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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VELHA SENHORA / Simenon, Georges
A VELHA SENHORA / Simenon, Georges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

A VELHA SENHORA

 

Ele saltou do trem Paris-Havre numa pequena estação deprimente, Bréauté-Beuzeville. Tivera de levantar-se às cinco horas, nessa manhã, e à falta de um táxi fora obrigado a tomar o primeiro metrô para a gare Saint-Lazare. Esperava agora pela sua conexão.

— O trem para Étretat, por favor?

Passava de oito horas, e já era dia há algum tempo; mas, por causa de uma leve neblina e do frio úmido no ar, parecia ainda madrugada.

Não havia restaurante na estação, nem um bar, só uma espécie de taverna do outro lado da estrada, onde se viam algumas carroças de vendedores de gado.

— Étretat? O senhor tem muito tempo. Aquele é o seu trem, lá na frente.

A uma boa distância da plataforma, alguns vagões sem locomotiva apontavam na direção dele, vagões de modelo antigo, pintados de um verde fora de moda, com uns poucos passageiros imóveis por detrás das janelas. Pareciam esperar desde a véspera, e o trem não parecia real. Era como um trem de brinquedo, um desenho de criança.

Uma família — parisienses, naturalmente! — veio correndo, esbaforida, Deus sabe por quê, saltou por cima dos trilhos, e precipitou-se para a composição sem máquina, as três crianças a carregar redes de pescar camarões.

Esse foi o estalo decisivo. Por um momento, Maigret sentiu-se jovem outra vez, e embora estivesse pelo menos a vinte quilômetros do mar, seu cheiro pareceu alcançá-lo, imaginou ouvir a sua batida ritmada; ergueu a cabeça e olhou com algum respeito as nuvens cinzentas que deviam vir do altomar.

Para ele, que nascera e passara a infância no interior, o mar fora sempre assim: redes de pegar camarões, um trem de brinquedo, homens de calças de flanela, barracas de praia, vendedores de conchas e outras lembranças, bares onde se comiam ostras e se bebia vinho branco, e pensões onde a Sra Maigret ficava tão infeliz ao cabo de alguns dias sem fazer nada, que teria com prazer sugerido ajudar na lavagem da louça.

Naturalmente, sabia que isso não era verdade, mas cada vez que se acercava do mar não podia furtar-se a essa impressão de um mundo artificial e sem preocupações, em que nada de sério jamais acontecia.

Na sua carreira já investigara diversos casos ao longo do litoral e entre estes encontrara alguns dramas verdadeiros. Mas agora, uma vez mais, ao bebericar seu calvados no bar da taverna, sentia-se tentado a rir da velha senhora chamada Valentine e do seu enteado, Sr. Besson.

Era setembro; mais exatamente, quarta-feira 6 de setembro, e esse era mais um ano em que não tivera tempo de tirar férias. Por volta das onze horas do dia anterior, o velho porteiro entrara na sua sala, no Quai des Orfèvres, e lhe entregara um cartão de visita tarjado de negro.

 

                     VIUVA FERDINAND BESSON

                                   La Bicoque

                                       Étretat

 

— Ela deseja ver-me pessoalmente?

— Insiste em vê-lo, nem que seja por um instante. Disse que veio especialmente para isso de Étretat.

— Que aspecto tem?

— É uma velha senhora, uma velha senhora encantadora. Fê-la entrar — era, de fato, a mais encantadora senhora imaginável, miúda e delgada, com um rosto delicado e de cores frescas sob o cabelo de um branco muito puro, tão vivaz e graciosa que parecia mais uma atriz no papel de uma velha marquesa do que uma velha senhora de verdade.

— O senhor provavelmente não me conhece, Inspetor Chefe, e aprecio, ainda mais, por causa disso, o favor que me faz de receber-me, porque eu o conheço por haver acompanhado seus excitantes casos todos esses anos. Se vier à minha casa, como espero que venha, poderei mostrar-lhe montes de recortes de jornais sobre o senhor.

— Muito obrigado.

— Sou Valentine Besson, um nome que provavelmente nada significa para o senhor, mas saberá quem sou quando acrescentar que meu marido, Ferdinand Besson, foi o fundador dos Produtos Juva.

Maigret era velho o bastante para que o nome ’Juva’ lhe fosse familiar. Ainda muito jovem vira-o nas páginas de anúncios dos jornais e em cartazes e pareceu lembrar-se que sua mãe usava creme Juva quando se preparava para sair à noite.

A velha senhora à sua frente vestia-se com apuro e elegância um tanto antiquada, com uma profusão de jóias.

— Desde a morte do meu marido, há cinco anos, tenho vivido sozinha numa pequena casa que possuo em Étretat. Para ser mais exata, até o último domingo vivi nessa casa sozinha a não ser por uma rapariga do lugar que era minha empregada há vários anos. Ela morreu na noite de domingo, Inspetor; de certo modo, morreu em meu lugar, e foi por isso que vim pedir-lhe auxílio.

Não falara com dramaticidade. Com um pequeno sorriso, parecia pedir desculpas por mencionar coisas assim trágicas.

— Não se alarme, não sou louca. Não sou nem mesmo o que chamam uma velha senhora excêntrica. Quando digo que Rose — era esse o nome da minha empregada — morreu em vez de mim, estou quase certa de não me enganar. Posso, sucintamente, contar-lhe a história?

— Por favor.

— Toda noite, nos últimos vinte anos, tenho o hábito de tomar algo para dormir, de vez que sofro de insônia. É um sonífero, em forma líquida, assaz amargo, mas o amargor é contrabalançado por um forte gosto de anis. Sei do que falo, porque meu marido era químico. Domingo, como toda noite, preparei meu copo de remédio antes de ir deitar-me, e Rose trouxe-o ao meu quarto quando eu já me encontrava acomodada e pronta para tomá-lo.

Provei-o e achei que estava mais amargo do que de hábito. ”Devo ter posto mais do que doze gotas, Rose. Não vou beber mais.”

— Boa noite, senhora!

E ela levou o copo de volta, como de hábito. Teria provado o remédio por curiosidade? Tê-lo-ia ingerido todo? Parece provável, porque o copo foi achado vazio no seu quarto. Durante a noite, cerca de duas horas da manhã, fui acordada pelo ruído de gemidos, pois a casa não é grande. Levantei-me, e vi que minha filha também se tinha levantado.

— Pensei que a senhora vivia só com sua empregada.

— Domingo foi meu aniversário, 3 de setembro; minha filha veio de Paris para ver-me, e ficou a noite. Não quero desperdiçar seu tempo, Inspetor. Encontramos Rose morrendo na sua cama. Minha filha correu a chamar o Dr. Jolly, mas quando ele chegou ela havia morrido com as convulsões características. O médico não hesitou em dizer que morrera de envenenamento por arsênico. Como não era do tipo de moça que se suicida, e como comeu exatamente as mesmas coisas que nós comemos, é praticamente certo que o veneno estava no remédio que me era destinado.

— A senhora suspeita que alguém tenha tentado assassiná-la?

— Como poderia suspeitar de qualquer pessoa? O Dr. Jolly, que é um velho amigo meu, e costumava cuidar do meu marido, telefonou à polícia do Havre, e um inspetor veio na manhã de segunda-feira.

— A senhora sabe o nome dele?

— Inspetor Castaing. De cabelo escuro, cara vermelha.

— Eu sei. O que diz ele?

— Ele não diz nada. Está interrogando as pessoas, no distrito. Levaram o corpo para o Havre, para autópsia.

A campainha do telefone interrompeu-a. Maigret atendeu. Era o chefe de Polícia.

— Pode vir ter comigo no meu escritório por um momento, Maigret?

— Imediatamente?

— Se possível.

Ele pediu à velha senhora que o desculpasse. O chefe estava à espera:

Alguns dias à beira-mar seriam capazes de tentá-lo?

Por que teria Maigret dito, às cegas:

— Em Étretat?

— Você sabe da história, então?

— Não, não sei. Continue.

Acabamos de receber um telefonema do escritório do Ministro. Você conhece Charles Besson?

— De Cremes Juva também?

— Não exatamente. Ele é o filho. Charles Besson vive em Fécamp, e foi eleito deputado pelo Sena-Inferior há dois anos.

— E a mãe mora em Étretat.

— Não mãe, madrasta, uma vez que é a segunda mulher do pai dele. Você precisa compreender que acabo de saber por telefone o que estou em vias de dizer-lhe. Charles Besson pediu ao Ministro se poderia ver se você aceitaria o caso em Étretat, embora não seja região sua.

— A empregada da madrasta foi envenenada na noite de domingo.

— Você lê os jornais da Normandia?

— Não. A velha senhora está na minha sala.

— Querendo também que você vá a Étretat?

— Exatamente. Viajou especialmente para isso, o que faz pensar que ignora a iniciativa do enteado.

— O que decidiu?

— Cabe ao senhor decidir, chefe.

Por isso, um pouco depois das oito e meia, na quarta-feira pela manhã, em Bréauté-Beuzeville, Maigret tomava finalmente o trenzinho que achava difícil levar a sério, e debruçava-se à janela para surpreender, logo que possível, um lampejo do mar.

Ao se aproximarem dele, o céu ficou mais brilhante, e quando saíram das colinas cobertas de pastagens, era de um azul muito pálido, com umas poucas nuvens apenas, leves e frescas.

Maigret telefonara para a Esquadra Volante do Havre no dia anterior a fim de avisar o Inspetor Castaing da sua chegada, mas procurou em vão por ele. Mulheres em vestidos de verão, com crianças seminuas, que esperavam alguém, davam à plataforma um ar festivo.

O chefe da estação, que parecia inspecionar os passageiros com certa indecisão, acercou-se do inspetor-chefe:

— O senhor não será por acaso o Inspetor Maigret?

— Na verdade, sou. eu mesmo.

— Nesse caso, tenho uma mensagem para o senhor. E entregou-lhe um envelope. Castaing escrevera: ”Desculpe minha ausência. Estou em Yport para o funeral. Sugiro que fique no Hotel des Anglais, onde espero chegar a tempo para o almoço. Ficará, então, a par de tudo.”

Eram ainda apenas dez horas; e Maigret, que levara só uma pequena maleta, pôs-se a caminho do hotel, que não ficava distante da praia.

Antes, porém, de entrar, e apesar da mala, foi olhar o mar e os brancos penhascos escarpados que ladeavam a praia pedregosa; havia uns poucos jovens, moças que dançavam nas ondas, e outros que jogavam tênis atrás do hotel; havia mães de família a tricotar em espreguiçadeiras, e casais de velhos que caminhavam devagar ao longo da orla.

Anos a fio, quando estava na escola, vira seus amigos voltarem das férias queimados de sol, cheios de conchas nos bolsos e histórias para contar; quanto a ele, tivera de ganhar a vida por muito tempo antes que pudesse, por sua vez, ver o mar.

Entristecia-se um pouco por não mais sentir um pequeno choque, por olhar assim, com indiferença, a deslumbrante espuma das ondas e o salva-vidas com seus braços nus, tatuados, a cavaleiro do seu bote, que desaparecia ocasionalmente por detrás de uma onda maior.

Conhecia tão bem o cheiro, que, de súbito, no hotel, sentiu falta da Sra Maigret, pois fora sempre em companhia dela que percebera aquele cheiro.

— O senhor pretende demorar-se?

— Não sei.

— Digo isso apenas porque fechamos a 15 de setembro e hoje já é dia 6.

Tudo seria fechado, como um teatro; as lojas de recordações, as confeitarias; portas de correr surgiriam por toda parte, e a praia deserta seria devolvida ao mar e às gaivotas.

— Conhece a Sra Besson?

— Valentine? Naturalmente. Ela é daqui. Nasceu aqui, seu pai era pescador. Não a conheci menina, porque sou mais moço do que ela, mas lembro-me de quando trabalhava para as irmãs Seuret, que tinham a esse tempo uma pastelaria. Uma das duas irmãs está morta. A outra vive ainda. Tem noventa e dois anos. O senhor verá a casa dela, perto da casa da própria Valentine. É a que tem uma cerca azul em volta. Posso pedir-lhe que preencha o registro?

O gerente — ou seria o proprietário? — leu a ficha e olhou Maigret com renovado interesse.

— O senhor é o Maigret da polícia? E veio especialmente de Paris por causa dessa história?

— O Inspetor Castaing está hospedado aqui, pois não?

— Bem, ele tem tomado a maior parte das suas refeições aqui, desde segunda-feira, mas volta para o Havre toda noite.

— Espero por ele.

— Está no funeral, em Yport.

— Eu sei.

— O senhor pensa que, de fato, alguém tentou envenenar Valentine?

— Não tive tempo de formar opinião.

— Se alguém o fez só poderá ser pessoa da família.

— Quer dizer a filha dela?

— Não quero dizer ninguém em particular. Nada sei do caso. Havia um bando deles em La Bicoque, domingo passado. E não consigo imaginar qualquer pessoa do distrito desejando mal a Valentine. O senhor não sabe nem pode saber o bem que essa mulher fez, quando ainda tinha meios para isso, em vida do marido. Ainda faz um bocado, e embora esteja longe de ser rica, pensa apenas em dar. É uma história suja, acredite-me; Étretat sempre foi lugar tranqüilo. É princípio nosso encorajar uma clientela seleta, famílias principalmente, de preferência de certo nível social. Poderia dar-lhe alguns exemplos...

Maigret preferiu caminhar um pouco pelas ruas ensolaradas, e na praça da Prefeitura leu na fachada de uma loja branca: Pastelaria Maurin, Antiga Casa Seuret.

Perguntou a um motorista de caminhão onde encontrar La Bicoque, e o homem lhe mostrou uma rua que envolvia o flanco suave da colina e era bordada de vilas com jardins. Deteve-se a pequena distância de uma casa metida entre as árvores, e pôde ver um fio de fumaça que subia lentamente da chaminé para o azul desmaiado do céu. Quando voltou, o Inspetor Castaing havia chegado; seu pequeno Simca preto estava estacionado à porta do hotel, e ele mesmo esperava, no topo da escada.

— Fez boa viagem, Inspetor-Chefe? Lamento infinita mente não ter estado na estação. Pensei que seria interessante comparecer aos funerais. Se o que tenho ouvido é verdade, esse é também o seu método.

— E como se passaram as coisas? Puseram-se a caminhar, os dois, ao longo do mar.

— Não sei. Fico tentado a responder: mal, muito mal. O ar era pesado. O corpo da menina foi trazido do Havre esta manhã, e a família esperava na estação com uma camionete para levá-lo a Yport. É a família Trochu. O senhor ouvirá falar deles. Há uma porção de Trochus por aqui, quase todos pescadores. O pai esteve muito tempo na frota do arenque em Fécamp, e os dois filhos mais velhos estão nela, agora. Rose era a mais velha das moças. Há mais duas ou três; uma delas trabalha num café, no Havre.

Castaing tinha uma cabeleira forte, fronte baixa, e perseguia uma idéia com a firmeza que teria posto num arado.

— Estou no Havre há seis anos, operando em todo o distrito. Nas aldeias, sobretudo as que ficam em volta do castelo, encontra-se ainda gente respeitadora, humilde, que fala do seu ’senhor’. Há também um outro grupo, que assume ar mais duro, gente desconfiada, por vezes resmungona. Não sei ainda em que bando classificar os Trochus, mas hoje cedo a atmosfera em torno de Valentine Besson era visivelmente fria, quase ameaçadora.

— Acabei de ouvir que é adorada em Étretat.

Yport não é Étretat. E Rose, como ela era chamada aqui, está morta.

— A velha senhora compareceu ao enterro?

Estava na primeira fila. Algumas pessoas chamam-na ’castelã’, talvez por ter sido dona de um castelo no Orne ou na Sologne, esqueço-me agora onde. O senhor já a conhece?

— Ela foi ver-me em Paris.

Ela me disse que ia a Paris, mas não sabia que era para vê-lo. O que pensa dela?

— Nada, ainda.

— Já foi enormemente rica. Por alguns anos, teve mansão própria na Avenida de Iéna, castelo, iate; La Bicoque não passava de uma casa para temporada. Costumava vir aqui numa grande limusine com chofer, e outro carro atrás, com a bagagem. Fazia sensação, aos domingos, quando assistia à missa, na primeira fila (sempre teve seu próprio banco, na igreja), e distribuía dinheiro às mancheias. Se alguém estava em dificuldades, o povo dizia: ”Vá procurar Valentine.” Muitos deles — sabe? —, particularmente os mais velhos, chamam-na até hoje por esse nome. Hoje de manhã, ela chegou a Yport de táxi e saltou do carro como costumava saltar nos velhos tempos. Dir-se-ia que era a figura principal da cerimônia. Trouxe uma imensa coroa, que pôs todas as outras no chinelo. Talvez eu esteja enganado, mas tive a impressão de que os Trochus se aborreceram e olhavam-na atravessado. Ela estava decidida a apertar as mãos de todos, mas o pai só o fez a contragosto, sem olhar para ela. Um dos filhos, Henri, o mais velho, virou-lhe firmemente as costas.

— A filha da Sra Besson acompanhou-a?

— Ela voltou para Paris na segunda-feira, pelo trem da tarde. Eu não tinha autoridade para detê-la. O senhor deve imaginar que me encontro ainda no ar. Todavia, penso que vai ser necessário interrogá-la de novo.

— Como é ela?

— Como a mãe deve ter sido, na sua idade, quer dizer, quanto tinha seus trinta e oito anos. Parece ter apenas vinte e cinco. É pequena e frágil, muito bonita, com enormes olhos que quase sempre têm uma expressão infantil. O que não a impediu de dormir com um homem, que não era o marido, no seu quarto de La Bicoque, domingo à noite.

— Ela lhe contou isso?

— Eu descobri, mas tarde demais para pedir-lhe a história completa. Terei de contar-lhe tudo pormenorizadamente, Inspetor-Chefe. O caso é muito mais complicado do que parece, e vi-me obrigado a tomar notas. Permite?

Tirou do bolso uma elegante caderneta de notas, de couro vermelho, que nada tinha a ver com o caderno de lavanderia que Maigret usava habitualmente.

— Fomos avisados do crime no Havre segunda-feira, às sete da manhã, e encontrei um bilhete na minha mesa ao chegar, às oito. Tomei o Simca e estava aqui um pouco depois das nove. Charles Besson saía do seu carro, quando cheguei.

— Ele vive em Fécamp?

— Tem casa lá, e a família vive nela o ano inteiro; mas desde que foi eleito deputado, passa a maior parte do tempo em Paris, onde tem apartamento num edifício do Boulevard Raspail. Passou o domingo todo aqui, com a família, quer dizer, com a mulher e quatro filhos.

— Entendo que não é filho de Valentine?

— Valentine não tem filho homem, só uma filha, Arlette, essa de quem eu falava, e que é casada com um dentista em Paris.

— O dentista estava aqui também, no domingo?

— Não. Arlette veio só. Era o aniversário da mãe. Parece ser tradição familiar visitá-la nesse dia. Quando lhe perguntei em que trem viera, disse-me que fora pelo da manhã, o mesmo que o senhor tomou. Verá que não é verdade. A primeira coisa que fiz, na segunda-feira, foi assistir à remoção do corpo para o Havre, e examinar todas as peças da casa. Não foi tarefa das mais fáceis, porque, embora pequena e arrumada, é casa cheia de recantos, mobília frágil e muitos ornamentos. Além dos quartos de Valentine e da empregada, ambos no primeiro andar, há só mais um quarto sobressalente, no térreo, que Arlette ocupou. Quando movi a mesa da cabeceira, encontrei um lenço de homem, e tive a impressão de que a moça, que me viu achá-lo, ficou imediatamente perturbada. Tomou-o depressa da minha mão.

”É um lenço do meu marido, que trouxe comigo” — disse. Não sei por que, mas só à noite lembrei-me da inicial que tinha bordada, um H. Arlette acabara de partir. Eu mesmo a conduzira à estação, no meu carro, e vi quando comprou passagem na bilheteria. É tolo, sei disso. Mas, voltando ao carro, ocorreu-me que era estranho que não tivesse vindo com passagem de ida-e-volta. Fui de novo ao hall central da estação e interroguei o homem de serviço na barreira. ”Aquela senhora chegou domingo, no trem das dez da manhã, não foi?” ”Que senhora?” ”Essa a quem acabo de dizer adeus.” ”A Sra Arlette? Não, senhor.” ”Ela não chegou domingo?” ”Pode ter vindo domingo, mas não de trem. Fui eu quem recolhi as passagens, e a teria sem dúvida reconhecido.”

Castaing olhou para Maigret, um tanto inseguro.

— O senhor está ouvindo?

— Sim, claro.

— Talvez julgue todos esses detalhes uma perda de tempo?

— Naturalmente que não. Devo acostumar-me.

— A quê?

— A tudo, à estação, Valentine, Arlette, o homem das passagens, os Trochus. Ontem não sabia nada de tudo isso.

— Quando voltei a La Bicoque, perguntei à velha senhora o nome do seu genro. É Julien Sudre, e nenhum dos dois nomes começa por H. Seus enteados chamam-se Théo e Charles Besson. Resta o jardineiro, qüe trabalha para ela três vezes na semana, e que se chama Honoré; em primeiro lugar, porém, ele não estava lá domingo; em segundo, verifiquei que usa exclusivamente grandes lenços vermelhos, estampados com flores. Não sabendo a melhor maneira de abordar o caso, comecei a interrogar o povo da cidade e foi assim que fiquei sabendo, graças ao jornaleiro, que Arlette, ao invés de vir de trem, chegou pela estrada de rodagem, num carro esporte verde. Até aí, foi tudo muito fácil. O dono do carro verde tomou um quarto para a noite de domingo no hotel onde sugeri que o senhor ficasse. Ele se chama Hervé Peyrot, a folha de registro revela que é comerciante de vinhos e que vive em Paris, no Quai des Grands-Augustins.

— Ele dormiu fora?

— Ficou no hotel até que o bar fechou, pouco antes da meia-noite; então, em vez de ir para a cama, saiu a pé, dizendo que ia dar uma olhadela no mar. Segundo o porteiro da noite, não voltou até duas e meia da manhã. Interroguei o empregado que engraxa os sapatos e ele me disse que as solas dos sapatos de Peyrot estavam manchadas de terra vermelha, Terça pela manhã, fui de volta a La Bicoque e debaixo da janela do quarto ocupado por Arlette descobri pegadas num canteiro.

— O que conclui daí?

— Nada. Continuando: Théo Besson...

— Ele estava aqui também?

— Não durante a noite. O senhor compreende — não? — que os dois Bessons são filhos de um casamento anterior e que Valentine não é a mãe deles? Copiei toda a árvore genealógica da família, e se quiser...

— Não agora, estou com fome.

— Resumidamente, então: Théo Besson, que tem quarenta e oito anos de idade e é solteiro, está passando férias em Étretat já há duas semanas.

— Em casa da madrasta?

— Não. Não tem ido vê-la sequer. Acho que estão brigados. Ele tem um quarto nas Roches Blanches, o hotel que o senhor pode ver daqui.

— Então, ele não foi a La Bicoque?

— Espere. Quando Charles Besson...

O pobre Castaing suspirou, desesperando de jamais poder apresentar um quadro coerente da situação, particularmente a uni Maigret que não parecia ouvir.

— Às onze horas da manhã de domingo, Charles Besson chegou com a mulher e quatro filhos. Eles têm um carro, um Panhard grande, antiquado. Arlette chegou antes deles. Almoçaram todos em La Bicoque. Então, Charles Besson foi até a praia com os dois filhos mais velhos, um menino de quinze e uma menina de doze, enquanto as mulheres ficavam a falar da vida alheia.

— Ele se encontrou com o irmão?

— É isso. Suspeito que Charles Besson tenha sugerido a caminhada justamente para tomar alguma coisa no Bar Casino. Ele está sempre disposto a virar um trago, se é que se pode dar crédito ao que se ouve. Encontrou Théo, que ele não sabia estar em Étretat, insistiu em levá-lo de volta a La Bicoque, e Théo eventualmente deixou-se persuadir. Assim, toda a família estava lá para o jantar, uma refeição fria de lagostim e carneiro.

— Ninguém passou mal?

— Não. Além da família, havia apenas a empregada em casa. Charles Besson e os seus partiram por volta de nove e meia. Claude, um garotinho de cinco anos, dormiu no quarto da velha senhora até essa hora; e quando iam entrar no automóvel tiveram de dar a mamadeira ao bebê de seis meses, que começou a chorar.

— Qual o nome da mulher de Charles Besson?

— Penso que seja Emilienne, mas eles a chamam Mimi.

— Mimi — repetiu Maigret solenemente, como se estivesse a aprender de cor uma lição.

— É uma mulher de cabelo muito escuro, de cerca de quarenta anos.

— Muito escuro? Bem. Então, partiram no seu Panhard por volta das nove da noite.

— Exato. Théo ficou uns poucos minutos mais, e então só restaram as três outras mulheres nà casa.

— Valentine, sua filha Arlette e Rose.

— Exatamente. Rose ficou lavando a louça, na cozinha, enquanto mãe e filha conversavam no salão.

— Os quartos são todos em cima?

— Exceto o quarto de hóspedes, que, já lhe disse, fica no térreo e abre para o jardim. O senhor verá. É uma verdadeira casa de bonecas, com cômodos minúsculos.

— Arlette não subiu ao quarto da mãe?

— Subiram juntas ali pelas dez horas, porque a velha senhora quis mostrar à filha um vestido que acabara de fazer.

— Desceram juntas?

— Sim. Então, Valentine subiu de novo, para deitar-se, seguida em poucos minutos por Rose. Esta ajudava sempre a patroa a acomodar-se para a noite e dava-lhe o remédio de dormir.

— Ela mesma o preparava?

— Não. Valentine punha as gotas com antecedência num copo d’agua.

— Arlette não subiu?

— Não. E era meia hora depois de onze quando Rose por sua vez foi para a cama.

— E por volta das duas começou a gemer.

— Segundo o que Arlette e a mãe dizem.

— E segundo você, entre meia-noite e duas horas, havia um homem no quarto de Arlette, um homem com quem ela veio de Paris. Você não sabe como Théo passou a noite?

— Não tive tempo de tratar disso ainda. Devo admitir que nem pensei nisso.

— Vamos almoçar?

— Com prazer.

— Você acha que conseguirei mexilhões?

— Possivelmente, mas acho bom não contar com isso. Estou começando a conhecer o menu.

— Você esteve em casa dos pais de Rose esta manhã?

— Vi apenas a sala da frente, convertida em capela mortuária.

— Você não sabe se têm um bom retrato dela?

— Posso pedir-lhe um.

— Por favor. E tantas fotografias dela quantas possa encontrar, mesmo quando criança, em todas as idades. Por sinal, que idade tinha?

— Vinte e dois ou vinte e três. Não fui eu que escrevi o relatório, de modo que...

— Pensei que ela estivesse com a velha senhora há muito tempo.

— Há sete anos. Entrou para o serviço muito menina ainda, quando Ferdinand Besson era vivo. Rose era uma moça forte, com uma cara rosada e um grande busto.

— Nunca esteve doente?

— O Dr. Jolly nada me disse a respeito. Acho que ele o teria mencionado.

— Gostaria de saber se tinha namorados ou um amante.

— Pensei nisso. Parece que não. Era pessoa muito séria e quase nunca saía.

— Porque não lhe era permitido?

— Talvez me engane, mas acho que Valentine a mantinha sob controle e não lhe deixava muito tempo livre.

Tudo isso enquanto caminhavam ao longo da praia. O mar estivera debaixo dos olhos de Maigret continuamente, e o inspetor não pensara nele um só momento.

Passara. Tivera aquele primeiro choque, de manhã, em Bréauté-Beuzeville. O trenzinho de brinquedo lhe trouxera uma lufada de férias antigas.

Agora, deixara de notar as roupas berrantes dos banhistas, as crianças agachadas entre os seixos. Nem sentia o pronunciado cheiro de iodo das algas.

Mal se importara de verificar se havia mexilhões para o almoço!

E ali estava, a cabeça cheia de nomes novos, que procurava classificar na memória, como o teria feito em seu escritório do Quai des Orfèvres. Sentou-se com Castaing a uma mesa branca, em frente a alguns gladíolos num vaso de cristal de imitação.

Talvez fosse sinal de que estava ficando velho? Virou a cabeça para um lado a ver as ondas debruadas de branco. Entristecia-se por não ficar animado com isso.

— Havia muita gente no enterro?

— Yport inteiro estava lá, sem mencionar gente que veio de Étretat, Les Loges e Vaucottes, assim como os pescadores de Fécamp.

Lembrou-se de outros funerais no interior, imaginou que sentia um perfume de calvados, e disse com toda a seriedade:

— Os homens estarão todos bêbados esta noite.

— É muito possível! — concordou Castaing, um tanto pasmo com a direção que tomavam os pensamentos do famoso inspetor-chefe.

Não havia mexilhões no menu; comeram sardinhas no azeite como antepasto.

 

O portão não estava fechado, e ele o empurrou; depois, não achando campainha, entrou no jardim. Em nenhum lugar vira tal profusão de plantas em área tão exígua. Os arbustos em flor eram tão espessos que pareciam uma pequena selva, e no menor espaço havia dálias, lobais, crisântemos e outras flores que Maigret só vira reproduzidas, em cores vivas, nos envelopes de sementes das vitrines. Parecia que a velha senhora se dispusera a usar todos eles.

Da estrada percebera o teto de ardósia por cima das árvores, mas agora já não podia ver a casa. O caminho ziguezagueava, e a uma curva deveria ter tomado a direita e não a esquerda, porque depois de uns poucos passos chegou a um pátio calçado de lajes cor-de-rosa e à porta da cozinha e lavanderia.

Uma camponesa forte, vestida de preto, de cabelos sem quase nenhum fio branco, de constituição robusta e aspecto feroz, ocupava-se em bater um colchão. Em torno dela, ao ar livre, espalhava-se a mobília de um quarto de dormir, criadomudo com a porta aberta, cortinas e cobertores pendurados num varal, uma cadeira de assento- de palhinha, uma cama desmontada.

A mulher olhou-o sem interromper o trabalho.

— A Sra Besson está em casa?

Ela simplesmente apontou para janelas fechadas com treliça e rodeadas de uma trepadeira-da-virgínia; acercando-se delas, viu Valentine na sala. Ela não percebeu que ele estava ali, já que não esperava que chegasse através do pátio, e obviamente preparava-se para recebê-lo.

Tendo colocado uma bandeja de prata com uma garrafa de cristal e alguns copos numa mesinha, afastara-se para julgar o efeito, depois olhou

para si mesma e arranjou o cabelo em frente a um velho espelho, de moldura mofada.

— Basta bater — disse a camponesa, ríspida. Ele não percebera que uma das janelas era uma janela francesa, e bateu nela. Valentine voltou-se, mostrou-se surpresa mas logo arvorou um sorriso, em sua intenção.

— Eu sabia, naturalmente, que o senhor vinha, mas esperava recebê-lo à porta principal, se é que se pode dizer assim numa casa destas.

