo que eu queria que vocês soubessem sobre o meu pai, todas vocês.

Enquanto Peggy pendurava o vestido de Irene, ela se virou para perguntar:

— Então você já sabia a nosso respeito? Quer dizer, antes, muito antes de entrar em contato conosco?

— Após um pouco de pesquisa consegui descobrir que seu avô havia se casado e tivera dois filhos quando já estava mais velho. Fiquei sabendo sobre você e suas irmãs há mais ou menos... — Ela fez uma pausa, como se estivesse contando. — Seis anos. Contratei um homem nos Estados Unidos para descobrir o que pudesse. Um detetive particular.

— E não entrou em contato conosco naquela época?

— Eu não tinha certeza do que fazer. Não queria que vocês se sentissem desconfortáveis com a presença de uma velha que nem conheciam. Achei que poderia apenas escrever a história e deixar uma carta a ser enviada após minha morte. Mas depois pensei que vocês talvez se sentissem enganadas, como aconteceu comigo. Então, assim que tive um computador resolvi entrar em contato com vocês.

Peggy pegou as mãos dela.

— Estou tão feliz que tenha feito isso. Todas estamos, Irene. E você sabe que não tem nada a ver com o dinheiro. Quem sabe se Megan irá achá-lo?

— Tenho muita confiança em sua irmã. Quando ela decide fazer algo, vai até o fim. Não é verdade? — Peggy teve de admitir que era. — Porém não se esqueça de que eles quebraram o salão de cima a baixo nessa última reforma e se alguém achou algo de valor, certamente não ficamos sabendo a respeito.

— Minha mãe sabia o local exato no salão, onde meu pai escondeu o dinheiro, mas não me disse, é claro. Ela não queria fazer parte disso e nem queria que eu fizesse também. Só queria que eu soubesse que houve um homem bom, de bom coração e que ela não tirou proveito dos seus erros de julgamento. Ela gostava muito das lições simples, foi uma boa mãe até o momento de sua morte.

Peggy afofou os travesseiros de Irene e ajudou-a a pôr as pernas embaixo da colcha.

— Durma bem. Você acaba de dar às irmãs Donaghue um novo mistério a ser desvendado. Vamos aproveitar cada minuto.

Irene deu boa noite e fechou os olhos.

Peggy andava de um lado para o outro na sala, endireitando as almofadas, arrumando os jornais e varrendo o pêlo de Banjax, próximo à lareira. Não estava pronta para ir dormir. Tinha muito em que pensar.

O telefone tocou e ela mergulhou para atendê-lo, com medo de que acordasse Irene. A voz do outro lado parecia profundamente familiar.

— Peggy?

Ela sentou-se na poltrona ao lado da escrivaninha.

— Oi, Finn.

— Você parece estar sem fôlego.

— Irene acabou de ir dormir. Eu não queria que o telefone a acordasse.

— Está um pouco cedo para ir dormir. Ela está bem?

— Apenas cansada com tantas visitantes.

— Como está Kieran?

Ela quase ficou surpresa por ele perguntar. Ele certamente levantou um assunto que não gostaria de discutir.

— Na mesma. — Ela foi curta. — Graças ao sistema médico irlandês.

— Sei. Vocês não têm médicos impacientes e com excesso de trabalho nos Estados Unidos?

— Claro que temos. Mas nos Estados Unidos também tenho amigos que teriam o maior prazer em dar uma olhada no meu filho numa emergência e me ajudariam a conseguir o melhor tratamento para ele.

Houve um longo silêncio. Peggy pensou se não seria hora de desligar. Então Finn falou:

— Não sou a melhor pessoa para isso, Peggy.

— Sei que pensa assim. Mas pensar e ser não são a mesma coisa. E receio que tenha chegado à outra conclusão. Kieran e eu não significamos nada para você, Finn. Se fosse o caso, você teria nos ajudado. Mereço um homem que seja um parceiro de verdade, além de pai para o meu filho. Por alguma razão, demorei tempo demais para perceber isso, mas não estou mais me vendendo de graça.

— Bem, isso foi bastante objetivo.

— Dê-se por contente por ter sido objetivo. Você não iria gostar de ouvir a versão completa.

— Aquela que inclui que sou um cretino egoísta?

A raiva explodia dentro dela, uma raiva imensa, que tentou controlar. A voz dela soluçava em meio às lágrimas.

— Não, a parte de ter medo de viver de novo. A parte que diz que você é o Deus Todo-Poderoso e você, somente você, tinha nas mãos a vida e o destino de sua família naquele dia. A parte que acha que cada decisão que toma é tão importante que faz o mundo parar de girar quando você fica em dúvida!

— Vou desligar agora.

— Deveria ter desligado antes. — Peggy bateu o telefone e baixou o rosto nas mãos. Ela ouviu um barulho, mas não olhou para cima. Sabia quem era e sua própria voz a acordara.

Sentiu a mão de Irene em seu ombro.

— Vá em frente, querida, chore — disse Irene.

— Estou apaixonada por ele. Por isso que dói tanto. — Peggy estava tão perplexa quanto aborrecida. O amor que sentia pela família era sem esforços. O amor que sentia por Kieran havia brotado no instante de seu nascimento, como se tivesse crescido junto com ele, dentro de seu ventre. Por mais difícil e triste que fosse o seu autismo, isso só havia feito com que amasse seu filho mais ainda.

Mas isso... isso era algo diferente, algo que desafiava todas as lógicas ou tentativas de erradicação. Ela não havia considerado uma vida com Finn. Mas agora, considerar uma vida sem ele era agonizante.

— Preciso sair dessa agora — disse em meio às lágrimas. — Antes que esteja enrascada demais para tentar.

— Ele é tudo que você queria e mais. Como poderia não se apaixonar por ele? Você viu o homem de verdade, não a casca.

— Ele faz tudo para não ser mais aquele homem.

— E você é jovem e impaciente.

— Sou jovem e coerente. E sei quando estou diante de algo que não posso mudar. Ele trata de você, Irene, porque a ama demais para não fazê-lo. Mas ao não tratar de Kieran...

— Isso é porque Kieran o faz lembrar dos filhos, Peggy. Você não vê isto? Sou uma velha, estou morrendo. Até o próprio Finn sabe que não importam quantas mágicas tire de sua valise preta, ele não tem o poder de conceder a vida eterna. Mas ele pode viver com essas probabilidades, não pode? Sabendo que sua função é apenas tornar o meu fim mais confortável, ou talvez até adiá-lo um pouquinho? Mas seu filho tem uma vida toda pela frente, assim como os filhos dele também tinham. E ele não tem como evitar essa identificação.

— Ele tem que evitar! — Peggy enxugou os olhos na bainha da camiseta. — Você não pode amar se não consegue agir. O amor é feito de atitudes, não de palavras e pensamentos. E é algo muito maior do que um impulso sexual que vai e vem, ao olhar para os seios ou lábios de uma mulher jovem. É intencional e definitivo e a forma de demonstrá-lo é agindo pelo bem um do outro e do relacionamento.

— Vejo que você andou pensando nisso.

— Não. Tenho tentado não pensar. Acho que sabia que, se pensasse, tudo teria terminado entre nós. Mas isso veio me acertar bem no meio dos olhos e não tive mais como deixar de pensar.

— Você também está preocupada com Kieran, é isso também.

— É claro. — Peggy esticou-se para pegar um lenço de papel na outra ponta da escrivaninha. — Se ele não estiver melhor amanhã, ao acordar, vou levá-lo até a emergência em Castlebar. Se for preciso, fico lá sentada o dia inteiro, mas alguém vai ter que cuidar do meu filho.

— Ótimo plano. Nora irá levá-la de carro. Ela não irá... — Uma lamúria interrompeu Irene. Peggy deu um salto.

— É ele, eu o acordei.

— Não, você não falou tão alto assim, querida.

Peggy já estava na metade da sala. Ela receou que Irene estivesse certa. O resmungo de Kieran não parecia o de uma criança que acorda irritada de um sono profundo. Era um gemido baixinho e desigual, como se estivesse se esforçando para respirar.

Ela o encontrou sentado, mas inclinado para a frente, escorando-se nas mãos. Ele o ergueu do berço e surpreendeu-se em constatar como estava febril. Não precisou de um termômetro para saber que sua temperatura havia subido, dessa vez a um nível perigoso. E ele estava babando, como se engolir fosse muito doloroso para tentar.

— Kieran?

Ele a encarou como em outras vezes, como se não soubesse quem era aquela mulher exigente. Mas esse olhar não era por causa do autismo. O olhar de Kieran era fixo e sua respiração tão breve que, por um instante, ela não teve certeza se ele sequer estava respirando.

Havia cometido um erro gravíssimo. Não seguiu os seus instintos de levar o filho a um outro lugar para ouvir uma segunda opinião.

Deixou-se ser feita de boba por uma enfermeira que nunca havia visto e por um médico que estava tão ocupado que examinou seu filho da maneira mais superficial possível. A vida de Kieran agora estava em perigo por causa disso.

Irene veio até a porta.

— Como está ele?

— Irene, ligue para Nora. Por favor. Preciso levá-lo a Castlebar neste instante. Não há tempo a perder.

— Mãe de Deus... — Ela saiu mancando, mas Peggy já pensava freneticamente no que fazer para socorrê-lo, até que Nora chegasse. Sua respiração era difícil, mas ele não estava tossindo. Talvez fosse pneumonia. Ela também sabia algo sobre um mal súbito que costuma ocorrer, impedindo a passagem de ar. Era bem comum e geralmente melhorava com...

— Vapor. — Ela o enrolou numa manta fina e correu para o banheiro, fechando a porta atrás de si. Depois ligou a torneira, e agradeceu com lágrimas nos olhos quando viu que a água quente começou a sair. Como o aquecedor mantinha a água numa temperatura constante, a água quente não era garantida a essa hora da noite.

Ela entrou no boxe, puxando a cortina ao redor deles, apontando o chuveiro para o ralo, para que não os molhasse. Pareceu uma eternidade até que o vapor começou a preencher o espaço. Ela afastou o filho de seu ombro, em direção ao chuveiro, rezando para que o vapor pudesse aliviar sua respiração. Kieran estava muito mal para se esforçar.

Minutos depois, como ela já imaginava, o vapor começou a minguar e o foi o fim da água quente do dia. Ela desligou a torneira e ficou ali dentro mais um pouco, esperando que o restinho de névoa ainda pudesse ajudar.

— Peggy...

— Entre. — Peggy ouviu a porta abrir e fechar.

— Alguma melhora?

Kieran ainda estava tendo dificuldades em respirar, como se o ar estivesse entrando por uma passagem muito estreita.

— Não. Você ligou para Nora?

— Finn está vindo.

Por um instante Peggy pensou que não havia ouvido direito.

— Eu pedi a você que ligasse para Nora.

— Mas Nora não é médica, é? Finn vai levá-la até o hospital. Ele está a caminho.

Peggy podia imaginar o tipo da conversa, mas não se importava. O que Irene tivesse dito a ele já estaria de bom tamanho. Finn estava vindo, mas tinha certeza de que este seria o último lugar onde ele gostaria de estar. E Finn dirigia mais rápido que Nora, que era desconfiada com qualquer coisa que tivesse um motor.

Peggy saiu do chuveiro. Os cachos de Kieran estavam molhados, colados ao couro cabeludo, e as faces estavam vermelhas pelo vapor e a febre. Cada um de seus movimentos respiratórios era difícil e audível, e seu coraçãozinho batia acelerado junto ao peito da mãe.

— Talvez eles o internem — disse Peggy. — Preciso arrumar uma sacola.

— Me diga o que pegar.

— Uma muda de roupa para a volta para casa. — Peggy esperava que isso acontecesse. Ela estava quase histérica de nervoso.

— E roupas para você, também. Uma escova de dentes... — Irene se afastou apressada, movendo-se mais depressa do que Peggy jamais havia visto.

Peggy saiu em seguida, quando a última névoa se desfez totalmente. Ela pegou a bolsa e enfiou embaixo do braço, pegando também mais um cobertorzinho e enfiando na sacola de fraldas, e um livro de desenhos que Kieran parecia ter gostado. Ainda ontem seu filho estivera sentado em seu colo, deixando-a virar as páginas e apontar as figuras. Mesmo passando tão mal ele havia tentado falar cachorro. Tinha certeza disso.

