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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VIAGEM
A VIAGEM

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Ela pensava exatamente nessa questão, calculando as cifras,sentada na sua cadeira de rodas com uma mesa coberta de cartas ao lado. O baralho de paciência estava bastante misturado, e ela não queria chamar Susan para ajudar, pois Susan parecia ocupada com Arthur.
“Ela tem todo o direito de esperar um belo presente de mim, claro”, pensava Mrs. Paley, olhando vagamente o leopardo empalhado nas patas traseiras, “e não tenho
dúvida de que espera mesmo! Todo mundo gosta de dinheiro.Os jovens são muito egoístas. Se eu fosse morrer, ninguém sentiria minha falta, só Dakyns, e ela se consolaria
com meu testamento! Mas não tenho motivos para me queixar... Ainda posso me divertir. Não sou fardo para ninguém... Gosto bastante de muitas coisas, apesar das minhas
pernas.”
Mas, estando um pouquinho deprimida, passou a pensar nas únicas pessoas que conhecera que não lhe tinhamparecido egoístas nem ávidas por dinheiro, que lhe tinhamparecido
de alguma forma mais refinadas do que o geral;pessoas, reconheceu de boa vontade, que eram mais finasdo que ela mesma. Havia somente duas. Uma era seu irmão, que
se afogara diante de seus olhos, outra uma mocinha, sua maior amiga, que morrera dando à luz o primeirofilho. Essas coisas tinham acontecido há uns 50 anos.
“Eles não deviam ter morrido”, pensou. “Mas morreram, e nós, velhas criaturas egoístas, continuamos aqui.”As lágrimas lhe vieram aos olhos; sentia uma verdadeira
saudade deles, uma espécie de respeito por sua juventude e beleza, e uma espécie de vergonha de si mesma; mas as lágrimas não caíram; ela abriu um daqueles inumeráveis
romances que costumava julgar bons ou ruins, ou bastante medíocres ou realmente maravilhosos. “Não sei como é que as pessoas imaginam coisas assim” costumava dizer,tirando
seus óculos e erguendo seus velhos olhos desbotados, que começavam a adquirir círculos esbranquiçados.
Logo atrás do leopardo empalhado Mr. Elliot jogava xadrez com Mr. Pepper. Naturalmente estava sendo derrotado, pois Mr. Pepper quase não tirava os olhos do tabuleiro,
e Mr. Elliot ficava recostado para trás na cadeira fazendo comentários com um cavalheiro que chegara na noite anterior, um homem alto e bonito, a cabeça parecendo
a de um intelectual. Depois de alguns poucos comentários de natureza geral, estavam descobrindo que conheciam algumas pessoas em comum, o que ficara óbvio desde
que se tinham visto, pela sua própria aparência.
Ah, sim, o velho Truefit – disse Mr. Elliot. – Tem um filho em Oxford. Muitas vezes me hospedei com eles. Umalinda velha casa no estilo jacobino. Uns Greuzes muito
bonitos... uma ou duas pinturas holandesas que o velho guardava nos porões. Também havia pilhas e mais pilhas de gravuras. Ah, a sujeira daquela casa! Ele era um
avarento,você sabe. O rapaz casou-se com uma filha de Lord Pinwells.Também os conheço.A mania de colecionar ten-de a repetir-se nas famílias. Esse homem coleciona
fivelas...devem ser fivelas de sapatos masculinos, usados entre 1580e 1660; as datas podem não ser exatas mas o fato é como eudisse. O verdadeiro colecionador sempre
tem uma excentricidade desse tipo. Noutros pontos ele é tão comumquanto um criador de vacas, o que por acaso é sua profissão.Então, os Pinwells, como você provavelmente
sabe, também têm suas excentricidades. Lady Maud, por exemplo...aqui ele foi interrompido pela necessidade de analisar sua jogada – Lady Maud tem horror a gatos,
sacerdotes e pessoas com dentes frontais grandes. Eu a escutei gritar do outro lado da mesa. “Fique de boca fechada, Miss Smith;eles são amarelos como cenouras!”.
Isso à mesa, imagine.Comigo ela sempre foi educadíssima. Mexe com literatura,gosta de reunir alguns de nós na sua sala de estar, mas mencione um padre, um bispo,
até o próprio arcebispo, e elacomeça a gorgolejar como um peru. Disseram-me que é uma briga de família... algo ligado a um antepassado noreinado de Carlos I. Sim
– continuou ele, sofrendo um xeque depois do outro –, eu gosto de saber coisas sobre asavós dos nossos jovens elegantes. Na minha opinião, elespreservam tudo o que
admiramos no século XVIII, com avantagem, na maioria dos casos, de serem pessoalmente asseados. Não que se fosse insultar Lady Barborough dizendo que é asseada.
Hilda – chamou sua esposa –, quantasvezes Sua Senhoria toma banho?
– Eu não gostaria de dizer, Hugh – respondeu Mrs. Elliot com um risinho abafado. – Mas usando veludo roxo mesmo nos mais quentes dias de agosto, não se nota.
– Pepper, você me venceu- disse Mr. Elliot. – Meu xadrez é pior do que eu lembrava. – Ele aceitou sua derrota com grande equanimidade, porque o que realmente queria
era falar.Depois empurrou sua cadeira ao lado de Mr. Wilfred Flushing, o recém-chegado.
– O senhor vende tudo isso? – perguntou apontando para um estojo na frente deles,onde crucifixos,jóias altamente polidas, peças de bordado e obras de nativos estavam
expostos.
– Tudo falsificado – disse Mr. Flushing, lacônico. – Mas essa manta não está nada ruim. – Ele inclinou-se e pegou uma parte da manta a seus pés. – Não é antiga,claro,
mas o desenho está conforme a tradição. Alice, empreste-me seu broche. Vejam a diferença entre trabalho antigo e novo.
Uma senhora que lia muito concentrada soltou o seu broche e deu-o ao marido sem olhar para ele nem para a tentativa de mesura que Mr. Elliot queria lhe fazer. Se
ela tivesse escutado poderia ter se divertido com a referência à velha Lady Barborough, sua tia-avó, mas, esquecida de onde estava, continuou lendo.
O relógio que há alguns minutos sibilava como um velho preparando-se para tossir, bateu nove horas. O som perturbou de leve alguns sonolentos homens de negócios,pessoal
do governo e homens de posses recostados em suas poltronas, conversando, fumando, ruminando sobre seus assuntos, olhos semicerrados; eles levantaram suas pálpebras
um instante ouvindo as batidas e fecharam-nas de novo. Pareciam crocodilos tão repletos por sua última refeição que o futuro do mundo não lhes dava a menor ansiedade.
A única perturbação na sala plácida e iluminada foi uma grande mariposa que disparava de lâmpada em lâmpada, zumbindo por cima de penteados elaborados, fazendo várias
jovens erguerem as mãos nervosas,exclamando:
– Alguém tem de matá-la!Absorvidos em seus próprios pensamentos, Hewet e
Hirst não falavam há bastante tempo.Quando o relógio bateu, Hirst disse:
Ah, as criaturas começam a mover-se... – Observouas levantando-se de seus lugares, olhando em torno e sentando-se de novo. – O que eu mais detesto – concluiu é o
seio feminino. Imagine ser Venning e ter de ir para a cama com Susan! Mas a coisa realmente repulsiva é que elas não sentem absolutamente nada... mais ou menos o
que sinto quando tomo um banho quente. São grosseiras,são absurdas, são absolutamente insuportáveis!
Dizendo isso, sem obter resposta de Hewet, ele continuou pensando em si mesmo, na ciência, em Cambridge,no Tribunal, em Helen e no que ela pensaria dele, até que,muito
cansado, começou a cabecear e cochilar.
De repente, Hewet despertou-o.
Como é que você sabe o que sente, Hirst?
Você está apaixonado? – perguntou Hirst colocando o monóculo.
– Não seja bobo – respondeu Hewet.
– Bem, vou pensar nisso – disse Hirst. – Nós realmente devíamos. Se ao menos essas pessoas aí pensassem, o mundo seria um lugar bem melhor para se viver. Está tentando
pensar?
Era exatamente isso que Hewet estivera fazendo na última meia hora, mas naquele momento não achou que Hirst estivesse sendo compreensivo.
Vou dar um passeio – disse Hewet.
Lembre-se de que ontem à noite não fomos dormir – disse Hirst com um bocejo prodigioso.Hewet levantou-se e esticou o corpo.
– Quero caminhar e respirar um pouco – disse.Um sentimento inusitado o estivera incomodando a noite toda, impedindo-o de seguir qualquer linha de pensamento. Era
exatamente como se estivesse no meio de uma conversa que lhe interessasse profundamente e alguém viesse interrompê-la. Não conseguia terminar a conversa, e quanto
mais ficava ali sentado mais queria concluí-la. Como o diálogo interrompido tivesse sido com Rachel, indagava-se por que sentia isso e por que queria continuar falando
com ela. Hirst teria dito apenas que estava apaixonado por ela. Mas não estava. Amor começava assim, com o desejo de continuar conversando? Não. No caso dele, sempre
começava com sensações físicas definidas, que não aconteciam desta vez. Havia alguma coisa, inusitada claro, em relação a ela – era jovem,inexperiente, indagadora,
tinham sido mais francos um com o outro do que era possível habitualmente. Ele sempre achava interessante falar com moças, e essa era uma boa razão para querer continuar
falando com ela; e na noite passada, com a multidão e a confusão, ele apenas conseguira começar um diálogo. O que estaria ela fazendo agora? Deitada num sofá olhando
o teto, quem sabe? Podia imaginá-la fazendo isso, Helen numa poltrona com as mãos no braço da poltrona, assim – olhando em frente com aqueles olhos enormes –, não,
não, estariam conversando, claro, sobre o baile. Mas, e se Rachel partisse por um dia ou dois, e se fosse o fim de sua visita, e seu pai tivesse chegado num dos
vapores ancorados na baía? – era insuportável saber tão pouco sobre ela. Por isso, Hewet exclamou:
– Como é que você sabe o que sente, Hirst? – para impedir-se de pensar.
Mas Hirst não o ajudou, e as outras pessoas, com seus movimentos despropositados e suas vidas desconhecidas,eram perturbadoras, de modo que ansiava por uma escuridão
vazia. A primeira coisa que buscou quando saiu da porta do salão foi a luz da villa dos Ambrose. Quando decidiu finalmente que uma luz apartada das outras mais acima
no morro era a luz deles, ficou bem mais tranqüilo.Parecia haver de repente um pouco de estabilidade na sua incoerência. Sem qualquer plano definido na mente, ele
dobrou à direita e atravessou a cidade, chegando até o muro onde as estradas se encontravam, e parou. Ouvia-se o bramido do mar. A massa azul-escura das montanhas
erguia-se diante do azul mais pálido do céu. Não havia lua, mas miríades de estrelas e as luzes ancoradas acima e abaixo das escuras ondas de terra ao seu redor.
Ele quis voltar, mas a luz isolada da villa dos Ambrose se transformara em três luzes separadas, e ficou tentado a prosseguir.Podia verificar se Rachel ainda estava
lá. Caminhando depressa, logo chegou junto do portão de ferro do jardim deles e empurrou-o; o contorno da casa subitamente apareceu nítido diante de seus olhos,
com a fina coluna da varanda atravessando o cascalho palidamente iluminado do terraço. Ele hesitou. Alguém fazia ruído com latas nos fundos da casa. Aproximou-se
da frente; a luz no terraço mostrava que as salas de estar ficavam daquele lado. Parou o mais próximo da luz que podia, no canto da casa, as folhas de uma hera roçando
seu rosto. Depois de um momento ouviu uma voz. A voz prosseguiu firme; não era uma conversa, mas pela continuidade do som era uma voz lendo em voz alta. Ele esgueirou-se
um pouco mais perto; juntou as folhas para que não farfalhassem em torno de suas orelhas. Podia ser a voz de Rachel. Saiu da sombra e entrou nos raios de luz; então
ouviu uma frase nitidamente pronunciada:
– E lá vivemos do ano de 1860 a 1895, os anos mais felizes da vida de meus pais, e lá em 1862 meu irmão Maurice nasceu, para encanto de seus pais, e estava destinado
a ser o encanto de todos os que o conhecessem.A voz corria e o tom tornou-se conclusivo, erguendo-se de leve, como se as palavras fossem o fim de um capítulo.Hewet
recuou para a sombra. Houve um silêncio prolongado. Ele ouviu cadeiras sendo empurradas lá dentro. Quasedecidiu voltar,quando de repente duas figuras apareceram
najanela, a menos de dois metros de onde ele estava.
– Foi de Maurice Fielding, é claro, que sua mãe esteve noiva – disse a voz de Helen. Falava em tom pensativo,olhando para o jardim escuro, evidentemente pensando
tanto na aparência da noite quanto no que dizia.
– Mamãe? – disse Rachel. O coração de Hewet saltou, e ele notou isso. A voz dela, embora baixa, estava cheia de surpresa.
– Você não sabia? – disse Helen.
– Eu nem sabia que tinha havido outra pessoa – disse Rachel. Sua surpresa era evidente, mas tudo o que diziam era baixo e inexpressivo, porque estavam falando na
fria noite escura.
– Ela teve mais apaixonados do que qualquer outra pessoa que conheci – afirmou Helen. – Tinha... esse poder ela saboreava as coisas. Não era linda, mas... pensei
nela ontem à noite durante o baile. Ela sabia lidar com todo tipo de pessoas e tornava tudo tão surpreendentemente... divertido.
Parecia que Helen ia voltar ao passado, escolhendo palavras deliberadamente, comparando Theresa com as pessoas que conhecera depois que ela morrera.
Não sei como ela fazia isso – prosseguiu e calou-se;houve uma longa pausa, em que uma corujinha gritou,primeiro aqui, depois ali, movendo-se de árvore em árvore
no jardim.
É bem típico de tia Lucy e tia Katie – disse Rachel por fim. Elas sempre me disseram que ela era muito triste e muito boa.
Mas então por que, pelo amor de Deus, elas sempre a criticavam quando era viva? – disse Helen. Suas vozes soavam muito docemente, como se atravessassem as ondas
do mar.
– Se eu fosse morrer amanhã... – começou ela.
As frases interrompidas tinham uma extraordinária beleza e distanciamento aos ouvidos de Hewet, e uma espéciede mistério também, como se estivessem falando no sono.
Não, Rachel – exclamou a voz de Helen. – Não vou caminhar no jardim; está úmido... certamente está úmido;além disso vi pelo menos uma dúzia de sapos.
Sapos? São pedras, Helen. Venha. Está mais bonito fora. As flores estão perfumadas – respondeu Rachel.
Hewet recuou ainda mais. Seu coração pulsava muito depressa. Aparentemente Rachel tentava puxar Helen para o terraço e Helen resistia. Houve uma porção de ruídos
de insistência, resistência e risadas das duas. Então apareceu o vulto de um homem. Hewet não conseguia ouvir o que todos diziam. Logo entraram; ele pôde ouvir ferrolhos
trancando portas; depois baixou um silêncio mortal, e todos as luzes se apagaram.
Ele afastou-se, ainda amassando e desamassando um punhado de folhas que arrancara da parede. Um delicado sentimento de prazer e alívio o dominou; era tudo tão sólido
e pacífico depois do baile no hotel, quer ele estivesse apaixonado por elas ou não, e não estava apaixonado por elas; não, mas era bom estarem vivas.
Depois de ficar quieto um minuto ou dois, ele virou-se e começou a andar em direção ao portão. Com o movimento do seu corpo, a excitação, o romance e a riqueza da
vida torvelinhavam em seu cérebro. Gritou um verso, mas as palavras lhe escapavam, e tropeçou entre versos e fragmentos de versos que não tinham nenhum significado
senão a beleza das palavras. Fechou o portão e correu cambaleando de um lado a outro morro abaixo, gritando qualquer insensatez que lhe ocorresse.
– Aqui estou! – gritava ritmicamente, enquanto seus pésbatiam no chão à esquerda e à direita. – Avançando comoum elefante na seiva, arrancando galhos enquanto sigo
(eleapanhava galhinhos de um arbusto à beira do caminho),berrando incontroláveis palavras, correndo morro abaixo efalando bobagens alto para mim mesmo a respeito
de estradas e folhas e luzes e mulheres saindo para a escuridão...sobre mulheres... sobre Rachel, sobre Rachel.
Ele parou e respirou fundo. A noite parecia imensa e acolhedora, e embora estivesse tão escuro, parecia haver coisas movendo-se lá embaixo no porto e no mar lá fora.Ele
ficou olhando até a escuridão o deixar embotado; então seguiu andando rapidamente, ainda murmurando para si mesmo:
– E eu devia estar na cama, roncando e sonhando, sonhando, sonhando. Sonhos e realidades, sonhos e realidades, sonhos e realidades – repetiu todo o caminho subindo
a avenida, quase sem saber o que dizia, até chegar à porta da frente.Lá parou por um segundo e controlou-se antes de abrir a porta.
Seus olhos estavam aturdidos,as mãos muito frias,seu cérebro excitado e mesmo assim semi-adormecido. Dentro de casa tudo estava como deixara, exceto o saguão,que
estava vazio. Havia cadeiras voltadas umas para as outras onde as pessoas tinham se sentado conversando,copos vazios sobre mesinhas e jornais espalhados no chão.Quando
fechou a porta sentiu-se aprisionado numa caixa quadrada, e imediatamente murchou. Era tudo muito pequeno e muito claro. Parou por um minuto junto da mesa comprida
para procurar um jornal que andara querendo ler, mas ainda estava demasiado influenciado pela escuridão e pelo ar puro para refletir exatamente qual era o jornal
e onde o vira.
Enquanto remexia vagamente os jornais, viu com o rabo do olho uma figura passar, descendo as escadas.Ouviu um farfalhar de saias, e para sua grande surpresa Evelyn
M. veio até ele, pousou a mão na mesa como para evitar que ele apanhasse um jornal, e disse:
– O senhor é exatamente a pessoa com quem eu que-ria falar. – Sua voz era um pouquinho desagradável emetálica, seus olhos muito brilhantes, e ela os mantinha fixos
em Hewet.
– Falar comigo? – repetiu ele. – Mas estou quase dormindo.
– Mas acho que o senhor entende melhor que a maioria das pessoas – respondeu ela e sentou-se numa cadeirinha junto de uma grande poltrona de couro, de modo que Hewet
teve de sentar-se ao lado dela.
– Então? – disse ele, bocejando abertamente, acendendo um cigarro. Não podia acreditar que aquilo estava realmente lhe acontecendo. – Do que se trata?
– O senhor realmente está interessado, ou é só pose? – indagou ela.
– A senhora é que vai dizer – respondeu ele. – Acho que estou interessado. – Ainda se sentia embotado e parecia-lhe que ela estava próxima demais.
– Qualquer um pode estar interessado! – exclamou ela.
– Seu amigo Mr. Hirst está interessado, suponho. Mas acredito no senhor. Tem cara de ter uma irmã simpática.Ela fez uma pausa, apanhando umas lantejoulas em seu
regaço, e então, como se tivesse tomado uma decisão, começou:
– Seja como for, vou lhe pedir um conselho. O senhor alguma vez entrou num estado em que não entende mais sua própria mente? Eu estou me sentindo assim. Sabe, na
noite passada, no baile, Raymond Oliver, o rapaz alto e moreno que parece ter sangue índio... bem, estávamos sentados juntos lá fora e ele me contou realmente tudo
a respeito de si mesmo, de como é infeliz em casa e como odeia estar aqui. Colocaram-no num trabalho horrível, de minas. Ele diz que é horrível... Sei que eu gostaria,
mas isso não é nem aqui nem lá. E tive muita pena dele, não se podia deixar de ter pena, e quando ele me perguntou se podia me beijar eu deixei. Não vejo nenhum
mal nisso, e o senhor? E então esta manhã ele disse que achava que eu queria dizer mais alguma coisa e que eu não era o tipo de mulher que deixa qualquer um lhe
dar um beijo. E falamos muito. Atrevo-me a dizer que fui muito boba, mas não dá para evitar de gostar de pessoas quando se tem pena delas. Eu gosto terrivelmente
dele... – Ela fez uma pausa. – Então lhe fiz uma meia promessa, e depois, sabe,existe Alfred Perrott.
– Ah, o Perrott – disse Hewet.
– Ficamos nos conhecendo no piquenique outro dia – continuou ela. – Parecia tão solitário,especialmente quando Arthur se afastou com Susan, e não se podia deixar
de adivinhar o que se passava na sua mente. Então tivemos uma conversa bastante longa quando vocês estavam olhando as ruínas, e ele me contou tudo sobre sua vida,
sua lutas e de como tudo fora terrivelmente difícil. Sabe, ele foi mensageiro numa mercearia e carregava os embrulhos das pessoas para a casa delas num cesto. Isso
me interessou sobremaneira, pois sempre digo que não importa como se nasce, desde que se tenha material bom por dentro. Ele me falou da irmã paralítica, pobre mocinha,
pode se ver que é uma grande provação, embora ele evidentemente lhe seja muito devotado. Devo dizer que admiro pessoas assim! Não espero que admire, pois o senhor
é tão culto. Bem, na noite passada nos sentamos juntos lá fora no jardim, e não pude deixar de ver o que ele queria dizer,de consolá-lo um pouquinho dizendo-lhe
que me importava com ele... e realmente me importo... só que agora existe Raymond Oliver. O que quero que o senhor me diga é: pode-se estar apaixonado por duas pessoas
ao mesmo tempo, ou não?
Ficou calada, sentada com o queixo nas mãos, parecendo muito concentrada,como se enfrentasse um problema real que tivessem de discutir.
– Acho que depende do tipo de pessoa que se é – disse Hewet, e encarou-a. Era pequena e bonita, talvez com 28 ou 29 anos, mas embora belas e bem feitas, suas feições
não expressavam nada muito claramente, exceto uma grande dose de animação e boa saúde.
– Quem é a senhorita, o que é a senhorita? Veja, não sei nada a seu respeito – continuou ele.
– Bem, era disso que eu ia falar – disse Evelyn M. ainda com o queixo apoiado nas mãos e olhando em frente com atenção. – Sou filha de mãe solteira, se isso lhe
interessa. Não é uma coisa muito boa. Acontece sempre no interior. Ela era filha de um fazendeiro, e ele era um bonitão... o rapaz da casa grande. Nunca fez as coisas
direito... nunca se casou com ela... embora nos desse bastante dinheiro. Sua família não deixava. Pobre papai! Não posso deixar de gostar dele. Mas mamãe não era
mesmo o tipo de pessoa que pudesse satisfazê-lo. Foi morto na guerra.Acho que seus homens o adoravam. Dizem que no campo de batalha alguns de seus comandados, homens
enormes, choraram sobre seu corpo. Eu queria tê-lo conhecido. Mamãe perdeu toda a vontade de viver. O mundo... – ela fechou o punho. – Ah, as pessoas podem ser horríveis
com uma mulher dessas! – Virou-se para Hewet. – Bem,quer saber mais a meu respeito?
Mas, e a senhorita? – perguntou ele. – Quem tomava conta da senhorita?
Em geral eu cuido de mim mesma – riu ela. – Tive amigos esplêndidos. Eu gosto de gente! Esse é o problema. O que faria o senhor se gostasse tremendamente de duas
pessoas ao mesmo tempo e não pudesse dizer de qual gosta mais?
– Eu continuaria gostando delas... e esperaria para ver o que ia acontecer. Por que não?
– Mas é preciso decidir-se – disse Evelyn. – Ou o senhor é uma dessas pessoas que não acreditam em casamento e tudo isso? Olhe... isso não é justo, eu conto tudo,e
o senhor não me conta nada. Quem sabe o senhor é igual ao seu amigo... – ela olhou-o, cheia de suspeitas. – Talvez não goste de mim.
– Eu não a conheço – disse Hewet.
– Eu sei quando gosto de uma pessoa no primeiro instante! Na primeira noite no jantar soube que gostava do senhor. Ah! meu Deus – continuou impaciente –, quanto
aborrecimento seria poupado se as pessoas dissessem francamente as coisas que pensam. Eu sou assim. Não posso fazer nada.
– Mas não acha que isso causa problemas? – perguntou Hewet.
– Isso é um erro dos homens – respondeu ela. – Eles sempre forçam isso... no amor, quero dizer.
– E assim a senhorita teve uma proposta atrás da outra
– disse Hewet.
– Acho que não recebi mais propostas do que a maioria das mulheres – disse Evelyn, mas sem convicção.
– Cinco, seis, dez? – arriscou Hewet.
Evelyn pareceu calcular que dez talvez fosse a cifra certa, mas que isso não era realmente grande coisa.
– Acho que está me julgando uma flertadora sem coração
– protestou ela. – Mas não me importa. Não me importocom o que os outros pensem de mim. Só porque a gente seinteressa,quer ser amiga dos homens e fala com eles como
sefala com mulheres, já nos chamam de flertadoras.
Mas, Miss Murgatroyd...
Queria que me chamasse de Evelyn – interrompeu ela.
– Depois de dez propostas, sinceramente ainda pensa que os homens são iguais às mulheres? -Sinceramente, sinceramente... como odeio essa palavra! Sempre é usada
por grandes pedantes – exclamou Evelyn. – Sinceramente eu acho que deviam ser. É isso que é tão decepcionante. Sempre se pensa que não vai acontecer, e sempre acontece.
– A busca da amizade – disse Hewet. – Título de uma comédia.
– O senhor é terrível – gritou ela. – Não se importa com nada. O senhor parece Mr. Hirst.
– Bem – disse Hewet –, vamos pensar. Vamos pensar...– ele fez uma pausa, pois no momento não podia lembrarsobre o que é que deviam pensar. Estava bem mais interessado
nela do que na sua história, pois enquanto ela falava oembotamento dele desaparecia, consciente de uma misturade afeto, piedade e desconfiança. – A senhorita prometeuse
casar com os dois, Oliver e Perrott? – concluiu ele.
– Não exatamente – disse Evelyn. – Não posso decidir sobre qual realmente gosto mais. Ah, como detesto a vida moderna! – disparou ela. – Deve ter sido tão mais fácil
para os elisabetanos! Outro dia na montanha pensei como gostaria de ter sido um desses colonizadores, derrubando árvores, fazendo leis e tudo isso, em vez de ficar
me fazendo de boba com essa gente que só pensa que eu sou apenas uma moça bonitinha. Embora eu não seja. Eu realmente poderia realizar alguma coisa. – Ela refletiu
em silêncio por um minuto, depois disse:
– Bem no fundo do coração tenho medo de que Alfred Perrott não sirva. Ele não é forte, é?
– Talvez ele não conseguisse derrubar uma árvore – disse Hewet. – A senhorita nunca gostou de ninguém?
– Gostei de montes de pessoas, mas não para me casar
– disse ela. – Acho que sou exigente demais. Toda a vida eu quis alguém que pudesse admirar, alguém grande, alto,esplêndido. Os homens em geral são tão pequenos.
– O que quer dizer com esplêndido? – perguntou
Hewet. – As pessoas são o que são... nada mais.Evelyn ficou perplexa.
– Nós não gostamos das pessoas pelas suas qualidades
– tentou explicar Hewet. – Gostamos apenas delas – ele acendeu um fósforo –, só isso – concluiu apontando para as chamas.
– Entendo o que quer dizer – disse ela –,mas não concordo. Eu sei por que gosto das pessoas, e acho que dificilmenteme engano.Vejo imediatamente o que há dentro
delas.Achoque o senhor deve ser esplêndido; mas não Mr. Hirst.Hewet sacudiu a cabeça.
– Ele não é nem de longe tão altruísta, tão simpático,tão grande ou tão compreensivo – continuou Evelyn.
Hewet ficou sentado, quieto, fumando seu cigarro. – Eu odiaria derrubar árvores – comentou.
– Não estou tentando flertar com o senhor, embora ache que pensa que estou! – disparou Evelyn. – Nunca oteria procurado se pensasse que apenas pensa coisasodiosas
a meu respeito! – Seus olhos encheram-se de lágrimas.
– A senhorita nunca flerta? – perguntou ele.
– Claro que não – protestou ela. – Eu não lhe disse? Quero amizade; quero gostar de alguém maior e mais nobre do que eu; se se apaixonam por mim não é culpa minha;
eu não quero isso; odeio isso, na verdade.Hewet viu que adiantava pouco continuar com aquele diálogo, pois era óbvio que Evelyn não queria dizer nada em particular,
mas impor-lhe uma imagem de si mesma,por estar, por algum motivo que não revelava, infeliz ou insegura. Ele estava muito cansado, e um garçom pálido ficava caminhando
ostensivamente até o centro da sala, olhando significativamente para eles.
– Estão querendo fechar – disse Hewet. – Meu conselho é que a senhorita conte a Oliver e Perrott, amanhã,que decidiu não se casar com nenhum dos dois. Estou certo
de que não quer mesmo. Se mudar de idéia, sempre poderá lhes dizer isso. Os dois são homens sensatos; vão compreender. E então todo esse seu aborrecimento vai passar.
– E levantou-se.
Mas Evelyn não se mexeu. Ficou sentada erguendo paraele seus olhos brilhantes e ansiosos, no fundo dos quais ele pensou detectar um pouco de decepção ou insatisfação.
– Boa noite – disse ele.
– Ainda há montes de coisas que eu queria lhe dizer – disse ela. – E um dia vou dizer. Imagino que o senhor tenha de ir para a cama agora? – Sim – disse Hewet. –
Estou quase dormindo... – Deixou-a ainda sentada sozinha no saguão vazio.
– Por que será que elas não querem ser honestas? – resmungava, subindo as escadas. Por que relações entre pessoas diferentes eram tão insatisfatórias,fragmentárias,tão
arriscadas, e as palavras tão perigosas que o instinto de simpatizar com outro ser humano devia ser cuidadosamente examinado e provavelmente esmagado? O que Evelyn
realmente desejava dizer-lhe? O que sentia agora,sozinha no saguão vazio? O mistério da vida e a irrealidade de nossas próprias sensações o dominaram quando ele
descia pelo corredor que levava ao seu quarto. Estava mal iluminado, mas o suficiente para ver uma figura num robe colorido passar rapidamente na sua frente, o vulto
de uma mulher passando de um quarto a outro.
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Sejam frágeis demais ou muito vagos, os laços que unem as pessoas que se encontram por acaso num hotel à meianoite possuem uma vantagem, pelo menos, em relação aoslaços
que unem os mais velhos, que, uma vez juntos, têm deviver juntos a vida inteira. Podem ser frágeis, mas são vivos egenuínos, meramente porque o poder de rompê-los
está ao alcance de todos, e não há motivo para continuar, exceto umverdadeiro desejo de que continuem. Quando duas pessoasestão casadas há anos, parecem tornar-se
inconscientes dapresença corporal uma da outra, de modo que se movemcomo se estivessem sozinhas,falam alto coisas que não esperam resposta, e em geral parecem experimentar
todo o conforto do isolamento sem a solidão.As vidas unidas de Ridleye Helen haviam chegado a esse estágio de comunhão,e muitas vezes era necessário que um ou outro
lembrasse com esforço se uma coisa fora pronunciada ou apenas pensada,partilhada ou sonhada em particular. Às quatro da tarde,dois ou três dias depois, Mrs. Ambrose
estava escovando seucabelo enquanto o marido estava no quarto de vestir contíguo ao quarto dela; eventualmente, através do cascatear daágua – ele lavava o rosto
– ela ouvia exclamações:
– É assim, ano após ano; eu queria, queria poder acabar com isso – mas ela não dava atenção.
– É branco? Ou só castanho? – ela murmurava examinando um fio de cabelo que brilhava de modo suspeito entre os castanhos. Ela o arrancou e depositou no toucador.
Criticava sua própria aparência, ou antes aprovava-a,afastando-se um pouco do espelho e olhando seu rosto com majestoso orgulho e melancolia, quando seu marido apareceu
na soleira, em mangas de camisa, rosto meio coberto por uma toalha.– Muitas vezes você me diz que não noto as coisas – comentou ele.
– Então me diga, isto é um cabelo branco? – respondeu ela, e botou o cabelo na mão dele.
– Não há um só cabelo branco na sua cabeça – exclamou ele.
– Ah, Ridley, começo a duvidar – suspirou ela e inclinou sua cabeça debaixo dos olhos dele para que pudesse avaliar, mas a inspeção apenas produziu um beijo na linha
divisória dos cabelos, e marido e mulher passaram a mover-se pelo quarto com murmúrios casuais.
– O que é que você estava dizendo? – comentou Helen depois de um intervalo do diálogo que nenhuma terceira pessoa teria entendido.
– Rachel... você devia ficar de olho em Rachel – comentou ele enfaticamente, e Helen, embora continuasse a escovar os cabelos, o encarou. Em geral os comentários
dele eram verdadeiros.
– Jovens cavalheiros não se interessam pela instrução de jovens damas sem um motivo – comentou ele.
– Ah, Hirst – disse Helen.
– Hirst e Hewet, para mim é tudo a mesma coisa...todos muito suspeitos – respondeu ele. – Ele a aconselha a ler Gibbon, você sabia disso? Helen não sabia, mas não
admitiu ser inferior ao marido em poder de observação.Então apenas disse:
– Nada me surpreenderia, mesmo aquele horrível homem voador que encontramos no baile... até Mr. Dalloway... até...
– Aconselho-a a ser circunspecta – disse Ridley. – Existe Willoughby, lembre-se... Willoughby – ele apontou para uma carta.
Helen olhou com um suspiro para um envelope sobre seu toucador. Sim, lá estava Willoughby, lacônico, inexpressivo, eternamente jocoso, retirando o mistério de todo
um continente, perguntando pelas maneiras e moral de sua filha – esperando que ela não os aborrecesse pedindo que a despachassem de volta a bordo do primeiro navio
se os estivesse aborrecendo – e depois, grato e afetuoso, com emoção contida, e depois meia página sobre seus próprios triunfos sobre miseráveis pequenos nativos
que tinham feito uma greve recusando-se a carregar seus navios, até ele berrar em inglês “metendo a cabeça fora da janela bem como estava, em mangas de camisa. Os
mendigos tiveram juízo bastante para se dispersarem”.
– Se Theresa se casou com Willoughby – comentou ela virando a página com um grampo de cabelo não vejo o que impediria Rachel...
Mas Ridley agora entregava-se a seus próprios aborrecimentos quanto à lavagem de suas camisas, o que o levou a comentar as freqüentes visitas de Hughling Elliot,
que era chato, pedante, um homem sem graça, mas Ridley não podia simplesmente apontar a porta da rua e mandá-lo embora. A verdade era que viam gente demais. E assim
por diante, e assim por diante, mais conversa conjugal mansa e ininteligível, até estarem os dois prontos para descerem para o chá.
A primeira coisa que chamou a atenção de Helen quando desceu a escada foi uma carruagem na porta,cheia de saias e plumas balouçando em cima de chapéus. Teve apenas
tempo de entrar na sala de estar antes de dois nomes serem terrivelmente mal pronunciados pela criada espanhola,e Mrs.Thornbury entrou um pouco à frente de Mrs.Wilfrid
Flushing.
– Mrs.Wilfrid Flushing – disse Mrs.Thornbury com um aceno. – Amiga de nossa amiga comum, Mrs. Raymond Parry.
Mrs. Flushing apertou a mão de Helen energicamente. Era uma mulher de talvez 40 anos, muito bem posta e ereta, de uma esplêndida robustez, embora não tão alta como
fazia parecer sua postura ereta.
Fitou Helen diretamente no rosto e disse:
– A senhora tem uma casa encantadora.
Tinha um rosto bem marcado, os olhos fitavam os outros abertamente, e embora fosse naturalmente imperiosa,era nervosa ao mesmo tempo. Mrs. Thornbury agiu como intérprete,
suavizando as coisas com uma série de encantadores comentários banais.
– Mr. Ambrose – disse ela –, tomei a liberdade de pro-meter que o senhor teria a bondade de dar a Mrs.Flushing o benefício de sua experiência. Tenho certeza de que
ninguém conhece este país tão bem quanto o senhor. Ninguém dá essas longas caminhadas maravilhosas. Tenho certeza de que ninguém tem o seu conhecimento enciclopédico
de todos os temas.Mr.Wilfrid Flushing é um colecionador. Já descobriu coisas realmente belíssimas. Eu não tinha idéia de que os camponeses fossem tão artísticos...
embora naturalmente, no passado...
– Não coisas velhas... coisas novas – interrompeu Mrs.Flushing laconicamente. – Isto é, quando ele aceita meu conselho.
Os Ambrose conheciam muita gente, pelo menos de nome, por terem vivido tantos anos em Londres, e Helen lembrou-se de ter ouvido falar nos Flushing.Mr.Flushing tinha
uma loja de móveis antigos, ele sempre dissera que nunca se casaria porque a maioria das mulheres tinha faces vermelhas e que não compraria uma casa porque casas
em geral têm escadas estreitas, que não comia carne porque a maioria dos animais sangra ao serem mortos; depois casou-se com uma excêntrica aristocrata, que certamente
não era lívida, que tinha ar de quem come carne e que o forçara a fazer todas as coisas que ele mais detestava – e era essa a dama. Helen contemplou-a com interesse.
Tinham saído para o jardim, onde o chá era servido sob uma árvore, e Mrs. Flushing servia- se de geléia de cerejas. Quando falava, seu corpo dava um singular movimento
brusco, que fazia a pluma amarelo-canário em seu chapéu saltar também. Suas feições pequenas mas firmemente modeladas e vigorosas, com o vermelho profundo de lábios
e faces, indicavam muitas gerações de ancestrais bem treinados e bem nutridos antes dela.
– Eu não me interesso por nada que tenha mais de 20 anos – continuou ela. – Velhos quadros embolorados, velhos livros sujos, ficam em museus onde só servem para
serem queimados.
– Eu concordo – riu Helen. – Mas meu marido passa a vida desenterrando manuscritos que ninguém quer. – Ela diverte-se com a expressão de perplexa reprovação de Ridley.
– Mas há um homem inteligente em Londres, chamado John, que pinta muito melhor do que os velhos mestres – prosseguiu Mrs. Flushing. – Seus quadros me excitam...
nada que seja velho me excita.– Mas também os quadros dele serão velhos um dia – interveio Mrs. Thornbury.
– Pois então vou mandar que os queimem, vou botar isso no meu testamento – disse Mrs. Flushing.
– E Mrs. Flushing vivia numa das mais belas casas antigas da Inglaterra... Chillingley – explicou Mrs. Thornbury aos demais.
– Se eu pudesse fazer como quero, mandaria queimála amanhã – riu Mrs. Flushing. Seu riso era como o pequeno grito de um papagaio, surpreendente e sem alegria.
– O que é que uma pessoa sensata quer com uma dessas casas enormes? – perguntou. – Se se desce ao térreo depois de escurecer, fica-se coberto de besouros pretos,
e a luz elétrica está sempre apagando. O que fariam se saíssem aranhas da torneira quando abrissem a água quente? – perguntou imperiosa, fixando o olhar em Helen.Mrs.
Ambrose deu de ombros, sorrindo.
– É disso que eu gosto – disse Mrs. Flushing, entortando a cabeça em direção da villa. – Uma casinha num jardim. Uma vez tive uma, na Irlanda. A gente podia ficar
deitado na cama de manhã e apanhar rosas na janela com os dedos dos pés.
– E os jardineiros não ficavam espantados? – indagou Mrs. Thornbury.
– Não havia jardineiros – disse Mrs. Flushing com umarisadinha. – Ninguém senão eu e uma velha desdentada.Vocês sabem que na Irlanda os pobres perdem seus dentesdepois
dos 20 anos. Mas não se pode esperar que um político entenda isso... Arthur Balfour não entenderia. Ridley suspirou, dizendo que nunca esperava que ninguém entendesse
nada, muito menos políticos.
– Porém – concluiu ele –, há uma vantagem em ser muito, muito velho: nada mais importa senão comida e digestão. Tudo o que peço é que me deixem ficar mofando nasolidão.
É obvio que o mundo está indo o mais depressaque pode para o fundo do poço, e tudo o que posso fazer é sentar-me quieto e consumir o mais possível minha própria
fumaça. – Ele deu um gemido e com um olhar melancólico espalhou geléia no pão, pois achava claramente pouco simpática a atmosfera daquela dama tão brusca...
– Sempre contradigo meu marido quando ele diz isso
– disse docemente Mrs. Thornbury. – Vocês homens! Onde estariam se não fossem as mulheres?
– Leia o Symposium – disse Ridley, carrancudo.
– Symposium? – exclamou Mrs. Flushing. – Isso é latim ou grego? Diga-me, existe uma boa tradução?
– Não – disse Ridley. – A senhora terá de aprender grego.Mrs. Flushing exclamou:
– Ha,ha,ha! Prefiro quebrar pedras na estrada.Sempre invejo os homens que quebram pedra e se sentam o dia todo naqueles belos montinhos usando óculos. Preferiria
infinitamente quebrar pedras a limpar galinheiros ou dar comida para as vacas, ou...
Nisso Rachel subiu da parte inferior do jardim com um livro na mão.
Que livro é esse? – disse Ridley após os cumprimentos.
É Gibbon – disse Rachel sentando-se.
– Declínio e queda do Império Romano? – disse Mrs. Thornbury. – Um livro maravilhoso, eu sei. O meu querido pai estava sempre citando o livro para a gente e por
isso resolvemos nunca ler uma linha.
– Gibbon, o historiador? – indagou Mrs. Flushing. – Eu o ligo a algumas das horas mais felizes da minha vida.Costumávamos ficar deitados na cama lendo Gibbon...
sobre os massacres dos cristãos, lembro-me disso... quando devíamos estar dormindo. Não é brincadeira, acreditem, ler um livro enorme daqueles em duas colunas com
um lampião e a claridade que entra por uma fresta na porta. E havia as mariposas... mariposas-tigre, mariposas amarelas e horrendos besouros grandes. Louisa, minha
irmã, queria ficar de janela aberta. Eu queria fechá-la.Brigávamos terrivelmente todas as noites por causa daquela janela. Já viram uma mariposa morrendo num lampião?
– perguntou ela.
Novamente uma interrupção. Hewet e Hirst apareceram na janela da sala de estar e aproximaram-se da mesa de chá.
O coração de Rachel bateu mais depressa. Percebia uma extraordinária intensidade em todas as coisas, como se a presença deles removesse alguma cobertura da superfície
das coisas; mas os cumprimentos foram notavelmente triviais.
– Com licença – disse Hirst erguendo-se de sua cadeira assim que se sentara. Foi até a sala de estar e voltou com uma almofada, que colocou cuidadosamente sobre
sua cadeira.
– Reumatismo – comentou, quando se sentou pela segunda vez.
– Resultou do baile? – perguntou Helen.
– Sempre que fico muito cansado tenho reumatismo – afirmou Hirst e dobrou seu pulso bem para trás. – Escuto pedacinhos de giz moendo-se uns aos outros!
Rachel encarou-o. Achava engraçado mas sentia respeito; se isso era possível, a parte superior de seu rosto parecia rir, e a inferior contestar esse riso.
Hewet apanhou o livro que estava no chão.
– Gosta disso? – perguntou com um tom velado.
– Não, não gosto – respondeu ela. Andara realmente tentando toda a tarde ler o livro, e por algum motivo a glória que percebera no início se fora; por mais que lesse
não conseguia apanhar o sentido.
– Ele gira e gira e gira como um rolo de oleado – arriscou. Evidentemente queria que só Hewet ouvisse suas palavras, mas Hirst indagou:
– O que quer dizer com isso?
Ela ficou imediatamente envergonhada por sua figura de linguagem, pois não podia explicá-la numa crítica sóbria.
– Certamente é o mais perfeito estilo que já foi inventado – continuou ele. – Toda frase é praticamente perfeita, e a graça...“Feio de corpo, repulsivo de mente”,
pensou ela, em vez de pensar no estilo de Gibbon. “Sim, mas de mente forte, perquiridora, obstinada.” Ela encarou sua cabeça grande, com a testa ocupando uma parte
desproporcional,e os olhos severos e diretos.
– Desisto da senhorita,por desespero – disse ele.Falava sem gravidade, mas ela o levou a sério e acreditou que seu valor como ser humano diminuíra porque não admirava
o estilo de Gibbon. Os outros agora falavam num grupo sobre as aldeias nativas que Mrs. Flushing devia visitar.
– Eu também me desespero – disse ela, impetuosamente. – Como pode julgar pessoas apenas pelas suas mentes?
– Espero que a senhorita concorde com minha tia solteirona – disse St. John naquela sua maneira animada que era sempre irritante porque fazia a outra pessoa parecer
indevidamente desajeitada e grave.
– “Seja boa, doce donzela”... pensei que Mr. Kingsley e minha tia estivessem obsoletos hoje em dia.
– Pode-se ser muito agradável sem se ter lido um livro – afirmou ela. Suas palavras soaram muito tolas e simplórias, e a expunham ao ridículo.
– Eu alguma vez neguei isso? – inquiriu Hirst arqueando as sobrancelhas. Muito inesperadamente, Mrs. Thornbury interveio nesse momento, ou por ser sua missão manter
as coisas andando suavemente, ou porque há muito desejava falar com Mr. Hirst, sentindo como sentia que rapazes eram sempre seus filhos.
– Eu vivi minha vida toda com pessoas como sua tia,Mr. Hirst – disse ela inclinando-se para frente em suacadeira. Seus olhos castanhos brilhavam mais que decostume.
– Elas nunca ouviram falar de Gibbon. Só se importam com seus faisões e seus camponeses. Sãograndes homens, que ficam muito bem no lombo de umcavalo, como, imagino,
os homens no tempo das grandesguerras. Diga o que quiser contra eles... são animais, nãosão intelectuais; não lêem e não querem que outrosleiam, mas são das melhores
e mais bondosas pessoas daterra! O senhor ficaria surpreso com algumas das histórias que eu poderia contar. Talvez nunca tenha pensadoem todos os romances que acontecem
no interior. Sintoque lá estão as pessoas entre as quais Shakespeare renascerá, se nascer de novo. Naquelas casas bizarras, lá emcima, nos Downs...
– Minha tia – interrompeu Hirst – passa sua vida em East Lambeth entre os pobres degradados. Eu só a citei porque ela se inclina a perseguir pessoas que chama de
“intelectuais”, o que suspeito que Miss Vinrace esteja fazendo. Está na moda agora. Se você é inteligente, sempre pensam que não tem simpatia, compreensão, afeto...
todas as coisas que realmente importam. Ah, vocês, cristãos! São o grupo mais convencido, condescendente e hipócrita de velhos impostores! Claro – continuou ele
–, eu sou o primeiro a admitir que seus nobres rurais têm grandes méritos. De um lado, provavelmente são bem francos a respeito de suas paixões, o que nós não somos.
Meu pai,clérigo em Norfolk, diz que dificilmente existe um nobre rural que não seja...
– Mas, e Gibbon? – interrompeu Hewet. O ar de tensão nervosa que cobrira todos os rostos relaxou com essa interrupção.
– Acho que você o considera monótono. Mas, sabe... –ele abriu o livro e começou a procurar trechos para ler emvoz alta; em pouco tempo encontrou um que considerouadequado.
Mas não havia nada no mundo que entediasse Ridley mais do que alguém lendo em voz alta. Além dissoele era escrupulosamente crítico quanto a trajes e comportamento
de senhoras. Em 15 minutos já fizera um julgamento negativo em relação a Mrs. Flushing, pois uma pluma laranja não combinava com sua pele, ela falava alto demais,
cruzava as pernas e, finalmente, quando a viu aceitarum cigarro que Hewet lhe oferecia, saltou de pé exclamando alguma coisa sobre “defensores de salão’” e afastou-se.
Mrs. Flushing ficou evidentemente aliviada com sua partida. Tirando baforadas de seu cigarro, esticou as pernas einterrogou Helen melhor sobre o caráter e reputação
de suaamiga comum, Mrs. Raymond Parry. Por uma série de pequenos estratagemas, levou-a a definir Mrs. Parry como um tanto idosa, nada bonita, muito maquiada... uma
velhabruxa insolente, em suma, cujas festas eram muito divertidas porque nela se encontravam pessoas esquisitas, masHelen tinha pena do pobre Mr. Parry, que se dizia
ficartrancado no andar de cima com caixas de pedras preciosas,enquanto sua esposa se divertia na sala de visitas.
– Não que eu acredite no que as pessoas falam contra ela... embora naturalmente ela faça insinuações... e Mrs. Flushing gritou, deliciada:
– Ela é minha prima-irmã... continue, continue!
Quando se levantou para sair, Mrs. Flushing estava obviamente encantada com seus novos conhecidos. Fez três ou quatro planos diferentes de encontros ou passeios,ou
de mostrar a Helen coisas que tinham comprado, enquanto se dirigia para sua carruagem. Incluiu-os todos num convite vago mas pomposo.
Quando Helen voltou ao seu jardim, as palavras de aviso de Ridley voltaram à sua mente e ela hesitou um momento, olhando para Rachel sentada entre Hewet e Hirst.
Mas não conseguiu tirar conclusões, pois Hewet ainda lia Gibbon em voz alta, e Rachel, pela sua expressão, podia ser uma concha; as palavras dele, água roçando em
seus ouvidos, como a água batendo numa concha na superfície de uma rocha.
A voz de Hewet era muito agradável. Quando chegavaao fim da frase, parava e ninguém oferecia qualquer crítica.
– Eu realmente adoro a aristocracia! – exclamou Hirst depois de um momento. – São tão espantosamente inescrupulosos. Nenhum de nós se atreveria a portar-se como
aquela mulher se portou.
– O que gosto neles – disse Helen quando se sentou – é que têm tão bela postura. Nua, Mrs. Flushing seria soberba.Vestida do jeito que se veste, naturalmente é um
absurdo.
– Sim – disse Hirst, e uma sombra de depressão cruzou seu rosto.
– Eu nunca pesei mais do que 63 quilos na vida, o que é ridículo considerando minha altura; na verdade perdi peso desde que cheguei aqui. Atrevo-me a dizer que isso
explica o reumatismo. – Ele dobrou novamente o pulso bem para trás, de modo que Helen pudesse ouvir o moer dos pedaços de giz. Ela não pôde evitar um sorriso.
– Acredite, para mim não é coisa de se rir – protestou ele. – Minha mãe é uma inválida crônica e estou sempre esperando que me digam que também tenho uma doença
cardíaca. No final, reumatismo sempre ataca o coração.
– Pelo amor de Deus, Hirst – protestou Hewet –, alguém poderia pensar que você é um velho aleijado de 80 anos. Se for assim, tenho uma tia que morreu de câncer,mas
não ligo para isso. – Ele endireitou-se e começou a balançar a cadeira para a frente e para trás sobre as pernas traseiras. – Alguém aqui tem vontade de dar uma
caminhada? Há um passeio magnífico subindo atrás da casa. A gente chega a um penhasco e vê o mar lá embaixo. Os rochedos são vermelhos; pode-se vê-los embaixo da
água.Outro dia vi uma coisa que me deixou quase sem respirar... cerca de 20 medusas, semitransparentes, rosadas,com longos filamentos, flutuando sobre as ondas.
– Tem certeza de que não eram sereias? – disse Hirst.
– Está quente demais para subir o morro. – Ele olhou para Helen, que mostrava sinais de mexer-se.
– Sim, está quente demais – decidiu ela.Houve um breve silêncio.
– Eu gostaria de ir – disse Rachel.
“Mas ela podia de qualquer jeito ter dito isso”, pensouHelen quando Hewet e Rachel se afastaram juntos, e elaficou sozinha com St. John, para evidente satisfação
deste.
Ele podia estar satisfeito, mas sua habitual dificuldade em decidir qual assunto merecia ser abordado o impediu de falar por algum tempo. Sentava-se olhando fixamente
a cabeça de um fósforo apagado, enquanto Helen meditava – assim parecia pela expressão de seus olhos, sobre algo não intimamente ligado ao momento presente.
Finalmente St. John exclamou:
– Droga! Tudo é uma droga! Todo mundo é uma droga! – acrescentou. – Em Cambridge há gente com quem se pode falar.– Em Cambridge há gente com quem se pode falar –
ecoou Helen rítmica e distraidamente. Então despertou.
– Por falar nisso, o senhor já resolveu o que vai fazer... vai a Cambridge ou fará Direito?
Ele torceu os lábios, mas não respondeu logo, pois Helen ainda estava um pouco desatenta. Ela estivera pensando em Rachel e por qual dos dois rapazes ela provavelmente
se apaixonaria, e agora, sentada diante de Hirst,pensava: “Ele é feio. Uma pena que sejam tão feios”.
Não incluiu Hewet nessa crítica; pensava nos rapazes cultos, honestos e interessantes que conhecia, dos quais Hirst era um bom exemplo, e imaginava se era necessário
que pensamento e erudição sempre maltratassem assim seus corpos e elevassem suas mentes a uma torre muito alta, da qual a raça humana lhes parecia ratos e camundongos
contorcendo-se no chão.
“E o futuro?”, refletiu ela divisando vagamente uma raça de homens que se tornariam cada vez mais parecidos com Hirst e uma raça de mulheres cada vez mais parecida
com Rachel. “Ah, não”, concluiu, lançando-lhe um olhar, “ninguém se casaria com você. Portanto, o futuro da raça está nas mãos de Susan e Arthur, não... isso é terrível.
De agricultores; não... não dos ingleses, mas de russos e chineses.” Essa linha de pensamento não a satisfez, e foi interrompida por St. John, que recomeçava:
Eu gostaria que a senhora conhecesse Bennett. É o maior homem do mundo.
Bennett? – perguntou ela. Ficando mais à vontade,St. John deixou aquela rispidez concentrada e explicou que Bennett morava num velho moinho a dez quilômetros de
Cambridge. Vivia uma vida perfeita, segundo St.John, muito solitário, muito simples, interessando-se apenas pela verdade das coisas, sempre disposto a conversar,extraordinariamente modesto, embora sua mente fosse uma das maiores.
A senhora não acha – disse St. John depois de descrevê-lo – que esse tipo de coisa faz aquele tipo de coisa parecer frívola? A senhora notou no chá como o pobre velho Hewet teve de mudar de assunto? Como estavam todos dispostos a me malhar porque achavam que eu ia dizer alguma coisa imprópria? E realmente não era nada.Se Bennett estivesse aqui, teria dito exatamente o que queria dizer, ou teria se levantado e ido embora. Mas é muito ruim para a personalidade, quero dizer, quando não se tem a personalidade de Bennett. Tende a deixar a gente amargo. A senhora acha que sou amargo?
Helen não respondeu e ele prosseguiu:
– Naturalmente eu sou amargo, repulsivamente amargo, e é uma coisa abominável ser assim. Mas o pior em mim é que sou muito invejoso. Invejo todo mundo. Não suporto gente que saiba fazer coisa melhor do que eu...coisas perfeitamente absurdas também... garçons equilibrando pilhas de pratos... até Arthur, porque Susan está apaixonada por ele. Quero que as pessoas gostem de mim,e não gostam. Espero que seja em parte minha aparência,embora seja uma mentira dizer que tenho sangue judeu...na verdade
estamos em Norfolk, Hirst de Hirstbourne Hall, pelo menos há três séculos. Deve ser terrivelmente reconfortante ser como a senhora... todo mundo gostando da senhora
imediatamente.
– Asseguro-lhe que não é assim – Helen riu.
– É, sim – disse Hirst com convicção. – Em primeiro lugar, a senhora é a mais bela mulher que já vi; em segundo, tem uma natureza excepcionalmente encantadora.
Se Hirst olhasse para ela em vez de olhar intensamente para a xícara de chá, teria visto Helen corar, em parte por prazer, em parte por um impulsivo afeto pelo jovem
que parecera e voltaria a parecer tio feio e tão limitado.Ela sentia pena dele, pois suspeitava de que sofria, interessava-se por ele, pois muitas das coisas que
ele dizia lhe pareciam verdadeiras; admirava a ética da juventude, e mesmo assim sentia-se prisioneira. Como se o seu instinto fosse escapar para algo vivamente
colorido e impessoal que pudesse segurar nas mãos, ela entrou na casa e voltou com seu bordado. Mas Hirst não estava interessado no bordado dela; nem lhe lançou
um só olhar.
Sobre Miss Vinrace – começou ele. – Ah, olhe aqui,vamos ser St. John e Helen, e Rachel e Terence... que tal é ela? Ela raciocina, sente, ou é apenas uma espécie
de banquinho para os pés?
Ah, não – disse Helen, muito decidida. Por suas observações durante o chá duvidava que Hirst seria a pessoacerta para instruir Rachel. Aos poucos começara a interessar-se
pela sobrinha e a gostar dela; algumas coisas nela aaborreciam muito, outras a divertiam; mas de modo geralsentia-a como um ser humano vivo embora informe, experimental,
e nem sempre feliz em seus experimentos, mascom poderes de algum tipo e capacidade de sentir. Em al-gum lugar lá no fundo, Helen estava ligada a Rachel pelosindestrutíveis
embora inexplicáveis laços do seu sexo.
Ela parece vaga, mas tem vontade própria – disse ela,como se no intervalo tivesse avaliado suas qualidades.
O bordado,que exigia seu pensamento pelo desenho difícile pelas cores que precisavam de alguma análise,causava lapsosno diálogo quando ela parecia concentrada em
seus novelos deseda ou, quando com a cabeça um pouco recuada e os olhosestreitados, analisava o efeito geral. Por isso, ela apenas disse “Hum-hum” ao comentário
seguinte de St. John:
– Vou convidá-la para um passeio comigo.
Talvez ele se ressentisse da atenção parcial dela.Sentou-se calado observando Helen mais de perto.
– Você está absolutamente feliz – proclamou ele finalmente.
– O quê? – indagou Helen, enfiando a agulha.
– Suponho que seja o casamento – disse St. John.
– Sim – disse Helen, suavemente retirando a agulha.
– Filhos? – perguntou St. John.
– Sim – disse Helen, enfiando novamente a agulha. – Não sei porque sou feliz – de repente ela riu, olhando direto nos seus olhos. Houve um considerável intervalo.
– Há um abismo entre nós – disse St. John. Sua voz soou como se viesse das profundezas de uma caverna nos penhascos. – Você é infinitamente mais simples do que eu.
Naturalmente, as mulheres sempre são. Esse é o problema. Nunca se sabe como uma mulher chega lá.Achamos que o tempo todo vocês estão pensando: “Ah,mas que rapaz
mórbido!”Helen ficou sentada, olhando para ele com a agulhana mão. De sua posição via a cabeça dele diante da pirâmide escura de uma magnólia. Com um pé erguidosobre
a trave de uma cadeira e o cotovelo curvado na postura de quem costura, ela tinha a sublimidade deuma mulher do mundo antigo tecendo o fio do destino – a sublimidade
de muitas mulheres da atualidade queassumem a postura exigida para esfregar ou costurar.St. John fitou-a.
– Acho que a senhora nunca fez um elogio em sua vida
– disse ele superficialmente.
– Eu costumo mimar Ridley – ponderou Helen.
– Vou lhe fazer uma pergunta bem franca, você gosta de mim?
Depois de uma pausa ela respondeu:
Sim, sem dúvida.
Graças a Deus! – exclamou ele. – Já é uma graça.
Sabe – continuou emocionado –, prefiro o seu afeto ao de qualquer outra pessoa que já conheci.
– E quanto aos cinco filósofos? – disse Helen com uma risada, bordando firme e rapidamente a sua tela. – Eu gostaria que os descrevesse para mim.Hirst não tinha
muita vontade de descrevê-los, mas quando começou a pensar neles sentiu-se mais apaziguadoe mais forte. Longe como estavam, no outro lado do mundo, em aposentos
enfumaçados e tribunais medievais cinzentos, pareciam figuras notáveis, homens francos comquem podia sentir-se à vontade; incomparavelmente maissutis nas emoções
do que as pessoas ali. Certamente lhedavam o que mulher alguma podia lhe dar, nem mesmo Helen. Aquecendo-se à lembrança deles, continuou a expor seu próprio caso
diante de Mrs. Ambrose. Deveria ficarem Cambridge ou ir ao Tribunal? Um dia ele pensava umacoisa; noutro dia, outra. Helen escutava atentamente. Por fim, sem nenhuma
preferência, ela deu sua decisão.
– Deixe Cambridge e vá ao Tribunal – disse. Ele quis saber os motivos. – Acho que você gostaria mais de Londres.
Não parecia um motivo muito sutil, mas ela pareciajulgá-lo suficiente. Helen encarou-o diante do fundo damagnólia em flor.Havia algo de curioso nessa visão.Talvezfosse
pelas pesadas flores parecendo cera, tão macias e inarticuladas, e seu rosto – ele jogara longe o chapéu, seu cabelo estava desgrenhado, segurava os óculos na mão
de modoque aparecia a marca vermelha dos dois lados do nariz – estava bem preocupado e falante. Era um lindo arbusto estendendo-se muito amplamente, e todo o tempo
que passara ali sentada conversando notara as manchas de sombra, a forma das folhas e como as grandes flores brancasestavam instaladas no meio do verde. Notara isso
meio inconscientemente, mas mesmo assim esse padrão tornara-separte da sua conversa. Largou o bordado e começou a andar de um lado para o outro do jardim, e Hirst
também selevantou e caminhou ao lado dela. Estava bastante perturbado e pensativo. Nenhum deles falava.
O sol começava a pôr-se, e as montanhas estavam mudando, como se lhes tivessem roubado sua substância terrena e fossem compostas apenas de uma imensa névoa azul.
Longas e tênues nuvens cor de flamingo, com beiradas como as de penas de avestruz, enroscadas pelo céu em várias altitudes. Os telhados da cidade pareciam mais baixos
do que de costume, os ciprestes pareciam muito negros entre os telhados, e estes estavam castanhos e brancos. Como sempre ao anoitecer, gritos e toques de sinos
isolados chegavam bem nítidos lá de baixo.
De repente St. John parou:
– Bem, você tem de assumir a responsabilidade – disse ele. – Eu decidi: vou trabalhar no Tribunal. Sua palavras eram muito sérias, quase comovidas; depois de um
segundo de hesitação, Helen lembrou-se.
– Tenho certeza de que você está fazendo o que é certo – disse afetuosamente, e apertou a mão que ele estendia. – Você vai ser um grande homem, estou certa disso.
Então, como para fazê-lo olhar o cenário, ela fez umgesto com a mão por toda a imensa circunferência dapaisagem. Do mar, sobre os telhados da cidade, atravésda crista
de montanhas, sobre o rio e a planície, e novamente sobre a crista das montanhas, a mão deslizou até chegar à villa, o jardim, a magnólia, os vultos de Hirst eela
mesma parados juntos, e depois descaiu ao lado dopróprio corpo.
16
Há muito tempo Hewet e Rachel haviam chegado ao lugar na beira do penhasco onde, olhando para o mar abaixo, avistaram-se medusas e delfins. Olhando para o outrolado,
a vasta extensão de terra dava-lhes uma sensação que nenhuma paisagem na Inglaterra oferecia, por mais vastaque fosse;lá as aldeias e morros com nomes,e o mais distante
horizonte de morros quase sempre mergulhados e mostrando uma linha nevoenta que era o mar; aqui a paisagemera de uma infinita terra ressequida de sol, terra em pináculos
pontudos, amontoada em vastas barreiras, terra alargando-se mais e mais como o imenso assoalho do mar, terra contrastada pelo dia e pela noite, partida em diversos
países,onde se fundavam cidades famosas e as raças de homens mudavam de selvagens escuros para brancos civilizados e novamente para selvagens escuros.Talvez seu
sangue inglês tornasse essa perspectiva desconfortavelmente impessoal ehostil, pois tendo uma vez voltado o rosto para aquele lado,logo o voltaram para o mar, e
ficaram o resto do tempo sentados olhando para ele. O mar, embora fosse ali uma águafina e cintilante parecendo incapaz de rompantes de ira,eventualmente estreitava-se,
nublava o seu azul puro com cinza, escorria por estreitos canais, e disparava num tremorde águas fragmentadas contra as maciças rochas de granito.Era esse mar que
corria até à boca do Tâmisa; e o Tâmisalavava as raízes da cidade de Londres.
Os pensamentos de Hewet tinham seguido mais ou menos esse curso, pois a primeira coisa que disse quando se postaram na beira do penhasco foi:
– Eu gostaria de estar na Inglaterra!
Rachel deitou-se apoiada no cotovelo e partiu os talos de capim altos que cresciam na beira, para poder ter a vistadesimpedida.A água estava muito calma,balançava
na basedo rochedo, tão clara que se podia ver o vermelho das pedras no fundo. Assim fora no nascimento do mundo, e assim continuava desde então. Provavelmente nenhum
ser humano jamais rompera essas águas com barco ou com seucorpo. Obedecendo a um impulso, ela decidiu quebraraquela eternidade de paz e jogou a maior pedra que pôdeencontrar.
Ela bateu na água, e as ondulações se espalharam mais e mais. Hewet também olhou para baixo.
– É maravilhoso – ele disse enquanto as ondulações se espraiavam e cessavam. O frescor e a novidade pareceram maravilhosos. Ele jogou também uma pedra. Quase não
se ouviu nenhum som.
– Mas a Inglaterra – murmurou Rachel no tom absorto de alguém cujos olhos se concentravam numa paisa-gem. – O que quer com a Inglaterra?
– Principalmente meus amigos – disse ele –, e todas as coisas que se fazem lá.
Hewet podia olhar para Rachel sem que ela notasse.Ainda estava absorvida pela água e pelas sensações extremamente agradáveis que o mar pouco profundo banhandoas
pedras sugere. Percebeu que ela estava usando um vestido azul-escuro, de fino tecido de algodão, que se prendia àsformas do seu corpo. Era um corpo com ângulos e
cavidades de um corpo de mulher jovem, ainda não desenvolvido,mas também não distorcido, e por isso interessante e até adorável. Erguendo os olhos, Hewet observou
sua cabeça;ela tirara o chapéu, e o rosto pousava em sua mão. Quandoela olhava para o mar lá embaixo, seus lábios estavam levemente entreabertos. A expressão era
de concentração infantil, como se esperasse que um peixe passasse nadando sobre as claras rochas vermelhas. Mesmo assim, seus 24 anos de vida tinham lhe dado uma
aparência reservada. Suamão, que pousava no solo, os dedos levemente recurvados,era bem formada e competente; os dedos nervosos e depontas quadradas eram dedos de
pianista. Com uma sensação semelhante a angústia, Hewet percebeu que, longe deser pouco atraente, seu corpo o atraía muito. Os olhos delaestavam cheios de interesse
e animação.
– Você escreve romances? – perguntou ela.
Naquele instante ele não conseguiu pensar no que dizia.Estava dominado pelo desejo de segurá-la nos braços.
– Ah, sim. Quero dizer, desejo escrever romances.Ela não tirava os olhos cinzentos do rosto dele.
– Romances – repetiu ela. – Por que escreve romances? Devia escrever música. Música, sabe – ela desviou os olhos e tornou-se menos agradável quando seu cérebro começou
aagir, provocando certa mudança em seu rosto –, a música vaidireto até as coisas. Diz de uma vez tudo o que há para dizer.Ao escrevê-la me parece que há tanto –
ela fez uma pausaprocurando uma expressão e esfregou os dedos na terra,esfregando-os depois numa caixa de fósforo. – Na maior parte dotempo quando estava lendo Gibbon
esta tarde,eu estava terrivelmente,ah,infernalmente,abominavelmente entediada! Ela sacudiu-se ao rir olhando para Hewet, que também riu.
– Eu não vou lhe emprestar livros – comentou ele.
– Por que posso rir de Mr. Hirst com você, mas não na cara dele? No chá eu estava completamente esmagada, não pela feiúra mas pela mente dele. – Ela fez um círculo
no ar com as mãos. Percebeu com grande sensação de conforto como era fácil falar com Hewet, sem aqueles espinhos ou arestas que rasgam a superfície dealgumas relações.
– Notei isso – disse Hewet. – Isso é uma coisa que nunca deixa de me surpreender. – Recuperara sua compostura a ponto de conseguir acender e fumar um cigarro,e vendo-a
tranqüila, ficou feliz e à vontade.
– O respeito que as mulheres, mesmo as instruídas, mulheres muito capazes, sentem pelos homens – prosseguiu ele–, deve ser o tipo de poder que dizem que temos sobre
cavalos. Eles nos enxergam três vezes maiores do que somos, senão nunca nos obedeceriam. Por isso mesmo tendo a duvidar de que vocês mulheres jamais venham a fazer
qualquer coisaquando tiverem direito ao voto. – Ele a fitou pensativamente.
Ela parecia muito calma, sensível e jovem. – Vai levar pelomenos seis gerações antes de terem a pele suficientementegrossa para ingressarem nos tribunais ou escritórios
de empresas. Pense no valentão que é um homem comum, no advogado ou homem de negócios comum que trabalha duro, é bastante ambicioso, com família para sustentar e
certa posição a manter. E depois, naturalmente, as filhas terão de cederlugar aos filhos; os filhos terão de ser instruídos; terão de fanfarronear e de labutar pelas
suas esposas e famílias e tudo vairecomeçar. Enquanto isso, lá estão as mulheres, ao fundo... Asenhorita realmente acha que o voto vai favorecê-las?
O voto? – repetiu Rachel. Teve de visualizá-lo como um papelzinho que se jogava numa caixa antes de entender a questão; encarando-se, sorriram de alguma coisa absurda
na pergunta.
Para mim não – disse ela. – Mas eu toco piano... Os homens são realmente assim? – perguntou voltando à questão que a interessava. – Eu não tenho medo do senhor –
ela o fitou bem à vontade.
Ah, eu sou diferente – respondeu Hewet. – Tenho porano 600 ou 700 libras só minhas. E ninguém leva um romancista a sério, graças a Deus. Não há dúvida de que issoajuda
a compensar a parte enfadonha da profissão, se umhomem é levado muito, muito a sério por todo mundo... temcompromissos, escritórios, um título, montes de cartas
endereçadas a seu nome e pedaços de fita e diplomas. Não tenhoressentimentos por isso, embora às vezes me domine... queespantosa trama! Que milagre é a concepção
masculina davida... juízes, funcionários públicos, exército, marinha, Casasdo Parlamento, prefeitos... que mundo fazemos com isso!
Veja Hirst agora. Eu lhe asseguro, não se passou um dia desde que chegamos sem uma discussão acerca de ele ficar emCambridge ou ir ao Tribunal. É sua carreira...
sua sagradacarreira. E se eu o escutei 20 vezes, tenho certeza de que airmã e a mãe dele o escutaram 500 vezes. Pode imaginar asreuniões de família, a irmã mandada
para o pátio dar comidaaos coelhos porque St. John tem de ficar com a sala de estudos só para ele? “St. John está trabalhando”, “St. John querque lhe leve o seu
chá.”Você nunca pensa nesse tipo de coisa? Não admira que St. John julgue ser da maior importância. E é mesmo. Ele tem de ganhar a vida. Mas a irmã de St.John –
Hewet deu uma baforada em silêncio. – Ninguém aleva a sério, coitadinha. Ela dá comida aos coelhos.
– Sim – disse Rachel, eu dei comida aos coelhos durante 24 anos; agora, parece tão esquisito. – Ela parecia pensativa, eHewet, que falava bastante a esmo, adotando
instintivamente o ponto de vista feminino, viu que agora ela ia falar de si mesma, e era o que ele queria, pois assim talvez se conhecessem.Ela encarava com ar meditativo
a sua vida passada.
– Como passa os seus dias? – perguntou ele.
Ela ainda meditava. Quando pensava no seu dia, parecia-lhe que era cortado em quatro partes pelas refeições.Essas divisões eram absolutamente rígidas, os conteúdos
do dia tendo de acomodar-se dentro de quatro rígidas partes. Olhando sua vida, era isso que via.
– Café da manhã às nove; almoço à uma; chá às cinco; jantar às oito – disse ela.
Bem, disse Hewet – o que faz de manhã?
Eu costumava ficar tocando piano horas e horas.
E depois do almoço?
– Eu ia fazer compras com uma de minhas tias. Ou íamos visitar alguém, ou recebíamos uma mensagem, ou fazíamos alguma coisa que tinha de ser feita... as torneiras
talvezestivessem pingando. Elas visitam bastante os pobres... velhas faxineiras doentes das pernas,mulheres que querem cartões de atendimento em hospitais. Eu costumava
andar noparque sozinha.E depois do chá,às vezes fazia uma visita; noverão nos sentávamos no jardim ou jogávamos croqué, noinverno eu lia em voz alta enquanto elas
trabalhavam; depoisdo jantar eu tocava piano e elas escreviam cartas. Se papaiestivesse em casa, vinham amigos para o jantar, e uma vez ao mês mais ou menos íamos
ao teatro. De vez em quando jantávamos fora; às vezes eu ia a um baile em Londres, mas era difícil por causa da volta. As pessoas que víamos eram velhosamigos da
família e parentes, não víamos muita gente. Haviaum clérigo,Mr.Pepper,e os Hunt.Papai em geral gostava deficar quieto quando estava em casa, porque em Hull ele trabalha
muito. E também minhas tias não eram pessoas muito fortes. Uma casa consome muito tempo se você cuida deladireito. Nossas criadas sempre eram ruins, de modo que
tiaLucy passava muito tempo na cozinha, e tia Clara, eu acho,passava a maior parte da manhã tirando pó da sala de visitase cuidando das roupas de cama e pratarias.
E havia os cachorros. Tinham de ser levados para caminhar, além de se-rem banhados e escovados.Sandy morreu,mas tia Clara temuma cacatua muito velha que veio da
Índia. Tudo na nossacasa – exclamou ela – vem de alguma parte! Está cheia demóveis velhos, não realmente velhos, mas vitorianos, coisas da família de minha mãe ou
de meu pai, de que não quiseram se livrar embora não haja realmente lugar para elas. É uma casa bastante bonita,mas um pouco sombria...sem graça, eu diria. – Ela
evocou a visão da sala de visitas em casa; era um grande aposento retangular com uma janela quadrada abrindo para o jardim. Havia cadeiras de veludo verdepostadas
diante da parede; também um armário de livrospesado e esculpido, com portas de vidro, e uma impressãogeral de estofamentos desbotados,grandes espaços de verdeclaro,
e cesto com trabalhos de tricô caindo para fora. Fotosde velhas obras-primas italianas penduradas nas paredes e paisagens de pontes de Veneza e cascatas da Suécia
quemembros da família tinham visto anos atrás. Havia também os dois retratos pintados de pais e avós, e uma gravura deJohn Stuart Mill, reprodução do quadro de Watts.
Era umaposento sem caráter definido, nem típica e obviamente medonho, nem muito artístico, nem realmente confortável. Rachel despertou da contemplação dessa imagem
familiar.
Mas isso não é muito interessante para você – disse,erguendo o olhar.
Santo Deus! – exclamou Hewet. – Nunca na vida estive tão interessado. – Então ela percebeu que enquanto estivera pensando em Richmond os olhos dele permaneceram
grudados em seu rosto. Notar isso animou-a.
Prossiga, por favor, prossiga – insistiu ele. – Vamos imaginar que é quarta-feira. Vocês estão todas almoçando. A senhorita sentada ali, tia Lucy ali e tia Clara
aqui.
Ele arranjou três pedrinhas sobre a relva entre eles.
Tia Clara corta o pescoço do cordeiro – prosseguiuRachel. Fixava seu olhar nas pedrinhas. – Há um velho suporte de porcelana amarelo muito feio à minha frente, chamado
criado-mudo, sobre o qual há três travessas, uma para biscoitos,outra para manteiga,outra para queijo.Há um potede samambaias. E há Blanche, a criada, que é fanhosa.Conversamos...
ah sim, é a tarde de tia Lucy em Walworth,de modo que almoçamos bem depressa. Ela sai, tem umasacola roxa e um caderno preto.Tia Clara tem a sua chamadareunião de
G.F.S. na sala de visitas nas quartas, de modo queeu levo os cachorros para passear. Vou para Richmond Hill,ao longo do casario,e entro no parque.É 18 de abril...mesmodia
que aqui. Na Inglaterra é primavera. O chão está bastante úmido. Mesmo assim eu atravesso a estrada, chego até arelva e caminhamos, e eu canto como sempre faço quando
estou sozinha, até chegarmos a um lugar aberto de onde sepode ver Londres inteira lá embaixo num dia claro. A torreda Hampstead Church aqui, a Catedral de Westminster
ali echaminés de fábrica acolá. Em geral há nevoeiro sobre aspartes mais baixas de Londres; mas muitas vezes está azulsobre o parque quando Londres está nevoenta.
É o localaberto onde os balões passam vindos de Hurlingham.São de um amarelo pálido. Bem, há um cheiro muito bom, especialmente quando queimam madeira na cabana
do zelador que fica ali. Agora eu poderia lhe dizer como ir de um lugar aoutro, exatamente por que árvores você passa e onde se deveatravessar a estrada. Sabe, eu
brincava ali quando criança. Aprimavera é boa, mas é melhor no outono quando os cervosbalem; então começa a escurecer e volto pelas ruas; não seenxergam direito
as pessoas; elas passam muito depressa; malse vêem seus rostos e já somem... disso que eu gosto... e ninguém tem idéia do que se está fazendo...
– Mas imagino que você tenha de estar de volta para o chá? – conferiu Hewet.
Chá? Ah, sim. Cinco horas. Então conto o que andeifazendo, e minhas tias contam o que andaram fazendo, etalvez alguém apareça: digamos, Mrs. Hunt. É uma velhasenhora
com perna manca. Tem ou teve oito filhos; entãoperguntamos por eles. Estão todos espalhados pelo mundo;então perguntamos onde estão, e às vezes estão doentes ounuma
região que tem cólera, ou algum lugar onde só chovedurante cinco meses. Mrs. Hunt – disse ela com um sorriso teve um filho que morreu com um abraço de urso.
Aqui ela parou e olhou para Hewet, para ver se ele se divertia com as mesmas coisas que a divertiam. Ficou tranqüilizada. Mas achou que devia pedir desculpas novamente;
falara demais.
– A senhorita não imagina como isso me interessa – disse ele. Com efeito, seu cigarro apagara e ele teve de acender outro.
– Por que lhe interessa? – perguntou ela.
Em parte porque você é uma mulher – respondeu ele. Quando disse isso, Rachel, que se esquecera de tudo,voltando a um estado infantil de interesse e prazer, perdeu
sua liberdade e tornou-se consciente de si mesma. Sentiuse a um tempo estranha e observada, como se sentia com St. John Hirst. Estava por começar uma discussão que
os teria deixado amargurados um com outro e a definir sensações que não tinham a importância que as palavras costumavam conferir-lhes, quando Hewet levou os pensamentos
dela em outra direção.
Muitas vezes caminhei por essas ruas onde as pessoas vivem em casas enfileiradas, onde cada casa é exatamente igual à outra, e ficava imaginando o que será que as
mulheres estariam fazendo lá dentro – disse ele. – Pense bem: estamos no começo do século XX, e até poucos anos atrásnenhuma mulher jamais se manifestava por si
mesma nemdizia coisa alguma. E essa estranha vida não-representadacontinuava acontecendo ao fundo, há milhares de anos. Naturalmente sempre escrevemos sobre mulheres...
insultando-as, adorando-as ou desdenhando delas; mas nada jamais veio das próprias mulheres. Acredito que ainda nãosabemos nem ao menos como elas vivem, ou o que
sentem,ou o que exatamente elas fazem. Quando se é homem, asúnicas confidências que se escutam de mulheres jovens dizem respeito a seus casos de amor. Mas as vidas
das mulheres de 40, de mulheres descasadas,de trabalhadoras, de mulheres que têm lojas e criam filhos, de mulheres como suastias ou Mrs.Thornbury ou Miss Allan...não
sabemos absolutamente nada a respeito delas. Não nos contam nada. Elastêm medo, ou então descobriram uma maneira de tratar os homens. Sabe, é o ponto de vista masculino
o que se manifesta sempre. Pense num trem: 15 vagões para homens que querem fumar. Isso não faz seu sangue ferver? Se eu fosse uma mulher, explodiria a cabeça de
alguém. Vocês não riemum tanto de nós? Não acham tudo isso uma grande farsa? Vocês, quero dizer... como é que tudo isso lhes parece?
Aquela determinação de saber, embora desse sentido ao diálogo deles, deixava-a inibida; ele parecia pressionar mais e mais, e fazia tudo parecer muito importante.
Ela demorou a responder, e nesse meio tempo repassou e repassou o curso de seus 24 anos de vida, iluminando um ponto aqui, outro ali – suas tias, sua mãe, seu pai;
finalmente sua mente fixou-se nas tias e no pai; e tentou descrevê-los como lhe apareciam naquela distância.
As tias tinham muito medo do pai dela.Ele era uma grande força obscura naquela casa,pela qual se agarravam ao grande mundo representado diariamente pelo Times. Mas
a verdadeira vida da casa era algo bem diferente disso. Prosseguiaindependente de Mr.Vinrace e tendia a esconder-se dele.Eleera bem-humorado em relação a elas,mas
desdenhoso.Rachel sempre teve certeza de que o ponto de vista dele era justo efundado em alguma escala social de coisas, onde a vida de uma pessoa era absolutamente
mais importante do que a vidade outra,e que nessa escala elas eram muito menos importantes do que ele. Mas realmente acreditava? As palavras deHewet faziam-na refletir.Sempre
se submetera a seu pai,exatamente como suas tias,mas eram elas que a influenciavam naverdade; suas tias teciam aquela apertada trama de suas vidasem casa. Eram menos
esplêndidas, mas mais naturais do que o pai dela.Todas as iras de Rachel tinham sido contra elas; era o seu mundo de quatro refeições,sua personalidade,as criadasnas
escadas às dez e meia que ela analisava bem de perto e queria muito veementemente esmigalhar em átomos. Seguindo tais pensamentos, ela ergueu os olhos e disse:
– E há uma espécie de beleza nisso... elas estão neste preciso instante em Richmond construindo as coisas. Estão todas erradas, talvez, mas há nisso uma espécie
de beleza – repetiu ela. – É tão inconsciente, tão modesto. E mesmo assim, elas sentem as coisas. Sofrem quando pessoas morrem. Velhas solteironas estão sempre fazendo
coisas. Não sei direto o que fazem. Mas sei que era isso que eu sentia quando vivia com elas. Era muito real.
Recordou as pequenas jornadas delas de um lado para outro, para Walworth, para faxineiras paralíticas, para reuniões disso e daquilo, seus diminutos atos de caridade
e altruísmo que fluíam pontualmente de uma visão definida do que deviam fazer, suas amizades, seus gostos e costumes; viu todas essas coisas como grãos de areia
caindo, caindo através de incontáveis dias, formando uma atmosfera e criando uma massa sólida, um pano de fundo.Hewet a observava enquanto ela ponderava essas coisas.
– A senhorita era feliz? – interrogou ele.
Ela estava novamente absorvida por outra coisa, e ele a chamou de volta a uma consciência inusitadamente viva de si mesma.
– Eu era as duas coisas – respondeu Rachel – Era feliz e triste. O senhor não tem idéia de como é ser uma jovem.
– Ela o encarou abertamente. – Existem os terrores e as agonias – disse, continuando a fitá-lo como se quisesse detectar o mais leve sinal de riso.
– Acredito – disse ele devolvendo seu olhar com total sinceridade.
As mulheres que se vêem nas ruas – disse ela.
Prostitutas?
– Os homens beijando. – Ele balançou a cabeça. – Coisas que a gente adivinha.
– Nunca lhe contaram nada. Ela sacudiu a cabeça.
– E depois – começou ela, e parou. Aqui estava o grandeespaço de vida no qual nunca ninguém penetrava. Tudo oque estivera dizendo sobre seu pai, suas tias, caminhadas
noRichmond Park e o que faziam de hora em hora, era apenas a superfície. Hewet a observava. Queria que ela descrevesse aquilo também? Por que se sentava tão perto
dela e afitava assim? Por que não acabava com aquela busca e agonia? Por que não se beijavam simplesmente? Ela queriabeijá-lo. Mas o tempo todo ficava tecendo palavras.
– Uma menina é mais solitária do que um menino.Ninguém se importa absolutamente com o que ela faz. Nadase espera dela.A não ser que seja muito bonita,as pessoas
nemescutam o que ela diz... E é disso que eu gosto – acrescentouela energicamente, como se a lembrança fosse muito feliz. –Gosto de caminhar no Richmond Park,cantar
sozinha e saber que ninguém está ligando a mínima. Gosto de ver as coisasacontecerem... quando observamos vocês a outra noite, e nãonos viram... adoro essa liberdade...
é como estar no vento, ou no mar. – Ela virou-se com um curioso gesto e fitou o mar.Ainda estava muito azul, dançando até onde seu olho conseguia chegar, mas a luz
sobre ele agora era mais amarela, e asnuvens tingiam-se de um vermelho-flamingo.Uma depressão forte varou a mente de Hewet enquantoela falava.Parecia óbvio que ela
nunca se importaria mais comuma pessoa do que com outra; evidentemente ela era bastanteindiferente a ele; pareciam estar bem próximos,e logo estavamnovamente mais
afastados do que nunca; o gesto dela,ao afastar-se para outro lado, fora de uma estranha beleza.
– Bobagem – disse ele, bruscamente. – A senhorita gosta das pessoas. Gosta de ser admirada. Sua verdadeira mágoa contra Hirst é que ele não a admira.Por algum tempo
ela não respondeu. Depois, disse:
– Provavelmente seja verdade. Naturalmente gosto de gente... gosto de quase todas as pessoas que conheço.
Ela virou-se de costas para o mar e contemplou Hewetcom olhos amigáveis, embora críticos. Ele era bonito nosentido de que sempre tivera suficiente carne para comer
ear puro para respirar. Sua cabeça era grande; os olhos também; embora geralmente vagos, podiam ser penetrantes; e os lábios eram sensíveis. Podia ser julgado um
homem deconsiderável paixão e energia, provavelmente sujeito a estados de espírito que tinham pouca relação com os fatos; aomesmo tempo tolerante e minucioso. A
largura de suafronte revelava capacidade de reflexão. O interesse com queRachel o contemplava transpareceu em sua voz.
– Que romances o senhor escreve? – perguntou.
Eu quero escrever um romance sobre o silêncio – disse ele –, as coisas que as pessoas não dizem. Mas a dificuldadeé imensa. – Ele suspirou. – Porém a senhorita não
se importa – continuou ele. Olhava-a quase com severidade. – Ninguémseimporta.Só se lêumromance paraverquetipo de pessoa é o escritor e, se é conhecido, para ver
quais deseus amigos ele colocou no livro. Quanto ao romance em si,toda a concepção, a maneira como se vê a coisa, como sesente, como se relaciona com outras coisas
nem uma pessoanum milhão se interessa por isso. Mas às vezes fico imaginando se há alguma coisa no mundo inteiro que valha tantoa pena ser feita. Essas outras pessoas
– ele apontou o hotel estão sempre querendo algo que não conseguem ter. Mashá uma extraordinária satisfação em escrever, mesmo em tentar escrever. O que a senhorita
acaba de dizer é verdade:não queremos ser coisas; queremos apenas poder vê-las.
Parte da satisfação da qual ele falava apareceu em seu rosto quando ele fitou o mar.
Agora, foi a vez de Rachel sentir-se deprimida.Enquanto ele falava em escrever, tornara-se de repente impessoal. Talvez nunca gostasse de ninguém; todo o desejo
de conhecê-la e aproximar-se dela, que a pressionara quase dolorosamente, desaparecera por completo.
– O senhor é um bom escritor? – perguntou ela.
– Sim – disse ele. – Claro que não sou de primeira linha; sou um bom escritor de segunda linha; acho que tão bom quanto Thackeray.Rachel ficou surpresa. Por um lado,
surpreendia-a ouvir chamarem Thackeray de segunda linha; ela não conseguia acreditar que existissem grandes escritores na atualidade, nem que, se existissem, ela
pudesse conhecer algum deles; a confiança de Hewet a deixava atônita, e ele ficava cada vez mais distante.
– Meu outro romance – prosseguiu Hewet – é sobre um jovem obcecado por uma idéia: a idéia de ser um cavalheiro.Ele consegue viver em Cambridge com 100 libras ao
ano.Ele tem um casaco; um dia foi um casaco muito bom. Mas as calças... não são tão boas assim. Bem, ele vai até Londres, entra na boa sociedade devido a uma aventura
de madrugadanas margens de Serpentina. É levado a dizer mentiras... minha idéia, sabe, é mostrar a gradual corrupção da alma... finge ser filho de um grande proprietário
em Devonshire.Enquanto isso o casaco vai ficando cada vez mais velho, e elequase nem se atreve a usar as calças. Pode imaginar o infeliz,depois de uma esplêndida
noitada de orgia, contemplandoessas roupas... pendurando-as ao pé da cama, arranjando-asora em plena luz, ora na sombra, e imaginando se vão sobreviver a ele, ou
se ele é que vai sobreviver a elas? Idéias de suicídio cruzam sua mente. Ele também tem um amigo, umhomem que subsiste de alguma forma vendendo passarinhos, armando
alçapões nos campos abertos de Uxbridge.Os dois são intelectuais. Conheço uma ou duas dessas criaturas infelizes e mortas de fome, que citam Aristóteles diante de
um arenque frito e um caneco de cerveja. Vida elegante, também, preciso apresentar isso até certo ponto, paramostrar meu herói em todas as circunstâncias. Lady TheoBingham
Bingley, cuja égua assustada ele tivera a sorte de fazer parar,é filha de um excelente velho membro do partido conservador. Vou descrever o tipo de festas que uma
vez freqüentei... os intelectuais elegantes, você sabe, que gostam deter em sua mesa os livros mais recentes.Eles dão festas,festas à margem do rio, festas em que
se realizam jogos. Não é difícil conceber os incidentes, a dificuldade é dar-lhes forma... não se deslumbrar com as coisas como Lady Theo se deslumbrava. O fim dela
foi desastroso, coitada, pois o livro,como o planejei,terminaria numa profunda e sórdida respeitabilidade. Rejeitada pelo pai, ela se casa com o meu herói, e moram
numa confortável e pequena villa nos subúrbios de Croydon, cidadezinha onde ele se instala como corretor deimóveis. Jamais consegue tornar-se um verdadeiro cavalheiro.
Essa é a parte interessante. Parece-lhe o tipo de livro que a senhorita iria gostar de ler? Ou talvez preferisse minhatragédia Stuart – prosseguiu sem esperar a
resposta dela. –Minha idéia é que há uma qualidade de beleza no passado,que o romancista histórico comum arruína com suas convenções absurdas. A lua torna-se a Rainha
do Céu. Pessoas enfiam esporas em seus cavalos, e coisas assim. Vou tratar aspessoas como se fossem exatamente iguais a nós. A vantagem é que, esquivando-se das
condições modernas, pode-setorná-las mais intensas e mais abstratas do que as pessoasque vivem como nós.
Rachel escutara tudo com atenção, mas com certa perplexidade. Ambos mergulhavam em seus próprios pensamentos.
– Eu não sou como Hirst – disse Hewet depois de uma pausa; falava em tom pensativo –, não vejo círculos de giz entre os pés das pessoas. Às vezes gostaria de ver.Parece-me
tão complicado e confuso. Não se pode tomar decisão alguma; e somos cada vez menos capazes de fazer um julgamento. Você acha isso? E depois, nunca sabemos o que
sentimos. Estamos todos no escuro. Tentamos descobrir, mas pode imaginar algo mais ridículo do que a opinião de uma pessoa acerca de outra pessoa? Achamos que sabemos,
mas na verdade não sabemos.
Dizendo isso ele se apoiava no cotovelo, arranjando e rearranjando na relva as pedras que tinham representado Rachel e as tias no almoço. Falava tanto para si mesmo
quanto para Rachel. Raciocinava contra o desejo que voltara, intenso, de pegá-la nos braços, de ser franco, de explicar exatamente o que sentia. O que dizia era
contra sua crença; todas as coisas importantes a respeito dela, ele sabia; sentia-as no ar ao redor deles; mas não dizia nada; continuava ordenando as pedras.
Eu gosto do senhor; o senhor gosta de mim? – comentou Rachel subitamente.
Gosto imensamente – respondeu Hewet falando com o alívio de uma pessoa a quem de repente se dá a oportunidade de dizer o que quer dizer. Ele parou de mexer as pedras.
– Não podemos nos chamar de Rachel e Terence? – perguntou ele.
– Terence – repetiu Rachel. – Terence... é como o pio de uma coruja.
Ela ergueu os olhos com um súbito acesso de encantamento e, olhando para Terence com olhos arregalados de prazer, ficou chocada com a mudança no céu atrás deles.O
substancioso dia azul apagara-se num azul mais pálido e etéreo; as nuvens eram rosadas; distantes e bem unidas; e a paz do anoitecer substituíra o calor da tarde
sulina em que tinham começado sua caminhada.
– Deve ser tarde! – exclamou. Eram quase oito horas.
– Mas oito horas aqui não contam, contam? – perguntou Terence enquanto se levantavam e se viravam para o interior. Começaram a caminhar depressa morro abaixo na
pequena trilha entre as oliveiras.Sentiam-se mais íntimos porque tinham partilhado o que significava oito horas em Richmond.Terence caminhava na frente, pois não
havia espaço para ambos lado a lado.
– O que eu quero fazer escrevendo romances é bastante parecido com o que você quer quando toca piano, eu acho – começou ele. – Queremos descobrir o que há por trás
dascoisas, não?... Olhe as luzes lá embaixo espalhadas por todaparte. As coisas que sinto me vêm como luzes... Quero combiná-las... Você já viu aqueles fogos de
artifício queformam figuras? Eu quero fazer as figuras... É isso que vocêquer fazer?Agora estavam na estrada e podiam andar juntos.
– Quando toco piano? Música é diferente... mas entendo o que quer dizer. – Tentaram inventar teorias e fazer suas teorias concordarem entre si. Como Hewet não conhecesse
música, Rachel pegou sua bengala e desenhou figuras na fina poeira branca para explicar como Bach escrevera suas fugas.
– Meu talento musical foi arruinado – explicou ele enquanto andavam depois de uma dessas demonstrações – pelo organista do povoado, que inventara um sistema de notação,
com que tentava me ensinar, e assim nunca consegui tocar nada. Minha mãe achava que música não era coisa de meninos; queria que eu matasse ratos e pássaros... isso
é o pior de viver no interior. Moramos em Devonshire. É o lugar mais adorável do mundo. Mas... é sempre difícil em casa quando se é adulto. Eu gostaria que você
conhecesse uma de minhas irmãs... Ah, aqui está o seu portão. – Ele o empurrou e abriu. Pararam por um momento. Ela não podia convidá-lo a entrar. Não podia dizer
que esperava que se encontrassem de novo. Não ha-via nada a ser dito; e assim, sem uma palavra, ela atravessou o portão e logo ficou invisível. Assim que a perdeu
de vista, Hewet sentiu voltar o velho desconforto, até mais forte do que antes. A conversa deles fora interrompida no meio, quando ele começava a dizer as coisas
que queria dizer. Afinal, o que tinham conseguido dizer? Ele repensou as coisas que tinham dito, as coisas eventuais e desnecessárias que tinham girado ao redor
e consumido todo o tempo, impelindo-os tão para perto um do outro e separando-os tanto, deixando-o no fim insatisfeito, ainda sem saber o que ela sentia ou como
ela era. De que adianta falar, falar, apenas falar?
17
Era alta estação e cada navio que vinha da Inglaterra deixava algumas pessoas nas praias de Santa Marina, que subiam para o hotel. O fato de os Ambrose terem uma
casa onde se podia escapar por um momento da atmosfera levemente desumana de um hotel era fonte de genuíno prazer, não só para Hirst e Hewet, mas para os Elliot,
os Thornbury, os Flushing, Miss Allan, Evelyn M., além de pessoas cuja identidade era tão pouco desenvolvida que osAmbrose nem sabiam que tinham nomes. Estabeleceu-se
ali, paulatinamente, uma espécie de correspondência entre as duas casas, a grande e a pequena, de modo que a maior parte das horas do dia uma casa podia adivinhar
o que acontecia no outra, e as palavras ‘a villa’ e ‘o hotel’ evocavam a idéia de dois sistemas de vida separados.Conhecidos mostravam sinais de se transformarem
em amigos, por isso uma ligação com a sala de visitas de Mrs.Parry se dividira inevitavelmente em muitas outras, conectadas com diferentes partes da Inglaterra,
e às vezes essas alianças pareciam cinicamente frágeis, às vezes dolorosamente agudas, pois faltava-lhes o fundo sólido da organizada vida inglesa que as apoiasse.
Uma noite, quando a luz estava inteira entre árvores, Evelyn M. contou a Helen a história de sua vida e afirmou sua amizade duradoura; noutra ocasião, apenas por
causa de um suspiro, ou pausa, ou uma palavra impensada, a pobre Mrs. Elliot deixou a villa quase em prantos, jurando nunca mais encontrar a mulher fria e sarcástica
que a insultara, e na verdade nunca mais se encontraram. Não parecia valer a pena consertar uma amizade tão tênue.
Hewet deve ter encontrado excelente material dessa vez na villa para alguns capítulos do romance que se chamaria “Silêncio, ou as coisas que as pessoas não dizem”.Helen
e Rachel tinham-se tornado muito silenciosas. Tendo detectado, como pensava, um segredo, e julgando que Rachel queria escondê-lo dela, Mrs. Ambrose respeitava isso
cuidadosamente, mas por isso, embora não intencionalmente, cresceu entre elas uma estranha atmosfera de reserva. Em vez de partilharem seus pontos de vista sobre
todos os temas e mergulhar numa idéia até onde ela poderia levar, falavam principalmente sobre as pessoas que tinham visto, e o segredo entre elas se manisfetava
no que diziam até sobre os Thornbury e os Elliot. Sempre calma e não emotiva em seus julgamentos, Mrs. Ambrose agora inclinava-se a um definitivo pessimismo. Não
era tão severa com indivíduos quanto incrédula com a bondade do destino, a sorte, o que acontece a longo prazo, e era capaz de insistir que isso era em geral adverso
às pessoas na proporção em que mereciam. Mesmo essa teoria ela rejeitaria em favor de uma que fazia o caos triunfar, coisas acontecerem sem motivo algum, todo mundo
andando às cegas na ilusão e ignorância. Com certo prazer ela passou esses pontos de vista à sobrinha, pegando como pretexto uma carta de casa, que dava boas notícias
mas podia ter dado notícias ruins. Como é que ela sabia que naquele mesmo instante seus filhos não estavam mortos, esmagados por um ônibus? “Está acontecendo com
alguém: por que não aconteceria comigo?”, argumentava ela, rosto assumindo a expressão estóica da dor antecipada. Por mais sinceras que fossem essas opiniões, sem
dúvida eram provocadas pelo estágio irracional da mente de sua sobrinha,que era tão flutuante e passava tão depressa de alegria a desespero, que parecia necessário
confrontá-la com alguma opinião estável, que naturalmente se tornava tão sombria quanto estável. Talvez Mrs. Ambrose tivesse alguma idéia de que conduzindo a conversa
para esse território poderia descobrir o que se passava na mente de Rachel,mas era difícil julgar, pois às vezes ela concordava com a coisa mais melancólica que
se dissesse; noutras, recusavase a escutar e recebia as teorias de Helen com risadas, tagarelice, ridicularizando-as ao máximo, ou com ferozes acessos de ira, mesmo
diante do que chamava “o grasnar de um corvo na lama”.
As coisas já são bastante difíceis sem isso – afirmou ela.
O que é difícil? – indagou Helen.
A vida – respondeu, e as duas ficaram em silêncio.
Helen podia tirar suas próprias conclusões do porquê de a vida ser difícil, ou do porquê de uma hora depois talvez a vida fosse tão maravilhosa e viva que os olhos
de Rachel, contemplando-a, tornavam-se realmente engraçados para um espectador. Fiel ao seu credo, ela não tentou interferir, embora houvesse vários desses momentos
de depressão que tornariam fácil para uma pessoa menos escrupulosa pressionar e descobrir tudo; talvez Rachel lamentasse que sua tia não fizesse isso. Todos esses
estados de ânimo fundiam-se num efeito geral, que Helen comparava ao fluir de um rio, rápido, mais rápido, mais ainda,quando dispara para uma cachoeira. Seu instinto
era gritar “Pare!” mas mesmo que adiantasse gritar “Pare!” ela teria se contido, pensando ser melhor que as coisas seguissem seu curso, com a água disparando porque
a terra era feita de modo a que corresse assim.
A própria Rachel parecia não suspeitar de que estava sendo observada ou de que houvesse no seu comportamento algo que pudesse chamar atenção. Não sabia o que lhe
tinha acontecido. Sua mente estava na mesma situação que a água em disparada com a qual Helen a comparava. Queria ver Terence; desejava constantemente vê-lo quando
ele não estava ali; era uma agonia não o ver; seu dia estava repleto de agonias por causa dele, mas ela jamais se indagava de onde vinha essa força que agora perpassava
sua vida. Não pensava em resultados, como uma árvore dobrada pelo vento não analisa o resultado de estar sendo curvada pelo vento.
Durante as duas ou três semanas que passaram desde aquele passeio, meia dúzia de bilhetes dele acumulava-se na gaveta. Ela os lia e passava a manhã inteira num aturdimento
de felicidade; a paisagem ensolarada diante da janela não conseguindo analisar sua própria cor e calor mais do que ela era capaz de analisar suas cartas. Nesse estado
de ânimo ela achava impossível ler ou tocar piano,até mexer-se um pouco que fosse além da sua natural inclinação no momento. O tempo passava sem que ela percebesse.
Quando estava escuro, era atraída para a janela pelas luzes do hotel. Uma luz que acendia e apagava era a luz da janela de Terence; lá estava ele sentado, talvez
lendo, ou caminhando pelo quarto pegando um livro ou outro; agora ele estava sentado na sua cadeira outra vez; e ela tentava imaginar o que estaria pensando. As
luzes estáveis marcavam os quartos em que Terence se sentava com pessoas movendo-se ao seu redor. Cada pessoa que se hospedava no hotel tinha um romantismo ou interesse.
Não eram gente comum. Ela atribuía sabedoria a Mrs. Elliot,beleza a Susan Warrington, uma vitalidade esplêndida a Evelyn M.,pois Terence falava com elas.Tão impensados
e difusos eram seus estados de depressão. Sua mente era como a paisagem lá fora quando o escuro sob as nuvens dava açoites de vento e granizo. Mais uma vez ela se
sentava passiva na sua cadeira, exposta ao sofrimento, e as palavras fantásticas ou tristes de Helen eram como setas fazendo-a chorar a dureza da vida. O melhor
de tudo eram os estados de ânimo, quando por nenhuma razão essa ênfase de sentimento afrouxava e a vida prosseguia como de costume, apenas com uma alegria e uma
cor antes desconhecidas; tinham um significado parecido com o que vira na árvore: as noites eram grades negras separando-a dos dias; teria gostado de fazer fluir
os dias todos numa longa sensação contínua. Embora esses estados de alma fossem causados direta ou indiretamente pela presença de Terence, ou a lembrança dele, ela
nunca dizia a si mesma que estava apaixonada por ele, nem imaginava o que aconteceria se continuasse a sentir tais coisas, de modo que a imagem de Helen, o rio deslizando
para uma cachoeira, era muito semelhante aos fatos, e o alarma que Helen por vezes sentia era justificado.
No seu estranho estado de sensações não analisadas, ela era incapaz de fazer um plano que tivesse qualquer efeito sobre sua disposição mental. Abandonava-se ao acaso,
um dia sentindo falta de Terence; no outro, encontrando-se com ele, recebendo suas cartas sempre com um movimento de surpresa. Qualquer mulher experiente no curso
dessa corte teria extraído de tudo isso ao menos uma opinião que a ajudasse a elaborar uma teoria a seguir;mas ninguém jamais estivera apaixonado por Rachel, nem
ela se apaixonara por ninguém. Mais que isso, nenhum dos livros que lia, de O morro dos ventos uivantes a Homem e super-homem, e as peças de Ibsen, sugeria na sua
análise do amor que o que suas heroínas sentiam era o que ela agora estava sentindo. Parecia-lhe que suas sensações não tinham nome.
Rachel via Terence freqüentemente. Quando não se encontravam, ele conseguia mandar um bilhete com um livro ou acerca de um livro, pois não conseguira negligenciar
esse tipo de intimidade. Mas às vezes ele não vinha nem escrevia por vários dias seguidos. E quando se encontravam, seu encontro podia ser de grande alegria ou de
um desespero aniquilador. Por sobre as suas despedidas pairava a sensação de interrupção, deixando-os insatisfeitos, embora sem saberem que o outro partilhava da
mesma sensação.
Se Rachel ignorava seus próprios sentimentos, ignorava mais ainda os dele. No começo ele se movia como um deus; quando o conheceu melhor, ele ainda era centro de
luz, mas combinava com essa beleza um maravilhoso poder de deixá-la audaciosa e confiante. Ela tinha consciência de emoções e poderes que jamais suspeitaria ter,
e de uma profundidade até então desconhecida no mundo.Quando pensava em sua relação, ela antes via do que raciocinava, representando sua visão do que Terence sentia
com a imagem dele arrastado pela sala para ficar a seu lado. Essa passagem pelo aposento era um sensação física,mas ela não sabia o que significava.