De começo, ela dava a mesma impressão que dera em Paris. Era tão cheia de vida, tão cintilante que parecia mais uma mulher jovem, até mesmo uma mulher muito jovem, vestida de velha para um teatro de amadores. Não que se fabricasse’ jovem. Ao contrário, o estilo do seu vestido de seda preta, a maneira de arranjar o cabelo, a larga fita de veludo que usava em volta do pescoço, tudo concordava com a sua idade.

E olhando de perto, ele podia ver as finas rugas da pele, o pescoço emurchecido, e uma certa secura das mãos, que não deixa dúvidas.

— Posso tomar seu chapéu, Inspetor, e ver se encontro uma cadeira do seu tamanho? O senhor deve sentir-se desajeitado na minha casa de bonecas, pois não?

Talvez seu encanto estivesse nisso, parecia sempre fazer troça de si mesma.

— Já lhe disseram, provavelmente, que sou uma excêntrica, e é verdade que tenho algumas excentricidades. A gente nunca sabe como encher o tempo quando vive só. Que tal experimentar aquela poltrona, junto da janela? Faça-me o favor de fumar o seu cachimbo. Meu marido fumava charutos da manhã à noite, e nada fica tanto numa casa como o cheiro da fumaça de um charuto. Aqui entre nós: não creio que ele realmente gostasse disso. Só começou a fumar charutos muito tarde, já bem entrado nos seus quarenta, exatamente ao tempo em que o creme Juva ficou famoso.

Depois, rapidamente, e como que para desculpar a observação cruel:

— Todos nós temos as nossas fraquezas. Suponho que já tomou café no hotel? Talvez me permita oferecer-lhe um cálice do meu calvados; tem um pouco mais de trinta anos.

Ele descobrira que eram os olhos, tanto quanto a vivacidade, que lhe davam o ar juvenil. Eram de um azul mais nítido que do céu de setembro por cima do mar, e mostravam uma constante expressão de surpresa e assombro, uma espécie de expressão de Alice no País das Maravilhas.

— Tomarei uma gota também, para fazer-lhe companhia, se me promete não ficar chocado. Vê? Não procuro esconder meus pequeninos defeitos. O senhor encontrará a casa toda em desordem. Acabo de voltar do enterro da pobre Rose. Tive enorme dificuldade para persuadir a Sra Leroy a vir dar-me uma mão. Suponho que percebeu ser a mobília do quarto de Rose essa que viu aí fora. Tenho horror da morte, Inspetor, e tudo que tenha qualquer coisa a ver com ela. Até que a casa seja limpa de cima a baixo e arejada vários dias, continuarei a sentir cheiro de morte em torno.

Alguns raios finos de sol, passando através dos ramos de um limoeiro, entravam na sala pela treliça das janelas e punham manchas dançarinas na mobília.

— Nunca imaginei que um dia o famoso Inspetor Maigret estaria sentado nessa poltrona.

— A propósito, a senhora não me disse que guardara recortes de jornais a meu respeito?

— Exatamente. Muitas vezes cortei um, como costumava cortar o folhetim do jornal de meu pai quando menina.

— A senhora os tem aqui?

— Acho que posso encontrá-los.

Ele percebera hesitação na sua voz. Ela se dirigiu com exagerada naturalidade para uma velha secretária, em cujas gavetas remexeu em vão; e depois para um armário entalhado.

— Devo tê-los posto no meu quarto de dormir. Estava prestes a ir ao segundo andar.

— Não se incomode.

— Mas naturalmente! Estou decidida a achá-los. Posso imaginar o que pensará. Imagina que lhe disse isso em Paris para lisonjeá-lo e fazer que viesse?

É verdade que ocasionalmente digo uma mentira, como toda mulher, mas não dessa vez, asseguro-lhe...

Ouviu-a andar em cima, e quanto voltou fez desajeitadamente um simulacro de desapontamento.

— Aqui entre nós: Rose não era pessoa das mais arrumadas. Era o que eu chamaria uma trapalhona. Amanhã, vou procurar no sótão. De qualquer maneira, hei-de botar as mãos nesses papéis antes que o senhor deixe Étretat. Agora, espero que tenha uma porção de perguntas a fazer-me, e vou sentar muito quieta na cadeira de minha avó. A sua saúde, Sr. Maigret.

— A sua saúde, minha senhora.

— O senhor não me acha por demais ridícula? Ele sacudiu a cabeça polidamente.

— O senhor não achou demais arrastá-lo do seu Quai des Orfèvres? É curioso que o meu enteado tenha tido a mesma idéia que eu, não? Muito deputado que é, e orgulhoso dessa condição, tratou da coisa à sua maneira, foi direto ao Ministro. Diga-me francamente: foi por causa dele ou de mim que o senhor veio?

— Por causa da senhora, indubitavelmente.

— Pensa que eu deva estar assustada com alguma coisa? Que estranho! Não consigo levar o perigo a sério. Velhas senhoras têm obrigação de serem nervosas; entendo por que, uma vez que tantas delas vivem sós, como eu, em lugares remotos. Rose costumava dormir aqui, mas era ela que vivia assustada, e vinha acordar-me à noite quando pensava ter ouvido um barulho qualquer. Se havia uma tempestade, ela se recusava a deixar o meu quarto, e ficava a noite toda sentada na minha espreguiçadeira, de camisola, resmungando rezas e tremendo dos pés à cabeça. Se eu nunca tenho medo, talvez seja por não ver como alguém poderá ter qualquer coisa contra mim! Não sou nem mesmo rica, não mais. Todo mundo por aqui sabe que vivo de uma anuidade modesta, que foi tudo o que sobrou do desastre. Esta casa, também, só é minha em usufruto, e ninguém vai herdá-la. Não posso imaginar que tenha feito alguma coisa má a alguém...

— E, todavia, Rose está morta.

— É verdade. Não posso impedir-me, mesmo que o senhor me julgue estúpida ou egoísta, e agora que o tempo passou, e ela está morta e enterrada, não me posso impedir de achar tudo inacreditável. Dentro em pouco, espero que vá percorrer a casa. Pode ver daqui a sala de jantar, contígua a esta. Aquela outra porta leva para o quarto vago, onde minha filha dormiu. Além da cozinha, da lavanderia, e do telheiro das ferramentas, não há mais nada no térreo, e é ainda mais acanhado em cima, pois não há nada por cima da cozinha e da lavanderia.

— Sua filha vem sempre vê-la? Ela tomou um ar de resignação.

— Uma vez por ano, no meu aniversário. O resto do tempo, não a vejo, nem tenho notícias dela. Raríssimas vezes escreve.

— É casada com um dentista, acho eu?

— Suponho que terá de saber toda a história da família, é inevitável. Quer que eu seja franca, Sr. Maigret, ou prefere que lhe fale como uma mulher bem-educada?

— A pergunta, é necessária?

— O senhor já se avistou com Arlette?

— Ainda não.

Ela foi buscar numa gaveta uns velhos envelopes de fotografias, cada um destinado a determinada coleção de retratos.

— Veja. Aí está ela, aos dezoito anos. Acham que se parece comigo e, no que diz respeito aos traços, sou obrigada a admiti-lo.

Era certamente uma semelhança de pasmar. Baixinha como a mãe, a moça tinha as mesmas feições delicadas e, em particular, os mesmos grandes olhos brilhantes.

— Como se diz: manteiga não derreteria em sua boca, não é mesmo? O pobre Julien pensou assim e casou-se com ela a despeito dos meus avisos; ele é bom rapaz, trabalhador; começou sem nada, e teve as maiores dificuldades para terminar os estudos; agora trabalha dez horas por dia ou mais no seu consultório da Rua Saint-Antoine, para clientela de poucas posses.

— A senhora pensa que sejam infelizes?

— Ele talvez seja feliz, apesar de tudo. Há gente que encontra uma felicidade toda particular. Aos domingos, sai com seu cavalete para algum canto da margem do Sena, e pinta. Eles têm um barco perto de Corbeil.

— Sua filha ama o marido?

— Veja essas fotografias e responda por si mesmo. Talvez ela seja capaz de amar alguém, mas de minha parte jamais’ descobri sinal disso. Quando eu trabalhava na confeitaria das irmãs Seuret — o senhor já terá ouvido falar disso —, ela me disse uma vez: ”Imagina que eu goste de ter uma mãe que vende bolos para as minhas amigas?” Tinha sete anos de idade quando me falou assim. Vivíamos juntas num pequeno quarto alugado por cima de uma relojoaria, que ainda existe, aliás. Quando me casei de novo, a vida dela mudou... — A senhora se aborreceria de falar-me do seu primeiro marido, para começo de conversa? Provavelmente, outras pessoas me contarão isso, mas preferiria sabê-lo da senhora. Ela encheu de novo o cálice dele e não pareceu ofendida pela pergunta. — Nesse caso, talvez eu deva começar com os meus pais. Meu nome de solteira é Fouque, um patronímico que ainda encontrará por estas partes. Meu pai era pescador, aqui em Étretat. Minha mãe trabalhava como doméstica em casas como esta, mas só durante o verão, porque ninguém ficava aqui no inverno, àquele tempo. Eu tinha três irmãos e uma irmã, todos já falecidos. Um dos meus irmãos foi morto na guerra de 14; outro morreu em conseqüência de acidente no mar. Minha irmã casou-se e morreu de parto. Quanto ao meu terceiro irmão, Lucien, que trabalhava em Paris como aprendiz de cabeleireiro, escolheu o mau caminho e acabou levando uma facada num café perto da Bastilha. Não me envergonho deles. Jamais reneguei minhas origens. Se me envergonhasse, não viria acabar meus dias aqui, onde todo mundo sabe tudo a meu respeito.

— A senhora trabalhava quando seus pais eram vivos?

— Com quatorze anos eu era babá de crianças; fui, depois, arrumadeira no Hotel de la Plage. Minha mãe morreu nesse tempo, de um câncer no seio. Quanto a meu pai, viveu até idade bem avançada, mas bebia tanto para o fim, que era como se já estivesse morto.

Conheci um rapaz de Rouen, Henri Poujolle, funcionário dos Correios, e casei-me com ele. Era pessoa gentil e bem-educada, e eu não sabia o que significava aquele rubor que tinha no rosto. Durante quatro anos fiz o papel de jovem esposa e, depois, de jovem mãe, num apartamento de três peças. Costumava encontrá-lo depois do expediente, empurrando o bebê no carrinho. Aos domingos, a gente comprava um bolo das Srt.as Seuret. Uma vez por ano íamos a Rouen, para visitar meus sogros, donos de uma mercearia na cidade alta. Então, um belo dia, Henri se pôs a tossir e morreu em poucos meses, deixando-me sozinha com Arlette. Mudei-me do apartamento, procurando viver num quarto só. Fui procurar as Srt.as Seuret, e elas me tomaram como auxiliar. Disseram que eu era bonita e alegre e que atrairia fregueses. Um dia, na loja, conheci Ferdinand Besson.

— Que idade tinha então?

— Quando nos casamos, poucos meses depois, tinha trinta.

— E ele?

— Cerca de cinqüenta e cinco. Era viúvo há alguns anos e pai de dois filhos, de dezesseis e dezoito; e essa foi a parte mais engraçada de tudo: senti todo o tempo que eles se apaixonariam por mim.

— E apaixonaram-se?

— Théo, talvez, no começo. Depois, tomou raiva de mim; mas nunca lhe quis mal por isso. O senhor conhece a história de Besson?

— Sei que era dono dos Produtos Juva.

— Imaginará, então, que se tratava de pessoa invulgar? Bem, a verdade é muito diferente. Ele era um farmacêutico modesto, do Havre, um pequeno farmacêutico local, com uma loja pequena, apertada, dessas que têm uma garrafa verde e outra amarela na vitrine. Ele mesmo, aos quarenta, como verá na sua foto, parecia mais um empregado da companhia de gás, e sua mulher parecia arrumadeira. Aquele tempo, não existiam tantos produtos especializados quanto hoje, e ele fazia toda espécie de preparados para as suas clientes. Foi assim que aconteceu de misturar um creme para uma menina que tinha espinhas no rosto. A menina curou-se.

O fato se tornou conhecido na vizinhança e, em seguida, em toda a cidade. Um dos cunhados de Besson aconselhou-o a lançar o produto sob algum nome extraordinário, e juntos encontraram o rótulo certo. Foi o cunhado que avançou o capital original. Fez sua fortuna da noite para o dia. Ele teve de construir laboratórios, primeiro no Havre, depois em Pantin, nos subúrbios de Paris.

O nome ’Juva’ estava em todos os jornais, e depois subiu em

enormes letras nos cartazes de parede. O senhor não pode

imaginar o que rendem esses produtos, uma vez lançados. A

primeira mulher de Besson pouco aproveitou disso tudo, pois morreu logo depois. Ele próprio se pôs a mudar de vida.

Quando o conheci, já era homem muito rico, mas não estava

acostumado ao dinheiro, e mal sabia o que fazer com ele.

Penso que foi por isso que se casou comigo.

— O que quer dizer?

— Ele precisava de uma mulher bonita para vestir bem e

exibir. As mulheres de Paris o aterrorizavam. As mulheres ricas do Havre o intimidavam. Sentia-se mais à vontade com

a moça que conhecera atrás do balcão de uma confeitaria. Não creio que se importasse com o fato de ser eu uma viúva e de ter uma filha. Não sei se o senhor me entende?

Entendia, mas o que o surpreendia era que ela tivesse entendido o marido tão bem e o admitisse de maneira tão encantadora.

— Imediatamente depois do nosso casamento, ele comprou uma casa na Avenida d’lena e, poucos anos mais tarde, o Castelo d’Anzi, em Sologne. Ele me cobria de jóias, insistia em que fosse aos costureiros, levava-me ao teatro e às corridas. Mandou até construir um iate, mas nunca o usou, pois sofria de enjôos. Pensa o senhor que era feliz? Eu mesma não sei. No seu escritório, na Rua Tronchet, provavelmente era, porque vivia rodeado de subordinados. Longe de lá, penso que achava que as pessoas se riam dele. Mas era um bom homem, inteligente, como qualquer um, nos negócios. Talvez tenha começado a acumular dinheiro tarde demais. Estava determinado a ser um grande magnata da indústria, e além do creme Juva, que era uma verdadeira mina de ouro, quis introduzir outros produtos: uma pasta de dentes, um sabonete, Deus sabe o que mais. Gastou milhões em publicidade.

Construiu fábricas, não só para os próprios produtos, mas também para os recipientes, e Théo, que entrara para o negócio,, possivelmente tinha idéias ainda mais grandiosas. Isso durou” vinte e cinco anos, Sr. Maigret. Pouco me lembro de tudo agora, o tempo se foi tão depressa. íamos de um lado para outro, de nossa casa em Paris para o castelo, e dali para Cannes ou Nice, só para voltar, no mesmo corre-corre, a Paris, com dois carros, um deles para a bagagem, o mordomo, as empregadas, o cozinheiro. Então, decidiu viajar ao estrangeiro uma vez por ano. Fomos a Londres e à Escócia, à Turquia, ao Egito, sempre numa correria, porque os negócios o reclamavam de volta, com malas abarrotadas com as minhas roupas e as jóias, que tinham de ser levadas a um banco para depósito em cada cidade. Arlette casou-se, nunca soube por quê. Ou talvez não tenha sabido por que ela se casou de súbito com esse rapaz, que nós nem conhecíamos, quando poderia ter escolhido qualquer um dos moços ricos que vinham regularmente a nossa casa.

— Seu marido não teria um fraco por sua filha?

— Admita que quer dizer algo mais que um fraco? Pensei nisso também. É natural que um homem de meia idade, vivendo na mesma casa com uma moça que não é sua filha, se apaixone por ela. Observei a ambos. É verdade que ele a cumulava de presentes e fazia-lhe todas as vontades. Nunca descobri qualquer coisa mais. Não! E não sei por que Arlette se casou na primeira oportunidade, com apenas vinte anos. Entendo a maioria das pessoas, mas jamais entendi minha própria filha.

— A senhora se deu bem com seus enteados?

— Théo, o mais velho, logo mostrou indiferença, mas Charles sempre me tratou como se eu fosse sua mãe. Théo nunca se casou. Na verdade, por muitos anos viveu a espécie de vida que meu marido não era capaz de viver, porque não fora preparado para isso. Por que o senhor me olha assim?

Por causa dos contínuos contrastes. Ela falava com desenvoltura, as feições iluminadas por um sorriso, com a mesma expressão franca nos olhos brilhantes, e ele se admirava com as coisas que dizia.

— Tive tempo de analisar tudo isso, sabe, nos cinco anos que tenho vivido sozinha aqui! Bem, Théo estava sempre nas corridas, no Maxim’s, Fouquet’s, todos os lugares elegantes, e costumava passar os verões em Deauville. Aquele tempo, recebia muito, vivia cercado de jovens, gente com grandes nomes mas sem dinheiro. Ele continua a viver nesse mesmo estilo, ou melhor, vai regularmente aos mesmos lugares, só que agora é ele que está curto de dinheiro e que recebe convites. Não sei como se arranja.

— A senhora não ficou surpresa de sabê-lo em Étretat?

— Não nos falamos há muito tempo. Eu o vi na cidade, duas semanas atrás, e pensei que estava apenas de passagem. Então, no domingo, Charles o trouxe aqui, dizendo-nos a ambos que fizéssemos as pazes, e eu lhe dei a mão.

— Ele não explicou sua presença na cidade?

— Disse simplesmente que precisava descansar. Mas o senhor interrompeu minha história. Eu falava do tempo em que meu marido ainda era vivo. Os últimos dez anos não têm sido lá muito divertidos.

— Quando comprou ele esta casa?

— Antes que começasse o desmoronamento, ao tempo em que tinha a casa em Paris, o castelo e toda a tralha. Devo

admitir que foi idéia minha ter uma casa de temporada aqui, onde me sinto mais à vontade do que em qualquer outro lugar. Teria ele sorrido, involuntariamente? Porque ela se deu pressa em ajuntar:

— Sei o que estará pensando, e talvez não esteja inteiramente errado. Em Anzi eu podia representar a castelã, como Ferdinand insistia que o fizesse. Costumava presidir a toda espécie de obras, em todas as grandes ocasiões, mas ninguém sabia quem eu era. Parecia-me injusto que não me vissem sob essas minhas novas cores numa cidade onde eu fora pobre e ihumilhada. Talvez não seja muito bonito, mas acho que é da natureza humana. E é melhor que eu lhe diga isso eu mesma, uma vez que todo mundo o fará; alguns, até, sarcasticamente, me chamam castelã. Pelas costas, preferem simplesmente chamar-me Valentine! Nunca entendi nada de negócios, mas é óbvio que Ferdinand tentou fazer demais, e nem sempre no momento certo, talvez não tanto para fazer mais que os outros como para provar a si mesmo que era um grande financista.

Tudo começou com a venda do iate e, depois, do castelo. Uma noite, após um baile, quando eu lhe dava de volta minhas pérolas para pôr no cofre, ele me disse com um sorriso de viés: ”Suponho que, pelos empregados, convém fazer isso. Mas não seria grande tragédia que as furtassem, uma vez que não passam de imitações.” Ele se tornou taciturno, solitário. Só o creme Juva ainda valia alguma coisa. Todos os outros produtos entraram em colapso, um depois do outro.

— Ele era amigo dos filhos?

— Não sei. Minha resposta soa estranha aos seus ouvidos? Imagina-se que os pais amem os filhos. Fico a pensar, agora, se o contrário não será também verdade, e mais vezes do que se imagina. Ele ficava, sem dúvida, lisonjeado de ver Théo recebido em círculos seletos a que ele próprio jamais sonharia ter acesso. Por outro lado, deve ter compreendido que Théo não tinha qualquer mérito pessoal, e que as suas idéias grandiosas tinham muito que ver com o desastre. Quanto a Charles, nunca lhe perdoou ser o moleirão que é. Besson desprezava poltrões.

— Talvez porque, no fundo, ele mesmo fosse assim, é o que quer dizer?

— Sim. O fato é que os últimtos anos dele foram melancólicos, assistindo a sua propriedade ruir, pedaço por pedaço. Talvez de fato me tivesse amor. Não era homem de demonstrações, e não me lembra que jamais me tenha chamado ’querida’. Queria ver-me bem provida, deu-me esta casa pela duração de minha vida, cuidou em que eu tivesse uma pequenina renda antes de morrer. Foi tudo o que deixou, a bem dizer. Seus filhos herdaram apenas umas poucas lembranças sem valor, e minha filha também, pois ele não fazia distinção entre eles.

— Morreu aqui?

— Não. Morreu sozinho, num quarto de hotel, em Paris, onde fora na esperança de fazer um novo negócio. Tinha setenta anos de idade. O senhor começa a conhecer a família. Não estou certa do que faz Théo, mas conserva seu pequeno automóvel; veste-se bem, vive em lugares elegantes. Quanto a Charles, que tem quatro crianças e uma esposa não muito agradável, já tentou diversas carreiras sem sucesso.

Seu projeto favorito era lançar um jornal. Isso fracassou, tanto em Rouen quanto no Havre. Então, em Fécamp, ele se meteu num negócio de fertilizantes feitos de entranhas de peixe; e quando isso não foi tão mal, apresentou-se candidato às eleições por um partido qualquer. Foi eleito, por um golpe de sorte, e é deputado há dois anos. Nenhum deles é santo, mas também nenhum pode ser dito ruim. Mesmo se não me amam cegamente, não creio que me odeiem, e minha morte não traria vantagem para nenhum deles. Os objetos que vê aqui não propiciariam grande soma num leilão; e essas coisas, mais as réplicas de minhas antigas jóias, é tudo o que possuo pessoalmente. Quanto à gente do distrito, está acostumada à velha senhora; quase me olham como parte da paisagem. Quase todos os que conheci na mocidade já se foram. Só restam uns poucos, como a velha Srta Seuret, que visito de longe em longe. A idéia de que alguém me tenha querido envenenar parece tão improvável, tão absurda, que fico um tanto embaraçada ao vê-lo aqui, e envergonhada por ter ido a Paris buscá-lo. O senhor deve julgar-me uma velha louca. Ou não?

— Não.

— Por quê? O que pode tê-lo convencido de que o caso é sério?

— Rose está morta.

— É verdade.

Ela olhou pela janela, viu os móveis espalhados no pátio, as roupas de cama penduradas no varal.

— O seu jardineiro está aqui, hoje?

— Não. Ele veio ontem.

— A empregada levou toda a mobília para fora sozinha?

— Nós desmontamos as coisas e carregamos os pedaços nós mesmas esta manhã, antes que eu fosse a Yport.

A mobília era pesada, e as escadas estreitas, com uma volta difícil.

— Sou mais forte do que pareço, Sr. Maigret. Posso parecer ter ossos de pássaro, e, na verdade, eles não são muito grandes. A despeito do seu porte, Rose não era mais forte do que eu.

Levantou-se para encher o cálice dele e serviu-se também de uma gota do velho calvados cor de ouro, cujo perfume agora enchia a sala.

Surpreendeu-se com a pergunta que Maigret fez em seguida, tranqüilamente, chupando o cachimbo:

— O seu genro — Julien Soudre, pois não? — é um marido complacente?

Ela riu, assombrada.

— Nunca me pus essa questão.

— A senhora nunca se indagou se sua filha tinha um ou mais amantes?

— Céus! Eu não ficaria surpresa se os tivesse.

— Havia um homem aqui, no quarto de hóspedes, com sua filha, na noite de domingo.

Ela franziu o cenho e ponderou a informação.

— Agora compreendo.

— O que é que compreende?

— Uns poucos detalhes que não me pareceram importantes no momento. Arlette tinha estado absorta e preocupada o dia todo. Depois do almoço, sugeriu passear ao longo da praia com as crianças de Charles, e pareceu desapontada quando ele quis ir também. E ao perguntar-lhe por que seu marido não viera com ela, disse-me que ele tinha uma paisagem para terminar na margem do Sena. Perguntei: ”Passará a noite aqui?” ”Não sei — respondeu —, penso que não. Talvez tome o trem da tarde.” Insisti com ela. Várias vezes apanhei-a olhando pela janela, e agora me lembro que, à noitinha, um carro passou devagarinho pela casa, duas ou três vezes. .

— Sobre que conversaram?

— É difícil dizer. Mimi tinha que cuidar do bebê, que precisou mudar de fraldas várias vezes. Tinha também de preparar a mamadeira e manter Claude quieto. Ele tem cinco anos e estava arruinando os canteiros. Falamos, naturalmente, das crianças. Arlette disse a Mimi que o último deve ter sido uma surpresa para ela, depois de cinco anos, quando o mais velho já tem quinze, e Mimi replicou que Charles não ganharia mais nenhum, que não era ele quem tinha todo o trabalho... O senhor sabe como é! Trocamos receitas...

— Arlette não foi para o quarto depois do jantar?

— Sim. Eu queria mostrar-lhe um vestido que fiz recentemente, e botei-o para que ela o visse no corpo.

— Onde estava ela, de pé?

— Estava sentada na cama.

— A senhora a deixou só?

— Por um momento, talvez, enquanto fui buscar o vestido no armário onde guardo a roupa de cama, Mas não posso imaginar Arlette despejando veneno no vidro de remédio. Além disso, ela teria tido de abrir o armarinho de remédios, que fica no banheiro. Eu a teria ouvido. Por que Arlette faria isso? Então, o pobre Julien é enganado?

— Um homem se reuniu a Arlette no quarto dela depois de meia-noite e deve ter saído às pressas pela janela quando ouviram Rose gemer.

Ela não pôde impedir-se de rir.

— Foi má sorte!

Mas, retrospectivamente, a coisa não pareceu alarmá-la.

— Quem era? Alguém daqui?

— Alguém que a trouxe de Paris no seu carro, um certo Hervé Peyrot, negociante de vinhos.

— Jovem?

— Cerca de quarenta.

— Surpreendeu-me, também, que ela tivesse vindo de trem, uma vez que o marido tem carro, e ela sabe dirigir. É tudo muito estranho, Sr. Maigret. Estou de fato muito contente que o senhor tenha vindo. O inspetor levou o copo e o vidro de remédio com ele, bem como diversas coisas do meu quarto de dormir e do banheiro. Estou curiosa de saber o que o pessoal do laboratório descobrirá. Alguns policiais à paisana também vieram e tiraram fotografias. Se pelo menos Rose não tivesse sido teimosa como um camelo! Eu lhe disse que o remédio tinha gosto esquisito, e mal ela sai do quarto engole tudo o que restava no copo! Ela não precisava de drogas para dormir, isso posso assegurar-lhe. Quantas vezes não a ouvi ressonando do outro lado da parede, logo que se metia na cama! Talvez o senhor queira ver a casa?

Ele estava ali há menos de uma hora, e já lhe parecia conhecê-la, parecia tratar-se de uma velha relação.

A silhueta da empregada — era seguramente uma viúva! — apareceu na porta.

— A senhora vai comer o resto do cozido esta noite, ou devo dá-lo para o gato?

Disse isso quase que de maus modos, sem um sorriso.

— Pretendo comê-lo, Sra Leroy.

— Já acabei, lá fora. Está tudo limpo. Quando a senhora estiver pronta para ajudar-me a carregar os móveis...

Valentine deu a Maigret um sorriso oblíquo.

— Num minuto.

— Não tenho mais nada que fazer.

- Bem. Descanse um pouco, então.

E ela mostrou o caminho pela estreita escada acima, que cheirava a cera de polir.

 

— Venha e veja o que quiser, Sr. Maigret. O mínimo que posso fazer é ficar à sua disposição, depois de ter-lhe pedido que viesse de Paris. Espero que não esteja muito zangado comigo por servir-lhe essa história fantástica?

Estavam no jardim, e ele se despedia. A viúva Leroy ainda esperava que sua patroa a ajudasse a carregar a mobília para o antigo quarto de Rose. Por um momento, Maigret quase se ofereceu para ajudar, tão difícil lhe era imaginar Valentine carregando objetos pesados.

— Estou surpresa de ter insistido tanto na sua vinda, porque não estou de nenhum modo assustada.

— A Sra Leroy vai dormir aqui?

— Oh, não! Ela vai embora dentro de uma hora. Tem um filho de vinte anos que trabalha na estrada de ferro, e ela o mima como a um bebê. Já está inquieta agora, porque ele chegará logo em casa.

— A senhora vai dormir sozinha?

— Não será a primeira vez.

Ele atravessara o jardim e empurrara o portão, que gemeu um pouco. O sol descia sobre o mar e banhava o caminho numa luz amarela, já tingida de vermelho. Era uma estrada como as que conhecera na infância, não asfaltada, em que os pés chutam o pó macio, bordada de sebes e urtigas espinhosas.

Mais abaixo, numa curva, viu, caminhando em sua direção, a silhueta de uma mulher, a subir vagarosamente a colina.

Tinha a luz por detrás e vestia-se de escuro. Mesmo sem tê-la visto antes, reconheceu-a: era, indiscutivelmente, Arlette, a filha da velha senhora.

Não tão pequena e esguia como a mãe, parecia feita da mesma substância preciosa e delicada. Aparentava a mesma fragilidade e os mesmos olhos de um azul extraordinário.

Teria reconhecido o Inspetor-Chefe, cuja fotografia aparecia tão freqüentemente nos jornais? Teria dito simplesmente com os seus botões que um estranho vestido com roupas da cidade nessa estrada só poderia ser um policial?

No breve instante em que passaram um pelo outro, pareceu a Maigret que ela hesitara se devia abordá-lo. Ele mesmo desejou falar-lhe, mas não era a hora nem o lugar apropriados.

Assim, limitaram-se a olhar-se em silêncio, e os olhos de Arlette nada revelaram. Eram graves, e tinham alguma coisa de vago, alguma coisa de impessoal. Maigret olhou para trás, depois que ela desaparecera de vista atrás da sebe, e prosseguiu até as primeiras ruas de Étretat.

Encontrou o Inspetor Castaing em frente de um quiosque de postais.

— Esperava-o, Inspetor-Chefe. Acabo de receber os relatórios. Tenho-os aqui no bolso. O senhor deseja lê-los?

— Antes de qualquer outra coisa, desejo sentar-me num terraço e tomar um copo de cerveja gelada.

— Ela não lhe deu uma bebida?

— Deu-me calvados, um calvados tão velho e especial que me fez desejar coisa mais vulgar, capaz de matar a sede.

O sol, deitando-se por cima do mar, desde o meio da tarde, como uma imensa bola vermelha, era sinal do fim da estação, assim como o eram os poucos veranistas, já metidos em roupas de lã, que o frio enxotara da praia para as ruas, e que não sabiam o que fazer.

— Arlette acaba de chegar — disse Maigret quando se sentaram numa mesa de café na Praça da Prefeitura.

— O senhor a viu?

— Suponho que tenha vindo de trem, desta vez.

— Foi à casa de sua mãe? O senhor lhe falou?

— Apenas passamos um pelo outro a uns cem metros de La Bicoque.

