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A VIDA NUM SOPRO / José Rodrigues dos Santos
A VIDA NUM SOPRO / José Rodrigues dos Santos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A VIDA NUM SOPRO

 

O sol jorrava por todas as janelas em cascatas de luz, tépidas e difusas, e os alunos inclinaram-se na sua direcção; pareciam flores em busca do calor meigo que lhes faltava, o rosto procurando a quentura acolhedora com as suas promessas de aconchego. O impiedoso Inverno transmontano aproximava-se, lento mas inexorável, e o calendário pregado à porta marcava 1929.

Luís Afonso passou a mão pelo cabelo, deixou a franja castanho-clara descair-lhe para o lado e espiou furtivamente a fila de janelas para lá do pátio do Liceu Central Emídio Garcia, em Bragança. Lá estava ela, a beldade do outro dia. Na semana anterior, os olhos castanhos de Luís haviam-se cruzado pela primeira vez com aqueles mesmos olhos cor de mel, verdadeiros rebuçados dourados que espreitavam do outro lado, da ala feminina. Foi um momento breve, o tempo de uma abelha beijar uma pétala, o instante que demora um fugaz palpitar do coração; mas também eterno, eterno como o incansável cintilar de uma estrela incrustada no firmamento negro ou o contínuo marulhar do mar sobre a areia fulgente da praia.

Eterno.

Aquele efémero momento foi eterno, porque foi com ele que tudo começou.

O olhar dos dois voltou a cruzar-se essa manhã, cada um na sua sala, ele no piso superior, ela no piso inferior, as duas alas separadas pelo pátio; ambos espreitavam pela janela como se o sonho estivesse para lá dela, como se o fluir da vida ali os aguardasse, mas desta vez a rapariga manteve-se um tudo-nada mais a fitá-lo, o olhar de jade prendendo-o no tempo, um instante sem fim, ela com aqueles olhos melífluos, não eram castanhos nem verdes, eram áureos e açucarados, carregados de promessas, olhos quentes e brilhantes. Como o mel.

O momento prolongou-se por três inextinguíveis segundos, tão longos como se o tempo tivesse parado, tão intensos que tudo desapareceu a não ser aquelas jóias hipnóticas, tão fortes que os corações ribombaram descontroladamente no peito; até que ela, com um súbito rubor a colorir-lhe a face delicada, acabou por virar a cara e escondê-la entre os cabelos ondu­lados com madeixas aloiradas. Um anjo, pensou Luís; era um anjo como nunca se vira por aquelas paragens.

"Então, senhor Afonso? Para onde está o senhor a olhar, pode-se saber?"

Luís estremeceu e voltou bruscamente o rosto, a realidade da aula impondo-se à fantasia da janela; encostado à sua carteira, as pontas dos dedos sujas com o pó branco de giz, o professor de Química observava-o, o bigode a tremelicar de irritação.

"Hã?"

"Aqui não há hã nem meio hã", repreendeu-o o profes­sor. "Faz o obséquio de me dizer para onde estava o senhor a olhar?"

"Eu?"

"Sim, o senhor."

"Oh, nada de especial", devolveu Luís, esboçando um gesto vago com a mão esquerda na direcção do pátio. "Estava apenas a... a ver ali uma pardaleca a pardalar."

O professor observou as raparigas visíveis na fileira de janelas do outro lado e, coruja velha, tamborilou os dedos na madeira rude da carteira do aluno.

"Você é que me saiu um bom pardal."

O toque das onze 'da manhã assinalou o fim da aula e, instantes depois, no meio da enxurrada de alunas que abando­navam a sala em catadupa, a rapariga esgueirou-se pela porta e deslizou pelo corredor na direcção das escadas. Com o coração aos pulos pela temeridade do que planeava fazer, Luís abandonou o lugar onde se ocultara, um discreto pilar estrategicamente colocado diante da sala, apressou o passo atrás dela e apanhou-a já na escadaria; ao ultrapassá-la abriu os braços e, com espalhafato, deixou tombar os cadernos nos degraus, mesmo à frente da beldade dos olhos de mel.

"Perdão", desculpou-se, dobrando o corpo para apanhar os cadernos espalhados diante dela. "Sou um desastrado." Voltou a cabeça e espreitou-a sobre o ombro, embora se man­tivesse debruçado a recuperar o material escolar. "Não se assustou, pois não?"

A rapariga tinha estacado num degrau, pestanejando de surpresa com a confusão gerada a seus pés. Mal o moço a encarou, porém, recuperou do espanto e reconheceu-o; era o rapaz da janela.

Num relance estudou-o da cabeça aos pés, procurando o que a longínqua janela escondera. O rapaz era mais alto e bem constituído do que parecia à distância; tinha os sapatos impecavelmente engraxados, as roupas claras vinham limpas e bem passadas, o cabelo liso castanho-claro brilhava à luz do dia, os pelinhos de adolescente-que-se-faz-homem nasciam--lhe nos cantos da boca e os expressivos olhos castanhos bri­lhavam na face máscula e quadrada de varão atraente. Era a primeira vez que o encarava de perto e reconheceu nele um ar bem tratado; o rapaz vinha certamente de boas famílias.

Ao vê-lo assim, naquela embrulhada diante dela, depois de tantas e tão intensas trocas de olhares pelas janelas do liceu, a rapariga logo suspeitou que não houvera ali acidente nenhum, antes um estratagema para meter conversa, e não conseguiu ocultar o leve esboço de um sorriso, pormenor pequeno, mas significativo, que não escapou a Luís.

"Não me assusto com facilidade", observou ela por fim, contornando-o e fazendo tenção de prosseguir caminho, cien­te de que uma rapariga de bem tinha de se dar ao respeito.

Luís recuperou os cadernos e apressou-se a acompanhá-la.

"Sabe, quando vejo uma moça bonita, assim como você, fico, sei lá, fico nervoso, não é? E foi isso que... que me atrapalhou."

A rapariga olhou-o, divertida com a audácia do piropo.

"Não, você não é desastrado. É atrevido."

"Receio que esteja a confundir atrevimento com sincerida­de." Estendeu a mão. "Sou o Luís e sou sincero."

Ela riu-se, ignorando a mão que lhe era oferecida.

"É atrevido e tem muita conversa, já vi."

"Não me diga que não me vai dizer o seu nome..."

"Para que quer o meu nome, pode-se saber?"

"Ora, para sermos amigos, claro."

"Ai quer ser meu amigo, ora é?"

Luís parou, dobrou o joelho e fez uma vénia.

"Seria uma honra."

"E para que preciso eu de um amigo?"

"Todas as damas têm o seu cavaleiro."

Encantada com aqueles modos, a rapariga estendeu-lhe enfim a mão e rendeu-se.

"Chamo-me Amélia."

Cumprimentaram-se e ele mirou-a com um sorriso.

"Amélia dos olhos garços?"

Amélia voltou as costas, embaraçada e deliciada com a audácia do moço, e apressou o passo com um doce e fresco menear das ancas, como se balouçasse o corpo ao ritmo de um sensual bolero. Correu assim para as amigas, que tudo observavam com invejosa curiosidade, soltando risinhos exci­tados e sussurrando com agitação. Uma vez com elas, Amélia voltou a cabeça, observou Luís parado na escadaria a admirá-la, os olhos inflamados por tanta graciosidade, e acenou timidamente com o braço.

"Adeus!"

E corou.

O resto do dia foi vivido por Luís com um misto de ansiedade e exaltação. Mal comeu ao almoço, a mente sempre absorvida a reconstituir o que sucedera na escadaria do liceu. Quando as aulas terminaram à tarde, seguiu direito para a pensão onde estava hospedado em Bragança e fechou-se no quarto.

Ah, Amélia! Que lindo nome! Tudo nela lhe parecia perfei­to. Uma estranha e saborosa euforia apossou-se dele, desinquietado com a temeridade com que se aproximara da rapariga mais bonita do liceu, alvoraçado com a reacção que dela tivera. A luz do Sol sorria-lhe da janela e convidava-o a abraçar o dia dourado. Reviu vezes sem conta as breves palavras que trocaram nos degraus e escalpelizou ao porme­nor as expressões desenhadas naquele rosto fino. Procurou ler nas entrelinhas do que não fora dito, buscou emoções por detrás dos sorrisos que Amélia lhe exibira, encontrou confor­to no adeus que ela lhe lançara na despedida. Ficara na escadaria a vê-la juntar-se às amigas; desejara ardentemente que ela se virasse, que ela não se mostrasse indiferente àquele encontro, que ela o olhasse uma derradeira vez.

E Amélia olhara.

Toc-toc-toc.

"Quem é?"

"Sou eu, menino Luís. A dona Hortense. Estamos todos à sua espera para a janta."

Luís rolou os olhos, impaciente com a inoportuna interrup­ção, a deleitosa cadeia de pensamentos e fantasias brutalmen­te quebrada pela voz esganiçada.

"Rai's t'a parta o diabo da mulher!", murmurou, contraria­do, desencostando-se da almofada langorosa. "Que maçada, só pensa na engorda..."

Saltou a custo da cama e entreabriu sem entusiasmo a porta. Parada diante dele como um arbusto plantado no corredor estava a dona da pensão, uma senhora redonda de meia-idade, de cabelo encaracolado e faces rosadas, o aspecto bonacheirão de transmontana bem nutrida.

"Atão, menino?"

"Desculpe, dona Hortense, mas não tenho fome."

"O menino não vem à janta?", admirou-se ela, limpando as mãos ao avental sujo.

"Sabe o que é? Tenho muito que estudar."

"Arre diabo! Então esteve a abelhinha da Graciete a esmerar-se para fazer um belo cozidinho, daqueles cheios de chicha

valente, como o menino gosta, e agora não quer comer? Logo o menino, que sempre foi tão lambiteiro!"

"Pois é, mas preciso de estudar."

A dona da pensão inclinou a cabeça e tentou espreitar pela frincha da porta entreaberta.

"Mas que estudos são esses, valha-me Deus, que o botam no quarto e não o deixam comer?"

O rapaz encostou a porta o mais que podia, de modo a manter a frincha num fio.

"São os trabalhos que os professores mandam para casa."

Desconfiada, dona Hortense fitou-lhe os olhos com aten­ção e, de repente, abrindo o rosto com ar de quem acabou de descobrir a resposta para o enigma, colou-lhe a palma da mão sapuda à testa.

"Não me diga que está febroso..."

"Não, não, eu estou bem."

Constatando que a temperatura na testa era normal, a dona da pensão endireitou-se e indicou com a cabeça o andar inferior, onde se situava a sala de jantar.

"O menino é muito fisquinho, tem de comer."

"Eu sei, dona Hortense. Mas primeiro preciso de alimentar a alma."

"Ora, cenórias! Primeiro enche-se o bandulho e só depois é que vem a alma. Sem paparoca boa, a cabeça não pensa. Além disso, a sua tia mandou-me cebá-lo bem e não quero cá reclamações."

"Fique descansada."

A dona da pensão deu meia volta e desceu as escadas, os braços gordos agarrados ao corrimão.

"Quando lhe der a galgueira, já sabe: vai à cozinha, hem?"

Vendo-a desaparecer nos degraus inferiores, Luís fechou a porta do quarto e suspirou.

"Que estopada!"

Mas logo se recompôs. O quarto era animado pelo alegre chalrar dos periquitos que esvoaçavam para cá e para lá dentro de uma espaçosa gaiola, as irrequietas penas verdes e amarelas contempladas pelo olhar vidrado dos peixes que deslizavam em silêncio no pequeno aquário do canto. Habitualmente era com os seus animais que se distraía, mas desta vez havia um atractivo diferente. A fantasia esperava-o na cama, a noite seria longa e os sonhos ardentes.

Ah, Amélia!

 

O apetite só lhe veio ao pequeno-almoço do dia seguinte e, mesmo assim, com uma moderação que deixou dona Hortense rubra de tão escandalizada.

"Concho!", exclamou, levando as mãos gordas ao rosto corado. "aquase que me dá um fanico de o ver assim a modos que estrelicado! Um moço tão peleiroso como o menino precisa de gafar melhor, ouviu? Senão falta-lhe a genica e nunca chegará a deitor!"

"O dona Hortense, não vale a pena exagerar. Bebi o leite e comi o papo-seco, não foi?"

"É pouco."

Luís arrastou a cadeira para trás e ergueu-se.

"Chega-me perfeitamente", disse. "Agora tenho de ir para o liceu, já se fazem horas."

"O quê?", admirou-se ela, seguindo-o com os olhos contrariados. "Mas ainda falta uma hora para as aulas começarem. Para quê essa pressa toda, valha-me Deus?"

"Tenho muito que fazer."

"Ai tem, tem. E a primeira coisa que tem a fazer é comer. Lembre-se que o menino não gafou nada ontem à noite. Devia ao menos levar uma merendinha."

"Não é preciso."

Dona Hortense virou-se e dirigiu-se à cozinha.

"Desculpe, mas tem de ser", insistiu. "Onde é que já se viu ir assim para a escola? Vou ali pedir à Graciete que lhe bote na cestinha as sobras do cozido e um chouricinho de mel."

"Não quero."

Mas a dona da pensão já nem o ouvia e desapareceu para além da porta.

"Ó Graciete! Gracieeeete!"

"Senhora?", respondeu uma voz longínqua.

"Preparas aí uma merendinha para o menino Luís, ora preparas?"

"Sim, senhora."

Percebendo que a preparação da merenda se iria eternizar, Luís pegou apressadamente na mala, que deixara encostada à parede do corredor, e correu lá para fora.

"Até logo!"

"Espere!", gritou dona Hortense da cozinha, apercebendo-se de que ele saía. "Espere pela merendinha, valha-me Deus."

A voz dele desaparecia já na rua.

"Adeus!"

A dona da pensão veio à porta da hospedaria, a sua figura larga a encher a entrada, e ficou a vê-lo descer a rua.

"Aiche, onde é que já se viu isto?", protestou ela, abanan­do a cabeça com uma expressão reprovadora, os braços à ilharga em pose afirmativa. "Olhem-me o moço, credo! Parece endiabrado!" Esticou o pescoço gordo e atirou em voz alta,

na esperança de ainda ser ouvida: "Se a sua tia sabe, vai-lhe ler a panjelíngua! Ai vai, vai!"

Alheio à voz que se esganiçava lá para trás, Luís estugou o passo em direcção ao liceu. Na verdade, não ia atrasado; tinha era pressa de chegar cedo. A excitação acelerava-lhe os movimentos, queria espreitá-la a entrar no edifício e adivinhar-lhe no rosto se pensara tanto nele como ele pensara nela.

Passou à frente de duas lojas e, abrandando, mirou-se no reflexo das vitrinas. Ia janota, o cabelo liso bem penteado para o lado, o corpo alto e elegante, o vestuário claro impecavelmente arranjado; não parecia o transmontano que era, mas um lisboeta que acompanhava a moda parisiense. Tivera o cuidado de vestir nessa manhã as suas melhores roupas e fez uma nota mental para, de tarde, dar um salto ao alfaiate e comprar calças e camisas ainda mais vistosas do que aquelas que trazia agora. Talvez até uma água-de-colónia.

Retomou a marcha e, como planeara, chegou cedo ao liceu. O movimento era ainda lento àquela hora matinal e Luís ficou cá fora a contemplar as chegadas. Os alunos vinham ainda a conta-gotas, a maior parte a pé, alguns de bicicleta, um ou outro era largado por um carro. Mas a manhã nascera fria e a exasperante inactividade da espera começou a deixá-lo gelado, pelo que, a contragosto, decidiu aguardar no interior. Não era decerto ao borralho, mas sempre se estava melhor.

Alguns colegas de turma vieram ter com ele para combinar um jogo de trincassuada no recreio, mas, de modos impacientes e olhar distraído, Luís não alimentou a conversa e eles acabaram por ir procurar parceiros para outro lado.

A medida que a hora do início das aulas se aproximava, o pingar de entradas foi-se intensificando até que se tornou corrente, era já um caudal de gente que afluía sem cessar pela

porta, numa crescente animação, a algazarra enchendo agora o pátio do liceu. Luís perscrutou com impaciência a multidão de rostos jovens e procurou Amélia a cada face, a cada corpo, a cada voz. Mas não a viu.

O primeiro toque soou e ele suspirou, decepcionado. Deu meia volta e percorreu apressado o corredor em direcção à sala. O dia começava com Matemática e nem pensar em chegar atrasado. O professor Marques não era para brincadeiras.

Seguiu a aula distraidamente, prestando à matéria a atenção mínima que a cautela requeria. Tomou os apontamentos que precisava de tomar, mas os olhos fugiam-lhe amiúde para a janela, como se na rua encontrasse a resposta para a raiz quadrada da equação seguinte. Da janela os olhos voavam para o relógio, do ponteiro dos minutos para o professor, da figura esguia do professor Marques para o caderno e de novo para a janela. Uma deliciosa impaciência ruminava-lhe no peito; queria vê-la e não havia meio de a aula terminar, tinha a impressão de que nunca uma hora lhe parecera tão longa.

Foi só ao segundo intervalo, entre as aulas de Biologia e Desenho, que deu com Amélia. Estava encostada a uma parede à conversa com duas amigas e ria-se com uma alegria desprendida. Luís sentiu um baque no peito ao vê-la assim tão contente. Como é que ela se consegue rir?, interrogou-se, perturbado. Então ando eu aqui de rastos, a morrer de impaciência por lhe pôr os olhos em cima, e ela a rir-se? Fitou-a com apreensão, preocupado com a possibilidade de ter inter­pretado mal as reacções dela na véspera, fazendo tábua rasa de tudo o que excitadamente concluíra ao longo de todas aquelas horas em que estivera fechado no quarto. Será que lhe sou indiferente? Serei eu apenas mais um?

Procurou-lhe os olhos, mas ela mantinha-se embrenhada na conversa com as amigas. Parecia divertida e ria-se e sorria com frequência. Do que se ri ela? Será de mim? Perscrutou-a com atenção, tanta que a perturbação se evaporou e a mente se deixou enlevar pelo brilho que dela emanava. Que sorriso tão bonito, pensou. Tão bonito, parece que cintila! Quando ela sorria, não era só a boca que sorria, eram os olhos, as bochechas, todo o rosto, o corpo inteiro. Abanou a cabeça, quase desesperado. Realmente, como posso eu atrever-me a desejar uma coisa assim tão bela? Suspirou, o peito oprimido pela angústia.

Foi então que os olhos se cruzaram.

Amélia deixou um sorriso suspenso enquanto o seu olhar cor de mel pousava em Luís. A graça parecia soltar-se-lhe naquele olhar. Viu-o, acenou timidamente e voltou a atenção para as amigas, mas com o ar algo comprometido.

Algumas notaram o gesto e viraram para ele as atenções, para logo se multiplicarem em risinhos e em murmúrios excitados.

"Olha para ele, olha para ele!", cacarejou uma voz no meio do pequeno tumulto.

"Onde?"

"Ali, parva!"

Risinhos.

Apanhado de surpresa pelas vozes indiscretas que flutuavam no corredor, Luís percebeu que falavam dele. Sentiu-se um animal enjaulado no zoológico e lidou mal com o desconforto. Embaraçado e irritado por se ter tornado objecto de tanto comentário mexeriqueiro entre as raparigas, voltou as costas e afastou-se com gestos alheados, como se a troca de olhares com Amélia tivesse sido acidental, coisa demasiado insignificante para justificar tão grande alarido.

Andou dias à procura de uma oportunidade, mas as coisas pareciam difíceis e a possibilidade de conseguir um momento a sós com Amélia escapava-se-lhe. Até que, na semana seguinte, quando já desesperava, a apanhou sozinha num intervalo das aulas, debruçada sobre um livro volumoso na biblioteca do liceu. A biblioteca estava quase deserta e, enchendo-se de coragem, o ritmo cardíaco acelerado e a garganta subitamente seca, Luís aproximou-se e sentou-se ao lado dela.

"Ora viva", saudou, surpreendido com o seu próprio atre­vimento. "Por aqui?"

Ela olhou-o com uma expressão de admiração e corou ao reconhecê-lo.

"Olá", devolveu, baixando de imediato os olhos para o livro, o ar muito comprometido.

Ele inclinou o rosto para o volume que ela tinha aberto sobre a mesa de madeira.

"Então? A estudar?"

"Sim."

"Está a ler o quê?"

Ela ergueu os olhos e girou o rosto em redor da biblioteca, como se receasse ser vista por alguém.

"Por favor, as minhas amigas podem aparecer a qualquer momento."

"E então? Elas comem-nos?"

"Não, mas... mas podem aparecer."

"Que eu saiba, não estamos a fazer nada de mal, pois não?"

Amélia pareceu por momentos ter perdido as palavras, como se o que quisesse dizer fosse tão óbvio que nem precisasse de ser dito.

"Elas vão comentar", observou por fim.

"E depois? Não me diga que tem medo daquelas galinhas..."

Ela soltou um riso nervoso.

"Não é isso. Mas são minhas amigas... Vai haver falatório, já sabe como é."

Luís torceu a boca.

"Eu pensei que você também fosse minha amiga..."

Amélia calou-se, sem resposta, e fixou de novo a atenção no livro. Assim sentada, serena e inatingível, dava a impressão de ser o tipo de rapariga que apenas se vislumbra num palacete distante, o perfil recortado pela neblina, os cabelos incendiados por halos de luz crepuscular.

Luís sentiu que tinha de forçar uma decisão. O burburinho dos últimos dias entre as raparigas e o quase distanciamento de Amélia machucavam-lhe o orgulho e enchiam-no de ansiedade. Passava tardes inteiras a considerar se lhe era ou não indiferente e tinha de pôr fim a essa angústia permanente. Precisava a todo o custo de clarificar a situação e aquela era a

oportunidade para o fazer. Tinha ou não hipóteses com ela? Valeria a pena suspirar sempre que a via? Sentia o coração aos pulos no peito e a respiração oprimida, receando a resposta à sua tormentosa dúvida, apavorado com a incerteza, mas mesmo assim não deixou de formular a pergunta.

"Quer que eu me vá embora?"

A rapariga ficou um instante calada, como se quisesse desaparecer nas páginas do livro que fitava mas não lia. Encolheu-se toda e sussurrou num fio de voz quase inaudível:

"Pode ficar."

Foi como se uma explosão de luz e cor enchessem a biblioteca. Luís sentiu um peso desprender-se de si e tornar-se leve como as páginas do livro aberto sobre a mesa. A rapariga mais bonita do liceu aceitava a sua companhia, deixava-o ficar ali com ela. O dia pareceu-lhe mais belo, a vida mais intensa, o ar mais puro.

Inebriado com a resposta, abriu o rosto num imenso sorriso e respirou fundo.

"Sabe quem é que você me faz lembrar?"

Amélia ergueu os olhos interrogativamente para ele.

"Quem?"

"A May McAvoy."

Ela franziu o sobrolho, como se nada daquilo fizesse sentido.

"A mãe e a maca da avó?"

Luís reprimiu um sorriso e arregalou os olhos, fingindo-se escandalizado.

"McAvoy. A May McAvoy."

"Não conheço."

"Não viu o Ben-Hur?"

"Claro que vi."

"A May McAvoy é a actriz principal."

Os olhos de Amélia iluminaram-se com a comparação.

"Ah, já sei. Aquela do..." Corou. "É... é bonita."

Luís riu-se.

"Bonita? É lindíssima!" Inclinou a cabeça, como se a avaliasse. "Acho que é esse seu ar meio melancólico, meio sonhador." Estreitou as pálpebras enquanto fazia a comparação mental. "Sim, você é a cara chapada da May McAvoy."

Amélia, que tal como ele se descontraía a olhos vistos, curvou os lábios rosados e simulou um ar amuado.

"Se quer que lhe diga, estou ofendida consigo."

"Porquê?"

"Esperava que me comparasse com a Garbo. Não são os homens que dizem que a Greta Garbo é a mais bela de todas?"

O rapaz abanou a cabeça, enfático.

"Nem pensar! Para mim, a May McAvoy é a mais bonita."

"A sério? Mais bonita do que a Greta Garbo ou a Gloria Swanson?"

"Ui, muito mais!"

"Ah, então está bem."

Fez-se silêncio. Luís endireitou-se, satisfeito com o piropo que acabara de lhe atirar e sobretudo com a reacção de Amélia. Ela parecia agora mais à vontade e calorosa, o que lhe dava maior confiança.

"E eu?", perguntou Luís.

"Você o quê?"

"Eu pareço-me com quem?"

Amélia fixou-lhe as linhas da face e fez um ar pensativo, como se considerasse a semelhança mais adequada. Passou os dedos pelos lábios e franziu os olhos, apreciando-lhe as linhas quadradas do rosto, a pele lisa de marfim, os cabelos castanho-claros a refulgir contra o hálito de luz, o olhar sonhador a emprestar um suave toque de poeta ao semblante másculo.

"Ah, já sei!"

"Quem?"

Voltou a franzir os olhos.

"Você parece-se com o... o... como é que ele se chama?"

"O Rudolfo Valentino?"

Ela soltou uma gargalhada.

"Não", disse. "O Carmona!"

"Quem?"

"Aquele que foi eleito no ano passado." Apontou para o quadro pregado na parede da biblioteca, exibindo a figura austera do presidente da República em farda militar, as medalhas a lampejarem-lhe ao peito como as penas vistosas de um pavão. "O Carmona!"

Luís observou a fotografia exposta no quadro, um homem de cabelo e bigode brancos, os malares salientes no rosto gasto e macilento, e esboçou um esgar incrédulo.

"Eu? O Carmona?"

Ela ria-se.

"Sim."

"A Amélia está a reinar comigo, não está?" Apontou para o quadro. "Onde é que eu me pareço com o Carmona?! Olhe para ele! É um velho jarreta!"

Mais risos.

"Então é o Carmona quando era novo."

"Ora bolas! O Carmona é feio!"

Amélia inclinou-se para ele, provocadora.

"Como sabe? Porventura aprecia a beleza dos homens?"

"Eu não", apressou-se Luís a dizer, preocupado em afirmar a sua masculinidade. "Mas... enfim, parece-me que o Carmona nunca entraria numa fita americana... acho eu."

"Pois nunca se pode ter a certeza. Às vezes é preciso botar alguém para o papel de mau, não é?"

Desconcertado com a resposta, Luís baqueteou os dedos pela madeira da mesa.

"Hmm... não me diga que se interessa pela política."

"Um bocadinho. Escuto as conversas."

O rapaz observou-a com mais atenção, fascinado. Aquela moça tinha algo de especial, era um je ne sais quoi que a tornava diferente, como se uma aura própria a envolvesse. Os olhos lânguidos e o sorriso insinuante incendiavam-lhe o rosto e inflamavam-lhe o corpo.

"A sério?"

"Hmm-hmm."

Considerou aquela revelação.

"Nunca conheci uma rapariga que se interessasse pela política."

Ela observou-o pelo canto do olho, com ar atrevido, segurando-lhe a atenção.

"E eu nunca conheci um rapaz que se parecesse com o Carmona."

"Já vi que tem resposta para tudo."

A rapariga soltou uma gargalhada.

"É o que diz a minha mãe. Sou respondona."

Esforçando-se por não parecer hipnotizado por Amélia, Luís levantou de novo os olhos para o quadro, fitando a figura emproada do presidente da República.

"A sério que me pareço com ele?"

Amélia abanou a cabeça.

"O que acha?"

"Quer dizer, eu acho que não."

"Claro que não", concedeu. "Você parece-se consigo mesmo, não há ninguém que se lhe assemelhe."

"Nem mesmo o Rudolfo Valentino?"

Ela voltou a rir-se, uma deliciosa expressão trocista a bailar-lhe nos olhos.

"Pff... não exagere!"

Foi nessa altura que soou o toque a anunciar que era hora de irem para as aulas. O burburinho recrudesceu lá fora e Amélia, quase num salto, agarrou no enorme volume que consultava, colocou-o na estante e escapuliu-se da biblioteca.

"Até logo!"

"Vemo-nos depois no recreio?"

Já no corredor, ela deitou-lhe um olhar traquina.

"Porque não?"

Passaram a encontrar-se todas as manhãs, antes do primeiro toque no liceu e nos intervalos das aulas. A princípio sentiam dificuldade em arranjar tema para conversa, tão acanhados ficavam um diante do outro, mas com o tempo foram ganhando à-vontade e as palavras começaram a fluir com naturalidade.

Passaram a tratar-se por tu e descobriram que várias pequenas coisas os uniam, entre elas a idade, uma vez que ambos tinham dezassete anos. Mas partilhavam também a orfandade. Luís perdera o pai aos cinco anos e a mãe no ano anterior; Amélia ficara sem o pai aos seis anos.

"Morreu com os gases", explicou ela num intervalo entre a aula de Aritmética e a de Português.

"Quais gases?"

"Os da guerra, claro. O papá era cabo no regimento 10, aqui de Bragança, e foi para França combater quando eu tinha quatro anos."

"Lembras-te dele?"

"Não, nem por isso. Ele é, na minha memória, um mero vulto." Torceu a boca e adoptou uma pose pensativa. "A única coisa de que me lembro é, aos seis anos, de o ouvir a tossir. Tossia, tossia, tossia, aquilo fazia impressão. Parecia

que os pulmões lhe iam sair pela boca, coitado. Até que um dia a minha mãe veio ter comigo e disse-me que ele tinha ido para o céu."

"Ainda te lembras da cara dele?"

Ela baixou a cabeça.

"É horrível, não é? Só me lembro dele pelas fotografias que a minha mãe guarda no quarto."

"E como era?"

"Oh, bonito, claro."

Luís fez beicinho.

"Mais do que eu?"

Amélia riu-se.

"Bem... tenho de pensar nisso", devolveu, diplomática. "Sabes, a minha mãe diz que os antepassados do papá vieram de Itália. E, não sei se já te disseram, mas os italianos..."

"Ai sim? Pois o meu pai tinha galegos lá para trás."

"Não me digas! E ainda tens nome galego?"

"Bem... quer dizer, o meu nome completo é Luís António Afonso. O Afonso vem de Alonso, era de um trisavô mas foi aportuguesado..."

"Ora, batatas! Que eu saiba, o sangue italiano é mais chie do que o galego!"

"Pois sim", assentiu Luís, sem vontade de entrar numa competição peloo pedigree internacional dos antepassados. "Quando morreu o teu pai?"

"Após a guerra, meses depois de ter voltado para casa. Foi em 1920, já lá vão nove anos."

"Portanto, tu ficaste filha única."

"Claro que não."

Ele arregalou os olhos.

"Tens uma irmã?"

"Tenho, pois. É três anos mais nova do que eu."

"Ai é? Mas eu ainda não a vi."

"É porque não vive cá. Está em casa do padrinho, que enviuvou. Mas a minha mãe quer trazê-la no próximo ano para Bragança."

Luís assentiu com a cabeça.

"Hmm... sim senhora, muito me contas", disse. "E ir­mãos?"

"Não... quer dizer, sim."

Ele sorriu.

"Não, sim. Em que ficamos?"

"Tenho uma espécie de irmão."

"Mau, não entendo nada."

"Foi um ano depois de a minha irmã nascer", explicou Amélia. "O meu pai tinha partido para a França e a minha mãe andava muito desorientada. Nessa altura, o padre Nogueira veio ter com ela e disse que tinham abandonado um bebé lá na igreja. A minha mãe foi lá vê-lo e... e ficou com ele."

"E o que disse o teu pai quando voltou?"

"Não ficou lá muito contente..."

Luís soltou uma gargalhada.

"Aposto que não. Como se chama o miúdo?"

"A minha mãe chamou-lhe Francisco. O Chico tem onze anos, mas um corpo de homenzinho, havias de ver. Tem ar de brutamontes. A minha mãe chama-o sempre que é preciso carregar qualquer coisa."

"E a tua mãe? Depois da morte do teu pai, não voltou a casar?"

Amélia fez um ar indignado.

"A minha mãe? Casar?" Ergueu o dedo, como quem emite uma sentença. "Pois fica sabendo que, na minha família, só há mulheres de um único homem." O dedo estremeceu. "De um único homem."

 

O carro de bois avançava devagar pela rua, arrastando um carregamento de azeitonas negras, tão reluzentes que pareciam pérolas. O agricultor que conduzia o carro seguia à frente, enérgico e transpirado, as mãos a puxarem a correia que guiava a direcção do animal.

"Uga! Uga!", repetia o homem, incentivando o boi. "Para a frente, vamos! Arriba!"

Uma bosta tombou da traseira do bovino sobre o empedrado da rua com um ploc espalhafatoso. Logo que o carro de bois passou, Luís cruzou para o outro passeio em ziguezague, evitan­do os excrementos de animais que se acumulavam pela via.

Foi então que a viu.

Amélia vinha a sair da mercearia a carregar um cesto de verga e nunca como nesse instante lhe pareceu tão adorável. Ainda nessa manhã de sábado a tinha encontrado nas aulas, aliás vira-a uma hora antes a sair do liceu, mas agora andava sem a bata escolar e adquirira novo brilho. Trazia um vestido branco com flores vermelhas, um lenço de seda púrpura aninhado ao pescoço, as saias perigosamente curtas a tomba­rem logo abaixo do joelho; trajes sem dúvida atrevidos, de uma elegância condenada nos púlpitos das igrejas de todo o mundo civilizado.

Sem se conter, Luís deu dois saltos na sua direcção.

"Olá."

Ela estacou, admirada.

"Oh", exclamou. "Então? Também vens às compras?"

"Eu não. Vinha a passear por aqui." Contemplou-lhe o vestido com ar apreciador. "Hoje estás toda chique."

Ela baixou a cabeça e mirou o seu vestido branco, rodando as ancas para fazer a saia rodopiar.

"Achas? Comprei-o no ano passado, quando fomos ao Porto. Dei com ele numa vitrina da Cedofeita."

"É janota. Mas essa saia logo abaixo do joelho, não achas que ela... enfim..."

"Ela o quê?"

"Não será um pouco curta de mais?"

"Ora! É a moda!"

"Mas aqui em Bragança, não sei se concordas, parece-me um pouco arrojada." Girou o rosto em redor. "O pessoal não te lança olhares?"

Amélia soltou um risinho.

"Ui, nem imaginas! Havias então de ver o padre Pintado! Ainda esta manhã o encontrei e ele deu-me logo um sermão!"

"Olha quem!"

"Chamou ao vestido uma indecência, uma tentação do Demónio, e até citou o arcebispo de Nápoles!"

"Quem?"

"O arcebispo de Nápoles, vê lá tu! Disse que o arcebispo responsabilizava estas saias pelo terramoto em Amalfi!"

Foi a vez de Luís se rir.

"Olha que se calhar tem razão." Lançou-lhe um novo olhar para as saias, mas desta vez com pura malícia. "E tu, assim vestida, és bem capaz de provocar um terramoto por aqui."

"Pateta!" Amélia virou-se para trás e procurou o relógio de pêndulo pregado na parede da mercearia. "Ai, já é quase uma hora. Tenho de me despachar."

"Estás com pressa?"

Ela ergueu o braço e exibiu as compras, de onde sobressaíam as verduras.

"É a minha mãe. Está à espera da salada para acabar o almoço."

Luís inclinou-se para o cesto.

"Deixa estar, eu ajudo-te a levar o barreleiro."

"Só um bocadinho", disse ela, entregando-lhe as compras e retomando a marcha pelo passeio. "Quando chegarmos perto de casa vais-te embora, está bem?"

"Porquê? Qual é o problema?"

"Se a minha mãe me vê com um rapaz, mata-me."

"Ena, que mãe mais bruta."

"Ai, nem imaginas. É uma autêntica polícia."

Luís endireitou-se e fez um ar empertigado.

"Achas que não ia gostar de mim?"

Amélia riu-se.

"De ti? Hmm... não sei. És rico, porventura?"

"Não sou pobre."

"Mas não sei se és o que ela espera. A minha mãe cismou que eu estou reservada para o filho de um homem rico, daqueles grandes capitalistas que aparecem nas revistas."

"E o que importa isso? Não é com ela que vou casar."

A rapariga fez um ar provocador.

"Então é com quem?"

Luís engoliu em seco. Não estava à espera que Amélia conduzisse as coisas naquela direcção e aquele não era certamente o momento nem o sítio adequado para irem mais longe do que já tinham ido.

"É... é com quem tiver de ser."

"Ah."

Caminharam alguns minutos em silêncio, ele da parte exterior do passeio a carregar o barreleiro, ela no interior a fitar o chão. A conversa tocara inadvertidamente num ponto sensível e ambos tacteavam agora terreno inexplorado.

Já se conheciam havia um mês e meio e tinham-se habituado aos encontros nos intervalos das aulas. Luís ardia de paixão, cada minuto acordado era ocupado por ela, cada momento a dormir era sonhado com ela; sentia-se ansioso quando não estava no liceu e apenas em paz quando se lhe juntava. Dir-se-ia que vivia exclusivamente para aqueles encontros; todo o resto do tempo era consumido num tormento, um doce suplício que apenas se atenuava quando se entretinha a recordar o que haviam dito um ao outro ou a planear temas para as próximas conversas.

Torturava-se a adivinhar o que lhe ia na cabeça. Será que ela gostava dele? Parecia-lhe que sim. Que outra explicação poderia haver para o facto de ela se afastar das amigas da turma para passar o tempo com ele? Mas a natureza exacta dos sentimentos que Amélia nutria por ele escapava-lhe. Seria apenas amizade? Achar-lhe-ia ela graça, mas nada mais do que isso? Ou será que ela pensava nele como ele pensava nela? Esta pergunta visitava-o com frequência e não achava resposta. Por vezes pensava que sim, convencia-se de que Amélia gostava mesmo dele, mas noutras ocasiões tinha dúvidas, tergiversava, achava que o seu desejo de que ela gostasse dele o fazia confundir tudo. No fim de contas, como explicar a sua passividade? Não tinha Amélia acabado de dizer que estava destinada a outro homem? Não passaria ele de mero passa­tempo para quem se prepara para mais altos voos? Em boa verdade, como podia Luís ambicionar uma rapariga tão bela? Não seria presunção sua pensar que a moça mais bonita do liceu poderia gostar dele, gostar de verdade, gostar como nos grandes amores dos filmes ou dos romances?

"A minha casa é para ali", disse Amélia, rompendo o silêncio que se instalara entre ambos.

Luís esticou a cabeça, esquadrinhando a fila de fachadas que se estendia pela rua.

"Qual delas?"

A rapariga franziu o sobrolho.

"Para que queres saber?"

"Ora, gostaria de conhecer a casa onde vives."

"Para quê? Para te botares lá à porta e a minha mãe dar contigo? Havia de ser bonito!"

Luís fechou o rosto, ofendido.

"Tomas-me por quem?" Entregou-lhe o barreleiro e despediu-se, agreste e seco, possuído por um súbito assomo de orgulho. "Adeus."

Deu meia volta e afastou-se. No entanto, volvidos três passos logo lhe começou a custar respirar; o coração tinha mergulhado num turbilhão e palpitava de angústia. Já tivera várias paixonetas, namoricos de criança, mas aquela era a sua primeira paixão a sério, coisa forte a valer, e não sabia como lidar com as múltiplas emoções que o sufocavam. Sentia-se zangado e mortificado ao mesmo tempo, perdido para além do horizonte da razão. Afastava-se dela e arrependia-se já da estúpida soberba que tomara conta dele, amaldiçoava-se em silêncio por deixar os sentimentos controlarem-lhe a mente; o que lhe passara pela cabeça para se armar em virgem ofendida? Talvez no dia seguinte se plantasse de joelhos a implorar-lhe perdão; a verdade é que se afastava e tinha já saudades dela, sabia que não era capaz de passar sem a ver.

"Luís!"

Aquele chamamento soou-lhe como um gongo salvador, ou talvez fosse apenas o adiamento da execução, efémero mas abençoado. Estacou e, quase a medo, olhou para trás e encarou-a. Amélia permanecia plantada na esquina da sua rua com o barreleiro pousado no chão, o vestido branco com flores vermelhas a bailar ao vento, o cabelo ondulado com madeixas aloiradas a cintilar ao sol, os olhos de mel derreten-do-se nele.

"O que é?"

Ela apontou para os pés.

"Amanhã esperas por mim aqui nesta esquina?"

"Amanhã?"

"Sim, levas-me até ao liceu?"

O rosto de Luís abriu-se num sorriso aliviado.

"Amanhã aqui, às sete e meia."

 

Começou a acompanhá-la todas as manhãs no caminho para a escola. Chegava sem falta pelas sete e vinte, era ainda lusco-fusco, e aguardava pacientemente o vulto adorável que lhe entrara de rompante na vida. Cumprimentavam-se com um sorriso feliz e caminhavam alegremente pelas ruas sóbrias e geladas de Bragança àquela hora matinal, ditosos e despreocupados, a conversa a remoinhar ao sabor apetitoso das palavras; contavam episódios da vida, comentavam assuntos da escola, observavam as coisas da cidade, deleitavam-se com sonhos do futuro.

"Um dia", disse-lhe ele num dos primeiros passeios, "hei-de levar-te de cavalo."

"O quê? Tens um cavalo?"

"Não, mas hei-de ter."

Amélia riu-se.

"Como os príncipes?"

"Isso."

"E como vai ser o teu cavalo?"

"Veloz como a luz." Mirou-a, divertido. "Que nome achas que lhe dê?"

"Será rápido, dizes tu?"

"Um campeão."

Ela fitou o infinito, os olhos sonhadores.

"Chamar-se-á Relâmpago.'''

Passou a viver para aquele passeio madrugador, de tal modo que o alvorecer se tornara o apogeu do dia. Vagueava nas aulas a relembrar o passeio dessa manhã e, quando se despediam no átrio do liceu e a mãe a vinha buscar, soltava-se-lhe a saudade, vagabunda no seu coração.

Gastava o final das tardes a languescer no quarto da pensão, planeando a próxima caminhada enquanto se espreguiçava na cama ou brincava com os periquitos ou os peixes do pequeno aquário. Ao jantar mal ouvia dona Hortense a discorrer a propósito de quão "fisquinho" ele se encontrava e da necessidade de comer até ficar "arressuado", e deitava-se a imaginar a conversa do dia seguinte.

As noites eram interessantes como as fitas de cinema, pois era então que, sonhando acordado, elaborava o guião que lhe convinha. Fantasiava que tudo se precipitaria quando se voltassem a encontrar pela manhã; ele abrir-lhe-ia a alma, Amélia devolver-lhe-ia o olhar apaixonado e ambos cairiam nos braços um do outro. Exactamente como nos filmes, ele Rudolfo Valentino, ela May McAvoy.

Esforçava-se nesses momentos por manter a mente casta e idealizar apenas palavras puras e esgares adoradores, mas o desejo puxava-o amiúde para a carne e, quase sem dar por isso, imaginava-se a meter-lhe os dedos pela bata para lhe apertar um seio fofo ou a mergulhar-lhe a mão pelas saias para lhe acariciar uma nádega macia. Chegado a esse ponto, a imaginação tendia a excitar-se ainda mais e, largando os seios e as nádegas, as mãos famintas metiam-se por entre as pernas de fêmea para lhe sentir o calor ardente e húmido.

Pela manhã apenas restava um vago sentimento de culpa, o travo indistinto de transgressão que se desvanecia na pressa do madrugar, quando o novo dia fazia dos calores da noite uma leve memória que logo queria esquecer, como se a lembrança dos ardores imaginados com Amélia se esmorecesse na urgência do vestir e do comer e do correr para chegar a tempo ao habitual ponto de encontro.

Com o desfiar pachorrento dos dias, os passeios até ao liceu confirmaram-se como o momento mais importante da jornada; eram tão deliciosos que lhe começaram a parecer enervantemente curtos. Das primeiras vezes optaram pelo caminho mais directo, mas depressa Luís se apercebeu de que teria de prolongar o instante e convenceu-a a fazer desvios em busca de rotas alternativas.

"É para ser diferente", alegou. "Assim a paisagem vai variando."

Um dos novos itinerários levou-os a passar diante da casa de fotografia da cidade, um pequeno estabelecimento com retratos a preto e branco expostos nas vitrinas, clichés que aprisionavam em sépia olhares esfumados no tempo. Amélia aproximou-se devagar da loja, como se possuída por um misto de horror e fascínio, e ficou a observar fixamente as imagens.

"O que é?", perguntou Luís, intrigado. "Queres uma fotografia?"

A rapariga manteve o olhar brilhante preso nos retratos. Um deles mostrava uma família com três crianças, outro registava um casal em trajes de domingo e expressão séria, a pose perdida num momento efémero.

"Antes de o meu pai morrer, a minha mãe trouxe-nos aqui. A mim e à minha irmã." Calou-se por um momento, os olhos pestanejantes. "O papá tinha passado muito tempo na guerra e mal nos conhecia. Tossia a toda a hora e estava já de cama. Foi então que a minha mãe veio aqui connosco para tirarmos uma fotografia. Queria que ele tivesse a nossa imagem sempre presente, queria que ele não nos esquecesse, queria que ele soubesse que havia uma razão para viver."

Aquele lugar parecia assombrado por fantasmas que perturbavam Amélia, pelo que Luís passou a evitá-lo; era melhor experimentar outros percursos. Mas, por mais variados que os novos itinerários fossem, o facto é que os passeios continuavam a afigurar-se-lhe pequenos.

Até que compreendeu que o problema estava nas conversas. Falar com Amélia era absorvente, os minutos tornavam-se segundos, parecia que o tempo se contraía. Dizia "olá!" quando se encontravam e logo se viam à entrada do liceu, Luís interrogando-se sobre como tinha sido possível o tempo acelerar daquela maneira.

"Já te contei que o meu pai era de origem italiana, não contei?", disse ela certa manhã, encolhida num grande casaco, Dezembro ia adiantado e o frio começava a apertar.

"Contaste, pois."

"O que não te disse é que a minha mãe é de famílias judias."

"A sério?" Franziu o sobrolho. "Mas já te vi a comer bifanas de porco."

Amélia riu-se.

"Palerma!", exclamou. "Eu não sou judia."

"Ah! É só a tua mãe?"

"Não, não é. Ela é católica."

Luís abanou a cabeça, como se não entendesse nada.

"Mau! É judia ou é católica?"

"É católica. Os antepassados dela converteram-se ao catolicismo há muito tempo." "Ah, é cristã-nova." "Pois."

A vida de Amélia era um mistério que fascinava Luís. Roído pela curiosidade, o rapaz sentia ganas de conhecer depressa a história toda, mas continha-se; queria prolongar o prazer da descoberta e ir sabendo tudo aos poucos, como se os passeios até ao liceu se tivessem tornado fascículos de uma grande novela, o passado de Amélia transformado num fascinante romance.

Esperou, por isso, mais uns dias para lhe fazer novas perguntas. Decidiu-se após uma noite em que tinha chovido muito. O dia acordara molhado, com o céu coberto por um manto de bronze gasoso; os telhados gotejavam ritmadamente para os passeios alagados, como se os pingos fossem notas de uma ária, uma suave melodia que fazia da conversa um dueto, ele o tenor e ela o soprano.

