No começo, estávamos tão felizes só de estarmos juntos e longe de Leoch que não falávamos muito. Para atravessar a superfície plana da charneca, Donas podia carregar nós dois sem grande esforço e cavalguei com os braços em torno da cintura de Jamie, regozijando-me na sensação dos músculos aquecidos pelo sol remexendo-se sob minha face. Quaisquer que fossem os problemas que pudéssemos enfrentar — e eu sabia que havia muitos - estávamos juntos. Para sempre. E isso era o suficiente.
Quando o primeiro impacto de felicidade amadureceu no esplendor do companheirismo, começamos a conversar outra vez. No começo, sobre a região que estávamos atravessando. Depois, cautelosamente, sobre mim e do lugar de onde eu viera. Ele ficava fascinado com as minhas descrições da vida moderna, embora eu pudesse ver que a maioria das minhas histórias parecia contos de fadas para ele. Adorava especialmente as descrições de automóveis, tanques e aviões e me fez descrevê-los inúmeras vezes, o mais detalhadamente possível. Por um acordo tácito, evitávamos qualquer menção a Frank.
Conforme a distância percorrida aumentava, nossa conversa voltou-se mais para o tempo presente: Colum, o castelo, depois a caça ao veado e o duque.
- Ele parece um bom sujeito — Jamie observou. Quando o caminho tornou-se mais difícil, ele desmontou e passou a caminhar ao lado, o que facilitava a conversa.
- Também achei - disse. - Mas...
- Ah, sim, não se pode confiar muito no que um homem parece ser atualmente - concordou. - Ainda assim, nos demos bem, ele e eu. Sentávamos juntos e passávamos a noite conversando em volta do fogo na cabana de caça. Aliás, ele é bem mais inteligente do que parece; ele sabe a impressão que aquela voz dele causa e acho que a usa para se fazer passar um pouco por tolo, enquanto o tempo todo sua astúcia está lá, trabalhando por trás do olhar.
- Mmm. É disso que eu tenho medo. Você... contou a ele? Encolheu os ombros.
- Um pouco. Ele sabia meu nome, é claro, daquela outra vez, no castelo.
Ri ao me lembrar do relato que ele fizera daquela época.
- Vocês, hã, ficaram recordando os velhos tempos?
Ele riu, as pontas dos cabelos flutuando pelo rosto na brisa de outono.
- Ah, só um pouco. Perguntou-me uma vez se eu ainda tinha problemas intestinais. Mantive o ar sério e respondi que normalmente não, mas que talvez estivesse começando a sentir um pouco de dor de barriga agora. Ele riu e disse que esperava que isso não incomodasse minha bela esposa.
Ri também. No momento, o que o duque fizesse ou deixasse de fazer não parecia de decisiva importância. Ainda assim, um dia ele poderia ser útil.
- Contei-lhe também que eu era procurado, mas não culpado da acusação, embora houvesse pouca probabilidade de prová-lo. Ele pareceu compreensivo, mas tive o cuidado de não lhe contar as circunstâncias, quanto mais o fato de que há um prêmio por minha cabeça. Eu ainda não chegara a uma conclusão se podia confiar nele quando... bem, quando o Velho Alec irrompeu no acampamento como se o próprio diabo estivesse em seu encalço e Murtagh e eu partimos no mesmo dia.
Isso me fez lembrar.
- E onde está Murtagh? - perguntei. — Ele voltou com você para Leoch? - Esperava que o pequeno membro do clã não tivesse se metido em confusão nem com Colum nem com os habitantes de Cranesmuir.
- Ele começou a voltar comigo, mas o animal que cavalgava não era páreo para Donas. Sim, você é um valoroso rapazinho, Donas, mo buidheag. — Deu um tapinha no reluzente pescoço do alazão e Donas relinchou e sacudiu a crina. Jamie ergueu os olhos para mim e sorriu.
- Não se preocupe com Murtagh. Eis um passarinho alegre que sabe cuidar de si mesmo.
- Alegre? Murtagh? — Alegre quer dizer contente, bem-humorado, o que parecia incoerente em se tratando de Murtagh. — Acho que nunca o vi sorrir. E você?
- Ah, sim. Pelo menos duas vezes.
- Há quanto tempo o conhece?
- Vinte e três anos. Ele é meu padrinho.
- Ah, bem, isso explica muita coisa. Não achei que ele fosse se preocupar por minha causa.
Jamie deu um tapinha na minha perna.
- Claro que se preocuparia. Ele gosta de você.
- Vou acreditar na sua palavra.
Tendo voltado a tocar nos últimos acontecimentos, respirei fundo e perguntei algo que desejava ardentemente saber.
- Jamie?
- Sim?
- Geillis Duncan. Eles vão... vão realmente queimá-la?
Ergueu os olhos para mim, franzindo ligeiramente a testa, e balançou a cabeça, confirmando.
- Creio que sim. Mas só depois que a criança tiver nascido. É isso o que a está perturbando?
- Uma das coisas. Jamie, olhe para isto. — Tentei levantar a volumosa manga, não consegui, e contentei-me em puxar a gola da minha blusa do meu ombro para mostrar minha cicatriz de vacinação.
- Deus do céu — ele disse devagar, depois que lhe expliquei. Olhou-me incisivamente. - Então é por isso... então, ela é de sua época?
Encolhi os ombros, desarvorada.
- Não sei. Tudo que posso dizer é que ela provavelmente nasceu depois de 1920; foi quando a vacinação em massa foi iniciada. — Olhei por cima do ombro, mas nuvens baixas escondiam os penhascos que agora nos separavam de Leoch. — Acho que nunca mais saberei... agora.
Jamie tomou as rédeas de Donas e conduziu-o para o lado, para um pequeno bosque de pinheiros, às margens de um riacho. Agarrou-me pela cintura, levantou-me e me colocou no chão.
- Não lamente por ela — disse com firmeza, abraçando-me. — É uma mulher má, uma assassina, se não uma bruxa. Ela realmente matou o marido, não?
- Sim - respondi com um estremecimento, lembrando-me dos olhos vidrados de Arthur Duncan.
- Mas ainda não compreendo por que ela tinha que matá-lo - ele disse, sacudindo a cabeça, estarrecido. - Ele tinha dinheiro, uma boa posição. E duvido que a maltratasse.
Olhei-o com exasperada surpresa.
- E essa é a sua definição de um bom marido?
- Bem... sim - ele disse, franzindo a testa. - O que mais ela podia querer?
- O que mais - Fiquei tão desconcertada que apenas olhei para ele por um instante, depois me deixei cair na grama e comecei a rir.
- O que é engraçado? Acho que foi um assassinato. — No entanto, ele sorriu e passou o braço ao meu redor.
- Eu só estava pensando - disse, ainda rindo - se a sua definição de um bom marido é alguém com dinheiro e boa posição que não bate na mulher... o que isso faz de você?
- Ah - exclamou. Riu. — Bem, Sassenach, eu nunca disse que era um bom marido. Nem você. "Sádico", acho que foi assim que me xingou e algumas outras coisas que eu não repetiria para bem da decência. Mas não um bom marido.
- Ótimo. Então, não me sentirei obrigada a envenená-lo com cianeto.
- Cianeto? - Olhou-me com curiosidade. - O que é isso?
- O que matou Arthur Duncan. É um veneno rápido e muito poderoso. Bastante comum na minha época, mas não aqui. - Umedeci os lábios pensativamente.
- Eu senti o gosto de cianeto nos lábios dele e apenas isso foi o suficiente para fazer todo o meu rosto ficar dormente. Age quase instantaneamente, como você viu. Eu devia ter adivinhado naquela ocasião... a respeito de Geilie, quero dizer. Imagino que ela o tenha obtido a partir de caroços de pêssego ou de cereja triturados, embora deva ter dado um trabalho incrível.
- Ela lhe contou por que fez isso?
Suspirei e esfreguei os pés. Meus sapatos haviam se perdido na confusão junto ao lago e eu estava sempre pegando farpas e carrapichos, não tendo os pés endurecidos como os de Jamie.
- Isso e muito mais. Se há alguma coisa de comer no seu alforje, por que não vai buscar e lhe contarei tudo sobre isso.
Entramos no vale de Broch Tuarach no dia seguinte. Quando saímos dos contrafortes, avistei um cavaleiro solitário, a uma certa distância, vindo mais ou menos em nossa direção. Era a primeira pessoa que eu via desde que deixáramos Cranesmuir.
O homem que se aproximava era vigoroso e de aparência abastada, com um lenço de pescoço muito branco aparecendo na gola de um resistente casaco de sarja cinza, as longas pontas deixando à mostra apenas uns cinco centímetros de suas calças amarradas abaixo dos joelhos.
Estávamos viajando há quase uma semana, dormindo ao relento, lavando-nos nas águas frias e limpas dos córregos e vivendo bem de coelhos e peixes que Jamie conseguia pegar e de plantas e frutas comestíveis que eu conseguia encontrar. Com nossos esforços conjuntos, nossa dieta era melhor do que a do castelo, mais fresca e certamente mais variada, ainda que um pouco imprevisível.
No entanto, se a nutrição estava mais do que a contento na vida ao ar livre, a aparência era diferente e eu fiz uma rápida avaliação de nosso estado quando o cavalheiro montado hesitou, franzindo o cenho, depois mudou de direção e veio trotando lentamente em nossa direção para investigar.
Jamie, que insistira em caminhar a maior parte da viagem para poupar o cavalo, tinha realmente uma aparência nada respeitável, as meias manchadas até os joelhos de poeira vermelha, a camisa sobressalente rasgada pelos arbustos e a barba de uma semana eriçando-se furiosamente das faces e dos maxilares.
Seus cabelos haviam crescido bastante nos últimos meses para alcançar os ombros. Em geral, presos num rabicho ou amarrados na nuca com uma fita, agora estavam soltos, espessos e desgrenhados, com pequenos pedaços de folhas e galhos presos nas desalinhadas mechas cor de cobre. Com o rosto queimado de sol num tom de bronze avermelhado, as botas rachadas, espada e adaga enfiadas no cinto, ele realmente parecia um bárbaro das Highlands.
Eu não estava muito melhor. Suficientemente coberta nas dobras da camisa de Jamie e nos remanescentes do meu vestido, descalça, enrolada no seu xale de xadrez, parecia uma maltrapilha. Encorajada pela névoa úmida e não sofrendo nenhuma restrição em forma de pente ou escova, meus cabelos rebelaram-se em toda a minha cabeça. Também haviam crescido durante minha estada no castelo e flutuam em nuvens e cachos pelos meus ombros, entrando nos meus olhos sempre que o vento vinha de trás, como agora.
Afastando dos olhos os cachos revoltos, observei a aproximação cautelosa do cavalheiro de cinza. Jamie, vendo-o, parou nosso próprio cavalo e esperou que ele se aproximasse o suficiente para poderem conversar.
- É Jock Graham — disse-me -, lá de Murch Nardagh.
O homem freou a alguns metros de distância e ficou nos examinando cuidadosamente. Seus olhos, com grandes bolsas de gordura, estreitaram-se e pousaram com desconfiança em Jamie. Em seguida, arregalaram-se repentinamente.
- Lallybroch? - perguntou, incrédulo.
Jamie balançou a cabeça, amavelmente. Com um ar completamente ilógico de orgulho de proprietário, colocou a mão em minha coxa e disse:
- E minha senhora Lallybroch.
A boca de Jock Graham abriu-se alguns centímetros, depois se recompôs rapidamente em uma expressão de agitado respeito.
- Ah... minha... senhora - disse, tirando o chapéu com atraso e fazendo uma mesura em minha direção. - Vocês estão indo para casa, então? -perguntou, tentando manter o olhar fascinado longe de minha perna, nua até os joelhos por causa de um rasgão na minha roupa, e manchada com o suco das bagas do sabugueiro.
- Sim. - Jamie olhou por cima do ombro dele, em direção à fenda no monte que ele me dissera ser a entrada para Broch Tuarach.
- Esteve lá recentemente, Jock?
Graham afastou os olhos de mim e olhou para Jamie.
- Hein? Ah, sim. Sim, estive lá. Todos estão bem. Ficarão contentes de vê-lo, imagino. Boa viagem, então, Fraser. — E com uma cutucada apressada nas costelas do cavalo, virou-se e começou a subir o vale.
Ficamos observando-o partir. De repente, a uns cem metros de distância, ele parou. Virando-se na sela, ergueu-se nos estribos, colocou as mãos em volta da boca e gritou. O som, trazido pelo vento, chegou a nós fraco, mas distinto.
— Bem-vindo ao lar!
E desapareceu atrás de uma elevação.
Broch Tuarach significa "torre voltada para o norte". Da encosta da montanha acima de nós, a torre que dava seu nome à pequena propriedade não passava de mais um aglomerado de rochas, bem semelhante àqueles que ficavam nos sopés dos montes que havíamos atravessado.
Descemos por uma fenda rochosa e estreita entre dois penhascos, guiando o cavalo entre as pedras. Depois, o trajeto ficou mais fácil, a terra ondeando mais suavemente através dos campos e de cabanas esparsas, até finalmente chegarmos a uma estrada pequena e sinuosa que levava à casa.
Era maior do que eu esperava; uma bela mansão de três andares de pedra branca rebocada com cal, as janelas delineadas com a pedra cinza ao natural, um teto alto de ardósia, com múltiplas chaminés, e diversos prédios menores pintados de branco amontoados ao redor, como pintinhos em volta de uma galinha. A velha torre de pedra, situada numa pequena elevação na parte posterior da casa, erguia-se a quase vinte metros de altura, com um telhado em cone, como o chapéu de uma bruxa, rodeado com três fileiras de minúsculas seteiras.
Quando nos aproximávamos, ouviu-se uma repentina e terrível algazarra vinda das construções anexas e Donas assustou-se e empinou. Não sendo uma exímia amazona, fui imediatamente lançada ao chão, aterrissando de forma humilhante na estrada de terra. Com uma rápida apreciação da importância relativa dos fatos, Jamie saltou e agarrou o cabresto do cavalo, deixando-me entregue à própria sorte.
Os cachorros já estavam quase em cima de mim, rosnando e latindo, quando consegui me levantar. Aos meus olhos apavorados, parecia haver uma dúzia deles, todos com os dentes arreganhados e perigosos. Ouvi um grito de Jamie.
- Bran! Luke! Sheasl
Os cachorros patinaram até parar completamente, a alguns passos de mim, confusos. Correram de um lado para o outro, resmungando com hesitação, até ele falar outra vez.
- Sheas, mo maise! De pé, seus malvados! - Eles obedeceram e a cauda do cachorro maior começou a balançar gradualmente, uma vez, depois duas vezes, em dúvida.
- Claire. Segure o cavalo. Ele não deixará que eles se aproximem e sou eu quem eles querem. Ande devagar, não vão atacá-la. — Falava descontraidamente, para não alarmar ainda mais o cavalo e os cachorros. Eu mão tinha tanto sangue-frio, mas fui aproximando-me dele cuidadosamente. Donas sacudiu a cabeça e revirou os olhos quando segurei a brida, mas eu não estava disposta a aturar explosões de mau humor - dei um puxão firme nas rédeas e agarrei o cabresto.
Os grossos lábios aveludados retorceram-se mostrando os dentes, mas eu dei outro puxão ainda mais forte. Coloquei o rosto bem perto do grande olho dourado e penetrante e devolvi o olhar furioso.
- Não ouse! - adverti. - Ou vai acabar virando carne de cachorro e eu não vou levantar um dedo para salvá-lo!
Enquanto isso, Jamie caminhava devagar em direção aos cães, um dos braços estendidos para eles com o punho cerrado. O que parecera um bando resumia-se a quatro cachorros; um pequeno terrier amarronzado, dois pastores peludos e malhados e um enorme monstro preto e cor de canela que poderia se passar pelo animal enorme e feroz de O cão dos Barskersvilles sem levantar nenhuma suspeita.
Essa ameaçadora criatura esticou um pescoço mais grosso que minha cintura e cheirou delicadamente os nós dos dedos que lhe eram oferecidos. Uma cauda semelhante a um cabo de navio começou a bater de um lado para o outro com crescente fervor. Em seguida, atirou para trás sua enorme cabeça, ganindo de alegria, e pulou em cima de seu dono, derrubando-o estatelado no chão.
- "E assim Ulisses retorna da Guerra de Tróia e é reconhecido pelo seu cão fiel" - recitei para Donas, que relinchou levemente, dando sua opinião sobre Homero ou sobre a indigna manifestação de emoção que acontecia na estrada.
Jamie, rindo, agitava o pêlo e puxava as orelhas dos cachorros, que tentavam lamber seu rosto, todos ao mesmo tempo. Finalmente, conseguiu afastá-los o suficiente para se levantar, mantendo-se de pé com dificuldade diante de suas empolgadas demonstrações.
- Bem, ao menos alguém está contente em me ver - disse, rindo, enquanto afagava a cabeça do animal. - Este é Luke - disse, apontando para o terrier. — E estes são Elphin e Mars. São irmãos e excelentes cães pastores. E este — colocou a mão carinhosamente na enorme cabeça negra, que babou de satisfação - é Bran.
- Vou confiar em você - eu disse, cautelosamente estendendo o nó de um dedo para ser cheirado. - O que ele é?
- Um staghound, um cão veadeiro. - Coçou as orelhas empinadas, declamando:
Assim Fingal escolheu seus cães de caça:
Olhos como ameixas silvestres, orelhas como folhas,
Peito de cavalo, pernas como foicinhas
E a junta da cauda distante da cabeça.
- Se essas são qualidades, então você tem razão - eu disse, inspecionando Bran. - Se a junta da cauda fosse mais distante de sua cabeça, você poderia montá-lo.
- Eu costumava fazer isso quando era criança. Não com Bran, mas com seu avô, Nairn.
Deu um último tapinha carinhoso em Bran e empertigou-se, olhando na direção da casa. Pegou a brida do irrequieto Donas e conduziu-o pela descida.
- "E assim Ulisses retorna para casa, disfarçado de indigente,..." — ele citou em grego, tendo ouvido minha observação anterior. - E agora -disse, arrumando o colarinho com certa amargura - acho que é hora de ir lidar com Penélope e seus pretendentes.
Quando chegamos às portas duplas, os cachorros arfando em nossos calcanhares, Jamie hesitou.
- Deveríamos bater? — perguntei, um pouco nervosa. Olhou para mim, estupefato.
- É a minha casa - disse, abrindo a porta.
Conduziu-me pela casa, ignorando os poucos criados surpresos pelos quais passamos, atravessando o vestíbulo e uma pequena sala de armas, até uma sala de estar. A sala ostentava uma enorme lareira com um consolo bem polido, objetos de prata e vidro brilhavam aqui e ali, refletindo o sol do fim de tarde. Por um instante, achei que a sala estivesse vazia. Então, vi um ligeiro movimento em um canto, próximo à lareira.
Ela era menor do que eu esperava. Com um irmão como Jamie, eu a imaginara ao menos do meu tamanho, ou até mais alta, mas a mulher junto ao fogo tinha pouco mais de um metro e meio. Estava de costas para nós, pegando alguma coisa na prateleira de um armário de louças e as pontas da faixa na cintura de seu vestido quase tocavam o chão.
Jamie parou quando a viu.
- Jenny - disse.
A mulher virou-se e vi de relance sobrancelhas negras como tinta de escrever e grandes olhos azuis em um rosto branco, antes de se lançar sobre seu irmão.
-Jamie!
Apesar de pequena, deslocou seu irmão com o impacto de seu abraço. Como um reflexo, seus braços envolveram os ombros dela e ficaram abraçados por um instante, o rosto de Jenny apertado com força contra a frente da camisa dele, a mão de Jamie segurando sua nuca com ternura. No rosto de Jamie havia uma expressão mista de incerteza e ansiosa alegria, tão forte que me senti quase uma intrusa.
Em seguida, ela pressionou-se com mais força contra ele, murmurando alguma coisa em gaélico, e a expressão do rosto dele dissolveu-se em absoluto choque. Segurou-a pelos braços e afastou-a, fitando-a.
Os rostos eram muito semelhantes; os mesmos olhos azul-escuros estranhamente rasgados e as largas maçãs do rosto. O mesmo nariz fino, cinzelado, apenas um pouquinho longo demais. Mas ela era morena, enquanto Jamie era claro, com cascatas de cabelos negros e anelados, amarrados para trás com uma fita verde.
Era linda, com feições bem delineadas e pele de alabastro. Também estava obviamente em adiantado estado de gravidez.
Jamie ficara com os lábios lívidos.
- Jenny - murmurou, sacudindo a cabeça. - Ah, Jenny. Mo cridh. Nesse momento, sua atenção foi atraída pela aparição de uma criança no vão da porta e ela afastou-se de seu irmão sem notar seu transtorno. Pegou o menino pela mão e conduziu-o para dentro da sala, murmurando palavras de encorajamento. Ele deixou-se ficar um pouco para trás, o polegar na boca para maior tranqüilidade, olhando para cima, para os estranhos, de trás das saias de sua mãe.
Porque obviamente ela era sua mãe. Ele possuía a sua cabeleira negra, espessa e encaracolada, e os mesmos ombros retos, embora o rosto não fosse o seu.
- Este é o pequeno Jamie - ela disse, olhando com orgulho para o menino. — E este é o seu tio Jamie, mo cridh, de quem você recebeu seu nome.
- Meu nome? Você o batizou com o meu nome? - Jamie parecia um lutador que acabava de levar um soco no estômago. Recuou, afastando-se da mãe e do filho, até tropeçar em uma cadeira e cair sentado nela como se suas pernas tivessem perdido a força. Enterrou o rosto nas mãos.
Sua irmã, a essa altura, percebeu que havia alguma coisa errada. Tocou-o cautelosamente no ombro.
-Jamie? O que foi, meu querido? Está doente?
Ele ergueu os olhos para ela e pude ver que seus olhos estavam rasos de lágrimas.
- Tinha que fazer isso, Jenny? Não acha que já sofri o bastante pelo que aconteceu... pelo que eu deixei acontecer... para dar o meu nome ao filho bastardo de Randall, para ser uma acusação contra mim enquanto eu viver?
O rosto de Jenny, normalmente pálido, perdeu todos os vestígios de cor.
- Filho bastardo de Randall? - repetiu, atônita. - Quer dizer, John Randall? O capitão inglês?
- Sim, o capitão Randall. De quem mais eu estaria falando, pelo amor de Deus? Você se lembra dele, eu suponho? - Jamie recuperava o suficiente de sua habitual reação sarcástica.
Jenny analisou seu irmão atentamente, uma das sobrancelhas erguidas, desconfiada.
- Ficou maluco, homem? - perguntou. — Ou andou bebendo muito pelo caminho?
- Nunca deveria ter voltado — ele murmurou. Levantou-se, cambaleando ligeiramente, e tentou passar sem tocá-la. Entretanto, ela permaneceu onde estava e segurou-o pelo braço.
- Corrija-me, irmão, se eu estiver errada — Jenny disse devagar -, mas tenho a forte impressão de que está dizendo que eu banquei a vagabunda com o capitão Randall e o que estou perguntando é que minhocas você tem na cabeça para dizer uma coisa dessas?
- Minhocas, hein? - Jamie voltou-se para ela, a boca retorcida de amargura. — Quisera que assim fosse; preferia estar morto e no túmulo a ver minha irmã levada a essa situação. - Agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a levemente, gritando: - Por que, Jenny, por quê? Vê-la arruinar-se por minha causa foi vergonha suficiente para me matar. Mas isto... - Deixou os braços caírem, com um gesto de desespero que abrangia o ventre volumoso, projetando-se acusadoramente sob o vestido largo e fino.
Virou-se bruscamente em direção à porta e uma mulher idosa, que ouvia ansiosamente com a criança agarrada às suas saias, recuou, amedrontada.
- Não deveria ter vindo. Vou embora.
- Não faça isso, Jamie Fraser - sua irmã disse, de forma contundente. — Não antes de me ouvir. Então, sente-se e eu lhe contarei sobre o capitão Randall, já que quer saber.
- Eu não quero saber! Não quero ouvir! — Quando ela avançou em sua direção, ele virou-se bruscamente para a janela que dava para o pátio. Ela o seguiu:
— Jamie... — disse, mas ele a repeliu com um gesto violento.
- Não! Não fale comigo! Já disse que não vou agüentar ouvir!
- Ah, é mesmo? - Observou seu irmão, parado à janela, com as pernas afastadas, as mãos no peitoril e as costas teimosamente voltadas para ela. Ela mordeu o lábio e uma expressão calculada surgiu em seu rosto. Rápida como um raio, ela inclinou-se e enfiou a mão embaixo do seu kilt como o bote de uma cobra.
Jamie soltou um rugido de pura indignação e empertigou-se de choque. Tentou virar-se, depois parou, imóvel, quando ela aparentemente redobrou o aperto.
- Os homens são sensíveis - disse para mim, com um sorriso malicioso — e os animais podem ser subjugados e obrigados a obedecer. Com outros não se pode fazer nada, a não ser que os segure pelo saco. Agora, pode me ouvir de maneira civilizada — disse a seu irmão - ou vou ter que torcer um pouco? Hein?
Ele permaneceu imóvel, o rosto vermelho, respirando ruidosamente através dos dentes cerrados.
- Vou ouvir — disse — e depois vou torcer seu pescoço, Janet! Solte-me! Tão logo ela obedeceu, ele girou nos calcanhares.
- O que pensa que está fazendo? — perguntou, furioso. — Tentando me envergonhar na frente da minha própria mulher? - Jenny não se deixou intimidar com a sua fúria. Ficou balançando-se nos calcanhares, olhando para o irmão e para mim com ironia.
- Bem, se ela é sua mulher, imagino que esteja mais familiarizada com suas bolas do que eu. Não as vejo desde que ficou com idade suficiente para tomar banho sozinho. Cresceram um pouco, não?
O rosto de Jamie passava por várias transformações alarmantes, conforme os ditames do comportamento civilizado lutavam com o impulso primitivo de um irmão mais novo de dar um cascudo na irmã. Por fim, a civilização venceu e ele disse entre dentes, com a pouca dignidade que conseguiu reunir:
- Deixe minhas bolas fora disso. Então, já que não vai sossegar enquanto não me fizer ouvir, conte-me a respeito de Randall. Conte-me por que desobedeceu às minhas ordens e escolheu desonrar-se e à sua família.
Jenny colocou as mãos nas cadeiras e empertigou-se, pronta para o combate. Menos pronta a perder a calma; ainda assim era geniosa, não restava a menor dúvida.
- Ah, desobedecer a suas ordens, hein? É isso que o está incomodando, Jamie, é? Sabe muito bem que se seguirmos suas ordens vamos nos arruinar, sem dúvida. — Movia-se impacientemente de um lado para o outro, furiosa. - E se eu tivesse feito o que você mandou, naquele dia, você teria sido morto no pátio de entrada, papai teria sido enforcado ou estaria na prisão por assassinar Randall e as terras teriam sido confiscadas pela Coroa. Para não dizer nada de mim, sem lar e sem família, precisando mendigar nas vielas para viver.
Jamie já não estava pálido, mas vermelho de raiva.
- Sim, então você preferiu se vender ao invés de mendigar! Eu preferia ter morrido no meu próprio sangue e visto papai e as terras no inferno comigo e você sabe muito bem disso!
- Sim, eu sei! Você é um tolo, Jamie, e sempre foi! - sua irmã rebateu, exasperada.
- Veja só quem está falando! Não contente em arruinar seu bom nome e o meu próprio, você tem que continuar com o escândalo e expor sua desonra para toda a vizinhança!
- Você não vai falar assim comigo, James Fraser, irmão ou não! O que quer dizer com minha "desonra"? Seu grande idiota, você...
- O que eu quero dizer? Quando você anda por aí inflada até aqui como um sapo maluco. - Imitou sua barriga com um gesto desdenhoso da mão.
Ela recuou um passo, levou a mão para trás e esbofeteou-o com toda a força que conseguiu reunir. O impacto lançou a cabeça de Jamie para trás e deixou a marca branca de seus dedos impressa no rosto dele. Ele levou a mão lentamente até o rosto, olhando fixamente para sua irmã. Os olhos de Jenny cintilavam perigosamente e seu peito arfava. As palavras jorraram numa torrente entre os dentes cerrados.
- Sapo, não é? Maldito covarde, não tem mais coragem do que me deixar aqui, pensando que está morto ou preso, sem nenhuma notícia dia após dia e, de repente, chega calmamente num belo dia, e ainda com uma mulher, senta-se na minha sala de visitas chamando-me de sapo e de meretriz e...
- Não a chamei de meretriz, mas devia ter chamado! Como pôde... Apesar das diferenças de altura, irmão e irmã estavam quase cara a cara, sibilando um para o outro num esforço para impedir que as vozes alteradas ressoassem pela velha mansão. O esforço foi em vão, a julgar pelos olhares que percebi de vários rostos interessados espreitando discretamente da cozinha, do vestíbulo e da janela. O senhor de Broch Tuarach estava tendo uma interessante recepção de boas-vindas, sem dúvida.
Achei melhor deixar que acertassem as contas sem a minha presença e, assim, caminhei silenciosamente até o vestíbulo, com um desajeitado aceno de cabeça para a mulher idosa, e continuei até o pátio. Havia um caramanchão com um banco, onde me sentei, olhando ao redor com interesse.
Ao lado, havia um pequeno jardim cercado, florido com as últimas rosas do verão. Depois dele, estava o que Jamie chamava de pombal, ou assim presumi, pelos inúmeros pombos que entravam e saíam das aberturas no topo da construção.
Eu sabia que havia um celeiro e um barracão para a silagem; deviam ficar do outro lado da casa, com o depósito de provisões, o galinheiro, a horta e a capela abandonada da fazenda. O que ainda deixava sem explicação uma pequena construção de pedra deste lado. O vento leve do outono vinha daquela direção; inspirei fundo e fui recompensada com o rico aroma de lúpulo e levedo de cerveja. Era a cervejaria, onde a bebida da propriedade era produzida.
A estrada que seguia depois do portão levava para cima e além de um pequeno monte. Enquanto olhava, um pequeno grupo de homens surgiu no topo, em silhueta contra a luz do pôr-do-sol. Pareceram vacilar por um instante, como se estivessem se despedindo uns dos outros. Provavelmente era isso, porque apenas um deles desceu a colina em direção à casa, os outros partindo pelos campos em direção a um aglomerado de cabanas distantes.
Quando o homem solitário descia a colina, pude notar que ele mancava bastante. Quando atravessou o portão, a razão ficou evidente. Ele não tinha a perna direita abaixo do joelho e usava uma estaca de madeira no lugar.
Apesar da dificuldade, ele deslocava-se com jovialidade. Na verdade, quando se aproximou do caramanchão, pude ver que devia ter apenas vinte e poucos anos. Era alto, quase tão alto quanto Jamie, porém de ombros muito mais estreitos; na verdade, era magro, quase pele e osso.
Parou na entrada para o caramanchão, apoiando-se na treliça e olhou para dentro, para mim, com interesse. Cabelos fartos, castanhos e lisos, caíam sobre a fronte alta. Os olhos castanhos e profundos tinham um ar de paciente bom humor.
As vozes de Jamie e de sua irmã haviam se elevado enquanto eu esperava do lado de fora. As janelas estavam abertas para o ar quente e os querelantes eram perfeitamente audíveis do caramanchão, embora nem todas as palavras fossem inteligíveis.
- Interferindo, megera desgraçada! - ouviu-se a voz de Jamie, alta no ar suave do fim do dia.
- Não tem a decência de... - a resposta de sua irmã perdeu-se numa brisa repentina.
O recém-chegado balançou a cabeça na direção da casa.
- Ah, então Jamie chegou.
Confirmei com um aceno da cabeça, sem saber ao certo se deveria me apresentar. Não teve importância, porque o jovem sorriu e inclinou a cabeça para mim.
- Sou Ian Murray, o marido de Jenny. E imagino que você seja... ah...
- A Sassenach com quem Jamie se casou — concluí por ele. — Meu nome é Claire. Então já sabia? - perguntei e ele riu. Minha mente girava. Marido de Jenny?
- Ah, sim. Soubemos por Joe Orr, que soube através de um funileiro de Ardraigh. Já não se pode guardar mais nenhum segredo nas Highlands. Deve saber disso, embora esteja casada há apenas um mês. Há semanas que Jenny se pergunta como você seria.
- Vagabunda! - Jamie berrou de dentro da casa. O marido de Jenny não moveu um fio de cabelo, mas continuou a me examinar com uma curiosidade amistosa.
- É uma bela moça - disse, olhando-me de cima a baixo sem reservas. - Gosta de Jamie?
- Bem... sim. Sim, gosto - respondi, um pouco desconcertada. Estava começando a me acostumar à franqueza que caracterizava a maioria dos habitantes das Highlands, mas às vezes ainda era pega de surpresa.
Franziu os lábios e balançou a cabeça, dando-se por satisfeito. Em seguida, sentou-se a meu lado no banco.
- É melhor deixá-los a sós mais uns minutos — disse, com um aceno em direção à casa, onde a gritaria agora prosseguia em gaélico. Ele parecia totalmente desinteressado na causa da discussão. - Os Fraser não dão ouvidos a ninguém quando estão com raiva. Quando acabam de gritar um com o outro, às vezes conseguimos fazê-los ver a razão, mas não antes.
- Sim, percebi - eu disse laconicamente e ele riu.
- Então, está casada há bastante tempo para ter notado, hein? Soubemos como Dougal fez Jamie casar-se com você - disse, ignorando a contenda e concentrando sua atenção em mim. - Mas Jenny disse que era preciso mais do que Dougal MacKenzie para Jamie fazer algo que não quisesse. Agora que a conheço, naturalmente vejo por que ele se casou. -Ergueu as sobrancelhas, à espera de maiores explicações, mas educadamente sem forçá-las.
- Imagino que ele tinha seus motivos — eu disse, minha atenção dividida entre meu companheiro e a casa, onde as vozes altercadas continuavam.
- Não quero... Quero dizer, espero... - Ian interpretou corretamente minhas hesitações e meus olhares em direção às janelas da sala de estar.
- Ah, imagino que você tenha algo a ver com isso. Mas ela discutiria com ele quer você estivesse aqui ou não. Ela ama Jamie ardentemente, sabe, e preocupou-se muito enquanto ele estava desaparecido, especialmente tendo seu pai partido tão repentinamente. Sabe disso? - Os olhos castanhos eram perspicazes e observadores, como se medisse o grau de confiança existente entre Jamie e mim.
- Sim, Jamie me contou.
- Ah. - Balançou a cabeça em direção à casa. - E depois, é claro, ela está grávida.
- Sim, percebi isso também.
- Difícil não notar, não é? - Ian disse com um largo sorriso e nós dois rimos. - Isso deixa seus nervos à flor da pele. Não que eu a culpe por isso. Mas seria preciso um homem mais corajoso do que eu para discutir com uma mulher no nono mês de gravidez. — Recostou-se, esticando a perna de pau à sua frente.
- Eu a perdi em Daumier com Fergus nic Leodhas - explicou. -Metralha de canhão. Dói um pouco ao final do dia. - Esfregou a perna logo acima da bainha de couro que prendia a estaca de pau ao toco de perna.
-Já experimentou esfregar Bálsamo de Gilead? - perguntei. - Pimenta d'água ou arruda cozida também podem ajudar.
- Não experimentei a pimenta d'água - disse, interessado. - Vou perguntar a Jenny se ela sabe preparar.
- Ah, terei prazer em prepará-la para você — eu disse, achando-o simpático. Olhei na direção da casa outra vez. — Se ficarmos aqui o tempo suficiente — acrescentei, em dúvida. Conversamos sobre assuntos sem importância durante algum tempo, ambos com um ouvido atento ao confronto que continuava do outro lado da janela, até que Ian deslocou-se para a frente, posicionando sua perna artificial cuidadosamente antes de se levantar.
- Acho que devemos entrar agora. Se um deles parar o tempo suficiente para ouvir o outro, vão ferir os sentimentos um do outro.
- Espero que esse seja o único ferimento. Ian deu um risinho.
- Ah, acho que Jamie não bateria nela. Está acostumado a se controlar diante de provocação. Quanto a Jenny, ela pode esbofeteá-lo, mas é só isso.
- Ela já fez isso.
- Bem, as armas estão trancadas. Todas as facas estão na cozinha, exceto a que Jamie está usando. E não acho que ele vá deixá-la se aproximar o suficiente para tirar a adaga dele. Não, eles estão seguros. - Parou à porta. -Agora, quanto a você e eu... — Piscou solenemente. - Isso é outra questão.
Dentro da casa, as criadas sobressaltaram-se e bateram em retirada nervosamente com a aproximação de Ian. A governanta, no entanto, ainda pairava junto à porta da sala, fascinada, absorvendo a cena que se desenrolava lá dentro, o homônimo de Jamie aconchegado em seu peito farto. Sua concentração era tal que quando Ian falou com ela, deu um salto como se ele tivesse lhe espetado um alfinete e colocou a mão sobre o coração descompassado.
Ian cumprimentou-a educadamente com um aceno de cabeça, pegou o menino nos braços e entramos na sala de estar, ele à frente. Paramos logo depois da soleira para inspecionar a cena. Irmão e irmã haviam feito uma pausa para recuperar o fôlego, ambos ainda arrepiados e fitando-se com raiva como dois gatos furiosos.
O pequeno Jamie, vendo a mãe, debateu-se e esperneou para descer dos braços de Ian e, uma vez no chão, partiu na direção de Jenny como um pombo-correio.
- Mamãe! — gritou. - Colo! Jamie, colo!
Virando-se, ela pegou o menino e segurou-o como uma arma contra o ombro.
- Quer dizer ao seu tio quantos anos você tem, querido? - perguntou-lhe, reduzindo a voz a um arrulho, sob o qual um tom metálico ainda estava bem evidente. O menino percebeu-o; virou-se e enterrou o rosto no pescoço da mãe. Ela afagou suas costas mecanicamente, ainda fitando seu irmão.
-Já que ele não quer lhe dizer, eu o farei. Ele tem dois anos, completados em agosto. E se você é suficientemente inteligente para fazer as contas, o que me permito duvidar, verá que ele foi concebido seis meses depois da última vez que vi Randall, o que foi em nosso próprio pátio, tirando sangue do meu irmão com um sabre.
— Então é assim, hein? - Jamie olhou com raiva para sua irmã. - Ouvi uma história um pouco diferente. Todo mundo sabe que você levou o sujeito para a sua cama; não só daquela vez, mas como seu amante. Essa criança é dele. - Balançou a cabeça desdenhosamente na direção de seu xará, que se voltara para espreitar, por baixo do queixo de sua mãe, aquele estranho grande e barulhento. — Acredito em você quando diz que o novo bastardo que está carregando não é dele; Randall esteve na França até março. Então, você não só é uma prostituta, mas ainda por cima pouco exigente. Quem é o pai deste último descendente do diabo que você tem aí?
O jovem alto e magro ao meu lado tossiu educadamente, quebrando a tensão no aposento.
— Sou eu — disse, pacificamente. - Esse também. - Avançando rigidamente em sua perna de pau, pegou o menino dos braços de sua mãe enfurecida e colocou-o na dobra do seu braço. — Parece-se um pouco comigo, dizem.
De fato, vistos lado a lado, os rostos do homem e do menino eram praticamente idênticos, sem contar as bochechas rechonchudas de um e o nariz adunco do outro. A mesma testa alta e lábios finos. As mesmas sobrancelhas espessas arqueadas sobre os mesmos olhos fundos, castanhos e translúcidos. Jamie, olhando-os, parecia ter sido atingido nas costas por um saco de areia. Fechou a boca e engoliu em seco, obviamente sem saber o que fazer em seguida.
— Ian - disse, fracamente. - Estão casados, então?
— Ah, sim — seu cunhado disse alegremente. - Não podia ser de outra forma, não é?
— Compreendo - Jamie murmurou. Limpou a garganta e sacudiu a cabeça para seu recém-descoberto cunhado. - É, hã, é muita bondade sua, Ian. Aceitá-la, quero dizer. Muita gentileza.
Sentindo que ele devia estar precisando de apoio moral a essa altura, passei para o seu lado e toquei em seu braço. Os olhos de sua irmã demoraram-se sobre mim especulativamente, mas não disse nada. Jamie olhou ao redor e pareceu surpreso de me ver ali, como se tivesse se esquecido da minha existência. E não era de admirar se tivesse, pensei. Mas ele pareceu aliviado com a interrupção, ao menos, e estendeu o braço para me empurrar um pouco à frente.
— Minha mulher - disse, um pouco bruscamente. Balançou a cabeça em direção a Jenny e Ian. — Minha irmã e seu, hã... — sua voz definhou, enquanto Ian e eu trocávamos sorrisos amáveis.
Jenny não se deixou distrair com sutilezas sociais.
- O que quer dizer com "é gentileza dele me aceitar"? - perguntou, ignorando as apresentações. - Como se eu não soubesse! - Ian olhou interrogativamente para ela, que sacudiu a mão num gesto de menosprezo em direção a Jamie. - Ele quer dizer que foi bondade sua casar-se comigo em minha condição, com a honra maculada! - Resfolegou com tal força que faria jus a uma pessoa com o dobro do seu tamanho. - Só fala bobagem!
- Honra maculada? - Ian parecia perplexo e Jamie de repente inclinou-se para a frente e agarrou sua irmã pelo braço, apertando-o com força.
- Você não contou a ele a respeito de Randall? — Parecia realmente chocado. - Jenny, como pôde fazer isso?
Somente a mão de Ian no outro Braço de Jenny impediu-a de voar na garganta do irmão. Ian puxou-a com firmeza para trás dele e, virando-se, colocou o pequeno Jamie nos seus braços, de modo a forçá-la a segurar a criança para que ela não caísse. Em seguida, Ian passou o braço pelos ombros de Jamie e diplomaticamente conduziu-o a uma distância segura.
- Isso não é assunto para a sala de visitas — disse, a voz baixa e reprovadora -, mas talvez esteja interessado em saber que sua irmã era virgem na noite de núpcias. Afinal, estou em posição de afirmar isso.
A raiva de Jenny agora estava mais ou menos dividida igualmente entre irmão e marido.
- Como ousa dizer tais coisas em minha presença, Ian Murray? - disparou. — Ou mesmo na minha ausência! Minha noite de núpcias não é da conta de ninguém mas apenas minha e sua, certamente não é da conta dele. Só falta você lhe mostrar os lençóis de nosso leito matrimonial!
- Bem, se eu o fizesse agora, ia calar a boca de seu irmão, não? - Ian disse apaziguadoramente. — Vamos, mi ahu, não devia se aborrecer, é ruim para o bebê. E a gritaria também perturba o pequeno Jamie. - Estendeu os braços para seu filho, que choramingava, ainda sem saber ao certo se a situação requeria lágrimas. Ian sacudiu a cabeça para mim e revirou os olhos na direção de Jamie.
Captando a deixa, agarrei Jamie pelo braço e arrastei-o para uma poltrona em um canto neutro. Ian, igualmente, instalou Jenny num sofá para duas pessoas, um braço firme em torno de seus ombros para mantê-la segura no lugar.
- Pronto, chega. — Apesar de seus modos despretensiosos, Ian Murray possuía uma autoridade inegável. Eu mantive a mão no ombro de Jamie e pude sentir a tensão começar a se esvair.
Achei que o aposento parecia-se um pouco a um ringue de boxe, com os contendores retorcendo-se, inquietos, nos cantos, à espera do sinal de ataque e sob a mão calma do treinador.
Ian balançou a cabeça em direção a seu cunhado, sorrindo.
- Jamie. É um prazer vê-lo, rapaz. Estamos felizes por você estar em casa e com sua mulher. Não é, mi àhu. - perguntou a Jenny, seus dedos apertando-se perceptivelmente em seu ombro.
Ela não era pessoa de se deixar forçar a nada. Seus lábios comprimiram-se em uma linha fina, como se formassem um lacre, depois se abriram relutantemente para deixar uma única palavra escapar.
- Depende — disse, fechando-os com força outra vez.
Jamie esfregou a mão no rosto, depois ergueu a cabeça, pronto para um novo round.
- Eu vi você entrar na casa com Randall - disse teimosamente. - E pelo que ele me disse depois... Como ele pode saber que você tem uma verruga no seio?
Ela resfolegou violentamente.
- Lembra-se de tudo que aconteceu naquele dia ou o capitão o fez esquecer com seu sabre?
- Claro que me lembro! Não é provável que eu esqueça!
- Então, talvez se lembre que eu dei um bom golpe em sua virilha com meu joelho em determinado momento dos acontecimentos?
Jamie arqueou os ombros, desconfiado.
- Sim, me lembro.
Jenny sorriu com um ar de superioridade.
- Bem, então, se a sua mulher aqui... podia ao menos me dizer o nome dela, Jamie, juro que você não tem mesmo boas maneiras. De qualquer modo, se ela lhe desse tratamento similar, e você sem dúvida merece, devo acrescentar, acha que seria capaz de desempenhar seus deveres de marido alguns minutos depois?
Jamie, que começara a abrir a boca para falar, fechou-a repentinamente. Fitou sua irmã por um longo instante, em seguida um canto de sua boca contorceu-se um pouco.
- Depende - disse. A boca torceu-se outra vez. Ele estivera sentado curvado para a frente em sua poltrona, mas agora recostou-se, olhando-a com a expressão um tanto cética de um irmão mais novo ouvindo os contos de fadas de uma irmã, achando-se adulto demais para ficar impressionado, mas ainda assim acreditando um pouco, a despeito de si mesmo.
- É mesmo? — disse. Jenny voltou-se para Ian.
- Vá buscar os lençóis, Ian - ordenou. Jamie ergueu as duas mãos, rendendo-se.
- Não. Não, acredito em você. É que, o modo como ele agiu depois— Jenny recostou-se, relaxando na curva do braço de Ian, o filho aconchegado em seu colo o máximo que sua barriga permitia, feliz com a vitória.
- Bem, depois de tudo que ele disse lá fora, não poderia admitir ser incapaz perante seus próprios homens, não é mesmo? Tinha que fazer parecer que fizera o que prometera, não? E - admitiu — devo dizer que o sujeito foi muito desagradável em toda a situação; ele realmente me bateu e rasgou meu vestido. Na verdade, ele quase me deixou sem sentidos tentando e quando voltei a mim e consegui me cobrir decentemente, o inglês já havia partido, levando você com eles.
Jamie soltou um longo suspiro e fechou os olhos por um instante. Suas mãos grandes descansavam nos joelhos e eu cobri uma delas com um delicado aperto. Ele tomou minha mão e abriu os olhos, esboçando um leve sorriso de agradecimento para mim antes"de voltar-se para a irmã.
- Está bem — disse. — Mas eu quero saber, Jenny; você sabia quando entrou com ele que ele não poderia fazer-lhe mal?
Ela ficou em silêncio por um instante, mas seu olhar continuou firme no rosto do irmão. Finalmente, sacudiu a cabeça, um ligeiro sorriso nos lábios.
Estendeu a mão para impedir os protestos de Jamie e as sobrancelhas como as asas da gaivota ergueram-se em um gracioso arco interrogativo.
- E se pode dar sua vida em troca da minha honra, diga-me por que não posso dar minha honra em troca de sua vida? — As sobrancelhas uniram-se num ar de censura, como as que adornavam o rosto de seu irmão. - Ou está me dizendo que talvez eu não o ame tanto quanto você me ama? Porque se estiver, Jamie Fraser, digo-lhe agora mesmo, não é verdade!
Abrindo a boca para retrucar antes de Jenny terminar, Jamie de repente ficou desconcertado diante desta conclusão. Fechou a boca bruscamente, enquanto sua irmã tentava aumentar sua vantagem.
- Porque eu realmente o amo, apesar de você ser um cabeça-dura, um desmiolado, um turrão idiota. E não vou deixar você cair morto na estrada aos meus pés só porque é teimoso demais para manter a boca fechada uma vez na vida!
Os olhos azuis digladiavam-se, lançando chispas em todas as direções. Engolindo os insultos com dificuldade, Jamie buscava uma resposta racional. Parecia estar chegando a alguma conclusão. Finalmente, empertigou os ombros, resignado.
- Está bem, então, desculpe-me - disse. - Eu estava errado e peço-lhe perdão.
Ele e a irmã fitaram-se por um longo instante, mas qualquer perdão que estivesse esperando dela não estava a caminho. Ela examinou-o cuidadosamente, mordendo o lábio, mas não disse nada. Finalmente, ele ficou impaciente.
-Já disse que sinto muito! O que mais quer de mim? - perguntou. -Quer que eu fique de joelhos? Farei isso se for preciso, mas diga-me!
Ela sacudiu a cabeça devagar, o lábio ainda preso nos dentes.
- Não - disse, finalmente. - Não vou pedir que fique de joelhos em sua própria casa. No entanto, fique de pé.
Jamie levantou-se. Ela colocou a criança sentada no sofá e atravessou a sala, parando diante dele.
- Tire a camisa - ordenou.
-Não!
Ela puxou as pontas da camisa de dentro do kilt e estendeu as mãos para os botões. Sem conseguir impor uma resistência enérgica, ele claramente iria obedecer ou submeter-se a ser despido. Com o máximo de dignidade possível, afastou-se dela e, com os lábios cerrados, removeu a peça de roupa em questão.
Ela deu a volta para trás dele e examinou suas costas, o rosto exibindo a mesma expressão cuidadosamente indecifrável que eu vira Jamie adotar quando escondia alguma emoção forte. Ela balançou a cabeça, como se confirmasse algo há muito suspeitado.
- Bem, se você foi um tolo, Jamie, parece que pagou caro por isso. -Pousou a mão delicadamente em suas costas, cobrindo as piores cicatrizes.
- Pela aparência, deve ter doído.
- Doeu.
- Você chorou?
Os punhos cerraram-se involuntariamente ao lado do corpo.
- Sim!
Jenny deu a volta outra vez para ficar diante dele, o queixo erguido, os olhos rasgados abertos e brilhantes.
- Eu também - ela disse, brandamente. — Todos os dias desde que o levaram.
As faces largas mais uma vez espelhavam uma à outra, mas a expressão que ostentavam era tal que eu me levantei e saí silenciosamente pela porta da cozinha para deixá-los sozinhos. Quando a porta fechava-se atrás de mim, vi Jamie segurar as mãos de sua irmã e dizer alguma coisa em gaélico, com a voz rouca. Ela aconchegou-se em seu abraço e a cabeça brilhante e desgrenhada abaixou-se para os cabelos castanhos.
Comemos como lobos famintos ao jantar, retiramo-nos para um quarto amplo e arejado e dormimos como uma pedra. O sol já estaria alto quando acordamos no dia seguinte, se o céu não estivesse encoberto de nuvens. Sabia que já era tarde pela movimentação na casa, conforme as pessoas iam e vinham em seus afazeres, e pelos aromas tentadores que vinham pelas escadas.
Após o desjejum, os homens prepararam-se para sair, visitando arrendatários, inspecionando cercas, consertando carroças e de um modo geral divertindo-se. Quando pararam no vestíbulo para vestir seus casacos, Ian viu o cesto grande de Jenny sob a mesa diante de um grande espelho.
- Quer que eu traga algumas maçãs do pomar, Jenny? Pouparia você de uma caminhada tão grande.
- Boa idéia - Jamie disse, lançando um olhar avaliador para a enorme barriga de sua irmã. - Não vamos querer que o deixe cair no meio da estrada.
- Eu vou deixar você cair neste mesmo lugar onde está, Jamie Fraser — ela retorquiu calmamente, segurando o casaco para Ian vestir. — Seja útil ao menos uma vez e leve este diabinho com você. A sra. Crook está na lavanderia; pode deixá-lo lá. - Arrastou os pés, deslocando o pequeno Jamie, que se agarrava às suas saias, entoando "colo, colo" indefinidamente.
Seu tio obedientemente segurou o diabinho pela cintura e levou-o pela porta afora, de cabeça para baixo e dando gritinhos de satisfação.
- Ah - Jenny suspirou, feliz, inclinando-se para inspecionar sua aparência no espelho de moldura dourada. Molhou o dedo na língua e passou nas sobrancelhas, depois terminou de fechar os botões na gola de sua blusa. - Que bom terminar de se vestir sem alguém se agarrando às suas saias ou enrolado em seus joelhos. Às vezes, mal consigo ir ao banheiro sozinha ou pronunciar uma única frase sem ser interrompida.
Seu rosto estava ligeiramente afogueado e seus cabelos escuros brilhavam contra a seda azul de seu vestido. Ian sorriu para ela, os meigos olhos castanhos brilhando diante da figura florescente que ela exibia.
- Bem, talvez tenha tempo de conversar com Claire - ele sugeriu. Arqueou uma sobrancelha em minha direção. - Imagino que ela seja suficientemente educada para ouvir, mas, pelo amor de Deus, não declame um de seus poemas para ela ou ela vai pegar a primeira carruagem para Londres antes de Jamie e eu estarmos de volta.
Jenny estalou os dedos embaixo do nariz dele, sem se perturbar com a chacota.
- Não estou nem um pouco preocupada. Não há nenhuma carruagem para lá antes de abril e imagino que já terá se acostumado conosco a essa altura. Vá andando, Jamie está esperando por você.
Enquanto os homens cuidavam de seus afazeres, eu e Jenny passamos o dia numa sala de estar, ela costurando, eu enrolando fios de linha soltos e separando fios de seda pelas cores.
Aparentemente amistosas, rodeávamos uma à outra cautelosamente na conversa, entreolhando-nos pelo canto dos olhos. A irmã de Jamie, a mulher de Jamie. Jamie era o ponto central, tácito, em torno do qual nossos pensamentos giravam.
A infância compartilhada os unia para sempre, como as tramas de um tecido, mas as malhas do tecido estavam frouxas, pela ausência e pela suspeita, depois pelo casamento. O fio de Ian estivera presente em sua trama desde o começo, o meu era novo. Como as tensões iriam agir nesta nova urdidura, um fio contra o outro?
Nossa conversa versava sobre assuntos banais, porém com as palavras não pronunciadas claramente audíveis por baixo.
- Você administra esta casa sozinha desde que sua mãe morreu?
- Ah, sim. Desde que eu tinha dez anos.
Eu o alimentava e lhe dava amor desde que ele era um menino. O que você vai fazer com o homem que ajudei a criar?
-Jamie disse que você tem excelentes conhecimentos médicos.
- Cuidei do ombro dele quando nos conhecemos. Sim, sou capaz e gentil. Cuidarei dele.
- Soube que se casaram às pressas.
Casou-se com meu irmão por suas terras e dinheiro?
- Sim, foi tudo muito rápido. Eu nem sabia o verdadeiro sobrenome de Jamie até a hora da cerimônia.
Não sabia que ele era o senhor desta propriedade; só posso ter casado com ele por ele mesmo.
E assim a conversa prosseguiu durante toda a manhã, um almoço leve e até a tarde, sobre assuntos gerais, trocando pequenas informações, opiniões, piadas ligeiras e hesitantes, avaliando-nos mutuamente. Uma mulher que mantém uma mansão desde os dez anos, que administra uma propriedade desde a morte do pai e do desaparecimento do irmão, não era uma pessoa para ser avaliada de modo leviano e superficial. Eu me perguntava o que ela estaria pensando de mim, mas ela parecia tão capaz quanto seu irmão de ocultar seus pensamentos quando assim decidia.
Quando o relógio sobre o consolo da lareira começou a bater as cinco horas, Jenny bocejou e espreguiçou-se. A roupa que ela estava consertando deslizou pela elevação redonda de seu ventre e caiu no chão.
Ela começou a dobrar-se desajeitadamente para pegá-la, mas abaixei-me sobre os joelhos ao seu lado.
- Deixe que eu apanho.
- Obrigada... Claire. - A primeira vez que usava meu nome foi acompanhada de um sorriso tímido e eu o devolvi.
Antes que pudéssemos voltar à nossa conversa, fomos interrompidas pela chegada da sra. Crook, a governanta, que enfiou o longo nariz na sala e perguntou, preocupada, se havíamos visto o pequeno Jamie.
Jenny colocou sua costura de lado com um suspiro.
- Fugiu de novo, não foi? Não se preocupe, Lizzie, deve ter ido com o pai ou com o tio. Vamos ver, Claire. Eu gostaria de respirar um pouco de ar fresco antes do jantar.
Ela levantou-se com dificuldade e pressionou as mãos na parte baixa das costas. Gemeu e deu um sorriso enviesado.
- Mais ou menos três semanas. Mal posso esperar.
Caminhamos devagar pelo terreno, Jenny mostrando a cervejaria e a capela, explicando a história da propriedade e quando as diferentes partes haviam sido construídas.
Quando nos aproximamos de um dos cantos do pombal, ouvimos vozes no caramanchão.
- Lá está ele, o patife! - Jenny exclamou. - Espere até eu colocar as mãos nele!
- Espere um minuto. - Coloquei a mão em seu braço, reconhecendo a voz mais grave que sublinhava a do garoto.
- Não se preocupe, rapaz - disse a voz de Jamie. - Você vai aprender. É um pouco difícil, não é, quando seu pau não vai além do seu umbigo?
Estiquei a cabeça pela quina do pombal e o vi sentado em um bloco de cortar lenha, engajado em uma conversa com seu xará, que lutava bravamente com as pregas da sua roupa.
- O que está fazendo com a criança? - perguntei cautelosamente.
- Estou ensinando ao pequeno Jamie a arte de não mijar nos próprios pés - explicou. - Parece o mínimo que seu tio poderia fazer por ele.
Ergui uma das sobrancelhas.
- Falar é fácil. Parece que o mínimo que seu tio poderia fazer é mostrar-lhe.
Ele riu.
- Bem, já tivemos algumas demonstrações práticas. Mas tivemos um pequeno acidente da última vez. — Trocou um olhar acusatório com o sobrinho. - Não olhe para mim — disse para o garoto. — Foi tudo culpa sua. Eu disse a você para ficar parado.
- Ahã — Jenny pigarreou, secamente, com um olhar para o irmão e outro igual para o filho. O pequeno Jamie respondeu puxando a parte da frente de sua roupa larga acima da cabeça, mas o Jamie maior, sem se deixar envergonhar, riu alegremente e levantou-se, batendo a poeira de suas calças. Colocou a mão na cabeça do sobrinho, coberta com a própria roupa, e virou o menino na direção da casa.
- Para tudo há uma hora certa - citou - e uma hora certa para todo propósito sob o céu. Primeiro o trabalho, pequeno Jamie, depois o banho. E depois, graças a Deus, será hora do jantar.
Uma vez resolvidas as tarefas mais urgentes, Jamie aproveitou a tarde seguinte para me mostrar a casa. Construída em 1702, era realmente moderna para a sua época, com inovações como fogões de porcelana para aquecimento e um grande forno de tijolos construído na parede da cozinha, de modo que o pão já não era assado nas cinzas da lareira. As paredes do corredor, da escadaria e da sala de estar eram cobertas de quadros. Aqui e ali, via-se uma paisagem pastoral ou o estudo de um animal, mas a maioria era da família e suas ligações.
Parei diante de um quadro de Jenny quando menina. Estava sentada no muro do jardim, uma trepadeira de folhas vermelhas por trás. Alinhada diante dela em cima do muro, via-se uma fileira de pássaros; andorinhas, um tordo, uma cotovia e até mesmo um faisão, todos se acotovelando e empurrando para achar uma posição ao lado de sua dona, que ria. Era bem diferente dos retratos formalmente posados, em que um ancestral ou outro olhavam fixamente de sua moldura como se o colarinho os sufocasse.
- Minha mãe pintou este aqui - Jamie disse, notando meu interesse. -Ela pintou vários dos que podem ser vistos no vão da escada, mas há apenas dois pintados por ela aqui. Ela mesma preferia este. — O dedo grande e rombudo tocou a superfície da tela delicadamente, percorrendo a linha da trepadeira de folhas vermelhas. — Estes eram os pássaros adestrados de Jenny. Sempre que um pássaro era encontrado mancando ou com a asa quebrada, quem o encontrasse trazia para ela e em poucos dias ela o teria curado e ele estaria comendo na sua mão. Este sempre me fez lembrar Lan. — O dedo tamborilou em cima de um faisão, as asas abertas para manter o equilíbrio, fitando sua dona com olhos escuros e amorosos.
- Você é terrível, Jamie - eu disse, rindo. - Há um de você?
- Ah, sim. - Conduziu-me para o outro lado da sala, perto da janela-Dois meninos ruivos, vestidos com seus tartãs, fitavam-nos solenemente de sua moldura, sentados com um enorme cão veadeiro. Deviam ser Nairn, o avô de Bran, Jamie e seu irmão mais velho, Willie, que morrera de varíola aos onze anos. Jamie não devia ter mais de dois anos quando aquele quadro fora pintado, pensei; estava de pé entre os joelhos de seu irmão mais velho, com uma das mãos sobre a cabeça do cão de caça.
Jamie me falara de Willie durante nossa viagem de Leoch, em uma noite junto à fogueira no fundo de uma ravina solitária. Lembrei-me da pequena cobra, esculpida em cerejeira, que ele tirara da bolsa em sua cintura para me mostrar. "Willie a deu para mim quando fiz cinco anos", dissera, o dedo acariciando suavemente as linhas sinuosas. Era uma cobrinha engraçada, o corpo artisticamente retorcido e a cabeça virada para trás para espreitar por cima do que teria sido seu ombro, se cobras tivessem ombros.
Jamie entregou-me o pequeno objeto de madeira e eu o revirei nas mãos, com curiosidade.
- O que está gravado na parte de baixo? S-a-w-n-y. Sawny?
- Sou eu — Jamie disse, abaixando a cabeça como se estivesse ligeiramente envergonhado. — É um apelido, uma brincadeira com meu segundo nome, Alexander. É como Willie costumava me chamar.
Os rostos no quadro eram muito semelhantes; todas as crianças Fraser tinham aquele olhar franco que o desafiava a considerá-los menos do que a avaliação que faziam de si mesmos. No entanto, neste retrato, as faces de Jamie eram rechonchudas e seu nariz ainda era pequeno como o de um bebê, enquanto os ossos fortes de seu irmão começavam a demonstrar a promessa do homem que poderia vir a ser, uma promessa jamais cumprida.
- Você gostava muito dele? — perguntei suavemente, colocando a mão em seu braço. Ele balançou a cabeça, desviando o olhar para as chamas na lareira.
- Ah, sim — disse com um fraco sorriso. — Ele era cinco anos mais velho do que eu e para mim era Deus, ou ao menos Cristo. Costumava segui-lo por toda parte; ao menos, a todo lugar onde ele deixava eu ir.
Virou-se e dirigiu-se às prateleiras de livros. Desejando lhe dar um momento consigo mesmo, permaneci onde estava, olhando pela janela.
Deste lado da casa, podia ver vagamente através da chuva o contorno de uma colina rochosa, com uma vegetação no cume, à distância. Fazia-me lembrar do monte das fadas onde eu atravessara uma rocha e emergira de uma toca de coelho. Apenas seis meses. Mas parecia há muito tempo.
Jamie viera ficar ao meu lado à janela. Fitando distraidamente a chuva forte, disse:
- Houve uma outra razão. A principal.
- Razão? - perguntei, tolamente.
- Para eu ter me casado com você.
- E qual foi? — Não sei o que eu esperava que ele dissesse, talvez alguma nova revelação sobre os assuntos emaranhados de sua família. A seu modo, o que ele disse foi um choque.
- Porque eu a queria. - Virou-se da janela para encarar-me. — Mais do que eu jamais desejara alguém na vida — acrescentou em voz baixa.
Continuei fitando-o, abismada. O que quer que eu esperasse, não era isso. Vendo minha expressão boquiaberta, continuou despreocupadamente:
- Quando perguntei ao meu pai como se sabia quem era a mulher certa, ele disse que quando chegasse a hora, eu não teria nenhuma dúvida. E não tive. Quando acordei no escuro debaixo daquele carvalho na estrada para Leoch, com você sentada no meu peito, xingando-me por estar esvaindo-me em sangue, disse a mim mesmo: Jamie Fraser, por menos que saiba a respeito dela e por mais que pese tanto quanto um bom cavalo, esta é a mulher."
Parti em sua direção e ele recuou, falando rapidamente:
- Disse a mim mesmo: "Ela o consertou duas vezes em poucas horas, rapaz; a vida entre os MacKenzie sendo o que é, parece uma boa medida se casar com uma mulher que sabe curar um ferimento e arrumar ossos quebrados." Então, disse a mim mesmo: "Jamie, meu rapaz, se o toque da mão dela é tão suave em sua clavícula, imagine como deve ser mais embaixo..."
Desviou-se de mim contornando uma cadeira.
- Claro, achei que podia ser o efeito de ter passado quatro meses em um mosteiro, sem o benefício de companhia feminina, mas depois daquela viagem no escuro juntos - parou para suspirar teatralmente, esquivando-se da minha tentativa de agarrá-lo pela manga da camisa —, com aquele traseiro grande e adorável encaixado entre minhas coxas — agachou-se evitando um golpe na orelha esquerda e tirou o corpo fora, colocando uma mesinha entre nós - e aquela cabeça dura como uma pedra batendo no meu peito - um pequeno ornamento de metal balançou-se e caiu no chão com estardalhaço -, disse a mim mesmo...
Ele ria tanto a essa altura que tinha que parar para respirar entre uma frase e outra.
- Jamie... eu disse... embora seja uma maldita Sassenach... com a língua de uma víbora... com uma bunda daquelas... que importa se ela tem uma cara de c-c-carneiro?
Eu o fiz tropeçar e aterrissei sobre seu estômago com os dois joelhos quando ele se estatelou no chão com um barulho que sacudiu a casa.
- Está querendo me dizer que se casou comigo por amor? - perguntei. Ele ergueu as sobrancelhas, lutando para conseguir respirar.
- E não foi... exatamente isso... que acabei de dizer? Agarrando-me pelos ombros com um dos braços, enfiou a outra por baixo da minha saia e começou a me infligir uma série de beliscões implacáveis naquela parte da minha anatomia que ele acabara de louvar.
Voltando para pegar sua cesta de bordados, Jenny entrou nesse momento e ficou olhando seu irmão, achando a situação engraçada.
- E o que você está fazendo, Jamie, meu rapaz? - perguntou, uma das sobrancelhas erguidas.
- Estou fazendo amor com minha mulher - respondeu, arfando, sem conseguir respirar entre o riso e a luta.
- Bem, podia achar um lugar mais adequado para isso - ela disse, erguendo a outra sobrancelha. - Este assoalho vai deixar farpas no seu traseiro.
Se Lallybroch era um lugar tranqüilo, também era atarefado. Todos pareciam voltar imediatamente à vida com os primeiros raios do sol e, então, a fazenda inteira girava e zumbia como um complexo mecanismo de relógio até depois do pôr-do-sol. Então, um a um, os dentes e rodas da engrenagem que faziam a propriedade funcionar começavam a se dispersar na escuridão, em busca de jantar e sumir, apenas para reaparecerem como mágica, cada qual em seu lugar, pela manhã.
Tão essencial cada homem, mulher e criança pareciam ser para o funcionamento do lugar que eu não podia imaginar como se sustentara nos últimos anos, sem seu mestre. Agora, não só as mãos de Jamie, como as minhas também eram forçadas ao trabalho em tempo integral. Pela primeira vez, compreendi as severas restrições escocesas contra a indolência que antes — ou depois, dependendo do ponto de vista - me pareceram apenas uma esquisitice. A ociosidade teria parecido não só um sinal de degradação moral, mas uma afronta à ordem natural das coisas.
Havia momentos, é claro. Aquelas pequenas brechas no tempo, logo desaparecidas, em que tudo parece ficar imóvel e a existência equilibra-se em um ponto perfeito, como o momento de passagem entre escuridão e luz, quando ambas e nenhuma nos envolve.
Desfrutava de tal momento na tarde do segundo ou terceiro dia desde a nossa chegada à fazenda. Sentada na cerca atrás da casa, podia ver campos marrom-dourados até a beira do penhasco depois da torre, com a malha de árvores no extremo oposto do desfiladeiro, turvando-se até ficar negra diante do brilho perolado do céu. Objetos próximos e distantes pareciam estar à mesma distância, uma vez que suas longas sombras confundiam-se com a penumbra.
O ar estava frio com o prenúncio de uma geada e pensei que devia entrar logo, embora relutasse em deixar a plácida beleza do lugar. Não percebi Jamie aproximar-se, até ele colocar as dobras pesadas de um manto sobre meus ombros. Não percebera o quanto estava frio até sentir o calor contrastante da lã grossa.
Os braços de Jamie envolveram-me junto com o manto e aninhei-me nele, estremecendo ligeiramente.
— Pude vê-la tremendo lá da casa — disse, segurando minhas mãos. — Pode pegar um resfriado, se não tomar cuidado.
- E quanto a você? — Virei-me para olhá-lo. Apesar do frio crescente, ele parecia completamente à vontade em nada além de sua camisa e kilt, sem nada mais do que um nariz levemente vermelho para mostrar que não se tratava de uma das mais amenas noites de primavera.
- Ah, bem, já estou acostumado. Os escoceses não têm o sangue fino como vocês sulistas puritanos.
Levantou meu queixo e beijou meu nariz, sorrindo. Segurei-o pelas orelhas e ajeitei seu alvo um pouco mais abaixo.
Durou o suficiente para nossas temperaturas terem se igualado quando ele me soltou e o sangue quente zumbia em meus ouvidos quando me inclinei para trás, equilibrando-me no parapeito da cerca. A brisa soprava por trás de mim, lançando alguns fios de cabelo no meu rosto. Ele os ajeitou para trás dos meus ombros, espalhando os cachos desordenados com os dedos para que a luz do sol poente atravessasse as mechas.
- Parece que você tem uma auréola, com a luz assim por trás de você — disse, ternamente. — Um anjo coroado de ouro.
- E de você - retruquei baixinho, delineando o contorno de seu maxilar onde a luz cor de âmbar cintilava nos pêlos de sua barba. - Por que não me disse antes?
Ele sabia o que eu queria dizer. Uma sobrancelha elevou-se e ele sorriu, metade do rosto iluminado pelo sol dourado, a outra imersa na sombra.
- Bem, eu sabia que você não queria se casar comigo. Não quis colocar um peso em você ou fazer papel de tolo dizendo-lhe na ocasião, quando era evidente que você iria mentir apenas para honrar os votos que preferia não ter feito. — Riu, os dentes brancos na penumbra, antecipando meu protesto. — A primeira vez, pelo menos. Tenho meu orgulho, mulher.
Estendi os braços e o puxei para mim, de modo que ele ficou entre minhas pernas enquanto eu estava sentada na cerca. Sentindo sua pele ligeiramente fria, envolvi seus quadris com as minhas pernas e o cobri com as abas do meu manto. Sob o abrigo do tecido de lã, seus braços abraçaram-me com força, pressionando meu rosto contra a cambraia de sua camisa.
- Meu amor - ele sussurrou. — Ah, meu amor. Eu a quero tanto.
- Não é a mesma coisa, não? — eu disse. - Amar e desejar, quero dizer. Ele riu, um pouco rouco.
- Quase a mesma coisa, Sassenach, para mim, pelo menos. - Eu podia sentir a firmeza de seu desejo, rígido e premente. Deu um passo para trás repentinamente e, inclinando-se, levantou-me da cerca.
- Onde estamos indo? - Afastávamo-nos da casa, em direção ao aglomerado de palhoças à sombra do bosque de olmos.
- Encontrar um monte de feno.
Gradualmente, encontrei meu próprio lugar na engrenagem da propriedade. Como Jenny já não conseguia fazer as longas caminhadas até as cabanas dos colonos, eu mesma comecei a visitá-los, às vezes acompanhada por um cavalariço, às vezes por Jamie ou Ian. Levava alimentos e remédios, tratava os doentes da melhor forma que me era possível e fazia sugestões para a melhoria da saúde e da higiene, que eram recebidas com graus variados de boa vontade.
Na própria Lallybroch, eu bisbilhotava pela casa e adjacências, tornando-me útil onde fosse possível, em geral nas hortas e jardins. Além do pequeno e adorável jardim ornamental, a mansão possuía um pequeno jardim de ervas medicinais e uma enorme horta, que fornecia nabos, repolhos e abóboras.
Jamie estava em toda parte; no gabinete com os livros de contabilidade, nos campos com os arrendatários, na estrebaria com Ian, compensando o tempo perdido. Havia mais do que dever ou interesse nisso também, eu achava. Logo teríamos que partir; ele queria deixar tudo funcionando de tal forma que continuaria a funcionar enquanto ele estivesse fora, até que ele - até que nós — pudéssemos voltar definitivamente.
Eu sabia que teríamos que partir, mas cercada pela casa e pelos arredores tranqüilos de Lallybroch e da companhia alegre de Jenny, Ian e do pequeno Jamie, sentia como se tivesse finalmente chegado em casa.
Após o desjejum em uma manhã, Jamie ergueu-se da mesa, anunciando que pensava em ir até o vale, para ver um cavalo que Martin Mack queria vender.
Jenny virou-se do aparador, a testa franzida.
- Acha seguro, Jamie? Tem havido patrulhas inglesas em toda a região nos últimos meses.
Ele encolheu os ombros, pegando o casaco da cadeira onde o deixara.
- Terei cuidado.
- Ah, Jamie - Ian disse, entrando com uma braçada de lenha para a lareira. - Queria lhe perguntar: você pode ir até o moinho hoje de manhã? Jock esteve lá ontem e disse que alguma coisa estava errada com a roda. Eu dei uma olhada rápida, mas nós dois juntos não conseguimos movê-la. Acho que há alguma sujeira presa nas engrenagens do lado de fora, mas fica bem dentro da água.
Bateu levemente com a perna de pau no chão, sorrindo para mim.
- Ainda posso andar, graças a Deus, e também montar, mas não consigo nadar. Fico me debatendo e girando em círculos como um inseto.
Jamie colocou o casaco sobre a cadeira de novo com um sorriso diante da descrição de seu cunhado.
- Não é tão ruim assim, Ian, se isso impede que você tenha que passar a manhã em um açude quase congelado. Sim, eu vou. - Voltou-se para mim
- Quer ir comigo, Sassenach? Está uma linda manhã e você pode trazer sua cestinha. — Lançou um olhar irônico à enorme cesta de vime que eu usava para colher plantas. - Vou trocar minha camisa. Já volto. - Dirigiu-se às escadas e subiu as escadas atleticamente, três degraus de cada vez.
Ian e eu trocamos um sorriso. Se havia algum pesar por tais façanhas estarem agora fora do seu alcance, ele o ocultava sob o prazer de ver a exuberância de Jamie.
- É bom tê-lo de volta - ele disse.
- Quem dera pudéssemos ficar - eu disse, pesarosa. Os meigos olhos castanhos alarmaram-se.
- Não estão pensando em ir embora já, não é? Sacudi a cabeça.
- Não, não imediatamente. Mas teremos que partir bem antes de a neve chegar. - Jamie decidira que nosso melhor roteiro seria ir para Beauly, lugar de origem do clã Fraser. Talvez seu avô, lorde Lovat, pudesse ajudá-los; se não, ele poderia pelo menos arranjar nossa entrada na França.
Lan balançou a cabeça, mais tranqüilo.
- Ah, sim. Mas ainda têm algumas semanas.
Era um belo e luminoso dia de outono, o ar pungente como a cidra e um céu tão azul que seria possível afogar-se nele. Caminhávamos devagar, para que eu pudesse ficar atenta a alguns pés de madressilvas silvestres e cardos temporãos, conversando descontraidamente.
- Semana que vem teremos o Dia do Trimestre - Jamie observou. -Seu vestido novo vai ficar pronto até lá?
- Acho que sim. Por quê, é uma ocasião especial?
Ele sorriu para mim, segurando a cesta enquanto eu me inclinava para colher um talo de tanásia.
- Ah, de certa forma, sim. Nada como os grandiosos eventos de Colum, sem dúvida, mas todos os arrendatários de Lallybroch virão pagar seus aluguéis... e prestar suas homenagens à nova senhora de Lallybroch.
- Imagino que ficarão surpresos por você ter se casado com uma inglesa.
- Acredito que alguns pais ficarão desapontados com isso; namorei uma garota ou duas pelas redondezas antes de ser preso e levado para Fort.
- Lamenta não ter se casado com uma garota do local? - perguntei, afetadamente.