Assim passava-se o tempo com uma aparência calma e luminosa na superfície. Chegavam cartas da Inglaterra,cartas de Willoughby, e os dias acumulavam seus pequenos
acontecimentos que formavam o ano. Superficialmente, três odes de Píndaro foram corrigidas, Helen fez cerca de cinco polegadas de seu bordado, e St. John completou
os dois primeiros atos de uma peça. Ele e Rachel eram agora bons amigos, e ele lia em voz alta para ela, que ficava tão impressionada pela habilidade dos seus ritmos
e a variedade de seus adjetivos, além do fato de ele ser amigo de Terence, que ele começava a imaginar se seu destino não seria literatura em vez de direito. Foi
uma época de reflexões profundas e súbitas revelações para mais de um casal e para várias pessoas isoladas.
Chegou um domingo, coisa que ninguém na villa, exceto Rachel e a criada espanhola, queria reconhecer. Rachel ainda ia à igreja, porque, segundo Helen, nunca se dera
ao trabalho de pensar sobre isso. Já que celebravam missa no hotel ela foi até lá, esperando ter alguma alegria ao atravessar o jardim e o saguão, embora fosse difícil
ver Terence e ter oportunidade de lhe falar.
Como a maior parte dos visitantes do hotel eram ingleses, havia quase tanta diferença ali entre quarta-feira e domingo quanto na Inglaterra, e domingo ali parecia,
comolá, o mudo espectro negro ou espírito penitente do maisocupado dia da semana. Os ingleses não conseguiam empalidecer o sol, mas de alguma forma milagrosa podiam
daràs horas um curso mais lento, tornar os incidentes mais sem graça, prolongar as refeições e fazer até criadas e pajensassumirem uma expressão de tédio e compostura.
As melhores roupas que todo mundo vestia ajudavam naqueleefeito geral; parecia que nenhuma dama se sentaria sem dobrar uma anágua limpa e engomada, e nenhum cavalheiro
poderia respirar sem um súbito estalar de seu peito decamisa rijo.
Quando os ponteiros do relógio se aproximaram das onze naquele domingo especial, várias pessoas começaram a reunir-se no saguão, segurando livrinhos de páginas vermelhas.
O relógio marcava minutos antes da hora quando passou uma robusta figura preta, atravessou o saguão com ar preocupado, como se preferisse não notar os cumprimentos
embora tivesse consciência deles, e desapareceu pelo corredor que partia de lá.
– Mr. Bax – sussurrou Mrs. Thornbury.
O grupinho de pessoas começou então a afastar-se na mesma direção em que fora a robusta figura negra.Encaradas com estranheza pelas pessoas que não faziam menção
de se reunir a elas, moveram-se, com uma exceção, lenta e conscientemente até as escadarias. Mrs. Flushing era a exceção. Desceu as escadas correndo, pas-sou pelo
saguão, juntou-se ofegante ao cortejo, perguntando a Mrs. Thornbury num sussurro agitado:
– Onde, onde?
– Estamos todos indo – disse Mrs.Thornbury,e logo desciam as escadas dois a dois. Rachel foi uma das primeiras adescer. Não viu que Terence e Hirst entravam pelos
fundoscarregando não um volume preto, mas um livro fino encapado com tecido azul-claro, que St. John trazia sob o braço.
A capela era a velha capela dos monges. Era um local fresco e profundo onde se celebrava a missa há centenas de anos, penitenciava-se ao luar frio e se adoravam
velhas pinturas marrons e santos esculpidos com mãos erguidas em bênção nos nichos das paredes. A transição de culto católico a protestante fora feita durante um
período de desuso, quando não havia cerimônias e o lugar era usado para guardar jarras de azeite, licor e cadeiras espreguiçadeiras; o hotel florescendo, alguma
corporação religiosa tomara conta do lugar e agora ele era provido de uma série de bancos amarelos lustrosos e genuflexórios de cor púrpura; tinha um pequeno púlpito,
uma águia de latão sustentando nas costas uma Bíblia, enquanto a piedade de várias mulheres fornecera feios retângulos de tapeçaria e longas tiras de bordado pesadamente
ornamentais com monogramas dourados.
Enquanto os fiéis entravam, eram recebidos por suaves acordes de um harmônio tocado por Miss Willett, escondida por uma cortina de baeta. O som espalhou-se pela
capela como círculos de água provocados por uma pedra caída. As 20 ou 25 pessoas que compunham os fiéis baixaram as cabeças, e depois sentaram-se eretas olhando
em torno. Estava muito quieto, e a luz ali embaixo parecia mais pálida do que a luz de cima. Não trocavam os habituais cumprimentos e sorrisos, mas reconheciam-se
mutuamente. O pai-nosso foi lido. Quando se ouviu o balbucio infantil de vozes, os fiéis, muitos dos quais só tinham se encontrado na escadaria, sentiam-se pateticamente
unidos e bem dispostos uns em relação aos outros. Como se a oração fosse uma tacha aplicada a um combustível,uma fumaça parecia erguer-se automaticamente e encher
o lugar com os fantasmas de incontáveis cerimônias em incontáveis manhãs de domingo em casa. Susan Warrington em particular tinha consciência da mais doce fraternidade
quando cobriu o rosto com as mãos e viu faixas de costas curvadas através das frestas entre os dedos. Suas emoções intensificavam-se calma e regularmente, e ela
ao mesmo tempo aprovava a si mesma e à vida.Tudo estava tão quieto e tão bom. Mas tendo criado essa atmosfera pacífica, Mr. Bax de repente virou a página e leu um
salmo. Embora lesse sem mudar a voz, o estado de espírito desfizera -se.
– Tende misericórdia de mim, oh... Deus – leu ele –, pois o homem está prestes a me devorar, ele está diariamente combatendo-me e perturbando-me... Diariamente interpretam
mal minhas palavras: tudo o que imaginam é causar-me mal. Unem-se e ficam unidos... Quebrai os dentes deles, ó Deus, em suas bocas; esmagai os maxilares dos leões,
ó Senhor: fazei com que se desmanchem como água que corre depressa; e quando dispararem suas setas,fazei com que sejam exterminados.
Nada na experiência de Susan correspondia a isso; e como ela não apreciava a linguagem, há muito cessara de prestar atenção em tais comentários, embora os seguisse
com a mesma espécie de respeito mecânico com que ouvira muitas das falas de Lear pronunciando alto. Sua mente ainda era serena e realmente ocupava-se com o louvor
à própria natureza e o louvor a Deus... isto é, à solene e satisfatória ordem do mundo.
Mas podia se ver por uma olhada em seus rostos que a maior parte dos outros, especialmente homens, sentia a inconveniência da súbita intrusão daquele velho selvagem.
Pareciam mais seculares e críticos enquanto escutavam as iras daquele velho de preto com um pano em tor-no dos rins amaldiçoando com gestos veementes junto de uma
fogueira no deserto. Depois disso, ouviu-se o ruído generalizado de páginas sendo viradas, como se estivessem numa sala de aula; então foi lido um pouco do Velho
Testamento, a respeito da construção de um poço, tudo bem parecido com meninos de colégio traduzindo uma passagem fácil do Anábasis depois de fecharem sua gramática
francesa.Voltaram então ao Novo Testamento e à triste e bela figura de Cristo. Enquanto Cristo falava, faziam outro esforço de adaptarem sua interpretação da vida
às vidas que viviam, mas como fossem todos diferentes, uns práticos, uns ambiciosos, uns tolos, outros tumultuados e experimentais, alguns apaixonados e outros já
há muito tendo superado qualquer emoção, exceto a sensação de conforto, faziam coisas bem diversas com as palavras de Cristo.
Pelas suas feições parecia que a maior parte deles não fazia esforço algum e, por ser mais cômodo, aceitavam as idéias transmitidas pelas palavras como sendo palavras
de bondade, assim como as industriosas bordadeiras tinham aceitado como bonito o feio colorido de sua esteira.
Fosse qual fosse o motivo, pela primeira vez na sua vida, em vez de deslizar de uma vez para dentro de alguma curiosa e agradável nuvem de emoção, familiar demais
para ser levada em conta, Rachel escutava criticamente o que se dizia. Depois de passada a forma irregular de uma oração a um salmo, do salmo à história, da história
à poesia, e Mr. Bax estava dizendo seu texto, ela ficou num estado de desconforto intenso. O desconforto era igual ao que sentia quando forçada a escutar uma peça
de música ruim e mal tocada. Torturada, enfurecida pela grosseira insensibilidade do regente, que acentuava nos lugares errados, e aborrecida com o vasto rebanho
da platéia elogiando e concordando sem saber nem se importar com nada, ela agora estava torturada e enfurecida, só que ali,com olhos semicerrados e lábios apertados,
a atmosfera de forçada solenidade aumentava sua raiva. Ao seu redor havia gente fingindo sentir o que não sentia, enquanto flutuava acima dela a idéia de que nenhum
deles podia entender o que fingiam entender, sempre inalcançável,uma bela idéia, uma idéia que parecia uma borboleta.Uma depois da outra, vastas, e hirtas, e frias
lhe apareceram todas as igrejas do mundo, onde esse esforço desajeitado e esse mal-entendido aconteciam perpetuamente,em grandes edificações repletas de incontáveis
homens e mulheres que não enxergam direito, que finalmente desistiam do esforço de enxergar, caindo obedientemente em louvor e concordância, olhos semicerrados e
lábios apertados. O pensamento causava a mesma espécie de desconforto provocado por uma névoa que se interpusesse constantemente entre olhos e página impressa. Ela
esforçou-se ao máximo para remover a névoa e conceber algo que pudesse ser venerado enquanto a cerimônia prosseguia; mas não conseguiu, sempre desviada pela voz
de Mr.Bax dizendo coisas que deformavam a idéia e pelo murmúrio de vozes humanas inexpressivas balindo e caindo ao seu redor como folhas molhadas. O esforço era
cansativo e desanimador. Ela cessou de escutar e tirou os olhos na face de uma mulher próxima, uma enfermeira de hospital, cuja expressão de atenção devota parecia
provar que de alguma forma tinha satisfação. Mas olhando atentamente para ela, Rachel concluiu que a enfermeira estava apenas concordando com tudo aquilo de modo
servil e que a expressão de satisfação não vinha de nenhuma esplêndida concepção de Deus em seu interior. Como, aliás,poderia conceber algo tão fora de sua própria
experiência,uma mulher com aquele rosto banal, um rostinho corado e redondo, sobre o qual deveres banais e ódios banais tinham traçado linhas, cujos fracos olhos
azuis olhavam sem intensidade nem individualidade, cujas feições eram borradas, insensíveis e duras? Ela estava adorando algo frívolo e presunçoso, agarrando-se
àquilo, conforme testemunhava a boca obstinada, com a tenacidade de um marisco; nada a arrancaria de sua crença séria em sua própria virtude e nas virtudes de sua
religião. Era um marisco com seu lado sensível preso na rocha, morto para sempre para a torrente de coisas frescas e belas que passavam junto dele. O rosto dessa
única adoradora imprimiu-se na mente de Rachel com uma impressão de puro horror; de repente ela teve a revelação do que Helen e St. John queriam dizer quando proclamavam
seu ódio ao cristianismo.Com a violência que agora marcava suas sensações, ela rejeitou tudo aquilo em que implicitamente acreditara.
Enquanto isso Mr. Bax estava na metade da segunda lição. Ela o contemplava. Era um homem do mundo com lábios flexíveis e modos agradáveis, era na verdade um homem
de muita bondade e simplicidade, embora nada inteligente, mas ela não estava disposta a dar qualquer crédito a essas qualidades, e o examinava como se fosse a síntese
de todos os vícios do seu culto.
Bem nos fundos da capela, Mrs. Flushing, Hirst e Hewet sentavam-se numa fila, em estados de espírito bem diferentes. Hewet fixava o teto com as pernas estendidas
àfrente, pois como jamais tentara adequar a cerimônia aqualquer sentimento ou idéia sua, era capaz de apreciar abeleza da linguagem sem impedimento. Sua mente ocupou-se
primeiro com coisas acidentais, como o cabelo dasmulheres à sua frente, e a luz sobre os rostos, depois compalavras que lhe pareceram magníficas, e depois mais vagamente,
com as personagens dos outros fiéis. Mas quandosubitamente percebeu Rachel, todos esses pensamentos foram expulsos de sua mente, e pensou somente nela. Os salmos,
as orações, a ladainha e o sermão reduziram-se todos a um único som de cântico que parava e depois se renovava,um pouco mais alto, um pouco mais baixo. Ele fitava
alternadamente Rachel e o teto, e sua expressão agora não nascia do que estava vendo, mas de algo em sua mente. Estavaquase tão dolorosamente perturbado por seus
pensamentosquanto Rachel pelos dela.
No começo da cerimônia Mrs. Flushing descobriu que pegara uma Bíblia em vez de um livro de orações e, sentada perto de Hirst, deu uma olhada por cima do ombro dele.
Ele estava lendo firmemente um volume azul-claro. Incapaz de compreender, ela espiou mais de perto, e Hirst educadamente colocou o livro à frente dela, apontando
o primeiro verso de um poema grego, e depois a tradução na outra página.
– O que é isso? – sussurrou ela.
– Safo – respondeu ele. – A tradução de Swinburne, a melhor coisa já escrita.
Mrs. Flushing não resistiu a tal oportunidade. Engoliu a Ode a Afrodite durante a ladainha, contendo-se com dificuldade para não perguntar quando Safo vivera e o
que mais escrevera que fosse digno de ser lido, e conseguindo com certa pontualidade no fim pronunciar “o perdão dos pecados, a ressurreição da carne e a vida eterna.Amém”.
Enquanto isso Hirst pegava um envelope e começava a rabiscar no verso. Quando Mr. Bax subiu ao púlpito ele fechou Safo com o envelope entre as páginas, ajeitou os
óculos e fixou seu olhar intensamente sobre o clérigo.Parado no púlpito, este parecia muito grande e gordo; a luz vindo das janelas esverdeadas fazia seu rosto parecer
liso e branco como um enorme ovo.
Ele olhou em torno para todos os rostos que o fixavam brandamente lá de baixo, embora alguns fossem rostos de homens e mulheres com idade para serem seus avós, e
disse seu texto com grande imponência. O tema do sermão era que visitantes naquele lindo país, embora de férias, tinham dever para com os nativos. Na verdade não
diferia muito de um artigo sobre assuntos de interesse geral nos seminários. Divagava de um ponto a outro com uma espécie de verborragia cordial, sugerindo que todos
os seres humanos são bastante parecidos debaixo de sua pele, ilustrando isso com a semelhança das brincadeiras dos menininhos espanhóis e dos menininhos de Londres,observando
que coisas muito pequenas influenciam as pessoas, especialmente nativos; de fato um amigo muito querido de Mr. Bax dissera-lhe que o sucesso de nossa lei na Índia,
aquele vasto país, dependia grandemente do estrito código de polidez adotado pelos ingleses para com os nativos, o que levou ao comentário de que as pequenas coisas
não são necessariamente pequenas e de alguma forma, à virtude da simpatia, virtude mais necessária hoje em dia do que nunca, quando vivemos numa época de experimentação
e mudança – veja-se o aeroplano e o telegrama sem fio; havia outros problemas que dificilmente se apresentariam a nossos país, mas que nenhum homem que se considera
homem poderia deixar sem solução.Aqui Mr. Bax tornou-se mais claramente clerical, se é que era possível, parecendo falar com uma certa inocente astúcia ao apontar
que tudo isso impunha um dever especial aos cristãos sérios. O que os homens se inclinavam a dizer era “Ah, aquele sujeito... é um pároco”. O que queremos que digam
é “Ele é um bom sujeito”, em outras palavras,“Ele é meu irmão”. Exortou-os a manterem-se em contato com homens do tipo moderno; precisavam simpatizar com seus múltiplos
interesses a fim de compreender sempre que não importa que descobertas se fizessem, havia uma que não podia ser superada, tão necessária ao mais brilhante e bem-sucedido
entre eles quanto fora aos seus pais. O mais humilde podia ajudar; as coisas menos importantes influenciavam (aqui ele tornou-se decididamente sacerdotal, seus comentários
parecendo destinados às mulheres, pois os fiéis de Bax eram na grande maioria mulheres, e estava habituado a mostrar-lhes seus deveres em suas inocentes campanhas
clericais). Deixando de lado as instruções mais definidas, ele passou adiante, e seu tema ampliou-se numa peroração para a qual respirou fundo e se postou muito
ereto.
– Assim como uma gota d’água, isolada, sozinha,apartada de outras, caindo da nuvem e entrando nogrande oceano se altera, os cientistas assim nos contam,não apenas
o ponto no oceano onde ela cai se altera, mastoda a miríade de gotas que, juntas, compõem o grandeuniverso das águas, alterando assim a configuração doglobo, as
vidas de milhões de criaturas no oceano e, finalmente, as vidas dos homens e mulheres que ganham a vida nas praias... Tudo isso está na dimensão de umaúnica gota
d’água, como qualquer chuvarada envia milhões para que se percam na terra... para que se percamna terra, nós dizemos, mas sabemos muito bem que os frutos da terra
não podem brotar sem elas... uma maravilha comparável ao que está ao alcance de qualquer umde nós, que, soltando uma pequena palavra ou uma pequena ação no grande
universo, altera-o; sim, é umaidéia solene, altera-o, para o bem ou o mal, não por uminstante ou num pequeno ambiente, mas através de todaa raça e por toda a eternidade.
Virando-se de um lado a outro como para impedir aplauso, ele prosseguiu no mesmo fôlego, mas num tom de voz diferente:
– E agora, ao Senhor nosso Pai...
Ele deu sua bênção e então, enquanto os acordes solenes brotavam mais uma vez do harmônio atrás da cortina, as diferentes pessoas começaram a remexer-se, e talvez
a mover-se muito desajeitada e conscientemente na direção da porta. A meio caminho na escada, num ponto em que luzes e sons do mundo superior, conflitavam com a
penumbra e a melodia moribunda dos hinos do mundo inferior, Rachel sentiu uma mão sobre seu ombro.
– Miss Vinrace – sussurrou imperiosamente Mrs. Flushing –, fique para o almoço. Está um dia tão melancólico. Eles não dão nem um bife no almoço. Fique, por favor.
Saíram então para o saguão, onde mais uma vez o pequeno bando foi saudado com curiosos olhares respeitosos pelas pessoas que não tinham ido à igreja, embora suas
roupas deixassem claro que aprovavam o domingo quase a ponto de irem à igreja. Rachel sentiu-se incapaz de agüentar mais aquela atmosfera particular, e estava por
dizer que tinha de voltar quando Terence passou por elas,arrastado numa conversa com Evelyn M. Rachel então contentou-se em dizer que as pessoas pareciam muito respeitáveis,
comentário negativo que Mrs. Flushing interpretou como afirmação de que Rachel ficaria.
Ingleses no exterior! – disse com um vivo tom de malícia. – Não são medonhos? Mas não vamos ficar aqui continuou, puxando o braço de Rachel. – Venha até meu quarto.
Ela a empurrou passando por Hewet, Evelyn, os Thornbury e os Elliot. Hewet adiantou-se.
– Almoço...
– Miss Vinrace prometeu almoçar comigo – disse Mrs. Flushing, começando a subir energicamente as escadas, como se a classe média da Inglaterra a estivesseperseguindo.
Não parou até bater atrás delas a porta do seu quarto.
– Bem, o que achou? – perguntou, ofegando um pouco.
Toda a repulsa e horror que Rachel andara acumulando explodiram descontroladamente.
– Achei a exibição mais odiosa que já vi! – disse num rompante. – Como podem... como se atrevem... o que querem dizer com isso... Mr. Bax, enfermeiras, velhos,prostitutas,
repulsivos...Ela atacou o mais depressa que podia os pontos que lembrava, mas estava indignada demais para parar e analisar seus sentimentos. Mrs. Flushing observava
com ávido prazer sua fala abrupta acompanhada de movimentos enfáticos de cabeça e mãos.
– Prossiga, prossiga, prossiga! – ria ela, batendo pal-mas. – É delicioso escutar você!
– Mas então por que a senhora vai? – perguntou Rachel.
– Tenho ido todos os domingos de minha vida desde que me lembro – Mrs. Flushing ria satisfeita, como se isso por si já fosse motivo.
Rachel virou-se bruscamente para a janela. Não sabia o que a deixara naquele estado tão passional; a visão de Terenceno saguão confundira seus pensamentos, deixando-a
apenasindignada. Olhou direto para a sua própria villa, a meio caminho na encosta da montanha. A vista mais conhecida olhada através de vidro tem uma certa distinção
não familiar; enquanto olhava ela foi se acalmando. Então lembrou queestava na presença de alguém a quem nem conhecia direito,virou-se e olhou Mrs. Flushing, que
ainda estava sentada nabeira da cama olhando para o alto, os lábios entreabertosmostrando duas fileiras de fortes dentes brancos.
– Diga-me, de quem gosta mais, de Mr. Hewet ou de Mr. Hirst?
– De Mr. Hewet – respondeu Rachel, mas sua voz não soava natural.
– Qual dos dois é o que lê grego na igreja? – indagou Mrs. Flushing. Podia ter sido qualquer um deles e, enquanto Mrs. Flushing passava a descrevê-los e a dizer
que os dois a assustavam, embora um a assustasse mais, Rachel procurava uma cadeira. Naturalmente o quarto era o maior e mais luxuoso do hotel. Havia muitas poltronas
e banquetas cobertas de linho marrom, mas cada uma dessas peças estava ocupada por um grande pedaço de papelão amarelo quadrado, e em todas as peças de papelão havia
pontinhos ou linhas de tinta a óleo.
– Não olhe para aquilo – disse Mrs. Flushing vendo o olho de Rachel vagar por ali. Saltou e virou todos os papelões que pôde no assoalho. Mas Rachel conseguiu apoderar-se
de um deles e, com a vaidade de uma artista, Mrs. Flushing perguntou, ansiosa:
– Então, então?
– É uma colina – respondeu Rachel. Não havia dúvida de que Mrs. Flushing representou um vigoroso e abrupto lance de terra erguendo-se no ar; quase se podiam ver
os torrões voando enquanto a terra rodopiava.Rachel passou de um a outro. Estavam todos marcados com algo da determinação e energia de quem os fizera; eram todos
golpes perfeitamente destreinados do pincel sobre uma idéia semi-realizada, sugerida por um morro ou árvore; de certa forma todos eram bem característicos de Mrs.
Flushing.
– Eu vejo as coisas se movendo – explicou Mrs.Flushing. – Assim – ela varreu o ar com a mão. Depois pegou um dos papelões que Rachel pusera de lado, sentou-se numa
banqueta e começou a fazer floreios com um pedaço de carvão. Enquanto se ocupava em traços que pareciam servir-lhe como a fala serve a outras pessoas,Rachel, muito
inquieta, olhava ao redor.
– Abra o armário – disse Mrs. Flushing depois de al-gum tempo, falando indistintamente porque estava com um pincel na boca – e olhe as coisas.
Como Rachel hesitasse, Mrs. Flushing aproximou-se,ainda com um pincel na boca, abriu com ímpeto as portas do guarda-roupa e jogou na cama uma quantidade de xales,
mantos, panos e bordados; Rachel começou a apalpálos. Mrs. Flushing chegou mais uma vez e largou uma quantidade de contas, broches, brincos, braceletes, enfeites
e pentes entre os tecidos. Depois voltou para sua banqueta e começou a pintar em silêncio. Os tecidos eram coloridos, escuros e pálidos; formavam uma curiosa torrente
de linhas e cores sobre a colcha, com os montinhos vermelhos de pedra, e penas de pavão, e cor de casco de tartaruga dos pentes no meio de tudo.
As mulheres os usavam há centenas de anos, e ainda os usam comentou Mrs. Flushing. – Meu marido sai por aí e os encontra; ninguém sabe o que valem, de modo que os
compramos barato. E vamos vendê-los para os elegantes de Londres – disse ela numa risadinha, como se a idéia dessas damas e sua absurda aparência a divertisse. Depois
de pintar alguns minutos, ela de repente largou o pincel e fixou os olhos em Rachel.
Vou lhe dizer o que quero fazer. Quero ir até ali em cima e ver as coisas por mim mesma. É besteira ficaraqui com um bando de velhas solteironas como se estivéssemos
numa praia da Inglaterra. Quero ir rio acima ever os nativos em seus acampamentos. É só uma questãode uns dez dias em tendas de lona. Meu marido fez isso. A gente
ficaria deitada debaixo de árvores à noite e dedia desceria o rio; se víssemos alguma coisa bonita gritaríamos para que parassem. – Ela levantou-se e começoua enfiar
na cama repetidamente um longo alfinete dourado, enquanto olhava para ver o efeito de sua sugestãoem Rachel.
– Temos de organizar um grupo – prosseguiu ela. – Dez pessoas poderiam alugar uma lancha. Agora, você virá e Mrs. Ambrose também, e Mr. Hirst e aquele outro cavalheiro,
virão? Onde há um lápis?
Ela ficava cada vez mais decidida e animada à medida que desenvolvia seu plano. Sentou-se na beira da cama eanotou uma lista de sobrenomes, que invariavelmente escrevia
errado. Rachel ficou entusiasmada, pois na verdade aidéia era incrivelmente deliciosa. Sempre tivera muita vontade de ver o rio, e o nome de Terence lançava um brilho
sobre essa perspectiva, tornando-a quase boa demais paraser verdade. Fez o que podia para ajudar Mrs. Flushing,sugerindo nomes, ajudando-a a soletrá-los direito
e calculando os dias da semana nos dedos. Como Mrs. Flushing queria saber tudo o que Rachel podia dizer sobre a origeme a ocupação de cada pessoa sugerida, e ela
inventava loucashistórias sobre o temperamento e os hábitos de artistas epessoas do mesmo nome que costumavam vir a Chillingleynos velhos tempos, mas que sem dúvida
não eram as mesmas pessoas, embora fossem também aqui homens inteligentes interessados em egiptologia, essa atividade consumiu algum tempo. Finalmente Mrs. Flushing
buscou ajudaem seu diário, pois o método de adivinhar datas nos dedosnão era eficaz. Abriu e fechou cada gaveta de sua escrivaninha e então gritou, furiosa:
– Yarmouth! Yarmouth! Maldita mulher! Sempre ausente quando preciso dela! Nesse momento soou no frenesi do meio-dia o gongo do almoço. Mrs. Flushing tocou violentamente
a sineta. A porta abriu-se e uma criada bonita, quase tão ereta quanto sua patroa, entrou.
– Ah, Yarmouth – disse Mrs. Flushing –, encontre meu diário e veja quando é dez dias daqui para a frente,e indague ao porteiro do saguão quantos homens seriam necessários
para levar a remo oito pessoas rio acima por uma semana, quanto isso custaria, ponha num pedaço de papel e deixe no meu toucador. Agora... – ela apontou a porta
com um indicador imperioso de modo que Rachel teve de ir à frente.
– Ah, Yarmouth – Mrs. Flushing chamou. – Guarde essas coisas e pendure-as em seus lugares, boa menina, ou Mr. Flushing fica furioso.
E a tudo isso Yarmouth apenas respondia:
– Sim, senhora. Quando entraram na longa sala de jantar era óbvio que o dia ainda era domingo, embora o estado de ânimo lentamente decaísse. A mesa dos Flushing
estava posta junto dajanela, de modo que Mrs. Flushing podia ver cada pessoaque entrasse, e sua curiosidade parecia intensa.
– A velha Mrs. Paley – sussurrou quando uma cadeira de rodas passou lentamente pela porta, com Arthur atrás,empurrando. – Os Thornbury – chegaram depois. – Aquela
simpática mulher – ela fez Rachel olhar para Miss Allan. – Como é o nome dela? – A senhora maquiada que sempre chegava tarde, entrando na sala com passinhos pequenos
e um sorriso preparado como se entrasse num palco, quase se intimidou sob o olhar de Mrs. Flushing,que expressava a sua férrea hostilidade para com toda a tribo
de damas maquiadas. Depois entraram os dois rapazes a quem Mrs. Flushing chamava coletivamente “os Hirt”. Sentaram-se do outro lado do corredor.
Mr. Flushing tratava sua esposa com um misto de admiração e indulgência, compensando com a suavidade e fluência de sua fala a rudeza das maneiras dela. Enquanto
ela disparava seus comentários, ele dava a Rachel um esboço da história da arte sul-americana, atendia a uma das exclamações da esposa, e depois voltava suavemente
como sempre ao seu tema. Sabia muito bem tornar um almoço agradável sem ser chato ou íntimo demais. Formara a opinião, contou a Rachel, de que havia tesouros maravilhosos
escondidos no interior do país; as coisas que Rachel vira eram apenas quinquilharias apanhadas durante uma breve jornada. Ele achava que devia haver deuses gigantes
esculpidos na pedra da encosta da montanha; e figuras colossais engastadas no meio de vastas pastagens verdes,onde ninguém jamais estivera senão nativos. Antes do
amanhecer da arte européia, ele acreditava que os caçadores e sacerdotes antigos haviam construído templos de pedras maciças, formando com as rochas escuras e grandes
cedros figuras majestosas de deuses e feras, e de símbolos das grandes forças, a água, o ar e a floresta, entre as quais viviam. Podia haver cidades pré-históricas,
em clareiras, como aquelas na Grécia e na Ásia, cheias de obras daquela antiga raça. Ninguém jamais estivera lá; quase nada se sabia a respeito. Falando assim, e
expondo a mais pitoresca de suas teorias, ele atraía a atenção de Rachel.
Ela não via que Hewet ficava olhando para ela do outro lado do corredor, entre as figuras dos garçons correndo com pratos. Ele não prestava atenção em nada, e Hirst
também o achava mal-humorado e desagradável. Os dois haviam tocado em todos os assuntos – política e literatura, mexericos e cristianismo. Haviam discutido a respeito
da cerimônia que, segundo Hewet, era em tudo tão boa quanto Safo, de modo que o paganismo de Hirst era mera ostentação. Por que ir à igreja, perguntou ele, só para
ler Safo? Hirst comentou que escutara cada palavra do sermão, o que poderia provar se Hewet quisesse uma repetição; e foi à igreja para entender a natureza do seu
criador, o que fizera muito intensamente naquela manhã graças a Mr. Bax, que o inspirara a escrever três das mais soberbas linhas da literatura inglesa, uma invocação
à Divindade.
– Eu as escrevi no verso do envelope da última carta de minha tia – disse ele, e tirou-o das páginas de Safo.
– Bem, vamos ouvi-las – disse Hewet, um pouco abrandado pela perspectiva de uma discussão literária.
– Meu caro Hewet, você quer que nós dois sejamos postos para fora do hotel pela turba enfurecida dos Thornbury e dos Elliot? – indagou Hirst. – Um mero sussurro
seria suficiente para me incriminar para sempre.Meu Deus! De que adianta tentar escrever quando o mundo está habitado por idiotas malditos como esses? Sério, Hewet,
aconselho-o a desistir da literatura. De que adianta? Eis a sua platéia.Ele fez um sinal de cabeça na direção das mesas onde uma coleção muito variada de europeus
estava agora entretida comendo, em alguns casos mascando, aquelas fibrosas aves estrangeiras. Hewet olhou e ficou mais irritado do que nunca. Hirst também olhou.
Seus olhos caíram sobre Rachel e ele lhe fez uma mesura.
– Acho que Rachel está apaixonada por mim – comentou ele quando seus olhos voltaram ao prato. – Isso é o pior nas amizades com jovens... elas tendem a se apaixonar
por nós.
Hewet não respondeu nada e sentava-se estranhamente quieto.
Hirst parecia não se importar por não obter resposta,pois voltou àquele Mr. Bax, citando a peroração sobre a gota d’água; Hewet mal respondeu a esses comentários,
e Hirst apenas apertou os lábios, escolheu um figo e concentrou-se bastante satisfeito em seus próprios pensamentos, dos quais sempre tinha um grande suprimento.Quando
o almoço acabou, separaram-se, levando suas xícaras de café para diferentes partes do saguão.
De sua cadeira sob uma palmeira Hewet viu Rachelsair da sala de jantar com os Flushing; viu-os olhar emtorno procurando cadeiras e escolher três num cantoonde podiam
continuar falando em particular. Mr. Flushing discursava a pleno vapor. Exibiu uma folha de papel na qual fazia desenhos enquanto conversava. ViuRachel inclinar-se
e apontar aqui e ali com o dedo.Hewet comparou pouco bondosamente Mr. Flushingque estava extremamente bem-vestido para um climaquente e tinha maneiras bastante elaboradas,
como umdono de loja persuasivo. Nesse meio tempo, enquantoolhava para eles, viu-se enredado com os Thornbury eMiss Allan, que depois de hesitarem um minuto ou dois,instalaram-se
em cadeiras ao redor dele, segurando asxícaras nas mãos. Quiseram saber se podia-lhes contaralguma coisa sobre Mr. Bax. Mr. Thornbury como decostume sentava-se sem
dizer nada, olhando vagamenteem frente, às vezes erguendo seus óculos como se osquisesse colocar no rosto, mas sempre mudando de idéiano último momento e deixando-os
cair de novo. Depois de alguma discussão, as senhoras decidiram que Mr. Bax não era filho de William Bax. Houve uma pausa. EntãoMrs. Thornbury comentou que ainda
tinha o hábito dedizer rainha em vez de rei no Hino Nacional. Houve outra pausa. Então Miss Allan disse pensativamente queir à igreja no estrangeiro sempre a fazia
sentir que estivera no enterro de um marinheiro. Houve então uma pausa bastante longa, que ameaçava ser derradeira, quando, misericordiosamente, um pássaro mais
ou menos dotamanho de um pintassilgo, mas de cor azul metálico,apareceu na parte do terraço que podia ser vista de ondeestavam sentados. Mrs. Thornbury perguntou
se devíamos querer que todas as nossas gralhas fossem azuis:
– O que você acha, William? – perguntou ela, tocando o joelho do marido.
– Se todas as nossas gralhas fossem azuis – ele levantou os óculos e realmente os botou no nariz –, não viveriam muito tempo em Wiltshire – concluiu, tirando novamente
os óculos. Os três mais velhos agora contemplavam meditativos o pássaro que fez o obséquio de ficar no meio da paisagem por um tempo considerável, dispensando-os
de falarem novamente. Hewet começava a imaginar se não poderia ir até o canto dos Flushing, quando Hirst apareceu do fundo, enfiou-se numa cadeira ao lado de Rachel
e começou a falar com ela com todo o ar de familiaridade. Hewet não pôde mais suportar. Levantouse, pegou seu chapéu e disparou porta afora.
18
Tudo o que ele via lhe desagradava. Odiava o azul e o branco, a intensidade e a nitidez, os ruídos e o calor do sol; a paisagem lhe parecia tão dura e romântica
quanto um cenário de papelão no palco, e a montanha era apenas um biombo de madeira diante de um lençol tingido de azul. Ele caminhava depressa apesar do calor do
sol.
Dois caminhos saíam da cidade do lado leste; um levava na direção da villa dos Ambrose, o outro entrava pelo interior chegando a uma aldeia na planície, mas muitas
trilhas, feitas em terra úmida, brotavam dele atravessando grandes campos ressequidos, conduzindo a fazendas esparsas e villas de nativos ricos. Hewet saiu do caminho
numa dessas trilhas para evitar a dureza do calor da estrada principal, cuja poeira era sempre erguida em nuvenzinhas pelas carroças e cabriolés desengonçados que
transportavam grupos de camponeses festivos, ou perus avolumando-se irregularmente como um monte de balões sob uma rede ou caixas de presentes e a cabeceira de cama
de latão de algum par de recém-casados.
O exercício serviu na verdade para remover as irritações superficiais da manhã, mas ele continuava infeliz. Pareciafora de dúvida que Rachel não ligava para ele,
pois quasenem olhara, e conversara com Mr. Flushing com o mesmointeresse com que falara com ele. Finalmente, as odiosaspalavras de Hirst golpearam sua mente como
uma chibata,e recordou que a deixara conversando com ele. Naquele momento dialogava com ele, e podia ser verdade que estivesse apaixonada por Hirst, como este dissera.
Hewet examinou todas as provas dessa suposição – o súbito interessedela pelos escritos de Hirst, seu jeito de citar respeitosamente ou com apenas meio sorriso as
opiniões dele; o ape-lido que lhe dera, “o grande Homem”, podia conter algumsignificado sério. Supondo que houvesse algum entendimento entre eles, o que isso significaria?
– Que droga tudo isso! – disse. – Estou apaixonado por ela? – E só podia dar-se uma única resposta.Certamente estaria apaixonado por ela, se soubesse o que era amor.
Desde que a vira ficara interessado e atraído,cada vez mais interessado e atraído, até quase nem poder pensar em nada exceto em Rachel. Mas enquanto deslizava para
uma daquelas longas meditações sobre ambos, ele se testou perguntando-se: queria casar-se com ela? Esse era o problema real, pois essas misérias e agonias não podiam
ser suportadas, e era preciso decidir-se. Decidiu imediatamente que não queria se casar com ninguém. Em parte porque estava irritado com Rachel, a idéia de casamento
o irritava. Sugeria-lhe imediatamente a imagem de duas pessoas sentadas sozinhas diante de uma lareira; o homem estava lendo, a mulher costurando. Havia uma segunda
imagem. Ele via um homem saltar de pé, dizer boa-noite, deixar o grupo e afastar-se depressa com o secreto olhar de quem está fugindo para uma certa felicidade.
Esses dois quadros eram desagradáveis, e mais ainda um terceiro quadro, de marido e mulher e amigo; e os casados olhando-se como se ficassem satisfeitos em deixar
passar alguma coisa não abordada, pois eles próprios possuíam uma verdade mais profunda. Outras imagens – ele caminhava muito depressa na sua irritação e elas lhe
surgiam sem esforço consciente, como imagens num lençol – sucederam-se. Aqui estavam o marido exausto e a esposa, sentados com os filhos ao redor, muito pacientes,tolerantes
e sábios. Mas isso também era uma imagem desagradável. Ele tentou toda a sorte de quadros tirados das vidas de amigos seus, pois conhecia vários casais diferentes,
mas sempre os via fechados numa sala iluminada por um fogo de lareira. Quando de outro lado começava a pensar em pessoas solteiras, via-as ativas num mundo ilimitado;
sobretudo no mesmo nível que os demais, sem abrigo ou vantagem. Os mais individuais e humanos de seus amigos eram solteirões e solteironas; na verdade estava surpreso
ao ver que as mulheres que mais admirava e conhecia melhor eram solteiras. O casamento parecia pior para as mulheres do que para os homens. Deixando de lado esses
quadros gerais, analisou as pessoas que andara observando ultimamente no hotel. Muitas vezes resolvera essas questões em sua mente observando Susan e Arthur,ou Mr.e
Mrs.Thornbury,ou Mr.e Mrs.Elliot.Observara como a tímida felicidade e surpresa dos casais foram gradualmente substituídas por um estado de espírito confortável e
tolerante, como se já tivessem liquidado a aventura da intimidade e estivessem assumindo seus papéis. Susan costumava perseguir Arthur com um suéter porque um dia
ele revelara que um irmão seu morrera de pneumonia.A visão disso o divertia, mas não era agradável quando se punha Terence e Rachel no lugar de Arthur e Susan; e
Arthur estava bem menos desejoso de pegar as pessoas num canto e falar sobre voar e os mecanismos de aeroplanos. Iriam se dar bem. Depois ele olhou os casais que
estavam casados há vários anos. Era verdade que Mrs.Thornbury tinha um marido e que na maior parte do tempo conseguia maravilhosamente metê-lo na conversa,mas não
se podia imaginar o que diziam quando estavam sozinhos. Havia dificuldade com relação aos Elliot, exceto que provavelmente discutiam francamente em particular.Às
vezes discutiam em público, embora esses desacordos fossem minuciosamente recobertos pelas pequenas insinceridades da parte da esposa, que era mais burra que o marido
e tinha dificuldades em acompanhá-lo. Não podia haver dúvida de que teria sido melhor para o mundo se aqueles casais se separassem. Até os Ambrose, a quem admirava
e respeitava profundamente, apesar de todo o amor entre eles, o seu casamento não era, sobretudo, uma acomodação? Ela cedia a ele; ela o mimava; ela arranjava as
coisas para ele; ela, que era toda verdade com os outros,não era verdadeira com seu marido, nem era leal com os amigos quando entravam em conflito com o marido dela.Era
uma nódoa estranha e lastimável no caráter dela. Talvez Rachel estivesse certa quando disse naquela noite no jardim: “Nós provocamos o que há de pior um no outro...
devíamos viver separados”.
Não, Rachel estava totalmente errada! Todos os argumentos pareciam ser contra assumir a carga de um casamento, até chegar ao argumento de Rachel, que era manifestamente
absurdo. De perseguido ele passava a perseguidor. Deixando de lado o caso contra o casamento, começou a analisar as peculiaridades de caráter que a tinham levado
a dizer aquilo. Falara sério? Certamente se devia conhecer o caráter da pessoa com quem se pretendesse passar a vida inteira; sendo romancista, ele que tentasse
descobrir que tipo de pessoa ela era. Quando estava com ela, não conseguia analisar suas qualidades porque parecia conhecê-las por instinto, mas quando estava afastado,
às vezes lhe parecia que não a conhecia. Era jovem mas também velha; tinha pouca confiança em si mesma, mas também era boa em julgar outras pessoas. Era feliz, mas
o que a fazia feliz? Se estivessem sozinhos e a excitação tivesse passado, e tivessem de lidar com os fatos banais do dia, o que aconteceria? Lançando um olhar em
seu próprio caráter, duas coisas apareciam: era muito impontual e não gostava de responder a bilhetes. Até onde sabia, Rachel inclinava-se a ser pontual, mas ele
não se lembrava de jamais tê-la visto com uma caneta na mão. Depois ele imaginava um jantar, digamos no Croom, e Wilson, que a levara até lá, falando sobre a situação
do partido liberal.Ela diria que naturalmente não sabia nada de política.
Mesmo assim, era com certeza inteligente e também honesta. Seu temperamento era incerto – ele notara isso –, e não era doméstica, não era fácil e não era quieta,
nem bela, exceto em algumas roupas com algumas luzes. Mas o seu grande talento era compreender o que lhe diziam;nunca houve ninguém igual a ela para se falar. Podia-se
dizer qualquer coisa – podia dizer tudo, e ela jamais era servil. Aqui ele se sobressaltou, pois de repente lhe pareceu que sabia menos sobre ela do que sobre qualquer
pessoa. Todos esses pensamentos já lhe haviam ocorrido muitas vezes; muitas vezes ele tentara argumentar e discutir; e novamente chegara ao velho estado de dúvida.Não
a conhecia e não sabia o que ela sentia, nem se podiam viver juntos, ou se queria se casar com ela, mas estava apaixonado por ela.
E se fosse até ela e lhe dissesse (ele diminuiu o passo e começou a falar alto como se falasse com Rachel).
– Eu adoro você mas odeio o casamento, odeio sua presunção, sua segurança, suas concessões, e a idéia de você interferir no meu trabalho, impedindo-me; o que você
responderia?
Ele parou, recostou-se no tronco de uma árvore e ficou olhando sem ver algumas pedras espalhadas na margem do leito seco do rio. Via claramente o rosto de Rachel,
os olhos cinzentos, o cabelo, a boca; o rosto que podia ser tantas coisas – liso, vazio, quase insignificante, ou louco,apaixonado, quase belo, mas aos olhos dele
sempre o mesmo por causa da extraordinária liberdade com que ela o encarava e dizia o que sentia. O que ela haveria de responder? O que sentia? Amava-o ou não sentia
nada nem por ele nem por outro homem, sendo, como ela dissera naquela tarde, livre como o vento ou o mar?
– Ah, você é livre! – exclamou ele exultante ao pensar nela. – E eu a manterei livre. Seremos livres juntos. Vamos partilhar tudo juntos. Nenhuma felicidade seria
como a nossa. Vida alguma poderia comparar-se às nossas. – Ele abriu bem os braços, como se quisesse encerrar num só abraço a ela e ao mundo.
Já não conseguindo analisar o casamento ou avaliar friamente como era a natureza dela, nem como seria viverem juntos, ele caiu no chão e ficou sentado absorvido
na lembrança dela, logo atormentando-se com o desejo de estar novamente na sua presença.
19
Mas Hewet não precisava ter aumentado seus tormentos imaginando que Hirst ainda falava com Rachel. O grupo logo se desfizera, os Flushing indo numa direção,Hirst
em outra, e Rachel ficando no saguão, remexendo nas revistas, passando de uma a outra, movimentos expressando o desejo inquieto e informe na sua mente. Não sabia
se devia ir ou ficar, embora Mrs. Flushing lhe tivesse ordenado que aparecesse para o chá. O saguão estava vazio, exceto por Miss Willett, que tocava escalas numa
folha de música sacra, e pelos Carter, um casal opulento que não gostava da moça, porque os cadarços de seus sapatos estavam desarrumados e ela não parecia suficientemente
alegre, o que por algum processo indireto de pensamento os fazia pensar que não gostava deles. Rachel não teria gostado deles se os tivesse visto, pelo excelente
motivo de que Mr. Carter cofiava seu bigode, e Mrs.Carter usava braceletes; eram evidentemente o tipo de pessoas que não gostariam dela; mas estava absorvida demais
na sua própria inquietação para pensar ou olhar.
Ela virava as páginas escorregadias de uma revista americana quando a porta do saguão se abriu num ímpeto, uma beira de luz caiu sobre o chão, e uma figura pequena
e branca, sobre a qual a luz parecia facada, atravessou o salão diretamente até ela.
– O quê! Você está aqui? – exclamou Evelyn. – Eu a vi rapidamente no almoço; mas você não teve a bondade de olhar para mim!
Era parte do caráter de Evelyn que, apesar de muitas afrontas que recebia,jamais desistisse de buscar as pessoas que queria conhecer, e a longo prazo geralmente
conseguia conhecê-las e até fazê-las gostarem dela.
Evelyn olhou em torno.
– Odeio este lugar, odeio essa gente. Queria que subisse comigo ao meu quarto. Quero conversar com você.Como Rachel não quisesse nem ir nem ficar, Evelyn pegou-a
pelo pulso e puxou-a para fora do saguão, escada acima.Enquanto subiam dois degraus de cada vez,Evelyn,que ainda segurava a mão de Rachel, soltava frases fragmentadas
sobre não dar a mínima para o que as pessoas diziam.
– Por que se deveria, sabendo-se que se está certa? Eles que se danem! É o que eu acho!
Estava muito excitada, e os músculos de seus braços repuxavam-se nervosamente. Era óbvio que estava apenas esperando que a porta fechasse para contar tudo a Rachel.
Na verdade, assim que chegaram ao quarto, ela se sentou na beira da cama e disse:
– Acho que você pensa que sou louca.
Rachel não estava em condições de pensar claramente sobre o estado mental de ninguém. Mas estava em condições de dizer diretamente o que lhe ocorresse, sem medo
das conseqüências.
– Alguém a pediu em casamento – comentou.
– Como foi que você adivinhou? – exclamou Evelyn,prazer misturando-se com sua surpresa. – Eu pareço que acabo de ser pedida em casamento?
– Você parece que é pedida todos os dias – respondeu Rachel.
– Mas acho que não fui pedida mais do que você – riu Evelyn, não muito sincera.
– Nunca fui pedida.
– Mas vai ser... montes... é a coisa mais fácil do mundo... Mas não foi bem isso que aconteceu esta tarde. É... ah, éuma confusão, uma confusão nojenta, horrível,
detestável!Ela foi até à pia e começou a passar a esponja nas faces,com água fria, pois estavam queimando. Ainda molhando-as e tremendo um pouco, virou-se e explicou
com voz aguda de nervosismo:
– Alfred Perrott diz que prometi me casar com ele,mas eu nunca fiz isso. Sinclair diz que vai se matar com um tiro se eu não me casar com ele, e eu digo “Então,mate
– se!” Mas naturalmente ele não vai se matar... eles nunca se matam. E Sinclair me agarrou esta tarde e começou a me aborrecer para eu lhe responder, acusandome
de flertar com Alfred Perrott, disse que não tenho coração, que sou apenas uma sereia, ah, e quantidades de coisas agradáveis desse tipo. Então finalmente eu lhe
dis-se “Bem, Sinclair, agora você já disse o bastante. Pode me largar”. E aí ele me agarrou e me beijou... aquele bruto nojento... e ainda posso sentir seu repulsivo
rosto cabeludo bem aqui... como se ele tivesse algum direito, depois de tudo o que disse!
Ela esfregou energicamente uma pinta em sua face esquerda.
Nunca conheci um homem que pudesse se comparar a uma mulher! – gritou ela.
Eles não têm dignidade, não têm coragem, não têm nada senão sua paixões bestiais e sua força bruta! Alguma mulher teria se portado daquele jeito se um homem tivesse
dito que não a quer? Nós temos muita dignidade; somos infinitamente melhores que eles.
Evelyn caminhou pelo quarto limpando as faces molhadas com uma toalha. Agora corriam lágrimas com as gotas de água fria.
– Isso me deixa furiosa – explicou secando os olhos.
Rachel sentou-se contemplando-a. Não pensava na posição de Evelyn; apenas pensava que o mundo estava cheio de gente atormentada. – Aqui há só um homem de quem eu
realmente goste – continuou Evelyn –, Terence Hewet. Sente-se que se pode confiar nele.
Essas palavras provocaram um frio indescritível em Rachel; seu coração parecia estar sendo apertado entre mãos geladas.
– Por quê? – perguntou. – Por que se pode confiar nele?
– Não sei – disse Evelyn. – Você não tem sensações com relação às pessoas? Sensações que tem absoluta certeza de que estão corretas? Tive uma longa conversa com
Terence outra noite. Senti que depois disso ficamos realmente amigos. Há dentro dele algo de uma mulher... – Ela parou como se estivesse pensando em coisas muito
íntimas que Terence lhe tivesse contado, ou pelo menos foi assim que Rachel interpretou aquele olhar.
Tentou forçar-se a dizer: “Ele a pediu em casamento?”mas a questão era inusitada demais, e em outro momento Evelyn estava dizendo que os melhores homens eram como
mulheres, e que as mulheres eram mais nobres do que os homens... por exemplo, não se podia imaginar uma mulher como Lillah Harrison pensando uma coisa má ou tendo
qualquer coisa falsa.
– Como eu gostaria que você a conhecesse! – exclamou.
Estava ficando bem mais calma, e suas faces já estavam bastante secas. Seus olhos tinham recuperado a habitual expressão de vitalidade ousada, e ela parecia ter
esquecido Alfred e Sinclair e sua emoção.
– Lillah mantém uma casa para mulheres alcoolizadas na Deptford Road – prosseguiu. – Fundou-a, administrou-a e fez tudo por sua própria conta, e agora é a maior
do seu tipo na Inglaterra. Você não pode imaginar como são essas mulheres... e seus lares. Mas ela anda entre elas todas as horas do dia e da noite. Estive com ela
várias vezes... É isso que acontece conosco... Nós não fazemos coisas. O que é que você faz? – perguntou ela olhando para Rachel com um sorriso levemente irônico.
Rachel quase não escutara nada daquilo, e sua expressão era vaga e infeliz. Sentia tanta antipatia por Lillah Harrison e seu trabalho na Deptford Road, quanto por
Evelyn M. e sua profusão de casos de amor.
Eu toco – disse ela com uma afetação de fria serenidade.
Mas é isso! – riu Evelyn. – Nenhuma de nós faz outra coisa senão tocar piano. E é por isso que mulheres comoLillah Harrison, que valem por vinte de nós, têm de se
ma-tar trabalhando. Mas eu estou cansada de tocar – ela continuou, estendendo-se na cama, erguendo os braços acimada cabeça. Assim esticada, parecia menor que nunca.
Eu vou dizer alguma coisa. Tive uma idéia esplêndida. Olhe aqui, você tem de participar. Estou certa deque tem bastante material dentro de si, embora pareça...bem,
como se tivesse passado a vida toda num jardim. –Ela soergueu-se na cama, sentou-se e começou a explicar animadamente. – Pertenço a um clube em Londres. Nós nos
reunimos todos os sábados, de modo que sechama Saturday Club. Devemos falar sobre arte, mas estou enjoada de falar em arte... de que adianta? Com tan-to tipo de
coisas reais acontecendo por aí? E elas nemtêm nada a dizer sobre arte. Então o que vou lhes dizeré que já falamos demais sobre arte, e que é melhor paravariar falarmos
sobre a vida. Questões que realmenteimportam nas vidas das pessoas, o tráfico de escravasbrancas, o voto feminino, o projeto de previdência etc. Equando tivermos
decidido o que queremos fazer, podemos nos arriscar para o fazermos... Estou certa de que sepessoas como nós tomassem as rédeas nas mãos em vezde deixá-las a cargo
de policiais e magistrados, poderíamos parar com... – ela baixou a voz para pronunciar afeia palavra – a prostituição em seis meses. Minha idéiaé que homens e mulheres
deveriam unir-se nesses assuntos. Devíamos ir a Piccadilly e interpelar uma dessaspobres infelizes e dizer: “Olhe aqui, eu não sou melhorque você, nem finjo ser
melhor, mas você está fazendouma coisa que sabe ser abominável, e não quero que façacoisas abomináveis porque debaixo de nossa pele somostodas iguais... por isso,
se você faz uma coisa abominávelisso me importa”. É o que Mr. Bax estava dizendo estamanhã, e é verdade, embora vocês, gente inteligente...você é inteligente, não
é?... não acredite.
Quando Evelyn começava a falar – fato de que logo se arrependia – seus pensamentos vinham tão depressa que nunca tinha tempo de escutar os pensamentos de outras
pessoas. Continuou parando apenas o tempo necessário para tomar fôlego.
– Não vejo porque o Saturday Club não pudesse fazer um grande trabalho dessa maneira – prosseguiu. – Naturalmente isso exigiria organização, alguém que desse a vida
por essa causa, mas estou disposta a fazer isso.Minha idéia é pensar em seres humanos primeiro e deixar idéias abstratas a cargo de si mesmas. O que está errado
com Lillah... se há alguma coisa errada com ela... é que pensa que a moderação vem primeiro e as mulheres depois. Mas há uma coisa que quero dizer a meu respeito,não
sou intelectual nem artista nem nada disso, mas sou muito humana. – Ela escorregou da cama e sentou-se no chão, erguendo os olhos para Rachel. Perscrutava o rosto
dela como se estivesse tentando ler que tipo de personalidade se escondia por trás daquele rosto. Pôs a mão no joelho de Rachel.
– São seres humanos o que interessa, não é? – prosseguiu ela. – Sermos reais,não importa o que diga Mr.Hirst.Você é real?
Rachel sentiu, assim como Terence sentira, que Evelyn estava demasiado próxima dela e que havia algo de excitante nessa proximidade, embora também fosse algo desagradável.
Mas não precisou encontrar resposta porque Evelyn prosseguia:
– Você acredita em alguma coisa?
Para acabar com o escrutínio daqueles claros olhos azuis e aliviar sua própria inquietação física, Rachel empurrou sua cadeira para trás e exclamou:
– Em tudo! – e começou a manusear diferentes objetos, os livros na mesa, as fotos, a planta de folhas carnudas com cerdas duras num grande pote de argila na janela.
– Acredito na cama, nos retratos, no pote, na sacada,no sol, em Mrs. Flushing – comentou ela ainda descuidadamente, com algo no fundo de sua mente forçando-a a dizer
coisas que habitualmente não se dizem. – Mas não acredito em Deus. Não acredito em Mr. Bax, não acredito na enfermeira do hospital. Não acredito... – ela pegou um
retrato e, olhando para ele, não concluiu a frase.
– É minha mãe – disse Evelyn, que ficou sentada no chão, abraçando os joelhos com o braço e observando Rachel com curiosidade. Rachel examinava a foto.
– Bem, não acredito muito nela – comentou algum tempo depois, em voz baixa.
Mrs. Murgatroyd na verdade parecia como se a vida tivesse sido espremida para fora dela; ajoelhava-se numa cadeira espiando comovida atrás do corpo de um cachorro
da Pomerânia que ela apertava contra o rosto como se buscasse proteção.
E esse é o meu papai – disse Evelyn, pois havia duas fotos na moldura. A segunda representava um belo soldado com traços regulares e espesso bigode preto; sua mão
pousava no punho da espada; havia uma evidente semelhança entre ele e Evelyn.
E é por causa deles – disse Evelyn – que vou ajudar as outras mulheres. Você ouviu falar em mim, eu acho? Sabe, eles não eram casados; eu não sou ninguém especial
e não tenho nenhuma vergonha disso. Eles se amavam,seja como for, e isso é mais do que a maior parte das pessoas pode dizer de seus pais.
Rachel sentou-se na cama com os dois retratos na mão e comparou-os – o homem e a mulher que, segundo Evelyn, tinham se amado tanto. O fato a interessava mais do
que a companhia em favor das mulheres desafortunadas que Evelyn começava a descrever mais uma vez. E novamente olhava de um para o outro.
Quando Evelyn parou por um minuto de falar, Rachel indagou:
– Como você acha que é estar apaixonado?
– Você nunca se apaixonou? – perguntou Evelyn. – Ah, não... basta olhar para você e ver isso – acrescentou e pensou um pouco. – Eu estive apaixonada realmente uma
vez – disse, e passou a refletir; seus olhos perderam a brilhante vitalidade aproximando-se de algo parecido com ternura. – Foi divino!... enquanto durou. O pior
é que não dura, não comigo. Esse é que é o problema.
Evelyn passou a analisar a dificuldade com Alfred e Sinclair sobre a qual fingira pedir conselho a Rachel. Mas não queria conselho; queria intimidade. Quando olhava
para Rachel, que ainda olhava a foto na cama, não pôde deixar de notar que Rachel não estava pensando nela.Então, em que estava pensando? Evelyn foi atormentada
pela pequena centelha de vida nela que sempre tentava abrir caminho até outras pessoas e era sempre rejeitada.Silenciando, contemplou sua visitante, seus sapatos,
as meias, os pentes no cabelo, todos os detalhes de sua roupa,enfim, como se, apanhando cada pormenor, pudesse aproximar-se mais da vida ali dentro.
Finalmente Rachel largou os retratos, caminhou até a janela e comentou:
Esquisito. As pessoas falam de amor tanto quanto falam de religião.
Eu queria que você se sentasse para conversar – disse Evelyn, impaciente.
Em vez disso Rachel abriu a janela, que era de duas altas vidraças, e olhou para o jardim lá embaixo.
– Foi lá que nos perdemos a primeira noite – disse ela.
– Deve ter sido naqueles arbustos.– Ali embaixo eles matam galinhas – disse Evelyn. – Cortam as cabeças delas com uma faca... nojento! Mas diga-me... o que...
– Eu gostaria de explorar o hotel – interrompeu Rachel.Recolhe a cabeça para dentro do quarto e olhou para Evelyn, que ainda estava sentada no chão.
– É como todos os outros hotéis – disse Evelyn.
Podia ser, embora cada quarto, corredor e cadeira do lugar tivesse um caráter próprio aos olhos de Rachel; mas ela não conseguia força se a ficar mais tempo no mesmo
lugar. Moveu-se lentamente na direção da porta.
– O que você quer? – disse Evelyn. – Você me faz sentir que está sempre pensando em alguma coisa que não diz... Diga! Mas Rachel não respondeu tampouco a esse convite.Parou
com os dedos na maçaneta da porta, como se recordasse que esperavam dela uma espécie de pronunciamento.
– Acho que você vai se casar com um deles – disse, giroua maçaneta e fechou a porta atrás de si. Desceu lentamentepelo corredor, passando a mão pela parede ao lado.
Não pensava para onde ia, por isso seguiu por um corredor quelevava somente a uma janela e uma sacada. Olhou para baixo, para o pátio da cozinha, o lado errado da
vida do hotel,que ficava oculto do lado certo por uma sebe de pequenosarbustos. O chão era nu, velhas latas espalhadas por ali, osarbustos cobertos com toalhas e
aventais para secarem. Devez em quando um garçom saía num avental branco e jogava lixo num monte. Duas mulheres grandes em vestidosde algodão sentavam-se num banco
com bacias de alumínio manchadas de sangue à frente e corpos amarelos sobreos joelhos. Estavam depenando as aves e falando enquanto depenavam. De repente uma galinha
apareceu ali, estonteada, meio voando, meio correndo perseguida por uma terceira mulher cuja idade podia ser menos de 80. Emborainsegura nas pernas e encarquilhada,
ela continuou na suacaçada, estimulada pelo riso das outras; seu rosto expressava uma raiva furiosa, e enquanto corria praguejava em espanhol. Assustada por um bater
de palmas aqui, um guardanapo ali, a ave corria de um lado para outro em ziguezague, finalmente esvoaçando direto para a velha, que abriusuas leves saias cinzentas
para apanhá-la, tropeçou sobre ela como uma trouxa e então, estendendo-a no ar, cortou sua cabeça com uma expressão de energia vingativa e triunfo combinados. O
sangue e aquela feia agitação fascinaramRachel de modo que, embora soubesse que alguém vierapor trás e parava ao seu lado, não se virou até que a velha se tivesse
instalado no banco junto das outras. Então ela ergueu os olhos bruscamente por causa da feiúra do que vira.Era Miss Allan que estava parada ali.
– Não é uma bela visão, embora eu me atreva a dizer que é mais humana do que o nosso método... Não creio que a senhorita já tenha estado no meu quarto – acrescentou
e afastou-se, como se quisesse que Rachel a seguisse.Rachel foi, pois parecia possível que cada pessoa nova removesse o mistério que pesava sobre ela.
Todos os quartos do hotel tinham o mesmo padrão,apenas alguns eram maiores e outros menores; tinham assoalho de lajotas vermelho-escuras; tinham uma cama alta, envolta
em mosquiteiros; tinham uma escrivaninha,um toucador e duas poltronas. Mas assim que se abria uma caixa os aposentos ficavam muito diferentes de modo que o quarto
de Miss Allan não se parecia nada com o de Evelyn. Não havia vários alfinetes de chapéus coloridos sobre o toucador; nem frascos de perfumes; nem pares finos e curvados
de tesouras; nem grande variedade de botinas e sapatos; nem anáguas de seda sobre cadeiras. O quarto era extremamente arrumado. Parecia haver dois pares de tudo.
A escrivaninha, porém, estava coberta de pilhas de manuscritos, e uma mesa fora puxada junto da poltrona, com duas pilhas separadas de livros escuros de biblioteca,
com vários pedaços de papel emergindo das páginas, em vários graus de espessura. Miss Allan convidara Rachel para vir por gentileza, pensando que ela estava por
ali esperando sem nada para fazer. Mais que isso,gostava de mulheres jovens, pois dera aulas a muitas delas,e tendo recebido tanta hospitalidade dos Ambrose, ficava
contente em retribuir minimamente. Olhou em torno, buscando algo para lhe mostrar. O quarto não fornecia muita distração. Ela tocou seu manuscrito:
– Era de Chaucer; Era de Elizabeth; Era de Dryden – refletiu. – Alegra-me que não haja muito mais eras.Ainda estou no meio do século. Não quer se sentar, Miss Vinrace?
A cadeira, embora pequena, é firme... Euphues.O germe do romance inglês – continuou, olhando outra página. – Esse tipo de coisa a interessa? Ela encarava Rachel
com grande bondade e simplicidade, como se tivesse feito o máximo para lhe dar o que eladesejava. Essa expressão tinha um notável encanto, num rosto com muitas marcas
de preocupações e reflexão.
– Ah, não – exclamou, lembrando-se –, com a senhorita é a música, não é? E eu geralmente acho que não combinam. Às vezes, claro, temos prodígios... Olhava em torno
procurando alguma coisa e viu um pote sobre a lareira, que pegou e deu a Rachel. – Se puser o dedo dentro deste vidro poderá extrair um pedaço de gengibre em conserva.
A senhorita é um prodígio?
Mas o gengibre estava no fundo e não pôde ser tirado.
– Não se incomode – disse Rachel, enquanto Miss Allan olhava em torno procurando algum instrumento. – Acho que não vou gostar de gengibre em conserva.
– Você nunca experimentou? – perguntou Miss Allan.
– Então considero um dever seu tentar agora. Ora, pode acrescentar um novo prazer à sua vida, e como ainda é jovem... – Ficou imaginando se um gancho de botão funcionaria.
– E tenho como regra experimentar de tudo.Não acha que seria aborrecido se experimentasse gengibre pela primeira vez no seu leito de morte e achasse que era a coisa
melhor do mundo? Eu ficaria tão aborrecida que ficaria boa só por isso.
Ela conseguiu, e um pedaço de gengibre emergiu na ponta do gancho. Enquanto ela foi limpar o gancho,Rachel mordeu o gengibre e imediatamente gritou:
Vou ter de cuspi-lo!
Tem certeza de que o provou de verdade? – interrogou Miss Allan.Como resposta, Rachel jogou-o pela janela.
Seja como for, uma experiência – disse Miss Allan calmamente. – Vamos ver... não tenho mais nada a lhe oferecer, a não ser que queira saborear isso. – Sobre sua
cama estava pendurado um pequeno armário, e dele ela tirou um frasco esguio e elegante, cheio de um líquido verde brilhante.
Crême de Menthe – disse. – Licor, você sabe. Parece até que bebo, não parece? Na verdade ele está aqui para provar que abstêmia excepcional eu sou.Tenho esse frasco
há 26 anos – acrescentou ela, contemplando-o com orgulho, enquanto inclinava o frasco, e pela altura do líquido podia-se ver que ainda estava intocado.
– Vinte e seis anos? – exclamou Rachel.
Miss Allan ficou contente, porque queria que Rachel ficasse surpresa.
– Quando fui a Dresden, há 26 anos – disse –, certa amiga minha anunciou sua intenção de me dar um presente. Achava que no caso de um naufrágio ou acidenteum estimulante
poderia ser útil. Mas, como não tiveocasião de tomá-lo, devolvi-lhe o presente na minhavolta. Na véspera de qualquer viagem, essa mesma garrafinha sempre aparece,
com o mesmo bilhete; na voltaé sempre devolvida. Considero-a uma espécie de feitiçocontra acidente. Embora uma vez tenha ficado 24 horas retida num acidente com
o trem na minha frente, eu própria nunca sofri acidente algum. Sim – prosseguiuela, agora falando com a garrafa –, vimos juntos muitosclimas e armários, não foi?
Um desses dias pretendomandar prender nele um rótulo de prata com uma inscrição. Como pode observar, é um cavalheiro, e seunome é Oliver... Acho que eu não a perdoaria,
MissVinrace, se quebrasse o meu Oliver – disse, tirando comfirmeza o frasco das mãos de Rachel e colocando-o novamente no armário. Rachel estava balançando a garrafinha
pelo gargalo.Ficara tão interessada em Miss Allan que acabara esquecendo o licor.
– Bem – exclamou ela –, acho isso muito esquisito; ter uma amiga há 26 anos, e um frasco, e... ter feito todas aquelas viagens.
– Nada esquisito; eu chamo isso o inverso do esquisito – respondeu Miss Allan. – Sempre me considero a pessoa mais comum que conheço. Esqueci... você é um prodígio,ou
disse que não era prodígio? Ela sorria muito bondosamente para Rachel. Parecia ter conhecido e experimentado tanta coisa, enquanto se movia desajeitadamente pelo
quarto, que certamente de-via haver bálsamo para toda a angústia em suas palavras,caso se pudesse induzi-la a fazer sinais de romper a reticência que a recobria
há anos. Uma sensação de desconforto fazia Rachel permanecer calada; de um lado, queria extrair uma centelha daquela fria carne rosada, de outro,percebia que não
havia nada a fazer senão passarem uma pela outra em silêncio.
– Não sou um prodígio. Acho muito difícil dizer o que quero... – comentou ela finalmente.
– Acho que é uma questão de temperamento – Miss Allan veio em seu socorro. – Há pessoas que não têmdificuldade; de minha parte, acho que há muitas coisasque não
consigo dizer. Mas eu me considero muito lenta.Uma de minhas colegas sabe se gosta de alguém ou não...vamos ver, como é que ela faz isso?... pelo modo comodizemos
bom-dia no café da manhã. Eu às vezes levo anos para me decidir. Mas a maioria dos jovens pareceachar isso fácil.
– Ah, não – disse Rachel. – É difícil!
Miss Allan olhou para Rachel, quieta, sem dizer nada;suspeitava de que havia algum tipo de problema. Depois levou a mão à parte de trás da cabeça e descobriu que
um dos caracóis grisalhos de seu cabelo se soltara.
– Preciso pedir que me dê licença – disse, levantando-se
– para eu arrumar meu cabelo. Nunca encontrei um tiposatisfatório de grampo de cabelo. Preciso mudar de vestidotambém; e gostaria muito de sua ajuda, porque há uma
série de ganchos cansativos que eu posso abrir sozinha, masàs vezes isso leva 15 minutos; mas com sua ajuda...Ela despiu casaco, saia e blusa, e postou-se diante
do espelho, arrumando o cabelo, uma figura familiar e maciça, a anágua tão curta que expunha um par de grossas pernas cinza-azuladas.
– As pessoas dizem que a juventude é agradável; eu pessoalmente acho a meia-idade bem mais agradável – comentou, removendo grampos e pentes, e pegando a escova.
Quando caiu, seu cabelo chegava apenas até a nuca.
– Quando eu era jovem – prosseguiu, as coisas podiam parecer tão sérias quando se era assim... E agora,meu vestido. Num espaço maravilhosamente breve de tempo, seu
cabelo fora reformado na suas ondas habituais. A parte superior do seu corpo tornou-se verde-escura com listras pretas: mas a saia precisava de ganchos em vários
ângulos,e Rachel teve de ajoelhar-se no assoalho para ter os olhos à altura dos ganchos.
– Miss Johnson costumava achar a vida muito pouco satisfatória, lembro-me disso – continuou Miss Allan virando as costas para a luz. – Depois ela começou a criar
porquinhos-da-índia por causa das manchas, e ficou absorvida por isso. Acabo de ouvir dizer que o porquinhoda-índia amarelo teve um bebê preto. Apostamos seis pence
a respeito disso. Ela vai ficar triunfante.
A saia estava apertada. Ela contemplou-se no espelho com a curiosa rigidez de seu rosto que geralmente aparece ao olhar-se no espelho.
– Estou adequada para me encontrar com meus semelhantes? – perguntou. – Eu me esqueço de como é masdizem que animais pretos muito raramente têm bebês coloridos ou
é o contrário? Já me explicaram isso tantas vezesque é muita estupidez minha ter esquecido novamente.
Moveu-se pelo quarto pegando objetos com umaenergia calma e colocando-os em si mesma – um medalhão, um relógio com corrente, um pesado braceletede ouro e o botão
colorido de uma sociedade sufragista. Por fim, totalmente equipada para o chá dominical,ela se deteve diante de Rachel e sorria-lhe bondosamente. Não era uma mulher
impulsiva, e sua vida atreinara para conter a língua. Ao mesmo tempo, tinhagrande boa vontade para com os outros, especialmente os jovens, o que muitas vezes a levava
a lamentar serlhe tão difícil falar.
– Vamos descer? – disse.
Pôs uma mão no ombro de Rachel e, inclinando-se, apanhou com a outra mão um par de sapatos baixos colocando-os um ao lado do outro escrupulosamente do lado de fora
da porta. Quando desceram pelo corredor, passaram por muitos pares de botas e sapatos, alguns pretos outros marrons, todos lado a lado, e todos diferentes, até na
maneira como estavam dispostos.
– Sempre acho que as pessoas são semelhantes às suas botinas – disse Miss Allan.
– Este par é de Mrs. Paley... – mas quando ela falava a porta abriu-se e Mrs. Paley saiu em sua cadeira de rodas,também equipada para o chá.
Ela cumprimentou Miss Allan e Rachel.
– Eu estava mesmo dizendo que as pessoas são bem parecidas com sua batinas – disse Miss Allan. Mrs. Paleynão escutou. Ela repetiu ainda mais alto. Mrs. Paley não
escutou. Ela repetiu uma terceira vez. Mrs. Paley escutou,mas não compreendeu. Aparentemente Miss Allan estavapor repetir uma quarta vez, quando de repente Rachel
dis-se alguma coisa inarticulada e desapareceu no corredor. Omal-entendido, que incluía um bloqueio total do corredor,parecia-lhe insuportável. Andava rapidamente,
às cegas,em direção oposta, e encontrou-se no fim de um cul de sac. Havia uma janela, uma mesa e uma cadeira na janela, e sobre a mesa havia um tinteiro enferrujado,
um cinzeiro,um velho exemplar de um jornal francês,e uma caneta componta quebrada. Rachel sentou-se como se fosse estudar ojornal francês, mas uma lágrima caiu sobre
a borrada letraimpressa francesa,causando uma mancha suave.Ela levantou a cabeça bruscamente, exclamando alto:
– É insuportável!
Olhando pela janela com olhos que não veriam mesmo que não estivessem ofuscados pelas lágrimas, ela finalmente permitiu-se criticar o dia todo. Fora uma desgraça
do começo ao fim; primeiro, a cerimônia na capela,depois o almoço; depois Evelyn; depois Miss Allan; depois a velha Mrs. Paley bloqueando o corredor. Fora atormentada
e irritada o dia todo. Agora chegara a uma daquelas culminâncias, resultado de uma crise, da qual finalmente se enxerga o mundo nas suas verdadeiras proporções.
E sentia profunda aversão ao que via – igrejas, políticos, desajustados e grandes impostores, homens como Mr. Dalloway, homens como Mr. Bax, Evelyn e sua tagarelice,
Mrs. Paley bloqueando o corredor. Enquanto isso,a batida regular do seu próprio pulso representava a quente torrente de emoção que corria ali debaixo; pulsando,lutando,
solapando. No momento, seu próprio corpo era fonte de toda a vida no mundo, que tentava explodir aqui... ali... e era reprimida, ora por Mr. Bax, ora por Evelyn,
ora pelo imposição de uma pesada estupidez, o peso do mundo inteiro. Atormentada, ela crispava as mãos juntas, pois todas as coisas estavam erradas e todas as pessoas
eram estúpidas. Vendo vagamente que havia pessoas no jardim lá embaixo, ela as interpretou como massas de matéria sem objetivo, flutuando para cá e para lá, sem
meta senão a de inibi-la. O que estavam fazendo, essas outras pessoas do mundo?
Ninguém sabe – disse. A força da sua ira começava a desgastar-se, e a visão do mundo, que fora tão viva, tornava-se nebulosa.
É um sonho – murmurou. Analisou o tinteiro enferrujado, a caneta, o cinzeiro e o velho jornal francês.Aqueles pequenos objetos sem valor pareciam-lhe representar
vidas humanas.
Estamos adormecidos e sonhando – repetiu ela. Mas a possibilidade que agora se insinuava, de que um daqueles vultos poderia ser o de Terence, arrancou-a daquela
melancólica letargia. Ficou tão inquieta quanto estivera antes de se sentar. Não conseguia mais ver o mundo como uma cidade espalhada abaixo dela. Em vez disso,
ele se recobria com uma febril névoa rubra. Rachel voltara ao estado em que estivera o dia todo. Pensar não era escapatória. O movimento físico era o único refúgio,
entrando e saindo de quartos, entrando e saindo das mentes das pessoas, procurando nem ela sabia o quê. Por isso levantouse, empurrou a mesa para trás e desceu as
escadas. Saiu pela porta do saguão e dobrando a esquina do hotel encontrou- se entre as pessoas que avistara da janela. Mas devido ao vasto sol depois dos corredores
sombreados e à substância das pessoas vivas depois dos sonhos, o grupo lhe aparecia com espantosa intensidade, como se a superfície poeirenta tivesse sido removida
de todas as coisas,deixando apenas a realidade e o instante. Parecia uma imagem imprimida no escuro da noite. Vultos brancos,cinzentos e roxos espalhavam-se no verde;
mesas redondas dobráveis; no meio, a chama da chaleira fazia o ar tremer como uma vidraça defeituosa; uma maciça árvore verde pairava sobre todos eles como se fosse
uma força móvel cristalizada. Quando se aproximava, ela pôde ouvir a voz de Evelyn repetindo monotonamente.
– Aqui... aqui... cachorrinho, venha cá. – Por um momento nada parecia acontecer; estava tudo parado, imóvel, e então ela percebeu que uma das figuras era Helen
Ambrose; e a névoa começou a baixar.
O grupo reunira-se de modo inteiramente aleatório;uma mesa de chá junto de outra mesa de chá, espreguiçadeiras servindo para ligar dois grupos. Mas mesmo a distância
podia-se ver que Mrs. Flushing, ereta e imperiosa,dominava o grupo. Falava com veemência para Helen do outro lado da mesa.
– Dez dias numa tenda de lona – dizia. – Sem conforto. Se quiser conforto, não venha. Mas acredite, se não vier, vai se arrepender pelo resto da vida. A senhora
vai? Nesse momento Mrs. Flushing avistou Rachel.
– Ah, aí está a sua sobrinha. Ela prometeu. Você vem,não vem? – Tendo adotado o plano, ela o perseguia com a energia de uma criança.Rachel tomou seu partido, ansiosamente.
– Claro que vou. E você também, Helen. E Mr. Pepper também. Sentando-se, percebeu que estava rodeada por gente conhecida, mas Terence não estava entre eles. De vários
ângulos, pessoas começaram a dizer o que pensavam da excursão proposta. Segundo algumas, seria quente demais, mas as noites seriam frias; segundo outras, as dificuldades
estariam em conseguir um barco e falar o idioma. Mrs. Flushing rejeitou todas as objeções, devidas ao homem ou à natureza, anunciando que seu marido ajeitaria tudo.
Enquanto isso Mrs. Flushing explicava calmamente a Helen que na verdade a excursão era um assunto simples;levava no máximo cinco dias; e o local... uma aldeia nativa...
certamente valia a pena ser vista antes de ela voltar à Inglaterra. Helen murmurou alguma coisa ambígua, e não se comprometeu com uma resposta nem outra.
Mas o chá incluía gente diferente demais para que florescesse uma conversa generalizada; do ponto de vista deRachel, tinha a grande vantagem de que ela quase não
precisava falar. Do outro lado, Susan e Arthur estavam explicando a Mrs. Paley que tinham sugerido uma excursão;tendo entendido isso, Mrs. Paley deu o conselho de
uma velha viajante, de que deviam levar legumes em conserva,casacos de pele e pó contra insetos. Ela debruçava-se paraMrs. Flushing e sussurrava algo que pelo piscar
de seusolhos provavelmente se referia a insetos. Helen estava recitando “Dobre de sino pelo bravo” para St. John Hirst, aparentemente para ganhar uma moeda de seis
pence que estava sobre a mesa; enquanto Mr. Hugling Elliot impunhasilêncio no seu setor da platéia, com sua fascinante anedotasobre Lord Curzon e a bicicleta do
estudante. Mrs. Thornbury tentava lembrar o nome de um homem que poderia ter sido um outro Garibaldi e que escrevera um livroque todos deviam ler; e Mr. Thornbury
lembrou que tinhaum par de binóculos às ordens de quem quisesse.Enquantoisso, Miss Allan murmurava, com a curiosa intimidade quesolteironas por vezes assumem com
cães, ao fox-terrier queEvelyn finalmente induzira a aproximar-se deles.Partículasminúsculas de poeira ou pólen de flores caíam sobre ospratos, sempre que os ramos
acima suspiravam. Rachel parecia ver e ouvir um pouco de tudo aquilo quase como umrio sente os raminhos que caem dentro dele e enxerga océu acima, mas os olhos dela
estavam vagos demais para ogosto de Evelyn. Ela foi até lá e sentou-se no chão, aos pésde Rachel.
Então? – perguntou de repente. – Em que está pensando?
Em Miss Warrington – respondeu Rachel impensadamente, porque tinha de dizer alguma coisa. Na verdade via Susan murmurando a Mrs. Elliot enquanto Arthur a fitava
com absoluta confiança no seu próprio amor.Rachel e Evelyn começaram a escutar o que Susan dizia.
– Há as ordens a dar, os cachorros, o jardim e as criançasque chegam para serem ensinadas – sua voz prosseguia ritmicamente, como se conferisse uma lista –, meu
tênis, o povoado, cartas a escrever para papai e mil pequenas coisas que nãoparecem muito; mas nunca tenho um momento para mim, equando vou para a cama estou com
tanto sono que durmo antes de a cabeça tocar o travesseiro. Além disso gosto deestar bastante com minhas tias... eu sou uma grande chata,não sou, tia Emma? – Ela
sorriu para a velha Mrs. Paley, que,de cabeça um pouco inclinada, contemplava o bolo com especial afeto. – E papai tem de ter muito cuidado com o friono inverno,
o que significa muita correria, porque ele não secuida, e nem você, Arthur! E assim tudo vai se acumulando!
Sua voz também se acumulava, num brando êxtase de satisfação com sua vida e sua própria natureza. De repente, Rachel sentiu uma intensa repulsa por Susan, ignorando
tudo o que era bondoso, modesto e até patético nela.Pareceu-lhe insincera e cruel; viu-a ficar gorda e prolífica,os bondosos olhos azuis aguados e desbotados, o
rubor das faces congelado numa rede de canais secos.
Helen virou-se para ela:
– Você foi à igreja? – perguntou. – Ganhara seus seis pence e parecia aprontar-se para ir embora.
– Sim – disse Rachel. – Pela última vez – acrescentou.
Preparando-se para botar as luvas, Helen deixou cair uma.
– Você não vai? – perguntou Evelyn pegando uma das luvas como se quisesse guardá-la.
– Está mais do que na hora de irmos – disse Helen. – Não vê como todo mundo está ficando calado...?
Um silêncio baixara sobre todos, causado em parte por um desses acidentes na conversa e em parte porque viam alguém se aproximando. Helen não podia ver quem era,mas
mantendo os olhos fixos em Rachel, observou algo que a fez dizer a si mesma: “Então é Hewet”. Vestiu as luvas com uma curiosa sensação da importância do momento.
Depois levantou-se, pois Mrs. Flushing também vira Hewet e estava exigindo informações sobre rios e botes, mostrando que toda a conversa voltaria àquele tema.
Rachel seguiu-a, e caminharam em silêncio pela alameda. Apesar do que Helen vira e entendera, a sensação mais importante em sua mente agora era curiosamente perversa;
se fosse naquela excursão, não poderia tomar banho; o esforço lhe parecia grande e desagradável.
– É tão ruim estar junto de pessoas que quase nem se conhece – comentou. – Pessoas que não querem ser vistas nuas.
– Você não pretende ir? – perguntou Rachel.
Mrs. Ambrose irritou-se com a intensidade com que Rachel dissera aquilo.
– Não pretendo ir e não pretendo não ir – respondeu.Estava cada vez mais vaga e indiferente.
– Afinal, atrevo-me a dizer que vimos tudo que há para se ver; e há o aborrecimento de ir até lá, e não importa o que digam, provavelmente vai ser terrivelmente
desconfortável. Por algum tempo Rachel não respondeu, mas cada frase que Helen dizia aumentava sua amargura.Finalmente ela explodiu:
– Graças a Deus, não sou como você, Helen! Às vezes acho que você não pensa, nem sente, nem se importa, nem faz nada senão existir! Você é como Mr. Hirst. Vê que
as coisas estão ruins e orgulha-se de dizer isso. É o que chama de ser honesta; na verdade isso é ser preguiçosa, ser chata, ser nada. Você não ajuda; liquida com
as coisas.
Helen sorriu como se estivesse gostando do ataque. – E então? – indagou.
– Para mim, isso parece uma coisa ruim... só isso – respondeu Rachel.
– Possivelmente – disse Helen.
Em qualquer outra época Rachel provavelmente ficaria calada diante da franqueza de sua tia, mas naquela tarde não estava disposta a ficar quieta por consideração
a ninguém. Queria discutir.
Você só vive pela metade – continuou.
Foi porque não aceitei o convite de Mrs. Flushing? – perguntou Helen. – Ou você sempre acha isso?
Naquele momento, Rachel achou que sempre vira em Helen os mesmos erros, desde a primeira noite a bordo do Euphrosyne, apesar de sua beleza e apesar de sua magnanimidade
e do amor deles.
– Ah, é só que, o que há com todo mundo? – exclamou.
– Ninguém sente nada... ninguém faz nada senão magoar os outros! Acredite, Helen, o mundo é mau. É uma agonia viver, querer...Nisso ela arrancou um punhado de folhas
de um arbusto e as esmagou para poder controlar-se.
– As vidas dessa gente – tentou explicar –, a falta de objetivo, a forma de viverem. Vai-se de uma a outra dessas pessoas, e é sempre a mesma coisa. Nunca se consegue
de nenhuma delas o que se quer.
Seu estado emocional e sua confusão teriam feito dela uma presa fácil se Helen quisesse discutir ou arrancar confidências. Mas em vez de falar ela caiu num silêncio
profundo enquanto seguiam andando. Sem objetivo, trivial, sem sentido, ah não... o que vira no chá tornava impossível acreditar nisso. As pequenas piadas, a tagarelice,as
trivialidades da tarde tinham-se desenrolado diante de seus olhos. Debaixo dos afetos e rancores, das uniões e separações, grandes coisas aconteciam, coisas terríveis,porque
eram tão grandes. Seu senso de segurança estava abalado, como se debaixo de gravetos e folhas mortas ela tivesse visto o movimento de uma cobra. Parecia-lhe que
se permitia um momento de prorrogação, um momento de faz-de-conta, e depois, novamente, a profunda lei irracional se afirmava, moldando-os todos conforme sua vontade,
criando e destruindo.
Ela olhou para Rachel caminhando a seu lado, ainda amassando as folhas na mão e absorvida em seus próprios pensamentos. A jovem estava apaixonada, e Helen sentiu
uma profunda compaixão por ela. Mas controlou-se, arrancou-se desses pensamentos e pediu desculpas.
– Lamento muito, mas se sou chata, é meu jeito e não tem remédio. – Se era um defeito natural, ela encontrou um remédio fácil, pois disse que achava o esquema de
Mr.Flushing muito bom, precisando apenas de um pouco de análise, o que parecia ter sido feito quando chegaram em casa. A essa altura tinham combinado que se mais
alguma coisa fosse dita, aceitariam o convite.
20
Quando analisada minunciosamente por Mr. Flushing e Mrs. Ambrose, viu-se que a excursão não era nem perigosa nem difícil. Também viram que nem ao menos era algo
inusitado. Todo ano, nessa estação, ingleses formavam grupos que navegavam num vapor um trecho rio acima, atracavam, olhavam a aldeia nativa, compravam várias coisas
dos nativos e voltavam sem prejuízo de mente e corpo. Quando descobriram que seis pessoas realmente desejavam a mesma coisa, logo fizeram todos os arranjos.
Desde o tempo de Elizabeth muito pouca gente vira o rio, e nada fora feito para mudar sua aparência diferenciando-o daquilo que fora visto pelos viajantes elisabetanos.
O tempo de Elizabeth distava do momento presente apenas por um lapso comparado com os séculos que haviam passado desde que as águas corriam entre aquelas margens,
e as verdes matas abundavam, e as árvores pequenas cresciam formando imensas árvores retorcidas e solitárias. Mudando apenas com a mudança do sol e das nuvens, a
verde massa ondulante estava ali século após século, e a água correra entre suas margens incessantemente, às vezes lavando terra, e por vezes carregando ramos de
árvores, enquanto em outras partes do mundo uma cidade se erguia das minas de outra cidade, e homens nas cidades se haviam tornado cada vez mais articulados e diferentes
entre si. Poucos quilômetros desse rio eram visíveis do topo da montanha onde algumas semanas antes o grupo do hotel fizera o piquenique. Susan e Arthur tinham-no
visto quando se beijavam, e Terence e Rachel quando se sentavam ali falando em Richmond, e Evelyn e Perrott caminhando por ali, imaginando que eram grandes capitães
enviados para colonizar o mundo. Tinham visto a ampla massa azul varando a areia onde corria para
o mar, e a massa verde de árvores mais acima, finalmente escondendo suas águas. A intervalos nos primeiros 30 quilômetros mais ou menos, havia casas espalhadas nas
margens; aos poucos as casas tornavam-se cabanas, e mais adiante não havia nem cabanas nem casas, mas árvores e capim, vistos unicamente por caçadores, exploradores,
ou mercadores marchando ou navegando, mas não se estabelecendo nunca.
Deixando Santa Marina cedo de manhã, rodando 30 quilômetros e cavalgando 13, o grupo, finalmente composto por seis ingleses, chegou à margem do rio quando caía a
noite. Avançaram facilmente entre as árvores – Mr. e Mrs. Flushing, Helen Ambrose, Rachel, Terence e St.
John. Os cavalinhos cansados então pararam automaticamente e os ingleses desmontaram. Mrs. Flushing andou pela margem do rio, eufórica. O dia fora longo e quente,mas
ela gostara da velocidade e do ar livre; deixara o hotel que odiava e gostava de companhia. O rio passava redemoinhando na escuridão; podiam apenas distinguir a
suave superfície móvel das águas; o ar estava cheio do som do rio. Pararam no espaço vazio entre os enormes troncos,e lá fora uma luz verde movendo-se livremente
acima e abaixo mostrava-lhes onde o vapor em que deveriam embarcar os aguardava.
Quando todos estavam no convés, viram que era um barco muito pequeno, que balouçou suavemente embaixo deles por alguns minutos, depois deslizou macio pelas águas.
Pareciam estar se dirigindo para o coração da noite,pois as árvores fecharam-se na frente deles e podiam escutar ao redor, por toda parte, o farfalhar de folhas.
A grande treva teve o seu efeito habitual, removendo todo desejo de comunicação, fazendo suas palavras soarem pequenas e frágeis; depois de caminhar ao redor do
convés três ou quatro vezes, juntaram-se num grupo, com grandes bocejos, olhando o mesmo local de profunda escuridão nas margens. Murmurando muito baixo, no tom
rítmico de alguém meio sufocado, Mrs. Flushing começou a imaginar onde iriam dormir, pois não podiam dormir no andar inferior, não podiam dormir num buraco cheirando
a óleo, nem podiam dormir no convés, não podiam... ela deu um grande bocejo. Era como Helen previra; a questão da nudez já surgira, embora estivessem meio adormecidos
e quase invisíveis uns aos outros. Com ajuda de St. John ela estendeu um pano e persuadiu Mrs. Flushing de que poderia tirar as roupas atrás dele e que ninguém se
importaria se por acaso alguma parte dela, oculta por 45 anos, ficasse exposta ao olho humano. Jogaram colchões no chão, providenciaram mantas, e as três mulheres
deitaram-se juntas ao suave relento.
Os cavalheiros, tendo fumado alguns cigarros, jogaram as pontas acesas no rio e contemplaram por algum tempo as ondulações que agitavam a água negra lá embaixo;
despiram-se também e deitaram-se na outra extremidade do barco. Estavam muito cansados, e a treva os separava como uma cortina. A luz de um lampião caía sobre algumas
cordas, umas poucas tábuas do convés e a amurada do barco, mas além disso havia uma treva única, nenhuma luz atingia os rostos deles, nem as árvores que se erguiam
aos montes nas margens do rio.
Logo Wilfrid Flushing dormia, e Hirst também. Só Hewet estava acordado, olhando para o céu. O movimentosuave e as formas negras que passavam incessantes diantede
seus olhos não o deixavam pensar. A presença de Racheltão perto dele ninava seus pensamentos. Estando tão próxima dele, a poucos passos, do outro lado do barco,
tornavaimpossível pensar nela como teria sido impossível vê-la seestivesse parada bem perto dele, cara a cara. De algumaforma estranha, o barco identificava-se com
ele, e assim como teria sido inútil para ele levantar-se e tentar pilotar obarco, era inútil tentar lutar mais contra a força de seus próprios sentimentos. Estava
sendo arrastado cada vez mais para longe de tudo o que conhecia, deslizando sobrebarreiras, passando de marcos para dentro de águas desconhecidas enquanto o barco
deslizava sobre a macia superfície do rio. Numa profunda paz, envolvido numa inconsciência mais profunda do que aquela em que estivera há muitas noites, ele se deitava
no convés observando os topos dasárvores mudarem de posição rapidamente diante do céu,arqueando-se, baixando e erguendo-se, imensas, até que passou dessas visões
para sonhos, onde estava deitado àsombra de vastas árvores, olhando o céu.
Quando acordaram na manhã seguinte, tinham subidoum trecho considerável rio acima; à direita ficava uma alta margem amarela de areia com tufos de árvores, à esquerdaum
pântano com longos juncos e altos bambus trêmulos no topo dos quais, balouçando levemente, pousavam pássaros deum verde e um amarelo vivos. A manhã era quente e
quieta.Depois do café juntaram cadeiras e sentaram-se na proa numsemicírculo irregular. Um toldo sobre suas cabeças protegiaos do calor do sol, e a brisa que o barco
provocava roçava-ossuavemente. Mrs. Flushing já estava colocando manchas elistras na sua tela, a cabeça inclinando-se ora para um lado,ora para outro, como um pássaro
nervosamente bicandogrãos; os outros tinham livros, folhas de papel ou bordadosnos joelhos, para os quais olhavam intermitentemente, voltando a fitar o rio à frente.
Num momento Hewet leu alto um trecho de um poema, mas o número de coisas móveisfazia desvanecerem-se por completo suas palavras. Ele paroude ler, e ninguém falava.
Moviam-se sob o abrigo das árvores.Ora um bando de pássaros vermelhos alimentava-se numadas ilhotas à esquerda, ora mais uma vez um papagaio azul everde voava de
árvore em árvore, aos gritos. À medida que avançavam a paisagem ficava mais selvagem. As árvores e a vegetação baixa pareciam estrangular-se mutuamente junto ao
chão, numa luta múltipla, enquanto aqui e ali uma árvoremagnífica se erguia como uma torre sobre as demais, sacudindo seu tênue guarda-sol verde no ar. Hewet voltou
a olharseu livro. A manhã estava tão pacífica quanto fora a noite,apenas muito estranha porque estava claro e podia ver Rachel,ouvir sua voz, estar perto dela. Sentia
que estava à espera,como se estivesse estacionado entre coisas que passavam acima dele, em torno dele, vozes, corpos de pessoas, pássaros, esó Rachel esperava com
ele.Olhava para ela às vezes,como seela devesse saber que esperavam juntos, sendo levados em frente juntos, sem poderem oferecer nenhuma resistência.
Voltou a ler seu livro:
“Quem quer que seja você que me segura em sua mão,há uma coisa sem a qual tudo será inútil”.
Um pássaro deu um riso selvagem, um macaco ria satisfeito com uma pergunta maliciosa, e as palavras dele bruxulearam e apagaram-se como fogo que sucumbe ao sol escaldante.
Aos poucos, enquanto o rio se estreitava e as altas mar-gens de areia baixavam cobertas de denso arvoredo, podiam-se escutar os sons da floresta.Tudo ecoava como
num grande salão. Havia gritos súbitos; depois longos espaçosde silêncio, como uma catedral quando a voz de um menino cessou e o eco ainda parece povoar os lugares
mais remotos do teto. Uma vez Mr. Flushing levantou-se, faloucom um marinheiro e até anunciou que depois do almoço o barco pararia e poderiam andar um pouco pela
floresta.
– Há trilhas por toda parte entre as árvores ali – explicou. – Ainda não estamos muito longe da civilização.
Examinou a pintura da esposa. Educado demais para elogiá-la abertamente, contentou-se em cortar metade do quadro com a mão e fazer um floreio no ar com a outra.
– Meus Deus! – exclamou Hirst olhando em frente. – Não acham que é incrivelmente bonito?
– Bonito? – perguntou Helen. Parecia uma estranha e pequena palavra, o próprio Hirst e ela mesma tão pequenos, que ela se esqueceu de responder.Hewet sentiu que
devia falar.
– É daqui que os elisabetanos pegaram seu estilo – meditou ele, olhando fixo a profusão de flores, folhas e prodigiosos frutos.
– Shakespeare? Eu odeio Shakespeare! – exclamou Mrs. Flushing; e Wilfrid respondeu admiravelmente:
– Acho que você é a única pessoa que se atreve a dizer isso, Alice. – Mas Mrs. Flushing continuou pintando.Não parecia dar muito valor ao elogio do marido e pintava
com firmeza, às vezes murmurando um gemido ou uma palavra semi-audível.A manhã estava muito quente.
– Olhem para Hirst! – sussurrou Mr. Flushing. Sua folha de papel escorregara para o convés, a cabeça dele estava jogada para trás e ele roncava profundamente.
Terence pegou a folha de papel e estendeu-a diante de Rachel. Era uma continuação do poema sobre Deus que ele começara na capela; era tão indecente que Rachel não
entendeu a metade, embora visse que era indecente. Hewet começou a preencher palavras onde Hirst deixara lacunas, mas logo parou; seu lápis rolou no convés. Aos
poucos, aproximaram-se mais e mais da margem do lado direito, de modo que a luz que os cobria se tornou definitivamente verde, caindo por uma sombra de folhas verdes,e
Mrs. Flushing deixou de lado seu esboço e ficou em silêncio olhando em frente. Hirst acordou; depois foram chamados para o almoço, e enquanto comiam o vapor parou,
um pouco longe da margem. O bote que vinha a reboque atrás deles foi levado para o lado, e as damas foram auxiliadas para entrar.
Para proteger-se contra o tédio, Helen pôs um livro de memórias debaixo do braço, e Mrs. Flushing sua caixa de tintas; assim equipados, foram depositados na praia,
na margem da floresta.
Não tinham andado mais do que poucas centenas de jardas ao longo da trilha que corria paralela ao rio, quando Helen disse achar o dia intoleravelmente quente. A
brisa do rio cessara, e uma atmosfera quente e úmida, densa de odores, vinha da floresta.
Vou me sentar aqui – anunciou ela, apontando o tronco de uma árvore que caíra há muito tempo e agora estavacoberta de trepadeiras entrelaçadas e cipós parecendo
correias. Sentou-se, abriu seu guarda-sol e olhou o rio listradopelos caules das árvores. Virou-se de costas para as árvoresque desapareciam na sombra negra atrás
dela.
Eu até que concordo – disse Mrs. Flushing, passando a desmontar sua caixa de tintas. Seu marido ficou vagando por ali, procurando um ângulo interessante paraela.
Hirst limpou um espaço no chão ao lado de Helen esentou-se com grande determinação, como se não tencionasse mexer-se, a não ser depois de falar com ela longo tempo.
Terence e Rachel ficaram parados sozinhos,sem ocupação. Terence viu que chegara a hora, como estava predestinado, mas embora percebesse isso, estavatotalmente calmo,
e dono de si mesmo. Preferiu ficar al-guns momentos falando com Helen, persuadindo-a alevantar-se do seu assento. Rachel uniu-se a ele aconselhando-a a ir junto.
– De todas as pessoas que já conheci – disse ele –, a senhora é a menos aventureira. Podia estar sentada em um banco no Hyde Park. Vai ficar sentada aqui a tarde
toda? Não vai caminhar?
– Ah, não – disse Helen, a gente só precisa usar os olhos. Está tudo aqui... tudo – repetiu numa voz sonolenta. – O que vai ganhar caminhando?
– Vão estar com calor e intratáveis na hora do chá, e nós estaremos frescos e gentis – objetou Hirst. Nos seus olhos, enquanto os erguia, apareciam reflexos verdes
e amarelos do céu e dos ramos, tirando-lhes sua intensidade, e ele parecia pensar coisas que não dizia. Assim conseguiram que Terence e Rachel propusessem caminhar
na floresta juntos; lançando um olhar um ao outro, viraramse e se afastaram.
– Até logo! – gritou Rachel.
– Até logo. Cuidado com as cobras – respondeu Hirst.Ajeitou-se mais confortavelmente sob a sombra da árvore caída e do corpo de Helen. Quando partiram, Mr.Flushing
os chamou.
– Temos de partir em uma hora. Hewet, por favor,lembre-se disso. Uma hora.
Quer fosse feito pelo homem ou por algum motivo preservado pela natureza, havia um trilho largo atravessando afloresta em ângulo reto com relação ao rio. Parecia
um caminho para veículos numa floresta inglesa, exceto que osarbustos tropicais com suas folhas parecendo espadas cresciam dos lados, e o chão estava coberto de
uma massa informe e mole em vez de capim, respingada de florezinhasamarelas. Quando passaram para a profundeza da floresta,a luz ficou mais débil, e os rumores do
mundo comum foram substituídos pelos estalos e suspiros que sugerem ao viajante numa floresta que ele está caminhando no fundo do mar. A trilha estreitou-se e dobrou;
era beirada por densas trepadeiras, que se enroscavam em nós de árvore em árvore, e arrebentavam aqui e ali em flores vermelhas comformato de estrela. Os suspiros
e estalos acima eram rompidos vez por outra pelo grito dissonante de algum animalespantado. A atmosfera era abafada e o ar lhes chegava em lânguidos bafos de perfume.
A vasta luz verde era rompidaaqui e ali por um sol redondo de um amarelo puro, que caíanuma fenda no imenso guarda-sol verde no alto, e nessesespaços amarelos borboletas
vermelhas e pretas giravam epousavam. Terence e Rachel quase não falavam.
Não apenas o silêncio pesava sobre eles, mas ambos estavam incapazes de construir pensamentos. Havia entre eles algo que precisava ser falado. Um deles tinha de
começar, mas qual seria? Então Hewet apanhou uma fruta vermelha e jogou-a o mais alto que pôde. Quando caísse,ele falaria. Ouviram o tatalar de grandes asas; ouviram
a fruta cair entre as folhas e depois bater com um som abafado. O silêncio voltou a ser profundo.
– Isso assusta você? – perguntou Terence quando o som da fruta caindo morrera totalmente.
– Não – respondeu ela. – Eu gosto. – Ela repetiu: – Eu gosto. – Ela andava rápido, mais ereta do que de costume.Houve uma outra pausa.
Gosta de estar comigo? – perguntou Terence.
Sim, com você – respondeu ela.
Ele ficou calado por um momento. O silêncio parecia recobrir o mundo.
– É isso que sinto desde que a conheci – respondeu ele.
– Somos felizes juntos. – Ele não parecia estar falando, nem ela ouvindo.
– Muito felizes – respondeu ela.
Continuaram caminhando silenciosos algum tempo.Seus passos inconscientemente aceleraram.
Nós nos amamos – disse Terence.
Nós nos amamos – repetiu ela.
Então o silêncio foi rompido pelas suas vozes fundidas em tons estranhos e pouco familares, que não formavam palavras. Caminhavam mais e mais depressa; pararam simultaneamente,
agarraram-se pelos braços e depois, sol-tando-se, caíram no chão. Sentaram-se lado a lado. Do fundo vinham sons fazendo uma ponte sobre o silêncio deles; ouviram
o farfalhar de árvores e um bicho grasnando num mundo remoto.
– Nós nos amamos – repetiu Terence procurando o rosto dela.
Seus rostos estavam muito pálidos e quietos, e não disseram nada. Ele teve medo de beijá-la outra vez.Aos poucos ela foi se aproximando e recostou-se nele.
Nessa posição ficaram sentados algum tempo. Ela disse uma vez:
– Terence.
E ele respondeu: – Rachel.
– Terrível... terrível... – murmurou ela depois de outra pausa, mas dizendo isso pensava tanto no persistente chapinhar da água quanto em seu próprio sentimento.
Viu que corriam lágrimas pelas faces de Terence.O movimento seguinte veio da parte dele. Parecia ter passado um tempo muito longo. Ele pegou seu relógio de bolso.
– Flushing disse uma hora. Caminhamos mais do que meia hora.
– E vamos levar isso para voltar – disse Rachel levantando-se muito devagar. Quando estava de pé estendeu os braços e respirou fundo,meio suspiro,meio bocejo.Parecia
muito cansada. Suas faces estavam brancas.
Para que lado? – perguntou.
Lá – disse Terence.
Começaram a voltar pela trilha musgosa. Os estalidos e suspiros prosseguiram lá no alto, além dos gritos desafinados dos animais. As borboletas ainda giravam nas
manchas de sol amarelas. No início Terence teve certeza do caminho, mas quando caminhavam foi tendo dúvidas.Tiveram de parar para refletir e depois voltar e começar
mais uma vez, pois embora ele tivesse certeza da direção do rio, não tinha certeza de atingir o ponto onde deixaram os outros. Rachel o seguia, parando quando ele
parava, virando-se quando ele virava, sem saber o caminho,sem saber por que ele parava ou virava.
Não quero me atrasar porque... – ele pôs uma flor nas mãos dela, e os seus dedos agarraram-na calmamente.
Estamos tão atrasados... tão atrasados... terrivelmente atrasados... – repetia ele como se falasse no sono. – Ah...está certo. Aqui dobramos.
Viram-se novamente na trilha larga, como um caminho numa floresta inglesa, de onde haviam partido quando deixaram os demais. Caminharam em silêncio, como pessoas
caminhando no sono, estranhamente conscientes vez por outra do peso de seus corpos. Então de repente Rachel exclamou:
– Helen!
No espaço ensolarado na margem da floresta viram Helen, ainda sentada no tronco de árvore, vestido muito branco ao sol, com Hirst ainda apoiado no cotovelo ao seulado.
Pararam instintivamente. À vista dos outros não conseguiram prosseguir. Pararam de mãos dadas um minuto ou dois, calados. Não suportavam ver outras pessoas.