— O senhor acha que ela passará a noite aqui?

— Provavelmente.

— Não há ninguém mais na casa, não é?

— Só mãe e filha estarão lá esta noite.

O inspetor ponderou isso.

— Não me vai condenar a ler todos esses papéis — disse Maigret, empurrando para o lado um grande envelope amarelo recheado de documentos. — Fale-me do copo de remédio primeiro. Foi o senhor que o encontrou e embrulhou?

— Sim. Estava no quarto da empregada, em cima da mesa de cabeceira. Perguntei à Sra Besson se era, sem nenhuma dúvida, o copo em que estivera o remédio. Não podia haver engano, o copo ainda se achava ligeiramente manchado, e é o último de um serviço antigo.

— Impressões digitais?

— Da velha senhora e de Rose.

— E o vidro?

— Achei o vidro com o remédio de dormir no armário do banheiro, onde me tinham dito que estaria. Só as impressões digitais da velha senhora foram constatadas nele. A propósito, o senhor viu o quarto de dormir dela?

Como Castaing, Maigret ficara surpreso ao entrar no quarto de Valentine. Ela abrira a porta para o Inspetor-Chefe com um ar de simplicidade assumida, sem dizer uma palavra; mas devia estar ciente do efeito que o quarto produziria.

Embora o resto da casa fosse bonito, de bom gosto, e revelasse certa elegância, ninguém esperava ver-se de súbito num dormitório tão luxuoso, todo decorado em cetim creme. No centro de uma cama enorme, um gato persa fazia sua sesta, e mal abrira os olhos dourados em honra do intruso.

— Talvez seja um cenário ridículo para uma velha, não? Quando passaram ao banheiro ladrilhado de amarelo, ela acrescentara: ”Talvez seja o resultado de nunca ter tido meu próprio quarto quando menina, de ter de dormir com minhas irmãs no sótão, de ter de lavar-me no quintal, à beira do poço. Na Avenida dTéna, Ferdinand deu-me um banheiro de mármore rosa, com todos os acessórios banhados em prata; e havia, que descer três degraus para entrar na banheira.”

 

O quarto de Rose estava vazio; uma pequena brisa enfunava as cortinas de cretone, de modo que pareciam crinolinas. O chão era encerado, o papel de parede, florido.

— O que diz o médico da polícia?

— Trata-se indiscutivelmente de um caso de envenenamento. Uma forte dose de arsênico. Não foi o soporífero em si que levou à morte da empregada. O relatório acrescenta que o líquido deve ter tido gosto muito amargo.

— Foi o que Valentine disse.

— E, todavia, Rose o bebeu. Vê aquele homem que se aproxima, na calçada oposta, em direção ao jornaleiro? É Théo Besson.

Era um homem alto, de grande ossatura, e feições marcantes, que aparentava seus cinqüenta anos de idade. Usava um terno de tweed cor de ferrugem, que o fazia parecer inglês. Estava de cabeça descoberta, e seu cabelo grisalho era ralo.

Percebeu os dois homens. Já conhecia o inspetor e provavelmente reconheceu o Inspetor-Chefe Maigret. Como Arlette, hesitou, fez-lhe uma leve saudação e entrou na loja.

— O senhor o interrogou?

— Só de passagem. Perguntei-lhe se tinha declarações a fazer e se ficaria muito tempo em Étretat. Disse-me que não pretendia sair da cidade antes de 15 de setembro, quando o hotel fecha.

— O que faz, o dia todo?

— Anda a pé, ao longo da costa, sempre sozinho, e em grandes passadas, como um homem de meia idade que deseja conservar-se em forma. Nada um pouco, por volta de onze horas, e passa o resto do tempo rondando o bar do cassino ou os bistrôs.

— Bebe muito?

— Uns dez uísques por dia, mas não creio que fique bêbado. Lê quatro ou cinco jornais. Às vezes joga, mas não muito, e nunca se abanca a mesas.

— Alguma outra coisa, nos relatórios?

— Nada de interesse.

— Théo Besson não viu sua madrasta desde domingo?

— Não que eu saiba.

— Quem a viu? Conte-me, sucintamente, o que ocorreu Segunda-feira. Domingo está bem, mas não estou muito claro com relação a segunda.

Ele sabia o que Valentine fizera na terça. Ela lhe contara. Saíra de La Bicoque de manhã cedo, deixando a Sra Leroy sozinha, e tomara o primeiro trem para Paris. Fora de táxi ao Quai des Orfèvres, onde se entrevistara com o Inspetor-Chefe.

— A senhora viu sua filha depois? — perguntara-lhe há pouco.

— Não. Por quê?

— A senhora não vai visitá-la, quando está em Paris?

— Muito raramente. Eles têm a vida deles para viver, e eu tenho a minha. Além do mais, não gosto do distrito de Saint-Antoine, onde moram, nem do apartamento de classe média.

— O que fez, então?

— Almocei num restaurante da Rua Duplot, onde gosto de comer, fiz algumas compras perto da Madeleine, depois pmei o meu trem.

— Sua filha sabia que a senhora estava em Paris?

— Não.

— Nem seu enteado Charles?

— Não lhes contei nada do meu plano.

Agora ele queria saber o que acontecera na segunda-feira.

— Quando cheguei, por volta das oito horas — disse Castaing —, encontrei a casa em estado de agitação, como o penhor bem pode imaginar.

— Quem estava lá?

— A Sra Besson, naturalmente.

— Como estava vestida?

— Em seus trajes habituais. Sua filha estava lá também, bom o cabelo ainda por arranjar, e de chinelos. O Dr. Jolly estava com elas, homem de meia idade, amigo da família, palmo, equilibrado; e o velho jardineiro acabava de chegar. [Quanto a Charles Besson, chegou poucos segundos antes de mim.

— Quem lhe contou o que acontecera?

— Valentine. De tempos em tempos, o médico interrompia para perguntar-lhe algum detalhe importante. Ela me disse que fora ela quem telefonara ao enteado para dar-lhe a notícia.

Ele estava muito abalado pelo que chamava uma ’catástrofe’. Pareceu aliviado ao ver que ainda não havia repórteres no local e que o povo do distrito não sabia de nada. O senhor acaba de ver o irmão dele. É assim, Charles, apenas mais gordo e balofo. Minha tarefa foi complicada pelo fato de que a casa não tem telefone, pois tive de chamar o Havre várias vezes e tinha de ir à cidade para isso. O médico foi-se embora primeiro,, porque tinha pacientes para visitar.

— Os pais de Rose foram avisados?

— Não. Ninguém pareceu pensar neles. Eu fui em pessoa a Yport para contar-lhes. O pai estava fora, pescando. Um irmão e a mãe voltaram comigo.

— E como se passou a coisa?

— Muito mal. A mãe olhou a Sra Besson como se a tivesse por responsável do que acontecera, e não lhe disse uma só palavra. Quanto ao irmão, pôs-se furioso, quando Charles Besson lhe disse uma coisa qualquer.

— Será melhor que descubram a verdade. E não pense que poderá abafar essa história só porque tem vários pauzinhos com que pode mexer!

Quiseram levar o corpo para Yport. Tive dificuldade em convencê-los de que precisava ser levado primeiro ao Havre para a autópsia. Enquanto isso acontecia, o pai chegava, de bicicleta. Não disse nada a ninguém. É baixo e recatado, muito forte e robusto. Quando o corpo foi posto na variante, ele levou a família consigo. Charles Besson ofereceu-se para levá-los de carro, mas recusaram, e os três se foram a pé, o velho empurrando a bicicleta. Não posso garantir a ordem exata dos acontecimentos que vou relatar agora. Alguns vizinhos começaram a chegar, e depois gente da cidade forçou a entrada no jardim. Eu estava no segundo andar com Cornu, do Departamento de Registros Criminais, que tirava fotografias e levantava impressões digitais. Quando desci, por volta do meio-dia, não vi mais Arlette, e sua mãe me disse que ela ia para Paris com receio de que o marido se preocupasse com ela. Charles Besson ficou até cerca de três horas da tarde e então voltou para Fécamp.

— Ele lhe disse qualquer coisa a meu respeito?

— Não. Por que diria?

— Não disse que pretendia pedir ao Ministro que me encarregasse do caso?

— Não disse nada, exceto que faria os arranjos necessários com os jornais. Não há nada mais a dizer sobre segundafeira. Oh, sim! À noite, vi Théo Besson, que me fora apontado na cidade; parei e troquei algumas palavras com ele.

”— Suponho que.o senhor esteja a par do que aconteceu em La Bicoque?

”— Ouvi alguma coisa.

”— Não tem qualquer informação que possa ajudar-me nas investigações?

”— Absolutamente nenhuma.”

— Tudo muito frio e distante. Foi então que lhe perguntei se pretendia deixar Étretat, e o senhor sabe a resposta dele. Agora, se não precisa de mim esta noite, gostaria de voltar ao Havre para despachar meu relatório pelo telégrafo. Prometi à mulher que estaria em casa para o jantar, se possível, pois temos convidados.

Ele deixara seu carro em frente ao hotel, e Maigret Iacompanhou-o pelas ruas tranqüilas, das quais, tanta vez, num cruzamento, se podia perceber uma fatia de mar.

— O senhor não se preocupa um pouco com o fato de estar Arlette a dormir em casa de sua mãe esta noite, e que as duas mulheres ficarão sozinhas em casa?

Ele mesmo é que se preocupava, visivelmente, e talvez a atitude de Maigret lhe desse a pensar que o Inspetor-Chefe tomava a coisa com excessiva ligeireza.

Com o sol a cada momento mais rubro, e os telhados em brasa, o mar tomava, em certos trechos, uma cor verde de gelo; como se o mundo, que o astro no poente abandonava, começasse a endurecer numa eternidade sem vida.

— A que horas deseja que eu esteja de volta amanhã de

manhã?

— Não antes das nove. Talvez o senhor possa telefonar à

Chefatura em Paris para mim, a fim de obter o máximo

possível de informações sobre Arlette Sudre e seu marido. Gostaria também de saber que espécie de vida leva Charles Besson quando está em Paris. Enquanto se ocupa disso poderia, de passagem, descobrir alguma coisa sobre Théo.

Procure falar com Lucas. Não quero telefonar daqui sobre essa espécie de coisas.

Muitos dos transeuntes voltavam-se para olhá-los, e havia gente observando-os por detrás das vitrines das lojas. Maigret ainda não sabia o que faria à noite ou como iria tratar do caso. De tempos em tempos dizia consigo, mecanicamente:

— Rose está morta.

Ela era a única pessoa da qual ele ainda nada sabia, exceto que era rechonchuda e que tinha o busto grande.

— Diga-me uma coisa — disse a Castaing, que dava partida ao automóvel. — Ela deve ter tido objetos pessoais no seu quarto, em casa de Valentine. O que aconteceu com eles?

— Seus pais enfiaram tudo na mala dela e levaram tudo embora.

— O senhor pediu para ver as coisas?

— Não ousei. Se o senhor for até lá, entenderá. Não há nada de amável na acolhida deles. Observam a gente com suspeita e se entreolham antes de responder por monossílabos.

— Provavelmente irei vê-los amanhã.

— Eu ficaria surpreso se Charles Besson não lhe viesse fazer uma visita. Uma vez que se deu tal pressa em fazer que o Ministro o encarregasse do caso!

Castaing partiu no seu pequeno carro ao longo da estrada do Havre, e Maigret, antes de voltar ao hotel, caminhou até o terraço do cassino, que tinha uma boa vista da praia. Foi puramente mecânico. Obedecia a essa espécie de impulso que leva os moradores da cidade, quando estão à beira-mar, a ir ver o pôr-do-sol?

Efetivamente, todos os veranistas ainda em Étretat estavam lá, moças em vestidos berrantes, umas poucas senhoras de idade, olhando a famosa luz verde que reverbera nas águas no preciso momento em que a bola vermelha afunda-se na linha do horizonte.

Os olhos de Maigret o incomodavam, de modo que não viu a luz verde, mas foi ter ao bar, e surpreendeu-se com uma voz familiar:

— O que vai ser, Inspetor?

— Céus! Charlie!

Um barman que ele conhecera num local da Rua Danou e que se espantava de ver ali.

— Nunca pensei que o senhor desceria até aqui para lidar com esse negócio. O que acha?

— O que acha você?

— Penso que a velha senhora teve muita sorte e que a doméstica se estrepou.

Maigret tomou um calvados, porque estava na Normandia porque começara com isso. Charlie atendeu a outros freIgueses. Théo Besson entrou e sentou-se num dos altos bancos e abriu um jornal de Paris que acabara de ir buscar, provavelmente, na estação.

Lá fora, à parte umas poucas nuvens ainda tingidas de vermelho, o mundo perdera toda a cor, com a branca infinidade do céu fazendo-se de cobertura para a vastidão do mar.

— Rose está morta.

Morta por haver bebido um remédio que não se destinava a ela e de que não precisava.

Deixou-se ficar mais algum tempo, sentindo-se pesado depois do calvados; foi então para o hotel, cuja fachada aparecia, com uma brancura de cal, ao crepúsculo. Passou pelas plantas que flanqueavam os degraus, empurrou a porta, e caminhou pelo tapete vermelho até a recepção, com o intento de apanhar sua chave. O gerente dirigiu-se a ele confidencialmente:

— Uma senhora está à sua espera já há algum tempo.

E olhou para o grupo de poltronas, cobertas de veludo vermelho, no canto do hall.

— Disse-lhe que não sabia quando o senhor estaria de volta, e ela disse que esperaria. É...

Murmurou o nome tão indistintamente que Maigret não foi capaz de percebê-lo. Mas, ao voltar-se, reconheceu Arlette

Sudre que, nesse momento, levantava-se da sua cadeira.

Pôde notar melhor do que à tarde a sua elegância, talvez por ser a única pessoa ali em roupas de cidade, com um chapéu extremamente parisiense, da espécie que ele esperaria encontrar num coquetel em algum lugar perto da Madeleine.

Dirigiu-se para ela não de todo à vontade.

— A senhora está à minha espera, acredito? InspetorChefe Maigret.

— Sou Arlette Sudre, como já sabe.

Ele concordou de cabeça para mostrar que sabia, sim, quem ela era. Nenhum dos dois falou por um momento. Ela correu os olhos em torno, como que a sugerir que achava difícil dizer qualquer coisa no hall, onde um casal de velhos os encarava, todo ouvidos.

— Imagino que queira falar-me a sós. Desgraçadamente, não estamos no Quai des Orfèvres. Não sei bem onde...

Ele também olhava em torno. Não podia convidá-la a subir ao seu quarto. As empregadas estariam fazendo as mesas na sala de jantar, que era suficientemente grande para abrigar duzentas pessoas, embora houvesse menos de duas dúzias essa noite.

— Talvez o mais fácil seja comer alguma coisa comigo. Posso pedir uma mesa retirada...

Mais à vontade do que ele, ela aceitou a sugestão com naturalidade, sem agradecer-lhe, e seguiu-o ao salão, ainda deserto.

— Poderíamos comer agora? — perguntou à garçonete.

— Dentro de poucos minutos. Mas o senhor pode sentarse agora. Para dois?

— Um momento. Seria possível alguma coisa para beber? Voltou-se para Arlette, interrogativamente.

— Um martini — disse ela simplesmente.

— Dois martinis.

Ele ainda estava cheio de dedos, e não apenas pelo fato de haver um homem passado parte da noite de domingo no quarto de dormir de Arlette. Ela era justamente da espécie de mulher bonita que um homem apanha e leva para um jantar íntimo, observando as pessoas que entram, com medo de ser reconhecido. E ia jantar ali, em companhia dele.

Ela não procurou ajudá-lo, mas ficou a olhar para ele, tranqüilamente, como se lhe coubesse falar e não a ela.

— Então, a senhora voltou de Paris! — disse ele, renunciando à luta.

— Certamente, o senhor adivinha por quê?

Ela era talvez mais bonita do que a mãe jamais o fora, mas ao contrário de Valentine não se esforçava para agradar. Permanecia distante e ao seu olhar faltava calor. — Bem, se não sabe eu lhe direi.

— A senhora se refere a Hervé?

Os martinis chegaram. Ela levou o cálice aos lábios, tirou Bum lenço da bolsa de camurça preta e automaticamente apanhou um batom, mas sem utilizá-lo.

— O que o senhor pretende fazer? — perguntou, olhando-o diretamente nos olhos.

— Não compreendo a sua pergunta.

— Não tenho tido muita experiência dessa espécie de

mas leio ocasionalmente os jornais. Quando alguma [coisa acontece como na noite do último domingo, a polícia de regra investiga as vidas de todos os que estão envolvidos no caso, por mais remoto que seja esse envolvimento. Não adianta Bser inocente. Como sou casada e muito amiga do meu marido, pergunto-lhe o que pretende fazer.

— Sobre o lenço?

— Se prefere assim.

— Seu marido não sabe?

Viu o lábio dela tremer, de impaciência ou de cólera. HDepois ela disse:

— O senhor fala como minha mãe.

— Por quê? Sua mãe pensou que seu marido poderia ter ciiência das suas atividades extraconjugais?

Ela deu uma risadinha de escárnio.

— O senhor escolhe suas palavras com cuidado, não?

— Se prefere, deixarei de ser tão cauteloso. Do que me disse, sua mãe imagina que seu marido é o que se chama um narido complacente.

— Mesmo se ela não o pensa, foi o que disse.

— Como não sou capaz de distinguir seu marido de lAdrão, não tive a oportunidade de formar um juízo. Agora...

Os olhos dela estavam fixos nele, e ele sentiu que estava sendo desagradável:

— Agora, a senhora não poderá culpar ninguém a não ser a si mesma se alguém tem essa idéia. Está com trinta e oito anos, imagino? É casada desde os vinte.

É difícil, portanto, acreditar que o incidente de domingo tenha sido o primeiro da espécie.

Ela lhe pagou na mesma moeda:

— O senhor está certo, não foi a primeira vez.

— A senhora dispunha de só uma noite para passar em casa de sua mãe, e teve simplesmente de ter o seu amante aqui consigo.

— Talvez não tenhamos tão freqüentemente a oportunidade de passarmos a noite juntos...

— Não estou a julgá-la. Estou apenas afirmando um fato. Não seria despropositado conceber que seu marido tivesse conhecimento dele...

— Não teve, e ainda não tem. Foi por isso que voltei, depois de partir com tanta pressa.

— Por que foi embora segunda-feira ao meio-dia?

— Não tinha idéia do que acontecera a Hervé, depois que ele deixou a casa quando Rose começou a gemer. Não sabia o que faria meu marido, quando recebesse a notícia. Quis impedi-lo de vir.

— Compreendo. E logo que chegou a Paris começou a preocupar-se.

— Sim. Telefonei a Charles e ele me disse que o senhor ia encarregar-se do caso.

— Isso a tranqüilizou?

— Não.

— Posso trazer a sopa, senhor?

Ele concordou, de cabeça, e a entrevista foi interrompida até que a sopa viesse.

— Meu marido descobrirá tudo?

— Não é provável. A não ser que se torne absolutamente necessário.

— O senhor suspeita que eu tenha tentado envenenar minha mãe?

Por um momento a colher dele ficou suspensa no ar, entre o prato e a boca: ele a encarou com espanto, misturado a uma crescente admiração.

— Por que me pergunta isso?

— Porque eu era a única pessoa na casa que poderia ter posto o veneno no copo. Ou, mais exatamente, eu era a única pessoa ainda na casa quando isso aconteceu.

— A senhora quer dizer que Mimi poderia tê-lo feito antes de ir-se embora?

— Mimi, ou Charles, ou mesmo Théo. Só que todos eles inevitavelmente pensarão em mim.

— Por que inevitavelmente?

— Porque todo mundo está convencido de que não morro de amores por minha mãe.

— E é verdade?

— Mais ou menos verdade.

— Aborrecer-se-ia muito se lhe fizesse algumas perguntas? Não o faço oficialmente, veja bem. Foi a senhora que veio ver-me.

— O senhor as faria de qualquer maneira, mais dia menos dia, não é verdade?

— É possível. É, mesmo, muito provável.

Três mesas mais adiante, o casal de velhos jantava, e havia também uma mulher de meia idade, que mantinha os olhos fixos no filho de dezoito anos, a quem dava comida como a uma criança. Ondas de riso, alto, vinham de uma terceira mesa, de moças.

Maigret e sua companheira conversavam em voz baixa, com aparente calma e maneira despreocupada, enquanto comiam.

— A senhora não gosta de sua mãe há muito tempo?

— Desde o dia em que descobri que ela nunca me amou, que eu fora apenas um acidente, e que ela achava que eu lhe arruinara a vida.

— Quando descobriu tudo isso?

— Quando ainda era menina. De qualquer maneira, erro quando me refiro só a mim. Deveria ter dito que minha mãe jamais amou qualquer pessoa, nem mesmo a mim.

— Não amou sequer seu pai?

— Logo que ele morreu ela esqueceu tudo a respeito dele. Aposto que o senhor não será capaz de encontrar uma única” fotografia de meu pai na casa. O senhor esteve lá, há pouco. Viu o quarto de minha mãe. Não lhe pareceu estranho?

Ele considerou a pergunta, depois respondeu:

— Não.

— Talvez o senhor não tenha estado em casas de velhas senhoras muito freqüentemente. Na maior parte delas, há montanhas de fotografias nas paredes e por cima dos móveis.

Ela tinha razão. Não obstante, ele se lembrava de uma fotografia, a de um homem velho, numa magnífica moldura de prata, em cima da mesa de cabeceira.

— Meu padrasto — ela respondeu, quando ele mencionou o fato. — Em primeiro lugar, foi posta lá por causa da moldura. Em segundo lugar, ele é ainda o antigo proprietário dos produtos Juva e isso vale alguma coisa. Finalmente, passou metade de sua vida satisfazendo os menores desejos de minha mãe, dando-lhe tudo o que ela tem. O senhor viu alguma fotografia minha? Ou de meus meio-irmãos? Charles, por exemplo, tem mania de fotografar seus filhos em todas as idades, e vive a mandar cópias para toda a família. Na casa de minha mãe, estão todas numa gaveta, com restos de lápis, cartas velhas, rolos de algodão, e tudo o mais. Mas há fotos dela mesma nas paredes, e dos seus automóveis, do seu castelo, do seu iate, dos seus gatos, principalmente de todos os seus gatos.

— Posso ver que não é mesmo admiradora dela!

— Não creio que já me importe muito.

— Com quê?

— Não importa. Não obstante, se alguém tentou envenená-la...

— Perdão. A senhora usou a palavra ’se’.

— Vamos dizer que foi apenas uma maneira de me expressar. E, todavia, com minha mãe nunca se sabe.

— A senhora está insinuando que ela seria capaz de pretender ter sido envenenada?

— Sei que isso não pode ser verdade, particularmente porque havia de fato veneno no copo, tanto que a pobre Rose morreu.

— Seus meio-irmãos e sua cunhada participam da sua... vamos dizer, indiferença, se não animosidade, por sua mãe?

— Não pelas mesmas razões. Mimi não gosta muito dela porque pensa que meu padrasto não teria perdido a fortuna se não fosse por ela.

— É verdade?

— Não sei. Certamente, ele gastava a maior parte do dinheiro com ela, e queria impressioná-la mais do que qualquer outra coisa.

— Como a senhora se dava com seu padrasto?

— Quase imediatamente depois do casamento, minha mãe me mandou para uma escola muito exclusiva, muito cara, na Suíça, com a desculpa de que meu pai fora tuberculoso e que meus pulmões tinham de ser cuidados.

— Por que diz que foi uma desculpa?

— Jamais tossi na minha vida. Era apenas porque a presença de uma filha crescida costumava embaraçá-la. E talvez tivesse ciúmes.

— De quê?

— Ferdinand tinha tendência a mimar-me, a estragar-me de mimos. Quando voltei para Paris, aos dezessete anos, ele começou a rondar-me com persistência.

— Quer dizer...

— Não. Não diretamente. Eu tinha dezoito anos e meio quando aconteceu, uma noite, enquanto me vestia para o teatro. Ele entrou no quarto antes que eu estivesse inteiramente pronta.

— O que houve?

— Nada. Ele perdeu a cabeça e eu o esbofeteei. Então ele me caiu aos pés e começou a chorar, implorando-me que não contasse nada a minha mãe e que não me fosse embora. Jurou que fora apenas um momento de loucura e prometeu que não aconteceria outra vez.

Ela acrescentou friamente:

— Ele estava ridículo, em roupa de noite, com o peito duro saltando para fora do colete. Teve de levantar-se às carreiras, porque a arrumadeira vinha vindo.

— A senhora ficou?

— Sim.

— Estava apaixonada por alguém?

— Sim.

— Por quem?

— Théo.

— E ele estava apaixonado pela senhora?

— Ele não me prestava grande atenção. Tinha seu próprio quarto, no andar térreo, e eu sabia que, a despeito da interdição formal do pai, costumava receber mulheres lá. Passei horas a espioná-los. Havia uma, uma dançarinazinha do Châtelet, que em certa época vinha quase todos os dias. Eu me escondi uma noite nos aposentos dele.

— E fez-lhe uma cena?

— Não sei o que fiz exatamente, exceto que ela foi embora furiosa e me deixou com Théo.

— E então?

— Ele não queria. Eu quase tive de forçá-lo.

Ela falava sossegadamente, num tom tão natural que era quase irreal, sobretudo naquela atmosfera de classe média e de veraneio, com as garçonetes nos seus vestidos negros e aventais brancos a interromperem de tempos em tempos.

— E depois? — repetiu ele.

— Não houve depois. Mantivemo-nos a distância um do outro.

— Por quê?

— Imagino que ele tenha ficado constrangido.

— E a senhora?

— Tomei nojo dos homens.

— Foi por isso que se casou tão repentinamente?

— Não logo. Por mais de um ano, dormi com todo homem que apareceu.

— De nojo?

— Sim. Mas o senhor não será capaz de entender.

— E então?

— Decidi que as coisas estavam indo muito mal. Estava farta de tudo aquilo e quis pôr um fim a tudo.

— Casando-se?

— Tentando viver como todo mundo.

— E continuou mesmo depois do casamento? Ela o encarou gravemente e disse:

— Sim.

Houve um longo silêncio, durante o qual eles ouviram as moças na outra mesa rindo alto.

— Desde o primeiro ano?

— Desde o primeiro mês.

— Por quê?

— Não sei. Porque não pude impedir-me. Julien jamais suspeitou de mim, e eu faria tudo para impedir que ele o descobrisse.

— A senhora o ama?

— Não me importa se vai rir de mim, mas a resposta é sim! De qualquer modo, é o único homem pelo qual tenho algum respeito. O senhor tem outras perguntas a fazer-me?

— Quando tiver digerido tudo o que vem de contar-me, provavelmente terei.

— Não se apresse.

— A senhora pretende passar a noite em La Bicoque?

— Não há nada que eu possa fazer para esquivar-me. As pessoas interpretariam mal se eu fosse para um hotel; depois, não há trens até amanhã de manhã.

— A senhora discutiu com sua mãe?

— Quando?

— Esta tarde.

— Dissemos friamente uma à outra umas tantas verdades, como de hábito. Isso já se tornou como que um jogo entre nós.

Ela não comeu sobremesa, e antes de deixar a mesa consertou o batom, contemplando-se num espelhinho: e bateu de leve no rosto com um minúsculo pufe de pó-de-arroz.

Tinha os olhos incrivelmente claros, mais claros e mais azuis ainda que os de Valentine; mas tão vazios quanto o céu estivera antes, quando em vão Maigret buscara a luz verde.

 

Maigret se perguntava se o fim da refeição seria também o fim da entrevista, ou se iriam prosseguir com ela em algum outro local, e Arlette ocupava-se em acender um cigarro, quando o gerente veio ter com o Inspetor-Chefe e falou-lhe num sussurro exagerado, que Maigret teve de pedir-lhe que repetisse o que havia dito:

— Chamam-no ao telefone.

— Quem chama?

A isso, o gerente olhou para a jovem mulher significativamente e a tal ponto, que ambos o entenderam mal. As feições de Arlette endureceram, mas sem perder a expressão de indiferença.

— O senhor não me vai dizer quem é que me chama ao telefone? — perguntou o Inspetor-Chefe com impaciência.

E o homem, aborrecido, e como que forçado contra a vontade a revelar um segredo de Estado:

— O Sr. Charles Besson.

Maigret sorriu timidamente para Arlette, que devia estar pensando tratar-se do seu marido, e levantou-se, pedindo-lhe:

— A senhora espera por mim?

Ela baixou as pálpebras, assentindo, e ele foi até a cabine telefônica, acompanhado do gerente que explicava:

— Teria sido melhor enviar-lhe um bilhete, não? Devo desculpar-me pelo erro cometido por alguém de minha equipe. Parece que o Sr. Besson chamou-o duas ou três vezes durante o dia, e eles se esqueceram de dizer-lhe quando o senhor chegou para jantar.

A voz era alta, na outra ponta da linha, dessa espécie de voz que faz o aparelho vibrar.

— Inspetor-Chefe Maigret? Lamento infinitamente, e I não sei como desculpar-me, mas talvez o senhor me perdoe quando eu lhe contar o que se passou.

Maigret não teve tempo de dizer uma palavra. A voz continuou:

— Eu o arranco do seu trabalho e da sua família. Faço-o vir a Étretat e não estou aí para recebê-lo! Asseguro-lhe que tinha a firme intenção de estar na estação esta manhã e tentei em vão entrar em contacto com o agente por telefone a fim de deixar-lhe um recado. Alô?

- Sim?

— A noite passada, sabe, tive de ir às pressas a Dieppe porque a mãe de minha mulher estava à morte.

— Ela morreu?

— Só esta tarde, e não tem filhos, de modo que eu era o único homem na casa, e fui obrigado a ficar. O senhor sabe como são essas coisas. Há que pensar em tudo. Coisas inesperadas acontecem. Não pude telefonar-lhe da casa porque a agonizante não podia suportar o menor ruído, mas escapei três vezes por alguns minutos para chamá-lo de um bar nas vizinhanças. Foi terrível.

— Ela sofreu muito?

— Não especialmente, mas morreu muito devagar.

— Que idade tinha?

— Oitenta e oito. Estou de volta a Fécamp, agora, ocupado como os nossos filhos, pois deixei a mulher lá. Ela tem só o bebê com ela. Mas se o senhor desejar, vou no meu carro para vê-lo ainda esta noite. De outro modo, diga-me a que horas amanhã pela manhã será mais conveniente para o senhor receber-me e faço questão de estar aí.

— Tem algo a dizer-me?

— Sobre o que aconteceu domingo? Não sei mais do que o senhor já apurou. Ah! Desejava dizer-lhe que todos os jornais da Normandia, tanto em Rouen como no Havre, prometeram-me não publicar uma linha sobre o assunto. Na verdade, não saiu nada também nos jornais de Paris. Não foi nada fácil. Tive de ir pessoalmente a Rouen na terça-feira de manhã.

Eles publicaram a história em três linhas, dizendo tratar-se provavelmente de um acidente.