- Se acha que vou responder "sim" com você aí parada, segurando uma faca de poda - observou -, tem uma opinião menos lisonjeira sobre o meu bom senso do que eu imaginava.
Larguei a faca de poda, com a qual começara a escavar, estendi meus braços e fiquei esperando. Quando ele finalmente me soltou, inclinei-me para pegar a faca outra vez e disse, provocando-o.
- Sempre me perguntei por que você permaneceu virgem por tanto tempo. Todas as garotas de Lallybroch são feias, então?
- Não - ele disse, estreitando os olhos para o sol da manhã. - Foi principalmente culpa do meu pai. Nós caminhávamos pelos campos no final da tarde, às vezes, ele e eu, e conversávamos sobre muitas coisas. E quando cheguei à idade de que isso fosse uma possibilidade, ele me disse que um homem tem que ser responsável por qualquer semente que plantar, porque é seu dever cuidar e proteger uma mulher. E se eu não estivesse preparado para fazer isso, não tinha o direito de sobrecarregar uma mulher com as conseqüências dos meus próprios atos.
Olhou para trás, para a casa. E em direção ao pequeno cemitério da família perto da torre, onde seus pais estavam enterrados.
- Ele disse que a melhor coisa na vida de um homem é se deitar com a mulher que ama - disse, em voz baixa. Sorriu para mim, os olhos tão azuis quanto o céu acima de nós. - Ele estava certo.
Toquei seu rosto delicadamente, traçando a larga elevação da face para o maxilar.
- No entanto, um pouco difícil para você, se ele esperava que levasse tanto tempo para se casar - eu disse.
Jamie riu, o kilt batendo em seus joelhos com a brisa enérgica do outono.
- Bem, a Igreja nos ensina que a masturbação é um pecado, mas meu pai disse que achava que se fosse preciso escolher entre masturbar-se ou abusar de uma mulher, um homem honrado deveria escolher fazer o sacrifício.
Quando parei de rir, sacudi a cabeça e disse:
- Não. Não, não vou perguntar. Mas você realmente se manteve virgem.
- Estritamente pela graça de Deus e de meu pai, Sassenach. Eu não pensava em mais nada a não ser garotas quando fiz quatorze anos. Mas foi nessa época que fui enviado para morar com Dougal, em Beannachd.
- Não havia garotas lá? - perguntei. - Pensei que Dougal tivesse filhas.
- Sim, tem. Quatro. As duas mais novas não são muito atraentes, mas a mais velha era muito bonita. Molly era um ou dois anos mais velha do que eu. E não muito interessada nas minhas atenções, eu acho. Eu costumava ficar olhando fixamente para ela à mesa do jantar e ela me olhava com desdém e perguntava se eu estava com catarro. Porque se estivesse, deveria ir para a cama, e se não, ela ficaria muito grata se eu fechasse a boca, porque não queria ficar olhando para as minhas amídalas enquanto comia.
- Estou começando a ver como você continuou virgem - eu disse, erguendo minhas saias para atravessar um mata-burro. — Mas não é possível que todas fossem iguais a ela.
- Não — ele disse pensativamente, segurando minha mão para me ajudar a atravessar o mata-burro. — Não eram. A irmã mais nova de Molly, Tabitha, era mais amistosa. - Sorriu, recordando-se.
- Tibby foi a primeira garota que beijei. Ou talvez devesse dizer a primeira garota que me beijou. Eu estava carregando dois baldes de leite para ela, do curral para a leiteria, maquinando o tempo todo como eu iria pegá-la atrás da porta, onde não havia espaço para fuga, e beijá-la. Mas minhas mãos estavam ocupadas e ela teve que abrir a porta para eu atravessar. Portanto, eu é que acabei atrás da porta e foi Tib que se aproximou de mim, me pegou pelas orelhas e me beijou. O leite também derramou -acrescentou.
- Parece ter sido uma primeira experiência memorável - eu disse, rindo.
- Duvido que tivesse sido a primeira dela — disse, rindo. — Ela sabia muito mais do assunto do que eu. Mas não chegamos a praticar muito; um ou dois dias depois, a mãe dela nos pegou na despensa. Ela não fez mais do que me lançar um olhar penetrante e dizer a Tibby para ir pôr a mesa do jantar, mas deve ter contado a Dougal.
Se Dougal MacKenzie fora rápido em se sentir insultado pela honra da irmã, eu podia imaginar o que deveria ter feito em defesa da honra de sua filha.
- Tremo só de pensar - eu disse, rindo.
- Eu também - Jamie disse, estremecendo. Lançou-me um olhar de esguelha, encabulado.
- Você sabe que os rapazes pela manhã, às vezes acordam com... bem, com... — Ficou ruborizado.
- Sim, eu sei - eu disse. - Também os homens mais velhos de vinte e três. Acha que não notei? Você já me fez observar isso várias vezes.
- Mmmmhum. Bem, na manhã seguinte, depois que a mãe de Tibby nos pegou, acordei assim. Eu estivera sonhando com ela, com a Tib, quero dizer, não com a mãe dela, e não fiquei surpreso de sentir a mão no meu pau. O que me surpreendeu é que a mão não era minha.
- Certamente não era de Tibby?
- Bem, não, não era. Era do pai dela.
- Dougal?! O quê?
- Bem, arregalei os olhos e ele sorriu para mim, muito satisfeito. Então, sentou-se na cama e tivemos uma boa conversa, tio e sobrinho, pai adotivo e filho adotivo. Disse o quanto estava satisfeito com a minha estada lá, ele próprio não tendo um filho, e tudo o mais. E como toda a sua família gostava muito de mim e tal. E como ele detestaria pensar que se pudesse tirar vantagem de sentimentos tão belos e inocentes quanto suas filhas deveriam ter por mim, mas como, é claro, ele estava tão contente por poder confiar em mim como confiaria em seu próprio filho.
- E durante o tempo todo em que ele falava e eu estava lá deitado, ele mantinha uma das mãos na adaga e a outra pousada nas minhas jovens bolas. Então, eu dizia "Sim, tio" e "Não, tio" e, quando ele saiu, enrolei-me na colcha e sonhei com porcos castrados. E não beijei uma garota de novo até os dezesseis anos, quando fui para Leoch.
Olhou para mim, sorrindo. Seus cabelos estavam amarrados na nuca com uma tira de couro, mas as mechas mais curtas estavam espetadas para cima no alto da cabeça como de costume, com reflexos vermelhos e dourados no ar límpido e frio. Sua pele bronzeada adquirira um tom dourado durante nossa viagem de Leoch e Craigh na Dun, e ele parecia uma folha de outono, voando alegremente ao vento.
- E quanto a você, minha linda Sassenach? - perguntou, rindo. - Os rapazes ficavam arfando nos seus calcanhares ou você era tímida e recatada?
- Um pouco menos do que você - eu disse, com ar sério. - Eu tinha oito anos.
- Por Jezebel! Quem foi o felizardo?
- O filho do intérprete. Foi no Egito. Ele tinha nove anos.
- Ah, bem, então você não teve culpa. Desencaminhada por um homem mais velho. E um maldito pagão, ainda por cima.
O moinho surgiu lá embaixo, belo como num quadro, com uma trepadeira vermelho-escura subindo, resplandecente, na lateral da parede de argamassa amarela, com persianas abertas para a luz do dia, bem arrumadas, apesar da pintura verde desbotada. A água jorrava alegremente pela barragem sob a roda-d'água parada no açude do moinho. Havia até patos no açude, marrecos e patos selvagens fazendo uma pausa para descanso em sua rota para o sul.
- Olhe - eu disse, parando no topo da colina, colocando a mão no braço de Jamie para fazê-lo parar. - Não é lindo?
- Seria bem mais bonito se a roda-d'água estivesse funcionando -disse, de modo prático. Depois, olhou para mim e sorriu.
- Sim, Sassenach. É um lindo lugar. Eu costumava nadar aqui quando era garoto. Há um lago depois da curva do riacho.
Um pouco mais abaixo na colina, o lago tornou-se visível em meio aos salgueiros. Os garotos também. Havia quatro, brincando, espalhando água e gritando, todos nus em pêlo.
- Brrr — disse, vendo-os. O tempo estava bom para o outono, mas havia uma friagem no ar e fiquei satisfeita por ter trazido um xale. — Fico gelada, só de vê-los.
- Ah, é? - Jamie disse. - Bem, deixe-me esquentá-la.
Com um olhar para os garotos no riacho, ele recuou para a sombra de uma enorme castanheira. Passou as mãos pela minha cintura e puxou-me para junto dele na meia-luz.
- Você não foi a primeira garota que beijei - disse docemente. — Mas juro que será a última. - E inclinou a cabeça para o meu rosto voltado para cima.
Depois que o moleiro saiu de sua toca e apresentações rápidas foram feitas, retirei-me para a margem do açude, enquanto Jamie passava vários minutos ouvindo uma explicação do problema. Quando o moleiro voltou para a moenda, para tentar girar a grande moenda de pedra pelo lado de dentro, Jamie parou por um instante, fitando as águas fundas e cheias de ervas daninhas da barragem. Finalmente, com uma contração dos ombros em resignação, começou a tirar as roupas.
— Não tem jeito — observou. — Ian tem razão; há alguma coisa presa na roda embaixo da represa. Vou ter que descer e... — Interrompido pela minha exclamação de surpresa, virou-se para onde eu estava sentada na margem com minha cesta.
— E o que há de errado com você? - perguntou. - Nunca viu um homem de ceroulas antes?
— Não... não iguais... a estas. - consegui dizer entre acessos de riso. Precavendo-se contra a necessidade de mergulhar nas águas frias, vestira por baixo do kilt uma espécie de calção incrivelmente antiquado, originalmente de flanela vermelha, agora manchado com uma surpreendente variedade de cores e matizes. Obviamente, aquele par de ceroulas pertencera a alguém com muitos centímetros a mais na cintura do que Jamie. Pendiam precariamente de seus quadris, formando bolsas sobre sua barriga plana.
— Do seu avô? — arrisquei, fazendo um esforço extremamente mal-sucedido de reprimir o riso. - Ou de sua avó?
— Do meu pai - disse, friamente, olhando-me com desdém. - Não espera que eu nade pelado como um ovo diante de minha mulher e dos meus inquilinos, não é?
Com considerável dignidade, ele recolheu o excesso de pano com uma das- mãos e foi entrando no açude. Caminhando na água apenas com a cabeça para fora, ele tomou posição e, em seguida, com uma respiração funda, aprumou-se e submergiu, a última visão que tive dele usando os fundilhos inflados das ceroulas de flanela vermelha. O moleiro, debruçado à janela da casa do moinho, gritava palavras de encorajamento e instruções, sempre que a cabeça molhada e lustrosa irrompia na superfície para respirar.
As margens do reservatório eram cobertas de plantas aquáticas e eu fiquei remexendo com minha vara de escavar, à cata de raízes de malva e das folhas finas da filipêndula. Já tinha a cesta cheia pela metade quando ouvi um pigarro educado às minhas costas
Era uma senhora muito idosa, ou aomenos assim parecia. Apoiava-se numa vara de pilriteiro, enrolada em roupas que devia usar há vinte anos, atualmente volumosas demais para a figura encarquilhada e encolhida que a habitava agora.
- Bom dia — ela disse, balançando a cabeça sem parar. Usava uma espécie de touca branca e engomada que escondia a maior parte de seus cabelos, mas alguns fios grisalhos projetavam-se para fora, ao lado das faces encarquilhadas como maçãs secas.
- Bom dia — respondi, procurando me empertigar, mas ela avançou alguns passos e deixou-se cair ao meu lado com uma graciosidade surpreendente. Esperava que ela conseguisse se levantar de novo.
- Eu sou... - comecei, porém mal ameaçara abrir a boca quando ela me interrompeu.
- Deve ser a nova senhora, é claro. Sou a sra. MacNab, Vovó MacNab, como me chamam, sendo todas as minhas noras sras. MacNab também. -Estendeu a mão escarnada e puxou minha cesta para perto dela, espreitando o seu conteúdo.
- Raiz de malva... ah, essa é boa para tosse. Mas não vai querer usar esta, dona. - Cutucou um pequeno bulbo marrom. - Parece raiz de lírio, mas não é.
- O que é? — perguntei.
- Ofioglosso. Coma um desses, dona, e estará rolando pelo chão, se contorcendo de dor. - Tirou o tubérculo da cesta e atirou-o no reservatório, fazendo a água respingar com o impacto. Colocou a cesta no colo e examinou habilmente as demais plantas, enquanto eu observava com um misto de diversão e irritação. Finalmente, satisfeita, devolveu-a.
- Bem, você não é nada boba para uma Sassenach — observou. - Pelo menos, sabe diferenciar betônica de fedegoso. - Lançou um olhar para o açude, onde a cabeça de Jamie apareceu por um instante, lisa e lustrosa como uma foca, antes de desaparecer outra vez sob a casa do moinho. — Vejo que o senhor de Lallybroch não se casou com você apenas pelo seu rosto.
- Obrigada - disse, preferindo interpretar a frase como um elogio. Os olhos da velha senhora, penetrantes como agulhas, estavam presos ao meu ventre.
- Ainda não está grávida? - perguntou. — Folhas de framboesa. Macere um punhado com frutos da roseira brava e beba na lua crescente, antes de ficar cheia. Depois, quando ela começar a minguar, tome um pouco de uva-espim para purificar seu útero.
- Ah - exclamei -, bem...
- Eu tinha um pequeno favor a pedir ao senhor - continuou a velha senhora. - Mas como vejo que ele está um pouco ocupado no momento, vou falar com você sobre isso.
- Está bem - concordei frouxamente, não vendo como poderia impedi-la, de qualquer forma.
- É o meu neto - ela disse, olhando-me fixamente com pequenos olhos cinzas do tamanho e brilho de bolas de gude. - Meu neto Rabbie; ao todo, tenho dezesseis netos e três deles de nome Robert, mas um é Bob, o outro é Rob e o pequeno é Rabbie.
- Parabéns - eu disse educadamente.
- Queria que o senhor empregasse o rapaz como cavalariço — continuou.
- Bem, não sei se...
- É o pai dele, sabe — ela disse, inclinando-se para a frente em tom confidencial. - Não que eu não ache que um pouco de firmeza seja errado; poupe a vara e estragará a criança, tenho dito muitas vezes e o bom Deus sabe muito bem que os garotos foram feitos para apanhar ou não os teria criado com tanta parte do diabo. Mas quando se trata de empurrar uma criança na lareira e ela ficar com uma mancha roxa no rosto do tamanho da minha mão, e por nada além de pegar mais um bolinho no prato, então...
- O pai de Rabbie bate nele, quer dizer? — interrompi.
A velha senhora balançou a cabeça, satisfeita com minha inteligência ágil.
— Isso mesmo. E não é isso que eu estava dizendo? — Ergueu uma das mãos. - Bem, normalmente, é claro que eu não interferiria. Um homem faz com seu filho o que achar melhor, mas... bem, Rabbie de certa forma é meu neto favorito. E não é culpa do garoto se seu pai é um beberrão, por mais vergonhoso que seja sua própria mãe ter que dizer isso.
Apontou um dedo admonitório como uma vara.
- Não que o pai de Ronald não tomasse uns goles a mais uma vez ou outra. Mas nunca encostou a mão em mim ou nas crianças, ao menos não depois da primeira vez — acrescentou, pensativamente. Piscou os olhos subitamente para mim, as pequenas bochechas lisas e rosadas como maçãs no verão, de modo que pude imaginar a jovem atraente e cheia de vivacidade que ela deve ter sido.
- Ele me bateu uma vez - ela confidenciou - e eu peguei o ferro da lareira e acertei a cabeça dele. - Balançou-se para a frente e para trás, rindo. - Achei que o tinha matado e fiquei chorando e segurando a cabeça dele no colo, pensando o que eu iria fazer, uma viúva com dois filhos para alimentar? Mas ele se recuperou — ela disse, candidamente - e nunca mais encostou a mão em mim ou nas crianças outra vez. Eu pari treze, sabe -disse com orgulho. - E criei dez.
- Parabéns - eu disse, sinceramente.
- Folhas de framboesa — disse, colocando a mão em meu joelho como se me contasse um segredo. - Ouça o que eu digo, dona, folhas de framboesa darão um jeito. E se não, venha me ver e eu lhe prepararei uma bebida grossa feita de margaridas-amarelas e sementes de abóbora, com um ovo cru batido. Vão levar a semente do seu homem diretamente para seu útero, sabe, e estará redonda como uma abóbora quando a Páscoa chegar.
Tossi, ficando um pouco ruborizada.
- Mmmmhum. E quer que Jamie, hã, o senhor, quero dizer, contrate seu neto como cavalariço para afastá-lo do pai?
- Sim, isso mesmo. Rabbie é muito trabalhador e o senhor não...
O rosto enrugado da velha senhora ficou paralisado no meio de sua animada conversa. Virei-me para olhar por cima do ombro e também fiquei paralisada. Soldados ingleses. Dragões, seis deles, a cavalo, descendo cuidadosamente a colina em direção ao moinho.
Com admirável presença de espírito, a sra. MacNab levantou-se e sentou-se outra vez em cima das roupas de Jamie, suas saias rodadas ocultando tudo.
Ouviu-se barulho de água e uma respiração explosiva no açude atrás de mim, quando Jamie veio à superfície outra vez. Tive medo de gritar ou me mover, atraindo a atenção dos dragões para o lago, mas o repentino silêncio atrás de mim disse-me que ele os avistara. O silêncio foi quebrado por uma única palavra que ressoou pela água, baixinho, mas intensa em sua sinceridade:
- Merde - ele disse.
A velha senhora e eu ficamos sentadas, imóveis, o rosto impenetrável, observando os soldados descerem a colina. No derradeiro instante, quando fizeram a última volta no caminho do moinho, ela virou-se rapidamente para mim e colocou um dedo sobre os lábios ressequidos. Eu não devia falar para que não soubessem que era inglesa. Não tive tempo sequer de balançar a cabeça, em sinal de que havia compreendido, quando os cascos enlameados pararam a alguns passos de distância.
- Bom dia, senhoras - disse o líder. Era um cabo, mas não, fiquei feliz em constatar, o cabo Hawkins. Um olhar rápido mostrou-me que nenhum daqueles homens estava entre os que eu vira em Fort William e relaxei um pouco a mão que segurava a alça da cesta.
- Vimos o moinho lá de cima - disse o líder - e pensei em talvez comprar uma saca de farinha? - Dividiu uma mesura entre nós duas, sem saber a quem se dirigir.
A sra. MacNab foi fria, mas educada.
- Bom dia — disse, inclinando a cabeça. — Mas se veio à procura de farinha, receio que ficará desapontado. A roda do moinho não está funcionando no momento. Talvez da próxima vez que passe por aqui.
- Ah, é mesmo? O que há de errado? - O cabo, um homem jovem e baixo, com uma compleição jovial, pareceu interessado. Caminhou até a beira do lago para olhar atentamente para a roda-d'água. O moleiro, aparecendo na moenda para relatar os últimos progressos com a moenda, viu-o e rapidamente recuou e desapareceu de vista.
O cabo chamou um de seus homens. Subindo o barranco, ele gesticulou para o outro soldado, que obedientemente agachou-se para que o cabo pudesse subir em suas costas. Esticando-se, conseguiu agarrar-se à beira do telhado com as duas mãos e com um impulso subiu no teto de sapê. De pé, ele mal conseguia tocar a borda da enorme roda. Esticou-se e balançou-a com as duas mãos. Inclinando-se para baixo, gritou para o moleiro, através da janela, para tentar girar a moenda à mão.
Obriguei-me a manter os olhos afastados do fundo do açude. Eu não estava suficientemente familiarizada com o funcionamento de rodas-d'água para ter certeza, mas temia que se a roda cedesse repentinamente, qualquer coisa próxima às engrenagens submersas poderia ser esmagada. Aparentemente, esse não era um temor infundado, porque a sra. MacNab falou rispidamente para um dos soldados que estava perto de nós.
- Você devia mandar seu chefe descer, rapaz. Não vai adiantar nada para ele nem para o moinho. Não deviam se meter com o que não entendem.
- Ah, não precisa se preocupar, senhora — disse o soldado descontraidamente. - O pai do cabo Silver possui um moinho de trigo em Hamp-shire. O que o cabo não entende de rodas-d'água caberia no meu sapato.
A sra. MacNab e eu trocamos olhares de espanto. O cabo, depois de mais algumas idas e vindas ao telhado e tentativas exploratórias remexendo e cutucando, desceu para onde estávamos sentadas. Suava copiosamente e limpou o rosto vermelho com um lenço grande e sujo antes de se dirigir a nós.
- Não posso movê-la de cima e esse moleiro idiota parece não falar nem uma palavra de inglês. - Olhou para a vara firme da sra. MacNab e suas pernas tortas, depois para mim. - Talvez a jovem pudesse vir e falar com ele para mim?
A sra. MacNab estendeu a mão num gesto protetor, agarrando-me pela manga.
— Vai ter que desculpar minha nora, senhor. Ela ficou meio perturbada da cabeça desde que seu último bebê nasceu morto. Não diz uma palavra há mais de um ano, a pobre menina. E não posso deixá-la sozinha um só instante, com medo de que ela se atire na água em sua tristeza.
Fiz o melhor possível para parecer abobalhada, o que não foi nenhum esforço no meu estado de espírito atual. O cabo pareceu desconcertado.
- Ah - exclamou. - Bem... - Andou de um lado para o outro pela borda do açude, ainda franzindo a testa e olhando para a água. Olhava exatamente como Jamie o fizera há uma hora e aparentemente pela mesma razão.
— Não adianta, Collins — disse ao velho soldado. — Vou ter que mergulhar e ver o que está prendendo a roda. - Tirou o casaco vermelho dos dragões da cavalaria e começou a desabotoar os punhos da camisa. Troquei um olhar horrorizado com a sra. MacNab. Embora pudesse haver ar suficiente embaixo da casa do moinho para sobreviver, certamente não havia espaço para se esconder adequadamente.
Estava considerando, sem muito otimismo, as chances de dar início a um convincente ataque epilético, quando a enorme roda rangeu repentinamente acima de nossa cabeça. Com o som de uma árvore sendo abatida, o grande arco fez uma súbita meia-volta, parou por um instante, depois começou a girar regularmente, as pás vertendo alegremente brilhantes riozinhos dentro do açude.
O cabo parou no meio do ato de se despir, olhando admirado para o arco da roda.
- Veja só, Collins! O que será que estava preso na roda?
Como em resposta, algo apareceu no topo da roda. Ficou pendurado em uma das pás, as dobras vermelhas e encharcadas escorrendo água. A pá bateu na corrente de água e submergiu com estardalhaço no açude, o objeto se desprendeu e as antigas ceroulas do pai de Jamie flutuaram majestosamente pelas águas do açude do moinho.
O soldado mais velho pescou-as com uma vareta, entregando-as cuidadosamente ao seu comandante, que as pegou da vara como um homem obrigado a pegar um peixe morto.
- Hum - resmungou, erguendo a peça do vestuário com ar crítico. -De onde será que saiu? Deve ter ficado preso no eixo. É engraçado como algo assim pudesse causar tanto problema, não é, Collins?
— Sim, senhor. — O soldado obviamente não considerava as engrenagens internas da roda de um moinho escocês algo de grande interesse, mas respondeu educadamente.
Depois de revirar o pano uma ou duas vezes, o cabo deu de ombros e usou-o para limpar as mãos.
- Um bom pedaço de flanela - disse, torcendo o pano encharcado. -Vai servir para polir tachas, ao menos. Uma espécie de souvenir, não é, Collins? - Em seguida, com uma mesura cortês para nós duas, voltou-se para seu cavalo.
Mal os dragões haviam desaparecido de vista por cima da colina quando um barulho de água espadanada vindo do lago do moinho anunciou a subida das profundezas do duende das águas.
Ele estava completamente sem sangue, azulado, parecendo mármore de Carrara, e seus dentes batiam de tal forma que eu mal consegui entender suas primeiras palavras, que, de qualquer forma, eram em gaélico.
A sra. MacNab não teve dificuldade em entendê-las e seu velho maxilar caiu. Entretanto, fechou-o imediatamente e fez uma grande reverência ao senhor saído das águas. Vendo-a, ele parou seu avanço em direção à margem, a água ainda batendo recatadamente à altura de sua cintura. Respirou fundo, cerrando os dentes para impedir que chocalhassem, e tirou uma fita de lentilha-d'água do ombro.
- Sra. MacNab - disse, cumprimentando sua velha locatária com um movimento da cabeça.
- Senhor - ela disse, inclinando-se outra vez. - Um belo dia, não é?
- Um p-pouco revigorante — disse, lançando-me um olhar. Encolhi os ombros, desarvorada.
- Estamos felizes por vê-lo de volta à sua casa, senhor, e esperamos, os meninos e eu mesma, que logo volte definitivamente.
- Eu também, sra. MacNab - Jamie disse educadamente. Fez um sinal com a cabeça para mim, olhando-me de modo incisivo. Sorri brandamente.
A senhora, ignorando esse jogo paralelo, dobrou as mãos nodosas no colo e tentou empertigar-se com dignidade.
- Tenho um pequeno favor a pedir a Vossa Senhoria - começou - a respeito...
- Vovó MacNab - Jamie interrompeu, avançando mais um passo ameaçador na água —, o que quer que seja, eu farei. Desde que me devolva minha camisa antes que minhas partes caiam congeladas de frio.
À noite, depois de terminada a ceia, geralmente nos sentávamos na sala de estar com Jenny e Ian, conversando amigavelmente sobre assuntos diversos ou ouvindo as histórias de Jenny.
Esta noite, entretanto, foi minha vez. Eu deixei Jenny e Ian arrebatados ao contar-lhes sobre a sra. MacNab e os soldados ingleses.
- "Deus sabe muito bem que os garotos foram feitos para apanhar ou não os teria criado com tanta parte do diabo." - Minha imitação da Vovó MacNab fez todos desatarem em gargalhadas.
Jenny limpou as lágrimas de tanto rir.
- Meu Deus, é bem verdade. E ela sabe melhor do que ninguém. Quantos garotos ela teve, Ian, oito?
Ian balançou a cabeça.
- Sim, no mínimo. Não consigo nem me lembrar do nome de todos eles; parecia sempre haver um ou dois MacNab por perto para irmos caçar, pescar ou nadar, quando Jamie e eu éramos crianças.
- Vocês cresceram juntos? — perguntei. Jamie e Ian trocaram longos olhares cúmplices.
- Ah, sim, nós nos conhecemos - Jamie disse, rindo. - O pai de Ian era o administrador de Lallybroch, como Ian é agora. Em diversas ocasiões durante a minha imprudente juventude, eu me vi lado a lado com o sr. Murray aí, explicando para um ou outro de nossos respectivos pais como as aparências podem ser enganadoras ou, quando isso fracassava, como as circunstâncias alteram um caso.
- E quando isso não funcionava - Ian disse -, eu me vi em um número igual de ocasiões debruçado sobre a cerca juntamente com o sr. Fraser aqui, ouvindo-o esgoelar-se enquanto eu esperava a minha vez.
- Nunca! — retrucou Jamie, indignado. — Eu nunca gritei.
- Chame aquilo do que quiser, Jamie - seu amigo respondeu -, mas você fazia um bocado de barulho.
- Vocês dois podiam ser ouvidos a quilômetros de distância - Jenny interpôs. — E não somente os gritos. Podia-se ouvir Jamie argumentando o tempo todo, até chegar à cerca.
- Sim, você devia ter sido advogado, Jamie. Mas não sei por que eu sempre deixava que você argumentasse — disse Ian, sacudindo a cabeça. — Você sempre acabava nos metendo em mais confusão do que já estávamos.
Jamie começou a rir de novo.
- Está falando da torre?
- Estou. - Ian voltou-se para mim, fazendo um sinal para oeste, onde a antiga torre de pedra erguia-se da colina atrás da casa.
- Essa foi uma das melhores argumentações de Jamie - continuou, revirando os olhos. - Ele disse a Brian que não era civilizado usar a força física para fazer um ponto de vista prevalecer. O castigo físico era bárbaro, ele disse, e antiquado ainda por cima. Surrar alguém só porque havia cometido um ato com cujas ramificações, foi assim mesmo, com cujas ramificações você não concorda, não era em absoluto uma forma construtiva de punição....
A essa altura, todos havíamos desatado a rir.
- E Brian ouviu tudo isso? — perguntei.
- Ah, sim. — Ian balançou a cabeça. — Eu só fiquei lá, em pé ao lado de Jamie, balançando a cabeça toda vez que ele parava para respirar. Quando finalmente as palavras de Jamie se esgotaram, seu pai tossiu um pouco e disse: "Compreendo." Em seguida, virou-se e ficou olhando pela janela por alguns instantes, agitando a correia de couro e balançando a cabeça, como se estivesse pensando. Nós ficamos ali de pé, lado a lado, como Jamie disse, suando. Finalmente, Brian virou-se e nos disse para segui-lo até a estrebaria.
- Deu uma vassoura, uma escova e um balde a cada um e apontou em direção à torre - Jamie disse, continuando a história. - Disse que eu o havia convencido do meu ponto de vista e que, portanto, ele havia se decidido por uma forma de castigo mais "construtivo".
Os olhos de Ian reviraram-se lentamente para cima, como se seguisse as pedras ásperas da torre de baixo para cima.
- Aquela torre tem vinte metros de altura — disse-me — e dez metros de diâmetro, com três andares. - Soltou um suspiro. - Nós varremos tudo, de cima para baixo, e esfregamos tudo. Levamos cinco dias e até hoje, toda vez que tusso, posso sentir o gosto de palha de aveia estragada.
- E você tentou me matar no terceiro dia -Jamie disse - por ter metido a gente naquilo. — Tocou a cabeça com cuidado. — Fiquei com um corte enorme acima da orelha, onde você me atingiu com a vassoura.
- Ah, bem - Ian disse despreocupadamente —, isso foi depois de você ter quebrado meu nariz pela segunda vez, de modo que ficamos quites.
- Você pode confiar num Murray para manter um registro — Jamie disse, sacudindo a cabeça.
- Vejamos - eu disse, contando nos dedos. - Segundo você, os Fraser são teimosos, os Campbell são sorrateiros, os MacKenzie são charmosos, porém dissimulados, e os Graham são burros. Qual a principal característica dos Murray?
- Você pode contar com eles numa briga - Jamie e Ian responderam juntos e depois riram.
- É verdade - disse Jamie, recobrando-se. - Você só torce para que eles estejam do seu lado. — E os dois homens prorromperam em acessos de riso outra vez.
Jenny sacudiu a cabeça para o irmão e o marido com ar de desaprovação.
- E nós ainda nem tomamos nenhum vinho - disse. Deixou sua costura de lado e levantou-se com esforço. - Venha comigo, Claire; vamos ver se a sra. Crook fez biscoitos para acompanhar o porto.
Voltando pelo corredor quinze minutos depois com bandejas de comes-e-bebes, ouvi Ian dizer:
- Então você não se importa, Jamie?
- Me importo com quê?
- Que tenhamos nos casado sem o seu consentimento, eu e Jenny, quero dizer.
Jenny, andando à minha frente, parou de repente junto à porta que dava na sala de estar.
Ouviu-se um leve resfolegar do sofá de dois lugares onde Jamie se espalhara, os pés em cima de uma almofada daquelas usadas para se ajoelhar em igreja.
- Como eu não lhe disse onde estava e você não tinha nenhuma idéia de quando eu voltaria, se é que voltaria, não posso culpá-lo por não esperar.
Eu podia ver Ian de perfil, inclinado sobre o cesto de lenha. Seu rosto longo e amável tinha um ar ligeiramente preocupado.
-Bem, não achava direito, especialmente sendo eu aleijado... Ouviu-se um resfolegar mais alto.
- Jenny não poderia ter um marido melhor, mesmo que você tivesse perdido as duas pernas e os braços também - Jamie disse bruscamente. A pele clara de Ian ruborizou-se levemente, constrangido. Jamie tossiu e tirou as pernas da almofada, inclinando-se para pegar uns gravetos que haviam caído do cesto.
- Como você veio a se casar, então, considerando-se seus escrúpulos? ---- perguntou, um dos cantos da boca curvando-se para cima.
- Tenha piedade, homem - Ian protestou. - Acha que eu tive alguma escolha na questão? Contra uma Fraser? - Sacudiu a cabeça, rindo para seu amigo.
-- Ela veio até mim no campo uma vez, quando eu tentava consertar uma carroça que perdera a roda. Arrastei-me de baixo da carroça, todo coberto de sujeira, e a vi parada ali, parecendo um arbusto coberto de borboletas. Olhou-me de cima a baixo e disse... - Parou e coçou a cabeça. -Bem, não sei exatamente o que ela disse, mas acabou com ela me beijando, sem se preocupar com o fato de eu estar imundo, e dizendo: "Muito bem, então, nos casaremos no Dia de São Martinho." - Abriu as mãos num gesto cômico de resignação. — Eu ainda estava explicando por que não podíamos fazer tal coisa, quando me vi diante do padre, dizendo: "Eu a aceito, Janet..." e fazendo um monte de juramentos inverossímeis. Jamie balançou-se para a frente e para trás, rindo.
- Sim, sei como é - ele disse. - Faz com que você sinta um frio na barriga, não é?
Ian sorriu, todo o acanhamento esquecido.
- Isso e tudo o mais. Eu ainda sinto essa sensação, sabe, quando vejo Jenny de repente, parada contra o sol na colina, ou segurando o pequeno Jamie, sem olhar para mim. Eu a vejo e penso: "Meu Deus, não é possível que ela seja minha, não pode ser verdade." - Sacudiu a cabeça, os cabelos castanhos caídos na testa. - E então, ela se vira e sorri para mim... - Ergueu os olhos para seu cunhado, um amplo sorriso no rosto.
- Bem, você sabe do que estou falando. Posso ver que é a mesma coisa com você e sua Claire. Ela é... muito especial, não?
Jamie balançou a cabeça, concordando. O sorriso não deixou seu rosto, mas alterou-se de certo modo.
- Sim - disse suavemente. - Sim, é.
Enquanto comíamos e bebíamos, Jamie e Ian continuaram com as reminiscências de sua infância compartilhada e de seus pais. O pai de Ian, William, morrera logo depois da primavera, deixando Ian para administrar a propriedade sozinho.
- Lembra do dia em que seu pai veio nos pegar na fonte e nos fez acompanhá-lo até o ferreiro para que víssemos como se conserta a trava da carroça?
- Sim e ele não conseguia entender por que a gente continuava se remexendo e contorcendo...
- E ficava perguntando se precisávamos ir ao banheiro...
Os dois homens riam tanto que não conseguiam terminar de contar a história, então olhei para Jenny.
- Sapos — ela disse, sucintamente. - Cada um deles tinha cinco ou seis sapos dentro da camisa.
- Ah, meu Deus - Ian exclamou. - Quando um deles subiu pelo seu pescoço e pulou fora de sua camisa para dentro da fornalha, achei que eu ia morrer.
- Não posso imaginar por que meu pai não torceu meu pescoço em diversas ocasiões - Jamie disse, sacudindo a cabeça. - É um milagre eu ter sobrevivido.
Ian olhou com um olhar pensativo para seu próprio filho, perto da lareira, laboriosamente empenhado em empilhar blocos de madeira. - Não faço a menor idéia de como vou lidar com isso, quando chegar a hora de eu ter que surrar meu próprio filho. Quero dizer... ele é, bem, tão pequeno. - Fez um gesto desalentado na direção da pequena e robusta figura, absorta em sua tarefa.
Jamie examinou seu homônimo comicamente.
- Sim, com o tempo ele será tão traquinas quanto eu e você fomos. Afinal, até eu devo ter parecido pequeno e inocente um dia.
- Parecia, sim - disse Jenny inesperadamente, vindo colocar uma caneca de cidra na mão de seu marido. Deu uns tapinhas na cabeça de seu irmão.
- Você era adorável quando era um bebê, Jamie. Lembro-me de ficar olhando-o no seu berço. Não devia ter mais do que dois anos, dormindo com o dedo na boca e nós concordávamos que jamais tínhamos visto um garoto tão bonito. Você tinha bochechas rechonchudas e lindos cachos ruivos.
O belo garoto adquiriu um interessante tom rosado e tomou sua cidra de um gole só, evitando os olhares.
- Mas não durou muito - Jenny disse, os dentes brancos reluzindo num sorriso malicioso para seu irmão. — Que idade você tinha quando levou sua primeira surra, Jamie? Sete?
- Não, oito - Jamie disse, empurrando mais um toco de lenha na pilha fumegante de brasas. - Meu Deus, como doeu. Doze golpes no traseiro e ele não afrouxou nem um pouco, do começo ao fim. Ele nunca afrouxava. — Sentou-se sobre os calcanhares, esfregando o nariz com os nós dos dedos. Suas faces estavam afogueadas e seus olhos brilhavam com o esforço.
- Quando terminou, papai saiu um pouco e sentou-se numa pedra enquanto eu me recobrava. Então, quando parei de berrar e passei a choramingar baixinho, ele me chamou. Pensando nisso agora, lembro-me exatamente de suas palavras. Talvez possa usá-las com o pequeno Jamie, Ian, quando chegar a hora. - Jamie cerrou os olhos, relembrando.
- Ele me colocou entre seus joelhos, me fez olhar para ele e disse: Essa é a primeira vez, Jamie. Terei de fazer isso de novo, talvez cem vezes, até você se tornar um homem. Riu um pouco e continuou: "Meu pai fez isso comigo pelo menos tantas vezes e você é tão teimoso e cabeça-dura quanto eu era."
- Ele disse: "Às vezes, vou ousar dizer que tive prazer em bater em você, dependendo do que fez para merecer. Na maioria das vezes, não vou gostar. Mas eu o farei mesmo assim. Então, lembre-se, rapaz. Se sua cabeça inventar travessuras, seu traseiro vai pagar por isso." Em seguida, me deu um abraço e disse: "Você é um menino corajoso, Jamie. Vá para casa agora e deixe sua mãe confortá-lo." Abri a boca para dizer alguma coisa e ele disse, com a mesma rapidez: "Não, sei que você não precisa, mas ela precisa. Vamos, vá até ela." Então, voltei para casa e mamãe me deu pão com geléia por causa disso.
Jenny desatou a rir de repente.
- Eu só me lembro — ela disse — que papai costumava contar essa história a seu respeito, Jamie, sobre a surra que lhe deu e o que você disse para ele. Disse que, depois que o mandou de volta para casa, você andou até a metade do caminho, depois parou de repente e ficou esperando por ele.
- Quando ele foi ao seu encontro, você ergueu os olhos para ele e disse: "Eu só queria perguntar, papai. Você gostou desta vez?" E quando ele respondeu que não, você balançou a cabeça e disse: "Ótimo. Porque eu também não gostei muito."
Todos rimos juntos, depois Jenny ergueu os olhos para seu irmão, sacudindo a cabeça:
- Ele adorava contar essa história. Papai sempre disse que você ia acabar matando-o, Jamie.
A alegria desapareceu do rosto de Jamie e ele abaixou os olhos para as grandes mãos pousadas sobre os joelhos.
- Sim - disse em voz baixa. - E acabei mesmo, não?
Jenny e Ian trocaram olhares de espanto e eu abaixei os olhos para o meu próprio colo, sem saber o que dizer. Fez-se um silêncio total por um instante, a não ser pelos estalidos do fogo. Então, Jenny, com um rápido olhar para Ian, colocou seu copo de lado e tocou o joelho de seu irmão.
- Jamie - ela disse. — Não foi culpa sua.
Ele ergueu o rosto para ela e sorriu, um pouco desoladamente.
- Não? De quem foi, então? Ela respirou fundo e respondeu:
- Minha.
- O quê? — Fitou-a, atônito, sem conseguir compreender.
Ela ficara um pouco mais pálida do que o normal, mas permaneceu controlada.
- Eu disse que a culpa foi minha, tanto quanto de qualquer outra pessoa. Pelo... pelo que aconteceu a você, Jamie. E ao papai.
Ele cobriu a mão de Jenny com a sua e afagou-a delicadamente.
- Não fale bobagem, menina — disse. - Você fez o que fez para tentar me salvar; você tem razão, se não tivesse ido com Randall, ele teria me matado aqui mesmo.
Ela examinou o rosto de seu irmão, as sobrancelhas franzidas numa ruga de preocupação.
- Não, não me arrependo de ter levado Randall para dentro de casa, nem mesmo se ele... bem, não. Mas não foi isso. - Respirou fundo outra vez, procurando ser forte.
- Quando eu o levei para dentro, trouxe-o para o meu quarto. E... eu não sabia bem o que esperar, eu nunca... estivera com um homem. Mas ele parecia muito nervoso, todo afogueado e como se ele próprio não estivesse muito seguro, o que me pareceu estranho. Ele me empurrou para a cama e depois ficou lá em pé, esfregando-se. No começo, pensei que eu o havia realmente machucado com meu joelho, embora na verdade não o tenha atingido com tanta força assim. - A cor subia ao seu rosto e ela lançou um olhar de esguelha a Ian antes de voltar a olhar apressadamente para o colo.
- Agora eu sei que ele estava tentando... ficar excitado. Eu não queria deixá-lo pensar que eu estava com medo, de modo que me sentei ereta na cama e olhei para ele fixamente. Isso pareceu enfurecê-lo e ordenou-me que virasse de costas. Mas eu me recusei e continuei a olhá-lo.
Seu rosto estava da cor de uma das rosas na soleira da porta.
- Ele... desabotoou a calça e eu... bem, eu ri dele.
- Você fez o quê? - Jamie exclamou, incrédulo.
- Eu ri. Quero dizer... - Seus olhos encontraram os do irmão com certo desacato. - Sabia bastante bem como um homem é. Já o vira nu várias vezes e Willy e Ian também. Mas ele... — Um sorrisinho apareceu em seus lábios, apesar de seus evidentes esforços para reprimi-lo. — Ele parecia tão engraçado, com o rosto vermelho e esfregando-se tão freneticamente e ainda assim só...
Ouviu-se um som estrangulado partindo de Ian e ela mordeu o lábio, mas continuou corajosamente.
- Ele não gostou quando eu ri, e eu pude notar, de modo que ri ainda mais. Foi quando ele se atirou em cima de mim e rasgou meu vestido. Dei-lhe uma bofetada e ele me deu um soco no queixo, suficientemente forte para me fazer ver estrelas. Em seguida, gemeu um pouco, como se isso lhe desse prazer, e começou a subir na cama ao meu lado. Estava quase desmaiada, mas ri outra vez. Com dificuldade, fiquei em pé e eu... eu o ridicularizei e insultei. Disse que sabia que ele não era homem de verdade e não conseguia lidar com uma mulher. Eu...
Inclinou a cabeça ainda mais para a frente, de modo que os cachos escuros ocultassem suas faces ardentes. Falava em voz muito baixa, quase um sussurro.
- Eu... abri os pedaços da minha roupa e eu... escarneci dele com meus seios. Disse-lhe que sabia que ele tinha medo de mim, porque não podia tocar em uma mulher, mas apenas divertir-se com animais e rapazinhos...
- Jenny - Jamie disse, sacudindo a cabeça, abismado. Ela ergueu a cabeça para olhar para ele.
- Bem, foi o que fiz — ela disse. — Foi tudo em que consegui pensar e pude ver que ele ficou fora de si, mas também era claro que ele... não podia. Olhei direto para suas calças e ri de novo. Então, ele me agarrou pela garganta, me estrangulando, e eu bati com a cabeça na coluna do dossel da cama e... e quando acordei, ele havia ido embora, e você com ele.
Seus lindos olhos azuis estavam rasos d'água quando segurou as mãos de Jamie.
- Jamie, você pode me perdoar? Sei que se eu não o tivesse enfurecido daquele jeito ele não o teria tratado como tratou, e depois papai...
- Ah, Jenny, querida, mo cridh, não. - Ele estava de joelhos ao seu lado, puxando sua cabeça contra o ombro. Ian, do outro lado, parecia ter sido transformado numa estátua de pedra.
Jamie balançava-a suavemente enquanto ela soluçava.
- Não chore, pombinha. Você agiu certo, Jenny. Não foi culpa sua e talvez nem minha tampouco. - Afagou suas costas.
- Ouça, mo cridh. Ele veio aqui para nos fazer mal, seguindo ordens. E não teria feito a menor diferença quem ele tivesse encontrado aqui ou o que você ou eu pudéssemos ter feito. Ele pretendia causar problemas, sublevar o campo contra os ingleses, para seus próprios fins e do homem que o contratou.
Jenny parou de chorar e empertigou-se.
- Sublevar o povo contra os ingleses? Por quê? Jamie fez um gesto, impaciente com a mão.
- Para descobrir quem apoiaria o príncipe Carlos, se houvesse uma nova rebelião. Mas eu ainda não sei de que lado o patrão de Randall está, se ele quer saber quem são os seguidores do príncipe para poder vigiá-los, e talvez confiscar suas propriedades, ou se ele - o patrão de Randall - pretende seguir o príncipe e quer que as Highlands se revoltem e estejam preparadas para a guerra quando chegar a hora. Eu não sei e agora não importa mais. - Tocou carinhosamente os cabelos de sua irmã, tirando-os da testa e alisando-os para trás.
- Tudo que importa é que você não foi ferida e eu estou em casa. Logo estarei de volta definitivamente, mo cridh. Eu prometo.
Ela levou a mão dele aos lábios e beijou-a, o rosto afogueado. Tateou no bolso em busca de um lenço e assoou o nariz. Em seguida, olhou para Ian, ainda petrificado ao seu lado, uma expressão magoada e enraivecida no olhar.
Ela tocou-o suavemente no ombro.
- Você acha que eu deveria ter lhe contado. Ele não se mexeu, mas continuou olhando-a.
- Sim - disse, a voz baixa. - Acho.
Ela colocou o lenço no colo e tomou as mãos de Lan nas suas.
- Ian, querido, não lhe contei porque não queria perder você também. Meu irmão fora embora e meu pai também. Não queria perder o sangue do meu próprio coração também. Porque você é mais precioso para mim até mesmo do que lar e família, meu amor. — Lançou um sorriso de viés para Jamie. - E isso não é pouco.
Olhou Ian nos olhos, suplicando, e eu pude ver amor e orgulho ferido lutando em seu rosto. Jamie levantou-se e tocou meu ombro. Saímos do aposento silenciosamente, deixando-os juntos diante do fogo quase apagado.
Era uma noite clara e o luar inundava o quarto, infiltrando-se pelos altos postigos das janelas. Eu não conseguia dormir e achei que talvez fosse a luz que também mantinha Jamie acordado; ele ficou deitado, imóvel e muito quieto, mas eu sabia pela sua respiração que ele não estava dormindo. Virou-se de costas e eu o ouvi dar uma risadinha contida e abafada.
- O que está achando engraçado? - perguntei, serenamente. Virou a cabeça para mim.
- Ah, acordei-a, Sassenach? Desculpe. Só estava me lembrando de umas coisas.
- Eu não estava dormindo. - Aproximei-me dele com um movimento rápido. A cama obviamente fora feita para a época em que toda a família dormia junta em um mesmo colchão; o gigantesco colchão de penas deve ter consumido toda a produção de centenas de gansos e deixar-se flutuar sem rumo era como cruzar os Alpes sem uma bússola. - Do que estava se lembrando? - perguntei, depois que cheguei ao seu lado a salvo.
- Ah, de meu pai, de um modo geral. Das coisas que ele dizia. Dobrou os braços embaixo da cabeça, fitando pensativamente as vigas grossas que cruzavam o teto baixo.
- É estranho - disse -, quando ele estava vivo, eu não prestava muita atenção nele. Mas depois que ele morreu, o que ele me disse passou a ter muito mais influência. — Deu outra risadinha. — Eu estava pensando na última vez em que ele me deu uma surra.
- Foi engraçado, é? — observei. - Alguém já lhe disse que você tem um senso de humor muito estranho, Jamie? - Tateei em meio às cobertas à procura de sua mão, em seguida desisti e afastei-as. Ele começou a acariciar minhas costas e eu me aninhei junto a ele, emitindo pequenos sons de prazer.
- O seu tio não batia em você quando você fazia por merecer? - perguntou com curiosidade. Reprimi uma risada diante do pensamento.
- Meu Deus, não! Teria ficado horrorizado com a idéia. Tio Lamb não acreditava em bater em crianças. Ele achava que era preciso conversar com elas e fazê-las entender, como adultos. - Jamie emitiu um ruído escocês na garganta, indicando desdém pela ridícula idéia.
- Isso explica suas falhas de caráter, sem dúvida - ele disse, dando uns tapinhas no meu traseiro. — Disciplina insuficiente na juventude.
- Que falhas de caráter? - quis saber. O luar estava bastante claro para que eu pudesse ver seu sorriso.
- Quer que eu liste todas?
- Não. - Enfiei o cotovelo em suas costelas. - Conte-me sobre seu pai. Que idade você tinha? - perguntei.
- Ah, treze, quatorze, talvez. Magro e alto, com espinhas. Não me lembro por que estava apanhando; nessa época, é mais provável que tenha sido algo que eu disse do que algo que tenha feito. Tudo que me lembro é que nós dois estávamos furiosos. Essa foi uma das vezes em que ele teve prazer em me bater. — Puxou-me para ele e aninhou-me em seu ombro, o braço ao meu redor. Afaguei sua barriga bem delineada, brincando com seu umbigo.
- Pare com isso, faz cócegas. Quer ouvir ou não?
- Ah, quero ouvir. O que faremos se um dia tivermos filhos: argumentar com eles ou dar-lhes uma surra? - Meu coração acelerou um pouco diante da idéia, embora não houvesse nenhum indício de que isso pudesse ser mais do que uma pergunta de retórica. Sua mão prendeu a minha, mantendo-a quieta sobre sua barriga.
- É simples. Você argumenta com eles e, quando acabar, eu os levo para fora e lhes dou uma surra.
- Pensei que você gostasse de crianças.
- Eu gosto. Meu pai gostava de mim, quando eu não estava agindo como um idiota. E ele me amava também, o bastante para me desancar quando eu estava sendo idiota.
Virei-me de bruços.
- Está bem, então. Conte-me.
Jamie sentou-se e ajeitou os travesseiros mais confortavelmente, antes de recostar-se, os braços atrás da nuca outra vez.
- Bem, ele me mandou para a cerca, como de costume. Ele sempre me fazia ir à frente, para que eu pudesse sentir a mistura adequada de terror e remorso, enquanto esperava por ele, segundo me disse. Mas ele estava tão furioso, que veio logo atrás de mim. Eu estava debruçado na cerca, sendo surrado, cerrando os dentes e resolvido a não emitir nenhum som. Não ia lhe dar o prazer de saber o quanto estava doendo. Meus dedos estavam cravados na madeira, o suficiente para arrancar-lhe lascas, e eu podia sentir meu rosto ficando vermelho por estar prendendo a respiração. — Inspirou fundo, como se quisesse compensar aquela falta de ar, e expirou lentamente.
- Em geral, eu podia saber quando estava para terminar, mas desta vez ele não parou. Tudo que eu podia fazer era manter a boca fechada; eu rosnava a cada golpe e podia sentir as lágrimas aflorando, por mais que eu piscasse, mas me mantive firme, como se fosse uma questão de vida ou morte. - Jamie estava despido até a cintura, quase brilhando à luz da lua, coberto de uma penugem prateada, como uma geada. Podia ver sua pulsação cardíaca logo abaixo do esterno, batimentos firmes e regulares embaixo da minha mão.
- Não sei por quanto tempo isso continuou. Provavelmente, não muito tempo, mas me parecia uma eternidade. Finalmente, ele parou por um instante e gritou para mim. Estava possesso de raiva e eu mesmo estava tão furioso que a princípio mal consegui entender o que ele dissera. Mas depois, entendi.
- Ele berrou: "Droga, Jamie! Não consegue gritar? Você já é crescido e eu pretendia nunca mais bater em você outra vez, mas quero ouvir um bom grito de você, rapaz, antes de parar de uma vez por todas, para que eu pense que finalmente consegui causar alguma impressão em você!" - Jamie riu, perturbando o batimento ritmado de sua pulsação cardíaca.
- Fiquei tão transtornado com aquilo, que me empertiguei, girei nos calcanhares e gritei-lhe: "Bem, por que não disse isso antes, seu velho idiota? AAAAIIIII"
- Quando dei por mim, estava no chão, com os ouvidos zumbindo e uma dor no maxilar, onde ele me dera um soco. Ele estava acima de mim, ofegante, e com a barba e os cabelos todos arrepiados. Estendeu o braço, agarrou minha mão e me levantou.
- Em seguida, deu uns tapinhas no meu queixo e disse, ainda respirando com esforço: "Isso foi por ter chamado seu pai de idiota. Pode ser verdade, mas é falta de respeito. Vamos, vamos tomar banho para jantar." E ele nunca mais me bateu. Ainda gritava comigo, mas eu gritava de volta e era de homem para homem, depois disso.
Riu, relaxado, e eu sorri no calor de seu ombro.
- Gostaria de ter conhecido seu pai - eu disse. - Ou talvez tenha sido melhor assim — eu disse, ocorrendo-me um pensamento. — Ele poderia não ter gostado de você se casar com uma inglesa.
Jamie abraçou-me com mais força e puxou as cobertas sobre meus ombros nus.
- Ele iria achar que eu finalmente adquiri algum juízo. - Afagou meus cabelos. — Ele teria respeitado minha escolha, quem quer que fosse, mas você - virou-se e beijou minha testa meigamente -, ele teria gostado muito de você, minha Sassenach. — E eu entendi o grande elogio que aquelas palavras significavam.
Qualquer desavença que as revelações de Jenny pudessem ter causado entre ela e Ian, pareciam estar superadas. Na noite seguinte, sentamo-nos por pouco tempo na sala de estar depois do jantar, Ian e Jamie conversando sobre os negócios da fazenda em um canto, acompanhados de uma jarra de vinho do fruto do sabugueiro, enquanto Jenny finalmente relaxava, com seus tornozelos inchados apoiados em uma almofada. Eu tentava anotar algumas das receitas que ela havia me lançado por cima do ombro enquanto corríamos de um lado para o outro em nossas tarefas diárias, consultando-a pelos detalhes conforme escrevia.
PARA TRATAR FURÚNCULOS, anotei no cabeçalho de uma folha.
Três pregos, de molho por uma semana em cerveja azeda. Acrescentar um punhado de aparas de madeira de cedro, deixar descansar. Quando as aparas tiverem afundado, a mistura estará pronta. Aplicar três vezes ao dia, começando no primeiro dia de lua minguante.
VELAS DE CERA DE ABELHA, em outra folha.
Retire o mel do favo. Remova as abelhas mortas o máximo possível. Derreta o favo numa pequena quantidade de água em um caldeirão grande. Com uma escumadeira, remova abelhas, asas e outras impurezas da superfície da água. Escorra e substitua a água. Mexa sem parar por meia hora, depois deixe descansar. Escorra a água, use-a para adoçar. Purifique com água mais duas vezes.
Minha mão estava ficando cansada e ainda nem chegara à fabricação de moldes de velas, enrolamento de pavios e secagem das velas.
- Jenny — chamei -, quanto tempo leva para fazer velas, contando-se todas as etapas?
Ela colocou no colo a camisa de pagão que estava costurando, refletindo.
— Meio dia para reunir os favos, dois para drenar o mel do favo — um, se estiver quente -, um dia para purificar a cera, a não ser que a quantidade seja muito grande ou esteja muito suja — nesse caso, dois. Meio dia para fazer os pavios, um ou dois para fazer os moldes, meio dia para derreter a cera, encher os moldes e pendurá-los para secar. Ao todo, uma semana, mais ou menos.
A luz turva do lampião e a pena de escrever borrando toda a tinta foram demais para eu suportar depois de um dia de trabalho. Sentei-me ao lado de Jenny e admirei a pequena vestimenta que ela bordava com pontos quase invisíveis.
Seu ventre redondo de repente elevou-se, quando o habitante mudou de posição. Observei, fascinada. Nunca estivera tão próxima de uma mulher grávida por um período de tempo prolongado e não havia percebido a intensa atividade que acontecia internamente.
- Gostaria de sentir o neném? - Jenny ofereceu, ao me ver olhando fixamente para sua barriga.
- Bem... - Ela pegou minha mão e colocou-a com firmeza sobre a elevação.
- Bem aqui. Espere um instante; logo ele vai chutar de novo. Eles não gostam quando ficamos recostadas assim, sabe. Isso os deixa agitados e eles começam a se contorcer.
Logo um empurrão surpreendentemente vigoroso levantou minha mão vários centímetros.
- Minha Nossa Senhora! Como ele é forte! - exclamei.
- Sim. - Jenny deu uns tapinhas no estômago com uma ponta de orgulho. - Vai ser lindo, como seu pai e seu irmão. - Sorriu na direção de Ian, cuja atenção por um instante desviou-se dos registros da criação de cavalos para sua mulher e seu futuro filho.
- Ou até mesmo como o imprestável cabeça-vermelha do seu tio — acrescentou, erguendo ligeiramente a voz e cutucando-me.
- Hein? - Jamie ergueu os olhos, distraindo-se da contabilidade. -Estão falando de mim?
- Será que foi o "cabeça-vermelha" ou o "imprestável" que chamou a atenção dele? -Jenny me disse, à meia-voz, com outra cutucada.
Para Jamie, disse docemente:
- Não é nada, mo cridh. Só estávamos especulando sobre a possibilidade de que o neném tivesse a infelicidade de se parecer com o tio.
O tio em questão riu e atravessou a sala, sentando-se na almofada. Jenny amavelmente afastou os pés e em seguida recolocou-os no colo de Jamie.
- Esfregue-os para mim, Jamie - suplicou. - Você faz isso melhor do que Ian.
Ele obedeceu e Jenny recostou-se, fechando os olhos de felicidade. Largou a minúscula veste sobre o ventre volumoso, que continuava a elevar-se, como em protesto. Jamie parecia fascinado pelos movimentos, exatamente como eu.
- Não é desconfortável? - perguntou. - Ter alguém dando cambalhotas em sua barriga?
Jenny abriu os olhos e riu, enquanto uma grande protuberância movia-se pelo seu ventre.
- Humm. Às vezes, acho que meu fígado está preto e azulado de tanto chute. Mas, de um modo geral, é uma boa sensação. É como... — Hesitou depois riu para o irmão. - É difícil descrever para um homem, já que não têm as partes adequadas. Não acho que possa lhe descrever a sensação de carregar uma criança, do mesmo modo como você não poderia me dizer como é ser chutado no saco.
- Ah, isso eu posso lhe dizer. - Instantaneamente, ele dobrou-se, encolhendo-se e revirando os olhos para trás com um terrível gemido gutural.
- Não é assim, Ian? - perguntou, virando a cabeça na direção do banco onde Ian estava sentado, rindo, a perna de pau estendida.
Sua irmã colocou um pé delicado em seu peito e obrigou-o a endireitar-se.
- Está bem, palhaço. Sendo assim, ainda bem que não tenho bolas. Jamie endireitou-se e afastou os cabelos dos olhos.
- Não, falando sério - ele disse, interessado -, é só uma questão de as partes não serem iguais? Você pode descrever a sensação para Claire? Afinal, ela é mulher, embora ainda não tenha tido filhos.
Jenny olhou para a região da minha cintura de forma avaliadora e senti aquela pontada outra vez.
- Humm, talvez. - Falou devagar, refletindo. - Você tem a sensação de que sua pele é muito fina em todo o corpo. Sente tudo que toca em você, até o roçar de suas roupas, e não apenas na barriga, mas nas pernas, nas cadeiras e nos seios. — Suas mãos dirigiram-se para eles, inconscientemente, percorrendo o tecido delicado de linho sobre os dois montes inchados. — Você os sente pesados e cheios... e muito sensíveis nos mamilos. — Os dedos pequenos e arredondados circundaram lentamente os seios e percebi os mamilos enrijecerem-se sob o tecido.
- E, é claro, você fica enorme e desengonçada -Jenny sorriu melancolicamente, esfregando o lugar no quadril onde batera na quina da mesa antes. - Ocupa mais espaço do que está acostumada.
- Aqui, entretanto — suas mãos ergueram-se protetoramente para a parte de cima do estômago —, é onde você é mais sensível, é claro. -Acariciou o volume arredondado como se fosse a pele do bebê, ao invés de sua própria pele. Os olhos de Ian seguiram suas mãos conforme se moviam de cima para baixo na protuberante elevação, incessantemente, alisando o tecido sem parar.
- No começo, parece-se um pouco a gases intestinais - disse, rindo-Enfiou o dedo do pé na cintura do irmão. — Bem aqui, como pequenas bolhas ondulando pela barriga. Mais tarde, porém, você sente a criança se mover, parece um peixe que corre na barriga e logo desaparece. Como um rápido puxão, mas tão rápido que você não tem nem certeza se realmente sentiu alguma coisa. - Como se protestasse contra essa descrição, seu companheiro oculto remexeu-se de um lado para o outro, impelindo seu ventre para cima de um lado e, depois, do outro.
- Imagino que a esta altura você tenha certeza - Jamie observou, seguindo o movimento, fascinado.
- Ah, sim. - Colocou a mão sobre uma das protuberâncias, como se quisesse acalmá-la. - Eles dormem várias horas seguidas. Às vezes, você tem medo de que estejam mortos, quando se passa muito tempo sem nenhum movimento. Então, você tenta acordá-los — sua mão empurrou com força o lado da barriga e foi imediatamente recompensada com um forte impulso na direção oposta - e fica feliz quando chutam outra vez. Mas não é só o bebê. Você se sente toda inchada, quando chega no final. Não é doloroso... é que parece que você vai explodir. É como se você precisasse ser tocada, bem de leve, em todo o corpo. — Jenny já não olhava para mim. Seus olhos fitavam os do marido e compreendi que ela já não tinha consciência da presença de Jamie ou da minha. Havia um ar de intimidade entre ela e Ian, como se essa fosse uma história contada inúmeras vezes, mas da qual nunca se cansavam.
Sua voz transformara-se quase num sussurro e suas mãos ergueram-se novamente aos seios, pesados e intumescidos sob o corpete leve.
- E mais ou menos no último mês, o leite começa a aparecer. Você se sente encher, um pouco de cada vez, a cada vez que a criança se mexe. E então, de repente, tudo vem para cima com força. — Agarrou o ventre outra vez. — Não há dor nessa hora, apenas uma sensação de falta de ar e depois seus seios pinicam como se fossem explodir se não forem sugados. - Fechou os olhos e inclinou-se para trás, afagando a enorme barriga, incessantemente, com um ritmo que mais parecia a invocação de um feitiço. Veio-me à mente, ao observá-la, que se algo como uma bruxa realmente existisse, então Janet Fraser seria uma delas.
O ar enfumaçado em toda a sala estava tomado por uma espécie de transe; a sensação que está na origem da luxúria, o terrível e ardente desejo de se unir e criar. Eu poderia contar cada pêlo no corpo de Jamie sem olhar para ele e cada um estava eriçado.
Jenny abriu os olhos, escuros nas sombras, e sorriu para o marido, uma curva lenta e plena de infinitas promessas.
- E no final da gravidez, quando a criança se mexe muito, às vezes temos a sensação de que seu homem está dentro de você, quando penetra fundo em você e se derrama dentro do seu ventre. Então, quando aquela pulsação começa lá no fundo do seu corpo juntamente com ele, é assim, mas muito mais intenso; ondula pelas paredes do seu útero e a preenche por completo. Então, a criança fica quieta e é como se fosse ele que você abrigasse dentro de você, ao invés do seu filho.
De repente, ela virou-se para mim e o encanto foi quebrado.
- Às vezes, é isso que eles querem, sabe — disse serenamente, sorrindo para mim. - Eles querem voltar.
Algum tempo depois, Jenny levantou-se, flutuando em direção à porta com um olhar para trás que fez com que Ian a seguisse como o ferro é atraído pelo pólo magnético. Ela parou junto à porta para esperar por ele, voltando-se para seu irmão, que estava sentado, quieto, junto à lareira.
- Você apaga o fogo depois, Jamie? — Espreguiçou-se, arqueando as costas, e a curva de sua espinha imitou a curva estranhamente sinuosa de sua barriga. Ian percorreu toda a extensão de suas costas com os nós dos dedos, parando e pressionando-os com força na base da espinha, fazendo-a gemer. E, então, retiraram-se.
Espreguicei-me também, os braços para cima, sentindo os músculos cansados estenderem-se. As mãos de Jamie percorreram as laterais do meu corpo, parando nos meus quadris. Inclinei-me para ele, puxando suas mãos para a frente, imaginando-as segurando a curva suave de uma criança no ventre.
Quando voltei minha cabeça para beijá-lo, notei a pequena figura enrolada no canto do longo banco de madeira.
- Olhe. Esqueceram-se do pequeno Jamie. - O menino geralmente dormia em uma cama sobre rodinhas que ficava no quarto de seus pais. Esta noite, adormecera junto à lareira enquanto conversávamos tomando vinho, mas ninguém se lembrara de carregá-lo para sua cama. Meu próprio Jamie virou-se para olhar para ele, afastando meus cabelos do seu nariz.
- Jenny nunca se esquece de nada - disse. - Imagino que ela e Ian prefiram não ter companhia no momento. - Suas mãos dirigiram-se para o laço nas costas que prendia minha saia. - Ele pode ficar onde está por enquanto.
- Mas e se ele acordar?
As mãos errantes subiram por baixo do corpete frouxo. Jamie arqueou uma das sobrancelhas à figura deitada de seu pequeno sobrinho.
- Tudo bem. Ele vai ter que aprender qual é o seu lugar em algum momento, não? Não quer que ele seja tão ignorante quanto seu tio era. -Atirou várias almofadas no chão diante do fogo e deitou-se, arrastando-me com ele.
A luz do fogo brilhava nas cicatrizes prateadas de suas costas, como se ele realmente fosse o homem de ferro que um dia eu o acusara de ser, o âmago de metal deixando-se entrever pelos rasgos na pele frágil. Percorri cada uma das marcas com os dedos e ele estremeceu sob o meu toque.
- Você acha que Jenny tem razão? - perguntei-lhe mais tarde. - Os homens realmente querem voltar para o útero? É por isso que fazem amor com a gente? - Uma risada agitou meus cabelos junto à minha orelha.
- Bem, geralmente não é o que me vem à mente quando levo você para a cama, Sassenach. Longe disso. Mas, por outro lado... — suas mãos seguraram meus seios suavemente e seus lábios fecharam-se em um mamilo - também não diria que ela está completamente errada. Às vezes... sim, às vezes, seria bom estar lá dentro outra vez, seguro e... uma só pessoa. Sabendo que não é possível, imagino.Talvez essa seja a razão de querermos gerar outro ser. Se nós mesmos não podemos voltar, o melhor que podemos fazer é dar esse dom precioso aos nossos filhos, ao menos por algum tempo... - Estremeceu repentinamente, como um cachorro sacudindo a água dos pêlos.
- Não dê ouvidos ao que estou dizendo, Sassenach - murmurou. - Eu fico muito sentimental quando tomo vinho de sabugueiro.
Houve uma ligeira batida na porta e Jenny entrou, carregando um traje azul dobrado sobre um dos braços e um chapéu na outra mão. Olhou seu irmão com ar crítico, em seguida balançou a cabeça.
- Sim, a camisa está boa. E alarguei seu melhor casaco. Você cresceu um pouco nos ombros desde que o vi pela última vez. - Inclinou a cabeça para o lado, avaliando. - Fez um belo trabalho com eles... até o pescoço, pelo menos. Sente-se ali e eu cuidarei dos seus cabelos. - Apontou para o banco junto à janela.
- Meus cabelos? O que há de errado com meus cabelos? - Jamie perguntou, erguendo a mão para verificar. Tendo crescido até a altura dos ombros, ele amarrara-os para trás, como de costume, com uma fita de couro para mantê-los longe do rosto.
Sem perder tempo com conversa, sua irmã empurrou-o, obrigando-o a sentar no banco. Desatou a tira de couro e começou a escová-los vigorosamente com as escovas de casco de tartaruga.
- O que há de errado com seus cabelos? - ela perguntou retoricamente. - Bem, vejamos. Para começar, há carrapichos neles. - Arrancou um pequeno objeto marrom delicadamente de sua cabeça e deixou-o cair em cima da penteadeira. - E pedacinhos de folhas de carvalho. Onde é que você esteve ontem? Fuçando embaixo das árvores como um porco? E mais nós do que uma meada de fios de lã lavados.
- Aaai!
- Fique quieto, roy. — Com a testa franzida de concentração, ela pegou um pente e desfez os nós, deixando uma cabeleira lisa e brilhante, em tons dourados, acobreados, cor de mel e castanhos, todos cintilando à luz do sol da manhã que entrava pela janela. Jenny espalhou-os nas mãos, sacudindo a cabeça.
- Não consigo imaginar por que o bom Deus iria querer desperdiçar um cabelo assim num homem — observou. — Em alguns lugares, parece o pêlo de um cervo.
- É maravilhoso, não? - concordei. - Olhe, onde o sol o descorou por cima, formaram-se estas lindas listras douradas. - O objeto de nossa admiração olhou radiante para nós.
- Se vocês duas não pararem com isso, vou raspar a cabeça. - Estendeu a mão ameaçadoramente em direção à penteadeira, onde estava sua navalha.
Sua irmã, ágil apesar do enorme volume da gravidez, bateu no pulso dele com a escova. Ele gritou, depois gritou outra vez quando ela puxou seus cabelos para trás.
- Fique quieto — ela ordenou. Começou a separar seus cabelos em três mechas grossas. - Vou fazer um penteado apropriado - declarou satisfeita. — Não vou deixar que receba seus colonos parecendo um selvagem.
Jamie murmurou algum protesto baixinho, mas submeteu-se aos cuidados de sua irmã. Habilmente prendendo um ou outro fio solto pelo meio, trançou os cabelos num rabicho espesso e formal, enfiando as pontas para baixo e amarrando-as firmemente com um fio. Em seguida, enfiou a mão no bolso, retirou uma fita de seda azul e triunfalmente deu um laço.
- Pronto! - exclamou. - Bonito, não? Virou-se para mim para confirmar e eu tive que admitir. Os cabelos firmemente presos destacavam o formato de sua cabeça e as linhas ousadas de seu rosto. Limpo e bem-arrumado, numa camisa de linho branca como neve e calças cinzas, era uma bela figura.
- Especialmente a fita - eu disse, contendo a vontade de rir. - Da mesma cor dos olhos dele.
Jamie olhou furioso para sua irmã.
- Não - disse sucintamente. - Nada de fitas. Não estamos na França, muito menos na corte do rei Jorge! Não me interessa se é da cor do manto da Virgem Maria! Nada de fitas, Janet!
- Ah, está bem, então, implicante. Pronto. - Tirou o laço e deu um passo para trás.
- Sim, está bem — disse, com satisfação. Em seguida, voltou os olhos azuis penetrantes para mim.
- Hum - disse, tamborilando o pé pensativamente.
Como eu chegara mais ou menos vestida com trapos, foi necessário mandar fazer dois vestidos para mim o mais rápido possível; um de tecido rústico para uso diário e um de seda para ocasiões importantes como esta. Boa na costura de ferimentos e não de roupas, eu ajudara no corte e nos ajustes, mas fui obrigada a deixar os adornos e as costuras para Jenny e a sra. Crook.
Fizeram um belo trabalho e a seda amarela da cor da prímula ajustou-se no meu corpo como uma luva, com pregas profundas caindo para trás por cima dos ombros e transformando-se num farto e pomposo drapeado da saia rodada. Curvando-se relutantemente à minha recusa absoluta em usar espartilhos, haviam astuciosamente reforçado a parte de cima do corpete com barbatanas impiedosamente arrancadas de um velho espartilho.
Os olhos de Jenny percorreram-me dos pés à cabeça, onde se demoraram. Com um suspiro, apanhou as escovas.
— Você, também — disse.
Sentei-me, o rosto vermelho, evitando os olhos de Jamie, enquanto ela cuidadosamente retirava galhinhos e pedacinhos de folhas de carvalho dos meus cachos, depositando-os na penteadeira ao lado dos removidos do cabelo de seu irmão. Finalmente, meus cabelos foram penteados e presos para cima. Ela enfiou a mão no bolso e retirou um pequeno gorro de renda.
— Pronto - disse, prendendo-o com firmeza por cima do monte de cachos. - Touca de renda e tudo. Está com um ar muito respeitável, Claire.
Presumi que fosse um elogio e murmurei alguma coisa em resposta.
— Mas você possui alguma jóia? — Jenny perguntou. Sacudi a cabeça.
— Não, receio que não. Tudo que eu possuía eram as pérolas que Jamie me deu em nosso casamento e essas... - Nas circunstâncias de nossa partida de Leoch, pérolas eram a última coisa em que pensaria.
-Ah! -Jamie exclamou, lembrando-se repentinamente. Enfiou a mão na bolsa do seu kilt que estava sobre a penteadeira e triunfalmente puxou o colar de pérolas.
— Onde conseguiu isso? - perguntei, espantada.
— Murtagh o trouxe hoje de manhã - respondeu. — Ele voltou a Leoch durante o julgamento e trouxe tudo que pôde carregar, achando que iríamos precisar, se conseguíssemos fugir. Procurou por nós na estrada para cá, mas nós havíamos ido para a... a colina primeiro.
- Ele ainda está aqui? - perguntei.
Jamie colocou-se atrás de mim para prender o colar.
- Ah, está. Está lá embaixo comendo tudo que há na cozinha e infer-nizando a sra. Crook.
Fora suas canções, eu só ouvira o homenzinho magro e musculoso pronunciar menos de três dúzias de palavras durante todo o período em que nos conhecemos e a idéia de estar "infernizando" alguém era incompatível com ele. Ele devia se sentir perfeitamente em casa em Lallybroch, pensei.
- Quem é Murtagh? - perguntei. — Quero dizer, é parente seu? Jamie e Jenny pareceram surpresos.
- Ah, sim -Jenny explicou. Virou-se para seu irmão. - Ele é... o que, Jamie? Tio do primo em segundo grau do papai?
- Sobrinho - ele corrigiu. - Não se lembra? O velho Leo tinha dois rapazes e depois...
Coloquei as mãos sobre os ouvidos acintosamente. Isso pareceu fazer Jenny lembrar-se de alguma coisa, porque bateu as palmas das mãos.
- Brincos! - exclamou. - Acho que tenho uns de pérolas que irão combinar muito bem com o colar! Vou buscá-los. - Desapareceu com a sua rapidez de sempre.
- Por que sua irmã o chama de Roy? - perguntei, curiosa, enquanto ele amarrava seu lenço de pescoço diante do espelho. A expressão de seu rosto era a de um homem travando uma batalha mortal com um inimigo, a mesma que todos os homens fazem quando estão dando o nó na gravata, mas ele descerrou os lábios para sorrir para mim.
- Ah, isso. Não é o nome inglês Roy. É um apelido carinhoso em gaélico; a cor dos meus cabelos. A palavra é "ruadh", que significa "vermelho". - Ele teve que soletrar a palavra e repeti-la várias vezes até eu poder perceber a diferença.
- Soa do mesmo jeito para mim, roy - eu disse, sacudindo a cabeça. Jamie pegou a bolsa e começou a guardar os objetos que haviam saído quando ele puxou o colar de pérolas. Encontrando um pedaço emaranhado de linha de pescar, ele esvaziou o conteúdo da bolsa em cima da cama, formando uma pilha. Começou a separar os itens, enrolando laboriosamente os pedaços de linhas e barbantes, encontrando anzóis soltos e enfiando-os firmemente outra vez no pedaço de cortiça onde ficavam normalmente. Aproximei-me da cama e inspecionei a coleção.
- Nunca vi tanta quinquilharia em minha vida - comentei. - Você é um ladrão inveterado, Jamie.
- Não são quinquilharias — ele disse, chateado. — Todas essas coisas têm utilidade para mim.
- Bem, as linhas de pesca e os anzóis, sim. E o barbante para armadilhas. Até mesmo, admitindo-se com esforço, a bucha e as balas de pistola, realmente você às vezes carrega uma pistola. E a cobrinha que Willie lhe deu, isso eu compreendo. Mas, e as pedras? E a concha de um caracol? E um pedaço de vidro? E... — Inclinei-me para examinar de perto uma massa peluda e escura de alguma coisa.