– Mas temos de prosseguir – insistiu Rachel finalmente, no curioso tom de voz embotado em que ambos estiveram falando; com grande esforço obrigaram-se a cobrir a
curta distância entre eles e o casal sentado no tronco. Quando se aproximaram, Helen virou-se e olhou para eles. Olhou-os por algum tempo sem falar, e quando chegaram
mais perto disse tranqüilamente:
– Encontraram Mr. Flushing? Ele foi procurar vocês.Achou que deviam estar perdidos, embora eu lhe dissesse que não estavam.
Hirst deu meia volta e jogou a cabeça para trás de modo que olhava os ramos que se entrecruzavam no ar em cima.
– Bem, valeu a pena o esforço? – disse, meio devaneando.
Hewet sentou-se no capim ao lado dele e começou a abanar-se.
– Quente.
Rachel equilibrou-se perto de Helen na ponta do tronco.
Muito quente.
Vocês parecem exaustos – disse Hirst.
– Aquelas árvores são assustadoramente fechadas – comentou Helen apanhando seu livro e agitando-o para limpá-lo de talos de capim seco que caíram entre as páginas.
Depois ficaram todos calados, olhando o rio que passava redemoinhando diante deles, até que Mr. Flushing os interrompeu. Irrompeu das árvores a cem metros à esquerda,
exclamando bruscamente:
– Ah, afinal encontraram o caminho. Mas é tarde... muito mais tarde do que tínhamos combinado, Hewet.Estava um pouco aborrecido, e na qualidade de líder da expedição,
inclinava-se a ser ditatorial. Falava depressa, usando curiosas palavras ásperas e sem sentido.
– Naturalmente em circunstâncias anormais atrasar-se não teria importância – disse –, mas quando se trata de fazer os homens cumprirem o horário...
Ele os reuniu e os fez descer até a margem do rio onde o bote esperava para levá-los até o vapor.
O calor do dia estava diminuindo e diante de suas xícaras de chá os Flushing ficaram comunicativos. Terenceachou, enquanto os ouvia falar, que a existência prosseguiaagora
em dois níveis diferentes. Aqui estavam os Flushing falando, falando em algum lugar alto no ar acima dele, e elee Rachel tinham caído juntos no fundo do mundo. Mascom
algo da franqueza de uma criança, Mrs. Flushing também tinha o instinto que leva uma criança a suspeitardaquilo que os adultos desejam deixar oculto. Fixava Terence
com seus vivos olhos azuis e dirigia-se especialmente a ele. O que faria, quis saber, se o bote batesse numarocha e afundasse?
– O senhor se interessaria por qualquer coisa além de salvar a própria pele? E eu, me interessaria? Não, não – ela ria – nem um pouquinho... não me diga. Há só duas
criaturas pelas quais uma mulher comum se interessa: seu filho e seu cachorro; não creio que sejam sequer duas criaturas. Nós lemos muito sobre o amor... por isso
é que a poesia é tão enfadonha. Mas o que acontece na vida real,hein? Isso não é amor! – exclamou ela. Terence murmurou alguma coisa ininteligível. Mr.Flushing,
porém, recuperara sua urbanidade. Fumando um cigarro respondeu à esposa.
– Alice, você tem de lembrar sempre que teve uma educação muito pouco natural... inusitada, eu diria. Eles nãotiveram mãe – explicou abandonando parte da formalidadedo
seu tom – e pai... ele era um homem muito encantador,não tenho dúvidas, mas só se interessava por cavalos decorrida e estátuas gregas. Conte-lhes sobre o banho,
Alice.
– No pátio dos estábulos – disse Mrs.Flushing.– Coberto de gelo no inverno.Tínhamos de entrar; se não éramos surrados. Os fortes viveram... os outros morreram. O
que sechama sobrevivência dos mais adaptados... um plano excelente, atrevo-me a dizer, quando se tem 13 filhos!
E tudo isso no coração da Inglaterra, e no século XIX! – exclamou Mr. Flushing, virando-se para Helen.
Eu trataria meus filhos exatamente da mesma maneira, se os tivesse – disse Mrs. Flushing.
Cada palavra soava bem nítida aos ouvidos de Terence;mas o que estavam dizendo, com quem estavam falando equem eram elas, aquelas pessoas fantásticas, destacadas
emalgum lugar no alto, no ar? Agora que tinham bebido seuchá, levantaram-se e debruçaram-se na amurada do barco. O sol se punha, e a água estava escura e rubra.
O rio alargara-se de novo; estavam passando por uma ilhazinha instalada como uma cunha escura no meio da torrente. Duas grandes aves brancas tingidas por luzes vermelhas
postavam-se ali em suas pernas longas, parecendo pernas de pau,e nada se imprimia na praia da ilha, exceto as marcas esqueléticas das patas das aves. Os ramos das
árvores na mar-gem pareciam mais retorcidos e angulosos do que nunca, e o verde das folhas era sombrio mas respingado de ouro.Então Hirst começou a falar, inclinado
sobre a amurada.
– A gente se sente terrivelmente esquisito, não acham?
– queixou-se. – Essas árvores dão nos nervos... é tudo tão doido. Sem dúvida, Deus é louco. Que pessoa normal poderia ter concebido uma selva dessas, povoando-a
de macacos e crocodilos? Eu ficaria louco se vivesse aqui... completamente louco.
Terence tentou responder, mas Mrs. Ambrose respondeu em seu lugar. Pediu-lhe que olhasse a maneira como as coisas se aglutinavam – olhar as cores surpreendentes,as
formas das árvores. Parecia estar protegendo Terence da abordagem dos outros.
– Sim – disse Mr. Flushing – e na minha opinião, aausência de população a que Hirst objeta é exatamente otoque significativo. Você precisa admitir, Hirst, que umaaldeiazinha
italiana até vulgarizaria a cena toda, tiraria delaessa sensação de vastidão... senso de grandeza elementar. – Ele fez um gesto em direção da floresta e parou por
um momento, contemplando a enorme massa verde que agorase silenciava. – Acho que isso nos faz parecer bastante pequenos... a nós, mas não a eles. – Ele fez um aceno
de cabeça na direção do marinheiro que se debruçava a seu lado,cuspindo no rio. – E isso, eu acho, é o que minha mulhersente, a superioridade essencial do camponês...Protegido
pelas palavras de Mr. Flushing que continuava argumentando educadamente com St. John, persuadindo-o, Terence puxou Rachel de lado, apontando ostensivamente para
um grande tronco de árvore retorcido que caíra e estava metido pela metade na água. Queria de qualquer jeito estar perto de Rachel, mas viu que não conseguia dizer
nada. Podiam escutar Mr. Flushing falando,ora sobre sua esposa, ora sobre arte, ora sobre o futuro do país, pequenas palavras sem sentido flutuando alto no ar.Como
estava começando a esfriar,ele foi andar no convés com Hirst. Fragmentos de seu diálogo chegavam distintos quando passavam... arte, emoção, verdade, realidade.
– Tudo isto é verdade ou é sonho? – murmurou Rachel quando tinham passado.
– É verdade, é verdade – respondeu Terence.
Mas a brisa ficou mais fresca e houve um desejo geral de movimento. Quando o grupo se reorganizou sob a proteção de mantas e casacos, Terence e Rachel estavam em
pontos opostos do círculo e não podiam conversar.Mas quando baixou a escuridão, as palavras dos outros pareciam enroscar-se e sumir como cinzas de papel queimado,
deixando-os sentados, perfeitamente quietos, no fundo do mundo. Eram varados de vez em quando por frêmitos de refinada alegria, e depois ficavam apaziguados outra
vez.
21
Graças à disciplina de Mr. Flusing, chegaram aos locais certos do rio nas horas certas, e quando na manhã seguinte, depois do café, as cadeiras foram novamente postas
num semicírculo na proa, a lancha estava a poucos quilômetros do acampamento nativo que era o limite de sua viagem. Quando se sentou. Mr.Flushing aconselhou-os a
ficar de olho na margem esquerda, onde logo passariam por uma clareira onde havia uma cabana em que Mackenzie, o famoso explorador, morrera de febre há uns dez anos,
quase dentro da civilização – Mackenzie, repetiu ele, o homem que penetrou no interior mais do que qualquer outra pessoa até agora. Os olhos deles voltaram-se para
lá, obedientes. Os olhos de Rachel nada viam. Formas amarelas e verdes, é verdade, desfilavam diante deles, mas ela apenas sabia que uma era grande, outra pequena;não
sabia que eram árvores. Essas ordens de olhar para cá e para lá a irritavam, como interrupções irritam uma pessoa absorvida em seus pensamentos, embora ela nem estivesse
pensando em nada. Estava aborrecida com tudo o que se dizia e com os movimentos sem objetivo dos corpos das pessoas, pois pareciam interferi-la e impedi-la de falar
com Terence. Logo Helen a viu fitando mal-humorada um laço de cordame, sem se esforçar para escutar. Mr. Flushing e St.John estavam metidos numa conversa mais ou
menos constante sobre o futuro do país do ponto de vista político e o grau em que já fora explorado; os outros, com pernas esticadas, ou queixos apoiados nas mãos,
olhavam tudo em silêncio.
Mrs. Ambrose olhava e escutava obedientemente, mas por dentro era vítima de um estado de alma inquietante difícil de atribuir a alguma causa. Olhando para a praia
como Mr. Flushing pedia, ela achava o país belíssimo, mas também alarmante e opressivo. Não gostava de sentir-se vítima de emoções que não sabia classificar,e certamente
quando a lancha deslizava mais e mais em frente, sob o sol quente da manhã, foi dominada por uma emoção irracional. Não sabia dizer se a causa era a floresta tão
pouco familiar, ou algo menos definido. Sua mente deixou o cenário e ocupou-se com ansiedades em relação a Ridley, seus filhos, coisas distantes, como velhice, pobreza
e morte. Hirst também estava deprimido. Aguardara essa excursão como a um feriado, pois uma vez longe do hotel certamente aconteceriam coisas maravilhosas; em vez
disso, nada acontecia, e estavam sofrendo mais desconfortos, restrições e constrangimentos do que nunca. Isso naturalmente se dava porque tiveram expectativas: sempre
há desapontamentos. Ele culpava Wilfrid Flushing, tão bem trajado, todo formal; culpava Hewet e Rachel. Por que não falavam? Olhou para eles, sentados, calados e
recolhidos em si mesmos, e essa visão o aborreceu. Supôs que estivessem noivos, ou quase noivos, mas em vez de ser pelo menos romântico ou excitante, isso era tão
chato quanto tudo o mais; também o aborrecia pensar que estivessem apaixonados. Aproximou-se de Helen e começou a contar-lhe como fora desconfortável sua noite,
deitado no convés, ora quente demais, ora frio demais, e as estrelas tão claras que não conseguia dormir. Ficara deitado acordado a noite toda, pensando, e quando
a luz fora suficiente para ver, escrevera 20 linhas do seu poema sobre Deus, e o horrível era que praticamente provara que Deus existia. Não notou que a estava provocando
e prosseguiu, imaginando o que aconteceria se Deus existisse...
– Um velho senhor de barba e camisola azul comprida, extremamente difícil e desagradável, como deve ser? Pode sugerir uma rima? Deus, meus, hebreus...tudo usado;
e outras?
Embora ele falasse de modo bastante habitual, Helen podia ter visto, se o tivesse encarado, que eleestava impaciente e perturbado. Mas não pôde responder porque
Mr. Flushing exclamou “Ali!” e eles olharam a cabana na margem, um local desolado com uma grande fenda no telhado, o chão ao redor amarelo, com restos de fogueiras
espalhados e latas enferrujadas abertas.
– Foi aqui que encontraram seu cadáver? – exclamou Mrs. Flushing, inclinando-se na sua ansiedade por ver o local onde morrera o explorador.
– Acharam seu corpo, suas peles e seu caderno de notas – respondeu o marido. Mas logo a embarcação os levara dali, deixando o lugar para trás.Estava tão quente que
quase nem se mexiam, exceto para apoiar-se no outro pé ou para acender um fósforo.Seus olhos concentravam-se na margem, cheios dos mesmos reflexos verdes, e seus
lábios se comprimiam de leve como se as coisas que estivessem vendo provocassem pensamentos; apenas os lábios de Hirst se moviam intermitentes, quando, meio inconscientemente,
ele procurava rimas para Deus. Fossem quais fossem os pensamentos dos outros, ninguém disse nada por bastante tempo.Estavam tão acostumados ao paredão de árvores
dos dois lados, que olharam para cima, surpresos, quando a luz subitamente se alargou e as árvores acabaram.
– Isso quase lembra um parque inglês – disse Mr. Flushing.
Na verdade, não poderia ter havido maior mudança.Nas duas margens do rio havia um espaço livre, gramado e plantado, pois a doçura e a ordem sugeriam cuidados humanos,
com graciosas árvores no topo de outeiros. Até onde conseguiam olhar, aquele gramado erguia-se e baixava com o movimento ondulante de um antigo parque inglês. A
mudança de cenário sugeria naturalmente uma mudança de posição,grata a quase todos eles.Levantaramse e inclinaram-se na amurada.
– Podia ser Arundel ou Windsor – continuou Mr. Flushing – se fosse tirado aquele arbusto de flores amarelas; e, por Deus, olhem só!
Fileiras de flancos marrons pararam por um momento e depois saltaram, desaparecendo da vista com movimento de quem estivesse pulando por cima de ondas.
Por um momento nenhum deles podia acreditar que realmente tivessem visto animais vivos ao ar livre – uma manada de veados silvestres –, e a visão despertou uma excitação
infantil neles, dissipando sua melancolia.
– Nunca na vida vi nada maior do que uma lebre! – exclamou Hirst com genuína excitação. – Que burro fui por não trazer minha Kodak!
Pouco depois a lancha foi parando, e o capitão explicou aMr. Flushing que seria agradável para os passageiros daremum passeio pela praia; se quisessem voltar em
uma hora, eleos levaria à aldeia; se preferissem caminhar – era só uns doisquilômetros adiante – ele os esperaria no atracadouro.
Depois de acertarem isso, foram largados na praia mais uma vez: os marinheiros, pegando passas e tabaco, inclinaram-se sobre a amurada e observaram os seis ingleses
de casacos e vestidos tão estranhos naquele verde saírem andando. Uma piada nada adequada provocou risos, então viraram-se e deitaram-se à vontade no convés.
Assim que chegaram em terra, Terence e Rachel reuniram-se, um pouco à frente dos demais.
– Graças a Deus! – exclamou Terence respirando fun-do. – Finalmente estamos sozinhos.
– E se continuarmos na frente podemos conversar – disse Rachel. Mesmo assim, embora sua posição alguns metros à frente dos demais lhes proporcionasse dizer tudo
o que quisessem, ficaram em silêncio.
– Você me ama? – disse Terence depois de algum tempo, rompendo penosamente o silêncio. Falar ou ficar calado era um esforço, pois quando estavam quietos tinham uma
consciência aguda da presença do outro, mas palavras eram ou muito banais ou muito compridas.
Ela deu um murmúrio inarticulado, que terminava:
– E você?
– Sim, sim – respondeu ele. Mas havia tantas coisas a serem ditas, e agora que estavam sozinhos parecia necessário aproximarem-se ainda mais e superarem uma barreira
que crescera desde a última vez em que se falaram.Era difícil, assustador, estranhamente embaraçoso. Num momento ele estava lúcido; no outro, confuso.
– Agora vou começar do começo – disse, resoluto.
– Vou dizer-lhe o que já devia ter dito antes. Em primeiro lugar, nunca estive apaixonado por outras mulheres, mas já tive outras mulheres. Além disso tenhograndes
defeitos. Sou muito preguiçoso, temperamental... – Apesar da exclamação dela, ele insistia. – Vocêprecisa conhecer o pior em mim. Sou lascivo. Sou dominado por um
senso de futilidade... incompetência.Eu nunca deveria ter pedido você em casamento. Soubastante esnobe; sou ambicioso...
– Ora, nossos defeitos! – exclamou ela. – Que importam eles? Depois indagou: – Eu estou apaixonada?... isso é estar apaixonada?... vamos nos casar?
Dominado pelo encanto de sua voz e de sua presença,exclamou:
– Ah, Rachel, você é livre. Para você, o tempo não vai fazer diferença, nem o casamento, nem...
As vozes dos outros atrás deles ficavam flutuando, mais próximas, mais distantes, e o riso de Mrs. Flushing ergueu-se, claro.
– Casamento? – repetiu Rachel.
Os gritos renovaram-se atrás, prevenindo-os de que estavam demasiado à esquerda. Melhorando seu curso, ele continuou:
– Sim, casamento. – A sensação de que não podiam se unir antes de que ela soubesse de tudo a seu respeito fez com que voltasse a explicar-se:
– Tudo o que tem sido ruim em mim, as coisas com que tive de lidar... as outras...Ela murmurou alguma coisa, analisou sua própria vida,mas não conseguiu descrever
como via isso agora.
– E a solidão! – prosseguiu ele. Uma visão de estar andando com ela nas ruas de Londres surgiu diante de seus olhos – Vamos dar caminhadas juntos – disse ele. A
simplicidade da idéia os aliviou, e pela primeira vez riram.Teriam gostado de atrever-se a andar de mãos dadas, mas a consciência de olhos fixos neles ainda não
os deixara.
– Livros, pessoas, paisagens... Mrs. Nutt, Greeley,Hutchinson... – murmurou Hewet.
A cada palavra, a névoa que os envolvera, fazendo-osparecer irreais um para o outro, desde a tarde anterior, desfazia-se um pouco mais, e seu contato ficava cada
vez maisnatural. Através da mormacenta paisagem sulina, viam o mundo que conheciam mais claro e mais vivo do que antes.Como naquela ocasião no hotel em que ela se
sentara najanela, o mundo mais uma vez se organizava debaixo do seuolhar, muito nitidamente, e em suas verdadeiras proporções. Lançava um olhar curioso a Terence,
de tempos emtempos, observando seu casaco cinza e sua gravata púrpura;observando o homem com quem passaria o resto da vida.
Depois de um desses olhares ela murmurou:
– Sim, eu estou apaixonada. Não há dúvida; estou apaixonada por você.
Mesmo assim continuavam desconfortavelmente separados; tão unidos quando ela falava, que parecia não haver divisão entre eles, e no momento seguinte, separados e
distantes outra vez. Sentindo isso dolorosamente, ela exclamou:
– Vai ser uma luta.
Mas olhando para ele percebeu, pela forma de seus olhos, pelas linhas em torno de sua boca e por outras peculiaridades, que ele lhe agradava, e acrescentou:
– Quando eu quiser brigar, tenha compaixão. Você é melhor que eu; muito melhor.
Ele devolveu seu olhar e sorriu, percebendo, como ela fizera, as pequenas particularidades que a tornavam encantadora. Era sua para sempre.
Superada essa barreira, inumeráveis delícias jaziam à frente deles.
Eu não sou melhor – respondeu ele. – Só sou mais velho, mais preguiçoso; um homem, não uma mulher.
Um homem – repetiu ela, e um estranho sentimento de posse a dominou; pareceu-lhe que agora podia tocá-lo; estendeu a mão e tocou de leve sua face. Os dedos dele
seguiram o caminho dos dela, e o toque da sua mão sobre o próprio rosto trouxe novamente o arrebatador sentimento de irrealidade. Aquele corpo dele era irreal; o
mundo todo era irreal.
– O que aconteceu? – começou ele. – Por que lhe pedi que se casasse comigo? O que foi?
– Você me pediu em casamento? – espantou-se ela.Afastaram-se um do outro, e nenhum dos dois podia lembrar o que fora dito.
– Estávamos sentados no chão – lembrou ele.
– Sentados no chão – confirmou ela. A lembrança de sentarem no chão parecia uni-los de novo, e continua-ram andando em silêncio, suas mentes às vezes funcionando
com dificuldade, às vezes cessando de funcionar, seus olhos somente percebendo as coisas ao redor. Agoraele voltaria a tentar contar-lhe seus defeitos e a dizer
porque a amava; e ela descreveria o que sentira num momento ou outro, e juntos interpretariam seu sentimento.Tão belo era o som de suas vozes que aos poucos quase
nem ouviam as palavras pronunciadas. Longos silênciossurgiram entre suas palavras, que já não eram silênciosde confusão e luta, mas silêncios repousantes em que
pensamentos triviais se moviam com facilidade. Começaram a falar naturalmente de coisas comuns, das flores e das árvores, que cresciam vermelhas como as flores dos
jardins lá em casa, e se inclinavam e torciamcomo o braço de um velho deformado.
Muito suave e tranqüilamente, quase como o sanguecantando em suas veias, ou a água da torrente correndo sobre as pedras, Rachel teve consciência de um novo sentimento
dentro dela. Imaginou por um instante o que seria,e depois disse a si mesma, com uma pequena surpresa aoreconhecer em sua própria pessoa uma coisa tão famosa:
– Isso é a felicidade, eu acho. – E disse alto para Terence: – Isso é felicidade. E na seqüência de suas palavras, ele respondeu:
– Isso é felicidade – e acharam que os sentimentos nasceram em ambos ao mesmo tempo. Por isso começaram adescrever como sentiam isso e aquilo, o que era parecido
e o que era diferente, pois os dois eram muito diferentes.
Vozes gritando atrás deles não os atingiam nas águas em que agora estavam mergulhados. A repetição do nome de Hewet, em sílabas breves e separadas, foi para eles
como oestalo de um galho seco ou o ruído de um pássaro. Com agrama e a brisa soando e murmurando ao seu redor,eles nemrepararam que o farfalhar da grama era cada
vez mais forte enão cessava quando a brisa parava. Uma mão caiu sobre o ombro de Rachel como ferro; podia ter sido um raio docéu. Ela caiu sob esse golpe, e o capim
fustigou seus olhose encheu sua boca e orelhas. Através dos talos ondulantes viu uma figura grande e informe contra o céu. Era Helen.Rolando de um lado a outro,
vendo apenas florestas deverde e depois o alto céu azul, ela estava sem fala e quasesem sentidos. Finalmente ficou quieta, todos os capinstremendo ao seu redor com
seus próprios arquejos. Sobreela apareceram duas grandes cabeças, de um homem euma mulher,Terence e Helen.
Os dois estavam corados, ambos rindo e movendo os lábios; juntaram-se e beijaram-se no ar acima dela.
Fragmentos de palavras desceram até ela no chão.Pensououvi-las falar de amor e depois de casamento. Levantando-se e sentando, ela também percebeu o corpo macio de
Helen, seus braços fortes e acolhedores, e afelicidade inchando e diminuindo numa onda vasta. Quando isso acabou e o céu se tornou horizontal, e a terra se abriu
plana dos dois lados, e as árvores ficarameretas, ela foi a primeira a perceber a pequena fileira defiguras humanas parada pacientemente a distância. Porum instante
não conseguiu lembrar quem eram.
– Quem são eles? – perguntou, e depois lembrou-se.Alinhando-se atrás de Mr. Flushing, tiveram o cuidado de deixar pelo menos três metros de distância entre a ponta
da bota dele e a beira da saia dela.
Ele os conduziu por um trecho verde junto à mar-gem do rio, depois através de um arvoredo, e pediulhes que notassem sinais de habitações humanas, o capim escurecido,
os troncos de árvore calcinados, e ali,entre as árvores, estranhos ninhos de madeira unidos em arco onde as árvores se afastavam, a aldeia que era a meta de sua
jornada.
Pisando com cuidado, observaram as mulheres agachadas no chão, movendo as mãos, trançando palha ou amassando alguma coisa em tigelas. Mas depois de olharem por um
momento sem serem descobertos, foram avistados, e Mr. Flushing, avançando para o centro da clareira, passou a falar com um homem magro e majestoso, cujos ossos e
cavidades imediatamente fizeram as formas do inglês parecerem feias e pouco naturais. As mulheres não deram atenção aos estranhos, mas suas mãos pararam por um instante
e seus longos olhos estreitos deslizaram, fixando-se sobre eles com a imobilidade e inexpressidade dos que estão afastados dos demais muito além do alcance da fala.
Suas mãos voltaram a mover-se, mas o olhar fixo continuava. Seguia os estranhos enquanto andavam, espiavam dentro das cabanas onde puderam distinguir armas encostadas
no canto, tigelas no chão, varas de bambu; na penumbra, encaravam-nos os olhos solenes dos bebês;velhas também espiavam. Enquanto andavam por ali, o olhar os seguia,
passando por suas pernas, corpos, cabeças, curiosamente hostis, como uma mosca rastejando no inverno. Quando abriu seu xale e descobriu o seio para oferecê-lo aos
lábios do bebê, os olhos de uma mulher não deixaram o rosto deles, embora se movessem pouco à vontade sob o seu olhar, e finalmente se viraram não querendo mais
ficar ali parados olhando para ela. Quando lhes ofereciam doces, estendiam grandes mãos vermelhas para pegá-los, e os ingleses sentiram-se desajeitados como soldados
de casacos justos entre aquelas pessoas suaves e instintivas. Mas logo a vida da aldeia passou a não lhes dar mais atenção; tinham sido absorvidos por ela. As mãos
das mulheres voltaram a ocupar-se com palha; seus olhos baixaram. Se se moviam, era para apanhar alguma coisa na cabana, ou para pegar uma criança que se afastava,ou
atravessar o lugar equilibrando uma jarra na cabeça;se falavam, era para gritar alguma coisa áspera e ininteligível. Vozes erguiam-se quando se batia numa criança,
e morriam de novo; vozes erguiam-se numa canção que deslizava um pouquinho acima, abaixo e voltava à mesma nota,grave e melancólica.Procurandose, Terence e Rachel
reuniram-se debaixo de uma árvore. Pacífica, e até bela no começo, a visão das mulheres que tinham desistido de olhar para eles agora os deixava frios e melancólicos.
– Bem – suspirou Terence por fim –, isso aqui nos faz parecer insignificantes, não é?
Rachel concordou. Assim seria para todo o sempre,disse ela, aquelas mulheres sentadas debaixo de árvores,as árvores e o rio. Viraram-se para outro lado e começaram
a andar entre as árvores, apoiando-se um nos braços do outro sem medo de serem descobertos. Não tinham ido longe quando começaram a assegurar-se mais uma vez de
que se amavam, eram felizes, estavam contentes; mas por que era tão doloroso estar apaixonado, por que havia tanta dor na felicidade?
A visão da aldeia na verdade curiosamente afetara a todos, embora de formas diferentes. St. John deixara os demais e caminhava lentamente para o rio, imerso emseus
pensamentos, amargos e infelizes, pois sentia-se sozinho; e Helen, parada sozinha no espaço ensolaradoentre as mulheres nativas, tinha pressentimentos de desgraça.
Os gritos de animais estranhos soavam aos seusouvidos, quando disparados dos troncos das árvores paraas copas. Como pareciam pequenos aqueles vultos movendo-se entre
as árvores! Ela teve uma consciência aguda de pequenos membros, veias finas, a delicada car-ne de homens e mulheres, que se rompe tão facilmentee deixa a vida escapar,
comparada àquelas enormes árvores e profundas águas. Um ramo que cai, um pé que escorrega, e a terra os esmaga ou a água os afoga. Pensandonisso, ela mantinha os
olhos ansiosamente sobre os namorados, como se pudesse assim protegê-las de seu destino. Virando-se, viu os Flushing ao seu lado.
Falavam sobre as coisas que tinham comprado e discutiam se eram realmente antigas, e se não havia aqui e alisinais de influência européia. Helen também foi interpelada.
Fizeram-na olhar um broche e depois um par de brincos. Mas o tempo todo ela os culpava por terem vindo naquela excursão, por terem-se aventurado longe demais, ex-pondo-se
tanto. Depois animou-se e tentou falar, mas empoucos minutos estava vendo o quadro de um barco viradonum rio da Inglaterra ao meio-dia. Era mórbido, ela sabia,imaginar
coisas dessas; mesmo assim procurava entre as árvores os vultos dos outros, e sempre que os via, mantinha osolhos fixos neles, para protegê-las da desgraça.
Mas quando o sol baixou e o vapor virou e começou a navegar de volta para a civilização, novamente seus receios se acalmaram. Na semi-escuridão as cadeiras do convés
e as pessoas sentadas nelas eram vultos angulosos,a boca indicada por um minúsculo ponto aceso, o braço movendo-se para cima e para baixo com um cigarro ou charuto
levado aos lábios e baixado de novo. Palavras cruzavam a escuridão, mas, sem saber onde cairiam, pareciam sem substância e sem energia. Profundos suspiros ouviam-se
regularmente, embora com alguma tentativa de suprimi-las, e vinham da grande forma branca que era Mrs. Flushing. O dia fora longo e muito quente, e agora que todas
as cores estavam apagadas, o frio ar noturno parecia comprimir brandos dedos sobre as pálpebras, fechando-as. Algum comentário filosófico, aparentemente dirigido
a St. John Hirst, errou seu destino e ficou suspenso no ar até ser engolfado por um bocejo e ser considerado morto, sinal para mexerem pernas e murmurarem coisas
a respeito de sono. A massa branca moveu-se, por fim, estendeu-se e desapareceu; depois de algumas voltas e passos St. John e Mr. Flushing se retiraram deixando
três cadeiras ainda ocupadas por três corpos silenciosos. A luz que vinha de um lampião alto no mastro e de um céu pálido com estrelas, deixavam-nos com forma mas
sem feições; e, mesmo naquela escuridão, o afastamento dos outros fazia com que se sentissem muito próximos uns dos outros, pois pensavam a mesma coisa. Por algum
tempo ninguém falou; então Helen disse com um suspiro:
– Então vocês dois estão muito felizes?
Como se fosse lavada pelo ar, sua voz soou mais espiritual e branda do que de costume. A pouca distância,vozes responderam:
– Sim.
Pela escuridão ela olhava os dois tentando distinguilas. O que tinha para dizer? Rachel estava agora fora da sua guarda. Sua voz podia atingir os ouvidos dela, mas
nunca mais chegaria tão longe como há 24 horas. Mesmo assim parecia necessário falar antes de ir para a cama.Queria falar, mas sentia-se estranhamente velha e deprimida.
– Você percebe o que está fazendo? – perguntou. – Ela é jovem, vocês dois são jovens, e o casamento... – ela interrompeu-se. Mas imploraram que continuasse, com
tal seriedade nas vozes como se desejassem ardentemente seu conselho, e ela acrescentou:
– Casamento! Bem, não é fácil.
– É o que queremos saber – responderam,e ela achou que agora estavam se entreolhando.
– Depende de vocês dois – afirmou. Seu rosto estava voltado para Terence; embora ele quase não a pudesse divisar, acreditava que suas palavras realmente mostravam
um desejo de conhecê-lo melhor. Ele ergueu-se de sua posição reclinada e passou a contar-lhe o que ela queria saber. Falava tão despreocupadamente quanto podia para
remover a depressão dela.
– Tenho 27 anos e ganho cerca de 700 libras ao ano – começou. – Tenho de modo geral um bom temperamento, excelente saúde, embora Hirst detecte uma tendência para
gota. Bem, e depois, acho que sou muito inteligente.
– Ele fez uma pausa esperando confirmação.Helen concordou.
– Embora, infelizmente, meio preguiçoso. Pretendo deixar que Rachel faça bobagens se quiser,e...De modo geral a senhora me acha satisfatório em outros aspectos?
– perguntou ele timidamente.
– Sim, gosto do que sei de você – respondeu Helen.
– Mas... sabe-se tão pouca coisa.
– Vamos morar em Londres e... – De repente, a uma voz, perguntaram se ela não os achava as pessoas mais felizes que já conhecera.
– Psiu – disse ela. – Lembrem. Mrs. Flushing está
atrás de nós. Então ficaram calados, e Terence e Rachel sentiram instintivamente que sua felicidade a deixara triste; embora ansiosos por continuarem falando de
si mesmos não o fizeram.
– Falamos demais de nós mesmos – disse Terence.
Diga-nos...
Sim, diga-nos... – ecoou Rachel. Estavam querendo acreditar que todo mundo era capaz de dizer alguma coisa muito profunda.
O que posso lhes dizer? – refletiu Helen, falando mais para si mesma, num estilo tortuoso, do que como profetisa dando uma mensagem. Forçou-se a falar.
Afinal, embora eu ralhe com Rachel, não sou muito mais sábia que ela. Sou mais velha, é claro, estou na metade do caminho, e vocês só começando. É complicado...às
vezes, eu acho, decepcionante; as coisas grandes nãosão talvez tão grandes quanto se esperava... mas é interessante... Ah, sim, vocês certamente vão achar interessante...
E é assim por diante. – Perceberam a procissãode árvores negras para as quais, até onde se conseguiadivisar. Helen olhava agora. – E há prazeres onde não seesperava
que existissem (você tem de escrever ao seupai), e vocês vão ser muito felizes, não tenho dúvida.Mas preciso ir para a cama, e se forem espertos vão meseguir em
dez minutos, portanto... – ela levantou-se e postou-se diante deles, quase sem feições e muito grande – boa noite. – Ela passou para trás da cortina.
Depois de ficarem sentados em silêncio a maior parte dos dez minutos que ela lhes concedera, levantaram-se e debruçaram-se sobre a amurada. Abaixo deles as águas
macias e pretas deslizavam muito rápidas e silenciosas. A fagulha de um cigarro apagou-se atrás deles.
– Linda voz – murmurou Terence. Rachel concordou. Helen tinha uma linda voz. Depois de um silêncio ela perguntou olhando o céu:
– Estamos no convés de um vapor num rio da América do Sul? Eu sou Rachel e você é Terence? O grande mundo negro jazia ao redor deles.Enquantoiam sendo levados suavemente
ao longo dele, pareciadotado de imensa densidade e duração. Podiam discernir topos de árvores pontudos e topos de árvores rombudos e redondos. Erguendo os olhos
acima delas, fixavam-nos nas estrelas e na borda pálida do céu acima dasárvores. Os pontinhos de luz congelada infinitamentedistantes atraíram seus olhos e mantiveram-nos
fixos, de modo que parecia que se passava muito tempo, e sentiram-se a uma grande distância, quando mais uma vezperceberam suas mãos agarrando a amurada e seus corpos
separados, imóveis, lado a lado.
– Você me esqueceu totalmente – queixou-se Terence pegando o braço dela e começando a caminhar no convés. – E eu nunca me esqueço de você.
– Ah não – sussurrou ela, não esquecera, apenas as estrelas... a noite... a escuridão...
– Você parece um passarinho meio adormecido noninho, Rachel. Está adormecida. Está falando no sono.
Meio adormecidos e murmurando palavras fragmentadas, pararam no ângulo feito pela proa do barco, quedeslizava rio abaixo. Um sino tocou na ponte de comando e ouviram
o chapinhar da água que se afastava em ondinhas dos dois lados; um pássaro assustado no sonograsnou, voou para a árvore mais próxima, e tudo ficoucalado de novo.
A escuridão derramava-se profusamente e os deixava quase sem sentimento de vida, a não serpor estarem parados ali, juntos, na escuridão.
22
A escuridão caia, mas levantava-se de novo, e a cada dia que se espalhava amplamente sobre a terra separandoos daquele estranho dia na floresta, em que tinham sido
forçados a dizer um ao outro o que queriam, esse desejo deles era revelado aos outros, e nesse processo tornou-se um pouquinho estranho para eles próprios.Aparentemente
não acontecera nada de inusitado; tinham ficado noivos. O mundo, que consistia em sua maior parte no hotel e na villa, demonstrou alegria pelo fato de que duas pessoas
fossem se casar e deixou-os saber que não esperava que participassem do trabalho de fazer o mundo prosseguir,mas que podiam ficar ausentes por algum tempo. Por isso
deixaram-nos sozinhos até sentirem o silêncio, como se brincando numa vasta igreja alguém tivesse fechado uma porta diante deles. Foram levados a caminhar sozinhos,
a sentar-se sozinhos, a visitar locais secretos onde as flores nunca tinham sido colhidas e as árvores eram solitárias. Na solidão conseguiam expressar aqueles desejos
belos mas excessivamente vastos, que eram tão estranhamente incômodos aos ouvidos de outros homens e mulheres – desejos de um mundo, assim como o seu próprio mundo
de duas pessoas lhes parecia ser, onde todos se conhecessem intimamente e julgassem uns aos outros pelo que era bom, jamais brigando porque era perda de tempo.
Falavam sobre esses temas entre os livros, ao sol ou sentados quietos à sombra de uma árvore. Já não ficavam embaraçados nem meio sufocados com significados que
não podiam manifestar; não tinham medo um do outro,nem eram mais como viajantes descendo um rio turbulento, deslumbrados com súbitas belezas; acontecera o inesperado,
mas ainda assim o comum era amável, e em muitas coisas preferível ao extático e misterioso, pois era agradavelmente sólido e exigia esforço, e naquelas condições
esforço era mero encantamento.
Enquanto Rachel tocava piano, Terence sentava-se junto dela ocupado, o que se mostrava por uma eventual palavra escrita a lápis, em descrever o mundo como lhe aparecia
agora que ele e Rachel iam se casar. Era sem dúvida um mundo diferente. O livro chamado Silêncio não seria mais o mesmo. Então ele largava o lápis, olhava fixamente
em frente, pensando em que aspectos o mundo afinal estava diferente, talvez tivesse mais solidez mais coerência, mais importância, mais profundidade. Às vezes até
a terra lhe parecia muito profunda; não cavada em morros e cidades e campos, mas amontoada em grandes massas. Olhava pela janela, às vezes dez minutos a fio;mas
não queria uma terra sem seres humanos. Gostava dos seres humanos – achava que gostava mais deles do que Rachel. Lá estava ela, balançando-se entusiasmada sobre
sua música, esquecida dele – mas gostava dessa qualidade nela. Gostava da impessoalidade que provocava nela.Por fim,tendo escrito uma série de breves frases com
pontos de interrogação, ele comentou alto:
– Mulheres... sob o título “Mulheres” eu escrevi: “Não mais vaidosas do que os homens realmente; na base dos maiores defeitos está a falta de confiança em si mesmas.
Falta de apreço pelo próprio sexo tradicional ou baseada em fatos? Toda mulher de coração não é tanto uma devassa mas uma otimista, porque elas não pensam”. O que
acha disso, Rachel? – Ele parou com o lápis na mão e uma folha de papel no joelho.Rachel não disse nada. Escalava mais e mais a íngreme espiral de uma sonata de
Beethoven, como uma pessoa subindo por uma escadaria arruinada, no começo energicamente, depois avançando mais laboriosamente os pés,com esforço, até não poder subir
mais e voltar numa corrida para recomeçar novamente, bem embaixo.
– “É moda hoje em dia dizer que mulheres são mais práticas e menos idealistas do que homens, que têm considerável capacidade de organização, mas não senso de honra”...
Pergunta: o que significa o termo masculino “honra”?... a que correspondente no seu sexo? Hein?
Atacando novamente a sua escadaria, Rachel negligenciou mais essa oportunidade de revelar os segredosdo seu sexo. Na verdade, avançara tanto na busca da sabedoria
que permitia que esses segredos repousassemintocados; parecia estar reservado a uma futura geraçãodiscuti-los filosoficamente.
Esmagando um acorde final com a mão esquerda, ela exclamou por fim, girando e virando-se para ele:
– Não, Terence, não adianta; aqui estou eu, a melhor música da América do Sul, sem falar em Europa e Ásia, e não posso tocar uma nota porque você está na sala me
interrompendo a cada segundo.
– Você não parece entender que é isso que procuro fazer há meia hora – comentou ele. – Não tenho objeção a melodias simples e bonitas... na verdade acho que ajudam
muito minha composição literária, mas esse tipo de coisa aí parece antes um infeliz cachorro velho girando nas patas traseiras, na chuva.Ele começou a virar as pequenas
folhas de papel espalhadas na mesa, trazendo congratulações dos amigos deles.
– “... todos os votos possíveis de toda a felicidade possível” – leu ele. – Correto, mas não muito vívido, não?
– É pura bobagem! – exclamou Rachel. – Pense em palavras comparadas com sons! – prosseguiu ela. – Pense em romances, peças de teatro e histórias... – Pousada nabeira
da mesa, ela remexeu desdenhosamente os volumes vermelhos e amarelos. Parecia estar na posição dedesprezar todo o saber humano. Terence também oscontemplou.
– Meu Deus, Rachel, você lê lixo! – exclamou ele. – E também está atrasada no tempo, minha querida. Hoje em dia ninguém sonha ler essas coisas... peças sobre problemas
antiquados,pungentes descrições da vida no Extremo
Oriente... ah não, já liquidamos com tudo isso. Leia poesia, Rachel, poesia, poesia, poesia!
Apanhando um dos livros começou a ler em voz alta,com intenção de satirizar os latidos breves e ásperos do inglês do escritor; mas ela não prestou atenção e, depois
de um intervalo em que ficou refletindo, exclamou:
– Terence, você alguma vez achou que o mundo se compõe inteiramente de vastos blocos de matéria e que não somos nada senão manchas de luz... – ela ergueu os olhos
para as manchas de sol agitando-se no tapete e subindo pela parede – como essas?
– Não – disse Terence. – Eu me sinto sólido; imensamente sólido; as pernas de minha cadeira podiam estar enraizadas nas entranhas da terra. Mas em Cambridge, eu
me lembro, havia ocasiões em que se caía em ridículos estados de meio coma pelas cinco da manhã. Hirst faz isso agora, eu acho... ah não, Hirst não faria isso.Rachel
continuou:
– No dia em que chegou seu bilhete convidando-nos para o piquenique, eu estava sentada onde você está agora,pensando nisso; será que consigo pensar de novo? Será
que o mundo mudou? E se tiver mudado, quando vai parar de mudar, e qual é o mundo real?
– A primeira vez que a vi – começou ele – você me pareceu uma criatura que tinha vivido toda a sua vida entre pérolas e ossos velhos. Suas mãos eram úmidas, lembra?
E você não disse uma palavra até eu lhe dar um pedaço de pão; então você disse “Seres humanos!”
– E eu achava você... um pedante – recordou ela. – Não, não é bem assim. Havia as formigas que roubavam a língua, e eu achei você e St. John como aquelas formigas...muito
grandes, muito feios, muito cheios de energia, com todas as suas virtudes nas costas. Mas quando lhe falei,gostei de você...
– Você se apaixonou por mim – corrigiu ele. – Estava apaixonada por mim o tempo todo, só que não sabia.
– Não, eu nunca me apaixonei por você – afirmou ela.
– Rachel... que mentira... você não ficava aqui sentada olhando para a minha janela?... não ficava andando pelo hotel feito uma coruja no sol?
– Não – repetiu ela. – Nunca me apaixonei, se apaixonar-se é o que as pessoas dizem que é, é o mundo quemente, e eu que digo a verdade. Ah, que mentira... quementira!
Ela amassou um punhado de cartas de Evelyn M., de Mr.Pepper,de Mrs.Thornbury,de Miss Allan e de Susan Warrington. Era estranho, pensando em como essas pessoas eram
todas diferentes, que tivessem usado quase as mesmas frases ao congratulá-la pelo noivado.
O fato de qualquer dessas pessoas jamais ter sentido o que ela sentia, nem pudesse senti-lo, ou até ter direito de sequer fingir por um instante que era capaz disso,
deixava-a tão consternada quanto aquela cerimônia na igreja ou o rosto da enfermeira. E, se não sentiam nada, por que estariam fingindo? A simplicidade e arrogância
e dureza da juventude dela, agora concentrada numa só centelha,por causa do seu amor por ele, deixava Terence perplexo;estar noivo não tinha esse efeito sobre ele.
O mundo estava diferente, mas não dessa maneira; ele ainda queria as coisas que sempre quisera, em especial queria mais que antes a companhia das outras pessoas.
Tirou as cartas da mão dela e protestou:
– Naturalmente são absurdas, Rachel; naturalmente dizem coisas apenas porque outros as dizem, mas mesmo assim, que mulher simpática é Miss Allan; não pode ne-gar
isso;e Mrs.Thornbury também;ela teve filhos demais,acredite, mas se meia dúzia deles entraram no mau caminho em vez de subirem infalivelmente ao topo... ela não
tem uma espécie de beleza?... de simplicidade elementar como diria Flushing? Ela não parece antes uma grande árvore velha murmurando ao luar, ou um rio correndo
e correndo e correndo? Por falar nisso, Ralph foi nomeado governador das Ilhas Carroway... o mais jovem governador; muito bom, não é? Mas Rachel estava incapacitada
de entender que a vasta maioria dos assuntos do mundo prosseguia sem se ligar por um só fio ao destino dela própria.
– Eu não quero ter 11 filhos – afirmou; – não quero ter os olhos de uma velha. Ela olha a gente de cima a baixo,de baixo a cima, como se a gente fosse um cavalo.
– Temos de ter um filho e temos de ter uma filha – disse Terence largando as cartas – porque, sem falar na inestimável vantagem de serem nossos filhos, eles seriam
muito bem-educados. – Passaram a fazer um esboço da educação ideal, como sua filha desde a infância seria levada a contemplar um grande cartão quadrado pintado de
azul, para sugerir pensamentos de infinitude, pois as mulheres eram criadas práticas demais; e seu filho... seria ensinado a rir dos grandes homens, isto é, de homens
naturalmente bem-sucedidos, homens que usavam fitas e chegavam ao topo. Ele não se pareceria de jeito nenhum (acrescentou Rachel) com St. John Hirst.
Terence então professou a maior admiração por St.John Hirst. Detendo-se em suas boas qualidades, convencia-se seriamente delas; tinha uma mente como um torpedo,
declarou, dirigido contra a falsidade. Onde estaríamos todos nós sem ele e os iguais a ele? Sufocados entre ervas daninhas; cristãos, fanáticos... ora, a própria
Rachel seria escrava com um leque para cantar canções para os homens quando se sentissem sonolentos.
– Mas você nunca vai aceitar isso! – exclamou ele. – Porque apesar de todas as suas virtudes você não se importa nem vai se importar nunca, com todas as fibras do
seu ser com a busca da verdade! Não tem respeito pelos fatos, Rachel; você é essencialmente feminina.
Ela não se deu ao trabalho de negar isso, nem achou bom dar aquele único argumento irrespondível contra os méritos que Terence admirava. St. John dissera que ela
estava apaixonada por ele; ela jamais perdoaria isso; mas o argumento não teria importância para um homem.
– Mas eu gosto dele – disse ela e pensou que também tinha pena dele, como se tem pena dessas pessoas infelizesque estão de fora do cálido e misterioso globo cheio
demudanças e milagres em que nós mesmos nos movemos;achava que devia ser muito enfadonho ser St. John Hirst.
Ela resumiu o que sentia por ele dizendo que não o beijaria se ele quisesse, o que não era nada provável.Como se devesse alguma desculpa por Hirst, pelo beijo que
ela lhe atribuíra, Terence protestou:
– E comparado a Hirst eu sou um perfeito palhaço.
Nisso o relógio bateu doze horas em lugar de onze.
– Estamos desperdiçando a manhã... eu devia estar escrevendo meu livro, e você devia estar respondendo a essas cartas.
– Só nos restam 21 manhãs inteiras – disse Rachel.
– E meu pai vai chegar em um ou dois dias.
Mesmo assim ela puxou uma caneta e um papel, e começou a escrever laboriosamente “Minha cara Evelyn...”
Enquanto isso Terence lia um romance que outra pessoa escrevera, processo que achava essencial para a composição do seu próprio livro. Por um lapso de tempo considerável
nada se escutou senão o tiquetaquear do relógio e o rabiscar intermitente da caneta de Rachel, que produzia frases bastante semelhantes às que ela mesma condenara.
Ela própria estava espantada com isso, pois parou de escrever e ergueu os olhos;olhou para Terence, mergulhado na poltrona, olhou as diferentes peças de mobília,
sua cama no canto, a vidraça mostrando ramos de uma árvore recheados de céu, escutou o relógio, e espantou-se com o abismo que jazia entre tudo isso e sua folha
de papel. Haveria uma época em que o mundo fosse uno e indivisível? Mesmo com Terence – quão distantes podiam estar, como ela sabia pouco do que se passava no cérebro
dele naquele instante! Então concluiu sua frase, que era desajeitada e feia, e afirmou que ambos estavam “muito felizes e vamos nos casar provavelmente no outono
e esperamos viver em Londres, onde esperamos que nos visite quando voltarmos”. Escolhendo “afetuosamente”, depois de mais alguma especulação, em vez de “sinceramente”,ela
assinou a carta e começava outra com obstinação quando Terence comentou, citando de seu livro:
– Escute isso, Rachel. “É provável que Hugh” (é o herói, um literato) “não tivesse percebido na época de seu casamento, não mais do que o jovem de talentos e imaginação
geralmente percebe, a natureza do abismo que se-para as necessidades e desejos do macho das necessidades e desejos da fêmea... No começo foram muito felizes. A caminhada
pela Suíça fora um período de alegre companheirismo e estimulantes revelações para ambos. Betty mostrara ser a camarada ideal... Tinham gritado Amor no vale um para
o outro sobre as encostas nevadas do Riffelhorn”(e assim por diante...vou saltar as descrições)...“Mas em Londres, depois do nascimento do menino,tudo mudara. Betty
era uma mãe admirável; mas não levou muito tempo para descobrir que a maternidade, como as mães da classe média alta entendem essa função, não absorvia todas as
suas energias. Ela era jovem e forte, com membros saudáveis e corpo e cérebro precisando urgentemente de exercício...” (Em suma, ela começou a dar chás.)... “Entrando
tarde depois dessa singular conversa com o velho Bob Murphy no seu quarto enfumaçado e recheado de livros, com o som do tráfego zumbindo em seus ouvidos, e o nevoento
céu de Londres tragicamente recobrindo sua mente... ele achou chapéus de mulher espalhados sobre seus papéis. Lenços de mulher, absurdos sapatinhos femininos e sombrinhas
no vestíbulo... Depois começaram a aparecer as contas... Ele tentou falar-lhe francamente. Encontrou-a deitada na grande pele de urso polar do quarto de dormir dos
dois, meio despida, pois iam jantar com os Green em Wilton Crescent, a luz avermelhada da lareira fazendo faiscar e piscar os diamantes nos seus braços nus, e a
deliciosa curva do seu seio... visão de adorável feminilidade. E perdoou-lhe tudo.” (Bem,isso vai de ruim a pior, e finalmente, cerca de 50 páginas depois, Hugh
pega uma passagem de fim de semana para Swanage e “fica andando pelas planícies de Corfe”... Aqui há umas 15 páginas mais ou menos que vamos saltar. A conclusão
é ...) “Eram diferentes. Talvez num futuro distante, depois de gerações de homens terem lutado e falhado, como ele agora tinha de lutar e falhar, as mulheres fossem,
na verdade, o que ela agora pretendia ser... uma amiga e companheira... não a inimiga e a parasita do homem.”
– No final Hugh volta para sua esposa, coitado dele. Eraseu dever, como homem casado. Meu Deus, Rachel – concluiu ele –, será que vai ser assim quando nos casarmos?
Em vez de responder ela perguntou:
– Por que as pessoas não escrevem sobre o que realmente sentem?
– Ah, essa é a dificuldade! – suspirou ele, empurrando o livro de lado.
– Bem, então, como será quando formos casados? Que coisas as pessoas sentem?
Ela parecia duvidar.
– Sente-se no chão e deixe-me olhar para você –
comandou ele. Repousando o queixo no joelho dele,ela o fitava. Ele examinava, curioso:
– Você não é linda – começou – mas gosto do seu rosto. Gosto do jeito que seu cabelo cresce até um ponto, e dos seus olhos também... eles nunca vêem nada. Sua boca
é grande demais, e suas faces seriam melhores se fossem mais coloridas. Mas o que eu gosto no seu rosto é que ele faz imaginar que diabo você está pensando... e
me faz querer fazer isso... – ele fechou o punho e sacudiu-o tão perto dela que ela recuou – porque agora você parece ter vontade de estourar meus miolos. Há momentos
em que,se estivéssemos parados juntos num rochedo, você me jogaria no mar.
Hipnotizada pela força dos olhos dele nos seus, ela repetiu:
– Se estivéssemos parados juntos num rochedo...
Ser jogada no mar, ser lançada de um lado para o outro e levada pelas raízes do mundo... a idéia era incoerentemente bela. Ela levantou-se de um salto e começou
a mover-se pelo quarto, inclinando-se e empurrando de lado cadeiras e mesas como se estivesse singrando as águas. Elea observava com prazer; Rachel parecia estar
abrindo caminho para si mesma e lidando triunfantemente com osobstáculos que impedissem a passagem dos dois pela vida.
– Mas realmente parece possível! – exclamou ele. – Embora eu sempre tenha pensado que era a coisa mais improvável do mundo... vou estar apaixonado por você a vidatoda,
e o nosso casamento vai ser a coisa mais excitante quejá se fez! Nunca teremos um momento de paz... – Ele a pegou nos braços, quando ela passou, e lutaram para verquem
vencia, imaginando uma rocha e o mar em torvelinho abaixo deles. Finalmente ela foi lançada ao chão, onde ficou deitada, arquejando e pedindo misericórdia.
Eu sou uma sereia! Eu sei nadar! – Então o jogo acabou. O vestido dela se rasgara; estabelecida a paz, ela pegou agulha e linha e começou a remendá-lo.
E agora – disse ela – fique quieto e fale-me do mundo; fale-me de tudo o que já aconteceu, e eu lhe direi...vamos ver, o que posso lhe dizer?... vou lhe falar de
Miss Montgomerie e a festa no rio. Sabe, ela ficou com um pé na praia e outro no barco.
Tinham já passado muito tempo relatando assim um para o outro o curso de suas vidas e as personalidades deseus amigos e parentes; logo Terence não apenas sabia oque
se esperava que as tias de Rachel dissessem em cadaocasião, mas também como eram decorados seus quartosde dormir e que tipo de toucas usavam. Podia manter um diálogo
entre Mrs. Hunt e Rachel, e conduzir um chá incluindo o Reverendo William Johnson e Miss Macquoid,os cientistas cristãos, tudo bem próximo da realidade. Masconhecera
muito mais pessoas e tinha muito mais habilidade narrativa do que Rachel, cujas experiências eram em geral curiosamente infantis e engraçadas, de modo que aela cabia
escutar e fazer perguntas.
Ele não apenas lhe relatava o que acontecera, mas o que sentira e pensara, e esboçava retratos do que outros homens e mulheres deveriam pensar e sentir que a fascinavam,
de modo que ficou muito ansiosa por voltar à Inglaterra, cheia de gente, onde poderia parar nas ruas e contemplá-las. Segundo ele, também, havia uma ordem,um padrão
que tornava a vida razoável, ou se essa palavra era tola, profundamente interessante, pois às vezes parecia possível compreender por que as coisas aconteciam como
aconteciam. E nem as pessoas eram tão solitárias e incomunicáveis como ela pensava. Ela devia procurar vaidade – pois vaidade era uma qualidade comum – primeiro
em si mesma e depois em Helen, em Ridley, em St. John,todos tinham uma parcela disso... encontraria isso em dez entre cada doze pessoas que conhecesse; e uma vez
ligados por esse laço, ela não os julgaria separados e poderosos, mas praticamente sem notabilidade, e passaria a amálos quando descobrisse que eram bem parecidos
com ela mesma. Se negasse isso, teria de defender sua crença de que seres humanos eram tão variados quanto os animais no zoológico, que tinham listras e crinas,
e chifres e cascos; assim, repassando toda a lista dos seus conhecidos e desviando-se para anedota, teoria e especulação, passaram a conhecer-se. As horas corriam
depressa, parecendo-lhes cheias até à borda. Depois da solidão de uma noite, estavam sempre prontos a recomeçar.
As virtudes que um dia Mrs. Ambrose pensava existirem no diálogo franco entre homens e mulheres, na verdade existia para os dois, embora não na medida em que ela
prescrevia. Bem mais do que sobre a natureza do sexo,estendiam-se sobre a natureza da poesia, mas um diálogo ilimitado aprofundava e alargava a clara visão singularmente
estreita de uma moça. Em troca do que Terence lhe contava, ela aguçava nele uma tal curiosidade e sensibilidade na percepção, que ele chegava a duvidar se o benefício
advindo de muita leitura e vivência era ou não igual ao que advinha do prazer e da dor. O que Rachel ganharia com a experiência, exceto uma espécie de ridículo equilíbrio
formal, como o de um cachorro treinado na rua? Terence contemplava o rosto dela, imaginando como se pareceria dentro de 20 anos, quando os olhos estivessem mais
foscos, e a fronte mostrasse aquelas pequenas rugas persistentes que pareciam mostrar que os de meiaidade encaram algo difícil que os jovens não enxergam.Imaginou
o que seria para ambos o difícil. Depois seus pensamentos voltaram-se para a vida deles na Inglaterra.
A idéia da Inglaterra era encantadora, pois juntos veriam de outro modo as coisas antigas; seria a Inglaterra em junho, e haveria noites de junho no campo; e os
rouxinóis cantando nas veredas, para onde poderiam sair quando o quarto ficasse muito quente; e haveria planícies inglesas brilhando de água, repletas de vacas imperturbáveis
e nuvens baixas sobre as colinas verdes. Sentado com ela no quarto, ele desejava muitas vezes estar de volta no auge da vida, fazendo coisas com Rachel.
Ele foi até a janela e exclamou:
– Deus, como é bom pensar em trilhas, veredas lamacentas, com cardos e sarças, e verdadeiros campos cobertos de capim, e terreiros com porcos e vacas e homens caminhando
ao lado de carroças, com forcados... não há nada que se compare a isso... veja a pedregosa terra vermelha e o claro mar azul, e as resplandecentes casas brancas...
como a gente se cansa disto! E o ar sem uma mancha ou ruga. Eu daria tudo por um nevoeiro do mar.
Rachel também estivera pensando no interior inglês: a terra plana desenrolando-se até o mar, as florestas e longas estradas retas, onde se pode caminhar quilômetros
sem ver ninguém, as grandes torres de igreja, as curiosas casas apinhadas no vales, as aves, o crepúsculo e a chuva caindo contra as vidraças.
Mas Londres,o lugar é Londres – continuou Terence. Olharam juntos o tapete, como se a própria Londres pudesse ser vista ali, deitada no chão, com todas as suas tor-res
e pináculos emergindo da fumaça.
De modo geral, o que eu mais gostaria neste momento – ponderou Terence – seria estar caminhando pela Kingsway, junto daqueles grandes cartazes, vocêsabe, e dobrar
entrando no Strand. Talvez eu fosse olhar a Ponte de Waterloo por um momento. Depois caminharia ao longo do Strand passando pelas lojas com todos aqueles livros
novos e atravessaria a pequena arcadaentrando no Temple. Sempre gostei daquela quietudedepois da agitação. Você de repente ouve seus própriospassos bastante fortes.
O Temple é muito agradável.Acho que eu iria ver se conseguia encontrar o bom velho Hodgkin... o homem que escreve livros sobre VanEyck, você sabe. Quando deixei
a Inglaterra, ele estavamuito triste por causa da sua gralha domesticada.Suspeitava de que um homem a envenenara. E depois,Russel vive no andar seguinte. Acho que
você gostariadele. Tem paixão por Handel. Bem, Rachel – concluiu ele afastando a visão de Londres –, vamos estar fazendo isso juntos dentro de seis semanas, e será
então meadosde junho... e junho em Londres... meu Deus! Comotudo isso é bom!
– E sabemos que vamos ter tudo isso – disse ela. – Não que esperemos muito... apenas andar por ali e olharas coisas.
– Apenas mil libras por ano e liberdade total – respondeu ele. Quantas pessoas em Londres você acha quetêm isso?
– E agora você estragou tudo – queixou-se ela. – Agora temos de pensar nas coisas horríveis. Ela olhou de mau humor para o romance que uma vez lhe causara talvez
uma hora de desconforto, de modo que nunca mais o abrira mas o deixara na mesa; eventualmente olhava para ele como algum monge medieval guardava uma caveira ou um
crucifixo para lembrá-lo da fragilidade do corpo.
– É verdade,Terence – perguntou ela –,que as mulheres morrem com insetos rastejando sobre seus rostos?
– Acho que é muito provável – disse ele. – Mas você tem de admitir, Rachel, que é tão raro pensarmos em qualquer coisa além de nós mesmos que uma ferroada de vez
em quando é até agradável.Acusando-o de um cinismo que era tão ruim quanto o sentimentalismo, ela deixou sua posição ao lado dele e ajoelhou-se sobre o peitoril
da janela, retorcendo as borlas da cortina entre os dedos. Estava dominada por um vago sentimento de insatisfação.
– O que é tão desagradável neste país – exclamou ela – é o azul... céu azul sempre, mar azul. É como uma cortina... todas as coisas que se quer estão dolado de lá.
Eu quero saber o que acontece atrás dela.Odeio essas divisões, você não odeia, Terence? Uma pessoa totalmente no escuro a respeito de outra pessoa. Eu gostei dos
Dalloway e eles se foram. Nuncamais irei vê-los. Simplesmente subindo num navionós nos separamos inteiramente do resto do mundo.
Quero ver a Inglaterra ali... Londres ali... toda sortede gente... por que não se poderia? Por que teríamosde nos fechar sozinhos num quarto?
Enquanto falava assim, em parte para si mesma ecom crescente vaguidão, pois seu olho fora atraídopor um navio que entrava na baía, ela não notou queTerence parara
de olhar em frente, satisfeito, e agora a encarava com olhar penetrante e descontente. Rachel parecia capaz de isolar-se dele e viajar paralugares desconhecidos
onde não precisava dele. Essaidéia o deixou enciumado.
– Às vezes acho que você não está apaixonada por mim e nunca estará – disse ele energicamente. Ela vi-rou-se, surpresa, ouvindo suas palavras.
– Eu não a satisfaço como você me satisfaz – prosseguiu ele. – Há algo em você que não consigo entender. Você não me quer como eu a quero... está sempre querendo
alguma coisa a mais.Ele começou a caminhar pelo quarto.
– Talvez eu peça demais – continuou. – Talvez não seja realmente possível ter o que eu quero. Homens e mulheres são diferentes demais. Você não pode entender...
não entende...
Foi até onde ela estava contemplando-o em silêncio.
Rachel achou o que ele dizia totalmente verdadeiro,ela queria muito mais coisas do que o amor de um ser humano – o mar, o céu. Virou- se novamente e olhou o azul
distante, tão liso e sereno onde o céu encontrava o mar. Não era possível querer somente um ser humano.
Ou é só essa droga de noivado? – prosseguiu ele.
Vamos nos casar aqui, antes de voltarmos... ou é um risco grande demais? Temos certeza de que queremos nos casar um com outro?
Começaram a caminhar pelo quarto mas, embora seaproximassem muito um do outro, tinham o cuidado denão se tocar. Estavam esmagados pela sua condição semremédio. Eram
impotentes; jamais se amariam o bastante para superar todas essas barreiras, e nunca poderiamsatisfazer-se com menos. Percebendo isso com intolerável lucidez, ela
parou na frente dele e exclamou:
– Então, vamos romper.
As palavras fizeram mais uni-los do que qualquer quantidade de argumentos. Como estivessem à beira de um precipício, agarraram-se um ao outro. Sabiam que não podiam
se separar; por doloroso e terrível que fosse, estavam ligados para sempre. Silenciaram, e al-gum tempo depois sentaram-se agarrados. Apenas estar tão próximos os
acalmava; sentando-se lado a lado as barreiras desapareciam, e era como se mais uma vez o mundo fosse sólido e inteiro, como se, de algum modo estranho, tivessem
ficado mais fortes e maiores.
Passou-se muito tempo até se mexerem, e quando o fizeram foi com grande relutância. Postaram-se diante do espelho e tentaram assumir, com uma escova, a aparência
de quem nada tivesse sentido a manhã toda,nem dor nem felicidade. Mas sentiram calafrios vendo-se no espelho, pois em vez de grandes e inseparáveis, na verdade eram
bem pequenos e separados, a vastidão do espelho deixando um espaço enorme para refletir outros objetos.
23
Mas escova alguma era capaz de remover totalmente a expressão de felicidade deles, de modo que quando desceram as escadas, Mrs. Ambrose não pôde tratá-los como se
tivessem passado a manhã de um modo que se comentasse com naturalidade. Sendo assim, ela juntou-se à conspiração do mundo que os considerava incapacitados para os
assuntos da vida, golpeados pela intensidade dos seus sentimentos indispondo-os com a vida, e quase conseguiu tirá-los do pensamento.
Refletiu que fizera tudo que era preciso nas questões práticas. Escrevera muitas cartas e obtivera o consentimento de Willoughby. Refletira tantas vezes sobre as
perspectivas de Mr. Hewet, sua profissão, seu nascimento, sua aparência e temperamento, que quase esquecera como ele era na verdade. Quando se lembrava, ao olhar
para ele, imaginava novamente como seria, e depois, concluindo que fosse como fosse estavam felizes, não pensou mais naquilo.
Seria mais proveitoso pensar no que aconteceria em três anos, ou no que poderia ter acontecido se Rachel tivesse de conhecer o mundo sob orientação do pai. Ela era
sincera o suficiente para saber que o resultado poderia ser melhor... quem sabia? Ela não escondia de si mesma que Terence tinha defeitos. Achava-o calmo demais,
tolerante demais, assim como ele a achava um pouco dura... não, ela não era tolerante. Em algumas coisas preferia St. John; mas naturalmente esse não combinaria
com Rachel. Sua amizade com St. John estava estabelecida, pois embora passasse de irritação a interesse revelando sua sinceridade, gostava da companhia dele. Levava-a
para fora daquele mundinho de emoção e amor. Entendia os fatos. Supondo que a Inglaterra de repente fizesse algum movimento para um desconhecido porto no Marrocos,
St. John saberia o que havia por trás disso, e escutá-lo engajado com o marido dela numa discussão sobre as finanças e o equilíbrio do poder dava-lhe um estranho
sentimento de estabilidade. Respeitava os argumentos dele sem lhes dar sempre atenção, tanto quanto respeitava uma sólida parede de tijolos, ou um daqueles imensos
edifícios da municipalidade que, embora componham a maior parte de nossas cidades, foram construídos dia após dia, ano após ano, por mãos desconhecidas. Gostava
de sentar-se e escutar, e ficava um pouco aliviada quando o casal de noivos, depois de mostrar sua profunda indiferença, esgueirava-se para fora da sala e era visto
despetalando flores no jardim. Não que tivesse ciúme deles, mas invejava o grande futuro desconhecido que estava diante deles. Passando de um pensamento desses a
outro, ela agora andava da sala de estar à sala de jantar com frutas nas mãos. Às vezes parava para endireitar uma vela que se entortava com o calor, ou modificava
algum arranjo rígido demais das cadeiras. Tinha razões para suspeitar que Chailey andara se equilibrando no topo da escada de mão com um espanador úmido durante
a ausência deles; a sala nunca mais fora inteiramente a mesma. Voltando da sala de jantar pela terceira vez, percebeu que uma das poltronas agora estava ocupada
por St. John. Ele se deitava para trás,olhos semicerrados, parecendo como sempre curiosamente fechado num belo terno cinza e protegido contra a exuberância de um
clima estrangeiro, que poderia a qualquer momento tomar certas liberdades com ele.Os olhos dela pousaram nele suavemente e depois passaram sobre sua cabeça. Por
fim ela ocupou a cadeira diante da dele.
– Eu não queria vir aqui – disse ele por fim. – Mas fui realmente levado a isso... Evelyn M. – murmurou.Então endireitou-se e começou a explicar com irônica solenidade
como aquela detestável mulher estava querendo casar-se com ele.
– Ela me persegue pelo hotel. Esta manhã apareceu na sala de fumar. Tudo o que pude fazer foi pegar meu chapéu e fugir. Não queria vir, mas não podia ficar e enfrentar
outra refeição com ela.
– Bem, temos de aproveitar isso – respondeu Helen filosoficamente. Estava muito quente, e eram indiferentes a qualquer quantidade de silêncio, de modo que se recostaram
em suas poltronas e ficaram esperando que algo acontecesse. Tocou o sino para o almoço, mas não houve som de movimentos na casa. Havia novidades? perguntou Helen;
alguma coisa nos jornais? St.John sacudiu a cabeça. Ah sim, recebera uma carta de casa, de sua mãe, descrevendo o suicídio da copeira.Chamava-se Susan Jane; entrara
na cozinha certa tar-de, dizendo que queria que a cozinheira guardasse seu dinheiro; tinha 20 libras de ouro. Depois foi comprar um chapéu. Voltara às cinco e meia
dizendo que tinha tomado veneno. Apenas tiveram tempo de levá-la para a cama e chamar um médico antes de ela morrer.
Então? – perguntou Helen.
Haverá um inquérito – disse St. John.
Por que ela fez aquilo? Ele deu de ombros. Por que as pessoas se matam? Por que as classes inferiores fazem as coisas que fazem? Ninguém sabia. Ficaram sentados
em silêncio.
– Faz 15 minutos que o sino tocou e eles não desceram – disse Helen finalmente. Quando apareceram, St. John explicou por que fora necessário vir almoçar ali. Imitou
o tom entusiástico de Evelyn quando o encontrara no salão de fumar.
– Ela acha que nada pode ser tão fascinante quanto matemática, de modo que lhe emprestei um livro grande, em dois volumes. Vai ser interessante ver o que ela vai
fazer com isso.
Rachel agora podia permitir-se rir para ele.Lembroulhe o Gibbon; ainda tinha o primeiro volume por aí; seele assumisse a instrução de Evelyn, isso certamente se-ria
um teste; ouvira dizer que Burke, sobre a revoluçãoamericana... Evelyn devia ler os dois ao mesmo tempo.Depois que St. John acabou com o argumento dela esatisfez
sua fome, passou a contar-lhes que o hotel ferviade escândalos, alguns dos mais espantosos, que tinhamacontecido na ausência deles; na verdade ele estava bastante
dedicado a estudar a sua própria espécie.
– Evelyn M. por exemplo... mas isso me foi dito em confiança.
Bobagem! – objetou Terence.
Você também ouviu a respeito do pobre Sinclair?
– Ah sim, ouvi a respeito de Sinclair. Ele se retirou para a sua mina com um revólver. Escreve diariamente a Evelyn que está pensando em se matar. Eu lhe afirmei
que ele nunca na vida foi tão feliz, e de modo geral ela se inclina a concordar comigo.
– Mas depois ela se enredou com Perrott – continuou St. John. – E tenho motivos para pensar, por algo que vi no corredor, que tudo não é como devia estar sendo entre
Arthur e Susan. Há uma moça recém-chegada de Manchester. Seria bom se rompessem, eu acho.A vida de casados será algo horrendo demais para se imaginar. Ah, ouvi claramente
a velha Mrs. Paley dizendo as mais horríveis pragas quando passei pelo seu quarto de dormir. Dizem que ela tortura a criada... é quase certo que sim. Pode-se ver
pela expressão dos seus olhos.
– Quando você tiver 80 anos e a gota atormentar, estará praguejando como um cavalariano – comentou Terence.
– Estará muito gordo, muito mal-humorado, muito desagradável. Não podem imaginá-lo... careca como um ovo,com calças frouxas, uma gravatinha de bolinhas e uma pança?
Depois de uma pausa Hirst comentou que a pior infâmia ainda estava por ser contada. E dirigiu-se a Helen.
– Eles expulsaram a prostituta a pontapés. Uma noite enquanto estávamos fora,aquele velho idiota do Thornbury estava trotando bem tarde pelos corredores. (Ninguém
parece ter-lhe perguntado por que ele estava de pé.) Ele viu a Signora Lola Mendoza, como é chamada, atravessar o corredor de camisola. Na manhã seguinte comunicou
suas suspeitas a Elliot, e Rodriguez foi até a mulher e deu-lhe 24 horas para deixar o local. Ninguém parece ter investigado a verdade da história, nem perguntado
a Thornbury e Elliot o que tinham com isso; fizeram tudo inteiramente como queriam. Proponho que assinemos uma circular e procuremos Rodriguez juntos, insistindo
numa investigação completa. Alguma coisa tem de ser feita, não concordam?
Hewet comentou que não podia haver dúvida quanto à profissão da dama.
Mesmo assim – acrescentou – é uma grande vergonha,pobre mulher; só que não vejo o que se poderia fazer...
Concordo com você, St. John – explodiu Helen. – É monstruoso. O moralismo hipócrita dos ingleses faz ferver omeusangue.Um homem quefezfortuna nocomérciocomo Mr.Thornbury
deve ser duas vezes pior que uma prostituta.
Ela respeitava a moral de St. John, que levava mais a sério do que qualquer outra pessoa, e entrou numa discussão com ele a respeito dos passos que deviam ser dados
para reforçar o ponto de vista de ambos sobre o que era correto. A discussão causou algumas declarações profundamente melancólicas de natureza geral. Afinal, quem
eram eles, que autoridade tinham... que poder contra a massa de superstição e ignorância? Eram os ingleses, naturalmente; devia haver algo errado no sangue inglês.Assim
que se conhecia um inglês de classe média, sentiase uma aversão indefinível; assim que se via a meia-lua marrom de casas sobre Dover, a mesma sensação sobrevinha.
Mas infelizmente, acrescentou St.John, não se pode confiar nesses estrangeiros...
Foram interrompidos por sons de discussão na outra ponta da mesa. Rachel apelou para sua tia.
Terence diz que temos de tomar chá com Mrs.Thornbury porque ela foi muito bondosa, mas não vejo por quê; na verdade eu preferia deixar cortar minha mão em pedaços...
imaginem só! Os olhos de todas aquelas mulheres!
Bobagem, Rachel- respondeu Terence. – Quem quer olhar para você? Você está é consumida de vaidade! Você é um monstro de convencimento! Certamente, Helen, você devia
ter-lhe ensinado a esta altura que ela não é nenhuma pessoa importante... nem bela, nem bem vestida, nem conhecida por elegância, intelecto ou postura. Uma visão
mais comum do que você – concluiu ele –, exceto pelo rasgo em seu vestido, nunca existiu. Mas, se quiser, fique em casa. Eu vou.
Ela apelou novamente à tia. Não era o fato de ser encarada, explicou, mas as coisas que certamente as pessoas diriam. Especialmente as mulheres. Gostava de mulheres,
mas em matéria de emoção eram como moscas no açúcar. Certamente iriam lhe fazer perguntas. Evelyn M. diria “Você está apaixonada? É bom estar apaixonada?” E Mrs.
Thornbury... seus olhos a examinariam de cima a baixo, de cima a baixo... tinha calafrios pensando nisso. Na verdade o isolamento de suas vidas desde o noivado a
deixara tão sensível que não estava exagerando seu caso.
Encontrou uma aliada em Helen, que passou a expor-lhe sua visão da raça humana, enquanto contemplava complacente a pirâmide de frutas variadas no centro da mesa.
Não que fossem cruéis, ou quisessem machucar, ou que fossem extremamente brutas, mas sempre achava que a pessoa comum tem tão pouca emoção em sua vida que o cheiro
dela em vidas alheias é como cheiro de sangue nas narinas de um cão sabujo.Entusiasmando-se pelo tema, continuou:
– Assim que alguma coisa acontece... pode ser um casamento, um nascimento ou morte... de modo geral preferem que seja morte... todo mundo quer nos ver.Insistem em
nos ver. Não têm nada a dizer; não dão a mínima para nós; mas temos de ir ao almoço, chá ou jantar, e se não vamos somos condenados. É o cheiro de sangue – continuou.
– Não as culpo; apenas, se eu puder evitar, não terão o meu!
Olhou em torno como se tivesse convocado uma legião de seres humanos, todos hostis e desagradáveis, que rodeavam a mesa, bocas abertas querendo sangue e fazendo-a
parecer uma ilhazinha de país neutro no meio de um país inimigo.
As palavras dela despertaram seu marido, que estivera murmurando ritmicamente, observando seus convidados, sua comida e sua esposa com olhos ora melancólicos, ora
ferozes, segundo o destino da dama na sua balada. Ele interrompeu Helen com um protesto.Odiava até a aparência de cinismo nas mulheres.
– Bobagem, bobagem – comentou abruptamente.
Terence e Rachel olharam-se sobre a mesa, o que significava que quando fossem casados não se portariamdaquele jeito. A entrada de Ridley na conversa teve um efeito
estranho. Ela tornou-se imediatamente formal e polida. Teria sido impossível falar com facilidade sobre qualquer coisa que lhes viesse à cabeça e pronunciar a palavra“prostituta”
tão simplesmente quanto qualquer outra palavra. A conversa dirigiu-se para literatura e política, e Ridleycontou histórias sobre as pessoas notáveis que conhecerana
juventude. Essa conversa tinha a natureza de uma arte, e as personalidades e informalidades dos jovens foram silenciadas. Quando se levantaram para partir, Helen
parou porum momento apoiando os cotovelos na mesa.
– Vocês estiveram sentados aqui quase uma hora – dis-se – e não notaram meus figos, nem minhas flores, nem o jeito como a luz entra aqui, nem nada. Eu não estive
escutando porque estava olhando para vocês. E estavam lindos; queria que ficassem aqui sentados para sempre.
Ela os conduziu para a sala de visitas, onde pegou seubordado, e começou novamente a dissuadir Terence de caminhar até o hotel naquele calor. Mas quanto mais ela
o dissuadia, mais ele estava determinado a ir. Ficou irritado e obstinado. Houve momentos em que quase tiveram raivaum do outro. Ele queria outras pessoas; queria
que Rachel asvisse com ele. Suspeitava de que Mrs. Ambrose não tentariadissuadi-la de ir. Estava aborrecido com todo aquele espaço,sombra e beleza, e Hirst, reclinado,
segurando uma revista.
Eu vou – repetiu. – Rachel não precisa ir a não ser que queira.
Se você for, Hewet, eu gostaria que investigasse sobre a prostituta – disse Hirst. – Olhe – acrescentou –, vou andar metade do caminho com você.
Para grande surpresa deles, levantou-se, olhou o relógio de bolso e comentou que, como passava meia hora do almoço, os sucos gástricos tinham tido tempo bastante
para funcionar; explicou que estava experimentando um sistema que envolvia breves momentos de exercício intercalados com intervalos mais longos de repouso.
– Estarei de volta às quatro – comentou com Helen – quando vou me deitar no sofá e relaxar todos os meus músculos completamente.
– Então você vai, Rachel? – perguntou Helen. – Não vai ficar comigo?
Ela sorriu, mas talvez estivesse triste.
Estava triste ou realmente rindo? Rachel não pôde dizer e sentiu-se muito desconfortável entre Helen e Terence. Depois virou-se, dizendo apenas que iria com Terence
desde que só ele falasse.
Uma faixa estreita de sombra corria ao longo da estrada que era larga o bastante para dois, mas não para três.
Por isso St. John ficou um pouco atrás do casal, e a distância entre eles foi aumentando aos poucos. Caminhando com vistas à digestão e com um olho no relógio, ele
de tempos em tempos contemplava o par à sua frente.Pareciam tão felizes, tão íntimos, embora caminhassem lado a lado como qualquer pessoa. Viravam-se de leve um
para o outro de vez em quando, e diziam algo que ele pensava ser muito particular. Estavam discutindo o caráter de Helen, e Terence tentava explicar por que ela
o aborrecia tanto às vezes. Mas St. John pensou que estavam dizendo coisas que ele não devia escutar, e ficou pensando no seu próprio isolamento. Aquelas pessoas
eram felizes; de alguma forma ele as desprezava por ficarem felizes com tanta simplicidade, e de outra maneira invejava-as. Era muito mais notável do que aquelas
duas pessoas, mas não era feliz. As pessoas nunca gostavam dele; às vezes até duvidava se Helen gostava dele. Ser simples, capaz de dizer com simplicidade o que
sentia, sem a terrível inibição que o dominava, e que lhe mostrava seu próprio rosto e palavras eternamente num espelho, isso valeria quase o mesmo que qualquer
outro dom, pois fazia as pessoas felizes.Felicidade, felicidade, o que era felicidade? Ele nunca era feliz. Via claramente demais os pequenos vícios,enganos e imperfeições
da vida, e, vendo-os, parecialhe honesto comentá-los. Sem dúvida era por isso que as pessoas em geral não gostavam dele e se queixavam de que era sem coração e amargo.
Certamente nunca lhe diziam coisas que ele queria ouvir, que era simpático e bondoso, e que gostavam dele. Mas era verdade que metade das coisas duras que dizia
a respeito dos outros eram ditas porque estava infeliz ou magoado.Mas admitia que muito raramente dissera a alguma pessoa que se importava com ela, e quando fora
expansivo geralmente se arrependera depois. Seus sentimentos com relação a Terence e Rachel eram tão complicados que ele jamais conseguira dizer que estava contente
porque iriam se casar. Via tão claramente os defeitos deles e a natureza inferior de grande parte de seu sentimento mútuo, e esperava que seu amor não durasse.Olhou-os
de novo, e, muito estranhamente, pois estava acostumado a pensar que raramente via alguma coisa, a visão deles o encheu de uma emoção simples de afeto,em que havia
alguns traços de compaixão. Afinal, o que importavam as falhas das pessoas, comparadas com o que havia de bom nelas? Resolveu que agora lhes diria o que estava sentindo.
Apressou seu passo e alcançouos exatamente quando chegavam à encruzilhada onde o caminho se reunia à estrada principal. Pararam quietos e começaram a rir para ele,
perguntando se seus sucos gástricos... mas ele os interrompeu e começou a falar muito rápido e rígido:
– Lembram aquela manhã depois do baile? – perguntou. – Estávamos sentados aqui, vocês falavam bobagens e Rachel fazia montinhos de pedras. Eu de minha parte tive,
num lampejo, a revelação de toda a vida. – Ele parou por um segundo,e apertou os lábios fortemente. – O amor parece-me explicar tudo. Assim, de modo geral, estou
muito contente porque vocês dois vão se casar. – Depois virou-se bruscamente, sem olhar para eles, e caminhou de volta à villa. Sentia-se a um tempo exaltado e envergonhado
por ter dito assim o que sentia. Provavelmente estavam rindo dele, provavelmente o achavam idiota; e afinal, realmente teria dito o que sentia?
Era verdade que riram quando ele se fora, mas a discussão sobre Helen, que se tornara bastante áspera,cessou, e tornaram-se apaziguados e amáveis.
24
Chegaram ao hotel no começo da tarde, de modo que a maior parte das pessoas estava deitada ou sentada em seus quartos calada, e Mrs. Thornbury, embora os tivesse
convidado para o chá, não aparecia em lugar algum. Por isso, sentaram-se no saguão sombrio, quase vazio e repassado dos leves sons farfalhantes de ar soprando num
grande espaço desocupado. Sim, aquela poltrona era a mesma em que Rachel se sentara na tarde em que Evelyn aparecera, e era aquela a revista que estivera olhando,aquele
o mesmo quadro, o quadro de Nova York à luz dos lampiões. Como era esquisito... nada tinha mudado.
Aos poucos, algumas pessoas começaram a descer as escadas e passar pelo saguão; naquela penumbra seus vultos tinham uma espécie de graça e beleza, embora fossem
todos desconhecidos. Às vezes passavam direto para o jardim, às vezes paravam alguns minutos, inclinavam-se sobre as mesas e começavam a folhear jornais. Terence
e Rachel observavam através das pálpebras semicerradas...os Johnson, os Parkey, os Bailey, os Simmon, os Lee, os Morley; os Campbell, os Gardiner. Alguns vestiam
roupa branca e traziam raquetes debaixo do braço, uns eram baixos, outros altos, uns apenas crianças, e alguns podiam ser empregados, mas todos tinham sua posição,
seu motivo para andarem uns atrás dos outros no saguão, seu dinheiro, seu lugar, fosse qual fosse. Terence desistiu de contemplá-las, pois estava cansado; fechando
os olhos, ficou meio adormecido na cadeira. Rachel observou as pessoas mais algum tempo; estava fascinada pela segurança e graça de seus movimentos, pela maneira
inevitável como pareciam ir uns atrás dos outros, hesitar, passar e desaparecer. Mas algum tempo depois seus pensamentos começaram a vagar, e pensou no baile que
se realizara naquele salão, só que então parecera bem diferente.Olhando em torno, quase não acreditava que fosse o mesmo aposento. Parecera tão despido, tão claro
e tão formal aquela noite, quando entraram nele, saindo da escuridão; também estivera apinhado com pequenos rostos excitados sempre em movimento, pessoas vestidas
de cores tão brilhantes e tão animadas que nem pareciam pessoas reais, nem se sentia que fosse possível falar com elas. E agora o salão estava penumbroso,quieto,
e belas pessoas silenciosas passavam por ele,pessoas a quem se podia dirigir e dizer o que desejasse.Ela sentia-se surpreendentemente segura sentada em sua poltrona,
capaz de rever não apenas a noite do baile, mas todo o passado, terna e bem-humorada como se tivesse girado num nevoeiro longo tempo e agora pudesse ver exatamente
para onde se dirigira. Pois os métodos pelos quais chegara à sua atual posição lhe pareciam muito estranhos, e a coisa mais estranha neles era não ter ela sabido
aonde a estavam levando. Essa era a coisa estranha, que não se sabia aonde se estava indo,ou o que se queria, e se seguia cegamente, sofrendo tanto em segredo, sempre
despreparada e espantada e sem saber de nada; uma coisa levava a outra, e aos poucos alguma coisa se formava do nada, e assim se chegava finalmente àquela calma,
àquela certeza, e era esse processo que as pessoas chamavam viver.Talvez,então,todo mundo sabia, como ela sabia agora, aonde estavam indo; e as coisas se formavam
num padrão, não só para ela mas para todos, e nesse padrão estavam o contentamento e o sentido de tudo. Olhando para trás podia ver que algum tipo de sentido aparente
existia nas vidas de suas tias, na breve visita dos Dalloway, a quem jamais veria de novo, e na vida do seu pai.
O som de Terence respirando profundamente enquanto cochilava confirmava a calma de Rachel. Não estava sonolenta, embora não visse as coisas muito nitidamente, mas,
como as imagens passando pelo saguão se tornassem cada vez mais vagas, achava que todos sabiam exatamente aonde estavam indo, e a sensação da segurança delas a enchia
de conforto. Naquele momento estava tão desligada e desinteressada como se já não tivesse nenhum destino a cumprir na vida, e achou que agora poderia aceitar qualquer
coisa que viesse sem ficar perplexa pela forma como apareceria.O que havia para se temer ou com que se espantar na perspectiva da vida? Por que essa visão das coisas
a abandonaria outra vez? O mundo na verdade era tão vasto, tão hospitaleiro e, afinal de contas, tão simples.“O amor”, dissera St. John, “parece explicar todas as
coisas”. Sim, mas não o amor na forma de amor entre homem e mulher, de Terence por Rachel. Embora se sentassem tão juntos, tinham deixado de ser pequenos corpos
separados; tinham deixado de lutar e desejar-se.Parecia haver paz entre eles. Podia ser amor, mas não era o amor de homem por mulher.
Através de seus olhos meio fechados Rachel observava Terence deitado na sua cadeira; sorriu vendo como sua boca era grande, seu queixo pequeno, seu nariz curvado
como um escorregador com uma saliência na ponta. Naturalmente, com aquela aparência, era preguiçoso e ambicioso, cheio de caprichos e defeitos.Lembrou-se de suas
brigas, especialmente como tinham brigado a respeito de Helen naquela tarde, e pensou em quantas vezes ainda discutiriam nos 30, 40 ou 50 anos em que viveriam juntos
na mesma casa,apanhando trens juntos, aborrecendo-se por serem tão diferentes. Mas tudo isso era superficial e nada tinha a ver com a vida que continuava sob os
olhos, a boca e o queixo, pois aquela vida era independente dela, e independente de tudo o mais. Assim também, embora fosse se casar com ele e viver com ele por
30, 40 ou 50 anos, e discutir e ficar junto dele, era independente dele; era independente de tudo o mais. Mesmo assim, como dissera St. John, era o amor que a fazia
entender isso, pois nunca sentira essa independência, essa calma e essa certeza antes de se apaixonar por ele, e talvez também isso fosse amor. Ela não queria nada
mais.
Por talvez dois minutos Miss Allan estivera a distância contemplando o casal reclinado tão pacificamente em suas poltronas. Não conseguia decidir se iria perturbá-las
ou não; então, parecendo lembrar-se de alguma coisa, atravessou o saguão. O som de sua aproximação acordou Terence, que se endireitou e esfregou os olhos. Ouviu
Miss Allan falando com Rachel.
Bem – estava dizendo ela –, isso é muito bom. Muito bom, realmente. Ficar noivo parece estar na moda. Não é toda hora que dois casais que nunca se tinham visto antes
decidem se casar. – Fez uma pausa e sorriu, parecendo não ter mais nada a dizer, de modo que Terence se levantou e perguntou se era verdade que ela terminara seu
livro. Alguém lhe dissera que ela realmente o terminara. O rosto dela iluminou-se; vi-rou-se para ele com uma expressão mais animada do que o habitual.
Sim, acho que posso dizer honestamente que terminei – disse. – Isto é, omitindo Swinburne... Beowulf a Browning... eu pessoalmente gosto dos dois ‘bês’. Beowulf
a Browning – repetiu. – Acho que é o tipo de título que pode chamar atenção numa banca de livros de estação ferroviária.
Estava muito orgulhosa de ter concluído seu livro,pois ninguém sabia quanta determinação fora necessária para fazê-lo. Ela também achava que era um bom trabalho
e, levando em conta como estivera ansiosa em relação ao seu irmão quando o escrevera, não pôde resistir a falar-lhes um pouco mais a respeito.
– Devo confessar – prosseguiu – que se eu soubesse quantos clássicos existem na literatura inglesa e como são prolixosos melhores – deles, jamais teria entrado nesse
empreendimento. Só se permitem 70 mil palavras, vocês sabem.
Só 70 mil palavras! – exclamou Terence.
Sim, e é preciso dizer alguma coisa sobre todos eles
– acrescentou Miss Allan – é o que acho tão difícil, dizer algo diferente sobre cada um. – Então achou que já falara o bastante sobre si mesma e perguntou se tinham
vindo para participar do torneio de tênis. – Os jovens estão muito entusiasmados. Começa em meia hora.
Seu olhar benevolente pousava sobre os dois. Depois de uma pausa breve comentou,olhando para Rachel como se tivesse lembrado algo que serviria para distingui-la
dos outros.
– Você é a pessoa notável que não gosta de gengibre.
– Mas a bondade do sorriso no seu rosto bastante gasto e corajoso fez com que sentissem que, embora dificilmente fosse recordá-los como indivíduos, ela depusera
sobre eles o ônus da nova geração.
– E nisso eu até concordo bastante com ela – disse uma voz atrás deles. Mrs. Thornbury escutara as últimas palavras sobre não gostar de gengibre. – Na minha mente
isso se associa a uma horrenda tia nossa (coitada, ela sofria muitíssimo, por isso não se devia chamá-la de horrenda) que costumava nos dar gengibre quando éramos
pequenos, e nunca tínhamos coragem de dizer que não gostávamos. Tínhamos de cuspir tudo nas moitas... ela tinha uma casa grande perto de Bath.
Começaram a atravessar o saguão lentamente, quando pararam sob o impacto de Evelyn, que esbarrou neles como se, correndo escada abaixo para alcançá-los, suas pernas
tivessem escapado ao controle.
– Bem – exclamou ela, com seu entusiasmo habitual, pegando Rachel pelo braço –, eu acho isso uma coisa esplêndida! Adivinhei que ia acontecer, desde o comecinho!
Vi que vocês dois eram feitos um para o outro. Agora precisam me contar tudo a respeito... quando vai ser, onde vão morar... vocês dois estão extremamente felizes?
Mas a atenção do grupo passou para Mrs. Elliot, que passava por eles com seus movimentos ansiosos mas incertos, carregando nas mãos um prato e uma bolsa de água
quente vazia.
Teria passado por eles, mas Mrs. Thornbury foi até ela e interpelou-a.
– Obrigada, Hughling está melhor – respondeu à pergunta de Mrs.Thornbury. – mas ele não é um doente fácil. Quer saber sua temperatura, fica ansioso, e se não se
conta começa a desconfiar. Você sabe como são os homens quando estão doentes! E naturalmente aqui não temos os instrumentos adequados, embora ele pareça muito desejoso
e ansioso por ajudar – ela baixou a voz num tom misterioso –, o Dr. Rodriguez não é um médico apropriado. Se o senhor viesse visitá-lo, Mr. Hewet, sei que ele se
animaria... deitado ali na cama o dia todo... e às moscas... Mas preciso procurar Angelo... a comida aqui... naturalmente, com um doente, a gente quer que tudo saia
especialmente bem. – E correu à procura do chefe dos garçons.A preocupação de cuidar do marido impusera uma expressão lamentosa à sua fronte. Estava pálida e parecia
infeliz, mais ineficiente do que de costume e seus olhos passavam mais vagos ainda de um ponto a outro.
– Coitada! – exclamou Mrs. Thornbury. Contou-lhes que por alguns dias Hughling Elliot andara doente e que o único médico disponível era irmão do proprietário, pelo
menos o proprietário dizia isso, cujo título de médico era suspeito.
Eu sei como é horrível ficar doente num hotel – comentou Thornbury, mais uma vez conduzindo Rachel ao jardim. – Passei seis semanas de minha lua-de-mel com tifo
em Veneza. Mas mesmo assim ainda as considero algumas das semanas mais felizes de minha vida. Ah, sim disse pegando o braço de Rachel –, você se julga feliz agora,
mas isso não é nada comparado à felicidade que vem depois. E asseguro-lhe que ainda no fundo do coração invejo vocês jovens! Vocês se divertem muito mais que nós,
acreditem. Quando lembro, quase nem acredito como as coisas mudaram. Quando éramos noivos, eu não podia nem passear sozinha com William... alguém tinha de estar
sempre no mesmo aposento que nós... eu acho que tinha de mostrar todas as cartas dele aos meus pais!...embora também gostassem muito dele. Na verdade posso dizer
que o consideravam um filho. É engraçado pensar como eram severos conosco, quando vejo como mimam os seus netos!
A mesa estava mais uma vez posta debaixo da árvore,e tomando seu lugar diante das xícaras de chá, Mrs.
Thornbury convidou e acenou com a cabeça até reunir um bom número de pessoas, Susan, Arthur e Mr. Pepper que estavam passeando por ali esperando o começo do torneio.
Uma árvore murmurejante, um rio brilhando ao luar,as palavras de Terence voltaram à lembrança de Rachel sentada tomando chá e escutando as palavras que fluíam tão
leves, tão bondosas e com uma maciez argêntea.Aquela vida longa e todos aqueles filhos tinham-na deixado muito suave; pareciam ter removido marcas de individualidade,
deixando apenas o que era velho e maternal.
– E as coisas que vocês moços ainda vão ver! – continuou Mrs. Thornbury. Ela incluiu todos eles em sua previsão, ela incluiu todos eles em sua maternidade, embora
o grupo incluísse William Pepper e Miss Allan, dos quais seimaginaria que já haviam visto boa parte do panorama. – Quando vejo como o mundo mudou durante a minhavida,
não vejo limite para o que poderá acontecer nospróximos 50 anos. Ah, não, Mr. Pepper, não concordonada com o senhor – ela riu, interrompendo o comentário melancólico
dele, de que as coisas iam sempre de mala pior. – Eu sei que deveria sentir isso, mas acho que nãosinto. Eles vão ser pessoas muito melhores do que nós.Certamente
tudo vai provar isso. Ao meu redor vejomulheres, mulheres jovens, mulheres com preocupaçõesdomésticas de toda sorte, saindo e fazendo coisas quenós nem pensaríamos
serem possíveis.
Mr. Pepper a achava sentimental e irracional como são todas as velhas, mas seu jeito de tratá-lo como se fosse um velho bebê rabugento deixava-o ao mesmo tempo espantado
e encantado, e ele apenas pôde responder com uma careta curiosa, que era mais um sorriso do que uma cara feia.
– E continuam sendo mulheres – acrescentou Mrs. Thornbury. Dão muito aos seus filhos.Quando disse isso, ela sorriu para Susan e Rachel.Elas não gostaram de serem
incluídas no mesmo grupo, mas ambas sorriram um pouco acanhadas; Arthur e Terence também se entreolharam. Ela os fazia sentir que estavam ambos juntos no mesmo barco,
e olharam para as mulheres com quem iam se casar, comparandoas. Era inexplicável que alguém quisesse casar-se com Rachel, incrível que alguém estivesse disposto
a passar a vida com Susan; mas, por mais estranho que parecesse a cada um o gosto do outro, nenhum dos dois tinha má vontade para com o outro por esse motivo; na
verdade ambos se estimavam mais ainda por causa de sua escolha excêntrica.
– Preciso realmente dar-lhe os parabéns – comentou Susan quando se inclinava sobre a mesa para pegar a geléia.
Parecia não haver motivo para o mexerico de St.John sobre Arthur e Susan. Queimados de sol e vigorosos, sentavam-se ali lado a lado com suas raquetes sobre os joelhos,
não falando muito, mas dando leves sorrisos o tempo todo. Através de suas finas roupas brancas era possível ver as linhas de seus corpos e pernas, as lindas curvas
de seus músculos, a magreza dele e as carnes dela, e era natural pensar nas crianças fortes e de carnes rijas que teriam. Seus rostos não eram belos, mas tinham
olhos claros e aparência de grande saúde e resistência, pois parecia que o sangue jamais deixaria de correr nas veias dele ou de repousar, calmo e profundo, nas
faces dela. Os olhos dos dois no momento estavam mais brilhantes do que de costume e tinham a expressão peculiar de prazer e confiança que parece estar nos olhos
dos atletas, pois estiveram jogando tênis, e eram ambos excelentes no jogo.
Evelyn não falara, mas estivera olhando de Susan para Rachel. Bem... ambas tinham se decidido muito facilmente, tinham feito em poucas semanas o que por vezes ela
pensava jamais poder fazer. Embora fossem tão diferentes, achou que podia ver em cada uma a mesma expressão de contentamento e plenitude, a mesma maneira calma,
os mesmos movimentos vagarosos. Era essa lentidão, a confiança e o contentamento que ela odiava, pensou. Moviam-se tão devagar porque não eram isoladas, mas uma
dupla, Susan ligada a Arthur, e Rachel a Terence, e por causa daquele único homem tinham renunciado a todos os demais, ao movimento e a todas as coisas reais da
vida. Tudo bem com o amor e com aquelas aconchegantes casas com cozinha em baixo e quarto de crianças em cima, tão fechadas e absorvidas em si como ilhazinhas nas
torrentes do mundo. Mas as coisas reais eram sem dúvida as coisas que aconteciam, as causas, as guerras, os ideais, que sucediam no grande mundo lá fora e continuavam
independentes dessas mulheres, que se tornaram tão belas e quietas para seus homens. Ela as examinou acuradamente. Naturalmente estavam felizes e satisfeitas, mas
devia haver coisas melhores do que aquilo.
Certamente podia se chegar mais perto da vida, podia se divertir mais e sentir mais do que elas jamais sentiriam. Rachel, especialmente, parecia tão jovem... o que
poderia saber da vida? Ela ficou inquieta e, levantandose, foi sentar-se ao lado de Rachel. Lembrou-a de que prometera unir-se ao seu clube.
– O problema é que talvez eu não seja capaz de começar a trabalhar seriamente até outubro. Acabo de receber uma carta de uma amiga cujo irmão está a serviço em Moscou.
Querem que eu fique com eles, e como estão no meio de todas as conspirações e dos anarquistas, estou pensando em parar a caminho de casa.Parece excitante demais.
– Ela queria fazer Rachel ver como era excitante. – Minha amiga conhece uma moça de 15 anos que foi mandada para a Sibéria para sempre, apenas porque a apanharam
mandando uma carta a um anarquista. E a carta nem era dela. Eu daria tudo que tenho no mundo para ajudar numa revolução contra o governo russo, e isso vai acontecer.
Olhou de Rachel para Terence. Os dois estavam um pouco comovidos ao vê-la, lembrando como ultimamente tinham ouvido palavras más a seu respeito.Terence perguntou-lhe
qual era o seu esquema, e ela explicou que ia fundar um clube – um clube para fazer coisas, fazê-las de verdade. Ficou muito animada enquanto falava, pois professou
estar certa de que 20 pessoas – não, dez seria o bastante se fossem ousadas – interessadas em fazer coisas, em vez de falar sobre elas, poderiam acabar com quase
todo o mal que existia. O que era preciso eram cérebros. Ao menos pessoas com cérebro – naturalmente quereriam uma sala, uma boa sala, de preferência em Bloomsbury,
onde pudessem encontrar-se uma vez por semana...
Enquanto ela falava, Terence podia ver os traços de juventude que iam murchando no seu rosto, as linhas que estavam sendo marcadas pela fala e pela excitação em
torno de sua boca e olhos, mas não teve pena dela;olhando naqueles olhos brilhantes, um tanto duros e muito corajosos, viu que ela não tinha pena de si mesma, nem
sentia qualquer desejo de trocar sua vida pelas vidas mais refinadas e ordenadas de pessoas como ele próprio e St. John, embora, com o passar dos anos, a luta se
tornasse cada vez mais dura.Talvez porém ela se estabelecesse; talvez afinal de contas se casasse com Perrott. Enquanto sua mente estava meio ocupada com
o que ela dizia, ele pensou no provável destino dela, as leves nuvens de fumaça escondendo um pouco o seu rosto aos olhos dela.
Terence fumava, Arthur fumava e Evelyn fumava, demodo que o ar estava cheio da névoa e do perfume debom tabaco. Nos intervalos em que ninguém falava, ouviam bem
distante o murmúrio abafado do mar, quandoas ondas se quebravam tranqüilamente espalhando napraia uma beirada de água e recuando para quebraremse de novo. A fria
luz verde caía entre as folhas de árvore, e havia crescentes suaves e diamantes de sol sobre os pratos e a toalha de mesa. Depois de observá-los todospor algum tempo
em silêncio, Mrs. Thornbury começou a fazer perguntas bondosas a Rachel. Quando iamtodos voltar? Ah, estavam esperando o pai dela. Ela devia estar querendo ver o
pai – haveria muita coisa a contar-lhe, e (ela olhou com simpatia para Terence) eleficaria tão feliz, estava certa disso. Anos atrás, prosseguiu, talvez dez ou até
vinte anos, lembrava de ter conhecido Mr. Vinrace numa festa e, impressionada com o rosto dele, diferente dos rostos comuns que se vêemem festas, perguntara quem
ele era; tinham-lhe ditoque era Mr. Vinrace, e ela sempre recordava o nome –nome nada comum – e ele estava com uma senhora de aparência muito gentil, mas era uma
daquelas terríveisfestas apinhadas de gente em Londres,em que ninguémconversa – as pessoas ficam apenas se olhando –, e embora tivesse apertado a mão de Mr. Vinrace,
provavelmente não tinham dito nada. Ela suspirou um pouquinho lembrando o passado.
Então voltou-se para Mr. Pepper, que estava muito dependente dela, de modo que sempre escolhia sentarse perto dela e escutava o que ela dizia, embora raramente fizesse
algum comentário pessoal.
– O senhor que conhece tudo, Mr. Pepper – disse ela –, digamos agora como aquelas maravilhosas damas francesas administram os seus salões? Fazemos algo parecido
na Inglaterra, ou o senhor acha que há algum motivo para não podermos fazer?
Mr. Pepper alegrou-se em poder explicar muito detalhadamente por que nunca tinha havido um salão inglês.Havia três motivos, e eram muito bons, disse ele. Quando
ia a uma festa, como às vezes era obrigado a fazer para nãoofender ninguém – sua sobrinha, por exemplo, casara-seoutro dia –, ele caminhava até o meio da sala, dizia
“Ha!
Ha!”o mais alto que podia,pensava ter cumprido seu devere ia embora. Mrs. Thornbury protestou. Ia dar uma festaassim que voltasse para casa e todos seriam convidados;
elacolocaria gente para observar Mr. Pepper e se o apanhassem dizendo “Há! Há!” ela... ela faria alguma coisa horrívelcontra ele. Arthur Venning sugeriu que deveria
prepararum tipo de surpresa, por exemplo, o retrato de uma simpática velha em gorro de renda escondendo um jato de águafria, que a um sinal seria espirrado contra
a cabeça dePepper; ou então uma cadeira que o dispararia a 20 metrosde altura assim que se sentasse nela.
Susan riu. Terminara seu chá; estava muito contente porque jogara tênis brilhantemente e porque todo mundo era tão simpático; começava a achar bem mais fácil conversar
e manter diálogo, mesmo com gente bem inteligente, pois pessoas inteligentes não a assustavam mais.Até Mr. Hirst, de quem não gostara quando o conhecera,não era
desagradável; e, coitado, sempre parecia tão doente; talvez estivesse apaixonado; talvez tivesse gostado de Rachel – ela não se espantaria se fosse isso; ou talvez
Evelyn – naturalmente esta era muito atraente para os homens. Inclinando-se para diante, ela prosseguiu a con-versa. Disse achar que festas eram tão aborrecidas
principalmente porque os homens não querem se vestir direito;mesmo em Londres, disse, surpreendia-se ao ver como as pessoas não achavam necessário vestir-se para
a noite;evidentemente se não se vestiam em Londres, muito me-nos no interior. Era realmente um aborrecimento na época de Natal, quando havia bailes de caçada e os
cavalheiros usavam belos casacos vermelhos, mas Arthur não ligava para bailes, de modo que talvez nem fosse ao baile na sua cidadezinha do interior. Ela achava que
em geral pessoas que gostam de um esporte não ligam para outro, embora seu pai fosse uma exceção. Mas ele era exceção em tudo – um excelente jardineiro, sabia tudo
sobre pássaros e animais, e era simplesmente adorado por todas as velhas da aldeia, e ao mesmo tempo o que mais apreciava era um livro. Sempre se sabia onde encontrá-lo;
estava no seu estúdio com um livro. Provavelmente seria um livro muito, muito velho, alguma coisa antiga e bolorenta que ninguém mais sonharia ler. Ela costumava
dizer-lhe que teria sido um rato de biblioteca se não tivesse família de seis pessoas para sustentar; e seis filhos, acrescentava ela, confiando de um jeito encantador
na simpatia universal, não deixavam muito tempo para ninguém se tornar um rato de biblioteca.