O chão estava ensopado, pelo que evitaram a lama acumulada na esquina onde habitualmente se encontravam e cruzaram a rua, contornando as poças de água barrentas e as bostas de bovino espalhadas pelo empedrado.

"Se o teu pai morreu quando eras miúda, vocês vivem de quê?", perguntou Luís quando pisaram terreno mais limpo no outro lado.

Esticando o pescoço, Amélia exibiu o lenço anil que trazia aos ombros, por baixo do casaco.

"Seda."

"Perdão?"

"A família da minha mãe tem um negócio da seda aqui em Trás-os-Montes. Não conheces a Casa Rodrigues?"

"Aquela loja junto ao Largo do Principal?"

"Essa. É da família."

"É mesmo?"

"Hmm-hmm."

Luís calou-se por momentos, pensativo.

"Mas os transmontanos são uns rústicos", observou. "Como é possível que alguém consiga viver aqui da venda de lenços de seda?"

Amélia soltou uma gargalhada.

"Ai que tonto! Então achas que só vendemos lenços de seda?"

"Bem, foi o que tu disseste..."

"Louvado seja Deus, não percebes nada disto! O negócio das sedas não são só lenços."

"Então é o quê?"

Ela começou a contar com os dedos.

"Olha, são veludos, são damascos, são cetins, são tafetás, são pelúcias... é uma série de coisas."

"Coisas para mulheres."

"E então? Temos alguma culpa de que os homens sejam uns brutos e não se interessem pelo que é belo?"

"Eu interesso-me."

Amélia fez um ar trocista.

"Ai sim? Interessas-te pelo que é belo e não sabes o que é um negócio de sedas?"

"Interesso-me por outro tipo de beleza."

"Como por exemplo? Jogar à trincassuada?"

"Eu não jogo à trincassuada."

Ela parou no passeio, o dedo acusador de quem o apanhou a faltar à verdade.

"Jogas, jogas! Eu já te vi!" Retomou a marcha. "Hás-de explicar-me qual é a beleza de ver um grupo de rapazes a

botarem-se nas costas uns dos outros. Parecem uns bois à cornada."

"Oh, não percebes nada disso!"

"Uns abrutalhados, é o que vocês são! Qual é a piada desse jogo, diz lá?"

"São coisas de rapazes."

"Coisas de brutos."

"De qualquer maneira, há muito tempo que não jogo à trincassuada. E só o fazia para estar com os meus amigos."

"Ora, ora! Ainda no início do ano lectivo te vi lá aos saltos no pátio do liceu."

Luís inclinou a cabeça e fitou Amélia de esguelha, os lábios curvando-se num sorriso malicioso.

"Ai é? A menina andava a espiar-me?

A rapariga corou.

"Ora, vi-te!" Encolheu os ombros e endireitou-se, emperti­gada, mirando-o em tom de desafio. "Porquê? É proibido?"

Ele manteve o sorriso.

"Eu não disse que era proibido. Limitei-me a constatar que me tinhas debaixo de olho."

Amélia rolou os olhos, simulando um ar de enfado.

"Ai que parvo! Não te tinha nada debaixo de olho. Mas não sou cega, não é? Se vejo os rapazes a fazerem figuras tristes, é impossível deixar de reparar. Lá em casa é o mesmo com o Chico."

"Qual Chico?"

"O meu... enfim, irmão. Aquele que a minha mãe criou. Às vezes ele parece-me mesmo um gorila, Deus me perdoe! Vo­cês, os rapazes, fazem cada figura de macacos..."

Vinham os domingos e Luís sentia-se rebentar de saudades. Precisava dos passeios matinais com Amélia como do ar para

respirar. As caminhadas com a rapariga eram o oxigénio que lhe alimentava a jornada e estar assim um dia inteiro sem a ver era coisa impensável, provação que não suportava. Passava esses dias mal-humorado, respondendo torto às invectivas de dona Hortense para que se enchesse de comida, e esforçava-se por completar os trabalhos de casa encomendados pelos professores; o de Matemática era o mais exigente.

A concentração nos estudos não se prolongava por muito tempo. Incapaz de permanecer fechado no quarto, pelas tardes saía à cidade e, quase sem querer, procurava-a por toda a parte; para onde os olhos se virassem tentava descortinar a sua silhueta delicada. Tratava-se já de um comportamento reflexo, sur-gia-lhe espontaneamente e sem que o pudesse controlar.

Julgou uma vez vê-la junto ao pelourinho, lá na Cidadela, mas era afinal outra, também bonitinha, mas sem metade da graça daquela por quem se perdia de amores. Havia algo de inesperadamente delicioso naquele afastamento, como se estar sem a ver, nem que fosse por apenas um dia, a tornasse ainda mais preciosa. Passava os domingos a sonhar com as segun-das-feiras, como se o objectivo de toda a sua existência fosse voltar a encontrá-la na manhã seguinte.

 

As coisas pioraram quando vieram as férias do Natal. Luís apanhou o comboio para Alfândega da Fé e depois a diligência com destino aos Cerejais. Deixou-se levar pela estrada de terra com os olhos perdidos na paisagem verde e montanhosa, resignado à pausa das aulas, sabendo que as férias significavam, na verdade, um interregno de Amélia.

"Vens um rapagão!", cumprimentou-o a tia Maria à porta da propriedade, segurando-o pelos ombros. "Um homem! Estás pronto a ajudar aqui no trabalho?"

"Bem... quer dizer...", atrapalhou-se Luís, para quem gastar as férias a trabalhar na terra não se afigurava uma perspectiva particularmente estimulante. "Há assim tanta... tanta coisa para fazer?"

A tia exibiu as oliveiras que se estendiam pela quinta; pareciam velhas bruxas carcomidas pelo tempo.

"Trabalho é coisa que não falta por aqui, valha-me Deus", exclamou. "Olha-me para este olival! Não é lindo?"

"Lá isso é", concordou sem convicção.

"Então vais-nos dar uma ajudinha."

"Sabe, as azeitonas não me interessam muito..."

"Então o que te interessa?"

O sobrinho quase embatucou. Não lhe parecia grande ideia passar as férias de Natal a tratar de um olival, ainda por cima com o frio que fazia. Mas não o podia explicar com essas palavras. Em busca de um pretexto para se escapar, contem­plou a propriedade e simulou uma expressão pensativa.

"A tia já ouviu falar na campanha do trigo?"

"Sim, andam agora com essa conversa. Porquê?"

"Não encara a possibilidade de passar a plantar trigo? Dizem que querem acabar com as importações e que é preciso tornar o país independente na produção do pão. Parece que o Estado paga uma fortuna por cada hectare plantado."

"Não é bem assim. Existe de facto um subsídio de cem escudos por hectare, mas só se o trigo for plantado em terras incultas ou onde houver cultura da vinha. Não é o nosso caso."

"Olhe que a campanha do trigo é o futuro, tia."

"Talvez, mas não para nós."

A conversa teve o dom de esfriar o entusiasmo de dona Maria pelo recrutamento do sobrinho. Tornara-se-lhe por demais evidente que Luís não mostrava o mínimo interesse no trabalho nos olivais e resolveu deixá-lo em paz.

Contudo, isso não foi necessariamente uma benesse, como Luís depressa percebeu. Se o tempo em Bragança já era lento, nos Cerejais teve a sensação distinta de que os relógios haviam literalmente parado. Não tinha nada que fazer.

Deitado na cama pela manhã, o corpo enroscado nas mantas para se abrigar do frio glacial, Luís desesperou de esperar, até porque esperava por nada. Limitava-se a languescer

na prostração mole das férias. Lá fora os caseiros trabalhavam nos olivais e a patroa dirigia tudo como um rijo capataz. A tia Maria era uma quarentona de armas, viúva de um professor da escola primária que encontrou na gestão da propriedade do falecido irmão o seu propósito de vida, e exibia uma energia de fazer inveja a qualquer rapazola.

Vendo-os assim ocupados, a ela e aos caseiros, Luís suspirou vezes sem conta, perguntando a si mesmo se queria de facto a vida de província, se o seu futuro estaria realmente naquele pedaço de terra, se iria terminar os estudos para se enterrar nos Cerejais.

"Que estopada!"

O Natal foi, porém, celebrado com inesperada animação. Mulher avançada para o seu tempo e disposta a ignorar convenções sociais quando a ocasião o aconselhava, a tia convidou o caseiro e a família para a ceia, uma alteração à rotina que contrastou com os usuais jantares a dois à luz do candeeiro de petróleo. O senhor Ferreira e a mulher tinham quatro filhos que pareciam não parar quietos, remexendo-se nas cadeiras ou correndo à volta da mesa; a mulher afadigava-se a tentar controlá-los e Luís seguia o pandemónio com um olhar divertido. Sempre era um espectáculo diferente a animar a noite.

"Então, Ferreira?", perguntou a tia. "A ceia está boa?"

"Ah, minha senhora, este arroz de polvo está uma espantação", respondeu o caseiro, as mãos grossas e rudes agarradas à colher. "O picoso é que me apoquenta um poucochinho, faz-me arder a boca." Olhou para Luís. "Não acha, senhor deitor?"

"Eu gosto assim."

Aquele arroz era o prato tradicional do Natal em casa e, servido molhado e com um travo suave a picante, apresentava o dedo inconfundível da tia.

"Então o que planeias fazer quando acabares o liceu?", quis ela saber quando entraram na sobremesa, um delicioso arroz-doce salpicado a pó de canela.

"Oh, não sei ainda."

"Tens ideia de vir para cá?"

"Para quê? Para colher azeitonas?"

Sabendo que os olivais não seduziam Luís, a tia desviou os olhos para o caseiro.

"Para isso temos aqui o senhor Ferreira." Voltou a encarar o sobrinho. "Na verdade, tudo isto está a funcionar muito bem. Mas tenho curiosidade de conhecer os teus planos, claro."

Luís encolheu os ombros.

"ó tia, não tenho planos para já. Vou terminar o liceu e depois logo se vê..."

Dona Maria serviu-se do arroz-doce, como se concentrasse nele toda a sua atenção.

"E moça? Já tens alguém em vista?"

Apanhado de surpresa, o sobrinho corou.

"Eu? Claro... claro que não."

"Mas é melhor ires pensando nisso. Já te vais fazendo um homenzinho e começa a ser hora de constituíres família."

"Tia! Eu só tenho dezassete anos."

"E então? Já estás em idade." Olhou para o caseiro, como se buscasse apoio. "Não acha, Ferreira?"

O caseiro assentiu de pronto, solícito com a patroa.

"Sem dúvida, minha senhora. Há tempo e retempo que o menino devia ter posto o olho numa mocinha." Mergulhou a colher no arroz-doce. "Eu cá casei aos quinze. Atrasmente era tudo cedinho."

Sem paciência para argumentar com o senhor Ferreira, que considerava um pacóvio das berças, Luís optou por se calar.

"Tu já viste a Natália?", arriscou a tia.

"Qual Natália?"

"A filha do doutor Leitão."

"Quem? A do farmacêutico?"

"Essa mesmo. Olha que é um bom partido." Voltou a espreitar o caseiro. "Não é, Ferreira?"

"Oh, se é!", concordou o homem, para quem a palavra de dona Maria tinha qualidade divina. "Ademais, e se a minha senhora me permite dizer isto, o deitor Leitão está cheio de cunfres e aquela cicisbeia ainda vai herdar uma grossa maquia."

Luís fez um estalido irritado com a língua.

"Eu quero lá saber da Leitona!"

"Natália", corrigiu a tia. "Está um amor de moça."

"É toda bem posta, sim senhora", concordou o senhor Ferreira com um balouçar afirmativo da cabeça, as palavras abafadas pelo arroz-doce que lhe enchia a boca. "Dá gosto vê-la."

O rapaz encolheu exageradamente os ombros, para sublinhar a sua indiferença.

"Bom proveito!"

O caseiro olhou-o de esguelha com a expressão entendida de quem conhecia a vida.

"Ou me engano muito, minha senhora, ou aqui o seu sobrinho é um salamurdo dos antigos", observou para a patroa. "Anda quietinho como um mocho, mas fá-las pela calada."

O assunto ficou encerrado, ou pelo menos assim parecia. Quando chegou a altura de abrir os presentes e Luís recebeu o seu, porém, o rapaz deparou com um pequeno livro de poe­mas que a tia lhe oferecera.

"Camões?", interrogou-se, contemplando a capa e o nome do autor. O título era Lírica. Fez um sorriso pouco convincente. "Obrigado, tia. Gosto muito."

A tia estendeu o braço na direcção do livrinho, pegou nele e folheou-o com cuidado.

"Queres ouvir isto?", perguntou, localizando um trecho com o dedo. Afinou a voz, preparando-se para recitar. "Ora presta atenção."

Amor, que o gesto humano na alma escreve, Vivas faíscas me mostrou um dia, Donde um puro cristal se derretia Por entre vivas rosas e alva neve.

"Que bem", disse Luís, esforçando-se por esconder o enfa­do e parecer sincero. "Muito bonito, sim senhora."

"É, não é?", sorriu a tia, acenando com o pequeno livro. "É disto que as catraias gostam. Recitas-lhes uns poemazitos de Camões com voz delicodoce e, tumba!, elas ficam logo todas caidinhas."

O sobrinho fixou os olhos no livro, de repente genuina­mente interessado.

"A sério?"

"Claro", confirmou ela. "As mulheres adoram palavras românticas, o que pensas tu? E quem há por aí que seja mais romântico do que o zarolho? Vais ter com a Natália, bufas--lhe estes poemas ao ouvido e vais ver o que acontece..."

Luís não queria saber de Natália nenhuma, mas descobriu uma óbvia utilidade naquele livro. Então elas gostam de palavras românticas, ora é? Ouvem Camões e ficam logo caidinhas, ora ficam? Bastam umas palavras doces e tumba!, ora tumba?

Agarrou-se aos poemas com a mesma genica com que se agarrava ao arroz-doce da tia e passou o resto das férias a decorar os versos românticos; haveria de ter toda a Lírica na ponta da língua e, convenceu-se, se isso não desferisse o golpe fatal, então mais nada o poderia fazer.

Veio a passagem do ano e entrou em 1930 preso ao livro de poesia que recebera pelo Natal, acreditando ter enfim encontrado a arma secreta que tudo decidiria.

Seria Camões a chave do coração de Amélia.

 

Os olhos saltitaram-lhe de alegria quando, numa madrugada gelada de Janeiro, já de regresso a Bragança e no recomeço das aulas, a viu descer a rua para o encontro no ponto habitual. Vinha linda, mais bonita do que era costume, as madeixas douradas do cabelo a fulgirem na luz baixa da manhã, um sorriso gaiato a bailar-lhe nos lábios, o corpo meneando-se como o de uma gata. Ou talvez fosse apenas a imaginação a pregar-lhe uma partida; se calhar Amélia vinha bonita como sempre, mas eram as saudades que a tornavam tão resplandecente.

Teve nesse instante ganas de a abraçar, de a esmagar contra o peito, exultante por ter terminado a longa provação das férias, mas conseguiu conter o ímpeto. Desceram pela rua a saltarinhar, alheios a tudo. Os transeuntes deslizavam pelo passeio como espectros, não passavam de leves sombras que se desvaneciam na neblina. Luís apenas tinha olhos para a sua amada, a angústia do Natal longe de Amélia substituída pela

excitação de estar enfim com ela, como se passasse da angús­tia à excitação com a facilidade de quem vem do frio da rua e num instante se instala no calor do borralho.

"Então?", perguntou ele, lutando por esconder a excitação. "Essas férias?"

Amélia encolheu os ombros, mas manteve o sorriso que lhe ateava o olhar.

"Foram normais. E as tuas?"

"Normais também."

"O que fizeste?"

"Fui aos Cerejais passar o Natal. E estudei, claro."

Ela lançou-lhe uma expressão maliciosa.

"Tu? A estudar?"

"Sim, claro. Porquê?"

"Por nada. Não tens ar de marrão."

"Nem sou. Mas estudo."

"Ah, bom."

"E leio poesia."

Amélia torceu os lábios e espreitou-o de esguelha, céptica.

"Estás a brincar."

"Juro. Queres ouvir?"

"Claro."

Luís fez hmm-htnm com a garganta, fixou-a com atenção e começou a recitar.

Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que sua beleza se acrescente;

Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios incendidos,

Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente?

Amélia escutou-o muito atenta, o olhar de caramelo a beber as palavras, a respiração enlevada pela doçura melancólica dos versos, o rosto banhado pela perfeição que o poema derramava como gotas douradas de mel.

Quando Luís se calou, ela demorou uns instantes a reagir.

"Ena, não te sabia poeta!"

O rapaz sorriu.

"Bem, os poemas não são meus", disse em jeito de confissão. "São de Camões."

"Bem bonitos. Passaste o Natal a ler poesia?"

"Sim."

Um cintilar fascinado perpassou-lhe pelo olhar.

"Estou... surpreendida."

"Porquê? O que achavas tu que eu fazia nas férias?"

"Ora! Julguei que fosses jogar à trincassuada!"

O rapaz parou e pôs as mãos na cintura, fingindo-se ofendido.

"Lá vem outra vez essa conversa da trincassuada. Mas por quem me toma a menina?"

Tentando libertar-se dos efeitos hipnóticos dos versos que a tinham encantado, Amélia soltou uma gargalhada.

"Por um lafardo!"

"Eu? Um lafardo?"

"Sim. Só os lafardos jogam à trincassuada."

Retomaram a marcha.

"Pois, pois. E qual dos lafardos da trincassuada no liceu era mais bonito?"

Ela voltou a rir-se.

"Para que queres saber isso?"

"Ora, por nada. Tenho curiosidade."

Amélia fez um ar pensativo.

"Quem era o mais bonito? Hmm... deixa cá ver. Eu acho que era... era o... o Gonçalves!"

"Quem?"

Luís fez um gesto como de quem a ia atacar e ela, com uma gargalhada, deu um salto para trás e escapou-se.

"O Gonçalves!"

Começaram a correr pela rua, Amélia a fugir numa casca­lhada de risos, ele atrás fingindo uma fúria. A rapariga escapulia-se com agilidade, apesar de trazer os cadernos apertados entre os braços, mas não tinha hipóteses perante a passada rápida e possante de Luís, que, sem se esforçar muito, deixando embora prolongar o delicioso jogo, adiando a captura pelo tempo que lhe pareceu razoável, acabou por alcançá-la.

"Ora diz lá outra vez", sussurrou-lhe ele ao ouvido enquanto a apertava entre os braços. "Quem era o mais bonito?"

"O Gonçalves!"

Ele apertou-a com mais força.

"Quem?"

"Ai, bruto!", gemeu ela, cerrando as sobrancelhas. "Larga-me! Estás a magoar-me. Para poeta, és uma besta."

Luís aliviou o aperto, mas manteve-a presa entre os braços e colou-lhe os lábios ao ouvido.

Ditoso seja aquele que somente Se queixa de amorosas esquivanças; Pois por elas não perde as esperanças De poder nalgum tempo ser contente.

"Hmm", ronronou a rapariga, rendendo-se à graciosa harmonia das palavras. "Que lindo."

"Então diz lá: quem era o mais bonito da trincassuada?"

"Hmm?"

"Quem?"

Amélia inclinou ligeiramente a cabeça para trás e fitou-o nos olhos. O sorriso maroto evaporou-se-lhe da boca e o rosto perfeito tornou-se meigo e doce, tão langoroso e suave como a resposta que soprou num murmúrio ardente.

"Tu."

Pela primeira vez tão perto um do outro, Luís cheirou-lhe o perfume de rosas e ela sentiu-lhe o cheiro a rapaz que já é quase homem. Os olhos de mel de Amélia fundiram-se nos castanhos dele, as respirações enlaçadas num único fôlego, os corações inflamando-se de ardor, ambos perscrutando o rosto do outro com a intensidade de quem sabe que encontrou o amor.

Incapaz de resistir, Luís inclinou-se devagar sobre ela. Foi apenas um movimento ligeiro, mas o suficiente para lhe tocar os lábios aveludados, primeiro ao de leve, como quem prova um doce, depois com sofreguidão, a gula tornada fome; eram pétalas açucaradas, gomos deliciosos que se abriam como uma flor diante do Sol. O dia fez-se noite e ambos se perderam para lá do horizonte, num paraíso de sensações e sentimentos, afogados um no outro, derretendo-se num amor incandescente. Era como se nada mais existisse no mundo; apenas havia o outro e aquele instante em que os lábios se colaram e os dois se fundiram num só.

O primeiro beijo.

 

"Acho que andam a pairar de nós", observou Amélia duas semanas mais tarde, logo que deu com Luís à sua espera na esquina da rua para a acompanhar no habitual percurso enamorado até ao liceu.

O rapaz lançou um olhar inquieto pelo passeio que ela percorrera, como se tentasse descortinar se alguém a seguira.

"Quem? A tua mãe?"

"As minhas colegas."

Luís sorriu de alívio.

"Ah, essas requeijiteiras?" Encolheu os ombros, indiferente. "Estou-me bem ralando."

"Mas não estou eu."

Puseram-se os dois a caminhar rua fora, ziguezagueando por entre as poças de água abertas pela chuva que caíra durante a noite, ele de mãos mergulhadas nos bolsos para aquecer os dedos gelados, ela de luvas brancas de lã macia.

Desde que tinham começado o namorico que Luís não voltara a beijar Amélia; não era por falta de tentativas, mas Por pudor dela. A rapariga evitava-lhe os lábios e a intimidade; dizia que não era chegado o momento e que precisavam de ter cuidado, que ela era uma rapariga de bem, que não queria que alguém a tomasse por uma chasqueta. Resignado, Luís percebeu que não lhe restavam senão as conversas e os poemas recitados no passeio até ao liceu. O namoro tornara-se

platónico, feito de palavras e de olhares e de desejos e pouco mais.

Então andas preocupada com as tuas colegas", disse ele, retomando o tema que a atormentava. "O que aconteceu?"

Foi ontem, no final da aula de Francês. Reparei que as minhas amigas se juntaram em grupinho aos murmúrios e lançavam espreitadelas vigilantes para todo o lado, como se tivessem medo de ser ouvidas."

Essas parvas estão sempre assim, aos segredinhos..."

Pois é. Aquilo é tão normal que eu pensei isso, achei que eram as palermices do costume."

Quais palermices? "

Sei lá. Pensei que estavam a comentar o ar janota do professor de Francês ou o penteado da Milú, essas coisas. Mas ontem notei que se botavam a olhar para mim enquanto coscuvilhavam umas para as outras e mais inquieta fiquei quando elas se calaram à minha passagem."

E qual é o problema?"

O Luís, é óbvio que estavam a falar de mim!" Que te importa isso?" "Ora, não gosto!

"E)deixa-as tagarelar à vontade." Estendeu o braço e procurou-lhe a mão. "Anda cá, lindona."

Mas Amélia afastou-se.

"Temos de ter cuidado, Luís. Já há falatório."

O rapaz soltou uma gargalhada e abriu muito os olhos, numa expressão de indiferença.

"E depois?"

"Para ti pode não ter importância nenhuma. Achas tudo engraçado, não achas? Vocês, os rapazes, são todos iguais! Olha que para mim isto é tudo muito aborrecido, ouviste? Ando toda arreliada!"

"Deixa-as falar, querida. Cão que ladra não morde."

"Isso é o que tu pensas", protestou ela. "Lembra-te que elas não são cães. São cadelas."

"É tudo o mesmo."

"Não é não. Além do mais, nesta terra a mordidela está no ladrar. Tenho de zelar pela minha reputação."

"Ora! O que te interessa a ti o que essas belfurinheiras dizem?"

"Não são elas que importam, Luís. É a minha reputação que está em jogo. É preciso que elas parem com o falatório."

"Ai é? E como tencionas convencê-las a calarem-se?"

Amélia ficou a observar o piso húmido da manhã, matutando no problema. Boa pergunta. Como calá-las? Era realmente preciso pôr cobro à situação antes que as coisas se descontrolassem. Talvez se impusessem medidas radicais, considerou, mas logo repensou o assunto: teria coragem para as tomar?

"Se calhar devíamos passar a ver-nos menos", disse, a voz muito baixa. Como se a afirmação lhe tivesse dado uma súbita força e resolução, fez nesse momento tenção de cruzar a rua. "É melhor começarmos agora." Apontou para o outro lado. "Eu vou daquele lado do passeio e tu vais deste. Assim não nos vêem juntos."

"Estás louca?"

parou a meio da rua, voltou-se para o namorado, abriu os braços e arregalou os olhos interrogativamente. Então diz-me: como é que as calamos?" Nao ligues, Amelinha." Luís aproximou-se, segurou-a pelos onbros e fitou-a nos olhos. "Ouve o que te digo: deixa essas alcoviteiras tagarelarem à vontade. Daqui a uns dias já se calam , vais ver.

Mas não se calaram. Dos comentários em surdina, as raparigas da turma passaram aos gracejos. A liderar a má língua estava Maria das Dores, a mais insolente da classe, uma espigadota:a morena muito temida entre as moças do liceu pela língua afiada e pelos modos atrevidos.

depois dos primeiros gracejos abafados por risadinhas tontas, maria das Dores notou no intervalo de uma aula que Amélia esquadrinhava o corredor do liceu com o olhar. De­pois de lançar um sinal cúmplice às amigas, a morena destacou-se do grupo e atirou em tom de escárnio a primeira piada em voz alta.

Então? Andas à procura do teu cão-d'água?" sucederam-se os risinhos infantis e Amélia congelou, parando um momento para pensar no que deveria dizer ou fazer. Jesus dizeres transmontanos, um cão-d'água é um rapaz que persegue uma rapariga para namorar. Não se tratava de uma laracha grave, considerou, pelo que se fez desper­cebida e deixou passar. No entanto, não deixava de ser sintomático que os chistes já lhe fossem lançados para serem ouvidos.

Nada disse ao namorado, mas, numa manhã da semana seguinte, Maria das Dores aproximou-se com ar de gozo perante o olhar do grupinho do costume e observou a bata

branca de Amélia como se estivesse a contemplar um deslumbrante vestido de baile.

"Então, Amelinha? Hoje vens toda bem posta!"

Amélia hesitou, pressentindo uma provocação.

"Eu?", admirou-se, defensiva, baixando os olhos para a bata que trazia vestida. "Venho como de costume..."

"Mas muito bem tratadinha, a bata passada que é um primor."

"Que tens tu a ver com isso?"

"Nada, nada." Risinhos lá atrás. "Isso são decerto cuidados para o teu galaripo."

Mais risinhos do grupo.

"Que galaripo? Do que estás tu a falar?"

Maria das Dores aguçou a expressão maliciosa, satisfeita por ter batido no ponto certo.

"Ora esta! Estás com o pocho, é? Que maus humores vêm a ser esses?"

"Não são maus humores nenhuns. O que eu não percebo é onde queres tu chegar..."

"Não percebes, ora não?"

"Não, não percebo!"

Maria das Dores pôs as mãos à cintura e fez um esgar de rapariga sabida.

"Não te faças de inês-d'orta! Eu sei muito bem dos teus segredinhos."

"Quais segredinhos?"

"Essas tuas conversinhas com o teu cão-d'água. Ele anda à cagadinha, à espera do momento oportuno para te ferrar o dente. E tu a dares-lhe trela..."

"Não digas tontices."

"Chama-lhe tontices, chama-lhe." Torceu o nariz. "Por que razão não se arreda ele de ao pé de ti?"

"Ora, somos amigos. O que tem isso?"

"Amigos, hem? Hmm... cá para mim estás-te a pilar pelo teu janota, é o que; é, esse ailila emproado com quem tu agora andas."

"O Luís não é nenhum ailila!"

"À certa!", riu-se a outra, olhando para as amigas a solicitar uma reacção cúmplice. Sucederam-se os habituais risinhos e Maria das Dores voltou a fitar Amélia. "Olha lá, se queres que te diga está-me cá a parecer que se calhar vocês já foram mais longe do que deviam..."

"Que queres dizer com isso?"

"Foram ou não foram?"

"Diz lá, o que queres dizer com isso?"

Maria das Dores cravou-lhe o olhar como quem quer medir a reacção à sua pergunta.

"Ele não te desvirginou?"

Amélia nem queria acreditar no atrevimento da colega.

"O quê?! O quê?!"

"Tu percebes muito bem."

Tremendo de fúria e de vergonha, a rapariga chegou a duvidar do que escutara.

"O que é que tu disseste?"

"Estou a perguntar-te se não te tornaste amásia dele."

Pab!

Foi como se a mão direita adquirisse vontade própria, libertando-se do (corpo de Amélia e comportando-se como se tivesse vida autómoma. A bofetada reverberou pelo corredor do liceu com fragor. Num instante estava Maria das Dores a sorrir-lhe com ar zombeteiro, no momento seguinte viu Maria das Dores com ;a face descaída para a direita, a bochecha esquerda subitamente ruborizada, os cabelos num desalinho, Amélia a sentir a palma da mão arder com a força da inopina-

da estalada. Foi tudo estranhamente rápido e lento, brusca a bofetada, vagarosa a sequência de acontecimentos que se seguiram ao estalo, o olhar pasmado de Maria das Dores, o ar boquiaberto das colegas atrás dela, o pasmo que se apossou da própria Amélia ao ver a mão adquirir inesperada vida para defender o seu bom nome.

Fez-se silêncio.

Perante a expectativa geral, Maria das Dores endireitou-se e, após uma breve pausa em que as respirações ficaram suspensas, soltou um grito e atirou-se a Amélia.

"Cala-te!"

Seguiu-se um bruá, Amélia sentiu as mãos da adversária puxarem-lhe os cabelos, viu tudo a andar à roda, agarrou em Maria das Dores e puxou-a também, as duas engalfinhadas uma na outra, o pandemónio instalou-se em redor, na confusão Amélia enxergava pernas, braços, chão e tecto, ouviam-se gritos, sentiu o corpo ser atirado para um lado e para o outro, tudo se sucedia numa sequência caótica, meu Deus o que é isto?, não se percebia já o que era direita e esquerda e cimo e baixo, no meio da barafunda interrogou-se sobre o que estava ali a fazer, que loucura era aquela, o que lhe passara pela cabeça, como escapar daquela tremenda confusão.

"Mas o que vem a ser isto?"

A voz de homem, ressoando como um trovão, impôs-se sobre a balbúrdia e, como por encanto, instalou o silêncio no corredor. As mãos que agarravam Amélia desapareceram de imediato e ela recuperou o sentido de equilíbrio. Levantou os olhos e, por entre a neblina difusa das suas próprias lágrimas, ainda algo atordoada com o inesperado da situação, vislumbrou o professor Marques de braços estendidos a separá-la da adversária. Maria das Dores, com os cabelos desgrenhados e a face enrubescida como um pimento, ofegava profusamente.

Num gesto quase instintivo, Amélia procurou os vidros do corredor para além da multidão que a rodeava e viu-se nos reflexos tão desconchavada quanto a outra. Mas foi uma mirada breve, quase de relance, pois logo uma mão poderosa lhe segurou o braço esquerdo e a puxou com brusquidão.

"Vamos ao reitor", ordenou o professor Marques. "Onde é que já se viu as meninas deste liceu comportarem-se desta maneira?"

Prendendo cada uma delas com uma mão, o docente de Matemática arrastou-as pelo corredor. Um burburinho excitado cresceu entre os alunos que se foram apinhando no local, substituindo a algazarra e o súbito silêncio de alguns momentos antes. O professor sentiu a animação aumentar em seu redor e, irritado, voltou a cara para os mirones que atulhavam a passagem.

"Para onde é que estão a olhar? Hã? Aqui não há nada para ver. Vamos, tudo para as salas! Andor!"

O professor Marques levou as duas alunas em lágrimas arrependidas para a porta do gabinete do reitor. Mandou-as aguardar ali, bateu à porta e desapareceu para além dela.

As duas permaneceram de pé, cabisbaixas, ainda a fungarem e a reprimirem os soluços, ansiosas por saírem daquele temido lugar, nervosas por saberem que não o podiam fazer. Receavam o que lhes iria suceder. A reputação do reitor era terrível; diziam que ele fazia trinta por uma linha por dá cá aquela palha e o medo adensou-se quando ouviram o desabafo espontâneo de um rapazinho que por elas passou.

"Estais quilhadas;."

 

A porta abriu-se e, com cara de poucos amigos, o professor Marques fez-lhes com a cabeça sinal de que entrassem. Amélia respirou fundo e assumiu a dianteira, resignada; tinha as pernas fracas de pavor, embora estivesse decidida a enfrentar o que fosse preciso. Cruzou a porta e mal entrou sentiu o cheiro a naftalina e o ambiente opressivo e escuro do gabinete, mas fez um esforço para controlar os nervos e não se deixou intimidar mais do que já estava.

Ergueu os olhos e viu o reitor sentado à secretária, gordo, a gravata negra e fina a estreitar-lhe o pescoço anafado, o colete a lutar por se manter apertado. Tornava-se evidente que aquele fato era pequeno de mais para tão grande corpanzil; o reitor parecia acreditar que uma roupa de número mais baixo conseguiria miraculosamente reduzir a imensidão da gordura que lhe tolhia os movimentos.

"Dá licença, senhor reitor?", murmurou Amélia, temerosa.

Atrás, Maria das Dores mostrava-se ainda mais intimidada e nem uma palavra conseguiu pronunciar.

"Hmpf", assentiu o reitor.

Fez-lhes sinal com os dedos sapudos de que se aproximassem. O professor Marques ficara lá fora, deixando-as sozinhas com o que lhes parecia ser um monstro horrendo. Amélia acercou-se da secretária de carvalho e Maria das Dores fez o mesmo, mas mais devagar, quase a arrastar-se pelo soalho frio; as duas trepidavam de medo, embora Amélia conseguisse ocultar melhor o tremor que lhe percorria o corpo e o terror que lhe insensibilizava as pernas. A sua adversária era porém menos controlada e as mãos agitavam-se-lhe desalmadamente; parecia em estado febril ou submetida aos rigores do gelo das serras.

O reitor ficou um instante a contemplá-las. Os olhos negros, pequenos e húmidos, traíam uma expressão astuta e cruel e saltitavam de uma para a outra, como se as medissem, avaliando-as em pormenor, urdindo em silêncio a ira punitiva. Amélia evitou cruzar o olhar com o dele e baixou os olhos. Com a atenção sempre pregada no chão, Maria das Dores soluçou e fungou.

"Com que então as meninas pensam que o liceu é uma arena de touros", disse por fim o reitor.

Tinha uma voz macia, quase um sopro. Noutras circunstâncias achá-la-iam bonita, mas ali parecia-lhes traiçoeira, o tom tenro insinuando ameaças invisíveis. Era como a brisa suave que precede as tempestades brutais; parece doce mas é amarga, tal como a rosa que atrai com as cores vivas das pétalas e trai com os espinhos que as folhas ocultam.

"Então? Perderam o pio? Não dizem nada?"

Mantiveram-se as duas caladas, sem saber o que fazer ou dizer. Intuíam que qualquer palavra poderia desencadear o pior, pelo que o mais sensato lhes pareceu o silêncio.

O reitor pegou numas fichas que tinha pousadas sobre a secretária e leu-as com lentidão intencional, quase a soletrar.

"Maria das Dores Carvalho Diniz", disse. Ergueu os olhos e fitou-as. "Quem é?"

Ambas continuaram caladas.

"Quem é?", rugiu com inesperada violência.

As raparigas deram um salto de susto, como se aquela pergunta fosse uma violenta bofetada; a voz branda transformara-se num feroz rugido. Maria das Dores começou a chorar copiosamente.

"É você?", perguntou ele, o tom assertivo mas agora menos violento, dirigindo-se a Maria das Dores.

Sem parar de gemer, a morena fez que sim com a cabeça.

"Então cale-se!", ordenou com rispidez. "Não quero aqui carpideiras!"

Intimidada, a rapariga quase susteve a respiração e o choro voltou a ser um gemido mal contido. Com um arrulhar de aprazimento, o reitor voltou a atenção para a outra ficha.

"Ana Amélia Rodrigues de Campos." Ergueu a cabeça e fitou Amélia. "É você?"

"Sim", assentiu ela, a voz reduzida a um fio.

Os olhos miúdos do reitor estreitaram-se, perscrutadores.

"Ana Amélia? Porque não Maria Amélia? Todas as raparigas são Marias. Por que razão há-de a menina ser diferente?"

Amélia encolheu os ombros, impotente.

"Foram os meus pais que assim decidiram..."

O reitor afagou o queixo, fitando-a com desconfiança.

"Estou a ver que os seus pais não são bons católicos." Inclinou-se para a frente. "Serão lefrains?"

A rapariga não entendeu a palavra e manteve-se silenciosa. O reitor torceu os lábios e demorou-se a fitá-la e a estudar a ficha; depois a sua atenção voltou-se para Maria das Dores e

os olhinhos negros puseram-se a saltitar entre as duas, mas sem que o responsável pelo liceu pronunciasse uma palavra.

Para combater o nervosismo, Amélia atreveu-se a olhar em redor. Atrás do reitor pendurava-se um retrato do general Carmona, de farda de gala e expressão sempre austera. A janela do gabinete estava corrida, com cortinados carmesim; era sobretudo isso que conferia um ar lúgubre ao local, uma vez que a luz do dia não passava de um ténue clarão que penetrava pelas frinchas, fazendo com que as sombras parecessem espectros a despontar pelos cantos. Havia algumas estantes de livros e uma enorme mesa com várias cadeiras junto a uma parede do gabinete, certamente a mesa de reuniões.

"Quero que me façam um favor", disse o reitor de novo em tom macio, rompendo o silêncio pesado. "Fazem?"

Ambas disseram que sim com a cabeça, quase com fervor. Fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir que se soltasse a ira que adivinhavam mal contida.

"Muito bem", exclamou ele. "Quero que me expliquem o que se passou no corredor."

As duas baixaram a cabeça, sem saber o que dizer. O que se passara era evidente para todos.

"Então?"

"Zangámo-nos", disse Amélia, timidamente.

"A sério?", perguntou ele, uma ponta de sarcasmo a trair-lhe a intenção do questionário. "Zangaram-se, foi?" O tom roçava a teatralidade. Claramente, zombava delas. "Ai as marotas! Então e porquê?"

Mantiveram-se caladas. O modo como os comentários foram proferidos e a pergunta formulada tornara evidente que o reitor estava a tirar prazer daquela situação; sendo assim, pressentiram que nada ganhariam com explicações, a não ser talvez mais chacota.

"Quem é que começou?"

Silêncio.

"Mau! Perderam o pio? Não dizem nada?"

Mais silêncio.

O reitor suspirou pesadamente, como quem exprime um profundo desagrado. Empurrou a cadeira para trás com gran­de espalhafato, ergueu-se com enorme esforço e fez sinal com a cabeça em direcção à mesa de reuniões.

"Vão para ali", ordenou.

As duas raparigas obedeceram de imediato, sem perceber bem onde queria ele chegar. Pelo canto do olho viram-no inclinar-se diante da secretária, abrir uma gaveta, retirar de lá um objecto indefinido, aproximar-se com esse objecto na mão e arregaçar as mangas.

"Deitem-se sobre a mesa e levantem as saias."

Olharam-no, surpreendidas.

"Perdão?"

Acto contínuo, observaram o objecto que lhe bailava nas mãos e reconheceram-no. Um bastão. O reitor tinha um bastão nas mãos e observava-as com um sorriso sem humor. O coração pulou-lhes no peito, descontrolado, e, o horror a turvar-lhes a visão, perceberam enfim o que lhes ia acontecer.

Iam ser sovadas.

"Deitem-se sobre a mesa!", vociferou o reitor, agastado por ter de repetir a ordem. "Vamos!"

"Mas... mas o senhor reitor não pode fazer isso", gaguejou Amélia, sem tirar os olhos do bastão. "Nós não somos nenhu­mas..."

"Cale-se!", gritou o reitor. Parecia já fora de si. "Cale-se! Onde é que já se viu umas catraias como vocês dizerem-me a mim, a mim!, o que posso ou não posso fazer? Hã? Onde é que já se viu isto?" Apontou com fúria para a mesa. "Deitem-se

- imediatamente! Vão aprender que aqui há regras! Neste liceu não admito a bandalheira! Deitem-se!"

Encurraladas, aterrorizadas, não querendo acreditar sequer no que lhes acontecia, interrogando-se sobre como tinham podido descer àquele ponto, obedeceram maquinalmente à ordem sem se atreverem a questionar mais nada e, de saias levantadas e as mãos assentes na madeira fria da grande mesa, expuseram as nádegas ao reitor.

Seguiu-se uma breve pausa. Ouviram-no a arfar pesada­mente, como se procurasse domar a ira e controlar a besta que o possuía antes de a libertar de novo. Logo Amélia ouviu o zumbido soprado do bastão a cortar o ar, escutou a estalada a soar-lhe na pele, sentiu as nádegas incendiarem-se e gritou de dor e de humilhação.

 

A porta do quarto mantinha-se fechada desde que Amélia viera do liceu e dona Beatriz Rodrigues, Campos por um casamento que nem a morte desfaria, começava já a preocupar-se; não era hábito a filha isolar-se assim quando vinha do liceu, e muito menos ostentar aquele rosto fechado que lhe vislumbrara de fugida antes de ela se trancar no quarto.

"O bijou, o que tens tu?"

A filha não respondeu e dona Beatriz, estranhando o com­portamento esquivo, bateu à porta do quarto. Amélia manteve-se silenciosa e a mãe, intrigada, sem saber o que pensar, encostou o ouvido à madeira; pareceu-lhe ouvir fungar e distinguiu um gemido baixo e abafado. Franziu o sobrolho, inquieta.

"Estás a chorar?", perguntou. "O que aconteceu, bijou}"

O gemido parou. Dona Beatriz bateu com insistência na Porta, algures entre preocupada e intrigada.

"Passa-se alguma coisa? Vamos, diz à mamã..."

Como Amélia insistia em não responder, dona Beatriz decidiu mudar de táctica. Deixaria as coisas correrem e, quan­do a filha se destrancasse do quarto, trataria de apurar o que se passava. Não devia ser coisa grave, raciocinou, pois se o fosse já algo se saberia; era com certeza assunto de rapariga, nestas idades já se sabe como elas são, a filha tinha-se zangado com uma amiga ou não lhe havia corrido bem um qualquer exercício na escola. Enfim, a seu tempo tudo se esclareceria; aquele arrufo não constituía decerto motivo para grandes ralações.

Procurando expulsar momentaneamente a filha do pensamento, dona Beatriz dirigiu-se à sala e foi acender a lareira. Mandou Francisco ao quintal buscar lenha e, quando ele voltou com a cesta cheia, deitou as achas no buraco enegrecido, acrescentou alguma carumba e lançou-lhe lume. A chama nasceu pequena, amarela e violácea, mas logo se espalhou, exalando uma quentura agradável que de imediato lhe aqueceu as palmas das mãos.

"Ó Amélia!"

A voz de rapariga era distante e vinha da rua. Dona Beatriz endireitou-se, interrogando-se se ouvira bem.

"Amélia!"

Definitivamente, alguém chamava pela filha.

"Quer que eu vá ver, senhora?", perguntou Francisco.

"Não, eu vou lá", disse ela. "Tu vais limpar o quintal."

Dona Beatriz saiu da sala em passo célere e foi à varanda do seu quarto, situada na parte da frente da casa. Abriu a portinhola de vidro e espreitou para a rua. Lá em baixo encontravam-se duas raparigas de bata escolar, as cabeças erguidas para a varanda.

"O que é? Que quereis?"

"A Amelinha, como vai?", perguntou uma delas, abraçan­do os cadernos ao peito.

"Botou-se no quarto. Porquê?"

"Ela está bem?"

Ali havia gato, percebeu dona Beatriz, relacionando as coisas. Não era normal a filha fechar-se no quarto e muito menos as amigas do liceu virem-lhe bater à porta a perguntar se ela se encontrava bem. Se queriam saber se Amélia ia bem é porque presumiam que podia estar mal. Mas mal de quê, santo Deus?

"Não, não anda muito bem", disse. "O que se passa?"

As raparigas mostraram-se desconcertadas com a pergunta.

"Ela não lhe contou?"

"Contou o quê? O que se passa?"

Lá em baixo, as duas entreolharam-se, algo embaraçadas.

"O que se passa?", insistiu dona Beatriz, a voz muito firme. "Que aconteceu?"

Uma delas levantou a cabeça e ganhou coragem.

"Foi o... o badigo."

"Qual badigo?"

"O... o gordo. O reitor."

"O que fez ele?"

"A Amélia e a Maria das Dores foram levadas ao gabinete dele."

Dona Beatriz arregalou os olhos com um ar surpreendido. Tudo aquilo era absoluta novidade para si.

"Ai sim? A Amélia foi ao gabinete do reitor? Porquê?"

"Nós achámos que era para lhes passar um batibardo. Ele tem fama de ser mau como o Facadas."

"Passaram um batibardo à Amélia? Mas o que fez a minha filha para merecer uma descompostura?"

As duas raparigas lá em baixo hesitaram, sem saber se deviam responder à pergunta.

"O badigo não lhes passou batibardo nenhum", disse uma delas, contornando a questão. "Então?" "Deu-lhes uma trepa!"

A espera foi impaciente, mas à hora do jantar já a noite caíra e apenas as lamparinas a óleo iluminavam dois ou três cantos da casa com a sua luz amarela e tremelicante; dona Beatriz lá sentiu a porta do quarto da filha destrancar-se e ouviu-lhe os passos ressoarem pelo soalho encerado. A mãe permaneceu no seu lugar, junto à lareira crepitante, as pernas cobertas por um cobertor de lã e as mãos inquietas a tecerem uma renda com um complicado desenho geométrico. Parecia concentrada na renda, mas a mente fervilhava-lhe de ideias e de dúvidas. O reitor dera uma trepa na filha? O que raio fizera ela para merecer tal tratamento? E era possível bater em alunos tão grandes?

"Rai's t'a parta o diabo!", remoeu, sem notar que transformava os pensamentos em palavras. "Que confusão para ali vai!"

Suspirou e deu um nó mais complicado na renda, a luz quente da lareira a dançar-lhe no corpo e no soalho, parecia que sombras fantasmagóricas lhe enchiam a sala. Ai se o seu Raul ainda por cá andasse! Maldita guerra, amaldiçoados gases que lhe tinham levado o homem! Que saudades sentia dele! Todos os dias pensava no Raul, que tanta falta fazia naquela casa. Precisava dele para si, para o seu aconchego, para as suas necessidades, para o seu corpo, para a sua tranquilidade, mas também precisava dele para as filhas. Isto de as meninas crescerem sem pai não lhe parecia nada bom. Como era difícil educar duas raparigas sem o pulso forte de um varão por perto! Francisco já se ia fazendo homenzinho, mas não era a mesma coisa; não passava de um monte desmiolado de músculos, para estas coisas não servia! Sabia que, sem Raul a seu lado, que Deus o tivesse na Sua infinita misericórdia, teria de fazer o papel de mãe e de pai. Se apenas um desses papéis já era difícil de desempenhar, imagine-se os dois ao mesmo tempo. E agora, pensou com fatalismo, chegara uma daquelas horas em que tinha de juntar forças e fazer o mais difícil: o papel de pai.