- O que é... não é, é? Jamie, por que, em nome de Deus, você carrega o pé seco de uma toupeira na bolsa?
- Contra reumatismo, é claro. — Arrancou o objeto de baixo do meu nariz e enfiou-o de volta na bolsa de pele de texugo.
- Ah, claro - concordei, examinando-o com interesse. Seu rosto estava ligeiramente ruborizado de vergonha. - Deve funcionar; você não tem nenhuma junta rangendo. - Peguei uma pequena Bíblia das bugigangas restantes e folheei-a, enquanto ele enfiava de novo na bolsa todo o restante do seu valioso material.
- Alexander William Roderick MacGregor. - Li em voz alta o nome na folha de rosto. — Você disse que tinha uma dívida para com ele, Jamie. que quis dizer com isso?
- Ah, isso. — Sentou-se ao meu lado na cama, pegou o pequeno livro da minha mão e delicadamente folheou as páginas.
- Eu lhe contei que ela pertencia a um prisioneiro que morreu em Fort William, não?
- Sim.
- Eu mesmo não o conheci; ele morreu um mês antes da minha chegada. Mas o médico que a deu para mim falou-me dele, enquanto fazia curativo nas minhas costas. Acho que ele precisava falar com alguém sobre isso e não podia falar com ninguém da guarnição. - Fechou o livro mantendo-o sobre o joelho, e olhou pela janela o alegre dia ensolarado de outubro.
Alex MacGregor, um rapaz de aproximadamente dezoito anos, fora preso pelo crime comum de roubo de gado. Um rapaz bom e sossegado, parecia provável que cumpriria sua pena e seria solto sem incidentes. Entretanto, uma semana antes de ser solto foi encontrado enforcado na estrebaria.
- Não havia dúvida de que ele cometera suicídio, segundo o médico. - Jamie acariciou a capa de couro do pequeno livro, passando o largo polegar sobre a encadernação. - E ele não disse exatamente o que ele próprio achava que teria acontecido. Mas disse que o capitão Randall tivera uma conversa em particular com o rapaz uma semana antes.
Engoli em seco, sentindo um frio repentino, apesar do dia ensolarado.
- E você acha...
- Não. — Sua voz era suave e firme. — Eu não acho. Eu sei, e o médico também. E imagino que o sargento-mor também tinha certeza e foi por isso que ele morreu. — Espalmou as mãos abertas sobre os joelhos, olhando para as longas juntas de seus dedos. Grandes, fortes e competentes; as mãos de um fazendeiro, mãos de um guerreiro. Ele pegou a pequena Bíblia e guardou-a na bolsa.
- Vou lhe dizer uma coisa, mo duinne. Um dia Jack Randall vai morrer pelas minhas mãos. E quando estiver morto, enviarei este livro de volta à mãe de Alex MacGregor, com o recado de que seu filho foi vingado.
O ar de tensão foi quebrado pela volta repentina de Jenny, agora resplandecente em seda azul e com sua própria touca de renda, segurando uma caixa grande, vermelha, de pele de cabra, bastante desgastada.
—Jamie, os Curran já chegaram, e Willie Murray e os Jeffrie. É melhor descer e fazer outro desjejum com eles. Já coloquei na mesa arenque salgado e pão fresco e a sra. Crook está fazendo bolos de geléia.
- Ah, sim. Claire, desça quando estiver pronta. - Levantando-se apressadamente, parou o tempo suficiente para me puxar e me dar um beijo rápido, mas firme, desaparecendo em seguida. O som de seus passos ecoou ruidosamente pelo primeiro lance de escadas, arrefeceu um pouco no segundo, até adotar um ritmo mais adequado à entrada de um proprietário de terras, quando se aproximou do andar térreo.
Jenny sorriu na direção em que ele desaparecera, depois voltou sua atenção para mim. Colocando a caixa sobre a cama, lançou a tampa para trás, revelando uma desordenada coleção de jóias e bijuterias. Fiquei surpresa ao ver isto; não parecia próprio da organizada e metódica Jenny Murray, cuja mão de ferro mantinha a engrenagem doméstica funcionando sem problemas do amanhecer ao fim do dia.
Ela remexeu a brilhante e desordenada coleção com um dedo, depois, como se lesse meu pensamento, ergueu os olhos e sorriu.
- Estou sempre pensando que tenho que organizar tudo isso um dia. Mas quando eu era pequena, minha mãe deixava eu remexer em sua caixa às vezes, e era como achar um tesouro encantado... eu nunca sabia o que ia pegar em seguida. Acho que se estivesse arrumada, o encanto desapareceria, de certo modo. Idiota, não?
- Não — eu disse, sorrindo também. - Não, não é.
Remexemos lentamente pela caixa, segurando os vários objetos de estimação de quatro gerações de mulheres.
- Esse aqui pertenceu à minha avó Fraser -Jenny disse, erguendo um broche de prata. Era no formato de uma lua crescente, trabalhado em relevo, um único e pequeno diamante brilhando acima da ponta, como uma estrela.
- E este... — Retirou um delicado anel de ouro, com um rubi cercado de brilhantes. — Este é meu anel de casamento. Ian gastou meio ano de salário com ele, embora eu lhe tenha dito que era tolice fazer isso. - O terno olhar em seu rosto sugeria que Ian não fora nada tolo. Ela lustrou a pedra no peito do vestido e admirou-a mais uma vez antes de recolocá-la na caixa.
- Estou ansiosa para o bebê nascer - disse, dando uns tapinhas no alto de sua barriga com uma careta. - Meus dedos ficam tão inchados de manhã que mal consigo atar minhas fitas, quanto mais usar anéis.
Percebi um estranho brilho não-metálico no fundo da caixa e apontei.
- O que é aquilo?
- Ah, esses — ela disse, enfiando a mão na caixa outra vez. — Nunca os usei; não ficam bem em mim. Mas você poderia usá-los, você é alta e tem um porte majestoso, como minha mãe. Eram dela, sabe.
Era um par de braceletes. Cada qual feito de um dente de javali, polido até adquirir um brilho fosco de marfim. As pontas eram recobertas pelas duas partes de um fecho de prata, cada qual ornamentado com desenhos floreados.
- Nossa, como são lindos! Nunca vi nada tão... tão maravilhosamente bárbaro.
Jenny achou graça.
- Sim, são mesmo. Alguém os deu à mamãe como presente de casamento, mas ela nunca disse quem foi. Meu pai costumava caçoar dela de Vez em quando a respeito do seu admirador secreto, mas recusava-se a lhe contar também quem ele era. Apenas sorria como um gato que tomou leite no jantar. Tome, experimente-os.
Senti o marfim frio e pesado no meu braço. Não resisti à vontade de afagar a superfície amarelada, granulada com o tempo.
- Sim, ficam bem em você - Jenny declarou. - E combinam com este vestido amarelo também. Tome os brincos. Coloque-os e vamos descer.
Murtagh estava sentado à mesa da cozinha, habilmente comendo presunto da ponta de sua adaga. Passando por trás dele com uma travessa, a sra. Crook, com grande destreza, inclinou-se e fez três pãezinhos quentes deslizarem para seu prato, mal interrompendo seus passos.
Jenny movimentava-se de um lado para o outro, preparando e supervisionando. Parando em suas andanças, espreitou por cima do ombro de Murtagh o seu prato que rapidamente se esvaziava.
- Não faça cerimônia, Murtagh — observou. — Afinal, há outro porco assando.
- Está bancando a avarenta com um parente, é? - perguntou, sem parar de mastigar.
- Eu? — Jenny colocou as mãos nos quadris. - Pelo amor de Deus, não! Afinal, você só se serviu quatro vezes até agora. Sra. Crook — virou-se para chamar a governanta que saía —, quando terminar com os pães, prepare uma tigela de mingau para este homem faminto preencher as brechas que restarem. Não vamos querer vê-lo desmaiar na soleira da porta, sabe.
Quando Murtagh me viu parada na porta da cozinha, engasgou-se na mesma hora com um pedaço de presunto.
- Mmmmhum — disse, como forma de cumprimento, depois que Jenny bateu nas suas costas prestativamente.
- Prazer em revê-lo também — retorqui, sentando-me à sua frente. -Aliás, obrigada.
- Mmhm? - a pergunta foi abafada por metade de um pãozinho, untado com mel.
- Por pegar minhas coisas no castelo.
- Mmhm. - Descartou qualquer agradecimento com um abano da mão que terminou na mantegueira.
- Também lhe trouxe algumas plantas e coisas desse tipo - disse, sacudindo a cabeça em direção à janela. — No pátio, nos meus alforjes.
- Você trouxe minha caixa de remédios? Que maravilha! - Fiquei encantada. Algumas das ervas medicinais eram raras e não deram pouco trabalho para encontrar e preparar adequadamente.
- Mas como conseguiu? - perguntei. Depois que me recobrei do horror do julgamento de bruxaria, sempre me perguntava como os ocupantes do castelo haviam recebido a notícia da minha repentina prisão e fuga. -Espero que não tenha tido dificuldade.
- Ah, não. - Deu mais uma boa mordida no pão, mas esperou até que passasse calmamente pela garganta antes de responder.
- A sra. Fitz as havia guardado, isto é, já tinha colocado tudo numa caixa. Eu a procurei primeiro, sabe, porque eu não sabia que recepção me esperava.
- Muito sensato. Imagino que a sra. Fitz não iria gritar ao vê-lo - concordei. Os pães fumegavam no ar frio, exalando um aroma celestial. Estendi a mão para pegar um, os pesados braceletes de dentes de javali chocalhando no meu pulso. Vi os olhos de Murtagh sobre eles e ajeitei-os de modo que ele pudesse ver as pontas de prata lavrada.
- Não são lindos? - eu disse. — Jenny disse que pertenciam à mãe dela. Os olhos de Murtagh abaixaram-se para a tigela de mingau que a sra. Crook atirara sem nenhuma cerimônia embaixo do seu nariz.
- Ficam bem em você - murmurou. Em seguida, voltando repentinamente ao assunto anterior, disse: - Não, ela não pediria ajuda contra mim. Eu me dava muito bem com Glenna FitzGibbons, há algum tempo.
- Ah, ela foi um antigo amor seu, não? — caçoei, divertindo-me com a idéia insólita de Murtagh enrascado num abraço amoroso com a enorme sra. Fitz.
Murtagh olhou-me friamente por cima de seu mingau.
- Isso ela não foi e agradeço-lhe se falar educadamente dessa senhora. O marido dela era irmão de minha mãe. E ela ficou com muita pena de você, é bom que saiba.
Abaixei os olhos, envergonhada, e estendi o braço para pegar o mel, a fim de disfarçar meu constrangimento. O recipiente de pedra fora colocado numa tigela de água quente para liquefazer o mel e estava confortavelmente morno ao toque.
- Desculpe-me - eu disse, pingando o líquido doce e dourado no pão, com todo o cuidado para não derramar. - Eu me perguntei o que ela teria sentido quando... quando eu...
- No começo, não notaram sua ausência — o homenzinho disse de modo prosaico, ignorando minhas desculpas. — Quando não apareceu para o jantar, pensaram que talvez tivesse se demorado nos campos e fora para a cama sem comer; sua porta estava fechada. No dia seguinte, quando havia um grande alvoroço em torno da prisão da sra. Duncan, ninguém pensou em procurar por você. Não havia nenhuma menção a você quando as notícias chegaram, apenas sobre ela, e naquela confusão ninguém pensou em procurar por você.
Balancei a cabeça pensativamente. Ninguém teria sentido a minha falta, a não ser aqueles que buscavam tratamento; eu passava a maior parte do meu tempo na biblioteca de Colum quando Jamie estava fora.
- E Colum? - perguntei. Estava mais do que ligeiramente curiosa; ele haveria realmente planejado aquilo tudo, como Geilie pensava? Murtagh encolheu os ombros. Varreu a mesa com os olhos em busca de mais provisões, aparentemente não encontrou nada do seu agrado, e recostou-se, cruzando as mãos sobre o diafragma magro.
- Quando ele recebeu as notícias da vila, mandou fechar os portões imediatamente e proibiu todos no castelo de descer à vila, para que não fossem envolvidos no distúrbio. - Inclinou-se mais para trás ainda, olhando-me especulativamente.
- A sra. Fitz tentou encontrá-la no segundo dia. Disse que perguntou a todas as criadas se a tinham visto. Ninguém a vira, mas uma das garotas disse que achava que você talvez tivesse ido à vila, talvez tivesse se abrigado em alguma casa lá. — Uma das garotas, pensei cinicamente. A que sabia muito bem onde eu estava.
Ele arrotou baixinho, sem se preocupar em reprimir o barulho.
- Ouvi dizer que a sra. Fitz virou o castelo de cabeça para baixo e fez Colum enviar um homem à vila, depois que teve certeza que você não estava no castelo. E quando souberam o que havia acontecido... - Um leve ar de divertimento iluminou o rosto escuro.
- Ela não me contou tudo, mas sei que ela tornou a vida de Colum ainda mais miserável do que já é, infernizando-o para que mandasse gente para soltá-la com a força das armas. Mas de nada adiantou, ele argumentou que as coisas já tinham ido longe demais, muito além do ponto em que ele poderia fazer alguma coisa e que agora estava nas mãos dos investigadores e isso e aquilo. Deve ter sido uma cena e tanto - disse, pensativamente -, duas pessoas tão determinadas, uma contra a outra.
Por fim, ao que parecia, nenhum dos dois havia cedido ou vencido. Ned Gowan, com seu dom de advogado para estabelecer acordos, encontrara uma solução que satisfazia aos dois oferecendo-se para ir pessoalmente ao julgamento, não como representante do chefe dos MacKenzie, mas como um advogado independente.
- Ela achou que eu pudesse ser uma bruxa? - perguntei, curiosa. Murtagh fez um muxoxo.
- Ainda estou para ver a velha senhora acreditar em bruxas, nem quando era jovem. São os homens que acham que devem haver maus agouros e magia nas mulheres, quando esse é apenas o jeito natural das criaturas.
- Começo a entender por que você nunca se casou — eu disse.
- É mesmo? - Empurrou sua cadeira para trás bruscamente e levantou-se, jogando o xale por cima dos ombros.
- Vou partir. Meus cumprimentos ao chefe - disse a Jenny, que reapareceu do vestíbulo, onde estivera recebendo os arrendatários. - Ele deve estar muito ocupado.
Jenny entregou-lhe uma grande sacola de pano, fechada na boca com um nó e obviamente contendo provisões suficientes para uma semana.
- Comida para a viagem de volta - ela disse com um sorriso. - Pode durar ao menos até você perder a casa de vista.
Ele enfiou o nó da sacola confortavelmente no cinto e balançou a cabeça rapidamente, voltando-se para a porta.
- Sim - disse - e, se não, você verá os abutres reunidos logo depois da montanha, para devorar minha carne.
- Não iam ganhar grande coisa - ela retrucou cinicamente, examinando sua constituição mirrada. —Já vi mais carne numa vassoura.
O rosto circunspecto de Murtag continuou imutável, mas um leve brilho surgiu em seus olhos.
- Ah, é mesmo? - disse. - Bem, vou lhe dizer, menina... — As vozes retiraram-se pelo corredor, misturando-se em insultos e implicâncias amistosas, finalmente desaparecendo nos últimos ecos do vestíbulo.
Fiquei sentada à mesa por um longo instante, afagando vagarosamente o marfim dos braceletes de Ellen MacKenzie. Com a distante batida da porta, estremeci e levantei-me para assumir meu lugar como a Senhora de Laüybroch.
Normalmente um lugar atarefado, no Dia do Trimestre a mansão simplesmente fervilhava de atividade. Os arrendatários iam e vinham o dia todo. Alguns ficavam apenas o tempo suficiente para pagar suas contas; outros permaneciam o dia todo, andando pela propriedade, visitando amigos, comendo e bebendo na sala de visitas. Jenny, resplandecente em seda azul, e a sra. Crook, em linho branco engomado, iam e vinham entre a cozinha e a sala de visitas, supervisionando as duas criadas, que se equilibravam de um lado para o outro sob enormes travessas de bolos de aveia, bolos de frutas, biscoitos e outros doces.
Jamie, depois de me apresentar cerimoniosamente aos arrendatários presentes na sala de jantar e na sala de visitas, retirou-se para seu gabinete com Ian, para receber os arrendatários um a um, conversar com eles sobre as necessidades para o plantio na primavera, deliberar sobre a venda de lã e de grãos, registrar as atividades da propriedade e tomar todas as providências necessárias para o próximo trimestre do ano.
Fiquei andando ociosamente pela casa, conversando com as visitas, ajudando com as bebidas e comidas quando necessário, às vezes apenas me esgueirando para o segundo plano para observar as idas e vindas.
Lembrando-me da promessa de Jamie à velha senhora junto ao açude, esperei com certa curiosidade pela chegada de Ronald MacNab.
Ele chegou logo depois do meio-dia, cavalgando uma mula alta, desconjuntada, com um garoto agarrado ao cinto logo atrás dele. Eu os observava secretamente da porta da sala de visitas, imaginando até que ponto a avaliação que sua mãe fez dele era correta.
Concluí que, embora "beberrão" pudesse ser considerado um pouco de exagero, as percepções da Vovó MacNab eram precisas. Os cabelos de Ronald MacNab eram longos e engordurados, desleixadamente amarrados para trás com um pedaço de corda, e o colarinho e os punhos de sua camisa eram encardidos de sujeira. Embora certamente um ou dois anos mais novo do que Jamie, parecia pelo menos quinze anos mais velho, os ossos do rosto submersos em inchaço, os pequenos olhos cinzas embaciados e injetados.
Quanto à criança, também estava suja e maltrapilha. Pior ainda, no que me dizia respeito, vinha atrás do pai procurando se esconder, os olhos presos ao chão, encolhendo-se quando Ronald virava-se e falava rispidamente com ele. Jamie, que viera à porta do gabinete, também os avistou, e eu o vi trocar um olhar significativo com Jenny, que entrava trazendo uma nova jarra de bebida em atendimento a um pedido dele.
Ela fez um sinal quase imperceptível com a cabeça e entregou-lhe a jarra. Em seguida, tomando a criança firmemente pela mão, conduziu-a em direção à cozinha, dizendo:
— Venha comigo, rapazinho. Acho que temos uns biscoitos para você. Ou que tal um pedaço de bolo de frutas?
Jamie cumprimentou Ronald MacNab com um aceno formal da cabeça, dando lugar para que ele entrasse no gabinete. Estendendo o braço para fechar a porta, os olhos de Jamie depararam-se com os meus e ele fez um sinal de cabeça em direção à cozinha. Respondi também com um movimento da cabeça e segui Jenny e o jovem Rabbie.
Encontrei-os envolvidos em uma agradável conversa com a sra. Crook, que retirava ponche de um grande caldeirão com uma concha igualmente grande e o colocava em um recipiente de cristal. Entornou um pouco em uma caneca de madeira e ofereceu-a ao menino, que continuou retraído, olhando desconfiado, antes de finalmente aceitar. Jenny continuou conversando descontraidamente com o garoto enquanto enchia travessas, recebendo pouco mais de grunhidos em resposta. Ainda assim, a pequena criatura semi-selvagem parecia estar relaxando um pouco.
— Sua camisa está um pouco suja, rapaz - observou, inclinando-se para a frente para virar o colarinho. - Tire-a e eu vou lavá-la antes de você voltar para casa. — "Suja" era um crasso eufemismo, mas o garoto recuou defensivamente. Mas eu estava atrás dele e, a um gesto de Jenny, agarrei-o pelos braços antes que ele pudesse escapar.
Ele esperneou e uivou, mas Jenny e a sra. Crook também o seguraram e, as três juntas, conseguimos retirar a camisa imunda.
— Ah. -Jenny inspirou com força. Ela segurava a cabeça do garoto com firmeza embaixo do braço e as costas imundas ficaram totalmente expostas.
Marcas de contusões e cicatrizes pontuavam a carne dos dois lados da espinha dorsal, algumas recém-curadas, outras tão antigas que vinham a ser apenas sobras desbotadas cobrindo parcialmente as costelas proeminentes. Jenny segurou o menino com força pela nuca, falando-lhe docemente enquanto soltava sua cabeça. Fez um movimento com a cabeça indicando o corredor, olhando para mim.
- É melhor contar a ele.
Bati na porta do gabinete, segurando uma travessa de bolos de aveia untados com mel como desculpa. Ao chamado abafado de Jamie, abri a porta e entrei.
Meu rosto, enquanto servia Macnab deve ter sido suficiente, pois eu não tive que pedir para falar em particular com Jamie. Ele fitou-me pensa-tivamente por um instante, depois se voltou novamente para seu colono.
- Muito bem, Ronnie, a parte de grãos está acertada. Mas há uma outra coisa sobre a qual eu queria lhe falar. Você tem um garoto chamado Rabbie, eu soube, e eu estou precisando de um garoto dessa idade para ajudar na estrebaria. Você deixaria ele vir? - Os longos dedos de Jamie brincavam com uma pena de ganso sobre a escrivaninha. Ian, sentado a uma mesa menor ao lado, apoiou o queixo nos punhos cerrados, fitando MacNab com grande interesse.
MacNab eriçou-se, beligerante. Achei que ele tinha o ressentimento e a irritação de um homem que não estava bêbado, mas gostaria de estar.
- Não, eu preciso do garoto - disse educadamente.
- Hum. -Jamie recostou-se em sua cadeira, as mãos cruzadas em cima da barriga. - Eu pagaria pelos serviços dele, é claro.
O homem resmungou e remexeu-se na cadeira.
- Minha mãe andou falando com você, não foi? Eu disse não e repito que não. O garoto é meu filho e eu faço com o ele o que achar que devo fazer. E eu acho melhor mantê-lo em casa.
Jamie olhou pensativamente para MacNab, mas voltou sua atenção para os livros de contabilidade sem maiores argumentos.
Mais tarde, no final do dia, quando os arrendatários reuniam-se nos lugares mais quentes como a despensa e a sala de visitas, para fazer um lanche antes de partir, vi Jamie da janela, caminhando descontraidamente em direção ao chiqueiro, o braço no ombro do imundo MacNab como um gesto de companheirismo. A dupla desapareceu atrás do chiqueiro, provavelmente para inspecionar alguma coisa de interesse agrícola e reapareceu depois de um ou dois minutos, caminhando em direção à casa.
O braço de Jamie ainda estava sobre o ombro do sujeito mais baixo, mas agora parecia estar segurando-o. O rosto de MacNab era de um cinza doentio, molhado de suor, e ele caminhava muito lentamente, parecendo incapaz de andar empertigado.
- Bem, então está combinado - Jamie observou alegremente quando se aproximaram dos outros. - Acho que sua mulher vai gostar do dinheiro extra, não, Ronald? Ah, aqui está sua mula. Um bom animal, hein? - A mula perebenta que havia trazido os MacNab à fazenda aproximou-se desengonçadamente, saindo do pátio onde andara aproveitando a hospitalidade da casa. Um punhado de feno ainda se projetava dos cantos de sua boca, sacudindo-se irregularmente enquanto o animal mastigava.
Jamie apoiou o pé de MacNab para ajudá-lo a montar; uma ajuda muito necessária, ao que parecia. MacNab não falou nada nem acenou em resposta aos bem-humorados "Vá com Deus" e "Tenha uma boa viagem" de Jamie, mas apenas fez um aceno com a cabeça, um pouco desnorteado, enquanto partia em marcha lenta, aparentemente preocupado com algum problema secreto que absorvia sua atenção.
Jamie continuou apoiado na cerca, trocando amabilidades conforme outros arrendatários preparavam-se para voltar para casa, até que a figura maltrapilha de MacNab desaparecesse de vista por cima do topo da colina. Empertigou-se, olhando a estrada, depois se virou e assoviou. Uma pequena figura numa camisa rasgada, mas limpa, e num kilt manchado saiu de baixo da carroça de feno.
- Muito bem, então, jovem Rabbie - disse Jamie alegremente. -Parece que afinal de contas seu pai deu permissão para você se tornar um ajudante da cavalariça. Tenho certeza de que você vai trabalhar com afinco e ser um orgulho para ele, hein? - Os olhos redondos e injetados ergueram-se em silêncio no rosto sujo e o rapaz não respondeu nada, até que Jamie estendeu o braço e, segurando-o suavemente pelos ombros, virou-o na direção do cocho dos cavalos.
- Vai ter jantar para você na cozinha, rapaz. Vá se lavar primeiro; a sra. Crook é muito exigente. Oh, e Rabbie - inclinou-se para sussurrar-lhe -, limpe as orelhas ou ela fará isso por você. Ela esfregou as minhas hoje de manhã. - Ele colocou as mãos atrás das orelhas e sacudiu-as solenemente para o garoto, que abriu um sorriso tímido e saiu correndo em direção ao cocho.
- Que bom que você conseguiu — eu disse, dando o braço a Jamie para entrarmos para o jantar. — Com o pequeno Rabbie MacNab, quero dizer. Mas como fez isso?
Ele encolheu os ombros.
- Levei o Ronald até a cervejaria e lhe dei um ou dois socos embaixo das costelas. Perguntei-lhe se queria perder o filho ou o fígado. - Olhou para mim, franzindo a testa.
- Não está certo, mas não consegui pensar em nada melhor. E não queria que o garoto voltasse com ele. Também não foi só porque havia prometido à sua avó. Jenny contou-me sobre as costas do garoto.
Hesitou. - Vou lhe contar, Sassenach. Meu pai me batia sempre que achava necessário e com muito mais freqüência do que eu achava que merecia, mas eu não me acovardava quando falava com ele. E não acho que o pequeno Rabbie vai deitar-se na cama com sua mulher um dia e rir disso. Arqueou os ombros, com aquele estranho estremecimento, algo que há meses eu não o via fazer.
- Ele tem razão; o garoto é filho dele, pode fazer o que quiser. E eu não sou Deus; apenas o proprietário das terras e isso é bem pouco. Ainda assim... - Olhou-me com um sorriso enviesado.
- A linha entre justiça e brutalidade é muito fina, Sassenach. Só espero estar do lado certo da questão.
Passei os braços pela sua cintura e o abracei.
- Você agiu certo, Jamie.
- Você acha?
- Acho.
Continuamos caminhando de volta para casa, abraçados. Os prédios brancos da fazenda brilhavam com uma cor âmbar ao pôr-do-sol. Mas ao invés de entrarmos em casa, Jamie conduziu-me pela ligeira elevação que havia atrás da mansão. Ali, sentados no apoio superior da cerca de um campo, podíamos ver toda a fazenda diante de nós.
Encostei a cabeça no ombro de Jamie e suspirei. Ele apertou-me levemente em resposta.
- Foi isso que você nasceu para fazer, não é, Jamie?
- Talvez, Sassenach. — Examinou toda a extensão da fazenda, os campos e construções, as plantações e as estradas, depois abaixou os olhos, um sorriso repentinamente tomando conta de seus lábios.
- E você, Sassenach? Para que foi que você nasceu? Para ser a senhora de uma mansão ou para dormir nos campos como uma cigana? Para ser uma curandeira, a mulher de um professor universitário ou uma fora-da-lei?
- Eu nasci para você - respondi simplesmente, estendendo os braços para ele.
- Sabe — observou, finalmente afastando-se —, você nunca disse isso.
- Nem você.
- Eu disse. No dia seguinte ao que chegamos aqui. Eu disse que a queria mais do que a qualquer outra coisa.
- E eu disse que amar e desejar não eram necessariamente a mesma coisa - reagi.
Ele riu.
- Talvez tenha razão, Sassenach. — Afastou ternamente os cabelos do meu rosto e beijou minha fronte. - Eu a desejei desde o primeiro instante em que a vi, mas eu a amei quando você chorou nos meus braços e deixou-me confortá-la, naquela primeira vez que chegamos ao Castelo Leoch.
O sol se escondeu atrás da fileira de pinheiros negros e as primeiras estrelas surgiram. Era meado de novembro e o ar da noite estava frio, embora os dias ainda fossem límpidos. De pé do outro lado da cerca, Jamie inclinou a cabeça, encostando a testa na minha.
— Você primeiro.
— Não, você.
— Por quê?
— Tenho medo.
— De quê, minha Sassenach?. — A escuridão avançava pelos campos, cobrindo a terra e erguendo-se ao encontro da noite. A claridade da luz crescente acentuava as elevações das sobrancelhas e do nariz, iluminando partes de seu rosto.
— Tenho medo de que, se eu começar, não pare mais.
Ele olhou para o horizonte, onde a lua em forma de foice resplandecia, baixa no horizonte, subindo lentamente.
— É quase inverno e as noites são longas, mo duinne. - Inclinou-se por cima da cerca, abrindo os braços, e eu entrei neles, sentindo o calor do seu corpo e as batidas de seu coração.
— Eu o amo.
Alguns dias depois, quase ao final da tarde, eu estava na colina atrás da casa, cavando e extraindo os bulbos de um pequeno canteiro de corídalo que eu descobrira. Ouvindo o barulho de passos aproximando-se pela grama, virei-me esperando ver Jenny ou a sra. Crook, para me chamar para o jantar. Ao invés disso, era Jamie, os cabelos espetados com a umidade das abluções anteriores ao jantar, ainda de camisa amarrada entre as pernas para trabalhar nos campos. Veio por trás de mim e abraçou-me, colocando o queixo no meu ombro. Juntos, ficamos vendo o sol ocultar-se atrás dos pinheiros, numa aura gloriosa de ouro e púrpura. A paisagem esmaeceu silenciosamente à nossa volta, mas continuamos onde estávamos, abraçados e felizes. Finalmente, quando começou a escurecer, pude ouvir Jenny chamando da casa lá embaixo.
- É melhor entrarmos - eu disse, movendo-me relutantemente.
- Mmm. - Jamie não se mexeu, apenas me apertou com mais força, os olhos ainda perdidos nas sombras cada vez mais densas, como se tentasse gravar cada pedra e lâmina de capim na memória.
Virei-me para ele e passei os braços pelo seu pescoço.
- O que foi? - perguntei serenamente. - Vamos ter que partir em breve? - Meu coração desfaleceu à perspectiva de ter que deixar Lally-broch, mas eu sabia que era perigoso para nós permanecer muito mais tempo; a qualquer momento poderia ocorrer outra visita dos soldados ingleses, com resultados muito mais sinistros.
- Sim. Amanhã, ou depois de amanhã, no máximo. Há ingleses em Knockchoilum; fica a trinta e seis quilômetros daqui, mas é uma viagem de apenas dois dias com tempo bom. - Comecei a deslizar da cerca, mas Jamie passou um dos braços por baixo dos meus joelhos e ergueu-me no colo, apertando-me contra o peito.
Eu ainda podia sentir o calor do sol em sua pele e sentir o cheiro cálido e empoeirado de suor e aveia. Ele andara ajudando com o final da colheita e o aroma lembrava-me de um jantar na semana anterior, quando vi que Jenny, sempre amável e educada, havia finalmente me aceitado sem restrições como um membro da família.
A colheita era um trabalho árduo e Ian e Jamie geralmente já estavam cambaleando de sono ao final do jantar. Em uma ocasião, eu deixara a para ir buscar um pudim de sobremesa e ao retornar encontrei os dois profundamente adormecidos e Jenny rindo consigo mesma entre os remanescentes do jantar. Ian estava desmoronado em sua cadeira, o queixo no peito, respirando ruidosamente. Jamie deitara o rosto sobre os braços cruzados, esparramado para a frente, sobre a mesa, roncando tranqüilamente entre o prato e o moedor de pimenta.
Jenny pegou o pudim de minha mão e serviu para nós duas, sacudindo a cabeça diante dos homens adormecidos.
- Bocejavam tanto que imaginei o que aconteceria se eu parasse de falar. Assim, calei-me e, como previa, dois minutos depois estavam apagados, os dois. — Afastou ternamente os cabelos de Lan da testa.
- É por isso que nascem tão poucas crianças em julho por aqui - disse, erguendo uma sobrancelha maliciosamente para mim. - Os homens não conseguem ficar acordados o tempo suficiente para fazer um filho. - Era bem verdade e eu ri. Jamie remexeu-se e roncou ao meu lado. Coloquei a mão na sua nuca para acalmá-lo. Seus lábios curvaram-se uma vez num sorriso suave, por reflexo, depois se relaxaram no sono profundo outra vez.
Jenny, observando-o, disse:
- Que engraçado. Nunca mais o vi fazer isso desde que era pequeno.
- Fazer o quê?
Ela balançou a cabeça.
- Sorrir durante o sono. Ele costumava fazer isso se a gente se aproximasse e o acariciasse em seu berço, e até mais tarde em sua cama de rodinhas. Às vezes, mamãe e eu nos revezávamos para acariciar sua cabeça e ver se conseguíamos fazê-lo sorrir; ele sempre sorria.
- É estranho, não é? — eu disse, descendo a mão suavemente pelo seu pescoço e costas. Como previsto, fui recompensada imediatamente por um sorriso singularmente doce que se demorou por um instante antes das linhas do seu rosto relaxarem-se outra vez na expressão mais ou menos severa que ele apresentava quando dormia.
- Por que será que ele faz isso? - perguntei, observando-o fascinada. Jenny encolheu os ombros e riu para mim.
- Imagino que signifique que está feliz.
Na verdade, não partimos no dia seguinte. No meio da noite, fui acordada por uma conversa baixa no quarto. Ao me virar no colchão, vi Ian inclinado sobre a cama, segurando uma vela.
- O bebê está a caminho - Jamie disse, vendo-me acordada. Sentou-se, bocejando. - Um pouco antes da hora, Ian?
- Nunca se sabe. O pequeno Jamie se atrasou. Melhor adiantar do que atrasar, eu acho. — O sorriso de Ian era rápido e nervoso.
- Sassenach, você sabe fazer parto? Ou é melhor eu ir buscar a parteira? - Jamie virou-se para mim, perguntando. Não hesitei em minha resposta.
Sacudi a cabeça.
- Vá buscar a parteira.
Eu vira apenas três partos durante meu curso de enfermagem; todos conduzidos em uma sala de operações esterilizada, a paciente envolta em lençóis e anestesiada, nada visível, a não ser o períneo grotescamente inchado e a cabeça repentinamente emergente.
Tendo visto Jamie partir em busca da parteira, a sra. Martins, segui Ian pelas escadas.
Jenny estava sentada numa poltrona junto à janela, confortavelmente recostada. Colocara uma camisola velha, tirara tudo de cima da cama, abrira uma colcha antiga sobre o colchão de penas e agora estava apenas sentada. Esperando.
Ian andava nervosamente de um lado para o outro à sua volta. Jenny sorriu também, mas com uma expressão distante, voltada para dentro, como se ouvisse algo longe que somente ela podia ouvir. Ian, completamente vestido, remexia em tudo pelo quarto, pegando objetos e colocando-os de volta no lugar, até que Jenny finalmente mandou que ele saísse.
- Vá lá embaixo e acorde a sra. Crook, Ian - ela disse, sorrindo para suavizar o fato de estar mandando-o embora. - Diga-lhe para aprontar tudo para a sra. Martins. Ela sabe o que tem que fazer. — Nesse instante, inspirou pronunciadamente e colocou as duas mãos no abdômen distendido. Olhei espantada, ao ver sua barriga subir, repentinamente endurecida e redonda. Ela mordeu o lábio e respirou fortemente por um instante, relaxando em seguida. A barriga recuperara o formato normal, como uma lágrima ligeiramente pendente, redonda nas duas extremidades.
Ian colocou a mão hesitantemente em seu ombro e ela a cobriu com a sua própria, erguendo o rosto e sorrindo para ele.
- Depois, diga-lhe para lhe dar o que comer, homem. Você e Jamie vão precisar de alguma coisa para comer. Dizem que o segundo vem mais rápido do que o primeiro; talvez quando tiverem acabado de fazer o desjejum, eu mesma já esteja pronta para comer alguma coisa.
Ele apertou seu ombro com força e beijou-a, murmurando algo em seu ouvido antes de virar-se para sair. Parou, hesitante, na soleira da porta, olhando para trás, mas ela descartou-o firmemente com um aceno da mão.
Pareceu que um longo tempo havia transcorrido até Jamie chegar com a parteira e eu ficava cada vez mais nervosa conforme as contrações tornavam-se mais fortes. Dizia-se que o segundo bebê vinha mais rápido do que o primeiro, via de regra. E se este resolvesse chegar antes da sra. Martins?
No começo, Jenny entabulou uma conversa amena, parando apenas para inclinar-se um pouco para a frente, segurando a barriga, à medida que as contrações se intensificavam. Mas logo perdeu a vontade de conversar e recostou-se, descansando em silêncio entre as dores cada vez mais intensas. Finalmente, depois de uma que quase a dobrou ao meio em sua poltrona, ela levantou-se, cambaleando.
- Ajude-me a andar um pouco, Claire — disse. Sem saber ao certo qual seria o procedimento correto, fiz o que ela pedia, segurando-a firmemente por baixo do braço para ajudá-la a manter-se em pé. Demos várias voltas, lentamente, pelo quarto, parando quando uma contração a acometia, continuando quando amainava. Pouco antes da chegada da parteira, Jenny dirigiu-se para a cama e deitou-se.
A sra. Martins era uma figura tranqüilizadora; alta e magra, tinha ombros largos e braços fortes, bem como o tipo de expressão amável e prática que inspirava confiança. Duas rugas verticais entre os olhos cinza-metálicos, sempre visíveis, aprofundavam-se quando estava concentrada.
As rugas mantiveram-se superficiais enquanto fazia os exames preliminares. Portanto, até ali, tudo estava normal. A sra. Crook chegara com uma pilha de lençóis limpos e passados e a sra. Martins pegou um deles, ainda dobrado, e ajeitou-o sob Jenny. Fiquei espantada de ver a mancha escura de sangue entre suas coxas, quando se ergueu ligeiramente.
Vendo minha expressão, a sra. Martins balançou a cabeça de forma tranqüilizadora.
- Sim. Amostra de sangue, é como dizem. Está tudo bem. Somente quando o sangue está vermelho-vivo e em grande quantidade de uma só vez é que temos que nos preocupar. Não há nada de errado.
Todos sentamo-nos para esperar. A sra. Martins falava em voz serena e baixa, confortando Jenny, esfregando a parte baixa de suas costas, pressionando com força durante as contrações. Conforme as dores tornaram-se mais freqüentes, Jenny começou a cerrar os lábios e resfolegar ruidosamente pelo nariz. Geralmente, ouvia-se um gemido fraco, rouco, quando a dor vinha com toda a força.
Os cabelos de Jenny estavam encharcados de suor a essa altura e o rosto vermelho com o esforço. Observando-a, compreendi perfeitamente porque é chamado de "trabalho" de parto. Dar à luz era uma tarefa extremamente árdua.
Nas duas horas seguintes, houve pouco progresso, exceto que as dores estavam obviamente mais fortes. A princípio capaz de responder a perguntas, Jenny parou de reagir, prostrada e arquejante ao final de cada contração, o rosto variando de vermelho a branco em questão de segundos.
Ela cerrou os lábios durante a contração seguinte, fazendo sinal que eu me aproximasse quando amainou.
- Se a criança viver... - disse, lutando para respirar - e for menina... o nome dela é Margaret. Diga a Ian... para lhe dar o nome de Margaret Ellen.
- Sim, claro - disse, procurando acalmá-la. - Mas você mesma vai dizer isso a ele. Não vai demorar muito mais agora.
Ela apenas sacudiu a cabeça numa negativa determinada e cerrou os dentes quando veio a nova contração. A sra. Martins segurou-me pelo braço, afastando-me de Jenny.
- Não se preocupe, dona — disse sem rodeios. - Nessa hora, elas sempre acham que vão morrer.
- Ah - exclamei, um pouco aliviada.
- Veja bem - ela disse, numa voz mais baixa -, às vezes morrem mesmo.
Até mesmo a sra. Martins parecia um pouco preocupada conforme as dores continuavam, sem nenhum progresso considerável. Jenny estava cada vez mais exausta; quando cada acesso de dor amainava, seu corpo ficava frouxo e ela até parecia cochilar um pouco, como se buscasse refúgio em pequenos intervalos de sono. Então, quando o implacável acesso de dor apoderava-se dela outra vez, acordava debatendo-se e gemendo com o esforço, contorcendo-se para o lado para se curvar de forma protetora sobre a protuberância rígida da criança em seu ventre.
- A criança poderia estar... virada? - perguntei, em voz baixa, tímida em sugerir tal coisa a uma parteira experiente. Mas a sra. Martins não pareceu nem um pouco ofendida com a observação; as linhas entre suas sobrancelhas simplesmente se aprofundaram enquanto olhava para a mulher extenuada.
Quando a próxima contração amainou, a sra. Martins jogou o lençol e a camisola para trás e começou a trabalhar rápido, pressionando aqui e ali a enorme elevação com dedos hábeis e experientes. Foram necessárias várias tentativas, uma vez que a sondagem parecia provocar mais dores e o exame era impossível durante as contrações implacáveis e debilitantes.
Finalmente, afastou-se, pensando, tamborilando um dos pés distraidamente enquanto observava Jenny se contorcendo com mais dois acessos de dores que pareceram distender sua espinha dorsal. Quando se debateu com espasmos violentos sobre os lençóis, um deles rasgou-se repentinamente com um ruído rascante.
Como se tivesse sido um sinal, a sra. Martins caminhou decididamente para junto de Jenny, acenando para que eu a seguisse.
- Mantenha-a deitada, dona — a sra. Martins instruiu-me, sem se deixar perturbar com os gritos de Jenny. Suponho que já tivesse ouvido muitos gritos semelhantes.
No relaxamento seguinte, a sra. Martins começou a agir. Agarrando a criança durante a momentânea flacidez das paredes do útero, tentou virá-la.
Jenny berrou e deu um puxão nos meus braços quando uma nova contração começou.
A sra. Martins fez nova tentativa. E outra. E outra. Sem poder deixar de empurrar e fazer força, Jenny estava exaurindo-se muito além do ponto de exaustão, seu corpo debatendo-se muito além dos limites da força comum, conforme se esforçava para empurrar a criança para o mundo exterior.
Então, funcionou. Houve uma repentina movimentação de fluidos e o volume amorfo da criança virou-se sob as mãos da sra. Martins. Imediatamente, o formato da barriga de Jenny se alterou e houve uma sensação urgente de que era necessário pôr mãos à obra.
- Agora, empurre. — Ela o fez e a sra. Martins ficou de joelhos ao lado da cama. Aparentemente, viu algum sinal de progresso, porque se levantou e apoderou-se depressa de uma pequena garrafa que colocara sobre a mesa ao chegar. Despejou uma pequena quantidade do que parecia óleo nas pontas dos dedos e começou a esfregá-lo suavemente entre as pernas de Jenny.
Jenny emitiu um som gutural e assustador de protesto ao ser tocada quando a próxima contração veio e a sra. Martins retirou as mãos. Jenny relaxou novamente, prostrada e inerte, e a parteira retomou sua suave massagem, sussurrando para sua paciente, dizendo-lhe que tudo estava bem, para descansar e agora... empurrar!
Durante a contração seguinte, a sra. Martins colocou a mão em cima da barriga de Jenny e empurrou com toda força. Jenny deu um grito agudo, mas a parteira continuou a empurrar até a contração abrandar.
- Empurre comigo na próxima — disse a parteira. - Está quase chegando.
Coloquei as mãos em cima das mãos da sra. Martins sobre a barriga de Jenny e, ao seu sinal, as três empurraram. Jenny deu um gemido como um rosnado, profundo e vitorioso, e uma bolha viscosa surgiu de repente entre suas coxas. Ela apoiou melhor as pernas sobre o colchão, empurrou mais uma vez e Margaret Ellen Murray lançou-se no mundo como um porquinho ensebado.
Pouco tempo depois, sentei-me direito, após ter limpado o rosto sorridente de Jenny com um pano úmido, e olhei pela janela. Já era quase hora de o sol se pôr.
- Eu estou bem - Jenny disse. - Perfeitamente bem. — O amplo sorriso de prazer com que ela recebera a chegada de sua filha transformara-se em um pequeno sorriso permanente de profunda alegria. Estendeu a mão trêmula e tocou a manga do meu vestido.
- Vá contar a Lan — pediu. — Ele deve estar preocupado.
Aos meus olhos cínicos, não parecia. A cena no gabinete, onde Ian e Jamie haviam se refugiado, parecia-se muito a uma festa prematura de comemoração. Uma jarra de vinho vazia estava no aparador, acompanhada de várias garrafas, e um forte cheiro de bebida alcoólica pairava no aposento como uma nuvem.
O orgulhoso pai parecia ter desmaiado, a cabeça descansando sobre a mesa do senhor da propriedade. O próprio senhor ainda estava consciente, mas com os olhos embaçados, recostado contra o painel de revestimento da parede, os olhos piscando como uma coruja.
Indignada, caminhei com passos pesados até a escrivaninha e agarrei Ian pelo ombro, sacudindo-o asperamente e ignorando Jamie, que se pôs de pé com esforço, dizendo:
- Sassenach, espere...
Ian não estava totalmente inconsciente. Sua cabeça ergueu-se relutantemente e ele olhou-me com uma expressão imóvel, circunspecto, os olhos vazios, fundos e suplicantes. Percebi de repente que ele achava que eu tinha vindo lhe contar que Jenny estava morta.
Relaxei a mão em seu ombro e, ao invés disso, dei-lhe uns tapinhas delicados nas costas.
- Ela está bem - eu disse, em voz baixa. — Você tem uma filha.
Ele abaixou a cabeça sobre os braços outra vez e eu o deixei, os ombros magros sacudindo-se enquanto Jamie batia de leve em suas costas.
Com os sobreviventes agora refeitos e limpos, as famílias Murray e Fraser reuniram-se no quarto de Jenny para um jantar de comemoração. A pequena Margaret, arrumada para inspeção e envolta em um pequeno cobertor, foi entregue a seu pai, que recebeu seu novo rebento com uma expressão de abençoada reverência.
- Olá, Maggie - murmurou, tocando o pequeno botão do seu nariz com a ponta do dedo.
Sua filha recém-nascida, sem se deixar impressionar com a apresentação, fechou os olhos em concentração, enrijeceu o corpo e urinou na camisa do pai.
Durante a breve explosão de risadas e reparação provocada por essa falta de bons modos, o pequeno Jamie conseguiu escapar das mãos da sra. Crook e atirou-se na cama de Jenny. Ela gemeu baixinho com o desconforto, mas estendeu a mão e puxou-o para si, fazendo sinal à sra. Crook para que o deixasse.
- Minha mamãe! — ele declarou, empurrando-se ao lado de Jenny.
- Ora, e quem mais seria? - ela perguntou, de modo lógico. - Aqui, rapaz. - Abraçou-o e beijou o topo de sua cabeça. Ele relaxou, tranqüilizado, e aconchegou-se contra ela. Jenny puxou sua cabeça ternamente, acariciando seus cabelos.
- Deite sua cabeça aqui, rapazinho, e durma. - disse. - Já passou da hora de ir para a cama. Durma. - Reconfortado pela sua presença, ele colocou o dedo na boca e adormeceu.
Quando chegou sua vez de segurar o bebê, Jamie mostrou-se notavelmente competente, segurando a cabecinha penugenta na palma de uma das mãos como uma bola de tênis. Pareceu relutar em devolver a criança para Jenny, que a aninhou junto aos seios, sussurrando-lhe palavras de carinho.
Finalmente, dirigimo-nos para nosso próprio quarto, que parecia silencioso e vazio, em contraste com o caloroso cenário familiar que havíamos acabado de deixar, Ian de joelhos junto à cama de sua mulher, a mão pousada sobre o pequeno Jamie, enquanto Jenny amamentava o bebê. Tomei consciência pela primeira vez do quanto estava cansada; foram quase vinte e quatro horas desde que Ian nos acordara.
Jamie fechou a porta silenciosamente atrás de si. Sem falar, aproximou-se por trás de mim e começou a desamarrar o meu vestido. Suas mãos me envolveram e recostei-me com gratidão contra seu peito. Em seguida, inclinou-se para beijar-me e eu me virei, passando os braços em torno de seu pescoço. Eu não só me sentia muito cansada, mas muito sensível e bastante triste.
- Talvez seja melhor assim -Jamie disse devagar, como se falasse consigo mesmo.
- O quê?
- Que você seja estéril. - Ele não podia ver meu rosto, enterrado em seu peito, mas deve ter sentido meu corpo enrijecer-se.
- Sim, sei disso há muito tempo. Geillis Duncan me disse, logo depois que nos casamos. - Acariciou minhas costas com ternura. - No começo, me ressenti um pouco, mas depois comecei a achar que era melhor assim; vivendo como temos que viver, seria muito difícil se você ficasse grávida. E agora - estremeceu levemente -, agora acho que fico contente com isso; não iria querer vê-la sofrer dessa maneira.
- Eu não me importaria - eu disse, após um longo instante, pensando na cabecinha coberta de penugem e nos dedinhos delicados.
- Eu me importaria. — Beijou o topo da minha cabeça. — Eu vi o rosto de Ian; era como se sua própria carne estivesse sendo dilacerada, cada vez que Jenny gritava. - Meus braços o envolviam, acariciando as cicatrizes enrijecidas de suas costas. - Eu mesmo posso suportar a dor - disse suavemente -, mas não agüentaria vê-la sofrer. Está acima das minhas forças.
Jenny recuperou-se rapidamente do nascimento de Margareth, insistindo em descer as escadas até o térreo no dia seguinte ao parto. Diante da insistência conjunta de Ian e Jamie, ela relutantemente absteve-se de fazer qualquer trabalho, apenas supervisionando do sofá na sala de visitas onde ficou reclinada, a pequena Margaret dormindo no berço ao seu lado.
Entretanto, insatisfeita de ficar sentada ociosamente, em um ou dois dias aventurou-se até a cozinha e depois até a horta atrás da casa. Sentada no muro, o bebê bem enrolado em cobertas e carregado numa faixa amarrada ao corpo, fazia-me companhia, enquanto eu simultaneamente arrancava trepadeiras mortas e vigiava um enorme caldeirão em que as roupas da casa haviam sido fervidas. A sra. Crook e as criadas já haviam retirado as roupas limpas para serem estendidas para secar; agora, eu esperava que a água esfriasse o suficiente para ser descartada.
O pequeno Jamie me "ajudava", arrancando plantas de modo desenfreado e lançando gravetos em todas as direções. Gritei-lhe para ter cuidado quando se aproximou demais do caldeirão, depois corri para ele quando ignorou o aviso. Felizmente, a água esfriara rapidamente; estava apenas morna. Avisando-o para ficar afastado com sua mãe, segurei o caldeirão e virei-o da base de ferro em que se apoiava e que o impedia de cair.
Dei um salto para trás para afastar-me da água suja que caía em cascatas pela borda da vasilha, lançando vapores no ar frio. O pequeno Jamie, agachando-se ao meu lado sobre os calcanhares, bateu as mãos alegremente na lama morna e pingos pretos voaram por toda a minha saia.
Sua mãe deslizou do muro, levantou-o pela gola da camisa e deu-lhe uma palmada no traseiro.
- Você não tem juízo, filho! Olhe só para você! Agora sua camisa vai ter que ser lavada outra vez! E veja o que fez com a saia de sua tia, seu moleque!
- Não tem importância — protestei, vendo o lábio inferior do pequeno vilão tremer.
- Mas para mim tem - Jenny disse, lançando um olhar penetrante ao seu rebento. - Peça desculpas a sua tia, rapaz, depois entre e peça à sra. Crook para lavá-lo. - Apressou-o com um tapinha no traseiro, delicado desta vez, e empurrou-o na direção da casa.
Voltávamos nossa atenção para as roupas fervidas, quando o barulho de cascos de cavalo chegou até nós, vindo da estrada.
- Deve ser Jamie de volta, espero - eu disse, ouvindo. - Mas está voltando cedo.
Jenny sacudiu a cabeça, espreitando intensamente a estrada
- Não é o cavalo dele.
O cavalo, quando apareceu no topo de uma colina, não era conhecido, a julgar por sua testa franzida. O homem em cima dele, entretanto não era nenhum estranho. Ela empertigou-se ao meu lado, depois começou a correr em direção ao portão, envolvendo o bebê com os dois braços para mantê-lo firme.
- É Ian! — gritou para mim.
Ele estava esfarrapado, sujo e machucado no rosto, quando deslizou de cima do cavalo. Um machucado na testa estava inchado, com um corte feio que atravessava a sobrancelha. Jenny segurou-o por baixo do braço quando ele atingiu o chão e foi somente então que vi que sua perna de pau havia desaparecido.
- Jamie - murmurou, ofegante. - Encontramo-nos com a patrulha perto do moinho. A nossa espera. Sabiam que estávamos indo para lá.
Meu estômago contorceu-se.
- Ele está vivo?
Ian balançou a cabeça, confirmando, tentando respirar.
- Sim. Também não está ferido. Levaram-no para oeste, em direção a Killin.
Os dedos de Jenny exploravam seu rosto.
- Está muito ferido, homem? Ele sacudiu a cabeça.
- Não. Levaram meu cavalo e minha perna; não precisavam me matar para me impedir de segui-los.
Jenny olhou para o horizonte, onde o sol estava logo acima da linha das árvores. Talvez quatro horas da tarde, estimei. Ian seguiu seu olhar e antecipou-se à sua pergunta.
- Nós os encontramos por volta de meio-dia. Levei mais de duas horas para chegar a um lugar que tivesse um cavalo.
Ela ficou parada, imóvel, por um instante, calculando, depois se virou para mim, com ar decidido.
- Claire. Ajude Ian a ir para a casa, por favor, e se ele precisar de cuidados, faça-o o mais rápido possível. Vou deixar o bebê com a sra. Crook e pegar os cavalos.
Afastou-se antes que qualquer um de nós pudesse protestar.
- Ela pretende... mas não pode! - exclamei. - Não pode estar pensando em deixar o bebê!
Lan apoiava-se pesadamente em meu ombro enquanto percorríamos lentamente o caminho em direção à casa. Ele sacudiu a cabeça. Não. Mas também não acho que ela pretenda deixar os ingleses enforcarem seu irmão.
Escurecia, quando chegamos ao local onde Jamie e Ian haviam sido emboscados. Jenny desceu do cavalo e andou de um lado para o outro em meio aos arbustos, farejando como um pequeno terrier, afastando galhos do caminho e murmurando baixinho o que pareciam ser os piores palavrões do seu irmão.
- Para leste - disse, saindo finalmente do meio das árvores, arranhada e suja. Bateu as folhas mortas presas às suas saias e pegou as rédeas de seu cavalo das minhas mãos entorpecidas. - Não podemos segui-los no escuro, mas pelo menos sei para que lado ir quando amanhecer.
Improvisamos um acampamento simples, amarrando os cavalos e fazendo uma pequena fogueira. Admirei a eficiência com que Jenny fizera tudo aquilo e ela sorriu.
- Eu costumava fazer Jamie e Ian me ensinarem o que sabiam, quando eram pequenos. Como fazer fogo, subir em árvores, até como tirar a pele de animais. E como seguir um rastro. — Olhou novamente na direção tomada pela patrulha.
- Não se preocupe, Claire. - Sorriu para mim e sentou-se junto à fogueira. - Vinte cavalos não podem andar muito depressa pelo mato, mas dois podem. A patrulha vai pegar a estrada em direção a Eskadale, ao que parece. Podemos cortar caminho pelas montanhas e encontrá-los perto de Midmains.
Seus dedos ágeis puxavam o corpete de seu vestido. Olhei espantada quando ela desfez o franzido e arriou a parte de cima de sua blusa de baixo, expondo os seios. Estavam grandes e pareciam intumescidos, inchados de leite. Em minha ignorância, não havia pensado no que a mãe que amamentava fazia quando privada do aleitamento.
- Não posso deixar o bebê por muito tempo - disse, respondendo aos meus Pensamentos, rindo enquanto segurava um dos seios por baixo. — Eu explodiria.
- Em reação ao toque, o leite começou a pingar do mamilo engurgitado, fino e azulado. Retirando um lenço grande do bolso, Jenny colocou-o sob o peito. Havia uma pequena caneca no chão a seu lado, que ela tirara do alforje. Pressionando a borda da caneca logo abaixo do mamilo, massageou suavemente o seio entre dois dedos, espremendo-o delicadamente em direção ao mamilo. O leite escoou mais depressa em resposta e, em seguida, de repente, a auréola em torno do mamilo contraiu-se e o leite espirrou em um jato fino de força surpreendente.
- Não sabia que era assim! - exclamei subitamente, olhando fascinada.
Jenny deslocou a caneca para pegar o jato e balançou a cabeça.
- Ah, sim. A força com que o bebê suga desencadeia o fluxo, mas depois que o leite começa a sair, tudo que a criança tem que fazer é engolir. Ah, agora me sinto melhor. - Fechou os olhos por um instante, aliviada.
Esvaziou a caneca no chão, observando:
- Uma pena desperdiçá-lo, mas não há o que fazer com isso, não é mesmo? — Mudando de mão, colocou a caneca na posição outra vez e repetiu o processo no outro seio.
- É uma chateação — disse, erguendo os olhos e vendo que eu ainda a observava. - Tudo que tem a ver com crianças é uma chateação, praticamente. Mesmo assim, você jamais escolheria não tê-los.
- Não - respondi em voz baixa. - Ninguém escolheria isso. Olhou-me por cima da fogueira, o rosto bondoso e preocupado.
- Ainda não chegou sua hora — ela disse. - Mas terá seus próprios filhos um dia.
Ri um pouco trêmula.
- Primeiro, é melhor encontrarmos o pai.
Ela esvaziou a segunda caneca e começou a arrumar o vestido.
- Ah, nós o encontraremos. Amanhã. É preciso, porque não posso ficar longe de Maggie por muito tempo.
- E quando o tivermos encontrado? — perguntei. - O que acontece? Ela encolheu os ombros e pegou os rolos de cobertores.
- Isso vai depender de Jamie. E do quanto eles o machucaram.
Jenny tinha razão; nós realmente encontramos a patrulha no dia seguinte. Deixamos nosso acampamento antes do raiar do dia, parando apenas o suficiente para que ela extraísse mais leite. Ela parecia encontrar trilhas onde não havia nenhuma e eu a segui sem fazer perguntas até uma região de floresta densa. Era impossível viajar rápido em meio à vegetação rasteira e arbustos, mas assegurou-me de que estávamos fazendo um percurso muito mais direto do que o caminho que a patrulha era obrigada a fazer, presos como estavam à estrada por causa do tamanho do grupo.
Nós os alcançamos por volta do meio-dia. Ouvi o tilintar de arreios e as vozes descontraídas que ouvira em outra ocasião. Estendi a mão fazendo sinal para que Jenny, que me seguia naquele momento, parasse.
- Há um vau que dá para cruzar o córrego lá embaixo - sussurrou-me. - Parece que pararam lá para os cavalos beberem água. — Deslizando de cima do cavalo, segurou as rédeas dos dois animais e amarrou-os. Em seguida, fazendo sinal para que a seguisse, escorregou para dentro do mato rasteiro como uma cobra.
Da posição favorável para onde ela nos levara, em uma pequena saliência rochosa acima do córrego, podíamos ver praticamente todos os homens da patrulha, a maioria desmontada e conversando despreocupadamente em grupos, alguns sentados no chão, comendo, outros conduzindo os cavalos em grupos de dois e três até a água. O que não conseguíamos ver era Jamie.
- Acha que o mataram? - perguntei em pânico. Contei os homens duas vezes, para ter certeza de que não deixara de contar ninguém. Havia vinte homens e vinte e seis cavalos; todos bem à vista, até onde eu podia ver. Mas nenhuma pista de um prisioneiro e nenhum reflexo revelador de cabelos ruivos.
- Duvido - Jenny respondeu. — Mas só há um meio de descobrir. - Começou a se esgueirar para trás.
- Como?
- Perguntando.
A estrada estreitava-se depois do vau, tornando-se pouco mais do que uma trilha empoeirada através de densos grupos de pinheiros e amieiros de cada lado. A trilha não era larga o suficiente para a patrulha avançar em duplas, lado a lado; cada homem teria que cruzá-la em fila indiana.
Quando o último homem da fila aproximou-se de uma curva no caminho, Jenny Murray entrou de repente na estrada, na frente dele. Seu cavalo assustou-se e o homem lutou para controlá-lo, praguejando. Quando abriu a boca para perguntar, indignado, o que ela pretendia com aquele comportamento, eu saí dos arbustos atrás dele e atingi-o com força atrás da orelha com um galho caído.
Tomado completamente de surpresa, ele perdeu o equilíbrio quando o cavalo assustou-se outra vez e caiu na estrada. Ele não desmaiou; o golpe apenas o derrubara. Jenny remediou essa deficiência com a ajuda de uma pedra de bom tamanho.
Agarrou as rédeas do cavalo e gesticulou freneticamente para mim.
- Depressa! — sussurrou. — Tire-o da estrada antes que dêem por falta dele!
Foi assim que, ao recobrar os sentidos, Robert MacDonald do Regimento Glen Elrive viu-se firmemente amarrado a uma árvore, olhando para o cano de uma pistola apontada para ele pela irmã furiosa de seu antigo prisioneiro.
- O que fizeram com Jamie Fraser? - ela perguntou. MacDonald sacudiu a cabeça, atordoado, obviamente achando que ela era fruto de sua imaginação. Uma tentativa de se mover pôs fim às suas dúvidas e depois da devida enxurrada de palavrões e ameaças, finalmente se apaziguou com a idéia de que o único modo de se livrar era nos contando o que queríamos saber.
- Ele está morto - MacDonald disse a contragosto. No entanto, quando o dedo de Jenny começou a apertar o gatilho ameaçadoramente, acrescentou, repentinamente tomado de pânico: - Não fui eu! Foi culpa dele mesmo!
Jamie, segundo ele, estava montado em dupla, os braços amarrados com uma tira de couro, atrás de um soldado da patrulha, cavalgando entre dois outros homens. Parecera bastante dócil e não tomaram nenhuma precaução especial quando atravessaram o rio a dez quilômetros do moinho.
- O idiota se atirou do cavalo na parte funda do rio - disse MacDonald, encolhendo os ombros como podia com as mãos amarradas às costas. - Nós atiramos nele. Devemos ter acertado, porque ele não veio mais à tona. Mas o rio é rápido logo abaixo do vau, e fundo. Procuramos um pouco, mas não vimos corpo algum. Deve ter sido carregado pelo rio abaixo. Agora, pelo amor de Deus, senhoras, soltem-me!
Depois que repetidas ameaças de Jenny não conseguiram extrair mais nenhum detalhe ou mudanças em sua história, decidimos aceitá-la como verdadeira. Recusando-se a libertar MacDonald completamente, Jenny ao menos afrouxou suas amarras, de modo que com o tempo ele pudesse se libertar. Depois, corremos.
- Acha que ele está morto? — perguntei, arquejando, quando alcançamos os cavalos amarrados.
- Não. Jamie nada como um peixe e já o vi prender a respiração por três minutos seguidos. Vamos. Vamos dar uma busca nas margens do rio.
Percorremos as margens do rio para cima e para baixo, tropeçando em pedras, chapinhando na água nos lugares rasos, arranhando as mãos e o rosto nos salgueiros que arrastavam seus galhos nas poças.
Finalmente, Jenny deu um grito triunfante e eu saí correndo pela água, equilibrando-me precariamente nas pedras escorregadias que forravam o leito do córrego, raso naquele ponto.
Segurava uma tira de couro, ainda amarrada num círculo. Um dos lados estava manchado de sangue.
- Desvencilhou-se disso aqui - disse, segurando o círculo de couro entre as mãos. Olhou na direção de onde viéramos, pelo acidentado declive de pedras, poças fundas e correntezas espumantes, e sacudiu a cabeça.
- Como você conseguiu, Jamie? - perguntou, falando consigo mesma. Encontramos uma área plana e gramada, não muito longe da borda, onde ele evidentemente parara para descansar. Encontrei uma pequena mancha amarronzada na casca de um álamo próximo.
- Ele está ferido - eu disse.
- Sim, mas está se locomovendo — Jenny retrucou, olhando para o chão enquanto andava de um lado para o outro.
- Você é boa em seguir rastros? — perguntei esperançosamente.
- Não sou uma grande caçadora — respondeu, partindo e seguida de perto por mim —, mas se não puder seguir algo do tamanho de Jamie Fraser através de samambaias secas, então sou idiota e cega.
De fato, uma trilha larga de samambaias queimadas do frio e esmiga-lhadas subia a encosta do monte e desaparecia em um denso amontoado de urzes. Rodeamos este ponto, mas não nos deparamos com nenhuma outra pista, nem nossos chamados produziram nenhuma resposta.
- Foi embora - Jenny disse, sentando-se em um tronco e abanando-se. Achei-a pálida e compreendi que seqüestrar e ameaçar homens armados não eram tarefas para uma mulher que acabara de dar à luz há menos de uma semana.
-Jenny - eu disse —, você precisa voltar. Além do mais, talvez ele volte para Lallybroch.
Ela sacudiu a cabeça.
- Não, ele não faria isso. Independente do que MacDonald tenha nos dito, eles não vão desistir tão facilmente, não com uma recompensa à mão. Se ainda não saíram à caça dele é porque não puderam. Mas devem ter mandado alguém de volta para ficar de olho na fazenda, por precaução. Não, esse é um lugar para onde ele não iria. - Ela puxou a gola do seu vestido. O dia estava frio, mas ela suava ligeiramente e eu podia ver manchas escuras crescentes no peito do seu vestido, do vazamento de leite.
Ela me viu olhando e balançou a cabeça.
- Sim, vou ter que voltar logo. A sra. Crook está alimentando Maggie com leite de cabra e água açucarada, mas ela não vai poder ficar sem mim por muito mais tempo, nem eu sem ela. Mas odeio ter que deixá-la sozinha.
Eu também não gostava da idéia de andar sozinha pelas Highlands escocesas, à cata de um homem que podia estar em qualquer lugar, mas exibi um ar destemido.
- Vou me arranjar - eu disse. — Poderia ser pior. Ao menos, ele está vivo.
- É verdade. - Olhou para o sol, baixo no horizonte. - Ficarei com você esta noite, ainda.
Aconchegadas em volta do fogo à noite, não falamos muito. Jenny estava preocupada com sua filha abandonada, eu com a perspectiva de prosseguir por conta própria, sozinha, sem nenhum conhecimento real da geografia da região ou de gaélico.
De repente, Jenny ergueu a cabeça, ouvindo com atenção. Empertiguei-me e também fiquei ouvindo, mas não escutei nenhum barulho estranho. Espreitei a escuridão da floresta na direção do olhar de Jenny, mas não vi nenhum par de olhos brilhantes na escuridão, graças a Deus.
Quando me virei para o fogo outra vez, Murtagh estava sentado do outro lado, calmamente aquecendo as mãos no calor das chamas. Jenny virou-se bruscamente diante da minha exclamação de surpresa e deu uma pequena risada de espanto.
- Eu poderia ter cortado a garganta de vocês duas antes que sequer olhassem na direção certa - observou o homenzinho.
- Ah, é mesmo? - Jenny estava sentada com os joelhos puxados para cima, as mãos juntas perto dos tornozelos, envolvendo as pernas. Com um movimento rápido como um raio, enfiou a mão sob a saia e a lâmina de uma sgian dhu reluziu à luz do fogo.
- Nada mau - Murtagh concordou, balançando a cabeça com conhecimento de causa. - A Sassenach é tão boa quanto você?
- Não — Jenny respondeu, guardando a adaga na meia outra vez. -Portanto, é bom que esteja com ela. Ian mandou buscá-lo, não foi?
O homenzinho balançou a cabeça.
- Sim. Já encontraram a patrulha?
Relatamos nosso progresso até ali. Diante da notícia de que Jamie escapara, eu poderia jurar que um músculo torceu-se junto ao canto de sua boca, mas seria exagero chamar aquilo de um sorriso.
Por fim, Jenny levantou-se, dobrando seu cobertor.
- Onde vai? - perguntei, espantada.
- Para casa. - Balançou a cabeça em direção a Murtagh. - Ele vai ficar com você; não precisa mais de mim e há outros que precisam.
Murtagh ergueu os olhos para o céu. A lua minguante era fracamente visível por trás das brumas e uns respingos de chuva murmuravam nos galhos do pinheiro acima de nós.
- Pela manhã é melhor. O vento está aumentando e ninguém vai andar muito esta noite.
Jenny sacudiu a cabeça e continuou prendendo os cabelos sob o xale.
- Conheço o caminho. E se ninguém vai se mover esta noite, não haverá ninguém para me atrapalhar na estrada, não é?
Murtagh suspirou com impaciência.
- Você é tão teimosa quanto o empacado do seu irmão, se me dá licença. Não vejo por que a pressa. Duvido que seu homem tenha levado uma rapariga para a cama durante o tempo que esteve fora.
- Você não consegue ver além do seu nariz, duine, e é uma visão bastante curta - Jenny respondeu rispidamente. - E se você viveu até agora sem aprender a não ficar entre uma mãe que está amamentando e seu filho faminto, não tem juízo suficiente para caçar porco-do-mato, que dirá encontrar um homem no urzal.
Murtagh ergueu os braços, rendendo-se.
- Ah, sim, siga o seu caminho. Eu não sabia que estava tentando enfiar bom senso na cabeça de uma porca selvagem. Acho que vou levar uma chifrada na perna por me preocupar.
Jenny riu inesperadamente, fazendo duas covinhas no rosto.
- Para falar a verdade, acho mesmo que vai, seu velho patife. - In-clinou-se e ergueu a pesada sela sobre os joelhos. - Tome conta da minha cunhada e mande avisar quando tiverem encontrado Jamie.
Quando ela se virou para selar o cavalo, Murtagh acrescentou:
- Aliás, talvez encontre uma nova ajudante na cozinha quando chegar em casa.
Ela parou e olhou para ele, depois colocou a sela lentamente no chão.
- E quem será? — perguntou.
- A viúva MacNab — ele respondeu, com clara intenção.
Ela ficou imóvel por um instante, nada se mexendo, a não ser o xale e o manto que esvoaçava no vento cada vez mais forte.
- Como? - perguntou finalmente.
Murtagh inclinou-se para pegar a sela. Levantou-a e amarrou o cinturão com firmeza com um único movimento e aparentemente sem nenhum esforço.
- Incêndio - disse, dando um puxão final na tira de couro do estribo. - Preste atenção quando atravessar o campo alto; as cinzas ainda devem estar quentes.
Cruzou as mãos formando um apoio para que Jenny montasse, mas ela sacudiu a cabeça e pegou as rédeas, fazendo um aceno para mim.
- Acompanhe-me até o topo da colina, Claire, por favor.
O ar estava frio e pesado, longe da fogueira. Minhas saias estavam úmidas de sentar no chão e grudavam-se em minhas pernas conforme andava. A cabeça de Jenny estava abaixada para se proteger do vento, mas eu podia ver seu perfil, os lábios pálidos e cerrados de frio.
- Foi MacNab que entregou Jamie à patrulha? - perguntei finalmente. Ela balançou a cabeça devagar.
- Sim. Ian deve ter descoberto, ou um dos outros homens; não importa quem.
Era final de novembro, bem depois das comemorações do Guy Fawkes Day, mas tive a visão repentina de um incêndio, as labaredas galgando paredes de madeira e eclodindo com toda força no teto de palha, como as línguas do Espírito Santo, enquanto o fogo dentro da casa rugia suas preces pelos amaldiçoados. Dentro, a efígie agachada em cinzas em sua própria lareira, pronta para desfazer-se em poeira negra com a próxima rajada de vento frio a varrer a carcaça de sua casa. Às vezes, há uma linha fina entre a justiça e a brutalidade.
Percebi que Jenny estava me olhando de frente, questionando-me, e eu devolvi o olhar com um aceno afirmativo da cabeça. Estávamos juntas, ao menos neste caso, do mesmo lado dessa linha sombria e arbitrária.
Paramos no cume da colina, Murtagh apenas um ponto preto junto à fogueira lá embaixo. Jenny remexeu por um instante no bolso lateral de sua saia, em seguida pressionou uma pequena sacola de camurça em minha mão.
- Os aluguéis do trimestre - disse. - Você pode precisar.
Tentei devolver-lhe o dinheiro, insistindo que Jamie não iria querer ficar com o dinheiro que era necessário à administração da fazenda, mas ela não quis nem ouvir. Embora Janet Fraser tivesse a metade do tamanho do irmão, sua teimosia era tão grande quanto a dele.
Derrotada, finalmente desisti e enfiei o dinheiro em lugar seguro nos recessos da minha própria roupa. Por insistência de Jenny, também peguei a pequena sgian dhu que pressionou em minha mão.
- É de Ian, mas ele tem outra - disse. - Guarde na boca de sua meia e prenda-a com sua liga. Não a tire, nem quando estiver dormindo
Parou por um instante, como se quisesse dizer mais alguma coisa. Aparentemente, queria.
- Jamie disse - prosseguiu cautelosamente - que talvez você pudesse me contar coisas às vezes. E disse que se você o fizesse, eu deveria seguir suas palavras. Há... alguma coisa que queira me dizer?
Jamie e eu havíamos discutido a necessidade de preparar Lallybroch e seus habitantes para os iminentes desastres da Rebelião. Mas, na época achamos que ainda teríamos bastante tempo. Agora, não havia mais tempo algum, no máximo alguns minutos, nos quais transmitir a esta nova irmã que eu tanto amava informações suficientes para proteger Lallybroch da tempestade que se avizinhava.
Ser profeta era uma tarefa muito desconfortável, pensei, não pela primeira vez. Sentia grande simpatia pelo profeta Jeremias e seu Livro das Lamentações. Também compreendia perfeitamente por que Cassandra era tão impopular. No entanto, nada podia ser feito em relação a isso. No cume de uma colina escocesa, o vento noturno de uma tempestade de outono açoitando meus cabelos e saias como as vestes de uma banshee, virei o rosto para os céus carregados e me preparei para profetizar.
- Plante batatas - eu disse.
A boca de Jenny entreabriu-se, em seguida ela firmou o maxilar e balançou a cabeça energicamente.
- Batatas. Sim. Não há nenhuma antes de Edimburgo, mas mandarei buscar. Quanto?
- O máximo que puder. Não são cultivadas nas Highlands agora, mas serão. É um cultivo de raiz que pode ser guardado por bastante tempo e o rendimento é melhor do que o do trigo. Plante todo o terreno que puder com produtos que podem ser armazenados. Haverá fome, muito grave, dentro de dois anos. Se tiver terras ou propriedades que não são produtivas agora, venda-as por ouro. Haverá uma guerra, e massacre. Os homens serão perseguidos, aqui e em toda a região das Highlands. - Pensei por um instante. - Há um esconderijo secreto na casa?
- Não, foi construída bem depois da época do Protetorado.
- Então, construa um lugar seguro para se esconderem. Espero que Jamie não precise dele — engoli em seco diante do pensamento – mas alguém pode precisar.
— Está bem. É tudo? — Seu rosto estava sério e resoluto na meia-luz. Abençoei Jamie por sua previdência em avisar Jenny e abençoei-a por sua confiança no irmão. Ela não me perguntou como nem por quê, apenas registrou atentamente o que eu dissera e tive certeza que minhas apressadas instruções seriam seguidas.
- Isso é tudo. Ao menos, é tudo que consigo pensar agora. - Tentei sorrir, mas o esforço não pareceu convincente, nem mesmo para mim.
O dela foi melhor. Tocou meu rosto rapidamente num gesto de despedida.
- Que Deus a acompanhe, Claire. Nós nos veremos outra vez, quando você trouxer meu irmão de volta para casa.
Quaisquer que fossem as desvantagens da civilização, refleti implacavelmente, os benefícios eram inegáveis. O telefone, por exemplo. E os jornais, que eram populares em centros metropolitanos como Edimburgo ou mesmo Perth, mas completamente desconhecidos na região selvagem das Highlands escocesas!
Sem nenhuma forma de comunicação de massa, as notícias espalhavam-se de boca a boca à velocidade dos passos do homem. Em geral, as pessoas acabavam sabendo o que precisavam saber, mas com um atraso de várias semanas. Em conseqüência, diante do problema de descobrir exatamente onde Jamie estava, havia pouco com que contar, exceto a possibilidade de alguém tê-lo visto e mandado avisar Lallybroch. Era um processo que podia levar semanas. Além do mais, logo o inverno se instalaria, tornando impossível a viagem a Beauly. Fiquei alimentando o fogo com gravetos, enquanto considerava as possibilidades.