Seus olhos se encheram de lágrimas e ela o apertou com mais força.

A porta da frente foi fechada com autoridade. Ouviu passos vindo na direção do quarto e Finn apareceu.

— Deixe-me vê-lo.

Ela não seria tola de recusar. Ela se abaixou, sentando na cama com Kieran em seu colo e Finn agachou-se na frente deles. Viu que ele trouxera sua valise e já havia tirado o estetoscópio para aquecê-lo na palma da mão. Ele pediu a ela que tirasse a blusa do pijama de Kieran, depois sentou-se e observou o menininho respirar.

— Há quanto tempo ele está se esforçando assim? — perguntou ele, depois de um tempo que pareceu eterno.

— Apenas desde que acordou.

— Diga-me o que mais percebeu. Febre, apetite, mal-estar abdominal?

Ela disse a ele tudo o que havia percebido, depois detalhou sua ligação ao consultório de Beck.

Ele falava suavemente com o menino, que permanecia impassível, enquanto ele encostava o estetoscópio no peito de Kieran, comprimindo suavemente ao final de cada movimento respiratório. Kieran contraiu-se uma vez, mas não se afastou, o que era uma prova absoluta de que estava muito doente.

Peggy prendeu a respiração e ficou imóvel enquanto Finn ouvia. Ele se sentou sobre os calcanhares e tirou o estetoscópio dos ouvidos.

— Não há chiados, mas ele está tendo dificuldade de inspirar.

— Não vai olhar a garganta dele? — Ela começou a inclinar a cabeça do menino para trás para que Finn pudesse olhar.

— Não faça isso de forma alguma.

Ela baixou a mão surpresa com o tom da voz dele.

— Por que não?

— Ele foi imunizado de Hemophilus influenza Tipo B?

— Ele tomou a primeira vacina, mas teve uma reação muito forte e resolvi não continuar. Meu médico era ambivalente, mas achei que talvez ele fosse alérgico a algum componente da vacina. Eu...

— Peggy, ouça. — Ele falava calmamente, enquanto sorria para Kieran. — A coisa mais importante nesse momento é não aborrecer Kieran. Está me entendendo? Vamos nos mover lentamente e você irá agir de forma a mantê-lo tranqüilo. Se ele se aborrecer, isso pode causar espasmos na laringe.

— O que há de errado com ele? — Ele olhou para ela.

— Não tenho certeza, mas é provavelmente epiglotite, uma inflamação na epiglote. Precisamos levá-lo até o hospital já.

Ela só havia passado um ano na escola de medicina, mas sabia que essa doença quase havia sido extinta pela vacina Hemophilus influenza. A mesma vacina que ela optou por não continuar.

— Então é culpa minha.

— Não pense nisso agora. O mais importante é que você saiba que isso foi mais que um resfriado e agora temos de fazer algo por isso.

Não era hora de recriminações, mas ela estava devastada. Seria muito melhor se estivesse errada, se Finn lhe dissesse que isso era apenas uma virose passageira, e que os pulmões de seu filho estavam limpos e, assim que a febre baixasse, ele começaria a se recuperar.

— Peggy, consegue levá-lo? Ele fica melhor com você, confia em você. — Finn pegou a sacola de fraldas do chão e a outra, que Irene lhe deu.

— Sim. — Ela pôs a camiseta de volta, por cima da cabeça do filho, depois se levantou calmamente e saiu atrás de Finn, segurando Kieran gentilmente, junto a si.

— Liguei para Nora. Ela está vindo ficar com você — disse ele a Irene, conforme saía em direção à porta, na frente de Peggy.

— Você liga? Assim que souber de alguma coisa?

— Ligaremos. Beck vai nos encontrar lá.

Peggy não seria louca de aborrecer o filho mais ainda. Ela manteve a voz baixa.

— Eu não o quero nem perto do meu filho.

— Ele é um bom médico, Peggy, e por sinal, devia estar certo. Isso deve ter começado com um vírus não relacionado à epiglote. Infelizmente, ele deveria tê-la ouvido quando você telefonou hoje.

Ela estava com muita raiva e muito preocupada para retrucar.

Ele já estava com a porta do carro aberta e o motor ligado quando ela e Kieran chegaram lá fora. Ela deslizou no banco e esperou que ele puxasse o cinto de segurança.

— Ele não soa bem. — disse Finn. — Não quero mentir para você. Eu ligaria para a emergência e chamaria uma ambulância se eles viessem rápido. Mas aqui na área rural às vezes a espera é muito longa. A essa altura a nossa principal preocupação é não causar um desgaste respiratório maior. Sua função é mantê-lo respirando enquanto dirijo. Contanto que esteja consciente, ele estará bem. Mas se apagar, vamos ter que nos preocupar com o seu fluxo de ar. Ajude-o a sentar-se mais à frente, com o queixo estendido. — Ele demonstrou. — Assim.

Ela concordou com a cabeça e Finn saiu com o carro, rumo à estrada. Ela ouvia a dificuldade de Kieran para respirar. Ele começou a sacudir os braços levemente, lutando contra a apatia causada pela febre e o pânico de não ter ar suficiente. Ela falava de mansinho, tentando acalmá-lo, mas sabia que não deveria tentar confortá-lo com gestos como alisar seus cabelos, algo que a maioria das mães teria feito. O mundo de Kieran era diferente e misterioso e o fato de ele a deixar segurá-lo já era um milagre.

Seguiam pela estrada principal, próximo a Shanmullin, quando ele se debateu uma vez, duas, e depois deu um solavanco à frente. Em pânico, ela tentava ouvir o som de sua respiração.

— Finn, acho que ele não está respirando. — Ele não questionou.

— Empurre-o mais à frente e estique o queixo devagar. — Ela concordou, mas ainda não conseguia ouvir o som ofegante que caracterizava a sua respiração até então.

— Ele não está respirando! E está inconsciente. Oh, meu Deus.

Finn não parou. Pisou no acelerador e entrou na aldeia em valocidade.

— Apenas agüente firme — disse ele. — Firme.

— Mas ele não vai conseguir chegar até o hospital.

— Não. — Ele dirigia mais rápido ainda, e virou numa rua lateral. Então ela soube para onde estavam indo. Para o consultório de Finn.

No instante em que ele conseguiu tirar as chaves da ignição, já estava do lado de fora correndo em direção à porta, que abriu violentamente, depois ajudou Peggy a sair do carro, e deixou-a sozinha para a pequena jornada com Kieran inconsciente, enquanto corria na frente para destrancar a porta e acender as luzes.

— Aqui dentro.

Ela o viu na porta de uma sala de exames, ao lado da recepção. O consultório estava impecável. Ele podia tê-lo abandonado, mas naquele momento ela soube que, apesar de tudo que ele havia dito, jamais abandonou a esperança de um dia voltar.

— Coloque-o na mesa, de barriga para cima. — Finn estava revirando as caixas.

— O que vai fazer?

— Temos que fazer uma passagem de ar, e tem de ser agora. Não podemos esperar até chegarmos a Castlebar.

Ela deitou Kieran sobre a mesa. Ele já não estava mais vermelho de febre. Ela reconheceu a cianose. Seu filho estava ficando azul.

Havia trabalhado num atendimento de emergência na época da faculdade e os médicos a levaram para diversas alas, explicando, demonstrando. Ela havia passado um ano incrível na faculdade de medicina.

Seu filho ia morrer.

— Ele vai ter uma parada cardíaca! — Ela debruçou-se sobre ele, dando tapas em seu rosto e chamando seu nome.

— Não se eu puder evitar. — Ele a empurrou para o lado e ficou acima de Kieran. Ela reconheceu o aparelho respiratório na mão dele, mas nunca havia visto um tão pequeno. — Eu já fiz isso antes, Peggy. Nós atendemos emergências no campo, mais do que gostaríamos. Vamos introduzir a passagem de ar, depois oxigená-lo.

— Você tem oxigênio?

— Vamos pôr um saco. — Finn estava concentrado, os lábios apertados. — Use o telefone da frente e ligue para o serviço de emergência. O número está na parede, acima do telefone. Ligue agora.

Ela estava arrasada. Finn havia virado Kieran de lado e começava a inserir o tubo plástico em sua boca. Ele não olhou para cima.

— Vá, Peggy.

Ela entrou correndo na recepção e achou o telefone e o número, onde Finn disse que estariam. Assim que atenderam, ela explicou o que pôde. O homem do outro lado da linha disse que alguém estaria no consultório de Finn o mais rápido possível.

— Eles estão vindo. — Ela parou perto da mesa. Finn estava removendo o tubo. — O que está acontecendo? Porque você...

— A epiglote está muito inchada. Não há como penetrar com essa obstrução. Vamos ter que fazer uma traqueostomia.

— Aqui? — Ela sabia que o procedimento não era uma coisa simples, e envolvia uma incisão na garganta, por onde seria inserido o tubo respiratório. Já havia visto algumas sendo feitas. A cada vez que o anestesista participava do procedimento, um endoscopista era chamado, para o caso de complicações. O procedimento era feito com material esterilizado e anestesia.

— Não temos escolha, Peggy. Dê sua permissão.

Agora ela já chorava de soluçar. Havia feito isso ao filho. Ela não prosseguira com a outra dose da vacina e, mais recentemente, não agiu de acordo com seus instintos, não insistindo para que outra pessoa visse Kieran. Se ele morresse, ela seria a responsável.

— Diga sim! — Finn ordenou. — Mas que droga, Peggy, essa não é a hora de dúvidas. Diga sim!

— É diferente com crianças. Você já fez com uma criança?

— Sim, Peggy, apenas diga sim.

A fisiologia de uma criança era diferente. As necessidades de uma criança eram diferentes. Como seria possível que ele tivesse o equipamento apropriado aqui?

No entanto, de alguma forma, ele tinha. Ela o viu pegar a mão de Kieran e medir seu dedo mindinho junto a diversos tubos, que já estavam posicionados ao lado.

Ela não sabia o que dizer ou o que fazer. Estava fraca de ansiedade.

— Sim — disse ela, com a voz rouca. — Vá em frente. — Parecia ser a escolha errada, mas era a única que Kieran tinha. Sem oxigênio seu coração ia parar. Seu filho morreria bem ali.

Ele fez uma incisão com a velocidade de um raio e num segundo introduziu o tubo entre as cordas vocais de seu filho.

— Pronto — disse ele. — Ali na primeira gaveta você vai encontrar esparadrapo. Traga agora.

Ela não conseguia se mexer.

— Peggy!

Ela pôs um pé na frente do outro, soluçando novamente. Encontrou o esparadrapo e trouxe para ele. Ele estava segurando o canto da boca de Kieran junto ao tubo. Ela cortou alguns pedaços e ele colou rapidamente para que o tubo ficasse fixo, sem sair do lugar. Em seguida, ele deu um passo para trás, examinando o peito de Kieran.

— Ele está respirando, mas vamos colocar o saco para a viagem.

— Ele está respirando?

— Agora, sim.

Ela se inclinou para a frente e viu que Finn estava certo. A pele de Kieran ainda estava azulada, mas enquanto ela olhava, sua cor parecia melhorar.

Ela prendeu outro soluço.

— O que farão no hospital?

— Nós vamos ministrar o soro intravenoso, começando na ambulância. Faremos todos os exames de sangue e radiografias. Provavelmente colocaremos um respirador artificial temporariamente e daremos início ao antibiótico. Muito provavelmente o edema vai desaparecer dentro das próximas quarenta e oito horas. Se for mesmo Hemophilus, talvez tenhamos que fazer uma punção lombar para assegurar que não haja meningite.

— Meningite?

— É o mesmo agente infeccioso.

A porta da frente se abriu e dois homens entraram.

— Que sorte vocês têm — disse o primeiro —, estávamos voltando de um outro chamado.

— E que sorte do menino em ter um médico que não esperou — disse o outro, sorrindo compassivo, olhando para o corpinho imóvel do menino. — Bom trabalho. Isso foi muito além do que poderíamos fazer por ele.