Ainda falando em seu pai, de quem se orgulhava muito, ela ergueu-se porque Arthur, olhando o relógio, achou que estava na hora de voltar novamente para a quadra
de tênis. Os outros não se mexeram.
Estão muito felizes! – disse Mrs.Thornbury olhando para eles com ar benevolente. Rachel concordou; pareciam tão seguros de si mesmos; pareciam saber exatamente o
que queriam.
Você acha que eles estão felizes? – murmurou Evelyn a Terence num tom cheio de alusões, esperando que ele dissesse que não achava; mas em vez disso ele disse que
também tinham de ir... ir para casa, pois andavam sempre atrasados para as refeições, e Mrs. Ambrose, que era muito severa e escrupulosa, não gostava disso. Evelyn
segurou a saia de Rachel e protestou. Por que tinham de ir? Ainda era cedo, e ela tinha tantas coisas a lhes dizer.
– Não – disse Terence –, temos de ir porque caminhamos devagar. Paramos para olhar as coisas, e conversamos.
– Do que falam? – perguntou Evelyn, ao que ele riu e disse que falavam de tudo.Mrs. Thornbury foi com eles até o portão, atravessando a relva e o cascalho com muita
lentidão e graça, falando o tempo todo sobre pássaros e flores. Disse-lhes que desde que a filha se casara começara a estudar botânica;era maravilhoso, quantas flores
ali e ela nunca vira, embora tivesse vivido no interior a vida toda e ela tinha 72 anos. Era uma boa coisa ter uma ocupação bastante independente das outras pessoas,
disse, quando se ficasse velha. Mas o estranho era que a gente nunca se sentia velha.Ela sempre sentia que tinha 25, nem um dia a mais nem um dia a menos, mas, naturalmente,
não se podia esperar que outras pessoas concordassem com isso.
– Deve ser maravilhoso ter 25 e não apenas imaginar que se tem 25 – disse ela olhando de um para outro com seu olhar suave e claro. – Deve ser muito, muito maravilhoso
mesmo. – Ficou parada falando com eles no portão por um longo tempo; parecia relutar em deixá-los partir.
25
A tarde estava muito quente, tão quente que as ondasquebrando na praia soavam como o repetido suspiro dealguma criatura exausta, e mesmo no terraço debaixo deum
toldo as lajes estavam quentes, e o ar dançava perpetuamente sobre o capim curto e seco. As flores vermelhas nas bacias de pedra murchavam de calor,e os botõesbrancos,
que poucas semanas antes eram tão macios egrossos, agora estavam secos e com as pontas retorcidasamarelas. Só as plantas rígidas e hostis do sul, cujas folhas carnudas
pareciam crescer em espinhos dorsais,ainda estavam eretas e desafiando o sol para que as dobras-se. Estava quente demais para se falar, e não era fácilencontrar
um livro que resistisse ao poder do sol. Muitostinham sido tentados e largados, e agora Terence estavalendo Milton em voz alta, porque dizia que as palavras de Milton
tinham substância e forma, de modo que nãoera preciso compreender o que ele dizia; bastava escutaras palavras; podia-se quase manipulá-las.
Há uma doce ninfa não longe daqui,
Leu ele,
Que com curva úmida faz ondular a doce torrente do Severn. Sabrina é seu nome, virgem pura;Era filha de Locrino, Que recebera o cetro de seu pai Bruto.
As palavras, apesar do que Terence dissera, pareciamcarregadas de significado e talvez por isso fosse dolorosoescutá-las; soavam estranhas; significavam coisas diferentesdo
que usualmente significam. Rachel, pelo menos, nãoconseguia prestar atenção nelas, mas seguia estranhos desvios de pensamento sugeridas por palavras como “curva”,“Locrino”e
“Bruto”,que traziam visões desagradáveis diante de seus olhos,independentemente de seu sentido.Devidoao calor e ao ar que dançavam, o jardim também pareciaesquisito...
as árvores próximas ou distantes demais, e suacabeça quase certamente doía.Ela não estava certa,por issonão sabia se devia dizer a Terence agora ou deixá-lo seguirlendo.
Decidiu que esperaria que ele chegasse ao fim deuma estrofe e, se naquela altura ela virasse a cabeça de umlado a outro e doesse indubitavelmente em qualquer posição,
diria com muita calma que estava com dor de cabeça.
Bela Sabrina,
Ouça de onde está sentada
Sob a onda vítrea, fria e translúcida,
Tecendo em tranças retorcidas de lírios,
Seu cabelo solto cor de âmbar, gotejante,
Ouça pela honra do seu amado
Deusa do lago de prata,
Ouça e salve!
Mas sua cabeça doía; doía, para qualquer lado que virasse.
Sentou-se ereta e disse decidida:
– Estou com dor de cabeça, então vou entrar. Ele estava na metade do verso seguinte, mas largou
o livro na mesma hora.
– Está com dor de cabeça? – repetiu ele.
Por uns momentos ficaram sentados entreolhandose em silêncio, de mãos dadas. Durante esse tempo os sentimentos dele de consternação e catástrofe foram quase fisicamente
dolorosos; pareceu ouvir ao seu redor um tremor de vidro partido que, ao cair na terra, o deixou sentado em pleno ar. Mas no fim de dois minutos, notando que ela
não partilhava de sua consternação, mas estava antes bastante lânguida e de pálpebras mais pesadas do que de costume, ele recuperou-se,chamou Helen e perguntou o
que deviam fazer, pois Rachel estava com dor de cabeça.
Mrs. Ambrose não se perturbou, mas aconselhou quefosse para a cama e acrescentou que sua cabeça doeria seficasse sentada o tempo todo sem repousar nem sair docalor,
mas que umas poucas horas na cama a curariam totalmente. Terence sentiu um alívio irracional com essas palavras, assim como estivera irracionalmente deprimido momentos
antes. O espírito de Helen parecia ter muito emcomum com o implacável bom senso da natureza, que vingava a imprudência com uma dor de cabeça e, como o bom senso
da natureza, era algo confiável.
Rachel foi para a cama; deitada no escuro por um longo tempo, mas, finalmente, acordando de uma espécie de sono transparente, viu as janelas brancas à sua frente
e lembrou que algum tempo atrás fora para a cama com dor de cabeça e que Helen dissera que teria passado quando acordasse. Por isso achou que estava boa outra vez.
Ao mesmo tempo a parede à sua frente era de um branco doloroso e curvava-se de leve em vez de estar reta e plana.Virando os olhos para a janela, não ficou tranqüila
com o que viu. O movimento da persiana quando se enchia de ar e inflava de leve para fora, arrastando a corda no assoalho com um pequeno som rastejante, pareceu-lhe
assustador como um bicho no quarto. Ela fechou os olhos, e o latejar na sua cabeça foi tão forte que cada latejo parecia bater um nervo, fincando uma pequena ferroada
de dor na sua testa. Podia não ser a mesma dor de cabeça, mas sua cabeça certamente doía. Virou-se de um lado para outro, esperando que a frieza dos lençóis a curasse,e
quando abrisse novamente os olhos o quarto estaria como de costume.Depois de um número considerável de tentativas vãs, ela decidiu resolver o assunto. Saiu da cama
e parou ereta,segurando-se numa bola de latão na cabeceira da cama.De início gelada, a cabeceira logo ficou quente como a palma de sua mão, e as dores em sua cabeça
e em seu corpo, e a instabilidade do chão, provaram que seria bem mais insuportável ficar de pé e caminhar do que ficar na cama, e voltou a deitar-se; embora no
começo a mudança a refrescasse,o desconforto da cama logo ficou tão grande quanto o de estar de pé. Aceitou a idéia de que teria de ficar na cama o dia todo, e quando
deitou a cabeça no travesseiro, renunciou à felicidade do dia.
Quando Helen entrou uma ou duas horas depois, interrompeu de repente as palavras alegres que ia dizendo, pareceu espantar-se um segundo e, depois de assumir uma
calma artificial, não teve dúvidas de que Rachel estava enferma. Isso se confirmou quando a casa toda ficou sabendo,quando alguém interrompeu uma canção que cantava
no jardim e quando Maria, trazendo água, passou pela camacalada, olhos baixos. Foi preciso superar toda a manhã etoda a tarde; de vez em quando Rachel fazia um esforçopara
passar para o mundo comum, mas via que seu calor edesconforto tinham cavado um abismo entre seu mundo e aquele, comum, e que não era possível atravessar. Num momento
a porta abriu-se, e Helen entrou com um homenzinho moreno que tinha – foi a coisa principal que Rachelnotou nele – mãos muito peludas. Estava tonta e com umcalor
insuportável, e como ele parecesse tímido e obsequioso, quase não se deu ao trabalho de responder-lhe,embora entendesse que era um médico. Noutro momento, a porta
se abriu e Terence entrou muito suavemente, sorrindo um sorriso fixo demais para ser natural,conforme ela percebeu. Sentou-se e falou com ela, acariciando suas mãos,
até que ficou impossível para ela continuar deitada na mesma posição e se virou; quando olhou de novo Helen estava a seu lado e Terence se fora. Não tinha importância;
ela o veria amanhã quando ascoisas voltassem ao normal. Sua ocupação principal durante o dia foi tentar lembrar os versos:
Sob a onda vítrea, fria e translúcida.
Tecendo em tranças retorcidas de lírios,
Seu cabelo solto cor de âmbar, gotejante,
e esse esforço a preocupava porque os adjetivos insistiam em colocar-se nos lugares errados.
O segundo dia não foi muito diferente do primeiro,exceto que sua cama se tornara muito importante, e omundo de fora, quando tentava pensar nele, parecia cadavez
mais afastado. A onda vítrea, fria e translúcida estava quase visível diante dela, encrespando-se no pé da cama, ecomo era de um frio refrescante Rachel tentava
manter o pensamento fixo nela. Helen estava ali, e esteve ali o diatodo; às vezes dizia que era hora do almoço, às vezes queera hora do chá; mas no dia seguinte
todos os marcos estavam borrados e o mundo exterior estava tão distante queos diferentes sons,como sons de pessoas passando na escada e de gente caminhando no andar
de cima, só podiamser relacionados com sua causa com grande esforço de memória. Lembrar o que sentira, fizera ou pensara três diasantes era algo muito remoto.Por
outro lado,cada objeto noquarto e a própria cama,e seu corpo com seus vários membros e diferentes sensações, eram cada dia mais importan-tes.Ela estava totalmente
isolada,incapaz de comunicar-secom o resto do mundo, isolada e só com seu corpo.
Assim passavam-se horas e horas, sem avançar nada durante a manhã, ou poucos minutos levavam do dia claro às profundezas da noite. Certo dia quando anoitecia e o
quarto parecia muito penumbroso, porque era crepúsculo ou porque as cortinas estavam fechadas,Helen lhe disse:
– Há uma pessoa que vai passar a noite sentada aqui com você. Você se importa? Abrindo os olhos, Rachel não viu Helen, mas uma enfermeira de óculos, cujo rosto lembrava
vagamente algo que vira uma vez. Vira-a na capela.
– A enfermeira McInnis – disse Helen. A enfermeira tinha um sorriso fixo como todo mundo e disse que não haviamuita gente com medo dela. Depois de esperar um momento,
as duas sumiram e, virando-se no travesseiro, Rachel acordou no meio de uma daquelas intermináveis noites quenão terminam em 12 horas, mas avançam para outras cifras:13,
14 e assim por diante até chegarem a 20, a 30 e então 40.Percebeu que não há nada para evitar que as noites façamisso se quiserem. A uma grande distância, uma mulher
idosasentava-se de cabeça inclinada; Rachel soergueu-se de leve eviu consternada que a mulher jogava cartas à luz de uma velaescondida por uma folha de jornal. A
visão tinha algo deinexplicavelmente sinistro; ela ficou aterrorizada e gritou; amulher largou suas cartas e veio atravessando o quarto, protegendo a vela com as
mãos. Chegando mais e mais pertoatravés do grande espaço do quarto, ela finalmente parousobre a cabeça de Rachel e disse:
– Não está dormindo? Deixe-me ajeitá-la mais confortavelmente.
Ela largou a vela e começou a arranjar as roupas de cama. Rachel espantou-se porque a mulher que estivera sentada jogando cartas numa caverna a noite toda tinha
mãos muito frias, e encolheu-se quando a tocaram.
Olha aí – disse a mulher –, tem um dedão ali em embaixo! – e continuou a ajeitar as roupas de cama.Rachel não percebeu que o dedo do pé era seu.
Você tem de ficar deitada quietinha – continuou a mulher porque se ficar quieta sentirá menos calor e se remexer muito vai ficar com mais calor, e não queremos que
fique ainda mais quente do que já está. Parou olhando para Rachel um tempo enorme.
– E quanto mais quieta ficar, mais cedo estará boa – repetiu ela.
Rachel ficou de olhos fixos na sombra pontiaguda no teto,e toda a sua energia concentrou-se em querer que essa sombrase movesse. Mas a sombra e a mulher pareciam
eternamentefixos sobre ela. Rachel fechou os olhos. Quando os abriu de novo, tinham-se passado várias horas, mas a noite continuava,interminável.A mulher ainda jogava
cartas,apenas agora estava sentada num túnel debaixo de um rio, e a luz estava numa pequena arcada na parede acima dela. Ela gritou “Terence!” e a sombra pontuda
mais uma vez moveu-se através do teto,quando a mulher se ergueu com um imenso movimento vagaroso, e ambas se postaram quietas acima dela.
– É tão difícil manter você na cama quanto foi difícil manter Mr. Forrest na cama – disse a mulher –, e ele era um cavalheiro tão alto.
Para se livrar daquela terrível visão estacionária,Rachel fechou os olhos de novo, e estava caminhando num túnel debaixo do Tâmisa, onde havia mulherezinhas disformes
sentadas em arcadas jogando cartas, enquanto os tijolos da parede exsudavam umidade, que se cristalizava em gotas e escorregava pela parede. Mas as velhas mulherezinhas
tornaram-se Helen e a enfermeira McInnis, algum tempo depois, paradas juntas na janela sussurrando, sussurrando incessantemente.
Enquanto isso, fora do quarto dela, os sons, os movimentos e as vidas dos outros na casa seguiam na comum luz do sol, através da comum seqüência de horas. Quando,no
primeiro dia de sua enfermidade, uma terça-feira, ficou claro que ela não ficaria totalmente boa, pois sua temperatura era muito alta, Terence ficou ressentido até
sexta-feira, não contra ela, mas contra a força exterior a eles que os estava separando. Contou um número de dias que quase certamente ficariam estragados. Percebeu
com uma estranha mistura de prazer e aborrecimento que, pela primeira vez na vida, dependia tanto de outra pessoa, que sua felicidade estava a cargo dela. Os dias
eram totalmente desperdiçados com coisas triviais e imateriais, pois depois de três semanas de tal intensidade e intimidade, todas as ocupações habituais ficavam
insuportavelmente sem graça e sem sentido. A ocupação menos intolerável era falar com St. John sobre a enfermidade de Rachel, discutindo cada sintoma e seu significado,
e quando esse tema estava exaurido, discutindo toda sorte de doenças, o que as causava ou curava.
Duas vezes por dia ele ia sentar-se com Rachel, e duas vezes por dia acontecia a mesma coisa. Ao entrar no quarto, que não era muito escuro, onde partituras se espalhavam
como sempre, assim como os seus livros e as cartas,ele imediatamente se animava. Vendo-a, ficava totalmente reassegurado. Ela não parecia muito doente. Sentado a
seu lado contava-lhe o que andara fazendo, usando sua voz natural para falar-lhe, apenas alguns tons mais baixo do que de costume. Mas depois de sentar-se ali cinco
minutos, ficava mergulhado na mais profunda tristeza. Ela não era mais a mesma, ele não conseguia restabelecer a antiga relação; embora soubesse que era uma bobagem,não
podia impedir-se de desejar trazê-la de volta, fazê-la recordar, e quando isso falhava desesperava-se. Sempre concluía, ao deixar o quarto dela, que era pior vê-la
do que não a ver, mas aos poucos, quando o dia prosseguia, o desejo de vê-la voltava e tornava-se quase insuportável.
Na manhã de quinta-feira, quando Terence entrou no quarto dela, sentiu o usual aumento de confiança. Ela virouse e fez um esforço para lembrar certos fatos do mundo
queestava a tantos milhares de quilômetros de distância.
– Você veio do hotel? – perguntou ela.
– Não, agora estou hospedado aqui – disse ele. – Acabamos de almoçar e chegou a correspondência. Há um maço de cartas para você... cartas da Inglaterra.
Em vez de dizer que queria vê-las, como ele esperava, ela por algum tempo não disse nada.
Está vendo, já vão elas rolando do alto do morro para baixo – disse ela de repente.
Rolando, Rachel? O que você viu rolando? Não há nada rolando.
A velha com a faca – disse ela, não falando com Terence em especial e olhando algum ponto além dele.
Como ela parecia fitar um vaso na prateleira do outro lado do quarto, ele levantou-se e pegou o vaso.
– Agora não podem mais rolar – disse alegremente.Mesmo assim ela ficou deitada olhando fixo para o mesmo ponto, não prestando mais atenção nele, embora falasse com
ela. Terence ficou tão profundamente infeliz que não suportou ficar sentado junto dela, e saiu caminhando até encontrar St. John, que estava lendo o Times na varanda.
St. John largou o jornal pacientemente e escutou tudo o que Terence tinha a dizer sobre o delírio. Era muito paciente com Terence. Tratava-o como a uma criança.
Na sexta-feira não se podia negar que a doença não era mais um acesso que passaria em um dia ou dois; era uma enfermidade real e exigia muita organização e atenção
de pelo menos cinco pessoas, mas não havia por que ficarem ansiosos. Em vez de cinco dias, a doença duraria dez. Diziam que Rodriguez comentara haver variedades
conhecidas dessa enfermidade. Rodriguez parecia pensar que estavam tratando a doença com ansiedade desnecessária. Suas visitas eram sempre marcadas pela mesma demonstração
de confiança; nas suas entrevistas com Terence ele sempre rejeitava as perguntas ansiosas e detalhadas com uma espécie de floreio que parecia dizer que estavam todos
levando aquilo a sério demais. Curiosamente ele não queria sentar-se.
– Febre alta – disse olhando furtivamente peloquarto e parecendo mais interessado nos móveis e nobordado de Helen do que em qualquer outra coisa.
– Neste clima, espera-se febre alta. Não precisam ficar alarmados com isso. Nós nos guiamos pelo pulso(deu uma batidinha no próprio pulso) e o pulso continua excelente.
Depois disso fez mesura e desapareceu. A entrevista fora conduzida laboriosamente pelos dois lados em francês, e isso, aliado ao fato de que ele era otimista e de
que Terence respeitava a profissão médica, tornava-o menos crítico do que se encontrasse o médico em qualquer outra situação. Inconscientemente tomava o lado de
Rodriguez contra Helen, que parecia ter um preconceito irracional em relação a ele.
Quando chegou sábado estava evidente que as horas do dia tinham de ser mais bem organizadas. St. John ofereceu seus préstimos; disse que não tinha nada para fazer
e podia bem passar o dia na villa se pudesse ser útil. Como se estivessem iniciando uma expedição difícil juntos, dividiram entre si as tarefas, escrevendo um esquema
elaborado de horas numa grande folha de papel, que foi afixada na porta da sala de estar. A distância da cidade e a dificuldade de conseguir coisas raras, com nomes
desconhecidos, dos lugares mais inesperados, tornava necessário pensar com muito cuidado, e acharam inesperadamente difícil fazer as coisas mais simples mas práticas
que se exigiam deles, como se, sendo muito altos, tivessem de inclinar-se e arranjar diminutos grãos de areia num desenho no chão.
A tarefa de St. John era apanhar da cidade o que fosse preciso, de modo que Terence ficava sentado as longas horasde calor sozinho na sala de estar, junto da porta
aberta, à escuta de qualquer movimento lá em cima,ou de um chamado de Helen. Ele sempre se esquecia de baixar as persianas, demodo que ficava sentado à luz do sol,
o que o incomodavasem ele saber direito por quê.O aposento ficava terrivelmente sufocante e desconfortável. Havia chapéus nas cadeiras efrascos de remédios entre
livros. Ele tentava ler, mas os livros bons eram bons demais, e os ruins eram ruins demais, e a única coisa que podia suportar era o jornal que, com suaspolíticas
de Londres e atividades das pessoas de verdade queestavam dando jantares festivos e fazendo discursos, pareciaum pequeno pano de fundo de realidade para aquilo que
deoutra forma seria puro pesadelo. Então, bem quando suaatenção estava fixada na letra impressa, vinha um chamadobrando de Helen, ou Mrs. Chailey trazia algo que
era solicitado lá em cima, e ele corria para lá sem ruído, de meias, epunha o jarro na mesinha abarrotada de jarros e xícaras queficava do lado de fora da porta
do quarto de dormir. Ou se pudesse pegar Helen um momento, perguntava:
– Como é que ela está?
– Bastante inquieta... De modo geral, acho que mais calma.
A resposta podia ser uma ou outra.
Como de costume ela parecia esconder algo que nãodizia, e Terence estava consciente de que eles discordavamentre si, e, sem dizer isso em voz alta, discutiam. Mas
Helen estava preocupada e apressada demais para conversar.
A tensão de escutar, o esforço de fazer arranjos práticose ver as coisas funcionarem sem problemas, absorvia toda aenergia de Terence. Envolvido em seu longo e terrível
pesadelo, ele nem tentava pensar em como aquilo acabaria.
Rachel estava doente; era isso; ele precisava cuidar para quehouvesse remédios e leite, e que as coisas estivessem a postos quando necessárias. O pensamento cessara;
a própriavida estava parada. Domingo foi bem pior do que fora osábado, simplesmente porque a tensão era cada dia umpouco maior, embora nada mais tivesse mudado.
Os sentimentos separados de prazer, interesse e dor, que se combinam para formar o dia comum,estavam mergulhados numasensação arrastada de sórdida infelicidade e
profundo tédio. Ele nunca estivera tão entediado desde que o deixaramfechado sozinho no quarto de criança quando pequeno. Avisão de Rachel como estava agora, confusa
e indiferente,quase apagara a visão dela como fora um dia, há muito tempo; ele quase nem conseguia acreditar que tinham sidofelizes, ou noivos, pois que emoções
havia, o que existiapara ser sentido? A confusão cobria cada visão e cada pessoa, e ele parecia ver St. John, Ridley e as pessoas que vinham vez por outra do hotel
para saber notícias, através deuma névoa; as únicas pessoas não escondidas nessa névoaeram Helen e Rodriguez, porque podiam dizer-lhe algodefinido sobre Rachel.
Mesmo assim, o dia seguiu da forma habitual. A certas horas entravam na sala de jantar, e quando se sentavam ao redor da mesa, falavam sobre coisas sem importância.
St.John geralmente tratava de começar a conversa e evitar que se esvaísse.
– Descobri um jeito para fazer Sancho passar pela casa branca – disse St. John no almoço de domingo. – É só enfiar um pedaço de papel no seu ouvido, aí ele salta
por uns 100 metros, mas depois disso anda bastante bem.
Sim, mas ele quer milho. Você devia cuidar para que tenha seu milho.
Não confio muito nesse troço que lhe dão. E Angelo parece um moleque sujo.
Depois houve um longo silêncio. Ridley soprou alguns versos de poesia e comentou, como para esconder que o tinha feito:
– Muito quente, hoje.
Dois graus mais que ontem – disse St. John. – Fico imaginando de onde vêm essas nozes – disse, tomando uma noz do prato e girando-a nos dedos, contemplando-a com
curiosidade.
Acho que de Londres – disse Terence, também olhando a noz.
Um homem de negócios competente faria fortuna aqui em pouco tempo – continuou St. John. – Acho que o calor faz alguma coisa esquisita com o cérebro das pessoas.
Até os ingleses ficam um pouco esquisitos. Seja como for, são pessoas com quem não dá para lidar. Fizeram-me esperar três quartos de hora na farmácia esta manhã,
sem nenhum motivo.
Houve outra pausa longa, depois Ridley perguntou:
– Rodriguez parece satisfeito?
– Bastante – disse Terence com determinação. A coisa só tem de seguir seu curso.
Ridley deu um suspiro profundo. Tinha realmente pena de todo mundo, mas ao mesmo tempo sentia uma falta enorme de Helen, e estava um pouco irritado com a presença
constante daqueles dois rapazes.
Voltaram todos para a sala de estar.
– Olhe aqui, Hirst – disse Terence – não há nada parafazer durante duas horas. – Ele consultou a folha de papelafixada na porta. – Vá deitar-se. Eu espero aqui.
Chaileyestá sentada com Rachel enquanto Helen almoça.
Era pedir muito a Hirst dizer que saísse sem ter visto Helen. Aqueles rápidos vislumbres de Helen eram as únicas tréguas na tensão e tédio, e muitas vezes pareciam
compensar os desconfortos do dia, embora ela não tivesse muito a lhes dizer. Porém, como estavam juntos numa campanha, decidira obedecer.
Helen desceu muito tarde. Parecia alguém que ficara sentada longo tempo no escuro. Estava pálida, mais magra e a expressão de seus olhos era atormentada embora decidida.
Almoçou depressa, indiferente ao que estava fazendo. Esquivou-se das perguntas de Terence e finalmente, como se ele nem tivesse falado, encarou-o com a testa um
pouco franzida e disse:
– Terence, não podemos continuar assim. Ou você encontra outro médico, ou terá de dizer a Rodriguez que não venha mais e eu mesma dou um jeito. Não adianta ele dizer
que Rachel está melhor; ela não está melhor: está pior.
Terence sofreu um choque terrível, como aquele quesentira quando Rachel dissera “Estou com dor de cabeça”.Acalmou-se,refletindo que Helen estava esgotada,e ficoufirme
nessa opinião pelo seu obstinado entendimento deque nessa discussão ela estava do lado oposto ao seu.
Você acha que ela corre perigo?- indagou.
Ninguém pode continuar tão doente dia após dia – respondeu.
Helen olhava para ele e falava como se estivesse indignada com alguém.
– Muito bem. Vou falar com Rodriguez esta tarde
– disse ele. Helen subiu as escadas imediatamente.
Nada podia abrandar a ansiedade de Terence. Nãoconseguia ler, nem sentar-se quieto, e sua sensação de segurança estava abalada, apesar de ter decidido que Helenexagerara
e que Rachel não estava muito doente. Masqueria que uma terceira pessoa continuasse sua crença.
Assim que Rodriguez desceu ele indagou:
– Bem, como está ela? Acha que está pior?
– Não há nenhum motivo para ansiedade, acredite...nenhum – respondeu Rodriguez no seu francês execrável, sorrindo inseguro, e fazendo o tempo todo pequenos movimentos
como se quisesse afastar-se.
Hewet postou-se firmemente entre ele e a porta.Estava decidido a verificar que tipo de homem era aquele. Sua confiança nele sumiu quando o contemplou e viu sua insignificância,
sua aparência suja, seu jeito evasivo, seu rosto peludo e pouco inteligente. Era estranho que nunca tivesse notado isso antes.
– Naturalmente não vai fazer objeção se pedirmos
que consulte outro médico? – perguntou.O homenzinho ficou abertamente ofendido.
Ah! – gritou. – Não tem confiança em mim? Temobjeção ao meu tratamento? Quer que eu desista do caso?
De jeito nenhum – respondeu Terence.– Mas numa doença grave como essa... Rodriguez deu de ombros.
Eu lhe asseguro que não é grave. O senhor está ansioso demais. A jovem não está gravemente doente, e eu sou médico. Naturalmente a senhora está apavorada... –disse
em tom desdenhoso. – Entendo isso perfeitamente.
– O nome e endereço do outro médico é...? – continuou Terence.
– Não há outro médico – respondeu Rodriguez carrancudo. – Todo mundo tem confiança em mim. Olhe! Vou lhe mostrar. Ele pegou do bolso um maço de velhas cartas e começou
a revirá-las como se procurasse uma que contestasse as suspeitas de Terence. Enquanto procurava começou a contar uma história sobre um lorde inglês que tinha confiado
nele... um grande lorde inglês, cujo nome infelizmente esquecera.
– Não há outro médico no lugar – concluiu ele, ainda revirando as cartas.
– Esqueça – disse Terence lacônico. – Eu mesmo vou investigar. Rodriguez colocou as cartas de volta no bolso e comentou:
– Muito bem. Não faço objeções.
Ele arqueou as sobrancelhas, deu de ombros como se repetisse que estavam levando aquela doença demasiado a sério, que não havia outro médico, e deslizou para fora
da sala deixando a impressão de que sabia que não confiavam nele e de estar cheio de rancor.
Depois disso Terence não pôde mais ficar no andartérreo. Subiu, bateu na porta de Rachel e perguntou aHelen se podia vê-la alguns minutos. Não a vira ontem.Ela não
objetou e foi sentar-se na mesa junto da janela.
Terence sentou-se ao lado da cama. O rosto de Rachel estava mudado. Parecia inteiramente concentrada no esforço de continuar viva. Seus lábios estavam repuxados,
as faces encovadas e vermelhas, mas não uma cor de saúde. Seus olhos não estavam inteiramente cerrados, a parte inferior do branco aparecendo, não como se estivesse
enxergando, mas como se apenas estivessem abertos por ela estar cansada demais para fechá-los. Quando ele a beijou,os olhos abriram-se totalmente. Mas ela apenas
viu uma velha cortando com uma faca a cabeça de um homem.
– Está caindo! – murmurou ela. Depois virou-se para Terence e perguntou, ansiosa, alguma coisa sobre um homem com mulas, que ele não conseguiu entender. – Por que
é que ele não vem? Por que ele não vem? – repetiu.Terence ficou consternado, pensando no homenzinho sujo lá embaixo cuidando de uma enfermidade daquelas,e instintivamente
virou-se para Helen, que estava lidando com uma mesa junto da janela e parecia não entender como ele estava chocado. Ele levantou-se para sair, pois não agüentava
mais escutar; seu coração batia rápida e dolorosamente com ira e infelicidade. Quando passou por Helen, ela lhe pediu na mesma voz triste, pouco natural e determinada,
que apanhasse mais gelo e mandasse encher de leite fresco o jarro diante da porta.Depois de atender a esses pedidos ele foi procurar Hirst. Exausto e com muito calor,
St. John adormecera numa cama, mas Terence o acordou sem escrúpulo.
– Helen acha que ela está pior – disse. – Não há dúvida de que está terrivelmente doente. Rodriguez não adianta nada. Temos de conseguir outro médico.
– Mas não há outro médico – disse Hirst sonolento, sentando-se e esfregando os olhos.
– Não seja idiota! – exclamou Terence. – Claro que háoutro médico, e se não houver você tem de achar um. Devia ter sido feito dias atrás. Vou descer para selar um
cavalo. –Ele não conseguia parar quieto em nenhum lugar.Em menos de dez minutos St.John estava indo a cava-lo para a cidade, no calor escaldante, para procurar um
médico, com ordens de encontrá-lo e trazê-lo para a casa,ainda que tivesse de ser num trem especial.
– Devíamos ter feito isso dias atrás – repetia Hewet,indignado.Quando voltou para a sala de estar, encontrou Mrs.Flushing parada muito ereta no meio da sala, vinda
da cozinha ou do jardim sem se anunciar, como as pessoas andavam fazendo naqueles dias.
– Ela está melhor? – perguntou Mrs. Flushing bruscamente. Nem tentaram dar-se as mãos.
– Não – disse Terence. – Se mudou, acham que foi para pior.Mrs. Flushing pareceu pensar por um momento ou dois, olhando direto para Terence o tempo todo.
– Escute – disse, falando em movimentos nervosos –, é sempre por volta do sétimo dia que se começa a ficar ansioso. Acho que o senhor andou aqui sentado sozinho
preocupando-se. Acha que ela está mal, mas qualquer pessoa entrando com olhar lúcido veria que está melhor.Mr. Elliot teve febre e está bem agora – disse ela num
ímpeto. – Não foi nada que ela apanhou na excursão. O que é isso, uns poucos dias de febre? Certa vez meu irmão teve 26 dias de febre. E numa semana estava de novo
caminhando. Só lhe dávamos leite e araruta...
Nisso Mrs. Chailey entrou com um recado.
– Está vendo... ela vai melhorar – disse Mrs. Flushingnum arranco quando ele saiu da sala. Sua ansiedade em persuadir Terence era enorme, e quando ele a deixou sem
dizernada, ficou aborrecida e inquieta; não gostava de ficar, masnão podia ir. Andava de sala em sala procurando alguém comquem conversar, mas todos os aposentos
estavam vazios.
Terence subiu as escadas, entrou no quarto para receber as ordens de Helen e olhou para Rachel, mas não tentou falar com ela. Parecia vagamente consciente da presença
dele, mas isso parecia perturbá-la, e ela virou-se de costas para ele.
Por seis dias estivera esquecida do mundo lá fora, porque era preciso toda a atenção para seguir as visões quentes, vermelhas e rápidas que passavam incessantementediante
de seus olhos. Sabia que era de enorme importânciaprestar atenção a essas visões e entender seu sentido, masestava sempre atrasada para ouvir ou ver algo que explicasse
aquilo tudo. Por isso, os rostos – o rosto de Helen, o daenfermeira, o de Terence e o do médico – que eventualmente se impunham muito próximos dela eram preocupantes,
porque distraíam sua atenção, e ela podia perder aresposta para tudo aquilo. Mas na quarta tarde de repente ela foi incapaz de distinguir o rosto de Helen das própriasvisões;
seus lábios abriram-se quando ela se inclinou sobrea cama e começou a balbuciar coisas ininteligíveis como oresto. Todas as visões ligavam-se a uma trama, uma aventura
qualquer, alguma escapada. A natureza do que estavam fazendo mudava incessantemente, embora houvesse sempre um motivo por trás, que ela desejaria muito entender.
Ora estavam entre árvores e selvagens, ora no mar; oraestavam no topo de altas torres; ora saltavam de lá; oravoavam. Mas assim que a crise estava por acontecer,
alguma coisa invariavelmente escapava no cérebro dela, demodo que todo o esforço tinha de recomeçar. O calor erasufocante. Por fim os rostos afastaram-se; ela caiu
num profundo poço de água viscosa, que depois fechou-se sobre sua cabeça. Nada via ou ouvia senão um tênue som pulsante, que era o som do mar rolando sobre sua cabeça.Seus
atormentadores a julgavam morta, mas não estavamorta, e sim enroscada no fundo do mar. Lá jazia, às vezesvendo a escuridão, às vezes luz, e de vez em quando alguém
a virava para o outro lado no fundo do mar.
Depois que St. John passara algumas horas sob o calor do sol lutando com nativos evasivos e muito falastrões, extraiu a informação de que havia um médico francês
que no momento estava em férias nas montanhas. Diziam que era praticamente impossível encontrá-lo. Com sua experiência do país St.John achou improvável que um telegrama
fosse mandado ou recebido; mas tendo reduzido a distância da cidadezinha da montanha, onde o outro estava hospedado, de 160 para 50 quilômetros, e tendo carrugem
e cavalos, partiu imediatamente para apanhar o médico. Conseguiu encontrá-lo e forçou o homem contrariado a deixar sua jovem esposa e voltar imediatamente. Chegaram
à villa na terça ao meio-dia.
Terence saiu para recebê-los, e St. John ficou chocado vendo que no intervalo o outro emagrecera visivelmente;estava pálido também; seus olhos pareciam estranhos.
Mas a fala lacônica e as maneiras dominadoras e fechadas do Dr. Lesage os impressionaram favoravelmente, embora fosse óbvio ao mesmo tempo que estava aborrecidíssimo
com tudo aquilo. Descendo as escadas ele deu suas instruções enfaticamente, mas não lhe ocorreu dar-lhes uma opinião, ou pela presença de Rodriguez, que era a um
tempo obsequioso e malicioso, ou porque estava certo de que já sabiam o que havia para saber.
– Claro – disse, dando de ombros quando Terence lhe perguntou se ela estava muito doente. Ambos experimentaram certa sensação de alívio quando o Dr. Lesage se foi,
deixando orientações explícitas e prometendo voltar em poucas horas; mas infelizmente a animaçãodeles os levou a falar mais do que de costume, e falando brigaram.
Brigaram por causa da estrada, a Portsmouth Road.St. John disse que era asfaltada onde passa por Hindhead, eTerence sabia tão bem quanto sabia seu próprio nome que
não era asfaltada naquele trecho. Durante a briga disseram um ao outro algumas coisas muito ásperas,e o resto do jantarocorreu em silêncio, rompido apenas por um
comentárioocasional meio abafado de Ridley.
Quando escureceu e os lampiões foram trazidos, Terencesentia-se incapaz de controlar mais tempo sua irritação. St.John foi para a cama numa exaustão completa, dandoboa-noite
a Terence de um modo mais afetuoso do que o costumeiro por causa da briga, e Ridley retirou-se comseus livros. Sozinho, Terence ficou caminhando peloquarto e parou
diante da janela aberta.
As luzes acendiam-se uma depois da outra na cidade lá embaixo; estava muito pacífico e fresco no jardim, de modo que ele desceu para o terraço. Parado ali na escuridão,
podendo ver apenas as formas das árvores na fina luz cinzenta, ele foi dominado por um desejo de escapar dali, de acabar com aquele sofrimento, de esquecer que Rachel
estava doente. Permitiu-se esquecer tudo aquilo. Como se um vento que tivesse soprado forte o tempo todo cessasse de repente, a ansiedade, a tensão e a aflição que
o tinham pressionado passaram.Parecia plantado num espaço de ar puro,numa ilhazinha, sozinho; estava livre e imune à dor. Não importava se Rachel estava bem ou doente;
não importava se estavam separados ou juntos; nada importava... nada importava. As ondas batiam na praia longe dali, e o vento leve passava pelo ramos das árvores,
parecendo rodeálo de paz e segurança, com trevas e nada. Certamente o mundo de discórdia, aflição e ansiedade não era o mundo real, mas aquele sim, o mundo abaixo
do mundo superficial, de forma que, acontecesse o que acontecesse, estava-se seguro. A quietude e a paz pareciam enrolar seu corpo num lençol fino e frio, acalmando
todos os nervos; sua mente pareceu mais uma vez expandirse e voltar ao natural.
Mas depois de ficar assim algum tempo, um ruído dentro da casa o despertou; virou-se instintivamente e entrou na sala. A visão do aposento iluminado por lampiões
trouxe de volta abruptamente tudo o que ele esquecera, e ficou parado por um instante, incapaz de se mexer. Lembrou tudo, a hora, até o minuto, o ponto a que tinham
chegado, e o que estava por vir. Amaldiçoou-se por fazer de conta por um minuto que as coisas eram diferentes do que eram. Agora era mais difícil do que nunca enfrentar
a noite.
Incapaz de ficar na sala vazia, saiu e sentou-se nasescadas a meio caminho do quarto de Rachel. Ansiavapor alguém com quem falar, mas Hirst estava dormindoe Ridley
também; não havia ruído no quarto de Rachel.O único rumor na casa era Chailey mexendo-se na cozinha. Por fim houve um farfalhar nas escadas mais acima, e a enfermeira
McInnis desceu soltando as abotoaduras de seus punhos, preparando-se para a vigília danoite. Terence ergueu-se e a fez parar. Quase não falaracom ela, mas era possível
que lhe confirmasse a crença,que ainda persistia na mente dele, de que Rachel nãoestivesse gravemente enferma. Ele lhe disse num sussurro que o Dr. Lesage estivera
ali e o que dissera.
– Então, enfermeira – sussurrou –, por favor diga-me sua opinião. Acha que ela está muito doente? E corre al-gum perigo?
– O doutor disse... – começou ela.
– Sim, mas eu quero sua opinião. A senhora tem experiência em muitos casos como esse?
– Mr. Hewet, eu não poderia lhe dizer mais do que o Dr. Lesage – respondeu ela cautelosamente, como se suaspalavras pudessem ser usadas contra ela. – O caso é sério,mas
pode ter certeza de que estamos fazendo tudo o quepodemos por Miss Vinrace. – Ela falava com uma certa auto-aprovação profissional. Mas talvez percebesse que nãoestava
satisfazendo o rapaz, que ainda bloqueava seu caminho, pois moveu-se um pouco mais para cima na escada eolhou pela janela, de onde podiam ver a lua sobre o mar.
– Se o senhor me perguntar – começou ela num estranho tom furtivo –, eu nunca gosto do mês de maio para os meus pacientes.
– Maio? – repetiu Terence.
– Pode ser fantasia minha, mas não gosto de ver ninguém adoecer em maio – continuou ela. – As coisas parecem dar errado em maio. Talvez seja a lua. Dizem que a lua
afeta o cérebro, não dizem, senhor?
Ele fitava-a mas não podia responder. Como todos os outros, quando se olhava para ela, ela parecia encolher-se e tornar-se insignificante, maliciosa e não confiável.
Ela esgueirou-se do lado dele e desapareceu.
Embora tivesse ido para seu quarto, ele não conseguiu nem tirar as roupas. Por longo tempo caminhou de um lado a outro, e depois, inclinando-se para fora da janela,fitou
a terra que jazia tão escura diante do azul mais pálido do céu. Com um misto de medo e ódio, olhou os esguios ciprestes negros ainda visíveis no jardim e escutou
os estalidos e chiados conhecidos que mostram que a terra estava quente. Todas essas visões e ruídos pareciam sinistros, hostis e agourentos; os nativos, a enfermeira,
o médico e a terrível força da própria doença pareciam estar conspirando contra ele. Pareciam unir-se no esforço de extrair a maior quantidade de sofrimento possível
dele.Terence não conseguia acostumar-se com a dor, era uma revelação para ele. Nunca entendera antes que por trás de toda ação, por trás da vida de todo dia, existe
a dor, quieta mas disposta a devorar; ele parecia capaz de ver o sofrimento como uma fogueira subindo em espirais sobre a borda de toda ação, devorando as vidas
de homens e mulheres. Pela primeira vez pensou com compreensão em palavras que antes tinham lhe parecido vazias; a luta pela vida; a dureza da vida. Agora sabia
pessoalmente que a vida é dura e cheia de sofrimento. Olhou as luzes espalhadas da cidade lá embaixo e pensou em Arthur e Susan,ou em Evelyn e Perrott aventurando-se
inadvertidamente,expondo-se,pela sua felicidade,a um sofrimento como aquele. Como se atreviam a amar-se, ficou imaginando.Como se atrevera ele próprio a viver como
tinha vivido,rapidamente e sem preocupação, passando de uma coisa a outra, amando Rachel como amara? Nunca mais se senti-ria seguro; nunca mais acreditaria na estabilidade
da vida,nem esqueceria que profundezas de dor jaziam debaixo da pequena felicidade e das sensações de contentamento e segurança. Parecia-lhe, quando recordava, que
sua felicidade nunca fora tão grande quanto era agora sua dor.Sempre houvera algo imperfeito na felicidade deles, algo que desejavam sem conseguir. Fora fragmentária
e incompleta porque eram tão jovens e não sabiam o que estavam fazendo.
A luz da sua vela bruxuleou sobre os ramos de uma árvore diante da janela e, quando o ramo balançou na escuridão, apareceu na mente dele a imagem de todo o mundoque
jazia fora da janela; pensou no imenso rio e na imensafloresta, nas vastas porções de terra seca e planuras de marque circundavam a terra; do mar o céu erguia-se
íngreme eenorme, e o ar inundava o espaço entre céu e mar. Como devia ser vasta e escura essa noite exposta ao vento; e em todo esse imenso espaço era estranho pensar
como erampoucas as cidades, e como eram pequenos os anéis de luz, ou vaga-lumes que imaginava espalhados aqui e ali, entreas pregas ondulantes e incultas da terra.
E nessas cidadeshavia homenzinhos e mulherezinhas, minúsculos. Ah, era absurdo, pensando nisso, sentar-se ali num quartinho, sofrendo e preocupando-se.O que importava
qualquer coisa? Rachel, uma criatura minúscula, deitada doente ali, abaixo dele, e ali no seu quartinho ele sofrendo por conta dela. Aproximidade e a pequenez de
seus corpos nesse vasto universo pareciam-lhe absurdas e ridículas. Nada importa, repetiu ele; não tinham poder nem esperança. Ele debruçouse no peitoril da janela
pensando, até quase esquecer o tempo e o lugar. Mesmo assim, embora estivesse convencido de que era absurdo e ridículo, de que eram pequenos e sem esperança, nunca
perdeu a sensação de que de alguma forma esses pensamentos eram parte de uma vida que ele e Rachel viveram juntos.
Talvez devido à mudança de médico, Rachel pareceu estar bastante melhor no dia seguinte. Embora Helen parecesse terrivelmente pálida e consumida, a nuvem que estivera
pairando todos aqueles dias sobre os olhos dela parecia erguer-se um pouco.
– Ela falou comigo – disse voluntariamente. – Perguntou que dia da semana era, e estava natural.
Depois, de repente, sem nenhum aviso ou razão aparente, as lágrimas vieram aos seus olhos e rolaram pelas suas faces. Ela chorava quase sem alteração nas feições,sem
tentar interromper-se, como se não soubesse que chorava. Apesar do alívio que as palavras dela lhe davam, Terence ficou consternado com a visão; então tudo cedera?
Não havia limites para o poder dessa enfermidade? Tudo iria ruir diante dela? Helen sempre lhe parecera forte e decidida, e agora parecia uma criança. Ele a pegou
nos braços e ela se agarrou a ele como uma criança, chorando quieta e mansamente sobre seu ombro. Depois controlou-se e enxugou as lágrimas;era uma bobagem portar-se
daquele jeito,disse.Muita bobagem, repetiu, quando não podia haver dúvidas de que Rachel estava melhor. Pediu a Terence que perdoasse sua tolice. Parou na porta,
voltou e beijou-o sem dizer nada.
Nesse dia realmente Rachel estava consciente do quese passava ao seu redor. Chegara à superfície daquelepoço escuro e visguento, e uma onda parecia balançá-lapara
cima e para baixo; ela cessara de ter qualquer vontade própria; deitava-se na crista da onda consciente dealguma dor, mas principalmente de fraqueza. A onda erasubstituída
por uma encosta de montanha. Seu corpotornou-se um floco de neve derretendo, sobre o qual seusjoelhos se erguiam em imensas montanhas nuas de ossosexpostos.Era verdade
que via Helen e via seu quarto,mastudo estava muito pálido e semitransparente. Às vezespodia ver através da parede a sua frente.Às vezes,quandoHelen saía, parecia
ir tão longe que os olhos de Rachelquase não a podiam seguir. O quarto também tinha umesquisito dom de expandir-se e, embora empurrasse suavoz o mais longe possível,
às vezes ela se tornava um pássaro e fugia, não sabia se jamais atingiria a pessoa comquem estava falando. Havia imensos intervalos ou lacunas,pois as coisas ainda
tinham poder de aparecer visíveisna sua frente, entre um momento e outro; às vezes levava uma hora para Helen erguer o braço, parando demoradamente entre cada movimento
brusco, e despejar remédio. O vulto de Helen inclinando-se para soerguê-la nacama parecia gigantesco, e baixava sobre ela como umteto que caía. Mas por um longo
espaço de tempo elaapenas ficava deitada consciente de seu corpo flutuandopor cima da cama, e sua mente recolhida num canto remoto do corpo, ou escapando e esvoaçando
pelo quarto.Todas as visões eram um esforço, mas a de Terence era o maior de todos, porque forçava Rachel a reunir mente ecorpo no desejo de recordar alguma coisa.
Não querialembrar; ficava perturbada quando as pessoas tentavaminterferir na sua solidão que ria estar sozinha. Não querianada mais no mundo.
Embora ela tivesse chorado, Terence observou queHelen tinha mais esperança, e sentiu algo parecido comtriunfo; na discordância entre eles, Helen dera o primeiro
sinal de que admitia estar errada. Ele esperou que oDr. Lesage descesse naquela tarde com considerável ansiedade, mas com a mesma certeza no fundo da mente de que
logo os forçaria todos a ver que estavam errados.
Como sempre, o Dr. Lesage era severo e muito lacônico em suas respostas. Diante da pergunta de Terence, “Ela parece melhor?” ele respondeu, olhando-o de um jeito
peculiar:
– Ela tem uma chance de viver.
A porta fechou-se e Terence caminhou até a janela.Encostou a testa na vidraça.
– Rachel – repetia para si mesmo. – Ela tem uma chance de viver. Rachel.
Como podiam ser ditas essas coisas de Rachel? Alguém ontem seriamente acreditara que Rachel estivesse morrendo? Estavam noivos há quatro semanas.Há 15 dias ela estava
perfeitamente bem. O que poderiam ter feito 15 dias para a levarem daquele estado aeste? Estava acima da capacidade dele entender o quequeriam dizer comentando que
ela tinha uma chance deviver, sabendo, como ele sabia, que estavam noivos.Virou-se, ainda envolvido na mesma névoa triste, e caminhou para a porta. De repente, ele
viu tudo. Viu oquarto, o jardim e as árvores movendo-se no ar, que podiam continuar sem ela; ela podia morrer. Pela primeiravez desde que ela adoecera, recordou
exatamente comoela se parecia e como gostavam um do outro. A intensafelicidade de senti-la perto misturava-se com uma ansiedade mais intensa do que a que já sentira.
Não podiadeixá-la morrer; não podia viver sem ela. Mas depois deuma luta momentânea, a cortina caiu de novo, e ele não via nem sentia nada claramente. Tudo continuava,
continuava ainda, do mesmo modo que antes. Exceto poruma dor física quando seu coração pulsava e pelo fato deque seus dedos estavam gelados, ele não percebia queestava
ansioso. Dentro de sua mente, parecia não sentirnada por Rachel ou qualquer outra pessoa ou coisa nomundo. Prosseguia dando ordens, combinando coisascom Mrs. Chailey,
escrevendo listas; de vez em quandosubia as escadas e sem ruído botava algo na mesa dianteda porta de Rachel. Naquela noite o Dr. Lesage pareciamenos severo do que
habitualmente. Voluntariamenteficou alguns minutos e, dirigindo-se a St. John e Terence igualmente, como se não recordasse qual dos dois eranoivo da moça, disse:
– Acho que esta noite o estado dela é muito grave.
Nenhum deles foi para a cama ou sugeriu que o outro fosse. Sentaram-se na sala montando guarda com a porta aberta. St. John arrumou uma cama no sofá, e quando estava
pronta insistiu com Terence para que se deitasse ali. Começaram a discutir a respeito de quem devia deitar-se no sofá ou sobre algumas cadeiras cobertas com mantas.
St. John finalmente persuadiu Terence a deitar-se no sofá.
– Não seja idiota, Terence. Se não dormir, você apenas vai ficar doente. Meu velho... – St. John começou e parou abruptamente, receando ser sentimental. Sentia que
estava à beira das lágrimas.
Começou a dizer o que estava querendo dizer há muitotempo,que tinha pena de Terence,que gostava dele,que gostava de Rachel. Ela saberia o quanto gostava dela? Disseraalguma
coisa, quem sabe perguntara? Ele estava muito ansioso por dizer isso, mas conteve-se pensando que afinal eraegoísmo; de que adiantava aborrecer Terence fazendo-o
falarnessas coisas? Ele já estava meio adormecido, mas St. Johnnão conseguiu dormir. Pensou, deitado no escuro, se ao me-nos alguma coisa acontecesse, se ao menos
essa tensão acabasse.Não se importava com o que acontecesse,desde que sedesfizesse a sucessão daqueles dias difíceis e tristes; não se importaria se ela morresse.
Sentia-se desleal por não se importar, mas parecia não ter mais sentimentos.
Toda a noite não houve chamado ou movimento, exceto o abrir e fechar da porta do quarto de dormir lá em cima uma vez. Aos poucos a luz voltou ao aposento desarrumado.
Às seis os criados começaram a mexer-se; às sete todos arrastaram-se para a cozinha lá embaixo; e meia hora depois, o dia recomeçou mais uma vez.
Mesmo assim não era igual aos dias que tinham passado antes, embora fosse difícil dizer em que consistia a diferença. Talvez parecessem estar todos esperando alguma
coisa. Havia certamente menos coisas a fazer do que de costume. Pessoas passavam pela sala – Mr. Flushing,Mr.e Mrs.Thornbury.Falavam em tom baixo como quem se desculpa,
recusavam sentar-se e ficavam de pé um tempo considerável, embora só pudessem dizer, “Há alguma coisa que se possa fazer?”, e não havia nada.
Sentindo-se estranham ente desligado de tudo aquilo,Terence recordou que Helen lhe dissera que, não importa
o que aconteça com a gente, é assim que as pessoas se portam. Estaria certa ou errada? Ele estava pouco interessado em saber. Punha as coisas de lado em sua mente,
como se outro dia fosse pensar nelas, não agora. A névoa da irrealidade ficava mais e mais densa, e por fim produziu uma sensação de embotamento em todo o seu corpo.Era
o seu corpo? E aquelas eram realmente suas mãos?
Naquela manhã também pela primeira vez Ridleyachou impossível sentar-se sozinho em seu quarto. Estavamuito desconfortável no térreo, e como não soubesse o queestava
acontecendo, estava o tempo todo estorvando. Masnão queria sair da sala. Inquieto demais para ler e semnada a fazer, começou a caminhar pela sala recitando poesia
num tom baixo. Ocupando-se de vários modos, oradesfazendo embrulhos, ora desarrolhando garrafas, ora escrevendo ordens, o som da canção de Ridley e a batida doseu
passo entravam na mente de Terence e de St. John na manhã toda como um estribilho mal compreendido.
Lutaram erguendo-se e lutaram abaixando-se,
Lutaram enfurecidos e quietos:
O demônio que cega os olhos dos homens,
Nessa noite fez sua vontade.
Como cervos exauridos, entre as ervas,
Tombaram algum tempo para repousar...
Ah, é insuportável! – exclamou Hirst, e depois controlou-se como se tivesse rompido um acordo. Terence arrastava-se escada acima repetidamente para ver se conseguia
notícias de Rachel, mas as únicas notícias eram muito fragmentárias; ela bebera alguma coisa; ela dormira um pouco; pareciamais calma. Da mesma maneira o Dr. Lesage
apegava-se apormenores,exceto uma vez,quando deu espontaneamente ainformação de que acabara de ser chamado para certificar,cortando uma veia no pulso, que uma velha
senhora de 85 anos estava morta.Tinha pavor de ser enterrada viva.
É um pavor – comentou ele – que geralmente vemos nos muito velhos e raramente nos jovens. – Ambos expressaram interesse pelo que estava contando; parecia-lhes muito
estranho. Outra coisa estranha naquele dia foi que todosesqueceram o almoço até bem tarde; então Mrs. Chailey osserviu, e também parecia estranha porque usava um
vestido estampado engomado, e suas mangas estavam enroladas atéacima dos cotovelos. Parecia porém tão esquecida de sua aparência como se tivesse sido acordada por
um alarme deincêndio à meia-noite, esquecendo sua reserva e compostura; falava com eles em tom bastante familiar, como se tivesse sido sua babá e os tivesse segurado
nus no colo. Ela lhesassegurou várias vezes que precisavam comer.
A tarde assim encurtada passou mais depressa do que esperavam. Uma vez Mrs. Flushing abriu a porta, masvendo-os fechou-a depressa; outra vez Helen desceupara apanhar
alguma coisa, mas parou quando deixou o quarto para ver uma carta que lhe fora endereçada. Paroupor um momento revirando-a, e a extraordinária e tristebeleza de
sua postura chocou Terence do modo como ascoisas o chocavam agora: como se algo tivesse de serposto de lado em sua mente, para ser pensado depois.Quase não falavam,
a discordância entre eles pareciasuspensa ou esquecida.
Agora que o sol da tarde deixara a fachada da casa,Ridley caminhava pelo terraço repetindo estrofes de um longo poema, numa voz contida mas subitamente sonora. Fragmentos
do poema entravam pela janela aberta sempre que ele passava.
Peor and Baalim
Forsake their Temples dim,
With that twice batter’d God of Palestine
And mooned Astaroth...
O som dessas palavras era estranhamente incômodo para os dois rapazes, mas tinham de suportá-la. Quando o anoitecer começou e a luz vermelha do crepúsculo rebrilhava
longe no mar, a mesma sensação de desesperoatacou Terence e St. John quando pensaram que o diaquase acabara e estava por vir outra noite. Uma luzacendendo-se depois
da outra na cidade lá embaixo produziu em Hirst uma repetição do seu terrível e repulsivodesejo de ter um colapso e soluçar. Então Chailey trouxelampiões. Explicou
que Maria, abrindo uma garrafa, foratão tola que cortara seu braço seriamente, mas que elapusera uma atadura; era ruim quando havia tanto trabalho a fazer. A própria
Chailey estava mancando por causa do reumatismo nos pés, mas parecia-lhe perda detempo dar atenção à carne indisciplinada de criados. Anoite avançava. O Dr. Lesage
chegou inesperadamente eficou lá em cima muito tempo. Desceu uma vez e bebeuuma xícara de café.
– Ela está muito doente – respondeu à pergunta de Ridley. A essa altura não parecia mais aborrecido, estava grave e formal, mas ao mesmo tempo cheio de consideração,
o que não tinha antes. Subiu outra vez. Os três homens sentaram-se juntos na sala de estar. Ridley agora estava bem quieto, e sua atenção parecia despertada.Exceto
por pequenos movimentos meio involuntários e exclamações logo controladas, estavam à espera, em silêncio absoluto. Era como se finalmente estivessem reunidos face
a face com algo definitivo.
Eram quase onze horas quando o Dr. Lesage apareceu na sala. Aproximou-se deles muito devagar e não falou logo.Primeiro olhou para Terence, e disse:
– Mr. Hewet, acho que agora o senhor deve subir.
Terence levantou-se imediatamente, deixando os demais sentados com o Dr. Lesage parado entre ambos, imóvel.
Chailey estava no corredor repetindo sem parar: – É uma maldade, é uma maldade...
Terence não lhe deu atenção; ouvia o que ela estava dizendo, mas não tinha sentido em sua mente. Subindo as escadas dizia para si mesmo:
– Isso não aconteceu comigo. Não é possível que isso tenha me acontecido.
Olhou curiosamente sua própria mão no corrimão. As escadas eram muito íngremes, e pareceu levar longo tempopara vencê-las. Em vez de sentir pungentemente como de-via.
Não sentia nada. Abrindo a porta, viu Helen sentada aolado da cama. Havia luzes veladas na mesa, e o quarto, embora parecesse cheio de muitíssimas coisas, estava
muitoarrumado. Havia um cheiro leve e não desagradável de desinfetantes. Helen ergueu-se e deu-lhe sua cadeira em silêncio. Quando passaram um pelo outro, seus olhos
encontraram-se num olhar peculiar, e ele espantou-se com a extraordinária clareza dos olhos dela, e a profunda calma etristeza que vinham deles. Terence sentou-se
ao lado dacama e um momento depois ouviu a porta fechar-se suavemente às suas costas. Estava sozinho com Rachel, e um leve reflexo do sentimento de alívio que costumavam
sentirquando ficavam juntos sozinhos apoderou-se dele. Olhoupara Rachel. Esperava ver nela alguma terrível mudança,mas não havia nenhuma.
Parecia muito magra, até onde ele podia ver muito cansada, mas era a mesma que sempre fora. Mais que isso,ela o via e o conhecia. Sorriu para ele e disse:
-Olá, Terence.
A cortina que fora baixada tanto tempo entre eles desapareceu imediatamente.
– Então, Rachel – respondeu ele na sua voz de sempre, e ela abriu bem os olhos e sorriu com seu sorriso conhecido. Ele a beijou e pegou sua mão.
– Tem sido tudo um terror sem você – disse ele.
Ela ainda o contemplava e sorria, mas logo uma leve expressão de fadiga ou perplexidade apareceu nos seus olhos, e ela os fechou de novo.
– Mas quando estamos juntos, somos perfeitamente felizes – disse ele, ainda segurando a mão dela.
Com a luz fraca era impossível detectar qualquer mudança no rosto de Rachel. Uma imensa sensação de pazdominou Terence,de modo que não queria mexer-se nemfalar.
A terrível tortura e irrealidade dos últimos dias tinham passado, e ele agora estava numa perfeita paz e certeza. Sua mente começou a trabalhar naturalmente de novo
e com grande leveza.Quanto mais ficava ali sentado,mais profundamente consciente estava da paz que invadiacada canto de sua alma. Uma vez susteve a respiração eescutou
atentamente; ela ainda respirava. Ele continuoualgum tempo pensando; pareciam estar pensando juntos;ele parecia ser Rachel e ele próprio; depois escutou denovo;
não, ela deixara de respirar. Tanto melhor – aquiloera a morte. Não era nada; era deixar de respirar. Era felicidade, era felicidade perfeita. Agora tinham o que
sempre quiseram ter, a união que fora impossível enquantoestavam vivos. Inconsciente de estar pensando ou pronunciando alto as palavras, ele disse:
– Nunca houve duas pessoas tão felizes como nós fomos. Ninguém amou como nós amamos.
Pareceu-lhe que sua completa união e felicidadeenchiam o quarto com círculos que se ampliavam cadavez mais. Ele não tinha nenhum desejo não realizadono mundo. Ambos
possuíam o que não lhes poderiaser tirado.
Ele não percebeu que alguém tinha entrado no quarto, mas sentiu, momentos ou horas depois, um braçoatrás dele.
Os braços estavam ao seu redor. Não queria ter braços ao seu redor, e as misteriosas vozes sussurrantes o incomodavam. Largou sobre a colcha a mão de Rachel, agora
fria, levantou-se de sua cadeira e foi até a janela. As janelas não tinham cortinas, e mostravam a lua e uma longa trilha prateada na superfície das ondas.
– Ora – disse ele no seu tom de voz normal –, olhem a lua. Há uma auréola ao redor da lua. Amanhã vai chover.
Os braços, fossem de homem ou mulher, estavam novamente ao redor dele; e o empurravam levemente paraa porta. Virou-se, caminhou firmemente à frente dosbraços, consciente
de que se divertia um pouquinho coma forma como as pessoas se portavam apenas porque alguém tinha morrido. Ele iria, se queriam isso, mas nadaque fizessem poderia
perturbar a sua felicidade.
Quando viu o corredor diante do quarto, e a mesa com as xícaras e os pratos, de repente entendeu que havia um mundo no qual nunca mais veria Rachel.
– Rachel! Rachel! – gritou ele, tentando empurrálas e voltar para ela. Mas impediram-no e empurraram-no pelo corredor, para um quarto longe dela. Noandar de baixo
puderam ouvir as batidas de seus pés no chão, enquanto lutava por libertar-se; duas vezes ouviram-no gritar:
– Rachel, Rachel!
26
Por mais duas ou três horas a lua despejou sua luz no arvazio. Sem nuvens que a impedissem, caía diretamente ejazia quase como geada sobre o mar e a terra. Durante
essashoras o silêncio não foi rompido, e o único movimento eracausado pelas árvores e ramos que se mexiam de leve, e depois as sombras jazendo sobre os espaços brancos
de terra também se mexeram. Nesse profundo silêncio apenas seouvia um som, o som de uma respiração leve mas contínua,que nunca cessava, embora nunca aumentasse nem
diminuísse. E continuou depois que os pássaros começaram avoar de ramo em ramo; podia ser ouvido atrás das primeiras notas agudas de suas vozes. E continuou todas
as horas,quando o Leste clareou, quando ficou vermelho e quandoum azul tênue tingiu o céu, mas quando o sol se levantouele cessou, dando lugar a outros sons.
Os primeiros que se ouviram foram gritos inarticulados, parecendo gritos de filhos dos muito pobres, gente que estava muito fraca ou sofrendo. Mas quando o sol subiu
acima do horizonte, o ar que estivera fino e pálido ficou cada vez mais rico e quente, e os sons da vida tornaram-se mais fortes, ousados e imperiosos. Aos poucos
a fumaça começou a subir em ondas sobre as casas, adensando-se lentamente até ficarem redondas e retas como colunas, e em vez de bater em cortinas pálidas e brancas,
o sol bateu em janelas escuras, atrás das quais havia profundidade e espaço.
O sol subira há muitas horas, e a grande cúpula de ar estava aquecida e cintilando com os finos fios dourados do sol, antes que qualquer pessoa se movesse no hotel.
O hotel postava-se, branco e maciço, na luz da manhã, meio adormecido com as persianas baixadas.
Por volta das nove e meia Miss Allan entrou no saguão e muito devagar caminhou até a mesa onde estavam os jornaisda manhã, mas não estendeu a mão para apanhar nenhum;ficou
parada quieta, pensando, com sua cabeça um poucoinclinada sobre os ombros. Parecia curiosamente velha, e pelo seu jeito, um pouco encolhida e muito sólida, podia-sever
como seria quando fosse realmente velha, como se sentaria dia após dia em sua cadeira olhando em frente placidamente. Outras pessoas começaram a entrar no saguão
e apassar por ela,mas ela não falou com ninguém nem as olhou;finalmente,como se fosse preciso dizer alguma coisa,sentouse numa cadeira e olhou quieta e fixamente
em frente.Sentia-se muito velha essa manhã, e também inútil, como se sua vida tivesse sido um fracasso, dura e trabalhosa, sem motivo algum. Não queria continuar
vivendo, mas sabia quecontinuaria viva. Era tão forte que ficaria muito velha.Provavelmente chegaria aos 80, e ainda tinha 50; portantotinha mais 30 anos para viver.
Revirou as mãos no colo econtemplou-as com interesse, suas velhas mãos, que tinhamtrabalhado tanto por ela. Não parecia haver muito sentidoem tudo aquilo; a gente
continuava, claro, a gente continuava... Ergueu os olhos e viu Mrs, Thornbury parada ao seulado com linhas na testa e lábios abertos como se fosse fazer uma pergunta.
Miss Allan antecipou-se:
– Sim. Ela morreu esta manhã bem cedo, por volta das três. Mrs. Thornbury deu uma pequena exclamação, apertou os lábios, e as lágrimas vieram aos seus olhos. Através
deles olhou o saguão, que agora estava cheio de grandes faixas de sol, grupos despreocupados de pessoas paradas ao lado das sólidas cadeiras e mesas. Pareciam-lhe
irreais, ou pessoas inconscientes de que vai acontecer uma grande explosão ao seu lado. Mas não houve explosão e continuaram paradas perto das cadeiras e mesas.
Mrs. Thornbury já não as via, mas, atravessando-as como se não tivessem substância, via a casa, as pessoas na casa, o quarto, a cama no quarto e a figura da morta
deitada inerte no escuro debaixo dos lençóis. Quase podia ver a morta. Quase podia escutar as vozes dos enlutados,
– Eles estavam esperando isso? – perguntou afinal.Miss Allan apenas pôde sacudir a cabeça.
– Não sei de nada – respondeu –, exceto o que a criadade Mrs. Flushing me contou. Ela morreu esta madrugada.
As duas mulheres entreolharam-se com um olhar calmo e significativo; sentindo-se estranhamente atordoada, eprocurando não sabia bem o quê, Mrs. Thornbury subiu asescadas
lentamente e caminhou em silêncio pelos corredores, tocando a parede com os dedos como se precisasse guiar-se. Camareiras passavam bruscas de quarto em quarto, mas
Mrs. Thornbury as evitou; quase nem as via; pareciam pertencer a outro mundo. Ela nem ergueu os olhosquando Evelyn a interpelou. Era evidente que Evelyn andara chorando
e, quando olhou para Mrs. Thornbury, começou a chorar de novo. Juntas meteram-se num nicho de janela e ficaram em silêncio. Finalmente formaram-se palavras fragmentadas
entre os soluços de Evelyn:
– Foi uma coisa tão perversa – soluçava ela –, tão
cruel... eles estavam tão felizes. Mrs. Thornbury dava-lhe palmadinhas no ombro.
– Parece duro... muito duro – disse ela, parando e olhando além da colina, para a villa dos Ambrose; as janelas estavam faiscando ao sol, e ela pensou em como a
alma damorta teria passado por aquelas janelas. Alguma coisa deixara o mundo. Parecia-lhe tão estranhamente vazio.
– Mas ainda assim, quanto mais velha se fica – continuou ela, os olhos recuperando mais do que seu brilho habitual –, mais certa se está de que há um motivo. Como
se poderia continuar, se não houvesse um motivo? Perguntava a alguém que não era Evelyn, cujos soluços estavam se acalmando.
– Tem de haver um motivo – disse ela. – Não pode ser tudo só um acidente. Pois foi um acidente... isso não precisava ter acontecido, nunca.
Mrs. Thornbury deu um suspiro profundo.
– Mas não devemos pensar assim – acrescentou –, vamos esperar que eles também não pensem assim. Não importa o que tivessem feito, acabaria assim. Essas doenças horríveis...
– Não há motivo... não acredito que haja motivo al-gum! – irrompeu Evelyn, baixando a persiana e deixando-a voltar com um pequeno salto.
– Por que essas coisas acontecem? Por que as pessoasdevem sofrer? Eu acredito sinceramente – continuou ela, baixando um pouco a voz – que Rachel está no céu, masTerence...
De que adianta tudo isso? – perguntou depois.Mrs. Thornbury sacudiu a cabeça um pouco, mas não respondeu, e apertando a mão de Evelyn seguiu pelocorredor. Impelida
por um forte desejo de escutar alguma coisa, embora não soubesse exatamente o que haviapara ouvir, ela ia para o quarto dos Flushing. Quandoabriu a porta deles,
sentiu que interrompera alguma discussão entre marido e mulher. Mrs. Flushing estava sentada de costas para a claridade, e Mr. Flushing estavaparado perto dela discutindo
e tentando persuadi-lade alguma coisa.
– Ah, aqui está Mrs. Thornbury – começou ele com algum alívio na voz. – Naturalmente a senhora já ouviu. Minha mulher sente-se responsável de alguma forma. Insistiu
com a pobre Miss Vinrace para que fosse à excursão. Tenho certeza de que vai concordar comigo que é muito irracional sentir isso. Nós nem sabemos... na verdade acho
muito improvável... que ela tenha apanhado lá sua enfermidade. Essas doenças... além disso, estava decidida a ir. Teria ido quer você pedisse quer não, Alice...
Não diga isso, Wilfrid – disse Mrs. Flushing, sem se mexer nem tirar os olhos do ponto no assoalho onde estavam pousados. – De que adianta falar? De que adianta...?
– ela calou-se.
Eu vinha perguntar – disse Mrs.Thornbury dirigindo-se a Wilfrid, pois não adiantava falar com sua mulher.
Há alguma coisa que o senhor acha que se poderia fazer? O pai dela chegou? Alguém poderia ir ver?
Naquele momento o desejo mais intenso dela era sercapaz ele fazer alguma coisa por aquelas pessoas infelizes – vê-las, tranqüilizá-las –, ajudá-las. Era horrível
estar tão longe delas. Mas Mr. Flushing sacudiu a cabeça;achava que agora não – mais tarde talvez alguém pudesse ajudar. Nisso Mrs. Flushing levantou-se rígida,
voltouas costas para eles e caminhou para o quarto de vestir.Enquanto caminhava podiam ver o peito dela erguendo-se e abaixando-se lentamente. Mas a sua dor era
silenciosa. Ela fechou a porta atrás de si.
Sozinha ela cerrou os punhos e começou a bater com eles no encosto de uma cadeira. Parecia um animal ferido. Odiava a morte; estava furiosa, indignada,ofendida com
a morte, como se ela fosse uma criatura viva. Recusava-se a entregar seus amigos à morte. Não se submeteria às trevas e ao nada. Começou a caminhar de um lado para
outro, punhos cerrados, sem tentar reter as lágrimas rápidas que corriam pelas suas faces.Sentou-se quieta por fim, mas não se conformava.Quando parou de chorar,
parecia obstinada e forte.
No quarto ao lado, enquanto isso, Wilfrid falava com Mrs.Thornbury com mais liberdade agora que sua esposa não estava ali.
– Isso é o pior nesses lugares – disse ele. – As pessoas se portam como se estivessem na Inglaterra, e não estão. Não duvido de que Miss Vinrace apanhou essa infecção
na própria villa. Provavelmente se expunha a muitos riscos que podiam ter-lhe passado essa doença.É absurdo dizer que ficou doente conosco.Se ele não estivesse sinceramente
triste por causa deles, estaria ofendido.
– Pepper me contou – prosseguiu – que saiu da casa porque os achava desleixados. Disse que nunca lavavam direito seus legumes. Pobre gente! É um preço terrível a
pagar. Mas é só o que vejo aqui, toda hora, toda hora... as pessoas parecem esquecer que essas coisas acontecem, e quando acontece, ficam surpresas.
Mrs. Thornbury concordou com ele que tinham sido muito pouco cuidadosos e que não havia motivo para pensar que a moça apanhara a febre na excursão;depois de falar
sobre outras coisas por algum tempo,ela o deixou e continuou tristemente pelo corredor até seu próprio quarto. Devia haver algum motivo para que essas coisas acontecessem,
pensou ao fechar a porta. Só que no começo não era fácil entender o que era.Parecia tão esquisito – tão inacreditável. Ora, há apenas três semanas – há apenas quinze
dias vira Rachel;quando fechava os olhos podia quase vê-la agora, a mocinha quieta e tímida que ia se casar. Pensou em tudo o que teria perdido se tivesse morrido
com a idade de Rachel, os filhos, a vida de casada, as inimagináveis profundezas e milagres que, olhando para trás, lhe pareciam ter estado com ela dia após dia,
ano após ano.A sensação de pasmo que tornara difícil pensar aos poucos cedia a uma sensação oposta; ela pensava muito rápida e claramente, e considerando todas as
suas experiências,tentava conferir-lhes uma espécie de ordem.Havia sem dúvida muito sofrimento, muita luta, mas de modo geral certamente um equilíbrio de felicidade
– certamente a ordem prevalecia. Nem as mortes de jovens eram as coisas mais tristes da vida, realmente – eles eram poupados de tanta coisa; ficavam com tanta coisa
intacta. Os mortos – ela evocou os que tinham morrido cedo, por acidente – eram belos; muitas vezes ela sonhava com os mortos.E um dia o próprio Terence passaria
a sentir... ela levantou-se e começou a caminhar inquieta pelo quarto.
Para uma mulher de sua idade, era muito inquieta,e para alguém com sua mente clara e rápida, estavainusitadamente perplexa. Não conseguia acalmar-secom nada, de
modo que ficou aliviada quando a portase abriu. Foi até seu marido, pegou-o nos braços, beijou-o com intensidade incomum, e quando se sentaram juntos começou a afagá-lo
e interrogá-lo como seele fosse um bebê, um bebê velho, cansado e briguento. Não lhe contou sobre a morte de Miss Vinrace, pois isso apenas o perturbaria, e ele
já estava aborrecido. Tentou descobrir por que ele estava tão inseguro. Política novamente? O que estava fazendo aquelagente medonha?
Passou a manhã toda discutindo política com seu marido, e aos poucos ficou profundamente interessada noque estavam dizendo. Mas volta e meia o que estavamdizendo
parecia-lhe estranhamente vazio de significado.
No almoço várias pessoas comentaram que os visitantes do hotel estavam começando a ir embora: havia cada dia menos gente. Havia só 40 pessoas no almoço, em vez das
60 de antes. Assim julgou a velha Mrs. Paley olhando em torno com seus olhos desbotados, quando se sentou à sua mesa junto da janela. Seu grupo em geral consistia
em Mr. Perrott e Arthur e Susan; hoje Evelyn também almoçava com eles.
Estava inusitadamente contida. Tendo notado que seus olhos estavam vermelhos e sabendo a razão, os outros esforçavam-se por manter entre si uma elaborada conversação.
Ela tolerou isso por alguns minutos; apoiando os dois cotovelos na mesa e deixando a sopa intocada exclamou de repente:
– Não sei como vocês se sentem, mas eu simplesmente não consigo pensar em outra coisa! Os cavalheiros murmuraram, compreensivos, e pareciam graves. Susan respondeu:
-Sim, não é realmente um horror? Quando se pensa em que moça simpática ela era... acabara de ficar noiva.isso não podia ter acontecido... parece trágico demais.
Ela olhou para Arthur, como se ele pudesse ajudá-la com algo mais adequado.
– Coisa muito dura – disse Arthur laconicamente. – Mas foi uma coisa muito tola de se fazer... subir aquele rio. – Ele balançava a cabeça. – Deviam ter sido mais
espertos. Não se pode esperar que damas inglesas andem de barco como nativos aclimatados. Eu pensei vagamente em avisá-los no chá naquele dia, quando estavam discutindo
o caso. Mas não adianta dizer esse tipo de coisa... só deixa as pessoas irritadas... e nunca faz diferença.
A velha Mrs. Paley, até ali satisfeita com sua sopa, nesse momento, levando a mão ao ouvido, mostrou que que-ria saber o que estavam dizendo.
– Tia Emma, a senhora ouviu, a pobre Miss Vinrace morreu da febre – informou Susan educadamente. Não podia falar alto em morte, nem com sua voz habitual, de modo
que Mrs. Paley não entendeu uma palavra. Arthur veio em socorro.
– Miss Vinrace está morta – disse ele com toda a clareza. Mrs. Paley apenas inclinou-se um pouco para ele e perguntou:
– Ãhn?
– Miss Vinrace está morta – repetiu ele. Só enrijecendo os músculos em torno da boca ele conseguia evitar de cair na risada, e forçou-se a repetir uma terceira vez:
– Miss Vinrace... ela morreu. Sem falar na dificuldade de escutar as palavras certas,os fatos que estavam fora de sua experiência cotidiana levavam algum tempo para
chegar à consciência de Mrs.Paley. Parecia haver um peso sobre seu cérebro, impedindo, embora não prejudicando, seu funcionamento. Ela sentou-se de olhos vagos por
ao menos um minuto antes de entender o que Arthur queria dizer.
– Morta? – disse vagamente. – Miss Vinrace morta? Meu Deus... isso é muito triste. Mas não lembro absolutamente qual delas era ela. Parece que conhecemos tantagente
nova aqui. – Olhou para Susan procurando ajuda. –Uma moça morena e alta, quase bonita, bastante morena?
– Não – disse Susan. – Ela era... – então desistiu, desesperada. Não adiantava explicar que Mrs. Paley estava pensando na pessoa errada.
– Ela não devia ter morrido – continuou Mrs. Paley.
– Parecia tão forte. Mas as pessoas ficam bebendo essa água. Nunca entendo por quê. Parece uma coisa tão simples dizer-lhes que botem uma garrafa de água mineral
no quarto. É só esse cuidado que eu tomo, e estive em toda parte do mundo, posso dizer... mais de uma dúzia de vezes na Itália... mas gente jovem sempre acha que
sabe mais e depois paga o preço. Pobrezinha... sinto muito por ela. – Mas a dificuldade de espiar um prato de batatas e servir-se de um bocado agora concentrava
sua atenção.Arthur e Susan secretamente esperavam que o tema fosse abandonado, pois parecia haver algo desagradável nessadiscussão. Mas Evelyn não estava disposta
a esquecê-lo. Porque as pessoas nunca falavam das coisas importantes?
– Eu acho que o senhor não liga a mínima! – disse ela virando-se bruscamente para Mr. Perrott que estivera todo o tempo sentado quieto.
– Eu? Ah, sim, eu ligo – respondeu ele desajeitado,mas com evidente sinceridade. As perguntas de Evelyn o deixavam com uma sensação de desconforto.
– Parece tão inexplicável – continuou Evelyn. – Quero dizer, a morte. Por que ela teve que morrer, e não eu ou você? Faz apenas 15 dias estava aqui conosco. Em que
você acredita? – perguntou a Mr. Perrott. – Acredita que as coisas continuam, que ela estará em algum lugar... ou acha que é tudo apenas um jogo... e que quando
morremos nos transformamos em nada? Estou certa de que Rachel não morreu.
Mr. Perrott teria dito quase tudo que Evelyn queria dele, mas afirmar que acreditava na imortalidade da alma estava além de suas forças. Ficou sentado quieto, mais
enrugado do que de costume, esfarelando seu pão.
Pensando que Evelyn agora lhe perguntaria em que ele acreditava, depois de uma pausa equivalente a um ponto final, Arthur começou um tópico inteiramente diferente.
Supondo que um homem escrevesse e lhe dissesse que quer cinco libras porque conheceu seu avô, o que você faria? Foi assim. Meu avô...
Inventou um tipo de fogão – disse Evelyn. – Sei tudo sobre isso. Tínhamos um na estufa, para aquecer as plantas.
Nem sabia que eu era tão famoso – disse Arthurdeterminado a elaborar a qualquer custo aquela história.
Bem,o velho,um dos melhores inventores do seu tempo e também bom advogado, morreu como de costume,sem testamento. Fielding, seu empregado, afirma sempre, não sei
com que direito, que meu avô queria fazeralgo por ele. O pobre velhote tenta alguns inventos seus,vive em Penge, em cima de uma tabacaria. Já o visitei lá.A questão
é... devo negar isso ou não? O que diz o espírito abstrato da justiça. Perrott? Lembre, eu mesmo nãofui beneficiado com um testamento de meu avô, nem tenho como
conferir a veracidade dessa história.
– Não sei muita coisa sobre o espírito abstrato da justiça – disse Susan sorrindo complacente para os demais. – Mas estou certa de uma coisa... ele vai ganhar suas
cinco libras!
Mr. Perrott passou a dar sua opinião, e Evelyn insistiu em que ele era escrupuloso demais, como todos osadvogados, pensando na letra e não no espírito, enquanto
Mrs. Paley pedia para ficar informada, entre os pratos,sobre o que todos estavam dizendo. O almoço passousem um intervalo de silêncio, e Arthur parabenizou-sepelo
tato com que conseguira abrandar a discussão.
Quando deixavam a sala, a cadeira de rodas de Mrs. Paley por acaso bateu nos Elliot, que estavam entrando. Interrompidos por um momento, Arthur e Susan estimaram
a melhora de Hughling ElIiot – ele estava no térreo pela primeira vez, ainda com ar cadavérico –,e Mr. Perrott aproveitou para dizer algumas palavras em particular
a Evelyn.
– Haveria oportunidade de vê-la esta tarde,por volta detrês e meia, digamos? Estarei no jardim, junto da fonte.
O grupo dissolveu-se antes de Evelyn responder.Mas quando os deixou no saguão, ela o encarou vivamente e disse:
– O senhor disse três e meia? Para mim está bem.
Correu para cima, na exaltação espiritual e animaçãoque a perspectiva de uma cena emocional sempre despertava nela. Não tinha dúvida de que Mr. Perrott a pediriaem
casamento novamente,e sabia que nessa ocasião deviaestar preparada para uma resposta definitiva, pois partiriadentro de três dias. Mas não conseguia decidir-se.
Era muito difícil,pois tinha um desgosto natural por qualquercoisa final e definitiva; gostava de continuar, em frente...sempre, sempre. Estava indo embora, por
isso estendia asroupas lado a lado sobre a cama. Observou que algumasestavam muito velhas. Pegou uma foto de seus pais, e antesde guardá-la na caixa segurou-a por
um minuto. Rachelolhara aquele retrato. De repente a pungente sensação dapersonalidade de alguém, que às vezes continua preservadanas coisas que possuiu ou manuseou,
dominou-a; sentiuRachel com ela no quarto; era como se estivesse num navio no mar, e a vida cotidiana fosse tão irreal como a paisagemna distância. Mas aos poucos
a sensação da presença deRachel se foi, e não conseguia mais percebê-la, pois mal aconhecera. Mas aquela sensação momentânea a deixou deprimida e cansada. O que
tinha feito de sua vida? Que futuro havia à sua frente? O que era faz-de-conta, o que era real?Essas propostas, alusões e aventuras eram reais, ou a satisfação que
vira nos rostos de Susan e Rachel era mais real doque qualquer coisa que ela própria jamais sentira?
Preparou-se para descer, meio distraída, mas seus dedosestavam tão bem treinados que faziam o trabalho quase sozinhos. Quando estava realmente descendo as escadas
o sangue começou a circular por seu corpo também por suaprópria conta, pois sua mente estava muito embotada.
Mr. Perrott a aguardava. Na verdade, depois do almoço descera direto para o jardim e estivera andando de um lado para outro no caminho mais de meia hora, num estado
de tensão aguda.
– Estou atrasada como sempre – exclamou ela ao vê-la.
– Bem, tem de me perdoar; eu tinha de fazer as malas...
Verdade! Parece que vai haver tempestade! E aquilo é umnovo vapor na baía, não é? – Ela olhava a baía onde um vapor lançara âncora, com fumaça ainda pairando sobre
ele,enquanto um tremor negro e rápido percorria as ondas. –Dá até para esquecer como é a chuva.
Mas Mr. Perrott não prestava atenção no vapor ou no tempo.
– Miss Murgatroyd – começou com seu formalismo habitual –, eu lhe pedi que viesse até aqui por um motivo muito egoísta, receio. Não creio que precise certificar-se
mais uma vez dos meus sentimentos; mas como está indo embora em breve, senti que não poderia deixá-la ir sem perguntar-lhe... tenho algum motivo para ter esperança
de que venha a gostar de mim?
Ele estava muito pálido e parecia incapaz de dizer mais alguma coisa.
O pequeno jorro de vitalidade que entrara em Evelyn quando correra escadas abaixo já se fora, e ela sentia-se impotente. Não havia nada a dizer; ela não sentia nada.Agora
que ele realmente a estava pedindo em casamento,nas suas palavras gentis de pessoa idosa, ela sentia por ele ainda menos do que antes.
– Vamos sentar e conversar a respeito – disse, bastante insegura.
Mr. Perrott seguiu-a até um banco verde recurvado debaixo de uma árvore. Olharam a fonte à sua frente, que há muito deixara de jorra. Evelyn ficava olhando a fonte
em vez de pensar no que ia dizer; a fonte sem água parecia símbolo de sua própria vida.
– Naturalmente eu gosto do senhor – começou, falando muito depressa. – Eu seria grosseira se não gostasse. Acho que o senhor é uma das pessoas mais simpáticas que
já conheci, e uma das melhores também.Mas eu queria... queria que não gostasse de mim desse jeito. Tem certeza do que sente? – Naquele momento ela desejou sinceramente
que ele dissesse não.
– Toda a certeza – disse Mr. Perrott.
– Sabe, não sou tão simples como a maioria das mulheres – continuou Evelyn. – Acho que eu quero mais.Não sei direito o que sinto.Ele sentava-se junto dela. contemplando-a,
sem dizer nada.
– Às vezes acho que não está em mim gostar muito de uma pessoa só. Alguma outra pessoa seria muito melhor esposa para o senhor. Posso imaginá-lo muito feliz com
outra mulher.
– Se acha que há alguma chance de que um dia venha a gostar de mim, ficarei bem contente em esperar – disse Mr. Perrott.
– Bem... não há pressa, há?- disse Evelyn. – Digamos que vou pensar em tudo e lhe escrevo dizendo tudo quando voltar? Estou indo a Moscou; vouescrever de Moscou.
Mas Mr. Perrott insistia.
– A senhorita não pode me dar nenhuma idéia? Não peço uma data... isso seria pouco sensato. – Ele parou,olhando para a trilha de cascalho.Como ela não respondesse
logo, ele prosseguiu.
– Sei muito bem que não sou... que não tenhomuito a oferecer-lhe em mim mesmo, ou em minhas circunstâncias. E esqueço que isso tudo não pode parecer para a senhorita
o mesmo milagre que parece amim. Até conhecê-la eu tinha seguido meu caminhomuito quieto... somos os dois gente muito quieta, minha irmã e eu... bem contente com
minha sorte. Minha amizade com Arthur era a coisa mais importante na minha vida. Agora que a conheci, tudo issomudou. A senhorita parece colocar tanto espírito emtodas
as coisas. A vida parece conter tantas possibilidades com que eu jamais sonhei.
– Isso é esplêndido! – exclamou Evelyn agarrando a mão dele. – Agora o senhor vai voltar e começartoda a sorte de coisas, e fazer um nome importanteno mundo; e vamos
continuar sendo amigos, nãoimporta o que venha a acontecer... seremos grandesamigos, não?
– Evelyn! – murmurou ele de repente, tomando-a nos braços e beijando-a. Ela não se aborreceu, embora lhe causasse pouca impressão.Quando se endireitou de novo, ela
disse:
– Não vejo por que não continuarmos amigos...embora algumas pessoas não entendam. E amizades fazem grande diferença não fazem? São o tipo da coisa que é importante
na vida, não é? Ele a encarava com uma expressão desnorteadacomo se não entendesse de verdade o que dizia. Comconsiderável esforço ele controlou-se, ergueu-se e
disse:
– Agora acho que lhe disse o que sinto,e apenas acrescentarei que posso esperar o tempo que você quiser.
Sozinha, Evelyn andou de um lado para outro no caminho. O que então era importante? O que significava tudo aquilo?
27
Toda aquela noite as nuvens se acumularam até se fecharem inteiramente sobre o azul do céu. Pareciam estreitar o espaço entre terra e céu, de modo que não havia
espaço como o ar circular livremente; as ondas também estavam achatadas e rígidas como se estivessem sendo contidas. As folhas nos arbustos e árvores no jardim estavam
bem juntas, e a sensação de pressão e contenção era aumentada pelos breves sons de gorjeios que vinham de insetos e aves.
Tão estranhas eram as luzes e o silêncio, que o agitado burburinho de vozes que habitualmente enchia a sala de jantar à hora das refeições tinham lacunas bem nítidas,
e durante esses silêncios o tilintar de facas em pratos se tornava audível. O primeiro rufo do trovão e a primeira gota pesadaatingindo a vidraça causaram um pequeno
movimento.
– Está chegando! – disseram simultaneamente em muitas línguas diferentes.
Então houve um silêncio profundo, como se o trovão tivesse se recolhido sobre si mesmo. As pessoas começavam a comer outra vez quando um sopro de ar frio atravessou
as janelas abertas erguendo toalhas de mesa e saias,uma luz lampejou seguida imediatamente pelo estouro de um trovão bem acima do hotel. A chuva veio com ele, chiando
forte, e imediatamente houve todos aqueles sons de janelas sendo fechadas e portas batendo violentamente, que acompanham uma tempestade.
De repente o aposento ficou bem mais escuro, pois ovento parecia trazer ondas de escuridão sobre a terra.Ninguém tentou comer por algum tempo, e ficaram sentados
olhando para o jardim lá fora, com os garfos no ar.Agora só relâmpagos eram freqüentes, iluminando os rostos como se fossem fotografados, surpreendendo-os emexpressões
tensas e nada naturais. O estouro seguia logo depois, violento. Várias mulheres meio que se levantavamde suas cadeiras e sentavam-se outra vez, mas o jantar continuou,
inseguro, com olhos no jardim. Os arbustos estavam desgrenhados e esbranquiçados, e o vento os pressionava tanto que pareciam inclinar-se para o chão. Os garçons
tinham de chamar a atenção dos que jantavam para ospratos; e os que jantavam tinham de chamar a atenção dosgarçons, pois estavam todos absortos olhando a tempestade.
Como o trovejar não mostrasse sinais de afastar-se, masparecia compacto exatamente acima deles, e os relâmpagoscaíssem direto no jardim todas as vezes, uma sensação
dedesconfortável melancolia substituiu a primeira excitação.
Terminando muito depressa sua refeição, as pessoas reuniram-se no saguão onde se sentiam mais seguras elo queem qualquer outro lugar, porque podiam afastar-se das
janelas, e embora ouvissem o trovão, não podiam ver nada. Ummenininho foi levado ela dali nos braços da mãe, soluçando.
Enquanto a tempestade continuava, ninguém parecia querer sentar-se, mas reuniram-se em pequenos grupos debaixo da clarabóia central, onde ficaram numa atmosfera
amarela, olhando para cima. Volta e meia seus rostos ficavam brancos quando o relâmpago brilhava, e finalmente vinha um estouro terrível fazendo as vidraças da clarabóia
erguerem-se nos caixilhos.
– Ah! – exclamavam várias vozes ao mesmo tempo.
– Alguma coisa foi atingida – disse uma voz de homem.A chuva desabou. Agora a chuva parecia extinguir os relâmpagos e os trovões, e o saguão ficou quase escuro.
Depois de um ou dois minutos em que nada se ouvia senão o bater da água contra as vidraças,houve uma diminuiçãosensível do som e finalmente a atmosfera ficou mais
clara.
– Passou – disse outra voz.
Imediatamente todas as luzes elétricas foram acesas e revelaram um grupo de pessoas todas de pé, todas erguendo rostos bastante tensos para a clarabóia, mas quando
se viram na luz artificial, viraram-se imediatamente e começaram a se afastar. Por alguns minutos a chuva continuou martelando na clarabóia e os trovões deram mais
uma ou duas sacudidas; era evidente pela claridade e pelo tamborilar agora leve da chuva no telhado que o grande oceano confuso de ar viajava para longe deles, passando
sobre suas cabeças, bem alto, com suas nuvens e suas varas de fogo, em direção do mar. O edifício, que parecera tão pequeno no tumulto da tempestade, ficou equilibrado
e espaçoso como sempre.
Quando a tempestade se afastou, as pessoas no saguãodo hotel sentaram-se; e com uma confortável sensação de alívio, começaram a contar histórias sobre grandes temporais,
o que constituiu a grande distração da noite.
O tabuleiro de xadrez foi trazido, e Mr.Elliot, que usava um cachecol em vez de um colarinho em sinal de sua convalescença, mas que de estava bastante normal,desafiou
Mr. Pepper para um torneio final. Ao redor deles juntou-se um grupo de damas com peças de bordado.Ou na falta de bordado, com romances, para supervisionar o jogo,
como estivessem cuidando de dois menininhos que jogavam bola de gude. De vez em quandoolhavam o tabuleiro e faziam algum comentário animador para os cavalheiros.
Mrs. Paley estava logo adiante, com cartas arrumadas em longas fileiras à sua frente,e Susan sentada perto dela,para acompanhar sem corrigir, e os homens de negócios
e várias pessoas cujos nomes ninguém conhecia estendiamse em suas poltronas com jornais no colo. A conversa nessas circunstâncias era muito leve,fragmentária e intermitente,
mas o salão estava cheio da indescritível agitação da vida. De vez em quando a mariposa que agora era de asas cinzentas e corpo lustroso zumbia sobre as cabeças
deles e batia na lâmpada com um baque.
Uma jovem largou seu bordado e exclamou:
– Pobre criatura! Seria melhor matá-la. – Mas ninguém parecia, disposto a levantar-se e matar a mariposa. Viam-na disparar de lâmpada a lâmpada porque estavam confortáveis
e não tinham nada a fazer.
No sofá ao lado dos jogadores de xadrez, Mrs. Elliotensinava um um novo ponto de tricô a Mrs. Thornbury,de modo que suas cabeças ficaram muito juntas, e só sedistinguiam
pela velha touca de renda que Mrs. Thornbury usava à noite. Mrs. Elliot era perita em tricô,e recebeu com evidente orgulho um elogio por isso.
– Acho que todas temos orgulho de alguma coisa –disse –, e eu tenho orgulho do meu tricô. Acho que issoé de família. Todas nós tricotamos muito bem. Tive um tio
que tricotou suas próprias meias até a morte... e faziaisso melhor do que qualquer de suas filhas, o queridovelho. Mas admiro-me de que você, Miss Allan, que usatanto
seus olhos, não pegue um tricô de noite. Sentiriaum tal alívio,eu diria...um taldescanso para os olhos...eas feiras de caridade apreciam tanto essas coisas. – Suavoz
caiu no tom brando meio consciente de uma tricotadeira perita; as palavras fluíam suavemente. – Por mais que eu faça, sempre tenho onde aproveitá-lo, o que é umconforto,
pois assim sinto que não estou desperdiçando meu tempo...
Abordada assim, Miss Allan fechou seu romance e observou as outras placidamente por algum tempo.Finalmente disse:
– Certamente não é natural deixar sua esposa porqueela esta apaixonada por você. Mas isso... até onde entendo... é o que o cavalheiro da minha história vai fazer.
– Ts, ts, isso não soa nada bem... não, nada natural – murmuraram as tricotadeiras em suas vozes absortas.
Mas é mesmo assim o tipo de livro que as pessoasconsideram muito inteligente – acrescentou Miss Allan.
Maternidade... de Michael Jessop, presumo – interveio Mr. Elliot, pois nunca resistia a tentação de falar enquanto jogava xadrez.
Sabe – disse Mrs. Elliot um momento depois –, nãoacho que as pessoas hoje em dia escrevam bons romances... não tão bons como costumavam ser, de qualquer modo.
Ninguém se deu ao trabalho de concordar ou discordar. Arthur Venning, que andava por ali, às vezes dando uma olhada no jogo, às vezes lendo uma página de revista,
agora olhou Miss Allan, que estava quase adormecida, e disse brincando:
– Uma moeda pelos seus pensamentos, Miss Allan.
Os outros ergueram os olhos. Ficaram contentes por não ter falado com eles. Mas Miss Allan respondeu sem hesitação:
– Eu estava pensando no meu tio imaginário. Todo mundo não tem um tio imaginário? continuou ela. – Eu tenho um... um velho cavalheiro absolutamente encantador. Está
sempre me dando coisas. Às vezes é um relógio de ouro; às vezes uma carruagem e uma parelha; às vezes um lindo cottage na New Forest; às vezes uma passagem para
o lugar que mais quero ver.
Todos ficaram pensando vagamente nas coisas que desejavam. Mrs. Elliot sabia exatamente o que queria:queria um filho, e aquela ruguinha habitual acentuouse na sua
fronte.
– Somos pessoas de tanta sorte – disse ela olhando
o marido. – Nós realmente não temos desejos. – Dizia isso em parte para convencer-se, em parte para convencer outras pessoas. Mas a entrada de Mr. e Mrs.Flushing
a impediu de imaginar até onde ia sua convicção; eles vieram pelo saguão e pararam junto dotabuleiro de xadrez. Mrs. Flushing parecia mais desorientada do que nunca.
Uma grande madeixa de cabelo preto caía sobre sua testa, as faces estavam pintadascom vermelho escuro e gotas de chuva depunhammanchinhas sobre elas.
Mr. Flushing comentou que estiveram no telhado olhando a tempestade.
– Foi uma vista magnífica – disse. – Os relâmpagos iamaté o mar iluminando as ondas e os navios bem longe. Nãoimaginam como as montanhas também estavam lindas, com
aquelas luzes e grandes massas de sombra.Tudo acabou agora.Ele deslizou para dentro de uma poltrona, interessado na luta final do jogo.
– E vão partir amanhã? – disse Mrs.Thornbury olhando Mrs. Flushing.
– Sim – respondeu ela.
– Na verdade não se lamenta partir – disse Mrs. Elliot,assumindo um ar de ansiedade tristonha – depois de toda essa doença.
– A senhora tem medo de morrer? – perguntou Mrs.Flushing, sarcástica.
– Acho que todos temos medo disso – disse Mrs. Elliot, com dignidade.
– Eu acho que nesse assunto todos somos covardes – disse Mrs. Flushing, esfregando a face no encosto da cadeira. – Estou certa de que eu sou.
– Nem um pouquinho! – disse Mr. Flushing virandose, pois Mr. Pepper levava muito tempo pensando na sua jogada. – Não é covardia querer viver, Alice. É o reverso
da covardia. Pessoalmente, eu gostaria de viver 100 anos...desde que, é claro, com pleno uso de minhas faculdades.Pense em todas as coisas que estão por acontecer?
– É isso que eu sinto – concordou Mrs. Thornbury. – As mudanças, as melhorias, as invenções... e a beleza. Sabem, às vezes sinto que não suportaria morrer e deixar
de ver as coisas lindas ao meu redor.
– Certamente seria muito aborrecido morrer antes de descobrirem se existe vida em Marte – acrescentou Miss Allan.
– A senhora realmente acredita que há vida em Marte? – perguntou Mrs. Flushing, agora virando-se pela primeiravez com vivo interesse para ela. – Quem lhe diz isso?
Alguém que sabe? Conhece um homem chamado... ?Aqui Mrs. Thornbury largou seu tricô, e uma expressão de extrema solicitude apareceu em seus olhos.
– Aqui está Mr. Hirst – disse ela calmamente. St. Johnacabava de entrar pela porta. Estava bastante desgrenhadopelo vento, suas faces terrivelmente pálidas, encovadas
e coma barba por fazer. Depois de tirar o casaco ele ia passar diretopelo saguão para subir até seu quarto, mas não podia ignorara presença de tantas pessoas conhecidas,especialmen
te quando Mrs. Thornbury se ergueu e foi até ele, estendendo-lhe amão. Mas o choque do aposento iluminado e quente, com avista de tantos seres humanos alegres sentados
juntos à vontade, depois da caminhada na chuva, no escuro, e os longosdias de tensão e horror, dominaram-no completamente.Ele viu Mrs.Thornbury e não conseguiu falar.
Todo mundo estava calado. A mão de Mr. Pepper pairava sobre o seu cavalo.
Mrs. Thornbury conduziu Hirst até uma cadeira,sentou-se ao lado dele, e com lágrimas nos olhos disse com doçura:
– O senhor fez tudo pelo seu amigo.
Sua ação os fez voltar a falar como se nunca tivessem parado, e Mr. Pepper concluiu a jogada com seu cavalo.
– Não havia nada a fazer – disse St. John, falando muito devagar. – Parece impossível...Ele passou a mão sobre os olhos como se um sonho se interpusesse entre ele
e os outros, impedindo-o de ver onde estava.
– Aquele pobre rapaz – disse Mrs. Thornbury, com lágrimas rolando pelas faces.
– Impossível – repetiu St. John.
– Ele teve o consolo de saber...? – comentou muito de leve Mrs. Thornbury.
Mas St. John não respondeu. Ele deitou-se na sua poltrona, vagamente divisando os outros, vagamente ouvindo o que diziam. Estava terrivelmente cansado,e a luz e
o calor, os movimentos das mãos, as brandas vozes comunicativas o acalmaram; davam-lhe uma estranha sensação de quietude e alívio. Sentado ali,imóvel, essa sensação
tornou-se uma profunda felicidade. Sem qualquer sentimento de deslealdade com Terence e Rachel, ele cessou de pensar nos dois. Os movimentos e vozes pareciam juntar-se,
vindos de diferentes partes da sala, e combinar-se num padrão diante dos olhos dele; estava contente por sentar-se ali em silêncio observando esse desenho formar-se,
olhando para aquilo que quase nem via.
O jogo era realmente bom, e Mr. Pepper e Mr. Elliotestavam cada vez mais empenhados. Mrs. Thornbury,vendo que St. John não queria falar, voltou ao seu tricô.
– Relâmpagos de novo! – exclamou Mrs. Flushing derepente.Uma luz amarela lampejou diante da janela azul,e por um segundo viram as árvores verdes lá fora. Ela foiaté
a porta, abriu-a e parou em meio ao relento.
Mas a luz era apenas um reflexo da tempestade que acabara. A chuva cessara, as nuvens pesadas foram sopradas dali e o ar estava fino e claro,embora névoas vaporosasestivessem
sendo impelidas rapidamente diante da luz. Océu era mais uma vez de um azul profundo e solene, e aforma da terra era visível no fundo enorme, escura, sólida, arqueando-se
na massa pontiaguda da montanha, aqui eali com as minúsculas luzes das villas nas encostas. O ar quesoprava,o rumorejar das árvores,a luz que lampejava aqui e aliespalhando
uma vasta claridade sobre a terra encheram Mrs.Flushing de exultação. Seu peito erguia-se e descia.
– Esplêndido! Esplêndido! – murmurava. Depois vi-rou-se para o saguão e exclamou numa voz imperiosa: – Venha aqui ver,Wilfrid. É maravilhoso.
Alguns moveram-se vagamente; alguns se levantaram;alguns largaram suas bolas de lã e começaram a inclinarse para apanhá-las.
Para a cama... para a cama – disse Miss Allan.
Foi a jogada com a sua rainha que o entregou, Pepper – exclamou Mr. Elliot triunfante, juntando as peças com a mão e levantando-se. Ganhara o jogo.
– O quê? Pepper finalmente derrotado? Parabéns! – disse Arthur Venning, que empurrava a cadeira de rodas da velha Mrs. Paley para a cama.
Todas essas vozes soaram gratas aos ouvidos de St.John deitado meio adormecido, mas vivamente consciente de tudo ao seu redor. Diante de seus olhos passava uma procissão
de objetos, pretos e indistintos, figuras de pessoas apanhando seus livros, suas cartas, seus novelos de lã,seus cestos de trabalho; e passando por ele, uma após a outra, iam para a cama.Ela pensava exatamente nessa questão, calculando as cifras,sentada na sua cadeira de rodas com uma mesa coberta de cartas ao lado. O baralho de paciência estava bastante misturado, e ela não queria chamar Susan para ajudar, pois Susan parecia ocupada com Arthur.