Que rumo Jamie teria tomado a partir do local de sua fuga? Não de volta a Lallybroch, certamente, e provavelmente também não para o norte, para as terras dos MacKenzie. Para o sul, para as terras da fronteira, onde poderia deparar-se outra vez com Hugh Munro ou algum dos seus antigos companheiros de estrada? Não, o mais provável é que tivesse seguido para nordeste, em direção a Beauly. Mas se eu podia chegar a essa conclusão, os homens da patrulha também poderiam.
Murtagh voltou de suas andanças, lançando uma braçada de galhos e gravetos no chão. Sentou-se com as pernas cruzadas sobre uma ponta do seu xale, enrolando o restante em volta do corpo para se aquecer. Olhou para o céu onde a luz brilhava por trás de nuvens ligeiras.
- Não vai nevar ainda - disse, franzindo a testa. — Dentro de uma, talvez duas semanas. Devemos chegar a Beauly antes disso. — Bem, era bom ter confirmação de minhas deduções, pensei.
- Acha que ele estará lá?
O pequeno escocês encolheu os ombros, erguendo o xale mais para cima das costas.
- Não há como saber. A viagem não será fácil para ele, escondendo-se durante o dia e mantendo-se longe das estradas. E ele não tem um cavalo. -- Esfregou o queixo com a barba espetada, pensativamente. — Não podemos encontrá-lo; é melhor deixar que ele nos encontre.
— Como? Lançando fogos de sinalização? - sugeri sarcasticamente. Murtagh tinha uma característica boa; por mais insólito que fosse algo que eu dissesse, podia esperar que ele se comportasse como se eu não tivesse dito nada.
— Trouxe sua caixa de remédios — disse, indicando os alforjes no chão com um movimento da cabeça. - E você tem uma boa reputação nas vizinhanças de Lallybroch; deve ser conhecida como uma boa curandeira na maior parte das regiões próximas. - Balançou a cabeça para si mesmo. -Sim, isso vai servir. - E sem maiores explicações, deitou-se, enrolado em seu xale, e foi dormir tranqüilamente, ignorando o vento nas árvores, a chuva fina e mesmo a mim.
Logo descobri o que ele pretendia. Viajando abertamente - e devagar — pelas estradas principais, parávamos em cada fazenda, vila e aldeia que encontrávamos. Ali, ele fazia uma rápida inspeção na população local, reunia qualquer um que sofresse alguma doença ou ferimento e os trazia para mim, para que os tratasse. Os médicos sendo poucos e raramente vistos naquelas paragens, sempre havia alguém doente para cuidar.
Enquanto eu me ocupava com tônicos e pomadas, ele conversava displicentemente com os amigos e parentes dos aflitos, tomando o cuidado de descrever o caminho de nossa jornada em direção a Beauly. Quando não havia nenhum paciente a ser tratado em um lugar, parávamos mesmo assim para passar a noite, buscando abrigo em uma cabana ou estalagem. Nesses lugares, Murtagh cantava para entreter nossos anfitriões e pagar pelo jantar, insistindo teimosamente que eu guardasse todo o dinheiro que trazia comigo, no caso de precisarmos dele quando encontrássemos Jamie.
Não tendo inclinação natural para a conversa, ensinou-me algumas de suas canções, para passar o tempo conforme avançávamos devagar de um lugar para o outro.
— Você tem uma boa voz — observou um dia, depois de uma tentativa mais ou menos bem-sucedida com uma canção folclórica. — Não é uma voz educada, mas é forte e melodiosa. Tente mais uma vez e cantará comigo esta noite. Há uma pequena taberna em Limraigh.
— Acha mesmo que vai funcionar? - perguntei. - Quero dizer, o que estamos fazendo?
Ele remexeu-se na sela antes de responder. Não sendo um cavaleiro nato, sempre parecia um macaco treinado para montar um cavalo, mas ainda assim conseguia desmontar ao fim do dia com o frescor de uma margarida, ao passo que eu mal conseguia amarrar o cavalo antes de cambalear e desmoronar no chão.
— Ah, sim - disse finalmente. - Mais cedo ou mais tarde. Está atendendo mais doentes nestes últimos dias, não está?
Era verdade e eu admiti.
- Então - disse, provando seu argumento -, isso significa que a notícia de suas habilidades está se espalhando. E é isso que queremos. Mas talvez pudéssemos fazer melhor. Por isso é que você deve cantar esta noite. E talvez... - hesitou, como se relutasse em fazer uma sugestão.
- Talvez o quê?
- Você sabe alguma coisa sobre previsão do futuro, não? — perguntou cautelosamente. Entendi o motivo de sua hesitação; ele vira o tumulto da caça às bruxas em Cranesmuir.
Sorri.
- Um pouco. Quer que eu tente?
- Sim. Quanto mais oferecermos, mas as pessoas virão nos ver e voltarão para contar aos outros. E a notícia se espalhará, até o rapaz ouvir falar de nós. Então, nós o encontraremos. Está disposta a tentar?
Encolhi os ombros.
- Se pode ajudar, por que não?
Fiz minha estréia como cantora e vidente naquela noite em Limraigh, com considerável sucesso. Descobri que a sra. Graham estava certa no que me dissera — eram os rostos, e não as mãos, que lhe davam as pistas necessárias.
Nossa fama se espalhou, pouco a pouco, até que no final da semana seguinte as pessoas saíam correndo de suas casas para nos saudar quando entrávamos em uma vila e nos cobriam de trocados e pequenos presentes quando partíamos.
- Sabe, podíamos realmente ganhar alguma coisa com isso - observei uma noite, guardando a féria da noite. - Pena que não haja um teatro por perto. Poderíamos fazer um número adequado de teatro de variedades: "O mágico Murtagh e sua encantadora assistente, Gladys."
Murtagh tratou essa observação com sua taciturna indiferença de costume, mas era verdade; nós realmente nos saíamos muito bem juntos. Talvez fosse por estarmos unidos em nossa busca, apesar de nossas diferenças fundamentais de personalidade.
As condições do tempo pioraram notavelmente e nossa marcha diminuiu ainda mais. Até aquele momento, entretanto, não tivemos nenhuma notícia de Jamie. Uma noite, perto de Belladrum, sob uma forte chuva, deparamo-nos com um bando de verdadeiros ciganos.
Pisquei os olhos sem acreditar diante do minúsculo agrupamento daqueles carroções pintados que os ciganos usavam como casa, na clareira junto à estrada. Era exatamente igual ao acampamento dos grupos de ciganos que iam a Hampstead Down todo ano.
As pessoas tinham a mesma aparência, também; morenas, alegres, barulhentas e expansivas. Ouvindo o tilintar de nossos arreios, uma cabeça de mulher surgiu na janela de um dos carroções. Analisou-nos por um instante, depois deu um grito e o terreno sob as árvores animou-se de repente com rostos morenos e sorridentes.
— Me dê sua bolsa para eu guardar, por segurança - disse Murtagh, sem sorrir, observando o jovem que vinha pavoneando-se em nossa direção, com uma alegre indiferença em relação à chuva que encharcava sua camisa colorida. — E não dê as costas para ninguém.
Procedi com cautela, mas fomos recebidos calorosamente e convidados a compartilhar do jantar cigano. Tinha um cheiro delicioso - uma espécie de cozido - e aceitei avidamente o convite, ignorando as sombrias especulações de Murtagh quanto à natureza do animal que virará carne de ensopado.
Eles falavam mal o inglês e pior ainda o gaélico; conversamos em grande parte através de gestos e uma espécie de dialeto, que devia ao francês grande parte de sua procedência. O ambiente era acolhedor e amigável no carroção onde comemos; homens, mulheres e crianças, todos comiam sem nenhuma cerimônia, diretamente de tigelas, sentados onde encontrassem lugar, mergulhando grandes pedaços de pão no caldo do suculento ensopado. Foi a melhor comida que tivemos em semanas e comi até achar que iria arrebentar. Mal consegui reunir fôlego para cantar, mas fiz o melhor possível, cantarolando nos trechos mais difíceis e deixando a melodia a cargo de Murtagh.
Nossa apresentação foi saudada com aplausos entusiasmados e os ciganos retribuíram com um jovem cantando uma espécie de sofrido lamento, acompanhado por uma rabeca. Sua apresentação era pontuada pelo retinir de um pandeiro, seriamente manejado por uma menina de cerca de oito anos.
Enquanto Murtagh mostrara-se circunspecto em suas indagações nas vilas e fazendas onde paramos, com os ciganos foi completamente franco. Para minha surpresa, disse-lhes sem rodeios quem estávamos procurando; um homem grande, de cabelos de fogo e olhos da cor do céu de verão. Os ciganos trocaram olhares ao longo do vão central do carroção, mas houve um movimento unânime de cabeças pesarosas. Não, não o haviam visto. Mas... e aqui o líder, o jovem de camisa roxa que nos recebera, disse através de pantomima que enviaria um mensageiro, caso cruzassem com o homem que procurávamos.
Agradeci com um aceno de cabeça e Murtagh, por sua vez, indicou por meio de gestos que daria dinheiro a quem desse alguma informação. Essa parte dos negócios foi recebida com sorrisos, mas também com olhares especulativos. Fiquei satisfeita quando Murtagh disse que não poderíamos passar a noite, que devíamos seguir nosso caminho, e agradecia mesmo assim. Retirou algumas moedas da bolsa de sua cintura, tomando o cuidado de mostrar o fato de que ela continha apenas um pequeno punhado de moedas de cobre. Distribuindo-as como forma de agradecimento pelo jantar, partimos, seguidos de loquazes protestos de despedida, gratidão e votos de felicidades - ao menos, foi o que presumi que fossem.
Podiam na verdade estar prometendo nos seguir e cortar nossas gargantas. Murtagh comportou-se como se esse fosse o caso, conduzindo os cavalos a galope em direção à encruzilhada a três quilômetros dali, depois se desviando e entrando no mato para dar uma volta considerável antes de emergir na estrada outra vez.
Murtagh deu uma olhada para cima e para baixo da estrada, vazia na penumbra crescente do anoitecer e encharcada de chuva.
- Acha mesmo que nos seguiram? - perguntei, curiosa.
- Não sei, mas como eles são doze e nós apenas dois, achei melhor agir como se nos tivessem seguido. – Parecia bastante sensato e eu o segui sem perguntas por várias outras manobras evasivas, chegando finalmente a Rossmoor, onde encontramos abrigo em um celeiro.
Nevou no dia seguinte. Apenas o suficiente para cobrir o chão de branco como farinha no piso de um moinho, mas preocupou-me. Não me agradava pensar em Jamie, sozinho e sem abrigo no urzal, enfrentando tempestades de inverno apenas com a camisa e o xale que usava no momento em que fora capturado pela patrulha.
Dois dias depois, o mensageiro chegou.
O sol ainda brilhava no horizonte, mas já era noite nos vales estreitos, cercados por paredões rochosos. As sombras eram tão densas embaixo das árvores sem folhas que o caminho - ou o que restava dele - era quase invisível. Com medo de perder o mensageiro na crescente escuridão, andei tão perto atrás dele, que uma ou duas vezes cheguei a pisar na barra de seu manto que se arrastava no chão. Finalmente, com um grunhido impaciente, ele virou-se e me passou para a frente dele, empurrando-me nas sombras do crepúsculo com a mão pesada no meu ombro.
Parecia que caminhávamos há muito tempo. Há muito eu já perdera a pista de nossas voltas em meio aos altos rochedos e à vegetação rasteira densa e morta. Podia apenas desejar que Murtagh estivesse em algum lugar atrás de nós, mantendo-se a uma distância em que pudesse ouvir, ou até mesmo ver. O homem que fora à estalagem me buscar, um cigano de meia-idade que não falava nada de inglês, recusara-se terminantemente a permitir que qualquer outra pessoa o acompanhasse a não ser eu, apontando enfaticamente primeiro para Murtagh e depois para o chão, indicando que ele não deveria sair dali.
A friagem da noite caía rapidamente naquela época do ano e meu pesado manto quase não servia de proteção suficiente contra as súbitas rajadas de vento glacial que nos açoitavam nos lugares abertos das clareiras.
Eu estava dividida entre o horror diante da idéia de Jamie estar enfrentando as noites frias e chuvosas do outono sem abrigo e a empolgação diante da idéia de vê-lo novamente. O calafrio que percorreu minha espinha nada tinha a ver com o ar gelado.
Finalmente, meu guia puxou-me, obrigando-me a parar, e com um aperto em meu ombro de precaução, saiu da trilha e desapareceu. Fiquei parada, com toda a paciência que conseguia reunir, as mãos embaixo dos braços para aquecê-las. Tinha certeza de que meu guia - ou alguém - iria voltar; para começar, eu ainda não pagara pelo serviço. Mesmo assim, o vento chocalhava os arbustos mortos como a passagem do fantasma de um veado, tomado de pânico, em fuga de seu caçador. E a umidade entrava pelas costuras de minhas botas; a impermeabilização com gordura de lontra desgastara-se e eu não tivera a oportunidade de reaplicá-la.
Meu guia reapareceu tão repentinamente quanto havia desaparecido, fazendo-me morder a língua ao reprimir um grunhido de surpresa. com um movimento brusco de cabeça, mandou que o seguisse e pressionou para o lado uma cortina de amieiros mortos para que eu passasse.
A entrada da caverna era estreita. Havia um lampião queimando em uma saliência da rocha, delineando a silhueta de uma figura alta que voltou-se para a entrada para vir ao meu encontro.
Atirei-me para a frente, percebendo antes mesmo de tocá-lo que não era Jamie. A decepção me atingiu como um soco no estômago e tive que dar um passo para trás e engolir em seco várias vezes para conter a golfada de bílis que subiu à minha garganta.
Cerrei as mãos junto ao corpo, enfiando os punhos nas coxas até sentir-me suficientemente calma para falar.
- Um pouco fora do seu território, não está? - disse, numa voz que me surpreendeu pela frieza.
Dougal MacKenzie observara meu esforço para me controlar, não sem alguma simpatia no rosto sombrio. Segurou meu cotovelo e conduziu-me mais para dentro da caverna. Havia vários pacotes empilhados ao fundo, muito mais do que um único cavalo poderia carregar. Portanto, ele não estava sozinho. E o que quer que ele e seus homens estivessem carregando, era algo que ele preferia não expor ao olhar curioso de donos de hotéis e hospedarias.
- Contrabando? - perguntei, com um movimento da cabeça em direção à pilha. Então, pensei melhor e respondi minha própria pergunta. — Não, não exatamente contrabando. Mercadorias para o príncipe Carlos, não é?
Não se deu ao trabalho de me responder, mas sentou-se numa pedra à minha frente, as mãos nos joelhos.
— Tenho notícias — disse bruscamente.
Respirei fundo, preparando-me. Notícias, e não boas notícias, pela expressão do seu rosto. Respirei fundo novamente, engoli com força e balancei a cabeça.
— Conte-me.
- Ele está vivo — disse e o maior dos pedaços de gelo no meu estômago desfez-se. Dougal inclinou a cabeça para o lado, observando-me intensamente. Para ver se eu ia desmaiar?, imaginei vagamente. Não importava; eu não ia desmaiar.
- Foi preso perto de Kiltorlity, há duas semanas - Dougal disse, ainda me observando. — Não foi culpa dele; má sorte. Deparou-se cara a cara com seis soldados ingleses em uma curva do caminho e um deles o reconheceu.
- Estava ferido? - Minha voz ainda era calma, mas minhas mãos começavam a tremer. Pressionei-as, abertas, contra as pernas para imobilizá-las.
Dougal sacudiu a cabeça.
— Não, pelo que ouvi. - Parou por um instante. - Está na Prisão de Wentworth - disse, com relutância.
- Wentworth — repeti mecanicamente. Prisão de Wentworth. Originalmente, uma poderosa fortaleza da fronteira, fora construída no final do século XVI e acrescida de vários anexos a intervalos, ao longo dos cento e cinqüenta anos seguintes. A extensa pilha de pedras agora cobria quase dois acres de terreno, lacrada por trás de sólidas muralhas de granito de um metro de espessura. Mas até mesmo muralhas de granito possuíam portões, pensei. Ergui os olhos para fazer uma pergunta e vi a relutância ainda estampada nas feições de Dougal.
— O que mais? — perguntei rispidamente. Os olhos cor de avelã fitaram os meus, sem pestanejar.
- Foi julgado há três dias — Dougal disse. - E foi condenado à forca. O pedaço de gelo estava de volta ao meu estômago, com companhia.
Fechei os olhos.
- Quanto tempo? - perguntei. Minha voz parecia distante aos meus próprios ouvidos e abri os olhos novamente, piscando para focalizá-los outra vez na luz bruxuleante do lampião. Dougal sacudia a cabeça.
- Não sei. Mas não por muito tempo.
Começava a respirar com um pouco mais de facilidade agora e me senti capaz de descerrar os punhos.
- Então, é melhor nos apressarmos - eu disse, ainda calmamente. Quantos homens você tem?
Ao invés de responder, Dougal levantou-se e caminhou na minha direção. Estendendo os braços, segurou minhas mãos nas suas e me pôs de pé. A expressão de simpatia estava de volta e uma profunda tristeza que assomava aos seus olhos amedrontou-me mais do que qualquer outra coisa que ele tivesse dito até então. Ele sacudiu a cabeça devagar.
- Não, dona - disse delicadamente. - Não há nada que possamos fazer. Em pânico, arranquei minhas mãos das suas.
- Claro que há! - exclamei. - Tem que haver! Você disse que ele ainda está vivo!
- E eu disse "Não por muito tempo"! - retorquiu incisivamente. - O rapaz está na Prisão de Wentworth, não no buraco dos ladrões em Cranesmuir! Podem enforcá-lo hoje, amanhã ou somente na semana que vem, pelo que sei, mas não há a menor possibilidade que dez homens possam entrar à força na Prisão de Wentworth!
- Ah, não? - Eu tremia outra vez, mas desta vez de raiva. - Você não sabe disso, não sabe o que deve ser feito! Só não está disposto a arriscar a pele ou seus miseráveis... lucros! — Lancei o braço acusadoramente à pilha de pacotes.
Dougal lutou comigo, agarrando meus braços agitados. Desferi vários socos em seu peito num acesso de raiva e dor. Ele ignorou os golpes e passou os braços ao redor do meu corpo, apertando-me contra ele e segurando-me até eu parar de me debater.
- Claire. — Era a primeira vez que ele usava meu nome e isso me amedrontou ainda mais.
- Claire — repetiu, afrouxando o abraço para que eu pudesse olhar para ele -, acha que eu não faria todo o possível para libertar o rapaz, se achasse que havia a mínima chance? Droga, é meu próprio filho adotivo! Mas não há a menor chance, nenhuma! — Sacudiu-me levemente, para enfatizar suas palavras.
— Jamie não ia querer que eu jogasse fora a vida de homens bons numa aventura vã. Sabe disso tanto quanto eu.
Não consegui mais conter as lágrimas. Elas queimaram pelo meu rosto gelado enquanto eu o empurrava, procurando me libertar de suas mãos. Mas ele me segurou com mais força, tentando forçar minha cabeça a descansar no seu ombro.
- Claire, minha querida - disse, a voz ainda mais terna. - Meu coração dói pelo rapaz... e por você. Venha comigo. Eu a levarei em segurança. Para a minha própria casa - acrescentou apressadamente, sentindo meu corpo retesar-se. - Não para Leoch.
- Para a sua casa? — perguntei devagar. Uma terrível suspeita começava a se formar em minha mente.
- Sim - respondeu. - Certamente não pensou que eu a levaria de volta a Cranesmuir, não é? - Esboçou um sorriso antes de as feições severas relaxarem novamente em uma expressão séria. — Não. Eu a levarei para Beannachd. Estará segura lá.
- Segura? - perguntei. - Ou indefesa? - Soltou os braços diante do tom da minha voz.
- O que está querendo dizer? - A voz agradável tornou-se subitamente fria.
Eu mesma me sentia fria e fechei meu manto ao me afastar dele.
- Você manteve Jamie longe de casa dizendo-lhe que sua irmã tinha dado à luz um filho de Randall — eu disse -, para que você e seu precioso irmão tivessem a chance de atraí-lo para o seu lado. Mas agora que os ingleses se apoderaram dele, você perdeu qualquer oportunidade de controlar a propriedade através de Jamie. - Recuei mais um passo, engolindo em seco.
- Você arranjou o contrato de casamento de sua irmã. Foi por sua insistência, sua e de Colum, que Broch Tuarach tenha que pertencer a uma mulher. Você acha que se Jamie morrer, Broch Tuarach pertencerá a mim... ou a você, se conseguir me convencer ou forçar a me casar com você.
- O quê?! - Sua voz denotava total incredulidade. - Você acha... acha que tudo isso faz parte de uma conspiração? Por Deus! Acha que estou mentindo para você?
Sacudi a cabeça, mantendo a distância entre nós. Não confiava nem um pouco nele.
- Não, acredito em você. Se Jamie não estivesse na prisão, você nunca ousaria me dizer que estava. É muito fácil verificar isso. Nem penso que o traiu entregando-o aos ingleses, nem mesmo você faria tal coisa a alguém do seu próprio sangue. Além disso, se o fizesse, e seus homens ficassem sabendo, se voltariam contra você no mesmo instante. Eles poderiam tolerar muita coisa de você, mas não traição contra um membro de sua própria família. - Enquanto falava, lembrei-me de outra coisa.
- Foi você que atacou Jamie perto da fronteira no ano passado? As grossas sobrancelhas ergueram-se de surpresa.
- Eu? Não! Eu encontrei o rapaz quase morto e o salvei! Isso faz parecer que eu queria lhe causar algum mal?
Encoberta pelo meu manto, deslizei a mão pela coxa, sentindo o volume reconfortante da minha adaga.
- Se não foi você, quem foi?
- Não sei. - O belo rosto mostrava-se cauteloso, mas não parecia estar escondendo nada. — Foi um dos três homens, vagabundos, marginais, homens que costumavam caçar com Jamie na época. Os três acusaram-se mutuamente e não foi possível descobrir a verdade na ocasião. — Deu de ombros, o manto de viagem caindo de um dos ombros largos.
- Não tem mais importância agora; dois deles estão mortos e o terceiro na prisão. Por outro crime, mas agora não faz muita diferença, não é?
- Não, suponho que não. — De certa forma, estava aliviada de descobrir que ele não era um assassino, por pior que fosse. Não tinha nenhum motivo para mentir para mim agora; até onde ele sabia, eu estava completamente desamparada. Sozinha, podia me forçar a fazer o que ele quisesse. Ou provavelmente era o que pensava. Segurei firmemente o cabo da minha adaga.
A luz era fraca na caverna, mas eu o vigiava atentamente e pude notar a indecisão flutuar momentaneamente em seu rosto quando escolheu o próximo passo. Fez um movimento em minha direção, a mão estendida, mas parou quando me viu esquivar.
- Claire. Minha querida Claire. - A voz era terna e deslizou a mão levemente, de modo insinuante, pelo meu braço. Então, resolvera tentar a sedução ao invés da imposição.
- Sei por que fala comigo com tanta frieza e por que pensa tão mal de mim. Sabe que eu a desejo, Claire. E é verdade. Eu a quero desde a noite do Grande Encontro, quando beijei seus doces lábios. — Tocou meu ombro de leve com dois dedos e veio subindo em direção ao meu pescoço. - Se eu fosse um homem livre quando Randall a ameaçou, teria casado com você ali mesmo e mandado o sujeito para o inferno por você. — Gradualmente, aproximava seu corpo do meu, imprensando-me contra a parede de pedra da caverna. As pontas dos seus dedos moveram-se para a minha garganta, percorrendo a linha do fecho do meu manto.
Deve ter visto meu rosto nessa hora, porque interrompeu seus avanços, embora deixasse a mão onde estava, levemente pousada acima da pulsação acelerada na minha garganta.
- Mesmo assim, mesmo sentindo o que sinto, e não vou mais esconder isso de você, mesmo assim não pode imaginar que eu abandonaria Jamie se houvesse qualquer esperança de salvá-lo, não é? Jamie Fraser é o que eu tenho que mais se aproxima de um filho!
- Não é bem verdade - eu disse. - Há o seu filho de verdade. Ou talvez dois, a essa altura? - Os dedos na minha garganta apertaram a pressão, apenas por um segundo, depois se afastaram.
— O que está querendo dizer? — Desta vez, todos os fingimentos, todos os jogos, foram deixados de lado. Os olhos cor de avelã fitavam-me intensamente e os lábios carnudos não passavam de uma linha cruel na barba avermelhada. Ele era muito grande e estava muito perto de mim. Mas eu já tinha ido longe demais para ter cautela.
- Quero dizer que sei quem é o verdadeiro pai de Hamish - disse. Ele já parecia esperar por isso e manteve o rosto sob controle, mas o último mês passado fazendo previsões do futuro não fora em vão. Vi o minúsculo lampejo de choque que arregalou seus olhos e o pânico repentino, rapidamente sufocado, que endureceu os cantos de sua boca.
Na mosca. Apesar do perigo, experimentei uma feroz exultação por um breve instante. Então, eu estava certa e o conhecimento talvez pudesse ser a arma de que eu precisava.
- Sabe, então? - murmurou.
- Sim - eu disse - e imagino que Colum também saiba.
Isso o fez parar por um instante. Os olhos castanho-dourados se estreitaram e me perguntei por um instante se ele estaria armado.
- Acho que durante algum tempo ele pensou que fosse de Jamie - eu disse, fitando-o diretamente nos olhos. - Por causa dos boatos. Você deve ter espalhado isso, através de Geillis Duncan. Por quê? Porque Colum suspeitou de Jamie e começou a interrogar Letitia? Ela não iria agüentar por muito tempo a pressão dele. Ou foi Geilie que achou que você fosse amante de Letitia e você lhe disse que era Jamie para apaziguar suas suspeitas? Ela é uma mulher ciumenta, mas não pode ter mais nenhuma razão para protegê-lo agora.
Dougal sorriu cruelmente. O gelo não desapareceu de seu olhar nem por um instante.
- Não, não pode — concordou, ainda falando suavemente. - A bruxa está morta.
- Morta! - O choque deve ter ficado tão claramente estampado em meu rosto quanto em minha voz. Seu sorriso ampliou-se.
- Ah, sim - disse. - Queimada. Primeiro, teve os pés mergulhados num barril de piche e enfiado em um monte de turfa seca. Foi amarrada a um poste e incendiada como uma tocha. Enviada para o diabo em uma coluna de fogo, sob os ramos de uma sorveira-brava.
A princípio, pensei que aquela descrição impiedosa dos detalhes tivesse a intenção de me impressionar, mas eu estava errada. Mudei de posição e a luz bateu em cheio em seu rosto. Pude ver as marcas de dor gravadas em torno de seus olhos. Não era uma lista de horrores, portanto, mas um ataque a si mesmo. Não senti nenhuma pena dele, nas circunstâncias.
- Então, você gostava dela - eu disse friamente. - Grande bem isso fez a ela. Ou à criança. O que fez com ela?
Encolheu os ombros.
- Fiz com que fosse para uma boa família. Um menino, e muito saudável, apesar de a mãe ser uma bruxa e uma adúltera.
- E o pai um adúltero e um traidor — retorqui. — Sua mulher, sua amante, seu sobrinho, seu irmão. Há alguém que não tenha traído e enganado? Seu... seu... - As palavras sufocaram-se na minha garganta e me senti nauseada de asco. - Não sei por que estou surpresa - disse, tentando falar calmamente. — Se não tem nenhuma lealdade ao seu rei, suponho que não haja razão para achar que tivesse pelo sobrinho ou pelo irmão.
Virou-se bruscamente para mim, fitando-me com raiva. Ergueu as sobrancelhas grossas e escuras, do mesmo formato das sobrancelhas de Colum, de Jamie, de Hamish. Os olhos fundos, as largas maçãs do rosto, o crânio belamente modelado. O legado do velho Jacob MacKenzie era forte.
Sua mão grande e forte agarrou meu ombro.
- Meu irmão? Acha que eu trairia meu irmão? — Por alguma razão aquilo o atingira; seu rosto estava sombrio de ódio.
- Você acabou de admitir que o fez! - Então, compreendi.
- Vocês dois juntos - eu disse devagar. — Fizeram isso juntos, você e Colum. Juntos, como sempre fizeram tudo. - Retirei sua mão do meu ombro com um gesto brusco.
- Colum não podia ser o chefe do clã, a menos que você fosse à guerra por ele. Não podia manter o clã unido, sem você para viajar por ele, coletar os aluguéis e resolver as disputas. Ele não podia montar, não podia viajar. E não podia gerar um filho, que deveria herdar seu legado. E você não teve nenhum filho homem com Maura. Jurou ser seus braços e suas pernas - a essa altura, eu estava começando a me sentir um pouco histérica —, por que não poderia ser seu pau também?
A raiva de Dougal se desvanecera; ficou parado, olhando-me especulativamente por um instante. Concluindo que eu não ia a parte alguma, sentou-se em um dos fardos de mercadorias e esperou que eu terminasse.
- Então você agiu com o conhecimento de Colum. E Letitia aceitou de boa vontade? - Conhecendo agora exatamente o tipo de brutalidade que possuíam, eu não desconsiderava a possibilidade de Letitia ter sido forçada pelos irmãos MacKenzie.
Dougal balançou a cabeça. Sua raiva se dissipara.
- Ah, sim, aceitou perfeitamente. Ela não gostava de mim, mas queria um filho, o suficiente para aceitar-me em sua cama pelos três meses que foram precisos para gerar Hamish. E foi uma tarefa bastante enfadonha -Dougal acrescentou pensativamente, raspando um pouco de lama seca do salto de suas botas. - Eu preferia fazer sexo com uma tigela morna de pudim de leite.
- E você disse isso a Colum? - perguntei. Ouvindo o tom cortante em minha voz, ergueu os olhos. Fitou-me diretamente por um instante, depois um leve sorriso iluminou seu rosto.
- Não - disse serenamente. - Não, eu não disse isso a ele. - Abaixou os olhos para as mãos, virando-as como se procurasse algum segredo oculto nas linhas das palmas.
- Eu disse a ele - continuou, a voz baixa - que ela era doce e meiga como um pêssego maduro e tudo que um homem poderia desejar numa mulher.
Fechou as mãos subitamente e ergueu os olhos para mim, aquele vislumbre momentâneo do irmão de Colum submergiu mais uma vez nos olhos sarcásticos de Dougal MacKenzie.
- Meiga e doce não é precisamente o que eu diria de você - observou. - Mas tudo que um homem poderia desejar... — Os olhos fundos, cor de avelã, viajaram de cima a baixo do meu corpo, demorando-se no volume arredondado dos seios e quadris, visíveis pelo meu manto aberto. Uma das mãos moveu-se inconscientemente para cima e para baixo nos músculos da coxa enquanto me observava.
- Quem sabe? — disse, como se falasse consigo mesmo. - Talvez eu ainda venha a ter outro filho, legítimo, desta vez. É bem verdade - inclinou a cabeça de forma avaliadora, olhando para o meu ventre - que ainda não aconteceu com Jamie. Talvez você seja estéril. Mas correrei o risco. A propriedade vale isso, de qualquer forma.
Levantou-se de repente e deu um passo em minha direção.
- Quem sabe? — repetiu, a voz branda*»* Se eu arasse este belo sulco de pêlos castanhos e semeasse bem fundo todos os dias... - As sombras nas paredes da caverna moveram-se subitamente quando ele deu mais um passo na minha direção.
- Bem, você custou a chegar — eu disse, com raiva.
Uma expressão de choque e incredulidade espalhou-se pelas suas feições antes de perceber que eu olhava para além dele, na direção da entrada da caverna.
- Não me pareceu educado interromper — disse Murtagh, avançando para dentro da caverna, por trás de duas pistolas carregadas. Manteve uma apontada para Dougal e usou a outra para gesticular.
- A menos que você pretenda aceitar esta última proposta aqui mesmo e agora, sugiro que saia. E se realmente pretender aceitá-la, então eu irei embora.
- Ninguém vai embora ainda — eu disse, sucintamente. - Sente-se -ordenei a Dougal. Ele ainda estava de pé, olhando espantado para Murtagh como se visse uma aparição.
- Onde está Rupert? — perguntou, achando a voz.
- Ah, Rupert. - Murtagh coçou o queixo pensativamente com a boca da arma. - É provável que já tenha chegado a Belladrum. Volta antes do nascer do dia — acrescentou a título de informação -, com o pequeno barril de rum que ele acha que você mandou-o buscar. O resto dos seus homens ainda está dormindo em Quinbrough.
Dougal teve a elegância de rir, ainda que um pouco a contragosto. Sentou-se outra vez, as mãos nos joelhos, e olhou de mim para Murtagh e de novo para mim. Houve um silêncio momentâneo.
- Bem - Dougal disse. - E agora?
Essa era uma boa pergunta. Surpresa por ter encontrado Dougal em vez de Jamie, chocada com suas revelações e furiosa com suas propostas subseqüentes, eu não tivera tempo de pensar no que devia ser feito. Felizmente, Murtagh estava mais bem preparado. Bem, afinal, ele não estivera ocupado em combater avanços libidinosos.
- Vamos precisar de dinheiro - disse imediatamente. - E de homens. Lançou um olhar avaliador aos fardos empilhados junto à parede da caverna. — Não — continuou pensativamente. — Aqueles serão para o rei Jaime. Mas ficaremos com o que tem na sua bolsa. - Os pequenos olhos negros giraram de volta a Dougal e a boca de uma pistola gesticulou lentamente nas vizinhanças da bolsa do seu kilt.
Algo a ser dito em favor da vida nas Highlands é que ela aparentemente dava a uma pessoa uma certa atitude fatalista. com um suspiro, Dougal enfiou a mão na bolsa e atirou uma pequena sacola aos meus pés.
- Vinte moedas de ouro e trinta e poucos xelins - disse, erguendo uma ( das sobrancelhas para mim. - Fique com eles e faça bom proveito.
Vendo meu olhar de ceticismo, sacudiu a cabeça.
- Não, estou falando sério. Pense de mim o que quiser. Jamie é filho da minha irmã e, se você puder libertá-lo, que Deus a acompanhe. Mas você não pode. — O tom de sua voz era fatídico.
Olhou para Murtagh, ainda apontando suas pistolas com firmeza.
- Quanto aos homens, não. Se você e a rapariga pretendem cometer suicídio, não posso impedi-los. Até me proponho a enterrá-los, um de cada lado de Jamie. Mas não vão levar nenhum homem para o inferno com vocês, com ou sem pistolas. - Cruzou os braços e apoiou-se contra a parede da caverna, observando-nos calmamente.
As mãos de Murtagh não vacilaram. Mas seus olhos hesitaram, olhando para mim. Eu queria que ele atirasse?
- Vou fazer um acordo com você - eu disse. Dougal ergueu uma das sobrancelhas.
- Você está em melhor posição de fazer acordos do que eu no momento — disse. — Qual a sua proposta?
- Deixe-me falar com seus homens - eu disse. — E se vierem comigo por vontade própria, deixe-os vir. Se não, iremos como viemos. E ainda lhe devolveremos a sacola. ””*
Um lado de sua boca torceu-se, num sorriso enviesado. Examinou-me atentamente, como se avaliasse minha capacidade de persuasão e minhas habilidades de oradora. Depois, sentou-se, as mãos nos joelhos. Balançou a cabeça uma única vez.
— Combinado - disse.
Na realidade, deixamos a ravina da caverna com a bolsa de Dougal e cinco homens, além de Murtagh e de mim mesma: Rupert, John Whitlow, Willie MacMurtry e os gêmeos Rufus e Geordie Coulter. Foi a decisão de Rupert que influenciou os outros; eu ainda podia ver — com uma sensação de cruel satisfação - a expressão no rosto de Dougal quando seu tenente troncudo, de barba negra, olhou-me especulativamente, depois bateu nas armas em sua cintura e disse: ”Sim, dona, por que não?”
A Prisão de Wentworth ficava a cinqüenta e seis quilômetros de distância. Um percurso de meia hora num carro veloz por boas estradas. Uma árdua tarefa de dois dias a cavalo pela lama semi-congelada. Não por muito tempo. As palavras de Dougal ecoavam em meus ouvidos e me mantinham na sela muito depois do ponto em que eu teria caído de cansaço.
Meu corpo estava sendo levado ao limite para manter-me na sela através de todo aquele extenuante trajeto, mas minha mente estava livre para se preocupar. Para mantê-la livre de pensamentos a respeito de Jamie, passava o tempo lembrando da minha conversa com Dougal na caverna.
E a última coisa que ele me dissera. Parado do lado de fora da pequena caverna, esperando que Rupert e seus companheiros trouxessem os cavalos de um esconderijo mais acima do barranco, Dougal virou-se para mim repentinamente.
- Tenho uma mensagem para você - dissera. - Da bruxa.
- De Geilie? — Dizer que fiquei espantada era o mínimo.
Eu não podia ler a expressão de seu rosto na escuridão, mas vi sua cabeça inclinar-se, confirmando.
— Eu a vi uma única vez - disse em voz baixa -, quando fui pegar a criança. - Em outras circunstâncias, eu talvez tivesse sentido alguma compaixão por ele, separando-se definitivamente de sua amante, condenada a morrer na estaca, segurando o filho que haviam gerado juntos, um filho que ele jamais poderia reconhecer. Mas, na situação real, minha voz foi glacial.
— O que ela disse?
Ele parou; não sei se era apenas a falta de vontade de revelar informações ou se estava tentando certificar-se de suas palavras. Aparentemente, era por esta última razão, porque ele falou com muito cuidado.
— Disse que, se eu tornasse a vê-la algum dia, deveria dizer-lhe duas coisas, exatamente como ela me dissesse. A primeira era ”Acho que é possível, mas não sei ao certo”. E a segunda... a segunda era apenas uma série de números. Ela me fez repeti-los, para ter certeza de que eu os decorara corretamente, pois deveria repeti-los para você numa determinada ordem. Os números eram um, nove, seis e sete. - A figura alta virou-se para mim no escuro, curiosa.
- Significam alguma coisa para você?
— Não - respondi, virando-me para o meu cavalo. Mas certamente significavam algo para mim.
”Acho que é possível.” Havia apenas um significado possível para essa frase, Ela achava, embora não tivesse certeza, que seria possível voltar, através do círculo de pedras, à minha época e lugar de origem. Obviamente, ela mesma não havia tentado, mas preferira — à custa da própria vida — permanecer. Como se tivesse suas próprias razões. Dougal, talvez?
Quanto aos números, também achei que sabia o que significavam. Ela dissera os algarismos separadamente, para manter um segredo que devia guardar a sete chaves, mas na realidade todos faziam parte de um único número. Um, nove, seis, sete. Mil novecentos e sessenta e sete. O ano do seu desaparecimento no passado.
Senti uma certa emoção causada pela curiosidade, além de um profundo pesar. Que pena que eu não havia visto a marca de vacina em seu braço até já ser tarde demais! E no entanto, se a tivesse visto antes, teria voltado ao círculo de pedras, talvez com sua ajuda, e deixado Jamie?
Jamie. O pensamento pesava como chumbo em minha mente, um pêndulo balançando lentamente na ponta de uma corda. Não por muito tempo. A estrada estendia-se infindável e sombria à nossa frente, às vezes reduzindo-se completamente a pântanos congelados ou amplos lençóis d'água que um dia haviam sido prados e charnecas. Numa garoa congelada que logo se transformaria em neve, chegamos ao nosso objetivo no início da noite do segundo dia.
A construção assomava, negra, contra o céu nublado. Construída no formato de um cubo gigantesco, com cento e vinte metros de lado, com uma torre em cada canto, podia abrigar trezentos prisioneiros, mais os quarenta soldados da guarnição e seu comandante, o governador civil e sua equipe e os quarenta e oito cozinheiros, ordenanças, cavalariços e outros subalternos necessários à administração do estabelecimento. Prisão de Wentworth.
Ergui os olhos para as muralhas assustadoras de granito esverdeado da região de Argyll, com sessenta centímetros de espessura na base. Pequenas janelas perfuravam as muralhas aqui e ali. Algumas começavam a cintilar com luz. Outras, que presumi serem as celas dos prisioneiros, permaneciam às escuras. Engoli em seco. Vendo o sólido edifício, com suas muralhas intransponíveis, seu portão monumental e os guardas ingleses em seus casacos vermelhos, comecei a ter dúvidas.
- E se... - Minha boca estava seca e tive que parar e umedecer os lábios com a língua. - E se não conseguirmos?
A expressão de Murtagh era a mesma de sempre: a boca implacável e o queixo estreito e obstinado, retraindo-se para dentro do colarinho sujo de sua camisa. Não se alterou quando se voltou para mim.
- Então, Dougal nos enterrará com ele, um de cada lado - respondeu. - Vamos, há trabalho a fazer.
Sir Fletcher Gordon era um homem baixo e corpulento, cujo colete de seda listrada caía-lhe como uma segunda pele. De ombros curvos e barriga saliente, parecia um grande pernil sentado na cadeira de espaldar oval do governador.
A cabeça careca e o rosado intenso de sua compleição não ajudavam a desfazer essa impressão, embora poucos pernis pudessem ostentar olhos azuis tão brilhantes. Ele virou o maço de papéis sobre sua escrivaninha com o dedo indicador, lenta e deliberadamente.
- Sim, aqui está - disse, após uma pausa interminável para ler uma página. - Fraser, James. Culpado de assassinato. Condenado à forca. Agora, onde está a Autorização de Execução? - Fez nova pausa, remexendo os papéis como um míope. Enfiei os dedos com força no cetim da minha pequena bolsa, esforçando-me para manter uma expressão impenetrável.
- Ah, sim. Data de execução, 23 de dezembro. Sim, ainda o temos. Engoli em seco, relaxando as mãos que agarravam a bolsa, dividida entre exultação e pânico. Então, ele ainda estava vivo. Por mais dois dias. E estava perto, em algum lugar no mesmo prédio que eu. O conhecimento desse fato alvoroçou o sangue em minhas veias com uma descarga de adrenalina e minhas mãos tremeram.
Sentei-me mais para a frente na cadeira de visitas, tentando parecer comoventemente suplicante.
- Posso vê-lo, sir Fletcher? Só um instante, no caso de ele... ele querer mandar uma mensagem à sua família?
Disfarçada de uma amiga inglesa da família Fraser, achara razoavelmente fácil ser admitida em Wentworth e ao gabinete de sir Fletcher, governador civil da prisão. Era perigoso pedir para ver Jamie; sem a minha história de cobertura, ele poderia muito facilmente descobrir quem eu realmente era se eu aparecesse de repente, sem aviso. Na verdade, eu mesma poderia me entregar; não tinha certeza, em absoluto, que poderia manter meu precário autocontrole se o visse. Mas o próximo passo era evidentemente descobrir onde ele estava; naquele enorme e superpovoado viveiro de coelhos, as chances de encontrá-lo sem saber para onde se dirigir eram praticamente nulas.
Sir Fletcher franziu o cenho, pensando. Obviamente, ele considerava um aborrecimento este pedido de uma mera conhecida da família, mas não era um homem insensível. Finalmente, sacudiu a cabeça com relutância.
- Não, minha querida. Não, receio que realmente não possa permitir isso. Estamos superlotados no momento e não temos instalações adequadas para permitir entrevistas particulares. E o homem no momento está — consultou sua pilha de papéis outra vez - em uma das celas grandes na ala oeste, com diversos outros criminosos condenados. Seria extremamente perigoso para a senhora visitá-lo lá, ou simplesmente visitá-lo. O homem é um prisioneiro perigoso, sabe; estou vendo aqui que nós o estamos mantendo acorrentado desde que chegou.
Agarrei minha bolsa outra vez; desta vez, para não agredi-lo. Sacudiu a cabeça outra vez, o peito gordo subindo e descendo com sua respiração laboriosa.
- Não, se fosse um membro da família dele, talvez... - Ergueu os olhos, piscando. Cerrei o maxilar com força, determinada a não deixar transparecer nada em minhas feições. Sem dúvida, uma leve demonstração de agitação seria razoável, nas circunstâncias.
- Mas talvez, minha querida... - Pareceu atingido por uma súbita inspiração. Levantou-se com dificuldade e dirigiu-se a uma porta interna, onde um soldado uniformizado montava guarda. Murmurou alguma coisa para o sujeito, que balançou a cabeça uma única vez e desapareceu.
Sir Fletcher retornou à sua escrivaninha, parando no meio do caminho para retirar uma jarra de vinho e copos da parte de cima de um armário. Aceitei sua oferta de clarete; estava mesmo precisando.
Estávamos no meio do segundo copo quando o guarda retornou. Entrou sem bater, colocou uma caixa de madeira sobre a escrivaninha, junto ao cotovelo de sir Fletcher, e virou-se para sair marchando outra vez. Percebi seu olhar demorando-se em mim e recatadamente abaixei os olhos. Estava usando um vestido emprestado de uma conhecida de Rupert na cidade vizinha e, pelo perfume que saturava o vestido e pela bolsinha de seda combinando com ele, eu fazia uma boa idéia de qual era a profissão daquela senhora em particular. Esperava que o guarda não reconhecesse o vestido.
Esvaziando seu copo, sir Fletcher colocou-o sobre a escrivaninha e puxou a caixa para si. Era uma caixa simples e quadrada de madeira rústica, com uma tampa de correr. Havia letras escritas a giz na tampa. Eu podia lê-las, mesmo de cabeça para baixo. FRAYSER, diziam.
Sir Fletcher deslizou a tampa, espreitou dentro da caixa por um instante, em seguida fechou-a e empurrou-a na minha direção.
- Os objetos pessoais do prisioneiro - explicou. — Normalmente, nós a enviamos para quem o prisioneiro designar como o parente mais próximo, após a execução. Este homem, entretanto — sacudiu a cabeça -, recusou-se a dizer qualquer coisa sobre sua família. Algum desafeto, sem dúvida. Não é incomum, é claro, mas lamentável, nas circunstâncias.
Hesito em fazer o pedido, sra. Beauchamp, mas achei que talvez, já que conhece a família, poderia se encarregar de entregar os pertences dele à pessoa adequada?
Não me considerei em condições de falar, mas concordei com um aceno da cabeça e enterrei o nariz no copo de clarete.
Sir Fletcher pareceu aliviado, por conseguir livrar-se da caixa ou à idéia da minha partida iminente. Recostou-se em sua cadeira, chiando levemente ao respirar, e sorriu abertamente para mim.
- É muita bondade sua, sra. Beauchamp. Sei que isso só pode ser um dever doloroso para uma jovem sensível e agradeço muito a sua bondade em aceitá-lo, asseguro-lhe.
- N-não há de quê — balbuciei. Consegui levantar-me e pegar a caixa. Media aproximadamente vinte por quinze centímetros, com dez ou doze de altura. Uma caixa pequena, leve, para conter os pertences da vida de um homem.
Eu sabia o que ela continha. Três linhas de pescar, cuidadosamente enroladas; uma cortiça com anzóis presos; um pedaço de sílex e um de metal; um caco de vidro, as bordas desgastadas pelo uso; diversas pedras pequenas que pareciam interessantes ou proporcionavam uma boa sensação entre os dedos; um pé seco de toupeira, carregado como um amuleto contra reumatismo. Uma Bíblia — ou talvez o tivessem deixado ficar com ela? Esperava que sim. Um anel de rubi, se não tivesse sido roubado. E uma pequena cobra de madeira, esculpida em cerejeira, com o nome SAWNY gravado na parte de baixo.
Parei junto à porta, agarrando-me ao batente para me firmar.
Sir Fletcher, que me acompanhava educadamente até a porta, numa fração de segundo estava ao meu lado.
- Sra. Beauchamp! Está se sentindo tonta, minha querida? Guarda, uma cadeira!
Podia sentir o suor frio aflorando nos lados do meu rosto, mas consegui sorrir e fazer um aceno descartando a necessidade de uma cadeira. O que eu mais queria era sair dali — precisava de ar fresco, em grandes quantidades. E precisava ficar sozinha para chorar.
- Não, estou perfeitamente bem - disse, tentando parecer convincente. - É que... está um pouco abafado aqui, eu acho. Não se preocupe, vou ficar bem. Meu cavalariço está me aguardando lá fora, de qualquer modo.
Forçando-me a ficar empertigada e a sorrir, tive uma idéia. Talvez não ajudasse, mas não faria mal tentar.
- Ah, sir Fletcher...
Ainda preocupado com minha aparência, era todo cavalheirismo e atenções.
- Sim, minha querida?
- Ocorreu-me... Como é triste para um homem nesta situação estar alienado de sua família. Achei que talvez... se ele quisesse escrever para eles... uma carta de reconciliação, talvez? Eu teria prazer em entregá-la a sua mãe.
- Você é a consideração em pessoa, minha querida. — Sir Fletcher mostrava-se alegre, agora que ficou claro que, afinal de contas, eu não iria desmaiar em seu tapete. — É claro. Vou mandar perguntar. Onde está hospedada, minha querida? Se houver uma carta, eu a enviarei à senhora.
- Bem - eu estava me saindo melhor com um sorriso, embora ele parecesse petrificado em meu rosto. - Isso é meio incerto no momento. Tenho vários parentes e amigos na cidade, com quem receio terei que alternar minha estada, para ninguém ficar ofendido, entende? - Consegui esboçar um sorriso.
- Assim, se isso não for perturbá-lo demais, será que meu cavalariço poderia vir perguntar sobre a carta?
- Claro, claro. Excelente idéia, minha querida! Excelente!
E com um olhar rápido de volta à sua jarra de vinho, segurou meu braço para me escoltar até o portão.
- Está melhor, dona? - Rupert empurrou para trás a cortina dos meus cabelos para espreitar meu rosto. - Está parecendo uma barriga de porco mal-conservada. Tome, é melhor beber mais um gole.
Sacudi a cabeça ao frasco de uísque oferecido e sentei-me, tirando o trapo molhado que ele colocara sobre meu rosto.
- Não, estou bem agora. - Escoltada por Murtagh, que se disfarçara de meu cavalariço, mal esperei ficar fora da vista da prisão para deslizar de cima do meu cavalo e vomitar na neve. Permaneci ali, chorando, com a caixa de Jamie agarrada ao peito, até Murtagh me obrigar a me recompor fisicamente e montar, conduzindo-me em seguida a uma pequena hospedaria na cidade de Wentworth onde Rupert encontrara alojamentos. Estávamos num quarto no andar de cima, de onde o vulto do edifício da prisão mal era visível na penumbra cada vez mais fechada.
- Então o rapaz está morto? - O rosto largo de Rupert, parcialmente oculto pela barba, era grave e compassivo, sem nenhum traço do seu habitual ar fanfarrão.
Sacudi a cabeça e respirei fundo.
- Ainda não.
Depois de ouvir minha história, Rupert ficou andando devagar pelo quarto, cerrando e descerrando os lábios, enquanto pensava. Murtagh permanecia sentado, imóvel, como de costume, sem nenhum sinal de agitação nas feições. Ele daria um excelente jogador de pôquer, pensei.
Rupert voltou, deixando-se afundar na cama ao meu lado com um suspiro.
- Bem, ele ainda está vivo e isso é o que importa. Mas não faço a menor idéia do que devemos fazer em seguida. Não temos como entrar no lugar.
- Sim, temos - Murtagh disse, subitamente. - Graças à idéia da moça sobre a carta.
- Mmmmhum. Mas apenas um homem. E apenas até o gabinete do governador. Mas já é um começo. - Rupert tirou sua adaga e coçou a espessa barba com a ponta, distraidamente. - É um lugar desgraçadamente grande para procurar.
- Sei onde ele está — eu disse, sentindo-me melhor com o planejamento e com a constatação de que meus companheiros não estavam desistindo, por mais impraticável que nossa operação pudesse parecer. - Ao menos sei em que ala ele está.
- Sabe, então? Humm. - Recolocou a adaga na bainha e retomou suas passadas pelo quarto, parando para perguntar: — Quanto dinheiro tem, dona?
Remexi no bolso do meu vestido. Eu tinha a sacola de Dougal, o dinheiro que Jenny me obrigara a aceitar e meu colar de pérolas. Rupert rejeitou as pérolas, mas pegou a sacola, despejando uma fileira de moedas na palma da mão espaçosa.
- Será o suficiente - disse, fazendo-as retinir experimentalmente na mão. Virou-se para os gêmeos Coulter.
- Vocês dois e Willie venham comigo. John e Murtagh podem permanecer aqui com a moça.
- Aonde vão? - perguntei.
Guardou as moedas na bolsa em sua cintura, conservando uma, que atirou pensativamente no ar.
- Ah — exclamou vagamente. - Acontece que há uma outra estalagem, no outro lado da cidade. Os guardas da prisão vão lá quando estão de folga, porque é mais perto e a bebida é um centavo mais barata. — Lançou a moeda no ar para tirar cara ou coroa e, virando a mão, pegou-a entre dois nós dos dedos.
Observei-o, com uma idéia cada vez mais clara de suas intenções.
- É mesmo? - eu disse. - Por acaso eles também jogam cartas lá?
- Eu não sei, dona, não sei - respondeu. Atirou a moeda no ar mais uma vez e bateu as duas mãos, pegando-a, depois abriu as mãos, para mostrar as palmas vazias. Sorriu, os dentes brancos na barba negra.
- Mas temos que ir ver, não é? - Estalou os dedos e a moeda apareceu outra vez entre eles.
Pouco depois de uma hora da tarde seguinte, passei novamente por baixo do portão corrediço e provido de estacas afiadas que guardava a entrada de Wentworth desde a sua construção no final do século XVI. Tinha perdido muito pouco do seu aspecto ameaçador nos duzentos anos seguintes e eu toquei a adaga no meu bolso para ganhar coragem.
Sir Fletcher devia estar agora absorvido em sua refeição do meio do dia, segundo as informações que Rupert e seus assistentes espiões haviam extraído dos guardas da prisão durante sua incursão à noite passada. Chegaram cambaleando, os olhos vermelhos e cheirando a cerveja, pouco antes do raiar do dia. Tudo que Rupert conseguiu dizer em resposta às minhas perguntas foi: "Ah, dona, para ganhar basta ter sorte. Mas para perder, é preciso habilidade!" Depois, enroscou-se no canto e foi dormir profundamente, deixando-me frustrada, andando de um lado para o outro no quarto, como fizera a noite inteira.
No entanto, acordou uma hora depois, com os olhos e a mente claros, e explicou os rudimentos do plano que eu estava prestes a pôr em execução.
- Sir Fletcher não permite que ninguém ou nada perturbe suas refeições - disse. — Qualquer um que queira falar com ele tem que ficar esperando até ele acabar sua comida e bebida. E depois da refeição do meio-dia, tem o hábito de se retirar para seus aposentos para uma soneca.
Murtagh, disfarçado de meu cavalariço, chegara quinze minutos antes e fora admitido sem dificuldade. Provavelmente, seria conduzido ao gabinete de Fletcher e solicitado a esperar. Enquanto estivesse lá, deveria dar uma busca no escritório, primeiro para encontrar uma planta da ala oeste e, depois, uma possibilidade remota, para encontrar as chaves que pudessem abrir as celas.
Demorei-me um pouco, olhando para o céu para avaliar as condições do tempo. Se eu chegasse antes de Fletcher sentar-se para almoçar, poderia ser convidada a juntar-me a ele para o almoço, o que seria altamente inconveniente. Mas os parceiros de jogos de Rupert entre os guardas asseguraram-lhe que os hábitos do governador eram imutáveis; o sino para anunciar o almoço era tocado pontualmente à uma hora e a sopa servida cinco minutos depois.
O guarda de serviço na entrada era o mesmo do dia anterior. Pareceu surpreso, mas cumprimentou-me educadamente.
— Tão constrangedor — eu disse —, mandei meu cavalariço trazer um pequeno presente para sir Fletcher, como agradecimento pela sua gentileza comigo ontem. Mas descobri que o tolo veio sem ele e assim fui obrigada a segui-lo com o presente eu mesma, na esperança de alcançá-lo. Ele já chegou? - Mostrei o pequeno embrulho que trouxera e sorri, pensando que ajudaria se eu tivesse covinhas. Como não tinha, me contentei com uma brilhante exibição de dentes.
Pareceu o suficiente. Fui admitida e conduzida pelos corredores da prisão em direção ao gabinete do governador. Embora esta parte do castelo fosse decentemente mobiliada, não havia como negar que se tratava de uma prisão. Havia um cheiro característico no lugar, que eu imaginava ser o cheiro do medo e da infelicidade, embora provavelmente não passasse do fedor de imundícies antigas e ausência de canos de esgoto.
O guarda deixou que eu o precedesse pelo corredor, seguindo-me discretamente com cuidado para não pisar no meu manto. E isso foi ótimo, porque virei o corredor em direção ao gabinete de Fletcher alguns passos à sua frente, bem a tempo de ver Murtagh pela porta aberta, arrastando a figura desacordada do guarda do gabinete para trás da enorme escrivaninha.
Dei um passo para trás e deixei cair o pacote no chão de pedra. Ouviu-se um barulho de vidro estilhaçado e o ar encheu-se do aroma asfixiante de conhaque de pêssego.
- Ah, meu Deus — exclamei —, o que foi que eu fiz?
Enquanto o guarda chamava um criado para limpar a sujeira, diplomaticamente murmurei alguma coisa sobre aguardar por sir Fletcher em seu escritório particular, deslizei para dentro e apressadamente fechei a porta atrás de mim.
- Que diabos você fez? - perguntei rispidamente a Murtagh. Ergueu os olhos do corpo que ele vasculhava, indiferente ao tom da minha voz.
- Sir Fletcher não guarda chaves em seu gabinete — informou-me em voz baixa -, mas este sujeitinho aqui tem um molho. - Retirou a enorme argola do casaco do guarda, com cuidado para que as chaves não retinissem.
Caí de joelhos atrás dele.
- Ah, bom serviço! - exclamei. Olhei para o soldado prostrado; ao menos, ainda respirava. - E quanto à planta da prisão?
Ele sacudiu a cabeça.
- Também não, mas meu amigo aqui me contou alguma coisa enquanto esperávamos. As celas dos condenados ficam neste mesmo andar, na metade do corredor oeste. Mas há três celas e não pude perguntar mais do que isso. Ele já estava ficando desconfiado.
- É o suficiente, espero. Tudo bem, me dê as chaves e saia.
- Eu? É você quem deve sair, dona, e agora mesmo. - Lançou um olhar para a porta, mas não se ouvia nenhum ruído do outro lado.
- Não, tem que ser eu — disse, estendendo as mãos para as chaves outra vez. - Ouça - insisti, com impaciência. - Se o encontram perambulando pela prisão com um molho de chaves, e o guarda aqui inerte como um peixe, estamos os dois perdidos. Como vamos explicar o fato de eu não ter gritado pedindo ajuda? — Arranquei as chaves da mão dele e enfiei-as no bolso, com alguma dificuldade.
Murtagh ainda parecia cético, mas pusera-se de pé.
- E se você for apanhada?
- Eu desmaio - disse rispidamente. - E quando acordar, finalmente, direi que eu o vi aparentemente matando o guarda e saí correndo apavorada, sem a menor idéia para onde estava indo. Me perdi buscando ajuda.
Ele assentiu devagar.
- Sim, está bem. - Dirigiu-se para a porta, depois parou.
- Mas por que eu... ah. - Atravessou a sala rapidamente até a escrivaninha e abriu uma gaveta atrás da outra, remexendo o conteúdo com uma das mãos e atirando objetos no chão com a outra.
- Roubo — explicou, voltando para a porta. Abriu uma fresta e espreitou o corredor.
- Se é roubo, não deveria levar alguma coisa? — sugeri, olhando à volta, em busca de alguma coisa pequena e fácil de ser levada. Peguei uma pequena caixa de rapé esmaltada. — Isto, talvez?
Fez um gesto impaciente para mim para que a recolocasse no lugar, ainda espreitando pela pequena abertura.
- Não, dona! Se for encontrado com algum objeto de sir Fletcher, é crime para enforcamento. Tentativa de roubo é apenas açoite ou mutilação.
- Ah. - Devolvi a caixa apressadamente ao seu lugar e posicionei-me atrás dele, espreitando por cima de seu ombro. O corredor parecia vazio.
- Eu vou primeiro — disse. — Se eu encontrar alguém, os atrairei para fora daqui. Conte até trinta, depois vá. Nós a encontraremos na pequena floresta ao norte. - Abriu a porta, em seguida parou e voltou.
- Se for apanhada, lembre-se de jogar as chaves fora. - Antes que eu pudesse falar, ele passou pela porta como uma enguia e desceu o corredor, movendo-se silenciosamente como uma sombra.
Pareceu uma eternidade até encontrar a ala oeste, esgueirando-me pelos corredores do velho castelo, espreitando pelos cantos e escondendo-me atrás de colunas. Mas vi apenas um guarda no caminho e consegui evitá-lo recuando até um canto, comprimindo-me contra a parede com o coração disparado até ele passar.
No entanto, quando encontrei a ala oeste, não tive dúvidas de que estava no lugar certo. Havia três portas grandes no corredor, cada qual com uma minúscula janela com barras de ferro, pela qual eu não conseguia mais do que um frustrante vislumbre da cela.
- Sem pensar dirigi-me à cela do meio. As chaves na argola não estavam identificadas, mas tinham tamanhos diferentes. Obviamente, apenas uma das três maiores serviria na fechadura à minha frente. Naturalmente, era a terceira. Respirei fundo quando ouvi o clique da fechadura, depois limpei o suor das mãos na saia e abri a porta.
Procurei freneticamente entre a massa fétida de homens na cela, tropeçando em pés e pernas estendidas, empurrando corpos pesados que se deslocavam do meu caminho com uma indolência enlouquecedora. A agitação ocasionada pela minha entrada repentina espalhou-se; os que estavam dormindo em meio à imundície no chão começaram a se sentar, acordados pelo ondulante murmúrio de espanto. Alguns estavam algemados às paredes; as correntes rangiam e chocalhavam na semi-escuridão conforme se moviam. Agarrei um dos homens de pé, um escocês de barba castanha num tartã esfarrapado, verde e amarelo. Os ossos do seu braço sob minha mão estavam assustadoramente junto à pele; os ingleses não desperdiçavam nenhuma sobra de comida com seus prisioneiros.
- James Fraser! Um homem grande, ruivo! Ele está nesta cela? Onde ele está?
Ele já se deslocava para a porta com os outros que não estavam acorrentados, mas parou por um instante para me fitar. Os prisioneiros agora haviam percebido o que se passava e atravessavam a porta aberta num fluxo arrastado, espreitando e murmurando uns com os outros.
- Quem? Fraser? Ah, eles o levaram hoje de manhã. - O homem deu de ombros e empurrou minhas mãos, tentando livrar-se de mim.
Segurei-o pelo cinto com tal força que o fiz parar onde estava.
- Para onde o levaram? Quem o levou?
- Não sei para onde; foi o capitão Randall que o levou, um monstro mal-encarado, é o que ele é. — Com um safanão impaciente, livrou-se de mim e dirigiu-se para a porta com passos determinados por um propósito há muito acalentado.
Randall. Fiquei parada, perplexa, por um instante, empurrada pelos homens em fuga, surda aos gritos dos acorrentados. Finalmente, consegui sair do meu estupor e tentei pensar. Geordie observara o castelo desde o amanhecer. Ninguém deixara o castelo de manhã, a não ser um pequeno grupo da cozinha que saíra em busca de suprimentos. Portanto ainda estavam ali, em algum lugar.
Randall era um capitão; provavelmente não havia ninguém com mais autoridade na guarnição de uma prisão, a não ser o próprio Fletcher. Assim, Randall certamente poderia usar as dependências do castelo de modo a criar para si um local onde pudesse torturar um prisioneiro como bem lhe aprouvesse.
E sem dúvida tratava-se de tortura. Ainda que fosse terminar em enforcamento, o homem que eu vira em Fort William era um felino por natureza. Ele não resistiria a brincar com aquele camundongo em particular, tão certo como dois e dois são quatro.
Respirei fundo, afastando da mente com determinação qualquer pensamento do que poderia ter acontecido desde a manhã e corri para a porta eu mesma, esbarrando violentamente em um soldado inglês que entrava apressado. O sujeito cambaleou para trás e tentou manter o equilíbrio com vários passinhos em ziguezague. Eu mesma perdi o equilíbrio e me choquei com o batente da porta, ficando com o lado esquerdo dormente e batendo a cabeça. Agarrei-me ao batente da porta para me apoiar, o tilintar de sinos repicando nos meus ouvidos com ecos das palavras de Rupert: Se tiver um momento de surpresa, dona, use-o!
Era difícil dizer, pensei atordoada, quem estava mais surpreso. Tateei desvairadamente pelo bolso onde estava a adaga, amaldiçoando minha estupidez por não ter entrado na cela já armada.
O soldado inglês, uma vez recuperado o equilíbrio, fitava-me espantado com a boca aberta, mas pude sentir que meu momento de surpresa já escapara de minhas mãos. Abandonando o bolso fugidio, inclinei-me e arranquei a adaga da minha meia em um movimento que continuou para cima com toda a força que pude arregimentar. A ponta da faca atingiu o soldado bem embaixo do queixo enquanto ele levava a mão à cintura. Suas mãos ergueram-se a meio caminho da garganta, depois, com um olhar de surpresa, cambaleou para trás até a parede e deslizou por ela em câmara lenta, conforme a vida esvaía-se de seu corpo. Como eu, ele fora investigar sem se dar ao trabalho de sacar a arma primeiro e esse pequeno descuido custara-lhe a vida. A graça de Deus salvara-me deste erro; não podia cometer mais nenhum. Sentindo muito frio, passei por cima do corpo que se contorcia, tendo o cuidado de não olhar.
Retornei correndo pelo caminho por onde viera, até a curva junto às escadas. Havia um lugar ali junto à parede de onde eu não poderia ser vista de nenhum dos lados. Apoiei-me na parede e me permiti um momento de náusea e tremor.
Limpando as mãos suadas na saia, tirei a adaga do bolso. Agora, era minha única arma; não tive nem tempo nem estômago para recuperar a faca que levava na meia. Talvez fosse melhor assim, pensei, esfregando os dedos no corpete; houve bem pouco sangue e encolhi-me diante da idéia do jato que se seguiria se eu tivesse retirado a faca.
Com a adaga firmemente segura na mão, espreitei cautelosamente o corredor. Os prisioneiros que inadvertidamente libertara haviam ido para a esquerda. Não tinha a menor idéia do que pretendiam fazer, mas certamente iriam manter os guardas ocupados. Sem nenhum motivo para preferir uma direção em relação a outra para a minha busca, fazia sentido me afastar de qualquer tumulto que estivessem causando.
A luz que penetrava pela fenda da alta janela caía enviesada sobre mim; portanto, aquele era o lado oeste do castelo. Eu tinha que manter minha orientação enquanto me deslocava, já que Rupert estaria esperando por mim perto do portão sul.
Escadas. Forcei minha mente entorpecida a pensar, tentando raciocinar onde deveria ficar o local que estava procurando. Se você quisesse torturar alguém, provavelmente iria querer privacidade e isolamento de som. Ambas as considerações apontavam para uma masmorra isolada como o lugar mais provável. E as masmorras em castelos como aquele em geral ficam no subsolo, onde toneladas de terra abafavam qualquer grito e a escuridão escondia todas as crueldades dos olhos dos responsáveis.
A parede arredondava-se numa curva no final do corredor; eu alcançara uma das quatro torres do castelo - e as torres tinham escadas.
A escada em espiral abria-se em outra curva, os degraus triangulares mergulhavam em lances que davam vertigens e enganavam os olhos, fazendo torcer os tornozelos. O mergulho da luz relativa do corredor para a escuridão do poço das escadas tornava ainda mais difícil avaliar a distância de um degrau para o outro e escorreguei várias vezes, esfolando os nós dos dedos e arranhando as palmas das mãos nas paredes de pedra quando tentava me equilibrar.
A escadaria proporcionava uma vantagem. De uma janela estreita que impedia que o vão das escadas ficasse em total escuridão, eu podia ver o pátio principal. Ao menos, eu agora podia me orientar. Um pequeno grupo de soldados estava alinhado em perfeitas fileiras vermelhas para inspeção, mas não, aparentemente, para testemunhar a execução sumária de um rebelde escocês. Havia um cadafalso no pátio, negro e assustador, mas desocupado. A visão do cadafalso foi como um soco no estômago. Amanhã de manhã. Desci as escadas ruidosamente, indiferente aos cotovelos arranhados e aos dedos dos pés machucados.
Alcançando o pé das escadas com um farfalhar de saias, parei para ouvir. Um silêncio mortal em toda a volta, mas pelo menos aquela parte do castelo estava sendo usada; havia tochas nos candelabros de parede, transformando os blocos de pedra em poças vermelhas e bruxuleantes, cada qual dissolvendo-se na escuridão antes que a poça da tocha seguinte se filtrasse em luz outra vez. A fumaça desprendida pelas tochas pairava em redemoinhos cinzas ao longo do teto abobadado do corredor.
Havia um único caminho a tomar a partir dali. Eu o segui, a adaga pronta na mão. Era estranho caminhar silenciosamente pelo corredor. Eu já vira outras masmorras, como turista, visitando castelos históricos com Frank. Mas nessas ocasiões os sólidos blocos de granito estavam despidos do seu ar ameaçador pela luz ofuscante de tubos fluorescentes presos aos arcos do teto. Lembrei-me de ter me esquivado dos aposentos pequenos e úmidos, ainda naquela época, depois de já estarem desativados há mais de cem anos. Vendo os remanescentes de métodos antigos e horripilantes, as portas grossas e as algemas enferrujadas nas paredes, pude, pensei, imaginar os tormentos dos que foram mantidos prisioneiros naquelas celas assustadoras.
Eu teria rido agora da minha ingenuidade. Havia coisas, como Dougal dissera, que a imaginação simplesmente não podia alcançar.
Passei na ponta dos pés por portas de sete centímetros de espessura, trancadas com pesados ferrolhos; eram grossas o suficiente para abafar qualquer som que viesse lá de dentro. Agachando-me junto ao chão, procurei uma fresta de luz debaixo de cada porta. Os prisioneiros eram deixados para apodrecerem na escuridão, mas Randall iria precisar ver o que estava fazendo. O chão era pegajoso e encardido, coberto com uma grossa camada de poeira. Tudo indicava que aquela parte da prisão não estava em uso atualmente. Mas as tochas indicavam que alguém estava ali.
A quarta porta no corredor mostrava a luz que eu procurava. Parei para ouvir, ajoelhando-me no chão com o ouvido de encontro à fenda, mas não ouvi nada além de fogo crepitando.
A porta não estava trancada. Abri uma pequena fresta e espreitei cautelosamente para dentro. Jamie estava lá, sentado no chão, encostado na parede, curvado sobre si mesmo com a cabeça entre os joelhos. Estava sozinho.
A cela era pequena, mas bem iluminada, com um braseiro que de certa forma dava ao lugar um ar aconchegante e onde queimava um fogo vivo. Para uma masmorra, era notavelmente confortável; as lajes de pedra do assoalho estavam bastante limpas e havia um pequeno catre encostado a uma das paredes. O aposento ainda estava mobiliado com duas cadeiras e uma mesa, abarrotada de inúmeros objetos, inclusive uma grande jarra de metal e copos de chifre. Era uma visão surpreendente, depois de ter visto ratos correndo de um lado para o outro e paredes úmidas de infiltrações. Ocorreu-me que talvez os oficiais da guarnição tivessem mobiliado aquele lugar quente e agradável como um refúgio onde pudessem receber as companhias femininas que conseguissem convencer a visitá-los dentro da prisão; obviamente, tinha a vantagem da privacidade que os alojamentos não ofereciam.
- Jamie! — chamei baixinho. Ele não levantou a cabeça nem me respondeu e senti um calafrio de medo. Parando apenas o tempo suficiente para fechar a porta atrás de mim, atravessei o aposento rapidamente até ele e toquei em seu ombro.
- Jamie!
Ele ergueu os olhos; seu rosto estava lívido, barbado e brilhante com uma fina camada de suor frio que ensopara seus cabelos e sua camisa. O aposento cheirava a vômito e medo.
- Claire! - exclamou, falando com voz rouca entre os lábios rachados e secos. — Como você... tem que sair daqui agora mesmo. Ele vai voltar logo.
- Não seja ridículo. - Avaliei a situação o mais rápido possível, na esperança de que a concentração na tarefa mais urgente diminuísse a sensação de estrangulamento me ajudasse a desfazer a enorme bola de gelo na boca do meu estômago.
Ele estava acorrentado à parede pelo tornozelo, mas fora isso não estava algemado ou amarrado. Mas um pedaço de corda entre a miscelânea de objetos sobre a mesa obviamente fora usado; havia marcas em seus pulsos e cotovelos.
Eu estava intrigada com seu estado físico. Estava obviamente em estado de choque e cada contorno do seu corpo bradava de dor, mas eu não conseguia ver nenhum dano aparente. Não havia sangue ou qualquer ferimento visível. Caí de joelhos e comecei a experimentar metodicamente as chaves da minha argola no aro em tomo de seu tornozelo.
- O que ele fez com você? - perguntei, mantendo a voz baixa por medo da volta de Randall.
Jamie oscilava ali sentado, os olhos fechados, o suor aflorando em centenas de minúsculas pérolas em sua pele. Ele obviamente estava prestes a desmaiar, mas abriu os olhos por um instante ao ouvir minha voz. Movendo-se com extremo cuidado, usou a mão esquerda para erguer o objeto que segurava no colo. Era sua mão direita, quase irreconhecível como um apêndice humano. Grotescamente inchada, agora era apenas uma bolsa inflada, manchada de vermelho e roxo, os dedos balançando-se em estranhos ângulos. Um fragmento branco de osso projetava-se da pele rasgada do dedo médio e um fio de sangue tingia os nós dos dedos, inchados e disformes.
A mão humana é uma delicada maravilha de engenharia, um sistema intricado de articulações e roldanas, servido e controlado por uma rede de milhões de minúsculos nervos extremamente sensíveis ao toque. Um único dedo quebrado é suficiente para fazer um homem forte arriar de joelhos com uma dor tão forte a ponto de provocar náusea.
- Pagamento - Jamie disse - pelo seu nariz. Com juros. - Fitei aquela visão por um instante, depois disse numa voz que não reconhecia como minha:
- Vou matá-lo por isso.
A boca de Jamie retorceu-se ligeiramente enquanto um lampejo de humor forçou-se na máscara de dor e tontura.
- Eu segurarei seu manto, Sassenach — murmurou. Seus olhos fecharam-se outra vez e seu corpo sucumbiu contra a parede, incapaz de continuar seu protesto contra a minha presença.
Voltei a trabalhar na fechadura do tornozelo, contente de ver que minhas mãos já não tremiam. O medo desaparecera, substituído por uma ira gloriosa.
Eu experimentara todas as chaves da argola duas vezes e não conseguira encontrar nenhuma que abrisse a fechadura. Minhas mãos estavam ficando suadas e as chaves escorregavam pelos meus dedos como peixinhos quando comecei a experimentar as mais prováveis outra vez. Minhas imprecações murmuradas entre dentes acordaram Jamie de seu estupor e ele inclinou-se lentamente para trás para ver o que eu estava fazendo.
- Não precisa encontrar uma chave que gire na fechadura — ele disse, apoiando um ombro contra a parede para manter-se ereto.- Se uma entrar até o fim da haste, você pode fazer o fecho saltar com uma boa pancada na argola da chave.
- Você já viu este tipo de fechadura antes? - Eu queria mantê-lo acordado e falando; ele iria ter que andar se conseguíssemos sair dali.
- Já estive preso a uma. Quando me trouxeram para cá, acorrentaram-me numa cela grande com muitos outros prisioneiros. Um rapaz chamado Reilly estava acorrentado ao meu lado; um irlandês. Disse que já havia estado na maioria das prisões da Irlanda e resolvera tentar a Escócia para mudar de cenário. - Jamie esforçava-se para conversar; percebia tão bem quanto eu que precisava despertar. Conseguiu esboçar um sorriso fraco. - Me contou muita coisa sobre trancas, fechaduras, esse tipo de coisas. Mostrou-me como podíamos quebrar as que estávamos usando, se tivéssemos um pedaço reto de metal, o que não tínhamos.