Finalmente, ele se interrompeu para tomar fôlego, mas o Inspetor-Chefe nada tinha a dizer-lhe.

— O senhor está bem acomodado no seu hotel? Deram-lhe um bom quarto? Espero que chegue ao fundo desse triste negócio. Não sei se o senhor é madrugador ou não. Seria conveniente se eu fosse vê-lo no hotel às nove horas?

— Se for conveniente para o senhor.

— Desejo agradecer-lhe vivamente e desculpar-me mais uma vez.

Quando Maigret deixou a cabine telefônica, viu que Arlette estava sozinha no salão, com os cotovelos apoiados na mesa, enquanto os empregados tiravam os pratos.

— Ele teve de ir a Dieppe.

— Ela morreu, por fim?

— Estava doente?

— Há vinte ou trinta anos que ela pretendia estar morrendo. Charles deve ter ficado encantado.

— Ele não gostava muito dela?

— Ela salvará a pele dele por algum tempo, uma vez que vai herdar um bolo de dinheiro. O senhor conhece Dieppe?

— Não muito bem.

— Os Montets são donos de uma boa parte das casas da cidade. Ele fica rico, mas logo achará meios de perder tudo em algum negócio absurdo. Se Mimi não o impedir, porque afinal o dinheiro é dela, e julgo-a bem capaz de cuidar de si mesma.

Era curioso. Ela dizia tais coisas sem animosidade. Não havia traço de despeito ou inveja em sua voz; era como se falasse de pessoas simplesmente como as via, e elas apareciam a uma luz mais crua do que se fossem objeto de fotografias de identificação.

Maigret sentara-se de novo, èm frente a ela, e enchia o cachimbo, que hesitava em acender.

— Diga-me, por favor, quando eu começar a ser demais.

— A senhora não parece ter pressa de voltar a La Bicoque.

— Não tenho mesmo.

— Prefere, então, qualquer companhia à de Valentine?

Ele sabia que não se tratava disso, mas que, agora que ela

começara a falar de si mesma, provavelmente gostaria de dizer mais. E, todavia, nesse vasto ambiente, onde três quartas partes das luzes acabavam de ser apagadas e o pessoal deixava perceber claramente que eles eram um estorvo, era difícil retomar a entrevista no ponto em que fora interrompida.

— A senhora gostaria de ir a algum outro lugar?

— Onde? Em um bar correríamos o risco de encontrar

Théo, e eu preferiria evitá-lo.

— Ainda o ama?

— Não. Não sei.

— Tem alguma outra coisa contra ele?

— Não sei. Vamos. Podemos sempre andar um pouco. Fora, a noite estava muito escura, com uma neblina que fazia um largo halo em torno das poucas lâmpadas elétricas. O som habitual do mar começava a tornar-se um bramido, e era muito mais alto do que durante o dia.

— Posso fazer-lhe mais algumas perguntas?

Ela usava saltos muito altos, e evitava as ruas sem calçamento, particularmente as que tinham grandes pedras desiguais, em que arriscava torcer o tornozelo.

— É para isso que estou aqui. O senhor terá de fazer tais perguntas mais cedo ou mais tarde, não terá? Gostaria de voltar para Paris amanhã com a cabeça despreocupada.

Desde a sua mocidade, Maigret raramente estivera num passeio desses, à noite, em ruas escuras, frias, de uma cidade pequena, com uma mulher bonita por companhia; e sentia-se quase culpado. Pouca gente passava por eles. Seus passos eram ouvidos antes que suas silhuetas pudessem ser percebidas, e muitos dos transeuntes voltavam-se para olhar o casal, fora de casa assim tão tarde da noite. Talvez fossem também observados por detrás das cortinas das janelas iluminadas.

— Domingo era o aniversário de sua mãe?

— Sim, 3 de setembro. Meu padrasto converteu esse dia em em alguma coisa tão importante quanto um feriado bancário, e recusava permitir que qualquer membro da família se ausentasse. Mantivemos essa prática de virmos todos ver minha mãe. Tornou-se uma tradição, entende?”

— Exceto Théo, pelo que me disse há pouco.

— Exceto Théo, desde a morte de seu pai.

— A senhora lhe trouxe presentes? Posso saber o quê?

— Por uma curiosa coincidência, Mimi e eu lhe trouxemos quase que a mesma coisa: uma gola de renda. É difícil dar um presente a minha mãe, uma vez que tem tudo o que poderia desejar, coisas caras, raridades. Se ganha uma bugiganga qualquer, estoura de riso, riso que fere, e depois agradece com exagerada efusão. Ela gosta muito de renda, então ambas pensamos nisso.

— Nada de chocolates, doces, guloseimas?

— Posso imaginar o que está pensando. Não. Não ocorreria a ninguém dar chocolates ou doces a minha mãe, ela os detesta. O senhor vê, minha mãe, que parece frágil e delicada, prefere um arenque grelhado ou um peixe defumado qualquer, um pote de pepinos em conserva ou um belo pedaço de bacon salgado a qualquer espécie de doce.

— E a senhora?

— Não.

— Alguém da família jamais suspeitou o que houve entre a senhora e seu padrasto?

— Francamente, não posso ter certeza, mas juraria que minha mãe sempre soube.

— Quem lhe teria contado?

— Ninguém precisaria contar-lhe. Perdoe-me se pareço estar desfazendo dela outra vez, mas sempre escutou às portas. É uma verdadeira mania que tem. Espionou-me antes de espionar a Ferdinand. Costumava espionar todo mundo que vivia na casa, na casa dela, inclusive o mordomo, o chofer e as empregadas.

— Por quê?

— Para saber de tudo. Porque era sua casa.

— E a senhora pensa que sabia de Théo, também?

— Estou quase certa disso.

— Ela nunca lhe disse nada, nunca fez alusões? A senhora tinha menos de vinte anos, pois não? Ela poderia mantê-la sob controle.

— Por que razão?

— Quando a senhora anunciou sua intenção de desposar Julien Sudre, ela não procurou dissuadi-la?

Àquele tempo, seguramente, o casamento poderia ser considerado desvantajoso. Ferdinand BessOn estava no pináculo da glória. A senhora cercava-se de luxo e, de repente, casa-se com um dentista, sem dinheiro nem futuro.

— Minha mãe não disse nada.

— E seu padrasto?

— Ele não ousaria. Estava, no que me dizia respeito, em situação constrangedora. Penso que sua consciência o incomodava. No fundo, acho que era homem honesto e, até, escrupuloso. Deve ter ficado convencido de que o fazia apenas por causa dele. Quis dar-me um grande dote, mas Julien recusou-o.

— A conselho seu?

— Sim.

— Sua mãe nunca suspeitou de nada?

— Não.

Estavam agora num caminho que galgava o rochedo. Em intervalos regulares, ele via o farol de Antifer esquadrinhando o céu; de algum lugar vinha o som funéreo de uma sirene de nevoeiro. Um forte odor de algas subia até eles. A despeito dos saltos altos e do vestido parisiense, Arlette não demonstrava fadiga nem se queixava do frio.

— Prosseguirei com uma pergunta ainda mais pessoal.

— Posso adivinhar quase todas as perguntas que o senhor me faz.

— Quando soube que não podia ter filhos? Antes de casar-se?

— Sim.

— Como?

— O senhor se esqueceu do que lhe disse há pouco?

— Não me esqueci, mas...

— Não. Não tomei qualquer espécie de precaução, e não permiti que nenhum homem as tomasse.

— Por que não?

— Não sei. Por uma espécie de asseio, talvez.

Ele julgou vê-la corar no escuro, e tinha havido uma alteração no som de sua voz.

— Como soube com certeza?

— De um jovem médico, residente em Lariboisière.

— Ele era seu amante?

— Como os outros. Examinou-me e me fez examinar por seus amigos.

Ele hesitou, embaraçado pela pergunta que lhe viera à cabeça. Ela o percebeu.

— Diga-o! Agora que já fomos tão longe...

— Esse encontro com os amigos dele, foi numa base estritamente médica ou, ao contrário...

— Sim, ao contrário!

— Agora compreendo.

— Que eu tenha desejado botar um ponto final a tudo? Falava ainda da mesma maneira serena, numa voz igual, como se discutissem um caso patológico e não a ela mesma.

— Faça-me outra pergunta.

— Muito bem, eu a farei. Durante essas... experiências amorosas, ou, mais tarde, com seu marido, ou com qualquer dos outros, a senhora jamais sentiu...

— ... prazer? É isso o que quer dizer?

— Eu ia usar a palavra satisfação.

— Jamais. Nem uma coisa nem outra. O senhor compreende que não é a primeira pessoa a perguntar-me isso. Se algumas vezes acompanho alguém, na rua, também me deito com gente educada e, até, com homens de altíssima inteligência...

— Hervé Peyrot é um deles?

— É um imbecil, um convencido.

— Qual seria sua reação se sua mãe de súbito lhe dissesse estar a par de todo esse lado de sua vida?

— Diria que fosse tratar da vida dela.

— Vamos imaginar que, na esperança de salvá-la, ela julgasse de seu dever comunicar-lhe que ia falar com seu marido?

Silêncio. Ela se detivera.

— Era aí que o senhor queria chegar? — disse ela, com reprovação na voz.

— Cheguei aí sem qualquer intenção.

— Não sei. Eu lhe disse que não queria que Julien soubesse por coisa nenhuma do mundo.

— Por que não?

— O senhor não compreende?

— Porque teme magoá-lo?

— Isso, em parte. Julien é feliz. É uma das pessoas mais felizes que conheço. Ninguém tem o direito de arrebatar-lhe essa felicidade. Além disso...

— Além disso...

— Ele é, provavelmente, o único homem que tem algum respeito por mim, que me trata como se eu fora alguém, mas... O senhor sabe o que quero dizer.

— E a senhora precisa disso?

— Talvez.

— Tanto mesmo que, se sua mãe...

— Se ela ameaçasse sujar-me aos olhos dele, eu faria tudo para impedi-la.

— Inclusive matar?

— Sim.

E acrescentou:

— Posso assegurar-lhe que as circunstâncias não se apresentaram ainda.

— Por que diz ’ainda’?

— Porque agora ela não apenas sabe, mas tem provas do fato. Ela mencionou Hervé esta tarde.

— O que disse?

— O senhor provavelmente ficará surpreso se eu repetir as palavras que ela usou. O senhor deve entender que minha mãe, apesar dos seus ares de pequena marquesa, é ainda muito mulher do povo, muito filha de pescador, e, em particular, tem muita vez a boca suja. Ela me disse que eu me contentasse em fazer minhas putarias longe da casa dela, e acrescentou mais algumas palavras imundas para descrever o que se passou entre Hervé e eu. Falou também de Julien grosseiramente, chamando-o cáften, pois que não está de todo convencida que ele não saiba de tudo e não tire algum proveito...

— A senhora o defendeu?

— Fiz com que minha mãe se calasse. — Como?

— Olhando-a nos olhos e dizendo-lhe que eu queria que se calasse. Quando insistiu, eu a esbofeteei, e ela ficou tão pasma que fechou o bico imediatamente.

— Ela está a sua espera?

— Certamente não se deitará antes que eu volte.

— E a senhora pretende realmente dormir lá?

— O senhor conhece a situação, e deve admitir que me seria difícil não fazê-lo. Antes de ir-me, tenho de estar segura de que ela não dirá nada a Juíien, que não fará nada que o entristeça.

Depois de um silêncio, talvez percebendo que Maigret estava preocupado, deu uma pequena risada seca.

— Não tenha medo, não haverá qualquer problema. Tinham atingido o topo do penhasco, e havia a massa leitosa da névoa entre eles e o mar, que se podia ouvir batendo contra a rocha.

— Podemos virar à direita para descer de novo. O caminho é melhor e nos levará quase em frente a La Bicoque. O senhor está certo de que não tem mais perguntas a fazer-me?

A lua devia ter saído por detrás da névoa, que se pusera a brilhar debilmente; e quando Arlette parou, ele viu a forma branca do rosto e o corte rubro da boca.

— No momento, não — respondeu ele.

Então, ainda de pé, imóvel, à sua frente, ela acrescentou, numa voz diferente, que era penoso ouvir:

— E... não gostaria de aproveitar-se de mim, como os outros?

Ele quase fez o que ela tinha feito aquele dia mesmo a sua mãe, esbofeteando-a — por ser uma menina levada. Limitou-se, porém, a apertar-lhe com força o braço, forçando-a a ir colina abaixo.

— Tudo o que venho dizendo tinha endereço certo, sabe?

— Cale-se!

— O senhor está tentado, não?

Ele apertou-lhe ainda mais o braço, brutalmente.

— Tem certeza de que não se arrependerá, mais tarde? A voz dela tinha uma nota mais aguda, fizera-se cruel, e sarcástica também.

— Pense cuidadosamente, Inspetor.

Ele a deixou, abrupto, encheu o cachimbo enquanto andava em frente, esquecido dela. Ouviu-a que se detinha outra vez, depois vagarosamente se punha de novo em marcha e, por fim, caminhava apressada, morro abaixo, para reunir-se a ele.

Nesse momento, o rosto de Maigret ficou iluminado pelo clarão do fósforo que mantinha acima do fornilho do cachimbo.

— Desculpe-me. Portei-me como uma idiota.

— É verdade.

— Está muito zangado comigo?

— Não se fala mais nisso.

— O senhor pensa que eu realmente o queria?

— Não?

— O que eu quis fazer, depois de forçada a humilhar-me assim, foi feri-lo por minha vez, humilhá-lo também.

— Eu sei.

— Eu teria tido minha vingança, se o visse estendido por cima de mim como um animal.

— Vamos.

— Admita que pensa que tentei matar minha mãe.

— Ainda não.

— Quer dizer que ainda não está certo?

— Quero dizer simplesmente o que as palavras significam, que não sei nada.

— Quando pensar que sou culpada, dir-me-á isso?

— Provavelmente.

— Em particular?

— Prometo-o.

— Mas eu não sou culpada.

— Espero que não.

Ele estava farto da conversa, que já se alongara por Bemais. A persistência de Arlette aborrecia-o. Pensou que parecia excessivamente ávida em analisar-se e denegrir-se.

— Minha mãe ainda está de pé.

— Como sabe?

— Aquela pequena luz que vê é da sala de estar de La Bicoque.

— A que horas é seu trem, amanhã?

— Gostaria de apanhar o das oito horas da manhã. Isto é, se o senhor não me detiver aqui. Nesse caso, telefonarei a Julien e direi que minha mãe precisa de mim.

— Ele sabe que a senhora odeia sua mãe?

— Eu não a odeio. Não a amo — é tudo. Posso pegar o trem das oito?

— Sim,

— Posso vê-lo antes de ir?

— Ainda não sei.

— Talvez o senhor deseje certificar-se de que minha mãe ainda está viva antes que eu me vá?

— Talvez.

Tinham chegado a um declive mais abrupto, uma espécie de ladeira; estavam agora na estrada e a uns cinqüenta passos do portão de La Bicoque.

— O senhor não quer entrar?

— Não.

As janelas não estavam à vista, embora ele pudesse perceber sua luz por trás da cortina espessa da vegetação.

— Boa noite, Sr. Maigret!

— Boa noite!

Ela hesitava em deixá-lo.

— Ainda está aborrecido comigo?

— Não sei. Vá e procure dormir um pouco!

E, enfiando as mãos nos bolsos, ele se afastou rapidamente em direção à cidade.

Pensamentos confusos passavam-lhe pela cabeça, e agora que a deixara lembrou-se de uma centena de perguntas que gostaria de fazer-lhe. Lamentou ter-lhe dado permissão de partir na manhã seguinte, e esteve a ponto de voltar sobre os seus passos a fim de dizer-lhe que ficasse.

Não seria também um erro deixar as duas mulheres sós por essa noite? Não poderia ser repetida a cena da tarde, com violência mais perigosa ainda?

Ele ficaria encantado de ver Valentine de novo, de falarlhe, de sentar-se uma vez mais naquela minúscula sala, entre suas quinquilharias de mau gosto.

Às nove horas, encontraria aquele espalhafatoso Charles Besson, que lhe arrebentaria os tímpanos.

A cidade estava morta, e as luzes do cassino já haviam sido apagadas por falta de fregueses. Numa esquina, só um bar estava ainda aceso, na verdade um bistrô, que provavelmente ficara aberto durante o inverno para atender aos moradores do local.

Maigret deteve-se por um momento na rua porque tinha sede: à luz amarelada que vinha de dentro reconheceu uma silhueta que já se lhe tornava familiar, a de Théo Besson, sempre muito inglês no seu terno de tweed.

Segurava um copo na mão e falava com alguém de pé ao seu lado, um rapaz de roupa preta, dessa espécie de roupa que os camponeses envergam aos domingos, de camisa branca e gravata escura. Um jovem de rosto corado e pescoço queimado de sol.

Maigret virou a maçaneta da porta, caminhou até o bar sem olhar para eles, e pediu uma cerveja.

Podia vê-los agora, aos dois, no espelho atrás das garrafas, e pensou que Théo dera ao seu companheiro um olhar de advertência para fazê-lo calar-se.

O silêncio repentino, que daí resultou, foi notado no bar, pois só havia quatro pessoas lá, incluindo o patrão, mais um gato preto enrodilhado, a dormitar numa cadeira, frente à estufa.

— O nevoeiro aumentou — disse o barman, por fim. — É coisa de esperar, nessa época do ano. Mas nem por isso faz menos sol durante o dia.

O rapaz voltou-se para olhar Maigret, que batia seu cachimbo contra o calcanhar para esvaziá-lo e esmagava a cinza quente contra a serragem do chão. Tinha um ar arrogante, e lembrava um rufião de aldeia que tivesse bebido um pouco demais na noite de um casamento ou de um velório, e procurava comprar, briga.

— O senhor é que veio de Paris esta manhã? — perguntou o patrão, procurando puxar conversa.

Maigret limitou-se a assentir de cabeça, e o rapaz olhou-o ainda com maior atenção.

Isso durou vários minutos, enquanto Théo Besson contemplava com naturalidade as garrafas à sua frente. Sua tez e seus olhos, especialmente as bolsas debaixo deles, eram os mesmos da manhã.

Tinha também a expressão apática e o andar um tanto incerto.

— O mesmo de novo! — pediu.

O patrão olhou para o jovem, que fez um sinal de assentimento. Estavam juntos, então.

Théo esvaziou seu copo de um trago. O outro seguiu-lhe o exemplo, e quando o mais velho dos Bessons lançou algumas notas em cima do balcão, saíram juntos, não sem que o

rapaz olhasse para trás duas vezes a fim de ver o inspetor.

— Quem é?

— O senhor não o conhece? É o Sr. Théo, enteado de Valentine.

— E o moço?

— Um dos irmãos de Rose, a pobre moça que morreu por tomar o veneno destinado à patroa.

— O mais velho?

— Sim. Henri. Da frota do arenque, em Fécamp.

— Entraram juntos, os dois?

— Penso que sim. Havia muita gente no bar, àquela altura. De qualquer maneira, se não vieram juntos, vieram um atrás do outro, com pequeno intervalo.

— O senhor não sabe de que falavam?

— Não. Havia muita bulha, mais cedo, muita gente falando ao mesmo tempo. Depois, desci para abrir um barril.

— O senhor já os viu juntos antes?

— Não creio. Mas não estou certo. O que vi foi o Sr. Théo com a garota.

— Que garota?

— Rose.

— O senhor os viu na rua?

— Vi-os aqui no meu bar, pelo menos duas vezes.

— Ele lhe fazia a corte?

— Depende do que o senhor entenda por corte. Não se beijaram, e ele não botou a mão nela, se é isso que quer dizer. Mas conversavam alegremente, riam-se, e posso dizer que ele procurava deixá-la um pouco embriagada. Não era difícil com Rose, ela se punha a rir depois do primeiro copo, e ficava tonta depois do segundo.

— Quantas vezes isso aconteceu?

— Vejamos. Da última vez foi há uma semana. Bem, deve ter sido quarta-feira, porque foi no dia em que minha mulher foi ao Havre e ela costuma ir às quartas.

— E da primeira vez?

— Talvez uma semana ou duas antes disso.

— O Sr. Théo é um bom freguês?

— Ele não é apenas meu freguês. É freguês de quem quer que venda bebida. Não tem nada que fazer o dia inteiro, e anda a pé. Mas não pode ver um café ou bar aberto sem entrar por um momento. Não é barulhento. Jamais se torna desagradável. Algumas vezes, à noite, sua voz fica pastosa, e não pode dizer duas palavras juntas corretamente, mas é só isso.

E o patrão de repente deu a impressão de que lamentava ter falado demais.

— Espero que o senhor não suspeite dele, que tenha tentado envenenar a madrasta? Se há uma pessoa no mundo em quem confio é esse aí. De qualquer maneira, ninguém que bebe como ele bebe é jamais perigoso. Os piores tipos são os que bebem só vez por outra e não sabem o que estão fazendo.

— O senhor vê o irmão de Rose freqüentemente?

— Não, raramente. O pessoal de Yport não gosta de vir a Étretat. Ficam lá entre eles. É mais fácil ir a Fécamp, que É mais perto e é mais o lugar para eles. Uma gota de calvados, para ajudar a cerveja a descer? Esta rodada será por conta da casa.

— Não. Outra cerveja.

Não era boa a cerveja, e pesou no estômago de Maigret durante a noite. Ele acordou várias vezes sobressaltado, teve sonhos aflitivos, de que não conseguiu depois lembrar-se, mas que lhe deixaram uma sensação de desastre. Quando acordou, finalmente, de vez, a sirene do nevoeiro ainda lançava seus roucos sinais lá fora, no mar, e a maré devia andar alta, porque o hotel estremecia a cada investida das ondas.

 

Quase não havia névoa a toldar o sol, mas o mar, muito calmo, apenas empolado por um doce marulho, ainda exalava vapor, e havia arcos-íris na cerração molhada.

Quanto às casas da cidade, começavam a dourar-se com a alvorada, e o ar era fresco, de um frescor delicioso que era possível respirar através de cada poro. Os mostruários da mercearia cheiravam bem, havia garrafas de leite à espera, na soleira das portas, e nas padarias era hora de pão quente, de casca bem quebradiça.

Uma vez mais, Maigret conjurou uma lembrança de infância, uma visão do mundo como a gente gostaria que ele fosse, como a gente gostaria de imaginá-lo. Étretat parecia inocente e despreocupada, com suas casas por demais pequenas, por demais bonitas, por demais pintadas de fresco para servirem de cenário a uma tragédia; e os penhascos que emergiam da bruma lembravam os cartões-postais pendurados à porta da loja. Padeiro, açougueiro e quitandeiro poderiam ser todos personagens de uma história para crianças.

Seria Maigret a única pessoa com tais fantasias? Ou haveria outros, igualmente nostálgicos, que apenas recusavam admiti-lo? Ele gostaria que o mundo fosse como a gente o descobre, quando criança. No fundo da sua mente, dizia: Igual nos livros de gravuras.

E não só o cenário exterior, mas o povo, o pai e a mãe, e as bem comportadas crianças, os bons avós com seu cabelo branco...

Por muito tempo, depois que entrara para a força policial, Le Vésinet, por exemplo, lhe parecera o lugar mais belo do mundo.

Ficava apenas a um passo de Paris, mas antes de 1914 automóveis constituíam uma raridade. Os ricos ainda tinham casas de campo em Le Vésinet; casas de tijolo vermelho, espaçosas e confortáveis, com jardins bem tratados, repuxos, balanços, e grandes bolas cor de prata. Os empregados envergavam coletes amarelos, listrados, e as arrumadeiras toucas brancas e aventais de algodão e renda.

Parecia que só famílias felizes e virtuosas, para as quais tudo era tranqüilidade e alegria resididam lá, e ficou secretamente desapontado quando uma história suja estourou em uma daquelas vilas de alamedas sempre recém-varridas — o sórdido assassinato da sogra de alguém por-dinheiro.

Agora, é verdade, ele sabia. De certo modo, passava a vida olhando atrás dos bastidores, mas ainda tinha a nostalgia da criança pelo país das fadas.

A pequena estação era bonita, pintada em aquarela por um bom aprendiz, com uma nuvenzinha ainda cor-de-rosa, quase diretamente por cima da chaminé. Lá estava outra vez o trem de brinquedo, e lá estava o homem que picotava as passagens — quando menino, ele sonhara picotar passagens um dia —, e viu Arlette chegar, tão frágil e elegante em seu vestido parisiense quanto no dia anterior; levava na mão uma bolsa de viagem de couro de crocodilo.

Um pouco antes, quase fora ao enccontro dela pela estrada poeirenta onde as sebes e arbustos viçosos deviam ter a essa hora um perfume delicioso; mas temeu dar a impressão de estar ansioso por vê-la. Vindo ao longo daquele caminho, em passos curtos, equilibrando-se nos saltos altos, parecia justamente a ’moça do castelo’.

Por que a realidade é sempre tão diferente? Ou melhor, por que as pessoas põem na cabeça das crianças a ilusão de um mundo que não existe, ilusão que elas vão comparar com a realidade pela vida inteira?

Ela o viu imediatamente esperando por ela na plataforma, junto ao quiosque dos jornais, e sorriu-lhe ao entregar sua passagem ao homem, um sorriso um tanto fatigado. Parecia cansada. Tinha uma certa ansiedade no olhar.

— Esperava que estivesse aqui.

— Como se passaram as coisas?

— Foi muito penoso.

Ela procurou um compartimento vago. Os vagões não tinham corredores. Havia só um, na primeira classe, em que poderia estar só.

— Sua mãe?

— Está viva. Pelo menos estava, quando saí. Dispunham só de uns poucos minutos antes que o trem partisse, e uma vez posta a valise no assento, Arlette ficou de pé, junto da escada.

— Tiveram outra discussão?

— Não fomos para a cama antes de meia-noite. Tenho de contar-lhe uma coisa, Sr. Maigret. É só uma impressão, mas que me preocupa. Rose está morta, mas tenho o pressentimento de que não acabou, de que outra tragédia se prepara.

— Depreendeu isso de alguma coisa que sua mãe teria dito?

— Não. Não sei de quê.

— A senhora pensa que ela ainda esteja em perigo? Arlette não respondeu. Seus olhos muito brilhantes olhavam na direção do quiosque.

— O inspetor está lá, à sua espera — observou, como se o encanto tivesse sido quebrado.

E entrou para o compartimento no momento em que o chefe da estação punha o apito na boca, e a locomotiva começava a vomitar fumaça.

Castaing estava lá de fato. Chegara mais cedo do que tinha dito, no dia anterior, e não achando Maigret no hotel pensou em procurá-lo na estação. Era uma amolação; Ou não era?

O trem partia, devagar, parando com um grande estremeção alguns metros adiante, justamente quando Maigret saudava o inspetor com um aperto de mão.

— Alguma novidade?

— Nada de especial — respondeu Castaing. — Mas eu estava ansioso, sem razão. Fiquei apreensivo com as duas mulheres, mãe e filha, sozinhas naquela casa minúscula.

— Qual das duas é a assassina? Foi a vez de Castaing ficar confuso.

— Como posso saber? Sonhei que a mãe matou a filha. E adivinhe o senhor com que o fez. Com uma acha de lenha da lareira!

— Charles Besson deve estar aqui às nove horas. A sogra dele morreu. Lucas não deu por telefone mais nenhuma informação ao senhor?

— Não muita, mas chamará o escritório quando tiver algo; eu disse que entrassem em contacto conosco no seu hotel.

— Nada sobre Théo?

— Ele tem tido problemas com cheques sem fundo. Sempre foi capaz de honrá-los em tempo. Muitos dos seus amigos são ricos. Dessa espécie de gente que leva uma vida dissipada e gosta de ter sempre uma multidão em torno. De tempos em tempos, faz algum dinheiro extra, de regra agindo como intermediário em algum negócio.

— Nada de mulheres?

— Não parece muito interessado em mulheres. Tem, às vezes, uma garota, mas nunca por muito tempo.

— É tudo?

Havia um cheiro tão bom de café e de bebida saindo de um pequeno bar que nenhum dos dois resistiu. Entraram e apoiaram os cotovelos em frente de grandes xícaras, de onde saía um fragrante perfume de álcool.

— Nãp é tanto o meu sonho que me preocupa — continuou o inspetor sossegadamente —, mas uma conclusão a que cheguei pouco antes de adormecer. Cheguei até a falar a minha mulher sobre isso, porque penso melhor em voz alta, e ela concordou comigo. Faz cinco anos que o velho Ferdinand Besson morreu, não é?

— Aproximadamente.

— E desde então, tanto quanto saibamos, a situação permaneceu a mesma. Foi só no último domingo que alguém tentou envenenar Valentine. Observe que escolheram o único dia em que haveria bastante gente na casa para que a suspeita ficasse diluída.

— Certo. E daí?

— Não é Valentine que morre, mas a pobre Rose. Assim, se havia uma razão para quererem livrar-se de Valentine, essa razão permanece válida.

E enquanto não soubermos que razão era essa...

— O perigo continua presente, é isso o que quer dizer?

— Sim. Talvez o perigo seja até mais sério do que nunca, precisamente por estar o senhor aqui. Valentine não tem dinheiro. Então, não foi por esse motivo que tentaram assassiná-la. Poderia ser porque sabe alguma coisa que não deva tornar-se pública? Nesse caso...

Maigret acompanhava esse raciocínio sem grandes mostras de entusiasmo. Olhava o sol da manhã, lá fora, mais encantador ainda porque a umidade da noite fazia com que os raios parecessem mais brilhantes.

— Lucas nada lhe disse sobre Julien?

— Os Sudres vivem modestamente num bloco de apartamentos de aluguel barato. Um apartamento de cinco peças. Têm empregada e automóvel, e passam fins de semana no campo.

— Eu sabia disso.

— Hervé Peyrot, o comerciante de vinhos, é rico. Tem um grande estabelecimento no Quai de Bercy e gasta a maior parte do seu tempo com mulheres, de toda espécie. Tem três carros, dos quais um é um Bugatti.

”Praia familiar”. Lera isso em algum lugar, num prospecto. E era verdade. Mães com seus filhos, maridos que vinham reunir-se a elas nas noites de sábado. Velhas senhoras e senhores com suas garrafas de água mineral e sua caixinha de pílulas em cima da mesa, no hotel; ou ocupando sempre os mesmos lugares, no cassino. A confeitaria das irmãs Seuret, onde todo mundo se ia encher de bolos e sorvetes. Os velhos pescadores, também sempre os mesmos, fotografados junto de barcos puxados um pouco para dentro da praia pedregosa.,

Ferdinand Besson também fora um desses respeitáveis cavalheiros, e Valentine a mais adorável das velhas senhoras de Étretat. Arlette, essa manhã, podia ter servido de modelo a um postal, seu marido era um simpático dentista, de nenhuma importância, e Théo apenas um desses homens a quem se deve relevar o beberem um pouco em demasia, por ser tão tranqüilo e distinto.

