Biblio "SEBO"
UM BICHO IMUNDO NUM MONTE DE ESTERCO
Vejo-te grave e triste em cima do cavalo
Calcar a neve profunda. Na noite de Inverno
Sopra um vento sinistro e gelado.
Ah! Como tenho o coração dorido!
A Oriente, uma lívida aurora
Afasta as confusas trevas
E de coração magoado por um pesado fardo
Tu voltas, com o teu queixume amargo.
Elisabeth quanto ao jovem, ele já tivera um poema. Ela via-o como um cavaleiro triste no Prater, de noite. Os versos não estavam mal; é certo que no poema ele estava um pouco romântico de mais, e nada restava da sua ingénua alegria; mas quando ela o redigira, estava de humor melancólico. E ele é que pagara. De resto, não se lembrava de o ter visto a cavalo no Prater. Era uma pena, havia de ficar bem.
Não lhe escrevia há... Há quanto tempo, é verdade? Foi no próprio ano em que se conheceram. Quando fora avó pela primeira vez, aos trinta e seis anos. Muito simples: nenhuma carta havia onze anos.
Tanto tempo! Já nem sequer sabia onde arrumara as cartas; em Viena ou em Buda? Em Gõdõllô, provavelmente... Enfim, era história antiga. Ida, que tanto se preocupara, já não falava no assunto. Quanto a ele, desaparecera. Casado, com certeza; com filhos, evidentemente. Ainda assim, fora uma estupidez ter deixado morrer uma história tão poética; decidiu escrever uma última carta. Era um pouco arriscado, mas não ao ponto de provocar novo escândalo. E oxalá ele não tivesse mudado de residência...
Era isso que era excitante: encontrá-lo-ia? Bastava tentar. A carta foi breve, com palavras precisas, um pouco secas, e uma fórmula um pouco terna no fim, “Não me esqueço de si, meu querido filho”. E para maior segurança, aproveitaria um amigo que, de partida para o Brasil, a enviaria do Rio. Fosse como fosse, nem o mais pequeno encontro. A Imperatriz ia a caminho dos cinquenta anos; havia de ser bonito ele conseguir vê-la naquela idade!
Encantada com o que fizera, colou o envelope com uma lambidela um pouco comovida.
O essencial da carta brasileira consistia em pedir-lhe uma fotografia, para ela ver como estava ele onze anos após o baile, e o novo endereço; tudo deveria ser enviado para a posta-restante de Munique. Depois, mas a carta percorria já os oceanos, apercebeu-se de que era ridículo pedir o endereço de alguém a quem se escrevia; tarde de mais. Os termos utilizados também não eram os mais hábeis: “Mande-me a sua fotografia, não do tempo antigo, quando era jovem, mas de agora.” E claro que acrescentava que tal a deixaria feliz, mas não era agradável.
Que haveria de fazer? Ele envelhecera, sem dúvida. Mas no segredo do seu coração ela sempre lhe chamara: “O meu jovem”. O esforço fora grande, e considerava ter feito o bastante. E agora era a vez do antigo jovem se acomodar com as recordações de ambos.
Dois meses mais tarde, Anna estendeu um comprido envelope ao marido.
- Tens amigos no Brasil? Nunca me disseste nada, Franzi... No Brasil? Ninguém.
Acerca do Brasil, Franz Taschnik sabia que era um Império, onde reinava D. Pedro, primeiro do nome; plantavam furiosamente borracha, e vinha-se de lá com febres. Havia piteiras e palmeiras, ouro e selvagens, e no conjunto era ainda um daqueles países da América malfazeja. Um país em tudo comparável ao México onde fora fuzilado um arquiduque da Áustria, o infeliz Maximiliano, culpado de ter aceitado a coroa, de se ter julgado Imperador, e de ter sido feito prisioneiro pelos rebeldes num lugar demasiado distante para ser socorrido.
O mesmo é dizer que Franz não sabia nada. Um engano, sem dúvida, mas não, o endereço estava correcto e o nome dele ali escrito, no papel, com uma letra que ele logo identificou.
- É... Um amigo diplomata em missão, já me lembro - respondeu ele à esposa.
A mesma mentira que contara à mãe, quantos anos antes? Onze anos, exactamente; tivera tempo de os contar. Atirou o envelope para um canto, para não despertar suspeitas. Havia de ler a carta mais tarde, no ministério.
- Não estás com curiosidade - observou a doce Anna. - Nem pressa. Habitualmente lês logo o correio.
Quando saiu, Franz não se esqueceu de apanhar a carta que lhe queimava os dedos. Abriu-a no eléctrico. Uma página, umas letras desengonçadas, nervosas, ou não andava bem ou envelhecera, talvez vista cansada. Quando terminou a leitura, desatou a rir. Gabriela era incorrigível.
Uma fotografia! Para verificar a idade dele! Enquanto que ela nunca consentira em mostrar-se, a marota! Ora, uma brincadeira de mau gosto! Dobrou o papel em quatro e enfiou-o na algibeira.
Mas quando desceu do eléctrico, apressou o passo para se deter diante de uma loja de perfumes cuja fachada tinha, embutido na parede, um espelho alto, com flores pintadas a toda a volta. Estava desesperadamente calvo e ganhara barriga. Tinha também bigode e patilhas um pouco grisalhas. Na época do baile, era imberbe e cabeludo. Sem contar os pequenos óculos de aço, que escolhera para se parecer com o outro Franz, o Schubert, cujas sonatas tocava com Anna. A desconhecida do Grande Baile não o reconheceria.
Hesitou durante três dias.
Willy pensava que ele devia obedecer, e depressa; uma vez que Gabriela ressuscitava, Franz devia contemporizar. Senão, nunca tiraria as coisas a limpo, e haveria de acreditar toda a vida que amara a Imperatriz, velha lengalenga que Willy continuava a repisar. Por razões inversas, era igualmente a opinião de Attila. Com a fotografia na mão, a desconhecida mostrar-se-ia finalmente como Rainha, e dar-lhe-ia a mão a beijar. Nem um nem outro compreendiam as reticências do amigo.
Perplexo, e sem dizer nada à esposa, aceitou uma sessão de pose no seu fotógrafo habitual, no estúdio Ferbus da Rua Ottakringer, onde mandava tirar os retratos de família. O estúdio Ferbus captara imagens soberbas de Anna e Emmy, cada uma no centro de uma nuvem branca, com olhos sonhadores fitos no horizonte. Franz disse que queria uma fotografia sua em fato de cerimónia, para oferecer à esposa.
Em memória do baile, vestira um fraque, pusera um cravo na lapela, e até passara pelo barbeiro para pintar as patilhas. Mas o resultado foi desastroso: o preto era demasiado preto, o colarinho alto, demasiado branco, o cravo estava a mais, parecia grotesco. Quanto à calvície, era impiedosa. Decididamente não, não mandaria o retrato. Para quê estragar-lhe a recordação do baile?
Em vez disso, respondeu com uma carta espirituosa, na qual dizia toda a verdade. “Caro dominó amarelo, eis-te de volta... Caí das nuvens, minha cara. Onze anos passaram nas nossas vidas: nada me dizes da tua. Em contrapartida, queres saber tudo de mim. Será justo? Não. Mas saberás ao menos que a justiça existe? Não. Assim são os nómadas, ou os poderosos deste mundo. Sou pequeno, desprezas-me. Ter-me-ás amado? Talvez. Será que compreendes? Não tenho a certeza.
“Que vi eu de ti? Uns olhos escuros, uma pele clara, e duas mãos nuas. Sei que és extremamente bela. Conservaste sem dúvida o esplendor; conservaste-te sem dúvida fiel à orgulhosa beleza que foi outrora a tua. Pelo meu lado, eu transformei-me num esposo respeitável e calvo; mas sou feliz. Minha mulher parece-se contigo; tem a mesma silhueta e a mesma estatura, talvez os mesmos cabelos que tu, e que escondias sob a peruca; tenho uma deliciosa filhinha de olhos vivos como os teus. Pronto, ficaste a saber tudo. Se assim o quiseres, podes, sem qualquer risco, despir o teu dominó de brocado e esclarecer, após onze anos, a mais perturbadora das aventuras. Como vês não mudei, continuo na mesma, simples e confiante. De ti sei que nada me pode vir, a não ser a bondade. Responde-me!
“Nunca deixei de pensar no encantador fantasma de uma noite, povoou-me os sonhos, mas não me fechou os caminhos da vida. Fico-te eternamente reconhecido; desejo-te o mesmo destino, e sou o teu muito dedicado...” e assinou a tremer, não Franz Taschnik, mas Franzi.
Da fotografia nem palavra. Estranhamente, omitiu também a existência do filho. Uma ideia, assim.
A carta de Munique em oito dias chegou às mãos da destinatária.
Sem retrato. Mas era de calcular. Então, estava careca! Ela riu-se muito.
E ela? Como dizia ele? “Fiel à orgulhosa beleza que foi outrora a tua.” O outrora era um pouco tosco, mas ele nunca tivera muito estilo. Pensando bem, teria podido compreender a sua recusa se não fosse aquela coisa insuportável que se sentia na carta: a felicidade. Era então possível envelhecer por esse preço! Sim, ele era feliz. Desencantara uma esposa que se parecia com ela, e ousava confessá-lo!
Tanta satisfação era intolerável. Respondeu no próprio dia. Ternamente, e já que fora declarada oficialmente rainha da bondade, insistiu: queria aquela fotografia a todo o custo. Queria ver com os próprios olhos o “crânio paternal”. Não era tão amável quanto se poderia desejar?
Mas ao terminar a epístola, cometeu um erro.
“Sei que a recordação daquele baile nunca te abandonou, meu amigo; e compreendo que queiras esconder a ferida que eternamente te abri no coração. Talvez um dia compreendas as razões do meu anonimato, e desta prolongada dissimulação que tanto te fez sofrer. Não posso fazer nada, é assim a minha vida; e asseguro-te que, apesar dos onze anos de silêncio, nunca te esqueci. Ter-te-ei amado? É possível. Sabê-lo-ás algum dia? Não. Impossível. Pelo menos hás-de compreender que não me era permitido dar livre curso ao mais pequeno sentimento. Adeus, meu querido filho.”
A carta voltou para o Brasil, com grande dificuldade; foi preciso tempo para encontrar mensageiro. Quatro meses após a primeira missiva brasileira, chegava a segunda, para grande espanto de Anna.
- Outra! - fez ela simplesmente.
“Sim, outra - pensou ele. - Para quê parar? Esta história não vai ter fim. E desta vez, que quer ela?”
Curioso, sem grande emoção, preparava-se para ler um recado furioso e breve. Quando chegou às últimas linhas pensou que o coração lhe parava no peito. O tom mudara; grave, dorido, era o tom de uma mulher magoada. Era preciso muita infelicidade para chegar a uma tal confissão...
Não havia já lugar para dúvidas. Se ela falava de anonimato, é porque Gabriela era a Imperatriz. Por mais que tentasse convencer-se, dizer a si próprio que já por mil e uma vezes fizera aqueles raciocínios estéreis, não conseguiu. Decidiu atirar a matar, fazê-la desembuchar; ela havia de confessar.
Durante uma semana guardou a carta dobrada na sobrecasaca, bem juntinho ao coração que ele julgava assente e que palpitava de juventude.
Para culminar, chegou o dia da primeira representação de uma nova opereta de Johann Strauss, cuja acção se desenrolava na Hungria. O Barão cigano era uma homenagem disfarçada à terceira esposa do ilustre compositor, Adélia. Como a eleita era húngara, Attila rejubilava; e uma vez que era judia, Anna também. Quanto a Willy, horrorizado pelo divórcio e furioso com a evolução de Johann Strauss, resmungava.
A estreia foi um êxito. Willy ficou encantado, e cantarolava à saída a cativante ária que celebrava a magia de Viena: “Grande cidade, delícias, fantasias, Em ti, de noite, de dia, o amor floresce...” Franz pensava nos seus vinte e seis anos desaparecidos, e apalpava a casaca de cerimónia, onde dormia a carta de Gabriela, mesmo por baixo do cravo na lapela. Nessa noite estava com um ar curiosamente ausente. Anna achou-o pensativo, perguntou-lhe se estava cansado, e acabou por pensar que ele estava apaixonado, o que, num certo sentido, não era inteiramente falso. Mas quando se atreveu a evocar a dolorosa hipótese, ele abraçou-a com tanta sinceridade que ela teve vergonha.
Aliás, nem por um instante ele pensou que estava a ser infiel à esposa. Queria esclarecer um sonho; não era proibido e, acima de tudo, não havia nada no amor da desconhecida que fizesse diminuir o que sentia por Anna. Uma era verdadeira, a outra, Gabriela, era inventada. Todo o problema tinha a ver com a questão da realidade.
Até a vista dele, que se turvava de dia para dia. No decurso de um passeio pelo Stadtpark com Anna, uma mulher de preto passara ao longo do canal, tão alta, tão magra que Franz largou o braço da esposa e desatou a correr para ir ter com ela. A senhora trazia um véu espesso, e um gorro que ele teve a certeza de reconhecer, pois a Imperatriz usava-o em fotografias antigas; aliás fora o mesmo que lhe vira na cabeça no dia em que colara o rosto ao vidro do cabriole preto, em frente de Demel. Um dia a que chamava desde então “o dia do cabriole preto”.
Gritou “Gabriela, Gabriela!” numa voz tão forte que a senhora se voltou. Mas quando a abordou, de chapéu na mão, ela deteve-se, surpreendida. Enganara-se; a senhora chamava-se Henriqueta, e estava verdadeiramente desolada por não ser Gabriela. Franz ficou parvo, porque era realmente o gorro, e também era a voz doce, ligeiramente sussurrada. Ousou perguntar se, por acaso, a senhora não pertenceria ao séquito imperial; a dama de preto respondeu que era cabeleireira e suficientemente confiada para se deixar questionar por um desconhecido. Ele pediu imensas desculpas, e foi ter com Anna, a quem contou uma história anónima sobre uma amiga da mãe, que julgara reconhecer.
A voz da dama de preto era muito ofegante, e Franz reparou-lhe no andar penoso. Precisamente, os jornais assinalavam que a Imperatriz tinha uma ciática terrível. Era e não era ela, e se começava a encontrá-la por todo o lado...
Naquele ponto da obsessão, esteve quase a acabar com tudo, definitivamente. E já que Gabriela abrira as portas da confissão, ele entrou por elas adentro. A carta que escreveu fingia uma cólera que não sentia; queria encurralá-la. Estava contente com o resultado: desta vez sim, ela havia de confessar.
A Imperatriz recebeu a resposta de Franz em Viena, onde a esperavam horripilantes festas religiosas e deveres mundanos inevitáveis. Estefânia, doente, não poderia desempenhar o papel de substituta, e a cabeleireira não servia. O Imperador estaria presente. Ela estava de péssimo humor; e como de costume, foi Ida quem lhe estendeu a carta.
- Da parte do seu jovem, se assim se pode dizer - disse ela sem um sorriso.
A observação de Ida irritou-a; a Imperatriz bem sabia, caramba, que o tempo passava. Agarrou na carta e fechou-se para a ler.
Habitualmente ele começava sempre da mesma maneira, “Caro dominó amarelo”. Mas ao ler as primeiras palavras teve um pressentimento: “Mui honrado dominó amarelo ou vermelho...”
Vermelho! Que significava aquilo? Ter-se-ia esquecido? E o tom, a seguir! “Continuas a divertir-te a jogar comigo às escondidas! Que brincadeira desagradável, e que falta de gosto! Teria sido elegante deixar cair a máscara - onze anos depois! Teríamos podido dar por finda a bela aventura do Grande Baile, iniciada em 1874. Mas francamente, agora, o encanto foi-se. Tudo isto se está a tornar muito entediante. Sabes melhor do que ninguém a que ponto o tédio destrói o mundo... O tédio, minha cara, és tu. A tua primeira carta encantou-me, a última que recebi vexa-me. Tanta desconfiança... Continuas a não dizer quem és. Pois bem! Continua a ser desconfiada, tanto pior. Tenho a minha dignidade. Adeus, minha cara.”
Adeus? Bom, já que ele assim decidia, seria adeus!
Rasgou a carta. Vexado, ele! Um simples funcionário! Um vienense a quem ela dera a honra de um idílio! Por quem se tomava ele?
Escreveu imediatamente um poema de algumas linhas, sete ao todo, que quis fossem bem assassinas; o antigo jovem entrava no armário dos asnos, de que nunca fizera parte. Mas quando o releu, achou-o excessivo. Porquê chamar-lhe bicho imundo, porquê descrevê-lo como um ser disforme, reles, quando ele era apenas calvo? Seria preciso atacar uma mulher desconhecida, a dele?
É um bicho imundo e reles, terrivelmente Calvo e, ainda por cima, disforme Vive num monte de esterco Pois é de uma baixeza sem limite.
É o que clamam os ecos, todos Os do Tirol, de penedo em penedo E uma mulher partilha isto!
Não, não enviaria aquilo. Era demasiado violento. Mas também não deitou fora; juntou-o à colecção dos asnos, onde era o seu lugar. De resto, em caso de publicação o culpado não era nomeado. Estava vingada. Ao arquivar o poema, a raiva desapareceu.
Tinha debaixo dos olhos o papel rasgado, cujos fragmentos colou, um a um. As palavras reapareceram, irrisórias; enquanto a guerra estava latente nos Balcãs, enquanto o século se aproximava de um fim desastroso, valia a pena enervar-se por uma bagatela?
E depois, ele mentia. Seis meses antes, a cabeleireira Fanny, tivera um estranho encontro no Stadtpark. Nesse dia, bem agasalhada numa pelica que lhe dissimulava as adiposidades, usava um velho gorro que a Imperatriz lhe dera de presente. Um senhor bastante forte fora atrás dela a correr, e chamara-lhe Gabriela com emoção. Fanny espantara-se, dissera que se chamava Henriqueta e não compreendera a insistência do homem, que pedira desculpas a gaguejar.
- Ah! - fizera a Imperatriz. - Estava alguma mulher com ele?
- Não sei - respondera a cabeleireira. - Era um senhor alto, muito bem posto, com um bocadinho de barriga, mas de muito bom aspecto e de lunetas.
A Imperatriz tivera um momento de hesitação, e nunca mais pensara no assunto. O senhor barrigudo não podia ser o seu jovem. E eis que lhe voltava a lembrança do gigante do Stadtpark, e do nome que gritara- Gabriela! Ora, aquela carta cheirava a despeito apaixonado.
- Estás a ver, Ida, sentia afecto por aquele pequeno - disse ela no dia seguinte, já calma. - Até escrevi um longo e belo poema em sua honra, que lhe ia mandar. Esta noite escrevi outro, para anular o primeiro. E não vou mandar o primeiro, que era simpático em demasia, nem o segundo, que era demasiado desagradável. Não sei porquê, sentiu-se vexado - é o que ele diz, olha. O primeiro poema, o melhor de mim mesma, Franz Taschnik não lerá nunca; acabou-se.
- Finalmente - murmurou Ida com um suspiro. - Levou onze anos. Agora, esqueça, por favor.
ENTÃO MORREU O REI DAS ROSAS
Esta liberdade que me quiseram roubar Esta liberdade, achei-a nas águas Preferiu parar meu coração Do que apodrecer numa prisão.
Elisabeth
Esqueceu, até à morte de Luís, no ano seguinte, o maldito ano de 1886. Havia já muito tempo que corria o boato de que o Rei estava louco. Dizia-se que dormia de dia e cavalgava de noite, falava-se de orgias nos seus castelos com os lacaios, acusavam-no de ter arrastado o reino para a ruína, de ter delapidado o dinheiro em loucuras musicais, de se ter apaixonado por Richard Wagner, o seu herói. Garantiam que ele pensava ser uma lenda viva; censuravam-lhe o facto de suportar os arrebatamentos do maestro e as teimosias da insuportável Cosima, sua mulher, por ela ser a esposa de um génio e a filha de um outro, Franz Liszt. Contavam que perdera a beleza, que engordara imenso; a única coisa de que havia a certeza, dizia-se com risadas obscenas, era de que não apanhara sífilis.
Em suma, a Baviera fervilhava de boatos, mas a Imperatriz não se preocupara absolutamente nada. Boatos, havia-os igualmente sobre a sua pessoa, e nenhum era verdadeiro. Quanto à loucura, também ela tivera direito a isso, e com mais frequência do que ele. Diziam que falava sozinho... E depois?
Não se preocupara, tanto mais que lhe custava a perdoar o sofrimento que ele infligira a sua irmã, Sofia de Baviera. Quando o primo Luís decidira tomá-la como esposa, ela sentira-se imensamente feliz: Sofia era o seu jovem anjo, e Luís, o arcanjo Gabriel, recto como uma espada, sensível como uma mulher, de uma elegância irrepreensível e de uma ternura insana. Encontrara um novo nome para a noiva, Elsa, tirado de uma ópera do seu compositor bem-amado, esse Wagner que dividia os melómanos, em Viena; e ele seria o seu Lohengrin.
A Imperatriz apreciara muito aquela requintada deferência, apesar dos comentários dos rezingões que sublinhavam o absurdo daqueles epítetos, pois no libreto da ópera de Wagner, Lohengrin abandonava Elsa por causa de um segredo traído; não era de bom augúrio. Se fosse outro, ela teria arrebitado a orelha, e as velhas superstições teriam voltado a galope. Mas com Luís era diferente. Ela e ele planavam acima do comum dos mortais; de Luís, nenhum mal poderia vir.
O noivado realizou-se; e no entanto, mais tarde, estranhamente, Luís esquivara-se. E como ele arrastava muito as coisas e retardava particularmente a data do casamento, o duque Max intimara o parente a decidir-se; então, sem ninguém esperar, Luís rompera brutalmente o noivado. A vida de Sofia estava feita em pedaços, como o seu busto de mármore, que o Rei da Baviera atirara de uma janela. Suprema injúria, que a Imperatriz tinha dificuldade em perdoar.
Mas já era um caso antigo; Luís e Sissi tinham voltado a ver-se. Porque era mais forte do que ela: ele atraía-a, irresistivelmente. É certo que o encanto adolescente do jovem Rei murchara um pouco; não era já adoração mútua de dois seres lendários, tão belos que dir-se-iam caídos do céu, capazes de fazer pasmar as multidões quando apareciam juntos, a Imperatriz e o Rei da Baviera, um par admirável.
Luís engordara um pouco; tinha os dentes estragados, um mal de família, infelizmente; estava ainda mais sonhador, e o seu riso sedutor fizera-se dissonante. Uma vez que fora visitá-lo ao castelo de Neuschwanstein, levara a Querida. Por ordem da mãe a pequena tinha na mão um raminho de jasmins, uma das flores preferidas do Rei; a outra era a rosa.
Luís não gostava de crianças; não foi capaz de dissimular um movimento de recuo, e pegou nas flores com a ponta dos dedos dando um beijo forçado à pequena. Maria Valéria achara-o gordo e feio; a mãe ficara magoada. Sim, Luís mudara.
Mas continuava a adorá-la; quem o ouvisse diria que ele nunca amara mais ninguém, com um amor que pretendia incestuoso, ela era o seu paredro, a sua irmã, uma divindade como ele. Só a ela, à sua prima Sissi, ele declarara o seu gosto pelos rapazes.
Passado o primeiro choque, ela reconstituíra a história: Luís não tinha culpa de ter abandonado Sofia, pelo contrário. Estranhamente, passou a amá-lo ainda mais; pois a revelação explicava também a sua atracção. Luís não era uma ameaça; Luís amava-a por si mesma; quando falava da sua beleza fazia-o de uma forma pura. Quanto ao que ele fazia de noite, não lhe apetecia falar disso; mas imaginava era ainda melhor. De faces a escaldar, sonhava com o corpo de Luís acariciado - pelos lacaios musculosos, tesouro precioso de peles fulvas e de sexos vibráteis que a enchia de um prazer inexplicável.
E quando o Rei encontrava a Imperatriz, cumulava-a de atenções; rosas, poemas, grandes discursos líricos que ela ouvia apaixonadamente, aplicando-se a adivinhar, sob a ênfase, o segredo nu. Sem dúvida era a isso que os boatos haviam chamado loucura; mas então, se ele era louco, ela também. Dois grandes pássaros, a águia, dizia ele, e a gaivota.
Da águia, Luís tinha a envergadura em pleno voo, as asas selvagens e rudes, o bico aguçado, o olhar potente. A gaivota, de olho vivo e preto, era ela, planando sobre o oceano ao pôr-do-sol. Ele dizia-lhe muitas vezes: “A tua vida Sissi, um dia vivê-la-ás sobre os mares, longe daqui.”
Ela consagrara-lhe numerosos poemas que ele não conhecia, salvo uma quadra, que ela depositara um dia na ilha das Rosas, e que ele encontrara muito mais tarde.
Ó águia que planas sobre as montanhas Recebe da gaivota dos mares A saudação das vagas espumantes Sobre as neves resplandecentes...
E eis que naquele dia 10 de Maio de 1886, os seus ministros acabavam de o destituir! Declaravam-no incapacitado! Nomeavam um regente incompetente. Inconcebível. Ilegal. Uma monstruosidade. O povo insurgira-se, com toda a razão; mas se Luís tinha o apoio popular, não era isso prova de que era um bom Rei? Que mais queriam eles, aqueles ministros? Uma figura decorativa sem alma, um funcionário real, que só servisse para distribuir sinecuras?
Soubera da notícia durante uma estadia na Baviera, em casa de sua mãe, à beira do lago Starnberg; Luís estava na outra margem, ao alcance do barco. Ficara indignada; mas a velha duquesa lembrara a existência de um demente na família, sem grande insistência. A jovem senhora afastara a objecção; ou então todos os Wittelsbach estavam sob a ameaça desse mesmo destino!
A velha Ludovica acenara com a cabeça.
Um mês mais tarde, uma delegação de ministros e de dignitários tentou capturar o desacreditado Rei, para o internar. Os seus fiéis, lacaios e camponeses, insurgiram-se; nada estava perdido. Mas, no dia seguinte, eles voltaram com médicos e com a polícia. Desde então o primo Luís estava enclausurado na fortaleza de Berg, sob a vigilância do doutor Gudden, médico psiquiatra. A jovem senhora continuava furiosa.
- Vou eu buscá-lo, juro - gritava. - Só preciso de um barco; está a dois passos de nós, do outro lado da água, e vou ficar aqui, de braços cruzados, sem tentar fazer nada? É preciso libertá-lo.
Mas a duquesa chamava-lhe tonta, e suplicava-lhe que não se intrometesse nos assuntos da Baviera, sua terra natal. Uma Imperatriz da Áustria...
- ... não deve interferir nos assuntos internos de um reino estrangeiro, eu sei, mãe - atalhou ela. - Mas quem me fez Imperatriz a não ser a senhora?
E começou a arquitectar planos para o salvar. O difícil, não era atravessar o lago durante a noite; era transpor os piquetes de guarda, e sobretudo, convencer o doutor Gudden. Nada que não pudesse ser ultrapassado, na condição de manter segredo. Portanto, não falou mais no assunto.
No dia seguinte, ainda estava ela com aquelas ideias, quando lhe apareceu a filha mais velha, horrorizada. Luís afogara-se no lago. Ela começou a soluçar perdidamente. Porque esperara? Dois dias apenas, 11 e 12 de Junho... Dois diazinhos, ridiculamente breves, tinham decorrido entre o internamento do Rei e o afogamento. Tarde de mais.
Pensou imediatamente em crime. Diriam que ele se suicidara porque fora declarado louco. Aliás era o que pensava a velha duquesa Ludovica: atirara-se ao lago, pobre rapaz. Não era de espantar, sempre fora esquisito.
- Estou a dizer-lhe que o mataram! Os mesmos que o tinham apoiado poderiam tê-lo tirado da prisão! Assassinaram-no!
- Mas sabes, porventura, que o doutor Gudden morreu afogado ao mesmo tempo? - observou a velha duquesa.
Não era o suficiente para a convencer. A autópsia, praticada sobre os dois cadáveres, revelou sinais de luta. Qual dos dois teria atacado o outro? Para a duquesa era o pobre Luís, que queria a todo o custo morrer, e que arrastara o médico para a morte. Mas para ela, era Gudden que queria afogar o Rei, e o Rei defendera-se.
- Ele não era louco, mãe, garanto-lhe. Era apenas um pouco original. E mesmo que fosse preciso destituí-lo, podiam tê-lo tratado com mais consideração, não o fechar atrás das grades, sei lá, podiam tentar exilá-lo durante um tempo numa ilha... Olhe, na Madeira, por exemplo. Eu também lá estive alguns meses. Ele voltaria curado...
- Não deverias comparar-te com ele, minha filha - cortou a velha senhora, irritada. - Cala-te. Ficará escrito nos livros que o Rei da Baviera era louco, e que se atirou ao lago de Starnberg. Para a família já é mais do que suficiente; não insistas.
A Imperatriz abandonou a sala batendo com a porta. Ao fim do dia, Maria Valéria, a Querida, veio beijá-la antes da oração da noite; parecia mais calma. De repente, deixou-se cair no chão e estendeu-se com os braços em cruz, como uma postulante carmelita, os longos cabelos fulvos espalhados em redor da cabeça. A pequena gritou, suplicou, em vão; não se levantava. Maria Valéria atirou-se sobre o corpo da mãe, berrando com tanta força que a Imperatriz virou a cabeça e soltou uma gargalhada molhada de lágrimas.
- Tive tanto medo... - disse a criança.
Beijou-lhe a cabeça e inventou uma história para apaziguar a filha. Os desígnios da Providência eram inelutáveis; reflectira sobre a morte de Luís; inclinava-se diante do poder divino, e respeitava as vontades do grande Jeová. Maria Valéria, confusa, secou o pranto; o essencial era que tudo entrasse na ordem. Ainda assim, a pequena ficou preocupada a propósito do grande Jeová, e interrogava-se sobre a razão da mãe não lhe chamar Deus, simplesmente.
- Es a única coisa que me liga à vida - murmurava ela. - Minha querida. O Rei das Rosas morrera; ninguém ocuparia o seu lugar. Porque ninguém possuía a graciosidade do arcanjo que dividira o mundo com a sua espada de fogo, proibindo aos mortais a entrada no seu paraíso. Os simples mortais haviam-se vingado. Ao deitar-se no chão, ela venerava a memória de uma espécie de deus; sem ele, ela perdia a sua própria divindade. Doravante, para resistir às leis dos humanos, estava absolutamente sozinha.
Não quis ver os restos mortais, inchados pelas águas do lago. Mas enviou um ramo de jasmim para ser colocado no caixão, em cima do peito. Não era capaz de imaginar Luís de olhos fechados, macilento, com as mãos ajuizadamente cruzadas sobre a pança. Em contrapartida, imaginava demasiado bem o trabalho subterrâneo dos vermes, que em breve devorariam a tenra carne azulada, enquanto aquelas unhas perfeitas se transformariam em longas garras, e as belas madeixas daquele cabelo cresceriam no túmulo, em volta de um rosto sem nariz. O jasmim também apodreceria. Fechariam os grandes castelos empoleirados nos altos, e a Baviera viveria docilmente sob a autoridade de uns ministros sem alma. Detestou a Baviera, e começou a odiar Munique, cidade de que Luís não gostava.
Para regularizar as coisas com ele, a Imperatriz visitou a campa, e aí depôs uma coroa de flores oficial; mas isso não era suficiente. O fantasma de Luís exigia muito mais; um débito de sofrimento que piedosamente ela lhe concedeu. Durante um longo ano, vestiu de luto; e como não era mulher que se contentasse com aparências, não foi um luto exterior, primeiro preto, depois cinzento, malva por fim, antes de voltar às cores da vida, não; foi uma cruz interminável, o fim da juventude, o começo de uma outra idade.
O corpo ajudou-a pregando-lhe partidas; era uma boa ferramenta, mas que dava sinais de fadiga. Ofereceu esses sinais ao luto, com deleite: era a morte a trabalhar, havia muito tempo, aliás.
Conservava de Luís recordações deliciosas, tão encantadoras como a fugaz memória do jovem do baile; muitas vezes, aproximava-os, o defunto e o vivo, Luís e Franz, pois fora também por causa do primo que escolhera o nome falso da noite do baile - Gabriela - em homenagem ao arcanjo então na Primavera da sua beleza. E daquela Primavera masculina, daquele milagre vivo, ela queria guardar apenas o melhor.
A mais bela lembrança que conservava, era a de um dia de Verão em que decidira atravessar o lago para ir visitá-lo à ilha das Rosas. Fora muito tempo antes do drama, antes mesmo do malogrado noivado com Sofia - uma eternidade de memória; o negro Rustimo empunhava os remos e ela o leme. Sob o calor nascente, as águas tranquilas pareciam ensonadas; exceptuando o som dos chocalhos nas pastagens e o marulhar em volta do barco, tudo era silêncio em redor. Luís esperava-a com uma rosa, uma única; às outras mulheres oferecia ramos tão grandes que, quando elas pegavam nas flores, ele deixava de as ver. Por cima daquela única rosa-chá, os olhos deles encontraram-se com prazer.
Ele mandara preparar uma sumptuosa refeição, servida numa baixela solene, como para secretas bodas a dois; e como a amava, não fez nenhum comentário sobre a falta de apetite da prima. Assim, com liberdade para não comer, ela devorou alegremente. E foi a seguir, estendidos na relva, que ela lhe contou o episódio do Grande Baile de Máscaras.
No olhar de Luís brilhava uma luz desconhecida; fizera uma quantidade de perguntas, sobre a cor dos olhos, os ombros, as mãos, a estatura do jovem desconhecido. Ela lembrava-se com exactidão porque - até se riram muito - não omitira o aspecto em que Luís e o jovem se pareciam, as pestanas de menina, compridas e escuras. Nenhuma crítica, nenhuma censura, pelo contrário: encorajara-a a alimentar o mistério, achara desejável que ela voltasse a vê-lo, mascarada. A correspondência secreta entusiasmou-o; procurou um paralelo entre o jovem e um herói mítico, evocou Endimião - mas Franz não dormia eternamente; Eros - mas não era Franz quem se escondia, mas ela; Ganimedes - mas a águia era ele, não ela, em suma, nenhuma comparação era apropriada. Luís deduziu, enfático, que aquele jovem era portanto incomparável.
Quando o dia chegou ao fim, eram já mais de nove horas, Luís decidiu ir levá-la de barco. Pegou nos remos, ela no leme, e Rustimo cantou. Surpreendente naquele lago bávaro, a guitarra de Rustimo ecoava, límpida; os cantares do negro vinham de uma profunda distância, e eram tão meigos que punham lágrimas nos olhos. Não era italiano, muito menos espanhol, mas uma língua parecida com português, que teria sido adoçada com um pouco de mel.
A Imperatriz nunca se preocupara com as origens de Rustimo, um criado preto como ainda havia alguns por essa Europa. As canções de Rustimo falavam de um Sol triste e nostálgico, com uma palavra insistente que, de súbito, ela identificou, “saudade”; era realmente uma palavra portuguesa. Num alemão hesitante, Rustimo contou baixinho a sua história, em breves palavras apressadas.
Vinha do Brasil, onde nascera numa plantação; o filho do patrão trouxera-o para a Europa, onde tivera a felicidade de entrar ao serviço da Imperatriz. Depois recomeçou a cantar. Luís não escondia a sua emoção. A chegada, tirou do dedo um anel com uma safira e enfiou-o no dedo de Rustimo. Naquele instante, ela adorara Luís como um deus.
Rustimo também morrera. O pobre negro, que parecia não ter idade, era na verdade muito velho; expirara pacificamente. Da guitarra e das canções brasileiras nada mais restava.
Regressou a casa da mãe, e voltou ao lago mortal. No dia seguinte, de madrugada, dirigiu-se à margem, descalçou-se e entrou descalça na água. Maquinalmente, impelida por uma força irresistível, avançava, e o vestido colava-se-lhe às pernas; não queria morrer, mas tinha a sensação física que Luís estava a seu lado e a encorajava em silêncio.
A morte parecia tão fácil, tão próxima, bastava deixar-se deslizar, porquê hesitar? Não havia nenhum doutor Gudden para a deter, ou para lhe meter a cabeça debaixo de água; era livre. A roupa começava a flutuar em redor da cintura, e os pés destacavam-se ligeiramente do fundo do lago; não era desagradável, apenas um pouco frio. Quando a água lhe chegou ao peito, os pés encontraram uma coisa viscosa, uma enguia com certeza, ou uma alga de água doce. Não conseguiu conter um grito; morrer era também sufocar, e deixar actuar aqueles seres subterrâneos... Não!
Estava em bicos de pés, já não tocava no chão, só a cabeça estava à superfície. Flutuava, tranquila, de olhos postos no azul das montanhas. O Sol começava o seu trabalho; o ar vibrava por cima das águas... Quase se poderia esperar um delibab à húngara. De súbito soltou um grito abafado.
Do lago emergia uma forma vaga, os cabelos colados a um rosto lívido e barbudo. Ela debateu-se, sufocou, levantou uma mão para afastar a visão que desapareceu.
Voltou para a margem a nadar, arfando. E quando entrou em casa, garantiu que tomara banho vestida.
A velha duquesa Ludovica deu por si a pensar que, realmente, o sangue dos Wittelsbach, vindo do seu leviano esposo, era portador de muitos desarranjos do espírito. Seria que a Imperatriz sua filha começava a acreditar em almas do outro mundo?
A Imperatriz não ignorava nada da lenda dos Wittelsbach; já em pequena ouvira da boca das duas irmãs, sua mãe e sua tia, a duquesa Ludovica e a arqui-duquesa Sofia, pérfidas alusões à inclinação para a loucura que eles tinham todos, o Rei defunto, aquele que perdera o trono por Lola Montes; os dois dementes, filhos do tio Carlos Teodoro, e depois o duque Max, seu próprio pai, o marido de Ludovica, o que tocava cítara no cimo da pirâmide de Quéopes, fazia de cavaleiro acrobata no seu circo privado, escrevia poemas que publicava na imprensa e que ele mesmo censurava, exigindo cortes nas suas ideias revolucionárias; seu pai que, acima de tudo, era doido por mulheres...
E a arquiduquesa Sofia, sua sogra, a repetir-lhe mais tarde que uma Imperatriz da Áustria não deve nunca dar o flanco a nenhuma acusação de loucura, senão, a sucessão...
Com o internamento de Luís, a loucura Wittelsbach tornava-se oficial. A Imperatriz da Áustria era uma Wittelsbach, e adorara o primo.
Muito bem; iria outra vez ver a loucura de perto.
Não seria a primeira vez; já visitara numerosos asilos, como era seu hábito em relação aos deserdados da vida. Curiosamente, em Viena, a imprensa só fixava dessas visitas aquelas que eram feitas aos asilos de alienados. Não ignorava que, ao pegar no touro pelos cornos, teria direito a uma nova campanha difamatória.
Decidiu, contudo, visitar, em Viena, o asilo Briinnfeld. Seis meses depois da morte de Luís. Não se fez anunciar.
O médico de serviço acorreu, de bata branca, a Imperatriz abanou-o um pouco, depressa, sem protocolo, queria ver tudo. Mas o médico-chefe não estava, já vinha, estava a mudar de roupa... Trabalho escusado. O homem bem tentou evitar-lhe o pior, e procurou dirigi-la para a secção das mulheres calmas.
“Veremos isso no fim doutor”, proferiu ela num tom sem apelo. Em caso de agressão, nada protegeria a Imperatriz; o médico estava para morrer.
Nos agitados, tudo se passou sem dificuldades; os grandes delirantes não eram perigosos, o médico respirou fundo. A Imperatriz parecia não ter conhecimento da secção mais terrível, a dos loucos furiosos. Passou-se finalmente ao famoso sector das calmas, sem qualquer perigo; aliás, a notícia tinha-se de tal modo espalhado que as mulheres bordavam ajuizadamente, à espera da ilustre visitante.
Por que é que ela teve de se deter exactamente diante da Windisch?
As outras chamavam-lhe “a donzela”, por causa das mitenes de croché e do seu ar bem educado. A Windisch não era nem má nem perigosa; sofria de melancolia, dava suspiros de partir o coração e chorava muito. De tempos a tempos, divagava a propósito de um noivo perdido, um príncipe, dizia ela, que o Imperador teria mandado prender num castelo. E quando ouvira falar na ilustre visitante, a Windisch precipitara-se para uma velha capelina que estava sempre à cabeceira da cama dela. Um chapéu de palha enfeitado com papoilas de seda e pervincas murchas. Num abrir e fechar de olhos pusera o cabelo para cima, plantara o chapéu no alto da cabeça e aí o mantinha. Com o seu carrapito louro-cinza, os olhos verdes e as mitenes, a donzela tinha uma boa presença. Assim que a Imperatriz transpusera o limiar da porta, a Windisch reparara de longe no gorro de veludo preto e na pluma que balançava ao ritmo do vestido de seda. O olhar dela não mais abandonara o chapéu da soberana, que se aproximava num passo deslizante. Se ela não se tivesse detido, talvez nada tivesse acontecido. Mas, impelida pela necessidade e atraída pela capelina, a Imperatriz, diante da rapariga, fez uma pausa. A Windisch era bonita.
Porquê ter escolhido precisamente aquela? Não se sabia; o certo é que a donzela se atirou à Imperatriz e quis arrancar-lhe o chapéu. A Windisch berrava, proferia imprecações que demoraram um certo tempo a ser compreendidas. A verdadeira Imperatriz era ela, a Windisch, internada à força na sequência de uma odiosa conspiração; a do gorro de veludo preto, a outra, era uma impostora, atrever-se a fazer-se passar por ela! Tinham invertido os papéis! Provocavam-na! A louca era a visitante!
Um pouco pálida, a Imperatriz limitara-se a recuar. O médico chamou a Windisch à razão, e intimou-a a tratar melhor os convidados. Porque, dizia ele, uma Imperatriz não berra... Abalada pela contradição, a donzela acalmou. Os enfermeiros tinham feito cair a capelina florida: numa voz infantil, a Windisch reclamou o chapéu e voltou a pô-lo majestosamente.
Mais tarde, o médico explicou que fora na sequência de um desgosto de amor que...
- Apenas por um desgosto de amor? - espantou-se a ilustre visitante. - Deveras?
As portas da carruagem já estavam abertas quando ela mudou de ideias.
Faltavam os loucos furiosos, que não vira. A suspirar, o médico lá se decidiu; a Imperatriz examinou as correias e as células, entreviu através de um postigo gradeado os doentes em camisa de forças, perguntou onde estavam os duches, as banheiras e os armários dos medicamentos, que não estavam em lado nenhum; em contrapartida, reparou nas correntes nos pés dos desgraçados. Não era ainda o suficiente; pediu para voltar a ver a Windisch, para grande desespero do doutor, que fez questão de a avisar do perigo. A Imperatriz encolheu os ombros.
A donzela recuperara a calma e tirara a capelina. De cabelo caído, olhos baixos, torcia a sua bata de doente e lamentava o seu gesto insensato. Quando avistou de novo a dama do gorro preto, precipitou-se a seus pés a chorar; a Imperatriz levantou-a e beijou-a.
Foi o momento escolhido pelo médico-chefe de Briinnfeld para finalmente chegar, de casaca e chapéu alto preto. Ao ver a Windisch em pranto nos braços da Imperatriz, ficou pasmado, de boca aberta e de chapéu na mão.
- Tratem bem dela - disse Sua Majestade ao partir. - Proibo-vos de lhe vestirem a camisa de forças.
O médico-chefe argumentou, lembrou o regulamento, mas a Imperatriz foi intratável.
A camisa de forças? Para uma crise passageira? A Windisch não era louca; ou então, quando ela própria se deitara no chão diante de Maria Valéria, deveriam tê-la internado imediatamente. Sim, se o digno médico-chefe de casaca a tivesse visto na noite da morte de Luís, de certeza que teria diagnosticado uma profunda alienação mental.
Aqueles que eram declarados loucos eram, antes de mais nada, importunos; porque ela reparara acima de tudo na extrema beleza da rapariga, e naquele ar de cordeirinho silencioso, quando se lançara a seus pés. “A beleza importuna sempre, pensou. A ponto de esquecer os outros.”
Prometeu a si mesma mandar construir em Viena um hospital psiquiátrico mais bem equipado do que aquela velharia deficiente. Bastava estar atenta ao momento em que o Imperador lhe perguntasse, como de costume, que queria ela de presente.
Entretanto, a sua bênção estender-se-ia àqueles que o mundo acusava, àqueles que não obedeciam às suas leis, àqueles que pregavam partidas aos asnos. Ao sair do asilo de Briinnfeld, tornou a pensar no seu jovem, naquele espírito livre e generoso a quem ela absolveu dos seus pecados por amor da Windisch. Enviar-lhe-ia o poema que lhe dedicara, em sinal de perdão definitivo, e de adeus.
LONG AGO
Aquilo de que mais gosto Num animal, é o silêncio. Como não fala, não mente. Pois só mentem aqueles que falam.
Elisabeth
Dois anos haviam passado desde que Franz escrevera a carta imprudente, que ficara sem resposta. Nos primeiros meses, esperava impacientemente; entre o Brasil e Hietzing, o caminho era longo. Ao fim de seis meses perdeu a esperança. Ela não responderia; zangara-se, por seu turno. Não era de excluir a cólera de Gabriela, se realmente Gabriela existia em algum lugar do mundo; quanto a Elisabeth... A embrulhada continuava.
Em resumo, haviam rompido, até à próxima. Porque Franz não tinha dúvidas acerca da continuação; ela havia de reaparecer, no momento em que menos se esperasse. Dedicou-se pois a não esperar mais nada dela e conseguiu perfeitamente. Contudo, adivinhava o profundo abalo que a morte do Rei da Baviera lhe provocara; a amizade deles era suficientemente pública para que ele pudesse pressentir o desgosto dela. Pelo menos se Gabriela fosse Elisabeth; mas a partir desse momento, de cada vez que acontecia uma morte no círculo da Imperatriz, era em Gabriela que pensava, sem hesitar. Pouco faltava para lhe enviar os seus sentidos pêsames; mas era difícil. As últimas cartas tinham sido demasiado azedas; para recuperar a doçura dos primeiros tempos, era preciso uma ocasião propícia.
E ela surgiu, frágil.
O envelope chegou do Brasil numa bela manhã de Junho, no ano que se seguiu à morte de Luís da Baviera. No sobrescrito, a letra não era a de Gabriela; no interior, encontrou um poema impresso, com um título em maiúsculas, O CANTO DO DOMINÓ amarelo, e um subtítulo em inglês, Long, Long Styo.
A Imperatriz tomara a decisão definitiva de enviar o poema ao seu jovem no dia em que recebera um novo retrato seu, um retrato que nada tinha de oficial.
Desde as cerimónias das bodas de prata, a Imperatriz aceitava raramente posar para pintores. Aos fotógrafos era impossível escapar; eram precisos retratos de cerimónia, cuidadosamente retocados, isso ainda vá lá. “Já não será por muito tempo”, pensava ela de cada vez que a cabeça do executante se escondia debaixo do pano preto. Mas fechava a porta aos pintores.
Conservara uma recordação contraditória das sessões de pose com Winter-halter. Não se mexer, sorrir, Vossa Majestade; olhe para mim, um pouco de lado, não demora muito, paramos quando quiser, Majestade, e isso nunca era inteiramente verdade, não se parava. O artista trocava as voltas ao tempo. O ligeiro ruído dos pincéis sobre a tela arranhava o silêncio como um ratinho roedor, baixinho, mas com precisão, teimosia, prudência, uma máquina humana rilhando a vida. Da pintura retivera apenas aquele ruído insidioso. Do outro lado nascia uma imagem estranha que não era ela. Lábios demasiado carnudos, um olhar demasiado enternecido, uma delicadeza complacente, um sorriso meio gentil meio palerma, que não era o seu.
O mundo inteiro adorava os retratos de Winterhalter, que lhe garantiam a nomeada; um deles, sobretudo, aquele para o qual posara vestida de tule branco, com simples pérolas ao pescoço e, nas tranças, as célebres estrelas de diamantes. Winterhalter fizera cinco ou seis cópias, repartidas pelas diversas residências imperiais. Mas, por causa desses retratos, ela tornara-se uma curiosidade que as pessoas visitavam. Nunca mais queria ver pintores. Um dos últimos para quem aceitara posar chamava-se Georg Raab; pintara-a com um grande decote, camélias no debrum das mangas, em redor do pescoço uma fita preta enfeitada de estrelas de onde pendiam esmeraldas quadradas e, no colo branco, um cordão de ouro prolongado por um medalhão. As tranças tinham os seus verdadeiros reflexos acobreados, e o fundo do quadro era de um vermelho profundo, quase negro.
O retrato datava de 1874, o ano em que fora avó pela primeira vez; o ano do Grande Baile, também. Na tela de Georg Rabb, a Imperatriz gostava bastante de se ver; sem sorriso, um ar grave, um pouco triste, o queixo voluntarioso e um olhar distante, estava mais ou menos parecida com o que era. Mas depois, tornou-se cada vez mais reticente.
E portanto, ao chamado Anton Romako, pintor perfeitamente desconhecido, dissera não como aos outros, cerca de três anos antes.
Como fizera ele? Inexplicável. Romako pretendia ter trabalhado a partir de fotografias. O retrato ali estava, sem o pintor, e ela estava horrorizada com aquela doida na tela. Alongada como num quadro de Greco, a mulher, pintada sobre um fundo de ouro escuro, tinha o peito coberto de uma torrente de pérolas em desordem, os braços nus violentamente iluminados, o pescoço muito alto, muito direito; as mãos de dedos intermináveis seguravam um leque preto fechado, um cão levantava a cabeça - uma cabeça desmesurada, meiga e imensa, um daqueles animais de guarda das infantas, em Espanha. A mulher e o animal tinham a mesma pelagem; ele, o pêlo, ela, os cabelos como uma juba, lisos, rebeldes, terríveis. O conjunto era de uma incrível loucura, prestes a explodir; mas o rosto...
O rosto era bem o seu! Como se o pintor desconhecido tivesse roubado um reflexo, por magia... Era assim que ela via os seus próprios olhos, desconfiados; a boca, rigorosamente fechada. O génio do pintor não esquecera nada, nem sequer o riso descontrolado que podia estalar a qualquer instante, e que ela adivinhava pela covinha à esquerda, ao canto dos lábios. Era horrível e verdadeiro, de uma fealdade de cortar a respiração. Petrificada, esqueceu a presença de Ida a seu lado.
- E a senhora, o que é que a senhora pensa? - perguntou Ida com uma voz que não anunciava nada de bom.
- Não sou eu - respondeu ela sem pestanejar. -- Reparaste? De lado, esta folha de hera que está desligada de tudo? E estas sete fiadas de pérolas, viscosas como enguias? Que engraçado!
O riso descontrolado vinha aí como uma bátega de água, ia rebentar, sem razão. Esse Romako, que insolência! Aquelas desproporções ridículas! Seria ela? Desencadeava-se o tremor do riso e ela deixou de resistir. Ida, pacientemente esperou. Com frequência, a Imperatriz ria até às lágrimas. Depois limpava-as com um lenço, com um arrulho de gozo esgotado, e um ar de completo embaraço.
- E que idade tem ele? - perguntou por fim.
- Um jovem, minha senhora - respondeu Ida. - Parece que bebe muito.
- É de uma audácia! Olha, é um anarquista - atirou. - Não desgosto do género. Mas manda tirar daqui este horror.
Mas na mesma noite, ao deitar-se, pensou de novo naquela alma que um desconhecido apanhara no ar. O jovem Romako pusera-a a descoberto, como o outro jovem, o do baile. Sentiu-se posta a nu; não era desagradável. Foi então que de súbito, movida por uma pulsão sem lógica, tomou a decisão de enviar o longo poema. Mas para que ele percebesse a sua ira, escolheria um dos exemplares que mandava imprimir em segredo na Imprensa Imperial, por linotipistas que lhe prestavam juramento directamente. E não assinaria.
Romako não seria castigado, e Franz Taschnik receberia o que lhe era devido. Um poema anónimo.
Uma decisão tomada sob a inspiração daquele perdão que desejava para todos, a começar por Luís, ela própria e todos os loucos do mundo; Franzi pertencia a essa categoria, pelo menos era essa a sua esperança. Não esperava resposta; aliás estava resolvida a não interrogar a posta-restante, em Munique. Que respondesse ou não, não queria saber. Na melhor das hipóteses ele ficaria comovido; senão, atirá-la-ia para o lixo juntamente com as cartas.
Era precisamente essa comoção que ela preferia não conhecer, com medo de ser confrontada com um indiferente, um insensível, e que faria troça. Sim, estava resolvido, ficaria doravante inacessível. Aos pintores, aos fotógrafos, aos jovens. Aos olhos dela, o poema punha um ponto final naquele caso; mas quando o lesse, Franz Taschnik não teria qualquer meio de adivinhar o porquê daquela última ressurreição.
Franz colocou o poema bem direitinho em cima da secretária, e pôs os óculos para ler o canto do dominó amarelo. Percorreu, profundamente emocionado, os versos que considerou magníficos; ela nunca fora tão longe. O poema era um presente da vida, oferecido ao cabo de uma aventura que não deveria ter tido continuação e que, com os anos, ganhara eternidade. Leu e releu de novo...
Lembras-te da deslumbrante noite sob os lustres,
Há muito, muito tempo, long ago?
E dessa noite de encontro de duas almas
Há muito tempo já, long ago?
A noite em que uma estranha ternura nasceu
Amigo, ainda pensas nisso às vezes?
Terás esquecido a intimidade das palavras
Trocadas ao ritmo da valsa?
O tempo fugia, rápido, ai de nós...
Duas mãos entrelaçadas, e eu devia partir,
Sem te haver desvendado o meu rosto
Mas deixava contigo a minha alma inteira
Amigo, o que era muito mais ainda. '
Os anos passaram, vazios e desunidos
Todas as noites o meu olhar sobe às estrelas
Que, mudas, me não respondem;
Julgo-te perto, ou muito longe
Num outro planeta, será?
Se ainda vives, faz-me um sinal, um só
Pois foi há tanto tempo, long ago...
Não me faças esperar, nunca mais...
Não! Não voltaria a esperar um só dia que fosse!
Chegado o fim do dia, Franz alegou como pretexto um processo, para o qual necessitava de sossego, uma história pouco clara de inundação na embaixada de Paris, o soberbo Hotel Matignon, que requeria toda a sua atenção. Para a desconhecida - que já não era - precisava da noite. Anna trouxe-lhe café e fechou devagarinho a porta.
Como é que havia de proceder? Exceptuando o mau poema para o Ktrilçiki, Franz nunca escrevera poesia. Respirou fundo e atirou-se de cabeça.
Rasurou muito, escreveu seis versões sucessivas; de vez em quando, Anna entreabria a porta e espreitava; cansada de esperar, foi-se deitar, ele continuava a escrever. Às três horas da manhã, com a cabeça a zumbir de palavras e de sons, resignou-se a concluir.
Não estava inteiramente satisfeito; mas tentara com toda a sinceridade.
Faltava um título; escreveu em maiúsculas “para gabriela”, e depois mudou de ideias, escreveu em vez disso: “para a desconhecida”. Passaria tudo a limpo no dia seguinte, antes de mandar a carta para a posta-restante de Munique.
Seis meses mais tarde a carta ainda lá estava. Ninguém fora reclamá-la. Franz soube-o porque foi informar-se a Munique, onde lha devolveram.
Abriu o envelope e tirou o poema que ela não lera. Completamente aturdido, sentou-se num parque, num banco, e retomou os versos que tanto esforço lhe haviam custado.
Sim, “há muito tempo”, não posso esquecer Mesmo que partas para lugares desconhecidos A tua lembrança sempre será o sino que dobra Pela minha mocidade, e pelas valsas de uma noite...
Era um começo banal e canhestro, terrivelmente sentimental. A continuação pouco mais valia, à excepção das três últimas estrofes que o encheram de um estranho contentamento.
Eu sei, no fundo de mim eu sei
Que nunca os meus olhos te hão-de ver, never more.
Esse rosto escapar-me-á
Essa miragem sumir-se-á, never more.
Mas se porventura a vida
Nos puser frente a frente, um dia
Queira o céu que o teu olhar
Se tolde de uma sombra de remorso
Que eu receba esse sorriso Despido de majestade E que com graça ele diga “Sou eu, acertaste, é verdade!”
Esse sorriso, vê-lo-ia ele um dia? Essas palavras, vê-las-ia ele nascer dos lábios esquecidos?
O silêncio recomeçava, mais pesado do que antes. E se fossem precisos mais onze anos, talvez ela morresse até lá. Voltou a pôr o poema no envelope, que iria juntar-se, em Viena, às cartas que estavam dentro da caixa, e ao leque que começava, com o tempo, a ficar ruço.
Da última missiva, que ficara dois longos anos sem resposta, bem como do poema, Franz não falou aos amigos. Afinal, era preciso um segredo que ninguém no mundo pudesse partilhar, excepto ela e ele, unidos por uma estranha ausência. E já que estava em Munique, comprou para Anna um vestido tradicional, um de tafetá preto, bordado a azeviche, com avental a condizer, que ela há muito desejava, e que não se encontrava em Viena.
