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Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A VELHA E A ARANHA
Deu-se em época onde o tempo nunca chegou. Está-se escrevendo, ainda por mostrar a redigida verdade. O tudo que foi, será que aconteceu? Começo na velha, sua enrugada caligrafia. Oculta de face, ela entretinha seus silêncios numa casinha tão pequena, tão mínima que se ouviam as paredes roçarem, umas de encontro às outras. O antigamente ali se arrumava. A poeira, madrugadora, competia com o cacimbo. A mulher só morava em seu assento, sem desperdiçar nem um gesto. Em ocasiões poucas, ela sacudia as moscas que lhe cobiçavam as feridas das pernas. Sentada, imovente, a mulher presenciava-se sonhar. Naquela inteira solidão, ela via seu filho regressando. Ele se dera às tropas, serviço de tiros.
- Esta noite chega Antoninho. Vem todo de farda, sacudu.
Para receber António ela aprontava o vestido mais a jeito de ser roupa. Azul-azulinho. O vestido saía da caixa para compor sua fantasia. Depois, em triste suspiro, a roupa da ilusão voltava aos guardos.
- Depressa-te Antoninho, a minha vida está-te à espera.
Mas era mais as esperas do que as horas. E o cansaço era sua única caricia. Ela adormecia-se, um leve sorriso meninando-lhe o rosto. E assim por nenhum diante. Desconhece-se a data, talvez nem tenha havido, mas num dos seus olhares demorados, a velha encontrou um brilho cintilando num canto do tecto. Era uma teia de aranha. Ali onde apenas o escuro fazia esquina, havia agora a alma de uma luz, flor em fundo de cinza. A velha levantou-se para mais olhar o achado. Não era a curiosidade que lhe puxava o movimento. Assustava-lhe a sua transparência demasiada. E, de logo, lhe surgiu a pergunta que luz tecera aquele bordado? Não podia ser obra de bicho. Não. Aquilo era trabalho para ser feito por espirito, criaturamente. A teia podia só ser um sinal, uma prova de promessa. Decidiu-se então a velha surpreender o autor da maravilha. A partir dessa tarde, seus olhos emboscaram o tempo, no degrau de cada minuto. Esquecida do sono e do sustento, não houve nunca sentinela mais atenta. Até que, certa vez, , se escutou um rumor quase arrependido, desses feitos para ser ouvido apenas pelos bichos caçadores. Por uma breve fresta se injanelava uma aranha. Era de um verde pequenino, quase singelo. Com vagaroso gesto a velha foi tirando o vestido do caixote. Usava os mais lentos gestos, fosse para o bicho não levar susto.
- Qualquer uma coisa vai acontecer!
Era suspeita que ela bem sabia. Confirmou-se quando as duas, mulher e aranha, se olharam de frente. E se entregaram em fundo entendimento, trocando muda conversa de mães. A velha sentiu o bicho pedia-lhe que ficasse quieta, tão quieta que talvez qualquer coisa pudesse acontecer. Então ela se fez exacta, intranseunte. As moscas, no sobrevoo das feridas, estranharam nem serem sacudidas. Foi quando passos de bota lhe entraram na escuta. Antoninho! A velha esmerava-se na sua imobilidade para que o regresso se completasse, fosse o avesso de um nascer. E lhe vieram as dores, iguais, as mesmas com que ele se havia arrancado da sua carne. Encontraram a velha em estado de retrato, ao dispor da poeira. Em todo o seu redor, envolvente, uma espessa teia. Era como um cacimbo, a memória de uma fumaragem. E a seu lado, sem que ninguém vislumbrasse entendimento, estava um par de botas negras, lustradas, sem gota de poeira.
Mia Couto
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