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Depois de armazenadas as colheitas na herdade dos Waynes, perto de Pittsford, em Vermont, depois de cortada a lenha para o Inverno e de terem caído as primeiras neves, Joseph Wayne, ao cair duma tarde, foi ter com o pai, que estava sentado no seu cadeirão ao pé do fogo, e parou, de pé, diante dele. Os dois homens eram semelhantes. Ambos tinham nariz grande, malares altos e duros; as caras dir-se-iam feitas de qualquer material mais rijo e durável do que a carne, de qualquer substância pétrea que não se alterasse facilmente. A barba de Joseph era negra e sedosa, ainda fina, a deixar ver o contorno sombrio do queixo. O velho tinha uma barba comprida e branca. Cofiava-a aqui e ali com dedos cautelosos e aconchegava-lhe as pontas cuidadosamente para as proteger. Só depois de um momento o velho notou que o filho estava ao seu lado. Ergueu os olhos, olhos velhos sábios e plácidos e muito azuis. Os olhos de Joseph eram tão azuis como os dele, mas ferozes e curiosos de juventude. Agora, que enfrentava o pai, Joseph hesitava na sua nova heresia. "A terra vai deixar de bastar, senhor pai", disse ele humildemente. O velho apertou mais a sua manta de pastor à volta dos ombros magros e direitos. Tinha uma voz calma, feita para ordenar a justiça simples. "De que te queres queixar tu, Joseph?" "Já sabe que o Benjy namora, senhor pai? Benjy vai casar-se quando vier a Primavera; e no Outono haverá uma criança, e no Verão seguinte outra. A terra não é elástica, Senhor. Não chegará para todos." O velho baixou lentamente os olhos para os dedos. que se lhe entrelaçavam preguiçosamente no regaço. "O Benjamín não mo disse ainda. Nunca podemos contar muito com ele. Tens a certeza de que ele namora a sério?" "Os Ramseys assim o dizem em Pittsford, senhor. A Jennie Ramsey tem um vestido novo e anda mais direita do Que o costume. Vi-a hoje. Não olhou para mim. "Ah, então talvez tenhas razão. O Benjamín tinha obrigação de mo dizer". "Já vê, senhor, que a terra vai deixar de bastar para todos". John Wayne voltou a levantar os olhos. "A terra chega, Joseph", disse placidamente. "O Burton e o Thomas trouxeram as mulheres para casa e a terra chegou. Tu és a seguir a eles em idade. Devias arranjar uma companheira, Joseph". "Tudo tem limite, senhor. A terra só pode sustentar uma tanta gente". Então os olhos do pai tornaram-se mais agudos. "Tens alguma zanga com teus irmãos, Joseph? Há alguma questão de que eu não saiba?" "Não, senhor", protestou Joseph. "A herdade é "PeQuena". Inclinou o corpo espigado para o pai. "Estou faminto de terra minha, Senhor pai. Tenho lido notícias a respeito do Oeste e da terra boa e barata que lá há".
.....
John Wayne suspirou, cofiou a barba e aconchegou-lhe as pontas. Um silêncio pairou sobre os dois homens, enquanto Joseph, de pé diante do chefe de família, esperava a decisão. "Se tu esperasses um ano" disse o velho por fim. "um ano ou dois nada é quando se tem trinta e cinco anos. Se tu pudesses esperar um ano, decerto menos do que dois eu não me importaria. Tu não és o mais velho, Joseph mas sempre pensei que serias tu aquele a quem eu daria a minha bênção. O Thomasy e o Burton são homens de bem, bons filhos, mas sempre tencionei dar-te a bênção, para que tomasses o meu lugar. Há em ti qualquer coisa mais forte do que em teus irmãos, Joseph; qualquer coisa de mais seguro e verdadeiro". "Mas a terra do Oeste está a ser distribuída, Senhor. Basta viver lá um ano, construir uma casa e lavrar um pouco, que a terra é nossa. Ninguém pode tornar a tirá-la". "Bem sei, já ouvi falar nisso; mas suponhamos que te ias embora agora. Só terei cartas a contar-me mesmo o que estás a fazer. Se esperares um ou dois, irei contigo. Já estou velho, Joseph. Irei contigo, sobre a tua cabeça, no ar. Verei a terra que escolhes e a casa que construas, interessar-me-ia por isso, bem sabes. Talvez até arranjasses uma vaca e te ajudar de vez em quando. Se a perdesses, por exemplo, é natural que eu te ajudasse a encontrá-la no ar, lá em cima, veria as coisas até muito longe. Se esperares um pouco mais, posso fazer isso, Joseph." "Estão a dar a terra, disse Joseph. "Já lá vão três anos desde a volta do século. Se me ponho à espera, Levam-me toda a terra boa. Estou faminto de terra, Senhor"; e os olhos brilhavam-lhe, febris, com a fome da terra. John Wayne acenava com a cabeça para baixo e para cima e aconchegava melhor a manta aos ombros. "Já vejo", murmurou pensativo. "Não é só uma inquietação passageira. Talvez vá ter contigo mais tarde." E depois, com decisão: "Vem cá, Joseph. Põe aqui a mão. não, aqui. Era assim que meu pai fazia. Um costume tão antigo não pode errar. Agora deixa ficar a mão". e curvou a cabeça branca: "Que a mão de Deus e a minha mão cubram esta criança. Que o meu filho viva à luz da sua Face. Que ame a sua vida". Fez uma pausa durante um momento. "Agora, Joseph, podes ir para o Oeste. Já nada te prende a mim."
Depressa veio o Inverno, com a neve alta; e o ar enregelou-se em agulhas. Durante um mês Joseph vagueou pela casa, custando-lhe a abandonar a sua juventude e todas as fortes recordações materiais da juventude, mas a bênção paterna desligava-o de tudo. Era um estranho naquela casa e sentia que os irmãos ficariam contentes quando ele se fosse embora. Partiu antes da chegada da Primavera, e as colinas da Califórnia estavam cobertas de verde quando ele lá chegou.
2
Depois de vaguear por algum tempo, Joseph chegou ao comprido vale a que chamavam de Nuestra Senhora e ali registou a sua pretensão à terra. Nuestra Senhora, o extenso vale de Nossa Senhora, na Califórnia Central, estava verde e dourado, amarelo e azul, quando Joseph lá chegou. A planície cobria-se de aveia branca e flores de mostarda cor de canário. O rio San Francisquitu corria ruidosamente no seu leito pedregoso, através de um sulco aberto pela sua estreita e pequenina floresta. Daí, os flancos da serra do litoral agarravam o vale de Nossa Senhora, protegendo-o do mar por um lado e pelo outro do vento cortante do grande vale das Salinas. No longínquo extremo sul abria-se uma garganta nas montanhas para deixar passar o rio, e perto dessa garganta ficavam a igreja e a pequena cidade de Nossa Senhora. As cabanas dos índios aglomeravam-se em torno das paredes de adobe da igreja; e embora esta estivesse agora muitas vezes vazia, com os santos estragados e parte do telhado num monte de destroços no chão, embora os sinos estivessem quebrados, os índios mexicanos ainda viviam perto, realizavam as suas festas, dançavam La Jota no terreno batido e dormiam ao sol. Depois de registar a sua pretensão à terra, Joseph pôs-se a caminho do seu novo lar. Os olhos brilhavam-lhe de excitação debaixo do chapéu de abas largas e aspirava avidamente o ar do vale. Levava fustões novos com uma fiada de botões de latão em volta da cintura, uma camisa azul e um colete, por causa dos bolsos. As botas, de tacão alto, eram novas e as esporas brilhavam como prata. Um velho mexicano subia a ladeira a patinar penosamente em direcção a Nossa Senhora. A cara iluminou-se-lhe de prazer quando Joseph se aproximou. "Há festa nalgum sítio?" perguntou, delicadamente. Joseph riu-se, prazenteiro. "Tenho cento e sessenta acres de terreno mais acima, no vale. Vou viver e sustentar-me deles." Os olhos do velho vagabundo pousaram na espingarda que, no seu coldre, Joseph levava entalada debaixo da perna. "Se vir um veado, senhor, e se o matar, lembre-se do velho Juan". Joseph seguiu para diante: mas ainda gritou por cima do ombro: "Quando a casa estiver construída, darei uma festa. Hei-de lembrar-me de ti, velho Juan." "O meu genro toca guitarra,.senhor." "Então que venha também, velho Juan." O cavalo caminhava rapidamente, raspando com os cascos no meio das folhas de carvalho quebradiças: as ferraduras retiniam sobre as pedras salientes. A vereda atravessava a longa floresta que marginava o rio. Enquanto cavalgava, Joseph tornou-se tímido e ao mesmo tempo ansioso, como um jovem que se escapa para ter um encontro com uma mulher bonita e séria. Sentia-se meio entontecido e esmagado pela floresta de Nossa Senhora. Havia uma estranha qualidade de fêmea naqueles ramos e rebentos entrelaçados, na comprida caverna verde aberta pelo rio através das árvores e do mato viçoso. Os átrios, naves e alcovas
verdes e sem fim pareciam ter significações obscuras e prometedoras, como os símbolos duma antiga religião. Joseph teve um calafrio e fechou os olhos. "Talvez eu esteja doente", disse. "Quando abrir os olhos, talvez descubra que tudo isto é delírio e febre". Enquanto ia andando para diante, apoderou-se dele o receio de que aquela terra pudesse ser uma forma de sonho que se transformasse numa manhã seca e poeirenta. Um ramo de manzanita arrancou-lhe o chapéu da cabeça e atirou-lho ao chão; quando desmontou, Joseph estendeu os braços e inclinou-se sobre a terra, para a acariciar. Havia nele a necessidade de sacudir a má disposição que o tomara. Ergueu os olhos para as copas das árvores, onde o sol brilhava nas folhas trémulas, onde o vento cantava roucamente. Quando tornou a montar, sabia que poderia perder o sentimento pela terra. O ranger do cabedal do selim, o tinir das correntes das esporas, o raspar da língua do cavalo no freio, cantavam notas agudas sobre o acompanhamento ritmado do pulsar da terra. Joseph sentiu que tinha estado como paralisado e de repente recuperava a sensibilidade: estivera adormecido e agora acordara. Bem no fundo do seu espírito, tinha o sentimento de cometer uma traição. O passado, o seu lar e todos os acontecimentos da sua infância estavam a perder-se; e sabia que tinha para com eles o dever de recordá-los. Esta terra poderia apossar-se completamente dele, se não se acautelasse. Para lutar um pouco contra a terra, pensou no pai, na serenidade e paz, na força e eterna rectidão de seu pai; e no seu pensamento a diferença acabou e ele sentiu que não havia contenda alguma, porque o pai e a nova terra formavam um todo. Joseph assustou-se, então. "Ele morreu", murmurou. "Meu pai deve ter morrido." O cavalo deixara agora a floresta do rio para seguir um caminho suave e abaulado que podia ter sido feito pelo corpo duma jibóia. Era um antigo trilho de caça, feito pelos cascos e patas de animais sozinhos e medrosos que tinham seguido a vereda como se quisessem qualquer companhia. até a de fantasmas. Era uma senda de inúmeros significados. Aqui alargara-se para evitar um enorme carvalho com uma grossa ramada onde havia muito tempo um leão se agachara e saltara sobre a presa, deixando o cheiro a desviar a senda; ali mais adiante rodeava cuidadosamente um penedo liso onde uma cobra cascavel costumava aquecer ao sol o seu sangue gelado. O cavalo continuava pelo centro da vereda, atento a todos os avisos. Agora o caminho abría-se abruptamente num largo prado viçoso, a meio do qual um grupo de carvalhos se isolava como uma ilha verde num lago verde mais claro. Enquanto Joseph se dirigia às árvores, ouviu um guincho agonizante; e, torneando o bosque, deu com um enorme javali, de presas curvas, olhos amarelados e juba vermelha. O animal, sentado nas patas traseiras, dilacerava os quadris dum leitão que, ainda vivo, grunhia fracamente. Ao longe uma porca e cinco outros porquitos fugiam, gritando de terror. O javali parou de comer e abaixou-se quando lhe chegou o cheiro do cavalo de Joseph. Grunhiu e depois voltou ao
porquinho, que ainda soltava gritos dilacerantes. Joseph empinou o cavalo. O rosto contraía-se-lhe de raiva e os olhos estavam quase brancos, de tão claros. "Maldito sejas", gritou. "Come outras criaturas. Não comas os da tua espécie". Pegou na espingarda e apontou entre os olhos amarelos do javali. Depois baixou o cano e com mão firme pôs a arma no descanso. Riu-se para consigo. "Estou a tomar demasiado poder nas minhas mãos", disse ele. "Pois quê! Ele é pai de cinquenta porcos, e pode vir a sê-lo de outros cinquenta." O javali deu uma volta, resfolegando, enquanto Joseph continuava o seu caminho. Agora o atalho circundava uma extensa falda da montanha coberta de amoras silvestres, manzanita e carvalhos enfezados, tão densamente emaranhados que mesmo os coelhos tinham de abrir pequenos túneis através deles. O atalho abria caminho pela estreita cordilheira acima e vinha dar a uma cintura de árvores - carvalhos de variadas espécies. Por entre os ramos aparecia um ténue farrapo branco de neblina que flutuava sobre as copas das árvores. Num momento, um outro fiapo diáfano se lhe juntava, e depois outro, e outro. Deslizavam como fantasmas meio materializados, crescendo mais e mais, até que de repente davam com uma coluna de ar quente e se erguiam no céu para se transformarem em pequenas nuvens. Por sobre todo o vale aquelas nuvenzitas ténues formavam-se e ascendiam como os espíritos dos mortos evolando-se de uma cidade adormecida. Pareciam desaparecer contra o céu, mas o sol perdia o calor por causa delas. O cavalo de Joseph levantou a cabeça e resfolegou. No topo da cordilheira havia um grupo de gigantescas madronas; e Joseph, admirado, notou que elas pareciam feitas de carne e músculos. Estendiam os membros musculosos, vermelhos como carne esfolada e contorcidos como corpos supliciados. Joseph pousou a mão sobre um dos ramos quando passou a cavalo e sentiu-o frio, liso e duro. Mas as folhas nos extremos daqueles membros horríveis eram verdes, vivas e brilhantes. Cruéis e terríveis árvores, as madronas. Gritam de dor quando as queimam. Joseph alcançou o cume da cordilheira e olhou para baixo, para as terras verdejantes do seu novo lar, onde a aveia brava se movia em ondas prateadas ao vento brando; onde as manchas do tremoço-azul se estendiam como sombras duma noite clara e luminosa; e as papoulas nas encostas dos montes eram largos raios de sol. Parou para olhar os prados extensos em que maciços de carvalhos se erguiam como Senhores a dominar a terra. O rio, com a sua cortina de árvores, abria um caminho tortuoso que descia o vale. A umas duas milhas de distância via-se, ao lado dum gigantesco carvalho solitário, a mancha branca da tenda que ele deixara para ir registar a sua pretensão à terra. Muito tempo ali esteve sentado. Enquanto olhava o vale, Joseph sentiu o corpo inundar-se-lhe dum fluido quente de amor. "Isto é meu", disse, simplesmente, e as lágrimas brilhavam-lhe nos olhos; o cérebro encheu-se-lhe da admiração de tudo aquilo ser dele. Sentiu piedade pela erva e pelas flores; pareceu-lhe que as árvores e a terra eram seus filhos. Por um momento julgou pairar no espaço, a olhar
para baixo. "É minha", voltou a dizer, "e tenho de cuidar dela." As pequenas nuvens acumulavam-se no céu; uma legião delas apressava-se em direcção ao nascente, para se reunir ao exército já formado ao nível da montanha. Por cima das serras a ocidente, as ténues nuvens marinhas vinham correndo ao desafio. O vento levantou-se e suspirou entre os ramos das árvores. O cavalo descia ligeiramente a azinhaga em direcção ao rio, levantando muitas vezes a cabeça; aspirava o aroma fresco e agradável da chuva que ia cair. A cavalaria das nuvens tinha passado; e uma enorme falange negra vinha a marchar vagarosamente do mar, com um ribombar de trovão. Joseph tremia com o prazer da violência iminente. O rio parecia apressar-se no curso para tagarelar, excitado sobre as pedras pelo caminho. E então começou a chuva, gotas grossas e preguiçosas a pingar sobre as folhas. O trovão ressoava como caixotões que rolassem no céu. As gotas tornaram-se mais miúdas e juntas, varriam o ar e assobiavam nas árvores. A roupa de Joseph encharcou-se num minuto; o cavalo brilhava de molhado. No rio, as trutas atiravam-se aos insectos que tomhavam; e os troncos das árvores, negros, luziam. O trilho deixava o rio outra vez, e à medida que Joseph se ia aproximando da sua tenda as nuvens rolavam para trás, do ocidente para o oriente como uma cortina de lã cinzenta; e o sol tardio brilhou sobre a terra lavada, reluziu nas folhas da erva e fez faiscar as gotas nos corações das flores silvestres. Em frente da tenda, Joseph desmontou, tirou os arreios ao cavalo e esfregou-Lhe o dorso e os membros molhados com um pano antes de o pôr a pastar em liberdade. Ficou de pé sobre a erva húmida, em frente da tenda. O sol, que se punha, brincava-lhe com os cabelos castanhos e o vento da tarde agitava-lhe a barba. A expressão faminta dos seus olhos tornou-se voraz ao fitar o extenso vale verde. O desejo de posse tornou-se-lhe uma paixão. "É minha", disse surdamente. "Até às profundezas é minha, até ao centro do mundo." Batia com os pés na terra mole. Depois o entusiasmo tornou-se numa dor aguda de desejo que lhe percorria o corpo como um rio quente. Atirou-se sobre a erva e apoiou com força a face contra as hastes húmidas. Apertou com dedos convulsos a erva molhada e arrancou-a, e voltou a apertar. Batia com força as coxas na terra. A fúria abandonou-o e ele sentiu-se frio, espantado, assustado de si próprio. Sentou-se e limpou a lama dos lábios e da barba. "Que foi?", perguntou. "Que foi que me deu? Terei eu uma necessidade tão grande como esta?" Tentou recordar-se exactamente do que acontecera. Durante um momento a terra fora sua mulher. "Preciso de arranjar uma mulher", pensou ele. "Vou sentir-me sozinho de mais aqui, sem mulher." Estava cansado. Doía-lhe o corpo como se tivesse levantado uma enorme pedra. e aquele momento de paixão assustara-o. Cozinhou a frugal ceia sobre uma fogueirinha em frente da tenda; quando a noite desceu, sentou-se no chão, a olhar para as estrelas, frias e brancas; e sentiu a terra a pulsar. O fogo morreu e Joseph ouviu os coiotes a uivarem nos montes, os mochos pequenos
passarem a gritar e à sua volta os ratos do campo a fugirem por entre as ervas. Depois a Lua, cor de mel, nasceu por trás da crista da cordiLheira oriental. Antes de se libertar dos montes, aquela face dourada espreitou por entre as barras dos troncos do pinhal. E durante um momento um pinheiro negro e aguçado furou a Lua e só se soltou quando ela se ergueu.
3
Muito antes de se avistarem os carros com a madeira, já Joseph Lhes ouvia o tilintar doce e desgarrado dos guizos, aqueles chocalhos estridentes que se encarrapitavam por cima dos tirantes para avisarem as outras parelhas que se desviassem da estrada. Joseph ia lavado de fresco; tinha a barba e o cabelo penteados e os olhos ardiam-lhe de impaciência, pois havia duas semanas que não punha a vista em vivalma. Finalmente apareceram por entre as árvores as parelhas do guia. Os cavalos vinham a passo curto e esforçado para arrastarem o enorme peso das pranchas de madeira pela estrada nova e alcantilada. O carreiro-guia acenou com o chapéu e o sol faiscou-lhe na fivela da fita. Joseph veio ao encontro da caravana e empoleirou-se no assento ao lado do carreiro do primeiro carro, um homem de meia-idade, de cabelo rente e branco e de tez queimada e encarquilhada como uma folha de tabaco. O condutor mudou as rédeas para a mão esquerda e estendeu-Lhe a direita. "Sempre pensei que viessem mais cedo", disse Joseph. "Houve alguma novidade no caminho?" "Não, Sr. Wayne, nada que se possa chamar novidade. Juanito atrasou-se e o meu filho enfiou uma roda num buraco de lama. Ia a dormir, acho eu. Nem se pode chamar estrada a estas duas últimas milhas." "Mas ainda hão-de ser um dia", disse Joseph; "quando passarem por ela bastantes caravanas como estas, hão-de dar uma boa estrada." Apontou com um dedo. "Vamos descarregar a madeira acolá, ao pé do carvalho grande." Pelo rosto do carreiro passou um vislumbre de quase-presságio. "Vai construir debaixo duma árvore? Não é boa coisa. Pode quebrar-se de noite um desses ramos e desfazer-lhe o telhado e esmagá-lo enquanto vossemecê dorme." "É uma árvore forte", assegurou-Lhe Joseph. "não gostava de fazer a casa longe duma árvore. A sua não tem nenhuma árvore ao pé?" "Tem, mas por isso é que o estou a avisar. Aquela maldita casinhota fica mesmo por baixo duma. Ainda não percebi como é que a fui construir num sítio daqueles. Muitas noites tenho ficado acordado na cama a ouvir o vento e à espera de que um ramo aí da grossura dum tonel me venha pelo telhado abaixo." Parou as bestas e amarrou as rédeas ao travão. "Parem mesmo aqui", berrou para os outros carreiros. Quando a madeira estava já no chão e os cavalos, atrelados ao contrário nos carros, comiam a cevada dos sacos amarrados ao pescoço, os carreiros desenrolaram os cobertores nas camas das carroças. Joseph já tinha acendido a fogueira e começava a fazer a ceia. Tirava a frigideira das chamas e voltava o toucinho constantemente. Romas, o velho carreiro, achegou-se e sentou-se ao fogo. "Vamos começar amanhã de manhã cedo", disse ele. "Vamos fazer uma boa corrida com as carroças vazias." Joseph tirou a frigideira do fogo. "Porque não deixa os cavalos pastarem um bocado de erva?"
"Em horas de trabalho? Não. A erva não dá coragem. É preciso coisa mais forte para poderem arrancar numa estrada como esta sua. Pouse a frigideira nas brasas e deixe-a ficar lá um bocadinho se quer ter o toucinho torrado." Joseph franziu o sobrolho. "Vocês não sabem fritar toucinho. Fogo brando e bem mexido é o que ele precisa, para ficar torrado sem se desfazer em gordura." "Ora, tudo é comida", disse Romas. "Tudo comida." Juanito e Willie vieram juntos. Juanito tinha pele escura de índio e olhos azuis. A cara de Willie estava contraída e pálida, com qualquer maleita desconhecida por debaixo daquela casca de poeira; e nos seus olhos havia medo e inquietação, pois ninguém acreditava nas dores que Lhe agitavam o corpo de noite nem nos sonhos danados que o torturavam enquanto dormia. Joseph levantou a cabeça e sorriu para ambos. "Está a ver-me os olhos", disse Juanito, com ousadia. "Não sou índio. Sou castelhano. Tenho os olhos azuis. Repare na minha pele: é escura, mas isso é por causa do sol, que os Castelhanos têm olhos azuis." "Diz o mesmo a toda a gente", interrompeu-o Romas. "Pela-se por encontrar um desconhecido para Lhe dizer isto. Toda a gente de Nuestra Senhora sabe que a mãe era uma índia, e quanto ao pai só Deus sabe quem ele é." Juanito fitou-o e os seus dedos apalparam a faca comprida que trazia à cinta, mas Romas soltou uma gargalhada e dirigiu-se a Joseph. "Juanito passa a vida a dizer a ele mesmo: "- Ainda hei-de matar alguém com esta faca." E é assim que consegue manter-se orgulhoso. Mas sabe que não o faz, e por isso nunca chega a ser orgulhoso em demasia. Aguça um pau para comeres o toucinho, Juanito", disse-lhe desdenhosamente. "E para a outra vez que te ponhas a dizer que és CasteLhano repara primeiro se alguém te conhece." Joseph pousou a frigideira e olhou interrogativamente para Romas. "Porque é que vossemecê o contradiz sempre?", perguntou-Lhe. "Que é que ganha com isso? Ele não faz mal a ninguém lá por ser castelhano." "É uma aldrabice, Sr. Wayne. As mentiras são todas iguais, sejam elas quais forem. Se o Senhor engolir essa aldrabice, ele passa a contar-lhe logo outra. Dentro duma semana torna-se no primo da rainha de Espanha. Juanito neste momento não passa dum carreiro, e bom como raio. Não posso consentir que ele se transforme em príncipe." Mas Joseph meneou a cabeça e levantou novamente a frigideira. Sem erguer os olhos, disse: "Acho que ele é castelhano. Tem os olhos azuis, e além disso tem mais qualquer coisa. Não sei bem porquê, mas acho que é castelhano." Os olhos de Juanito endureceram de orgulho. "Obrigado, Senhor", disse. "Tem razão, é isso mesmo." Empertigou-se numa atitude dramática. "Entendemo-nos um ao outro, senhor. Somos caballeros." Joseph repartiu o toucinho pelos pratos de folha e distribuiu o café. Sorria levemente. "O meu pai considera-se quase um deus. E é, não há dúvida." "O Senhor não sabe o que lhe está a meter na
cabeça, protestou Romas. "Depois disto não sei como hei-de ter mão nesse caballero. Nem trabalhará. Vai passar a vida a admirar-se a ele mesmo." Joseph soprou o café. "Se ele se tornar demasiado orgulhoso, eu preciso aqui dum castelhano", disse. "Mas, com mil diabos, ele é um trabalhador de primeira." "Bem sei", disse Joseph calmamente. "Dum modo geral, os cavalheiros são bons trabalhadores. Não precisam de ser obrigados para fazerem bom trabalho." Juanito levantou-se, apressado, e sumiu-se na escuridão, que cada vez se ia adensando mais, mas Willie explicou em nome dele: "Foi um cavalo que embaraçou as patas nas rédeas." A oeste as cordilheiras estavam ainda orladas pela prata do crepúsculo, mas o vale de Nossa Senhora cobria-se até quase aos píncaros dos montes dum mar de trevas. As estrelas, incrustadas no manto cinzento de aço do céu, pareciam lutar, a tremeluzir, contra a noite. Os quatro homens estavam sentados em volta das achas da fogueira, com as caras endurecidas cobertas de sombras. Joseph cofiava a barba e ficou-se de olhar perdido, absorto. Romas passou os braços à volta dos joelhos. O cigarro piscava-lhe, muito vivo, mas o brilho dele aparecia imediatamente atrás da cinza do morrão. Juanito tinha a cabeça muito direita, de pescoço duro, mas o olhar, por entre as pestanas semicerradas, não largava Joseph. O rosto esmaecido de Willie era como se estivesse suspenso nu ar. desligado do tronco: a boca contraía-se-Lhe de tempos a tempos num sorriso nervoso. Tinha um nariz ressequido e ossudo e a boca apertava-se numa curva semelhante à do bico dum papagaio. Quando a fogueira se apagou e apenas se podiam ver os rostos dos homens, Willie estendeu a mão esguia e Juanito apertou-lhe fortemente os dedos, porque bem sabia como Willie se apavorava com a escuridão. Joseph atirou um galho para o lume, que espertou. "Romas", disse. "a erva aqui é boa e a terra é rica e livre. Só está à espera de que a mexam com o arado. Porque é que a abandonaram, Romas? Porque é que ninguém lhe pegou antes de mim?" Romas cuspiu a ponta do cigarro para a fogueira. "Não sei. As pessoas vêm a pouco e pouco para estes terrenos. Ficam afastados das estradas grandes. Acho que já alguém deve ter estado por cá, mas somente até aos anos de seca. Já deixaram estes sítios há muito." "Anos de seca? Quando foi isso?" "Oh! Aí entre 1880 e 1890. Quando toda a terra secou, os poços estancaram e os animais morreram." Gargalhou baixo. "Digo-Lhe que o calor não faltou então. Metade da gente que aqui havia pôs-se a andar para longe. Os que puderam levaram o gado para o vale de Sán Joaquín, onde havia pasto com fartura à beira do rio. As vacas ficavam-se no caminho. Nessa altura não passava dum catraio, mas lembro-me de as ver mortas, de barrigas inchadas. Abatíamo-las a tiro; caíam como balões picados, e só o fedor que deitavam chegava para deitar por terra um homem." "Mas as chuvas voltaram", disse Joseph imediatamente. "A terra agora está cheia de água." "Ah, bom, a chuva voltou daí a dez anos. Chuva
a cântaros. As ervas começaram a crescer outra vez e as árvores encheram-se de folhas. Andava tudo doido de alegria, ainda hoje me lembro.,A gente de Nuestra Senhora fez uma fiesta debaixo de chuva, só com um alpendrezito para os tocadores de guitarra, para as cordas dos instrumentos não se molharem. Tudo bêbado a dançar no meio da lama. Embebedaram-se à chuva. E não eram só os mexicanos. O abade Ângelo apareceu e pôs cobro naquilo." "Porquê?", perguntou Joseph. "Bem, o Senhor não sabe o que o povo fazia já no meio da lama. O abade estava banzado. Dizia que o Diabo andava por ali à solta. Afastou o Diabo com rezas e obrigou todos a lavarem-se. Deu penitências a toda a gente. O abade zangou-se a valer. Ficou lá até parar de chover." "Estava tudo bêbado, não foi o que disse?" "Tudo bêbado durante uma semana, e fizeram maldades... puseram-se em pelota." Juanito interrompeu-o: "Sentiam-se felizes. Os poços tinham estado secos, senhor. Os montes, brancos como cinza. A chuva veio alegrá-los. Não conseguiam com certeza aguentar tanta felicidade, e por isso fizeram maldades. A gente faz sempre maldades quando é muito feliz." "Oxalá que isso não torne a acontecer", disse Joseph. "Bem, o padre Ângelo disse que tudo fora castigo. mas os índios dizem que os velhos se lembram de que já se tinha dado aquilo duas vezes antes." Joseph levantou-se nervosamente. "Não quero pensar nisso. Tenho a certeza de que nunca mais se há-de repetir uma coisa assim. Vejam como a erva já está crescida." Romas espreguiçava-se. "Talvez não. Mas não se fie muito. São horas de ir à deita. Amanhã temos de nos pôr ao trabalho ao romper do Sol." A noite estava já repassada do frio da madrugada quando Joseph acordou. Parecera-lhe ter ouvido um grito estridente enquanto dormia. "Deve ter sido uma coruja", pensou ele. "às vezes os sons aumentam e alteram-se com o sono." Mas ficou de atalaia, muito tempo. e ouviu chegar até à barraca o soluço de alguém. Enfiou as calças e as botas e espreitou lá para fora, por entre os panos da barraca. Dum dos carros rompia um choro abafado. Juanito estava debruçado sobre a carroça em que Willie dormia. "Que é isso?", perguntou Joseph. à luz indecisa reparou que Juanito pegava no braço de Willie. "Está a sonhar", cochichou Juanito. "Há alturas em que não consegue acordar sem eu lhe dar uma ajuda. Outras vezes, quando acorda, julga que o que vê é tudo sonho e que o que esteve a sonhar é que é verdadeiro. Vá, Willie", continuou ele. "Vês, já estás acordado. Sonha coisas do Diabo, senhor, e então tenho de o sacudir. Vê, está com medo." Lá do seu carro, Romas gritou: "Willie come de mais. O que ele tem é pesadelos. Está sempre com pesadelos. Vá deitar-se, Sr. Wayne." Mas Joseph aproximou-se mais e viu o terror estampado no rosto de Willie. "Não tenhas medo da noite.
Willie", disse-Lhe. "Se quiseres, levanta-te daí e vem dormir na minha tenda." "Está a sonhar com um sítio muito seco e morto. com gente a sair de buracos a arrancar-lhe os braços e as pernas, senhor. Quase não há noite nenhuma em que não sonhe com isto. Escuta, Willie, estou aqui ao pé. Olha, os cavalos estão aqui a olhar para ti. Willie. às vezes, senhor, os cavalos fazem que ele durma melhor. Gosta de adormecer no meio deles. Perde-se pelas tais terras mortas, mas fica protegido daquela gente quando tem os cavalos ao pé. Vá-se deitar, senhor, que eu fico com ele um bocadinho." Joseph apalpou a testa de Willie e achou-a fria como uma laje. "Vou fazer um fogo para o aquecer". disse. "Não vale de nada, senhor; ele está sempre frio nunca consegue aquecer." "És um bom rapaz, Juanito." Juanito virou-Lhe as costas. "Está a chamar por mim, Senhor." Joseph passou a mão pelo lombo morno dum cavalo e voltou para a tenda. Para as bandas do poente o pinhal da colina estendia-se numa linha sinuosa na luz indecisa da manhã que vinha. A erva agitava-se descanadamente à brisa da alvorada.
4
O esqueleto da casa estava já erguido à espera das paredes, uma construção quadrada dividida interiormente em quatro divisões iguais. O gigantesco carvalho solitário estendia um braço protector por cima do telhado. Daquela árvore venerável brotavam folhas novas e brilhantes, luzidias e amarelo-esverdeadas ao sol da manhã. Joseph fritava toucinho na fogueira, virando fatias sobre fatias. Depois, antes ainda de comer o pequeno almoço, dirigiu-se à sua carroça nova, onde estava o barril da água. Encheu uma bacia e com as mãos em concha lançou água pelo cabelo e pela barba e limpou os olhos dos últimos restos do sono. Escorreu a água das mãos e foi almoçar com a cara brilhante de humidade. A erva estava molhada do orvalho, salpicada de faíscas. Três calhandras, com os seus coletes amarelos e casacos cinzentos, saltitavam perto da tenda e estendiam os biquitos, amáveis e curiosos. De quando em quando tufavam o peito e levantavam a cabeça à maneira de êxtase crescente, e depois a cara dele, a ver se as tinha observado e as aplaudia. Joseph levou à boca uma chávena de folha e engoliu o resto do café, deitando as borras na fogueira. Ergueu-se e espreguiçou-se à luz forte do sol antes de se dirigir à construção e levantar a lona que cobria as ferramentas; e as três calhandras seguiram-no a correr, parando para cantar desesperadamente, para lhe chamarem a atenção. Dois cavalos, vindos da pastagem, a passo pachorrento, levantaram os focinhos e relincharam amigavelmente. Joseph pegou num martelo e numa saca de pregos e voltou-se, irritado, para as calhandras. "Vão caçar minhocas", disse-lhes. "Acabem com esse chinfrim, Daqui a pouco também me obrigam a desenterrar minhocas. Toca a andar." Os três pássaros levantaram a cabeça meio surpreendidos e começaram numa cantoria em coro. Joseph tirou o seu chapéu negro de campónio do alto duma pilha de madeira e enterrou-o até aos olhos. "Vão caçar minhocas", resmungou. Os cavalos sopraram de novo e um deles lançou um relincho agudo. Joseph deixou cair nesse instante o martelo, com alívio. "Eh! Quem vem lá?" Respondeu-lhe outro relincho do meio das árvores, para os lados da estrada. e descobriu no meio do caminho um cavaleiro, cavalgando a trote cansado. Joseph correu à fogueira, quase apagada, espevitou-a e tornou a pôr a cafeteira ao lume. Sorriu satisfeito. "Não tencionava trabalhar hoje", disse para as calhandras. "Vão apanhar minhocas, não posso perder tempo com vocês." E foi então que chegou Juanito. Apeou-se airosamente - com dois movimentos atirou-se do selim - e ficou-se de sombrero na mão, sorrindo, gozando antecipadamente o êxito da chegada. "Juanito! Prazer em ver-te! Ainda não tomaste o pequeno almoço, pois não? Vou arranjar-te qualquer coisa." E o sorriso de satisfação de Juanito cresceu até à alegria. "Passei a noite em viagem, senhor. Venho
oferecer-me para seu vaquero." Joseph estendeu a mão. "Mas se eu não tenho uma única vaca para te dar a tratar, Juanito!" "Não tardará a tê-las, senhor. Faço tudo que for preciso e sou um bom vaquero." "Podes ajudar-me a construir a casa?" "Claro que posso, senhor." "E quanto à féria, Juanito?... Quanto estavas a ganhar?" As pálpebras de Juanito desceram-Lhe gravemente sobre os olhos brilhantes. "Até aqui, tenho sido vaquero, e um dos bons. Os outros pagavam-me trinta dólares por mês e consideravam-me índio. Quero ficar como seu amigo, sem nenhum ordenado." Joseph ficou desnorteado. "Parece-me que sei o que tu queres dizer, Juanito, mas precisas com certeza de dinheiro para beber um trago quando fores à cidade. Precisas de dinheiro também para estares com uma pequena uma vez por outra." "Quando eu for à cidade, pode oferecer-me uma prenda então. Uma prenda já não é a mesma coisa que uma féria." Voltou-lhe o sorriso. Joseph deu-lhe um púcaro de café. "És um bom rapaz, Juanito. Obrigado." Juanito levou a mão à copa do sombrero e tirou uma carta. "Como vinha para aqui, trouxe-lhe isto, senhor." Joseph recebeu a carta e afastou-se lentamente. Sabia bem do que se tratava. Há muito que esperava por aquilo. E até a própria natureza parecia ter estado à espera daquele momento, porque logo o silêncio caiu sobre a planície, as calhandras desapareceram e os pintarroxos empoleirados no carvalho pararam de picar. Joseph sentou-se na pilha de madeira à sombra da árvore e abriu vagarosamente o envelope. Era uma carta de Burton. "Thomas e Benjy pediram-me que te escrevesse", dizia a carta. "Aquilo que nós esperávamos que acontecesse já aconteceu. A morte sempre nos surpreende, mesmo quando já a esperamos. O pai faleceu há três dias. Estivemos todos à volta dele até aos últimos momentos, menos tu. Não devias ter partido tão cedo. "Para o fim já não sabia bem o que dizia. Disse algumas coisas bastante esquisitas. Falou mais para ti do que propriamente de ti. Disse que, vivesse o que vivesse, havia de ver as tuas novas propriedades. Estava obcecado por essa terra. Claro que não raciocinava já perfeitamente. Dizia: "-Não sei se o Joseph soube escolher boa terra. Não sei mesmo se ele percebe do assunto. Tenho de ir ver o que ele arranjou". Finalmente, pareceu querer sossegar. Benjy e Thomas saíram então do quarto. O pai entrou em delírio. Na realidade, não devia contar-te o que ele disse, porque não estava Senhor de si. Mas falou nos bichos a cobrirem as fêmeas. Dizia que toda a terra era... Não, não há qualquer razão que me leve a contar isto. Tentei ainda levá-lo a rezar comigo, mas ele já estava sem forças. Custou-me bastante que as suas últimas palavras não fossem verdadeiramente dum cristão. Não as disse aos outros porque elas eram dirigidas especialmente a ti, como se estivesse a falar
contigo." A carta prosseguia com uma descrição pormenorizada do funeral. E acabava: "Thomas e Benjy acham que podíamos partir todos para o Oeste se lá houvesse ainda terras disponíveis. Gostaríamos de saber o que penssas a este respeito antes de tomarmos uma decisão." Joseph deitou fora a carta e mergulhou a cara nas mãos. Tinha o cérebro paralisado, mas não estava triste. Perguntava a si mesmo por que razão não estava triste. Burton censurá-lo-ia se soubesse que, em vez disso, se ia tornando nele cada vez maior um sentimento de alegria e de gratidão. Ouviu de novo os ruídos da terra. As calhandras edificavam torres de melodias cristalinas, um esquilo guinchava sentado à entrada da toca, o vento sussurrou uns momentos pelas ervas e foi aumentando, mais forte e mais firme. arrastando o cheiro fresco das plantas e da terra húmida e a enorme árvore estremeceu de vida sob a ventania. Joseph olhou para aqueles ramos velhos e enrugados. Os olhos brilhavam-lhe de gratidão e de compreensão porque o ser forte e simples que tinha sido o seu pai e que enchera a sua juventude como uma nuvem de paz tinha encarnado na árvore. Saudou-o com a mão. Disse-lhe, baixinho: "Ainda bem que veio, meu pai. Só agora sei a falta que me fazia a sua presença." A árvore agitou-se ao de leve. "É uma terra esplêndida, vê?" Joseph continuou a murmurar: "Vai dar-se bem aqui, pai." Sacudiu a cabeça para afastar de vez aquele peso e riu consigo próprio, em parte por vergonha dos seus bons pensamentos, em parte por surpresa de se sentir tão subitamente irmanado àquela árvore. "Acho que isto é por causa do isolamento. Juanito vai evitar que isto me dê mais vezes e vou mandar vir os rapazes para aqui. Já dei em falar sozinho." De súbito sentiu-se culpado de traição. Chegou-se à velha árvore e beijou-Lhe a casca. Lembrou-se depois de que Juanito devia estar a observá-lo e voltou-se, em desafio. Mas Juanito fitava obstinadamente o chão. Joseph veio ter com ele. "Estiveste a ver tudo, com certeza..." começou irado. Juanito continuava de olhar baixo. "Não vi nada, senhor." Joseph sentou-se ao lado dele. "O meu pai morreu, Juanito." "Sinto muito, meu amigo." "Mas quero falar-te sobre isto, Juanito, porque és meu amigo. Por minha parte não tenho de que estar triste porque o meu pai está aqui." "Os mortos estão sempre connosco, senhor. Nunca nos abandonam." "Não", disse Joseph com entusiasmo. "Mais do que isso. O meu pai está acolá, naquela árvore.É aquela árvore! É estupidez mas eu quero acreditar nisto. Podes contar-me qualquer coisa, Juanito? Nasceste aqui. Desde que cheguei, desde o primeiro dia que aqui passei, que eu sabia que esta terra está cheia de fantasmas." Parou, indeciso. "Não, não é bem assim. Os fantasmas não passam de sombras fracas da realidade. O que aqui vive é mais real do que nós próprios. Nós é que somos fantasmas da realidade deles. Que será então isto, Juanito? Terei eu a cabeça mais fraca depois de dois meses de solidão?"
"Os mortos nunca desaparecem" repetiu Juanito. Então olhou em frente com um brilho de tragédia nos olhos: "Menti-lhe, senhor. Não sou castelhano. A minha mãe era uma índia e ensinou-me coisas." "Que coisas?", inquiriu Joseph. "Coisas de que o padre Ângelo não gostava nada. A minha mãe contou-me que a terra é nossa mãe e que tudo o que no mundo existe deve a vida a essa mãe e torna depois a ela. Quando me lembro disto, senhor, é que acredito nestas coisas, porque as vejo e as entendo, e só então sei que não sou castelhano nem caballero. Sou índio." "Mas eu não sou índio, Juanito, e parece-me agora que as estou também a ver." Juanito encarou-o cheio de gratidão, baixou os olhos e ficaram ambos a fitar o chão. Joseph perguntava a si mesmo por que razão não conseguira escapar àquela crença que o dominava. Pouco depois levantou a vista para o carvalho junto da casa em construção. "No fim de contas, não interessa", disse bruscamente. "Pense eu o que pensar, não é com isso que os fantasmas ou os deuses acabam por morrer. Temos muito que fazer, Juanito. Anda", disse apressado, "não podemos perder tempo a pensar." E foram-se rapidamente ao trabalho na casa. Nessa noite escreveu aos irmãos: "Há terrenos disponíveis ao pé dos meus. Cada um de vocês pode ficar com cento e sessenta acres, que ficaremos com seiscentos e quarenta acres ao todo. Os campos são ricos e férteis e a terra só precisa de ser lavrada. Não há rochedos, Thomas, para fazerem saltar os arados, nem balseiros que seja necessário limpar. Se vocês vierem, havemos de fazer aqui uma nova comunidade."
5
A erva estava dum castanho sazonado, pronta a ser mondada, quando os irmãos chegaram com as respectivas famílias e se estabeleceram. Thomas era o mais velho, um homem robusto, de quarenta e dois anos, de cabelos dourados e um bigode comprido e amarelo. Tinha a cara redonda e corada e olhos semicerrados, dum azul frio como um céu de Inverno. Era de uma grande afeição para com todos os animais. Costumava empoleirar-se nas manjedouras a ver os cavalos a comerem o feno. Bastava o mais leve gemido duma vaca nas dores do parto para que ele saltasse da cama, fosse a que horas fosse, e corresse a certificar-se se de facto o animal estava já a parir, e, caso houvesse qualquer complicação, a prestar-lhe todo o auxílio. Quando dava uma volta pelo campo, os cavalos e as vacas erguiam os focinhos a cheirar o ar e aproximavam-se dele. Thomas gostava de puxar as orelhas aos cães com aqueles seus dedos secos e fortes até os ouvir gemer de dor, e, quando os largava, os cachorros ofereciam-lhe as orelhas para que ele lhas puxasse de novo. Tinha sempre uns tantos animais selvagens que procurava domesticar. Ainda não estava há um mês naquele sítio e já conseguira reunir um quati, dois caiotes meio adultos, que o seguiam por toda a parte e rosnavam para quem quer que fosse, uma caixa de furões e um gavião de rabo vermelho, sem falar em quatro cães rafeiros. Não costumava amimar os animais, ou, pelo menos, não os tratava com mais mimo do que eles entre si, mas devia saber lidar com eles de maneira bastante animal, pois não havia bicho nenhum que não se lhe entregasse, confiante, nas mãos. Quando um dos cães atacou, enraivecido, o quati e perdeu uma vista na luta, Thomas não se deixou cair em sentimentalismos. Raspou-lhe o resto do olho com um canivete e bliscou-lhe uma pata, para lhe fazer esquecer a dor. Gostava de animais e sabia compreendê-los, matando-os sem mais escrúpulo do que eles a matarem-se uns aos outros. Era, de feitio, demasiado animal para se comover com sentimentalismos. Nunca perdia uma vaca, pois sabia instintivamente onde ela poderia estar escondida. Raras vezes caçava, mas quando se decidia a fazê-lo ia directamente à toca da vítima e aniquilava-a com a presteza e a precisão dum leão. Compreendia os animais; mas, quanto aos homens. não só os não percebia, como não acreditava muito neles. Pouco tinha que dizer às pessoas; coisa como negócios e romarias, assuntos políticos ou religiosos, confundiam-no e amedrontavam-no. Sempre que era necessário tomar parte numa reunião, fazia o possível por não dar nas vistas e aguardava a primeira oportunidade para se escapulir. Joseph era o único ente humano com quem sentia qualquer semelhança; falava-lhe sem receio. A mulher de Thomas chamava-se Rama, uma rapariga forte e cheia de jeito, com sobrancelhas escuras que quase se uniam na base do nariz. Desdenhava quase sempre do que os homens pudessem pensar ou fazer. Era uma boa parteira e para as crianças traquinas um verdadeiro terror; se bem que nunca lhes tivesse
batido, as suas três filhas temiam contrariá-la, pois ela conhecia-lhes os pontos fracos e era com isso precisamente que as castigava. Conhecia bem o marido, tratava-o como se ele fosse um simples animal, mantendo-o sempre limpo, agasalhado e bem comido, e raras vezes lhe vinha com preocupações. Rama nunca ligava às coisas da lavoura: a cozinha, a costura, os filhos e o arranjo da casa eram para ela o mais importante que havia no mundo; e muito mais importante do que as tarefas dos homens. As crianças adoravam-na quando não faziam traquinices, porque ela sabia perfeitamente dominá-las pelo sentimento. A sua recompensa podia ser tão delicada e subtil como terríveis os castigos com que as punia. Tomava conta imediatamente de todos os garotos que viessem ter com ela. Os dois filhos de Burton respeitavam-na tanto mais quanto as determinações da mãe, sempre carinhosa para com eles, eram irregulares, pois os princípios de Rama nunca se alteravam, o mau era sempre mau e o que era mau punia-se, enquanto o bom era eternamente, deliciosamente, bom. Sabia bem ser-se bom em casa de Rama. Já Burton era uma daquelas pessoas cuja maneira de ser parecia talhada para a vida religiosa. Andava sempre a defender-se das tentações do Mafarrico e encontrava-o em quase todos os contactos humanos. Certa vez, findas as cerimónias religiosas, foi elogiado do púlpito. "Um homem de fé fortíssima" objurgou-lhe o pastor, e Thomas inclinou-se ao ouvido de Joseph a segredar-lhe: "Um homem de estômago fraquíssimo." Por quatro vezes Burton beijara a mulher. Tinha dois filhos. O celibato era para ele um estado natural. Nunca se sentia bem disposto. De rosto macilento e chupado, os olhos, sedentos do prazer que não sabia encontrar na vida, voltavam-se para o Céu, na esperança de ali o alcançarem. De certo modo, era-Lhe grato ter uma saúde débil, pois tomava isso como prova de que Deus o distinguia para o fazer sofrer. Burton dispunha daquela poderosa resistência característica dos doentes crónicos. Tinha pernas e braços fortes como fibras entrelaçadas. Orientava a esposa com mão bíblica e decisiva. Expunha-lhe metodicamente aquilo que pensava e dominava-Lhe as emoções quando ela se exaltava. Sabia quando Harriet não cumpria as regras determinadas, e quando, como acontecia uma vez por outra, qualquer ponto fraco nela dava de si e caía em febres e delírios, Burton punha-se a rezar à cabeceira da cama até que Lhe visse a boca endurecer de novo e estacar de vez os murmúrios. Benjamín, o mais novo dos quatro, era um castigo para os irmãos. Devasso e voluntarioso, mal apanhava uma oportunidade embebedava-se e partia pelos campos, numa névoa romântica, a cantar gloriosamente. Tinha um ar tão jovem, tão infeliz e tão vago que muitas camponesas se condoíam dele,. e por esta razão não lhe faltavam sarilhos por causa desta ou daquela mulher. É que quando ele estava embriagado e se punha a cantar e nos olhos tinha o tal brilho vago, as mulheres acalentavam-no contra os seios para o defenderem de mais desatinos. Todas as que acarinhavam assim
Benjamín ficavam surpreendidas quando se viam seduzidas por ele. Não percebiam de todo como acontecera tal coisa, porque ele parecia loucamente desamparado. A jovem mulher de Benjamín, Jennie, fazia todos os possíveis para o defender. E mal o ouvia a cantar a altas horas, e sabendo-o mais uma vez embriagado, rezava para que não caísse e se não magoasse. A serenata sumia-se pela noite fora e Jennie estava certa de que antes do romper do Sol haveria por força uma rapariga condoída que se deitasse com ele. E chorava com medo de que acontecesse alguma coisa ao marido. Benjy era um homem feliz e trazia aos que lidavam com ele felicidade e dor. Mentia, roubava um poucochinho, cometia fraudes, faltava à palavra dada; e toda a gente gostava de Benjy, todos o desculpavam e o defendiam. Quando a família veio para o Oeste, tiveram de o trazer também, não fosse ele morrer à fome se o deixassem para trás. Thomas e Joseph trataram-lhe do registo da terra. Joseph emprestou-Lhe a barraca enquanto não tiveram tempo para fazer uma casa para ele. O próprio Burton - que amaldiçoava Benjy e rezava com ele e lhe censurava a maneira como vivia -, até esse não pôde consentir que o irmão vivesse numa tenda. Onde ele ia descobrir a aguardente é que nenhum dos irmãos poderia dizer, mas tinha-a sempre que queria. Os mexicanos do vale de Nossa Senhora davam-lhe de beber e ensinavam-lhe as suas cantigas; e Benjy, quando os apanhava pelas costas, dormia com as mulheres deles.
6
As famílias agruparam-se em torno da casa que Joseph construíra. Cada uma delas construiu uma pequena cabana no seu pedaço de terra, como a lei exigia, mas nem por um instante consideraram a terra dividida em quatro. Era um rancho único e, quando ficaram resolvidos os pormenores da instalação, passou a ser o rancho Wayne. Ergueram-se quatro casas quadradas junto ao grande carvalho, além do enorme celeiro pertença da tribo. Talvez porque tivesse recebido a bênção, Joseph era o chefe indiscutido do clã. Na velha herdade, em Vermont, seu pai tinha-se ligado de tal maneira à terra que se tornou o símbolo vivo do amálgama desta e dos seus habitantes. Essa autoridade passou para Joseph. Joseph falava com o assentimento da erva, do solo, dos animais, selvagens e domésticos - era ele o pai da herdade. Quando observava o grupo de cabanas que nascia da terra, quando olhava para o berço do recém-nascido - o último filho de Thomas -, quando marcava as orelhas dos vitelos novos, Joseph sentia a alegria que Abraão deve ter sentido quando a imensa promessa frutificou, quando os homens e as cabras da sua tribo começaram a multiplicar-se. A paixão de Joseph pela fecundidade tornava-se cada vez mais forte. Observava a densa e insaciável sensualidade dos seus touros e a paciente e incansável fecundidade das vacas. Levava o enorme garanhão às éguas, gritando: "Vamos, rapaz, anda!" Neste lugar não havia quatro casas; havia verdadeiramente uma, de que Joseph era o chefe. Quando ele caminhava, de cabeça descoberta, pelos campos, sentindo o vento agitar-lhe a barba, os olhos ardiam-lhe de júbilo. Tudo à sua volta - terra, gado, pessoas - era fértil, e ele, Joseph, era a fonte, a origem desta fertilidade; era o seu desejo que desencadeava todos os desejos. Queria que tudo à sua volta crescesse, crescesse rapidamente, e se multiplicasse. O pecado sem remissão era a esterilidade, um pecado inadmissível e imperdoável. Os olhos de Joseph tornavam-se cruéis com esta nova fé. Eliminava impiedosamente os seres estéreis, mas quando uma cadela prenha se arrastava com dificuldade ou uma vaca trazia um vitelo no ventre dilatado as criaturas eram sagradas para ele. Joseph não pensava estas coisas, sentia-as no peito e nos músculos rijos das pernas. Era a herança duma raça que por milhões de anos segurava a seiva da terra e vivera em comum com ela. Um dia Joseph parou junto à vedação do pasto e observava um touro com uma vaca. Bateu palmadas contra a travessa do cercado; um clarão vermelho brilhava-Lhe nos olhos. Quando Burton se aproximou dele, por detrás, Joseph arrancava o chapéu, atirava-o ao chão, desapertava o colarinho da camisa, gritando. "Monta, parvo! Ela está à espera. Monta agora!" "Tu estás doido, Joseph?", disse asperamente Burton. Joseph virou-se. "Doido? Que queres dizer com isso?" "Estás a proceder duma forma estranha, Joseph. Podias muito bem ser visto por alguém." Burton olhou em volta, a certificar-se se o que dizia era verdade. "Preciso de vitelos", disse Joseph, obstinado. "Que mal há nisso, mesmo para ti?"