Sentiu a filha entrar na sala.

"Anda cá, Ana Amélia", ordenou com severidade, sem tirar os olhos da renda. "Bota-te aqui ao borralho."

A rapariga aproximou-se com passos ligeiros e parou diante de dona Beatriz, as pernas iluminadas pelo estrepitar nervoso da lareira, parecia que espectros se agigantavam no soalho.

"Sim, mamã?"

Dona Beatriz deu mais um nó complicado na renda.

"Então?", perguntou logo que o nó ficou pronto, mas sempre com os olhos fixos na renda. "Que se passa?"

"Nada, mamã."

Mais um nó.

"Vieram cá as tuas colegas. Queriam saber se estavas bem."

"Sim."

"Sim, o quê?"

"Estou bem."

Outro nó.

"Então por que razão te fechaste no quarto?"

Silêncio.

"Diz lá. Por que razão te fechaste no quarto?"

A rapariga encolheu os ombros.

"Apeteceu-me."

Dona Beatriz parou enfim de tricotar e ergueu a cabeça, fitando pela primeira vez os olhos inchados e avermelhados da filha.

"Olha lá, estás a brincar comigo?"

Amélia fitou o soalho, sem nada dizer.

"Diz-me, estás a brincar comigo?", insistiu a mãe, elevan­do pela primeira vez a voz.

"Não."

"Então faz o favor de me explicar imediatamente por que razão te fechaste no quarto!"

A filha permaneceu calada. Conhecendo-a e sentindo que por aquela via seria difícil arrancar dela alguma coisa, dona Beatriz decidiu mudar de ângulo. Precisava de ser arguta.

"As tuas amigas dizem que foste levada ao reitor. É verdade?"

Amaldiçoando as colegas em silêncio, a rapariga assentiu.

"É."

"E é verdade que ele te bateu?"

"Sim."

"A ti e à tua colega?"

Amélia calou-se.

"Em quem bateu ele?"

"Nas duas." Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto pálido e o lábio inferior começou a tremer. "Mas mais em mim."

A filha pôs-se a chorar baixinho, humilhada, e dona Beatriz carregou as sobrancelhas, atónita.

"Mais em ti? Que fizeste tu para merecer isso?"

Amélia fungou, tentando controlar-se.

"Nada."

"Mau! Nada não foi, de certeza." A mãe inclinou-se para a fitar bem nos olhos. "Por que razão bateu ele mais em ti?"

"Não sei, mamã." Gemeu baixinho. "Danou-se por eu não me chamar Maria."

"Che!", exclamou dona Beatriz. "Pode lá ser! O homem não te ia dar umas lapadas só por não te chamares Maria..."

"Mas deu!", insistiu a filha, indignada por a mãe pôr em dúvida a sua palavra em assunto tão sério. "Ele disse que as católicas são todas Marias e que se eu não era Maria é porque era uma... uma latraim... ou alefrim... enfim, uma coisa dessas." Mordeu o lábio. "Nem sei o que isso quer dizer..."

Dona Beatriz estreitou as pálpebras, intrigada. Só conhecia uma palavra que rimava com aquela.

"Terá sido lefraim?"

"Isso."

A mãe estremeceu, chocada.

"Valha-me Deus!"'

"O que foi, mamã? O que quer dizer isso?"

"É uma expressão do Rebordelo", explicou. "Ele chamou-te judia." Meditou um pouco, perplexa com aquela revelação. "Rai's t'a parta o diabo!", murmurou para si mesma. Fixou os olhos na filha. "O reitor convocou-te ao gabinete para te dar umas lapadas só porque eras uma lefraim?"

Amélia abanou a cabeça.

"Não. Chamou-me isso só depois de ver na ficha que eu não tinha Maria no nome."

"Então por que diabo te chamou ele ao gabinete?"

"Não foi ele que me chamou. Levaram-me a ele."

"E porquê, valha-me Deus?"

A filha calou-se.

"Diz lá: porque te levaram ao reitor?"

"Porque me zanguei com uma colega", sussurrou, quase inaudível.

"Discutiste com uma colega?"

"Sim."

"Foste levada ao reitor apenas por teres discutido com uma colega?" Dona Beatriz abanou a cabeça e contraiu o nariz, numa expressão céptica. "Não acredito. Alguma coisa mais deves ter feito."

"Zangámo-nos."

A mãe inclinou a cabeça.

"Andaram à bulha?"

"Sim."

Dona Beatriz endireitou-se. Estava explicado. A filha envolvera-se num conflito com uma colega e fora levada ao reitor, que as punira. A primeira parte parecia-lhe relativamente clara, a segunda nem tanto. Que ela soubesse, Amélia já não estava com idade de ser sovada no liceu. E aquela conversa de o reitor observar que ela não se chamava Maria, de dizer que ela era uma lefraim e de lhe ter batido mais do que à colega tinha muito que se lhe dissesse, ai tinha, tinha. Precisava de tirar tudo aquilo a limpo. Claro, era sempre possível que houvesse mais alguma coisa que a filha não lhe tivesse revelado; a bem dizer, isso até se lhe afigurava muito natural. As coisas não batiam certo naquela história toda. A começar por duas raparigas se terem envolvido à pancada, o que não lhe parecia nada normal. Ainda se fossem rapazes, enfim, já se sabe como eles são, bastava olhar para o bruto do Francisco. Mas... raparigas?

"Porque andaram vocês à bulha?"

"Ela estava a fazer pouco de mim."

"Como? O que dizia ela?"

"Dizia que..." Hesitou, percebendo nesse instante onde aquela conversa a iria inevitavelmente conduzir. "Enfim... fez pouco de mim."

"Isso já eu entendi", afirmou dona Beatriz, consciente pela hesitação da filha de que acabara de tocar num ponto crucial. "Mas o que te disse ela? Conta lá."

A rapariga fez um ar comprometido.

"Nada."

"Ana Amélia!", cortou dona Beatriz de súbito, a voz rompendo como um trovão. A filha deu um salto de susto, apanhada de surpresa pela violência da interpelação. "Fazes favor de me dizer imediatamente o que te disse a tua colega!"

Amélia baixou os olhos e manteve-se muda.

"Vou tirar este assunto a limpo", avisou a mãe, erguendo o dedo em jeito de aviso. "Ou dizes agora tudo o que se passou ou saio já à rua e vou a casa das tuas amiguinhas saber o que aconteceu! E podes ter a certeza que saberei tudo, ou eu não me chame Maria Beatriz Rodrigues de Campos!"

A filha olhou-a, alarmada. Bem capaz disso era ela, percebeu com mal disfarçado horror. E seria desastroso que a mãe tomasse conhecimento de tudo pela boca daquelas alcoviteiras; elas se encarregariam de expor o caso da forma mais maldosa e sórdida que lhes fosse possível. Isso Amélia não podia de modo algum permitir.

"Então?", insistiu dona Beatriz. "Dizes-me por que razão se puseram as duas à bulha ou vou ter de perguntar às tuas amiguinhas?"

Amélia quase se encolheu toda.

"Foi por causa de um amigo."

Ah!, pensou dona Beatriz, as peças do puzzle a encaixarem por fim. Um rapaz! Que estúpida fora em não ter percebido mais cedo! Claro que tinha de haver um rapaz na conversa, pois então!

Observou pela primeira vez a filha com olhos atentos de mulher. Amélia tinha o cabelo castanho-claro ondulado com madeixas douradas, olhos cor de caramelo, um rosto perfeito, ° corpo a encher-se no peito e no rabo, a cintura estreita realçando-lhe as curvas de fêmea voluptuosa. Parecia mesmo

uma daquelas actrizes americanas. Tinha de se render à evidência: a sua filha já não era a criança inocente que sempre vira, o anjo celestial que irradiava pureza virginal; tornara-se uma mulherzinha apetecível, ainda virgem decerto, mas uma maçã suculenta e pronta a ser mordida, objecto seguro de cobiça pecaminosa. Claro que os rapazes se interessavam por ela! E era evidente que ela se interessava pelos rapazes, afinal estava em idade disso.

Ah, como pudera ser tão cega?

"Um amigo, dizes tu? E quem é ele?"

"É... é lá do liceu."

"Como se chama?"

"Luís."

Fechando o rosto, dona Beatriz baixou os olhos e retomou a renda que deixara pousada no regaço. A lareira crepitava sem cessar e os estalidos da lenha a arder enchiam a sala escura.

"Hásde-mo trazer cá no domingo", ordenou a mãe. "Quero conhecê-lo."

Foi só na manhã seguinte, quando se encontrou com Amélia na habitual esquina da rua, que Luís soube do sucedido na véspera com as colegas e o reitor.

"Aquele... aquele porcho, aquele bestoiro", ruminou furiosamente, os músculos dos maxilares a contraírem-se de irritação. "Sabes o que lhe vou fazer?"

"Tem calma, Luís."

"Vou montar-lhe uma espera e dar-lhe umas valentes mur-raças!" Deu um soco no ar, como se o reitor estivesse diante dele. "Ai vou, vou!" Mais uns socos. "Vou desfazê-lo, vou reduzi-lo a fanicos, vou..."

"Não vais nada."

"Espera e verás!" Estreitou os olhos, tentando conter a fúria. "O lafardo! O tinhoso! O cara de trampa! Até mete ranço!" Mirou Amélia. "Quem pensa ele que é?"

A rapariga olhou em redor, preocupada com a atenção que o namorado atraía. Luís elevara a voz e alguns transeuntes miravam-nos já com interessada curiosidade, interrogando-se sobre se estaria iminente alguma altercação entre os dois.

"Pronto, pronto", disse ela, pegando-lhe no braço e procurando acalmá-lo. "Já passou, não interessa."

"Como, não interessa?", espantou-se Luís. "Então aquele javardo atreve-se a pôr-te a mão em cima e tu dizes que não interessa?"

"Não me pôs a mão. Pôs o bastão."

"Não desconverses: Ele bateu-te! Quem pensa ele que é? Como se atreveu?"

"A minha mãe vai falar com ele."

"Eu é que vou falar com ele." Exibiu o punho fechado. "Falar, não. Vou é partir-lhe aquele focinho de porco! Vou... vou desfazer-lhe aquela tromba de suíno!"

Atravessaram a rua, tomando cuidado para evitar uma carroça de lenha puxada por duas mulas. Amélia deixou-o praguejar durante algum tempo, sabia que ele precisava de libertar a irritação; era como se fervesse por dentro e o melhor que havia a fazer era deixar a fúria descarregar-se pelas palavras. Enquanto batesse no ar não batia em ninguém; enquanto praguejasse sozinho não haveria quem se sentisse insultado.

Quando o rapaz se calou, ela respirou fundo para ganhar coragem e concluir a conversa.

"Ainda não te contei o pior", disse Amélia.

"O quê? Há pior?"

"Há."

Luís rolou os olhos. Que mais viria aí?

"Diz lá."

"Tive de falar de ti à minha mãe."

Ele conteve-se, subitamente muito atento.

"A sério?"

"Teve de ser. Ela quis saber por que razão a Maria das Dores se meteu comigo."

O rapaz considerou aquela informação e sentiu a curiosidade crescer; ora ali estava uma novidade interessante.

"E então? O que disse ela?"

"Quer conhecer-te."

Luís sorriu, encantado com a ideia.

"Ai é? Mas isso parece-me óptimo!"

"Não sei."

"Porquê? Qual é o problema?"

Amélia manteve os olhos presos na calçada, olhando o empedrado mas vendo o futuro desenrolar-se diante de si, como se o passeio encerrasse o oráculo do seu destino.

"Tu não conheces a minha mãe."

 

O tapete de nuvens destilava um vapor de cinza, esganando a luz com a sua sombra ameaçadora. Dona Beatriz espreitou o céu de chumbo e percebeu que a obscuridade que se avizinhava era prenúncio certo de chuva. Fez sinal a Amélia e a Francisco de que não a largassem e apressou o passo em direcção à Igreja de São Vicente, no Largo do Principal.

Durante a missa dominical, a viúva considerou cuidadosamente a situação. Desde a morte do marido que assumira a educação de Amélia em Bragança, enquanto a filha mais nova fora para casa do padrinho, lá no Douro. O casamento das moças constituía o culminar natural desse processo, pelo que teria de ser encarado com muita cautela; cada pretendente seria sujeito a um exame cuidadoso, uma vez que lhe parecia fundamental que os candidatos tivessem uma situação e um estatuto à altura das ambições que alimentava para as suas meninas.

No final da missa cruzaram o painel de azulejos à saída da igreja e foram recebidos na rua por uma chuva miudinha;

eram por certo os céus a abençoar a decisão que a viúva havia tomado durante a homilia. Ou ela não se chamasse Maria Beatriz Rodrigues de Campos, a sua bijou não se casaria com o primeiro bandalho que lhe aparecesse pela frente.

A chuva intensificou-se pelo caminho, desfazendo-se numa cortina de veludo tracejante. As bátegas furiosas fustigavam os telhados e das bordas das telhas abatiam-se fios de água; pareciam lâminas de prata, com um gorgulhar molhado que se derramava em torrente pelas pedras da calçada. Os três aconchegaram-se uns aos outros e enfrentaram assim a intem­périe, fundindo-se na bruma líquida como fantasmas a derreterem-se em luz.

Ao chegarem a casa deram com uma sombra esguia, um vulto plantado à porta como uma sentinela, abrigado por um guarda-chuva negro. Dona Beatriz espreitou Amélia de relance e a expressão nervosa e ansiosa da filha confirmou-lhe que era aquele o sujeito que a trazia pelo beiço.

Sem sequer se dignar olhá-lo, entrou em casa e pôs-se à vontade. Tirou o casaco molhado, enroscou-se num xaile macio e foi instalar-se à lareira, que estalava numa fúria mal contida.

"Mamã, o Luís está aqui", disse-lhe Amélia, que ficara à entrada, dividida entre o aconchego do lar e a companhia do namorado.

Dona Beatriz pegou nuns rolos de lã, indicou a Francisco que permanecesse ao seu lado e pôs-se a tricotar uma camisola vermelha que tinha começado havia dois dias.

"Mamã?"

A viúva manteve o olhar baixo, fixo nos nós da camisola que tricotava com destreza.

"Ele que entre", disse enfim, depois de uma longa e pesada pausa.

Amélia fez um sinal para a rua e Luís entrou. Encostou o guarda-chuva molhado à porta, tirou o chapéu da cabeça e aproximou-se, acompanhado de Amélia.

"Bom dia, minha senhora", disse ele num tom apropriadamente submisso, o chapéu seguro pelos dedos nervosos.

Dona Beatriz nem levantou os olhos para o ver.

"Bom dia?", admirou-se, sempre concentrada na camisola que crescia na ponta das agulhas. "Porquê bom dia? Que eu saiba já passa do meio-dia. Será que o cavalheiro é porventura um daqueles ébrios que se bota nas tabernas até de madrugada e depois acorda a meio da tarde e ainda pensa que é manhã cedo?"

Luís arregalou os olhos e engoliu em seco. A entrevista começava inesperadamente mal.

"Bem... sim", gaguejou, desorientado. "Quer dizer... não, enfim... não frequento tabernas nem acordo tarde, minha senhora. Sou... sou até muito madrugador. Só que, como ainda não almocei, estou com a impressão que é de manhã, está a ver?"

"Não estou a ver, não." Fez um estalido com a língua. "Por que razão não almoçou? Não tem meios para se alimentar?"

"Sim. Claro que tenho, claro."

"E, no entanto, ao mencionar o almoço assim tão a despropósito dá a impressão de que quer vir aqui comer à nossa conta..."

"Não, não é nada isso", negou, abanando enfaticamente a cabeça. A viúva estava a dificultar as coisas e, apesar do frio, Luís sentiu um rubor a encher-lhe o rosto e gotas de suor a brotarem-lhe do alto da testa. "Só falei no almoço para dizer que na minha cabeça a tarde apenas começa depois do almoço, mais nada. Não estava de modo nenhum a insinuar o que quer que fosse."

Fez-se um silêncio penoso; apenas se escutava o som abafado da viúva a tricotar a camisola de lã, os estalidos da lenha a pipoquear na lareira e o harmonioso concerto das bátegas que tombavam ao de leve nas telhas, lá em cima, como se obede­cessem a uma melodia desordenada.

Luís observou pela primeira vez Francisco, que permanecia ao lado de dona Beatriz como um acólito, e ficou espantado com o seu aspecto; tinha o cabelo cortado curto e a testa abria-se em grandes arcadas supraciliares, por baixo das quais brilhavam dois olhinhos negros e inexpressivos. Mas o mais impressionante era o seu corpanzil baixo e atarracado, com costas largas e membros desenvolvidos, os braços da largura de pernas; parecia impossível que aquele rapaz compacto tivesse apenas doze anos acabados de fazer.

"Com que então o senhor anda a conversar com a Amélia", rosnou dona Beatriz, quebrando o falso sossego que se instalara na sala. "Alimenta, creio eu, propósitos em relação à minha bijou."

Luís não conhecia o petit nom, mas presumiu, e bem, que bijou seria alcunha familiar de Amélia.

"Sim, minha senhora."

"Como calcula, a minha bijou não sai com a primeira andorinha que lhe aparece à frente, não é?"

"Claro que não, minha senhora."

"Se bem entendi o que me disse a bijou, o senhor dispõe de meios..."

"Sim, sim. Os meus pais faleceram e herdei as terras."

Esta informação chamou a atenção da viúva. Dona Beatriz ergueu um olho e mirou Luís pela primeira vez.

"Herdou terras, ora é?"

"Sim, minha senhora. O meu pai finou-se quando eu era pequeno e a minha mãe faleceu no ano passado, de maneira que fiquei com as propriedades."

"E que propriedades são essas, pode-se saber?"

"São as terras que eram do meu pai, lá nos Cerejais."

"Cerejais, ora é? Onde é isso?"

"É um lugarejo junto a Alfândega da Fé, minha senhora."

Dona Beatriz parou totalmente de tricotar. Queria ter o cérebro livre para avaliar adequadamente o rapaz.

"Explique-me lá isso um pouco melhor. Sendo órfão e tendo terras perto de Alfândega, como faz o senhor para se sustentar e pagar os estudos aqui em Bragança?"

"As minhas terras produzem muita coisa, minha senhora. Azeitonas, cerejas e amêndoas. Pegamos nas azeitonas e fazemos muito azeite, que depois vendemos às mercearias de Alfândega."

"Não entendo. Se o senhor é órfão de pai e mãe e está aqui em Bragança a estudar no liceu, como faz para controlar a produção nessas terras?"

"É a minha tia, minha senhora. A irmã do meu pai está a administrar as propriedades enquanto eu termino os meus estudos."

"Hmm", murmurou a viúva, pensativa. "E são coisa grande, essas terras?"

Luís balançou a cabeça, hesitante; grande e pequeno pareciam-lhe conceitos relativos.

"É maior que um quintal", disse. "Mas também não se pode dizer que seja uma grande propriedade."

"Estou a ver", observou dona Beatriz. Ajeitou o rolo de lã e recomeçou a tricotar. "Vai terminar o liceu, ora é?"

"Sim, senhora."

"E depois? Gostaria de seguir a carreira militar?"

O rapaz observou-a, espantado com a inesperada e despropositada sugestão.

"Eu? Militar?" Abanou a cabeça. "Não, não estou a pensar em tal."

"E porquê?", interrogou-o ela, subitamente empertigada. "Tem alguma coisa contra os militares?"

Luís percebeu que se tratava, por algum motivo que não descortinava, de um ponto sensível.

"Claro que não."

Dona Beatriz voltou ao tricot.

"O meu marido era militar, que Deus o tenha. Tinha um grande futuro pela frente, mas teve azar em apanhar os gases, coitado." Ergueu a parte da camisola que já fizera e contemplou-a, avaliando o trabalho. "É uma excelente carreira, sem dúvida. Tem distinção e pode-se chegar longe. São os militares que mandam na porcaria deste país. Olhe o senhor presidente da República. Não é ele militar?"

"É verdade, minha senhora", assentiu, preparando-se para contornar a questão. "A carreira militar tem grande prestígio, sem dúvida. Mas, sabe, o problema é que é uma vida que não

me atrai muito."

A mãe de Amélia fez um estalido com o canto da língua,

mostrando o seu desagrado.

"Então o que tenciona fazer?"

"Bem, quero seguir um curso superior."

Dona Beatriz sorriu de leve. Ora ali estava algo que afinal poderia revelar-se interessante.

"Um doutor, portanto."

"Isso."

"Espero que seja Medicina ou Direito", sentenciou a mulher, transmitindo uma nova mensagem clara quanto às suas expectativas. Ergueu os olhos da camisola de lã e fitou-o. "Sabe, são os únicos cursos que interessam a uma pessoa distinta."

Luís hesitou. ,

"Ainda... ainda não sei, minha senhora. Não está nada

decidido."

"Mas tem alguma coisa em mente?"

"Eu... enfim, tenho."

"O quê?"

"Estava a pensar em... em Veterinária."

Dona Beatriz abriu o rosto numa expressão quase escandalizada.

"Veterinária? Valha-me Deus! Mas por que diabo quer você meter-se em Veterinária?"

"Sabe, gosto muito de animais..."

"Todos gostamos de animais", cortou a senhora com acidez. Olhou para Francisco, que permanecia especado ao lado dela. "Até tu, não é, Chico?"

"Sim, minha senhora."

"Gostas de animais, não gostas?"

"Adoro animais, minha senhora." Passou a língua pelos lábios. "O coelho de ontem estava muito bom."

A viúva riu-se e fitou Luís.

"Aqui o Chico tem graça", observou. "Não pense que ele está a brincar. É incapaz de dizer uma piada, não tem sentido de humor nenhum, mas é nisso que o rapaz tem graça." Pigarreou. "Pois, também eu gostei imenso do coelho de ontem, mas a verdade é que isso não me deu nenhum impulso de ser veterinária."

Luís vacilou, sem saber muito bem como lidar com o inesperado e estranho argumento.

"Bem, eu... enfim... ainda tenho de pensar no assunto", tergiversou, gaguejando. "Depois... depois decido."

"Pois então decida. E decida depressa e bem."

 

A conversa deixou dona Beatriz Campos hesitante. O rapaz não era o que sonhara para a filha. Embora lhe adivinhasse firmeza por detrás da postura aparentemente submissa, a verdade é que Luís se lhe afigurava uma aposta algo arriscada. Que história era aquela de querer ser veterinário? Para que precisava a filha de um homem que passasse o dia a tratar de pulgas? E, o que era mais importante, onde já se vira alguém querer seguir um curso superior sem ter claro na sua mente que tiraria Medicina ou Direito? Seria ele porventura tonto? Por outro lado, não lhe parecia ser oriundo de famílias abastadas. Era um facto que não se tratava de um pé-descalço qualquer, sempre tinha umas terrazitas lá para o cu de Judas; pela descrição não lhe parecia grande quinta, é certo, mas... enfim, sempre era melhor que nada, não era?

Ou se calhar não era.

Apesar das dúvidas de dona Beatriz, Luís continuou a acompanhar a namorada nos passeios matinais até ao liceu.

Depois do episódio com o reitor, tinham-se acabado as piadinhas das colegas; o casalinho era já conhecido e dizia-se que aquilo iria certamente acabar "em casório".

"A minha mãe foi ontem ao liceu e armou um escabeche que só visto", observou Amélia na semana seguinte, seguiam os dois pela rua fora a caminho do liceu.

"Não me digas!", exclamou Luís. "Ela falou com quem?"

"Com o badigo!"

"A tua mãe foi falar com o gordo?"

"Foi falar, não. Foi gritar."

"Tu estavas lá?"

Amélia abanou a cabeça.

"Fiquei à porta, mas ouvi tudo. A minha mãe disse-lhe das boas."

"Ai é?"

"Disse-lhe que eu não era filha dele e que não me podia bater assim sem mais nem menos. E perguntou-lhe a que propósito me chamou lefraim."

"E o tipo?"

"Oh, foi respondendo como pôde. Havias de o ter escutado. A princípio veio com ares muito autoritários, com a mania de que é bom, a dizer que ainda me ia instalar um procedimento disciplinar, que eu podia ser expulsa da escola, que isto e que aquilo. Enfim, essa conversa."

"E a tua mãe?"

"A minha mãe ouviu-o com muita calma e, quando ele se calou, começou o espectáculo. Gritou tanto que toda a gente parou e ficou a ouvir no corredor. Parecia que estavam a escutar uma novela na telefonia. O melhor foi quando a minha mãe disse que ia apresentar queixa ao inspector. Ficou tudo de boca aberta."

"Ah! E o badigo?"

"Amochou."

Riram-se os dois.

"Ela apresentou mesmo queixa?"

A rapariga encolheu os ombros.

"Sei lá."

"Mas devia", atalhou Luís. "O badigo pode abrir-te um procedimento disciplinar, mas não te pode bater, já não és nenhuma criança. A inspecção devia ser avisada."

"Bem, a minha mãe vai amanhã de viagem. Se calhar quer tratar do assunto pessoalmente em Lisboa."

"Ah, ela disse-te isso?"

"Claro que não. A minha mãe nunca me conta os seus planos."

"Porquê?"

Amélia suspirou.

"Tu não conheces mesmo a minha mãe."

O episódio com o reitor teve o condão de envolver Amélia num ambiente de solidariedade no liceu. O reitor não era uma figura que despertasse simpatia entre funcionários, alunos e pais. Tinham-lhe respeito, como era normal em relação a figuras de autoridade, mas era um respeito nascido apenas da posição hierárquica que ocupava, não do exemplo que dava ou da consideração que inspirava. Até Maria das Dores, a morena de língua afiada com quem Amélia se desentendera, se tornou mais dócil.

Acabaram-se assim os gracejos e os dois voltaram a encontrar-se com mais assiduidade nos intervalos das aulas. O passeio até ao liceu continuou a ser o momento alto do dia, a única altura em que conseguiam estar a sós, apesar de se encontrarem na rua. Mas passavam amiúde as manhãs juntos, nos corredores do liceu, sem esconderem o sentimento que os unia, embora evitando gestos que os comprometessem. Nisso Amélia era cuidadosa. Beijos, só os do encontro e os da despedida; os outros eram adivinhados entre a ternura derramada pelas palavras enamoradas e pelos olhares que trocavam.

"A minha mãe anda estranha", observou Amélia uma manhã, três semanas depois de ela ter falado com o reitor.

Aproximavam-se já do liceu, após um passeio particularmente silencioso da parte dela.

"Estranha como?"

A rapariga contraiu a boca.

"Não sei, anda menos faladora. Parece preocupada."

"Estará doente?"

Ela lançou-lhe um olhar perturbado.

"Sabes que já pensei nisso? Achas que ela pode mesmo estar doente e não me querer dizer nada?"

Luís passou a mão pelo queixo.

"É difícil de dizer. Quando é que ela começou a parecer-te preocupada?"

"Foi depois de voltar de viagem. Lembras-te que ela foi falar com o reitor e se ausentou logo a seguir?"

"Sim."

"Esteve uns dias fora e quando voltou passou a andar mais calada."

"E onde foi ela?"

"Sei lá."

"Terá ido a Lisboa?"

"Não sei. Na altura pensei que tivesse ido apresentar queixa ao ministério e passasse pelo Douro para ver a minha irmã, mas, se assim fosse, ter-me-ia dito alguma coisa, teria dado novidades dela, não é?"

"E não disse nada?"

"Nem uma palavra. Tem é andado mais calada, como se cismasse com alguma coisa." Parou e fitou-o com ansiedade. "Achas que está doente e não nos quer dizer nada? Achas que ela foi a um médico?"

"Caramba, onde já vai isso, rapariga! Não há-de ser nada, fica descansada."

"Mas tu próprio me perguntaste se ela estaria doente..."

"Sim, mas se fosse alguma coisa de grave já saberias. Se calhar ela foi mesmo a Lisboa queixar-se do badigo. Não te esqueças de que a tua mãe se ausentou logo depois de ter dito ao gordo que ia apresentar queixa dele à inspecção."

Chegaram à porta do liceu.

"Sim, tens razão." Reflectiu um instante. "Mas, se é só isso, por que razão anda tão calada? Que eu saiba, uma queixa à inspecção não é coisa que leve uma pessoa a mudar de comportamento."

Luís considerou este argumento.

"Pois, tens razão." Coçou a cabeça. "Olha lá, porque não lhe perguntas?"

"Já perguntei."

"E ela?"

"Diz que não é nada e que eu ando a imaginar coisas. A seguir torna-se mais faladora, mas eu bem vejo que é para disfarçar." Abanou a cabeça. "Não, passa-se mesmo alguma coisa."

"Não há-de ser nada de especial", insistiu ele, tentando desdramatizar.

Amélia fitou o namorado com intensidade.

"Eu conheço a minha mãe, Luís. Se há coisa que eu sei é que ela está a tramar qualquer coisa."

"Mas o quê?"

A rapariga estreitou os olhos.

"Não sei", disse. "Mas de certeza que não é coisa boa."

 

O Sol baixo do alvorecer pestanejava sem cessar, ora agora clareava, ora agora vinha a sombra, num permanente esconde--esconde entre o astro encandeante e as nuvens brancas. Os ardilosos farrapos de algodão deslizavam baixos, tapando e destapando a luz da manhã com divertida astúcia, o que emprestava ao dia uma tonalidade de humores incertos, num momento era alegria, logo depois tudo se toldava.

Ancorado na esquina da rua, Luís deixara já de notar este passatempo que o distraíra apenas alguns minutos antes; tinha agora uma outra prioridade. Consultou o relógio pela enésima vez e esfregou rapidamente as mãos para se aquecer.

"Sete e cinquenta e ainda não apareceu", murmurou agastado, o vapor da respiração a formar uma breve nuvem diante do rosto. "Chiça, já são vinte minutos de atraso!"

Bateu com os pés no empedrado da rua e, saltitando num sapateado curto, deu voltinhas ao passeio, num esforço para obrigar os pés a gerarem calor e a aquecerem assim o corpo.

Fazia frio e, como chegara um pouco adiantado, já ali estava havia uma boa meia hora. Espreitou de novo os ponteiros do relógio e fez um esforço para conter a impaciência.

"Que chatice!"

Nunca Amélia se atrasara tanto para o encontro matinal na esquina da rua. Uma vez tivera de esperar quinze minutos e lembrava-se de outras ocasiões em que fora forçado a aguardar dez minutos, mas vinte minutos, e sobretudo vinte minutos com aquela temperatura glacial, era coisa nunca vista! Um misto de enervamento e inquietação começou a apossar-se dele enquanto imaginava a causa daquele inusitado atraso. Ter-lhe-ia acontecido alguma coisa? Estaria doente?

Estreitou melhor o colarinho do casaco. Realmente, com aquele frio era fácil uma pessoa cair de cama com gripe. Teria sido isso o que acontecera? Essa possibilidade deixava-o inquieto. E se o atraso resultava de mera distracção? E se ela estava atrasada porque decidira pentear-se um pouco melhor ou limpar uma nodoazinha insignificante que lhe aparecera na bata? Ajeitou de novo o colarinho do casaco e sentiu os dentes tiritarem de frio. Não, isso já seria uma desconsideração. Não era possível que ela o tivesse deixado plantado na rua, em plena manhã gelada, por um motivo tão frívolo; decerto não o deixara a enregelar apenas por querer apresentar-se um pouquinho mais bem arranjada. Ou deixaria? Essa hipótese enervava-o.

Meia hora de atraso.

Luís contemplou o relógio, indeciso, e examinou o fundo da rua, procurando a fachada da casa. Deveria ir lá e perguntar por ela? Talvez fosse má ideia; a mãe não iria gostar e a verdade é que a própria Amélia lhe recomendara inúmeras vezes que evitasse ir lá bater à porta. Dona Beatriz era pessoa susceptível e parecia alimentar algumas reservas inexplicáveis

em relação a ele, pelo que a prudência lhe parecia aconselhável. Além do mais, havia uma questão de orgulho: se fosse lá, estaria a dar um sinal de fraqueza, mostrar-se-ia dependente dela, totalmente incapaz de passar sem a sua companhia. Embora no fundo tal fosse verdade, não queria deixar essa impressão.

Quarenta minutos.

Era de mais. Quarenta minutos de atraso afigurava-se-lhe realmente um exagero, Amélia passava já das marcas! O que raio teria acontecido? Se não ia à escola, porque não mandara alguém a avisá-lo? Vendo bem, ele estava a meros dois passos de casa dela. Custar-lhe-ia assim tanto enviar-lhe um recado a dizer que não esperasse mais, que se veriam à tarde? Mas o facto é que não recebera recado nenhum e teria de tomar uma decisão. Deveria esperar um pouco mais ou estaria já na hora de partir? Abanou a cabeça. Não. Não podia continuar ali eternamente à espera da donzela. Havia limites para tudo.

Encheu os pulmões e respirou fundo.

"Paciência!"

Voltou as costas à rua de onde Amélia habitualmente emergia e começou a caminhar, primeiro devagar e espreitan­do de quando em vez para trás, na tenaz esperança de a ver aparecer no derradeiro instante, como acontecia nas fitas americanas; mas depois, quando a esquina do habitual encontro se perdeu para trás dele, o passo lento tornou-se rápido, transformou-se em corrida, ia agora empenhado em chegar a tempo ao liceu antes ainda do segundo toque.

Passou os intervalos a tentar vislumbrá-la. Fazendo-se distraído, procurou a turma de Amélia e deambulou por entre as colegas, mas dela nem um vestígio. A busca acabou quando as aulas terminaram à tarde, altura em que definitivamente percebeu que Amélia não tinha ido ao liceu. Resignado, concluiu que devia estar doente.

A inquietação, contudo, não o largou. Ficou toda a tarde a matutar no assunto. Depois do lanche na pensão de dona Hortense, fechou-se mo quarto a estudar para um exercício marcado para o dia seguinte, mas o desassossego em relação a Amélia enchia-lhe a mente e nada conseguiu adiantar. Tinha de saber. Deitado na cama, voltou a admitir a hipótese de ir a casa da namorada, mas reconsiderou, e pelos mesmos motivos: dona Beatri* não iria gostar de o ver a bater-lhe a porta.

Contudo, tornava-se evidente que teria de estabelecer qual­quer tipo de contacto,; não aguentava a incerteza. Além disso, o seu silêncio poderia, parecer indiferença. É certo que Amélia também permanecera silenciosa e era ela que se encontrava em falta, mas, que diabo, se estava doente também não se lhe poderia exigir muito!! E, se assim era, quem sabe de que tipo de debilidade padeceria a essa hora? Este raciocínio deixou-o ainda mais inquieto.. Sim, que debilidade seria essa? O que teria ela afinal? Seria coisa grave?

Num impulso," saiiu da pensão e foi à praça; conhecia uma lojinha de esquina que lhe resolveria o problema. fingiu-se ao local e entrou no estabelecimento. Sobre a porta da entrada anunciava-se a Flornsta Alegre e lá dentro flutuavam fragrâncias deliciosas.           "Queria enviar um ramo de flores a uma pessoa", pediu a senhora que se encomtrava ao balcão.

A senhora, presumivelmente a dona da loja, fez um gesto em redor, exibindo a riqueza exuberante de pétalas coloridas que os rodeava.

"Tem em mente alguma coisa?"

Luís avaliou a panóplia de flores e coçou o queixo, indeciso.

"Não sei... queria uma coisa bonita."

"É para alguma ocasião especial?"

"É para uma pessoa que está doente."

"Ah!", exclamou ela, iluminando os olhos. Girou o rosto pela loja, como se procurasse alguma coisa, até que fixou a sua atenção num vaso. "Nesse caso sugiro salva."

Extraiu do vaso um ramo cheio de verde, com as pétalas dobradas como sinos, e exibiu-o ao freguês. Luís avaliou o ramo, um traço de cepticismo a curvar-lhe a boca.

"Salva? Porquê? Não me parece lá muito bonita..."

A florista acariciou o ramo.

"A salva significa 'saúde. Era uma planta medicinal no mundo antigo e servia para salvar as pessoas. Daí que os romanos lhe chamassem salvia, do latim salvare, ou salvar." Sorriu. "Salva, de salvar."

"Estou a ver", disse Luís. "Mas receio que a pessoa em causa não saiba nada disso."

A mulher sorriu.

"Razão pela qual lhe expliquei o significado desta planta. O senhor poderá agora dar esta explicação à pessoa que está doente e ela entenderá o seu gesto."

Era bem visto.

"Tem razão", assentiu ele. "Bote então aí um raminho."

"Quer levar ao natural ou tudo embrulhadinho?"

"Na verdade, não o quero levar. Vocês não fazem entrega ao domicílio?"

"Isso não fazemos." Fez um sinal na direcção da porta da rua. "Mas a mercearia aqui ao lado tem um rapaz que faz entregas. Se o senhor for lá, pode ser que a coisa se arranje."

Luís pagou e saiu com a planta nas mãos, o ramo enfeitado por um lacinho branco e cor-de-rosa que a florista atara aos pés. Foi à mercearia do lado, perguntou pelo rapaz, combinou o serviço e disse-lhe que pagaria logo que o ramo fosse entregue, ele que desse um salto à pensão da dona Hortense no caminho de regresso.

Voltou à pensão sorridente e satisfeito com a solução que havia encontrado. A salva era perfeita para a ocasião. Graças a ela não tinha de ir bater à porta de Amélia, mas ainda assim daria uma indicação, por sinal muito elegante, de que estava inquieto e pensava na sua amada. E teria notícias dela.

Era de mestre!

Sentindo-se já tranquilizado e com a paz de espírito recuperada, Luís fechou-se no quarto da pensão e pôs-se enfim a estudar para o exercício de Geografia que estava marcado para o dia seguinte. Embora tivesse a matéria adiantada pelo trabalho dos dias anteriores, faltava-lhe ainda fixar os nomes dos rios de todo o país, matéria que havia decorado na primária mas já tinha esquecido. Leu a lista e nomeou-os de rajada, entoando uma ladainha à maneira da tabuada, só que, em vez de quatro-vezes--cinco-vinte, dizia Alviela-Sabor-Lima-Mondego...

Toc-toc-toc.

A batida interrompeu-o quando ia chegar ao Sado.

"Quem é?"

"Sou eu, menino."

Luís rolou os olhos, exasperado. Era a dona da pensão. Ergueu-se da cama e, com gestos contrariados, foi abrir a porta.

"O que é, dona Hortense?"

"Aiche, Jesus!", exclamou ela, notando a expressão contra­feita de Luís. "O menino hoje está de gângaras!"

"É que estou a estudar, dona Hortense. Tenho muito que fazer." Suspirou, como se fosse dono de infinita paciência. "Diga lá, o que se passa?"

"Assucede que está um mocinho lá em baixo para si."

"Ah, sim!", lembrou-se, o mau humor varrido de um momento para o outro. "É para eu pagar. Diga-lhe que já vou."

Calçou os sapatos, pegou numa moeda de meio tostão que tinha sobre a mesa-de-cabeceira e desceu as escadas saltando os degraus de dois em dois. Viu o rapaz da mercearia à espera diante da porta de entrada, mas constatou que ele trazia o ramo enlaçado de salva nas mãos, o que Luís estranhou.

"Então?", questionou, ia ainda nos últimos degraus. "O que se passa? Não fez a entrega?"

"Eu fiz, senhor deitor."

Luís imobilizou-se diante do rapaz, as mãos à ilharga, uma expressão interrogativa no olhar.

"Então o que está a planta aí a fazer?"

"Não estava lá ninguém, senhor deitor."

"Como assim?"

"Eu botei-me à porta e bati, mas ninguém atendeu."

"É porque saíram, se calhar foram ao médico." Fez sinal com a cabeça na direcção do ramo. "Você devia ter deixado a planta com uma vizinha, sempre poupava o trabalho de lá voltar."

"Eu tentei, senhor deitor. Fui bater à porta da vizinha e pedi-lhe que fizesse o favor de entregar a planta à menina Amélia. Mas ela disse que já não era ali."

"O que não era ali?"

"A casa da menina Amélia."

"Você está a gozar comigo? Claro que é ali!"

"Não foi o que me disse a vizinha, senhor deitor. Ela disse que a casa foi fechada e as senhoras mudaram-se."

"Para onde?"

"Não sei, senhor deitor. Mas foram para outra terra."

Luís arregalou os olhos, estupefacto.

"O quê?"

"A menina Amélia já não mora em Bragança."

 

As janelas da fachada da casa apresentavam-se efectivamente corridas e lá de dentro não vinham quaisquer sinais de vida. Tremendo de ansiedade e a respiração oprimida pela aflição, Luís foi bater à porta, primeiro com delicadeza, depois com desorientada insistência. Mas, tal como o rapaz da mercearia havia avisado, ninguém abriu.

A mente agitava-se-lhe num turbilhão enquanto ele aguar­dava no intervalo das batidas. Vivia um sentimento de irrealidade, pensava que aquilo não lhe estava a acontecer, não podia estar a acontecer, haveria decerto uma qualquer explicação. Mas o facto é que a casa estava mesmo fechada e Amélia não se encontrava ali.

"Talvez tenham ido ao médico", murmurou para si mesmo. "Ou então foram passear, sei lá."

Deu alguns passos para o lado e foi bater à porta da vizinha. Tinha de haver uma razão lógica para aquilo, só podia haver um engano, de certeza que o rapaz da mercearia percebera tudo mal.

Uma mulher larga de aspecto desgrenhado, com um avental azul e uma vassoura na mão, espreitou por entre as cortinas da janela do rés-do-chão com ar interrogativo.

"Desculpe, sou um amigo da sua vizinha, a menina Amélia", apresentou-se, tirando o chapéu. "Vim aqui saber dela mas a casa parece fechada. Faz o obséquio de me dizer se ela se ausentou?"

A mulher abriu a janela.

"A dona Beatriz e a menina Amélia já aqui não moram."

"Não moram como? Abandonaram a casa assim sem mais nem menos?"

"Foi uma espantação!", exclamou a vizinha. "Até nós aqui em casa estamos fartinhos de comentar o assucedido. Ant'onte, no sábado, a dona Beatriz apareceu-nos aqui à pela uma da tarde a despedir-se. Vinha toda afergulhada e disse que tinha fechado a casa e qu'ia morar p'ra outra terra."

"Qual terra?"

"Ah, isso ela não m'explicou."

"Não lhe perguntou?"

"Aperguntar, até qu'aperguntei. Mas ela não disse nada e eu botei-me no meu lugar. Não m'ia pôr a alanzoar."

"Então como é que eu posso chegar à fala com a menina Amélia?"

"Ah, isso eu cá não sei."

"Não há ninguém que saiba para onde elas foram?"

"Eu não aconheço."

"Alguém de família, alguém de quem fossem amigos, sei lá..."

"Não aconheço ninguém."

Luís mordeu o lábio. Estava a ser difícil arrancar alguma informação que lhe permitisse localizar a namorada.

"A dona Beatriz não lhe explicou por que razão teve de se mudar assim tão... tão à pressa?"

"Disse que eram assuntos de família."

"Que assuntos?"

"Ah, isso eu não aperguntei. São lá coisas entre elas, não é?" Inclinou a cabeça para fora da janela, em tom conspira­dor. "Mas lá que achámos estranho, lá isso achámos. Ainda onte à noute eu disse ao meu André: ó menino, há gato em tod'esta história!" Olhou em redor, como se temesse ser escutada, e baixou a voz. "Assuntos de família, é?" Fez um esgar sabido. "A certa!" Voltou a olhar em redor, para se certificar de que não havia ouvidos indiscretos nas redondezas. "Eu cá não sou belfurinheira, toda a vizinhança sabe que nunca fui de alcarrotar nem dessas coisas, Deus me livre! Mas ninguém me tira qu'esta história dos assuntos de família é tudo boldreguices! Boldreguices, digo-lhe eu! Cá p'ra mim, sabe qual é a verdadeira razão p'ra se terem posto a andar? Sabe qual é? Sabe?"

"Não."

Abriu muito os olhos negros, como se fosse revelar um grande segredo.

"Conques."

"O quê?"

"É tudo questão de conques, home!" Remexeu o indicador e o polegar. "Cunfres. Carcanhol. Dinheiro."

"Que dinheiro?", espantou-se ele.

"Chiu", soprou ela, fazendo com as mãos sinal para falar mais baixo. Voltou mais uma vez a cabeça para a direita e para a esquerda, de modo a assegurar-se de que ninguém ouvira, e fixou Luís com uma expressão conspiradora. "Deve haver umas falcatruas pelo meio, é o que é!"

"Está a falar de quê?"

"Da loja, home! Da loja! A dona Beatriz não tem uma loja?"

"Ah, pois tem!", lembrou-se Luís. "A Casa Rodrigues!"

"Pois é. Cá p'ra mim, é tudo um problema de conques, está a ver?"

"Como sabe isso?"

A vizinha estreitou os olhos e fez um ar de entendida, como se soubesse mais do que dizia.

"Eu cá m'entendo!"

Luís olhou para ela, avaliando-a. Era claramente uma linguaruda virada para a maledicência, só mesmo uma alcarroteira é que garante não ser belfurinheira. Metade do que dissera, se não mesmo tudo, não passava com toda a probabilidade de produto da sua fértil imaginação intriguista. O facto, concluiu, é que a vizinha não deveria verdadeiramente saber por que razão dona Beatriz tinha vendido a casa. Se queria mesmo obter essa informação, teria de procurar noutro lado.

"Então e a menina Amélia?" Isto era algo que a vizinha, se as vira de facto partir, deveria pelo menos saber com segurança. "Como lhe pareceu ela?"

"Chorosa, tadinha!"

"A senhora viu-a mesmo?"

"Hom'essa, atão não vi? Co'estes meus olhinhos qua terra há-de comer!"

"E então?"

A vizinha fez um ar compadecido e passou os dedos gordos pelo bigode que lhe nascia sobre os cantos da boca.

"Dava dó, tadinha! Via-se mesmo que não queria ir. Mas já sabe como é a dona Beatriz, não sabe? Deve-lhe ter dado umas orelhadas, depois arrastou-a p'r'ó carro e ala!, foram-se embora!"

"Ah, foram de carro?"

"Foram, pois atão. Veio aí uma máquina preta buscá-las e lá foram elas e o macaquinho."

"Qual macaquinho?"

"O tosco, o Chico." Abanou a cabeça e suspirou, em comiseração. "Tadinha da menina Amelinha!"

Tornara-se claro que a vizinha tinha mais boatos fantasiosos para espalhar do que informações credíveis para oferecer, mas a conversa serviu para lembrar a Luís que havia um sítio onde o paradeiro de Amélia não poderia ser desconhecido. Consultou o relógio e praguejou, frustrado. Já era tarde, a loja devia estar fechada a essa hora e só lá poderia ir no dia seguinte.