A vida recomeçou, calma, como no passado. Por vezes, esperava vagamente um sinal; à chegada do carteiro, sentia um ligeiro aperto no peito. E depois, mas isso já lhe acontecera duas vezes, habituou-se àquele plácido vazio, e retomou os seus hábitos.
Emmy estava a ficar crescida e começava a cantar lindamente; Anna decidiu que ela receberia lições. E como Attila não servira muito bem para os Lieder de Schubert, com a pequena, haveria alguém à mão de semear. Franz comoveu-se muito, e encontrou na voz da filha grandes consolações.
Os amigos pouco evoluíam. Willy engordava muito, bebia imenso, e continuava a evocar longínquas noivas, com menor frequência, apesar de tudo. Anna tomara-lhe afecto. Preocupava-se com ele; Willy estava a ficar sem dentes, tinha às vezes umas esquisitas manchas rosadas no rosto, e uma espécie de tumor no nariz, uma feridinha que não se ia embora. Franz teve umas desconfianças que o gordo afastou energicamente.
- Pois se te digo que não se trata de sífilis!... - afirmava ele, furioso. - Tratei-me a tempo! Não, tenho é que emagrecer. Amanhã, deixo de beber, está prometido.
Mas Franz sabia muito bem que a doença atacava de surpresa após anos de silêncio, e que nunca se podia estar certo da cura. Willy começava a ter a vista turva; tinha dores de cabeça, e a bebida não explicava tudo.
Quanto ao húngaro, para mudar um pouco, acabava de se inclinar para uma cantora; mas desta vez, era, dizia ele, uma verdadeira cantora da Ópera de Viena, uma mezzo. Quando Anna lhe perguntou quais os papéis desempenhados pela senhora, Attila acabou por admitir a verdade. A eleita do seu coração tinha na verdade dois empregos: na Flauta mágica, era uma das damas de companhia da Rainha da Noite, e na A Traviata era a criada de Violetta Valéry. Quer dizer que não era nada.
Mas Attila falava do cabelo ruivo da sua nova conquista com tanto entusiasmo que os dois amigos retomaram, para a designar, a alcunha que já servira por duas vezes, “A Ruça”. O húngaro começou por se ofender mas, já que estava destinado às ruças, resignou-se, como no passado. Franz disse de si para si que, em breve, seria preciso arranjar casamento para Attila. Porque para Willy já era tarde de mais; e só Deus sabia o que iria ser daquele pobre vienense.
- Um que também não anda nada bem - disse Franz à esposa numa bela manhã - é o nosso Príncipe Herdeiro. Vi-o no outro dia, quando ele descia do cabriole, tem uma cor macilenta e toda a sorte de borbulhas na cara.
- Acho que não é feliz no casamento - respondeu Anna pondo manteiga nuns pãezinhos de cominhos. - A Princesa tem um olhar duro.
- Um olhar duro! E como é que sabes? - indignou-se Franz, sempre pronto a defender a família imperial.
- As fotografias. Tem olhos de militar. Dir-se-ia um coronel a dar o sinal para uma execução. Não olha, fuzila.
A Princesa Herdeira não era amada em Viena, onde as pessoas eram sempre mais brandas com o sexo forte. Habitualmente, Anna tomava o partido das mulheres que eram atacadas, por uma questão de princípio; mas desta vez, estava a ser feroz. É verdade que o Príncipe Herdeiro era acima de tudo o amigo dos judeus, e não o escondia. Não obstante, Franz ficou vivamente impressionado. Tanto mais que no trabalho, o próprio Attila espalhava sinistros boatos. Se só tivesse sido o Willy, ainda vá; mas não! o húngaro em pessoa afirmava que o Príncipe já não se contentava só com um pouco de ópio; passara à morfina, e injectava-se todos os dias.
Aos olhos de Attila, o Príncipe Rodolfo representara sempre a esperança da Hungria, tal como sua mãe. Era amigo dos liberais; estava pronto para seguir em frente, para empreender profundas reformas, talvez até para reduzir o exorbitante poder da nobreza que, é certo, fizera da Hungria uma nação quase soberana, mas que se recusava a dividir as terras. Franz não podia, de modo nenhum, acusar Attila de má vontade; aliás, ele só lhe fazia aquelas confidências na ausência de Willy, cujas convicções pró-alemãs se reforçavam de dia para dia.
E depois, os mexericos em torno das orgias do Príncipe, continuavam; já nem sequer se falava das suas infidelidades conjugais, não, a coisa ia até ao deboche, de que aliás nada se sabia, a não ser que se diziam muitas coisas, e que não havia fumo sem fogo. Em todo o caso, com ou sem orgias, era preciso render-se à evidência: a cor macilenta, as borbulhas, aquele olhar febril, as dores de cabeça que apareciam com tanta frequência nos comunicados oficiais, tudo apontava para a doença.
- Então a esposa também tem, com certeza - comentou Anna quando Franz evocou o assunto. - Lamento-a. Esperemos que os dois filhos tenham sido poupados.
No Outono de 1888, uma noite em que os Taschnik estavam numa estalagem, em família, quer dizer com o tio Willy e o tio Attila, o Príncipe entrou bruscamente com um grupo de amigos. Quando o Príncipe chegava, tudo mudava.
A estalagem era famosa pelos seus músicos, o quarteto dos irmãos Schrammel, quatro bigodaças que tocavam como deuses. O botequim retinia de canecas de vinho branco que se entrechocavam, de gritos das criadas; os dois violinos, a flauta e a guitarra mal conseguiam cobrir a algazarra das conversas; os colarinhos das camisas começavam a saltar, as pessoas perdiam a pouco e pouco a compostura, Willy principalmente, já um tanto entornado, e até Attila, que sentara Emmy nos joelhos, apesar dos protestos de Anna. O pequeno Toni, que só tinha oito anos, observava, de olhos esbugalhados, aquelas pessoas crescidas a portarem-se como crianças. Era uma daquelas noites vienenses perfeitamente bem sucedidas, familiares, poéticas, um pouco ébrias, um pouco loucas, em que as canções voavam de coração em coração.
Mas quando o jovem Príncipe entrou, todos se calaram; os violinistas levantaram o arco, o flautista parou, o guitarrista pôs as mãos sobre as cordas do instrumento, o patrão precipitou-se e as criadas esboçaram a reverência. Ao silêncio do primeiro momento, sucederam-se os murmúrios extasiados. O Príncipe Herdeiro estava radiosamente belo.
Com um manto de pele de lobo negligentemente atirado para os ombros, a cabeça coberta por um elegante gorro, um charuto na boca, segurava pelos ombros duas senhoras decotadas, enfim, eram mais raparigas, não muito ordinárias, bastante bonitas. Para acabar com o silêncio e os murmúrios, tirou o charuto da boca, levantou o gorro e cumprimentou os clientes da estalagem; foi aplaudido.
Os quatro Schrammel recomeçaram a tocar com entusiasmo a música que tinham inventado havia já alguns anos, e que fazia furor, entre a valsa e a canção, melodias nostálgicas, vagamente húngaras, talvez um pouco ciganas; os clientes retomavam os cantares em coro. De pé diante do Príncipe, um cocheiro começou a assobiar umas músicas, uns trinados, dir-se-ia um rouxinol humano. O Príncipe sorriu para ele.
- Como te chamas, meu rapaz?
- Bratfisch, para servir Vossa Alteza. Sou o cocheiro da casa.
- Pois bem, Bratfisch, doravante serás o meu cocheiro - disse o Príncipe.
Foi outra vez aplaudido com mais força. O Príncipe deixou-se familiarmente cair na cadeira, exactamente na mesma posição em que estava Attila, com uma rapariga em cima dos joelhos.
- Não lhe acho má cara esta noite - segredou Attila inclinando-se por cima da mesa. -Já não tem aquelas feias borbulhas.
- Mas para quê a pele? Não está frio - respondeu Anna no mesmo tom. - É estranho como ele tem um ar friorento...
- Quando se é filado por aquela coisa, fica-se friorento - murmurou Willy, que sabia tudo sobre o assunto. - É tudo muito bonito, mas garanto-vos que ele apanhou a doença.
Para Franz, o conjunto da cena soava a falso. O Príncipe não prestava nenhuma atenção às companheiras, e o olhar dele errava ao abandono; tinha um sorriso misterioso, “Ali está um homem que pensa noutra coisa”, disse para consigo Franz. De súbito, soube exactamente o que Rodolfo parecia: alguém fulminado pela paixão. Evidentemente, se tal fosse verdade o objecto do seu amor não estava ali. Era uma sensação precisa, mas tão frágil, que não disse nada a ninguém, excepto a Anna, mais tarde.
O Príncipe não ficou muito tempo; carregava muitas vezes com a mão nas pálpebras, como se lhe doessem os olhos; tossia. Ao cabo de uma hora levantou-se, pegou em cada uma das companheiras pelo braço e foi-se embora acenando com a mão sob os aplausos renovados dos clientes. A orquestra, a quem ele mandara gratificar, fez-lhe uma rasgada vénia.
A estalagem retomou o seu andamento vespertino, um tom abaixo, como se o Príncipe tivesse introduzido nas colinas um ar de majestade misteriosa, que os convivas, os músicos e o estalajadeiro devessem preservar durante mais algum tempo.
Os amigos discutiram durante muito tempo o futuro do Príncipe. Para vir a ser Imperador, tinha de esperar; era impaciente de mais e brilhante de mais, também; e eram de esperar iniciativas políticas. Quais? Não era evidente; Attila pretendia que na Hungria o Príncipe era muito activo; mantinha estreitas relações com os progressistas. Em Budapeste falava-se muito das suas ligações com os melhores espíritos liberais, e de certos planos secretos para libertar a Hungria da velha tutela imperial.
- Uma conspiração? - atalhou Franz.
- Não foi isso que eu disse! - bradou o húngaro. - Mas é como se fosse.
- Felizmente nós temos Schõnerer e Karl Lueger! - exclamou Willy bruscamente.
- O quê? - clamou Franz. - Tu, Willy, aprovas esses anti-semitas furiosos?
- No que diz respeito a Georg von Schónerer, não sei - respondeu prudentemente o gordo, batendo em retirada. - Este ano foi um bocado longe de mais, admito. Não aprovo a destruição do jornal de Moritz Szeps. Ainda que seja preciso pôr termo àquelas manigâncias franco-maçónicas, apesar de tudo! Mas quanto a Lueger, é outra coisa. Um verdadeiro democrata, um nacionalista! E faço-te notar que tiveram como aliados alguns judeus. Até mesmo Schõnerer.
- Há muito tempo! Uns desnorteados! Também perceberam depressa, os Viktor Adler, os Gustav Mahler, todos!
- Vai ser preciso salvar o Império da loucura do Príncipe Herdeiro. Não se esqueçam do Rei Luís da Baviera - sussurrou o gordo numa voz sepulcral. - O Príncipe é um Wittelsbach!
Willy apanhou na cabeça com a bolinha de miolo de pão que Anna amassava em silêncio; calou-se logo. Ela fervia. E teria dado tudo para conhecer os pensamentos que rodavam dentro do crânio daquele jovem príncipe um pouco bonito de mais, infeliz no casamento, cujo olhar instável saltitava constantemente, e que arrastava os seus ares de drogado pelos botequins fora de portas.
O SONO DERRADEIRO
Tinha muitas vezes a sensação, meu Deus Que o braço se me quebrava de fadiga Sob o fardo do pesado desafio E sob o efeito do golpe, desferido de cima
Com uma mortal segurança O golpe partiu, era certeiro. Fiquei lívida, lembro-me.
Elisabeth
Dos seus segredos, o Príncipe não falara a ninguém, a não ser a sua prima Maria Larisch, em solteira Wallersée, de quem ele precisava para o que queria levar a cabo.
A Imperatriz sua mãe tivera pela sobrinha uma verdadeira paixão, para a qual apresentava duas razões: a primeira, era que Maria nascera de seu irmão e de uma plebeia - uma actriz -, e a irregularidade da situação, aquela grave entorse ao protocolo, encantava-a; e a segunda, era que Maria Wallersée, a encantadora, montava na perfeição. Para uma amazona que não suportava a etiqueta, era largamente suficiente.
A Imperatriz desencantara-lhe um marido, um certo conde Larisch que era abundantemente enganado pela esposa, e que teve, a mando, o bom gosto de se eclipsar para o exílio. Ela aproveitara para tentar conquistar o Príncipe Herdeiro, seu primo. Mas ele não estava interessado. Maria era a amiga de infância; Rodolfo prometera-lhe muitas vezes dar-lhe um beijo na boca, um verdadeiro beijo profundo, quando ela fosse crescida. Ela crescera, tinha uma boca muito bonita mas o Príncipe continuava a não estar interessado.
O Príncipe não depositava inteira confiança na prima, mas ela tinha grandes necessidades de dinheiro; era útil.
Quanto ao resto, preparava-se para lançar uma vasta ofensiva na questão das reformas; o Império estalava por todos os lados. Mais que nunca era a “prisão dos povos” denunciada pelos revolucionários. Na Europa inteira os partidos socialistas progrediam; os nacionalistas igualmente; seu pai não via nada, não ouvia nada, não queria perceber nada. Rodolfo tinha a certeza: depois da morte do Imperador, o Império daria um estoiro. Mas ele tinha poucas hipóteses de ser ouvido; seu pai tratava-o como a um coronelzito e nada mais.
Enfim, decidira reconciliar-se com a mãe. Para o Natal achara o mais maravilhoso dos presentes, seis poemas manuscritos pela própria mão de Heinrich Heine, o ídolo dela. Como o poeta judeu, a mãe e o filho tinham bastantes misérias em comum.
Para apoiar a erecção de uma estátua de Heinrich Heine em Dússeldorf, a Imperatriz publicara alguns dos seus próprios poemas, a fim de angariar donativos; ela mesma contribuíra com uma quantia elevada. Imediatamente, o chefe dos pangermanistas austríacos, Schõnerer, lhe chamara “lacaio dos Judeus”, e já agora, o filho também o era, por causa das suas ligações com o jornalista judeu Moritz Szeps, dono do Wiener Tagblatt e cunhado de Clemenceau, da raça maldita dos republicanos franceses. O cúmulo.
O horrível Schõnerer, a quem chamavam “O cavaleiro de Rosenau”, ganhara para a sua causa um certo Drumont, um francês de extrema-direita, e o caso da estátua passara a ser um caso europeu. Moritz Szeps tomara vigorosamente a defesa da Imperatriz que ele comparava a uma fada das Mil e Uma Noites, uma grande e nobre dama. A Imperatriz ignorava tudo acerca dos amigos do filho; não adivinhou a mão do Príncipe na campanha do Wiener Tagblatt. Ele estava simultaneamente triste e radiante: ir em socorro da mãe quando a atacavam, e fazê-lo em segredo, era mesmo dele. Ao oferecer-lhe os poemas manuscritos, pensava que ela teria finalmente um rasgo maternal.
Desta vez apertá-lo-ia nos braços; esqueceria os rancores que ele pressentia desde aquele seu casamento infeliz. Então chamá-la-ia de parte e contar-lhe-ia tudo.
O seu novo amor. O seu projecto de divórcio, a carta pessoal que, a despeito do protocolo, enviara directamente ao papa Leão XIII a pedir a anulação do casamento. E como a mãe admitira a prima Maria na Corte, como ela adorava os amores ilegítimos, aprovaria o filho, tinha a certeza. Depois, o pior estava passado.
Mas no dia de Natal, quando ela viu os rolos de papel atados com fitas de seda, contentou-se em agradecer-lhe com indiferença. Ficou imensamente surpreendida quando ele desatou a soluçar como uma criança. Consolou-o o melhor que pôde, abraçou-o, fez-lhe festas; ele esperara ver tanta alegria nos olhos dela que não teve coragem de lhe pedir a entrevista com que sonhava. Tinha de esperar. Esperar sempre.
O pior estava diante dele. Nessa noite, depois de o ter mais ou menos acalmado, a mãe voltou-se de novo para a Querida. Maria Valéria acabava de ficar noiva do arquiduque Francisco Salvator. Em si, o acontecimento era festivo. Para Rodolfo, foi um pesadelo. Uma vez mais, a irmã mais nova roubava-lhe a atenção materna. Uma vez mais, a Imperatriz não tinha olhos senão para a sua Kedvesem. E ele? Ele podia rebentar.
Ora nesse Natal, o Príncipe dera um outro presente, a outra pessoa. Um anel, no interior do qual mandara gravar “Unidos para a eternidade até à morte”. Uma pessoa que até então tinha completamente escapado à vigilância policial, e que não era portanto Mizzi, a sua prostituta oficial.
Janeiro decorreu sossegadamente, sem surpresas; preparava-se para abrir o coração à mãe, quando, no fim do mês, o pai o mandou chamar ao seu gabinete. O que nunca era bom sinal.
O Imperador foi brutal.
Em cima da mesa estavam os relatórios da polícia, e a resposta pontifícia a propósito da anulação do casamento que, de um modo afrontoso, o papa enviara directamente ao Imperador, sem se dignar fazê-la chegar ao filho rebelde. Bofetada a dobrar. O pai ignorava tudo daquela diligência; e o filho não previra a possibilidade de o papa responder ao Imperador.
O papa rejeitara a insolente petição. A pedido do próprio Imperador, os serviços secretos haviam esquadrinhado a vida do Príncipe e descoberto o amor secreto de Rodolfo. A oposição de Roma, a do Imperador, o escândalo de um divórcio na família Habsburgo, a ruptura com a Bélgica, tudo se opunha aos projectos do Príncipe Herdeiro.
“Mas há bem pior, é infame!” vociferava o Imperador batendo com o punho na madeira da secretária. O pior, acabou ele finalmente por atirar à cara do filho, sem quaisquer delicadezas.
Ao embeiçar-se pela pequena baronesa Vetsera, o Príncipe Herdeiro cometia um verdadeiro incesto.
Dezassete anos antes - as provas eram irrefutáveis - a baronesa mãe, Helena Vetsera, também tivera relações com o Príncipe. É certo que, na época incriminatória, Rodolfo era adolescente, quase uma criança; mas havia dúvidas sobre a paternidade. Não era de excluir que a jovem Mary fosse a própria filha do Príncipe Herdeiro. Não havia certezas; mas enfim, segundo a polícia, a hipótese parecia altamente provável. Finalmente, e supondo que Maiy fosse realmente obra do barão Vetsera, surgia um outro obstáculo: porque segundo as regras do direito canónico, explicadas num grosso volume aberto na devida página, não era propriamente lícito ter relações sucessivamente com uma mãe e a respectiva filha, e eram citados casamentos reais anulados por essa razão. Um príncipe debochado manchava já gravemente a herança imperial; uma relação adúltera não contava muito; mas um príncipe incestuoso não podia reinar. A coisa era clara como água, o Imperador estava resolvido, e o Príncipe aniquilado.
- Não é verdade! - gritou o Príncipe, de faces ruborizadas. - Histórias que inventa para me fazer sofrer! Sempre me torturou! Diga que é mentira...
Mas ele, enterrado na poltrona, voltava obstinadamente a cabeça. O Imperador não podia acrescentar mais nada ao que revelara. Simplesmente, estava de ouvido alerta: o filho gritava tão alto que acabariam por ouvi-lo, naquele vasto palácio onde os lacaios andavam sempre à espreita. O melhor era não fazer nada; aliás, a única coisa a fazer era esperar o inevitável. Não olhar para ele. Não ceder.
Fez-se silêncio. O Príncipe calara-se. Com esforço, o Imperador ergueu os olhos: de pé diante dele, o filho batia os calcanhares fazendo continência.
- Está bem. Diz que não sou digno de lhe suceder? Conheço o meu dever. Farei com que ela não sofra um minuto sequer. Ouviu?
Oh sim! Ouvira. Mas não tinha a certeza de ter compreendido bem. Rodolfo ia romper e obedecer às ordens, ou fugir, exilar-se, desaparecer, deixando um bilhete à pequena sua amante, uma carta que a faria chorar um dia ou dois? Se, por sorte, ela ainda não estivesse grávida, evitar-se-ia o escândalo. E pensava já na explicação que seria preciso dar às suas gentes a propósito da eventual ausência do Príncipe Herdeiro. Uma longa viagem? Uma missão diplomática no outro lado do mundo? E se ele não voltasse? Suspirou.
- O senhor não responde - murmurou o Príncipe. - Alguma vez respondeu? Um silêncio assim... Ao menos, digamos adeus um ao outro, por favor...
Num gesto cansado, o Imperador levantou uma mão que tremia, e baixou os olhos para os processos que tinha em cima da mesa. A porta bateu; Rodolfo saíra.
Só então ele sentiu medo. O filho ia matar-se, e com ele a pequena Vetsera. Seriam descobertos ambos, enlaçados na mesma morte, e acabariam por adivinhar o segredo, um horror. Era preciso impedir tal coisa, fosse a que preço fosse. A polícia vigiava já o Príncipe há muito tempo; mas a pequena?
O Imperador mandou chamar o barão Krauss, prefeito da polícia, e mandou reforçar a vigilância, sem dar explicações. Tudo o que fizesse devia ser rigorosamente espiado. E acima de tudo, não deveria encontrar-se com a pessoa que era objecto do processo que tinha em cima da mesa; era o mais importante. O Imperador tinha uma confiança absoluta na sua polícia; se fugisse, seu filho fugiria sozinho. Quanto à pequena, casavam-na com o duque de Bragança, que se tinha enamorado dela e a quem nada seria dito sobre o caso.
Mas na Burg, espalhou-se o rumor segundo o qual uma violenta altercação opusera o Imperador e o Príncipe Herdeiro, que berrara no gabinete do pai. Os desacordos políticos entre os dois eram de notoriedade pública; a notícia mal causou espanto, o Príncipe era um revoltado que batia o pé de impaciência. Peripécia um pouco desagradável, é certo, mas banal.
Três dias. Precisou de três dias para fazer abortar o trabalho policial. Mas finalmente estava quase terminado. Para alcançar os seus objectivos, o Príncipe comprara a prima, Maria Larisch, que tinha suficiente falta de dinheiro para arquitectar o rapto da pequena.
A baronesa Vetsera mãe não suspeitara de nada, e deixara ir a filha com a amiga a uma expedição sem perigos a uma loja de Viena, uma mentira cómoda. Depois, a Larisch conduzira a inocente Mary a casa do amante, à Burg, pelo corredor e pelas escadas secretas. Uma vez aí, o Príncipe pedira à prima para o deixar sozinho com a sua amada. Apesar das reticências da bela Larisch, estranhamente preocupada com o seu papel de acompanhante, obtivera o que queria, para fazer sair a pequena por outra porta, à guarda do seu cocheiro Bratfisch.
Um belo rapto, bem conseguido. O Príncipe voltara sem a jovem para o salão onde a Larisch esperava; a prima exaltara-se, ele acalmara-a jurando que devolveria a pequena daí a dois ou três dias, não mais. Mesmo assim, tivera de ameaçar a Larisch com um revólver, para a obrigar a ceder. Não fora fácil, mas acabara por convencê-la. Para alcançar os seus objectivos, amordaçara-a com o tal beijo na boca que lhe prometia desde a infância. A prima desfizera-se em manifestações de alegria e não desconfiara de nada.
Na véspera do rapto, passara a noite com a amante oficial, a Mizzi, boa rapariga, de quem ele até gostava. Tinha grandes seios, um queixo carnudo, e uns olhos áridos; mas aturava-lhe as fantasias, que no dia seguinte ia contar à polícia, como ele sabia. “Vamos lá à Mizzi, dizia de si para si, aliás ela até não é desagradável.” Despejaram o número requerido de garrafas, ela mandara vir os ciganos, ele enroscara-se nas almofadas e deixara-se estar, com a passividade que lhe era habitual desde que se drogava.
Às três horas fora-se embora, e não resistira à emoção de um último beijo. Gravemente, traçara um sinal da cruz na testa da espantada mulher de vida fácil. Conhecia de antemão o conteúdo do relatório da polícia:
“Segunda-feira, 28.1.1889. O arquiduate Rgdoíjo em casa da íMizzi até às três da manãã. 'Muito champanhe..”
Mas não sabia se ela referiria a despedida em sinal da cruz. E aliás, não tinha importância.
O mais difícil estava feito mas não o pior. Restava uma noite de felicidade antes de acabar com tudo. Conduzia ele mesmo o seu faetonte, como de costume, para trocar as voltas à polícia. Mary Vetsera esperava-o numa outra carruagem, a algumas léguas de Viena, perto de uma estalagem onde ele se apeou a assobiar. O excelente Bratfisch tomara lugar no faetonte, enquanto o Príncipe ia ter com a pequena à carruagem que partiu a galope para Mayerling. O tempo que a polícia demoraria a identificar o cocheiro significava umas horas de ganho; não eram precisas mais.
Uma única coisa podia estragar tudo: que a condessa Larisch decidisse confessar tudo à Imperatriz, e que esta revolvesse céus e terra para o encontrar. A dizer a verdade, ele tinha esperança que tal acontecesse. Mas dizer-lhe o quê? Porque o Príncipe tinha a certeza: a propósito do suposto incesto no caso Mary Vetsera, o Imperador não ousara contar nada à esposa.
E agora ela ali estava, aquela criança, aninhada nele, confiante, e de sorriso nos lábios. Quando lhe prometera que iam partir para sempre ela saltara de alegria; quando acrescentara, “e para o outro mundo?”, ela apenas empalidecera um pouco, e lançara-se nos seus braços. Ele acolhera-a com mil precauções; desde que soubera, tinha medo de a magoar. Ela procurara-lhe a boca, ele beijara-a castamente, no canto dos lábios. Seria verdade? Que aquele amor tão terno fosse o mais proibido do mundo? Ter-lhe-iam mentido para melhor os separarem? Não sabia. Amava aquela criança como nunca amara ninguém antes, disso não restavam dúvidas. Quando dera por ela, com aqueles longos cabelos e o olhar transparente onde brilhava uma pupila imensa, sentira uma perturbação inexplicável, uma familiaridade inesperada, um encontro marcado desde o princípio dos tempos; não seria isso o sinal do próprio amor? Ela lançara-se-lhe aos pés com uma adoração surpreendente. Desde sempre, dizia ela, consagrara-se a ele, mesmo quando era ainda muito pequena, era verdade. “Está simplesmente apaixonada”, comentava a Larisch com um sorriso um pouco cúmplice. Não a seduzira como fizera com as outras, não, ela viera ter com ele tão naturalmente que a recebera nos seus braços como um presente divino, um outro ele mesmo desconhecido. E quando, após três semanas, finalmente a possuíra, sentira-se atraído para um abismo delicioso e mortal, um langor culpado que atribuíra à idade da adolescente, tão infantil ainda, e tão virgem.
Tudo era simultaneamente normal e louco; mas não sonhara. Os relatórios da polícia em cima da mesa do Imperador. O seu fugaz encontro com a baronesa Helena Vetsera, apresentada à Imperatriz pelos irmãos, os Baltazzi, brilhantes caçadores. O nascimento de Maiy, nove ou dez meses mais tarde; naquele ponto os relatórios haviam sido rasurados. E as leis do direito canónico. Era tudo.
Daquele dia de calor em Gódõllõ, ele tinha uma lembrança violenta. A Vetsera - a mãe - encontrara-o, pensativo, debaixo de uma árvore, ao sol. Sentara-se a seu lado, com um grande adejar de saias, e elogiara-o pelo seu bom aspecto, pelo verde-irisado dos seus olhos cor de âmbar, um verdadeiro homenzinho já, e a sua sombrinha rodopiava a compasso. Depois tirara as luvas de Verão, e distraidamente, como que a brincar, introduzira uma mão sob o casaco de feltro que ele desabotoara, por causa do calor. Tinha a pele macia, murmurara ela olhando para outro lado. A mão aventurara-se mais abaixo, atrevida; ele não quisera olhar para ela, e deixava-se acariciar, na lassidão quente da luz, ao fundo do parque. Mesmo sem querer estendera-se, a Vetsera não hesitara, num ápice cavalgava-o, ajeitava-se, ligeira, e calçava de novo as luvas. A seguir perguntara se tinha sido a primeira vez; ele não respondera. Tinha quase treze anos e as damas da Corte divertiam-se muitas vezes com aquelas brincadeiras reservadas às “condessas higiénicas”, segundo a tradição dos Habsburgo. Depois fora-se embora chamando-lhe “Darling” com um beijo na boca, rápido, porque não deviam vê-los juntos.
No dia seguinte oferecera-lhe botões de colarinho, ou um relógio, ele perdera o objecto. Não se lembrava muito bem como é que o caso se soubera; Ida Ferenczy, certamente. A leitora de sua mãe votava à baronesa Vetsera uma indisfarçável aversão; a ponto de não autorizar, uma noite, o jovem Príncipe a mandá-la entrar para o salão.
A Vetsera - essa intriguista - insinuara-se junto da Imperatriz com o único fito de seduzir o Príncipe Herdeiro ou o Imperador, à escolha. O jovem rapaz não ligava nenhuma aos mexericos, na altura; as Vetsera daquele calibre contavam-se às dezenas, e ele sabia que podia aproveitar. Fizera-o. Esquecera-se logo. Até ao dia em que Maiy lhe apareceu, com um fresco rosto que não lhe lembrava nada, excepto o nome, Vetsera, que evocava a mãe dela, a mão ágil e firme, o peito um pouco mole, e nem sequer um olhar, a não ser o de um ratinho, bisbilhoteiro e receoso, talvez.
Deveria ter verificado; podiam ter forjado relatórios falsos... Mas nada explicava a dureza do Imperador seu pai, a obstinação em querer privá-lo de amor, e a cruel revelação que recebera em pleno peito: sim, era verdade, sim, não duvidava, sim, tinha de morrer.
- Se a minha mãe soubesse que partimos juntos, matava-me! - disse bruscamente a pequena abrindo muito os olhos. - Ela tinha tanto medo que nós nos amássemos, e afinal!... Eu amo-te.
E pronto - pensou ele, sereno. - Que faltava fazer? Algumas cartas confusas, para explicar sem dizer nada; uma última noite - não lhe tocaria. Em seguida um pouco de coragem bastaria; oxalá Bratfisch tivesse arranjado a habitual seringa, e a dose dupla de morfina que lhe pedira.
A condessa Larisch precipitara-se para casa da Vetsera e confessara o rapto. A baronesa rompeu em pranto. “Mas - dizia Maria Larisch - ele devolve-lha daqui a dois dias, ninguém saberá nada, onde está o drama? Isto cheira um pouco à maneira que ele tem de cortejar, é verdade; mas a senhora há-de casá-la, garanto-lhe! Com quem quiser, o duque de Bragança? Muito bem! Rodolfo vai ajudar.”
Mas a baronesa, soluçando, contentava-se em repetir: “A senhora não pode entender, é horrível, é terrível.” Para acabar com aqueles gemidos, Maria decidiu prevenir o prefeito de polícia que, preocupado em respeitar as instruções do Imperador - acima de tudo, que não haja escândado -, a recebeu cautelosamente, sem acreditar no que ela dizia.
O caso era muito aborrecido; a sua autoridade não se estendia às propriedades imperiais, não recebera nenhuma ordem particular, só interviria, no caso, bem improvável, de a família apresentar uma queixa oficial por desaparecimento. De resto, o Príncipe Herdeiro, cujo nome não deveria voltar a ser repetido, era esperado nessa mesma noite num jantar na Burg, por ocasião do noivado da arquiduquesa Maria Valéria, sua irmã, com o arquiduque Francisco Salvator seu primo; parecia duvidoso que não comparecesse.
Maria Larisch voltou perplexa, a baronesa Vetsera estava desesperada.
Enquanto isso, chegava à Burg um telegrama do Príncipe Herdeiro, retido longe por uma forte constipação. Avisado, o prefeito de polícia ficou finalmente muito inquieto, soube onde se escondia o Príncipe, e enviou um agente a Mayerling, a fim de verificar se a pequena também lá estava. O que, em contrapartida, se sabia de fonte segura, era que o Príncipe convidara para o serão o conde Hoyos e o Príncipe de Coburg. Este último devia deixar Mayerling bastante cedo, mas o conde passaria lá a noite.
Ninguém vira a pequena entrar no palácio, também ninguém vira sair mulher nenhuma. De certeza que ela não estava em Mayerling.
Na Burg, começou o jantar de noivado, na ausência do Príncipe Herdeiro. Sua mulher Estefânia lia a toda a gente o telegrama sobre a malfadada constipação que o afectara subitamente. Ninguém desconfiou; pelo menos era o que parecia. Ninguém se preocupou; nem sequer a própria mãe. A Imperatriz achava a nora horrorosa, com miosótis nos cabelos amarelos, como de costume, um pavor.
Teria chegado a hora?
Hoyos fora deitar-se na outra ala do pavilhão, após um jantar que uma primeira injecção tornara cordial, o suficiente para os enganar. A pequena estava escondida no quarto de cima; à mesa, o Príncipe falara com naturalidade, atento a discutir os seus assuntos favoritos, o excesso de imperialismo dos Húngaros, a humilhação dos outros povos; Hoyos não suspeitara de nada. Depois Mary descera, descalça, uma fada leve sobre os tapetes espessos.
A pequena parecera pensativa, mas tão bela nos braços do amante, que a melancolia passara como um ligeiro sopro de vento; beberam. Em seguida, ela pedira ao bom Bratfisch que assobiasse as melodias vienenses que ela adorava. Bratfisch desempenhara-se brilhantemente, como bom cocheiro de fiacre; Mary aplaudira, e ele adorara-a por ter aplaudido num momento como aquele. Depois retiraram-se para o quarto do Príncipe; ela escrevera três ou quatro cartas rápidas, com mão firme, e despira-se sem uma palavra.
Agora estava a seu lado, um pouco crispada, e estendia-lhe a mão com um olhar implorante. Ele beijou-lhe os olhos, a fronte, e levantou-se a suspirar, não, pequenina, não.
- Uma última vez - suplicou. - Por favor. Sem isso não serei capaz.
Então ele tomou-a nos braços e falou-lhe seriamente. Ela ia vestir-se calmamente, e partiria, pronto, sim, sem ele, como uma menina crescida, e ele ficaria em Mayerling a passar a noite. Necessitava de estar só. Ela olhava-o fixamente, de testa franzida, desconfiada. - Então não me amas! - Ele desistiu.
- Não me estás a dizer a verdade - exclamou ela. - Há outra coisa, sinto-o. Nem sequer me beijaste.
Forçou-se, beijou-lhe os lábios, deixou-se levar pelo arrebatamento, quase cedeu, repeliu-a. “Ouve. És demasiado jovem para...” - E tu? - gritou ela. - Não, mentiras, não, nós tínhamos decidido, onde está o revólver?
Estava tão agitada que ele a embalou por muito tempo. Dizer-lhe o quê? Ela pressentia tantas coisas... Tentou imaginar a vida deles se sobrevivessem; impossível. Desde o momento em que ele soubera, a esperança morrera.
E ela, sozinha, depois de ele ter desaparecido? Era outra coisa. Poderia viver inocentemente, marcada pela banal desonra de ter perdido a virgindade. Sim, a criança tinha uma vida diante dela, ele não tinha o direito de a sacrificar. E quando chegou a esta conclusão, ela suspirou fechando os olhos. “Está na hora agora, estou pronta.”
Tinha um ar tão sereno, tão terno... Ele afastou-se devagarinho. “Volto num instante, não, não te deixo, dorme...”
- O meu sono derradeiro - sorriu ela. - Que maravilha!
Deu a si próprio uma segunda injecção, na casa de banho. O ofuscante deslumbramento percorreu-lhe as veias, ergueu-se, leve como o ar. Quando regressou ao quarto, ela levantara-se, encontrara o revólver, e apoiava-o na têmpora, de dedo no gatilho...
- Não! - gritou ele. - Assim não!
- Então tu - disse ela, decidida, estendendo-lhe a arma.
- Dá-me isso, pequenina - murmurou avançando prudentemente. - Quero abraçar-te. Meu pintainho querido, meu tesouro, não quero que morras - e beijava-lhe os cabelos, não era criminoso, o colo tenro, o ombro nu, onde estava o mal?
- Disseste-me que o teu pai proibiria o divórcio - sussurrou ela. - Que nunca poderíamos viver juntos. Que a nossa única saída era partilharmos a morte e encontrarmo-nos no além. Tu disseste.
Ergueu-a como se fosse uma pena, ela bateu-lhe na cabeça com os punhos cerrados, “Era o que tu dizias, e agora estou pronta, tu juraste”.
- Era uma brincadeira! - berrou ele. - Uma brincadeira estúpida! Queria ver até onde me seguirias.
- Mentes - repetia ela, de nariz escondido no casaco dele - já não sou nenhuma criança, adivinho as coisas, há uma maldição entre nós, temos de partir, amo-te de mais.
- Para a cama, pequenina, para a cama... Devagarinho - murmurou ele depositando-a em cima dos lençóis. - Ouve. Tenho o dobro da tua idade.
- Não é verdade! Tenho dezassete anos, isso faz treze anos de diferença apenas.
- Não vais morrer por um debochado...
- Debochado, tu! O mais carinhoso de todos os homens!
- Deixa-me falar...
- Não! Destróis tudo.
- Calas-te ou não? Sou siflítico e drogado - atirou ele de uma só vez, com dureza. - Não tinhas nenhum meio de o saber. Olha as marcas, na curva do braço, aqui, isto é da droga. E infectei-te, de certeza. Não me digas agora que me amas! É impossível.
De olhos muito abertos, fitava-o, sem um olhar para os braços voltados, que ele mostrava.
- Se isso é verdade, então mata-me depressa - disse ela num sopro. - Depressa! Não suportarei viver. E depois sinto que tu vais morrer. Sei que é o que queres, que é preciso, que te mandaram, talvez... Somos demasiado parecidos, tu e eu, lembras-te de mo teres dito no primeiro dia?
Estremeceu dos pés à cabeça, dividido entre o temor e a alegria, ela estava à beira do segredo, aquela criança romântica...
- Vá lá - suplicou ela. - Agora. Está bem?
Num sorriso, ele aquiesceu, desarmado; ela soltou um suspiro de felicidade, “Finalmente!...”
- Olha bem primeiro - disse ele calmamente - vou esconder o revólver debaixo da almofada, para abafar o ruído. Tu vais dormir, não verás nada, não sentirás...
- Já falámos disso - interrompeu ela. - Pronto estou a dormir. Amo-te. A mãozinha em cima do lençol como uma alga, o jovem corpo enrolado no negro dos cabelos, as coxas roliças e firmes, as faces de leite, os lábios cheios...
- Por favor - murmurou ela sem abrir os olhos - por favor... Adormeceu sossegadamente.
Quando viu que uma respiração regular erguia o peito de Mary, então, preso de um entusiasmo luminoso, resolveu escolher a rebelião, o escândalo, e a vida.
O incesto não existia; era uma invenção do pai. Ele não acreditava nem nunca acreditaria.
Preparariam a partida, e escreveria a todos cartas de despedida. Amanhã, atravessariam a fronteira do Império, para nunca mais voltarem. Iriam para França, onde o amigo Clemenceau os ajudaria; em Paris tinham descoberto um novo tratamento para a sífilis, os médicos curá-los-iam, a esperança voltaria...
Instalou-se diante da escrivaninha, e começou a redigir as cartas para as mulheres. Para a sua, e depois para a mãe. Não conseguiu evitar que através das palavras se escapasse a sombra de um segredo, escreveu que não podia continuar a viver - uma meia verdade. Era verdade que não podia continuar a viver assim, com elas. Escreveu também que, depois de mortos, desejava ter Mary a seu lado. Reunidos no mesmo túmulo, em Heiligenkreuz, longe da cripta dos Habsburgo.
Desejava aquele sacrilégio. Deixaria de ser um Habsburgo no momento preciso da sua fuga. Não tinha lugar no jazigo oficial; só de pensar tinha náuseas. Com eles todos...
As cartas estavam quase terminadas. Com um desvelo zeloso, quis que fossem cruéis, irremediáveis. A fuga era como uma morte que ele queria infligir a todos, parentes, amigos, e à inacessível mãe. Até ao alvorecer, ainda hesitou, pegando no revólver, apontando-o a Mary adormecida, pousando-o, sem se resolver ao gesto definitivo.
Às seis horas, foi chamar o criado de quarto, que abriu um olho inquieto.
- Prepara a carruagem para as oito horas, e vem acordar-me daqui a uma hora - disse ele espreguiçando-se. Depois voltou para o quarto a assobiar.
A assobiar, pegou no espelho, estudou a orientação do punho armado do revólver, apoiado na têmpora, uma história muito complicada. Matar-se, que pilhéria!
Não, o exílio, a vida, e se Deus quisesse, a felicidade enfim, a saúde, talvez... Estava na hora de acordar Mary, que suspirava no seu sono de criança.
Foi só então que ouviu passos furtivos no corredor e murmúrios.
UM ACHATAMENTO SENSÍVEL
DAS CIRCUNVOLUÇÕES CEREBRAIS
E UMA DILATAÇÃO DOS VENTRÍCULOS
Pela janela aberta entra o lamento dos lilases
Cujo perfume asfixiante persiste
Ele adorava estas flores, o morto
Com o seu doce hálito, quiseram agradecer-lhe
E um delicado vapor envolve o corpo
Insinua-se entre o cabelo escuro
Sem sombra do mais pequeno pecado
E exprime a doçura de toda a florescência
E dá ao morto toda a fragrância que pode
E ele sorri, sorri, suave e tranquilo.
Elisabeth
Em dias de muito frio, a caminho de Ballhausplatz, Franz detinha-se em frente da Câmara e comprava uma salsicha branca com mostarda que ia comendo enquanto se dirigia para o ministério. Tirar as luvas forradas, aquecer os dedos, deixar o ar cortante enregelar-lhe os lábios, depois trincar a carne a escaldar... Um dos prazeres deste mundo.
Estava justamente uma manhã glacial, uma daquelas manhãs em que se podia escorregar no gelo e partir as pernas. Ao abrir a porta, Franz pensou na salsicha e preparou-se para ir, em passinhos miúdos e prudentes, até ao eléctrico de Schõnbrunn. Os outros faziam a mesma coisa, embora...
Havia pequenos grupos reunidos aqui e ali. Algumas velhotas, de lenço na mão, enxugavam os olhos; os homens abanavam a cabeça com ar grave; Franz sentiu um aperto no coração. No entanto, não podia tratar-se de guerra, os sinos não dobravam; uma desgraça? O Imperador? Ela? E aquele silêncio...
O Príncipe Herdeiro, o arquiduque Rodolfo, acabava de morrer subitamente. Uma apoplexia, devida a uma ruptura de aneurisma. Em Mayerling, era o rumor que corria, mas não era oficial.
Mayerling! Onde ficava isso? Não se sabia bem. Um castelo que ele tinha, algures numa floresta, perto de Viena, dizia-se. Porque fora ele morrer tão longe da família? Uma apoplexia, naquela idade! Um desastre de fim do mundo. Murmuravam-se orações, o nosso pobre Imperador, que vai ser de nós? Quem herdará? Um Príncipe tão novo e tão bonito! O infeliz pai...
Em relação à mãe, a Imperatriz, nem uma palavra. “Ela não existe”, pensou Franz. Aliás, estaria ela porventura em Viena? De que país distante se prepararia ela para regressar a mata-cavalos para contemplar o corpo do filho morto?
O boato confirmava-se. Vinha da Companhia de Caminhos-de-Ferro, que tivera de fazer parar um comboio às primeiras horas da manhã para deixar subir o conde Hoyos, que trouxera a notícia, que a polícia ainda não conhecia. O conde Hoyos era um amigo do Príncipe Herdeiro, e fora ele quem, em Mayerling, o encontrara, em cima da cama, morto de apoplexia.
- Apoplexia, apoplexia, vão contar essa a outro - resmungou um burguês bem agasalhado. - Sempre atrás de saias, não me admirava nada que fosse uma história de mulheres.
Mandaram-no calar, não tem vergonha, numa altura destas? “Ora! - replicou - vocês vão ver!” “É verdade - continuou um rapaz - na idade dele, morrer do coração, não é natural.” “Mas toda a gente sabe que ele também se drogava! - sibilou alguém - mulheres, morfina, álcool, tudo!” “Calem-se - atirou uma jovem indignada - estão a insultar o Imperador, pensem na princesa Estefânia, no que ela deve estar a sofrer!” “Oh, a Princesa, ele punha-lhe os cornos todas as noites, eu vi-o muita vez de caleche com a amante.” “Qual delas? - atalhou uma voz. - A Mizzi, essa puta, ou a nova, a miúda? E quanto à Princesa, ela não gostava dele. Ele não era feliz.” “Sem contar que não tinha as ideias do pai sobre o Império”, cochichou alguém que virou logo costas.
Franz foi sacudido por um calafrio. A imagem do jovem Príncipe atravessou-lhe a memória. Um velho adolescente, um pouco desengonçado, recostado na cadeira, com uma pele de lobo pelos ombros, e que ria como uma criança. Um príncipe que se embebedava nas tabernas, e que amava o povo, um homem de bem, amante da liberdade, de olhos sonhadores e dourados, ar um pouco asiático, com uma espécie de languidez ágil herdada da mãe, um ideal no olhar. A paixão na voz. “É preciso libertar os nossos povos, caminhar rumo ao futuro, reformar, reformar, caminhar rumo a um oceano de luz”, dizia ele ao inaugurar a exposição sobre a electricidade, e teria ele morrido estupidamente, em dois minutos, de apoplexia?
Quando Franz entrou no gabinete, Attila fitou-o, acabrunhado, Willibald precipitou-se, pegou-lhe no braço, segredou-lhe ao ouvido: “Não digas nada, o Príncipe não... não é o que se diz, enfim, ainda não se sabe, um tiro...”
- O quê? - gritou Franz.
- Está calado - continuou Willibald - segredo de Estado, o ministro está na Burg, o corpo vem de Mayerling, ainda não se sabe nada ao certo, talvez um guarda-caça, o ciúme, enfim é um drama pavoroso, o Imperador está de rastos...
- E ela? - murmurou Franz.
- Ela quem? A Imperatriz? Sempre a mesma obsessão, não é? Parece que foi ela a primeira a saber a notícia, mas o Príncipe tinha discutido... Com o Imperador... E depois partiu feito um louco, então, estás a ver... Tem a cabeça estoirada, parece.
- Um assassinato? - segredou Franz.
Willibald olhou-o sem dizer palavra e mergulhou nos seus papéis.
- O que é Mayerling exactamente? - perguntou Franzi bruscamente.
- Em pleno coração da floresta vienense - resmungou Willy. - O Príncipe tinha lá um pavilhão de caça, com aposentos separados, um para a mulher, outro para ele. Mas ela nunca lá ia; então...
- Então ele levava para lá as conquistas - concluiu Attila.
- Um atentado - proferiu Franz após um silêncio. - Ou então...
- Versão oficial: apoplexia - guinchou Willy entredentes. - Vais ver que não pega.
Franz sentou-se à secretária, as mãos tremiam-lhe. Acabava de se lembrar da estranha e precisa sensação que tivera ao ver o olhar perdido do jovem Príncipe, na noite em que fora, de paródia, a Nussdorf ouvir os Schrammel.
O Império deixava de ter herdeiro. O Império deixava de ter esperança. O Imperador era velho de mais para empreender as reformas, e ela...
De súbito, imaginou-a de eterno negro vestida. De pé, de olhar fixo, de azeviche e de lágrimas que nunca seria capaz de chorar.
- Vamos lá, mais depressa - barafustou o Oberinspektor. - Não se trata aqui de sentimentos. E preciso é arranjá-la.
O corpo nu jazia sobre uma mesa, na cozinha do pavilhão, em Mayerling.
Os membros da comissão oficial haviam identificado a pequena morta, e tinham-se ido embora sem lhe tocarem. Pela boca entreaberta o sangue escorrera para os seios já arroxeados e para a pele lívida. Uma das mãos apertava ainda um lenço, a outra segurava o caule de uma rosa já sem pétalas. Afogada nos longos cabelos, a cabeça ensanguentada conservara os olhos abertos. Desorbitados, os globos oculares pareciam tumores horrendos; de olhar alucinado, a morta parecia acusar o universo. O Oberinspektor limpou a testa e cerrou os dentes.
Um dos polícias debruçou-se e, com um gesto, quis apanhar as pálpebras para fechar aqueles olhos.
- Não! - gritou o Oberinspektor. - E preciso que ela pareça viva. Deixem isso. E depois bem vêem que é impossível. A roupa interior, ali, em cima da poltrona.
Os polícias hesitantes seguravam nas rendas amarrotadas com as pontas dos dedos, o Oberinspektor suspirou. Primeiro o corpete; depois o espartilho; o mais difícil foi a calcinha comprida de bordado inglês, foi preciso abrir as pernas hirtas, esconder os pêlos púbicos, frisados. O vestido entrou sem grande esforço. Só faltava a capa.
- Olhem, o manto, ali. Metam-na lá dentro. Vá lá!
Os polícias levantaram o cadáver e mantiveram-no na vertical. Com gestos canhestros, envolveram-no na pele, o corpo escorregou, caiu.
- É que ela já está inteiriçada - murmurou o mais velho. - Como é que a gente vai fazer?
- Façam outra vez, segurem-na bem. Bom. Agora, dobrem. Dobrem! - ordenou ele numa voz premente.
- A gente não a vai partir, ou vai? - murmurou o outro.
- Temos de a pôr no cabriole - segredou o primeiro - vá lá, faz força comigo, não temos alternativa, meu velho.
O corpo cedeu, os ossos estalaram, a cabeça tombou para a frente e vomitou um pouco de sangue negro. O Oberinspektor praguejou; só me faltava isto, “Não a larguem!” - gritava.
- Tirem-me esse anel da mão dela - murmurou. - Ah! O chapéu. Já me esquecia do chapéu. Endireitem a cabeça...
O chapéu de feltro preto foi enfiado por cima dos cabelos empastados de sangue seco. Mantida em pé, com aqueles olhos de alucinada, a morta fitava um céu ausente. O Oberinspektor alisou-lhe furtivamente o cabelo, arrepiou a pena de avestruz do chapéu, e suspirou.
- Os senhores Stockau e Baltazzi já chegaram? - perguntou. - É à família que compete enterrar... esta coisa.
- Há já um bom quarto de hora - respondeu um dos polícias. - Ouvi o fiacre.
O Oberinspektor foi abrir a porta.
- Podem entrar agora, meus senhores - gritou ele lá para fora. - Está tudo pronto.
Dois homens de sobrecasaca escura entraram na cozinha. Um deles, petrificado, encostou-se à parede; o outro, mudo, sufocou os soluços com a mão enluvada. Os polícias ergueram o cadáver e pousaram-no diante deles, sustentando a cabeça pela nuca.
- Meus senhores da família - articulou o Oberinspektor - cabe-vos transportá-la para a carruagem. Não se esqueçam: a vossa sobrinha está viva. Viva, estão a ouvir? São ordens.
A morta caiu nos braços dos tios.
- Tomem, peguem nesta bengala também, vão precisar - acrescentou rudemente o Oberinspektor.
- Para quê? - espantou-se o primeiro polícia. - Ela vai sentada.
- Para a segurar, homessa! Vão atá-la. Nas costas - sussurrou o segundo. Os tios da morta transportaram o corpo partido, de cabelos a varrerem o chão, o chapéu escorregou, os polícias apanharam-no, a boca voltou a largar um bocado de sangue que caiu na neve, o silêncio abafava o pranto, os dois homens tiritavam de pavor. As mãos deles tremiam tanto que foi o próprio Oberinspektor que teve de atar a bengala às costas da morta.
- Subam, e não a larguem, meus senhores - disse ele.
À fraca claridade das lanternas, via-se apenas no fiacre fechado uma silhueta sentada entre dois homens, uma criatura de chapéu cuja cabeça bamboleava como se estivesse embriagada. O Oberinspektor recuou. “Para Heiligenkreuz, depressa!” gritou ele bruscamente. O cocheiro incitou os cavalos e a carruagem desapareceu na noite.
O Oberinspektor entrou no pavilhão e bateu com a porta. Lá fora, os dois polícias apagavam os vestígios de sangue na neve, com as botas.
- Porcaria de trabalho - segredou o primeiro polícia tirando o quepi. - Dobrar um cadáver, nunca tinha visto tal coisa.
- Ela assassinou o Príncipe, bem sabes - murmurou o outro.
- Tu acreditas nisso? Ela, se calhar, esborrachou a cabeça sozinha, mas continua! Vá lá! Papalvo!
- Que eu acredite ou não, ninguém pergunta a minha opinião, e depois eu nem quero perceber. Para ser tão mal tratada, ela deve ser bastante criminosa, isso é o que eu sei.
- A menos que ela não tenha feito nada. Ou foi o Príncipe que tratou dela, ou então...
Calou-se abruptamente, olhou em redor, mas nada se movia a não ser as árvores sob o vento gelado.
- Tanto faz - murmurou o outro - gostava era de saber o nome dela, ao menos.
- Isso posso-te eu dizer, meu velho. Vi-a passar uma noite, à entrada de um baile. A pequena Vetera, Vestera... Já sei, Vetsera.
- Isso não é o nome próprio - retorquiu o outro. - Pobre criança.
- Nada de sentimentos! - cortou o primeiro polícia. - Foi o chefe que disse. Mais vale esquecer. Não havia ninguém em Mayerling. Só o Príncipe. Apoplexia. Assunto arquivado.
- Pois sim - assentiu o outro.
Ao saber a notícia, Arma chorara.
Com o Príncipe Herdeiro desaparecia a esperança dos liberais; o Imperador nunca alteraria nada. Os pangermanistas e o abominável Schõnerer tinham perdido o seu pior inimigo; os judeus, o seu melhor apoio. Ao ver as lágrimas da mãe, a pequena Emmy decretara que ela também assistiria às exéquias oficiais. Quando? Não se sabia. A cidade vestiu-se de luto.
Na noite de 30 de Janeiro, a ligue. Jreie (Presse evocava por meias palavras um tiro mortal. A "Sg-ut Jnit 'Srtsst foi logo apreendida.
Willibald exultou; continuava a agarrar-se àquela história do guarda-caça ciumento, que teria vingado a sua honra com um tiro de espingarda; havia até quem dissesse que tinham encontrado o Príncipe decepado, com ambas as mãos cortadas à machadada. E se o enterro tardava, era porque andavam baldadamente à procura das mãos do Príncipe. Attila afirmava que tinha sido encontrado em cima da cama um cadáver de mulher.
- Justamente! A do guarda-caça! - gritava Willibald. - Eu bem dizia!
... Mas não havia certezas sobre a identidade da morta. O tWkner Tag att insinuou que, no decurso de uma orgia, uns caçadores furtivos teriam disparado, por acidente. Os deboches do Príncipe Herdeiro corriam pelos cafés há muito tempo; pouco depois já se falava de várias mulheres, de má vida, ou até mesmo rapariguinhas, uma das quais teria morrido.
Foi a vez de Attila exultar. Corriam os rumores mais estranhos sobre a prima do Príncipe, a condessa Larisch, a quem a Imperatriz teria bruscamente fechado a porta; entretanto a amante oficial do morto, a bela Mizzi Gaspar, estava bem viva, e Franz perguntava a si mesmo quem seria a outra mulher, a de Mayerling...
- Não sei - repetia Attila. - Mas do que tenho a certeza, é que encontraram uma mulher morta. Com um tiro de espingarda.
- O guarda-caça! - insistia Willibald. - Lógico!
- E se ele se tivesse suicidado? - murmurou Franz.
A ideia provocou uma tempestade de protestos. O belo Rodolfo, suicidar-se? Quando tinha nas mãos o destino do Império, quando todas as mulheres lhe faziam olhinhos, e tendo ele dois filhos encantadores? Haverá quem se mate aos trinta anos, sem razão?
- É verdade que ele tinha apanhado a doença - admitiu Willibald.
- Nem sempre se morre disso! - afirmou Attila.
- Drogava-se, também; ópio, morfina, a gente sabe como é - acrescentou Franz. -Tinha emagrecido muito nos últimos tempos. E depois a mulher odiava-o.
Pouco se falava da Princesa belga, cujos ares afectados e o olhar indiferente não suscitavam simpatias, nem sequer naquela dolorosa ocasião. Willibald dizia saber que a Imperatriz a tinha drasticamente posto em causa: a verdadeira culpada era ela. A áspera Estefânia não amara suficientemente o esposo, e...
- Pronto - disse calmamente Franz. - E ele pôs fim aos seus dias. A menos que...
Durante a manhã do dia 31 de Janeiro, Attila afirmou que o ministro enviava
- muitos telegramas ao Vaticano. A hipótese formulada por Franz ganhou terreno: para implicar o Vaticano eram precisas razões muito sérias, talvez uma dispensa...
Franz, por seu lado, notou que havia umas comunicações misteriosas com Paris. As ligações do Príncipe com a França passavam pelo jornalista Moritz Szeps, o cunhado de Georges Clemenceau. Mas Franz nada disse sobre isso aos amigos.
Imaginou uma conspiração para derrubar Francisco José, uma ligação secreta entre o Príncipe e Clemenceau, de que ouvira falar à boca pequena. Dizia-se que pertenciam ambos à franco-maçonaria, que tinham preparado um golpe de Estado para acabar com a monarquia e propor uma República da qual o Príncipe seria o presidente. Um caso tão terrível que teriam preferido fazer desaparecer o jovem, mas à simples ideia de dar um nome ao autor do assassinato, Franz sufocava.