“Ela tem todo o direito de esperar um belo presente de mim, claro”, pensava Mrs. Paley, olhando vagamente o leopardo empalhado nas patas traseiras, “e não tenho
dúvida de que espera mesmo! Todo mundo gosta de dinheiro.Os jovens são muito egoístas. Se eu fosse morrer, ninguém sentiria minha falta, só Dakyns, e ela se consolaria
com meu testamento! Mas não tenho motivos para me queixar... Ainda posso me divertir. Não sou fardo para ninguém... Gosto bastante de muitas coisas, apesar das minhas
pernas.”
Mas, estando um pouquinho deprimida, passou a pensar nas únicas pessoas que conhecera que não lhe tinhamparecido egoístas nem ávidas por dinheiro, que lhe tinhamparecido
de alguma forma mais refinadas do que o geral;pessoas, reconheceu de boa vontade, que eram mais finasdo que ela mesma. Havia somente duas. Uma era seu irmão, que
se afogara diante de seus olhos, outra uma mocinha, sua maior amiga, que morrera dando à luz o primeirofilho. Essas coisas tinham acontecido há uns 50 anos.
“Eles não deviam ter morrido”, pensou. “Mas morreram, e nós, velhas criaturas egoístas, continuamos aqui.”As lágrimas lhe vieram aos olhos; sentia uma verdadeira
saudade deles, uma espécie de respeito por sua juventude e beleza, e uma espécie de vergonha de si mesma; mas as lágrimas não caíram; ela abriu um daqueles inumeráveis
romances que costumava julgar bons ou ruins, ou bastante medíocres ou realmente maravilhosos. “Não sei como é que as pessoas imaginam coisas assim” costumava dizer,tirando
seus óculos e erguendo seus velhos olhos desbotados, que começavam a adquirir círculos esbranquiçados.
Logo atrás do leopardo empalhado Mr. Elliot jogava xadrez com Mr. Pepper. Naturalmente estava sendo derrotado, pois Mr. Pepper quase não tirava os olhos do tabuleiro,
e Mr. Elliot ficava recostado para trás na cadeira fazendo comentários com um cavalheiro que chegara na noite anterior, um homem alto e bonito, a cabeça parecendo
a de um intelectual. Depois de alguns poucos comentários de natureza geral, estavam descobrindo que conheciam algumas pessoas em comum, o que ficara óbvio desde
que se tinham visto, pela sua própria aparência.
Ah, sim, o velho Truefit – disse Mr. Elliot. – Tem um filho em Oxford. Muitas vezes me hospedei com eles. Umalinda velha casa no estilo jacobino. Uns Greuzes muito
bonitos... uma ou duas pinturas holandesas que o velho guardava nos porões. Também havia pilhas e mais pilhas de gravuras. Ah, a sujeira daquela casa! Ele era um
avarento,você sabe. O rapaz casou-se com uma filha de Lord Pinwells.Também os conheço.A mania de colecionar ten-de a repetir-se nas famílias. Esse homem coleciona
fivelas...devem ser fivelas de sapatos masculinos, usados entre 1580e 1660; as datas podem não ser exatas mas o fato é como eudisse. O verdadeiro colecionador sempre
tem uma excentricidade desse tipo. Noutros pontos ele é tão comumquanto um criador de vacas, o que por acaso é sua profissão.Então, os Pinwells, como você provavelmente
sabe, também têm suas excentricidades. Lady Maud, por exemplo...aqui ele foi interrompido pela necessidade de analisar sua jogada – Lady Maud tem horror a gatos,
sacerdotes e pessoas com dentes frontais grandes. Eu a escutei gritar do outro lado da mesa. “Fique de boca fechada, Miss Smith;eles são amarelos como cenouras!”.
Isso à mesa, imagine.Comigo ela sempre foi educadíssima. Mexe com literatura,gosta de reunir alguns de nós na sua sala de estar, mas mencione um padre, um bispo,
até o próprio arcebispo, e elacomeça a gorgolejar como um peru. Disseram-me que é uma briga de família... algo ligado a um antepassado noreinado de Carlos I. Sim
– continuou ele, sofrendo um xeque depois do outro –, eu gosto de saber coisas sobre asavós dos nossos jovens elegantes. Na minha opinião, elespreservam tudo o que
admiramos no século XVIII, com avantagem, na maioria dos casos, de serem pessoalmente asseados. Não que se fosse insultar Lady Barborough dizendo que é asseada.
Hilda – chamou sua esposa –, quantasvezes Sua Senhoria toma banho?
– Eu não gostaria de dizer, Hugh – respondeu Mrs. Elliot com um risinho abafado. – Mas usando veludo roxo mesmo nos mais quentes dias de agosto, não se nota.
– Pepper, você me venceu- disse Mr. Elliot. – Meu xadrez é pior do que eu lembrava. – Ele aceitou sua derrota com grande equanimidade, porque o que realmente queria
era falar.Depois empurrou sua cadeira ao lado de Mr. Wilfred Flushing, o recém-chegado.
– O senhor vende tudo isso? – perguntou apontando para um estojo na frente deles,onde crucifixos,jóias altamente polidas, peças de bordado e obras de nativos estavam
expostos.
– Tudo falsificado – disse Mr. Flushing, lacônico. – Mas essa manta não está nada ruim. – Ele inclinou-se e pegou uma parte da manta a seus pés. – Não é antiga,claro,
mas o desenho está conforme a tradição. Alice, empreste-me seu broche. Vejam a diferença entre trabalho antigo e novo.
Uma senhora que lia muito concentrada soltou o seu broche e deu-o ao marido sem olhar para ele nem para a tentativa de mesura que Mr. Elliot queria lhe fazer. Se
ela tivesse escutado poderia ter se divertido com a referência à velha Lady Barborough, sua tia-avó, mas, esquecida de onde estava, continuou lendo.
O relógio que há alguns minutos sibilava como um velho preparando-se para tossir, bateu nove horas. O som perturbou de leve alguns sonolentos homens de negócios,pessoal
do governo e homens de posses recostados em suas poltronas, conversando, fumando, ruminando sobre seus assuntos, olhos semicerrados; eles levantaram suas pálpebras
um instante ouvindo as batidas e fecharam-nas de novo. Pareciam crocodilos tão repletos por sua última refeição que o futuro do mundo não lhes dava a menor ansiedade.
A única perturbação na sala plácida e iluminada foi uma grande mariposa que disparava de lâmpada em lâmpada, zumbindo por cima de penteados elaborados, fazendo várias
jovens erguerem as mãos nervosas,exclamando:
– Alguém tem de matá-la!Absorvidos em seus próprios pensamentos, Hewet e
Hirst não falavam há bastante tempo.Quando o relógio bateu, Hirst disse:
Ah, as criaturas começam a mover-se... – Observouas levantando-se de seus lugares, olhando em torno e sentando-se de novo. – O que eu mais detesto – concluiu é o
seio feminino. Imagine ser Venning e ter de ir para a cama com Susan! Mas a coisa realmente repulsiva é que elas não sentem absolutamente nada... mais ou menos o
que sinto quando tomo um banho quente. São grosseiras,são absurdas, são absolutamente insuportáveis!
Dizendo isso, sem obter resposta de Hewet, ele continuou pensando em si mesmo, na ciência, em Cambridge,no Tribunal, em Helen e no que ela pensaria dele, até que,muito
cansado, começou a cabecear e cochilar.
De repente, Hewet despertou-o.
Como é que você sabe o que sente, Hirst?
Você está apaixonado? – perguntou Hirst colocando o monóculo.
– Não seja bobo – respondeu Hewet.
– Bem, vou pensar nisso – disse Hirst. – Nós realmente devíamos. Se ao menos essas pessoas aí pensassem, o mundo seria um lugar bem melhor para se viver. Está tentando
pensar?
Era exatamente isso que Hewet estivera fazendo na última meia hora, mas naquele momento não achou que Hirst estivesse sendo compreensivo.
Vou dar um passeio – disse Hewet.
Lembre-se de que ontem à noite não fomos dormir – disse Hirst com um bocejo prodigioso.Hewet levantou-se e esticou o corpo.
– Quero caminhar e respirar um pouco – disse.Um sentimento inusitado o estivera incomodando a noite toda, impedindo-o de seguir qualquer linha de pensamento. Era
exatamente como se estivesse no meio de uma conversa que lhe interessasse profundamente e alguém viesse interrompê-la. Não conseguia terminar a conversa, e quanto
mais ficava ali sentado mais queria concluí-la. Como o diálogo interrompido tivesse sido com Rachel, indagava-se por que sentia isso e por que queria continuar falando
com ela. Hirst teria dito apenas que estava apaixonado por ela. Mas não estava. Amor começava assim, com o desejo de continuar conversando? Não. No caso dele, sempre
começava com sensações físicas definidas, que não aconteciam desta vez. Havia alguma coisa, inusitada claro, em relação a ela – era jovem,inexperiente, indagadora,
tinham sido mais francos um com o outro do que era possível habitualmente. Ele sempre achava interessante falar com moças, e essa era uma boa razão para querer continuar
falando com ela; e na noite passada, com a multidão e a confusão, ele apenas conseguira começar um diálogo. O que estaria ela fazendo agora? Deitada num sofá olhando
o teto, quem sabe? Podia imaginá-la fazendo isso, Helen numa poltrona com as mãos no braço da poltrona, assim – olhando em frente com aqueles olhos enormes –, não,
não, estariam conversando, claro, sobre o baile. Mas, e se Rachel partisse por um dia ou dois, e se fosse o fim de sua visita, e seu pai tivesse chegado num dos
vapores ancorados na baía? – era insuportável saber tão pouco sobre ela. Por isso, Hewet exclamou:
– Como é que você sabe o que sente, Hirst? – para impedir-se de pensar.
Mas Hirst não o ajudou, e as outras pessoas, com seus movimentos despropositados e suas vidas desconhecidas,eram perturbadoras, de modo que ansiava por uma escuridão
vazia. A primeira coisa que buscou quando saiu da porta do salão foi a luz da villa dos Ambrose. Quando decidiu finalmente que uma luz apartada das outras mais acima
no morro era a luz deles, ficou bem mais tranqüilo.Parecia haver de repente um pouco de estabilidade na sua incoerência. Sem qualquer plano definido na mente, ele
dobrou à direita e atravessou a cidade, chegando até o muro onde as estradas se encontravam, e parou. Ouvia-se o bramido do mar. A massa azul-escura das montanhas
erguia-se diante do azul mais pálido do céu. Não havia lua, mas miríades de estrelas e as luzes ancoradas acima e abaixo das escuras ondas de terra ao seu redor.
Ele quis voltar, mas a luz isolada da villa dos Ambrose se transformara em três luzes separadas, e ficou tentado a prosseguir.Podia verificar se Rachel ainda estava
lá. Caminhando depressa, logo chegou junto do portão de ferro do jardim deles e empurrou-o; o contorno da casa subitamente apareceu nítido diante de seus olhos,
com a fina coluna da varanda atravessando o cascalho palidamente iluminado do terraço. Ele hesitou. Alguém fazia ruído com latas nos fundos da casa. Aproximou-se
da frente; a luz no terraço mostrava que as salas de estar ficavam daquele lado. Parou o mais próximo da luz que podia, no canto da casa, as folhas de uma hera roçando
seu rosto. Depois de um momento ouviu uma voz. A voz prosseguiu firme; não era uma conversa, mas pela continuidade do som era uma voz lendo em voz alta. Ele esgueirou-se
um pouco mais perto; juntou as folhas para que não farfalhassem em torno de suas orelhas. Podia ser a voz de Rachel. Saiu da sombra e entrou nos raios de luz; então
ouviu uma frase nitidamente pronunciada:
– E lá vivemos do ano de 1860 a 1895, os anos mais felizes da vida de meus pais, e lá em 1862 meu irmão Maurice nasceu, para encanto de seus pais, e estava destinado
a ser o encanto de todos os que o conhecessem.A voz corria e o tom tornou-se conclusivo, erguendo-se de leve, como se as palavras fossem o fim de um capítulo.Hewet
recuou para a sombra. Houve um silêncio prolongado. Ele ouviu cadeiras sendo empurradas lá dentro. Quasedecidiu voltar,quando de repente duas figuras apareceram
najanela, a menos de dois metros de onde ele estava.
– Foi de Maurice Fielding, é claro, que sua mãe esteve noiva – disse a voz de Helen. Falava em tom pensativo,olhando para o jardim escuro, evidentemente pensando
tanto na aparência da noite quanto no que dizia.
– Mamãe? – disse Rachel. O coração de Hewet saltou, e ele notou isso. A voz dela, embora baixa, estava cheia de surpresa.
– Você não sabia? – disse Helen.
– Eu nem sabia que tinha havido outra pessoa – disse Rachel. Sua surpresa era evidente, mas tudo o que diziam era baixo e inexpressivo, porque estavam falando na
fria noite escura.
– Ela teve mais apaixonados do que qualquer outra pessoa que conheci – afirmou Helen. – Tinha... esse poder ela saboreava as coisas. Não era linda, mas... pensei
nela ontem à noite durante o baile. Ela sabia lidar com todo tipo de pessoas e tornava tudo tão surpreendentemente... divertido.
Parecia que Helen ia voltar ao passado, escolhendo palavras deliberadamente, comparando Theresa com as pessoas que conhecera depois que ela morrera.
Não sei como ela fazia isso – prosseguiu e calou-se;houve uma longa pausa, em que uma corujinha gritou,primeiro aqui, depois ali, movendo-se de árvore em árvore
no jardim.
É bem típico de tia Lucy e tia Katie – disse Rachel por fim. Elas sempre me disseram que ela era muito triste e muito boa.
Mas então por que, pelo amor de Deus, elas sempre a criticavam quando era viva? – disse Helen. Suas vozes soavam muito docemente, como se atravessassem as ondas
do mar.
– Se eu fosse morrer amanhã... – começou ela.
As frases interrompidas tinham uma extraordinária beleza e distanciamento aos ouvidos de Hewet, e uma espéciede mistério também, como se estivessem falando no sono.
Não, Rachel – exclamou a voz de Helen. – Não vou caminhar no jardim; está úmido... certamente está úmido;além disso vi pelo menos uma dúzia de sapos.
Sapos? São pedras, Helen. Venha. Está mais bonito fora. As flores estão perfumadas – respondeu Rachel.
Hewet recuou ainda mais. Seu coração pulsava muito depressa. Aparentemente Rachel tentava puxar Helen para o terraço e Helen resistia. Houve uma porção de ruídos
de insistência, resistência e risadas das duas. Então apareceu o vulto de um homem. Hewet não conseguia ouvir o que todos diziam. Logo entraram; ele pôde ouvir ferrolhos
trancando portas; depois baixou um silêncio mortal, e todos as luzes se apagaram.
Ele afastou-se, ainda amassando e desamassando um punhado de folhas que arrancara da parede. Um delicado sentimento de prazer e alívio o dominou; era tudo tão sólido
e pacífico depois do baile no hotel, quer ele estivesse apaixonado por elas ou não, e não estava apaixonado por elas; não, mas era bom estarem vivas.
Depois de ficar quieto um minuto ou dois, ele virou-se e começou a andar em direção ao portão. Com o movimento do seu corpo, a excitação, o romance e a riqueza da
vida torvelinhavam em seu cérebro. Gritou um verso, mas as palavras lhe escapavam, e tropeçou entre versos e fragmentos de versos que não tinham nenhum significado
senão a beleza das palavras. Fechou o portão e correu cambaleando de um lado a outro morro abaixo, gritando qualquer insensatez que lhe ocorresse.
– Aqui estou! – gritava ritmicamente, enquanto seus pésbatiam no chão à esquerda e à direita. – Avançando comoum elefante na seiva, arrancando galhos enquanto sigo
(eleapanhava galhinhos de um arbusto à beira do caminho),berrando incontroláveis palavras, correndo morro abaixo efalando bobagens alto para mim mesmo a respeito
de estradas e folhas e luzes e mulheres saindo para a escuridão...sobre mulheres... sobre Rachel, sobre Rachel.
Ele parou e respirou fundo. A noite parecia imensa e acolhedora, e embora estivesse tão escuro, parecia haver coisas movendo-se lá embaixo no porto e no mar lá fora.Ele
ficou olhando até a escuridão o deixar embotado; então seguiu andando rapidamente, ainda murmurando para si mesmo:
– E eu devia estar na cama, roncando e sonhando, sonhando, sonhando. Sonhos e realidades, sonhos e realidades, sonhos e realidades – repetiu todo o caminho subindo
a avenida, quase sem saber o que dizia, até chegar à porta da frente.Lá parou por um segundo e controlou-se antes de abrir a porta.
Seus olhos estavam aturdidos,as mãos muito frias,seu cérebro excitado e mesmo assim semi-adormecido. Dentro de casa tudo estava como deixara, exceto o saguão,que
estava vazio. Havia cadeiras voltadas umas para as outras onde as pessoas tinham se sentado conversando,copos vazios sobre mesinhas e jornais espalhados no chão.Quando
fechou a porta sentiu-se aprisionado numa caixa quadrada, e imediatamente murchou. Era tudo muito pequeno e muito claro. Parou por um minuto junto da mesa comprida
para procurar um jornal que andara querendo ler, mas ainda estava demasiado influenciado pela escuridão e pelo ar puro para refletir exatamente qual era o jornal
e onde o vira.
Enquanto remexia vagamente os jornais, viu com o rabo do olho uma figura passar, descendo as escadas.Ouviu um farfalhar de saias, e para sua grande surpresa Evelyn
M. veio até ele, pousou a mão na mesa como para evitar que ele apanhasse um jornal, e disse:
– O senhor é exatamente a pessoa com quem eu que-ria falar. – Sua voz era um pouquinho desagradável emetálica, seus olhos muito brilhantes, e ela os mantinha fixos
em Hewet.
– Falar comigo? – repetiu ele. – Mas estou quase dormindo.
– Mas acho que o senhor entende melhor que a maioria das pessoas – respondeu ela e sentou-se numa cadeirinha junto de uma grande poltrona de couro, de modo que Hewet
teve de sentar-se ao lado dela.
– Então? – disse ele, bocejando abertamente, acendendo um cigarro. Não podia acreditar que aquilo estava realmente lhe acontecendo. – Do que se trata?
– O senhor realmente está interessado, ou é só pose? – indagou ela.
– A senhora é que vai dizer – respondeu ele. – Acho que estou interessado. – Ainda se sentia embotado e parecia-lhe que ela estava próxima demais.
– Qualquer um pode estar interessado! – exclamou ela.
– Seu amigo Mr. Hirst está interessado, suponho. Mas acredito no senhor. Tem cara de ter uma irmã simpática.Ela fez uma pausa, apanhando umas lantejoulas em seu
regaço, e então, como se tivesse tomado uma decisão, começou:
– Seja como for, vou lhe pedir um conselho. O senhor alguma vez entrou num estado em que não entende mais sua própria mente? Eu estou me sentindo assim. Sabe, na
noite passada, no baile, Raymond Oliver, o rapaz alto e moreno que parece ter sangue índio... bem, estávamos sentados juntos lá fora e ele me contou realmente tudo
a respeito de si mesmo, de como é infeliz em casa e como odeia estar aqui. Colocaram-no num trabalho horrível, de minas. Ele diz que é horrível... Sei que eu gostaria,
mas isso não é nem aqui nem lá. E tive muita pena dele, não se podia deixar de ter pena, e quando ele me perguntou se podia me beijar eu deixei. Não vejo nenhum
mal nisso, e o senhor? E então esta manhã ele disse que achava que eu queria dizer mais alguma coisa e que eu não era o tipo de mulher que deixa qualquer um lhe
dar um beijo. E falamos muito. Atrevo-me a dizer que fui muito boba, mas não dá para evitar de gostar de pessoas quando se tem pena delas. Eu gosto terrivelmente
dele... – Ela fez uma pausa. – Então lhe fiz uma meia promessa, e depois, sabe,existe Alfred Perrott.
– Ah, o Perrott – disse Hewet.
– Ficamos nos conhecendo no piquenique outro dia – continuou ela. – Parecia tão solitário,especialmente quando Arthur se afastou com Susan, e não se podia deixar
de adivinhar o que se passava na sua mente. Então tivemos uma conversa bastante longa quando vocês estavam olhando as ruínas, e ele me contou tudo sobre sua vida,
sua lutas e de como tudo fora terrivelmente difícil. Sabe, ele foi mensageiro numa mercearia e carregava os embrulhos das pessoas para a casa delas num cesto. Isso
me interessou sobremaneira, pois sempre digo que não importa como se nasce, desde que se tenha material bom por dentro. Ele me falou da irmã paralítica, pobre mocinha,
pode se ver que é uma grande provação, embora ele evidentemente lhe seja muito devotado. Devo dizer que admiro pessoas assim! Não espero que admire, pois o senhor
é tão culto. Bem, na noite passada nos sentamos juntos lá fora no jardim, e não pude deixar de ver o que ele queria dizer,de consolá-lo um pouquinho dizendo-lhe
que me importava com ele... e realmente me importo... só que agora existe Raymond Oliver. O que quero que o senhor me diga é: pode-se estar apaixonado por duas pessoas
ao mesmo tempo, ou não?
Ficou calada, sentada com o queixo nas mãos, parecendo muito concentrada,como se enfrentasse um problema real que tivessem de discutir.
– Acho que depende do tipo de pessoa que se é – disse Hewet, e encarou-a. Era pequena e bonita, talvez com 28 ou 29 anos, mas embora belas e bem feitas, suas feições
não expressavam nada muito claramente, exceto uma grande dose de animação e boa saúde.
– Quem é a senhorita, o que é a senhorita? Veja, não sei nada a seu respeito – continuou ele.
– Bem, era disso que eu ia falar – disse Evelyn M. ainda com o queixo apoiado nas mãos e olhando em frente com atenção. – Sou filha de mãe solteira, se isso lhe
interessa. Não é uma coisa muito boa. Acontece sempre no interior. Ela era filha de um fazendeiro, e ele era um bonitão... o rapaz da casa grande. Nunca fez as coisas
direito... nunca se casou com ela... embora nos desse bastante dinheiro. Sua família não deixava. Pobre papai! Não posso deixar de gostar dele. Mas mamãe não era
mesmo o tipo de pessoa que pudesse satisfazê-lo. Foi morto na guerra.Acho que seus homens o adoravam. Dizem que no campo de batalha alguns de seus comandados, homens
enormes, choraram sobre seu corpo. Eu queria tê-lo conhecido. Mamãe perdeu toda a vontade de viver. O mundo... – ela fechou o punho. – Ah, as pessoas podem ser horríveis
com uma mulher dessas! – Virou-se para Hewet. – Bem,quer saber mais a meu respeito?
Mas, e a senhorita? – perguntou ele. – Quem tomava conta da senhorita?
Em geral eu cuido de mim mesma – riu ela. – Tive amigos esplêndidos. Eu gosto de gente! Esse é o problema. O que faria o senhor se gostasse tremendamente de duas
pessoas ao mesmo tempo e não pudesse dizer de qual gosta mais?
– Eu continuaria gostando delas... e esperaria para ver o que ia acontecer. Por que não?
– Mas é preciso decidir-se – disse Evelyn. – Ou o senhor é uma dessas pessoas que não acreditam em casamento e tudo isso? Olhe... isso não é justo, eu conto tudo,e
o senhor não me conta nada. Quem sabe o senhor é igual ao seu amigo... – ela olhou-o, cheia de suspeitas. – Talvez não goste de mim.
– Eu não a conheço – disse Hewet.
– Eu sei quando gosto de uma pessoa no primeiro instante! Na primeira noite no jantar soube que gostava do senhor. Ah! meu Deus – continuou impaciente –, quanto
aborrecimento seria poupado se as pessoas dissessem francamente as coisas que pensam. Eu sou assim. Não posso fazer nada.
– Mas não acha que isso causa problemas? – perguntou Hewet.
– Isso é um erro dos homens – respondeu ela. – Eles sempre forçam isso... no amor, quero dizer.
– E assim a senhorita teve uma proposta atrás da outra
– disse Hewet.
– Acho que não recebi mais propostas do que a maioria das mulheres – disse Evelyn, mas sem convicção.
– Cinco, seis, dez? – arriscou Hewet.
Evelyn pareceu calcular que dez talvez fosse a cifra certa, mas que isso não era realmente grande coisa.
– Acho que está me julgando uma flertadora sem coração
– protestou ela. – Mas não me importa. Não me importocom o que os outros pensem de mim. Só porque a gente seinteressa,quer ser amiga dos homens e fala com eles como
sefala com mulheres, já nos chamam de flertadoras.
Mas, Miss Murgatroyd...
Queria que me chamasse de Evelyn – interrompeu ela.
– Depois de dez propostas, sinceramente ainda pensa que os homens são iguais às mulheres? -Sinceramente, sinceramente... como odeio essa palavra! Sempre é usada
por grandes pedantes – exclamou Evelyn. – Sinceramente eu acho que deviam ser. É isso que é tão decepcionante. Sempre se pensa que não vai acontecer, e sempre acontece.
– A busca da amizade – disse Hewet. – Título de uma comédia.
– O senhor é terrível – gritou ela. – Não se importa com nada. O senhor parece Mr. Hirst.
– Bem – disse Hewet –, vamos pensar. Vamos pensar...– ele fez uma pausa, pois no momento não podia lembrarsobre o que é que deviam pensar. Estava bem mais interessado
nela do que na sua história, pois enquanto ela falava oembotamento dele desaparecia, consciente de uma misturade afeto, piedade e desconfiança. – A senhorita prometeuse
casar com os dois, Oliver e Perrott? – concluiu ele.
– Não exatamente – disse Evelyn. – Não posso decidir sobre qual realmente gosto mais. Ah, como detesto a vida moderna! – disparou ela. – Deve ter sido tão mais fácil
para os elisabetanos! Outro dia na montanha pensei como gostaria de ter sido um desses colonizadores, derrubando árvores, fazendo leis e tudo isso, em vez de ficar
me fazendo de boba com essa gente que só pensa que eu sou apenas uma moça bonitinha. Embora eu não seja. Eu realmente poderia realizar alguma coisa. – Ela refletiu
em silêncio por um minuto, depois disse:
– Bem no fundo do coração tenho medo de que Alfred Perrott não sirva. Ele não é forte, é?
– Talvez ele não conseguisse derrubar uma árvore – disse Hewet. – A senhorita nunca gostou de ninguém?
– Gostei de montes de pessoas, mas não para me casar
– disse ela. – Acho que sou exigente demais. Toda a vida eu quis alguém que pudesse admirar, alguém grande, alto,esplêndido. Os homens em geral são tão pequenos.
– O que quer dizer com esplêndido? – perguntou
Hewet. – As pessoas são o que são... nada mais.Evelyn ficou perplexa.
– Nós não gostamos das pessoas pelas suas qualidades
– tentou explicar Hewet. – Gostamos apenas delas – ele acendeu um fósforo –, só isso – concluiu apontando para as chamas.
– Entendo o que quer dizer – disse ela –,mas não concordo. Eu sei por que gosto das pessoas, e acho que dificilmenteme engano.Vejo imediatamente o que há dentro
delas.Achoque o senhor deve ser esplêndido; mas não Mr. Hirst.Hewet sacudiu a cabeça.
– Ele não é nem de longe tão altruísta, tão simpático,tão grande ou tão compreensivo – continuou Evelyn.
Hewet ficou sentado, quieto, fumando seu cigarro. – Eu odiaria derrubar árvores – comentou.
– Não estou tentando flertar com o senhor, embora ache que pensa que estou! – disparou Evelyn. – Nunca oteria procurado se pensasse que apenas pensa coisasodiosas
a meu respeito! – Seus olhos encheram-se de lágrimas.
– A senhorita nunca flerta? – perguntou ele.
– Claro que não – protestou ela. – Eu não lhe disse? Quero amizade; quero gostar de alguém maior e mais nobre do que eu; se se apaixonam por mim não é culpa minha;
eu não quero isso; odeio isso, na verdade.Hewet viu que adiantava pouco continuar com aquele diálogo, pois era óbvio que Evelyn não queria dizer nada em particular,
mas impor-lhe uma imagem de si mesma,por estar, por algum motivo que não revelava, infeliz ou insegura. Ele estava muito cansado, e um garçom pálido ficava caminhando
ostensivamente até o centro da sala, olhando significativamente para eles.
– Estão querendo fechar – disse Hewet. – Meu conselho é que a senhorita conte a Oliver e Perrott, amanhã,que decidiu não se casar com nenhum dos dois. Estou certo
de que não quer mesmo. Se mudar de idéia, sempre poderá lhes dizer isso. Os dois são homens sensatos; vão compreender. E então todo esse seu aborrecimento vai passar.
– E levantou-se.
Mas Evelyn não se mexeu. Ficou sentada erguendo paraele seus olhos brilhantes e ansiosos, no fundo dos quais ele pensou detectar um pouco de decepção ou insatisfação.
– Boa noite – disse ele.
– Ainda há montes de coisas que eu queria lhe dizer – disse ela. – E um dia vou dizer. Imagino que o senhor tenha de ir para a cama agora? – Sim – disse Hewet. –
Estou quase dormindo... – Deixou-a ainda sentada sozinha no saguão vazio.
– Por que será que elas não querem ser honestas? – resmungava, subindo as escadas. Por que relações entre pessoas diferentes eram tão insatisfatórias,fragmentárias,tão
arriscadas, e as palavras tão perigosas que o instinto de simpatizar com outro ser humano devia ser cuidadosamente examinado e provavelmente esmagado? O que Evelyn
realmente desejava dizer-lhe? O que sentia agora,sozinha no saguão vazio? O mistério da vida e a irrealidade de nossas próprias sensações o dominaram quando ele
descia pelo corredor que levava ao seu quarto. Estava mal iluminado, mas o suficiente para ver uma figura num robe colorido passar rapidamente na sua frente, o vulto
de uma mulher passando de um quarto a outro.
15
Sejam frágeis demais ou muito vagos, os laços que unem as pessoas que se encontram por acaso num hotel à meianoite possuem uma vantagem, pelo menos, em relação aoslaços
que unem os mais velhos, que, uma vez juntos, têm deviver juntos a vida inteira. Podem ser frágeis, mas são vivos egenuínos, meramente porque o poder de rompê-los
está ao alcance de todos, e não há motivo para continuar, exceto umverdadeiro desejo de que continuem. Quando duas pessoasestão casadas há anos, parecem tornar-se
inconscientes dapresença corporal uma da outra, de modo que se movemcomo se estivessem sozinhas,falam alto coisas que não esperam resposta, e em geral parecem experimentar
todo o conforto do isolamento sem a solidão.As vidas unidas de Ridleye Helen haviam chegado a esse estágio de comunhão,e muitas vezes era necessário que um ou outro
lembrasse com esforço se uma coisa fora pronunciada ou apenas pensada,partilhada ou sonhada em particular. Às quatro da tarde,dois ou três dias depois, Mrs. Ambrose
estava escovando seucabelo enquanto o marido estava no quarto de vestir contíguo ao quarto dela; eventualmente, através do cascatear daágua – ele lavava o rosto
– ela ouvia exclamações:
– É assim, ano após ano; eu queria, queria poder acabar com isso – mas ela não dava atenção.
– É branco? Ou só castanho? – ela murmurava examinando um fio de cabelo que brilhava de modo suspeito entre os castanhos. Ela o arrancou e depositou no toucador.
Criticava sua própria aparência, ou antes aprovava-a,afastando-se um pouco do espelho e olhando seu rosto com majestoso orgulho e melancolia, quando seu marido apareceu
na soleira, em mangas de camisa, rosto meio coberto por uma toalha.– Muitas vezes você me diz que não noto as coisas – comentou ele.
– Então me diga, isto é um cabelo branco? – respondeu ela, e botou o cabelo na mão dele.
– Não há um só cabelo branco na sua cabeça – exclamou ele.
– Ah, Ridley, começo a duvidar – suspirou ela e inclinou sua cabeça debaixo dos olhos dele para que pudesse avaliar, mas a inspeção apenas produziu um beijo na linha
divisória dos cabelos, e marido e mulher passaram a mover-se pelo quarto com murmúrios casuais.
– O que é que você estava dizendo? – comentou Helen depois de um intervalo do diálogo que nenhuma terceira pessoa teria entendido.
– Rachel... você devia ficar de olho em Rachel – comentou ele enfaticamente, e Helen, embora continuasse a escovar os cabelos, o encarou. Em geral os comentários
dele eram verdadeiros.
– Jovens cavalheiros não se interessam pela instrução de jovens damas sem um motivo – comentou ele.
– Ah, Hirst – disse Helen.
– Hirst e Hewet, para mim é tudo a mesma coisa...todos muito suspeitos – respondeu ele. – Ele a aconselha a ler Gibbon, você sabia disso? Helen não sabia, mas não
admitiu ser inferior ao marido em poder de observação.Então apenas disse:
– Nada me surpreenderia, mesmo aquele horrível homem voador que encontramos no baile... até Mr. Dalloway... até...
– Aconselho-a a ser circunspecta – disse Ridley. – Existe Willoughby, lembre-se... Willoughby – ele apontou para uma carta.
Helen olhou com um suspiro para um envelope sobre seu toucador. Sim, lá estava Willoughby, lacônico, inexpressivo, eternamente jocoso, retirando o mistério de todo
um continente, perguntando pelas maneiras e moral de sua filha – esperando que ela não os aborrecesse pedindo que a despachassem de volta a bordo do primeiro navio
se os estivesse aborrecendo – e depois, grato e afetuoso, com emoção contida, e depois meia página sobre seus próprios triunfos sobre miseráveis pequenos nativos
que tinham feito uma greve recusando-se a carregar seus navios, até ele berrar em inglês “metendo a cabeça fora da janela bem como estava, em mangas de camisa. Os
mendigos tiveram juízo bastante para se dispersarem”.
– Se Theresa se casou com Willoughby – comentou ela virando a página com um grampo de cabelo não vejo o que impediria Rachel...
Mas Ridley agora entregava-se a seus próprios aborrecimentos quanto à lavagem de suas camisas, o que o levou a comentar as freqüentes visitas de Hughling Elliot,
que era chato, pedante, um homem sem graça, mas Ridley não podia simplesmente apontar a porta da rua e mandá-lo embora. A verdade era que viam gente demais. E assim
por diante, e assim por diante, mais conversa conjugal mansa e ininteligível, até estarem os dois prontos para descerem para o chá.
A primeira coisa que chamou a atenção de Helen quando desceu a escada foi uma carruagem na porta,cheia de saias e plumas balouçando em cima de chapéus. Teve apenas
tempo de entrar na sala de estar antes de dois nomes serem terrivelmente mal pronunciados pela criada espanhola,e Mrs.Thornbury entrou um pouco à frente de Mrs.Wilfrid
Flushing.
– Mrs.Wilfrid Flushing – disse Mrs.Thornbury com um aceno. – Amiga de nossa amiga comum, Mrs. Raymond Parry.
Mrs. Flushing apertou a mão de Helen energicamente. Era uma mulher de talvez 40 anos, muito bem posta e ereta, de uma esplêndida robustez, embora não tão alta como
fazia parecer sua postura ereta.
Fitou Helen diretamente no rosto e disse:
– A senhora tem uma casa encantadora.
Tinha um rosto bem marcado, os olhos fitavam os outros abertamente, e embora fosse naturalmente imperiosa,era nervosa ao mesmo tempo. Mrs. Thornbury agiu como intérprete,
suavizando as coisas com uma série de encantadores comentários banais.
– Mr. Ambrose – disse ela –, tomei a liberdade de pro-meter que o senhor teria a bondade de dar a Mrs.Flushing o benefício de sua experiência. Tenho certeza de que
ninguém conhece este país tão bem quanto o senhor. Ninguém dá essas longas caminhadas maravilhosas. Tenho certeza de que ninguém tem o seu conhecimento enciclopédico
de todos os temas.Mr.Wilfrid Flushing é um colecionador. Já descobriu coisas realmente belíssimas. Eu não tinha idéia de que os camponeses fossem tão artísticos...
embora naturalmente, no passado...
– Não coisas velhas... coisas novas – interrompeu Mrs.Flushing laconicamente. – Isto é, quando ele aceita meu conselho.
Os Ambrose conheciam muita gente, pelo menos de nome, por terem vivido tantos anos em Londres, e Helen lembrou-se de ter ouvido falar nos Flushing.Mr.Flushing tinha
uma loja de móveis antigos, ele sempre dissera que nunca se casaria porque a maioria das mulheres tinha faces vermelhas e que não compraria uma casa porque casas
em geral têm escadas estreitas, que não comia carne porque a maioria dos animais sangra ao serem mortos; depois casou-se com uma excêntrica aristocrata, que certamente
não era lívida, que tinha ar de quem come carne e que o forçara a fazer todas as coisas que ele mais detestava – e era essa a dama. Helen contemplou-a com interesse.
Tinham saído para o jardim, onde o chá era servido sob uma árvore, e Mrs. Flushing servia- se de geléia de cerejas. Quando falava, seu corpo dava um singular movimento
brusco, que fazia a pluma amarelo-canário em seu chapéu saltar também. Suas feições pequenas mas firmemente modeladas e vigorosas, com o vermelho profundo de lábios
e faces, indicavam muitas gerações de ancestrais bem treinados e bem nutridos antes dela.
– Eu não me interesso por nada que tenha mais de 20 anos – continuou ela. – Velhos quadros embolorados, velhos livros sujos, ficam em museus onde só servem para
serem queimados.
– Eu concordo – riu Helen. – Mas meu marido passa a vida desenterrando manuscritos que ninguém quer. – Ela diverte-se com a expressão de perplexa reprovação de Ridley.
– Mas há um homem inteligente em Londres, chamado John, que pinta muito melhor do que os velhos mestres – prosseguiu Mrs. Flushing. – Seus quadros me excitam...
nada que seja velho me excita.– Mas também os quadros dele serão velhos um dia – interveio Mrs. Thornbury.
– Pois então vou mandar que os queimem, vou botar isso no meu testamento – disse Mrs. Flushing.
– E Mrs. Flushing vivia numa das mais belas casas antigas da Inglaterra... Chillingley – explicou Mrs. Thornbury aos demais.
– Se eu pudesse fazer como quero, mandaria queimála amanhã – riu Mrs. Flushing. Seu riso era como o pequeno grito de um papagaio, surpreendente e sem alegria.
– O que é que uma pessoa sensata quer com uma dessas casas enormes? – perguntou. – Se se desce ao térreo depois de escurecer, fica-se coberto de besouros pretos,
e a luz elétrica está sempre apagando. O que fariam se saíssem aranhas da torneira quando abrissem a água quente? – perguntou imperiosa, fixando o olhar em Helen.Mrs.
Ambrose deu de ombros, sorrindo.
– É disso que eu gosto – disse Mrs. Flushing, entortando a cabeça em direção da villa. – Uma casinha num jardim. Uma vez tive uma, na Irlanda. A gente podia ficar
deitado na cama de manhã e apanhar rosas na janela com os dedos dos pés.
– E os jardineiros não ficavam espantados? – indagou Mrs. Thornbury.
– Não havia jardineiros – disse Mrs. Flushing com umarisadinha. – Ninguém senão eu e uma velha desdentada.Vocês sabem que na Irlanda os pobres perdem seus dentesdepois
dos 20 anos. Mas não se pode esperar que um político entenda isso... Arthur Balfour não entenderia. Ridley suspirou, dizendo que nunca esperava que ninguém entendesse
nada, muito menos políticos.
– Porém – concluiu ele –, há uma vantagem em ser muito, muito velho: nada mais importa senão comida e digestão. Tudo o que peço é que me deixem ficar mofando nasolidão.
É obvio que o mundo está indo o mais depressaque pode para o fundo do poço, e tudo o que posso fazer é sentar-me quieto e consumir o mais possível minha própria
fumaça. – Ele deu um gemido e com um olhar melancólico espalhou geléia no pão, pois achava claramente pouco simpática a atmosfera daquela dama tão brusca...
– Sempre contradigo meu marido quando ele diz isso
– disse docemente Mrs. Thornbury. – Vocês homens! Onde estariam se não fossem as mulheres?
– Leia o Symposium – disse Ridley, carrancudo.
– Symposium? – exclamou Mrs. Flushing. – Isso é latim ou grego? Diga-me, existe uma boa tradução?
– Não – disse Ridley. – A senhora terá de aprender grego.Mrs. Flushing exclamou:
– Ha,ha,ha! Prefiro quebrar pedras na estrada.Sempre invejo os homens que quebram pedra e se sentam o dia todo naqueles belos montinhos usando óculos. Preferiria
infinitamente quebrar pedras a limpar galinheiros ou dar comida para as vacas, ou...
Nisso Rachel subiu da parte inferior do jardim com um livro na mão.
Que livro é esse? – disse Ridley após os cumprimentos.
É Gibbon – disse Rachel sentando-se.
– Declínio e queda do Império Romano? – disse Mrs. Thornbury. – Um livro maravilhoso, eu sei. O meu querido pai estava sempre citando o livro para a gente e por
isso resolvemos nunca ler uma linha.
– Gibbon, o historiador? – indagou Mrs. Flushing. – Eu o ligo a algumas das horas mais felizes da minha vida.Costumávamos ficar deitados na cama lendo Gibbon...
sobre os massacres dos cristãos, lembro-me disso... quando devíamos estar dormindo. Não é brincadeira, acreditem, ler um livro enorme daqueles em duas colunas com
um lampião e a claridade que entra por uma fresta na porta. E havia as mariposas... mariposas-tigre, mariposas amarelas e horrendos besouros grandes. Louisa, minha
irmã, queria ficar de janela aberta. Eu queria fechá-la.Brigávamos terrivelmente todas as noites por causa daquela janela. Já viram uma mariposa morrendo num lampião?
– perguntou ela.
Novamente uma interrupção. Hewet e Hirst apareceram na janela da sala de estar e aproximaram-se da mesa de chá.
O coração de Rachel bateu mais depressa. Percebia uma extraordinária intensidade em todas as coisas, como se a presença deles removesse alguma cobertura da superfície
das coisas; mas os cumprimentos foram notavelmente triviais.
– Com licença – disse Hirst erguendo-se de sua cadeira assim que se sentara. Foi até a sala de estar e voltou com uma almofada, que colocou cuidadosamente sobre
sua cadeira.
– Reumatismo – comentou, quando se sentou pela segunda vez.
– Resultou do baile? – perguntou Helen.
– Sempre que fico muito cansado tenho reumatismo – afirmou Hirst e dobrou seu pulso bem para trás. – Escuto pedacinhos de giz moendo-se uns aos outros!
Rachel encarou-o. Achava engraçado mas sentia respeito; se isso era possível, a parte superior de seu rosto parecia rir, e a inferior contestar esse riso.
Hewet apanhou o livro que estava no chão.
– Gosta disso? – perguntou com um tom velado.
– Não, não gosto – respondeu ela. Andara realmente tentando toda a tarde ler o livro, e por algum motivo a glória que percebera no início se fora; por mais que lesse
não conseguia apanhar o sentido.
– Ele gira e gira e gira como um rolo de oleado – arriscou. Evidentemente queria que só Hewet ouvisse suas palavras, mas Hirst indagou:
– O que quer dizer com isso?
Ela ficou imediatamente envergonhada por sua figura de linguagem, pois não podia explicá-la numa crítica sóbria.
– Certamente é o mais perfeito estilo que já foi inventado – continuou ele. – Toda frase é praticamente perfeita, e a graça...“Feio de corpo, repulsivo de mente”,
pensou ela, em vez de pensar no estilo de Gibbon. “Sim, mas de mente forte, perquiridora, obstinada.” Ela encarou sua cabeça grande, com a testa ocupando uma parte
desproporcional,e os olhos severos e diretos.
– Desisto da senhorita,por desespero – disse ele.Falava sem gravidade, mas ela o levou a sério e acreditou que seu valor como ser humano diminuíra porque não admirava
o estilo de Gibbon. Os outros agora falavam num grupo sobre as aldeias nativas que Mrs. Flushing devia visitar.
– Eu também me desespero – disse ela, impetuosamente. – Como pode julgar pessoas apenas pelas suas mentes?
– Espero que a senhorita concorde com minha tia solteirona – disse St. John naquela sua maneira animada que era sempre irritante porque fazia a outra pessoa parecer
indevidamente desajeitada e grave.
– “Seja boa, doce donzela”... pensei que Mr. Kingsley e minha tia estivessem obsoletos hoje em dia.
– Pode-se ser muito agradável sem se ter lido um livro – afirmou ela. Suas palavras soaram muito tolas e simplórias, e a expunham ao ridículo.
– Eu alguma vez neguei isso? – inquiriu Hirst arqueando as sobrancelhas. Muito inesperadamente, Mrs. Thornbury interveio nesse momento, ou por ser sua missão manter
as coisas andando suavemente, ou porque há muito desejava falar com Mr. Hirst, sentindo como sentia que rapazes eram sempre seus filhos.
– Eu vivi minha vida toda com pessoas como sua tia,Mr. Hirst – disse ela inclinando-se para frente em suacadeira. Seus olhos castanhos brilhavam mais que decostume.
– Elas nunca ouviram falar de Gibbon. Só se importam com seus faisões e seus camponeses. Sãograndes homens, que ficam muito bem no lombo de umcavalo, como, imagino,
os homens no tempo das grandesguerras. Diga o que quiser contra eles... são animais, nãosão intelectuais; não lêem e não querem que outrosleiam, mas são das melhores
e mais bondosas pessoas daterra! O senhor ficaria surpreso com algumas das histórias que eu poderia contar. Talvez nunca tenha pensadoem todos os romances que acontecem
no interior. Sintoque lá estão as pessoas entre as quais Shakespeare renascerá, se nascer de novo. Naquelas casas bizarras, lá emcima, nos Downs...
– Minha tia – interrompeu Hirst – passa sua vida em East Lambeth entre os pobres degradados. Eu só a citei porque ela se inclina a perseguir pessoas que chama de
“intelectuais”, o que suspeito que Miss Vinrace esteja fazendo. Está na moda agora. Se você é inteligente, sempre pensam que não tem simpatia, compreensão, afeto...
todas as coisas que realmente importam. Ah, vocês, cristãos! São o grupo mais convencido, condescendente e hipócrita de velhos impostores! Claro – continuou ele
–, eu sou o primeiro a admitir que seus nobres rurais têm grandes méritos. De um lado, provavelmente são bem francos a respeito de suas paixões, o que nós não somos.
Meu pai,clérigo em Norfolk, diz que dificilmente existe um nobre rural que não seja...
– Mas, e Gibbon? – interrompeu Hewet. O ar de tensão nervosa que cobrira todos os rostos relaxou com essa interrupção.
– Acho que você o considera monótono. Mas, sabe... –ele abriu o livro e começou a procurar trechos para ler emvoz alta; em pouco tempo encontrou um que considerouadequado.
Mas não havia nada no mundo que entediasse Ridley mais do que alguém lendo em voz alta. Além dissoele era escrupulosamente crítico quanto a trajes e comportamento
de senhoras. Em 15 minutos já fizera um julgamento negativo em relação a Mrs. Flushing, pois uma pluma laranja não combinava com sua pele, ela falava alto demais,
cruzava as pernas e, finalmente, quando a viu aceitarum cigarro que Hewet lhe oferecia, saltou de pé exclamando alguma coisa sobre “defensores de salão’” e afastou-se.
Mrs. Flushing ficou evidentemente aliviada com sua partida. Tirando baforadas de seu cigarro, esticou as pernas einterrogou Helen melhor sobre o caráter e reputação
de suaamiga comum, Mrs. Raymond Parry. Por uma série de pequenos estratagemas, levou-a a definir Mrs. Parry como um tanto idosa, nada bonita, muito maquiada... uma
velhabruxa insolente, em suma, cujas festas eram muito divertidas porque nela se encontravam pessoas esquisitas, masHelen tinha pena do pobre Mr. Parry, que se dizia
ficartrancado no andar de cima com caixas de pedras preciosas,enquanto sua esposa se divertia na sala de visitas.
– Não que eu acredite no que as pessoas falam contra ela... embora naturalmente ela faça insinuações... e Mrs. Flushing gritou, deliciada:
– Ela é minha prima-irmã... continue, continue!
Quando se levantou para sair, Mrs. Flushing estava obviamente encantada com seus novos conhecidos. Fez três ou quatro planos diferentes de encontros ou passeios,ou
de mostrar a Helen coisas que tinham comprado, enquanto se dirigia para sua carruagem. Incluiu-os todos num convite vago mas pomposo.
Quando Helen voltou ao seu jardim, as palavras de aviso de Ridley voltaram à sua mente e ela hesitou um momento, olhando para Rachel sentada entre Hewet e Hirst.
Mas não conseguiu tirar conclusões, pois Hewet ainda lia Gibbon em voz alta, e Rachel, pela sua expressão, podia ser uma concha; as palavras dele, água roçando em
seus ouvidos, como a água batendo numa concha na superfície de uma rocha.
A voz de Hewet era muito agradável. Quando chegavaao fim da frase, parava e ninguém oferecia qualquer crítica.
– Eu realmente adoro a aristocracia! – exclamou Hirst depois de um momento. – São tão espantosamente inescrupulosos. Nenhum de nós se atreveria a portar-se como
aquela mulher se portou.
– O que gosto neles – disse Helen quando se sentou – é que têm tão bela postura. Nua, Mrs. Flushing seria soberba.Vestida do jeito que se veste, naturalmente é um
absurdo.
– Sim – disse Hirst, e uma sombra de depressão cruzou seu rosto.
– Eu nunca pesei mais do que 63 quilos na vida, o que é ridículo considerando minha altura; na verdade perdi peso desde que cheguei aqui. Atrevo-me a dizer que isso
explica o reumatismo. – Ele dobrou novamente o pulso bem para trás, de modo que Helen pudesse ouvir o moer dos pedaços de giz. Ela não pôde evitar um sorriso.
– Acredite, para mim não é coisa de se rir – protestou ele. – Minha mãe é uma inválida crônica e estou sempre esperando que me digam que também tenho uma doença
cardíaca. No final, reumatismo sempre ataca o coração.
– Pelo amor de Deus, Hirst – protestou Hewet –, alguém poderia pensar que você é um velho aleijado de 80 anos. Se for assim, tenho uma tia que morreu de câncer,mas
não ligo para isso. – Ele endireitou-se e começou a balançar a cadeira para a frente e para trás sobre as pernas traseiras. – Alguém aqui tem vontade de dar uma
caminhada? Há um passeio magnífico subindo atrás da casa. A gente chega a um penhasco e vê o mar lá embaixo. Os rochedos são vermelhos; pode-se vê-los embaixo da
água.Outro dia vi uma coisa que me deixou quase sem respirar... cerca de 20 medusas, semitransparentes, rosadas,com longos filamentos, flutuando sobre as ondas.
– Tem certeza de que não eram sereias? – disse Hirst.
– Está quente demais para subir o morro. – Ele olhou para Helen, que mostrava sinais de mexer-se.
– Sim, está quente demais – decidiu ela.Houve um breve silêncio.
– Eu gostaria de ir – disse Rachel.
“Mas ela podia de qualquer jeito ter dito isso”, pensouHelen quando Hewet e Rachel se afastaram juntos, e elaficou sozinha com St. John, para evidente satisfação
deste.
Ele podia estar satisfeito, mas sua habitual dificuldade em decidir qual assunto merecia ser abordado o impediu de falar por algum tempo. Sentava-se olhando fixamente
a cabeça de um fósforo apagado, enquanto Helen meditava – assim parecia pela expressão de seus olhos, sobre algo não intimamente ligado ao momento presente.
Finalmente St. John exclamou:
– Droga! Tudo é uma droga! Todo mundo é uma droga! – acrescentou. – Em Cambridge há gente com quem se pode falar.– Em Cambridge há gente com quem se pode falar –
ecoou Helen rítmica e distraidamente. Então despertou.
– Por falar nisso, o senhor já resolveu o que vai fazer... vai a Cambridge ou fará Direito?
Ele torceu os lábios, mas não respondeu logo, pois Helen ainda estava um pouco desatenta. Ela estivera pensando em Rachel e por qual dos dois rapazes ela provavelmente
se apaixonaria, e agora, sentada diante de Hirst,pensava: “Ele é feio. Uma pena que sejam tão feios”.
Não incluiu Hewet nessa crítica; pensava nos rapazes cultos, honestos e interessantes que conhecia, dos quais Hirst era um bom exemplo, e imaginava se era necessário
que pensamento e erudição sempre maltratassem assim seus corpos e elevassem suas mentes a uma torre muito alta, da qual a raça humana lhes parecia ratos e camundongos
contorcendo-se no chão.
“E o futuro?”, refletiu ela divisando vagamente uma raça de homens que se tornariam cada vez mais parecidos com Hirst e uma raça de mulheres cada vez mais parecida
com Rachel. “Ah, não”, concluiu, lançando-lhe um olhar, “ninguém se casaria com você. Portanto, o futuro da raça está nas mãos de Susan e Arthur, não... isso é terrível.
De agricultores; não... não dos ingleses, mas de russos e chineses.” Essa linha de pensamento não a satisfez, e foi interrompida por St. John, que recomeçava:
Eu gostaria que a senhora conhecesse Bennett. É o maior homem do mundo.
Bennett? – perguntou ela. Ficando mais à vontade,St. John deixou aquela rispidez concentrada e explicou que Bennett morava num velho moinho a dez quilômetros de
Cambridge. Vivia uma vida perfeita, segundo St.John, muito solitário, muito simples, interessando-se apenas pela verdade das coisas, sempre disposto a conversar,extraordinariamente modesto, embora sua mente fosse uma das maiores.
A senhora não acha – disse St. John depois de descrevê-lo – que esse tipo de coisa faz aquele tipo de coisa parecer frívola? A senhora notou no chá como o pobre velho Hewet teve de mudar de assunto? Como estavam todos dispostos a me malhar porque achavam que eu ia dizer alguma coisa imprópria? E realmente não era nada.Se Bennett estivesse aqui, teria dito exatamente o que queria dizer, ou teria se levantado e ido embora. Mas é muito ruim para a personalidade, quero dizer, quando não se tem a personalidade de Bennett. Tende a deixar a gente amargo. A senhora acha que sou amargo?
Helen não respondeu e ele prosseguiu:
– Naturalmente eu sou amargo, repulsivamente amargo, e é uma coisa abominável ser assim. Mas o pior em mim é que sou muito invejoso. Invejo todo mundo. Não suporto gente que saiba fazer coisa melhor do que eu...coisas perfeitamente absurdas também... garçons equilibrando pilhas de pratos... até Arthur, porque Susan está apaixonada por ele. Quero que as pessoas gostem de mim,e não gostam. Espero que seja em parte minha aparência,embora seja uma mentira dizer que tenho sangue judeu...na verdade
estamos em Norfolk, Hirst de Hirstbourne Hall, pelo menos há três séculos. Deve ser terrivelmente reconfortante ser como a senhora... todo mundo gostando da senhora
imediatamente.
– Asseguro-lhe que não é assim – Helen riu.
– É, sim – disse Hirst com convicção. – Em primeiro lugar, a senhora é a mais bela mulher que já vi; em segundo, tem uma natureza excepcionalmente encantadora.
Se Hirst olhasse para ela em vez de olhar intensamente para a xícara de chá, teria visto Helen corar, em parte por prazer, em parte por um impulsivo afeto pelo jovem
que parecera e voltaria a parecer tio feio e tão limitado.Ela sentia pena dele, pois suspeitava de que sofria, interessava-se por ele, pois muitas das coisas que
ele dizia lhe pareciam verdadeiras; admirava a ética da juventude, e mesmo assim sentia-se prisioneira. Como se o seu instinto fosse escapar para algo vivamente
colorido e impessoal que pudesse segurar nas mãos, ela entrou na casa e voltou com seu bordado. Mas Hirst não estava interessado no bordado dela; nem lhe lançou
um só olhar.
Sobre Miss Vinrace – começou ele. – Ah, olhe aqui,vamos ser St. John e Helen, e Rachel e Terence... que tal é ela? Ela raciocina, sente, ou é apenas uma espécie
de banquinho para os pés?
Ah, não – disse Helen, muito decidida. Por suas observações durante o chá duvidava que Hirst seria a pessoacerta para instruir Rachel. Aos poucos começara a interessar-se
pela sobrinha e a gostar dela; algumas coisas nela aaborreciam muito, outras a divertiam; mas de modo geralsentia-a como um ser humano vivo embora informe, experimental,
e nem sempre feliz em seus experimentos, mascom poderes de algum tipo e capacidade de sentir. Em al-gum lugar lá no fundo, Helen estava ligada a Rachel pelosindestrutíveis
embora inexplicáveis laços do seu sexo.
Ela parece vaga, mas tem vontade própria – disse ela,como se no intervalo tivesse avaliado suas qualidades.
O bordado,que exigia seu pensamento pelo desenho difícile pelas cores que precisavam de alguma análise,causava lapsosno diálogo quando ela parecia concentrada em
seus novelos deseda ou, quando com a cabeça um pouco recuada e os olhosestreitados, analisava o efeito geral. Por isso, ela apenas disse “Hum-hum” ao comentário
seguinte de St. John:
– Vou convidá-la para um passeio comigo.
Talvez ele se ressentisse da atenção parcial dela.Sentou-se calado observando Helen mais de perto.
– Você está absolutamente feliz – proclamou ele finalmente.
– O quê? – indagou Helen, enfiando a agulha.
– Suponho que seja o casamento – disse St. John.
– Sim – disse Helen, suavemente retirando a agulha.
– Filhos? – perguntou St. John.
– Sim – disse Helen, enfiando novamente a agulha. – Não sei porque sou feliz – de repente ela riu, olhando direto nos seus olhos. Houve um considerável intervalo.
– Há um abismo entre nós – disse St. John. Sua voz soou como se viesse das profundezas de uma caverna nos penhascos. – Você é infinitamente mais simples do que eu.
Naturalmente, as mulheres sempre são. Esse é o problema. Nunca se sabe como uma mulher chega lá.Achamos que o tempo todo vocês estão pensando: “Ah,mas que rapaz
mórbido!”Helen ficou sentada, olhando para ele com a agulhana mão. De sua posição via a cabeça dele diante da pirâmide escura de uma magnólia. Com um pé erguidosobre
a trave de uma cadeira e o cotovelo curvado na postura de quem costura, ela tinha a sublimidade deuma mulher do mundo antigo tecendo o fio do destino – a sublimidade
de muitas mulheres da atualidade queassumem a postura exigida para esfregar ou costurar.St. John fitou-a.
– Acho que a senhora nunca fez um elogio em sua vida
– disse ele superficialmente.
– Eu costumo mimar Ridley – ponderou Helen.
– Vou lhe fazer uma pergunta bem franca, você gosta de mim?
Depois de uma pausa ela respondeu:
Sim, sem dúvida.
Graças a Deus! – exclamou ele. – Já é uma graça.
Sabe – continuou emocionado –, prefiro o seu afeto ao de qualquer outra pessoa que já conheci.
– E quanto aos cinco filósofos? – disse Helen com uma risada, bordando firme e rapidamente a sua tela. – Eu gostaria que os descrevesse para mim.Hirst não tinha
muita vontade de descrevê-los, mas quando começou a pensar neles sentiu-se mais apaziguadoe mais forte. Longe como estavam, no outro lado do mundo, em aposentos
enfumaçados e tribunais medievais cinzentos, pareciam figuras notáveis, homens francos comquem podia sentir-se à vontade; incomparavelmente maissutis nas emoções
do que as pessoas ali. Certamente lhedavam o que mulher alguma podia lhe dar, nem mesmo Helen. Aquecendo-se à lembrança deles, continuou a expor seu próprio caso
diante de Mrs. Ambrose. Deveria ficarem Cambridge ou ir ao Tribunal? Um dia ele pensava umacoisa; noutro dia, outra. Helen escutava atentamente. Por fim, sem nenhuma
preferência, ela deu sua decisão.
– Deixe Cambridge e vá ao Tribunal – disse. Ele quis saber os motivos. – Acho que você gostaria mais de Londres.
Não parecia um motivo muito sutil, mas ela pareciajulgá-lo suficiente. Helen encarou-o diante do fundo damagnólia em flor.Havia algo de curioso nessa visão.Talvezfosse
pelas pesadas flores parecendo cera, tão macias e inarticuladas, e seu rosto – ele jogara longe o chapéu, seu cabelo estava desgrenhado, segurava os óculos na mão
de modoque aparecia a marca vermelha dos dois lados do nariz – estava bem preocupado e falante. Era um lindo arbusto estendendo-se muito amplamente, e todo o tempo
que passara ali sentada conversando notara as manchas de sombra, a forma das folhas e como as grandes flores brancasestavam instaladas no meio do verde. Notara isso
meio inconscientemente, mas mesmo assim esse padrão tornara-separte da sua conversa. Largou o bordado e começou a andar de um lado para o outro do jardim, e Hirst
também selevantou e caminhou ao lado dela. Estava bastante perturbado e pensativo. Nenhum deles falava.
O sol começava a pôr-se, e as montanhas estavam mudando, como se lhes tivessem roubado sua substância terrena e fossem compostas apenas de uma imensa névoa azul.
Longas e tênues nuvens cor de flamingo, com beiradas como as de penas de avestruz, enroscadas pelo céu em várias altitudes. Os telhados da cidade pareciam mais baixos
do que de costume, os ciprestes pareciam muito negros entre os telhados, e estes estavam castanhos e brancos. Como sempre ao anoitecer, gritos e toques de sinos
isolados chegavam bem nítidos lá de baixo.
De repente St. John parou:
– Bem, você tem de assumir a responsabilidade – disse ele. – Eu decidi: vou trabalhar no Tribunal. Sua palavras eram muito sérias, quase comovidas; depois de um
segundo de hesitação, Helen lembrou-se.
– Tenho certeza de que você está fazendo o que é certo – disse afetuosamente, e apertou a mão que ele estendia. – Você vai ser um grande homem, estou certa disso.
Então, como para fazê-lo olhar o cenário, ela fez umgesto com a mão por toda a imensa circunferência dapaisagem. Do mar, sobre os telhados da cidade, atravésda crista
de montanhas, sobre o rio e a planície, e novamente sobre a crista das montanhas, a mão deslizou até chegar à villa, o jardim, a magnólia, os vultos de Hirst eela
mesma parados juntos, e depois descaiu ao lado dopróprio corpo.
16
Há muito tempo Hewet e Rachel haviam chegado ao lugar na beira do penhasco onde, olhando para o mar abaixo, avistaram-se medusas e delfins. Olhando para o outrolado,
a vasta extensão de terra dava-lhes uma sensação que nenhuma paisagem na Inglaterra oferecia, por mais vastaque fosse;lá as aldeias e morros com nomes,e o mais distante
horizonte de morros quase sempre mergulhados e mostrando uma linha nevoenta que era o mar; aqui a paisagemera de uma infinita terra ressequida de sol, terra em pináculos
pontudos, amontoada em vastas barreiras, terra alargando-se mais e mais como o imenso assoalho do mar, terra contrastada pelo dia e pela noite, partida em diversos
países,onde se fundavam cidades famosas e as raças de homens mudavam de selvagens escuros para brancos civilizados e novamente para selvagens escuros.Talvez seu
sangue inglês tornasse essa perspectiva desconfortavelmente impessoal ehostil, pois tendo uma vez voltado o rosto para aquele lado,logo o voltaram para o mar, e
ficaram o resto do tempo sentados olhando para ele. O mar, embora fosse ali uma águafina e cintilante parecendo incapaz de rompantes de ira,eventualmente estreitava-se,
nublava o seu azul puro com cinza, escorria por estreitos canais, e disparava num tremorde águas fragmentadas contra as maciças rochas de granito.Era esse mar que
corria até à boca do Tâmisa; e o Tâmisalavava as raízes da cidade de Londres.
Os pensamentos de Hewet tinham seguido mais ou menos esse curso, pois a primeira coisa que disse quando se postaram na beira do penhasco foi:
– Eu gostaria de estar na Inglaterra!
Rachel deitou-se apoiada no cotovelo e partiu os talos de capim altos que cresciam na beira, para poder ter a vistadesimpedida.A água estava muito calma,balançava
na basedo rochedo, tão clara que se podia ver o vermelho das pedras no fundo. Assim fora no nascimento do mundo, e assim continuava desde então. Provavelmente nenhum
ser humano jamais rompera essas águas com barco ou com seucorpo. Obedecendo a um impulso, ela decidiu quebraraquela eternidade de paz e jogou a maior pedra que pôdeencontrar.
Ela bateu na água, e as ondulações se espalharam mais e mais. Hewet também olhou para baixo.
– É maravilhoso – ele disse enquanto as ondulações se espraiavam e cessavam. O frescor e a novidade pareceram maravilhosos. Ele jogou também uma pedra. Quase não
se ouviu nenhum som.
– Mas a Inglaterra – murmurou Rachel no tom absorto de alguém cujos olhos se concentravam numa paisa-gem. – O que quer com a Inglaterra?
– Principalmente meus amigos – disse ele –, e todas as coisas que se fazem lá.
Hewet podia olhar para Rachel sem que ela notasse.Ainda estava absorvida pela água e pelas sensações extremamente agradáveis que o mar pouco profundo banhandoas
pedras sugere. Percebeu que ela estava usando um vestido azul-escuro, de fino tecido de algodão, que se prendia àsformas do seu corpo. Era um corpo com ângulos e
cavidades de um corpo de mulher jovem, ainda não desenvolvido,mas também não distorcido, e por isso interessante e até adorável. Erguendo os olhos, Hewet observou
sua cabeça;ela tirara o chapéu, e o rosto pousava em sua mão. Quandoela olhava para o mar lá embaixo, seus lábios estavam levemente entreabertos. A expressão era
de concentração infantil, como se esperasse que um peixe passasse nadando sobre as claras rochas vermelhas. Mesmo assim, seus 24 anos de vida tinham lhe dado uma
aparência reservada. Suamão, que pousava no solo, os dedos levemente recurvados,era bem formada e competente; os dedos nervosos e depontas quadradas eram dedos de
pianista. Com uma sensação semelhante a angústia, Hewet percebeu que, longe deser pouco atraente, seu corpo o atraía muito. Os olhos delaestavam cheios de interesse
e animação.
– Você escreve romances? – perguntou ela.
Naquele instante ele não conseguiu pensar no que dizia.Estava dominado pelo desejo de segurá-la nos braços.
– Ah, sim. Quero dizer, desejo escrever romances.Ela não tirava os olhos cinzentos do rosto dele.
– Romances – repetiu ela. – Por que escreve romances? Devia escrever música. Música, sabe – ela desviou os olhos e tornou-se menos agradável quando seu cérebro começou
aagir, provocando certa mudança em seu rosto –, a música vaidireto até as coisas. Diz de uma vez tudo o que há para dizer.Ao escrevê-la me parece que há tanto –
ela fez uma pausaprocurando uma expressão e esfregou os dedos na terra,esfregando-os depois numa caixa de fósforo. – Na maior parte dotempo quando estava lendo Gibbon
esta tarde,eu estava terrivelmente,ah,infernalmente,abominavelmente entediada! Ela sacudiu-se ao rir olhando para Hewet, que também riu.
– Eu não vou lhe emprestar livros – comentou ele.
– Por que posso rir de Mr. Hirst com você, mas não na cara dele? No chá eu estava completamente esmagada, não pela feiúra mas pela mente dele. – Ela fez um círculo
no ar com as mãos. Percebeu com grande sensação de conforto como era fácil falar com Hewet, sem aqueles espinhos ou arestas que rasgam a superfície dealgumas relações.
– Notei isso – disse Hewet. – Isso é uma coisa que nunca deixa de me surpreender. – Recuperara sua compostura a ponto de conseguir acender e fumar um cigarro,e vendo-a
tranqüila, ficou feliz e à vontade.
– O respeito que as mulheres, mesmo as instruídas, mulheres muito capazes, sentem pelos homens – prosseguiu ele–, deve ser o tipo de poder que dizem que temos sobre
cavalos. Eles nos enxergam três vezes maiores do que somos, senão nunca nos obedeceriam. Por isso mesmo tendo a duvidar de que vocês mulheres jamais venham a fazer
qualquer coisaquando tiverem direito ao voto. – Ele a fitou pensativamente.
Ela parecia muito calma, sensível e jovem. – Vai levar pelomenos seis gerações antes de terem a pele suficientementegrossa para ingressarem nos tribunais ou escritórios
de empresas. Pense no valentão que é um homem comum, no advogado ou homem de negócios comum que trabalha duro, é bastante ambicioso, com família para sustentar e
certa posição a manter. E depois, naturalmente, as filhas terão de cederlugar aos filhos; os filhos terão de ser instruídos; terão de fanfarronear e de labutar pelas
suas esposas e famílias e tudo vairecomeçar. Enquanto isso, lá estão as mulheres, ao fundo... Asenhorita realmente acha que o voto vai favorecê-las?
O voto? – repetiu Rachel. Teve de visualizá-lo como um papelzinho que se jogava numa caixa antes de entender a questão; encarando-se, sorriram de alguma coisa absurda
na pergunta.
Para mim não – disse ela. – Mas eu toco piano... Os homens são realmente assim? – perguntou voltando à questão que a interessava. – Eu não tenho medo do senhor –
ela o fitou bem à vontade.
Ah, eu sou diferente – respondeu Hewet. – Tenho porano 600 ou 700 libras só minhas. E ninguém leva um romancista a sério, graças a Deus. Não há dúvida de que issoajuda
a compensar a parte enfadonha da profissão, se umhomem é levado muito, muito a sério por todo mundo... temcompromissos, escritórios, um título, montes de cartas
endereçadas a seu nome e pedaços de fita e diplomas. Não tenhoressentimentos por isso, embora às vezes me domine... queespantosa trama! Que milagre é a concepção
masculina davida... juízes, funcionários públicos, exército, marinha, Casasdo Parlamento, prefeitos... que mundo fazemos com isso!
Veja Hirst agora. Eu lhe asseguro, não se passou um dia desde que chegamos sem uma discussão acerca de ele ficar emCambridge ou ir ao Tribunal. É sua carreira...
sua sagradacarreira. E se eu o escutei 20 vezes, tenho certeza de que airmã e a mãe dele o escutaram 500 vezes. Pode imaginar asreuniões de família, a irmã mandada
para o pátio dar comidaaos coelhos porque St. John tem de ficar com a sala de estudos só para ele? “St. John está trabalhando”, “St. John querque lhe leve o seu
chá.”Você nunca pensa nesse tipo de coisa? Não admira que St. John julgue ser da maior importância. E é mesmo. Ele tem de ganhar a vida. Mas a irmã de St.John –
Hewet deu uma baforada em silêncio. – Ninguém aleva a sério, coitadinha. Ela dá comida aos coelhos.
– Sim – disse Rachel, eu dei comida aos coelhos durante 24 anos; agora, parece tão esquisito. – Ela parecia pensativa, eHewet, que falava bastante a esmo, adotando
instintivamente o ponto de vista feminino, viu que agora ela ia falar de si mesma, e era o que ele queria, pois assim talvez se conhecessem.Ela encarava com ar meditativo
a sua vida passada.
– Como passa os seus dias? – perguntou ele.
Ela ainda meditava. Quando pensava no seu dia, parecia-lhe que era cortado em quatro partes pelas refeições.Essas divisões eram absolutamente rígidas, os conteúdos
do dia tendo de acomodar-se dentro de quatro rígidas partes. Olhando sua vida, era isso que via.
– Café da manhã às nove; almoço à uma; chá às cinco; jantar às oito – disse ela.
Bem, disse Hewet – o que faz de manhã?
Eu costumava ficar tocando piano horas e horas.
E depois do almoço?
– Eu ia fazer compras com uma de minhas tias. Ou íamos visitar alguém, ou recebíamos uma mensagem, ou fazíamos alguma coisa que tinha de ser feita... as torneiras
talvezestivessem pingando. Elas visitam bastante os pobres... velhas faxineiras doentes das pernas,mulheres que querem cartões de atendimento em hospitais. Eu costumava
andar noparque sozinha.E depois do chá,às vezes fazia uma visita; noverão nos sentávamos no jardim ou jogávamos croqué, noinverno eu lia em voz alta enquanto elas
trabalhavam; depoisdo jantar eu tocava piano e elas escreviam cartas. Se papaiestivesse em casa, vinham amigos para o jantar, e uma vez ao mês mais ou menos íamos
ao teatro. De vez em quando jantávamos fora; às vezes eu ia a um baile em Londres, mas era difícil por causa da volta. As pessoas que víamos eram velhosamigos da
família e parentes, não víamos muita gente. Haviaum clérigo,Mr.Pepper,e os Hunt.Papai em geral gostava deficar quieto quando estava em casa, porque em Hull ele trabalha
muito. E também minhas tias não eram pessoas muito fortes. Uma casa consome muito tempo se você cuida deladireito. Nossas criadas sempre eram ruins, de modo que
tiaLucy passava muito tempo na cozinha, e tia Clara, eu acho,passava a maior parte da manhã tirando pó da sala de visitase cuidando das roupas de cama e pratarias.
E havia os cachorros. Tinham de ser levados para caminhar, além de se-rem banhados e escovados.Sandy morreu,mas tia Clara temuma cacatua muito velha que veio da
Índia. Tudo na nossacasa – exclamou ela – vem de alguma parte! Está cheia demóveis velhos, não realmente velhos, mas vitorianos, coisas da família de minha mãe ou
de meu pai, de que não quiseram se livrar embora não haja realmente lugar para elas. É uma casa bastante bonita,mas um pouco sombria...sem graça, eu diria. – Ela
evocou a visão da sala de visitas em casa; era um grande aposento retangular com uma janela quadrada abrindo para o jardim. Havia cadeiras de veludo verdepostadas
diante da parede; também um armário de livrospesado e esculpido, com portas de vidro, e uma impressãogeral de estofamentos desbotados,grandes espaços de verdeclaro,
e cesto com trabalhos de tricô caindo para fora. Fotosde velhas obras-primas italianas penduradas nas paredes e paisagens de pontes de Veneza e cascatas da Suécia
quemembros da família tinham visto anos atrás. Havia também os dois retratos pintados de pais e avós, e uma gravura deJohn Stuart Mill, reprodução do quadro de Watts.
Era umaposento sem caráter definido, nem típica e obviamente medonho, nem muito artístico, nem realmente confortável. Rachel despertou da contemplação dessa imagem
familiar.
Mas isso não é muito interessante para você – disse,erguendo o olhar.
Santo Deus! – exclamou Hewet. – Nunca na vida estive tão interessado. – Então ela percebeu que enquanto estivera pensando em Richmond os olhos dele permaneceram
grudados em seu rosto. Notar isso animou-a.
Prossiga, por favor, prossiga – insistiu ele. – Vamos imaginar que é quarta-feira. Vocês estão todas almoçando. A senhorita sentada ali, tia Lucy ali e tia Clara
aqui.
Ele arranjou três pedrinhas sobre a relva entre eles.
Tia Clara corta o pescoço do cordeiro – prosseguiuRachel. Fixava seu olhar nas pedrinhas. – Há um velho suporte de porcelana amarelo muito feio à minha frente, chamado
criado-mudo, sobre o qual há três travessas, uma para biscoitos,outra para manteiga,outra para queijo.Há um potede samambaias. E há Blanche, a criada, que é fanhosa.Conversamos...
ah sim, é a tarde de tia Lucy em Walworth,de modo que almoçamos bem depressa. Ela sai, tem umasacola roxa e um caderno preto.Tia Clara tem a sua chamadareunião de
G.F.S. na sala de visitas nas quartas, de modo queeu levo os cachorros para passear. Vou para Richmond Hill,ao longo do casario,e entro no parque.É 18 de abril...mesmodia
que aqui. Na Inglaterra é primavera. O chão está bastante úmido. Mesmo assim eu atravesso a estrada, chego até arelva e caminhamos, e eu canto como sempre faço quando
estou sozinha, até chegarmos a um lugar aberto de onde sepode ver Londres inteira lá embaixo num dia claro. A torreda Hampstead Church aqui, a Catedral de Westminster
ali echaminés de fábrica acolá. Em geral há nevoeiro sobre aspartes mais baixas de Londres; mas muitas vezes está azulsobre o parque quando Londres está nevoenta.
É o localaberto onde os balões passam vindos de Hurlingham.São de um amarelo pálido. Bem, há um cheiro muito bom, especialmente quando queimam madeira na cabana
do zelador que fica ali. Agora eu poderia lhe dizer como ir de um lugar aoutro, exatamente por que árvores você passa e onde se deveatravessar a estrada. Sabe, eu
brincava ali quando criança. Aprimavera é boa, mas é melhor no outono quando os cervosbalem; então começa a escurecer e volto pelas ruas; não seenxergam direito
as pessoas; elas passam muito depressa; malse vêem seus rostos e já somem... disso que eu gosto... e ninguém tem idéia do que se está fazendo...
– Mas imagino que você tenha de estar de volta para o chá? – conferiu Hewet.
Chá? Ah, sim. Cinco horas. Então conto o que andeifazendo, e minhas tias contam o que andaram fazendo, etalvez alguém apareça: digamos, Mrs. Hunt. É uma velhasenhora
com perna manca. Tem ou teve oito filhos; entãoperguntamos por eles. Estão todos espalhados pelo mundo;então perguntamos onde estão, e às vezes estão doentes ounuma
região que tem cólera, ou algum lugar onde só chovedurante cinco meses. Mrs. Hunt – disse ela com um sorriso teve um filho que morreu com um abraço de urso.
Aqui ela parou e olhou para Hewet, para ver se ele se divertia com as mesmas coisas que a divertiam. Ficou tranqüilizada. Mas achou que devia pedir desculpas novamente;
falara demais.
– A senhorita não imagina como isso me interessa – disse ele. Com efeito, seu cigarro apagara e ele teve de acender outro.
– Por que lhe interessa? – perguntou ela.
Em parte porque você é uma mulher – respondeu ele. Quando disse isso, Rachel, que se esquecera de tudo,voltando a um estado infantil de interesse e prazer, perdeu
sua liberdade e tornou-se consciente de si mesma. Sentiuse a um tempo estranha e observada, como se sentia com St. John Hirst. Estava por começar uma discussão que
os teria deixado amargurados um com outro e a definir sensações que não tinham a importância que as palavras costumavam conferir-lhes, quando Hewet levou os pensamentos
dela em outra direção.
Muitas vezes caminhei por essas ruas onde as pessoas vivem em casas enfileiradas, onde cada casa é exatamente igual à outra, e ficava imaginando o que será que as
mulheres estariam fazendo lá dentro – disse ele. – Pense bem: estamos no começo do século XX, e até poucos anos atrásnenhuma mulher jamais se manifestava por si
mesma nemdizia coisa alguma. E essa estranha vida não-representadacontinuava acontecendo ao fundo, há milhares de anos. Naturalmente sempre escrevemos sobre mulheres...
insultando-as, adorando-as ou desdenhando delas; mas nada jamais veio das próprias mulheres. Acredito que ainda nãosabemos nem ao menos como elas vivem, ou o que
sentem,ou o que exatamente elas fazem. Quando se é homem, asúnicas confidências que se escutam de mulheres jovens dizem respeito a seus casos de amor. Mas as vidas
das mulheres de 40, de mulheres descasadas,de trabalhadoras, de mulheres que têm lojas e criam filhos, de mulheres como suastias ou Mrs.Thornbury ou Miss Allan...não
sabemos absolutamente nada a respeito delas. Não nos contam nada. Elastêm medo, ou então descobriram uma maneira de tratar os homens. Sabe, é o ponto de vista masculino
o que se manifesta sempre. Pense num trem: 15 vagões para homens que querem fumar. Isso não faz seu sangue ferver? Se eu fosse uma mulher, explodiria a cabeça de
alguém. Vocês não riemum tanto de nós? Não acham tudo isso uma grande farsa? Vocês, quero dizer... como é que tudo isso lhes parece?
Aquela determinação de saber, embora desse sentido ao diálogo deles, deixava-a inibida; ele parecia pressionar mais e mais, e fazia tudo parecer muito importante.
Ela demorou a responder, e nesse meio tempo repassou e repassou o curso de seus 24 anos de vida, iluminando um ponto aqui, outro ali – suas tias, sua mãe, seu pai;
finalmente sua mente fixou-se nas tias e no pai; e tentou descrevê-los como lhe apareciam naquela distância.
As tias tinham muito medo do pai dela.Ele era uma grande força obscura naquela casa,pela qual se agarravam ao grande mundo representado diariamente pelo Times. Mas
a verdadeira vida da casa era algo bem diferente disso. Prosseguiaindependente de Mr.Vinrace e tendia a esconder-se dele.Eleera bem-humorado em relação a elas,mas
desdenhoso.Rachel sempre teve certeza de que o ponto de vista dele era justo efundado em alguma escala social de coisas, onde a vida de uma pessoa era absolutamente
mais importante do que a vidade outra,e que nessa escala elas eram muito menos importantes do que ele. Mas realmente acreditava? As palavras deHewet faziam-na refletir.Sempre
se submetera a seu pai,exatamente como suas tias,mas eram elas que a influenciavam naverdade; suas tias teciam aquela apertada trama de suas vidasem casa. Eram menos
esplêndidas, mas mais naturais do que o pai dela.Todas as iras de Rachel tinham sido contra elas; era o seu mundo de quatro refeições,sua personalidade,as criadasnas
escadas às dez e meia que ela analisava bem de perto e queria muito veementemente esmigalhar em átomos. Seguindo tais pensamentos, ela ergueu os olhos e disse:
– E há uma espécie de beleza nisso... elas estão neste preciso instante em Richmond construindo as coisas. Estão todas erradas, talvez, mas há nisso uma espécie
de beleza – repetiu ela. – É tão inconsciente, tão modesto. E mesmo assim, elas sentem as coisas. Sofrem quando pessoas morrem. Velhas solteironas estão sempre fazendo
coisas. Não sei direto o que fazem. Mas sei que era isso que eu sentia quando vivia com elas. Era muito real.
Recordou as pequenas jornadas delas de um lado para outro, para Walworth, para faxineiras paralíticas, para reuniões disso e daquilo, seus diminutos atos de caridade
e altruísmo que fluíam pontualmente de uma visão definida do que deviam fazer, suas amizades, seus gostos e costumes; viu todas essas coisas como grãos de areia
caindo, caindo através de incontáveis dias, formando uma atmosfera e criando uma massa sólida, um pano de fundo.Hewet a observava enquanto ela ponderava essas coisas.
– A senhorita era feliz? – interrogou ele.
Ela estava novamente absorvida por outra coisa, e ele a chamou de volta a uma consciência inusitadamente viva de si mesma.
– Eu era as duas coisas – respondeu Rachel – Era feliz e triste. O senhor não tem idéia de como é ser uma jovem.
– Ela o encarou abertamente. – Existem os terrores e as agonias – disse, continuando a fitá-lo como se quisesse detectar o mais leve sinal de riso.
– Acredito – disse ele devolvendo seu olhar com total sinceridade.
As mulheres que se vêem nas ruas – disse ela.
Prostitutas?
– Os homens beijando. – Ele balançou a cabeça. – Coisas que a gente adivinha.
– Nunca lhe contaram nada. Ela sacudiu a cabeça.
– E depois – começou ela, e parou. Aqui estava o grandeespaço de vida no qual nunca ninguém penetrava. Tudo oque estivera dizendo sobre seu pai, suas tias, caminhadas
noRichmond Park e o que faziam de hora em hora, era apenas a superfície. Hewet a observava. Queria que ela descrevesse aquilo também? Por que se sentava tão perto
dela e afitava assim? Por que não acabava com aquela busca e agonia? Por que não se beijavam simplesmente? Ela queriabeijá-lo. Mas o tempo todo ficava tecendo palavras.
– Uma menina é mais solitária do que um menino.Ninguém se importa absolutamente com o que ela faz. Nadase espera dela.A não ser que seja muito bonita,as pessoas
nemescutam o que ela diz... E é disso que eu gosto – acrescentouela energicamente, como se a lembrança fosse muito feliz. –Gosto de caminhar no Richmond Park,cantar
sozinha e saber que ninguém está ligando a mínima. Gosto de ver as coisasacontecerem... quando observamos vocês a outra noite, e nãonos viram... adoro essa liberdade...
é como estar no vento, ou no mar. – Ela virou-se com um curioso gesto e fitou o mar.Ainda estava muito azul, dançando até onde seu olho conseguia chegar, mas a luz
sobre ele agora era mais amarela, e asnuvens tingiam-se de um vermelho-flamingo.Uma depressão forte varou a mente de Hewet enquantoela falava.Parecia óbvio que ela
nunca se importaria mais comuma pessoa do que com outra; evidentemente ela era bastanteindiferente a ele; pareciam estar bem próximos,e logo estavamnovamente mais
afastados do que nunca; o gesto dela,ao afastar-se para outro lado, fora de uma estranha beleza.
– Bobagem – disse ele, bruscamente. – A senhorita gosta das pessoas. Gosta de ser admirada. Sua verdadeira mágoa contra Hirst é que ele não a admira.Por algum tempo
ela não respondeu. Depois, disse:
– Provavelmente seja verdade. Naturalmente gosto de gente... gosto de quase todas as pessoas que conheço.
Ela virou-se de costas para o mar e contemplou Hewetcom olhos amigáveis, embora críticos. Ele era bonito nosentido de que sempre tivera suficiente carne para comer
ear puro para respirar. Sua cabeça era grande; os olhos também; embora geralmente vagos, podiam ser penetrantes; e os lábios eram sensíveis. Podia ser julgado um
homem deconsiderável paixão e energia, provavelmente sujeito a estados de espírito que tinham pouca relação com os fatos; aomesmo tempo tolerante e minucioso. A
largura de suafronte revelava capacidade de reflexão. O interesse com queRachel o contemplava transpareceu em sua voz.
– Que romances o senhor escreve? – perguntou.
Eu quero escrever um romance sobre o silêncio – disse ele –, as coisas que as pessoas não dizem. Mas a dificuldadeé imensa. – Ele suspirou. – Porém a senhorita não
se importa – continuou ele. Olhava-a quase com severidade. – Ninguémseimporta.Só se lêumromance paraverquetipo de pessoa é o escritor e, se é conhecido, para ver
quais deseus amigos ele colocou no livro. Quanto ao romance em si,toda a concepção, a maneira como se vê a coisa, como sesente, como se relaciona com outras coisas
nem uma pessoanum milhão se interessa por isso. Mas às vezes fico imaginando se há alguma coisa no mundo inteiro que valha tantoa pena ser feita. Essas outras pessoas
– ele apontou o hotel estão sempre querendo algo que não conseguem ter. Mashá uma extraordinária satisfação em escrever, mesmo em tentar escrever. O que a senhorita
acaba de dizer é verdade:não queremos ser coisas; queremos apenas poder vê-las.
Parte da satisfação da qual ele falava apareceu em seu rosto quando ele fitou o mar.
Agora, foi a vez de Rachel sentir-se deprimida.Enquanto ele falava em escrever, tornara-se de repente impessoal. Talvez nunca gostasse de ninguém; todo o desejo
de conhecê-la e aproximar-se dela, que a pressionara quase dolorosamente, desaparecera por completo.
– O senhor é um bom escritor? – perguntou ela.
– Sim – disse ele. – Claro que não sou de primeira linha; sou um bom escritor de segunda linha; acho que tão bom quanto Thackeray.Rachel ficou surpresa. Por um lado,
surpreendia-a ouvir chamarem Thackeray de segunda linha; ela não conseguia acreditar que existissem grandes escritores na atualidade, nem que, se existissem, ela
pudesse conhecer algum deles; a confiança de Hewet a deixava atônita, e ele ficava cada vez mais distante.
– Meu outro romance – prosseguiu Hewet – é sobre um jovem obcecado por uma idéia: a idéia de ser um cavalheiro.Ele consegue viver em Cambridge com 100 libras ao
ano.Ele tem um casaco; um dia foi um casaco muito bom. Mas as calças... não são tão boas assim. Bem, ele vai até Londres, entra na boa sociedade devido a uma aventura
de madrugadanas margens de Serpentina. É levado a dizer mentiras... minha idéia, sabe, é mostrar a gradual corrupção da alma... finge ser filho de um grande proprietário
em Devonshire.Enquanto isso o casaco vai ficando cada vez mais velho, e elequase nem se atreve a usar as calças. Pode imaginar o infeliz,depois de uma esplêndida
noitada de orgia, contemplandoessas roupas... pendurando-as ao pé da cama, arranjando-asora em plena luz, ora na sombra, e imaginando se vão sobreviver a ele, ou
se ele é que vai sobreviver a elas? Idéias de suicídio cruzam sua mente. Ele também tem um amigo, umhomem que subsiste de alguma forma vendendo passarinhos, armando
alçapões nos campos abertos de Uxbridge.Os dois são intelectuais. Conheço uma ou duas dessas criaturas infelizes e mortas de fome, que citam Aristóteles diante de
um arenque frito e um caneco de cerveja. Vida elegante, também, preciso apresentar isso até certo ponto, paramostrar meu herói em todas as circunstâncias. Lady TheoBingham
Bingley, cuja égua assustada ele tivera a sorte de fazer parar,é filha de um excelente velho membro do partido conservador. Vou descrever o tipo de festas que uma
vez freqüentei... os intelectuais elegantes, você sabe, que gostam deter em sua mesa os livros mais recentes.Eles dão festas,festas à margem do rio, festas em que
se realizam jogos. Não é difícil conceber os incidentes, a dificuldade é dar-lhes forma... não se deslumbrar com as coisas como Lady Theo se deslumbrava. O fim dela
foi desastroso, coitada, pois o livro,como o planejei,terminaria numa profunda e sórdida respeitabilidade. Rejeitada pelo pai, ela se casa com o meu herói, e moram
numa confortável e pequena villa nos subúrbios de Croydon, cidadezinha onde ele se instala como corretor deimóveis. Jamais consegue tornar-se um verdadeiro cavalheiro.
Essa é a parte interessante. Parece-lhe o tipo de livro que a senhorita iria gostar de ler? Ou talvez preferisse minhatragédia Stuart – prosseguiu sem esperar a
resposta dela. –Minha idéia é que há uma qualidade de beleza no passado,que o romancista histórico comum arruína com suas convenções absurdas. A lua torna-se a Rainha
do Céu. Pessoas enfiam esporas em seus cavalos, e coisas assim. Vou tratar aspessoas como se fossem exatamente iguais a nós. A vantagem é que, esquivando-se das
condições modernas, pode-setorná-las mais intensas e mais abstratas do que as pessoasque vivem como nós.
Rachel escutara tudo com atenção, mas com certa perplexidade. Ambos mergulhavam em seus próprios pensamentos.
– Eu não sou como Hirst – disse Hewet depois de uma pausa; falava em tom pensativo –, não vejo círculos de giz entre os pés das pessoas. Às vezes gostaria de ver.Parece-me
tão complicado e confuso. Não se pode tomar decisão alguma; e somos cada vez menos capazes de fazer um julgamento. Você acha isso? E depois, nunca sabemos o que
sentimos. Estamos todos no escuro. Tentamos descobrir, mas pode imaginar algo mais ridículo do que a opinião de uma pessoa acerca de outra pessoa? Achamos que sabemos,
mas na verdade não sabemos.
Dizendo isso ele se apoiava no cotovelo, arranjando e rearranjando na relva as pedras que tinham representado Rachel e as tias no almoço. Falava tanto para si mesmo
quanto para Rachel. Raciocinava contra o desejo que voltara, intenso, de pegá-la nos braços, de ser franco, de explicar exatamente o que sentia. O que dizia era
contra sua crença; todas as coisas importantes a respeito dela, ele sabia; sentia-as no ar ao redor deles; mas não dizia nada; continuava ordenando as pedras.
Eu gosto do senhor; o senhor gosta de mim? – comentou Rachel subitamente.
Gosto imensamente – respondeu Hewet falando com o alívio de uma pessoa a quem de repente se dá a oportunidade de dizer o que quer dizer. Ele parou de mexer as pedras.
– Não podemos nos chamar de Rachel e Terence? – perguntou ele.
– Terence – repetiu Rachel. – Terence... é como o pio de uma coruja.
Ela ergueu os olhos com um súbito acesso de encantamento e, olhando para Terence com olhos arregalados de prazer, ficou chocada com a mudança no céu atrás deles.O
substancioso dia azul apagara-se num azul mais pálido e etéreo; as nuvens eram rosadas; distantes e bem unidas; e a paz do anoitecer substituíra o calor da tarde
sulina em que tinham começado sua caminhada.
– Deve ser tarde! – exclamou. Eram quase oito horas.
– Mas oito horas aqui não contam, contam? – perguntou Terence enquanto se levantavam e se viravam para o interior. Começaram a caminhar depressa morro abaixo na
pequena trilha entre as oliveiras.Sentiam-se mais íntimos porque tinham partilhado o que significava oito horas em Richmond.Terence caminhava na frente, pois não
havia espaço para ambos lado a lado.
– O que eu quero fazer escrevendo romances é bastante parecido com o que você quer quando toca piano, eu acho – começou ele. – Queremos descobrir o que há por trás
dascoisas, não?... Olhe as luzes lá embaixo espalhadas por todaparte. As coisas que sinto me vêm como luzes... Quero combiná-las... Você já viu aqueles fogos de
artifício queformam figuras? Eu quero fazer as figuras... É isso que vocêquer fazer?Agora estavam na estrada e podiam andar juntos.
– Quando toco piano? Música é diferente... mas entendo o que quer dizer. – Tentaram inventar teorias e fazer suas teorias concordarem entre si. Como Hewet não conhecesse
música, Rachel pegou sua bengala e desenhou figuras na fina poeira branca para explicar como Bach escrevera suas fugas.
– Meu talento musical foi arruinado – explicou ele enquanto andavam depois de uma dessas demonstrações – pelo organista do povoado, que inventara um sistema de notação,
com que tentava me ensinar, e assim nunca consegui tocar nada. Minha mãe achava que música não era coisa de meninos; queria que eu matasse ratos e pássaros... isso
é o pior de viver no interior. Moramos em Devonshire. É o lugar mais adorável do mundo. Mas... é sempre difícil em casa quando se é adulto. Eu gostaria que você
conhecesse uma de minhas irmãs... Ah, aqui está o seu portão. – Ele o empurrou e abriu. Pararam por um momento. Ela não podia convidá-lo a entrar. Não podia dizer
que esperava que se encontrassem de novo. Não ha-via nada a ser dito; e assim, sem uma palavra, ela atravessou o portão e logo ficou invisível. Assim que a perdeu
de vista, Hewet sentiu voltar o velho desconforto, até mais forte do que antes. A conversa deles fora interrompida no meio, quando ele começava a dizer as coisas
que queria dizer. Afinal, o que tinham conseguido dizer? Ele repensou as coisas que tinham dito, as coisas eventuais e desnecessárias que tinham girado ao redor
e consumido todo o tempo, impelindo-os tão para perto um do outro e separando-os tanto, deixando-o no fim insatisfeito, ainda sem saber o que ela sentia ou como
ela era. De que adianta falar, falar, apenas falar?
17
Era alta estação e cada navio que vinha da Inglaterra deixava algumas pessoas nas praias de Santa Marina, que subiam para o hotel. O fato de os Ambrose terem uma
casa onde se podia escapar por um momento da atmosfera levemente desumana de um hotel era fonte de genuíno prazer, não só para Hirst e Hewet, mas para os Elliot,
os Thornbury, os Flushing, Miss Allan, Evelyn M., além de pessoas cuja identidade era tão pouco desenvolvida que osAmbrose nem sabiam que tinham nomes. Estabeleceu-se
ali, paulatinamente, uma espécie de correspondência entre as duas casas, a grande e a pequena, de modo que a maior parte das horas do dia uma casa podia adivinhar
o que acontecia no outra, e as palavras ‘a villa’ e ‘o hotel’ evocavam a idéia de dois sistemas de vida separados.Conhecidos mostravam sinais de se transformarem
em amigos, por isso uma ligação com a sala de visitas de Mrs.Parry se dividira inevitavelmente em muitas outras, conectadas com diferentes partes da Inglaterra,
e às vezes essas alianças pareciam cinicamente frágeis, às vezes dolorosamente agudas, pois faltava-lhes o fundo sólido da organizada vida inglesa que as apoiasse.
Uma noite, quando a luz estava inteira entre árvores, Evelyn M. contou a Helen a história de sua vida e afirmou sua amizade duradoura; noutra ocasião, apenas por
causa de um suspiro, ou pausa, ou uma palavra impensada, a pobre Mrs. Elliot deixou a villa quase em prantos, jurando nunca mais encontrar a mulher fria e sarcástica
que a insultara, e na verdade nunca mais se encontraram. Não parecia valer a pena consertar uma amizade tão tênue.
Hewet deve ter encontrado excelente material dessa vez na villa para alguns capítulos do romance que se chamaria “Silêncio, ou as coisas que as pessoas não dizem”.Helen
e Rachel tinham-se tornado muito silenciosas. Tendo detectado, como pensava, um segredo, e julgando que Rachel queria escondê-lo dela, Mrs. Ambrose respeitava isso
cuidadosamente, mas por isso, embora não intencionalmente, cresceu entre elas uma estranha atmosfera de reserva. Em vez de partilharem seus pontos de vista sobre
todos os temas e mergulhar numa idéia até onde ela poderia levar, falavam principalmente sobre as pessoas que tinham visto, e o segredo entre elas se manisfetava
no que diziam até sobre os Thornbury e os Elliot. Sempre calma e não emotiva em seus julgamentos, Mrs. Ambrose agora inclinava-se a um definitivo pessimismo. Não
era tão severa com indivíduos quanto incrédula com a bondade do destino, a sorte, o que acontece a longo prazo, e era capaz de insistir que isso era em geral adverso
às pessoas na proporção em que mereciam. Mesmo essa teoria ela rejeitaria em favor de uma que fazia o caos triunfar, coisas acontecerem sem motivo algum, todo mundo
andando às cegas na ilusão e ignorância. Com certo prazer ela passou esses pontos de vista à sobrinha, pegando como pretexto uma carta de casa, que dava boas notícias
mas podia ter dado notícias ruins. Como é que ela sabia que naquele mesmo instante seus filhos não estavam mortos, esmagados por um ônibus? “Está acontecendo com
alguém: por que não aconteceria comigo?”, argumentava ela, rosto assumindo a expressão estóica da dor antecipada. Por mais sinceras que fossem essas opiniões, sem
dúvida eram provocadas pelo estágio irracional da mente de sua sobrinha,que era tão flutuante e passava tão depressa de alegria a desespero, que parecia necessário
confrontá-la com alguma opinião estável, que naturalmente se tornava tão sombria quanto estável. Talvez Mrs. Ambrose tivesse alguma idéia de que conduzindo a conversa
para esse território poderia descobrir o que se passava na mente de Rachel,mas era difícil julgar, pois às vezes ela concordava com a coisa mais melancólica que
se dissesse; noutras, recusavase a escutar e recebia as teorias de Helen com risadas, tagarelice, ridicularizando-as ao máximo, ou com ferozes acessos de ira, mesmo
diante do que chamava “o grasnar de um corvo na lama”.
As coisas já são bastante difíceis sem isso – afirmou ela.
O que é difícil? – indagou Helen.
A vida – respondeu, e as duas ficaram em silêncio.
Helen podia tirar suas próprias conclusões do porquê de a vida ser difícil, ou do porquê de uma hora depois talvez a vida fosse tão maravilhosa e viva que os olhos
de Rachel, contemplando-a, tornavam-se realmente engraçados para um espectador. Fiel ao seu credo, ela não tentou interferir, embora houvesse vários desses momentos
de depressão que tornariam fácil para uma pessoa menos escrupulosa pressionar e descobrir tudo; talvez Rachel lamentasse que sua tia não fizesse isso. Todos esses
estados de ânimo fundiam-se num efeito geral, que Helen comparava ao fluir de um rio, rápido, mais rápido, mais ainda,quando dispara para uma cachoeira. Seu instinto
era gritar “Pare!” mas mesmo que adiantasse gritar “Pare!” ela teria se contido, pensando ser melhor que as coisas seguissem seu curso, com a água disparando porque
a terra era feita de modo a que corresse assim.
A própria Rachel parecia não suspeitar de que estava sendo observada ou de que houvesse no seu comportamento algo que pudesse chamar atenção. Não sabia o que lhe
tinha acontecido. Sua mente estava na mesma situação que a água em disparada com a qual Helen a comparava. Queria ver Terence; desejava constantemente vê-lo quando
ele não estava ali; era uma agonia não o ver; seu dia estava repleto de agonias por causa dele, mas ela jamais se indagava de onde vinha essa força que agora perpassava
sua vida. Não pensava em resultados, como uma árvore dobrada pelo vento não analisa o resultado de estar sendo curvada pelo vento.
Durante as duas ou três semanas que passaram desde aquele passeio, meia dúzia de bilhetes dele acumulava-se na gaveta. Ela os lia e passava a manhã inteira num aturdimento
de felicidade; a paisagem ensolarada diante da janela não conseguindo analisar sua própria cor e calor mais do que ela era capaz de analisar suas cartas. Nesse estado
de ânimo ela achava impossível ler ou tocar piano,até mexer-se um pouco que fosse além da sua natural inclinação no momento. O tempo passava sem que ela percebesse.
Quando estava escuro, era atraída para a janela pelas luzes do hotel. Uma luz que acendia e apagava era a luz da janela de Terence; lá estava ele sentado, talvez
lendo, ou caminhando pelo quarto pegando um livro ou outro; agora ele estava sentado na sua cadeira outra vez; e ela tentava imaginar o que estaria pensando. As
luzes estáveis marcavam os quartos em que Terence se sentava com pessoas movendo-se ao seu redor. Cada pessoa que se hospedava no hotel tinha um romantismo ou interesse.
Não eram gente comum. Ela atribuía sabedoria a Mrs. Elliot,beleza a Susan Warrington, uma vitalidade esplêndida a Evelyn M.,pois Terence falava com elas.Tão impensados
e difusos eram seus estados de depressão. Sua mente era como a paisagem lá fora quando o escuro sob as nuvens dava açoites de vento e granizo. Mais uma vez ela se
sentava passiva na sua cadeira, exposta ao sofrimento, e as palavras fantásticas ou tristes de Helen eram como setas fazendo-a chorar a dureza da vida. O melhor
de tudo eram os estados de ânimo, quando por nenhuma razão essa ênfase de sentimento afrouxava e a vida prosseguia como de costume, apenas com uma alegria e uma
cor antes desconhecidas; tinham um significado parecido com o que vira na árvore: as noites eram grades negras separando-a dos dias; teria gostado de fazer fluir
os dias todos numa longa sensação contínua. Embora esses estados de alma fossem causados direta ou indiretamente pela presença de Terence, ou a lembrança dele, ela
nunca dizia a si mesma que estava apaixonada por ele, nem imaginava o que aconteceria se continuasse a sentir tais coisas, de modo que a imagem de Helen, o rio deslizando
para uma cachoeira, era muito semelhante aos fatos, e o alarma que Helen por vezes sentia era justificado.
No seu estranho estado de sensações não analisadas, ela era incapaz de fazer um plano que tivesse qualquer efeito sobre sua disposição mental. Abandonava-se ao acaso,
um dia sentindo falta de Terence; no outro, encontrando-se com ele, recebendo suas cartas sempre com um movimento de surpresa. Qualquer mulher experiente no curso
dessa corte teria extraído de tudo isso ao menos uma opinião que a ajudasse a elaborar uma teoria a seguir;mas ninguém jamais estivera apaixonado por Rachel, nem
ela se apaixonara por ninguém. Mais que isso, nenhum dos livros que lia, de O morro dos ventos uivantes a Homem e super-homem, e as peças de Ibsen, sugeria na sua
análise do amor que o que suas heroínas sentiam era o que ela agora estava sentindo. Parecia-lhe que suas sensações não tinham nome.
Rachel via Terence freqüentemente. Quando não se encontravam, ele conseguia mandar um bilhete com um livro ou acerca de um livro, pois não conseguira negligenciar
esse tipo de intimidade. Mas às vezes ele não vinha nem escrevia por vários dias seguidos. E quando se encontravam, seu encontro podia ser de grande alegria ou de
um desespero aniquilador. Por sobre as suas despedidas pairava a sensação de interrupção, deixando-os insatisfeitos, embora sem saberem que o outro partilhava da
mesma sensação.
Se Rachel ignorava seus próprios sentimentos, ignorava mais ainda os dele. No começo ele se movia como um deus; quando o conheceu melhor, ele ainda era centro de
luz, mas combinava com essa beleza um maravilhoso poder de deixá-la audaciosa e confiante. Ela tinha consciência de emoções e poderes que jamais suspeitaria ter,
e de uma profundidade até então desconhecida no mundo.Quando pensava em sua relação, ela antes via do que raciocinava, representando sua visão do que Terence sentia
com a imagem dele arrastado pela sala para ficar a seu lado. Essa passagem pelo aposento era um sensação física,mas ela não sabia o que significava.