Regressou cabisbaixo à pensão e foi imediatamente fechar-se no quarto. Para pasmo e consternação de dona Hortense, anunciou que não queria jantar nessa noite.

"Tenho ponto amanhã", foi tudo o que a dona da pensão arrancou dele depois de muita insistência.

Apenas engoliu uma pêra na manhã seguinte, quando saiu para as aulas. Ainda passou pelo habitual ponto de encontro com Amélia e esperou algumas dezenas de minutos, rezando para que a namorada aparecesse como de costume e assim desfizesse o pesadelo em que parecia ter mergulhado nos dois últimos dias.

Mas Amélia não apareceu.

Decidiu, por isso, faltar às primeiras aulas do dia. Em vez de seguir para o liceu, dirigiu-se ao Largo do Principal em busca do local onde sabia que o paradeiro de Amélia teria forçosamente de ser conhecido.

A Casa Rodrigues era um estabelecimento respeitável si­tuado em pleno centro de Bragança. Parou do outro lado da rua e contemplou a fachada do estabelecimento. A vitrina exibia tecidos variados, todos enrolados como grandes cigarros e encostados uns aos outros, à excepção de uma espécie de lençol escarlate que decorava um dos cantos.

Respirou fundo e, pela primeira vez, entrou na loja. O interior revelou-se escuro e poeirento, como o de uma caverna; no ar denso flutuava um ligeiro aroma a naftalina e a cânfora, e uma mulher de meia-idade arrumava tecidos por detrás do balcão, o cabelo grisalho apanhado num carrapito arredondado.

"Bom dia", cumprimentou Luís, aproximando-se do balcão. "A dona Beatriz está?"

A mulher parou as arrumações e olhou-o, desconfiada; não era comum ver um homem entrar na loja.

"A patroa não se encontra. Posso ajudá-lo?"

"Precisava de saber onde está a dona Beatriz. Tenho um assunto de muita urgência e delicadeza para tratar com ela. Porventura sabe onde a poderei localizar?"

A empregada franziu o sobrolho, sem saber o que pensar daqueles modos tão finos.

"A patroa foi de viagem."

"Terá a amabilidade de me dizer para onde?"

"Ah, isso eu cá não sei."

"Sabe por gentileza informar-me de quando ela volta?"

A mulher encolheu os ombros.

"Também não sei."

Luís cerrou as sobrancelhas, admirado com tanta ignorância, e decidiu abandonar as finuras de linguagem que não o estavam a levar a lado nenhum.

"Não sabe como? Esta loja não é dela?"

"É pois, mas eu não sei da vida da patroa."

O rapaz suspirou.

"Oiça, eu tenho muita urgência em falar com a dona Beatriz. O que posso fazer para chegar a ela?"

A senhora tirou um livro de uma gaveta e pousou-o sobre o balcão; era uma agenda com 1930 debruado a ouro na capa negra. A empregada abriu a agenda e folheou-a com rapidez.

"Ora bem, a patroa disse que vem cá tratar da contabilidade", observou, imobilizando os dedos numa página. "Isso está marcado para... para sexta-feira."

"Qual sexta-feira? Esta?"

"Sim", confirmou a empregada, fechando a agenda e fitan-do-o. "Daqui a três dias. Só se quiser vir cá nessa altura."

Apareceu no liceu com olheiras profundas a ensombrarem-lhe os olhos mortiços. Arrastou-se para a sala e foi a custo que completou o exercício de Geografia marcado para o final da manhã. Saiu da sala sem saber se a prova lhe tinha corrido bem ou mal. Nem isso lhe interessava; a mente voara-lhe para bem longe dali.

Com o ponto já fora do caminho, consultou a cábula que havia guardado num caderno com o horário escolar de Amélia e dirigiu-se à sala onde ela supostamente se encontraria.

"A Amélia?", perguntou logo que viu uma colega da na­morada. "Que é feito dela?"

A rapariga encarou-o, surpreendida primeiro e embaraçada a seguir.

"Então não sabes? Ela não te disse?"

"Disse o quê?"

A colega de Amélia contraiu o rosto, estranhando tanta ignorância da parte de quem tudo deveria saber.

"Vocês zangaram-se ou quê?"

"Claro que não nos zangámos. Porque perguntas isso?"

"Então como é que não sabes dela?"

Luís suspirou. Era uma boa pergunta, tão boa que ele próprio já a fizera inúmeras vezes.

"Não faço a mínima ideia", disse. "Despedimo-nos no sábado e estava tudo normal. Só que ontem já não a vi e não tenho notícias dela. Parece que se sumiu!"

A rapariga deu-lhe o benefício da dúvida.

"Ai sumiu, sumiu!", exclamou. "E de que maneira!"

"Então?"

"A Amélia mudou de escola."

"Foi para onde?"

"Sei lá!"

"Mas como sabes que ela mudou de escola? A Amélia veio cá? Foi ela que te disse?"

"Bem... não. Essa história começou a correr por aí e toda a gente percebeu que era verdade quando a professora de Português disse ontem de manhã que a Amélia já cá não andava e mandou ocupar a carteira dela." Esboçou uma expressão pensativa. "A bem dizer, a última vez que a vi também foi no sábado."

"Então ela desapareceu assim, de um dia para o outro, sem dizer nada a ninguém?"

A colega de Amélia ficou especada a olhar para ele, como se nunca lhe tivesse ocorrido pôr as coisas daquela maneira.

"Pois, foi isso mesmo o que aconteceu", acabou por concordar. "A Amélia desapareceu!"

 

Os três dias de espera revelaram-se incrivelmente penosos. Luís mal conseguiu pregar olho durante todo esse tempo e arrastava-se com tristeza de um lado para o outro, como se carregasse às costas um fardo de espinhos. Como era possível que Amélia se tivesse ido embora sem nada dizer? Nem um aviso, nem uma palavra, nem um recado. Sumira-se e era tudo.

Como sempre acontecia quando ficava ansioso, perdeu totalmente o apetite. Andou dois dias em que quase não tocou na comida; petiscava e nada mais. A situação chegou a tal ponto que dona Hortense não pôde conter o enervamento.

"Mas o que se passa, menino?", perguntou ao jantar de quinta-feira, já exasperada. "É a feijoada que não lhe agrada? E o vinhinho que não está bom?"

"Não, dona Hortense", disse ele, que apenas comera a sopa e recusara o prato principal. "Não tenho fome."

"Prefere que a Graciete lhe prepare um bifinho?"

"Não vale a pena", repetiu Luís.

"E uma omeleta? Vai uma omeletinha, vai?"

"Não tenho fome."

"Não tenho fome, não tenho fome", repetiu ela com uma careta, balouçando a cabeça e caricaturando-lhe o tom e a voz. "Mas afinal o que tem o menino?"

Saturado com a insistência, Luís levantou-se da mesa.

"Se me dá licença, preciso de ir estudar."

"Outra vez?", admirou-se ela. "Mas o menino não faz outra coisa que não seja estudar! É sempre a estudar, a estudar, a estudar... Credo, até me faz espécie!"

"O que quer? Ando numa época de muitos pontos..."

"O menino é muito zagucho, não há dúvida, essa cabeça até esmilha de tão esperta que é! Mas oiça o que eu lhe digo: só consegue estudar bem se comer melhor! Ouviu?" Ergueu o dedo, toda sentenciosa. "E como o lambiteiro do padre Álvaro costuma dizer sempre que cá vem encher a pança: mentis sanas em... uh... corpus sanus... ou lá o que é!"

Se não se sentisse tão abatido, Luís ter-se-ia rido.

"Isso", limitou-se a dizer, dirigindo-se às escadas. "Agora vou tratar da mentis."

Dona Hortense levantou-se também da mesa e foi atrás dele.

"Mas como é possível o menino andar tão penisqueiro, valha-me Deus? Por que razão não come nada?" Gesticulou. "Desde que aqui está que sempre teve tanta sapeira, sempre foi um lambaças de primeira! Quando há feijoadinha boa, oh, põe-se logo à husma! E agora... agora deu-lhe para isto?" Abanou a cabeça e bateu com a palma da mão na testa, em desespero. "Bem m'eu finto do que está a acontecer! Até parece que é por finca-ratunha!"

"Não é por finca-ratunha nenhuma", insistiu ele, sem parar de subir os degraus. "Não tenho fome e há muito trabalho pela frente. É só isso."

Dona Hortense ficou em baixo a vê-lo desaparecer no topo das escadas.

"Rai's t'a parta o diabo do catraio!", praguejou quando o ouviu fechar a porta do quarto. "Ora querem lá ver isto?" Abanou a cabeça e regressou contrariada para a mesa. "Chiça! Até mete ranço!"

A sexta-feira chegou e Luís passou pela Casa Rodrigues logo que saiu a caminho das aulas, mas, considerando que nem oito da manhã ainda eram, foi sem surpresa que verificou que a loja se encontrava encerrada. Um papelinho prega­do na porta indicava que o estabelecimento só abriria às dez da manhã, o que aliás acontecia com todo o comércio de Bragança.

Desejou ardentemente que houvesse um furo a partir das dez horas, mas, como se fosse de propósito para o contrariar, nenhum professor faltou. Parecia uma conspiração. Acompa­nhou as aulas com mal disfarçada impaciência. Não se cansa­va de consultar o relógio. Espreitou tanto os ponteiros que até o habitualmente distraído e extravagante professor de Latim notou.

"Ex abrupto", exclamou o professor de modo teatral, os olhos fixos em Luís, "ele olha para o relógio!"

"Perdão?", atrapalhou-se o aluno, regressando à sala e percebendo-se interpelado.

"Ah, voltou entra muros? Magnífico! Está finalmente hic et nunc! É que vejo-o tão preocupado com as horas... Serei eu que o maço, senhor Afonso?"

"Não, não", apressou-se Luís a esclarecer. "Sou eu que... que tenho um compromisso."

"In continenti?

"Não, não é imediatamente. É mais logo."

"Ah! Post meridiem."

"Isso."

"Esteja ad libitum. Se precisar de sair, nihil obstat. Mas, nota bene, enquanto estiver aqui na aula quero-o concentrado quantum satis no que aqui se passa. É essa a vexata quaestio. Entendeu?"

"Sim, senhor."

O professor emitiu um longo suspiro pedante e girou o dedo no ar, a boca curvada à maneira de Mussolini, imaginando-se talvez um senador a discursar no fórum de Roma.

"Dura lex sed lex!"

As aulas terminaram ao meio-dia e, em vez de ir direito para a pensão, onde, como era habitual àquela hora, o esperava o almoço, Luís previsivelmente seguiu para a Casa Rodrigues. Caminhou tão depressa que quase corria e em poucos minutos se pôs na loja.

Logo que o viu entrar de rompante, a senhora do balcão apontou para o grande relógio de pêndulo que se encontrava encostado à parede.

"Só à tarde. A patroa está agora a almoçar."

Os olhos de Luís acenderam-se, esperançados.

"Ah sim?", exclamou, arfando por causa da caminhada apressada. "Ela já cá está?"

"Já pois. Passou por aqui ainda há bocadinho."

"E onde foi almoçar?"

"Onde haveria de ser? A casa, pois então!"

Saiu da loja sem agradecer e sem se despedir, tão concentrado estava na sua busca. Correu pela rua com a mão a segurar o chapéu na cabeça, incapaz de reprimir a ansiedade; tinha de saber o que se passava e enquanto não soubesse não descansaria.

Parou diante da casa de Amélia e espreitou as janelas do primeiro andar. As cortinas tinham sido abertas para deixar entrar o sol; não havia dúvidas, estava alguém em casa. Com o coração aos pulos, não sabia se pelo esforço da corrida ou se pelo anseio por ter chegado o momento da verdade, bateu à porta e aguardou. Apercebeu-se de que arquejava e fez um esforço para recuperar o fôlego e controlar a respiração.

A porta abriu-se e viu dona Beatriz de avental e uma colher de pau na mão. Era evidente que estava a cozinhar.

"Boa tarde, minha senhora", cumprimentou, tirando o chapéu. "Desculpe incomodá-la. A Amélia está?"

A mulher permaneceu um instante a observá-lo, como se ponderasse o que haveria de dizer.

"Quem é o senhor?"

"Eu?", admirou-se o rapaz, uma expressão de perplexidade a atravessar-lhe o rosto. "Eu sou o Luís, o amigo da Amélia. Não se lembra? Vim cá noutro dia falar consigo."

"Quem o senhor é já eu sei muito bem", atalhou ela, a voz seca. "A minha pergunta é: quem é o senhor... para me vir aqui a casa à hora do almoço?"

Quase sem querer, os olhos de Luís pousaram na colher de pau.

"Ai, desculpe! Eu não... não..."

"Porventura veio aqui a esta hora para se fazer convidado?"

"Eu não, claro que não!"

"Cheirou-lhe a comida e ei-lo!"

"Desculpe!", empertigou-se o rapaz. "Não é disso que se trata. Apenas quero saber da Amelinha."

"Ai sim?", exclamou ela num tom irónico. "Pois o senhor tinha o dia inteiro para saber da bijou, mas, vejam só, escolheu justamente a hora do almoço para aqui vir!"

Luís engoliu em seco. Que mulher difícil!

"Oiça, minha senhora", disse no tom mais razoável de que foi capaz. "Estou aqui unicamente para saber da Amélia. Prefere que eu venha mais daqui a um bocado?"

"Claro que prefiro!", vociferou ela, como se tal pergunta não fizesse sentido tão óbvia era a resposta. "Isto são horas de aparecer em casa de alguém?"

"Então eu passo mais logo", decidiu, ignorando a pergunta provocatória de dona Beatriz. "Seis da tarde. Pode ser?"

"Olhe que eu hoje tenho muito trabalho pela frente..."

"Mas eu só quero saber onde está a Amelinha."

Dona Beatriz ponderou por momentos a situação.

"Pois bem, venha às três", concedeu por fim.

"Mas eu tenho aulas à tarde..."

"Às três", sentenciou numa pose majestosa e em tom magnânimo, como um juiz indulgente com o criminoso. "Eu conceder-lhe-ei cinco minutinhos."

 

Ainda hesitou entre ir almoçar à pensão e ficar-se por ali. Já nem era a questão das aulas à tarde, que dava por perdidas naquele dia; tratava-se de dona Hortense. Sabia que a proprietária da pensão tinha a refeição à sua espera e sentir-se-ia desconsiderada se ele nem ao menos a informasse de que não ia lá comer, mas, por outro lado, percebia que todo o cuidado era pouco com dona Beatriz. E se ela aproveitasse a pausa do almoço para voltar a abalar? Como resolveria o mistério do desaparecimento de Amélia? Poderia abandonar a entrada da casa?

A desconfiança acabou por prevalecer e Luís optou por dar um salto à mercearia para comprar uma regueifa e um queijo e regressar logo a seguir. Sentou-se a depenicar a regueifa debaixo de uma árvore plantada do outro lado da rua enquanto vigiava a porta de casa de Amélia, não fosse a mãe escapar-se-lhe por entre os dedos.

Às três em ponto voltou a atravessar a rua e foi de novo bater à porta de casa. Desta vez quem atendeu foi Francisco, que o encarou com a habitual expressão carrancuda.

"A senhora está à sua espera", grunhiu, deixando-o entrar.

Luís seguiu o rapaz pelo corredor até à sala e deu com dona Beatriz sentada à mesa do almoço, rodeada de papéis que manejava com destreza. Ao aperceber-se da sua presença, a dona da casa fez com a mão sinal de que se aproximasse e com a cabeça indicou a Francisco que os deixasse a sós. Quando Luís se plantou diante dela, pousou os papéis e o lápis que tinha em mãos, tirou os óculos redondos e fitou-o longamente, uma expressão altiva a incendiar-lhe os olhos.

"Então?", disse. "Já almoçou?"

"Já sim."

"O que comeu?"

Luís sentiu-se surpreendido com a pergunta. Para que dia­bo quereria ela saber o que almoçara?

"Uma regueifa com queijo."

"Mais nada?"

"Sim, foi só isso."

A mulher sorriu e voltou a encavalitar os óculos sobre o nariz, desviando a atenção para os papéis pousados à sua frente.

"Bem me queria parecer!", murmurou num ranger de dentes. "Bem me queria parecer!" Remexeu os papéis, simulando que procurava qualquer coisa. "Quer é vir aqui comer por conta, é o que é", ruminou, como se falasse sozinha mas sabendo perfeitamente que ele a escutava. "Pensam que nasci ontem, mas topo-os à distância!"

Ao escutar o inesperado solilóquio, Luís sentiu-se a ferver de irritação. Aquela mulher tinha o condão de distorcer tudo

o que dizia ou fazia; não percebia se era feitio ou provocação, mas o hábito começava a mexer-lhe com os nervos.

"Perdão?", interpelou-a, uma ponta de desafio no tom. "Como disse?"

"São cá coisas minhas", retorquiu ela, sem levantar os olhos dos papéis. Arrumou uns recibos ao canto da mesa. "Vamos mas é ao que interessa. O senhor veio cá porque quer saber da bijou, não é verdade?"

"É, sim senhora."

Voltou a fitá-lo, sempre emproada.

"Pois a bijou já cá não mora. Não vale a pena preocupar-se mais com ela, está em boas mãos."

"Pois, mas eu gostaria de saber onde se encontra a Amélia."

"O que lhe interessa isso? A bijou foi-se embora e não voltará mais. Ponto final. Portanto, esqueça-a."

Luís respirou fundo e considerou a melhor maneira de expor o que tinha a dizer.

"Minha senhora, veja se compreende isto", disse, esfor-çando-se por permanecer calmo. "Faz amanhã uma semana que me despedi da Amelinha no liceu e ela disse até segunda. Como vê, tudo normal. Só que na segunda-feira não apareceu. Nem água vai, nem água vem, não disse nada. Fui depois informado de que a casa estava fechada e a Amélia já não iria mais ao liceu porque tinha ido viver para outro lado. Ora ela não me tinha dado qualquer indicação de que ia mudar de liceu, de casa, de terra ou do que quer que fosse. Para além disso, não me deixou nenhuma mensagem, nenhum recado, nada." Encolheu os ombros e abriu os braços, num gesto de pasmo que lhe reforçava o sentimento de impotência. "Como deve calcular, acho tudo isto um pouco estranho e gostaria muito de saber o que se passa."

"O que se passa é que ela foi viver para outro sítio. É isso o que se passa."

"Mas posso ao menos falar com ela?"

"Não, não pode."

"Porquê?"

"Porque ela não está cá."

"Então diga-me onde está e eu vou lá falar com ela."

Dona Beatriz soltou uma gargalhada.

"Isso queria você!" Deixou o riso morrer e apontou-lhe o dedo, quase acusadora. "Não percebe que, se ela se foi embora, foi justamente por sua causa?"

Luís abriu a boca, atónito.

"Por minha causa?"

"Claro! Para que lhe ia eu dizer onde está a bijou? Para você ir lá fazer-lhe a cabeça e recomeçar tudo de novo? Era o que mais faltava! Eu quero que a minha bijou..."

"Espere!", cortou ele, elevando pela primeira vez o tom de voz. "Está a dizer-me que ela se foi embora por minha causa?"

Dona Beatriz soergueu a sobrancelha, as linhas do rosto assumindo o aspecto de quem não admite ser questionado.

"Pois claro que sim!", confirmou. "Ainda não tinha percebido? A minha bijou não é fruta para a sua boca."

"Que quer dizer com isso?"

"Quero dizer que a bijou não se vai casar com um pelintra como você! Quero dizer que..."

"Eu não sou nenhum pelintra!"

"Mas também não é homem para a minha filha! Onde é que já se viu a bijou estar destinada a um... um... um que vai passar a vida a tratar de porcos e burros e pulgas?"

A incredulidade estampou-se-lhe no rosto.

"Está a referir-se ao meu desejo de seguir veterinária?"

"Estou a referir-me a tudo! Estou a referir-me aos porcos que você quer tratar, estou a referir-me às suas terrinhas lá para trás do Sol posto, estou a referir-me aos seus modos e à sua irritante mania de aparecer em casa das pessoas à hora do almoço como um rafeiro que pedincha comida!" A voz ganhou-lhe força; dona Beatriz galvanizava-se. "A minha filha há-de ter o melhor! Ouviu? O melhor! E um... um coiso... um veterinário ou lá o que é, um provinciano sem maneiras, um larpão que só pensa no almoço, isso, meu caro senhor, não é o melhor!"

Luís abanou a cabeça e sorriu sem vontade. Os argumentos pareciam-lhe tão absurdos que nem sabia por onde começar para os desmontar.

"Ai não? Então o que é o melhor?"

"O melhor é aquilo a que a bijou está destinada."

"E a que está ela destinada? A um médico? A um advogado? A quem?"

"A quem lhe proporcionar um futuro em segurança." Fez um gesto na direcção do cesto de malhas que tinha pousado junto à lareira. "Ela sabe corte e costura, graças a Deus, mas precisa de um homem que lhe assegure o futuro. Neste mundo, a mulher é o que o homem for. Quanto mais prestigiada for a profissão do marido, mais promissor será o futuro da bijou."

O rapaz encolheu os ombros, resignado.

"Muito bem, não há problema", disse. "Vou inscrever-me em Medicina, não seja lá por isso..."

Dona Beatriz pegou no lápis e começou a brincar com ele entre os dedos.

"é tarde de mais", sentenciou.

"Não, não é. Vou terminar agora o liceu e, em vez de me inscrever em Veterinária, inscrevo-me em Medicina. É muito

simples até, não há dificuldade nenhuma. Aliás, se formos a ver bem, a veterinária é um ramo da medicina, pelo que a mudança não custa nada..."

"O senhor inscrever-se-á no que quiser e muito bem entender, mas a bijou não lhe está destinada."

"Mas porquê? Como pode a senhora dizer isso?"

A mulher cravou os olhos nele, fria e calculista.

"Porque a bijou já casou."

Convencido de que tinha ouvido mal, Luís sacudiu a cabeça.

"Como?"

"Foi no domingo passado, no Porto."

O rapaz ficou um longo instante a fitá-la, incapaz de processar a informação, tal a enormidade que lhe era atirada à cara.

"Que está a senhora a dizer?"

"Estou a dizer-lhe que a bijou não será sua porque já não é sua. No sábado passado fomos ao Porto e ela casou com um oficial. Foi uma cerimónia muito bonita logo na manhã de domingo e ela tem agora vida montada lá para aqueles lados. O oficial herdou terras, é um homem muito abonado e fará dela uma rapariga feliz."

Um baque quase lhe parou o coração, agora que começava a digerir a notícia.

"A Amélia casou?"

Dona Beatriz continuava a falar, aparentemente alheia ao efeito que as suas palavras estavam a produzir no visitante.

"Claro que é uma solução vantajosa para todos. Primeiro para ela, é evidente. Tornou-se proprietária de duas belas quintas, ficou muito bem na vida. Mas também este casamento foi conveniente para a família, não o nego. O nosso património ficou agora alargado." Olhou para cima e benzeu-se. "O meu Raul, se fosse vivo, ficaria muito contente. Ele também

era do exército, sabe? Tinha o sonho de casar bem as filhas e eu... eu consegui!"

"Mas... mas a Amélia casou por vontade própria?"

A pergunta trouxe-a à terra.

"O que quer dizer com isso de vontade própria?", perguntou, quase empertigada. "Onde é que uma criança com aquela idade tem vontade própria? Onde é que uma menina acabada de sair da escola é capaz de discernir o que é bom e o que é mau para ela? O óleo de fígado de bacalhau será porventura saboroso? Alguém o toma por prazer? E, no entanto, haverá quem duvide dos seus benefícios para a saúde?"

Luís sentiu a raiva apossar-se dele. A face enrubesceu-se--lhe, uma sombra cobriu-lhe os olhos e as têmporas começaram a latejar. Com que direito decidia aquela mulher a sua vida e a vida da filha?

"A senhora está a dizer-me que a Amélia casou à força?"

"A Amélia é uma rapariga que foi ensinada a ser obediente", disse dona Beatriz quase a soletrar as palavras, como se as pesasse com grande cuidado. "Como menina educada que é, está perfeitamente consciente de que o óleo de fígado de bacalhau sabe pavorosamente, mas faz muito bem à saúde! Será uma excelente esposa, boa mãe e uma grande dona de casa." Suspirou. "Claro que a Amélia ainda não vê bem as coisas desta maneira, não é verdade? Agora é jovem e tem muitas ilusões, acha que a vida é um conto de fadas... enfim! Felizmente cá estou eu para zelar pela sua felicidade e para..."

De cabeça já perdida e sem conseguir conter-se mais, Luís agarrou-a pelos colarinhos e puxou-a com força para ele, tão alto que ela ficou a espernear no ar.

"Grande puta!", berrou-lhe diante do nariz, os perdigotos a saltarem para a cara da senhora. "Cabra de merda!"

"Chico!"

Sacudiu-a de um lado para o outro, como um saco de batatas, e, apesar de estar cego de raiva, lutou contra a vontade quase irresistível de a esmurrar.

"Bicha-cadela! Calatre ordinário! Desanco-te toda, juco de trampa! Como te atreveste, grandessíssimo calhau? Como..."

"Chiiiiiiiiico!"

"... te atreveste a meter-te na nossa vida? Quem és tu para pôr e dispor de mim e da Amélia? Quem és tu..."

Uma força poderosa sugou-o para trás, obrigando-o a largar dona Beatriz. Sentindo a sala girar em seu redor, vislumbrou por uma fracção de segundo o rosto animalesco de Francisco antes do brutal impacto no estômago que o estendeu no chão, o corpo dobrado sobre si mesmo, uma dor cavada no estômago a roubar-lhe a respiração e luzinhas a cintilarem-lhe nos olhos, como pirilampos a esvoaçarem na noite.

Perdeu toda a noção do tempo, mergulhado na escuridão da dor que lhe moía o corpo. Teve apenas a vaga impressão de que o arrastavam, mas quase não se importou. Estava já para lá de tudo isso. Largaram-no sobre uma superfície dura e fria, cuja textura demorou a entender. Sentiu as costas molhadas e gemeu.

A mente ainda entorpecida, fez um esforço para raciocinar e percebeu enfim que se encontrava pousado no chão, abandonado, o corpo meio mergulhado em água gelada. Depois pensou no que se tinha passado e espantou-se por não se lembrar de quase nada. Apenas que Francisco o havia apanhado por trás e dera cabo dele. A lembrança do sucedido deixou-o atónito; era extraordinário como um rapaz de apenas doze anos tinha tamanha força.

Abriu devagar os olhos e deparou-se com o céu acinzentado da tarde, um manto de cobre recortado pelo ondular atijolado dos telhados. Não fazia ideia do sítio onde se encontrava.

 

Ergueu a cabeça a custo e olhou em redor. Rostos espantados observavam-no com um misto de medo e curiosidade, como se estivessem indecisos, tentando entender quem poderia ele ser. Tratar-se-ia de um bêbado? Era um maltrapilho? Seria perigoso?

Percebeu então que estava deitado na rua, para onde fora jogado como se não passasse de um saco de lixo.

 

                   1934 E se um sonho de esperança te surgir

As bailarinas, roliças e cintilantes, saltitavam no palco de um lado para o outro, acompanhando a batida frenética da orquestra naquele espectáculo feérico de música, luz, cor e movimento; em uníssono, sem parecerem sequer ofegantes, mantendo até o sorriso reluzente à maneira do show biz, cantavam em coro, as pernas movidas em maravilhosa sincro­nia pelo ritmo infernal da dança.

São mulheres nuas, saxofones a gritar; São girls, são pernas De bailarinas, bem ritmadas, a marcar; São projectores que nos inundam de luz, Um mundo irreal que nos seduz.

"Fantástico!", gritou um rapaz de cabelos negros ao ouvi­do de Luís. "Já viste?"

Sem tirar os olhos do palco, Luís assentiu.

"Até parece uma fita americana."

"Olha-me para estes jogos de pés!", exclamou o amigo, entusiasmado. "O Fred Astaire e a Ginger Rogers não fariam melhor!"

"Ó Fernando, também não vale a pena exagerares..."

O ar vibrava, a multidão exultava e os saltos das bailarinas ressoavam no soalho do palco com batidas surdas. As palmas irrompiam amiúde pela sala e os olhos dos homens seguiam com mal disfarçada gula as formas arredondadas das bailarinas. Não eram tão altas nem tão elegantes como as das fitas americanas; porém, debaixo dos focos de luz e apertadas naqueles vestidos resplandecentes que lhes deixavam as coxas à mostra, pareciam do melhor que por aquelas paragens tinha passado.

As bailarinas enchiam a sala, mas Luís não as seguia a todas. Tinha a atenção presa numa em particular, a terceira a contar da esquerda, aquela que ostentava uma vistosa cabeleira loira platinada, à Jean Harlow. Não tinha a certeza de que fosse a mais bonita. Vendo bem, não era de certeza; a alta do meio e a primeira da direita, a das mamas grandes, pareciam-lhe mais jeitosas, verdadeiras mulheraças, mas a sua loira chegava bem para fazer um figuraço junto dos colegas da faculdade.

"Bravo!", ululou Fernando quando o número acabou. "Bra-vooo!"

As palmas ribombavam pelo recinto em revoadas enquanto as girls abandonavam o palco.

"Já viste?", perguntou Luís, girando uma olhada pela sala. "Isto está apinhado!"

"Porque pensas que tive de comprar os bilhetes com uma semana de antecedência? Tem estado assim desde a estreia..."

Uma nova actriz pisou o palco e o público reagiu de imediato com uma monumental ovação.

"Quem gosta da Betty Boop?", perguntou ela com uma expressão maliciosa.

A sala encheu-se de gritos e assobios; pela reacção tornava-se evidente que a actriz era a sua favorita. A recém-chegada tinha cabelo negro liso, a franja cortada numa linha sobre os olhos, à condessa de Noailles, e a cara bolachuda e marota, feições distintivas mesmo à distância. Não havia no país quem não a reconhecesse, dos palcos ou dos filmes.

"A Beatriz Costa é o máximo!", observou Fernando, esfuziante.

Luís acompanhava a ovação, batendo palmas entusiásticas.

"Sem dúvida", concordou. "Não precisa de dizer uma graça para ser engraçada."

"Acho-lhe piada ao-corte do cabelo."

"Parece a Louise Brooks, já viste?"

"Tens razão", anuiu Fernando, fazendo mentalmente a comparação. Inclinou a cabeça em direcção a Luís. "A esta é que gostavas de ferrar o dente, hem?"

"A quem? À Beatriz Costa?"

"Não, à Greta Garbo. Claro que à Beatriz Costa, meu palerma!"

Luís abanou a cabeça.

"Nem pensar. É engraçadinha, mas é mais do género bibelot. Não lhe fazia nada, a não ser pedir-lhe que me fizesse rir."

"Pois, pois. Está-se mesmo a ver..."

Derramando talento no palco, a actriz da franja interpretava as suas deixas com convicção.

"Viva o Santo António milagreiro!", exclamou. "E ele... o homem dos meus sonhos!"

Um burburinho divertido percorreu a sala. O duplo sentido daquele nome era inconfundível; todos tinham entendido o trocadilho e prepararam-se para o que aí vinha.

"Isto é propaganda barata ao Salazar", observou Luís com acidez.

"E merecida!", atalhou Fernando, ignorando o desagrado do amigo. "O Toninho é o nosso Santo António milagreiro!"

"Ora!" Fez uma expressão irónica. "Se ele fosse tão modesto quanto apregoa, de certeza que não aprovaria."

"Pois, se calhar não..."

"Não sejas parvo!", exclamou o transmontano. "Se a censura e o Ferro deixaram passar, é porque ele gosta, não te parece?"

"Sei lá. Se calhar é um excesso de zelo do António Ferro. Não te esqueças de que o Toninho não acompanha o teatro ligeiro do Parque Mayer nem se interessa por estas coisas mais mundanas. Provavelmente nem sequer sabe que a peça existe."

Luís riu-se sem vontade.

"Achas mesmo? Então esta peça chama-se Santo António e ele não havia de saber?"

"Está bem, o Toninho lê no jornal que está o Santo António no Parque Mayer. E depois?"

"E depois?", admirou-se Luís. "Olha lá, a que Santo António pensas tu que o título se refere?"

Fernando hesitou, reflectindo na resposta à pergunta. Realmente, como acreditar que tal título não fosse entendido pelo Presidente do Ministério, Restaurador das Finanças e do Crédito de Portugal, quando o via todas as manhãs espetado na página de espectáculos dos jornais? No mínimo faria algumas perguntas. Além do mais, toda a gente sabia que o simples enunciar do nome António nas telas do cinema ou nos palcos de teatro tinha um duplo sentido inequívoco. Como poderia Salazar ignorar tal coisa?

"Seja", concedeu. "Admitamos que ele sabe."

Luís riu-se.

"Ele sabe? Provavelmente foi ele que aprovou a ideia!"

"Ena, onde é que isso já vai!"

"Achas? Tu reparaste quando é que o Santo António estreou?"

"No mês passado."

"Mais exactamente a 27 de Maio, meu caro. A data diz-te alguma coisa?"

O rosto do amigo iluminou-se.

"A véspera dos oito anos da revolução."

"Achas que foi coincidência?"

O amigo encolheu os ombros.

"Pois sim, admitamos que se tratou de uma operação montada para assinalar o aniversário da revolução nacional. E depois? Qual é o mál?"

"Se gostares de propaganda política camuflada, nenhum. Só estou a dizer é que estas tiradas não se coadunam com o ar pretensamente austero do Salazar."

"Está na moda, Luís. Não vês o que se passa na Alemanha e na Itália? É tudo assim, à grande!"

"Pois, mas o Salazar anda para aí a apregoar virtudes diferentes. A modéstia, a humildade... essas coisas."

"O Toninho acompanha os tempos", observou Fernando. "Além do mais, ser modesto não significa ser tolo."

"Chiu", lançou uma espectadora na fila de trás, empertigada. "Deixem ouvir!"

No palco começou uma nova canção, que Betty Boop, aliás Beatriz Costa, apresentara com o título de o homem dos meus sonhos.

O que o escudo nos reforça, Sem um grito, sem um berro, O que não tem quem o torça,

Pois tem tanta, tanta força, Que dobrou o próprio Ferro.

A sala ia desabando com a cascalhada de gargalhadas.

As luzes, a cor, os cenários, os vestidos deslumbrantes, a decoração, as melodias, os chistes, os movimentos graciosos, o coro de risos, os aplausos, o entusiasmo, a alegria, os assobios, tudo desapareceu como num truque de ilusionismo no instante em que os espectadores começaram a abandonar a sala do Avenida, mas os efeitos da emoção perduravam ainda, e não era caso para menos.

Não havia em Lisboa peça mais divertida que o Santo António, pelo que não admira que à saída, quando os espectadores jorravam já sobre o átrio da casa de espectáculos, os comentários se cruzassem como confetti em dia de festa. "A Beatriz Costa estava o máximo!", opinava um. "Viste o número em que ela fez de Branca Pitosga?", perguntava uma rapariga. "Giríssimo!" Uma terceira voz defendeu que "a Irene Izidro também estava muito bem", enquanto alguém à direita dizia que o melhor "foi o Vasco Santana a fazer de Zé Ralaço". Só a recordação desse número suscitou sorrisos, o que levou alguém a defender não haver dúvidas de que "o Vasco encontra-se em forma", ideia que mereceu a aprovação geral: "Grande artista!"

Ainda no átrio, Luís e Fernando separaram-se da multidão que saía do edifício para desembocar no passeio da Avenida da Liberdade e esgueiraram-se por uma porta lateral reservada aos artistas, mergulhando assim no labirinto de um novo e fascinante mundo: os bastidores do Teatro Avenida.

A harmonia deu então lugar a um caos atordoante. Para decepção dos dois visitantes, tudo o que se ocultava na parte

de trás da cena era confuso, desarranjado, feio até; davam-se gritos, ouviam-se ordens, os rostos desfaziam-se em suor, a maquilhagem desbotava, as raparigas moviam-se sem propósito aparente, os estafetas corriam de um lado para o outro, os homens davam voltas ou conversavam, as portas abriam-se e fechavam-se com estrondo.

"Onde é?", perguntou Fernando, que seguia o amigo.

"Ali à frente."

Cruzaram-se no caminho com a actriz da franja à condessa de Noailles e Luís teve vontade de lhe falar. No entanto, conteve-se; pensou que toda a gente teria decerto o mesmo desejo quando com ela se cruzava, dava a impressão de que a actriz lhe era familiar, mas sabia que isso não passava de ilusão. Além disso, ficou desconcertado com a expressão que ela trazia no rosto; já não era a cara divertida que apenas alguns instantes antes vira brilhar em palco, mas um semblante inesperadamente opaco, os olhos cansados e o corpo molenga, era quase uma da manhã e tinha acabado o segundo espectáculo da noite.

"Viste?", lançou Fernando num sopro, olhando para trás, mas não querendo que a actriz o escutasse. "Era a Beatriz Costa!"

"Eu sei", devolveu Luís num tom blasé, como se cruzar-se com as grandes estrelas fosse nele hábito antigo.

"Caramba! É baixinha!"

"E roliça."

Fernando observou o rabo que desaparecia ao fundo do corredor e riu-se nervosamente.

"A ti não te escapa nada."

O barulho recrudesceu e, ao dobrar da esquina, deram com uma sala cheia de bailarinas e uma nuvem cinzenta a pairar-lhes por cima. Fernando travou o amigo e ficou a observalas, os olhos arregalados de tão escandalizados.

"Elas estão a fumar!"

Luís encolheu os ombros, mantendo um ar indiferente, como se tudo aquilo fosse normal.

"E então?!"

"Mas... são mulheres!"

"São artistas", corrigiu-o.

"Está bem, são artistas. Mas não deixam de ser mulheres." Hesitou. "Ou deixam?"

"As artistas são diferentes. Não te esqueças de que este é o grupo das girls do Avenida. Elas estão na vanguarda."

"Qual vanguarda? Agora uma mulher fingir-se de homem é vanguarda?"

"Pelos vistos é."

"Porra!", exclamou Fernando, abanando a cabeça. "Só falta vê-las a mijarem de pé!"

Os dois amigos retomaram a marcha e aproximaram-se do molhe de bailarinas. Quando viram os estranhos a caminhar na sua direcção, as raparigas calaram-se e olharam-nos com suspeição.

"Dá licença?", disse Luís a nenhuma em particular, tentan­do enfiar-se no meio do grupo para chegar à porta.

Contudo, elas mantiveram a fileira cerrada, bloqueando--lhe ostensivamente a passagem.

"O malandro, onde pensas que vais?", disparou uma delas, de cigarro entre os dedos e expressão altiva.

"Vou ali falar com uma amiga."

"Isso é o que dizem todos!"

As bailarinas riram-se.

"A sério", insistiu Luís, enrubescendo. "E a Margarida."

A do cigarro fez um sinal a uma das parceiras, que acto contínuo deu um passo atrás e meteu a cabeça pela porta.

"Ó Guida!"

Ouviu-se uma voz lá de dentro.

"O que é?"

"Estão aqui dois marialvas à tua procura!"

Uma cabeça loira-quase-branca apareceu de imediato à porta e abriu-se num sorriso quando reconheceu o homem que a olhava para lá da barreira de bailarinas.

"Luís!", exclamou com entusiasmo. Deitou-se sobre os ombros das colegas, esticou o pescoço e beijou-o nos lábios. "Entra!"

O rapaz olhou para o molhe de raparigas que lhe obstruía a passagem.

"Dão licença?"

"Olha lá, ó Guida", disse a do cigarro, sem se mexer. "Nós somos avançadas, mas não exageremos! Onde é que já se viu os homens entrarem assim nos camarins das raparigas?"

"O Paula, não sejas implicativa! Isto não são camarins nenhuns, como tu bem sabes. Que eu saiba, estamos a desmaquilhar-nos, não estamos a despir-nos."

"São camarins de maquillage e são de senhoras, é a mesma coisa! Os homens aqui não podem entrar, muito menos quando vêm com propósitos amorosos."

"Olha-me esta!", soltou Margarida, pondo as mãos nas ancas. "Se o meu namorado me quer visitar na maquillage, quem és tu para dizer que ele não pode entrar?"

"Não nos camarins onde estão todas as outras!" A do cigarro voltou as costas e soltou uma baforada de fumo, num gesto négligé, à grande diva. "Agora se arranjares um camarim só teu e o quiseres lá meter, é contigo..."

"Chiça, Guida!", zombou uma outra bailarina, os olhos a saltitarem entre Fernando e Luís. "Aguentas com dois ao mesmo tempo?"

Risada no grupo.

"Sua ordinária!", devolveu Margarida, ofendida. "Sua... sua..."

Vendo a discussão subir inesperadamente de tom, Luís achou melhor intervir.

"Calma, calma!", pediu, erguendo as mãos num gesto pacificador. "Nós não vamos entrar, fiquem descansadas." Fixou Margarida, que tinha o cabelo loiro num desalinho. "Olha, Guida, esperamos-te lá fora no café, está bem?"

"Qual deles?"

"O Lisboa."

Antes que ela dissesse mais alguma coisa, deram os dois meia volta e regressaram pelo mesmo caminho, agora com Luís atrás. Quando se sentiu suficientemente à distância, Fernando virou a cabeça e riu-se para o amigo.

"Que galinhas."

 

A rapariga de cabelo castanho curto e formas redondas entrou no Café Lisboa e estacou por um momento à porta enquanto varria a sala com o olhar. Voaram de imediato piropos e gracejos. "Olha a girl!", disse uma voz; "Belo naco!", adiantou outra; "Vem aqui ao papá", acrescentou uma terceira. Habituada já aos barulhentos ajuntamentos masculinos, cena comum depois dos espectáculos, quando os excitados machos se apinhavam nas tascas e cafés do parque para ver as girls saírem dos teatros, a corista ignorou as atenções com que os homens nesse instante ruidosamente a presenteavam e, depois de localizar Luís a uma mesa do canto, dirigiu-se-lhe com passo decidido, embora sempre me­neando o corpo, consciente do efeito que produzia.

"Olá, querido!", lançou a desconhecida.

Os dois amigos petiscavam tremoços regados a imperial e Fernando estranhou a familiaridade com que a insinuante recém-chegada se dirigiu ao seu parceiro de mesa.

"Então, minha flor?", cumprimentou-a Luís.

A rapariga inclinou-se sobre ele, sentou-se-lhe ao colo, enlaçou-o com um braço e beijou-o nos lábios. Fernando observou a cena boquiaberto, os olhos arregalados, o copo da cerveja parado a caminho da boca. Não queria acreditar no que via; era já a segunda girl que se agarrava ao amigo no espaço de apenas meia hora. A segunda. Achou tudo aquilo inesperado e permaneceu um longo instante imóvel de pasmo, sem saber o que pensar.

Quando Luís descolou do beijo, fez um gesto na direcção do amigo, que por esta altura se remexia desconfortavelmente e olhava em todas as direcções excepto na dos seus dois companheiros de mesa.

"Apresento-te o Fernando."

Ela endireitou-se, afogueada, e lançou-lhe um sorriso rápido.

"Olá."

O rapaz levantou-se e estendeu-lhe a mão.

"Muito prazer."

A morena apenas lhe dedicou uma fugaz atenção. Girou o pescoço pelo café e fixou a atenção numa portinha lá ao fundo. Acto contínuo, deu um salto e largou o colo de Luís.

"Vou ali à casinha", anunciou, partindo em direcção ao quarto de banho. "Já venho."

Os dois amigos observaram-na a deslizar entre a multidão do café, o rabo a bambolear de um lado para o outro, incorrigivelmente provocadora, o corpo curvilíneo como uma viola. Parecia uma starlette a desfilar na passerelle. Dessa vez não se ouviram piropos, todos tinham visto que o homem dela também se encontrava no café e havia que respeitá-lo; o que não os impediu, todavia, de a espreitar de esguelha com mal disfarçada avidez.

Só quando a corista se fechou no quarto de banho é que Fernando voltou a cara para o amigo.

"Nunca vi nenhum gajo como tu", exclamou. "É impressionante! Absolutamente incrível!"

Luís observou-o com orgulho dissimulado, fingindo-se desentendido.

"Que queres dizer com isso?"

"Que quero dizer?!" Fez um gesto em direcção ao quarto de banho das senhoras. "Olha lá, quem é aquela?"

"É a minha nova namorada."

"A tua nova...", interrompeu-se, incapaz de pronunciar a palavra. Abanou a cabeça. "Isto contado, ninguém acre­dita."

"O quê?"

Fernando engoliu um trago de imperial.

"Quando te conheci na faculdade arranjaste logo uma namorada." Suprimiu um arroto. "Era a Luísa, não era?"

"Não, a Lulu foi a segunda. A primeira foi a São."

"Ah, pois. Despachaste primeiro a Conceição, depois a Luísa, depois a Deolinda. Ainda te vi com a Teresa..."

"A seguir à Deolinda foi a Belinha."

Fernando riu-se.

"Olha, essa escapou-me."

"Conheci-a num concurso da rainha da beleza das Socieda­des de Recreio."

"Ah, bom." Desenhou pontinhos no ar. "Pronto, foi a Deolinda, depois essa Nelinha do concurso de beleza..."

"Belinha."

"... depois a Teresa... e hoje convidaste-me aqui ao Parque Mayer para conhecer a tua nova namorada."

Fez-se um curto silêncio. Fernando aguardava que o amigo apresentasse uma justificação para aquilo a que assistira

instantes antes. Mas Luís pareceu não perceber a dúvida e encolheu interrogadoramente os ombros.

"E depois?"

"E depois?" Fernando voltou a abanar a cabeça, incrédulo. "E depois?" Apontou de novo para o quarto de banho das senhoras. "E depois apareceu mais esta."

"Sim, e então? E a minha nova namorada."

"Olha lá, quantas namoradas tens tu?"

"Bem... uma."

Fernando pousou os ombros na mesinha redonda e incli-nou-se na direcção do amigo.

"Ai é? E a girl loiraça que eu vi há bocado aos pulos no Santo António e que te espetou um grande chocho nos camarins? Não me vais dizer que era tua prima..."

"É essa a minha namorada."

Fernando respirou fundo, sem compreender.

"Mau! Qual é afinal a tua nova namorada? A girl loira ou... ou esta que apareceu agora aqui?"

Foi a vez de Luís soltar uma gargalhada.

"Esta é a loira!", exclamou.

"Qual loira? Esta tem o cabelo castanho, que eu bem vi!"

"E a mesma, palerma. Tu achas que os cabelos da girl que viste há pouco são mesmo loiros? Aquilo era uma peruca, meu grande camelo! A gaja que entrou agora aqui é a girl, mas sem a peruca! Percebeste? É a Guida."

O amigo abriu a boca, entendendo tudo.

"Ah! Esta é a loira!"

"Claro."

"Desculpa, não tinha percebido." Riu-se e recostou-se na cadeira, já descontraído. "Caramba, fico mais aliviado!"

"Pensavas que eu andava com duas girls ao mesmo tempo?"