Charles Besson chegaria agora. Tinha mulher e quatro filhos pequenos, dos quais um era ainda um bebê de poucos meses. Enquanto suas roupas de luto não ficavam prontas, teria uma banda de crepe costurada em volta da manga, por causa da sogra que falecera.

Era um deputado, já em termos de familiaridade com o ministro. Durante sua campanha eleitoral, provavelmente apertaria mãos calorosamente, beijando todas as crianças de colo, tomando um trago de vinho com os pescadores ou com os camponeses.

Era também o que se chama ’bem apessoado’ — aquilo a que, por exemplo, a mãe de Maigret chamaria um pedaço de homem —, alto, de ombros largos, um tanto gordo e barrigudo, é verdade, mas com uma certa inocência no olhar e um lábio polpudo debaixo do bigode.

— Não o fiz esperar, Inspetor-Chefe? Bom dia, Castaing. Prazer em revê-lo.

Seu carro fora pintado recentemente.

— Nenhuma notícia desagradável, espero?

— Nada.

— Minha madrasta?

— Acredito que esteja muito bem. Arlette acaba de partir.

— Ah! Então ela voltou? Foi gentil, da parte dela. Pensei que deveria vir e confortar sua mãe.

— O senhor nos desculpará um momento, Sr. Besson?

E Maigret tomou Castaing à parte, mandando-o a Yport e, de lá, a Fécamp.

— Desculpe. Tinha instruções a dar-lhe. Devo dizer que não sei muito bem onde possamos ir. Eles ainda não terão arrumado o meu quarto.

— Eu gostaria de beber alguma coisa. Depois disso, e se o ar fresco não o assusta, poderemos ir ao terraço do cassino. Espero que não tenha ficado aborrecido por não ter podido esperá-lo? Minha mulher está muito abalada. Sua irmã acaba de chegar de Marselha, é casada com um armador de lá. São as únicas filhas. Os Montets não tiveram filho varão, e estou só para atender a todas as complicações.

— O senhor espera complicações?

— Não tenho nada a dizer contra minha sogra. Era mulher de valor mas, especialmente para o fim, tinha algumas idéias peculiares. Alguém já lhe disse que o marido possuía uma firma de construções? Levantou metade das casas de Dieppe e numerosos edifícios públicos. O grosso da sua fortuna está vinculado a propriedades imóveis. Minha sogra olhava por tudo isso pessoalmente depois da morte dele. Mas sempre recusou-se a fazer obras de conservação. Assim, há um número incrível de ações de inquilinos nos tribunais, e também do conselho municipal e até das autoridades fiscais.

— Uma pergunta, Sr. Besson. Sua sogra e Valentine costumavam visitar-se?

Maigret tomava seu segundo café-cognac, e observava o companheiro, que, assim tão de perto, parecia ainda mais balofo e pouco sólido.

— Infelizmente, não. Nunca desejaram encontrar-se.

— Nenhuma das duas?

— Na verdade, foi a mãe de minha mulher que recusou avistar-se com Valentine. É uma história ridícula. Quando eu lhe apresentei Mimi, Valentine olhou para as mãos dela atentamente e disse alguma coisa como: ”Você obviamente não tem as mãos de seu pai.” ”Por quê?” ”Porque imagino que as mãos de um pedreiro devam ser maiores e mais largas do que isso.” Vê como é tolo? Meu sogro começou a vida como pedreiro, embora tenha sido pedreiro por muito pouco tempo. Mas ficou sempre um tanto desbocado. Penso que era assim de propósito, por ser muito rico. Tornara-se cidadão importante em Dieppe e no distrito circunvizinho, e gostava de chocar as pessoas com sua maneira de vestir e sua linguagem soez. Quando minha sogra ouviu aquilo, julgou de seu dever revidar. ”É certamente melhor do que ser filha de um pescador que se matou de tanto beber nos bistros!” Depois, falou do tempo em que Valentine trabalhara como empregada na confeitaria das irmãs Seuret.

— Acusando-a de não ter levado uma vida exemplar?

— Sim. Acentuou a diferença de idade entre ela e o marido. Em suma, o certo é que daí por diante sempre recusaram encontrar-se.

Dando de ombros, acrescentou:

— Todas as famílias têm histórias dessas, pois não? O que não as impediu de serem boas mulheres, todas duas, cada uma a seu jeito.

— O senhor é muito amigo de Valentine?

— Muito. Ela foi sempre extremamente boa para mim.

— E sua mulher?

— Mimi, naturalmente, não a aprecia muito.

— Discutem?

— Raras vezes se vêem, uma vez por ano, em média. Antes de irmos visitá-la sempre previno Mimi, pedindo-lhe que seja paciente, lembrando-lhe que Valentine está ficando velha. Ela promete, mas há sempre alguma troca de palavras ásperas.

— No último domingo também?

— Não sei. Fui passear com as crianças.

E o que pensavam as crianças do pai? Provavelmente, como todas as crianças, que ele era um homem forte e inteligente, capaz de guiá-las e protegê-las vida em fora. Não podiam ver que era um fracalhão, mal ajustado à realidade.

Mimi, provavelmente, dizia: ”Ele é tão bom!” Só porque ele gostava, como toda gente, de ver a vida rolar, com seus olhos grandes e cúpidos. Afinal de contas, ele gostaria tanto de ser forte, inteligente, o melhor homem do mundo!

E tinha idéias, fervilhava de idéias. Não as punha todas em prática; e se as que procurava realizar redundavam, via de regra, em fiasco, era porque as circunstâncias lhe haviam sido adversas.

Mas não conseguira tornar-se deputado? Agora haveriam de reconhecer o seu valor. Todo o país ouviria falar dele, faria dele um ministro, um grande estadista.

— Quando jovem, não esteve jamais apaixonado por Valentine? Ela era apenas uns dez anos mais velha do que o senhor.

Ele pareceu ofendido, indignado.

— Nunca em minha vida!

— E, depois, não esteve apaixonado por Arlette?

— Sempre vi em Arlette uma irmã.

Esse homem via ainda o mundo e a raça humana como que num filme. Extraía, agora, um charuto do bolso, surpreso de que Maigret não fumasse com ele, acendendo-o com um cuidado elaborado, e tragando a fumaça devagar, depois vendo-a subir no ar dourado.

— Vamos até o terraço? Há cadeiras confortáveis com vista para o mar.

Ele vivia o ano inteiro no litoral mas tinha sempre o mesmo deleite em contemplar o mar de uma cadeira confortável, bem vestido, bem barbeado, com toda a aparência de um homem próspero e importante.

— E seu irmão Théo?

— O senhor pergunta se ele esteve apaixonado por Valentine?

— Sim.

— Certamente que não. Nunca percebi nada desse tipo.

— Ou por Arlette?

— Menos ainda. Eu era um menino e Théo já se divertia com mulheres, sobretudo com essas a que chamam ’fáceis’.

— Arlette não esteve apaixonada por ele?

— Talvez tivesse tido um ”fraco” por ele, como minha mulher diz dos romancinhos de colegiais. O senhor sabe como são essas coisas. A prova é que ela não demorou em casar-se.

— O senhor não se surpreendeu com isso?

— Com quê?

— Com o casamento dela com Julien Sudre.

— Não. Ou, talvez, um pouco. Porque ele não tinha dinheiro, e sempre imaginamos que Arlette não seria capaz de viver sem luxo. Houve uma época em que ela era uma completa snob. Conseguiu superar isso. Penso que com Julien foi amor de verdade. Ele era um encanto de pessoa. Meu pai quis dar a ela um grande dote, porque, ao tempo, era rico, mas Julien não aceitou.

— Ela também não?

— Também. Em conseqüência, ela teve de acostumqfr-se, da noite para o dia, a viver modestamente. Fomos todos forçados a fazer o mesmo, só que muito mais tarde.

— Sua mulher e Arlette se dão bem?

— Penso que sim. Embora sejam muito diferentes. Mimi tem filhos e uma casa para cuidar. Raras vezes sai.

— E não gostaria de sair mais? Não desejou, nunca, viver em Paris?

— Ela detesta Paris.

— E não tem saudades de Dieppe?

— Um pouco, talvez. Infelizmente, agora que sou deputado, não podemos viver lá. Meus constituintes não entenderiam.

As palavras de Charles Besson estavam em perfeita harmonia com o cenário, o mar de um azul de cartão-postal, os penhascos começando a luzir, os veranistas chegando para ocupar seus lugares, uns depois dos outros, como se fossem posar para uma fotografia.

Tudo aquilo existiria, realmente, ou seria apenas faz-de-conta? Poderia ter razão, esse gordo sujeito, assim tão contente de si?

Estaria Rose morta ou não?

— O senhor não ficou surpreso de encontrar seu irmão aqui, domingo?

— De começo, sim. Pensei que ele estava em Deauville, ou melhor, como é começo de setembro, e a estação de caça começou, em algum castelo na Sologne. Théo, o senhor sabe, não deixou de ser um homem de sociedade. Quando tinha dinheiro, costumava viver em grande estilo e tratava os amigos com generosidade. Eles se lembram disso, agora, e recebemno, por sua vez.

Logo as coisas tomavam um aspecto diferente! Umas poucas palavras, e já não falavam do mesmo Théo.

— Ele tem meios?

— Financeiros? Não sei. Se os tem, serão muito exíguos. Mas em compensação não tem grandes despesas. Théo é solteirão.

Havia uma nota de inveja na voz desse homem corpulento, cuja liberdade quatro meninos tolhiam.

— É ainda elegante, mas isso porque Marge bem de suas roupas. Freqüentemente recebe convites da alta sociedade. É homem inteligente, e se o quisesse...

Charles também, se o quisesse...

— Ele concordou imediatamente em acompanhá-lo à casa de Valentine?

— Não imediatamente.

— Disse-lhe por que estava aqui?

 

— Espero, Inspetor, que não esteja a suspeitar de Théo?

— Não suspeito de ninguém, Sr. Besson. Estamos apenas conversando. Procuro obter uma visão da família tão clara quanto possível.

— Muito bem. Se quer minha opinião, Théo, embora não o admita, é um sentimental. Estava com saudades de Étretat, onde costumávamos passar férias quando crianças. Sabe que já vínhamos aqui quando minha mãe era viva?

— Entendo.

— Fiz-lhe ver que não havia motivo para continuar brigado com Valentine, que ela já não lhe tinha rancor. E acabou indo comigo.

— Como se portou?

— Como um gentleman. Um pouco cheio de dedos, no início. Quando viu os nossos presentes pediu desculpas por ter ido de mãos vazias.

— E com relação a Arlette?

— O quê? Nunca houve nada entre ele e Arlette.

— Então, a família estava toda lá para o jantar?

— Toda exceto Sudre, que não pôde vir.

— Esquecia-me disso. E o senhor não notou coisa alguma, qualquer pequeno detalhe que pudesse ser interpretado como sinal de tragédia?

— Absolutamente nada. E sou naturalmente observador. Que imbecil! Mas que sorte ser um imbecil, às vezes!

— Devo observar que Mimi e eu estivemos muito ocupados com as crianças. Em casa, ficam relativamente quietas. Se temos a infelicidade de sair com elas, dão nos nervos da gente. O senhor viu o quanto é pequena a casa de Valentine. A sala de jantar estava tão cheia que mal nos podíamos mover. O bebê, que de regra dorme a maior parte do tempo, tirou sua forra gritando quase uma hora, e de maneira ensurdecedora. Tivemos de pô-lo na cama, no quarto de minha madrasta, e não sabíamos mais o que fazer para divertir as crianças mais velhas.

— O senhor conhecia bem Rose?

— Via-a sempre que ia a La Bicoque. Parecia uma boa moça, um tanto reservada, como a maior parte das pessoas por estas bandas. Mas quando a gente as conhece melhor...

— Então o senhor deve tê-la visto no máximo meia dúzia de vezes?

— Mais.

— Conversou com ela alguma vez?

— Como a gente conversa com empregados, sobre o tempo, a comida. Rose era uma excelente cozinheira. Não sei como Valentine vai se arranjar agora, ela que gosta tanto de comer. Olhe aqui, Inspetor, todo o tempo em que tenho estado a escutá-lo e a responder às suas perguntas, tenho receado que esteja na pista errada.

Maigret não mostrou reação, continuou a chupar tranqüilamente o seu cachimbo, olhando para um minúsculo navio que se movia quase indiscernível na curva do horizonte.

— Aliás, foi por ter antecipado isso, quer dizer, a maneira pela qual a polícia orientaria suas investigações, que fui ter com o Ministro e pedi-lhe que me fizesse o favor de confiar-lhe o caso.

— Muito obrigado.

— Não tem nada a agradecer. Eu é que lhe agradeço por ter vindo. Embora seja homem muito ocupado, leio ocasionalmente, como todo mundo, os meus livros policiais. Não cabe perguntar-lhe se leva livros policiais a sério. Neles, todo mundo tem alguma coisa a esconder, todo mundo tem a consciência mais ou menos pesada, e quando acaba os personagens que eram aparentemente os mais normais levavam, na verdade, vidas duplas. Agora que o senhor conheceu um pouco a família, eu gostaria de pensar que não imagina qualquer de nós com motivos para fazer mal à minha madrasta e muito menos para planejar o seu assassinato a sangue-frio. Encontraram arsênico no estômago de Rose, e isso parece um dado positivo. Se entendi corretamente, o veneno estava no copo de remédio destinado a Valentine. Não discuto as conclusões a que chegaram os peritos, que devem conhecer o seu ofício, mas sabe-se que não são infalíveis, e que discordam, muita vez, entre si. O senhor conheceu Arlette, avistou-se com Théo. O senhor me vê, aqui. Quanto a Mimi, não fora a infelicidade de que foi vítima há pouco, e eu a teria trazido comigo, para vê-lo; o senhor verificaria que ela é incapaz de fazer mal a alguém. Estávamos todos felizes, domingo.

E mantenho, a risco de parecer risível, que só um acidente poderia ter causado a catástrofe. O senhor acredita em fantasma?

Pareceu encantado com esse último tiro, que fez acompanhar de um sorriso astuto, como teria feito ao apartear um adversário na Câmara dos Deputados.

— Não acredito.

— Nem eu. Não obstante, todo ano, em algum ponto da França, alguém descobre uma casa mal-assombrada, e por vários dias, algumas vezes semanas, os habitantes ficam em estado de grande agitação. Já vi, num lugar do meu distrito eleitoral, uma verdadeira mobilização de polícia e detetives, além de especialistas, que não encontravam explicação para a maneira como determinados móveis mudavam de lugar, noite após noite. Todavia, e invariavelmente, um belo dia tudo é esclarecido e a explicação é de regra tão simples que a história tpda acaba numa explosão geral de gargalhadas.

— Rose está morta, não está?

— Eu sei. Não chego ao ponto de afirmar que ela própria se tenha envenenado.

— O Dr. Jolly, que sempre tratou dela, diz que se encontrava em perfeita saúde, tanto mental como física. Nada na vida dela ou no seu comportamento fazia supor que quisesse matar-se. Não esqueça que o veneno já estava no copo quando Valentine quis tomar o remédio, tanto que ela o achou por demais amargo e desistiu de bebê-lo.

— Muito bem. Não estou sugerindo nada. Digo apenas isto: nenhuma das pessoas presentes tinha qualquer coisa a lucrar dando cabo da pobre velha.

— O senhor sabe que havia um homem na casa durante a noite?

Ele corou um pouco, fez um movimento brusco, como que para espantar uma mosca impertinente.

— Ouvi falar nisso. Acho difícil de acreditar. Mas, afinal de contas, Arlette tem trinta e oito anos. Ela é sobremaneira atraente, e sujeita a mais tentações do que outras. Talvez a coisa seja menos séria do que se pensa. De qualquer maneira, espero que Julien jamais venha a saber disso.

— Não é provável que tome conhecimento do fato.

— Olhe aqui, Sr. Maigret, suspeitar das pessoas que se Iachavam no local é o que qualquer um teria feito. Mas o senhor, pelo que sei, o senhor costuma ir ao fundo do caso; o senhor olhará aqui para além do óbvio, e estou seguro de quê, Romo no caso dos fantasmas, encontrará uma solução das mais simples.

— Provando que Rose não morreu, por exemplo?

Charles Besson riu, embora incerto se cumpria tomar a observação como jocosa,

— E para começo de conversa, como foi obtido o arsênico? Sob que forma?

— Não se esqueça de que seu pai era farmacêutico, que Théo, de acordo com o que disseram, estudou química, que o senhor mesmo, por algum tempo, trabalhou no laboratório, que todos os membros da família, na verdade, têm algum conhecimento de química.

— Nunca pensei nisso, mas não altera a minha argumentação.

— Obviamente.

— Nem prova que alguém tenha vindo de fora.

— Um vagabundo, por exemplo?

— Por que não?

— Alguém que esperou até que a casa estivesse cheia de gente para entrar por uma janela do primeiro andar e pôr veneno num copo? Porque esse é também um aspecto importante da questão. O veneno não foi posto no vidro de soporífero, não encontraram traço dele ali, só no copo.

— O senhor mesmo pode ver como é confuso!

— Rose está morta.

— Então, o que pensar? Dê-me sua opinião, de homem para homem. Naturalmente, prometo não fazer nada a respeito, nem repetir qualquer coisa que possa prejudicar suas investigações. Quem?

— Não sei.

— Por quê?

— Não faço idéia.

— Como?

— Descobriremos isso quando eu tiver respondido as duas primeiras perguntas.

— O senhor tem suspeitas?

Ele estava aflito, agora, sentado na sua cadeira, a mordiscar a ponta do charuto apagado, o que provavelmente lhe dava um gosto amargo na boca. Talvez, como acontecera com o próprio Maigret, ele se apegasse às suas ilusões, à imagem da vida que inventara para seu uso, e que começava a ser destruída. Era quase patético vê-lo, ansioso, preocupado, espreitando o menor sinal do Inspetor-Chefe.

— Houve um assassinato — disse ’este último.

— Isso parece indiscutível.

— Não há assassinato sem motivo, sobretudo assassinato por veneno, que é incompatível com um impulso de raiva ou de paixão. No curso da minha carreira, jamais encontrei um caso de envenenamento sem motivo.

— Mas com mil diabos, quem poderia ter um motivo? Ele estava, afinal, perdendo o controle.

— Não descobri ainda.

— Tudo o que minha madrasta possui é uma anuidade, afora alguns móveis e todo o seu brique-a-braque.

— Eu sei.

— Eu não preciso de dinheiro, principalmente no momento. Arlette também não precisa. Théo não tem grandes problemas por este motivo.

— Já me disseram tudo isso.

— E então?

— E então, nada. Estou no começo das minhas investigações, Sr. Besson. O senhor me pediu que viesse, e aqui estou. Valentine também me pediu que me encarregasse do caso.

— Ela lhe escreveu?

— Nem escreveu nem telefonou. Ela foi a Paris ver-me.

— Eu sabia que ela fora a Paris, mas pensei que fosse ver a filha.

— Ela veio à Chefatura de Polícia e estava no meu escritório quando recebi a mensagem do Ministro.

— É curioso.

— Por quê?

— Porque eu não imaginava que ela o conhecesse de nome.

— Ela me disse que acompanhou muitos dos meus casos nos jornais, e que até recortara alguns artigos. O que há?

— Nada.

— O senhor prefere calar?

— Não é nada de definido, posso assegurar-lhe, apenas jamais vi minha madrasta ler um jornal. Ela não assina nenhum, sempre recusou ter rádio, e sequer tem telefone. Nada do que acontece no mundo lhe interessa.

— O senhor vê como é sempre possível descobrir alguma coisa nova?

— E aonde isso nos leva?

— Sabê-lo-emos mais tarde. Talvez a lugar nenhum. O senhor não está com sede?

— Théo ainda se encontra em Étretat?

— Vi-o ontem à noite.

— Nesse caso, podemos encontrá-lo no bar. O senhor falou com ele?

— Não tive oportunidade.

— Eu o apresentarei.

Era evidente que estava preocupado com alguma coisa. E dessa vez apenas mordeu a ponta do seu charuto e acendeu-o sem maiores cuidados.

Alguns meninos e meninas brincavam nas ondas com uma enorme bola azul.

 

Desson tinha razão. Além de Charlie, que estava, como sempre, a polir seus copos, havia só uma pessoa no bar: Théo, que, à falta de companhia, jogava pôquer sozinho.

Charles marchou para ele, feliz e orgulhoso de apresentar o seu irmão mais velho, que os viu aproximar-se com um olhar sem expressão e levantou-se do banco com relutância:

— Você conhece o Inspetor-Chefe Maigret?

Théo poderia ter dito ”Só de nome” ou ”Como todo mundo”, alguma coisa que deixasse perceber, que Maigret não era uma pessoa qualquer; mas limitou-se a fazer uma quase imperceptível curvatura, da maneira mais formal possível. Não estendeu a mão. Apenas murmurou:

— Muito prazer em conhecê-lo.

Visto de perto, parecia mais velho. Era possível notar algumas rugas finas, como se a pele tivesse estalado. Era evidente que passava muito tempo no cabeleireiro toda manhã, submetendo-se a um tratamento elaborado, provavelmente a massagens faciais, uma vez que tinha a pele de uma velha vaidosa.

— Você provavelmente sabe que, por intervenção minha e de Valentine, que foi a Paris especialmente para isso, o Inspetor-Chefe concordou em investigar o caso?

Charles estava um pouco desapontado por ver que o irmão os recebia com a gélida polidez de um soberano em turnê.

— Nós o incomodamos?

— Não, absolutamente.

— Acabamos de passar uma hora ao sol, lá na frente, e temos uma sede terrível. Charlie!

Charlie deu uma piscadela afetuosa para Maigret.

— O que está tomando, Théo?

— Scotch.

— Detesto uísque. O que toma, Inspetor? Um picon-granadine para mim.

Por que teria Maigret decidido tomar um também? Ele não provava aquilo há muito tempo, e por alguma razão misteriosa a bebida lhe restituiu a atmosfera de férias.

— O senhor viu Valentine depois de domingo?

— Não.

As mãos de Théo eram grandes e bem cuidadas, mas pálidas, e tinham cabelos vermelhos, e um grande anel de sinete. Ele não usava um só artigo que pudesse ser comprado numa loja comum. Via-se que adotara um estilo, de uma vez para sempre. Alguém o impressionara, provavelmente algum aristocrata inglês, e ele estudara seus gestos, sua postura, sua maneira de vestir, até a expressão do seu rosto. De espaço a espaço, displicentemente, levava as mãos à boca, como se fosse bocejar, mas não bocejava.

— O senhor se demorará em Étretat?

— Não sei.

Charles, entrementes, esforçava-se para que o irmão aparecesse a uma luz mais favorável, e explicava ao InspetorChefe:

— Ele é um sujeito estranho. Nunca sabe o que fará de um dia para o outro. Sem qualquer razão, assim, gratuitamente, ao sair do Fouquet’s ou do Maxim’s, ele vai em casa, faz a mala e toma um avião para Cannes ou Chamonix, Londres ou Bruxelas. Não é verdade, Théo?

Então Maigret atacou diretamente:

— Posso fazer-lhe uma pergunta, Sr. Besson? Quando foi seu último encontro com Rose?

O pobre Charles olhou para os dois, atônito, abriu a boca como que para protestar, e pareceu à espera de um violento desmentido por parte de seu irmão mais velho.

Mas Théo não contestou Maigret. Com ar aborrecido, contemplou o fundo do copo um momento antes de voltar os olhos para o Inspetor-Chefe.

— O senhor deseja uma data precisa?

— Tanto quanto possível.

— Charles lhe dirá que eu jamais me lembro de datas e que quase sempre me engano quanto ao dia da semana.

— Mais do que uma semana atrás?

— Há cerca de uma semana.

— Num domingo?

— Não. Se fosse o caso de depor sob juramento, pensaria com mais cuidado, mas assim, como simples conjetura, diria que foi na última quarta ou quinta-feira.

— O senhor a encontrou muitas vezes antes disso?

— Não sei dizer. Duas ou três vezes.

— Conheceu-a em casa de sua madrasta?

— Já lhe disseram, sem dúvida, que eu não visito minha madrasta. Quando conheci a garota não sabia onde trabalhava.

— E onde foi isso?

— Na feira de Vaucottes.

— Então você anda atrás de empregadinhas? — brincou Charles, para mostrar que aquilo não era coisa que o irmão estivesse habituado a fazer.

— Eu assistia à corrida de sacos. Ela estava ao meu lado, e não lembro quem falou primeiro, se ela ou eu. De qualquer maneira, ela disse qualquer coisa sobre as feiras de aldeia serem sempre iguais, e estúpidas, e que preferiria ir para casa; e como eu também me preparava para sair, ofereci-lhe polidamente um lugar no meu carro.

— Foi tudo?

— O mesmo, Charlie!

Charlie prontamente encheu de novo os três copos, e Maigret não se deu ao trabalho de protestar.

— Ela me disse que lia muito, falou-me do que estava lendo, livros que não entendia bem e que a deixavam perturbada. Devo tomar isto como um interrogatório, Inspetor-Chefe? Estou disposto a submeter-me documente, acredite, mas este lugar...

— Olhe aqui, Théo! — protestou Charles. — Tenho de lembrar-lhe que fui eu quem pediu ao Sr. Maigret que viesse?

— O senhor é a primeira, pessoa que encontro — acrescentou o Inspetor-Chefe — que parece saber alguma coisa sobre essa moça.

De qualquer maneira, é o primeiro que fala comigo a respeito dela.

— O que mais deseja saber?

— O que pensava dela.

— Uma pequena camponesa, que lera muito e costumava fazer perguntas absurdas.

— Sobre o quê?

— Sobre tudo, a bondade, egoísmo, o relacionamento humano, a inteligência — preciso continuar?

— Sobre o amor?

— Ela me disse que não acreditava em amor, e que nunca concordaria em entregar-se a um homem.

— Mesmo depois de casada?

— Ela considerava o casamento coisa muito suja, para usar suas próprias expressões.

— Então não houve nada entre vocês?

— Absolutamente nada.

— Nenhuma familiaridade?

— Ela costumava segurar minha mão, quando caminhávamos juntos; ou, se fazíamos uma volta de carro, apoiava-se ao meu ombro um pouquinho.

— Nunca lhe falou sobre o ódio?

— Não. Seus temas favoritos eram a paixão e o orgulho,’ que costumava discutir com um forte sotaque normando. Charlie!

— Na verdade — interrompeu o irmão —, você se divertia fazendo um estudo de personalidade?

Mas Théo não se importou sequer em responder.

— É tudo, Inspetor-Chefe?

— O senhor já conhecia Henri antes da morte de Rose? Dessa vez Charlie ficou boquiaberto. Como poderia Maigret saber tudo isso, quando ele mesmo não lhe dissera nada? A atitude de Théo começava a parecer menos natural, e, particularmente, sua prolongada permanência em Étretat.

— Só o conhecia de nome, uma vez que ela tagarelava sobre a família. Rose não gostava deles, naturalmente, dizendo que não a compreendiam.

— O senhor se encontrou com Henri depois da morte dela?

— Ele me deteve na rua, perguntando se eu era o homem que costumava sair com sua irmã. Parecia que desejava uma briga. Respondi-lhe calmamente, e ele se aquietou.

— Viu-o de novo?

— Ontem à noite, na verdade.

— Por quê?

— Aconteceu que nos encontramos.

— Ele tem queixas da família?

— De Valentine, principalmente.

— Por quê?

— Isso é com ele. Imagino que poderá interrogá-lo detidamente, como me interroga a mim. Charlie!

Maigret descobrira, de chofre, quem Théo procurava imitar com tanto cuidado: era o Duque de Windsor!

— Só mais duas ou três perguntas, uma vez que tem a paciência de ouvir-me: o senhor nunca foi ver Rose em La Bicoque?

— Nunca.

— E nunca esperou por ela nas imediações?

— Ela sempre veio cá.

— Ela se embriagava em sua companhia?

— Depois de um copo ou dois costumava ficar- muito excitada.

— Não deu sinais de pretender matar-se?

— Tinha um medo terrível da morte, e sempre me implorava que dirigisse devagar quando estava no carro.

— Era amiga de sua madrasta? Era-lhe devotada?

— Não penso que duas mulheres vivendo juntas da manhã à noite possam ser amigas uma da outra.

— Acredita que se odiassem?

— Não usei essa expressão.

— A propósito — interrompeu Charles Besson —, isso me lembra que devo ir visitar Valentine. Não seria muito correto vir a Étretat e não chegar até lá para vê-la. O senhor virá comigo, Inspetor-Chefe?

— Não, obrigado.

— Vai ficar com meu irmão?

— Um pouco mais.

— Não precisará mais de mim hoje? Amanhã tenho de estar em Dieppe para o funeral. Aliás, Théo, minha sogra morreu.

— Parabéns.

Charles saiu, vermelho. Era difícil dizer se pelos aperitivos que bebera ou pela atitude do irmão.

— Idiota! — murmurou Théo. — Então ele o fez vir especialmente de Paris?

Deu de ombros, estendeu a mão para os dados do pôquer, tornando óbvio que não tinha mais nada a dizer. Maigret tirou a carteira do bolso e voltou-se para Charlie, más Théo apenas sussurrou:

— Ponha na minha conta.

Deixando o cassino, Maigret viu o carro de Castaing e, em seguida, o inspetor, que procurava por ele nas cercanias do hotel.

— O senhor tem um momento? Podemos tomar alguma coisa?

— Não, preferiria abster-me. Acabo de engolir um aperitivo atrás do outro, e gostaria de almoçar.

Sentia-se pesado. E inclinava-se a ver toda a história a uma luz levemente humorística. Mesmo Castaing, com seu ar tão sério e preocupado, semelhava um personagem de comédia.

— Penso que seria uma boa idéia ir até Yport. Faz cinco anos que vivo por estas partes, e pensava conhecer os normandos; mas vejo que não estou preparado para lidar com aquela família.

— O que dizem eles?

— Nada. Nem sim nem não, nem uma coisa nem outra. Olham para mim furtivamente, não me convidam a sentar-me, parecem à espera de que eu me vá. Ocasionalmente se entreolham, depressa, como se dissessem: ”Devemos falar com ele?” ”Você decide!” ”Não, você!”. Aí a mãe vem com alguma coisa, com a intenção, talvez, de nada deixar escapar, mas que assim mesmo é significativa.

— Por exemplo?

”— Aquele bando, eles se mantêm unidos, numa frente, ninguém dirá nada.”

— O que mais?

”— Devem ter tido uma boa razão para manter minha filha longe daqui.”

— Ela não foi mais vê-los?

— Não muito, se percebi direito. O senhor compreende, com aquela gente, há que entender o que se puder. O senhor fica a pensar que as palavras não têm ali o mesmo significado que em outros lugares. Eles dizem uma coisa e depois desdizem. O que se depreende de tudo é que entendem que estamos aqui não para descobrir a verdade mas para evitar que ’aquele bando’ tenha problemas. Não pensam que a morte de Rose tenha sido um acidente. Ao que dizem, era ela a pretendida vítima, e não Valentine. Quando o pai chegou, ofereceu-me um copo de sidra, ao fim, uma vez que eu estava debaixo do seu teto, mas não sem uma longa hesitação. O filho estava presente, porque só vai pescar à noite, mas recusou beber conosco.