Enquanto um dos homens enrolava um cobertor ao redor dos ombros trêmulos de Peggy, Finn teve uma conversa rápida com eles.

Depois seguiram para a ambulância, Finn carregou Kieran com todo o cuidado, ainda inconsciente.

 

                               Capítulo 38

A visão de seu filho na unidade intensiva, com um respirador artificial, foi provavelmente a mais triste de toda a vida de Peggy. Porém, mais triste ainda seria a visão do velório de sua criança. Isto esteve tão perto há minutos, ou até menos.

Ela sabia que Kieran teria morrido de insuficiência respiratória por causa das decisões que ela havia tomado, se Finn não tivesse sido tão decidido.

— Por um triz ele não está com os anjos — disse uma enfermeira que monitorava os sinais vitais de Kieran. — E o que fez nessa vida, srta. Donaghue, que a fez merecer um milagre?

Peggy tentou sorrir. Alice, a enfermeira, uma senhora com uma permanente nos cabelos e sobrancelhas surpreendentemente cheias passara a última meia hora tentando explicar-lhe a perspectiva de Kieran. Ela nem teria precisado se incomodar. Peggy reconhecia um milagre quando via um, e não era tão desconhecida dos anjos irlandeses. Ela havia visto um em ação há pouco mais de uma hora. Ela pegou outro lenço de papel.

— Finn salvou-lhe a vida.

— É tão bom ter o doutor de volta, sabe. O dr. O'Malley era o preferido. Jamais impulsivo ou condescendente e suas decisões nunca eram questionadas pela equipe. Como dizem em seu país, você tem a sorte dos irlandeses em tê-lo ao seu lado.

— Kieran ainda parece tão mal. — Mas até mesmo Peggy, com a dúvida e o medo, que são sentimentos naturais das mães, sabia que Kieram estava melhorando. Ele estava recebendo oxigênio, fluidos e antibióticos. Haviam-no sedado o suficiente para mantê-lo confortável e, até agora, dormindo. Assim que o inchaço na epiglote cedesse, os médicos certamente iriam desentubá-lo. Com mais sorte, ela e o filho estariam de volta em casa em questão de dias.

— Bem, ele está doente, pobre rapazinho, mas irá superar isso. E aqui está o doutor para lhe dizer.

O quarto não era privativo e as pessoas entravam e saíam desde que eles haviam chegado, menos Finn. Agora Peggy virou-se esperançosa, mas Finn não estava atrás dela. O dr. Beck a encarava. Louro, com traços regulares, ele até podia ser considerado bonito, mas esta noite estava amarrotado e os olhos por trás dos óculos estavam vermelhos, como se tivesse sido arrancado da cama para fazer a viagem até o hospital.

A voz dele tinha um timbre constante e cuidadoso.

— Verifiquei todo o procedimento realizado. Tudo que deveria ser providenciado já foi feito. Foi por pouco, mas ele irá se recuperar.

Ela esperou por um pedido de desculpas, por uma retratação, ou até mesmo algo que desse a entender que ele fora negligente, mas ele deu de ombros enquanto falava.

— A epiglotite é uma doença conhecida por seu desenvolvimento súbito. É muito rara nos dias de hoje e, obviamente, não há meios de prevê-la. Por certo não havia inchaço de nenhuma espécie quando o examinei. Você foi inteligente em levá-lo para o hospital, assim que surgiram os primeiros sintomas.

— Não, eu o levei até você ao surgirem os primeiros sintomas, e isso não foi nada inteligente.

— Sinceramente duvido que as duas infecções estejam relacionadas. — Ele se sobrepôs à sua tentativa de responder. — Mas provavelmente poderemos saber assim que os resultados dos exames ficarem prontos.

— Mesmo que o laboratório mande os resultados com setas em néon apontando diretamente para você, ficarei perplexa se admitir que poderia ter feito mais pelo meu filho.

— Isso não é necessário.

— Não, é parte de minha formação. Você foi bem longe me ensinando que tipo de médica não quero ser. — Ela se virou e foi para perto da cabeceira de Kieran. Uma enfermeira e o técnico laboratorial passaram por eles rumo à outra cama.

Beck baixou o tom da voz.

— É bem-vinda para se colocar em meu lugar, srta. Donaghue. Experimente tratar cinqüenta por cento a mais de pacientes do que deveria e veja como eles irão estimá-la. Tento optar pela qualidade aliada à rapidez. Não foi para isto que freqüentei a faculdade de medicina, mas dar conta do trabalho.

— Exceto esta noite. Esta noite meu filho ficou encurralado em sua armadilha da rapidez.

— Isto ainda será confirmado. — Ele pegou a prancheta com o histórico de Kieran e rabiscou algo, passando-a para Alice, que estivera todo o tempo andando de um lado para o outro ao redor da cama durante a discussão de Peggy e Beck, como se estivesse ocupada demais para perceber o que estava acontecendo.

— Por que está escrevendo no laudo do meu filho? — perguntou Peggy, exigente.

— Sou o médico dele.

— Não. Finn O'Malley é o médico dele. Kieran não estaria precisando de um médico neste momento se não fosse por Finn.

— O dr. O'Malley me pediu para assumir.

Peggy não podia acreditar. Olhou para Alice em busca de confirmação, mas a enfermeira apenas sacudiu os ombros e disse:

— Desculpe, mas não tenho nenhuma informação além do que está escrito aqui. — Ela virou a prancheta para que Peggy pudesse ver. O dr. Beck estava indicado como o médico de Kieran.

— Onde está Finn? — Peggy queria gritar as palavras, mas muitas palavras de raiva já haviam sido trocadas nesta sala. Kieran, mesmo dormindo, precisava de um ambiente calmo ao seu redor, com vozes gentis e amorosas.

— Srta. Donaghue, não é minha função saber o que Finn 0'Malley está pensando ou onde tem intenção de ir. Quando cheguei, ele me transmitiu o que havia ocorrido com seu filho e depois saiu do hospital.

— Saiu? — Peggy não podia acreditar. Finn salvou a vida de Kieran e depois simplesmente o abandonou sob os cuidados de um homem que ela abominava?

— Talvez ele esteja a caminho de casa. Tenho certeza de que sabia que a senhorita pretendia ficar com seu filho esta noite.

Ela não estava bem certa, mas talvez Beck estivesse querendo acobertar Finn, para abrandar o choque por ele ter simplesmente ido embora, procurando fazer parecer com que isso fosse algo compreensível. Este havia sido o comentário mais afável e humano que ela já ouvira desse homem. Mas isso não ajudou nem um pouco.

— Sei. — Ela mordeu o lábio. As lágrimas vieram aos olhos, mas não daria a ele a satisfação de testemunhá-las. — Então posso ficar com Kieran esta noite?

— Nós a incentivamos para que o faça. Vai ser melhor para ele encontrá-la ao acordar. Precisamos mantê-lo o mais calmo possível e faremos com que a senhorita fique o mais confortável possível também. — Ele deu um sorriso enfadonho e nada convincente. — O que receio não ser tão possível assim.

Ele saiu da sala.

— Ele não é nenhum Finn O'Malley — disse Alice —, mas é bastante competente. Agora não se preocupe. Ele irá fazer com que o menino seja bem-cuidado. E, diante das circunstâncias, você irá ter um tratamento melhor do que o habitual.

Peggy queria Finn. Beck, mesmo um Beck tentando se auto-afirmar, não era o suficiente. Aonde Finn teria ido, e por quê? A primeira pergunta não podia ser respondida, mas a segunda era muito fácil.

Finn havia se afastado pela última vez. Ele saíra de sua vida e da vida de Kieran, como se nunca tivesse entrado.

Ela não sabia que estava chorando até que Alice se aproximou e afagou seu ombro.

— Ora, vamos, srta. Donaghue. Vou arranjar-lhe uma poltrona confortável. Precisa beber alguma coisa e dormir um pouco. As coisas estarão melhores de manhã. A senhorita tem tudo para estar feliz.

Finn sabia que salvara a vida de Kieran Donaghue. Tinha agido com determinação, convicto do que fazer em cada ponto ao longo do caminho. Os instrumentos pertenciam às suas mãos. A sala de exames dera-lhe as boas-vindas ao lar. De uma hora para a outra ele havia deixado de ser Finn O'Malley, o trabalhador glorificado e retomado a identidade de Finn Ò'Malley, médico, formado com honras pela escola de medicina da National University, em Galway, sobrevivente de um estágio cobiçado e turbulento, no Hospital St. James, em Dublin.

Marido de Sheila, pai de Bridie, Mark e Brian.

Uma jovem limpava algumas mesas ao redor no Castle Bar e parou na que ele estava sentado, embora ele estivesse tão destacado num canto, que se surpreendeu por ser notado.

— Mais um? — ela apontou para o copo dele.

Ele o ergueu em resposta, ela o pegou e retornou pouco tempo depois com outro cheio até a borda. Ele lhe deu alguns euros e ela agradeceu. Até que era bem bonita, tinha cabelos louros cacheados, presos no alto da cabeça, faces rosadas, busto farto, a ponto de ser comentado por homens que haviam bebido um pouquinho mais do que ele.

Ela arriscou um sorriso, esperando mais tempo do que o necessário. Quando viu que ele não sorriu de volta, se afastou.

Ele não vinha a este pub há anos. Quando deslanchou como médico, passou a vir ao Castle Bar com os colegas para discussões no almoço ou um drinque no fim do dia, antes de ir para casa. Após o acidente ele bebia em casa, depois que Bridie já tivesse ido para a cama. De manhã acordava cedo, antes dela, ainda com a roupa do dia anterior, com a cara amassada na mesa da cozinha, cercado de garrafas. Ele não tinha vontade de conversar e bebia para se entorpecer.

Finn não se achava um alcoólatra de verdade. Ele sentia falta da alienação, não do álcool. Durante seus anos de abstinência, não acordava no meio da noite, ávido pelo torpor do uísque ou pela queimação da vodca. Só desejava esquecer e achava que, se o conseguisse, seria perfeitamente capaz de parar após um ou dois drinques, e seguir para casa em perfeito estado para encontrar sua filha.

Mas esquecer, ele não podia.

Ele ergueu o copo, brindando ao garotinho que havia trazido tudo de volta para ele. Não que a morte de sua esposa e filhos tivesse saído de seus pensamentos, mas ele havia aprendido como pôr de lado o pior, evitar as situações que trouxessem de volta as velhas lembranças e não desafiar sua estabilidade. Essa noite, tudo que ele havia aprendido teria sido inútil. Ele fora empurrado de volta ao mundo que tão habilmente evitara, para salvar a vida do filho de outra pessoa.

Não havia sido capaz de salvar seus próprios filhos, mas salvara o de Peggy.

Ele não lamentava por ter ajudado Kieran. Meu Deus, de jeito nenhum. O pequeno Kieran havia chegado a um mundo alienígena e assustador, e o menininho merecia tudo de bom que seus habitantes pudessem fazer por ele. E Kieran havia sido tão corajoso, tão conformado. No auge de uma doença quase fatal, ele não se comportara como uma criança, principalmente uma criança autista, embora isso fosse esperado dele. Não se debateu nem brigou. Finn pôde olhar dentro dos olhos febris daquela criança e o que viu não foi hostilidade nem medo, mas uma resignação pungente.

Diante da morte iminente de Kieran, Finn foi movido pela honra, e até pelo desespero para salvá-lo. Mas que terrível revés do destino, que o permitiu salvar o filho de Peggy e condenou seus próprios à morte.

Ele ainda podia tomar decisões emergenciais, até aquelas de vida ou morte. A revelação desta noite havia sido tão surpreendente quanto amarga. Ele descobrira que podia agir quando fosse forçado a tomar medidas complicadas e até desesperadas para salvar uma vida. Seu senso de julgamento já não estava debilitado pelo medo e a mágoa. Talvez já não estivesse há algum tempo. Se quisesse voltar a exercer a medicina, ele poderia. Talvez precisasse de apoio e liderança de um colega até recuperar totalmente a confiança, mas suas habilidades permaneciam aguçadas. Agora não havia mais mentiras ou fachadas sob as quais se esconder.

— Já terminou? — A jovem que havia servido seu copo estava de volta mais uma vez. Ele ficou surpreso a ponto de olhar para a mesa onde o copo vazio aguardava para ser reabastecido.