- Conte-me. - O esforço para falar estava fazendo com que ele suasse copiosamente, mas parecia mais alerta. Concentrar-se no problema da fechadura parecia ajudar.
Seguindo suas instruções, encontrei uma chave apropriada e enfiei-a completamente na fechadura. Segundo Reilly, uma pancada forte sobre a chave forçava a outra extremidade com força contra as engrenagens, soltando-as. Olhei à minha volta, procurando um objeto adequado para bater.
- Use a marreta que está em cima da mesa, Sassenach — Jamie disse. Percebendo um tom sinistro em sua voz, olhei do seu rosto para a mesa, onde havia uma marreta de tamanho médio, de madeira, com o cabo enrolado em barbante alcatroado.
- Foi isso que... - comecei, horrorizada.
- Sim. Prenda o aro contra a parede antes de bater.
Segurando o cabo cuidadosamente, peguei a marreta. Era difícil conseguir posicionar o aro de ferro corretamente, de modo que um dos lados ficasse contra a parede, já que isso exigia que Jamie cruzasse a perna acorrentada por baixo da outra e pressionasse o joelho contra a parede mais distante dele.
As duas primeiras pancadas que desferi foram tímidas e fracas demais. Reunindo toda a determinação que conseguia, desfechei um golpe na ponta arredondada da chave com toda força. A marreta escorregou da chave e atingiu Jamie de raspão, mas com bastante força no tornozelo. Recuando, ele perdeu seu precário equilíbrio e caiu, instintivamente estendendo a mão direita para se apoiar. Emitiu um gemido sobrenatural quando seu braço direito dobrou-se em baixo do corpo e seu ombro bateu no chão.
- Ah, droga - exclamei, cansada. Jamie desmaiara, não que eu pudesse censurá-lo. Aproveitando sua momentânea imobilidade, virei seu tornozelo de modo que o aro ficasse bem firme e bati tenazmente na chave enfiada na fechadura, sem aparentemente nenhum resultado. Eu estava remoendo pensamentos sombrios sobre serralheiros irlandeses, quando a porta atrás de mim abriu-se subitamente de par em par.
O rosto de Randall, como o de Frank, raramente demonstrava o que ele estava pensando, apresentando, ao invés disso, uma fachada impassível e inescrutável. No momento, entretanto a serenidade habitual do capitão o abandonara e ele ficou parado na soleira da porta, com o queixo caído e uma expressão no rosto não muito diferente do homem que o acompanhava. Um homem muito grande, num uniforme manchado e esfarrapado, seu assistente tinha a testa inclinada sobre os olhos, o nariz achatado e os lábios proeminentes e flácidos, características de alguns tipos de retardamento mental. Sua expressão não se alterou enquanto olhava por cima dos ombros de Randall, não demonstrando nenhum interesse em particular nem em mim, nem no homem inconsciente no chão.
Recobrando-se, Randall entrou no aposento e inspecionou o aro de metal em torno do tornozelo de Jamie.
— Pelo que estou vendo, andou danificando propriedade da Coroa, minha jovem. Isso é crime passível de prisão por lei, como você sabe. Sem falar na tentativa de ajudar um prisioneiro perigoso a escapar. — Havia uma centelha de divertimento em seus olhos cinza-pálidos. - Teremos que arranjar alguma coisa adequada a você. Enquanto isso... - Com um puxão, obrigou-me a levantar. Puxou meus braços para trás, amarrando meus pulsos com a corda.
Lutar era obviamente inútil, mas pisei nos seus dedos do pé com toda a força, simplesmente para dar vazão a um pouco da minha frustração.
— Aaai! — Virou-se e deu-me um empurrão, de modo que minhas pernas bateram na cama e eu caí, parcialmente deitada no cobertor áspero. Randall inspecionou-me com uma soturna satisfação, esfregando a ponta arranhada de sua bota com um lenço de linho. Fitei- o com ódio e ele soltou uma risadinha.
- Você não é nenhuma covarde, tenho que admitir. Na verdade, você combina bem com ele — com um gesto da cabeça, indicou Jamie, que começava a se remexer um pouco - e não posso lhe fazer um elogio melhor do que este. - Apalpou cuidadosamente a garganta, onde se via uma mancha escura pelo colarinho aberto. - Ele tentou me matar, com uma das mãos, quando eu o desamarrei. Aliás, quase conseguiu. Pena que eu não tenha percebido que ele é canhoto.
- Uma atitude despropositada da parte dele - retorqui.
- Sem dúvida - disse Randall, balançando a cabeça. — Não creio que você vá ser tão descortês, não é? Mesmo assim, por via das dúvidas... -Voltou-se para o enorme criado, que estava simplesmente parado na soleira da porta, os ombros arriados, aguardando ordens.
- Marley — disse Randall. - Venha aqui e dê uma busca nesta mulher para ver se encontra alguma arma. - Observou com um ar divertido, enquanto o sujeito tateava desajeitadamente pela minha pessoa, finalmente encontrando e retirando minha adaga.
- Não gosta do Marley? - perguntou o capitão, observando-me enquanto eu tentava me esquivar dos dedos grossos que me apalpavam com intimidade demais. - É uma pena. Tenho certeza de que ele está muito interessado em você.
- O pobre Marley não tem muita sorte com as mulheres - continuou o capitão, um brilho malicioso nos olhos. - Não é, Marley? Nem as prostitutas o querem. - Fitou-me com um olhar significativo e um sorriso malévolo. - Grande demais, é o que dizem. — Ergueu uma das sobrancelhas. — O que é uma opinião interessante, vinda de uma puta, não é? — Ergueu a outra sobrancelha, deixando bem claro o que pretendia dizer.
Marley, que começara a arfar ruidosamente durante a busca, parou e limpou um fio de saliva do canto da boca. Afastei-me o máximo que pude, enojada.
Randall, observando-me, acrescentou:
- Imagino que Marley iria gostar de diverti-la em particular em seu alojamento, quando tivermos terminado nossa conversa. Claro, mais tarde talvez ele resolva compartilhar sua sorte com os amigos, mas isso é ele quem decide.
- Ah, não quer assistir? - perguntei com sarcasmo. Randall riu, genuinamente se divertindo.
- Posso ter o que chamam de "gostos depravados", como imagino que já saiba a esta altura. Mas, por favor, me dê algum crédito por princípios estéticos. - Lançou um olhar ao imenso ordenança, desengonçado em suas roupas imundas, a barriga caindo por cima do cinto. Os lábios flácidos e protuberantes mastigavam e balbuciavam constantemente, como se buscassem algum fragmento de comida, e os dedos grossos e curtos remexiam-se nervosamente na virilha das calças manchadas. Randall estremeceu delicadamente.
- Não - disse. - Você é uma mulher adorável, apesar da língua ferina. Vê-la com Marley... não, acho que não quero ver isso. Além da aparência, os hábitos pessoais de Marley deixam muito a desejar.
- Os seus também - eu disse.
- Pode ser. De qualquer forma, não terá que se preocupar com eles por muito tempo. - Parou, olhando-me desdenhosamente. - Eu ainda gostaria de saber quem você é, sabe. Uma jacobita, é óbvio, mas de quem? Dos Marischal? Dos Seaforth? Provavelmente dos Lovat, já que está com os Fraser. - Randall cutucou Jamie delicadamente com a ponta bem lustrada da bota, mas ele continuou inerte. Eu podia ver seu peito erguendo-se e abaixando-se com regularidade; talvez ele tivesse simplesmente saído do estado de inconsciência e adormecido. As olheiras sob seus olhos evidenciavam que ele não tivera muito descanso ultimamente.
- Até ouvi dizer que você é uma bruxa — continuou o capitão. Seu tom de voz era descontraído, mas obervava-me atentamente, como se eu pudesse de repente transformar-me numa coruja e sair voando. - Houve um certo tumulto em Cranesmuir, não foi? Algo a ver com uma morte? Mas sem dúvida tudo isso não passa de superstições tolas.
Randall olhou-me especulativamente.
- Talvez possa me convencer a fazer um acordo com você - disse, repentinamente. Inclinou-se para trás, parcialmente sentado em cima da mesa, desafiando-me.
Ri amargamente.
- Não posso dizer que esteja em condições ou com disposição de barganhar no momento. O que pode me oferecer?
Randall olhou para Marley. Os olhos do idiota estavam fixos em mim e ele balbuciava baixinho.
- Uma escolha, ao menos. Conte-me, e me convença, de quem você é e quem a mandou para a Escócia. O que está fazendo e que informações mandou para quem. Diga-me isso e eu a levarei a sir Fletcher, ao invés de entregá-la a Marley.
Mantive os olhos firmemente desviados de Marley. Eu vira os cacos podres de dentes embutidos em gengivas pustulentas e a simples idéia de ele me beijar, quanto mais... sufoquei o pensamento. Randall tinha razão; eu não era covarde. Mas também não era boba.
- Você não pode me levar a Fletcher — eu disse —, e eu sei disso tão bem quanto você. Levar-me a ele e arriscar-se a que eu lhe conte sobre isso? - Meu gesto com a cabeça abrangeu o quartinho escondido, o fogo aconchegante, a cama onde eu estava sentada e Jamie deitado aos meus pés. - Quaisquer que sejam seus defeitos, não imagino que sir Fletcher fosse aturar, oficialmente, que seus oficiais torturassem prisioneiros. Até mesmo o exército inglês tem que ter alguns padrões de conduta.
Randall ergueu as duas sobrancelhas.
- Tortura? Ah, isso. - Acenou negligentemente indicando a mão de Jamie. — Um acidente. Caiu em sua cela e foi pisoteado pelos outros prisioneiros. As celas estão superlotadas, sabe. - Sorriu desdenhosamente.
Permaneci em silêncio. Embora Fletcher pudesse ou não acreditar que os danos à mão de Jamie tivessem sido causados por acidente, era bastante improvável que ele acreditasse em qualquer coisa que eu dissesse, uma vez desmascarada como espiã inglesa.
Randall me observava, os olhos alertas a qualquer sinal de fraqueza.
- E então? A escolha é sua.
Suspirei e fechei os olhos, cansada de olhar para ele. A escolha não era minha, mas dificilmente eu poderia dizer a ele a razão.
- Não importa - eu disse, cansada. - Não posso lhe contar nada.
- Pense um pouco no assunto. - Levantou-se e passou cuidadosamente por cima do corpo inerte de Jamie, tirando uma chave do bolso. - Posso precisar da ajuda de Marley por um instante, mas depois eu o mandarei de volta para o seu alojamento, e você com ele, se não quiser cooperar. - Inclinou-se, abriu a argola no tornozelo de Jamie e levantou o corpo inconsciente com uma impressionante exibição de força para alguém de constituição tão delgada. Os músculos de seus antebraços sobressaíram-se por baixo do tecido fino da camisa imaculadamente branca ao carregar Jamie, a cabeça pendente, até um banco no canto do quarto. Indicou o balde próximo com um movimento da cabeça.
- Acorde-o - ordenou secamente ao silencioso brutamontes. A água fria bateu na parede de pedra do canto do quarto e espalhou-se no chão, formando uma poça suja. - Outra vez - Randall comandou, inspecionando Jamie, que gemia baixinho, a cabeça movendo-se contra as pedras da parede. Encolheu-se e tossiu sob a segunda enxurrada.
Randall deu um passo à frente e pegou Jamie pelos cabelos, puxando sua cabeça para trás, sacudindo-a como um animal afogado, de modo que gotas de água fétida salpicaram as paredes. Os olhos de Jamie eram apenas dois traços embaciados. Randall atirou a cabeça de Jamie para trás com repugnância, limpando a mão na lateral da calça ao se virar. Seus olhos devem ter percebido a tremulação de um movimento, porque ele começou a se voltar para Jamie outra vez, mas não a tempo de se preparar para o bote repentino do enorme escocês.
Os braços de Jamie envolveram o pescoço de Randall. Impossibilitado de usar a mão direita, agarrou o pulso direito com a mão esquerda hábil e puxou, o antebraço firmado na traquéia do inglês. Quando Randall ficou roxo e começou a afrouxar, ele soltou a mão esquerda o tempo suficiente para dar uma estocada no rim do capitão. Mesmo enfraquecido como Jamie estava, o golpe foi suficiente para fazer os joelhos de Randall fraquejarem.
Largando o capitão lânguido, Jamie girou nos calcanhares para enfrentar o monstruoso ordenança, que até então ficara observando os acontecimentos sem o menor lampejo de interesse no rosto abobalhado. Embora sua expressão se mantivesse quase inerte, ele na verdade se moveu, pegando a marreta da mesa quando Jamie começou a caminhar em sua direção, segurando o banco por uma das pernas na mão esquerda. Um certo ar de aborrecimento aflorou ao rosto do ordenança quando os dois homens começaram a cercar um ao outro, devagar, à procura de uma oportunidade.
Com uma arma mais adequada, Marley tentou primeiro, brandindo a marreta na direção das costelas de Jamie. Jamie desviou-se e simulou um ataque com o banco, forçando o monstrengo para trás, em direção à porta. A próxima tentativa, um golpe assassino para baixo, teria rachado o crânio de Jamie se tivesse acertado o alvo. Ao invés disso, o banco se partiu, uma das pernas e o assento arrancados.
Com impaciência, Jamie estraçalhou o restante do banco contra a parede no arremesso seguinte, reduzindo-o a um porrete pequeno, porém mais manejável; um taco de madeira de uns sessenta centímetros com a ponta lascada e dentada.
O ar na cela, sufocante com a fumaça das tochas, estava parado, exceto pela respiração arquejante dos dois homens e o baque ocasional, surdo e doloroso, de madeira em carne humana. Com medo de falar e perturbar a precária concentração de Jamie, coloquei os pés em cima da cama e encolhi-me contra a parede, tentando ficar fora do caminho.
Era evidente para mim - e pelo leve sorriso de expectativa, também para o ordenança - que Jamie estava se cansando rapidamente. Já era surpreendente que ele estivesse conseguindo ficar em pé, quanto mais lutar. Estava claro para nós três que a luta não poderia durar muito mais; se tivesse alguma chance por menor que fosse, teria que ser logo. Com estocadas curtas e fortes da perna do banco, avançou cautelosamente para Marley, forçando o grandalhão a recuar para o canto, onde os movimentos dele seriam restringidos e ele ficaria imprensado. Percebendo isso por algum instinto, o ordenança deu uma guinada para a frente com um violento arremesso horizontal da marreta, na expectativa de forçar Jamie para trás.
Ao invés de dar um passo para trás, Jamie avançou e recebeu todo o impacto do golpe no lado esquerdo, enquanto descia o porrete com toda a força na têmpora de Marley. Atenta à cena que se desenrolava diante de mim, eu não prestara atenção ao corpo de Randall, deitado de barriga para baixo no chão junto à porta. Mas, quando o ordenança cambaleou, os olhos embaciados, ouvi o arrastar de botas no chão de pedra e uma respiração entrecortada rangeu no meu ouvido.
- Lutou muito bem, Fraser. - A voz de Randall era rouca por causa do estrangulamento, mas controlada como de costume. - Mas custou-lhe algumas costelas, não é?
Jamie apoiou-se contra a parede, respirando em grandes arfadas, ainda segurando o bastão, o cotovelo apertado com força contra o lado do corpo. Seus olhos abaixaram-se para o chão, medindo a distância.
- Nem tente, Fraser. - A voz não se alterou. - Ela estará morta antes que você dê dois passos. - A lâmina fina e fria da faca deslizou pela minha orelha; pude sentir a ponta espetando de leve o canto do meu maxilar.
Jamie avaliou a situação com olhos imparciais por um instante, ainda amparado pela parede. Com um esforço repentino, endireitou-se dolorosamente e ficou em pé, oscilando. O porrete caiu com um baque surdo no chão de pedra. A ponta da faca espetou uma fração infinitesimal a mais de profundidade, mas fora isso Randall manteve-se imóvel enquanto Jamie lentamente deu alguns passos até a mesa, inclinando-se cuidadosamente no caminho para pegar a marreta com cabo recoberto de barbante. Segurou-a, pendente entre dois dedos, diante dele, deixando clara sua intenção de não atacar.
A marreta bateu com estardalhaço na mesa diante de mim, o cabo girando com força suficiente para carregar a ponta pesada até quase a borda da mesa. Ficou ali parada, escura e maciça, no carvalho, uma ferramenta sólida, simples. Um cesto de junco de pregos pequenos para serem usados com a marreta misturava-se à confusão de objetos no outro extremo da mesa; algo talvez esquecido pelos carpinteiros que mobiliaram o quarto. A mão ilesa de Jamie, os dedos retos e elegantes coroados de ouro sob a luz, agarrou a borda da mesa com força. Com um esforço que eu podia apenas imaginar, sentou-se lentamente em uma cadeira e deliberadamente espalmou as duas mãos diante dele na superfície marcada da madeira, a marreta a pequena distância.
Seu olhar estava travado ao de Randall durante a dolorosa travessia do quarto e não hesitou agora. Balançou a cabeça levemente em minha direção sem olhar pára mim e disse:
— Solte-a.
A mão que empunhava a faca pareceu relaxar um pouco. A voz de Randall era irônica e curiosa:
- Por que o faria?
Jamie agora parecia com total domínio de si mesmo, apesar do rosto lívido e do suor que escorria livremente pelo seu rosto como lágrimas.
— Você não pode segurar uma faca em duas pessoas ao mesmo tempo. Mate a mulher ou saia de perto dela e eu o mato. - Falou em voz baixa, um fio metálico sob o sereno sotaque escocês.
- E o que me impediria de matar vocês dois, um de cada vez?
Eu teria chamado a expressão no rosto de Jamie de um sorriso apenas porque seus dentes estavam à mostra.
— E decepcionar o carrasco? Um pouco difícil de explicar quando chegar de manhã, não? — Indicou o monstrengo inconsciente no chão com um movimento da cabeça. - Deve se lembrar de que teve que mandar seu ajudante me amarrar com corda antes de você quebrar minha mão.
- E daí? - A faca permanecia firme junto à minha orelha.
- Seu ajudante não vai lhe ser útil ainda por um bom tempo. - Isso era incontestavelmente verdadeiro; o monstruoso ordenança estava caído de cara no chão no canto do aposento, respirando com difíceis e ruidosos roncos. Concussão grave, pensei, mecanicamente. Possível hemorragia cerebral. Eu não podia me importar menos se ele morresse diante dos meus olhos.
- Você sozinho não pode comigo, mesmo só com uma das mãos. -Jamie sacudiu a cabeça devagar, avaliando o tamanho e a força de Randall. — Não. Sou maior e um lutador muito melhor. Se não tivesse a mulher aí com você, eu tiraria essa sua faquinha- e a enterraria em seu pescoço. E você sabe disso. É por esse motivo que ainda não a machucou.
- Mas eu a tenho. Você mesmo poderia ir embora, é claro. Há uma saída, bem perto. Isso deixaria sua mulher - você disse mesmo que ela era sua mulher? — para morrer, é claro.
Jamie encolheu os ombros.
- E eu também. Eu não conseguiria ir muito longe, com toda a guar-nição no meu encalço. Levar um tiro a céu aberto deve ser melhor do que ser enforcado aqui, mas não o suficiente para fazer diferença. — Uma breve careta de dor atravessou seu rosto e ele prendeu a respiração por um instante. Quando voltou a respirar, foi em arfadas superficiais, ofegantes. Qualquer que fosse o choque que o estava protegendo do pior da dor, estava claramente se esgotando.
- Então, parece que chegamos a um impasse. — O tom do inglês bem-educado de Randall era descontraído. - A menos que você tenha alguma sugestão?
- Eu tenho. Você me quer. - A voz fria escocesa era direta. - Deixe a mulher ir e terá a mim. - A ponta da faca moveu-se ligeiramente, dando um pequeno corte na minha orelha. Senti uma pontada e o fluxo quente do sangue.
- Faça o que quiser comigo, não lutarei, embora deixe que me amarre, se achar necessário. E não falarei sobre isso, amanhã. Mas primeiro faça com que ela saia da prisão em segurança. - Meus olhos estavam fixos na mão arruinada de Jamie. Uma pequena poça de sangue sob o dedo médio estava aumentando e percebi com um choque que ele estava pressionando o dedo deliberadamente na mesa, usando a dor como um estímulo para se manter consciente. Estava barganhando para salvar a minha vida usando a única coisa que lhe restava - ele próprio. Se ele desmaiasse agora, essa única chance estaria perdida.
Randall relaxara completamente; a faca descansava negligentemente no meu ombro direito enquanto ele analisava a oferta. Eu estava ali diante dele. Jamie deveria ser enforcado ao amanhecer. Mais cedo ou mais tarde, dariam pela falta dele e o castelo seria revistado. Embora uma certa dose de brutalidade fosse tolerada entre oficiais e cavalheiros - tenho certeza de que se estenderia a açoites e mãos quebradas — as outras inclinações de Randall provavelmente não seriam ignoradas. Independente da condição de Jamie como prisioneiro condenado, se ele proclamasse, do cadafalso, pela manhã, que sofrera abusos e torturas nas mãos de Randall, suas acusações seriam investigadas. E se o exame físico comprovasse a veracidade de suas alegações, a carreira de Randall estaria terminada e provavelmente sua vida também. Mas com Jamie jurando silêncio...
- Me dá sua palavra?
Os olhos de Jamie pareciam duas chamas azuis no rosto macerado. Após um instante, ele balançou a cabeça lentamente:
- Em troca da sua.
A atração de uma vítima ao mesmo tempo completamente avessa e completamente complacente era irresistível.
- Feito. - A faca saiu do meu ombro e ouvi o sussurro de metal embai-nhado. Randall passou lentamente por mim, deu a volta à mesa, pegando a marreta no caminho. Ergueu-a, questionando ironicamente:
- Me permite um pequeno teste de sua sinceridade?
- Sim. - A voz de Jamie era tão firme quanto suas mãos, espalmadas e imóveis sobre a mesa. Tentei falar, proferir algum protesto, mas minha garganta se ressecara a ponto de obrigar-me ao silêncio.
Movendo-se sem pressa, Randall inclinou-se por cima de Jamie para pegar um prego delicadamente do cesto de junco. Posicionou a ponta com cuidado e bateu a marreta, cravando o prego na mão direita de Jamie e pregando-a na mesa com mais quatro marretadas certeiras. Os dedos quebrados torceram-se e estenderam-se, como as pernas de uma aranha pregada num quadro de coleção.
Jamie urrou de dor, os olhos arregalados e inexpressivos com o choque. Randall recolocou a marreta sobre a mesa com cuidado. Segurou o queixo de Jamie na mão e virou sua cabeça para cima.
- Agora, beije-me - disse suavemente e abaixou a cabeça para a boca de Jamie, que não ofereceu nenhuma resistência.
O rosto de Randall quando ergueu a cabeça era sonhador, os olhos afáveis e distantes, a boca longa enviesada num sorriso. Um dia eu amei um sorriso como aquele e aquele olhar sonhador me excitara em expectativa. Agora, me enojava. As lágrimas escorriam pelo canto da minha boca, embora eu não me lembre de ter começado a chorar. Randall permaneceu por um instante em seu transe, fitando Jamie. Em seguida, estremeceu, lembrando-se, e retirou a faca mais uma vez da bainha.
A lâmina cortou descuidadamente as cordas em torno dos meus pulsos, esfolando a pele. Eu mal tive tempo de esfregar os pulsos para restabelecer a circulação do sangue nas mãos até ele me obrigar a ficar em pé segurando-me pelo cotovelo e me empurrar em direção à porta.
— Espere! — Jamie falou atrás de nós e Randall virou-se com impaciência.
- Podemos nos despedir? - Era uma afirmação, mais do que uma pergunta e Randall hesitou apenas um instante antes de assentir e me dar um empurrão de volta em direção à figura imóvel à mesa.
O braço bom de Jamie rodeou com força meus ombros e eu enterrei meu rosto molhado em seu pescoço.
— Você não pode fazer isso — murmurei. — Não pode. Eu não vou deixar.
Sua boca era quente no meu ouvido.
— Claire, vou ser enforcado pela manhã. O que acontecer comigo daqui até lá não importa mais. - Afastei-me e fitei-o.
- Importa para mim! - Os lábios tensos tremeram quase num sorriso e ele ergueu a mão livre e colocou-a na minha face úmida.
— Sei que importa, mo duinne. E é por isso que você deve ir agora. Para que eu saiba que há alguém que ainda se importa comigo. - Puxou-me para junto dele outra vez, beijou-me ternamente e sussurrou em gaélico: - Ele deixará você partir porque acha que você está sozinha e desamparada. Sei que não está. - Soltando-me, disse em inglês: - Eu a amo. Agora, vá.
Randall parou enquanto me apressava pela porta.
- Voltarei logo.
Era a voz de um homem afastando-se relutantemente de seu amante e tive uma ânsia de vômito.
Delineado em vermelho pela luz da tocha atrás dele, Jamie inclinou a cabeça cortesmente em direção à mão pregada na mesa.
- Pode ter certeza de que vai me encontrar aqui.
Black Jack. Um apelido comum para canalhas e crápulas no século XVIII. Um dos principais componentes da ficção romântica, o nome invocava charmosos assaltantes de estrada, com chapéus de plumas e espadas arrojadas. A realidade caminhava ao meu lado.
Ninguém nunca pára para pensar no que se baseiam os romances. Tragédia e terror, modificados pelo tempo. Acrescente-se um pouco de arte à redação e voilà!, um enredo emocionante, capaz de fazer o sangue correr mais rápido nas veias e as mocinhas suspirarem. Meu sangue estava correndo rápido, sem dúvida, e nunca uma donzela suspirou como Jamie, segurando sua mão destruída.
- Por aqui. - Era a primeira vez que Randall falava desde que deixáramos a cela. Indicou uma alcova estreita na parede, sem tochas de iluminação. A saída, da qual falara a Jamie.
Agora, eu já recobrara domínio suficiente de mim mesma para falar e o fiz. Dei um passo para trás, para que a luz da tocha caísse em cheio sobre mim, porque eu queria que ele se lembrasse do meu rosto.
- Você me perguntou, capitão, se eu era uma bruxa - eu disse, a voz baixa e firme. - Vou responder-lhe agora. Sim, sou uma bruxa. Bruxa e eu lanço sobre você a minha maldição. Você se casará, capitão, e sua mulher terá um filho, mas não viverá o suficiente para ver seu primogênito. Eu o amaldiçôo com conhecimento, Jack Randall. Eu lhe dou a hora de sua morte.
Seu rosto estava oculto nas sombras, mas o brilho em seus olhos disse-me que ele acreditava em mim. E por que não o faria? Pois eu falava a verdade e eu sabia. Eu podia ver as linhas do mapa genealógico de Frank como se tivessem sido desenhadas nas linhas de argamassa entre as pedras da parede, e os nomes listados ao lado de cada uma.
- Jonathan Wolverton Randall — eu disse devagar, lendo nas pedras. -Nascido em 3 de setembro de 1705. Morto em... - Ele fez um movimento convulsivo em direção a mim, mas não rápido o suficiente para me impedir de falar.
Uma porta estreita no fundo da alcova abriu-se com um rangido das dobradiças. Esperando uma escuridão ainda maior, meus olhos ficaram cegos por um lampejo ofuscante de luz sobre neve. Um rápido empurrão por trás me lançou de cabeça, aos tropeções, diretamente numa espécie de montes de neve acumulada pelo vento. A porta fechou-se com um estampido atrás de mim.
Eu estava caída numa vala, atrás da prisão. Os monturos de neve à minha volta deviam encobrir depósitos de alguma coisa — o lixo da prisão, sem dúvida. Havia algo duro embaixo do monte de neve no qual eu havia caído; madeira, talvez. Erguendo os olhos para a muralha que se erguia verticalmente acima de mim, pude ver estrias e córregos de água suja descendo pelas pedras, marcando o caminho dos refugos despejados de uma porta de correr a uns doze metros acima. Ali deviam ficar os cômodos da cozinha.
Rolei sobre o próprio corpo, preparando-me para levantar e me vi fitando um par de olhos azuis. A cara era quase tão azul quanto os olhos e tão dura quanto o toco de madeira pelo qual eu o confundira. Sufocando e aos tropeções, consegui ficar em pé e cambaleei de volta para a muralha da prisão.
Abaixe a cabeça, respire fundo, disse a mim mesma com firmeza. Você não vai desmaiar, você já viu pessoas mortas antes, muitas, você não vai desmaiar - Meu Deus, ele tem olhos azuis como — você não vai desmaiar, droga!
Minha respiração finalmente desacelerou e, com ela, minha pulsação desenfreada.
Quando o pânico cedeu, obriguei-me a voltar à patética figura, limpando as mãos convulsivamente na saia. Não sei se foi compaixão, curiosidade ou simplesmente choque o que me fez olhar outra vez. Visto sem a brusquidão da surpresa, não havia nada de assustador no homem morto; nunca há. Por pior que seja a maneira como um homem morre, somente a presença de um ser humano em sofrimento é aterradora; uma vez morto, o que resta é apenas um objeto.
O estranho de olhos azuis fora enforcado. Não era o único habitante da vala. Não me dei ao trabalho de escavar o monte de neve, mas agora que sabia o que continha, podia ver com clareza os contornos de membros congelados e as cabeças suavemente arreeedondadas sob a neve. Pelo menos uma dúzia de homens jazia ali, esperando por um degelo que tornaria mais fácil o seu enterro ou por uma remoção mais rude pelos animais ferozes da floresta próxima.
O pensamento me arrancou da minha imobilidade pensativa. Eu não tinha tempo a perder em meditações à beira de sepulturas ou mais um par de olhos azuis, arregalados e sem visão, iria ficar olhando para cima, para a neve que caía.
Precisava encontrar Murtagh e Rupert. Talvez aquela porta dos fundos escondida pudesse ser usada. Obviamente, não era fortificada ou protegida por guardas como os portões principais e outras entradas da prisão. Mas eu precisava de ajuda, e rápido.
Olhei para cima, para a borda da vala. O sol já estava bem baixo, filtrando-se por uma camada de nuvens logo acima dos topos das árvores. O ar estava pesado de umidade. Provavelmente iria nevar outra vez ao cair da noite; o céu estava encoberto por nuvens espessas a leste. Restava talvez uma hora de luz.
Comecei a seguir a vala, não querendo escalar os lados rochosos e íngremes enquanto não fosse necessário. A vala estreita e funda fazia uma curva logo depois da prisão e dava a impressão de que descia em direção ao rio; provavelmente o escoamento da água da neve derretida carregava o lixo da prisão. Eu estava quase na curva da alta muralha quando ouvi um som leve atrás de mim. Girei nos calcanhares. O som fora produzido por uma pedra que caíra da borda da vala, deslocada pela pata de um enorme lobo cinzento.
Como alternativa aos itens soterrados na neve, eu tinha determinadas características desejáveis, do ponto de vista de um lobo. Por um lado, eu me locomovia, era mais difícil de ser apanhada e oferecia a possibilidade de resistência. Por outro, eu era lenta, desajeitada e, acima de tudo, não estava congelada, não oferecendo, assim, perigo de dentes quebrados. Eu também cheirava a sangue fresco, tentadoramente quente naquele esgoto enre-gelado. Se eu fosse um lobo, pensei, não hesitaria. O animal chegou a uma decisão ao mesmo tempo em que cheguei à minha própria conclusão quanto às nossas relações futuras.
Havia um americano no hospital de Pembroke chamado Charlie Marshall. Era um sujeito agradável, amistoso como todos os americanos e muito divertido quando o assunto era animais de estimação. Os seus eram os cachorros. Charlie era sargento na unidade K-9. Ele fora atingido, juntamente com dois dos seus cachorros, pela explosão de uma mina na periferia de um vilarejo perto de Aries. Ele lamentava a perda dos cachorros e freqüentemente me contava histórias sobre eles quando eu me sentava ao seu lado durante os escassos momentos de descontração no meu turno.
Mais objetivamente, ele também me contara uma vez o que fazer, e o que não fazer, se um dia fosse atacada por um cachorro. Era muita bondade chamar de cachorro a assustadora criatura que vinha escolhendo seu caminho cuidadosamente pelas pedras do barranco, mas esperava que ainda compartilhasse alguns traços básicos de caráter com seus descendentes domesticados.
- Cão malvado - disse com firmeza, fitando um olho amarelo. — Na verdade - disse, recuando lentamente em direção à muralha da prisão -, você é um cão absolutamente horrível. (Fale alto e com firmeza, ouvi Charlie dizendo.) - Provavelmente o pior que já vi - eu disse, alto e com firmeza. Continuei a recuar, subindo, uma das mãos estendida para trás para sentir a muralha de pedras e, uma vez lá, fui me deslocando de lado, em direção à curva a uns dez metros.
Desamarrei os laços na minha garganta e comecei a apalpar o broche que prendia meu manto, ainda dizendo ao lobo, em voz alta e firme, o que pensava dele, de seus ancestrais e de sua família imediata. O animal parecia interessado na ladainha, a língua relaxada e os dentes à mostra, como um cachorro. Não parecia ter pressa; mancava levemente, pude notar quando se aproximou, e era magro e sarnento. Talvez tivesse dificuldade em caçar e a enfermidade é que o atraía à pilha de lixo da prisão para catar comida. Eu certamente esperava que assim fosse; quanto mais doente, melhor.
Encontrei minhas luvas de couro no bolso do meu manto e calcei-as. Em seguida, enrolei o manto várias vezes em torno do braço direito, abençoando a espessura do veludo. "Eles procuram atacar a garganta", Charlie instruíra-me, "a menos que seu treinador lhes ensine de outra forma. Continue a olhá-lo nos olhos; você verá quando ele decidir atacar. Esse é o seu momento."
Eu podia ver inúmeras coisas naquele perigoso globo ocular amarelo, inclusive fome, curiosidade e especulação, mas ainda não uma decisão de saltar.
- Criatura nojenta - continuei -, não ouse saltar na minha garganta! -Tive outras idéias. Eu havia envolvido meu braço direito em várias voltas frouxas do meu manto, deixando a maior parte pendurada, mas conseguindo um acolchoamento suficiente, eu esperava, para impedir que os dentes da fera penetrassem em meu braço.
O lobo era magro, mas não emaciado. Calculei que devia pesar um pouco menos de quarenta quilos; menos do que eu, mas não o suficiente para me dar uma grande vantagem. A balança definitivamente pendia para o lado do lobo; quatro pernas contra duas proporcionavam mais equilíbrio na escorregadia crosta de neve. Esperava que o fato de apoiar minhas costas contra a parede ajudasse.
Uma sensação de vazio às minhas costas disse-me que eu havia chegado à curva. O lobo estava a uns seis metros de distância. Esse era o momento. Raspei a neve sob os meus pés o suficiente para me dar firmeza e esperei.
Nem cheguei a ver o lobo sair do solo. Eu podia jurar que estava vigiando seus olhos, mas se a decisão de saltar tivesse sido registrada ali, fora seguida depressa demais pela ação para que eu pudesse notar. Foi o instinto, e não o pensamento, que ergueu meu braço quando uma mancha cinza-esbranquiçada arremessou-se sobre mim.
Os dentes cravaram-se no acolchoamento com uma força que machucou meu braço. Era mais pesado do que eu imaginara; eu não estava preparada para aquele peso e meu braço afrouxou-se. Planejara atirar a fera contra a parede, talvez o deixando desacordado. Ao invés disso, arremessei o corpo contra a muralha, esmagando o lobo entre os blocos de pedra e meu quadril. Lutei para envolvê-lo com a parte solta do meu manto. Garras rasgaram minha saia e arranharam minha coxa. Arremeti o joelho com uma força assassina no seu peito, extraindo um uivo estrangulado. Somente então percebi que os queixumes vinham de mim e não do lobo.
Estranhamente, eu já não estava nem um pouco aterrorizada, embora tivesse ficado apavorada quando o lobo estava me perseguindo. Só havia espaço em minha mente para um único pensamento: vou matar este animal ou ele me matará. Portanto, eu iria matá-lo.
Chega-se a um ponto, numa intensa luta física, em que uma pessoa se abandona ao uso desenfreado de força e recursos corporais, ignorando os custos até a luta acabar. As mulheres encontram este ponto no parto; os homens na batalha.
Passado esse ponto, você perde todo medo da dor ou do ferimento. A vida se torna muito simples nesse ponto; você fará o que está tentando fazer ou morrerá na tentativa e, na verdade, não importa muito o desfecho.
Eu vira este tipo de luta durante meu treinamento nas enfermarias, mas nunca o experimentara antes. Agora, toda a minha atenção concentrava-se nas mandíbulas agarradas ao meu antebraço e no demônio contorcendo-se e lançando as garras no meu corpo.
Consegui bater a cabeça do animal contra a muralha, mas não com força suficiente. Eu estava cansando rapidamente; se o lobo estivesse em boas condições, eu não teria tido nenhuma chance. Não tinha muita agora, mas tentei aproveitar o pouco que restava. Joguei-me sobre o animal, prendendo-o sob o meu corpo e extraindo todo o ar de seus pulmões num sopro putrefato. Ele se recobrou quase imediatamente e começou a se contorcer sob o meu corpo, mas o segundo relaxamento me permitiu arrancá-lo do meu braço, uma das mãos grampeada por baixo de seu focinho molhado.
Forçando meus dedos nos cantos de sua boca, consegui mantê-los fora dos dentes carnívoros e cortantes. A saliva escorria pelo meu braço. Eu estava deitada, o corpo achatado sobre o animal. A curva da muralha da prisão estava a cerca de meio metro à minha frente. Tinha que dar um jeito de chegar até lá, sem libertar a fúria que empurrava e se contorcia sob mim.
Arrastando os pés no chão, pressionando o corpo para baixo com todas as minhas forças, avancei pouco a pouco, o tempo todo me esforçando para manter as presas do animal longe da minha garganta. Não pode ter levado mais do que alguns minutos para transpor aqueles cinqüenta centímetros, mas parecia que eu passara ali a maior parte de minha vida, lutando e presa àquela fera cujas garras traseiras arranhavam minhas pernas, procurando uma boa oportunidade de rasgar minha barriga.
Finalmente, pude ver do outro lado da curva. O ângulo rombudo da pedra estava diretamente diante do meu rosto. Agora, era a parte mais difícil. Eu tinha que manobrar o corpo do lobo de modo que pudesse colocar as duas mãos sob o focinho; jamais teria a força necessária com apenas uma das mãos.
Rolei bruscamente para fora e o lobo imediatamente escorregou para o pequeno espaço livre entre meu corpo e a muralha. Antes que pudesse ficar de pé, atingi-o com o joelho com todas as forças que consegui reunir. O lobo grunhiu quando meu joelho chocou-se contra o lado do seu corpo, prendendo-o, ainda que apenas por alguns instantes, contra a parede.
Agora, eu tinha ambas as mãos sob suas mandíbulas. Os dedos de uma das mãos estavam na verdade dentro de sua boca. Podia sentir a ferroada esmagadora sobre os dedos enluvados, mas ignorei o fato enquanto forçava a cabeça peluda para trás, e para trás, e novamente para trás, usando o ângulo da muralha como ponto de apoio de uma alavanca que era o corpo do animal. Achei que meus braços iriam se quebrar, mas essa era a única chance.
Não houve nenhum ruído audível, mas eu senti a reverberação pelo corpo todo quando o pescoço se quebrou. Os membros tensos - e a bexiga - imediatamente relaxaram. Com o esforço insuportável nos braços agora relaxados, caí, tão fraca quanto o lobo moribundo. Podia sentir o coração da fera fibrilando sob minha face, a única parte do seu corpo ainda capaz de lutar contra a morte. O pêlo áspero fedia a amônia e cabelo molhado. Queria me afastar, mas não conseguia.
Creio que devo ter adormecido por um instante, por mais estranho que isso possa parecer, tendo um animal morto como travesseiro. Abri os olhos e vi as pedras esverdeadas da prisão a poucos centímetros do meu nariz. Somente o pensamento do que deveria estar ocorrendo do outro lado daqueles muros me fez levantar.
Arrastei-me com dificuldade pelo resto da vala, o manto pendurado em um dos ombros, tropeçando em pedras escondidas sob a neve, batendo as pernas dolorosamente em galhos semi-enterrados. Subconscientemente, devia saber que lobos geralmente andam em bandos, porque não me lembro de ter ficado surpresa com os uivos que reverberavam da floresta atrás e acima de mim. Se tiver sentido alguma coisa, foi um ódio mortal ao que parecia uma conspiração para me frustrar e me atrasar.
Exausta, virei-me para ver de onde vinha o som. Já estava em campo aberto a essa altura, longe da prisão; não havia nenhuma muralha onde me apoiar, nem nenhuma arma à mão. A sorte me ajudara com o primeiro lobo; não havia nem uma chance em mil de que eu pudesse matar outro animal de mãos vazias - e quantos mais deveria haver? O bando que eu vira alimentando-se ao luar no verão reunia pelo menos dez lobos. Podia ouvir na memória os ruídos de seus dentes raspando e o estalido de ossos quebrando-se. A única pergunta agora era se eu sequer me daria ao trabalho de lutar ou se iria apenas deitar-me na neve e desistir. Essa opção parecia extraordinariamente atraente, levando-se em conta todas as circunstâncias.
No entanto, Jamie abrira mão de sua vida, e consideravelmente mais do que isso, para me tirar da prisão. Eu devia a ele ao menos tentar.
Mais uma vez, procurei me afastar, continuando a descer o valão. A luz definhava; logo a ravina se encheria de sombras. Duvidava que isso me ajudasse. Os lobos indubitavelmente tinham uma visão noturna melhor do que a minha.
O primeiro predador apareceu na borda da vala como seu antecessor; uma figura desgrenhada, imóvel e alerta. Foi com uma espécie de choque que percebi que dois outros já estavam na ravina comigo, avançando devagar, os passos dos dois quase sincronizados. Eram quase da cor da neve na luz do crepúsculo — cinza sujo - e quase invisíveis, embora se movessem sem nenhuma tentativa de se esconder.
Parei onde estava. Correr era obviamente inútil. Curvando-me, retirei um galho morto de pinheiro do meio da neve. A casca estava escura da umidade e áspera até através das minhas luvas. Brandi o galho acima da cabeça e gritei. Os animais pararam, mas não recuaram. O que estava mais próximo abaixou as orelhas, como se protestasse contra o barulho.
- Não gosta? — berrei. - Dane-se! Para trás, maldito, desgraçado! -Pegando uma pedra semi-enterrada, atirei-a contra o lobo. Não o atingiu, mas a fera correu para o lado. Encorajada, comecei a atirar mísseis freneticamente; pedras, galhos, bolos de neve, tudo que eu podia pegar com uma única mão. Berrei até minha garganta ficar dolorida com o ar frio, uivan-do, esganiçada, como os próprios lobos.
No começo, pensei que um dos meus projéteis tivesse atingido o alvo. O lobo mais próximo ganiu e pareceu ter um espasmo. A segunda flecha passou a uns trinta centímetros de mim e vi a minúscula mancha em movimento antes de alojar-se com um ruído surdo no peito do segundo lobo. Esse animal morreu ali mesmo onde estava. O primeiro, não atingido mortalmente, esperneava e debatia-se na neve, não mais do que um torrão contorcendo-se na crescente escuridão.
Fiquei parada estupidamente por algum tempo, depois ergui os olhos por instinto para a margem da ravina. O terceiro lobo, sabiamente procurando passar despercebido, desaparecera de volta à floresta, de onde um uivo arrepiante se elevou.
Eu ainda fitava as árvores escuras quando a mão de alguém agarrou meu cotovelo. Girei nos calcanhares com um grito sufocado e deparei-me com o rosto de um estranho. Maxilares estreitos e um queixo pontudo, mal disfarçado por uma barba rala, era realmente um estranho, mas seu xale de xadrez e sua adaga o identificavam como um escocês.
- Ajude-me - eu disse, desmaiando em seus braços.
Estava escuro na cabana e havia um urso no canto da sala. Em pânico, recuei para perto de meu acompanhante, não querendo ter mais nada a ver com animais ferozes. Ele me empurrou com força para dentro da cabana. Quando cambaleei em direção ao fogo, a monstruosa figura virou-se para mim e percebi que não passava de um homem grandalhão numa pele de urso.
Uma capa de pele de urso, para ser exata, amarrada no pescoço com um broche de prata do tamanho da palma da minha mão. Tinha o formato de dois cervos num salto, as costas arqueadas e as cabeças encontrando-se para formar um círculo. O alfinete do fecho era uma espécie de leque afunilado e curto, a cabeça modelada como a cauda de um cervo em fuga.
Notei os detalhes do broche porque estava diretamente em frente ao meu nariz. Erguendo os olhos, considerei por um instante a possibilidade de estar errada. Talvez ele realmente fosse um urso.
Ainda assim, os ursos provavelmente não usavam broches, nem tinham olhos como mirtilos: pequenos, redondos e de um azul-escuro brilhante. Estavam afundados em faces carnudas, cujas elevações inferiores estavam cobertas com uma floresta de cabelos negros entremeados de prateados. Cabelos semelhantes desciam em cascata até os ombros fortes, misturando-se com os pêlos da capa, os quais, apesar de seu novo uso, ainda recendiam ao seu antigo dono.
Os penetrantes olhinhos tremeluziram sobre mim, avaliando tanto as condições esfarrapadas do meu traje, bem como sua boa qualidade, inclusive as duas alianças de casamento, de ouro e de prata. O discurso do urso condizia com sua aparência.
- Parece ter enfrentado algumas dificuldades, madame - disse, formalmente, inclinando a cabeça maciça ainda salpicada de neve amolecida. -Podemos ajudá-la?
Hesitei, sem saber o que deveria dizer. Precisava desesperadamente da ajuda daquele homem, mas seria imediatamente vista com desconfiança quando minha fala revelasse que era inglesa. O arqueiro que me levara até ali se antecipou a mim.
- Encontrei-a perto de Wentworth - disse laconicamente. - Lutando contra lobos. Uma inglesa - acrescentou, com uma ênfase que fez os olhos de mirtilo de meu anfitrião fixarem-se em mim com uma especulação um tanto desagradável em suas profundezas. Empertiguei-me na postura mais ereta possível e arregimentei toda a atitude de uma respeitável mulher casada que pude.
- Inglesa de nascimento, escocesa pelo casamento - disse com firmeza. - Meu nome é Claire Fraser. Meu marido é prisioneiro em Wentworth.
- Compreendo - disse o urso, devagar. — Bem, meu nome é Mac-Rannoch e no momento estamos em minhas terras. Vejo pelo seu vestido que é uma mulher de alguma família tradicional. Como pode estar sozinha na floresta de Eldridge numa noite de inverno?
Aproveitei a abertura; ali estava uma oportunidade de estabelecer minha boa-fé, bem como encontrar Murtagh e Rupert.
- Vim para Wentworth com alguns homens do clã de meu marido. Por ser inglesa, achamos que eu conseguiria entrar na prisão e talvez encontrar alguma maneira de retirá-lo de lá. Entretanto, eu... eu tive que deixar a prisão de outra maneira. Estava procurando meus amigos quando fui surpreendida pelos lobos, dos quais este cavalheiro bondosamente me salvou. - Tentei um sorriso de agradecimento para o arqueiro de ossos angulosos, que o recebeu com um silêncio tumular.
- Sem dúvida a senhora encontrou alguma coisa com dentes -MacRannoch comentou, examinando os enormes rasgos em minha saia. A suspeita cedeu temporariamente às exigências da hospitalidade.
- Está ferida, então? Apenas um pouco arranhada? Bem, está com frio, sem dúvida, e um pouco abalada, imagino. Sente-se aqui junto ao fogo. Hector lhe trará alguma sopa e depois poderá me contar um pouco mais sobre esses seus amigos. - Com um dos pés, colocou em pé um banco rústico de três pernas e sentou-me firmemente nele empurrando meu ombro com a mão grande e pesada.
Fogo de turfa não fornece muita luz, mas produz um calor agradável. Estremeci involuntariamente quando o sangue começou a fluir novamente nas minhas mãos congeladas. Uns dois goles do frasco de couro fornecido de má vontade por Hector também fez o sangue fluir internamente.
Expliquei minha situação da melhor maneira que pude, o que não foi muito bem. A breve descrição da minha saída da prisão e subseqüente luta corpo-a-corpo com o lobo foi recebida com particular ceticismo.
- Considerando-se que realmente tenha conseguido entrar em Wentworth, não parece provável que sir Fletcher fosse permitir que ficasse vagando pelo local. Também não parece provável que, se este capitão Randall a tivesse encontrado nas masmorras, fosse simplesmente empurrá-la pela porta dos fundos.
- Ele... ele tinha razões para me deixar partir.
- E quais foram? - Os olhos de mirtilo eram implacáveis.
Desisti e coloquei a questão francamente; estava cansada demais para delicadezas ou circunlóquios.
MacRannoch parecia parcialmente convencido, mas ainda relutante em tomar alguma atitude.
- Sim, compreendo sua preocupação - argumentou -, mas, ainda assim, isso talvez não seja tão ruim.
- Não seja tão ruim! - Levantei-me num salto, indignada.
Ele sacudiu a cabeça como se estivesse atormentado por insetos.
- O que quero dizer - explicou - é que se ele está atrás do traseiro do rapaz, não deve feri-lo gravemente. E, com licença de sua presença, madame - arqueou uma sobrancelha peluda em minha direção -, ser sodomizado dificilmente mata uma pessoa. - Para me apaziguar, ergueu as palmas das mãos do tamanho de pratos de sopa.
- Ora, não estou dizendo que ele vai gostar, veja bem, mas digo que não vale a pena um grande desentendimento com sir Fletcher Gordon, apenas para salvar o rapaz de um traseiro dolorido. Tenho uma posição precária aqui, sabe, muito precária. - E ele inflou as bochechas e levantou as sobrancelhas como um besouro para mim.
Não pela primeira vez, arrependi-me do fato de não haver bruxas de verdade. Se fosse uma bruxa, eu o teria transformado em sapo na hora. Um sapo gordo e grande, com verrugas.
Sufoquei minha raiva e tentei argumentar mais uma vez.
- Acho que seu traseiro já não pode ser salvo a esta altura; é com seu pescoço que estou preocupada. Os ingleses pretendem enforcá-lo pela manhã.
MacRannoch resmungava consigo mesmo, andando de um lado para o outro como um urso numa jaula muito pequena. Parou bruscamente diante de mim e enfiou o nariz a um centímetro do meu. Eu teria me encolhido, se não estivesse tão cansada. No estado em que estava, apenas pisquei os olhos.
- E se eu dissesse que a ajudaria, de que adiantaria? - rosnou. Retomou suas voltas, dois passos até a parede, meia-volta num volteio de pele de urso e mais dois passos até a outra parede. Falava enquanto andava, as palavras no mesmo ritmo dos passos, parando para um suspiro ao dar a volta.
- Se eu mesmo fosse à presença de sir Fletcher, o que iria dizer? O senhor tem um capitão em sua equipe que tortura prisioneiros em seu tempo livre? E quando ele perguntar como eu soube disso, eu lhe digo que uma inglesa perdida que meus homens encontraram vagando no escuro disse-me que o sujeito tem feito propostas indecentes ao seu marido, que é um malfeitor com um prêmio por sua cabeça e um assassino convicto, ainda por cima?
MacRannoch parou e bateu com a pata sobre a frágil mesa.
- E quanto a levar homens ao lugar! Se, veja bem, estou dizendo se pudéssemos entrar.
- Poderiam entrar - interrompi. - Posso mostrar-lhes o caminho.
- Mmmmhum. Pode ser. Se pudéssemos entrar, o que aconteceria quando Fletcher encontrasse meus homens vagando pela sua fortaleza? Enviaria o capitão Randall na manhã seguinte com um par de canhões e deixaria a Mansão Eldridge no chão, isso é o que aconteceria! - Sacudiu a cabeça outra vez, fazendo os cachos negros voarem.
- Não, moça, não vejo...
Foi interrompido pela porta da cabana, aberta de supetão para admitir outro arqueiro, desta vez empurrando Murtagh à sua frente na ponta da faca. MacRannoch parou e fitou-o, estupefato.
- O que é isso? - perguntou. - Até parece que é Primeiro de Maio, com todos os rapazes e moças por aí, colhendo flores nos bosques, e não o velho e ermo inverno se aproximando com sua neve!
- É um dos homens do clã do meu marido - expliquei. - Como eu lhe disse.
Murtagh, sem se deixar perturbar pela recepção nada cordial, olhava atentamente para a figura com capa de urso, como se removesse cabelos e anos mentalmente.
- MacRannoch, não é? - disse, em tom quase acusador. - Você esteve no Grande Encontro, eu acho, há algum tempo, no Castelo Leoch?
MacRannoch ficou mais do que espantado.
- Há algum tempo, essa é boa! Ora, deve ter sido há mais de trinta anos. Como sabe disso?
Murtagh balançou a cabeça, satisfeito.
- Ah, foi o que pensei. Eu estava lá. E me lembro daquele Encontro, provavelmente pelo mesmo motivo que você.
MacRannoch analisava o homenzinho ressequido, tentando subtrair trinta anos de sua fisionomia enrugada.
- Sim, eu me lembro de você - disse, finalmente. — Não do nome, mas de você. Você matou um javali ferido sozinho, com uma adaga, durante o tynchal. Um belo animal, na verdade. Isso mesmo, o MacKenzie deu-lhe as presas afiadas, um belo par, quase uma volta completa. Belo trabalho, rapaz. - Uma expressão perigosamente próxima de satisfação enrugou o rosto marcado de Murtagh por um instante.
Sobressaltei-me, lembrando dos braceletes selvagens e magníficos que vira em Lallybroch. São da minha mãe — Jenny dissera —, presente de um admirador. Olhei para Murtagh, incrédula. Mesmo considerando a passagem de trinta anos, ele não parecia um candidato provável a uma terna paixão.
Pensando em Ellen MacKenzie, lembrei-me de suas pérolas, que eu ainda carregava, costuradas na bainha do meu bolso. Tateei até encontrar a ponta aberta e puxei o colar para a luz do fogo.
- Posso pagar-lhe - eu disse. — Não espero que seus homens se arrisquem por nada.
Movendo-se muito mais rapidamente do que eu imaginava ser possível, ele arrancou as pérolas da minha mão. Fitou-as, incrédulo.
- Onde conseguiu isto, mulher? - perguntou. - Disse que seu nome é Fraser?
- Sim. — Apesar de exausta, empertiguei-me. - E as pérolas são minhas. Meu marido as deu para mim no dia do nosso casamento.
- Ah, deu, hein? — A voz rouca abrandou-se repentinamente num sussurro. Virou-se para Murtagh, ainda segurando o colar.
- O filho de Ellen? O marido desta moça é filho de Ellen?
- Sim - Murtagh respondeu, inexpressivo como de costume. - Como você saberia imediatamente se o visse. É a cara dela.
Atento novamente às pérolas que agarrava, MacRannoch abriu a mão e tocou delicadamente as pérolas lustrosas.
- Eu dei este colar a Ellen MacKenzie - ele disse. — Como presente de casamento. Eu o teria dado a ela como marido, mas ela preferiu outro. Bem, tenho pensado nele muitas vezes, em volta do seu adorável pescoço, eu lhe disse que não poderia vê-lo em nenhuma outra mulher. Assim, pedi-lhe que o guardasse e só pensasse em mim quando o usasse. Hum! -Resfolegou brevemente diante de alguma lembrança, em seguida devolveu as pérolas cuidadosamente para mim.
- Então, são suas agora. Bem, use-as em boa saúde, moça.
- Terei uma chance muito melhor de fazê-lo — eu disse, tentando controlar minha impaciência diante daquelas demonstrações sentimentais - se me ajudar a resgatar meu marido.
A pequena boca rósea, que estivera esboçando um sorriso com os próprios pensamentos de seu dono, apertou-se repentinamente.
- Ah - disse sir Marcus, puxando a barba. - Compreendo. Mas já lhe disse, moça, não vejo como isso possa ser feito. Tenho mulher e três filhos em casa. Sim, eu faria alguma coisa pelo filho de Ellen. Mas o que está pedindo é demais.
De repente, minhas pernas cederam completamente e sentei-me com um baque, deixando meus ombros arriarem e minha cabeça pender. O desespero me arrastava como uma âncora, puxando-me para baixo. Fechei os olhos e retirei-me para um lugar escuro no meu íntimo, onde não havia nada além de um vazio cinzento e dolorido, e onde o som da voz de Murtagh, ainda argumentando, não passava de uma tagarelice indistinta.
Foram os bramidos do gado que me tiraram do meu estupor. Ergui os olhos e vi MacRannoch girar nos calcanhares e sair às pressas da cabana. Quando abriu a porta, uma rajada do ar gelado do inverno entrou, carregada dos mugidos do gado e dos berros dos homens. A porta fechou-se com um estampido atrás da figura enorme e peluda e eu me virei para perguntar a Murtagh o que ele achava que deveríamos fazer em seguida.
A expressão de seu rosto me fez parar, muda. Eu raramente o vira com qualquer expressão além de uma espécie de severidade paciente em suas feições, mas agora ele positivamente resplandecia com um entusiasmo contido.
Agarrei-o pelo braço.
- O que foi? Conte-me, depressa!
Ele só teve tempo de dizer, antes de o próprio MacRannoch precipitar-se de volta na cabana, empurrando um jovem magro à sua frente:
- As vacas! São de MacRannoch!
Com um último empurrão, encostou o rapaz na parede recoberta de argamassa da cabana. Aparentemente, MacRannoch achava o confronto eficaz; tentava a mesma técnica nariz a nariz que usara comigo anteriormente. Com menos autocontrole, ou menos cansado, do que eu, o jovem arqueou-se nervosamente contra a parede o máximo que pôde.
MacRannoch começou mostrando-se amistosamente razoável.
- Absalom, meu rapaz, eu o enviei há três horas para trazer para dentro quarenta cabeças de gado. Eu lhe disse que era importante encontrá-las, porque uma terrível tempestade de neve está para acontecer. - A voz agra-davelmente modulada elevava-se. — E quando ouvi o barulho das vacas mugindo lá fora, disse a mim mesmo, Ah, Marcus, Absalom foi e encontrou todo o gado, que rapaz excelente, agora todos nós podemos ir para casa e nos aquecermos junto ao fogo, com o gado a salvo em seus estábulos.
Um punho forte e musculoso fechara-se no casaco de Absalom. O material, agarrado entre aqueles dedos rombudos, começou a se deformar.
- E, então, eu saio para lhe dar os parabéns por um excelente trabalho e começo a contar os animais. E quantos eu conto, Absalom, meu belo rapazinho? - A voz elevara-se a um rugido a plenos pulmões. Embora não possuísse uma voz particularmente profunda, Marcus MacRannoch tinha uma força nos pulmões suficiente para três homens de compleição normal.
- Quinze! - gritou, erguendo o infeliz Absalom na ponta dos pés. -Ele encontra quinze animais, de quarenta! E onde estão os outros! Onde? Lá fora, perdidos na neve, para morrerem congelados!
Murtagh desaparecera discretamente nas sombras do canto da sala enquanto a cena se desenrolava. Mas eu observava seu rosto e vi o repentino brilho de divertimento em seus olhos diante daquelas palavras. De repente, compreendi o que ele começara a me dizer e eu sabia onde Rupert estava agora. Ou, se não exatamente onde ele estava, ao menos o que ele estava fazendo. E comecei a ter um pouco de esperança.
Estava completamente escuro. As luzes da prisão lá embaixo brilhavam fracamente através da neve como os lampiões de um navio inundado.
Esperando sob as árvores com meus dois companheiros, revi mentalmente pela milésima vez tudo que podia dar errado.
MacRannoch desempenharia sua parte no acordo? Teria de fazê-lo, se quisesse obter de volta seu valioso gado de raça pura das Highlands. Sir Fletcher acreditaria em MacRannoch e ordenaria uma busca nas masmorras imediatamente? Era provável - o baronete não era um homem que pudesse ser considerado levianamente.
Eu vira o gado desaparecer, um animal de cada vez, pela vala que levava à oculta porta dos fundos, sob a condução experiente de Rupert e seus homens. Mas conseguiriam forçar o gado a entrar por aquela porta, um ou mais de cada vez? Se assim fosse, o que fariam uma vez lá dentro, o gado desvairado, preso repentinamente num corredor de pedra iluminado com tochas ofuscantes? Bem, talvez funcionasse. O próprio corredor não seria muito diferente de seu estábulo de chão de pedras, inclusive as tochas e o cheiro de seres humanos. Se haviam chegado até lá, o plano devia funcionar. Era pouco provável que o próprio Randall pedisse socorro diante da invasão, por medo de ver seus pequenos segredos revelados.
Os condutores do gado deveriam fugir da prisão o mais depressa possível, assim que os animais estivessem bem e verdadeiramente lançados em seu caminho caótico e, então, deveriam cavalgar a toda a brida para as terras dos MacKenzie. Randall não tinha importância; o que poderia fazer sozinho naquelas circunstâncias? Mas e se o barulho atraísse o resto da guarnição da prisão cedo demais? Se Dougal relutara em tentar tirar seu sobrinho de Wentworth, eu podia imaginar sua ira se vários MacKenzie fossem presos por invadirem o lugar. Eu também não queria ser responsável por isso, embora Rupert tivesse se mostrado mais do que disposto a correr o risco. Mordi o polegar e tentei me tranqüilizar, pensando nas toneladas de granito sólido, capazes de abafar qualquer barulho, que separavam as masmorras das dependências superiores da prisão.
O mais preocupante de tudo, é claro, era o temor de que tudo pudesse funcionar, mas já fosse tarde demais. Com um carrasco à espera ou não, Randall poderia ir longe demais. Eu sabia muito bem, por meio de histórias contadas pelos soldados que retornavam de campos de prisioneiros de guerra, que nada era mais fácil do que um prisioneiro morrer por "acidente" e o corpo ser convenientemente descartado antes que perguntas embaraçosas pudessem ser feitas pelos oficiais. Ainda que perguntas fossem feitas, e Randall descoberto, pouco adiantaria para mim - ou para Jamie.
Estava decidida a me impedir de imaginar os usos possíveis da miscelânea de objetos que havia sobre a mesa naquele quarto. Mas não conseguia deixar de rever incessantemente as pontas dos ossos daquele dedo pressionado contra a mesa. Esfreguei os nós dos meus próprios dedos com força contra o couro da sela, tentando apagar a imagem. Senti uma leve queimação e tirei a luva para examinar os arranhões deixados em minha mão pelos dentes do lobo. Nada muito ruim, apenas algumas esfoladuras, com uma única perfuração pequena onde uma ponta aguda perfurara o couro. Lambi o ferimento distraidamente. Não servia de consolo dizer a mim mesma que eu fizera o melhor possível. Eu fizera apenas a única coisa possível, mas saber disso não tornava a espera mais fácil.
Finalmente, ouvimos uma gritaria confusa, fraca, vinda da prisão. Um dos homens de MacRannoch colocou a mão na brida do meu cavalo e indicou a proteção das árvores. A neve era bem mais fraca no abrigo e as rajadas de neve perdiam a força sob os galhos entrelaçados do bosque; havia apenas linhas finas de neve, duras e imprevistas, no solo rochoso e coberto de folhas. Embora a neve fosse menos espessa ali, a visibilidade ainda era tão precária que as árvores a alguns passos de distância assomavam repentinamente, os troncos surgindo subitamente, negros à luz rosada, conforme eu conduzia meu cavalo impacientemente pela pequena clareira.
Abafado pela neve espessa, o tropel que se aproximava já estava quase junto a nós quando o ouvimos. Os dois homens MacRannoch sacaram suas pistolas e pararam seus cavalos junto às árvores, à espera, mas eu ouvira o mugido surdo do gado e esporeei meu cavalo para fora do bosque.
Sir Marcus Rannoch, inconfundível por seu cavalo malhado e sua capa de pele de urso, liderava a tropa pela encosta acima, a neve saltando em pequenas explosões dos cascos de sua montaria. Era seguido por vários homens, todos de muito bom humor, ao que parecia. Outro grupo de seus homens cavalgava mais atrás, acossando pela retaguarda o gado que tentava se dispersar, conduzindo o rebanho desnorteado em torno do sopé de um monte, em direção ao seu merecido refúgio nos estábulos de MacRannoch.
MacRannoch freou ao meu lado, rindo efusivamente.
- Tenho que lhe agradecer, sra. Fraser - gritou através da neve -, por uma noite muito divertida. - Suas suspeitas anteriores haviam desaparecido e cumprimentou-me com fervorosa cordialidade. Com as sobrancelhas e o bigode cobertos de neve, parecia o Papai Noel em dia de festa. Segurando as rédeas do meu cavalo, conduziu-o de volta ao ar mais sereno do bosque. Com um aceno da mão, dispensou meus dois acompanhantes, enviando-os encosta abaixo, para ajudar com o gado. Em seguida, desmontou e ajudou-me a descer da sela, ainda rindo consigo mesmo.
- Devia ter visto! - disse, gargalhando, extasiado. — Sir Fletcher ficou vermelho como o peito de um pintarroxo quando interrompi seu jantar, gritando que ele estava escondendo propriedade roubada em suas dependências. Então, quando descemos e ele ouviu os animais rugindo que nem trovão, pensei que ele tivesse sujado as calças. Ele... — Sacudi seu braço com impaciência.
- Não importa as calças de sir Fletcher. Encontrou meu marido? MacRannoch conteve-se um pouco, limpando os olhos na manga.
- Ah, sim. Nós o encontramos.
- Ele está bem? — perguntei com calma, embora tivesse vontade de gritar.
MacRannoch balançou a cabeça em direção às árvores atrás de mim. Girei nos calcanhares e vi um cavaleiro abrindo caminho cuidadosamente entre os galhos de árvores, uma figura volumosa envolta em um manto atravessada sobre o arco da sela, à sua frente. Saí correndo em sua direção, seguida por MacRannoch, explicando para tentar me tranqüilizar.
- Ele não está morto, ou pelo menos não estava quando o encontramos. Mas foi muito maltratado, o pobre rapaz. — Afastei o manto que recobria a cabeça de Jamie e o examinei ansiosamente da melhor forma possível, com o cavalo se remexendo, inquieto e irritado com a cavalgada gélida e a carga extra. Pude ver contusões escuras e sentir áreas de sangue coagulado no meio de seus cabelos desgrenhados, porém pouco mais além disso na penumbra. Achei que sentia uma pulsação no pescoço gelado, mas não tinha certeza.
MacRannoch segurou meu cotovelo e me afastou.
- É melhor levá-lo para dentro depressa, moça. Venha comigo. Hector o trará para a casa.
Na sala principal da Mansão Eldridge, o lar dos MacRannoch, Hector desceu sua carga sobre o tapete em frente à lareira. Segurando uma das pontas do cobertor, desenrolou-o cuidadosamente, e uma figura inerte, nua, desmoronou-se sobre as flores amarelas e cor-de-rosa do tapete que era o orgulho e a alegria de lady Annabelle MacRannoch.
Diga-se a favor de lady Annabelle que ela nem pareceu notar o sangue encharcando seu valioso tapete Aubusson. Uma mulher pequena e frágil como um passarinho, de quarenta e poucos anos, arrumada como um pintassilgo, resplandecente em seus trajes de seda amarela, enviou criados atarefados em todas as direções com um enérgico bater de palmas e logo cobertores, lençóis de linho, água quente e uísque apareceram junto ao meu cotovelo quase antes de eu ter conseguido tirar meu manto.
- É melhor virá-lo de bruços — avisou sir Marcus, servindo duas grandes doses de uísque. — Ele teve as costas açoitadas e deve ser terrível deitar sobre elas. Não que ele pareça conseguir sentir alguma coisa - acrescentou, examinando cuidadosamente o rosto lívido e as pálpebras cerradas e azuladas de Jamie. — Tem certeza de que ele ainda está vivo?
- Tenho - respondi secamente, esperando estar certa. Virei o corpo de Jamie com dificuldade. A inconsciência parecia ter triplicado seu peso. MacRannoch ajudou e conseguimos posicioná-lo sobre um cobertor, as costas para a lareira.
Uma triagem rápida confirmou que ele, de fato, ainda estava vivo, com todas as partes de seu corpo e sem perigo imediato de uma hemorragia mortal. Assim, eu podia fazer um inventário menos apressado dos ferimentos.
- Posso mandar buscar um médico — disse lady Annabelle, olhando em dúvida para o homem, que mais parecia um cadáver, junto à lareira -, mas duvido que consiga chegar aqui em menos de uma hora; está nevando terrivelmente lá fora. — A relutância em seu tom de voz devia-se apenas em parte à neve, pensei. Um médico seria apenas mais uma testemunha perigosa dà presença de um criminoso fugitivo em sua casa.
- Não se preocupe - eu disse distraidamente. - Sou médica. - Indiferente aos olhares de surpresa de ambos os MacRannoch, ajoelhei-me ao lado do que restava do meu marido, cobri-o com cobertores e comecei a aplicar compressas embebidas em água quente às extremidades. Minha principal preocupação era aquecê-lo; o sangue de suas costas gotejava lentamente e eu poderia lidar com aquilo mais tarde.
Hady Annabelle desapareceu ao longe, sua voz aguda de pintassilgo convocando, chamando e tomando providências. Seu marido agachou-se junto a mim e começou a esfregar metodicamente os pés congelados entre as mãos grandes e de dedos rombudos, parando de vez em quando para tomar um pequeno gole do seu uísque.
Tirando os cobertores por partes, inspecionei os danos. Ele havia sido chicoteado da nuca aos joelhos com algo que devia ser um chicote de montaria, as marcas cruzando-se perfeitamente como ponto de bainha. A absoluta ordenação das marcas, revelando uma deliberação que se regozijava em cada golpe aplicado, me fez sentir nauseada de ódio.
Alguma coisa mais pesada, talvez uma bengala, fora usada com menos moderação em seus ombros, provocando cortes tão fundos em alguns pontos que se via o brilho do osso em uma das omoplatas. Pressionei um grosso chumaço de algodão delicadamente sobre o ferimento em pior estado e continuei o exame.
O ponto na lateral do corpo onde a marreta o atingira tinha uma aparência feia, inchada e contundida, uma mancha roxa e negra maior do que a mão de sir Marcus. Costelas quebradas, sem dúvida, mas elas também podiam esperar. Minha atenção foi atraída pelas áreas lívidas no pescoço e no peito, onde a pele estava enrugada, vermelha e com bolhas. As bordas de uma dessas áreas estavam chamuscadas, com um aro de cinza branca.
— Diabos, o que fez isso? — Marcus terminara suas massagens e espreitava por cima do meu ombro com profundo interesse.
— Um atiçador de lareira, em brasa. - A voz era fraca e indistinta; foi necessário um instante até eu perceber que fora Jamie quem falara. Ergueu a cabeça com esforço, mostrando a razão para a sua dificuldade em falar; o lábio inferior estava profundamente mordido de um dos lados e inchado como uma picada de abelha.
Com considerável presença de espírito, sir Marcus colocou a mão atrás do pescoço de Jamie e pressionou a caneca de uísque em seus lábios. Jamie encolheu-se quando sua boca machucada ardeu com a bebida, mas bebeu todo o conteúdo da caneca antes de deitar a cabeça outra vez. Seus olhos, apenas dois riscos ligeiramente embaciados de dor e uísque, mas ainda assim bem-humorados, voltaram-se para mim.
- Vacas? — perguntou. — Eram mesmo vacas ou eu estava sonhando?
- Bem, foi tudo que consegui arranjar com o tempo que tínhamos — eu disse, radiante de alívio ao vê-lo vivo e consciente. Coloquei a mão sobre sua cabeça, virando-a para inspecionar uma grande contusão na face. - Você está com uma aparência horrível. Como se sente? - perguntei, por força do hábito há muito tempo adquirido.
- Vivo. - Apoiou-se com dificuldade sobre um dos cotovelos para aceitar com um sinal da cabeça uma segunda caneca de uísque das mãos de sir Marcus.
- Acha que deve beber tanto de uma só vez? - perguntei, tentando examinar suas pupilas em busca de sinais de concussão. Ele me frustrou cerrando os olhos e inclinando a cabeça para trás.
- Sim — disse, devolvendo a caneca vazia a sir Marcus, que a levou de volta em direção à garrafa de uísque.
- Bom, por enquanto chega, Marcus. - Lady Annabelle, reaparecendo como o sol no Oriente, impediu seu marido com um gorjeio pleno de autoridade. - O rapaz precisa de um chá forte e quente, não de mais uísque. - O chá vinha atrás dela, num bule de prata, carregado por uma criada cujo ar de superioridade natural não foi alterado pelo fato de ainda estar vestida em sua camisola de dormir.
- Chá quente e forte, com muito açúcar — completei.
- E talvez umas gotas de uísque também - acrescentou sir Marcus, removendo cuidadosamente a tampa do bule quando passou por ele e acrescentando uma generosa dose de sua garrafa. Aceitando com gratidão a xícara de chá fumegante, Jamie ergueu-a num tributo mudo a sir Marcus, antes de levar o líquido quente cuidadosamente à boca. Sua mão tremia incontrolavelmente e eu a envolvi nas minhas para guiar a xícara.
Novos criados trouxeram uma cama de campanha, um colchão, mais cobertores, mais ataduras e água quente, bem como uma grande arca de madeira contendo os suprimentos médicos da casa.
- Achei melhor trabalharmos aqui junto à lareira - explicou lady Annabelle em sua encantadora voz de passarinho. — Há mais luz e certamente é o lugar mais quente da casa.
Com uma ordem sua, dois dos criados mais robustos seguraram, cada um de um lado, as pontas do cobertor sobre o qual Jamie estava deitado e o transferiram, e a seu conteúdo, sem solavancos, para a cama de campanha, armada diante do fogo, onde outro criado atiçava laboriosamente as brasas empilhadas para a noite e alimentava a chama crescente. A criada que trouxera o chá acendia com eficiência as velas finas de cera nos candelabros de vários braços que havia sobre o bufê. Apesar da aparência de pintassilgo, Annabelle obviamente tinha a alma de um sargento.
— Sim, agora que ele está acordado, quanto mais cedo melhor - eu disse. — Tem uma tábua reta com cerca de sessenta centímetros de comprimento - perguntei -, uma tira forte e talvez algumas varetas planas e retas, mais ou menos deste tamanho? - Indiquei o comprimento com a distância de aproximadamente dez centímetros entre os dedos. Um dos criados desapareceu nas sombras, sumindo de vista com um estalido, como um gênio da lâmpada, para atender meu pedido.
A casa inteira parecia mágica, talvez por causa do contraste entre o frio assustador do lado de fora e o suntuoso calor ali de dentro, ou talvez apenas por causa do alívio de ver Jamie a salvo, após tantas horas de medo e desespero.
A mobília pesada e escura brilhava com o polimento à luz das velas, objetos de prata reluziam em cima do bufê e uma delicada coleção de porcelanas e cristais ornamentava o consolo da lareira, num contraste bizarro com a figura ensangüentada e suja à sua frente.
Nenhuma pergunta foi feita. Éramos hóspedes de sir Marcus e lady Annabelle comportava-se como se fosse um acontecimento receber pessoas, à meia-noite, que sangravam no tapete. Ocorreu-me pela primeira vez que uma visita semelhante já devia ter acontecido antes.
— Um trabalho asqueroso — disse sir Marcus, examinando a mão esmi-galhada com um conhecimento adquirido em campos de batalha. - E terrivelmente doloroso também, eu imagino. Ainda assim, isso não vai matá-lo, não é? — Empertigou-se e referiu-se a mim em tom confidencial.
— Achei que poderia ser pior, considerando-se o que ela me disse. Fora as costelas e a mão, não há ossos quebrados e o resto logo estará curado. Eu diria que teve sorte, rapaz.
A figura deitada na cama emitiu um resfolegar fraco.
— Suponho que possa chamar a isso de sorte. Pretendiam me enforcar pela manhã. - Moveu a cabeça impacientemente no travesseiro, tentando olhar para sir Marcus. - Sabia disso... sir? — acrescentou, avistando o colete bordado de Marcus, com seu brasão trabalhado em fios de prata entre pombos e rosas.
MacRannoch sacudiu a mão, descartando esse detalhe menor.
— Bem, se ele pretendia mantê-lo apresentável para o carrasco, foi um pouco longe demais em suas costas - observou sir Marcus, retirando o algodão ensopado e substituindo-o por uma nova compressa.