— O filho mais velho, Henri?

— Sim. Não disse uma palavra. Penso que era ele que os fazia calarem-se. Talvez se eu encontrasse o pai num bistrô em Fécamp ele me dissesse mais, depois de tomar alguns. O que esteve fazendo o senhor?

— Conversei com os dois Bessons, primeiro Charles, depois Théo.

Sentaram-se a uma mesa. Havia uma garrafa de vinho branco em frente deles, e o inspetor encheu os dois copos. Maigret não prestou atenção a quanto bebia, e quando deixou a sala de jantar ficou tentado a fazer uma sesta, com as janelas escancaradas para o sol e o mar.

Um sentimento de propriedade o impediu. Era também uma herança da sua infância, uma espécie de sentimento do dever, que se inclinava a exagerar, a impressão de que nunca fazia o bastante para ganhar seu pão; e tanto era assim que, mesmo em férias, o que não acontecia todo ano — o presente era mais um exemplo —, jamais se livrava de todo de um sentimento de culpa.

— O que devo fazer? — perguntou Castaing, surpreso de ver o inspetor entorpecido e indeciso.

— O que quiser. Fareje por aí. Não sei por onde. Talvez pudesse ir ver o médico outra vez.

— O Dr. Jolly?

— Sim. E os nativos! Qualquer pessoa. Veja se tem sorte. A velha Srta Seuret é, provavelmente, uma tagarela e deve ficar aborrecida sozinha o dia todo.

— Posso deixá-lo em algum lugar?

— Não, obrigado.

Ele sabia que há uma fase como essa para ultrapassar em todos os casos e que, como que por coincidência — ou seria alguma espécie de instinto que o levava a isso? —, todas as vezes, ou quase, ele bebera um pouco demais.

Foi então que, como disse consigo mesmo, tudo começou a fazer sentido.

De início, nada sabia, exceto uns poucos fatos precisos, tais como vêm escritos nos relatórios. Depois, achava-se em meio a gente que nunca vira antes, gente que ainda na véspera não conhecia, e tinha de olhar para eles como se olham fotografias num álbum.

Cumpria-lhe conhecê-los todos o mais depressa possível, fazer-lhes perguntas, aceitar ou não as suas respostas, evitar ter opinião própria cedo demais.

Era a fase em que pessoas e fatos são nítidos, mas um pouco distantes, ainda anônimos, impessoais.

Então, num dado momento, e aparentemente sem qualquer razão, tudo começa a fazer sentido. As pessoas envolvidas no caso tornam-se ao mesmo tempo mais vagas e mais humanas; sobretudo, ficam mais complicadas e cumpre ter cuidado.

Em suma, começava a vê-los do avesso, tateando, ainda um tanto incerto, mas com a sensação de que bastaria só mais um pequeno esforço para que tudo clareasse e a verdade se revelasse por si mesma.

De mãos nos bolsos e cachimbo entre os dentes, caminhava lentamente ao longo da estrada poeirenta, que já começava a ser familiar, e um pormenor o assaltou, coisa pouca, mas talvez de alguma importância. Estava acostumado com Paris, onde há meios de transporte a cada esquina.

A que distância ficaria La Bicoque do centro de Êtretat? Talvez uma milha. Valentine não tinha telefone; Já não possuía carro. E era de todo improvável que andasse de bicicleta.

Então, cada vez que a velha senhora queria estar com outras pessoas isso representava uma verdadeira viagem, e ela deveria passar dias seguidos sem ver vivalma. Sua vizinha mais próxima era a Srta Seuret, que tinha agora mais de noventa anos e, provavelmente, jamais deixava sua poltrona.

Valentine faria suas próprias compras? Ou teria Rose cuidado de tudo?

Havia grandes amoras pretas nas sebes, mas ele não se deteve para apanhá-las, nem parou para cortar uma vara. Desgraçadamente, estava velho demais para isso. Mas era divertido pensar a respeito. Pensava também em Charles, e no seu irmão Théo, prometendo a si mesmo ir tomar também um copo de sidra em casa dos Trochus. Oferecer-lhe-iam de beber?

Empurrou o portão pintado de verde e respirou o cheiro complexo de todas as flores e de todos os arbustos do jardim, ouvindo um som rascante e repetido; e a uma volta do caminho deu com um velho que cavava em torno de uns pés de roseira. Era, obviamente, Honoré, ojardineiro, que trabalhava para Valentine três dias na semana, e que a Srta Seuret também empregava.

O ancião endireitou-se para olhar o intruso e levou a mão à fronte, mas era impossível dizer se o cumprimentava ou se apenas protegia os olhos do sol.

Era um verdadeiro jardineiro, como os dos livros, já quase corcunda de tanto curvar-se sobre a terra, com pequenos olhos de fuinha e a expressão desconfiada de um animal que aponta a cabeça fora da toca.

Não disse nada, viu Maigret passar, e só retomou seu monótono trabalho de raspar quando ouviu abrir-se a porta.

Não foi a Sra Leroy quem se deu ao trabalho de vir atender, mas a própria Valentine, que o saudou como a um velho amigo.

— Estou recebendo muitas visitas hoje — anunciou, animada. — Charles veio ver-me. Pareceu desapontado com a maneira como seu irmão se comportou para com o senhor.

— Contou-lhe alguma coisa da nossa conversa?

— Que conversa? Deixe-me ver. Falou principalmente da velha Sra Montet, que morreu, de modo que toda a situação dele se alterará.

Ele é rico, agora, mais rico do que jamais foi, porque a velha gata tinha mais de sessenta casas, afora suas ações e, mais que provavelmente, um monte de ouro. O que gostaria de tomar?

— Um copo d’agua, com tanto gelo dentro quanto possível.

— À condição que tome uma gota de qualquer outra coisa depois, comigo. Só para ser-me agradável. Jamais bebo sozinha. Isso seria terrível, não? Pode ver uma velha senhora a servir-se cálices de calvados? Mas quando vem alguém, devo admitir que aprecio a oportunidade.

Que importância tinha, afinal? Sentia-se melhor, ali. Fazia calor, na sala minúscula, com o sol a bater-lhe no ombro. Valentine, que lhe oferecera essa cadeira, preparava-lhe um copo, vivaz e alegre, com um brilho quase impudente no olhar.

— Charles não disse mais nada?

— Sobre quê?

— Sobre o irmão?

— Disse apenas não entender por que Théo se colocava assim a uma luz desfavorável, acrescentando que talvez o fizesse de propósito. Estava muito zangado com isso. Ele admira Théo enormemente e é extremamente leal à família. Aposto que não foi ele quem disse qualquer coisa menos lisonjeira a meu respeito.

— É verdade.

— Quem, então?

Estava na casa há três minutos, e já era ele o interrogado, quase sem se dar conta.

— Minha filha, não foi? Mas disse-o com um sorriso.

— Não tema contar-me. Ela não procurou escondê-lo de mim. Ela me disse que lhe dissera exatamente o que pensava.

— Não creio que sua filha seja pessoa muito feliz.

— E o senhor imagina que desejaria sê-lo? Sorriu para o cálice, depois para Maigret.

— Não sei se o senhor está suficientemente familiarizado com mulheres.

Rose, por exemplo, teria ficado extremamente infeliz se não tivesse infindáveis problemas com os quais preocupar-se, problemas filosóficos, entende?, sobre os quais se punha de súbito a matutar, obstinadamente, respondendo a custo quando eu lhe perguntava alguma coisa, lavando a louça com grande barulho, como se alguém estivesse impedindo que chegasse a alguma solução de que dependesse a sorte do mundo.

— É verdade que ela já não ia ver os pais?

— Raras vezes foi, porque brigavam sempre.

— Por quê?

— Não pode imaginar? Ela chegava com seus problemas, dava-lhes conselhos, que tirava dos últimos livros lidos; e eles, naturalmente, pensavam que era uma idiota.

— Não tinha amigas?

— Não, e pelo mesmo motivo. E, de novo, pelo mesmo motivo, não saía com os rapazes do distrito. Eram todos rudes demais e por demais terra-a-terra para seu gosto.

— Então, a não ser com a senhora, jamais falava com alguém?

— Fazia as compras, mas não conversaria muito. Ah, desculpe. Esquecia-me do doutor. Rose achara um livro de medicina na minha estante; mergulhava nele ocasionalmente e depois me fazia as mais estranhas perguntas. ”A senhora sabe que eu não tenho muito tempo de vida?” ”Você está doente, Rose?” Acabara, simplesmente, de descobrir que tinha câncer ou, de preferência, alguma doença rara. Aquilo lhe ficava na cabeça por alguns dias, depois ela me pedia uma hora de folga para ir ver o médico. Talvez fosse também uma oportunidade para falar a respeito dos seus problemas, porque Jolly costumava ouvi-la com a maior paciência, sem zombar dela ou contradizê-la.

— Ela passava as noites aqui, com a senhora?

— Nunca a vi sentada na sala de visitas e, de qualquer maneira, eu não teria gostado disso. O senhor me acha antiquada? Logo que acabava de lavar a louça e arrumar a cozinha, subia para seu quarto e, sem se despir, deitava-se na cama com um livro e punha-se a fumar. Certamente gostava do sabor do tabaco. Embora não soubesse fumar direito. Tinha sempre de fechar os olhos, mas aquilo concordava com sua idéia de poesia. Estarei sendo cruel? Não tanto quanto o senhor pensa.

Quando eu subia, ela saía do quarto, de cara inchada, olhos brilhantes, e esperava até que eu estivesse na cama para dar-me o meu remédio. ”Não se esqueça de arejar o seu quarto antes de dormir” — era a minha observação habitual. Porque a fumaça do cigarro passava por debaixo da porta. Ela respondia: ”Não, senhora. Boa noite, senhora.” Então fazia uma enorme barulheira para despir-se. Parecia que havia um bando de gente naquele quarto.

A Sra Leroy estava também a fazer barulho na cozinha, e era como se o fizesse de propósito, para demonstrar a sua independência. Ela abriu a porta e apareceu na sala, de mau humor, lançando um olhar azedo na direção de Maigret, mas sem tomar realmente conhecimento dele.

— Devo pôr a sopa no fogo?

— Não esqueça o tutano.

E voltando-se para o Inspetor-Chefe:

— Assim, afora Julien, meu genro, o senhor já conhece toda a família. Não é família particularmente brilhante, mas também não é gente que não preste, pois não?

Ele procurava lembrar as frases que Arlette usara sobre a mãe, mas sem sucesso.

— Como o meu querido Charles, vou acabar acreditando que a coisa não passou de um inexplicável acidente. O senhor pode ver que ainda estou viva, e se, alguma vez, alguém quis livrar-se de mim — Deus sabe por quê! —, parece desencorajado agora. O que pensa?

Ele não pensava. Olhava-a, com os olhos um tanto marejados, o sol a dançar entre eles dois. Um incerto sorriso brincava nos seus lábios — a Sra Maigret diria que estava sendo fátuo —, enquanto pensava, não de todo a sério, mas como numa espécie de jogo, se seria possível desconcertar uma mulher como aquela.

Não se apressou, deixou que ela falasse, levando periodicamente o cálice aos lábios; e a fragrância de fruta do licor começava a permear a atmosfera da casa; isso, e um aroma d< boa comida, e um vago cheiro de cera e de limpeza. Ela provavelmente não confiava o cuidado da casa às empregadas. Podia muito bem imaginá-la de manhã, com uma touca na cabeça, a espanar a multidão dos seus frágeis ornamentos com as próprias mãos.

— O senhor me julga excêntrica? Chegará à mesma conclusão que muitos aqui, de que sou maluca? Verá por si mesmo, em breve! Quando a gente envelhece, preocupa-se menos com o que os outros possam dizer, e faz o que quer e gosta.

— A senhora não viu Théo de novo?

— Não. Por quê?

— Sabe em que hotel ele se hospeda?

— Lembro-me de tê-lo ouvido dizer domingo que tomara um quarto no Hotel des Anglais.

— Não. É no Hotel de la Plage.

— Por que pensou que ele viesse ver-me de novo?

— Não sei. Ele conhecia Rose bem.

— Théo?

— Saiu com ela várias vezes.

— Não poderá ter sido tantas assim, ela raramente saía de casa.

— A senhora a impedia?

— Não permitia, naturalmente, que ficasse a bater rua de noite.

— E, no entanto, ela o fazia. Quantos dias de folga lhe dava?

— Dois domingos por mês. Ela saía depois de lavar a louça do almoço, e quando ia ver os pais só voltava segundafeira de manhã, pelo primeiro ônibus.

— A senhora ficava sozinha em casa?

— Sempre lhe disse que não sou medrosa. Está insinuando que havia alguma coisa entre ela e Théo?

— Pelo que ele diz, ela apenas conversava com ele, contava-lhe seus problemas.

E acrescentou, com alguma perfídia:

— ... segurando-lhe a mão ou descansando a cabeça no ombro dele.

Ela riu, e tão destemperadamente que perdeu o fôlego.

— Não, diga-me que não é verdade!

— É a pura verdade. É mesmo a razão pela qual Charles não estava tão orgulhoso do seu irmão esta manhã.

— Théo contou-lhe isso diante dele?

— Teve de admiti-lo. Sabia que eu tinha conhecimento do fato.

— E como o sabia o senhor?

— Antes de mais nada, por havê-lo encontrado ontem com o irmão de Rose.

— Henri?

— Sim. Conversavam animadamente num café na cidade.

— Onde Théo o encontrou?

— Não sei. Segundo ele, Henri sabia da história e veio pedir-lhe uma explicação.

— É impagável! Se o ouvisse da sua boca... Sabe, Sr. Maigret, há que conhecer Théo para apreciar a graça da história. Ele é o maior snob do mundo. Talvez seja essa a principal razão que tem de viver. Não se importa de aborrecerse mortalmente, desde que o faça em companhia escolhida. Viajaria centenas de quilômetros para ser visto com uma pessoa importante.

— Sei disso.

— Imaginá-lo andando de mãos dadas com Rose! Ouça. Há um detalhe que o senhor desconhece, algo que provavelmente ninguém pensou em contar-lhe, sobre a minha empregada. É uma pena que os pais dela tenham levado suas coisas. Eu teria desejado mostrar-lhe as roupas dela, principalmente os chapéus, imagine as cores mais extravagantes, dessas que brigam umas com as outras. Rose tinha um busto avantajado. Pois bem, quando saía, porque nunca lhe permiti vestir-se dessa maneira aqui em casa, usava roupas tão justas que mal podia respirar. Nesses dias, procurava evitar-me, ao sair e ao voltar, porque punha pintura tão exagerada e tão mal feita, que parecia uma dessas mulheres da rua, em Paris. Ela e Théo! Meu Deus!

E riu-se de novo, nervosamente.

— Diga-me, aonde iam, os dois?

— Sei apenas que se conheceram na feira de Vaucottes, e que algumas vezes bebiam juntos num pequeno café de Étretat.

— Há muito tempo?

Ele parecia meio adormecido, agora. Um vago sorriso nos lábios, observava-a de olhos semicerrados.

— Da última vez, na quarta-feira passada.

— Théo lhe contou isso?

— Não de muito boa vontade, mas admitiu-o, pelo menos.

— É o fim! Espero que não tenha vindo vê-la aqui como o amante de minha filha, entrando pela janela?

— Ele diz que não.

— Théo... — repetiu ela, ainda incrédula. Depois, ergueu-se para encher os cálices.

— Posso muito bem imaginar Henri, o duro da família, vindo às falas com ele. Mas...

Deixou de parecer irônica, seu rosto ficou sério, depois divertido:

— Isso teria sido a última gota d’agua... Théo está em Étretat há dois meses quase, não é mesmo? Suponhamos... Não, seria ir longe demais...

— A senhora pensa que ele poderia tê-la engravidado?

— Não. Desculpe. A coisa me passou pela cabeça, mas... O senhor já havia considerado a possibilidade?

— De passagem.

— De qualquer maneira, isso não explicaria nada.’

O jardineiro, mostrando-se à janela francesa, parecia esperar, imóvel, certo de que eventualmente haveriam de vê-lo.

— O senhor me desculpará um momento? Tenho de dizer-lhe o que fazer.

Curioso, havia um tique-taque de relógio em algum lugar da casa, que ele não percebera antes.

Finalmente localizou o ruído regular como proveniente do andar de cima: era o ronronar do gato, dormindo provavelmente na cama de sua dona, e que se podia ouvir através do teto fino dessa casa de boneca.

O sol, que as vidraças cortavam em pequenos quadrados, dançava sobre os objetos da sala, fazendo reflexos e desenhando nitidamente a forma de uma folha de limoeiro no verniz da mesa. Na cozinha, a Sra Leroy fazia um tal barulho que podia estar mudando toda a mobília de lugar. O som rascante recomeçou no jardim.

Maigret não pensou que deixara de ouvir esse ruído. E, no entanto, quando abriu os olhos, viu o rosto de Valentine a meio metro do seu. Ela deu-se pressa em sorrir-lhe, para que não ficasse embaraçado.

E ele gaguejou, com a boca cheia de algodão:

— Devo ter cochilado um pouco.

 

Quando se despediram, Maigret e a velha senhora estavam tão bem-humorados que ninguém se admiraria se os visse dar tapas nas costas um do outro.

Valentine teria sorrido consigo mesma quando fechou a porta? Ou, como muitas vezes acontece depois de um frouxo incontrolável de riso, teria tido uma súbita reação ao ver-se sozinha outra vez com a Sra Leroy?

De qualquer maneira, foi com ar preocupado que Maigret alcançou a cidade, em passadas um pouco mais pesadas que de hábito. Ia a caminho da casa do Dr. Jolly quando encontrou Castaing, que apareceu de repente, saindo de uma parede. Mas era a parede de um bistrô, ponto estratégico onde o inspetor ficara à espera, longamente, jogando cartas.

— Eu vi o médico, chefe. Rose não tinha nada. Vendia saúde. Assim mesmo, ia procurá-lo algumas vezes, e para fazê-la feliz ele lhe receitava poções inócuas...

— Que eram..,

— Hormônios. Era ela que os pedia. Só falava de suas glândulas.

E Castaing, caminhando ao lado do Inspetor-Chefe, disse com alguma surpresa:

— O senhor também vai lá?

— Tenho só uma pergunta a fazer-lhe. Pode esperar-me do lado de fora, se quiser.

Era a primeira vez que falava tão informalmente com o inspetor, que não pertencia a seu departamento, e isso era um sinal. Aproximavam-se de uma grande casa quadrada, coberta de hera, e cercada por um jardim que era como um pequeno parque.

— É aqui — disse Castaing. — Mas ele está no edifício à esquerda, onde recebe os clientes.

Esse edifício parecia mais um telheiro. A Sra Jolly, provavelmente, era dessa espécie de mulheres que não gosta muito de doentes e do cheiro de remédios, e providenciara para que tudo isso ficasse fora da casa,

— Cuide que ele o veja, quando abrir a porta. Ou ficará lá dentro por várias horas.

As paredes eram caiadas de branco. Em volta da saleta, sentados em bancos, mulheres, crianças e uns poucos velhos esperavam. Havia uma boa dúzia de pacientes.

Uma das crianças tinha uma larga atadura em volta da cabeça, e uma mulher, embrulhada num xale, tentava, sem sucesso, aquietar o bebê que tinha nos braços. Todos os olhos se voltaram para a porta que havia ao fundo e por detrás da qual se podia perceber um indistinto murmúrio de vozes. Afortunadamente para Maigret, essa porta se abriu quase imediatamente: uma fazendeira gorda saiu, o médico olhou em torno e percebeu o Inspetor-Chefe.

— Entre, por favor. Desculpem-me por um minuto. Contava os clientes, separando, por assim dizer, o joio do trigo. A duas ou três pessoas disse:

— Não terei tempo de vê-los hoje. Voltem depois de amanhã, à mesma hora.

E fechou de novo a porta.

— Vamos até a casa. O senhor tomará alguma coisa, espero?

— Tenho só uma pergunta a fazer-lhe.

— Sim, mas estou contente em vê-lo, e não vou deixar que escape tão depressa.

Abriu uma porta lateral, e conduziu o Inspetor-Chefe através do jardim em direção à grande casa quadrada.

— É um azar que minha mulher esteja no Havre hoje. Ela teria tanto prazer em conhecê-lo!

Era uma casa rica, confortável, um tanto escura devido às grandes árvores do jardim.

— O inspetor esteve aqui há pouco, e eu lhe contei que Rose, longe de estar doente, tinha saúde para morrer centenária. Jamais encontrei família tão robusta como a dessa moça. O senhor tinha de ver a constituição dela.

— Não estava grávida?

— Por que me pergunta isso? Seria essa a última pergunta que eu mesmo me faria. Veio ver-me, não faz muito, e não mencionou tal coisa. Há cerca de três meses eu lhe fiz um exame minucioso, e poderia jurar que até então jamais tivera relações sexuais. O que o senhor toma?

— Nada. Venho da casa de Valentine, onde bebi mais do que realmente desejava.

— Como vai ela? Outra mulher forte, que não precisa de médicos. Uma pessoa encantadora, não é? Conheci-a antes que se casasse pela segunda vez, antes mesmo que se casasse pela primeira. Fui eu que fiz o parto da sua filha.

— Julga-a perfeitamente normal?

— O senhor quer dizer mentalmente? Por parecer, às vezes, excêntrica? Cuidado com tais pessoas, Inspetor-Chefe. Têm melhor cabeça que muitos. Ela sabe muito bem o que faz, pode ficar certo disso. E sempre soube. Gosta da sua vidinha, da sua pequena casa, do seu pouco de conforto. Quem poderia condená-la por isso? Com essa eu não me preocuparia, nem um pouco!

— E com Rose?

Maigret pensava nos clientes, à espera, na mulher do bebê, na criança com a cabeça enfaixada. Mas o médico, que não parecia ter pressa, acendera um charuto e afundara confortavelmente numa poltrona, como se esperasse conversa prolongada.

— Há na França centenas de moças como Rose. O senhor conhece a história dela. Passou três anos na escola da aldeia, não mais que isso. De repente, achou-se num ambiente diverso. Ouviu demais. Leu demais. Sabe o que perguntou numa de suas visitas? O que eu pensava das teorias de Freud. Estava ansiosa por saber se o seu sistema glandular não era deficiente, e Deus sabe o que mais. Fingia levá-la a sério, deixava que falasse, e receitava remédios que não tinham mais efeito do que água.

— Era uma pessoa melancólica?

— Nada disso. O oposto. Era muito alegre, quando se permitia ficar à vontade. Então se punha a pensar, como dizia, e levava a si mesma muito a sério. Deve ter achado um livro de Dostoievski em casa de Valentine e leu-o de ponta a ponta.

— Nenhum dos remédios que receitou continha arsênico?

— Nenhum, pode estar certo disso.

— Obrigado.

— Tem de ir tão depressa? Esperava ter o prazer da sua companhia por algum tempo.

— Voltarei, provavelmente.

— Se me prometer isso...

Suspirava, aborrecido de ter de voltar tão rápido ao trabalho.

Castaing esperava do lado de fora.

— O que vai fazer agora?

— Vou fazer uma visita a Yport.

— Devo levá-lo até lá, no Simca?

— Não. Pensei que talvez pudesse telefonar a sua mulher e dizer-lhe que voltará tarde, hoje, ou que talvez nem volte esta noite.

— Ela está acostumada a essas coisas. Mas como irá a Yport? Não há ônibus a esta hora. O senhor não pode ir a pé. É longe.

— Tomarei um táxi.

— Se um dos dois estiver livre. Há só dois táxis em Étretat. Olhe, a agência deles é na esquina daquela alameda. O que deseja que eu faça, entrementes?

— Quero que me descubra Théo Besson.

— Não será difícil. Tenho só que fazer o circuito dos bares. E depois?

— Nada. Apenas vigiá-lo.

— Discretamente?

— Não importa se ele o vir. O principal é não perdê-lo de vista. Se ele sair da cidade de automóvel, o senhor tem o seu. Estacione perto do carro dele, que deve estar no hotel. Se isso acontecer, deixe-me um bilhete, ou mande um recado ao meu hotel. Não penso que irá longe.

— Se o senhor vai ver os Trochus, espero que se divirta.

O sol descambava quando Maigret deixou a cidade de táxi, conduzido por um homem que insistia em voltar-se todo o tempo para conversar com ele. O Inspetor-Chefe ainda parecia meio adormecido, tirando baforadas do seu cachimbo, e olhando o campo, que escurecia, ficava de um verde triste, com as luzes a brilhar nas casas de fazenda, com vacas deitadas nas porteiras.

Yport não passava de uma aldeia de pescadores, mas ali, como em todos os lugares ao longo da costa, algumas das casas alugavam cômodos para veranistas. O chofer de táxi teve de indagar o caminho, pois não conhecia os Trochus. Por fim, parou o carro diante de uma casa baixa, de um andar, cercada de redes postas a secar.

— Devo esperar pelo senhor?

— Por obséquio.

Um rosto podia ser entrevisto, de perfil, pela janela. E quando Maigret bateu à porta, pintada de marrom, ouviu um barulho de talheres. A família jantava.

Foi Henri quem lhe abriu a porta, de boca cheia. Encarou o Inspetor-Chefe em silêncio, sem convidá-lo a entrar. Atrás dele ardia um belo fogo que iluminava a sala, e por cima do topo estava dependurado um caldeirão. Ao lado, havia uma estufa, uma bela estufa, quase nova, mas era evidente que se tratava de um luxo, usado apenas em ocasiões especiais.

— Posso falar com seu pai?

Este também podia vê-lo de onde estava, mas não dissera uma palavra ainda. Havia cinco ou seis Trochus sentados em volta da mesa comprida, sem toalha, com pratos fumegantes à frente deles. No meio, uma grande travessa de bacalhau com batatas e molho. A mãe dava as costas à porta. Um menino louro virava a cabeça para poder ver o visitante.

— Faça-o entrar, Henri — disse o pai, por fim.

E limpando a boca com a manga, levantou-se da mesa, mas tão devagar que o ato se tornou quase solene. Parecia dizer aos outros, enquanto se erguia:

— Não tenham medo. Estou aqui e nada acontecerá. Henri não se abancou de novo, mas ficou de pé junto de uma cabeceira de cama de ferro, debaixo de uma estampa colorida do Angelus de Millet.

— Suponho que o senhor seja o patrão do que esteve aqui antes?

— Sou o Inspetor-Chefe Maigret.

— E o que deseja de nós, desta vez?

Ele tinha uma boa cara de marinheiro, da espécie que os pintores de domingo adoram pintar; e mesmo dentro de sua própria casa não tirava o gorro. Parecia tão espadaúdo quanto alto, no seu suéter azul, que exagerava a capacidade do torso.

— Estou fazendo o possível para descobrir quem matou...

— ... minha filha! — concluiu Trochu, ansioso por acentuar o fato de que era sua filha e não a de qualquer outra pessoa que estava morta.

— Exatamente. Lamento que isso me obrigue a incomodá-los. Não esperava que estivessem jantando.

— A que horas se janta na sua terra? Muito mais tarde, imagino, como fazem as pessoas que não têm de levantar às quatro e meia da manhã.

— Queiram continuar com sua refeição.

— Eu já acabei.

Os outros continuavam a comer em silêncio, muito tesos, sem tirar os olhos de Maigret nem perder uma palavra do que o pai dizia. Henri acendera um cigarro, talvez em sinal de desafio. Ninguém oferecera, ainda, uma cadeira ao InspetorChefe, e ele parecia enorme, naquela peça de teto baixo, com salsichões pendurados dos barrotes.

Não havia apenas uma, porém duas camas, uma delas de criança, no aposento. E uma porta aberta revelava um quarto onde havia outras três, mas nenhum lavatório, o que sugeria que toda a família fazia suas abluções fora, na cisterna.

— O senhor recolheu os pertences de sua filha?

— Era um direito que tinha. Ou não era?

— Não estou a reprová-lo. Mas talvez facilitasse o meu trabalho se eu pudesse saber em que consistiam, exatamente.

Trochu virou-se para a mulher, e Maigret pôde afinal ver o seu rosto. Parecia jovem para ter família tão grande e filhos já crescidos, como Rose e Henri. Era magra, vestia-se de preto, com um broche na gola da blusa.

Olhavam um para o outro, marido e mulher, com embaraço. E as crianças pareciam irrequietas, nos seus bancos.

— É que tudo foi repartido.

— E as coisas não estão mais aqui?

— Jeanne, que trabalha no Havre, levou os vestidos e a roupa de baixo que lhe poderia servir. Não pôde ficar com os sapatos, são pequenos demais para ela.

— Eu fiquei com eles! — gritou uma menina de cerca de catorze anos, de cabelo ruivo e comprido.

— Fique quieta!

— Não são as roupas que me interessam principalmente, mas a miuçalha. Havia alguma carta?

Dessa vez os pais voltaram-se para Henri, e Henri não pareceu muito inclinado a responder. Maigret teve de repetir a pergunta.

— Não — disse ele.

— Nenhum caderninho ou notas?

— Achei apenas o almanaque.

— Que almanaque?

Relutantemente, ele foi buscá-lo, no quarto ao lado. Maigret lembrou-se de que, quando era jovem e vivia no campo, também vira tais almanaques, mal impressos em papel ordinário, com ilustrações infantis. Ficava surpreso de ver que ainda existiam.

Cada dia do mês era seguido por uma predição.

Um dizia, por exemplo:

”17 de agosto. Melancolia.”

”18 de agosto. Não empreenda nada. Não viaje.”

”19 de agosto. A manhã será feliz, mas tenha cuidado à noite.”

Não riu enquanto folheava, gravemente, o livrinho, que fora muito manuseado. Mas nada pôde achar de interesse no mês de setembro, nem no fim do mês precedente.

— Não encontrou outros papéis?

Aí foi a vez de a mãe levantar-se para dizer o seu pedaço, e obviamente toda a família estava com ela, aplaudindo a resposta que antecipavam.

— O senhor pensa deveras que é aqui que tem de fazer tais perguntas? Gostaria que alguém me dissesse de uma vez por todas se não foi minha filha que morreu.

Se foi, parece-me que não é a nós que cumpre aborrecer, mas àqueles outros, esses que o senhor deixa em paz com tanto cuidado.

Houve uma sensação de alívio no ar. A menina de catorze anos por pouco não bateu palmas.

— Só porque somos pobres — continuou ela — e porque tem gente que se dá ares...

— Posso assegurar-lhe, minha senhora, que não faço distinção entre ricos e pobres nas minhas investigações.

— E esses que pretendem ser ricos quando não são? E essas que se pretendem grandes damas e já estiveram, um dia, abaixo de nós?

Maigret não mostrou qualquer reação, esperando que ela continuasse. E ela o fez, depois de olhar em torno, como que para ganhar coragem.