Quantos teria tomado?

— Hora de fechar em breve. — Ela sorriu para ele. — Você pode não ter outra chance.

A hora de fechar era apenas uma ficção da cabeça de alguns oficiais locais, mas não quis arriscar, talvez neste pub isso fosse seguido à risca. Ele acenou com a cabeça concordando e ela levou o copo, deixando um lugar vazio para onde ele ficou olhando.

Um outro homem dirigiu-se cambaleando na direção do bar e pôs os dois cotovelos sobre o balcão, não muito longe do canto onde Finn estivera sentado.

— Não posso mais beber, Sean — dizia ele ao garçom. — Bebi um a mais. Não vou conseguir andar em linha reta ao voltar para casa hoje.

Finn tentou ignorá-lo, mas a voz do homem era alta e rude, e logo foi respondida por Sean, que tinha uma voz quase igual.

— Você nem vai andar, se não comer alguma coisa — disse Sean. Ele tinha um rosto comprido e estreito, como um personagem de Dickens, e olhos expressivos, que combinavam. — É melhor comer alguma coisa antes de ir. Umas batatinhas ou biscoitos. O que vai ser?

— Você está querendo me envenenar?

— Estou tentando enxugar o veneno.

— Bem, com um ou dois biscoitos você não vai me querer aqui.

— De qualquer forma, quem disse que eu quero?

— Sou alér... alérgico a grãos, sou sim, e nada muda isso. Trigo me faz tão bem quanto arsênico, sabe?

— E o que acontece quando você come?

— Viro um selvagem. — Ele bateu com os dois punhos no peito. — Parece que levei um chute no estômago. Por que acha que bebo rum em vez de uísque irlandês? Porque é feito de grãos, não é?

— Selvagem? — o garçom riu. O homem pareceu ficar sóbrio.

— Tentei me matar quando fiquei muito mal. Não conseguia pensar em outra coisa a não ser nisso. Mas sumiu tudo quando comecei uma nova dieta.

Sean não pareceu convencido, mas deu-lhe um pacote de salgadinho e acenou recusando o pagamento.

— Não quero nenhum selvagem aqui.

O homem sorriu e cambaleou ao longo do balcão do bar, onde um grupo de amigos abriu espaço para ele.

A diversão de Finn havia terminado e um novo copo surgiu à sua frente. Ele pagou e, novamente, não incentivou a conversa. A jovem desistiu e seguiu seu rumo.

— Doença do cel... celíaco. — Finn olhava para o copo cheio à sua frente.

Ele próprio já havia diagnosticado essa doença mais de uma vez, e lembrou-se das mudanças assustadoras que provocavam num paciente, um jovem que estava literalmente definhando de tanta dor que sentia no abdômen após comer. Alguns pesquisadores a chamavam de "Doença Irlandesa" e acreditavam que pelo menos um em cada cinqüenta irlandeses era atingido por ela, embora a maioria das estimativas fosse mais baixa.

Ele não pensara sobre isso há muito tempo, sobre aquele jovem, que se casou e teve filhos depois que sua saúde foi restabelecida. Mais um dos que ajudara. Não queria pensar neles, ou sentir-se responsável, ou pelos pacientes como eles, que também precisavam de seus conhecimentos.

Ele abandonara Shanmullin e todo o povo que contava com ele para ter cuidados médicos.

— Homem selvagem. — As palavras soavam ásperas em seus ouvidos. O pub era um lugar bem barulhento, mas não era o barulho à sua volta que distorcia as palavras. Ele lamentou por não ter uma coleção de copos sobre a mesa, que pudessem lembrá-lo de quantos havia bebido. Mais de três, certamente. Muitos mais.

— Criança selvagem. — Ele não sabia de onde viera essa ligação. Ele parecia não conseguir parar de pensar em Kieran, cujas peculiaridades neurológicas tornariam sua vida difícil. Desde o começo, Finn admirou Peggy por sua paciência diante das crises de Kieran, por seu amor incondicional pelo menino, mesmo sem ele ser capaz de retribuir.

Ao longo de sua carreira, vira outras crianças autistas. Era um fenômeno misterioso, com opiniões e pesquisas conflitantes. Peggy havia se inteirado sobre tudo, com talento ambivalente de mãe e médica, criando seu próprio programa, a partir das possibilidades mais promissoras. Ela merecia ser admirada por isso, assim como por tantas outras coisas.

Ele quase podia ver Kieran agora, da maneira como a criança — na verdade mais que um bebê — o havia encarado esta noite, como se dissesse: Estou passando por maus pedaços, mas isso vai acabar, não vai?

E quase acabou mesmo.

Algo o balançou, algo que ele não conseguia identificar — embora isso não fosse de espantar, considerando-se o que ele havia feito pelas últimas duas horas. Kieran estívera diferente esta noite, não apenas por estar tão doente, mas porque parecera "estar ali". A criança que tantas outras vezes parecera ausente, alheia, trancada em sua célula particular. Mas hoje, apesar de tão doente...

— Criança selvagem...

Não, ele não fora selvagem hoje. E algo relacionado a isto parecia familiar. Finn já vira Kieran desse jeito antes, Ele tentava se lembrar, mas seu cérebro estava funcionando em câmera lenta. Ele havia visto antes...

Quando nasceu um dente de Kieran. Agora ele se lembrava. A criança estivera manhosa, do jeito que os seus filhos também ficaram, ao passar pela mesma experiência. Mas ele também pareceu mais propenso a ser pego no colo, mais afável, mais ali.

Ele dissera a palavra em tom alto, mas não ligava. Por que deveria se importar com isso, ou com qualquer outra coisa? Ergueu o copo a isso, brindando no ar novamente. E daí que Kieran parecera mais focado esta noite e naquele momento isolado do passado? Nas duas vezes ele estivera doente, numa delas, bem mais do que na outra. Mas obviamente a doença teria escoado toda a sua energia e o resto era ilusão. As pessoas viam o que queriam, mesmo os ex-médicos, que se vangloriavam de lógica e senso de observação.

Mas teria sido ilusão?

Finn parecia não conseguir se desprender disso. Sim, possivelmente a doença de Kieran seria a razão por ele parecer diferente, mas não seria mais provável que a doença intensificasse o seu comportamento habitual? Que em vez de deixar Peggy segurá-lo e confortá-lo, ele não deveria ficar ainda mais arredio?

Ele lamentava ter os pensamentos tão confusos. Um bolo se formou em sua garganta e por um instante achou que ia chorar, como qualquer bêbado. Só faltava começar a cantar "Danny Boy".

— O que mais... poderia ser?

Suas palavras soavam ainda mais enroladas agora, mas ele não ligava. Parecia um cachorro roendo um osso velho. Não havia mais nada de interessante, mas ele não conseguia largar. O que mais? O que mais?

Kieran estava doente. Kieran estava com febre... Ele descartou isso como a causa. A dentição ocasionava apenas uma febre baixa, se tanto. Kieran teve dor... Isso também estava associado à incoerência mental. A dor não tornava as crianças mais amáveis, mais alertas.

As duas vezes Kieran havia dormido pouco, mas isso não teria nada a ver. Talvez a fadiga obscurecesse os limites de seu autismo, mas era pouco provável.

Ele não havia comido.

Finn olhava fixamente para a mesa, como se as peças se encaixassem. Agora entendia por que a doença de celíaco despertara seu interesse e por que a sua mente havia estabelecido uma ligação entre o homem e o pequeno Kieran.

Ele se esforçava para lembrar de um artigo que havia lido no ano anterior, em um de seus informativos médicos. Não havia cancelado as assinaturas, assim como não abandonara seu consultório. Ele os recebia e tarde da noite os folheava, lendo alguns artigos, olhando outros por alto.

Era um farsante e mentiroso, um homem que não conseguia se resolver quanto a ser outra coisa, exceto talvez um assassino daqueles que mais amava.

O artigo...

Tentou lembrar a pesquisa, a síndrome. Algo sobre trigo, algo semelhante ao celíaco em crianças autistas. Porém havia mais.

Pousou a cabeça nas mãos, esforçando-se para lembrar.

Pareceu imperativo lembrar agora, e não mais tarde, quando ele podia ir para casa e encontrar o artigo.

— Pense!

Não apenas trigo, mas leite também. Grãos e leite. Uma dieta sem nenhum tipo de glúten, que é encontrado no trigo e na maioria dos grãos, e caseína, a fosforoproteína encontrada nos laticínios. A evidência era extremamente positiva, embora pouco se tenha pesquisado a respeito. A dieta não ajudava todas as crianças e não curava o autismo, mas realmente parecia afetar algumas delas, a ponto de permitir que voltassem a interagir normalmente.

Até para algumas, que tiveram o diagnóstico do autismo totalmente excluído mais tarde.

— Kieran... não estava comendo.

Olhou para cima e tudo girava. O barulho parecia atingi-lo em ondas, mas ele não ligava. O apetite de Kieran havia desaparecido quando seus dentes começaram a romper e, mais recentemente, quando caiu doente. Ele tinha bebido suco e quase nada mais. Peggy havia enfatizado este detalhe.

— Glúten e cas... caseína.

Peggy conduzira uma experiência da teoria ainda não comprovada e nem sabia. A alimentação de Kieran havia mudado temporariamente. Seu comportamento também.

Até mesmo bêbado — e ele estava bêbado — era um médico muito bom para acreditar que seria tão fácil. Mas viu uma chance. A criança agora estava no hospital e enquanto permanecesse lá, poderiam restringir a sua dieta. Peggy poderia dar continuidade quando o levasse para casa. Eles poderiam acompanhar o seu comportamento, observando progressos. Havia muitas substituições que poderiam ser feitas, sem que a nutrição da criança fosse comprometida. Peggy era o tipo de mãe que seguiria religiosamente, se achasse que o filho poderia melhorar.

Teriam os sintomas do autismo de Kieran surgido depois que Peggy passou a dar-lhe comida sólida, quando talvez ela também tivesse começado a freqüentar as aulas e parado de amamentá-lo?

Finn queria saber. Ele queria saber, mais do que queria ficar aqui e beber mais um, onde estava seguro, onde ninguém lhe pedia nada, a não ser dinheiro. Aqui, onde podia beber até esquecer que era a casca do homem que havia sido.

Ele se levantou e a sala girou. Não ficou surpreso. Havia consumido tanto em tão pouco tempo que precisava sair. Lutou contra o enjôo, segurando na beirada da mesa até que passasse.

E se ele esquecesse? E se ele achasse um lugar para passar a noite e pela manhã sua revelação tivesse sumido para sempre? Pior, e se lembrasse de manhã e descobrisse que havia sido a descoberta de um bêbado, feita de ar e hipérbole? Por um momento, avaliou as duas alternativas.

Havia uma terceira. Ele poderia escrever um bilhete a si próprio, depois, pela manhã, quando estivesse bebendo uma xícara de café para curar a ressaca. Ele poderia analisá-la.

E deixar Peggy sozinha esta noite, sem saber para onde ele foi e por quê. Pensando em como ela pôde ver algo nele, que na verdade nunca existiu.

Baixou a cabeça e a sala girou. A vergonha o dominava e a tontura também.

— Deus... — Ele estava rezando. No que teria ele se transformado, permitindo que sua desgraça pessoal pudesse sobrepor a sua necessidade de ajudá-la?

Ele amava Peggy Donaghue e amava o filho dela. E isso, mais do que qualquer coisa que fizera esta noite, isso o levou a este lugar terrível dentro de si mesmo, e a esse pub cheio de estranhos. Ele estava com medo, com muito, muito medo de amar de novo.

Ele cambaleou até o lado de fora. O hospital não ficava longe. Viera a pé até aqui, saboreando cada passo que aumentava a distância entre eles. Dez minutos depois, chegara ao pub. Se fosse voltar agora, levaria bem mais que dez.

Ele se esforçava para se manter na calçada. Cada passo era uma incógnita a desvendar. Manter-se reto exigia a concentração de um ginasta. Minutos se passaram. Virou uma esquina, torcendo para que soubesse para onde estava indo. Castlebar, que um dia havia sido tão familiar quanto Shanmullin, agora era estranha e ameaçadora, e as ruas, um emaranhado a destrinchar.