"Ouve, Joseph" - o tom de Burton era firme e cordial quando fazia as suas prelecções -, "toda a gente sabe que essas coisas são naturais. Todos sabem que isso tem de acontecer, para que a raça se propague." "Mas as pessoas não olham para essas coisas a não ser quando é necessário. Tu podias ser visto aqui a olhar. Joseph desviou, de má vontade, os olhos do touro e encarou o irmão. "E depois, se vissem? Isso é algum crime? Quero que nasçam vitelos, aí tens." Burton fitou o chão, envergonhado com o que tinha a dizer: "Quem te ouvisse aqui a gritar como eu te ouvi. podia dizer certas coisas." "Que é que podiam dizer?" "Certamente que não queres que eu to diga, Joseph. A Escritura menciona essas coisas proibidas. Podiam julgar que o teu interesse era... pessoal." Olhou para as mãos e escondeu-as rapidamente nas algibeiras, como que para evitar que elas ouvissem o que ele estava a dizer. "Ah!", fez Joseph, embaraçado. "Podiam dizer... compreendo." A voz tornou-se-lhe brutal. "Podiam dizer que eu sentia como o touro. Pois bem, Burton, é assim. Se eu pudesse montar uma vaca e fecundá-la, julgas que hesitava? Olha, Burton, aquele touro pode cobrir vinte vacas num dia. Se dependesse da minha vontade fazer que uma vaca tivesse um vitelo, eu era capaz de montar cem. Aí está como eu penso, Burton." Joseph reparou então no horror lívido que cobrira a cara do irmão. "Tu não compreendes, Burton", disse ele brandamente. "Eu quero que tudo se multiplique. Quero a terra enxameada de vida. Quero que por toda a parte as coisas cresçam." Burton afastou-se, de mau humor. "Ouve. Burton, creio que preciso duma mulher. Tudo na Terra se reproduz. Eu sou a única coisa estéril. Preciso duma mulher." Burton tinha começado a afastar-se. mas virou-se e atirou a Joseph as suas palavras habituais: "Precisas antes de tudo de rezar. Vem ter comigo quando puderes rezar." Joseph ficou a ver o irmão afastar-se e meneou a cabeça, perplexo. "Gostava que me dissessem o que é que ele sabe que eu não saiba", disse consigo. "Há um segredo nele que faz que tudo o que eu pense ou faça seja sujo. Já o ouvi mencionar o segredo, mas não o compreendo." Passou os dedos pelos longos cabelos, apanhou o seu sujo chapéu preto e pô-lo na cabeça. O touro aproximou-se da vedação, baixou a cabeça e bufou. Joseph sorriu e deu um assobio agudo. Ao assobio, a cabeça de Juanito assomou à porta do celeiro. "Sela um cavalo", gritou-lhe Joseph. "Aqui este camarada ainda tem mais. Traz outra vaca." Joseph trabalhava poderosamente, como trabalham os montes para produzir um carvalho. O seu trabalho era, como o desses, lento e incessante. Tal esforço é ao mesmo tempo o estigma e a herança dos montes. Antes de a luz da manhã chegar aos pastos já a lanterna de Joseph brilhava no terreiro, para logo desaparecer no celeiro. Aqui, por entre os animais quentes e sonolentos. trabalhava, consertando arreios, ensaboando o couro, limpando as fivelas. A sua almofada raspava flancos musculosos. às vezes encontrava lá Thomas, sentado
numa manjedoura, no escuro, tendo atrás de si um coiotezinho dormindo no feno. Os irmãos davam-se os bons-dias. "Não há novidade?", perguntava Joseph. E Thomas: "O Pombo perdeu uma ferradura e fendeu o casco. Não deve sair hoje. Granny, aquele diabo negro, escouceou a baia toda. Qualquer dia fere alguém, se não se matar primeiro. A Azul teve um potro esta manhã. Foi isso que eu vim ver." "Como sabias, Tom? Que é que te fez pensar que seria esta manhã?" Thomas agarou a crina dum cavalo e puxou-se da manjedoura para o chão. "Não sei, sou sempre capaz de dizer quando nasce um potro. Vem ver o bicharoco. Ela não se importa, já o deve ter limpo a estas horas." Foram até à baia e olharam para o potrozito, de pernas de aranha, joelhos nodosos e com uma vassoura de pêlos por cauda. Joseph estendeu a mão e afagou-Lhe os pêlos húmidos e brilhantes. "Meu Deus!", disse. "Porque será que gosto tanto destas criaturinhas?" O potro levantou a cabeça, olhou para cima com uns olhos azul-escuros, enevoados e míopes, e afastou-se da mão de Joseph. "Queres sempre tocar-lhes", queixou-se Thomas. "Eles não gostam que lhes toquem quando são pequenos." Joseph retirou a mão. "Parece-me que vou tomar o pequeno almoço." "Olha", disse Thomas, "vi andorinhas a brincar por aí. Vamos ter ninhos de lama nos beirados do celeiro e debaixo do tanque do moinho, na Primavera." Todos os irmãos tinham estado a produzir bom trabalho juntos, excepto Benjy. Benjy escapava-se quanto podia. Debaixo das ordens de Joseph, tinham feito uma horta que se estendia por detrás das casas. Um moinho erguido nas suas altas andas fazia brilhar as pás todas as tardes quando se levantava vento. Uma comprida alpendrada aberta erguia-se ao lado do grande estábulo. Vedações de arame farpado avançavam a cercar a herdade. Crescia abundante o feno bravo nas baixas e nas encostas e o gado multiplicava-se. Quando Joseph se voltou para sair do celeiro, o sol assomou às montanhas e os seus raios brancos e quentes atravessaram as janelas quadradas. Joseph caminhou para um raio de sol e estendeu por um momento os braços. Um galo vermelho pousado no alto dum montão de estrume olhou-o do lado de lá da janela;,depois cacarejou e recuou, batendo as asas a avisar as galinhas de que qualquer coisa de terrível iria provavelmente acontecer naquele dia tão bonito. Joseph deixou cair os braços e foi de novo até Thomas. "Arranja dois cavalos, Tom. Vamos dar uma volta hoje para ver se há vitelos novos. Diz ao Juanito, se o vires." Depois do pequeno almoço, os três homens afastaram-se das casas a cavalo. Joseph e Thomas iam a par, com Juanito atrás. Juanito regressara a casa de madrugada, vindo de Nossa Senhora, depois de passar um serão circunspecto e cerimonioso na cozinha dos Garcías. Alice García tinha-se sentado em frente dele, olhando placidamente para as mãos pousadas no
regaço, enquanto os velhos Garcías, seus guardiões, se colocavam um de cada lado de Juanito. "Compreendem, eu não sou apenas o mordomo do senhor Wayne", explicava Juanito aos seus interlocutores, que o olhavam com admiração misturada a um pouco de incredulidade. "Eu sou mais como um filho de Don Joseph. Onde ele vai, vou eu. Os assuntos muito importantes só os confia a mim." Juanito estava nestas gabarolices, placidamente, durante umas horas, e quando, como exigia o decoro, Alice e a mãe se retiravam, dizia palavras solenes acompanhadas dos gestos convenientes; e foi finalmente aceite, com uma conveniente relutância, como genro de Jesus García. Juanito regressou ao rancho muito cansado e muito orgulhoso porque os Garcías podiam provar ter pelo menos um antepassado espanhol autêntico. Cavalgava agora atrás de Joseph e Thomas, ensaiando para um dos seus botões a maneira como havia de fazer a sua participação de casamento. O sol abrasava as terras quando o grupo subiu uma colina coberta de erva, à procura de vitelos por marcar e castrar. A erva seca chiava debaixo das patas dos cavalos. O cavalo de Thomas agitava-se nervosamente. Em frente de Thomas, empoleirado no arção da sela, ia um asqueroso quati, com dois olhitos maus em forma de contas a espreitar por detrás duma máscara negra. Mantinha o equilíbrio agarrando a crina do cavalo com uma mãozinha preta. Thomas olhou em frente, com os olhos semicerrados contra o sol. "Sabes", disse, "estive em Nuestra Senhora no sábado." "Sim", disse Joseph, impaciente, "Benjy também deve lá ter estado. Ouvi-o a cantar à noite, já tarde. Tom, aquele rapaz qualquer dia arranja um sarilho. Há coisas que a gente daqui não suporta. Qualquer dia encontramo-lo com uma facada no pescoço. o que te digo, Tom, esse rapaz qualquer dia apanha uma facada." Thomas zombou. "Deixa-o lá, Joe. Nessa altura já se deve ter divertido mais que uma dúzia de homens pacatos e vivido mais que Matusalém." "O Burton, então, está sempre apoquentado com isso. Tem-se falado dele dúzias de vezes." "Mas, como te ia dizendo", prosseguiu Thomas, "sentei-me no armazém de Nuestra Senhora no sábado à tarde. Estavam lá os vaqueiros de Chinita. Começaram a falar dos anos de seca de 80 a 90. Já ouviste falar disso?" Joseph deu mais um nó no laço que lhe pendia da sela. "Sim", murmurou, "ouvi falar deles. Alguma coisa não estava certa. Não voltarão, esses anos." "Pois bem, os vaqueiros estavam a falar disso. Disseram que todo o País secou, o gado morreu e a terra transformou-se em pó. Tentaram levar as vacas para o interior, mas muitas delas morreram pelo caminho. A chuva veio uns anos antes de chegares aqui." Puxou as orelhas do quati até o feroz animalejo lhe morder a mão com os dentes aguçados. Joseph tinha o olhar preocupado. Cofiou a barba revirando-lhe a ponta como o pai fazia. "Ouvi falar disso, Tom. Mas tudo isso lá vai. Havia qualquer coisa que estava mal, digo-te eu. Não voltará a acontecer. As montanhas estão cheias de água."
"Como é que sabes que isso não volta a suceder? Os vaqueiros disseram que já tinha acontecido antes. Como podes tu afirmar que não virá outra vez?" Joseph apertou os lábios num trejeito de obstinação. "Não podem voltar. As fontes das montanhas estão todas a correr. Não percebo - não posso perceber, como é que esse tempo pode voltar de novo." Juanito adiantou o cavalo até junto deles. "Don Joseph, ouço um chocalho para além do cabeço." Os três homens viraram os cavalos para a direita e meteram-nos a meio galope. O quati saltou para o ombro de Thomas e rodeou-lhe o pescoço com os bracitos fortes. Quando passaram o cabeço meteram a galope e alcançaram uma pequena manada de vacas vermelhas. Dois vitelos de pouca idade andavam por entre elas, com passos incertos. Num momento os vitelos estavam por terra. Juanito tirou um frasco de linimento da algibeira e Thomas abriu a sua faca de folha larga. A lâmina reluzente talhou a marca do rancho de Wayne nas orelhas dos dois vitelos, enquanto estes berravam desesperadamente e as mães, perto, mugiam receosas. Thomas ajoelhou então ao lado do vitelo macho. Castrou-o com dois golpes e derramou-lhe linimento sobre a ferida. As vacas bufaram de medo quando lhes cheirou a sangue. Juanito desatou as patas do novilho, que se ergueu com dificuldade e se aproximou, coxeando, da mãe. Os três homens montaram a cavalo e afastaram-se. Joseph tinha apanhado os bocados de orelha. Olhou por um momento para os dois pedacitos de couro castanho e meteu-os na algibeira. Thomas observou a cena. "Joseph", disse ele de súbito, "porque é que penduras os falcões que matas no carvalho ao pé da tua casa?" "Para afugentar os outros falcões das galinhas, pois claro. Toda a gente faz isso." "Mas tu estás farto de saber que isso não serve de nada, Joe. Não há nenhum falcão no mundo que deixe escapar uma galinha só por ver o seu defunto primo pendurado pelos pés. Ele até, se puder come o primo." Calou-se por um momento e depois acrescentou calmamente: "E tu pregas também os bocados de orelha à árvore, Joseph." O irmão virou-se na sela, irritado. "Prego lá os bocados de orelha para saber os vitelos que temos." Thomas pareceu ficar embaraçado. Pôs de novo em cima do ombro o quati, que se sentou e se pôs a lamber-Lhe cuidadosamente o interior da orelha. "Eu quase sei o que andas a fazer, Jo,. às vezes quase chego a entender o que é que tu pretendes. por causa dos anos de seca, Joseph? Andas já a trabalhar para a combater?" "Se não for pela razão que te disse, não tens nada que ver com isso, não achas?", disse Joseph, casmurro. Tinha o olhar preocupado e baixou a voz, embaraçado. "Além disso, nem eu mesmo entendo. Se te disser, não vais contar ao Burton, pois não? O Burton preocupa-se com todos nós." Thomas riu. "Ninguém conta nada ao Burton. Ele é que tem sempre sabido de tudo." "Bem", disse Joseph, "vou dizer-to. O nosso pai lançou-me uma bênção antes de eu vir para aqui, uma
bênção antiga, daquelas de que fala a Bíblia, creio eu. Apesar disso, parece-me que o Burton não teria gostado dela. Eu sempre tive uma opinião curiosa acerca do pai. Ele era de uma calma muito grande. Não se parecia muito com outros pais, mas era uma espécie de último refúgio, qualquer coisa à qual nos podíamos agarrar, qualquer coisa que nunca mudava. Tinhas a mesma impressão?" Thomas meneou lentamente a cabeça: "Sim, eu sei." "Bem, depois vim para aqui e continuei a sentir-me seguro. Passado tempo, recebi uma carta do Burton, e num segundo fui atirado para fora do mundo, caindo, sem nada a que me agarrar. Continuei a ler até onde o pai dizia que viria ver-me depois de morrer. A casa nesse tempo ainda não estava construída; eu estava sentado numa pilha de tábuas. Olhei para cima - e vi aquela árvore." Joseph calou-se e fitou a crina do cavalo. Um momento depois levantou os olhos para o irmão, mas Thomas evitou-lhe o olhar. "Pois bem, aí tens. Talvez que tu possas compreender. Faço aquilo que faço não sei porquê; só sei que me sinto feliz ao fazê-lo. Enfim", disse ele, desajeitadamente, "um homem tem de ter qualquer coisa a que se ligue, qualquer coisa que ele possa estar certo de encontrar lá de manhã." Thomas acariciou o quati com mais delicadeza do que a que usava habitualmente para com os seus animais, mas continuou a não olhar para Joseph. Disse: "Lembras-te de que eu parti um braço quando era pequeno?i Trazia-o ao peito numa tala. Doía como o diabo. O pai veio ao pé de mim, abriu-me a mão e beijou-lhe a palma. Foi tudo o que fez. Não era uma coisa que se esperasse do pai, mas estava certa porque era mais um remédio do que um beijo. Senti-o subir-me pelo braço acima como se fosse água fresca. É engraçado como me lembro tão bem disto." Em frente deles, ao longe, soou um chocalho. Juanito meteu a trote. "Nos pinheiros, senhor. Não sei porque é que hão-de estar nos pinheiros, onde não há que comer." Vieram os cavalos em direcção à colina encimada de pinheiros escuros. As primeiras árvores ficavam isoladas como postes avançados. Os troncos eram direitos como mastros e a casca vermelha do lado da sombra. O chão debaixo delas estava coberto com uma camada fofa de agulhas castanhas e não tinha erva. No pinhal havia um silêncio apenas interrompido por um ligeiro sussurrar do vento. As aves não gostavam de pousar nos pinheiros e o tapete castanho abafava os passos das pessoas e dos animais. Os cavaleiros meteram-se por entre as árvores, afastando-se da luz amarela do sol e penetrando na sombra vermelho-escura. à medida que caminhavam, o pinhal ia-se cerrando, as árvores encostavam-se umas às outras e juntavam a ramaria, formando um tecto ininterrupto de agulhas. Por entre os troncos cresciam silvas e amoras silvestres e pálidas e débeis folhas de guatras. O emaranhado das árvores aumentava a cada passo, até que por fim os cavalos pararam e recusaram-se a avançar mais naquela barreira de espinhos. Então Juanito virou o cavalo vivamente para a
esquerda. "Por aqui, senhores. Lembro-me de que há um atalho por aqui." Conduziu-os a um velho caminho, enterrado numa espessa camada de caruma, mas livre de vegetação e suficientemente largo para dois cavalos caminharem a par. Andaram uns cem metros ao longo do atalho, quando, subitamente, Joseph e Thomas estacaram os cavalos e olharam com espanto para o que tinham na sua frente. Tinham chegado a uma clareira quase circular e plana como a superfície dum lago. Árvores escuras cresciam à volta, direitas como pilares e estreitamente unidas umas às outras. No meio da clareira erguia-se um rochedo do tamanho duma casa, misterioso e enorme. Parecia ter sido sábia e habilmente talhado e, no entanto, não havia forma conhecida a que se pudesse comparar. Um musgo curto, verde-escuro, cobria-o duma penugem macia. O edifício assemelhava-se a um altar que tivesse ruído e rolado sobre si mesmo. Num dos lados do rochedo havia uma pequena caverna escura orlada de fetos em forma de dedos donde saía um pequeno regato que corria silencioso, atravessava a clareira e desaparecia no cerrado matagal que a rodeava. Junto ao regato estava deitado um enorme touro negro, com as patas dianteiras dobradas debaixo do corpo; um touro sem cornos, com a testa ornada de anéis de cabelo negro de azeviche. Quando os três homens entraram na clareira o touro estava ruminando e olhava para o rochedo verde. Voltou a cabeça e olhou para os homens com olhos injectados. Resfolegou, pôs-se em pé, baixou a cabeça na direcção deles e, dando meia volta, penetrou no matagal. Os homens viram-lhe, por um momento, a cauda espadanando e o enorme sexo pendente, que lhe chegava quase aos joelhos; depois o touro desapareceu e só ouviram o ruído que fazia atravessando a mata. Tudo isto se passara num momento. Thomas exclamou: "Aquele touro não é nosso. Nunca o tinha visto." E olhou, inquieto, para Joseph. "Eu nunca tinha estado neste sítio. Quer-me parecer que não gosto dele, não sei." A sua voz era um murmúrio. Apertava debaixo do braço o quati, que se debatia mordendo e tentando escapar-se. Os olhos de Joseph estavam dilatados e olhavam para toda a clareira. Não descobriu nela um único objecto. Espetara o queixo para a frente. Encheu o peito de ar para vencer uma penosa sensação de opressão e dilatou os músculos dos braços e dos ombros. Largou o bridão e cruzou as mãos no arção da sela. "Cala-te por um instante, Tom", disse ele lentamente. "Há qualquer coisa aqui. Tu tens medo dela, mas eu sei o que é. Já vi este lugar não sei quando, talvez num sonho, há muito tempo; ou talvez o tenha pressentido." Deixou cair os braços para os lados e murmurou, rebuscando as palavras: "Isto é sagrado-e antigo. Isto é antigo e sagrado." A clareira estava envolta em silêncio. Um falcão atravessou o céu, rente aos cimos das árvores. Joseph voltou lentamente. "Juanito, tu conhecias este sítio. Tu já tinhas aqui estado."
Os olhos claros de Juanito estavam marejados de lágrimas. "A minha mãe trouxe-me aqui, senhor. Minha mãe era índia. Eu era pequenino e a minha mãe ia ter um filho. Veio aqui e sentou-se junto do rochedo. Esteve sentada durante muito tempo e depois fomo-nos embora. Ela era índia. às vezes penso que os antigos ainda vêm aqui." "Os antigos?", perguntou rapidamente Joseph. "Que antigos?" "Os antigos índios, senhor. Desculpe tê-lo trazido aqui. Estava tão perto que o meu sangue índio fez-me vir aqui, senhor." Thomas exclamou, enervado: "Vamos daqui para fora! Temos de encontrar as vacas." E, obedientemente, Joseph virou o cavalo. Mas quando abandonaram a clareira e meteram pelo atalho, falou com suavidade ao irmão. "Não tenhas medo, Tom. Há ali qualquer coisa de forte, de bom. de doce. Há ali como que um alimento, como que água fresca. Esqueçamos isto agora, Tom. É possível que alguma vez, quando tivermos necessidade, voltemos aqui - e nos alimentemos." E os três homens calaram-se e puseram-se à escuta do som dos chocalhos.
7
Em Monterey vivia e trabalhava um albardeiro e fabricante de arreios chamado McGreggor, filósofo furioso, marxista pelo amor à discussão. A idade não lhe amaciara as opiniões ferozes, e há muito deixara para trás a amável utopia de Marx. McGreggor tinha rugas compridas e profundas na cara, de tanto apertar os maxilares e contrair a boca contra o vento. Os olhos baixavam-se-lhe de mau humor. Processava os vizinhos por qualquer infracção aos seus direitos e estava sempre a descobrir que a lei não Lhos reconhecia adequadamente. Tentava dominar a filha Elizabeth, e falhava tão completamente como com a mãe dela, porque Elizabeth fechava a boca e mantinha as suas opiniões fora do alcance das discussões do pai, pois nunca as exprimia. O velho enfurecia-se quando pensava que não podia combater com os seus os preconceitos dela. por não saber quais eles eram. Elizabeth era uma rapariga bonita e muito decidida. Tinha cabelo tufado, nariz pequeno e queixo firme, de tanto lutar com o pai. A beleza dela estava nos olhos, uns olhos cinzentos muito afastados e de pestanas tão espessas que pareciam guardar conhecimentos remotos e mais do que naturais. Era alta, não magra, mas esguia, com força, e retesada por uma energia rápida e nervosa. O pai apontava-lhe os defeitos, ou, antes, os defeitos que ele pensava que ela tinha. "És tal e qual a tua mãe", dizia ele. "Tens o espírito fechado. Não tens migalha de raciocínio. Tudo o que fazes é pelo sentimento. Olha como era a tua mãe, uma mulher da Escócia, vinda direitinha de lá - o pai e a mãe dela acreditavam em fadas, e quando eu lho dizia por piada batia com o queixo e fechava a boca como uma porta. E dizia: "Há coisas que não têm razão, mas que são assim mesmo." Aposto que tua mãe te encheu de histórias de fadas antes de morrer." E moldava-Lhe o futuro. "Lá virá o tempo", dizia ele profeticamente, "em que as mulheres hão-de ganhar o seu pão. Não há razão nenhuma para uma mulher não aprender um ofício. Tu, por exemplo", dizia ele. "Lá virá o tempo, e não falta muito, em que uma rapariga como tu terá o seu ordenado e mande para o Diabo os homens que quiserem casar com ela." Mas McGreggor ficou impressionado, apesar de tudo, quando Elizabeth começou a estudar para os exames de Estado, para se tornar professora. McGreggor quase abrandou. "És nova de mais, Elizabeth." argumentava ele. "Só tens dezassete anos. Deixa ao menos enrijar os ossos." Mas Elizabeth, triunfante, sorria levemente, e não dizia nada. Numa casa em que a mínima opinião provocava automaticamente esmagadoras forças de discussão, a rapariga aprendera a calar-se. O professorado era mais do que ensinar crianças, para uma rapariga de coragem. Quando chegou aos dezassete anos, fez os exames de Estado e meteu-se à aventura; era uma maneira decente de deixar a casa
e a cidade, onde toda a gente a conhecia demasiadamente bem; uma maneira de manter a sua dignidade atenta e insegura de rapariga nova. Na comunidade para onde a mandassem seria uma desconhecida, misteriosa e desejável. Sabia fracções e poesia; lia o seu bocado de francês e metia uma ou outra palavra francesa na conversa. às vezes punha roupa de baixo de cambraia ou até de seda, como se via quando a estendia a secar. Tudo isto, que poderia ser considerado pretensioso numa outra pessoa qualquer, era admirado e até esperado da professora da escola, que era pessoa de importância, tanto social como educativa, e que dava um tom intelectual e cultural ao distrito. As pessoas entre quem ela iria viver não saberiam o seu primeiro nome. Seria tratada por "Miss". O manto do mistério e da educação envolvia-a; e tinha dezassete anos. Só não casaria dentro de seis meses com o rapaz solteiro mais desejado do distrito se fosse feia como uma carranca, porque uma professora dava elevação social a um homem. Os filhos duma professora eram considerados mais inteligentes do que as crianças vulgares. O professorado, se a professora assim quisesse, podia tornar-se um passo subtil e certo para o casamento. Elizabeth McGreggor tinha uma educação ainda mais larga do que a da maior parte das professoras. Além das fracções e do francês, lera excertos de Platão e de Lucrécio, conhecia vários títulos de Ésquilo, Aristófanes e Eurípides e tinha uma formação clássica com base em Homero e Virgílio. Depois de ter passado nos exames, colocaram-na na escola de Nossa Senhora. O isolamento do local agradou a Elizabeth. Queria meditar sobre as coisas que sabia, arrumá-las nos seus lugares e construir a nova Elizabeth McGreggor com essa eventual arrumação. Na aldeia de Nossa Senhora ela foi viver em casa da família González. Correu logo no vale que a nova professora era jovem e muito bonita, e daí em diante, sempre que Elizabeth saía, quando se dirigia para a escola ou ia à pressa à mercearia, encontrava rapazes que, embora ociosos, estavam intensamente preocupados com os relógios, com o enrolar dum cigarro ou com qualquer longínquo ponto, vago mas importante. Mas às vezes havia um homem estranho entre esses ociosos que se preocupavam com Elizabeth: um homem alto de barba negra e olhos azuis e penetrantes. Este homem incomodava-a, porque olhava muito para ela quando passava, com os olhos a parecer atravessar-lhe o vestido. Quando Joseph ouviu falar na professora nova, foi-se aproximando dela em círculos cada vez mais pequenos, até que um dia acabou por se encontrar sentado na sala de visitas dos González, local respeitável e atapetado, a olhar para Elizabeth, sentada diante dele. Era uma visita de cerimónia. Elizabeth tinha o cabelo macio puxado para cima, mas continuava a ser sempre professora. A cara mostrava uma expressão solene, quase austera. Se não fosse o estar sempre a alisar a saia no colo, dir-se-ia calma. De vez em quando levantava o olhar para os olhos interrogadores de Joseph e depois voltava a afastá-lo. Joseph levava um fato preto e botas novas. Tinha
o cabelo e a barba aparados e as unhas tão limpas quanto lhe era possível. "Gosta de poesia?", perguntou Elizabeth, fitando por momentos aqueles olhos agudos e imóveis. "Gosto, sim; sim, gosto - do pouco que li, pelo menos." "Está claro que não há poetas modernos, Sr. Wayne, como os gregos, como Homero." A cara de Joseph tornou-se impaciente. "Lembro-me disso", disse ele. "Claro que me lembro. Havia um homem que foi a uma ilha e ficou transformado em porco." A boca de Elizabeth contraiu-se. De um momento para o outro ela tornou-se a professora, distante e superior ao aluno. "Isso é da Odisseia", disse ela. "Julga-se que Homero viveu cerca do nono século antes de Cristo. Teve uma influência profunda em toda a literatura grega." "Miss McGreggor", disse Joseph, "deve haver uma maneira de fazer isto, mas eu não a sei. Há pessoas que a sabem por instinto, parece; mas eu não. Antes de vir, tentei pensar o que lhe iria dizer, mas não descobri maneira, porque nunca na minha vida fiz coisa semelhante. É preciso primeiro uns tempos de conversa, e eu não sei conversar. Além disso acho que não serve para nada." Elizabeth estava agora presa pelos seus olhos e espantada pela intensidade do discurso dele. "Não sei de que está a falar, Sr. Wayne." Tinha sido atirada abaixo da sua cátedra, e a queda assustava-a. "Bem sei que estou a fazer tudo ao contrário", disse ele. "Não sei maneira melhor. Bem vê, Miss McGreggor, tinha medo de me confundir e atrapalhar. Quero-a para minha mulher, e deve sabê-lo. Eu e meus irmãos temos seiscentos e quarenta acres de terra. O nosso sangue é são. Creio que eu podia ser bom para si desde que soubesse o que quer." Baixara os olhos enquanto falava. Agora levantou-os e viu que ela corava e parecia muito embaraçada. Joseph pôs-se em pé dum salto. "Parece-me que fiz isto mal. Agora estou atrapalhado, mas já consegui dizer tudo primeiro. Vou-me embora, Miss McGreggor. Voltarei quando já não estivermos atrapalhados." Saiu a correr sem se despedir. saltou para cima do cavalo e desapareceu a galopar na noite. Levava na garganta um travo de vergonha e de exultação. Quando chegou ao fundo do rio puxou a rédea ao cavalo, ergueu-se nos estribos e gritou para acalmar a garganta; e o eco respondeu-lhe. A noite estava muito negra e um nevoeiro alto embotava a agudeza das estrelas e abafava os barulhos da noite. O grito dele rompera um silêncio espesso; assustou-o. Durante momentos ficou sentado quieto na sela, e sentiu o ofegar do cavalo arquejante. "A noite está quieta de mais", disse ele. "impassível de mais. Tenho de fazer qualquer coisa." Sentiu que a ocasião requeria um sinal, um acto que a sublinhasse. Era preciso qualquer acção sua que o identificasse com o momento que passava, ou este desvanecer-se-ia, não levando consigo nenhuma parte dele. Arrancou o chapéu da cabeça e arremessou-o para o meio das trevas. Mas não bastava. Tacteou à procura da chibata, pendurada do cepinho da sela, e, puxando por ela,
chicoteou a própria perna furiosamente, para conseguir um momento de dor. O cavalo saltou para o lado. para fugir ao silvo da chibata, e depois empinou-se. Joseph atirou a chibata para o mato, conteve o cavalo com um apertão valente dos joelhos e logo que acalmou o animal nervoso fê-lo trotar até ao rancho. Abria a boca para deixar que o ar fresco lhe penetrasse até à garganta. Elizabeth vira a porta fechar-se atrás dele. "Há uma fenda enorme debaixo daquela porta"", pensou ela. "Quando o vento soprar, há-de entrar frio por baixo. Não sei se deveria mudar-me." Alisou a saia com força, depois percorreu-lhe o centro com o dedo e o tecido aderiu-lhe às pernas e definiu-lhes a forma. Olhou cuidadosamente para os dedos. "Agora estou pronta", continuou ela. "Pronta a castigá-lo. É um parolo, um trapalhão idiota. Não tem modos. Não sabe ser delicado. Não conhece o que é ter maneiras. Não gosto da barba dele. Olha de mais para as pessoas. E tem um fato horrível." Voltou a pensar no castigo a dar-lhe e acenou lentamente com a cabeça. "Ele disse que não sabia conversar. E quer casar comigo. Seria obrigada a aturar aqueles olhos toda a minha vida. A barba é áspera, se calhar, mas não creio. Não, não creio. É admirável. isto de ir direito ao que interessa! E o fato dele... e abraçar-me-ia pela cintura." O espírito tomava-lhe o freio nos dentes. "Que farei eu?" A pessoa que no futuro agiria era uma estranha cujas reacções Elizabeth não chegava a compreender. Subiu as escadas até ao quarto e despiu-se lentamente. "Tenho de olhar-lhe para a palma da mão na próxima vez. Por aí verei." Acenou gravemente com a cabeça e depois atirou-se de bruços para cima da cama, a chorar. Aquele choro era tão agradável e voluptuoso como um bocejo matutino. Passado um bocado, levantou-se, apagou o candeeiro e arrastou até à janela uma cadeirinha de balanço, de assento de veludo. De cotovelos pousados no peitoril, olhou para a noite lá fora. Havia no ar uma neblina húmida e pesada; uma janela iluminada mais abaixo, na rua pedregosa, cercava-se duma auréola. Elizabeth sentiu um movimento furtivo no pátio que ficava por baixo da janela e debruçou-se para olhar. Sentiu um baque, um guincho agudo e áspero, e depois o triturar de ossos. Pesquisando a escuridão parda, os seus olhos distinguiram a forma comprida e sombria dum gato a escapar-se com qualquer pequeno animal na boca. Um morcego nervoso passou-lhe perto da cabeça, a ranger e a olhar em volta. "Onde estará ele agora?", pensava ela. "A cavalo, decerto. com a barba a voar ao vento. Quando chegar a casa deve ir muito cansado. E eu estou aqui a descansar, sem fazer nada. É bem feito para ele." Ouviu uma concertina a tocar, a aproximar-se, vinda do outro lado da aldeia, onde ficava a taberna. Mais perto, uma voz começou a acompanhar a música, uma voz doce e sem esperança como um suspiro de fadiga. "As pequenas de Maxwellton são catitas..." Passavam duas figuras negras. "Pára! A música não é assim. Não mistures as tuas canções mexicanas com isto, que diabo! Agora." "As pequenas de Maxwellton são catitas..."
"Outra vez mal!" Pararam. "Só gostava de saber tocar o raio da concertina." "Pode experimentar, senhor." "Experimentar, o Diabo. Quando eu experimento, ela só arrota." Fez uma pausa. "Quer experimentar outra vez essa tal de Maxwellton, senhor?" Um dos homens aproximava-se da cerca do pátio. Elizabeth via-o a levantar os olhos para a janela. "Venha cá abaixo", suplicou ele. "Venha, por favor". Elizabeth continuava muito quieta, com medo de se mover. "Venha, que eu mando este cholo para casa." "Senhor, nada de cholos comigo!" "Mando este senhor embora para casa se vier cá abaixo. Sinto-me sozinho." "Não", disse ela; e a própria voz assustou-a. "Cantarei para si se vier cá abaixo. Ouça como eu canto. Toca, Pancho, toca Sobre las Olas." E a voz do homem encheu o ar como ouro pulverizado, cheia duma tristeza deliciosa. A canção acabava tão suavemente que ela teve de se inclinar para a frente para ouvir. "Agora já desce? Estou à sua espera." Ela estremeceu violentamente e, estendendo a mão, puxou a janela para baixo; mas mesmo através da vidraça ouvia a voz do homem. "Ela não vem, Pancho. E a casa a seguir?" "Velhos, senhor; quase oitenta anos." "E a outra a seguir?" "Bem, talvez... uma rapariguinha, treze anos." "Vamos experimentar, então. Agora. "As pequenas de Maxwellton são catitas..." Elizabeth puxara a roupa da cama para cima da cabeça e tremia de medo. "Eu ia lá abaixo", murmurava, abatida. "Ia lá abaixo se ele tivesse pedido outra vez.
8
Joseph deixou passar duas semanas antes de voltar a visitar Elizabeth. O Outono aproximava-se nevoento, acinzentando o céu com uma neblina alta. Enormes nuvens inchadas, como de algodão, vinham do mar todos os dias e pousavam no cume das colinas e depois voltavam ao mar como navios aéreos de reconhecimento. Os melros de asas vermelhas reuniam as suas esquadrilhas e faziam exercícios de manobras sobre os campos. As pombas, invisíveis na Primavera e no Verão, saíam dos seus esconderijos e pousavam em bandos sobre as sebes e as árvores secas. O Sol, ao nascer e ao pôr, aparecia vermelho atrás do véu outonal do pó que andava no vento. Burton levara a mulher consigo a uma reunião campal em Pacifico Grove. Thomas disse, com um esgar: "Ele está a aprovisionar-se de Deus como um urso a comer carne para aguentar o Inverno." Thomas entristecia com o Inverno que vinha. Parecia recear o tempo húmido e ventoso em que não arranjaria caverna para se alojar. As crianças do rancho começaram a deixar de considerar o Natal demasiadamente escondido no futuro. Faziam a Rama perguntas veladas a respeito do comportamento que os santos do solstício mais admiravam; e Rama tirava partido da apreensão deles. Benjy estava doente, preguiçosamente. A mulher dele não compreendia porque é que ninguém se preocupava muito com isso. Pouco havia que fazer, no rancho. A erva alta e seca no sopé das colinas chegava para alimentar o gado o Inverno inteiro. Os celeiros estavam cheios de feno para os cavalos. Joseph passava muito tempo debaixo do carvalho, a pensar em Elizabeth. Recordava-a sentada, de pés juntos, com a cabeça alta, como se esta só não Lhe voasse por estar presa ao corpo. Juanito vinha sentar-se-lhe ao lado, olhando-lhe disfarçadamente para a cara para nela ler a disposição de Joseph e poder imitá-la. "Talvez arranje uma mulher antes da Primavera, Juanito", disse Joseph. "Aqui mesmo em casa, a viver cá. Quando chegasse a hora de jantar, ela tocaria uma campainha, não uma choca das vacas. Eu comprava um sininho de prata. Não gostavas de ouvir um sino desses a tocar à hora de jantar, Juanito?" E Juanito, lisonjeado pela confidência, revelava o seu próprio segredo. "Eu também, senhor." "Uma mulher, Juanito? Tu também?" "Sim, senhor. A Alice García. Tem um papel que prova que o avô deles era castelhano." "Muito me alegras, Juanito. Ajudar-te-emos a construir aqui uma casa e deixarás de vaguear. Passas a viver cá." Juanito riu de felicidade. "Também arranjo uma campainha, senhor, pendurada no alpendre; mas a minha há-de ser um chocalho. Não estava certo ouvir o seu sino e ir para minha casa jantar." Joseph atirou a cabeça para trás e sorriu aos ramos torcidos da árvore. Já várias vezes se tentara a segredar-lhe coisas a respeito de Elizabeth, mas a vergonha de fazer coisa tão tola impedira-o disso. "Depois de amanhã vou no carro à cidade, Juanito. Calculo
que queres ir comigo." "Quero, sim, senhor. Sento-me na frente e poderá dizer: "- É o meu cocheiro. Tem jeito para os cavalos. Eu nunca guio, claro." Joseph riu-se para o rapaz. "Se calhar hás-de querer que eu te faça o mesmo." "Oh, não, senhor, isso é que não." "Vamos cedinho, Juanito. Tens de ter um fato novo para uma altura destas." Juanito olhou-o incredulamente. "Um fato, senhor? Sem macaco? Um fato com casaco?" "Sim, um casaco e um colete, e, como presente de casamento, uma corrente de relógio para o colete." Era de mais. "Senhor", disse Juanito, "tenho uma cilha para consertar"; e afastou-se em direcção ao celeiro, porque aquilo do fato e da corrente precisava de grande meditação. A maneira de usar tal vestuário necessitaria estudo e algum treino. Joseph encostou-se à árvore e o sorriso abandonou-Lhe os olhos. Voltou a olhar para a ramada. Uma colónia de vespas juntara-se num ramo por cima da cabeça dele, e à volta desse núcleo começavam agora a construir o seu ninho frágil. No espírito de Joseph recortou-se a recordação da clareira redonda entre os pinheiros. Lembrava-se de todos os pormenores daquele sítio, da estranha rocha coberta de musgo, da caverna escura com a sua orla de fetos e da água límpida a transbordar silenciosamente e a esgueirar-se sorrateiramente para longe. Via o agrião crescer na água e a abanar com as folhas na corrente. De súbito teve vontade de lá ir, de sentar-se ao pé da rocha a afagar o musgo macio. "Seria um bom lugar para onde fugir, longe da dor ou da mágoa, do desapontamento ou do medo", pensou ele. "Mas agora não tenho necessidade disso. Não preciso de fugir de qualquer dessas coisas. Mas não me posso esquecer daquele lugar. Se alguma vez for preciso, será esse o lugar para onde irei." E lembrava-se dos altos troncos e da paz que na clareira era quase tangível. "Tenho de espreitar para dentro da caverna para ver onde é a nascente", pensou ele. Juanito passou todo o dia seguinte a trabalhar nos arreios, nos dois baios de tiro e no carro. Limpou e areou, escovou e varreu. Depois, receoso de não ter conseguido aproveitar todo o brilho potencial, repetiu tudo desde o princípio. O botão de bronze da vara cintilava ferozmente; as fivelas eram prata; o arreio brilhava como se fosse verniz. A meio do chicote esvoaçava um laço de fita vermelha. Na manhã do grande dia puxou para fora a carruagem, que oleara de novo, para ver se chiava. Por fim arreou os cavalos e prendeu-os à sombra, antes de ir almoçar com Joseph. Nenhum deles comeu muito. uma ou duas fatias de pão, partidas em pedaços dentro do leite. Acabaram, acenaram um ao outro e levantaram-se da mesa. Em cima do carro, à espera deles, estava Benjy, sentado pacientemente. Joseph irritou-se. "Não deves ir, Benjy. Estiveste doente." "Já estou bom", disse Benjy. "Levo o Juanito. Não há lugar para ti." Benjy desarmou-o com um sorriso. "Vou sentado na caixa", disse ele, e
passou por cima do assento e deitou-se nas tábuas. Puseram-se a caminho, a sacolejar sobre os trilhos pedregosos um pouco abatidos pela presença de Benjy. Joseph inclinou-se para trás, por cima do assento. "Não bebas nada, Benjy. Estiveste doente." "Não, não. Vou só para comprar um relógio." "Lembra-te do que te digo, Benjy. Não quero que bebas." "Não era capaz de engolir uma gota, Joe. nem que a tivesse na boca." Joseph desistiu. Sabia que Benjy estaria bêbado uma hora depois de chegarem à cidade, e não podia fazer nada para o evitar. Os sicómoros ao longo do riacho começavam a deixar cair as folhas. A estrada estava coberta de folhagem castanha e estaladiça. Joseph levantou as rédeas e os cavalos meteram a trote, de cascos a estalar maciamente sobre as folhas. Elizabeth ouviu a voz de Joseph no alpendre e subiu as escadas a correr para poder voltar a descê-las. Tinha medo de Joseph Wayne. Desde a sua última visita, passara quase todo o tempo a pensar nele. Como podia recusar-lhe casamento, mesmo se o odiasse? Podia acontecer qualquer coisa terrível se ela o recusasse - Joseph podia morrer; ou talvez bater-lhe com o punho. No quarto, antes de descer à sala de estar, tentou pedir protecção a toda a sua sabedoria - à álgebra, à data do desembarque de César em Inglaterra, ao concílio de Nice, ao verbo être. Joseph não sabia coisas dessas. Se calhar, a única data que sabia era 1776. Um ignorante, na verdade. Baixou os cantos da boca com desprezo. Endureceu o olhar. Ia pô-lo no seu lugar, como fazia a algum rapaz que se mostrasse mais espertalhão na escola. Elizabeth passou os dedos à volta da cintura, por dentro da saia, para se certificar de que tinha a blusa bem metida para dentro. Ajeitou o cabelo, esfregou os lábios de rijo com os nós dos dedos para chamar o sangue, e por fim apagou o candeeiro. Entrou majestosamente na sala, onde Joseph a esperava, de pé. "Boa noite", disse ela. "Estava a ler, quando me disseram que viera. Pippa Passes, de Browning. Gosta de Browning, Sr. Wayne?" Ele passou uma mão nervosa pelo cabelo e escangalhou a risca cuidadosa. "Ainda não resolveu?", perguntou. "Desculpe, mas tenho de perguntar-lhe já isto. Não sei quem é Browning." Olhava-a tão faminto, tão implorante, que a superioridade dela dissolveu-se e os factos regressaram aos seus lugares. Elizabeth fez um gesto desamparado. "Não... não sei". disse ela. "Então vou-me embora outra vez. Ainda não está pronta. A não ser que queira conversar a respeito de Browning. Ou talvez lhe apeteça dar um passeio. Vim no carro." Elizabeth baixou o olhar para o tapete verde com o seu carreiro castanho gasto pelos pés e os olhos fixaram-se-lhe nas botas de Joseph, brilhantes da graxa, que não era preta. mas iridescente, verde, azul e roxa. o espírito de Elizabeth fixou-se nas botas e sentiu-se a salvo por momentos. "A graxa estava velha", pensou ela. "Se calhar ele já a tinha há muito tempo e deixou-a destapada. É isso que lhe dá aquelas cores. Acontece o mesmo à tinta preta quando se deixa aberta. Ele se
calhar não sabe isso, e eu não lho direi. Se lho disser, deixaria de ter vida privada. Porque seria que ele não mexia os pés?" "Podíamos ir até ao rio", disse Joseph. "É bonito, mas é muito perigoso atravessá-lo. As pedras são muito escorregadias. Nunca o atravesse a pé. Mas podíamos ir no carro." E apetecia-lhe contar à rapariga como era o som das rodas a esmagar as folhas estaladiças e como, de vez em quando, do choque entre o aço e a pedra saltava uma faísca azul, comprida e de cabeça bipartida, como a língua duma serpente. Queria dizer-lhe como o céu estava baixo nessa noite, tão baixo que se sentia a cabeça banhada nele. Parecia não haver maneira de dizer essas coisas. "Gostava que viesse", disse ele. Deu um passo curto para ela e destruiu a segurança que o espírito da rapariga encontrara. Elizabeth teve um impulso breve de ser alegre. Pôs-Lhe a mão timidamente no braço e depois bateu-Lhe na manga. "Vou", disse ela, ouvindo a sua própria voz desnecessariamente alta. "Hei-de gostar de ir." Subiu as escadas a correr para ir buscar o casaco, cantarolando baixinho, e ao cimo das escadas apontou duas vezes com o pé estendido, como as raparigas pequenas numa dança de Maypole. "Já estou a comprometer-me", disse ela. "Hão-de ver-nos a passear sozinhos à noite, e isso quer dizer que estamos noivos." Joseph ficara ao pé do primeiro degrau e olhava para cima, à espera que ela aparecesse. Sentia desejos de se abrir todo para que ela o examinasse, para que a rapariga visse o que nele havia escondido, mesmo as coisas que ele próprio não sabia. "Assim estaria certo", pensou ele. "Ela saberia então que homem sou eu; e se o soubesse, faria parte de mim." Ela parou no andar intermédio e sorriu-lhe. Trazia uma capa azul comprida sobre os ombros, e alguns cabelos tinham-se-lhe soltado e prendido na lã azul. Uma onda de ternura por aqueles cabelos soltos encheu o peito de JosepH. Riu bruscamente. "Venha depressa, antes que os cavalos desapareçam ou o momento passe." Abriu a porta para ela passar e quando chegaram ao carro ajudou-a a subir para o banco. Depois soltou os cavalos e prendeu as argolas de osso das rédeas. Os cavalos dançavam, e Joseph sentiu-se feliz por isso. "Não tem frio?", perguntou. "Não, nenhum." Os cavalos meteram a trote. Joseph viu que podia fazer um gesto com os braços e as mãos, um gesto que abrangesse, indicasse e simbolizasse as estrelas maduras e toda a taça do céu, a terra, com remoinhos de árvores negras, vagas encapeladas que eram as montanhas, tempestade terrestre congelada no auge da sua fúria, ou ondas de pedra a moveremse para leste com uma lentidão infinita. Joseph cismava se haveria palavras para dizer tudo isso. Disse: "Gosto da noite. É mais forte do que o dia." Desde o primeiro momento da sua associação com ele, Elizabeth retesara-se, repelindo o ataque à sua personalidade cerrada e entrincheirada, mas agora acontecera uma coisa estranha e repentina. Talvez o tom, o ritmo, talvez qualquer sentido pessoal implícito nas palavras dele, tinham-Lhe derrubado as muralhas por completo. Tocou-lhe no braço com as
pontas dos dedos, tremeu de satisfação e afastou-se para o lado. A garganta apertou-Lhe a respiração. Pensou: "Ele há-de ouvir-me ofegar como um cavalo. Que vergonha", e riu nervosamente baixinho, sabendo que pouco lhe importava isso. Os pensamentos que ela conservava débeis e apagados e escondidos nos escaninhos do cérebro, fora do alcance da vista da razão, apareciam à luz; e ela viu que não eram imundos e detestáveis como vermes, como sempre os julgara, mas sim ligeiros, alegres, sagrados. "Se ele pousasse a boca sobre o meu peito, eu ficaria contente", pensou ela. "Não suportaria a pressão de tanto contentamento. Apertar-lhe-ia o meu peito de encontro aos lábios com ambas as mãos." E imaginou-se a fazê-lo. sabendo o que sentiria, transmitindo-Lhe o fluido quente do seu próprio ser. Os cavalos relincharam e desviaram-se para o lado da estrada, porque um vulto escuro se lhes aparecera à frente. Juanito veio ao lado do carro falar com Joseph. "Vai para casa, senhor? Tenho estado à espera." "Não, Juanito, não vou ainda." "Eu espero, senhor. Benjy está bêbado." Joseph mexeu-se nervosamente no banco. "Já calculava que isso acontecesse." "Ele anda por esta estrada, senhor. Ouvi-o cantar. há bocadinho. O Willie Romas também está bêbado. É capaz de matar alguém." As mãos de Joseph brilhavam brancas ao luar, segurando as rédeas retesadas, cedendo um pouco sempre que os cavalos faziam força no freio. "Vê se encontras o Benjy", disse amargamente Joseph. "Eu daqui a umas duas horas vou." Os cavalos deram um salto para a frente e Juanito desapareceu na escuridão. Agora, que derrubara a sua muralha, Elizabeth sentia que Joseph não era feliz. "Ele vai dizer-mo, e eu ajudá-lo-ei." Joseph ia direito, rígido; os cavalos, sentindo o peso das suas mãos crispadas sobre as rédeas, abrandaram o trote para um passo cuidadoso e medido. Aproximavam-se da barreira negra e esfarrapada das árvores do rio, quando de repente a voz de Benjy ressoou de dentro do mato.
Estando bebiendo el vino. Pedro, Rodurte y Simon...
Joseph arrancou o chicote do suporte e atirou uma vergastada feroz aos animais e teve de empregar depois toda a sua força nas rédeas para lhes aguentar os saltos. Elizabeth chorava tristemente, por causa da voz de Benjy. Joseph conteve os cavalos até que o bater dos cascos na estrada dura voltasse ao ritmo complicado do trote. "Não lhe contei que o meu irmão é um bêbado. Tem de conhecer que género de família é a minha. Meu irmão é um bêbado. Não quero dizer que ele se embebede de vez em quando, como qualquer homem. O Benjy tem a doença metida no corpo. Agora já sabe." Olhava em frente. "Era o meu irmão que estava
ali a cantar." Sentia o corpo dela a sacudir-se-lhe ao lado, enquanto a rapariga chorava. "Quer que a leve para casa?" "Quero." "Quer que eu não Lhe apareça?" Quando viu que ela não respondia, virou os cavalos e voltou para trás. "Quer que eu não lhe volte a aparecer?" Perguntou. "Não", disse ela, "quero ir para casa, para me meter na cama e não ser tola. Quero tentar perceber o que sinto. Isso é que é honesto." Joseph sentiu a exultação crescer-lhe de novo na garganta. Inclinou-se para ela, beijou-a na face, e depois voltou a tocar os cavalos. Ao portão ajudou-a a descer e acompanhou-a até à porta. "Agora vou ver se encontro o meu irmão. Daqui a alguns dias venho outra vez. Boa noite." Elizabeth não ficou a vê-lo desaparecer. Quase antes de o som das rodas se perder ao longe, já ela estava na cama. O coração batia-lhe tanto que a cabeça lhe pulsava de encontro à almofada. O martelar do coração mal a deixava escutar, mas por fim a rapariga conseguiu ouvir o som que esperava. Aquela voz belíssima e embriagada vinha lentamente a aproximar-se da casa e ela não sentia coragem para resistir à dor pungente que vinha com a voz. Segredou sozinha: "É um inútil, bem sei! Um idiota. Um bêbado e inútil. Tenho de fazer uma coisa, quase uma coisa mágica." Esperou até que a voz chegasse em frente da casa. "Agora tenho de fazer isto. É a única possibilidade." Meteu a cabeça debaixo da almofada e cochichou: "Adoro este homem que está a cantar; por muito inútil que seja, adoro-o. Nunca lhe vi a cara e amo-o acima de tudo. Senhor, ajudai-me no meu desejo. Ajudai-me a ter este homem." Depois ficou estendida e calada, à espera da resposta ao seu pedido. Veio depois duma última onda de dor. Um ódio por Benjy varreu a dor - um ódio tão forte que os maxilares se lhe apertaram e os lábios descobriram os dentes num arreganho a latejar de ódio e as unhas a doerem-lhe de vontade de atacá-lo. E depois o ódio levantou-se e desapareceu. A rapariga ouviu sem interesse a voz de Benjy a enfraquecer ao longe. Deitou-se de costas, com a cabeça sobre os pulsos. "Vou casar-me daqui a pouco tempo", disse ela baixinho.