— O senhor sabe quem ela é, essa mulher? Pois vou dizer-lhe. Quando minha pobre mãe se casou, foi com um sujeito decente, que amara por muito tempo outra pessoa, a mãe de Valentine, para dizer a verdade, e viviam quase como vizinhos nesse tempo. Pois bem, os pais do rapaz não admitiam que ele se casasse com ela. Isso serve para mostrar-lhe que espécie de moça era...

Se Maigret entendera a história corretamente, a mãe de Valentine é que não era moça com quem se casasse.

— Ela casou, o senhor me dirá. Mas só conseguiu um bêbado, um joão-ninguém, e aquela senhora é o produto desses dois!

O pai Trochu tirara do bolso um pequeno pito e enchia-o com o fumo de uma bolsa feita de bexiga de porco.

— Eu não quis nunca, que minha filha trabalhasse para uma mulher daquelas, pior, provavelmente, que a mãe. Se me tivessem escutado...

Um olhar cheio de recriminações para as costas do marido, o qual, um dia, dera permissão a Rose para ir trabalhar com Valentine.

— Ela é má, além de tudo. E não sorria. Eu sei do que estou falando. Ela provavelmente o envolveu com seus ares fingidos. Mas eu repito, aquela mulher é má, tem ciúme de todo mundo, e sempre detestou minha Rose.

— Por que, então, sua filha ficou com ela?

— Ainda me admira. Rose não gostava dela mais do que nós.

— Ela não lhe disse?

— Ela não me dizia nada. Nunca falava dos seus patrões. Para o fim, quase já não falava com a gente. Não éramos bastante bons para ela, entende? Tudo obra daquela mulher. Ela lhe ensinou a desprezar a própria família, e eu nunca lhe perdoarei isso. Agora, Rose está morta, e ela vem e se exibe no enterro, quando, ao contrário, devia estar é atrás das grades!

Dessa vez o marido a encarou como se quisesse acalmá-la.

— De qualquer maneira, aqui não é o lugar para vir procurar coisas! — concluiu, com energia.

— A senhora me permitirá uma palavra?

— Deixe que o homem fale — disse Henri, por sua vez.

— Nós, policiais, não somos mágicos. Como poderemos descobrir quem cometeu um crime se não sabemos por que o crime foi cometido?

Ele lhes falava gentilmente, tão gentilmente quanto podia.

— Sua filha foi envenenada. Por quem? Provavelmente ficarei sabendo quando descobrir por que ela foi envenenada.

— Eu lhe digo que aquela mulher a odiava!

— Isso provavelmente não basta. Não se esqueça que um assassínio é coisa muito séria, que a própria cabeça do assassino está em jogo. Ou, pelo menos, a sua liberdade.

— Gente esperta não arrisca muito.

— Penso que seu filho me compreenderá quando eu acrescentar que havia outras pessoas muito chegadas a Rose.

Henri pareceu constrangido.

— E haverá outros ainda, que não conhecemos. Foi por isso que vim, na esperança de dar uma olhadela nas coisas de Rose. Talvez houvesse cartas, endereços, coisas que lhe tivessem dado de presente.

A essas últimas palavras ficaram todos calados, olhando uns para os outros. Pareciam interrogar-se. Por fim, a mãe aventurou, ainda com um traço de desconfiança:

— Você vai mostrar-lhe o anel?

Dirigia-se ao marido, que decidiu, a contragosto, tirar uma grande carteira usada do bolso das calças. Tinha numerosos compartimentos, um dos quais era fechado com um colchete.

Trochu extraiu dele alguma coisa envolta em papel de seda, que passou a Maigret. Era um anel, de modelo antigo, com uma pedra verde engastada no bisel.

— Sua filha tinha outras jóias?

— Tinha uma caixinha cheia, coisas que ela mesma comprara nas feiras de Fécamp. Já foram todas distribuídas. A única peça que ficou...

A menina, sem uma palavra, correu para o quarto e voltou com um bracelete de prata, enfeitado de pedras azuis de porcelana.

— Isso foi o que eu ganhei! — disse, com orgulho. Tudo junto não valeria muitos francos, uns poucos anéis, medalhas, lembranças de primeira comunhão.

— Esse anel estava com o resto?

— Não.

O pescador virou-se para a mulher que, de novo, hesitou um pouco.

— Encontrei-o no bico de um sapato, numa pequena bola de papel de seda. Eram os melhores sapatos dela, que não terá usado mais do que duas vezes.

A luz da lareira não era própria a um exame acurado, mas tratava-se, evidentemente, de uma jóia de qualidade

diferente das outras de que lhe tinham falado.

— Asseguro-lhe — disse Trochu, por fim, já agora rubo} rizado — que essa coisa aí me preocupou. Ontem tive de ir a

Fécamp e, lá, fui ver o joalheiro que me vendeu nossas

alianças. Escrevi a palavra que ele me disse num pedaço de papel. É uma esmeralda. Acrescentou que valia tanto quanto um barco de pesca, e que se eu a tinha achado a melhor coisa a fazer seria levá-la à polícia.

Maigret voltou-se para Henri:

— Foi essa a razão? — perguntou.

Henri concordou de cabeça. A mãe perguntou, desconfiada:

— Que estão cozinhando, vocês dois? Já se tinham encontrado?

— Penso que será melhor botá-la a par. Vi seu filho com Théo Besson. Isso me surpreendeu, mas agora entendo. Na verdade, Théo saiu duas ou três vezes com Rose.

— É exato? — perguntou ela a Henri.

— Sim.

— E você sabia disso? E não disse palavra?

— Fui perguntar-lhe se dera um anel a minha irmã, e o que exatamente havia entre eles.

— O que ele disse?

— Pediu para ver o anel. Eu não podia mostrá-lo, porque o pai tinha-o no bolso. Descrevi-o apenas. Eu não sabia, àquela altura, que era de esmeralda, mas isso foi o que ele disse logo.

— E tinha sido ele?

— Não. Jurou jamais ter-lhe feito presentes. Explicou que considerava Rose como amiga, como alguém com quem gostava de conversar, por ser ela inteligente.

— E você acredita nisso? Você acredita no que aquela família lhe diz?

Henri olhou para o Inspetor-Chefe e continuou:

— Ele também está procurando descobrir a verdade. Acha que a polícia não a descobrirá. Diz até — seu lábio tremia um pouco — que foi Valentine quem o fez vir, como se o senhor estivesse a soldo dela.

— Eu não estou a soldo de ninguém.

— Repito apenas o que ouvi dele.

— Henri, você está certo de que não foi ele quem deu o anel a sua irmã? — perguntou o pai, perplexo.

— Ele me pareceu sincero. Disse que não era rico, que mesmo que vendesse o seu carro nunca seria capaz de comprar um anel desses, uma vez que a pedra seja verdadeira.

— De onde ele acha que saiu? — perguntou Maigret.

— Ele não sabe.

— Rose costumava ir a Paris?

— Nunca esteve lá na vida.

— E nunca estive eu — interrompeu a mãe. — Nem desejo ir. Já basta ter de ir ao Havre, às vezes.

— E ela, ia ao Havre?

— Algumas vezes, para ver a irmã.

— E a Dieppe também?

— Penso que não. Por que iria a Dieppe?

— A verdade é — interrompeu, de novo, a Sra Trochu — que, para o fim, não sabíamos nada da vida dela. Quando nos vinha ver, apenas entrava e saía, só para criticar tudo o que a gente fazia ou dizia. Se abria a boca, não era para falar como a gente lhe tinha ensinado, mas para usar palavras difíceis que ninguém entendia.

— Era apegada a Valentine?

— Se gostava dela? É isso que o senhor quer dizer? Pois bem: tinha-lhe ódio. Via-se isso em algumas coisas que dizia.

— Que coisas?

— Não posso lembrar-me, mas chamaram-me a atenção, na hora.

— Por que ficou com ela?

— Foi o que sempre lhe perguntei. Ela nunca respondeu. Trochu agora se resolvia a fazer o que o Inspetor Castaing previra que só faria no último momento.

— Não lhe demos nada a beber. Talvez aceite um copo de sidra? Como ainda não jantou, não lhe darei bebida forte.

Foi tirar a sidra do barril, no telheiro, e voltou com um jarro azulado cheio até a boca. Apanhou de uma gaveta um pano de prato para limpar dois copos.

— O senhor me confiaria esse anel por um dia ou dois?

— Não é nosso. Não o considero como coisa que tenha pertencido a minha filha. Apenas, se o levar terá de dar-me um recibo.

Maigret redigiu um, no canto da mesa, que desimpediram para ele. Tomou a sua sidra e, embora um pouco acre, elogioua tanto quanto pôde, pois que o próprio Trochu a preparava, cada outono.

— Creia-me — disse a mãe, enquanto o acompanhava até a porta — era a Rose mesma que queriam matar. E se fizeram que o senhor acreditasse no contrário, terão boas razões para isso.

— Espero que saibamos logo.

— O senhor pensa que será tão depressa assim?

— Talvez mais depressa do que a senhora imagina. Tinha posto o embrulho de papel de seda com o anel no bolso do colete. Olhou para o catre onde provavelmente Rose dormira quando pequena, para o quarto que partilhara mais tarde com suas irmãs, para a lareira em frente da qual ela se agachara para fazer a sopa.

Se já não o consideravam um inimigo, era ainda um estranho, e mantinham uma atitude de reserva enquanto se despediam dele. Só Henri acompanhou o Inspetor-Chefe até o carro.

— O senhor se importaria de levar-me a Étretat?

— Ficarei encantado.

— Tenho só de apanhar meu boné e minha sacola. Ouviu-o explicando-se com a família:

— O Inspetor vai me dar uma carona. Irei diretamente de Étretat para Fécamp.

Voltou com o saco de lona, que devia conter as coisas necessárias para ir à pesca. O motor pegou. Olhando por cima do ombro, Maigret viu de novo as silhuetas projetadas contra a porta aberta.

— O senhor pensa que ele me mentiu? — perguntou Henri, acendendo um cigarro.

O automóvel estava permeado do forte cheiro do mar que as roupas dele despendiam.

— Não sei.

— O senhor vai mostrar-lhe o anel?

— Talvez.

— Quando fui procurá-lo da primeira vez, tinha a intenção de partir-lhe a cara.

— Posso entender isso. O que não sei é como Théo conseguiu demovê-lo.

Henri ficou pensativo.

— Eu também não sei. Ele não é da espécie que eu tinha imaginado, e estou certo que não tentou dormir com minha irmã.

— Outros tentaram?

— O jovem Baboeuf, quando ela tinha dezessete anos, acertei as contas com ele por causa disso.

— Rose nunca falou em casar-se?

— Com quem?

Ele também parecia pensar não haver ninguém no distrito digno de sua irmã.

— Você quer contar-me algo?

— Não.

— Por que veio comigo?

— Não sei. Tive vontade de ver Théo outra vez.

— Para ter uma nova conversa sobre o anel?

— Sobre isso e tudo o mais. Eu não tive a sua educação, mas posso ver que há coisas nessa história que não estão muito certas.

— Espera achá-lo no pequeno bar onde os vi juntos?

— Lá ou em outro local. Mas preferiria descer do carro antes.

Desceu, de fato, logo que chegaram à cidade, e afastou-se, com a sacola ao ombro, depois de agradecer perfunctoriamente.

Maigret passou primeiro no hotel, mas não havia recados para ele. Depois, empurrou a porta do bar de Charlie, no cassino.

— Terá visto meu inspetor?

— Esteve aqui, pouco antes do jantar.

Charlie conferiu no relógio, que marcava nove horas, e acrescentou:

— Faz já um bocado de tempo.

— E Théo Besson?

— Entraram e saíram, um depois do outro. Ele piscou o olho, para dizer que entendera.

— Bebe alguma coisa?

— Não, obrigado.

Parecia que Henri perdera sua viagem a Étretat, uma vez que Maigret foi achar Castaing de guarda à porta do Hotel de la Plage.

— Ele está aí dentro?

— Subiu para o quarto há quinze minutos.

E o inspetor apontou para uma luz numa janela do segundo andar.

 

Por três vezes nesta noite Castaing olhou Maigret à socapa, imaginando o que lhe estaria assando pela cabeça, se ele realmente era o grande homem que todos os jovens inspetores procuravam imitar ou se, pelo menos naquele dia, não estaria numa busca inútil ou deixando-se levar à deriva pelos acontecimentos.

— Vamos ao bar, preciso sentar-me um pouco — tinha dito o Inspetor-Chefe quando se reunira a ele em frente ao hotel onde montava guarda.

Os cidadãos virtuosos que protestam pelo número de bares autorizados a funcionar não suspeitam que bênção eles representam para os policiais. Como que por acaso, havia um apenas a poucos passos do Hotel de la Plage. Esticando o pescoço, poderiam ver de lá as janelas de Théo.

Castaing pensara que o Inspetor-Chefe queria falar-lhe, dar-lhe instruções.

— Eu gostaria de um café-cognac. Está frio esta noite.

— O senhor jantou?

— De fato, não, não jantei.

— Nem vai jantar?

— Não agora.

Mas não estava bêbado. Bebera um bocado, desde cedo, num lugar e noutro, e era por isso talvez que se sentia tão pesado.

— Talvez ele vá deitar-se — observou, olhando a janela.

— Devo continuar por aqui, assim mesmo?

— Sim, meu rapaz. Mas uma vez que seus olhos não deixem a porta do hotel, que é mais importante que as janelas, pode ficar sentado aqui mesmo. Quanto a mim, creio que vou parecer em La Bicoque para dar boa noite a Valentine. Mas continuou sentado um bom quarto de hora ainda, sem dizer palavra, o olhar fixo à frente. Por fim, levantou-se Bom um suspiro, e se foi, de cachimbo apertado entre os Bentes, mãos nos bolsos. E Castaing ouviu seus passos que Besapareciam na rua deserta.

Faltava pouco para as dez. quando Maigret chegou ao portão de La Bicoque, na estrada que uma lua nova iluminava, com um grande halo. Não encontrara vivalma. Nenhum cão ladrara, nenhum gato saltara na sebe à sua passagem. A única coisa que se ouvia era o canto ritmado dos sapos em algum alagadiço próximo.

Pondo-se nas pontas dos pés, tentou ver se havia ainda luz na casa da velha senhora. Pensou perceber uma no andar térreo e dirigiu-se para o portão, que estava aberto.

Era forte a umidade no jardim, e havia um cheiro de terra vegetal. Não lhe era possível caminhar ao longo do caminho sem roçar contra os ramos, e o farfalhar da folhagem podia ser ouvido lá dentro.

Atingiu a parte calçada, junto da casa, viu o salão aceso e, no interior, Valentine, que se levantava da cadeira, apurando o ouvido, ficando imóvel um momento, antes de ir até a parede; no momento em que ele menos esperava, apagando a luz. Ele espirrou, justamente nessa hora. Um rangido lhe fez ver que uma janela se abria.

— Quem está aí?

— Sou eu, Maigret.

Um pequeno riso, não sem uma ponta de nervosismo, como o de alguém que, a despeito de si mesmo, assustou-se.

— Sinto muito. Acenderei a luz imediatamente. E mais baixo, como se falasse sozinha:

— A tolice é que não consigo achar o interruptor. Ah! Aqui está ele...

Ela devia ter mexido em dois, porque não só a sala de estar acendeu-se mas também uma lâmpada no jardim, quase por cima da cabeça do Inspetor.

— Vou abrir a porta para o senhor.

Valentine istava vestida como se acostumara a vê-la, e numa mesinha, em frente à poltrona em que a surpreendera, havia cartas de baralho espalhadas para um jogo de paciência.

Ela trotava agora, pela casa vazia, em passinhos rápidos, indo de quarto em quarto, virando uma chave aqui, puxando um trinco acolá.

— O senhor vê que não sou tão valente quanto pretendo e que tenho minhas barricadas. Não esperava a sua visita.

Não lhe fazia perguntas, mas estava visivelmente intrigada.

— O senhor tem um momento? Venha sentar-se. E vendo que ele olhava as cartas:

— As pessoas têm de divertir-se de algum modo quando moram sozinhas, não é verdade? O que o senhor gostaria de tomar?

— A senhora sabe que desde que estou em Étretat bebo da manhã à noite? Seu enteado Charles vem de manhã e me faz beber picons-granadines. Théo se reúne a nós e daí por diante as rodadas são dele. Cada vez que encontro o inspetor, entramos num café para um dedo de prosa. Venho cá, e a garrafa de calvados aparece automaticamente na mesa. O doutor não é menos hospitaleiro. Os Trochus me deram sidra.

— Eles o receberam bem?

— Não de todo mal.

— Contaram-lhe alguma coisa interessante?

— Pode ser. Antes do fim, é difícil desenredar o que interessa do resto do novelo. Ninguém veio vê-la depois que estive aqui?

— Ninguém. Fui eu que fiz uma visita. Fui dar boa noite à velha Srta Seuret. Ela está, na verdade, tão idosa, que todo mundo pensa que já morreu e ninguém a visita mais. Ela é a minha vizinha mais próxima. Se eu fosse jovem, bastar-me-ia saltar a sebe para estar em casa dela. Assim é. Agora, estou inteiramente só. Meu dragão já se foi há um século. Pensei em tomar outra empregada que dormisse em casa, mas fico a pensar se devo mesmo fazê-lo. Gosto tanto de estar só!

— Não tem medo?

— Às vezes tenho, como viu. Há poucos minutos, quando ouvi seus passos, fiquei um pouco nervosa. Tenho pensado no que faria se me aparecesse um assaltante noturno. Diga-me o que pensa do meu plano. Primeiro, apagar as luzes da casa, depois acender a da porta da rua, de modo a ver sem ser vista.

— Parece-me excelente método.

— Só que, ainda agora, esqueci-me de acender a luz de fora. Preciso ter mais atenção da próxima vez. E achar o interruptor!

Ele olhou para os pés dela e viu que usava sapatos e não chinelos. Mas também, uma mulher como Valentine se permitiria, mesmo em sua própria casa, usar chinelos a não ser no quarto de dormir?

— Nada de novo ainda, Sr. Maigret?

Ele estava sentado na cadeira que, a essa altura, já podia quase chamar a sua cadeira. E a sala parecia ainda mais aconchegante à noite do que de dia, com seus círculos de luz discreta e largas áreas na sombra. O gato estava embaixo, numa das poltronas, e não demorou em vir esfregar-se contra as pernas do Inspetor-Chefe de cauda em riste no ar.

— O senhor não conhece a linguagem dos gatos? — brincou ela.

— Não, por quê?

— Porque essa é a maneira de pedir-lhe que o afague. O senhor estava preocupado comigo?

— Queria apenas assegurar-me de que tudo estava bem por aqui.

— E não se tranqüilizou ainda? Diga-me! Espero que não vá condenar um pobre inspetor a passar a noite na estrada a fim de proteger-me! Se fizer isso, avise-me, para que eu ponha pelo menos uma cama de campanha na cozinha.

Estava muito alegre, com um brilho no olhar. Trouxera o frasco e servia-se um cálice tão cheio quanto o dele.

— Sua mulher nunca se queixa do seu ofício?

— Ela já teve tempo de acostumar-se.

Meio adormecido na cadeira, ele enchera o cachimbo e vigiava o tempo no relógio de bronze flanqueado por dois cupidos gordotes.

— A senhora joga paciência com freqüência?

— São poucos os jogos que uma pessoa pode jogar sozi-

— Rose não jogava cartas?

— Tentei ensinar-lhe belote, mas sem qualquer sucesso.

Ela devia estar pensando por que ele viera. Por algum tempo, o Inspetor pareceu tão remoto que ela temeu que tivesse adormecido na cadeira, como já acontecera uma vez.

— Penso que será melhor voltar ao hotel e ir para a cama — disse. suspirou.

— Um último cálice?

— A senhora me acompanhará?

— Sim.

— Muito bem, então. Estou começando a conhecer o caminho e arrisco-me pouco. Não me perderei. Espero que se recolha, também?

— Numa meia hora.

— Remédio para dormir?

— Não. Não comprei nenhum. Assusta-me um pouco, agora.

— E dorme assim mesmo?

— Acabo por dormir. Velhos não precisam de muito sono.

— Até amanhã, então.

— Boa noite.

Ele fez os ramos estalarem outra vez, e o portão rinchou um pouco. Ficou imóvel um momento, à beira da estrada, olhando a cumeeira da casa e a chaminé que passava o topo das árvores, à luz pálida da lua.

Então, por causa da fria umidade do ar, levantou a gola do casaco e caminhou rapidamente para a cidade. Percorreu todos os bistrôs; não porque quisesse entrar em algum mas apenas para dar uma olhadela no interior. Surpreendeu-se de?. não ver Henri, que deveria andar ainda à procura de Théo.

Saberia que ele fora para o hotel? Teria estado lá para vê-lo? Ou teria partido sem realizar seu objetivo? Maigret não sabia a que horas o barco deixava a baía em Fécamp para sua quinzena de pesca no Mar do Norte.

Esteve por um momento no bar do cassino, que se achava vazio, e onde Charlie se ocupava em contar a féria.

— Não viu um pescador?

— O jovem Trochu? Esteve aqui há uma hora. Parecia ter pressa.

— Não disse nada?

— A mim, não. Mas falava sozinho. Quase esqueceu a sacola, e quando a lançou nos ombros varreu o balcão com ela e me quebrou dois copos.

Castaing estava na rua outra vez, provavelmente para manter-se acordado, e a luz continuava acesa no quarto de Théo.

— O senhor não encontrou o irmão de Rose, chefe? Ele passou por aqui há uma hora, ziguezagueando de um lado para o outro.

— Entrou no hotel?

— Não creio que tenha percebido tratar-se de um hotel.

— Disse-lhe alguma coisa?

— Eu me colei à parede.

— Em que direção ia?

— Rua abaixo. E, depois, provavelmente para não deixar o calçamento, virou à direita. O que vamos fazer? Fico por aqui?

— Por que não?

— O senhor pensa que ele vá sair? —- Não sei. É bem possível.

E então, pela segunda vez, Gastaing ficou a imaginar se a reputação do Inspetor-Chefe não seria exagerada. De qualquer maneira, ele não deveria ter bebido tanto.

— Vá ao hotel e descubra se alguém o procurou ou subiu ao seu quarto.

Castaing voltou em poucos minutos, com uma resposta negativa.

— E está seguro que ele não falou com ninguém nos bares quando o seguia?

— Só falou para pedir bebida. Sabia que eu o estava seguindo. Olhava para mim de tempos em tempos, incerto sobre o que fazer. Acho que pensava se não seria mais simples se bebêssemos juntos.

— Ninguém lhe passou um bilhete?

— Não percebi coisa alguma dessa espécie. O senhor não acha que seria uma boa idéia comer um sanduíche?

Maigret não pareceu ouvi-lo, tirou um cachimbo frio do bolso, e se pôs a enchê-lo. O halo em volta do crescente alargava-se, e havia alguma névoa vinda do mar, que começava a invadir as ruas. Não era ainda um nevoeiro de verdade, porque a sirene não começara a soar.

— Numa semana — observou Castaing — só restarão por aqui os habitantes. E os empregados dos hotéis irão para o sul, a fim de começar uma nova temporada com outros fregueses.

— Que horas são?

— Vinte para as onze.

Algo devia estar preocupando Maigret, porque depois de algum tempo disse:

— Vou deixá-lo por um momento. Vou ao meu hotel dar um telefonema.

Entrou na cabine telefônica e chamou a casa de Charles Besson, em Fécamp.

— Maigret falando. Lamento importuná-lo. Espero que não esteja na cama.

— Não. Alguma coisa de novo? Agora é minha mulher que está com bronquite, e mesmo assim insiste em ir ao funeral amanhã.

— Diga-me, Sr. Besson. Sua mulher nunca possuiu um anel com uma grande esmeralda?

— Um quê?

Ele repetiu o que tinha dito.

— Não.

— E o senhor nunca viu um anel assim? Com Arlette, talvez?

— Penso que não.

— Muito obrigado.

— Alô! Sr. Maigret...

— Sim.

— O que há com esse anel? O senhor encontrou algum?

— Não sei ainda. Conto-lhe isso algum dia.

— Tudo está bem por aí?

— Tudo tranqüilo no momento.

Maigret desligou, hesitou, finalmente chamou o número de Arlette, em Paris. Conseguiu a ligação imediatamente, quase mais depressa do que a anterior.

Uma voz respondeu, e foi seu primeiro contacto com Julien.

— Julien Sudre falando — disse uma voz calma, muito séria. — Quem é?

— Inspetor-Chefe Maigret. Gostaria de dar uma palavra à Sra Sudre.

E ouviu quando o outro disse, sem qualquer ansiedade:

— É para você. O Inspetor-Chefe.

— Alô! Aconteceu alguma coisa?

— Penso que não. Ainda não. Apenas desejava fazer-lhe uma pergunta. Alguma vez roubaram-lhe jóias?

— Por que me pergunta isso?

— Responda.

— Não. Penso que não.

— A senhora tem muitas?

— Algumas peças. Dadas a mim por meu marido.

— Jamais teve um anel com uma única esmeralda de tamanho respeitável?

Houve um curto silêncio.

— Não.

— Lembra-se de ter visto um anel desses?

— Não, acho que não.

— Muito obrigado.

— O senhor não tem mais nada para contar-me?

— Nada mais esta noite.

Ela não queria que ele desligasse. Parecia que gostaria de ouvi-lo falar indefinidamente. Talvez quisesse dizer alguma coisa ela mesma, e não pudesse fazê-lo com o marido por perto.

— Nada de desagradável?

— Nada. Boa noite. Penso que se vão recolher, os dois? Ela suspeitou ironia, e respondeu secamente:

— Sim. Boa noite.

Havia só o porteiro da noite no hall do hotel. No fundo, ficava a poltrona em que achara Arlette a sua espera, na noite anterior. Não a conhecia ainda, àquela altura. Ainda não conhecia ninguém.

Lamentava não haver trazido o sobretudo, e quase telefonou à Sra Maigret para dizer-lhe boa noite. Mas deu de ombros e foi reunir-se a Castaing, que prosseguia na sua guarda, com ar sombrio.

Também nesse hotel o hall estava deserto. Quase todas as janelas, à exceção de duas ou três, estavam às escuras, e agora mais uma luz foi apagada; mas não a de Théo.

— O que poderá estar fazendo? — murmurou Castaing. — Lendo na cama, provavelmente. A não ser que tenha adormecido sem apagar a luz.

— Que horas são?

— É meia-noite.

— Você está seguro de que ninguém...

E então o inspetor Castaing bateu na testa, soltou uma praga, e disse entre os dentes:

— Que idiota eu sou! Esqueci-me de dizer-lhe...

— O quê?

— É verdade que ninguém falou com ele. Que ninguém lhe deu um papel. Mas enquanto estávamos no bar da Poste, o segundo em que ele esteve, o barman lhe disse, a certo momento:

— Chamam-no ao telefone.

— A que horas foi isso?

— Logo depois das oito.

— Não disseram quem chamava?

— Não. Ele foi até a cabine. Eu o observei pelo vidro. Não era ele quem falava. Ouvia, dizendo apenas, de vez em quando, ”Sim... Sim...”

— Foi tudo?

— Como isso me pode ter escapado! Espero que não seja grave, chefe?

— Veremos. Que expressão tinha ele ao sair da cabine telefônica?

— Não sei dizer exatamente. Talvez um tanto surpreso? Talvez intrigado? Mas não aborrecido.

— Vamos! Você poderá esperar-me no hall. Perguntou ao porteiro:

— O quarto do Sr. Besson?

— Número 29, segundo andar. Penso que estará dormindo. Disse que não queria ser incomodado.

Maigret ignorou-o, passou por ele, avançou escada acima, parou para recobrar o fôlego, e logo estava diante da porta branca que tinha o número 29 em algarismos de cobre. Bateu e não teve resposta. Bateu mais e mais alto, depois debruçouse sobre a escadaria:

— Castaing?

— Sim, chefe.

— Peça-lhes a chave-mestra. Devem ter uma chave que abre todas as portas.

Isso levou algum tempo. Maigret esvaziou seu cachimbo na passadeira, junto a um grande vaso de cerâmica que continha areia e pontas de cigarros.

O porteiro veio à frente, de mau humor.

— Como quiser. Mas terá de explicar-se ao gerente amanhã. Polícia ou não polícia, isso não são maneiras.

Escolheu uma chave da penca que trazia, à ponta de uma corrente. Mas antes de abrir, bateu discretamente, pondo a orelha contra a porta.

Afinal, viram o quarto, que estava vazio, e a cama, que não fora usada. Maigret abriu um armário. Viram um terno azul-marinho, um par de sapatos pretos e uma capa impermeável. Navalha e escova de dentes estavam no banheiro.

— O Sir tem o direito de sair se assim desejar, não?

— O senhor sabe se o carro dele está na garagem?

— isso pode ser verificado facilmente.

Desceram de novo. Em vez de irem para a frente do hotel, caminharam ao longo de um corredor, desceram alguns degraus, e Maigret viu que uma pequena porta, que não estava trancada, conduzia diretamente à garagem.

As portas estavam escancaradas, e um espaço de estacionamento desocupado.

— É o dele.

O pobre Castaing parecia um colegial, a imaginar o castigo que lhe seria dado pela incúria.

— Onde vamos?

— Onde está o seu carro?

— Em frente ao seu hotel.

Era a poucos passos. Ao assomarem à porta, o porteiro da noite veio correndo:

- Sr. Maigret! Sr. Maigret! Alguém acaba de telefonarlhe.

— Quem?

— Não sei.

— Mulher?

— Voz de homem. Disse que vá à casa da velha senhora imediatamente. Disse que o senhor entenderia.

Não levaram um minuto para ir até lá. Já havia um carro estacionado diante do portão.

— É o do médico — disse Castaing.

Mas mesmo ao chegarem perto da casa não podiam ouvir o som de vozes. Todas as peças estavam acesas, inclusive as de cima. Théo Besson, muito calmo, abriu a porta, e o Inspetor Chefe olhou para ele com espanto.

— Quem foi ferido?

Suas narinas vibravam. Reconhecia o cheiro de pólvora queimada na sala. Sobre a mesa, onde o baralho ainda estava espalhado, havia um grande revólver militar.

Entrou no quarto de hóspedes, onde podia ouvir gente que se movia, e quase derrubou Valentine, que tinha as mãos cheias de panos manchados de sangue, e que olhou para ele com olhos de sonâmbula.

Na cama em que Arlette havia dormido havia um homem estirado, com a parte superior do corpo nua. Tinha ainda suas calças e sapatos. As costas do Dr. Jolly, curvado por cima dele, escondiam-lhe o rosto, mas a qualidade grosseira do pano azul já o havia identificado para Maigret.

— Morto? — perguntou.

O doutor sobressaltou-se e endireitou o corpo, como que aliviado.

— Fiz o que pude — suspirou.

Havia uma seringa hipodérmica em cima da mesa de cabeceira. A maleta do médico estava aberta no chão, despejando coisas, em desordem. Havia sangue por toda parte. Maigret acharia traços, depois, no salão e, fora também, no jardim.