"Pois... vejo-te há bocado com uma loira e agora com uma morena, o que querias que eu pensasse?" Trincou uns tremoços. "Além do mais, se queres que te diga fico mais descansado por descobrir que a loira afinal não é loira."

"Porquê?"

"Ora, porquê? Quando a apontaste no palco e disseste que ela era a tua nova namorada, pensei: mas onde é que este gajo arranja tipas deste calibre? Porra, o cabrão anda com a Mae West! Até fiquei complexado, caraças!"

O café enchera-se de homens acabados de sair dos espectáculos do Parque Mayer e fervilhava de animação. O ambiente era barulhento e uma nuvem de fumo pairava sobre as cabeças dos clientes, a maior parte de pé, com um cigarro e um copo na mão, à espera de um lugar numa mesa.

Os dois amigos ainda se estavam a rir no seu canto quando Margarida reapareceu vinda do quarto de banho e atravessou a multidão. Sempre desinibida, voltou a sentar-se ao colo de Luís; parecia uma menina traquina, daquelas que nunca param quietas.

"Aqui o Fernando pensou que eu tinha duas namoradas", anunciou-lhe Luís, provocando o amigo.

"Quais duas namoradas?", espantou-se a rapariga, interrompendo as carícias para lhe lançar um olhar desconfiado. "Há outra?"

"Pois há." Pôs-lhe o dedo na ponta do nariz. "És tu."

"Mas quem é a outra?"

"És tu, já disse." Apontou para Fernando. "Ele viu-te loira há bocado, viu-te morena agora e achou que eram moças diferentes. Até perguntou se podia ficar com a loira..."

"Não perguntei nada", corrigiu o amigo.

Margarida olhou para Fernando e simulou um ar ofendido.

"Oh! Não gostas de mim?"

"Bem...", atrapalhou-se ele, desconcertado com a pergunta. "Quer dizer..."

A rapariga endireitou a cabeça e fitou o namorado.

"Ou és aqui como o Luís, que esconde um segredo?"

"Qual segredo? Não digas disparates..."

"Ai escondes, escondes", cantarolou ela. Virou de novo a cara para Fernando. "Conheces o segredo dele?"

"Eu não."

"Chama-se Amélia."

"Cala-te!", cortou Luís com abrupta rispidez. "Cala-te!"

Fez-se um silêncio embaraçado entre os três. Mas a animação prosseguia em redor, ignorando a súbita tensão naquela mesa do canto, e isso de algum modo contribuiu para desanuviar o ambiente.

"Amélia!", cantarolou Margarida, como se o estivesse a testar. "Amélia!"

"Oh, vá lá", disse Luís, já mais macio, corrigindo a aspereza com que instantes antes a mandara calar. "Não venhas outra vez com essa conversa."

Vendo o amigo inopinadamente embaraçado, e passada que parecia a sua súbita irritação, Fernando deixou-se arrastar pela curiosidade e não deixou cair o assunto.

"Amélia?", perguntou, dirigindo-se a Margarida. "Quem é essa Amélia?"

"Isso queria eu saber", devolveu ela. "Nunca ouviste falar nela?"

"Nunca."

"Deve ser uma antiga namorada."

"Bem, eu conheci outras namoradas dele, mas confesso que jamais ouvi falar nessa."

Margarida apertou a bochecha do namorado.

"Aqui o Luizinho não me conta nada." Fez beicinho. "É mau!" Inclinou-se para trás, na direcção de Fernando, e sussur­rou muito alto: "Essa Amélia é segredo!"

"Não há segredo nenhum", repetiu Luís com ar de enfado.

"Então porque não me contas?"

"Porque não há nada para contar." Fez um gesto na direcção dos outros dois. "Calem-se lá com isso."

Mas Fernando não fazia tenções de mudar de tema e insistiu com Margarida.

"Como é que você soube dessa Amélia?"

A rapariga corou.

"Foi num momento... bem, uma altura em que estávamos os dois a sós. Aqui o Luís, em vez de me chamar Guida, no auge do... enfim, chamou-me Amélia." Fez uma expressão ofendida. "Amélia, veja lá! É de uma pessoa ficar sentida, não é?" Voltou a fitar o namorado. "Mas afinal quem é essa Amélia?"

"Porra!", exaltou-se de novo Luís, batendo ruidosamente com o copo da cerveja na mesa. "Vocês calam-se com isso ou não?"

"Pronto, pronto", murmurou Margarida, afagando-lhe o cabelo castanho-claro. "O menino não gosta de falar disto, pois não?"

Abraçou-o e beijou-o no rosto e nos lábios. Luís permaneceu um instante hirto, parecia uma estátua de bronze; mas logo o metal começou a derreter, o calor que a rapariga derramava sobre ele fazia gradualmente o seu efeito.

Sentindo-se a mais naquela cena melosa, Fernando pousou o copo de cerveja, deitou umas moedas sobre a mesa e levantou-se.

"Bem, vou-me embora."

Envolvidos um no outro, os dois namorados nem o ouviram. Ficaram sós na mesa, entregues aos lábios do outro, expostos aos olhares do café.

"Mas que deboche vem a ser este?"

Luís e Margarida descolaram-se e ergueram os olhos, surpreendidos com o tom agreste da interrupção. Um homem baixo e magro, de cabelo negro brilhante puxado para trás, observava-os com severidade.

"Perdão?", perguntou Luís, ajeitando os cabelos que lhe tinham descaído para a testa.

"Estamos num lugar público, por amor de Deus", rosnou o desconhecido. "Haja maneiras!"

"Como?"

"Isto aqui não é a bandalheira de outros tempos, ouviu? Onde pensa o cavalheiro que está? Aqui há respeito! Aqui há ordem!" Ergueu o dedo, parecia que pregava no púlpito. "E para haver respeito e ordem é preciso primeiro haver decoro e decência!"

Seria um padre?, interrogou-se Luís. Mas ali, no Parque Mayer? O que faria um padre naquele antro de pecado?

"Quem é o senhor?"

"Chamo-me Aniceto Silva, mas decerto que o meu nome não lhe diz nada", apresentou-se o homem, muito dono de si. "O que interessa é que sou um bom português, homem honrado e cumpridor, amante da ordem pública. E o que o cavalheiro e esta... esta menina estão a fazer, aqui à vista de toda a gente, é altamente reprovável." De novo o dedo no ar, para sublinhar a apreciação. "Altamente reprovável!"

"Mas o que tem o senhor a ver com isso?"

"Tenho o mesmo que tem qualquer pessoa que se vê confrontada com atentados à moral e aos bons costumes. As pessoas têm de saber comportar-se em público, que diabo! E quando não sabem alguém tem de lhes chamar a atenção."

Luís sentiu a irritação crescer dentro de si. Aquela conversa humilhava-o diante da namorada. Quem era aquele tipo para se lhe dirigir naquele tom? Com quem pensava ele que estava a falar? Não havia dúvidas, precisava de o pôr na ordem.

"Desculpe, mas o que eu faço é um problema meu e só meu", disse, empertigando-se. "Ninguém tem nada a ver com isso e não lhe admito homilias, percebeu?"

"O cavalheiro admitirá o que tiver de ouvir pelo seu comportamento à vista de todos", devolveu Aniceto Silva sem vacilar. Parecia um mestre-escola. "O que o cavalheiro faz no recato do seu lar é lá consigo e com a sua... a sua senhora. Mas aqui, perante toda a gente, mesmo que seja no Parque Mayer, o que o cavalheiro faz é um problema de toda a gente, percebeu? De toda a gente."

"Eu sou livre de me comportar como muito bem entender e o senhor não tem nada a ver com isso."

O homem soltou um riso trocista.

"Não me venha falar do que é ou não livre de fazer. O que sabe o cavalheiro sobre o que é ser livre? Será livre de andar nu na rua? Será livre de se envolver em cenas... em cenas destas? A sua liberdade tem o limite do respeito, da moral e do interesse comum, percebeu?"

"Mas que descaramento!", ripostou Luís. "O senhor viu--me a prejudicar alguém?"

Alguns dos fregueses começaram a aperceber-se da altercação e olhavam com crescente interesse na direcção da mesa.

"Prejudica a raça!"

"Qual raça?"

O homem fez um gesto que englobou toda a gente no café.

"A nossa, claro! Somos uma raça admirável, meu caro cavalheiro. Parecemos pequenos e insignificantes, não parecemos? Ninguém dá nada por nós, aqui perdidos neste recanto

da Europa. Mas a verdade é que descobrimos dois terços do mundo e erguemos um império que nem os Alemães alguma vez sonharam ter. Um império que chegou aos cinco continentes! É obra, que diabo!" O tom tornou-se sarcástico. "Acha que foi com liberdade que fizemos tudo isso? Acha?" Abanou a cabeça com violência e levantou a voz, galvanizado. "Não foi!" Ergueu o punho fechado e fez força. "Foi com disciplina. Sem ela, nada seríamos, percebeu? Somos um povo grande, mas é uma grandeza que nasce da ordem que nos impomos a nós contra a nossa própria natureza." "De que raio está o senhor a falar?"

"Estou a falar dos traços da nossa raça! Estou a falar deste povo afável, esperto, hospitaleiro, trabalhador, com um gran­de espírito de sacrifício. Estou a falar de tudo aquilo que nos está na massa do sangue. O problema é que sofremos de excesso de sentimentalismo e temos um horror absoluto a disciplina. Há demasiado individualismo e défice de tenacida­de nas nossas gentes. Daí que precisemos de ordem, de respeito e de bons usos e costumes." Indicou Luís e Margarida com a mão. "É por isso que é preciso combater esta vossa tendência para o abandalhamento. Porque o..."

"Desculpe?", atalhou o transmontano, definitivamente ir­ritado com o inopinado sermão. "Bandalho é o senhor! Como se atreve a vir aqui incomodar-nos com essa conversa para tolos?"

"Como?" O homem ruborizou, a irritação deixando-o em ponto de fervura. Espetou o corpo para a frente, a expressão muito indignada e os olhos injectados. "O que me chamou o cavalheiro?"

Vendo o desconhecido inclinar-se agressivamente sobre si, Luís ergueu-se da mesa e encostou a cara à cara do outro.

"Chamei-lhe o que o senhor me chamou. Porquê?"

Os clientes do café acercaram-se da mesa, na expectativa de um confronto, e um deles, de ar mais janota, com um fato à Príncipe de Gales, acorreu a intervir.

"Calma! Calma!", disse ele, tentando interpor-se e separar Luís do outro. "Não se exaltem, vamos lá." Fez um gesto na direcção de Margarida, que tremia no seu lugar. "Estão aqui senhoras, haja maneiras."

Apesar dos esforços para os separar, os dois mantiveram-se de rosto colado, olhando-se furiosamente.

"Já vi que o cavalheiro é do reviralho", rosnou Aniceto Silva.

"Se calhar sou. E depois?"

"O reviralho é a escória deste país."

"Talvez estejamos a precisar de alguma escória, quem sabe? Pode ser a maneira de correr com alguns camelos que por aqui andam a meter o nariz onde não são chamados."

Aniceto descolou por fim a cara, mirou Luís com uma expressão de desprezo e apontou-lhe o dedo.

"Eu, se fosse a si, tinha cuidado, ouviu? Muito cuidado. Quem sabe se um dia não o apanho na esquina..."

Deu meia volta e afastou-se, desaparecendo por entre a multidão ávida de escândalo. Perante este abandono, o silêncio expectante no café logo se tornou burburinho e depois algazarra; a diversão tinha terminado e tudo regressava ao normal. Os clientes voltaram aos copos e às conversas, soltan­do ocasionais piropos às girls que iam passando a conta-gotas lá fora; dizia-se que as melhores eram as espanholas, ou pelo menos era essa a moda, pelo que todos se mantinham atentos à passagem das coristas, um olho na conversa e outro na rua, não fosse aparecer uma andaluza ou uma asturiana e perderem esses grandes espectáculos da natureza.

"Eu, no vosso caso, evitava voltar a cruzar-me com o Aniceto", soltou uma voz junto à mesa.

Ainda a recuperar da tensão vivida momentos antes, o casal de namorados ergueu os olhos e viu um homem encostado à parede a fumar, como se estivesse ali a aguardar que um lugar vagasse para se sentar. Era o desconhecido do fato à Príncipe de Gales.

"Porquê? O que tem ele?"

O homem aspirou o cigarro, fez uma pausa deliberada e soltou pelas narinas uma nuvem cinzenta que lhe ficou a pairar diante do rosto; parecia neblina a flutuar numa noite de bruma.

"É um tipo perigoso."

Atirou o cigarro para o chão, esmagou-o com o pé e foi-se embora.

 

O grupo de rapazes irrompeu pelo átrio da Escola Superior de Medicina Veterinária com um ar nervoso que de imediato atraiu a atenção de Luís. Alguns vinham vestidos de fato--macaco, como se fossem operários, e outros apresentavam-se desarranjados, com as camisas fora das calças ou camisolas de lã remendadas nos cotovelos.

Um dos recém-chegados apareceu com um banco nas mãos, que claramente fora buscar a uma sala de aulas, e pousou-o no centro do átrio. Um rapaz de fato-macaco empoleirou-se no banco, o corpo elevando-se sobre o mar de cabeças.

"Atenção, pessoal! Atenção!"

A voz forte ressoou pela escola e em poucos instantes o átrio encheu-se de curiosos.

"O que é isto?", perguntou Fernando, abeirando-se de Luís. "Quem é este tipo?"

"Não sei. Chegaram aqui e o gajo pôs-se em cima do banco. Deixa ouvir."

O rapaz do banco fez sinal aos estudantes de que se aproximassem e então começou a falar.

"Camaradas!", gritou, erguendo os braços. "Camaradas, prestem atenção!" Aguardou um instante, enquanto se ou­viam uns chius e o burburinho amainava, deixando o silêncio impor-se. "Camaradas, a liberdade está em perigo! A ditadura quer transformar os Portugueses num bando de cordeiros! Nós somos estudantes! Nós somos o futuro do país! Temos de garantir os direitos do proletariado e do campesinato! Como estudantes, somos a vanguarda da classe operária! Temos um dever de rebelião e vamos revoltar-nos! Não votem nestas eleições! Não colaborem na farsa! Abaixo a ditadura!"

Algumas vozes no átrio ecoaram a palavra de ordem.

"Abaixo a ditadura!"

Nesse instante foi desfraldada uma grande bandeira vermelha que todos reconheceram como a do Partido Comunista.

"Viva a liberdade! Viva o marxismo-leninismo! Viva o camarada Estaline!"

Soaram alguns "vivas", mas a maior parte dos estudantes observava a cena com estupefacção. Alguns dos jovens que faziam parte do grupo recém-chegado começaram a distribuir folhetos pelo átrio e Luís foi um dos que receberam um panfleto. O papel tinha uma frase à cabeça a dizer "Abaixo o Fascismo!" e uma foice e martelo estampadas a vermelho no canto, com a sigla FJCP.

"Larga isso", disse Fernando, puxando o braço do amigo. "Vamos embora daqui."

"Não. Deixa ver o que eles querem."

"Estás doido?" Apontou para um activista plantado à porta. "Repara naquele. Não vês o que o gajo tem metido nas calças?"

Luís olhou e viu a coronha de uma pistola a espreitar do cinto.

"Os tipos estão armados."

"Anda, vamos embora."

Antes que Luís respondesse, ouviu-se um apito e instalou-se de imediato a confusão. O rapaz do banco saltou para o chão, a bandeira foi recolhida e os outros puseram-se a abrir alas por entre a assistência.

"Polícia!", exclamou uma voz junto à porta da entrada. "Vem aí a polícia!"

O grito pareceu despertar a multidão da letargia. Desataram todos a espalhar-se pelo átrio, procurando sair do caminho do que quer que aí viesse, e Luís deu consigo a correr pelo corredor da escola ao lado de um rapaz de fato-macaco.

No meio daquela balbúrdia vislumbrou fardas a cruzarem a porta ao fundo do corredor e a entrarem no edifício. Olhou para o rapaz do fato-macaco e constatou que ele não tinha avistado a polícia. Pior do que isso, corria para ela como uma lebre em direcção à armadilha. Num gesto quase instintivo, agarrou-o pelo braço e travou-o.

"Por aqui!", disse.

"Larga-me!", gritou o rapaz, tentando sacudir a mão. "Larga-me, porra!"

"Por aqui", repetiu Luís.

Foi nesse momento que o militante comunista viu as fardas e compreendeu o gesto do rapaz que o travava. Sem dizer uma palavra, mudou de direcção e seguiu Luís, confiando nele como um cego confia no seu cão.

Meteram por uma porta lateral e foram dar a um laboratório. Ziguezaguearam por entre as mesas e Luís guiou o rapaz de fato-macaco para um compartimento anexo, onde se encontravam jaulas com pequenos animais. Dirigiu-se a uma porta e abriu-a. Era uma passagem de serviço que ligava o edifício ao pátio interior arborizado, um belo jardim naturalista, à maneira inglesa. O estudante empurrou o activista para fora e indicou um ponto à esquerda.

"Estás a ver aqueles portões ali? É a saída das traseiras."

O rapaz do fato-macaco apertou-lhe a mão.

"Obrigado, camarada", disse. "Sou o Zé Pereira."

"Luís Afonso."

O fugitivo deu uns passos, mas logo travou e olhou de relance para trás, como se lhe tivesse ocorrido uma ideia.

"Olha lá, não te queres juntar à malta?"

Ignorando a pergunta, Luís apontou com insistência para o portão.

"Foge!"

A Escola Superior de Medicina Veterinária era aquilo que os amantes das palavras pomposas designavam por instituição vetusta. Nascera em 1830 com o nome de Real Escola de Veterinária, mas deixara de ser Real poucas décadas depois, talvez num acto de premonição do fim da monarquia. Era já uma instituição centenária, mas funcionava agora em instalações acabadas de erguer na Rua Gomes Freire. Na verdade, o edifício era tão recente que o cheiro a tinta fresca ainda vagueava pelo ar, apesar de nesse dia o aroma dominante ser o da insurreição.

"O Luís, tu estás parvo ou quê?"

Desciam a escadaria da escola, onde a calma já havia regressado, e Fernando acabara de ouvir o relato do sucedido na fuga.

"O que queres? Tinha de o safar."

"Mas o gajo era comunista, caraças!"

"Qual é o problema?"

Fernando revirou os olhos.

"Deves estar a gozar comigo", disse. "Para que é que o ajudaste?"

"Para o salvar."

"Mas porquê? És comunista?"

"Que eu saiba não."

"Então porque ajudaste o gajo?"

Luís meditou na pergunta.

"Se queres que te diga, não me entendo com os ares autoritários a que estes senhores se dão."

"Quem?"

"O regime."

"Mas que mal te fez o regime, caraças?"

O transmontano parou no pátio e seguiu com o olhar o balouçar insinuante das ancas de duas raparigas que subiam as escadas a par.

"Gosto de fazer o que me dá na real gana, sem ter de prestar contas a ninguém."

"Não é disso que estamos a falar. O que está aqui em causa é teres ajudado um comunista a escapar à polícia, quando o que devias ter feito era entregá-lo!"

"Não, o que está aqui em causa não é eu ajudar um gajo a safar-se à polícia. O que está aqui em causa é que eu não posso dar um beijo no café à minha namorada!"

"Ah, sim!", exclamou Fernando com uma expressão de sarcasmo. "Logo vi que era isso! Muito me admiraria se não houvesse saias por trás desta história."

"Não é uma questão de saias. É uma questão de liberdade, de poder fazer o que me apetece sem ter de estar a prestar contas a uns idiotas com a mania que são donos da verdade."

"Estás a referir-te ao tipo que te chateou ontem no Parque Mayer?"

"Estou a referir-me a tudo."

"Olha lá, como era em Trás-os-Montes? Também fazias com as miúdas o que te dava na real gana?"

"Claro que não. Foi por isso mesmo que vim para Lisboa."

"Julguei que tivesses vindo para ser veterinário..."

"Também. Junto o útil ao agradável, qual é o mal?"

Saíram do edifício e viraram à direita na direcção do jardim da Praça José Fontana. Sentaram-se num banco junto ao coreto, por entre as tílias, a apanhar sol e a apreciar as raparigas que saíam do Liceu Camões. A manhã permanecia fresca, mas a luz do dia temperava-lhes o rosto com uma brasinha deliciosa.

"Ainda não me contaste como são as coisas na tua terra."

Luís encolheu os ombros.

"Não há nada para contar. Aquilo é província, vive-se com a mentalidade do século xix e está tudo dito."

"Passeias na rua aos beijos às gajas?"

O transmontano riu-se.

"Deves estar a gozar! Em Trás-os-Montes anda tudo muito controladinho, o que pensas tu?" Indicou uma estudante do liceu que acabava de passar diante deles, apressada. "Olha, para ver as miúdas... só às escondidas. As mães delas são do pior que há, nem imaginas. Se descobrem que há namorico é uma chatice."

"Estás a ver? Afinal em Lisboa não estamos tão mal como isso..."

"Em comparação com a província, claro que não. Era o que mais faltava! Lá na parvónia as mães dispõem da vida das filhas como muito bem entendem. Chegam a ser elas quem decide com quem vão as miúdas casar..."

"Estás a brincar."

Luís respirou fundo.

"Quem me dera", disse, subitamente cansado. "Fiquei farto daquilo e enquanto não vim para aqui não descansei. Prefiro estar em Lisboa à minha vontade e fazer o que muito bem entender, sem ter ninguém a chatear-me, a andar lá a aturar aquela mentalidade. É por isso que não tolero estes anormais com a mania de se meterem onde não são chamados, estás a perceber? Eles que vão para o inferno!"

O amigo fez um gesto conciliador.

"Está bem, eu entendo isso. Mas tu também tens de com­preender que os tempos mudaram, Luís. Lisboa pode não ser a província, mas mesmo assim é preciso ter tino. Isto não é como antigamente."

"Se calhar antigamente é que estava bem."

"Qual quê! Não havia autoridade nenhuma, era uma desordem que nem te passa pela cabeça."

"E achas que é à bofetada que se impõe a ordem?"

"Se calhar é como dizia o outro: umas bofetadas bem dadas e na hora certa não fazem mal a ninguém. Podem até ter efeitos profilácticos."

"Isso, vai citando o Salazar."

"O Toninho tem razão, o que queres? Se os gajos desta manhã tivessem sido apanhados, levavam um sustozinho na esquadra e nunca mais se metiam noutra. Não há nada como uns bofes no momento mais oportuno."

"Dizes isso porque nunca os levaste."

"Não os levei porque nunca precisei. Sabes, Luís, o Estado tem de ter autoridade, e se o respeitarmos não haverá problemas." Mudou de voz, assumindo um tom declamativo. "Que o Estado seja tão forte que não precise de ser violento."

"Não me venhas com mais máximas de Salazar."

"Porque não? Se há ordem neste país, a ele o devemos."

"Não preciso deste tipo de ordem."

"Não me vais dizer que achas que é melhor vivermos na anarquia..."

"Na anarquia, não digo. Mas há de certeza coisas melhores do que isto. Passámos de um extremo ao outro, quando se calhar é possível encontrar um equilíbrio mais satisfatório."

Fernando fez um estalido com a língua, exasperado.

"Francamente!", exclamou. "Já viste o que aconteceria se o Toninho não estivesse cá?"

"Era uma maravilha. Para começar, sentíamo-nos livres."

"Não sejas parvo."

"Não me digas que gostas de ter estes idiotas à perna, sempre a dizerem-te o que podes e o que não podes fazer, como te deves comportar e vestir, o que deves dizer e o que não podes pensar, a avisarem-te de que tenhas sempre muito respeitinho, a impedirem-te de dar beijos à tua namorada na rua, a perseguirem-te por lançares uns vivas à liberdade, não podes isto, não podes aquilo..."

"Claro que não gosto. Mas já pensaste que este é o preço a pagar para que o país vá para a frente?"

"Balelas! Olha para a América, olha para a Inglaterra. Achas que eles precisam de palermas a dizerem-lhes o que as pessoas podem ou não fazer, dizer e pensar? E isso porventura impede-os de terem ordem e disciplina? Que eu saiba, são países onde o progresso existe sem ser necessário recorrer a estes ditadorzinhos de pacotilha."

O amigo olhou em redor, aflito, procurando certificar-se de que ninguém ouvira.

"Chiu", pediu. "Estás doido ou quê? Fala mais baixo. Não lhe chames isso..."

"Não lhe chamo o quê? Ditadorzinho de pacotilha?"

"Cala-te."

"Então vou dizer outra vez: ditador..."

"Assim vou-me embora!"

"...zinho de pacotilha."

Num assomo de irritação, Fernando ergueu-se do banco.

"Pronto, vou-me embora!"

Com uma gargalhada, Luís agarrou no amigo pela cintura e puxou-o para trás.

"Tem calma. Ninguém ouviu."

"Deixa-me!", insistiu o outro, tentando soltar-se. "Não estou para aturar isto!"

"Está bem, não volto a portar-me mal..."

Após uma breve hesitação, uma mera fracção de segundo em que avaliou a sinceridade da promessa, Fernando voltou a sentar-se.

"Ouve, Luís", disse, apontando-lhe o dedo em jeito de aviso. "Nós não estamos na América nem na Inglaterra."

"Infelizmente."

"Não digas disparates. O tipo de regime que eles têm não se coaduna com o nosso temperamento latino, que é desordeiro e individualista por natureza, como muito bem sabes. Tu viste a confusão que por aqui deu a democracia no tempo da república? E estás a ver a confusão que ela anda agora a dar em Espanha? É isso que queres?"

"De que te queixas? Em Espanha quem manda são as direitas."

"Mas há eleições. Quem me garante a mim que daqui a uns tempos as esquerdas não voltam ao poleiro?"

"Há sempre a Rússia", lembrou-se Luís. "Já viste a Rús­sia? Lá quem manda é o povo! A ditadura não é de um iluminado, como aqui, mas do proletariado. Não será isso bem melhor?"

"Também não estamos na Rússia. E ainda bem! Do que nos precisamos é de ordem, Luís. Não de ilusões! O exemplo

a seguir não é o da América, nem o da Inglaterra, nem o de Espanha, e muito menos o da Rússia. O exemplo a seguir é o da Itália, percebeste? Até os Alemães, que de parvos não têm nada, já o entenderam. Somos um império e um império não se mantém com capitalistas que só pensam no seu dinheiro ou com comunistas que só querem roubá-lo e esbanjá-lo e que nem sequer Deus respeitam! Um império ergue-se e mantém--se com sacrifício e com patriotismo. E para que haja sacrifício e patriotismo é evidentemente preciso ordem."

"Não me venhas com histórias."

"Não são histórias, Luís. É a pura verdade. Tu estavas lá a viver nas berças e se calhar não te apercebeste da rebaldaria que andava por este Portugal fora." Indicou o casario em redor da Escola Superior de Veterinária. "Mas eu nasci e vivi aqui em Lisboa e sei muito bem do que estou a falar. Sabes porque me irrito por te ver a ajudar aqueles comunistas? Porque desde miúdo que ando a ver esta cidade em pé de guerra. Volta e meia os malucos lá pegam em armas e põem--se aos tiros e à canhoada e a malta que se aguente. E estes gajos que aqui vieram esta manhã representam o regresso a esse estado de coisas."

"Está bem, admito que as coisas antigamente fossem com­plicadas. Mas não há partos fáceis, pois não? A república podia não ser perfeita e permitir abusos, mas sempre era melhor do que isto."

"Isso dizes tu! Olha, eu tinha dez anos quando foi a Noite Sangrenta e não me esqueço da cara do meu pai ao chegar a casa. Vinha lívido, absolutamente horrorizado. Tinha assistido ao fuzilamento do Machado Santos ali no Intendente e ele próprio nem sabia como conseguira escapar à..."

"Qual Machado Santos? O herói da república?"

"Esse mesmo."

Luís franziu o sobrolho, interessado.

"O teu pai assistiu ao fuzilamento do Machado Santos? Nunca me tinhas contado essa."

"É verdade."

"Mas como?"

"Não te lembras das eleições de 1921?"

"Estás a gozar comigo? Eu era um fedelho, sabia lá o que eram eleições! Além do mais, em Trás-os-Montes passava-nos tudo ao lado."

"Aqui em Lisboa garanto-te que nada nos passava desper­cebido, sobretudo por causa da rebaldaria que se instalou com as eleições." Hesitou. "Instalou, é uma forma de dizer. Na verdade, a rebaldaria tinha começado muito tempo antes."

"Adiante, adiante."'

"Bem, o Partido Liberal ganhou as eleições de 1921 e os republicanos radicais, esses grandes democratas, não gostaram. Uns meses depois puseram a GNR e a Marinha em acção e deram ordem de caça ao primeiro-ministro, que era então o... como é que ele se chamava? O coiso... o Granjo, o José Granjo."

"António", corrigiu Luís. "António Granjo."

"Ah, então conheces a história."

"Estás parvo ou quê? Toda a gente conhece a história da Noite Sangrenta. O que eu nunca tinha conhecido era uma pessoa que tivesse assistido a isso."

"Assistir, assistir... não assisti. Mas ouvi." Apontou para o outro lado da praça. "Na altura morávamos ao pé da Aveni­das da Liberdade e lembro-me de acordar com a artilharia pesada que a GNR instalou na Rotunda." Bateu duas palmas ruidosas, a simular detonações. "Pam! Pam! Até a casa tremeu. A minha mãe manteve-nos fechados no quarto e não nos deixou ver nada, mas o meu pai, que é militar, recebeu

imediatamente ordens para se apresentar ao serviço. Mandaram-no acompanhar o Machado Santos, que tinha a cabeça a prémio."

"Porquê?"

"Sei lá. Não gostavam dele, acho eu."

"E depois?"

"Os tipos revoltaram-se contra o governo saído das elei­ções e quiseram derrubar o Granjo, não foi? O que eles fizeram foi impor ao presidente da República uma série de nomes para o novo executivo, mas o problema é que o presidente se recusou a nomeá-los. Foi então que os radicais organizaram um comboio para ir buscar uma data de personalidades que se lhes opunham para as entregar à GNR, aos marinheiros e à multidão. Apanharam assim o primeiro-ministro e abateram-no como a um cão, a tiro e a golpes de espada. Depois mataram o comandante Maia e o comandante Silva."

"E o teu pai?"

"Ia com o Machado Santos quando a camioneta em que seguiam teve uma avaria no Intendente. A turba apanhou o Machado Santos e fuzilou-o logo ali. O meu pai ainda hoje não sabe como conseguiu fugir."

Luís coçou o queixo.

"Não há dúvida", concedeu. "Matar o primeiro-ministro e o herói da república foi um episódio chato, não se pode negar. Mas não temos agora de andar todos a pagar por esse disparate cometido há quinze anos, ou temos?"

"Há treze anos", corrigiu Fernando. "Foi em 1921."

"Não interessa. Já passou tempo suficiente."

"Ó Luís, tu achas mesmo que o que aconteceu na Noite Sangrenta foi um episódio isolado? Não foi! Não te esqueças de que tudo isso veio numa sequência de revoltas e mais

revoltas. A instabilidade naquele tempo era permanente, os governos não se aguentavam, à mínima coisa saía toda a gente à rua aos tiros, a economia estava num estado calamitoso... olha, daquela maneira não podíamos continuar a viver. Portugal estava transformado numa autêntica república de anedota."

"E agora? Não me vais dizer que chegámos ao paraíso..."

Fernando suspirou.

"A malta está cansada, Luís. Por que motivo pensas que o Toninho goza de tanto apoio popular? O pessoal está fartinho de confusão, quer é ficar descansado e viver a sua vidinha em paz." Meneou as sobrancelhas, condescendente. "Está bem, às vezes cometem-se uns abusos, a liberdade até podia ser um pouquinho maior, admito que sim. Mas esse é um pequeno preço a pagar pelo descanso que agora temos. Tu achas que há alguém de bom senso que queira voltar às trapalhadas da república?"

"Por acaso há."

"Quem?"

Luís indicou o edifício bege da Escola Superior de Medici­na Veterinária, mesmo à direita, uma grande bandeira pendurada no mastro da varanda sobre a entrada principal.

"Aqui na faculdade, por exemplo. Aqueles tipos que vimos esta manhã acham que devíamos derrubar este regime."

"Oh, o que sabem eles da vida? São uns idealistas, uns sonhadores, não têm noção de nada."

"E tu? Tens?"

"Tenho mais do que a maioria. Possuo sobretudo memória e se há coisa que sei é que não quero voltar ao antigamente."

"Falas como se, com Salazar, a paz se tivesse instalado no país. Mas isso não é verdade. Quando cheguei aqui a Lisboa dei logo de caras com a confusão. Lembro-me perfeitamente

dos atentados à bomba que para aí houve e de ver os republi­canos e os sindicalistas a manifestarem-se e a andarem constantemente à porrada com a polícia." Indicou de novo a fachada da escola. "Até aqui tivemos confusão, ou não te lembras das bulhas que houve entre a malta?"

Esta pergunta foi acolhida por Fernando com um sorriso.

"Então não me lembro?", retorquiu. "Eu próprio dei uns valentes estalos a um gajo do segundo ano, como é que ele se chama? O... o Armando. Aquele palerma andou a..."

"Achas que isso é que é a paz e a ordem do Estado Novo?"

"Nem queiras comparar."

"Ah, já não te convém a comparação..."

"São coisas diferentes."

"Dizes tu."

"Desculpa, mas não podes pegar numa meia dúzia de protestos envolvendo sindicalistas e estudantes e a partir daí dizer que a contestação ao regime é generalizada. Não é. O pessoal está farto de confusão e apoia o Toninho."

"Então e a tropa?"

"O que tem a tropa?"

"A tropa que saiu à rua para derrubar o regime", disse Luís. "Foi há apenas três anos, não é há tanto tempo como isso..."

"O quê? Estás a referir-te à revolta de 1931?"

"Pois, já eu cá andava em Veterinária."

"Ora, um piquenique! E bem útil, aliás! Esses idiotas permitiram ao Toninho perceber quem estava com ele e quem estava contra ele. Se não fosse essa sedição de imbecis, se calhar ele não tinha podido passar o exército e a função pública a pente fino e livrar-se dos indesejáveis." Soprou para a mão. "Pffff! Adeus reviralho! Foi o canto do cisne desses cretinos."

"Qual canto do cisne? Então e a greve geral? Que eu saiba foi há apenas..." Fez um rápido cálculo mental, com a ajuda dos dedos. "Cinco meses... menos do que isso."

"Outro fracasso! A excepção da Marinha Grande, no resto do país os reviralhistas falharam por completo."

"Não estás a perceber, Fernando. O que está em causa não é o fracasso da greve. É evidente que, com toda esta repressão, ela ia fracassar. O que eu estou a tentar dizer é que, e ao contrário do que tu defendes, o reviralhismo não acabou. Não te esqueças de que a greve geral é muito recente. E não te esqueças do que vimos ainda hoje aqui na escola. Isso mostra que a oposição está bem viva."

"Estava, Luís. Estava. Olha o que aconteceu ao professor Sousa. Foi dos poucos que aderiram à greve e o que lhe sucedeu? Acabou por ser despedido. Nunca mais poderá trabalhar para o Estado."

"Foi muito corajoso."

"Foi muito parvo, queres tu dizer. Achas que o resto do pessoal lhe quer seguir o exemplo?"

Luís quase saltou.

"Então estás a dar-me razão!"

"Em quê?"

"Se mais pessoas não aderiram, não foi porque defendem o regime. Foi porque têm medo. As pessoas têm medo de dizer o que pensam! E quando dizem têm logo a polícia à perna, como se viu ainda esta manhã. Vivemos num país de medo."

"Essa conversa só é válida para meia dúzia de intelectuais com a mania que sabem tudo." Indicou um transeunte que passava naquele momento. "O Zé Pagode está-se nas tintas para isso. O fracasso da greve geral é a prova de que o povo está cansado de confusão e quer é ordem e paz. Ninguém se esquece de que quem pôs o país nos eixos foi o Toninho. Sem ele, isto não ia a lado nenhum."

"Quem fez fracassar a greve geral não foi o povo, foi a polícia e o exército."

"O povo está com o Toninho, Luís. Além disso, não te esqueças de que a ditadura até tem sido mais democrática do que a república."

O amigo soltou uma gargalhada sem humor.

"Não me faças rir!"

"Achas graça? Mas é verdade!"

"A ditadura? Mais democrática do que a república? Em quê?"

"No sufrágio universal, por exemplo. Os republicanos eram uns grandes democratas, não eram? Mas depois montaram um esquema em que só uma pequeníssima parte da população podia votar. Ou seja, os deputados não representavam o povo, mas um punhado de idiotas pertencentes à elite! Além do mais, nem sequer deram direito de voto às mulheres! Eram progressistas que se fartavam, mas não deixavam as mulheres votar! Foi preciso vir o Toninho para que as mulheres tivessem o direito de voto! Só no ano passado é que as mulheres foram pela primeira vez às urnas em Portugal, ou já te esqueceste?"

"As eleições vão ser este ano."

"Estou a referir-me ao referendo da Constituição, idiota. O Toninho pô-las a votar, coisa que esses grandes democratas da república foram incapazes de fazer."

"Lá teriam as suas razões..."

Foi a vez de ser Fernando a rir-se.

"Eles tinham era medo de perder, é o que era!", exclamou. "Sabiam que, se deixassem os camponeses votar, os monárquicos ganhavam! E sabiam que, se deixassem as mulheres votar, a

Igreja Católica ganhava! Logo, tudo fizeram para controlar o voto e só deixaram votar aqueles que eram pela república! Achas que isso é democracia? Só votam aqueles que votam por nós?"

"Naquele tempo, ao menos, podia-se dizer o que se queria."

"Ah, sim! Falar era com eles, lá nisso ninguém os batia. O problema era quando chegava a hora de fazer coisas. Ui! Aí é que era uma chatice!"

"Desculpa lá, mas quem te ouvir e não souber como as coisas realmente são ainda vai pensar que Salazar é um democrata."

"Este ano vamos ter eleições."

"Eleições da treta! Só cinco por cento das pessoas é que podem votar e há apenas um partido inscrito! Achas que isto são eleições que se façam? É tudo uma fantochada!"

"Ora! Que eu saiba o Toninho nunca fingiu ser um democrata, antes pelo contrário. Além do mais, a União Nacional não é um partido. A Constituição não permite a existência de partidos."

"Claro que a União Nacional é um partido, só que lhe dão outro nome. Mas não enganam ninguém."

"Ouve, Luís", disse Fernando num tom paternal. "Os partidos só servem para dividir e a nação não precisa deles para nada. Portugal é um todo, é um corpo único. Os partidos só representam os interesses de determinado grupo e servem apenas para fragmentar o país. Se os deixarmos tomar conta do regime podem levar Portugal à ruína, como se viu com a república."

"Se assim é, por que razão se dão ao trabalho de organizar eleições? Hã? Não era mais fácil governar sem estar a montar esta palhaçada toda?"

"Sim, tens razão", concordou Fernando. "Mas acho que é uma maneira de legitimar o governo aos olhos do mundo.

Além do mais, vai servindo para ver onde está a oposição, não é verdade? A polícia agradece e actualiza os ficheiros..."

Aquele era um assunto em que nunca se iriam entender, concluiu Luís. Não fazia sentido prosseguirem a conversa, não iam chegar a sítio nenhum. Apercebendo-se das horas, levantou-se e deu umas palmadas nas nádegas para sacudir o pó que ficara colado às calças.

"Portanto, achas que agora é que é bom, não é?"

"Não sei se é bom, mas as coisas estão pelo menos muito melhor do que estavam."

"Então fica-te com a tua que eu fico-me com a minha", disse, em jeito de conclusão, pegando na pasta.

"Onde vais?"

Luís abriu a pasta e retirou um papelinho com o horário.

"Para as aulas, para onde haveria de ir?"

O amigo rolou os olhos e levantou-se a custo.

"Que chatice", resmungou, voltando o rosto para o Sol para gozar os últimos raios. "Estava-se aqui tão bem..."

"Pois é, mas há que trabalhar."

"Temos Parasitologia, não temos?"

Luís ia já em direcção à porta de entrada do edifício e abanou a cabeça, corrigindo o amigo.

"Zootecnia Tropical."

 

Apesar de as conversas políticas serem recorrentes, os dois nunca se chegaram a entender sobre o Estado Novo. Os argumentos de Fernando faziam sentido à sua maneira, os factos históricos que apresentava eram verdadeiros, mas mesmo assim havia algo que deixava Luís desconfortável. Não sabia o quê, mas o transmontano queria mais do que aquilo que via à volta. Devia haver melhor do que a mão de ferro sob a qual o país asfixiava. Era uma questão de procurar.

Procurar foi coisa que ele não deixou de fazer desde o dia em que compreendeu que Amélia nunca seria sua. A partir desse momento a sua vida tornou-se uma permanente busca, mas durante muito tempo não percebeu o que procurava. Procurava, e era tudo. Mudou-se para Lisboa alegando que ia tirar Veterinária, mas foi na verdade procurar. Procurou mulheres, procurou livros, procurou ideias. Sabia que tinha de encontrar algo, mas não percebia exactamente o quê.

Até que um dia, já perto do final do curso em Lisboa, entendeu finalmente. Não foi um grande acontecimento que trouxe a luz que lhe iluminou a consciência. Tratou-se antes de um pequeno incidente, uma verdadeira minudência, coisa tão ridiculamente trivial que jamais a guardaria na memória não fosse a poderosa cadeia de raciocínios que tal insignificância desencadeou, como um minúsculo calhau cuja simples deslocação acidental inicia a devastadora avalancha que tudo muda.

Acontece que, numa noite de Junho inesperadamente fresca, tinha ido ao São Luís Cine ver um filme com Fernando, como era costume às sextas-feiras. A fita dessa noite foi Uma Loira para Três, película americana que atraíra grande clientela masculina, ou não fosse a estrela principal quem era.

"Esta Mae West é um espectáculo", observou Luís no elegante foyer do mais chie dos cinematógrafos de Lisboa.

"Mulher endiabrada", concordou Fernando, os olhos a passearem pelas lápides de mármore com cartazes a exibirem os rostos dos grandes nomes do cinema. "Mas confesso que aprecio mais a Garbo. É uma beleza mais graciosa."

Saíram à rua e Luís reparou nas películas brancas que se espalhavam pelos ombros do casaco do amigo.

"Olha lá, estás cheio de caspa."

Fernando espreitou os ombros.

"Pois estou", constatou. Tentou sacudir as películas com os dedos. "Comecei agora a usar o Petróleo Hahn. Vamos lá a ver se faz efeito."

"Isso é mesmo bom?"

"Sei lá."

Luís aproximou o nariz do cabelo do amigo e inspirou duas vezes.

"Pelo menos não cheira a estrume."

Iam assim a conversar pela rua, brincando um com o outro e discutindo mundanidades, quando, depois de descerem o Chiado e ao chegarem ao Rossio, Luís reparou numa mulher andrajosa encolhida numa manta e sentada sobre folhas de jornal estendidas no passeio. Era já noite cerrada e a mulher tinha encostada ao peito a cabeça suja de uma criança adormecida, por certo a filha, e ao lado encontrava-se um cesto de vime com um bebé embrulhado lá dentro. Talvez aquela mãe nem fosse mulher, apenas uma rapariga que a vida prematuramente envelhecera, mas algo na sua fisionomia atraiu a atenção do estudante. Tratava-se de qualquer coisa de indefinível, talvez do fardo da miséria que lhe pesava nos olhos, quiçá do alívio que buscava no braço estendido aos transeuntes.

"Dê-me uma esmolinha, por amor de Deus."

Também a ele a pedinte dirigiu o braço suplicante. Em vez de a ignorar ou de lhe lançar umas moedas de caridade, porém, Luís ficou momentaneamente a contemplá-la. Já tinha visto muitos pedintes nas ruas, Lisboa estava cheia deles, sujos, andrajosos e deformados, mas percebeu que era a primeira vez que os via mesmo. Via-os.

Foi o momento da epifania. Numa explosão de consciência, Luís caiu em si e compreendeu por fim o verdadeiro desígnio da sua busca. A justiça. Como se tivesse sido atingido por um raio de luz, teve nesse mesmo instante a noção de que, desde que Amélia lhe havia sido retirada, a sua vida se tinha transformado numa demanda contra a iniquidade. A rapariga estendia-lhe o braço a implorar uma esmola e era como se fosse ele de braço estendido à vida a clamar por justiça.

Percebeu então que carregava dentro de si a revolta reprimida pelo amor que lhe havia sido roubado e alimentava uma sede louca, sôfrega, dolorosa, de justiça. Não queria vingança, não era disso que se tratava; procurava apenas um sentido de justiça. Vendo bem, considerou de imediato, se calhar nem era tanto a justiça o que verdadeiramente o atormentava, mas a injustiça. Incomodava-o a incerteza da vida, a arbitrariedade da sorte, a perversidade do destino. Com a imagem da pedinte esfarrapada diante dele, como um pequeno alçapão que se abriu e revelou o mais fundo de si mesmo, descobriu que o que realmente buscava era um sentido para a dor que não abrandava, e essa busca traduzia-se na demanda de um significado para a injustiça da existência.

"Então?", impacientou-se Fernando. "Vens?"

Quase automaticamente, Luís recomeçou a andar, mas sempre perdido nos seus pensamentos.

Murmurou algo imperceptível, tão incompreensível que levou o amigo a chegar-se mais a ele.

"O quê?"

Repetiu mais alto:

"Viver é sofrer."

Essa foi uma frase que lhe martelou na cabeça desde esse dia. Viver é sofrer. Essa verdade eterna estava-lhe presente na carne havia muito mais tempo do que imaginava. Qual a justiça de ter perdido os pais ainda em criança? Qual a justiça da miséria e da fome da pedinte com o braço estendido? Qual a justiça de lhe ter sido roubada a paixão do liceu? A infelicidade e o sofrimento, a perda e a dor, o que eram senão a regra deste mundo? Onde havia justiça no tormento?

Não. Em definitivo, viver é sofrer. Nós é que procuramos instituir alguma justiça onde ela por si mesma não existe. Tudo é injusto, o sofrimento está em toda a parte, a dor é permanente. Bastava, aliás, olhar para os animais que estudava na Escola Superior de Veterinária e perceber o seu modo de vida na natureza, vê-los a caçar, a devorar, a fugir e a ser devorados. Era afinal a isso que se resumia a sua existência, um permanente estado de horror e de flagelo em que a cada dia, a cada hora, a cada segundo, milhões de seres eram despedaçados e comidos vivos para sustentar uma única refei­ção de outros seres igualmente acossados por outros predadores. Disfarçada pela máscara cintilante da civilização, que polia a realidade com o talento lustroso de um ilusionista, a vida dos homens não se afigurava em boa verdade muito diferente da dos animais, como se podia descobrir no rosto e na vida daquela mulher que vira no Rossio. Para ela não havia animatógrafo nem poesia, apenas a mão estendida para sobre­viver a esse dia.