Quem? Só havia duas soluções: se a conspiração tivesse sido descoberta, Clemenceau, ou... Seria que um pai ousaria dar ordem para matar um filho? A ideia torturava-o.
O dia 31 de Janeiro terminou sem que se soubesse a data do funeral. Os espíritos inflamaram-se. Falava-se de embalsamento para dissimular as marcas do tiro, que ninguém punha já em dúvida. O primeiro comunicado, o da apoplexia, caíra no esquecimento.
Na manhã do dia 1 de Fevereiro, o 1 ener2kiturig transmitiu a segunda versão oficial que dava conta de uma “agitação nervosa patológica” e de um “acesso momentâneo de turvação mental”. Para compor o ramalhete, o jornal lembrava que havia já alguns meses Sua Alteza Imperial e Real se queixava de dores de cabeça devidas a uma queda de cavalo. O termo suicídio não aparecia em parte nenhuma.
- Mas vem a seguir. A loucura, é claro! - exclamou Willibald. - O sangue dos Wittelsbach, Franzi! Tinhas razão, foi suicídio!
Franz, que pensava em Clemenceau ou então no Imperador, abriu a boca mas mudou de ideias.
- Não é preciso ser louco para escolher morrer - disse. - Basta estar desesperado.
A 2 de Fevereiro, o iVwner Zeitwyj publicou o relatório da autópsia, praticada pelo doutor Hofmann, conselheiro da Corte e professor de medicina legal, pelo doutor Kundrat, chefe do Instituto Anatomopatológico, e pelo professor Widerhofer, médico assistente do Príncipe Herdeiro. O artigo cinco precisava que Sua Alteza Imperial disparara contra si próprio um tiro por cima da orelha esquerda; a morte fora instantânea. “A depressão digitiforme das superfícies anteriores dos ossos do crânio, o achatamento sensível das circunvoluções cerebrais...”
- ... e a dilatação dos ventrículos do cérebro, mas que algaraviada vem a ser esta - resmungava Attila. - Não se percebe nada!
- Espera - disse Willibald -... “são fenómenos patológicos que acompanham habitualmente um estado mental anormal...” Ah! Aqui está a chave. Alienação mental. Exéquias religiosas no dia 5 de Fevereiro; está tudo dito.
- E tu acreditas - retorquiu Attila. - Parece que num jornal de Munique se diz que uma certa baronesazinha, uma tal Mary Vetsera, se suicidou em Mayerling. Mesmo no dia da morte do nosso Príncipe.
- Sozinha? - acrescentou Franzi, pensativo.
O jornal de Munique foi, por sua vez, proibido. Os teatros fecharam; os bailes foram suspensos. Cobriram-se de crepes as janelas, e compridas auriflamas negras pendiam dos edifícios novos no Ring, a grande artéria majestosa que circundava a Burg, onde se abrira uma câmara ardente. Velado por oficiais de baioneta calada, o Príncipe Herdeiro repousava sob um crucifixo gigante. A ordem voltara. No ministério falava-se exclusivamente de protocolo. À excepção do casal real da Bélgica, o Imperador recusara a presença dos Reis e dos Príncipes, até mesmo a de Guilherme II.
- Isso seria realmente do agrado do Príncipe - notou Attila. - Ele que detestava a Alemanha!
- Mas não é um enterro vulgar - retorquiu Willibald. - Sem os monarcas!
- Também não foi uma morte vulgar - concluiu Franz.
Quiseram recolher-se diante do corpo do Príncipe, mas a multidão era tão densa que era preciso esperar duas horas; desistiram. O dia do funeral chegou.
Um pouco antes do meio-dia, Franz levou a esposa e a filha até perto da entrada da igreja dos Capuchos. Anna teria preferido a Praça dos Heróis, mais majestosa, mas Franz não cedeu. “Em memória de minha mãe”, resmoneou. “Ali e em mais lado nenhum.”
Assim, ia revê-la sob os véus do luto. Com uma máscara negra, como no baile. Ele já não tinha dúvidas, era ela; senão, como explicar aquela compaixão só a ela dedicada, aquela partilha do desgosto que lhe oprimia o coração? E como ao primeiro toque do grande sino de Santo Estevão as lágrimas lhe começaram a deslizar pela face, sua filha Emmy, por contágio, começou a soluçar, de nariz no lenço.
Depois, a pequena queixou-se com fome. O cortejo estava marcado para as dezasseis horas. Franz correu a comprar as suas queridas salsichas brancas, e trouxe vinho quente; os vendedores não tinham mãos a medir. De faces rosadas pelo frio, Emmy devorou a sua Weisswurst com deleite. A luz diminuía.
Ao pôr-do-sol, os sinos começaram a tocar. Interminavelmente caíam os dobres sobre Viena. Os grandes lipizzanos brancos, arreados de penachos negros, não tardariam a pôr-se em marcha. E atrás do esquife, ela seguiria a passo lento pelo braço do Imperador.
Ajoelhada sobre o veludo do genuflexório, a Imperatriz olhava fixamente para o Cristo crucificado sobre o altar dourado na capela imperial da Burg. A seu lado, a Querida chorava sem se poder conter; a horrível Estefânia grunhia um pouco mais longe. Ela, nada. Nem uma lágrima.
Naquele preciso instante, o corpo do seu filho deixava a Praça dos Heróis; o catafalco dos Habsburgo avançava lentamente para a Praça do Mercado. Ela poderia descrever cada passo dos cavalos sobre cada uma das pedras da calçada, sentir o mais pequeno balanço até do caixão. Ele, sozinho, três passos atrás, de cabeça descoberta, Ele, que lhe suplicara que não fosse, acompanhava o filho na sua imperial solidão.
Que lhe importavam os carros, os ornamentos? Caminhar pelas ruas de Viena, expor a sua dor, segurar os compridos véus obrigatórios, manter-se de pé, como uma mãe lacrimosa? Não protestara. Rezar, não podia. A piedosa Maria Valéria rezaria pelas duas. Rezar, não. Respirar, esvaziar a alma, impossível. Chorar, infelizmente, uma vez por todas, fizera-o já, de uma vez só.
Não foi logo. Quando a porta se abrira ela vergara os ombros, não gostava que a importunassem. Não, não pressentira nada. Ela que tanto se inclinava às superstições e que se julgava vidente! Ela a quem as ciganas se rendiam, não decifrara nenhum sinal, nada a alertara! Nessa manhã, recebia a sua lição de grego; está tudo dito. Sabia ela porventura onde se encontrava o filho ? Algures nos braços de uma mulher, espojado nuns lençóis em desordem. Não, não se preocupara.
Foi ao voltar a cabeça que lobrigou, no olhar do conde Hoyos, um indescritível pânico. Franzira a testa, pensara primeiro no Imperador, um acidente, um atentado, mas Hoyos dera dois passos trémulos, ela erguera-se muito direita, e o professor de grego levantara-se, lívido. Antes que Hoyos pudesse abrir a boca, ela compreendera.
Prevenir o Imperador. Foi o seu primeiro, o seu único pensamento. Seria sequer um pensamento? Quase não era. Começara a andar, a andar em todas as direcções, comprimindo com a mão um coração estranhamente insensível, como se um fino corte o tivesse anestesiado. Tinha de lhe dizer, era um dever. Em breves palavras certificou-se primeiro de que a Schratt esperava o imperial amante nos aposentos de Ida, como todos os dias; somente em seguida pedira que fossem buscar o Imperador. Ele chegara, no seu passo elástico, sem desconfiar.
Olhara-a com aquele bom olhar azul, um olhar de burro manso, um pouco de baixo para cima, com o esboço de um sorriso que rapidamente se desvaneceu. Ela apoiava-se ao puxador da porta e levou um tempo infinito a fechá-la. Apertou-o nos braços, e ele quase não parecia surpreendido. Mal falaram, “meu filho”, murmurava ele, “meu pobre filho”, e ela não conseguia chorar. O vazio.
Depois empurrara-o devagarinho até aos aposentos de Ida, onde Kathy Schratt, devidamente prevenida, acolheu o pranto do Imperador. Num passo um pouco mais rígido, ela voltara para o quarto; foi então que, com cuidado, lhe disseram que em Mayerling o filho não estava sozinho. O médico jurava que, à cabeceira da cama, reparara num copo por onde alguém bebera, estricnina, sem dúvida, administrada por uma rapariga. Ela acreditou sem pensar.
Quando se lembrava do que se seguira sentia-se desfalecer.
Os lipizzanos parados sopravam um bafo quente. De onde estava, perto dos degraus, Franz não via quase nada: as costas de um lacaio de libré preta, que estendia um enorme círio, grinaldas de ébano esculpidas no rebordo do catafalco dos Habsburgo, e se levantava os olhos, os penachos escuros dos cavalos contra o céu, perto dos telhados com neve. Era preciso esperar. O esquife com uma cruz de metal em baixo-relevo saía da carruagem fúnebre, transportado por oficiais em passo melancólico. Suas Majestades vinham a seguir.
Torcendo o pescoço, Franz avistou o velho Imperador, de cabeça descoberta, com uma mulher pelo braço, vergada pela dor, invisível sob espessos véus de luto. As princesas não vinham. Atrás deles, o Rei dos Belgas subia lentamente os quatro degraus dos Capuchos. Um murmúrio percorreu a multidão, a nossa pobre Imperatriz, uma vaga de lamentos diante da mulher de negro, mirrada, envelhecida, gorda..
Franz não a reconheceu.
Um lacaio voltou-se de repente e sussurrou em voz apressada: “Não é a Imperatriz, é a Rainha dos Belgas.” A Rainha dos Belgas, ecoou o murmúrio em cadência, mas onde está a Imperatriz? “Esmagada pela dor, está a rezar, sem dúvida.” “Pobre mulher!” “A filha ficou com ela, porque também não veio.” “E os outros?” “Quais outros? O Imperador da Alemanha nem sequer veio.” “Também não é de espantar!” “Basta!- disse por fim alguém. - Silêncio!”
Franz respirou fundo. Não a reconhecera, e era natural, porque não era ela. Anna apertou-lhe o braço. “Que o céu nos poupe a uma provação destas, meu Franzi” segredou ela olhando para Emmy.
Os arquiduques entraram, por seu turno. As maciças portas de ferro fecharam-se. Começava o ofício dos mortos.
... Depois, a Imperatriz não podia esquecê-lo, aquela mulher obrigara-a a recebê-la.
Aquela Vetsera, a mãe, que já em Gódõllõ se atirara para os braços de Rodolfo. De joelhos, torcendo as mãos, o rosto banhado em lágrimas obscenas, a baronesa suplicara que lhe entregassem a filha. Seja, o Príncipe raptara-a, dizia ela, mas se voltasse, podiam casá-la, ela seria discreta, e as palavras escorriam-lhe da boca pintada.
A baronesa nada sabia ainda.
Tomada de compaixão, olhara para aquela mulher a seus pés, e levantara-a pelos cotovelos. Pela segunda vez, desempenhara a função de mensageira e anunciara a catástrofe. “Seja corajosa, baronesa, a sua filha morreu” murmurara. A Vetsera desatou em altíssimo pranto berrando “a minha linda menina, a minha querida!” e ela, muito direita, não suportara uma tal indecência.
- Mas sabe, baronesa, que o meu Rodolfo também morreu?
A Vetsera calara-se abruptamente, com uma mão na boca, o olhar fixo. Depois gemera: “Ela não fez tal coisa, não! Ela não fez tal coisa...”
A baronesa considerava a filha capaz de ter praticado o crime! A Imperatriz tinha vontade de a matar, aquela marafona de carnes moles, aquele edredão de dor, sem respeito, sem pudor... As duas Vetsera, uma praga! A mãe dormira com o Príncipe, a filha envenenara-o, era de mais. Que espécie aquela!
- Para toda a gente, o Príncipe morreu de apoplexia - atalhara ela sem piedade. - Fique sabendo.
A Vetsera retirara-se às arrecuas, mastigando palavras sem nexo onde se misturavam o terror e a angústia. Ficara sozinha, e bruscamente, ao pensar no veado branco de Potsdam, partira um copo que estava sobre a mesa, apertando-o entre os dedos.
No dia seguinte, soubera que dois disparos tinham posto fim à vida do Príncipe Herdeiro e da baronesa Mary Vetsera. O Príncipe matara primeiro a rapariga, com um tiro no peito, em seguida disparara contra si um segundo tiro, na têmpora, com um espelho para melhor se orientar; a cabeça dele ficara desfeita.
O filho era um assassino, mas ela não acreditava. Depois deram-lhe a carta: “Para minha mãe”. Escrevera-a mesmo antes de morrer. Deixara de se sentir digno da sua função; queria ser enterrado junto da pequena, em Heiligenkreuz. Longe dos Habsburgo.
Sorrira vagamente: era mesmo dele, era seu filho, ela teria feito o mesmo se porventura um jovem anjo se lhe tivesse atravessado no caminho. Assim, Rodolfo matara-a, e a seguir metera uma bala na sua própria cabeça. Continuava a não acreditar.
Ainda não o vira. Com a carta na ponta dos dedos, pensara que o Imperador era o único culpado. Aquela cena horrível entre pai e filho, oito dias antes, um mês depois do Natal, tinham acabado por lha contar: o filho saíra pálido de fúria, e o pai, dessa vez, ficara irado, uma ira que não se desvanecia. Nem um nem outro tinham querido falar. Rodolfo era capaz de ter querido fugir para a Hungria, para se fazer coroar em lugar do pai, já que os amigos a isso se dispunham - era o que se murmurava agora, pelos corredores. Só agora, que era tarde de mais. E se... O horrível pensamento não a abandonava.
O Imperador manifestara o desejo de ver o corpo do filho antes dela. Ao meio-dia, ela entrara, por seu turno, na câmara funerária. Rodolfo tinha uma ligadura branca na testa, mas o rosto, intacto, sorria para ela. Um sorriso que não lhe conhecia, deslumbrante, sereno, imutável. Foi como se lhe tivessem tirado um peso do peito, pousara os lábios sobre as faces álgidas, e não tivera medo.
Pois sim senhor! Seu filho estava morto, suicidara-se. Como um homem livre. Simplesmente, começara a sentir um grande frio. Um espartilho de gelo. Maria Valéria, com o noivinho ao lado, soluçava. Então deslizara até aos pés do leito e por muito tempo ficara a alisar o lençol esticado. Sem uma lágrima.
O pranto viera de súbito quando avistara Erzsi, a filha de Rodolfo, à noite, ao jantar. Tão pequena... O gelo derretera num ápice, como num degelo de Primavera; os soluços continuaram durante uma hora. Depois a pequenita fora-se deitar, ela voltara para o quarto. O olhar dela captou no espelho a imagem de uma velha de olhos inchados. Era justo.
Desde esse instante o gelo tomara de novo conta dela, e os remorsos também.
Três dias mais tarde, ninguém na cidade concedia o mínimo crédito à tese do suicídio. Os legitimistas batiam-se a pés juntos, defendiam o Imperador, inocente da loucura do filho, argumentavam com as cartas de Rodolfo, escritas em Mayerling antes do tiro fatal, à mãe, à esposa, aos amigos.
- E então? - respondiam-lhes. - Vocês viram essas cartas? Um amigo de um amigo disse-vos que... Não basta. Se a Corte proclama o suicídio, é que se trata de outra coisa. De certeza.
Era pouco conhecida a rapariga morta em Mayerling, uma debutante, notada nos noticiários mundanos, mas tão jovem que mal podia ser evocado o brilho dos seus olhos, a sua carnação perfeita, e o passado vergonhoso da mãe, uma das que privavam com a Imperatriz, pessoa pouco recomendável, em suma. A adolescente tinha um temperamento fogoso, para.se ter abandonado assim ao seu principesco amante, aos dezassete anos, três semanas depois de se terem conhecido!
Três dias apenas, era o que se dizia por todo o lado. E ciumenta como um tigre fêmea. Espalhara-se o boato que antes de partir de madrugada para Mayerling, o Príncipe passara a noite com a Mizzi. A pequena teria ficado ofendida e, num gesto de fúria, teria castrado o infeliz Rodolfo, com uma navalha de barba. Outros havia que a defendiam: de facto ela estava grávida. “Ora adeus, como é que se pode pensar uma coisa dessas! Poucos dias depois?” “Sim, sim, grávida, uma ameaça intolerável, suprimiram-na!” “E ele?” “Ah, ele, bom, ele também.”
A polícia esforçava-se por proibir a imprensa. Em Ballhausplatz, foram dadas ordens para desmentir com todas as forças tudo o que não tivesse a ver com o comunicado oficial.
- Que estupidez - resmungou Attila; - assim é a melhor maneira de confirmar a mentira.
- Também, estes boatos! - indignava-se Willibald. - Outra vez os porcos dos judeus!
E como Franz se pusera em pé de um salto, Willy acrescentou a toda a pressa: “Não digo isto pela Anna, é outra coisa, e depois, acima de tudo ela é tua mulher.”
Franz sentara-se de novo, Willibald abraçara-o, instalara-se um silêncio desagradável. “De qualquer modo - concluíra Attila - bico calado! São as instruções.”
Nos cafés, as pessoas começavam a interessar-se pela prima do Príncipe, a Larisch, uma doidivanas. A acreditar nos mais bem informados, ela teria servido de alcoviteira entre Rodolfo e a pequena, em troca de dinheiro, é claro, que ele lhe teria dado. E como é que puderam permitir que se instalasse na Corte uma intriguista daquelas, a filha de uma simples actriz? É certo que o pai era da Baviera, pequena nobreza - irmão da Imperatriz, aliás. Apaixonara-se loucamente por uma comediante, com quem queria casar a todo o custo. Casamento morganático - ora! Gente reles. Então quem é que tinha um fraquinho por Maria Wallersée, quem é que a casara com o conde Larisch, quem é que passava a maior parte do tempo com ela? Quem é que autorizara a baronesa Vetsera, a mãe, a participar nas caçadas em Gõdõlló? Quem é que transmitira ao puro sangue dos Habsburgo, a esses animais de raça, um sangue mórbido e louco, o sangue dos Wittelsbach?
Ela. Tudo partia dela e a ela voltava. Oh! Ninguém ia ao ponto de pôr em causa a Imperatriz; mas enfim, apesar de tudo, essa mulher nunca tinha tido o juízo todo. Aliás por que não tinha ela assistido à missa de corpo presente, hein?
- Nervosa, turbulenta, concordo - resmungava Franz em voz baixa.
- Mas louca! É um exagero. Lembra-te Willibald...
- Sempre esse velho caso - troçava Willibald. - Defenda o seu dominó amarelo. Tudo isso é muito bonito; realmente essa não tinha nada de louca; só prova que não era a Imperatriz, imbecil!
Willibald envelhecia mal, cansava-se com facilidade. Ficara solteiro; Attila vira-o andar por bairros mal frequentados. Ao domingo ia piedosamente à missa. Estava a ficar pangermanista, os Eslavos enervavam-no, a Sérvia metia-lhe raiva, e os judeus da Galícia, com cafetãs e aqueles chapéus moles, davam-lhe vómitos.
- Numa cidade civilizada - dizia também ele - uma cidade moderna, essa gente esfarrapada, com aqueles caracóis a caírem por cima das orelhas! Enfim, o Imperador já escolheu sucessor; com Carlos Luís, o irmão dele, não há perigo de liberalismo... Tanto mais que tem uma saúde frágil, vai morrer cedo! Com o filho, o arquiduque Francisco Fernando, pelo menos o Império será governado com mão de ferro! Têm de se portar na linha, os dos caracolinhos!
“Um dia, faço-o engolir o próprio chapéu”, pensava Franz com uma cólera reprimida.
No domingo seguinte, quando Willy quis combinar a hora para a música de câmara, Franz afirmou que Anna não se sentia bem. Willibald não acreditou e percebeu que estava consumado o corte de relações.
Depois soube-se, de fonte segura, que a Imperatriz perdera francamente a cabeça. Dormitava todo o dia; guardava um silêncio feroz; pior, embalava uma almofada de encontro ao ventre, e chamava-lhe “Rodolfo”, prometendo que ele iria renascer. O Imperador convocara à sua cabeceira os mais famosos alienistas da Europa, e todos se haviam declarado impotentes: o sangue dos Wittelsbach. Tinham preconizado um isolamento completo; a Imperatriz nunca mais seria vista.
Lamentaram o Imperador, felicitaram-se pelo facto de ele ter a seu lado uma amiga sincera, essa Schratt que o consolava na sua casa de Schõnbrunn. Ele cobria-a de jóias? Era o mínimo, pobre mulher.
Ninguém sabia o destino que fora dado ao corpo de Mary Vetsera. A vala comum, talvez.
A LOUCURA COM JUÍZO
Raro é o verdadeiro siso Mais rara ainda a loucura Talvez ele mais não seja Que o longo saber da idade.
Elisabeth
Ao fim da tarde, após três noites sem dormir, a Imperatriz decidiu-se por fim. Como outrora, mandou chamar Ida, fez-lhe prometer segredo, e pegou num manto para se esconder. Preto.
- A senhora não vai arriscar-se, sozinha... - gemia Ida como outrora.
Sem responder, estendeu os braços, Ida enfiou as mangas da capa, ela apanhou um comprido véu de crepe e deixou-o escorregar pelo rosto. Como outrora, Ida encarregou-se de chamar um fiacre anónimo e retomaram o caminho clandestino que saía da Burg, pela porta secreta.
Mas quando Ida quis subir para a carruagem, ela repeliu-a brandamente.
- Sozinha. Eu quero.
E desta vez Ida não insistiu. A Imperatriz desapareceu no fiacre, para percorrer os poucos metros que separavam o palácio do local do encontro secreto.
A igreja dos Capuchos estava escura, apenas iluminada pelos candeeiros da rua. A pancada que bateu na porta fechada ecoou até às entranhas da Cripta. O postigo entreabriu-se, um olhar ensonado, o monge de serviço fitou-a bocejando. - Está fechado, minha boa senhora, não há visitas -, e ia fechar quando ela levantou a mantilha.
Assombrado, reconheceu-a sem compreender. - Vossa Majestade! A esta hora! Sem o Imperador! - Mas como não podia fazer outra coisa, acabou por abrir a porta.
O abade demorou muito tempo a chegar; só ele tinha a chave da Cripta imperial. A situação era suficientemente séria para que ele tivesse cuidados dobrados; a Imperatriz dava sinais de desvario, o caso tornava-se político, e depois a gente sabia lá? O sangue dos Wittelsbach era suicidário, Luís da Baviera, o Príncipe Herdeiro, hoje aquela desgraçada mãe no meio da noite... Com delicadeza, quis dissuadi-la de afrontar a cruel provação, que esperasse ao menos a luz do dia, não?
Não. Então ele descia com ela, estava decidido. Não?
Também não. Ela queria estar só. Não, não tinha medo.
“Sou a Imperatriz - murmurou em voz cansada. - Queira deixar-me ver o meu filho.”
A pequena porta não rangeu. Não descia àquele pavoroso lugar havia perto de vinte anos, desde a morte da cunhada, a arquiduquesa Sofia, só Deus sabe onde a tinham posto, algures no amontoado dos caixões. Para se alumiar, o abade dera-lhe duas tochas que ela enfiara nas argolas da parede. O bom padre prevenira-a: as chamas podiam pegar-lhe fogo ao vestido num instante. Encontrara em baixo uma lanterna de furta-fogo, que tinha agora na mão, e que passeava ao longo dos sarcófagos.
Rodolfo estava ao fundo, depois de Maria Luísa, a esposa de Napoleão, à direita. A filha morta também não estava longe, nos esquifes miniatura onde repousavam os Habsburgo de berço. Não tremia. O perfume das flores a apodrecer guiou-a. Ali estava ele, à espera.
Pousou a lanterna, tirou a mantilha, ajoelhou-se, tocou no sarcófago. “Estás aqui, meu filho - murmurou - eu sei. É preciso que finalmente fale contigo. Sabes, não acredito na tua morte; tu também não, pois não? Já que a escolheste...” Bruscamente o murmúrio parou. Não se podia falar aos mortos.
- Não! - gritou batendo com a cabeça no bronze. - É ridículo! Não vou ser capaz!
“...Foste carinhoso comigo, amavas-me, não, não digas nada ainda! Espera um pouco. Não fui uma boa mãe para ti. Oh! Não tive culpa, separaram-nos; mas para te proteger, esperei muito tempo. Eras já crescido quando ganhei esta longa batalha. Um rapaz crescido de mais para aceitar ser embalado... Com muitos ciúmes da tua irmã mais nova. Não!...”
Calou-se. Era muito difícil; a voz soava a falso, quis partir, cambaleou, e agarrou-se à borda do sarcófago.
“...Aguento. Não recrimines o teu pai, ele já nasceu velho; é um pobre homem...”
- Não! Falar assim, sozinha, ao meu filho morto! - bradou.
“Se eu não tivesse a certeza que te vais manifestar, pensas que me confessaria assim, diante do teu caixão? Vamos! Prometi ser forte. Só mais uma coisa, a última. Querias ficar com ela para além da morte, teu pai não permitiu. E eu nada pude fazer. Será que, daí, de onde estão agora, me perdoam ambos?”
Esperou. Nada. Soltou uma breve risada. “Sou parva. Não podes responder, enfim, não como dantes. Não, o que espero é um sinal, um sopro, isso, eu sei, virá, meu filho, diz-me que me ouves!”
Batia com o punho no bronze, devagarinho. “O frio está a voltar, Rudi, não me abandones. Há pouco senti algo macio sobre os lábios, eras tu... Ah!” Soltou um gemido.
De uma coroa murcha, soltara-se uma folha seca que lhe escorregou pelos joelhos. “És tu, meu Rudi? Aparece, agora! Não, estou louca. Sabes o que diz Viena? O sangue dos Wittelsbach. Jamais nos deixarão em paz. Pois bem! Se sou louca, então quero ver-te. Não é verdade que os loucos sabem erguer os mortos dos túmulos? Entre alienados, meu Rudi, nós entendemo-nos, anda!”
Abrira as mãos, como uma crucificada, e levantara a cabeça para o céu da Cripta, onde dançava a pequena sombra da chama da lanterna. Um vento inesperado fez vacilar a luz. Submergida por uma vaga de calor sufocante, abriu o corpete do vestido, como para dar o seio a um bebé. “Já não tenho frio - suspirou. - Obrigada meu filho. Mas não chega. Mostra-te!”
O vento parou de repente, a folha caiu no chão, a chama deixou de tremer. Imóvel, ela continuava à espera.
O silêncio invadiu a Cripta; de súbito, viu a fiada de compridos ataúdes de ferro, o espaço ocupado pelos mortos, as pedras nas paredes e os nomes dos Habsburgo gravados nos escudos. Sentiu que o gelo a apertava de novo, fechou a gola, pôs o véu. “O frio está a voltar, Rudi”, murmurou.
“Não sei por que te falo. Pensei, penso ainda que me ouves. Tenho tantas coisas para te contar... Eles dizem que estou sempre calada, mas é que falo contigo todo o dia, e à noite, sonho contigo. Eles dizem que me afundei na melancolia, mas tu é que sabes aquilo de que ambos sofremos. Tu tens a parte melhor, meu filho; a mim ninguém me ama. E agora vou ficar à espera da hora e do dia, do instante preciso em que nos vamos encontrar. Em breve, meu querido. Tu estender-me-ás os braços no meio da luz - a menos que não haja nada? Nada?”
Nada, pareciam troçar as filas de caixões. Nada, sorriu a caveira coroada à entrada da Cripta. Nada, atirou o eco da porta, que bateu atrás dela.
O abade estava de atalaia, ansioso. “Vossa Majestade quer que a acompanhe ao palácio?”
- Não! - gritou ela.
Quando chegou ao quarto onde Ida a aguardava, atirou para cima da cama o comprido véu amarrotado.
- Que foi fazer? - perguntou Ida de mansinho.
- Nada. Quis comunicar com o meu filho morto, na Cripta. Ele não me respondeu. Não há nada lá dentro, Ida - respondeu ela.
De manhã, quando acordava, era logo assaltada por uma nova felicidade; tão radiosa, que ela nem ousava abrir os olhos. Depois, a agradável névoa dissipava-se, e a dor aparecia, feroz, atacando-a pelo meio do corpo: no ventre, lugar eleito das terrestres podridões. Ela já não sabia o que doía; difusa, a consciência recusava-se a reconhecer o sofrimento familiar, até ao preciso momento, cada dia mais cruel, em que o nome surgia, Rudi, e o desastre, estava morto.
Nunca fora capaz de voltar a adormecer. Levantava-se de um salto e percorria o quarto, de mãos nos ouvidos para não ouvir o silêncio. Era sempre antes do amanhecer, quando os humanos dormem e as almas atormentadas velam; em volta dela, ninguém. Tentou voltar aos poemas, mas a mão descaía-lhe, impotente; escrever seria um sacrilégio, viver era-o ainda mais. Para fugir da Burg, refugiou-se em Schõnbrunn, onde nada estava preparado para resistir ao Inverno vienense. Tentava vestir-se sozinha, saía para o parque, enterrava-se na neve que a impedia de avançar, lambuzava a testa com ela, avistava raposas e lebres assustadiças, mas era demasiado vivo tudo aquilo, demasiado cheio de energia, detestava. Ainda desejava morrer. Depois o dia nascia, terrível, ela voltava, atirava-se para cima da cama.
Era assim que as camareiras a encontravam: vestida, toda enrolada, muda, de olhos secos, inerte. Ao cabo de um tempo que parecia interminável, deixava-se despir e tornar a vestir de preto. Proibira que lhe mostrassem outra cor qualquer, dera ordens para que as suas roupas fossem distribuídas. Em vão lhe propuseram que retomasse os exercícios: tinham-se acabado os aparelhos, a ginástica, recusava as massagens, as longas marchas higiénicas, e bebia um caldo, às vezes, mais ou menos a meio do dia.
Maria Valéria constatava que, por seu lado, o pai recomeçara a trabalhar; apenas estava um pouco mais curvado, não se lamentava. Mas a mãe! Nem uma palavra, nem uma lágrima; um silêncio abatido. Uma ameaça indizível que pesava sobre o seu próprio futuro.
Viena retomara as suas manias do passado, Viena não desistia: a Imperatriz estava louca. Aliás não era novidade: não visitara ela, por todo o lado, os asilos de alienados ? Estranha paixão, nada recomendável. E claro - murmurava-se - cada qual com seu igual. O mesmo é dizer que ela ia ver em que sítio acabaria os dias! E também aquela maneira de se esconder, não se podia mostrar, os esgares, compreendem. Sem contar com os cavalos! Aquelas pilecas que lhe sugavam as finanças, quem é que se lembra de se tomar de amores pelos animais? O nosso pobre Imperador...
- Olha, hoje, vem nos jornais franceses - constatou Willibald no mês de Maio. - Olha para aqui, no Le Matin. Loucura com juízo.
- Que vem a ser isso agora? - rosnava o húngaro. - Loucura com juízo? Uma invenção de psiquiatras franceses, que pensam saber tudo! Se se tem juízo, não se está louco!
- Mas em Abril, vinha no Berliner Tagblatt - objectava Willy, obstinado.
- Ah! Não me digas que desta vez são os Franceses!
- Não, mas digo-te que és um mau patriota! - gritava Attila, exasperado.
- Os Austríacos não gostam da Rainha da Hungria! Na nossa terra, vês, ela não é louca!
- Então fiquem com ela! Bom proveito vos faça! - berrava Willy.
Franz deixara de intervir, não dizia nada, e sofria em silêncio. Imaginava-a prostrada, muda, como qualquer mãe após um luto atroz. Aquela mulher alienada de que falava Willibald, não era ela; Gabriela ou Elisabeth, uma ou outra ou as duas juntas, não era a Imperatriz. E como Attila e Willy continuavam com as discussões acaloradas, ele impunha-lhes silêncio.
Todos os sábados, Willy mendigava o encontro do trio musical; e de todas as vezes, Franz iludia a questão.
Sem saber de nada, Anna compreendera que era ela a causa da zanga entre o gordo Willy e o marido: prudente, não fizera perguntas. Para consolar o esposo da zanga com o amigo, Anna dedicara-se às Valsas sentimentais de Schubert, opus 50, que executava na perfeição. Franz apreciou-as com ouvido experimentado, mas era demasiado erudito, demasiado belo, um pouco triste, sem o arrebatamento alegre nem a febre do grande Johann Strauss. Mesmo tocando as valsas de Schubert, Anna não gostava da dança.
Emmy sentava-se às vezes a cantar árias simples, Pergolese ou Gluck, histórias de pastores abandonados que morriam de amor por infiéis pastoras; ela teria uma bela voz de mezzo. O pai escutava-a com prazer, mas sentia muitas vezes a falta das entoações dilacerantes do violoncelo de Willy.
À noite, Emmy subia para o quarto, e os esposos retomavam o querido Beethoven. Conheciam-no tão bem que andavam às vezes um pouco depressa, um ritmo infernal. Mas era principalmente Franz que precipitava o compasso, quando o violino voava com os seus pensamentos, até à magoada desconhecida que sofria como a música, tão perto, tão longe dele.
A Imperatriz sonhava com frequência, sonhos depressa esquecidos, perfumados de prazeres inesperados, que lhe deixavam, ao amanhecer, sentimentos de culpa. De tal modo que ficou quase aliviada quando, uma manhã, acordou com um pesadelo.
Passara a noite no carro fúnebre dos Habsburgo, onde jazia, num assento de cabedal preto, uma criança moribunda. A seu lado, um médico vestido de preto comentava a agonia à medida que ela progredia; a criança estava perdida, era só uma questão de eternidade, e ela, impotente, esperava o momento supremo, ferozmente, com uma atenção desesperada.
E o momento chegou, brutal. A criança abriu subitamente a boca, tão aberta que ela avistou de relance as mucosas avermelhadas pelo esforço da morte, os lábios arreganhados, um túnel húmido e vivo por onde passava o último suspiro. Rápido, o médico fechou a boca obscena, tapou com a mão o abismo cor-de-rosa, e tudo desapareceu. Só mais tarde ela se apercebeu de que os dentes, dentro da boca, tinham sumido.
Correu ao espelho e olhou para os seus: em certos sítios as cáries progrediam, tinha um sorriso enegrecido. Não havia maneira de escapar àquilo. Como poderia ela viver ainda? Por muito tempo? Anton Romako, o pintor louco, acabava de morrer prematuramente em Viena “em circunstâncias misteriosas” segundo os jornais. O homem que lhe roubara a imagem fora castigado. Mas ela? Quem a puniria, e quando?
Maria Valéria viu-a entrar no seu quarto, de cabelos caídos, de olhos marejados. Atirou-se ao pescoço da filha e apertou-a até quase a sufocar. “O grande Jeová é implacável! - gritou furiosamente. - Queria partir, deixar este mundo, mas não posso. Não o farei, e vou esquecer! Esquecer, estás a ouvir!”
Era realmente o que a ajuizada Maria Valéria temia, ela que continuava a não conhecer o grande Jeová. Quando se tinha um Deus bom que sacrificara o próprio filho, porquê procurar aquela divindade numa religião sacrílega? “Ofereça a sua dor a Jesus, mamã” - dizia ela piedosamente, mas a mãe exaltada recusava a ajuda da verdadeira religião. Se ao menos ela aceitasse ser um pouco mais alemã, e um pouco menos ímpia.
- Olha, Franzi, ela mostrou-se em Wiesbaden - observou Willibald.
- Vem no Wiener Zeitung. Mas estava de véu. Portanto não a viram.
- Deixa-a em paz! - rosnava Attila. - Uma mulher de luto anda sempre de véu.
- Uma Imperatriz não - afirmou Willy. - O povo tem o direito de lhe cobrar as suas dores.
Ao ler o artigo do correspondente de Wiesbaden, Franz notou que ela não tardaria a regressar a Viena; esperava-se vivamente, com alguma razão, que ela aparecesse em público para desmentir os boatos sobre a sua saúde. Franz preparou-se.
Quando o tilbury surgiu na Praça dos Heróis, uma pequena multidão esperava em silêncio. Sentada nas almofadas, com a cabeça completamente coberta por uma musselina preta, segurava o leque de cabedal branco que, inevitavelmente, abria para esconder o rosto invisível. Um murmúrio de compaixão à mistura com gritos hostis fê-la encolher-se no fundo do assento.
Pelo movimento vivo do leque, Franzi, perturbado, reconheceu-a. Quando entrou em casa tinha lágrimas nos olhos.
- As pessoas não têm coração - observou ele beijando Anna na testa. - Vi a nossa Imperatriz, que é apenas uma mulher que sofre, e eles acham que está louca!
- E quem te diz que não está, Franzi? - retorquiu Anna gravemente.
- Se um dos nossos filhos morresse, eu acho que perdia o juízo; estás a ver, não vejo mal nenhum nisso.
No dia em que saíra em Viena, para ir da Burg ao Prater, os castanheiros resplandeciam de brancura; e no meio do arvoredo despontavam as primeiras flores dos pilriteiros. Por detrás do espesso véu não distinguia bem o delicado pormenor dos rebentos a abrir; apenas o branco a invadia, insuportável de tão belo. A cor do animal maldito, deslumbrante de esperança e de perdão.
Quando voltou para a Burg, entrou em passo desenvolto nos aposentos da filha e beijou-a calmamente. “Como pode Rodolfo renunciar à Primavera?” disse em tom pensativo.
A arquiduquesa sentiu que lhe tiravam um peso do peito. Com que então a mãe reencontrara a Primavera! Correu para ela e abraçou-a ternamente.
- E tu, como podes tu querer casar? - prosseguiu com a sua voz mais doce. - Fui vendida aos quinze anos, nunca me consegui libertar. Sabias, filha?
Maria Valéria recuou, enfadada. “Mãe, estou apaixonada! Amo o meu noivo! Deixe-me sossegada!”
A boca amarga esboçou um esgar, abriu-se para replicar, depois repelindo a filha com brusquidão, a Imperatriz atirou-se para o chão, estendendo-se ao comprido com os braços em cruz. “E eu só amo o grande Jeová! É assim que quero adorá-lo, prostrada no pó da terra!” berrou enquanto a arquiduquesa se precipitava para junto dela. “Mamã, mamã - soluçava a jovem - não faça isso, não aguento mais, não vai mudar nada com isso, não sofra assim, mamã...”
Mas ela, com a face no chão, abandonava-se sem dizer nada, atenta aos soluços da Querida, que pagava o preço do seu amor. “Por favor”, murmurou a arquiduquesa esgotada.
Então a mãe levantou-se de um salto e afagou-lhe o rosto molhado de lágrimas: “Mais vale que eu morra; ao menos o teu pai poderia casar com a senhora Schratt. Sou um obstáculo entre eles, sabes, Kedvesem. Estou velha de mais para lutar; tenho as asas queimadas.”
E no meio de um roçagar de sedas, saiu da sala.
A jovem, desvairada, correu através dos imensos corredores, até ao gabinete onde trabalhava seu pai o Imperador. Entrou sem bater, sentou-se num canto, de mãos crispadas, e baixou a cabeça. E ele, impassível, lançou um olhar oblíquo à filha mais nova, vagamente inquieto, enquanto continuava a rabiscar a assinatura. Ela via a pena mergulhar no tinteiro, a mão traçar regularmente o nome, ele não erguia os olhos, era o imutável e a solidez, o eterno e a rocha, a pedra angular do Império e o garante da família. A arquiduquesa acalmou-se pouco a pouco.
Quando ele terminou, perguntou-lhe se não se tinha aborrecido muito.
- “No primeiro aniversário do falecimento do Príncipe Herdeiro, Suas Majestades irão...” - lia Willibald em voz alta.
- Já um ano! - interrompeu Franz. - Não posso acreditar.
- Onde é que vão Suas Majestades imperiais? - perguntou o húngaro com uma pontinha de irritação. - À missa, à catedral?
- Não acertaste. A Mayerling, ao próprio local onde o Príncipe deu um tiro nos miolos. Parece que agora construíram lá uma capela. E acho que o altar-mor até ficou no sítio da cama...
- Oh! - fez Attila chocado. - No sítio onde os amantes cometeram o pecado da carne! Como podes tu aprovar, Willibald?
- Mas é preciso remir os pecados - murmurou o gordo - não é? A oração no local do crime...
- Lembro-me do dia em que soube a notícia - murmurou Franz - estava uma manhã soberba, ia apanhar o eléctrico e... Enfim! Já é história antiga.
- E se recomeçássemos os nossos serões musicais - sugeriu Attila. - Uma vez que já passou um ano. Não acham que é tempo de fazer as pazes?
Willibald deitou um olhar ansioso a Franz, que lhe abriu os braços. Willy lançou-se neles com emoção. “Nunca mais, estás a ouvir, nunca mais direi palermices anti-semitas...”
- Vá lá, vá lá - murmurou Franz afectuosamente. - Devias era casar-te, meu velho; é do que precisas para aliviar as más disposições. Espero que o teu violoncelo não tenha enferrujado!
- Quanto a isso não há problema! - exclamou Willy todo contente. - Entretanto aprendi a tocar cítara; vocês vão ver.
- Ouve lá, rapaz, já que estás em maré de resoluções, nunca mais digas disparates contra a minha Rainha - reclamou o húngaro com ironia.
- Juro! - prometeu Willibald esfregando as mãos. - Tudo isso...
- “Tudo isso é muito bonito” - entoaram em coro Franzi e Attila - e se fôssemos tomar um café ao Landtmann?
Ela nunca estivera antes em Mayerling. De antemão, a ideia daquela cerimónia, transtornava-a. Não pregara olho toda a noite; mas ao chegar a alvorada, apesar de ter anunciado que se encontrava ainda demasiado pesarosa para ir ao antigo pavilhão de caça, de súbito, tomara a decisão. A Imperatriz acompanharia o Imperador à missa comemorativa.
Os bosques e os campos estavam cobertos de neve, como no ano anterior. Uma paisagem campestre calma e silenciosa, à excepção do sino do mosteiro cujo fino som se perdia no meio das nuvens baixas. O Imperador olhava para as árvores sem folhas e não dizia palavra; por vezes, voltava-se para ela com uma espécie de afecto familiar, mas ela encolhia-se ainda mais no assento, cruzando os braços, com medo que ele quisesse pegar-lhe na mão. Fora ele sozinho quem decidira transformar o maldito pavilhão em convento, onde as freiras, por toda a eternidade, haveriam de rezar em memória de Rodolfo. Fora ele quem escolhera o lugar do altar, onde nunca mais ninguém poderia imaginar o leito dos amantes. Ela continuava a esperar uma aparição.
Mas era apenas um altar numa igreja, e a casula do padre, o incenso, os meninos do coro ocupavam o espaço todo.
Em vão procurou ela a memória dos abraços, o hálito dos últimos beijos, o primeiro tiro no coração da pequena adormecida, depois o segundo. Entre seu filho e ela elevavam-se os sons murmurados das palavras sagradas, destinadas a abafar o detonar do revólver. Não sentiu nada, não sofreu; e quando saiu da capela, aspirou o ar cortante a plenos pulmões. A vida, infelizmente, voltava de modo horroroso.
Em Budapeste, o seu velho amigo, o eterno admirador da Imperatriz, Gyula Andrassy, estava a morrer com um cancro. Isso também fazia parte da vida.
- Desta vez, Andrassy morreu - suspirou o húngaro dobrando o jornal.;
- Foi um grande homem.
- Sei de uma que deve estar bem triste - disse Willibald num tom que era até afável.
Franz quis evitar a disputa.
- Não te podes conter, tu! - saltou ele, zangado. - A tua língua de víbora!
- O que é que eu disse de mal? Só que ela estava triste! - replicou Willy.
- Toda a gente sabia da amizade deles, caramba!
- Mais nada? - ameaçou Franz segurando-o pelos colarinhos.
- Se me provocares - gaguejou o gordo sufocando - até poderei dizer que eles talvez tenham suspirado um pelo outro... Mas não é novidade! Não vejo mal nenhum! O Imperador também arranjou uma amante, afinal de contas...
- Sim, mas não vais mais longe - disse o húngaro pegando-lhe por um braço. - Senão, acabou-se a música!
- Bom, está bem - admitiu o gordo Willy libertando-se. - Já percebi. Tudo isso é muito bonito, mas ninguém me pode impedir de pensar o que eu quiser. Cada um sabe o que sabe!
- Pensa em silêncio e trabalha! - bradou Franz. - Eu também respeitava Andrassy, e no entanto não sou húngaro...
- Deutschland iiber Alies - murmurou Willy entredentes. - A Alemanha acima de tudo. E que leve o diabo os liberais como vocês.
O tempo do luto terminara; o casamento de Maria Valéria aproximava-se. A jovem respeitara à letra as indicações oficiais; mas uma vez expirados os prazos regulamentares, preparava-se com alegre excitação.
“Como é que ela pode?” pensava a mãe, com o coração cheio de raiva. Dezoito meses, uma eternidade de noites sem dormir e maus sonhos, e a filha, aquela noiva obcecada pelos preparativos de uma cerimónia odiosa... É certo que fora decidido que o casamento se realizaria em Bad Ischl, em família, e sem fausto. Mas Bad Ischl, era de mais. Onde é que seria melhor? Em parte nenhuma. Nenhum casamento. Era pedir demasiado.
Então, já que era obrigada, lançou-se no frenesim dos berloques e dos enfeites; que ao menos a sua filha preferida, antes de a abandonar, pudesse sentir o preço do amor maternal. Três semanas, vinte desgraçados diazitos para fazer como se ela ficasse... Nada foi demasiado belo para a jovem arquiduquesa.
Tomou ciosamente conta do enxoval, examinando cada peça com cuidado, mandando retirar uma camisa cujos bordados não eram a seu gosto, acrescentando fatos que Maria Valéria achava inúteis, e jóias em profusão. E de cada vez que mergulhava as mãos nas rendas, pensava em Rudi, cujo corpo embalsamado criava bolor no fundo da Cripta dos Habsburgo. As fitas revolviam-lhe o estômago, os adereços de diamantes queimavam-lhe os dedos mas, cheia de uma febre contida, ela continuava a acumular mais e mais coisas. Depressa o enxoval ficou todo pronto.
Com desespero, procurou o modo de deslumbrar a filha. Como um noivo, mandava-lhe levar flores todas as manhãs ao quarto; Maria Valéria suspirava, cheia de pena e de remorsos. Que se passaria no dia da cerimónia? E como iria a mãe suportar a provação da partida?
Uma noite, quando se ia deitar, a jovem ouviu debaixo das janelas a banda municipal. Abriu as vidraças, debruçou-se: o chefe do grupo tirou solenemente o quépi e ergueu a batuta; os músicos largaram os instrumentos e começaram a cantar em coro. “Não penses no amanhã! Só o momento presente é belo... Atira as preocupações para o vale, e que o vento as disperse...”
Era um dos primeiros poemas de sua mãe, no tempo em que ela tinha ainda todo o seu bom senso. No tempo em que ela sabia amar mais ou menos a vida. Maria Valéria escondeu o rosto entre as mãos. Um ruído de passos atrás dela fê-la voltar-se. A Imperatriz estava ali e apertou-a nos braços com um doce pranto.
- Quero agradecer-te, minha filha, tudo o que fizeste - murmurou com a boca a tocar-lhe nos cabelos.
Chegou mesmo a sorrir. Maria Valéria soluçou de alívio. Era a penúltima noite, e a Imperatriz comportava-se finalmente como uma mãe, dignamente.
Desde o mês de Abril de 1890, Franz decidira tirar uns dias de descanso, em Bad Ischl precisamente, em memória dos momentos felizes que aí passara com a mãe. Anna refilara um pouco; a pequena estância termal passava por ser elegante, mundana, e superlotada no Verão, por causa da presença da família imperial; e nesse ano, com a ajuda do casamento, ainda seria pior. Anna teria preferido Veneza, ou então aqueles lagos italianos com que ambos sonhavam. Mas Franz não parecia disposto a ceder.
Então Anna lembrou-se de fazer a seguinte combinação: ela aceitaria a estadia em Bad Ischl, se Franz a autorizasse a tomar parte na manifestação dos operários no Prater, pelo primeiro de Maio, organizada pelo novo partido social-democrata, pelo qual se interessava muito. Um pouco chocado, Franz acabou por se deixar convencer; projectava até acompanhá-la - “por razões de segurança, minha querida” - mas o governo imperial proibiu os seus funcionários de participarem na manifestação política.
O primeiro de Maio em Viena, de acordo com a tradição mundana, era dia de Corso; no Prater, precisamente, desfilavam as caleches enfeitadas com flores primaveris, e a carruagem mais bonita, mais florida, era premiada. O primeiro de Maio de 1890 seria portanto desdobrado: de um lado o Corso para os ricos, do outro, a manifestação para os operários; difícil concorrência. A seu pesar, Franz deixou Anna partir sozinha.
Sem nada dizer ao marido, ela seguira apaixonadamente a evolução dos socialistas vienenses. Muito tempo divididos entre marxistas, lassalianos e anarquistas, tinham-se finalmente reunido sob a direcção daquele mesmo Viktor Adler que se ligara, por engano, a certa altura ao grupo de Schõnerer. O reencontro da unidade entre as tendências socialistas coincidira com o drama de Mayerling; mas tornara-se definitivo agora, passados dois anos. Os sociais-democratas eram capazes de contrabalançar a imensa massa dos cristãos-sociais do doutor Karl Lueger, a pior de todas as ameaças aos olhos de Anna. O confronto entre a manifestação operária e o Corso não era desprovido de riscos; não eram de excluir provocações da extrema-direita.
Mas tudo correra bem. Não houvera perturbações. Anna misturara-se à multidão alegre e pacífica dos operários endomingados, apanhara panfletos e brochuras, e depois deitara uma olhadela ao Corso, do outro lado do Prater. E uma vez que Franzi cedera, era pois justo que, por seu turno, ela fosse para Bad Ischl; com um pouco de sorte, talvez até vissem aquele casamento tão tocante, que diziam ser simples, e que era capaz de ser muito comovente.
Mas no dia da cerimónia, a Imperatriz estava pálida como uma defunta, mais muda que nunca, e aqueles olhos dilatados exprimiam uma dor indescritível. A jovem noiva não teve possibilidade de se ocupar da mãe, que se deixou levar de um lado para o outro, de cabeça erguida, sem uma palavra, com o leque pousado nos joelhos, fechado como uma asa morta. Só se encontraram à noite, no momento em que a jovem senhora ia mudar de roupa para partir com o marido. A mãe despiu-a com uma violência contida, a soluçar, mas desta vez as lágrimas eram tão ferozes que a velha angústia tomou conta do coração de Maria Valéria. No momento das despedidas, a jovem confiou a mãe ao tio Carlos Teodoro, que prometeu velar por ela.
Na multidão reunida nos cais do Ischl, encontravam-se Franz, sua mulher e os filhos.
Anna não se arrependeu. Aclamou de boa vontade a jovem e sorridente noiva, achou que o Imperador - que se dizia estar recuperado de Mayerling - tinha bom aspecto, mas assustou-se com a Imperatriz, que dessa vez estava sem véu. “Ela é sempre assim? - segredou ao ouvido do marido - Como está pálida! Não abre a boca. É, Franz?”
Franz carregou o cenho sem responder, e acariciou maquinalmente a calva. Desagradava-lhe ouvir a esposa falar da Imperatriz. Não, ela nem sempre fora assim; outrora, sob a máscara e as rendas, corara; sim, agora tinha a cor de um cadáver, pensou que havia de lhe escrever, que fora negligente... Por pouco tê-la-ia detido à saída da igreja, pousando-lhe a mão no braço; teria murmurado “Gabriela!” e ela voltaria à vida, com um brilho nos olhos... A polícia engavetava-o logo.
Quem sabe? Talvez também ela o fitasse com um olhar vazio, sem perceber.
A Imperatriz não viu Franz, nem a mulher dele, nem os filhos. Aliás, não viu nada nem ninguém; diante dos olhos tinha apenas uma turva névoa através da qual se esbatia o rosto da filha ingrata. Repetiu para si própria, durante todo o dia, o poema que escrevera antes do drama de Mayerling, quando Maria Valéria confessara o seu amor pelo primo Francisco Salvator.
“Enamorada, enamorada, e portanto palerma”, enamorada, palerminha, o amor não existe, faz vomitar, disparates, enamorada, vai-se embora, para sempre os disparates, e aquele longo vómito que ela mal continha...
Decidira fazer um cruzeiro num barco velho, mal conservado; Maria Valéria desconfiava que ela não desejava voltar. Mas ela, de lábios crispados, conteve os soluços e beijou a filha preferida quase friamente, para não a sufocar logo ali. A noite de Verão mal começava, a luz era demasiado suave, o rio demasiado perfeito aos pés da residência imperial, e a carruagem dos recém-casados avançava para a escadaria, enfeitada de miosótis e de azáleas demasiado cor-de-rosa. A filha instalou-se no carro, um encanto; ela tinha o coração destruído. Quando o cocheiro fez estalar o chicote, a família acenou com as mãos gentilmente; ela cruzou os braços. Toda a gente voltara há muito para casa e ela contemplava ainda, na areia fina, as marcas das rodas que se apagaram pouco a pouco.
TERCEIRA PARTE UMA NOITE CALMA, UM LUAR
A GAIVOTA NÃO FOI FEITA PARA UM NINHO DE ANDORINHAS
Gritei o teu nome ao oceano
Mas as vagas alterosas devolveram-no
Gravei o teu nome nas areias
Mas as conchinhas apagaram-no.
Elisabeth
No dia seguinte, a Imperatriz partiu para Dover, onde a esperava o Chazalie, que levantou logo ferro. De sombrinha na mão, contemplava a linha apaziguadora de um horizonte brumoso, quando se desencadeou a esperada tempestade. O capitão quis mandá-la descer a toda a pressa; mas ela recusou. A dama de companhia apavorada avistou enormes vagas que iam tomar de assalto o tombadilho; a Imperatriz seria arrastada...
A condessa Festetics começou aos berros; irritado, o capitão intimou-a a desaparecer. A última visão que a condessa teve da Imperatriz antes de se enfiar na cabine foi a de uma mulher cujo vestido húmido batia ao vento do largo, e que ria furiosamente.
Que medo tivera a condessa Maria! Definitivamente, a dama de companhia pensara que era chegada a última hora das suas vidas. A rígida Festetics revelava finalmente a sua verdadeira natureza: era uma cagarola.
O capitão fora perfeito. Passada a primeira surpresa, acatara as ordens que ela dera, aos gritos. Não porque tivesse vontade de forçar a voz; mas o vento rugia. E portanto o capitão atara, obediente, a Imperatriz ao mastro do cúter, com grossas cordas que apertara com as próprias mãos. Em seguida ordenara-lhe que se afastasse; ele obtemperara e fora colocar-se atrás dela, à popa. O essencial era que ela não o visse. E que ficasse finalmente livre para se entregar aos açoites da tempestade.
Se o grande Jeová aceitasse aceder aos seus desejos, as ondas, ao rebentarem, arrancariam os laços que a prendiam à vida. Apanhou as pancadas do mar como quem recebe um castigo merecido, contraindo o rosto a cada arremetida, de lábios abertos para saborear o sal da água. Instintivamente virava a cabeça, mas as vagas não lhe davam tréguas e vinham bater-lhe sem descanso, com marradas violentas. Em breve se habituou. Os repetidos choques distenderam-lhe os músculos crispados, e ela deixou-se ir. “Como Ulisses - pensou - onde estão as sereias?”
As sereias não apareceram; e os únicos cânticos no coração da tormenta vieram dos marujos que berravam, muito ocupados a dominar o velho navio em ruínas. À força de ser agredida, descontraiu-se tão bem que lhe veio, bruscamente, um pensamento absurdo: “É francamente melhor do que as minhas massagens”, pensou.
O ridículo da situação apareceu-lhe claramente. Uma pobre mulher, de seda colada ao corpo, uma velha tisnada atada ao mastro de um barco para se fazer massajar pela tempestade, era isso que ela era, nada mais! O grande Jeová pouco ligava aos grandes sentimentos; um riso descontrolado sacudiu-a de alto a baixo. Desaparecera desde a morte de Rodolfo, aquele irrefreável estremecimento de um riso arrebatador, contra o qual nada podia fazer.
Mais tarde, quando o cúter voltou ao porto, o capitão desatou-a; ela limpou das faces as lágrimas a que se juntavam o sal do riso e o da água. A condessa Maria foi ter com ela ao tombadilho, com um roupão para a enxugar. Foi então que adivinhou, no olhar da dama de companhia, um mal-entendido inevitável. Como poderia ela explicar aquele riso descontrolado? Aos olhos de todos ela estava condenada ao luto.
Fora contudo no preciso momento em que o grande Jeová se transformou em massagista divino que ela reencontrara o gosto de viver. Mas sobre isso, ela sabia que não devia dizer nada.
Os meses passaram lentamente; e se o amanhecer trazia sempre ao acordar a efémera euforia, sinal da dor iminente, ela acostumara-se aos sofrimentos do dia. Melhor ainda, recomeçara as lições de grego.