- Sim. Ele perdeu um pouco a cabeça quando... quando ele... — Jamie esforçou-se para pronunciar as palavras, depois desistiu e virou o rosto para o fogo, os olhos fechados. - Meu Deus, estou cansado — disse.
Nós o deixamos descansar até que o criado materializou-se junto ao meu cotovelo com as talas que eu solicitara. Em seguida, peguei a mão machucada de Jamie com todo cuidado, aproximando a luz do candelabro para examiná-la.
Teria que ser imobilizada o mais rápido possível. Os músculos machucados já faziam os dedos dobrarem-se para dentro como uma garra. Senti-me perdida quando vi a extensão dos ferimentos. Mas se ele algum dia pudesse fazer uso da mão novamente tinha que ser tentado.
Lady Annabelle não se afastara durante o exame, observando com interesse. Quando coloquei a mão sobre a cama outra vez, ela adiantou-se e abriu a pequena arca de suprimentos médicos.
- Imagino que vai precisar de eupatório e talvez de casca de cerejeira. Não sei... - Olhou pra Jamie com ar de dúvida. - Sanguessugas? O que acha? - A mão bem cuidada pairava em cima de um pequeno recipiente tampado e cheio de um líquido escuro.
Estremeci e sacudi a cabeça.
- Não, creio que não; pelo menos, não agora. O que eu realmente precisava... por acaso tem algum tipo de entorpecente? - Ajoelhei-me ao lado dela para examinar o conteúdo da caixa.
- Ah, tenho, sim! — Sua mão dirigiu-se sem hesitação para um pequeno frasco verde. - Flores de láudano. - Leu o rótulo. - Serve?
- Perfeito. - Aceitei o frasco com gratidão.
- Muito bem - eu disse energicamente a Jamie, despejando uma pequena quantidade do líquido de cheiro forte em um copo -, você só precisa ficar sentado o tempo suficiente para engolir isso. Depois, irá dormir e permanecerá assim por bastante tempo.
Na realidade, eu tinha dúvidas sobre a prudência de administrar láudano depois de todo aquele uísque, mas a alternativa — reconstruir aquela mão enquanto ele estivesse consciente - era impensável. Inclinei o frasco para despejar um pouco mais.
A mão esquerda de Jamie no meu braço me impediu.
- Não quero drogas - disse com firmeza. - Talvez apenas mais uma pequena dose de uísque - hesitou, a língua tocando o lábio mordido. - E talvez alguma coisa para morder.
Sir Marcus, ouvindo aquilo, atravessou a sala até a graciosa e brilhante escrivaninha Sheraton no canto e começou a fazer uma busca minuciosa. Retornou em poucos instantes com uma pequena peça de couro envelhecido. Olhando mais de perto, pude ver as dezenas de endentações semicirculares sobrepostas no couro grosso - marcas de dentes, percebi com um choque.
- Aqui está - disse sir Marcus, prestativamente. — Eu mesmo o usei em St. Simone. Ajudou-me enquanto retiravam uma bala de mosquete cravada em minha perna.
Continuei olhando, de boca aberta, enquanto Jamie pegava o couro com um aceno da cabeça em agradecimento, passando o polegar sobre as marcas. Falei devagar, estupefata.
- Você realmente espera que eu coloque nove ossos no lugar com você acordado?
- Sim - respondeu laconicamente, colocando o couro entre os dentes e mordendo-o experimentalmente. Mudou-o de posição de um lado para o outro, procurando o jeito mais confortável.
Dominada pela absoluta teatralidade daquela cena, o precário autocontrole que eu havia conseguido reunir de repente desmoronou.
- Quer parar de bancar o maldito herói! - esbravejei, furiosa. - Todos nós sabemos o que você fez, não tem que provar o quanto pode agüentar! Ou você acha que todos nós vamos nos desesperar se você não estiver no comando, dizendo a todos o que fazer a cada minuto? Quem, com todos os diabos, você pensa que é? John Wayne?!
Fez-se um silêncio constrangedor. Jamie olhou para mim, boquiaberto. Finalmente, falou.
- Claire - disse suavemente —, estamos talvez a uns três quilômetros da prisão de Wentworth. Eu deveria ser enforcado pela manhã. Independente do que tenha acontecido a Randall, os ingleses logo vão notar meu desaparecimento.
Mordi o lábio. O que ele dizia era verdade. A inadvertida libertação de outros presos que eu provocara poderia confundir por algum tempo, mas por fim fariam uma contagem e a busca começaria. E graças ao espalhafatoso método de fuga que eu escolhera, era de se prever que todas as atenções se voltariam para a Mansão Eldridge imediatamente.
— Se tivermos sorte — a voz serena continuou —, a neve retardará a busca até termos partido. Se não... - encolheu os ombros, fitando as chamas. - Claire, não deixarei que me peguem de novo. E ficar drogado, deitado aqui indefeso se eles vierem, e talvez acordar acorrentado em uma cela outra vez... Claire, eu não suportaria.
Havia lágrimas nas minhas pestanas turvando a minha vista. Fitei-o com os olhos arregalados, sem querer piscar e deixar que escorressem pelo meu rosto.
Ele cerrou os olhos por causa do calor do fogo. A incandescência emprestava uma aparência de saudável rubor às suas faces pálidas. Eu podia ver os longos músculos em sua garganta moverem-se enquanto ele engolia em seco.
- Não chore, Sassenach — disse, tão suavemente que mal pude ouvi-lo. Estendeu a mão ilesa e deu uns tapinhas em minha perna, tentando me tranqüilizar. - Acho que estamos bastante seguros, menina. Se eu achasse provável que fôssemos capturados, certamente não iria perder uma das minhas últimas horas deixando que você consertasse a minha mão, que eu não iria mais usar. Vá chamar Murtagh para mim. Depois, me dê uma bebida e acabaremos com isso.
Ocupada à mesa com os preparativos médicos, não pude ouvir o que ele dizia a Murtagh, mas vi as duas cabeças juntas por um instante, depois a mão musculosa de Murtagh tocou delicadamente a orelha do homem mais novo — um dos poucos lugares sem ferimentos disponível.
Com um rápido aceno de cabeça de despedida, Murtagh dirigiu-se para a porta. Como um rato, pensei, movendo-se ao longo dos painéis da parede para não ser notado Fui atrás dele quando saiu para o vestíbulo e agarrei-o pelo xale de seu kilt pouco antes de desaparecer completamente pela porta da frente
- O que ele lhe disse - perguntei impetuosamente. — Onde está indo? O homenzinho escuro e vigoroso hesitou por um instante, mas respondeu sem se alterar:
- Devo ir com o jovem Absalom em direção a Wentworth e ficar de vigia. Se algum soldado inglês estiver vindo para cá, devo chegar aqui antes dele e, se houver tempo, esconder você e ele, depois partir com três cavalos, para atrair os perseguidores para longe da mansão. Há um porão; pode servir de esconderijo, se a busca não for muito rigorosa.
— E se não houver tempo para nos escondermos? — Fitei-o atentamente, desafiando-o a deixar de me responder.
— Então, devo matá-lo e levar você comigo — respondeu prontamente. — Mesmo contra sua vontade — acrescentou, com um sorriso maldoso, virando-se para ir embora
— Espere um minuto — falei asperamente Ele parou. — Tem uma adaga extra?
Suas sobrancelhas imundas ergueram-se subitamente, mas levou a mão à cintura sem hesitar.
- Precisa de uma adaga? Aqui? - Seu olhar abrangeu a opulência e a serenidade do vestíbulo, com seu teto no estilo Adam, artisticamente pintado, e seus painéis ornamentais na forma de dobras de tecido
O bolso onde costumava guardar a adaga estava completamente rasgado. Peguei a adaga que ele me apresentou e enfiei-a entre a blusa e o colete nas costas, como vira as ciganas fazerem.
- Nunca se sabe, não é? - respondi tranqüilamente.
Terminados os preparativos, sondei o mais delicadamente possível, avaliando os danos, decidindo o que devia ser feito. Jamie prendeu a respiração com força quando toquei um local especialmente dolorido, mas manteve os olhos cerrados enquanto eu tateava devagar ao longo de cada junta e osso separados, observando a posição de cada fratura e deslocamento.
- Sinto muito - murmurei.
Peguei sua mão intacta também e tateei cuidadosamente cada dedo das duas mãos, fazendo comparações. Sem raios X ou qualquer experiência para me guiar, teria que contar com a minha própria sensibilidade para encontrar e realinhar os ossos esmagados.
A primeira junta estava boa, mas achei que a segunda falange estava fraturada. Apertei com mais força para determinar o comprimento e a direção da fratura. A mão ferida permaneceu imóvel em meus dedos, mas a mão boa fez um pequeno gesto involuntário de retraimento.
- Desculpe-me — murmurei.
A mão em perfeitas condições retraiu-se das minhas quando Jamie ergueu-se em um dos cotovelos. Cuspindo fora o pedaço de couro, fitou-me com uma expressão entre divertimento e exasperação.
- Sassenach — disse -, se pedir desculpas toda vez que me machucar, vai ser uma noite muito longa, e já durou bastante.
Devo ter parecido chocada, porque ele começou a estender o braço para mim, depois parou, contraindo-se de dor com o movimento. Entretanto, controlou o sofrimento e falou com firmeza:
- Sei que não tinha intenção de me machucar. Mas não tem outra escolha, assim como eu não tenho, e não há necessidade de mais de um de nós sofrer por isso. Faça o que for necessário e eu gritarei se tiver que gritar.
Recolocando o pedaço de couro entre os dentes, exibiu os dentes cerrados ferozmente para mim. Depois, devagar e deliberadamente, focalizou os olhos como se fosse vesgo. Isso o fez parecer tanto com um tigre aturdido que explodi numa gargalhada um tanto histérica antes que pudesse me conter.
Tampei a boca com as mãos, as faces em chama quando vi os olhares atônitos nos rostos de lady Annabelle e dos criados, que, de pé atrás de Jamie, naturalmente não podiam ver seu rosto. Sir Marcus, que captara um vislumbre da careta de Jamie de sua cadeira ao lado da cama, exibiu um largo sorriso em sua barba avantajada.
- Além do mais - continuou Jamie, cuspindo o couro outra vez -, se os ingleses aparecerem depois disto, acho que vou implorar para que me levem de volta.
Peguei o pedaço de couro, coloquei-o entre seus dentes e empurrei sua cabeça para baixo outra vez.
- Palhaço - eu disse. Mas ele me livrara de um peso e pude trabalhar com mais tranqüilidade. Se ainda notava cada estremeço ou careta de dor, pelo menos já não me sentia tão mal.
Comecei a me desligar do ambiente à minha volta, concentrando-me inteiramente na tarefa, direcionando toda a minha atenção às pontas dos meus dedos, examinando cada ponto ferido e decidindo a melhor maneira de realinhar os ossos quebrados. Felizmente, o polegar foi o que menos sofreu; apenas uma fratura simples na primeira junta. Iria se recuperar inteiramente, sem seqüelas. A segunda articulação do dedo anular estava completamente destruída; senti apenas um ruído de fragmentos de ossos quando a girei delicadamente entre o polegar e o indicador, fazendo Jamie gemer. Nada poderia ser feito em relação a isso, a não ser entalar a articulação e torcer pelo melhor.
A fratura múltipla do dedo médio era a pior. O dedo teria que ser puxado para ficar reto, recolocando o osso proeminente de volta pela carne dilacerada. Eu já vira isso ser feito antes — sob anestesia geral e com o auxílio de raios X.
Até então, o procedimento não passara de um problema mais mecânico do que real, tendo que decidir como reconstruir a extremidade esmagada de um membro, desconectada de um corpo. Percebi de repente porque os médicos raramente tratam pessoas de suas próprias famílias. Alguns procedimentos em medicina requerem uma dose de brutalidade para serem realizados com sucesso; o distanciamento é necessário para que se possa infligir dor no processo de efetuar uma cura.
Silenciosamente, sir Marcus trouxera um banco para junto da cama. Instalou seu corpanzil confortavelmente enquanto eu terminava de enfaixar e segurou a mão boa de Jamie entre as suas.
- Pode apertar o quanto quiser, rapaz - disse.
Desprovido de sua pele de urso e com seus cachos grisalhos cuidadosamente penteados e amarrados na nuca, MacRannoch já não parecia o selvagem assustador da floresta, mas um homem de meia-idade, sobriamente vestido, com uma barba bem-aparada e uma postura militar. Nervosa com o que estava prestes a tentar, achei sua sólida presença reconfortante.
Respirei fundo e rezei para conseguir manter o distanciamento.
Foi um trabalho longo, horrível, devastador, embora não destituído de fascínio. Algumas partes, como entalar os dois dedos com fraturas simples, transcorreram sem dificuldades. Outras, não. Jamie realmente gritou -bem alto - quando encanei os ossos do dedo médio, exercendo uma força considerável, necessária para conduzir as pontas lascadas dos ossos através da carne. Hesitei por um instante, desalentada, mas sir Marcus disse energicamente: "Continue, moça!"
Lembrei-me subitamente do que Jamie me dissera, na noite em que o bebê de Jenny nasceu: Eu mesmo posso suportar a dor, mas não agüentaria vê-la sofrer. Está acima das minhas forças. Tinha razão; era necessária muita coragem; esperava que cada um de nós tivesse o suficiente.
O rosto de Jamie estava desviado do meu, mas eu podia ver os músculos do maxilar contraírem-se quando ele fincava os dentes com mais força no couro. Cerrei meus próprios dentes e continuei; a extremidade pontiaguda do osso desapareceu lentamente de volta pela pele e o dedo estendeu-se com uma agonizante relutância, deixando nós dois trêmulos.
Enquanto trabalhava, comecei a perder a consciência de qualquer outra coisa fora da tarefa à minha frente. Jamie gemia de vez em quando e teve que parar duas vezes com ânsias de vômito, expelindo praticamente apenas uísque, já que comera muito pouco na prisão. No entanto, durante a maior parte do tempo, ele manteve um murmúrio constante em gaélico, a testa pressionada com força contra os joelhos de sir Marcus. Eu não sabia, através da mordaça de couro, se ele estava rezando ou xingando.
Todos os cinco dedos por fim ficaram retos como pinos novos, rígidos como pedaços de pau em suas talas enfaixadas. Eu tinha medo de infecção, particularmente no dedo médio dilacerado, mas fora isso estava bastante confiante de que a recuperação seria boa. Por sorte, somente aquela articulação em particular fora drasticamente danificada. Provavelmente perderia os movimentos daquele dedo, mas os outros voltariam ao seu funcionamento normal — com o tempo. Não havia nada que eu pudesse fazer a respeito dos ossos do metacarpo fraturados ou da perfuração com prego, exceto aplicar um anti-séptico e uma cataplasma, depois rezar para que não tivesse tétano. Dei um passo para trás, com todos os membros tremendo com a tensão da noite, meu corpete ensopado de suor do calor do fogo às minhas costas.
Lady Annabelle surgiu ao meu lado imediatamente, conduzindo-me a uma cadeira e pressionando em minhas mãos trêmulas uma xícara de chá, com um pouco de uísque. Sir Marcus, como o melhor assistente de uma sala de operações que um médico poderia ter, desamarrava o braço preso de Jamie e esfregava as marcas onde as tiras haviam machucado os músculos retesados. Sua mão estava vermelha, notei, onde Jamie a agarrara.
Não percebi que havia cochilado, mas despertei com um solavanco, a cabeça aprumando-se no pescoço. Annabelle instava-me a subir, a mão macia sob meu cotovelo.
- Venha, querida. Você está morta de cansaço; seus próprios ferimentos precisam ser tratados e precisa dormir um pouco.
Desvencilhei-me dela o mais delicadamente possível.
- Não, não posso. Tenho que terminar... - Minhas palavras se perderam em meu estado de confusão mental, quando Marcus tirou suavemente de minhas mãos a garrafa de vinagre e um pedaço de pano.
- Eu cuidarei do resto - disse. - Tenho alguma experiência em tratar feridos em campo de batalha, sabe. - Atirando os cobertores para trás, começou a limpar o sangue dos cortes das chicotadas, com movimentos suaves mas eficazes, que realmente impressionavam. Vendo-me observá-lo, riu, a barba vistosamente empinada. - Já limpei muitos cortes de chicotadas em minha época - disse. - E apliquei algumas também. Isso não é nada, moça; estarão curados em poucos dias. — Sabendo que ele tinha razão, dirigi-me à cabeceira da cama. Jamie estava acordado, o rosto levemente contorcido numa careta de dor por causa da ardência provocada pela solução anti-séptica aplicada nos ferimentos em carne viva. No entanto, suas pálpebras estavam pesadas e os olhos azuis escurecidos de dor e cansaço.
— Vá dormir, Sassenach. É o que vou fazer.
Se ele conseguiria ou não, eu não sabia. Era claro, entretanto, que eu não poderia dormir, ao menos não por muito tempo. Estava cambaleando de exaustão e os arranhões nas minhas pernas começavam a queimar e doer. Absalom os havia limpado para mim na cabana, mas precisavam de um curativo.
Balancei a cabeça, entorpecida, e atendi à pressão delicada, mas insistente, de lady Annabelle em meu cotovelo.
No meio das escadarias, lembrei-me de ter esquecido de dizer a sir Marcus como enfaixar os cortes. Os ferimentos profundos nos ombros teriam que ser firmados com tiras e acolchoados, para que Jamie pudesse usar uma camisa quando fugíssemos. No entanto, as marcas mais leves deveriam ser deixadas ao ar livre, para cicatrizarem. Dei uma rápida olhada no quarto de hóspedes para onde Annabelle me conduzira, depois pedi licença e voltei aos tropeções pelas escadas, dirigindo-me à sala de visitas.
Parei na penumbra da soleira da porta, Annabelle atrás de mim. Os olhos de Jamie estavam fechados; aparentemente, ele caíra numa espécie de sonolência causada pelo uísque e pela fadiga. Os cobertores foram atirados para trás, dispensáveis pelo calor do fogo. Sir Marcus casualmente descansou a mão no quadril nu de Jamie ao estender-se por cima da cama para pegar um pedaço de pano. O efeito foi elétrico. As costas de Jamie arquearam-se subitamente, os músculos de suas nádegas firmemente retesados, e ele deixou escapar um grunhido involuntário de protesto, arre-messando-se de costas, apesar das costelas quebradas, para fitar sir Marcus com olhos arregalados e atordoados. Ele mesmo assustado, Marcus parou imóvel por um instante, depois se inclinou para a frente, segurou Jamie pelo braço, cuidadosamente colocando-o de rosto para baixo outra vez. Pensativamente, passou o dedo com cuidado pela pele de Jamie. Esfregou os dedos juntos, deixando uma película oleosa visível à luz do fogo.
- Ah - exclamou. O velho soldado puxou o cobertor até a cintura de Jamie e vi os ombros tensos relaxarem-se ligeiramente sob os curativos.
Sir Marcus sentou-se de forma social e amistosa junto à cabeça de Jamie e serviu mais duas doses de uísque.
- Ao menos, ele teve a consideração de untá-lo um pouco antes -observou, entregando uma caneca a Jamie, que se ergueu com dificuldade nos cotovelos para aceitá-la.
- Sim, bem. Não acho que tenha sido pela minha conveniência - disse secamente.
Sir Marcus tomou um gole de sua bebida e estalou os lábios, meditativo. Não se ouviu nenhum som por alguns instantes, a não ser os estalidos do fogo, mas nem Annabelle nem eu fizemos qualquer movimento para entrar na sala.
- Se isto lhe serve de consolo - sir Marcus disse de repente, os olhos fixos na garrafa de uísque -, ele está morto.
- Tem certeza? — o tom de voz de Jamie era indecifrável.
- Não vejo como alguém possa sobreviver depois de ser pisoteado por trinta bestas de meia tonelada cada uma. Ele surgiu no corredor para ver o que estava causando o barulho, depois tentou voltar quando viu o que era. Um chifre pegou-o pela manga e puxou-o para fora. Eu vi quando ele caiu junto à parede. Eu e sir Fletcher estávamos na escada, fora do caminho. Naturalmente, Fletcher ficou desatinado e enviou alguns homens para resgatá-lo, mas não puderam nem se aproximar, com todos os chifres furando-o e os animais jogando-o de um lado para o outro. Até as tochas caíram da parede com o tumulto. Nossa, rapaz, você devia ter visto! - Sir Marcus assoviou diante da lembrança, agarrando a garrafa pelo gargalo. -Sua mulher é uma jovem de fibra, não há dúvida! - Resfolegando, serviu outra dose e tomou-a de uma só vez, engasgando-se um pouco quando o riso interferiu com o ato de engolir.
- De qualquer forma — continuou, batendo no próprio peito —, quando conseguimos afugentar o gado dali, não restava muita coisa mais do que um boneco de trapos envolto em sangue. Os homens de Fletcher o levaram dali, mas se ainda estivesse vivo, não durou muito. Mais um pouco, rapaz?
- Sim, obrigado.
Fez-se um breve silêncio, quebrado por Jamie.
- Não, não posso dizer que me sirva de grande consolo, mas obrigado por me contar.
Sir Marcus olhou-o com sagacidade.
- Mmmmhum. Você não vai conseguir esquecer isso - disse, subitamente. - Nem se dê ao trabalho de tentar. Se puder, deixe curar como o resto de seus ferimentos. Não fique remexendo neles e cicatrizarão perfeitamente. — O velho guerreiro exibiu um antebraço tortuoso, do qual a manga da camisa fora puxada para cima quando ministrava seus cuidados médicos, para mostrar a cicatriz de traços irregulares que ia do cotovelo ao pulso. - Cicatrizes não devem incomodá-lo.
- Sim, é verdade. Algumas cicatrizes, talvez. - Aparentemente lembrando-se de alguma coisa, Jamie esforçou-se para virar-se de lado. Sir Marcus largou a caneca com uma exclamação.
- Hei, rapaz, cuidado! Virando-se de lado, você pode perfurar o pulmão com a costela quebrada. - Ajudou Jamie a equilibrar-se no cotovelo direito, calçando seu corpo com um cobertor dobrado para mantê-lo na posição.
- Preciso de uma faca pequena -Jamie disse, ofegando. - Bem afiada, se estiver à mão.
Sem fazer perguntas, sir Marcus caminhou pesadamente até o lustroso bufê francês de imbuia e vasculhou as gavetas com um prodigioso barulho, emergindo finalmente com uma faca de fruta, de cabo de madrepérola. Atirou-a na mão incólume de Jamie e sentou-se novamente com um gru-nhido, retomando sua bebida.
- Não acha que já tem cicatrizes suficientes? - perguntou. - Vai acrescentar mais algumas?
- Apenas uma. - Jamie equilibrou-se precariamente em um dos cotovelos, o queixo pressionado no peito, enquanto mirava a faca afiada desajeitadamente embaixo do peito esquerdo. A mão de sir Marcus lançou-se para a frente, um pouco instável, e agarrou o pulso de Jamie.
- É melhor deixar-me ajudá-lo, rapaz. Vai cair em cima dela agora mesmo. — Após uma breve pausa, Jamie relutantemente entregou a faca e deitou-se de costas no cobertor acolchoado. Tocou o peito uns cinco centímetros abaixo do mamilo.
- Aqui. — Sir Marcus pegou um lampião de cima do bufê, colocando-o sobre o banco onde estivera sentado. Aquela distância, eu não conseguia ver o que ele examinava; parecia uma pequena queimadura vermelha, de forma grosseiramente circular. Tomou outro gole decidido de sua caneca de uísque, recolocou-a em seguida ao lado do lampião e pressionou a ponta da faca no peito de Jamie. Devo ter feito um movimento involuntário, porque lady Annabelle agarrou a manga do meu vestido murmurando para eu ter cautela. A ponta da faca penetrou na carne e foi girada rapidamente, com o movimento enérgico que se usa para extirpar um ponto podre de um pêssego maduro. Jamie grunhiu, uma vez, e um fino fio vermelho deslizou pela curva de sua barriga e manchou o cobertor. Ele girou o corpo sobre o estômago, estancando o ferimento contra o colchão.
Sir Marcus colocou de lado a faca de fruta.
- Assim que tiver condições, rapaz, leve sua mulher para a cama e deixe que ela o reconforte. As mulheres gostam de fazer isso — disse, rindo em direção à entrada da sala, mergulhada em sombras. — Só Deus sabe por quê.
Lady Annabelle disse afavelmente:
- Venha agora, querida. É melhor deixá-lo sozinho um pouco.
Decidi que sir Marcus poderia cuidar do curativo sozinho e a segui com dificuldade pelas escadas estreitas até o meu quarto.
Acordei com um sobressalto por causa de um pesadelo de escadarias intermináveis em caracol, o horror espreitando ao final. O cansaço fazia minhas costas e minhas pernas doerem, mas sentei-me na cama, em minha camisola emprestada, e tateei em busca da vela e da caixa de sílex. Sentia-me inquieta, tão distante de Jamie. E se ele precisasse de mim? Pior ainda, e se os ingleses viessem, enquanto ele estava sozinho lá embaixo, desarmado? Pressionei o rosto contra o postigo frio, tranqüilizada pelo chiado constante da neve contra as vidraças. Enquanto a tempestade continuasse, provavelmente estaríamos a salvo. Enrolei-me numa colcha e, pegando a vela e a adaga, dirigi-me às escadas.
A casa estava silenciosa, exceto pelo crepitar do fogo. Jamie dormia, ou ao menos tinha os olhos cerrados, o rosto virado para o fogo. Sentei-me no tapete junto à lareira, silenciosamente, para não acordá-lo. Esta era a primeira vez que ficávamos sozinhos desde aqueles poucos minutos desesperadores na masmorra da prisão de Wentworth. Parecia que fora há muitos anos. Examinei Jamie cuidadosamente, como se inspecionasse um estranho.
Não parecia muito mal fisicamente, no cômputo geral, mas ainda assim eu estava preocupada. Tomara uísque suficiente durante a cirurgia para derrubar um cavalo de tração e uma boa parte obviamente ainda estava em seu sistema, apesar do vômito.
Jamie não era meu primeiro herói. Os homens passavam depressa demais pelo hospital de campanha, de um modo geral, para que as enfermeiras pudessem conhecê-los bem, mas de vez em quando se via um homem que falava pouco demais ou fazia pilhérias demais, que se mantinha mais tenso e reservado do que a dor e a solidão poderiam explicar.
E eu sabia, grosso modo, o que podia ser feito por eles. Se houvesse tempo, e se fossem do tipo que conversavam para manter a escuridão à distância, sentava-me com eles e ouvia. Caso ficassem calados, eu os tocava sempre que passava por eles e ficava à espreita do momento oportuno, quando poderia fazê-los se abrir, e os abraçava enquanto exorcizavam seus demônios. Se houvesse tempo. Se não houvesse, aplicava-lhes morfina e esperava que conseguissem encontrar alguém que os ouvisse, enquanto seguia em frente, para atender aqueles cujos ferimentos eram visíveis.
Jamie falaria com alguém, mais cedo ou mais tarde. Havia tempo. Mas eu esperava que não fosse eu.
Ele estava descoberto até a cintura e inclinei-me para a frente para examinar suas costas. Era uma visão impressionante. Apenas alguns centímetros separavam os cortes dos açoites, infligidos com uma regularidade que chocava a mente. Ele devia ter permanecido imóvel como uma sentinela enquanto era açoitado. Olhei seus pulsos - sem marcas. Ele, portanto, mantivera sua palavra de não reagir. E não se movera durante seu sofrimento, pagando o resgate combinado pela minha vida.
Limpei os olhos na manga da camisola. Não iria ficar agradecido, eu imaginava, por debulhar-me em lágrimas sobre seu corpo prostrado. Mudei de posição com um leve farfalhar de saias. Ele abriu os olhos com o ruído, mas não pareceu particularmente assustado. Esboçou um sorriso, débil e cansado, mas real. Abri a boca e repentinamente percebi que não sabia o que dizer a ele. Agradecer era impossível. "Como se sente?" seria ridículo; obviamente, sentia-se péssimo. Enquanto pensava, ele falou primeiro.
- Claire? Você está bem, meu amor?
- Se eu estou bem? Meu Deus, Jamie! — As lágrimas assomaram às minhas pestanas e pisquei com força, fungando. Ele ergueu a mão boa devagar, como se estivesse pesada de correntes, e acariciou meus cabelos. Puxou-me para si, mas eu me afastei, consciente pela primeira vez da minha aparência, o rosto arranhado e coberto de seiva de árvore, os cabelos duros, emplastados em vários pontos de substâncias impossíveis de mencionar.
- Venha cá - ele disse. - Quero abraçá-la por um instante.
- Mas estou coberta de sangue e vômito — protestei, fazendo um débil esforço de arrumar os cabelos.
Ele emitiu um som sibilante, a expiração fraca que era tudo que suas costelas quebradas permitiam em termos de risada.
- Nossa Senhora, Sassenach, é meu sangue e meu vômito. Venha aqui. Seu braço era reconfortante em torno dos meus ombros. Descansei a cabeça no travesseiro ao lado dele e permanecemos em silêncio junto ao fogo, extraindo força e paz um do outro. Seus dedos tocaram delicadamente o pequeno ferimento sob meu maxilar.
- Achei que nunca mais a veria outra vez, Sassenach. — Sua voz era baixa e um pouco rouca do uísque e dos gritos. — Fico feliz por você estar aqui.
Sentei-me.
- Não me ver outra vez! Por quê? Acha que eu não conseguiria tirá-lo de lá?
Ele sorriu, um sorriso enviesado.
- Bem, não, não esperava que conseguisse. Mas achei que se eu lhe dissesse isso, você poderia ficar teimosa e se recusar a ir embora.
- Eu ficar teimosa! - exclamei, indignada. - Veja só quem está falando! Houve uma pausa, que se tornou um pouco embaraçosa. Havia coisas que eu deveria perguntar, necessárias do ponto de vista médico, mas sensíveis do aspecto pessoal. Finalmente, contentei-me em perguntar apenas:
- Como se sente?
Seus olhos estavam fechados, com olheiras fundas e escuras à luz da vela, mas os contornos das costas largas estavam tensos sob as ataduras. A boca larga, machucada, contorceu-se, algo entre um sorriso e uma careta.
- Não sei, Sassenach. Nunca me senti assim. Tenho vontade de fazer inúmeras coisas, tudo de uma vez, mas minha mente luta com o meu corpo e meu corpo virou um traidor. Quero sair daqui imediatamente e correr o mais rápido e mais longe que puder. Quero bater em alguém. Meu Deus, como eu quero bater em alguém! Quero incendiar a prisão de Wentworth e transformá-la em cinzas. Quero dormir.
- Pedras não pegam fogo - eu disse, de forma prática. - Em vez disso, talvez fosse melhor dormir.
A mão ilesa procurou a minha e encontrou-a, a boca relaxou um pouco, embora seus olhos permanecessem fechados.
- Quero abraçá-la com força e beijá-la e nunca deixá-la ir embora. Quero levá-la para a cama e usá-la como uma prostituta, até esquecer que existo. E quero colocar a minha cabeça no seu colo e chorar como uma criança.
O canto de sua boca virou-se para cima e um olho azul abriu-se de esguelha.
- Infelizmente - disse -, não posso fazer nada disso, exceto a última, sem desmaiar ou vomitar de novo.
- Bem, então, suponho que terá que se contentar com isso e colocar o resto sob o rótulo de providências futuras - eu disse, rindo um pouco.
Foram necessárias algumas acomodações e ele quase se sentiu mal outra vez, mas finalmente eu estava sentada no catre, as costas apoiadas contra a parede e sua cabeça descansando na minha coxa.
- O que foi que sir Marcus extraiu de seu peito? — perguntei. - Uma marca de ferro em brasa? - perguntei delicadamente, já que ele não me respondera. A cabeça brilhante moveu-se ligeiramente em confirmação.
- Um selo, com as iniciais dele. -Jamie riu brevemente. - Já basta ter que carregar suas marcas pelo resto da minha vida, sem ter que carregar sua assinatura também, como um maldito quadro.
Sua cabeça relaxou pesadamente na minha coxa e sua respiração acalmou-se finalmente em exalações sonolentas. As ataduras brancas em sua mão destacavam-se fantasmagoricamente contra o cobertor escuro. Tracei delicadamente uma queimadura em seu ombro, brilhando debil-mente com azeite de oliva.
- Jamie?
- Mmm?
- Você está muito ferido? - Acordado, ele olhou de sua mão enfaixada para o meu rosto. Seus olhos se fecharam e ele começou a estremecer.
Assustada, achei ter despertado alguma lembrança insuportável, até perceber que ele estava rindo, o suficiente para que lágrimas escorressem do canto de seus olhos.
- Sassenach — disse finalmente, arquejando -, devem restar talvez uns quinze centímetros do meu corpo que não estão esfolados, queimados ou cortados. Se eu estou ferido? — E sacudiu-se outra vez, rindo, fazendo a cama chiar e guinchar.
Um pouco irritada, retruquei:
- O que eu quis dizer... — Mas ele me interrompeu colocando a mão sobre a minha e levando-a aos lábios.
- Sei o que quis dizer, Sassenach. disse, virando a cabeça para erguer os olhos para mim. - Não se preocupe, os quinze centímetros que sobraram estão todos entre minhas pernas.
Apreciei o esforço para fazer uma piada, por mais fraca que fosse. Bati de leve em sua boca.
- Você está bêbado, James Fraser — eu disse. Parei por um instante. — Quinze, hein?
- Bem, sim. Talvez uns dezoito, então. Ah, meu Deus, Sassenach, não me faça rir outra vez, minhas costelas não vão agüentar.
Limpei seus olhos com uma ponta da minha saia e dei-lhe um pouco de água, mantendo sua cabeça alta com o joelho.
- De qualquer forma, não foi isso que eu quis dizer. Sério, ele pegou minha mão outra vez e apertou-a.
- Eu sei - disse. - Não precisa ser delicada a respeito disso. - Respirou fundo com muito cuidado e contraiu-se de dor. - Eu tinha razão, realmente doeu menos do que ser açoitado. - Fechou os olhos. - Mas foi muito menos divertido. — Um rápido lampejo de humor amargo levantou o canto de sua boca. - Pelo menos, não ficarei constipado por algum tempo. - Esquivei-me repentinamente e ele rangeu os dentes, respirando em arfadas curtas e fracas.
- Desculpe, Sassenach. Eu... não pensei que fosse me importar tanto. O que você quer dizer... isso... está tudo bem. Não estou ferido.
Esforcei-me para manter a voz firme e direta.
- Não precisa me contar, se não quiser. Mas se isso o aliviar... - Minha voz perdeu-se num silêncio embaraçoso.
- Eu não quero. - Sua voz soou repentinamente amarga e enfática. -Nunca mais quero pensar nisso outra vez, mas para não cortar minha própria garganta, acho que não tenho escolha. Não, Sassenach, não quero lhe contar, tanto quanto você não quer ouvir... mas acho que vou ter que arrancar tudo isso para fora antes que me sufoque. — As palavras jorravam agora numa explosão de amargura.
- Ele queria me fazer rastejar e suplicar e, por Deus, ele conseguiu. Eu lhe disse uma vez, Sassenach, você pode dobrar qualquer pessoa se estiver disposto a feri-la o suficiente. Bem, ele estava disposto. Ele me fez rastejar e me fez suplicar; me obrigou a fazer coisas piores do que isso e, antes de terminar, me fez desejar muito estar morto.
Ficou em silêncio por um longo instante, fitando as chamas na lareira, depois seu peito se ergueu num suspiro profundo e seu rosto contraiu-se de dor.
- Queria que você pudesse me acalmar, Sassenach, é o que desejo fervorosamente, pois tenho pouca paz em mim agora. Mas não é como um espinho venenoso, que se você souber como puxar, pode arrancar totalmente. - Descansou a mão boa em meu joelho. Flexionou os dedos e estendeu-os, ruivos à luz do fogo. — Não é nem mesmo como uma fratura em alguma parte. Se pudesse consertá-la aos poucos, como fez com minha mão, eu suportaria a dor com alegria. - Fechou a mão num punho cerrado e pousou-o em minha perna, franzindo o cenho.
- É... difícil de explicar. É... é como... acho que é como se todo mundo tivesse um pequeno lugar no íntimo, talvez um lugar particular que guardasse para si mesmo. É como uma pequena fortaleza, onde vive a sua parte mais pessoal... talvez seja a sua alma, talvez apenas aquela parte que faz de você quem você é e ninguém mais. — Sua língua sondou o lábio inchado inconscientemente enquanto pensava.
- Você não mostra a ninguém essa parte de você, normalmente, a menos às vezes para alguém que você ame muito. — A mão relaxou, envolvendo meu joelho. Os olhos de Jamie fecharam-se outra vez, as pálpebras cerradas contra a luz.
- Agora, é como... como se minha fortaleza tivesse voado pelos ares com pólvora. Não resta mais nada, a não ser cinzas e uma viga fumegante do telhado, e o ser pequeno e vulnerável que viveu ali um dia está desprotegido a céu aberto, choramingando de medo, tentando esconder-se sob uma lâmina de capim ou um pedacinho de folha, mas... mas... sem muito sucesso. - A voz embargada, virou a cabeça de modo que seu rosto ficasse escondido em minha saia. Impotente, não pude fazer mais nada além de afagar seus cabelos.
Ergueu a cabeça de repente, o rosto tenso como se fosse espedaçar-se na junção dos ossos.
—Já estive perto da morte algumas vezes, Claire, mas na verdade nunca quis morrer. Desta vez, sim. Eu... — Sua voz falhou e ele parou de falar, agarrando meu joelho com força. Quando voltou a falar, tinha a voz aguda e estranhamente ofegante, como se tivesse corrido uma longa distância.
- Claire, você poderia... eu só queria... Claire, abrace-me com força. Se eu começar a tremer de novo agora, não vou conseguir parar. Claire, abrace-me! - Ele estava, de fato, começando a tremer violentamente, o tremor fazendo-o gemer quando alcançava as costelas quebradas. Eu tinha medo de machucá-lo, porém mais medo ainda de deixar que continuasse a tremer.
Inclinei-me sobre ele, envolvi seus ombros com meus braços e segurei-o o mais ternamente que pude, balançando para a frente e para trás, como se o ritmo reconfortante pudesse estancar os violentos espasmos. Coloquei uma das mãos na sua nuca e cravei meus dedos bem fundo nos músculos do seu pescoço, massageando o sulco profundo na base do crânio, desejando que os movimentos o relaxassem. Finalmente, os tremores cessaram e ele deixou a cabeça pender para a frente, sobre a minha coxa, exausto.
- Perdão - disse um minuto depois, em sua voz normal. - Não pretendia me descontrolar. A verdade é que estou realmente sofrendo muito e além do mais terrivelmente bêbado. Não estou com muito controle de mim mesmo. — Para um escocês admitir, ainda que em particular, que está bêbado, era uma indicação, pensei, do quanto ele realmente estava sofrendo.
- Você precisa dormir - eu disse suavemente, ainda esfregando sua nuca. - Precisa muito dormir. - Usei os dedos o melhor que pude, pressionando e esfregando, como o Velho Alec me ensinara, e consegui fazê-lo relaxar até a sonolência outra vez.
- Estou com frio - murmurou. O fogo estava forte e havia vários cobertores na cama, mas seus dedos estavam gelados.
- Você está em choque — eu disse, de maneira prática. — Você perdeu muito sangue. - Olhei à minha volta, mas os MacRannoch, assim como os criados, haviam todos desaparecido para as suas próprias camas. Murtagh, eu presumia, ainda devia estar lá fora na neve, mantendo a vigilância na direção de Wentworth no caso de uma busca. Descartando mentalmente a opinião de qualquer pessoa sobre decência e decoro, levantei-me, tirei a camisola e deslizei para baixo dos cobertores.
O mais delicadamente possível, ajeitei-me junto ao seu corpo, dando-lhe meu calor. Ele enfiou a cabeça no meu ombro como um menino. Acariciei seus cabelos, acalmando-o, esfregando os tendões e músculos rígidos em sua nuca, evitando os locais feridos.
- Deite sua cabeça aqui, rapaz - eu disse, lembrando-me de Jenny e seu filho.
Jamie deu um grunhido, achando graça.
- Minha mãe costumava fazer isso comigo — murmurou -, quando eu era criança.
- Sassenach - ele disse, o rosto enterrado em meu ombro, um minuto depois.
-Hum?
- Quem diabos é John Wayne?
- É você - respondi. - Durma agora.
Pela manhã, Jamie estava com uma cor mais saudável, embora as contusões tivessem escurecido durante a noite e agora cobrissem grande parte do seu rosto. Suspirou fundo, depois se enrijeceu com um gemido e soltou a respiração com muito mais cuidado.
- Como se sente? - Coloquei a mão em sua cabeça. Fria e úmida. Nenhuma febre, graças a Deus.
Ele fez uma careta, os olhos ainda fechados.
- Sassenach, meu corpo inteiro dói. - Estendeu a mão boa, tateando. -Ajude-me a levantar, estou todo rígido.
A neve parou no meio da manhã. O céu continuava cinzento como lã, ameaçando novas tempestades de neve, mas a ameaça de busca dos soldados de Wentworth era ainda maior. Assim, partimos da Mansão Eldridge pouco antes de meio-dia, bem agasalhados em mantos pesados. Murtagh e Jamie estavam cobertos de armas por baixo de seus mantos. Eu não levava nada além de minha adaga e, ainda assim, muito bem escondida. Contra a minha própria vontade, eu deveria me fingir de uma refém inglesa de um seqüestro, se o pior viesse a acontecer.
- Mas eles me viram na prisão - eu argumentara. - Sir Fletcher já sabe quem sou eu.
- Sim. - Murtagh carregava as pistolas cuidadosamente, uma fileira de balas, buchas, pólvora, varetas e sacolas cuidadosamente espalhadas sobre a lustrosa mesa de lady Annabelle, mas ergueu os olhos para me focalizar com um olhar negro. - Essa é a idéia, moça. Temos que mantê-la longe de Wentworth, a qualquer custo. Não vai adiantar nada ficar presa lá junto conosco.
Calcou uma vareta curta pela boca da arma, socando a bucha no lugar com golpes fortes e econômicos.
- O próprio Fletcher não vai sair à caça de fugitivos, não num dia como este. Qualquer soldado inglês que encontrarmos provavelmente não a conhecerá. Se formos descobertos, você deve dizer que nós a obrigamos a nos acompanhar contra a vontade e convencer os ingleses de que você não tem nada a ver com a dupla de patifes escoceses como eu e esse seu vagabundo. — E apontou para Jamie, que equilibrava-se desajeitadamente em um banco com uma tigela de pão e leite quente.
Sir Marcus e eu havíamos acolchoado os quadris e as coxas de Jamie o máximo possível com ataduras por baixo de uma ceroula e de calças de cor escura para esconder qualquer mancha de sangue incriminadora que pudesse vazar. Lady Annabelle rasgara as costas de uma das camisas do marido para acomodar a largura dos ombros de Jamie e a espessura das bandagens que os envolviam. Mesmo assim, a camisa não fechava na frente e as pontas das tiras que enfaixavam seu tronco podiam ser entrevistas. Ele se recusara a pentear os cabelos, alegando que até seu couro cabeludo estava dolorido e era uma figura selvagem e desgrenhada de se ver, as mechas duras e vermelhas espetadas em volta de um rosto roxo e intumescido, com um dos olhos fechados pelo feio inchaço.
- Se forem presos - sir Marcus acrescentou -, diga-lhes que é minha hóspede, seqüestrada quando cavalgava pelas proximidades da minha propriedade. Faça com que a tragam a Eldridge para eu identificá-la. Isso deverá convencê-los. Diremos a eles que é uma amiga de Annabelle, de Londres.
- E agora saiam daqui em segurança antes que Fletcher apareça para uma visita de cortesia - Annabelle acrescentou, com senso prático.
Sir Marcus nos oferecera a escolta de Hector e Absalom, mas Murtagh salientou que isso certamente iria incriminar Eldridge, caso encontrássemos soldados ingleses. Assim, havia apenas nós três, agasalhados contra o frio, na estrada em direção a Dingwall. Eu carregava uma bolsa recheada e um bilhete do Senhor de Eldridge, um dos quais, ou ambos, garantiriam nossa travessia do canal.
Era difícil atravessar a neve. Com menos de trinta centímetros de profundidade, a camada branca e traiçoeira escondia pedras, buracos e outros obstáculos, tornando o piso escorregadio e perigoso para os cavalos. Torrões de neve e lama voavam a cada passo, respingando as barrigas e os jarretes, e nuvens da respiração dos cavalos desapareciam como fumaça no ar gélido.
Murtagh ia à frente, seguindo a leve depressão que marcava a estrada. Eu cavalgava ao lado de Jamie, para ajudá-lo caso perdesse a consciência, embora estivesse, por sua própria insistência, amarrado ao cavalo. Somente sua mão esquerda estava livre, pousada na pistola amarrada à sela e oculta sob seu manto. Passamos por algumas cabanas dispersas, a fumaça erguendo-se dos tetos de sapé, mas os habitantes e seus animais pareciam todos recolhidos, abrigados contra o frio. Aqui e ali, um homem solitário passava da cabana para o barracão, carregando baldes ou feno, mas a estrada era quase sempre deserta.
A três quilômetros de Eldridge, passamos sob a sombra do Castelo de Wentworth, um vulto cinzento incrustado na encosta do morro. A estrada era acidentada naquele trecho; o tráfego dentro e fora do castelo era incessante, mesmo nas piores condições de tempo.
Nossa passagem fora programada para coincidir com a refeição de meio-dia, na esperança de que as sentinelas estivessem imersas em pastelões e cerveja. Avançando penosamente, passamos pela estrada curta que levava aos portões, apenas um grupo de viajantes com a má sorte de estar longe de casa num dia como aquele.
Uma vez longe da prisão, paramos por um instante para descansar os cavalos, abrigados em um pequeno bosque de pinheiros. Murtagh inclinou-se para olhar por baixo do chapéu desengonçado que disfarçava os cabelos reveladores de Jamie.
- Tudo bem, rapaz? Você está calado.
Jamie ergueu a cabeça. Seu rosto estava pálido e o suor escorria pelo seu pescoço apesar do vento glacial, mas ele conseguiu esboçar um meio-sorriso desolado.
- Vou conseguir.
- Como se sente? — perguntei, ansiosa. Ele estava desmoronado na sela, sem resquício de sua postura graciosa e ereta de costume. Fui presenteada com a outra metade do sorriso.
- Venho tentando decidir o que dói mais: minhas costelas, minha mão ou meu traseiro. Enquanto tento escolher entre eles, afasto a mente das minhas costas. - Tomou um grande gole do frasco que sir Marcus oportunamente lhe oferecera, estremeceu e passou-o para mim. Era bem melhor do que a bebida nada refinada que eu bebera a caminho de Leoch, mas igualmente forte. Continuamos a viagem, um calor alegre queimando em meu estômago.
Os cavalos esforçavam-se para subir uma encosta modesta, a neve esguichando de seus cascos, quando vi a cabeça de Murtagh erguer-se com uma guinada. Seguindo a direção de seu olhar, vi soldados ingleses, quatro ao todo, montados, no topo da encosta.
Não havia saída. Fôramos vistos e um grito de desafio ecoou pelo monte abaixo. Não havia para onde fugir. Teríamos que tentar enganá-los. Sem um olhar para trás, Murtagh esporeou o cavalo e partiu ao encontro do grupo.
O cabo que fazia parte do grupo era um soldado de carreira, de meia-idade, empertigado em seu sobretudo de inverno. Inclinou-se educadamente para mim, depois voltou sua atenção para Jamie.
- Com sua licença, senhor, madame. Temos ordens para interceptar qualquer grupo que esteja viajando por esta estrada, para indagar sobre detalhes de prisioneiros que fugiram recentemente da prisão de Went-worth.
Prisioneiros. Então, eu conseguira libertar outros além de Jamie ontem. Fiquei satisfeita, por várias razões. Para começar, teriam que diluir um pouco a busca. Quatro contra três era melhor do que poderíamos esperar.
Jamie não respondeu, mas arriou o corpo ainda mais para a frente em sua sela e deixou a cabeça pender. Eu podia ver o brilho de seus olhos sob a aba do chapéu; ele não estava inconsciente. Ele devia conhecer aqueles homens; sua voz seria reconhecida. Murtagh conduziu o cavalo mais para a frente, colocando-se entre mim e os soldados.
— Sim, o patrão está muito doente, senhor, como pode ver — disse, servilmente puxando as rédeas. - Talvez pudesse me indicar a estrada para Ballagh? Não estou convencido de que estamos no caminho certo.
Perguntava-me o que ele estaria pretendendo fazer, até que nossos olhos se encontraram. Seu olhar adejou para cima e para baixo, depois de volta ao soldado, tão rápido que oSoldado presumiria que ele estava ouvindo com toda atenção o tempo inteiro. Jamie estaria correndo o risco de cair da sela? Fingindo ajeitar meu gorro, lancei um olhar de esguelha, dis-traidamente, por cima do ombro, na direção que ele indicara e quase fiquei paralisada com o choque.
Jamie estava sentado ereto, a cabeça abaixada para encobrir o rosto. Mas o sangue pingava devagar da ponta do estribo sob seus pés, salpicando a neve com pontos vermelhos desprendendo um leve vapor.
Murtagh, fingindo grande ignorância, conseguira atrair os soldados para o alto do morro, para que pudessem mostrar que a estrada para Dingwall era a única estrada à vista e que descia pelo outro lado da colina. Ela atravessava Ballagh e seguia direto para a costa, ainda a uns cinco quilômetros de distância.
Desmontei apressadamente, puxando febrilmente a tira do cinturão do meu cavalo. Patinando pelos montes de neve, consegui chutar bastante neve para baixo do cavalo de Jamie, o suficiente para encobrir os pingos reveladores. Um olhar rápido mostrou que os soldados aparentemente ainda estavam ocupados com Murtagh, embora um deles tenha olhado para baixo da encosta, diretamente para nós, como se quisesse se certificar de que não estávamos fugindo. Acenei alegremente e, em seguida, assim que o soldado virou a cabeça, inclinei-me e arranquei uma das três anáguas que estava vestindo. Afastei o manto de Jamie e enfiei a anágua embolada sob sua coxa, ignorando sua exclamação de dor. Com um movimento rápido, o manto voltou para o lugar, bem a tempo de eu retornar depressa para o meu próprio cavalo e ser descoberta remexendo no cinturão da sela, quando Murtagh e os ingleses chegaram.
- Parece que se soltou com o movimento - expliquei com ingenuidade, pestanejando para o soldado mais próximo.
— Ah, é? E por que você não está ajudando a senhora? — perguntou a Jamie.
- Meu marido não está bem - eu disse. — Eu mesma posso resolver isso, obrigada.
O cabo pareceu interessado.
— Doente, hein? O que há com você? — Impeliu o cavalo para a frente, olhando atentamente o rosto pálido de Jamie sob o chapéu inclinado. -Não parece nada bem, é verdade. Tire o chapéu, rapaz. O que há com seu rosto?
Jamie atirou nele através das dobras do manto. O inglês não estava a menos de dois metros de distância e caiu da sela antes que a mancha em seu peito ficasse maior do que minha mão.
Murtagh tinha uma pistola em cada mão antes que o cabo atingisse o solo. Uma bala errou o alvo quando seu cavalo esgueirou-se do barulho e do alvoroço repentino. A segunda acertou em cheio, rasgando a parte superior do braço de um soldado e deixando um tufo de tecido retalhado ondulando de uma manga que rapidamente tingia-se de vermelho. No entanto, o homem manteve-se na sela e tentava sacar seu sabre com uma única mão, enquanto Murtagh mergulhava embaixo do seu manto para pegar novas armas.
Um dos dois soldados restantes virou seu cavalo, escorregando na neve, e partiu em disparada, na direção da prisão, provavelmente para buscar ajuda.
- Claire! - O grito veio de cima. Ergui os olhos, espantada, e vi Jamie acenando na direção da figura em fuga. — Faça-o parar! — Ele teve tempo de me atirar uma segunda pistola, depois se virou, arrancando a espada para se defender do ataque do quarto soldado.
Meu cavalo era treinado para batalhas; suas orelhas estavam abaixadas junto à cabeça e ele batia e arrastava os cascos com o barulho, mas não fugira com os tiros e ficou firme onde estava enquanto eu tateava para agarrar o arção da sela. Feliz em abandonar o campo de batalha, lançou-se para a frente assim que montei e partimos em disparada atrás da figura que batia em retirada.
A neve atrapalhava nossa marcha tanto quanto a dele, mas meu cavalo era melhor e tínhamos a vantagem de um caminho menos escorregadio, sulcado na neve fofa pelo soldado em fuga. Aos poucos, adquiríamos vantagem sobre eles, mas eu podia ver que isso não seria suficiente. No entanto, ele tinha uma subida à sua frente; se eu cortasse pela direita, talvez pudesse ganhar tempo no terreno plano e encontrá-lo na descida do outro lado. Dei um puxão na rédea e me inclinei para a frente, agarrando-me com força, para me manter na sela, enquanto o cavalo resvalava numa atrapalhada mudança de direção, equilibrava-se e precipitava-se para a frente.
Não o alcancei totalmente, mas conseguira reduzir a distância entre nós para não mais do que dez metros. Se prosseguíssemos indefinidamente, provavelmente eu o alcançaria, mas não podia me dar a esse luxo; a muralha da prisão assomava a menos de dois quilômetros à frente. Se nos aproximássemos muito, seríamos vistos das torres.
Freei e desci do cavalo. Treinado para batalhas ou não, eu não sabia o que o cavalo faria se eu disparasse a pistola de cima da sela. Ainda que ele ficasse parado como uma estátua, não acreditava que minha mira fosse tão boa. Ajoelhei-me na neve, firmando o cotovelo no joelho, a arma apoiada no antebraço como Jamie me mostrara. "Apoie aqui, mire lá, dispare aqui", ele dissera. Foi o que fiz.
Para minha grande surpresa, atingi o cavalo em disparada. Ele escorregou, caiu sobre um joelho e rolou numa confusão de neve e pernas. Meu braço ficou dormente com o coice da pistola; fiquei parada, esfregando-o, observando o soldado caído.
Ele estava ferido; levantou-se com dificuldade, depois caiu de novo na neve. Seu cavalo, sangrando na espádua, fugiu aos tropeções, as rédeas penduradas.
Não percebi senão mais tarde o que estivera pensando, mas sabia, quando me aproximei dele, que não poderia deixá-lo vivo. Perto como estávamos da prisão, e com outras patrulhas perseguindo fugitivos, ele certamente seria encontrado em pouco tempo. E se fosse encontrado com vida, não só nos descreveria — nesse caso, podíamos dar adeus à nossa história de seqüestro! —, como diria para onde viajávamos. Ainda tínhamos cinco quilômetros de percurso até a costa; duas horas de viagem na neve intensa. E um barco a encontrar, quando chegássemos lá. Eu simplesmente não podia correr o risco de permitir que ele contasse a ninguém a nosso respeito.
Ele esforçou-se para se levantar sobre os cotovelos quando me aproximei. Seus olhos arregalaram-se de surpresa ao me ver, depois relaxaram. Eu era uma mulher. Não tinha medo de mim.
Um homem mais experiente teria ficado apreensivo mesmo assim, mas ele era um garoto. Não mais do que dezesseis anos, pensei, nauseada de choque. Suas faces pontilhadas de espinhas ainda retinham as últimas curvas arredondadas da infância, embora o lábio superior exibisse a penugem de um desejado bigode.
Ele abriu a boca, mas apenas gemeu de dor. Apertou a mão contra o lado do corpo e pude ver o sangue encharcando sua túnica e seu casaco. Portanto, ferimentos internos; o cavalo deve ter rolado por cima dele.
Era possível, pensei, que ele fosse morrer de qualquer modo. Mas eu não podia contar com isso.
A adaga em minha mão direita estava escondida sob meu manto. Coloquei a mão esquerda em sua testa. Exatamente como eu havia tocado a cabeça de centenas de homens, confortando, examinando, preparando-os para o pior. E eles erguiam os olhos para mim exatamente como aquele garoto; com esperança e confiança.
Não poderia cortar sua garganta. Deixei-me cair de joelhos ao seu lado e virei sua cabeça delicadamente para o outro lado. Todas as técnicas de Rupert para uma morte rápida presumiam resistência. Não houve nenhuma resistência quando curvei sua cabeça para a frente, o máximo possível, e mergulhei a adaga em seu pescoço, na base do crânio.
Deixei-o com o rosto para baixo, enterrado na neve, e fui me juntar aos outros.
Com nossa pesada carga embarcada clandestinamente e escondida sob cobertores em um banco no porão, Murtagh e eu nos encontramos no convés do Cristabel para inspecionar os céus agitados por uma tormenta.
- Parece um vento moderado, estável - eu disse, esperançosa, mantendo um dedo molhado erguido no ar.
Com um ar sombrio, Murtagh examinou as nuvens que pairavam, negras e ameaçadoras, acima do porto, a carga de neve que arremessavam perdendo-se ao se desmancharem nas ondas geladas.
- Ah, bem. Vamos torcer por uma travessia sem sobressaltos. Caso contrário, talvez cheguemos lá com um cadáver em nossas mãos.
Meia hora depois, lançados nas águas turbulentas do Canal da Mancha, descobri o que ele queria dizer com essa observação.
- Com enjôos? - perguntei, incrédula. - Os escoceses não ficam enjoados no mar!
Murtagh ficou irritado.
- Bom, então talvez ele seja um hotentote de cabelos vermelhos. Tudo que sei é que ele está verde como um peixe podre e vomitando as tripas. Vai descer e me ajudar a impedir que suas costelas saiam pelo peito?
- Droga! - exclamei para Murtagh, enquanto nos debruçávamos sobre a balaustrada pegando um pouco de ar fresco durante um breve intervalo na atmosfera desagradável do porão. — Se ele sabia que ficava enjoado no mar, em nome de Deus, por que insistiu em um barco?
O olhar de basilisco permaneceu fixo, sem piscar.
- Porque ele sabe muito bem que nunca conseguiríamos viajar por terra, no estado em que se encontra. Além disso, não queria permanecer em Eldridge para não comprometer a segurança dos MacRannoch.
- Então, em vez disso, ele vai se matar silenciosamente no mar - eu disse, com amargura.
- Sim. Ele acha que dessa forma apenas matará a si mesmo e não levará ninguém com ele. Magnânimo, sabe. Mas não há nada de silencioso nisso - Murtagh acrescentou, dirigindo-se à escada de tombadilho em resposta aos sons inconfundíveis que vinham lá de baixo.
- Parabéns — eu disse a Jamie uma ou duas horas mais tarde, afastando uns fios de cabelos úmidos do rosto. — Acredito que você vai entrar para os anais da medicina como a única pessoa de que se tem notícia a morrer no mar por causa de enjôo.
— Ah, bom - balbuciou na confusão de travesseiros e cobertores. -Detestaria pensar que todo esse esforço foi em vão. - Ergueu-se repentinamente para um lado. — Meu Deus, lá vem de novo.
Murtagh e eu saltamos mais uma vez para as nossas posições. A tarefa de segurar um homem corpulento imóvel enquanto ele sucumbe a implacáveis espasmos de vômito não é para uma pessoa fraca.
Mais tarde, tomei seu pulso novamente e coloquei a mão em sua testa pegajosa. Murtagh leu meu rosto e seguiu-me sem falar pelo passadiço até o convés superior.
— Ele não está indo muito bem, não é? - perguntou serenamente.
— Não sei - respondi, impotente, sacudindo meus cabelos molhados de suor no vento frio. - Eu sinceramente nunca ouvi falar de alguém que tivesse morrido de enjôo por causa do mar, mas agora ele começou a vomitar sangue também. - A mão do homenzinho apertou a balaustrada com força, as articulações dos dedos projetando-se pela pele curtida de sol. - Não sei se ele se feriu internamente com as pontas afiadas das costelas ou se é apenas seu estômago, irritado com os vômitos. Seja como for, não é um bom sinal. E seu pulso está bem mais fraco, e irregular. É muito esforço para o coração, sabe.
— Ele tem o coração de um leão - falou baixinho e, a princípio, não tive certeza de ter entendido bem. Podia ser apenas o vento salgado que mantinha as lágrimas em seus olhos. Voltou-se bruscamente para mim. — E uma cabeça de boi. Você ainda tem um pouco daquele láudano que lady Annabelle lhe deu?
— Sim, todo ele. Ele não quis tomar; disse que não queria dormir.
— Ah, bem. Para a maioria das pessoas, o que elas querem e o que elas obtêm não são a mesma coisa; não vejo por que ele deva ser diferente. Vamos.
Segui-o ansiosamente de volta ao porão.
— Não creio que possa parar no estômago.
— Deixe isso comigo. Pegue o frasco e ajude-me a levantá-lo.
Jamie estava semi-inconsciente, um fardo incômodo que protestava por estar sendo forçado a sentar-se, encostado ao tabique.
— Eu vou morrer — disse com voz fraca, mas clara — e quanto mais cedo, melhor. Vão embora e me deixem morrer em paz.
Segurando com força os cabelos flamejantes de Jamie, Murtagh forçou sua cabeça para cima e levou o frasco aos seus lábios.
— Engula isso, cabeça-dura, ou vou quebrar seu pescoço. E trate de manter isso aí dentro. Vou manter sua boca e seu nariz fechados; se vier para cima, vai sair pelos ouvidos.
Pela força conjunta de nossa determinação, transferimos o conteúdo do frasco lenta, mas inexoravelmente para dentro do jovem senhor de
Lallybroch. Engasgando e sufocando, Jamie corajosamente bebeu o máximo que pôde antes de deixar-se cair, esverdeado e arquejando, contra o tabi-que. Murtagh impedia cada ameaça de explosão de náusea apertando cruelmente o nariz do paciente, um recurso nem sempre bem-sucedido, mas que permitiu o acúmulo gradual do entorpecente na corrente sangüínea. Finalmente, deitamos seu corpo lânguido na cama, as chamas vivas dos cabelos, das pestanas e dos cílios formando a única cor sobre o travesseiro. Murtagh surgiu ao meu lado no convés pouco depois.
— Olhe — eu disse, apontando. A luz turva do crepúsculo, brilhando em raios fugidios sob as nuvens, dourava os rochedos da costa francesa adiante. — O capitão disse que estaremos em terra dentro de três ou quatro horas.
- Já não é sem tempo - disse meu companheiro, afastando os cabelos castanhos e lisos dos olhos. Virou-se para mim com a expressão mais próxima de um sorriso que eu já vira em seu semblante circunspecto.
Assim, finalmente, acompanhando o corpo inerte de nossa carga, deitado em uma prancha entre dois monges robustos, atravessamos os altos portões do Mosteiro de Ste. Anne de Beaupré.
O mosteiro era uma gigantesca construção do século XII, fortificado com muralhas para resistir tanto à força de tempestades marítimas quanto aos ataques de invasores por terra. Agora, em épocas mais tranqüilas, seus portões permaneciam abertos para facilitar o tráfego com a aldeia vizinha e as pequenas celas de lajes de pedra da ala destinada aos hóspedes foram suavizadas pelo acréscimo de tapeçarias e mobiliário confortável.
Levantei-me da cadeira acolchoada do meu próprio quarto, sem saber ao certo como se cumprimenta um abade; deveria ajoelhar-me, beijar seu anel ou isso era apenas para o papa? Decidi-me por uma reverência respeitosa.
Os olhos de gato ligeiramente puxados de Jamie realmente vinham do lado dos Fraser. Da mesma forma o seu sólido maxilar, embora aquele diante de mim estivesse um pouco obscurecido pela barba preta.
O abade Alexander tinha a mesma boca larga de seu sobrinho, embora parecesse sorrir menos com ela. Os olhos azuis rasgados continuaram frios e especulativos ao me cumprimentar com um sorriso caloroso e agradável. Era bem mais baixo do que Jamie, mais ou menos da minha altura, e troncudo. Usava a batina de um sacerdote, mas caminhava como um guerreiro. Achei que tivesse sido ambos em sua época.
— Seja bem-vinda, ma nièce — disse, inclinando a cabeça. Fiquei um pouco surpresa com a saudação, mas fiz uma reverência em resposta.
— Obrigada por sua hospitalidade - eu disse, sinceramente. -Já... já viu Jamie?
Os monges haviam levado Jamie para ser banhado, um processo do qual achei melhor não participar. O abade balançou a cabeça.
— Ah, sim — disse, um leve sotaque escocês transparecendo no inglês culto. — Eu o vi. Pedi ao irmão Ambrose que cuide de seus ferimentos. -Devo ter externado um ar de dúvida diante dessa informação, porque ele disse: - Não se preocupe, madame; o irmão Ambrose é muito competente. - Olhou-me de alto a baixo com um ar de franca avaliação, surpreendentemente semelhante ao de seu sobrinho.
— Murtagh disse que a senhora é uma médica consumada.
— Sou, sim — respondi com simplicidade. Isso provocou um sorriso de verdade.
- Vejo que a senhora não sofre do pecado da falsa modéstia - observou.
— Tenho outros — respondi, devolvendo o sorriso.
— Como todos nós — disse. — Tenho certeza de que o irmão Ambrose está ansioso para conversar com a senhora.
- Murtagh contou-lhe... o que aconteceu? - perguntei, hesitante. A boca larga retesou-se.
— Contou. Até onde ele sabe que aconteceu. — Fez uma pausa, como se esperasse uma contribuição da minha parte, mas permaneci em silêncio.
Era óbvio que ele gostaria de fazer perguntas, mas foi suficientemente gentil para não me pressionar. Ao invés disso, ergueu a mão num gesto de bênção e despedida.
- Seja bem-vinda - disse mais uma vez. — Vou mandar um irmão servir-lhe alguma comida. - Examinou-me novamente. - E o necessário para sua higiene pessoal. — Fez o sinal-da-cruz sobre mim, como adeus ou talvez como um exorcismo da imundície, e saiu num redemoinho de vestes marrons.
Sentindo repentinamente o quanto estava cansada, deixei-me afundar na cama, imaginando se conseguiria ficar acordada o suficiente para comer e me lavar. Ainda estava imaginando quando minha cabeça atingiu o travesseiro.
Tive um terrível pesadelo. Jamie estava do outro lado de uma sólida parede de pedra sem porta. Podia ouvi-lo gritar, sem parar, mas não conseguia chegar até ele. Eu batia desesperadamente na parede, mas minhas mãos afundavam na pedra como se fosse água.
- Aaaaai! - Sentei-me no catre estreito, agarrando a mão que batera na parede dura ao lado de minha cama. Balancei o corpo para frente e para trás, apertando a mão latejante entre as coxas, depois percebi que os gritos continuavam.
Parei bruscamente quando corri para o corredor. A porta do quarto de Jamie estava aberta, a luz bruxuleante de um lampião inundando o corredor.
Um monge que eu não vira antes estava com Jamie, segurando-o com força. Uma infiltração de sangue vivo manchava as ataduras nas costas de Jamie e seus ombros sacudiam como se estivesse com calafrios.
- Um pesadelo - o monge disse como explicação, vendo-me na soleira da porta. Entregou Jamie em meus braços e dirigiu-se à mesa para pegar um pano e a jarra de água.
Jamie ainda tremia e seu rosto brilhava de suor. Seus olhos estavam fechados e ele respirava pesadamente, com um som arquejante e áspero. O monge sentou-se ao meu lado e começou a limpar seu rosto delicadamente, afastando os cabelos úmidos e pesados da fronte.
— Deve ser a esposa dele, é claro - disse-me. — Acho que logo ele estará melhor.
Os tremores realmente começaram a diminuir em dois ou três minutos e Jamie abriu os olhos com um suspiro.
— Estou bem — disse. - Claire, estou bem agora. Mas pelo amor de Deus, livre-se desse cheiro!
Somente então percebi conscientemente o perfume no quarto - um aroma floral, picante e suave, um perfume tão comum que nem me chamou a atenção. Lavanda. Uma fragrância para sabonetes e águas-de-colônia. A última vez que senti aquele cheiro foi nas masmorras da prisão de Wentworth, perfumando as roupas ou a própria pessoa do capitão Jonathan Randall.
A fonte do aroma era um pequeno recipiente de metal cheio de óleo perfumado com essência de ervas, suspenso de uma base de ferro pesada, com rosas em relevo e pendurada acima da chama de uma vela.
Destinada a aplacar a mente, seus efeitos evidentemente não eram os pretendidos. Jamie respirava com mais facilidade, sentando-se sozinho e segurando a caneca de água que o monge lhe dera. Seu rosto, entretanto, continuava lívido e o canto de sua boca retorcia-se nervosamente.
Fiz sinal com a cabeça para que o franciscano atendesse o pedido de Jamie e o monge rapidamente abafou o recipiente quente de óleo em uma toalha dobrada e levou-a para longe pelo corredor.
O peito de Jamie ergueu-se num profundo suspiro de alívio, depois se contraiu de dor nas costelas.
— Você abriu um pouco os ferimentos das costas — eu disse, virando-o um pouco para ter acesso às ataduras. - Mas nada de mais.
— Eu sei. Devo ter rolado sobre as costas durante o sono. - O grosso de cobertor destinado a escorar seu corpo na posição de lado havia escorregado para o chão. Peguei-o e ajeitei-o novamente na cama.
— Acho que foi esse cheiro que me fez ter pesadelos. Sonhei que estava sendo açoitado. — Estremeceu, tomou um gole de água, entregando-me a caneca em seguida. — Preciso de algo mais forte, se estiver à mão.
No momento certo, nosso prestativo ajudante atravessou a porta com uma jarra de vinho em uma das mãos e um pequeno frasco de xarope de papoula na outra.
— Álcool ou entorpecente? — perguntou a Jamie com um sorriso, erguendo os dois recipientes. - Pode escolher sua forma de esquecimento.
— Ficarei com o vinho, por favor. Já tive sonhos suficientes para uma noite - Jamie disse, com um sorriso enviesado. Bebeu o vinho devagar, enquanto o franciscano ajudava-me a trocar as ataduras ensangüentadas, passando uma nova camada de pomada de cravo-da-índia nos ferimentos. Somente quando eu já havia acomodado Jamie para dormir, firmemente escorado e coberto, é que o monge voltou-se para sair.
Passando pela cama, inclinou-se sobre Jamie e fez o sinal-da-cruz acima de sua cabeça.
- Descanse bem - disse.
- Obrigado, padre. -Jamie respondeu sonolentamente, obviamente já meio adormecido. Vendo que Jamie provavelmente não iria precisar de mim até o amanhecer, toquei em seu ombro como despedida e segui o monge para o corredor.
- Muito obrigada - eu disse. — Sou muito grata por sua ajuda.
- Foi um prazer ajudá-la - disse, e percebi que falava inglês muito bem, embora com um ligeiro sotaque francês. - Eu passava pela ala dos hóspedes a caminho da capela de St. Giles quando ouvi os gritos.
Encolhi-me diante da lembrança daqueles gritos, roucos e horripilantes, e desejei nunca mais ouvi-los. Olhando para a janela ao fim do corredor, não vi nenhum sinal da alvorada por trás das persianas.
- Para a capela? - perguntei, surpresa. - Mas pensei que as preces matinais fossem cantadas na igreja principal. E certamente ainda é um pouco cedo, de qualquer forma.
O franciscano sorriu. Era bastante jovem, talvez trinta e poucos anos, mas seus sedosos cabelos castanhos estavam entremeados de fios brancos. Usava-os curtos e a barba castanha fora elegantemente aparada a ponto de apenas roçar a gola enrolada de seu hábito.
- Muito cedo para as orações matinais — concordou. — Eu estava a caminho da capela porque é a minha vez da adoração perpétua do Santíssimo Sacramento a esta hora. — Olhou para trás, para o quarto de Jamie, onde uma vela-relógio marcava a hora como duas e meia.
- Estou muito atrasado - disse. - O irmão Bartolomeu deve estar querendo ir para sua cama. - Erguendo a mão, abençoou-me rapidamente, girou nos calcanhares de seus pés calçados em sandálias e atravessou a porta de vaivém no final do corredor antes que eu pudesse ter a presença de espírito de perguntar seu nome.
Entrei de novo no quarto e inclinei-me para ver como Jamie estava. Adormecera outra vez, respirando superficialmente, com o cenho levemente franzido. Passei a mão de leve pelos seus cabelos. A testa relaxou um pouco e depois retomou a expressão preocupada. Suspirei e ajeitei os cobertores ao seu redor.
Sentia-me bem melhor pela manhã, mas Jamie estava com olheiras profundas e irritado depois da noite maldormida. Rejeitou enfaticamente minha sugestão de um mingau ou uma sopa para desjejum e falou rispida-mente comigo quando tentei verificar os curativos de sua mão.
— Pelo amor de Deus, Claire, me deixe em paz! Não quero mais ser cutucado!
Arrancou a mão das minhas, com uma expressão mal-humorada. Desviei o rosto sem dizer nada e fui me ocupar em ajeitar os pequenos potes e saquinhos de remédios sobre a mesinha de cabeceira. Arrumei-os em pequenos grupos, por função: pomada de cravo-da-índia e bálsamo de álamo para aliviar, casca de salgueiro, casca de cerejeira e camomila para chás, erva-de-são-joão, alho e milefólio para desinfecção.
- Claire. — Virei-me outra vez e o vi sentado na cama, olhando-me com um sorriso envergonhado.
- Desculpe, Sassenach. Estou com dor de barriga e terrivelmente mal-humorado esta manhã. Mas não tenho nenhuma razão de gritar com você. Pode me perdoar?
Atravessei o quarto rapidamente e abracei-o de leve.
- Você sabe que não há nada para perdoar. Mas o que quer dizer com estar sentindo dor de barriga? - Não pela primeira vez, refleti que intimidade e romance não são sinônimos.
Ele fez uma careta, inclinando ligeiramente para a frente e cruzando os braços sobre o abdômen.
- Quero dizer que gostaria que me deixasse sozinho por um instante. Por favor? — Atendi seu pedido apressadamente e fui fazer meu próprio desjejum.
Quando retornava do refeitório pouco depois, avistei uma figura delgada no hábito preto dos franciscanos atravessando o pátio em direção ao claustro. Corri para alcançá-lo.
- Padre! - chamei e ele se virou, sorrindo ao me ver.
- Bom dia — disse. - Sra. Fraser; é este o nome? E como vai o seu marido esta manhã?
- Melhor — respondi, esperando que fosse verdade. - Queria agradecer-lhe outra vez por ontem à noite. O senhor saiu antes que eu pudesse perguntar seu nome.
Os olhos claros, cor de avelã, brilharam quando se inclinou numa reverência, a mão sobre o coração.
- François Anselm Mericoeur d'Armagnac, madame. - Ou este é meu nome de batismo. Conhecido agora apenas como padre Anselmo.
- Anselmo do Coração Feliz? — perguntei, sorrindo. Ele encolheu os ombros, um gesto completamente gaulês, imutável há séculos.
- Eu tento - disse, com um sorriso irônico nos lábios.
- Não quero atrasá-lo - eu disse, olhando na direção do claustro. - Só queria agradecer por sua ajuda.
- Não está me atrasando nem um pouco, madame. Na realidade, eu estava protelando minha ida para o trabalho; entregando-me à ociosidade de forma muito pecaminosa.
- Qual é o seu trabalho? - perguntei, intrigada. Obviamente, aquele homem era um visitante no mosteiro, seu hábito preto franciscano ressaltando-se como uma mancha de tinta entre as vestes marrons dos beneditinos. Havia vários visitantes como esse, ou assim o irmão Polydore, um dos que serviam à mesa, me dissera. A maioria era de estudiosos, ali para consultar as obras guardadas na famosa biblioteca da abadia. Anselmo, ao que parecia, era um deles. Dedicava-se, como vinha fazendo há vários meses, à tradução de diversas obras de Heródoto.
-Já conhece a biblioteca? - perguntou. - Venha, então - disse, quando sacudi a cabeça. - É realmente impressionante e tenho certeza de que o abade, seu tio, não faria nenhuma objeção.
Estava curiosa para ver a biblioteca e ao mesmo tempo relutante em voltar imediatamente para o isolamento da ala dos hóspedes, de modo que o segui sem hesitação.