Começou a convencer-se de que o mundo não tinha significado nem propósito; existia simplesmente, com desprendimento, alheio ao espantoso sofrimento que as suas regras implacáveis ditavam. Cada vida é uma tragédia imensa para quem a vive, mas cruelmente insignificante à escala do universo. Os seres vivos sofrem e o mundo mostra-se estranho a esse sofrimento, encarando-o com indiferença, aceitando-o como fazendo parte da ordem natural das coisas, como se a dor fosse o motor da existência, a iniquidade o seu preço. Cada desejo procura satisfação, cada obstáculo gera sofrimento. Mesmo a satisfação de um desejo apenas suscita felicidade temporária; logo a seguir vem um novo desejo, de novo travado por mais um obstáculo, o que significa que a existência é sempre luta, o sofrimento omnipresente, a felicidade efémera. Caramba!, pensou enquanto cogitava sombriamente sobre a tragédia da vida. Olhem para Dante, que não teve qualquer dificuldade em imaginar o Inferno... Bastou-lhe ir buscar os elementos que já existiam no mundo e, pimba!, eis o Inferno! Mas, oh!, quando chegou a hora de conceber o Céu, aí é que foi o cabo dos trabalhos! O grande poeta não

teve artes para imaginar o Céu porque não havia neste mundo nada que o inspirasse para conceber o Paraíso! Nada! Meu Deus, não será isso a prova mais completa de que nós afinal vivemos no Inferno?

A descoberta deixou-o deprimido. Vivemos no Inferno! Se o sofrimento é a regra da vida, então Luís precisava de compreender a razão de estar ali, de respirar, de viver para o momento seguinte. Por que motivo era o mundo internamente doloroso? Qual o desígnio superior que o tormento servia? Qual o propósito de tanta dor?

Apercebeu-se de que, durante todos esses anos, fora essa busca que alimentara a sua convicção de que era necessária uma mudança. Mudança de Bragança para Lisboa, mudança de mulheres, mudança de políticos. Luís passou a viver obcecado pela mudança. Mudança significava mudar o presente, mas mudá-lo em busca de algo melhor. E o que era o melhor? Para seu pasmo, tomou consciência de que, para si, o melhor não era o futuro, nunca fora o futuro, mas o passado. O passado. E o passado eram os passeios matinais de mão dada até ao liceu de Bragança, o passado eram os olhos cor de mel por que se apaixonara anos antes, o passado era ela. Ela. Ah, como tinha saudades de Amélia!

No rescaldo da sua epifania no Rossio compreendeu gradualmente que todas as mulheres que tivera, todos os corpos que gozara, todas as almas que amara não eram mais do que representações do seu único amor. Mudava de mulheres por­que nenhuma era Amélia e no seu íntimo não aceitava que o seu verdadeiro amor estava agora para sempre perdido. Pensava nela todos os dias, embora cada vez mais pausadamente. Dava-lhe a impressão de que o tempo a ia arrumando com cuidado num canto, como se fosse uma fera cuja fúria não queria atiçar; mas o facto é que a dor permanecia lá. Talvez não tão dilacerante como no princípio; transformara-se já em sofrimento crónico, era como o murmúrio do vento a fustigar as folhas, uma chama que ardia em lume brando, um estrépito de fundo que não explodia mas também não morria. Vivia em negação, recusava-se a aceitar as consequências da perda da sua amada, evitava o luto que talvez o libertasse. Tudo o resto, a passagem para Lisboa, a oposição ao regime, o desejo insaciável de mudança, mais não eram do que sequelas do pecado original.

Sublimava essa ferida primordial de várias maneiras, e a forma como encarava o mundo em que vivia era uma delas. Queria mudar o presente e, em política, o que era o presente senão Salazar? Tornava-se, pois, necessário mudar Salazar. Era ele o rosto do estado das coisas, o símbolo da mentalidade que lhe levara Amélia. Mudando Salazar, mudava-se o pensamento tacanho e atrasado em que o país vivia, mas mudavam-se sobretudo os comportamentos mesquinhos e retrógrados que o haviam separado da eterna namorada. E talvez acabasse a dor. Talvez.

Ao perceber tudo isto, Luís chegou à conclusão de que teria de se pacificar. Precisava de aceitar a realidade, não podia continuar assim, urgia sarar aquela profunda ferida. A única maneira de o conseguir era fazer o que sempre evitara.

O luto por Amélia.

Quando Luís decidiu ir para Lisboa, os maiores obstáculos aos seus projectos foram levantados justamente pela pessoa que tinha a responsabilidade de lhe dar o dinheiro para os financiar, a tia Maria. Mulher prudente e desconfiada, ou não fosse transmontana até ao tutano, não se cansou de sublinhar a sinistra fama das fêmeas de Lisboa, umas vamps e coisas piores. Dizia ela que, entre as raparigas e senhoras de Alfândiga da Fé, se sabia de ciência certa que a maior parte das lisboetas eram fadistas de reputação duvidosa, sinuosas sereias que, entoando traiçoeiros cânticos hipnóticos, eram capazes de desviar do bom caminho o mais sério dos moços, pois então não se descobrira que nem certos padres resistiam à terrível tentação quando frequentavam os antros de pecado na capital?

As lisboetas revelaram-se, pelo menos à primeira vista, à altura de tão questionáveis pergaminhos. Com o seu olhar limpo e porte elegante, Luís chegou à grande cidade e conquistou-as de enfiada. Volta e meia descartava uma e ia buscar outra; os admiradores chamavam-lhe o Casanova de Bragança, mas os detractores conheciam-no por Matadouro de Virtuosas. Quem o acompanhava de perto sabia que as lisboetas não eram na realidade as debochadas sereias comedoras de homens de que tanto se falava em Trás-os-Montes; o verdadeiro predador à solta por Lisboa era antes aquele transmontano de falas meigas e expressão sedutora, o rapaz que as coleccionava como se fossem borboletas.

Luís estudou Veterinária dividindo os livros com os lençóis. Saltava da aula de Zootecnia Geral para a cama de Helena, dissecava um coelho em Anatomia Patológica e espremia um seio de Jacinta em anatomia feminina, discutia políti­ca com o amigo Fernando e amor com a varina Alzira.

"Há aqui muita matéria para estudar", gostava de dizer, um olho no livro, o outro na cachopa que se sentara ao lado.

Por vezes as aulas eram interrompidas por inspectores do regime, homens soturnos e de expressão severa que vinham lembrar aos futuros veterinários o seu dever de fazer "tudo pela Nação e nada contra a Nação", aforismo então muito em voga; e apontavam para a reforma agrária efectuada poucos anos antes na vizinha Espanha como prova final dos

perigos decorrentes dos aventureirismos loucos e irresponsáveis dos comunistas espanhóis, os mesmos sob cuja asa, não se esqueciam de sublinhar, os reviralhistas portugueses agora viviam.

Noutros casos os visitantes eram meros propagandistas, figuras menores como aquele gordinho do Ministério das Colónias que um dia foi à sala convencer os alunos a assinarem um papel para se candidatarem a lugares no império colonial, "terra de oportunidades", ou a senhora de óculos e com ar de galinha depenada que apareceu à cata de talentos para uma das inúmeras iniciativas promovidas pelo Secretariado da Propaganda Nacional, a instituição recentemente criada com a missão de dinamizar o trabalho dos modernos criadores portugueses-na promoção do regime.

Com o amigo Fernando ia às películas mais picantes dos cinematógrafos de Lisboa. Todas as sextas-feiras saíam para ver as novidades, sendo que as maiores sensações eram em geral as do Tivoli. Aí assistiram a O Sinal da Cruz, fita que a publicidade dizia ser "da Roma antiga, das bacanais e das multidões nos circos"; está-se mesmo a ver que a referência às "bacanais" lhes excitou a imaginação, mas o filme nada mostrou que estivesse à altura de tão sensacional propaganda. Quem não os decepcionou foi Marlene Dietrich, a nova diva loura que, no mesmo Tivoli, apareceu nua numa cena do filme Cântico dos Cânticos, em que posava como modelo de um escultor. É certo que a nudez se anunciou fugaz e aquele grande mulheraço nunca chegou a cumprir a promessa de tudo revelar, mas, caramba!, já era bem mais do que as pernas, sempre belas é certo, que a actriz exibia profusamente em todos os seus filmes.

Os momentos solitários eram vividos à volta dos livros. As frequentes visitas às livrarias do Chiado puseram-no em contacto com a literatura e a poesia do seu tempo, mais os gigantes da filosofia. Conheceu poetas e escritores que frequentavam aquelas bandas, alguns dos quais partilharam consigo à mesa do café as suas prosas e poemas mais secretos; estudou Kant à luz do dia e Marx à chama do petromax, mas os seus preferidos revelaram-se Kierkegaard e sobretudo Scho-penhauer; e, claro, leu os clássicos da literatura, como Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, os seus favoritos; mas também se esforçou por entender os mais difíceis José Régio ou Raul Brandão. Entre os estrangeiros, as suas preferências iam para os franceses, em particular Zola, Flaubert e Hugo, mais os poemas de Baudelaire e Rimbaud, com deambulações não muito bem sucedidas por Proust ou Gide.

O seu predilecto era, todavia, o Romances sans paroles, embalado ao ritmo das nostálgicas palavras de Verlaine, que recitava em voz alta quando se achava sozinho no seu quarto da Rua Luciano Cordeiro:

II pleure sans raison Dans ce coeur qui s'écoeure. Quoi! Nulle trahison?... Ce deuil est sans raison.

Cest bien la pire peine De ne savoir pourquoi Sans amour et sans haine Mon coeur a tant de peine.

As saudades de Amélia, vibrantes na melancólica letra dos poemas que devorava à noite antes de desligar o petromax, corroíam-no até à exaustão. Refugiava-se na lembrança do olhar dourado de Amélia e a memória dos dias em que

passeara a namorada até ao liceu de Bragança pesava-lhe no peito, estreitava-o com tanta força que quase sufocava. Que feliz tinha sido em cada segundo que vivera naqueles inesquecíveis passeios até às aulas! Como fora estúpido em não perceber que a simples viagem da esquina da casa dela até à porta da sala onde a deixava era a coisa mais bonita que fizera na vida! O que daria para tudo viver outra vez...

Revivia esses instantes mágicos sempre que se achava sozinho à noite e era nas crises mais agudas de saudade, quando a nostalgia o apertava tanto que até se sentia asfixiar, que tomava a decisão fatídica. Tratava-se de uma decisão de paixão, como era natural nestas coisas, mas assumida com uma frieza arrepiante: ia deixar aquela e procurar outra namorada. As amantes não passavam de páginas de um livro, existiam para serem fruídas; lia-as com deleite e depois de consumidas passava à seguinte, atrás de uma vinha sempre outra. Talvez a seguinte lhe trouxesse o que procurava, o poema que lhe escapava em cada livro, o final em que culminaria toda a história: a magia perdida de Amélia.

A cerimónia de entrega dos diplomas foi, como sempre, muito concorrida. A ocasião era solene e celebrava um dos mais importantes momentos na vida de uma pessoa. O calor antecipava o Verão de 1935, com a luz quente a vestir a cidade de cor, o sol inclemente a arrancar reflexos do vidro das janelas e a semear tonalidades laranja nas telhas do vasto casario que ondulava pelas colinas.

Apesar do ar abafado, o anfiteatro da Escola Superior de Medicina Veterinária encheu-se de gente. Os professores e os recém-licenciados compareceram em peso, como seria de esperar; mas a maioria dos presentes eram os familiares dos homenageados, parte dos quais viera da província de propósito para a grande ocasião.

"Puf!", soltou a tia Maria, abanando o leque com movimentos lânguidos. "Isto está insuportável! Por amor de Deus, não haverá nenhuma alma caridosa que abra as janelas?"

Luís estudou os vidros por onde espreitava a luz do dia.

"Elas já se encontram abertas, tia. O problema é que o dia está quente. Além do mais, o ar não circula, é uma maçada."

A tia sorriu e apertou-lhe a bochecha.

"Oh, não faz mal!", disse, conformada. "O que interessa é que estamos os dois aqui e tu já és doutor."

"Só quando me entregarem o diploma..."

"Oh, isso é uma formalidade. Tu passaste, não passaste?"

"Claro."

"Então já és doutor! Um verdadeiro home-de-recibo!" Entrelaçou as mãos. "Ai se os teus pais aqui estivessem... o orgulho que eles teriam!" Suspirou e voltou a abanar o leque. "Deixa estar, não faz mal. Eu sinto-me orgulhosa por toda a família." Parou de novo o leque. "Olha lá, para onde é que vais trabalhar agora? Espero que vás lá para os Cerejais..."

"Não sei, tia. Não me apetece lá muito fechar-me na quinta."

"Então para onde vais tu?"

"Para já, vou amanhã ao quartel para me certificar de que passei à reserva militar. Depois vou ver as vagas que existem para veterinário."

"Ao menos vai para Alfândega."

"Vamos ver..."

Uma fila de homens de batina negra entrou no anfiteatro e logo se fez silêncio. A reunião adquiria súbita solenidade e os sussurros e as tosses substituíram a algazarra.

"Quem são?", perguntou a tia Maria, o leque diante da boca para lhe abafar a voz.

"São os doutorados. O da frente é o director."

A senhora contemplou-os, fascinada.

"Que gente tão distinta", murmurou. "São zaguchos, ora são?"

"Sim, muito espertos. Têm de ser, não é?"

Os professores caminhavam com uma postura pomposa, pareceriam militares em parada se não fossem as batinas e o corpo curvado pelo hábito de se debruçarem sobre tanto livro.

"Mas têm um ar um pouco cediço", rematou a tia Maria, impressionada com a idade avançada de alguns.

Os professores subiram ao palanque e sentaram-se na longa mesa, enfrentando a assistência. O director, um homem frágil de bigode e sobrancelhas brancas e olhar cansado, conferenciou com os do lado por instantes, aparentemente a acertar procedimentos, até que se endireitou, olhou para a frente e pigarreou.

"Minhas senhoras e meus senhores", disse, a voz fraca e trémula. "Vamos dar início à sessão solene de formatura."

Depois de umas observações de circunstância, o director deu a palavra a um outro doutorado. Era um professor de meia-idade, o bigode e a barbicha pontiagudos e grisalhos, óculos muito graduados encavalitados sobre o nariz. O homem ergueu-se da mesa e, de olhos míopes quase colados ao papel, discursou sobre a nobre missão do veterinário e a importância do seu trabalho "para o progresso da nação". O discurso prolongou-se em tom monocórdico, algumas frases quase inaudíveis; mas as palavras adquiriram força quando o discursante, fazendo uma pausa na leitura e encarando a plateia, arrancou a frase de grande impacto.

"Temos obrigação de sacrificar tudo por todos", disse, "mas não devemos sacrificar-nos todos por alguns."

"Muito bem!", exclamou uma voz entusiástica.

As palmas ecoaram pelo anfiteatro, era de longe a tirada de melhor efeito de todo o discurso. A Luís, contudo, cheirou-lhe a plágio; havia ali dedinho alheio, por certo oratória com a assinatura inconfundível do Presidente do Conselho, Restaurador das Finanças e do Crédito de Portugal.

Depois do discurso, um outro professor veio juntar-se ao orador com uma pequena caixa de cartão, que pousou sobre uma mesinha. Tirou uma folha do bolso do casaco e começou a chamar.

"Adão Miguel Antunes Telles."

Um estudante ergueu-se da plateia e caminhou com pouca confiança até ao palanque. Foi-lhe entregue o diploma e o rapaz voltou para trás muito corado e debaixo de uma regulamentar salva de palmas.

Os nomes sucederam-se e logo se tornou evidente que a ordem de chamada era alfabética. Luís sabia que antes dele vinha o Licínio, pelo que, quando o colega subiu ao palanque, se preparou para ouvir o seu próprio nome.

"Luís António Afonso."

Luís António Afonso.

Assim. Sem tirar nem pôr. O nome estava afixado na lista do quartel e Luís via-o, encontrava-se lá escrito com todas as letras, mas mesmo assim recusava-se a aceitar.

"Deve haver engano", exclamou, abanando a cabeça.

Fernando esticou o pescoço e leu o nome dactilografado na folha pregada na parede.

"Luís António Afonso", confirmou. "És tu."

"Não pode ser."

"Olha lá, tu não te chamas Luís António..."

"Tem de haver engano."

"... Afonso?"

"Isto é mau de mais!", exclamou. "Então entregaram-me ontem o diploma de veterinário e hoje venho aqui ao quartel e topo com o meu nome para ir para a tropa?" Abanou a cabeça, agastado. "Não pode ser! Deve haver engano!"

Recusando-se a aceitar a evidência, Luís largou a lista e dirigiu-se ao guichet. Uma longa fila de jovens já se encontrava no local e o recém-chegado não teve alternativa que não fosse aguardar que os da frente se despachassem.

"Desculpe", disse, logo que chegou a sua vez. "Será que pode verificar a identidade de um nome que ali está afixado?"

O soldado do outro lado do vidro pediu-lhe o nome e foi confirmar nos calhamaços dos serviços de recrutamento. Lo­calizou um volume, lambeu o indicador para ajudar a folhear, parou numa página, hesitou, virou para a seguinte, passou o dedo pelas linhas, encontrou a que procurava e ergueu os olhos.

"Você é de Alfândega da Fé?"

"Sou."

O soldado fechou o calhamaço, as dúvidas desfeitas.

"É você."

Luís ficou a mirá-lo, entre o horror e a estupefacção.

"Mas... mas... não pode ser. Será que pode verificar outra vez?"

"Está verificado."

"Mas deve haver engano!"

Com ar enfadado, o soldado encolheu os ombros e lançou o olhar para além de Luís.

"O seguinte!"

 

Uma névoa acinzentada de óleo em vapor flutuava pela grande gare e o ar apresentava-se impregnado do cheiro ácido e sufocante do carvão queimado. Caminhando inclinado para a direita por causa do peso do malão que carregava com esforço, Luís acabara de chegar e sentia-se já desejoso de sair dali. A Estação de Santa Apolónia até podia ser muito bonita, resplandecente com os seus azulejos e ferros e vidros, mas o ar junto às linhas era absolutamente irrespirável.

"Onde é, Luís?", perguntou a tia Maria, apressada, cortando pela multidão que enchia o terminal.

O sobrinho apontou em frente. L ja aqui.

"Tens a certeza?"

Luís indicou o placar plantado junto à linha, o algarismo claramente visível.

"Linha dois. Está a ver?"

Constatando que se encontrava na plataforma correcta, a tia Maria consultou o bilhete enquanto caminhava ao longo do terminal.

"Temos de nos despachar, está quase a partir."

"Tenha calma, tia. O comboio só sai daqui a dez minutos."

"Valha-me Deus!", suspirou ela, tentando controlar a ansiedade. "Só fico descansada quando me vir lá dentro."

Localizaram a composição e, tomando balanço, Luís atirou o malão para o interior. Depois ajudou a tia a subir e conduziu-a pelo corredor até ao seu compartimento. Uma vez lá dentro, ganhou coragem para a derradeira tarefa. Respirou fundo, pegou na mala e, o rosto rubro de esforço e bufando e urrando como uma máquina a vapor, ergueu-a e encaixou-a na bagageira localizada por cima dos lugares dos passageiros.

Quando terminou, deixou-se cair com abandono num assento. Era como se o seu corpo exangue se tivesse transformado num saco de batatas, esvaziando-se de uma assentada, inerte e desamparado.

"Puf!", soltou, a arquejar. A parte mais difícil estava concluída, constatou com alívio. "Já está!"

A tia arrumou as suas coisas e aproximou-se da janela do compartimento, que se encontrava aberta.

"O cheirete lá fora é insuportável", constatou. Agarrou as pegas do vidro e puxou-as para baixo, fechando a janela com estrondo. "Chiça! Assim está melhor."

Sentindo as gotas de transpiração a deslizarem-lhe pela face, Luís assentiu com a cabeça.

"Sem dúvida."

Fez-se silêncio, apenas pontuado pelo arfar do sobrinho ainda a recuperar o fôlego.

"Se bem compreendo, vais ficar mais tempo em Lisboa", disse a tia Maria. "E depois mandam-te para um sítio qual­quer que ninguém sabe ainda onde é."

"A culpa não é minha, tia. Chamaram-me para a tropa e agora estou ao dispor deles. Não há nada a fazer."

"Que arreliação!", exclamou ela, dando um estalido com a língua. "Não podes ao menos pedir para ser colocado no regimento de Bragança?"

Luís encolheu os ombros num gesto de impotência.

"Para já, vou ter de ficar aqui em Lisboa. Mandaram-me frequentar o curso de oficiais milicianos e é isso que me espera nos tempos mais próximos. O resto ver-se-á depois."

A tia Maria considerou a informação.

"Já não é mau."

"O quê? Ficar em Lisboa?"

"Não. Tirares o curso de oficiais milicianos. Quer dizer que ao menos vais para oficial. Sempre é melhor do que mandarem-te para soldado raso, não é?"

"Ó tia, só cá faltava não me porem a oficial", riu-se ele. "Não se esqueça de que agora sou veterinário."

A tia franziu o sobrolho.

"É isso que eu não percebo. Se és veterinário, para que te querem eles na tropa? Não és muito mais útil a exercer a tua profissão na vida civil? Ademais, quem não trabalha arrisca-se a ficar na dependura. Eles pagam alguns cunfres de jeito?"

"Claro que não."

"Então porque te estão a atrapalhar a vida, valha-me Deus? Parece que é por finca-ratunha!"

"O problema é que eu sou veterinário. Andam à cata de veterinários para a tropa."

"Ora essa! Não vejo porquê."

"Por causa dos animais. Quem é que arrasta as peças de artilharia? Como é que se transportam os oficiais? Quem é que carrega os abastecimentos de um lado para o outro?"

"Sei lá."

"São os cavalos, tia. Os cavalos e as mulas e o que mais para lá houver. É por isso que eles precisam de veterinários."

A tia balouçou afirmativamente a cabeça, acompanhando o raciocínio.

"Estou a ver", disse. "E os teus colegas? Também foram todos chamados para a tropa?"

"Alguns."

"Aquele teu amigo, o... o coiso, como é que ele se chama?"

"O Fernando?"

"Esse. Ele também foi?"

"Não."

A tia olhou para lá da janela do compartimento e observou um comboio a chegar à estação com grande ruído e espalhafato; a chaminé libertava uma grossa coluna de fumo negro, adensando a névoa parda que pairava na gare.

"Teve sorte, o diabo do rapaz."

Luís sorriu sem vontade.

"Não foi sorte, tia. Foi cunha."

A tia arregalou os olhos.

"Cunha? Queres dizer que foi um favor?"

"Claro."

"Tiraram-no assim da tropa, a nome de palhas?"

"Foi."

"E tu ficas-te em trinta? Põe-te guicho, rapaz! Porque não fazes tu o mesmo?"

O sobrinho encolheu os ombros, resignado.

"Porque não conheço ninguém a quem possa pedir o favor."

"Mas conhece o teu amigo. Ele é teu amigo, não é?"

"Acho que sim."

"E para que servem os amigos? A mesma pessoa que o safou também te pode safar!"

"Isso não funciona assim, tia."

"Então funciona como?"

"O Fernando é de uma família que pertence à... à si­tuação."

"O que queres dizer com isso?"

"Eles são pelo regime."

"Ora, e tu também és."

A conversa complicava-se neste ponto. Luís ainda admitiu por momentos a hipótese de rebater a tia, mas logo reconsiderou. Não é que a tia Maria fosse uma simplória; não era. Mas o facto é que se tratava de uma mulher do campo e as subtilezas da política escapavam-lhe. Como explicar-lhe o que lhe era manifestamente incompreensível?

"Receio que as coisas não sejam assim tão simples, tia."

"Não vejo porquê", devolveu ela de imediato. "Basta o teu amigo falar com a pessoa a quem pediu o favor. Qual é a complicação?"

"Isso não pode ser feito assim às claras."

"Claro que não. Eles têm de falar à súchia, é evidente."

Luís coçou a cabeça, desconcertado. Teria de lhe explicar muitas coisas para que ela pudesse entender a dificuldade.

"Sabe, as..."

Um longo apito cortou o ar.

"Vamos partir!", exclamou ela, tremelicando de excitação no assento. "É agora."

O sobrinho quase suspirou de alívio. Salvo pelo apito! Desejoso de sair dali, ergueu-se num salto e beijou-lhe a mão.

"Com a sua licença, tia. É melhor ir-me imediatamente embora, senão já não consigo sair."

"Está bem, mas promete-me que vais falar com o teu amigo..."

"Não adianta, tia. As coisas não funcionam assim."

"Então vais andar a perder tempo na tropa?"

"Tia! O comboio está a partir!"

Como que a confirmar estas palavras, a composição estre­meceu e a locomotiva voltou a apitar.

"Arreda, moço", disse ela, fazendo gestos com as mãos para ele sair dali. "Andor! Susquedono! Vai com Deus."

O comboio arrancou no exacto momento em que Luís saltou para a gare. O rapaz ficou ainda um longo instante a balouçar a mão, dizendo adeus à mão que dele se despedia de uma das janelas da composição; ele era um dos muitos que ficaram a saudar os que partiam, a mão dela era uma das muitas espetadas das janelas das composições a apartarem-se dos que deixavam para trás.

Quando a longa centopeia metálica por fim desapareceu na curva, Luís deu meia volta, pôs o chapéu na cabeça e foi à sua vida.

 

A estação de Penafiel tinha o aspecto de apeadeiro campestre que caracterizava as estações das terriolas do interior, uma simpática casinha branca decorada a azulejos e rodeada pela verdura aprazível das árvores e arbustos. No ar flutuava o aroma fresco das vinhas já vindimadas e as conversas rumorejadas eram pontuadas pelo melodioso trilar em dueto dos rouxinóis. As folhas de algumas árvores avermelhavam, as cores vivas outonais realçadas pelo sol esplendoroso que aquecia a estação e refulgia no tapete de pétalas que adornava os canteiros.

O quadro bucólico de terra de província foi quebrado por um rumor distante que logo se transformou num brutal ronco estrepitoso; era o comboio que irrompia com grande aparato na estação. Parecia uma besta negra em fúria, fumegante e ruidosa. A composição imobilizou-se com um guincho e um estremeção, como se o animal ofegasse de raiva, e das portas começaram a jorrar viajantes que desciam os degraus metálicos com cautelosa lentidão.

Entre os recém-chegados viam-se alguns militares. A maioria caminhava com decisão, como se estivesse bem fami­liarizada com aquelas paragens; mas havia um que parecia inseguro, quase hesitante, os olhos a dançarem com incerteza pela estação. Desconhecendo por completo aquele lugar, o forasteiro optou pelo comportamento mais lógico e seguiu a corrente dos outros passageiros até chegar à porta da estação.

Um vulto verde-azeitona cortou-lhe o caminho já perto da saída.

"Alferes Luís?"

"Sou eu."

O homem fez continência.

"Boa tarde, meu alferes", saudou. "Sou a ordenança do capitão Branco." Inclinou-se na direcção da mala que o recém-chegado trazia na mão. "Dá-me licença?"

Aliviado por ter alguém a recebê-lo naquela terra desconhecida, Luís entregou a mala à ordenança e seguiu-a para fora da estação, onde os aguardava um automóvel negro. O soldado levantou a tampa da bagageira para depositar a mala e, nesse instante, a porta traseira do carro abriu-se e saiu de lá um oficial. O alferes olhou para os galões e apercebeu-se de que se tratava de um superior hierárquico, um capitão. Num gesto quase automático, interiorizado ao longo dos meses que passara na Escola Preparatória de Oficiais Milicianos, imobilizou-se e fez continência.

"Meu capitão."

O oficial devolveu a continência.

"Bem-vindo a Penafiel", disse. "Fez boa viagem?"

"Muito boa, meu capitão."

O capitão sorriu com bonomia. Era um homem de estatura média e porte erecto, a transbordar de dignidade.

"Oiça, vamo-nos deixar de formalismos, está bem? Eu sou o capitão Mário Branco e o senhor vai trabalhar sob as minhas ordens. Estou perfeitamente consciente de que o nosso alferes não é um militar de carreira, mas um médico veterinário, pelo que será tratado como tal."

"Sim, meu capitão."

"Aliás, para dizer a verdade nem sei se o trate por alferes ou por doutor. Como prefere?"

"É melhor alferes, meu capitão. Sempre estamos no exército, não é?"

O capitão Branco assentiu.

"Muito bem, fica alferes", disse. Fez um gesto na direcção do interior do automóvel. "Entre, faça o favor."

Constatando que a ordenança já guardara a mala e se dirigia para o lugar do condutor, Luís acomodou-se no assento traseiro.

"Agradeço-lhe a gentileza de me ter vindo receber à estação."

"Não tem de quê", devolveu o capitão, instalando-se ao lado do alferes veterinário. "Não é costume vir buscar um oficial miliciano, mas, tratando-se de um médico veterinário, achei que deveria ter este gesto. O nosso alferes nunca esteve por cá, pois não?"

"Esta é a primeira vez, meu capitão."

"Calculei. Como a viagem é cansativa, pensei que seria simpático vir acolhê-lo."

O automóvel arrancou e começou a escalar a colina em ritmo de passeio, afagando a frescura campestre. Para lá da estrada estendia-se uma vegetação opulenta em cores, o verde dos milheirais a misturar-se na encosta com o esmeralda dos linhares, enquanto a prata reluzente dos regatos gorgulhantes deslizava por entre o ouro das eiras; aqui e ali aparecia uma

herdade em cal ou um murete em granito, as heras entrelaçadas nas paredes como aranhas de verdura, para logo voltar a vegetação selvagem dos bosques.

Mas, uns dois quilómetros mais acima, as casas começaram a surgir apinhadas e uma tabuleta indicou Penafiel.

"Estamos a chegar", observou Luís, os olhos colados aos edifícios que iam aparecendo com mais frequência, embora ainda rodeados pela verdura dos quintais cultivados. "A cidade é grande?"

"Tem uns seis mil habitantes, não é muito. Mas olhe que é terra antiga."

"Ai sim?"

"Pois claro. Vem do século xn. Até temos aqui o túmulo do Egas Moniz."

"O aio da corda ao pescoço?"

"Sim, aquele que preferia morrer a faltar à palavra dada." Sorriu. "Como vê, Penafiel é terra de gente fiel. Fiel à sua palavra, fiel à sua pena. Penafiel."

O recém-chegado desviou a atenção das casas para o capitão e devolveu-lhe o sorriso. Não sabia porquê, mas aquele oficial era-lhe simpático.

"E o regimento?", quis saber. "Que tal é?"

"Infantaria 6 é o orgulho de Portugal, meu caro. Tem história! Foi criado no Porto ainda no século xm e combateu sob as ordens de Wellington contra Napoleão, desde o Buçaco até Toulouse. Estivemos em todas as batalhas. Além do mais, foi este regimento que iniciou a revolução liberal e uma das duas unidades que fizeram a defesa da Carta Constitucional quando ela foi proclamada em Coimbra."

"Muito passado, já vi", assentiu Luís, com um esgar impressionado. "E na Grande Guerra, como foi?"

"Mandámos um batalhão para a Flandres."

"O meu capitão também lá esteve?"

"Não, na altura eu pertencia a um outro regimento e fui enviado para Moçambique."

"Sorte, hem?"

"Qual quê! Aquilo foi muito complicado. Os Alemães vieram do Tanganhica e estavam a dar-nos uma tareia. Quan­do chegou a vez de a minha unidade partir para os enfrentar, pensei que não regressaria vivo. Até escrevi uma carta de despedida à minha família, veja lá. Só que foi exactamente nessa altura que veio a notícia de que a guerra tinha acabado. Ufa, nem imagina a festa que foi!"

Luís sorriu.

"Suponho que seja essa a vantagem de um médico veterinário na tropa: nunca terei de combater", disse. Pigarreou. "Para dizer a verdade, nem sei bem o que terei para fazer. O regimento tem muitas exigências para as minhas funções?"

"Oh, o normal."

"O que é o normal?"

"O nosso alferes teve alguma preparação especial para as necessidades do exército?"

"Sim, claro. Tirei o primeiro grau da Escola Preparatória de Oficiais Milicianos e trabalhei no Serviço Veterinário Militar e no Hospital Militar Veterinário Principal."

"Lidava com cavalos?"

"Meu capitão, eu prestei provas de equitação no Hospital Militar!", retorquiu o alferes, quase ofendido.

"Então vai estar aqui à vontade. Temos o Serviço Militar Veterinário, uma maneira pomposa de dizer que o nosso alferes vai tratar dos cavalos e dos burros."

"Só isso?"

"Bom, terá também a seu cargo a inspecção sanitária de tudo o que diz respeito à agropecuária do quartel, claro. No

fim de contas, temos de garantir a qualidade dos produtos que consumimos na messe, não se vá dar o caso de haver alimentos que não estejam em condições." Abriu as mãos e exibiu as palmas. "E é tudo."

"Não parece muito."

O capitão fez com o polegar um sinal para o exterior, por onde deslizavam agora as fachadas setecentistas do centro.

"Espera-o uma vida tranquila, vai ver."

O quartel era um paralelepípedo gigante de dois pisos que enchia um quarteirão inteiro mesmo diante da principal avenida da cidade. Apesar de se situarem em pleno centro, as instalações militares dispunham de amplo espaço em frente e num dos lados, o que se afigurava ideal para os exercícios e formaturas.

O capitão Branco conduziu o recém-chegado pelo edifício e levou-o ao gabinete do comandante da força militar ali insta­lada, o Regimento de Infantaria 6. Subiram ao primeiro andar, bateram à porta da antecâmara e uma voz mandou-os entrar. Sentado a uma secretária estava o oficial de operações, um alferes a quem Branco apresentou Luís.

"Bem-vindo!", saudou o alferes Boavida. "Já estava na altura de termos Veterinário, que diabo!"

"Não me diga que sou o único do quartel..."

"Ai digo, digo. O lugar vagou há dois meses."

"O que aconteceu ao anterior?"

"Era um miliciano, como o nosso alferes. Terminou o serviço militar e foi à sua vida."

Com alguma impaciência, Mário Branco indicou a porta do gabinete do comandante do regimento.

"Acha que podemos entrar?"

O oficial de operações esfregou as mãos num tique nervoso.

"Querem ver o coronel Silvério?"

"Sim", confirmou o capitão. "O nosso alferes veterinário apresenta-se hoje ao serviço e parece-me curdial que venha cumprimentar o nosso comandante."

"Pois é, mas o nosso coronel saiu para o almoço."

O capitão consultou o relógio e franziu o sobrolho. Eram já quatro e meia da tarde.

"Quando volta ele?"

"Não sei." O oficial de operações encolheu os ombros. "Já sabe como o nosso coronel é..."

Mário Branco sabia. Na sua experiência, se o comandante não tinha regressado até àquela hora, isso significava que já não regressaria nesse dia; o coronel era um pançudo de muito alimento e pouco trabalho, pelo que tal atraso significava provavelmente que estaria a digerir numa sesta o excesso de verde tinto que consumira à refeição.

"Como faz o nosso alferes para se apresentar ao serviço?"

O alferes Boavida encarou Luís.

"Tem aí os papéis?"

O recém-chegado tirou uns documentos do bolso do casaco e estendeu-os.

"Estão aqui."

"Deixe-os comigo", disse o oficial de operações, pegando neles. "O nosso coronel assinará amanhã."

Despediram-se ambos do alferes Boavida e saíram para o corredor. Quando a porta se fechou, o capitão fitou o rosto cansado de Luís.

"Oiça lá, não está com fome?"

Deram um salto à messe e encontraram-na fechada. Um cozinheiro ainda se ofereceu para fritar uma costeleta de Porco, mas o capitão Branco rejeitou a ideia e mandou chamarem-lhe a ordenança.

"Vamos ao Aires", anunciou enquanto aguardavam os dois à porta do quartel.

"É longe?"

O capitão apontou para a direita.

"É já ali", disse. "Está a ver aquele edifício?"

"Sim."

"Atrás dele encontra-se a Pensão Morais. O Aires fica em baixo."

Luís fitou o seu superior hierárquico, surpreendido.

"Mas então para que precisamos da ordenança?"

"Para lhe levar a mala."

"A mala? Não é melhor ela ser enviada para os meus aposentos?"

"Justamente. A Pensão Morais vai ser a sua morada nos próximos tempos."

A informação espantou-o ainda mais.

"Não vou instalar-me no quartel?"

"Claro que sim. Mas o seu quarto está ocupado e só ficará livre daqui a uma semana. No entretanto terá de se alojar na Pensão Morais."

Quando a ordenança apareceu, atravessaram a avenida em direcção ao Calvário e meteram pela Rua dos Combatentes da Grande Guerra. Passaram diante do Tribunal Judicial e entraram na pensão. Luís registou-se no balcão e a ordenança ajudou-o a levar a mala ao quarto.

Já instalado, o alferes veterinário desceu e o capitão conduziu-o ao Aires, o restaurante junto à pensão. Encontraram-no deserto, o que era natural considerando o adiantado da hora, e encostaram-se ao lado da janela. Consultaram a ementa, mas a empregada disse-lhes que já só havia o prato do dia.

"Venha daí a feijoada", exclamou Luís, que não comia nada desde essa manhã.

A empregada afastou-se, deixando-os a olharem um para o outro, meio sem jeito.

"O alferes é casado?", perguntou o capitão, mais para fazer conversa do que por curiosidade.

"Não. Nem tenciono."

A ênfase peremptória da resposta chocou o anfitrião.

"Não diga isso."

"A sério."

"Mas porquê? O que tem o nosso alferes contra o casamento?"

"Não tenho nada. Mas não quero casar."

O capitão analisou Luís com olhos perscrutadores.

"Cheira-me que anda por aí desgosto de amor..."

"Digamos que tenho os meus motivos", rematou o alferes veterinário. "E o meu capitão? É casado?"

A pergunta constituiu uma evidente tentativa para desviar a conversa, coisa que o superior hierárquico instantaneamente percebeu. No entanto, como homem sensível e bom diplomata, concluiu que não deveria insistir num assunto que Luís manifestamente evitava e aceitou a mudança de direcção implícita na pergunta do seu interlocutor.

"Sim, sou casado."

"Tem filhos?"

"Três."

"Caramba, isso já é uma ninhada!"

O capitão sorriu.

"É bom ser pai."

"São rapazes?"

"O mais velho é rapaz. As outras são meninas."

Prosseguiram a cavaqueira em tom morno, as palavras rolando ao ritmo mole da tarde. A feijoada apareceu requentada e servida com um arroz amarelado e seco, mas vinha

suculenta e rica. Meio entorpecido com o verde branco com que regou o prato, Luís foi dividindo a atenção entre a feijoada, que engolia com mal disfarçada glutonaria, o capitão, que o ia esclarecendo sobre os diversos aspectos da vida no quartel, e a janela, minúsculo ecrã tridimensional por onde lhe entravam as cores e os cheiros da cidade.

Lá fora a vida arrastava-se com indolência. Passava uma carroça, um boi sonolento largava uma bosta no empedrado, um camponês carregava um cesto repleto de uvas verde--esmeralda. A luz da tarde mudava imperceptivelmente com o adormecer gradual do sol, adquirindo hipnóticas tonalidades azuladas. Por vezes pela janela irrompia o clip-clap-clip-dap metálico dos cascos dos cavalos; pareciam batuques a injectar energia no ar, mas logo o mugir mandrião de uma vaca ou o farfalhar lento das árvores marcavam o compasso melódico da tarde preguiçosa.

Mais por gulodice do que por fome, Luís arrancou um naco de pão e passou-o pelo prato já vazio, empapando o miolo com o delicioso molho que restava. O seu interlocutor embrenhava-se numa exposição sobre as ligações de camioneta para o Porto; parecia que havia várias por dia nos dois sentidos e as viagens duravam umas duas horas. Enquanto ouvia o capitão discorrer sobre os horários dessas ligações, meteu o naco de pão na boca e olhou distraidamente pela janela.

Foi então que a viu.

O cabelo pareceu-lhe um pouco diferente, mais escuro, mas as linhas delicadas do rosto e aquele ligeiro ar a May McAvoy eram inconfundíveis. Sentiu um baque no peito e ficou petrificado.

"Então?", alarmou-se o capitão, vendo-lhe a fisionomia totalmente alterada. "Sente-se bem?"

Luís ergueu-se de rompante. Seria possível? Estaria com visões? Era mesmo ela? Precisava de tirar aquilo a limpo.

"Com licença!", exclamou. "Já venho!"

Saiu do lugar e deu um salto para a porta do restaurante. A rapariga já passara, mas o veterinário ficou um longo instante a vê-la de costas a afastar-se, o corpo a deslizar pelo passeio, o perfume a esvoaçar pelo caminho.

"Amélia."

 

Aquela imagem e aquele baque perseguiram-no o resto do dia. Vira-lhe o rosto fugazmente da janela do restaurante, sentira-lhe a fragrância, contemplara-a a afastar-se passeio fora. Parecera-lhe Amélia, mas não podia garantir com toda a segurança que fosse mesmo ela; é preciso não esquecer que já se tinham passado alguns anos. Dava-lhe a impressão de que o cabelo era ligeiramente mais escuro e notara algumas diferenças no corpo, em particular na forma como caminhava; o menear das ancas era algo diferente. Tirando isso, porém, iria jurar que se tratava mesmo dela.

Ficou sem saber o que fazer. Ansiando por uma confirmação, ainda pensou em interrogar o capitão sobre a identidade da moça; afinal estavam em terra pequena e todos se conheciam. Mas conteve-se. Não só o capitão Branco não a vira passar, como Luís achou que se arriscava a fazer figura de tonto. O que iria pensar dele o superior hierárquico? Que o seu veterinário queria conhecer a primeira rapariga com que se cruzara em Penafiel? Não, concluiu. Teria de descobrir por si mesmo. E discretamente.

Apesar da noite mal dormida, ou talvez por causa dela, com­pareceu manhã bem cedo no quartel. O capitão Mário Branco, que incrivelmente tinha sido ainda mais madrugador, recebeu-o com café e entreteve-o até à hora em que o comandante deu entrada no edifício, eram já quase nove da manhã.

Luís foi então levado ao gabinete do responsável pelo regimento e apresentou enfim os cumprimentos ao coronel Silvério.

"Você é que é o veterinário, hem?"

"Sim, meu comandante."

"Já não era sem tempo!", exclamou. "Tenho para cá muitos animais a precisarem de tratamento!"

Soltou uma gargalhada, muito satisfeito com o duplo sentido da sua tirada, e os dois subordinados sorriram por cortesia. A conversa limitou-se a palavras de circunstância, erráticas e vazias, tão fúteis que depressa o capitão o arrancou dali e o levou a conhecer os restantes oficiais.

Concluídas as apresentações, o capitão serviu de cicerone numa visita ao quartel, começando pelas camaratas e passan­do pelo paiol. Para último deixou os espaços onde Luís iria exercer mais directamente as suas funções. Foram ambos à enfermaria veterinária, onde o recém-chegado conheceu os enfermeiros hípicos que iria chefiar, e deram um salto à oficina de siderotécnica.

"Nunca percebi este nome", queixou-se Luís. "Siderotéc­nica."

"São os ferradores", explicou o capitão Branco.

O veterinário sorriu.

"Eu sei que são os ferradores. O que não percebo é por que razão chamam a isto oficina de siderotécnica e não oficina de ferragem!"

O superior hierárquico riu-se.

"Dá um ar mais modernaço, suponho eu."

A derradeira etapa foram os anexos, que visitaram já próximo do meio-dia. Ao saírem para o pátio, a primeira coisa que Luís notou foi o forte cheiro a estrume, um odor reminiscente da quinta da família, nos Cerejais. O fedor indiciava a presença de animais nas imediações, o que foi confirmado por um súbito relinchar.

"As cavalariças", anunciou Mário Branco ao chegar aos estábulos. "Está aqui o essencial do seu trabalho."

Luís aproximou-se e espreitou para o interior. Enormes vultos permaneciam plantados na sombra, rodeados de palha; eram os cavalos do regimento. O veterinário analisou-lhes o porte encorpado, quase gordo, e identificou a raça.

"São bolonheses." Mirou o capitão com uma expressão interrogativa. "Vocês montam estes cavalos?"

"Estes, não. Usamo-los para puxar a artilharia."

"Então quais são as montadas?"

O capitão indicou os estábulos ao lado.

"Estão ali."

Adiantaram-se uns metros e espreitaram para os estábulos vizinhos. Ao ver os animais ali recolhidos, Luís assentiu com a cabeça, numa expressão aprovadora; eram mais delgados que os anteriores.

"Célticos", constatou.

Entrou na cavalariça e acercou-se de um deles, um cavalo castanho e robusto. O animal remexeu-se, inquieto com a presença do desconhecido, e relinchou ruidosamente. O veterinário hesitou, nervoso; não estava muito familiarizado com aqueles equídeos. Em Trás-os-Montes lidara sobretudo com mulas e o que sabia sobre cavalos era o que aprendera em Lisboa pelos livros da Escola de Medicina Veterinária ou nos exercícios de equitação do Hospital Militar Veterinário Principal.

"E o pónei", disse o capitão, apoiando os cotovelos na cancela de acesso ao estábulo.

"O quê?"

"Essa égua está nervosa por causa do pónei."

"Qual pónei?"

O oficial indicou uma esquina da cavalariça.

"Aquele ali. É o filho dela. A Diana não gosta de ver estranhos a deambularem por aqui, por causa do pónei." Sorriu. "Sabe como é, coisas de mãe protectora."

O veterinário apercebeu-se de um vulto mais pequeno, entre a égua e o canto mais afastado do estábulo.

"Ah, estou a ver!""

Luís mostrava-se determinado a não dar parte de fraco. Procurando comportar-se como um entendido, encostou-se à égua e acariciou-lhe o topete. Depois murmurou-lhe palavras suaves ao ouvido.

"Linda menina, linda menina." As palavras saíam-lhe como sedativos, suaves e tranquilizadoras. "Pronto, está tudo bem. Linda menina."

Diana arfou e bateu com as patas traseiras no solo, mas, de­pois de novas carícias, pareceu ficar mais quieta. Vendo-a acalmar, Luís sorriu. Podia não estar muito familiarizado com cavalos, mas tinha um jeito muito especial para lidar com animais.

Conquistada a confiança da égua, levantou-lhe o lábio superior e analisou-lhe os incisivos.

"Então?", perguntou o capitão.

"Parece-me saudável."

Deslizou depois para o canto do estábulo e apreciou o pónei negro que a égua protegia. Era um cavalinho altivo e de olhar muito vivo, o corpo alto e a postura elegante.

"Belo animal, hem?"

Luís ficou a contemplá-lo, estranhando-lhe a raça. O corpo não conferia com as linhas da mãe; parecia-lhe ainda mais esbelto e ligeiro.

"É filho dela?"

"Sim."

"Mas não parece céltico."

"Tem toda a razão. O pai é o cavalo de um major que aqui esteve no ano passado. Um puro-sangue árabe."

De mãos à ilharga, o veterinário apreciou o pónei com outros olhos.