— Quando Valentine telefonou, vim correndo, mas ja era tarde demais. A bala tinha de alojar-se na aorta! Mesmo uma transfusão, se feita na hora, não teria adiantado.

— Foi o senhor que procurou entrar em contacto comigo no hotel?

— Sim, ela me pediu que o informasse.

Valentine estava bem junto deles, de pé no umbral, com sangue nas mãos, sangue no vestido.

— É horrível — disse. — Mal sabia eu o que estava para acontecer quando o senhor aqui esteve, esta noite. E tudo isso porque, de novo, esqueci-me de torcer o segundo interruptor, o da lâmpada do jardim.

Ele evitou encará-la, e ouviu um suspiro quando viu o rosto de Henri Trochu, por sua vez morto. Talvez já estivesse pensando no que diria à família, pensando na reação deles?

— Tenho de explicar tudo.

— Eu sei.

— Não pode saber. Eu estava em cima. Na cama.

Era, com efeito, a primeira vez em que a via vestida a meio. Tinha o cabelo em encrespadores, e enfiara um vestido, às pressas, por cima da camisola de dormir, cuja barra aparecia.

— Penso que adormecera, afinal, quando o gato, de súbito, pulou nos pés da cama. Foi isso que me acordou. Escutei. Ouvi um ruído fora, o mesmo que o senhor fez ao chegar, esta noite.

— Onde estava o revólver?

— No armário ao lado da minha cama. É o revólver do meu marido. Aprendi com ele a ter sempre a arma ao alcance da mão, de noite. Penso que lhe contei isso.

— Não, mas não importa.

— Antes de tudo, olhei pela janela, mas estava escuro demais. Pus um vestido e desci.

— Sem acender as luzes?

— Sim. Eu não podia ver nada, mas sentia alguém tentando forçar a porta. Perguntei: ”Quem está aí?” Ninguém respondeu,

— E atirou imediatamente?

— Não me lembro. Devo ter perguntado a mesma coisa várias vezes, enquanto o homem torcia a maçaneta. Atirei através da bandeira da porta. Ouvi o homem cair, e fiquei ali por algum tempo, sem ousar sair.

— Não sabia quem era?

— Não tinha a menor idéia. Foi só então que pensei em acender a luz de fora. Através da bandeira quebrada, vi um corpo, com um grande volume ao lado. Meu primeiro pensamento foi que se tratava de um vagabundo. Afinal, dei a volta pela porta da cozinha e então reconheci Henri.

— Ele ainda estava vivo?

— Não sei. Corri até a casa da Srt? Seuret, ainda segurando o meu revólver. Pedi-lhe que se levantasse, que eu tinha de telefonar imediatamente e afinal ela veio e abriu. Chamei o Dr. Jolly e pedi-lhe que dissesse ao senhor o que se tinha passado ou o apanhasse em caminho.

— E Théo?

— Encontrei-o em frente à minha porta, quando voltei.

— Voltou só?

— Não. Esperei pelo médico na estrada.

O Dr. Jolly acabava de cobrir o rosto do morto com um lençol e, mantendo as mãos ensangüentadas à frente do corpo, marchava para o banheiro.

Maigret e Valentine ficaram sós junto ao cadáver, no quarto minúsculo onde era quase impossível andar; o InspetorChefe tinha ainda seu cachimbo na boca.

— Que lhe disse Théo?

— Não me lembro. Não disse nada.

— A senhora não ficou surpresa de encontrá-lo aqui?

— Provavelmente. Não sei. Não se esqueça que eu acabava de matar um homem. Por que pensa que Henri tentava entrar na minha casa?

Ele não respondeu, mas foi para a sala, onde’encontrou Castaing e Théo, de pé, um diante do outro e ambos silenciosos. Dos dois, o inspetor era o que parecia mais nervoso, e voltou-se para o Inspetor-Chefe com o desespero pintado no rosto.

— Foi culpa minha, não?

— Não podemos estar certos, ainda.

Theo cesson parecia aDorrecido, como um homem de sociedade que é apanhado numa situação falsa.

— Foi por puro acaso que o senhor se encontrava aqui, imagino?

Ele não respondeu, e parecia desculpar Maigret por tratálo de modo tão rude.

— Venha cá, meu rapaz.

O Inspetor-Chefe levou Castaing até o jardim, onde viu sangue nas lajes do calçamento, e a sacola do pescador, no ’chão, onde caíra.

— Você vai discretamente ao hotel dele. Quero saber se alguém lhe telefonou, durante a noite. Se não lhe quiserem dizer nada, vá a todos os bares onde Henri possa ter estado.

— Estarão fechados.

— Faça que abram!

— O que devo perguntar-lhes?

— Se ele usou o telefone.

Castaing não entendeu, más desejava cobrir a sua falta de todas as maneiras possíveis, e correu para o Simca, que logo pôde ser ouvido, afastando-se.

O Dr. Jolly e Valentine vinham da volta do banheiro. As mãos do médico estavam brancas, e ainda cheiravam a sabonete.

— Não adianta. Ela recusa ir deitar-se ou deixar que eu lhe dê uma injeção. Está vivendo dos nervos, no momento. Ela pensa que é forte. Pois vai ter um colapso quinze minutos depois que eu me for. Não entendo como pôde fazer tudo o que fez.

— Matei aquele pobre menino — murmurou Valentine, olhando de Maigret para Théo, que permanecia mudo e silente no seu canto.

— O senhor não poderá persuadi-la? Ela dormirá como uma porta por várias horas e amanhã estará nova em folha.

— Não penso que seja necessário.

Jolly franziu o cenho, mas cedeu, e procurou o seu chapéu.

— Suponho que eu deva telefonar ao Havre, como no último domingo, para que venham e levem o corpo. Quero crer que haverá uma autópsia.

— Certamente.

— O senhor deseja que lhes transmita alguma mensagem?

— Não, obrigado.

Ele foi, curvou-se diante da velha senhora e pareceu até, por um instante, que ia beijar-lhe a mão.

— Você está errada, sabe disso? Caso mude de idéia, deixei alguns comprimidos no seu quarto. Pode tomar um de. duas em duas horas.

Cumprimentou Théo de cabeça, virou-se para Maigret mas não achou o que dizer.

— Naturalmente estou à sua disposição se precisar de mim.

E saiu. Os outros ficaram calados. Quando o ruído do motor do carro deixou de ser ouvido, Valentine, como que para manter a forma, abriu o guarda-louça e tirou o frasco de calvados. Estava para botá-lo na mesa quando Maigret, inesperadamente, tomou-o das mãos dela e atirou-o, com violência, no chão.

— Sentem-se, todos dois! — disse, numa voz que tremia de cólera.

Eles obedeceram, mal se dando conta de que o faziam, enquanto ele ficava de pé, com as mãos atrás das costas. Depois pôs-se a andar de um lado para outro da sala, como sempre fazia no seu escritório do Quai des Orfèvres.

Castaing já estava de volta, e a sirene do nevoeiro começava a lançar seu lúgubre sinal dentro da noite.

 

Ouviram Castaing parar o carro, sair, fazer uma pequena pausa na estrada antes de empurrar o portão, e todo esse tempo Maigret não dissera uma palavra. Théo, sentado na cadeira que o Inspetor-Chefe tinha ocupado poucas horas antes, ainda fazia o possível, apesar de tudo o que houvera, para se parecer com o Duque de Windsor. Enquanto Valentine olhava de um homem para o outro tão depressa que parecia um jovem animal.

Castaing cruzou o jardim, entrou na casa e, pasmo com o silêncio, com a garrafa quebrada, imaginava o que lhe cabia fazer ou onde devia vir. Como não pertencia à Chefatura de Polícia, nunca vira Maigret em circunstâncias dessas.

— Então, meu rapaz?

— Falei com o dono do hotel. Estava na cama, mas atendeu-me ao telefone. Foi ele quem transferiu o telefonema da portaria para o corredor do andar de Théo; os quartos não têm telefone. Eram dez e meia, aproximadamente. O homem que telefonou estava embriagado.

— O senhor tem papel e lápis?

— Tenho meu caderno de notas.

— Sente-se a essa mesa. Ponha-se confortável porque ficará aí bastante tempo. Anote as respostas deles.

Recomeçou a andar de um lado para outro, acompanhado pelos olhos da velha senhora, enquanto Théo mirava os bicos dos próprios sapatos.

Por fim, postou-se em frente deste último. Já não estava encolerizado, mas sua voz tinha uma nota de desprezo:

— O senhor esperava que Henn viesse a ttretat esta noite?

— Não.

— Teria vindo a La Bicoque se ele não lhe telefonasse?

— Não sei. É possível.

— Onde estava, quando ele foi morto? Na estrada? No jardim?

— No jardim, junto ao portão.

Valentine sobressaltou-se quando verificou que passara assim tão perto do seu enteado a caminho da casa da Srta Seuret e do telefone.

— Orgulha-se do que fez?

— Isso é assunto meu.

— Sabia que ela possuía um revólver?

— Sabia que conservara o revólver de meu pai. Diga-me, Inspetor-Chefe, o senhor me poderia informar se...

— Nada! Sou eu quem faz perguntas aqui.

— E se eu não quiser responder?

— Isso não alteraria nada, exceto que eu possivelmente me decidiria a esbofeteá-lo, coisa que tenho estado a conter-me para não fazer neste último quarto de hora.

A despeito das circunstâncias trágicas, e a despeito do cadáver ainda no quarto ao lado, Valentine não pôde conter um sorriso de satisfação, quase de júbilo.

— Há quanto tempo sabe?

— Do que está falando?

— Ouça-me, Besson. Aconselho-o a não se fazer de tolo. Há quanto tempo sabe que as jóias de sua madrasta nunca foram vendidas, e que foram as peças originais que ela guardou e não imitações, como todos foram induzidos a crer?

Foi a vez de ela surpreender-se. Olhou para Maigret com estupor, com involuntária admiração, mexendo-se na cadeira como se quisesse dizer algo. Mas o Inspetor-Chefe não lhe deu atenção.

— Sempre suspeitei disso.

— Por quê?

— Porque eu a conheço, e porque conhecia meu pai.

— O senhor quer dizer que ela tinha medo de ser pobre e não era mulher de não tomar suas precauções?

— Isso mesmo. E meu pai fazia tudo o que ela queria.

— Casaram-se quando marido e mulher tinham comunhão de bens em termos de completa igualdade?

— Sim.

— Que valor calcula o senhor terão as jóias?

— Vários milhões de francos ao câmbio atual. Haverá peças de que eu nunca ouvi’ falar, porque meu pai tinha vergonha de gastar muito com ela.

— Quando ele morreu e lhe disseram que as jóias haviam sido vendidas há muito tempo, o senhor não disse nada a seu irmão ou a Arlette?

— Não.

— Por que não?

— Eu não tinha certeza.

— Não seria mais correto dizer que esperava chegar a alguma espécie de entendimento com Valentine?

Valentine não perdia uma sílaba do que era dito, um gesto de Maigret, uma expressão de Théo. Ela assimilava tudo, muito mais do que Castaing, cujos conhecimentos de taquigrafia eram rudimentares.

— Recuso responder essa pergunta.

— Não é digno do senhor, não é mesmo? Falou à própria Valentine?

— Nunca mais.

— Porque sabia que ela era mais esperta que o senhor, e aguardou até conseguir alguma prova. Como obteve essa prova? E quanto tempo levou?

— Andei interrogando amigos meus, que lidam com diamantes, sobre algumas das jóias que teriam chamado a atenção, e foi assim que descobri que não tinham sido postas à venda, não em França pelo menos, e, provavelmente, não na Europa.

— O senhor esperou pacientemente cinco anos.

— Eu tinha algum dinheiro de resto. Consegui levar a bom termo uns poucos negócios.

— Este ano, como se encontrou em situação difícil, veio passar férias em Étretat. Não foi, então, por acidente que chegou a conhecer Rose e a encorajá-la nas suas esquisitices?

Silêncio. Valentine esticava o pescoço como uma ave; foi a primeira vez que Maigret viu o pescoço da velha senhora. Estivera sempre encerrado numa larga faixa de veludo preto, com uma pérola.

— Agora, pense bem antes de responder. Rose já sabia, quando o senhor a conheceu, ou só começou a esquadrinhar a casa instigada pelo senhor?

— Ela já investigava antes de conhecer-me.

— Por quê?

— Por curiosidade, e porque tinha ódio da minha madrasta.

— Tinha alguma razão de odiá-la?

— Achava-a altiva e dura. Ambas viviam aqui em pé de guerra, por assim dizer, e nenhuma das duas se dava ao trabalho de fazer segredo disso.

— Rose pensou nas jóias?

— Não. Mas arranjou uma verruma para fazer um buraquinho na parede entre os dois quartos.

Valentine agitou-se na cadeira, indignada. Era como se desejasse ir ao segundo andar imediatamente a ver se essa coisa ultrajante era mesmo verdadeira.

— Quando foi isso?

— Há cerca de quinze dias, numa tarde em que Valentine foi tomar chá com a Srta Seuret.

— O que viu pelo buraco?

— De começo, nada. Teve de esperar vários dias. Uma noite, depois de fazer que dormia, e que ressonava, saiu da cama sem fazer ruído e viu Valentine abrir o armário fronteiro ao seu leito.

— Rose nunca tinha olhado dentro?

— Todas as gavetas e armários da casa são trancados, e Valentine leva as chaves consigo. Até uma lata de sardinhas Rose tinha de pedir-lhe.

— Nesse caso, como conseguiu deitar a mão num dos anéis?

— Quando Valentine estava no banho. Não me disse nada sobre isso antes. Deve ter preparado tudo cuidadosamente, pensado em cada detalhe.

— O senhor viu o anel?

— Sim.

— O que ela pretendia fazer com ele?

— Nada. Usá-lo teria entornado o caldo. Era apenas a maneira que tinha de tirar sua forra.

— O senhor não achou que sua madrasta poderia perceber tudo?

— Talvez.

— Mas esperou ainda, a ver qual seria a reação dela?

— Possivelmente.

— Gostaria de tér sua cota, não? Sem dizer nada a Charles ou a Arlette?

— Não respondo.

— Imagino que estava seguro de que ninguém poderia inculpá-lo?

— Não matei ninguém.

Valentine mexeu-se de novo na cadeira, querendo levantar a mão para falar, como se faz na escola.

— Era tudo o que tinha a perguntar-lhe.

— Posso ir, agora?

— Pode ficar.

— Estou livre?

— Não, até segunda ordem.

Maigret recomeçou a medir a sala a passos, um tanto, vermelho, agora que devia interrogar a velha senhora.

— Ouviu?

— Tudo o que ele disse é falso.

Ele tirou o anel do bolso do colete e mostrou-o.

— A senhora nega que estejam no seu quarto as jóias verdadeiras? Deseja que eu tome suas chaves e vá buscá-las?

— Era direito meu. Meu marido concordou comigo. Ele considerava os filhos crescidos o bastante para cuidarem de si mesmos, e não queria deixar uma velha como eu sem recursos. Se os filhos tivessem sabido, venderiam as jóias, e um ano mais tarde estariam na mesma precária situação.

Ele evitava encará-la.

— Por que odiava Rose?

— Eu não odiava Rose. Apenas não confiava nela, e os acontecimentos vieram provar que tinha razão. Foi ela que passou a não gostar de mim, quando eu fazia tudo o que podia por ela.

— Quando a senhora deu pela falta do anel?

Ela chegou a abrir a boca e estava a pique de responder. Depois, seu olhar ficou duro.

— Não vou responder mais às suas perguntas.

— Como quiser. Voltou-se para Castaing.

— Continue a tomar notas, de qualquer maneira. Andou pelo aposento, fazendo tremer os objetos. Falava sozinho.

— Foi provavelmente na semana passada, antes de quarta-feira, que a, senhora fez essa descoberta. Rose era a única pessoa que poderia ter visto a senhora tirado o anel. Sem dúvida revistou as coisas dela, sem encontrar nada. E quando ela saiu, na quarta, a senhora a seguiu, e viu quando se encontrou em Êtretat com Théo. Aí, então, começou deveras a assustar-se. Não sabia se falara no anel a Théo. Suspeitava que ele estivesse aqui por causa dás jóias.

A despeito de sua resolução de não dizer nada, ela não pôde conter-se:

— No dia em que ele soubesse, minha vida estaria em perigo.

— É muito possível. Observe que não lhe perguntei nada. Interrompa-me, se quiser, mas eu não preciso de sua confirmação. Decidiu, então, livrar-se de Rose antes que ela tivesse tempo de traí-la — pelo menos era o que esperava — e aproveitou-se de uma oportunidade única que se apresentou: o famoso 3 de setembro! O único dia do ano em que toda a família se reúne aqui, a família que a senhora detesta, inclusive sua filha.

Ela abriu a boca uma vez mais, mas ele não lhe deu tempo para interromper.

— A senhora sabia da paixão de sua empregada por remédios, por qualquer espécie de remédio. Provavelmente já a apanhara servindo-se no armarinho. Talvez bebesse, toda noite, o resto do soporífero que ficava no copo. Vê? Esse crime é um crime de mulher e, até, poder-se-ia dizer, de mulher velha, que vive só.

É da espécie de crime que se cozinha por muito tempo, em que se pensa gostosamente horas e horas, que se embeleza aos poucos. Como poderiam suspeitar da senhora, se o veneno lhe era, aparentemente, destinado? A suspeita recairia sobre a sua filha ou sobre os outros. Era fatal. Tinha apenas que dizer que achara o medicamento amargo e que dissera isso à sua empregada. Estou certo de que tomou todas as precauções.

— Ela o teria tomado de qualquer maneira!

Não estava derrotada, como se poderia esperar, mas alerta, sem perder uma só palavra do que se dizia, preparando, talvez, suas respostas com antecedência.

— Estava convencida de que as investigações seriam conduzidas pela polícia local, e de que esta se deixaria ludibriar inteiramente. Apenas começou a preocupar-se quando soube que Charles Besson fazia arranjos para que eu fosse mandado de Paris.

— O senhor é um homem modesto, Sr. Maigret.

— Não sei se sou ou não modesto, mas a senhora cometeu o erro de correr ao Quai des Orfèvres para atribuir-se os louros de ter feito contacto comigo.

— E como eu saberia, faça-me o favor, que Charles pensara no senhor?

— Isso não sei. É um ponto que será esclarecido mais tarde.

— Haverá muitos pontos a esclarecer, uma vez que o senhor não tem provas das teorias que apresenta com tanta confiança.

Maigret ignorou o desafio.

— As jóias, por exemplo. Minhas chaves estão na mesa, à sua frente. Vá lá em cima e olhe.

Ele parou de andar, e encarou-a, ponderando esse novo problema. Pareceu pensar alto:

— Talvez se tenha aproveitado da visita a Paris para depositá-las em algum lugar? Não! Não as esconderia tão longe. Não as depositaria num banco, onde poderiam ser facilmente localizadas.

Ela sorriu-lhe, com malícia.

— Vá! Procure!

— Eu as acharei.

— Mas se não achar, nada do que afirma ficará de pé.

— Voltaremos a isso oportunamente.

Lamentava, agora, haver quebrado a garrafa de calvados, num momento de raiva. Gostaria de um gole.

— Quando estive aqui, esta noite, não foi por acidente que mencionei a relação entre Rose e Théo Besson ou o encontro dos dois na quarta-feira. Sabia que isso provocaria alguma reação de sua parte, e que, com medo que eu interrogasse Théo, e que ele falasse, a senhora tentaria vê-lo, talvez para fazê-lo calar para sempre. Fiquei pensando em como a senhora faria para encontrá-lo, sem ser vista. Esqueci-me do telefone. Ou, a rigor, esqueci-me que a Srta Seuret vivia tão perto, e que a senhora a visitava freqüentemente.

Voltou-se, abrupto, para Théo.

— O senhor ar conhece?

— Não a vejo há anos.

— É paralítica?

— Já era meio cega e meio surda naquele tempo.

— Nesse caso, temos uma possibilidade de achar as jóias em casa dela.

— O senhor está apenas ajuntando pequenas peças e tentando formar um caso — disse ela, furiosa. — O senhor fala e fala, dizendo consigo mesmo que cedo ou tarde encontrará a verdadeira solução. Suponho que se julgue esperto?

— A senhora telefonou a Théo da casa dela, e provavelmente teve de tentar diversos números, até que, finalmente, alcançou-o num bar. Disse-lhe que precisava falar-lhe, e ele acreditou. Mas a senhora não tinha qualquer intenção de falar-lhe. Porque — sabe? — seus dois crimes não são apenas os de alguém que vive só, mas os crimes de uma mulher velha. A senhora é astuta, Valentine!

Ela pareceu impar de satisfação, apesar de tudo, com o cumprimento.

— Sua tarefa era silenciar Théo sem despertar suspeitas. Havia um meio, que talvez tivesse funcionado, mas que a senhora relutava em adotar: oferecer-lhe metade. Sua noção de posse era forte demais para isso. A idéia de abrir mão de qualquer uma só que fosse daquelas famosas jóias, que nem sequer contribuem para mantê-la viva, era tão monstruosa que preferiu matar uma segunda vez.

Pediu, então, a Théo que viesse à sua casa à meia-noite sem dizer nada a ninguém. Foi o que ela lhe pediu, não foi, Sr. Besson?

— O senhor não vê a impropriedade a uma pergunta dessas? Um gentleman...

— Seu patife! Acha que um gentleman envolve uma

empregada nos seus assuntos de família encorajando-a a cometer um furto só porque isso facilita as coisas? Acha que um gentleman manda alguém para ser morto em seu lugar? No fundo, Sr. Besson, o senhor ficou ao mesmo tempo assustado e triunfante, depois do telefonema de Valentine. Triunfante,

porque tinha ganho a partida, porque o telefonema era prova de que ela estava disposta a negociar. Assustado porque sabia a espécie de pessoa que ela era e que não compraria o seu silêncio de bom grado. Suspeitou uma cilada. Esse encontro de meia-noite, aqui, era suspeito. O senhor voltou ao hotel

para pensar sobre o assunto. E então, por boa fortuna sua, o

pobre Henri, meio embriagado, telefonou-lhe. Eu acabava de ter uma conversa com ele, e isso provavelmente fê-lo pensar. Começou a beber, ansioso por encontrá-lo, não sei bem por quê; talvez ele mesmo não soubesse. Assim, o senhor o despachou para cá, como um batedor, recomendando-lhe que chegasse exatamente à meia-noite. Em conseqüência, foi ele quem caiu na armadilha de Valentine. Tiro o chapéu para a senhora. O assassinato de Rose foi admiravelmente concebido; mas este teve uma sutileza diabólica. Até o ardil do interruptor, de que a senhora me deu parte esta noite, e que lhe ofereceria a desculpa para atirar, na excitação do momento, sem acender a luz de fora. Só que foi Henri a vítima. Irmão e irmã na mesma semana! Sabe o que eu faria se não fora um membro da força policial? Deixaria a senhora aqui, a cargo do inspetor, e iria a Yport contar toda a história ao nosso amigo Trochu e a sua mulher. Eu lhes explicaria como e por que sórdidos motivos perderam dois de seus filhos, na flor da idade, com intervalo de uns poucos dias. Depois, eu os traria aqui, com os irmãos e irmãs das suas vítimas, e seus vizinhos e amigos. Podia ver Théo, que empalidecera, apertar convulsivamente os braços da poltrona. Quanto a Valentine, saltou da cadeira como que enlouquecida.

— O senhor não tem o direito de fazer isso! Por que não encerra essa espera aqui e nos leva para o Havre? O senhor é obrigado a prender-nos, a prender-me, pelo menos.

— A senhora admite tudo?

— Não estou admitindo nada; mas o senhor me acusa, e não tem o direito de deixar-me aqui.

Quem saberia se os Trochus não estariam, àquela hora, alertados e a caminho?

— Estamos num país civilizado, e todos têm o direito de ser julgados.

Ela apurava o ouvido para qualquer ruído exterior e quase se agarrou a Maigret para proteger-se quando ouviu o barulho de um carro e, em seguida, passos no jardim.

Estava, obviamente, à beira da histeria. Seu rosto deixara de ser bonito e havia pânico nos seus olhos. Pôs-se a enfiar as unhas nos pulsos do Inspetor-Chefe:

— O senhor não tem o direito, não tem...

Não se tratava dos Trochus, que de nada sabiam ainda, mas do caminhão fechado que fora mandado do Havre, com toda uma equipe de policiais e peritos.

Durante uma hora foram senhores da casa. O corpo de Henri foi levado numa padiola, enquanto um fotógrafo da polícia, por dever de ofício, fotografava a cena, inclusive a bandeira da porta, estilhaçada pela bala.

— A senhora pode ir vestir-se.

— E eu? — perguntou Théo Besson, desanimado, sem saber o que fazer consigo.

— O senhor? Procure acertar contas com sua própria consciência.

Outro carro parou na estrada, e Charles Besson entrou correndo na casa.

— O que aconteceu?

— Esperava-o mais cedo — respondeu Maigret, secamente.

Como se não entendesse as implicações dessa observação, o deputado desculpou-se:

— Tive um pneu furado no caminho.

— O que o fez vir?

— Suas palavras no telefone, há pouco, sobre um anel.

— Entendo. Reconheceu-o pela descrição.

— Percebi que Théo tinha razão.

— Então sabia que Théo suspeitava haver sua madrasta conservado as jóias verdadeiras? Foi ele quem lhe disse? Os dois irmãos se entreolharam friamente.

— Ele não me disse, mas eu percebi o que pensava por ocasião da partilha.

— E veio correndo para reclamar a sua parte? Esqueceuse de que o enterro de sua sogra é amanhã de manhã?

— Por que fala comigo desse modo áspero? Eu não sei de nada. Quem foi esse que levaram há pouco, no caminhão?

— Primeiro, diga-me o que está fazendo aqui.

— Não sei. Quando me falou no anel, percebi que havia algum problema, que Théo tentaria algo e que Valentine não permitiria que ele tivesse tudo a seu gosto.

— Certo! Algo ocorreu, de fato, mas seu irmão mais velho teve o cuidado de mandar alguém para ser assassinado em lugar dele.

— Quem?

— Henri Trochu.

— Os pais sabem?

— Ainda não. E não tenhoxerteza se não vou confiar ao senhor a missão de informá-los. Afinal de contas, é o deputado deles.

— Depois de um escândalo desses, provavelmente não o serei mais. E Rose? Quem é...

— Não adivinhou?

— Quando me falou na pedra, pensei...

— Na sua madrasta! Pois foi ela. Pode explicar tudo aos seus eleitores.

— Mas eu não fiz nada!

Há muito tempo, Castaing, que desistira de tomar notas, olhava estupefato para Maigret, atento, ao mesmo tempo, aos ruídos que vinham de cima.

— Está pronta? — perguntou o Inspetor-Chefe, falando junto da escada.

E quando ela não respondeu imediatamente, viu o olhar assustado do inspetor.

— Não se aflija! Mulheres dessa espécie não se suicidam. Ela se defenderá até o fim, com unhas e dentes, e achará meios de conseguir os melhores advogados. Ademais, sabe que já não cortam a cabeça de velhas senhoras.

Enquanto falava, Valentine descia a escada, com a mesma aparência de marquesa que ele vira da primeira vez, cabelo imaculado, os enormes olhos brilhantes, o vestido preto sem um vinco, e um grande diamante na gargantilha: uma das ’imitações’, sem dúvida.

- O senhor não me vai algemar?

— Começo a crer que a senhora ficaria encantada se eu lhe pusesse algemas, uma vez que seria teatral e faria que parecesse uma vítima. Leve-a, rapaz.

— O senhor não virá ao Havre conosco?

— Não.

— Vai voltar para Paris?

— Amanhã de manhã, depois de recolher as jóias.

— O senhor fará o relatório?

— Escreva-o o senhor mesmo. Sabe tanto do caso quanto eu.

Castaing ainda não tinha muita certeza do que havia ocorrido.

— E este aqui?

Apontava para Théo, que acabava de acender um cigarro e evitava o irmão.

— Ele não cometeu qualquer crime que possa ser punido pela lei. É covarde demais para tanto. O senhor poderá encontrá-lo quando precisar dele.

— Posso deixar Étretat? — perguntou Théo, com alívio.

— Quando queira.

— O senhor poderia mandar que alguém me acompanhasse até o hotel, para que eu apanhe minhas coisas e meu carro?

Como Valentine, estava apavorado com os Trochus. Maigret chamou um dos inspetores do Havre.

— Acompanhe esse Sir. Dou-lhe permissão para chutar-lhe os fundilhos à guisa de despedida.

Ao deixar La Bicoque, Valentine virou-se para Maigret e disse com um esgar:

— O senhor se julga muito esperto, mas a última palavra ainda não foi dita.

Quando ele olhou o relógio, eram três e meia da manhã, e o aviso do nevoeiro ainda furava a noite. Tinha consigo apenas um inspetor do Havre, que acabava de lacrar as portas, e Charles Besson, que não sabia muito bem onde meter-se, com a sua corpulência.

— Não sei a que atribuir a maneira incivil com que falou comigo há pouco, comigo que nada fiz.

Era verdade, e Maigret por pouco não se arrependia.

— Juro que jamais imaginei Valentine...

— O senhor me dará condução?

— Para onde?

— Para Yport.

— O senhor insiste?

— Poupar-me-ia o tempo de procurar um táxi, coisa difícil a esta hora.

Lamentou tê-lo feito, pois Besson, nervoso, guiava de maneira alarmante. Parou o carro tão longe quanto possível da pequena casa, que era apenas um borrão no nevoeiro.

— Devo esperar pelo senhor?

— Sim, por favor.

Besson, protegido pela escuridão do carro, ouviu quando o inspetor bateu à porta, depois sua voz, que dizia:

— Sou eu, Maigret.

Charles viu acender-se uma luz, abrir-se e fechar-se a porta, e cortou com os dentes a ponta de um charuto.

Passou-se uma hora e nesse tempo por mais de uma vez foi tentado a ir-se embora. Então a porta se abriu outra vez. Três pessoas caminhavam devagar para o automóvel. Maigret abriu a porta e disse numa voz baixa e suave:

— Deixe-me no caminho, em Étretat, depois leve-os ao Havre.

De espaço a espaço, a mãe, que usava o véu que tinha posto no dia dos funerais, sufocava um soluço no lenço.

Quanto ao pai, não disse uma palavra. Maigret também calava.

Quando desceu, em Étretat, na frente do hotel, voltou-se e olhou para dentro do automóvel. Abriu a boca, não achou o que dizer e, gravemente, tirou o chapéu.

Não se despediu nem se deitou. Às sete horas, foi de táxi à casa da Srta Seuret. O mesmo táxi o depositou na estação em tempo de apanhar o trem das oito horas. Além da sua própria mala, levava uma pequena maleta de marroquim, cuja capa protetora era do mesmo azul dos olhos de Valentine.

 

                                                                                Simenon, Georges  

 

                      

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