9
O ano sofrera a escuridão do Inverno, e viera a Primavera e outro ano antes que o casamento tivesse lugar. Era preciso pensar no fim do período, e depois disso, durante o calor do Verão, quando os carvalhos brancos penderam com a força do sol e o rio se transformou num riacho, Elizabeth andou ocupada com as modistas. As colinas estavam ricas de pesadas searas; o gado saía dos arbustos à noite, para comer e quando o sol batia a pino voltava para a sombra cheirosa e passava o dia a mastigar preguiçosamente. No celeiro, os homens amontoavam o feno bravio e doce em medas mais altas do que as linhas das asnas. Uma vez por semana, durante todo o ano, Joseph ia à cidade de Nossa Senhora e sentava-se na sala de estar com Elizabeth ou levava-a a passear no carro. E perguntava: "Quando nos casamos, Elizabeth?" "Tenho de acabar o ano lectivo", dizia ela; "há mil coisas a fazer. Queria ir a casa, a Monterey, durante um tempo. Meu pai há-de querer ver-me mais uma vez antes de eu casar." "É verdade", concordou ele. "Depois podias estar mudada." "Pois é." Cruzou as mãos à volta do pulso dele e olhou para os dedos entrelaçados. "Olha, Joseph, como é difícil mexer o dedo que se quer. Não se sabe qual é." Ele sorriu ao ver aquela maneira que o espírito dela tinha de se agarrar a coisas para não ter de pensar. "Tenho medo de mudar", disse ela. "Quero mas tenho medo. Achas que engordarei? Ficarei dum momento para o outro uma outra pessoa, que se lembre da Elizabeth como duma conhecida que morreu?" "Não sei", disse ele, percorrendo com um dedo uma prega na faixa da blusa dela. "Talvez nem sequer haja mudança alguma, seja no que for. Talvez que as coisas imutáveis passem, apenas." Um dia ela foi ao rancho e ele andou com ela, com uma vaidade implícita. "Cá está a casa. Fui eu o primeiro. E a princípio não havia um único edifício dentro de muitos quilómetros; só esta casa debaixo do carvalho." Elizabeth encostou-se à árvore e afagou-Lhe o tronco. "Uma pessoa podia sentar-se lá em cima, não vês, Joseph?, naquele ramo que sai do tronco. Importas-te de que eu trepe à árvore", Joseph?i Levantou os olhos para ele e viu que ele a fitava com uma estranha intensidade. O vento atirara-lhe o cabelo para a cara. Elizabeth pensou de súbito: "Se ele tivesse o corpo dum cavalo, eu poderia amá-lo mais." Joseph deu um passo rápido para ela e estendeu a mão. "Tens de subir à árvore, Elizabeth. Sou eu que quero. Vamos, que eu ajudo-te." Entrelaçou as mãos para ela pôr o pé e firmou-a até ela se sentar na bifurcação dos grandes ramos. E quando viu como ela se ajustava no cavalo e como os ramos escuros a guardavam, gritou: "Como sou feliz, Elizabeth!" "Feliz, Joseph? Tens um ar feliz! Brilham-te os olhos. Porque te sentes tão feliz?" Ele baixou os olhos e riu-se. "Fica-se feliz por coisas estranhas. Senti-me feliz por te ter sentada na minha árvore. Um momento antes julguei ver que a minha
árvore te amava." "Afasta-te um bocadinho", pediu ela. "Vou subir para o ramo seguinte para ver até ao outro lado do celeiro." Ele afastou-se, porque a saia dela era muito rodada. "Joseph, porque será que só agora reparei que havia pinheiros no outeiro? Sinto-me em casa. Nasci no meio dos pinheiros, em Monterey. Hás-de vê-los. Joseph, quando lá formos, para o casamento." "São pinheiros muito estranhos. Levo-te lá depois de casarmos." Elizabeth desceu cuidadosamente da árvore e ficou de novo ao lado dele. Prendeu o cabelo e ajeitou-o com dedos rápidos que andavam à procura dos cabelos soltos e os arrumavam nos sítios devidos. "Quando sentir saudades, Joseph, posso ir até aos pinheiros, e há-de parecer-me que voltei a casa."
10
O casamento foi em Monterey - uma cerimónia sombria e agourenta numa capelinha protestante. A igreja já vira tantas vezes dois corpos maduros morrerem por meio do casamento que parecia celebrar uma dupla morte mística com o seu ritual. Tanto Joseph como Elizabeth sentiram quão taciturna era a sentença. "Tendes de sofrer", dizia a igreja; e a música do órgão era uma profecia sem sol. Elizabeth olhava para o pai, curvado, a encarar furioso os apetrechos do Cristianismo, que insultavam o que ele chamava a sua inteligência. Não houve bênção nos dedos coriáceos de seu pai. Deitou um olhar rápido àquele homem a seu lado, que se ia tornando marido dela de momento a momento. A cara de Joseph estava solene e dura. Ela pensou, com uma tristeza frenética: "Se minha mãe aqui estivesse, podia dizer-Lhe: "- Tens aqui a Elizabeth, que é uma boa rapariga porque eu a amo, Joseph. E que será uma boa mulher quando aprender a sê-lo. Espero que saibas sair dessa pele dura que usas, Joseph, para que possas sentir ternura por Elizabeth. Ela não pede mais do que isso. Não é nada de impossível." Os olhos de Elizabeth cintilaram subitamente com lágrimas brilhantes. "Sim", disse ela alto e para si: "Tenho de rezar. Meu Jesus, ajudai-me porque tenho medo. Em todo o tempo que tive para aprender a conhecer-te, nada aprendi. Ajudai-me, meu Jesus, pelo menos até eu aprender o que sou." Desejou que houvesse um crucifixo qualquer na igreja, mas esta era protestante e quando imaginou a figura de Cristo, ele tinha a barba jovem e os olhos penetrantes e intrigados de Joseph, que estava ali de pé ao lado dela. O cérebro de Joseph contraía-se com um receio curioso. "Há qualquer erro nisto", pensava ele. "Para que temos nós de passar por isto para encontrar o casamento? Pensei que aqui na igreja houvesse beleza, se um homem a pudesse encontrar, mas isto não passa duma espécie de medrosa adoração do Diabo." Sentia-se desapontado por si e por Elizabeth. Envergonhava-se de que Elizabeth assistisse àquela entrada maculada no casamento. Elizabeth puxou-Lhe pelo braço e cochichou: "Pronto. Temos de sair. Vira-te para mim devagarinho." Ajudou-o a virar-se, e mal deram o primeiro passo os sinos começaram a tocar no campanário. Joseph suspirou com um calafrio. "É Deus que chegou tarde ao casamento. É o Deus de ferro, enfim." Sentiu que rezaria se conhecesse maneira de fazê-lo com força. "Assim, sim. Isto é o casamento - a voz de ferro" E pensou: "Isto faz parte de mim e eu bem o sei. Sinos amados, batendo em vossos corpos de ferro com os corações agitados. Tal como os raios do Sol, batendo no sino do céu de manhã; e o bater oco da chuva na barriga cheia da terra - e eu seio-o bem - ou o chicotear do ar torturado pelo relâmpago. Tal como por vezes o vento quente e doce faz vibrar os cimos das árvores nas tardes amarelas." Olhou para baixo, de lado, e segredou: "Os sinos são bons, Elizabeth. Os sinos são sagrados."
Ela sobressaltou-se e olhou para ele admirada, porque ainda conservava a sua visão; a cara do Cristo continuava a ser a cara de Joseph. Riu, pouco à vontade, e confessou-se: "Estou a rezar a meu marido." McGreggor, o albardeiro estava pensativo quando eles se despediram. Beijou desajeitadamente Elizabeth na testa. não te esqueças do teu pai", disse ele. "Mas não era nada de admirar que te esquecesses. Hoje em dia isso é já um costume." "Há-de vir ver-nos ao rancho, não é, pai?" "Eu não faço visitas", respondeu ele irritado. "Um homem só ganha fraqueza e pouco prazer numa obrigação." "Gostaremos de vê-lo, se vier, disse Joseph." "Pois têm muito que esperar, vocês e os vossos ranchos de mil acres. Preferia ver-vos no Inferno a visitar-vos." Depois chamou Joseph à parte, fora do alcance do ouvido de Elizabeth, e disse queixosamente: "É por saber que você é mais forte do que eu, que o odeio. Estou aqui a querer gostar de si, e não posso, por ser fraco. E foi o mesmo com a Elizabeth e com a maluca da mãe dela. Ambas sabiam que eu era fraco, e por isso as odiava." Joseph sorriu do albardeiro e sentiu dó e amor por ele. "Não é fraco o que o senhor está a fazer agora", observou. "Não". gritou McGreggor, "é uma coisa boa e forte. Ah, que eu bem sei como ser forte; não consigo é aprender a sê-lo." Joseph bateu-Lhe com força no braço. "Havemos de gostar de vê-lo quando nos vier visitar." E logo os lábios de McGreggor endureceram de cólera. Saíram de Monterey de comboio, ao longo do comprido vale de Salinas, uma azinhaga parda e dourada entre duas linhas musculosas de montanhas. Do comboio viam o vento a soprar pelo vale fora, em direcção ao mar, e a sua força seca a vergar as searas contra o chão até elas se estenderem como as costas dum cão de pêlo curto, a rolar rebanhos de erva solta para a boca do vale e a curvar as árvores até as fazer crescer torcidas e estendidas. Nos apeadeiros, Chualar, González e Greenfield, viram os ranchos na estrada, à espera de guardarem os sacos cheios nos celeiros. O comboio corria paralelo ao rio de Salinas, agora seco, com o seu largo leito amarelo, onde garças azuis caminhavam desconsoladamente sobre a areia quente, à procura de água onde pescar, e onde aqui e ali um coiote cinzento fugia a correr nervosamente, olhando para trás, apreensivo, para o comboio; e as montanhas continuavam a acompanhá-los, de ambos os lados, como enormes barreiras rudes duma tremenda geleira. Em King City, uma pequena cidade ferroviária, Joseph e Elizabeth saíram do comboio e foram a pé até à estrebaria onde tinham ficado os cavalos de Joseph. Sentiam-se novos, brilhantes, curiosamente jovens, ao deixar King City a caminho do vale de Nossa Senhora. Tinham roupa nova nos cestos de viagem, na caixa do carro. Levavam, sobre o que tinham vestido, compridos guarda-pós de linho, para os proteger da poeira da estrada, e a cara de Elizabeth ia coberta com um véu azul-escuro, atrás do qual os
olhos dançavam dum lado para o outro, reunindo coisas para recordar. Joseph e Elizabeth iam embaraçados. sentados ao lado um do outro e a olhar em frente para a estrada morena, pois parecia-lhes estar a jogar um jogo pretensioso. Os cavalos, depois dum repouso de quatro dias e cheios de cevada gorda, agitavam as cabeças e tentavam correr, mas Joseph apertou um bocado o travão e aguentou-os, dizendo: "Aí, Azul. Aí, Pombo. Têm tempo de se cansar até chegarmos a casa." Uns quilómetros adiante já viam a fronteira de salgueiros que marcava o ribeiro da casa deles, que corria de encontro ao amplo rio de Salinas. Os salgueiros estavam amarelos nesta estação e a azinheira que lhes trepava pela ramaria tornara-se vermelha e ameaçadora. No desaguo dos rios Joseph parou o carro para observar a água cintilante de Nossa Senhora a afundar-se desapontada e fatigadamente na areia branca do seu novo leito. Dizia-se que o rio corria puro e doce por baixo do chão, e provavam-no cavando uns palmos na areia. Ainda à vista da junção dos rios havia largos buracos cavados no leito, para o gado poder beber. Joseph desabotoou o guarda-pó, porque a tarde estava muito quente, e soltou o lenço que trazia ao pescoço para que o colarinho se não sujasse com a poeira; e, tirando o chapéu negro, limpou a correia de couro com um lenço. "Queres descer, Elizabeth?", perguntou ele. "Podias banhar os pulsos em água, que te sentirias mais fresca." Mas Elizabeth sacudiu a cabeça. Era estranho ver sacudir a cabeça embuçada. "Não, querido, sinto-me bem. Vamos chegar muito tarde. Estou impaciente por continuar." Ele deu uma palmada nas linhas esguias dos quadris dos cavalos, e continuaram para a frente, ao lado do rio. Os altos salgueiros pela estrada fora vergastavam-lhes as cabeças e às vezes estendiam-lhes uma chibata comprida e flexível por cima dos ombros. Os grilos, no mato quente, cantavam as suas notas penetrantes, e gafanhotos amarelos saltavam com um clarão de asas brancas ou amarelas, vibravam no ar durante um momento e voltavam a cair na segurança da erva seca. De quando em quando um coelhinho bravo fugia assustado pela estrada e, uma vez salvo, endireitava-se nas coxas, a espreitar o carro. Havia no ar um cheiro de erva queimada, o travo amargo da casca do salgueiro e o perfume dos loureiros do rio. Joseph e Elizabeth recostavam-se frouxamente no banco de couro, levados pelo ritmo do dia e sonolentos pelo bater dos cascos dos cavalos. Absorviam com as costas e os ombros, maciamente, as vibrações do carro. Iam num estado próximo do sono, mas ainda mais retirado do pensamento, mais profundo do que o sono. A estrada e o rio iam agora direitos às montanhas. A erva escura cobria as lombas mais altas como uma pele áspera excepto nas cicatrizes da água, que eram pardas e calvas como as feridas saradas do dorso dum cavalo. O Sol descia para oeste e a estrada e o rio apontavam-lhe o sítio onde ele se ia pôr, Para aqueles dois que iam no carro, atrás do trote dos cavalos; o tempo dos relógios dissolvia-se no intervalo
inconstante entre um pensamento e o pensamento seguinte. As colinas e a garganta aproximavam-se deles, grandiosas; e depois a estrada começou a subir e os cavalos puxaram rijamente, batendo o ar com as cabeças a balançar para cima e para baixo, como martelos. Treparam uma encosta. As rodas rangeram sobre pedaços estilhaçados do calcário que formava as colinas. Os aros de ferro rangiam sobre a rocha, ásperos. Joseph inclinou-se para a frente e sacudiu a cabeça para acordar, como um cão a sacudir água das orelhas. "Elizabeth", disse ele, "estamos a chegar ao desfiladeiro." Ela soltou o véu e levantou-o para cima do chapéu. Os olhos voltaram-lhe lentamente à vida. "Devo ter adormecido", disse ela. "Eu também. Tinha os olhos abertos e estava a dormir. Mas cá está o desfiladeiro." A montanha rasgava-se ao meio. Duas escarpas de calcário caíam a pique, inclinando-se um pouco uma para a outra, e no fundo não havia espaço senão para o leito do rio. A própria estrada fora talhada na ilharga da rocha, dez pés acima do nível da água. A meio da garganta onde o rio apertado corria rápido, profundo e silencioso, erguia-se da água um monolito tosco, cortando a corrente como uma proa que subisse o rio com um sussurrar furioso e remoinhante. O Sol estava agora para lá da montanha, mas pelo desfiladeiro via-se-lhe a luz a tremular sobre o vale de Nossa Senhora. O carro chegava à sombra fria e azul da escarpa lívida. Os cavalos, tendo alcançado o cume da comprida encosta, caminhavam à vontade mas estendiam os pescoços e relinchavam ao rio lá em baixo, sob a estrada. Joseph agarrou mais curtas as rédeas e repousou levemente no travão. Baixou os olhos para a água calma e sentiu uma lufada de puro prazer, quente e gostoso, antecipando a visão do vale daí a momentos. Voltou-se para olhar para Elizabeth, pois queria dizer-lhe desse prazer. Viu que ela estava pálida, de olhos cheios de terror. Ela gritou: "Pára, querido. Tenho medo." E olhava pelo desfiladeiro para o vale cheio de sol. Joseph fez estacar os cavalos e apertou o travão. Olhou-a interrogativamente. "Não sabia. É por causa de a estrada ser tão estreita e do rio lá em baixo." "Não, não é por isso." Então ele pôs-se a pé, na terra, e estendeu uma mão para ela; mas quando tentou levá-la em direcção ao desfiladeiro a rapariga soltou a mão e ficou a tremer, na sombra. E ele pensou: "Tenho de tentar dizer-lhe. Nunca procurei dizer-Lhe coisas como esta. Parecia difícil de mais, mas agora tenho de dizer-Lhe", e começou a ensaiar no espírito o que Lhe ia dizer. "Elizabeth", gritou ele no seu espírito, "ouves-me? Estou gelado por ter uma coisa a dizer-te, e peço a Deus que me dê maneira de fazê-lo." Os olhos abriram-se-Lhe e ele espantou-se. "Pensei sem palavras", disse ele no seu espírito. "Um homem disse-me um dia que isso não era possível, mas pensei... Elizabeth, escuta-me. O Cristo pregado na cruz pode ser mais do que um símbolo de toda a dor. Pode na verdade conter toda a dor. E um homem de pé no cume dum monte,
de braços abertos, símbolo do símbolo, pode ser também um reservatório de toda a dor que jamais houve. Por um momento ela interrompeu-Lhe o pensamento, gritando: "Joseph, tenho medo." E o pensamento dele continuou: "Escuta, Elizabeth. Não tenhas medo. Digo-te que pensei sem palavras. Agora deixa-me procurar entre as palavras, provando-as, experimentando-as. Estamos num espaço entre a realidade e a realidade crua e firme, não sofismada pelos sentidos. Isto é uma fronteira. Ontem casámos e aquilo não foi um casamento. O nosso casamento é este - o atravessar do desfiladeiro -, entrando na passagem como o espermatozóide e o óvulo a tornarem-se um símbolo único de gravidez. Isto é um símbolo da realidade indeformada. Tenho um momento no coração, diferente em forma, duração e textura de qualquer outro momento. Porque, Elizabeth, todo o casamento que jamais houve está contido neste nosso momento." E continuou, "no seu espírito: "Cristo, no pouco tempo que esteve pregado, teve no corpo todo o sofrimento, e nele o sofrimento não era deformado." Estivera noutro mundo; agora voltava a ver os montes, que lhe roubavam a sua solidão e a nudez do pensamento. Sentia os braços e as mãos pesados e mortos, pendurados como pesos em cordas que partiam duns ombros cansados de suportá-los. Elizabeth viu-lhe a boca a amolecer de desesperança e os olhos a perder o brilho vermelho do momento anterior. Gritou: "Joseph, que é que tu precisas? Que me pedes tu que faça?" Ele tentou por duas vezes responder, mas um nó na garganta não o deixava falar. Tossiu para limpar a garganta. "Quero atravessar o desfiladeiro", disse ele roucamente. "Tenho medo, Joseph. Não sei porquê, mas tenho muito medo." Ele arrancou-se então à sua letargia e passou um dos braços à volta da cintura de Elizabeth. "Não há nada a recear, querida. Isto não é nada. Tenho vivido demasiado só. Significa muito para mim o atravessar o desfiladeiro contigo." Ela tremeu de encontro a ele e olhou medrosamente para a sombra azul da passagem estreita. "Irei, Joseph", disse ela desconsoladamente. "Tenho de ir, mas sinto que fico deste lado. Pensarei sempre em mim como se tivesse ficado aqui a olhar para a nova Elizabeth que estará do lado de lá." E lembrou-se agudamente do tempo em que servia chá em chavenazinhas de folha a três garotas como ela, dizendo umas para as outras: "Agora somos senhoras. As senhoras agarram assim nas chávenas." E do tempo em que quisera apanhar dentro do lenço o sonho duma boneca. "Joseph", disse ela. "É amargo ser mulher. Tenho medo de ser mulher. Tudo o que fui ou pensei vai ficar deste lado. Lá, serei uma mulher feita. Julguei que isso viesse pouco a pouco. Isto é rápido de mais." E lembrou-se da mãe a dizer-lhe: "Quando fores crescida, Elizabeth, conhecerás a dor; mas não será o género de dor que tu pensas. Será uma dor impossível de curar com um beijo." "Estou pronta a ir, Joseph", disse ela. "Fui tola. Tens de esperar muita tolice de mim."
Joseph sentiu que o peso se levantava. Apertou mais o braço na cintura dela e puxou-a para a frente com ternura. Ela sentiu, embora estivesse de cabeça baixa, que ele olhava para ela com os olhos cheios de doçura. Atravessaram lentamente o desfiladeiro a pé, na sombra azul da escarpa. Joseph riu baixinho. "Pode haver dores mais agudas do que o prazer, Elizabeth, como uma hortelã-pimenta que nos queima a língua. A amargura de ser mulher pode ser um êxtase." Calou-se; e os passos de ambos ressoavam na estrada de pedra e ecoavam dum lado para o outro entre os rochedos. Elizabeth cerrou os olhos, encostando-se ao braço de Joseph para que este a guiasse. Tentava fechar o espírito, mergulhá-lo em trevas, mas ouvia o segredar furioso do rochedo no riacho e sentia no ar o frio da pedra. Então o ar aqueceu: deixou de sentir rocha sob os pés. As pálpebras tornaram-se vermelho-escuras e depois amarelo-vermelhas. Joseph parara e apertava-a contra a ilharga. "Passámos, Elizabeth. Está feito." Ela abriu os olhos e olhou à volta, para o vale fechado. A terra dançava com a vibração do sol e as árvores, pequenas tribos de carvalhos brancos, agitavam-se levemente ao vento que animava a tarde preguiçosa. A aldeia de Nossa Senhora estava diante deles, com as suas casas pardas do tempo e verdes de trepadeiras, de sebes que pareciam arder maciamente com o vermelho dos nastúrcios. Elizabeth gritou bruscamente com alívio: "Tive um sonho mau. Estava a dormir. Agora vou esquecer o sonho. Não era verdadeiro." Os olhos de Joseph brilhavam. "Já não é tão amargo ser mulher, então?", perguntou ele. "Não há diferença nenhuma. Está tudo na mesma. Nunca compreendera que o vale fosse tão bonito." "Espera aqui", disse ele. "Vou lá atrás buscar os cavalos." Mas quando ficou sozinha, Elizabeth chorou tristemente, porque teve a visão duma criança de saia curta engomada e tranças caídas que estava do lado de lá do desfiladeiro e olhava ansiosamente para cá, apoiada num pé e depois no outro, saltando nervosamente e atirando uma pedra ao rio, com um pontapé. Durante um momento a visão esteve à espera, tal como Elizabeth se lembrava de ter esperado uma vez a uma esquina pelo pai; depois a criança voltou costas desconsolada e meteu-se a caminho vagarosamente em direcção a Monterey. Elizabeth teve pena dela. "Porque é amargo ser-se criança", pensou. "Há tantas superfícies novas que podem riscar-se..."
11
O carro passou o desfiladeiro, com os cavalos a levantar bem as patas, torcendo as cabeças para o rio, enquanto Joseph os mantinha de rédeas apertadas e ajustava o travão até ele guinchar. Depois de passado o estreito, os cavalos acalmaram e recomeçou a comprida jornada. Joseph parou e puxou Elizabeth para o seu lugar. Ela sentou-se muito direita, aconchegou o guarda-pó à volta das pernas e desceu o véu sobre a cara. "Vamos atravessar a cidade", disse ela. "Toda a gente nos vai ver." Joseph estalou com a língua para os cavalos andarem e alargou as rédeas. "Importas-te?" "Claro que não. Até gosto. Sentir-me-ei orgulhosa, como se tivesse feito uma coisa rara. Mas tenho de ir sentada como deve ser, quando olharem para mim." Joseph riu baixinho. "Talvez ninguém olhe." "Descansa, que hão-de olhar. Eu os farei olhar." Desceram a única rua comprida de Nossa Senhora, onde as casas se agarravam à beira do caminho como se procurassem calor. Ao passarem, as mulheres saíam das portas, para os olharem de olhos muito abertos, dizendo-lhes adeus com as mãos gorduchas e pronunciando com delicadeza o novo título, por se tratar duma palavra nova: "Buenas tardes, senhora" e chamavam para dentro de casa, por cima do ombro: "Venha cá, mira, mira! La nueva senhora Wayne viene." Elizabeth acenava-lhes, alegre, e procurava mostrar dignidade. Mais adiante tiveram de parar para receber presentes. A velha Sra. Gutiérrez esperava-os no meio do caminho, agitando uma galinha agarrada pelas pernas, enquanto gritava as qualidades daquela galinha em especial. Mas quando a ave foi deitada, cacarejando, na caixa do carro, a Sra. Gutiérrez foi vencida pelo acanhamento. Arranjou o cabelo e apertou as mãos e acabou por fugir para o seu quintal, abanando os braços e gritando: "No le hace." Antes de chegarem ao fim da rua já o carro ia cheio de criação: dois porquinhos, um cordeiro, uma cabra de olhos maldosos e tetas mirradas, quatro galinhas e um galo. A taberna vomitou os seus fregueses à passagem do carro e os homens levantaram os copos. Durante um momento, gritos de boas-vindas envolveram o par; até que a última casa ficou para trás e a estrada do rio se Lhes estendeu adiante. Elizabeth encostou-se no banco e afrouxou a postura cerimoniosa. A mão dela enfiou-se no braço de Joseph, apertou-o durante um momento e depois ficou quieta. "Parecia no circo", disse ela. "Como se fôssemos nós a parada." Joseph tirou o chapéu e pousou-o no colo. Tinha o cabelo despenteado e húmido e os olhos cansados. "É boa gente", disse ele. "Estou morto por chegar a casa; e tu?" "Também." E disse, de repente: "Há ocasiões, em que o amor pelas pessoas é forte e quente como uma grande dor." Ele olhou para ela, atónito com a forma que ela dera ao próprio pensamento dele. "Como pensaste tu isso, querida?" "Não sei. Porquê?"
"Porque era o que eu estava a pensar - e há ocasiões em que as pessoas, os montes, a terra, tudo, tudo menos as estrelas, são uma e a mesma coisa; e o amor de tudo isso é forte como uma tristeza." "As estrelas não?" "Não, as estrelas nunca. As estrelas são sempre uns estranhos - maus, por vezes, mas sempre estranhos. Não sentes o cheiro da erva, Elizabeth? É bom chegar a casa." Ela levantou o véu até ao nariz e aspirou longa e sôfregamente. Os sicómoros começavam a ficar amarelos e o chão já se cobrira das primeiras folhas caídas. A parelha meteu pela comprida estrada que escondia o rio e o sol baixava sobre as montanhas, na direcção do mar. "Só chegamos a casa no meio da noite", disse ele. A luz do bosque era azul-dourada e a corrente chocalhava os seixos redondos. Com a noite, o ar tornou-se límpido da humidade e as montanhas recortavam-se duras e nítidas como cristal. Depois de o sol ter desaparecido, houve um intervalo em que Joseph e Elizabeth fitaram as montanhas nítidas à sua frente sem poder afastar os olhos. O martelar das patas dos cavalos e o murmúrio da água embalava-lhes o estado hipnótico. Joseph olhava sem pestanejar a orla luminosa ao longo da crista ocidental da montanha. Os pensamentos tornaram-se-lhe indolentes, mas com uma lentidão que os transformava em quadros, cujas figuras se arrumavam no cume das montanhas. Uma nuvem negra veio soprada do oceano e pousou numa crista; e o pensamento de Joseph fez dela uma negra cabeça de bode. Via-lhe os olhos amarelos e inclinados, sabichões e irónicos, e os chifres recurvos. Pensou: "Sei que ele, na realidade, está ali, o bode, de queixo pousado na montanha, a olhar para o vale. Devia lá estar. Por qualquer coisa que li ou que me disseram, é natural que um bode venha do oceano." Sentia-se dotado do poder de criar coisas tão reais como a terra. "Se eu admitir que o bode lá está, ele há-de lá estar. E serei eu que o terei feito. Este bode é importante", pensou ele. Um bando de pássaros rolou e voltou-se sobre a cabeça deles, com a última luz da tarde nas asas trémulas, a cintilar com pequenas estrelas. Um mocho caçador planava e soltava o seu grito, feito para assustar criaturinhas pequenas que com um sobressalto trairiam o seu paradeiro no meio da erva. O vale enchia-se de trevas rapidamente e a nuvem negra, como se já tivesse visto bastante, voltou a retirar-se para o mar. Joseph pensou: "Tenho de continuar convencido de que era o bode. Não posso traí-lo deixando de crer nele." Elizabeth teve um ligeiro calafrio e ele voltou-se para ela. "Tens frio, querida? Vou buscar a manta dos cavalos para te tapar os joelhos." Ela tremeu outra vez, já não tão bem como da primeira, porque estava a fazer de propósito. "Não tenho frio", disse ela, "mas a hora é tão estranha. Gostava que falasses comigo. É uma hora perigosa." Ele pensou no bode. "Que queres dizer? Perigosa?" Agarrou-Lhe nas mãos e pousou-as sobre os joelhos. "Quero dizer que há o perigo de nos perdermos.
É a luz a sumir-se. Pareceu-me de repente sentir que me espalhava e desvanecia como uma nuvem, misturando-me com tudo o que me rodeia. Sentia-me bem, Joseph. Depois passou o mocho; e tive medo de me misturar demasiadamente com os montes e nunca mais poder voltar a encontrar-me na pessoa de Elizabeth." "É só a hora", tranquilizou-a ele. "Parece afectar todas as criaturas vivas. Já alguma vez reparaste nos animais e nas aves quando chega a noite?" "Não", disse ela, voltando-se ansiosamente para ele, porque lhe parecera descobrir uma forma de comunicação. "Não creio ter alguma vez reparado com muita atenção fosse no que fosse", continuou ela. "Agora parece-me de repente que alguém limpou as lentes dos meus olhos. Que fazem os animais ao cair da noite?" A voz dela tornara-se nítida e seca e cortara o devaneio de Joseph. "Não sei", disse ele, taciturno. "Quero dizer... Sei, mas tenho de pensar. Estas coisas nem sempre estão assim à mão, sabes?", desculpou-se. E calou-se, a olhar para a escuridão que se amontoava. "Sim", disse, por fim, "é assim mesmo - todos os animais ficam muito quietos quando vem o escuro da noite. Não pestanejam, e põem-se a sonhar." Voltou a calar-se. "Lembro-me duma coisa", disse Elizabeth. "Não sei quando a notei, mas agora... tu próprio disseste que era da hora, e esta imagem é importante nesta altura." "O quê?", perguntou ele. "O rabo dos gatos cai a direito, muito quieto, quando eles estão a comer." "Sim", concordou ele, "sim. bem sei." "E é essa a única altura em que eles o têm direito e a única em que não o mexem." Ela riu alegremente. Agora que dissera a tolice, constatara que podia ser uma sátira aos animais sonhadores de Joseph e alegrou-se com isso. Sentia-se esperta por tê-lo dito. Ele não reparou na interpretação que se podia dar àquilo dos rabos dos gatos. Disse: "É só passar um monte, depois descer outra vez para o bosque do rio, depois atravessar a planície, e chegamos a casa. Dali de cima do outeiro já se devem ver as luzes." Agora estava já muito escuro, uma noite espessa e calada. O carro subia a encosta na escuridão, um intruso na noite silenciosa. Elizabeth chegou-se a Joseph. "Os cavalos sabem caminho", disse ela. "É pelo cheiro?" "Eles vêem, querida. Só para nós é que está escuro. Para eles é como se fosse um crepúsculo carregado. Daqui a pouco estamos lá em cima e veremos as luzes. Está tudo silencioso de mais", queixou-se ele. "Não gosto desta noite. Não se sente bulir seja o que for." Pareceu passar-se uma hora primeiro que chegassem ao cimo, e Joseph fez estacar a parelha para que os animais descansassem. Os cavalos baixaram as cabeças e ofegavam, ritmados. "Vês", disse Joseph, "lá estão as luzes. É tarde, mas os meus irmãos estão à minha espera. Não lhes disse quando viríamos, mas eles devem ter adivinhado. Olha, há luzes que se mexem. Aquela é alguma lanterna no pátio, se calhar. É o Tom que
vai à cavalariça ver os cavalos." A noite voltou a cerrar-se sobre eles. Lá para a frente ouvia-se um suspirar pesado que subiu até eles - um vento quente vindo do vale Sussurrava baixinho na erva seca. Joseph murmurou, pouco à vontade: "Hoje há inimigo à solta. O ar não está amigo." "Que dizes, querido?" "Digo que o tempo vai mudar. Não tardarão as tempestades." O vento tornou-se mais forte e trouxe-lhe o uivo longo e profundo dum cão. Joseph inclinou-se para a frente, com fúria. "O Benjy foi à cidade. Disse-lhe que não fosse enquanto eu cá não estivesse. Aquele é o cão dele. Passa a noite a uivar sempre que ele se vai." Levantou as rédeas e estalou com a língua, para despertar os cavalos. Durante um momento patinharam; mas depois curvaram o pescoço e viraram as orelhas para a frente. Agora já Joseph e Elizabeth ouviam o estrepitar equilibrado dum cavalo a galope. "Vem aí alguém", disse Joseph. "Talvez seja o Benjy que vai para a cidade. Se puder, vou detê-lo." O cavalo aproximou-se e de súbito o cavaleiro fê-lo estacar bruscamente. Uma voz aguda gritou: "É o senhor Don Joseph?" "Sim, Juanito, que há? Que queres?" O cavalo passava, e a voz aguda gritou: "Vai querer encontrar-me daqui a pouco, amigo. Espero por si no penedo do pinhal. Eu não sabia, senhor. Juro que não sabia." Chegaram a ouvir o baque das esporas na barriga do animal. O cavalo tossiu e deu um pulo para a frente. Ouviram-no correr à doida pelo outeiro. Joseph tirou o chicote do suporte e meteu a parelha a trote. Elizabeth tentou ver-Lhe a cara. "Que aconteceu. querido? Que queria ele dizer?" As mãos dele erguiam-se e baixavam, a agarrar os cavalos e a incitá-los ao mesmo tempo. As rodas guinchavam sobre as pedras. "Não sei o que é", disse Joseph. "Eu bem sabia que esta noite não era boa." Estavam agora na planície, e os cavalos queriam meter a passo, mas Joseph bateu-Lhes secamente com o chicote até eles romperem num trote desgarrado. O carro tropeçava e balançava na estrada desigual; Elizabeth firmou os pés e agarrou-se com ambas as mãos.
Já se viam as casas. Havia uma lanterna no monte de estrume e a sua luz reflectia-se na parede caiada do celeiro. Duas das casas estavam iluminadas; e, à medida que o carro se aproximava, Joseph viu pelas janelas gente a andar agitadamente dum lado para o outro. Thomas saiu e parou ao pé da lanterna quando os viu chegar. Agarrou o bridão dos cavalos e esfregou-lhes o pescoço com a palma da mão. Trazia um sorriso fixo, que não mudava. "Vieram depressa", disse ele. Joseph saltou abaixo do carro. "Que aconteceu? Encontrei o Juanito na estrada." Thomas soltou as rédeas e voltou atrás para alargar os tirantes. "O que nós já sabíamos que havia de acontecer, mais tarde ou mais cedo. Falámos nisso uma vez."
Rama apareceu ao lado do carro, vinda da escuridão. "Elizabeth, é melhor você vir comigo." "Que foi?", gritou Elizabeth. "Venha comigo, querida, que eu já Lhe digo." Elizabeth olhou interrogadoramente para Joseph. "Sim, vai com ela", disse ele. "Vai para casa com ela." A vara do carro bateu no chão e Thomas arrancou os arreios do dorso molhado dos cavalos. "Deixo-os aqui ficar por um bocado", disse ele em tom de desculpa, e atirou os arreios por cima da sebe do curral. "Vem comigo." Joseph fitava a lanterna como se a não visse. Depois agarrou nela e virou-se. "Foi o Benjy, claro", disse. "Está muito ferido?" "Morreu", disse Thomas. "Morreu há mais de duas horas." Entraram na casinha de Benjy, atravessando a sala de jantar, às escuras, e penetraram no quarto de cama, onde ardia um candeeiro. Joseph baixou os olhos para a cara contorcida de Benjy, apanhado num momento de dor extática. Os lábios arreganhados mostravam os dentes, o nariz estava de narinas abertas. Os meios dólares que lhe tinham posto sobre os olhos brilhavam surdamente. "Assim a cara há-de compor-se depressa", disse Thomas. Os olhos de Joseph passaram lentamente a uma faca suja de sangue, posta sobre a mesa de cabeceira. Pareceu-Lhe estar muito alto, a olhar cá para baixo, e sentiu-se cheio duma calma estranha e muito forte e duma curiosa omnisciência. "Foi o Juanito que fez isto?", disse ele, numa meia pergunta. Thomas agarrou na faca e estendeu-a ao irmão. E quando Joseph se recusou a pegar-Lhe voltou a pousá-la na mesa. "Nas costas", disse Thomas. "Juanito foi a cavalo a Nuestra Senhora pedir um aparelho emprestado para cortar os chifres daquele touro que tem feito o diabo. E voltou cedo de mais." Joseph levantou os olhos. "É preciso tapá-lo. Vamos cobri-lo com qualquer coisa. Encontrei o Juanito na estrada. Disse-me que não sabia." Thomas riu-se, brutalmente. "Como podia ele saber? Não lhe via a cara. Viu o que ele estava a fazer e esfaqueou-o. Queria entregar-se à polícia, mas eu disse-Lhe que esperasse por ti. Pois quê!", disse Thomas, "se houvesse julgamento, os únicos castigados seríamos nós." Joseph virou a cara. "Achas que temos de chamar o coroner? Mexeste nalguma coisa, Tom?" "Ora, trouxemo-lo para casa; ajeitámos-lhe o fato." A mão de Joseph cofiou a barba e aconchegou-lhe as pontas. "Onde está a Jennie?" "O Burton levou-a para casa. Está a rezar com ela. Ia a chorar quando foi com ele. Agora deve estar mais histérica." "Vamos mandá-la para casa", disse Joseph. "Aqui não se aguenta." Voltou-se para a porta. "Tens de ir à cidade participar a morte, Tom. Diz que foi um desastre. Talvez não ponham dúvidas. E foi um desastre, afinal." Voltou-se bruscamente para a cama e apertou a mão de Benjy antes de sair. Atravessou devagar o pátio até poder ver a árvore negra recortada no céu. Quando lá chegou, encostou-se
ao tronco e olhou para cima, onde algumas estrelas nebulosas brilhavam por entre a ramaria. As mãos acariciaram a casca rugosa. "O Benjamín morreu", contou ele, baixinho. Durante um momento respirou fundo; e depois, virando-se, trepou à árvore e sentou-se no meio dos enormes braços e encostou a face à casca áspera e fresca. Sabia que o seu pensamento seria ouvido quando disse mentalmente: "Agora sei o que foi a bênção. Sei o encargo que tomei, O Thomas e o Burton podem gostar ou não gostar do que quiserem, mas eu estou à parte. Estou à parte. Não posso ter sorte nem azar. Não posso ter conhecimento do bom e do mau. Até me é negado o sentimento puro e verdadeiro da diferença entre o prazer e a dor. Todas as coisas são uma única coisa, e todas fazem parte de mim." Olhou para a casa que deixara. A luz na janela brilhava e tapava-se, alternadamente. O cão de Benjy voltou a uivar, e ao longe os coiotes ouviram o uivo e fizeram coro com as suas gargalhadas de louco. Joseph abraçou a árvore e apertou-a a si. "O Benjy morreu, e eu não sinto alegria nem pena. Não tenho razão para isso. É assim. Sei agora, meu pai, o que era o senhor - tão solitário que nem sentia a solidão, calmo por não ter contactos." Desceu da árvore e voltou a contar: "O Benjamín morreu, senhor pai. Eu não o teria impedido, se pudesse. Não há satisfações a pedir." E caminhou até à cavalariça, porque tinha de selar um cavalo para ir ao penedo onde Juanito o esperava.
12
Rama pegou na mão de Elizabeth e atravessaram juntas o pátio da herdade. "Agora nada de choros", disse ela. "Não há necessidade disso. Você não conhecia o morto, por isso não pode sentir-Lhe a falta. E prometo-lhe que nunca o verá, assim não há que ter receio." Tomou a dianteira ao subir a escada até à sala de estar, confortável com as suas cadeiras de balouço de almofadas acolchoadas e com candeeiros de Rochester guarnecidos de abat-jours de louça da China com rosas pintadas. Até as mantas de retalhos que cobriam o chão eram feitas de sais de baixo das cores mais garridas. "Você tem uma casa muito confortável", disse Elizabeth, erguendo os olhos para a face larga de Rama, que media um bom palmo entre as maçãs do rosto. As sobrancelhas pretas quase se tocavam sobre o nariz; o cabelo farto nascia-Lhe muito abaixo da fronte, num bico de viúva. "Tenho-a tornado confortável", disse Rama. "Espero que você possa fazer o mesmo." Rama tinha-se vestido para a ocasião, com um corpinho bem ajustado e uma saia rodada de tafetá que fazia um ruge-ruge seco quando ela se mexia. Usava em roda do pescoço, pendente de um fio de prata, um amuleto de marfim trazido por qualquer antepassado marinheiro de alguma ilha do oceano Índico. Sentou-se numa cadeira de balouço, de assento e costas cobertos de florzinhas bordadas. Rama estendeu os dedos brancos sobre os joelhos, como um pianista experimentando um acorde. "Sente-se", disse. "Terá de esperar algum tempo." Elizabeth teve consciência da força de Rama e viu que iria ressentir-se dela, mas dava-Lhe uma agradável segurança ter esta mulher forte a seu lado. Sentou-se cerimoniosamente e cruzou as mãos no regaço. "Ainda não me contou o que aconteceu." Rama teve um sorriso desagradável. "Pobre criança, veio em má ocasião. Qualquer altura teria sido má, mas esta pior do que qualquer outra." Esticou novamente os dedos sobre o regaço. "Benjamín Wayne foi apunhalado nas costas esta noite", disse. "Morreu dez minutos depois. Vai ser sepultado daqui a dois dias. Ergueu os olhos para Elizabeth e sorriu sem alegria, como se tivesse sabido que tudo isto deveria acontecer, até o mínimo detalhe. "Agora já sabe o que aconteceu", continuou. "Pergunte o que quiser, esta noite. Estamos sob esta grande pressão e não somos nós próprios. Uma coisa assim altera temporariamente a nossa maneira de ser. Pergunte o que quiser, esta noite. Amanhã de manhã talvez nos sintamos envergonhados. Depois do enterro não tornaremos a falar em Benjy. Daqui a um ano já nem nos lembramos de que ele existiu." Elizabeth inclinou o corpo para a frente na cadeira. Como isto era diferente da chegada que idealizara. na qual recebia a homenagem da tribo e se mostrava afável para com todos! A sala flutuava e ondulava com uma força que ela não podia controlar. Sentiu-se sentada na borda dum lago negro e profundo
em que se mexiam misteriosamente enormes peixes lívidos. "Porque foi ele apunhalado?", perguntou. "Ouvi dizer que foi o Juanito." Um leve sorriso de afeição aflorou aos lábios de Rama. "Pois, o Benjy era um ladrão", disse ela. "Não precisava muito daquilo que roubava. Roubava o precioso pudor das raparigas. Bebia para se apossar duma partícula da morte - e agora tem-na toda. Isto tinha de suceder. Elizabeth, Quando se atira uma grande mão-cheia de feijões a um dedal virado para cima, algum feijão lá há-de cair dentro. Já compreende?" "Juanito veio para casa e encontrou o ladrãozinho em flagrante." "Todos nós gostávamos de Benjy", prosseguiu Rama. "Não há uma distância muito grande entre o desprezo e o amor." Elizabeth sentia-se só, excluída, e muito fraca perante a força de Rama. "Venho de tão longe". explicou. "E não jantei. Nem sequer lavei a cara." Começaram a tremer-lhe os lábios enquanto recordava. uma por uma, as coisas que estava sofrendo. O olhar de Rama tornou-se mais brando e fixou-se nela, vendo agora em Elizabeth a noiva. "E onde está o Joseph?", queixou-se Elizabeth. "É a nossa primeira noite em casa, e ele desapareceu. Nem sequer consegui ainda beber um copo de água." Rama então pôs-se em pé e endireitou a saia roçagante. "Pobre criança, desculpe, não me lembrei Venha à cozinha lavar-se. Vou fazer uma pinga de chá e cortar-lhe umas fatias de pão e de carne." A chaleira resfolgava ruidosamente na cozinha. Rama cortou fatias de carne assada e de pão e encheu uma chávena de chá verde, a escaldar. "Agora vamos outra vez para a sala de estar, Elizabeth. Pode cear lá, está-se com mais conforto." Elizabeth fez grossas sanduíches e comeu-as com sofreguidão, mas foi o chá quente, forte e amargo que a repousou e consolou. Rama voltara à sua cadeira. Sentara-se muito direita e rígida, observando Elizabeth, que atafulhava a boca de pão com carne. "Você é bonita", disse Rama com ar crítico. "Nunca pensei que Joseph fosse capaz de escolher uma mulher bonita." Elizabeth corou. "O que quer dizer com isso?" perguntou ela. Havia aqui sentimentos que não era capaz de identificar, maneiras de pensar que não se coadunavam com a sua experiência, e conhecimento. Isto assustava-a; e por isso sorriu, divertidamente. "É claro que ele sabe isso. Até chegou a dizer-mo." Rama riu-se sem fazer ruído. "Eu não o conhecia tão bem como julgava. Pensei que escolhesse mulher como escolheria uma vaca - para ser uma boa vaca. perfeita na actividade própria das vacas - para ser boa mulher e muito semelhante a uma vaca. Talvez ele seja mais humano do que eu supunha." Havia um ligeiro azedume na sua voz. Os dedos brancos e fortes alisaram o cabelo dum lado e do outro da risca muito nítida. "Parece-me que também vou beber uma chávena de chá. É só deitar-lhe mais água dentro. Deve estar forte que nem veneno." "Claro que é um humano", disse Elizabeth. "Não
percebo porque é que você parece pensar o contrário. o que ele é, é tímido. É acanhado, simplesmente." E o seu espírito voltou-se repentinamente para o desfiladeiro nas montanhas, para o rio revolto. Sentiu-se assustada e afastou de si o pensamento. Rama sorriu condoída. "Não, ele não é acanhado", explicou. "Em todo o mundo não creio que haja homem menos acanhado, Elisabeth." E acrescentou com compaixão: "Você não conhece esse homem. Vou-Lhe falar dele, não para a assustar, mas para que você não se assuste quando vier a conhecê-lo." O olhar dela encheu-se de pensamentos; o seu espírito buscava a maneira de exprimi-los. "compreendo", disse, "que você já está à procura de desculpas - desculpas como arbustos atrás dos quais se possa esconder, para não precisar de enfrentar os seus pensamentos." As mãos de Rama tinham agora perdido a sua segurança; moviam-se ao acaso como os tentáculos exploradores dum animal marinho faminto. "- Ele é uma criança - há-de você dizer consigo mesmo. - Ele sonha." A voz de Rama tornou-se áspera e cruel. "Criança é que ele não é", disse, "e, se sonha, nunca saberá que sonhos são." Elizabeth teve um lampejo de ira. "Que está você a dizer-me? Ele casou comigo. Você está a tentar fazer dele um estranho." A voz tremia-lhe, incerta. "Não há dúvida de que o conheço. Então pensa que eu casaria com um homem que não conhecesse?" Mas Rama limitou-se a sorrir-lhe. "Não tenha receio, Elizabeth. Você já viu algumas coisas. Não há nele crueldade, Elizabeth, julgo eu. Pode adorá-lo sem receio de ser sacrificada." O quadro do seu casamento perpassou como um relâmpago no espírito de Elizabeth, quando, durante o serviço religioso, com o ambiente cheio pelo cantar monótono do padre, confundira o marido com o Cristo. "Não sei o que quer dizer", exclamou. "Porque diz adorar? Estou cansada, sabe? Vim em viagem o dia inteiro. As palavras mudam de significado quando eu mudo. Que quer dizer com essa palavra adorar?" Rama puXou a cadeira para a frente para poder pôr as mãos sobre us joelhos de Elizabeth. "Você veio numa altura estranha", disse ela suavemente. "Disse-Lhe, logo de princípio, que uma porta parece ter-se aberto esta noite. É como que uma véspera do dia de finados, quando os fantasmas andam à solta. Esta noite, como o nosso irmão morreu, abriu-se uma em mim, e em parte também em si. Pensamentos que se ocultam nas profundezas do cérebro, no escuro, lá debaixo do crânio, podem vir à luz esta noite. Revelar-lhe-ei o que tenho pensado e conservado secreto. Por vezes, nos olhos de outras pessoas, tenho visto o mesmo pensamento, como uma sombra na água." Deu algumas palmadas delicadas no joelho de Elizabeth, enquanto falava; imprimia-lhes o ritmo das palavras, os olhos brilhavam-lhe com intensidade, até que apareceu neles um fulgor vermelho. "Conheço os homens", continuou ela. "Conheço Thomas tão bem que lhe sinto os pensamentos enquanto se vão formando; e conheço os seus impulsos antes que eles ganhem a força de Lhe pôr os membros em acção. Quanto a Burton, conheço-o até ao fundo da sua alma mesquinha. e
Benjy... conheci a doçura e indolência de Benjy. Bem sabia quanta pena ele sentia por ser Benjy, e como não podia deixar de o ser." Sorriu, recordando. "Benjy veio cá a casa uma noite em que Thomas não estava. Mostrava-se tão desorientado, tão triste! Tive-o nos braços quase até de manhã." Os dedos dela dobraram-se e o punho pendeu, inerte. "Conheci-os a todos", disse, rouca. "O meu instinto nunca me enganou. Mas a Joseph - não o conheço. Não conheci o pai." Elizabeth acenava lentamente com a cabeça, apanhada pelo ritmo. Rama continuava: "Não sei se há homens nascidos fora da humanidade, ou se alguns homens são tão humanos que façam os outros parecer irreais. Quem sabe se um deus em miniatura vive na Terra de vez em quando? Joseph tem uma força inquebrantável; tem a calma das montanhas, e as suas emoções são tão primitivas, tão ferozes, tão súbitas, como o relâmpago - e até onde posso ver ou saber, exactamente tão falhas de razão como ele. Quando estiver afastada de Joseph. tente pensar nele e verá o que eu quero dizer. A figura dele tornar-se-á gigantesca, até ultrapassar as montanhas; e a sua força será como o mergulho irresistível do vento. Benjy morreu. É impossível pensar que Joseph morra. Ele é eterno. O pai morreu, mas não foi uma morte." A boca de Rama movia-se impotente em busca de palavras. Gritou, como ferida duma dor súbita:"Digo-lhe eu, esse homem não é um homem, a menos que seja todos os homens. A força, a resistência, o raciocinar longo e laborioso de todos os homens, e toda a alegria e sofrimento, aniquilando-se mutuamente mas permanecendo no resíduo final. Ele é tudo isto - repositório duma pequena parte da alma de cada homem e, ainda mais, um símbolo da alma da Terra." Baixou o olhar e retirou a mão. "Eu bem disse que se tinha aberto uma porta." Elizabeth esfregou o joelho no sítio em que Rama marcara o ritmo das suas palavras. Tinha os olhos húmidos e brilhantes. "Estou tão cansada!", disse. "Viemos debaixo de todo este calor; a erva estava queimada. Gostava de saber se já teriam tirado da carroça as galinhas, o borreguinho e a cabra. Deviam soltá-los. senão podem inchar-lhes as pernas." Tirou um lenço do peito, assoou-se e esfregou o nariz com tal energia que ficou vermelho. Não queria olhar para Rama. "Você ama o meu marido", disse numa voz sumida. acusadora. "Você ama-o e sente receio." Rama levantou os olhos lentamente; voltou a baixá-los. "Não o amo. Não há qualquer possibilidade de ser correspondida. Adoro-o; não há necessidade de ser correspondida nisso. E você adorá-lo-á, igualmente sem nenhuma recompensa. Agora já sabe, e não tem motivo para receios." Olhou fixamente para o regaço por um momento mais; depois ergueu a cabeça e alisou o cabelo dum lado e doutro. "A porta está fechada", disse ela. "Acabou-se. Mas lembre-se disto, para quando precisar. E quando essa ocasião vier, tem-me aqui para a ajudar. Agora vou fazer mais chá, e talvez você me queira falar de Monterey."