"É um bonito cavalo, sem dúvida", disse. "Acho que o vou treinar." Inclinou-se sobre o animal e acariciou-lhe o tronco, sentindo o pêlo sedoso deslizar-lhe pelos dedos. "Como se chama ele?"

"Ainda não tem nome."

"Não lhe parece que está na altura de ser baptizado?"

O capitão aproximou-se.

"Tem alguma coisa em mente?"

O pónei rinchou, como se percebesse que era ele o centro da conversa, e Luís pousou-lhe a mão no topete, tentando acalmá-lo.

"Relâmpago."

Apesar de o quartel estar equipado com uma messe, Luís improvisou uma desculpa relacionada com inspecções ao mercado, alegando que ia procurar os bovinos mais saudáveis para a cozinha do quartel, e passou a almoçar no Aires. Teve o cuidado de reservar a mesa junto à janela e dali ficou a vigiar a rua, atento a todos os transeuntes. Se ela passara uma vez por ali, raciocinou, decerto passaria de novo. Era uma questão de ser paciente e esperar.

Esperou um, dois, três dias. Como o quartel era quase ao lado, um major chegou a dar com ele por ali e lançou-lhe um gracejo, perguntando-lhe se era assim que inspeccionava o mercado.

Ao quarto dia, porém, a sorte sorriu-lhe. O almoço nessa ocasião era iscas com arroz de tomate, que depenicou sempre com os olhos pregados na janela, como se tornara seu costume. De repente, viu-a dobrar a esquina e meter-se pelo passeio, aproximando-se da porta do restaurante. Luís ergueu-se num salto e, o coração a bater com força, cravou nela os olhos intensos. Era a hora da verdade, o momento em que perceberia se ela era ou não Amélia.

A rapariga vinha com um vestido cor-de-rosa e transportava uma cesta de vime;dava a impressão de que ia à mercearia. A medida que se acercava, as suas feições foram-se tornando mais distintas. A expressão melancólica que lhe bailava nos olhos era indiscutivelmente de Amélia; o corpo, apesar do caminhar diferente, tinha as mesmas formas; até os lábios apresentavam a carnalidade sensual da antiga namorada.

Mas não.

Não era Amélia. Com decepção, mas também com um certo alívio, Luís constatou que se tratava de uma rapariga diferente. Apercebeu-se disso quando ela passou diante da janela, os olhos garços perdidos em pensamentos. O nariz era diferente, o cabelo também. Luís deixou-se cair na cadeira, quase ofegante. Não era Amélia.

A semelhança revelava-se espantosa, sem dúvida. Era tam­bém verdade que, desde a última vez que vira a namorada, julgava encontrá-la em cada rapariga que passava diante dele. Um sorriso, um olhar, por vezes um mero trejeito, qualquer coisa servia para a associar a Amélia. Era como se a visse por toda a parte. Mas desta vez, acreditava, havia algo de diferente e. Não era ele que tentava à viva força descortinar Amélia na primeira rapariga que lhe aparecia à frente; era aquela rapariga que possuía de facto inegáveis parecenças com Amélia.

A constatação de que não se tratava da antiga namorada deixou-o por instantes sem reacção. Se não era Amélia, o caso ficava arrumado. Mas, tal como a pequena traça que começa por corroer um canto da camisa e depressa faz o buraco alas­trar a todo o tecido, também a inquietação lhe nasceu num minúsculo ponto do espírito e logo se espalhou por todo o corpo. Era verdade que a rapariga não era Amélia, pensou, mas também era verdade que, mesmo tendo-a visto só de fugida, aquela semelhança fazia com que ela não lhe fosse indiferente. Podia ser pela beleza, podia ser pela graça, podia ser por todos os pormenores de parecença com a sua paixão do liceu. Sim, que fosse pela parecença! E então? Que mal havia nisso? O facto é que a rapariga o deixara perturbado.

Num movimento impetuoso, ergueu-se, largou uma nota na mesa e saiu do Aires quase a correr. Viu-a ainda a entrar no Tribunal Judicial e desaparecer para lá da porta. Sentiu uma necessidade absoluta de a ver de novo, de saber o que encontraria de Amélia naquela desconhecida. Foi por isso postar-se do outro lado da rua, vigiando a saída como um cão de guarda.

Ao fim de alguns minutos, porém, começou a sentir-se ridículo. O que pensariam as pessoas ao vê-lo ali plantado? Que comentários não se fariam na messe se algum camarada de armas deparasse com ele naquela pose? Diriam que o alferes veterinário estava a inspeccionar o gado que saía do tribunal?

Tirou uns documentos militares do bolso e pôs-se a consultá-los, fingindo-se absorvido em algo de grande relevância para as suas funções. Quem o visse diria que parara ali porque tinham acabado de lhe entregar coisas de incomensurável importância, talvez relatórios sanitários sobre os bovinos da região, quem sabe se não seriam notícias de uma grave epidemia animal?

A rapariga reapareceu dez minutos mais tarde. Retomou o caminho por onde tinha vindo, passando de novo diante da Pensão Morais e do Restaurante Aires, e dirigiu-se para a avenida principal. Luís enterrou o boné militar na cabeça, de modo a ocultar melhor os olhos, e seguiu-a à distância. Viu-a cruzar a Avenida Sacadura Cabral e meter por uma perpendicular, entrando no mercado municipal. O veterinário manteve-se no seu encalço; aquele sítio era perfeito para a vigiar.

Seguiu-a pelo mercado e fingiu inspeccionar as galinhas e os patos expostos nas bancadas, sempre com o cor-de-rosa do vestido dela presente no canto do olho. Topou-a de soslaio a comprar dois chouriços, uma broa e um pacote de maçãs, e de seguida esgueirar-se para a rua. Sem descolar, Luís observou-a a contornar a escola primária e a meter pela rua traseira do quartel. A meio da rua, ela encostou-se à direita e cruzou o portão do quintal de uma vivenda.

Parado na rua com os olhos a dançarem entre a vivenda e a fachada traseira do quartel, Luís não conteve um sorriso malicioso.

"Com que então somos vizinhos, hem?"

 

Durou apenas mais alguns dias a passagem de Luís pela tranquila Pensão Morais. A meio da semana seguinte, quando verificava a saúde de uma vaca jersey destinada ao refeitório, uma ordenança foi ter com ele e comunicou-lhe que o capitão Branco o chamara ao gabinete. O veterinário tirou a bata e subiu até à sala onde trabalhava o superior hierárquico. O capitão recebeu-o com um cabo, que disse pertencer ao serviço de alojamentos do quartel.

"Tenho uma boa notícia para lhe dar, meu alferes", anunciou o cabo. "O seu quarto já está disponível."

"Aleluia!"

O alferes estendeu-lhe um objecto metálico.

"Tem aqui a chave."

Luís avaliou o objecto. Era comprido e pesado, feito de ferro já meio enferrujado.

"Caramba, mas o que é isto?", exclamou. "A chave do castelo de Guimarães?"

Despediram-se do capitão Branco e, com o cabo a mostrar o caminho, subiram a escadaria interna e percorreram os corredores do quartel até chegarem ao quarto que tinha sido destinado ao veterinário. Ao abrir a porta, Luís deparou-se com um compartimento pequeno, banhado pela luz que jorrava de uma janela larga. Espreitou lá para fora e viu em baixo a escola primária e o mercado.

"Oiça", disse, torcendo o nariz. "Não tem nenhum quarto virado a norte?"

O homem do serviço de alojamentos pareceu desconcertado com a pergunta.

"A norte? Mas isso são as traseiras, meu alferes."

"Pois sim."

"Mas o meu alferes quer ir para um quarto das traseiras?"

"Qual é o mal? Há pulgas e carraças, porventura?"

"Que eu saiba, não."

"Então?"

"É só que... que..."

"Não me diga que não tem lá nada para mim..."

O cabo coçou a cabeça.

"Ter, ter, até tenho. O meu alferes faz mesmo questão de ir para as traseiras?"

"Absolutamente! É crucial para o meu trabalho! Já estive a ver a estrutura arquitectónica do quartel e parece-me que ali posso ter uma vista mais vantajosa sobre os estábulos."

O funcionário do serviço de alojamentos respirou fundo, vencido por tão inopinado argumento.

"Bem, se assim é..." Com a mão convidou Luís a sair, trancou a porta e meteu pelo corredor. "Venha comigo, meu alferes. Tenho ali um quartito que pode ser disponibilizado." Contraiu os lábios. "Não sei é se será do seu agrado."

"Será, será, fique descansado."

Chegaram ao corredor do fundo e viraram à esquerda. Fazia escuro por ali, os candeeiros estavam apagados e os pontos de luz natural não chegavam para iluminar o caminho. Andaram alguns metros e o cabo abriu uma porta à direita.

"É aqui."

O quarto era ainda mais pequeno que o anterior e tinha caixotes empilhados uns sobre os outros.

"Mas isto não está habitável", constatou Luís tentando desbravar caminho entre os caixotes.

"A noite estará, meu alferes. É uma questão de limpar tudo isto e trazer para aqui a mobília do outro quarto. Faz-se esta tarde, não há problema."

O veterinário inclinou-se para a janela e espreitou lá para fora. Do outro lado da rua, mesmo em frente ao quarto, estava a vivenda onde a rapariga havia entrado na semana anterior. Luís virou-se para o cabo e, abrindo os braços para abarcar o pequeno quarto, sorriu.

"É perfeito."

Desde que se mudou para o seu novo quarto, nas traseiras do quartel, Luís passou a ir amiúde à janela bisbilhotar o movimento na vivenda. Tratava-se de uma casa branca de dois andares, com um grande quintal de ambos os lados num terreno que findava num V muito estreito. Viam-se árvores de frutos, uma horta e até vinhas, no lado mais afastado, o que terminava em V. No outro, o que estava situado mesmo diante da janela do quarto do alferes veterinário, encontrava--se um pátio com baloiços, um banco de madeira, uma peque­na fonte e canteiros espalhados por toda a parte.

O movimento na vivenda era frequente e Luís habituou-se a ver a rapariga cirandar pelo quintal. Por vezes ajudava as criadas a porem a roupa a secar ou ia colher uns frutos ao limoeiro. Recebia ocasionalmente uma visita, mas a maior parte do tempo limitava-se a permanecer sentada no baloiço a cantarolar ou no banco de madeira a ler. Saía todos os princípios de tarde à rua, sempre com a sua cesta debaixo do braço, para voltar cerca de uma hora depois.

"Quem é que mora na vivenda aqui ao lado?", perguntou Luís ao alferes do serviço de alojamento, na primeira oportunidade que teve para abordar o assunto.

"Qual vivenda? Aquela do grande quintal?"

"Sim."

"O juiz Brandão."

"Quem é esse?"

O alferes arregalou os olhos.

"Ui! Homem severo." Sacudiu a mão direita. "Quando se põe a botar sentença ali no Calvário, é um ver se t'avias..."

Era então filha de um juiz!, concluiu com admiração. Vendo bem, fazia sentido. Isso explicava que a tivesse visto a passar diante do Aires a caminho do Tribunal Judicial, no Calvário; ia ver o pai, talvez mesmo levar-lhe alguma coisa para comer.

Luís ainda ponderou a possibilidade de interrogar o capitão Branco sobre o assunto, mas reconsiderou. Ia-lhe perguntar o quê? Como se chamava a filha do juiz? Que triste figura faria... O seu superior hierárquico, embora homem afável e disponível, parecia-lhe pessoa rigorosa e não se lhe afigurava alguém que desse confiança a esse tipo de conversa. Além do mais, vivia agora numa terra cujos costumes desconhecia; se Penafiel fosse como Bragança, e provavelmente era, a prudência seria o mais aconselhável em tais circunstâncias.

O melhor, concluiu com a avisada sensatez de quem está familiarizado com os rigores da província, era descobrir por ele mesmo.

O livro tinha já as páginas amareladas e a capa riscada, mas pouco importava; para os efeitos que trazia em mente, até lhe parecia melhor assim. Folheou uma derradeira vez O Crime do Padre Amaro e decidiu-se a levantá-lo.

"Vai ser mesmo este."

Saiu da biblioteca do quartel com o romance na mão e levou-o para o quarto. Tirou o casaco e empoleirou-se na janela a folhear o livro, mas com os olhos presos na vivenda branca. A custa de horas a estudar as rotinas da rapariga da vivenda, sabia que era pelo final do almoço que ela habitualmente saía de casa para levar a merenda do pai ao Tribunal Judicial.

Pouco passava das duas da tarde quando a vizinha emergiu da casa, desta feita com um vestido lilás, e cruzou o portão para iniciar o seu passeio habitual. Apercebendo-se de que chegara o momento de pôr o seu plano em marcha, Luís pegou no livro, estendeu-o para fora da janela e deixou-o cair.

O volume tombou com espalhafato na rua, lá em baixo, atraindo a atenção da rapariga. Ela fitou o livro com surpresa e olhou para cima, tentando perceber de onde caíra.

"Olá!", cumprimentou-a Luís, abrindo um sorriso embaraçado logo que foi avistado. "Será que me pode ajudar?"

"E seu?", perguntou ela, apontando para o livro escarrapachado na rua.

"Estava a ler e... caiu-me. Sou mesmo desastrado."

"Quer que o apanhe?"

"Se fizer o favor."

A rapariga pousou o cesto no passeio, olhou para os dois lados da rua e foi apanhar o volume. Com o livro na mão, ergueu os olhos para Luís, que permanecia à janela.

"E agora? O que faço?"

Luís ergueu a palma da mão, pedindo-lhe que aguardasse.

"Espere um pouco, não saia daí. Já vou ter consigo."

Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, o alferes veterinário sumiu-se da janela.

Enquanto esperava, a rapariga encostou-se a uma árvore, no passeio, e pôs-se a estudar o romance. Foi nessa pose que Luís deu com ela quando apareceu na rua. Vinha janota na sua farda militar e sorriu ao aproximar-se da vizinha.

"Peço imensa desculpa pelo incómodo", começou por dizer. "Estava à janela a ler e o livro caiu-me."

A rapariga estendeu-lhe o volume e Luís olhou-a nos olhos. Era realmente parecida com Amélia, confirmou. Vendo-a assim de perto, a uns meros dois palmos de distância, reparou que as diferenças entre ela e a antiga namorada eram marcadas, mas afigurava-se-lhe inegável que partilhavam as duas o mesmo género de beleza.

"Está a gostar?", perguntou ela.

"De quê? De a conhecer?"

A rapariga enrubesceu e riu-se.

"Não, do livro."

"Ah, sim. É muito bom." Olhou de relance para o romance que ela lhe devolvera. "Já alguma vez leu O Crime do Padre Amaro}'''

"Claro. Quem não leu?"

"Era um maroto este Amaro, hem?"

Ela voltou a rir-se.

"Maroto é pouco."

Luís estendeu-lhe a mão.

"Eu chamo-me Amaro. Como está?"

"A sério? Chama-se mesmo Amaro?"

Ele piscou-lhe o olho.

"Não, sou eu a brincar. O meu nome é Luís." Indicou com o polegar a fachada traseira do quartel, do outro lado da rua. "Sou alferes veterinário aqui no regimento."

"Olá, eu sou a Joana."

"Joaninha dos olhos verdes, verdes?"

"Oh, não brinque."

"Desculpe, não resisti. Vive por aqui?"

Joana apontou para a vivenda branca.

"Ali mesmo."

"Ah, que engraçado! Somos vizinhos e nunca a vi!"

"Tem piada que eu também nunca o vi a si. O senhor é de cá?"

"Não", disse ele. "Vim de Lisboa. Cheguei há algumas semanas."

A rapariga assentiu com a cabeça.

"Então seja bem-vindo a Penafiel", disse, estendendo-lhe a mão. "Tive muito gosto em conhecê-lo. Boa tarde."

"Oh! Já se vai embora?"

Joana pegou na cesta, que estava pousada junto à árvore, e começou a caminhar.

"Tenho de ir." Acenou-lhe. "Adeus!"

 

O contacto estava estabelecido. Como um predador furtivo que ronda a presa inocente, sabia que só lhe restava fechar o cerco e desferir o ataque final.

Já tinha jogado aquele jogo inúmeras vezes em Lisboa, mas agora ele era um tudo-nada mais excitante, não só porque a sedução decorria numa terra de província, onde o contacto com o belo sexo se revelava mais difícil, e consequentemente mais apetecível e apimentado, como porque, de entre todas as raparigas que conhecera desde que saíra de Bragança, Joana era de longe a mais interessante, sem dúvida porque, devido à semelhança física, trazia com ela o perfume da memória de Amélia.

Não largou a janela do quarto nos dias que se seguiram. Quando a rapariga apareceu no quintal pela primeira vez depois do encontro, reparou de esguelha que ela lhe atirou um olhar furtivo logo que saiu de casa. Luís fingiu-se embrenhado na leitura e comportou-se como se não se tivesse dado conta da sua presença.

Mas, no dia seguinte, no preciso momento em que Joana assomou ao portão para sair à rua, largou o romance e lançou-lhe um adeus e um sorriso.

"Olá! Está tudo bem?"

A rapariga correspondeu com uma saudação calorosa.

"Bom dia! Ainda a ler o padre Amaro?"

"Muito interessante", disse ele, acenando com o livro. "Este Amaro é do arco-da-velha! Já não se fazem padres assim!"

Riram-se os dois e ela abanou a mão em despedida, inician­do o percurso do seu passeio do costume.

"Já não escapas", murmurou Luís, vendo-a tão consciente da sua presença. "És minha."

Assim continuaram por vários dias, trocando acenos e sorrisos à distância. O galanteador da janela foi alimentando desse modo aquela sedução platónica, quase à maneira das novelas, enleando a rapariga com uma subtileza feita de experiência, como um caçador batido a aguardar o momento decisivo. Avaliando dia a dia o modo como ela reagia à sua presença já habitual na janela, ultimou meticulosamente a táctica e marcou a estocada final para meio da semana seguinte.

Era uma quarta-feira soalheira e fria, um daqueles dias em que a brisa desce pelo vale do Sousa e congela a cidade. O capitão Branco tinha-se ausentado para Lisboa, onde ficaria um mês a exercer funções na Escola do Exército, deixando o veterinário mais à vontade com os seus projectos amorosos.

Logo que Joana apareceu no quintal, Luís fez-lhe sinal de que se preparasse e lançou para o vazio um objecto pontiagu­do branco. A rapariga ficou surpreendida primeiro e intrigada depois, os olhos presos naquela forma aguçada que zigueziava pelo ar, como uma folha seca, e que acabou por se estatelar na rua, mesmo diante da vivenda.

Após lançar uma mirada interrogativa para a janela de onde o militar a espreitava, saiu à rua e recolheu o objecto. Era um aviãozinho de papel. Voltou a olhar para Luís, que com um gesto lhe indicou que teria de desdobrar o avião. Joana obedeceu e deparou-se com uma mensagem inesperada.

Mil anos de tormento me parece Cada hora que sem ti e sem esperança Vivo de poder mais tornar a ver-te. Sustenta-me esta vida tua lembrança; A vida sobre tudo me entristece; A vida antes perdera, que perder-te.

Joana leu o poema três vezes; leu-o consecutivamente, acabava uma vez e voltava ao princípio. Depois de tudo ler e de se certificar de que os versos diziam o que ela pensava que diziam, ergueu os olhos brilhantes para a janela e encostou a folha ao peito, como se o gesto fosse outro poema, como se aquelas palavras lhe tivessem cantado ao coração.

Inclinado sobre a janela, Luís lançou-lhe um beijo. Afo­gueada de emoções, ela corou, baixou a cabeça e correu para casa. Vendo-a desaparecer tão precipitadamente, o alferes veterinário sorriu, fechou a janela e pousou a mão no velho livro de receitas amorosas que o acompanhava desde aquele Natal nos Cerejais, o título Lírica e o nome Camões estampa­dos a ouro na capa.

"Ah, grande zarolho!", exclamou. "Nunca falhas!"

Já em Lisboa tinha Luís afogado em mulheres o seu desgosto de amor e por várias vezes perguntou a si mesmo se não estaria agora a fazer a mesma coisa. Precisava de ultrapassar o trauma da separação de Amélia e era sempre à custa de outras que o conseguia. Sabia, contudo, que as suas namoradas não passavam de respostas transitórias. Cada uma servia para lhe alimentar a efémera ilusão de que vencia o desgosto, mas depressa o sentimento de perda regressava, como uma ferida mal sarada, e era esse o sinal de que tinha de mudar para outra. Estaria Joana destinada a ser mais uma na sua infindável lista?

Procurou a solução nos intervalos das suas obrigações de veterinário do regimento, quando se esgueirava do quartel e ia ter com a nova amiga. Aproveitava as saídas diárias de Joana para a acompanhar no passeio, que se foi tornando gradualmente mais longo e apimentado. Luís relatou-lhe a sua vida em Lisboa e as aventuras na faculdade, mas teve sempre o cuidado de omitir a infância em Trás-os-Montes; queria dar a impressão de homem da cidade, vivido e conhecedor das coisas do mundo, e achava que as suas raízes transmontanas não se coadunavam com essa imagem de sofisticação urbana.

O curioso é que também Joana se revelou reservada, embora neste caso tal derivasse da sua natureza.

"Sou órfã", revelou ela quando um dia o passeio os levou até ao recatado jardim da Praça da República. "A minha mãe morreu há dois anos."

"Ah, coitada", exclamou Luís, apercebendo-se de que a ferida era relativamente recente. "És agora tu quem trata do teu pai?"

"O meu pai morreu quando eu era pequenina."

"Mas, então, e o juiz?"

"É o meu padrinho. Ficou viúvo há uns anos e a minha mãe mandou-me para cá viver com ele."

"Porquê?"

"Porque ele não sabia cuidar dele mesmo, coitado. E por­que um dos desejos da minha mãe era que eu frequentasse aqui o Colégio do Sagrado Coração de Maria."

"O que tem o colégio de especial?"

"É um colégio de freiras francesas", disse, como se isso explicasse tudo. "Foi aqui que ela estudou quando era nova e tinha a mania de que não havia escola melhor." Baixou a voz, quase num aparte. "Eu cá acho que a viuvez do meu padrinho serviu de pretexto conveniente. Como ele vive aqui e o colégio é também em Penafiel, a minha mãe aproveitou e mandou-me para cá."

Havia em Joana algo que tocava fundo no transmontano. Luís apercebeu-se de que a rapariga tinha um encanto melancólico que lhe era estranhamente familiar, uma espécie de reminiscência de Amélia, como se o espírito de uma vivesse na outra. Aos seus olhos, Joana tornara-se, de certo modo, Amélia. A parecença física e alguns trejeitos davam-lhe a ilusão de que se tratava da mesma pessoa, uma impressão tão forte que a mente logo tratou de sublimar as diferenças registadas pelos olhos, como se a vontade de recuperar Amélia fosse mais poderosa do que a razão. Chegava a pensar que eram coisas da Providência; a paixão do liceu fora-lhe roubada, mas o destino compensava-o com uma segunda oportunidade. Amélia era-lhe devolvida com outro nome.

As coisas entre ambos só voltaram a evoluir ao fim de um mês, quando um dos passeios diários os levou para os lados dos Paços do Concelho. Os périplos da rapariga até ao tribunal tinham-se tornado cada vez mais variados, levando-os a outros pontos da pequena cidade; parecia a Luís que eram uma nova versão dos inesquecíveis passeios com Amélia até ao liceu de Bragança, só que numa outra terra e com um itinerário em permanente mutação.

Numa tarde invernosa ia ele garboso no seu sobretudo militar quando Joana o guiou até uma pequena rua que se abria à esquerda e descia íngreme, quase como se deslizasse para um poço. Uma pequena placa anunciava que estavam na Rua Direita.

"Anda daí", disse ela, encolhida num longo casaco azul--escuro. "Vou mostrar-te uma coisa."

"O quê?"

"O sítio mais romântico de Penafiel."

Descer o empedrado inclinado da rua requeria algum esforço de equilíbrio, pelo que o alferes veterinário teve de agarrar a mão da rapariga para a ajudar a caminhar. A pretexto de que estava frio, ela aconchegou-se em busca de calor, e desceram assim até diante de uma igreja de traça renascentista.

"Esta é a Igreja Matriz", revelou ela, os olhos garços a deslizarem pela fachada de pedra antiga. "Não é romântica?"

A igreja parecia inclinar-se na rua, tentando também ela manter o equilíbrio na artéria oblíqua, uma parte da fachada mais profunda do que a outra. O edifício tinha um óculo no topo e duas colunas jónicas a enquadrarem a porta.

"Bem... é bonita", concordou Luís, um pouco desconcertado. Para local romântico, esperava outra coisa. "Confesso-te que já vi por aqui sítios mais românticos. Olha, o jardim ao pé do tribunal, por exemplo. Parece-me um..."

Ela tapou-lhe a mão com a boca e voltou a olhar para a igreja.

"Os meus pais casaram aqui."

Considerando que se tratava de uma órfã, era evidente que o local onde os pais se haviam casado tinha para ela um intenso valor simbólico, quase mítico.

Cruzaram a entrada e Joana mostrou-lhe o altar.

"É lindo, não é?"

Era um grande altar rocaille, mas Luís sentia-se mais preocupado com o desconforto do que com a sua harmonia. Fazia muito frio dentro da igreja e no ar pairava o odor beato a hóstias e velas queimadas. Joana parecia porém alheia a isso, a atenção focada no altar, como se recuasse até ao dia do casamento dos pais.

A rapariga virou devagar o rosto para Luís e os seus olhos meigos pestanejaram, pareciam borboletas trémulas. Os dois aconchegavam-se ainda um no outro, as faces quase a tocarem-se, o perfume de Amélia a flutuar nos cabelos de Joana. Inebriado, Luís não conseguiu resistir. Inclinou a cabeça, cerrou as pálpebras e com os lábios mergulhou na boca quente.

O namoro foi vivido às escondidas. Encontravam-se na esquina do quartel e iam beijar-se num canto escondido do discreto jardim da Praça da República, atrás do Palacete do Barão do Calvário, onde funcionava o Tribunal Judicial, o vale verdejante espraiando-se para além do muro.

Ao contrário do que sucedera com os múltiplos casos amorosos em Lisboa, desta vez a ilusão de que a namorada era Amélia não se desfez com o tempo. Pelo contrário, foi-se consolidando. Isso constituiu uma surpresa para o veterinário, que se habituara já a ver a magia do enamoramento desfazer-se ao cabo de algumas semanas, quando as semelhanças das sucessivas raparigas com Amélia esbarravam na constatação de que nenhuma era como a primeira.

Com Joana foi diferente. A medida que o tempo passava, mais se acentuava a ilusão de que ela era Amélia. As parecenças entre as duas revelavam-se óbvias e Luís não as questionava; limitava-se a viver na felicidade do momento, como se Joana fosse realmente Amélia e estivesse diante do amor reencontrado. Na sua mente, as duas misturavam-se numa única e era sempre a antiga namorada que via quando se encontrava com a nova, de tal modo que por várias vezes quase chamou Amélia a Joana.

A semelhança entre ambas fez crescer em Luís aquela convicção de que lhe tinha sido mesmo dada uma segunda oportunidade. Cabia-lhe a ele decidir entre aproveitá-la e esbanjá-la. Começou a recear que circunstâncias que não controlava lhe roubassem Joana da mesma maneira que Amélia lhe havia sido tirada. A incerteza tornou-o ansioso. Estava convencido de que não dispunha de muito tempo para agir e foi na noite da passagem do ano, quando celebrou no quartel a entrada em 1936, que tomou a decisão.

Joana tinha ido celebrar a noite do Ano Novo a casa dos irmãos, que também viviam em Penafiel, e, como 1 de Janeiro era feriado, não tiveram maneira de se encontrar. Mas no dia seguinte, depois de trocarem sinais entre o quintal dela e a janela dele, cruzaram-se na esquina do quartel, como habitualmente, e seguiram em direcção à Praça da República, o seu poiso secreto.

"O que levas aí?", perguntou ela, indicando um cesto na mão do namorado.

Luís ajeitou o pano que cobria o cesto e manteve-o longe de Joana.

"Uma coisa especial", disse. "É surpresa."

Quando chegaram ao banco do jardim para onde iam sempre, o alferes veterinário pousou o cesto no chão e encarou-a.

"Vá, vira-te para o outro lado e tapa os olhos."

Joana fixou o cesto, como se tentasse ver para além do pano que o cobria.

"Mas o que é isso?"

"Já vais ver", insistiu ele. "Faz o que te digo: vira a cara e tapa os olhos. Anda."

Como uma criança irrequieta, Joana voltou relutantemente o rosto para o tribunal e pôs as mãos sobre os olhos. Ouviu um refolhar surdo atrás dela e suspirou com impaciência.

"Já posso?"

"Espera mais um bocadinho."

O barulho continuou e por duas vezes ela esteve à beira de não conseguir suster a impaciência e quase se virou. Mas conteve-se e esperou pela ordem do namorado.

"Já podes."

Voltou-se e viu uma toalha estendida no banco, sobre a qual se encontrava uma garrafa de vinho do Porto, dois cálices e um pratinho com várias fatias douradas de pão-de-ló.

"O que é isto?"

Luís estendeu-lhe um cálice e uma fatia do bolo.

"Entrámos em 1936 e vamos celebrar, minha querida, porque este ano vai ser muito especial." Tocou com o seu cálice no cálice dela. "Feliz ano novo!"

Beberam o vinho do Porto de uma assentada e Joana quase ficou sem fôlego. Para compensar o ardor alcoólico que lhe queimava a garganta, engoliu duas fatias de pão-de-ló e soltou uma gargalhada.

"Não sabia que davas tanta importância à passagem do ano."

"Na verdade, não estamos a celebrar apenas a entrada no novo ano."

"Ai não?"

Luís tirou um embrulho do bolso do casaco e estendeu-o à namorada. Joana pegou no pequeno presente e estudou-o com admiração.

"O que é?"

"Abre."

Com os dedos ágeis, a rapariga desfez o papel de embrulho até ficar com uma caixinha minúscula na palma da mão. Abriu a caixinha e o cintilar de uma pedra preciosa quase a ofuscou. Olhou interrogativamente para Luís, que com infinita delicadeza pegou no anel, o fez deslizar num dos dedos dela e lhe devolveu o olhar.

"Casas comigo, Joana?"

 

Os portões das cavalariças estavam entreabertos quando o capitão Branco se aproximou, o cachimbo espetado na boca, as botas salpicadas de lama. O veterinário encontrava-se ajoelhado sobre a palha e analisava as patas de Relâmpago; cheirava a cavalo e a estrume na estrebaria, mas o fedor não parecia incomodá-lo. O recém-chegado apoiou os cotovelos nos portões e tossiu muito alto, mais para sinalizar a sua presença do que a pedido dos pulmões.

"Meu capitão", admirou-se Luís, virando o rosto logo que ouviu a tosse. "Já voltou?"

"Não, ainda lá estou", disse com ironia. "Claro que voltei."

O veterinário ergueu-se e contorceu o tronco, para aliviar a dor provocada pela posição em que tratava dos animais.

"E como anda Lisboa?"

"Na mesma. O Norte trabalha e Lisboa diverte-se, como de costume."

"E o meu capitão? Divertiu-se?"

"Trabalhei."

"Mau. Não me diga que nem foi ao Parque Mayer..."

O capitão riu-se.

"Sou trabalhador, mas não sou parvo. Claro que fui ao Parque Mayer, então não havia de ir?"

"E então? Qual é a grande sensação do momento?"

"É o Arre, Burro! Mete as estrelas todas no Variedades, parece uma constelação! A Beatriz Costa, a Hermínia Silva, o António Silva e o Vasco Santana... está lá tudo!"

"Ena, é mesmo um elenco de luxo. De quem gostou mais?"

"De todos. De todos." Hesitou. "Bem, a grande figura continua a ser a Beatriz Costa, não é verdade? Que grande artista!"

"É, não é? Ela faz de quê agora?"

"De saloia, mas muito refilona, está a ver o género? Só lhe digo, é um estrondo!"

"Essa miúda é muito talentosa. Tem Lisboa aos pés."

Mário Branco soltou uma baforada aromática.

"E ela com Lisboa e você com Penafiel."

A observação surpreendeu Luís.

"Eu, meu capitão?"

"Sim, você. Bastou eu dar um salto a Lisboa e o alferes pôs-se logo a fazer das suas, hem?"

"Como diz, meu capitão?"

O oficial apontou-lhe o cachimbo fumegante.

"Então você não vai casar, homem?"

"O meu capitão já sabe?"

"Eu sei tudo. O meu dever é saber. A única coisa que ainda não sei é quando é que vossa excelência planeava dar-me a novidade. Ou ia casar sem dizer nada a ninguém?"

"Mas eu não lhe podia dar a notícia, meu capitão. O meu capitão não estava cá."

"Eu sei, mas... caramba, você é mesmo rápido. Mal virei costas, arranjou noiva e... pimba!, já vai dar o nó na próxima semana! Parabéns, homem! A Joana é uma rapariga e peras, hem?"

"O meu capitão conhece-a?"

"À Joana? Claro que conheço! Aliás, tenho obrigação, não é verdade? Afinal é minha cunhada."

"A sério?"

"É verdade, homem. Penafiel é terra pequena, o que pensa você? Aqui todos se conhecem e todos têm relação com todos."

O veterinário coçou a cabeça.

"Pois, estou a ver."

O capitão abriu os braços, efusivo.

"Venham daí esses o'ssos." Puxou o alferes veterinário para si. "Vamos ser da mesma família, que diabo!"

Luís caiu algo desconcertado nos braços de Mário Branco, ainda apanhado de surpresa pela inesperada relação familiar entre o capitão e a namorada. Ainda bem que nunca inquirira sobre Joana junto do superior hierárquico, pensou com alívio. Poderia ter sido embaraçoso.

"Você tem de ir lá a casa", disse o capitão quando se apartaram. "Isto é uma vergonha, a Joana vai casar e ninguém sabe com quem. A família tem de o conhecer."

"Estou às suas ordens."

"O casamento é de amanhã a oito, não é verdade?"

"Sim, é no sábado da próxima semana."

"Eu gostava de o levar este fim-de-semana, mas uma das minhas pequenas está engripada, não pode ser. Temos de lhe dar uns dias para se restabelecer. Que tal quarta-feira?"

"Quarta não posso, meu capitão. Vou passar o dia na feira de Amarante. Devo chegar tarde e a cheirar a gado."

"Não pode adiar isso?"

"Adiar a feira?"

O capitão reconsiderou.

"Tem razão, não pode ser", disse, fazendo um esforço para reconstituir mentalmente a sua agenda. "Quinta-feira não posso eu, já tenho um jantar com o doutor Reis. Só se for na sexta."

"Mas isso é a véspera do casamento, meu capitão."

"Pois é, mas não vejo alternativas. Ou tem melhor sugestão?"

"Não, não tenho."

"Então fica combinado. Jantar na sexta-feira em minha casa."

"Devo levar a Joana?"

O capitão assumiu uma expressão indignada e pôs as mãos à ilharga.

"O homem, você quer atrair azar à sua casa?" Ergueu o indicador, sentencioso. "Na véspera do casamento, nem pensar em pôr os olhos na moça, ouviu? Dá má sorte! Você vai sozinho e a minha patroa prepara-lhe um repasto de que nunca mais se esquecerá!"

Luís riu-se e voltou para junto de Relâmpago.

"Sempre quero ver isso."

Primeiro esticou o braço para fora e com a mão sentiu a temperatura; depois dona Maria desceu os degraus da composição e esperou que o cavalheiro atrás dela lhe trouxesse a mala. O homem tremia com o esforço, mas lá conseguiu pousar o malão no cais e, com um rápido movimento do chapéu, despediu-se da senhora que em má hora lhe pedira ajuda para tirar a bagagem.

Quando Luís chegou ao pé da tia e a cumprimentou, ela respondeu com um sorriso luminoso.

"Belo tempo aqui em Penafiel, hem?", observou, vendo o sol espreitar por entre os flocos de nuvens. "Quando saí de Alfândega à pela manhã estava uma bufarra que só visto. Até marcejava um bocadinho."

"Pois, o tempo aqui é mais ameno, sempre estamos mais perto da costa", concordou ele. Inclinou-se para a mala pousada ao lado da tia. "Dá-me licença?"

"Tem cuidado que trago aí umas porcelanas para oferecer à noiva. Vê lá se as arruinas."

Luís agarrou o malão e teve dificuldades em erguê-lo, de tão pesado que estava.

"Argh", gemeu, o rosto ruborescendo como um pimentão, o corpo a inclinar-se para o outro lado numa tentativa de contra­balançar aquele peso. "'Chiça, o que trás aqui? Chumbo?"

"São as minhas coisinhas", devolveu a tia Maria com indiferença. Era daquelas mulheres que achavam que os homens tinham sido feitos para carregar as tralhas das senhoras. "Onde vamos?"

"Ali!", apontou ele, indicando um automóvel estacionado ao pé da estação.

A tia observou a viatura e ergueu o sobrolho, intrigada.

"Olha lá, Luís. Tu agora tens uma carripana?"

O sobrinho bufava como uma máquina a vapor, esforçan-do-se por carregar a bagagem até ao automóvel.

"Não é minha", conseguiu dizer por entre duas arfadas valentes. "É do exército."

"Ai Jesus! Não me digas que traz uns canhões lá dentro!"

"Não tia." Mais um esforço. "É uma viatura de serviço." Estava quase a chegar. "Venha."

O malão era realmente pesado, mas o oficial miliciano lá conseguiu arrastá-lo até junto do automóvel e, depois de mais um esforço titânico, atirou-o para a bagageira.

"Ufa!", soprou, aliviado, o coração aos saltos e o peito ofegante. "A tia dá cabo de mim!"

"Não vejo porquê. O caseiro carregou-me a mala até à estação sem dificuldade nenhuma."

"Mas eu não sou o caseiro." Indicou o malão. "Para que trouxe tanta coisa? A tia só cá vai ficar três dias..."

"Não interessa. Uma senhora tem de andar sempre apresentável, sobretudo numa ocasião destas. O que iriam dizer os teus sogros se me vissem toda escanzelada? Lá vem esta pingúrria, é o que diriam! Lá vem a tia da parvónia! Ainda me chamavam benairo!" Abanou a cabeça com ênfase. "Não, nessas figuras não me apanham! Vou aparecer toda pimpona e fazer um vistaço, vais ver!"

Luís ajudou a tia Maria a instalar-se no automóvel e assumiu o lugar do condutor.

"Ninguém se preocupa com os trapos."

"A certa!", exclamou ela. "Os teus sogros haveriam de comentar, o que pensas tu?"

"Eu não vou ter sogros, tia", disse ele, ligando o motor. "A Joana é órfã."

"Lamento ouvir isso. Mas há-de ter família, não é ver­dade?"

"Com certeza. Tem dois irmãos e tem o padrinho, com quem vive há alguns anos."

"Gente distinta, sem dúvida."

O carro arrancou, subindo a estrada em direcção à cidade.

"Suponho que sim. O padrinho é juiz."

"Ah, então ainda é menina para receber uma herdança jeitosa! E os irmãos?"

"Vamos conhecê-los hoje. Fomos convidados para jantar em casa do capitão Branco, que é o meu chefe no quartel. Ele prometeu-me um repasto opíparo."

"Acho bem. Eu até nem sou gulaimas, como bem sabes, mas venho com uma galgueira que só visto."

Deixou a tia Maria na Pensão Morais e, enquanto ela descansava e se preparava para o jantar, deu um salto à lavandaria do quartel para ir buscar a farda de gala que o capitão Branco lhe emprestara para o casamento. A farda vinha aprumadinha e guardou-a no quarto, onde essa noite dormiria pela última vez. O compartimento estava já quase nu; havia apenas uma mala de roupa pousada sobre a cama. Pegou na mala e voltou a sair; tinha ainda uns pormenores para tratar.

Foi até à Praça Municipal e estacionou junto ao Café da Sociedade. Levou a mala pela Avenida Sacadura Cabral e meteu num edifício à esquerda, onde subiu até ao primeiro andar. Cruzou a porta e assomou ao apartamento que havia alugado; seria ali que iria viver com Joana. O apartamento já se encontrava parcialmente mobilado e Luís abriu a mala e guardou as roupas nas gavetas e no guarda-fatos.

Depois desceu até ao Café da Sociedade e entrou para encomendar umas doçuras. Decidiu-se pela especialidade da terra.

"Um pão-de-ló, se faz favor."

Com o embrulho na mão, atravessou a praça a pé e foi até à Foto Anthony, numa ruela diante do Colégio do Carmo, encomendar o serviço de um fotógrafo para a cerimónia.

"O senhor capitão Branco já veio falar comigo", revelou--lhe o senhor António Guimarães, dono do estabelecimento. "Eu próprio lá estarei para tirar os clichés."

"Bom, o senhor não precisa de se incomodar, pode mandar um funcionário..."

O homem pareceu empertigar-se.

"Tratando-se do matrimónio de uma senhora familiar do senhor capitão Mário Branco, eu próprio lá estarei!", declarou ele com grande convicção. "Não faltava mais nada."

Quando Luís terminou as suas voltas eram já seis e meia da tarde. Tinha combinado às sete em casa do capitão, pelo que seguiu direito para a Pensão Morais.

A tia aguardava-o numa cadeira, junto à recepção. Vinha com um grande vestido amarelo-claro e branco, cheio de rendilhados, e exalava um aroma perfumado.

"Ena, tia! Está muito jeitosa!"

Ela ergueu-se e sorriu, virando a cabeça para baixo para admirar o vestido.

"Estou, não estou? Venho toda adengada, ora venho?"

"Adengadíssima! Está muito chie, sim senhora!"

"De mim, ninguém dirá que sou uma pingúrria, ou eu não me chame Maria Afonso!"

"Ah, claro que não. Se houver por aqui algum solteirão de jeito, acho até que lhe vai fazer o sete..."

A tia deu com a língua um estalido desagradado.

"Vá, juizinho! Deixa-te de boldreguices! Vamos mas é andando! Marche!"

Levou-a até ao automóvel e desfilaram pela Avenida Sacadura Cabral. Penafiel era uma cidade pequena, quase exclusivamente erguida ao longo dessa artéria; bastava percorrê-la para chegar a qualquer parte, tudo girava em torno do eixo central. Depois de passarem pela Praça do Município viraram à direita e subiram em direcção ao ponto mais alto da povoação.

"A tua moça vai lá estar?", perguntou a tia, os olhos perdidos nas fachadas que emparedavam a rua.

"Quem? A Joana? Não. Anda ocupada com o enxoval. A tia só a vai ver amanhã, na igreja."

Um edifício enorme, com torres e cúpulas vistosas, erguia--se da verdura de um parque bem arranjado e coroava o monte como um castelo. Seguindo as instruções que o capitão previamente lhe dera, Luís estacionou logo ali. Saíram do carro e começaram a procurar o número da porta, mas dona Maria não tirava os olhos da fortaleza.

"O que é aquilo?"

"É o Sameiro."

"Sim, mas para que serve?"

"É uma igreja, tia."

A transmontana estacou para apreciar o edifício.

"A sério? Olha que não parece nada uma igreja."

"É porque tem traça francesa. O Sameiro foi construído à maneira do Sacré-Coeur de Paris."

"De Paris? Ena, isto é chie a valer. Vais casar ali?"

"Não, vai ser noutra igreja."

"Também francesa?"

O sobrinho riu-se.

"Não. É a Igreja Matriz. Coisa antiga."

"Se queres que te diga, acho bem. Como diz o Toninho, há que defender o que é nosso. Os Franceses que fiquem lá com as suas igrejas, que nós já cá temos as nossas, bem bonitas, por sinal. Não precisamos de andar a imitar os outros. As nossas igrejas são locais de culto, sítios de devoção, santuários de fé." Indicou o Sameiro com o polegar. "Não são castelos como este... este... sei lá como se chama isto. Onde é que já se viu uma igreja assim, valha-me Deus? Parece um quartel--general!"

Alheio ao solilóquio da tia, Luís tirou do bolso o papel que o capitão lhe dera com a anotação da morada e foi esprei­tando o número das portas, à procura da casa da família Branco.

"É aqui!", exclamou.

Parou diante de uma fachada estreita de três pisos e tocou à campainha. Ouviu o trrrrrrrrrim do outro lado e escutou o som de passos a aproximarem-se.

"Ora viva!"

O capitão Branco veio acolhê-los à porta. Depois de percorrerem um corredor estreito, levou-os por uma escada que rodava em caracol para a direita. Havia um certo odor a mosto dentro da casa; eram decerto as garrafas de vinho arrumadas ao lado da escada.

A fragrância mudou no primeiro andar; deixou de cheirar a vinho e o aroma tornou-se quente e suculento.

"Hmm, que bom!", exclamou dona Maria, que não comia desde essa manhã. "É um esturgidinho?"

"Como?"

"Um esturgido", insistiu ela, usando a expressão transmontana. "Um... um refogado."

"Não, não", corrigiu o capitão. "Vamos ter um belo assadinho."

"E dos valentes, pelo cheiro."

"Ah, sim! Disso pode estar certa! A minha patroa tem um dedo para a cozinha que só visto."

"Bem me cheira, bem me cheira!"

Atravessaram a sala de jantar, ocupada por uma longa mesa muito bem arranjada, os pratos, os copos e os talheres assentes numa toalha de renda branca.

Um vulto emergiu de repente da penumbra, à esquerda.

"Ora aqui está a minha mulher."

O vulto feminino cumprimentou dona Maria e virou-se para Luís. A sala estava escura e o alferes veterinário teve dificuldade em distinguir-lhe as feições.

"Olá, Luís."

A voz, um pouco rouca e estranhamente familiar, atingiu-o como um raio. A porta da cozinha abriu-se nesse instante e deixou a luz jorrar sobre aquela sombra difusa, revelando-lhe os traços delicados da face. Luís arregalou os olhos, incrédulo, vendo mas não querendo acreditar.

Era Amélia.

 

Foi com gestos maquinais e a mente a revolver-se num turbilhão atordoante de pensamentos que Luís sobreviveu a todo o jantar. As pessoas falavam em torno dele como se fossem estranhas; as conversas não passavam de mero ruído de fundo, de um rumor distante no mar de perplexidades em que se sentia naufragar.

Mas que raio estava Amélia ali a fazer? Era ela a irmã de Joana? Caramba, isso explicava as semelhanças entre as duas! As linhas do rosto, a suavidade dos traços, os olhos garços e melancólicos, as expressões nostálgicas, a maneira de sorrir, o leve toque a May McAvoy. Nenhuma daquelas parecenças era afinal um acaso! Amélia era a irmã de Joana! Mas como diabo não percebera isso antes? Como fora possível que nunca se tivessem cruzado, que nunca Joana lhe tivesse falado em pormenor da irmã, que nunca ele se apercebesse da inacreditável coincidência?

"Não achas, Luís?"

Olhou atarantado para a tia, que parecia esperar uma resposta.

"Hã?"

"A quinta dos Cerejais. Não achas que ela também podia ser adaptada para o vinho, como aqui a quinta do capitão?"