Assim passava-se o tempo com uma aparência calma e luminosa na superfície. Chegavam cartas da Inglaterra,cartas de Willoughby, e os dias acumulavam seus pequenos
acontecimentos que formavam o ano. Superficialmente, três odes de Píndaro foram corrigidas, Helen fez cerca de cinco polegadas de seu bordado, e St. John completou
os dois primeiros atos de uma peça. Ele e Rachel eram agora bons amigos, e ele lia em voz alta para ela, que ficava tão impressionada pela habilidade dos seus ritmos
e a variedade de seus adjetivos, além do fato de ele ser amigo de Terence, que ele começava a imaginar se seu destino não seria literatura em vez de direito. Foi
uma época de reflexões profundas e súbitas revelações para mais de um casal e para várias pessoas isoladas.
Chegou um domingo, coisa que ninguém na villa, exceto Rachel e a criada espanhola, queria reconhecer. Rachel ainda ia à igreja, porque, segundo Helen, nunca se dera
ao trabalho de pensar sobre isso. Já que celebravam missa no hotel ela foi até lá, esperando ter alguma alegria ao atravessar o jardim e o saguão, embora fosse difícil
ver Terence e ter oportunidade de lhe falar.
Como a maior parte dos visitantes do hotel eram ingleses, havia quase tanta diferença ali entre quarta-feira e domingo quanto na Inglaterra, e domingo ali parecia,
comolá, o mudo espectro negro ou espírito penitente do maisocupado dia da semana. Os ingleses não conseguiam empalidecer o sol, mas de alguma forma milagrosa podiam
daràs horas um curso mais lento, tornar os incidentes mais sem graça, prolongar as refeições e fazer até criadas e pajensassumirem uma expressão de tédio e compostura.
As melhores roupas que todo mundo vestia ajudavam naqueleefeito geral; parecia que nenhuma dama se sentaria sem dobrar uma anágua limpa e engomada, e nenhum cavalheiro
poderia respirar sem um súbito estalar de seu peito decamisa rijo.
Quando os ponteiros do relógio se aproximaram das onze naquele domingo especial, várias pessoas começaram a reunir-se no saguão, segurando livrinhos de páginas vermelhas.
O relógio marcava minutos antes da hora quando passou uma robusta figura preta, atravessou o saguão com ar preocupado, como se preferisse não notar os cumprimentos
embora tivesse consciência deles, e desapareceu pelo corredor que partia de lá.
– Mr. Bax – sussurrou Mrs. Thornbury.
O grupinho de pessoas começou então a afastar-se na mesma direção em que fora a robusta figura negra.Encaradas com estranheza pelas pessoas que não faziam menção
de se reunir a elas, moveram-se, com uma exceção, lenta e conscientemente até as escadarias. Mrs. Flushing era a exceção. Desceu as escadas correndo, pas-sou pelo
saguão, juntou-se ofegante ao cortejo, perguntando a Mrs. Thornbury num sussurro agitado:
– Onde, onde?
– Estamos todos indo – disse Mrs.Thornbury,e logo desciam as escadas dois a dois. Rachel foi uma das primeiras adescer. Não viu que Terence e Hirst entravam pelos
fundoscarregando não um volume preto, mas um livro fino encapado com tecido azul-claro, que St. John trazia sob o braço.
A capela era a velha capela dos monges. Era um local fresco e profundo onde se celebrava a missa há centenas de anos, penitenciava-se ao luar frio e se adoravam
velhas pinturas marrons e santos esculpidos com mãos erguidas em bênção nos nichos das paredes. A transição de culto católico a protestante fora feita durante um
período de desuso, quando não havia cerimônias e o lugar era usado para guardar jarras de azeite, licor e cadeiras espreguiçadeiras; o hotel florescendo, alguma
corporação religiosa tomara conta do lugar e agora ele era provido de uma série de bancos amarelos lustrosos e genuflexórios de cor púrpura; tinha um pequeno púlpito,
uma águia de latão sustentando nas costas uma Bíblia, enquanto a piedade de várias mulheres fornecera feios retângulos de tapeçaria e longas tiras de bordado pesadamente
ornamentais com monogramas dourados.
Enquanto os fiéis entravam, eram recebidos por suaves acordes de um harmônio tocado por Miss Willett, escondida por uma cortina de baeta. O som espalhou-se pela
capela como círculos de água provocados por uma pedra caída. As 20 ou 25 pessoas que compunham os fiéis baixaram as cabeças, e depois sentaram-se eretas olhando
em torno. Estava muito quieto, e a luz ali embaixo parecia mais pálida do que a luz de cima. Não trocavam os habituais cumprimentos e sorrisos, mas reconheciam-se
mutuamente. O pai-nosso foi lido. Quando se ouviu o balbucio infantil de vozes, os fiéis, muitos dos quais só tinham se encontrado na escadaria, sentiam-se pateticamente
unidos e bem dispostos uns em relação aos outros. Como se a oração fosse uma tacha aplicada a um combustível,uma fumaça parecia erguer-se automaticamente e encher
o lugar com os fantasmas de incontáveis cerimônias em incontáveis manhãs de domingo em casa. Susan Warrington em particular tinha consciência da mais doce fraternidade
quando cobriu o rosto com as mãos e viu faixas de costas curvadas através das frestas entre os dedos. Suas emoções intensificavam-se calma e regularmente, e ela
ao mesmo tempo aprovava a si mesma e à vida.Tudo estava tão quieto e tão bom. Mas tendo criado essa atmosfera pacífica, Mr. Bax de repente virou a página e leu um
salmo. Embora lesse sem mudar a voz, o estado de espírito desfizera -se.
– Tende misericórdia de mim, oh... Deus – leu ele –, pois o homem está prestes a me devorar, ele está diariamente combatendo-me e perturbando-me... Diariamente interpretam
mal minhas palavras: tudo o que imaginam é causar-me mal. Unem-se e ficam unidos... Quebrai os dentes deles, ó Deus, em suas bocas; esmagai os maxilares dos leões,
ó Senhor: fazei com que se desmanchem como água que corre depressa; e quando dispararem suas setas,fazei com que sejam exterminados.
Nada na experiência de Susan correspondia a isso; e como ela não apreciava a linguagem, há muito cessara de prestar atenção em tais comentários, embora os seguisse
com a mesma espécie de respeito mecânico com que ouvira muitas das falas de Lear pronunciando alto. Sua mente ainda era serena e realmente ocupava-se com o louvor
à própria natureza e o louvor a Deus... isto é, à solene e satisfatória ordem do mundo.
Mas podia se ver por uma olhada em seus rostos que a maior parte dos outros, especialmente homens, sentia a inconveniência da súbita intrusão daquele velho selvagem.
Pareciam mais seculares e críticos enquanto escutavam as iras daquele velho de preto com um pano em tor-no dos rins amaldiçoando com gestos veementes junto de uma
fogueira no deserto. Depois disso, ouviu-se o ruído generalizado de páginas sendo viradas, como se estivessem numa sala de aula; então foi lido um pouco do Velho
Testamento, a respeito da construção de um poço, tudo bem parecido com meninos de colégio traduzindo uma passagem fácil do Anábasis depois de fecharem sua gramática
francesa.Voltaram então ao Novo Testamento e à triste e bela figura de Cristo. Enquanto Cristo falava, faziam outro esforço de adaptarem sua interpretação da vida
às vidas que viviam, mas como fossem todos diferentes, uns práticos, uns ambiciosos, uns tolos, outros tumultuados e experimentais, alguns apaixonados e outros já
há muito tendo superado qualquer emoção, exceto a sensação de conforto, faziam coisas bem diversas com as palavras de Cristo.
Pelas suas feições parecia que a maior parte deles não fazia esforço algum e, por ser mais cômodo, aceitavam as idéias transmitidas pelas palavras como sendo palavras
de bondade, assim como as industriosas bordadeiras tinham aceitado como bonito o feio colorido de sua esteira.
Fosse qual fosse o motivo, pela primeira vez na sua vida, em vez de deslizar de uma vez para dentro de alguma curiosa e agradável nuvem de emoção, familiar demais
para ser levada em conta, Rachel escutava criticamente o que se dizia. Depois de passada a forma irregular de uma oração a um salmo, do salmo à história, da história
à poesia, e Mr. Bax estava dizendo seu texto, ela ficou num estado de desconforto intenso. O desconforto era igual ao que sentia quando forçada a escutar uma peça
de música ruim e mal tocada. Torturada, enfurecida pela grosseira insensibilidade do regente, que acentuava nos lugares errados, e aborrecida com o vasto rebanho
da platéia elogiando e concordando sem saber nem se importar com nada, ela agora estava torturada e enfurecida, só que ali,com olhos semicerrados e lábios apertados,
a atmosfera de forçada solenidade aumentava sua raiva. Ao seu redor havia gente fingindo sentir o que não sentia, enquanto flutuava acima dela a idéia de que nenhum
deles podia entender o que fingiam entender, sempre inalcançável,uma bela idéia, uma idéia que parecia uma borboleta.Uma depois da outra, vastas, e hirtas, e frias
lhe apareceram todas as igrejas do mundo, onde esse esforço desajeitado e esse mal-entendido aconteciam perpetuamente,em grandes edificações repletas de incontáveis
homens e mulheres que não enxergam direito, que finalmente desistiam do esforço de enxergar, caindo obedientemente em louvor e concordância, olhos semicerrados e
lábios apertados. O pensamento causava a mesma espécie de desconforto provocado por uma névoa que se interpusesse constantemente entre olhos e página impressa. Ela
esforçou-se ao máximo para remover a névoa e conceber algo que pudesse ser venerado enquanto a cerimônia prosseguia; mas não conseguiu, sempre desviada pela voz
de Mr.Bax dizendo coisas que deformavam a idéia e pelo murmúrio de vozes humanas inexpressivas balindo e caindo ao seu redor como folhas molhadas. O esforço era
cansativo e desanimador. Ela cessou de escutar e tirou os olhos na face de uma mulher próxima, uma enfermeira de hospital, cuja expressão de atenção devota parecia
provar que de alguma forma tinha satisfação. Mas olhando atentamente para ela, Rachel concluiu que a enfermeira estava apenas concordando com tudo aquilo de modo
servil e que a expressão de satisfação não vinha de nenhuma esplêndida concepção de Deus em seu interior. Como, aliás,poderia conceber algo tão fora de sua própria
experiência,uma mulher com aquele rosto banal, um rostinho corado e redondo, sobre o qual deveres banais e ódios banais tinham traçado linhas, cujos fracos olhos
azuis olhavam sem intensidade nem individualidade, cujas feições eram borradas, insensíveis e duras? Ela estava adorando algo frívolo e presunçoso, agarrando-se
àquilo, conforme testemunhava a boca obstinada, com a tenacidade de um marisco; nada a arrancaria de sua crença séria em sua própria virtude e nas virtudes de sua
religião. Era um marisco com seu lado sensível preso na rocha, morto para sempre para a torrente de coisas frescas e belas que passavam junto dele. O rosto dessa
única adoradora imprimiu-se na mente de Rachel com uma impressão de puro horror; de repente ela teve a revelação do que Helen e St. John queriam dizer quando proclamavam
seu ódio ao cristianismo.Com a violência que agora marcava suas sensações, ela rejeitou tudo aquilo em que implicitamente acreditara.
Enquanto isso Mr. Bax estava na metade da segunda lição. Ela o contemplava. Era um homem do mundo com lábios flexíveis e modos agradáveis, era na verdade um homem
de muita bondade e simplicidade, embora nada inteligente, mas ela não estava disposta a dar qualquer crédito a essas qualidades, e o examinava como se fosse a síntese
de todos os vícios do seu culto.
Bem nos fundos da capela, Mrs. Flushing, Hirst e Hewet sentavam-se numa fila, em estados de espírito bem diferentes. Hewet fixava o teto com as pernas estendidas
àfrente, pois como jamais tentara adequar a cerimônia aqualquer sentimento ou idéia sua, era capaz de apreciar abeleza da linguagem sem impedimento. Sua mente ocupou-se
primeiro com coisas acidentais, como o cabelo dasmulheres à sua frente, e a luz sobre os rostos, depois compalavras que lhe pareceram magníficas, e depois mais vagamente,
com as personagens dos outros fiéis. Mas quandosubitamente percebeu Rachel, todos esses pensamentos foram expulsos de sua mente, e pensou somente nela. Os salmos,
as orações, a ladainha e o sermão reduziram-se todos a um único som de cântico que parava e depois se renovava,um pouco mais alto, um pouco mais baixo. Ele fitava
alternadamente Rachel e o teto, e sua expressão agora não nascia do que estava vendo, mas de algo em sua mente. Estavaquase tão dolorosamente perturbado por seus
pensamentosquanto Rachel pelos dela.
No começo da cerimônia Mrs. Flushing descobriu que pegara uma Bíblia em vez de um livro de orações e, sentada perto de Hirst, deu uma olhada por cima do ombro dele.
Ele estava lendo firmemente um volume azul-claro. Incapaz de compreender, ela espiou mais de perto, e Hirst educadamente colocou o livro à frente dela, apontando
o primeiro verso de um poema grego, e depois a tradução na outra página.
– O que é isso? – sussurrou ela.
– Safo – respondeu ele. – A tradução de Swinburne, a melhor coisa já escrita.
Mrs. Flushing não resistiu a tal oportunidade. Engoliu a Ode a Afrodite durante a ladainha, contendo-se com dificuldade para não perguntar quando Safo vivera e o
que mais escrevera que fosse digno de ser lido, e conseguindo com certa pontualidade no fim pronunciar “o perdão dos pecados, a ressurreição da carne e a vida eterna.Amém”.
Enquanto isso Hirst pegava um envelope e começava a rabiscar no verso. Quando Mr. Bax subiu ao púlpito ele fechou Safo com o envelope entre as páginas, ajeitou os
óculos e fixou seu olhar intensamente sobre o clérigo.Parado no púlpito, este parecia muito grande e gordo; a luz vindo das janelas esverdeadas fazia seu rosto parecer
liso e branco como um enorme ovo.
Ele olhou em torno para todos os rostos que o fixavam brandamente lá de baixo, embora alguns fossem rostos de homens e mulheres com idade para serem seus avós, e
disse seu texto com grande imponência. O tema do sermão era que visitantes naquele lindo país, embora de férias, tinham dever para com os nativos. Na verdade não
diferia muito de um artigo sobre assuntos de interesse geral nos seminários. Divagava de um ponto a outro com uma espécie de verborragia cordial, sugerindo que todos
os seres humanos são bastante parecidos debaixo de sua pele, ilustrando isso com a semelhança das brincadeiras dos menininhos espanhóis e dos menininhos de Londres,observando
que coisas muito pequenas influenciam as pessoas, especialmente nativos; de fato um amigo muito querido de Mr. Bax dissera-lhe que o sucesso de nossa lei na Índia,
aquele vasto país, dependia grandemente do estrito código de polidez adotado pelos ingleses para com os nativos, o que levou ao comentário de que as pequenas coisas
não são necessariamente pequenas e de alguma forma, à virtude da simpatia, virtude mais necessária hoje em dia do que nunca, quando vivemos numa época de experimentação
e mudança – veja-se o aeroplano e o telegrama sem fio; havia outros problemas que dificilmente se apresentariam a nossos país, mas que nenhum homem que se considera
homem poderia deixar sem solução.Aqui Mr. Bax tornou-se mais claramente clerical, se é que era possível, parecendo falar com uma certa inocente astúcia ao apontar
que tudo isso impunha um dever especial aos cristãos sérios. O que os homens se inclinavam a dizer era “Ah, aquele sujeito... é um pároco”. O que queremos que digam
é “Ele é um bom sujeito”, em outras palavras,“Ele é meu irmão”. Exortou-os a manterem-se em contato com homens do tipo moderno; precisavam simpatizar com seus múltiplos
interesses a fim de compreender sempre que não importa que descobertas se fizessem, havia uma que não podia ser superada, tão necessária ao mais brilhante e bem-sucedido
entre eles quanto fora aos seus pais. O mais humilde podia ajudar; as coisas menos importantes influenciavam (aqui ele tornou-se decididamente sacerdotal, seus comentários
parecendo destinados às mulheres, pois os fiéis de Bax eram na grande maioria mulheres, e estava habituado a mostrar-lhes seus deveres em suas inocentes campanhas
clericais). Deixando de lado as instruções mais definidas, ele passou adiante, e seu tema ampliou-se numa peroração para a qual respirou fundo e se postou muito
ereto.
– Assim como uma gota d’água, isolada, sozinha,apartada de outras, caindo da nuvem e entrando nogrande oceano se altera, os cientistas assim nos contam,não apenas
o ponto no oceano onde ela cai se altera, mastoda a miríade de gotas que, juntas, compõem o grandeuniverso das águas, alterando assim a configuração doglobo, as
vidas de milhões de criaturas no oceano e, finalmente, as vidas dos homens e mulheres que ganham a vida nas praias... Tudo isso está na dimensão de umaúnica gota
d’água, como qualquer chuvarada envia milhões para que se percam na terra... para que se percamna terra, nós dizemos, mas sabemos muito bem que os frutos da terra
não podem brotar sem elas... uma maravilha comparável ao que está ao alcance de qualquer umde nós, que, soltando uma pequena palavra ou uma pequena ação no grande
universo, altera-o; sim, é umaidéia solene, altera-o, para o bem ou o mal, não por uminstante ou num pequeno ambiente, mas através de todaa raça e por toda a eternidade.
Virando-se de um lado a outro como para impedir aplauso, ele prosseguiu no mesmo fôlego, mas num tom de voz diferente:
– E agora, ao Senhor nosso Pai...
Ele deu sua bênção e então, enquanto os acordes solenes brotavam mais uma vez do harmônio atrás da cortina, as diferentes pessoas começaram a remexer-se, e talvez
a mover-se muito desajeitada e conscientemente na direção da porta. A meio caminho na escada, num ponto em que luzes e sons do mundo superior, conflitavam com a
penumbra e a melodia moribunda dos hinos do mundo inferior, Rachel sentiu uma mão sobre seu ombro.
– Miss Vinrace – sussurrou imperiosamente Mrs. Flushing –, fique para o almoço. Está um dia tão melancólico. Eles não dão nem um bife no almoço. Fique, por favor.
Saíram então para o saguão, onde mais uma vez o pequeno bando foi saudado com curiosos olhares respeitosos pelas pessoas que não tinham ido à igreja, embora suas
roupas deixassem claro que aprovavam o domingo quase a ponto de irem à igreja. Rachel sentiu-se incapaz de agüentar mais aquela atmosfera particular, e estava por
dizer que tinha de voltar quando Terence passou por elas,arrastado numa conversa com Evelyn M. Rachel então contentou-se em dizer que as pessoas pareciam muito respeitáveis,
comentário negativo que Mrs. Flushing interpretou como afirmação de que Rachel ficaria.
Ingleses no exterior! – disse com um vivo tom de malícia. – Não são medonhos? Mas não vamos ficar aqui continuou, puxando o braço de Rachel. – Venha até meu quarto.
Ela a empurrou passando por Hewet, Evelyn, os Thornbury e os Elliot. Hewet adiantou-se.
– Almoço...
– Miss Vinrace prometeu almoçar comigo – disse Mrs. Flushing, começando a subir energicamente as escadas, como se a classe média da Inglaterra a estivesseperseguindo.
Não parou até bater atrás delas a porta do seu quarto.
– Bem, o que achou? – perguntou, ofegando um pouco.
Toda a repulsa e horror que Rachel andara acumulando explodiram descontroladamente.
– Achei a exibição mais odiosa que já vi! – disse num rompante. – Como podem... como se atrevem... o que querem dizer com isso... Mr. Bax, enfermeiras, velhos,prostitutas,
repulsivos...Ela atacou o mais depressa que podia os pontos que lembrava, mas estava indignada demais para parar e analisar seus sentimentos. Mrs. Flushing observava
com ávido prazer sua fala abrupta acompanhada de movimentos enfáticos de cabeça e mãos.
– Prossiga, prossiga, prossiga! – ria ela, batendo pal-mas. – É delicioso escutar você!
– Mas então por que a senhora vai? – perguntou Rachel.
– Tenho ido todos os domingos de minha vida desde que me lembro – Mrs. Flushing ria satisfeita, como se isso por si já fosse motivo.
Rachel virou-se bruscamente para a janela. Não sabia o que a deixara naquele estado tão passional; a visão de Terenceno saguão confundira seus pensamentos, deixando-a
apenasindignada. Olhou direto para a sua própria villa, a meio caminho na encosta da montanha. A vista mais conhecida olhada através de vidro tem uma certa distinção
não familiar; enquanto olhava ela foi se acalmando. Então lembrou queestava na presença de alguém a quem nem conhecia direito,virou-se e olhou Mrs. Flushing, que
ainda estava sentada nabeira da cama olhando para o alto, os lábios entreabertosmostrando duas fileiras de fortes dentes brancos.
– Diga-me, de quem gosta mais, de Mr. Hewet ou de Mr. Hirst?
– De Mr. Hewet – respondeu Rachel, mas sua voz não soava natural.
– Qual dos dois é o que lê grego na igreja? – indagou Mrs. Flushing. Podia ter sido qualquer um deles e, enquanto Mrs. Flushing passava a descrevê-los e a dizer
que os dois a assustavam, embora um a assustasse mais, Rachel procurava uma cadeira. Naturalmente o quarto era o maior e mais luxuoso do hotel. Havia muitas poltronas
e banquetas cobertas de linho marrom, mas cada uma dessas peças estava ocupada por um grande pedaço de papelão amarelo quadrado, e em todas as peças de papelão havia
pontinhos ou linhas de tinta a óleo.
– Não olhe para aquilo – disse Mrs. Flushing vendo o olho de Rachel vagar por ali. Saltou e virou todos os papelões que pôde no assoalho. Mas Rachel conseguiu apoderar-se
de um deles e, com a vaidade de uma artista, Mrs. Flushing perguntou, ansiosa:
– Então, então?
– É uma colina – respondeu Rachel. Não havia dúvida de que Mrs. Flushing representou um vigoroso e abrupto lance de terra erguendo-se no ar; quase se podiam ver
os torrões voando enquanto a terra rodopiava.Rachel passou de um a outro. Estavam todos marcados com algo da determinação e energia de quem os fizera; eram todos
golpes perfeitamente destreinados do pincel sobre uma idéia semi-realizada, sugerida por um morro ou árvore; de certa forma todos eram bem característicos de Mrs.
Flushing.
– Eu vejo as coisas se movendo – explicou Mrs.Flushing. – Assim – ela varreu o ar com a mão. Depois pegou um dos papelões que Rachel pusera de lado, sentou-se numa
banqueta e começou a fazer floreios com um pedaço de carvão. Enquanto se ocupava em traços que pareciam servir-lhe como a fala serve a outras pessoas,Rachel, muito
inquieta, olhava ao redor.
– Abra o armário – disse Mrs. Flushing depois de al-gum tempo, falando indistintamente porque estava com um pincel na boca – e olhe as coisas.
Como Rachel hesitasse, Mrs. Flushing aproximou-se,ainda com um pincel na boca, abriu com ímpeto as portas do guarda-roupa e jogou na cama uma quantidade de xales,
mantos, panos e bordados; Rachel começou a apalpálos. Mrs. Flushing chegou mais uma vez e largou uma quantidade de contas, broches, brincos, braceletes, enfeites
e pentes entre os tecidos. Depois voltou para sua banqueta e começou a pintar em silêncio. Os tecidos eram coloridos, escuros e pálidos; formavam uma curiosa torrente
de linhas e cores sobre a colcha, com os montinhos vermelhos de pedra, e penas de pavão, e cor de casco de tartaruga dos pentes no meio de tudo.
As mulheres os usavam há centenas de anos, e ainda os usam comentou Mrs. Flushing. – Meu marido sai por aí e os encontra; ninguém sabe o que valem, de modo que os
compramos barato. E vamos vendê-los para os elegantes de Londres – disse ela numa risadinha, como se a idéia dessas damas e sua absurda aparência a divertisse. Depois
de pintar alguns minutos, ela de repente largou o pincel e fixou os olhos em Rachel.
Vou lhe dizer o que quero fazer. Quero ir até ali em cima e ver as coisas por mim mesma. É besteira ficaraqui com um bando de velhas solteironas como se estivéssemos
numa praia da Inglaterra. Quero ir rio acima ever os nativos em seus acampamentos. É só uma questãode uns dez dias em tendas de lona. Meu marido fez isso. A gente
ficaria deitada debaixo de árvores à noite e dedia desceria o rio; se víssemos alguma coisa bonita gritaríamos para que parassem. – Ela levantou-se e começoua enfiar
na cama repetidamente um longo alfinete dourado, enquanto olhava para ver o efeito de sua sugestãoem Rachel.
– Temos de organizar um grupo – prosseguiu ela. – Dez pessoas poderiam alugar uma lancha. Agora, você virá e Mrs. Ambrose também, e Mr. Hirst e aquele outro cavalheiro,
virão? Onde há um lápis?
Ela ficava cada vez mais decidida e animada à medida que desenvolvia seu plano. Sentou-se na beira da cama eanotou uma lista de sobrenomes, que invariavelmente escrevia
errado. Rachel ficou entusiasmada, pois na verdade aidéia era incrivelmente deliciosa. Sempre tivera muita vontade de ver o rio, e o nome de Terence lançava um brilho
sobre essa perspectiva, tornando-a quase boa demais paraser verdade. Fez o que podia para ajudar Mrs. Flushing,sugerindo nomes, ajudando-a a soletrá-los direito
e calculando os dias da semana nos dedos. Como Mrs. Flushing queria saber tudo o que Rachel podia dizer sobre a origeme a ocupação de cada pessoa sugerida, e ela
inventava loucashistórias sobre o temperamento e os hábitos de artistas epessoas do mesmo nome que costumavam vir a Chillingleynos velhos tempos, mas que sem dúvida
não eram as mesmas pessoas, embora fossem também aqui homens inteligentes interessados em egiptologia, essa atividade consumiu algum tempo. Finalmente Mrs. Flushing
buscou ajudaem seu diário, pois o método de adivinhar datas nos dedosnão era eficaz. Abriu e fechou cada gaveta de sua escrivaninha e então gritou, furiosa:
– Yarmouth! Yarmouth! Maldita mulher! Sempre ausente quando preciso dela! Nesse momento soou no frenesi do meio-dia o gongo do almoço. Mrs. Flushing tocou violentamente
a sineta. A porta abriu-se e uma criada bonita, quase tão ereta quanto sua patroa, entrou.
– Ah, Yarmouth – disse Mrs. Flushing –, encontre meu diário e veja quando é dez dias daqui para a frente,e indague ao porteiro do saguão quantos homens seriam necessários
para levar a remo oito pessoas rio acima por uma semana, quanto isso custaria, ponha num pedaço de papel e deixe no meu toucador. Agora... – ela apontou a porta
com um indicador imperioso de modo que Rachel teve de ir à frente.
– Ah, Yarmouth – Mrs. Flushing chamou. – Guarde essas coisas e pendure-as em seus lugares, boa menina, ou Mr. Flushing fica furioso.
E a tudo isso Yarmouth apenas respondia:
– Sim, senhora. Quando entraram na longa sala de jantar era óbvio que o dia ainda era domingo, embora o estado de ânimo lentamente decaísse. A mesa dos Flushing
estava posta junto dajanela, de modo que Mrs. Flushing podia ver cada pessoaque entrasse, e sua curiosidade parecia intensa.
– A velha Mrs. Paley – sussurrou quando uma cadeira de rodas passou lentamente pela porta, com Arthur atrás,empurrando. – Os Thornbury – chegaram depois. – Aquela
simpática mulher – ela fez Rachel olhar para Miss Allan. – Como é o nome dela? – A senhora maquiada que sempre chegava tarde, entrando na sala com passinhos pequenos
e um sorriso preparado como se entrasse num palco, quase se intimidou sob o olhar de Mrs. Flushing,que expressava a sua férrea hostilidade para com toda a tribo
de damas maquiadas. Depois entraram os dois rapazes a quem Mrs. Flushing chamava coletivamente “os Hirt”. Sentaram-se do outro lado do corredor.
Mr. Flushing tratava sua esposa com um misto de admiração e indulgência, compensando com a suavidade e fluência de sua fala a rudeza das maneiras dela. Enquanto
ela disparava seus comentários, ele dava a Rachel um esboço da história da arte sul-americana, atendia a uma das exclamações da esposa, e depois voltava suavemente
como sempre ao seu tema. Sabia muito bem tornar um almoço agradável sem ser chato ou íntimo demais. Formara a opinião, contou a Rachel, de que havia tesouros maravilhosos
escondidos no interior do país; as coisas que Rachel vira eram apenas quinquilharias apanhadas durante uma breve jornada. Ele achava que devia haver deuses gigantes
esculpidos na pedra da encosta da montanha; e figuras colossais engastadas no meio de vastas pastagens verdes,onde ninguém jamais estivera senão nativos. Antes do
amanhecer da arte européia, ele acreditava que os caçadores e sacerdotes antigos haviam construído templos de pedras maciças, formando com as rochas escuras e grandes
cedros figuras majestosas de deuses e feras, e de símbolos das grandes forças, a água, o ar e a floresta, entre as quais viviam. Podia haver cidades pré-históricas,
em clareiras, como aquelas na Grécia e na Ásia, cheias de obras daquela antiga raça. Ninguém jamais estivera lá; quase nada se sabia a respeito. Falando assim, e
expondo a mais pitoresca de suas teorias, ele atraía a atenção de Rachel.
Ela não via que Hewet ficava olhando para ela do outro lado do corredor, entre as figuras dos garçons correndo com pratos. Ele não prestava atenção em nada, e Hirst
também o achava mal-humorado e desagradável. Os dois haviam tocado em todos os assuntos – política e literatura, mexericos e cristianismo. Haviam discutido a respeito
da cerimônia que, segundo Hewet, era em tudo tão boa quanto Safo, de modo que o paganismo de Hirst era mera ostentação. Por que ir à igreja, perguntou ele, só para
ler Safo? Hirst comentou que escutara cada palavra do sermão, o que poderia provar se Hewet quisesse uma repetição; e foi à igreja para entender a natureza do seu
criador, o que fizera muito intensamente naquela manhã graças a Mr. Bax, que o inspirara a escrever três das mais soberbas linhas da literatura inglesa, uma invocação
à Divindade.
– Eu as escrevi no verso do envelope da última carta de minha tia – disse ele, e tirou-o das páginas de Safo.
– Bem, vamos ouvi-las – disse Hewet, um pouco abrandado pela perspectiva de uma discussão literária.
– Meu caro Hewet, você quer que nós dois sejamos postos para fora do hotel pela turba enfurecida dos Thornbury e dos Elliot? – indagou Hirst. – Um mero sussurro
seria suficiente para me incriminar para sempre.Meu Deus! De que adianta tentar escrever quando o mundo está habitado por idiotas malditos como esses? Sério, Hewet,
aconselho-o a desistir da literatura. De que adianta? Eis a sua platéia.Ele fez um sinal de cabeça na direção das mesas onde uma coleção muito variada de europeus
estava agora entretida comendo, em alguns casos mascando, aquelas fibrosas aves estrangeiras. Hewet olhou e ficou mais irritado do que nunca. Hirst também olhou.
Seus olhos caíram sobre Rachel e ele lhe fez uma mesura.
– Acho que Rachel está apaixonada por mim – comentou ele quando seus olhos voltaram ao prato. – Isso é o pior nas amizades com jovens... elas tendem a se apaixonar
por nós.
Hewet não respondeu nada e sentava-se estranhamente quieto.
Hirst parecia não se importar por não obter resposta,pois voltou àquele Mr. Bax, citando a peroração sobre a gota d’água; Hewet mal respondeu a esses comentários,
e Hirst apenas apertou os lábios, escolheu um figo e concentrou-se bastante satisfeito em seus próprios pensamentos, dos quais sempre tinha um grande suprimento.Quando
o almoço acabou, separaram-se, levando suas xícaras de café para diferentes partes do saguão.
De sua cadeira sob uma palmeira Hewet viu Rachelsair da sala de jantar com os Flushing; viu-os olhar emtorno procurando cadeiras e escolher três num cantoonde podiam
continuar falando em particular. Mr. Flushing discursava a pleno vapor. Exibiu uma folha de papel na qual fazia desenhos enquanto conversava. ViuRachel inclinar-se
e apontar aqui e ali com o dedo.Hewet comparou pouco bondosamente Mr. Flushingque estava extremamente bem-vestido para um climaquente e tinha maneiras bastante elaboradas,
como umdono de loja persuasivo. Nesse meio tempo, enquantoolhava para eles, viu-se enredado com os Thornbury eMiss Allan, que depois de hesitarem um minuto ou dois,instalaram-se
em cadeiras ao redor dele, segurando asxícaras nas mãos. Quiseram saber se podia-lhes contaralguma coisa sobre Mr. Bax. Mr. Thornbury como decostume sentava-se sem
dizer nada, olhando vagamenteem frente, às vezes erguendo seus óculos como se osquisesse colocar no rosto, mas sempre mudando de idéiano último momento e deixando-os
cair de novo. Depois de alguma discussão, as senhoras decidiram que Mr. Bax não era filho de William Bax. Houve uma pausa. EntãoMrs. Thornbury comentou que ainda
tinha o hábito dedizer rainha em vez de rei no Hino Nacional. Houve outra pausa. Então Miss Allan disse pensativamente queir à igreja no estrangeiro sempre a fazia
sentir que estivera no enterro de um marinheiro. Houve então uma pausa bastante longa, que ameaçava ser derradeira, quando, misericordiosamente, um pássaro mais
ou menos dotamanho de um pintassilgo, mas de cor azul metálico,apareceu na parte do terraço que podia ser vista de ondeestavam sentados. Mrs. Thornbury perguntou
se devíamos querer que todas as nossas gralhas fossem azuis:
– O que você acha, William? – perguntou ela, tocando o joelho do marido.
– Se todas as nossas gralhas fossem azuis – ele levantou os óculos e realmente os botou no nariz –, não viveriam muito tempo em Wiltshire – concluiu, tirando novamente
os óculos. Os três mais velhos agora contemplavam meditativos o pássaro que fez o obséquio de ficar no meio da paisagem por um tempo considerável, dispensando-os
de falarem novamente. Hewet começava a imaginar se não poderia ir até o canto dos Flushing, quando Hirst apareceu do fundo, enfiou-se numa cadeira ao lado de Rachel
e começou a falar com ela com todo o ar de familiaridade. Hewet não pôde mais suportar. Levantouse, pegou seu chapéu e disparou porta afora.
18
Tudo o que ele via lhe desagradava. Odiava o azul e o branco, a intensidade e a nitidez, os ruídos e o calor do sol; a paisagem lhe parecia tão dura e romântica
quanto um cenário de papelão no palco, e a montanha era apenas um biombo de madeira diante de um lençol tingido de azul. Ele caminhava depressa apesar do calor do
sol.
Dois caminhos saíam da cidade do lado leste; um levava na direção da villa dos Ambrose, o outro entrava pelo interior chegando a uma aldeia na planície, mas muitas
trilhas, feitas em terra úmida, brotavam dele atravessando grandes campos ressequidos, conduzindo a fazendas esparsas e villas de nativos ricos. Hewet saiu do caminho
numa dessas trilhas para evitar a dureza do calor da estrada principal, cuja poeira era sempre erguida em nuvenzinhas pelas carroças e cabriolés desengonçados que
transportavam grupos de camponeses festivos, ou perus avolumando-se irregularmente como um monte de balões sob uma rede ou caixas de presentes e a cabeceira de cama
de latão de algum par de recém-casados.
O exercício serviu na verdade para remover as irritações superficiais da manhã, mas ele continuava infeliz. Pareciafora de dúvida que Rachel não ligava para ele,
pois quasenem olhara, e conversara com Mr. Flushing com o mesmointeresse com que falara com ele. Finalmente, as odiosaspalavras de Hirst golpearam sua mente como
uma chibata,e recordou que a deixara conversando com ele. Naquele momento dialogava com ele, e podia ser verdade que estivesse apaixonada por Hirst, como este dissera.
Hewet examinou todas as provas dessa suposição – o súbito interessedela pelos escritos de Hirst, seu jeito de citar respeitosamente ou com apenas meio sorriso as
opiniões dele; o ape-lido que lhe dera, “o grande Homem”, podia conter algumsignificado sério. Supondo que houvesse algum entendimento entre eles, o que isso significaria?
– Que droga tudo isso! – disse. – Estou apaixonado por ela? – E só podia dar-se uma única resposta.Certamente estaria apaixonado por ela, se soubesse o que era amor.
Desde que a vira ficara interessado e atraído,cada vez mais interessado e atraído, até quase nem poder pensar em nada exceto em Rachel. Mas enquanto deslizava para
uma daquelas longas meditações sobre ambos, ele se testou perguntando-se: queria casar-se com ela? Esse era o problema real, pois essas misérias e agonias não podiam
ser suportadas, e era preciso decidir-se. Decidiu imediatamente que não queria se casar com ninguém. Em parte porque estava irritado com Rachel, a idéia de casamento
o irritava. Sugeria-lhe imediatamente a imagem de duas pessoas sentadas sozinhas diante de uma lareira; o homem estava lendo, a mulher costurando. Havia uma segunda
imagem. Ele via um homem saltar de pé, dizer boa-noite, deixar o grupo e afastar-se depressa com o secreto olhar de quem está fugindo para uma certa felicidade.
Esses dois quadros eram desagradáveis, e mais ainda um terceiro quadro, de marido e mulher e amigo; e os casados olhando-se como se ficassem satisfeitos em deixar
passar alguma coisa não abordada, pois eles próprios possuíam uma verdade mais profunda. Outras imagens – ele caminhava muito depressa na sua irritação e elas lhe
surgiam sem esforço consciente, como imagens num lençol – sucederam-se. Aqui estavam o marido exausto e a esposa, sentados com os filhos ao redor, muito pacientes,tolerantes
e sábios. Mas isso também era uma imagem desagradável. Ele tentou toda a sorte de quadros tirados das vidas de amigos seus, pois conhecia vários casais diferentes,
mas sempre os via fechados numa sala iluminada por um fogo de lareira. Quando de outro lado começava a pensar em pessoas solteiras, via-as ativas num mundo ilimitado;
sobretudo no mesmo nível que os demais, sem abrigo ou vantagem. Os mais individuais e humanos de seus amigos eram solteirões e solteironas; na verdade estava surpreso
ao ver que as mulheres que mais admirava e conhecia melhor eram solteiras. O casamento parecia pior para as mulheres do que para os homens. Deixando de lado esses
quadros gerais, analisou as pessoas que andara observando ultimamente no hotel. Muitas vezes resolvera essas questões em sua mente observando Susan e Arthur,ou Mr.e
Mrs.Thornbury,ou Mr.e Mrs.Elliot.Observara como a tímida felicidade e surpresa dos casais foram gradualmente substituídas por um estado de espírito confortável e
tolerante, como se já tivessem liquidado a aventura da intimidade e estivessem assumindo seus papéis. Susan costumava perseguir Arthur com um suéter porque um dia
ele revelara que um irmão seu morrera de pneumonia.A visão disso o divertia, mas não era agradável quando se punha Terence e Rachel no lugar de Arthur e Susan; e
Arthur estava bem menos desejoso de pegar as pessoas num canto e falar sobre voar e os mecanismos de aeroplanos. Iriam se dar bem. Depois ele olhou os casais que
estavam casados há vários anos. Era verdade que Mrs.Thornbury tinha um marido e que na maior parte do tempo conseguia maravilhosamente metê-lo na conversa,mas não
se podia imaginar o que diziam quando estavam sozinhos. Havia dificuldade com relação aos Elliot, exceto que provavelmente discutiam francamente em particular.Às
vezes discutiam em público, embora esses desacordos fossem minuciosamente recobertos pelas pequenas insinceridades da parte da esposa, que era mais burra que o marido
e tinha dificuldades em acompanhá-lo. Não podia haver dúvida de que teria sido melhor para o mundo se aqueles casais se separassem. Até os Ambrose, a quem admirava
e respeitava profundamente, apesar de todo o amor entre eles, o seu casamento não era, sobretudo, uma acomodação? Ela cedia a ele; ela o mimava; ela arranjava as
coisas para ele; ela, que era toda verdade com os outros,não era verdadeira com seu marido, nem era leal com os amigos quando entravam em conflito com o marido dela.Era
uma nódoa estranha e lastimável no caráter dela. Talvez Rachel estivesse certa quando disse naquela noite no jardim: “Nós provocamos o que há de pior um no outro...
devíamos viver separados”.
Não, Rachel estava totalmente errada! Todos os argumentos pareciam ser contra assumir a carga de um casamento, até chegar ao argumento de Rachel, que era manifestamente
absurdo. De perseguido ele passava a perseguidor. Deixando de lado o caso contra o casamento, começou a analisar as peculiaridades de caráter que a tinham levado
a dizer aquilo. Falara sério? Certamente se devia conhecer o caráter da pessoa com quem se pretendesse passar a vida inteira; sendo romancista, ele que tentasse
descobrir que tipo de pessoa ela era. Quando estava com ela, não conseguia analisar suas qualidades porque parecia conhecê-las por instinto, mas quando estava afastado,
às vezes lhe parecia que não a conhecia. Era jovem mas também velha; tinha pouca confiança em si mesma, mas também era boa em julgar outras pessoas. Era feliz, mas
o que a fazia feliz? Se estivessem sozinhos e a excitação tivesse passado, e tivessem de lidar com os fatos banais do dia, o que aconteceria? Lançando um olhar em
seu próprio caráter, duas coisas apareciam: era muito impontual e não gostava de responder a bilhetes. Até onde sabia, Rachel inclinava-se a ser pontual, mas ele
não se lembrava de jamais tê-la visto com uma caneta na mão. Depois ele imaginava um jantar, digamos no Croom, e Wilson, que a levara até lá, falando sobre a situação
do partido liberal.Ela diria que naturalmente não sabia nada de política.
Mesmo assim, era com certeza inteligente e também honesta. Seu temperamento era incerto – ele notara isso –, e não era doméstica, não era fácil e não era quieta,
nem bela, exceto em algumas roupas com algumas luzes. Mas o seu grande talento era compreender o que lhe diziam;nunca houve ninguém igual a ela para se falar. Podia-se
dizer qualquer coisa – podia dizer tudo, e ela jamais era servil. Aqui ele se sobressaltou, pois de repente lhe pareceu que sabia menos sobre ela do que sobre qualquer
pessoa. Todos esses pensamentos já lhe haviam ocorrido muitas vezes; muitas vezes ele tentara argumentar e discutir; e novamente chegara ao velho estado de dúvida.Não
a conhecia e não sabia o que ela sentia, nem se podiam viver juntos, ou se queria se casar com ela, mas estava apaixonado por ela.
E se fosse até ela e lhe dissesse (ele diminuiu o passo e começou a falar alto como se falasse com Rachel).
– Eu adoro você mas odeio o casamento, odeio sua presunção, sua segurança, suas concessões, e a idéia de você interferir no meu trabalho, impedindo-me; o que você
responderia?
Ele parou, recostou-se no tronco de uma árvore e ficou olhando sem ver algumas pedras espalhadas na margem do leito seco do rio. Via claramente o rosto de Rachel,
os olhos cinzentos, o cabelo, a boca; o rosto que podia ser tantas coisas – liso, vazio, quase insignificante, ou louco,apaixonado, quase belo, mas aos olhos dele
sempre o mesmo por causa da extraordinária liberdade com que ela o encarava e dizia o que sentia. O que ela haveria de responder? O que sentia? Amava-o ou não sentia
nada nem por ele nem por outro homem, sendo, como ela dissera naquela tarde, livre como o vento ou o mar?
– Ah, você é livre! – exclamou ele exultante ao pensar nela. – E eu a manterei livre. Seremos livres juntos. Vamos partilhar tudo juntos. Nenhuma felicidade seria
como a nossa. Vida alguma poderia comparar-se às nossas. – Ele abriu bem os braços, como se quisesse encerrar num só abraço a ela e ao mundo.
Já não conseguindo analisar o casamento ou avaliar friamente como era a natureza dela, nem como seria viverem juntos, ele caiu no chão e ficou sentado absorvido
na lembrança dela, logo atormentando-se com o desejo de estar novamente na sua presença.
19
Mas Hewet não precisava ter aumentado seus tormentos imaginando que Hirst ainda falava com Rachel. O grupo logo se desfizera, os Flushing indo numa direção,Hirst
em outra, e Rachel ficando no saguão, remexendo nas revistas, passando de uma a outra, movimentos expressando o desejo inquieto e informe na sua mente. Não sabia
se devia ir ou ficar, embora Mrs. Flushing lhe tivesse ordenado que aparecesse para o chá. O saguão estava vazio, exceto por Miss Willett, que tocava escalas numa
folha de música sacra, e pelos Carter, um casal opulento que não gostava da moça, porque os cadarços de seus sapatos estavam desarrumados e ela não parecia suficientemente
alegre, o que por algum processo indireto de pensamento os fazia pensar que não gostava deles. Rachel não teria gostado deles se os tivesse visto, pelo excelente
motivo de que Mr. Carter cofiava seu bigode, e Mrs.Carter usava braceletes; eram evidentemente o tipo de pessoas que não gostariam dela; mas estava absorvida demais
na sua própria inquietação para pensar ou olhar.
Ela virava as páginas escorregadias de uma revista americana quando a porta do saguão se abriu num ímpeto, uma beira de luz caiu sobre o chão, e uma figura pequena
e branca, sobre a qual a luz parecia facada, atravessou o salão diretamente até ela.
– O quê! Você está aqui? – exclamou Evelyn. – Eu a vi rapidamente no almoço; mas você não teve a bondade de olhar para mim!
Era parte do caráter de Evelyn que, apesar de muitas afrontas que recebia,jamais desistisse de buscar as pessoas que queria conhecer, e a longo prazo geralmente
conseguia conhecê-las e até fazê-las gostarem dela.
Evelyn olhou em torno.
– Odeio este lugar, odeio essa gente. Queria que subisse comigo ao meu quarto. Quero conversar com você.Como Rachel não quisesse nem ir nem ficar, Evelyn pegou-a
pelo pulso e puxou-a para fora do saguão, escada acima.Enquanto subiam dois degraus de cada vez,Evelyn,que ainda segurava a mão de Rachel, soltava frases fragmentadas
sobre não dar a mínima para o que as pessoas diziam.
– Por que se deveria, sabendo-se que se está certa? Eles que se danem! É o que eu acho!
Estava muito excitada, e os músculos de seus braços repuxavam-se nervosamente. Era óbvio que estava apenas esperando que a porta fechasse para contar tudo a Rachel.
Na verdade, assim que chegaram ao quarto, ela se sentou na beira da cama e disse:
– Acho que você pensa que sou louca.
Rachel não estava em condições de pensar claramente sobre o estado mental de ninguém. Mas estava em condições de dizer diretamente o que lhe ocorresse, sem medo
das conseqüências.
– Alguém a pediu em casamento – comentou.
– Como foi que você adivinhou? – exclamou Evelyn,prazer misturando-se com sua surpresa. – Eu pareço que acabo de ser pedida em casamento?
– Você parece que é pedida todos os dias – respondeu Rachel.
– Mas acho que não fui pedida mais do que você – riu Evelyn, não muito sincera.
– Nunca fui pedida.
– Mas vai ser... montes... é a coisa mais fácil do mundo... Mas não foi bem isso que aconteceu esta tarde. É... ah, éuma confusão, uma confusão nojenta, horrível,
detestável!Ela foi até à pia e começou a passar a esponja nas faces,com água fria, pois estavam queimando. Ainda molhando-as e tremendo um pouco, virou-se e explicou
com voz aguda de nervosismo:
– Alfred Perrott diz que prometi me casar com ele,mas eu nunca fiz isso. Sinclair diz que vai se matar com um tiro se eu não me casar com ele, e eu digo “Então,mate
– se!” Mas naturalmente ele não vai se matar... eles nunca se matam. E Sinclair me agarrou esta tarde e começou a me aborrecer para eu lhe responder, acusandome
de flertar com Alfred Perrott, disse que não tenho coração, que sou apenas uma sereia, ah, e quantidades de coisas agradáveis desse tipo. Então finalmente eu lhe
dis-se “Bem, Sinclair, agora você já disse o bastante. Pode me largar”. E aí ele me agarrou e me beijou... aquele bruto nojento... e ainda posso sentir seu repulsivo
rosto cabeludo bem aqui... como se ele tivesse algum direito, depois de tudo o que disse!
Ela esfregou energicamente uma pinta em sua face esquerda.
Nunca conheci um homem que pudesse se comparar a uma mulher! – gritou ela.
Eles não têm dignidade, não têm coragem, não têm nada senão sua paixões bestiais e sua força bruta! Alguma mulher teria se portado daquele jeito se um homem tivesse
dito que não a quer? Nós temos muita dignidade; somos infinitamente melhores que eles.
Evelyn caminhou pelo quarto limpando as faces molhadas com uma toalha. Agora corriam lágrimas com as gotas de água fria.
– Isso me deixa furiosa – explicou secando os olhos.
Rachel sentou-se contemplando-a. Não pensava na posição de Evelyn; apenas pensava que o mundo estava cheio de gente atormentada. – Aqui há só um homem de quem eu
realmente goste – continuou Evelyn –, Terence Hewet. Sente-se que se pode confiar nele.
Essas palavras provocaram um frio indescritível em Rachel; seu coração parecia estar sendo apertado entre mãos geladas.
– Por quê? – perguntou. – Por que se pode confiar nele?
– Não sei – disse Evelyn. – Você não tem sensações com relação às pessoas? Sensações que tem absoluta certeza de que estão corretas? Tive uma longa conversa com
Terence outra noite. Senti que depois disso ficamos realmente amigos. Há dentro dele algo de uma mulher... – Ela parou como se estivesse pensando em coisas muito
íntimas que Terence lhe tivesse contado, ou pelo menos foi assim que Rachel interpretou aquele olhar.
Tentou forçar-se a dizer: “Ele a pediu em casamento?”mas a questão era inusitada demais, e em outro momento Evelyn estava dizendo que os melhores homens eram como
mulheres, e que as mulheres eram mais nobres do que os homens... por exemplo, não se podia imaginar uma mulher como Lillah Harrison pensando uma coisa má ou tendo
qualquer coisa falsa.
– Como eu gostaria que você a conhecesse! – exclamou.
Estava ficando bem mais calma, e suas faces já estavam bastante secas. Seus olhos tinham recuperado a habitual expressão de vitalidade ousada, e ela parecia ter
esquecido Alfred e Sinclair e sua emoção.
– Lillah mantém uma casa para mulheres alcoolizadas na Deptford Road – prosseguiu. – Fundou-a, administrou-a e fez tudo por sua própria conta, e agora é a maior
do seu tipo na Inglaterra. Você não pode imaginar como são essas mulheres... e seus lares. Mas ela anda entre elas todas as horas do dia e da noite. Estive com ela
várias vezes... É isso que acontece conosco... Nós não fazemos coisas. O que é que você faz? – perguntou ela olhando para Rachel com um sorriso levemente irônico.
Rachel quase não escutara nada daquilo, e sua expressão era vaga e infeliz. Sentia tanta antipatia por Lillah Harrison e seu trabalho na Deptford Road, quanto por
Evelyn M. e sua profusão de casos de amor.
Eu toco – disse ela com uma afetação de fria serenidade.
Mas é isso! – riu Evelyn. – Nenhuma de nós faz outra coisa senão tocar piano. E é por isso que mulheres comoLillah Harrison, que valem por vinte de nós, têm de se
ma-tar trabalhando. Mas eu estou cansada de tocar – ela continuou, estendendo-se na cama, erguendo os braços acimada cabeça. Assim esticada, parecia menor que nunca.
Eu vou dizer alguma coisa. Tive uma idéia esplêndida. Olhe aqui, você tem de participar. Estou certa deque tem bastante material dentro de si, embora pareça...bem,
como se tivesse passado a vida toda num jardim. –Ela soergueu-se na cama, sentou-se e começou a explicar animadamente. – Pertenço a um clube em Londres. Nós nos
reunimos todos os sábados, de modo que sechama Saturday Club. Devemos falar sobre arte, mas estou enjoada de falar em arte... de que adianta? Com tan-to tipo de
coisas reais acontecendo por aí? E elas nemtêm nada a dizer sobre arte. Então o que vou lhes dizeré que já falamos demais sobre arte, e que é melhor paravariar falarmos
sobre a vida. Questões que realmenteimportam nas vidas das pessoas, o tráfico de escravasbrancas, o voto feminino, o projeto de previdência etc. Equando tivermos
decidido o que queremos fazer, podemos nos arriscar para o fazermos... Estou certa de que sepessoas como nós tomassem as rédeas nas mãos em vezde deixá-las a cargo
de policiais e magistrados, poderíamos parar com... – ela baixou a voz para pronunciar afeia palavra – a prostituição em seis meses. Minha idéiaé que homens e mulheres
deveriam unir-se nesses assuntos. Devíamos ir a Piccadilly e interpelar uma dessaspobres infelizes e dizer: “Olhe aqui, eu não sou melhorque você, nem finjo ser
melhor, mas você está fazendouma coisa que sabe ser abominável, e não quero que façacoisas abomináveis porque debaixo de nossa pele somostodas iguais... por isso,
se você faz uma coisa abominávelisso me importa”. É o que Mr. Bax estava dizendo estamanhã, e é verdade, embora vocês, gente inteligente...você é inteligente, não
é?... não acredite.
Quando Evelyn começava a falar – fato de que logo se arrependia – seus pensamentos vinham tão depressa que nunca tinha tempo de escutar os pensamentos de outras
pessoas. Continuou parando apenas o tempo necessário para tomar fôlego.
– Não vejo porque o Saturday Club não pudesse fazer um grande trabalho dessa maneira – prosseguiu. – Naturalmente isso exigiria organização, alguém que desse a vida
por essa causa, mas estou disposta a fazer isso.Minha idéia é pensar em seres humanos primeiro e deixar idéias abstratas a cargo de si mesmas. O que está errado
com Lillah... se há alguma coisa errada com ela... é que pensa que a moderação vem primeiro e as mulheres depois. Mas há uma coisa que quero dizer a meu respeito,não
sou intelectual nem artista nem nada disso, mas sou muito humana. – Ela escorregou da cama e sentou-se no chão, erguendo os olhos para Rachel. Perscrutava o rosto
dela como se estivesse tentando ler que tipo de personalidade se escondia por trás daquele rosto. Pôs a mão no joelho de Rachel.
– São seres humanos o que interessa, não é? – prosseguiu ela. – Sermos reais,não importa o que diga Mr.Hirst.Você é real?
Rachel sentiu, assim como Terence sentira, que Evelyn estava demasiado próxima dela e que havia algo de excitante nessa proximidade, embora também fosse algo desagradável.
Mas não precisou encontrar resposta porque Evelyn prosseguia:
– Você acredita em alguma coisa?
Para acabar com o escrutínio daqueles claros olhos azuis e aliviar sua própria inquietação física, Rachel empurrou sua cadeira para trás e exclamou:
– Em tudo! – e começou a manusear diferentes objetos, os livros na mesa, as fotos, a planta de folhas carnudas com cerdas duras num grande pote de argila na janela.
– Acredito na cama, nos retratos, no pote, na sacada,no sol, em Mrs. Flushing – comentou ela ainda descuidadamente, com algo no fundo de sua mente forçando-a a dizer
coisas que habitualmente não se dizem. – Mas não acredito em Deus. Não acredito em Mr. Bax, não acredito na enfermeira do hospital. Não acredito... – ela pegou um
retrato e, olhando para ele, não concluiu a frase.
– É minha mãe – disse Evelyn, que ficou sentada no chão, abraçando os joelhos com o braço e observando Rachel com curiosidade. Rachel examinava a foto.
– Bem, não acredito muito nela – comentou algum tempo depois, em voz baixa.
Mrs. Murgatroyd na verdade parecia como se a vida tivesse sido espremida para fora dela; ajoelhava-se numa cadeira espiando comovida atrás do corpo de um cachorro
da Pomerânia que ela apertava contra o rosto como se buscasse proteção.
E esse é o meu papai – disse Evelyn, pois havia duas fotos na moldura. A segunda representava um belo soldado com traços regulares e espesso bigode preto; sua mão
pousava no punho da espada; havia uma evidente semelhança entre ele e Evelyn.
E é por causa deles – disse Evelyn – que vou ajudar as outras mulheres. Você ouviu falar em mim, eu acho? Sabe, eles não eram casados; eu não sou ninguém especial
e não tenho nenhuma vergonha disso. Eles se amavam,seja como for, e isso é mais do que a maior parte das pessoas pode dizer de seus pais.
Rachel sentou-se na cama com os dois retratos na mão e comparou-os – o homem e a mulher que, segundo Evelyn, tinham se amado tanto. O fato a interessava mais do
que a companhia em favor das mulheres desafortunadas que Evelyn começava a descrever mais uma vez. E novamente olhava de um para o outro.
Quando Evelyn parou por um minuto de falar, Rachel indagou:
– Como você acha que é estar apaixonado?
– Você nunca se apaixonou? – perguntou Evelyn. – Ah, não... basta olhar para você e ver isso – acrescentou e pensou um pouco. – Eu estive apaixonada realmente uma
vez – disse, e passou a refletir; seus olhos perderam a brilhante vitalidade aproximando-se de algo parecido com ternura. – Foi divino!... enquanto durou. O pior
é que não dura, não comigo. Esse é que é o problema.
Evelyn passou a analisar a dificuldade com Alfred e Sinclair sobre a qual fingira pedir conselho a Rachel. Mas não queria conselho; queria intimidade. Quando olhava
para Rachel, que ainda olhava a foto na cama, não pôde deixar de notar que Rachel não estava pensando nela.Então, em que estava pensando? Evelyn foi atormentada
pela pequena centelha de vida nela que sempre tentava abrir caminho até outras pessoas e era sempre rejeitada.Silenciando, contemplou sua visitante, seus sapatos,
as meias, os pentes no cabelo, todos os detalhes de sua roupa,enfim, como se, apanhando cada pormenor, pudesse aproximar-se mais da vida ali dentro.
Finalmente Rachel largou os retratos, caminhou até a janela e comentou:
Esquisito. As pessoas falam de amor tanto quanto falam de religião.
Eu queria que você se sentasse para conversar – disse Evelyn, impaciente.
Em vez disso Rachel abriu a janela, que era de duas altas vidraças, e olhou para o jardim lá embaixo.
– Foi lá que nos perdemos a primeira noite – disse ela.
– Deve ter sido naqueles arbustos.– Ali embaixo eles matam galinhas – disse Evelyn. – Cortam as cabeças delas com uma faca... nojento! Mas diga-me... o que...
– Eu gostaria de explorar o hotel – interrompeu Rachel.Recolhe a cabeça para dentro do quarto e olhou para Evelyn, que ainda estava sentada no chão.
– É como todos os outros hotéis – disse Evelyn.
Podia ser, embora cada quarto, corredor e cadeira do lugar tivesse um caráter próprio aos olhos de Rachel; mas ela não conseguia força se a ficar mais tempo no mesmo
lugar. Moveu-se lentamente na direção da porta.
– O que você quer? – disse Evelyn. – Você me faz sentir que está sempre pensando em alguma coisa que não diz... Diga! Mas Rachel não respondeu tampouco a esse convite.Parou
com os dedos na maçaneta da porta, como se recordasse que esperavam dela uma espécie de pronunciamento.
– Acho que você vai se casar com um deles – disse, giroua maçaneta e fechou a porta atrás de si. Desceu lentamentepelo corredor, passando a mão pela parede ao lado.
Não pensava para onde ia, por isso seguiu por um corredor quelevava somente a uma janela e uma sacada. Olhou para baixo, para o pátio da cozinha, o lado errado da
vida do hotel,que ficava oculto do lado certo por uma sebe de pequenosarbustos. O chão era nu, velhas latas espalhadas por ali, osarbustos cobertos com toalhas e
aventais para secarem. Devez em quando um garçom saía num avental branco e jogava lixo num monte. Duas mulheres grandes em vestidosde algodão sentavam-se num banco
com bacias de alumínio manchadas de sangue à frente e corpos amarelos sobreos joelhos. Estavam depenando as aves e falando enquanto depenavam. De repente uma galinha
apareceu ali, estonteada, meio voando, meio correndo perseguida por uma terceira mulher cuja idade podia ser menos de 80. Emborainsegura nas pernas e encarquilhada,
ela continuou na suacaçada, estimulada pelo riso das outras; seu rosto expressava uma raiva furiosa, e enquanto corria praguejava em espanhol. Assustada por um bater
de palmas aqui, um guardanapo ali, a ave corria de um lado para outro em ziguezague, finalmente esvoaçando direto para a velha, que abriusuas leves saias cinzentas
para apanhá-la, tropeçou sobre ela como uma trouxa e então, estendendo-a no ar, cortou sua cabeça com uma expressão de energia vingativa e triunfo combinados. O
sangue e aquela feia agitação fascinaramRachel de modo que, embora soubesse que alguém vierapor trás e parava ao seu lado, não se virou até que a velha se tivesse
instalado no banco junto das outras. Então ela ergueu os olhos bruscamente por causa da feiúra do que vira.Era Miss Allan que estava parada ali.
– Não é uma bela visão, embora eu me atreva a dizer que é mais humana do que o nosso método... Não creio que a senhorita já tenha estado no meu quarto – acrescentou
e afastou-se, como se quisesse que Rachel a seguisse.Rachel foi, pois parecia possível que cada pessoa nova removesse o mistério que pesava sobre ela.
Todos os quartos do hotel tinham o mesmo padrão,apenas alguns eram maiores e outros menores; tinham assoalho de lajotas vermelho-escuras; tinham uma cama alta, envolta
em mosquiteiros; tinham uma escrivaninha,um toucador e duas poltronas. Mas assim que se abria uma caixa os aposentos ficavam muito diferentes de modo que o quarto
de Miss Allan não se parecia nada com o de Evelyn. Não havia vários alfinetes de chapéus coloridos sobre o toucador; nem frascos de perfumes; nem pares finos e curvados
de tesouras; nem grande variedade de botinas e sapatos; nem anáguas de seda sobre cadeiras. O quarto era extremamente arrumado. Parecia haver dois pares de tudo.
A escrivaninha, porém, estava coberta de pilhas de manuscritos, e uma mesa fora puxada junto da poltrona, com duas pilhas separadas de livros escuros de biblioteca,
com vários pedaços de papel emergindo das páginas, em vários graus de espessura. Miss Allan convidara Rachel para vir por gentileza, pensando que ela estava por
ali esperando sem nada para fazer. Mais que isso,gostava de mulheres jovens, pois dera aulas a muitas delas,e tendo recebido tanta hospitalidade dos Ambrose, ficava
contente em retribuir minimamente. Olhou em torno, buscando algo para lhe mostrar. O quarto não fornecia muita distração. Ela tocou seu manuscrito:
– Era de Chaucer; Era de Elizabeth; Era de Dryden – refletiu. – Alegra-me que não haja muito mais eras.Ainda estou no meio do século. Não quer se sentar, Miss Vinrace?
A cadeira, embora pequena, é firme... Euphues.O germe do romance inglês – continuou, olhando outra página. – Esse tipo de coisa a interessa? Ela encarava Rachel
com grande bondade e simplicidade, como se tivesse feito o máximo para lhe dar o que eladesejava. Essa expressão tinha um notável encanto, num rosto com muitas marcas
de preocupações e reflexão.
– Ah, não – exclamou, lembrando-se –, com a senhorita é a música, não é? E eu geralmente acho que não combinam. Às vezes, claro, temos prodígios... Olhava em torno
procurando alguma coisa e viu um pote sobre a lareira, que pegou e deu a Rachel. – Se puser o dedo dentro deste vidro poderá extrair um pedaço de gengibre em conserva.
A senhorita é um prodígio?
Mas o gengibre estava no fundo e não pôde ser tirado.
– Não se incomode – disse Rachel, enquanto Miss Allan olhava em torno procurando algum instrumento. – Acho que não vou gostar de gengibre em conserva.
– Você nunca experimentou? – perguntou Miss Allan.
– Então considero um dever seu tentar agora. Ora, pode acrescentar um novo prazer à sua vida, e como ainda é jovem... – Ficou imaginando se um gancho de botão funcionaria.
– E tenho como regra experimentar de tudo.Não acha que seria aborrecido se experimentasse gengibre pela primeira vez no seu leito de morte e achasse que era a coisa
melhor do mundo? Eu ficaria tão aborrecida que ficaria boa só por isso.
Ela conseguiu, e um pedaço de gengibre emergiu na ponta do gancho. Enquanto ela foi limpar o gancho,Rachel mordeu o gengibre e imediatamente gritou:
Vou ter de cuspi-lo!
Tem certeza de que o provou de verdade? – interrogou Miss Allan.Como resposta, Rachel jogou-o pela janela.
Seja como for, uma experiência – disse Miss Allan calmamente. – Vamos ver... não tenho mais nada a lhe oferecer, a não ser que queira saborear isso. – Sobre sua
cama estava pendurado um pequeno armário, e dele ela tirou um frasco esguio e elegante, cheio de um líquido verde brilhante.
Crême de Menthe – disse. – Licor, você sabe. Parece até que bebo, não parece? Na verdade ele está aqui para provar que abstêmia excepcional eu sou.Tenho esse frasco
há 26 anos – acrescentou ela, contemplando-o com orgulho, enquanto inclinava o frasco, e pela altura do líquido podia-se ver que ainda estava intocado.
– Vinte e seis anos? – exclamou Rachel.
Miss Allan ficou contente, porque queria que Rachel ficasse surpresa.
– Quando fui a Dresden, há 26 anos – disse –, certa amiga minha anunciou sua intenção de me dar um presente. Achava que no caso de um naufrágio ou acidenteum estimulante
poderia ser útil. Mas, como não tiveocasião de tomá-lo, devolvi-lhe o presente na minhavolta. Na véspera de qualquer viagem, essa mesma garrafinha sempre aparece,
com o mesmo bilhete; na voltaé sempre devolvida. Considero-a uma espécie de feitiçocontra acidente. Embora uma vez tenha ficado 24 horas retida num acidente com
o trem na minha frente, eu própria nunca sofri acidente algum. Sim – prosseguiuela, agora falando com a garrafa –, vimos juntos muitosclimas e armários, não foi?
Um desses dias pretendomandar prender nele um rótulo de prata com uma inscrição. Como pode observar, é um cavalheiro, e seunome é Oliver... Acho que eu não a perdoaria,
MissVinrace, se quebrasse o meu Oliver – disse, tirando comfirmeza o frasco das mãos de Rachel e colocando-o novamente no armário. Rachel estava balançando a garrafinha
pelo gargalo.Ficara tão interessada em Miss Allan que acabara esquecendo o licor.
– Bem – exclamou ela –, acho isso muito esquisito; ter uma amiga há 26 anos, e um frasco, e... ter feito todas aquelas viagens.
– Nada esquisito; eu chamo isso o inverso do esquisito – respondeu Miss Allan. – Sempre me considero a pessoa mais comum que conheço. Esqueci... você é um prodígio,ou
disse que não era prodígio? Ela sorria muito bondosamente para Rachel. Parecia ter conhecido e experimentado tanta coisa, enquanto se movia desajeitadamente pelo
quarto, que certamente de-via haver bálsamo para toda a angústia em suas palavras,caso se pudesse induzi-la a fazer sinais de romper a reticência que a recobria
há anos. Uma sensação de desconforto fazia Rachel permanecer calada; de um lado, queria extrair uma centelha daquela fria carne rosada, de outro,percebia que não
havia nada a fazer senão passarem uma pela outra em silêncio.
– Não sou um prodígio. Acho muito difícil dizer o que quero... – comentou ela finalmente.
– Acho que é uma questão de temperamento – Miss Allan veio em seu socorro. – Há pessoas que não têmdificuldade; de minha parte, acho que há muitas coisasque não
consigo dizer. Mas eu me considero muito lenta.Uma de minhas colegas sabe se gosta de alguém ou não...vamos ver, como é que ela faz isso?... pelo modo comodizemos
bom-dia no café da manhã. Eu às vezes levo anos para me decidir. Mas a maioria dos jovens pareceachar isso fácil.
– Ah, não – disse Rachel. – É difícil!
Miss Allan olhou para Rachel, quieta, sem dizer nada;suspeitava de que havia algum tipo de problema. Depois levou a mão à parte de trás da cabeça e descobriu que
um dos caracóis grisalhos de seu cabelo se soltara.
– Preciso pedir que me dê licença – disse, levantando-se
– para eu arrumar meu cabelo. Nunca encontrei um tiposatisfatório de grampo de cabelo. Preciso mudar de vestidotambém; e gostaria muito de sua ajuda, porque há uma
série de ganchos cansativos que eu posso abrir sozinha, masàs vezes isso leva 15 minutos; mas com sua ajuda...Ela despiu casaco, saia e blusa, e postou-se diante
do espelho, arrumando o cabelo, uma figura familiar e maciça, a anágua tão curta que expunha um par de grossas pernas cinza-azuladas.
– As pessoas dizem que a juventude é agradável; eu pessoalmente acho a meia-idade bem mais agradável – comentou, removendo grampos e pentes, e pegando a escova.
Quando caiu, seu cabelo chegava apenas até a nuca.
– Quando eu era jovem – prosseguiu, as coisas podiam parecer tão sérias quando se era assim... E agora,meu vestido. Num espaço maravilhosamente breve de tempo, seu
cabelo fora reformado na suas ondas habituais. A parte superior do seu corpo tornou-se verde-escura com listras pretas: mas a saia precisava de ganchos em vários
ângulos,e Rachel teve de ajoelhar-se no assoalho para ter os olhos à altura dos ganchos.
– Miss Johnson costumava achar a vida muito pouco satisfatória, lembro-me disso – continuou Miss Allan virando as costas para a luz. – Depois ela começou a criar
porquinhos-da-índia por causa das manchas, e ficou absorvida por isso. Acabo de ouvir dizer que o porquinhoda-índia amarelo teve um bebê preto. Apostamos seis pence
a respeito disso. Ela vai ficar triunfante.
A saia estava apertada. Ela contemplou-se no espelho com a curiosa rigidez de seu rosto que geralmente aparece ao olhar-se no espelho.
– Estou adequada para me encontrar com meus semelhantes? – perguntou. – Eu me esqueço de como é masdizem que animais pretos muito raramente têm bebês coloridos ou
é o contrário? Já me explicaram isso tantas vezesque é muita estupidez minha ter esquecido novamente.
Moveu-se pelo quarto pegando objetos com umaenergia calma e colocando-os em si mesma – um medalhão, um relógio com corrente, um pesado braceletede ouro e o botão
colorido de uma sociedade sufragista. Por fim, totalmente equipada para o chá dominical,ela se deteve diante de Rachel e sorria-lhe bondosamente. Não era uma mulher
impulsiva, e sua vida atreinara para conter a língua. Ao mesmo tempo, tinhagrande boa vontade para com os outros, especialmente os jovens, o que muitas vezes a levava
a lamentar serlhe tão difícil falar.
– Vamos descer? – disse.
Pôs uma mão no ombro de Rachel e, inclinando-se, apanhou com a outra mão um par de sapatos baixos colocando-os um ao lado do outro escrupulosamente do lado de fora
da porta. Quando desceram pelo corredor, passaram por muitos pares de botas e sapatos, alguns pretos outros marrons, todos lado a lado, e todos diferentes, até na
maneira como estavam dispostos.
– Sempre acho que as pessoas são semelhantes às suas botinas – disse Miss Allan.
– Este par é de Mrs. Paley... – mas quando ela falava a porta abriu-se e Mrs. Paley saiu em sua cadeira de rodas,também equipada para o chá.
Ela cumprimentou Miss Allan e Rachel.
– Eu estava mesmo dizendo que as pessoas são bem parecidas com sua batinas – disse Miss Allan. Mrs. Paleynão escutou. Ela repetiu ainda mais alto. Mrs. Paley não
escutou. Ela repetiu uma terceira vez. Mrs. Paley escutou,mas não compreendeu. Aparentemente Miss Allan estavapor repetir uma quarta vez, quando de repente Rachel
dis-se alguma coisa inarticulada e desapareceu no corredor. Omal-entendido, que incluía um bloqueio total do corredor,parecia-lhe insuportável. Andava rapidamente,
às cegas,em direção oposta, e encontrou-se no fim de um cul de sac. Havia uma janela, uma mesa e uma cadeira na janela, e sobre a mesa havia um tinteiro enferrujado,
um cinzeiro,um velho exemplar de um jornal francês,e uma caneta componta quebrada. Rachel sentou-se como se fosse estudar ojornal francês, mas uma lágrima caiu sobre
a borrada letraimpressa francesa,causando uma mancha suave.Ela levantou a cabeça bruscamente, exclamando alto:
– É insuportável!
Olhando pela janela com olhos que não veriam mesmo que não estivessem ofuscados pelas lágrimas, ela finalmente permitiu-se criticar o dia todo. Fora uma desgraça
do começo ao fim; primeiro, a cerimônia na capela,depois o almoço; depois Evelyn; depois Miss Allan; depois a velha Mrs. Paley bloqueando o corredor. Fora atormentada
e irritada o dia todo. Agora chegara a uma daquelas culminâncias, resultado de uma crise, da qual finalmente se enxerga o mundo nas suas verdadeiras proporções.
E sentia profunda aversão ao que via – igrejas, políticos, desajustados e grandes impostores, homens como Mr. Dalloway, homens como Mr. Bax, Evelyn e sua tagarelice,
Mrs. Paley bloqueando o corredor. Enquanto isso,a batida regular do seu próprio pulso representava a quente torrente de emoção que corria ali debaixo; pulsando,lutando,
solapando. No momento, seu próprio corpo era fonte de toda a vida no mundo, que tentava explodir aqui... ali... e era reprimida, ora por Mr. Bax, ora por Evelyn,
ora pelo imposição de uma pesada estupidez, o peso do mundo inteiro. Atormentada, ela crispava as mãos juntas, pois todas as coisas estavam erradas e todas as pessoas
eram estúpidas. Vendo vagamente que havia pessoas no jardim lá embaixo, ela as interpretou como massas de matéria sem objetivo, flutuando para cá e para lá, sem
meta senão a de inibi-la. O que estavam fazendo, essas outras pessoas do mundo?
Ninguém sabe – disse. A força da sua ira começava a desgastar-se, e a visão do mundo, que fora tão viva, tornava-se nebulosa.
É um sonho – murmurou. Analisou o tinteiro enferrujado, a caneta, o cinzeiro e o velho jornal francês.Aqueles pequenos objetos sem valor pareciam-lhe representar
vidas humanas.
Estamos adormecidos e sonhando – repetiu ela. Mas a possibilidade que agora se insinuava, de que um daqueles vultos poderia ser o de Terence, arrancou-a daquela
melancólica letargia. Ficou tão inquieta quanto estivera antes de se sentar. Não conseguia mais ver o mundo como uma cidade espalhada abaixo dela. Em vez disso,
ele se recobria com uma febril névoa rubra. Rachel voltara ao estado em que estivera o dia todo. Pensar não era escapatória. O movimento físico era o único refúgio,
entrando e saindo de quartos, entrando e saindo das mentes das pessoas, procurando nem ela sabia o quê. Por isso levantouse, empurrou a mesa para trás e desceu as
escadas. Saiu pela porta do saguão e dobrando a esquina do hotel encontrou- se entre as pessoas que avistara da janela. Mas devido ao vasto sol depois dos corredores
sombreados e à substância das pessoas vivas depois dos sonhos, o grupo lhe aparecia com espantosa intensidade, como se a superfície poeirenta tivesse sido removida
de todas as coisas,deixando apenas a realidade e o instante. Parecia uma imagem imprimida no escuro da noite. Vultos brancos,cinzentos e roxos espalhavam-se no verde;
mesas redondas dobráveis; no meio, a chama da chaleira fazia o ar tremer como uma vidraça defeituosa; uma maciça árvore verde pairava sobre todos eles como se fosse
uma força móvel cristalizada. Quando se aproximava, ela pôde ouvir a voz de Evelyn repetindo monotonamente.
– Aqui... aqui... cachorrinho, venha cá. – Por um momento nada parecia acontecer; estava tudo parado, imóvel, e então ela percebeu que uma das figuras era Helen
Ambrose; e a névoa começou a baixar.
O grupo reunira-se de modo inteiramente aleatório;uma mesa de chá junto de outra mesa de chá, espreguiçadeiras servindo para ligar dois grupos. Mas mesmo a distância
podia-se ver que Mrs. Flushing, ereta e imperiosa,dominava o grupo. Falava com veemência para Helen do outro lado da mesa.
– Dez dias numa tenda de lona – dizia. – Sem conforto. Se quiser conforto, não venha. Mas acredite, se não vier, vai se arrepender pelo resto da vida. A senhora
vai? Nesse momento Mrs. Flushing avistou Rachel.
– Ah, aí está a sua sobrinha. Ela prometeu. Você vem,não vem? – Tendo adotado o plano, ela o perseguia com a energia de uma criança.Rachel tomou seu partido, ansiosamente.
– Claro que vou. E você também, Helen. E Mr. Pepper também. Sentando-se, percebeu que estava rodeada por gente conhecida, mas Terence não estava entre eles. De vários
ângulos, pessoas começaram a dizer o que pensavam da excursão proposta. Segundo algumas, seria quente demais, mas as noites seriam frias; segundo outras, as dificuldades
estariam em conseguir um barco e falar o idioma. Mrs. Flushing rejeitou todas as objeções, devidas ao homem ou à natureza, anunciando que seu marido ajeitaria tudo.
Enquanto isso Mrs. Flushing explicava calmamente a Helen que na verdade a excursão era um assunto simples;levava no máximo cinco dias; e o local... uma aldeia nativa...
certamente valia a pena ser vista antes de ela voltar à Inglaterra. Helen murmurou alguma coisa ambígua, e não se comprometeu com uma resposta nem outra.
Mas o chá incluía gente diferente demais para que florescesse uma conversa generalizada; do ponto de vista deRachel, tinha a grande vantagem de que ela quase não
precisava falar. Do outro lado, Susan e Arthur estavam explicando a Mrs. Paley que tinham sugerido uma excursão;tendo entendido isso, Mrs. Paley deu o conselho de
uma velha viajante, de que deviam levar legumes em conserva,casacos de pele e pó contra insetos. Ela debruçava-se paraMrs. Flushing e sussurrava algo que pelo piscar
de seusolhos provavelmente se referia a insetos. Helen estava recitando “Dobre de sino pelo bravo” para St. John Hirst, aparentemente para ganhar uma moeda de seis
pence que estava sobre a mesa; enquanto Mr. Hugling Elliot impunhasilêncio no seu setor da platéia, com sua fascinante anedotasobre Lord Curzon e a bicicleta do
estudante. Mrs. Thornbury tentava lembrar o nome de um homem que poderia ter sido um outro Garibaldi e que escrevera um livroque todos deviam ler; e Mr. Thornbury
lembrou que tinhaum par de binóculos às ordens de quem quisesse.Enquantoisso, Miss Allan murmurava, com a curiosa intimidade quesolteironas por vezes assumem com
cães, ao fox-terrier queEvelyn finalmente induzira a aproximar-se deles.Partículasminúsculas de poeira ou pólen de flores caíam sobre ospratos, sempre que os ramos
acima suspiravam. Rachel parecia ver e ouvir um pouco de tudo aquilo quase como umrio sente os raminhos que caem dentro dele e enxerga océu acima, mas os olhos dela
estavam vagos demais para ogosto de Evelyn. Ela foi até lá e sentou-se no chão, aos pésde Rachel.
Então? – perguntou de repente. – Em que está pensando?
Em Miss Warrington – respondeu Rachel impensadamente, porque tinha de dizer alguma coisa. Na verdade via Susan murmurando a Mrs. Elliot enquanto Arthur a fitava
com absoluta confiança no seu próprio amor.Rachel e Evelyn começaram a escutar o que Susan dizia.
– Há as ordens a dar, os cachorros, o jardim e as criançasque chegam para serem ensinadas – sua voz prosseguia ritmicamente, como se conferisse uma lista –, meu
tênis, o povoado, cartas a escrever para papai e mil pequenas coisas que nãoparecem muito; mas nunca tenho um momento para mim, equando vou para a cama estou com
tanto sono que durmo antes de a cabeça tocar o travesseiro. Além disso gosto deestar bastante com minhas tias... eu sou uma grande chata,não sou, tia Emma? – Ela
sorriu para a velha Mrs. Paley, que,de cabeça um pouco inclinada, contemplava o bolo com especial afeto. – E papai tem de ter muito cuidado com o friono inverno,
o que significa muita correria, porque ele não secuida, e nem você, Arthur! E assim tudo vai se acumulando!
Sua voz também se acumulava, num brando êxtase de satisfação com sua vida e sua própria natureza. De repente, Rachel sentiu uma intensa repulsa por Susan, ignorando
tudo o que era bondoso, modesto e até patético nela.Pareceu-lhe insincera e cruel; viu-a ficar gorda e prolífica,os bondosos olhos azuis aguados e desbotados, o
rubor das faces congelado numa rede de canais secos.
Helen virou-se para ela:
– Você foi à igreja? – perguntou. – Ganhara seus seis pence e parecia aprontar-se para ir embora.
– Sim – disse Rachel. – Pela última vez – acrescentou.
Preparando-se para botar as luvas, Helen deixou cair uma.
– Você não vai? – perguntou Evelyn pegando uma das luvas como se quisesse guardá-la.
– Está mais do que na hora de irmos – disse Helen. – Não vê como todo mundo está ficando calado...?
Um silêncio baixara sobre todos, causado em parte por um desses acidentes na conversa e em parte porque viam alguém se aproximando. Helen não podia ver quem era,mas
mantendo os olhos fixos em Rachel, observou algo que a fez dizer a si mesma: “Então é Hewet”. Vestiu as luvas com uma curiosa sensação da importância do momento.
Depois levantou-se, pois Mrs. Flushing também vira Hewet e estava exigindo informações sobre rios e botes, mostrando que toda a conversa voltaria àquele tema.
Rachel seguiu-a, e caminharam em silêncio pela alameda. Apesar do que Helen vira e entendera, a sensação mais importante em sua mente agora era curiosamente perversa;
se fosse naquela excursão, não poderia tomar banho; o esforço lhe parecia grande e desagradável.
– É tão ruim estar junto de pessoas que quase nem se conhece – comentou. – Pessoas que não querem ser vistas nuas.
– Você não pretende ir? – perguntou Rachel.
Mrs. Ambrose irritou-se com a intensidade com que Rachel dissera aquilo.
– Não pretendo ir e não pretendo não ir – respondeu.Estava cada vez mais vaga e indiferente.
– Afinal, atrevo-me a dizer que vimos tudo que há para se ver; e há o aborrecimento de ir até lá, e não importa o que digam, provavelmente vai ser terrivelmente
desconfortável. Por algum tempo Rachel não respondeu, mas cada frase que Helen dizia aumentava sua amargura.Finalmente ela explodiu:
– Graças a Deus, não sou como você, Helen! Às vezes acho que você não pensa, nem sente, nem se importa, nem faz nada senão existir! Você é como Mr. Hirst. Vê que
as coisas estão ruins e orgulha-se de dizer isso. É o que chama de ser honesta; na verdade isso é ser preguiçosa, ser chata, ser nada. Você não ajuda; liquida com
as coisas.
Helen sorriu como se estivesse gostando do ataque. – E então? – indagou.
– Para mim, isso parece uma coisa ruim... só isso – respondeu Rachel.
– Possivelmente – disse Helen.
Em qualquer outra época Rachel provavelmente ficaria calada diante da franqueza de sua tia, mas naquela tarde não estava disposta a ficar quieta por consideração
a ninguém. Queria discutir.
Você só vive pela metade – continuou.
Foi porque não aceitei o convite de Mrs. Flushing? – perguntou Helen. – Ou você sempre acha isso?
Naquele momento, Rachel achou que sempre vira em Helen os mesmos erros, desde a primeira noite a bordo do Euphrosyne, apesar de sua beleza e apesar de sua magnanimidade
e do amor deles.
– Ah, é só que, o que há com todo mundo? – exclamou.
– Ninguém sente nada... ninguém faz nada senão magoar os outros! Acredite, Helen, o mundo é mau. É uma agonia viver, querer...Nisso ela arrancou um punhado de folhas
de um arbusto e as esmagou para poder controlar-se.
– As vidas dessa gente – tentou explicar –, a falta de objetivo, a forma de viverem. Vai-se de uma a outra dessas pessoas, e é sempre a mesma coisa. Nunca se consegue
de nenhuma delas o que se quer.
Seu estado emocional e sua confusão teriam feito dela uma presa fácil se Helen quisesse discutir ou arrancar confidências. Mas em vez de falar ela caiu num silêncio
profundo enquanto seguiam andando. Sem objetivo, trivial, sem sentido, ah não... o que vira no chá tornava impossível acreditar nisso. As pequenas piadas, a tagarelice,as
trivialidades da tarde tinham-se desenrolado diante de seus olhos. Debaixo dos afetos e rancores, das uniões e separações, grandes coisas aconteciam, coisas terríveis,porque
eram tão grandes. Seu senso de segurança estava abalado, como se debaixo de gravetos e folhas mortas ela tivesse visto o movimento de uma cobra. Parecia-lhe que
se permitia um momento de prorrogação, um momento de faz-de-conta, e depois, novamente, a profunda lei irracional se afirmava, moldando-os todos conforme sua vontade,
criando e destruindo.
Ela olhou para Rachel caminhando a seu lado, ainda amassando as folhas na mão e absorvida em seus próprios pensamentos. A jovem estava apaixonada, e Helen sentiu
uma profunda compaixão por ela. Mas controlou-se, arrancou-se desses pensamentos e pediu desculpas.
– Lamento muito, mas se sou chata, é meu jeito e não tem remédio. – Se era um defeito natural, ela encontrou um remédio fácil, pois disse que achava o esquema de
Mr.Flushing muito bom, precisando apenas de um pouco de análise, o que parecia ter sido feito quando chegaram em casa. A essa altura tinham combinado que se mais
alguma coisa fosse dita, aceitariam o convite.
20
Quando analisada minunciosamente por Mr. Flushing e Mrs. Ambrose, viu-se que a excursão não era nem perigosa nem difícil. Também viram que nem ao menos era algo
inusitado. Todo ano, nessa estação, ingleses formavam grupos que navegavam num vapor um trecho rio acima, atracavam, olhavam a aldeia nativa, compravam várias coisas
dos nativos e voltavam sem prejuízo de mente e corpo. Quando descobriram que seis pessoas realmente desejavam a mesma coisa, logo fizeram todos os arranjos.
Desde o tempo de Elizabeth muito pouca gente vira o rio, e nada fora feito para mudar sua aparência diferenciando-o daquilo que fora visto pelos viajantes elisabetanos.
O tempo de Elizabeth distava do momento presente apenas por um lapso comparado com os séculos que haviam passado desde que as águas corriam entre aquelas margens,
e as verdes matas abundavam, e as árvores pequenas cresciam formando imensas árvores retorcidas e solitárias. Mudando apenas com a mudança do sol e das nuvens, a
verde massa ondulante estava ali século após século, e a água correra entre suas margens incessantemente, às vezes lavando terra, e por vezes carregando ramos de
árvores, enquanto em outras partes do mundo uma cidade se erguia das minas de outra cidade, e homens nas cidades se haviam tornado cada vez mais articulados e diferentes
entre si. Poucos quilômetros desse rio eram visíveis do topo da montanha onde algumas semanas antes o grupo do hotel fizera o piquenique. Susan e Arthur tinham-no
visto quando se beijavam, e Terence e Rachel quando se sentavam ali falando em Richmond, e Evelyn e Perrott caminhando por ali, imaginando que eram grandes capitães
enviados para colonizar o mundo. Tinham visto a ampla massa azul varando a areia onde corria para
o mar, e a massa verde de árvores mais acima, finalmente escondendo suas águas. A intervalos nos primeiros 30 quilômetros mais ou menos, havia casas espalhadas nas
margens; aos poucos as casas tornavam-se cabanas, e mais adiante não havia nem cabanas nem casas, mas árvores e capim, vistos unicamente por caçadores, exploradores,
ou mercadores marchando ou navegando, mas não se estabelecendo nunca.
Deixando Santa Marina cedo de manhã, rodando 30 quilômetros e cavalgando 13, o grupo, finalmente composto por seis ingleses, chegou à margem do rio quando caía a
noite. Avançaram facilmente entre as árvores – Mr. e Mrs. Flushing, Helen Ambrose, Rachel, Terence e St.
John. Os cavalinhos cansados então pararam automaticamente e os ingleses desmontaram. Mrs. Flushing andou pela margem do rio, eufórica. O dia fora longo e quente,mas
ela gostara da velocidade e do ar livre; deixara o hotel que odiava e gostava de companhia. O rio passava redemoinhando na escuridão; podiam apenas distinguir a
suave superfície móvel das águas; o ar estava cheio do som do rio. Pararam no espaço vazio entre os enormes troncos,e lá fora uma luz verde movendo-se livremente
acima e abaixo mostrava-lhes onde o vapor em que deveriam embarcar os aguardava.
Quando todos estavam no convés, viram que era um barco muito pequeno, que balouçou suavemente embaixo deles por alguns minutos, depois deslizou macio pelas águas.
Pareciam estar se dirigindo para o coração da noite,pois as árvores fecharam-se na frente deles e podiam escutar ao redor, por toda parte, o farfalhar de folhas.
A grande treva teve o seu efeito habitual, removendo todo desejo de comunicação, fazendo suas palavras soarem pequenas e frágeis; depois de caminhar ao redor do
convés três ou quatro vezes, juntaram-se num grupo, com grandes bocejos, olhando o mesmo local de profunda escuridão nas margens. Murmurando muito baixo, no tom
rítmico de alguém meio sufocado, Mrs. Flushing começou a imaginar onde iriam dormir, pois não podiam dormir no andar inferior, não podiam dormir num buraco cheirando
a óleo, nem podiam dormir no convés, não podiam... ela deu um grande bocejo. Era como Helen previra; a questão da nudez já surgira, embora estivessem meio adormecidos
e quase invisíveis uns aos outros. Com ajuda de St. John ela estendeu um pano e persuadiu Mrs. Flushing de que poderia tirar as roupas atrás dele e que ninguém se
importaria se por acaso alguma parte dela, oculta por 45 anos, ficasse exposta ao olho humano. Jogaram colchões no chão, providenciaram mantas, e as três mulheres
deitaram-se juntas ao suave relento.
Os cavalheiros, tendo fumado alguns cigarros, jogaram as pontas acesas no rio e contemplaram por algum tempo as ondulações que agitavam a água negra lá embaixo;
despiram-se também e deitaram-se na outra extremidade do barco. Estavam muito cansados, e a treva os separava como uma cortina. A luz de um lampião caía sobre algumas
cordas, umas poucas tábuas do convés e a amurada do barco, mas além disso havia uma treva única, nenhuma luz atingia os rostos deles, nem as árvores que se erguiam
aos montes nas margens do rio.
Logo Wilfrid Flushing dormia, e Hirst também. Só Hewet estava acordado, olhando para o céu. O movimentosuave e as formas negras que passavam incessantes diantede
seus olhos não o deixavam pensar. A presença de Racheltão perto dele ninava seus pensamentos. Estando tão próxima dele, a poucos passos, do outro lado do barco,
tornavaimpossível pensar nela como teria sido impossível vê-la seestivesse parada bem perto dele, cara a cara. De algumaforma estranha, o barco identificava-se com
ele, e assim como teria sido inútil para ele levantar-se e tentar pilotar obarco, era inútil tentar lutar mais contra a força de seus próprios sentimentos. Estava
sendo arrastado cada vez mais para longe de tudo o que conhecia, deslizando sobrebarreiras, passando de marcos para dentro de águas desconhecidas enquanto o barco
deslizava sobre a macia superfície do rio. Numa profunda paz, envolvido numa inconsciência mais profunda do que aquela em que estivera há muitas noites, ele se deitava
no convés observando os topos dasárvores mudarem de posição rapidamente diante do céu,arqueando-se, baixando e erguendo-se, imensas, até que passou dessas visões
para sonhos, onde estava deitado àsombra de vastas árvores, olhando o céu.
Quando acordaram na manhã seguinte, tinham subidoum trecho considerável rio acima; à direita ficava uma alta margem amarela de areia com tufos de árvores, à esquerdaum
pântano com longos juncos e altos bambus trêmulos no topo dos quais, balouçando levemente, pousavam pássaros deum verde e um amarelo vivos. A manhã era quente e
quieta.Depois do café juntaram cadeiras e sentaram-se na proa numsemicírculo irregular. Um toldo sobre suas cabeças protegiaos do calor do sol, e a brisa que o barco
provocava roçava-ossuavemente. Mrs. Flushing já estava colocando manchas elistras na sua tela, a cabeça inclinando-se ora para um lado,ora para outro, como um pássaro
nervosamente bicandogrãos; os outros tinham livros, folhas de papel ou bordadosnos joelhos, para os quais olhavam intermitentemente, voltando a fitar o rio à frente.
Num momento Hewet leu alto um trecho de um poema, mas o número de coisas móveisfazia desvanecerem-se por completo suas palavras. Ele paroude ler, e ninguém falava.
Moviam-se sob o abrigo das árvores.Ora um bando de pássaros vermelhos alimentava-se numadas ilhotas à esquerda, ora mais uma vez um papagaio azul everde voava de
árvore em árvore, aos gritos. À medida que avançavam a paisagem ficava mais selvagem. As árvores e a vegetação baixa pareciam estrangular-se mutuamente junto ao
chão, numa luta múltipla, enquanto aqui e ali uma árvoremagnífica se erguia como uma torre sobre as demais, sacudindo seu tênue guarda-sol verde no ar. Hewet voltou
a olharseu livro. A manhã estava tão pacífica quanto fora a noite,apenas muito estranha porque estava claro e podia ver Rachel,ouvir sua voz, estar perto dela. Sentia
que estava à espera,como se estivesse estacionado entre coisas que passavam acima dele, em torno dele, vozes, corpos de pessoas, pássaros, esó Rachel esperava com
ele.Olhava para ela às vezes,como seela devesse saber que esperavam juntos, sendo levados em frente juntos, sem poderem oferecer nenhuma resistência.
Voltou a ler seu livro:
“Quem quer que seja você que me segura em sua mão,há uma coisa sem a qual tudo será inútil”.
Um pássaro deu um riso selvagem, um macaco ria satisfeito com uma pergunta maliciosa, e as palavras dele bruxulearam e apagaram-se como fogo que sucumbe ao sol escaldante.
Aos poucos, enquanto o rio se estreitava e as altas mar-gens de areia baixavam cobertas de denso arvoredo, podiam-se escutar os sons da floresta.Tudo ecoava como
num grande salão. Havia gritos súbitos; depois longos espaçosde silêncio, como uma catedral quando a voz de um menino cessou e o eco ainda parece povoar os lugares
mais remotos do teto. Uma vez Mr. Flushing levantou-se, faloucom um marinheiro e até anunciou que depois do almoço o barco pararia e poderiam andar um pouco pela
floresta.
– Há trilhas por toda parte entre as árvores ali – explicou. – Ainda não estamos muito longe da civilização.
Examinou a pintura da esposa. Educado demais para elogiá-la abertamente, contentou-se em cortar metade do quadro com a mão e fazer um floreio no ar com a outra.
– Meus Deus! – exclamou Hirst olhando em frente. – Não acham que é incrivelmente bonito?
– Bonito? – perguntou Helen. Parecia uma estranha e pequena palavra, o próprio Hirst e ela mesma tão pequenos, que ela se esqueceu de responder.Hewet sentiu que
devia falar.
– É daqui que os elisabetanos pegaram seu estilo – meditou ele, olhando fixo a profusão de flores, folhas e prodigiosos frutos.
– Shakespeare? Eu odeio Shakespeare! – exclamou Mrs. Flushing; e Wilfrid respondeu admiravelmente:
– Acho que você é a única pessoa que se atreve a dizer isso, Alice. – Mas Mrs. Flushing continuou pintando.Não parecia dar muito valor ao elogio do marido e pintava
com firmeza, às vezes murmurando um gemido ou uma palavra semi-audível.A manhã estava muito quente.
– Olhem para Hirst! – sussurrou Mr. Flushing. Sua folha de papel escorregara para o convés, a cabeça dele estava jogada para trás e ele roncava profundamente.
Terence pegou a folha de papel e estendeu-a diante de Rachel. Era uma continuação do poema sobre Deus que ele começara na capela; era tão indecente que Rachel não
entendeu a metade, embora visse que era indecente. Hewet começou a preencher palavras onde Hirst deixara lacunas, mas logo parou; seu lápis rolou no convés. Aos
poucos, aproximaram-se mais e mais da margem do lado direito, de modo que a luz que os cobria se tornou definitivamente verde, caindo por uma sombra de folhas verdes,e
Mrs. Flushing deixou de lado seu esboço e ficou em silêncio olhando em frente. Hirst acordou; depois foram chamados para o almoço, e enquanto comiam o vapor parou,
um pouco longe da margem. O bote que vinha a reboque atrás deles foi levado para o lado, e as damas foram auxiliadas para entrar.
Para proteger-se contra o tédio, Helen pôs um livro de memórias debaixo do braço, e Mrs. Flushing sua caixa de tintas; assim equipados, foram depositados na praia,
na margem da floresta.
Não tinham andado mais do que poucas centenas de jardas ao longo da trilha que corria paralela ao rio, quando Helen disse achar o dia intoleravelmente quente. A
brisa do rio cessara, e uma atmosfera quente e úmida, densa de odores, vinha da floresta.
Vou me sentar aqui – anunciou ela, apontando o tronco de uma árvore que caíra há muito tempo e agora estavacoberta de trepadeiras entrelaçadas e cipós parecendo
correias. Sentou-se, abriu seu guarda-sol e olhou o rio listradopelos caules das árvores. Virou-se de costas para as árvoresque desapareciam na sombra negra atrás
dela.
Eu até que concordo – disse Mrs. Flushing, passando a desmontar sua caixa de tintas. Seu marido ficou vagando por ali, procurando um ângulo interessante paraela.
Hirst limpou um espaço no chão ao lado de Helen esentou-se com grande determinação, como se não tencionasse mexer-se, a não ser depois de falar com ela longo tempo.
Terence e Rachel ficaram parados sozinhos,sem ocupação. Terence viu que chegara a hora, como estava predestinado, mas embora percebesse isso, estavatotalmente calmo,
e dono de si mesmo. Preferiu ficar al-guns momentos falando com Helen, persuadindo-a alevantar-se do seu assento. Rachel uniu-se a ele aconselhando-a a ir junto.
– De todas as pessoas que já conheci – disse ele –, a senhora é a menos aventureira. Podia estar sentada em um banco no Hyde Park. Vai ficar sentada aqui a tarde
toda? Não vai caminhar?
– Ah, não – disse Helen, a gente só precisa usar os olhos. Está tudo aqui... tudo – repetiu numa voz sonolenta. – O que vai ganhar caminhando?
– Vão estar com calor e intratáveis na hora do chá, e nós estaremos frescos e gentis – objetou Hirst. Nos seus olhos, enquanto os erguia, apareciam reflexos verdes
e amarelos do céu e dos ramos, tirando-lhes sua intensidade, e ele parecia pensar coisas que não dizia. Assim conseguiram que Terence e Rachel propusessem caminhar
na floresta juntos; lançando um olhar um ao outro, viraramse e se afastaram.
– Até logo! – gritou Rachel.
– Até logo. Cuidado com as cobras – respondeu Hirst.Ajeitou-se mais confortavelmente sob a sombra da árvore caída e do corpo de Helen. Quando partiram, Mr.Flushing
os chamou.
– Temos de partir em uma hora. Hewet, por favor,lembre-se disso. Uma hora.
Quer fosse feito pelo homem ou por algum motivo preservado pela natureza, havia um trilho largo atravessando afloresta em ângulo reto com relação ao rio. Parecia
um caminho para veículos numa floresta inglesa, exceto que osarbustos tropicais com suas folhas parecendo espadas cresciam dos lados, e o chão estava coberto de
uma massa informe e mole em vez de capim, respingada de florezinhasamarelas. Quando passaram para a profundeza da floresta,a luz ficou mais débil, e os rumores do
mundo comum foram substituídos pelos estalos e suspiros que sugerem ao viajante numa floresta que ele está caminhando no fundo do mar. A trilha estreitou-se e dobrou;
era beirada por densas trepadeiras, que se enroscavam em nós de árvore em árvore, e arrebentavam aqui e ali em flores vermelhas comformato de estrela. Os suspiros
e estalos acima eram rompidos vez por outra pelo grito dissonante de algum animalespantado. A atmosfera era abafada e o ar lhes chegava em lânguidos bafos de perfume.
A vasta luz verde era rompidaaqui e ali por um sol redondo de um amarelo puro, que caíanuma fenda no imenso guarda-sol verde no alto, e nessesespaços amarelos borboletas
vermelhas e pretas giravam epousavam. Terence e Rachel quase não falavam.
Não apenas o silêncio pesava sobre eles, mas ambos estavam incapazes de construir pensamentos. Havia entre eles algo que precisava ser falado. Um deles tinha de
começar, mas qual seria? Então Hewet apanhou uma fruta vermelha e jogou-a o mais alto que pôde. Quando caísse,ele falaria. Ouviram o tatalar de grandes asas; ouviram
a fruta cair entre as folhas e depois bater com um som abafado. O silêncio voltou a ser profundo.
– Isso assusta você? – perguntou Terence quando o som da fruta caindo morrera totalmente.
– Não – respondeu ela. – Eu gosto. – Ela repetiu: – Eu gosto. – Ela andava rápido, mais ereta do que de costume.Houve uma outra pausa.
Gosta de estar comigo? – perguntou Terence.
Sim, com você – respondeu ela.
Ele ficou calado por um momento. O silêncio parecia recobrir o mundo.
– É isso que sinto desde que a conheci – respondeu ele.
– Somos felizes juntos. – Ele não parecia estar falando, nem ela ouvindo.
– Muito felizes – respondeu ela.
Continuaram caminhando silenciosos algum tempo.Seus passos inconscientemente aceleraram.
Nós nos amamos – disse Terence.
Nós nos amamos – repetiu ela.
Então o silêncio foi rompido pelas suas vozes fundidas em tons estranhos e pouco familares, que não formavam palavras. Caminhavam mais e mais depressa; pararam simultaneamente,
agarraram-se pelos braços e depois, sol-tando-se, caíram no chão. Sentaram-se lado a lado. Do fundo vinham sons fazendo uma ponte sobre o silêncio deles; ouviram
o farfalhar de árvores e um bicho grasnando num mundo remoto.
– Nós nos amamos – repetiu Terence procurando o rosto dela.
Seus rostos estavam muito pálidos e quietos, e não disseram nada. Ele teve medo de beijá-la outra vez.Aos poucos ela foi se aproximando e recostou-se nele.
Nessa posição ficaram sentados algum tempo. Ela disse uma vez:
– Terence.
E ele respondeu: – Rachel.
– Terrível... terrível... – murmurou ela depois de outra pausa, mas dizendo isso pensava tanto no persistente chapinhar da água quanto em seu próprio sentimento.
Viu que corriam lágrimas pelas faces de Terence.O movimento seguinte veio da parte dele. Parecia ter passado um tempo muito longo. Ele pegou seu relógio de bolso.
– Flushing disse uma hora. Caminhamos mais do que meia hora.
– E vamos levar isso para voltar – disse Rachel levantando-se muito devagar. Quando estava de pé estendeu os braços e respirou fundo,meio suspiro,meio bocejo.Parecia
muito cansada. Suas faces estavam brancas.
Para que lado? – perguntou.
Lá – disse Terence.
Começaram a voltar pela trilha musgosa. Os estalidos e suspiros prosseguiram lá no alto, além dos gritos desafinados dos animais. As borboletas ainda giravam nas
manchas de sol amarelas. No início Terence teve certeza do caminho, mas quando caminhavam foi tendo dúvidas.Tiveram de parar para refletir e depois voltar e começar
mais uma vez, pois embora ele tivesse certeza da direção do rio, não tinha certeza de atingir o ponto onde deixaram os outros. Rachel o seguia, parando quando ele
parava, virando-se quando ele virava, sem saber o caminho,sem saber por que ele parava ou virava.
Não quero me atrasar porque... – ele pôs uma flor nas mãos dela, e os seus dedos agarraram-na calmamente.
Estamos tão atrasados... tão atrasados... terrivelmente atrasados... – repetia ele como se falasse no sono. – Ah...está certo. Aqui dobramos.
Viram-se novamente na trilha larga, como um caminho numa floresta inglesa, de onde haviam partido quando deixaram os demais. Caminharam em silêncio, como pessoas
caminhando no sono, estranhamente conscientes vez por outra do peso de seus corpos. Então de repente Rachel exclamou:
– Helen!
No espaço ensolarado na margem da floresta viram Helen, ainda sentada no tronco de árvore, vestido muito branco ao sol, com Hirst ainda apoiado no cotovelo ao seulado.
Pararam instintivamente. À vista dos outros não conseguiram prosseguir. Pararam de mãos dadas um minuto ou dois, calados. Não suportavam ver outras pessoas.