13
Joseph entrou na estrebaria escura e percorreu o corredor comprido atrás das baias, em direcção à lanterna que estava pendurada no arame. Ao passar por trás dos cavalos, estes interrompiam o seu mastigar ritmado e olhavam para ele por sobre a espádua, e um ou dois dos mais vivos batiam com a pata no chão para lhe chamar a atenção. Thomas estava na baia em frente da lanterna, a arrear uma égua. Parou de apertar a cilha e olhou para Joseph por cima do selim. "Lembrei-me de levar a Ronny", disse ele. "Anda mole. Uma corrida sempre a enrija um bocado. Além disso, sabe andar no escuro." "Inventa uma história", disse Joseph. "Diz que ele escorregou e se espetou numa faca. Tenta arranjar maneira de não mandarem cá o coroner. Enterramos o Benjy amanhã, se pudermos." Sorriu fatigadamente. "A primeira sepultura. Estamos a estabelecer-nos de vez. Casas, crianças, sepulturas - isso é que faz a nossa terra, bom. São essas coisas que prendem um homem. Que cavalo está aqui para levar, Tom?" "Só o Malhado", disse Thomas. "Levei ontem os outros cavalos de montada para pastarem um bocado e estenderem as pernas. Têm sido pouco trabalhados. O quê, vais sair hoje a cavalo?" "Sim, vou." "Atrás do Juanito? Nestes montes nunca mais o apanhas. Ele conhece a raiz de cada ervinha e os próprios buracos em que as cobras se escondem." Joseph atirou a cilha e os estribos para cima dum dos selins da prateleira e agarrou-o pelo cepo. "O Juanito está à minha espera no pinhal", disse ele. "Mas não vás agora, Joseph. Espera pela manhã. E leva uma espingarda." "Uma espingarda, porquê?" "Porque não sabes o que ele fará. Os índios são tipos estranhos. Sabe-se lá o que se há-de esperar deles." "Não me dá nenhum tiro", tranquilizou-o Joseph. "Seria fácil de mais, e eu não me preocuparia com isso. É melhor do que levar uma espingarda." Thomas desatou a corda do arreio de prisão e fez recuar a égua sonolenta. "Seja como for, espera até amanhã. O Juanito tem tempo." "Não, está lá a aguardar-me agora. Não quero fazê-lo esperar." Thomas saiu da estrebaria, levando o cavalo. "Mesmo assim, acho melhor levares uma espingarda", disse ele por cima do ombro. Joseph ouviu-o montar e afastar-se a trote, e logo um restolhar ofegante. Dois coiotezinhos e um cão precipitavam-se atrás dele. Joseph arreou o enorme Malhado, saiu e montou. Quando os olhos se Lhe esqueceram da luz da lanterna, viu que a noite estava mais nítida. Os flancos da montanha, roliços e carnudos, erguiam-se suavemente numa perspectiva lisa e à volta dos seus contornos pairava uma auréola roxa e escura. Tudo na noite, os montes, as copas negras das árvores, era macio e amigo como um abraço. Mas em frente, as pontas de lança dos pinheiros negros cortavam o céu. A noite começava a preparar-se para o nascer do Sol e todas as folhas e ervas cochichavam e suspiravam
ao vento fresco da madrugada. O silvo de asas de patos soava lá em cima, onde uma esquadrilha invisível partia para o sul prematuramente. E os mochos enormes cortavam inquietos o ar na última caçada da noite. O vento trouxe-lhe do monte um cheiro a pinheiros, o aroma penetrante da alcatroeira e o odor agradável dum quati irritado que, ao longe, cheirava a azáleas. Joseph quase esquecia a sua missão; porque os montes estendiam-lhe braços cheios de ternura e as montanhas tinham o amor e a insistência duma mulher meio adormecida. Sentia o calor do chão enquanto subia a encosta. Malhado levantava a grande cabeça e fungava de narinas abertas, e sacudia a crina, erguia o rabo e dançava, escouceava e atirava as patas para cima como um cavalo de corrida. Porque as montanhas pareciam mulhereS, Joseph pensou em Elizabeth. Que estaria ela a fazer? Não voltara a pensar nela desde que vira Thomas ao pé da lanterna, à espera. "Mas a Rama toma conta dela." pensou. Deixara para trás a longa encosta. começava uma subida mais difícil, mais íngreme. Malhado deixou de brincar e curvou a cabeça sobre as pernas esforçadas. E à medida que subiam, os pinheiros aguçados cresciam e espigavam-se cada vez mais de encontro ao céu. Ao lado do trilho ouvia-se o chiar dum fiozinho de água, a descer em direcção ao vale; e depois o pinhal barrou-lhes o caminho. A sua massa negra cortava o trilho. Joseph virou para a direita e tentou lembrar-se da distância que ia até à senda mais larga, que dava para o centro do pinhal. Agora Malhado relinchava agudamente. batia com as patas no chão, sacudia a cabeça. Quando Joseph tentou meter pelo caminho do pinhal, o cavalo recusou-se a tomá-lo e as esporas só conseguiam fazê-lo recuar e raspar com as patas dianteiras: e a chibata atirou-o às voltas pela encosta abaixo. Quando Joseph desmontou e tentou levá-lo à mão, cravou as patas e não arredou. Joseph aproximou-se-lhe da cabeça e sentiu-lhe os músculos do pescoço a tremer. "Está bem", disse ele. "Vou deixar-te amarrado aqui. Não sei de que é que tu tens medo, mas o Thomas também o receia, e o Thomas conhece-te melhor do que eu." Puxou da corda de prisão que estava no selim e deu dois nós à volta dum pinheiro. A azinhaga por entre os pinheiros estava escura. Até o céu se perdia para lá dos ramos entrelaçados, e Joseph, ao caminhar dava passos cuidadosos e tacteantes e estendia os braços para a frente, para evitar bater nalgum tronco de árvore. Não se ouvia senão o murmurar dum riacho algures, ao lado da azinhaga. Depois, mais adiante, apareceu uma manchazita cinzenta. Joseph deixou cair os braços e apressou-se nessa direcção. A ramaria dos pinheiros remexia-se sob um vento que não chegava à floresta lá em baixo; mas com esse vento entrava no pinhal uma inquietação - não precisamente um som, nem uma vibração, mas um termo médio entre os dois. Joseph avançou mais cautelosamente, porque pairava um bafo de terror no pinheiral adormecido. Os pés não faziam ruído na caruma; até que por fim chegou à clareira. Era um sítio cinzento cheio de partículas de luz e
coberto pelo espelho baço de ardósia do céu. Lá em cima os ventos tinham-se moderado e as copas altas dos pinheiros abanavam calmamente e as agulhas assobiavam baixinho. O pedregulho a meio da clareira era negro, mais negro ainda do que os troncos. e no seu flanco um pirilampo espalhava a sua pálida luz azul. Quando Joseph se quis aproximar do rochedo, encheu-se de suspeita e presságio, como um rapazito que entra numa igreja e dá uma grande volta ao altar, de olhos atentos, com medo de que algum santo mexa uma mão ou o Cristo ensanguentado solte um gemido na cruz. Assim deu a volta Joseph, de cabeça voltada sempre para o penedo. O pirilampo escondeu-se atrás de qualquer coisa e desapareceu. O restolhar aumentou. Todo o espaço se carregou de vida, saturado de movimentos furtivos. O cabelo de Joseph eriçou-se-lhe na cabeça. "Hoje há maldade neste sítio". pensou ele. "Já sei o que fazia medo ao cavalo." Voltou à sombra das árvores e sentou-se, encostado a um tronco. E ao sentar-se sentiu uma vibração surda no chão. Uma voz suave falou a seu lado. "Entrou aqui, senhor." Joseph quase se pôs em pé dum salto. "Assustaste-me, Juanito." "Bem sei, senhor. Está tudo muito sossegado. Aqui está sempre tudo sossegado. Ouvem-se barulhos, mas são sempre lá fora, do lado de lá, a querer entrar." Ficaram calados durante um momento. Joseph não via senão uma sombra mais negra a tapar as sombras à sua frente. "Pediste-me que viesse", disse ele. "Sim, meu amigo. Não suportaria que fosse outra pessoa a fazer isto." "A fazer o quê, Juanito? Que queres tu que eu faça?" "A sua obrigação, senhor. Trouxe uma faca?" "Não", disse Joseph. "Não tenho faca." "Então dou-lhe o meu canivete. É o que me servia para os vitelos. A lâmina é curta, mas, no sítio certo, basta. Eu digo-Lhe o sítio." "De que estás tu a falar, Juanito?" "Enfie a lâmina a direito, meu amigo. Assim entra entre as costelas, e eu digo-lhe o sítio, para a lâmina lá chegar." Joseph levantou-se. "Queres dizer que devo apunhalar-te, Juanito?" "É a sua obrigação, meu amigo." Joseph aproximou-se mais dele, tentando ver-lhe a cara; mas não o conseguiu. "Porque te havia eu de matar, Juanito?", perguntou ele. "Matei o seu irmão, senhor. E é meu amigo. Agora tem de ser meu inimigo." "Não", disse Joseph. "Há qualquer coisa errada aqui." Interrompeu-se, pouco à vontade, porque o vento morrera nas árvores e o silêncio, como um nevoeiro pesado, caíra sobre a clareira; e a sua voz parecia encher o ar como um intruso. Sentiu-se pouco seguro. A voz continuou, tão baixinho que parte das palavras era segredada, e mesmo assim perturbava a clareira. "Há qualquer coisa errada. Tu não sabias que era o meu irmão." "Devia ter olhado, senhor." "Não, mesmo que soubesses, não faria diferença. Era
natural. Fizeste o que a tua natureza te pediu. É natural e... acabou-se." Ainda não via a cara de Juanito, embora já tombasse sobre a clareira um pouco do cinzento da manhã. "Não compreendo isso, senhor", disse Juanito, magoadamente. "É pior do que a faca. Sentiria uma dor como fogo durante um momento, e depois acabava. Eu teria razão, e o senhor também. Assim desta maneira não percebo. É como ficar preso toda a vida." As árvores erguiam-se agora com uma luz fraca entre elas e eram como testemunhas negras e rígidas. Joseph olhou para o rochedo, a procurar força e compreensão. Via-lhe agora a superfície rugosa e a linha recta de luz prateada que o fiozinho de água traçava a meio da clareira. "Não é castigo", disse, por fim. "Não está nas minhas mãos castigar. Talvez tenhas de te castigar a ti próprio, se isso estiver dentro dos teus instintos. Agirás pela tua raça, como um perdigueiro pequeno que aponta o esconderijo das perdizes porque isso lhe está na raça. Não tenho castigo para ti." Juanito correu então para o penedo e bebeu água das mãos em concha. E voltou rapidamente. "Esta água é boa, senhor. Os índios levam-na para beber quando estão doentes. Dizem que vem do centro do mundo." Limpou a boca à manga. Joseph via-lhe o contorno da cara e as cavernazinhas que escondiam os olhos. "Que vais fazer agora?", perguntou Joseph. "Farei o que disser,.senhor." Joseph gritou, irado: "Pedes-me demasiado! Faz o que quiseres!" "Mas o que eu queria era que me matasse, meu amigo." "Voltas para o trabalho?" "Não", respondeu vagarosamente, "fica perto de mais da sepultura dum homem que não foi vingado Não posso fazê-lo enquanto os ossos não estiverem limpos. Vou-me embora por uns tempos, senhor. E quando os ossos estiverem limpos, voltarei. A recordação da faca desaparecerá com a carne." Joseph sentiu-se de repente tão cheio de tristeza que o peito lhe doeu. "Para onde irás, Juanito?" "Já sei. Vou levar o Willie. Vamos juntos. Onde houver cavalos estamos bem. Se eu estiver com u Willie, a ajudá-lo a combater os sonhos daquele sítio isolado onde os homens saem de buracos para o dilacerar, o castigo não será tão duro." Voltou-se subitamente, entrou pelos pinheiros e desapareceu: e a voz atravessou a parede de pinheiro, "Tenho aqui o cavalo, Senhor. Voltarei quando os ossos estiverem limpos." Um momento depois Joseph ouviu o gemido do couro dos estribos e depois o bater dos cascos na caruma do chão. Agora já o céu estava claro e lá no alto, por cima da clareira, pairava um pedacinho de nuvem cor de fogo; mas a clareira continuava escura e cinzenta e o penedo dominava-a, taciturno. Joseph caminhou até ele e passou a mão pela pelagem densa de musgo. "Do centro do mundo", pensou ele, e lembrou-se dos pólos duma bateria. "Do centro do mundo." Afastou-se lentamente, sem querer voltar
ao rochedo e enquanto descia a encosta, a cavalo, o Sol nasceu-lhe por trás e ele viu-o faiscar nas janelas das casas da herdade, lá em baixo. A erva amarela cintilava com o orvalho. Mas os flancos do monte já emagreciam, cansados, prontos para o Inverno. Um grupinho de novilhos observava-o, virando-se lentamente para o ver passar. Joseph sentia-se feliz; porque dentro dele crescia a convicção de que a sua natureza era a natureza da terra. Meteu o cavalo a trote, porque se lembrou de repente de que Thomas fora a Nossa Senhora e que não havia mais ninguém, senão ele, para fazer um caixão para o irmão. Durante um momento, enquanto o cavalo estugava o trote, Joseph tentou lembrar-se de Benjy, mas depressa desistiu, porque não conseguia lembrar-se muito bem de como era o irmão. Quando ele se dirigia para a cavalariça, da chaminé da casa de Thomas saía uma coluna de fumo. Soltou o Malhado e pendurou o selim. "A Elizabeth deve estar com a Rama", pensou ele. E entrou impacientemente. para ver a mulher com quem casara.
14
O Inverno chegou cedo nesse ano. Três semanas antes do dia de Graças, as tardes avermelhavam-se nas serranias do lado do mar e o vento desabrido varria o vale e passava a noite a cantar nas esquinas da casa, fazendo bater as cortinas das janelas. Pequenos remoinhos de vento atiravam nuvens de folhas e poeira pela estrada fora, como soldados em marcha. Os melros reuniam-se e voavam em grupos para longe e as pombas lamentosas pousavam nas sebes por algum tempo e depois desapareciam por uma noite. Todo o dia os bandos de patos e gansos passavam lá em cima a voar alto, apontados infalivelmente para o sul; e ao escurecer gritavam cansados, a procurar um brilho de água onde pudessem repousar durante a noite. A geada tomou posse do vale de Nossa Senhora, queimando os salgueiros até ficarem amarelos e os noveleiros encarnados. Havia no céu e na terra preparativos apressados. Os esquilos trabalhavam freneticamente nos campos. armazenando nos subterrâneos da comunidade dez vezes mais alimentos do que precisavam, enquanto à boca das tocas os avós grisalhos soltavam guinchos agudos e dirigiam a colheita. Os cavalos e as vacas perdiam a pelagem luzidia, que se tornava áspera com o pêlo novo do Inverno; os cães faziam covas pouco fundas para dormirem protegidos contra os ventos rasteiros. E, apesar da actividade, por todo o vale pairava uma tristeza como a neblina azul e esfumada sobre as montanhas. A salva estava preta. Os carvalhos deixavam cair folhas como a chuva e, apesar disso, continuavam revestidos de folhagem. Todas as noites o céu ardia sobre o mar e as nuvens acumulavam-se e estendiam-se, atacando e recuando como a treinar-se para o Inverno. Na fazenda de Wayne também havia preparativos. A erva estava arrecadada e os celeiros cheios de grandes medas de feno. Os grandes serrotes cortavam a madeira de carvalho e os molhos iam-se abrindo em lenha miúda. Joseph vigiava o trabalho e os irmãos agiam sob as suas ordens. Thomas construiu uma prateleira para as ferramentas e lubrificou a relha do arado e as pontas da grade. Burton encarregou-se dos telhados e limpou todos os arreios e selins. O monte de lenha da comunidade era da altura duma casa. Jennie foi ao enterro do marido, na encosta dum monte, a uns quinhentos metros da herdade. Burton fez uma cruz e Thomas construiu uma pequena paliçada branca em volta da sepultura, com uma cancela de gonzos de ferro. Durante algum tempo, Jennie ia todos os dias pôr alguma flor na sepultura; mas dentro em pouco já nem mesmo ela se lembrava muito de Benjy; e começou a sentir saudades da sua própria família. Lembrava-se das danças e dos passeios na neve e pensava que os pais estavam a envelhecer. Quanto mais pensava neles, maior lhe parecia a necessidade de acompanhá-los. Além disso, agora, que não tinha marido, sentia receio deste sítio novo. E, assim, um dia, Joseph conduziu-a num carro, e os outros Waynes ficaram a
vê-los partir. Levou todos os seus bens num cesto de viagem, juntamente com o relógio, a corrente de ouro e as fotografias do casamento de Benjy. Em King City Joseph parou com Jennie na estação; e Jennie chorou baixinho, em parte porque partia mas mais ainda por estar assustada com a longa jornada de comboio. Disse: "Vocês depois vêm-me visitar, não vêm?" E Joseph, impaciente por voltar ao rancho com : receio de que começasse a chover antes que ele lá estivesse, respondeu: "Pois claro, havemos de ir lá visitar-te." Alice, a mulher de Juanito, lamentava-se muito mais do que Jennie. Não chorava, mas algumas vezes sentava-se na soleira da porta e balouçava o corpo para trás e para diante. Estava grávida, e além disso amava muito Juanito e tinha pena dele. Ficava para ali sentada muitas e muitas horas, balouçando-se e murmurando consigo mesma, sem chorar. Por fim Elizabeth levou-a para casa de Joseph e pô-la a trabalhar na cozinha. Alice ficou então mais feliz. Já tagarelava às vezes, enquanto lavava os pratos, afastada do lava-louças para evitar magoar a criança. "Ele não morreu", explicava ela muitas vezes a Elizabeth. "Um dia há-de regressar e, passada uma noite, voltará tudo ao que era dantes. Esquecerei que alguma vez se foi embora. Sabe a senhora", dizia ela com orgulho, "meu pai quer que eu volte para casa, mas eu não volto. Hei-de esperar aqui pelo Juanito. É aqui que ele há-de vir. E interrogava Joseph a respeito dos projectos de Juanito. "Acha que ele volta? Tem a certeza?" Joseph respondia sempre com gravidade: "Ele disse que voltaria." "Mas quando, quando pensa que isso será?" "Daqui a um ou dois anos. talvez. Ele tem de esperar." E ela voltava para o pé de Elizabeth. "O menino talvez já saiba andar quando ele vier." Elizabeth adaptava-se à sua nova vida e modificava-se para consegui-lo. Durante duas semanas andou de testa franzida por toda a casa, olhando para tudo e fazendo uma lista dos móveis e utensílios que queria encomendar em Monterey. O trabalho da casa rapidamente lhe afastou da memória a tarde passada com Rama. Era só à noite, por vezes, que acordava fria e receosa, sentindo que estava deitada ao lado duma imagem de pedra; e tinha de tocar no braço de Joseph para se assegurar do calor dele. Rama tinha tido razão. Uma porta se abrira naquela noite; e estava agora fechada. Rama nunca mais lhe falou naquele tom. Era boa professora e mulher de tacto, porque sabia ensinar a Elizabeth a maneira de fazer as coisas da casa sem parecer criticar-lhe os processos. Quando os móveis de nogueira chegaram, e o trem de cozinha vermelho, depois de tudo estar arrumado ou pendurado - o bengaleiro com espelhos e as cadeirinhas de balouço, o enorme sofá-cama e a secretária alta -, colocaram o fogão na casa de estar, brilhante e novo, com uma demão de tinta preta nos lados e as partes prateadas muito bem areadas. Depois de tudo pronto, os olhos de Elizabeth perderam a expressão preocupada e as rugas da testa desvaneceram-se-lhe. Cantava então canções espanholas que aprendera em Monterey. Quando Alice vinha trabalhar com ela, cantavam-nas juntas.
Todas as manhãs, Rama vinha para conversar, sempre aos segredos, porque Rama tinha muitos segredos. Explicava coisas a respeito do casamento que Elizabeth, por não ter mãe, não tinha aprendido. Dizia a maneira de ter rapazes ou raparigas - não eram métodos seguros, a verdade deve dizer-se; algumas vezes falhavam. mas não havia mal em experimentá-los; Rama conhecia mais de cem casos em que tinham dado resultado. Alice ouvia também, e algumas vezes dizia: "Isso não está bem. Cá na terra fazemos isso de outra maneira." E contava como se consegue que uma galinha não bata com as asas quando se lhe corta o pescoço. "Primeiro faz-se uma cruz no chão, explicava. "E quando a cabeça está decepada, põe-se a galinha com cuidado sobre a cruz, que ela já não mexe mais, porque o sinal é sagrado." Rama experimentou isto mais tarde e viu que era verdade; e depois disto ficou mais tolerante para com os católicos. Bons tempos foram aqueles, cheios, de mistério e de ritos. "Elizabeth gostava de ver Rama a temperar um guisado. Provava, estalando os lábios, com um olhar de preocupação: "Está bem? Não, não está perfeito. Rama nunca achava perfeitos os seus cozinhados. às quartas-feiras, Rama vinha com um grande cesto de roupa para coser enfiado no braço: e atrás dela todos os garotos que se tivessem portado bem. Alice. Rama e Elizabeth sentavam-se em triângulo, e os ovos de passajar não paravam, à procura de buracos nas peúgas. No centro do triângulo sentavam-se as crianças bem comportadas. (As más ficavam em casa sem fazer nada, pois Rama bem sabia o castigo que é para uma criança a inactividade.) Rama contava histórias, e pouco depois Alice ganhava coragem e punha-se a explicar muitas coisas milagrosas. Seu pai tinha visto uma cabra em chamas a atravessar o vale de Carmel, uma noite, ao escurecer. Alice sabia também pelo menos cinquenta histórias de fantasmas, não de coisas passadas longe, mas ali mesmo em Nossa Senhora. Contou como a família Valdez fora visitada na véspera do dia de finados por uma trisavó que tinha uma tosse cavernosa; e como o tenente-coronel Murphy, morto por um bando de iaques que voltavam para o México, cavalgava agora pelo vale, com o peito aberto para mostrar que não tinha coração. Os iaques tinham-lho comido, supunha Alice. Todas estas coisas eram verdadeiras e podiam ser provadas. Ficava de olhos muito abertos e assustados quando contava estas histórias. E à noite bastava que as crianças dissessem: "Ele não tinha coração", ou "A velhinha da tosse, para ficarem a tremer de medo. Elizabeth contava algumas histórias do tempo da sua mãe - contos das fadas escocesas, com as suas eternas preocupações com o ouro, ou pelo menos com algum ofício rendoso. Eram belas histórias, mas sem o efeito da de Rama ou de Alice, por terem sido passadas há muito tempo e numa região longínqua que pouco mais realidade tinha do que as próprias fadas. Indo pela estrada abaixo, via-se o local onde o tenente-coronel Murphy aparecia a cavalo de três em três meses; e Alice prometia acompanhar quem quisesse a um sítio onde todas as noites se viam lanternas a andar e a balouçar sem ninguém que lhes pegasse. Bons tempos, esses; e Elizabeth sentia-se muito feliz.
Joseph não conversava muito, mas ela nunca passava pelo marido que ele não estendesse a mão para a acariciar; e nunca o olhava que não recebesse um sorriso calmo e demorado que a encorajava e tornava feliz. Joseph parecia nunca dormir completamente, pois fosse a que horas fosse que ela acordasse de noite e estendesse a mão para ele, logo o marido a tomava nos braços. Durante estes meses os seios avolumaram-se-lhe e os olhos encheram-se-lhe de profundidade e mistério. Foi uma época emocionante; Alice esperava uma criança e o Inverno aproximava-se. A casa de Benjy estava agora vaga. Dois trabalhadores mexicanos mudaram-se do celeiro e ocuparam-na. Thomas apanhara nas montanhas um urso pardo pequenino e tentava domesticá-lo, com muito pouco êxito. "Parece-se mais com um homem do que com um animal", dizia Thomas. "Não quer aprender." E apesar de o bicho o morder cada vez que se aproximava dele, sentia-se feliz de ter o ursinho, porque toda a gente dizia que já não havia mais ursos pardos nas serras da cordilheira. Burton andava em intensa preparação interior, pois projectava ir à reunião campal religiosa de Pacific Grove e passar lá o Verão seguinte. Gozava de antemão as boas emoções que iria lá encontrar. E descobria em si mesmo uma exaltação quando pensava na ocasião em que voltaria a encontrar Cristo e a confessar os seus pecados diante de todos. "Podemos ir para a casa comum à noite", dizia ele à mulher. "Todas as tardes aquela gente vai para lá cantar e comer gelados. Nós arranjamos uma tenda e ficamos para lá um mês, ou talvez dois." E já via antecipadamente como haveria de louvar os pregadores pela sua prédica.
15
Novembro ainda mal tinha começado quando vieram as chuvas. Todas as manhãs Joseph interrogava o céu, examinando as nuvens volumosas; e à noite voltava a fitar o sol poente que avermelhava o céu. E pensava nas previsões infantis em verso:
"Céu vermelho de madrugada, "Marinheiro põe-te em guarda. "Céu vermelho ao sol-pôr, "Marujo alegre e cantador.
Ou da outra maneira:
"Céu vermelho de madrugada, "Chuva forte e carregada. "Céu vermelho ao sol-pôr, "Melhores dias se hão-de pôr.
Olhava mais vezes para o barómetro do que para o relógio e quando a agulha baixava sentia-se cheio de felicidade. Ia ao pátio e segredava à árvore: "Daqui a dias já temos chuva. Vai lavar o pó das folhas." Um dia matou um milhafre pequeno e pendurou-o de cabeça para baixo nos ramos do carvalho. E passou a observar com muita atenção os cavalos e as galinhas. Thomas ria-se dele. "Não é assim que a chuva vem mais depressa. Quando se olha muito para a chaleira, ela não ferve, Joe. Se mostras vontade de mais. a chuva foge." E acrescentou: "Vou matar um porco amanhã de manhã." "Vou prender uma ganchada no carvalho para o pendurar", disse Joseph. "A Rama faz o enchido, não faz?" Elizabeth escondeu a cabeça debaixo do travesseiro quando ouviu os guinchos do porco, mas Rama aparou o sangue que escorria das goelas num balde. E não andaram lá muito adiantados, porque, mal as bandas e os presuntos estavam arrecadados no novo fumeiro de alvenaria, começou a chover. Desta vez não houve preliminares. O vento soprou ferozmente durante toda a manhã, do oceano a sudoeste, as nuvens foram rolando, estendendo-se, cada vez mais baixas, até esconderem os picos das montanhas; a seguir caíram as gotas grossas como punhos. As crianças estavam em casa de Rama e espreitavam tudo por trás dos vidros. Burton deu graças a Deus e ajudou a mulher a rezar também, embora ela estivesse doente. Thomas veio para o curral e, sentado numa manjedoura, ficou a ouvir a chuva a rufar no telhado. O feno enfardado estava ainda morno do sol do Verão. Os cavalos agitavam-se, impacientes, puxando pelas cabeçadas, a tentar farejar o ar lá de fora através dos postigos. Joseph estava de pé debaixo do carvalho quando começou a chover. O sangue de porco com que tinha espargido a casca da árvore brilhava, negro. Elizabeth chamou-o do alpendre: "Lá vem ela. Vais-te molhar"; e ele voltou-se sorridente para a mulher. "Tenho a pele seca", disse. "Quero molhar-me." Viu cair os primeiros pingos grossos, levantando a poeira em pequenos tufos, depois cobrindo o chão de
gotas negras. A chuva tornou-se mais cerrada e oblíqua pelo vento fresco que soprava. Levantou-se no ar o cheiro acre de terra húmida; e principiou verdadeiramente a primeira tempestade do Inverno, varrendo o ar, martelando os telhados e despindo as árvores das suas folhas mais débeis. O solo escureceu; formaram-se pequenos riachos, que atravessaram o pátio. Joseph deixou-se ficar de cabeça levantada enquanto a chuva lhe batia no rosto e nas pálpebras, infiltrando-se-lhe na barba e pingando pela gola aberta da camisa, até a roupa molhada se lhe cingir ao corpo. Manteve-se à chuva durante bastante tempo para se certificar de que não se tratava de meros chuviscos. Elizabeth tornou a chamá-lo. "Joseph, olha que te constipas." "Isto não constipa", respondeu ele. "Até dá saúde." "Então vão-te nascer ervas nos cabelos, Joseph. vem para casa. temos um bom lume aceso. Vem mudar de roupa." Mas ele continuava à chuva e só entrou em casa depois de ver os fios de água a correrem pelo tronco do carvalho abaixo. "O ano vai ser bom", disse ele. "Os rios nos vales hão-de estar a transbordar antes do dia de Graças." Elizabeth, sentada na grande cadeira de couro, tinha posto um refogado a ferver a fogo lento no fogão. Riu-se quando ele entrou tal era a sensação de alegria que pairava no ar. "Olha, estás a pingar com água o chão todo, o chão tão limpinho." "Bem sei", disse ele. E invadiu-o um tal amor pela terra e por Elizabeth que atravessou o quarto e encostou a cabeça molhada ao cabelo dela, numa espécie de bênção. "Joseph, estás a pingar-me água pelo pescoço abaixo!" "Bem sei", replicou ele. "Joseph, tens a mão fria. Quando eu me confirmei, o bispo pousou a mão sobre a minha cabeça, como tu estás a fazer agora, e a mão dele era fria. Deram-me arrepios nas costas. Julguei que era o Espírito Santo." E sorriu-lhe com felicidade. "Mais tarde falámos nisso e todas as raparigas disseram que era o Espírito Santo. Foi há muito tempo Joseph." Pôs-se a recordar aquilo tudo, e no meio da sua estreita recordação daquele tempo figurava o desfiladeiro branco entre as montanhas, e ficava tudo muito mais para trás mesmo na perspectiva do tempo. Ele inclinou-se rapidamente e beijou-lhe a face. "Dentro de duas semanas, a erva estará crescida", disse. "Joseph, não há nada de mais desagradável neste mundo do que uma barba molhada. A tua roupa seca está em cima da cama, querido." à noite Joseph sentou-se na cadeira de balouço ao pé da janela. Elizabeth olhava-o à socapa e viu-o franzir a testa, com atensão quando diminuiu o tamborilar da chuva e sorrir ligeiramente tranquilizado quando ela recomeçou cada vez com mais força. Ao fim da noite entrou Thomas, batendo e raspando os pés no alpendre da entrada. "Sempre veio", disse Joseph. "Sim, veio. Amanhã temos de cavar uma valeta. A cocheira está cheia de água. Temos de a escoar." "Há bom estrume nessa água, Tom. Vamos desviá-la
para a horta." A chuva continuou durante uma semana, às vezes diminuindo até ser só um nevoeiro, outras vezes caindo torrencialmente. As gotas dobravam a erva seca e dentro de poucos dias surgiram as cabecinhas da erva nova. O rio avançava ruidosamente das montanhas do lado ocidental, transbordando das margens e varrendo os ramos dos salgueiros para dentro de água, rugindo entre os pedregulhos. De cada um dos pequenos vales e de cada prega das colinas nascia uma corrente de água que ia juntar-se ao rio. As valas de água tornaram-se mais fundas e alastraram em todos os barrancos. As crianças brincavam dentro de casa e no celeiro e fartaram-se muito depressa; importunavam Rama para que lhes arranjasse brincadeiras. As mulheres começavam a queixar-se das roupas molhadas penduradas nas cozinhas. Joseph, de trajo de oleado, passava os dias passeando pela quinta, ora enterrando uma estaca na terra para ver até que profundidade chegara a humidade, ora deambulando na margem do rio observando os troncos, arbustos e raminhos levados pela corrente. De noite dormia um sono leve, dando ouvidos à chuva ou dormitando, para só acordar quando ela diminuía. Depois, num dia de manhã, o céu apareceu limpo e o sol brilhou quente. O ar lavado era claro e doce e todas as folhas dos carvalhos cintilavam, faiscantes. A erva crescia; todos a podiam ver, um colorido verde nas colinas distantes; e mesmo ali perto, milhares de pontinhas verdes a irromperem da terra. As crianças abandonaram as jaulas como os animais e brincavam com tanta fúria que tiveram febre e as meteram na cama. Joseph pegou na charrua e lavrou a horta; Thomas fez os regos e Burton cilindrou-a, Parecia uma procissão, com cada homem ansioso por meter as mãos na terra. Até as crianças pediram um bocado de terreno para rabanetes e cenouras. Os rabanetes cresciam mais depressa, mas as cenouras davam um jardim para quem tinha paciência de esperar o tempo necessário. A erva continuava a crescer mais e mais alta. As hastes tornaram-se folhas, e cada folha dividiu-se em duas. As cristas e os flancos das colinas tornaram-se novamente moles e macios, voluptuosos; e o mato perdeu a cor tristonha e escura. Em toda a região, só o pinhal da crista da serra conservava o seu aspecto carrancudo. O dia de Graças chegou, com a sua grande festa, e muito antes do Natal a erva já atingia os tornozelos. Certa tarde entrou no pátio um velho almocreve mexicano, trazendo boas coisas na sua trouxa: agulhas e alfinetes, linhas, bolinhas de cera das abelhas, imagens piedosas, uma caixa de pastilhas de goma, gaitas de beiços, rolos de papel de crepe vermelhos e verdes. Era um velhote encurvado e só levava coisas pequenas. Abriu a sua trouxa no alpendre de Elizabeth e recuou uns passos, sorrindo conciliadoramente, voltando de vez em quando uma carta de alfinetes para os fazer realçar melhor, ou carregando ligeiramente na goma com o indicador, para chamar a atenção das mulheres ali reunidas. Da porta do celeiro, Joseph viu
o ajuntamento e aproximou-se. Só então é que o velho tirou o seu chapéu esfrangalhado. "Buenas tardes, senhor", disse ele. "Buenas tardes", respondeu Joseph. O almocreve sorriu, extremamente embaraçado. "Não se lembra de mim, senhor?" Joseph fitou o rosto negro e cruzado de rugas. "Parece-me que não." "Um dia", disse o velho, "o senhor passou a cavalo. de volta de Nuestra Senhora. Julguei que ia caçar e pedi-lhe uma peça de caça." "Sim", disse Joseph lentamente. "Agora já me lembro. És o velho Juan." O almocreve inclinou a cabeça como um pássaro velho. "E depois, senhor - depois falámos numa festa. Tenho andado lá em baixo, para lá de S. Luís. O bispo. Sempre fez a festa, senhor?" Joseph abriu os olhos, radiante. "Não, não fiz, mas vou fazê-la. Quando seria a melhor altura, velho Juan?" O almocreve abriu as mãos e encolheu o pescoço entre os ombros perante tamanha honra que lhe era concedida. "Ora, senhor, nesta terra todas as alturas são boas. Mas alguns dias são melhores. Vem lá o Natal, a Natividade." "Não", disse Joseph. "É cedo de mais. Não haveria tempo." "Então temos o Ano Novo, senhor. Essa é a melhor altura, porque toda a gente anda contente e as pessoas só procuram festas." "Exactamente!", exclamou Joseph. "Faremos a festa no dia de Ano Novo." "O meu genro toca guitarra, senhor." "Pois que venha também. Quem devo convidar, velho Juan?" "Convidar?" O espanto fazia abrir os olhos do velhote. "Não tem de fazer convites, senhor. Quando eu voltar para Nuestra Senhora, digo que o senhor dá uma festa no Ano Novo e o povo vem. Talvez o padre venha, com o seu altar nos alforjes, para dizer missa. Isso é que era bonito." Joseph ergueu o seu riso para o carvalho. "Nessa altura a erva há-de estar bem alta", disse ele.
16
No dia seguinte ao Natal, Martha, a filha mais velha de Rama, pregou um grande susto às outras crianças. "Vai chover no dia da festa", disse ela, e, como era mais velha do que as outras - uma criança sisuda que se servia da sua idade e ponderação para as intimidar-, estas acreditaram-na e preocuparam-se muito com o caso. A erva estava crescida. Alguns dias de tempo quente tinham-na feito espigar, e viam-se milhões de míscaros nos campos, bem como de fungos e de cogumelos. As crianças apanhavam bagas de míscaros, que Rama frigia numa sertã com uma colher de prata dentro para se certificar de que não eram venenosos. "A prata ficaria negra", dizia ela, "se entre eles se encontrasse um cogumelo venenoso." Dois dias antes do Ano Novo, o velho Juan apareceu pela estrada, com o genro, um rapaz mexicano de largo sorriso, a caminhar-lhe no encalce, pois que Manuel - o genro - nem sequer assumia a responsabilidade de não cair na valeta. Os dois quedaram-se diante da porta de entrada de Joseph, esfregando o peito com os chapéus. Manuel fazia tudo o que via fazer ao velho Juan, tal como um cachorro imita um cão grande. "Ele toca guitarra", disse o velho Juan; e para u provar Manuel tirou das costas uma guitarra em mau estado, mostrando-a com um sorriso alvar. "Eu falei na festa", continuou o velho Juan. "O povo vem, mais quatro guitarristas, senhor, e o padre Ângelo também (este era o ponto mais importante). "e diz missa aqui mesmo! E eu", acrescentou com vaidade, "tenho de construir o altar. Foi o padre Ângelo que o disse." Turvou-se o olhar de Burton. "Ó Joseph, tu não permitirás isso, pois não, Aqui no nosso rancho, com o nome que sempre tivemos?" Mas Joseph sorria alegremente. "São nossos vizinhos, Burton, e eu não quero convertê-los." "Não assistirei a isso", gritou Burton, irado, "não darei qualquer sanção ao papa nesta terra." Thomas riu por entre dentes. "Pois fica tu em casa, Burton. O Joe e eu não temos medo de sermos convertidos, de modo que vamos assistir." Havia mil e uma coisas que fazer. Thomas foi com a carroça a Nossa Senhora e comprou um barril de vinho tinto e uma barrica de whisky. Os vaqueiros mataram três reses e penduraram a carne nas árvores e o Manuel sentou-se-lhes debaixo, para afastar os bichos. O velho Juan construiu um altar de tábuas debaixo do carvalho grande e Joseph nivelou e varreu um espaço para a dança, no pátio da fazenda. O velho Juan estava em toda a parte ensinando as mulheres a fazer uma tigelada de salsa pura. Tiveram de utilizar tomates de conserva, malaguetas e pimentinhos verdes, com algumas ervas secas que o velho Juan trazia no bolso. Foi ele que dirigiu a cava dos buracos para as marmitas e que transportou a lenha de carvalho sazonado. Debaixo das árvores da carne, Manuel tangia dolentemente as cordas da guitarra, rompendo numa
melodia febril de vez em quando. As crianças inspeccionavam tudo e portavam-se com juízo, pois Rama declarara que os meninos maus ficariam em casa, assistindo à festa da janela, um castigo tão assustador que as crianças levavam a lenha para as covas e se prontificavam a ajudar o Manuel a tomar conta da carne. Os guitarristas chegaram às nove horas na véspera do Ano Novo, quatro homens magros e escuros, de cabelos negros escorridos e lindas mãos. Eram capazes de cavalgar quarenta milhas, tocar guitarra durante um dia inteiro e uma noite e depois cavalgar mais quarenta milhas para regressarem a casa. Mas estrebuchavam de cansaço depois de quinze minutos atrás duma charrua. Com a sua chegada, Manuel animou-se. Ajudou-os a dependurar as suas preciosas selas em lugar seguro e a estender os cobertores sobre feno mas não dormiram por muito tempo; às três da manhã o velho Juan acendeu as fogueiras nas covas e eles retiraram as guitarras dos alforjes. Estabeleceram quatro postos em volta do recinto de dança e tiraram dos alforges coisas lindas: bandeiras azuis e encarnadas, lanternas de papel e fitas. Trabalhavam à luz incerta das fogueiras e muito antes de amanhecer já tinham construído um pavilhão. Antes da aurora chegou o padre Ângelo, a cavalo numa mula, seguido dum cavalo de carga muito carregado e dois meninos de coro sonolentos em cima do mesmo burro. O padre Ângelo meteu imediatamente mãos à obra. Estendeu as toalhas no altar do velho Juan, colocou os castiçais, distribuiu tabefes entre os meninos de coro e pô-los em movimento. Preparou as vestes no barracão das alfaias e em último lugar desembrulhou as estátuas. Eram belas peças, um crucifixo e uma virgem com o Menino. Fora o padre ângelo que as esculpira e pintara ele próprio e que inventara alguns detalhes curiosos. Dobravam-se pelo meio, com dobradiças tão bem dissimuladas que quando estavam armadas não se via a mais pequena fenda; as cabeças eram de atarraxar. e o Menino encaixava nos braços da Mãe por meio de um espigão que se adaptava a uma ranhura. O padre Ângelo adorava as suas estátuas, que gozavam de grande fama. Embora tivessem três pés de altura, quando dobradas cabiam ambas num alforje. Além de serem interessantes do ponto de vista mecânico, tinham sido benzidas e plenamente aprovadas pelo Arcebispo. O velho Juan construíra pedestais separados para elas e ele próprio trouxera um grosso círio para o altar. Ainda não nascera o sol quando começaram a chegar os convidados: algumas das famílias mais ricas em charrettes de toldos oscilantes, outras em carros, carroças e a cavalo. Os brancos pobres desceram das suas magras herdades de Kings Mountain num trenó meio cheio de palha e completamente cheio de crianças. Estas chegavam aos cardumes e durante algum tempo mantinham-se quietas, mirando-se umas às outras. Os índios aproximavam-se de mansinho e ficavam à parte, com rostos impassíveis, desprovidos de curiosidade, observando tudo e não participando em coisa alguma. Em assuntos de Igreja o padre Ângelo era severo, mas uma vez fora da igreja, e com esses assuntos
arrumados, era um homem meigo e cheio de bom humor. Com uma pratada de carne e um copo de vinho na mão, não havia olhos que brilhassem mais vivamente que os seus. Pontualmente, às oito horas, acendeu as velas, enxotou os meninos de coro e começou a missa. A sua voz potente ressoava admiravelmente. Fiel à sua promessa, Burton conservou-se em casa, fazendo as suas rezas com a mulher; mas, embora levantasse a voz, não conseguia dominar o som penetrante do latim. Assim que a missa acabou, o povo juntou-se em volta do padre Ângelo para o ver dobrar o Cristo e a Virgem, o que ele fazia muito bem, com uma genuflexão antes de pegar em cada estátua para desatarraxar a cabeça. Nas covas, por esta altura, já ardiam as brasas: e os bordos reluziam de calor. Thomas, com mais ajudas do que as necessárias, fez girar o barril de vinho para um suporte, pondo-lhe uma torneira na extremidade e removendo o tapulho. As enormes peças de carne penduradas sobre o lume deixavam escorrer os sucos, provocando chamas brancas nas brasas. Era carne de primeira qualidade, abatida e pendurada na fazenda. Três homens trouxeram a selha de salsa e voltaram atrás para trazer uma vasilha cheia de feijão. As mulheres traziam o pão amargo às braçadas, como se fosse lenha, e empilhavam os pães dourados sobre uma mesa. Os índios, na orla exterior, aproximaram-se um pouco; e as crianças, que já brincavam, mas com compostura, tornaram-se um pouco excitadas com fome quando os aromas da carne começaram a impregnar o ar. Para dar início à festa, Joseph procedeu a uma cerimónia de que o velho Juan lhe falara, uma coisa tão antiga e tão natural que até parecia que Joseph se recordava dela. Tomando uma caneca de folha da mesa, dirigiu-se ao casco do vinho. Nele brilhava e cantava o vinho tinto. Enchendo a caneca, levantou-a ao nível dos olhos e vazou-a sobre o solo. Novamente encheu a caneca, e desta vez bebeu-a com quatro golos sôfregos. O padre Ângelo abanou a cabeça com aprovação, sorrindo pela bela maneira como a coisa fora feita. Finda a sua cerimónia, Joseph encaminhou-se para a árvore e entornou um pouco de vinho sobre a sua casca, e ouviu a voz do padre, que ao lado dele lhe dizia baixinho: "Isto não é boa coisa para se fazer, meu filho." Virando-se de repente, Joseph exclamou: "O que quer dizer com isso? Havia uma mosca na caneca!" O padre Ângelo sorriu com ar entendido e um pouco contristado. "Cautela com os bosques, meu filho. Jesus é melhor salvador do que uma hamadríada." E o seu sorriso tornou-se meigo, pois o padre Ângelo era tão sensato quão sábio. Joseph começou a afastar-se malcriadamente, mas depois, hesitando, voltou atrás: "O senhor compreende tudo, padre?" "Não, meu filho", respondeu o padre, "compreendo muito pouca coisa, mas a Igreja é que compreende tudo. As coisas complicadas tornam-se simples na Igreja, e eu compreendo isto que tu fazes."
Continuou serenamente o padre Ângelo. "É assim: o Demónio esteve de posse desta terra durante milhares de anos; e há muito poucos que ela está na posse de Cristo. Tal como sucede nos países recentemente conquistados, os velhos costumes são praticados durante muito tempo, por vezes secretamente, e outras vezes ligeiramente alterados para estarem de harmonia com as novas regras; por isso, meu filho, persistem aqui alguns velhos costumes, mesmo sob o domínio de Cristo." "Obrigado", respondeu Joseph. "A carne agora está pronta, creio eu." Junto às covas os ajudantes voltavam as peças de carne com forquilhas e os convidados empunhavam canecas de folha, formando uma bicha junto ao cásco do vinho. Os primeiros a serem servidos foram os guitarristas que beberam whisky, pois o sol ia alto e tinham de prestar os seus serviços. Comeram vorazmente, e, enquanto as outras pessoas ainda mastigavam, sentaram-se em caixas, formando um semicírculo, tocando de mansinho, ajustando os seus ritmos e procurando inspiração, de modo a formarem um único instrumento apaixonado quando começasse a dança. O velho Juan, conhecendo bem o carácter da música, conservava-lhes as canecas cheias de whisky. E agora dois pares penetraram no recinto da dança e começaram passos decorosos numa dança de quadrilha, toda ela reverências e voltas lentas. As guitarras trinavam melodiosamente num ritmo acentuado. Formou-se novamente uma bicha junto ao barril de vinho, e mais pares começaram a dançar, mas não tão artistas como os primeiros. Os guitarristas pressentiram a mudança e atacaram com mais vigor as cordas graves, e o ritmo cresceu forte e acentuado. O recinto enchia-se agora de convidados que ligavam pouca importância à dança mas, de braço dado, batiam o chão com os pés. Junto às covas, os índios aproximavam-se e tomavam o pão e a carne oferecidos, sem os agradecer, Moveram-se para mais junto dos dançarinos, depois, mastigando a carne e rasgando o pão duro com os dentes. à medida que o ritmo se tornava mais pesado e mais insistente, os índios batiam os pés a compasso, mantendo a mesma impassibilidade no rosto. A música não parou. Continuava sempre, ritmada e inalterável. De vez em quando um dos músicos tangia as cordas soltas, enquanto com a mão esquerda procurava a caneca de whisky. De tempos a tempos um dançarino saía do recinto para ir ao barril de vinho beber à pressa uma canecada e voltar depois ao seu lugar. Já ninguém dançava aos pares. Estendiam-se braços para abraçar todos em redor, dobravam-se joelhos, pés batiam o chão na cadência lenta das guitarras. Os dançarinos começaram a cantarolar baixinho, conservando uma nota baixa na garganta e fora de compasso. Surgiu uma ária em quartas. Mais e mais vozes entraram no ritmo. O zumbido tornou-se selvagem, grave, vibrante, onde a princípio havia risos e piadas em voz alta. Um homem tinha-se destacado pela sua altura outro pela profundidade da voz; uma mulher tinha sido bela outra feia e gorda, mas tudo isso estava a mudar. Os dançarinos perdiam a identidade. Os rostos assumiam um ar enlevado, os ombros
descaíam ligeiramente para a frente; e cada pessoa se tornava parte do corpo dançante, e a alma desse corpo era o ritmo. Os guitarristas pareciam demónios, de olhos semicerrados e faiscantes, conscientes do seu poder, mas sonhando um poder ainda maior. E tangiam as cordas em uníssono. Manuel, que de manhã era todo sorrisos e trejeitos embaraçados deitava para trás a cabeça e gritava um trecho agudo com palavras desprovidas de sentido. Os pares cantavam num coro grave. Um músico acrescentou a sua frase e o canto respondeu-lhe. O sol corria pelo meridiano e inclinava-se para as colinas e um vento alto soprava do oeste. Um por um, os dançarinos voltaram a buscar carne e vinho. De olhos brilhantes, Joseph mantinha-se arredado. Os pés moviam-se-lhe ao de leve com o ritmo e sentia-se ligado aos que dançavam, embora não se juntasse a eles. Pensava, exultante: "Todos nós encontrámos aqui qualquer coisa. De certo modo, e por um tempo, estamos mais perto da terra." Sentia um prazer forte, profundo como o pulsar das cordas graves; e começou a sentir crescer nele uma estranha fé. "Daqui alguma coisa há-de resultar. É uma espécie de oração cheia de força." Quando voltou os olhos para as colinas a oeste e viu uma nuvem negra, ameaçadora, lá no alto, avançando da direcção do mar, já sabia o que os esperava. "É claro", disse, "traz chuva. Tem de acontecer qualquer coisa quando se dá largas a uma tal força de oração." E observou confiadamente a nuvem que cobria as montanhas e avançava para o Sol. Thomas dirigira-se para a cocheira quando começara a dança, pois temia a emoção selvagem, como um animal teme a trovoada. Mas agora o ritmo chegava até ele; e pôs-se a acariciar o pescoço dum cavalo para se acalmar a si próprio. Passado tempo, ouviu soluços abafados e, dirigindo-se a eles, deu com Burton, de joelhos numa baia, choramingando e rezando. Então Thomas riu-se, mas parou bruscamente, atemorizado. "Que é que aconteceu, Burton, não gostas da festa?" Burton exclamou com fúria: "É culto do demónio, digo-te eu. É horrível! Na nossa própria terra! Primeiro o padre diabólico, com os seus ídolos de madeira, e agora isto!" "Que é que isto te faz lembrar, Burton?", perguntou Thomas, sem malícia. "Lembrar-me? Lembra-me as bruxarias e o Sábado negro. Lembra-me todas as práticas diabólicas e selvagens do mundo." Thomas disse: "Continua as tuas orações, Burton. Sabes o que me lembra a mim? Ora escuta, nem que seja com metade dos ouvidos. É como uma reunião campal. Como um grande evangelista esclarecendo o povo." "É culto do Demónio"", gritou novamente Burton. "É um culto diabólico e impuro, já te disse. Se eu tivesse sabido, tinha-me ido embora." Thomas soltou uma gargalhada dura e voltou a sentar-se na manjedoura, escutando as orações de Burton. Agradava-lhe notar como as súplicas do irmão seguiam o ritmo das guitarras. Enquanto Joseph fitava a grossa nuvem negra, esta parecia não se mover; e, contudo, ia invadindo o céu e, subitamente, atingiu e devorou o Sol. E tão
espessa e poderosa era a nuvem que o dia se transformou em crepúsculo e as colinas irradiaram uma luz metálica, dura e aguda. Um momento depois de o sol desaparecer, a seta dourada dum relâmpago desprendeu-se da nuvem e o trovão ribombou, rolando e atropelando-se sobre o topo das montanhas - e logo outra seta de luz e novo troar do trovão. A música e a dança pararam imediatamente. Os dançarinos levantaram os olhos sonolentos e assustados para o alto, como crianças acordadas pelo ruído dum tremor de terra. Ficaram por um momento de olhar fixo e sem compreender semi-acordados e atónitos até que a razão funcionasse de novo. Depois correram para os cavalos presos e começaram a aparelhar as bestas, a fixar os arreios e tirantes fazendo as parelhas dar a volta às lanças dos carros. Os guitarristas arrancaram as bandeiras e as lanternas inúteis, metendo-as nos alforjes, ao abrigo da chuva. Na cocheira, Burton, pondo-se de pé, exclamou, triunfante: "É a voz da ira de Deus!" E Thomas respondeu-lhe: "Escuta outra vez, Burton. É uma trovoada. Os relâmpagos caíam da grande nuvem, como chuva, e o ar tremia com o embate dos trovões. Em poucos minutos as carripanas iam saindo, em bicha, dirigindo-se umas para a aldeia de Nossa Senhora e umas poucas para as fazendas nas colinas. Puxava-se pelos oleados, para resguardar da chuva. Os cavalos relinchavam contra a vibração do ar e tentavam correr. Desde o princípio da dança, as mulheres dos Waynes tinham ficado sentadas na alpendrada da casa de Joseph, mantendo-se um pouco alheias aos convidados, como convém às donas de casa. A Alice não resistira e descera ao recinto de dança. Mas Elizabeth e Rama mantinham-se nas cadeiras de balouço, observando a festa. Agora, que a nuvem encobria o céu, Rama pôs-se de pé e preparou-se para partir. "Foi uma coisa curiosa", disse Rama. "Você hoje esteve muito sossegada, Elizabeth. Cautela, não se constipe." "Eu estou bem, Rama. Sinto-me hoje um pouco cansada, com a excitação e a tristeza. Desde que me conheço, as festas fazem-me triste." Toda a tarde estivera a observar Joseph arredado dos dançarinos. Vira-o olhar para o céu. "Ele sente a chuva." E quando a trovoada começara: "O Joseph vai gostar disto. As tempestades fazem-no alegre." Agora, que as pessoas se tinham ido embora e que a trovoada rolara por cima das suas cabeças, ela continuava a espiar furtivamente a figura solitária do marido. Os vaqueiros amontoavam os utensílios e os restos da comida por baixo de abrigos. Joseph observou-os até começar a cair a primeira chuva; e depois dirigiu-se vagarosamente para o alpendre sentando-se no degrau superior em frente de Elizabeth; os ombros descaíam-lhe para a frente e fincava os cotovelos nos joelhos. "Gostaste da festa, Elizabeth?", perguntou. "Gostei." "Já tinhas visto alguma?" "Já assisti a outras festas", disse ela, "mas nenhuma deste género. Pensas que toda esta electricidade no ar podia enlouquecer as pessoas?" Ele voltou-se e encarou-a. "Seria mais provável que fosse o vinho nos estômagos, querida." Cerrou os
olhos com ar sério. "Não tens bom parecer, Elizabeth. Sentes-te bem?" Pondo-se de pé, debruçou-se sobre ela com inquietação. "Vem para dentro, Elizabeth; está a fazer-se demasiado frio para ficar aqui." Entrou à frente dela e acendeu o candeeiro pendurado numa corrente no centro do quarto, depois arranjou o lume e abriu a chaminé até o fogo roncar suavemente por ela acima. A chuva fustigava o telhado, como uma vassoura a varrê-lo. Na cozinha, Alice trauteava de mansinho em recordação da dança. Elizabeth sentou-se pesadamente numa cadeira de balouço junto ao fogão. "Teremos uma ceiazinha, mais tarde, querido." Joseph ajoelhou-se-lhe ao lado, no chão. "Pareces tão cansada!", disse. "Foi a excitação; toda aquela gente. E a música era... bem, era fatigante." Fez uma pausa, tentando descobrir o sentido da música e da dança. "Foi um dia tão curioso!", disse ela. "Primeiro a estranheza, as pessoas a chegarem, a missa, a comida, depois a dança e, finalmente, a tempestade. Estarei eu a ser tonta, Joseph, ou havia um sentido por debaixo da aparência? Parecia uma daquelas gravuras simples de paisagens que vendem nas cidades. Quando se olha de perto, vê-se toda a espécie de figuras escondidas nos traços. Sabes a que gravuras me refiro? Um rochedo transforma-se num lobo adormecido, uma nuvenzinha é um crânio e uma fila de árvores são soldados em marcha, quando se repara bem. O dia também te pareceu ser assim, Joseph, cheio de sentidos escondidos que não se percebem bem?" Ele continuava de joelhos, debruçado sobre ela à luz coada do candeeiro. Olhava atentamente os lábios da mulher, como se não ouvisse. Cofiava bruscamente a barba e de vez em quando aprovava com a cabeça. "Tu olhas demasiadamente perto, Elizabeth", disse vivamente. "Aprofundas as coisas em excesso." "Mas, Joseph, tu também o sentiste, não é verdade? O sentido pareceu-me um aviso. Olha... não sei como exprimi-lo." Ele balouçou-se para trás, sobre os calcanhares, e fitou as faíscas de luz que saíam pelas fendas do fogão. A sua mão esquerda continuava a cofiar a barba, mas a direita avançou e pousou sobre o joelho dela. O vento assobiava estridentemente no carvalho por cima da casa, e o fogão crepitava pacificamente à medida que o lume ia morrendo um pouco. Alice cantava: "Coronu ella de flores que es rosa mia..." Joseph disse brandamente: "Sabes, Elizabeth, o facto de tu veres por baixo das aparências devia tornar-me menos solitário, mas não sucede assim. Quero dizer-te e não consigo. Não creio que isto sejam avisos para nós, mas sim indicações do que se passa pelo mundo. Uma nuvem não é um sinal posto ali para os homens verem e saberem que vai chover. O dia de hoje não foi um aviso, mas tu tens razão; parece-me que hoje havia coisas ocultas." Molhou os lábios cuidadosamente. Elizabeth estendeu a mão para lhe acariciar a cabeça. "A dança", disse Joseph, "não pertencia ao tempo, sabes? Era uma coisa eterna, revelando-se à visão durante um dia." Calou-se novamente e tentou libertar o pensamento das implicações vagas e pesadas que o envolviam como ondas cinzentas de
nevoeiro. "O povo divertiu-se", disse, "todos menos o Burton. Burton sentiu-se infeliz e assustado. Nunca sou capaz de adivinhar quando o Burton vai ter medo." Ela reparou em como os lábios dele se curvavam por momentos, levemente divertido. "Terás vontade de comer dentro de pouco tempo, querido? Podes cear assim que quiseres - só há comida fria, esta noite." Estas palavras destinavam-se a esconder um segredo, ela bem sabia; mas o segredo veio à superfície antes que ela pudesse evitá-lo. "Joseph, esta manhã estive agoniada." Ele olhou-a com compaixão. "Trabalhaste de mais com os preparativos." "Sim, talvez", replicou ela. "Não, Joseph, não foi disso. Eu não tencionava dizer-to ainda, mas a Rama diz... Achas que a Rama sabe? Rama diz que nunca se engana e ela deve saber. Já tem visto tanto, e diz que percebe logo." Joseph riu-se. "E que é que a Rama percebe? Parece que estás engasgada com as palavras." "Bem, a Rama diz que eu vou ter um bebé." As palavras caíram num estranho silêncio. Joseph inclinara-se para trás e fitava novamente o fogão. A chuva parara por um momento e Alice já não cantava. Timidamente, Elizabeth quebrou o silêncio. "Estás contente, querido?" A respiração de Joseph tornou-se audível. "Mais contente do que nunca." E depois acrescentou num murmúrio: "E mais assustado." "Que dizes, querido? A frase do fim. Não entendi." Pondo-se de pé, ele inclinou-se sobre ela. "Tens de tomar cuidado", disse com vivacidade. "Vou arranjar uma manta para te cobrir os joelhos. Tem cuidado em não te constipares, em não dares quedas." Aconchegou-lhe um cobertor em volta da cintura. Ela sorria, vaidosa e contente daqueles cuidados súbitos. "Eu saberei o que devo fazer, querido, não tenhas medo. Bem vês", acrescentou com tom firme, "abrem-se conhecimentos novos a uma mulher que espera um filho. Disse-mo a Rama." "Então vê se tomas cuidado", repetiu ele. Ela soltou uma risada alegre. "A criança já te é assim tão preciosa?" Pousando os olhos no chão, ele franziu o sobrolho. "Sim, a criança é preciosa, mas não tão preciosa como a sua geração. Isso é que é,real como uma montanha. Isso é um elo ligado à terra." Parou de falar para procurar palavras que exprimissem o seu sentir. "É uma prova de que pertencemos aqui, querida, minha querida. A única prova de que não somos estranhos." Subitamente olhou para o tecto. "A chuva parou. Vou ver como estão os cavalos." Elizabeth riu-se dele. "Li algures dum costume estranho; talvez seja na Noruega ou na Rússia, não sei bem, mas, seja onde for, dizem Que o gado deve ser informado. Quando sucede qualquer coisa numa família, um nascimento ou uma morte, o pai vai à estrebaria e diz aos cavalos e às vacas o que se passa. É por isso que tu vais, Joseph?" "Não", disse ele. "Quero certificar-me de Que os cabrestos estão todos curtos." "Não vás", implorou ela. "O Thomas olhará pelos
animais. Ele tem sempre esse cuidado. Esta noite fica comigo. Se tu saíres esta noite, sentir-me-ei muito só. Alice, chamou ela, "prepáras agora a ceia? Quero que te sentes a meu lado, Joseph." Apertou todo o antebraço do marido de encontro ao peito. "Quando era pequenina, deram-me uma boneca, e quando a vi na árvore de Natal um calor indescritível invadiu-me o coração. Mesmo antes de pegar na boneca eu temia por ela, e enchia-me de tristeza. lembro-me tão bem! Tinha pena de Que a boneca fosse minha, não sei porquê. Parecia-me demasiado preciosa, angustiosamente preciosa, para ser minha. Tinha cabelo verdadeiro nas sobrancelhas e cabelo verdadeiro nas pestanas. Desde então o Natal é sempre assim, e isto agora também é assim. Se isto que eu te disse é verdade, é demasiado precioso, e eu tenho medo. Senta-te a meu lado, querido. Não vás passear pelos montes esta noite." Ele notou que os olhos dela estavam cheios de lágrimas. "Está visto que fico", disse, para a confortar. "Estás muito cansada e de hoje em diante tens de te deitar cedo." Manteve-se a seu lado toda a tarde e foi deitar-se com ela; mas quando notou que a sua respiração adquirira um ritmo sereno, esgueirou-se para fora da cama e vestiu-se. Ela ouviu-o sair e deixou-se ficar quieta, fingindo que dormia. "Ele tem qualquer coisa a fazer com a noite", pensou ela, e lembrou-se do que Rama lhe dissera. "Se ele sonhar, nunca saberá o Que são os seus sonhos." Sentiu o frio da solidão e começou a chorar baixinho. Joseph saiu cautelosamente para o alpendre. O céu aclarara e a noite esfriara com a geada, mas a água ainda pingava das árvores e do telhado escorria para o chão um pequeno rio. Joseph dirigiu-se directamente para o grande carvalho e quedou-se por baixo dele. Falou muito de mansinho, de modo que ninguém pudesse ouvi-lo. "Vai haver uma criança, senhor. Prometo que o hei-de pôr nos vossos braços quando ele nascer." Apalpou a casca da árvore molhada e fria, fazendo deslizar sobre ela as pontas dos dedos. "O padre sabe", pensou ele. "Ele sabe uma parte disto, e não acredita. Ou talvez acredite e tenha medo." "Vem lá uma tempestade", disse ele à árvore. "Sei que não posso fugir a ela. Mas o senhor, meu pai, talvez saiba como proteger-nos contra a tempestade." Deixou-se ficar por muito tempo, movendo nervosamente os dedos sobre a casca escura da árvore. "Esta coisa está a tornar-se forte", pensou ele. "Comecei-a porque me consolava quando o meu pai morreu, e agora tornou-se tão forte que quase se sobrepõe a todo o resto. E ainda me conforta." Encaminhou-se para a cova das marmitas e de lá trouxe um pedaço de carne que ficara na grelha. "Pronto", disse, e alçando-se colocou a carne na forquilha da árvore. "Protegei-nos se puderdes", implorou. "Aquilo que está para vir pode destruir-nos a todos nós." Sobressaltaram-no passos que se aproximavam. A voz de Burton disse: "És tu, Joseph?" "Sou. Já é tarde. Que queres?" Burton avançou para perto dele. "Quero falar-te. Joseph. Quero prevenir-te."