A biblioteca era esplêndida, de pé-direito muito alto, com elevadas colunas góticas que se uniam em ogivas no teto em abóbada. Janelas do chão ao teto enchiam os espaços entre as colunas, inundando a biblioteca de luz. A maioria era de vidro transparente, mas algumas ostentavam vitrais de aparência enganadoramente simples. Passando silenciosamente pelas figuras curvadas dos monges que estavam ali estudando, parei para admirar um vitral da Fuga do Egito.
Algumas das prateleiras pareciam-se com as que eu estava acostumada, os livros lado a lado. Em outras, os livros ficavam deitados, para proteger as capas antigas. Havia até uma prateleira fechada com vidro, guardando inúmeros rolos de pergaminhos. No geral, a biblioteca possuía um júbilo silencioso, como se os preciosos volumes cantassem sem voz dentro de suas capas. Deixei a biblioteca sentindo-me apaziguada e atravessei devagar o pátio principal na companhia de padre Anselmo.
Tentei agradecer-lhe outra vez por sua ajuda na noite anterior, mas ele encolheu os ombros, descartando meus agradecimentos.
— Não foi nada demais, minha filha. Espero que ele esteja melhor hoje.
— Eu também — disse. Não querendo insistir nesse assunto, perguntei: — O que exatamente é adoração perpétua? Disse que era para lá que estava indo ontem à noite.
- A senhora não é católica? - perguntou, surpreso. - Ah, eu me esqueci, a senhora é inglesa. Assim, portanto, suponho que seja protestante.
— Não sei ao certo se sou uma coisa ou outra, em termos de fé - eu disse. - Mas tecnicamente, ao menos, suponho que seja católica.
- Tecnicamente? — As sobrancelhas lisas ergueram-se de espanto. Hesitei, cautelosa depois de minhas experiências com padre Bain, mas aquele homem não parecia do tipo que começaria a brandir crucifixos no meu rosto.
- Bem — disse, inclinando-me para arrancar uma pequena erva daninha do meio das pedras do calçamento —, fui batizada como católica.
Entretanto, meus pais morreram quando eu tinha cinco anos e fui viver com um tio. Tio Lambert era... - parei, lembrando-me do apetite voraz por conhecimento de tio Lambert e aquele cinismo objetivo e jovial que considerava todas as religiões simplesmente como uma das marcas de identificação pelas quais uma cultura podia ser catalogada. — Bem, ele era tudo e nada, eu acho, em termos de fé - concluí. - Conhecia todas as religiões, não acreditava em nenhuma. Assim, nada mais foi feito a respeito de minha educação religiosa. E meu... primeiro marido era católico, mas receio que não muito praticante. Assim, acho que na verdade sou meio pagã.
Olhei-o cautelosamente, mas em vez de ficar chocado com minhas revelações, ele riu com grande entusiasmo.
- Tudo e nada - disse, saboreando a frase. — Gosto muito disso. Mas quanto à senhora, acho que não. Uma vez membro da Santa Igreja Católica, é considerada eternamente sua filha. Por menos que saiba a respeito de sua fé, é tão católica quanto o Santo Padre, o papa. - Fitou o céu. Estava nublado, mas as folhas das moitas de amieiro perto da igreja permaneciam imóveis.
- O vento amainou. Eu ia dar uma volta para clarear meus pensamentos ao ar livre. Por que não me acompanha? Precisa de ar e de exercício, e talvez eu possa tornar a ocasião espiritualmente proveitosa também, esclarecendo-a quanto ao ritual da Adoração Perpétua enquanto caminhamos.
- Três coelhos de uma só cajadada, hein? - eu disse secamente. Mas a perspectiva de tomar ar, ainda que pesado, era atraente e fui buscar meu manto sem hesitação.
Lançando um olhar à figura lá dentro, a cabeça inclinada em oração, Anselmo conduziu-me pela escuridão tranqüila da entrada da capela e pelo claustro, saindo na extremidade do jardim.
Longe da possibilidade de perturbar os monges na capela, ele disse:
- É uma idéia muito simples. Você se lembra, na Bíblia, da história de Getsemâni, onde Nosso Senhor aguardava seu julgamento e crucificação e seus amigos, que deveriam lhe fazer companhia, todos adormeceram?
- Ah — disse, compreendendo imediatamente. — E ele disse: "Não podem fazer vigília comigo por uma hora?" Então, isso é o que está fazendo, permanecendo em vigília com Ele por aquela hora, para compensar. — Gostei da idéia e a escuridão da capela de repente pareceu-me habitada e reconfortante.
- Oui, madame — concordou. — Muito simples. Nós nos alternamos na vigília e o Santíssimo Sacramento no altar aqui nunca fica sozinho.
- Não é difícil, permanecer acordado? - perguntei, curiosa. - Ou sempre faz vigília à noite?
Ele balançou a cabeça, uma brisa leve levantando os sedosos cabelos castanhos. A área de sua tonsura precisava ser raspada; cabelos curtos e espetados cobriam-na como musgo.
- Cada um escolhe a sua melhor hora para a vigília. Para mim, é às duas da madrugada. - Olhou para mim, hesitante, como se imaginasse como eu iria receber o que estava prestes a me dizer.
- Para mim, nessa hora... — Parou. — É como se o tempo parasse. Todos os humores do corpo, todo o sangue, a bílis e os vapores que constituem um homem; é como se todos eles, apenas nessa hora, estivessem trabalhando em perfeita harmonia. - Sorriu. Seus dentes eram ligeiramente tortos, o único defeito em seu semblante perfeito.
- Ou como se parassem completamente. Eu sempre imagino se este momento é o mesmo do nascimento, ou da morte. Sei que seu compasso é diferente para cada homem... ou mulher, suponho - acrescentou, com um sinal cortês da cabeça para mim.
- Mas naquele instante, naquela fração de tempo, parece que tudo é possível. Você pode olhar através das limitações da sua própria vida e ver que não significam nada. Nesse momento, quando o tempo pára, é como se você soubesse que poderia embarcar em qualquer aventura, terminá-la e voltar para si mesmo, para encontrar o mundo da mesma forma, e tudo exatamente como você deixou um momento antes. E é como se... - hesitou por um instante, escolhendo cuidadosamente as palavras.
- Como se, sabendo que tudo é possível, de repente nada seja necessário.
- Mas... o senhor realmente faz alguma coisa? - perguntei. - Hã, rezar, quero dizer?
- Eu? Bem - disse devagar -, eu me sento e olho para Ele. - Um largo sorriso estendeu os lábios bem desenhados. - E Ele olha para mim.
Jamie estava sentado quando retornei ao quarto e ensaiou uma pequena caminhada para cima e para baixo no corredor, apoiado em meu ombro. Entretanto, o esforço o deixou pálido e suado. Deitou-se sem protestar quando puxei a coberta sobre ele.
Ofereci-lhe um caldo leve com leite, mas ele sacudiu a cabeça, cansado.
- Não tenho nenhum apetite, Sassenach. Se comer ou beber alguma coisa, acho que vou ficar enjoado outra vez.
Não o forcei, mas levei o caldo de volta em silêncio.
No jantar, fui mais insistente e consegui persuadi-lo a experimentar algumas colheradas de sopa. Ele conseguiu tomar bastante, mas não conseguiu mantê-la no estômago.
- Desculpe, Sassenach - disse, depois. — Sou insuportável.
- Não tem importância, Jamie, e você não é repugnante. - Coloquei a tigela do lado de fora da porta e sentei-me a seu lado, alisando os cabelos desalinhados para trás.
- Não se preocupe. É que seu estômago ainda está irritado dos enjôos no mar. Talvez eu tenha insistido cedo demais para que comesse. Deixe-o descansar e curar-se.
Ele fechou os olhos, suspirando sob a minha mão.
- Vou ficar bem - ele disse, sem interesse. - O que fez hoje, Sassenach? Ele obviamente estava irrequieto e desconfortável, mas acalmou-se um pouco quando lhe contei sobre as minhas explorações do dia; a biblioteca, a capela, a prensa de vinho e, por fim, o herbário, onde finalmente conheci o famoso irmão Ambrose.
- Ele é incrível — eu disse, com entusiasmo. — Ah, mas eu me esqueci, você já o conhece. - Irmão Ambrosé era alto, até mais alto do que Jamie, e cadavérico, com o rosto comprido e caído de um cão bassê. E tinha uma boa mão para plantas.
- Ele parece conseguir fazer qualquer coisa crescer - eu disse. - Tem todas as ervas normais lá e uma estufa tão minúscula que ele nem consegue ficar em pé lá dentro, com plantas que normalmente não cresceriam nesta estação do ano ou que não crescem nesta região ou que simplesmente não deveriam crescer. Sem mencionar especiarias importadas e drogas.
A menção de drogas me fez lembrar a noite anterior e olhei para fora da janela. A luz turva do inverno desaparecia cedo e já estava completamente escuro lá fora, os lampiões dos monges que cuidavam das cavalariças e do trabalho externo balançando-se para frente e para trás, conforme passavam em suas andanças.
- Já está escuro. Acha que consegue dormir sozinho? O irmão Ambrose tem algumas coisas que podem ajudar.
Seus olhos estavam turvos de cansaço, mas ele sacudiu a cabeça.
- Não, Sassenach. Não quero nada. Se eu adormecer... não, acho que vou ler um pouco. - Anselmo lhe trouxera uma seleção de obras filosóficas e históricas da biblioteca e ele estendeu a mão para pegar um exemplar de Tácito que estava sobre a mesa.
- Você precisa dormir, Jamie — eu disse suavemente, observando-o. Ele abriu o livro à sua frente, recostado em um travesseiro, mas continuou a fitar a parede acima.
- Eu não lhe contei o que sonhei - disse repentinamente.
- Você disse que sonhou que estava sendo açoitado. - Eu não estava gostando da aparência de seu rosto; já pálido sob as manchas roxas, estava ligeiramente luzidio de suor.
- Isso mesmo. Eu podia olhar para cima e ver as cordas, cortando meus pulsos. Minhas mãos haviam ficado quase negras e a corda raspava o osso quando eu me movia. Eu pressionava o rosto contra o poste. Podia sentir as pontas de chumbo das tiras do chicote cortando a carne dos meus ombros.
- Os golpes continuaram, muito tempo depois de quando já deveriam ter parado e eu percebi que ele não pretendia parar. As pontas das tiras arrancavam pequenos pedaços da minha carne. O sangue... o sangue escorria pelas minhas costas e pelos lados do corpo, ensopando meu kilt. Eu sentia muito frio.
- Então, ergui os olhos outra vez e vi que a carne começava a se desprender das minhas mãos e os ossos dos meus dedos arranhavam a madeira do piso, deixando marcas longas e fundas para trás. Os ossos dos meus braços estavam visíveis, sem carne e sem pele, e somente as cordas os mantinham unidos. Acho que foi quando comecei a gritar.
- Eu podia ouvir um estranho som chocalhante toda vez que ele me atingia e depois de algum tempo compreendi o que era. Ele havia arrancado toda a carne dos meus ossos e os pesos de chumbo do chicote batiam nas costelas secas. E eu sabia que estava morto, mas não importava. Ele continuava implacavelmente e nunca iria parar, continuaria até eu me desfazer em pequenos pedaços e desmoronar pelo poste, e mesmo assim não pararia e...
Aproximei-me para abraçá-lo e fazê-lo se acalmar, mas ele já parara, agarrando a borda do livro com a mão intacta. Os dentes estavam cravados com força na pele dilacerada de seu lábio inferior.
- Jamie, vou ficar com você esta noite - eu disse. - Posso colocar um colchão de palha no chão.
- Não. - Apesar de estar muito fraco, não havia dúvidas quanto à sua teimosia. - Vou ficar melhor sozinho. E não estou com sono agora. Vá jantar, Sassenach. Eu... vou ficar lendo um pouco. — Inclinou a cabeça sobre o livro. Após um minuto observando-o e sentindo-me impotente, atendi seu pedido e saí.
Eu estava ficando cada vez mais preocupada com o estado de Jamie. A náusea continuava; ele não comia quase nada e o que ele conseguia engolir raramente permanecia em seu estômago. Estava cada vez mais pálido e irrequieto, não mostrando interesse por nada. Dormia bastante durante o dia, porque dormia muito pouco à noite. Ainda assim, apesar do medo dos pesadelos, não permitia que eu compartilhasse seu quarto, para que sua insônia não perturbasse meu próprio descanso.
Não querendo ficar rondando-o, ainda que ele permitisse, eu passava a maior parte do meu tempo no herbário ou no barracão de secagem com o irmão Ambrose ou andando a esmo pelo mosteiro, em longas conversas com padre Anselmo. Ele aproveitou a oportunidade para se dedicar a uma branda catequese, tentando me instruir nos fundamentos do catolicismo, embora eu reiterasse muitas vezes minha condição de agnóstica.
- Ma chère - disse, finalmente -, lembra-se das condições necessárias para a perpetração do pecado de que lhe falei ontem?
Não havia nada de errado com a minha memória, quaisquer que fossem minhas falhas morais.
- Primeiro, que seja errado e, segundo, que você dê pleno consentimento a isso - repeti o que ele dissera.
- Que dê pleno consentimento a isso - ele repetiu. - E essa, ma chère, também é a condição para que a graça ocorra. - Apoiávamo-nos na cerca do chiqueiro da abadia, observando vários porcos grandes e marrons aconchegados no fraco sol de inverno. Ele virou a cabeça, descansando o rosto nos antebraços, dobrados sobre a cerca.
- Não sei como posso fazer isso - protestei. - Certamente a graça é algo que você tem ou não tem. Quero dizer - hesitei, não querendo ser rude -, para você o que está no altar da capela é Deus. Para mim, é um pedaço de pão, por mais belo que seja o invólucro em que esteja.
Ele suspirou com impaciência e empertigou-se, espreguiçando-se.
- Tenho observado, a caminho da minha vigília noturna, que seu marido não dorme bem - ele disse. - E conseqüentemente, você também não. Como não está dormindo de qualquer forma, eu a convido para vir comigo esta noite. Junte-se a mim na capela por uma hora.
Olhei-o, estreitando os olhos.
- Por quê?
- Por que não?
Não tive a menor dificuldade em acordar para meu compromisso com Anselmo, principalmente porque não tinha conseguido dormir até então. Nem Jamie. Sempre que eu espreitava o corredor, podia ver a luz bruxuleante de uma vela pela fresta da sua porta semi-aberta e ouvir o barulho das páginas folheadas e um ou outro gemido de desconforto, conforme ele mudava de posição.
Incapaz de descansar, não me dei ao trabalho de trocar de roupa e, assim, estava pronta quando uma batida na minha porta anunciou a presença de Anselmo.
O mosteiro estava silencioso, como todas as grandes instituições ficam silenciosas à noite; o ritmo intenso das atividades diurnas diminuíra, mas o pulsar continuava, mais lento, mais suave, porém incessante. Sempre há alguém acordado, caminhando em silêncio pelos corredores, fazendo vigília, mantendo a instituição viva. E agora era a minha vez de me juntar à vigília.
A capela estava às escuras, exceto pela luz vermelha do santuário e algumas velas votivas brancas, as chamas erguendo-se retas no ar parado diante dos santuários escuros dos santos.
Segui Anselmo pela curta nave central, ajoelhando-me quando ele o fez. A figura delgada do irmão Bartolomeu estava ajoelhada na frente do altar, a cabeça baixa. Não se voltou ao leve ruído de nossa entrada, mas continuou imóvel, em adoração.
O próprio Sacramento estava quase oculto pela magnificência de seu recipiente. O enorme ostensório, um sol irradiante de ouro de mais de trinta centímetros de diâmetro, estava serenamente pousado no altar, guardando o humilde pedaço de pão em seu centro.
Sentindo-me meio deslocada, sentei-me onde Anselmo indicou, perto da frente da capela. Os assentos, ornamentados com esculturas de anjos, flores e demônios, dobravam-se contra os painéis de madeira dos recostos para facilitar a passagem. Ouvi o rangido leve de um assento abaixado atrás de mim, quando Anselmo ocupou seu lugar.
- Mas o que devo fazer? - eu lhe perguntara, a voz baixa em respeito à noite e ao silêncio, quando nos aproximávamos da capela.
- Nada, ma chère — ele respondera simplesmente. - Apenas esteja lá. Assim, sentei-me, ouvindo minha própria respiração e os minúsculos sons de um lugar silencioso; as coisas inaudíveis normalmente ocultas em outros sons. A acomodação de uma pedra, o estalido de madeira. O chiado das chamas minúsculas e inextinguíveis. O leve agitar de alguma diminuta criatura, desgarrada de seu lugar e perdida na casa do poder supremo.
Era um lugar tranqüilo, tinha que admitir. Apesar da minha própria fadiga e da preocupação com Jamie, gradualmente me senti relaxar, a tensão em minha mente cedendo aos poucos, como o relaxamento da mola de um relógio. Estranhamente, não me sentia nem um pouco sonolenta, apesar da hora tardia e das dificuldades dos últimos dias e semanas.
Afinal, pensei, o que eram dias e semanas na presença da eternidade? E é isso que era, para Anselmo e Bartolomeu, para Ambrose, para todos os monges, até e inclusive para o temível abade Alexander.
Era, de certa forma, uma idéia reconfortante; se havia todo o tempo do mundo, então os acontecimentos de um determinado momento tornavam-se menos importantes. Podia compreender, talvez, como uma pessoa buscava se retrair um pouco, buscar algum alívio na contemplação de um Ser infinito, qualquer que fosse a Sua natureza.
O vermelho do lampião do santuário ardia firmemente, refletido no ouro polido. As chamas das velas brancas diante das imagens de St. Giles e de Nossa Senhora bruxuleavam e saltavam de vez em quando, conforme os pavios cediam a uma imperfeição ocasional, um crepitar momentâneo de cera ou umidade. Mas o lampião vermelho ardia serenamente, sem nenhuma oscilação inconveniente para trair sua luz.
E se havia eternidade, ou mesmo a idéia de eternidade, talvez Anselmo tivesse razão; tudo era possível. E todo amor?, perguntei-me. Eu amara Frank; ainda o amava. E amava Jamie, mais do que a minha própria vida.
Mas cerceada pelos limites da carne e do tempo, não podia ter ambos. No além, talvez? Haveria um lugar onde o tempo não mais existisse ou onde ele parasse? Anselmo achava que sim. Um lugar onde tudo era possível. E nada era necessário.
E haveria amor nesse lugar? Além dos limites da carne e do tempo, todo amor seria possível? Seria necessário?
A voz dos meus pensamentos parecia a de tio Lamb. Minha família e tudo que eu conheci como amor quando criança. Um homem que nunca me falara de amor, que nunca precisara, porque eu sabia que ele me amava, tão certo como eu sabia que estava viva. Porque onde todo o amor existe, não há necessidade de palavras. É reao. É imortal. E se basta.
O tempo passou sem que eu percebesse e surpreendi-me com a repentina aparição de Anselmo diante de mim, entrando pela pequena porta junto ao altar. Mas ele não estava sentado atrás de mim? Olhei para trás e vi um dos monges jovens cujo nome eu desconhecia ajoelhando-se perto da entrada dos fundos. Anselmo fez uma profunda reverência diante do altar, depois fez um sinal com a cabeça para mim, indicando a porta.
- Você saiu? - perguntei, uma vez fora da capela. - Mas eu pensei que você não poderia deixar, hã, o Sacramento sozinho.
Ele respondeu serenamente.
- Não deixei, ma chére. Você estava lá.
Contive a necessidade de argumentar que eu não contava. Afinal, suponho, não existia tal coisa como um Adorador Oficial Qualificado. Bastava ser humano e eu imaginava que ainda era um ser humano, embora às vezes mal o sentisse.
A vela de Jamie ainda queimava quando passei por sua porta e ouvi o farfalhar de páginas sendo manuseadas. Eu teria parado, mas Anselmo seguiu em frente, para deixar-me à porta do meu próprio quarto. Parei ali para desejar-lhe boa-noite e agradecer por me ter levado à capela.
- Foi... repousante — eu disse, buscando a palavra certa. Ele balançou a cabeça, observando-me.
- Oui, madame. Realmente, é. - Quando me virei para entrar, ele disse: - Eu lhe disse que o Santíssimo Sacramento não estava sozinho, porque você estava lá. Mas, e quanto a você, ma chorri? Estava sozinha?
Parei e olhei para ele por um instante, antes de responder.
- Não, não estava.
De manhã, como de costume, fui verificar como Jamie estava, esperando que ele tivesse conseguido comer alguma coisa. A poucos passos de seu quarto, Murtagh saiu de uma alcova na parede, barrando meu caminho.
- O que foi? - perguntei, assustada. — O que está acontecendo? - Meu coração disparou e as palmas da minha mão ficaram úmidas de repente.
Meu pânico deve ter sido óbvio, porque Murtagh sacudiu a cabeça para me tranqüilizar.
- Não, ele está bem. - Encolheu os ombros. - Ou tão bem quanto tem estado. - Me fez dar meia-volta segurando delicadamente meu cotovelo e começou a me levar novamente pelo corredor. Pensei com um instante de choque que essa era a primeira vez que Murtagh deliberadamente me tocava; sua mão em meu braço era leve e forte como a asa de um pelicano.
- O que há com ele? - perguntei. O rosto marcado do homenzinho permaneceu inexpressivo como sempre, mas as pálpebras enrugadas tremeram nos cantos.
- Ele não quer vê-la no momento - disse.
Parei onde estava e retirei bruscamente o braço de sua mão.
- Por que não? - quis saber.
Murtagh hesitou, como se escolhesse as palavras cuidadosamente.
- Bem, é que... ele decidiu que seria melhor para você deixá-lo aqui e voltar para a Escócia. Ele...
O resto de suas palavras perdeu-se no corredor quando passei bruscamente por ele.
A porta pesada fechou-se com um leve baque atrás de mim. Jamie cochilava, de bruços na cama. Estava descoberto, vestido apenas com uma túnica curta dos noviços; o braseiro de carvão no canto deixava o aposento confortavelmente aquecido, embora enfumaçado.
Ele deu um salto quando o toquei. Os olhos, ainda embaciados de sono, estavam fundos e seu rosto assombrado por pesadelos. Tomei sua mão entre as minhas, mas ele retirou-a violentamente. Com um olhar quase de desespero, fechou os olhos e enterrou o rosto no travesseiro.
Procurando não demonstrar nenhum sinal de minha própria perturbação, puxei um banco silenciosamente e sentei-me perto de sua cabeça.
- Não vou tocá-lo — eu disse —, mas você precisa conversar comigo. — Esperei vários minutos enquanto ele permaneceu imóvel, os ombros encolhidos defensivamente. Finalmente, suspirou e sentou-se, movendo-se devagar e penosamente, lançando as pernas para fora da cama.
- Sim - disse sem rodeios, sem olhar para mim. - Sim, creio que precisamos. Já devia ter feito isso antes... mas fui covarde o suficiente para esperar que não precisasse. — Sua voz era amarga e ele mantinha a cabeça abaixada, as mãos entrelaçadas frouxamente em volta dos joelhos. - Não me achava um covarde, mas sou. Devia ter feito Randall me matar, mas não o fiz. Eu não tinha nenhuma razão para viver, mas não fui corajoso o suficiente para morrer. - Sua voz definhou e falou tão baixo que eu mal podia ouvi-lo. - E eu sabia que teria que vê-la uma última vez... contar-lhe... mas... Claire, meu amor... meu amor.
Pegou o travesseiro da cama e abraçou-o como se quisesse se proteger, um substituto pelo conforto que não podia buscar em mim. Descansou a fronte sobre ele por um instante, reunindo forças.
- Depois que você me deixou em Wentworth, Claire - ele disse em voz baixa, a cabeça ainda abaixada -, ouvi seus passos, distanciando-se nas pedras do lado de fora e disse a mim mesmo, vou pensar nela agora. Vou me lembrar dela; do toque de sua pele, do perfume de seus cabelos e da sensação de seus lábios nos meus. Pensarei nela até aquela porta se abrir outra vez. E pensarei nela amanhã, quando estiver no cadafalso, para me dar coragem no fim. Entre o momento em que a porta se abrir e o momento em que deixar este lugar para morrer simplesmente não pensarei em nada - ele concluiu num sussurro, as mãos se fechando e depois relaxando.
Na pequena masmorra, fechara os olhos e ficara à espera. A dor não era insuportável, desde que ele permanecesse quieto, mas ele sabia que logo iria piorar. Temendo a dor, ainda assim ele já lidara com ela muitas vezes antes. Ele a conhecia, como conhecia sua própria reação a ela, e estava resignado a suportá-la, esperando apenas que ela não excedesse suas forças muito cedo. A perspectiva de violação física, também, era apenas uma questão de leve repugnância agora. O desespero era, a seu próprio modo, também um anestésico.
Não havia nenhuma janela no quarto pela qual julgar a hora do dia. Era fim de tarde quando ele foi levado para a masmorra, mas não podia confiar em sua noção do tempo. Quantas horas ainda se passariam até o alvorecer? Seis, oito, dez? Até o fim de tudo. Pensou com um humor sombrio que Randall ao menos lhe fizera o favor de desejar a morte.
Quando a porta se abriu, erguera os olhos, esperando - o quê? Havia apenas um homem, de constituição esbelta, bonito e um pouco desarrumado, a camisa de linho rasgada e descabelado, apoiado contra a porta de madeira, observando-o.
Após uns instantes, Randall atravessou o quarto sem falar e ficou parado ao lado dele. Encostou a mão por um momento no pescoço de Jamie, depois se inclinou e libertou a mão presa à mesa com um puxão no prego que deixou Jamie à beira do desmaio. Um copo de conhaque foi colocado diante dele e a mão firme de Randall ergueu sua cabeça e ajudou-o a bebê-lo.
- Ele ergueu meu rosto depois, entre suas mãos, e lambeu as gotas de conhaque dos meus lábios. Quis esquivar-me dele, mas eu dera minha palavra, de modo que apenas fiquei imóvel.
Randall segurou a cabeça de Jamie por um instante, olhando especulativamente dentro de seus olhos, depois o largou e sentou-se em cima da mesa, ao seu lado.
- Ficou ali sentado por um bom tempo, sem dizer nada, apenas balançando uma perna para a frente e para trás. Eu não fazia a menor idéia do que ele queria e não estava disposto a imaginar. Estava cansado e um pouco nauseado da dor em minha mão. Assim, após algum tempo, apenas descansei a cabeça nos meus braços e desviei o rosto. - Ele suspirou pesadamente.
- Depois de um instante, pude sentir sua mão em minha cabeça, mas não me movi. Ele começou a acariciar meus cabelos, muito delicadamente, sem parar. Não havia nenhum som a não ser a pesada respiração do sujeito e o estalido do fogo no braseiro, e eu acho... acho que adormeci por alguns instantes.
Quando acordou, Randall estava em pé diante dele.
- Está se sentindo um pouco melhor? — Randall perguntou num tom longínquo, gentil.
Sem dizer nada, Jamie assentiu e levantou-se. Randall o havia despido, tendo cuidado com a mão ferida, e levado-o para a cama.
- Eu dera a minha palavra de que não iria resistir a ele, mas também não pretendia ajudar, de modo que apenas fiquei ali parado, como se fosse feito de madeira. Pensei em deixar que ele fizesse o que quisesse, mas eu não teria nenhuma participação naquilo. Manteria uma distância dele, ao menos mentalmente. - Randall sorriu e segurou a mão direita de Jamie, apertando-a o suficiente para fazê-lo cair na cama, sentindo-se enjoado e tonto com a súbita pontada de dor. Randall ajoelhou-se no chão ao seu lado e ensinou-lhe, em alguns minutos arrasadores, que a distância é uma ilusão.
- Quando se ergueu, pegou a faca e passou-a pelo meu peito, de um lado ao outro. Não foi um corte profundo, mas sangrou um pouco. Observou meu rosto por um instante, depois estendeu o dedo e molhou-o no sangue. — A voz de Jamie era instável, tropeçando e gaguejando de vez em quando. - Lambeu o meu sangue do seu dedo, com pequenas lambidas com a língua, como um gato se limpando. Sorriu um pouco, depois, muito delicadamente, inclinou a cabeça para o meu peito. Eu não estava amarrado, mas não poderia me mexer. Eu apenas... fiquei ali, enquanto ele usava sua língua para... Não doeu, mas era uma sensação muito estranha. Após algum tempo, levantou-se e limpou-se cuidadosamente com uma toalha.
Observei a mão de Jamie. O rosto virado, era o melhor indicador de seus sentimentos. Ele cerrava-a convulsivamente na beirada da cama enquanto falava.
- Ele... ele me disse que eu... eu era delicioso. O corte havia praticamente parado de sangrar, mas ele pegou a toalha e esfregou-a com força em meu peito para abrir o ferimento outra vez. - As articulações da mão apertada no catre eram nós de ossos exangues. - Ele desabotoou as calças, espalhou o sangue vivo sobre si mesmo e disse que agora era a minha vez.
Depois, Randall segurou sua cabeça e ajudou-o a vomitar, limpou seu rosto delicadamente com uma toalha e lhe deu um pouco de conhaque para ajudar a tirar o mau cheiro da boca. Assim, alternando crueldade e delicadeza, pouco a pouco, usando a dor como arma, ele destruiu todas as barreiras da mente e do corpo.
Eu queria fazer Jamie parar de falar, dizer-lhe que ele não precisava continuar, não devia continuar, mas mordi o lábio com força para me calar e apertei minhas próprias mãos, com força, para me impedir de tocá-lo.
Então, ele me contou o resto da história; os lentos e deliberados açoites, entremeados de beijos. A dor aguda das queimaduras, administradas para arrancá-lo de uma inconsciência desesperadamente desejada para enfrentar novas humilhações. Contou-me tudo, com hesitações, às vezes com lágrimas, muito mais do que eu poderia suportar ouvir, mas eu o ouvi até o fim, silenciosa como um confessor. Erguia os olhos rapidamente para mim, depois os desviava.
- Eu poderia ter agüentado ser ferido, por pior que fosse. Eu esperava ser... usado e achei que poderia agüentar isso também. Mas eu não podia... Ele não apenas me machucou, ou me usou. Ele fez amor comigo, Claire. E me machucou muito enquanto o fazia, porque para ele isso era amor. E ele me fez corresponder... maldito seja! Ele fez com que eu me excitasse com ele! - Sua mão agarrou-se à cama, sacudindo-a com fúria.
- Na primeira vez, ele foi muito cuidadoso comigo. Usou um óleo e levou muito tempo esfregando-o por todo o meu corpo... pelas minhas partes, suavemente. Eu não podia deixar de ficar excitado assim como não pude deixar de sangrar quando ele me cortou. — A voz de Jamie estava cansada e cheia de desespero. Ele ficou em silêncio e me olhou pela primeira vez desde que entrei no quarto.
- Claire, eu não queria pensar em você. Eu não suportava ficar ali nu e... daquele jeito... e me lembrar de que eu a amava. Era blasfêmia. Quis varrê-la da minha mente e apenas... existir, enquanto tivesse que viver.
Mas ele não permitiria. - Seu rosto estava molhado, mas ele não estava chorando agora.
- Ele falava. Durante todo o tempo, ele falava comigo. Em parte, eram ameaças e, em parte, palavras de amor, mas em geral ele falava de você.
- De mim? - Silenciosa há algum tempo, minha voz saiu da garganta tensa, parecendo um grasnido. Ele balançou a cabeça, olhando para o travesseiro outra vez.
- Sim. Ele tinha muito ciúme de você, sabe.
- Não, eu não sabia.
Ele balançou a cabeça outra vez.
- Ah, sim. Perguntava-me... enquanto me tocava... perguntava-me: "Ela faz isso com você? Sua mulher pode excitá-lo assim?" — Sua voz tremia. - Eu não respondia... nem poderia. Então, ele perguntava como eu achava que você se sentiria de me ver... de me ver... — Mordeu o lábio com força, sem conseguir continuar.
- Ele me feria um pouco, depois parava e me amava até eu começar a ficar excitado... então, me machucava com força e me possuía enquanto me feria. E o tempo todo falava de você e a mantinha diante dos meus olhos. Eu resisti, mentalmente... tentei me manter longe dele, manter minha mente separada do meu corpo, mas a dor atravessava, sem cessar, toda barreira que eu erguia. Eu tentei, Claire... Deus, como eu tentei, mas...
Ele afundou a cabeça entre as mãos, os dedos pressionando as têmporas com força. Falou bruscamente.
- Eu sei por que Alex MacGregor se enforcou. Eu faria o mesmo, se não soubesse que é um pecado mortal. Se ele me condenou em vida, não fará o mesmo comigo no céu. - Houve um instante de silêncio enquanto ele lutava para se controlar. Notei automaticamente que o travesseiro em seus joelhos estava manchado de suor e quis me levantar para trocá-lo para ele. Ele sacudiu a cabeça devagar, ainda olhando fixamente para os pés.
- O... tudo está interligado para mim agora. Não posso pensar em você, Claire, nem mesmo em beijá-la ou tocar sua mão, sem sentir o medo e a dor e a náusea voltarem. Fico aqui deitado sentindo que vou morrer sem o toque de suas mãos, mas quando você me toca, acho que vou vomitar de vergonha e nojo de mim mesmo. Não posso nem mesmo vê-la agora sem... — Pousou a testa nos punhos cerrados, os nós dos dedos enfiados com força nas órbitas. Os tendões de seu pescoço estavam retesados de tensão e sua voz veio abafada.
- Claire, quero que você me deixe. Volte para a Escócia, para Craigh na Dun. Volte para o seu lugar, para seu... marido. Murtagh a levará em segurança, eu contei a ele. - Ficou em silêncio por um instante e eu não me movi.
Ergueu os olhos novamente com uma coragem desesperadora e falou de maneira muito simples.
- Eu a amarei enquanto viver, mas não posso mais ser seu marido. E não serei menos que isso para você. — Seu rosto começou a desmoronar. — Claire, eu a desejo tanto que meus ossos tremem em meu corpo, mas Deus me ajude, tenho medo de tocar em você!
Comecei a me levantar para ir até ele, mas ele me fez parar com um sinal repentino da mão. Seu corpo estava dobrado, o rosto contorcido com a luta interior, e sua voz era sufocada e arquejante.
- Claire... por favor. Por favor, vá. Vou ficar muito enjoado e não quero que você veja. Por favor.
Ouvi a súplica em sua voz e compreendi que precisava poupar-lhe mais esta indignidade, ao menos. Levantei-me e, pela primeira vez em minha vida profissional, deixei um homem doente entregue a si mesmo, indefeso e sozinho.
Deixei seu quarto, entorpecida, e encostei-me na parede branca de pedra do lado de fora, refrescando o rosto afogueado contra os blocos maciços, ignorando os olhares fixos de Murtagh e do irmão William. Deus me ajude, ele dissera. Deus me ajude, tenho medo de tocar em você.
Empertiguei-me e fiquei parada. Bem, por que não? Certamente não havia mais ninguém.
Na hora em que o tempo começa a passar lentamente, ajoelhei-me na nave da capela de St. Giles. Anselmo estava lá, os ombros retos e elegantes sob o hábito, porém ninguém mais. Ele não se moveu nem olhou ao redor, mas o silêncio vivo da capela me envolveu.
Permaneci de joelhos por um instante, tentando absorver a silenciosa escuridão, acalmando o turbilhão em minha mente. Somente quando senti meu coração desacelerar e começar a bater ao ritmo da noite é que deslizei para um banco nos fundos da capela.
Fiquei sentada rígida, não conhecendo a forma e o ritual, as cortesias litúrgicas que facilitavam aos irmãos o acesso às profundezas de sua conversa sagrada. Eu não sabia como começar. Por fim, eu disse, silenciosamente, sem rodeios, que eu precisava de ajuda. Por favor.
Então, deixei que o silêncio jorrasse em ondas à minha volta, envolvendo-me como as dobras de um manto, confortando-me contra o frio. E esperei, como Anselmo me ensinara, e os minutos transcorreram, incontáveis.
Havia uma mesinha no fundo da capela, coberta com uma toalha de linho, onde estava a pia de água benta, e ao lado uma Bíblia e outras duas ou três obras de inspiração. Para serem usadas por fiéis para quem o silêncio era insuportável, creio eu.
O silêncio estava se tornando insuportável para mim e eu me levantei e peguei a Bíblia, levando-a de volta para o genuflexório comigo. Dificilmente eu seria a primeira pessoa a recorrer as sortes Virgilianae em momentos de confusão e dificuldades. Havia luz suficiente das velas para eu ler, virando as páginas delgadas cuidadosamente e esforçando-me para discernir as linhas de letras pretas e minúsculas.
"...e ele os flagelou com o azorrague e eles ficaram muito feridos." Não era de admirar que tivessem ficado, pensei. O que afinal seria azorrague? Em vez disso, tentei os Salmos.
"Mas eu sou um verme e nenhum homem... meu corpo está desfeito como água e todos os meus ossos estão desconjuntados; meu coração parece de cera; está derretido e misturado às minhas entranhas." Bem, sim, um diagnóstico competente, pensei, com alguma impaciência. Mas haveria algum tratamento?
"Mas não te afastes de mim, ó Deus; Senhor, apressa-te para me socorrer. Livra minha alma da espada; meu amado das garras do cão." Hum.
Voltei-me para o Livro de Jó, o preferido de Jamie. Certamente, se alguém estava em posição de oferecer um conselho útil...
"Mas a carne em seu corpo sofrerá e a alma dentro dele se lamentará." Mmm, sim, pensei, e virei a página.
"Ele está prostrado de sofrimento em sua cama e todos os seus ossos clamam de dor... A carne é consumida de seus ossos e desaparece; e seus ossos que não eram visíveis, projetam-se para fora." Exatamente, pensei. E depois?
"Sim, sua alma se aproxima do túmulo e sua vida dos seus destruidores." Não tão bom, mas o próximo trecho era mais alentador. "Se houver um mensageiro com ele, um intérprete, um entre mil, para mostrar sua honradez, então, ele tem piedade e diz: Livre-o do abismo, eu encontrei um resgate. Sua carne será mais viçosa do que a de uma criança; ele retornará aos dias de sua juventude." E qual seria o resgate, então, que recuperaria a alma de um homem e livraria meu amado das garras do cão?
Fechei o livro e os meus olhos. As palavras se confundiam, toldando-se com minha necessidade urgente. Uma tristeza avassaladora apoderou-se de mim quando pronunciei o nome de Jamie. E no entanto havia um pouco de paz ali, um abrandamento da tensão quando disse, inúmeras vezes, "O Senhor, em tuas mãos confio a alma de seu servo Jamie”.
Ocorreu-me o pensamento de que talvez fosse melhor para Jamie que estivesse morto; ele dissera que queria morrer. Eu estava moralmente certa de que se eu o deixasse entregue à própria sorte, logo estaria morto, quer pelas conseqüências da tortura e da doença, na forca ou em alguma batalha.
E eu não tinha a menor dúvida de que ele também sabia disso. Deveria fazer o que ele pedira? De jeito nenhum, disse a mim mesma. De jeito nenhum, disse com raiva ao sol irradiante no altar e abri o livro outra vez. Passou-se algum tempo até eu perceber que a minha súplica já não era um monólogo. Na realidade, só soube disso quando compreendi que havia respondido uma pergunta que não me lembrava de ter formulado. Em meu transe de insone tristeza, algo me fora solicitado, e eu não sabia exatamente o quê, e eu respondera sem hesitar:
— Sim, eu o farei.
Parei bruscamente de pensar, ouvindo o silêncio palpável. Então, mais cautelosamente, repeti, sem voz:
- Sim. Sim, eu o farei. - E um pensamento fugaz atravessou minha mente: As condições do pecado são as seguintes: primeiro, você tem que dar seu consentimento completo a isso... E as condições da graça também, veio em eco a voz tranqüila de Anselmo.
Havia um sentimento, não repentino, mas completo, como se tivessem me dado um pequeno objeto para esconder em minhas mãos. Precioso como a opala, liso como o jade, pesado como um cascalho do rio, mais frágil do que o ovo de um pássaro. Infinitamente imóvel, vivo como a raiz da Criação. Não um presente, mas um depósito em confiança. Para amar febrilmente, para guardar carinhosamente. As palavras falaram por si mesmas e desapareceram nas sombras dos arcos do teto.
Ajoelhei-me diante da Sua presença e deixei a capela, sem duvidar nem por um instante, na eternidade do momento em que o tempo pára, que eu tinha uma resposta, mas não fazia a menor idéia do que era. Sabia apenas que aquilo que eu guardava nas mãos era a alma de um ser humano; a minha própria alma ou a de outra pessoa, isso eu não sabia.
Não parecia ser a resposta a uma prece, quando acordei para a retomada do tempo comum pela manhã e encontrei um irmão laico de pé junto à minha cama, dizendo que Jamie estava ardendo em febre.
- Há quanto tempo ele está assim? - perguntei, colocando a mão experiente na fronte e na nuca, na axila e na virilha. Nenhum sinal de suor aliviando a febre; apenas a pele seca e distendida do persistente ressecamento, ardente de calor. Ele estava consciente, mas tonto e com as pálpebras pesadas. A origem da febre era evidente. A mão direita ferida estava inchada, com uma secreção malcheirosa ensopando as ataduras. Veios vermelhos sinistros subiam do pulso. Uma grave infecção, pensei comigo mesma. Uma terrível infecção, supurada, envenenando seu sangue, ameaçando sua vida.
- Eu o encontrei assim quando vim dar uma olhada nele depois das preces matinais - respondeu o irmão servente que fora me buscar. - Dei-lhe água, mas ele começou a vomitar logo depois do amanhecer.
- Deveria ter me chamado imediatamente - eu disse. - Bem, não importa. Traga-me água quente, folhas de framboesa e chame o irmão Polydore, o mais rápido possível. - Saiu assegurando-me de que iria providenciar um desjejum para mim também, mas descartei a oferta com um gesto da mão, enquanto pegava a jarra de água.
Em seguida, mergulhei a mão infeccionada em água recém-fervida, o mais quente que seria possível agüentar sem queimar a pele. Não dispondo de remédios à base de sulfa ou dos modernos antibióticos, o calor era a única arma contra infecção bacteriana. O corpo do paciente estava fazendo o melhor possível para fornecer este calor por meio da febre alta, mas a febre em si colocava um grave problema, desgastando os músculos e danificando as células cerebrais. O truque era aplicar bastante calor local para destruir a infecção, enquanto mantinha o resto do corpo suficientemente frio para evitar danos e suficientemente hidratado para manter as funções normais. Um maldito ato de equilíbrio de três vértices, pensei desoladamente.
Nem o estado de espírito de Jamie nem seu desconforto físico eram mais relevantes. Era uma luta direta para mantê-lo vivo até que a infecção e a febre fossem debeladas; nada mais importava.
Na tarde do segundo dia, ele começou a delirar. Nós o amarramos à cama com tiras macias para evitar que se arremessasse ao chão. Finalmente, como uma medida desesperada para reduzir a febre, pedi a um dos irmãos que me trouxesse lá de fora um grande cesto de neve, que arrumamos ao seu redor. Isso resultou em violentos tremores que o deixaram exaurido, mas que logo fez sua temperatura abaixar.
Infelizmente, o tratamento tinha que ser repetido de hora em hora. Ao pôr-do-sol, o quarto parecia um pântano, com poças de neve derretida pelo chão, pilhas de panos encharcados amontoados entre elas e vapores como os de gás de pântano erguendo-se do braseiro no canto. O irmão Polydore e eu mesma estávamos encharcados também, de suor, enregelados de água da neve e à beira da exaustão, apesar da ajuda de Anselmo e dos irmãos laicos. Antitérmicos como margarida-amarela, hidraste, gatária e hissopo haviam sido experimentados, sem resultado. O chá de casca de salgueiro, que poderia ajudar com seu componente de ácido salicílico, não podia ser consumido em quantidades suficientes para produzir o efeito desejado.
Em um de seus intervalos de lucidez cada vez mais raros, Jamie pediu-me para deixá-lo morrer. Respondi concisamente, como na noite anterior, continuando com o que estava fazendo:
- De jeito nenhum.
Quando o sol se pôs, ouviu-se o ruído de homens aproximando-se pelo corredor. A porta abriu-se e o abade, o tio Alex de Jamie, entrou, acompanhado do irmão Anselmo e de três outros monges, um deles carregando uma pequena caixa de cedro. O abade aproximou-se de mim e abençoou-me rapidamente, em seguida tomou minha mão nas suas.
- Nós vamos ungir o rapaz - disse, a voz grave e gentil. - Não tenha medo.
Virou-se para a cama e olhei desesperada e transtornada para Anselmo, em busca de uma explicação.
- A extrema-unção - explicou, aproximando-se de modo que sua voz baixa não perturbasse os monges reunidos em volta da cama. - Os últimos sacramentos.
- Extrema-unção! Mas é para pessoas que estão à morte!
- Sssh. - Afastou-me da cama. - Deveria ser chamado mais adequadamente de unção do doente, embora na verdade geralmente seja reservada para os que correm risco de vida. — Os monges haviam girado Jamie delicadamente de costas, acomodando-o cuidadosamente para que pudesse ficar deitado naquela posição com o mínimo de dor nos ombros feridos.
- O sacramento tem um duplo propósito — Anselmo continuou, murmurando em meu ouvido conforme os preparativos continuavam. — Primeiro, é um sacramento de cura; rezamos para que a saúde do sofredor seja restaurada, se este for o desejo de Deus para ele. A crisma, o óleo consagrado, é usada como um símbolo de vida e de cura.
- E o segundo propósito? — perguntei, já sabendo a resposta. Anselmo confirmou, balançando a cabeça.
- Se não for a vontade de Deus que ele se recupere, então ele é absolvido de seus pecados e nós o encomendamos a Deus, para que sua alma parta em paz. — Ele percebeu que eu me retesava em protesto e colocou a mão em meu braço, em sinal de advertência.
- Estas são as últimas cerimônias da Igreja. Ele tem direito a elas e toda paz que possam lhe trazer.
Os preparativos foram concluídos. Jamie continuava de costas, um lençol cobrindo recatadamente seus quadris, com velas acesas à cabeceira e ao pé da cama, que me faziam lembrar de forma extremamente desagradável de velas de defunto. O abade Alexander sentou-se ao lado da cama, acompanhado por um monge que segurava uma bandeja com um cibório coberto, dois pequenos frascos de prata contendo água benta e óleo perfumado, e uma toalha branca dobrada sobre cada braço. Como um maldito garçom de vinhos, pensei com raiva. O procedimento todo me enervava.
Os ritos foram conduzidos em latim, os versículos cantados pelo celebrante eram murmúrios suaves e tranqüilizadores aos ouvidos, embora eu não entendesse o significado. Anselmo murmurava em voz baixa para mim o significado de algumas partes da cerimônia; outras eram auto-explicativas. Em determinado momento, o abade fez um sinal a Polydore, que deu um passo à frente e segurou um pequeno frasco sob o nariz de Jamie.
Devia conter uma solução de amônia ou algum outro estimulante, porque ele fez um movimento brusco e virou a cabeça, os olhos ainda fechados.
— Por que estão tentando acordá-lo? — sussurrei.
- Se possível, a pessoa deve estar consciente a fim de concordar com a declaração de que ele se arrepende dos pecados que cometeu em sua vida. Além disso, se for capaz de recebê-lo, o abade lhe dará o sacramento da Eucaristia.
O abade tocou de leve o rosto de Jamie, virando sua cabeça para o frasco, falando-lhe em voz baixa. Deixara de lado do latim e falava no forte sotaque escocês de sua família, suavemente.
- Jamie! Jamie, meu rapaz! É Alex, rapaz. Estou aqui com você. Precisa acordar um pouco agora, apenas por um instante. Vou lhe dar a absolvição agora e depois a hóstia sagrada. Tome um pequeno gole agora, para que possa me responder quando for necessário. - O monge de nome Polydore segurou a caneca junto aos lábios de Jamie, cuidadosamente entornando umas gotas de cada vez, até que a língua e a garganta ressecadas pudessem aceitar mais. Seus olhos estavam abertos, ainda pesados de febre, mas agora suficientemente alertas.
O abade continuou, as perguntas em inglês, mas tão baixas que eu mal conseguia compreendê-las. "Renuncia ao diabo e a todos os seus atos?", "Acredita na Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo?" e assim por diante. A cada uma, Jamie respondia "Sim", num murmúrio rouco.
Uma vez consagrado o sacramento, Jamie relaxou com um suspiro, fechando os olhos mais uma vez. Eu podia ver suas costelas conforme o peito saltado movia-se com a respiração. Ele havia se consumido terrivelmente com a doença e a febre. O abade, pegando os frascos de água benta e de óleo sagrado, um de cada vez, fez o sinal-da-cruz sobre seu corpo, ungindo a testa, os lábios, o nariz, as orelhas e as pálpebras. Em seguida, ele fez o sinal-da-cruz com o óleo sagrado na cavidade do peito sobre o coração, na palma de cada um das mãos e no arco de cada pé. Ergueu a mão ferida com infinito cuidado, passando o óleo de leve sobre os ferimentos e recolocando-a sobre o peito de Jamie. Onde descansou sobre o talho lívi-do da cicatriz da faca.
A unção foi rápida e extremamente delicada, um toque de pena com o polegar rápido do abade. "Magia supersticiosa", dizia o lado racional do meu cérebro, mas estava profundamente emocionada pelo amor visível nos rostos dos monges enquanto rezavam. Os olhos de Jamie abriram-se mais uma vez, mas estavam muito calmos e seu rosto estava em paz pela primeira vez desde que deixáramos Lallybroch.
A cerimônia foi encerrada com uma curta prece em latim. Colocando a mão na cabeça de Jamie, o abade disse em inglês:
— Senhor, em Vossas mãos encomendamos a alma de Vosso servo, James. Curai-o, rogamos, se esta for a Vossa vontade, e fortalecei sua alma, para que ele seja pleno de graça e conheça a Vossa paz por toda a eternidade.
- Amém - responderam os outros monges. E eu também.
À noite, o paciente havia caído num estado de semiconsciência outra vez. À medida que as forças de Jamie se exauriam, tudo que podíamos fazer era acordá-lo para os goles dágua que o mantinham vivo. Seus lábios estavam rachados e descascados, de modo que não conseguia falar, embora ainda abrisse os olhos embaciados quando sacudido com firmeza. Já não nos reconhecia; seus olhos fitavam o vazio, depois gradualmente se fechavam enquanto ele virava a cabeça, gemendo.
Permaneci junto ao seu leito, olhando-o, tão exausta com os rigores do dia que não sentia nada além de um desespero entorpecido. O irmão Polydore tocou-me devagar, tirando-me do meu torpor.
- Não pode fazer nada mais por ele agora - disse, afastando-me dali com firmeza. — Tem que ir descansar.
- Mas - comecei a dizer, depois parei. Ele tinha razão, concluí. Havíamos feito tudo que era possível. Ou a febre cedia por si mesma dentro de pouco tempo ou Jamie morreria. Nem mesmo um corpo extremamente forte podia agüentar a devastação consumidora da febre alta por mais de um ou dois dias e restavam poucas forças a Jamie para sustentá-lo durante esta provação.
- Eu ficarei com ele - disse Polydore. - Vá para sua cama. Eu a chamarei se... — Não terminou a frase, mas fez sinal delicadamente para que eu seguisse na direção de meu próprio quarto.
Fiquei deitada, insone, na minha cama, fitando a viga do teto. Meus olhos estavam secos e febris, minha garganta doía, como se estivesse com febre também. Seria esta a resposta à minha prece, de que morrêssemos juntos ali?
Finalmente, levantei-me e peguei a jarra e a bacia da mesa junto à porta. Coloquei a pesada bacia de louça no centro do quarto, no chão, e enchi-a cuidadosamente, deixando a água transbordar e se transformar numa bolha trepidante.
Eu passara rapidamente pelo herbanário do irmão Ambrose antes de ir para o meu quarto. Desfiz os pequenos pacotes de ervas e espalhei o conteúdo no meu braseiro, onde as folhas de mirra exalavam uma fumaça aro-mática e nacos de cânfora queimavam em pequenas chamas azuis entre a incandescência vermelha dos pedaços de carvão.
Coloquei a vela atrás da superfície refletora da água, tomei posição à sua frente e preparei-me para evocar um fantasma.
O corredor de pedras estava frio e escuro, iluminado a intervalos pela luz fraca de lamparinas de óleo penduradas do teto. Minha sombra alongava-se à minha frente, sob os meus pés, quando passava embaixo de cada uma delas, estendendo-se até parecer mergulhar de cabeça e desaparecer na escuridão adiante.
Apesar do frio, eu estava descalça e usando apenas uma camisola de algodão rústico branco. Um pequeno invólucro de calor movia-se comigo por baixo da camisola, mas o frio das pedras subia pelos meus pés e pernas.
Bati uma vez, de leve, e abri a porta pesada sem esperar resposta.
O irmão Roger estava com ele, sentado ao lado da cama, rezando o terço com a cabeça baixa. O rosário de madeira chocalhou quando ele ergueu a cabeça, mas seus lábios continuaram a se mover silenciosamente por alguns segundos, terminando a ave-maria antes de reagir à minha presença.
Veio ao meu encontro junto à porta, falando em voz baixa, embora fosse óbvio que ele podia gritar que não iria perturbar a figura imóvel sobre a cama.
- Nenhuma alteração. Acabo de trocar a água do banho da mão. -Algumas gotas brilhavam nas laterais da pequena chaleira cheia outra vez e recolocada sobre o braseiro.
Fiz um sinal afirmativo com a cabeça e coloquei a mão em seu braço em agradecimento. Era surpreendentemente sólido e cálido depois das fantasias da última hora e, de certa forma, reconfortante.
— Gostaria de ficar sozinha com ele, se não se importar.
- Claro. Vou para a capela. Ou deveria ficar por perto caso... - sua voz definhou, hesitante.
— Não - tentei sorrir de maneira tranqüilizadora. - Vá para a capela. Ou melhor ainda, vá para a cama. Eu não consigo dormir; ficarei aqui até o amanhecer. Se precisar de ajuda, mandarei chamá-lo.
Ainda em dúvida, virou-se para olhar para a cama. Mas era muito tarde e ele estava cansado; havia olheiras sob seus meigos olhos castanhos.
A pesada porta rangeu nas dobradiças e eu fiquei sozinha com Jamie. Sozinha e com medo, e com muita, muita dúvida em relação ao que eu pretendia fazer.
Parei ao pé da cama, observando-o por um instante. O quarto estava fracamente iluminado pelo braseiro e dois círios, cada um com cerca de um metro de altura, sobre a mesa em um canto do aposento. Ele estava despido e a luz minguada parecia acentuar as cavidades deixadas pela febre debilitante. A contusão multicor sobre suas costelas manchava a pele como um fungo que se propagava.
Um homem à beira da morte adquire uma tonalidade levemente esverdeada. No começo, apenas um pouco no maxilar, essa palidez vai se espalhando gradualmente pelo rosto e descendo para o peito, conforme a força da vida começa a se esvair. Já a vira inúmeras vezes. Bem poucas vezes, eu vira esse avanço mortal parar e reverter, a pele ficar rosada de sangue outra vez e o sujeito viver. Mais freqüentemente, porém... sacudi-me vigorosamente e me afastei da cama.
Tirei a mão das dobras da minha camisola e coloquei sobre a mesa os objetos que eu reunira na visita clandestina que fizera à oficina às escuras do irmão Ambrose. Um frasco de amônia. Um pacote de lavanda seca. Outro de valeriana. Um pequeno queimador de incenso de metal, no formato de uma flor aberta. Duas pelotas de ópio, de cheiro adocicado e pegajosas de resina. E uma faca.
O quarto estava fechado e abafado com a fumaça do braseiro. A única janela estava coberta com uma tapeçaria pesada, retratando a execução de São Sebastião. Olhei para o rosto do santo, voltado para cima, o peito cravado de flechas, perguntando-me uma vez mais o que levaria uma pessoa a escolher aquela decoração em particular para o quarto de um doente.
Apesar da maneira indiferente como fora colocada ali, a pesada tapeçaria de lã e seda barrava todas as correntes de ar, a não ser as muito fortes. Levantei sua parte inferior e sacudi-a, fazendo a fumaça do carvão sair pelo arco de pedra. O ar úmido e frio que entrou era revigorante e acalmou um pouco minhas têmporas que começaram a latejar quando eu fitava o espelho de água, recordando-me.
Ouvi um fraco gemido atrás de mim e Jamie remexeu-se na corrente de ar. Ótimo. Portanto, não estava profundamente inconsciente.
Deixando a tapeçaria voltar à sua posição na janela, peguei o queimador de incenso. Fixei uma das pelotas de ópio no pino do queimador e acendi-o com uma vela fina usada para acender as velas maiores nos castiçais. Coloquei-o na mesinha-de-cabeceira de Jamie, tomando cuidado para eu mesma não inalar os vapores enjoativos.
Não havia muito tempo. Precisava terminar meus preparativos rapidamente, antes que a fumaça do ópio o deixasse drogado demais para despertar.
Desatei o laço da frente da minha camisola e esfreguei rapidamente grandes porções da lavanda e da valeriana no meu corpo. Era um cheiro picante, agradável, peculiar e carregado de lembranças. Um aroma que, para mim, invocava a sombra do homem que usava este perfume e a sombra do homem atrás dele; sombras que traziam de volta imagens confusas de terror atual e amor perdido. Um aroma que, para Jamie, devia trazer de volta as horas de dor e raiva passadas em meio a suas ondas. Esfreguei o resto vigorosamente entre as palmas das mãos e espalhei os pequenos fragmentos pelo chão.
Inspirando profundamente para reunir coragem, peguei o frasco de amônia. Fiquei parada junto à cama por um instante, segurando-o, olhando para o rosto macilento, a barba espetada. No máximo, duraria mais um dia; no mínimo, apenas mais algumas horas.
- Muito bem, seu maldito escocês filho-da-mãe - eu disse baixinho. — Vamos ver até onde vai sua teimosia. — Levantei a mão machucada, escorrendo água, e coloquei de lado a vasilha onde estava mergulhada.
Abri o frasco e passei-o bem junto ao seu nariz. Ele resfolegou e tentou desviar a cabeça, mas não abriu os olhos. Enfiei os dedos nos cabelos na parte de trás de sua cabeça para impedir que desviasse o rosto e levei o frasco de novo ao seu nariz. Ele sacudiu a cabeça devagar, balançando-a de um lado para o outro como um boi acordado de seu repouso. Seus olhos abriram apenas uma estreita fenda.
- Ainda não acabei, Fraser - sussurrei em seu ouvido, tentando da melhor forma possível reproduzir o ritmo das consoantes reduzidas do modo de falar de Randall.
Jamie gemeu e encolheu-se. Agarrei-o pelos ombros e sacudi-o vigorosamente. Sua pele estava tão quente que quase o soltei.
- Acorde, escocês filho-da-mãe! Ainda não acabei com você! - Ele começou a lutar para apoiar-se nos cotovelos, num lamentável esforço de obediência que quase partiu meu coração. Sua cabeça ainda balançava para a frente e para trás e os lábios rachados murmuravam alguma coisa que soava como "por favor, agora não", incessantemente.
Sem forças, rolou para o lado e caiu de rosto no travesseiro outra vez. O quarto começava a se encher de fumaça de ópio e me senti ligeiramente tonta.
Cerrei os dentes e enfiei a mão entre suas nádegas, agarrando uma parte redonda. Ele gritou, um grito agudo e sem ar, e rolou dolorosamente de lado, curvando-se numa bola com as mãos juntas entre as pernas.
Eu passara a última hora em meu quarto, pairando acima do reflexo na água, evocando lembranças. De Black Jack Randall e de Frank, seu descendente. Homens tão diferentes, mas com semelhanças físicas tão surpreendentes.
Dilacerava meu coração pensar em Frank, lembrar de seu rosto e de sua voz, seus maneirismos, seu modo de fazer amor. Eu tentara apagá-lo de minha lembrança, quando fiz minha escolha no círculo de pedras, mas ele estava sempre lá, uma sombra nos recessos de minha mente.
Sentia-me nauseada por tê-lo traído, mas por fim forçara minha mente a livrar-se dele como Geilie me ensinara, concentrando-me na chama da vela, respirando a adstringência das ervas, acalmando-me até conseguir trazê-los da escuridão, ver as linhas de seu rosto, sentir outra vez o toque de sua mão sem chorar.
Havia um outro homem nas sombras, com as mesmas mãos, o mesmo rosto. Os olhos iluminados pela chama da vela, eu o trouxera para a luz também, ouvindo, observando, vendo a semelhança e as diferenças, construindo - o quê? Um simulacro, uma persona, uma impressão, uma pantomima. Um rosto sombreado, uma voz sussurrada e um toque amoroso que eu pudesse usar para enganar uma mente levada pelo delírio. E finalmente eu deixara meu quarto, com uma prece pela alma da bruxa Geillis Duncan.
Jamie estava deitado de costas agora, contorcendo-se levemente com a dor de seus ferimentos. Seus olhos estavam fixos e arregalados, sem nenhum sinal de reconhecimento.
Acariciei-o da maneira que tão bem conhecia, delineando a linha de suas costelas do esterno até as costas, de leve, como Frank teria feito, pressionando com força sobre a mancha dolorida, como tinha certeza que o outro faria. Inclinei-me e passei a língua devagar em volta de sua orelha, lambendo e sondando, e sussurrei:
- Lute contra mim! Revide, seu desgraçado!
Seus músculos retesaram-se e seu maxilar trincou-se, mas ele continuou olhando fixamente para o teto. Então, eu não tinha escolha. Teria que usar a faca. Eu sabia o risco que estava correndo, mas era melhor que eu mesma o matasse, pensei, do que ficar sentada ao seu lado, deixando-o morrer.
Peguei a faca que estava em cima da mesa e passei-a com firmeza de um lado ao outro de seu peito, ao longo da cicatriz recém-fechada. Ele arquejou com o choque e arqueou as costas. Pegando uma toalha, esfreguei-a asperamente no ferimento. Antes que eu pudesse fraquejar, forcei-me a correr os dedos pelo seu peito, lambuzando-os no sangue, que passei em seus lábios. Havia uma frase que eu não tive que inventar, tendo eu mesma ouvido dos seus lábios. Inclinando-me sobre ele, murmurei:
- Agora, beije-me.
Eu não estava absolutamente preparada para o que sobreveio. Ele me lançou do outro lado do quarto ao sair da cama. Cambaleei e caí contra a mesa, fazendo os círios oscilarem. As sombras correram e balançaram-se quando os pavios flamejaram e apagaram-se.
Eu havia batido as costas com força contra a borda da mesa, mas recuperei-me a tempo de me esquivar quando ele se arremessou sobre mim. Com um rosnado desarticulado, veio ao meu encalço, as mãos estendidas.
Ele era mais rápido e mais forte do que eu esperara, embora cambaleasse atabalhoadamente, batendo nos móveis. Encurralou-me por um instante entre o braseiro e a mesa e pude ouvir sua respiração arranhando sua garganta enquanto tentava me agarrar. Arremessou a mão esquerda sobre meu rosto; se suas forças e reflexos estivessem normais, o golpe teria me matado. Ao invés disso, dei um salto para o lado e seu punho cerrado raspou minha testa, derrubando-me no chão, atordoada.
Engatinhei para baixo da mesa. Tentando me alcançar, ele perdeu o equilíbrio e caiu sobre o braseiro. Brasas incandescentes espalharam-se pelo chão de pedra. Ele uivou quando seu joelho triturou pesadamente um pedaço de carvão em brasa. Peguei um travesseiro da cama e bati até apagar um punhado de fagulhas chamejantes que caíra sobre a coberta de cama que se arrastava pelo chão. Preocupada com isso, não notei sua aproximação, até que um golpe em cheio na minha cabeça me estatelou no chão.
O catre virou quando tentei me erguer, apoiando-me em sua estrutura com uma das mãos. Fiquei abrigada embaixo dele por um instante, tentando recuperar os sentidos. Podia ouvir Jamie caçando-me na penumbra, a respiração áspera e arquejante entre imprecações incoerentes em gaélico. De repente, avistou-me e atirou-se sobre a cama, os olhos enlouquecidos à luz turva.
É difícil descrever detalhadamente o que aconteceu em seguida, principalmente porque aconteceu várias vezes e todas as vezes se sobrepõem em minha lembrança. Parece que as mãos ardentes de Jamie fecharam-se em meu pescoço apenas uma vez, mas essa única vez continuou indefinidamente. Na realidade, aconteceu inúmeras vezes. Toda vez eu conseguia livrar-me de suas mãos e empurrá-lo, recuava novamente, esquivando-me e agachando-me em volta da mobília destruída. E de novo ele vinha em meu encalço, um homem arrancado das garras da morte pela fúria, praguejando e soluçando, cambaleando e chocando-se violentamente contra tudo à sua volta.
Privadas da proteção do braseiro, as brasas apagaram-se rapidamente, deixando o aposento negro como breu e povoado de demônios. Nos últimos estertores de luz, eu o vi agachado contra a parede, com uma juba de fogo e coberto de sangue, o pênis rígido contra os pêlos de sua barriga, os olhos azuis vidrados com um brilho assassino no rosto lívido e encovado. Um viking furioso. Como os demônios nórdicos que irromperam de seus navios ornados de carrancas de dragões na névoa da antiga costa escocesa, para matar, saquear e incendiar. Homens que matariam ainda que estivessem no fim de suas forças. Que usariam estas últimas forças para estuprar e semear sua violenta semente nos ventres dos conquistados. O minúsculo queimador de incenso não emitia nenhuma luz, mas o enjoativo cheiro de ópio entupia meus pulmões. Embora as brasas estivessem extintas, eu via luzes na escuridão, luzes coloridas que flutuavam nos cantos da minha visão.
Estava cada vez mais difícil me mover; parecia que estava tentando atravessar o mar e era perseguida por um peixe monstruoso. Erguia meus joelhos bem alto, correndo em câmara lenta, sentindo a água respingar no meu rosto.
Sacudi a cabeça, tentando livrar-me do pesadelo, e percebi que na realidade havia algo úmido em meu rosto e nas mãos. Não lágrimas, mas o sangue e o suor da criatura do pesadelo com quem me atraquei no escuro.
Suor. Havia algo de que eu devia me lembrar a respeito de suor, mas não conseguia. A mão do monstro agarrou meu braço, eu me desvencilhei e ela deixou uma película escorregadia na minha pele.
Girando e girando, a caça e o caçador. Mas havia algo errado, eu era a caça, perseguida por um animal de dentes brancos e afiados que se cravaram no meu antebraço. Golpeei-o e ele me soltou, mas as garras... girando e girando...
O demônio me imprensou contra a parede; podia sentir pedra atrás de minha cabeça e pedra embaixo dos meus dedos que tentavam se agarrar a ela. E um corpo duro como pedra pressionando-se com força contra o meu, o joelho pontudo entre os meus, pedra e osso, entre minhas próprias... pernas, mais rigidez de pedra... ah. Uma suavidade entre as dificuldades da vida, um frescor agradável em meio ao calor, conforto em meio à desgraça...
Caímos entrelaçados no chão, rolando sem parar, enredados nas dobras da tapeçaria que despencara, banhados nas correntes de ar frio que entravam pela janela. As névoas da loucura começaram a recuar.
Batemos contra alguma peça do mobiliário e ambos permanecemos imóveis. As mãos de Jamie estavam agarradas aos meus seios, os dedos dolorosamente cravados na carne. Senti gotas caindo no meu rosto, de suor ou lágrimas, eu não sabia, mas abri os olhos para ver. Jamie me olhava, o rosto impenetrável à luz da lua, os olhos arregalados, desfocados. Suas mãos relaxaram. Um dos dedos traçou o contorno do meu seio delicadamente, da curva ao mamilo, incessantemente. Sua mão moveu-se e segurou meu seio por inteiro, os dedos abertos como uma estrela-do-mar, macia como a mão de uma criança que está sendo amamentada.
- M-mamãe? - ele disse. Os cabelos da minha nuca eriçaram-se. Era a voz aguda, límpida, de um menino. - Mamãe?
O ar frio nos banhou, levando a fumaça doentia num redemoinho de flocos de neve. Estendi o braço e coloquei a palma da minha mão em sua face fria.
- Jamie, meu amor - eu disse, sussurrando através da garganta dolorida. - Venha, deite sua cabeça aqui, rapazinho. - A máscara estremeceu e desmoronou e eu abracei o corpo imenso com força contra o meu, nós dois tremendo com a força dos seus soluços.
Para nossa grande sorte, foi o inabalável irmão William quem nos achou pela manhã. Acordei zonza com o ruído da porta se abrindo e despertei inteiramente quando o ouvi pigarrear enfaticamente antes de dizer, com seu suave sotaque de Yorkshire:
- Bom dia para vocês.
O pesado fardo sobre mim era o corpo de Jamie. Seu cabelo secara em mechas de bronze e caía em caracóis sobre meus seios como as pétalas de um crisântemo chinês. A face pressionada contra meu esterno estava quente e ligeiramente pegajosa de suor, mas as costas e os braços que eu podia tocar estavam tão frios quanto minhas coxas, resfriados pelo ar de inverno que soprava sobre nós.
A luz do dia que penetrava pela janela sem cortina revelava toda a extensão da destruição que eu apenas percebera indistintamente na noite anterior; móveis e louças quebrados entulhavam o quarto e as duas velas maciças estavam atiradas ao chão como troncos caídos em meio a uma confusão de cortinas rasgadas e roupas de cama espalhadas. Pelo padrão das marcas dolorosamente impressas nas minhas costas, eu devia estar deitada sobre a tapeçaria de São Sebastião, a almofada de alfinetes humana; não era uma grande perda para o mosteiro.
O irmão William ficou parado, imóvel, na soleira da porta, jarra e bacia na mão. Com grande precisão, fixou os olhos na sobrancelha esquerda de Jamie e perguntou:
- E como se sente nesta manhã?
Houve uma pausa um tanto longa, durante a qual Jamie, com grande consideração, permaneceu onde estava, cobrindo a maior parte do meu corpo. Finalmente, no tom rouco de alguém ao qual fora concedida uma revelação, ele respondeu:
- Com fome.
- Ah, que bom - disse o irmão William, ainda fitando intensamente a sobrancelha. - Vou dizer ao irmão Josef. — A porta fechou-se silenciosamente atrás dele.
- Obrigada por não se mexer — observei. — Não gostaria que fôssemos responsáveis por dar pensamentos impuros ao irmão William.
Densos olhos azuis fitaram-me de cima.
- Ah, bem - disse criteriosamente. - Uma visão do meu traseiro não vai corromper os votos sagrados de ninguém; não nas condições atuais. Já o seu... - Parou para limpar a garganta.
- O que tem o meu? - perguntei.
A cabeça ruiva abaixou-se devagar para plantar um beijo em meu ombro.
- O seu colocaria um bispo em perigo.
- Mmmmhum. - Eu mesma, pensei, estava ficando boa em sons escoceses. - Seja como for, é melhor se mover agora. Acho que nem mesmo o tato do irmão William é infinito.
Jamie deitou a cabeça ao lado da minha com cuidado, em uma dobra da tapeçaria, de onde me olhou de viés.
- Não sei quanto da noite passada eu sonhei e quanto foi real. - Sua mão inconscientemente deslizou sobre o arranhão que atravessava seu peito. — Mas se metade do que acho que aconteceu tiver realmente acontecido, eu devia estar morto agora.
- Não está. Eu verifiquei. — Com alguma hesitação, perguntei: — Você desejaria estar?
Ele sorriu devagar, os olhos semicerrados:
- Não, Sassenach.
Seu rosto estava macilento e sombrio da doença e do cansaço, mas estava em paz, as linhas em volta da boca haviam desaparecido e seus olhos azuis estavam límpidos.
- Mas estou bem perto disso, queira ou não. A única razão para eu achar que não estou morrendo agora é porque estou com fome. Não estaria faminto se estivesse prestes a morrer, não acha? Parece um desperdício. — Um dos olhos fechou-se totalmente, mas o outro permaneceu semi-aberto, fixo em meu rosto com uma expressão cômica.
- Não consegue se levantar?
Ele pensou cuidadosamente na pergunta.
- Se minha vida dependesse disso, eu talvez conseguisse erguer a cabeça outra vez. Mas levantar-me? Não.
Com um suspiro, esgueirei-me de baixo dele e ajeitei a cama antes de tentar alavancá-lo para a posição vertical. Ele conseguiu ficar em pé apenas alguns segundos antes de seus olhos se revirarem para trás e ele cair atravessado na cama. Tateei freneticamente em seu pescoço para achar a pulsação e a encontrei, lenta e forte, logo abaixo da cicatriz de três pontas na base de sua garganta. Pura exaustão. Após um mês aprisionado e uma semana de intenso estresse físico e mental, fome, ferimentos, doença e febre alta, até mesmo aquela compleição vigorosa havia finalmente chegado ao fim de suas forças.
- O coração de um leão — eu disse, sacudindo a cabeça - e a cabeça de um boi. Pena que não tenha também o couro de um rinoceronte. — Toquei um vergão em seu ombro que se abrira e começara a sangrar de novo.
Ele abriu um olho.
- O que é um rinoceronte?
- Pensei que estivesse inconsciente!
- Estava. Estou. Minha cabeça está girando como um pião. Cobri-o com um cobertor.
- O que você precisa agora é de comida e descanso.
- O que você precisa agora - ele disse - é de roupas. - E fechando os olhos outra vez, adormeceu imediatamente.
Não me lembro de ter encontrado o caminho para a minha cama, mas devo tê-lo feito porque acordei ali. Anselmo estava sentado junto à janela, lendo. Sentei-me na cama com um salto.
- Jamie? - perguntei com a voz rouca.
- Dormindo - ele disse, deixando o livro de lado. Olhou para a vela de marcar horas sobre a mesa. - Como você. Esteve com os anjos nas últimas trinta e seis horas, ma belle. — Encheu uma caneca de uma jarra de cerâmica e segurou-a junto aos meus lábios.
Em outra época, eu teria considerado o fato de beber vinho na cama antes de escovar os dentes como a última palavra em decadência. Quando realizado num mosteiro, na companhia de um franciscano em seu hábito, o ato parecia menos degenerado. E o vinho realmente cortou a sensação musgosa em minha boca.
Lancei os pés para fora da cama e fiquei sentada, oscilando. Anselmo segurou-me pelo braço e me ajudou a deitar outra vez. De repente, ele parecia ter quatro olhos e mais narizes e bocas do que o estritamente necessário.
- Estou um pouco tonta — eu disse, fechando os olhos. Abri um deles. Um pouco melhor. Pelo menos, havia apenas um Anselmo, ainda que um pouco embaçado nos contornos.
Anselmo inclinou-se sobre mim, preocupado.
- Quer que eu vá buscar o irmão Ambrose ou o irmão Polydore, madame? Tenho pouca habilidade em medicina, infelizmente.
- Não, não preciso de nada. É que me levantei rápido demais. - Tentei novamente, mais devagar. Desta vez, o quarto e tudo que havia nele permaneceram relativamente imóveis. Notei inúmeras manchas roxas e contusões antes submersas na minha tontura. Tentei limpar a garganta e senti que doía. Fiz uma careta de dor.
- Realmente, ma chère, acho que talvez... - Anselmo estava parado junto à porta, pronto para sair em busca de ajuda. Parecia bastante assustado. Estendi a mão para o espelho sobre a mesa e depois mudei de idéia. Não estava realmente pronta para o que veria. Em vez disso, agarrei a jarra de vinho.
Anselmo voltou devagar para dentro do quarto e ficou observando-me. Uma vez convencido de que afinal eu não ia desmaiar, sentou-se outra vez. Tomei o vinho em pequenos goles enquanto minha mente clareava, tentando livrar-me dos efeitos colaterais dos sonhos induzidos pelo ópio. Então, estávamos vivos, afinal. Nós dois.
Meus sonhos foram caóticos, repletos de violência e sangue. Sonhei inúmeras vezes que Jamie estava morto ou morrendo. E em algum lugar na neblina havia a imagem do garoto na neve, seu rosto redondo e surpreso sobrepondo-se à imagem do rosto ferido e espancado de Jamie. Às vezes, a penugem patética do bigode parecia surgir no rosto de Frank. Lembrei-me distintamente de ter matado todos os três. Sentia como se tivesse passado a noite num massacre e todos os meus músculos doíam com uma espécie de depressão apática.
Anselmo ainda estava ali, observando-me pacientemente, as mãos nos joelhos.
- Há uma coisa que poderia fazer por mim, padre - eu disse.