– Mas temos de prosseguir – insistiu Rachel finalmente, no curioso tom de voz embotado em que ambos estiveram falando; com grande esforço obrigaram-se a cobrir a
curta distância entre eles e o casal sentado no tronco. Quando se aproximaram, Helen virou-se e olhou para eles. Olhou-os por algum tempo sem falar, e quando chegaram
mais perto disse tranqüilamente:
– Encontraram Mr. Flushing? Ele foi procurar vocês.Achou que deviam estar perdidos, embora eu lhe dissesse que não estavam.
Hirst deu meia volta e jogou a cabeça para trás de modo que olhava os ramos que se entrecruzavam no ar em cima.
– Bem, valeu a pena o esforço? – disse, meio devaneando.
Hewet sentou-se no capim ao lado dele e começou a abanar-se.
– Quente.
Rachel equilibrou-se perto de Helen na ponta do tronco.
Muito quente.
Vocês parecem exaustos – disse Hirst.
– Aquelas árvores são assustadoramente fechadas – comentou Helen apanhando seu livro e agitando-o para limpá-lo de talos de capim seco que caíram entre as páginas.
Depois ficaram todos calados, olhando o rio que passava redemoinhando diante deles, até que Mr. Flushing os interrompeu. Irrompeu das árvores a cem metros à esquerda,
exclamando bruscamente:
– Ah, afinal encontraram o caminho. Mas é tarde... muito mais tarde do que tínhamos combinado, Hewet.Estava um pouco aborrecido, e na qualidade de líder da expedição,
inclinava-se a ser ditatorial. Falava depressa, usando curiosas palavras ásperas e sem sentido.
– Naturalmente em circunstâncias anormais atrasar-se não teria importância – disse –, mas quando se trata de fazer os homens cumprirem o horário...
Ele os reuniu e os fez descer até a margem do rio onde o bote esperava para levá-los até o vapor.
O calor do dia estava diminuindo e diante de suas xícaras de chá os Flushing ficaram comunicativos. Terenceachou, enquanto os ouvia falar, que a existência prosseguiaagora
em dois níveis diferentes. Aqui estavam os Flushing falando, falando em algum lugar alto no ar acima dele, e elee Rachel tinham caído juntos no fundo do mundo. Mascom
algo da franqueza de uma criança, Mrs. Flushing também tinha o instinto que leva uma criança a suspeitardaquilo que os adultos desejam deixar oculto. Fixava Terence
com seus vivos olhos azuis e dirigia-se especialmente a ele. O que faria, quis saber, se o bote batesse numarocha e afundasse?
– O senhor se interessaria por qualquer coisa além de salvar a própria pele? E eu, me interessaria? Não, não – ela ria – nem um pouquinho... não me diga. Há só duas
criaturas pelas quais uma mulher comum se interessa: seu filho e seu cachorro; não creio que sejam sequer duas criaturas. Nós lemos muito sobre o amor... por isso
é que a poesia é tão enfadonha. Mas o que acontece na vida real,hein? Isso não é amor! – exclamou ela. Terence murmurou alguma coisa ininteligível. Mr.Flushing,
porém, recuperara sua urbanidade. Fumando um cigarro respondeu à esposa.
– Alice, você tem de lembrar sempre que teve uma educação muito pouco natural... inusitada, eu diria. Eles nãotiveram mãe – explicou abandonando parte da formalidadedo
seu tom – e pai... ele era um homem muito encantador,não tenho dúvidas, mas só se interessava por cavalos decorrida e estátuas gregas. Conte-lhes sobre o banho,
Alice.
– No pátio dos estábulos – disse Mrs.Flushing.– Coberto de gelo no inverno.Tínhamos de entrar; se não éramos surrados. Os fortes viveram... os outros morreram. O
que sechama sobrevivência dos mais adaptados... um plano excelente, atrevo-me a dizer, quando se tem 13 filhos!
E tudo isso no coração da Inglaterra, e no século XIX! – exclamou Mr. Flushing, virando-se para Helen.
Eu trataria meus filhos exatamente da mesma maneira, se os tivesse – disse Mrs. Flushing.
Cada palavra soava bem nítida aos ouvidos de Terence;mas o que estavam dizendo, com quem estavam falando equem eram elas, aquelas pessoas fantásticas, destacadas
emalgum lugar no alto, no ar? Agora que tinham bebido seuchá, levantaram-se e debruçaram-se na amurada do barco. O sol se punha, e a água estava escura e rubra.
O rio alargara-se de novo; estavam passando por uma ilhazinha instalada como uma cunha escura no meio da torrente. Duas grandes aves brancas tingidas por luzes vermelhas
postavam-se ali em suas pernas longas, parecendo pernas de pau,e nada se imprimia na praia da ilha, exceto as marcas esqueléticas das patas das aves. Os ramos das
árvores na mar-gem pareciam mais retorcidos e angulosos do que nunca, e o verde das folhas era sombrio mas respingado de ouro.Então Hirst começou a falar, inclinado
sobre a amurada.
– A gente se sente terrivelmente esquisito, não acham?
– queixou-se. – Essas árvores dão nos nervos... é tudo tão doido. Sem dúvida, Deus é louco. Que pessoa normal poderia ter concebido uma selva dessas, povoando-a
de macacos e crocodilos? Eu ficaria louco se vivesse aqui... completamente louco.
Terence tentou responder, mas Mrs. Ambrose respondeu em seu lugar. Pediu-lhe que olhasse a maneira como as coisas se aglutinavam – olhar as cores surpreendentes,as
formas das árvores. Parecia estar protegendo Terence da abordagem dos outros.
– Sim – disse Mr. Flushing – e na minha opinião, aausência de população a que Hirst objeta é exatamente otoque significativo. Você precisa admitir, Hirst, que umaaldeiazinha
italiana até vulgarizaria a cena toda, tiraria delaessa sensação de vastidão... senso de grandeza elementar. – Ele fez um gesto em direção da floresta e parou por
um momento, contemplando a enorme massa verde que agorase silenciava. – Acho que isso nos faz parecer bastante pequenos... a nós, mas não a eles. – Ele fez um aceno
de cabeça na direção do marinheiro que se debruçava a seu lado,cuspindo no rio. – E isso, eu acho, é o que minha mulhersente, a superioridade essencial do camponês...Protegido
pelas palavras de Mr. Flushing que continuava argumentando educadamente com St. John, persuadindo-o, Terence puxou Rachel de lado, apontando ostensivamente para
um grande tronco de árvore retorcido que caíra e estava metido pela metade na água. Queria de qualquer jeito estar perto de Rachel, mas viu que não conseguia dizer
nada. Podiam escutar Mr. Flushing falando,ora sobre sua esposa, ora sobre arte, ora sobre o futuro do país, pequenas palavras sem sentido flutuando alto no ar.Como
estava começando a esfriar,ele foi andar no convés com Hirst. Fragmentos de seu diálogo chegavam distintos quando passavam... arte, emoção, verdade, realidade.
– Tudo isto é verdade ou é sonho? – murmurou Rachel quando tinham passado.
– É verdade, é verdade – respondeu Terence.
Mas a brisa ficou mais fresca e houve um desejo geral de movimento. Quando o grupo se reorganizou sob a proteção de mantas e casacos, Terence e Rachel estavam em
pontos opostos do círculo e não podiam conversar.Mas quando baixou a escuridão, as palavras dos outros pareciam enroscar-se e sumir como cinzas de papel queimado,
deixando-os sentados, perfeitamente quietos, no fundo do mundo. Eram varados de vez em quando por frêmitos de refinada alegria, e depois ficavam apaziguados outra
vez.
21
Graças à disciplina de Mr. Flusing, chegaram aos locais certos do rio nas horas certas, e quando na manhã seguinte, depois do café, as cadeiras foram novamente postas
num semicírculo na proa, a lancha estava a poucos quilômetros do acampamento nativo que era o limite de sua viagem. Quando se sentou. Mr.Flushing aconselhou-os a
ficar de olho na margem esquerda, onde logo passariam por uma clareira onde havia uma cabana em que Mackenzie, o famoso explorador, morrera de febre há uns dez anos,
quase dentro da civilização – Mackenzie, repetiu ele, o homem que penetrou no interior mais do que qualquer outra pessoa até agora. Os olhos deles voltaram-se para
lá, obedientes. Os olhos de Rachel nada viam. Formas amarelas e verdes, é verdade, desfilavam diante deles, mas ela apenas sabia que uma era grande, outra pequena;não
sabia que eram árvores. Essas ordens de olhar para cá e para lá a irritavam, como interrupções irritam uma pessoa absorvida em seus pensamentos, embora ela nem estivesse
pensando em nada. Estava aborrecida com tudo o que se dizia e com os movimentos sem objetivo dos corpos das pessoas, pois pareciam interferi-la e impedi-la de falar
com Terence. Logo Helen a viu fitando mal-humorada um laço de cordame, sem se esforçar para escutar. Mr. Flushing e St.John estavam metidos numa conversa mais ou
menos constante sobre o futuro do país do ponto de vista político e o grau em que já fora explorado; os outros, com pernas esticadas, ou queixos apoiados nas mãos,
olhavam tudo em silêncio.
Mrs. Ambrose olhava e escutava obedientemente, mas por dentro era vítima de um estado de alma inquietante difícil de atribuir a alguma causa. Olhando para a praia
como Mr. Flushing pedia, ela achava o país belíssimo, mas também alarmante e opressivo. Não gostava de sentir-se vítima de emoções que não sabia classificar,e certamente
quando a lancha deslizava mais e mais em frente, sob o sol quente da manhã, foi dominada por uma emoção irracional. Não sabia dizer se a causa era a floresta tão
pouco familiar, ou algo menos definido. Sua mente deixou o cenário e ocupou-se com ansiedades em relação a Ridley, seus filhos, coisas distantes, como velhice, pobreza
e morte. Hirst também estava deprimido. Aguardara essa excursão como a um feriado, pois uma vez longe do hotel certamente aconteceriam coisas maravilhosas; em vez
disso, nada acontecia, e estavam sofrendo mais desconfortos, restrições e constrangimentos do que nunca. Isso naturalmente se dava porque tiveram expectativas: sempre
há desapontamentos. Ele culpava Wilfrid Flushing, tão bem trajado, todo formal; culpava Hewet e Rachel. Por que não falavam? Olhou para eles, sentados, calados e
recolhidos em si mesmos, e essa visão o aborreceu. Supôs que estivessem noivos, ou quase noivos, mas em vez de ser pelo menos romântico ou excitante, isso era tão
chato quanto tudo o mais; também o aborrecia pensar que estivessem apaixonados. Aproximou-se de Helen e começou a contar-lhe como fora desconfortável sua noite,
deitado no convés, ora quente demais, ora frio demais, e as estrelas tão claras que não conseguia dormir. Ficara deitado acordado a noite toda, pensando, e quando
a luz fora suficiente para ver, escrevera 20 linhas do seu poema sobre Deus, e o horrível era que praticamente provara que Deus existia. Não notou que a estava provocando
e prosseguiu, imaginando o que aconteceria se Deus existisse...
– Um velho senhor de barba e camisola azul comprida, extremamente difícil e desagradável, como deve ser? Pode sugerir uma rima? Deus, meus, hebreus...tudo usado;
e outras?
Embora ele falasse de modo bastante habitual, Helen podia ter visto, se o tivesse encarado, que eleestava impaciente e perturbado. Mas não pôde responder porque
Mr. Flushing exclamou “Ali!” e eles olharam a cabana na margem, um local desolado com uma grande fenda no telhado, o chão ao redor amarelo, com restos de fogueiras
espalhados e latas enferrujadas abertas.
– Foi aqui que encontraram seu cadáver? – exclamou Mrs. Flushing, inclinando-se na sua ansiedade por ver o local onde morrera o explorador.
– Acharam seu corpo, suas peles e seu caderno de notas – respondeu o marido. Mas logo a embarcação os levara dali, deixando o lugar para trás.Estava tão quente que
quase nem se mexiam, exceto para apoiar-se no outro pé ou para acender um fósforo.Seus olhos concentravam-se na margem, cheios dos mesmos reflexos verdes, e seus
lábios se comprimiam de leve como se as coisas que estivessem vendo provocassem pensamentos; apenas os lábios de Hirst se moviam intermitentes, quando, meio inconscientemente,
ele procurava rimas para Deus. Fossem quais fossem os pensamentos dos outros, ninguém disse nada por bastante tempo.Estavam tão acostumados ao paredão de árvores
dos dois lados, que olharam para cima, surpresos, quando a luz subitamente se alargou e as árvores acabaram.
– Isso quase lembra um parque inglês – disse Mr. Flushing.
Na verdade, não poderia ter havido maior mudança.Nas duas margens do rio havia um espaço livre, gramado e plantado, pois a doçura e a ordem sugeriam cuidados humanos,
com graciosas árvores no topo de outeiros. Até onde conseguiam olhar, aquele gramado erguia-se e baixava com o movimento ondulante de um antigo parque inglês. A
mudança de cenário sugeria naturalmente uma mudança de posição,grata a quase todos eles.Levantaramse e inclinaram-se na amurada.
– Podia ser Arundel ou Windsor – continuou Mr. Flushing – se fosse tirado aquele arbusto de flores amarelas; e, por Deus, olhem só!
Fileiras de flancos marrons pararam por um momento e depois saltaram, desaparecendo da vista com movimento de quem estivesse pulando por cima de ondas.
Por um momento nenhum deles podia acreditar que realmente tivessem visto animais vivos ao ar livre – uma manada de veados silvestres –, e a visão despertou uma excitação
infantil neles, dissipando sua melancolia.
– Nunca na vida vi nada maior do que uma lebre! – exclamou Hirst com genuína excitação. – Que burro fui por não trazer minha Kodak!
Pouco depois a lancha foi parando, e o capitão explicou aMr. Flushing que seria agradável para os passageiros daremum passeio pela praia; se quisessem voltar em
uma hora, eleos levaria à aldeia; se preferissem caminhar – era só uns doisquilômetros adiante – ele os esperaria no atracadouro.
Depois de acertarem isso, foram largados na praia mais uma vez: os marinheiros, pegando passas e tabaco, inclinaram-se sobre a amurada e observaram os seis ingleses
de casacos e vestidos tão estranhos naquele verde saírem andando. Uma piada nada adequada provocou risos, então viraram-se e deitaram-se à vontade no convés.
Assim que chegaram em terra, Terence e Rachel reuniram-se, um pouco à frente dos demais.
– Graças a Deus! – exclamou Terence respirando fun-do. – Finalmente estamos sozinhos.
– E se continuarmos na frente podemos conversar – disse Rachel. Mesmo assim, embora sua posição alguns metros à frente dos demais lhes proporcionasse dizer tudo
o que quisessem, ficaram em silêncio.
– Você me ama? – disse Terence depois de algum tempo, rompendo penosamente o silêncio. Falar ou ficar calado era um esforço, pois quando estavam quietos tinham uma
consciência aguda da presença do outro, mas palavras eram ou muito banais ou muito compridas.
Ela deu um murmúrio inarticulado, que terminava:
– E você?
– Sim, sim – respondeu ele. Mas havia tantas coisas a serem ditas, e agora que estavam sozinhos parecia necessário aproximarem-se ainda mais e superarem uma barreira
que crescera desde a última vez em que se falaram.Era difícil, assustador, estranhamente embaraçoso. Num momento ele estava lúcido; no outro, confuso.
– Agora vou começar do começo – disse, resoluto.
– Vou dizer-lhe o que já devia ter dito antes. Em primeiro lugar, nunca estive apaixonado por outras mulheres, mas já tive outras mulheres. Além disso tenhograndes
defeitos. Sou muito preguiçoso, temperamental... – Apesar da exclamação dela, ele insistia. – Vocêprecisa conhecer o pior em mim. Sou lascivo. Sou dominado por um
senso de futilidade... incompetência.Eu nunca deveria ter pedido você em casamento. Soubastante esnobe; sou ambicioso...
– Ora, nossos defeitos! – exclamou ela. – Que importam eles? Depois indagou: – Eu estou apaixonada?... isso é estar apaixonada?... vamos nos casar?
Dominado pelo encanto de sua voz e de sua presença,exclamou:
– Ah, Rachel, você é livre. Para você, o tempo não vai fazer diferença, nem o casamento, nem...
As vozes dos outros atrás deles ficavam flutuando, mais próximas, mais distantes, e o riso de Mrs. Flushing ergueu-se, claro.
– Casamento? – repetiu Rachel.
Os gritos renovaram-se atrás, prevenindo-os de que estavam demasiado à esquerda. Melhorando seu curso, ele continuou:
– Sim, casamento. – A sensação de que não podiam se unir antes de que ela soubesse de tudo a seu respeito fez com que voltasse a explicar-se:
– Tudo o que tem sido ruim em mim, as coisas com que tive de lidar... as outras...Ela murmurou alguma coisa, analisou sua própria vida,mas não conseguiu descrever
como via isso agora.
– E a solidão! – prosseguiu ele. Uma visão de estar andando com ela nas ruas de Londres surgiu diante de seus olhos – Vamos dar caminhadas juntos – disse ele. A
simplicidade da idéia os aliviou, e pela primeira vez riram.Teriam gostado de atrever-se a andar de mãos dadas, mas a consciência de olhos fixos neles ainda não
os deixara.
– Livros, pessoas, paisagens... Mrs. Nutt, Greeley,Hutchinson... – murmurou Hewet.
A cada palavra, a névoa que os envolvera, fazendo-osparecer irreais um para o outro, desde a tarde anterior, desfazia-se um pouco mais, e seu contato ficava cada
vez maisnatural. Através da mormacenta paisagem sulina, viam o mundo que conheciam mais claro e mais vivo do que antes.Como naquela ocasião no hotel em que ela se
sentara najanela, o mundo mais uma vez se organizava debaixo do seuolhar, muito nitidamente, e em suas verdadeiras proporções. Lançava um olhar curioso a Terence,
de tempos emtempos, observando seu casaco cinza e sua gravata púrpura;observando o homem com quem passaria o resto da vida.
Depois de um desses olhares ela murmurou:
– Sim, eu estou apaixonada. Não há dúvida; estou apaixonada por você.
Mesmo assim continuavam desconfortavelmente separados; tão unidos quando ela falava, que parecia não haver divisão entre eles, e no momento seguinte, separados e
distantes outra vez. Sentindo isso dolorosamente, ela exclamou:
– Vai ser uma luta.
Mas olhando para ele percebeu, pela forma de seus olhos, pelas linhas em torno de sua boca e por outras peculiaridades, que ele lhe agradava, e acrescentou:
– Quando eu quiser brigar, tenha compaixão. Você é melhor que eu; muito melhor.
Ele devolveu seu olhar e sorriu, percebendo, como ela fizera, as pequenas particularidades que a tornavam encantadora. Era sua para sempre.
Superada essa barreira, inumeráveis delícias jaziam à frente deles.
Eu não sou melhor – respondeu ele. – Só sou mais velho, mais preguiçoso; um homem, não uma mulher.
Um homem – repetiu ela, e um estranho sentimento de posse a dominou; pareceu-lhe que agora podia tocá-lo; estendeu a mão e tocou de leve sua face. Os dedos dele
seguiram o caminho dos dela, e o toque da sua mão sobre o próprio rosto trouxe novamente o arrebatador sentimento de irrealidade. Aquele corpo dele era irreal; o
mundo todo era irreal.
– O que aconteceu? – começou ele. – Por que lhe pedi que se casasse comigo? O que foi?
– Você me pediu em casamento? – espantou-se ela.Afastaram-se um do outro, e nenhum dos dois podia lembrar o que fora dito.
– Estávamos sentados no chão – lembrou ele.
– Sentados no chão – confirmou ela. A lembrança de sentarem no chão parecia uni-los de novo, e continua-ram andando em silêncio, suas mentes às vezes funcionando
com dificuldade, às vezes cessando de funcionar, seus olhos somente percebendo as coisas ao redor. Agoraele voltaria a tentar contar-lhe seus defeitos e a dizer
porque a amava; e ela descreveria o que sentira num momento ou outro, e juntos interpretariam seu sentimento.Tão belo era o som de suas vozes que aos poucos quase
nem ouviam as palavras pronunciadas. Longos silênciossurgiram entre suas palavras, que já não eram silênciosde confusão e luta, mas silêncios repousantes em que
pensamentos triviais se moviam com facilidade. Começaram a falar naturalmente de coisas comuns, das flores e das árvores, que cresciam vermelhas como as flores dos
jardins lá em casa, e se inclinavam e torciamcomo o braço de um velho deformado.
Muito suave e tranqüilamente, quase como o sanguecantando em suas veias, ou a água da torrente correndo sobre as pedras, Rachel teve consciência de um novo sentimento
dentro dela. Imaginou por um instante o que seria,e depois disse a si mesma, com uma pequena surpresa aoreconhecer em sua própria pessoa uma coisa tão famosa:
– Isso é a felicidade, eu acho. – E disse alto para Terence: – Isso é felicidade. E na seqüência de suas palavras, ele respondeu:
– Isso é felicidade – e acharam que os sentimentos nasceram em ambos ao mesmo tempo. Por isso começaram adescrever como sentiam isso e aquilo, o que era parecido
e o que era diferente, pois os dois eram muito diferentes.
Vozes gritando atrás deles não os atingiam nas águas em que agora estavam mergulhados. A repetição do nome de Hewet, em sílabas breves e separadas, foi para eles
como oestalo de um galho seco ou o ruído de um pássaro. Com agrama e a brisa soando e murmurando ao seu redor,eles nemrepararam que o farfalhar da grama era cada
vez mais forte enão cessava quando a brisa parava. Uma mão caiu sobre o ombro de Rachel como ferro; podia ter sido um raio docéu. Ela caiu sob esse golpe, e o capim
fustigou seus olhose encheu sua boca e orelhas. Através dos talos ondulantes viu uma figura grande e informe contra o céu. Era Helen.Rolando de um lado a outro,
vendo apenas florestas deverde e depois o alto céu azul, ela estava sem fala e quasesem sentidos. Finalmente ficou quieta, todos os capinstremendo ao seu redor com
seus próprios arquejos. Sobreela apareceram duas grandes cabeças, de um homem euma mulher,Terence e Helen.
Os dois estavam corados, ambos rindo e movendo os lábios; juntaram-se e beijaram-se no ar acima dela.
Fragmentos de palavras desceram até ela no chão.Pensououvi-las falar de amor e depois de casamento. Levantando-se e sentando, ela também percebeu o corpo macio de
Helen, seus braços fortes e acolhedores, e afelicidade inchando e diminuindo numa onda vasta. Quando isso acabou e o céu se tornou horizontal, e a terra se abriu
plana dos dois lados, e as árvores ficarameretas, ela foi a primeira a perceber a pequena fileira defiguras humanas parada pacientemente a distância. Porum instante
não conseguiu lembrar quem eram.
– Quem são eles? – perguntou, e depois lembrou-se.Alinhando-se atrás de Mr. Flushing, tiveram o cuidado de deixar pelo menos três metros de distância entre a ponta
da bota dele e a beira da saia dela.
Ele os conduziu por um trecho verde junto à mar-gem do rio, depois através de um arvoredo, e pediulhes que notassem sinais de habitações humanas, o capim escurecido,
os troncos de árvore calcinados, e ali,entre as árvores, estranhos ninhos de madeira unidos em arco onde as árvores se afastavam, a aldeia que era a meta de sua
jornada.
Pisando com cuidado, observaram as mulheres agachadas no chão, movendo as mãos, trançando palha ou amassando alguma coisa em tigelas. Mas depois de olharem por um
momento sem serem descobertos, foram avistados, e Mr. Flushing, avançando para o centro da clareira, passou a falar com um homem magro e majestoso, cujos ossos e
cavidades imediatamente fizeram as formas do inglês parecerem feias e pouco naturais. As mulheres não deram atenção aos estranhos, mas suas mãos pararam por um instante
e seus longos olhos estreitos deslizaram, fixando-se sobre eles com a imobilidade e inexpressidade dos que estão afastados dos demais muito além do alcance da fala.
Suas mãos voltaram a mover-se, mas o olhar fixo continuava. Seguia os estranhos enquanto andavam, espiavam dentro das cabanas onde puderam distinguir armas encostadas
no canto, tigelas no chão, varas de bambu; na penumbra, encaravam-nos os olhos solenes dos bebês;velhas também espiavam. Enquanto andavam por ali, o olhar os seguia,
passando por suas pernas, corpos, cabeças, curiosamente hostis, como uma mosca rastejando no inverno. Quando abriu seu xale e descobriu o seio para oferecê-lo aos
lábios do bebê, os olhos de uma mulher não deixaram o rosto deles, embora se movessem pouco à vontade sob o seu olhar, e finalmente se viraram não querendo mais
ficar ali parados olhando para ela. Quando lhes ofereciam doces, estendiam grandes mãos vermelhas para pegá-los, e os ingleses sentiram-se desajeitados como soldados
de casacos justos entre aquelas pessoas suaves e instintivas. Mas logo a vida da aldeia passou a não lhes dar mais atenção; tinham sido absorvidos por ela. As mãos
das mulheres voltaram a ocupar-se com palha; seus olhos baixaram. Se se moviam, era para apanhar alguma coisa na cabana, ou para pegar uma criança que se afastava,ou
atravessar o lugar equilibrando uma jarra na cabeça;se falavam, era para gritar alguma coisa áspera e ininteligível. Vozes erguiam-se quando se batia numa criança,
e morriam de novo; vozes erguiam-se numa canção que deslizava um pouquinho acima, abaixo e voltava à mesma nota,grave e melancólica.Procurandose, Terence e Rachel
reuniram-se debaixo de uma árvore. Pacífica, e até bela no começo, a visão das mulheres que tinham desistido de olhar para eles agora os deixava frios e melancólicos.
– Bem – suspirou Terence por fim –, isso aqui nos faz parecer insignificantes, não é?
Rachel concordou. Assim seria para todo o sempre,disse ela, aquelas mulheres sentadas debaixo de árvores,as árvores e o rio. Viraram-se para outro lado e começaram
a andar entre as árvores, apoiando-se um nos braços do outro sem medo de serem descobertos. Não tinham ido longe quando começaram a assegurar-se mais uma vez de
que se amavam, eram felizes, estavam contentes; mas por que era tão doloroso estar apaixonado, por que havia tanta dor na felicidade?
A visão da aldeia na verdade curiosamente afetara a todos, embora de formas diferentes. St. John deixara os demais e caminhava lentamente para o rio, imerso emseus
pensamentos, amargos e infelizes, pois sentia-se sozinho; e Helen, parada sozinha no espaço ensolaradoentre as mulheres nativas, tinha pressentimentos de desgraça.
Os gritos de animais estranhos soavam aos seusouvidos, quando disparados dos troncos das árvores paraas copas. Como pareciam pequenos aqueles vultos movendo-se entre
as árvores! Ela teve uma consciência aguda de pequenos membros, veias finas, a delicada car-ne de homens e mulheres, que se rompe tão facilmentee deixa a vida escapar,
comparada àquelas enormes árvores e profundas águas. Um ramo que cai, um pé que escorrega, e a terra os esmaga ou a água os afoga. Pensandonisso, ela mantinha os
olhos ansiosamente sobre os namorados, como se pudesse assim protegê-las de seu destino. Virando-se, viu os Flushing ao seu lado.
Falavam sobre as coisas que tinham comprado e discutiam se eram realmente antigas, e se não havia aqui e alisinais de influência européia. Helen também foi interpelada.
Fizeram-na olhar um broche e depois um par de brincos. Mas o tempo todo ela os culpava por terem vindo naquela excursão, por terem-se aventurado longe demais, ex-pondo-se
tanto. Depois animou-se e tentou falar, mas empoucos minutos estava vendo o quadro de um barco viradonum rio da Inglaterra ao meio-dia. Era mórbido, ela sabia,imaginar
coisas dessas; mesmo assim procurava entre as árvores os vultos dos outros, e sempre que os via, mantinha osolhos fixos neles, para protegê-las da desgraça.
Mas quando o sol baixou e o vapor virou e começou a navegar de volta para a civilização, novamente seus receios se acalmaram. Na semi-escuridão as cadeiras do convés
e as pessoas sentadas nelas eram vultos angulosos,a boca indicada por um minúsculo ponto aceso, o braço movendo-se para cima e para baixo com um cigarro ou charuto
levado aos lábios e baixado de novo. Palavras cruzavam a escuridão, mas, sem saber onde cairiam, pareciam sem substância e sem energia. Profundos suspiros ouviam-se
regularmente, embora com alguma tentativa de suprimi-las, e vinham da grande forma branca que era Mrs. Flushing. O dia fora longo e muito quente, e agora que todas
as cores estavam apagadas, o frio ar noturno parecia comprimir brandos dedos sobre as pálpebras, fechando-as. Algum comentário filosófico, aparentemente dirigido
a St. John Hirst, errou seu destino e ficou suspenso no ar até ser engolfado por um bocejo e ser considerado morto, sinal para mexerem pernas e murmurarem coisas
a respeito de sono. A massa branca moveu-se, por fim, estendeu-se e desapareceu; depois de algumas voltas e passos St. John e Mr. Flushing se retiraram deixando
três cadeiras ainda ocupadas por três corpos silenciosos. A luz que vinha de um lampião alto no mastro e de um céu pálido com estrelas, deixavam-nos com forma mas
sem feições; e, mesmo naquela escuridão, o afastamento dos outros fazia com que se sentissem muito próximos uns dos outros, pois pensavam a mesma coisa. Por algum
tempo ninguém falou; então Helen disse com um suspiro:
– Então vocês dois estão muito felizes?
Como se fosse lavada pelo ar, sua voz soou mais espiritual e branda do que de costume. A pouca distância,vozes responderam:
– Sim.
Pela escuridão ela olhava os dois tentando distinguilas. O que tinha para dizer? Rachel estava agora fora da sua guarda. Sua voz podia atingir os ouvidos dela, mas
nunca mais chegaria tão longe como há 24 horas. Mesmo assim parecia necessário falar antes de ir para a cama.Queria falar, mas sentia-se estranhamente velha e deprimida.
– Você percebe o que está fazendo? – perguntou. – Ela é jovem, vocês dois são jovens, e o casamento... – ela interrompeu-se. Mas imploraram que continuasse, com
tal seriedade nas vozes como se desejassem ardentemente seu conselho, e ela acrescentou:
– Casamento! Bem, não é fácil.
– É o que queremos saber – responderam,e ela achou que agora estavam se entreolhando.
– Depende de vocês dois – afirmou. Seu rosto estava voltado para Terence; embora ele quase não a pudesse divisar, acreditava que suas palavras realmente mostravam
um desejo de conhecê-lo melhor. Ele ergueu-se de sua posição reclinada e passou a contar-lhe o que ela queria saber. Falava tão despreocupadamente quanto podia para
remover a depressão dela.
– Tenho 27 anos e ganho cerca de 700 libras ao ano – começou. – Tenho de modo geral um bom temperamento, excelente saúde, embora Hirst detecte uma tendência para
gota. Bem, e depois, acho que sou muito inteligente.
– Ele fez uma pausa esperando confirmação.Helen concordou.
– Embora, infelizmente, meio preguiçoso. Pretendo deixar que Rachel faça bobagens se quiser,e...De modo geral a senhora me acha satisfatório em outros aspectos?
– perguntou ele timidamente.
– Sim, gosto do que sei de você – respondeu Helen.
– Mas... sabe-se tão pouca coisa.
– Vamos morar em Londres e... – De repente, a uma voz, perguntaram se ela não os achava as pessoas mais felizes que já conhecera.
– Psiu – disse ela. – Lembrem. Mrs. Flushing está
atrás de nós. Então ficaram calados, e Terence e Rachel sentiram instintivamente que sua felicidade a deixara triste; embora ansiosos por continuarem falando de
si mesmos não o fizeram.
– Falamos demais de nós mesmos – disse Terence.
Diga-nos...
Sim, diga-nos... – ecoou Rachel. Estavam querendo acreditar que todo mundo era capaz de dizer alguma coisa muito profunda.
O que posso lhes dizer? – refletiu Helen, falando mais para si mesma, num estilo tortuoso, do que como profetisa dando uma mensagem. Forçou-se a falar.
Afinal, embora eu ralhe com Rachel, não sou muito mais sábia que ela. Sou mais velha, é claro, estou na metade do caminho, e vocês só começando. É complicado...às
vezes, eu acho, decepcionante; as coisas grandes nãosão talvez tão grandes quanto se esperava... mas é interessante... Ah, sim, vocês certamente vão achar interessante...
E é assim por diante. – Perceberam a procissãode árvores negras para as quais, até onde se conseguiadivisar. Helen olhava agora. – E há prazeres onde não seesperava
que existissem (você tem de escrever ao seupai), e vocês vão ser muito felizes, não tenho dúvida.Mas preciso ir para a cama, e se forem espertos vão meseguir em
dez minutos, portanto... – ela levantou-se e postou-se diante deles, quase sem feições e muito grande – boa noite. – Ela passou para trás da cortina.
Depois de ficarem sentados em silêncio a maior parte dos dez minutos que ela lhes concedera, levantaram-se e debruçaram-se sobre a amurada. Abaixo deles as águas
macias e pretas deslizavam muito rápidas e silenciosas. A fagulha de um cigarro apagou-se atrás deles.
– Linda voz – murmurou Terence. Rachel concordou. Helen tinha uma linda voz. Depois de um silêncio ela perguntou olhando o céu:
– Estamos no convés de um vapor num rio da América do Sul? Eu sou Rachel e você é Terence? O grande mundo negro jazia ao redor deles.Enquantoiam sendo levados suavemente
ao longo dele, pareciadotado de imensa densidade e duração. Podiam discernir topos de árvores pontudos e topos de árvores rombudos e redondos. Erguendo os olhos
acima delas, fixavam-nos nas estrelas e na borda pálida do céu acima dasárvores. Os pontinhos de luz congelada infinitamentedistantes atraíram seus olhos e mantiveram-nos
fixos, de modo que parecia que se passava muito tempo, e sentiram-se a uma grande distância, quando mais uma vezperceberam suas mãos agarrando a amurada e seus corpos
separados, imóveis, lado a lado.
– Você me esqueceu totalmente – queixou-se Terence pegando o braço dela e começando a caminhar no convés. – E eu nunca me esqueço de você.
– Ah não – sussurrou ela, não esquecera, apenas as estrelas... a noite... a escuridão...
– Você parece um passarinho meio adormecido noninho, Rachel. Está adormecida. Está falando no sono.
Meio adormecidos e murmurando palavras fragmentadas, pararam no ângulo feito pela proa do barco, quedeslizava rio abaixo. Um sino tocou na ponte de comando e ouviram
o chapinhar da água que se afastava em ondinhas dos dois lados; um pássaro assustado no sonograsnou, voou para a árvore mais próxima, e tudo ficoucalado de novo.
A escuridão derramava-se profusamente e os deixava quase sem sentimento de vida, a não serpor estarem parados ali, juntos, na escuridão.
22
A escuridão caia, mas levantava-se de novo, e a cada dia que se espalhava amplamente sobre a terra separandoos daquele estranho dia na floresta, em que tinham sido
forçados a dizer um ao outro o que queriam, esse desejo deles era revelado aos outros, e nesse processo tornou-se um pouquinho estranho para eles próprios.Aparentemente
não acontecera nada de inusitado; tinham ficado noivos. O mundo, que consistia em sua maior parte no hotel e na villa, demonstrou alegria pelo fato de que duas pessoas
fossem se casar e deixou-os saber que não esperava que participassem do trabalho de fazer o mundo prosseguir,mas que podiam ficar ausentes por algum tempo. Por isso
deixaram-nos sozinhos até sentirem o silêncio, como se brincando numa vasta igreja alguém tivesse fechado uma porta diante deles. Foram levados a caminhar sozinhos,
a sentar-se sozinhos, a visitar locais secretos onde as flores nunca tinham sido colhidas e as árvores eram solitárias. Na solidão conseguiam expressar aqueles desejos
belos mas excessivamente vastos, que eram tão estranhamente incômodos aos ouvidos de outros homens e mulheres – desejos de um mundo, assim como o seu próprio mundo
de duas pessoas lhes parecia ser, onde todos se conhecessem intimamente e julgassem uns aos outros pelo que era bom, jamais brigando porque era perda de tempo.
Falavam sobre esses temas entre os livros, ao sol ou sentados quietos à sombra de uma árvore. Já não ficavam embaraçados nem meio sufocados com significados que
não podiam manifestar; não tinham medo um do outro,nem eram mais como viajantes descendo um rio turbulento, deslumbrados com súbitas belezas; acontecera o inesperado,
mas ainda assim o comum era amável, e em muitas coisas preferível ao extático e misterioso, pois era agradavelmente sólido e exigia esforço, e naquelas condições
esforço era mero encantamento.
Enquanto Rachel tocava piano, Terence sentava-se junto dela ocupado, o que se mostrava por uma eventual palavra escrita a lápis, em descrever o mundo como lhe aparecia
agora que ele e Rachel iam se casar. Era sem dúvida um mundo diferente. O livro chamado Silêncio não seria mais o mesmo. Então ele largava o lápis, olhava fixamente
em frente, pensando em que aspectos o mundo afinal estava diferente, talvez tivesse mais solidez mais coerência, mais importância, mais profundidade. Às vezes até
a terra lhe parecia muito profunda; não cavada em morros e cidades e campos, mas amontoada em grandes massas. Olhava pela janela, às vezes dez minutos a fio;mas
não queria uma terra sem seres humanos. Gostava dos seres humanos – achava que gostava mais deles do que Rachel. Lá estava ela, balançando-se entusiasmada sobre
sua música, esquecida dele – mas gostava dessa qualidade nela. Gostava da impessoalidade que provocava nela.Por fim,tendo escrito uma série de breves frases com
pontos de interrogação, ele comentou alto:
– Mulheres... sob o título “Mulheres” eu escrevi: “Não mais vaidosas do que os homens realmente; na base dos maiores defeitos está a falta de confiança em si mesmas.
Falta de apreço pelo próprio sexo tradicional ou baseada em fatos? Toda mulher de coração não é tanto uma devassa mas uma otimista, porque elas não pensam”. O que
acha disso, Rachel? – Ele parou com o lápis na mão e uma folha de papel no joelho.Rachel não disse nada. Escalava mais e mais a íngreme espiral de uma sonata de
Beethoven, como uma pessoa subindo por uma escadaria arruinada, no começo energicamente, depois avançando mais laboriosamente os pés,com esforço, até não poder subir
mais e voltar numa corrida para recomeçar novamente, bem embaixo.
– “É moda hoje em dia dizer que mulheres são mais práticas e menos idealistas do que homens, que têm considerável capacidade de organização, mas não senso de honra”...
Pergunta: o que significa o termo masculino “honra”?... a que correspondente no seu sexo? Hein?
Atacando novamente a sua escadaria, Rachel negligenciou mais essa oportunidade de revelar os segredosdo seu sexo. Na verdade, avançara tanto na busca da sabedoria
que permitia que esses segredos repousassemintocados; parecia estar reservado a uma futura geraçãodiscuti-los filosoficamente.
Esmagando um acorde final com a mão esquerda, ela exclamou por fim, girando e virando-se para ele:
– Não, Terence, não adianta; aqui estou eu, a melhor música da América do Sul, sem falar em Europa e Ásia, e não posso tocar uma nota porque você está na sala me
interrompendo a cada segundo.
– Você não parece entender que é isso que procuro fazer há meia hora – comentou ele. – Não tenho objeção a melodias simples e bonitas... na verdade acho que ajudam
muito minha composição literária, mas esse tipo de coisa aí parece antes um infeliz cachorro velho girando nas patas traseiras, na chuva.Ele começou a virar as pequenas
folhas de papel espalhadas na mesa, trazendo congratulações dos amigos deles.
– “... todos os votos possíveis de toda a felicidade possível” – leu ele. – Correto, mas não muito vívido, não?
– É pura bobagem! – exclamou Rachel. – Pense em palavras comparadas com sons! – prosseguiu ela. – Pense em romances, peças de teatro e histórias... – Pousada nabeira
da mesa, ela remexeu desdenhosamente os volumes vermelhos e amarelos. Parecia estar na posição dedesprezar todo o saber humano. Terence também oscontemplou.
– Meu Deus, Rachel, você lê lixo! – exclamou ele. – E também está atrasada no tempo, minha querida. Hoje em dia ninguém sonha ler essas coisas... peças sobre problemas
antiquados,pungentes descrições da vida no Extremo
Oriente... ah não, já liquidamos com tudo isso. Leia poesia, Rachel, poesia, poesia, poesia!
Apanhando um dos livros começou a ler em voz alta,com intenção de satirizar os latidos breves e ásperos do inglês do escritor; mas ela não prestou atenção e, depois
de um intervalo em que ficou refletindo, exclamou:
– Terence, você alguma vez achou que o mundo se compõe inteiramente de vastos blocos de matéria e que não somos nada senão manchas de luz... – ela ergueu os olhos
para as manchas de sol agitando-se no tapete e subindo pela parede – como essas?
– Não – disse Terence. – Eu me sinto sólido; imensamente sólido; as pernas de minha cadeira podiam estar enraizadas nas entranhas da terra. Mas em Cambridge, eu
me lembro, havia ocasiões em que se caía em ridículos estados de meio coma pelas cinco da manhã. Hirst faz isso agora, eu acho... ah não, Hirst não faria isso.Rachel
continuou:
– No dia em que chegou seu bilhete convidando-nos para o piquenique, eu estava sentada onde você está agora,pensando nisso; será que consigo pensar de novo? Será
que o mundo mudou? E se tiver mudado, quando vai parar de mudar, e qual é o mundo real?
– A primeira vez que a vi – começou ele – você me pareceu uma criatura que tinha vivido toda a sua vida entre pérolas e ossos velhos. Suas mãos eram úmidas, lembra?
E você não disse uma palavra até eu lhe dar um pedaço de pão; então você disse “Seres humanos!”
– E eu achava você... um pedante – recordou ela. – Não, não é bem assim. Havia as formigas que roubavam a língua, e eu achei você e St. John como aquelas formigas...muito
grandes, muito feios, muito cheios de energia, com todas as suas virtudes nas costas. Mas quando lhe falei,gostei de você...
– Você se apaixonou por mim – corrigiu ele. – Estava apaixonada por mim o tempo todo, só que não sabia.
– Não, eu nunca me apaixonei por você – afirmou ela.
– Rachel... que mentira... você não ficava aqui sentada olhando para a minha janela?... não ficava andando pelo hotel feito uma coruja no sol?
– Não – repetiu ela. – Nunca me apaixonei, se apaixonar-se é o que as pessoas dizem que é, é o mundo quemente, e eu que digo a verdade. Ah, que mentira... quementira!
Ela amassou um punhado de cartas de Evelyn M., de Mr.Pepper,de Mrs.Thornbury,de Miss Allan e de Susan Warrington. Era estranho, pensando em como essas pessoas eram
todas diferentes, que tivessem usado quase as mesmas frases ao congratulá-la pelo noivado.
O fato de qualquer dessas pessoas jamais ter sentido o que ela sentia, nem pudesse senti-lo, ou até ter direito de sequer fingir por um instante que era capaz disso,
deixava-a tão consternada quanto aquela cerimônia na igreja ou o rosto da enfermeira. E, se não sentiam nada, por que estariam fingindo? A simplicidade e arrogância
e dureza da juventude dela, agora concentrada numa só centelha,por causa do seu amor por ele, deixava Terence perplexo;estar noivo não tinha esse efeito sobre ele.
O mundo estava diferente, mas não dessa maneira; ele ainda queria as coisas que sempre quisera, em especial queria mais que antes a companhia das outras pessoas.
Tirou as cartas da mão dela e protestou:
– Naturalmente são absurdas, Rachel; naturalmente dizem coisas apenas porque outros as dizem, mas mesmo assim, que mulher simpática é Miss Allan; não pode ne-gar
isso;e Mrs.Thornbury também;ela teve filhos demais,acredite, mas se meia dúzia deles entraram no mau caminho em vez de subirem infalivelmente ao topo... ela não
tem uma espécie de beleza?... de simplicidade elementar como diria Flushing? Ela não parece antes uma grande árvore velha murmurando ao luar, ou um rio correndo
e correndo e correndo? Por falar nisso, Ralph foi nomeado governador das Ilhas Carroway... o mais jovem governador; muito bom, não é? Mas Rachel estava incapacitada
de entender que a vasta maioria dos assuntos do mundo prosseguia sem se ligar por um só fio ao destino dela própria.
– Eu não quero ter 11 filhos – afirmou; – não quero ter os olhos de uma velha. Ela olha a gente de cima a baixo,de baixo a cima, como se a gente fosse um cavalo.
– Temos de ter um filho e temos de ter uma filha – disse Terence largando as cartas – porque, sem falar na inestimável vantagem de serem nossos filhos, eles seriam
muito bem-educados. – Passaram a fazer um esboço da educação ideal, como sua filha desde a infância seria levada a contemplar um grande cartão quadrado pintado de
azul, para sugerir pensamentos de infinitude, pois as mulheres eram criadas práticas demais; e seu filho... seria ensinado a rir dos grandes homens, isto é, de homens
naturalmente bem-sucedidos, homens que usavam fitas e chegavam ao topo. Ele não se pareceria de jeito nenhum (acrescentou Rachel) com St. John Hirst.
Terence então professou a maior admiração por St.John Hirst. Detendo-se em suas boas qualidades, convencia-se seriamente delas; tinha uma mente como um torpedo,
declarou, dirigido contra a falsidade. Onde estaríamos todos nós sem ele e os iguais a ele? Sufocados entre ervas daninhas; cristãos, fanáticos... ora, a própria
Rachel seria escrava com um leque para cantar canções para os homens quando se sentissem sonolentos.
– Mas você nunca vai aceitar isso! – exclamou ele. – Porque apesar de todas as suas virtudes você não se importa nem vai se importar nunca, com todas as fibras do
seu ser com a busca da verdade! Não tem respeito pelos fatos, Rachel; você é essencialmente feminina.
Ela não se deu ao trabalho de negar isso, nem achou bom dar aquele único argumento irrespondível contra os méritos que Terence admirava. St. John dissera que ela
estava apaixonada por ele; ela jamais perdoaria isso; mas o argumento não teria importância para um homem.
– Mas eu gosto dele – disse ela e pensou que também tinha pena dele, como se tem pena dessas pessoas infelizesque estão de fora do cálido e misterioso globo cheio
demudanças e milagres em que nós mesmos nos movemos;achava que devia ser muito enfadonho ser St. John Hirst.
Ela resumiu o que sentia por ele dizendo que não o beijaria se ele quisesse, o que não era nada provável.Como se devesse alguma desculpa por Hirst, pelo beijo que
ela lhe atribuíra, Terence protestou:
– E comparado a Hirst eu sou um perfeito palhaço.
Nisso o relógio bateu doze horas em lugar de onze.
– Estamos desperdiçando a manhã... eu devia estar escrevendo meu livro, e você devia estar respondendo a essas cartas.
– Só nos restam 21 manhãs inteiras – disse Rachel.
– E meu pai vai chegar em um ou dois dias.
Mesmo assim ela puxou uma caneta e um papel, e começou a escrever laboriosamente “Minha cara Evelyn...”
Enquanto isso Terence lia um romance que outra pessoa escrevera, processo que achava essencial para a composição do seu próprio livro. Por um lapso de tempo considerável
nada se escutou senão o tiquetaquear do relógio e o rabiscar intermitente da caneta de Rachel, que produzia frases bastante semelhantes às que ela mesma condenara.
Ela própria estava espantada com isso, pois parou de escrever e ergueu os olhos;olhou para Terence, mergulhado na poltrona, olhou as diferentes peças de mobília,
sua cama no canto, a vidraça mostrando ramos de uma árvore recheados de céu, escutou o relógio, e espantou-se com o abismo que jazia entre tudo isso e sua folha
de papel. Haveria uma época em que o mundo fosse uno e indivisível? Mesmo com Terence – quão distantes podiam estar, como ela sabia pouco do que se passava no cérebro
dele naquele instante! Então concluiu sua frase, que era desajeitada e feia, e afirmou que ambos estavam “muito felizes e vamos nos casar provavelmente no outono
e esperamos viver em Londres, onde esperamos que nos visite quando voltarmos”. Escolhendo “afetuosamente”, depois de mais alguma especulação, em vez de “sinceramente”,ela
assinou a carta e começava outra com obstinação quando Terence comentou, citando de seu livro:
– Escute isso, Rachel. “É provável que Hugh” (é o herói, um literato) “não tivesse percebido na época de seu casamento, não mais do que o jovem de talentos e imaginação
geralmente percebe, a natureza do abismo que se-para as necessidades e desejos do macho das necessidades e desejos da fêmea... No começo foram muito felizes. A caminhada
pela Suíça fora um período de alegre companheirismo e estimulantes revelações para ambos. Betty mostrara ser a camarada ideal... Tinham gritado Amor no vale um para
o outro sobre as encostas nevadas do Riffelhorn”(e assim por diante...vou saltar as descrições)...“Mas em Londres, depois do nascimento do menino,tudo mudara. Betty
era uma mãe admirável; mas não levou muito tempo para descobrir que a maternidade, como as mães da classe média alta entendem essa função, não absorvia todas as
suas energias. Ela era jovem e forte, com membros saudáveis e corpo e cérebro precisando urgentemente de exercício...” (Em suma, ela começou a dar chás.)... “Entrando
tarde depois dessa singular conversa com o velho Bob Murphy no seu quarto enfumaçado e recheado de livros, com o som do tráfego zumbindo em seus ouvidos, e o nevoento
céu de Londres tragicamente recobrindo sua mente... ele achou chapéus de mulher espalhados sobre seus papéis. Lenços de mulher, absurdos sapatinhos femininos e sombrinhas
no vestíbulo... Depois começaram a aparecer as contas... Ele tentou falar-lhe francamente. Encontrou-a deitada na grande pele de urso polar do quarto de dormir dos
dois, meio despida, pois iam jantar com os Green em Wilton Crescent, a luz avermelhada da lareira fazendo faiscar e piscar os diamantes nos seus braços nus, e a
deliciosa curva do seu seio... visão de adorável feminilidade. E perdoou-lhe tudo.” (Bem,isso vai de ruim a pior, e finalmente, cerca de 50 páginas depois, Hugh
pega uma passagem de fim de semana para Swanage e “fica andando pelas planícies de Corfe”... Aqui há umas 15 páginas mais ou menos que vamos saltar. A conclusão
é ...) “Eram diferentes. Talvez num futuro distante, depois de gerações de homens terem lutado e falhado, como ele agora tinha de lutar e falhar, as mulheres fossem,
na verdade, o que ela agora pretendia ser... uma amiga e companheira... não a inimiga e a parasita do homem.”
– No final Hugh volta para sua esposa, coitado dele. Eraseu dever, como homem casado. Meu Deus, Rachel – concluiu ele –, será que vai ser assim quando nos casarmos?
Em vez de responder ela perguntou:
– Por que as pessoas não escrevem sobre o que realmente sentem?
– Ah, essa é a dificuldade! – suspirou ele, empurrando o livro de lado.
– Bem, então, como será quando formos casados? Que coisas as pessoas sentem?
Ela parecia duvidar.
– Sente-se no chão e deixe-me olhar para você –
comandou ele. Repousando o queixo no joelho dele,ela o fitava. Ele examinava, curioso:
– Você não é linda – começou – mas gosto do seu rosto. Gosto do jeito que seu cabelo cresce até um ponto, e dos seus olhos também... eles nunca vêem nada. Sua boca
é grande demais, e suas faces seriam melhores se fossem mais coloridas. Mas o que eu gosto no seu rosto é que ele faz imaginar que diabo você está pensando... e
me faz querer fazer isso... – ele fechou o punho e sacudiu-o tão perto dela que ela recuou – porque agora você parece ter vontade de estourar meus miolos. Há momentos
em que,se estivéssemos parados juntos num rochedo, você me jogaria no mar.
Hipnotizada pela força dos olhos dele nos seus, ela repetiu:
– Se estivéssemos parados juntos num rochedo...
Ser jogada no mar, ser lançada de um lado para o outro e levada pelas raízes do mundo... a idéia era incoerentemente bela. Ela levantou-se de um salto e começou
a mover-se pelo quarto, inclinando-se e empurrando de lado cadeiras e mesas como se estivesse singrando as águas. Elea observava com prazer; Rachel parecia estar
abrindo caminho para si mesma e lidando triunfantemente com osobstáculos que impedissem a passagem dos dois pela vida.
– Mas realmente parece possível! – exclamou ele. – Embora eu sempre tenha pensado que era a coisa mais improvável do mundo... vou estar apaixonado por você a vidatoda,
e o nosso casamento vai ser a coisa mais excitante quejá se fez! Nunca teremos um momento de paz... – Ele a pegou nos braços, quando ela passou, e lutaram para verquem
vencia, imaginando uma rocha e o mar em torvelinho abaixo deles. Finalmente ela foi lançada ao chão, onde ficou deitada, arquejando e pedindo misericórdia.
Eu sou uma sereia! Eu sei nadar! – Então o jogo acabou. O vestido dela se rasgara; estabelecida a paz, ela pegou agulha e linha e começou a remendá-lo.
E agora – disse ela – fique quieto e fale-me do mundo; fale-me de tudo o que já aconteceu, e eu lhe direi...vamos ver, o que posso lhe dizer?... vou lhe falar de
Miss Montgomerie e a festa no rio. Sabe, ela ficou com um pé na praia e outro no barco.
Tinham já passado muito tempo relatando assim um para o outro o curso de suas vidas e as personalidades deseus amigos e parentes; logo Terence não apenas sabia oque
se esperava que as tias de Rachel dissessem em cadaocasião, mas também como eram decorados seus quartosde dormir e que tipo de toucas usavam. Podia manter um diálogo
entre Mrs. Hunt e Rachel, e conduzir um chá incluindo o Reverendo William Johnson e Miss Macquoid,os cientistas cristãos, tudo bem próximo da realidade. Masconhecera
muito mais pessoas e tinha muito mais habilidade narrativa do que Rachel, cujas experiências eram em geral curiosamente infantis e engraçadas, de modo que aela cabia
escutar e fazer perguntas.
Ele não apenas lhe relatava o que acontecera, mas o que sentira e pensara, e esboçava retratos do que outros homens e mulheres deveriam pensar e sentir que a fascinavam,
de modo que ficou muito ansiosa por voltar à Inglaterra, cheia de gente, onde poderia parar nas ruas e contemplá-las. Segundo ele, também, havia uma ordem,um padrão
que tornava a vida razoável, ou se essa palavra era tola, profundamente interessante, pois às vezes parecia possível compreender por que as coisas aconteciam como
aconteciam. E nem as pessoas eram tão solitárias e incomunicáveis como ela pensava. Ela devia procurar vaidade – pois vaidade era uma qualidade comum – primeiro
em si mesma e depois em Helen, em Ridley, em St. John,todos tinham uma parcela disso... encontraria isso em dez entre cada doze pessoas que conhecesse; e uma vez
ligados por esse laço, ela não os julgaria separados e poderosos, mas praticamente sem notabilidade, e passaria a amálos quando descobrisse que eram bem parecidos
com ela mesma. Se negasse isso, teria de defender sua crença de que seres humanos eram tão variados quanto os animais no zoológico, que tinham listras e crinas,
e chifres e cascos; assim, repassando toda a lista dos seus conhecidos e desviando-se para anedota, teoria e especulação, passaram a conhecer-se. As horas corriam
depressa, parecendo-lhes cheias até à borda. Depois da solidão de uma noite, estavam sempre prontos a recomeçar.
As virtudes que um dia Mrs. Ambrose pensava existirem no diálogo franco entre homens e mulheres, na verdade existia para os dois, embora não na medida em que ela
prescrevia. Bem mais do que sobre a natureza do sexo,estendiam-se sobre a natureza da poesia, mas um diálogo ilimitado aprofundava e alargava a clara visão singularmente
estreita de uma moça. Em troca do que Terence lhe contava, ela aguçava nele uma tal curiosidade e sensibilidade na percepção, que ele chegava a duvidar se o benefício
advindo de muita leitura e vivência era ou não igual ao que advinha do prazer e da dor. O que Rachel ganharia com a experiência, exceto uma espécie de ridículo equilíbrio
formal, como o de um cachorro treinado na rua? Terence contemplava o rosto dela, imaginando como se pareceria dentro de 20 anos, quando os olhos estivessem mais
foscos, e a fronte mostrasse aquelas pequenas rugas persistentes que pareciam mostrar que os de meiaidade encaram algo difícil que os jovens não enxergam.Imaginou
o que seria para ambos o difícil. Depois seus pensamentos voltaram-se para a vida deles na Inglaterra.
A idéia da Inglaterra era encantadora, pois juntos veriam de outro modo as coisas antigas; seria a Inglaterra em junho, e haveria noites de junho no campo; e os
rouxinóis cantando nas veredas, para onde poderiam sair quando o quarto ficasse muito quente; e haveria planícies inglesas brilhando de água, repletas de vacas imperturbáveis
e nuvens baixas sobre as colinas verdes. Sentado com ela no quarto, ele desejava muitas vezes estar de volta no auge da vida, fazendo coisas com Rachel.
Ele foi até a janela e exclamou:
– Deus, como é bom pensar em trilhas, veredas lamacentas, com cardos e sarças, e verdadeiros campos cobertos de capim, e terreiros com porcos e vacas e homens caminhando
ao lado de carroças, com forcados... não há nada que se compare a isso... veja a pedregosa terra vermelha e o claro mar azul, e as resplandecentes casas brancas...
como a gente se cansa disto! E o ar sem uma mancha ou ruga. Eu daria tudo por um nevoeiro do mar.
Rachel também estivera pensando no interior inglês: a terra plana desenrolando-se até o mar, as florestas e longas estradas retas, onde se pode caminhar quilômetros
sem ver ninguém, as grandes torres de igreja, as curiosas casas apinhadas no vales, as aves, o crepúsculo e a chuva caindo contra as vidraças.
Mas Londres,o lugar é Londres – continuou Terence. Olharam juntos o tapete, como se a própria Londres pudesse ser vista ali, deitada no chão, com todas as suas tor-res
e pináculos emergindo da fumaça.
De modo geral, o que eu mais gostaria neste momento – ponderou Terence – seria estar caminhando pela Kingsway, junto daqueles grandes cartazes, vocêsabe, e dobrar
entrando no Strand. Talvez eu fosse olhar a Ponte de Waterloo por um momento. Depois caminharia ao longo do Strand passando pelas lojas com todos aqueles livros
novos e atravessaria a pequena arcadaentrando no Temple. Sempre gostei daquela quietudedepois da agitação. Você de repente ouve seus própriospassos bastante fortes.
O Temple é muito agradável.Acho que eu iria ver se conseguia encontrar o bom velho Hodgkin... o homem que escreve livros sobre VanEyck, você sabe. Quando deixei
a Inglaterra, ele estavamuito triste por causa da sua gralha domesticada.Suspeitava de que um homem a envenenara. E depois,Russel vive no andar seguinte. Acho que
você gostariadele. Tem paixão por Handel. Bem, Rachel – concluiu ele afastando a visão de Londres –, vamos estar fazendo isso juntos dentro de seis semanas, e será
então meadosde junho... e junho em Londres... meu Deus! Comotudo isso é bom!
– E sabemos que vamos ter tudo isso – disse ela. – Não que esperemos muito... apenas andar por ali e olharas coisas.
– Apenas mil libras por ano e liberdade total – respondeu ele. Quantas pessoas em Londres você acha quetêm isso?
– E agora você estragou tudo – queixou-se ela. – Agora temos de pensar nas coisas horríveis. Ela olhou de mau humor para o romance que uma vez lhe causara talvez
uma hora de desconforto, de modo que nunca mais o abrira mas o deixara na mesa; eventualmente olhava para ele como algum monge medieval guardava uma caveira ou um
crucifixo para lembrá-lo da fragilidade do corpo.
– É verdade,Terence – perguntou ela –,que as mulheres morrem com insetos rastejando sobre seus rostos?
– Acho que é muito provável – disse ele. – Mas você tem de admitir, Rachel, que é tão raro pensarmos em qualquer coisa além de nós mesmos que uma ferroada de vez
em quando é até agradável.Acusando-o de um cinismo que era tão ruim quanto o sentimentalismo, ela deixou sua posição ao lado dele e ajoelhou-se sobre o peitoril
da janela, retorcendo as borlas da cortina entre os dedos. Estava dominada por um vago sentimento de insatisfação.
– O que é tão desagradável neste país – exclamou ela – é o azul... céu azul sempre, mar azul. É como uma cortina... todas as coisas que se quer estão dolado de lá.
Eu quero saber o que acontece atrás dela.Odeio essas divisões, você não odeia, Terence? Uma pessoa totalmente no escuro a respeito de outra pessoa. Eu gostei dos
Dalloway e eles se foram. Nuncamais irei vê-los. Simplesmente subindo num navionós nos separamos inteiramente do resto do mundo.
Quero ver a Inglaterra ali... Londres ali... toda sortede gente... por que não se poderia? Por que teríamosde nos fechar sozinhos num quarto?
Enquanto falava assim, em parte para si mesma ecom crescente vaguidão, pois seu olho fora atraídopor um navio que entrava na baía, ela não notou queTerence parara
de olhar em frente, satisfeito, e agora a encarava com olhar penetrante e descontente. Rachel parecia capaz de isolar-se dele e viajar paralugares desconhecidos
onde não precisava dele. Essaidéia o deixou enciumado.
– Às vezes acho que você não está apaixonada por mim e nunca estará – disse ele energicamente. Ela vi-rou-se, surpresa, ouvindo suas palavras.
– Eu não a satisfaço como você me satisfaz – prosseguiu ele. – Há algo em você que não consigo entender. Você não me quer como eu a quero... está sempre querendo
alguma coisa a mais.Ele começou a caminhar pelo quarto.
– Talvez eu peça demais – continuou. – Talvez não seja realmente possível ter o que eu quero. Homens e mulheres são diferentes demais. Você não pode entender...
não entende...
Foi até onde ela estava contemplando-o em silêncio.
Rachel achou o que ele dizia totalmente verdadeiro,ela queria muito mais coisas do que o amor de um ser humano – o mar, o céu. Virou- se novamente e olhou o azul
distante, tão liso e sereno onde o céu encontrava o mar. Não era possível querer somente um ser humano.
Ou é só essa droga de noivado? – prosseguiu ele.
Vamos nos casar aqui, antes de voltarmos... ou é um risco grande demais? Temos certeza de que queremos nos casar um com outro?
Começaram a caminhar pelo quarto mas, embora seaproximassem muito um do outro, tinham o cuidado denão se tocar. Estavam esmagados pela sua condição semremédio. Eram
impotentes; jamais se amariam o bastante para superar todas essas barreiras, e nunca poderiamsatisfazer-se com menos. Percebendo isso com intolerável lucidez, ela
parou na frente dele e exclamou:
– Então, vamos romper.
As palavras fizeram mais uni-los do que qualquer quantidade de argumentos. Como estivessem à beira de um precipício, agarraram-se um ao outro. Sabiam que não podiam
se separar; por doloroso e terrível que fosse, estavam ligados para sempre. Silenciaram, e al-gum tempo depois sentaram-se agarrados. Apenas estar tão próximos os
acalmava; sentando-se lado a lado as barreiras desapareciam, e era como se mais uma vez o mundo fosse sólido e inteiro, como se, de algum modo estranho, tivessem
ficado mais fortes e maiores.
Passou-se muito tempo até se mexerem, e quando o fizeram foi com grande relutância. Postaram-se diante do espelho e tentaram assumir, com uma escova, a aparência
de quem nada tivesse sentido a manhã toda,nem dor nem felicidade. Mas sentiram calafrios vendo-se no espelho, pois em vez de grandes e inseparáveis, na verdade eram
bem pequenos e separados, a vastidão do espelho deixando um espaço enorme para refletir outros objetos.
23
Mas escova alguma era capaz de remover totalmente a expressão de felicidade deles, de modo que quando desceram as escadas, Mrs. Ambrose não pôde tratá-los como se
tivessem passado a manhã de um modo que se comentasse com naturalidade. Sendo assim, ela juntou-se à conspiração do mundo que os considerava incapacitados para os
assuntos da vida, golpeados pela intensidade dos seus sentimentos indispondo-os com a vida, e quase conseguiu tirá-los do pensamento.
Refletiu que fizera tudo que era preciso nas questões práticas. Escrevera muitas cartas e obtivera o consentimento de Willoughby. Refletira tantas vezes sobre as
perspectivas de Mr. Hewet, sua profissão, seu nascimento, sua aparência e temperamento, que quase esquecera como ele era na verdade. Quando se lembrava, ao olhar
para ele, imaginava novamente como seria, e depois, concluindo que fosse como fosse estavam felizes, não pensou mais naquilo.
Seria mais proveitoso pensar no que aconteceria em três anos, ou no que poderia ter acontecido se Rachel tivesse de conhecer o mundo sob orientação do pai. Ela era
sincera o suficiente para saber que o resultado poderia ser melhor... quem sabia? Ela não escondia de si mesma que Terence tinha defeitos. Achava-o calmo demais,
tolerante demais, assim como ele a achava um pouco dura... não, ela não era tolerante. Em algumas coisas preferia St. John; mas naturalmente esse não combinaria
com Rachel. Sua amizade com St. John estava estabelecida, pois embora passasse de irritação a interesse revelando sua sinceridade, gostava da companhia dele. Levava-a
para fora daquele mundinho de emoção e amor. Entendia os fatos. Supondo que a Inglaterra de repente fizesse algum movimento para um desconhecido porto no Marrocos,
St. John saberia o que havia por trás disso, e escutá-lo engajado com o marido dela numa discussão sobre as finanças e o equilíbrio do poder dava-lhe um estranho
sentimento de estabilidade. Respeitava os argumentos dele sem lhes dar sempre atenção, tanto quanto respeitava uma sólida parede de tijolos, ou um daqueles imensos
edifícios da municipalidade que, embora componham a maior parte de nossas cidades, foram construídos dia após dia, ano após ano, por mãos desconhecidas. Gostava
de sentar-se e escutar, e ficava um pouco aliviada quando o casal de noivos, depois de mostrar sua profunda indiferença, esgueirava-se para fora da sala e era visto
despetalando flores no jardim. Não que tivesse ciúme deles, mas invejava o grande futuro desconhecido que estava diante deles. Passando de um pensamento desses a
outro, ela agora andava da sala de estar à sala de jantar com frutas nas mãos. Às vezes parava para endireitar uma vela que se entortava com o calor, ou modificava
algum arranjo rígido demais das cadeiras. Tinha razões para suspeitar que Chailey andara se equilibrando no topo da escada de mão com um espanador úmido durante
a ausência deles; a sala nunca mais fora inteiramente a mesma. Voltando da sala de jantar pela terceira vez, percebeu que uma das poltronas agora estava ocupada
por St. John. Ele se deitava para trás,olhos semicerrados, parecendo como sempre curiosamente fechado num belo terno cinza e protegido contra a exuberância de um
clima estrangeiro, que poderia a qualquer momento tomar certas liberdades com ele.Os olhos dela pousaram nele suavemente e depois passaram sobre sua cabeça. Por
fim ela ocupou a cadeira diante da dele.
– Eu não queria vir aqui – disse ele por fim. – Mas fui realmente levado a isso... Evelyn M. – murmurou.Então endireitou-se e começou a explicar com irônica solenidade
como aquela detestável mulher estava querendo casar-se com ele.
– Ela me persegue pelo hotel. Esta manhã apareceu na sala de fumar. Tudo o que pude fazer foi pegar meu chapéu e fugir. Não queria vir, mas não podia ficar e enfrentar
outra refeição com ela.
– Bem, temos de aproveitar isso – respondeu Helen filosoficamente. Estava muito quente, e eram indiferentes a qualquer quantidade de silêncio, de modo que se recostaram
em suas poltronas e ficaram esperando que algo acontecesse. Tocou o sino para o almoço, mas não houve som de movimentos na casa. Havia novidades? perguntou Helen;
alguma coisa nos jornais? St.John sacudiu a cabeça. Ah sim, recebera uma carta de casa, de sua mãe, descrevendo o suicídio da copeira.Chamava-se Susan Jane; entrara
na cozinha certa tar-de, dizendo que queria que a cozinheira guardasse seu dinheiro; tinha 20 libras de ouro. Depois foi comprar um chapéu. Voltara às cinco e meia
dizendo que tinha tomado veneno. Apenas tiveram tempo de levá-la para a cama e chamar um médico antes de ela morrer.
Então? – perguntou Helen.
Haverá um inquérito – disse St. John.
Por que ela fez aquilo? Ele deu de ombros. Por que as pessoas se matam? Por que as classes inferiores fazem as coisas que fazem? Ninguém sabia. Ficaram sentados
em silêncio.
– Faz 15 minutos que o sino tocou e eles não desceram – disse Helen finalmente. Quando apareceram, St. John explicou por que fora necessário vir almoçar ali. Imitou
o tom entusiástico de Evelyn quando o encontrara no salão de fumar.
– Ela acha que nada pode ser tão fascinante quanto matemática, de modo que lhe emprestei um livro grande, em dois volumes. Vai ser interessante ver o que ela vai
fazer com isso.
Rachel agora podia permitir-se rir para ele.Lembroulhe o Gibbon; ainda tinha o primeiro volume por aí; seele assumisse a instrução de Evelyn, isso certamente se-ria
um teste; ouvira dizer que Burke, sobre a revoluçãoamericana... Evelyn devia ler os dois ao mesmo tempo.Depois que St. John acabou com o argumento dela esatisfez
sua fome, passou a contar-lhes que o hotel ferviade escândalos, alguns dos mais espantosos, que tinhamacontecido na ausência deles; na verdade ele estava bastante
dedicado a estudar a sua própria espécie.
– Evelyn M. por exemplo... mas isso me foi dito em confiança.
Bobagem! – objetou Terence.
Você também ouviu a respeito do pobre Sinclair?
– Ah sim, ouvi a respeito de Sinclair. Ele se retirou para a sua mina com um revólver. Escreve diariamente a Evelyn que está pensando em se matar. Eu lhe afirmei
que ele nunca na vida foi tão feliz, e de modo geral ela se inclina a concordar comigo.
– Mas depois ela se enredou com Perrott – continuou St. John. – E tenho motivos para pensar, por algo que vi no corredor, que tudo não é como devia estar sendo entre
Arthur e Susan. Há uma moça recém-chegada de Manchester. Seria bom se rompessem, eu acho.A vida de casados será algo horrendo demais para se imaginar. Ah, ouvi claramente
a velha Mrs. Paley dizendo as mais horríveis pragas quando passei pelo seu quarto de dormir. Dizem que ela tortura a criada... é quase certo que sim. Pode-se ver
pela expressão dos seus olhos.
– Quando você tiver 80 anos e a gota atormentar, estará praguejando como um cavalariano – comentou Terence.
– Estará muito gordo, muito mal-humorado, muito desagradável. Não podem imaginá-lo... careca como um ovo,com calças frouxas, uma gravatinha de bolinhas e uma pança?
Depois de uma pausa Hirst comentou que a pior infâmia ainda estava por ser contada. E dirigiu-se a Helen.
– Eles expulsaram a prostituta a pontapés. Uma noite enquanto estávamos fora,aquele velho idiota do Thornbury estava trotando bem tarde pelos corredores. (Ninguém
parece ter-lhe perguntado por que ele estava de pé.) Ele viu a Signora Lola Mendoza, como é chamada, atravessar o corredor de camisola. Na manhã seguinte comunicou
suas suspeitas a Elliot, e Rodriguez foi até a mulher e deu-lhe 24 horas para deixar o local. Ninguém parece ter investigado a verdade da história, nem perguntado
a Thornbury e Elliot o que tinham com isso; fizeram tudo inteiramente como queriam. Proponho que assinemos uma circular e procuremos Rodriguez juntos, insistindo
numa investigação completa. Alguma coisa tem de ser feita, não concordam?
Hewet comentou que não podia haver dúvida quanto à profissão da dama.
Mesmo assim – acrescentou – é uma grande vergonha,pobre mulher; só que não vejo o que se poderia fazer...
Concordo com você, St. John – explodiu Helen. – É monstruoso. O moralismo hipócrita dos ingleses faz ferver omeusangue.Um homem quefezfortuna nocomérciocomo Mr.Thornbury
deve ser duas vezes pior que uma prostituta.
Ela respeitava a moral de St. John, que levava mais a sério do que qualquer outra pessoa, e entrou numa discussão com ele a respeito dos passos que deviam ser dados
para reforçar o ponto de vista de ambos sobre o que era correto. A discussão causou algumas declarações profundamente melancólicas de natureza geral. Afinal, quem
eram eles, que autoridade tinham... que poder contra a massa de superstição e ignorância? Eram os ingleses, naturalmente; devia haver algo errado no sangue inglês.Assim
que se conhecia um inglês de classe média, sentiase uma aversão indefinível; assim que se via a meia-lua marrom de casas sobre Dover, a mesma sensação sobrevinha.
Mas infelizmente, acrescentou St.John, não se pode confiar nesses estrangeiros...
Foram interrompidos por sons de discussão na outra ponta da mesa. Rachel apelou para sua tia.
Terence diz que temos de tomar chá com Mrs.Thornbury porque ela foi muito bondosa, mas não vejo por quê; na verdade eu preferia deixar cortar minha mão em pedaços...
imaginem só! Os olhos de todas aquelas mulheres!
Bobagem, Rachel- respondeu Terence. – Quem quer olhar para você? Você está é consumida de vaidade! Você é um monstro de convencimento! Certamente, Helen, você devia
ter-lhe ensinado a esta altura que ela não é nenhuma pessoa importante... nem bela, nem bem vestida, nem conhecida por elegância, intelecto ou postura. Uma visão
mais comum do que você – concluiu ele –, exceto pelo rasgo em seu vestido, nunca existiu. Mas, se quiser, fique em casa. Eu vou.
Ela apelou novamente à tia. Não era o fato de ser encarada, explicou, mas as coisas que certamente as pessoas diriam. Especialmente as mulheres. Gostava de mulheres,
mas em matéria de emoção eram como moscas no açúcar. Certamente iriam lhe fazer perguntas. Evelyn M. diria “Você está apaixonada? É bom estar apaixonada?” E Mrs.
Thornbury... seus olhos a examinariam de cima a baixo, de cima a baixo... tinha calafrios pensando nisso. Na verdade o isolamento de suas vidas desde o noivado a
deixara tão sensível que não estava exagerando seu caso.
Encontrou uma aliada em Helen, que passou a expor-lhe sua visão da raça humana, enquanto contemplava complacente a pirâmide de frutas variadas no centro da mesa.
Não que fossem cruéis, ou quisessem machucar, ou que fossem extremamente brutas, mas sempre achava que a pessoa comum tem tão pouca emoção em sua vida que o cheiro
dela em vidas alheias é como cheiro de sangue nas narinas de um cão sabujo.Entusiasmando-se pelo tema, continuou:
– Assim que alguma coisa acontece... pode ser um casamento, um nascimento ou morte... de modo geral preferem que seja morte... todo mundo quer nos ver.Insistem em
nos ver. Não têm nada a dizer; não dão a mínima para nós; mas temos de ir ao almoço, chá ou jantar, e se não vamos somos condenados. É o cheiro de sangue – continuou.
– Não as culpo; apenas, se eu puder evitar, não terão o meu!
Olhou em torno como se tivesse convocado uma legião de seres humanos, todos hostis e desagradáveis, que rodeavam a mesa, bocas abertas querendo sangue e fazendo-a
parecer uma ilhazinha de país neutro no meio de um país inimigo.
As palavras dela despertaram seu marido, que estivera murmurando ritmicamente, observando seus convidados, sua comida e sua esposa com olhos ora melancólicos, ora
ferozes, segundo o destino da dama na sua balada. Ele interrompeu Helen com um protesto.Odiava até a aparência de cinismo nas mulheres.
– Bobagem, bobagem – comentou abruptamente.
Terence e Rachel olharam-se sobre a mesa, o que significava que quando fossem casados não se portariamdaquele jeito. A entrada de Ridley na conversa teve um efeito
estranho. Ela tornou-se imediatamente formal e polida. Teria sido impossível falar com facilidade sobre qualquer coisa que lhes viesse à cabeça e pronunciar a palavra“prostituta”
tão simplesmente quanto qualquer outra palavra. A conversa dirigiu-se para literatura e política, e Ridleycontou histórias sobre as pessoas notáveis que conhecerana
juventude. Essa conversa tinha a natureza de uma arte, e as personalidades e informalidades dos jovens foram silenciadas. Quando se levantaram para partir, Helen
parou porum momento apoiando os cotovelos na mesa.
– Vocês estiveram sentados aqui quase uma hora – dis-se – e não notaram meus figos, nem minhas flores, nem o jeito como a luz entra aqui, nem nada. Eu não estive
escutando porque estava olhando para vocês. E estavam lindos; queria que ficassem aqui sentados para sempre.
Ela os conduziu para a sala de visitas, onde pegou seubordado, e começou novamente a dissuadir Terence de caminhar até o hotel naquele calor. Mas quanto mais ela
o dissuadia, mais ele estava determinado a ir. Ficou irritado e obstinado. Houve momentos em que quase tiveram raivaum do outro. Ele queria outras pessoas; queria
que Rachel asvisse com ele. Suspeitava de que Mrs. Ambrose não tentariadissuadi-la de ir. Estava aborrecido com todo aquele espaço,sombra e beleza, e Hirst, reclinado,
segurando uma revista.
Eu vou – repetiu. – Rachel não precisa ir a não ser que queira.
Se você for, Hewet, eu gostaria que investigasse sobre a prostituta – disse Hirst. – Olhe – acrescentou –, vou andar metade do caminho com você.
Para grande surpresa deles, levantou-se, olhou o relógio de bolso e comentou que, como passava meia hora do almoço, os sucos gástricos tinham tido tempo bastante
para funcionar; explicou que estava experimentando um sistema que envolvia breves momentos de exercício intercalados com intervalos mais longos de repouso.
– Estarei de volta às quatro – comentou com Helen – quando vou me deitar no sofá e relaxar todos os meus músculos completamente.
– Então você vai, Rachel? – perguntou Helen. – Não vai ficar comigo?
Ela sorriu, mas talvez estivesse triste.
Estava triste ou realmente rindo? Rachel não pôde dizer e sentiu-se muito desconfortável entre Helen e Terence. Depois virou-se, dizendo apenas que iria com Terence
desde que só ele falasse.
Uma faixa estreita de sombra corria ao longo da estrada que era larga o bastante para dois, mas não para três.
Por isso St. John ficou um pouco atrás do casal, e a distância entre eles foi aumentando aos poucos. Caminhando com vistas à digestão e com um olho no relógio, ele
de tempos em tempos contemplava o par à sua frente.Pareciam tão felizes, tão íntimos, embora caminhassem lado a lado como qualquer pessoa. Viravam-se de leve um
para o outro de vez em quando, e diziam algo que ele pensava ser muito particular. Estavam discutindo o caráter de Helen, e Terence tentava explicar por que ela
o aborrecia tanto às vezes. Mas St. John pensou que estavam dizendo coisas que ele não devia escutar, e ficou pensando no seu próprio isolamento. Aquelas pessoas
eram felizes; de alguma forma ele as desprezava por ficarem felizes com tanta simplicidade, e de outra maneira invejava-as. Era muito mais notável do que aquelas
duas pessoas, mas não era feliz. As pessoas nunca gostavam dele; às vezes até duvidava se Helen gostava dele. Ser simples, capaz de dizer com simplicidade o que
sentia, sem a terrível inibição que o dominava, e que lhe mostrava seu próprio rosto e palavras eternamente num espelho, isso valeria quase o mesmo que qualquer
outro dom, pois fazia as pessoas felizes.Felicidade, felicidade, o que era felicidade? Ele nunca era feliz. Via claramente demais os pequenos vícios,enganos e imperfeições
da vida, e, vendo-os, parecialhe honesto comentá-los. Sem dúvida era por isso que as pessoas em geral não gostavam dele e se queixavam de que era sem coração e amargo.
Certamente nunca lhe diziam coisas que ele queria ouvir, que era simpático e bondoso, e que gostavam dele. Mas era verdade que metade das coisas duras que dizia
a respeito dos outros eram ditas porque estava infeliz ou magoado.Mas admitia que muito raramente dissera a alguma pessoa que se importava com ela, e quando fora
expansivo geralmente se arrependera depois. Seus sentimentos com relação a Terence e Rachel eram tão complicados que ele jamais conseguira dizer que estava contente
porque iriam se casar. Via tão claramente os defeitos deles e a natureza inferior de grande parte de seu sentimento mútuo, e esperava que seu amor não durasse.Olhou-os
de novo, e, muito estranhamente, pois estava acostumado a pensar que raramente via alguma coisa, a visão deles o encheu de uma emoção simples de afeto,em que havia
alguns traços de compaixão. Afinal, o que importavam as falhas das pessoas, comparadas com o que havia de bom nelas? Resolveu que agora lhes diria o que estava sentindo.
Apressou seu passo e alcançouos exatamente quando chegavam à encruzilhada onde o caminho se reunia à estrada principal. Pararam quietos e começaram a rir para ele,
perguntando se seus sucos gástricos... mas ele os interrompeu e começou a falar muito rápido e rígido:
– Lembram aquela manhã depois do baile? – perguntou. – Estávamos sentados aqui, vocês falavam bobagens e Rachel fazia montinhos de pedras. Eu de minha parte tive,
num lampejo, a revelação de toda a vida. – Ele parou por um segundo,e apertou os lábios fortemente. – O amor parece-me explicar tudo. Assim, de modo geral, estou
muito contente porque vocês dois vão se casar. – Depois virou-se bruscamente, sem olhar para eles, e caminhou de volta à villa. Sentia-se a um tempo exaltado e envergonhado
por ter dito assim o que sentia. Provavelmente estavam rindo dele, provavelmente o achavam idiota; e afinal, realmente teria dito o que sentia?
Era verdade que riram quando ele se fora, mas a discussão sobre Helen, que se tornara bastante áspera,cessou, e tornaram-se apaziguados e amáveis.
24
Chegaram ao hotel no começo da tarde, de modo que a maior parte das pessoas estava deitada ou sentada em seus quartos calada, e Mrs. Thornbury, embora os tivesse
convidado para o chá, não aparecia em lugar algum. Por isso, sentaram-se no saguão sombrio, quase vazio e repassado dos leves sons farfalhantes de ar soprando num
grande espaço desocupado. Sim, aquela poltrona era a mesma em que Rachel se sentara na tarde em que Evelyn aparecera, e era aquela a revista que estivera olhando,aquele
o mesmo quadro, o quadro de Nova York à luz dos lampiões. Como era esquisito... nada tinha mudado.
Aos poucos, algumas pessoas começaram a descer as escadas e passar pelo saguão; naquela penumbra seus vultos tinham uma espécie de graça e beleza, embora fossem
todos desconhecidos. Às vezes passavam direto para o jardim, às vezes paravam alguns minutos, inclinavam-se sobre as mesas e começavam a folhear jornais. Terence
e Rachel observavam através das pálpebras semicerradas...os Johnson, os Parkey, os Bailey, os Simmon, os Lee, os Morley; os Campbell, os Gardiner. Alguns vestiam
roupa branca e traziam raquetes debaixo do braço, uns eram baixos, outros altos, uns apenas crianças, e alguns podiam ser empregados, mas todos tinham sua posição,
seu motivo para andarem uns atrás dos outros no saguão, seu dinheiro, seu lugar, fosse qual fosse. Terence desistiu de contemplá-las, pois estava cansado; fechando
os olhos, ficou meio adormecido na cadeira. Rachel observou as pessoas mais algum tempo; estava fascinada pela segurança e graça de seus movimentos, pela maneira
inevitável como pareciam ir uns atrás dos outros, hesitar, passar e desaparecer. Mas algum tempo depois seus pensamentos começaram a vagar, e pensou no baile que
se realizara naquele salão, só que então parecera bem diferente.Olhando em torno, quase não acreditava que fosse o mesmo aposento. Parecera tão despido, tão claro
e tão formal aquela noite, quando entraram nele, saindo da escuridão; também estivera apinhado com pequenos rostos excitados sempre em movimento, pessoas vestidas
de cores tão brilhantes e tão animadas que nem pareciam pessoas reais, nem se sentia que fosse possível falar com elas. E agora o salão estava penumbroso,quieto,
e belas pessoas silenciosas passavam por ele,pessoas a quem se podia dirigir e dizer o que desejasse.Ela sentia-se surpreendentemente segura sentada em sua poltrona,
capaz de rever não apenas a noite do baile, mas todo o passado, terna e bem-humorada como se tivesse girado num nevoeiro longo tempo e agora pudesse ver exatamente
para onde se dirigira. Pois os métodos pelos quais chegara à sua atual posição lhe pareciam muito estranhos, e a coisa mais estranha neles era não ter ela sabido
aonde a estavam levando. Essa era a coisa estranha, que não se sabia aonde se estava indo,ou o que se queria, e se seguia cegamente, sofrendo tanto em segredo, sempre
despreparada e espantada e sem saber de nada; uma coisa levava a outra, e aos poucos alguma coisa se formava do nada, e assim se chegava finalmente àquela calma,
àquela certeza, e era esse processo que as pessoas chamavam viver.Talvez,então,todo mundo sabia, como ela sabia agora, aonde estavam indo; e as coisas se formavam
num padrão, não só para ela mas para todos, e nesse padrão estavam o contentamento e o sentido de tudo. Olhando para trás podia ver que algum tipo de sentido aparente
existia nas vidas de suas tias, na breve visita dos Dalloway, a quem jamais veria de novo, e na vida do seu pai.
O som de Terence respirando profundamente enquanto cochilava confirmava a calma de Rachel. Não estava sonolenta, embora não visse as coisas muito nitidamente, mas,
como as imagens passando pelo saguão se tornassem cada vez mais vagas, achava que todos sabiam exatamente aonde estavam indo, e a sensação da segurança delas a enchia
de conforto. Naquele momento estava tão desligada e desinteressada como se já não tivesse nenhum destino a cumprir na vida, e achou que agora poderia aceitar qualquer
coisa que viesse sem ficar perplexa pela forma como apareceria.O que havia para se temer ou com que se espantar na perspectiva da vida? Por que essa visão das coisas
a abandonaria outra vez? O mundo na verdade era tão vasto, tão hospitaleiro e, afinal de contas, tão simples.“O amor”, dissera St. John, “parece explicar todas as
coisas”. Sim, mas não o amor na forma de amor entre homem e mulher, de Terence por Rachel. Embora se sentassem tão juntos, tinham deixado de ser pequenos corpos
separados; tinham deixado de lutar e desejar-se.Parecia haver paz entre eles. Podia ser amor, mas não era o amor de homem por mulher.
Através de seus olhos meio fechados Rachel observava Terence deitado na sua cadeira; sorriu vendo como sua boca era grande, seu queixo pequeno, seu nariz curvado
como um escorregador com uma saliência na ponta. Naturalmente, com aquela aparência, era preguiçoso e ambicioso, cheio de caprichos e defeitos.Lembrou-se de suas
brigas, especialmente como tinham brigado a respeito de Helen naquela tarde, e pensou em quantas vezes ainda discutiriam nos 30, 40 ou 50 anos em que viveriam juntos
na mesma casa,apanhando trens juntos, aborrecendo-se por serem tão diferentes. Mas tudo isso era superficial e nada tinha a ver com a vida que continuava sob os
olhos, a boca e o queixo, pois aquela vida era independente dela, e independente de tudo o mais. Assim também, embora fosse se casar com ele e viver com ele por
30, 40 ou 50 anos, e discutir e ficar junto dele, era independente dele; era independente de tudo o mais. Mesmo assim, como dissera St. John, era o amor que a fazia
entender isso, pois nunca sentira essa independência, essa calma e essa certeza antes de se apaixonar por ele, e talvez também isso fosse amor. Ela não queria nada
mais.
Por talvez dois minutos Miss Allan estivera a distância contemplando o casal reclinado tão pacificamente em suas poltronas. Não conseguia decidir se iria perturbá-las
ou não; então, parecendo lembrar-se de alguma coisa, atravessou o saguão. O som de sua aproximação acordou Terence, que se endireitou e esfregou os olhos. Ouviu
Miss Allan falando com Rachel.
Bem – estava dizendo ela –, isso é muito bom. Muito bom, realmente. Ficar noivo parece estar na moda. Não é toda hora que dois casais que nunca se tinham visto antes
decidem se casar. – Fez uma pausa e sorriu, parecendo não ter mais nada a dizer, de modo que Terence se levantou e perguntou se era verdade que ela terminara seu
livro. Alguém lhe dissera que ela realmente o terminara. O rosto dela iluminou-se; vi-rou-se para ele com uma expressão mais animada do que o habitual.
Sim, acho que posso dizer honestamente que terminei – disse. – Isto é, omitindo Swinburne... Beowulf a Browning... eu pessoalmente gosto dos dois ‘bês’. Beowulf
a Browning – repetiu. – Acho que é o tipo de título que pode chamar atenção numa banca de livros de estação ferroviária.
Estava muito orgulhosa de ter concluído seu livro,pois ninguém sabia quanta determinação fora necessária para fazê-lo. Ela também achava que era um bom trabalho
e, levando em conta como estivera ansiosa em relação ao seu irmão quando o escrevera, não pôde resistir a falar-lhes um pouco mais a respeito.
– Devo confessar – prosseguiu – que se eu soubesse quantos clássicos existem na literatura inglesa e como são prolixosos melhores – deles, jamais teria entrado nesse
empreendimento. Só se permitem 70 mil palavras, vocês sabem.
Só 70 mil palavras! – exclamou Terence.
Sim, e é preciso dizer alguma coisa sobre todos eles
– acrescentou Miss Allan – é o que acho tão difícil, dizer algo diferente sobre cada um. – Então achou que já falara o bastante sobre si mesma e perguntou se tinham
vindo para participar do torneio de tênis. – Os jovens estão muito entusiasmados. Começa em meia hora.
Seu olhar benevolente pousava sobre os dois. Depois de uma pausa breve comentou,olhando para Rachel como se tivesse lembrado algo que serviria para distingui-la
dos outros.
– Você é a pessoa notável que não gosta de gengibre.
– Mas a bondade do sorriso no seu rosto bastante gasto e corajoso fez com que sentissem que, embora dificilmente fosse recordá-los como indivíduos, ela depusera
sobre eles o ônus da nova geração.
– E nisso eu até concordo bastante com ela – disse uma voz atrás deles. Mrs. Thornbury escutara as últimas palavras sobre não gostar de gengibre. – Na minha mente
isso se associa a uma horrenda tia nossa (coitada, ela sofria muitíssimo, por isso não se devia chamá-la de horrenda) que costumava nos dar gengibre quando éramos
pequenos, e nunca tínhamos coragem de dizer que não gostávamos. Tínhamos de cuspir tudo nas moitas... ela tinha uma casa grande perto de Bath.
Começaram a atravessar o saguão lentamente, quando pararam sob o impacto de Evelyn, que esbarrou neles como se, correndo escada abaixo para alcançá-los, suas pernas
tivessem escapado ao controle.
– Bem – exclamou ela, com seu entusiasmo habitual, pegando Rachel pelo braço –, eu acho isso uma coisa esplêndida! Adivinhei que ia acontecer, desde o comecinho!
Vi que vocês dois eram feitos um para o outro. Agora precisam me contar tudo a respeito... quando vai ser, onde vão morar... vocês dois estão extremamente felizes?
Mas a atenção do grupo passou para Mrs. Elliot, que passava por eles com seus movimentos ansiosos mas incertos, carregando nas mãos um prato e uma bolsa de água
quente vazia.
Teria passado por eles, mas Mrs. Thornbury foi até ela e interpelou-a.
– Obrigada, Hughling está melhor – respondeu à pergunta de Mrs.Thornbury. – mas ele não é um doente fácil. Quer saber sua temperatura, fica ansioso, e se não se
conta começa a desconfiar. Você sabe como são os homens quando estão doentes! E naturalmente aqui não temos os instrumentos adequados, embora ele pareça muito desejoso
e ansioso por ajudar – ela baixou a voz num tom misterioso –, o Dr. Rodriguez não é um médico apropriado. Se o senhor viesse visitá-lo, Mr. Hewet, sei que ele se
animaria... deitado ali na cama o dia todo... e às moscas... Mas preciso procurar Angelo... a comida aqui... naturalmente, com um doente, a gente quer que tudo saia
especialmente bem. – E correu à procura do chefe dos garçons.A preocupação de cuidar do marido impusera uma expressão lamentosa à sua fronte. Estava pálida e parecia
infeliz, mais ineficiente do que de costume e seus olhos passavam mais vagos ainda de um ponto a outro.
– Coitada! – exclamou Mrs. Thornbury. Contou-lhes que por alguns dias Hughling Elliot andara doente e que o único médico disponível era irmão do proprietário, pelo
menos o proprietário dizia isso, cujo título de médico era suspeito.
Eu sei como é horrível ficar doente num hotel – comentou Thornbury, mais uma vez conduzindo Rachel ao jardim. – Passei seis semanas de minha lua-de-mel com tifo
em Veneza. Mas mesmo assim ainda as considero algumas das semanas mais felizes de minha vida. Ah, sim disse pegando o braço de Rachel –, você se julga feliz agora,
mas isso não é nada comparado à felicidade que vem depois. E asseguro-lhe que ainda no fundo do coração invejo vocês jovens! Vocês se divertem muito mais que nós,
acreditem. Quando lembro, quase nem acredito como as coisas mudaram. Quando éramos noivos, eu não podia nem passear sozinha com William... alguém tinha de estar
sempre no mesmo aposento que nós... eu acho que tinha de mostrar todas as cartas dele aos meus pais!...embora também gostassem muito dele. Na verdade posso dizer
que o consideravam um filho. É engraçado pensar como eram severos conosco, quando vejo como mimam os seus netos!
A mesa estava mais uma vez posta debaixo da árvore,e tomando seu lugar diante das xícaras de chá, Mrs.
Thornbury convidou e acenou com a cabeça até reunir um bom número de pessoas, Susan, Arthur e Mr. Pepper que estavam passeando por ali esperando o começo do torneio.
Uma árvore murmurejante, um rio brilhando ao luar,as palavras de Terence voltaram à lembrança de Rachel sentada tomando chá e escutando as palavras que fluíam tão
leves, tão bondosas e com uma maciez argêntea.Aquela vida longa e todos aqueles filhos tinham-na deixado muito suave; pareciam ter removido marcas de individualidade,
deixando apenas o que era velho e maternal.
– E as coisas que vocês moços ainda vão ver! – continuou Mrs. Thornbury. Ela incluiu todos eles em sua previsão, ela incluiu todos eles em sua maternidade, embora
o grupo incluísse William Pepper e Miss Allan, dos quais seimaginaria que já haviam visto boa parte do panorama. – Quando vejo como o mundo mudou durante a minhavida,
não vejo limite para o que poderá acontecer nospróximos 50 anos. Ah, não, Mr. Pepper, não concordonada com o senhor – ela riu, interrompendo o comentário melancólico
dele, de que as coisas iam sempre de mala pior. – Eu sei que deveria sentir isso, mas acho que nãosinto. Eles vão ser pessoas muito melhores do que nós.Certamente
tudo vai provar isso. Ao meu redor vejomulheres, mulheres jovens, mulheres com preocupaçõesdomésticas de toda sorte, saindo e fazendo coisas quenós nem pensaríamos
serem possíveis.
Mr. Pepper a achava sentimental e irracional como são todas as velhas, mas seu jeito de tratá-lo como se fosse um velho bebê rabugento deixava-o ao mesmo tempo espantado
e encantado, e ele apenas pôde responder com uma careta curiosa, que era mais um sorriso do que uma cara feia.
– E continuam sendo mulheres – acrescentou Mrs. Thornbury. Dão muito aos seus filhos.Quando disse isso, ela sorriu para Susan e Rachel.Elas não gostaram de serem
incluídas no mesmo grupo, mas ambas sorriram um pouco acanhadas; Arthur e Terence também se entreolharam. Ela os fazia sentir que estavam ambos juntos no mesmo barco,
e olharam para as mulheres com quem iam se casar, comparandoas. Era inexplicável que alguém quisesse casar-se com Rachel, incrível que alguém estivesse disposto
a passar a vida com Susan; mas, por mais estranho que parecesse a cada um o gosto do outro, nenhum dos dois tinha má vontade para com o outro por esse motivo; na
verdade ambos se estimavam mais ainda por causa de sua escolha excêntrica.
– Preciso realmente dar-lhe os parabéns – comentou Susan quando se inclinava sobre a mesa para pegar a geléia.
Parecia não haver motivo para o mexerico de St.John sobre Arthur e Susan. Queimados de sol e vigorosos, sentavam-se ali lado a lado com suas raquetes sobre os joelhos,
não falando muito, mas dando leves sorrisos o tempo todo. Através de suas finas roupas brancas era possível ver as linhas de seus corpos e pernas, as lindas curvas
de seus músculos, a magreza dele e as carnes dela, e era natural pensar nas crianças fortes e de carnes rijas que teriam. Seus rostos não eram belos, mas tinham
olhos claros e aparência de grande saúde e resistência, pois parecia que o sangue jamais deixaria de correr nas veias dele ou de repousar, calmo e profundo, nas
faces dela. Os olhos dos dois no momento estavam mais brilhantes do que de costume e tinham a expressão peculiar de prazer e confiança que parece estar nos olhos
dos atletas, pois estiveram jogando tênis, e eram ambos excelentes no jogo.
Evelyn não falara, mas estivera olhando de Susan para Rachel. Bem... ambas tinham se decidido muito facilmente, tinham feito em poucas semanas o que por vezes ela
pensava jamais poder fazer. Embora fossem tão diferentes, achou que podia ver em cada uma a mesma expressão de contentamento e plenitude, a mesma maneira calma,
os mesmos movimentos vagarosos. Era essa lentidão, a confiança e o contentamento que ela odiava, pensou. Moviam-se tão devagar porque não eram isoladas, mas uma
dupla, Susan ligada a Arthur, e Rachel a Terence, e por causa daquele único homem tinham renunciado a todos os demais, ao movimento e a todas as coisas reais da
vida. Tudo bem com o amor e com aquelas aconchegantes casas com cozinha em baixo e quarto de crianças em cima, tão fechadas e absorvidas em si como ilhazinhas nas
torrentes do mundo. Mas as coisas reais eram sem dúvida as coisas que aconteciam, as causas, as guerras, os ideais, que sucediam no grande mundo lá fora e continuavam
independentes dessas mulheres, que se tornaram tão belas e quietas para seus homens. Ela as examinou acuradamente. Naturalmente estavam felizes e satisfeitas, mas
devia haver coisas melhores do que aquilo.
Certamente podia se chegar mais perto da vida, podia se divertir mais e sentir mais do que elas jamais sentiriam. Rachel, especialmente, parecia tão jovem... o que
poderia saber da vida? Ela ficou inquieta e, levantandose, foi sentar-se ao lado de Rachel. Lembrou-a de que prometera unir-se ao seu clube.
– O problema é que talvez eu não seja capaz de começar a trabalhar seriamente até outubro. Acabo de receber uma carta de uma amiga cujo irmão está a serviço em Moscou.
Querem que eu fique com eles, e como estão no meio de todas as conspirações e dos anarquistas, estou pensando em parar a caminho de casa.Parece excitante demais.
– Ela queria fazer Rachel ver como era excitante. – Minha amiga conhece uma moça de 15 anos que foi mandada para a Sibéria para sempre, apenas porque a apanharam
mandando uma carta a um anarquista. E a carta nem era dela. Eu daria tudo que tenho no mundo para ajudar numa revolução contra o governo russo, e isso vai acontecer.
Olhou de Rachel para Terence. Os dois estavam um pouco comovidos ao vê-la, lembrando como ultimamente tinham ouvido palavras más a seu respeito.Terence perguntou-lhe
qual era o seu esquema, e ela explicou que ia fundar um clube – um clube para fazer coisas, fazê-las de verdade. Ficou muito animada enquanto falava, pois professou
estar certa de que 20 pessoas – não, dez seria o bastante se fossem ousadas – interessadas em fazer coisas, em vez de falar sobre elas, poderiam acabar com quase
todo o mal que existia. O que era preciso eram cérebros. Ao menos pessoas com cérebro – naturalmente quereriam uma sala, uma boa sala, de preferência em Bloomsbury,
onde pudessem encontrar-se uma vez por semana...
Enquanto ela falava, Terence podia ver os traços de juventude que iam murchando no seu rosto, as linhas que estavam sendo marcadas pela fala e pela excitação em
torno de sua boca e olhos, mas não teve pena dela;olhando naqueles olhos brilhantes, um tanto duros e muito corajosos, viu que ela não tinha pena de si mesma, nem
sentia qualquer desejo de trocar sua vida pelas vidas mais refinadas e ordenadas de pessoas como ele próprio e St. John, embora, com o passar dos anos, a luta se
tornasse cada vez mais dura.Talvez porém ela se estabelecesse; talvez afinal de contas se casasse com Perrott. Enquanto sua mente estava meio ocupada com
o que ela dizia, ele pensou no provável destino dela, as leves nuvens de fumaça escondendo um pouco o seu rosto aos olhos dela.
Terence fumava, Arthur fumava e Evelyn fumava, demodo que o ar estava cheio da névoa e do perfume debom tabaco. Nos intervalos em que ninguém falava, ouviam bem
distante o murmúrio abafado do mar, quandoas ondas se quebravam tranqüilamente espalhando napraia uma beirada de água e recuando para quebraremse de novo. A fria
luz verde caía entre as folhas de árvore, e havia crescentes suaves e diamantes de sol sobre os pratos e a toalha de mesa. Depois de observá-los todospor algum tempo
em silêncio, Mrs. Thornbury começou a fazer perguntas bondosas a Rachel. Quando iamtodos voltar? Ah, estavam esperando o pai dela. Ela devia estar querendo ver o
pai – haveria muita coisa a contar-lhe, e (ela olhou com simpatia para Terence) eleficaria tão feliz, estava certa disso. Anos atrás, prosseguiu, talvez dez ou até
vinte anos, lembrava de ter conhecido Mr. Vinrace numa festa e, impressionada com o rosto dele, diferente dos rostos comuns que se vêemem festas, perguntara quem
ele era; tinham-lhe ditoque era Mr. Vinrace, e ela sempre recordava o nome –nome nada comum – e ele estava com uma senhora de aparência muito gentil, mas era uma
daquelas terríveisfestas apinhadas de gente em Londres,em que ninguémconversa – as pessoas ficam apenas se olhando –, e embora tivesse apertado a mão de Mr. Vinrace,
provavelmente não tinham dito nada. Ela suspirou um pouquinho lembrando o passado.
Então voltou-se para Mr. Pepper, que estava muito dependente dela, de modo que sempre escolhia sentarse perto dela e escutava o que ela dizia, embora raramente fizesse
algum comentário pessoal.
– O senhor que conhece tudo, Mr. Pepper – disse ela –, digamos agora como aquelas maravilhosas damas francesas administram os seus salões? Fazemos algo parecido
na Inglaterra, ou o senhor acha que há algum motivo para não podermos fazer?
Mr. Pepper alegrou-se em poder explicar muito detalhadamente por que nunca tinha havido um salão inglês.Havia três motivos, e eram muito bons, disse ele. Quando
ia a uma festa, como às vezes era obrigado a fazer para nãoofender ninguém – sua sobrinha, por exemplo, casara-seoutro dia –, ele caminhava até o meio da sala, dizia
“Ha!
Ha!”o mais alto que podia,pensava ter cumprido seu devere ia embora. Mrs. Thornbury protestou. Ia dar uma festaassim que voltasse para casa e todos seriam convidados;
elacolocaria gente para observar Mr. Pepper e se o apanhassem dizendo “Há! Há!” ela... ela faria alguma coisa horrívelcontra ele. Arthur Venning sugeriu que deveria
prepararum tipo de surpresa, por exemplo, o retrato de uma simpática velha em gorro de renda escondendo um jato de águafria, que a um sinal seria espirrado contra
a cabeça dePepper; ou então uma cadeira que o dispararia a 20 metrosde altura assim que se sentasse nela.
Susan riu. Terminara seu chá; estava muito contente porque jogara tênis brilhantemente e porque todo mundo era tão simpático; começava a achar bem mais fácil conversar
e manter diálogo, mesmo com gente bem inteligente, pois pessoas inteligentes não a assustavam mais.Até Mr. Hirst, de quem não gostara quando o conhecera,não era
desagradável; e, coitado, sempre parecia tão doente; talvez estivesse apaixonado; talvez tivesse gostado de Rachel – ela não se espantaria se fosse isso; ou talvez
Evelyn – naturalmente esta era muito atraente para os homens. Inclinando-se para diante, ela prosseguiu a con-versa. Disse achar que festas eram tão aborrecidas
principalmente porque os homens não querem se vestir direito;mesmo em Londres, disse, surpreendia-se ao ver como as pessoas não achavam necessário vestir-se para
a noite;evidentemente se não se vestiam em Londres, muito me-nos no interior. Era realmente um aborrecimento na época de Natal, quando havia bailes de caçada e os
cavalheiros usavam belos casacos vermelhos, mas Arthur não ligava para bailes, de modo que talvez nem fosse ao baile na sua cidadezinha do interior. Ela achava que
em geral pessoas que gostam de um esporte não ligam para outro, embora seu pai fosse uma exceção. Mas ele era exceção em tudo – um excelente jardineiro, sabia tudo
sobre pássaros e animais, e era simplesmente adorado por todas as velhas da aldeia, e ao mesmo tempo o que mais apreciava era um livro. Sempre se sabia onde encontrá-lo;
estava no seu estúdio com um livro. Provavelmente seria um livro muito, muito velho, alguma coisa antiga e bolorenta que ninguém mais sonharia ler. Ela costumava
dizer-lhe que teria sido um rato de biblioteca se não tivesse família de seis pessoas para sustentar; e seis filhos, acrescentava ela, confiando de um jeito encantador
na simpatia universal, não deixavam muito tempo para ninguém se tornar um rato de biblioteca.