"Agora não é altura", disse Joseph com mau modo. "Fala-me amanhã. Eu saí para ir ver os cavalos." Burton não se moveu. "Tu estás a mentir, Joseph. Julgas que tens ocultado o teu segredo, mas eu tenho-te observado. Tenho-te visto a fazer oferendas à árvore. Tenho visto o paganismo a crescer em ti, e venho prevenir-te." Burton estava excitado e respirava rapidamente. "Tu viste a ira de Deus esta tarde avisando os idólatras. Foi só um aviso, Joseph. Para a próxima vez cairá o raio. Tenho visto que falas com a árvore, Joseph. e recordei-me das palavras de Isaías. Tu abandonaste Deus e a Sua cólera descerá sobre ti." Parou sem fôlego, tal era a torrente da sua emoção; e ao mesmo tempo esvaiu-se a sua cólera. "Joseph", implorou, "vem à estrebaria e reza comigo. Cristo tornará a receber-te. Deitemos abaixo essa árvore." Mas Joseph desenvencilhou-se dele e sacudiu a mão que se estendera para o deter. "Salva-te a ti próprio, Burton", disse com um riso breve. "Tu tomas as coisas a sério de mais, Burton. Ora vai deitar-te. Não te intrometas nos meus passatempos. Contenta-te com os teus." E, deixando o irmão, voltou cautelosamente para casa.
17
A Primavera chegara, pujante, e a erva submergia os montes - erva viçosa e espessa, verde-esmeralda; as encostas estavam densamente cobertas por ela. Debaixo das chuvas constantes o rio continuava a correr impetuoso; as árvores que o abrigavam pendiam sob o peso das folhas e os ramos uniam-se sobre ele, de tal modo que durante milhas a água sussurrava numa caverna sombria. Os edifícios da fazenda foram duramente castigados pelo Inverno chuvoso; nos telhados virados ao norte nascera musgo pálido; as pilhas de estrume coroaram-se de erva. O gado, pressentindo que nas encostas o alimento brotava em grande quantidade, dera incremento à produção de crias. Raras vezes tantas vacas tiveram crias duplas como durante aquela Primavera. Das porcas não houve crias demasiado pequenas. Na cavalariça só dois ou três cavalos estavam presos, pois a erva era boa de mais para se perder. Quando chegou Abril, e com ele os dias quentes e chuvosos, a erva e as flores carregaram os montes de cor - papoulas douradas e tremoço-azul, em manchas e cobertores. Cada variedade conservava-se isolada e salpicava a paisagem com o seu colorido. E a chuva continuava a cair frequentemente, até a terra ficar esponjosa de humidade. Cada depressão do terreno transformava-se numa nascente e cada buraco num poço. As bzerrinhas lustrosas engordaram e mal estavam desmamadas quando as mães receberam de novo os touros. Alice foi para a sua casa em Nossa Senhora, deu à luz o filho e voltou com ele para o rancho. Em Maio a brisa firme do Verão soprou do mar, carregada de sal e de um vago cheiro a algas. Para os homens houve muito que trabalhar. Todas as terras planas, acima das casas, se abriram negras sob os arados; e das sementes ordenadas e calmas brotou a cevada e o trigo. A horta produziu com tal abundância que para a cozinha só foram as hortaliças maiores e mais viçosas; os porcos receberam todos os nabos menos perfeitos e as cenouras duvidosas. Os esquilos saíam das tocas a guinchar ao sol e estavam já mais gordos na Primavera do que normalmente no Outono. Nos montes, os poldros ensaiavam pulos e lutavam entre si, enquanto as mães os observavam divertidas. Quando caíram as chuvas quentes, os cavalos e as vacas já não buscavam a protecção das árvores e continuavam a comer enquanto a água lhes escorria pelos flancos e os tornava lustrosos como laca. Em casa de Joseph faziam-se calmamente preparativos para o nascimento. Elizabeth trabalhava no enxoval do filho e as outras mulheres, sabendo bem que este seria a criança mais importante do rancho e o herdeiro do poder, vinham fazer-lhe companhia e igualá-la. Forraram um cesto de roupa com cetim acolchoado e Joseph montou-o numa embaladeira. Criança nenhuma poderia vir a usar a quantidade de fraldas que elas debruaram. Fizeram e bordaram compridos vestidos. Diziam a Elizabeth que estava tendo uma gravidez fácil, pois raras vezes se encontrava mal disposta; tornava-se
mais robusta e feliz à medida que o tempo passava. Rama ensinou-a a acolchoar a coberta que ia servir no leito onde daria à luz, e Elizabeth fê-la com tanto cuidado como se ela tivesse de durar toda a sua vida, em vez de se destinar a ser queimada mal a criança nascesse. Porque se tratava do filho de Joseph. Rama lembrou-se duma delicadeza até então nunca imaginada. Fez uma prega em cada extremidade, para prender à cabeceira da cama. As outras mulheres não tinham tido senão um lençol torcido para puxar durante as dores do parto. Quando chegou o tempo quente, as mulheres sentavam-se à porta, ao calor do sol, e continuavam a costurar. Preparavam tudo com meses de antecedência. A pesada peça de musselina crua que devia ligar as ancas de Elizabeth foi preparada, guarnecida e guardada. As almofadinhas cheias de penas de pato e as cobertas estofadas estavam prontas no primeiro dia de Junho. E havia conversas sem fim a respeito de crianças -de como nasciam, e os acidentes que podiam suceder, e como a recordação das dores se desvanece no espírito da mulher, e como os primeiros hábitos dos rapazes diferem dos das raparigas. Havia anedotas sem conta. Rama sabia histórias de crianças nascidas com cauda; com membros a mais, com a boca no meio das costas; mas não assustavam, porque Rama sabia a razão de tais coisas. às vezes era da bebida, outras da doença, mas as piores, as mais terríveis monstruosidades, provinham da concepção durante um período menstrual. Joseph aparecia por vezes, com folhas de erva nos atacadores dos sapatos, nódoas verdes de erva nos joelhos das calças, e a testa ainda brilhante de suor. Parava, afagando a barba, ouvindo a conversa. Por vezes Rama apelava para ele, a pedir confirmação. Joseph trabalhou intensamente durante esta Primavera pródiga. Castrava os vitelos, removia pedras que barravam o caminho às flores e saía com o seu novo ferro de marcar para gravar o seu "JW" na pele do gado. Thomas e Joseph trabalhavam lado a lado, em silêncio, erguendo as vedações de arame farpado em torno da propriedade, pois numa Primavera chuvosa era fácil cavar buracos para enterrar as estacas. Contrataram mais dois vaqueiros para tomarem conta do gado, que aumentava em número. Em Junho vieram, pesados, os primeiros calores; e a erva respondeu e cresceu mais um pé. Mas com os dias asfixiantes, Elizabeth começou a sentir-se mal e irritável. Fez uma lista de coisas necessárias para o nascimento e entregou-a a Joseph. Uma manhã, antes de o Sol nascer, ele seguiu para S. Luís dO bispo no carro para lhe comprar as coisas. A ida e o regresso representavam três dias de viagem. Mal ele partiu, Elizabeth sentiu-se tomada de terrores: ele podia morrer. As coisas menos razoáveis tornavam-se verosímeis. Podia encontrar outra mulher e fugir com ela. O carro era capaz de se voltar ao passar no desfiladeiro e precipitá-lo no rio. Não se levantara para o ver partir, mas depois de o Sol nascer vestiu-se e foi sentar-se à porta. Tudo a irritava, o barulho dos gafanhotos a voar, os bocados de arame de enfardar espalhados pelo chão. O cheiro de amoníaco das estrebarias agoniava-a. Depois de ver
e odiar todas as coisas à sua volta, ergueu os olhos para as colinas em busca de novas presas, e a primeira coisa que viu, foi o pinhal na crista do monte. Imediatamente a assaltou uma aguda nostalgia de Monterey, uma saudade das árvores escuras da península, das ruazinhas cheias de sol, das casas brancas e da baía azul com os seus barcos de pesca coloridos; mas dos pinhais mais do que de qualquer outra coisa. O aroma resinoso das agulhas parecia-lhe a coisa mais deliciosa que existia no mundo. E tanto ansiou por cheirá-lo que o corpo lhe doeu de desejo. E durante todo este tempo continuou a olhar o pinhal escuro, lá em cima na crista. O desejo modificou-se gradualmente, até que só queria as árvores. Chamavam-na lá do alto, convidavam-na a vir até aos seus troncos, ao abrigo do sol, a conhecer a paz que havia num pinhal. Ela via-se - chegava a sentir-se - deitada num leito de agulhas de pinheiro, a olhar para o céu por entre os troncos. e ouvia o vento a açoitar docemente as copas das árvores e a seguir para diante carregado com o aroma dos pinheiros. Elizabeth ergueu-se dos degraus e caminhou lentamente para a cavalariça. Estava lá dentro alguém. pois ela via pazadas de estrume a sair pelas janelas. Entrou no barracão escuro e agradável e aproximou-se de Thomas. "Quero ir dar um passeio", disse ela. "Importa-se de atrelar um carro para mim?" Ele encostou-se à forquilha. "Quer esperar meia hora? Quando acabar isto, levo-a." Irritou-se com esta intromissão. "Quero guiar eu própria, quero estar só", disse, secamente. Ele olhou-a, calmo. "Não sei se o Joseph gostaria que saísse só." "Mas o Joseph não está cá. Quero ir." Então ele encostou a forquilha à parede. "Muito bem. Vou engatar a velha Lua Cheia. É mansa. Não saia da estrada, que pode ficar atascada na lama. Ainda está bastante funda em algumas das baixas." Ajudou-a a subir para a carrinha e ficou, apreensivo, a olhá-la enquanto ela se afastava. Elizabeth percebeu, instintivamente, Que o cunhado não queria que ela fosse aos pinhais. Esperou até estar a uma boa distância de casa e só depois virou a cabeça da velha égua branca em direcção ao monte; seguiu, aos solavancos, sobre o piso irregular. O sol estava muito quente e no vale não havia vento. Já subira a uma grande distância quando uma linha de água profunda lhe deteve o avanço. A ravina estendia-se para ambos os lados, longa de mais para se poder tornear, e os pinhais ficavam a curta distância. Elizabeth desceu da carrinha e amarrou as rédeas a uma raiz. Depois desceu a ravina, subiu do outro lado e caminhou lentamente para o pinhal. Num instante chegou a um regato cintilante que vinha da floresta e corria calmamente, porque não havia pedras que lhe barrassem o caminho. Baixou-se, arrancou um tufo de agriões bravos de dentro de água e foi-os mordiscando enquanto subia, bamboleando-se, ao longo do riacho. Agora toda a irritação se lhe desvanecera; avançava alegremente e entrou no pinhal. As espessas camadas de
agulhas abafavam-lhe os passos e o pinhal eliminava todos os outros sons, excepto o murmurar das agulhas na ramaria. Caminhou por alguns momentos sem obstáculo, até que uma cortina de vides e de silvas lhe barrou o caminho. Virou-lhes o ombro e forçou uma passagem, por vezes gatinhando, através duma abertura. Qualquer coisa nela exigia que penetrasse profundamente na floresta. Tinha as mãos arranhadas e o cabelo desgrenhado quando atravessou finalmente a parede de pinheiros e se endireitou. Abriu os olhos de espanto ao ver o círculo de árvores e a clareira plana. Depois deu com o enorme penhasco, verde e estranho. Murmurou para consigo: "Creio que sabia que isto estava aqui. Qualquer coisa no meu íntimo me dizia que esta coisa velha e querida aqui estava." Naquele lugar não se ouvia qualquer som, excepto o sussurro alto das árvores; e era fechado, o que só tornava o silêncio mais profundo, mais impenetrável. A cobertura da rocha, de musgo verde, era espessa como uma pele; e sobre a pequena caverna, a um lado, pendia uma cortina verde de compridos fetos. Elizabeth sentou-se junto ao riacho, que deslizava secretamente ao longo da clareira e desaparecia no mato. Os olhos fixaram-se-lhe no rochedo e o seu espírito lutou com a forma sugestiva deste. "Já vi esta coisa em qualquer parte", pensou. "Por força sabia que estava aqui, senão como teria cá vindo direita?" Os olhos abriram-se-lhe mais enquanto observava o rochedo; e o espírito perdeu todos os pensamentos agudos e encheu-se-lhe de recordações que vinham lentamente, calmas, sem significado e vagas. Via-se em Monterey, saindo de casa para a Escola Dominical, e depois viu uma lenta procissão de crianças portuguesas, vestidas de branco, marchando em honra do Espírito Santo, guiadas por uma rainha coroada. Viu vagamente as ondas surgindo de sete direcções diferentes até se encontrarem e enrodilharem em Point Joe, perto de Monterey. E depois, enquanto olhava para o rochedo, viu o seu próprio filho, enovelado, de cabeça para baixo, no seu ventre, e viu-o mexer-se ligeiramente e ao mesmo tempo sentiu esse movimento. E sobre a sua cabeça continuava sempre o sussurrar; e pelo canto dos olhos via como as árvores escuras pareciam aproximar-se cada vez mais dela. Ali sentada, veio-lhe a ideia de que estava só no mundo; todas as outras pessoas se tinham ido embora, abandonando-a, e ela não se importava. Depois ocorreu-Lhe que podia ter tudo quanto desejasse e com essa ideia veio-lhe o receio de desejar acima de tudo a morte e, depois disso, conhecer bem o marido. A mão caiu-lhe do colo lentamente para a água fresca do regato e imediatamente as árvores se afastaram e o firmamento baixo se levantou. O Sol dera um salto para diante enquanto ela ali estava. Na floresta havia agora um restolhar não suave, mas agudo e malévolo. Ela deitou um olhar rápido ao rochedo e viu que a forma dele era feroz como a de um animal preparado para o salto e grosseira como uma cabra hirsuta. Um frio furtivo pnetrara na clareira. Elizabeth ergueu-se, possuída de pânico, levantou as mãos e com elas amparou os seios. A clareira era percorrida por uma vibração de horror. As árvores negras impediam
toda a fuga. E o enorme pedregulho continuava acocorado para o salto. Recuou, com medo de deixar de olhar para ele. Quando chegou à larga entrada da clareira, julgou ver uma criatura hirsuta a mover-se no interior da caverna. Toda a clareira tinha uma vida própria de terror. Voltou-se e desceu a correr a azinhaga, atemorizada de mais para gritar, e chegou passado muito tempo, ao espaço livre onde brilhava, quente, o sol. A floresta fechou-se atrás dela e deixou-a livre. Sentou-se, exausta, junto ao regato; o coração pulsava-lhe dolorosamente. Ofegava. Viu como o ribeiro agitava suavemente os agriões que cresciam dentro de água e viu as palhetas de mica a brilhar na areia do fundo. Depois, virando-se em busca de protecção, baixou os olhos para o aglomerado de edifícios da fazenda, banhados pelo sol, e para a erva amarelecida que o vento da tarde dobrava em ondas prateadas, compridas e planas. Tudo aquilo inspirava confiança; e ficou grata por tê-lo visto. Antes que o medo desaparecesse, ajoelhou para rezar. Procurou pensar no que acontecera na clareira, mas já a recordação se desvanecia. "Foi uma coisa antiga, tão antiga que já quase me esqueci dela." Lembrou-se do estado em que estava. "Era uma coisa má." E rezou: "Pai Nosso, que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome..." E rezou: "Senhor Jesus, protegei-me destas coisas proibidas e conservai-me no caminho da luz e da bondade. Senhor Jesus, não deixeis que, através de mim, estas coisas passem ao meu filho. Guardai-me contra as coisas antigas que há no meu sangue." Lembrava-se de que o pai dizia que os seus antepassados, há míl anos, seguiam o culto dos Druídas. Depois da oração sentiu-se melhor. No seu espírito tornou a entrar uma luz clara, que expulsou o medo e, com ela, a memória do medo. "É do meu estado", disse ela. "Devia ter sabido. Naquele sítio não havia nada senão a minha imaginação. Rama já me disse bastantes vezes o que devo esperar." Levantou-se então, tranquilizada e confortada. E enquanto descia o monte colheu uma braçada de flores para ornamentar a casa para o regresso de Joseph.
18
O calor do Verão foi muito intenso. Todos os dias o sol castigava o vale, sugando a humidade da terra, secando a erva e obrigando todos os seres vivos a procurar as sombras profundas dos maciços de arbustos nos montes. Os cavalos e o gado lá ficavam deitados todo o dia, à espera da noite para saírem em busca de comida. Os cães do rancho estiraçavam-se no chão, de línguas trémulas pendentes a um lado do focinho, peitos a arfar como foles. Até os insectos barulhentos respeitavam o silêncio da tarde. Quando o sol estava a pino ouvia-se apenas o ténue gemido das rochas e da terra, queimadas de mais. O rio encolheu-se até se tornar um pequeno ribeiro; e quando chegou Agosto até este desapareceu. Thomas ceifava o feno e arrecadava-o, enquanto Joseph escolhia o gado para vender e o metia no curral novo. Burton preparava-se para a sua viagem a Pacific Grove para assistir às reuniões campais. Carregou o carro com uma tenda, utensílios, cama e comida; e uma manhã ele e a mulher partiram, puxados por dois bons cavalos, para percorrerem as noventa milhas até ao local da reunião. Rama acedera a tomar conta dos filhos deles durante as três semanas de ausência. Elizabeth saiu de casa para Lhes dizer adeus; voltava a estar radiosa de saúde. Depois dum curto período de mal-estar, melhorara e embelezara. Tinha as faces vermelhas do sangue que por elas corria e os olhos brilhavam-lhe com uma felicidade misteriosa. Muitas vezes Joseph, observando-a, magicava no que saberia ela - ou em que pensaria - que a fazia parecer sempre à beira de soltar uma gargalhada. "Ela sabe qualquer coisa", dizia ele de si para si. "As mulheres neste estado têm nelas um grande calor divino. Devem saber coisas que mais ninguém sabe. E devem sentir uma felicidade que ultrapassa qualquer outra felicidade. De certo modo, tomam nas mãos as extremidades dos nervos da terra." Joseph olhava-a atentamente e cofiava a barba com a calma vagarosa dum velho. à medida que o seu dia se aproximava, Elizabeth tornava-se progressivamente açambarcadora do marido. Queria que ele estivesse junto dela dia e noite e queixava-se quando ele lhe falava do trabalho que havia a fazer. "Eu aqui estou ociosa", dizia ela. "E a ociosidade adora companhia." E ele explicava. "Não, estás a trabalhar." No seu espírito via como ela trabalhava. Tinha as mãos inúteis cruzadas no regaço, mas todos os seus ossos moldavam ossos, o sangue destilava sangue e a carne transformava-se-lhe em carne. Riu-se da ideia da ociosidade dela. Nas tardes em que Elizabeth exigia que ele se sentasse junto dela, estendia o braço para que a acariciasse. "Tenho medo de que te vás embora", dizia ela. "Podias sair por aquela porta e nunca mais voltar, e o menino não teria pai." Um dia em que estavam sentados no alpendre, perguntou-lhe abruptamente. "Por que razão gostas tu tanto daquela árvore, Joseph? Lembras-te de quando me fizeste sentar nela, da primeira vez que eu aqui
vim?" Olhou para a forquilha alta em que se sentara. "Então não é uma bela árvore?" explicou ele, lentamente. "Gosto dela porque é uma árvore perfeita, creio." Mas ela apanhou-o. "É mais do que isso, Joseph. Uma noite ouvi-te falar com ela como se fosse uma pessoa, chamaste-lhe senhor, que eu ouvi." Ele olhou fixamente para a árvore antes de responder e depois de algum tempo contou-lhe como o pai dele morrera com o desejo de vir para o Oeste, e falou-Lhe da manhã em que a carta chegara. "É uma espécie de jogo, já vês", disse ele. "Dá-me a sensação de que ainda tenho o meu pai." Ela voltou para ele os seus olhos afastados, olhos cheios de sabedoria da gravidez. "Não é um jogo. Joseph". disse ela meigamente. "Mesmo que quisesses, não serias capaz de brincar assim. Não, não é uma brincadeira; mas é um bom hábito." E pela primeira vez viu claro no espírito do marido; num segundo viu a forma dos pensamentos dele, e ele percebeu que ela os vira. A emoção subiu-lhe à garganta. Inclinou-se para a beijar, mas em vez disso deixou cair a cabeça sobre os joelhos dela, e o peito encheu-se-Lhe a ponto de querer estourar. Ela afagou-lhe o cabelo e sorriu, com aquele seu sorriso grave. "Devias ter deixado que eu viesse mais cedo". E depois acrescentou: "Mas provavelmente eu não tinha os olhos para o ver." Quando à noite, deitados juntos, ela descansava a cabeça no braço dele por uns momentos, antes de adormecerem, suplicava-lhe que a sossegasse. "Joseph, quando a altura chegar, ficarás junto de mim? Tenho medo de ter medo. Tenho medo de chamar e tu não estares perto. Não vais para longe, não é verdade? E se eu chamar, vens?" E ele assegurava-lhe com certa aspereza: "Estarei contigo, Elizabeth. Não te apoquentes por isso." "Mas não no mesmo quarto, Joseph. Não gostaria que visses. Não sei porquê. Se pudesses estar no outro quarto, à escuta para o caso de eu chamar, então creio que não teria medo." Por vezes, durante aquelas noites na cama, ela falava-lhe das coisas que sabia; como os Persas invadiram a Grécia e foram vencidos, e como Orestes se agarrou à tripeça, em busca de protecção, enquanto as Fúrias ficavam à espera de que ele tivesse fome e se largasse. Contava-lhe a rir todos estes bocadinhos de sabedoria que se destinavam a torná-la superior. Mas agora toda a sua sabedoria Lhe parecia tola. Começou a contar as semanas que faltavam - três semanas a partir da quinta-feira; depois duas semanas e um dia, e depois apenas dez dias. "Hoje é sexta-feira. Olha, Joseph, vai ser num domingo. Oxalá seja. Rama tem escutado. Diz que até houve o bater do coração. Acreditas numa coisa destas?" Uma noite disse: "Será já daqui a uma semana. Sinto uns arrepiozinhos quando penso nisso." Joseph dormia com um sono muito leve. Quando Elizabeth suspirava durante o sono, ele abria os olhos e escutava, inquieto. Uma manhã acordou quando o coro dos galos novos cantava nos seus poleiros. Era ainda escuro, mas
o ar tinha a vida que lhe dava o amanhecer próximo e a frescura da manhã. Ouviu os galos mais velhos cantando, com notas cheias, como que censurando os mais novos pelas suas vozes agudas, de falsete. Joseph ficou deitado, de olhos abertos, e viu entrar uma miríade de pontos luminosos que iam tornando o ar cinzento. A mobília começou a aparecer gradualmente. Elizabeth dormia, com a respiração curta. Havia qualquer coisa naquela respiração. Joseph preparava-se para sair da cama, vestir-se e sair para ir aos cavalos, quando de súbito Elizabeth se sentou, erecta, ao lado dele. Parou-se-Lhe a respiração, depois as pernas ficaram-lhe hirtas, e berrou de dor. "Que é?", exclamou ele. "Que há, querida?" Quando a mulher não respondeu, ele levantou-se de um salto, acendeu a lâmpada e debruçou-se sobre ela. Tinha os olhos esbugalhados, a boca aberta, e todo o corpo Lhe tremia intensamente. Depois soltou de novo um berro rouco. Ele começou a esfregar-Lhe as mãos, até que, passado um momento, ela se tornou a deixar cair na almofada. "Tenho uma dor nas costas, Joseph", gemeu ela. "Há qualquer coisa que não está bem. Vou morrer." Ele disse: "É só um instante, querida. Vou chamar Rama." e saiu a correr do quarto. Rama, arrancada ao sono, sorriu gravemente. "Volta para junto dela", ordenou. "Já lá vou ter. É um pouco mais cedo do que eu pensava. Não havia novidade ainda durante algum tempo." "Mas avia-te", suplicou ele. "Não há pressa. Vai já ter com ela. Eu vou buscar a Alice para ajudar." A alvorada clareava quando as duas mulheres atravessaram o pátio, com os braços carregados de trapos limpos. Rama assumiu imediatamente o comando. Elizabeth, ainda abalada pela agudeza da dor, olhava desamparada para ela. "Está tudo bem", sossegou-a Rama. "Tudo como deve ser." Mandou Alice para a cozinha acender o lume e aquecer um caldeirão de água. "Agora, Joseph, ajuda-a a pôr-se de pé, ajuda-a a andar." E enquanto ele a passeava de um lado para o outro, no quarto, Rama tirava as cobertas da cama, estendia o almofadão para o parto e prendia as pontas do cordão de veludo à cabeceira. Quando Lhe veio a dor cruciante, deixaram-na sentar numa cadeira de costas direitas até passar. Elizabeth procurava não gritar, até que Rama se inclinou para ela e disse: "Não te reprimas. Não é preciso. Agora tudo o que quiseres fazer é útil." Joseph, com o braço em torno da cintura dela passeava-a de um lado para o outro no quarto, amparando-a quando ela tropeçava. Perdera o medo. Nos olhos brilhava-Lhe uma alegria selvagem. As dores começaram a suceder-se mais rapidamente. Rama trouxe para o quarto o grande relógio de pêndula e pendurou-o na parede; e olhava para ele sempre que as dores chegavam. E o intervalo entre estas continuava a ser cada vez mais curto. As horas passavam. Era quase meio-dia quando Rama acenou energicamente com a cabeça. "Deixa-a -deitar-se agora. Podes
sair, Joseph. Eu vou preparar as mãos." Ele olhou-a com olhos semicerrados. Parecia em transe. "Que queres dizer com isso?", perguntou. "Lavá-las e tornar a lavá-las com água quente e sabão e cortar as unhas rentes." "Eu farei isso", disse ele. "É altura de te ires embora, Joseph. Já tens pouco tempo." "Não", disse ele, obstinado. "Eu receberei o meu filho. Tu dizes-me o que se deve fazer." "Não podes, Joseph. Não é coisa para um homem." Olhou-a muito sério, e ela teve de ceder perante a calma dele. "É coisa para mim", disse ele. Mal nascera o Sol, as crianças tinham-se concentrado junto à janela do quarto de cama, onde ficaram a ouvir os gritos fracos de Elizabeth, tremendo de interesse. Martha assumiu logo o comando. "às vezes morrem", disse ela. Embora o sol da manhã incidisse ferozmente sobre eles, não abandonaram o seu posto. Martha estabeleceu as regras. "O primeiro que ouvir o bebé chorar diz: "- Eu ouvi-o!", e esse recebe um presente e é o primeiro a ter um bebé. Disse-mo a minha mãe." Os outros estavam muito excitados. Gritavam, em uníssono, "Eu ouvi-o!", sempre que começava uma nova série de gritos. Martha fê-los ajudá-la a subir para onde podia espreitar rapidamente pela janela. "O tio Joseph anda a passear com ela", participou. E mais tarde: "Agora está deitada na cama, agarrada ao cordão vermelho que a mãe fez." Os gritos tornavam-se cada vez mais próximos. As outras crianças ajudaram Martha a espreitar outra vez, e ela desceu um pouco pálida e sufocada pelo que vira. Juntaram-se em torno dela para ouvir o relato. "Eu vi... o tio Joseph... estava debruçado..." Fez uma pausa para tomar ar. "E... e tinha as mãos todas encarnadas." Calou-se e todas as outras crianças ficaram espantadas a olhar para ela. Não houve mais conversas nem murmúrios. Ficaram simplesmente quietos, à escuta. Agora os gritos eram tão fracos que mal os conseguiam ouvir. Martha tinha um ar misterioso. Com um murmúrio, mandou calar os outros. Ouviram três açoites fracos e imediatamente Martha gritou: "Eu ouvi-o." E muito pouco tempo depois todos ouviram o bebé chorar. Ficaram apavorados a olhar para Martha. "Como sabias tu a altura?" Martha atormentou-os. "Sou a mais nova e tenho tido juízo durante muito tempo. E a mãe disse-me como havia de ouvir." "Como?", perguntaram. Como ouviste?" "O açoite!", disse ela triunfante. "Dão sempre açoites ao bebé para o fazer chorar. Ganhei, e como presente quero uma boneca com cabelo." Um pouco depois, Joseph chegou à entrada e encostou-se à varanda. As crianças aproximaram-se e ficaram a olhar para ele. Ficaram desapontadas por ele já não ter as mãos encarnadas. Tinha o rosto tão encovado e macilento e o olhar tão vago que lhes custou a falar. Martha começou, a medo: "Eu ouvi o primeiro choro", disse ela. "como presente, quero uma boneca com cabeleira."
Olhou para eles e sorriu levemente. "Eu dou-ta", disse ele. "Quando for à cidade, hei-de trazer presentes para vocês todos." Martha perguntou deliCadamente: "O bebé é rapaz ou rapariga?" "Rapaz", disse Joseph. "Talvez o possam ver daqui a bocadinho." Tinha as mãos agarradas com força à varanda e o estômago ainda torturado pelas dores que recebera de Elizabeth. Inspirou profundamente o ar quente do meio-dia e voltou de novo para dentro de casa. Rama estava a lavar a boca desdentada do bebé com água quente, enquanto Alice pregava os alfinetes de segurança na faixa de musselina que havia de ligar as ancas de Elizabeth depois de sair a placenta. "Já falta pouco", disse Rama. "Daqui a uma hora estará tudo passado." Joseph sentou-se pesadamente na cadeira, a observar as mulheres e os olhos mortiços e doridos de Elizabeth, cheios de sofrimento. A criança estava no berço, com um vestido duas vezes maior do que ela. Depois do parto acabado, Joseph pegou ao colo em Elizabeth enquanto as mulheres tiravam a almofada suja e tornavam a fazer a cama. Alice pegou em todos os trapos e queimou-os no fogão da cozinha e Rama envolveu a ligadura em torno das ancas de Elizabeth, tão apertada quanto lhe foi possível. Elizabeth ficou estendida, pálida, na cama lavada. Depois de as mulheres saírem, Estendeu a mão para que Joseph pegasse nela. "Tenho estado a sonhar", disse, com voz fraca. "Passou um dia inteiro e eu tenho estado a sonhar." Ele acariciou-lhe os dedos, um de cada vez: "Gostarias que te trouxesse o bebé?" A testa dela enrugou-se, cansada. "Ainda não", disse. "Ainda o odeio por me ter causado tantas dores. Espera que eu tenha descansado um pouco." Logo depois adormeceu. Para o fim da tarde Joseph foi até à estrebaria. Mal olhou para a árvore ao passar por ela. "És o ciclo", murmurou ele; "e o ciclo é demasiado cruel." Encontrou a estrebaria cuidadosamente limpa e cada bacia cheia de palha fresca. Thomas estava sentado no seu poleiro habitual, na manjedoura da baia da égua Azul. Fez um leve aceno de cabeça para Joseph. "O meu coiote tem uma carraça no ouvido", observou ele. "É um sítio levado do diabo para de lá o tirar." Joseph entrou na baia e sentou-se ao lado do irmão. Descansou pesadamente o queixo nas palmas das mãos. "Que tal?", perguntou Thomas. Joseph fitava um raio de sol que cortava o ar, entrando por uma fenda na parede da estrebaria. As moscas atravessavam-no como meteoros a mergulhar na atmosfera da terra. "É um rapaz", disse ele, abstracto. "Eu mesmo cortei o cordão. Rama disse-me como era. Cortei com a tesoura e dei um nó, e depois amarrei-lho contra o peito com uma ligadura." "Foi um parto difícil?", perguntou Thomas. "Eu vim para aqui a fim de fugir à tentação de ir ajudar." "Sim, foi difícil, e Rama diz que foi fácil. Meu Deus como aquelas criaturinhas lutam contra a vida!"
Thomas puxou uma palha da manjedoura e abriu-a com os dentes. "Nunca vi nascer uma criança. Rama nunca me deixou. Ajudei muita vaca, quando ela não o podia fazer." Joseph saltou abaixo da manjedoura, desassossegado, e foi até uma das janelinhas. Disse, por cima do ombro: "O dia esteve quente. O ar ainda está a tremer por cima dos montes." O Sol, desaparecendo atrás dos montes, ia perdendo a forma. "Thomas, nunca fomos até à costa, passando pela crista. Quando tivermos tempo, havemos de ir. Gostava de ver o mar de lá." "Eu já estive na crista a olhar para o mar", disse Thomas. "O sítio é bravio, árvores como nunca se viram tão altas, e mato denso; e vê-se o mar até mil milhas. Eu vi um barquinho que passava, a meio do mar." A tarde transformava-se rapidamente em noite. Rama chamou: "Joseph, onde estás tu?" Dirigiu-se rapidamente para a porta da estrebaria. "Aqui. Que há?" "A Elizabeth está acordada. Quer que tu venhas um bocado para junto dela. Thomas, o teu jantar está pronto daqui a nada." Joseph sentou-se na semipenumbra, junto à cama de Elizabeth; e de novo ela Lhe estendeu a mão. "Querias-me?", perguntou ele. "Queria, sim querido. Não dormi o bastante, mas queria falar contigo antes de tornar a adormecer. Podia esquecer-me do que te quero dizer. Tens de te lembrar por mim." O quarto já se tornava escuro. Joseph levou a mão da mulher aos lábios, e ela esfregou levemente os dedos contra a boca do marido. "Que é, Elizabeth?" "Sabes, quando estiveste fora fui até ao pinhal que fica na crista. E lá no meio encontrei uma clareira, com um rochedo verde." Ele inclinou-se para diante, hirto. "Porque foste?", perguntou. "Não sei. Porque me apeteceu. O rochedo verde assustou-me, e mais tarde, sonhei com ele. E quando estiver boa, Joseph, quero lá voltar e tornar a olhar para o rochedo. Quando estiver boa já ele não me assustará e nunca mais sonharei com ele. Lembrar-te-ás, querido? Joseph, estás a magoar-me os dedos." "Conheço o sítio". disse ele. "É um sítio estranho." "E não te esquecerás de me levar lá?" "Não", disse ele depois duma pausa. "Não me esquecerei. Tenho de pensar se deves ir ou não." "Então fica aí sentado durante algum tempo, que daqui a instantes estarei a dormir", disse ela.
19
O Verão arrastava-se molemente e nem quando chegaram os meses de Outono o calor diminuiu. Burton voltou cheio de fervor da reunião campal de Pacific Grove. Descreveu com entusiasmo a linda península e a baía azul e contou como os pregadores tinham transmitido a Palavra Divina ao povo. "Um dia, disse ele a Joseph, "hei-de lá construir uma casinha onde viverei todo o ano. Há muita gente que se está a estabelecer lá. Ainda há-de ser uma grande cidade." Estava satisfeito com a criança. "É da nossa raça", dizia ele; "só um pouco alterado." E gabava-se para Elizabeth: "É uma raça forte, a nossa. Sobressai sempre. Há já perto de duzentos anos que os rapazes têm sempre estes olhos." "A cor deles é pouco diferente da dos meus." protestava Elizabeth. "E, além disso, a cor dos olhos das crianças muda quando elas crescem." "É a expressão", explicava Burton. "Têm sempre nos olhos a expressão dos Waynes. Quando é que o baptizam?" "Oh, não sei. Talvez vamos a S. Luís Obispo dentro em pouco, e está claro que gostaria de ir estar algum tempo a casa, a Monterey." O calor do dia passava sobre as montanhas de manhã cedo e afugentava as galinhas do seu palrar matutino em cima das pilhas de estrume. às onze já era desagradável estar ao sol; mas antes dessa hora Joseph e Elizabeth costumavam muitas vezes levar cadeiras para fora de casa e sentar-se à sombra dos ramos do enorme carvalho. Era o momento que Elizabeth escolhia para dar a mamada da manhã, porque Joseph gostava de ver a criança a chupar no seio. "Não cresce tão depressa como eu esperava", queixava-se. "Estás demasiado habituado ao gado", lembrava-lhe ela. "Crescem mais depressa e não vivem muito tempo." Joseph contemplava em silêncio a mulher. "Tornou-se tão sabedora", pensou ele. "Sem quaisquer estudos, aprendeu tanta coisa." Isto intrigava-o. "Sentes-te muito diferente da rapariga que veio ensinar para a escola de Nuestra Senhora?", perguntou. Ela riu-se. "Pareço diferente, Joseph?" "Pareces, claro." "Então talvez esteja." Mudou de seio e passou para o outro joelho a criança, que se lhe lançou sofregamente sobre o mamilo, como uma truta sobre a isca. "Estou dividida", continuou Elizabeth. "Nunca tinha pensado nisso. Costumava pensar sob a influência das coisas que lera. Agora nunca o faço. Nunca penso. Faço apenas as coisas que me vêm à cabeça. Que nome lhe vamos dar, Joseph?" "Bem", disse ele. "Parece-me que John. Tem havido sempre ou um Joseph ou um John. O filho de Joseph tem-se chamado sempre John e o filho de John, Joseph. Tem sido sempre assim." Ela fez que sim com a cabeça, e os seus olhos fitaram a distância. "Sim, é um nome bom. Não lhe trará complicações nem o envergonhará. Nem sequer
tem grande significado. Tem havido tantos Johns, homens de toda a espécie, bons e maus." Escondeu o seio, abotoou o vestido e voltou a criança para Lhe dar umas pancadinhas para que arrotasse. "Já reparaste, Joseph, que os Johns ou são bons ou são maus, nunca são neutros? Quando um rapaz neutro tem esse nome, não o conserva. Transforma-se em Jack." Tornou a voltar a criança para Lhe ver a cara, e esta franziu os olhos como um porquinho. "O teu nome é John, ouviste?", disse ela, de brincadeira. "Ouviste o que te disse? Espero que nunca passes a ser Jack. Antes queria que fosses muito mau do que fosses Jack." Joseph sorriu, divertido, para ela. "Ele ainda nunca se sentou na árvore, querida. Não achas que já é tempo?" "Sempre a tua árvore!", disse ela. "Tu julgas que tudo se move por ordem da tua árvore." Ele inclinou-se para trás, a olhar para os grandes ramos tenros. "Eu agora conheço-a bem, compreendes?", disse ele, mansamente. "Agora conheço-a tão bem que sou capaz de olhar para as folhas e dizer como vai ser o dia. Farei um assento para a criança, lá em cima na forquilha. Quando ele for um pouco mais velho, talvez eu corte uns degraus na casca para ele subir." "Mas ele pode cair e magoar-se." "Não daquela árvore. Ela não o deixará cair." Ela olhou penetrantemente para ele. "Continuas a brincar ao tal jogo que não é brincadeira, Joseph." "Sim", disse ele ainda. "Dá-me agora o menino. Vou pô-lo nos ramos." As folhas tinham perdido o brilho sob uma camada de pó de Verão. A casca estava cinzenta e seca. "Pode cair, Joseph", avisou ela. "Esqueces-te de que ele ainda não pode sentar-se sozinho." Burton aproximou-se, vindo da horta, e parou junto deles, limpando a testa molhada com um lenço. "Os melões estão maduros", disse ele. "E os ratos começam a entrar com eles. Era bom armarmos umas ratoeiras." Joseph inclinou-se, de mãos estendidas, para Elizabeth. "Olha que ele pode cair", protestou ela. "Eu seguro-o. Não o deixarei cair." "Que vai fazer com ele?", perguntou Burton. "O Joseph quer sentá-lo na árvore." O rosto de Burton endureceu imediatamente e os olhos tornaram-se-lhe carrancudos. "Não faças isso, Joseph", disse ele asperamente. "Não o deixarei cair. Não o largo." O suor brotava em grossos bagos da testa de Burton. Nos seus olhos havia uma expressão de horror e de súplica. Avançou e pôs a mão no ombro de Joseph. "Por favor, não faças isso", suplicou ele. "Mas eu não o deixo cair, já te disse." "Não é isso. Bem sabes o que quero dizer. Jura-me que nunca o farás." Joseph voltou-se para ele, irritado. "Não juro nada", disse ele. "Porque havia de jurar? Não vejo nada de mal no que vou fazer. Burton disse calmamente: "Joseph nunca me ouviste pedir nada. Não está no feitio da nossa família suplicar. Mas agora estou a suplicar-te que desistas
desta coisa. Se eu vou a esse ponto, tens de compreender como é importante." A emoção inundava-lhe os olhos. O rosto de Joseph suavizou-se. "Se te incomoda assim tanto, não o farei", disse ele. "E juras-me que nunca o farás?" "Não, não juro. Não trocarei o que é meu pelo que tu tens. Porque haveria de o fazer?" "Porque estás dando entrada ao mal", gritou Burton, com paixão. "Porque estás a abrir a porta ao mal. Uma coisa como esta não passará sem castigo." Joseph soltou uma gargalhada. "Então deixa-me sofrer o castigo", disse ele. "Mas não compreendes, Joseph, que não serás só tu?! Todos nós sofreremos." "Estás então a proteger-te, Burton?" "Não, estou a tentar proteger-nos a todos. Estou a pensar na criança e aqui na Elizabeth." Elizabeth tinha estado a olhar, espantada, de um para o outro. Levantou-se e apertou a criança contra o peito. "Que estão vocês os dois a discutir?", perguntou ela. "Há qualquer coisa nisto que eu desconheço." "Eu digo-lhe", ameaçou Burton. "Dizes-lhe o quê? Que há para dizer" Burton soltou um profundo suspiro. "Que caia sobre a tua cabeça, então. Elizabeth, o meu irmão está a negar Cristo. Está a adorar, como os antigos pagãos. Está a perder a alma e a deixar entrar o mal." "Não estou a negar Cristo nenhum", disse Joseph asperamente. "Estou a fazer uma coisa simples que me dá prazer." "Então o pendurar sacrifícios, o derramar de sangue, a oferta de todas as coisas boas a esta árvore, é uma coisa simples? Tenho-te visto esgueirar de casa à noite e falar a esta árvore. É isso uma coisa simples?" "Sim, é uma coisa simples", disse Joseph. "Não há mal nenhum nisso." "E oferecer o teu primeiro filho à árvore - isso também é uma coisa simples?" "Sim, é uma brincadeira." Burton virou-lhe as costas e olhou para os campos. onde as vagas de calor eram tão intensas que pareciam azuis e o seu ondular enrugava e estremecia os montes. "Tentei ajudar-te", disse ele com tristeza. "Tentei fazê-lo com maior diligência do que a aconselhada pelas próprias Escrituras." Voltou-se, feroz: "Então, não queres jurar?" "Não", respondeu Joseph. "Não prestarei juramento algum que me limite, que restrinja a minha actividade. Certamente que não jurarei." "Então abandono-te." Burton escondeu as mãos nas algibeiras. "Então não ficarei para ser apanhado." "É verdade o que ele diz?", perguntou Elizabeth. "Tens feito o que ele diz?" Joseph olhou, taciturno, para o chão. "Não sei." Ergueu a mão para cofiar a barba. "Não o creio. Não se parece com aquilo que tenho estado a fazer." "Eu vi-o", interrompeu Burton. "Noite após noite vi-o sair e estar no escuro sob a árvore. Fiz o que posso fazer. Agora vou afastar-me desta maldade." "Para onde irás, Burton?", perguntou Joseph. "A Harriet tem três mil dólares. Iremos para Pacific
Grove e construiremos lá uma casa. Venderei o meu quinhão no rancho. Talvez abra uma lojeca. Aquela cidade há-de desenvolver-se, isso lhes digo." Joseph deu um passo em frente, como para impedir aquela resolução. "Terei muita pena em pensar que fui eu quem provocou a tua partida", disse ele. Burton debruçou-se sobre Elizabeth e olhou para a criança. "Não foste só tu, Joseph. A podridão estava no nosso pai e não foi estripada. Cresceu até se apoderar dele. As palavras que pronunciou ao morrer mostraram até que ponto ele chegara. Eu vi a coisa mesmo antes de tu partires para o Oeste. Se tivesses ido para o meio de pessoas que conhecessem a Palavra divina, e que fossem fortes na Palavra, a coisa podia ter morrido - mas vieste para aqui." Fez um gesto com a mão para mostrar os campos. "As montanhas são altas de mais", gritou ele. "O sítio é demasiado selvagem. E todos os habitantes trazem neles a semente do mal. Eu vi-os e sei. Eu vi a fiesta e sei. Resta-me apenas rezar para que o teu filho não herde a podridão." Joseph decidiu rapidamente. "Jurarei, se ficares. Não sei como guardarei esse juramento, mas prestá-lo-ei. Compreendes, às vezes posso esquecer-me e pensar como dantes." "Não, Joseph, tu amas demasiadamente a terra. Nunca pensas no que virá depois. Em ti um juramento não tem força suficiente." Afastou-se em direcção à casa. "Ao menos não vás antes de tornarmos a falar nisto", disse Joseph, mas Burton não se voltou nem lhe respondeu. Joseph ficou a olhar para ele durante um minuto, antes de se voltar para Elizabeth. Esta sorriu, com uma espécie de divertimento desdenhoso. "Parece-me que ele se quer ir embora", disse ela. "Sim, em parte é isso. E, também tem na realidade medo dos meus pecados." "Tu estás a pecar, Joseph", perguntou ela. A ideia fê-lo franzir a testa. "Não", disse por fim. "Não estou a pecar. Se o Burton estivesse a fazer o que eu faço, seria pecado. Quero apenas que o meu filho ame a árvore." Estendeu as mãos para a criança, e Elizabeth entregou-lhe o corpinho enfeixado. Burton olhou para trás quando ia a entrar em casa e viu que Joseph estava a segurar o filho na forquilha da árvore e como os ramos nodosos se curvaram, protectores, à volta da criança.