O ar da noite não ajudava muito, mas quando finalmente chegou ao hospital, achou que estava mais firme. Arrumou o paletó, conferiu se o zíper das calças estava fechado. Passou as mãos nos cabelos e rezou.

O hospital parecia um labirinto de corredores e quartos. Ele parou na recepção e oscilou sobre os pés. O elevador não ficava longe e ele percorreu o caminho com apenas um resquício de pretensa dignidade, que o mantinha ereto. Por sorte, estava sozinho e assim permaneceu até chegar ao andar que queria. Tropeçou ao sair do elevador e quase caiu. A humilhação o dominou, mas ele prosseguiu pelo corredor, trombando contra a parede ao se desviar de um carrinho. Por sorte era tarde e o hospital estava quase vazio.

A não ser por um homem muito conhecido que ia em sua direção.

— O'Malley? Pensei que tivesse ido embora. — Joe Beck parou à sua frente e franziu o rosto. Olhou para Finn e sua expressão transformou-se em desgosto. — Você está caindo de bêbado, não é? — Beck olhou em volta e, não vendo mais ninguém, puxou Finn para a porta mais próxima, que por acaso era um depósito de lençóis.

Finn deixou-se conduzir sem contestar. Ele estava muito vacilante para se impor.

— Olhe para você — Beck sacudiu a cabeça. — Temos que tirá-lo daqui antes que mais alguém veja o que estou vendo.

— Eu vou ver... Peggy.

Finn tentou pegar a porta, mas Beck se pôs em frente a ela.

— Não aja como um verme. Você acha que algum dia deixarão que você trabalhe aqui novamente se alguém o denunciar? Caso você tenha se esquecido, bêbados não são bons médicos.

— Kieran Donaghue...

— É meu paciente. Sou o médico na ficha e você não vai chegar nem perto dele agora.

Finn tentou empurrá-lo, mas Beck o empurrou de volta. Finn caiu sobre uma estante, que trepidou, derrubando uma pilha de toalhas no chão.

— Escute! — disse Beck, insistente. — Estou tentando ajudá-lo.

— Kie... Kieran Donaghue tem... — Finn não conseguia articular a língua nem para pronunciar a mais convincente das explicações científicas, nem para mostrar que tinha razão. — Apenas escute... — A palavra saiu como "eschhcut". Mas ele não estava tão bêbado a ponto de deixar de sentir vergonha de seu estado.

Beck interrompeu.

— Kieran Donaghue está bem agora. Você fez uma coisa boa hoje. Você sempre foi o melhor. Sabia que tem um dom que o resto de nós sempre invejou? Eu queria ser tão bom quanto você. E agora? Agora está cambaleando, como um bêbado tolo. Está desperdiçando o talento que Deus lhe deu. Está sujando a profissão. Você me dá nojo.

— Kie... ran pode ser alér...gico a grãos e leite. — Finn ficou orgulhoso por ter conseguido formular a frase. — O aut...autismo pode der...

— Vá para casa, Finn! — Beck baixou o tom de voz e de repente a raiva passou. — Pare de tagarelar. O seu cérebro não está funcionando como deveria. Kieran está num respirador. Nesse momento, que diferença faz se ele é alérgico a alguma coisa?

— Eu preciso... dizer para Peggy.

— Você quer mesmo que ela o veja assim?

Finn baixou a cabeça, que mais parecia pendurada. O que ele havia feito? Tinha a melhor das notícias para Peggy, mas arruinara sua chance de contá-la. E por que viera? Beck estava certo, é claro. Ao vir, Finn estava arriscando seu futuro. Ele nem sabia se ainda tinha futuro, mas queria ter a opção. Mas que droga, ele queria a opção.

— Olhe. — Beck pôs a mão no ombro de Finn. — Vou procurar um assistente e depois vamos tirá-lo daqui sem que ninguém o veja. Sei de um lugar onde você pode dormir até melhorar. Ninguém precisa saber.

Finn ergueu os olhos. Mesmo agora via que Beck estava tentando ajudá-lo.

— Por quê? — Beck o encarou.

— Porque cometi um erro com aquele menino e você teve que consertar. Eu deveria ter feito uma cultura, como a srta. Donaghue pediu. Epiglotite pode ser...

Finn sacudiu a cabeça, uma péssima idéia nessas circunstâncias. Por um instante pensou que ia desmaiar.

— Você não tomaria outra decisão... Beck. Mesmo que tivesse de fazer de novo. Você fez... o que achou ser o certo.

Suas próprias palavras atravessaram o torpor alcoólico. Ele podia estar falando dele mesmo. Naquele momento isso ficou tão claro para ele como se todos os anos de remorso e vergonha não tivessem assombrado a sua alma. Assim como Beck, ele não teria, não poderia ter tomado uma decisão diferente.

Se estivesse na água com seu dois menininhos agora, mesmo agora, sabendo o que sabia sobre o desfecho, ele ainda faria o que fez naquele dia, há dois anos. Tentaria salvar os dois. O que mais poderia fazer qualquer pai? Com que outra escolha poderia conviver?

— Eu realmente pensei estar certo — disse Beck. — Mas talvez estivesse errado.

— Na próxima vez... ouça.

— Isso vai me perseguir para sempre.

— Você não pode voltar no tempo. — Finn ouviu suas próprias palavras e soube que, bêbado ou não, ele jamais havia dito — e jamais diria novamente — algo tão profundo. Era uma verdade simples e inevitável. — Você não pode voltar. — Ele ergueu os olhos para Beck. — Era tudo que eu pensava... Era tudo que eu mais queria desde o acidente, sabe. Voltar...

Beck, um homem impassível, um homem que raramente via as pessoas como qualquer coisa além de corpos a serem curados, engoliu com força. Seus olhos encheram de água.

— Eu sei, Finn. Todos nós sabemos e lamentamos muito.

 

                         Capítulo 39

Finn nunca havia chorado pela família. Já estava quase morto quando o resgate o encontrou após o acidente. Depois vieram os enterros, o estado emocional de Bridie, a venda da casa onde não suportaria mais morar, a tentativa de reduzir seu trabalho como médico e depois o abandono da profissão.

E, por último, horas e horas de bebedeira para aliviar a dor.

Na manhã após ter salvado a vida de Kieran, Finn olhou para um espelho estranho, vendo um homem que estava apenas começando a conhecer. Na noite anterior Beck havia convencido uma tia solteirona a ceder-lhe seu quarto de hóspedes.

Era uma pessoa sem muitas palavras, com uma casa asseada demais e não gostava de fofocas. Ela o pôs na cama e disse onde ficavam as toalhas limpas. Depois o deixou sozinho no quarto enorme.

Apesar de seu estado de embriaguez, ele não dormiu logo. Quando a srta. Beck fechou a porta ele chorava compulsivamente. Pensou em tudo que havia perdido, depois, um a um, ele os deixou descansar em paz. A sua Sheila, linda e celestial, O pequeno Mark. Seu bebê Brian. A vida que viveram juntos. O homem que ele foi um dia. Tudo se foi para sempre, para não voltar nunca mais.

Ele jamais poderia voltar.

Acordou num mundo que não conhecia, sentado num quarto desinfetado, sentindo-se como se tivesse vivido no corpo de um estranho. Como ele viveria agora? Desde o acidente, cada manhã começava com remorso. O remorso era o seu companheiro no café da manhã. Almoçava com ele, deixava que se sentasse entre ele e sua amada filha, para o jantar. Sobrevivera ao acidente, mas não era feliz por isso. Com a maneira mágica de pensar de uma criança, desejava ter de volta o que perdera, se agarrara às lembranças para se punir, como se ao fazer isso, pudesse acordar um dia e ver que tudo não passara de um pesadelo.

E agora precisava começar essa manhã como um homem novo, diferente. Um homem com outra vida, sim, mas com o direito de ter outra chance de ser feliz. Jamais poderia trazer de volta o que perdera, mas podia seguir em frente.

Encarava o homem no espelho do banheiro. Olhos vermelhos, rosto também, a barba por fazer. Percebeu que sua anfitriã estivera ali antes dele. Um barbeador descartável, uma escova de dentes nova, um sabonete também.

Ele quase sorriu. Precisava de um lugar para começar. Simples assim. Antes de mais nada, as primeiras coisas. Fez uma oração silenciosa, agradecendo.

Peggy sentiu-se melhor após tomar um banho rápido no final do corredor onde seu filho estava. Vestiu roupas limpas que trouxera. As enfermeiras foram mais do que gentis. Cuidaram dela como se também fosse uma paciente. E cuidaram maravilhosamente bem de seu filho.

Agora ela estava ao lado da cama, olhando para ele.

Estava a sós com ele pela primeira vez. Os outros haviam ido para a sala de radiografias, ou foram removidos para unidades de gravidade menor.

A cada vez que olhava para Kieran ele parecia melhor. Sua cor havia melhorado imensamente. O dr. Beck havia passado por lá às sete para examiná-lo e dissera que se o inchaço continuasse a diminuir ele poderia ser desentubado à noite. Ela não perguntou mais por Finn. Não fazia sentido. Ele havia tomado a sua decisão e deixou isso bem claro.

Ela tinha tanto a agradecer. Finn salvara a vida de Kieran. Talvez daqui a cinqüenta anos essa seria a única coisa de que se lembraria em relação a ele.

— Ele parece bem.

Ela rodopiou com o som da voz de Finn. Estava perplexa com sua presença, como havia ficado com a sua ausência, na noite anterior.

Finn caminhou até a lateral da cama e pegou a prancheta, folheando as páginas, verificando o resultado dos testes. Ele balançou a cabeça.

— Exatamente como eu esperava. — Ele ergueu os olhos. — E a mãe de Kieran também parece melhor. Você dormiu um pouco?

— O que você está fazendo aqui?

Ele não respondeu logo. Pegou a caneta no bolso da camisa e tirou a tampa. Fez uma anotação na prancheta. Depois mostrou a ela. Ele havia riscado o nome do dr. Joseph Beck e substituído pelo seu.

— A ficha deve mostrar que sou o médico de Kieran. — Ela estava zangada, frustrada e terrivelmente confusa.

— Finn, não vou mais agüentar isso. — Seus olhos encheram-se de lágrimas. Ela já estava cansada de chorar, mesmo assim as lágrimas vinham.

— Apenas dê permissão como médico dele — disse Finn. Ela concordou com a cabeça, porque falar tornou-se impossível no momento.

— Saí daqui ontem e fiquei completamente bêbado — disse ele. — Ê naquele estado algo me ocorreu.

— Você começou — ela respirou fundo — a beber de novo.

— Não. Caí na realidade. Hoje à noite eu vou aos Alcoólicos Anônimos. Amanhã vou ver o padre. Já era hora, não?

— Padre?

— Para me ajudar a lidar com o que for preciso. Eu... eu acho que não queria me sentir bem até agora. Agora sei que quero.

Ela não sabia o que dizer. Ele não parecia firme sobre os pés. Por outro lado, nunca o vira tão bem. Mais relaxado e ao mesmo tempo mais determinado.

— Quanto a Kieran — disse ele —, ir até o pub foi bom pelo menos por uma coisa. Ouvi uma conversa que me fez pensar. Peggy, você já ouviu sobre a dieta de glúten e caseína para crianças autistas?

Ela estava tendo dificuldades para se concentrar. Finn, um Finn diferente estava de volta à sua vida, depois de despedir-se dele duas vezes. E ela estava indecisa de novo.

— Há uma teoria. — continuou ele. — É um pouco complicada, mas depois podemos explorá-la. Diz que a ausência da ingestão de certas proteínas cria níveis elevados de peptídio. A teoria diz que esses peptídios são biologicamente ativos e em alguns indivíduos pode até causar os sintomas do autismo.

Agora ela estava repassando mentalmente milhares de páginas dos documentos que havia lido depois do diagnóstico de Kieran.

— É familiar, mas descartei. Resolvi usar uma dieta sem aditivos. Essa sem trigo e leite não me pareceu saudável e a maioria dos estudos não oferece garantias, não é?

— Isso é porque o problema é mais tóxico que alérgico. Está mais para um veneno do que uma sensibilidade. E tem um efeito alucinógeno no cérebro.