A madeixa de cabelo enrolada dentro do medalhão, batia-lhe constantemente contra o peito, e Rodolfo portava-se bem, agora. De vez em quando, acariciava o metal polido, abria a caixinha e depunha um beijo naquilo que lhe restava do filho. Para maior segurança, mandara montar numa pulseira alguns amuletos, susceptíveis de lutar contra o tropel dos fantasmas. À medalha da Virgem, vinda da longínqua infância, juntara uma figa, comprada no Cairo; umas moedas bizantinas, descobertas em Constantinopla; um signo representando o Sol, e uma minúscula caveira, encontrada na secretária de Rudi, ao lado do crânio verdadeiro que, como todo o bom maçónico, ele gostava de contemplar todos os dias. Aqueles fetiches tranquilizavam-na; graças a eles, tornara-se invulnerável.
Além disso, desencantara um segundo medalhão que continha, finamente impresso num minúsculo rolinho, o salmo 91 do Antigo Testamento. O grande Jeová, era também o senhor das aves que, sob a divina plumagem, protegia as gaivotas da rede maldita do passarinheiro. “Não temerás nem os terrores da noite, nem a flecha que voa de dia, nem a peste que caminha nas trevas, nem o flagelo que devasta ao meio-dia...”
O Chazalie, oscilante sobre o Atlântico, conseguiu chegar às costas de Portugal, foi ter a Gibraltar, depois a Tânger; o grande Jeová renunciou às tempestades, mas em Lisboa, Ele enviou cólera. Como de costume foi assaltada por um frémito de angústia e de prazer: a ideia de afrontar o perigo era irresistível; mas não foi autorizada a ir a terra. Nas etapas seguintes, vingou-se.
Era preciso vencer aquele corpo indomável, e infligir-lhe a fadiga dos eleitos. Já que os cavalos se tinham, com o tempo, esquivado às suas coxas, já que haviam desaparecido da sua vida, ela decidiu caminhar.
Sempre o fizera, em períodos de crise; para se justificar, evocava com ostentação a lembrança dos longos passeios com o duque Max, seu pai, durante a infância na Baviera. Nada mais desprezível do que o passeio das damas da Corte: dois passos indolentes ao longo de um prado, onde se deixavam molemente cair antes mesmo que os músculos tivessem podido exercitar-se realmente, não! Toda a estupidez fêmea da Áustria se concentrava naquele modo de simular a marcha. Não, andar, caminhar, era outra coisa; depressa, empurrar o corpo para a frente, estender a tesoura das pernas, alongar o passo, depressa, sentir o rodar da anca no alto da coxa, esticar a barriga da perna, flectir o joelho, pousar o pé, mas quase nada, tão depressa que já se suprime o espaço entre as passadas, deixar que os tendões endureçam, que nasçam as dores, cerrar os dentes, prosseguir, aceitar o espartilho sufocante em torno dos rins a arder, forçar o coração palpitante a não ceder, depressa, até surgir o momento abençoado em que o êxtase invade o espírito, o espírito primeiro; então, com a cabeça leve, o corpo inexistente, ela sentia-se deslizar sobre as águas de um mundo enfim vencido, e abandonava-se à embriaguez de um voo de ave.
Exercitara-se tão bem que, para conseguir o desprendimento desejado, precisava de mais tempo cada dia; por vezes, o cansaço demorava a chegar. Atrás dela trotava penosamente a pobre condessa Maria Festetics, cujo pacífico cérebro rejeitava toda e qualquer exaltação. Ao cabo de duas horas a condessa ofegava; à terceira já arrastava os pés, a contar da quarta sofria horrores; um dia, após oito horas de marcha, foi-se abaixo. No dia seguinte, a Imperatriz caminhou durante dez horas.
O médico examinou a dama de companhia e aplicou compressas nos membros moídos. Dois dias depois - estavam em Tânger - após sete horas seguidas de marcha, Sua Majestade dignou-se perguntar a Maria se lhe seria possível caminhar mais um pouco. A condessa cumpriu o seu dever; e houve uma oitava hora.
Mergulhada naquele seu mundo etéreo, ela mal se apercebia do sofrimento da simples mortal que a acompanhava. Algumas vezes, quando fechava finalmente a sombrinha branca, via a palidez da aia; fingia ter remorsos, mas irritava-se secretamente. Consultado, o médico confirmou que a dama de companhia não resistiria durante muito tempo; nem por isso ficou muito aborrecida.
A condessa, que anotava tudo, pontualmente, no seu diário, começou a rejeitar aquela mulher que, em vez de soçobrar na dignidade de um luto acabrunhado, ressuscitava sob a forma de uma divindade de pés alados. Muitas vezes, quando a condessa Maria escrevia à preocupada Ida Ferenczi, demasiado cansada para acompanhar o périplo do seu ídolo, referia-se com palavras duras ao egoísmo da sua imperial senhora; Ida compreendeu que, para fugir a galope, a sua querida encontrara uma égua sobresselente, que era afinal ela própria.
O Chazalie passou para o Mediterrâneo, onde o grande Jeová o esperava, armado de vagas alterosas. A condessa Maria gemia cada vez mais; e ela, que sentia a vida voltar a todo o vapor, dividia o tempo entre as caminhadas e o mar. No tombadilho do Chazalie, os jovens marinheiros tocavam armónica; um deles, um grumete de olhar trocista, sabia as árias de La Traviata, e até a sua ária preferida, Ah! Gran Dio, morir si giovine, que sempre a encantava. Muitas vezes, escondida atrás da sombrinha, ela contemplava-os com inveja. Era a hora do repouso; estendidos em cima dos cordames, tinham um lenço vermelho atado à volta do pescoço e os braços nus. Com as pernas a balouçar e as mãos atrás da nuca, ouviam o grumete tocar La Traviata. E no braço do adolescente, uma âncora da marinha, tatuada por baixo do ombro, mexia-se com os leves movimentos dos músculos.
Porque teria o grande Jeová feito com que ela nascesse no corpo de uma mulher? Porque não tinha ela o direito de despir os seus braços musculosos? Aquele jovem grumete da armónica era ela, era o seu desejo, a sua alma, que um génio mau acorrentara a um papel que não fora escrito para ela. Na primeira escala, mandaria tatuar no ombro uma âncora da marinha; imaginava já as recriminações indignadas da condessa Maria, virtuosamente sentada no antro fumarento de um tatuador um pouco duvidoso, como os há em todos os portos do mundo. Não cederia à virtude. No ombro imperial, a âncora seria o seu estigma íntimo, a marca da sua revolta, uma secreta liberdade. “Só me ancorarei a mim mesma, só a mim”, pensava com júbilo enquanto o pequeno grumete deixava cair a armónica e adormecia ao sol.
Os pensamentos reviviam mas a língua continuava paralisada. Quando abria a boca, só saíam palavras de desgraça, definitivas, desenganadas; já não tinha outras. Mil vezes tentara regressar aos poemas; mas um peso terrível paralisava-lhe o braço e impedia-a de escrever. Contudo, o prazer das tardes, as luzes que se acendiam ao cair da noite, o perfume dos ciprestes, e as silhuetas embiocadas das mulheres nas ruas de Tânger, tudo ela distinguia, tudo via, reencontrara até os aromas agrestes das charnecas e das cabras; mas, qual princesa enfeitiçada por uma fada má, quando queria formular palavras de pérolas, dos seus lábios sempre fechados saíam sapos, sem ela saber.
Então deixou correr; e como estava confinada àquele papel, aceitou um luto eterno por Rodolfo. Era verdadeiro ou falso? Quem poderia dizer? As suas alegrias nunca tinham sido muito partilhadas; doravante passariam à clandestinidade radical. Roubados, os prazeres quotidianos. Como a âncora tatuada no ombro, segredo a não revelar. Principalmente à filha preferida, que ficaria logo toda satisfeita e preveniria o ilustre pai: “A mamã agora vai bem. - Vá lá, tanto melhor - responderia ele aliviado...” Caso arrumado. Antes o segredo e os prazeres escondidos do que o simulacro. Antes do falecimento do filho, o leque escondia-a do mundo; acrescentara apenas uma sombrinha e um comprido e eterno véu, que aceitava, às vezes, levantar, por indiferença, pensava ela.
Parecia-lhe que se recomeçasse a escrever quebraria um terrível tabu, e que seu filho pagaria por isso. De que modo? Não saberia explicar. Escrever separá-los-ia para sempre. Mas não estavam eles já separados? Não, não lá bem no fundo do seu coração. O que temia acima de tudo, era perder aquele sopro de felicidade clandestina, o que o filho morto se dignara devolver-lhe, e que ela saboreava em cada dia. Já não era possível escrever; ele levaria a mal.
Para ter a certeza, consultara o seu oráculo preferido: a clara de um ovo, partido num prato. Pelas formas que os mucos transparentes desenhavam, ela adivinhava a resposta; uma velha cigana ensinara-lhe a técnica, um dia, em Gõdõllõ. Valia mais do que as borras de café, dizia a anciã, que eram muito incertas. Uma manhã, a clara traçara uma mão informe, de dedos cortados. Era uma primeira indicação. No dia seguinte, o ovo comunicara uma outra figura, a de um estilete pontiagudo. Dessa vez era claro: o estilete era a pena. Os dedos deviam deixar de escrever.
Tomou então o conjunto dos seus poemas, perto de mil páginas contendo os Cânticos de Inverno, os Lieder do mar do Norte, e maços diversos, entre os quais a colecção dos Asnos. Comprou cinco ou seis pequenos cofres com sólidos fechos, invioláveis. Antes de guardar os versos, restava-lhe um último esforço de escrita. Em prosa.
Para tal era preciso encontrar o lugar perfeito. Nenhuma casa servia. Os barcos balouçavam. Foi o comboio. Mandara construir uma carruagem especialmente equipada, com um quarto, uma sala, lavabos, enfim, o necessário para se manter limpa e poder arranjar-se em qualquer sítio. E no comboio, podia escrever.
Porque é que a escolha do comboio se impunha ao seu espírito? O comboio seguia rumo a um destino desconhecido, um Inverno eterno, um lugar qualquer sem humanidade através da Europa; o comboio arfava, andava aos solavancos, resmungava, como uma concha viva transportando a sua carne interior, que cuspia sobre o cais da estação, quando parava. Fulminava, ronronava. Sim, o comboio servia. Uma vez essa decisão tomada, a pena correu com facilidade. Esta última carta não era dirigida aos vivos; nem tão-pouco aos mortos. Não, ela escrevia à criança que havia de nascer mais tarde, e a quem chamou simplesmente “Querida alma do futuro”.
O destinatário do porvir, legatário dos originais dos poemas, deveria publicá-los sessenta anos após 1890, data que inscreveu no alto da página, a data desse ano. Os direitos de autor reverteriam a favor dos “condenados políticos mais merecedores, daqueles que tiverem sido censurados pelas suas ideias libertárias, e dos seus familiares necessitados”. Porque, escrevia ela, “não haverá, daqui a sessenta anos, mais felicidade e paz no nosso pequeno planeta do que há hoje”.
Por superstição, acrescentou duas linhas sobre um outro planeta, ainda invisível, e que acabaria por ser descoberto um dia, quando os homens tivessem adquirido meios para lá se dirigirem. Calculara bem; sessenta anos mais tarde, a contar de 1890, seria o ano de 1950. Nessa época, o Império talvez já tivesse desaparecido; de certeza, a fazer fé na recordação que ela tinha das profecias de Rodolfo, por ele mesmo formuladas nas cartas de despedida. Os comboios continuariam a rolar sempre em direcção a rumos desconhecidos através da Europa; continuariam a despejar a respectiva carga de seres vivos nos cais das estações, num Inverno eterno. Quanto à criança que havia de nascer, sem dúvida nos anos 30, ela não fazia ideia de que nacionalidade seria ela.
Com um pouco de sorte, seria húngaro e judeu; poderia chamar-se Gyula, Thomas, ou talvez até Istvan. Nasceria em Budapeste, e seria escolhido para abrir o cofre por ser o maior poeta do século XX, um novo Heine.
Foi ainda por superstição que não assinou o seu nome, Elisabeth. Gabriela havia já servido; mas, uma vez que tinha escrito muito sobre os asnos, lembrou-se de voltar à Rainha das Fadas, em memória da sua beleza perdida, e do Sonho de uma Noite de Verão que sempre perseguira. Assinou pois Titânia e, no fundo da página, escreveu ainda uma linha: “Escrito em pleno Verão de 1890, num comboio especial correndo a toda a velocidade.”
Em seguida, fez com os poemas vários maços bem ordenados, que ela mesma embrulhou, atou solidamente, e fechou nos vários cofres. Depois, no maior segredo, confiou a Ida o primeiro, com uma carta manuscrita: por sua morte, e se morresse antes da sua querida amiga, Ida encontraria no quarto de vestir um sinete com uma gaivota gravada, para apor no cofre antes de o enviar a Carlos Teodoro, irmão da Imperatriz, que por sua vez o enviaria ao presidente da Confederação helvética.
No maior segredo, escreveu uma carta ao duque de Liechtenstein, bom companheiro de caça, excelente cavaleiro, encarregando-o da mesma missão; depositou o segundo cofre e a carta numa gaveta, dissimulada ao fundo de uma escrivaninha anódina, na Hofburg, nos seus aposentos. Para maior segurança, e sempre em segredo, os outros cofres foram para amigos, cujos nomes disfarçou.
Cada um dos depositários dos poemas da Imperatriz ignoraria absolutamente a existência dos outros. Mas o último destinatário seria sempre o mesmo: o presidente da Confederação helvética, o único que poderia abrir os cofres em devido tempo.
Na Suíça, sabiam guardar segredos e torná-los públicos de acordo com a vontade dos visitantes. Na Suíça esperava-a pois o seu destino futuro.
Quando, após nove meses de deambulações, foi preciso voltar a Viena, consentiu até em mostrar-se em público. De boa fé, acreditou no seu próprio desprendimento: que importância tinham - pensou - aqueles olhares detestados? À força de caminhar, deixara o mundo dos humanos, e atingira a terra dos deuses. Antes da função, enquanto se arranjava, esteve estranhamente dócil; enfiaram-lhe o vestido de seda preta com um peitilho de rendas a condizer, entrançaram-lhe o cabelo numa coroa tripla, mostraram-lhe os escrínios onde, sobre veludo azul, dormiam as jóias. Fitou-as sem as ver. De súbito, levantou a mão e sorriu.
- Nenhuma me serve - disse - levem-nas, todas.
Nem sequer aceitou um camafeu, a que tinha direito após dois anos de luto; teria até podido usar um vestido cor de malva e branco. Depois entrou na sala com aquele passo inimitável que era impossível corrigir.
Pelo arrepio sussurrado que percorreu a sala, ela percebeu que nada mudara. Já não lhe eram hostis, lamentavam-na, era pior ainda; cerrou os dentes, e permaneceu de pé, rigorosamente imóvel. As damas da Corte começaram a chorar e, para não as ver, pôs os olhos nos estuques, por cima dos alizares das portas, por cima das numerosas cabeças. A multidão desapareceu numa ligeira névoa onde flutuavam murmúrios; aprumada sobre o estrado, evadia-se. Agora sabia: para continuar a viver, bastava nunca mais olhar os olhares.
Desde o dia do seu noivado em Bad Ischl, sempre fora assim; milhares de olhares, milhares de ameaças. Exposta, tornava-se mortal, carne oferecida à podridão humana, como Rodolfo ao fundo da Cripta, pele porosa à admiração, corpo votado ao ódio, enquanto que longe, sozinha, podia viver. Mas alguma vez estivera sozinha?
“Quando descem ao mundo dos homens - pensou - os deuses disfarçam-se. Eu fi-lo, uma vez, uma única vez, naquele Grande Baile de Máscaras. Aos olhos daquele jovem eu era apenas eu. Eu não era ninguém, uma mulher apenas, a sua Isolda! Mas aqui... Propriedade deles. Imperatriz deles. A coisa deles. Nunca mais! Vou desaparecer.”
Ficou durante oito dias, partiu para Lichtenegg, para casa da Querida, e também ali não quis ficar muito tempo. Cumulada de atenções, rodeada de felicidade, tinha medo: ora de incomodar, ora simplesmente de ser feliz, e de ficar ali a morar.
- Como a arquiduquesa minha sogra! - exclamou. - Não, não, vou-me embora. A gaivota não foi feita para um ninho de andorinhas. Fiquem sossegados.
Sentia-se, de novo, semelhante aos grandes pássaros bicudos, cujo grito estridente pulsava em redor do barco. Servindo apenas para planar sobre as águas, e pousarem depois na crista de espuma, para debicarem algum resto que andasse na esteira do navio. Assim voaria ela de mar em mar, servindo apenas para apanhar as migalhas da vida, essas delícias. À ideia de partir e voltar a caminhar, a condessa Maria desistira; foi nomeada uma nova dama de companhia, que o médico verificara devidamente, uma robusta rapariga de vinte e cinco anos, que a Imperatriz não conseguiria deixar para trás facilmente. Trocou-se o velho Chazalie por um Miramar mais sólido, em suma, fizeram-se preparativos para enfrentar comportamentos que se sentia iriam durar.
E como o leitor de grego era pouco afável, apresentaram-lhe outro, um certo Christomanos. Quando entrou no salão onde ele a esperava, pensou que ele permanecia sentado, mas não, era apenas muito baixo. Quando se inclinou para lhe beijar a mão, ela reparou na bossa que ele tinha nas costas.
Aquela deformidade encheu-a logo de júbilo: entre enfermos, haveriam de se entender.
Levou-o a passear pelo parque em volta da residência; esforçou-se, caminhou devagar e empregou para o seduzir encantos que ela já julgava desaparecidos. O pequeno corcunda contemplava-a com uma adoração tão visível que ela se enterneceu. Ele não era completamente homem, ela já não era completamente mulher. O passeio durou três horas e terminou por uma contratação. O jovem Constantin Christomanos, fascinado, deu entrada na Burg, e ficou alojado na ala leopoldina, ao fundo da passagem das Donzelas.
Ficou, como outros, loucamente apaixonado; isso comoveu-a muito ao princípio. Quando ele coxeava a seu lado, encorajava-o em segredo, “Anda, pequeno, força, vamos lá”, um pouco como fazia com os cavalos ou os cães; o grego fazia-lhe lembrar o pobre Rustimo, que tanto assustava os lacaios, porque era negro como o diabo. Negro, corcunda, torto, perfeito! Desde que não tivessem o espírito conquistador dos homens, aquela insuportável segurança, e aquele modo que todos tinham de a olhar como vencedores. De resto, o anão grego não era nenhum parvo, exprimia-se bem, era até poeta; ela desconfiava que ele tinha um diário e não se enganava.
Algumas vezes tinha dificuldade em refrear os arrebatamentos do corcunda; parecia que nunca se calava. Mas era para ficar mais tempo com ela; e como a vida já o torcera o suficiente, ela poupou-o às suas irritações.
Habitualmente, o corcunda vinha à hora da cabeleireira; ela prevenira-o, era entre eles uma convenção, e melhor dizendo, uma ordem. Enquanto a penteavam, ocupava o tempo com as lições de grego; ele sentava-se a seu lado, e corrigia cada erro de língua que ela dava, cautelosamente. Ela, ao mesmo tempo que conversava espiava-o através do espelho: desorientado por aquela intimidade partilhada, o corcunda tornava-se doentiamente observador. As miradas furtivas, os olhos apressadamente baixos assim que ela, com um movimento de cabeça, sacudia a massa dos cabelos sobre a capinha de cambraia cor de marfim! os rubores, quando a cabeleireira arrancava delicadamente os cabelos brancos! Pobre Constantin! Juntava as mãos, punha um ar condoído, homenzinho perdido no meio de um harém, como o Grande Eunuco Branco da Sublime Porta.
Porque estaria ele atrasado? Não viera enquanto a penteavam. Nessa manhã, ela recebia oficialmente duas ou três primas afastadas, um pouco acanhadas, umas arquiduquesas afectadas que não queria melindrar, boas raparigas no fundo; e para contentá-las, sem abdicar em nada do seu eterno preto, escolhera um modelo enfeitado na bainha por compridas plumas frisadas. O parentesco de pássaro entre o vestido e ela própria pusera-a de bom humor. As primas não chegavam. De súbito, decidiu fazer ginástica. No pórtico esperavam-na as argolas suspensas; agarrou-as, içou-se, depois virou-se de cabeça para baixo.
As plumas do vestido voltaram-se formando uma corola de onde emergiam, no meio dos saiotes, as pernas com meias brancas, os pés esticados. Cega pelo brilho da seda, atenta ao sangue que lhe irrigava o crânio, contava até trinta, o tempo requerido pelo exercício, quando ouviu passos, e depois um suspiro. Quem é que se atrevia?
As argolas rodaram num abrir e fechar de olhos; saia e saiotes desceram, as plumas voltaram ajuizadamente ao seu lugar. No chão, de boca aberta, o pequeno corcunda esbugalhava os olhos. Agilmente, ela saltou para o pavimento. Depois olhou-o bem de frente.
“Saltar como uma gazela, era o que dizia meu pai, caro Constantin. Espero de si a mais completa discrição; não me viu nas argolas, senhor Christomanos. Vá lá, recomponha-se; e vamos ler a Odisseia, por favor.”
Mas ele não se mexia, petrificado. “Vamos!” repetia ela batendo o pé. “O senhor não vai morrer, que eu saiba! Menos pejo, por favor, e mais pontualidade.” Todo corado, o corcunda precipitou-se.
Nessa mesma noite, avisada pela fiel Ida, soube que o corcunda falava extasiado da Imperatriz nas argolas; vira-a, dizia ele, suspensa entre o céu e a terra, uma espécie de aparição, algo “entre a serpente e o pássaro”. O corcunda era um fala-barato, e a serpente desagradou-lhe. “Mais um pouco e acrescentava o saiote de pernas para o ar - pensou.- Se ele se aventurar mais longe, separamo-nos.”
Depois reflectiu, disse de si para si que ele talvez escrevesse, e decidiu levá-lo consigo em viagem. Servir de modelo a um anão lírico, doido por mitologia e cheio de amor, não era mau. Por vezes pensava que só herdara dos Habsburgo aquele gosto espanhol pelos bobos e pelos cães. Isso fazia-a rir à socapa, e acarinhar ainda mais o seu monstrozinho grego.
O caso da Imperatriz nas argolas foi o primeiro incidente.
Outros se seguiram, a ritmo acelerado. No barco, o corcunda ganhara segurança e gosto pelo comando. Era irritante.
- Queixam-se de si, caro Constantin - disse-lhe ela com cuidado para não o melindrar. - Esteja sossegado, senão...
Ele protestou que queriam separá-los...
Separá-los? Ela corou violentamente, ele rojou-se a seus pés, prometeu tudo o que ela quisesse, não, tudo o que quiserem, era para o afastarem dela, pura inveja... Ela virou-lhe as costas. Nessa mesma noite, alegou um grande cansaço, e enquanto ele jantava, correu à cabina do pequeno corcunda. O diário de Christo-manos ficara aberto sobre a mesa.
Apoiou-se nos cotovelos, para melhor decifrar o grego, e seguiu as palavras com o dedo. “Avança mais do que anda - dir-se-ia antes que desliza - de busto ligeiramente inclinado para trás e apoiado nas ancas finas, suavemente balanceado. Esse deslizar, próprio dela, lembra os movimentos de um colo de cisne...”
- Não está mal - murmurou. - Um pouco preciso de mais, talvez; vejamos a continuação...
“... Como um cálice de íris de longo caule que ondeia ao vento, ela caminha pelo chão, e os seus passos mais não são do que um repouso contínuo e sempre recomeçado.”
- Este pequeno compreende bem, excepto que nunca se viu um íris ondear ao vento - prosseguiu ela. “ As linhas do seu corpo fluem então numa sequência de imperceptíveis cadências que marcam o ritmo da sua existência individual. Oh! Que melodias de êxtase, eu, surdo, lhe adivinhava...”
Vagamente irritada, emocionada também, fechou o caderno, e regressou à cabina para se estender. Aquele cântico de amor intenso perturbava-a. Assim, de um corpo tão feio saíam tantas palavras loucas!
Nessa noite, embalada pela recordação das páginas inflamadas, teve dificuldade em adormecer; imaginou o anão, ocupado a acariciar-se repetindo-lhe o nome, com a cabeça a arder na febre das palavras e a mão obscena. Quando voltou a ver Christomanos, examinou-o longamente; no olhar do professor luzia a chama triunfante daquele que se crê vencedor.
Pois bem! Ninguém a possuiria, nem sequer em sonhos.
- No final da Primavera o senhor irá para Atenas - disse-lhe ela. - Quando tivermos deixado Corfu, daqui a dois meses.
Ele acusou o golpe, pestanejou, estendeu uma mão suplicante... “Não - murmurou ela suavemente. - Mas poderá publicar o seu livro quando eu morrer.”
No dia seguinte, véspera de Pentecostes, o Miramar contornou as costas albanesas e aproximou-se da ilha de Corfu. De longe, avistavam-se as cristas escuras dos sobreiros, as flechas dos ciprestes aprumadas como guardas, e os olivais milenares, leve espuma sobre as colinas. Imóvel à proa do barco, a Imperatriz velava sob a sombrinha branca. A seu lado, encostado à balaustrada, o corcunda extasiava-se.
- Esta é então a antiga terra dos Feácios! A ilha encantada onde veio dar o herói naufragado, Ulisses o astuto, são estas as praias onde o descobriu ao amanhecer...
- Nausica, nós sabemos - interrompeu a Imperatriz irritada. - Conheço este lugar há mais de trinta anos, Constantin; poupe-me à sua pedagogia.
- Mas o poeta cego, Majestade, o grande Homero! E a jovem feaciana cobrindo com o manto o corpo nu do guerreiro no exílio! Esse cena admirável!
- Vai vê-la daqui a pouco na parede da minha residência - bradou ela ameaçando-o com a sombrinha. - Agora, cale-se! Senão, não desembarca.
Humilhado, o grego calou-se. O Miramar iniciou as manobras de acostagem. Um pouco mais longe, no molhe, esperavam os oficiais e a fanfarra, em uniforme vermelho e preto.
- Detesto estes momentos - murmurou a Imperatriz entredentes.
- É o dia do aniversário da junção da ilha à Grécia, Majestade - segredou o corcunda com emoção. - Há já dezoito anos...
- Conheci esta ilha quando era dos Ingleses, Constantin - cortou ela voltando-lhe as costas. - O senhor não! É a primeira vez que aqui vem, não é? Já lhe pedi que se calasse!
Colocaram, no flanco do Miramar, a escada de acesso; os marinheiros puseram-se em sentido; a fanfarra atacou o hino imperial, e o cônsul da Áustria, de chapéu na mão, preparava-se para subir ao som dos apitos, enquanto o imediato do navio lançava a proclamação solene: “O cônsul sobe a bordo!”
Beija-mão do cônsul. Beija-mão das autoridades da cidade. Delegação de raparigas em traje da ilha, com um toucado de flores de um lado da cabeça estando o outro lado coberto por uma renda branca. Ramos de silindras e de rosas. Hino nacional grego. Discurso do presidente da câmara. Serenata da banda, O 'Biío Danúbio Azul, versão para metais e flautins. As bandeiras adejavam, o Sol do meio-dia apertava, os instrumentos faiscavam, os músicos transpiravam com calor, a Imperatriz debaixo da sombrinha mantinha-se de pé sem sorrir, e o cônsul mirou discretamente o relógio de bolso; a cerimónia era interminável. Faltava ainda o beberete de honra e os presentes da terra oferecidos por rapazes de colete de veludo debruado a ouro. Finalmente, ao cabo de uma hora, a Imperatriz despediu-se sob os vivas da multidão entusiasta.
- Uf! - suspirou a Imperatriz instalando-se na caleche florida.
-Julguei que nunca mais acabávamos!
- Uma honra assim para esta pequena ilha, Majestade - balbuciou o cônsul da Áustria, confuso. - A presença de Vossa Majestade... A residência... Tantas belezas reunidas...
Ela já não escutava. A caleche seguia ao longo do mar, e preparava-se para subir a encosta que conduzia à residência, entre velhas oliveiras e gerânios-san-guíneos.
A primeira vez que vira aquelas oliveiras, fora na época da sua guerrilha conjugal. Ao voltar da Madeira, parara em Corfu, numa grande casa à beira-mar, e decidira nunca mais dali sair. O Imperador fora ter com ela; fora em Corfu que ele capitulara, fora em Corfu que ela ditara as condições para retomar o seu lugar ao lado dele. Independência completa, horários sem vigilância, autonomia quanto à educação dos infantes imperiais, dispensa de cerimónias, escolha das damas de companhia. Tinha vinte e quatro anos, e jurara a si mesma que haveria de voltar à ilha da sua liberdade.
Precisara de mais vinte anos para o conseguir. Entretanto, a ilha assistira à partida dos Ingleses, seus últimos ocupantes; o Imperador nomeara como cônsul da Áustria em Corfu o professor Alexandre de Warsberg, diplomata e helenista. Face à Imperatriz, ficara primeiro desconfiado. Oh! O homem era de uma perfeita cortesia. Mas oficial, distante, subtilmente desdenhosa; uma Imperatriz só podia ser uma mulher mundana; falava baixo e pouco, era áspera, resumindo, o cônsul não gostava de mulheres. Depois descobrira os encantos daquela feiticeira que não se poupara a esforços para o seduzir.
A partir da segunda visita a Corfu, o cônsul sucumbira: como resistir a uma Imperatriz que lia Homero no original e que, para se recolher junto ao túmulo de Aquiles, não hesitara em dirigir-se às ruínas de Tróia, na longínqua Ásia Menor, nas terras do Império otomano? A sua timidez era deliciosa, a sua voz sussurrante soava como uma melodia... Áspera? Que engano! A Imperatriz era excepcional. Inteligente como um homem.
À terceira visita, o professor jogara tudo por tudo, e militara pela construção de um palácio homérico. Uma residência em todos os aspectos conforme às descrições deixadas pelo poeta cego.
Ela aquiescera, e comprara uma velha casa em ruínas lá nas alturas que dominavam a cidade. Warsberg atirara-se ao trabalho com entusiasmo, e a construção demorara apenas cinco anos. A Imperatriz escrevera um poema em honra da casa destruída que a rainha das fadas decidira transformar em palácio. Seria o reino dos mitos e da Grécia antiga, cuja secreta soberana seria ela, e ao qual ninguém teria acesso. Um senhorio de árvores, de pássaros e de estátuas de mármore.
Todos os anos a Imperatriz vinha inspeccionar as obras que o cônsul dirigia apaixonadamente. Aos olhos dele a residência só podia ter um nome: o do primeiro soberano de Corfu, o rei dos Feácios, Alkinoos; mas com um encantador sorriso, a Imperatriz anunciou-lhe que escolhera outro. A residência chamar-se-ia Aquiles, em memória do herói grego, a quem ela dedicava uma veneração particular.
- Rápido, forte como uma montanha, desdenhando todos os reis... É uma nuvem orgulhosa! Venceu a rainha das Amazonas... Gosto muito dele! - dizia ela ao aterrado cônsul da Áustria.
Foi a única decepção que infligiu ao professor Warsberg, e também a última vez que se viram; pois antes de terminada a sua obra-prima, Alexandre morreu.
Quantas vezes haviam subido juntos, de caleche, aquela encosta sob as oliveiras? Ele apresentava-lhe as giestas em flor, fazia-lhe as honras dos loendros, assinalava uma nespereira coberta de frutos, ou os primeiros limões, ou uma figueira, mostrava-lhe os camponeses apanhando a azeitona em grandes mantas, citava Homero apontando o mar violeta... Warsberg conhecia tudo, as velhas pedras, a vegetação, as ruínas, os mosteiros e as colunas soterradas debaixo das madressilvas... Warsberg era insubstituível.
Aquele sorriso irónico sob o bigode fino, o cabelo ruivo, como o do inglês Middleton, aquela maneira indolente de meter a mão no bolso, aquele Alexandre alto, de uma perfeita elegância, belo e sonhador, aquele caro Warsberg...
De uma brancura ofuscante, a residência vislumbrava-se por entre os arvoredos azuis. A Imperatriz deteve-se diante do portão aberto. No terraço mais alto, quatro jovens belezas de bronze estendiam-lhe os braços, e dois centauros de mármore estavam de guarda para a receberem. Percorreu-a um frémito de prazer e começou a trepar para o jardim, como uma cabra preta.
O novo cônsul da Áustria tomava balanço para ir atrás dela, quando a condessa Sztaray, dama de companhia de Sua Majestade Imperial, lhe segurou no braço. A Imperatriz queria estar só. Sem fazer ruído, os criados pegaram nas bagagens. Constantin Christomanos, de mãos postas, caiu de joelhos. A residência era de uma perfeição absoluta.
Quando finalmente não havia mais ninguém diante do peristilo, o corcunda subiu a escadaria que levava ao jardim suspenso, desembocou no primeiro terraço e ficou estático.
A Imperatriz acariciava uma a uma as musas de mármore colocadas em frente das colunas de fuste vermelho, chamando-as pelos nomes. “E tu, Terpsícore, minha linda, como vais? Sempre de flores nos cabelos? Ah! Cá está a nossa severa Melpómene. E a minha querida Safo, a minha décima musa, tu que soubeste pôr fim aos teus dias, tu que morreste no mar, com algas nos cabelos, a minha preferida...”
A fina silhueta negra parecia flutuar por cima do chão, ia de estátua em estátua, demorava-se numa prega de pedra, tocava num queixo, aflorava um ombro... Deslizou para o lago dos nenúfares, cumprimentou graciosamente o Sátiro que tinha ao colo Dioniso menino, debruçou-se para o golfinho de bronze e, levantando as saias, correu para o segundo terraço, num nível inferior.
O corcunda seguiu-a sem ruído. Sob as palmeiras, no cimo da colina, frente ao mar, encontrava-se a grande estátua de Aquiles moribundo, da qual Christomanos via apenas o musculado dorso, as redondas nádegas, e os caracóis de pedra sob o elmo de gala de um branco cintilante. Imóvel, a Imperatriz recolhia-se diante do seu herói, com a mão pousada na flecha de mármore que lhe feria o pé; de longe, o grego distinguia a coroa de tranças, a fronte enrugada, o olhar escuro e grave.
Uma andorinha atravessou os ares, assobiando. A Imperatriz levantou a cabeça, sorriu, e acenou com a mão. “Voltei! - gritou. - Irei ver os vossos ninhos nas colunas! Cá estou eu!”
Constantin deu um passo a mais e pisou um ramo seco que estalou. A Imperatriz assustou-se, franziu a testa, e viu-o.
- É o senhor! - exclamou num tom zangado. - Não gosto de ser espiada, Constantin!
- Eu admirava o esplendor do lugar, Majestade - respondeu o corcunda numa voz suplicante. - Tão digno da proprietária...
- Não é? - deixou ela escapar negligentemente.
- E de uma tal veracidade! Antiga!
- Como a proprietária? - ironizou ela.- Vá lá! Desta vez está perdoado. Mas não torne a fazer.
No dia seguinte, permitiu que a acompanhasse no passeio ao pôr-do-sol. Inspeccionou os ninhos das andorinhas sob as volutas azuis das colunas, deu uma volta pelas roseiras e pelas piteiras e deteve-se diante de uma pequena estátua de Byron.
- Se pudesse escolher uma outra vida, gostaria de ser Byron - suspirou.
- Bater-se pela independência de um país, ajudar, na Europa, uma jovem nação a nascer, pegar em armas em Missolonghi, quando se é poeta, quando nada se tem de um soldado! E morrer jovem enfim...
- Como Aquiles na agonia... - murmurou devotamente o corcunda.
- Vossa Majestade não gosta dos heróis triunfantes.
- É verdade, só gosto dos seres que sofrem! - exclamou ela e, pensando de repente na enfermidade do companheiro, calou-se abruptamente.
- Aquiles, Byron, Safo... Tantos destinos interrompidos... Este mundo de estátuas silenciosas...
- Falta uma, caro Constantin - disse ela com um breve suspiro. - Espero o memorial do Príncipe Herdeiro. Dentro de duas ou três semanas estaremos finalmente juntos.
Apressou o passo para não mostrar as lágrimas que lhe vinham aos olhos. Porquê aquela confidência, porquê abandonar-se assim?
- Olhe aqueles rícinos em flor, além! - exclamou ela com uma alegria forçada. - Não são admiráveis aqueles tufos vermelhos?
- É preciso ter sofrido como a senhora para amar a vida a esse ponto...
- atreveu-se a dizer o grego, aproximando-se até quase lhe tocar.
Ela afastou-se e abriu a sombrinha branca.
- O senhor compreende demasiadas coisas, Constantin - murmurou.
- Já o avisei...
- Perdoai-me... Mas sucumbo à beleza, como Vossa Majestade! Apenas Vossa Majestade poderia criar um tal enlevo!
“E eu sonho com uma casinha de pescador, com arcadas cor-de-rosa e brancas, uma latada e uma laranjeira anã - pensou ela. - Quando é que ele se calará? Vai fazer com que eu me farte desta minha residência!”
Os dias passavam, tranquilos. Antes da alvorada, a Imperatriz via o Sol nascer por detrás das montanhas da Albânia. Era o melhor momento, o do acordar dos pássaros e dos primeiros voos das andorinhas. Afagadas pelos rios de luz, as estátuas pareciam acordar também, e a Imperatriz corria de uma para outra, de roupão branco. Depois, a residência saía do seu torpor e os humanos do sono, e a Imperatriz vestia-se de preto.
Os almoços decorriam na grande sala de jantar, sob o olhar dos anjinhos de gesso colocados nas paredes de um verde cor de mar. A Imperatriz contentava-se com leite de cabra, tomates, azeitonas, e não aceitava que uma refeição durasse mais de quinze minutos. A tarde começava pela lição de grego. Em seguida, ao fim do dia, passeava com ele pelos jardins da residência, sob os ciprestes por onde subiam exuberantes plantas trepadeiras.
Constantin Christomanos não aprendera a ficar calado, e não desesperara ainda de reconquistar a soberana, à força de comentários exaltados, perspicazes, e que a exasperavam. Para o desencorajar, ela recomeçou as longas caminhadas através dos campos. Armada de um copinho de ouro, bebia a água das fontes, corria atrás das cabras pelas colinas, apanhava saudades e papoilas, e dignava-se, por vezes, sentar-se em cima dos fetos, mas raramente.
Ele seguiu-a, e ficou muito cansado.
Ela teve vergonha e, para o consolar, começou a ler-lhe uma tradução de Shakespeare, de quem se dizia que tinha, na Tempestade, atribuído a ilha de Corfu ao rei Prospero. Mas quando chegou à personagem do negro Caliban, o corcunda sentiu-se visado e ficou louco de dor.
Acumulavam-se os mal-entendidos. Ele amava-a cada dia mais e, em cada dia que passava, ela feria-o um pouco mais, sem se dar conta.
Depois, o memorial do Príncipe Herdeiro chegou, num carro puxado por bois. Içaram-no até ao primeiro terraço, desmancharam o caixote de madeira, limparam a pedra branca, e a Imperatriz ficou sozinha.
Alcandorado numa coluna de fuste quebrado, um anjo de asas desmesuradas velava por um Rodolfo em medalhão. A inscrição estava em latim, Rudolfus, Coronae Princeps. Era ele, com aquele olhar ligeiramente descaído, cheio de ironia, triste como a morte. Pôs a mão na fronte de pedra, tocou no bigode frio, e ergueu os olhos para o anjo dominador. Ele não velava o seu filho morto, triunfava, esmagava-o. Com os olhos cheios de lágrimas, fugiu a correr e decidiu antecipar a data da partida.
Tudo se tornava insuportável, as estátuas, demasiado presentes e que não lhe respondiam, as alvoradas, demasiado serenas, os ciprestes, demasiado perfeitos, as flores, demasiado deslumbrantes, a residência^ demasiado branca, as andorinhas, demasiado atarefadas a alimentar os filhotes... E aquele corcunda apaixonado!
Só faltava um mês. Desde a instalação do memorial do filho, a Imperatriz chorava quase todos os dias.
O corcunda perdera a sua arrogância, já não aborrecia ninguém, e andava atrás dela por todo o lado como um cão que sente o dono prestes a ir-se embora. Ora quanto mais ele se rebaixava, mais cruel ela era. Quando ele evocava as ninfas etéreas, às quais gostava de a comparar, ela falava das pesadas mãos da massagista, e dos rolinhos de porcaria que lhe ficavam nas palmas no final de cada massagem. Assombrado, ele corava...
- O que é que julga? - atirava ela num tom trocista. - Que não tenho pele? Pensa que durante as massagens, tenho sentimentos imperiais?
No dia seguinte, ele dissertava sobre as constelações e a cabeleira de Berenice... “Lérias! Acabe com esses devaneios, Constantin!” e admoestava-o sem descanso.
Em breve ele contentava-se em escutá-la. Embebeu-o em frases, empanturrou-o de palavras, “É preciso engordar as Memórias dele”, pensava, mas às vezes, entrando no jogo, deixava-se ir, e arrependia-se depois da sua sinceridade. Então, numa daquelas reviravoltas que lhe eram habituais, ganhou raiva ao confidente que ela mesma escolhera.
- Nefelibata! - dizia ela a quem a queria ouvir. - Um sonhador etéreo! Absurdo!
Um pouco mais tarde, num dia em que ele estivera particularmente silencioso, ela declarou que com aquela filosofia, o corcunda lhe provocava náuseas. Tão alto que receou tê-lo ofendido, se porventura tivesse ouvido.
Com tudo aquilo, aparentemente, o pobre grego não dava mostras de sofrer. Mas quando voltava ao quarto, soluçava abundantemente à recordação das maldades do dia. Nos corredores, as criadas, davam cotoveladas umas nas outras ao vê-lo. Numa noite, quando, às escuras, estava a chegar ao canto das cozinhas, deparou-se-lhe um entremez representado pelos criados no pátio.
Com uma almofada atada às costas para simular a bossa, o mais baixo dos criados de quarto, de joelhos diante de uma matrona, imitava-o fingindo que falava grego com entoações efeminadas; de sombrinha ao ombro e um leque na mão, mimando a Imperatriz, a cozinheira deixou-o enfiar a cabeça debaixo das saias dela.
O pobre corcunda fugira correndo; e todas as noites, esgotados os soluços, com o coração cheio de raiva, mergulhava na redacção do diário.
Quanto mais puras fossem as palavras, mais sofreria a impura. Desejou-a sublime, tal como a conhecera ao princípio. Esqueceu os dentes escuros, a pele curtida, as manchas de velhice nas costas das mãos, as veias azuladas, apagou as desagradáveis rugas que conspurcavam a memória da amada, e levou ao extremo a imaginação do seu ideal, até ficar doente.
- Ela é como Afrodite! - ruminava. - E eu o horrendo Hefesto, o corcunda, o anão ciumento, seu marido... Apanhá-la-ei nas minhas redes, ela não o espera...
Chegou até a imaginar que, como a deusa, ela nascera do sémen disperso de um deus mutilado; leitosa, ensanguentada, ela surgia das águas de propósito para o torturar, e depois ia-se embora, lânguida, de sombrinha pelas costas, soberana do seu esplendor. Escreveu isso. Depois rasurou. Se publicasse uma coisa daquelas o livro seria apreendido pela polícia. Deixou só as últimas palavras.
Chegou o dia a que ele chamava em segredo das “nossas despedidas”. Esperava-a ao fundo da grande escadaria pompeiana, diante da estátua de uma Juno de bronze. Mais graciosa do que nunca, ela desceu lentamente os degraus, deslizando, e deteve-se a meio do caminho como para oferecer uma última contemplação da sua pessoa ao seu desgraçado e fiel seguidor. Pobre Constantin.
Com aquela voz sussurrante, segredou-lhe uma frase que ele poderia conservar na memória, “Seja feliz e abençoado”, e deu-lhe de presente um alfinete de ouro, com um l maiúsculo em diamantes, para ele usar na gravata. Ele julgou ouvir um lamento na voz imperial, inventou um olhar dolorido, e embarcou para Patras, e de aí para Atenas.
Aliviada, viu-o afastar-se a coxear; o Sol de Corfu desenhava sobre os passos do jovem uma sombra impiedosamente corcunda. Sentiu remorsos, e pensou que talvez fosse preciso escrever ao outro, ao do Grande Baile. Mas era tarde de mais... De que se queixava o leitorzito grego? Durante três anos inteiros, tivera-a só para ele.
Quando regressou a Viena, após meses de ausência, arranjaram-lhe outro professor; usava rendas, arqueava a perna e usava um perfume à base de vetiver. Suportou-o alguns dias, teve saudades do pequeno corcunda, e despediu o elegante a pretexto do seu horror aos perfumes.
Mas Viena esquecera-a. Viena não ligava às viagens da fugitiva nem aos seus professores de grego. Da Imperatriz já não se falava, a não ser nos meandros de uma frase sobre cerimónias oficiais. “Hoje, como todos os anos, Sua Majestade conduziu a procissão do Corpo de Deus, na ausência da Imperatriz.” Desapareceu das conversas dos três amigos; Franz continuava a ler os jornais à procura das mais pequenas notícias da Corte, mas só encontrava os últimos ecos das actividades do Imperador.
Numa noite de 1894, pondo fim a trinta e seis anos de amuo imperial, Sua Majestade decidiu prestar homenagem ao antigo revolucionário Johann Strauss.
Foi um evento considerável. O maestro celebrava o quinquagésimo aniversário do desafio que lançara a seu pai, uma bela noite, no casino Dommayer; para Franz era uma recordação da adolescência. O barão cigano entrou solenemente no Staatsoper, a Ópera de Viena; Johann Strauss via finalmente abrir-se para si o santuário do repertório. E quando o pano subiu, o público pasmado avistou de súbito o Imperador em pessoa. No fim da representação, Sua Majestade teve algumas palavras amáveis, garantiu que, “daquela vez” não tinha tido vontade de sair, e felicitou Johann Strauss pela sua bela ópera. O maestro não cabia em si de contente. O Imperador falara de ópera! A imprensa fez eco disso.
- Mas ele não percebe nada! - espantou-se Franz. - Será que ele é capaz de distinguir uma opereta de uma ópera?
- Ah! É preciso ter em conta toda a influência da boa da Schratt - comentou gravemente Willy. - Não era a nossa Imperatriz que pensaria em tais amabilidades musicais!
Eis no que se tornara o dominó amarelo do Grande Baile de Máscaras: retórica vienense, perfídias na boca de Willibald Strummacher. Franz tinha ouvido tantas coisas que já nem sequer encolhia os ombros. Seria agora ele o único a lembrar-se dela? A desconhecida deslizara de uma imperceptível presença para uma fórmula tão banal como as previsões de chuva ou de sol:
Com a excepção da direita, dos cristãos-sociais e de Willy, ninguém se lembrava de se sentir indignado. Na ausência da Imperatriz, o Império tacteava à procura de uma difícil equidade entre os Eslavos e os Húngaros, que ela também abandonara. Na ausência da Imperatriz, o Imperador debatia-se entre a inquietante progressão dos pangermanistas, a do partido dos “Jovens Checos” - uns irreductíveis -, menos cómodo que o partido dos “Velhos Checos”, com quem era sempre possível encontrar compromissos. Na ausência da Imperatriz, o Imperador autorizou o governo a preparar uma reforma eleitoral, no termo da qual ele abençoaria a instauração do sufrágio universal. Na ausência da Imperatriz, que se cansava da sua residência de Corfu, as montanhas dos Balcãs, a algumas milhas de distância da ilha verdejante, continuavam a atiçar as brasas do incêndio. Na ausência da desconhecida do dominó amarelo, o planeta continuava a girar.
O MILÉNIO DA HUNGRIA
Outrora cavalgava sem descanso por ali
Nem a areia branca dapuszta era infinito que bastasse.
Elisabeth
Vamos lá, toca a despachar - resmungou Franz do alto da plataforma, içando a última mala. - Emmy! Não te demores, por favor! A jovem não tinha pressa. Atava, com toda a calma, as fitas do chapéu de palha e mirava o seu reflexo na superfície do vidro. Atrás dela, Attila esperava, de cesto na mão, que ela se dignasse finalmente subir para a carruagem.
- Emmy, está na hora, acho eu - murmurou ele, embaraçado. - O teu pai impacienta-se. Não o faças zangar, vá lá!
- O que é que acha destas fitas azuis, tio Attila? - perguntou ela dedicando-lhe o seu mais gracioso sorriso. - A família bem pode esperar...
- Então quando é que isso acaba? - vociferou Franz baixando o vidro. - Estamos só à vossa espera! O comboio parte dentro de dez minutos!
Emmy voltou-lhe as costas e deitou a língua de fora; só Attila é que viu e reprimiu um sorriso. De súbito, ela chamou um vendedor ambulante, de cafetã preto, que apregoava as suas mercadorias ao longo do cais. Da caixa que trazia pendurada ao pescoço o homem retirou umas violetas de seda, três cerejas, e umas fitas escarlates, e depositou-lhe tudo na palma da mão.
Os olhos de Emmy faiscaram.
- Decididamente o azul não fica bem-disse ela em voz baixa. - Tio Attila, compre-me estas fitas vermelhas, estas aqui, e também as cerejas... Depressa!
Attila deitou uma olhadela para a janela do comboio, Franz estava a olhar para outro lado, o húngaro levou a mão ao colete, tirou uma nota que enfiou na mão do vendedor. “Dê-me tudo isso, vá - murmurou.- E guarde o troco.”
- O que é que foi agora? - gritou Franz da janela. - Que enfeites são esses? Ela enrolou-te, Attila! Um pouco mais de autoridade!
- Basta, pequena - sussurrou o húngaro e impeliu-a para o degrau, com uma palmada abaixo da cintura.
- Tio Attila! Magoou-me! - gritou ela desatando a rir.
Ao vê-los entrar no compartimento, Anna franziu a testa. A filha tinha os olhos demasiado brilhantes; num gesto rápido, tirou o chapéu de fitas azuis, que já não se segurava em cima daquela crespa juba. Sacudiu a cabeleira preta e pestanejou; com enlevo, a mãe contemplou o suave contorno das faces claras, e as covinhas que apareciam quando sorria. Nada era mais bonito que a sua pequena Emmy; também nada era mais vulnerável.
Attila estendeu-lhe o cesto com um ar embaraçado; quando se instalou no banco, Emmy levantou a saia acima das botinas brancas, “Uf! que calor que está aqui!”, e empurrou o irmão, sentado a seu lado.
O adolescente, mergulhado num livro, protestou sem convicção. Toni acabava de completar dezasseis anos; estava a ficar um rapaz alto e um pouco tímido, a quem a petulância da irmã reduzia ao silêncio. Era aplicado e sonhador, e reservado também; a maior parte das vezes, isolava-se no quarto, onde dizia estar a escrever poesia, e apenas Anna o levava a sério. Excepto na cor do cabelo, Toni não se parecia nada com o pai; mas a paixão pela leitura, e aquele ar meditabundo que sempre tinha, mesmo até para comer os arenques que adorava, tudo lhe vinha do antepassado, o avô Simão, o hasside de Sadagora. Anna teria gostado de o ver com os compridos canudos da tradição dos judeus polacos, tanto mais que era louro, de olhos cinzentos um pouco salientes, um olhar dos mais inspirados. E quando fazia serão até tarde, Anna subia para o chamar à razão: “Agora tens de te ir deitar, meu pequeno rabino”...
Como de costume, a irmã estava pois a empurrá-lo... Para ser perdoada, Emmy depôs um grande beijo na face imberbe do irmão, que se limpou discretamente. Depois, voltando a sua atenção para o raminho de flores de seda, atou as violetas e as cerejas com um grande laço vermelho que tratou de enfunar aplicadamente. As botinas e o saiote haviam permanecido bem à vista. Incomodado, Attila sentou-se timidamente, de olhos fixos nos pés da rapariga.
- Baixa a saia Emmy - disse Anna em voz átona.- Já não és nenhuma garotinha.
- A propósito, Anna, com a tua permissão, preferia que ela deixasse de me chamar “Tio” - murmurou Attila. - Quando era pequenina, era engraçado, mas agora... Não sou assim tão velho, apesar de tudo! Com quarenta anos!
A frase de Attila ficou a pairar no silêncio. Franz acendeu o cachimbo e contemplou o amigo com um ar rabujento. Toni, que comia um pastel, deixou-o cair no chão o que desviou, felizmente, as atenções; um apito soou no cais e o comboio arrancou, lentamente. O trajecto demorava quatro horas e quarenta, exactamente. “Locomotiva saída directamente das oficinas de mecânica da Hungria” observou doutamente Attila.
Dois meses antes, tinham decidido ir a Budapeste para assistir ao início das cerimónias do Milénio da Hungria. 1896 era um grande, um belíssimo ano; no Império tudo corria bem, principalmente na Hungria, e o drama de Mayerling começava a ser esquecido.
Há muito tempo já que Attila gabava aos amigos os encantos da cidade, a nobreza de Buda implantada nas colinas, a amplidão do rio, os seus meandros, e a animação de Peste, que estava sempre a mudar; Viena, em comparação, estava a ficar entorpecida. E se se quisesse reencontrar a atmosfera febril da construção do Ring, os bons tempos, era preciso ir a Peste, principalmente naquela altura. Ou-trora, a viagem seria uma interminável epopeia, mas com o comboio não havia desculpas! Fazia-se num dia. Attila mandara preparar dois quartos em casa de sua velha mãe, um para as crianças, outro para os amigos; elaborara minuciosamente o programa, em suma, a excursão anunciava-se maravilhosa e, ainda por cima, a Primavera ia linda.
Anna, que envelhecia um pouco, acabara por aceitar por causa de Attila. Franz não hesitara um segundo; viver em Viena sem conhecer a Hungria! Haviam ido apenas algumas vezes à outra margem do Leitha, não muito longe, fazer piqueniques à beira do lago Fertõ, chegando, no máximo, até ao vasto castelo amarelo dos Esterhazy. Mas não era suficiente. Franz insistira para ver aquele famoso fenómeno, que Attila dizia não poder ser explicado, aquele delibab enigmático, mas era mais para Leste, nas vastas extensões de estepes percorridas pelos cavalos em liberdade.
Quanto a Emmy, que completara vinte anos, sempre tivera bicho-carpinteiro. Era isso mesmo que preocupava a mãe. Porque de há algum tempo àquela parte, Attila andava à volta da pequena, com tantas atenções e solicitude que era preciso ser cego como Franzi para não perceber nada. O tio Attila estava apaixonado por Emmy. Anna perguntava a si mesma se aquela expedição não teria sido congeminada para a apresentar à velha senhora Erdos, e se Attila não iria pedir-lhe a filha em casamento, irreflectidamente.
E andara com ela ao colo! E ela, a desmiolada, que só sabia cantar! Uma criança que nada sabia do amor, e que aceitava logo, sem perceber bem, só para ser senhora! Anna pôs os óculos e tirou da malinha o livro que começara a ler. Toni adormecera, e Emmy, de nariz colado ao vidro, via desfilar os subúrbios da cidade.
- Em todo o caso, é pena que Willibald não tenha podido vir - declarou Franz, pensativo. - Achas que ele tem a mãe realmente doente?
- Claro que não - respondeu Attila. - Reparaste como estava com ar contrafeito? Estava a mentir!
- Está enganado, ele não mentiu - observou Anna tirando os óculos. - Está muito mal, a mãe dele. Fui vê-la.
- Como assim? Não me disseste nada! - indignou-se Franz.
- Porque ele não queria - prosseguiu Anna de mansinho. - Sabiam que ele mudou de casa? Vive agora em dois quartos modestos, ao fundo de um pátio miserável; tem vergonha...
- Imbecil! - exclamou o húngaro. - Então, a herança, depois da morte do pai...
- Histórias - disse Anna. - Não ficou com nada.
- E a noiva rica, no Tirol, a última - perguntou Franz - existe tanto como as outras, aposto...
- Isso não sei - murmurou Anna baixando os olhos. - O certo é que me levou a ver a mãe, que já não pode andar. Está entrevada. Sem ele...
Os dois amigos ficaram um instante calados.
- Isso não obsta - disse Franz. - Se ele fosse menos orgulhoso, entre nós, poderíamos ter arranjado as coisas!
- Não penses nisso! - replicou o húngaro. - O Milénio revolta-o; bem sabes que ele é pangermanista antes de mais nada... E depois é demasiado gordo, falta-lhe o ar, cansava-se depressa. Vá lá! Não tenhas pena; no fundo, ele detesta os húngaros. Ainda nos zangávamos, ele e eu. E tu também.
- Enquanto ele não aderir aos cristãos-sociais... - proferiu Franz.
- Já aderiu, Franzi - murmurou o húngaro. - Gosta demasiado de ti para to dizer, mas encontrei-o uma noite destas com uns estudantes, sabes, daqueles com cicatrizes heróicas, à saída de um meeting daquele porco do Lueger.
- Outra vez! - exclamou Franz. - Impossível! Willy deixou de ser anti-semita, jurou-mo mais de mil vezes!