20
Burton, depois da sua decisão, pouco tempo se demorou no rancho. Dentro de uma semana tinha as suas coisas emaladas e prontas. Na véspera da partida trabalhou até noite alta, a pregar o último caixote, Joseph ouviu-o até muito tarde, a andar de um lado para o outro, a serrar e a martelar; e antes do nascer do Sol já estava de novo a pé. Joseph encontrou-o na estrebaria, a limpar os cavalos que ia levar, enquanto Thomas, sentado numa meda de feno próxima, dava conselhos curtos. "Esse Bill cansa-se depressa. Deixa-o descansar de vez em quando, até ele aquecer. Esta parelha ainda nunca atravessou o desfiladeiro. Talvez tenhas de os levar à mão - ou talvez não, agora que a água está tão baixa." Joseph entrou e encostou-se à parede, debaixo da lanterna. "Tenho pena de que vás, Burton", disse ele. Burton parou a almofada sobre a larga garupa do cavalo. "Tenho muito boas razões para ir. A Harriet sentir-se-á mais feliz numa pequena cidade, onde terá amigos a quem visitar. Aqui estamos muito isolados. Ela tem-se sentido só." "Bem sei", disse Joseph suavemente, "mas sentiremos a vossa falta, Burton. Reduzirá a força da família." Burton baixou os olhos pouco à vontade, e prosseguiu no seu trabalho. "Nunca quis ser lavrador", disse ele, frouxamente. "Mesmo lá na terra, pensei em abrir uma lojeca na cidade." As suas mãos pararam de trabalhar. Disse com paixão: "Tenho procurado levar uma vida aceitável. O que fiz fi-lo porque me pareceu ser o devido. Há só uma lei. Tenho procurado viver de acordo com essa lei. O que fiz parece-me bem, Joseph. Lembra-te disso. Quero que te lembres disso." Joseph sorriu-lhe afectuosamente. "Não estou a pretender segurar-te aqui contra a tua vontade, Burton. Isto é uma região bravia. Se não a amas, só te resta o ódio. Não tens tido igreja onde ir. Não te censuro por quereres estar entre pessoas que pensam como tu." Burton passou à baia seguinte. "Está a clarear", disse ele, com nervosismo. "A Harriet está a preparar o almoço. Quero partir o mais depressa possível a seguir ao nascer do dia." As famílias e os vaqueiros saíram, na madrugada, para ver Burton partir. "Vocês hão-de ir visitar-nos", disse Harriet tristemente. "Lá é agradável. Tens de nos ir visitar." Burton pegou nas rédeas, mas antes de incitar os cavalos voltou-se para Joseph. "Adeus. Procedi bem. Quando chegares a ver, compreenderás que fiz bem. Era a única solução. Lembra-te disso, Joseph. Quando chegares a ver, hás-de agradecer-me." Joseph chegou-se ao pé do carro e deu uma palmada no ombro do irmão. "Prontifiquei-me a jurar, e teria procurado cumprir o juramento." Burton ergueu as rédeas e incitou os cavalos, que fizeram força nas molhelhas. As crianças, sentadas em cima da carga, acenavam com as mãos, e as que ficavam correram e penduraram-se nas traseiras, a arrastar os pés.
Rama ficou a dizer adeus com um lenço, mas disse à parte para Elizabeth: "Com isto gastam mais sapatos do que com todo o andar deste mundo." E a família continuava, ao sol da manhã, a ver o carro que partia. Desapareceu na mata do rio e pouco depois tornou a aparecer; viram-no subir um outeiro e, finalmente, esconder-se atrás da crista. Quando desapareceu, uma calma desceu sobre as famílias. Para ali ficaram, silenciosos, não sabendo que fazer agora. Tinham a consciência de que acabara um período, de que uma fase estava passada. Por fim as crianças afastaram-se lentamente. Martha disse: "A nossa cadela teve cachorrinhos a noite passada", e todos correram a ver a cadela, que não tinha tido cachorros nenhuns. Joseph afastou-se por fim e Thomas acompanhou-o. "Vou buscar alguns cavalos, Joe", disse ele. "Vou aplanar parte da horta, para que a água não fuja toda." Joseph caminhava lentamente, de cabeça baixa. "Sabes que sou responsável pela partida de Burton?" "Não, não és. Ele queria ir." "Foi por causa da árvore", prosseguiu Joseph. "Ele disse que eu a adorava." Joseph ergueu os olhos e de súbito estacou, alarmado. "Thomas, olha para a árvore!" "Estou a vê-la. Que há" Joseph dirigiu-se rapidamente para o tronco e olhou para cima, para os ramos. "Parece que não há novidade." Fez uma pausa e correu a mão pela casca. "É estranho. Quando olhei para ela, pareceu-me haver qualquer coisa que não estava bem. Foi apenas impressão, calculo." E continuou: "Eu não queria que o Burton se fosse. Divide a família." Elizabeth passou por detrás deles, em direcção à casa. "Ainda a brincar, Joseph?", disse ela de lá, trocista. Ele tirou a mão da casca e voltou-se para a seguir. "Tentaremos continuar sem meter mais gente", disse ele para Thomas. "Se o trabalho se tornar demasiado para nós, contratarei outro mexicano." Entrou em casa e ficou, sem fazer nada, na sala. Elizabeth saiu do quarto de cama, penteando o cabelo para trás com as pontas dos dedos. "Mal tive tempo para me vestir", explicou ela. Lançou um olhar rápido para Joseph. "Estás triste pela partida de Burton?" "Creio que sim", disse ele, indeciso. "Estou aborrecido por qualquer motivo, e não sei o que é." "Porque não dás uma volta a cavalo? Não tens nada que fazer?" Abanou a cabeça, com impaciência. "Tenho as árvores de fruta a chegar a Nuestra Senhora. Devia ir buscá-las." "Então porque não vais?" Foi até à porta da entrada e olhou para a árvore. "Não sei", disse. "Tenho medo de ir. Há qualquer coisa que não está bem." Elizabeth aproximou-se dele. "Não tomes o jogo demasiado a sério, Joseph. Não te deixes dominar por ele." Encolheu os ombros. "É isso que me está a suceder,
parece-me. Uma vez disse-te que era capaz de prever o tempo pela árvore. É uma espécie de embaixatriz da terra junto de mim. Olha para a árvore, Elizabeth! Parece-te que esteja bem?" "Andas cansado com o excesso de trabalho", disse ela. "A árvore não tem nada. Vai buscar as árvores de fruto. Não lhes faz bem nenhum estarem fora da terra." Mas foi com grande relutância em deixar o rancho que ele atrelou o carro e partiu para a cidade. Era a época das moscas, em que elas se tornam activas antes da chegada do Inverno, que as mata. Traçavam cutiladas faiscantes da luz do Sol, caíam sobre as orelhas dos cavalos e pousavam em círculos em torno dos olhos deles. Embora a manhã tivesse estado fresca, com a aspereza do Outono, o sol de Verão de São Martinho ainda queimava o chão. O rio desaparecera debaixo da terra, enquanto nas poucas poças que restavam as enguias pretas nadavam com indolência e as grandes trutas abocavam, sem medo, a superfície. Joseph conduzia os cavalos a trote sobre as folhas secas dos sicómoros. Um pressentimento seguia-o, envolvia-o. "Talvez o Burton tenha razão", pensava. "Talvez eu tenha estado a proceder mal sem o saber. Há um mal a pairar sobre a terra." E pensou: "Espero que as chuvas venham cedo e encham de novo o rio." O rio seco era para ele uma coisa triste. Para vencer a tristeza, pensou na estrebaria, cheia de feno até às asnas, e nas pilhas de feno, junto ao curral, todas protegidas do Inverno. E depois ficou a pensar se o riachozinho da clareira no pinhal ainda correria vindo da caverna. "Em breve irei lá acima ver", pensou. Incitou os cavalos, apressando-se a voltar ao rancho mas foi já noite adiante que chegou. Os cavalos, fatigados, deixaram cair as cabeças quando Lhes soltaram as rédeas. Thomas esperava, à entrada da estrebaria. "Vieste depressa de mais", disse ele. "Não te esperava de volta senão daqui a umas duas horas." "Recolhe os cavalos, fazes-me esse favor", pediu Joseph. "Eu vou regar estas arvorezinhas." Levou uma braçada de estacas até ao tanque e saturou-lhes de água as raízes. Depois dirigiu-se rapidamente para o carvaLho. "Há qualquer coisa que não está bem", pensou, receoso. "Não tem vida." Apalpou de novo a casca, pegou numa folha, amachucou-a e cheirou-a, e não lhe pareceu nada de mal. Elizabeth tinha a ceia pronta mal entrou em casa. "Estás cansado, querido. Vai-te deitar cedo." Mas ele olhava por cima do ombro, apoquentado. "Quero falar com o Thomas depois da ceia", disse. E depois de ter comido saiu, passou pela estrebaria e foi até à encosta. Apalpou com as mãos a terra seca, ainda quente do sol. E dirigiu-se a uma mata de carvalhos pequenos e viçosos, pousou a mão na casca e amachucou e cheirou uma folha de cada um deles. Foi a toda a parte, indagando com os dedos da saúde da terra. O frio começava a vir das montanhas enregelando a erva, e naquela noite Joseph ouviu o primeiro bando de patos-bravos. A terra nada lhe disse. Estava seca, mas viva,
à espera apenas da chuva para fazer brotar os tufos de erva. Satisfeito por fim, voltou para casa e foi pôr-se debaixo da sua própria árvore. "Estava com medo, senhor", disse ele. "Qualquer coisa no ar me fez ter medo." E enquanto acariciava a árvore, sentiu-se subitamente com frio e sozinho. "Esta árvore está morta", gritava-lhe o espírito. "Não há vida na minha árvore." A sensação de perda abalou-o, e sentiu-se possuído pelo desgosto que deveria ter quando o pai morrera. As montanhas negras rodeavam-no, o céu, cinzento e frio, e as estrelas, indiferentes, abafaram-no e a terra estendia-se a partir do centro onde ele se encontrava. Tudo era hostil, não prestes a atacar, mas distante, silencioso, frio. Joseph sentou-se encostado à árvore; e nem sequer a casca dura lhe deu qualquer conforto. Era tão hostil como o resto da terra, tão frígida e desdenhosa como o cadáver de um amigo. "Agora que hei-de fazer?", pensou. "Onde ir agora?" um meteoro branco rasgou o céu e desapareceu. "Talvez esteja enganado", pensou Joseph. "Afinal pode ser que a árvore não tenha nada." Levantou-se e entrou em casa; e nessa noite, por causa da sua solidão, tomou Elizabeth nos braços com tanta ferocidade que ela gritou de dor e se sentiu muito feliz. "Porque te sentes tão só, querido"", perguntou ela. "Porque me fazes mal esta noite?" "Não sabia que te estava a fazer mal, desculpa", disse ele. "Parece-me que a minha árvore morreu." "Como poderia ter morrido? As árvores não morrem assim tão depressa, Joseph." "Não sei como. Creio que morreu." Passado algum tempo, ela calou-se, fingindo dormir. E sabia que ele também não dormia. Quando nasceu o dia, saltou da cama e saiu de casa. As folhas do carvalho estavam um pouco encarquilhadas e tinham perdido parte do seu brilho. Thomas, a caminho da estrebaria, viu Joseph e aproximou-se. "Olá, há qualquer coisa nessa árvore que não está bem", disse ele. Joseph ficou a olhar, ansioso, enquanto o irmão inspeccionava a casca e os ramos."Não há aqui nada capaz de a fazer morrer", disse Thomas. Pegou numa enxada e cavou a terra mole junto à base do tronco. Deu só duas cavadelas e afastou-se para trás. "Aí está, Joseph." Joseph ajoelhou junto à cova e viu um corte no tronco. "Quem foi que fez isto?", perguntou furiosamente. Thomas soltou uma gargalhada brutal. "Olha, foi o Burton que castrou a tua árvore! Para não deixar entrar o Diabo." Joseph cavou freneticamente em redor com os dedos, até todo o corte estar à vista. "Não se pode fazer nada, Thomas? Com alcatrão não se remediaria?" Thomas abanou a cabeça. "As veias estão cortadas. Não há nada a fazer..." (fez uma pausa) "... excepto dar uma sova no Burton." Joseph sentou-se nos calcanhares. Agora, que a coisa estava feita, apossava-se dele a calma abafadora, a incapacidad cega de julgar. "Era isso então o que ele dizia, quanto a estar na razão?"
"Suponho que sim. Gostaria de lhe dar uma tareia. Era uma bela árvore." Joseph falou muito devagar, como se estivesse a sacar cada palavra de um nevoeiro revolto. "Ele não tinha a certeza de estar na razão. Não, não tinha a certeza. Não estava bem na sua natureza fazer uma coisa destas. E por isso sofrerá." "Não lhe farás nada", perguntou Thomas. "Não." A calma e o desgosto eram tão grandes que lhe oprimiam o peito e o isolamento era completo - um círculo impenetrável. "Ele se castigará a si mesmo. Eu não tenho castigos." Virou os olhos para a árvore, ainda verde, mas morta. Depois de muito tempo virou a cabeça e olhou para o pinhal, lá em cima na crista e pensou: "Tenho de lá ir em breve. Terei necessidade da doçura e da força daquele sítio."
21
O frio do fim do Outono invadiu o vale. Nuvens às manchas pairavam no ar, dias a fio. Elizabeth sentia a tristeza dourada do Inverno que se aproximava, mas fazia-lhe falta a excitação das tempestades. Ia muitas vezes até ao alpendre, para olhar o carvalho. As folhas tinham adquirido um tom pálido, entre cinzento e castanho-claro e bastariam os primeiros pingos de chuva para as fazer cair. Joseph já não olhava a árvore. Uma vez morta, morrera também o seu sentimento para com ela. Andava muitas vezes pelos montes vizinhos, pisando a terra áspera, em cabelo, com umas calças grosseiras e uma camisa e um colete preto. De vez em quando olhava as nuvens cinzentas e aspirava o ar, como que farejando-o; mas nada parecia encontrar nele que o sossegasse. "Não há chuva nestas nuvens", disse ele a Thomas. "Isto não passa de um nevoeiro alto, vindo do oceano." Thomas apanhara na Primavera dois falcões de pouca idade, para os quais estava a fazer capuzes de couro, como preparativo para os usar na caça aos patos-bravos que passavam. "Ainda não chegou a altura de chover, Joseph", disse ele. "Bem sei que no ano passado as chuvas vieram cedo, mas ouvi dizer que não é costume chover muito, nesta região, antes do Natal." Joseph curvou-se e apanhou uma mão-cheia de terra seca como cinza, e deixou-a correr por entre os dedos. "Será precisa muita chuva para servir de alguma coisa", queixou-se ele. "O Verão gastou toda a água, até bem fundo. Já reparaste em como a água está baixa no poço? Até mesmo os buracos no leito do rio já estão secos." "Já senti o cheiro das enguias mortas", disse Thomas. "Repara: este capuz de couro cobre a cabeça do falcão para ele não ver nada até eu achar que é altura de o largar. É muito melhor do que caçar patos com espingarda." O falcão dava-Lhe bicadas nas luvas grossas enquanto ele ajustava o capuz. Novembro chegou e passou, sem chuva, e Joseph tornou-se silencioso de tão preocupado. Foi a cavalo até às fontes e encontrou-as secas, e enterrou profundamente a vara de abrir fontes, sem sequer se Lhe deparar terra húmida. Os montes começavam a ficar cinzentos, à medida que a relva ia desaparecendo, e as rochas brancas destacavam-se e reflectiam a luz do Sol. Quando Dezembro já ia em meio, as nuvens separaram-se e dispersaram-se. O sol tornou-se mais quente e uma aparência de Verão apossou-se do vale. Elizabeth via como a preocupação estava a roer Joseph, como ele estava magro, com os olhos cansados e quase brancos. Tentou lembrar-se de coisas para arranjar, em que ele se mantivesse ocupado. Precisava de mais armários, de novas cordas de estender roupa; já começava a ser altura de fazer uma cadeira alta para o bebé. Joseph atirou-se a esses trabalhos e acabava-os antes que Elizabeth pudesse lembrar-se de outras coisas a fazer. Mandou-o à cidade buscar géneros; quando voltou, o cavalo vinha suado e ofegante. "Porque é que voltaste com tanta pressa?", perguntou ela.
"Não sei. Tenho medo de me afastar. Pode acontecer qualquer coisa." Lentamente, começava a surgir no seu espírito o medo de que tivessem chegado os anos de seca. O ar poeirento e o barómetro subido não o deixavam sossegar. Constipações de sol brotavam entre as pessoas da herdade. As crianças passavam os dias a fungar. Elizabeth foi atacada por uma constipação muito forte e até mesmo Thomas, que nunca estava doente, punha à noite, na garganta, uma compressa fria feita de uma meia velha. Joseph, porém, tornava-se cada vez mais magro e mais forte. Os músculos do pescoço e das faces viam-se-lhe sob a pele castanha. As mãos dele ficaram nervosas, sempre a mexer, a brincar com pedaços de madeira, ou com um canivete, ou a alisar a barba e a dobrá-la na ponta. Olhava para a sua terra: esta parecia estar a morrer. Os montes e os campos pálidos, as pedras nuas, assustavam-no. Nos montes, só o maciço de pinheiros escuros não mudava. Erguia-se soturnamente, como sempre, no topo da crista. Elizabeth tinha muito que fazer em casa. Alice fora-se embora para casa dela, em Nossa Senhora, para bem desempenhar o papel, que lhe competia, de uma triste mulher para a qual o marido voltaria qualquer dia. Fez isso com dignidade, e a mãe dela foi muito cumprimentada pelo autodomínio e decente luto de Alice. Alice começava sempre o dia como se Juanito devesse voltar a casa nessa noite. A perda da criada veio originar mais trabalho a Elizabeth. Cuidar do filho, lavar e cozinhar enchiam-lhe os dias. Apenas indistintamente se lembrava, e mesmo assim com desprezo, dos tempos anteriores ao casamento. à noite, sentada ao pé de Joseph, tentava restabelecer o contacto que havia antes de o bebé nascer. Gostava de Lhe contar coisas que tinham acontecido quando era criança, em Monterey, embora essas coisas já não Lhe parecessem verdadeiras. Enquanto Joseph olhava preocupado para os círculos de fogo que se viam na janelinhas do fogão, ela falava-lhe. "Tinha um cão", dizia ela. "Chamava-se Camille. Achava esse o nome mais lindo do mundo. Conhecia uma pequena chamada Camille, a quem o nome ficava bem. A pele dela tinha a macieza das pétalas das camélias. Pus o nome dela ao meu cão e ela ficou furiosa." Elizabeth contava também como Tarpey matou um colono intruso e foi enforcado no tronco duma árvore ao pé da fábrica de conservas; e contava da mulher magra que era faroleira em Point Joe. Joseph gostava de ouvir o som da sua voz suave, e habitualmente não prestava atenção às palavras que ela dizia, mas pegava-lhe na mão e explorava-a com a ponta dos dedos. às vezes ela tentava dissuadi-lo do medo. "Não te preocupes com a chuva. Ela virá. E mesmo que não haja muita água este ano, haverá noutro. Conheço bem esta região, querido." "Mas será precisa tanta chuva! Já não virá a tempo se não começar muito em breve. A chuva vem atrasada pelo ano fora." Uma noite ela disse: "Gostava de voltar a andar a cavalo. A Rama diz que já não me fará mal. Queres sair comigo, querido?"
"Quero", disse ele. "Não comeces já a andar muito. Um bocadinho de cada vez. Assim não te fará mal." "Gostava que fosses até aos pinheiros comigo. É tão bom o ar do pinhal!" Ele olhou-a lentamente. "Também já tinha pensado em ir lá. Há lá uma fonte, e Quero ver se ela secou como as outras." O olhar dele tornou-se esperançoso, quando se lembrou do círculo de água no meio dos pinheiros. Os rochedos estavam tão verdes, da última vez que os vira!... "Aquela fonte deve ser muito profunda. Não creio que pudesse ter secado", disse ele. "Oh, eu tenho ainda outras razões, além dessa, para querer lá ir", disse Elizabeth, a rir. "Parece-me que já te falei vagamente nisso. Quando estava à espera do menino, consegui fugir um dia à vigilância do Thomas e fui até aos pinheiros. E fui para aquela parte central, onde estão a grande rocha e a fonte." Franziu a testa, tentando lembrar-se com exactidão da cena. "É claro que o meu estado foi responsável pelo que se passou. Estava ultra-sensível." Olhou para cima e viu Joseph com os olhos ansiosamente cravados nela. "Sim?", disse ele. "Conta." "Bem, como ia dizendo, foi o meu estado; durante a gravidez, as pequenas coisas pareciam-me enormes. Ao entrar no pinhal, não consegui encontrar o carreiro. Tive de abrir caminho, por entre os arbustos, até chegar à clareira. Estava tudo tranquilo, Joseph, mais tranquilo do que qualquer outra coisa que já tenha visto. Sentei-me diante do rochedo porque aquele sítio me parecia saturado de paz, me parecia estar a dar-me qualquer coisa de que eu precisava." Ao falar essa sensação voltou a apossar-se dela. Alisou o cabelo por cima das orelhas, e os seus olhos afastados fitaram o vago. "E senti que amava aquela rocha. É difícil de descrever. Amava a rocha mais do que a ti ou ao bebé ou a mim própria. E isto ainda é mais difícil de dizer: enquanto estava ali sentada, senti que entrava pela rocha dentro. O fiozinho de água brotava de mim e eu era a rocha, e a rocha era... não sei bem... a rocha era a coisa mais forte e mais querida no mundo." Olhou nervosamente à volta da sala. Torceu a saia entre os dedos. A cena, que ela quisera contar em tom de brincadeira, voltava a impor-se-lhe com toda a nitidez. Joseph pegou-lhe na mão nervosa e segurou-Lhe os dedos sossegando-a. "Conta", insistiu suavemente. "Bem, devo ter lá estado um bom bocado, porque o sol andou, mas pareceu-me apenas um momento. E de repente modificou-se a sensação que aquele lugar me dava. Qualquer coisa de mau, de maldade, entrara nele." A voz dela ficou velada com a recordação. "Qualquer coisa maldosa estava ali, na clareira, qualquer coisa que queria destruir-me. Fugi. Pareceu-me que aquela grande rocha enorme e agachada, me queria fazer mal; e quando cheguei cá fora, rezei, Oh,. rezei durante muito tempo." Os olhos claros de Joseph estavam penetrantes: "Porque queres voltar lá?", perguntou. "Mas não vês porquê?" respondeu Elizabeth nervosamente. "Tudo isso foi devido ao meu estado. Mas já sonhei com isso várias vezes, e é frequente lembrar-me do que se passava. Agora, que já estou
boa, quero voltar lá para ver que a rocha não passa de um simples pedregulho coberto de musgo, no meio duma clareira. Assim, não voltarei a sonhar com ela. Já não me ameaçará. Quero tocá-la. Quero insultá-la por me ter assustado." Libertou os dedos, que Joseph apertava com força, e esfregou-os para fazer passar a dor. "Magoaste-me a mão, querido. Também tens medo daquele lugar?" "Não", respondeu Joseph. "Não tenho medo. Levar-te-ei lá." Calou-se, pensando se deveria contar-Lhe o que Juanito dissera acerca das índias grávidas que iam sentar-se diante do rochedo, e acerca das velhas índias que viviam na floresta. "Poderia assustá-la", pensou. "É melhor que ela perca o medo que tem." Abriu o fogão, atirou para a fornalha um braçado de lenha e regulou a válvula de maneira a levar a tiragem ao máximo. "Quando queres ir lá?" "Um dia destes. Se o dia amanhã estiver quente, preparo um almoço para levar num cesto. A Rama ficava a tomar conta do bebé. Faremos um piquenique." Falava ansiosamente. "Desde que vim para aqui, ainda não fizemos um piquenique. É das coisas de que mais gosto. Lá em casa, íamos muitas vezes almoçar para Huckleberry Hill. Depois eu e a mãe enchíamos os cestos com amoras que apanhávamos." "Iremos lá amanhã", concordou ele. "Agora vou ali ver a cocheira, querida." Ao vê-lo sair do quarto, Elizabeth sentiu que ele lhe ocultava qualquer coisa. "Provavelmente é só a preocupação da chuva", pensou; e pela força do hábito volveu o olhar para o barómetro e viu que o ponteiro estava alto. Joseph desceu os degraus do alpendre. Aproximou-se do carvalho, sem se lembrar de que estava morto. "Se ao menos estivesse vivo", pensou, "eu saberia o que fazer. Já não tenho quem me aconselhe." Continuou a andar para a cocheira, esperando encontrar lá Thomas, mas a cocheira estava às escuras e os cavalos relincharam quando passou por detrás deles. "Há muito feno para o gado este ano", pensou. O facto consolou-o. Quando tornou a atravessar o pátio, o céu tinha uma claridade vaporosa. Pareceu-lhe distinguir um círculo pálido em volta da Lua, mas tão ténue que era impossível ter a certeza. Antes do nascer do Sol do dia seguinte, Joseph foi à cocheira, arreou e escovou dois cavalos, e, como nota final de elegância, pintou-lhes os cascos de preto e esfregou-lhes o pêlo com azeite. Thomas entrou enquanto ele trabalhava. "Estás com grandes preparativos", disse. "Vais à cidade?" Joseph esfregou o azeite até as peles terem um brilho de metal baço. "Vou dar um passeio a cavalo com a Elizabeth", declarou. "Há muito tempo que ela não monta." Thomas passou a mão ao longo de uma das garupas reluzentes. "Quem me dera ir convosco, mas tenho que fazer. Vou levar os homens até ao leito do rio para cavar uma poça. Dentro de pouco tempo podemos ver-nos atrapalhados para encontrar água para o gado." Joseph parou de trabalhar e encarou Thomas com ar preocupado. "Bem sei. Mas deve haver água por
baixo do leito do rio. Devem encontrá-la a alguns pés de profundidade. "Deve chover dentro de pouco tempo, Joseph. Espero que chova. Já estou farto de ter a garganta seca." O Sol surgiu por trás duma nuvem rala que sorvia o calor e empalidecia a luz. Do alto das colinas soprava um vento frio e persistente que fazia ondular a poeira e formava montinhos de folhas secas. Era um vento solitário, rasteiro, varrendo o chão numa corrente igual, com muito pouco ruído. "Leva um casaco quente", avisou Joseph. Ela levantou o rosto para o céu. "Já estamos no Inverno, não é, Joseph? O sol já perdeu o calor." Ele ajudou-a a montar e ela riu-se com prazer da sensação agradável do selim, afagando o cepo afectuosamente. "É bom poder tornar a montar", disse ela. "Onde vamos primeiro?" Joseph apontou um pequeno cabeço na crista oriental, por cima dos pinheiros. "Se formos àquele topo, poderemos olhar pelo desfiladeiro de Puerto Suelo e avistar o oceano", disse ele. "E poderemos ver os cimos dos pinheiros lá de baixo." "É bom sentir o cavalo em andamento", repetiu ela. "Tenho sentido a falta disto, sem o perceber." Os cascos faiscantes levantavam uma poeira branca e fina que ficava no ar depois de eles passarem, deixando atrás de si um rasto como o fumo dum comboio. Subiram a encosta suave sobre a erva rala e magra, e nas valas da água desciam para tornar a subir, numa saciedade brusca. "Lembras-te de como as valas transbordavam de água no ano passado?", recordou ela. "Dentro em pouco estarão na mesma." à distância, sobre um monte, viram uma vaca morta, quase coberta de abutres glutões e indolentes. "Espero que não iremos na direcção do vento que dali sopra, Joseph." Ele desviou o olhar. "Nem dão tempo à carne de apodrecer", disse. "Tenho-os visto à volta dum animal moribundo, esperando o momento da morte. Eles bem sabem quando o momento chegou." A ladeira tornou-se mais íngreme; penetraram no mato crepitante, agora escuro e sem folhas. Os raminhos eram tão secos que pareciam mortos. Dentro duma hora atingiram o cimo; e de lá via-se realmente o oceano por entre o desfiladeiro. O mar não estava azul. mas sim cinzento-plúmbeo; e na linha do horizonte elevavam-se densas nuvens de nevoeiro escuro, numa muralha espessa. "Prende os cavalos, Joseph", disse ela. "Sentemo-nos aqui um bocado. Há tanto tempo que não vejo o mar. às vezes acordo de noite e ponho-me à escuta do marulhar das ondas e da sereia do nevoeiro do farol e da campainha da bóia em China Point. E acontece ouvi-los, Joseph. Devem estar muito profundamente impressos em mim. às vezes ouço-os. De manhãzinha cedo, quando o ar estava tranquilo, lembro-me de como ouvia os barcos de pesca a lutar com o mar e as vozes dos homens a gritar de barco para barco." Ele afastou-se. "Essa falta não sinto eu", disse. Afigurava-se-lhe que estas coisas dela eram uma pequena heresia. Ela suspirou profundamente. "Quando me ponho a
escutar essas coisas cá dentro, tenho saudades, Joseph. Este vale tem-me prisioneira e dá-me a sensação de que nunca poderei escapar-lhe e de que realmente nunca tornarei a ouvir outra vez o ruído das ondas, nem a campainha da bóia, nem a ver as gaivotas deslizando com o vento." "Podes lá ir fazer uma visita em qualquer altura", disse ele meigamente. "Eu levo-te lá." Ela abanou a cabeça. "Nunca seria a mesma coisa. Ainda me lembro de como me excitava o tempo de Natal, e agora isso já não me acontece." Ele levantou a cabeça e aspirou a aragem. "Até cheiro o sal", disse. "Eu nunca devia ter-te trazido aqui, Elizabeth, para te entristecer." "Mas é uma tristeza boa, querido. É uma tristeza voluptuosa. Ainda me lembro das poças, de madrugada, ao vazar da maré, húmidas e iridescentes, com os caranguejos a trepar pelas rochas e as enguiazinhas debaixo das ondas. Joseph", acrescentou, "podemos almoçar agora." "Ainda nem é meio-dia. Já tens fome?" "Tenho sempre fome num piquenique", observou ela sorrindo. "Quando a minha mãe e eu subíamos ao monte Huckleberry, às vezes começávamos a comer quando ainda estávamos à vista de casa. Gostaria de comer enquanto estou aqui em cima." Joseph foi aos cavalos e alargou-lhes as cilhas, voltando com os alforjes; e Elizabeth e ele comeram as grossas sanduíches, de olhos fitos no desfiladeiro e no mar encapelado. "As nuvens parece que estão a aproximar-se", comentou ela. "Talvez chova esta noite." "É só nevoeiro, Elizabeth. Este ano é só nevoeiro. A terra está a tornar-se branca, não vês? A cor castanha está a desaparecer." Ela mastigava a sua sanduíche, olhando sempre para a nesga de mar. "Recordo-me de tantas coisas!", disse. "Surgem-me de repente, como os patos numa carreira de tiro. Lembro-me agora de como os italianos iam para os rochedos quando a maré estava vazia, com grandes nacos de pão na mão. Abriam os ouriços-do-mar e espalhavam parte deles sobre o pão. Os machos são doces e as fêmeas ácidas - os ouriços, não os italianos, é claro." Amachucou os papéis do almoço e meteu-os novamente no alforje. "É melhor partirmos agora, querido. Não convém ficar fora durante muito tempo." Embora não tivesse havido qualquer movimento nas nuvens, a névoa em volta do Sol tornara-se mais espessa e o vento refrescara. Joseph e Elizabeth conduziram os cavalos pela rampa abaixo. "Ainda queres ir ao bosque dos pinheiros?", perguntou ele. "Pois claro. Foi essa a principal razão deste passeio. Vou fazer uma incisão no rochedo." Enquanto ela falava, um falcão de garras recurvadas rasgou o ar. Ouviram o choque contra a carne, e um segundo depois a ave levantava novamente voo, segurando um coelho, que guinchava. Elizabeth largou as rédeas tapando as orelhas até o som se sumir. Tremia-lhe o lábio. "Não é nada, bem sei. Mas detesto ver." "cErrou o golpe", disse Joseph. "Devia ter-lhe partido
o pescoço ao primeiro embate, mas falhou." Seguiram com a vista o falcão, que se punha a coberto no pinhal, desaparecendo entre as árvores. Não tiveram muito que andar, descendo uma ladeira e caminhando depois ao longo da crista até atingirem a primeira linha de árvores. Joseph Parou. "Prendemos aqui os cavalos e seguimos um pouco a pé", disse ele. Uma vez a pé, dirigiu-se apressadamente ao pequeno regato. "Não está Seco", gritou. "A água não desceu nada." Elizabeth foi ter com ele. "E isso conforta-te mais, Joseph?" Ele olhou-a de relance, sentindo uma ligeira ironia nas palavras da mulher, mas no seu rosto não se viam traços de tal. "É a primeira água corrente que vejo há muito tempo", disse ele. "É como se a terra não morresse enquanto este regato correr. Como se fosse uma veia que ainda fizesse pulsar o sangue." "Pateta", disse ela, "tu vens duma terra onde chove muitas vezes. Repara em como o céu está a escurecer, Joseph. Não me admirava nada se chovesse." Ele levantou os olhos para o alto. "É só nevoeiro", disse ele. "Mas em breve fará frio. Vamos embora." A clareira continuava silenciosa, como sempre, e o rochedo ainda estava verde. Elizabeth falou alto para quebrar o silêncio. "Vês. Era só o meu estado que me fazia temer isto." "Deve ser uma fonte muito funda, para ainda estar a correr", disse Joseph. "E o rochedo deve ser poroso, para sugar a água para o musgo." Debruçada para a frente Elizabeth olhou para dentro da caverna escura, donde corria o regato. "Não há nada lá dentro", disse ela. "Apenas um buraco fundo na rocha e o cheiro da terra molhada." Endireitou-se novamente e afagou os lados escarpados do rochedo. "É um musgo lindo, Joseph. Repara em como é fundo." Arrancou uma mão-cheia dele e levantou as raízes negras e húmidas para que o marido as visse. "Não mais sonharei contigo", disse ela para o rochedo. O céu agora estava cinzento-escuro e o sol desaparecera. Joseph estremeceu e afastou-se. "Vamos para casa, querida. Vem o frio." E tomou a direcção do caminho. Elizabeth continuava de pé junto do rochedo. "Achas que sou uma pateta, não é verdade Joseph?", disse ela."Vou trepar para cima deste penedo e domesticá-lo." E Enterrou o calcanhar na escarpa íngreme do rochedo musgoso e içou-se com um passo para cima e outro depois. Joseph voltou-se. "Toma cuidado, não escorregues", gritou. Com o calcanhar, ela tentou firmar-se para um terceiro passo. Então o musgo soltou-se um pouco. As suas mãos procuraram agarrar-se ao musgo, mas apenas o arrancaram. Joseph viu-a voltar-se; a cabeça de Elizabeth descreveu um pequeno arco e embateu com o chão. Enquanto ele corria para a mulher, ela virou-se lentamente para o lado. Todo o seu corpo estremeceu violentamente durante um segundo, e depois distendeu-se. Joseph parou debruçado sobre ela, antes de correr para a fonte a encher as mãos de água. Mas quando voltou deixou escorrer a água para o chão, pois via-lhe a posição do pescoço e o tom cinzento que já lhe invadia a face. Sentou-se no chão a seu
lado e, maquinalmente, segurou-lhe na mão e abriu-lhe os dedos, fechados sobre uma mão-cheia de agulhas de pinheiro. Procurou-lhe o pulso e não o encontrou. Depois pousou docemente a mão, como se receasse acordá-la. E disse em voz alta: "Não sei o que é isto." Sentia-se invadido por um frio de gelo. "Eu devia voltá-la", pensou. "Devia levá-la para casa." Fitou as marcas escuras do rochedo onde os calcanhares dela se tinham enterrado momentos antes. "Foi simples de mais, fácil de mais, tão rápido", disse em voz alta. "Foi tão rápido." Sabia que o seu cérebro não estava a apreender o que sucedera. Tentou compenetrar-se da realidade. "Todas as histórias, todos os incidentes que constituíam uma vida, cessaram um momento - opiniões, faculdade de sentir, tudo parou sem razão."i Procurava compreender o que sucedera, pois sentia já o princípio da calma que se apossava dele. Queria gritar alto a sua dor, uma só vez que fosse, antes de se sentir isolado e incapaz de sentir dor ou ressentimento. Pequenas gotas de frio picavam-lhe a testa. Levantou os olhos e viu que chovia mansamente. As gotas caíam na cara de Elizabeth e brilhavam-lhe nos cabelos. A calma apossava-se de Joseph. Disse: "Adeus, Elizabeth". e ainda não tinha acabado de falar já se sentia isolado e alheio. Tirou o casaco e cobriu-lhe a cabeça. "Era a única oportunidade de comunicação", disse ele; "agora acabou-se." I O tamborilar da chuva levantava pequenas explosões de poeira na clareira. Ele ouvia o murmúrio ténue do regato que corria pelo terreno plano e desaparecia no mato. E continuava sentado junto ao corpo de Elizabeth com relutância de se mexer, entorpecido por aquela calma. Duma vez levantou-se, tocando timidamente no rochedo e olhando por cima do seu topo raso. Com a chuva, uma vibração de vida agitava o local. Joseph ergueu a cabeça como se estivesse à escuta, e depois acariciou meigamente o rochedo. "Agora sois dois; e estais aqui. Agora já sei para onde devo vir." Tinha a face e a barba molhadas. A chuva entrava pela camisa aberta. Baixou-se, pegou o corpo nos braços e amparou a cabeça descaída de encontro ao seu ombro. Desceu a pé o caminho para o vale. Para o lado do oriente via-se um arco-íris baço, com as pontas firmadas nas colinas. Joseph soltou o segundo cavalo para que ele o seguisse. Mudou o seu fardo para um ombro enquanto montava a cavalo e depois pousou-o na sela, à sua frente. O sol rompeu e brilhou nas janelas dos edifícios da fazenda, lá em baixo. A chuva parara e as nuvens retiravam-se novamente para o oceano. Joseph pensou nos italianos nos rochedos, a comerem ouriços-do-mar com o pão. Depois ocorreu-lhe uma coisa que Elizabeth lhe dissera havia muito tempo. "Dizem que Homero viveu novecentos anos antes de Cristo." Repetiu isto vezes sem conta: "Antes de Cristo antes de Cristo. "Querida terra, querida terra!" A Rama vai ter pena. Ela não sabe. As forças agrupam-se e reúnem-se e tornam-se uma só forte e única. Até eu acabarei por me reunir ao centro de tudo." Mudou o fardo para aliviar o braço. E compreendeu como amava o rochedo e como
o odiava. Semicerraram-se-lhe as pálpebras de fadiga. "Sim, a Rama vai ter pena. Terá de me ajudar a tratar do menino." Thomas veio ao pátio esperar Joseph. Esboçou uma pergunta, mas, ao ver-lhe o rosto constrangido e cinzento, avançou de mansinho, levantando os braços para segurar o corpo. Joseph apeou-se fatigadamente agarrou no cavalo solto e prendeu-o à sebe da estrebaria. Thomas continuava quieto, com o corpo nos braços, calado. "Escorregou e caiu", explicou Joseph numa voz sem timbre. "Foi uma queda pequena. Creio que partiu o pescoço." Avançou para segurar nela novamente. "Quis trepar para o rochedo do pinhal", continuou. "O musgo desprendeu-se. Uma queda de nada. Custa a acreditar. A princípio julguei que tivesse desmaiado. Fui buscar água e só depois é que vi." "Está quieto!", exclamou Thomas vivamente. "Não fales nisso agora." E recusou-se a entregar-lhe o corpo. "Vai-te embora, Joseph. Eu tomo conta disto. Leva o cavalo e dá uma volta. Vai a Nuestra Senhora e embebeda-te." Joseph recebeu as ordens e aceitou-as. "Vou andar para o pé do rio", disse ele. "Encontraram alguma água hoje?" "Não." Thomas voltou-se e dirigiu-se para a sua própria casa, levando o corpo de Elizabeth. Pela primeira vez, que se lembrasse estava a chorar. Joseph seguiu-o com a vista até ele subir a escada e depois afastou-se num passo rápido, quase a correr. Chegou junto ao rio seco e subiu-lhe o leito apressadamente sobre os seixos lisos e rolados. O sol desaparecia na garganta de Puerto Suelo; e as nuvens de que caíra a chuva acastelavam-se no oriente como muros vermelhos que lançavam uma luz rubra sobre a terra, tornando roxas as árvores nuas. Joseph seguia apressadamente rio acima. "Havia uma poça funda", pensava. "Não pode estar completamente seca, era funda de mais." Percorreu quase uma milha pelo rio acima e finalmente encontrou a poça. profunda, castanha, malcheirosa. à luz do crepúsculo via as enguias grandes e negras que se mexiam dum lado para o outro, lentamente. A poça estava rodeada de dois lados por pedregulhos redondos e lisos. Em melhores dias caíra nela uma pequena catarata. O terceiro lado dava para um areal recortado e calcado pelos rastos de animais; as delicadas pontas de seta dos veados, as patorras dos leões e as mãozinhas dos quatis, tudo recoberto pelos traços emporcalhados das patas dos javardos. Joseph trepou para cima de um dos pedregulhos gastos pela água e sentou-se com os braços em volta do joelho. Tremia um pouco com frio, embora não o sentisse. Enquanto fitava a poça, reviveu todo o dia que passara, não como um dia, mas como uma época. Recordou-se de pequenos gestos que nem sabia ter observado. Evocou as palavras de Elizabeth, com uma entoação tão verdadeira, uma ênfase tão completa, que lhe parecia realmente tornar a ouvi-las. As palavras ressoavam-lhe aos ouvidos. "Isto é a tempestade", pensou. "Isto é o princípio da tal coisa que eu pressentia. Há aqui um ciclo, continuado, rápido, inalterável como uma roda." E pensou
cansadamente que, se mirasse a poça, libertando o seu cérebro de todas as imagens que o atafulhavam, poderia vir a ter conhecimento do ciclo. Ouviu-se um grunhido agudo no mato. Joseph perdeu o fio do seu pensamento e olhou a praia. Cinco porcos-bravos, muito magros, e um javali de presas longas e recurvas apareceram no terreno aberto e aproximaram-se da água. Beberam cautelosamente e depois meteram-se ruidosamente à água e começaram a apanhar e a comer as enguias; enquanto o peixe viscoso chicoteava o ar e se lhes debatia nas bocas. Dois porcos apanharam a mesma enguia, grunhindo com raiva, rasgaram-na em duas e mastigaram cada um a sua parte. A noite caíra quase por completo quando eles voltaram para a areia, bebendo outra vez. Subitamente houve um clarão de luz amarela. Um dos porcos caiu debaixo daquele raio furioso. Ouviu-se um esmagar de ossos, um guincho agudo; e o leão, magro e lustroso, curvou o dorso para olhar em volta e saltar para trás, a fim de evitar a carga do javali. Este bufou diante do cadáver e com uma reviravolta levou os outros quatro pelo mato dentro. Joseph pôs-se de pé e o leão observou-o, agitando a cauda. "Se ao menos eu pudesse dar-te um tiro", disse Joseph em voz alta, "haveria um fim, e um novo princípio. Mas não tenho espingarda. Continua lá o teu jantar." Desceu do rochedo e afastou-se por entre as árvores. "Quando aquela poça desaparecer, os animais morrerão", pensou, "ou talvez eles se mudem para outro lado da serra." Encaminhou-se lentamente para a herdade, com relutância, mas com certo temor por estar fora de noite. Pensou que um novo laço o prendia à terra e que esta sua terra estava agora mais próxima. Brilhava uma lanterna no barracão por detrás da estrebaria; e ouvia-se o ruído de marteladas. Joseph chegou à porta e viu Thomas a trabalhar no caixote. Entrou. "Não me parece bastante grande", disse. Thomas não levantou os olhos. "Tirei as medidas. Está bem assim." "Vi um leão, Thomas; vi-o matar um porco-bravo. Um destes dias é melhor levares alguns cães e matá-lo. Senão, quem sofre são os vitelos." Continuou apressadamente: "Tom, nós falámos quando Benjy morreu. Dissemos que as sepulturas é que tornam um local nosso. Isso é verdade. É isto que nos torna parte da terra. Há uma enorme verdade nisto." Thomas abanou afirmativamente a cabeça, sem parar o seu trabalho. "Bem sei. O José e o Manuel vão cavar a sepultura, de manhã. Não quero abrir covas para os nossos próprios mortos." Joseph voltou-se, tentando sair do barracão. "Tens a certeza de que o tamanho é suficiente?" "Tenho, tirei as medidas." "Olha, Tom, não ponhas uma sebezinha em volta. Quero que se afunde e desapareça o mais depressa possível." Depois afastou-se rapidamente. No pátio ouviu o murmurar das crianças, já prevenidas. "lá vai ele", disse Martha; "não devem dizer-lhe nada." Dirigiu-se para casa na escuridão, acendeu os candeeiros e também o lume do fogão. O relógio, a que Elizabeth dera corda, continuava o seu tiquetaque,
armazenando na mola a pressão das mãos dela, e as peúgas de lã que ela estendera a secar sobre o guarda-fogo ainda estavam húmidas. Eram partes vitais de Elizabeth que ainda não tinham morrido. Joseph ponderou lentamente sobre isto - a vida não se pode cortar bruscamente. Não se pode estar morto enquanto as coisas que nós alterámos não morrerem. Os nossos efeitos são a única evidência da nossa vida. Enquanto perdurar nem que seja uma recordação dolorosa, uma pessoa não pode ser amputada, morta. E pensou: "É um processo lento e demorado, isto de uma pessoa morrer. Mata-se uma vaca, e ela morre assim que se lhe comer a carne; mas a vida do homem morre como morre a vibração num charco tranquilo, em pequenas ondas, alastrando e crescendo até à quietude." Encostou-se para trás na cadeira e abaixou a torcida do candeeiro até ficar apenas uma luzinha azul. Depois deixou-se ficar quieto, tentando ordenar novamente os pensamentos: mas estes dispersavam-se, alimentando-se em cem origens diferentes, e a sua atenção perdia-se. Pensava em tons, em correntes de movimento, em cores. num ritmo pesado e lento. Baixou os olhos para o seu corpo lasso, para os braços encurvados, para as mãos que descansavam no colo. A dimensão mudou. Uma crista de montanhas estendia-se numa longa curva e na sua extremidade havia cinco pequenas serras espraiando-se com estreitos vales entre elas. Olhando atentamente, parecia haver cidades nos vales. A cordilheira, extensa e curva, cobria-se de mato negro e os vales terminavam numa terra escura e arável, com milhas de comprimento, que cessava abruptamente num abismo. Havia ali bons campos, e as casas e a gente eram tão pequeninas que mal se podiam ver. Lá em cima, no alto dum pico tremendo, dominando as serras e os vales, habitava o cérebro do mundo e os olhos que observavam o corpo da terra. O cérebro não podia compreender a vida do seu corpo. Jazia inerte, sabendo vagamente que podia fazer desaparecer a vida, as cidades, as pequeninas casas entre os campos com uma fúria de tremor de terra. Mas o cérebro estava adormecido e as montanhas mantinham-se quietas e os campos pacíficos na encosta arredondada que mergulhava no abismo. E assim foi durante um milhão de anos, tudo inalterável e tranquilo, e o cérebro do mundo, lá no seu pico, quase adormecera. O cérebro do mundo lamentava-se um pouco. pois sabia que um dia teria de mexer-se, e então a vida seria abalada e destruída e desapareceria o longo trabalho de cultivo e as casas ruiriam nos vales. O cérebro tinha pena, mas não podia alterar coisa alguma. Pensava: "Suportarei até um pouco de desconforto para manter esta ordem, que veio a existir por acaso. Seria uma pena destruí-la." Mas a terra dominadora estava cansada de jazer numa só posição. Movimentou-se subitamente e as casas ruíram, as montanhas sublevaram-se horrivelmente; e todo o trabalho de milhares de anos se perdeu. A dimensão mudara; o tempo mudara. Ouviram-se passos ligeiros no alpendre. A porta abriu-se e entrou Rama, de olhos dilatados e brilhantes de tristeza. "Estás quase às escuras, Joseph", disse ela.
Ele ergueu as mãos para cofiar a barba. "Abaixei a luz do candeeiro." Ela deu uns passos para a frente e levantou a torcida. "É um mau bocado, Joseph. Quero ver a cara que tens agora. Sim", continuou. "Não vejo alteração. Isso dá-me outra vez forças. Receei que te fosses abaixo. Estás a pensar na Elizabeth?" Ele ponderou que resposta havia de dar. Sentia o impulso de contar tudo o mais verdadeiramente possível. "Sim, até certo ponto", disse lentamente e com hesitação, "na Elizabeth e em tudo quanto morre. Tudo parece ter um ritmo repetido, excepto a vida. Há um só nascer e um só morrer. Não há coisa nenhuma que se lhe assemelhe." Rama avançou e sentou-se a seu lado. "Tu amavas Elizabeth." "Sim", disse ele, "amava." "Mas não a conhecias como pessoa. Nunca conheceste pessoa nenhuma. Não notas que há pessoas, Joseph, para ti só há gente. Não vês os indivíduos, Joseph, só o conjunto." Encolheu os ombros e endireitou-se na cadeira. "Nem sequer estás a ouvir-me. Vim ver se tinhas comido alguma coisa." "Não quero comer", disse ele. "É natural. Sabes que tenho lá o menino. Queres que fique com ele em casa?" "Vou arranjar alguém que fique com ele assim que puder", disse ele. Ela levantou-se, preparada para sair. "Estás cansado, Joseph. Vai para a cama e procura dormir, E se não podes, pelo menos deita-te. De manhã hás-de ter fome e vai lá tomar o almoço." "Sim", disse ele abstractamente, "de manhã hei-de ter fome." "E agora vais deitar-te?" Ele cedeu, mal sabendo o que ela dissera. "Sim, Vou deitar-me." quando Rama saiu, ele obedeceu automaticamente. Despiu-se e ficou em frente do fogão, olhando para a barriga e as pernas magras. A voz de Rama repetia-lhe no espírito: "Deita-te e descansa." Tirou o candeeiro do gancho, entrou no quarto, meteu-se na cama, deixando a luz em cima da mesa, Desde que entrara em casa todos os seus sentidos se tinham entorpecido com os pensamentos; mas agora, enquanto o corpo se lhe estirava e distendia, os sons da noite penetravam-lhe os ouvidos; e ouvia o murmurar do vento e o segredar rouco das folhas secas do carvalho morto. E o mugido longínquo duma vaca. A vida voltava a invadir a terra e o movimento que os pensamentos tinham interrompido recomeçava. Pensou em ir apagar a luz, mas o corpo recusou-se-lhe a esse trabalho. No alpendre ouviu um passo furtivo. A porta da rua abria-se devagarinho. Da sala de estar veio um ruído. Joseph, deitado, escutava, pensando ociosamente quem estaria ali, mas não disse nada. Depois a porta do quarto abriu-se e ele voltou a cara para ver. à porta estava Rama e a luz do candeeiro batia sobre ela. Ofegava, como se tivesse vindo a correr. Joseph sentiu na garganta e no peito uma ânsia que o queimava como areia quente e que lhe desceu no corpo. Rama apagou o candeeiro e atirou-se para cima da cama. Ela distendeu-se, respirando a custo. Os músculos
fortes soltaram-se, e ficaram ambos deitados juntos. "Para ti isto era uma necessidade", segredou ela. "Em mim era fome, mas para ti uma necessidade. O rio comprido da tristeza afasta-se e entra em mim; e a tristeza, que não passa dum prazer quente e melancólico, é arrancada num instante. Não pensas assim, Joseph?" "Sim", disse. "Era uma necessidade." Soltou-se dela e ficou estendido de costas a seu lado. Ela falou, sonolenta: "Agora não me sai da memória. Uma vez na vida - uma vez na vida! Toda a minha vida a tender para isto; e depois, toda a minha vida a afastar-se. Não era por ti. Agora parece que bastou, talvez tenha bastado; mas receio que daqui saiam ninhadas de desejos, e que cada qual cresça até se tornar maior do que a mãe." Sentou-se na cama e beijou-lhe a testa, e durante um momento o seu cabelo caiu à volta da cara de Joseph. "Não há uma vela na mesa, Joseph? Preciso de luz." "Há sim, aí em cima da mesa, numa palmatória de lata. Tem fósforos." Rama levantou-se e acendeu a vela. Baixou os olhos para o próprio corpo e com o dedo examinou os vergões vermelhos no peito. "Tenho pensado nisto", disse ela "Pensado nisto muitas vezes. E quando pensava via-nos deitados um ao lado do outro, depois de estarmos juntos, fazia-te muitas perguntas, no meu pensamento era sempre assim." E, como se se tivesse apossado dela uma vergonha súbita, tapou a luz da vela com a mão. "Creio que já fiz as perguntas e que tu já respondeste." Joseph ergueu-se sobre um cotovelo. "Rama, que queres tu de mim?", perguntou. Ela virou-se então para a porta e abriu-a lentamente. "Agora não quero nada. Estás outra vez completo. Queria ser parte de ti, e talvez o seja. Mas... não o creio." Mudou de tom. "Agora dorme. E de manhã vem lá tomar o almoço." E fechou a porta atrás de si. Joseph ouviu o restolhar dela a vestir-se, mas o sono veio tão depressa que não a ouviu sair da casa.