— O que está dizendo, Finn?

— Estou dizendo que o comportamento de Kieran melhorou notoriamente nas duas últimas vezes em que ficou doente. Primeiro por causa dos dentes e depois quando aconteceu isso. — Ele acenou para a cama. — Nas duas vezes ele parou de comer. Ele estava bebendo suco ou água e quase mais nada. Estou certo?

Ela tentou lembrar. Achou que talvez ele estivesse certo.

— Mas será que isso não pode ter sido simplesmente pela doença? Ou talvez só uma coincidência?

— Vamos descobrir. Faça uma dieta para ele sem trigo e laticínios por três meses, Peggy. Este é o tempo sugerido para ver se funciona. Vou ajudá-la a listar o que ele pode comer. Vamos observar o comportamento dele e ver se a nova alimentação surte algum efeito. Não estou dizendo que acredito que terá, nem mesmo que isso irá curá-lo. Apenas estou dizendo que pode ajudar, que temos evidência de já ter ajudado, mesmo sem intenção. E acho que tudo que ajuda, mesmo que só um pouquinho, vale a pena tentar. Está disposta?

Sua mente estava zumbindo, o coração se enchia de esperança, como aconteceria sempre que ouvisse sobre algo que pudesse ajudar seu filho.

Mas seus ouvidos escutaram uma palavra que ela não esperava ouvir novamente.

— Nós? Nós vamos observar o comportamento dele? Nós vamos colocá-lo numa dieta e ver o que ele pode comer? O que é esse nós?

Ele deixou a prancheta e veio até ela. Seus olhos estavam tristes e ele não sorriu.

— Não sou grande coisa. Tenho muito a fazer antes de sair da minha escuridão emocional. Mas, pela primeira vez, estou no caminho certo. — Ele pegou as mãos dela. — A última vez em que me apaixonei perdi quase tudo. Mas assim como outras decisões, também não pude mudar isso. Nem mesmo com toda a dor que me trouxe.

— A última vez, Finn? — Agora ele sorriu.

— Deixe-me arrumar a minha vida. Deixe-me vir até você por inteiro.

— Vir até mim?

— Para dizer todas as coisas que não devo dizer agora. Quero que você as ouça quando sentir firmeza em mim.

Ela sentia agora. Achou que sempre sentira, mesmo nos últimos dias, que foram uma verdadeira provação. Estava certa de que aquele Finn que todos haviam conhecido voltaria um dia. Certa de que ele era o homem que havia esperado para amar.

E também tinha certeza de que ele estava certo. Ele precisava se encontrar sem obstáculos. Precisava ter certeza de que queria amar de novo.

Ela achava que podia esperar o tempo que ele precisasse.

— Mas você vai estar por perto? — Ela apertou as mãos dele. — Para me ajudar com a dieta de Kieran?

— Tanto quanto você me deixar, Peggy-o. Não há nenhum outro lugar onde eu queira estar.

Então ela o beijou. Era a coisa natural a fazer e pareceu tão certo. Ele grudou-se nela, puxando-a contra si, como se tivesse tido medo de tê-la perdido também. Ela sentiu o calor do corpo dele, a força e o carinho do abraço.

Peggy achava que não teria de esperar muito.

 

                         Capítulo 40

Megan entrou na casa da Hunter Street e do corredor olhou os cômodos, com as portas abertas. Ela não sabia o que ia encontrar com três gerações de homens sem nenhuma mulher por perto, mas a casa parecia do mesmo jeito. Limpa, arrumada... seu lar. Sentia-se mais do que grata.

— Niccolo? — Ela não havia ligado para avisar que estava voltando, o que acabou sendo uma ótima decisão, porque a viagem foi prolongada por causa do mau tempo e greves da companhia aérea. Agora sua voz ecoava nos cômodos vazios.

Niccolo não estava em casa. Ela se permitiu um momento de cinismo, é claro que ele não está, ele nunca está em casa, mas parou. Não tinha como saber que ela chegaria hoje. Até ela mesma havia perdido a esperança de chegar. Então por que deveria achar que ele a estaria esperando de braços abertos?

Deixou a mala no corredor e entrou na cozinha. Era meia-noite na Irlanda, mas seu apetite já estava em Cleveland, gritando pelo jantar. Abriu a geladeira e tirou o que pareciam sobras recentes. Nada que Niccolo fazia durava muito tempo. Rooney ficou conhecido por comer as sobras do tortelini de Nick, na própria vasilha da geladeira.

Ela encontrou espaguete com molho de mariscos e pôs um pouco numa tigela, depois a colocou no microondas. Outra vasilha tinha salada, que resolveu comer também. Sentada junto à mesa olhou a refeição solitária e sentiu uma ponta de irritação. Tinha tanto a contar ao marido e ele não estava aqui para ouvir. Pensou se ele teria se sentido assim quando ela o abandonou. Ninguém para conversar, sem chance de reparar o que estava errado.

A porta da frente se abriu e ela ouviu passos no corredor.

Espiou pela porta, esperando ver Nick.

Em vez dele, surgiu Rooney, vestindo calças limpas, porém amassadas e sua camisa pólo verde favorita. Ela achava que a camisa o fazia lembrar do salão, onde os funcionários usavam camisas verdes.

O rosto dele se acendeu num sorriso ao vê-la. Como ela nunca sabia pelo que esperar, se sentiu recebida com carinho.

— Voltou... — ele balançou a cabeça.

Ela ficou satisfeita por ele ter se lembrado de que ela estivera longe.

— Como vai você, Rooney?

— Estou bem.

Ela apontou para um lugar à mesa e se levantou para servi-lo do que estava comendo.

— Está com fome?

Ele enrugou a testa, concentrando-se. Às vezes até as coisas mais simples exigiam esforço.

— Acho que sim.

— Bem, então vou servi-lo. Sente-se. — Ela pegou as mesmas tigelas na geladeira e uma lata de refrigerante para acompanhar. Serviu num copo de gelo, enquanto a comida esquentava. — Sabe onde está Josh? — Ela lhe deu o refrigerante, depois foi até o balcão para temperar a salada. — Ou o Nick? — perguntou, da forma mais casual possível.

— Josh... — Ele deu dois goles. Sempre se esquecia de beber algo ao longo do dia, e uma das tarefas de Megan era mantê-lo hidratado. — Acampado. — Ele sorriu, satisfeito por saber a resposta.

Ela estalou os dedos.

— É isso mesmo. — Josh havia iniciado o último ano e as aulas começavam com um acampamento de uma semana em um parque estadual. Ela lamentou por não estar lá para ajudá-lo a se preparar. Esperava que Niccolo tivesse feito isso.

— Arranjou um saco de dormir novo — acrescentou Rooney. — Macio. Disse que é quente.

Parecia que Niccolo cuidara de tudo. Ela ficou feliz em saber.

— E o Nick? Você sabe onde ele está? — repetiu ela.

— Sentiu saudades de você.

Ela desviou os olhos da salada para Rooney.

— O que você disse?

— Sentiu saudades de você. Ficou se lamentando como um adolescente.

Ela encarou o pai. Rooney estava bem melhor, mas esse tipo de observação era raro. Ele parecia viver mais em seu mundo particular.

— Foi mesmo? Fico contente em ouvir.

— Senti saudades de sua mãe. — Ela foi para a mesa.

— E você se lembra disso?

Ele pareceu intrigado, como se aquela fosse a pergunta mais tola que já ouvira.

— Ainda sinto saudades dela. — Ele pegou a salada da mão dela. — Você acha que passa? A saudade?

Os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Não, claro que não. Desculpe se pareci surpresa. Eu também sinto saudades dela, sabe.

— Você é como ela. Ainda bem. — Ele começou a comer a salada.

Megan sentou-se novamente.

— Rooney, você teve um bom casamento, não é? Mesmo com os problemas que teve?

— Nada fácil para ela. Sei disso. Algo de errado comigo. Ela me amava mesmo assim.

Megan cobriu a mão dele com a sua.

— Amava sim. E nós também amamos.

— Eu sentia saudades dela todo dia. Era difícil levantar de manhã.

Megan pensou por que nenhum deles dera crédito a Rooney por aqueles sentimentos tão profundos. Às vezes ele não era capaz de articulá-los, outras, provavelmente, não tinha consciência deles.

Mas a falta de Kathleen Donaghue fazia parte da vida dele como o ar que respirava. Ela sentiu renovado o amor pelo homem que era seu pai.

— O que fez o seu casamento ser bom? Você sabe? — O microondas soou o alarme e ela foi pegar o prato dele, enxugando os olhos com um guardanapo.

Ele riu como fazia ao achar uma pergunta tola.

— Amor.

— Sim, claro. Essa parte eu sei. Mas é preciso mais que isso, não é? Você pode amar alguém e ainda não ser capaz de entendê-lo, não? — Ela serviu o espaguete e ele abandonou a salada para atacá-lo, enquanto ela se sentava.

Ele já estava na metade do prato quando respondeu:

— Você fala, ela ouve. Ela fala, você ouve. — Ele ergueu os olhos, com molho de mariscos no queixo. — Nada de difícil.

Megan imaginou se poderia ser tão fácil assim. Ela e Niccolo ainda não haviam alcançado esse patamar. Ele falava, mas será que ela realmente ouvia? Ou ouvia somente as coisas que sabia que ele diria?

E como ele poderia ouvir as coisas que de fato a incomodavam, se ela nunca tomou coragem para contá-lo?

— Muito sábio. — Ela olhou para o prato. Perdera o apetite. Rooney, por outro lado, terminava rapidamente. Ele se levantou alguns minutos depois e levou os pratos até a pia. O gesto a comoveu. Rooney estava em um de seus momentos mais lúcidos e ela adorava cada segundo.

— Peggy ligou. — Ele foi saindo.

Ela pretendia ligar para a irmã assim que fossem sete da manhã na Irlanda. Agora lamentava por não ter ligado logo. Peggy provavelmente estaria pensando por que Megan ainda não chegara em casa. Esperava que a irmã tivesse falado com Jon, porque Casey o mantivera informado sobre os atrasos.

— Kieran esteve doente, mas agora está melhor — disse Rooney e saiu da cozinha.

Megan ficou olhando para ele. Achava que não ficaria sabendo de mais nada dele. De qualquer forma, já sabia o necessário.

A porta se abriu novamente. Ela não a ouviu fechar e Niccolo estava ali em pé. Ela olhou e ele abriu os braços. Ela saiu correndo para abraçá-lo.

— Você ficou longe tempo demais — disse ele, com a boca nos cabelos dela. — E senti sua falta desde o instante em que partiu.

— Oh, também senti a sua, mais do que posso dizer.

— Você podia tentar.

— Que droga, Nick, o que o casamento fez comigo? Quando não estamos juntos parece que falta uma parte de mim.

Ele a afastou, para poder ver seu rosto.

— Eu também.

— Eu sei por que nós estamos com problemas.

— Eu também.

— Primeiro eu, está bem? Rooney já me esclareceu.

— Rooney?

Ela se deleitava olhando o rosto dele. Ele parecia cansado, mas lindo. Ela imaginou que ele teria trabalhado sem parar desde que ela partira.

— Em poucas palavras ele me disse que o segredo para um bom casamento é quando uma pessoa fala e a outra escuta. Percebi que nenhum de nós dois sabe fazer isso. Eu só resolvo problemas. Ponto. Ouço a mim mesma e somente eu, pois por muito tempo era só o que tinha. — Ela sorriu e passou-lhe a mão nos cabelos.

— Megan, sinto dizer isso, mas sempre houve gente para você ouvir. Você é que nunca quis.

Ela tremeu.

— Está bem. Mas acho que concordamos que a independência era mais importante para mim do que para as garotas que crescem numa família mais normal.

— Eu certamente concordo.

— E você, Nick, foi ensinado a ouvir apenas uma voz.

— A de Deus. Sim — concordou. — Ouvir uma esposa não estava no programa letivo do seminário.

— Sinto muito — disse ela. — Achei que estava ouvindo, mas tudo que ouvia era que você estava mais interessado em seu trabalho e em mostrar o túnel às pessoas do que em mim. Nunca ouvi os seus motivos e nunca lhe disse que estava levando para o lado pessoal. Não com todas as letras.