- Aí é que tu te enganas, Franzi - disse gravemente Attila. - Gritava: “Fora com os judeus!” Como os outros. Ele não me viu. Está perdido. E depois, a atracção da juventude... Lueger é esperto; fala de renovação, de mudança, de movimento popular, arma-se em generoso, tu conheces Willy! É um grande palerma. Não se limita a cair nas esparrelas, enterra-se nelas! E com essa história do social, engole o veneno de Lueger, a purificação da Áustria, a podridão do sangue estrangeiro, os Nibelungen, Wotan e...
- Eu vou falar com ele - replicou Franz com violência. - E tu também Anna, estás a ouvir? Ele adora-te. Hás-de chamá-lo à razão.
Anna não respondeu
Três dias antes, Willy suplicara-lhe que fosse ver a mãe; estava preocupado, e o médico - “Um médico judeu, Anna, desculpa, mas é muito novo, não me diz nada, tão peremptório, tão arrogante...” - resumindo, Willy não tinha confiança nele.
Acompanhara-o através das ruas escuras, onde as prostitutas pobres mostravam os seios nos vãos das portas; ao passarem, elas chamavam Willy pelo nome - todas o conheciam. Willibald, com ar comprometido, arrastara-a correndo. A senhoria também o chamara familiarmente, uma mulher de certa idade, de formas generosas, uma certa senhora Grentz, ou Frentz, uma tagarela impenitente, de olho a luzir de curiosidade.
No quarto andar de um prédio degradado, a mãe de Willy, presa a uma poltrona, respirava com grande dificuldade. Obesa, faltava-lhe constantemente o ar, como outrora à senhora Taschnik. Anna segurara durante muito tempo aquelas mãos leves, beijara-as, à falta de melhor; administrara-lhe o xarope contra o enfisema, a velha senhora adormecera e Anna saíra devagarinho. Acontecera então uma coisa espantosa: na sala ao lado, o gordo Willy caíra de joelhos diante dela, beijara-lhe os joelhos através da saia, balbuciando frases soluçadas: “Só tu, Anna, amo-te desde o primeiro dia, salva-me, só tu o podes fazer, estou tão só...”
Fazia tanta pena que ela afagou-lhe a cabeça em vez de se zangar. “Então, então, Willy, acalma-te...” Por fim erguera-se a fungar, e beijara-lhe os pulsos: “Não digas nada a Franzi... É... Enfim, é nervoso. Se não fosse o Franz... Contigo, a minha vida teria sido diferente... Percebes, depois - acrescentou com um olhar para a sala onde a mãe dormia - depois caso-me, é claro, mas por agora...”
A ela nada dissera sobre a noiva do Tirol. A eterna noiva, eram as prostitutas da rua. Chamar Willy à razão? Ele não percebia nada, era simplesmente infeliz. Willibald era o Schnorrer de Anna, essa personagem familiar do universo iidiche da aldeia do avô. Um saltimbanco, um jornal ambulante, um parasita solitário que fazia de palhaço para encontrar um pouco de afecto. É claro que se soubesse o que Anna pensava dele, Willy ter-se-ia insurgido: ele, um Schnorrer judeu? Ele, o padrão da pura Alemanha? Teria sufocado de raiva, e contudo...
Chamar Willy à razão? Era bem vienense. Sentimental como uma gata, dissimulado e orgulhoso, egoísta e desesperado. Aliás era mais ou menos isso que Attila dizia naquele momento a seu marido: “A gente chama-o à razão e ele vai na mesma. É o que eu te digo, está perdido.”
- Felizmente o Imperador não arreda pé - suspirou Franz. - Enquanto ele mantiver o veto a esse pavoroso demagogo...
- Sem contar que Lueger acaba de nos queimar no parlamento! - disse o húngaro. - Os judaico-magiares estão a apodrecer a sua Áustria, eu bem ouvi, não sou surdo. Se ele pudesse exterminava-nos todos!
- Todos quem? Os judeus, os Húngaros, os Eslavos? É muita gente; é um louco. Nunca será presidente da Câmara de Viena.
- O belo Karl é muito bom orador, é muito popular - observou Attila. - Aposto que acabará por ganhar. Lueger vai ser presidente da Câmara de Viena.
- Não estás a falar a sério! Os Habsburgo, renunciarem ao liberalismo? Ficarem com o Império ameaçado dando liberdade aos Borussos, esses sequazes dos Prussianos? Privarem-se do apoio dos judeus? Suscitarem a rebelião dos Eslavos? Não, não corremos esse risco. Temos um bom Imperador.
- Se ele mantiver até ao fim o veto, Franzi - murmurou Anna sem levantar a cabeça.
- E se falassem de outra coisa? - reclamou Emmy. - A política, sempre a política... Aborrece-me. Tio Attila, fale-me antes dos cafés de Budapeste. Por favor.
- Bom... - começou logo o húngaro que se pôs a descrever os encantos dos botequins do bairro Cristina, os pêssegos, o vinho novo sob as árvores, noite fechada. - A noiva de mármore era a mais reputada.
- Mas isso são botequins como na nossa terra - protestou Emmy. - Eu quero dizer os cafés, tio Attila!
- Então é o Gerbeaud, sem dúvida nenhuma.
- E os hotéis?
- Soberbos! Os que foram construídos para o Milénio até têm electricidade, os outros, estão a ser destruídos, eram muito velhos...
- E os banhos?
- Ah! Depende! Os de Taban, por exemplo, são muito mal frequentados!
- A propósito, tio Attila, e O Gato Azul?
- Emmy! - ralhou o tio Attila. - Queres fazer o favor de te calares?
- Ora! Quem é que me jurou ter visto lá o Príncipe de Gales? - clamou a jovem. - Não foi o senhor?
O húngaro voltara a corar, e continuou descrevendo as delícias da Rua Vaci, que não tinha igual, a elegância das damas, o seu porte - e lojas de Paris, mas verdadeiras! Não como em Viena.
Foi a vez de Franz sonhar virado para a vidraça. O comboio percorria uma paisagem de planícies e charcos escuros, e fazia fugir rebanhos de gansos grasna-dores. E enquanto o bom do tio Attila conversava com a filha, Franz pensava que em Budapeste, com um pouco de sorte, a Imperatriz mostrar-se-ia.
Não a via desde o casamento da arquiduquesa Maria Valéria, no dia em que estava pálida como uma hóstia, havia já seis anos. Seis anos durante os quais ela quase desaparecera. Ao princípio, os jornais tentaram segui-la, a Imperatriz acaba de chegar a San Sebastian, está em Lisboa, em Gibraltar, em Oran, em Argel... Passou por Ajaccío, não, está em Nápoles, demorou-se em Corfu algumas semanas, volta a partir - parece que quer dirigir-se às Américas, mas o Imperador recusou.
Ao fim de alguns meses, Franz decidira consagrar um mapa inteiro aos périplos da desaparecida: numa página dupla, no atlas geográfico, fora marcando, cuidadosamente, a vermelho as cidades, e até tentara desenhar, a azul, o percurso do barco cujo nome conhecia: o Chazalie, a menos que fosse o Miramar. No Chazalie ela adoptara um nome inglês, Mrs. Nicholson, vá-se lá saber porquê, mas no Miramar passara a ser a condessa Hohenembs; um dia destes ainda havia de aparecer com o nome de Mme. Bourbon, quem sabe? Ou então Valide Sultana, já agora, por provocação.
No primeiro ano, contara: na Hungria passara um mês, em Viena, uma semana. A imprensa falara muito da sua aparição na Corte, de luto pesado, um espectáculo tão comovente que as senhoras haviam chorado, certamente um pouco em demasia, porque não a tinham voltado a ver. No segundo ano a imprensa perdera a coragem. De tempos a tempos eram evocadas as curas em Carlsbad, em Genebra. Passara bastante tempo em Gõdõllô - era tão próximo de Viena que toda a gente ficava mais tranquila - quando é que foi? No ano anterior? Ou seria no outro ano?
Já não sabia, baralhava-se, partira de novo para o Cairo, para Atenas, sabe Deus para onde... O atlas permanecera fechado. Já ninguém falava da loucura dos Wittelsbach, pela excelente razão do caso estar arrumado: e se a Imperatriz corria mundo, era uma prova suplementar, se necessário fosse. Quando um Habsburgo nascia, ela adoptava durante um dia a pose de avó, depois sumia do mesmo modo que aparecera. “Na ausência da Imperatriz”, o Imperador permanecia sozinho.
Uma vez, uma única, Willy ainda implicou com ele: “Então, a bela Gabriela?” “Ora!” suspirou Franz. E foi tudo.
Mas todos os anos, pelo aniversário do Grande Baile, enviava duas cartas escritas pelo seu punho. Uma, para a posta-restante de Munique, para Gabriela, com um coração, mal desenhado, a deitar uma lágrima de tinta violeta; a outra, para a Hofburg, um simples cartão de visita, com lembranças e respeitosa dedicação, para “Sua Majestade Imperial e Real, a Imperatriz Elisabeth...”
As doze cartas tinham ficado sem resposta. Talvez Gabriela já não passasse por Munique; quanto à Imperatriz, o correio não chegava até ela, e pronto. A maior parte das vezes resignava-se: Elisabeth ou Gabriela, húngara ou Imperatriz, enamorada ou mentirosa, ou ambas as coisas, jamais saberia. Mas quando o céu ficava um pouco mais azul, quando o sopro quente do foehn1 enchia de febre as ruas de Viena, vinha-lhe então à memória o adorável demónio, o delicioso movimento da valsa, e um certo ar de mocidade ao qual ele não renunciava.
Em seis anos perdera ainda mais cabelo; mas desde a história da fotografia, tivera realmente mais cuidado. Andava de bicicleta, às vezes até se dava ao trabalho de ir de Hietzing a Ballhausplatz a pé, duas boas horas, e depois continuava a caçar pelos campos - pelo menos fazia de conta. Enfim, se por milagre ela e ele se encontrassem frente a frente, ele estava apresentável. Obstinadamente, apesar das súplicas de Anna, recusara cortar as patilhas. Sabe-se lá o que podia acontecer?
Punha-se a imaginar. Com a sua graciosidade inimitável, ela dava-lhe a mão a beijar, exclamando docemente: “Senhor Taschnik! Finalmente!” Ou melhor ainda: “Franzi! Meu caro pequeno...”
A locomotiva apitou, Franz sobressaltou-se. “Estou a ser ridículo”, resmungou.
- Ridículo? - perguntou Attila. - De que é que estás a falar?
- De nada - rosnou Franz. - Estava a pensar em Willibald.
1 Vento do Sul, quente e muito seco, frequente na Primavera e no Outono e que sopra nos vales alpinos. (N. daT.)
Desde o Outono que a Imperatriz não ia à sua bem-amada Hungria. Passara alguns dias em Gòdõllõ, só o tempo de ver cair as folhas e de visitar as cavalariças, quase vazias.
Os puros-sangues haviam sido vendidos; restavam apenas os velhos animais sem valor, que ela conservava por fidelidade. Red Rose, o alazão dourado, Sarah a irlandesa, Miss Freney a boa caçadora, e Buszke, o alazão cor de cereja, tinham desaparecido... Niilista morreu durante a sua estadia, e ela fugiu logo. Para Carlsbad, com a nova dama de companhia, a condessa Sztaray, depois para Corfu. Por todo o lado só via fantasmas, Elise a cavaleira, de dedos poderosos e boca firme, Sarah, de dorso fremente, o pobre Rustimo, e até mesmo o pequeno corcunda tão indiscreto... Quanto aos vivos, viviam de mais.
À ideia de refazer passo a passo o caminho da coroação, vinham-lhe náuseas. É certo que o cortejo oficial atravessaria o rio, iria de Buda até Peste, desceria da colina para a ruidosa planície; a coroa dos Reis da Hungria seria transportada - cerimónia inédita - da igreja Mathias ao novo Parlamento, cuja cúpula gótica nem sequer estava ainda terminada. Mas do castelo à igreja nada estaria mudado. Nada? Não. Ela, e os Húngaros, talvez.
A multidão que a aclamaria estaria vinte e nove anos mais velha, os jovens daquele tempo estariam velhos, ela também, e ninguém sabia se os filhos deles teriam o fervor dos dias felizes. Andrassy já lá não estaria para a encorajar com o olhar; em Budapeste já não conhecia ninguém, aliás Peste era de uma modernidade atroz, grandes edifícios e cariátides, tal como em Viena, a bem dizer. O Danúbio talvez tivesse conservado a majestade. E depois seria preciso de novo estar em pé e sorrir - não!
Não, não era capaz. Nem mesmo em Budapeste. Esperavam dela o fim do interminável luto, pois bem! Continuaria a vestir-se de preto, passara a ser uma segunda pele. Queriam olhá-la e desejavam lamentá-la - não lhes daria o prazer de chorar. Mas para lhes mostrar que continuava a amá-los, escolhera um vestido justo, inteiramente bordado a azeviche, com um decote subido e mangas largas em cima e apertadas no punho, à última moda, uma maravilha negra, sem concessões. Até mesmo o leque, desta vez, era preto.
Quando a coroa de tranças ficou pronta, puxou para baixo a curta franja que lhe escondia as rugas da testa, quatro, às vezes cinco, já profundas. Depois tufou as grandes mangas do vestido, inclinou a cabeça para o lado, e achou que não estava muito estragada; enfim, a pele, mesmo assim, sofrera muito, ao canto dos olhos. Pegou no leque, era de tafetá, simples, enfeitado com um monograma no cabo de ébano... Bruscamente, veio-lhe à memória O Grande Baile de Máscaras.
Com excepção do monograma, o leque perdido à saída da Sala de Música era exactamente como aquele. Não voltara a pensar no seu jovem desde a expulsão do corcunda, e nem se apercebera disso. Inundou-a uma onda de calor; a idade torturava-a. Contra aquelas quentes invasões, a derrota era inevitável.
Correu a abrir as janelas e avistou a mole humana que a esperava. Precisava de água, depressa, água. - Xarope de fruta? - perguntaram os lacaios solícitos. - Não! - gritou ela.
Era assim a vida dela: queria água, acrescentavam-lhe açúcar. Demasiado açucarada, aquela existência. E aquele formigueiro lá fora, na praça. Estava na hora. Era preciso enfrentar a provação.
Uma vez instalada no fundo da caleche, contraiu-se; o Imperador prendeu-lhe a mão, a que segurava o leque, como para a impedir de se esconder. Respirou fundo, prometeu a si mesma fazer um esforço, tentou descontrair-se, os cavalos avançavam, ouviram-se os primeiros gritos: “eljen erzsebet!”
Como outrora. O afluxo de lágrimas foi tão violento que ela não aguentou, libertou a mão, o leque abriu-se, ela deixava de existir. O Imperador soltou um suspiro, e deu-lhe umas palmadinhas no ombro. Dele, dele apenas, não podia esconder o pranto. Atrás do leque, mal ouviu os gritos enfraquecerem lentamente, e a alegria transformar-se num murmúrio de desilusão. Manter-se inacessível aos Vienenses, compreendia-se, mas também a eles? Era de mais. Que se mostrasse!
Impossível, pensava ela desnorteada, e no entanto queria, não posso mais. Pensou mil vezes em baixar o leque, e mil vezes durante o percurso a mão recusou obedecer-lhe. Eles continuavam a gritar, misturavam confusamente os vivas ao Rei, com o lastimar a Rainha, o orgulho e a compaixão, a glória e o luto. - Oh! Continuavam tão sensíveis como dantes, aqueles seus Húngaros. Pensou no delibab das estepes, nas maravilhas flutuando no ar vibrante, nas cegonhas, nos gansos bamboleando-se pela erva quente...
Vamos lá, naquela esquina além, antes da igreja, fecho este leque, pensava, já fechei um bocadinho, vou conseguir... Mas não! Os cavalos já tinham virado.
Deixou de lutar. Entrou com a máscara na nave, sentou-se sob o dossel real, com a máscara, recebeu as homenagens dos magnates, com a máscara, e acabou por se resignar. O leque estava enfeitiçado; e a Hungria, desapontada.
Anna, desapontada, lamentou-a; Emmy achou-a admirável; Toni aborreceu-se de morte; Attila esteve quase a criticá-la, mas Franz calou-lhe a boca.
A senhora Erdos morava por detrás do castelo, numa residência antiquada, cujo revestimento - de um amarelo imperial - fora refeito para a ocasião. Envergonhado, Attila pedia desculpa por tudo, pelo poço enferrujado do pátio, pelas ervas daninhas, pela vetustez das camas, aliás mudar-se-iam em breve para um palacete moderno, do outro lado, no bairro da Universidade.
A velha senhora, apoiada na bengala, recebeu-os de pé como uma rainha, pegou no queixo de Emmy para a examinar de perto, “encantadora, decididamente”, e beijou-a sem ninguém esperar. Anna desconfiou; Attila não parava quieto. “A reverência, Emmy” murmurou ela, forçando-a a inclinar-se.
Nessa mesma noite, o húngaro insistiu com eles para os levar às colinas de Buda, de onde se viam as iluminações, do alto do Bastião dos Pescadores. Anna e Emmy, debruçadas nas muralhas, pareciam duas primas; num banco, um pouco mais longe, Toni mergulhara nos seus pensamentos. Attila chamou Franz à parte e, pela primeira vez, falou em casar com Emmy.
De resto, preveniu Attila, a pequena já dissera que sim.
Engasgado, Franz lembrou-se do exame da velha condessa, da reserva de Anna, da exaltação da filha e das suas revoltas. Resistiu, evocou a diferença de idades.
- Vinte e quatro anos? Uma miséria, quando se ama - respondeu Attila enchendo o peito de ar.
... Emmy teria um dote, é claro, mas não se podia esperar...
- Por quem me tomas - murmurou Attila zangado.
... Em todo o caso, a idade, Attila tinha um passado carregado, as Ruças, Emmy era ainda muito nova, muito inocente...
- Achas que sim? - insinuou o húngaro negligentemente.
... Bem! Ela queria cantar, quanto a isso era preciso tomar uma decisão.
- A última Ruça também era cantora - disse Attila. - Pensei em tudo.
- Deixa-me reflectir - concluiu Franz. - Anna...
- Neste mesmo instante, ali, mesmo à tua frente, Emmy está a contar-lhe - atalhou o húngaro. - Meu palerma.
- É uma conspiração! - bradou Franz, furioso.
- É, mas afectuosa - respondeu Attila. - Quem, melhor do que eu, poderia tomar conta da nossa querida Emília? Vi-a nascer. Serei mais do que um marido, serei um segundo pai! Aliás, aqui entre nós, Franzi, não tens alternativa. Emmy sabe muito bem o que quer; é tua filha, afinal, teimosa como tu... Tu não opuseste resistência à tua mãe, outrora?
Franz não insistiu mais. Anna e Emmy voltavam, ternamente enlaçadas. Toni juntou-se-lhes, e garantiu que tinha adivinhado tudo, há muitos meses.
Quando já estavam deitados, Franz e Anna conversaram durante muito tempo. Porque, se não tinham dúvidas sobre a seriedade de Attila, não tinham muitas certezas acerca da filha. - Percebes, ela é muito mais alta do que ele - disse Franz. - Mais alta pelo menos uma cabeça.
- Se forem morar para Hietzing - disse Anna - poderei vigiá-la um pouco... Ela é um bocado cabeça no ar, a nossa Emmy.
- E achas que eles já... Enfim, não sei como hei-de dizer... - ousou Franz timidamente.
- Os tempos mudaram, Franzi - respondeu Anna. - Sobre esse ponto, ela não me quis dizer nada.
E bruscamente desatou a chorar, disse que a culpa era dela, das suas ideias progressistas, Emmy tivera liberdade a mais, e agora... Os soluços de Anna não paravam. Por mais que Franz a abraçasse, a beijasse, a embalasse, o resultado era o mesmo; sufocou e desfaleceu. Para a fazer voltar a si, foi preciso esbofeteá-la com força.
- A vida está a desfazer-se, Franzi - dizia ainda ela. - Emmy vai perder-se, olha para Willy, está a dar cabo de si, o futuro é mau, Franzi, e tu, tu não vês nada! Até a Imperatriz, aquela estátua negra por detrás do leque, traz desgraça! Tu, é claro, com esse teu espírito de valsa...
- Tu exageras tudo - suspirou Franzi. - Estás a esquecer-te que temos o Toni...
- Também ele há-de ir embora!
- Attila vai fazer Emmy feliz...
- Se ela ficar com ele! - gritou Anna.
- E quanto à Imperatriz, deixa-a em paz, pobre mulher.
- Ave de mau agoiro - proferiu Anna com dureza. - Assusta-me.
Com tudo aquilo, Franz ficou zangado e, virando-lhe as costas, enterrou a cabeça na almofada. “Espírito de valsa ou não, é preciso é dormir.”
Sentada debaixo do edredão, de olhos esgazeados, Anna fitou durante muito tempo a claridade que vinha dos candeeiros e se infiltrava através das portadas da janela. De vez em quando, Franz proferia, meio a dormir: “Deita-te lá, Anna, amanhã é outro dia”, depois simplesmente: “Anda lá.” Finalmente começou a ressonar e ela, desesperada, procurava o futuro no escuro do quarto.
Tinham decidido regressar a Viena num barco movido a pás, que levava dois dias para subir o rio. Para além de se ir devagar, passava-se em frente da ilha Margarida, seguia-se ao longo de margens românticas onde se alinhavam vinhas, hortas e casinhas de madeira, em suma, era delicioso, e mais barato do que o comboio da Companhia.
Anna instalou-se no convés, com um livro; a seu lado, Toni escrevia furiosamente num pequeno caderno. Franz lia o jornal; quanto aos noivos, arrulhavam, Emmy principalmente, que obrigava o pobre Attila a pegar-lhe na mão, em seguida na cintura, como uma vulgar camponesa.
O húngaro ficou chocado, depois encantado, aquela mocidade revigorava-o. “O decoro, tio Attila? Mas pouco me importa!” - gritava ela rindo. - “Quando deixarás tu de me chamar tio - suspirava ele corando. - Sou teu noivo, quase teu marido!”
- É carinhoso, um tio - respondeu ela, outra vez séria. - E depois sempre o conheci assim. Não, não, marido ou não, serás sempre o meu tio Attila.
E ele, enleado naquela teia de hábitos, ria estupidamente sob o olhar dos amigos.
- Estás a ouvir, Anna? - murmurou Franz. - Ela vai fazer dele o que bem quiser. Mas onde aprendeu ela aqueles modos? A mão na cinta, em público! Anna! Não me estás a ouvir! Que diabo é que tu andas a ler?
- O Estado judaico - respondeu Anna sem levantar os olhos. - De Theodor Herzl. Saiu o ano passado, não te lembras?
- Herzl? - perguntou Franzi num tom dubitativo. - Não sei... Era correspondente de imprensa em Paris, não era? É esse?
- Ele diz que todo o judeu traz em si o sonho de um Estado Judaico - disse Anna tirando os óculos. - Que basta de judeus de gheto, de judeus de dinheiro, de falsos judeus e de verdadeiros, e que um dia os judeus constituirão uma verdadeira nação. Estás a ver, Franzi, aqui está uma ideia.
- Tretas! - atalhou Franz. - E porque não um Estado eslovaco? Ou então um Estado checo? Ah! Já me esquecia do Estado da Bukovina, perdão, minha cara...
- E seria o fim do Império austríaco, Franzi - suspirou ela - bem sei. Justamente. Mas este homem estranho diz também que é preciso começar pelo sonho. Não tem perigo. Uma vez que se trata de sonho e de ideal. Não tens tu um sonho só teu, bem secreto, e que nunca contaste a ninguém, nem sequer a mim?
- Oh! - resmoneou Franzi - talvez, mas então, anódino... Enquanto que um sonho de Estado! Esse Herzl perdeu o juízo. Eu percebo! Ele estava em Paris durante aquele processo, aquele caso horrível, aquele erro judiciário, com aquele tenente-coronel, aquele, tenho o nome debaixo da língua, como se chama ele?
- Dreyfus - disse Anna - e era apenas capitão. Está a cumprir uma pena de trabalhos forçados.
- Pois! Em Paris, Dreyfus condenado, Lueger é eleito em Viena, foi isso que pôs esse teu Herzl maluco - atalhou Franz, peremptório. - Não é com sonhos que se combatem os anti-semitas! É preciso seriedade, firmeza...
- E um bom Imperador - suspirou Anna. - Mas ele não tem sorte com os sucessores. O irmão, Carlos Luís, morreu, e o filho dele, o novo herdeiro do Império, não me agrada. O arquiduque Francisco Fernando tem todo o ar de um provocador! Não será ele que nos há-de salvar da extrema-direita e dos cristãos-sociais! Talvez seja preciso irmo-nos embora um dia, quem sabe?
- Preocupas-te demasiado - murmurou Franz pegando-lhe na mão. - Sempre a magicar.
- Também é verdade que este Herzl profetiza uns aviões que funcionarão sozinhos - continuou ela sem o ouvir. - Diz-se que desagradou aos rabinos, aos partidos; parece que tomou umas posições incríveis, quase como se fosse um messias... Sabes? Também lhe chamam o Rei dos Judeus! É um inspirado...
- Um Rei, vejam lá - resmungou Franz. - Judeu por judeu, preferia Heine. Ele ao menos batia-se pela revolução. Enfim, Herzl agrada às damas! Porque se bem me lembro, ele é bonito, o animal, não é?
- E se um dia eles decidissem exterminar-nos a todos ? - murmurou Anna, de olhar fixo.
- Ora, mamã - atalhou Toni que não dissera uma única palavra. - Esses terrores já não se usam. Deixa a mocidade mudar o velho mundo, e a toupeira da Razão cavar a história.
Toni não desgostava da ênfase; o pai fuzilou-o com os olhos.
Franzi encolheu os ombros e mergulhou na leitura. O jornal descrevia, com grande abundância de pormenores, a última cerimónia oficial do Milénio, na igreja Mathias, com os dignitários e os magnates do regime. A Rainha mostrara-se sem véu, mas tão triste, que o editorialista a comparava a uma estátua de mármore, como dissera Anna em Bad Ischl.
Depois, quando os vivas ecoavam pelas abóbadas, a estátua animara-se, subira-lhe cor às faces, erguera-se graciosamente, e com um movimento da sua célebre cintura, inclinara-se, viva, principalmente os olhos, cheios de orgulho. Os gritos haviam redobrado, e de súbito ela sentara-se de novo, ou antes, quase caíra na cadeira, como se o deus escondido que dirigia os seus gestos tivesse bruscamente decidido que bastava, que ela deveria tornar ao estado de autómato do qual, por um momento, ele a havia libertado. A palidez voltara, a cabeça baixara-se de novo, as mãos quedaram-se. Na última frase, o editorialista escolhera baptizá-la em latim com um novo nome, Mater Dolorosa.
O que não ia nada bem com ela - pensou logo Franz. Dobrou o jornal e acendeu um charuto, cujo fumo se juntou à fumaceira das fábricas dos subúrbios de Budapeste. Não perdia a esperança de voltar a vê-la um dia. No fundo, com aquele maluco do Herzl e as suas fantasias de um Estado Judaico, Anna não deixava de ter razão: o sonho persistia, inocente. Sem perigo.
A DENTADURA
Esta velha gata cinzenta De dentes amarelos e sarnosa Ainda tem garra Porque é uma gata de raça.
Elisabeth
Desde o casamento de Emmy e Attila, a casa de Hietzing deixara de ter risos e canções. Restava, é certo, Toni; mas crescia a olhos vistos, e a infância saía da vida dos Taschnik, a passo largo.
Toni tornara-se um rapaz muito sério, e não manifestava o mínimo gosto pela música, para grande desespero da mãe; também não sentia qualquer inclinação para a diplomacia, e queria ser escritor. Aos dezoito anos já escrevera poemas, dos quais um tinha sido publicado numa revista de tiragem reduzida; mas era um começo. De resto, trabalhava muito para passar nos exames, e contentava plenamente os pais, excepto no que respeitava à música e à diplomacia.
Pouca música se tocava já em casa dos Taschnik. As sessões dominicais não haviam resistido às manias políticas de Willy, a despeito dos esforços de Anna, que ainda não pusera de parte o piano; mas Franz começava a ter dificuldade em ler as partituras, e prometia a si mesmo, todos os dias, que ia mudar de óculos. O duo perdeu qualidade. E como se não bastasse, o velho Brahms, figura tão familiar a Viena, morreu como vivera, com um copo de vinho do Reno na mão. Todos envelheciam.
Anna entristecia de dia para dia; Franz reagia como de costume, com uma filosofia tranquila. Certas noites, não se sentia nada mal por se achar sozinho com a esposa; mas quando lhe gabava os encantos da liberdade reencontrada, que a inevitável partida de Toni não deixaria de trazer, lia-lhe nos olhos uma espécie de pânico.
A crise de nervos que ela tivera em Budapeste não se repetira; ainda assim, quando regressaram, ele obrigou-a a consultar o.médico da família, o excelente doutor Bronstein, que falara de nervosismo, de cansaço, do casamento de Emmy, talvez, das perturbações das mulheres de certa idade, e que lhe apalpara o crânio durante muito tempo.
Ao médico, Arma não falara das suas inquietações. À tristeza provocada pela partida de Emmy, vinham juntar-se terríveis receios, que não ousava contar ao marido de tal modo eram violentos, de tal modo a transportavam para longe de Viena, levando-a até a desejar um exílio impossível. Porque o Imperador Francisco José tinha acabado por ceder à vontade popular; e o belo Karl, o pavoroso Lueger tornara-se presidente da Câmara de Viena.
O doutor Bronstein receitara valeriana e distracções; Anna não voltara a dizer mais nada.
Também não dissera nada dos soluços nervosos de Willibald, cuja mãe acabara por falecer sem sofrimento, durante o sono. Willy chorara imenso, e virara costas a tudo. Anna defendera a causa do velho órfão, lutara muito tempo.
Sem ceder quanto à música de câmara, o marido acabara por aceitar uma reconciliação limitada. Não tocariam juntos ao domingo, mas ver-se-iam como dantes. Franz resolvera evitar toda e qualquer discussão política; Willy conformara-se, reconhecido. De resto, a morte da mãe parecia tê-lo acalmado, ou antes, abatido.
Para os entreter, Franz levava muitas vezes sua mulher Anna e Willy à Grande Roda de Viena, que tinha sido acrescentada ao Wurstelprater, a parte consagrada à feira popular do grande jardim arborizado. Com os seus cinquenta e quatro metros de diâmetro, era a oitava maravilha do mundo. A primeira vez que subiram para os carrinhos, Anna teve tonturas no cimo da roda. Desde esse dia, só de a ver se sentia mal. Franz teve outra ideia: quando estava bom tempo, iam os três para a esplanada de um café, em Bellevue, nas colinas. O ar era puro, um pouco fresco, as árvores estremeciam, e o chocolate não era pior do que nos outros sítios.
Nesse dia, um domingo, instalaram-se a uma mesinha pintada de verde, e tudo corria bem, deveras. O almoço fora simples e divino; um pernil de porco, pepinos de conserva, um pouco de couve macerada, e Gespritzt espumoso que libertava o espírito sem o tornar pesado. Tinham conversado sobre assuntos frívolos, e contornado devidamente tudo o que fosse litigioso. Para evitar a questão Lueger, Willy protestara contra um novo movimento de vanguarda, que acabava de publicar uma revista com um título pretensioso em latim, Ver Sacmm, Primavera Sagrada. Franz não ouvira falar.
- Sabes sim, Franzi, são os amigos de Toni - disse Anna puxando-lhe pela manga. - Ele fala-me muitas vezes deles...
Franz não reparara. Toni era suficientemente ajuizado para ir incomodar o pai com revistas de vanguarda. E Willy, com olhos arregalados de espanto, retomou as suas perlengas.
- Não vos dou os parabéns. Deixar o Toni andar com esses indivíduos subversivos! Fariam melhor se o inscrevessem numa boa associação de estudantes, Anninia, ou Teutonia, enfim, qualquer coisa que fosse minimamente séria!
- Para o ver regressar com uma cicatriz e um horroroso bivaque redondo na cabeça? Para ele se pôr a gritar “Morte aos judeus” nos meetings contigo? - insurgira-se logo Anna. - Nem pensar!
Quando Anna elevava o tom, a coisa era tão rara que Willy metia logo o rabo entre as pernas. Pegou-lhe na mão e beijou-lha.
- Perdão minha cara - articulou ele, envergonhado. - Mas porquê misturar o sagrado à Primavera? E o nome que esses idiotas inventaram, a Secessão, vejam só. Querem fazer secessão com quê? Connosco, talvez?
Naturalmente, Anna defendera os jovens. Aquilo que eles não queriam era tudo o que era velho, a ordem, o mundo antigo, enfim, nada que não fosse costume. O rejuvenescimento ganhava terreno por todo o lado; em França, falava-se de “Arte Nova”; em Viena de “Estilo jovem”. Não, Anna achava-os interessantes; e até ia pedir a revista a Toni.
- Mas não podes, Anna! - inflamou-se logo Willy. - É obscena! Na capa desenharam uma mulher nua, muito magrinha, com ancas... Ancas pontiagudas... Esquisitas! Enfim, ancas abomináveis. Um horror!
Anna evocara ironicamente os nus de grandes nádegas do falecido Makart; Willy protestara, Makart fora um santo, um génio, não se podia comparar.
Depois Anna perguntara onde desencantara Willibald a revista. O gordo corara violentamente, gaguejara, enredara-se em confusas lembranças de onde se inferia que uns rapazes seus amigos, uma noite, numa reunião política, haviam queimado Ver Sacrum enquanto cantavam Deutschland iiber Alies... Depois calara-se, bruscamente.
Willy bebera um pouco mais do que a conta, ofegava, e precisamente pedia uma slibowitz. Mau sinal. Franz sentiu que a conversa ia azedar.
- Não vão estragar esta Primavera - disse ele. - Olhem antes para as árvores; daqui a uma semana as cerejas já se podem apanhar, aposto. Havemos de voltar aqui; ao descer o caminho, podemos abanar uma ou duas cerejeiras, sem dar nas vistas. Willy! Anna! Estou a falar convosco!
Mas era tarde de mais. No olhar de Anna perpassavam uns clarões de angústia; quanto a Willy, já bebera a slibowitz, de um trago, e a pele dele ficara logo às manchas cor-de-rosa. Calava-se, furioso; Anna também. Franz acendeu o cachimbo e resolveu prestar atenção a outras coisas.
Foi então que a viu, em plena luz do Sol.
Certamente chegara havia algum tempo; ele não a vira entrar. De cabeça erguida sob o espesso véu, de pescoço aprumado, incomparável, era sem dúvida ela, anónima.
Sentada à última mesa, longe da beira da esplanada, a Imperatriz estava toda de preto, com as mãos enluvadas pousadas no leque. Como era de norma, não estava sozinha; a seu lado, uma dama de companhia mexia o creme acastanhado de uma chávena de café com natas, devagarinho, para não estragar a delicada bebida. Ela não bebia nada; diante dela um copo de água em que nem sequer tocava. A dama de companhia inclinou-se, segredou-lhe duas palavras ao ouvido e eclipsou-se.
Ficou sozinha; um ligeiro suspiro de alívio fez estremecer a musselina opaca.
Em torno de Franz o mundo evaporara-se bruscamente; as conversas dos clientes de domingo fundiam-se num murmúrio de igreja, as silhuetas eram vagas, a luz empalidecia. Só ela se destacava com uma nitidez assustadora, como se um pintor tivesse decidido apagar o resto da tela com um pincel gigante, para melhor desenhar os contornos da mulher: a pluma do chapéu, incisiva, o véu, que estremecia, as mãos pousadas, o decote subido, a comprida saia, as botinas de verniz, com atacadores, o busto direito, a cabeça lá no alto, invisivelmente exposta, um negrume absoluto, imóvel. De súbito, a estátua animou-se. Franz conteve a respiração.
Rapidamente, ergueu o véu, deitou-o para trás com um gesto, sem se esconder, serena. Serena, levantou o queixo, fechou os olhos, e ofereceu o rosto ao calor do Sol. Instintivamente, Franz recuou, como se ela tivesse ficado nua; já não tinha a pele clara, mas brunida, enrugada, agreste, e no alto da testa, a raiz do cabelo era agora grisalha. A boca fechada esboçava um estranho esgar, que se transformou num ricto de sofrimento.
Então, sempre serena, baixou a cabeça, tirou uma das luvas, abriu a boca para meter delicadamente os dedos e retirou uma dentadura que colocou na beira da mesa; depois pegou no copo e deitou a água em cima do aparelho, com uma naturalidade plena de elegância. Foi tudo feito num ápice: a dentadura, lavada, foi posta de novo na boca; um lenço surgia na ponta da luva para limpar as marcas de humidade no queixo e ela levantava a cabeça e acedia finalmente a olhar para as pessoas que a rodeavam.
O primeiro olhar que cruzou foi o de um homem ainda novo, com um pouco de ventre, bastante calvo e que a fitava intensamente. Não estava sozinho; a seu lado, a esposa, de cabeça baixa, torcia pensativamente a ponta de um fio de ouro, e o último conviva, um amigo certamente, alapado à mesa, amassava o miolo de um pãozinho. A Imperatriz ia virar a cabeça quando o gigante levantou uma mão implorante, como se lhe quisesse suplicar: “Não te vás!” Era tão ingénua a força da chama azul dos seus olhos que ela franziu a testa e reconheceu-o.
Com que então, era assim que ele estava agora, era aquilo que não tinha querido mostrar-lhe: um burguês instalado, um velho jovem barrigudo, comple-tamente calvo. Apenas o olhar não mudara. Curiosa, observou detalhadamente o casaco de fazenda com guarnições cinzentas, o colete de brocado cor de ameixa bem cingido ao ventre rotundo, o colarinho engomado e a grande gravata à moda, de seda escura; depois, voltando ao rosto, apercebeu-se de que o gigante sorria, corando, com um rubor adolescente.
A mão permanecera levantada, como um apelo mudo; lentamente, ele colocou um dedo nos lábios, abriu muito os olhos... “Silêncio! - parecia dizer. - Sou mesmo eu, não estás enganada, também te reconheci, não te vou atraiçoar, eis que enfim nos reencontrámos, não faças barulho!”
Ela não conseguia desprender-se daquele sorridente olhar. Tudo nele respirava bondade. Aquele fogo claro lançado sobre ela não a ameaçava, não, aquecia-a; e ali ficou, mergulhada no azul dos olhos dele. De súbito, a mulher a seu lado tocou-lhe com o cotovelo, os lábios moviam-se, ela falava-lhe a meia-voz, parecia preocupada, nervosa; e como ele não respondia, a mulher abanou-o como se faz a alguém que está a dormir acordado, chamando-o: “Franzi!”
Ele soltou um fundo suspiro, depois virou a cabeça, terminara. Antes de baixar o véu, teve ainda tempo de ver, pousado nela, o olhar intrigado da mulher, o seu ar ciumento.
Quando já estava sob a espessa musselina, lembrou-se da dentadura; com o coração aos saltos, as faces rubras, compreendeu que acontecera o pior. Ele vira-a mergulhar a dentadura no copo; não escapara ao espectáculo dos dedos na boca e dos dentes postiços. Uma memória hesitante batia à porta dos sonhos, a barafunda do baile, o arrebatamento da valsa, o calor daquelas grandes mãos em torno da cintura dela, o frio do céu, as estrelas geladas, o coração extasiado, um beijo roubado aos lábios fechados, e a mocidade de uma noite, uma única. Toda a felicidade do único baile da sua vida, estragada por uma dentadura.
Acabrunhada, curvou as costas. O mal era irreparável. Ouvia-o falar com uma voz que também não mudara verdadeiramente: um pouco lenta, bastante grave, uma voz redonda como ele, e que tentava apaziguar a outra, a da mulher, débil, suave, insistente, uma voz conjugal. Não estava suficientemente perto para apanhar as palavras; mas percebia bem a melodia da canção, terna e profunda, o bastante para significar a harmonia de que estava excluída.
A condessa Sztaray, a última a ascender à categoria de dama de companhia, tardava em voltar; o agridoce do encantamento desaparecido pairou ainda um momento. Através do tecido do véu, ela podia lobrigar a sombra de um olhar claro e alegre, uma pontinha de céu, uma pitada de azul; o ar permanecia leve, talvez transparente. Mas não para ela, que respirava a seca matéria da musselina implacável, ora erguida pela brisa, ora colada brutalmente aos lábios, quase a sufocá-la.
Restava a persistência de uma liberdade passageira, presa ao olhar de um jovem que envelhecera, sem que a idade tivesse alterado o mistério entre ambos. Ele não estava sozinho. Era insuportável. Ergueu-se de um salto, endireitou os ombros e partiu, abrindo o leque com um estalido seco, cujo ruído ele reconheceria.
Anna perguntava a si mesma qual seria a natureza do sonho em que o marido mergulhara, a ponto de não a ter ouvido perguntar-lhe o que contemplava ele com tanta atenção. A menos que tivesse sido acometido de um brutal acesso de febre, com o vento Sul nunca se sabia; talvez também vinho branco espumoso a mais, ou o amuo de Willy.
Ela reparara na mulher de preto à mesa do canto, mas era apenas uma velha senhora elegante, uma dessas aristocratas fora do tempo como havia em Viena às dezenas e que, por vezes, vinham farejar os odores populares dos cafés, quando estava bom tempo. Em contrapartida, o que Anna não sabia explicar era aquele gesto pouco habitual do baixar súbito do véu; a coisa não a atormentou. Um luto cruel, certamente; aliás, espontaneamente, Franz aderiu a essa ideia.
Mentiu sem esforço à esposa. Voltara a ver o seu dominó amarelo. Ela não negara, desta vez havia confirmado, pronunciara em silêncio as palavras do poema: “Sou eu! Reconheci-te!”
Ela envelhecera muito; e sem se dar conta, sorrira.
Durante um instante, pensou na horrível dentadura. A imagem era desagradável. Tentou expulsá-la e não conseguiu: revia os gesto prosaicos, a mão erguida para a boca... Limpou a testa.
Afinal de contas, ele ganhara barriga, e ela usava dentadura.
Um melro começou a assobiar. Nada era mais bonito do que os melros de Viena, que não se escondiam, que se empoleiravam na beira dos ramos, bem à vista, e esticavam o pescoço, como para atirar os seus trinados à face da Primavera. Aquele melro era como os outros, vivo, encantador, trocista, de um negro absoluto. A própria insolência da vida - como ela, com a sua dentadura.
O acaso, o silêncio, e aquela Primavera fútil haviam-nos reunido, melhor do que as cartas e as reminiscências. Ele já não cuidava de saber se a velha senhora era a Imperatriz ou Gabriela. Mas como estava certo de a haver reencontrado, como finalmente recebera uma confissão muda, reconciliara-se com a sua desconhecida. Estava feliz.
O Imperador hesitava.
Acabava de receber mais uma carta na qual a Imperatriz lhe pedia que fosse ter com ela a França, à Cote d'Azur. Muitas vezes, ela dirigia-lhe súplicas assim, sabendo, de ciência certa, que ele estaria retido pelas suas obrigações oficiais. Era um jogo: ela escrevia cartas ternas, queixando-se da separação, mas recusava vir ter com ele a Viena; não, o que ela queria era fazê-lo deixar a capital, precisamente. E que se aproximasse dela como um marido que vai de férias, incógnito, acima de tudo.
Ela mudara muito, com a idade. A época das cavalgadas passara havia muito; quanto às caminhadas, tinham sido refreadas pelas ciáticas que tantas vezes a não deixavam sair da cama. As ideias suicidárias desvaneciam-se pouco a pouco, com as viagens. Permanecera esquiva, sem dúvida, e não apreciava os raros dias que passava em Viena, três ou quatro vezes por ano, não mais. Mas enfim, o Imperador acabava por dizer para consigo que talvez viessem a ter uma velhice feliz, selada por um luto interminável que os reunira mais do que apartara. Agora que ganhara sensatez, talvez se tornasse simplesmente uma avó elegante, um pouco triste, cheia de deliciosas nostalgias.
Tendo pesado mil e uma vezes os prós e os contras, aceitou ir ter com ela ao cabo Martin. Passeavam ambos ao pôr-do-sol, nos jardins públicos; ele usava uma sobrecasaca de burguês e um chapéu de coco, ela o seu eterno traje negro e a sombrinha branca.
- Parecemos um velho casal, agora - deixou escapar ela uma tarde.
- Não é assim tão mau, afinal - respondeu ele esperançado. - Pelo menos não estamos separados, enquanto que outros...
Calou-se. Receava o que viria a seguir. “E como está a amiga?” atirou ela distraidamente.
A amiga era a Schratt, que ela lhe atirara para os braços. Ele nunca conseguira habituar-se àquela frase. Mas não tinha alternativa; era preciso responder.
- Vai bem, obrigado. Engordou um pouco nos últimos tempos, a ponto de ter iniciado uma dieta de...
- Ah! - interrompeu ela - quando deixará ela de me imitar! Enfim, é contigo.
- Encarregou-me de te dar muitos cumprimentos, Sissi - murmurou ele humildemente. -Ela não é má pessoa, tu bem sabes...
- Oh! Nem sequer é o suficiente - concluiu, acelerando o passo. - Será que ela não começa também a envelhecer um pouco?
Ele avançava a resmungar, com um ar cansado; não chegara ainda o momento da calma velhice com que sonhava. Ela olhava-o pelo canto do olho, e vigiava-lhe os tiques com uma ternura nova. Porque agora que os anos lhes começavam a pesar, talvez pudesse esperar uma tranquila amizade, um perdão recíproco e uma vida em paz. Daí a algum tempo.
Um ano mais tarde, em 1898, o Imperador e a esposa encontraram-se em Bad Ischl, o que era um progresso considerável. Ela viajava para mais perto que dantes; as cartas tinham mudado de tom. Escrevia-lhe pequenos nadas de uma doçura inesperada, e que o levavam a sonhar com uma verdadeira reconciliação. Seria que alguma vez tinham estado zangados? Não se sabia.
Ela lançara sobre as suas vidas uma areia feérica e perigosa, e mergulhara-os num torpor hostil de que despertavam lentamente, fatigados. O longo feitiço estava a chegar ao fim; talvez ela começasse finalmente a ter por ele um afecto sincero. Talvez.
O dia estava a chegar ao fim; o Sol descia sobre as montanhas. Mais um dia sem que tivesse conseguido falar com ela de coisas sérias. Desta vez era preciso acabar com aquilo e arrancar-lhe uma resposta. No dia seguinte partiria para Munique, e depois ainda para outro sítio. Iria ela às últimas cerimónias do Jubileu imperial, em Julho? Teria ela a coragem de recusar celebrar os seus cinquenta anos de rainha? Deixar o Imperador sozinho numa solenidade daquela importância? Impossível.
Impossível... Na verdade, o velho Imperador tinha dúvidas. Ela aceitara o peso das cerimónias do Milénio em Buda, mas fora somente pela Hungria; o Jubileu decorria em Viena. Impossível? Ela via-o apenas duas ou três vezes por ano, entre duas etapas, como que acedendo a dar algumas migalhas do seu tempo a um pássaro friorento, que abandonara há quase vinte anos. Ela é que era impossível, justamente. E o Imperador atormentava-se só de pensar em abordar o assunto.
De manhã não; ela tomava os seus banhos frios, penteavam-na, ou então ia dar um passeio a pé, até ao meio-dia. Muitas vezes, não voltava durante muito tempo. Os serões até tarde estavam excluídos; ela deitava-se cedo. Mas calculando bem, podia propor um passeio a dois, ao pôr-do-sol, mesmo antes de jantar. Na Cote d'Azur, no ano anterior, tinha conseguido duas ou três vezes.
E portanto, o Imperador esperou pela esposa na escadaria. Quando ela saiu para apanhar fresco, com o leque a baloiçar na ponta dos dedos, de sombrinha ao ombro, parou; ele tinha aquele ar sério de tenente-coronel. Levaria horas a dizer o que queria...
- Vamos lá! - murmurou ela suspirando. - Vejo que tem qualquer coisa para me dizer. Venha...
Ele era a única pessoa no mundo a poder alargar o passo ao ritmo do da Imperatriz. De mãos atrás das costas, de cabeça baixa, seguia com o seu célebre passo elástico, vivo como o de um moço, sem a ultrapassar; ao pé dela, era preciso andar como as éguas amestradas, a trote curto. Mas agora, ela caminhava vagarosamente, como uma velha pesadota. Ele seguia em silêncio.
- Vais falar ou não? - disse ela fazendo girar a sombrinha.
- É a propósito das últimas cerimónias do meu Cinquentenário - começou ele de mansinho. - Não estiveste no dia 24 de Junho, na apresentação das crianças de Viena nem na dos caçadores em Schõnbrunn...
A Imperatriz suspirou sem responder.
- Setenta mil crianças no Ring ao som da Marcha de Radetzky, e quatro mil caçadores! No dia 26 de Julho - suplicou - são os ciclistas...
- Não - cortou ela. - Nem pensar. Ele não insistiu.
No dia seguinte, para acalmar a cólera, ele foi montar a cavalo ao amanhecer. Quando voltou, ela esperava-o, de sombrinha a girar ao Sol de Verão.
- Não me leves a mal - disse. - Está acima das minhas forças, bem sabes.
Ele pegou-lhe no braço e levou-a consigo. Habitualmente, ela resistia sempre um pouco, erguia o cotovelo bruscamente, e acabava por se resignar. Mas dessa vez, deixou-se docilmente conduzir; ele teve esperanças.
De quê? Não sabia; ela era imprevisível. Deram, em silêncio uma volta aos canteiros de flores, voltaram à residência, foram até às roseiras, sem uma palavra. Na primeira volta, ele manteve-a bem apertada, firmemente; na segunda volta ela contraiu-se um pouco menos; finalmente na terceira, apoiou-se-lhe no braço.
- Aspiro à morte, meu pequenino - murmurou. -Não a receio. Desde... Enfim, tu sabes. Sofro demasiado.
- Então, então - resmungou ele. - Tornaremos pública uma nota oficial do médico, e ninguém terá nada a dizer. A tua saúde frágil, as tuas insónias...
- A anemia! - exclamou ela. - Não te esqueças da anemia, e das nevrites.
- Pronto, estás a ver - disse ele simplesmente.
E levou-a de volta à escadaria. Quando subiu o primeiro degrau, voltou-se com aquele brusco movimento de rapariga que nunca a abandonara.
- És muito generoso, meu querido. E eu sou muitas vezes má - disse ela estendendo-lhe a mão. - Vem comigo; também eu tenho algo a dizer-te.
Sentaram-se no salão deserto; ela não lhe largara a mão, que ele apertava com cuidado nas suas. Olhava-o absolutamente como se nunca o tivesse visto, com um olhar curioso e atento, observando-lhe detalhadamente as patilhas brancas, as rugas em torno dos olhos claros, e o cimo do crânio despido. “Meu Deus - suspirou - porquê tanta infelicidade...”
- Não, tu não és má, e eu não estou zangado - continuou ele. - É que partes amanhã, e eu vou ter saudades.
Ela soltou um suspiro e retirou a mão. Nada a obrigava, de facto, àquela partida, nada, a não ser aquele tédio que ele arrastava consigo como uma maldição.
- Nunca te amo tanto como quando me vou embora - disse-lhe ela com um sorriso. - E quando estou longe penso em ti com uma infinita ternura. És o meu burrico preferido, meu querido...
Ele virou a cabeça; não estava habituado à doçura dela, e não queria que ela lhe visse os olhos húmidos. Tirou o lenço e assoou-se, solenemente.
- Meu caro esposo - começou ela num tom que não admitia réplica - pensei no meu presente de aniversário. Quero um hospital psiquiátrico novo, digno de Viena. Com equipamentos modernos para os alienados.
Aterrado, ele lembrou-se da loucura daquele primo da Baviera, e baixou a cabeça abrindo as mãos com ar fatalista.
- Não é o que julgas - atirou ela precipitadamente.- No teu reinado fecharam a Torre dos loucos em Viena, aquele horrível edifício medieval, lembras-te? E da minha visita ao asilo de Briinnefeld depois da morte de Luís, também te lembras? Nesse dia eu bem vi! Equipamentos retrógrados, correntes para os asilados, tratamentos antiquados, um horror... Lembras-te? Uma pobre louca atirara-se a mim; julgava-se a Imperatriz. É preciso progresso, só isso. Diz-me que sim...
Ele aquiesceu em silêncio. Ela abanava-se lentamente, como que a dar-lhe tempo para respirar.
- Mais nada? - perguntou ele em voz fraca. - Queres mais alguma jóia?
- Bem sabe que não voltei a usar desde a morte de Rudi. - respondeu, um pouco seca. - E depois já me cobriu de jóias. Não, nada.
O Imperador ficou triste. A Schratt aceitava jóias; mas a Schratt era apenas uma mulher, enquanto que SissiL.
- Talvez outra coisa... - murmurou ela reflectindo. - Sim. Dê um título de nobreza a um dos meus protegidos. Um homem de grande mérito, funcionário dos negócios estrangeiros; deve ser chefe de secção, acho eu. Não é húngaro, o que é extraordinário. Vou escrever o nome dele num papel.
Enquanto ela rabiscava, ele perguntava a si mesmo de onde lhe viria aquela fantasia.
- Não procure saber como o conheço - advertiu ela brandindo a folha. - É um segredo meu. Então, aceita?
Como se alguma vez lhe tivesse recusado fosse o que fosse.
Veio beijá-lo na testa, e acariciou-lhe o crânio levemente. “Um dia virá, meu filho, em que eu não regressarei...” murmurou-lhe ela ao ouvido.
Ele estremeceu, quis virar-se. “Chiu... - acrescentou ela pondo-lhe as mãos nos olhos-não se mexa, por favor. Esperarei por si muito serenamente na Cripta, onde já não corro o risco de o deixar, meu querido. Aliás bem sabe que, à minha maneira, eu o amei muito.”
E largou-o subitamente com um grande suspiro.
- Agora vou acabar de me preparar para amanhã. Até já.
Sempre assim fora. Ela recusava tudo, ele tudo concedia. Ela tinha o cabelo grisalho, a pele enrugada, e as pernas em mau estado, mas conservara no olhar a chama rebelde de quando se conheceram em Bad Ischl, e se ele quisesse poderia ainda apertar a fina cintura entre as suas grandes mãos de Imperador. Ela não assistiria ao desfile dos ciclistas pelo Jubileu do reinado do Imperador; ela teria o seu hospital psiquiátrico e o seu protegido teria um título nobreza. Deitou uma olhadela ao papel e leu um nome desconhecido: “Franz Taschnik.”
AH! GRAN DIO, MORIR SI GIOVINE
Um último olhar ainda
Para ti, ó mar, meu bem-amado
Antes de um difícil adeus
E se Deus quiser, até breve!
Para a despedida escolhi
Uma calma noite, um luar
Diante de mim te estendes, radioso
Resplandecente, prateado, tu és
Mas quando amanhã, vindos das dunas
Os raios do Sol te abrasarem
Muito depressa, batendo as asas
Levantarei voo para longe
O branco enxame das gaivotas
Para sempre planará sobre as águas
E se uma faltar à chamada
Dar-te-ás conta.
Elisabeth
A Imperatriz e a dama de companhia regressavam ambas da residência Rothschild, onde haviam estado como convidadas da baronesa, em Pregny, à beira do lago Léman.
Habitualmente, Sua Majestade detestava as visitas ditadas pelas regras sociais, e recusava os mais prestigiosos convites; não ousara ela declinar o convite da Rainha Vitória? Mas os Rothschild faziam parte dos melhores aliados do Império. Como Heinrich Heine, estavam ligados à religião sagrada do grande Jeová; a baronesa Julie era muito ligada a uma das irmãs da Imperatriz. De resto, diziam que a propriedade era admirável, e que as estufas recentemente construídas produziam em qualquer estação os frutos e as flores mais raras. Contra o que se esperava, a Imperatriz aceitara. A visita fora fixada para 9 de Setembro de 1898, e o pavilhão imperial içado no alto dos telhados de ardósia, por sobre os ornatos de chumbo.
Ao ver o imenso vestíbulo e a enfiada de salões à esquerda, a Imperatriz abrandara o passo. Mais um palácio, mais ouros e veludos... Mal se dignou deitar uma olhadela aos quadros de mestres pintores: havia Goyas, desenhos de Fragonard, o retrato da du Barry e o pingente de Benvenuto Cellini; os Canova fizeram-na deter-se por um instante, e apenas a dama de companhia, a condessa Sztaray, se extasiava. A Imperatriz queria ver a praia no lago, e as estufas por detrás da imensa horta. Os seus desejos haviam sido satisfeitos. Sua Majestade estava de excelente humor, como aquele dia de Outono deslumbrante que se recusava a findar. A baronesa oferecera um ramo de rosas alaranjadas, e os últimos pêssegos do pomar. Sua Majestade agradecera muito. Finalmente, quisera regressar ao hotel, o Beau-Rivage, do outro lado do lago, em Genebra, tomando o vapor como o comum dos mortais.
Já cinco horas, para elas era tarde, e a travessia era lenta. Estava um daqueles Setembros iluminados por um sol macio, menos ácido que uma Primavera precoce, menos ardente que o Verão. Tinham arranjado um banco afastado dos outros passageiros. A dama de companhia segurava o ramo de rosas da baronesa Julie, e cheirava-o de vez em quando. A Imperatriz recostara-se, um pouco cansada, no assento, e deixava pender a mão, despida, para fora, como se quisesse tocar na água.