Ainda falando em seu pai, de quem se orgulhava muito, ela ergueu-se porque Arthur, olhando o relógio, achou que estava na hora de voltar novamente para a quadra
de tênis. Os outros não se mexeram.
Estão muito felizes! – disse Mrs.Thornbury olhando para eles com ar benevolente. Rachel concordou; pareciam tão seguros de si mesmos; pareciam saber exatamente o
que queriam.
Você acha que eles estão felizes? – murmurou Evelyn a Terence num tom cheio de alusões, esperando que ele dissesse que não achava; mas em vez disso ele disse que
também tinham de ir... ir para casa, pois andavam sempre atrasados para as refeições, e Mrs. Ambrose, que era muito severa e escrupulosa, não gostava disso. Evelyn
segurou a saia de Rachel e protestou. Por que tinham de ir? Ainda era cedo, e ela tinha tantas coisas a lhes dizer.
– Não – disse Terence –, temos de ir porque caminhamos devagar. Paramos para olhar as coisas, e conversamos.
– Do que falam? – perguntou Evelyn, ao que ele riu e disse que falavam de tudo.Mrs. Thornbury foi com eles até o portão, atravessando a relva e o cascalho com muita
lentidão e graça, falando o tempo todo sobre pássaros e flores. Disse-lhes que desde que a filha se casara começara a estudar botânica;era maravilhoso, quantas flores
ali e ela nunca vira, embora tivesse vivido no interior a vida toda e ela tinha 72 anos. Era uma boa coisa ter uma ocupação bastante independente das outras pessoas,
disse, quando se ficasse velha. Mas o estranho era que a gente nunca se sentia velha.Ela sempre sentia que tinha 25, nem um dia a mais nem um dia a menos, mas, naturalmente,
não se podia esperar que outras pessoas concordassem com isso.
– Deve ser maravilhoso ter 25 e não apenas imaginar que se tem 25 – disse ela olhando de um para outro com seu olhar suave e claro. – Deve ser muito, muito maravilhoso
mesmo. – Ficou parada falando com eles no portão por um longo tempo; parecia relutar em deixá-los partir.
25
A tarde estava muito quente, tão quente que as ondasquebrando na praia soavam como o repetido suspiro dealguma criatura exausta, e mesmo no terraço debaixo deum
toldo as lajes estavam quentes, e o ar dançava perpetuamente sobre o capim curto e seco. As flores vermelhas nas bacias de pedra murchavam de calor,e os botõesbrancos,
que poucas semanas antes eram tão macios egrossos, agora estavam secos e com as pontas retorcidasamarelas. Só as plantas rígidas e hostis do sul, cujas folhas carnudas
pareciam crescer em espinhos dorsais,ainda estavam eretas e desafiando o sol para que as dobras-se. Estava quente demais para se falar, e não era fácilencontrar
um livro que resistisse ao poder do sol. Muitostinham sido tentados e largados, e agora Terence estavalendo Milton em voz alta, porque dizia que as palavras de Milton
tinham substância e forma, de modo que nãoera preciso compreender o que ele dizia; bastava escutaras palavras; podia-se quase manipulá-las.
Há uma doce ninfa não longe daqui,
Leu ele,
Que com curva úmida faz ondular a doce torrente do Severn. Sabrina é seu nome, virgem pura;Era filha de Locrino, Que recebera o cetro de seu pai Bruto.
As palavras, apesar do que Terence dissera, pareciamcarregadas de significado e talvez por isso fosse dolorosoescutá-las; soavam estranhas; significavam coisas diferentesdo
que usualmente significam. Rachel, pelo menos, nãoconseguia prestar atenção nelas, mas seguia estranhos desvios de pensamento sugeridas por palavras como “curva”,“Locrino”e
“Bruto”,que traziam visões desagradáveis diante de seus olhos,independentemente de seu sentido.Devidoao calor e ao ar que dançavam, o jardim também pareciaesquisito...
as árvores próximas ou distantes demais, e suacabeça quase certamente doía.Ela não estava certa,por issonão sabia se devia dizer a Terence agora ou deixá-lo seguirlendo.
Decidiu que esperaria que ele chegasse ao fim deuma estrofe e, se naquela altura ela virasse a cabeça de umlado a outro e doesse indubitavelmente em qualquer posição,
diria com muita calma que estava com dor de cabeça.
Bela Sabrina,
Ouça de onde está sentada
Sob a onda vítrea, fria e translúcida,
Tecendo em tranças retorcidas de lírios,
Seu cabelo solto cor de âmbar, gotejante,
Ouça pela honra do seu amado
Deusa do lago de prata,
Ouça e salve!
Mas sua cabeça doía; doía, para qualquer lado que virasse.
Sentou-se ereta e disse decidida:
– Estou com dor de cabeça, então vou entrar. Ele estava na metade do verso seguinte, mas largou
o livro na mesma hora.
– Está com dor de cabeça? – repetiu ele.
Por uns momentos ficaram sentados entreolhandose em silêncio, de mãos dadas. Durante esse tempo os sentimentos dele de consternação e catástrofe foram quase fisicamente
dolorosos; pareceu ouvir ao seu redor um tremor de vidro partido que, ao cair na terra, o deixou sentado em pleno ar. Mas no fim de dois minutos, notando que ela
não partilhava de sua consternação, mas estava antes bastante lânguida e de pálpebras mais pesadas do que de costume, ele recuperou-se,chamou Helen e perguntou o
que deviam fazer, pois Rachel estava com dor de cabeça.
Mrs. Ambrose não se perturbou, mas aconselhou quefosse para a cama e acrescentou que sua cabeça doeria seficasse sentada o tempo todo sem repousar nem sair docalor,
mas que umas poucas horas na cama a curariam totalmente. Terence sentiu um alívio irracional com essas palavras, assim como estivera irracionalmente deprimido momentos
antes. O espírito de Helen parecia ter muito emcomum com o implacável bom senso da natureza, que vingava a imprudência com uma dor de cabeça e, como o bom senso
da natureza, era algo confiável.
Rachel foi para a cama; deitada no escuro por um longo tempo, mas, finalmente, acordando de uma espécie de sono transparente, viu as janelas brancas à sua frente
e lembrou que algum tempo atrás fora para a cama com dor de cabeça e que Helen dissera que teria passado quando acordasse. Por isso achou que estava boa outra vez.
Ao mesmo tempo a parede à sua frente era de um branco doloroso e curvava-se de leve em vez de estar reta e plana.Virando os olhos para a janela, não ficou tranqüila
com o que viu. O movimento da persiana quando se enchia de ar e inflava de leve para fora, arrastando a corda no assoalho com um pequeno som rastejante, pareceu-lhe
assustador como um bicho no quarto. Ela fechou os olhos, e o latejar na sua cabeça foi tão forte que cada latejo parecia bater um nervo, fincando uma pequena ferroada
de dor na sua testa. Podia não ser a mesma dor de cabeça, mas sua cabeça certamente doía. Virou-se de um lado para outro, esperando que a frieza dos lençóis a curasse,e
quando abrisse novamente os olhos o quarto estaria como de costume.Depois de um número considerável de tentativas vãs, ela decidiu resolver o assunto. Saiu da cama
e parou ereta,segurando-se numa bola de latão na cabeceira da cama.De início gelada, a cabeceira logo ficou quente como a palma de sua mão, e as dores em sua cabeça
e em seu corpo, e a instabilidade do chão, provaram que seria bem mais insuportável ficar de pé e caminhar do que ficar na cama, e voltou a deitar-se; embora no
começo a mudança a refrescasse,o desconforto da cama logo ficou tão grande quanto o de estar de pé. Aceitou a idéia de que teria de ficar na cama o dia todo, e quando
deitou a cabeça no travesseiro, renunciou à felicidade do dia.
Quando Helen entrou uma ou duas horas depois, interrompeu de repente as palavras alegres que ia dizendo, pareceu espantar-se um segundo e, depois de assumir uma
calma artificial, não teve dúvidas de que Rachel estava enferma. Isso se confirmou quando a casa toda ficou sabendo,quando alguém interrompeu uma canção que cantava
no jardim e quando Maria, trazendo água, passou pela camacalada, olhos baixos. Foi preciso superar toda a manhã etoda a tarde; de vez em quando Rachel fazia um esforçopara
passar para o mundo comum, mas via que seu calor edesconforto tinham cavado um abismo entre seu mundo e aquele, comum, e que não era possível atravessar. Num momento
a porta abriu-se, e Helen entrou com um homenzinho moreno que tinha – foi a coisa principal que Rachelnotou nele – mãos muito peludas. Estava tonta e com umcalor
insuportável, e como ele parecesse tímido e obsequioso, quase não se deu ao trabalho de responder-lhe,embora entendesse que era um médico. Noutro momento, a porta
se abriu e Terence entrou muito suavemente, sorrindo um sorriso fixo demais para ser natural,conforme ela percebeu. Sentou-se e falou com ela, acariciando suas mãos,
até que ficou impossível para ela continuar deitada na mesma posição e se virou; quando olhou de novo Helen estava a seu lado e Terence se fora. Não tinha importância;
ela o veria amanhã quando ascoisas voltassem ao normal. Sua ocupação principal durante o dia foi tentar lembrar os versos:
Sob a onda vítrea, fria e translúcida.
Tecendo em tranças retorcidas de lírios,
Seu cabelo solto cor de âmbar, gotejante,
e esse esforço a preocupava porque os adjetivos insistiam em colocar-se nos lugares errados.
O segundo dia não foi muito diferente do primeiro,exceto que sua cama se tornara muito importante, e omundo de fora, quando tentava pensar nele, parecia cadavez
mais afastado. A onda vítrea, fria e translúcida estava quase visível diante dela, encrespando-se no pé da cama, ecomo era de um frio refrescante Rachel tentava
manter o pensamento fixo nela. Helen estava ali, e esteve ali o diatodo; às vezes dizia que era hora do almoço, às vezes queera hora do chá; mas no dia seguinte
todos os marcos estavam borrados e o mundo exterior estava tão distante queos diferentes sons,como sons de pessoas passando na escada e de gente caminhando no andar
de cima, só podiamser relacionados com sua causa com grande esforço de memória. Lembrar o que sentira, fizera ou pensara três diasantes era algo muito remoto.Por
outro lado,cada objeto noquarto e a própria cama,e seu corpo com seus vários membros e diferentes sensações, eram cada dia mais importan-tes.Ela estava totalmente
isolada,incapaz de comunicar-secom o resto do mundo, isolada e só com seu corpo.
Assim passavam-se horas e horas, sem avançar nada durante a manhã, ou poucos minutos levavam do dia claro às profundezas da noite. Certo dia quando anoitecia e o
quarto parecia muito penumbroso, porque era crepúsculo ou porque as cortinas estavam fechadas,Helen lhe disse:
– Há uma pessoa que vai passar a noite sentada aqui com você. Você se importa? Abrindo os olhos, Rachel não viu Helen, mas uma enfermeira de óculos, cujo rosto lembrava
vagamente algo que vira uma vez. Vira-a na capela.
– A enfermeira McInnis – disse Helen. A enfermeira tinha um sorriso fixo como todo mundo e disse que não haviamuita gente com medo dela. Depois de esperar um momento,
as duas sumiram e, virando-se no travesseiro, Rachel acordou no meio de uma daquelas intermináveis noites quenão terminam em 12 horas, mas avançam para outras cifras:13,
14 e assim por diante até chegarem a 20, a 30 e então 40.Percebeu que não há nada para evitar que as noites façamisso se quiserem. A uma grande distância, uma mulher
idosasentava-se de cabeça inclinada; Rachel soergueu-se de leve eviu consternada que a mulher jogava cartas à luz de uma velaescondida por uma folha de jornal. A
visão tinha algo deinexplicavelmente sinistro; ela ficou aterrorizada e gritou; amulher largou suas cartas e veio atravessando o quarto, protegendo a vela com as
mãos. Chegando mais e mais pertoatravés do grande espaço do quarto, ela finalmente parousobre a cabeça de Rachel e disse:
– Não está dormindo? Deixe-me ajeitá-la mais confortavelmente.
Ela largou a vela e começou a arranjar as roupas de cama. Rachel espantou-se porque a mulher que estivera sentada jogando cartas numa caverna a noite toda tinha
mãos muito frias, e encolheu-se quando a tocaram.
Olha aí – disse a mulher –, tem um dedão ali em embaixo! – e continuou a ajeitar as roupas de cama.Rachel não percebeu que o dedo do pé era seu.
Você tem de ficar deitada quietinha – continuou a mulher porque se ficar quieta sentirá menos calor e se remexer muito vai ficar com mais calor, e não queremos que
fique ainda mais quente do que já está. Parou olhando para Rachel um tempo enorme.
– E quanto mais quieta ficar, mais cedo estará boa – repetiu ela.
Rachel ficou de olhos fixos na sombra pontiaguda no teto,e toda a sua energia concentrou-se em querer que essa sombrase movesse. Mas a sombra e a mulher pareciam
eternamentefixos sobre ela. Rachel fechou os olhos. Quando os abriu de novo, tinham-se passado várias horas, mas a noite continuava,interminável.A mulher ainda jogava
cartas,apenas agora estava sentada num túnel debaixo de um rio, e a luz estava numa pequena arcada na parede acima dela. Ela gritou “Terence!” e a sombra pontuda
mais uma vez moveu-se através do teto,quando a mulher se ergueu com um imenso movimento vagaroso, e ambas se postaram quietas acima dela.
– É tão difícil manter você na cama quanto foi difícil manter Mr. Forrest na cama – disse a mulher –, e ele era um cavalheiro tão alto.
Para se livrar daquela terrível visão estacionária,Rachel fechou os olhos de novo, e estava caminhando num túnel debaixo do Tâmisa, onde havia mulherezinhas disformes
sentadas em arcadas jogando cartas, enquanto os tijolos da parede exsudavam umidade, que se cristalizava em gotas e escorregava pela parede. Mas as velhas mulherezinhas
tornaram-se Helen e a enfermeira McInnis, algum tempo depois, paradas juntas na janela sussurrando, sussurrando incessantemente.
Enquanto isso, fora do quarto dela, os sons, os movimentos e as vidas dos outros na casa seguiam na comum luz do sol, através da comum seqüência de horas. Quando,no
primeiro dia de sua enfermidade, uma terça-feira, ficou claro que ela não ficaria totalmente boa, pois sua temperatura era muito alta, Terence ficou ressentido até
sexta-feira, não contra ela, mas contra a força exterior a eles que os estava separando. Contou um número de dias que quase certamente ficariam estragados. Percebeu
com uma estranha mistura de prazer e aborrecimento que, pela primeira vez na vida, dependia tanto de outra pessoa, que sua felicidade estava a cargo dela. Os dias
eram totalmente desperdiçados com coisas triviais e imateriais, pois depois de três semanas de tal intensidade e intimidade, todas as ocupações habituais ficavam
insuportavelmente sem graça e sem sentido. A ocupação menos intolerável era falar com St. John sobre a enfermidade de Rachel, discutindo cada sintoma e seu significado,
e quando esse tema estava exaurido, discutindo toda sorte de doenças, o que as causava ou curava.
Duas vezes por dia ele ia sentar-se com Rachel, e duas vezes por dia acontecia a mesma coisa. Ao entrar no quarto, que não era muito escuro, onde partituras se espalhavam
como sempre, assim como os seus livros e as cartas,ele imediatamente se animava. Vendo-a, ficava totalmente reassegurado. Ela não parecia muito doente. Sentado a
seu lado contava-lhe o que andara fazendo, usando sua voz natural para falar-lhe, apenas alguns tons mais baixo do que de costume. Mas depois de sentar-se ali cinco
minutos, ficava mergulhado na mais profunda tristeza. Ela não era mais a mesma, ele não conseguia restabelecer a antiga relação; embora soubesse que era uma bobagem,não
podia impedir-se de desejar trazê-la de volta, fazê-la recordar, e quando isso falhava desesperava-se. Sempre concluía, ao deixar o quarto dela, que era pior vê-la
do que não a ver, mas aos poucos, quando o dia prosseguia, o desejo de vê-la voltava e tornava-se quase insuportável.
Na manhã de quinta-feira, quando Terence entrou no quarto dela, sentiu o usual aumento de confiança. Ela virouse e fez um esforço para lembrar certos fatos do mundo
queestava a tantos milhares de quilômetros de distância.
– Você veio do hotel? – perguntou ela.
– Não, agora estou hospedado aqui – disse ele. – Acabamos de almoçar e chegou a correspondência. Há um maço de cartas para você... cartas da Inglaterra.
Em vez de dizer que queria vê-las, como ele esperava, ela por algum tempo não disse nada.
Está vendo, já vão elas rolando do alto do morro para baixo – disse ela de repente.
Rolando, Rachel? O que você viu rolando? Não há nada rolando.
A velha com a faca – disse ela, não falando com Terence em especial e olhando algum ponto além dele.
Como ela parecia fitar um vaso na prateleira do outro lado do quarto, ele levantou-se e pegou o vaso.
– Agora não podem mais rolar – disse alegremente.Mesmo assim ela ficou deitada olhando fixo para o mesmo ponto, não prestando mais atenção nele, embora falasse com
ela. Terence ficou tão profundamente infeliz que não suportou ficar sentado junto dela, e saiu caminhando até encontrar St. John, que estava lendo o Times na varanda.
St. John largou o jornal pacientemente e escutou tudo o que Terence tinha a dizer sobre o delírio. Era muito paciente com Terence. Tratava-o como a uma criança.
Na sexta-feira não se podia negar que a doença não era mais um acesso que passaria em um dia ou dois; era uma enfermidade real e exigia muita organização e atenção
de pelo menos cinco pessoas, mas não havia por que ficarem ansiosos. Em vez de cinco dias, a doença duraria dez. Diziam que Rodriguez comentara haver variedades
conhecidas dessa enfermidade. Rodriguez parecia pensar que estavam tratando a doença com ansiedade desnecessária. Suas visitas eram sempre marcadas pela mesma demonstração
de confiança; nas suas entrevistas com Terence ele sempre rejeitava as perguntas ansiosas e detalhadas com uma espécie de floreio que parecia dizer que estavam todos
levando aquilo a sério demais. Curiosamente ele não queria sentar-se.
– Febre alta – disse olhando furtivamente peloquarto e parecendo mais interessado nos móveis e nobordado de Helen do que em qualquer outra coisa.
– Neste clima, espera-se febre alta. Não precisam ficar alarmados com isso. Nós nos guiamos pelo pulso(deu uma batidinha no próprio pulso) e o pulso continua excelente.
Depois disso fez mesura e desapareceu. A entrevista fora conduzida laboriosamente pelos dois lados em francês, e isso, aliado ao fato de que ele era otimista e de
que Terence respeitava a profissão médica, tornava-o menos crítico do que se encontrasse o médico em qualquer outra situação. Inconscientemente tomava o lado de
Rodriguez contra Helen, que parecia ter um preconceito irracional em relação a ele.
Quando chegou sábado estava evidente que as horas do dia tinham de ser mais bem organizadas. St. John ofereceu seus préstimos; disse que não tinha nada para fazer
e podia bem passar o dia na villa se pudesse ser útil. Como se estivessem iniciando uma expedição difícil juntos, dividiram entre si as tarefas, escrevendo um esquema
elaborado de horas numa grande folha de papel, que foi afixada na porta da sala de estar. A distância da cidade e a dificuldade de conseguir coisas raras, com nomes
desconhecidos, dos lugares mais inesperados, tornava necessário pensar com muito cuidado, e acharam inesperadamente difícil fazer as coisas mais simples mas práticas
que se exigiam deles, como se, sendo muito altos, tivessem de inclinar-se e arranjar diminutos grãos de areia num desenho no chão.
A tarefa de St. John era apanhar da cidade o que fosse preciso, de modo que Terence ficava sentado as longas horasde calor sozinho na sala de estar, junto da porta
aberta, à escuta de qualquer movimento lá em cima,ou de um chamado de Helen. Ele sempre se esquecia de baixar as persianas, demodo que ficava sentado à luz do sol,
o que o incomodavasem ele saber direito por quê.O aposento ficava terrivelmente sufocante e desconfortável. Havia chapéus nas cadeiras efrascos de remédios entre
livros. Ele tentava ler, mas os livros bons eram bons demais, e os ruins eram ruins demais, e a única coisa que podia suportar era o jornal que, com suaspolíticas
de Londres e atividades das pessoas de verdade queestavam dando jantares festivos e fazendo discursos, pareciaum pequeno pano de fundo de realidade para aquilo que
deoutra forma seria puro pesadelo. Então, bem quando suaatenção estava fixada na letra impressa, vinha um chamadobrando de Helen, ou Mrs. Chailey trazia algo que
era solicitado lá em cima, e ele corria para lá sem ruído, de meias, epunha o jarro na mesinha abarrotada de jarros e xícaras queficava do lado de fora da porta
do quarto de dormir. Ou se pudesse pegar Helen um momento, perguntava:
– Como é que ela está?
– Bastante inquieta... De modo geral, acho que mais calma.
A resposta podia ser uma ou outra.
Como de costume ela parecia esconder algo que nãodizia, e Terence estava consciente de que eles discordavamentre si, e, sem dizer isso em voz alta, discutiam. Mas
Helen estava preocupada e apressada demais para conversar.
A tensão de escutar, o esforço de fazer arranjos práticose ver as coisas funcionarem sem problemas, absorvia toda aenergia de Terence. Envolvido em seu longo e terrível
pesadelo, ele nem tentava pensar em como aquilo acabaria.
Rachel estava doente; era isso; ele precisava cuidar para quehouvesse remédios e leite, e que as coisas estivessem a postos quando necessárias. O pensamento cessara;
a própriavida estava parada. Domingo foi bem pior do que fora osábado, simplesmente porque a tensão era cada dia umpouco maior, embora nada mais tivesse mudado.
Os sentimentos separados de prazer, interesse e dor, que se combinam para formar o dia comum,estavam mergulhados numasensação arrastada de sórdida infelicidade e
profundo tédio. Ele nunca estivera tão entediado desde que o deixaramfechado sozinho no quarto de criança quando pequeno. Avisão de Rachel como estava agora, confusa
e indiferente,quase apagara a visão dela como fora um dia, há muito tempo; ele quase nem conseguia acreditar que tinham sidofelizes, ou noivos, pois que emoções
havia, o que existiapara ser sentido? A confusão cobria cada visão e cada pessoa, e ele parecia ver St. John, Ridley e as pessoas que vinham vez por outra do hotel
para saber notícias, através deuma névoa; as únicas pessoas não escondidas nessa névoaeram Helen e Rodriguez, porque podiam dizer-lhe algodefinido sobre Rachel.
Mesmo assim, o dia seguiu da forma habitual. A certas horas entravam na sala de jantar, e quando se sentavam ao redor da mesa, falavam sobre coisas sem importância.
St.John geralmente tratava de começar a conversa e evitar que se esvaísse.
– Descobri um jeito para fazer Sancho passar pela casa branca – disse St. John no almoço de domingo. – É só enfiar um pedaço de papel no seu ouvido, aí ele salta
por uns 100 metros, mas depois disso anda bastante bem.
Sim, mas ele quer milho. Você devia cuidar para que tenha seu milho.
Não confio muito nesse troço que lhe dão. E Angelo parece um moleque sujo.
Depois houve um longo silêncio. Ridley soprou alguns versos de poesia e comentou, como para esconder que o tinha feito:
– Muito quente, hoje.
Dois graus mais que ontem – disse St. John. – Fico imaginando de onde vêm essas nozes – disse, tomando uma noz do prato e girando-a nos dedos, contemplando-a com
curiosidade.
Acho que de Londres – disse Terence, também olhando a noz.
Um homem de negócios competente faria fortuna aqui em pouco tempo – continuou St. John. – Acho que o calor faz alguma coisa esquisita com o cérebro das pessoas.
Até os ingleses ficam um pouco esquisitos. Seja como for, são pessoas com quem não dá para lidar. Fizeram-me esperar três quartos de hora na farmácia esta manhã,
sem nenhum motivo.
Houve outra pausa longa, depois Ridley perguntou:
– Rodriguez parece satisfeito?
– Bastante – disse Terence com determinação. A coisa só tem de seguir seu curso.
Ridley deu um suspiro profundo. Tinha realmente pena de todo mundo, mas ao mesmo tempo sentia uma falta enorme de Helen, e estava um pouco irritado com a presença
constante daqueles dois rapazes.
Voltaram todos para a sala de estar.
– Olhe aqui, Hirst – disse Terence – não há nada parafazer durante duas horas. – Ele consultou a folha de papelafixada na porta. – Vá deitar-se. Eu espero aqui.
Chaileyestá sentada com Rachel enquanto Helen almoça.
Era pedir muito a Hirst dizer que saísse sem ter visto Helen. Aqueles rápidos vislumbres de Helen eram as únicas tréguas na tensão e tédio, e muitas vezes pareciam
compensar os desconfortos do dia, embora ela não tivesse muito a lhes dizer. Porém, como estavam juntos numa campanha, decidira obedecer.
Helen desceu muito tarde. Parecia alguém que ficara sentada longo tempo no escuro. Estava pálida, mais magra e a expressão de seus olhos era atormentada embora decidida.
Almoçou depressa, indiferente ao que estava fazendo. Esquivou-se das perguntas de Terence e finalmente, como se ele nem tivesse falado, encarou-o com a testa um
pouco franzida e disse:
– Terence, não podemos continuar assim. Ou você encontra outro médico, ou terá de dizer a Rodriguez que não venha mais e eu mesma dou um jeito. Não adianta ele dizer
que Rachel está melhor; ela não está melhor: está pior.
Terence sofreu um choque terrível, como aquele quesentira quando Rachel dissera “Estou com dor de cabeça”.Acalmou-se,refletindo que Helen estava esgotada,e ficoufirme
nessa opinião pelo seu obstinado entendimento deque nessa discussão ela estava do lado oposto ao seu.
Você acha que ela corre perigo?- indagou.
Ninguém pode continuar tão doente dia após dia – respondeu.
Helen olhava para ele e falava como se estivesse indignada com alguém.
– Muito bem. Vou falar com Rodriguez esta tarde
– disse ele. Helen subiu as escadas imediatamente.
Nada podia abrandar a ansiedade de Terence. Nãoconseguia ler, nem sentar-se quieto, e sua sensação de segurança estava abalada, apesar de ter decidido que Helenexagerara
e que Rachel não estava muito doente. Masqueria que uma terceira pessoa continuasse sua crença.
Assim que Rodriguez desceu ele indagou:
– Bem, como está ela? Acha que está pior?
– Não há nenhum motivo para ansiedade, acredite...nenhum – respondeu Rodriguez no seu francês execrável, sorrindo inseguro, e fazendo o tempo todo pequenos movimentos
como se quisesse afastar-se.
Hewet postou-se firmemente entre ele e a porta.Estava decidido a verificar que tipo de homem era aquele. Sua confiança nele sumiu quando o contemplou e viu sua insignificância,
sua aparência suja, seu jeito evasivo, seu rosto peludo e pouco inteligente. Era estranho que nunca tivesse notado isso antes.
– Naturalmente não vai fazer objeção se pedirmos
que consulte outro médico? – perguntou.O homenzinho ficou abertamente ofendido.
Ah! – gritou. – Não tem confiança em mim? Temobjeção ao meu tratamento? Quer que eu desista do caso?
De jeito nenhum – respondeu Terence.– Mas numa doença grave como essa... Rodriguez deu de ombros.
Eu lhe asseguro que não é grave. O senhor está ansioso demais. A jovem não está gravemente doente, e eu sou médico. Naturalmente a senhora está apavorada... –disse
em tom desdenhoso. – Entendo isso perfeitamente.
– O nome e endereço do outro médico é...? – continuou Terence.
– Não há outro médico – respondeu Rodriguez carrancudo. – Todo mundo tem confiança em mim. Olhe! Vou lhe mostrar. Ele pegou do bolso um maço de velhas cartas e começou
a revirá-las como se procurasse uma que contestasse as suspeitas de Terence. Enquanto procurava começou a contar uma história sobre um lorde inglês que tinha confiado
nele... um grande lorde inglês, cujo nome infelizmente esquecera.
– Não há outro médico no lugar – concluiu ele, ainda revirando as cartas.
– Esqueça – disse Terence lacônico. – Eu mesmo vou investigar. Rodriguez colocou as cartas de volta no bolso e comentou:
– Muito bem. Não faço objeções.
Ele arqueou as sobrancelhas, deu de ombros como se repetisse que estavam levando aquela doença demasiado a sério, que não havia outro médico, e deslizou para fora
da sala deixando a impressão de que sabia que não confiavam nele e de estar cheio de rancor.
Depois disso Terence não pôde mais ficar no andartérreo. Subiu, bateu na porta de Rachel e perguntou aHelen se podia vê-la alguns minutos. Não a vira ontem.Ela não
objetou e foi sentar-se na mesa junto da janela.
Terence sentou-se ao lado da cama. O rosto de Rachel estava mudado. Parecia inteiramente concentrada no esforço de continuar viva. Seus lábios estavam repuxados,
as faces encovadas e vermelhas, mas não uma cor de saúde. Seus olhos não estavam inteiramente cerrados, a parte inferior do branco aparecendo, não como se estivesse
enxergando, mas como se apenas estivessem abertos por ela estar cansada demais para fechá-los. Quando ele a beijou,os olhos abriram-se totalmente. Mas ela apenas
viu uma velha cortando com uma faca a cabeça de um homem.
– Está caindo! – murmurou ela. Depois virou-se para Terence e perguntou, ansiosa, alguma coisa sobre um homem com mulas, que ele não conseguiu entender. – Por que
é que ele não vem? Por que ele não vem? – repetiu.Terence ficou consternado, pensando no homenzinho sujo lá embaixo cuidando de uma enfermidade daquelas,e instintivamente
virou-se para Helen, que estava lidando com uma mesa junto da janela e parecia não entender como ele estava chocado. Ele levantou-se para sair, pois não agüentava
mais escutar; seu coração batia rápida e dolorosamente com ira e infelicidade. Quando passou por Helen, ela lhe pediu na mesma voz triste, pouco natural e determinada,
que apanhasse mais gelo e mandasse encher de leite fresco o jarro diante da porta.Depois de atender a esses pedidos ele foi procurar Hirst. Exausto e com muito calor,
St. John adormecera numa cama, mas Terence o acordou sem escrúpulo.
– Helen acha que ela está pior – disse. – Não há dúvida de que está terrivelmente doente. Rodriguez não adianta nada. Temos de conseguir outro médico.
– Mas não há outro médico – disse Hirst sonolento, sentando-se e esfregando os olhos.
– Não seja idiota! – exclamou Terence. – Claro que háoutro médico, e se não houver você tem de achar um. Devia ter sido feito dias atrás. Vou descer para selar um
cavalo. –Ele não conseguia parar quieto em nenhum lugar.Em menos de dez minutos St.John estava indo a cava-lo para a cidade, no calor escaldante, para procurar um
médico, com ordens de encontrá-lo e trazê-lo para a casa,ainda que tivesse de ser num trem especial.
– Devíamos ter feito isso dias atrás – repetia Hewet,indignado.Quando voltou para a sala de estar, encontrou Mrs.Flushing parada muito ereta no meio da sala, vinda
da cozinha ou do jardim sem se anunciar, como as pessoas andavam fazendo naqueles dias.
– Ela está melhor? – perguntou Mrs. Flushing bruscamente. Nem tentaram dar-se as mãos.
– Não – disse Terence. – Se mudou, acham que foi para pior.Mrs. Flushing pareceu pensar por um momento ou dois, olhando direto para Terence o tempo todo.
– Escute – disse, falando em movimentos nervosos –, é sempre por volta do sétimo dia que se começa a ficar ansioso. Acho que o senhor andou aqui sentado sozinho
preocupando-se. Acha que ela está mal, mas qualquer pessoa entrando com olhar lúcido veria que está melhor.Mr. Elliot teve febre e está bem agora – disse ela num
ímpeto. – Não foi nada que ela apanhou na excursão. O que é isso, uns poucos dias de febre? Certa vez meu irmão teve 26 dias de febre. E numa semana estava de novo
caminhando. Só lhe dávamos leite e araruta...
Nisso Mrs. Chailey entrou com um recado.
– Está vendo... ela vai melhorar – disse Mrs. Flushingnum arranco quando ele saiu da sala. Sua ansiedade em persuadir Terence era enorme, e quando ele a deixou sem
dizernada, ficou aborrecida e inquieta; não gostava de ficar, masnão podia ir. Andava de sala em sala procurando alguém comquem conversar, mas todos os aposentos
estavam vazios.
Terence subiu as escadas, entrou no quarto para receber as ordens de Helen e olhou para Rachel, mas não tentou falar com ela. Parecia vagamente consciente da presença
dele, mas isso parecia perturbá-la, e ela virou-se de costas para ele.
Por seis dias estivera esquecida do mundo lá fora, porque era preciso toda a atenção para seguir as visões quentes, vermelhas e rápidas que passavam incessantementediante
de seus olhos. Sabia que era de enorme importânciaprestar atenção a essas visões e entender seu sentido, masestava sempre atrasada para ouvir ou ver algo que explicasse
aquilo tudo. Por isso, os rostos – o rosto de Helen, o daenfermeira, o de Terence e o do médico – que eventualmente se impunham muito próximos dela eram preocupantes,
porque distraíam sua atenção, e ela podia perder aresposta para tudo aquilo. Mas na quarta tarde de repente ela foi incapaz de distinguir o rosto de Helen das própriasvisões;
seus lábios abriram-se quando ela se inclinou sobrea cama e começou a balbuciar coisas ininteligíveis como oresto. Todas as visões ligavam-se a uma trama, uma aventura
qualquer, alguma escapada. A natureza do que estavam fazendo mudava incessantemente, embora houvesse sempre um motivo por trás, que ela desejaria muito entender.
Ora estavam entre árvores e selvagens, ora no mar; oraestavam no topo de altas torres; ora saltavam de lá; oravoavam. Mas assim que a crise estava por acontecer,
alguma coisa invariavelmente escapava no cérebro dela, demodo que todo o esforço tinha de recomeçar. O calor erasufocante. Por fim os rostos afastaram-se; ela caiu
num profundo poço de água viscosa, que depois fechou-se sobre sua cabeça. Nada via ou ouvia senão um tênue som pulsante, que era o som do mar rolando sobre sua cabeça.Seus
atormentadores a julgavam morta, mas não estavamorta, e sim enroscada no fundo do mar. Lá jazia, às vezesvendo a escuridão, às vezes luz, e de vez em quando alguém
a virava para o outro lado no fundo do mar.
Depois que St. John passara algumas horas sob o calor do sol lutando com nativos evasivos e muito falastrões, extraiu a informação de que havia um médico francês
que no momento estava em férias nas montanhas. Diziam que era praticamente impossível encontrá-lo. Com sua experiência do país St.John achou improvável que um telegrama
fosse mandado ou recebido; mas tendo reduzido a distância da cidadezinha da montanha, onde o outro estava hospedado, de 160 para 50 quilômetros, e tendo carrugem
e cavalos, partiu imediatamente para apanhar o médico. Conseguiu encontrá-lo e forçou o homem contrariado a deixar sua jovem esposa e voltar imediatamente. Chegaram
à villa na terça ao meio-dia.
Terence saiu para recebê-los, e St. John ficou chocado vendo que no intervalo o outro emagrecera visivelmente;estava pálido também; seus olhos pareciam estranhos.
Mas a fala lacônica e as maneiras dominadoras e fechadas do Dr. Lesage os impressionaram favoravelmente, embora fosse óbvio ao mesmo tempo que estava aborrecidíssimo
com tudo aquilo. Descendo as escadas ele deu suas instruções enfaticamente, mas não lhe ocorreu dar-lhes uma opinião, ou pela presença de Rodriguez, que era a um
tempo obsequioso e malicioso, ou porque estava certo de que já sabiam o que havia para saber.
– Claro – disse, dando de ombros quando Terence lhe perguntou se ela estava muito doente. Ambos experimentaram certa sensação de alívio quando o Dr. Lesage se foi,
deixando orientações explícitas e prometendo voltar em poucas horas; mas infelizmente a animaçãodeles os levou a falar mais do que de costume, e falando brigaram.
Brigaram por causa da estrada, a Portsmouth Road.St. John disse que era asfaltada onde passa por Hindhead, eTerence sabia tão bem quanto sabia seu próprio nome que
não era asfaltada naquele trecho. Durante a briga disseram um ao outro algumas coisas muito ásperas,e o resto do jantarocorreu em silêncio, rompido apenas por um
comentárioocasional meio abafado de Ridley.
Quando escureceu e os lampiões foram trazidos, Terencesentia-se incapaz de controlar mais tempo sua irritação. St.John foi para a cama numa exaustão completa, dandoboa-noite
a Terence de um modo mais afetuoso do que o costumeiro por causa da briga, e Ridley retirou-se comseus livros. Sozinho, Terence ficou caminhando peloquarto e parou
diante da janela aberta.
As luzes acendiam-se uma depois da outra na cidade lá embaixo; estava muito pacífico e fresco no jardim, de modo que ele desceu para o terraço. Parado ali na escuridão,
podendo ver apenas as formas das árvores na fina luz cinzenta, ele foi dominado por um desejo de escapar dali, de acabar com aquele sofrimento, de esquecer que Rachel
estava doente. Permitiu-se esquecer tudo aquilo. Como se um vento que tivesse soprado forte o tempo todo cessasse de repente, a ansiedade, a tensão e a aflição que
o tinham pressionado passaram.Parecia plantado num espaço de ar puro,numa ilhazinha, sozinho; estava livre e imune à dor. Não importava se Rachel estava bem ou doente;
não importava se estavam separados ou juntos; nada importava... nada importava. As ondas batiam na praia longe dali, e o vento leve passava pelo ramos das árvores,
parecendo rodeálo de paz e segurança, com trevas e nada. Certamente o mundo de discórdia, aflição e ansiedade não era o mundo real, mas aquele sim, o mundo abaixo
do mundo superficial, de forma que, acontecesse o que acontecesse, estava-se seguro. A quietude e a paz pareciam enrolar seu corpo num lençol fino e frio, acalmando
todos os nervos; sua mente pareceu mais uma vez expandirse e voltar ao natural.
Mas depois de ficar assim algum tempo, um ruído dentro da casa o despertou; virou-se instintivamente e entrou na sala. A visão do aposento iluminado por lampiões
trouxe de volta abruptamente tudo o que ele esquecera, e ficou parado por um instante, incapaz de se mexer. Lembrou tudo, a hora, até o minuto, o ponto a que tinham
chegado, e o que estava por vir. Amaldiçoou-se por fazer de conta por um minuto que as coisas eram diferentes do que eram. Agora era mais difícil do que nunca enfrentar
a noite.
Incapaz de ficar na sala vazia, saiu e sentou-se nasescadas a meio caminho do quarto de Rachel. Ansiavapor alguém com quem falar, mas Hirst estava dormindoe Ridley
também; não havia ruído no quarto de Rachel.O único rumor na casa era Chailey mexendo-se na cozinha. Por fim houve um farfalhar nas escadas mais acima, e a enfermeira
McInnis desceu soltando as abotoaduras de seus punhos, preparando-se para a vigília danoite. Terence ergueu-se e a fez parar. Quase não falaracom ela, mas era possível
que lhe confirmasse a crença,que ainda persistia na mente dele, de que Rachel nãoestivesse gravemente enferma. Ele lhe disse num sussurro que o Dr. Lesage estivera
ali e o que dissera.
– Então, enfermeira – sussurrou –, por favor diga-me sua opinião. Acha que ela está muito doente? E corre al-gum perigo?
– O doutor disse... – começou ela.
– Sim, mas eu quero sua opinião. A senhora tem experiência em muitos casos como esse?
– Mr. Hewet, eu não poderia lhe dizer mais do que o Dr. Lesage – respondeu ela cautelosamente, como se suaspalavras pudessem ser usadas contra ela. – O caso é sério,mas
pode ter certeza de que estamos fazendo tudo o quepodemos por Miss Vinrace. – Ela falava com uma certa auto-aprovação profissional. Mas talvez percebesse que nãoestava
satisfazendo o rapaz, que ainda bloqueava seu caminho, pois moveu-se um pouco mais para cima na escada eolhou pela janela, de onde podiam ver a lua sobre o mar.
– Se o senhor me perguntar – começou ela num estranho tom furtivo –, eu nunca gosto do mês de maio para os meus pacientes.
– Maio? – repetiu Terence.
– Pode ser fantasia minha, mas não gosto de ver ninguém adoecer em maio – continuou ela. – As coisas parecem dar errado em maio. Talvez seja a lua. Dizem que a lua
afeta o cérebro, não dizem, senhor?
Ele fitava-a mas não podia responder. Como todos os outros, quando se olhava para ela, ela parecia encolher-se e tornar-se insignificante, maliciosa e não confiável.
Ela esgueirou-se do lado dele e desapareceu.
Embora tivesse ido para seu quarto, ele não conseguiu nem tirar as roupas. Por longo tempo caminhou de um lado a outro, e depois, inclinando-se para fora da janela,fitou
a terra que jazia tão escura diante do azul mais pálido do céu. Com um misto de medo e ódio, olhou os esguios ciprestes negros ainda visíveis no jardim e escutou
os estalidos e chiados conhecidos que mostram que a terra estava quente. Todas essas visões e ruídos pareciam sinistros, hostis e agourentos; os nativos, a enfermeira,
o médico e a terrível força da própria doença pareciam estar conspirando contra ele. Pareciam unir-se no esforço de extrair a maior quantidade de sofrimento possível
dele.Terence não conseguia acostumar-se com a dor, era uma revelação para ele. Nunca entendera antes que por trás de toda ação, por trás da vida de todo dia, existe
a dor, quieta mas disposta a devorar; ele parecia capaz de ver o sofrimento como uma fogueira subindo em espirais sobre a borda de toda ação, devorando as vidas
de homens e mulheres. Pela primeira vez pensou com compreensão em palavras que antes tinham lhe parecido vazias; a luta pela vida; a dureza da vida. Agora sabia
pessoalmente que a vida é dura e cheia de sofrimento. Olhou as luzes espalhadas da cidade lá embaixo e pensou em Arthur e Susan,ou em Evelyn e Perrott aventurando-se
inadvertidamente,expondo-se,pela sua felicidade,a um sofrimento como aquele. Como se atreviam a amar-se, ficou imaginando.Como se atrevera ele próprio a viver como
tinha vivido,rapidamente e sem preocupação, passando de uma coisa a outra, amando Rachel como amara? Nunca mais se senti-ria seguro; nunca mais acreditaria na estabilidade
da vida,nem esqueceria que profundezas de dor jaziam debaixo da pequena felicidade e das sensações de contentamento e segurança. Parecia-lhe, quando recordava, que
sua felicidade nunca fora tão grande quanto era agora sua dor.Sempre houvera algo imperfeito na felicidade deles, algo que desejavam sem conseguir. Fora fragmentária
e incompleta porque eram tão jovens e não sabiam o que estavam fazendo.
A luz da sua vela bruxuleou sobre os ramos de uma árvore diante da janela e, quando o ramo balançou na escuridão, apareceu na mente dele a imagem de todo o mundoque
jazia fora da janela; pensou no imenso rio e na imensafloresta, nas vastas porções de terra seca e planuras de marque circundavam a terra; do mar o céu erguia-se
íngreme eenorme, e o ar inundava o espaço entre céu e mar. Como devia ser vasta e escura essa noite exposta ao vento; e em todo esse imenso espaço era estranho pensar
como erampoucas as cidades, e como eram pequenos os anéis de luz, ou vaga-lumes que imaginava espalhados aqui e ali, entreas pregas ondulantes e incultas da terra.
E nessas cidadeshavia homenzinhos e mulherezinhas, minúsculos. Ah, era absurdo, pensando nisso, sentar-se ali num quartinho, sofrendo e preocupando-se.O que importava
qualquer coisa? Rachel, uma criatura minúscula, deitada doente ali, abaixo dele, e ali no seu quartinho ele sofrendo por conta dela. Aproximidade e a pequenez de
seus corpos nesse vasto universo pareciam-lhe absurdas e ridículas. Nada importa, repetiu ele; não tinham poder nem esperança. Ele debruçouse no peitoril da janela
pensando, até quase esquecer o tempo e o lugar. Mesmo assim, embora estivesse convencido de que era absurdo e ridículo, de que eram pequenos e sem esperança, nunca
perdeu a sensação de que de alguma forma esses pensamentos eram parte de uma vida que ele e Rachel viveram juntos.
Talvez devido à mudança de médico, Rachel pareceu estar bastante melhor no dia seguinte. Embora Helen parecesse terrivelmente pálida e consumida, a nuvem que estivera
pairando todos aqueles dias sobre os olhos dela parecia erguer-se um pouco.
– Ela falou comigo – disse voluntariamente. – Perguntou que dia da semana era, e estava natural.
Depois, de repente, sem nenhum aviso ou razão aparente, as lágrimas vieram aos seus olhos e rolaram pelas suas faces. Ela chorava quase sem alteração nas feições,sem
tentar interromper-se, como se não soubesse que chorava. Apesar do alívio que as palavras dela lhe davam, Terence ficou consternado com a visão; então tudo cedera?
Não havia limites para o poder dessa enfermidade? Tudo iria ruir diante dela? Helen sempre lhe parecera forte e decidida, e agora parecia uma criança. Ele a pegou
nos braços e ela se agarrou a ele como uma criança, chorando quieta e mansamente sobre seu ombro. Depois controlou-se e enxugou as lágrimas;era uma bobagem portar-se
daquele jeito,disse.Muita bobagem, repetiu, quando não podia haver dúvidas de que Rachel estava melhor. Pediu a Terence que perdoasse sua tolice. Parou na porta,
voltou e beijou-o sem dizer nada.
Nesse dia realmente Rachel estava consciente do quese passava ao seu redor. Chegara à superfície daquelepoço escuro e visguento, e uma onda parecia balançá-lapara
cima e para baixo; ela cessara de ter qualquer vontade própria; deitava-se na crista da onda consciente dealguma dor, mas principalmente de fraqueza. A onda erasubstituída
por uma encosta de montanha. Seu corpotornou-se um floco de neve derretendo, sobre o qual seusjoelhos se erguiam em imensas montanhas nuas de ossosexpostos.Era verdade
que via Helen e via seu quarto,mastudo estava muito pálido e semitransparente. Às vezespodia ver através da parede a sua frente.Às vezes,quandoHelen saía, parecia
ir tão longe que os olhos de Rachelquase não a podiam seguir. O quarto também tinha umesquisito dom de expandir-se e, embora empurrasse suavoz o mais longe possível,
às vezes ela se tornava um pássaro e fugia, não sabia se jamais atingiria a pessoa comquem estava falando. Havia imensos intervalos ou lacunas,pois as coisas ainda
tinham poder de aparecer visíveisna sua frente, entre um momento e outro; às vezes levava uma hora para Helen erguer o braço, parando demoradamente entre cada movimento
brusco, e despejar remédio. O vulto de Helen inclinando-se para soerguê-la nacama parecia gigantesco, e baixava sobre ela como umteto que caía. Mas por um longo
espaço de tempo elaapenas ficava deitada consciente de seu corpo flutuandopor cima da cama, e sua mente recolhida num canto remoto do corpo, ou escapando e esvoaçando
pelo quarto.Todas as visões eram um esforço, mas a de Terence era o maior de todos, porque forçava Rachel a reunir mente ecorpo no desejo de recordar alguma coisa.
Não querialembrar; ficava perturbada quando as pessoas tentavaminterferir na sua solidão que ria estar sozinha. Não querianada mais no mundo.
Embora ela tivesse chorado, Terence observou queHelen tinha mais esperança, e sentiu algo parecido comtriunfo; na discordância entre eles, Helen dera o primeiro
sinal de que admitia estar errada. Ele esperou que oDr. Lesage descesse naquela tarde com considerável ansiedade, mas com a mesma certeza no fundo da mente de que
logo os forçaria todos a ver que estavam errados.
Como sempre, o Dr. Lesage era severo e muito lacônico em suas respostas. Diante da pergunta de Terence, “Ela parece melhor?” ele respondeu, olhando-o de um jeito
peculiar:
– Ela tem uma chance de viver.
A porta fechou-se e Terence caminhou até a janela.Encostou a testa na vidraça.
– Rachel – repetia para si mesmo. – Ela tem uma chance de viver. Rachel.
Como podiam ser ditas essas coisas de Rachel? Alguém ontem seriamente acreditara que Rachel estivesse morrendo? Estavam noivos há quatro semanas.Há 15 dias ela estava
perfeitamente bem. O que poderiam ter feito 15 dias para a levarem daquele estado aeste? Estava acima da capacidade dele entender o quequeriam dizer comentando que
ela tinha uma chance deviver, sabendo, como ele sabia, que estavam noivos.Virou-se, ainda envolvido na mesma névoa triste, e caminhou para a porta. De repente, ele
viu tudo. Viu oquarto, o jardim e as árvores movendo-se no ar, que podiam continuar sem ela; ela podia morrer. Pela primeiravez desde que ela adoecera, recordou
exatamente comoela se parecia e como gostavam um do outro. A intensafelicidade de senti-la perto misturava-se com uma ansiedade mais intensa do que a que já sentira.
Não podiadeixá-la morrer; não podia viver sem ela. Mas depois deuma luta momentânea, a cortina caiu de novo, e ele não via nem sentia nada claramente. Tudo continuava,
continuava ainda, do mesmo modo que antes. Exceto poruma dor física quando seu coração pulsava e pelo fato deque seus dedos estavam gelados, ele não percebia queestava
ansioso. Dentro de sua mente, parecia não sentirnada por Rachel ou qualquer outra pessoa ou coisa nomundo. Prosseguia dando ordens, combinando coisascom Mrs. Chailey,
escrevendo listas; de vez em quandosubia as escadas e sem ruído botava algo na mesa dianteda porta de Rachel. Naquela noite o Dr. Lesage pareciamenos severo do que
habitualmente. Voluntariamenteficou alguns minutos e, dirigindo-se a St. John e Terence igualmente, como se não recordasse qual dos dois eranoivo da moça, disse:
– Acho que esta noite o estado dela é muito grave.
Nenhum deles foi para a cama ou sugeriu que o outro fosse. Sentaram-se na sala montando guarda com a porta aberta. St. John arrumou uma cama no sofá, e quando estava
pronta insistiu com Terence para que se deitasse ali. Começaram a discutir a respeito de quem devia deitar-se no sofá ou sobre algumas cadeiras cobertas com mantas.
St. John finalmente persuadiu Terence a deitar-se no sofá.
– Não seja idiota, Terence. Se não dormir, você apenas vai ficar doente. Meu velho... – St. John começou e parou abruptamente, receando ser sentimental. Sentia que
estava à beira das lágrimas.
Começou a dizer o que estava querendo dizer há muitotempo,que tinha pena de Terence,que gostava dele,que gostava de Rachel. Ela saberia o quanto gostava dela? Disseraalguma
coisa, quem sabe perguntara? Ele estava muito ansioso por dizer isso, mas conteve-se pensando que afinal eraegoísmo; de que adiantava aborrecer Terence fazendo-o
falarnessas coisas? Ele já estava meio adormecido, mas St. Johnnão conseguiu dormir. Pensou, deitado no escuro, se ao me-nos alguma coisa acontecesse, se ao menos
essa tensão acabasse.Não se importava com o que acontecesse,desde que sedesfizesse a sucessão daqueles dias difíceis e tristes; não se importaria se ela morresse.
Sentia-se desleal por não se importar, mas parecia não ter mais sentimentos.
Toda a noite não houve chamado ou movimento, exceto o abrir e fechar da porta do quarto de dormir lá em cima uma vez. Aos poucos a luz voltou ao aposento desarrumado.
Às seis os criados começaram a mexer-se; às sete todos arrastaram-se para a cozinha lá embaixo; e meia hora depois, o dia recomeçou mais uma vez.
Mesmo assim não era igual aos dias que tinham passado antes, embora fosse difícil dizer em que consistia a diferença. Talvez parecessem estar todos esperando alguma
coisa. Havia certamente menos coisas a fazer do que de costume. Pessoas passavam pela sala – Mr. Flushing,Mr.e Mrs.Thornbury.Falavam em tom baixo como quem se desculpa,
recusavam sentar-se e ficavam de pé um tempo considerável, embora só pudessem dizer, “Há alguma coisa que se possa fazer?”, e não havia nada.
Sentindo-se estranham ente desligado de tudo aquilo,Terence recordou que Helen lhe dissera que, não importa
o que aconteça com a gente, é assim que as pessoas se portam. Estaria certa ou errada? Ele estava pouco interessado em saber. Punha as coisas de lado em sua mente,
como se outro dia fosse pensar nelas, não agora. A névoa da irrealidade ficava mais e mais densa, e por fim produziu uma sensação de embotamento em todo o seu corpo.Era
o seu corpo? E aquelas eram realmente suas mãos?
Naquela manhã também pela primeira vez Ridleyachou impossível sentar-se sozinho em seu quarto. Estavamuito desconfortável no térreo, e como não soubesse o queestava
acontecendo, estava o tempo todo estorvando. Masnão queria sair da sala. Inquieto demais para ler e semnada a fazer, começou a caminhar pela sala recitando poesia
num tom baixo. Ocupando-se de vários modos, oradesfazendo embrulhos, ora desarrolhando garrafas, ora escrevendo ordens, o som da canção de Ridley e a batida doseu
passo entravam na mente de Terence e de St. John na manhã toda como um estribilho mal compreendido.
Lutaram erguendo-se e lutaram abaixando-se,
Lutaram enfurecidos e quietos:
O demônio que cega os olhos dos homens,
Nessa noite fez sua vontade.
Como cervos exauridos, entre as ervas,
Tombaram algum tempo para repousar...
Ah, é insuportável! – exclamou Hirst, e depois controlou-se como se tivesse rompido um acordo. Terence arrastava-se escada acima repetidamente para ver se conseguia
notícias de Rachel, mas as únicas notícias eram muito fragmentárias; ela bebera alguma coisa; ela dormira um pouco; pareciamais calma. Da mesma maneira o Dr. Lesage
apegava-se apormenores,exceto uma vez,quando deu espontaneamente ainformação de que acabara de ser chamado para certificar,cortando uma veia no pulso, que uma velha
senhora de 85 anos estava morta.Tinha pavor de ser enterrada viva.
É um pavor – comentou ele – que geralmente vemos nos muito velhos e raramente nos jovens. – Ambos expressaram interesse pelo que estava contando; parecia-lhes muito
estranho. Outra coisa estranha naquele dia foi que todosesqueceram o almoço até bem tarde; então Mrs. Chailey osserviu, e também parecia estranha porque usava um
vestido estampado engomado, e suas mangas estavam enroladas atéacima dos cotovelos. Parecia porém tão esquecida de sua aparência como se tivesse sido acordada por
um alarme deincêndio à meia-noite, esquecendo sua reserva e compostura; falava com eles em tom bastante familiar, como se tivesse sido sua babá e os tivesse segurado
nus no colo. Ela lhesassegurou várias vezes que precisavam comer.
A tarde assim encurtada passou mais depressa do que esperavam. Uma vez Mrs. Flushing abriu a porta, masvendo-os fechou-a depressa; outra vez Helen desceupara apanhar
alguma coisa, mas parou quando deixou o quarto para ver uma carta que lhe fora endereçada. Paroupor um momento revirando-a, e a extraordinária e tristebeleza de
sua postura chocou Terence do modo como ascoisas o chocavam agora: como se algo tivesse de serposto de lado em sua mente, para ser pensado depois.Quase não falavam,
a discordância entre eles pareciasuspensa ou esquecida.
Agora que o sol da tarde deixara a fachada da casa,Ridley caminhava pelo terraço repetindo estrofes de um longo poema, numa voz contida mas subitamente sonora. Fragmentos
do poema entravam pela janela aberta sempre que ele passava.
Peor and Baalim
Forsake their Temples dim,
With that twice batter’d God of Palestine
And mooned Astaroth...
O som dessas palavras era estranhamente incômodo para os dois rapazes, mas tinham de suportá-la. Quando o anoitecer começou e a luz vermelha do crepúsculo rebrilhava
longe no mar, a mesma sensação de desesperoatacou Terence e St. John quando pensaram que o diaquase acabara e estava por vir outra noite. Uma luzacendendo-se depois
da outra na cidade lá embaixo produziu em Hirst uma repetição do seu terrível e repulsivodesejo de ter um colapso e soluçar. Então Chailey trouxelampiões. Explicou
que Maria, abrindo uma garrafa, foratão tola que cortara seu braço seriamente, mas que elapusera uma atadura; era ruim quando havia tanto trabalho a fazer. A própria
Chailey estava mancando por causa do reumatismo nos pés, mas parecia-lhe perda detempo dar atenção à carne indisciplinada de criados. Anoite avançava. O Dr. Lesage
chegou inesperadamente eficou lá em cima muito tempo. Desceu uma vez e bebeuuma xícara de café.
– Ela está muito doente – respondeu à pergunta de Ridley. A essa altura não parecia mais aborrecido, estava grave e formal, mas ao mesmo tempo cheio de consideração,
o que não tinha antes. Subiu outra vez. Os três homens sentaram-se juntos na sala de estar. Ridley agora estava bem quieto, e sua atenção parecia despertada.Exceto
por pequenos movimentos meio involuntários e exclamações logo controladas, estavam à espera, em silêncio absoluto. Era como se finalmente estivessem reunidos face
a face com algo definitivo.
Eram quase onze horas quando o Dr. Lesage apareceu na sala. Aproximou-se deles muito devagar e não falou logo.Primeiro olhou para Terence, e disse:
– Mr. Hewet, acho que agora o senhor deve subir.
Terence levantou-se imediatamente, deixando os demais sentados com o Dr. Lesage parado entre ambos, imóvel.
Chailey estava no corredor repetindo sem parar: – É uma maldade, é uma maldade...
Terence não lhe deu atenção; ouvia o que ela estava dizendo, mas não tinha sentido em sua mente. Subindo as escadas dizia para si mesmo:
– Isso não aconteceu comigo. Não é possível que isso tenha me acontecido.
Olhou curiosamente sua própria mão no corrimão. As escadas eram muito íngremes, e pareceu levar longo tempopara vencê-las. Em vez de sentir pungentemente como de-via.
Não sentia nada. Abrindo a porta, viu Helen sentada aolado da cama. Havia luzes veladas na mesa, e o quarto, embora parecesse cheio de muitíssimas coisas, estava
muitoarrumado. Havia um cheiro leve e não desagradável de desinfetantes. Helen ergueu-se e deu-lhe sua cadeira em silêncio. Quando passaram um pelo outro, seus olhos
encontraram-se num olhar peculiar, e ele espantou-se com a extraordinária clareza dos olhos dela, e a profunda calma etristeza que vinham deles. Terence sentou-se
ao lado dacama e um momento depois ouviu a porta fechar-se suavemente às suas costas. Estava sozinho com Rachel, e um leve reflexo do sentimento de alívio que costumavam
sentirquando ficavam juntos sozinhos apoderou-se dele. Olhoupara Rachel. Esperava ver nela alguma terrível mudança,mas não havia nenhuma.
Parecia muito magra, até onde ele podia ver muito cansada, mas era a mesma que sempre fora. Mais que isso,ela o via e o conhecia. Sorriu para ele e disse:
-Olá, Terence.
A cortina que fora baixada tanto tempo entre eles desapareceu imediatamente.
– Então, Rachel – respondeu ele na sua voz de sempre, e ela abriu bem os olhos e sorriu com seu sorriso conhecido. Ele a beijou e pegou sua mão.
– Tem sido tudo um terror sem você – disse ele.
Ela ainda o contemplava e sorria, mas logo uma leve expressão de fadiga ou perplexidade apareceu nos seus olhos, e ela os fechou de novo.
– Mas quando estamos juntos, somos perfeitamente felizes – disse ele, ainda segurando a mão dela.
Com a luz fraca era impossível detectar qualquer mudança no rosto de Rachel. Uma imensa sensação de pazdominou Terence,de modo que não queria mexer-se nemfalar.
A terrível tortura e irrealidade dos últimos dias tinham passado, e ele agora estava numa perfeita paz e certeza. Sua mente começou a trabalhar naturalmente de novo
e com grande leveza.Quanto mais ficava ali sentado,mais profundamente consciente estava da paz que invadiacada canto de sua alma. Uma vez susteve a respiração eescutou
atentamente; ela ainda respirava. Ele continuoualgum tempo pensando; pareciam estar pensando juntos;ele parecia ser Rachel e ele próprio; depois escutou denovo;
não, ela deixara de respirar. Tanto melhor – aquiloera a morte. Não era nada; era deixar de respirar. Era felicidade, era felicidade perfeita. Agora tinham o que
sempre quiseram ter, a união que fora impossível enquantoestavam vivos. Inconsciente de estar pensando ou pronunciando alto as palavras, ele disse:
– Nunca houve duas pessoas tão felizes como nós fomos. Ninguém amou como nós amamos.
Pareceu-lhe que sua completa união e felicidadeenchiam o quarto com círculos que se ampliavam cadavez mais. Ele não tinha nenhum desejo não realizadono mundo. Ambos
possuíam o que não lhes poderiaser tirado.
Ele não percebeu que alguém tinha entrado no quarto, mas sentiu, momentos ou horas depois, um braçoatrás dele.
Os braços estavam ao seu redor. Não queria ter braços ao seu redor, e as misteriosas vozes sussurrantes o incomodavam. Largou sobre a colcha a mão de Rachel, agora
fria, levantou-se de sua cadeira e foi até a janela. As janelas não tinham cortinas, e mostravam a lua e uma longa trilha prateada na superfície das ondas.
– Ora – disse ele no seu tom de voz normal –, olhem a lua. Há uma auréola ao redor da lua. Amanhã vai chover.
Os braços, fossem de homem ou mulher, estavam novamente ao redor dele; e o empurravam levemente paraa porta. Virou-se, caminhou firmemente à frente dosbraços, consciente
de que se divertia um pouquinho coma forma como as pessoas se portavam apenas porque alguém tinha morrido. Ele iria, se queriam isso, mas nadaque fizessem poderia
perturbar a sua felicidade.
Quando viu o corredor diante do quarto, e a mesa com as xícaras e os pratos, de repente entendeu que havia um mundo no qual nunca mais veria Rachel.
– Rachel! Rachel! – gritou ele, tentando empurrálas e voltar para ela. Mas impediram-no e empurraram-no pelo corredor, para um quarto longe dela. Noandar de baixo
puderam ouvir as batidas de seus pés no chão, enquanto lutava por libertar-se; duas vezes ouviram-no gritar:
– Rachel, Rachel!
26
Por mais duas ou três horas a lua despejou sua luz no arvazio. Sem nuvens que a impedissem, caía diretamente ejazia quase como geada sobre o mar e a terra. Durante
essashoras o silêncio não foi rompido, e o único movimento eracausado pelas árvores e ramos que se mexiam de leve, e depois as sombras jazendo sobre os espaços brancos
de terra também se mexeram. Nesse profundo silêncio apenas seouvia um som, o som de uma respiração leve mas contínua,que nunca cessava, embora nunca aumentasse nem
diminuísse. E continuou depois que os pássaros começaram avoar de ramo em ramo; podia ser ouvido atrás das primeiras notas agudas de suas vozes. E continuou todas
as horas,quando o Leste clareou, quando ficou vermelho e quandoum azul tênue tingiu o céu, mas quando o sol se levantouele cessou, dando lugar a outros sons.
Os primeiros que se ouviram foram gritos inarticulados, parecendo gritos de filhos dos muito pobres, gente que estava muito fraca ou sofrendo. Mas quando o sol subiu
acima do horizonte, o ar que estivera fino e pálido ficou cada vez mais rico e quente, e os sons da vida tornaram-se mais fortes, ousados e imperiosos. Aos poucos
a fumaça começou a subir em ondas sobre as casas, adensando-se lentamente até ficarem redondas e retas como colunas, e em vez de bater em cortinas pálidas e brancas,
o sol bateu em janelas escuras, atrás das quais havia profundidade e espaço.
O sol subira há muitas horas, e a grande cúpula de ar estava aquecida e cintilando com os finos fios dourados do sol, antes que qualquer pessoa se movesse no hotel.
O hotel postava-se, branco e maciço, na luz da manhã, meio adormecido com as persianas baixadas.
Por volta das nove e meia Miss Allan entrou no saguão e muito devagar caminhou até a mesa onde estavam os jornaisda manhã, mas não estendeu a mão para apanhar nenhum;ficou
parada quieta, pensando, com sua cabeça um poucoinclinada sobre os ombros. Parecia curiosamente velha, e pelo seu jeito, um pouco encolhida e muito sólida, podia-sever
como seria quando fosse realmente velha, como se sentaria dia após dia em sua cadeira olhando em frente placidamente. Outras pessoas começaram a entrar no saguão
e apassar por ela,mas ela não falou com ninguém nem as olhou;finalmente,como se fosse preciso dizer alguma coisa,sentouse numa cadeira e olhou quieta e fixamente
em frente.Sentia-se muito velha essa manhã, e também inútil, como se sua vida tivesse sido um fracasso, dura e trabalhosa, sem motivo algum. Não queria continuar
vivendo, mas sabia quecontinuaria viva. Era tão forte que ficaria muito velha.Provavelmente chegaria aos 80, e ainda tinha 50; portantotinha mais 30 anos para viver.
Revirou as mãos no colo econtemplou-as com interesse, suas velhas mãos, que tinhamtrabalhado tanto por ela. Não parecia haver muito sentidoem tudo aquilo; a gente
continuava, claro, a gente continuava... Ergueu os olhos e viu Mrs, Thornbury parada ao seulado com linhas na testa e lábios abertos como se fosse fazer uma pergunta.
Miss Allan antecipou-se:
– Sim. Ela morreu esta manhã bem cedo, por volta das três. Mrs. Thornbury deu uma pequena exclamação, apertou os lábios, e as lágrimas vieram aos seus olhos. Através
deles olhou o saguão, que agora estava cheio de grandes faixas de sol, grupos despreocupados de pessoas paradas ao lado das sólidas cadeiras e mesas. Pareciam-lhe
irreais, ou pessoas inconscientes de que vai acontecer uma grande explosão ao seu lado. Mas não houve explosão e continuaram paradas perto das cadeiras e mesas.
Mrs. Thornbury já não as via, mas, atravessando-as como se não tivessem substância, via a casa, as pessoas na casa, o quarto, a cama no quarto e a figura da morta
deitada inerte no escuro debaixo dos lençóis. Quase podia ver a morta. Quase podia escutar as vozes dos enlutados,
– Eles estavam esperando isso? – perguntou afinal.Miss Allan apenas pôde sacudir a cabeça.
– Não sei de nada – respondeu –, exceto o que a criadade Mrs. Flushing me contou. Ela morreu esta madrugada.
As duas mulheres entreolharam-se com um olhar calmo e significativo; sentindo-se estranhamente atordoada, eprocurando não sabia bem o quê, Mrs. Thornbury subiu asescadas
lentamente e caminhou em silêncio pelos corredores, tocando a parede com os dedos como se precisasse guiar-se. Camareiras passavam bruscas de quarto em quarto, mas
Mrs. Thornbury as evitou; quase nem as via; pareciam pertencer a outro mundo. Ela nem ergueu os olhosquando Evelyn a interpelou. Era evidente que Evelyn andara chorando
e, quando olhou para Mrs. Thornbury, começou a chorar de novo. Juntas meteram-se num nicho de janela e ficaram em silêncio. Finalmente formaram-se palavras fragmentadas
entre os soluços de Evelyn:
– Foi uma coisa tão perversa – soluçava ela –, tão
cruel... eles estavam tão felizes. Mrs. Thornbury dava-lhe palmadinhas no ombro.
– Parece duro... muito duro – disse ela, parando e olhando além da colina, para a villa dos Ambrose; as janelas estavam faiscando ao sol, e ela pensou em como a
alma damorta teria passado por aquelas janelas. Alguma coisa deixara o mundo. Parecia-lhe tão estranhamente vazio.
– Mas ainda assim, quanto mais velha se fica – continuou ela, os olhos recuperando mais do que seu brilho habitual –, mais certa se está de que há um motivo. Como
se poderia continuar, se não houvesse um motivo? Perguntava a alguém que não era Evelyn, cujos soluços estavam se acalmando.
– Tem de haver um motivo – disse ela. – Não pode ser tudo só um acidente. Pois foi um acidente... isso não precisava ter acontecido, nunca.
Mrs. Thornbury deu um suspiro profundo.
– Mas não devemos pensar assim – acrescentou –, vamos esperar que eles também não pensem assim. Não importa o que tivessem feito, acabaria assim. Essas doenças horríveis...
– Não há motivo... não acredito que haja motivo al-gum! – irrompeu Evelyn, baixando a persiana e deixando-a voltar com um pequeno salto.
– Por que essas coisas acontecem? Por que as pessoasdevem sofrer? Eu acredito sinceramente – continuou ela, baixando um pouco a voz – que Rachel está no céu, masTerence...
De que adianta tudo isso? – perguntou depois.Mrs. Thornbury sacudiu a cabeça um pouco, mas não respondeu, e apertando a mão de Evelyn seguiu pelocorredor. Impelida
por um forte desejo de escutar alguma coisa, embora não soubesse exatamente o que haviapara ouvir, ela ia para o quarto dos Flushing. Quandoabriu a porta deles,
sentiu que interrompera alguma discussão entre marido e mulher. Mrs. Flushing estava sentada de costas para a claridade, e Mr. Flushing estavaparado perto dela discutindo
e tentando persuadi-lade alguma coisa.
– Ah, aqui está Mrs. Thornbury – começou ele com algum alívio na voz. – Naturalmente a senhora já ouviu. Minha mulher sente-se responsável de alguma forma. Insistiu
com a pobre Miss Vinrace para que fosse à excursão. Tenho certeza de que vai concordar comigo que é muito irracional sentir isso. Nós nem sabemos... na verdade acho
muito improvável... que ela tenha apanhado lá sua enfermidade. Essas doenças... além disso, estava decidida a ir. Teria ido quer você pedisse quer não, Alice...
Não diga isso, Wilfrid – disse Mrs. Flushing, sem se mexer nem tirar os olhos do ponto no assoalho onde estavam pousados. – De que adianta falar? De que adianta...?
– ela calou-se.
Eu vinha perguntar – disse Mrs.Thornbury dirigindo-se a Wilfrid, pois não adiantava falar com sua mulher.
Há alguma coisa que o senhor acha que se poderia fazer? O pai dela chegou? Alguém poderia ir ver?
Naquele momento o desejo mais intenso dela era sercapaz ele fazer alguma coisa por aquelas pessoas infelizes – vê-las, tranqüilizá-las –, ajudá-las. Era horrível
estar tão longe delas. Mas Mr. Flushing sacudiu a cabeça;achava que agora não – mais tarde talvez alguém pudesse ajudar. Nisso Mrs. Flushing levantou-se rígida,
voltouas costas para eles e caminhou para o quarto de vestir.Enquanto caminhava podiam ver o peito dela erguendo-se e abaixando-se lentamente. Mas a sua dor era
silenciosa. Ela fechou a porta atrás de si.
Sozinha ela cerrou os punhos e começou a bater com eles no encosto de uma cadeira. Parecia um animal ferido. Odiava a morte; estava furiosa, indignada,ofendida com
a morte, como se ela fosse uma criatura viva. Recusava-se a entregar seus amigos à morte. Não se submeteria às trevas e ao nada. Começou a caminhar de um lado para
outro, punhos cerrados, sem tentar reter as lágrimas rápidas que corriam pelas suas faces.Sentou-se quieta por fim, mas não se conformava.Quando parou de chorar,
parecia obstinada e forte.
No quarto ao lado, enquanto isso, Wilfrid falava com Mrs.Thornbury com mais liberdade agora que sua esposa não estava ali.
– Isso é o pior nesses lugares – disse ele. – As pessoas se portam como se estivessem na Inglaterra, e não estão. Não duvido de que Miss Vinrace apanhou essa infecção
na própria villa. Provavelmente se expunha a muitos riscos que podiam ter-lhe passado essa doença.É absurdo dizer que ficou doente conosco.Se ele não estivesse sinceramente
triste por causa deles, estaria ofendido.
– Pepper me contou – prosseguiu – que saiu da casa porque os achava desleixados. Disse que nunca lavavam direito seus legumes. Pobre gente! É um preço terrível a
pagar. Mas é só o que vejo aqui, toda hora, toda hora... as pessoas parecem esquecer que essas coisas acontecem, e quando acontece, ficam surpresas.
Mrs. Thornbury concordou com ele que tinham sido muito pouco cuidadosos e que não havia motivo para pensar que a moça apanhara a febre na excursão;depois de falar
sobre outras coisas por algum tempo,ela o deixou e continuou tristemente pelo corredor até seu próprio quarto. Devia haver algum motivo para que essas coisas acontecessem,
pensou ao fechar a porta. Só que no começo não era fácil entender o que era.Parecia tão esquisito – tão inacreditável. Ora, há apenas três semanas – há apenas quinze
dias vira Rachel;quando fechava os olhos podia quase vê-la agora, a mocinha quieta e tímida que ia se casar. Pensou em tudo o que teria perdido se tivesse morrido
com a idade de Rachel, os filhos, a vida de casada, as inimagináveis profundezas e milagres que, olhando para trás, lhe pareciam ter estado com ela dia após dia,
ano após ano.A sensação de pasmo que tornara difícil pensar aos poucos cedia a uma sensação oposta; ela pensava muito rápida e claramente, e considerando todas as
suas experiências,tentava conferir-lhes uma espécie de ordem.Havia sem dúvida muito sofrimento, muita luta, mas de modo geral certamente um equilíbrio de felicidade
– certamente a ordem prevalecia. Nem as mortes de jovens eram as coisas mais tristes da vida, realmente – eles eram poupados de tanta coisa; ficavam com tanta coisa
intacta. Os mortos – ela evocou os que tinham morrido cedo, por acidente – eram belos; muitas vezes ela sonhava com os mortos.E um dia o próprio Terence passaria
a sentir... ela levantou-se e começou a caminhar inquieta pelo quarto.
Para uma mulher de sua idade, era muito inquieta,e para alguém com sua mente clara e rápida, estavainusitadamente perplexa. Não conseguia acalmar-secom nada, de
modo que ficou aliviada quando a portase abriu. Foi até seu marido, pegou-o nos braços, beijou-o com intensidade incomum, e quando se sentaram juntos começou a afagá-lo
e interrogá-lo como seele fosse um bebê, um bebê velho, cansado e briguento. Não lhe contou sobre a morte de Miss Vinrace, pois isso apenas o perturbaria, e ele
já estava aborrecido. Tentou descobrir por que ele estava tão inseguro. Política novamente? O que estava fazendo aquelagente medonha?
Passou a manhã toda discutindo política com seu marido, e aos poucos ficou profundamente interessada noque estavam dizendo. Mas volta e meia o que estavamdizendo
parecia-lhe estranhamente vazio de significado.
No almoço várias pessoas comentaram que os visitantes do hotel estavam começando a ir embora: havia cada dia menos gente. Havia só 40 pessoas no almoço, em vez das
60 de antes. Assim julgou a velha Mrs. Paley olhando em torno com seus olhos desbotados, quando se sentou à sua mesa junto da janela. Seu grupo em geral consistia
em Mr. Perrott e Arthur e Susan; hoje Evelyn também almoçava com eles.
Estava inusitadamente contida. Tendo notado que seus olhos estavam vermelhos e sabendo a razão, os outros esforçavam-se por manter entre si uma elaborada conversação.
Ela tolerou isso por alguns minutos; apoiando os dois cotovelos na mesa e deixando a sopa intocada exclamou de repente:
– Não sei como vocês se sentem, mas eu simplesmente não consigo pensar em outra coisa! Os cavalheiros murmuraram, compreensivos, e pareciam graves. Susan respondeu:
-Sim, não é realmente um horror? Quando se pensa em que moça simpática ela era... acabara de ficar noiva.isso não podia ter acontecido... parece trágico demais.
Ela olhou para Arthur, como se ele pudesse ajudá-la com algo mais adequado.
– Coisa muito dura – disse Arthur laconicamente. – Mas foi uma coisa muito tola de se fazer... subir aquele rio. – Ele balançava a cabeça. – Deviam ter sido mais
espertos. Não se pode esperar que damas inglesas andem de barco como nativos aclimatados. Eu pensei vagamente em avisá-los no chá naquele dia, quando estavam discutindo
o caso. Mas não adianta dizer esse tipo de coisa... só deixa as pessoas irritadas... e nunca faz diferença.
A velha Mrs. Paley, até ali satisfeita com sua sopa, nesse momento, levando a mão ao ouvido, mostrou que que-ria saber o que estavam dizendo.
– Tia Emma, a senhora ouviu, a pobre Miss Vinrace morreu da febre – informou Susan educadamente. Não podia falar alto em morte, nem com sua voz habitual, de modo
que Mrs. Paley não entendeu uma palavra. Arthur veio em socorro.
– Miss Vinrace está morta – disse ele com toda a clareza. Mrs. Paley apenas inclinou-se um pouco para ele e perguntou:
– Ãhn?
– Miss Vinrace está morta – repetiu ele. Só enrijecendo os músculos em torno da boca ele conseguia evitar de cair na risada, e forçou-se a repetir uma terceira vez:
– Miss Vinrace... ela morreu. Sem falar na dificuldade de escutar as palavras certas,os fatos que estavam fora de sua experiência cotidiana levavam algum tempo para
chegar à consciência de Mrs.Paley. Parecia haver um peso sobre seu cérebro, impedindo, embora não prejudicando, seu funcionamento. Ela sentou-se de olhos vagos por
ao menos um minuto antes de entender o que Arthur queria dizer.
– Morta? – disse vagamente. – Miss Vinrace morta? Meu Deus... isso é muito triste. Mas não lembro absolutamente qual delas era ela. Parece que conhecemos tantagente
nova aqui. – Olhou para Susan procurando ajuda. –Uma moça morena e alta, quase bonita, bastante morena?
– Não – disse Susan. – Ela era... – então desistiu, desesperada. Não adiantava explicar que Mrs. Paley estava pensando na pessoa errada.
– Ela não devia ter morrido – continuou Mrs. Paley.
– Parecia tão forte. Mas as pessoas ficam bebendo essa água. Nunca entendo por quê. Parece uma coisa tão simples dizer-lhes que botem uma garrafa de água mineral
no quarto. É só esse cuidado que eu tomo, e estive em toda parte do mundo, posso dizer... mais de uma dúzia de vezes na Itália... mas gente jovem sempre acha que
sabe mais e depois paga o preço. Pobrezinha... sinto muito por ela. – Mas a dificuldade de espiar um prato de batatas e servir-se de um bocado agora concentrava
sua atenção.Arthur e Susan secretamente esperavam que o tema fosse abandonado, pois parecia haver algo desagradável nessadiscussão. Mas Evelyn não estava disposta
a esquecê-lo. Porque as pessoas nunca falavam das coisas importantes?
– Eu acho que o senhor não liga a mínima! – disse ela virando-se bruscamente para Mr. Perrott que estivera todo o tempo sentado quieto.
– Eu? Ah, sim, eu ligo – respondeu ele desajeitado,mas com evidente sinceridade. As perguntas de Evelyn o deixavam com uma sensação de desconforto.
– Parece tão inexplicável – continuou Evelyn. – Quero dizer, a morte. Por que ela teve que morrer, e não eu ou você? Faz apenas 15 dias estava aqui conosco. Em que
você acredita? – perguntou a Mr. Perrott. – Acredita que as coisas continuam, que ela estará em algum lugar... ou acha que é tudo apenas um jogo... e que quando
morremos nos transformamos em nada? Estou certa de que Rachel não morreu.
Mr. Perrott teria dito quase tudo que Evelyn queria dele, mas afirmar que acreditava na imortalidade da alma estava além de suas forças. Ficou sentado quieto, mais
enrugado do que de costume, esfarelando seu pão.
Pensando que Evelyn agora lhe perguntaria em que ele acreditava, depois de uma pausa equivalente a um ponto final, Arthur começou um tópico inteiramente diferente.
Supondo que um homem escrevesse e lhe dissesse que quer cinco libras porque conheceu seu avô, o que você faria? Foi assim. Meu avô...
Inventou um tipo de fogão – disse Evelyn. – Sei tudo sobre isso. Tínhamos um na estufa, para aquecer as plantas.
Nem sabia que eu era tão famoso – disse Arthurdeterminado a elaborar a qualquer custo aquela história.
Bem,o velho,um dos melhores inventores do seu tempo e também bom advogado, morreu como de costume,sem testamento. Fielding, seu empregado, afirma sempre, não sei
com que direito, que meu avô queria fazeralgo por ele. O pobre velhote tenta alguns inventos seus,vive em Penge, em cima de uma tabacaria. Já o visitei lá.A questão
é... devo negar isso ou não? O que diz o espírito abstrato da justiça. Perrott? Lembre, eu mesmo nãofui beneficiado com um testamento de meu avô, nem tenho como
conferir a veracidade dessa história.
– Não sei muita coisa sobre o espírito abstrato da justiça – disse Susan sorrindo complacente para os demais. – Mas estou certa de uma coisa... ele vai ganhar suas
cinco libras!
Mr. Perrott passou a dar sua opinião, e Evelyn insistiu em que ele era escrupuloso demais, como todos osadvogados, pensando na letra e não no espírito, enquanto
Mrs. Paley pedia para ficar informada, entre os pratos,sobre o que todos estavam dizendo. O almoço passousem um intervalo de silêncio, e Arthur parabenizou-sepelo
tato com que conseguira abrandar a discussão.
Quando deixavam a sala, a cadeira de rodas de Mrs. Paley por acaso bateu nos Elliot, que estavam entrando. Interrompidos por um momento, Arthur e Susan estimaram
a melhora de Hughling ElIiot – ele estava no térreo pela primeira vez, ainda com ar cadavérico –,e Mr. Perrott aproveitou para dizer algumas palavras em particular
a Evelyn.
– Haveria oportunidade de vê-la esta tarde,por volta detrês e meia, digamos? Estarei no jardim, junto da fonte.
O grupo dissolveu-se antes de Evelyn responder.Mas quando os deixou no saguão, ela o encarou vivamente e disse:
– O senhor disse três e meia? Para mim está bem.
Correu para cima, na exaltação espiritual e animaçãoque a perspectiva de uma cena emocional sempre despertava nela. Não tinha dúvida de que Mr. Perrott a pediriaem
casamento novamente,e sabia que nessa ocasião deviaestar preparada para uma resposta definitiva, pois partiriadentro de três dias. Mas não conseguia decidir-se.
Era muito difícil,pois tinha um desgosto natural por qualquercoisa final e definitiva; gostava de continuar, em frente...sempre, sempre. Estava indo embora, por
isso estendia asroupas lado a lado sobre a cama. Observou que algumasestavam muito velhas. Pegou uma foto de seus pais, e antesde guardá-la na caixa segurou-a por
um minuto. Rachelolhara aquele retrato. De repente a pungente sensação dapersonalidade de alguém, que às vezes continua preservadanas coisas que possuiu ou manuseou,
dominou-a; sentiuRachel com ela no quarto; era como se estivesse num navio no mar, e a vida cotidiana fosse tão irreal como a paisagemna distância. Mas aos poucos
a sensação da presença deRachel se foi, e não conseguia mais percebê-la, pois mal aconhecera. Mas aquela sensação momentânea a deixou deprimida e cansada. O que
tinha feito de sua vida? Que futuro havia à sua frente? O que era faz-de-conta, o que era real?Essas propostas, alusões e aventuras eram reais, ou a satisfação que
vira nos rostos de Susan e Rachel era mais real doque qualquer coisa que ela própria jamais sentira?
Preparou-se para descer, meio distraída, mas seus dedosestavam tão bem treinados que faziam o trabalho quase sozinhos. Quando estava realmente descendo as escadas
o sangue começou a circular por seu corpo também por suaprópria conta, pois sua mente estava muito embotada.
Mr. Perrott a aguardava. Na verdade, depois do almoço descera direto para o jardim e estivera andando de um lado para outro no caminho mais de meia hora, num estado
de tensão aguda.
– Estou atrasada como sempre – exclamou ela ao vê-la.
– Bem, tem de me perdoar; eu tinha de fazer as malas...
Verdade! Parece que vai haver tempestade! E aquilo é umnovo vapor na baía, não é? – Ela olhava a baía onde um vapor lançara âncora, com fumaça ainda pairando sobre
ele,enquanto um tremor negro e rápido percorria as ondas. –Dá até para esquecer como é a chuva.
Mas Mr. Perrott não prestava atenção no vapor ou no tempo.
– Miss Murgatroyd – começou com seu formalismo habitual –, eu lhe pedi que viesse até aqui por um motivo muito egoísta, receio. Não creio que precise certificar-se
mais uma vez dos meus sentimentos; mas como está indo embora em breve, senti que não poderia deixá-la ir sem perguntar-lhe... tenho algum motivo para ter esperança
de que venha a gostar de mim?
Ele estava muito pálido e parecia incapaz de dizer mais alguma coisa.
O pequeno jorro de vitalidade que entrara em Evelyn quando correra escadas abaixo já se fora, e ela sentia-se impotente. Não havia nada a dizer; ela não sentia nada.Agora
que ele realmente a estava pedindo em casamento,nas suas palavras gentis de pessoa idosa, ela sentia por ele ainda menos do que antes.
– Vamos sentar e conversar a respeito – disse, bastante insegura.
Mr. Perrott seguiu-a até um banco verde recurvado debaixo de uma árvore. Olharam a fonte à sua frente, que há muito deixara de jorra. Evelyn ficava olhando a fonte
em vez de pensar no que ia dizer; a fonte sem água parecia símbolo de sua própria vida.
– Naturalmente eu gosto do senhor – começou, falando muito depressa. – Eu seria grosseira se não gostasse. Acho que o senhor é uma das pessoas mais simpáticas que
já conheci, e uma das melhores também.Mas eu queria... queria que não gostasse de mim desse jeito. Tem certeza do que sente? – Naquele momento ela desejou sinceramente
que ele dissesse não.
– Toda a certeza – disse Mr. Perrott.
– Sabe, não sou tão simples como a maioria das mulheres – continuou Evelyn. – Acho que eu quero mais.Não sei direito o que sinto.Ele sentava-se junto dela. contemplando-a,
sem dizer nada.
– Às vezes acho que não está em mim gostar muito de uma pessoa só. Alguma outra pessoa seria muito melhor esposa para o senhor. Posso imaginá-lo muito feliz com
outra mulher.
– Se acha que há alguma chance de que um dia venha a gostar de mim, ficarei bem contente em esperar – disse Mr. Perrott.
– Bem... não há pressa, há?- disse Evelyn. – Digamos que vou pensar em tudo e lhe escrevo dizendo tudo quando voltar? Estou indo a Moscou; vouescrever de Moscou.
Mas Mr. Perrott insistia.
– A senhorita não pode me dar nenhuma idéia? Não peço uma data... isso seria pouco sensato. – Ele parou,olhando para a trilha de cascalho.Como ela não respondesse
logo, ele prosseguiu.
– Sei muito bem que não sou... que não tenhomuito a oferecer-lhe em mim mesmo, ou em minhas circunstâncias. E esqueço que isso tudo não pode parecer para a senhorita
o mesmo milagre que parece amim. Até conhecê-la eu tinha seguido meu caminhomuito quieto... somos os dois gente muito quieta, minha irmã e eu... bem contente com
minha sorte. Minha amizade com Arthur era a coisa mais importante na minha vida. Agora que a conheci, tudo issomudou. A senhorita parece colocar tanto espírito emtodas
as coisas. A vida parece conter tantas possibilidades com que eu jamais sonhei.
– Isso é esplêndido! – exclamou Evelyn agarrando a mão dele. – Agora o senhor vai voltar e começartoda a sorte de coisas, e fazer um nome importanteno mundo; e vamos
continuar sendo amigos, nãoimporta o que venha a acontecer... seremos grandesamigos, não?
– Evelyn! – murmurou ele de repente, tomando-a nos braços e beijando-a. Ela não se aborreceu, embora lhe causasse pouca impressão.Quando se endireitou de novo, ela
disse:
– Não vejo por que não continuarmos amigos...embora algumas pessoas não entendam. E amizades fazem grande diferença não fazem? São o tipo da coisa que é importante
na vida, não é? Ele a encarava com uma expressão desnorteadacomo se não entendesse de verdade o que dizia. Comconsiderável esforço ele controlou-se, ergueu-se e
disse:
– Agora acho que lhe disse o que sinto,e apenas acrescentarei que posso esperar o tempo que você quiser.
Sozinha, Evelyn andou de um lado para outro no caminho. O que então era importante? O que significava tudo aquilo?
27
Toda aquela noite as nuvens se acumularam até se fecharem inteiramente sobre o azul do céu. Pareciam estreitar o espaço entre terra e céu, de modo que não havia
espaço como o ar circular livremente; as ondas também estavam achatadas e rígidas como se estivessem sendo contidas. As folhas nos arbustos e árvores no jardim estavam
bem juntas, e a sensação de pressão e contenção era aumentada pelos breves sons de gorjeios que vinham de insetos e aves.
Tão estranhas eram as luzes e o silêncio, que o agitado burburinho de vozes que habitualmente enchia a sala de jantar à hora das refeições tinham lacunas bem nítidas,
e durante esses silêncios o tilintar de facas em pratos se tornava audível. O primeiro rufo do trovão e a primeira gota pesadaatingindo a vidraça causaram um pequeno
movimento.
– Está chegando! – disseram simultaneamente em muitas línguas diferentes.
Então houve um silêncio profundo, como se o trovão tivesse se recolhido sobre si mesmo. As pessoas começavam a comer outra vez quando um sopro de ar frio atravessou
as janelas abertas erguendo toalhas de mesa e saias,uma luz lampejou seguida imediatamente pelo estouro de um trovão bem acima do hotel. A chuva veio com ele, chiando
forte, e imediatamente houve todos aqueles sons de janelas sendo fechadas e portas batendo violentamente, que acompanham uma tempestade.
De repente o aposento ficou bem mais escuro, pois ovento parecia trazer ondas de escuridão sobre a terra.Ninguém tentou comer por algum tempo, e ficaram sentados
olhando para o jardim lá fora, com os garfos no ar.Agora só relâmpagos eram freqüentes, iluminando os rostos como se fossem fotografados, surpreendendo-os emexpressões
tensas e nada naturais. O estouro seguia logo depois, violento. Várias mulheres meio que se levantavamde suas cadeiras e sentavam-se outra vez, mas o jantar continuou,
inseguro, com olhos no jardim. Os arbustos estavam desgrenhados e esbranquiçados, e o vento os pressionava tanto que pareciam inclinar-se para o chão. Os garçons
tinham de chamar a atenção dos que jantavam para ospratos; e os que jantavam tinham de chamar a atenção dosgarçons, pois estavam todos absortos olhando a tempestade.
Como o trovejar não mostrasse sinais de afastar-se, masparecia compacto exatamente acima deles, e os relâmpagoscaíssem direto no jardim todas as vezes, uma sensação
dedesconfortável melancolia substituiu a primeira excitação.
Terminando muito depressa sua refeição, as pessoas reuniram-se no saguão onde se sentiam mais seguras elo queem qualquer outro lugar, porque podiam afastar-se das
janelas, e embora ouvissem o trovão, não podiam ver nada. Ummenininho foi levado ela dali nos braços da mãe, soluçando.
Enquanto a tempestade continuava, ninguém parecia querer sentar-se, mas reuniram-se em pequenos grupos debaixo da clarabóia central, onde ficaram numa atmosfera
amarela, olhando para cima. Volta e meia seus rostos ficavam brancos quando o relâmpago brilhava, e finalmente vinha um estouro terrível fazendo as vidraças da clarabóia
erguerem-se nos caixilhos.
– Ah! – exclamavam várias vozes ao mesmo tempo.
– Alguma coisa foi atingida – disse uma voz de homem.A chuva desabou. Agora a chuva parecia extinguir os relâmpagos e os trovões, e o saguão ficou quase escuro.
Depois de um ou dois minutos em que nada se ouvia senão o bater da água contra as vidraças,houve uma diminuiçãosensível do som e finalmente a atmosfera ficou mais
clara.
– Passou – disse outra voz.
Imediatamente todas as luzes elétricas foram acesas e revelaram um grupo de pessoas todas de pé, todas erguendo rostos bastante tensos para a clarabóia, mas quando
se viram na luz artificial, viraram-se imediatamente e começaram a se afastar. Por alguns minutos a chuva continuou martelando na clarabóia e os trovões deram mais
uma ou duas sacudidas; era evidente pela claridade e pelo tamborilar agora leve da chuva no telhado que o grande oceano confuso de ar viajava para longe deles, passando
sobre suas cabeças, bem alto, com suas nuvens e suas varas de fogo, em direção do mar. O edifício, que parecera tão pequeno no tumulto da tempestade, ficou equilibrado
e espaçoso como sempre.
Quando a tempestade se afastou, as pessoas no saguãodo hotel sentaram-se; e com uma confortável sensação de alívio, começaram a contar histórias sobre grandes temporais,
o que constituiu a grande distração da noite.
O tabuleiro de xadrez foi trazido, e Mr.Elliot, que usava um cachecol em vez de um colarinho em sinal de sua convalescença, mas que de estava bastante normal,desafiou
Mr. Pepper para um torneio final. Ao redor deles juntou-se um grupo de damas com peças de bordado.Ou na falta de bordado, com romances, para supervisionar o jogo,
como estivessem cuidando de dois menininhos que jogavam bola de gude. De vez em quandoolhavam o tabuleiro e faziam algum comentário animador para os cavalheiros.
Mrs. Paley estava logo adiante, com cartas arrumadas em longas fileiras à sua frente,e Susan sentada perto dela,para acompanhar sem corrigir, e os homens de negócios
e várias pessoas cujos nomes ninguém conhecia estendiamse em suas poltronas com jornais no colo. A conversa nessas circunstâncias era muito leve,fragmentária e intermitente,
mas o salão estava cheio da indescritível agitação da vida. De vez em quando a mariposa que agora era de asas cinzentas e corpo lustroso zumbia sobre as cabeças
deles e batia na lâmpada com um baque.
Uma jovem largou seu bordado e exclamou:
– Pobre criatura! Seria melhor matá-la. – Mas ninguém parecia, disposto a levantar-se e matar a mariposa. Viam-na disparar de lâmpada a lâmpada porque estavam confortáveis
e não tinham nada a fazer.
No sofá ao lado dos jogadores de xadrez, Mrs. Elliotensinava um um novo ponto de tricô a Mrs. Thornbury,de modo que suas cabeças ficaram muito juntas, e só sedistinguiam
pela velha touca de renda que Mrs. Thornbury usava à noite. Mrs. Elliot era perita em tricô,e recebeu com evidente orgulho um elogio por isso.
– Acho que todas temos orgulho de alguma coisa –disse –, e eu tenho orgulho do meu tricô. Acho que issoé de família. Todas nós tricotamos muito bem. Tive um tio
que tricotou suas próprias meias até a morte... e faziaisso melhor do que qualquer de suas filhas, o queridovelho. Mas admiro-me de que você, Miss Allan, que usatanto
seus olhos, não pegue um tricô de noite. Sentiriaum tal alívio,eu diria...um taldescanso para os olhos...eas feiras de caridade apreciam tanto essas coisas. – Suavoz
caiu no tom brando meio consciente de uma tricotadeira perita; as palavras fluíam suavemente. – Por mais que eu faça, sempre tenho onde aproveitá-lo, o que é umconforto,
pois assim sinto que não estou desperdiçando meu tempo...
Abordada assim, Miss Allan fechou seu romance e observou as outras placidamente por algum tempo.Finalmente disse:
– Certamente não é natural deixar sua esposa porqueela esta apaixonada por você. Mas isso... até onde entendo... é o que o cavalheiro da minha história vai fazer.
– Ts, ts, isso não soa nada bem... não, nada natural – murmuraram as tricotadeiras em suas vozes absortas.
Mas é mesmo assim o tipo de livro que as pessoasconsideram muito inteligente – acrescentou Miss Allan.
Maternidade... de Michael Jessop, presumo – interveio Mr. Elliot, pois nunca resistia a tentação de falar enquanto jogava xadrez.
Sabe – disse Mrs. Elliot um momento depois –, nãoacho que as pessoas hoje em dia escrevam bons romances... não tão bons como costumavam ser, de qualquer modo.
Ninguém se deu ao trabalho de concordar ou discordar. Arthur Venning, que andava por ali, às vezes dando uma olhada no jogo, às vezes lendo uma página de revista,
agora olhou Miss Allan, que estava quase adormecida, e disse brincando:
– Uma moeda pelos seus pensamentos, Miss Allan.
Os outros ergueram os olhos. Ficaram contentes por não ter falado com eles. Mas Miss Allan respondeu sem hesitação:
– Eu estava pensando no meu tio imaginário. Todo mundo não tem um tio imaginário? continuou ela. – Eu tenho um... um velho cavalheiro absolutamente encantador. Está
sempre me dando coisas. Às vezes é um relógio de ouro; às vezes uma carruagem e uma parelha; às vezes um lindo cottage na New Forest; às vezes uma passagem para
o lugar que mais quero ver.
Todos ficaram pensando vagamente nas coisas que desejavam. Mrs. Elliot sabia exatamente o que queria:queria um filho, e aquela ruguinha habitual acentuouse na sua
fronte.
– Somos pessoas de tanta sorte – disse ela olhando
o marido. – Nós realmente não temos desejos. – Dizia isso em parte para convencer-se, em parte para convencer outras pessoas. Mas a entrada de Mr. e Mrs.Flushing
a impediu de imaginar até onde ia sua convicção; eles vieram pelo saguão e pararam junto dotabuleiro de xadrez. Mrs. Flushing parecia mais desorientada do que nunca.
Uma grande madeixa de cabelo preto caía sobre sua testa, as faces estavam pintadascom vermelho escuro e gotas de chuva depunhammanchinhas sobre elas.
Mr. Flushing comentou que estiveram no telhado olhando a tempestade.
– Foi uma vista magnífica – disse. – Os relâmpagos iamaté o mar iluminando as ondas e os navios bem longe. Nãoimaginam como as montanhas também estavam lindas, com
aquelas luzes e grandes massas de sombra.Tudo acabou agora.Ele deslizou para dentro de uma poltrona, interessado na luta final do jogo.
– E vão partir amanhã? – disse Mrs.Thornbury olhando Mrs. Flushing.
– Sim – respondeu ela.
– Na verdade não se lamenta partir – disse Mrs. Elliot,assumindo um ar de ansiedade tristonha – depois de toda essa doença.
– A senhora tem medo de morrer? – perguntou Mrs.Flushing, sarcástica.
– Acho que todos temos medo disso – disse Mrs. Elliot, com dignidade.
– Eu acho que nesse assunto todos somos covardes – disse Mrs. Flushing, esfregando a face no encosto da cadeira. – Estou certa de que eu sou.
– Nem um pouquinho! – disse Mr. Flushing virandose, pois Mr. Pepper levava muito tempo pensando na sua jogada. – Não é covardia querer viver, Alice. É o reverso
da covardia. Pessoalmente, eu gostaria de viver 100 anos...desde que, é claro, com pleno uso de minhas faculdades.Pense em todas as coisas que estão por acontecer?
– É isso que eu sinto – concordou Mrs. Thornbury. – As mudanças, as melhorias, as invenções... e a beleza. Sabem, às vezes sinto que não suportaria morrer e deixar
de ver as coisas lindas ao meu redor.
– Certamente seria muito aborrecido morrer antes de descobrirem se existe vida em Marte – acrescentou Miss Allan.
– A senhora realmente acredita que há vida em Marte? – perguntou Mrs. Flushing, agora virando-se pela primeiravez com vivo interesse para ela. – Quem lhe diz isso?
Alguém que sabe? Conhece um homem chamado... ?Aqui Mrs. Thornbury largou seu tricô, e uma expressão de extrema solicitude apareceu em seus olhos.
– Aqui está Mr. Hirst – disse ela calmamente. St. Johnacabava de entrar pela porta. Estava bastante desgrenhadopelo vento, suas faces terrivelmente pálidas, encovadas
e coma barba por fazer. Depois de tirar o casaco ele ia passar diretopelo saguão para subir até seu quarto, mas não podia ignorara presença de tantas pessoas conhecidas,especialmen
te quando Mrs. Thornbury se ergueu e foi até ele, estendendo-lhe amão. Mas o choque do aposento iluminado e quente, com avista de tantos seres humanos alegres sentados
juntos à vontade, depois da caminhada na chuva, no escuro, e os longosdias de tensão e horror, dominaram-no completamente.Ele viu Mrs.Thornbury e não conseguiu falar.
Todo mundo estava calado. A mão de Mr. Pepper pairava sobre o seu cavalo.
Mrs. Thornbury conduziu Hirst até uma cadeira,sentou-se ao lado dele, e com lágrimas nos olhos disse com doçura:
– O senhor fez tudo pelo seu amigo.
Sua ação os fez voltar a falar como se nunca tivessem parado, e Mr. Pepper concluiu a jogada com seu cavalo.
– Não havia nada a fazer – disse St. John, falando muito devagar. – Parece impossível...Ele passou a mão sobre os olhos como se um sonho se interpusesse entre ele
e os outros, impedindo-o de ver onde estava.
– Aquele pobre rapaz – disse Mrs. Thornbury, com lágrimas rolando pelas faces.
– Impossível – repetiu St. John.
– Ele teve o consolo de saber...? – comentou muito de leve Mrs. Thornbury.
Mas St. John não respondeu. Ele deitou-se na sua poltrona, vagamente divisando os outros, vagamente ouvindo o que diziam. Estava terrivelmente cansado,e a luz e
o calor, os movimentos das mãos, as brandas vozes comunicativas o acalmaram; davam-lhe uma estranha sensação de quietude e alívio. Sentado ali,imóvel, essa sensação
tornou-se uma profunda felicidade. Sem qualquer sentimento de deslealdade com Terence e Rachel, ele cessou de pensar nos dois. Os movimentos e vozes pareciam juntar-se,
vindos de diferentes partes da sala, e combinar-se num padrão diante dos olhos dele; estava contente por sentar-se ali em silêncio observando esse desenho formar-se,
olhando para aquilo que quase nem via.
O jogo era realmente bom, e Mr. Pepper e Mr. Elliotestavam cada vez mais empenhados. Mrs. Thornbury,vendo que St. John não queria falar, voltou ao seu tricô.
– Relâmpagos de novo! – exclamou Mrs. Flushing derepente.Uma luz amarela lampejou diante da janela azul,e por um segundo viram as árvores verdes lá fora. Ela foiaté
a porta, abriu-a e parou em meio ao relento.
Mas a luz era apenas um reflexo da tempestade que acabara. A chuva cessara, as nuvens pesadas foram sopradas dali e o ar estava fino e claro,embora névoas vaporosasestivessem
sendo impelidas rapidamente diante da luz. Océu era mais uma vez de um azul profundo e solene, e aforma da terra era visível no fundo enorme, escura, sólida, arqueando-se
na massa pontiaguda da montanha, aqui eali com as minúsculas luzes das villas nas encostas. O ar quesoprava,o rumorejar das árvores,a luz que lampejava aqui e aliespalhando
uma vasta claridade sobre a terra encheram Mrs.Flushing de exultação. Seu peito erguia-se e descia.
– Esplêndido! Esplêndido! – murmurava. Depois vi-rou-se para o saguão e exclamou numa voz imperiosa: – Venha aqui ver,Wilfrid. É maravilhoso.
Alguns moveram-se vagamente; alguns se levantaram;alguns largaram suas bolas de lã e começaram a inclinarse para apanhá-las.
Para a cama... para a cama – disse Miss Allan.
Foi a jogada com a sua rainha que o entregou, Pepper – exclamou Mr. Elliot triunfante, juntando as peças com a mão e levantando-se. Ganhara o jogo.
– O quê? Pepper finalmente derrotado? Parabéns! – disse Arthur Venning, que empurrava a cadeira de rodas da velha Mrs. Paley para a cama.
Todas essas vozes soaram gratas aos ouvidos de St.John deitado meio adormecido, mas vivamente consciente de tudo ao seu redor. Diante de seus olhos passava uma procissão
de objetos, pretos e indistintos, figuras de pessoas apanhando seus livros, suas cartas, seus novelos de lã,seus cestos de trabalho; e passando por ele, uma após a outra, iam para a cama.

 

                                                                  Virginia Woolf

 

 

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