22
Janeiro foi cheio de ventos frios e agudos e de manhãs em que a geada se estendia no chão como uma neve muito fina. O gado e os cavalos rebuscavam os flancos dos outeiros, à procura de folhinhas de erva esquecidas, estendendo o pescoço para mordiscar as folhas dos carvalhos; e por fim voltavam à herdade e ficavam-se parados o dia inteiro a olhar para as medas de feno dentro do cercado. De manhã e à noite Joseph e Thomas atiravam-lhes feno com as forquilhas por cima da sebe e enchiam de água os tanques para eles beberem. E o gado, depois de beber e comer, ficava por ali à espera de nova ração. Os outeiros não tinham uma pontinha de pasto. A terra tornava-se de dia para dia mais cinzenta e morta e as medas de feno diminuíam. Acabou uma e começou logo outra, e essa definhava já diante do apetite das vacas famintas. Em Fevereiro caiu um dedo de chuva, e a erva despontou, cresceu uns centímetros, fez-se amarela. Joseph andava dum lado para o outro, taciturno, de mãos fechadas e metidas nas algibeiras. As crianças brincavam sossegadamente. Brincaram "ao enterro da tia Elizabeth" durante semanas, enterrando e voltando a enterrar uma caixa de cartuchos. E mais tarde brincaram aos jardins, cavavam quintaizinhos e plantavam trigo, para verem surgir as folhas esguias e compridas, que regavam. Rama continuava a tomar conta do filho de Joseph. Dedicava-lhe mais tempo do que aquele que gastara com os próprios filhos. Mas foi Thomas quem realmente se assustou. Quando viu que o gado já não encontrava que pastar nos montes, começou a crescer nele o terror da fome. Quando acabou a segunda meda, foi ter com Joseph, nervoso. "Que vamos nós fazer quando as outras duas medas de palha se acabarem?", perguntou ele. "Não sei. Tenho de pensar bem nisso." "Mas nós não podemos comprar feno, Joseph." Em Março vieram aguaceiros e apareceu uma erva rala; começaram a despontar flores bravias. O gado abandonava a palha e passava dias e dias a mordiscar ervas rasteiras para conseguir alimentar-se. Abril secou novamente as terras e todas as promessas da lavoura se foram. O gado andava magro e de costelas à vista. Nas ancas os ossos pareciam furar a pele. Nasceram alguns bezerros. Dois leitões morreram de um mal misterioso à nascença. Algumas vacas apanharam uma tosse rouca com a poeira do ar. A caça abandonou os montes. A codorniz nunca mais voltou a casa deles para cantar ao entardecer. As noites em que os coiotes uivavam eram raras. Descobrir um coelho era coisa de espantar. "Está tudo a deixar-nos", explicou Thomas. "Tudo a atravessar a cordilheira em direcção à costa. Temos de ir lá, Joseph, para dar uma vista de olhos por aquilo." Em Maio o vento mudou e veio do oceano durante três dias, mas fizera-o com tal frequência que ninguém se espantou. Houve um dia de céu carregado e depois a chuva desabou torrencialmente. Joseph e Thomas andaram dum lado para o outro debaixo de água, fazendo projectos alegres, embora tivessem a
consciência de que era demasiado tarde. Quase dum dia para o outro os pastos despontaram novamente, cobriram as colinas e cresceram furiosamente. O gado engordou um pouco. E eis Que certa manhã o Sol rompeu cheio de fogo e à tarde o tempo estava quente. Tinha vindo cedo, o Verão. Numa semana as ervas murcharam e em quinze dias já o ar estava outra vez carregado de pó. Numa manhã de Junho, Joseph selou um cavalo e partiu para Nossa Senhora e encontrou-se com Romas, o carreiro. Romas recebeu-o no terreiro das galinhas e sentou-se no varal dum carro e pôs-se a brincar com o chicote dos bois enquanto falava. "Estes é que são os tais anos de seca?", perguntou-lhe Joseph subitamente. "Pelo menos têm todo o ar disso, Sr. Wayne." "Estamos portanto a atravessar os tais anos de que vossemecê me falou em tempos, não?" "Ainda não vi ano pior do que este, Sr. Wayne. Outro como este e estamos desgraçados." Joseph estava carrancudo. "Só tenho uma meda de feno. Quando se acabar, que vou eu dar de comer ao gado?" Tirou o chapéu e enxugou o suor com um lenço. Romas fez estalar o chicote dos bois e a ponta levantou o pó como uma explosão. Seguidamente pô-lo sobre os joelhos e tirando do colete tabaco e mortalhas, pôs-se a enrolar um cigarro. "Se conseguir aguentar as reses até ao Inverno, ainda talvez se salve. Se não tem feno que chegue para as aguentar, ou as leva daqui para fora ou morrem-lhe todas à míngua. Este sol não vai deixar uma palha de pé." "Mas não poderei comprar feno?", perguntou Joseph. Romas gargalhou falso. "Dentro de três meses um fardo de palha há-de valer mais do que um boi." Joseph sentou-se no varal do carro ao lado do outro a fitar o chão e apanhou um monte de poeira quente. "Para onde levam vocês o gado?", perguntou-lhe, por fim. Romas sorriu. "É uma boa altura para eu aproveitar. Eu levo os animais. Garanto-lhe, Sr. Wayne, que esta seca apanhou não só as terras mas também o vale de Salinas. Não havemos de encontrar erva em toda a banda de cá do rio de San Joaquín." "Mas isso fica a mais de cem milhas daqui." Romas tirou outra vez o chicote do regaço. "É verdade, mais de cem milhas", disse. "E se já não tem lá muito feno, o melhor é preparar a manada depressa, enquanto ela tiver pernas para andar." Joseph levantou-se e aproximou-se do cavalo. Romas seguiu-o. "Lembro-me do dia em que aqui chegou", disse Romas calmamente. "Lembro-me de quando carreguei a madeira para a sua casa. Nessa altura vossemecê dizia que a seca não tornava a voltar. Mas todos os filhos desta terra sabiam que ela havia de vir outra vez." "E se eu vendesse agora o gado e esperasse que esta seca passasse?" Romas gargalhou alto com esta ideia. "Homem, vossemecê não está bom. Que diabo vem a ser o seu gado?" "É realmente fraco", concordou Joseph. "A carne magra vale pouco, Sr. Wayne. Ninguém lhe
compraria uma rês este ano em Nuestra Senhora." Joseph desatou a arreata do cavalo e montou-o lentamente. "Estou a compreender. Ou levo daqui o gado ou perco-o!..." "Também me parece, Sr. Wayne." "E se eu levar, quantas reses poderei perder no caminho?" Romas coçou a cabeça como se estivesse a pensar. "Umas vezes metade do rebanho e às vezes todo. outras, dois terços." Os lábios de Joseph crisparam-se como se ele tivesse sido atingido por uma pancada. Endireitou-se e aproximou as esporas à barriga do cavalo. "Lembra-se do meu Willie?", perguntou Romas. "Quando nós andávamos a transportar a madeira, era ele que conduzia uma das parelhas." "É verdade. Como vai ele?" "Morreu", disse Thomas. E depois, num tom envergonhado: "Enforcou-se." "Não sabia de nada. Lamento muito mas porque fez ele isso?" Romas sacudiu a cabeça com desespero. "Não sei, Sr. Wayne. Ele nunca foi lá muito seguro da cabeça." Sorriu para Joseph. "É uma coisa levada dum raio para um pai falar dela." E então, como se estivesse a falar a um grupo de gente, fitou um ponto qualquer ao pé de Joseph. "Peço desculpa de ter dito isto. Willie era um bom moço. Mas nunca foi lá muito seguro da cabeça, Sr. Wayne." "Os meus sentimentos, Romas", disse Joseph, e prosseguiu: "Vou precisar, com certeza, de si, para me levar o gado." As esporas tocaram levemente o cavalo e Joseph meteu a trote a caminho de casa. Seguiu vagarosamente pelas margens do rio, seco, pela sombra que davam As árvores, cobertas de pó, esfrangalhadas e Peladas pelo sol. . Joseph recordou-se de certa noite escura em que fugira a cavalo e atirara para longe o chapéu e a chibata para arrancar um momento bom a um mar de momentos. E recordava-se já da relva, que então estivera fofa e verde sob a copa das árvores; das flores das colinas, todas vergadas sob o peso das sementes dos montes cobertos do manto pesado de verdura. Mas agora estavam todos descarnados e tinha diante dele a ameaça das terras áridas do Sul a procurarem transformar os campos numa conquista do império do deserto. O cavalo resfolegava e o suor escorria-lhe da cilha, a meio da barriga. A viagem era longa e não havia água pelo caminho. Joseph não sentia vontade alguma de voltar a casa, pois achava-se um pouco culpado pelas notícias que iria levar aos seus. A herdade teria de ser abandonada ao sol e às sentinelas do deserto. Passou por uma vaca morta e esfolada e com a barriga a rebentar de inchada sob os gases da putrefacção. Joseph atirou o chapéu para os olhos e curvou a cabeça para não ver a carcaça carcomida daquela terra. Chegou já à boca da noite. Thomas acabara de regressar da viagem à cordilheira. Correu excitadíssimo para o irmão, com o rosto queimado muito enfiado. "Encontrei dez bois mortos", disse. "Não sei o que deu cabo deles. Os falcões lá ficaram às voltas."
Agarrou o braço de Joseph e sacudiu-o fortemente. "Ficaram para a banda de lá da cordilheira. Amanhã nada mais há-de restar deles do que um monte de ossos." Confundido, Joseph desviou os olhos dos dele. "Não sou capaz de defender as terras", pensava tristemente. "A obrigação que me cabe de assegurar a vida às minhas terras está muito acima das minhas posses." "Thomas", disse então. "Já hoje fui saber notícias à cidade." "Está tudo como aqui?", perguntou Thomas. "O poço está quase no fundo." "Sim, tudo na mesma. Temos de levar o gado para mais de cem milhas daqui. Nas margens do San Joaquín há Pasto." "Santo Deus, vamo-nos embora!", exclamou Thomas. "Vamo-nos deste amaldiçoado vale para fora, desta refinada filha de cabra de terra. Nunca mais hei-de voltar aqui! Já não posso ter esperanças nisto!" Joseph sacudiu lentamente a cabeça. "Eu sempre tenho esperanças de que ainda possa acontecer qualquer coisa. E sei que não temos já nada a esperar. Mesmo que viesse uma chuvada forte, não valia de nada agora. Temos de preparar o gado para a semana." "Porque é que só há-de ser para a semana? Vamos mas é prepará-lo para amanhã." Joseph fez por acalmá-lo. "nEsta semana está quente. Talvez para a outra já esteja mais fresco. Temos de ter o gado bastante cheio para poder aguentar a viagem. Diz aos homens que aumentem as rações." Thomas concordou com um aceno. "Não tinha pensado no feno." De súbito os olhos acenderam-se-lhe. "Joseph, e se nós fôssemos até à costa, da banda de lá da cordilheira, enquanto os homens preparam o gado? Podíamos procurar arranjar alguma água em vez de nos metermos assim a caminho, de olhos fechados." Joseph concordou. "Sim, podemos ir. Amanhã mesmo." Partiram de noite, para levarem dianteira ao Sol. Dirigiram os cavalos no escuro para os lados do nascente e deixaram-nos descobrir o caminho. A terra ainda exalava calor do dia antecedente e nas encostas dos montes pairava uma calma silenciosa. Os cascos a bater no caminho rochoso espalhavam sons confusos no meio daquele sossego. A certa altura, quando o Sol ia já a despontar, pararam os cavalos para os descansar um pouco e pareceu-lhes ouvir então mais adiante, um badalar. "Não ouviste?", perguntou Thomas. "Deve ter sido o chocalho duma rês", disse Joseph. "Não me pareceu o som dum badalo de choca. Parecia antes o guizo duma ovelha. Vamos ficar à escuta enquanto o Sol nasce." O calor rompeu mal o sol despontou. Nem houve sequer a frescura da madrugada. Os gafanhotos esvoaçaram ruidosamente no ar. Os loureiros perfumavam o ar e das árvores pingava uma resina densa e doce. à medida que os homens iam subindo a vertente alcantilada, o caminho tornava-se mais rochoso e a paisagem mais desolada. Por toda a parte as penedias que espreitavam da terra cuspiam a luz forte que se reflectia nelas. Uma cobra empinou-se furiosamente no caminho, à frente deles. Os cavalos estacaram, resfolegando, e começaram às arrecuas. Thomas curvou-se e tirou a carabina do alforje por baixo da perna. A arma disparou-se e o corpo esguio da cobra
enroscou-se lentamente em torno da cabeça estilhaçada. Os cavalos desceram a encosta, de olhos cerrados contra as cutiladas da luz. Da terra saía um imperceptível queixume, como se estivesse a protestar contra o sol insuportável. "Isto faz-me pena", disse Joseph. "Gostava de ser capaz de o suportar." Thomas passou uma perna por cima do cepo do selim. "Sabes o que é que esta malvada terra me faz lembrar?", perguntou. "Faz-me lembrar uma fogueira de lenha rodeada de cinzas." Tornaram a ouvir o badalar fraco da outra vez. "Vamos ver o que é aquilo", disse Thomas. Torceram os cavalos em direcção ao alto da vertente. A encosta estava salpicada de enormes blocos de pedra, ruínas de autênticas montanhas de outrora, e o caminho serpenteava por entre as rochas. "Desconfio de que já ouvi este som á noite, ao pé da casa", disse Thomas. "Naquela altura julguei que era um sonho, mas agora lembro-me de que o ouvi mesmo. Já estamos quase no cume." O caminho reduziu-se a uma passagem de granito solto, e daí a pouco os dois irmãos tinham aos pés um novo mundo. A encosta deslizava coberta de pinheiros gigantescos e por entre aqueles troncos grossos e aprumados tecia-se um emaranhado de vinhedos, de groselhas e de fetos bravos da altura dum homem. A encosta descia bruscamente e o mar erguia-se, parecendo de nível com o cume do monte. Pararam ambos os cavalos e fitaram com sofreguidão aquela vegetação viçosa. Os montes remexiam-se de vida. Do caminho saltavam-lhes coelhos bravos e codornizes. E enquanto observavam tudo isto, um veado novo surgiu numa clareira, farejou-lhes a presença e desapareceu. Thomas esfregou os olhos à manga da camisa. "Temos aqui a nossa sorte", disse. "Gostava de trazer o gado para aqui, mas não descubro nenhum sítio plano onde se possa meter um boi a pastar." Voltou-se a encarar o irmão. "Joseph, não te estava mesmo a apetecer enfiares-te por esse mato fora e dormires uma soneca numa toca fresquinha?" Joseph tinha estado a olhar para o oceano. "Estou a pensar donde é que vem esta humidade." Apontou para as dunas áridas que se estendiam até ao mar. "Acolá não há sombra de verdura e aqui a vegetação é forte que nem na selva." E disse mais: "Já tinha dado pelo nevoeiro a espreitar sobre o nosso vale." "O nevoeiro frio deve ficar todas as noites nestes valados e deixar por cá alguma humidade. Durante o dia volta outra vez para o mar e à noite vem para aqui de novo, de maneira que a floresta nunca está sem frescura, nunca. Mas aqui.. mas, estranho este lugar, Thomas." "Vou lá abaixo ao mar", disse Thomas. "Vamos, mexe-te." Desceram a encosta por entre os troncos dos pinheiros e os galhos raspavam-lhes o rosto. A meio do caminho entraram numa clareira onde estavam dois burros arreados, de cabeça caída e um velhote de barbas brancas sentado no chão diante dele. Tinha o chapéu sobre as pernas e o cabelo empastado de suor colado à cabeça. Levantou para os dois irmãos uns olhos negros, agudos e cheios de brilho. Apertou um lado do nariz com um dedo enquanto soprava pela
outra venta, repetiu novamente o gesto e tornou a assoprar. "Já os ouvia há muito tempo", disse ele. E gargalhou sem soltar o mais pequeno ruído. "Com certeza que ouviram o chocalho do meu burro. É um guizo de prata autêntica. Umas vezes ponho-o num, outras vezes no outro." Enterrou o chapéu com dignidade e empinou o nariz, aguçado como o bico dum pardal. "Para onde vão, por aí abaixo?" Foi Thomas quem teve de responder, pois o irmão olhava o homenzinho com curiosidade como que reconhecendo-o, "Viemos passar um bocado à praia", explicou Thomas. "Pescar um bocadinho e dar umas braçadas, se o mar estiver sossegado." "Há muito que estávamos a ouvir o seu chocalho", disse Joseph. "Já o vi em qualquer parte." Parou de repente, atrapalhado, pois tinha absoluta certeza de que nunca vira anteriormente aquele velhote. "Vivo para acolá, para a direita", disse o velho. "A minha casa fica a quinhentos pés acima do mar." Sublinhou a afirmação com um aceno de cabeça. "Se quisessem, podiam vir comigo. Veriam como aquilo é alto." Fez uma pausa e os olhos toldaram-se-lhe duma névoa indecisa. Olhou para Thomas e depois mais longamente para Joseph. "creio que posso dizer-lhes", disse ele. "Sabem porque é que eu vivo ali nas arribas? Disse a razão a muito pouca gente. Di-la-ei a vossemecês, porque vêm passar a noite comigo." Levantou-se, para melhor narrar o seu segredo. "Sou o último homem deste lado do mundo a ver o Sol. Depois de ele ter desaparecido para toda a gente, eu vejo-o ainda durante um bocadinho. Tenho-o visto todas as noites, de há vinte anos para cá. A não ser quando está nevoeiro ou chuva, vejo o Sol a pôr-se todos os dias." Olhou primeiro para um e depois para o outro, sorrindo com orgulho. "às vezes", continuou, "tenho de ir à cidade para comprar sal, pimenta, tomilho e tabaco. Vou depressa. Parto depois do sol-posto e venho antes que ele se ponha outra vez. Hão-de ver como é esta noite." Olhou o céu com ansiedade. "São horas de irmos andando. Sigam-me. Vou matar um leitãozinho e assá-lo para o jantar. Vamos, sigam-me." Partiu numa meia corrida, seguido pelos burros, e o chocalho de prata tinia agudamente. "Anda", disse Joseph. "Vamos com ele." Mas Thomas puxou-o para trás. "O homem é maluco. Deixa-o lá ir." "Mas eu quero ir com ele, Thomas", disse Joseph, com ansiedade. "Não é nada maluco, nenhum maluco furioso. Quero ir com ele." Thomas tinha pela doença um pavor verdadeiramente animal. "Eu preferia não ir. Se formos, eu faço a cama cá fora, no mato." "Vamos já, senão perdemo-lo de vista." Incitaram os cavalos e desceram o monte pelo mato fora, por entre os troncos vermelhos das árvores. O velho caminhava tão depressa que eles já estavam quase a chegar ao sopé da encosta quando o avistaram. Fez-lhes de lá um aceno com a mão. O caminho deixava os barrancos onde havia pinhais e, passada uma zona árida, entrava num plaino estreito e comprido. As montanhas erguiam-se com o mar aos pés, e a casa do velho ficava a meia encosta. Por toda a planície havia um
manto de salva, tão alta que cobria um homem. A cem pés da falésia, a vegetação apagava-se de repente e à beira do abismo havia uma barraca de tarolos, eriçada de musgo enfiado nas fendas e coberta por um grande monte de erva seca. Ao lado da casa havia um chiqueiro pequeno, também feito de tarolos, e uma barraca para os burros, e uma horta, e um quadrado de trigo crescido. O velho estendeu os braços, com ar de proprietário. "Ora aqui têm a minha casa." Olhou para o sol, que baixava. "Ainda temos uma hora de sol. Reparem, aquela serra é toda azulada", disse ele, apontando-a. "É um monte de cobre." Começou a desaparelhar as bestas, pondo no chão as caixas de mantimentos. Joseph tirou a sela do cavalo e largou-o, e Thomas fez o mesmo, com certa relutância. Os burros sumiram-se a trote pelo mato fora, seguidos dos cavalos. "Damos logo com os cavalos, por causa do guizo", disse Joseph. "Agora já não largam os burros." O velho levou-os ao chiqueiro, onde uma dúzia de leitões bravos muito enfezados os olharam com desconfiança e tentaram abrir caminho contra a cerca. "Fui eu que os apanhei." Sorriu, orgulhoso. "Tenho muitas ratoeiras espalhadas por aí. Chegue cá, que eu mostro." Aproximou-se do telheiro baixo e, inclinando-se, mostrou-lhes vinte caixas pequenas de madeira disfarçadas com ramos de salgueiro entrelaçados. Lá dentro havia coelhos pardos, codornizes, tordos e esquilos, esgravatando a palha e espreitando através das grades de madeira. "Apanho tudo isto nas minhas ratoeiras de madeira. Guardo-os aqui até precisar deles." Thomas afastou-se. "Vou dar uma volta", disse secamente. "Vou descer pelas rochas até ao mar." O velho seguiu-o com os olhos. "Porque é que ele não gosta de mim?", perguntou a Joseph. "Porque tem ele medo de mim?" Joseph olhou afectuosamente o irmão. "Tem as suas coisas, como todos nós temos. Não gosta de ver animais engaiolados. Imagina logo que é ele que está naquela situação e impressiona-se com o medo que os bichos devem sentir. O medo é coisa que ele detesta. Assusta-se com muita facilidade." Suspirou. "Deixe-o lá ir sozinho. Não tarda nada que aqui esteja outra vez." O velho teve pena. "Podia ter-lhe dito qualquer coisa. Trato sempre bem os bichos. Não gosto de os assustar. Quando os mato, nem chegam a dar por isso. Vai ver se é ou não é assim." Contornaram a casa em direcção à falésia. Joseph apontou três cruzes espetadas na terra à beira do abismo. "Que cruzes são aquelas? Isto aqui não é lugar muito próprio para as pôr." O outro encarou-o, com ansiedade. "Gosta delas. Bem vejo que gosta delas. Conhecemo-nos um ao outro, meu amigo. Mas eu sei muita coisa que vossemecê não sabe. Tem de as aprender. Vou contar-lhe a história daquelas cruzes. Uma vez houve aqui uma tempestade. Durante uma semana, o mar andou escuro e danado. O vento vinha do centro das águas. Depois passou tudo. Olhei daqui, do alto, para a praia. Estavam lá três homens. Desci aquele caminho, que eu fiz com estas duas mãos que aqui vê. Encontrei três marinheiros que
o mar atirara à praia. Um era branco e dois de cor. O branco tinha uma medalha numa corrente à volta do pescoço. Trouxe-os para aqui. Foi o cabo dos trabalhos. E sepultei-os ao pé das rochas. Pus as cruzes por causa da medalha. Gosta das cruzes, não gosta?" Os olhos negros do velho fitavam Joseph, sem a menor expressão. E Joseph concordou com a cabeça. "Sim, gosto. Fez bem." "Então venha daí ver o lugar onde vejo o pôr do Sol. Vai gostar também, com certeza." Na sua precipitação, quase deu a volta à casa a correr. à beira da falésia construíra uma plataforma protegida por um gradeamento de madeira, atrás do qual havia um banco. à frente deste ficava uma enorme laje polida, assente sobre quatro cepos de madeira. Os dois homens chegaram à balaustrada olhando o mar azul, calmo e tão afastado que as enormes vagas pareciam pequenas pregas a desfazer-se lá em baixo, e o ruído da rebentação na praia era como um roçagar suave numa pele de tambor molhada. O velho apontou para o horizonte, onde pairava uma orla de névoa negra. "Vai ser bom", gritou ele. "Vai ser vermelho, o sol, com este nevoeiro. E uma noite boa para o porco." O Sol ia alastrando à medida que descia no céu. "Costuma sentar-se aqui todos os dias?", perguntou Joseph. "Nunca falha um dia?" "Nunca, a não ser quando as nuvens estão carregadas. Sou sempre a última pessoa a ver isto. Consulte um mapa, que vê como isto é verdade. Desaparece para toda a gente menos para mim." Gritou: "Estou para aqui a falar, e já devia estar mas era a preparar-me. Sente-se aí no banco." Deu a volta à casa, a correr. Joseph ouviu o grunhido desesperado dum leitão e a seguir o velho apareceu-lhe com o animal a debater-se-Lhe nos braços. Atara-lhe as pernas. Deitou-o na laje e afagou-o com a mão até o bicho se imobilizar, já calmo, grunhindo consolado. "Sabe?", disse ele. "O animal não deve chorar. Não sabe o que o espera. Está quase a chegar a hora." Tirou uma navalha de folha curta e passou-Lhe o gume pela palma da mão; e depois afagou o lombo do leitão com a mão esquerda e encarou o Sol, que descia na direcção da longínqua orla de névoa e parecia flutuar num mar limpo. "Cheguei mesmo a tempo", disse o velho. "Gosto sempre de chegar um bocadinho antes." "Mas que é isso?", perguntou Joseph. "Que vai fazer ao leitão?" O velhote levou um dedo aos lábios. "Psiu! Depois Lhe digo. Agora, psiu!" "É algum sacrifício? Está a sacrificar o leitão? Costuma matar um todas as noites?" "Oh, não. Não preciso de tanto. Mato um bicho qualquer todas as noites, um pássaro, um coelho, uma doninha. Sim, um bicho todas as noites. Agora está quase na hora." O disco do Sol rasou a névoa. Alterou-se-lhe a forma, ficou como uma ponta de lança, uma ampulheta, um pião. O mar tornou-se vermelho e as cristas das ondas tornaram-se longas lâminas de luz roxa. O velho voltou-se repentinamente para o altar de pedra. "Agora!", e cortou as goelas ao leitão. A luz vermelha banhava as montanhas e a casa. "Não
chores, irmãozinho." Ergueu o corpo que se sacudia em estremeções. "Não chores. Se tudo ficou como deve ser, morrerás quando o Sol morrer." Os estremeções foram enfraquecendo. Por momentos o Sol foi um arco raso de luz vermelha na muralha de névoa; e depois desapareceu, e o porco tinha morrido. Sentado muito tenso no banco, Joseph seguira atentamente o sacrifício. "Que teria descoberto este homem?", pensava ele. "Escolheu, de tudo quanto sabe, precisamente aquilo que o fazia feliz." Viu-lhe o olhar cheio de alegria, viu-o, no momento da morte, tornar-se mais direito, engrandecido e digno. "Este homem descobriu um segredo", disse de si para si. "Tem de mo contar, se for capaz disso." O companheiro sentou-se-lhe ao lado, no banco, e fitava a linha do horizonte onde o Sol desaparecera. E o mar era escuro e o vento que o fustigava abria nele montes de espuma. "Porque fez isto?", perguntou Joseph baixinho. O velho voltou a cabeça. "Porquê?", exclamou, com excitação. E logo se tornou mais calmo. "Não, vossemecê não está a fazer pouco de mim. O seu irmão julga que eu sou maluco. Bem sei. Por isso é que ele saiu de ao pé de nós. Mas vossemecê não acredite nisso. É uma pessoa esperta de mais para poder acreditar uma coisa dessas." Tornou a espraiar os olhos pelas águas sombrias. "Vossemecê pergunta-me por que razão é que eu observo o Sol - porque é que eu mato sempre um bicho qualquer quando ele desaparece." Fez uma pausa e passou os dedos nodosos pelo cabelo. "Não sei", disse calmamente. "Inventei algumas razões, mas não são verdadeiras. Disse para mim: "O Sol é a vida. Eu assim dou uma vida à vida... faço da morte do Sol um símbolo." Mas quando descobri estas razões vi que não eram certas." Voltou a cabeça, como que a pedir aprovação. Joseph cortou: "Isso tudo são palavras para vestir uma coisa nua; e essa coisa, vestida, torna-se ridícula." "Tal e qual. Desisti das razões. Faço isto somente porque me sinto bem a fazê-lo. Só por gostar de o fazer, mais nada." Joseph assentiu com convicção. "Se não fizesse isto, sentia-se mal. Como se tivesse deixado qualquer coisa por acabar." "Isso mesmo", gritou o velho. "Vossemecê percebeu tudo. Já tentei explicar isto uma vez. Mas a pessoa a quem falei não conseguiu perceber. Faço isto por mim. Não posso dizer que não faça bem ao Sol. Mas é por mim que o faço. Naquele momento, eu sou o Sol. Compreende? Por meio do animal, transformo-me no Sol. Quando morro, mato." Os olhos brilhavam-lhe de excitação. "Agora já sabe." "Sim", disse Joseph. "Agora compreendo. Compreendo o que isso representa para si. Para mim há ainda uma diferença em que não me atrevo a pensar. mas descanse que hei-de fazê-lo." "A coisa não veio imediatamente", exclamou o velho. "Agora já está quase afinada." Inclinou-se e pôs as mãos sobre os joelhos de Joseph. "Um dia há-de estar certa. O céu há-de estar limpo. O mar, limpo. A minha vida há-de atingir a calma. As montanhas aqui por trás avisar-me-ão quando chegar o
momento. Será então a boa altura, e a última." Sacudiu a cabeça com gravidade para a pedra onde jazia o leitão. "Quando isso acontecer, é a vez de ir eu próprio até ao horizonte do mundo e partir com o Sol. Agora já você sabe tudo. E isto está escondido em cada homem. às vezes está quase a revelar-se, mas o medo do homem falseia-o. Repele-o. O que daí resulta vem mudado - sangue nas mãos duma estátua, a emoção da história duma tortura antiga-, o dar ou tirar sangue no acto da cópula. E o caso", disse ele, "é que eu contei aos bichos das gaiolas o que era isto. E eles não têm medo. Está a julgar que sou doido?", perguntou. Joseph sorriu. "Sim, é doido. Thomas bem disse que o era. Burton diria também o mesmo. Ninguém acha seguro abrir na alma um caminho livre e direito para dar passagem às coisas que lá estão recalcadas. Faz bem pregar aos bichos que tem nas gaiolas, senão teriam de metê-lo também numa." O velho pôs-se de pé, pegou no leitão e levou-o. Foi buscar água e lavou a pedra do sangue que tinha, cobrindo o chão à volta com terra fresca. Era quase noite quando acabou de arranjar o leitão. Do cimo das serranias espreitava uma Lua pálida e enorme, iluminando as cristas brancas das ondas quando se levantavam e desapareciam. Na praia o marulhar das vagas tornara-se mais forte. Joseph sentou-se na pequena cabana enquanto o velho fazia rodar ao lume pedaços de leitão enfiados num espeto. Falava-lhe tranquilamente sobre a terra. "A salva é tão alta que me esconde a casa", dizia. "Há uma outra clareira pequenita no meio deste matagal de salvas. No Outono é lá que os veados se vão esconder. à noite ouço-lhes as pancadas dos chavelhos. Quando chega a Primavera, as fêmeas trazem as crias para lá para as ensinarem. Têm de aprender muita coisa se quiserem viver - quais os ruídos de que devem fugir, o que significa cada cheiro, a maneira de matarem cobras com os cascos." E acrescentou: "Todas estas serras são de metal: um bocado de rocha e o resto é tudo ferro negro e cobre vermelho. Deve ser isso." Sentiram passos lá fora. Thomas chamava: "Onde estás, Joseph?" Joseph levantou-se do chão da cabana e saiu. "O jantar está pronto. Anda comer", disse-lhe. Mas Thomas protestou. "Não quero estar na companhia desse homem. Tenho aqui abalones. Vem até à praia. Vamos fazer uma fogueira e cear lá. O luar indica-nos depois o caminho de volta." "Mas a ceia já está pronta", disse Joseph. "Ao menos entra para comeres qualquer coisa." Thomas entrou na cabana cautelosamente, como se receasse que de qualquer canto escuro lhe saltasse em cima uma fera. Além da luz da fogueira, não havia ali qualquer outra. O velho devorava a comida à dentada, lançava os ossos ao fogo e quando terminou ficou-se a olhar, sonolento, as chamas. Joseph sentou-se junto dele. "Donde é vossemecê? Porque é que veio para aqui?" "O quê?" "Estava a perguntar-lhe porque é que veio viver
sozinho para aqui." Os olhos sonolentos lampejaram por um momento, mas baixaram-se, taciturnos. "Não me lembro", disse ele. "Não me quero mesmo lembrar. Tinha de esmiuçar todo o meu passado para descobrir o que pretende. Para isso tinha de esbarrar com muita coisa da minha vida em que não quero mexer. É melhor deixar isso em paz." Thomas levantou-se. "Vou levar a minha manta para dormir lá fora." O irmão seguiu-o e saiu da cabana com um "boa noite" por cima do ombro. Ambos caminharam em silêncio em direcção aos rochedos e estenderam os cobertores na terra. "Vamos mais para cima amanhã", implorou Thomas. "Não gosto nada destes sítios." Joseph sentou-se no cobertor a olhar o tojo impreciso e vago do mar enluarado. "Amanhã volto para casa, Tom", disse ele. "Não posso estar longe de casa. Pode acontecer qualquer coisa." "Está bem, mas nós tencionávamos ficar três dias cá por fora", objectou o irmão. "Preciso de descansar da poeirada antes de me meter a levar as vacas para cem milhas de distância. E tu também." Joseph ficou longo tempo calado. "Thomas!", Perguntou, "já estás a dormir?" "Não." "Não vou contigo, Thomas. Tu podes levar o gado, que eu fico a tomar conta da herdade." Thomas voltou-se na cama. "Que estás tu a dizer? Não pode acontecer mal nenhum à herdade. O gado é que nós temos de salvar." "Tu levas o gado", repetiu Joseph. "Eu não posso deixar o rancho. Tinha pensado em partir, tinha decidido firmemente partir, mas não sou capaz. Para mim, era como se abandonasse uma pessoa doente." Thomas resmungou: "Ou como deixar um morto! Não vejo mal nenhum nisso." "Mas é que não está morta", protestou o irmão. "A chuva há-de voltar para o Inverno e na Primavera já os pastos hão-de estar bons e o rio a correr outra vez. Vais ver, Tom. Foi qualquer coisa estranha que motivou isto. Na Primavera que vem a terra há-de estar outra vez bem regada." Thomas escarneceu: "E casas-te outra vez, e nunca mais há-de haver outra seca." "talvez possa ser assim", disse Joseph sem irritação." "Então vem com a gente a San Joaquín ajudar-nos a levar o gado." Joseph viu os faróis dum navio que passava, muito ao longe, em pleno oceano, e levantou um dedo para calcular a velocidade com que se movia. "Não posso sair daqui". disse. "Aqui é que é a minha terra. Não sei porque é que ela é minha, ou o que é que é que a faz minha, mas não posso abandoná-la. Para a Primavera, quando a erva estiver crescida, verás, Não te lembras de como ela dantes estava verde nas colinas e até nos buracos das rochas e como a mostarda era amarela? Os tordos vermelhos costumavam fazer ninho nas raízes da mostarda." "Lembro-me de tudo isso", disse Thomas abruptamente. "E lembro-me também da terra esta manhã, seca
e queimada. Pois, e lembro-me das vacas mortas. Não posso esquecer isso depressa. É uma terra traiçoeira." Voltou-se de lado. "Se quiseres, podemos voltar amanhã. Tenho esperanças de que não te hás-de aguentar muito tempo naquele lugar amaldiçoado." "Tenho de ficar", disse Joseph. "Se eu fosse contigo. estaria sempre a querer voltar para saber se já tinha chovido, ou se havia água no rio. Não me servia de nada ir embora."
23
Acordaram num mundo toldado de névoa parda. A casa e os barracões eram simples sombras escuras na neblina e do fundo da falésia a rebentação chegava-lhes num som surdo e cavo. As mantas estavam húmidas. O orvalho salpicara-Lhes a cara e os cabelos. Joseph deu com o velho na cabana, sentado ao borralho, e disse-lhe: "Temos de ir embora logo que achemos os cavalos." O velhote pareceu ter pena. "Esperava que ficasse aqui mais algum tempo. Contei-lhe as coisas que sabia. Julgava que me iria contar as suas." Joseph sorriu com amargura. "Não tenho nada a contar. A minha ciência falhou. Como podemos nós descobrir os cavalos no meio do nevoeiro?" "Oh, deixe, que eu vou-Lhos buscar." Chegou à porta e soltou um assobio agudo, e imediatamente se ouviu o guizo de prata. Os burros vieram ter com ele, num trote miúdo, com os dois cavalos atrás. Os dois irmãos aparelharam os cavalos e amarraram-lhes as mantas, e depois Joseph voltou-se para se despedir do velho, mas este desaparecera no nevoeiro e nem sequer respondeu ao chamado de Joseph. "É maluco", disse Thomas. "Vamos embora." Meteram os cavalos a caminho, deixando-se conduzir por eles, pois o nevoeiro estava espesso de mais para que um homem se pudesse orientar. Chegaram aos barrancos onde o mato vicejava, cheios de pinheiros. As folhas pingavam orvalho e os farrapos de névoa agarravam-se aos troncos das árvores e lembravam bandeiras esfiapadas. Já tinham percorrido meio caminho quando a neblina começou a dissipar-se e a rasgar-se num turbilhão como uma legião de fantasmas surpreendidos pela luz do dia. Finalmente, o caminho surgiu por entre o nevoeiro e, olhando para trás, Joseph e Thomas viram aquele mar de névoa a tapar a vista do oceano e das vertentes da montanha. E daí a pouco já tinham chegado ao cume e olhavam para as terras que lhes pertenciam, o vale, seco e morto, a arder sob o sol furioso e a fumegar em ondas de calor. Pararam um pouco e olharam para trás, para a vegetação que vicejava no desfiladeiro por onde tinham vindo e para o mar cinzento de neblina. "Custa-me deixar isto", disse Thomas. "Se ao menos houvesse pasto para o gado, ia para lá." Joseph deitou também uma olhadela para trás e recomeçou a marcha. "São terras que não nos pertencem, Thomas. como se fossem uma bela mulher que não é nossa." Esporeou o cavalo sobre as pedras estaladas e em brasa. "O velhote tinha um segredo, Tom. Contou-me algumas coisas muito certas." "Ele era mas era maluco", insistiu Thomas. "Em qualquer outra parte já o teriam metido a ferros. Para que queria ele aqueles bichos engaiolados?" Joseph procurou uma explicação. Pôs-se a imaginar a maneira de começar. "Oh, guarda-os... para os comer", disse. "Não é fácil caçar a tiro, de maneira que ele tem os bichos engaiolados para assim que precisar deles." "Ah, mas isso não tem mal algum", disse Thomas, mais descansado. "Eu
julgava que havia qualquer coisa além disso. Se é só isso, não faz mal. A loucura não lhe deu para tratar mal os animais." "De maneira nenhuma", disse Joseph. "Se eu tivesse sabido isso, não me teria afastado. Estava com receio de que ele quisesse fazer qualquer cerimónia." "Tens sempre medo de qualquer ritual, Thomas. Sabes porquê?" Joseph refreou o cavalo de maneira que Thomas se pudesse aproximar. "Não, não sei", admitiu Thomas em voz lenta; "Lembram-me sempre uma ratoeira, uma espécie de armadilha." "Sim, talvez seja", exclamou Joseph. "Não tinha pensado nisso." Quando, descendo a encosta, chegaram à nascente do rio coberta de fetos e de musgo secos, arrastaram as bestas para a sombra dum loureiro. "Vamos passar o monte e arrebanhar todo o gado que encontrarmos", disse Thomas. Deixaram o rio e seguiram pela encosta, e a poeira levantava-se e ficava agarrada a eles. De súbito, Thomas empinou o cavalo e apontou a vertente. "Acolá, acolá." Numa clareira havia uns quinze ou vinte montes de ossos, e alguns coiotes que lhes andavam à volta correram a esconder-se no mato; abutres empoleiravam-se sobre as carcaças roídas, devorando os últimos pedaços de carne. O rosto de Thomas contraira-se. "Tal e qual o que eu já tinha visto. É por isto que eu não posso ver esta terra", gritou. "Vamos, tenho de ir para casa. Quero partir amanhã mesmo, se for possível." Impeliu o cavalo pela encosta abaixo e meteu-o a trote, fugindo daquele estendal de ossadas. Joseph não o perdeu de vista, mas não foi atrás dele. Sentia-se cheio de pesar e completamente derrotado. "Falhou-me qualquer coisa", pensava. "Fui encarregado de tratar das terras e fracassei." Estava decepcionado com ele mesmo e com a terra que lhe coubera. Mas dizia: "Não a hei-de abandonar. Heide ficar nela até ao fim. Quem sabe se ainda não morreu de todo." Pensou no rochedo do pinhal e começou a despontar nele uma certa excitação. "Gostava de saber se o rio já não corre. Se ainda levar alguma água, é sinal de que as terras ainda não morreram. Tenho de ir ver isso muito depressa." Dirigiu-se para o cume da cordilheira a tempo de poder ainda ver Thomas a galopar em direcção às casas da herdade. Tinham sido derrubadas as guardas que protegiam as medas de feno, agora com enormes buracos, que o gado, na sua voracidade, lhes abrira. à medida que se aproximava das reses, Joseph notava cada vez melhor como estavam magras e com os quadris quase a furarem o couro. Cavalgou para o local onde Thomas estava a falar com Manuel, o carreiro. "Quantas?", perguntava-lhe o irmão. "Quatrocentas e sessenta", disse Manuel. "Já morreu mais dum cento." "Mais dum cento!" Thomas afastou-se precipitadamente. Joseph viu-o entrar na cavalariça. Virou-se para o carreiro. Manuel encolheu levemente os ombros. "Vamos devagar. Talvez a gente encontre pasto. Talvez lá haja. Mas temos de perder algumas cabeças. E o seu irmão não quer perder uma única rês." "Deixa-as comer o feno todo", ordenou Joseph.
"Quando se tiver acabado, abalaremos." "Amanhã já não deve haver nenhum", disse Manuel. Carregavam as carroças no pátio: colchões, capoeiras de galinhas e utensílios de cozinha, empilhados cuidadosamente. Romas apareceu com outro carreiro para ajudar ao gado. Rama guiaria a carrinha e Thomas um carroção com aveia para os cavalos e dois barris de água. Nas carroças já estavam as tendas enroladas, mantimentos, três porcos de engorda e dois gansos. Levavam o bastante para lhes durar até ao Inverno. à noitinha Joseph sentou-se à porta de casa, observando os restos dos preparativos, e Rama abandonou os afazeres para vir ter com ele, sentando-se à soleira da entrada. "Porque queres ficar cá?", perguntou-lhe ela. "Alguém tem de cá ficar para tomar conta disto, Rama." "Mas que é que aqui fica para ser guardado? O Thomas tem razão, Joseph; aqui já não fica nada." Os olhos do homem buscaram os pinheiros escuros da serrania. "Sempre fica qualquer coisa, Rama. E eu cá estarei junto das terras." Ela suspirou fundo. "Queres que eu tome conta do menino, não é?" "Sim. Eu não sei tratar dele." "Bem sabes que não vai ser lá muito bom para ele viver numa tenda." "Não queres levá-lo, Rama?", perguntou ele. "Quero, sim. Quero-o para mim." Joseph voltou-se e olhou outra vez o pinhal. O Sol, no ocaso escondia-se sobre Puerto Suelo. Joseph lembrou-se do velho e do ritual do seu sacrifício. "Porque é que queres a criança?", sussurrou. "Porque também é tua." "Gostas de mim, Rama? É por isso?" A mulher susteve bruscamente a respiração na garganta. "Não", gritou, "quase te odeio." "Então fica com ele", disse ele prontamente. "É teu. Juro-te que é teu para sempre. Nunca to pedirei." E voltou-se muito rápido para o pinhal das montanhas, como se lhe pedisse uma resposta. "Como é que me garantes isso?", tornou Rama, apreensiva. "Quando eu me habituar a tê-lo só para mim, quando ele já me tratar como mãe, quem é que me garante que tu não voltas para mo tirar?" Joseph sorriu para ela e sentiu a calma do costume a apossar-se dele. Apontou para a árvore nua e morta ao pé do alpendre. "Olha, Rama! Ali tens a minha árvore. Era o centro da herdade, uma espécie de mãe destas terras. E Burton matou-a." Parou, ficou-se a puxar a barba, a revirar-lhe a ponta para baixo como o pai fizera antes dele. Os olhos tombavam-lhe de dor e apertavam-se-lhe ao mesmo tempo para resistirem ao desgosto. "Olha para aquela serra dos pinheiros, Rama", disse. "No bosque há uma clareira e no meio dela um rochedo. Foi ele que matou a Elizabeth. E naquela encosta estão as sepulturas do Benjy e dela." Rama olhava-o, sem compreender. "A terra está doente", continuou ele. "Está vencida por uma força grande de mais para ela, mas não está morta. E é por isso que eu fico aqui, para
a defender." "Mas o que tem isso que ver comigo?", perguntou ela. "Comigo ou com a criança?" "O que tem não sei. Mas deve ajudar. Isto de te dar o menino deve ajudar a terra." Ela puxou nervosamente o cabelo para trás, alisando-o na risca. "cQueres dizer que estás sacrificando a criança? É isso, Joseph?" "Não sei que nome dar a isso", respondeu. "Procuro ajudar a terra, e assim não há perigo de eu ficar com a criança novamente." Então ela levantou-se e lentamente afastou-se dele. "Adeus, Joseph", disse. "Vou-me embora de manhã, e estou contente, porque desde este momento ficaria sempre com medo de ti. Terei sempre medo." Os lábios tremiam-lhe e tinha os olhos rasos de lágrimas. "Pobre homem solitário!" Afastou-se rapidamente em direcção a casa, mas Joseph sorria gravemente, com o olhar levantado para o pinhal. "Daqui em diante somos um só", pensou, "e agora estamos sozinhos; e trabalharemos juntos." Uma brisa descia das montanhas e levantava no ar uma nuvem de poeira sufocante. O gado ruminou feno toda a noite. Os carros partiram muito antes de amanhecer. Durante duas horas as lanternas andaram dum lado para o outro. Rama trouxe o primeiro almoço para as crianças e acomodou-as em lugar sseguro, em cima da bagagem. Pôs o mais pequenito na sua alcofa no fundo da carroça, em frente dela. Por fim tudo ficou pronto; atrelaram os cavalos. Rama trepou para o seu lugar, com Thomas em terra a seu lado. Joseph foi ter com eles. Ficaram parados na escuridão, todos eles inconscientemente a cheirar o ar. As crianças estavam muito sossegadas. Rama estendeu o pé para o travão. Thomas suspirou profundamente. "Escrevo-te notícias quando lá chegarmos", disse ele. "Fico-as esperando", respondeu Joseph. "Bem, é melhor pormo-nos a andar." "Vocês param durante as horas de calor?" "Se encontrarmos uma árvore que nos abrigue. Bom, adeus", disse Thomas. "O caminho é comprido." Um dos cavalos baixou o pescoço contra a gamarra e raspou com as patas no solo. "Adeus, Thomas. Adeus, Rama." "Farei que o Thomas te mande notícias do pequenito", disse Rama. Thomas continuava à espera. Mas de repente voltou-se e afastou-se sem dizer mais nada. O travão do seu carro chiou por algum tempo e os eixos rangeram sob a carga. Rama pôs os seus cavalos em andamento e as parelhas partiram. Martha, no cimo da bagagem, chorava amargamente porque ninguém a podia ver a dizer adeus com o lenço. As outras crianças tinham adormecido, mas Martha acordou-as. "Vamos para um lugar mau", disse ela, baixinho, "mas estou contente por irmos, porque este sítio vai arder daqui a uma ou duas semanas." Joseph ouviu o ranger das rodas até depois de as parelhas terem desaparecido. Foi andando vagarosamente até à casa que tinha sido de Juanito, onde os
guardadores de gado estavam acabando de tomar o seu café e carne frita. Quando a primeira luz da madrugada apareceu esvaziaram as chávenas e levantaram-se pesadamente. Romas foi ao curral com Joseph. "Leva-os devagar", disse Joseph. "Claro que levo. São todos bons cavaleiros, Sr. Wayne. Conheço-os a todos." Os homens estavam cansadamente a pôr os arreios aos cavalos. Uma matilha de seis cães de gado, de pêlo comprido levantou-se da poeira e dirigiu-se para o trabalho, cães sérios e cansados. Rompia uma aurora vermelha. Os cães puseram-se em linha. Depois o portão do curral abriu-se de par em par e a manada partiu, com três cães de cada lado, para os manter na estrada, e os cavaleiros atrás, a fechar a marcha. Aos primeiros passos a poeira encheu o ar. Os cavaleiros puxaram dos seus lenços e ataram-nos sobre o nariz. Cem metros mais adiante a manada tinha quase desaparecido na nuvem de pó. Depois rompeu o sol e a nuvem tornou-se vermelha. Joseph ficou perto do curral, a olhar para a linha de poeira que se arrastava como uma mmhoca sobre a terra e se espalhava na retaguarda numa neblina amarelada. Por fim a densa nuvem passou para o outro lado do monte, mas a poeira continuou suspensa no ar horas e horas. Joseph sentiu o cansaço da longa jornada. O ardor do sol queimou-o e o pó encheu-Lhe o nariz. Por muito tempo não se mexeu do seu lugar, parado a olhar a atmosfera carregada de pó por onde a manada tinha passado. E estava cheio de tristeza. "O gado foi-se embora para sempre", pensou. "Muitos dos animais nasceram aqui, e agora partiram." Recordou os bezerros, de pelagem lustrosa e brilhante das lambidelas das mães, e como eles acamavam a relva para dormir, à noite. Recordou o lamentoso mugir das vacas quando os bezerros se perdiam e agora não tinha ficado nem uma vaca. Por fim voltou-se para as casas mortas, para o celeiro vazio e para a grande árvore sem vida. Não podia haver sossego maior. A porta do celeiro, escancarada, balouçava nos gonzos. A casa de Rama estava aberta também. Viam-se lá dentro as cadeiras e o fogão areado. Apanhou do chão um bocado de arame de enfardar, enrolou-o e pendurou-o na sebe. Entrou no celeiro, vazio. No chão, na palha enfardada, havia torrões negros e duros. Só um cavalo tinha ficado. Joseph desceu o comprido corredor das baias desocupadas e no espírito reconstituiu tudo que ali se tinha passado. "Esta é a baia onde Thomas se sentava quando a arrecadação estava cheia de feno." Levantou a vista e tentou imaginar como fora aquilo tudo. O ar rendilhava-se de fitas de sol amarelas e brilhantes. As três corujas estavam sentadas no vigamento do telhado, já em cima, de bicos voltados para as paredes escuras. Joseph foi à casa da ração e trouxe mais uma medida de cevada e deitou-a na manjedoura, depois trouxe outra medida e espalhou-a no chão, fora da porta. Vagueou lentamente pelo pátio. Teria sido agora que Rama sairia com um balde de roupa lavada para pendurar na corda: os aventais encarnados e fatos de macaco azul-pálidos, de tanto lavados, e bibezinhos azuis e saias de malha vermelhas
das garotas. E teria sido neste momento que os cavalos sairiam da estrebaria para estenderem os pescoços sobre a selha e resfolegarem formando bolhas na água. Joseph nunca sentira como agora a necessidade de trabalhar. Percorreu todas as casas, fechou as portas e janelas e pregou as portas dos barracões. Em casa de Rama apanhou um esfregão húmido do chão e pendurou-o nas costas duma cadeira. Rama era uma mulher asseada; as gavetas da secretária estavam fechadas e o chão varrido, a vassoura e o pano do pó estavam no seu lugar e o fogão fora limpo nessa manhã. Joseph levantou a tampa do fogão e viu as últimas brasas a empalidecer. Quando fechou a porta da casa de Rama, sentiu-se tão culpado como nos sentimos quando a tampa dum caixão é fechada pela última vez e deixarnos o morto abandonado e sozinho. Voltou à sua própria casa, puxou as roupas da cama e acarretou lenha para a refeição da noite. Varreu a casa, limpou o fogão e deu corda ao relógio. Tudo ficou pronto antes do meio-dia. Quando acabou, foi sentar-se no alpendre da frente. O sol inundava o pátio e brilhava nos bocadinhos de vidro partido. A atmosfera estaVa parada e quente mas alguns pássaros saltitavam por ali, apanhando os grãos que Joseph tinha espalhado. E, levado pela novidade do abandono do rancho, um esquilo atravessa rapidamente o pátio sem receio e uma doninha correu sobre ele, mas não o apanhou, e os dois rolaram no pó. Um sapo saiu da poeira, arrastou-se até ao primeiro degrau do portal e instalou-se para apanhar moscas. Joseph ouviu o cavalo a escarvar o chão e sentiu simpatia por ele, por fazer barulho. O silêncio embrutecia-o. O tempo tornava-se vagaroso e cada pensamento escoava-se-lhe tão lentamente no cérebro como há pouco o sapo ao sair da poeira fina da estrada. Joseph ergueu a vista para os montes secos e brancos e contraíram-se-lhe os olhos com o reflexo intenso do sol. Os seus olhos seguiram as cicatrizes da água na montanha até às nascentes secas, as serras escalvadas. E, como sempre, fixaram-se, por fim, no pinhal da crista da serra. Por muito tempo o olhou; depois levantou-se e desceu os degraus. E caminhou em direcção ao pinhal e subiu pausadamente a encosta suave. Uma única vez, ainda no sopé da montanha, olhou para trás, para as casas pobres, amontoadas sob o sol. A camisa escurecia-lhe com a transpiração. A pequena nuvem de pó que ele próprio levantava seguia-o; e ele continuava a andar, a andar, na direcção das árvores negras. Por fim chegou à ravina onde o riacho do bosque corria. Havia nela um fio de água e a erva verde crescia nas margens. Um pezinho de agriões flutuava ainda na água. Joseph cavou um buraco no leito debaixo da pequena corrente e quando a água ficou límpida ajoelhou e bebeu, sentindo a frescura molhada na face. Depois foi andando, e o riacho alargava-se e a tira de erva tornava-se maior. Onde corria mais perto da ravina, alguns fetos cresciam na terra escura e musgosa, fora do alcance do sol. Um pouco de desolação que o oprimia abandonou-o. "Eu bem sabia que ainda cá estava", murmurou. "Não podia faltar a água naquele sítio." Tirou o chapéu e continuou rapidamente.