- - Como as flores eram belas - murmurou entredentes. - Nunca tinha visto tantas orquídeas. As grandes, principalmente, como é que se chamam? Aquelas com uma língua púrpura, parecidas com um berço, já não me lembro, o sapato, o calçado... Sztaray! Não me está a ouvir.
- Perdão, Majestade? - respondeu a condessa, solícita. - Não ouvi. Vossa Majestade falava tão baixinho.
- Estava a perguntar-lhe o nome daquelas orquídeas cor de ameixa! - disse ela destacando cada uma das palavras. - O sapato de...?
- Tamanca de Vénus, Majestade. Uma belíssima espécie.
- É isso! - exclamou, alegre. - Soberbos também os cedros e o jardim de pedras. Eu ia para lá muito hesitante, pensava que me aborreceria, bem sabe, minha cara, repeti-lho mil vezes, e afinal não! Milagre. Uma mulher amável e espirituosa, um jardim de sonho, um lanche encantador...
- Vossa Majestade até repetiu o sorvete - observou a condessa. - E os sonhos de frango. O Imperador ficará contente quando receber a ementa que Vossa Majestade trouxe, porque...
- Ele de nada saberá. Não tenho intenção de lha enviar. Aliás, limitei-me a fazer de conta, por cortesia. Que está para aí a dizer? Não, não comi!
A condessa Sztaray reprimiu um sorriso. A Imperatriz não admitiria, por nada neste mundo, ter comido como o fizera. Porque quando, por acaso, fugia às regras que ela mesma se fixara, comendo um biscoito, chupando um pêssego, até mesmo rilhando, como um esquilo, montes de avelãs ou de nozes, a irregularidade devia permanecer clandestina. Mas enfim, pensava espantada a condessa, durante a refeição na residência Rothschild, ela não se alimentara simplesmente, não, devorara, a toda a pressa, sob o olhar estupefacto da baronesa, a quem haviam anunciado uma mulher sem apetite, e que, com um sinal discreto, fazia os criados passarem de novo diante do prato vazio de Sua Majestade. Uma esfomeada.
Não que aquilo não lhe desse às vezes, como uma espécie de ataque imprevisto; mas era assim de surpresa, na copa, disfarçadamente, andando numa roda viva, de modo que ninguém a via realmente comer. Em seguida, depois de se ter ido embora, faltavam na compoteira umas tâmaras recheadas, ou então merengue na tarte. Tudo surripiado. Daquela vez, no entanto, fora completamente diferente.
De acordo com o que era seu hábito, sentara-se na beirinha da cadeira, como se se preparasse para abandonar a mesa; em seguida, em vez de pousar a luva no prato, aceitara que a servissem, e atirara-se logo ao que havia para comer. Até aceitara uma taça de champanhe, e os olhos dela começaram a brilhar. Em homenagem tanto à Rainha como à Imperatriz, a baronesa de Rothschild servira vinhos da Hungria, Sangue de Touro, Tokay. A condessa também não resistira; sentia-se pesada, e teria adormecido de boa vontade, ali, no banco de vapor, com a cabeça ao sol...
- Como é que se faz para morrer de fome? - fez a voz sussurrante a seu lado. - Em quanto tempo? Sabe?
- Que estranha pergunta! Não sei, Majestade-sobressaltou-se a condessa boquiaberta. - Parece-me que em três dias...
- A senhora não percebe nada. O corpo humano tem mais resistência. São precisos pelo menos dez dias, mais se se beber água, eu sei. Não arrisco grande coisa ao comer pouco; e os médicos são uns asnos. Pelo contrário, Sztaray, protejo-met Prolongo a minha existência... Luto contra a ordem natural, e contra Deus.
- Vossa Majestade não pensa realmente o que está a dizer. Lutar contra Deus, Majestade, quem ousaria?
- Seria preciso ter uma fé de ferro para não lutar, condessa - proferiu ela gravemente. - Já não tenho fé, se é que alguma vez tive. E sabe, vou surpreendê-la, Sztaray, eu tenho medo da morte.
- A senhora! - bradou a condessa. - Impossível. Vossa Majestade procura-a, - Dizem que sim - murmurou ela - e até eu acreditei sinceramente nisso. Quis, sem dúvida, morrer e faltou-me a coragem... Estou viva, como vê. E o dia está tão bonito que hoje me sinto diferente. Se ao menos o Imperador aqui estivêssel Se tivesse que morrer agora... Sim, decididamente teria medo. A senhora não receia a morte, pois não?
- Não - replicou firmemente a dama de companhia. - É apenas uma passagem.
- Mas essa passagem, como é que se atravessa? Será que a gente se sente sufocar? Para onde vai o último suspiro? Que faz o espírito quando o coração deixa de bater? Dos mortos vemos apenas um rosto sereno; mas imediatamente antes? Não há certezas...
- Há sim - replicou a condessa. - Após a passagem existem a salvação e a paz.
- Como é que sabe? Ninguém voltou para contar - atalhou ela. - Eu sei; tentei. Mesmo Rudi na Cripta não me deu resposta.
A condessa encolheu-se no banco; nunca ela havia evocado o filho com aquela serena satisfação. As palavras tornavam-se perigosas. A Imperatriz calara-se e contemplava as vinhas das encostas.
- Daqui a pouco, iremos comprar gelatinas de fruta, Sztaray - disse ela pensativamente.
O serão fora encantador. De acordo com o combinado, a Imperatriz dirigira-se à confeitaria e, tomada por uma febre de compras, tinha devastado a loja.
encontrou as gelatinas de fruta que procurava; foi preciso ir a outro lado, saquear outra loja, e mais outra, durante uma hora. Depois, com os braços cheios de embrulhos, tinham regressado a pé, muito depressa, de tal modo que, de vez em quando, havia uma caixinha que se escapava e caía. A caminho do hotel, a Imperatriz tinha querido comer os pêssegos da baronesa, e as duas mulheres haviam-se sentado num jardinzinho; a seus pés corriam pombos saltitantes.
Era a hora em que as aves cruzam o céu antes da chegada da noite. As gaivotas planavam caçando insectos, os pardais voavam que nem flechas e, mesmo ao lado delas, um pintassilgo empoleirou-se num ramo, a assobiar. De súbito, um corvo levantou pesadamente voo e uma asa negra aflorou a face imperial. Ela deixou cair o pêssego soltando um grito abafado.
- Mau presságio, Sztaray... Dizem que corvo que passa anuncia sempre uma desgraça...
A condessa não respondeu. As superstições da Imperatriz tinham-se agravado com a idade. Uma gaivota negra no mar, uma gralha que se atravessava num caminho, um pavão num parque, uma escada num canto de rua, e agora, um corvo!
- Bem sei que não acredita no que digo, Sztaray - murmurou a voz suave. - Faz mal...
Fora preciso deixar o jardinzinho dos pássaros, e voltar precepitadamente ao hotel Beau-Rivage. No dia seguinte, apanhariam de novo o vapor para atravessar o lago, para se instalarem em Territet, num outro hotel. As sete horas a Imperatriz retirara-se para a sua suite e pedira uvas e água.
Sobre o lago, o pôr-do-sol fora prestavelmente luminoso, perfeito: uma bola enorme e flamejante, que ela vira tornar-se rubra e depois empalidecer, invadida por um cinzento-peito-de-rola. Agora que desaparecera, apenas permaneciam uns longos reflexos sangrentos, cintilando sobre as pequenas vagas. A Lua incitava já a noite qual cavaleiro encorajando o cavalo.
Pusera-se à varanda, e mordia um a um os bagos das primeiras uvas, fazendo estalar a casca com os dentes. Começava o verdadeiro crepúsculo. Invadida por uma alegria inexplicável, foi buscar uma cadeira, abriu uma caixinha ao acaso, cerejas recheadas de licor, e sentou-se perto da janela aberta de par em par.
Vigiava a Lua. As estrelas pouco brilhavam; era cedo de mais. Secretamente, esperava um astro suficientemente pujante para eclipsar a cintilação dos planetas mortos; uma luz azul, clara, impenetrável, daquelas que queimavam as sedas dos cortinados. Porquê? Não saberia dizer. A esperança de um arrebatamento infinito, para prolongar o júbilo do dia. Justamente a Lua obedecia, cheia, radiosa, pura como o sono que se estendia sobre a cidade, e mergulhava os homens na bem-aventurada inconsciência da infância adormecida.
Bocejou, espreguiçou-se, disse de si para si que era preciso ir deitar-se, e não conseguiu levantar-se da cadeira, de tal modo estava presa aos encantos da noite sobre o lago. O luar atingira as águas e proibia-a de dormir. Resistiu-lhe, foi para dentro, despiu-se num abrir e fechar de olhos, de costas voltadas para a janela a fim de evitar a tentação. “Para a cama”, murmurou como uma criança. Mas a cama não a queria nessa noite.
No momento em que fechava os olhos, um homem começou a cantar. Um italiano, sem dúvida, que arranhava uma viola e deixava subir os agudos, com palavras absurdas e doces, Mio AMORE, mia vita, son QUi... Em baixo, aplaudiam-no; levantavam a voz, como fazem aqueles que não dormem e aproveitam o silêncio dos outros para falar alto. Primeiro, aquilo seduziu-a; depois, irritada, virou-se para o outro lado, em vão. O cantor nunca mais acabava; vozes jovens de raparigas juntavam-se à canção, a eterna história entre as mulheres e os homens recomeçava, apesar da Lua, ou por causa dela.
Solitário estava o astro sem as estrelas, solitário como ela entre lençóis amarrotados. Perturbados ambos pelo barulho da rua, essa galdéria que se recusava a adormecer. Seria preciso fechar as vidraças? Nunca. Era aquele o destino das rainhas, brilhar no meio da noite, longe dos homens, e suportar até ao infinito a monstruosa desordem dos prazeres deles.
O sono apoderou-se dela no meio de uma ária de La Traviata, às duas horas. E enquanto uma estranha voz de soprano cantava na rua a dor de morrer em plena juventude, Gran Dio, morir si giovine, como outrora o grumete do Cbazalie, a Imperatriz deslizou para as escuras águas da noite.
De súbito, endireitou-se. Uma língua de lua atingira o leito, iluminando-o tão violentamente que ela acordou. O céu estava completamente cor de turquesa, dir-se-ia que amanhecia, mas eram apenas três horas. Acontecera qualquer coisa que não era natural. Um implacável mistério invadia o quarto, como uma morte em marcha. Repentinamente, ela compreendeu a singularidade daquele instante: as vozes haviam-se calado. O mundo também. Dormia-se finalmente em toda a parte, a rua já não falava. Um majestoso silêncio estendia-se a seu lado, um terno companheiro, um pouco assustador, um pouco vago. A alegria voltou, inesperada.
Não a deixou fugir, e permaneceu assim até ao amanhecer, de olhos abertos, entre um sono reticente e uma ditosa vigília, surpreendida com aquela felicidade nova. Ouviu a cidade murmurando o despertar, escutou os primeiros passos na calçada, as tosses, por fim os primeiros sinos, e acabou por soçobrar ao nascer do Sol.
Às sete horas, a condessa Sztaray esperou por ela como de costume; nunca a Imperatriz ficara na cama para além dessa hora. Às oito, inquieta, a dama de companhia entreabriu a porta; mas ela dormia tão profundamente que nada ouviu. Às nove, a condessa viu passar uma bandeja cheia de pãezinhos e café.
Às onze horas, a Imperatriz apareceu, radiosa. Sem véu, com um chapéu muito simples, e um passo remoçado.
- Venha, Sztaray, está na hora - disse. - A noite estava tão linda que não consegui dormir. Antes de apanharmos o vapor, vamos comprar uns trechos musicais, para as crianças e também para o Imperador, pobre querido.
No Baecker, escutou deliciada um piano mecânico que tocava árias da Carmen e de Tannh&user. Infelizmente, o instrumento não tocava La Traviata. Para se consolar, a Imperatriz escolheu a toda a pressa vinte e quatro partituras, entre as quais uma ária de La Traviata, mas do primeiro acto. Depois olhou para o relógio: era preciso despacharem-se para apanharem o vapor.
- Entreguem tudo isto no hotel Beau-Rivage - ordenou ela. - Dêem ao porteiro... Partimos dentro de uma hora.
A luminosidade sobre o lago estava tão intensa que ela colocou a mão diante dos olhos. Adivinhava-se o vapor a cem metros, ao fundo do passadiço de madeira cinzenta. As bagagens acabavam de subir para bordo. Ela olhou para o relógio na ponta do fio de ouro.
- Depressa, condessa, vamos perder o barco - disse para a companheira.
- A Suíça é sempre pontual. Temos de correr!
- Ainda não tocaram a sineta, Majestade - observou a condessa Sztaray.
- Recordo-lhe que estou aqui incógnita, e que em público me chamo condessa Hohenembs. Vamos, Sztaray!
E, soerguendo as saias pretas, partiu a grandes passadas. A sineta do vapor começou a tocar furiosamente; um fumo branco anunciava já a partida eminente. A condessa alcançou-a suspirando: como sempre, a Imperatriz tinha razão.
- O meu leque - murmurou subitamente, estacando. - Esqueci-me dele no hotel!
- Que está Vossa Majestade a dizer? - perguntou a condessa, ofegante.
- Nada, nada - resmungou ela retomando a corrida.
Não eram as únicas que corriam para apanhar o barco. Uma mãe de família apressava a sua pequena gente como uma guardadora de gansos, a ralhar com as miúdas de fatos domingueiros; um jovem de chapéu de palha brandia uma bengala de castão de ametista e fazia sinal aos marinheiros, no vapor. E os basbaques contemplavam, divertidos, a pequena multidão elegante.
- já que nunca fazem nada que os canse, bem podem correr um bocado - rosnou um operário de boné dando uma cotovelada ao seu vizinho de banco. - Não achas, camarada?
O homem levantou-se sem responder e começou, por seu turno, a correr.
- Ora esta! Aquele também vai apanhar o barco? - rabujou o operário.
- Podia era ter-se decidido mais cedo.
As duas mulheres, de cabeça baixa, não tinham visto o homem que arremetia barrando-lhes o caminho, um italiano certamente, com um casaco de cotim preto e um lenço vermelho em redor do pescoço.
- E é que vai dar-lhes um empurrão, aquele selvagem! - bradou o operário levantando-se. - Cuidado!
Tarde de mais. O homem hâviâ atirado brutalmente ao chão a senhora de preto. A companheira soltou um grito muito agudo. Os basbaques acorreram, outras pessoas perseguiram o grosseirão que dera às de vila diogo.
Ela caíra ao comprido no chão. A condessa tentava desajeitadamente levantá-la, mas na sua atrapalhação, não conseguia, O operário precipitou-se e afastou os curiosos com um gesto autoritário.
- isto já passa, minha senhora, não se preocupe - disse ele pegando-lhe por debaixo dos braços. - Upa!
- Tenha cuidado! - gritou de longe o porteiro que chegou a correr.
- Espere, eu já aí vou!
“Pegue-lhe com jeito - repetia ele - assim vai rasgar-lhe o vestido, isso, devagarinho” e ajeitava as luvas brancas antes de a amparar pelos cotovelos.
- A senhora condessa Hohenembs quer descansar um bocadinho?
- inquiriu ele respeitosamente. - Vou prevenir o capitão do vapor.
Ela estava de pé, cambaleante e de rosto pálido mas mais nada. Levou muito depressa a mão à cabeça, apalpou as tranças grisalhas sob o chapéu, e olhou para o porteiro, para o operário, para os basbaques atentos, para todos quantos a fitavam, solícitos.
- Agradeço-lhe, caro senhor - disse ela com esforço. - E a todos vocês também, meus amigos. Ich danke Ihnm; I thank you very much, indeed, O meu cabelo protejeu-me... Aquele homem, que infâmia!
- A senhora não tem nada? Ele
a magoou? - inquietou-se a companheira, - Um bruto - disse, indignada, uma mulher que passava, - Que loucura!
- Vão prendê-lo - garantiu um senhor gordo.-Vi um polícia que corria mais depressa do que ele.
- O vapor! - exclamou a senhora de preto caindo em si. - Não partiu ainda?
- Eles viram tudo, estão à espera! - gritou um miúdo ofegante.
- Venho dela.
Apanhou rapidamente as madeixas de cabelo, ajeitou o penteado e fez um ligeiro esgar.
- Que queria aquele homem assustador?
- Um malandro, Majes... minha senhora - disse a condessa Sztaray.
- Talvez quisesse roubar-me o relógio? Deu-me um soco... - gemeu ela levando a mão ao peito. - Sinto-me um pouco tonta.
- O selvagem - murmurou a condessa. - Fazer uma coisa destas à senhora.
- É preciso sentá-la - disse uma voz.
- Não - respondeu ela timidamente. - Não tenho tempo. De verdade. E, afastando a multidão com um gesto calmo, partiu como uma flecha, para grande espanto do operário, que tirou o boné e coçou a cabeça.
- Mulher esquisita. Lá se vai ela embora! Palavra de honra, aquela velha tem o diabo no corpo!
Corria, e o lago rebrilhava com uma luz tão intensa que ela mal via o vapor, onde se agitavam vagas silhuetas e umas mãos a fazerem sinal; o barco ora estava ali, à espera, ora desaparecia, mergulhado numa brancura trémula. Corria, tão depressa que o fôlego quase lhe faltou, e o barco afastava-se da margem, ela chamava em silêncio, gritava sem achar voz, e ele ali estava diante dela, de novo, mas negro, maciço, fúnebre. Corria, e os sinos todos dobravam dentro da sua cabeça, como se fosse domingo. “Zumbidos - pensou - tenho de falar disto ao meu médico.” Sentiu uma picada no coração e apertou o peito sem abrandar a corrida. “Estou a ficar velha - pensou - mas hei-de apanhar aquele barco”, e de novo a onda negra a invadiu, uma bruma súbita, que desapareceu logo.
Já não sentia o movimento das pernas, simplesmente a boa mecânica daquele velho corpo fiel, as pancadas abafadas dos pés no chão, e as do seu próprio coração, um pouco aflito. “Aguenta - murmurava - estamos a chegar.” Corria, e de repente o cabelo pesou-lhe na cabeça, puxava-a para trás, e ela pôs maquinalmente a mão na boca, o barco estava ao seu alcance, a condessa Sztaray amparava-lhe a cintura, o capitão inclinava-se, na cabeça tinha um boné negro, de um negrume de tinta que subitamente a engoliu.
- Desmaiou! - gritou a voz brumosa de uma mulher a seu lado. - Socorro! Água!
De um modo confuso, ela conseguia ouvir a barafunda a bordo do barco, as ordens do capitão, as exclamações dos passageiros, quis tranquilizá-los, sorrir, mas o cabelo pesava-lhe sobre a boca atrapalhada, sobre as pálpebras fechadas. “Não é nada - pensou - uma simples vertigem”, os sinos tocavam com toda a força e ela deixou-se ir, feliz. Umas mãos apoderaram-se dela sem delicadezas, colocaram-na num estranho leito de pano, umas vozes por cima dela deixavam escapar secamente umas indicações, cuidado, ao mesmo tempo, um dois, upa, já está, agora, quando eu disser, levantem a maca, devagar, devagarinho...
- Não posso dizer-lhe quem é, capitão, é um segredo de Estado - gemia a condessa Sztaray. - Mas tenha muito cuidado, suplico-lhe...
... Nas faces, o vento fresco de um eterno largo, e o imperceptível cheiro a lodo e pássaros que desde sempre ela sabia ser o perfume do lago. E até reconheceu o grito das gaivotas em pleno voo, o que a fez sorrir. O ligeiríssimo balancear do barco despertou-a. Ergueu penosamente as pálpebras; era do dia, aquela claridade que cegava, ou da noite? Era o Sol, aquela onda de luminosidade que lhe apertava o coração até à asfixia? Uma mulher debruçada para ela afagava-lhe a testa com um lenço molhado, abria-lhe os lábios e introduzia-lhe na boca um quadrado rijo, reconheceu o gosto do açúcar, o forte aroma do licor de hortelã-pimenta e abriu francamente os olhos.
- Está a voltar a si - murmurou uma voz rude. - Ainda bem!
Quem era aquela mulher triste, de rosto sem contornos? Com esforço, fitou-a franzindo a testa... A condessa Sztaray, aqueles olhos claros e o sussurrar em húngaro... O lago Léman. O vapor! Conseguira, apesar de tudo! Endireitou-se, trincou lentamente o açúcar, quis dizer que estava bem, abriu a boca e as palavras saíram, palavras que já não comandava.
- Que me aconteceu? - perguntou ela em voz ténue.
Mas como começava a distinguir as feições do capitão, e a âncora da marinha no quépi preto que ele usava, o coração dela começou a bater como um doido. Tão alegremente que se sentiu reviver. As gaivotas saudavam-na com o seu voo mordaz, e soltavam gritos estridentes, e as nuvens eram tão leves que um imenso sorriso a invadiu, pungente, agudo, fulminante. Nada mais belo do que aquelas aves brancas contra o céu claro, de uma calma que ela não teria podido imaginar. “Finalmente - pensou - encontrei a felicidade. Esperem por mim...”
- Meu Deus! - berrou uma voz soluçante. - Vai desmaiar outra vez!
- Para a minha cabina - fez a voz do capitão - depressa! Há lá um banco comprido e também sais de vinagre. Não é grave. Eu não posso esperar mais. Vou largar.
Um balancear compassado, passos pesados no convés, um longo murmúrio à sua passagem, o povo certamente, os povos reunidos em torno dela, não conseguia vê-los, eles inclinavam-se, tinha a certeza... Levantar-se. Era preciso estar de pé, cumprimentar, sorrir. Quis erguer a mão, e não foi capaz... Vão privá-la do céu, a obscuridade de um quarto fechado sufoca-a, e aquele coração, aquele coração que aumenta de volume entre as costelas...
- Vou desapertá-la, podem fazer o favor de sair, os senhores? - murmurou a voz feminina.
A porta fecha-se de mansinho. Duas mãos prontas abrem a capa, desabotoam o corpete do vestido, afastam a camisa... O grito!
- A Imperatriz! Assassinaram-na! - berra a condessa Sztaray arremetendo para fora da cabina como uma louca.
Ouve tudo, e
compreende. Assassinada? Que Imperatriz? Um atentado? Mas contra quem? Que importância tem... Irá sempre a tempo de saber pelos jornais as circunstâncias do acontecimento. Está só. Com tranquilidade, respira devagar, para dominar aquele coração rebelde que não pára de aumentar. De olhos fechados, abandona-se ao embalo do vapor, ao ronronar dos motores, à vida que a beija e a levanta no ar, tão simplesmente. Um sono em pleno dia.
- Olhem! Aqui... - soluça a condessa.-Na camisa. A mancha de sangue. Foi aquele homem com um casaco de cotim que a empurrou há bocado!
- Um orifício tão pequenino! Parece uma picada de alfinete! - disse a afável voz do capitão, num tom fleumático. - Uma simples arranhadela. Dir-se-ia uma mordedura de sanguessuga.
- Mas estou a dizer-lhe que se trata da Imperatriz da Áustria! - gemeu a condessa desvairada.
- Então vou voltar para trás - resolve o capitão com ar aborrecido.
- Não! - suplica a condessa. - Acelere! Na outra margem, em casa da baronesa de Rothschild, encontraremos ajuda!
- - Nem pensar! - atalha o capitão. - Se me garante que esta senhora é a Imperatriz da Áustria, eu volto para Genebra, é o meu dever.
Uma mancha de sangue? Sem ferimento? Eles não percebem nada daquela felicidade súbita, aqueles imbecis, ela não pode explicar, é pena! Afinal, é-se assassinado quando se voga em pleno céu, como uma gaivota feliz? Porque é que lhe tocam no peito, no sítio onde lhe pesa o coração? Porque é que a transportam outra vez, para onde a levam? Porquê aqueles choros, aqueles murmúrios, aquela angústia que a incomoda? Ninguém a assassinou. E o Sol, talvez, ou a luz no lago, está tudo bem...
- Devagar... devagar - grita o capitão. - Levem-na para o hotel, para o quarto dela.
- Um médico! - berra a condessa ao porteiro assombrado. - Assassinaram a Imperatriz!
Outra vez! Deixar-se ir. Hão-de acabar por se aperceber que não é nada disso. Demasiadas mãos no corpo dela, demasiados gestos, quando é que a deixarão em paz? Uma sombra abate-se-lhe sobre o rosto, um leque que lhe rouba o azul das nuvens, quem se atreve? O céu desapareceu. Chegou ao hotel Beau-Rivage, identifica os ruídos, os passos sobre o mármore, um abafado rumor confortável, o leve e antiquado odor dos cortinados de seda, o aroma do sabão, da cera, e o perfume discreto das rosas da baronesa Julie, tudo, distingue tudo. “Se tivesse o meu leque tudo estaria acabado-pensa-num abrir e fechar de olhos! Acabava-se a Imperatriz, acabava-se o assassinato.” Quando abrir os olhos - basta que decida fazê-lo - há-de ralhar com a condessa por ter cometido aquela falta...
- Deixem isso comigo - murmura uma voz desconhecida. - É a minha profissão. Voltem-se todos, tenho de a examinar.
Quem lhe toma o pulso? Quem se permite abrir-lhe a camisa? Que súbito estilete lhe enterram no interior do peito? Tem de se defender, pôr as mãos à frente, gritar... Resolutamente, vira a cabeça, para a direita, para a esquerda, não, não quer, não...
- Infelizmente - diz a voz. - Acabo de sondar a ferida. O golpe foi direito ao coração. Uma lâmina pontiaguda, bem aguçada. Acabou. É preciso avisar o Imperador.
- Mas ela não está morta - disse a condessa a chorar.
- Ainda não, minha senhora. Preparem-no pára o pior: no telegrama escrevam: “Sua Majestade a Imperatriz gravemente ferida.” Chamem um padre, depressa!
Não, pensa ela abanando devagar a cabeça, não, estão enganados, é apenas esta imensa fadiga, um pouco de sono e desaparece, deixem-me todos, quero dormir, sozinha, imóvel, com o meu leque, dêem-me o meu leque, ponham-mo na palma da mão, vai tudo correr bem, - Deus, Pater misericordiarum, quiper mortem et resurrectionem Filii..., - sussurra o padre em casula, tremendo dos pés à cabeça.
- Já está a agonizar - murmura a voz do médico.
- Et ego te absolvo apeccatis tuis in nomine patris, etfilii, et spiritu sancti.
... Chegaram sem prevenir, ela não sabe de onde vêm, e aliás não estão parecidos. Apenas os olhares não mudaram, mas tornaram-se luminosos, brilhantes, tão alegres que ela gostaria de lhes estender os braços, de os cumprimentar, e é aquele sopro desconhecido que lhe sai da boca, um pouco rouco, aquele arrulho de pomba alarmada. Chamam-na, gritam por ela com sons silenciosos, anda, vem connosco, segue por esse corredor escuro que abre para a brancura, não tenhas medo, nós amparamos-te, dizem eles, como as gaivotas dos teus queridos barcos, ela reconhece-os, o teu lugar é finalmente entre nós, dizem eles, minha filha, murmura um, minha mãe, diz o outro, minha irmã, minha prima, diz o último, o mais carinhoso, e os outros, mais indistintos, sorridentes, maravilhosas aparições, porquê resistir? Têm razão, deve partir, vai-se embora, de olhos abertos, lentamente, arranca-se ao corpo estendido na cama, inerte, com os lábios brancos... De olhos abertos, vê o orifício da lâmina que atravessa a pele, a carne, o coração invisível, sabe de súbito quem a assassinou, abençoado seja ele, agradece-lhe, de olhos abertos é livre, flutua.
O médico tira o bisturi e faz-lhe uma incisão numa artéria da curva do braço, num sítio macio que está já a azular. Espera um pouco, abana a cabeça e suspira. O padre persigna-se à pressa, e ajoelha.
- Nem uma gota de sangue - murmura o médico, e fecha as pálpebras com um gesto profissional.
- Não! - berra a condessa deixando-se cair aos pés da cama.
- É preciso mandar outro telegrama ao Imperador - cochicha o médico erguendo-se. - “Sua Majestade a Imperatriz Elisabeth acaba de falecer.”
O silêncio invadiu o quarto; no corredor, o dono do hotel Beau-Rivage desbarretou-se. A notícia chega à arraia-miúda das criadas de quarto e dos encarregados de piso, desce a escada, corre para a rua onde explode diante da multidão que, não se sabe como, se juntou ali. A Imperatriz Elisabeth morreu assassinada. Parece que a polícia prendeu o criminoso, um anarquista de olhos trocistas que se entregou orgulhosamente, de chapéu atirado para trás, para a nuca, gritando à face do mundo a sua satisfação por ter conseguido. Parece que visou o coração e está contente, esse Luigi Qualquer Coisa, porque apunhalou uma cabeça coroada. Parece que terá dito, esse tipo...
L - Como é que ele se chama?
- Luccheni. Luigi Luccheni.
- Ah pois, é isso, parece que se atreveu a dizer que um anarquista castiga uma Imperatriz, não uma lavadeira...
- E pensar que tinha de acontecer aqui, em Genebra! - O nosso lago tão calmo...
- A reputação do hotel Beau-Rivage! Um desastre...
- E ela? - pergunta uma rapariga no passeio. - Alguém pensa nela? Ela? Piedosamente, retiraram-lhe o corpete esburacado, e endireitaram-na na cama; em cima de uma cadeira prepararam outro corpete preto; cruzaram-lhe as mãos juntas sobre o peito, e pousaram o ramo de rosas da baronesa. A condessa, com a cabeça encostada à borda do colchão, rezou durante muito tempo.
- Primeiro, têm a certeza que ela está morta? A gente viu-a correr, uma mulher assassinada não corre!
- Absoluta! A dama de companhia gritou-o em altos berros!
- O Imperador já sabe?
- O cônsul! Aí está o cônsul da Áustria!
Não vem sozinho. Acompanham-no três médicos. Brandamente, o cônsul toca no ombro da condessa que levanta a cabeça sem perceber. Fazem-lhe sinal para sair. O dono do hotel recebeu ordens para mandar dali para fora os criados, que se amontoavam no corredor, e para fechar aquele piso; a polícia dispõe os seus homens. Levam a condessa para os salões do rez-do-chão. E quando não resta mais ninguém no quarto, os médicos legistas despem as sobrecasacas, arregaçam as mangas, tiram o ramo de rosas, descruzam as mãos que estavam juntas, desabotoam as roupas da morta e começam aquela sinistra tarefa, enquanto a gente que está na rua espera sem saber o quê, e conversa para matar o tempo.
Sobre o seio flácido, à esquerda, uma minúscula picada, um pouco de sangue coagulado. O médico-chefe profere ordens breves - reparem primeiro nos sinais da morte, circulação arterial inexistente, vacuidade das carótidas, olho baço e deprimido, pupilas fixas e dilatadas, ponta do pé virada para o exterior, a lâmina penetrou a quatro centímetros do bico do seio. Membros sem fracturas nem luxações, uma equimose no antebraço, outra na anca direita, a queda, certamente. E no ombro, esta marca preta? Parece uma tatuagem - murmura o segundo assistente. - Não diga disparates! - rosna o médico-chefe, que esfrega a mancha negra, em vão. O desenho fica ainda mais nítido: uma âncora da marinha. - Podem imaginar uma coisa destas - suspira o médico-chefe - uma Imperatriz com uma tatuagem no ombro! Esta gente é muito estranha. - Depois faz um sinal, o primeiro assistente abre o estojo de cirurgia e tira um escalpelo. - Abertura do abdómen, como de costume, em seguida iremos ao tórax - diz o médico-chefe. Ficam calados um instante. Depois o escalpelo rasga o ventre, do esterno ao púbis. - Cuidado! Não exagerem! - grita o médico-chefe. - O cônsul foi formal! Os corações da Áustria não permanecem no corpo a que pertencem, vão pára outro lugar, fechados numa urna, é o rito dos Habsburgo, acima de tudo não estraguem o coração, recomendou o cônsul e, baixando a voz, mencionou as vísceras também, para a cripta da catedral de Santo Estêvão.
Lá fora a multidão tem pena.
- Pobre mulher!
- Corria para apanhar o barco! Vestida com tanta simplicidade!
- Na idade dela! Uma Imperatriz não corre!
- Mas corria tão bem - murmura a rapariga. - Eu não era capaz...
- Passem-me as pinças para a abertura do tórax - diz o médico-chefe que, com o escalpelo, retalha a pele, a afasta, depois rasga os músculos, afasta, põe para baixo, brutalmente. - Com tanta força não! - grita o segundo assistente.-Vai danificar o corpo... - Deixe-me cá fazer o meu trabalho - resmunga o médico-chefe, que golpeia as cartilagens, uma a uma, ao longo do esterno. - Agora, o plastrão esterno-costal - anuncia ele - passem-me o martelo e o buril - e dá pequenas pancadas nas costelas para as partir. - Ah! - exclama o primeiro assistente - já está, eu ouvi, as costelas cederam! - Pois - murmura o médico-chefe - é preciso ter cuidado com as esquírolas, e voltar a colocar a pele por cima dos ossos. Compressas, por favor. Enxuguem. Vou afastar o plastrão.
As pessoas continuam ao pé do hotel.
- Se o hotel não tivesse publicado na imprensa um comunicado fanfarrão a assinalar a presença dela! Ela estava aqui incógnita...
- Os proprietários têm muita culpa! Como é que esse Luigi, Luigi quê?
- Luccheni!
- Precisamente. Como é que ele a reconheceu?
- Por causa do leque de cabedal preto...
- Ela não o tinha! - grita a rapariga no passeio. - Eu estava lá. Ela corria sem o leque.
O tórax está aberto. As peles estão a cobrir devidamente as costelas que deixam ver os pulmões, a traqueia, as carótidas. - Compressas, fazem favor. Enxuguem - ordena o médico-chefe enfiando a mão. Ali está o coração exangue, liberto enfim do que o prendia. O médico-chefe dita as conclusões; a lâmina
seccionou nenhuma veia, entrou tão directamente entre as costelas que mal se vêem as lesões, e cá está, no ventrículo claramente, o orifício pelo qual o sangue se escapou lentamente. O instrumento penetrou oitenta e cinco milímetros, atingindo também o pulmão esquerdo. Ela não sofreu. Não sentiu nada.
No passeio as palavras sobem de tom.
- É uma conspiração, eram vários!
- Quem lhe disse isso?
- A polícia!
- E a extrema-unção? Terão pensado em chamar um padre?
- Quando a trouxeram na maca, já estava morta!
- Não é verdade! - grita a rapariga. - Ela sorria, abanava com a cabeça de um lado para o outro, ainda estava viva!
- Bom - diz o médico-chefe - a autópsia está feita, tudo claro. Nada a acrescentar. - Um golpe bem medido, realmente - diz o primeiro assistente.
- Agora o embalsamamento - diz o médico-chefe, e retém a respiração pois o cheiro morno invade-o como de costume, enquanto o segundo assistente tira a cânula para a injecção.-Vamos lá, jovem colega, é a sua vez - ordena o médico-chefe ao primeiro assistente. - Primeiro tem de cortar as carótidas... Não! sob a bifurcação. Isso. - O segundo assistente procura o ar que não encontra e respira muito devagar, de olhos fechados.-Que está para aí a fazer-grita o médico-chefe - está de boca aberta? Tire o líquido de conservação - grita ele - meta-o na cânula, e a cânula introduz-se na carótida seccionada. E quanto ao coração - acrescenta o médico-chefe - é preciso enxugar, compressas. O segundo assistente estende a gaze; em breve, o coração limpo, ainda coberto de veias quase vivas, jaz no peito aberto como um pequenino corpo monstruoso.-Só resta fechar-constata o médico-chefe repondo o plastrão das costelas, e depois as peles rasgadas. - E pensar que era a mulher mais bela do mundo, olhem-me para estas faces inchadas - acrescenta ele. - Como! - indigna-se o primeiro assistente - bem sabe que dentro de dois minutos os inchaços desaparecem! - Ora! - diz o médico-chefe -porquê recusar o trabalho da morte? Vamos, toca a coser isso tudo-ordena ele ainda ao segundo assistente, o mais novo, que suspira antes de pegar no porta-agulhas e no fio de cânhamo, e dá o primeiro ponto em baixo, no púbis.
Ao pé do hotel, a multidão continua à espera.
- O Imperador há-de vir, com certeza...
- Será que ele já sabe? Uma hora depois?
- Com o telégrafo... Já deve saber!
- Um amor assim!
- Oh! Quanto a isso, há menos certezas...
- Mas vocês não percebem que ela morreu! Calem-se! - berra a rapariga.
- ... Cuidado, meu rapaz, apanhe a pele bem por baixo - aconselha o médico-chefe que tapa a boca com um lenço. O segundo assistente está quase na cintura, sobe até à garganta dando pontos miúdos, treme um pouco, aplica-se.
- Vamos, depressa - ordena o médico-chefe que vai à janela e não se atreve a abri-la. Meu Deus, manchámos o tapete! - exclama o primeiro assistente.
- Paciência, alguém há-de limpar. Faria melhor se me ajudasse a vesti-la - rosna o médico-chefe. - Só um instante - protesta o segundo assistente - ainda falta um ponto, já está - e fecha a garganta puxando vagarosamente o fio. - Limpe depressa e enfiemos-lhe um corpete preto, está ali em cima da cadeira - ordena o médico-chefe. -Já viram, são musculosos estes braços, puxe-me isso para baixo para não se verem as costuras que fez, isso, perfeito. Abotoe esses botões... O primeiro assistente debate-se com as casas, as mãos hesitam, atrapalha-se e pragueja. - Raios! Como é que as mulheres fazem para se vestirem? Agora a saia, as meias, os sapatos - dirige o médico-chefe à distância. - Não se demorem.
- Esta cintura - diz o segundo assistente - é incrível, que corpo admirável...
Pela janela fechada entram os gritos.
- Morte aos anarquistas, esses canalhas!
- Morra Luccheni!
A rapariga não diz mais nada. Espreita as sombras que se agitam por detrás das cortinas bordadas.
- ... Talvez fosse melhor pôr um lençol por cima da protecção de borracha - murmura o primeiro assistente. - Tem razão - admite o médico-chefe - levantemo-la todos ao mesmo tempo, pobre mulher... - Ah! Apesar de tudo!... - exclama o segundo assistente. - Mas eu não sou insensível, meu caro colega - rosna o médico-chefe - o que é que julga? Quando tiver feito tantas autópsias como eu, acaba por se habituar! É demasiado emotivo... - Acham que é o momento indicado, meus senhores? - enerva-se o primeiro assistente.
- Acabámos... Não! - brada o segundo assistente - falta a musselina, deixem que eu faço - e coloca-a com fervor, do alto da testa aos pés calçados com sapatos de cabedal fino, bem estendida.
Na rua, as pessoas empurram-se umas às outras.
- Deixem passar! Toca a dispersar!
- Deixe-me entrar, senhor, sou fotógrafo...
- Nem pensar, circule!
- Mas a imprensa! Deixe-me fazer o meu trabalho...
- Tenho ordens, vamos lá embora!
- Abutres - diz ainda a rapariga.
Vestiram as sobrecasacas e estão de pé junto à cama. Na mesa-de-cabeceira vêem-se alguns objectos. Uma aliança presa a um fio de ouro; um relógio metido num pequeno estribo miniatura; enfiadas numa pulseira, uma caveira, um signo solar, uma figa, uma medalha da Virgem, umas moedas de Bizâncio; um medalhão aberto, contendo uma madeixa de cabelo, e um outro bem fechado. E o leque de cabedal. Durante um momento, o médico-chefe brinca com o leque, e observa detalhadamente os berloques da pulseira da morta. Depois junta-se aos colegas que se recolhem diante do cadáver imperial. Os três contemplam o comprido corpo estendido sob o véu transparente.
O médico-chefe saiu por fim.
Agora são apenas dois. Arrumam os instrumentos sujos numa caixa de ferro, levantam a musselina, limpam as manchas de sangue das mãos e do pescoço. Abriram a janela e o ligeiro vento vindo do lago varre-lhes a testa. Ajoelham-se de ambos os lados da cama; a aresta do pequeno nariz inteiriçou-se majestosamente, e a boca distendeu-se, sorridente. - As rugas já estão a desaparecer - cochicha o segundo assistente. - Como de costume, bem sabe - diz o primeiro. - Cuidado! Um moscardo! - grita o segundo assistente levantando-se.
- Um moscardo! Ora! - faz o primeiro assistente. - Deixe-o em paz. E vamos chamar o fotógrafo.
Mas antes de deixar a sala, o segundo assistente, o mais novo, volta atrás, levanta de novo a musselina, cruza os dedos da morta e coloca entre eles o ramo de rosas. O moscardo pára de ziguezaguear, mergulha no coração das pétalas e, de asas em repouso, atira-se vorazmente ao pistilo.
O PERDÃO DO ASSASSINO
No país da traição Onde corre o Tibre antigo E, pensativo, o cipreste saúda O azul eterno do céu Estio a espreita na costa Do mar Mediterrâneo Para nos beliscarem a perna é a guerra, com a Rússia,
ELISABETH
O cavalo avançava a passo, e levantava de vez em quando a boca em direcção às folhas mais verdes. Franz sentia-se feliz. O Sol lançava sobre o Prater os raios velados do Outono vienense, as árvores começavam a amarelar, um leve aroma de madeira queimada antecipava os prazeres do Inverno, tudo estava em ordem. De súbito, Franz avistou o castanheiro, e puxou as rédeas. Um cacho de flores cremosas pendia sob as folhas. O cavalo vacilou um pouco.
- Não é possível - murmurou Franz estupefacto - estio a florir! Em Setembro!
Alçando-se nos estribos apanhou a flor. Pétalas frisadas, sépalas tensas, nada faltava. Era deveras surpreendente. Um milagre...
Pelo sim pelo
não, Franz deitou a olhadela habitual ao caminho: já que os castanheiros floriam pela segunda vez no mesmo ano, talvez ela fosse aparecer? No alazão? Na carruagem?
Mas nada. Ao longe um cavaleiro trotava com ligeireza; nem um único cabriole, nem uma amazona. Nenhuma mulher. Franz soltou um leve suspiro e preparou-se para voltar à cavalariça.
Pelo caminho, reparou num grupo de pessoas em volta de um vendedor de jornais, que gritava, esganiçado, um rapazito muito novo que não mudara ainda de voz. Franz apurou o ouvido e ouviu “assassinado”. “Bom - pensou, distrai-damente - mais um golpe dos anarquistas. Deve ser na Rússia, como de costume.” Os moços de estrebaria acolheram-no placidamente e começaram a escovar o cavalo. “Até amanhã, sô Taschnik - disse o mais velho. - Vai estar um dia como o de hoje. Servus
De qualquer modo, quando passasse pelo próximo ardina, compraria o jornal. Para ver.
Não precisou de pagar para perceber; os gritos abafados, alguns soluços de mulher, depressa reprimidos, uma única palavra em todas as bocas, a nossa Imperatriz, a nossa Imperatriz. Começou a correr como um louco, arrancou um jornal a um ardina enquanto remexia no bolso, e abriu-o. Na primeira página, debruada a negro, em letras gordas, o anúncio:
Deixou-se cair no primeiro banco que encontrou. As letras góticas eram unhadas no papel baço, assassinada, Elisabeth, Imperatriz. Gabriela. “Então - murmurou ele respirando fundo - então...” Com as mãos a tremer, pousou o jornal e procurou os óculos. Não os tinha. Mas sabia-se já atingido: a ideia ali estava. Nunca mais a veria. Gabriela. Absurdo, inelutável, o pensamento comprimia-o todo, nunca mais.
- Então, Franz!-exclamou, furioso.-Ridículol Vejamos quem é que a...
As palavras não saíram. Não resistiu mais e esticou os braços para ver melhor o jornal. Genebra, uma cidade tão sossegada, ia a correr apanhar o barco, era mesmo dela. Um jovem anarquista italiano apunhalara-a com um único golpe, ele cerrou os punhos, morta sem sofrer, morta... Nem se apercebeu de que chorava.
Quando entrou em casa, Anna atirou-se-lhe ao pescoço. Ela já sabia; diante do medalhão da Imperatriz a cavalo, acendera piedosamente uma vela, colocara três grandes dálias cor de fogo.
- Ela volta para cá no sábado, daqui a uma semana - murmurou-lhe ao ouvido. - Nós vamos, Franzi?
Ele nada disse, subiu a escada, fechou-se no escritório e abriu o jornal. Velada por uma enfermeira de olhar oblíquo, estendida num leito de criança, coberta por uma gaze transparente, Elisabeth revelou-lhe o seu último rosto. De pálpebras fechadas, serena, sorridente, parecia dizer-lhe gentilmente: sou eu, não me reconheces? Mas nunca saberás nada, Franzi...
Pegou numa lupa, examinou tudo, a coberta de cetim acolchoado, o dorido perfil da dama de companhia, os cordões de seda a prenderem os cortinados, o jarro branco na bacia de porcelana, o crucifixo nas mãos fechadas, a cruz na braçadeira da enfermeira, observou detalhadamente a imagem até mais não poder ser, julgou reconhecer o ligeiro movimento do braço cruzado sobre o peito, chorou ao olhar de perto o cadáver estendido, adivinhou sob o tecido as incisões, voltou a chorar, e acabou por adormecer com o nariz sobre o corpo de papel de Elisabeth. Ou Gabriela.
Não era a multidão dos grandes dias. Os velhotes concentravam-se nos passeios; mas os outros, todos os outros lá iam tratar dos seus assuntos, caminhavam apressadamente, mirando vagamente o horizonte das ruas vazias. Dominados pela pesada campana de Santo Estêvão, todos os sinos de Viena dobravam a finados.
Franzi, com a esposa pelo braço chegara cedo, na companhia de Attila, e sem Emmy, que estava em Budapeste em casa da sogra, para se familiarizar com a Hungria, dizia ela. Para achar um lugar diante da entrada dos Capuchos era preciso madrugar. Franz postara-se ao fundo dos quatro degraus, o mais perto possível da entrada, no sítio onde os monges esperavam atrás da porta. De onde estava não veria a chegada do cortejo mas, pelo menos, ouvi-lo-ia ao longe. De vez em quando, Anna, tocando-lhe com o cotovelo, dizia em voz baixa: “Já lá vem, Franzi, estou a ouvir os cavalos”, mas eram os da guarda de honra que se mexiam, e nada chegava. “Está bem, está calada” suspirava ele, e pensava naquele dia radioso em que vira a Imperatriz, uma rapariguinha que chorava ao descer de um coche dourado.
Uma a uma passaram diante deles as delegações com ar grave, como convém ao luto pelos poderosos. Os Húngaros entraram com brusquidão, depois saíram, furiosos. Dois ou três nobres magiares em traje de gala proferiram exclamações coléricas, na língua deles, e fizeram rodopiar as capas bordadas, presas ao ombro, insolentemente. Um senhor bem posto cochichou com ar importante. Segundo ele, haviam inscrito no esquife “Elisabeth, Imperatriz da Áustria”; os Húngaros parece que apresentaram um protesto oficial. Attila, aliás, não deixara de sublinhar a indecência daquela denominação.
- Porquê? - perguntou ingenuamente Anna.
- E o que é que se faz da Rainha da Hungria? - perguntou, trocista o senhor - era toda pelos Húngaros, só gostava deles, toda a gente sabe, o conde Andrassy era amante dela, história antiga...
- Um pouco mais de respeito! - murmurara Franz, irritado.
Por sorte, ocupado com os atacadores dos sapatos, Attila não ouvira.
- Mas então e a Boémia? - protestou o senhor - assim como assim, não poderia ela ter escolhido ser também a nossa Rainha?
- Ah! O senhor é checo, pelo que vejo - replicou Franz - deixe-a em paz, não é mais do que uma morta!
- Quanto a ser uma morta, é verdade - resmungou o homem - mas isso não é razão para humilhar os seus povos. Até mesmo dentro do caixão ela despreza-nos.
- Cale-se - bradou Franz alteando a voz.
- Vocês, os Austríacos, pouco se importam com os povos que vos rodeiam, não é? - continuou o homem num tom melífluo.
- O senhor cala-se ou não se cala? - berrou Franz sem se conter.
A multidão começara a murmurar - que malcriadão, aquele tipo, portem-se como deve ser, silêncio... Attila começava a enervar-se; Franz voltara-se de chofre e lançara sobre quem protestava um olhar de desprezo. Anna puxou-lhe ansiosamente a manga e segredou: “Franzi, este senhor é checo, e tu bem sabes que ela pouco ligava aos Checos”, e ele lembrou-se tarde de mais que também ela era da Morávia, com o tempo esquecera-se. O Império acabaria por morrer com as querelas entre Eslavos e Húngaros; um dia o Império sucumbiria às disputas...
O senhor bem posto esgueirou-se para mais longe, a ordem voltara. E o lento zunzum da multidão silenciosa.
- Doem-me os pés - sussurrou Anna - demora tanto - e Franz aconselhou-a a esfregar as pernas, “este dobre terrível - pensou - que idade tinha ela quando casou? Quinze, dezasseis anos talvez? Os degraus estão quase na mesma, um pouco mais gastos, a pedra envelhece melhor do que os humanos”. Passou a mão pelo crânio calvo, que tanto fazia rir Gabriela, era Gabriela quem estava no catafalço dos Habsburgo? Será que ela lhe faria um último sinal antes de desaparecer?
Sua esposa soltou um pequeno grito: “Desta vez, tenho a certeza, escuta, os lipizzanos, os lipizzanos...” Ele ia responder-lhe torto, mas ela tinha razão.
Apenas se ouvia o pisar dos cavalos e o passo abafado do cortejo de luto pesado. A multidão soltou um imenso suspiro ao avistar, curvada, a silhueta familiar do velho Imperador, o bigode de uma brancura tranquilizante, os olhos eternamente sensatos, de uma tristeza conveniente, como convenientes eram os véus negros que adejavam levemente sobre as damas da família imperial. Ao lado do monarca, caminhavam em passo solene as arquiduquesas, as altezas, e atrás delas, oitenta e dois soberanos vindos de toda a Europa. Franzi não viu nada; mas ouviu o lamento do povo de Viena, “O nosso pobre Imperador...”, enquanto os cavalos se aproximavam. Os penachos negros que traziam entre as orelhas não tardariam a aparecer.
Anna pôs-se em bicos de pés, estendeu o pescoço, virou a cabeça, e voltou a cair sobre os calcanhares, pesadamente. “Não se vê nada” disse ela despeitada. “Espera-ralhou ele dando-lhe um pequeno encontrão-já vais ver.” O catafalco de cerimónia virava na esquina da praça, imobilizava-se diante da igreja dos Capuchos, os cavalos resfolegaram, tudo parou.
O Camareiro-Mor da Corte imperial bateu lentamente na madeira da porta fechada. No meio de uma vaga turbação, Franz ouviu no interior da igreja a voz abafada do abade capuchinho salmodiar a primeira pergunta: “Quem vem lá?”
Maquinalmente, Franz mastigou baixinho a resposta ritual que o Camareiro-Mor lançava aos quatro ventos: “Abri a porta, sou Sua Majestade a Imperatriz, Rainha da Hungria...” E porque é que não fora o Imperador? Quando seria a vez dele? Porquê ela, tão nova ainda, tão bela? E o capuchinho respondera já de acordo com as normas: “Não te conheço. Segue o teu caminho”, mal se ouvia. “Mais duas perguntas - segredou-lhe a esposa - e pronto, ela entra.”
“Acabem com isso de vez!” pensou ele, exasperado, enquanto o Camareiro-Mor batia solenemente à porta pela segunda vez, e pela segunda vez dizia: “Abri a porta, sou a Imperatriz, Rainha da Hungria, peço para entrar.” Franz agitou-se aquando da segunda pergunta; poderiam ter acrescentado outros títulos de nobreza, duquesa da Alta e da Baixa Silésia, condessa de Bregenz, duquesa de Auschwkz e de Ragusa, não faziam nenhum esforço, executavam o ritual sem coração e sem alma, já não amavam a Imperatriz. O capuchinho atamancara a resposta ritual, não-te-conheço, segue-o-teu-caminho e já o Camareiro-Mor se apressava a bater, mais rápidas, três pancadas, as últimas, três pancadas, pára sempre. O coração de Franz parou. Attila começou a soluçar.
Pela última vez o capuchinho perguntou: “Quem vem lá?”, Franz respondeu a meia-voz como se fosse uma oração: “Sou Elisabeth, pobre pecadora, solicito humildemente o divino perdão”, a porta ia abrir-se, o batente rangeu, apareceu o capuchinho, a multidão suspirou, a Imperatriz passara no exame dos mortos. Os lacaios iam retirar o esquife, lentamente o caixão trabalhado passou diante dele, lentamente subiu os degraus, seguido pelo Imperador num passo mecânico... Franz quase gritou, tantos anos desfilavam em silêncio. Lentamente os véus negros entraram pela porta aberta, o resto pertencia aos Habsburgo, e pronto. Attila limpou as lágrimas, e assoou-se ruidosamente.
Nenhum sinal. Elisabeth não se dignara manifestar a sua presença. Nem um sopro na nuca de Franz, nem um arrepio na pele, nada. Talvez, afinal de contas, não fosse Gabriela... - não posso mais - murmurou Anna. - Vamos para casa.
A fotografia do assassino saiu na imprensa vienense. Solidamente ladeado por dois polícias suíços, sorria abertamente debaixo do bigode louro como um noivo que volta do casamento; trazia, puxado para a nuca, um chapéu mole. As calças demasiado largas e a camisola interior de mau aspecto diziam o suficiente sobre a miséria do homem; de resto, em breve se sabia tudo sobre Luigi Luccheni. Um pobre diabo, nascido nos caminhos do acaso, de uma mãe desconhecida, uma italiana que o parira como quem pare um cachorro, em Paris, e depois o abandonara. A sua vida acidentada levara-o a tornar-se criado do Príncipe de Aragona, que ficara descontente com os seus serviços, mas que o achava nervoso, um pouco estranho; andara com más companhias, e depois o caso Dreyfus fizera-o virar-se para o movimento anarquista.
Nunca quisera assassinar a Imperatriz. Os seus desígnios tinham-se fixado num outro soberano, de quem estava à espera, e que viera; à falta de melhor, voltara-se para a falsa condessa Hohenembs, no dia em que, por vaidade, o hotel Beau-Rivâge não pudera resistir a uma tal glória, e informara os jornais da ilustre presença.
A arma do crime parecia-se com Luigi Luccheni: um estilete, muito bem aguçado como o seu ódio, e fixado a um mau cabo de madeira; um instrumento atamancado, como a vida dele. Franz, teria passado bem sem conhecer a biografia do assassino; pois quanto mais avançava nas leituras, mais se apercebia, sem ousar confessar a si próprio, da revolta inflamada do jovem italiano. É certo que o operário anarquista premeditara abater o conde de Paris, que à última hora desistira da sua estadia na Suíça; é certo que assassinara por acaso a primeira cabeça coroada que vinha a Genebra, a da Imperatriz. Mas persistiam demasiados rancores entre a Itália e a Áustria, e o malfadado comunicado do hotel Beau-Rivage deveria ter atingido Luccheni como um tiro. Elisabeth a Austríaca... não
havia dúvida de que o passado da península também contava naquele caso.
Alguns dias após o atentado, saiu nos jornais uma carta colectiva, assinada por mulheres e raparigas de Viena. Nessa carta, descreviam o suplício que sonhavam para o assassino: deitá-lo-iam numa banca de açougueiro, cortar-lhe-iam-braços e pernas e, para lhe adoçarem as penas, porque tinham bom coração, lavar-lhe-iam as feridas sangrentas com vinagre e sal. Para grande desgosto das vizinhas, Anna recusara-se a assinar a petição.
Da prisão, Luigi Luccheni escrevia inúmeras cartas. O velho redactor-chefe de um jornal napolitano, o Don Marzio, conhecido pelas suas tendências progressistas, recebeu uma missiva do assassino. “Se a classe dirigente não tentar conter a sua avidez de sugar o sangue do povo, os reis, presidentes, ministros e todos os que procuram subjugar o próximo, nenhum deles escapará aos meus justos golpes. Não vem longe o dia em que os verdadeiros amigos dos homens apagarão as máximas que são muito respeitadas hoje em dia. Uma única bastará: quem não trabalha, não tem direito a comer.” E assinava por extenso: o seu dedicado Luigi Luccheni, anarquista convicto.
Depois escreveu ao presidente da Confederação helvética, para exigir ser julgado de acordo com as leis do cantão de Lucerna, onde existia a pena de morte. Essa carta vinha assinada: Luccheni, anarquista muito perigoso.
Finalmente, oito dias após o drama, à princesa de Aragona, sua antiga patroa, escreveu que tinha um coração feroz, e que subiria alegremente os degraus da guilhotina, sua bem-amada, sem ter necessidade de ajuda. Comparava-se ao capitão Dreyfus, clamava contra a injustiça do mundo e congratulava-se por ter cumprido o seu dever, como um verdadeiro comunista.
- Reparaste? O assassino era um excelente cavaleiro, como a Imperatriz - observou Anna displicentemente. - Até fazia acrobacias. Um jovem de vinte e seis anos, que pena!