Ele levantou-se imediatamente, ansioso para ajudar, estendendo a mão para a jarra.
- Claro. Mais vinho? Sorri debilmente.
- Sim, porém mais tarde. No momento, quero que ouça minha confissão.
Ele ficou surpreso, mas rapidamente recompôs o ar profissional como se fosse o hábito que vestia.
- Mas, é claro, chère madame, se assim o deseja. Mas não seria melhor se eu fosse buscar o padre Gerard? Ele é famoso como confessor, ao passo que eu — encolheu os ombros do jeito gaulês — tenho permissão para ouvir confissões, é claro, mas na verdade raramente o faço, sendo apenas um pobre estudioso.
- Eu quero o senhor - eu disse com firmeza. - E quero fazer isso agora.
Ele suspirou, resignado, e saiu para pegar sua estola. Arrumando-a em volta do pescoço de modo que a seda roxa ficasse reta e lustrosa sobre a frente preta do hábito, sentou-se no banco, abençoou-me rapidamente e recostou-se, aguardando.
E eu lhe contei. Tudo. Quem eu era e como fora parar ali. Sobre Frank e sobre Jamie. E sobre o jovem soldado inglês dos dragões com o rosto pálido, cheio de espinhas, morrendo sobre a neve.
Ele não mostrou nenhuma mudança de expressão enquanto eu falava, exceto que os olhos castanhos e arredondados ficaram ainda mais redondos. Quando terminei, ele piscou uma ou duas vezes, abriu a boca para falar, fechou-a outra vez e sacudiu a cabeça como se quisesse desanuviá-la.
- Não - eu disse, pacientemente. Limpei minha garganta outra vez; grasnei como um sapo grande. - Não esteve ouvindo coisas. E não as está imaginando, tampouco. Entende agora por que eu queria que ouvisse sob o sigilo da confissão?
Assentiu, um pouco distraído.
- Sim. Sim, claro. Se... mas, sim. Claro, não queria que eu contasse a ninguém. Além disso, como falou comigo sob o sigilo do sacramento, espera que eu acredite. Mas... - Coçou a cabeça, depois ergueu os olhos para mim. Um amplo sorriso espalhou-se lentamente pelo seu semblante.
- Mas que maravilha! — exclamou em voz baixa. — Que extraordinário! Maravilhoso!
- "Maravilhoso" não é exatamente a palavra que eu teria escolhido -eu disse secamente —, mas "extraordinário" certamente. - Tossi e peguei a caneca para tomar mais um gole de vinho.
- Mas é... é um milagre - ele disse, como se falasse consigo mesmo.
- Se prefere assim — eu disse, com um suspiro. — Mas o que eu quero saber é o que devo fazer. Sou culpada de assassinato? Ou de adultério? Não que haja muita coisa a ser feita em nenhum dos dois casos, mas eu gostaria de saber. E já que estou aqui, como devo agir? Posso... quero dizer, devo... usar o que sei para... mudar os acontecimentos? Nem sei se isso é possível. Mas se for, tenho esse direito?
Ele balançou-se no banco, para a frente e para trás, pensando. Lentamente, ergueu os dois dedos indicadores, uniu suas pontas e fitou-os por um longo tempo. Finalmente, sacudiu a cabeça e sorriu para mim.
- Não sei, ma bonne amie. Não é, deve compreender, uma situação que uma pessoa esteja preparada para encontrar em um confessionário. Vou ter que pensar e rezar. Sim, certamente rezar. Esta noite meditarei sobre sua situação quando fizer minha vigília junto ao Santíssimo Sacramento. E talvez amanhã eu possa aconselhá-la.
Indicou-me gentilmente que ajoelhasse.
- Mas por enquanto, minha filha, eu a absolvo. Quaisquer que tenham sido seus pecados, tenha fé que serão perdoados.
Ergueu uma das mãos para a bênção, colocando a outra sobre minha cabeça.
- Te absolvo, in nomine Patri, et Filii... Erguendo-se, ajudou-me a levantar.
- Obrigada, padre — eu disse. Não sendo uma crente, usei a confissão apenas para forçá-lo a me levar a sério e fiquei um pouco surpresa ao sentir que o fardo em meu espírito tornara-se mais leve. Talvez fosse apenas o alívio de contar a verdade a alguém.
Ele fez um aceno com a mão, em despedida.
- Eu a verei amanhã, chère madame. Por enquanto, devia descansar mais, se puder.
Dirigiu-se para a porta, dobrando sua estola cuidadosamente. Na soleira, parou um instante, voltando-se para sorrir para mim. Uma animação infantil iluminava seus olhos.
- E talvez amanhã... - disse - talvez possa... contar-me como foi essa experiência?
Devolvi o sorriso.
- Sim, padre. Eu lhe contarei.
Depois que ele saiu, fui arrastando-me com dificuldade até o quarto de Jamie. Eu já vira inúmeros cadáveres em condições muito melhores, mas seu peito levantava-se e abaixava-se regularmente e o sinistro tom esver-deado havia desaparecido de sua pele.
- Eu o acordo a um intervalo de algumas horas, apenas o suficiente para ele engolir algumas colheradas de sopa. - O irmão Roger estava junto a mim, falando em voz baixa. Seu olhar moveu-se do paciente para mim e horrorizou-se perceptivelmente com a minha aparência. Eu deveria ter penteado o cabelo. - Ha, talvez a senhora aceitasse... um pouco?
- Não, obrigada. Acho... acho que vou dormir mais um pouco. -Já não me sentia sobrecarregada de culpa e depressão, mas uma sensação de tranqüilidade e sonolência espalhava-se pelo meu corpo, deixando minhas pernas e braços pesados. Se eram os efeitos da confissão ou do vinho, descobri, para minha surpresa, que estava ansiando pela cama e pelo esquecimento.
Inclinei-me para tocar em Jamie. Sua temperatura era tépida, mas sem nenhum resquício de febre. Acariciei sua cabeça suavemente, alisando os cabelos ruivos desgrenhados. O canto de sua boca moveu-se ligeiramente e voltou ao normal. Mas ele esboçara um sorriso. Eu tinha certeza.
O céu estava frio e úmido, enchendo o horizonte com um vazio cinzento que se misturava à névoa cinza das colinas e à neve enlameada da semana anterior, de tal modo que o mosteiro parecia envolto em uma bola de algodão sujo. Mesmo no interior do claustro, o silêncio do inverno pesava sobre os habitantes. Os cânticos das Horas de Louvor na capela quase não eram ouvidos e as grossas paredes de pedra pareciam absorver todos os sons, abafando a agitação da atividade diária.
Jamie dormiu durante quase dois dias, acordando apenas para tomar um pouco de sopa ou de vinho. Uma vez acordado, começou a se recuperar à maneira normal de um homem jovem e saudável, repentinamente privado da força e da independência a que está acostumado. Em outras palavras, ele aproveitou os mimos e excessos de atenção por aproximadamente vinte e quatro horas e depois passou a ficar alternadamente nervoso, irrequieto, impaciente, irritado, irascível, rebelde e extremamente mal-humorado.
Os cortes nos ombros doíam. As cicatrizes nas pernas coçavam. Estava cansado de deitar de bruços. O quarto estava quente demais. Sua mão doía. A fumaça do braseiro fazia seus olhos arderem tanto que não conseguia ler. Não agüentava mais sopas, mingaus e leite. Queria carne.
Reconheci os sintomas da recuperação da saúde e fiquei contente com eles, mas só estava preparada para aturar uma fração de tudo aquilo. Abri a janela, troquei os lençóis, apliquei pomada de cravo-da-índia em suas costas e esfreguei suas pernas com seiva de babosa. Depois, chamei um irmão e pedi mais sopa.
- Não quero mais este caldo ralo! Quero comida! - empurrou a bandeja com irritação, fazendo a sopa derramar-se no guardanapo junto à tigela.
Cruzei os braços e o fitei. Olhos azuis arrogantes encararam-me sem pestanejar. Estava magro como um palito, os contornos do maxilar e das maçãs do rosto sobressaindo-se na pele. Embora estivesse se recuperando bem, os nervos sensíveis de seu estômago levariam um pouco mais para ficarem curados. Às vezes, ainda não conseguia manter no estômago a sopa e o leite.
- Vai ter comida quando eu disser que pode — informei-o - e não antes.
- Vou comer agora! Acha que pode me dizer o que vou comer?
- Sim, pode apostar que sim! Sou a médica aqui, caso já tenha esquecido.
Ele jogou as pernas para fora da cama, obviamente pretendendo sair andando. Coloquei a mão em seu peito e o empurrei de volta.
- Seu dever é ficar nessa cama e fazer o que mandam, ao menos uma vez na vida — disse rispidamente. - Não está em condições de sair da cama e não está pronto para alimentos sólidos ainda. O irmão Roger disse que vomitou outra vez hoje de manhã.
- O irmão Roger tem que cuidar da vida dele e você também - falou entre os dentes, esforçando-se para ficar em pé outra vez. Estendeu o braço e agarrou a borda da mesa. Com considerável esforço, pôs-se de pé e ficou ali parado, cambaleando.
- Volte para a cama! Você vai cair! - Estava assustadoramente pálido e mesmo o pequeno esforço de ficar em pé fez com que começasse a suar frio.
- Não, não vou - disse. - E se cair, é problema meu. Dessa vez, fiquei realmente furiosa.
- Ah, é mesmo? E quem você acha que salvou sua maldita vida para você? Fez tudo sozinho, hein? - Agarrei-o pelo braço para fazê-lo voltar para a cama, mas ele desvencilhou-se com um safanão.
- Eu não lhe pedi isso, pedi? Disse que me deixasse, não foi? E, aliás, não sei por que se deu ao trabalho de salvar minha vida, se é para me matar de fome, a menos que goste de ficar olhando!
Aquilo já era demais.
- Seu ingrato desgraçado!
- Víbora!
Empertiguei-me o mais que pude e apontei ameaçadoramente para a cama. Com toda a autoridade adquirida em anos de prática de enfermagem, eu disse:
- Volte para a cama agora mesmo, seu teimoso, cabeçudo, maldito...
- Escocês - ele concluiu para mim, sucintamente. Deu um passo em direção à porta e teria caído se não tivesse se apoiado num banco. Desmoronou pesadamente sobre ele e ficou sentado, oscilando, os olhos um pouco desfocados de tontura. Cerrei os punhos e fitei-o com raiva.
- Tudo bem - disse. - Parabéns! Vou pedir pão e carne para você e, depois que vomitar no chão, pode ficar de quatro e limpar o chão você mesmo! Eu não vou limpar e se o irmão Roger fizer isso, eu o esfolo vivo!
Saí intempestivamente para o corredor e bati a porta atrás de mim, no exato instante em que a bacia de porcelana espatifou-se no lado de dentro. Virei-me e me deparei com uma platéia curiosa parada no corredor, sem dúvida atraída pela algazarra. O irmão Roger e Murtagh estavam lado a lado, fitando meu rosto afogueado e peito arquejante. Roger parecia desconcertado, mas um leve sorriso espalhou-se pelo semblante enrugado de Murtagh quando ouviu a série de obscenidades em gaélico proferidas do outro lado da porta.
- Ele já está melhor - disse com satisfação. Recostei-me na parede do corredor e senti um sorriso espalhar-se lentamente pelo meu próprio rosto.
- Bem, sim - eu disse. - Ele está.
No caminho de volta ao prédio principal depois de uma manhã inteira passada no canteiro de ervas medicinais, encontrei-me com Anselmo, vindo do claustro ao lado da biblioteca. Seu rosto se iluminou ao me ver e apressou-se ao meu encontro no pátio. Caminhamos juntos pelas instalações do mosteiro, conversando.
- O seu problema é muito interessante, sem dúvida - ele disse, quebrando um galho fino de um arbusto junto à parede. Examinou os botões ainda bem fechados com ar crítico, depois atirou o galho fora e ergueu os olhos para o céu, onde um sol fraco procurava infiltrar-se pela leve camada de nuvens.
- Está mais quente, mas ainda falta muito para a primavera - observou. Ainda assim, as carpas devem estar alegres hoje. Vamos descer até os lagos de peixes.
Longe de serem as delicadas estruturas ornamentais que eu imaginara, os lagos de peixes eram uma espécie de reservatórios utilitários, forrados de pedra, convenientemente localizados junto às cozinhas. Recheados de carpas, forneciam o alimento necessário para as sextas-feiras e os dias de jejum, quando as condições do tempo eram ruins demais para a pesca no mar de hadoques, arenques e linguados, mais comuns à mesa.
Confirmando as palavras de Anselmo, as carpas estavam alegres e cheias de vida, os corpos gordos e afunilados deslizando uns pelos outros, as escamas brancas refletindo as nuvens acima, o vigor de seus movimentos ocasionalmente agitando pequenas ondas que espirravam nas bordas de sua prisão de pedras. Quando nossas sombras recaíram sobre a água, as carpas viraram-se para nós como agulhas de bússola atraídas para o norte.
- Esperam ser alimentadas quando vêem pessoas - Anselmo explicou. - Seria uma vergonha decepcioná-las. Um momento, chère madame.
Lançou-se em direção às cozinhas, retornando logo depois com dois pães dormidos. Ficamos parados na beira do lago, jogando migalhas de pão para as bocas insaciavelmente famintas abaixo.
- Sabe, há dois aspectos curiosos em sua situação — ele disse, absorto em cortar migalhas do pão. Olhou-me de relance, um sorriso súbito iluminando seu rosto. Sacudiu a cabeça, admirado. - Eu ainda mal posso acreditar, sabe. Que maravilha! É verdade, Deus foi muito bom em me mostrar tudo isso.
- Bem, isso é bom — eu disse, um pouco secamente. — Não sei se Ele foi tão bom assim comigo.
- É mesmo? Eu acho que foi. - Anselmo agachou-se, esfarelando pão entre os dedos. — É bem verdade que a situação não lhe causou poucas inconveniências pessoais...
- Essa é uma das maneiras de colocar a questão - murmurei.
- Mas também pode ser encarada como um sinal da graça de Deus — continuou, indiferente à minha interrupção. Os brilhantes olhos castanhos olharam-me especulativamente.
- Eu rezei para que Deus me iluminasse, de joelhos diante do Santíssimo Sacramento e, enquanto estava ali no silêncio da capela, eu parecia vê-la como uma sobrevivente de um naufrágio. E me parece que este é um bom paralelo para a sua situação atual, não acha? Imagine uma alma de repente atirada numa terra estranha, sem amigos ou familiares, sem nenhum recurso, a não ser os que a nova terra possam oferecer. Tal acontecimento é um desastre, sem dúvida, e no entanto pode significar a abertura para grandes oportunidades e bênçãos. E se a nova terra for rica? Novos amigos a conquistar e uma nova vida a iniciar.
- Sim, mas... - comecei a protestar.
- Portanto - continuou com autoridade, erguendo um dedo para que eu me calasse —, se você foi privada de sua vida anterior, talvez Deus tenha achado melhor abençoá-la com outra, que pode ser mais rica e mais completa.
- Ah, é mais completa, sem dúvida — concordei. — Mas...
- Agora, do ponto de vista da lei canônica - disse, franzindo a testa -, não há nenhum problema em relação a seus casamentos. Ambos foram válidos, consagrados pela Igreja. E estritamente falando, seu casamento com o jovem cavalheiro que está lá dentro antecedeu seu casamento com monsieur Randall.
- Sim, "estritamente falando" — concordei, pretendendo desta vez terminar ao menos uma frase. - Mas não na minha época. Não creio que a lei canônica tenha sido criada com tais contingências em mente.
Anselmo riu, a barba pontuda agitando-se na brisa leve.
- É bem verdade, ma chère, é bem verdade. Tudo que quis dizer foi que, do ponto de vista estritamente legal, você não cometeu nem pecado nem crime naquilo que fez com respeito a esses dois homens. Esses eram os dois aspectos de sua situação que mencionei antes: o que você fez e o que você fará. - Tomou minha mão nas suas, puxando-me para que me sentasse ao seu lado, de modo que nossos olhos estivessem no mesmo nível.
- Foi isso que me perguntou quando ouvi sua confissão, não foi? O que eu fiz? E o que devo fazer?
- Sim, foi. E está me dizendo que não fiz nada de errado? Mas eu... Ele era, pensei, quase tão propenso a interromper a fala dos outros quanto Dougal MacKenzie.
- Não, não fez - disse com firmeza. - É possível agir em absoluto acordo com as leis de Deus e com a própria consciência, e ainda assim deparar-se com dificuldades e tragédia. É a dolorosa verdade que nós ainda não sabemos por que le bon Dieu permite que o mal exista, mas temos a Sua palavra de que isso é verdade. "Eu criei o bem", Ele diz na Bíblia, "e Eu criei o mal". Conseqüentemente, até mesmo pessoas boas, eu acho, especialmente as boas - acrescentou pensativamente —, podem deparar-se com grande confusão e dificuldades em suas vidas. Por exemplo, veja o rapaz que você teve que matar. Não - disse, erguendo a mão para que eu não o interrompesse -, não se engane. Você foi obrigada a matá-lo, por exigência de sua situação. Até a Santa Igreja, que prega a santidade da vida, reconhece a necessidade de uma pessoa defender a si e à sua família. E tendo visto a condição em que seu marido estava - lançou um olhar na direção da ala dos hóspedes -, não tenho dúvidas de que foi obrigada a tomar o caminho da violência. Assim sendo, não tem nada com que se reprovar. Certamente, sente pena e lamenta o ato extremo, porque é, madame, uma pessoa de grande compaixão e sentimentos. - Bateu delicadamente na minha mão, pousada sobre meus joelhos.
- Às vezes, nossas melhores ações resultam em acontecimentos lamentáveis. No entanto, você não poderia ter agido de outra forma. Não sabemos qual era o plano de Deus para o rapaz, talvez fosse Sua vontade que o rapaz se juntasse a Ele no céu naquela ocasião. Mas você não é Deus e há limites para o que pode esperar de si mesma.
Estremeci ligeiramente quando um vento frio nos envolveu e me enrolei mais no meu xale. Anselmo viu e fez um gesto indicando o lago.
- A água está morna, madame. Talvez queira mergulhar os pés?
- Morna? — Fiquei boquiaberta, olhando incrédula para a água. Eu não havia notado, mas não havia camadas de gelo quebradas nos cantos dos reservatórios, como havia nas fontes de água benta do lado de fora da igreja. Além disso, pequenas plantas verdes flutuavam na água, brotando das fendas entre as rochas que forravam o lago.
Como ilustração, Anselmo retirou suas próprias sandálias de couro. Apesar do rosto e da voz cultos, possuía mãos e pés robustos, vigorosos, de um camponês da Normandia. Erguendo a saia de seu hábito até os joelhos, enfiou os pés no lago. As carpas bateram em retirada, voltando quase em seguida para investigar com curiosidade aquela nova intrusão.
- Não mordem, não é? - perguntei, vendo a miríade de bocas vorazes com desconfiança.
- Não, carne, não — assegurou-me. — Não têm dentes para isso. Tirei minhas próprias sandálias e cuidadosamente enfiei os pés na água.
Para minha surpresa, estava agradavelmente morna. Não quente, mas um delicioso contraste com o ar úmido e frio.
- Ah, que bom! - Retorci os dedos com satisfação, causando grande consternação entre as carpas.
- Há várias fontes de água mineral perto do mosteiro - Anselmo explicou. - As águas saem quentes e borbulhantes da terra, e têm grandes poderes curativos. - Apontou para a outra extremidade do lago, onde se podia ver uma pequena abertura nas pedras, parcialmente obscurecida pelas plantas aquáticas em movimento.
- Uma pequena quantidade da água mineral quente é canalizada para cáda fonte mais próxima. É isso que permite ao cozinheiro manter peixes vivos para a mesa em todas as estações; normalmente, o inverno seria frio demais para eles.
Patinhamos nossos pés na água por algum tempo num agradável silêncio, os corpos pesados dos peixes passando de raspão, às vezes batendo em nossas pernas com um impacto surpreendentemente forte. O sol saiu outra vez, banhando-nos com um calor fraco, mas perceptível. Anselmo fechou os olhos, deixando que a luz lavasse seu rosto. Falou novamente, sem abri-los.
- Seu primeiro marido... O nome dele era Frank, não? Ele também, eu acho, deve ser recomendado a Deus como uma das coisas lamentáveis sobre a qual você nada pode fazer.
- Mas eu podia ter feito alguma coisa — argumentei. - Eu poderia ter voltado... talvez.
Ele abriu um dos olhos e olhou-me com ceticismo.
- Sim, "talvez" - concordou. — E talvez não. Não deve se censurar por hesitar em arriscar sua vida.
- Não foi o risco — eu disse, agitando meus dedos para uma enorme carpa pintada de branco e preto. - Ou ao menos não inteiramente. Foi... bem, em parte foi medo, mas principalmente foi porque eu... eu não pude abandonar Jamie. — Encolhi os ombros, desamparada. — Eu... simplesmente não pude.
Anselmo sorriu, arregalando os olhos.
- Um bom casamento é uma das dádivas mais preciosas de Deus -observou. - Se teve o bom senso de reconhecer e aceitar a dádiva, não pode se condenar por isso. E pense bem... - Inclinou a cabeça para o lado, como um pardal marrom.
- Está longe de sua época há quase um ano. Seu primeiro marido já deve ter começado a aceitar sua perda. Por mais que a tenha amado, a perda é comum a todos os seres humanos e temos meios de superá-la para nosso próprio bem. Talvez ele tenha começado uma nova vida. Seria bom para você deixar o homem que precisa tanto de você e a quem você ama, a quem está ligada pelos laços do sagrado matrimônio, para retornar e perturbar essa nova vida? E, em particular, se voltasse por um sentimento de dever, mas sentindo que seu coração ficara em outra parte... não. - Sacudiu a cabeça decididamente.
- Nenhum homem pode servir a dois patrões, assim como uma mulher também não. Agora, se aquele fosse seu único casamento válido e este - sacudiu a cabeça novamente em direção à ala dos hóspedes — um simples arranjo irregular, então seu dever poderia estar longe daqui. Mas vocês foram unidos por Deus e acho que pode honrar seu compromisso com o chevalier.
- Agora, quanto ao outro aspecto: o que deve fazer. Isso requer alguma discussão. — Tirou os pés da água e secou-os no seu hábito.
- Vamos transferir esta conversa para a cozinha do mosteiro, onde talvez o irmão Eulogius possa ser persuadido a nos fornecer uma bebida quente.
Achando um pedacinho de pão no chão, atirei-o às carpas e parei para calçar as minhas sandálias.
- Nem sei lhe dizer o alívio que representa para mim poder conversar com alguém sobre isso — eu disse. - E ainda não consigo me convencer do fato de que realmente acredita em mim.
Ele encolheu os ombros, oferecendo-me educadamente o braço para eu me segurar, enquanto passava as tiras das minhas sandálias por cima do peito do pé.
- Ma chère, sirvo a um homem que multiplicou os pães e peixes - sorriu, balançando a cabeça para o lago, onde os redemoinhos causados pelos movimentos das carpas se alimentando ainda se diluíam -, que curou o doente e ergueu o morto. Devo ficar espantado que o mestre da eternidade tenha trazido uma jovem mulher pelas pedras da terra para cumprir Sua vontade?
Bem, refleti, era melhor do que ser denunciada como a meretriz da Babilônia.
As cozinhas do mosteiro eram quentes e assemelhavam-se a cavernas, o teto abobadado enegrecido por séculos de fumaça engordurada. O irmão Eulogius, até os cotovelos num tonel de massa de pão, balançou a cabeça em forma de cumprimento para Anselmo e chamou, em francês, um dos irmãos laicos para vir nos servir. Encontramos um lugar longe da azáfama e nos sentamos com duas canecas de cerveja e uma travessa com uma espécie de bolinhos quentes. Empurrei a travessa para Anselmo, preocupada demais para me interessar por comida.
- Deixe-me colocar a questão da seguinte forma - eu disse, escolhendo cuidadosamente as palavras. - Se eu soubesse que algum mal seria causado a um grupo de pessoas, deveria me sentir obrigada a tentar evitar isso?
Anselmo esfregou o nariz na manga do hábito, refletindo; o calor da cozinha estava começando a fazer seu nariz escorrer.
- Em princípio, sim - concordou. - Mas iria depender também de inúmeros outros fatores: qual o risco para si mesma e quais são suas outras obrigações? E quais as chances de ser bem-sucedida?
- Não faço a menor idéia. De nada disso. Exceto obrigação, é claro. Quero dizer, há Jamie. Mas ele pertence ao grupo que deverá sofrer reveses.
Ele partiu um pedaço de um bolinho e passou-o para mim, fumegan-do. Eu o ignorei, estudando a superfície da minha cerveja. - Os dois homens que matei - eu disse - deveriam, cada um deles, ter tido filhos, se eu não os tivesse matado. Poderiam ter feito... - fiz um gesto de impotência com a caneca -, quem sabe o que poderiam ter feito? Eu posso ter afetado o futuro... não, eu realmente afetei o futuro. E não sei de que maneira e isso é o que tanto me assusta.
- Hum. — Anselmo grunhiu pensativamente e fez sinal para um irmão laico que passava, o qual se apressou a trazer mais bolinhos e cerveja. Ele encheu novamente as duas canecas antes de prosseguir.
- Se você tirou a vida, por outro lado também a preservou. Quantos dos doentes de quem tratou teriam morrido sem a sua intervenção? Eles também afetarão o futuro. E se uma das pessoas a quem salvou cometer um ato de extrema crueldade? Seria culpa sua? Deveria, por causa disso, deixar essa pessoa morrer? Claro que não. — Bateu com a caneca de cerveja na mesa para dar mais ênfase.
- Você diz que tem medo de realizar uma ação aqui por medo de afetar o futuro. Isso é ilógico. Todas as ações afetam o futuro. Se tivesse permanecido em seu próprio lugar e época, suas ações, ainda assim, afetariam o que viesse a acontecer, exatamente como agora. Ainda tem as mesmas responsabilidades que teria lá, que qualquer ser humano tem em qualquer época. A única diferença é que pode estar em condições de ver mais exatamente as conseqüências dos seus atos. E, novamente, talvez não. -Sacudiu a cabeça, olhando diretamente para mim por cima da mesa.
- Nós desconhecemos os desígnios do Senhor e sem dúvida por um bom motivo. Tem razão, ma chère; as leis da Igreja não foram formuladas com situações como a sua em mente, e portanto você dispõe de pouca orientação, além de sua própria consciência e da mão divina. Não posso lhe dizer o que deve ou o que não deve fazer.
- Você tem livre-arbítrio, assim como todas as outras pessoas neste mundo. E a história, acredito, é a soma de todas essas ações. Alguns indivíduos são escolhidos por Deus para afetar os destinos de muitas pessoas. Talvez você seja uma delas. Talvez não. Não sei por que você está aqui. Você não sabe. Provavelmente nenhum de nós jamais saberá. - Revirou os olhos, de maneira cômica. - Às vezes, nem eu mesmo sei por que estou aqui! - Eu ri e ele devolveu um sorriso. Inclinou-se para mim por cima das tábuas rústicas da mesa, fitando-me intensamente.
- O seu conhecimento do futuro é um instrumento que lhe foi concedido, como um náufrago de posse de uma faca ou de uma linha de pescar. Não é imoral usá-lo, desde que o faça de acordo com os ditames da lei de Deus, da melhor forma possível.
Parou, respirou fundo, e soltou o ar num explosivo suspiro que agitou o bigode sedoso. Sorriu.
- E isso, ma chère madame, é tudo que posso lhe dizer. Não mais do que posso dizer a qualquer alma transtornada que vem a mim em busca de conselho: confie em Deus e reze para que Ele a oriente.
Empurrou os bolinhos quentes em minha direção.
- Mas o que quer que resolva fazer, vai precisar de forças para isso. Portanto, aceite um último conselho: quando em dúvida, coma.
Quando entrei no quarto de Jamie à noite, ele dormia, a cabeça sobre os antebraços. A tigela de sopa vazia cuidadosamente colocada na bandeja, o prato de pão e carne intocado ao lado. Olhei do rosto sonhador e inocente para o prato e novamente para ele. Toquei o pão. Meu dedo deixou uma depressão na superfície úmida. Fresco.
Deixei-o dormindo e saí à procura do irmão Roger, que encontrei na despensa.
- Ele comeu o pão e a carne? - perguntei, sem preliminares.
O irmão Roger sorriu em sua barba fofa.
- Sim.
- Manteve no estômago?
- Não.
Eu o fitei com os olhos apertados.
- Você não limpou o quarto depois, espero.
Ele divertia-se, as bochechas rechonchudas e rosadas acima da barba.
- E eu ousaria? Não, ele tomou a precaução de deixar a bacia à mão.
- Maldito escocês astuto - eu disse, rindo mesmo contra a minha vontade. Voltei ao seu quarto e o beijei de leve na testa. Ele se mexeu, mas não acordou. Seguindo o conselho do padre Anselmo, levei o prato de carne e pão fresco para o meu próprio quarto para o meu jantar.
Pensando em dar a Jamie tempo para se recuperar, tanto do mau humor quando da indigestão, permaneci em meu próprio quarto a maior parte do dia seguinte, lendo um livro sobre ervas que o irmão Ambrose me emprestara. Depois do almoço, fui verificar como estava meu recalcitrante paciente. Ao invés de Jamie, entretanto, encontrei Murtagh, sentado em um banco inclinado contra a parede e com uma expressão divertida no rosto.
— Onde ele está? — perguntei, olhando à minha volta.
Murtagh sacudiu o polegar indicando a janela. Era um dia frio e cinzento e as lamparinas estavam acesas. A janela estava descoberta e a corrente de ar frio fazia a pequena chama bruxulear em seu recipiente.
- Ele saiu, — perguntei, incrédula. - Para onde? Por quê? E o que está vestindo? -Jamie passara a maior parte do tempo despido nos últimos dias, já que o aposento estava aquecido e qualquer pressão sobre seus ferimentos era dolorosa. Usava a túnica externa de um monge quando deixava o quarto em curtas incursões necessárias, com o apoio do padre Roger, mas a túnica ainda estava ali, cuidadosamente dobrada aos pés da cama.
Murtagh balançou seu banco para a frente e olhou-me com ar grave.
- Quantas perguntas são essas? Quatro? — Ergueu uma das mãos, o dedo indicador apontando para cima.
— Uma: sim, ele saiu. - O dedo médio se levantou. - Duas: para onde? Quisera saber. - O dedo anular juntou-se aos outros dois. — Três: por quê? Ele disse que estava cansado de ficar preso aqui dentro. - O dedo mínimo mexeu-se brevemente. - Quatro: também quisera saber. Não estava usando nada da última vez que eu o vi.
Murtagh dobrou os quatro dedos e esticou o polegar.
— Você não me perguntou, mas ele ja saiu há mais de uma hora. Fiquei furiosa, sem saber o que deveria fazer. Já que o criminoso não estava presente, voltei minha raiva contra Murtagh.
- Não sabe que está quase congelando lá fora e já começa a nevar? Por que não o impediu? E como ele não está vestindo nada?
O homenzinho não se abalou.
- Sim, eu sei. Acho que ele sabe também, já que não é cego. Quanto a impedi-lo, eu tentei. - Indicou a túnica sobre a cama com um sinal da cabeça.
- Quando disse que ia sair, eu falei que ele não estava em condições de fazer isso e que você iria cortar minha cabeça, se eu o deixasse ir. Peguei sua túnica, barrei a porta e lhe disse que ele não ia sair, a menos que passasse por cima de mim.
Murtagh parou, depois disse aleatoriamente:
- Ellen MacKenzie tinha o sorriso mais doce que já vi; aquecia um homem até a medula só de ver.
- Assim, deixou o filho cabeçudo dela sair e morrer congelado — eu disse com impaciência. - O que tem o sorriso da mãe dele a ver com tudo isso?
Murtagh esfregou o nariz, pensativamente.
- Bem, quando eu disse que não o deixaria passar, Jamie apenas olhou para mim por um instante. Depois, me deu um sorriso igual ao de sua mãe e saiu pela janela completamente pelado. Quando cheguei à janela, já havia desaparecido.
Revirei os olhos para cima.
- Imagino que devia lhe dizer para onde ele foi — Murtagh continuou — para que não ficasse preocupada com ele.
- Para que não ficasse preocupada com ele! — murmurei entre dentes enquanto caminhava a passos largos para a estrebaria. — É melhor que ele fique preocupado quando eu o pegar!
Havia apenas a estrada principal saindo da costa para o interior. Cavalguei ao longo dela a uma boa velocidade, perscrutando os campos que atravessava. Aquela parte da França era uma rica área cultivada e felizmente a maior parte da floresta fora abatida; lobos e ursos não deviam representar um grande perigo, já que deviam ter se refugiado mais para o interior.
Acabei encontrando-o a quase dois quilômetros além dos portões do mosteiro, sentado em um dos antigos marcos romanos de distância que pontilhavam as estradas.
Estava descalço, mas vestia um casaco curto e calças finas, de propriedade de um dos cavalariços, a julgar pelas manchas nos tecidos.
Freei o cavalo e fitei-o por um instante, apoiando-me no arção da sela.
- Seu nariz está azul - observei em tom casual. Olhei para baixo. — E seus pés também.
Ele riu e limpou o nariz nas costas da mão.
- Minhas bolas também. Quer aquecê-las para mim? - Com ou sem frio, ele obviamente estava de bom humor. Desci do cavalo e parei diante dele, sacudindo a cabeça.
— Não adianta nada, não é? - perguntei.
— O quê? - Esfregou a mão nas calças rasgadas.
— Ficar zangada com você. Não se importa nem um pouco se pegar pneumonia ou for devorado por ursos ou me matar de preocupação, não é?
— Bem, não estou muito preocupado com ursos. Eles dormem no inverno, sabe.
Perdi o controle e ergui minha mão para ele, pretendendo dar um tapa em sua orelha. Ele agarrou meu pulso e segurou-o sem dificuldade, rindo de mim. Após um instante de luta inútil, desisti e ri também.
— Vai voltar agora? — perguntei. - Ou tem mais alguma coisa a provar? Indicou a estrada com o queixo.
— Leve o cavalo de volta até aquele carvalho grande e espere por mim lá. Vou andar até lá. Sozinho.
Mordi a língua para reprimir os diversos comentários que efervesciam à superfície e montei. Junto ao carvalho, apeei e olhei para a estrada. Após um instante, entretanto, vi que não suportava observar seu difícil avanço. Quando caiu da primeira vez, segurei as rédeas com força em minhas mãos enluvadas, depois virei as costas resolutamente e esperei.
Mal conseguimos retornar à ala dos hóspedes, arrastando-nos pelo corredor, seu braço por cima do meu ombro para se apoiar. Avistei o irmão Roger, espreitando ansiosamente o corredor, e o mandei ir correndo buscar uma panela de água quente, enquanto eu conduzia meu desajeitado fardo para o quarto e o largava na cama. Ele gemeu com o impacto, mas permaneceu imóvel, os olhos cerrados, enquanto eu retirava as roupas imundas e esfarrapadas.
— Muito bem; entre debaixo das cobertas.
Ele rolou obedientemente para baixo dos cobertores que eu segurava para ele. Enfiei a panela de água quente apressadamente entre as cobertas ao pé da cama e empurrei-a de um lado para o outro. Quando a retirei, ele esticou as longas pernas e relaxou com um suspiro de felicidade quando seus pés alcançaram o bolsão quente.
Andei silenciosamente pelo quarto, pegando as roupas sujas, arrumando os pequenos objetos sobre a mesa, colocando mais carvão no braseiro, acrescentando uma pitada de ênula para adocicar a fumaça. Achei que ele adormecera e surpreendi-me quando ouvi sua voz atrás de mim.
— Claire?
- Sim?
— Eu a amo.
— Ah. - Fiquei ligeiramente surpreendida, mas inegavelmente satisfeita. — Eu também o amo.
Ele suspirou e abriu parcialmente os olhos.
— Randall — ele disse. — Quase no final. Era isso que ele queria. — Fiquei ainda mais surpresa com aquilo e retruquei cautelosamente:
- Ah, é?
- Sim. - Seus olhos estavam fixos na janela aberta, onde as nuvens de neve preenchiam o espaço com um cinza uniforme e escuro.
- Eu estava deitado no chão e ele estava deitado ao meu lado. A essa altura, ele também estava nu e nós dois estávamos sujos de sangue... e de outras coisas. Lembro-me de tentar erguer a cabeça e sentir meu rosto grudado na pedra do chão com sangue seco. - Franziu a testa, um olhar distante enquanto evocava a imagem.
- Eu estava quase inconsciente a essa altura; a ponto de quase nem sentir mais dor. Estava apenas terrivelmente cansado e tudo parecia muito distante e não muito real.
- Ainda bem - eu disse, com alguma aspereza, e ele deu um breve sorriso.
- Sim, ainda bem. Eu estava quase sem sentidos, meio inconsciente, eu acho, de modo que não sei por quanto tempo ficamos deitados ali, mas acordei com ele me abraçando e aconchegando-se contra mim. — Hesitou, como se a parte seguinte fosse difícil de expressar em palavras.
- Eu não lutara contra ele até então. Mas estava tão cansado e achei que não conseguiria suportar mais nada... De qualquer modo, comecei a me esquivar, a me arrastar para longe dele, não lutando realmente, mas tentando me afastar. Seus braços envolviam meu pescoço e ele me puxava, enterrando o rosto em meu ombro. Pude sentir que ele chorava. Por alguns instantes, não consegui entender o que ele dizia, mas depois entendi. Ele dizia: "Eu o amo, eu o amo", sem cessar, com suas lágrimas e saliva escorrendo pelo meu peito. — Jamie estremeceu ligeiramente, com o frio e a lembrança. Soltou um longo suspiro, perturbando a nuvem de fumaça aromática que volteava junto ao teto.
- Não posso imaginar por que fiz aquilo. Mas eu passei os braços em torno dele e apenas ficamos ali deitados por uns instantes. Finalmente, ele parou de chorar, me beijou e me acariciou. Depois, sussurrou: "Diga que me ama". — Parou no meio da narração, sorrindo debilmente.
- Eu me recusei. Não sei por quê. Mas, por outro lado, eu teria lambido suas botas e o chamado de rei da Escócia, se ele quisesse. Mas isso eu não podia dizer. Nem me lembro de ter pensado no assunto; eu simplesmente não diria. — Suspirou e a mão sã contorceu-se, agarrando a coberta.
- Ele me usou outra vez... violentamente. E repetia sem parar: "Diga que me ama, Alex. Diga que me ama."
- Ele o chamou de Alex? - interrompi, sem conseguir me conter.
- Sim. Lembro-me de ter ficado intrigado com o fato de ele saber meu segundo nome. Não me ocorreu imaginar por que o usara, ainda que sabendo. — Deu de ombros.
- De qualquer modo, não me mexi nem disse uma palavra e, quando ele terminou, pôs-se de pé, como se tivesse enlouquecido, e começou a me bater com alguma coisa, não sei o quê, xingando e gritando comigo, dizendo:"Você sabe que me ama! Diga que me ama! Eu sei que é verdade!" Ergui os braços acima da cabeça para proteger-me e depois de uns instantes devo ter desmaiado outra vez, porque a dor em meus ombros foi a última coisa de que me lembrava, exceto por uma espécie de pesadelo com gado urrando. Então, acordei por alguns instantes, oscilando de barriga para baixo sobre a sela de um cavalo, e perdi a consciência outra vez, até despertar junto à lareira em Eldridge, com você me olhando. - Cerrou os olhos novamente. Seu tom de voz era sonhador, quase apático.
- Eu acho... que se eu tivesse dito a ele o que ele queria... ele teria me matado.
Algumas pessoas têm pesadelos povoados por monstros. Eu sonhava com árvores genealógicas, ramos finos e negros, carregando pencas de datas em cada haste. As linhas semelhantes a cobras, com morte entre as mandíbulas. Ouvi a voz de Frank mais uma vez, dizendo: Ele se tornou um soldado, uma boa escolha para um segundo filho. Houve um terceiro irmão que se tornou padre, mas não sei muita coisa a seu respeito... Eu também não sabia muito a seu respeito. Apenas seu nome. Lá estavam os três filhos registrados na árvore, os filhos de Joseph e Mary Randall. Eu os vira inúmeras vezes; o mais velho, William; o segundo, Jonathan; e o terceiro, Alexander.
Jamie voltou a falar, arrancando-me de meus pensamentos.
- Sassenach?
- Sim?
- Lembra-se da fortaleza de que lhe falei, a que tenho dentro de mim?
- Lembro.
Sorriu sem abrir os olhos e estendeu a mão para mim.
- Bem, ao menos tenho uma estrutura na qual me apoiar. E um teto para me guardar da chuva.
Fui para a cama cansada, mas em paz, e pensando. Jamie se recuperaria. Quando isso estava em dúvida, eu não pensava além da próxima hora, da próxima refeição, da próxima administração de remédio. Mas agora eu precisava olhar mais para a frente.
O mosteiro era um santuário, mas apenas temporário. Não podíamos ficar ali indefinidamente, por mais hospitaleiros que fossem os monges. A Escócia e a Inglaterra eram perigosas demais; a menos que lorde Lovat pudesse ajudar — uma contingência remota, nas circunstâncias. Nosso futuro devia estar naquele lado do canal. Sabendo o que eu sabia agora sobre o enjôo de Jamie no mar, compreendi sua relutância em considerar uma imigração para a América — três meses de náusea era uma perspectiva assustadora para qualquer um. Então, o que restava?
A França era o mais provável. Nós dois falávamos francês fluentemente. Enquanto Jamie podia sair-se igualmente bem em espanhol, alemão ou italiano, eu não era tão abençoada em termos de idiomas. Além disso, a família Fraser tinha muitas conexões na França; talvez pudéssemos encontrar um lugar na propriedade de um parente ou amigo. A idéia parecia bastante atraente.
Mas restava, como sempre, a questão do tempo. Era começo de 1744 — o Ano Novo fora há apenas duas semanas. E em 1745, o príncipe Carlos Eduardo partiria da França para a Escócia, o Jovem Pretendente iria reivindicar o trono de seu pai. Com ele, viria o desastre; guerra e massacres, a eliminação dos clãs das Higlands, o extermínio de tudo que Jamie - e eu - amávamos.
E entre agora e esse momento, restava um ano. Um ano, quando tudo deveria acontecer. Quando os passos certos deveriam ser dados para evitar o desastre. Como? E por que meios? Eu não fazia a menor idéia, mas também não tinha a menor dúvida sobre as conseqüências da inércia.
Os acontecimentos poderiam ser alterados? Talvez. Meus dedos buscaram minha mão esquerda e acariciaram lentamente a aliança de ouro no dedo anular. Pensei no que eu disse a Jonathan Randall, fervendo de ódio e pavor nas masmorras da prisão de Wentworth.
"Eu o amaldiçôo com a hora de sua morte." E lhe contara quando ele iria morrer. Disse-lhe a data inscrita no mapa genealógico, na caligrafia preta e elegante de Frank - 16 de abril de 1745. Jonathan Randall deveria morrer na batalha de Culloden, envolvido no massacre que os ingleses iriam causar. Mas, não. Em vez disso, morreu algumas horas mais tarde, pisoteado, sob os cascos da minha vingança.
E morreu solteiro e sem filhos. Ou ao menos, assim eu acreditava. O mapa - o maldito mapa! - dava a data de seu casamento, em algum momento de 1744. E o nascimento de seu filho, o ascendente de Frank, pouco depois. Se Jack Randall estava morto e sem filhos, como Frank nasceria? E, no entanto, sua aliança ainda estava em meu dedo. Ele existia, iria existir. Reconfortei-me com o pensamento, esfregando sua aliança no escuro, como se contivesse um gênio que pudesse me aconselhar.
Acordei de um sono pesado algum tempo depois, com um pequeno grito.
- Sssh. Sou eu. - A mão enorme ergueu-se de minha boca. Com a vela apagada, o quarto estava escuro como breu. Tateei às cegas, até minha mão bater em algo sólido.
- Não devia estar fora da cama! - exclamei, ainda sonolenta. Meus dedos deslizaram por uma pele lisa e fria. — Está gelado!
- Bem, claro que estou - disse, um tanto irritado. — Estou sem roupas e está terrivelmente frio no corredor. Posso entrar aí com você?
Esgueirei-me o mais que pude no catre estreito e ele deitou-se ao meu lado, nu, agarrando-se a mim para se esquentar. Sua respiração era irregular e achei que seu tremor era tanto de fraqueza quanto de frio.
- Meu Deus, como você está quente. - Aconchegou-se ainda mais, suspirando. - Ah, é bom abraçá-la assim, Sassenach.
Não me dei ao trabalho de perguntar o que ele estava fazendo ali; isso estava ficando perfeitamente claro. Nem perguntei se ele tinha certeza. Eu tinha minhas próprias dúvidas, mas não iria proclamá-las, por medo de fazer profecias que acabavam se cumprindo. Virei-me de frente para ele, tomando cuidado com a mão ferida.
Houve aquele repentino e surpreendente momento de união, aquela rápida e escorregadia estranheza que imediatamente se torna familiar. Jamie suspirou profundamente, com satisfação e, talvez, alívio. Permanecemos imóveis por um instante, como se tivéssemos medo de perturbar nossa frágil ligação. A mão esquerda de Jamie acariciou-me devagar, tateando seu caminho no escuro, os dedos abertos como o bigode de um gato, sensíveis à vibração. Investiu uma vez, como se fizesse uma pergunta, e eu respondi na mesma linguagem.
Começamos o delicado jogo de movimentos lentos, um ato de equilíbrio entre seu desejo e sua fraqueza, entre a dor e o prazer crescente do corpo. Em algum lugar na escuridão, pensei comigo mesma que eu devia contar a Anselmo que havia outra maneira de fazer o tempo parar, mas depois achei melhor não contar, já que não era um caminho aberto a um sacerdote.
Segurei Jamie, apoiando-o com a mão pousada de leve em suas costas marcadas. Ele estabeleceu o nosso ritmo, mas deixou que eu carregasse a força de nosso movimento. Ficamos ambos em silêncio, a não ser pela nossa respiração, até o fim. Sentindo que ele se cansava, agarrei-o com firmeza e puxei-o para mim, mexendo meus quadris para recebê-lo ainda mais fundo, forçando-o ao clímax.
- Agora — eu disse suavemente -, goze comigo. Agora! - Ele apoiou sua testa com força na minha e rendeu-se a mim com um suspiro trêmulo.
Os vitorianos chamavam a isso de "pequena morte", e não sem razão. Ele deixou-se ficar, tão relaxado e pesado, que teria achado que estava morto, se não fosse pelas batidas surdas de seu coração contra as minhas costelas. Pareceu que um longo tempo havia se passado até ele se mexer e murmurar alguma coisa contra meu ombro.
- O que foi que disse?
Ele virou a cabeça de modo que sua boca ficasse logo abaixo de minha orelha. Senti seu hálito quente em meu pescoço.
- Eu disse - respondeu baixinho - que minha mão não dói nem um pouco agora.
A mão intacta explorou ternamente meu rosto, limpando o suor das minhas faces.
- Você temeu por mim? - perguntou.
- Sim — respondi. — Achei que era cedo demais. Ele riu baixinho na escuridão.
- E era; quase morri. Sim, eu também tive medo. Mas acordei com a mão doendo e não conseguia voltar a dormir. Fiquei virando de um lado para o outro na cama, sentindo sua falta. Quanto mais eu pensava em você, mais a desejava e já estava no meio do corredor antes de me preocupar com o que eu iria fazer quando chegasse aqui. E quando pensei... - parou, acariciando meu rosto. - Bem, não sou grande coisa, Sassenach, mas talvez não seja um covarde, afinal de contas.
Virei a cabeça para ir ao encontro de seu beijo. Seu estômago roncou alto.
- Não ria - resmungou. - A culpa é sua, por me deixar faminto. É de se admirar que eu tenha tido forças, sem nada além de caldo de carne e cerveja.
- Está bem - eu disse, ainda rindo. - Você venceu. Pode comer um ovo no desjejum amanhã.
- Ah! - exclamou, em tom de profunda satisfação. - Sabia que você iria me alimentar se eu lhe oferecesse um incentivo adequado.
Adormecemos nos braços um do outro, os rostos colados.
Nas duas semanas seguintes, Jamie continuou sua recuperação e eu continuei a pensar. Em alguns dias, eu sentia que devíamos ir para Roma, onde a corte do Pretendente imperava, e fazer... o quê? Em outras ocasiões, desejava de todo o coração simplesmente encontrar um lugar seguro e isolado, para vivermos nossas vidas em paz.
Era um dia quente e luminoso e os pingentes de gelo que pendiam dos narizes das gárgulas não cessavam de pingar, cavando buracos na neve sob as calhas. A porta do quarto de Jamie fora deixada aberta de par em par e a janela descoberta, para arejar o aposento e livrá-lo dos resquícios de fumaça e doença.
Enfiei a cabeça cautelosamente pelo umbral da porta, não querendo acordá-lo caso estivesse dormindo, mas o catre estreito estava vazio. Ele estava sentado junto à janela aberta, parcialmente de costas para a porta, de modo que seu rosto estava praticamente escondido.
Ele ainda estava extremamente magro, mas os ombros eram largos e retos sob o tecido rústico do hábito de noviço. Além disso, o encanto de sua força aos poucos retornava; estava firmemente sentado, sem nenhum tremor, as costas empertigadas e as pernas dobradas para trás embaixo do banco, os contornos de seu corpo firmes e harmoniosos. Segurava o pulso direito com a mão esquerda, girando a mão direita devagar ao sol.
Havia uma pequena pilha de tiras de pano sobre a mesa. Ele removera as ataduras da mão machucada e examinava-a detidamente. Fiquei parada na entrada do quarto, imóvel. Dali, podia ver a mão com clareza, conforme ele a movia para a frente e para trás, sondando atentamente.
A marca do ferimento do prego na palma da mão era bem pequena e a ferida, fiquei feliz de ver, estava bem cicatrizada; não passava de um pequeno ponto rosado de tecido de cicatriz que desapareceria gradualmente. Nas costas da mão, a situação não era tão favorável. Corroído pela infecção, o ferimento ali cobria uma área do tamanho de uma moeda, ainda recoberto com uma crosta e a pele fina de uma nova cicatrização.
O dedo médio também exibia uma cicatriz alta e irregular de tecido rosado, estendendo-se da primeira junta até quase o nó do dedo. Libertados de suas talas, o polegar e o dedo indicador estavam retos, mas o dedo mínimo estava bastante torto. Ele sofrera três fraturas distintas, eu me lembrava, e aparentemente eu não conseguira encaixar todas elas adequadamente.
O dedo anular estava estranho, já que se projetava levemente para cima quando ele espalmava a mão aberta sobre a mesa, como fazia agora.
Virando a palma da mão para cima, ele começou a manipular os dedos delicadamente. Nenhum deles dobrava-se mais do que três ou quatro centímetros; o dedo anular não se dobrava de jeito nenhum. como eu temia, era provável que a segunda articulação ficasse irremediavelmente paralisada.
Ele virou a mão de um lado para o outro, erguendo-a diante do rosto, observando os dedos rígidos e tortos, as horríveis cicatrizes, cruelmente vívidas à luz do sol. Então, abaixou a cabeça repentinamente, agarrando a mão ferida junto ao peito, cobrindo-a protetoramente com a mão perfeita. Não emitiu nenhum som.Apenas seus ombros largos sacudiram-se ligeiramente.
- Jamie. - Atravessei o quarto rapidamente e ajoelhei-me ao lado dele, colocando a mão de leve em seu joelho.
- Jamie, sinto muito - eu disse. - Fiz o melhor que pude.
Ele olhou para mim, surpreso. As pestanas, espessas e ruivas, cintilavam de lágrimas à luz do sol e ele as limpou apressadamente com as costas da mão.
- O quê? — exclamou, engolindo em seco, claramente desconcertado com a minha súbita aparição. - Sente muito? Por quê, Sassenach?
- Sua mão. - Tomei-a nas minhas, traçando de leve as linhas tortas de seus dedos, tocando a cicatriz funda nas costas da mão.
- Vai melhorar - assegurei-lhe ansiosamente. - É verdade. Sei que parece rígida e inútil agora, mas é só porque ficou imobilizada tanto tempo e os ossos ainda não se emendaram completamente. Posso lhe mostrar como se exercitar e massagear. Você vai conseguir a maior parte de seus movimentos com ela, sinceramente...
Ele me fez calar deslizando a mão esquerda pelo meu rosto.
- Você quis dizer...? - começou, depois parou, sacudindo a cabeça sem poder acreditar. - Você pensou...? — parou outra vez e começou de novo.
- Sassenach, você não pensou que eu estava me lamentando por causa de um dedo paralisado e mais algumas cicatrizes, não é? - Sorriu, meio de viés. — Sou vaidoso, talvez, mas não tanto assim, espero.
- Mas você... — comecei. Ele segurou minhas mãos nas suas e levantou-se, fazendo-me ficar de pé também. Estendi o braço e limpei a única lágrima que rolara pelo seu rosto. Senti o calor da minúscula gota em meu polegar.
- Eu estava chorando de alegria, Sassenach - disse suavemente. Estendeu os braços devagar e segurou meu rosto entre as mãos. - E agradecendo a Deus por ter duas mãos. Por ter duas mãos para segurar você. Para acariciá-la, para amá-la. Agradecendo a Deus por ainda ser um homem completo, por você.
Ergui minhas próprias mãos, colocando-as sobre as dele.
- Mas por que não seria? - perguntei. E então me lembrei da parafernália de açougueiro, entre serras e facas, que eu vira entre os instrumentos de Beaton em Leoch, e compreendi. Compreendi o que eu havia esquecido diante da emergência. Que antes dos antibióticos, a cura comum — a única - para um membro infeccionado era a amputação.
- Ah, Jamie - exclamei. Meus joelhos ficaram fracos diante da idéia e me sentei no banco repentinamente. — Nunca pensei nisso - eu disse, ainda perplexa. - Sinceramente, nunca pensei nisso. - Ergui os olhos para ele. - Jamie. Se eu tivesse pensado nisso, provavelmente o teria feito. Para salvar sua vida.
- Não é assim... eles não fazem isso desse modo, então, na... sua época? Sacudi a cabeça.
- Não. Há remédios para combater a infecção. Então, eu nem considerei essa possibilidade - disse, admirada. Ergui os olhos de repente. - E você? Considerou?
Ele balançou a cabeça, confirmando.
- Eu esperava por isso. Foi por isso que lhe pedi que me deixasse morrer, naquela vez. Estava pensando nisso, entre os acessos de confusão mental, e naquele único momento eu achei que não seria capaz de suportar viver assim. É o que aconteceu com Ian, sabe.
- Não, foi mesmo? — Estava chocada. Ele disse-me que a havia perdido com um tiro de canhão, mas não pensei em perguntar os detalhes.
- Sim, o ferimento em sua perna piorou. Os médicos a cortaram para evitar que envenenasse seu sangue. - Fez uma pausa.
- Ian se sai muito bem, no geral. Mas — hesitou, puxando o dedo anular paralisado - eu o conheci antes. Ele só está tão bem como o vimos por causa da Jenny. Ela... o mantém inteiro. - Sorriu timidamente para mim. -Como você fez por mim. Não consigo imaginar por que as mulheres se dão ao trabalho.
- Bem - eu disse suavemente -, as mulheres gostam de fazer isso. Ele riu baixinho e me puxou para junto de si.
- Sim. Só Deus sabe por quê.
Permanecemos abraçados por algum tempo, sem nos mover. Minha cabeça descansava em seu peito, meus braços em volta de suas costas e eu podia ouvir seu coração batendo, devagar e com força. Finalmente, ele se mexeu e me soltou.
- Tenho algo para lhe mostrar - disse. Virou-se e abriu a pequena gaveta da mesa, retirando dali uma carta dobrada que me entregou.
Era uma carta de apresentação, do abade Alexander, recomendando seu sobrinho, James Fraser, à atenção do Chevalier-St. George - também conhecido como Sua Majestade o rei Jaime da Escócia — como um lingüista e tradutor muito apto.
- É um lugar — Jamie disse, observando-me enquanto eu dobrava a carta. — E logo vamos precisar de um lugar para onde ir. Mas o que você me disse na colina de Craigh na Dun era verdade, não?
Respirei fundo e balancei a cabeça.
- É verdade.
Ele pegou a carta da minha mão e bateu-a de leve no joelho, pensativamente.
- Então isto — agitou a carta - implica algum risco.
— Pode ser.
Atirou o pergaminho na gaveta e ficou sentado fitando-o por alguns instantes. Em seguida, levantou a cabeça e os olhos azuis encontraram-se com os meus. Passou a mão em meu rosto.
- Falo sério, Claire - disse serenamente. - Minha vida lhe pertence. E você pode decidir o que devemos fazer, para onde devemos ir. Para a França, para a Itália, até mesmo de volta à Escócia. Meu coração é seu desde a primeira vez em que a vi e você teve a minha alma e meu corpo em suas mãos aqui e os salvou. Faremos o que você disser.
Ouviu-se uma leve batida na porta e nos afastamos como amantes culpados. Ajeitei meus cabelos apressadamente, pensando que um mosteiro, embora um excelente lugar de convalescença, não era um retiro romântico apropriado.
Um irmão laico entrou ao comando de Jamie e colocou um pesado alforje sobre a mesa.
— De MacRannoch da Mansão Eldridge — disse com um largo sorriso. - Para a senhora de Broch Tuarach. — Fez uma reverência e saiu, deixando para trás um leve sopro de maresia e ar gelado.
Desatei as fivelas das tiras de couro, curiosa para ver o que MacRannoch teria mandado. Dentro, havia três coisas: um bilhete, sem endereço e sem assinatura, um pequeno pacote endereçado a Jamie e a pele curtida de um lobo, com um cheiro forte dos produtos usados pelo curtidor.
O bilhete dizia: "Porque uma mulher virtuosa é uma pérola de alto preço e seu valor é maior do que o de rubis."
Jamie abrira o outro pacote. Segurava um objeto pequeno e brilhante em uma das mãos e olhava, intrigado, para o couro de lobo.
— É um pouco estranho. Sir Marcus enviou-lhe uma pele de lobo, Sassenach, e para mim uma pulseira de pérolas. Será que ele trocou as etiquetas?
A pulseira era uma bela jóia, uma única fileira de grandes pérolas barrocas, unidas por elos de ouro.
— Não — eu disse, admirada. - Está certo. A pulseira combina com o colar que você me deu quando nos casamos. Foi ele quem deu o colar de pérolas à sua mãe, sabia?
- Não, não sabia — ele respondeu em voz baixa, tocando as pérolas. — Meu pai o deu para mim para que eu desse à minha esposa, quem ela viesse a ser — e um rápido sorriso torceu seus lábios —, mas ele não me disse de onde elas vieram.
Lembrei-me da ajuda de sir Marcus na noite em que irrompemos tão bruscamente em sua casa e a expressão em seu rosto quando o deixamos no dia seguinte. Eu podia ver pelo rosto de Jamie que ele também estava se lembrando do baronete que poderia ter sido seu pai. Estendeu o braço e segurou minha mão, prendendo a pulseira em torno do meu pulso.
- Mas não é para mim! — protestei.
- É, sim — ele disse com firmeza. - Não é adequado que um homem envie uma jóia para uma respeitável mulher casada, então ele a deu para mim. Mas é claro que é para você. - Olhou para mim e sorriu. — Para começar, não dá no meu pulso, mesmo magro como estou.
Virou-se para a pele de lobo embolada sobre a mesa e sacudiu-a.
- Mas por que MacRannoch lhe enviou isto? - Envolveu os ombros com o couro peludo do animal e eu me encolhi com um grito agudo. A cabeça, também cuidadosamente raspada e curtida, bem como dotada com um par de olhos de vidro amarelos, olhava desagradavelmente para mim com os olhos arregalados de sua posição no ombro esquerdo de Jamie.
- Ugh! — exclamei. — Tem a mesma aparência de quando estava vivo!
Jamie, seguindo a direção do meu olhar, virou a cabeça e viu-se de repente cara a cara com a fera de dentes arreganhados. Com uma exclamação de espanto, deu um puxão na pele de lobo e atirou-a do outro lado do quarto.
- Meu Deus - exclamou, fazendo o sinal-da-cruz. A pele ficou esparramada no chão, brilhando ameaçadoramente à luz da vela.
- O que quer dizer com "quando estava vivo", Sassenach? Era um amigo pessoal? —Jamie perguntou, olhando de viés a cara do animal.
Contei-lhe, então, tudo que não tivera a chance de lhe contar; sobre o lobo e os outros lobos, sobre Hector, a neve, a cabana com o urso e a discussão com sir Marcus, a entrada de Murtagh, o gado e a longa espera na encosta do monte em meio à neblina rosada do crepúsculo varrido pela neve, esperando para saber se ele estava vivo ou morto.
Mesmo magro, seu peito era largo e seus braços quentes e fortes. Apertou meu rosto contra seu ombro e embalou-me enquanto eu soluçava. Tentei me controlar, mas ele apenas abraçou-me com mais força, dizendo palavras ternas e amorosas em meus cabelos. Finalmente, eu não resisti e chorei com o completo abandono de uma criança, até chegar à completa exaustão, fraca e soluçante.
- Por falar nisso, eu também tenho um presentinho para você, Sassenach — ele disse, alisando meus cabelos. Limpei meu nariz na saia, não tendo mais nada à mão.
- Desculpe não ter nada para lhe dar - eu disse, olhando-o enquanto se levantava e começava a procurar alguma coisa embaixo das cobertas desfeitas. Provavelmente, procurando um lenço, pensei, fungando um pouco mais.
- Fora alguns presentinhos como minha vida, minha masculinidade e minha mão direita? - perguntou secamente. - Basta isso, não, mo duinne? - Endireitou-se com a túnica de um noviço na mão.
- Dispa-se.
Fiquei boquiaberta.
- O quê?
- Dispa-se, Sassenach, e vista isso. - Entregou-me a túnica, rindo. - Ou quer que eu vire de costas primeiro?
Apertando a túnica de pano rústico ao redor do corpo, segui Jamie por mais um lance de escadas escuras. Era o terceiro e o mais estreito; o lampião que ele segurava iluminava as paredes de pedra distantes uma da outra não mais do que quarenta centímetros. Parecia que estávamos sendo engolidos para dentro da Terra, à medida que penetrávamos cada vez mais fundo no poço escuro das escadas.
- Tem certeza de que sabe aonde está indo? — perguntei. Minha voz ecoou no vão da escada, mas com um curioso som abafado, como se falássemos embaixo d'água.
- Bem, não há muita chance de pegar o caminho errado, não é? Alcançáramos outro patamar, mas, de fato, o caminho à frente seguia em uma única direção — para baixo.
Entretanto, no pé desse lance de escadas, chegamos a uma porta. Havia um pequeno patamar, escavado na própria rocha da encosta de uma montanha, ao que parecia, e uma porta larga e baixa, feita de tábuas de carvalho e dobradiças de latão. As tábuas de carvalho eram cinzentas de tão antigas, mas sólidas, e o patamar estava limpo e varrido. Obviamente, aquela parte do monastério ainda era usada. Seria a adega?
Havia um candeeiro preso à parede junto à porta servindo de suporte a uma tocha, parcialmente consumida pelo uso anterior. Jamie parou para acendê-la com um pedaço de papel torcido da pilha já pronta embaixo do candeeiro, em seguida empurrou a porta, que não estava trancada, e agachou-se para passar por baixo do umbral, sinalizando para que o seguisse.
No começo, não conseguia ver nada além da claridade do lampião de Jamie. Tudo estava às escuras. O lampião balançava-se, afastando-se de mim. Fiquei parada, seguindo a bolha de luz com os olhos. A intervalos de alguns passos, ele parava, depois continuava, e uma pequena chama erguia-se em seu rastro, queimando com um pequeno clarão vermelho. À medida que meus olhos se acostumavam, as chamas tornavam-se uma fileira de lamparinas, instaladas em pilastras de pedra, brilhando no escuro como faróis.
Era uma caverna. A princípio, pensei que fosse uma caverna de cristais, por causa da estranha cintilação negra além das lamparinas. Mas avancei até a primeira pilastra e olhei mais à frente, então eu vi.
Um lago límpido e escuro. Água transparente, brilhando como vidro sobre areia vulcânica, negra e fina, lançando reflexos vermelhos à luz das lamparinas. O ar era úmido e quente, pesado com o vapor que se condensava nas paredes frias da caverna, escorrendo pelas ásperas colunas de pedra.
Uma fonte de água quente. O leve cheiro de enxofre penetrou em minhas narinas. Portanto, uma fonte de água mineral quente. Lembrei-me de ter ouvido Anselmo mencionar as fontes que borbulhavam do chão perto do mosteiro, famosas por seus poderes curativos.
Jamie ficou parado atrás de mim, admirando o lago de rubis e azeviches de onde se elevava um leve vapor.
— Um banho quente - ele disse orgulhosamente. - Gostou?
- Jesus Cristo! - exclamei.
— Ah, então gostou - ele disse, rindo diante do sucesso da surpresa. — Vamos entrar, então.
Tirou sua própria túnica e ficou parado, reluzindo indistintamente no escuro, malhado de vermelho nos reflexos cintilantes da água. O teto abo-badado da caverna parecia engolir a luz das lamparinas, de modo que a claridade atingia apenas uma certa altura, antes de ser engolfada pela escuridão.
Com uma certa hesitação, deixei a túnica escorregar dos meus ombros.
— É quente demais? - perguntei.
— O suficiente - respondeu. — Não se preocupe, não vai queimá-la. Mas se ficar mais ou menos uma hora, ela vai cozinhar sua carne até soltar-se dos ossos como num ensopado.
— Que idéia agradável — eu disse, livrando-me totalmente da túnica. Seguindo sua figura esbelta e empertigada, entrei cautelosamente na água. Havia degraus escavados na pedra, levando ao fundo do lago, com uma corda com nós presa ao longo da parede para servir de apoio.
A água atingiu meus quadris e a carne em minha barriga estremeceu de prazer quando o calor me envolveu. No final dos degraus, fiquei de pé em areia fina e escura, a água pouco abaixo dos meus ombros, meus seios flutuando como bóias de vidro de pescadores. Minha pele ficou avermelhada com o calor e gotículas de suor começaram a surgir na minha nuca, sob os cabelos pesados. Era pura felicidade.
A superfície da fonte era lisa e sem ondas, mas a água não era parada; eu podia sentir pequenas agitações, correntes percorrendo a massa d'água como impulsos nervosos. Foi isso, suponho, acrescentado do calor incrivelmente relaxante, que me deu a ilusão momentânea de que a fonte estivesse viva — uma entidade calorosa e receptiva que abria os braços para tranqüilizar e consolar. Anselmo dissera que as fontes tinham poderes curativos e eu não podia duvidar.
Jamie surgiu atrás de mim, ondulações mínimas marcando sua passagem pela água. Segurou meus seios por trás, delicadamente banhando as elevações superiores com a água quente.
- Gosta, mo duinne? - Inclinou-se e beijou meu ombro. Deixei meus pés flutuarem, apoiando-me nele.
- É maravilhoso! É a primeira vez que me sinto inteiramente aquecida desde agosto. - Ele começou a me puxar, recuando lentamente pela água; minhas pernas estendiam-se no rastro de nossa passagem, o surpreendente calor correndo pelos membros do meu corpo como mãos acariciadoras.
Ele parou, virou-me de frente e colocou-me delicadamente sobre uma madeira rígida. Parcialmente visíveis à luz turva, sob a água, pude ver pranchas assentadas em um nicho da rocha. Sentou-se no banco ao meu lado, estendendo os braços para a saliência da rocha atrás de nós.
- O irmão Ambrose me trouxe aqui no outro dia para mergulhar na água - ele disse. - Para amaciar um pouco as cicatrizes. Dá uma ótima sensação, não é?
- Mais do que ótima. — A água fluía tão agradavelmente que eu senti que poderia sair flutuando se soltasse a mão com que me segurava ao banco. Olhei para cima, para a escuridão do teto.
- Alguma coisa vive nesta caverna? Morcegos, por exemplo? Ou peixes? Ele sacudiu a cabeça.
- Nada além do espírito da fonte, Sassenach. As bolhas de água saem da terra através de uma pequena fenda lá atrás - indicou a escuridão inviolável do fundo da caverna com um movimento da cabeça - e escorre para fora através de uma dezena de pequenas aberturas na rocha. Mas não há nenhuma abertura verdadeira para o lado de fora, a não ser a porta que dá para o mosteiro.
- O espírito da fonte? - perguntei, achando graça. - Soa um pouco pagão, esconder-se sob um mosteiro.
Ele espreguiçou-se com vontade, as longas pernas oscilando sob a superfície vítrea como os caules de plantas aquáticas.
- Bem, seja como for que você queira chamá-lo, está aqui há muito mais tempo do que o mosteiro.
- Sim, compreendo.
As paredes da caverna eram de rocha vulcânica lisa e escura, quase como vidro preto, escorregadias com a umidade da fonte. A câmara inteira parecia uma bolha gigantesca, parcialmente cheia daquela água curiosamente viva, mas estéril. Senti-me como se estivéssemos embalados no ventre da Terra e que, se encostasse meu ouvido na rocha, ouviria o batimento infinitamente vagaroso de um grande coração não muito longe dali.
Ficamos em silêncio por um longo tempo, em parte flutuando, em parte sonhando, esbarrando de vez em quando um no outro, conforme éramos levados pelas correntes invisíveis da caverna.
Quando finalmente falei, minha voz parecia lenta e arrastada.
- Já decidi.
- Ah. Vai ser Roma, então? - A voz de Jamie parecia vir de uma grande distância.
- Sim. Uma vez lá, não sei...
- Não importa. Faremos o que for possível. - Estendeu a mão para mim, com movimentos tão lentos que pensei que nunca me tocaria.
Puxou-me para junto dele, até que as pontas sensíveis dos meus seios roçassem o seu peito. A água não era apenas quente, mas também pesada, quase oleosa ao tato, e suas mãos flutuaram pelas minhas costas, seguraram-me pelas nádegas e me ergueram.
A penetração foi surpreendente. Quente e escorregadia como nossa pele estava, deslizamos por cima um do outro apenas com uma leve sensação de toque ou pressão, mas sua presença em mim era sólida e íntima, um ponto fixo num mundo aquático, como um cordão umbilical aleatoriamente levado pelos líquidos no útero. Emiti um pequeno som de surpresa com o pequeno influxo de água quente que acompanhou sua entrada, depois me agarrei com firmeza ao meu ponto fixo de referência com um pequeno gemido de prazer.
- Ah, gostei desse - ele disse, de modo apreciativo.
- Gostou de quê?
- Desse som que você acabou de fazer. Esse gritinho.
Não era possível ficar ruborizada; minha pele já estava tão vermelha quanto era possível. Deixei meus cabelos ondularem para a frente para encobrir meu rosto, os cachos relaxando-se ao arrastarem a superfície da água.
- Desculpe; não pretendia fazer barulho.
Ele riu, o som profundo ecoando suavemente nas colunas do teto.
- Eu disse que gostei. E é verdade. E uma das coisas que eu mais gosto em me deitar com você, Sassenach, os pequenos ruídos que você faz.
Puxou-me para mais perto, para que minha fronte descansasse em seu pescoço. Nossos corpos deslizaram um contra o outro, escorregadios como a água carregada de enxofre. Ele fez um ligeiro movimento com os quadris e eu prendi a respiração, arquejando.
- Assim... — ele disse num sussurro. - Ou... assim?
- Hum - exclamei. Ele riu outra vez, mas não parou.
- Isso era tudo em que eu pensava - ele disse, acariciando minhas costas, apalpando, traçando as curvas dos meus quadris. - Na prisão à noite, acorrentado em uma cela com uma dezena de outros homens, ouvindo os roncos, as ventosidades, os gemidos. Pensava nesses pequenos e meigos sons que você faz quando eu faço amor com você e podia senti-la ali comigo no escuro, respirando devagar e depois mais depressa, e o pequeno gemido que você dá assim que eu a possuo, como se estivesse preparando-se para fazer sua parte.
Minha respiração estava definitivamente se acelerando. Sustentada pela água densa, saturada de minerais, boiava como uma pena oleosa, que só não era levada pela corrente porque se agarrava nos músculos curvilíneos de seus ombros e por estarmos firmemente presos mais embaixo.
— E ainda melhor — sua voz murmurava quente em meu ouvido — quando eu a procuro com sofreguidão e ardor e você choraminga sob mim, e luta como se quisesse escapar e eu sei que está apenas lutando para ficar mais perto, e eu também estou travando a mesma batalha.
— Jamie - eu disse em voz rouca, seu nome ecoando da água. - Jamie, por favor.
— Ainda não, mo duinne. — Suas mãos agarraram-me com força pela cintura, movendo-me devagar, pressionando-me para baixo, até eu realmente gemer.
— Ainda não. Temos tempo. E pretendo ouvi-la gemer assim outra vez. E gemer e soluçar, mesmo que não queira, porque não pode se conter. Quero fazê-la suspirar como se seu coração fosse se despedaçar e gritar de desejo e finalmente berrar em meus braços e eu saberei que realmente lhe dei muito prazer.
A precipitação começou entre minhas coxas, disparando como um dardo nas profundezas do meu ventre, fazendo minhas articulações amolecerem, minhas mãos afrouxaram-se e languidamente abandonaram seus ombros. Minhas costas se arquearam e meus seios firmes e escorregadios pressionaram-se com força contra seu peito. Estremeci na escuridão quente, as mãos firmes de Jamie eram tudo que me impedia de submergir.
Descansando em seu peito, sentia-me mole como uma água-viva. Não me importava com os ruídos que andei fazendo, mas sentia-me incapaz de dizer uma frase coerente. Até ele começar a se mexer outra vez, com a força de um tubarão sob as águas escuras.
— Não — eu disse. — Jamie, não. Não vou agüentar desta forma outra vez. - O sangue ainda latejava nas pontas dos meus dedos e seu movimento dentro de mim era uma deliciosa tortura.
— Agüenta, sim, porque eu a amo. — Sua voz chegava até mim abafada pelos meus cabelos encharcados. - E agüentará, porque eu a desejo. Mas desta vez, eu vou com você.
Segurou meus quadris firmemente contra ele, arrastando-me com a força de uma contracorrente. Meu corpo amorfo bateu de encontro ao dele, como as ondas da arrebentação em um rochedo, e ele me recebeu com a força brutal do granito, minha âncora no caos das águas agitadas.
Lânguida e mole como as águas ao nosso redor, contida apenas pelo apoio de suas mãos, eu gritei, o grito engasgado, borbulhante, fraco, de um marinheiro tragado pelas ondas. Então, ouvi seu próprio grito, em resposta, e vi que havia lhe dado muito prazer.
Lutamos para subir à superfície, para sair do ventre da Terra, molhados e fumegantes, com as pernas frouxas de vinho e calor. Caí de joelhos no primeiro patamar e Jamie, ao tentar me ajudar, caiu ao meu lado num amontoado de túnicas e pernas nuas. Rindo baixinho, sem conseguir parar, mais embriagados de amor do que de vinho, subimos lado a lado o segundo lance de escadas, mutuamente nos atrapalhando mais do que ajudando, empurrando-nos e tropeçando no espaço estreito, até desmoronarmos finalmente nos braços um do outro no segundo patamar.
Ali, uma antiga janela envidraçada abria-se, sem vidraças, para o céu e o clarão da lua cheia banhou-nos de prata. Ficamos deitados, abraçados, a pele úmida esfriando-se ao ar de inverno, à espera de que nossos corações acelerados voltassem ao normal e o fôlego retornasse aos nossos corpos arfantes.
A lua sobre nós era uma lua de Natal, tão grande que quase preenchia o vão da janela. Não era de admirar que as marés do oceano e as mulheres fossem sujeitas à influência daquela esfera majestosa, tão próxima e tão dominante.
As minhas próprias marés, entretanto, já não se moviam segundo aqueles comandos estéreis e castos e o conhecimento da minha liberdade corria perigosamente pelas minhas veias.
- Eu também tenho um presente para você - disse repentinamente a Jamie. Voltou-se para mim e sua mão deslizou, grande e firme, sobre meu ventre ainda plano.
- É mesmo? — ele disse.
E o mundo nos envolveu, pleno de novas possibilidades.
Diana Gabaldon
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