Entrou na clareira de chapéu na mão e ficou-se a olhar o rochedo. O musgo espesso estava a tornar-se amarelento e seco e os fetos em volta da abertura tinham perdido o viço. A corrente ainda passava pela abertura do rochedo, mas não era nem a quarta parte do que tinha sido. Joseph caminhou apreensivo para o rochedo e arrancou algum musgo. Ainda não estava seco. Fez um buraco no leito do riacho, um buraco fundo, e quando o viu cheio encheu com essa água o chapéu e atirou-a depois para a rocha; e ficou a vê-la ser absorvida pelo musgo ressequido. O buraco encheu devagar. Foram precisos uns poucos de chapéus repletos de água para humedecer o musgo; e o musgo absorveu-a sequiosamente e não mostrou sinais de ter sido molhado. Lançou água sobre as cicatrizes deixadas pelos pés de Elizabeth ao escorregar. Disse: "Amanhã hei-de trazer um balde e uma pá. Assim será mais fácil." Enquanto trabalhava sentiu que a rocha já não era uma entidade separada dele. Não tinha por ela mais afeição do que pelo seu próprio corpo. Protegia-a da morte como teria lutado pela própria vida. Quando acabou de lançar a água, sentou-se ao lado da poça e lavou a cara e o pescoço na água fria e bebeu pelo chapéu. Depois encostou-se ao rochedo e olhou para o círculo protector das árvores negras. Pensou no campo fora da clareira; nos montes duros e queimados, na erva cinzenta e em pó. "Aqui há segurança", pensou ele. "Está aqui a semente que se conservará viva até as chuvas voltarem. É este o coração da terra, e o coração bate ainda." Joseph sentia a humidade do musgo regado a ensopar-lhe a camisa: e continuava a pensar: "Porque será que a terra parece vingativa, agora, que está morta?" Pensou nos montes como cobras cegas com a pele rasgada e a descascar jazendo à espera à volta desta fortaleza onde a água ainda corria. Lembrou-se da maneira como a terra chupava o seu riacho uns cem metros adiante. "A terra é selvagem", pensou ele, "como um cão faminto." E sorriu deste pensamento porque quase acreditava nele. "A terra entraria aqui, e faria desaparecer este regato, e bebia o meu sangue, se pudesse. Está doida de sede." Baixou o olhar sobre o riacho que se escapava pela clareira. "sAqui está a semente que dará vida à terra. Temos de ter cuidado com a terra enlouquecida. Temos de utilizar a água para proteger o coração, senão o provar da água pode compelir a terra a atacar-nos." A tarde já se adiantava agora; a sombra da linha das árvores atravessava o rochedo e terminava no outro lado do círculo. Havia paz na clareira. "Cheguei a tempo", disse Joseph ao rochedo e a si mesmo. "Esperaremos aqui, barricados contra a seca." Daí a pouco a cabeça tombava-lhe para a frente e adormeceu. O Sol escondeu-se por detrás dos montes e a noite chegou antes que ele acordasse. Os mochos esvoaçavam a caçar, à luz das estrelas, e a brisa que se segue ao anoitecer varria levemente os montes. Joseph acordou e olhou para o céu negro. Num momento o seu cérebro sacudiu o sono e reconheceu o sítio onde estava. "Mas aconteceu uma coisa estranha",
pensou ele. "Vivo agora aqui." As casas da herdade. lá em baixo no vale, já não eram o seu lar. Ia descer a colina e depressa voltaria à protecção amiga da clareira. Levantou-se e esticou os músculos adormecidos e depois afastou-se tranquilamente do rochedo; e quando alcançou o exterior caminhou cautelosamente como se temesse acordar a terra. Desta vez não havia nas casas luzes que o guiassem. Caminhava na direcção que a memória lhe indicava. Quando deu pelas casas, já estava perto delas. Selou então o cavalo e atou ao selim cobertores, um saco de aveia, toucinho fumado, três presuntos e um grande saco de café. Por fim afastou-se cautelosamente outra vez, levando à mão o cavalo carregado. As casas dormiam; a terra sussurrava ao vento da noite. Ouviu a certa altura qualquer animal pesado a andar no matagal e o cabelo eriçou-se-lhe com medo; e só continuou para diante depois de os passos deixarem de ouvir-se. Tornou a chegar à clareira quase ao alvorecer. Desta vez o cavalo não se negou à vereda. Joseph prendeu-o a uma árvore e deu-lhe de comer do saco de cevada; depois voltou ao rochedo e estendeu os cobertores perto da pequena lagoa que cavara. Já clareava a manhã quando se deitou para dormir em segurança ao lado do rochedo. Um pedacinho de nuvem esfarrapada, lá em cima incendiou-se com o Sol ainda escondido, e Joseph adormeceu a olhar para ela.
24
Embora o Outono viesse e as semanas somassem meses, o calor do Verão continuava, e por fim retirou-se tão gradualmente que nem se notou a mudança de estação. Os pombos que voavam à beira da água já tinham partido havia muito; e os patos-bravos que passavam procuravam em vão, à noite, os charcos para descansar e continuavam para diante, a voar fatigadamente, enquanto os mais fracos pousavam nos campos secos e se reuniam a qualquer outro bando, de manhã. Ainda o ar não refrescara nem o Inverno parecera dever começar e já era Novembro; e nessa altura a terra estava completamente seca. Até o musgo morto se soltava das pedras. As semanas quentes prolongaram-se e Joseph continuava a viver na clareira do pinhal, à espera do Inverno. Todas as manhãs levava água do charco fundo que cavara e regava o rochedo coberto de musgo, e à noite voltava a regá-lo. O musgo respondera; estava lustroso, espesso e verde. E em toda a terra não havia mais nada verde senão ele. Joseph examinava-o cuidadosamente, para ver se não aparecia qualquer sinal de secura. O regato diminuía aos poucos, mas o Inverno aproximava-se e havia ainda água bastante para conservar o rochedo a pingar de húmido. De duas em duas semanas Joseph atravessava a cavalo os montes escalvados para ir a Nossa Senhora buscar mantimentos. No princípio do Outono encontrou uma carta. Thomas só escrevia informações: "Aqui há erva. Perdemos trezentas cabeças de gado no caminho para cá. Os que ficaram estão gordos. Rama e as crianças estão bem. A renda das pastagens é muito cara por causa da seca. As crianças nadam no rio." Joseph encontrou Romas na cidade, e Romas contou-lhe melancolicamente o percurso sobre as montanhas. Contou-lhe como as vacas caíam uma por uma e não se levantavam quando espicaçadas, ficando-se a olhar o céu com ar exausto. Romas sabia avaliar-lhes bem o estado. Fitou-lhes os olhos, e depois abateu a tiro as pobres bestas cansadas, cujo olhar fatigado ficou parado e vítreo, mas não se alterou. Pouco pasto e pouca água - as manadas em movimento enchiam a estrada e os lavradores, no percurso, eram hostis. Fiscalizavam as suas sebes e abatiam a tiro todo o animal que as atravessasse. As estradas estavam ladeadas de esqueletos cobertos de pó e o caminho inpregnado do fedor da carne putrefacta. Receando que as crianças adoecessem devido ao mau cheiro, Rama cobria-lhes as caras com lenços molhados. As milhas percorridas diariamente iam diminuindo e os animais, fatigados, descansavam toda a noite, sem procurarem alimento. à medida que a manada ia minguando, mandavam para trás um cavaleiro, depois outro; mas Romas ia ficando, assim como os dois homens de casa, até que o pequeno grupo atingiu o rio e se ajoelhou a descansar para comer durante toda a noite. Romas sorria ao contá-lo, com uma voz calma e sem inflexões. Ao terminar o seu relato afastou-se rapidamente, dizendo por cima do ombro: "O seu irmão pagou-me", e entrou na taberna, desaparecendo lá dentro.
Enquanto Joseph escutava a narrativa, uma dor surda invadia-Lhe o estômago; e ficou contente quando Romas se afastou. Comprou os mantimentos e cavalgou outra vez para a barricada. Desta vez não reparava na terra seca, fendida em longas linhas ziguezagueantes. Não sentia a fraca pressão do mato ressequido enquanto o atravessava. O seu espírito era como uma estrada poeirenta; e o gado fatigado morria no seu cérebro. Tinha pena de ter escutado, pois que agora este novo inimigo seria mais uma força contra os pinheiros protectores. Já morrera o mato miúdo no pequeno bosque, mas os troncos aprumados ainda protegiam o rochedo. A seca primeiro arrastou-se pelo solo, matando todas as vinhas rasteiras e os arbustos, mas as raízes dos pinheiros atingiam a profundidade do rochedo e ainda sorviam um pouco de água; e a ramaria conservava a sua cor verde-escura. Joseph voltou à clareira e apalpou o rochedo, para se certificar de que estava ainda húmido, e examinou o pequeno fio de água. Foi esta a primeira vez que pôs as marcas na margem da água, para determinar a rapidez com que ela descia. Em Dezembro a geada negra assolou o país. O Sol nascia e desaparecia num clarão vermelho e o vento norte varria o campo o dia inteiro, enchendo o ar de poeira e esfarrapando as folhas secas. Joseph foi lá abaixo às casas e trouxe uma tenda para dormir. Enquanto esteve entre as casas silenciosas pôs em movimento o moinho de vento e ficou um momento a escutá-lo a sugar o ar pelos canos; depois deu volta à manivela que parava as asas. Não voltou a olhar as casas quando subia a colina e descreveu uma larga curva para passar ao largo das sepulturas na encosta. Nessa tarde viu o nevoeiro na serra ocidental. "Eu podia ir ter outra vez com o velho", pensou. "Pode ser que ele tenha mais coisas a contar-me." Mas a sua ideia não passava dum devaneio. Sabia que não deixaria o rochedo, com receio de que o musgo secasse. Voltou à clareira silenciosa e armou a tenda. Puxou do balde de entre os outros utensílios e deitou água sobre o rochedo. Sucedera qualquer coisa. O riacho baixara umas duas boas polegadas. Algures por debaixo da terra, a seca atacara a fonte. Joseph encheu o balde no charco, deitando a água sobre o rochedo; depois encheu-o novamente. E depressa o charCo se esvaziou; teve de esperar meia hora primeiro que o riacho agonizante o enchesse novamente. Pela primeira vez, sentiu-se invadido pelo pânico. Arrastou-se para dentro da pequena gruta e examinou a fenda por onde a água escorria lentamente; e saiu novamente de rastos, coberto pela humidade da gruta. Sentou-se junto ao regato, vendo-o correr para o charco, e enquanto o mirava parecia-lhe que o via diminuir. O vento abanava nervosamente os ramos dos pinheiros. "Há-de ganhar", disse Joseph em voz alta. "A seca há-de vencer-nos." Estava assustado. De tarde saiu, azinhaga fora, e foi contemplar o pôr do Sol em Puerto Suelo. O nevoeiro surgiu, vindo do mar escondido, e encobriu o Sol. Na tarde agreste de Inverno, Joseph apanhou uma braçada de ramos secos dos pinheiros e um saco de pinhas para fazer a sua fogueira. Nessa noite acendeu a fogueira junto ao charco, de modo que a luz incidisse sobre
o pequeno regato. Terminada a sua parca ceia, encostou-se à sela e ficou a olhar a água que deslizava silenciosamente para o charco. O vento caíra e os pinheiros estavam tranquilos. Em volta do pequeno bosque, Joseph pressentia a seca a avançar, a rastejar, como uma serpente sobre as escamas secas, circundando e explorando os bordos do bosque. E ouvia o suspiro seco e assustado da terra à medida que a seca passava por cima dela. Pôs-se então de pé, mergulhando o balde no charco, por debaixo do regato, e de cada vez que ele se enchia vazava-o sobre o rochedo e sentava-se novamente, à espera de que o balde estivesse outra vez cheio. Parecia que de cada vez levava mais tempo a encher o balde. As corujas cortavam os ares repetidamente, pois havia poucos bichos a apanhar. Joseph ouviu então um lento bater na terra. Parou de respirar para escutar. "Está agora a subir a colina. Esta noite chega até cá." Respirou fundo e ficou-se de novo à escuta do batuque ritmado, e murmurou: "Quando aqui chegar, a terra estará morta e o regato cessará." O som subia lentamente a colina, e Joseph, encurralado com o rochedo escutava o seu avanço. Depois o cavalo levantou a cabeça e relinchou, e um relincho respondeu-lhe da encosta, abaixo do bosque. Joseph pôs-se de pé junto à pequena fogueira, esperando de ombros direitos e cabeça erguida, para aparar o golpe. à luz fraca da noite viu avançar um cavaleiro, que penetrou na clareira e fez estacar o cavalo. O cavaleiro parecia mais alto do que os pinheiros, e dir-se-ia que uma pálida luz azul lhe emoldurava a cabeça. Mas a sua voz chamou baixinho: "Senhor Wayne!" Joseph suspirou e distenderam-se os seus músculos. "És tu, Juanito", disse pesadamente. "Conheço-te a voz." Juanito apeou-se e prendeu o cavalo, depois encaminhou-se para a fogueira. "Fui primeiro a Nuestra Senhora. Disseram-me que estava sozinho. Fui à fazenda e encontrei as casas desertas." "Como te lembraste de me procurar aqui?", perguntou Joseph. Juanito ajoelhou-se junto ao lume aquecendo as mãos e lançando-lhe raminhos para avivar a labareda. "Lembrei-me do que uma vez disse ao seu irmão, senhor. Disse-Lhe: "- Este sítio é como água fresca." Atravessei as colinas secas e sabia onde havia de o encontrar." Agora, que as labaredas subiam, encarou Joseph. "Não está bem, senhor. Está magro e doente." "Estou bem, Juanito." "Tem um aspecto seco e febril. Devia ir ao médico amanhã." "Não, estou bem. Porque voltaste atrás, Juanito?" Juanito sorriu com a recordação de uma dor. "O impulso que me levou tinha desaparecido, senhor. Percebi isso quando ele se esvaiu e quis voltar. Eu tenho um filhito, senhor. Vi-o esta noite. Parece-se comigo, tem olhos azuis, e já fala um pouco. O avô chama-lhe Chango e diz que é um piojo pequeno, e ri-se. Aquele García é um homem feliz." O rosto iluminara-se-lhe com toda aquela alegria, mas entristecia outra vez. "O senhor... Contaram-me a sua história e da pobre senhora. Há velas a arder por ela. Joseph abanou um pouco a cabeça, defendendo-se
da recordação. "Isto estava a vir, Juanito. Senti-o a crescer sobre nós. E agora está quase pronto; só resta esta pequena ilha." "O que quer dizer com isso, senhor?" "Escuta, Juanito: primeiro havia a terra; depois, vim eu guardar a terra; e agora a terra está quase morta. Só restam este rochedo e eu. Eu sou a terra." O olhar tornou-se triste. "A Elizabeth uma vez contou-me de um homem que fugira às velhas Parcas. Agarrou-se a um altar onde estava seguro." Joseph sorriu, recordando. "Elizabeth tinha histórias para tudo o que acontecia, histórias que corriam ao lado dos acontecimentos e indicavam como eles terminariam." Fez-se um silêncio entre eles. Juanito quebrou mais raminhos e atirou-os ao lume. Joseph perguntou: "Para onde foste, Juanito, quando abalaste?" "Fui a Nuestra Senhora. Encontrei o Willie e levei-o comigo." Olhou atentamente para Joseph. "Foi o sonho, senhor. Lembra-se do sonho? Ele contou-mo muitas vezes. Sonhava que estava sobre uma terra dura e poeirenta que brilhava. Havia buracos no chão. Os homens que saíam dos buracos faziam-no em bocados como uma mosca. Era um sonho. Levei-o comigo, pobre Willie. Fomos a Santa Cruz e trabalhámos numa quinta da vizinhança, nos montes. O Willie gostava das grandes árvores das colinas. O país era tão diferente do do sonho, entende?" Juanito parou de falar e levantou os olhos para o céu, mirando a meia-lua que surgia por cima do topo das árvores. "Um momento", disse Joseph; e, levantando do buraco o balde cheio, atirou a água de encontro ao rochedo. Juanito observou-o sem comentários. "Já não gosto da Lua", continuou Juanito. "Trabalhámos lá na montanha, guardando o gado entre as árvores, e o Willie andava satisfeito. às vezes lá tinha o sonho, mas eu estava sempre ao pé para o ajudar. E depois de cada vez que ele sonhava íamos a Santa Cruz beber whisky e visitar as raparigas." Juanito puxou para baixo o chapéu, para encobrir a cara do luar. "Uma noite, Willie teve o seu sonho, e na noite seguinte fomos à cidade. Há uma praia em Santa Cruz, e divertimentos, tendas e carrinhos para passear. Willie gostava dessas coisas. Passeámos à tarde ao longo da praia, e havia lá um homem com um telescópio para ver a Lua. Custava aquilo cinco cêntimos. Primeiro olhei eu e depois olhou o Willie." Juanito afastou-se de Joseph. "O Willie ficou muito doente", disse ele; "levei-o à minha frente na sela, com o cavalo dele à arreata. Mas o Willie não podia mais e nessa noite enforcou-se numa árvore com uma rédea. Ia tudo muito bem enquanto ele julgou que aquilo era um sonho, mas quando viu que a terra realmente existia, e não era sonho, não pôde suportar a vida. Aqueles buracos, senhor... e aquela terra seca e morta. Estava realmente ali, compreende. Ele viu-a no telescópio." Partiu alguns ramos e deitou-os no lume. "Encontrei-o enforcado na manhã seguinte." Joseph endireitou-se bruscamente. "Atiça a fogueira, Juanito. Vou pôr café a aquecer. A noite hoje está fria." Juanito partiu mais ramos, fazendo em pedaços um tronco seco com o calcanhar da bota. "Eu queria voltar,
senhor. Sentia-me só. Já lhe passou aquilo." "Já. Nunca esteve em mim. Não há aqui nada para ti. Só eu estou aqui." Juanito estendeu o braço como que para tocar no braço de Joseph mas voltou a encolhê-lo. "Porque fica? Dizem que levaram o gado e toda a sua família se foi. Venha comigo para fora desta terra, senhor." Juanito observou o rosto de Joseph à luz da fogueira e notou como o seu olhar se tornava duro. "Só há o rochedo e o regato. Eu sei como vai ser. O regato desce já. Daqui a pouco desaparece, e o musgo tornar-se-á amarelo, e depois castanho, e esfarela-se nas mãos. Então só eu restarei. E ficarei aqui." O seu olhar era febril. "Ficarei até morrer. E quando isso acontecer não restará coisa alguma." "Eu ficarei consigo", disse Juanito. "As chuvas hão-de vir. Esperarei consigo até que venham as chuvas." Mas Joseph baixou a cabeça. "Não te quero aqui", disse tristemente. "Isso tornaria a espera demasiado longa. Agora só há noite e dia, e escuro e claro. Se tu ficasses, haveria milhares de outros intervalos para esticar o tempo, intervalos entre palavras, entre passadas. O Natal está perto?", perguntou subitamente. "O Natal já passou", disse Juanito. "Daqui a dois dias é o Ano Novo." "Ah!" Joseph suspirou e, encostando-se para trás à sela, cofiou a barba ciosamente. "Um ano novo", disse, de mansinho. "Quando vinhas para aqui viste algumas nuvens, Juanito?" "Não havia nuvens, senhor. Pareceu-me que havia um pouco de nevoeiro, mas - veja - a Lua não tem círculo." "Pode ser que de manhã haja nuvens", disse Joseph. "Estamos tão perto do Ano Novo, pode ser que haja nuvens." Novamente pegou no balde e lançou a água de encontro ao rochedo. Quedaram-se silenciosos junto à fogueira, que alimentavam de vez em quando com raminhos, enquanto a Lua caminhava pela abóbada celeste. A geada começou a cair; Joseph deu um dos seus cobertores a Juanito para ele enrolar nele o corpo e esperaram que o balde se enchesse lentamente. Juanito não fez quaisquer perguntas quanto ao rochedo, mas duma vez Joseph explicou: "Não posso permitir que se desperdice nenhuma água. Não há que chegue." Juanito despertou. "O senhor não está bem." "Está visto que estou bem. Não trabalho e como pouco, mas estou bem." "Já pensou em falar com o padre ângelo?", perguntou subitamente Juanito. "O padre? Não. Porque lhe havia eu de falar?" Juanito fez um gesto com as mãos como que para depreciar a ideia. "Não sei porquê. É um homem sábio e um padre. Está perto de Deus." "O que poderia ele fazer?", interrogou Joseph. "Não sei, senhor, mas ele é um homem sábio e um padre. Antes de me ir embora, depois daquilo, fui ter com ele e confessei-me. É um homem sábio. Ele disse que o senhor também era sábio. Disse-me: "- Há-de chegar o dia em que aquele homem virá bater-me
à porta." Foi isso o que disse o padre Ângelo. "- Ele virá um dia", disse ele. "Pode ser que venha de noite. Na sua sapiência, necessitará de força." É um homem estranho, senhor. Ouve as confissões e impõe as penitências e outras vezes fala e o povo não o entende. Ele olha-nos por cima das cabeças e não se importa se entendem ou não. Algumas pessoas não gostam. Têm medo." Joseph inclinara-se para a frente com interesse. "cQue poderia eu querer dele?",, perguntou. "Que poderia ele dar-me que eu agora precise?" "Não sei", disse Juanito. "Talvez pudesse rezar por si." "E de que é que isso servia, Juanito? Poderá ele obter aquilo que pede nas suas orações?" "Pode", disse Juanito. "A sua oração é por intermédio da Virgem. Pode obter aquilo por que reza." Novamente Joseph se recostou à sela, e de repente riu baixinho. "Irei", disse ele. "Empregarei todos os meios. Olha, Juanito. Tu conheces este local e os teus avós já o conheciam. Porque é que nenhuma da tua gente para aqui veio quando começou a seca? Para aqui é que se devia vir." "Os velhos morreram", disse Juanito sombriamente. "Os novos podem ter-se esquecido. Eu só me lembro porque vim aqui com a minha mãe. A Lua está a descer. Não quer dormir, senhor?" "Dormir? Não, não quero dormir. Não posso desperdiçar a água." "Eu velarei enquanto dorme. Nem uma gota se perderá." "Não, não dormirei", disse Joseph. "às vezes durmo um pouco durante o dia, enquanto o balde se enche. Isso basta. Não trabalho." Levantou-se para agarrar no balde e subitamente inclinou-se sobre ele, exclamando: "Olha, Juanito!:" Acendeu um fósforo, que levou junto ao regato. "É verdade. A água está a aumentar. Foi a tua vinda que a trouxe. Repara, já está a chegar às marcas. Subiu meia polegada." Dirigiu-se agitadamente para o rochedo e debruçou-se para dentro da gruta, acendendo novo fósforo para examinar a nascente. "Vem mais depressa", exclamou. "Arranja a fogueira, Juanito." "A Lua já desapareceu", disse Juanito. "Veja se dorme, senhor. Eu guardarei a água. Há-de precisar de dormir." "Não, arranja a fogueira para dar mais luz. Quero olhar a água." E acrescentou: "Pode ser que tenha sucedido qualquer coisa boa no sítio donde vem a água. Talvez que o regato engrosse e nós partiremos daqui e retomaremos a terra. Um círculo de erva verde, e depois um círculo maior." Brilhavam-lhe os olhos. "Descendo as colinas para a planície, a partir deste centro... Olha, Juanito, já está mais de meia polegada acima da marca do taco! uma polegada!" "Tem de dormir", insistiu Juanito. "Precisa de dormir. Bem vejo que a água está a subir. Estará em segurança comigo." Deu uma pancadinha no braço de Joseph para o acalmar. "Venha, tem de dormir." Joseph permitiu que ele o cobrisse com os cobertores e, aliviado com a subida do regato, caiu num sono pesado. Juanito ficou sentado na escuridão, despejando fielmente o balde sobre o rochedo de cada vez que ele se enchia. Era o primeiro descanso sem interrupção que Joseph se permitia havia muito tempo. Juanito mantinha a sua fogueira de raminhos e aquecia as
mãos, enquanto a geada que pairava no ar durante toda a noite pousava no solo como um véu branco. Juanito mirou Joseph, adormecido. Reparou em como ele se tornara magro e seco e o seu cabelo ficava grisalho. Vieram-Lhe à ideia as histórias índias que sua mãe Lhe contava, histórias do grande Espírito nebuloso, e das partidas que ele pregava aos homens e aos outros deuses. E depois, enquanto olhava para o rosto de Joseph, Juanito pensou na velha igreja de Nossa Senhora, com as suas espessas paredes de adobe e o chão de terra batida. Havia um espaço aberto no beirado e de vez em quando os pássaros entravam por lá durante a missa. Muitas vezes se viam sinais dos pássaros na cabeça de São José e no manto de Nossa Senhora. Surgiu-Lhe lentamente no espírito o motivo por que tudo isto lhe ocorrera. Viu o Cristo crucificado pendendo da cruz, morto e manchado de sangue. Não havia sinais de dor no seu rosto, agora que estava morto, apenas de desapontamento, perplexidade e, dominando tudo, um infínito cansaço. Jesus estava morto e a Vida terminara. Juanito atiçou a fogueira para ver melhor o rosto de Joseph e nele encontrou as mesmas coisas, o desapontamento e o cansaço. Mas Joseph não estava morto. Mesmo a dormir, o seu queixo mantinha uma linha rígida. Juanito benzeu-se e encaminhou-se para o leito, aconchegando as cobertas em torno do homem adormecido. E acariciou o ombro duro. Juanito amava tanto Joseph que até lhe doía. Continuou a sua vela até ao raiar da aurora, e de tempos a tempos lançava a água de encontro ao rochedo. A água subira um pouco durante a noite. Batia de encontro ao taco que Joseph enterrara, fazendo um pequeno remoinho. Por fim apareceu um sol frio por entre a ramaria da floresta. Joseph acordou e sentou-se. "Que tal está a água?", perguntou. Juanito riu com prazer da resposta que ia dar. "O regato está maior", disse ele. "Cresceu enquanto o senhor dormia." Deitando fora os cobertores, Joseph foi ver. "É verdade", disse ele. "Há uma mudança em qualquer sítio." Apalpou o rochedo musgoso com a mão. "Conservaste-o bem molhado, Juanito. Muito obrigado. Parece-te que esta manhã está mais verde?" "Não pude ver que cor tinha durante a noite", disse Juanito. Prepararam então o almoço e sentaram-se junto à fogueira, bebendo o café. Juanito disse: "Vamos hoje ao padre Ângelo." Joseph sacudiu lentamente a cabeça. "Perdia-se muita água. De resto, não há necessidade de ir. O regato está a crescer." Juanito respondeu sem levantar os olhos, pois não queria encontrar o olhar de Joseph. "Será bom ver o padre", insistiu. "Pode ser que se sinta melhor ao vir de lá. Mesmo quando é só uma pequena coisa que se confessa, a gente sente-se melhor." "Eu não faço parte dessa Igreja, Juanito. Não poderia confessar-me." Juanito ficou a matutar no caso. "Toda a gente pode falar com o padre Ângelo", disse finalmente. Homens que não puseram os pés na igreja desde
crianças voltam por fim ao padre ângelo, como os pombos-bravos voltam às poças de água ao entardecer." Joseph olhou novamente o rochedo. "Mas a água está a subir", disse ele. "Agora já não é preciso lá ir." Como Juanito achava que a Igreja podia auxiliar Joseph, disse matreiramente: "Tenho estado nesta terra desde que nasci, e o senhor só cá vive há pouco tempo. Há coisas que o senhor não sabe." "Que coisas?", perguntou Joseph. , Juanito fitou-o bem nos olhos. "Tenho-o visto muitas vezes, senhor", disse compassivamente. "Antes de uma fonte secar, o seu volume aumenta um pouco." Joseph olhou rapidamente para o regato. "Então isto é o sinal do fim?" "É, sim, senhor. A não ser que Deus intervenha, a fonte vai secar." Joseph ficou meditando durante alguns minutos. Por fim levantou-se, agarrando a sela pelo cepo. "Vamos falar ao padre", disse com rudeza. "Talvez ele não possa ajudar", disse Juanito. Joseph levava a sela para o cavalo preso. "Não posso deixar escapar qualquer probabilidade", gritou. Aparelhados os cavalos, Joseph lançou mais um balde de água sobre o rochedo. "Estarei de volta antes que possa secar", disse ele. Cortaram a direito através dos montes e foram ter à estrada muito adiante. Pairava uma nuvem de pó por cima dos cavalos a trotar. O ar era agreste e mordente de geada. Quando estavam a meio caminho de Nossa Senhora, levantou-se um vento que varreu todo o vale com uma nuvem de poeira, enchendo o ar de lixo, até que este se tornou num nevoeiro amarelo-pálido que obscurecia o sol. Virando-se na sela, Juanito olhou para o ocidente, donde vinha o vento. "O nevoeiro está na costa", disse. Joseph não olhou. "Está sempre lá. A costa não corre perigo enquanto o mar durar." Juanito disse, esperançado: "O vento vem de oeste, senhor." Joseph riu amargamente. "Em qualquer outro ano eríamos cobrir as medas com colmo e resguardar as pilhas de lenha. O vento tem soprado muitas vezes de oeste este ano." "Mas alguma vez tem de chover, senhor." "Tem porquê?" A terra devastada azedava o humor de Joseph. Sentia zanga contra os montes esqueléticos e contra as árvores desnudas. Só os carvalhos resistiam e escondiam a sua vida sob um lençol de poeira. Finalmente Joseph e Juanito entraram na rua tranquila de Nossa Senhora. Metade do povo tinha abalado a visitar parentes em campos mais afortunados, deixando as suas casas e os pátios escaldantes e os galinheiros vazios. Romas assomou à porta e acenou-Lhes, sem falar, e a Sra. Gutiérrez espreitou-os da janela. Não havia fregueses defronte da taberna. Aproximava-se o fim da curta tarde invernal quando subiram na direcção da igrejinha de adobe, acachapada no fim da rua. Dois rapazinhos negros brincavam numa camada de poeira que lhes chegava às canelas. Os cavaleiros prenderam os cavalos a uma velha oliveira. "Eu vou à igreja acender uma vela", disse Juanito.
"A casa do padre Ângelo fica lá atrás. Quando estiver pronto para voltar, espero-o em casa de meu sogro." Voltou-se para entrar na igreja, mas Joseph chamou-o. "Escuta, Juanito. Tu não deves voltar comigo." "Eu quero ir, senhor. Sou seu amigo." "Não", disse Joseph com finalidade. "Não te quero lá. Quero estar só." O olhar de Juanito turvou-se de revolta e dor. "Sim, meu amigo", disse mansamente, e penetrou na porta aberta da igreja. A casinha caiada do padre Ângelo ficava imediatamente atrás da igreja. Joseph subiu os degraus e bateu à porta; um momento depois o padre Ângelo abriu-a. Vestia uma velha sotaina por cima dum fato de macaco. O seu rosto era mais pálido do que já fora e tinha os olhos vermelhos de ler. Sorriu em saudação e disse: "Entre." Joseph ficou de pé num quartinho pequeno decorado com algumas imagens piedosas de cores vivas. Nos cantos do quarto empilhavam-se grossos volumes, encadernados em carneira, velhos livros das missões. "O meu criado, Juanito, disse-me que viesse", informou Joseph. Sentia uma ternura que emanava do padre e a sua voz doce sossegava-o. "Sempre pensei que algum dia havia de vir", disse o padre Ângelo. "Sente-se. Então finalmente a árvore falhou-lhe." Joseph estava perplexo. "Já da outra vez me falou da árvore. Que é que sabia acerca da árvore?" O padre Ângelo riu-se. "Sou suficientemente padre para reconhecer um padre. Não é melhor tratar-me por padre. É como toda a gente me trata." Joseph sentiu o poder do homem que o enfrentava. "Foi o Juanito que me disse que viesse, padre." "Claro que foi, mas então a árvore finalmente falhou-lhe?" "O meu irmão matou a árvore", disse Joseph surdamente. O padre Ângelo mostrou-se apoquentado. "Isso foi mau. Isso foi uma estupidez. Podia ter tornado a árvore mais forte." "A árvore morreu", disse Joseph. "A árvore está morta e de pé." "E veio você finalmente ter com a Igreja?" Joseph sorriu, divertido com a sua missão. "Não, padre", disse ele. "Vim pedir-lhe que faça preces pela chuva. Eu sou de Vermont, padre. Disseram-nos coisas acerca da sua Igreja." O padre aprovou com a cabeça. "Sim, eu sei que coisas são." "Mas a terra está a morrer", disse subitamente Joseph. "Reze para haver chuva, padre. Já rezou para pedir chuva?" O padre Ângelo perdeu alguma da sua confiança. "Ajudá-lo-ei a rezar pela sua alma, meu filho. A chuva há-de vir. Já rezámos uma missa. A chuva virá. Deus dá a chuva e retém-na, na sua sabedoria." "Como sabe que a chuva virá?", interrogou Joseph. "A terra está a morrer, digo-lhe eu." "A terra não morre", disse o padre vivamente. Mas Joseph olhou-o com zanga. "Como sabe isso? Os desertos tiveram em tempos vida. Lá por um homem
estar muitas vezes doente e restabelecer-se de cada vez, não prova que nunca morrerá." Erguendo-se da sua cadeira, o padre Ângelo aproximou-se e baixou os olhos para ele. "Está doente, meu filho", disse ele. "O seu corpo está doente; e a sua alma também. Quer vir para a Igreja, curar a sua alma? Quer acreditar em Cristo e pedir auxílio para a sua alma?" Pondo-se de pé num pulo, Joseph lançou-Lhe furiosamente: "A minha alma? Para o Diabo a minha alma! A terra está a morrer, digo-lhe eu. Reze pela terra." O padre fitou-lhe os olhos desvairados e sentiu o fluido desesperado da sua emoção. "Os assuntos de Deus têm que ver principalmente com os homens", disse ele; "com o seu progresso no caminhu do Céu e com o seu castigo no Inferno." ; A fúria de Joseph esvaiu-se subitamente. "Agora vou-me embora, padre", disse fatigado. "Devia ter esperado isto. Voltarei para o rochedo e aguardarei." Dirigiu-se para a porta e o padre Ângelo seguiu-o. "Rezarei pela sua alma, meu filho. Há dor de mais na sua alma." "Adeus, padre, e muito obrigado", e Joseph mergulhou na escuridão. Quando ele partiu, o padre Ângelo voltou para a sua cadeira. Sentia-se abalado pela força do homem. Levantou os olhos para uma das suas imagens, uma descida da Cruz, e pensou: "Graças a Deus que este homem não tem qualquer mensagem. Graças a Deus que ele não quer ser lembrado, nem que acreditem nele." E num súbito pensamento herético: "Porque senão era capaz de haver um novo Cristo aqui no Ocidente." Então o padre Ângelo levantou-se e penetrou na igreja. E rezou pela alma de Joseph diante do altar-mor, e pediu perdão pela sua própria heresia; e depois, antes de sair, rezou pela chuva para que viesse depressa e salvasse a terra moribunda.
25
Joseph apartou a cilha e desatou da oliveira a corda de esparto. Depois montou e tomou a direcção da herdade. Enquanto estivera em casa do padre, caíra a noite; e estava muito escuro antes do nascer da Lua. Ao longo da rua de Nossa Senhora brilhavam algumas luzes nas janelas embaciadas pela humidade no interior das vidraças. Antes que Joseph tivesse percorrido uma distância de cem pés na noite fria, Juanito apanhou-o. "Eu quero ir consigo, senhor", disse ele, com firmeza. Joseph suspirou. "Não, Juanito. Já te disse." "Ainda não comeu nada. A Alice preparou-lhe uma ceia; está à espera e quentinha." "Não, muito obrigado", disse Joseph. "Vou pôr-me a caminho." "Mas a noite está fria", insistiu Juanito. "Entre, e ao menos beba qualquer coisa." Joseph olhou a luz baça que atravessava as janelas da taberna. "Beberei qualquer coisa", disse. Ataram os cavalos a um poste e transpuseram o guarda-vento. Não estava lá ninguém senão o taberneiro, sentado num banco alto por detrás do balcão. Levantou os olhos quando eles entraram e, descendo do banco, limpou uma nódoa do balcão. "Sr. Wayne!", cumprimentou. "Há muito tempo que não o via." "Não venho muitas vezes à cidade. Whisky." "E whisky para mim", disse Juanito. "Ouvi dizer que tinha salvo algumas das suas vacas, Sr. Wayne." "Sim, algumas." "Tem mais sorte do que outros. O meu cunhado perdeu todo o gado." E contou como as fazendas estavam abandonadas e o gado morto e como o povo abalava da cidade de Nossa Senhora. "Não há negócio agora", disse ele. "Não vendo uma dúzia de copos por dia. às vezes vem um homem buscar uma garrafa. Agora não gostam de beber acompanhados", disse ele. "Levam uma garrafa para casa e bebem sozinhos." Joseph esvaziou o copo e pousou-o. "Encha", disse ele. "Daqui em diante só teremos o deserto. Beba você também." O taberneiro encheu o copo. "Quando a chuva vier, voltarão todos. Se a chuva viesse amanhã, eu punha na estrada um barril de whisky, gratuito." Joseph bebeu o seu whisky e olhou o taberneiro interrogativamente. "E se a chuva não vier de todo, o que acontece?", perguntou. "Não sei, Sr. Wayne, nem quero saber. Se não vier dentro em breve, também eu terei de me ir embora. Punha um barril inteiro de whisky gratuito no alpendre se viessem as chuvas." , Joseph pousou novamente o copo. "Boa noite", disse. "Oxalá tenha de o pôr." Juanito seguiu-o de perto. "A Alice tem um jantar quentinho para si", disse ele. Joseph parou no meio da estrada e levantou a cabeça para olhar as estrelas enevoadas. "A bebida deu-me fome. Irei." Alice veio ao encontro deles à porta da casa de seu pai. "Ainda bem que veio", disse ela. "O jantar é
pouca coisa, mas sempre é diferente. O meu pai e a minha mãe foram fazer visitas a São Luís Obispo desde que Juanito voltou." Estava excitada com a importância da visita. Sentou os dois homens na cozinha, a uma mesa coberta por uma toalha branca como a neve, e serviu-lhes feijão encarnado e vinho tinto; e depois tortilhas, com o arroz bem solto. "Já não come feijão feito por mim, Sr. Wayne, desde que... oh, há muito tempo." Joseph sorriu. "Está bom. A Elizabeth dizia que era o melhor do mundo." Alice suspendeu a respiração. "Ainda bem que fala nela." Marejaram-se-lhe os olhos de lágrimas. "Porque não havia de falar nela?" "Pensei que talvez Lhe causasse demasiado sofrimento." "Cala-te, Alice", disse Juanito mansamente. "O convidado está aqui para comer." Joseph comeu a sua pratada de feijão, ensopando o molho numa tortilha, e deixou que ela o servisse outra vez. "Ele não quer ver o menino?", perguntou Alice, timidamente. "O avô dele chama-lhe Chango, mas isso não é um nome." "Está a dormir", disse Juanito. "Vai acordá-lo e trá-lo aqui." Ela trouxe a criança, sonolenta e postou-a diante de Joseph. "Veja", disse ela. "Vai ter olhos cinzentos. O azul dos do Juanito e o preto dos meus." Joseph mirou atentamente a criança. "É forte e bonito. Ainda bem." "Já sabe o nome de dez árvores, e o Juanito vai arranjar-lhe um pónei quando vierem os anos bons." Juanito abanou a cabeça com satisfação. "É um Chango", disse, meio envergonhado. Joseph levantou-se da mesa. "Como é que ele se chama?" Alice corou e voltou a pegar ao colo na criança, meio adormecida. "Tem o seu nome", disse. "Chama-se Joseph. Quer dar-Lhe a sua bênção?" Joseph olhou-a com incredulidade. "Uma bênção? Minha? Sim", acrescentou rapidamente. "Eu dou-lha." Pegou a criança nos braços e, afastando-Lhe os cabelos para trás, beijou-lhe a testa, dizendo: "Faz-te forte. Cresce, faz-te grande e forte." Alice tornou a pegar na criança como se ela já não fosse bem sua. "Vou deitá-lo, e depois iremos para a sala de estar." Mas já Joseph se afastava rapidamente em direcção à porta. "Tenho de me ir embora", disse ele. "Obrigado pelo jantar. E por terem posto o meu nome ao menino." E quando Alice começou a protestar, Juanito mandou-a calar. Seguiu Joseph até ao pátio, experimentou a cilha do cavalo e enfiou o freio na boca do animal. "Tenho medo de que se vá, senhor", protestou Juanito. "Porque hás-de ter medo? Olha, a Lua já apareceu." Juanito olhou e gritou, excitado: "A Lua tem círculo, veja!" Joseph soltou um riso rouco e subiu para a sela. "Nesta terra há um ditado que eu aprendi há muito tempo: num ano seco, não há sinal que valha. Boa noite, Juanito."
Juanito ainda caminhou um momento ao lado do cavalo. "Adeus, senhor. Tenha cuidado." Deu uma palmada no pescoço do animal e afastou-se. E ficou a olhar para Joseph até ele desaparecer nas sombras da noite enluarada. Joseph virou costas à Lua e seguiu na direcção oposta, para ocidente. A terra ficava imaterial à luz do luar, diluída pela bruma. as árvores ressequidas pareciam figuras feitas de bruma mais densa. Joseph saiu da cidade e tomou o caminho do rio, e o seu contacto com a cidade perdeu-se lá atrás. Chegava-lhe às narinas o pó picante que se levantava debaixo das patas do cavalo, mas não o via. Lá longe, para as bandas escuras do norte, havia um vago reflexo de aurora boreal, raramente vista tão para baixo. A Lua, duma frialdade de pedra, subiu no céu e seguiu Joseph. As montanhas pareciam limitadas por uma orla fosforescente e uma luz pálida e fria semelhante à de um vaga-lume parecia brilhar através da epiderme da terra. A noite prestava-se à evocação. Joseph recordava como o pai lhe tinha dado a bênção. Agora, que pensava nisso, desejava ter dado a mesma bênção ao menino seu homónimo. E recordava que houvera um tempo em que a terra estava de tal maneira embebida do espírito do pai que cada pedra e cada arbusto estavam próximos e eram queridos. Lembrava-se de como a terra era húmida e cheirava a humidade e de como as raízes das ervas formavam um entrançado sob a sua superfície. O cavalo avançava com firmeza, cabeça baixa, descansando no freio parte do peso desta. Joseph rememorava lentamente os dias do passado e cada acontecimento surgia colorido como a noite. Joseph estava agora longe da terra. Pensava: "Vai haver qualquer mudança. Não passará muito tempo antes que qualquer coisa nova esteja para acontecer." E enquanto pensava nisto o vento começou a soprar. Joseph ouviu-o vir do poente, ouviu-o assobiar muito antes que ele o atingisse, um vento forte e cortante trazendo bocados de árvores secas e arbustos ao longo do solo. Era acre de poeira. As pequeninas pedras transportadas pelo vento metiam-se pelos olhos de Joseph. à medida que este avançava, a ventania aumentava e longos véus de poeira desciam dos montes iluminados pela Lua. Em frente, um coiote uivou uma pergunta sincopada. Outro respondeu-lhe do outro lado da estrada. Depois as duas vozes uniram-se numa gargalhada aguda que foi levada no vento. Uma terceira pergunta, vinda de uma terceira direcção, e as três vozes gargalharam em conjunto. Joseph estremeceu ligeiramente. "Estão com fome", pensou, "têm tão pouca carne que comer!" Ouviu, então, o lamento dum vitelo no alto do matagal que orlava a estrada. Virou o cavalo, esporeou-o e abriu caminho por entre os arbustos quebradiços. Depressa chegou a uma pequena clareira na mata. Uma vaca morta jazia sobre um dos lados e um vitelinho escanzelado marrava furiosamente, em busca duma teta. Os coiotes gargalharam de novo e afastaram-se, à espera. Joseph desmontou e foi até junto da vaca morta. O quadril era o pico de uma montanha e os intervalos entre as costelas semelhavam os longos regos cavados pelas águas nas encostas dos montes. Morrera finalmente, quando pedaços de erva seca já
não podiam alimentá-la. O vitelo tentou fugir, mas estava fraco de mais, com fome. Tropeçou, caiu pesadamente e debateu-se no chão, tentando erguer-se. Joseph desatou o laço e amarrou as pernas escanzeladas do vitelo. Depois içou-o para a sela e montou atrás. "Agora venham jantar", gritou aos coiotes. "Comam a vaca: Daqui a pouco não terão mais nada que comer." Olhou por cima do ombro para a hóstia branca da Lua que vogava na poeira revolvida pelo vento. "Dentro em pouco", disse Joseph, "vem por aí abaixo e engole o mundo." à medida que caminhava, a sua mão explorava o esquálido vitelo, os dedos seguiam as costelas salientes e sentiam-Lhe as pernas ossudas. O vitelo tentava descansar a cabeça na espádua do cavalo, mas a cabeça pendia e balançava, sem força, com o movimento. Por fim chegaram ao cimo do morro e Joseph avistou as casas do rancho, esbranquiçadas e dispostas irregularmente. As pás do moinho de vento brilhavam fracamente ao luar. Era um panorama meio obscurecido porque uma poeira branca enchia o ar e o vento varria furiosamente o vale. Joseph seguiu pelo cimo do monte para evitar as casas e quando subia em direcção ao pequeno bosque negro a Lua escondeu-se atrás dos montes do poente e a terra desapareceu-lhe da vista. O vento desceu, uivante, das vertentes e gemeu nos ramos secos das árvores. O cavalo abaixava a cabeça contra a ventania. Joseph vislumbrava vagamente o pinhal à medida que se aproximava dele, porque um raio de luz da madrugada assomava aos montes. Ouvia a ramaria ondulante, as agulhas penteando o vento e o ruído das pernadas roçando umas nas outras. Os ramos negros ondulavam na direcção da aurora. O cavalo avançava penosamente por entre as árvores e o vento ficava lá fora. Parecia haver calma naquele lugar cinzento; e ainda mais por causa do ruído em redor. Joseph desmontou e pôs o vitelo no chão. Tirou a sela ao cavalo e pôs uma medida dupla de cevada no saco da ração. Por fim voltou-se, de má vontade, para o rochedo. A claridade tinha voltado, à sorrelfa, e o céu, as árvores e o rochedo estavam cinzentos. Joseph atravessou lentamente a clareira e ajoelhou junto ao regato. E o regato desaparecera. Sentou-se calmamente e pôs a mão no leito. O cascalho estava ainda húmido, mas da pequena caverna já não saía água. Joseph estava extenuado. O vento que uivava em torno do pinhal e a seca oculta eram demasiado para combater. Pensou: "Agora acabou-se. Parece-me que sabia isto." A madrugada clareava. Pálidos raios de sol briLhavam nas nuvens de pó que enchiam o ar. Joseph levantou-se, caminhou para o rochedo e passou-lhe a mão por cima. O musgo estava a tornar-se quebradiço e a cor verde tinha começado a esmaecer. "Eu podia subir ao alto e dormir um pouco", pensou Joseph. O sol brilhou por sobre os montes, dardejou por entre os troncos dos pinheiros e desenhou no chão uma mancha de luz ofuscante. Joseph ouviu o ruído de uma pequena luta atrás de si. O vitelo tentava libertar as pernas dos nós do laço. Subitamente, Joseph pensou no velho do alto da escarpa. Os olhos brilharam-lhe de excitação. "Este podia ser o caminho!", exclamou. Levou o vitelo para a beira do regato, segurou-lhe a cabeça de forma a esta ficar sobre o leito seco e cortou-lhe o pescoço com a sua faca de bolso. O sangue correu pelo leito do regato, avermelhou o cascalho e caiu no balde. Tudo acabou depressa. "Tão pouco", pensou Joseph com tristeza. "Pobre animal faminto, que tão pouco sangue tinha." Viu o fio vermelho acabar de correr e sumir-se na areia. E enquanto o olhava, o sangue perdeu o tom brilhante e tornou-se carregado. Joseph sentou-se junto do vitelo morto e tornou a pensar no velho. "O seu segredo era para si", disse; "não me servirá de nada." O Sol perdeu o brilho e cercou-se de nuvens ténues. Joseph olhou o musgo murcho e o círculo das árvores. "Tudo acabou. Estou completamente só." Tomou-o, então um pânico. "Porque hei-de eu ficar neste lugar morto?" Pensou nos barrancos verdes sobre Puerto Suelo. Agora, que já não tinha o apoio do rochedo e do regato, sentia um medo horrível da seca que avançava na sombra. "Vou-me embora!", gritou de repente. Apanhou a sela e correu com ela através da clareira. O cavalo levantou a cabeça e resfolegou, medroso. Joseph ergueu a pesada sela, mas quando a manta tocou a ilharga do cavalo este recuou, abaixou-se, quebrou o cabresto; e a sela caiu para cima do peito de Joseph. Joseph ficou, com um ligeiro sorriso, a ver o cavalo sair da clareira e afastar-se. A calma voltou a apossar-se dele e o medo desapareceu. "Vou subir ao rochedo e dormir um pouco", disse. Sentiu uma pequena dor no pulso e ergueu o braço para ver o que era. Tinha-se cortado numa fivela da sela; o pulso e a palma da mão sangravam. Olhando a ferida, a calma tornou-se mais firme em volta dele e a solidão separou-o do bosque e do resto do mundo. "Pois vou subir ao rochedo", disse. Trepou-Lhe cuidadosamente pelo flanco íngreme até que ficou estendido sobre o musgo alto e fofo do cimo do rochedo. Depois de descansar uns momentos agarrou de novo a faca e, com cuidado, suavemente abriu as veias do pulso. A dor, a princípio foi aguda, mas em breve esta sensação se atenuou. Joseph olhava o sangue que borbotava e ia escorrendo sobre o musgo e ouvia o clamor do vento em torno do bosque. O céu estava ficando cinzento. O tempo rolou e Joseph ficava cinzento também. Estava deitado de lado, com o pulso estendido, e baixou os olhos para a longa cordilheira negra do seu corpo. Este começou a tornar-se enorme e leve. Subiu ao céu, e dele começou a cair chuva em torrentes. "Eu devia ter sabido", suspirou Joseph. "Eu sou a chuva." Continuava, porém, a olhar estupidamente as montanhas do seu corpo, onde os montes desciam para um abismo. Sentia a chuva cair e ouvia-lhe as chicotadas a fustigar o solo. Viu os seus montes ficarem escuros de molhados. Depois uma dor aguda atravessou o coração do mundo. "Eu sou a terra", disse ele; "e sou a chuva. A erva brotará de mim dentro em pouco." E a tempestade recrudesceu e, com um enorme cachoar de águas, cobriu de sombra o mundo.
26
A chuva varreu o vale. Dentro de breves horas regatos fervilhavam pelas encostas e caíam no rio de Nossa Senhora. A terra fez-se negra e bebeu água até mais não poder. O próprio rio rugia entre os penedos e precipitava-se na garganta dos montes. O padre Ângelo estava na sua casinha, sentado entre os livros de pergaminho e as imagens santas, quando a chuva começou. Lia La Vida de San Bartolomeo. Mas quando começou o chapinhar da chuva no telhado, pousou o livro. Durante horas ouviu o rugir da água sobre o vale e o clamar do rio. De vez em quando ia à porta espreitar lá para fora. Passou a primeira noite acordado, a escutar, consolado, o barulho da chuva. E sentia-se feliz ao lembrar-se de que rezara por ela. Ao crepúsculo da segunda noite, a tempestade continuava com a mesma força. O padre Ângelo entrou na igreja, mudou as velas da Virgem e fez as suas devoções. Depois ficou-se no limiar escuro, a olhar a terra encharcada. Viu passar a correr o Manuel Gómez, carregado com um coiotezinho molhado. E logo a seguir o José Alvarez, com os chifres dum veado na mão. O padre Ângelo escondeu-se na sombra do portal. A Sra. Gutiérrez passou depois, a patinhar nas poças, com os braços cheios duma velha pele de urso, comida da traça. O padre sabia o que se ia passar nesta noite de chuva. Ardeu nele uma ira que crescia. "Eles que comecem, que eu os faço parar", disse ele. Voltou à igreja, tirou um pesado crucifixo dum armário e levou-o para casa. Na sala de estar esfregou o crucifixo com fósforo para o tornar mais visível no escuro, e depois sentou-se, à escuta dos ruídos que esperava. Era difícil ouvilos com o chapinhar e o bater da chuva, mas por fim conseguiu distingui-los - o pulsar dos bordes das guitarras, num ritmo surdo. E o padre ângelo continuava sentado à escuta; e apossou-se dele uma estranha relutância em interferir. Um canto grave, de muitas vozes, reuniu-se ao ritmo das cordas, crescendo e baixando. O padre via mentalmente o povo a dançar, a patinhar na terra mole com os pés descalços. Via-os vestidos com peles de animais embora nem eles soubessem porque as tinham posto. O ritmo cadenciado tornou-se cada vez mais forte e mais insistente e as vozes mais agudas e histéricas. "Vão despir a roupa toda", murmurou o padre, "e rebolar-se na lama. Vão chafurdar na lama como porcos." Cobriu-se com uma capa pesada, agarrou no crucifixo e abriu a porta. A chuva cachoava no chão e, lá longe, o rio rugia nos rochedos. As guitarras batiam febrilmente e o canto transformara-se num roncar bestial. O padre Ângelo julgou ouvir os corpos a espojarem-se na lama. Fechou a porta devagarinho, tirou a capa e pousou a cruz fosforescente. "No escuro, nem conseguiria vê-los", disse ele. "Fugiam todos." E cedeu: "Desejavam tanto a chuva, pobres crianças. Vou fazer-Lhes uma prédica no domingo. Dou uma penitência pequena a todos."
Voltou à sua cadeira e sentou-se, ouvindo o correr das águas. Pensou em Joseph Wayne, e viu aqueles olhos claros que sofriam pelas necessidades da terra. "Deve estar muito feliz agora, aquele homem", disse o padre Ângelo para consigo.
John Steinbeck
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