- Vinte e seis anos! - exclamou Franz com assombro. - A idade que eu tinha quando...
- Quando me abordaste diante daquela pequena orquestra da Galícia, meu Franz, é verdade... Estava a pensar nisso há bocado - murmurou a terna Anna com um sorriso.
- Eu também - mentiu Franz corajosamente.
- Vem a dar no mesmo - continuou Anna pensativa - dir-se-ia quase que se pareciam, a Imperatriz e ele.
- Cala-te! - gritou Franz exasperado. - Sabes lá de que estás a falar! A Imperatriz e Luccheni? Mas tu não lhe conhecias a timidez, a reserva, ela era arisca como uma rapariguinha, e...
- Dir-se-ia realmente que a conhecias bem! Meu pobre Franzi... Estás a delirar. Um dia ainda me hás-de dizer porque lhe dedicavas uma tal adoração. Não mintas!
Pouco faltou para ele revelar finalmente o segredo que calava havia tanto tempo. Mas como a desconhecida morrera, decidiu não a atraiçoar.
Na gaveta do seu gabinete, encontrou a velha caixa de folha onde arrumara o leque e as cartas; juntou-lhes piedosamente a fotografia da Imperatriz no seu leito de morte em Genebra e, movido por um misterioso e sacrílego impulso, a do assassino de sorriso radiante.
Franz tinha a certeza: com Gabriela desaparecera a garantia da sua própria felicidade. Ela pudera viajar, ausentar-se, calar-se, não responder, mas pelo menos estava viva, e essa longínqua vida protegia o universo dos Taschnik. Agora que descera à cripta, o sortilégio deixaria de actuar.
Uma semana após o funeral da Imperatriz, Emmy escreveu aos pais que fora contratada em Budapeste por um grande hotel, como cantora, com um bom salário; cantaria ao fim da tarde, e voltaria para casa à noite para se ocupar do esposo; contava com eles para convencer o tio Attila. O húngaro, hesitante, compreendeu que tinha de voltar para a sua terra, e encontrar um lugar na administração magiar; Franz fez o que pôde para o reconfortar, e lembrou-lhe que o prevenira: Emmy queria cantar custasse o que custasse...
Mas Anna aceitou muito mal a coisa; Emmy não seria fiel ao marido, tinha a certeza. Durante a noite teve uma nova crise de falta de ar; no dia seguinte, perdera a voz, e tossia que era de partir o coração. O velho doutor Bronstein abanou a cabeça, afirmou que Viena estava cheia de casos do mesmo género, que o vento Sul, ofoebn, provocava perturbações respiratórias e que as senhoras sofriam muitas vezes daqueles padecimentos inelutáveis. Ainda assim, desta vez, como quem não quer a coisa, recomendou que consultassem um psiquiatra; a doença de Anna começava a ultrapassar as competências dele. Franz agradeceu-lhe cortesmente, e decidiu não fazer nada. Em vez disso, foi buscar as partituras que não serviam há alguns anos, mandou afinar o piano e recomeçou a tocar violino. Anna voltou às escalas com entusiasmo.
Apesar de tudo, Franz tinha esperanças numa velhice feliz. Se tivesse um filho de Attila, Emmy acalmar-se-ia, estava o pai convencido. Anna acabaria por recuperar o equilíbrio, assim que tivesse passado o cabo difícil que as mulheres daquela idade sempre atravessam. Toni tornar-se-ia sem dúvida um grande poeta...
E depois havia Viena, a incomparável. Havia as valsas do maestro, que envelhecia galhardamente e continuava a compor; nas colinas, haveriam ainda de beber vinho branco ao som dos músicos da orquestra Schrammel, o Prater continuaria a ser o mais belo jardim do mundo, os castanheiros floririam na Primavera, primeiro os brancos, os cor-de-rosa depois, e as rapariguinhas melosas ririam de novo às gargalhadas mostrando as botinas. Nada podia destruir o encanto da cidade admirável onde Franz nascera, vivera, encontrara a desconhecida do baile e depois Anna, sua mulher. Sim, Viena havia de ser sempre uma cidade feliz.
Como bom vienense, Franzi estava, acima de tudo, vocacionado para a felicidade.
Um mês mais tarde, Luccheni foi julgado na Suíça; continuava a sorrir. Quando lhe perguntaram se estava arrependido do acto que praticara, afirmou que de modo nenhum. Voltaria a fazê-lo se fosse caso disso? Sem qualquer dúvida. A defesa contentou-se com um único argumento, que não comoveu ninguém: se a Imperatriz tivesse sobrevivido - dizia o advogado - teria pedido o perdão do assassino.
O perdão para o assassino! Para um regicida! Um anarquista que não mostrava o mínimo arrependimento! Era preciso acabar com aqueles terroristas, aquela gente que não reconhecia nem Deus no céu nem a Autoridade na terra - gritou o procurador-geral. - Um homem que atacara uma mulher indefesa...
O advogado insistia, o crime não tinha desculpa, mas a vítima tinha um coração generoso, suficientemente generoso para pedir, lá voltava ele, o perdão para o enjeitado...
Não foi essa a opinião dos quarenta jurados de Genebra, que condenaram Luccheni à pena máxima, prisão perpétua. Quando o presidente leu o veredicto, Luccheni pôs-se a gritar:
viva A anarquia! morte aos aristocratas!
- Fez-se justiça, entrou tudo nos eixos - disse Anna ao ler o jornal. - Estou bem satisfeita por não haver pena de morte em Genebra - acrescentou no entanto. - Pobre Luccheni.
Franz pensava principalmente em Gabriela, e dava por si a esperar ter-se enganado do princípio ao fim.
De resto, os Taschnik tinham outras preocupações. Attila acabava de enviar uma carta de Budapeste, Emmy voltava para casa cada vez mais tarde, com frequência com um grão na asa; não se ocupava da casa, a velha senhora Erdos estava muito contrariada, em suma, Attila pedia ajuda aos amigos, seus sogros, e suplicava-lhes que convencessem a filha a renunciar ao canto.
E contudo, que linda boda eles tinham tido! Um ano após o Milénio da Hungria, os Taschnik haviam casado Emmy e Attila, com grande pompa, em Viena. O húngaro não cabia em si de contente; no seu vestido comprido de cetim branco, toucada de pérolas e rosas brancas, Emmy parecia finalmente uma noiva tradicional. Ria muito, bebeu muito champanhe e cantou à sobremesa. Três anos apenas, e o casamento a ir por água abaixo!
Franz escreveu à filha uma carta cheia de admoestações, exigiu que pusesse fim ao contrato, fez-lhe notar que a mãe sofria com aqueles desvarios, sugeriu que talvez um filho lhe fizesse bem... Attila respondeu que Emmy continuava a cantar, infelizmente, e que não assentava, bem pelo contrário. E como a filha indigna nem sequer se dignara escrever ela mesma a resposta ao pai, Anna chorava todos os dias. O bom velho Willy já não conseguia distraí-la; nem sequer era capaz de a exasperar. Aliás, o amigo Willibald tinha muito menos graça, e alimentava pensamentos sombrios.
Já não ia aos meetings anti-semitas, e deixara-se convencer por Anna que aquilo já não era para a idade dele, muito simplesmente. Dizia-se cansado das violências, queria tranquilidade, música e, acima de tudo, não queria perder os amigos. Cedera, dizia ele, por afecto; mas Anna sentia que havia outra razão que ela não adivinhava.
Deixara de haver noivas na aldeia; Franz notara que Willy chegava cada vez mais tarde ao ministério. Inchado, desfeito, dizia que vinha do dentista, e queixava-se dos dentes, que lhe caíam um a um; tinha dores de cabeça horríveis, e um herpes no rosto que lhe corroía o lado direito. Presentemente, Franz tinha a certeza, a doença de Willy progredia. Não se atreveu a abrir-se com a esposa, que queria ver a verdade, e a quem ele preferiu deixar na ilusão.
Um dia, Willibald Strummacher desapareceu do ministério.
Ao cabo de algumas horas, inquieto por não o ver aparecer, Franz correu a casa do amigo, e descobriu-o estendido na cama, de revólver na mão. Metera uma bala no coração, e deixara uma carta para Anna, onde descrevia os sofrimentos causados pela sífilis que o minava havia perto de vinte anos.
Todas as noivas eram imaginárias; inventara aquela fábula por fanfarronice, e por amizade, para não afligir os amigos. Por todos os disparates que cometera, pedia perdão, principalmente a Anna, a quem legava tudo o que possuía, a quinta, os terrenos, e o pequeno apartamento de Viena. A Franz deixava, dizia ele, a recordação de um baile especial, onde haviam sido felizes juntos, Franz compreenderia. Tudo aquilo era muito bonito, escrevia ele, mas pedia-lhe, para terminar, que fizesse o favor de avisar a senhora Ida.
A SENTINELA
Sentado a secretária A alva me encontrou. À papelada, consciencioso De sentinela estou.
Elisabeth
A Imperatriz morrera havia mais de um ano. Uma semana após o funeral, por instruções imperiais, fora fundada em sua honra a Ordem de Elisabeth, “para mulheres de mérito, alcançado nas diferentes profissões”. Alguns dias mais tarde, o abade Lachenal, vigário da paróquia de Nossa Senhora de Genebra; os doutores Albert Mayor, Auguste Reverdin e Auguste Mégevand, médicos legistas, haviam sido condecorados com a Ordem de Francisco José, por serviços prestados no momento do falecimento da soberana.
O assassino fora julgado. Era um prisioneiro modelo.
No dia seguinte ao do aniversário do atentado, o velho senhor levantou-se às três e meia como todas as manhãs. Por vezes, gostaria bem de preguiçar um pouco na cama de ferro, mas não podia ser. Um Imperador tem deveres para com os súbditos; instalou-se pois à sua mesa de trabalho, diante dos processos.
Mesmo de frente para ele, mandara colocar um retrato dela, o seu preferido, que o pintor Winterhalter executara trinta anos antes. Na mesma época, o artista pintara as célebres telas em que a Imperatriz, na sua radiosa glória, posava vestida de tule branco, com um colar de grossas pérolas preso ao pescoço com uma fita preta, e estrelas de diamantes espetadas nas tranças. O outro retrato era muito mais simples; iluminada em contraluz, estava com uma romeira de noite, envolta na pelagem do cabelo. O retrato oficial fora copiado em vários exemplares, mas o outro era único, como ela. Nas duas telas ela tinha o mesmo sorriso forçado, e o mesmo olhar um pouco triste.
Desde que ela encontrara a morte que tanto procurara, o velho Imperador estava finalmente em paz. Enquanto fora viva, ele não deixara de tremer. Desde o princípio, ou melhor, desde o primeiro dia, quando não tinha a certeza que ela aceitaria desposá-lo. Sim, soubera imediatamente que ela tentaria escapar-lhe, e fora o que ela fizera, sem descanso! Receara tudo, a tísica, o acidente de cavalo, o afogamento, as tempestades, as dietas, as marchas forçadas, o suicídio, tudo, sem um momento de repouso. Chegou mesmo a esperar que arranjasse finalmente um amante, que fosse adúltera, só um bocadinho, como ele, normalmente... Um amante teria sido um perfeito animador para Sissi...
Mas não! Ela não gostava o suficiente do amor dos homens. Esperara em vão; nem Andrassy, nem Middleton, nem nenhum outro, ninguém servira. Durante algum tempo, estivera atento aos relatórios da polícia que falavam de um misterioso jovem que ela conhecera num baile, em Viena; dera ordens para que o rapaz não fosse incomodado. O idílio durara quatro meses, o tempo de algumas cartas cuja existência ele conhecia, mas que, segundo o ministro do Interior, não tinham consequências. O jovem, um bom funcionário cujo nome o Imperador esquecera, era irrepreensível; casara com uma judia da Morávia, de quem tivera dois filhos; a última carta datava mais ou menos da morte do primo Luís, e o conjunto não merecia o mínimo cuidado. Não obstante, o funcionariozinho continuou a enviar todos os anos duas cartas à Imperatriz, uma para Munique, em nome de Gabriela, transmitida pela polícia bávara ao ministro do Interior austríaco; a outra à Burg. O ministro do Interior propusera-as ao Imperador, e o Imperador não dissera que não.
Lera-as. Nada a assinalar.
E portanto, ela fora de uma fidelidade extrema, formalmente, pelo menos. Porque a infidelidade fundamental de que ela se tornara culpada para com ele datava também do primeiro dia, ele sabia-o. Mas também por que não aceitara ele a noiva escolhida pela mãe, aquela imperial Helena, que ele tinha ido conhecer a Bad Ischl ? Sem dúvida que ela teria desempenhado muito melhor o papel de Imperatriz. O velho senhor continuava a não entender porque é que, no último momento, se furtara às providências maternas, desdenhara Helena e se apaixonara violentamente pela irmã mais nova em quem ninguém havia reparado, excepto ele.
Na verdade, nunca percebera bem. Demasiado empertigada, a jovem Helena, demasiado fria, de braços secos e pele esbranquiçada; à primeira vista, fora a outra que ele vira, a incivilizada que ria às escondidas, a mal penteada cujas madeixas delirantes rejeitavam os ganchos, uma raposinha malcriada, e que cheirava a floresta. Um ataque de loucura forçara-o a escolher a mais nova em vez da mais velha; não parara para pensar, seria ela e pronto. Também talvez a hostilidade da mãe. Talvez um sopro de juventude, talvez nada, ou simplesmente o amor. Porque se o amor existia, ele amara aquela mulher mesmo contra a vontade dela.
Desde o primeiro dia. Prometera a si mesmo amansá-la. Primeiro com jóias com as quais ela não sabia o que fazer. Depois, reflectindo, julgara que ela preferia coisas vivas; foi o papagaio cor-de-rosa, uma boa ideia, a única talvez. Sonhara como um doido com a noite em que a tomaria nos braços; e fora então que o horror começara. Corpo crispado, choro contido, esgares de dor, e aquele pequeno suspiro exasperado que ela soltava sempre depois de fazer amor... Apesar dos quatro filhos, ele nunca a possuíra realmente. Nem um grito de gozo, nem um gesto mais terno, nem um gemido de prazer.
O milagre, era que nada se tivesse passado de mais desastroso, o milagre era aquele retrato em frente dele, e uma vida partilhada, em suma, fosse como fosse. Com a idade, acabara por se cansar, e quando ela lhe oferecera a Kathy Schratt à guisa de substituta, ele não levantara obstáculos. A Schratt aborrecia-o um pouco com as suas pretensões, mas era doce, terna, e pelo menos fazia de conta que o amava, e talvez até nem fosse sempre a fingir. Pagava caro, em jóias, o preço da sua ligação oficial; quanto às outras conquistas, não lhe haviam deixado marcas na memória. Porque na sua memória permanecia a recordação do ano terrível. Um buraco negro na têmpora.
Por que teria ele, naquele dia, exigido da polícia que lhe encontrasse a qualquer preço informações sobre a pequena Vetsera? Por raiva, por vingança contra aquele filho conspirador e os seus panfletos cruéis; o último, o que ele publicara em alemão em Paris, um ano antes de Mayerling, assinando Julius Felix, era de uma ferocidade sem igual. Em Paris! O ancião lembrava-se ainda, adivinhara haver ali a mão de Clemenceau, e do seu cunhado Moritz Szeps, todos da franco-maçonaria, uma ralé anticlerical. Sem dúvida aqueles dois é que tinham aconselhado o projecto de divórcio, de uma incrível vulgaridade... Quando se é de raça divina, quando se descende de Carlos V, quando se beneficia simultaneamente da unção do Senhor e das bênçãos populares, como é possível um tal atrevimento! Rodolfo tinha uma alma republicana; o divórcio era prova disso. E morrera como um alfaiate. Divórcio, suicídio, flagelos do espírito republicano.
A polícia fizera o seu trabalho, e descobrira a melhor arma contra o Príncipe Herdeiro. Nada podia, de facto, matá-lo com maior segurança; mas isso, o Imperador não havia previsto.
Após o drama perguntara se as informações eram verdadeiras; a polícia hesitara, o suficiente para dar a entender que nada era realmente certo. A baronesa mãe, Vetsera, tentara a sua sorte com o jovem Príncipe, talvez até tenha conseguido mas, quanto ao resto, eram só hipóteses. Poderia a pequena Mary ser o resultado de um fugaz acasalamento nas sombras do parque de Gódóllõ? O ministro do Interior confessou que talvez tivessem alterado um bocadinho as datas.
O ancião sentira um alívio horrorisado, e voltara-se logo para a hipótese da loucura dos Wittelsbach, que explicaria o gesto desesperado. Não faltavam sinais de desequilíbrio mental na família, a começar por Sissi, o que, segundo uma nova teoria de origem francesa, tinha a ver com a psicastenia. Outros em Viena, uns fedelhos anticonformistas, começavam a falar também de histeria feminina por tudo e por nada, mas ele não distinguia uns dos outros, os médicos diziam sempre disparates. Ele era o mais bem colocado para saber que sua mulher era apenas um pouco perturbada. Tê-la-ia amado tanto se assim não fosse? Tinha dúvidas.
Muitas vezes, diziam-lhe que a Imperatriz não fora uma boa mãe. Era injusto; a etiqueta roubara-lhe três filhos, dos quais dois tinham morrido, a pequena Sofia em Buda, e Rodolfo. Quanto à quarta, Sissi enchera-a de um amor tão terrível que a pobre criança quase sucumbira.
No dia em que a “querida” viera refugiar-se junto dele pela primeira vez, o velho Imperador ainda se lembrava, tinha ela doze anos, pedira-lhe autorização para lhe falar em alemão; a mãe exigia dela um implacável húngaro. A esse sinal, ele pressentira o sobressalto da pequenita; estava salva. Aliás, apaixonara-se sensatamente pelo primo. A mãe não se opusera ao casamento, e apesar de alguns choques de última hora, Maria Valéria desposara o homem que amava. Levava uma vida regular; enfim, não totalmente. Também torcia o nariz às pompas do Império, pendia para um pessimismo republicano, como se tivesse herdado a alma do irmão morto; após a morte da mãe, só Deus sabia onde a levariam aquelas inclinações. Mas quanto a isso, Deus providenciaria, como sempre.
Apesar de tudo o velho senhor não estava descontente. Conseguira proteger a esposa, enfim, não completamente. Atravessara a vida como uma revoltada, rebelde à Corte, à Burg, a Viena, ao Imperador, sem realmente desconfiar da vigilância constante de que beneficiara. Ele aceitara quase tudo, excepto uma viagem à Tasmânia; muitas vezes a defendera o mais oficialmente possível, até contra os Vienenses. Afirmara que ela estava a seu lado, esposa admirável, e que sem ela não conseguiria reinar. Este último ponto era o único que não era mentira; sem ela, teria estado mais sossegado, teria tido menos preocupações, mas não teria experimentado nem o receio nem a emoção, nem a tenaz esperança de vir a ser um dia perdoado por ela.
Perdoado porquê? Sempre se sentira culpado. Até antes daquela infecção, depressa curada, que herdara de uma condessa efémera, e que pouco o marcara, enquanto que, pelo contrário, à esposa! Mas nunca Sissi se explicara, não, bico calado. Bico sempre calado sobre a intimidade deles. Muitas vezes pensava num conto que descobrira um dia num livro de lendas asiáticas, e no qual uma princesa, apaixonada pelo marido, fora vítima de um sortilégio. Enquanto ele não estava presente, ela adorava-o; mas no instante preciso em que ele se aproximava, ela desfalecia. O desgraçado só podia enlaçar um corpo sem vida. Perdoar o quê? A súbita paixão do primeiro dia? Era a única explicação.
Ele era Imperador, sequestrara-a, e nem sequer se apercebera. Ela passara a vida a dar-lhe a entender isso.
Qual era o saldo da felicidade? O primeiro olhar em Bad Ischl, e a inocência da criança virgem, o seu riso descontrolado; o olhar dela, deslumbrado, perante o papagaio cor-de-rosa. O último encontro em Bad Ischl, e aquele passeio apaziguado pela velhice, que demorou tanto tempo a amadurecer. E a noite de Buda, após a coroação, quando ele entrara na obscuridade, quando ela lhe pedira um último filho e lhe abrira os braços de livre vontade, uma única vez.
Quanto ao resto, as pegas quotidianas, a linguagem agressiva, as farpas e os ataques de cólera, o ancião confiava na sua prodigiosa capacidade de esquecimento. Sissi não fora uma esposa fácil; mas ele nunca se entediara com ela. Doravante, não mais sentiria a angústia de pensar que viriam anunciar-lhe uma morte brutal, porque tal já acontecera. Tivera nas mãos o telegrama tão temido, com uma cruel sensação de alívio e de remorso, pronto, ali estava, tinham-na matado, como previsto. Mal chorara; menos que aquando da morte do filho. Com ela, desaparecia da sua existência a desordem; poderia contemplar à vontade a farta cabeleira à qual se prendera o seu destino de Imperador, no retrato, diante de si, imóvel para sempre.
Dos documentos que tinha para despacho, o primeiro que tirou fora-lhe enviado da Hungria; era uma litografia a preto e branco publicada em homenagem à falecida Rainha. Uma piedosa imagem onde o artista representara a dor dos Húngaros. Um Magiar, qual rei dos Hunos, caído junto a um túmulo, chorava a sua Erzsébet, cuja alma soberana planava sobre a Hungria. Estranhamente, o artista representara a Rainha vestida com um corpete agaloado, e pusera-lhe duas enormes asas, um anjo em traje de baile, e sem pernas. No céu flutuava a coroa dos Reis da Hungria, à qual a Rainha, porém, não tinha direito. A coroa era dele, do Rei! Até na morte ela se apropriava da Hungria...
Em cima do túmulo o artista colocara dois objectos: o leque e as luvas. Era algo que sensibilizava. Tanto mais que a fidelidade dos Húngaros continuava a ser o pilar do Império, cujos tumultos incessantes o ancião constatava todos os dias.
O poderio alemão era uma ameaça; as populações voltavam aos seus demónios revolucionários. Por todo o lado havia protestos contra a tutela imperial. No ano anterior, ao decidir impor a língua checa, além da alemã, aos funcionários colocados na Boémia, o Parlamento provocara o descontentamento dos Alemães. Bateram-se na Câmara, ao soco, atiraram jarros de água uns aos outros, a tribuna fora tomada de assalto pelos partidários de Schõnerer... O sucessor designado, o arquiduque Francisco Fernando, não tinha boa índole, e odiava os Húngaros. Por quanto tempo ainda poderia o Imperador subscrever as comunicações que iniciava daquele modo que o enchia de orgulho, Aos meus povos} Por quantos anos ainda ouviria ecoar o seu título oficial, Wtrgnaíngsttr %aiser, IÇímig und^Herr} Cinquenta e um anos antes, subira ao trono imperial graças a uma revolução; uma revolução podia expulsá-lo de lá, não seria o primeiro...
Rodolfo teria razão quando dizia esperar o fim do Império austríaco? Talvez de facto viesse a república, talvez... E haviam já celebrado o Cinquentenário do seu reino!
Desde que, pelo menos, não tivesse de assinar uma declaração de guerra, o velho Imperador sentia-se capaz de carregar com aquele mundo disperso, aquela massa gigante de potenciais nações, como um daqueles Atlantes de pedra gasta, cujos braços musculosos suportavam os palácios vienenses, e que não cediam nem à neve nem ao vento. Era preciso durar, simplesmente.
Suspirando, o ancião arquivou a gravura e preparou-se para examinar o processo da sucessão da esposa, que após longos estudos, finalmente, acabavam de lhe entregar.
Ela previra tudo. A fortuna ia para os filhos, e privilegiava a filha da Hungria, a Querida. Das jóias nada restava, excepto uma tiara de pérolas negras que, dizia ela, dava azar. Tudo parecia em ordem. Bruscamente, o velho senhor lembrou-se da última entrevista.
Ela formulara dois pedidos. Do primeiro, ele recordava-se perfeitamente: pelo aniversário, ela queria um hospital de alienados último grito, construído numa das colinas de Viena; era preciso dar essas instruções o mais depressa possível. Sobre o segundo, o ancião hesitou: o que é que ela tinha pedido? Tratava-se de dar um título de nobreza a um funcionário de mérito, cujo nome ele assentara logo num caderno. Onde é que estava então o nome do protegido de Sissi? E aliás, como o conhecia ela?
Demorou alguns minutos a encontrar o caderno, e a página onde escrevera o nome do desconhecido, Franz Taschnik, chefe de secção no ministério dos Negócios Estrangeiros, parte administrativa. Taschnik, Franz... Já lera aquele nome em qualquer lado, num relatório de polícia dizendo respeito à Imperatriz. Estaria ele na Madeira no séquito dela? Não; lá só havia jovens militares. Tê-la-ia ele acompanhado num barco? Mas a que título? Um homem que, por definição, não era diplomata, e não estava no estrangeiro?
De súbito lembrou-se; Franz Taschnik era o jovem do baile, aquele a quem ela escrevera, quatro vezes, e que a perseguia todos os anos com cartas que ela não recebia. Por tanta constância frustrada, Franz Taschnik bem merecia um título de barão; o Imperador preparou para o serviço do protocolo uma nota que assinou com a satisfação do dever cumprido.
No fundo, sempre soubera quase tudo sobre ela. Com uma excepção, os poemas. No dia a seguir ao atentado, encontrara numa gaveta secreta um cofre-zinho de cabedal escuro, com uma carta endereçada ao duque de Liechtenstein, e instruções precisas para a publicação póstuma dos poemas. Não procurara saber mais; confiara tudo ao duque Rodolfo. Não conhecia o número dos poemas da Imperatriz nem o que ela decidira fazer com eles no futuro. Mas talvez fosse prudente deixar as coisas como estavam; só Deus sabia o que se descobriria lá dentro. E já que ela toda a vida fomentara conspirações facilmente descobertas, ele deixava-lhe aquela em herança, para sempre. Quando, depois de morto, fosse ter com ela à Cripta dos Capuchos, teriam a eternidade para esclarecer aquele último mistério.
Tinha ainda no ouvido as últimas palavras que ela lhe dissera: “Esperarei por si muito serenamente na Cripta, onde já não corro o risco de o deixar...” Não sonhara, ela acrescentara “meu querido”. Mas para ele, que não acreditava em almas do outro mundo, não era necessário ir visitá-la ao lugar onde ela e o filho repousavam em dois grandes sarcófagos colocados de ambos os lados de um espaço vazio e mais elevado, o lugar dele, Imperador Francisco José, o primeiro do nome. Seria preciso esperar ainda um pouco pelo terceiro sarcófago.
O JULGAMENTO FINAL
A Este-noroeste se amontoava Uma negra serra de nuvens Enquanto que do Oeste atacava Um incêndio de rubras chamas
E parecia de enxofre o Sul Quando na plúmbea luz Raios súbitos brilharam Como para o Julgamento Final
Ouvi fender-se o carvalho Até ao mais profundo de si Como se derrubado o tivessem Para o seu próprio esquife fazerem.
ElisabetH
Nesse ano, na Boémia, os Alemães e os Checos defrontaram-se violentamente enquanto na Galícia, os Polacos e os Ruténios faziam o mesmo. O arquiduque Francisco Fernando, sucessor designado, não se entendia com o tio, que achava censurável o facto dele querer casar com uma simples condessa; o Imperador opusera-se. Nem tudo era perfeito no Império; contudo, os negócios corriam bem. Os retratos do velho Imperador floriam em todas as casas da Áustria, em pratos de porcelana e nos leques das senhoras.
Johann Strauss, muito velho agora, continuava a ser o incomparável feiticeiro de uma Viena mais próspera do que nunca. No ano anterior, o do Cinquentenário do reinado do Imperador, esse triste ano da morte da Imperatriz, ainda compusera duas soberbas valsas liba, e Slpmtaú Parecia-se com o Império contra o qual tanto se batera nas barricadas da sua mocidade, frágil como ele e, como ele, imorredoiro.
E depois, no mês de Maio, no dia da Ascensão, Johann Strauss dirigiu O Morcego com um ardor tal que transpirou imenso e apanhou uma pneumonia. No dia 3 de Junho, quando o chefe de orquestra Eduard Kremser dirigia um concerto de valsas em frente dos Paços do Conselho, foram falar-lhe ao ouvido. Kremser baixou a batuta, parou, deu uma ordem ao primeiro violino, os músicos mudaram de partitura, e a orquestra começou a tocar O Beto "DanúBio flzuí, com uma lentidão que não era habkaú,pianissimo. Os ouvintes compreenderam que Johann Strauss morrera. Viena ficou imediatamente de luto.
Em 1900, o arquiduque herdeiro desposou a condessa Sofia Chotek, com a condição de ela não ser reconhecida como membro da família imperial e dos seus filhos virem a ser excluídos da sucessão. No dia 28 de Junho, o Imperador leu em público o acto de renúncia de Francisco Fernando cujo visível furor não anunciava nada de bom.
O Imperador só tinha preocupações. Nesse ano, Kathy Schratt exigiu do director do Burg Theater papéis que já não se adequavam à sua bojuda maturidade. O Imperador recusou-se a intervir, e como a Imperatriz já lá não estava para os reconciliar, a actriz pediu a demissão do teatro e rompeu com o Imperador, que sofreu muito. Um ano inteiro passou antes do pássaro aceitar voltar para o ninho.
Como era de prever, Emmy Taschnik, de seu nome de casada Erdos, não renunciara ao canto. Conseguiu um contrato para recitais de valsas num grande hotel à beira do Danúbio, e começou a usar uns trajes extravagantes. Os pais só podiam avaliar o que se passava durante as suas estadias em Viena, três vezes por ano. “Uns chapéus de aventureira!” indignava-se a mãe alarmada.
Attila já não se queixava, mas estava cada vez mais velho.
Em 1903, uns oficiais do estado-maior sérvio fundaram uma sociedade secreta, “A Mão Negra”, cuja finalidade era a depuração dos Balcãs, através da eliminação física dos soberanos incómodos. O Rei da Sérvia, Alexandre Kara-jorjevic, culpado de se enfeudar ao Império austro-húngaro, foi assassinado com toda a família. O seu sucessor, Pedro I Obrenovitch, declarou-se partidário da Grande Sérvia.
No Outono, o Imperador encontrou-se com o Tzar Nicolau II numa partida de caça, pretexto para debaterem os tumultos na Macedónia, onde se repetiam as rebeliões cristãs que haviam suscitado a guerra da Bósnia. Mais ou menos por essa altura, durante as grandes manobras que tiveram lugar na Galícia, o Imperador julgou necessário fazer uma proclamação na qual reafirmava solenemente a unidade do exército imperial e real, “comum e uno”. Os Húngaros levantaram a voz para protestar; os Austríacos aprovaram.
Os Croatas, súbditos do Império, queriam unir-se aos Sérvios, e deixar a tutela austríaca. Por pressão dos Húngaros, o Imperador fechou as fronteiras aduaneiras da Sérvia. Belgrado começou em 1905 uma propaganda desenfreada na Bósnia-Herzegovina.
As primeiras eleições por sufrágio universal, em 1907, deram o triunfo aos dois grandes partidos de massas: os cristãos-sociais de Lueger, e os sociais-de-mocratas. Acabava de ser criado um dispositivo de confrontação. Os Checos dividiam-se em seis partidos, os Polacos em cinco; não podiam servir de árbitros. Nesse ano, a Rússia, a Inglaterra e a França concluíram uma aliança contra o Império austro-húngaro.
A mãe de Attila Erdos finou-se sem sofrer, deixando-o à cabeça de uma pequena fortuna, que Emmy começou a delapidar alegremente.
Em 1908, morreu o duque Rodolfo do Liechtenstein, a quem o Imperador mandara enviar o cofrezinho onde dormiam os poemas da Imperatriz. De acordo com as instruções da morta, o duque atirara, com as próprias mãos, a chave do cofre ao Danúbio. A herança reverteu para a família Liechtenstein que perguntava a si própria o que seria preciso fazer com aquilo.
No mesmo ano, o Sultão decidiu organizar eleições no seu Império, do qual a Bósnia continuava a fazer juridicamente parte. E se se votasse na Bósnia, a Áustria perdia aquele território que, nos termos da resolução da Comissão Europeia votada em 1898, continuava a ocupar “em nome do Sultão”.
Nesse ano, Viena celebrava faustosamente o segundo Jubileu do seu Imperador, por ocasião do sexagésimo aniversário do seu reinado. O cortejo das crianças atingiu dessa vez o número de 82 000; as nacionalidades desfilaram como outrora as corporações pelas bodas de prata, e estavam lá todas - com a excepção dos Checos. Foi por essa ocasião que o ministro dos Negócios Estrangeiros, o conde Aehrenthal, decidiu bruscamente anexar a Bósnia.
A Sérvia desencadeou uma crise internacional, que terminou, em seu prejuízo, em 1909. A Bósnia foi declarada terra de império, comum à Áustria e à Hungria. Foi no próprio dia em que nasceu a filha de Emmy e de Attila Erdos, uma pequenina Fanny que os reconciliou durante algum tempo, e que reconfortou os avós, Franz e Anna.
O chefe da família de Liechtenstein acabou por decidir confiar o cofrezinho da Imperatriz ao tribunal civil de Briinn, na Morávia.
Em 1910, após uma disputa com um guarda prisional bêbedo, Luigi Luccheni enforcou-se com o cinto, na célula de isolamento para onde fora atirado nessa manhã.
Em 1911, apesar de um sério arrefecimento, o Imperador dirigiu-se à sua nova província da Bósnia, e fez em Sarajevo uma entrada solene, ao lado do general Marian von Varesanin, chefe de Estado da Bósnia Imperial, numa vitória puxada por quatro cavalos brancos. A Mão Negra havia premeditado eliminar o Imperador, mas não conseguiu.
Apesar da pequena Fanny, Emmy Erdos trocou o marido por um barítono sem talento e empreendeu com ele uma digressão de canto pelos cabarés de Budapeste. Para não manchar a honra da família adoptou um nome artístico e passou a chamar-se Emilie Taschy.
Ao fim de alguns meses, Attila morreu de desgosto; a pequena Fanny foi recolhida pelos avós maternos, que romperam com a filha.
No mesmo ano rebentou uma guerra entre a Turquia e a Itália. No ano seguinte, em 1912, sob a autoridade da Rússia, nascia a Liga Balcânica, unindo a Sérvia, a Bulgária, a Grécia e o Montenegro numa aliança dirigida contra todas as potências susceptíveis de se apoderarem de uma parte do território otomano. Apenas a Áustria-Hungria correspondia à definição. E apesar de, um ano mais tarde, em 1913, as alianças se terem desfeito, e de a Bulgária ter sido atacada pelos Sérvios, pelos Romenos, pelos Gregos e pelos Turcos, o Imperador recuava nos Balcãs. Passo a passo.
Este aspecto não escapava ao arquiduque Francisco Fernando, homem de violência e de ódio, que caçava como o falecido Príncipe Herdeiro, que odiava os Húngaros, os Sérvios, os Balcãs, apoiava os Croatas e queria a todo o custo modificar o mapa das alianças, unindo as três monarquias da Europa Central - a Alemanha, a Rússia e o Império da Áustria-Hungria. O Arquiduque Herdeiro resolveu assistir pessoalmente às grandes manobras que decorriam na Bósnia, entrando, por sua vez, solenemente na cidade de Sarajevo, no dia 28 de Junho de 1914. De Belgrado, a Mão Negra recrutou jovens sérvios da Bósnia, resolvidos a sacrificarem a vida pela causa.
Era precisamente o dia do aniversário da derrota de Kossovo, fundadora da memória servia. Nesse dia os Sérvios haviam sido vencidos pelos Turcos e, desde 1389, essa data significava simultaneamente o luto, a revolta e o sangue da vingança.
Os tiros da Mão Negra abateram o Arquiduque Herdeiro e sua mulher Sofia, em Sarajevo. Gavrilo Princip, jovem sérvio determinado, atirara à queima-roupa e disparara certeiro.
O velho Imperador, que no entanto detestava o defunto, explicou, numa longa proclamação “aos seus povos”, que a honra da Dupla Monarquia exigia reparação pelas armas, e a guerra rebentou entre o Império e a Sérvia.
O maquinismo das alianças europeias pôs-se em movimento. De um lado, a Aliança unia a Inglaterra, a França e a Rússia; do outro, a Tríplice fazia o mesmo entre a Alemanha, o Império e a Itália. As declarações de guerra sucederam-se.
Toni Taschnik, jovem poeta promissor, tornara-se ardentemente pacifista, sob a influência das obras da grande Bertha von Suttner, uma baronesa romancista que se tornara célebre ao publicar, muito tempo antes - no ano do drama de Mayerling - um livro retumbante, Maixp as armas Dezasseis anos mais tarde, em 1905, ganhara o prémio Nobel, e o jovem inspirava-se nela com paixão.
Com a ajuda do pai, e para grande alegria da mãe, Toni conseguiu ficar afecto aos arquivos até 1915. Depois partiu para a frente, para a Ucrânia. Seis meses mais tarde o casal Taschnik recebeu o aviso do falecimento do filho, morto em combate, algures entre Czernowitz e Tarnopol, não longe de Sagadora, a aldeia dos seus antepassados judeus. Anna mergulhou numa profunda melancolia.
O velho Imperador morreu a meio da Grande Guerra, em 20 de Novembro de 1916; a 30 de Novembro foi finalmente juntar-se à Imperatriz sua esposa e a seu filho o Príncipe Herdeiro, no terceiro sarcófago da Cripta dos Capuchos.
O arquiduque Carlos, sobrinho-neto do Imperador Francisco José, sucedeu-lhe com o nome de Carlos I, e esforçou-se em vão para retirar o país do conflito, assinando uma paz separada com as potências da Aliança.
Quando terminou a Grande Guerra, mais de vinte milhões de homens haviam morrido na Europa. Em quatro dias, no mês de Outubro de 1818, por secessões sucessivas o Império desfez-se.
A República Checoslovaca foi proclamada em Praga a 28 de Outubro; a 29, os territórios eslavos do Sul uniram-se ao reino da Sérvia; a 30, a Assembleia nacional da “Áustria-Alemã”, constituída pelos membros alemães do Parlamento, adoptou a constituição elaborada por Karl Renner, um fervoroso social-de-mocrata que esperava reunir a Alemanha e a Áustria com base no socialismo. A 31, os Ucranianos da Galícia faziam, por seu turno, secessão. A 3 de Novembro, a Áustria assinou o armistício com as potências da Tripla Aliança.
E a 11 de Novembro, quando o armistício punha fim à guerra entre a Alemanha e a França, o Imperador Carlos I renunciou aos negócios do Estado, na véspera do dia em que a Assembleia proclamou a primeira República austríaca. O artigo 1 declarava: “A Áustria alemã é uma república democrática.” O artigo 2 precisava: “A Áustria alemã é uma parte integrante da República da Alemanha.”
Em Setembro de 1919, o tratado de Saint-Germain, assinado no palácio do Belvedere pelo novo chefe do governo republicano, Karl Renner, desmembrava o Império dos Habsburgo, como meio século antes haviam sido desmembrados os restos do Império Otomano. A secessão havia ganho. A Checoslováquia, a Hungria, a Itália, a Sérvia, a Roménia e a Polónia distribuíram entre si as terras que outrora tinham estado reunidas sob a tutela da águia de duas cabeças, e que lhes cabia segundo o direito das nacionalidades.
No fim da cerimónia das assinaturas do tratado, o presidente do Conselho, Georges Clemenceau, feroz inimigo da monarquia e do clericalismo austríaco, o aliado do falecido Príncipe Herdeiro, recordou a noite de Dezembro de 1886 em que, durante uma refeição familiar sob o tecto de seu cunhado Moritz Szeps, recebera um recado de Rodolfo, com quem fora logo encontrar-se. Tinham conversado até de madrugada. Em memória do ardente jovem com quem ele refizera o mundo, tirou finalmente a desforra sobre o Império respondendo brutalmente a uma questão insolúvel: “O que é presentemente a Áustria?”
“A Áustria? - exclamou Clemenceau. - É o que resta.”
As primeiras eleições da nova República viram reformar-se os dois grandes blocos que desde o fim do século já se defrontavam. Em Fevereiro de 1919, cris-tãos-sociais de direita e sociais-democratas de esquerda dispuseram-se a formar um governo de coligação, sob a autoridade de Karl Renner.
A miséria era pavorosa; havia falta de leite, de carvão, as pessoas privavam-se de tudo, vendiam as jóias e as pratas. Para substituir a carne que não havia em lado nenhum, inventaram um pó à base de casca de bétula, um ersatz1 que se misturava a uma papa de milho, à falta de batatas. A epidemia de gripe espanhola, que grassava pela Europa inteira, fez milhares de mortos numa Viena desesperada.
Durante esse tempo, o que restava da Áustria organizou-se. Viena tornou-se um País Federal independente, onde os sociais-democratas obtiveram a maioria absoluta em Maio do mesmo ano. Lançaram um vasto programa de legislação social e de construções operárias, cuja glória era o imenso bairro “Karl-Marx1 Produto de substituição de baixa qualidade. (N. da T.)
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- Hof, único na Europa. Julius Tandler, médico anatomista, começou a preocupar-se com a ajuda social e a saúde, o Wiener System. A “Viena Vermelha” tinha de mostrar à Europa dos vencedores o brilho da social-democracia austríaca, e o triunfo do socialismo.
Em 1920, a Assembleia nacional votou a nova constituição da República federal da Áustria, à qual o tratado de Saint-Germain proibira a denominação “alemã”. No mesmo ano, a coligação caiu, e os sociais-democratas, que detinham apenas a Viena Vermelha, entraram para a oposição ao nível do governo federal, que era cristão-social.
Em breve os dois partidos constituíam milícias armadas. Os sociais-democratas tinham o Schutzbund, os cristãos-sociais a Heimwehr. Uns e outros pavoneavam-se pelas ruas, cada qual no seu uniforme.
Em 1922, o Wiener System do doutor Tandler entrou em vigor. Abriram-se consultórios para mulheres grávidas, mães de família e lactentes; ocuparam-se activamente das doenças venéreas e da tuberculose.
Em 1925 o schilling passa a ser a nova moeda. Apoiado por um enorme empréstimo feito à Sociedade das Nações, o schilling estava submetido à necessidade de conter o equilíbrio orçamental. O desemprego, já colossal, aumentou mais ainda. Os dois grandes partidos começaram a defrontar-se na rua.
Em 1927, uma criança de dez anos e um inválido de guerra foram abatidos a tiro no decurso de uma escaramuça entre o Schutzbund e um grupo de antigos combatentes de direita. Três de entre eles foram a julgamento e saíram inocentados. A 15 de Julho, sem qualquer palavra de ordem, os operários manifestaram-se aos milhares. A manifestação degenerou; incendiaram o palácio de justiça, um comissariado da polícia e a sede do jornal dos cristãos-sociais, o Reichpost. Os bombeiros quiseram, em vão, intervir. A polícia abriu fogo: 89 mortos, 1 000 feridos. A Heimwehr furou a greve geral cuja ordem havia sido lançada por toda a Áustria pelos sociais-democratas.
Transtornada pelos acontecimentos, a jovem Fanny Erdos, ainda adolescente, neta de Franz e Anna Taschnik, começou a acompanhar as assistentes sociais nas suas visitas domiciliárias e descobriu o mundo dos pobres de Viena que os avós tinham, a pouco e pouco, esquecido. Depois apaixonou-se pelos jardins de infância, que acabavam de ser inaugurados na cidade.
Após a repressão contra os operários de Viena, os Camisas Castanhas, milícias fascistas de Benito Mussolini, apoiaram os membros da Heimwehr, que eram chamados Heimwehren.
Anna Taschnik não saíra ainda da profunda crise de melancolia que a afectava há mais de dez anos. Quando via nos jornais que tinham disparado sobre a multidão e que o sangue corria, Anna punha-se com grandes discursos proféticos um pouco confusos, que terminavam em gritos angustiados.
Em 1928, os médicos começaram a falar de doença mental e de hospitalização; Franz recusou sem apelo. Sua neta, Fanny, aderiu ao partido social-democrata quando atingiu os vinte anos, em 1929.
Em 1931, as milícias nacionais-socialistas alemãs apoiaram, por seu turno, as milícias dos Heimwehren. O desemprego agravou-se, e os nazis ganharam terreno na Áustria.
O senhor Zlatin, o executor testamentário do falecido duque Rodolfo de Liechtenstein, publicou uma série de artigos no Nené Wiener Tagblatt, a propósito dos poemas da Imperatriz e do cofre depositado no tribunal de Briinn, cidade que recuperara o seu nome checo, Brno. Aí se encontrava, garantia ele, a carta de despedida do Príncipe Herdeiro a sua mãe, escrita na véspera do drama de Mayerling. O caso fez muito barulho em Viena, apesar da gravidade dos tempos.
Em 1932, os nazis austríacos obtiveram 15 lugares nas eleições da Dieta de Viena, que constituía um Estado separado. O ministro da Agricultura, Engelbert Dollfuss, do partido cristão-social, foi nomeado Chanceler federal, com uma maioria parlamentar de um só e único voto.
A 30 de Janeiro de 1933, na Alemanha, Adolf Hitler tornou-se Chanceler do Reich.
Em 1934, na Áustria, os sociais-democratas mantinham-se em força na capital, o seu bastião. O novo Chanceler considerava-os a oposição mais perigosa do país. Por todo o lado onde estavam, Dollfuss tentou miná-los através de chicanas policiais. No dia 12 de Fevereiro, quando a polícia fazia uma busca na sede do partido social-democrata em Linz, os membros do Schutzbund dispararam sobre os agentes. Começara a guerra civil.
Quando Anna Taschnik ouviu falar do novo Chanceler do Reich, começou a delirar francamente, com momentos de violência que a tornavam por vezes perigosa. Franz, com o coração despedaçado, resolveu-se finalmente a mandá-la internar no grande hospital psiquiátrico recentemente construído nas colinas de Viena, o Steinhof. A casa de Hietzing tornara-se demasiado grande para o avô e para a neta; Franz resignou-se a vender a sua morada de infância, assim como o pequeno apartamento herdado de Willibald Strummacher. Os dois Taschnik mudaram-se para o centro da capital, e instalaram-se num apartamento de Bankgasse.
Desde o princípio do século, o chefe de secção Franz Taschnik, por instruções pessoais do Imperador, recebera um título de nobreza, e chamava-se desde então barão Taschnik de Kreinfeld. Mas desde o advento da República austríaca, todos os títulos de nobreza estavam proibidos.
Quando a guerra civil rebentou, ele tinha oitenta e seis anos.
VIENA, FEVEREIRO DE 1934
Corti - murmurou o velhote ajeitando os óculos - não conheço esse nome. “Conde Egon Casar Corti, Georg Siglgasse, 8, Viena...” Não estou a ver. Quem pode querer encontrar-se com uma ruína como eu?
Num gesto maquinal, alisou o crânio calvo, releu o cartão de visita, e endireitou-se penosamente na poltrona. O esforço era demasiado; começou a tossir, uma tosse sibilante, irreprimível. As mãos trémulas puxaram a manta para cima dos joelhos e encontraram um lenço com o qual limpou nervosamente as comissuras dos lábios.
- Ele disse que para vir atravessou Linz e que estão a combater por lá, na estação, nas ruas, por todo o lado, e que o assunto dele é urgente! Tem de responder, senhor! - gritou a governanta asperamente.
- Estão a combater em Linz? - espantou-se ele, boquiaberto. - Mais tumultos? Isto nunca mais terá fim?
- Então, o senhor recebe-o ou não? - vociferou a governanta.
- Não berre dessa maneira - resmungou ele - não sou surdo. Ele disse o que queria? O apartamento não está à venda!
- Ele disse que é pessoal! Pessoal!
- Ajude-me a levantar - respondeu o velho com um gesto irritado. - E mande entrar.
Ao entrar no quarto, o conde Corti esboçou um movimento de recuo.
A sala cheirava a mofo e a remédios, um odor de iodo e cânfora. Na lareira ardia devagar um cepo que começava a deitar fumo, madeira ainda verde. De pé, diante de uma poltrona de doente com almofadas amarrotadas, um homem muito velho fitava-o espantado, com olhos que sem dúvida haviam sido azuis, mas que a idade cobrira de uma película opaca semelhante a uma porcelana com muito uso. Usava uma sobrecasaca à antiga, de pano azul, um colete com florzinhas e uma gravata fora de moda, de seda branca, presa por um alfinete de camafeu. Um velho alto, digno e curvado, de pele transparente, impecavelmente trajado com roupas arcaicas. O conde Corti sentiu-se miserável e, de chapéu na mão, inclinou-se respeitosamente.
- Senhor barão - começou ele com deferência - fico-lhe muito agradecido por me ter recebido. Principalmente nestes tempos conturbados.
- A minha governanta disse-me isso. Faça o favor de se sentar, senhor conde - respondeu o velho com extrema afabilidade. - Sinto-me muito honrado.
E depois de ter esperado, de pé, que o visitante se sentasse numa cadeira dourada, aconchegou-se devagar na poltrona, puxando para os joelhos a manta de lã cinzenta. Os dedos começaram a tremer-lhe.
- O senhor queira perdoar esta visita um pouco desabusada - começou o conde. - O assunto que aqui me traz é demasiado singular para me atrever a escrever-lhe. É algo que diz respeito ao senhor. Um assunto privado.
O velho continuava a fitá-lo com um olhar intrigado, um pouco vago, e uma espécie de meio-sorriso confusamente inquieto.
- Permita-me que me apresente - continuou o visitante. - Sou o conde Corti, e estou a acabar uma biografia da Imperatriz Elisabeth.
- Uma... quê? - fez o velho levando a mão ao ouvido. - Não ouvi bem.
- Uma biografia - gritou o conde Corti. - Da Imperatriz!
- Quem é que fala ainda de Império - suspirou o velhote. - Esses tempos estão esquecidos. Há combates em Linz, diz o senhor, amanhã Viena estará a ferro e fogo, esses jovens enraivecidos, da extrema-direita, vão atacar os vermelhos, os Heimwehren contra o Schutzbund ou o inverso, e o senhor evoca a Imperatriz... Que Imperatriz?
- Elisabeth! - gritou Corti. - A Imperatriz Elisabeth!
Um clarão azul atravessou o olhar do velho, que ergueu uma mão de dedos deformados.
- Ela morreu, e eu não valho muito mais - murmurou. - Mas ela morreu nova, fez bem. Eu não conheci meu pai, que morreu diante das barricadas em quarenta e oito; vi Solferino, Sadowa, conheci a guerra da Bósnia, que deu origem à outra, à Grande Guerra, vi o fim do nosso Império, e continuo a ver correr nos subúrbios o sangue vienense, e agora vejo esses malditos Prussianos, esses Borussos, que alastram por aí com uns focinhos de ratos e a gritar uns estribilhos pagãos! Como é que eles se chamam?
- Nazis - gritou Corti destacando as sílabas. - Nacionais-socialistas. Eles ameaçam mas o Chanceler Dollfuss resiste.
- Ah! O senhor acredita nesse camponiozito? São todos a mesma coisa! Nacionais-socialistas, cristãos-sociais, pangermanistas, seja o que for - rezingou o velho. - Tudo uma mascarada...
- Mas o senhor teve a sorte de conhecer a Imperatriz - gritou Corti abrindo a pasta que trazia.
- Eu? - perguntou o velho limpando os lábios num movimento maquinal.
- Onde foi buscar isso, senhor conde?
- O senhor é realmente o barão Francisco Taschnik de Kreinberg? O velho inclinou ligeiramente a cabeça e franziu os olhos, desconfiado.
- Diga antes Taschnik - murmurou. - Os títulos estão proibidos, sabe tão bem como eu...
- Oh! Estamos só nós aqui, senhor barão! - exclamou o conde Corti.
- Mas vamos ao assunto que aqui me trouxe, se não se importa. O senhor esteve uma noite no baile de máscaras que se realizava na sala da Sociedade de Música - gritou. - Em 1874.
- Talvez... Já não me lembro - resmungou o velho, evasivo. - Numa certa época, quando era novo, fui lá de facto, duas ou três vezes...
- Nesse ano - continuou Corti elevando a voz - o senhor passou todo o baile com um dominó amarelo.
- Com? Não ouvi bem - disse o velho cujos olhos se arregalaram.
- Um dominó amarelo! Amarelo, senhor, como... - respondeu o conde procurando pela sala, com o olhar, qualquer coisa que servisse de exemplo.
- Amarelo como as paredes do palácio de Schõnbrunn! Amarelo imperial!
O rosto do velho fechou-se; lentamente, ergueu a grande mão e tapou os olhos em silêncio. O conde Corti mal ousava respirar.
- O senhor... - perguntou ele com ansiedade - quer que chame alguém?
- Quer fazer o favor de fechar a porta, senhor conde - atalhou o velho numa voz espantosamente forte. - E de abrir a janela também; a minha governanta proíbe-mo, mas eu abafo.
O conde Corti obedeceu, solícito; as buzinas dos carros invadiram a sala. O velhote aconchegou-se na poltrona e virou a cabeça para o lado da rua, suspirando.
- O dominó amarelo - sussurrou ele olhando Corti bem nos olhos. - O senhor vem da parte dela? Ela ainda é viva?
- Mas... senhor, é impossível - murmurou o conde Corti.
- Que diz? - perguntou o velho. - Estou um pouco surdo, e com estes ruídos novos, os automóveis, o telefone, o posto de radiodifusão, não se ouve nada.
- Digo que é... Digo que de facto venho da parte dela! - gritou Corti.
- Ah! - exclamou o velho com um sorriso de criança. - Tem alguma carta para me entregar?
- Infelizmente não! Ela morreu! - gritou Corti. - Imagine, se vivesse seria centenária!
- Evidentemente, evidentemente - resmungou o velho. - Uma vez que eu tenho oitenta e seis anos. Mas que mensagem vem a ser essa? Se ela já não...
- Oiça - gritou Corti. - O seu dominó era a Imperatriz.
- Eu também pensava que era, senhor conde - disse ele reprimindo um suspiro. - Com o tempo, acabei por compreender que era engano meu.
- Não, senhor! - gritou Corti tirando uns papéis. - Tenho aqui as provas! A condessa Ferenczi, sua leitora, estava com ela no baile, com um dominó vermelho...
- Parece que sim, vermelho, sim - murmurou o velho. - Frieda.
- Ida! - gritou Corti. - Ida Ferenczi! Ela contou tudo nas suas memórias - acrescentou ele batendo com a mão nos papéis. - Toda a vossa história!
O velhote começou a tossir. Entre dois acessos, estendeu a mão para um frasquinho, pegou nele a tremer, e bebeu pelo gargalo, avidamente.
- A minha história - disse, limpando a boca com o lenço dobrado. - Era então verdade.
- Era sim! - gritou Corti. - O senhor passou a noite com a Imperatriz Elisabeth!
- Mostre - pediu o velho numa voz clara e sonora.
Corti abriu o manuscrito e retirou três folhas que estendeu ao velho.
- Tome, está aqui - gritou ele apontando com o dedo. - Veja o seu nome... E a narração do baile. E a história das cartas que o senhor recebeu. Está aí tudo. Quer que acenda a luz? O senhor via melhor.
Era a hora em que na catedral de Santo Estêvão começava a missa solene pelo aniversário da coroação de Sua Santidade o Papa Pio XI. No coro, haviam tomado lugar os representantes do governo, o corpo diplomático e o pequeno Chanceler Dollfuss, tão baixinho que os seus partidários lhe chamavam afectuosamente “Millimettemich”.
Os tumultos tinham alcançado Krems, havia combates em Graz, em Linz, era a guerra; por toda a parte, as armas haviam surgido das caves, e todos esperavam o grande confronto na capital. Chegara a vez de Viena. Os sociais-democratas não tinham ainda dado sinal de vida. O cortejo eclesiástico, precedido dos turíbulos, fez a sua entrada ao som do hino pontifício. O céu de Viena estava tão escuro nesse dia que, para além dos círios, tinham acendido a luz eléctrica.
O cardeal Innitzer, prelado da cidade, ia iniciar a leitura do Evangelho quando as luzes vacilaram, depois apagaram-se como se alguém as tivesse soprado. Na nave, a multidão murmurou; o pequeno Chanceler sentiu um calafrio. As luzes voltaram; toda a gente respirou fundo, era apenas uma avaria. Mas enfraqueceram uma segunda vez e extinguiram-se.
Não era uma avaria, era o sinal da greve geral. Os fiéis saíram aos encontrões. Nas filas dos dignitários, toda a gente olhava para o mini-chanceler, a quem a obscuridade dava um aviso.
Dollfuss nem se mexeu. Imerso num fingido fervor, de mãos postas, pensava no canhão aterrador que tinha de reserva, uma arma infalível que subjugaria a ala esquerda dos seus opositores. Pensou nos quarenta mil polícias que ia lançar contra as massas operárias, e nos Heimwehren que ia deixar que levassem a cabo, finalmente, o grande massacre dos sociais-democratas. Era a oportunidade de acabar com a ralé vermelha. Estaria sempre a tempo de dominar depois os Heimwehren, e os aliados deles do outro lado da fronteira, os nazis do Chanceler Hitler. O cardeal Innitzer precipitou a missa, acelerou o latim, repreendeu os meninos do coro e rematou o santo sacrifício à pressa.