— Megan... — Ele tocou-lhe o rosto. — Eu cairia aos seus pés se você deixasse. E estava fazendo todo aquele trabalho por acreditar que isso é o que os maridos fazem. Eles são os provedores das esposas, mesmo que elas não precisem. Estava levando nosso casamento da mesma forma que fazia com a igreja, tentando fazer tudo ao mesmo tempo, para que desse certo. Lamento.

Ela o agarrou pela camisa e puxou para perto. Depois o beijou. Forte. Embora aquele esforço tenha consumido toda a sua energia.

Após instantes, finalmente se afastou.

— Precisamos ter um tempo toda semana para nos concentrarmos somente em nós. Talvez sair para jantar, onde ninguém possa perturbar e falar sobre as coisas importantes. E prometo que vou dizer como me sinto, de verdade. Depois, mesmo que você esteja atolado o resto da semana...

— Não vou ficar atolado.

— Por que não?

— Resolvi parar de tentar levantar fundos para a Tijolo. Teremos que nos virar com o que é doado pela Sta. Brígida e pelos investidores locais. Quando surgir uma situação adequada, sem vínculos que exijam abrir mão do meu casamento e da minha esposa, então posso ampliar. Enquanto isso, fico satisfeito com as coisas como estão.

Ela pensou em todos os garotos que precisavam da Tijolo e agora não teriam acesso. Pensou em contestar, mas ele a silenciou com um beijo.

— Pensei muito nisso. A Tijolo não fará nenhum bem a ninguém se o seu diretor estiver exausto e solitário, Megan. É isso.

Ela pensou no que poderia fazer em retribuição e a resposta veio logo.

— Talvez você possa acabar com essa busca por recursos, pelo menos por enquanto. Mas não quero que pare com as visitas ao túnel. Sinto não ter levado mais na esportiva. Fiquei com tanto medo que você quisesse voltar a ser padre que não conseguia enxergar que só queria ser um pastor. Ajudar outras pessoas a ver Deus está em você. Não precisa vestir uma batina para fazer isso, nem ter uma igreja cheia de gente, mas precisa se sentir livre para fazê-lo quando sua alma pedir.

Os olhos dele refletiam seu prazer. Ele pegou as mãos dela e apertou.

— Obrigado.

Havia muito mais coisa que ela queria dizer, mas de imediato as primeiras coisas.

— Você gostaria de ir até lá em cima comigo? Vou tomar um banho e ir para a cama. Quer ir comigo?

Ele levou as mãos dela aos seus quadris.

— Mais do que você imagina, mas antes quero que veja algo. Tem energia para dar um pequeno passeio de carro?

Ela não sabia se deveria ficar empolgada ou decepcionada.

— Claro, se você acha importante.

— Acho que você vai ficar contente em ir.

— Deixe-me lavar o rosto primeiro.

Cinco minutos depois, estavam no novo Ford Focus de Niccolo, que havia substituído o Honda destruído pelo furacão. Quando ele virou a primeira esquina, ela já sabia onde estavam indo.

— Você terminou a reforma? — Ela se inclinou ligeiramente para a frente, como se isso pudesse fazer com que eles chegassem mais depressa.

— Você vai ver.

— Surpresas me irritam. — Ele deu um sorrisinho.

— Vou precisar lembrar disso na próxima vez.

— Quanto você dormiu nas últimas vinte e quatro horas?

— Está bem, está bem... — Ela se reclinou e fechou os olhos.

Ele estacionou onde antes ficava a árvore. A vaga estava marcada com o nome dela. Só havia espaço para um carro.

— Que legal — disse ela. — Minha própria vaga. Nunca tive uma.

— Eu sei e isso foi um erro. Agora tem.

— Obrigada. — Ela saiu e notou a jardinagem, plantas ainda pequenas, mas bem verdinhas e vasos de terracota cheios de crisântemos em tons de bronze e ferrugem. Era bem diferente de estacionar ao lado de uma caçamba de lixo enferrujada. Outro universo. — Você fez isso só para mim?

— Eu disse que cairia aos seus pés, se deixasse.

— Gostei muito, obrigada. — Ela lhe deu um abraço rápido.

— Venha ver o resto.

Ela o seguiu, enquanto ele destrancava a porta dos fundos. A cozinha já estava pronta antes de sua partida, mas agora ela via os novos acabamentos. Páginas coloridas, tiradas de revistas do século XX foram emolduradas e preenchiam quase todo o espaço da parede, ao lado de receitas e avisos. Uma delas era uma receita, passo a passo.

— Oh, onde as conseguiu? São perfeitas.

— Eu vi as revistas numa loja de Lorain. Comprei uma dúzia.

— Você é tão bom para mim.

— Venha ver o resto.

Ela percebeu outras novidades na cozinha. Um pote vermelho, o escorredor de louças colocado sobre a pia de alumínio. Suas mãos cocaram. Ela estava pronta para cozinhar para cem pessoas, mas isso a lembrou de outra decisão que havia tomado.

— Nick, vamos poder abrir na próxima semana, ou na seguinte? Acha que dá para ser assim que eu encher a despensa e anunciar?

— Não vejo problema. Com uma festa para batizar a abertura.

— Vou contratar ajudantes tão logo possa pagar. Se você vai diminuir sua carga de trabalho, eu também vou.

— Já pensou sobre isso?

— Não vejo mais por que tenho que estar no salão à noite. Acho que estava passando muito tempo aqui porque me sentia sozinha. Agora vou deixar os detalhes para que outras pessoas cuidem para mim.

— Gostei de ouvir isso. Me acompanhe.

Ela o seguiu rumo ao salão e parou. Estava espetacular, melhor do que ela podia imaginar. A disposição foi sutilmente alterada. O bar não estava mais onde era antes, dando mais acesso à porta da frente. Havia mais prateleiras sobre o espelho original, cada uma delas no tamanho exato das garrafas. Mesas com sofás duplos preenchiam os cantos, aumentando o número de lugares, onde só havia duas mesas. A dica que Elisha dera se transformara em realidade e os garotos da Tijolo já haviam quase terminado o painel da Irlanda.

Havia mais coisa, porém ela não teve tempo de ver tudo. Abraçou-o forte.

— Está pronto?

— Pronto, até o último prego.

Fotografias da família que haviam salvado estavam de volta às paredes, junto com algumas novas, dos mais recentes membros da família Donaghue. As paredes verdes tinham uma tonalidade ligeiramente mais alegre e contemporânea. A madeira não era tão escura como a original e os candelabros de bronze davam uma iluminação mais aconchegante ao lugar.

— Está perfeito. — Ela não podia acreditar, mas estava. Depois de tudo por que haviam passado, estava perfeito.

Ela caminhou até uma parede e olhou a foto da família, que já vira um milhão de vezes, mas agora tinha um novo significado. Apontou para um homem, louro, sério, vestido com um terno impecável.

— Meu avô, Glen Donaghue.

— Eu sei, a sua tia me falou quando estávamos pendurando as fotos.

Ela pensou em Glen e Clare, em Liam e o dinheiro que estava escondido em algum lugar neste prédio.

— Tenho uma história para você.

— E tenho uma para você. Mas não quero contar a minha aqui. Você agüenta mais um passeio?

Ela estava lutando contra a exaustão, mas concordou.

— Bem rápido, depois para cama.

— Isso é um bom incentivo. Vamos. — Ele a pegou pela mão e levou de volta à cozinha. Abriu a porta do porão e acendeu a lanterna. — Pronta?

— Não sei. Será que estou?

Eles não pararam no porão, que ainda precisava de reforma. Continuaram pelo túnel. De alguma forma ela já sabia que era para lá que iam.

— Coloquei mais luz aqui embaixo. Acho que precisamos pensar bem em como iremos usar o espaço no futuro.

— Sobre a imagem?

Ele acendeu as luzes e o túnel ficou iluminado suavemente.

— Veja você mesma.

Ela o seguiu, lanterna em punho, só para garantir. Pararam onde ficava a imagem, onde ela o havia encontrado no dia do casamento, vivo e milagrosamente sem ferimentos.

Apenas os vestígios da imagem eram visíveis. Ela se surpreendeu ao ouvir o próprio gemido. Sentiu-se curiosamente engasgada com aquilo.

— Não...

— Começou a sumir quando colocamos os canos novos.

— Então era causada por algum vazamento nos antigos?

— Ou em alguma junta mal vedada... — Ele deu de ombros. — Nunca saberemos de verdade. Mas agora quase sumiu. Com toda a ventilação que há lá em cima, estará totalmente seca até o fim da semana.

— Acabou o milagre. — Ela estava mais triste do que imaginava.

— Bem, depende a forma como você vê.

Ele pôs a mão no ombro dela e apontou acima do contorno que sumia.

— O que vê ali em cima?

Ela via um teto e uma parede. O teto tinha vigas e em alguns lugares o emboço ia até o alto, em outros não. Havia um espaço entre o teto e a parede bem ali, como em outras partes do túnel.

— Não parece diferente do resto do túnel — disse ela.

— Deve ter parecido diferente para Liam Tierney. Tenho certeza que ele deve achado um jeito de marcar esse lugar.

— Você sabe? — Ele concordou.

— Casey contou toda a história de Liam e Glen a Jon em uma de suas ligações de Shanmullin. Ele me contou.

Ela estreitou os olhos.

— Cretinos, passaram a minha frente!

— Você pode me contar sua versão mais tarde. Está bem?

— Por que o Jon lhe disse?

— Vou mostrar.

Pela primeira vez ela percebeu uma escada na parede oposta. Niccolo a arrastou, colocando-a em frente à imagem. Depois subiu até o último degrau e enfiou o braço no espaço aberto. Ele puxou uma lata comprida e estreita, mas com tamanho suficiente para guardar temperos, ou café.

Megan nem precisava ouvir o que havia dentro.

Ele desceu.

— Na noite em que Liam morreu, ele veio até aqui procurando por Glen. Deve ter saído por aqui.

— Ele saiu. Lembro que Irene disse isso. Ele disse que não queria ser visto pelos capangas de McNulty.

— Ele desceu aqui. Deve ter procurado um lugar para esconder o dinheiro. Não deve ter sido difícil encontrar a lata para escondê-lo. Mesmo naquela época o porão era usado como espaço de armazenagem. Ele esvaziou a lata, ou já achou vazia e pôs o dinheiro dentro. Depois achou um lugar para escondê-lo.

— Por que a parede?

— Acho que nunca saberemos. Talvez tivesse uma escada por perto e foi fácil subir para guardar. Foi um esconderijo perfeito. Há vigas por dentro, a lata estava sobre uma delas. Ele deve ter posto uma corrente em volta, que provavelmente ficou com a ponta de fora, para que ele pudesse achar se voltasse. Deve ter caído para dentro.

— Se ele voltasse?

— Não lhe parece estranho que ele escondesse aqui? Acho que fez isso porque realmente não achava que sairia vivo dessa situação. Talvez tenha tido uma premonição da própria morte, ou conhecia muito bem os homens de McNulty. O que quer que tenha sido, ele sabia que se morresse e Glen não, Glen poderia ajudar sua esposa.

— E antes de morrer, ele contou a Brenna onde encontrar o dinheiro num telefonema. — Megan pensou por um momento. — Ou Liam pensou que mesmo se morresse e Brenna não recuperasse o dinheiro, pelo menos ele seria encontrado pela família algum dia. A família dele.

— A goteira pingava na lata. Uma gota aqui, outra ali. A lata estava posicionada de forma que a água escorria pelos dois lados, descia pelo emboço e, mais abaixo, deixava um rastro. A extremidade da lata ficava exatamente onde deveriam ser os olhos da Virgem. Dependendo da freqüência do uso da água ao longo do dia, a goteira pinga em velocidade e ângulos diferentes, fazendo parecer que ela estivesse chorando. Às vezes o emboço embaixo ficava encharcado.

— Como um borrão. O emboço absorvia a água, como o papel absorve a tinta. — Ela pegou a lata das mãos dele. — Quanto, Nick?

— Abra e veja. Coloquei de volta para que você tivesse o prazer de abrir.

Ela tirou a tampa com dificuldade, pois já estava enferrujada. Se Niccolo já não a tivesse aberto, ela não conseguiria.