Em cima do altar, os círios imemoriais não haviam vacilado.
No apartamento de Bankgasse, o velho pegou devagar numa lupa que estava sobre a mesa dos medicamentos e aproximou os papéis dos olhos. O conde Corti acendera o lustre, mas o velho de mãos trémulas colocara-se perto da vela, por uma questão de hábito.
Começou a ler, mastigando palavras sem nexo que Corti não percebia. A cabeça andava da esquerda para a direita com pequenos meneios irreprimíveis, e Corti viu-lhe na têmpora uma veia azul que palpitava. De vez em quando baixava a lupa, e limpava febrilmente os lábios; tinha os olhos cheios de lágrimas.
O conde recuou um pouco para o deixar ler à vontade, e apercebeu-se de que ele tinha frio.
- O senhor quer que feche a janela? - gritou.- No seu estado...
- Não - resmoneou o velho, com o nariz no papel.
Os segundos passavam; no aparador de acaju, um relógio deu as onze, num delgado fio de som. O conde Corti deu a volta à sala, passou discretamente o dedo pelo acaju encerado, observou o retrato do Imperador em trajo de caçador, com um chapéu tirolês, e ficou absorto na contemplação das fotografias que estavam sobre o piano de cauda. Um moço em uniforme da Grande Guerra, uma senhora de grande capelina às flores, e uma menina de vestido aos folhos, com compridos cabelos escuros. Por detrás das três personagens, o conde, espantado, atentou na fotografia de uma mulher jovem, em vestido de noite, com os braços caídos ao longo do corpo; os ombros estavam descobertos, sobre o cetim caía uma comprida musselina, até aos sapatos prateados; um nome artístico estava escrito em letras de ouro, 'Emiík Taschy. A fotografia tinha um risco de tinta vermelha de lado a lado, como se alguém tivesse querido castigar a imagem.
As luzes do lustre esmoreceram bruscamente, depois apagaram-se. Corti imobilizou-se, inquieto. Mas a electricidade voltou, e o conde, piscando os olhos, reparou que na parede, em medalhão, estava um pequeno retrato da Imperatriz a cavalo, pendurado por uma fita de veludo preto poeirento. O velho continuava a ler, e acenava com a cabeça a cada linha.
- Já está convencido? - atreveu-se Corti, incomodado.
- Ainda não acabei - resmungou o velhote. - Ah! Ela não fala do leque.
- Do leque? - espantou-se Corti.
- São segredos meus - proferiu o velho, no limite da boa educação. - E também não fala do beijo.
- Do beijo! -proferiu Corti assombrado. - O senhor beijou a Imperatriz?
- ... Mas o senhor não vai escrever isso, pois não? - perguntou o velho com um olhar inquieto. - Isso pertence-me. Unicamente a mim.
- Não, senhor - gritou Corti. - Eu vim para o senhor me confiar as cartas.
- As cartas! - bradou o velho. - Mas eu não tenho esse direito! Passei este tempo todo a guardá-las, sem saber quem era Gabriela, escondi-as, até da minha mulher! E agora que sei, o senhor queria...
Sufocou de novo, e mergulhou no lenço.
- Sabe, conde -• disse ele retomando fôlego - estou às portas da morte. Não, não proteste... Sinto-o. Não será em vésperas da grande viagem que a vou atraiçoar. Não conte com...
- O senhor não atraiçoará ninguém - gritou Corti. - As memórias da Ferenczi dizem tudo.
- É indigno - murmurou o velhote.
- A Imperatriz é uma lenda, um mito! Ao reter as cartas dela, o senhor priva-a de um pouco de verdade. A menos que ela tenha escrito palavras escandalosas...
- De maneira nenhuma! - exclamou o velho endireitando o busto. - Vou mostrar-lhas. Simplesmente mostrar! Ajude-me a levantar, por favor. Já não tenho muitas forças.
O conde precipitou-se e soergueu o velho pelas axilas. Quando se achou de pé, teve uma tontura, cambaleou; o conde esboçou um gesto para o voltar a sentar, mas ele agarrou-lhe no braço e arrimou-se a ele com todas as suas fracas forças.
- É preciso ir até à escrivaninha, além - segredou o velho como se se tratasse do fim do mundo.
- Apoie-se em mim - disse Corti e as unhas do velho enterraram-se-lhe no tecido do casaco.
Passo a passo, conseguiram chegar junto do pequeno móvel com gavetas. Num gesto trémulo, o velho tirou do pescoço um fio, com uma chave na ponta.
- Abra - ordenou ele estendendo-lha. - Segunda gaveta da esquerda, numa caixa de folha, com flores na parte de cima.
Sem o largar, Corti abriu e encontrou uma caixa com a pintura estalada, onde as rosas perdiam as pétalas, roídas pela ferrugem.
- Já a tem - disse o velho. - Leve-me de volta à minha poltrona.
O velho sentou-se pesadamente e deixou cair a cabeça para trás. Corti abrira a caixa, onde as cartas e o poema esperavam, cuidadosamente atados com fitas de seda amarela.
- É isto mesmo - murmurou ele lendo com uma excitação crescente. - Aqui, no alto, a data, é a letra dela que a seguir disfarça. Magnífico!
- Veja também os envelopes - segredou o velho. - Londres, Brasil, Munique... Como fez ela?
- A condessa Ferenczi explica mais ou menos - gritou Corti. - A primeira, foi por intermédio da irmã, a rainha das Duas Sicílias!
- Apre! - assobiou o velho com um risinho. - Uma rainha, para enviar as minhas cartas! Sou então muito importante!
- É sim, senhor - gritou Corti comovido. - Deixe-me copiá-las, peço-lhe.
O velho fez “não” com a cabeça, obstinadamente.
- Em nome da história! - suplicou Corti.
- Oh! - suspirou o velho - Para o que ela faz de nós...
- Então em nome do Império! - atirou Corti com exaltação.
- O Império - disse o velho cujos olhos brilharam subitamente. - Pelo Império está bem. Sabe, eu sou legitimista. Sente-se à escrivaninha, senhor conde.
- Imediatamente - anuiu Corti com prontidão.
- Não sei se é da emoção ou... Acho que apanhei frio - murmurou puxando a manta. - Pode fechar a janela? Estou a tiritar.
- Quer que ponha um tronco na lareira? - gritou Corti olhando as brasas.
- Já não há - respondeu o velho. - Vivemos tempos difíceis.
Corti soltou um suspiro, fechou a janela, depois sentou-se à escrivaninha e tirou papel para copiar as cartas.
O lustre apagou-se bruscamente.
- Às vezes acontece - disse o velho. - Tome a minha vela, senhor conde. - Gosto da penumbra, permite-me sonhar, sabe.
Sentado diante da vela cuja chama vacilava um pouco, o conde Corti iniciou a sua tarefa de copista.
- Sabe que nunca mais voltei a falar com ela? - disse o velho. - Ia com frequência ao Prater, e às vezes avistava-a, a cavalo, vestida de amazona. Depois aprendi a montar em honra dela e, veja como são as coisas, no dia em que eu andava a cavalo, andava ela de caleche... Enfim, tentei tudo para a surpreender. Uma vez, quase colei o nariz à porta do seu cabriole... Mas ela...
Corti virou cortesmente a cabeça.
- E então? - gritou.
- Então ela fingia não me ver, muito simplesmente... - continuou o velho com um riso trémulo. - A minha mulher, está no hospital há já um ano, nunca desconfiou de nada! No dia em que elas vieram...
- Quem? - gritou Corti de longe.
- Elas, essas duas mulheres... Ida e a outra... Esqueci-me do nome dela.
- Maria Festetics? - gritou o conde. - A dama de companhia da Imperatriz?
- Maria, talvez, de facto... Enfim, vinham de preto. Minha mulher estava na cozinha; os nossos filhos tinham ido passear. Porque eu tinha um filho. Queria ser poeta, e publicava nas revistas. Teria com certeza tido êxito... Morreu em combate, na frente Leste, em 1916 - articulou o velho em voz rouca.
- Os meus sentidos pêsames - gritou Corti virando a cabeça. - Foi um acontecimento horrível.
- A fotografia dele está em cima do piano - prosseguiu o velho. - É o piano da minha mulher, eu tocava violino. Mas dei-o a um pequeno que tocava melhor do que eu, ainda não há muito tempo. É o filho do nosso vizinho de baixo. Chama-se Elie Steiner, é muito dotado. Compreende, só tenho a minha neta... E o violino não serve para as mulheres. Pobre criança, não tem tempo para a música. Ocupa-se das classes dos pequenitos, quer ser educadora, ou psiquiatra... Psiquiatra! Vejam lá... Vai talvez conhecê-la, ela não deve tardar. É tudo para mim. A mãe tornou-se cantora em Budapeste, enfim, cantora é como quem diz, senhor conde. O pai era um dos meus mais velhos amigos; morreu. A pequena vive aqui comigo, é o meu sol...
- Perdoe-me, senhor, há aqui uma palavra que não consigo decifrar... Talvez não se importe? - gritou Corti aproximando-se com uma carta na mão.
- Onde? - perguntou o velho pegando na lupa. - Ah! já estou a ver. “... à maneira dos gatos”. Outrora, sabia estas cartas de cor. Um gato, senhor. E bastante parecido com ela, não é? A mesma elasticidade, e as garras!
- Não sei - murmurou Corti voltando para a escrivaninha.
- ... Por exemplo, gostaria de saber se ela também era aquela mulher de véu no Stadtpark - disse o velho. - Alta, mas tão sem fôlego, e o andar! Parecia que lhe doíam as pernas. O senhor sabe?
Absorto no trabalho, Corti não respondeu.
- Foi... Já não sei o ano - continuou o velho em voz abafada. - O meu filho era ainda pequeno, éramos tão felizes, e quando ela viu a minha mulher a meu lado, fugiu! Enfim... As coisas mudaram tanto. Os carros têm motores, as mulheres cortaram os cabelos, subiram as saias até aos joelhos, e somos governados por um Chanceler Dollfuss! Quero que a minha neta deixe o país após a minha morte; está-se muito mal aqui, isto já não é vida. Mas ela é social-democrata, o senhor consegue imaginar uma coisa assim? Um socialista na minha família! Uma vermelha na casa dos Taschnik! A minha pobre mulher não sabe. Quer dizer, eu próprio, na minha mocidade... Mas era acima de tudo liberal, não socialista! Enquanto que a minha infeliz Anna - ela chama-se Anna, senhor conde - bem, tinha também umas tendências políticas que... Enfim, as ideias da minha esposa já não se usam. É triste, mas a minha mulher está no asilo, no Steinhof.
- O senhor sabia que foi a Imperatriz quem o pediu ao Imperador? - gritou Corti voltando-se.
- Não estou a percebê-lo, senhor conde. Que pediu ela? Estou a falar-lhe de minha mulher que está louca! - replicou o velho com uma pontinha de impaciência.
- Precisamente, senhor barão - respondeu Corti. - Num dos seus aniversários, Elisabeth quis um hospital psiquiátrico moderno, inteiramente equipado. O Imperador encomendou-o em 1905, acho eu... Foi Otto Wagner quem se encarregou dos planos e da construção; e foi o Steinhof! Está a ver?
- Não sabia... Nunca mo disseram. Então, a minha pobre mulher vive num sítio cuja construção foi decidida por... Essa é boa! Oh! a minha Anna não é má, sabe? Mas às vezes enerva-se um bocado. Foi depois da morte do filho que começou a perder a razão. Presentemente vê conspirações por todo o lado, uniformes e homens negros naqueles sonhos dela, pensa que é uma escrava no Egipto, e só fala de fantasmas. Um delírio!
- O que é isto, senhor? - gritou de súbito Corti. - Parece um poema.
- Com palavras em inglês? Long, long ago? - respondeu vivamente o velho. - O último sinal que recebi de Gabriela. Um belo poema. E contudo eu respondi, para a posta-restante de Munique, como de costume... Ninguém foi buscar o meu poema, que me custara tanto a fazer. Mas o dela, senhor conde, que maravilha! Parece-me que o sei ainda de cor. “Lembras-te da noite deslumbrante sob os lustres? Há muito, muito tempo, long ago...” E terminava com um verso magnífico, oiça: “Não me faças esperar...”
- Pois bem! Ela já não espera, e o senhor também não - disse Corti aproximando-se.
- Eu? Espero sim, senhor conde, espero. E o senhor bem vê quem eu espero. A Camarada - suspirou o velho com um gesto de impotência.
Duas vozes de mulher elevaram-se atrás da porta; Corti virou a cabeça.
- A minha neta - disse o velho com satisfação. - Quando se trata dela, oiço tudo.
A porta abriu-se bruscamente. Entrou uma rapariga de boina vermelha e uma blusa simples, com um casaco de malha sobre uma saia pelo joelho, uma moça de pele clara, toda afogueada.
- Anda cá, Fanny, aproxima-te - exclamou o velho sorrindo.
- Opa1, dizem que vão passar-se coisas terríveis... - disse ela com agitação. - Os Heimwehren... Os nazis...
- Deixa isso sossegado, por favor - ordenou o velho senhor Taschnik num tom que não admitia réplica. - Apresento-te o conde Corti. Está a escrever uma biografia da minha Imperatriz.
1 Avozinho, era alemão. (N. da T.)
A jovem franziu as sobrancelhas escuras, esboçou uma rápida reverência e olhou para o avô com ar inquiridor.
- Está interessado naquelas cartas de que te falei - disse o velhote, os olhos brilharam-lhe. - As do Grande Baile de Máscaras.
- Outra vez essa velha história! - exclamou ela. - Opa, és muito romântico... O meu avô conheceu nessa noite num baile um misterioso dominó amarelo chamado Gabriela, e...
- Eu sei, menina - interrompeu Corti. - Justamente.
- Justamente o quê? - perguntou Fanny. - Não me vai dizer que era...
- Precisamente, menina - concluiu Corti com um cumprimento. Ela hesitou, pegou-lhe no braço e levou-o para perto da janela.
- Venha por aqui, por favor - murmurou-lhe ela rapidamente. - Chegue-se mais... Temos de falar baixinho. Não quero estragar a alegria dele, mas há o risco de haver combates em Viena, fique sabendo. Prepara-se um golpe de Estado, sei disso por uns amigos meus... Queria dizer-lhe, mas desisto. Quando sair, seja prudente.
O conde aquiesceu com um aceno.
- Então Opa namoriscou a Imperatriz! - exclamou ela numa voz jovial. Ao passar por detrás da poltrona, pôs os braços em volta do pescoço do velhote beijando-lhe o crânio liso.
- Ora vejam lá o meu avô, este sedutor - murmurou-lhe ternamente ao ouvido. - Tenho a certeza de que a beijaste. Confessa!
Ele deixava-se mimar, rindo de prazer, com os olhos húmidos, feliz.
- Estou orgulhosa de ti - sussurrou ela. - A Imperatriz! Diz-me lá, como era a pele dela? Ela beijava bem?
- Menina! - bradou o conde melindrado.
- Acaba com isso - murmurou o velhote, - estás a fazer-me cócegas. Tira essa horrorosa boina para podermos ver o teu cabelo.
Num gesto vivo, tirou a boina, e as madeixas cor de castanha apareceram, intermináveis, rutilantes. Com aquela pele rosada e os risonhos olhos escuros, ela era tão bela que Corti não foi capaz de reprimir uma exclamação de surpresa.
- Está a ver, consegui que ela não cortasse o cabelo... Não é verdade que a minha Fanny se parece um pouco com a Imperatriz? - disse o velho. - É a minha vitória. Depois de eu morrer ela fará o que entender.
- Queres fazer o favor de te calares, Opa! - exclamou ela, zangada. - Tu não vais morrer.
- O seu avô autoriza-me a reproduzir as cartas - interveio Corti inopinadamente. - Espero que não veja inconveniente nisso.
- As cartas são dele, caro senhor - atalhou ela. - E ele está perfeitamente lúcido.
- Certamente - apressou-se a dizer o conde Corti. - Longe de mim pensar... Aliás, eu despeço-me.
- Tanto mais que nós temos de ir ver a minha avó - disse ela.
- Ao Steinhof ? - murmurou o conde.
- Ah! Ele disse-lhe.
- E vão atravessar Viena? - perguntou ele inquieto. Ela teve um gesto fatalista, e fez-lhe sinal para se calar.
- Senhor barão - gritou Corti aproximando-se do velho - vou mandar-lhe a cópia do meu manuscrito antes da publicação. E gostaria de lhe pedir autorização para voltar e ouvi-lo durante mais tempo.
- Se Deus me der vida - murmurou o velho.
- Tem o meu número de telefone no cartão, A-16-1-41 - gritou o conde.
- Fico-lhe realmente muito reconhecido. Graças a si, a Imperatriz vai reviver sob uma luz desconhecida...
- Mas não vai falar do beijo - recomeçou o velho endireitando-se.
- Proíbo-lho.
Corti inclinou-se cerimoniosamente.
- Nem de minha avó - acrescentou a jovem segurando-lhe na porta.
- Servus, senhor conde - murmurou o velho vendo-o sair.
Fanny contemplou o avô com um olhar desconfiado; tinha as faces vermelhas e tossia discretamente.
- Estás com os olhos muito brilhantes, Opa - disse a rapariga. - Não apanhaste frio, pois não?
- Dá-me a caixa de folha, para eu arrumar as cartas. Ah! E também na gaveta de baixo... Há uma coisa que eu gostaria de ver.
Fanny remexeu na escrivaninha e extraiu um leque cuja seda queimada estava a desfazer-se em pó.
- Este horror? Mas está todo partido! - exclamou ela estendendo-lho.
- Agora deixa-me descansar, só um bocadinho - murmurou o velho, agarrando no leque. - Daqui a um quarto de hora podemos ir. Que dizias tu há bocado a propósito das milícias?
- Nada, Opa. Boatos vienenses - disse ela fechando a porta. O velhote encostou a cabeça afagando o tafetá gasto.
- O meu sapatinho de cristal - murmurou. - Eu bem te dizia que te haveria de encontrar, Gabriela... Estás a ver, não falei disto ao conde. Guardei o leque para nós. Precisávamos de um último segredo, não achas?
- Devagar, Opa - disse a rapariga abrandando o passo. - A colina é difícil de subir, leva o tempo que for preciso.
O velho, afogado num capote verde-garrafa, arquejava, a gola entreabria-se deixando ver o pescoço descarnado. A neve derretera, e a erva amarelada surgia por entre as placas de gelo; os pinheiros deixavam cair grossos pingos gelados, e lobrigava-se ao longe, através dos ramos despidos dos áceres, a cúpula turquesa da alta igreja bizantina, o orgulho do Steinhof, em mármore e ouro velho. Raras sombras escuras vagueavam por ali, doentes que tinham sido autorizados a sair por causa do sol pálido e do céu limpo.
- Orna' vai ficar contente, sabes - murmurou Fanny puxando-o um pouco pela escadaria enlameada.
- Se me reconhecer-retorquiu o velho parando. - É a última vez, Fanny, já não posso mais... Não volto cá.
- Voltas sim - disse ela pressionando-lhe ligeiramente o braço - faz-te bem. Tens de andar. Nunca sais. Precisas de ar puro. Aqui respira-se!
E largou-o para rodopiar, num gesto gracioso, de braços estendidos e olhos fechados.
- Então tu não vês que estou a morrer? - rosnou o velho entredentes.
- Mais um esforço! - gritou ela estendendo-lhe os braços. - Anda!
Ele içou-se lentamente para o degrau seguinte, voltou a ter uma tontura e encostou-se ao tronco de uma árvore. Ela correu para ele.
- Opa? Responde - segredou com angústia. - São as vertigens? Ele aquiesceu respirando com força. Tinha o rosto cor de púrpura.
- Isso passa... Apoia-te em mim. Aliás estamos a chegar ao pavilhão da Orna, olha, é ali. A poucos metros.
- Ali... - balbuciou o velho piscando os olhos. - Muito longe.
- Isso passa - repetiu ela arrastando-o passo a passo.
O pavilhão de varandas gradeadas estava quente, limpo e sonoro. Um médico de bata branca e bigode grisalho avisou a rapariga de que a doente não estava num dos seus melhores dias; não deveriam demorar-se. E depois estava na hora da refeição; iam experimentar, mais tarde, um banho gelado. O velho deixara-se cair numa cadeira e, de cabeça descaída, parecia dormitar.
1 Avozinha, em alemão. (N. da T.)
- Opa! - segredou-lhe a jovem ao ouvido. - Ela está pronta. Mas não está lá muito bem, tens de ter paciência.
- Então é porque o espírito dela anda a vaguear - retorquiu o velho erguendo-se penosamente. - Onde está o meu lenço?
Com os braços cingidos por correias de cabedal branco, atada às grades da cama, com o cabelo metido num barrete de pano grosseiro, Anna olhava-os com um ar atrevido.
- Vêm para o Carnaval - disse ela triunfantemente. - A mim também me mascararam. Oh! Estou a reconhecer-vos. Tu és o meu Franzi, e tu - disse ela à jovem - tu és... Tu és... Já não sei quem tu és.
O velho sentara-se ao pé da cama e, de punhos pousados nas grades, contemplava-a sem dizer palavra.
- Queria sair para ir ao baile - murmurou ela em confidência - para ir assassinar um que eu bem vi. Sabem? Aqueles homens negros. O chefe deles há-de vir que eu bem sei. E tinha roubado uma faca, mas deixei-me apanhar...
E virou a cabeça mordendo os lábios.
- Pequena, toma o meu lugar, mata-o! - gritou ela. - Ele vai destruir o mundo! Esse faraó é pior do que todos os outros juntos! Vai massacrar-nos e nós não poderemos sair do Egipto! Disseram-me!
- Quem, Anna? - murmurou o velho em voz trémula. - Quem é que foi, desta vez?
- Quem? - perguntou ela com um olhar desconfiado. - Chega cá, vou-te dizer ao ouvido. Chega cá! Bem vês que estou presa...
Suspirando, ele aproximou-se e inclinou a cabeça.
- É segredo - cochichou ela. - Estás a ver aquela planta verde, ao pé da janela? E por ali que eles vêm. Disfarçadamente. Pelas raízes, sim! Eles são manhosos! Esperam pela noite, e avisam-me. Antes, mas o senhor juiz sabe isso melhor do que eu, passavam pelos canos, punham-me ovos na cadeira. Ovos! Como se eu fosse uma galinha! Mas quando era preciso chocá-los, era sério. Então eu chocava. Os ovos da cólera, diziam eles. Vamos lá à cólera...
- Desvaira completamente - murmurou a rapariga. - Pela lua cheia é sempre assim.
- Esta - ralhou a louca - esta não acredita em mim, é muito nova. Mas tu, Franzi, escuta bem - continuou, baixando a voz. - Esses Egípcios negros, com aquela cruz e as botas, fizeram uma conspiração contra... Já não sei quem,
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esqueci-me do nome dele. Herzl, já me lembro. O rei dos Hebreus, o rei Teodoro. Vão entrar na Burg e deitá-lo ao Nilo, a seguir matarão as pessoas, e...
- Não devemos fatigá-la, Opa - disse a jovem. - Vamos embora.
- Não - fez o velho pondo a mão atrás da orelha para ouvir melhor.
- Os velhos nos asilos, os enfermos, e até os loucos vão ser mortos - continuou ela com um olhar para a planta. - E os judeus. Nós todos sem excepção. É preciso atravessar depressa o mar Vermelho... Ah! Vai ser uma obra asseada! Felizmente estou prevenida...
- O médico foi formal, Opa, temos de ir - insistiu Fanny. - Senão ela corre o risco de ter uma crise de violência, vamos, levanta-te...
- Está bem - disse o velho resignado aproximando-se da cabeceira da cama.
- Deixa-me dar-te um beijo.
- Acima de tudo, fecha bem a porta - disse Anna numa voz desagradável.
- Com duas voltas de chave.
Depois, dócil, estendeu a face.
A greve geral fora o sinal para os motins. Os Heimwehren tinham atacado os sociais-democratas, que resistiam, de armas na mão. Os combates de Fevereiro duraram oito dias. Os membros do Schutzbund não desarmavam, e as milícias de extrema-direita não conseguiam vencê-los. O Chanceler decidiu utilizar o canhão. Durante uma semana, a pequena peça de artilharia de implacável precisão, preparada pelo Chanceler Dollfuss, atacou o símbolo da Viena Vermelha, o Karl-Marx-Hof, o grande bairro operário, que era o que estava em jogo na batalha.
A última bandeira vermelha caiu no dia 15 de Fevereiro, em Laar Berg, ao sul de Viena, num daqueles subúrbios onde as revoltas existiam sempre em estado latente. Houve mil mortos e outros tantos feridos do lado dos sociais-democratas, um massacre sem precedentes. O partido social-democrata foi proibido; os membros do Schutzbund viram-se obrigados a fugir; os que ficaram foram presos. Apesar das intervenções estrangeiras e dos avisos de todos os prelados da Áustria, enforcaram oito dirigentes, entre os quais um ferido grave; e foram celebradas com grande pompa as exéquias dos cento e vinte e oito polícias vencedores, tombados ao serviço da pátria, ao som da Marcha Fúnebre da Sinfonia Heróica, de Beethoven, tocada pela Orquestra Filarmónica de Viena.
Livre da oposição de esquerda, o Chanceler Dollfuss consagrou-se à oposição nazi, cujos atentados já não tinham conta. O partido nacional-socialista austríaco estava proibido, mas multiplicavam-se os ataques nas fronteiras, e a propaganda nazi espalhava-se em boatos vindos de Berlim, onde Dollfuss era já dado como perdido.
Como? Não se sabia. Quando? Desde o mês de Junho, dizia-se que o golpe de Estado estava iminente.
Mas então quando, afinal? Por aqueles dias. Para quê? Para anexar a Áustria ao Terceiro Reich. E o pequeno Chanceler ainda mandou condenar à pena capital dois ou três socialistas, tudo para combater o perigo Vermelho e defender a independência nacional.
Foi por isso que reforçou os laços de amizade com Mussolini, e se dirigiu a Riccione, para onde já tinha seguido sua esposa Aldwyne, de quem o Duce parecia gostar muito. Benito Mussolini desfez-se em palavras de ódio contra o Chanceler Hitler, mas em Berlim corriam vozes segundo as quais, pelo contrário, o Fúhrer tinha congeminado tudo com o seu homólogo italiano, e que deixara cair “Millimetternich”, o chamado “Chanceler de bolso”, ou ainda “Minorca”. Os boatos ferviam, e Dollfuss não liquidara ainda a oposição de extrema-direita.
Chegou o dia em que, exausto, o pequeno Chanceler se resignou a levantar a proibição do partido nacional-socialista, e até lhe arranjou um lugar no governo. Tudo, menos o Anschluss. Tudo, até mesmo nazis austríacos.
Naquele dia 25 de Julho, quando o velho senhor Taschnik se preparava uma vez mais para subir lentamente a colina do Steinhof pelo braço da neta, o Chanceler da Áustria reuniu o seu conselho de ministros.
A folhagem estava tão densa que, cá de baixo, já não se via a igreja bizantina. Um sol ardente começava a queimar a erva dos prados, onde as vacas se tinham deitado de lado. Os médicos de bata branca deambulavam alegremente sob as ramadas, e as famílias dos doentes aproveitavam as horas da visita para passearem até à quinta, onde se criavam porcos e galinhas.
A jovem amparava o avô. Estava a ficar mais pesado de mês para mês; exigira mesmo o arrimo de uma bengala, ele que nunca a usara senão para parecer elegante.
- Espera, Fanny, vais muito depressa - ofegou o velho apoiando-se ao castão da bengala. - Não vou mais longe.
- Anda até ao banco, Opa - sugeriu ela. - Descansa.
Ele deixou-se cair gemendo um pouco, e desabotoou o colarinho da camisa.
- Um belo Verão - murmurou. - Aqui a gente esquece o resto.
- Eu não posso esquecer - disse sombriamente a rapariga. - Essa aliança com Mussolini! Esse fascista de Dollfuss!
- Uma choldra - disse o velho. - Foi um milagre tu não teres sido presa em Fevereiro, pequena. Minha pobre Anna... Talvez ela não seja assim tão louca, sabes? Vai ser preciso voltar ao Império. Esta gente é muito ordinária.
- As tuas velhas manias... - disse ela enternecida. - Diz-me antes o que te contou o Corti ontem à noite. Ele vai lá a casa muitas vezes!
- O conde - murmurou o velhote com uma entoação de respeito - queria absolutamente publicar integralmente as cartas. E eu não queria.
- Mas Opa, disseste-lhe que sim da primeira vez! - exclamou ela. - Eu estava lá.
- Naquelas linhas há coisas... - murmurou o velhote embaraçado. - Enfim, palavras que não quero ver publicadas, pronto.
- Umas ternuras? - insinuou ela divertida. - Não imagino aquela mulher apaixonada.
- Es livre de acreditares no que quiseres - zangou-se o velho batendo no chão com a bengala. - Ele cedeu. E eu cortei uns trechos.
- Mostras-mas? Até aqui fechaste-as à chave, ciosamente. Por favor, Opa - suplicou ela beijando-lhe a mão. - Por mim...
- Veremos - respondeu ele olhando o céu por entre os ramos. - Ficava bem aqui, sabes, nesta colina, ao pé desta igreja austera. Sinto-me bem.
- Não és suficientemente louco para ficares aqui - replicou ela rindo.
- Podemos ir? As horas passam. Já são onze e meia.
- É a última vez que venho vê-la - murmurou o velho. - Este jovem ácer - acrescentou - já não o verei pelo Outono, quando ficar vermelho.
- Dizes isso todos os meses, Opa - disse ela puxando-o pelo braço.
Às onze e meia, exactamente, o Chanceler federal reparou na ausência do ministro Fey, que só chegou ao meio-dia, e que lhe murmurou umas palavras ao ouvido.
O Chanceler Dollfuss ficou calado. Por muito tempo. Depois deu por encerrada a sessão sem quaisquer explicações e despediu quase todos os ministros. O ministro Fey, cúmplice dos nazis, sentira remorsos, e acabava de preveni-lo que um comando de cento e cinquenta homens se preparava numa sala de ginástica da Siebensterngasse. Nazis, que iam disfarçar-se de soldados federais e invadir a sede do governo. Dollfuss deu as ordens que se impunham: enviar a polícia e prender os golpistas.
À mesma hora, o edifício da rádio, na Johanngasse, fora já invadido pelos falsos soldados federais. Na escola vizinha, o professor em pânico deixou sair as crianças, e largou-as no passeio. “Vão para casa! Depressa, não se demorem pelo caminho!”
De um modo confuso, os miúdos sentiram que aquele dia não era como os outros; a maior parte obedeceu docilmente, mas não todos. O pequeno Elie Steiner, abandonado no passeio, viu as horas; almoçava todos os dias com os pais no Sacher, no café, rapidamente. Até lá tinha tempo. Uma hora inteira para satisfazer a sua curiosidade e andar pelas ruas sem ninguém a tomar conta; Elie dirigiu-se para as ruas do primeiro bairro, o coração de Viena.
O velho senhor Taschnik acabava de entrar no quarto da esposa. Sentada na cama, Anna olhava-o de longe com ar de idiota. Não parecia reconhecê-lo.
- Voltaram a atá-la! - suspirou o velho com uma intonação de revolta.
- O médico diz que as crises são cada vez mais próximas umas das outras, Opa - sussurrou a neta. - Não têm explicação para isso. Talvez o calor...
- O frio, o calor, ofoehn, há sempre qualquer coisa - rosnou ele. - Nunca vai ter fim.
Aproximaram-se; a velha senhora teve um sorriso radioso e os olhos iluminaram-se-lhe.
- És tu, Franzi - murmurou. - E tu também minha pequena Fanny... O velho e a moça trocaram um olhar.
- Voltaram a atar-me... - queixou-se ela com ar aborrecido. - Dizem que esta noite não me portei bem. Contudo bem vêem como estou com juízo. Franzi... Pede-lhes que me deixem em paz.
- Tu estás doente, Oma, os médicos tratam-te, é para o teu bem - interveio Fanny acariciando-lhe a testa.
- Médicos! - disse ela com uma ligeira gargalhada. - Não é o que me dizem lá em cima - acrescentou ela com um olhar para o tecto.
- Eles voltaram, não foi? - perguntou o velho.
- Opa! - indignou-se Fanny, furiosa. - Não devias!
- Deixa - disse ele irritado. - Sei como lidar com ela. Então, voltaram a falar contigo esta noite?
- Disseram-me que era esta noite - cochichou a louca com um ar misterioso. - E que finalmente a verdade explodiria. Disseram-me que tu escapavas, não sei como, e eu fiquei muito contente. Passaram pelos vidros, simplesmente!
Disseram que tinham muita pressa de me prevenirem. E estás a ver - acrescentou sorrindo-lhe ternamente - todos vão saber que eu tinha razão.
- Sempre esses fantasmas que lhe falam há tantos anos - suspirou Fanny no seu canto.
- Eu ouvi, Fanny - exclamou ela. - Oh! Tenho um ouvido apurado! Fantasmas? Espera pela noite e verás.
O velho aproximou-se da cama, de lágrimas nos olhos.
- Anna... - começou ele, acariciando-lhe a testa. - Acho que não vou poder voltar.
- Tu tens de partir, disseram-me eles - murmurou ela tristemente. - Só Deus sabe do que aqueles monstros são capazes. É preciso que vás para bem longe.
- É o que vou fazer, minha querida. Queria dizer-te... Eu também tenho um segredo - suspirou limpando a boca. - Uma coisa que te escondi.
- Ah - disse ela ensombrando-se. - És da polícia.
- Não - suspirou ele. - Correspondi-me com a nossa Imperatriz, e nunca to disse. Ela enviava-me longas cartas...
- A Imperatriz! - gritou ela. - Para salvar a Áustria? Isso é muito bom. Espero que também a tenhas prevenido. A Imperatriz pode tudo.
- Certamente - murmurou o velho. - Anna... Lembras-te da pequena orquestra na rua? Amei-te muito.
Ela piscou os olhos como uma borboleta à luz.
- Claro - disse após um silêncio. - Estava muito frio nessa manhã; tinha o meu regalo de astracã e o meu casaco azul. Não tivemos sorte. Foi aquela guerra. E agora a outra que vai começar. Que queres, meu Franzi... Não é fácil.
- Desata-a - disse o velho à neta.
- É proibido, Opa - respondeu ela num sobressalto. - Ela pode ser perigosa...
- Desata a tua avó - ordenou ele num tom que não admitia réplica.
Ao meio-dia e cinquenta, quando todo o perigo parecia já afastado, os soldados encarregados de render a guarda deram entrada no pátio da chancelaria. Quatro camiões precipitaram-se no seu encalço, atulhados de estranhos soldados com uniformes incompletos. Os nazis. E entre eles um colosso, um sudeta chamado Planetta.
Em vinte minutos assenhoraram-se das instalações. No edifício da rádio, o outro comando abatera um motorista e dois guardas, e obrigara um locutor a interromper o programa musical para anunciar publicamente a demissão do governo Dollfuss. No estúdio vizinho, um actor viu os golpistas empunharem pistolas e começou aos berros. Uma rajada reduziu-o ao silêncio.
No pátio da Burg, os nazis desciam dos camiões e penetravam nos edifícios. O pequeno Chanceler resolveu fugir pelos corredores, guiado por um velho porteiro que conhecia a chancelaria como as palmas das mãos. Mas o velho andava devagar, e Dollfuss nada sabia das portas secretas. E quando chegou ao salão conhecido por “Salão do canto”, os nazis irromperam na sala. A porta estava fechada à chave.
Planetta meteu-lhe duas balas nas costas. Uma terceira no pescoço. O Chanceler tombou. Ao bater no chão, a cabeça provocou um estrondo que aterrou os próprios nazis.
Ele começou a gritar “socorro, socorro...”. Não estava morto. Não queria morrer. Estava banhado em sangue e recusava-se a abandonar a vida. Paralisados, os nazis olharam-no e afastaram-se.
Às treze horas, o pequeno Elie Steiner ainda não tinha chegado ao Sacher; apressou o passo, e passou diante da pastelaria Demel, olhando de lado, já não tinha tempo de apreciar as tortas na montra. Mesmo assim abrandou e parou, a tempo de ver sair a mãe aflitíssima que lhe pegou pelo braço: “Que andas tu a fazer aqui, Deus do céu! Temos de ir para casa. O teu pai não está na chancelaria, telefonei-lhe para o gabinete, ninguém pode passar pela chancelaria. Depressa!”
- E a minha lição de violino, daqui a bocado? - perguntou o pequeno Elie.
- Como se fosse dia para violinos! - replicou a mãe começando a correr. Elie não percebeu nada do discurso confuso da mãe, a não ser que era um momento grave e que não devia discutir.
A rapariga desapertou cautelosamente as fivelas que seguravam as correias, e a louca massajou os pulsos. O velho pegou-lhe nas mãos e ficou com elas presas nas suas.
- Por que me deixas aqui, Franzi - gemeu. - Não fiz nada de mal... Tenho culpa deles falarem comigo? Tenho de ouvir! Deus não me perdoaria!
- Deus perdoa-te tudo - murmurou ele beijando-lhe os dedos.
- Sei o que é preciso fazer para Deus - disse ela retirando as mãos. - É preciso dançar.
Anna pôs-se de pé, com a cabeça inclinada para o ombro, rodopiou sobre si mesma, de braços estendidos, cantarolando uma melopeia iidiche, de olhos fechados. Mesmo com o barrete de pano, mesmo com a camisa do hospital, conservava a graça da rapariguinha que ele encontrara diante de uma pequena orquestra da Galícia, num dia de Inverno. Franz não conteve um sorriso, que depressa se desvaneceu. Não se podia deixá-la desamarrada por muito tempo.
- Pára agora, Anna, minha querida - murmurou. - Isso, assim está bem. Agora, tenho de te dizer adeus.
- Mas vais voltar? Vens todas as primeiras quartas-feiras do mês - disse ela. - Estás a ver, eu sei! Tenho muito juízo!
- Voltar? - suspirou o velho. - Não tenho a certeza. Porque vou viajar.
- Não me disseste onde ias - gritou ela numa voz esganiçada.
- Muito longe - disse ele.
- Não vás para a Ucrânia! - berrou ela. - Não vás para aquela neve medonha! A guerra! Vai recomeçar! Não vás para lá! Não vás nos comboios!
Erguera-se, desvairada, irreconhecível, com as mãos para a frente, agarrava-se-lhe ao casaco, e o velho quis segurá-la... Com um estrondo assustador ele caiu no chão, e bateu com a cabeça. Lívida, a jovem precipitou-se para a campainha.
A porta abriu-se, dois enfermeiros acorreram, agarraram-na e amarraram-na solidamente. Ela quase não se debatera. Depois levantaram o velho e sentaram-no numa poltrona, perto da janela. De olhos fechados, o rosto cor de cera, deitou a cabeça para trás e engasgou-se.
Dollfuss começou a gemer e perdeu os sentidos.
Dois ou três nazis desceram a escada e sussurraram aos guardas que ali se encontravam: “O Chanceler está ferido...” Depois mais nada. Incrédulos, os guardas não percebiam.
- Querem ir verificar? - sugeriu um nazi.
- É grave? - perguntou por fim um dos guardas antes de subir a escada. Tudo parecia tão trágico, e no entanto tão sossegado.
Uns minutos mais tarde, o guarda descia aflito, procurava um médico, e não havia. Pedia pelo menos um pedaço de pano para fazer um garrote, estancar o sangue que não parava de correr. “Eu tenho - disse um nazi tirando um trapo do bolso - mas não sei como é que se faz um garrote.” “Não faz mal, eu desenvencilho-me”, e voltou a subir.
Deu umas ordens aos nazis que se mantinham de pé junto do corpo do Chanceler, sem proferir palavra, sem um gesto. Fez com que os assassinos, obedientes, pegassem docilmente no moribundo pelas axilas e pelos tornozelos, um dois, o erguessem muito devagarinho, para o estenderem num sofá carmesim. O guarda humedeceu a testa do Chanceler com água-de-colónia, estancou o sangue que desenhou, na seda vermelha, umas manchas húmidas. Por fim, o guarda falou, com palavras breves, sem violência, aos nazis petrificados, sem violência, e de súbito Dollfuss abriu os olhos e disse: “Como estão os ministros?”
- Estão bem - respondeu o guarda sem violência.
- Quero vê-los - murmurou o Chanceler.
Os enfermeiros tomaram fôlego. A velha senhora era de força. Num canto do quarto, Fanny soluçava.
- Não partiu nada, senhor Taschnik? - perguntou o primeiro enfermeiro.
- Em todo o caso não foi ela que se desamarrou sozinha! - bradou o segundo. - Quem fez isso?
- Fui eu - respondeu o velho.
- Vamos ter que dizer ao doutor - rosnou o enfermeiro. - Ele vai ralhar consigo! A gente tinha avisado que ela não estava bem!
- É a minha última visita - disse baixinho o velho com uma careta de dor. - Não volta a acontecer.
- Anda, Opa - disse Fanny limpando as lágrimas. - Dá-lhe um beijo.
Anna estava prostrada, sem expressão, com os olhos secos. Cerimoniosamente, Franz aproximou-se da cama tremendo dos pés à cabeça, e depositou um beijo no barrete de pano. - Adeus, Anna - segredou-lhe ao ouvido.
- Os homens negros - murmurou ela misteriosamente - com dois pequenos raios de prata nas mangas. E punhais nas botas. Tem muito cuidado contigo, meu Franzi...
O capitão do comando nazi chamava-se Holzweber. É óbvio que não era oficial, mas já que tinha ganho importância, promovera-se ele próprio para aquela ocasião: de sargento, passara a capitão. Quando vieram avisá-lo de que o Chanceler reclamava os ministros, subiu a escada a quatro e quatro, entrou no “Salão do canto”, e deteve-se a três metros do sofá carmesim, batendo os calcanhares antes de se inclinar.
De acordo com a imemorial tradição do exército da República austríaca, herdada do velho Imperador. Porque, já que o baixote ainda estava vivo, continuava a ser Chanceler, e o importante era a ordem, antes de mais nada.
Respeitosamente, o “capitão” Holzweber pediu ao homem que ele acabava de mandar abater o que desejava.
Ver os ministros.
Não estão, respondeu o homem; mas talvez, procurando bem, o capitão pudesse encontrar o ministro Fey. Quero um médico, pediu debilmente Dollfuss. Não obteve resposta. Então um padre. Ninguém falava. Já não sinto nada, disse ele aos guardas e aos nazis que o rodeavam, estou paralisado, depois calou-se. Como vocês são bons para mim, meus filhos, disse ainda, depois a cabeça descaiu. Não, ainda não estava morto. Ainda não.
Não descobriram os ministros, mas levaram-lhe Fey, encarregado de lhe extorquir a nomeação de um sucessor. Um nazi.
Fey ajoelhou-se diante do sofá vermelho, o Chanceler abriu vagamente os olhos...
- Boa-tarde, Fey, como vai?
- Vou andando - balbuciou Fey.
- E os outros ministros? - perguntou o pequeno Chanceler.
- Não te preocupes com eles - respondeu Fey - estão sãos e salvos.
- Eu não - murmurou o Chanceler Dollfuss fechando os olhos. - Como vês, vou morrer. Peço-te duas coisas. Diz a Benito Mussolini que tome conta da minha mulher e dos meus filhos.
- Prometo - respondeu Fey, embaraçado.
- Outra coisa. O meu sucessor será Schuschnigg, e mais ninguém.
Fey ficou impassível; o sucessor designado pelo Chanceler Hitler não era Kurt Schuschnigg. Fey não disse palavra, mas olhou para os golpistas erguendo as sobrancelhas, foi tudo. Um guarda eclipsou-se.
Então os nazis acordaram. Tiraram as pistolas, apontaram-nas ao moribundo. Intimaram Fey a conseguir que fosse designada qualquer pessoa, mas não Schuschnigg. O Chanceler fez que não com a cabeça, não cedia, não, Fey falou-lhe ao ouvido: “Vá lá, Engelbert, cede - segredou - é tarde de mais, não há mais nada a fazer.”
Mas não.
O moribundo recusou.
- Tenho sede - disse ainda.
E também “Mais sangue não, mais sangue não...”. Faltava-lhe o ar. Só teve tempo de pronunciar quatro palavras, “minha mulher, meus filhos”, e o estertor começou, um ronco agudo, terrível, até que, por fim, o sangue lhe jorrou do nariz em abundância.
Os Vienenses tinham-se reunido na praça, atraídos pelos rumores do atentado. Já conheciam a escolha do agonizante, e a polícia cercava o edifício.
A multidão! A polícia! “O golpe falhou”, pensou Fey irreflectidamente.
Lá fora gritava-se: “Assassinos, patifes, cambada de cães!” Pálido, Fey mostrou-se à varanda cambaleando; por trás dele estava o falso capitão tão bem educado. A multidão soltava urros. Fey improvisou para ganhar tempo. “Os golpistas perderam, pedem que lhes salvem a vida! - gritou ele à multidão. - Que resposta é que se lhes dá?”
- Que sim, se não houve mortes! - gritou a multidão.
- Na condição de não terem assassinado ninguém!
“Está toda a gente viva...”, respondeu Fey, hesitando. Verdade ambígua: porque era certo que naquele momento, no sofá carmesim do Salão do canto, o mini-chanceler, cujo sangue jorrava pelas narinas, não havia ainda soltado o último suspiro.
Se tivesse falado um minuto mais tarde, o ministro Fey teria mentido. O ministro Fey conhecia o futuro imediato; sabia que no instante seguinte Dollfus estaria morto. O golpe dos nazis soçobrou na desordem e na confusão.
O golpe de Estado poderia ter tido êxito se não fosse aquele minuto. Um minuto que o Chanceler Hitler, no seu camarote do festival de Beirute, esperava impacientemente. Um minuto a mais; Dollfuss agonizante designara um sucessor, e o próximo Chanceler da Áustria não seria um nazi. Fey escapar-se-ia cobardemente, a multidão deixá-lo-ia partir. Hitler perdera a partida daquela vez. O Anschluss não teria lugar; a Áustria não se tornaria alemã, e era preciso começar tudo de novo. Da próxima vez seria diferente, haveria uma preparação mais cuidadosa. Daí a algum tempo.
Eram quase quatro horas da tarde. O pequeno Chanceler acabara de entregar a alma ao Criador sem ceder.
Bem aconchegado nas almofadas, o velho olhava para o Sol cuja luz dourada começava a ficar mais suave. À sua cabeceira, Fanny contava cuidadosamente as gotas que deixava cair num copo.
- Este lindo crepúsculo vienense - suspirou ele. - Estes telhados avermelhados.
- Foste muito corajoso, Opa. Pobre avó.
- Estes intermináveis dias de Verão! - continuou ele sem ouvir. - Dir-se-ia que o Sol se recusa a ir para a cama. “Gold'ne Wiinsche/ Seifenblasen! Sie zerrinnen wie mein Leben1...”
- Vais tomar a tua valeriana como deve ser e vais dormir - insistiu Fanny com doçura. - Estás muito cansado.
- Ela não está tão louca como dizem - murmurou o velho. - Ou então eu também estou. Quando eu morrer, Fanny, vai-te embora daqui! Sai de Viena!
- Bebe - disse ela estendendo-lhe o copo. - Tenta não respirar para não sentires o gosto, não sabe bem.
- Tu nunca gostaste de Heine - rosnou ele entre dois golos. - “Desejos dourados! Bolas de sabão!”... Detesto este remédio!
- Mas bebeste-o todo, fizeste muito bem - disse ela ajeitando-lhe as almofadas.
- ... Vai-me buscar aquele velho leque. Deixei-o na sala.
Quando ela virou costas, ele fez um esgar de dor e pôs a mão no peito.
- Gostava bem de saber por que tens tanto apego a este objecto! - exclamou ela, rabujenta, regressando com o leque.
- Pois se te digo que sou um velho maluco - resmungou ele limpando febrilmente a boca. - Abre a janela para eu ver a minha querida cidade.
- Vais apanhar frio!
- Já apanhei - murmurou ele, e abriu o leque a tremer.
“Uma após outra, Anna e Gabriela”, murmurou enquanto se inclinava para ver a rua. “Anna primeiro. Agora tu, Gabriela; adeus.”
Lá de fora subiam os ruídos da tarde, o ronronar dos motores, o tilintar dos eléctricos, o surdo rumor da grande cidade, a agitação serena de um lindo Verão, os gritos familiares dos vendedores de jornais... O velho pousou o leque sobre o coração, e apertou-o devagarinho nas mãos juntas.
Bruscamente, Fanny franziu a testa. Por todo o lado se corriam as cortinas de ferro das lojas, com grande alarido.
- Mas não está na hora... - disse ela indo à janela.
“O Chanceler Dollfuss morreu assassinado! Atentado nazi contra o Chanceler! A Áustria de luto! Homicídio à cabeça do Estado!” gritavam os ardinas, e a multidão acorria a rodeá-los.
- Opa! - berrou ela sem se voltar. - O Chanceler! Mataram-no! Os nazis! Foram os nazis!
1 “Dourados desejos! Bolas de sabão! Como elas a minha vida se desfaz...”, uma citação de Heine. (N. da T.)
O leque escorregou da cama com um pequeno ruído. O velho abrira as mãos; num último sobressalto as unhas dele haviam rasgado o tafetá queimado. De maxilar pendente, fitava com os olhos mortos a janela de onde subia o rumor da cidade em fúria.
Quando acabaram os preparativos fúnebres, a governanta apanhou do chão o leque poeirento, e achou que só prestava para ser deitado ao lume.
Em Beirute, no seu camarote, enquanto durava a ópera, Hitler julgou que ganhara; exultava. Quando percebeu que tudo fracassara, só teve um protesto: “É uma catástrofe! Um novo Sarajevo!” Esse argumento serviu-lhe depois, durante quatro anos inteiros: utilizando o receio da guerra, Hitler conseguiu convencer as potências europeias a estabelecer uma nova estabilidade na Europa, e a regularizar pacificamente a questão da Áustria alemã, sem violência.
A biografia do conde Corti saiu nesse ano, em 1934, sob um título anódino e enigmático, Elisabeth, a mulher estranha. Os historiadores da Academia das Ciências de Viena contestaram a autenticidade de alguns poemas publicados pelo conde Corti, e que ele retirara de uma agenda pessoal da Imperatriz, encontrada pela filha, Maria Valéria. Toda a gente sabia que os poemas da Imperatriz dormiam no cofrezinho Liechtenstein que estava no tribunal civil, em Brno; e o conde Corti não era sério.
Fanny permaneceu sozinha no apartamento de Bankgasse; sua avó Anna viveu ainda cinco anos, depois finou-se, como uma candeia que se apaga, reclamando Franzi, que a abandonara, dizia ela. Não deixara de ouvir as misteriosas personagens que lhe descreviam o universo gelado de um perpétuo Inverno na Europa, e principalmente os comboios, aos quais ela voltava sem cessar.
A velha Áustria estremecia a cada investida dos nazis; Fanny ia trocar Viena pela Suíça quando, após dois meses de manifestações quotidianas, de estribilhos berrados e de preparativos minuciosos, o senhor do Terceiro Reich deu entrada na Praça dos Heróis, em frente da Hofburg, no coração da cidade, aplaudido por uma população entusiasta, da qual muitos vieram em camionetas cheias, por encomenda.
No dia seguinte, os nazis obrigaram os judeus de Viena a lavar os passeios, como atesta hoje um monumento em sua honra, em frente de Albertina. O Chanceler de Viena mandou erigir um monumento em Viena em honra de Planetta, e deu o seu nome a uma praça no centro da cidade; o antigo ministro Fey suicidou-se. Viena cobriu-se de compridas faixas vermelhas com uma cruz gamada negra em fundo branco. As deportações começaram.
Fanny conseguiu fugir para os Estados Unidos, onde mais tarde, nos anos cinquenta, se tornou educadora especializada numa instituição para autistas.
Emilie Taschy foi detida em Budapeste no clube nocturno onde cantava todas as noites, durante as primeiras rusgas; apesar das investigações que fez, Fanny não conseguiu saber onde nem quando sua mãe havia desaparecido. Em There-sienstadt, uns sobreviventes tinham-na ouvido dar um recital, no interior do campo de concentração; mas em Setembro de 1943, Emmy desapareceu, certamente aquando do envio de cinco mil deportados para Auschwitz.
Os cofrezinhos da Imperatriz Elisabeth passaram por inúmeras peripécias. O que o duque de Liechtenstein depositara no tribunal civil de Briinn foi para Praga, depois voltou para a cidade da Morávia. Em 1949, a Academia das Ciências de Viena designou sete dos seus membros para preparar a abertura solene do cofre. Em Janeiro de 1950, chegou finalmente o momento fatídico; foi preciso obter vistos para a Checoslováquia, do outro lado da cortina de ferro. Os Checos recusaram-se a entregar o célebre objecto; o cofre foi para Praga, de onde seguiu por fim para Viena, tendo chegado às mãos da Academia das Ciências em 1953. Não seria a sua última viagem.
Foi aberto diante das sete testemunhas, que encontraram então a carta e o destinatário: o presidente da Confederação helvética. Mas em 1951, o presidente Etter recebera já, por intermédio de Luís, filho de Carlos Teodoro, o cofre confiado a Ida Ferenczi, sem o conhecimento da Academia das Ciências de Viena, que não estava a par de nada.
O presidente Etter consultou o Conselho federal, que resolveu não autorizar a publicação dos poemas, para preservar a reputação da Imperatriz assassinada em Genebra. Demasiado contestatárias, essas poesias prejudicar-lhe-iam a memória. Foi preciso esperar por 1977 para que, finalmente, o presidente Furgler aceitasse confiá-las à historiadora alemã Brigitte Hamann, que publicou primeiro alguns extractos numa nova biografia de Elisabeth, em 1981, e que depois, em 1984, fez sair uma edição completa.
Mas quando debateram as últimas instruções da Imperatriz, depararam com um obstáculo imprevisto. Ela desejava que os lucros da sua obra poética revertessem a favor dos Húngaros perseguidos.
Ninguém fazia ideia de quem pudesse receber os direitos de autor. Porque a Hungria, a pátria do seu coração, pertencia ainda ao outro mundo, àquele que a Conferência de Yalta dividira.
O Conselho federal helvético decidiu pois entregar os direitos de autor de Elisabeth da Áustria ao Alto Comissariado para os Refugiados, criação deste século, apropriada à quantidade específica dos massacres respectivos. É na Academia das Ciências que hoje em dia se pode comprar o espesso volume de poemas, numa pequena rua de Viena, a Wáhringerstrasse, ao fundo do pátio, no terceiro andar.
No Outono de 1992, um checo, que a morte da mulher e
uquecera, roubou o caixão de Mary Vetsera do cemitério de Heiligenkreuz, e procurou vendê-lo por vinte mil schillings, uma miséria. A polícia recuperou os restos da desaparecida, e confiou-os ao Instituto médico-legal. Quem de direito opôs-se a toda e qualquer investigação complementar, e o esqueleto de Mary Vetsera voltou para Heiligenkreuz. Soube-se, todavia, pela imprensa que, durante o pouco tempo que esteve no Instituto médico-legal, os especialistas haviam feito uma estranha descoberta: em vez de balas de revólver, o crânio de Mary conservava marcas de golpes de picareta. Segundo alguns boatos não verificáveis, entre 1945 e 1955, as tropas soviéticas de ocupação em Viena ter-se-iam apoderado do crânio da jovem - com o buraco da bala do Príncipe Herdeiro - e tê-lo-iam substituído pelo crânio de uma desconhecida. Depois, os boatos extinguiram-se, e ninguém falou mais no assunto.
Os pais do pequeno Elie mandaram-no para França nos princípios de 1939, e prometeram ir ter com ele mais tarde, já que, em Viena, estavam sempre a tempo de tomar providências. O rapazinho passou toda a guerra escondido numa quinta para os lados das Landes; quando, aos quinze anos, regressou à sua cidade natal, não encontrou nada nem ninguém. O pai morrera em condições misteriosas; tal como Emilie Erdos, Taschnik de seu nome de solteira, também a mãe dele fora presa, e deportada para o campo de Theresienstadt. Como Fanny, também ele não soube a data exacta do desaparecimento da mãe.
E como nada lhe restava de Viena, a não ser a memória que tanto o magoava, instalou-se em França, veio a ser músico da Orquestra da Ópera de Paris, o que lhe permitia digressões pelo estrangeiro, e alguns concertos como solista em certas estâncias termais. Mesmo antes da idade da reforma, conseguiu um contrato com o casino de Baden, muito perto de Viena. Por vezes, nos dias de descanso, subia ao apartamento da sua infância e ficava no patamar sem ousar bater; outras vezes, instalava-se no café Sacher, na esplanada, onde uma noite, última testemunha de uma ilha de memória que se perdia, me contou a sua história, e a recordação que tinha do dia em que o professor o pusera no passeio.
À hora exacta em que os nazis abatiam o Chanceler DoUfuss; à hora em que Franz Taschnik subia pela última vez a colina do Steinhof.
À hora em que o conde Corti acabava o manuscrito da biografia da Imperatriz Elisabeth, acrescentando, entre numerosos documentos inéditos, as cartas de Gabriela, e um poema.
Catherine Clement
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