Saiu com um puxão. Ela olhou para o interior, antes de pegar o dinheiro. A lata caiu aos seus pés. Ela ficou estarrecida com a quantidade de notas.

— Senhor, que bolada!

— Há cem delas.

Eram notas de mil dólares. Cem mil dólares. Ela olhou para ele.

— Não posso acreditar. É muita coisa.

— Acho que agora sabemos por que McNulty queria tanto o seu dinheiro de volta. É muito dinheiro hoje. Na época era uma fortuna.

— Todos esses anos. Bem aqui, Nick. Todo esse tempo.

— Bem aqui, respingando água na parede, criando seu próprio milagre.

Ela folheou as notas com o polegar. Não podia acreditar quantas havia. Depois soube exatamente o que queria fazer com elas.

— Quando Jon lhe contou a história, ele falou sobre a infância de Liam? — perguntou ela.

— Eu sei um pouquinho, de coisas que ouvi.

— Foi bem miserável. Ele nunca teve ajuda ou orientação. Tudo que conseguiu, foi sozinho. — Se alguém tivesse lhe estendido a mão, talvez ele não morresse daquela forma.

— O que está pensando?

Ela olhava para o dinheiro, que não havia proporcionado nada além de morte e destruição. Era hora de mudar isso. Aquilo era passado.

— Isso também pertence a Peggy e Casey, Nick. Não posso fazer nada sem a permissão delas. Mas acho que elas irão concordar. Vamos guardar um pouco para o tratamento e a formação de Kieran. Isso é fácil. Mas o resto vai para a Tijolo. Um memorial para Liam Tierney.

— Não posso lhe dizer para fazer isso.

— É claro que pode. Você está ajudando os garotos da Tijolo a seguir o caminho certo na vida. Se alguém tivesse ajudado Liam, imagine o que ele poderia ter se tornado. Não podemos gastar esse dinheiro e nenhuma de nós quer isso. Vamos transformar em algo bom, algo ruim e honrar Liam ao fazê-lo.

Ele não respondeu, mas a gratidão brilhou nos olhos dele. Ela sorriu e tocou seu rosto com a mão que não estava segurando o novo começo da Tijolo.

— O que o fez investigar? Como encontrou? Foi apenas curiosidade ao ver a imagem desaparecendo?

— Não, foi mais que isso. Quando a Virgem começou a sumir, achei que era hora de verificar. Eu não queria ser o homem a destruir um milagre, mesmo se não acreditasse ser isso. Muita gente ficaria indignada.

— E quando começou a sumir?

— Vim aqui embaixo numa tarde e fiquei olhando a imagem. É difícil explicar, mas senti tanta tristeza por ela estar evaporando. Queria ver a parede atrás, mas ao mesmo tempo não queria. Acho que queria acreditar na possibilidade do divino, enquanto podia.

— E o que aconteceu depois?

— Eu estava aqui, apenas olhando, e senti uma mão no meu ombro. Um toque bem leve de mulher. Quando me virei, não havia ninguém. Mas toda a minha preocupação sumira. Eu soube que era hora de ver o que causara a imagem.

Ela o encarou, seu coração transbordava de amor.

— Quem o tocou? A Virgem? Ou Clare McNulty? — Ele se inclinou para a frente e a beijou antes de falar.

— Será sempre um mistério, Megan. Há coisas que simplesmente não devemos saber.

 

                           Epílogo

A primavera havia chegado na Irlanda. As prímulas amarelas coloriam a paisagem, as ovelhas pontilhavam as colinas e a nuvens passavam sobre a ilha Clare, deixando a água cair em horas inconvenientes. Mas a chuva era morna e suave, e as noites frias eram perfeitas para a lareira.

Esta noite Peggy havia acendido o fogo depois do jantar, esperando que Irene fosse aproveitá-lo. Mas ela fora para a cama à tarde e não queria sair de lá. Passava mais e mais tempo dormindo. Peggy sabia que, um dia, quando fosse vê-la, descobriria que ela teria partido. Em sua própria cama, seu próprio chalé, com as pessoas que amava ao seu redor. Não era algo tão terrível, mas era alguém que deixaria um espaço vazio na vida de todos.

Mas se o destino assim quiser, que você fique e eu me vá,

Vou sair devagarinho, e boa sorte desejar.

A porta da frente se abriu e Finn e Bridie entraram. Bridie tirou a capa de chuva e pendurou no prego, e Finn fechou o guarda-chuva. Banjax os saudou abanando o rabo. Ele dividia o tempo entre a cabeceira de Irene e o fogo, e agora estava deitado em frente, absorvendo todo o calor.

Finn inclinou-se e beijou levemente os lábios de Peggy. Bridie havia roubado um abraço do pai e saiu para ir ver Kieran. Um instante atrás ele estava na sala de aulas montando torres com seus blocos. Peggy havia tentado tirá-lo dali, com a oferta de pudim de arroz e manteiga de amendoim, mas ele franziu o rosto e disse.

— Vá embora!

E ela saiu sorrindo. Nessa rebeldia, assim como em tantas outras coisas, ele era um menino normal de dois anos.

— Como ela passou o dia hoje? — perguntou Finn.

— Nem melhor, nem pior. Ela até parece confortável e seus sonhos são bons. Hoje ela sonhou que a mãe veio apresentá-la ao pai.

— Ela está comendo?

— Sim. E bebendo.

— E o reizinho?

Kieran certamente merecia um título. A casa girava em torno dele. Nenhuma criança jamais recebera mais amor e atenção, nem da própria realeza.

— Bons e maus momentos. Ainda estou aprendendo o que procurar nos rótulos. Eu dei uma salsicha, depois descobri que continha amido. Liguei para o fabricante e infelizmente era trigo. Kieran ficou terrível pelas doze horas seguintes.

Finn não se preocupou. Ele já havia visto Kieran em ação após deslizes alimentares. O garotinho havia feito progressos significativos desde que Peggy mudara sua dieta. A maioria dos alimentos que ela antes preparava carinhosamente para ele, como pães, queijos e leite fresco, agora era proibido. Ele não ficou contente com a mudança, mas tinha suas preferências no novo cardápio.

Kieran estava falando, até formava pequenas frases. Na sala de aulas era possível manter sua atenção por mais tempo e ele agora gostava de coisas que antes achava frustrante. Sentava-se no colo de Peggy quando ela lia e apontava e nomeava objetos, sem que o pedissem. Recentemente haviam começado a trabalhar nos treinamentos para o uso do vaso sanitário e parecia que em breve ele teria sucesso. Havia relances de contato visual agora, e ele parecia entender o sentido dos nomes, apesar de não usá-los. Ainda havia um longo caminho a percorrer e ninguém usava a palavra cura, mas Kieran estava avançando.

Algum dia, todas as coisas simples que Peggy tanto desejava para ele, poderiam se tornar realidade.

— Casey ligou hoje de manhã, depois que você saiu — Peggy disse a Finn.

— E como está o pequeno Jon?

Peggy tentava visualizar o bebê que ainda não conhecia.

— Correndo perigo de ser chamado de pequeno Jon para o resto da vida.

Ele riu, afastando um cacho dos cabelos dela, para depois puxá-la para perto.

— Ele já melhorou da cólica?

— Está melhor. Casey diz que ele é um meninão saudável, só que gosta de chorar.

— E aposto que ela nunca o larga.

— Entre Casey e Megan e o resto da família, ele deve estar sempre nos braços de alguém. Mas não foi por isso que Casey ligou. Há mais novidades. — Os olhos de Megan cintilaram. — Haverá mais um membro na família até o Natal.

— Megan e Nick?

— Não é maravilhoso? Mas não é para sabermos. A notícia escapuliu, então demonstre surpresa se você atender o telefone e Megan lhe contar.

Ele passou os braços ao redor dela.

— Você terá que ir vê-los quando o bebê nascer, não é?

— Eu sei. Eu sinto tantas saudades de todos eles.

Ela não disse o restante, que talvez até o Natal Irene não estivesse mais com eles, e não precisaria mais dela como acompanhante.

— Vai voltar para a Irlanda? — Ele a afastou, para que pudesse ver seu rosto. — Ou vou ter que ir até lá e te roubar de volta?

Ela fingiu ficar perplexa.

— Não tenho um compromisso em Shanmullin? Um consultório que vamos compartilhar, dr. Finn e dra. Margareth O'Malley, clínico geral e pediatra?

— Há o pequeno detalhe de que precisa terminar a faculdade.

— Tenho uma entrevista em Galway na semana que vem, para falar com o coordenador da área de medicina. Você acha que eu poderia morar aqui e estudar lá? Porque eu teria que encontrar um quarto perto da universidade para passar a semana e achar uma escola para Kieran, quando ele estiver pronto, mas...

— Poderia sim. E sabe que todos nós podemos ajudar.

— Finn, Irene me disse uma coisa hoje de manhã... — Ele ficou esperando, a sobrancelha erguida.

— Ela vai me deixar o chalé Tierney. Ela nos quer morando aqui depois de casados, ficando entendido que Megan e Casey e suas famílias são bem-vindas a qualquer hora.

O olhar dele era de felicidade.

— Eu já sabia disso há algum tempo.

— Sabia?

— Para quem mais além de você, Peggy-o? Isso fazia parte do fato de querer conhecê-la e atraí-la até aqui. Não apenas o dinheiro escondido, mas saber que você e suas irmãs seriam mulheres que cuidariam do chalé Tierney com zelo.

Os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Não quero que ela se vá.

— Isso está próximo. — Ele pegou-lhe as mãos e as levou aos lábios.

Finn percorrera um longo caminho. Ele voltou a exercer sua profissão de médico, no início parcialmente, mas agora em tempo integral. A aldeia o saudou carinhosamente, assim como fizeram outros médicos das redondezas, que usufruíram um alívio razoável em suas próprias cargas. Ele freqüentou um terapeuta por alguns meses, por sugestão de um padre, e o passo final da sua jornada de desespero foi falar honestamente sobre sua mágoa. Ele e Peggy haviam retomado o relacionamento lentamente e com cuidado, mas ele rapidamente foi fortalecido. Agora, meses depois, um tinha segurança em relação ao outro e estavam prontos para assumir o compromisso final quando chegasse a hora certa.

Bridie apareceu com Kieran nos braços. Pela primeira vez ele não estava brigando para descer.

— Olá, olá, olá — disse ele.

— Olá, rapaz. Como vai você hoje? — perguntou Finn. Kierau cobriu o rosto com as mãos e Finn riu.

— Ruim assim?

— A vovó Irene está acordada? — perguntou Bridie.

— Vamos ver. — Relutante Peggy se afastou de Finn. Por mais maravilhosos que seus filhos fossem, ela lamentava não ter tempo a sós com ele. Eles passaram a dar uma fugida sempre que podiam.

Ela abriu a porta do quarto de Irene e espiou. Ela estava sentada. Às vezes dormia assim, já que era mais fácil para respirar, mas agora estava acordada e pareceu querer companhia.

— Finn está aqui — Peggy disse. — E Bridie.

— Mande-os entrar. — Irene sorriu. — Pode mandá-los entrar.

Peggy empurrou a porta. Bridie pôs Kieran no chão e foi cumprimentar Irene, debruçando-se na beirada da cama. Finn ficou olhando da porta, com o braço ao redor dos ombros de Peggy.

Peggy sentiu algo encostando às suas pernas, depois o filho deu a volta ao seu redor e correu para dentro do quarto.

Peggy ficou olhando, para ver o que Kieran faria a seguir. Ele ainda era fascinado por Bridie, mas sempre ignorou Irene. Enquanto Peggy e Finn observavam, ele se aproximou da cama. Um passo, dois. Bridie ficou em silêncio e Irene também. Peggy sentiu o ar preso no peito, quando o braço de Finn apertou-se ao seu redor. Ela sabia que Finn sentia o mesmo que ela, um elo especial com aquela criança, que depois se transformou em amor e, mais ainda, premonição.

Um passo, depois outro. Sob o olhar de Peggy, Kieran subiu na cama. Ele olhou para Irene por um tempo, depois deitou a cabeça em seu ombro.

 

                                                                                Emile Richards 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"