"Ah, sim. Claro. Sem dúvida."

A tia voltou-se para o anfitrião e a conversa transformou-se de novo num rumor distante. Luís fixou os olhos em Amélia, que parecia tentar evitá-lo e procurava fixar o marido enquanto falava. O coração apertou-se-lhe. Era ela a mulher do capitão Branco? Mas que loucura vinha a ser aquela? Como fora possível nunca a ter visto antes? Era verdade que o capitão sempre se mostrara um homem reservado, mas, que diabo, podia-se até ter dado o caso de sccruzar com o casal na rua ou vê-lo na missa. Houvera tantas oportunidades para se aperceber do que se passava, como raio uma coisa daquelas lhe havia escapado?

"... não é?"

Viu a tia de novo calada a olhá-lo, como se aguardasse nova resposta.

"Hã? O quê?"

Dona Maria apertou os lábios, impaciente.

"Olha lá, estás a ouvir o que eu estou a dizer?"

"Eu? Bem... sim, claro."

"Então o que achas?"

Luís embatucou. Olhou para a tia, para o capitão e para Amélia, sem saber o que dizer.

"Será que pode repetir a pergunta?"

Dona Maria suspirou.

"Bem, já vi que não estás a prestar atenção nenhuma ao que eu estou para aqui a dizer."

"Estou, estou", insistiu ele, contrariando o que era evidente. "O que se passa é que... que..." Buscou desesperadamente

um álibi convincente. "Tenho uma brutal dor de cabeça." Acto contínuo, pôs a mão na testa e os olhos tornaram-se-lhe mortiços. "Ui! Dói-me mesmo a cabeça..."

"Ah, coitadinho! Quando é que isso começou?"

"Foi há bocado. Sabe o que é, fiquei muito tempo sem comer."

"Não seja por isso", atalhou o capitão, empurrando uma travessa de cabrito na sua direcção. "Dê-lhe com força, homem! Arrefinfe-lhe!"

"Não, obrigado. Já comi muito e agora esta dor vai passar depressa."

"Bem, então a Amélia vai-lhe preparar uma tisana especial para as enxaquecas. Vais, querida?"

Querida? O uso da palavra deixou Luís chocado. Ela agora era a querida do... do... do outro?

"Claro que sim", disse a mulher, levantando-se de imediato.

"Não, não", exclamou Luís, erguendo a mão para a travar. "Espere. Não é preciso."

"Olhe que uma tisaninha fazia-lhe bem."

"Deixe estar, eu estou bem. Se ficar caladinho, isto passa. É sempre assim. Não precisa de se incomodar, já estou habituado a estas dores de cabeça. É coisa passageira, desaparece depois de eu comer, vai ver."

A tia e o capitão retomaram a conversa; Luís tinha a impressão de que falavam de terras e de cultivo, mas os pensamentos arrastaram-no de novo para Amélia. Será que ela também havia sido apanhada de surpresa por vê-lo ali? Cravou os olhos nela, perscrutando-a. Não, dava-lhe a impressão de que não. Vendo bem, ela lançara-lhe um Olá, Luís! muito revelador; não fora um cumprimento surpreendido, lançado por alguém submerso em espanto, mas uma saudação resignada, como se soubesse o que aí vinha. Agora que Luís

pensava nisso, pôs-se a escutar mentalmente o som da voz a saudá-lo quando entrara na sala. O Olá Luís! passou consecutivamente na sua cabeça, como um disco riscado no gramofone.

Foi então que se apercebeu de que aquelas palavras, e sobretudo o tom resignado em que haviam sido proferidas, exprimiam uma conformada e imensa tristeza.

"Olá, mãaaaae!"

A voz infantil interrompeu a conversa e duas crianças apareceram na sala a correr. Um rapazinho pequeno agarrou-se às pernas do capitão Branco, que com uma gargalhada o puxou para o colo, enquanto uma menina ainda mais nova saltitou para os braços de Amélia.

"Então, meninos?", perguntou o capitão. "Já vieram?"

"Simmm!"

Luís observava a cena embasbacado. Amélia era mãe! Com o choque de a encontrar ali nem se lembrara que o capitão lhe dissera que tinha filhos. Amélia era mãe! Foi nesse instante que caiu totalmente em si e tomou consciência da irreversibilidade da situação em que ela se encontrava. Amélia casara e não fora com ele; tinha filhos e não eram seus. Como diabo acontecera tudo aquilo? Que mal fizera ele para estar a ser confrontado com aquela realidade inultrapassável? Amélia era dele! Como fora possível que o tivessem espoliado daquele modo?

"Onde está o tio Chico?", perguntou Amélia à menina que se abraçava a ela.

"Vem ali!"

Um rapaz entroncado, de costas largas e corpo de gorila, o rosto a exibir grandes arcadas supraciliares, entrou na sala com um grande cesto na mão.

"Então, Chico? Tão cedo?"

"Foram os meninos, senhora. Queriam vir para casa."

Evitando encarar Luís, Amélia voltou-se para dona Maria.

"É o meu irmão Francisco", anunciou. "Ficou com as crianças em casa da minha sogra."

"A ideia era elas deixarem-nos jantar em paz", explicou o capitão Branco. Fez cócegas ao filho. "Mas acho que as tréguas já acabaram, não é seus marotos?"

Dona Maria olhava embevecida para as crianças.

"Ai que lindos meninos! Vocês têm dois filhos maravilhosos, não há dúvida."

"Três", corrigiu o capitão.

Francisco pousou o cesto no chão e afastou uma rendinha, revelando um bebé a dormir.

"É a Lourdinhas", disse Amélia. "Vai fazer um ano."

"Ai que querida! E os outros?"

"O António, quantos anos tens?", perguntou o capitão ao rapazinho sentado ao seu colo.

A criança exibiu a palma da mão aberta.

"Cinco."

"E a Rosinha tem três", acrescentou o pai.

Por mais que tentasse esconder o espanto, Luís tudo observava de boca aberta. Eram três filhos e o mais velho tinha cinco anos. Ora a última vez que vira Amélia fora no início de 1930, fazia por aquela altura seis anos. Isto queria dizer que fora logo no ano seguinte que ela tivera um filho de outro. De outro. E, depois disso, pelos vistos nunca mais parara! Sentiu uma fúria surda crescer-lhe no peito. Ela nunca mais tinha parado com o outro! Deixara a mãe afastá-la de Luís, casara com o capitão Branco e, não contente com tudo isso, desatara a parir filhos! Como pudera ela fazer-lhe aquilo? Como era possível que Amélia lhe tivesse sido tão infiel?

"E este rapaz?", perguntou dona Maria, apontando para o adolescente abrutalhado que permanecia em pé. "A senhora disse que é o seu irmão?"

"O Chico? Sim, é... é o meu irmão."

"Seu e da Joana?"

"Sim. Somos os três irmãos."

A atenção de Luís foi desviada para o rapaz de cabelo curto e pequenos olhos negros. Tinha um rosto que lhe era familiar. Atónito, os olhos arregalados de estupefacção, percebeu enfim quem ele era. A face alargara e alongara, o corpo tornara-se ainda maior e mais compacto, mas aqueles olhos e aquela expressão vazia não enganavam, não havia dúvidas de quem se tratava. Era o bastardo abandonado em bebé numa igreja de Bragança! Era o filho adoptivo de dona Beatriz! Era o fedelho que com apenas doze anos lhe dera uma tareia quando daquele derradeiro confronto com a mãe de Amélia!

"Bem, o mal está feito!", exclamou o capitão Branco, batendo com a palma da mão no joelho. "Se não dormem com a avó, dormem aqui. E é já."

"Oh, não!", protestou o pequeno António.

"Oh, sim!", devolveu o pai, que logo ergueu a cabeça para Francisco. "Dormes cá?"

"Não, senhor", disse o brutamontes, torcendo os dedos entrelaçados. "Vou dormir à quinta."

O capitão ergueu-se da mesa.

"Se me dão licença, vou então deitar os pequenos."

"Ai, senhor capitão", disse dona Maria. "Se calhar é me­lhor irmos andando. Já se vai fazendo tarde."

"Que disparate!", cortou o anfitrião. "Ainda nem nove horas são! Antes das dez não sai ninguém desta casa."

"Mas, senhor capitão..."

"Não há mas nem meio mas", atalhou ele, num tom que não admitia discussões. "Vou só pôr as crianças a dormir e já volto, está bem?" Olhou de relance para a mulher. "Vens,

querida?"

Amélia entregou-lhe a menina que se aninhava ao seu colo.

"Vai tu. Eu fico aqui com os convidados."

A tia Maria ergueu-se, prestável.

"Eu ajudo-o, senhor capitão."

"Não é preciso", disse ele. "Já estou habituado a adormecer as crianças." Fez um sinal na direcção da empregada, uma mulher pequena e silenciosa que se aproximava da mesa. "Além do mais, a Manelinha ajuda-me."

"Eu insisto", disse a tia Maria. "Adoro crianças e o senhor não me vai roubar o prazer de ajudar uma delas a adormecer,

pois não?"

"Por amor de Deus, não seja por isso. Venha daí!"

Metamorfoseando-se subitamente, a sala de jantar esvaziou-se. Num instante era uma algazarra infernal, no momento seguinte instalara-se a tranquilidade. O capitão e a tia Maria desapareceram com as três crianças e a criada, enquanto Francisco se despedia e saía discretamente de casa.

Na sala apenas se escutava o estrepitar nervoso e reconfortante da lareira; as chamas projectavam sombras dançantes pelos cantos e no ar flutuava o aroma quente da lenha a arder.

Foi então que o olhar de Luís se prendeu no de Amélia.

 

Amélia deixou escapar um suspiro.

"Sou uma péssima mãe", disse, preenchendo o embaraçoso silêncio que se instalara entre ela e Luís. Indicou com a cabeça a porta da sala, por onde todos tinham acabado de sair. "Ele é que trata dos miúdos. Conta-lhes histórias, canta-lhes napo­litanas, brinca com eles." Novo suspiro. "Eu não tenho paciência nenhuma. Nenhuma, nenhuma, nenhuma."

O silêncio voltou, pontuado pelo incansável estralejar da lareira no seu labor cálido. Luís manteve os olhos fixos na antiga namorada, a mente vazia e o coração cheio, sem nada falar e com tudo para dizer, as palavras a expirarem-lhe na garganta.

"O que nos aconteceu?"

Foi apenas o que conseguiu dizer, mas a pergunta encerrava tudo. Amélia baixou os olhos e sorriu o sorriso dos tristes, o rosto derramando-se numa expressão melancólica.

"Aconteceu-nos a vida."

A lareira estalou, como se quisesse argumentar.

"Mas como foi possível ter sucedido o que sucedeu?" Baixou a cabeça. "A bem dizer, nem percebo bem o que nos aconteceu..."

"Foi a minha mãe."

"Eu sei que foi a tua mãe. Mas porquê?"

Amélia encolheu os ombros.

"Cismou contigo. Achava que tu eras um parolo de Alfândega, que não sabias o que querias, que ainda davas em veterinário e eu acabaria numa casa cheia de pulgas e percevejos... enfim, essa lengalenga toda."

Luís contraiu o rosto, incrédulo.

"Mas tudo isto foi porque eu lhe disse que queria ser veterinário? Um veterinário é um médico, não é um cangalheiro. Que eu saiba, tenho uma profissão de prestígio. Como pôde ela criar todo este problema só por causa disso?"

A anfitriã mordeu o lábio inferior, pensativa.

"Tens razão", concedeu, após reflectir um instante. "Ven­do bem as coisas, aquela conversa do veterinário-não-presta não passava de uma desculpa que ela inventou às três pancadas. O facto é que a minha mãe não queria que eu casasse contigo, ponto final."

"Mas porquê?"

"Acho que ela tinha outras ideias."

"Que ideias?"

Amélia respirou fundo, como se lhe custasse abordar o assunto.

"É um pouco difícil de explicar."

"Julgo merecer que tentes."

Era uma boa razão para tentar explicar o inexplicável, raciocinou ela. Espreitou a porta da sala, para se assegurar de

que ninguém ali estava nem se aproximava, e inclinou-se na direcção de Luís.

"Não sei se percebeste, mas a minha mãe era uma pessoa traumatizada pela morte do meu pai", começou por dizer em voz baixa. "Como te contei uma vez, ele era cabo do exército e faleceu por causa dos gases que inalou lá em França. Foi então que ela cismou que as filhas iriam casar com um oficial. Achava que isso é que era coisa de prestígio. São os militares quem manda no país, costumava dizer. De maneira que primeiro tentou com a Joana. Conhecia muito bem o juiz Brandão, aqui de Penafiel, que se dá muito com militares."

"Aliás, vive ao lado do quartel."

"Nem mais. Quando o juiz ficou viúvo, a minha mãe mandou a Joana parar aqui, a pretexto de o ajudar. A verdadeira ideia, parece-me a mim, era integrá-la no meio militar, na esperança de que surgisse um pretendente."

"E surgiu?"

"Sim, alguns. Mas nenhum tinha pedigree que satisfizesse a minha mãe. Eram todos uns pelintras. Além do mais, a Joana era ainda muito nova, havia tempo."

"E depois?"

"Uma vez viemos aqui a Penafiel visitá-la e, num baile ali no Grémio, conheci o Mário, que na altura era tenente."

"Qual Mário?"

"O meu marido. Apresentou-se como o tenente Mário Branco. A minha mãe viu-me a conversar com ele, foi indagar e descobriu que era um rapaz de boas famílias."

"Quer dizer que já o conhecias antes de mim?"

"Sim, mas isso não significa nada. Namoriscámos um bocadinho, é verdade, mas eu era muito nova. Aquilo foi mais um jogo de adolescentes do que qualquer outra coisa."

"Então como acabaste por casar com ele?"

Amélia voltou a respirar fundo. Era notório que aquela parte era difícil de narrar.

"É muito complicado", disse. "O Mário era de uma famí­lia prestigiada aqui na cidade, tinha terras e tudo, e a minha mãe encorajou a coisa. Sempre que vínhamos a Penafiel visitar a Joana, pimba!, ela arranjava maneira de suscitar um encontro entre mim e o Mário. Ou era um almoço, ou era um piquenique, ou era um baile, ou era isto, ou era aquilo. Inventava sempre qualquer coisa. De modo que, embora não fôssemos namorados, criou-se uma certa relação entre nós."

"Mas a tua mãe dizia-te mesmo que queria que tu casasses com ele?"

"Não, não era assim tão directa. Na verdade, nem sequer tocava no assunto. Era demasiado esperta para o fazer. Mas o que é facto é que ia criando as oportunidades. Entre mim e o Mário não acontecia nada, mas as sementes estavam lançadas..."

"Até que apareci eu."

Amélia sorriu.

"A minha mãe entrou em pânico quando soube da tua existência."

"Ai sim? Ela disse-te?"

"Claro que não. Já te expliquei que ela era muito esperta. Mas é fácil perceber que vinhas dar cabo daqueles planos todos, não é verdade? Põe-te na posição dela: então andava ela em mil trabalhos a arranjar tudo muito bem arranjadinho e a filha ia apaixonar-se por outro? Tu eras a peça que não encaixava neste esquema grandioso que ela concebeu na sua própria cabeça. Pior ainda, eras a peça que dava totalmente cabo do esquema. Portanto, a minha mãe começou logo a minar as coisas e a montar um plano de emergência. Veio cá a Penafiel às escondidas e conversou com o Mário.

Disse-lhe que eu estava apaixonada por ele, mas que, como ele não se decidia, aparecera outro rapaz e a coisa poderia dar para o torto. Logo, e se o Mário estava mesmo interessado, era melhor consumar as coisas o mais rapidamente possível."

"E ele?"

"Estava interessado."

Luís sorriu sem vontade.

"Então não haveria de estar?", observou, admirando-lhe as linhas perfeitas do rosto. Que saudades sentia ele daqueles olhos de ouro! Subitamente fatigado, massajou as têmporas com a ponta dos dedos e abanou a cabeça. "Ou seja, a tua mãe precipitou os acontecimentos."

"E de que maneira! Conversou com o Mário e a família dele nas minhas costas, sempre convencendo-os de que me representava, e até marcou a data de casamento. Foi ao Porto preparar o enxoval e tudo. E eu, inocente e ingénua, não sabia de nada!"

"Isso é incrível."

"E incrível para quem não a conhecia, Luís. A minha mãe, quando se lhe metia uma coisa na cabeça, era capaz de tudo. De tudo."

"Como se viu."

"Até que, na véspera do casamento, deu o golpe que andava há tanto tempo a planear. Quando cheguei a casa, vinda do liceu, deparei-me com o meu quarto vazio. Numa manhã, ela e o Francisco empacotaram todas as minhas coisas e enfiaram-nas numa caminheta para Penafiel. Pergun-tei-lhe o que se passava e ela disse que eu era uma ingrata, que ela se sacrificara por mim e eu, em vez de lhe agradecer, cuspia nela. Perguntei-lhe a que se referia e ela respondeu-me que filha dela não se casaria com um veterinário nem iria

viver numa casa cheia de pulgas. Começámos a discutir e a minha mãe anunciou-me que me punha na rua. Eu não teria mais nenhum lugar para viver, iria para a rua. Pôs-me cheia de medo, como calculas. Fiquei a imaginar-me a viver literalmente na rua."

"Ela não te fazia isso..."

"Luís, já te disse mil vezes: tu não conhecias a minha mãe. Quando se lhe metia uma coisa na cabeça era capaz de tudo."

Ele esboçou um ar incrédulo.

"Tu achas que ela te punha na rua? A tua mãe?"

"Não tenho dúvidas nenhumas."

"Caramba!", exclamou, reconstituindo o rosto de dona Beatriz na mente. Logo que a conhecera percebera que ela era torcida, mas nunca imaginara que chegasse a tais extremos. "Podias ter vindo ter comigo."

"Pensei nisso, mas vi logo que não podia ser."

"Ora essa! Porquê?"

Amélia inclinou a cabeça.

"O Luís, ainda perguntas porquê? O que farias tu se eu te aparecesse à porta da pensão sem nada?"

"Acolhia-te, claro."

"Ai sim? íamos os dois dormir para o teu quarto na pensão?"

Luís percebeu o argumento.

"Pois, tens razão. Não podia ser." Considerou o cenário e pôs-se a imaginar soluções alternativas. "Bem, sempre podia mandar-te para a tia Maria..."

"E eu ia viver para Alfândega?"

"Porque não?"

"E a tua tia? Achas que ela ia mesmo acolher de braços abertos uma desconhecida que lhe aparecia pela frente?" Abanou a cabeça. "Temos de ser realistas, Luís. Tu ainda eras

estudante, não tinhas maneira de me sustentar. E eu era muito nova e estava aterrorizada. Já me via a viver na rua e tudo. Nestas circunstâncias, como poderia eu ir contra a vontade da minha mãe?" Encolheu os ombros. "Não podia."

Luís esfregou o queixo, rendendo-se à evidência. Ela tinha razão.

"Portanto, vieste para Penafiel."

"Chorei toda a viagem. A minha mãe tinha previsto tudo e alugou um automóvel para a viagem. Se não fosse isso, seria uma cena danada no comboio. Do que ela se livrou!"

"E casaste no dia seguinte."

"Toda a gente pensava que os meus olhos vermelhos eram de chorar de alegria."

Ele observou-a com compaixão.

"Como foi o casamento?"

"Muito duro. Tive de me forçar a sorrir para esconder o que me ia na alma."

"Podias ter feito cara contrariada. Assim toda a gente veria a verdade e talvez não te casasses."

"Não deves ter ouvido o que eu te expliquei, Luís", disse Amélia, abanando a cabeça. "Tu não estás a perceber o que me aconteceria se o Mário já não quisesse casar comigo?"

"Ficarias solteira na mesma."

"Ficava na rua, Luís. A minha mãe já me tinha expulsado de casa! Ou eu casava com o Mário e ficava com ele, ou não me casava e ficava na rua. É tão simples quanto isso."

"Não acredito."

"Que acredites ou não, isso não muda nada. A minha mãe não iria recuar nessa questão. Era para ela um ponto de honra. Por isso eu nunca poderia dar a entender que casava contrariada, entendes? Se o Mário se apercebesse disso, cancelaria ime­diatamente o casamento. Seria um desastre para mim! Foi por

isso que fiz por sorrir durante toda a cerimónia. E quando me vinham as lágrimas eu dizia que era de felicidade."

Luís recostou-se na cadeira, absorto nos seus pensamentos. Assim postas as coisas, não havia dúvida de que Amélia não tivera qualquer alternativa. A mãe encurralara-a. Grande cabra! Só tinha pena de não a ter esganado quando teve oportunidade.

"Onde está ela?"

"Quem?"

"A tua mãe, claro."

"Já faleceu, coitada. Foi há dois anos, com uma síncope. Estava na loja, em Bragança, quando caiu redonda no chão. Nem sequer soltou um ai."

Lembrou-se que Joana já lhe tinha contado que a mãe morrera dois anos antes. Não fizera a relação, como é evidente, uma vez que na altura desconhecia que Amélia e Joana eram irmãs e mesmo naquele momento isso parecia-lhe ina­creditável.

"Quando é que te apercebeste de que eu estava aqui em Penafiel?"

"Foi através da minha irmã."

"O quê?", espantou-se Luís. "Ela sabe de... de..."

"Não, não sabe nada. Disse-me que tinha um namorado e que ele se chamava Luís Afonso." Mordeu o lábio. "Ia-me dando um fanico quando ouvi o teu nome, mas ainda pensei que fosse coincidência, sobretudo porque ela me explicou que eras um oficial do exército. Mas depois de a Joana me revelar que eras o veterinário do quartel, logo vi que só podias ser tu. Ela fazia muita questão que eu te conhecesse, mas recusei-me liminarmente. Como compromisso, aceitei ficar no Jardim Público à hora em que vocês por ali iam passar. Foi assim que te vi."

Fez-se silêncio.

"E então?"

"E então, nada. Apeteceu-me morrer, só isso."

Luís fez um sinal com a cabeça, indicando a porta da sala.

"E ele? Sabe que nos conhecemos?"

"Não. Ninguém sabe nada de nada. Não disse a ninguém."

Mais uma pausa. A conversa avançava nesta altura aos solavancos.

"E agora?", perguntou Luís.

"Agora, o quê?"

"O que vamos fazer?"

Amélia encolheu os ombros, resignada.

"Nada."

"Nada como? Não percebeste o que aconteceu? Nós reencontrámo-nos! Podemos recuperar o que nos foi roubado! Temos a possibilidade de..."

"Não sejas tonto", atalhou ela. "Não podemos fazer nada."

Luís agarrou-lhe as mãos e fitou-a com intensidade.

"Estás enganada, Amélia. Não é tarde de mais. Ainda temos a vida à nossa frente. Agora que..."

"Luís."

"... nos reencontrámos, podemos..."

"Luís!"

Ao ouvi-la erguer a voz, ele hesitou.

"O que é?"

Amélia retirou as mãos que o antigo namorado agarrava com ardor.

"Eu sou casada e tenho três filhos. Tu estás noivo e vais casar amanhã com a minha irmã. É tarde de mais para nós. Percebes? É tarde de mais."

Ele bateu com a palma da mão na mesa, num gesto de rebeldia.

"Não me caso."

"Não sejas parvo."

"Não me caso, já disse."

"E fazes o quê? Deixas a Joana num pranto para quê? Para te casares comigo? Mas eu já estou casada! Tenho três filhos para criar! Para que vais complicar ainda mais as coisas?"

Luís passou a mão pelo cabelo, desorientado. Agora era ele que se sentia encurralado.

"Então que podemos fazer?"

"Nada."

"Nada, como? Como vou aguentar estar no altar a casar com a tua irmã e saber que tu estás ali atrás a ver tudo?"

Amélia apontou-lhe o dedo.

"Vais aguentar como eu aguentei!", exclamou ela. "Vais aguentar com um sorriso nos lábios e vais ser forte porque eu também serei forte! Vais aguentar porque não há alternativa senão aguentares!"

Luís voltou a recostar-se na cadeira e suspirou; o seu corpo parecia um balão a esvaziar-se.

"Estás a pedir-me o impossível. Estás a pedir-me que..."

"Chiu!"

Amélia mandou-o calar-se e voltou a cara para a porta, atenta aos barulhos. Como em resposta, ouviram-se passos e o som murmurado de uma conversa a aproximar-se. Acto contínuo, o capitão Branco e dona Maria entraram na sala, sorridentes.

"Já está", anunciou o oficial. "Os nossos anjinhos dormem o sono dos justos."

"Ai, são tão queridos!", exclamou dona Maria. "A senhora está de parabéns, dona Amélia. Os seus pequenos são realmente um encanto."

Amélia forçou um sorriso.

"Obrigada."

"Então e vocês?", quis saber o capitão, sentando-se à mesa. "Do que têm falado?"

"Oh, disto e daquilo", retorquiu Amélia, olhando de sos­laio para Luís. "Nada de especial."

"A minha Amelinha é uma pessoa muito melancólica, alferes", disse Branco. "Por isso, não estranhe."

"Melancólica? A Amélia? Nunca reparei em tal!"

Mal acabou de proferir a frase, Luís quase pôs a mão na boca. Ele e a sua língua enorme!

"Como é que nunca reparaste em tal?", perguntou a tia Maria. "Acabaste de conhecer a dona Amélia..."

"Pois, mas... enfim... nunca esta noite reparei que a... a dona Amélia fosse mefancóhca." Olhou para ela, simulando cerimónia. "O que eu quero dizer é que a senhora me parece perfeitamente normal."

A tia Maria soltou uma gargalhada.

"Então não havia de ser normal?", perguntou. "O Luís, tu hoje estás de todo! Deve ser dessa tua dor de cabeça."

"E do casamento", adiantou logo o capitão. "Não se esqueça que o rapaz casa amanhã. Não há homem que não fique um pouco atrapalhado quando está a vinte e quatro horas de pôr a corda ao pescoço, não é verdade?"

A tia Maria olhou para Luís e tocou no relógio, como quem diz que já se iam fazendo horas.

"Pois é", exclamou ele. "Justamente por causa do casamento, não podemos demorar-nos mais, não é verdade?"

"Oh! Já?", protestou o dono da casa.

"Tem de ser, tem de ser."

"Mas fiquem mais um pouco."

Os dois lados cumpriam o ritual do final dos jantares, os anfitriães insistindo que os convidados ficassem, os convidados

repetindo que tinham de sair para não se imporem. Depois de vigorosas insistências em ambos os sentidos, Luís levantou-se e fez uma vénia na direcção de Amélia e do capitão Branco.

"Minha senhora, meu capitão", disse. "O jantar estava uma delícia e a conversa foi maravilhosa. Mas amanhã vai ser um longo dia e precisamos de nos deitar cedo. Com a vossa licença..."

Ergueram-se todos da mesa numa cacofonia de cadeiras a arrastarem-se pelo soalho. Os donos da casa acompanharam os convidados até à porta, onde, e apesar do frio e da humidade, ainda ficaram mais um minuto a trocar amabilidades. No momento em que se beijaram no rosto em despedida, Amélia soprou duas palavras secretas ao ouvido de Luís.

"Sê forte."

 

Apesar do frio, a Igreja Matriz estava apinhada àquela hora da madrugada. As sóbrias fardas militares intrometiam-se entre os exuberantes vestidos e os elegantes fatos domingueiros escolhidos para a ocasião. A sociedade penafidelense comparecera em peso e exibia-se no casamento da protegida do distinto juiz Brandão.

Aperaltado na sua garbosa farda de gala, Luís virou a cabeça quando o burburinho da multidão morreu subitamente, como se a caótica orquestra de vozes obedecesse a um maestro invisível. Recortadas pela luz difusa da aurora, duas figuras assomaram à porta e começaram a desfilar devagar ao longo da nave central da igreja. Os olhos de todos pousaram na rapariga que o sisudo juiz levava pelos dedos e logo recomeçou o burburinho, mas agora sussurrado; eram os comentários à noiva e ao enxoval. Joana vinha deslumbrante, como todas as noivas em dia de casamento; trazia um vestido branco muito rendilhado, com uma longa saia a

deslizar pelo chão e uma pequena coroa cor-de-rosa a florir-lhe os cabelos.

Aguardando-a no altar, o noivo engoliu em seco. Tinha prometido a si mesmo que não olharia uma única vez para Amélia, mas naquele instante não resistiu e espreitou-a de fugida; a sua paixão do liceu estava na fila da frente, o rosto voltado para o corredor central, os olhos presos na irmã, que caminhava para o altar. Luís tentou adivinhar o que sentia, mas Amélia posicionara-se de perfil, o rosto fechado como uma estátua. Era impossível perceber o que lhe ia na cabeça.

Os dois recém-chegados chegaram ao altar e o juiz entregou Joana a Luís. Os noivos e os padrinhos de casamento, o juiz Brandão e a tia Maria, voltaram-se para o pároco, um homem magro já curvado pela idade, e a cerimónia começou.

"Deus criou o ser humano varão e mulher", disse o padre, a voz fraca e sibilante. "Deus abençoou-os dizendo-lhes: crescei e multiplicai-vos e enchei a Terra. Foi nesse instante que o Senhor instituiu os sagrados laços do matrimónio. E é por isso, meus filhos, que nos reunimos hoje, nesta sagrada Igreja Matriz de São Martinho, para celebrar a união destes dois filhos de Deus, Joana Maria Rodrigues Campos e Luís António Afonso. Deus, que é amor e criou o homem por amor, chama-o agora a amar." Apontou o dedo aos noivos. "Jesus disse: serão dois numa só carne. Que seja feita a Sua vontade."

"Ámen!", responderam os fiéis em coro.

A cerimónia prolongou-se por uma hora, com os salmos, as leituras, as orações e o sermão. Luís tinha os pés gelados sobre a pedra fria, mas sentia-se anestesiado, quase imune ao desconforto. Passou a cerimónia como se não fosse ele quem ali estava, como se fosse testemunha e não protagonista, como se o espírito se tivesse erguido do corpo e tudo observasse com alheamento.

Os minutos eternizavam-se e no meio do torpor que o invadira ouviu o padre mencionar o nome de Joana e viu-a responder "sim" sem quase entender o significado da palavra.

O estado beatífico de letárgico desprendimento só se esfumou quando, sem perceber como nem porquê, deu consigo no momento mais importante, o instante em que o padre se voltou para ele e lhe fez a mesma pergunta, aquela que todos tinham vindo à igreja ouvir.

"Luís António Afonso", interpelou-o o padre com solenidade, a voz a ganhar a força que até aí não tivera. "Aceitas Joana para amar e acarinhar, para honrar e confortar, na saúde ou na doença, na alegria ou na tristeza, até que a morte vos separe?"

O noivo arregalou os olhos, horrorizado, subitamente desperto, sem saber o que fazer, incapaz de se decidir, vacilante, interrogando-se sobre como fora possível ter chegado àquele ponto, àquela pergunta, àquela resposta.

"Sim."

Como se não passasse de um mero espectador, observou a sua própria boca murmurar o "sim" final como se tivesse vida própria. Parecia que naquele momento a mente alijara responsabilidades e atirara para o corpo o encargo de enunciar os votos matrimoniais; a razão sujeitara-se ao que o coração ainda não aceitara.

"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, declaro--vos marido e mulher."

A fórmula pareceu materializar-se do nada e atingiu-o como um soco no estômago. Estava casado, e não era com Amélia! Pior, Amélia encontrava-se algures lá atrás e assistia a tudo. Como num sonho, o corpo sempre a comportar-se com o automatismo de uma coreografia muito ensaiada, pôs o anel de ouro no dedo de Joana, deixou que ela lhe fizesse o mesmo,

afastou o véu de renda branca que ocultava os olhos da mulher e colou-lhe nos lábios um beijo casto e seco.

Foi animada a festa no Café Lima, o estabelecimento da Praça Municipal reservado nesse dia para os convidados dos noivos. Um pianista dedilhava com entusiasmo as canções do momento e uma nuvem de fumo pairava sobre as cabeças dos comensais. Um grupo abrira alas e observava os casalinhos a rodopiarem ao ritmo alegre da música, enquanto outros iam petiscando os rissóis, os pastéis de bacalhau, as pernas de frango e os mais diversos aperitivos colocados nos pratinhos ao longo da mesa junto à parede do fundo.

Por várias vezes Luís buscou Amélia com os olhos, mas ela parecia evitá-lo; olhava para aqui e para ali, conversava com este e aquele, observava o pianista ou espreitava um casal a dançar, mas nem uma vez se voltou para o antigo namorado. Inquieto e irrequieto, Luís procurava-lhe um olhar de perdão, uma expressão de compreensão, um gesto de que nada mudara, mas dela apenas extraiu um rosto vazio, uma postura de alheamento, um desinteresse que o magoava. Como podia Amélia mostrar-se tão desapegada? Seria possível que ela já lhe fosse de tal modo distante que assistir ao seu casamento lhe tivesse sido totalmente indiferente?

"Em que pensas, querido?"

A voz fê-lo voltar a si.

"O quê?"

Era Joana, que se sentara ao seu lado e lhe agarrava o braço, terna e calorosa.

"Pareces ter um ar perdido. Estás bem?"

"Ah, sim. Estou bem, claro. Apenas um pouco cansado."

"Espero que não demasiado", adiantou ela, de imediato baixando os olhos e corando.

Admirado com o comentário, Luís olhou-a interrogativa­mente. Não a imaginava uma criatura com desejos; sempre a vira pura e virginal, talvez porque desde que a conhecera que a encarava como uma nova versão de Amélia. A constatação de que havia carne naquela fêmea despertou-lhe uma inesperada volúpia nas estranhas. A última vez que tivera uma mulher fora em Lisboa. Era verdade que o jantar da véspera e o reencontro com Amélia lhe tinham mostrado que continuava a amar a antiga namorada, mas, que diabo!, ele era homem e um homem era um homem. O casamento até podia ter sido um disparate e talvez jamais conseguisse superar a paixão por Amélia, mas, se não podia ter o futuro que desejava, podia pelo menos aproveitar o que havia e o que havia era a certeza de que nessa noite ia possuir uma mulher bonita.

Inclinou-se para Joana e beijou-lhe a face.

"Fica descansada", sussurrou. "Vais descobrir que casaste com um touro."

As prendas amontoavam-se a um canto do café, onde o par recém-casado ia deixando os pacotes depois de os receber dos convidados. Estes iam já saindo. A festa fora longa e estava na hora de voltarem para casa. Foi nessa altura que dona Maria decidiu aproximar-se. A tia e madrinha de casamento de Luís vinha com um pequeno embrulho nas mãos, mas não deixou que o sobrinho pegasse nele.

"Isto não é contigo", disse, puxando Joana para um canto. Depois de se certificar de que a atenção de Luís se desviara para outro lado, entregou o embrulho à noiva. "Toma, minha linda. Já te deixei ali umas porcelanas para a vossa casa, mas este é o meu presente de casamento apenas para ti. Espero que gostes."

Joana agarrou o pequeno embrulho e desfez o papel, revelando o objecto que o invólucro adornava.

"Um livro?"

"Não é um livro qualquer", disse a tia Maria, apontando para o título que encaixava o desenho de uma flor branca. "É o Livro das Noivas. Conheces?"

Joana analisou a capa, como se avaliasse o presente.

"Não."

"Foi-me mandado pela tia Paz, do Brasil. Ela disse que é muito bom."

"Ai sim?"

A tia Maria esfregou com os dedos uma rendinha da manga do vestido da noiva.

"Tiveste algum manual a preparar-te para o casamento?"

Joana encolheu os ombros.

"Não... quer dizer, apenas consultei um livro de ménage da condessa de Bassanville."

"É pouco", considerou a tia, batendo com o dedo na capa do livro que acabara de oferecer. "Considerando que já não tens cá a tua mãe para te aconselhar, esta pode muito bem vir a ser a tua melhor prenda de casamento."

"Ah, muito obrigada."

"Não é para agradecer, é para ler. Este livro pode ser-te muito útil, minha linda. Lembra-te que uma mulher não se deve resignar a ser um objecto de luxo na casa, uma espécie de adorno. Deve ser alguém que ajuda o marido a enfrentar a vida. O Livro das Noivas explica-te como fazer isso." Pegou no livro e abriu uma das páginas iniciais. "Ora vê o que diz aqui: «Rodeia-o sempre de respeito, de affecto, de dignidade; que o nome d'elle seja para ti um nome puro onde não possa cahir mácula.»"

A rapariga sorriu, condescendente.

"Este livro ensina-me a amar o Luís? Mas eu já o amo..."

"Não, filha. Uma coisa é o amor de namorados, que não se conhecem e se idealizam à distância; outra coisa é a vida

conjugal. O que o livro te ensina é a viver o dia-a-dia com o teu marido."

"Não estou a entender..."

A tia Maria folheou a obra e mostrou um capítulo intitulado "A roupa branca".

"Estás a ver? Como devemos arranjar a roupa? Como conseguir que o linho e o morim cheirem a flores? Como deve ser feita a entrega da roupa às lavadeiras? O livro tem todas as respostas." Apontou para o parágrafo final do capítulo. "«É na roupa branca», diz aqui, «que mais limpidamente se espelha a bôa administração de uma dona de casa.»"

Joana pegou no livro.

"Ah, muito bem. Realmente, parece útil."

"No Brasil, escreveú-me a tia Paz, está toda a gente a ler este manual. Ele ensina a tratar do marido ou de um filho quando um deles está doente e até mostra como separar os bons livros dos livros nocivos na biblioteca doméstica."

"Quais livros nocivos?"

A tia Maria indicou a sua prenda.

"Bem... é só leres, está tudo aí. Um livro nocivo é um livro que conta histórias pouco morais ou que estragam o bom gosto. As nossas leituras têm de ser sadias, não achas?"

"Com certeza, não há dúvida nenhuma."

"Pois essa é uma leitura sadia, minha filha. Podes ter a certeza. O Livro das Noivas ensina-te a escolher as melhores leituras, a apreciar a boa arte, a saber estar num baile, a escolher as jóias para as ocasiões, a lidar com os pobres e a ser caridosa... enfim, uma série de coisas." Pegou de novo no livro. "Tem aqui algo que me parece muito importante, deixa ca ver." Folheou a obra, à procura do extracto certo. "Aqui está: «Minhas amigas, não vos esqueçaes de que o homem é egoísta e auctoritário e de que para fazêl-o feliz, como vos

cumpre, tendes de renunciar ao doce ócio em que o vosso pensamento se balança e têl-o sempre vigilante e activo.»"

"Oh, o Luís não precisa de cuidados."

Uma voz interrompeu-as.

"Então, Joana? Vamos embora?"

Era Luís que a chamava.

"Já vou, querido." Joana voltou-se para dona Maria. "Tenho ir. Vamos agora para casa."

"Dizes tu que o Luís é diferente?"

"Tenho a certeza", confirmou ela, começando a empilhar todos os presentes numa cesta, para levar para casa. "Egoísta é coisa que ele não é, pode estar certa."

A tia Maria ergueu o dedo justiceiro.

"Isso é o que tu pensas, minha querida", sentenciou. "Não te esqueças do que eu te digo: o meu sobrinho é um homem e os homens são todos iguais."

"Oh, tia, que exagero! Francamente!"

"Eles só pensam neles próprios."

A imagem que o espelho reflectia mostrava-lhe que estava um brinco. Joana ajeitou apenas a alça da camisinha de dormir e suspirou, feliz. Passara o último mês a preparar ao pormenor a toilette da noite de núpcias, bordando com esmerado primor toda a camisinha de dormir. Tinha dado um trabalhão, pensou, mas valera a pena. Não havia qualquer dúvida de que o seu corpo resplandecia sob aquela requintada camisinha bordada, cheia de arremates, nozinhos franceses, pontos margarida e pontos atrás, todos devidamente alinhados, as linhas bem arre­matadas e sem criar sombras, o richelieu em linho fino...

"Então, Joana?"

A voz de Luís vinha do quarto e trazia um timbre de impaciente expectativa.

"Já vai, já vai!", retorquiu ela.

Contemplou-se uma última vez ao espelho, admirando a perfeição que lhe cobria o corpo. Que trabalho aquilo lhe dera! Só aquele pormenor do nozinho francês, por exemplo. O cuidado que tivera ao colocar a agulha na frente da linha e ao dar uma volta com ela em torno da agulha; ou ao segurar as laçadas junto ao tecido até a puxar toda para baixo; ou ao escolher o ponto de entrada da agulha no tecido assim tão próximo do ponto de saída. Realmente, estava um primor! E o arremate? Sim, o que dizer daquele arremate, valha-me Deus? Tivera de passar a linha por dentro de vários pontos, no avesso do tecido, para conseguir tal efeito! E depois ainda passou a trama na diagonal, de modo a obter um avesso perfeito! Jesus, o labor que tinha sido para obter tamanho requinte nos pormenores! Fora um mês daquilo, um mês de tortura às voltas com as agulhas, com as linhas e com todos os nós e pontos, mas... Virgem Maria, valera a pena!

Virou as costas e, vaidosa, lançou um derradeiro olhar apreciativo ao espelho.

Ah, estava mesmo um primor!

Saiu enfim do quarto de banho, resplandecendo como nunca na sua vida. Que lindo! Não tinha dúvidas de que Luís ficaria embasbacado. A riqueza dos pormenores e o esmero do trabalho eram de um chie verdadeiramente de arrasar.

Deslizou pelo quarto e, a transbordar de felicidade, deu dois passos e rodopiou diante do marido, como uma bailarina, exibindo no corpo aquela perfeição da arte de bordar.

"Estou linda?", perguntou.

Luís admirou-a por um breve segundo.

"Perfeita."

Acto contínuo, agarrou-se a ela e, com um movimento brusco e esfaimado, puxou-lhe o delicado vestido de noite,

rasgando-o brutalmente pelas bordas, e atirou-o para o canto do quarto.

O segundo choque veio pouco depois. Ainda combalida com a indiferença do marido pela sua obra-prima, Joana depressa se confrontou com outro problema de grande magnitude. Apesar da ânsia com que ele a envolvera nos seus braços, minutos mais tarde tornou-se penosamente claro que, por algum motivo, Luís não conseguia erguer a sua masculinidade. Persistiram ambos nos abraços e nos beijos ainda durante algum tempo, até não mais ser possível fingir que o que se estava a passar não se estava a passar.

"Eu... não sei o que tenho", balbuciou Luís, embaraçado com o que lhe sucedia, logo a ele que ainda horas antes se gabara de ser um verdadeiro touro. "Isto não... não..."

"Oh, deixa estar", murmurou ela, esforçando-se por esconder a decepção. "Não faz mal."

"Faz, sim", cortou ele, quase zangado. "Não sei o que se passa, isto nunca... enfim, não percebo."

Joana passou-lhe a mão pelo cabelo e acariciou-lhe o rosto, tentando tranquilizá-lo.

"Pronto, tem calma. Estamos um pouco nervosos, só isso." Inclinou a cabeça em direcção à porta. "Porque não vais comer alguma coisa? Vais ver que... que ficas logo melhor."

Ansiando por uma pausa, Luís aceitou a sugestão e foi à cozinha. Era a primeira vez que bloqueava no momento da verdade diante de uma mulher e, ou se enganava muito, ou sabia muito bem qual a origem do problema. Amélia! Só podia ser Amélia! O reencontro da véspera reacendera-lhe a paixão que nunca verdadeiramente se apagara; sabia agora que apenas ardera em lume brando durante os anos em que a julgara perdida. Mas só o acto de a ver já exercera um

poderoso efeito sobre ele. Tinha consciência de que, por mais que tentasse iludir-se, ele era dela e só a ela pertencia. Até o seu corpo parecia revoltar-se perante a imposição de uma outra mulher.

Confiando nos poderes da fruta bíblica, trincou uma maçã. Se a maçã conduzira Adão ao pecado, quem sabe se não poderia fazer o mesmo por ele. Mastigou a peça de fruta com vagar calculado e quando acabou regressou ao quarto e deslizou por entre os lençóis para junto do corpo quente e palpi­tante de Joana. Tocaram-se e abraçaram-se. Por entre os beijos e as carícias, a virilidade reapossou-se do seu corpo e com ela tomou posse do corpo da mulher.

Amaram-se com abandono, os olhos fechados e os corpos entregues à orgia das sensações. O que Joana não sabia é que Luís cerrara os olhos para se imaginar com Amélia e que foi com Amélia que ele nessa noite verdadeiramente fez amor.

 

A maior ironia do casamento foi o facto de ter aproximado Luís de Amélia. Acabou por ser uma evolução de certo modo natural, considerando que aconteceu por via dos cônjuges. Com frequência Joana queria estar com a irmã, mas por vezes era o próprio capitão Branco que insistia em convidar o seu camarada de armas. O facto é que o casal Afonso se tornou visita habitual na casa dos Branco e os dois antigos namorados passa­ram a encontrar-se com uma assiduidade quase embaraçosa.

Perante o inopinado evoluir da situação, nos primeiros dias Amélia esforçou-se por se manter longe da vista de Luís, invocando uma multiplicidade de pretextos: ou tinha de orientar a criada ou precisava de tratar dos filhos ou havia que ir ao mercado ou então era outra coisa qualquer. A irmã acompanhava-a, mas Amélia tinha o cuidado de manter os homens afastados.

Este distanciamento deixou Luís perturbado. Sempre que ia à casa do Sameiro sentia uma excitação surda pela perspectiva

de ver Amélia, mas uma vez lá sobrevinha a decepção. Quase nunca a via e começou a perceber que a invisibilidade da dona da casa era propositada e tinha a ver consigo. Seria possível que a sua presença lhe repugnasse? Mais do que desconfortável, essa possibilidade deixava-o triste. Para fugir ao isolamento, Luís refugiou-se na companhia do capitão, o que, aliás, parecia natural, sendo ambos camaradas no mesmo quartel. Foi assim que o visitante foi conhecendo melhor o seu rival secreto.

Mário Branco revelou-se-lhe um homem metódico e exigente, daqueles que nunca esquecem os seus deveres. Quando as visitas se prolongavam pela noite e o casal Afonso acabava por pernoitar em casa dos Branco, antes de se deitar o capitão pedia licença aos convidados e descia até ao escritório. Verificava junto à porta de entrada os gastos de electricidade desse dia e registava-os depois num livrinho preto pousado na escrivaninha. A luz de um candeeiro cujo clarão azulado tingia de sombras as paredes forradas a papel, anotava aí todos os gastos da família, mesmo os que poderiam parecer mais insignificantes. Luís percebeu que isso lhe estava na massa do sangue, era algo que emergia da sua natureza de homem disciplinado.

Ao fim de várias noites dormidas naquela casa, Luís descobriu que o capitão saía rumo ao quartel todas as manhãs à mesma hora, com o inacreditável pormenor de o fazer rigorosamente no mesmo minuto. Tão surpreendido ficou com esta constatação que comentou o assunto com a mulher.

"Isso é coisa famosa aqui em Penafiel", observou Joana, com um risinho discreto. "Ele toma sempre o mesmo itinerário. Desce aqui a rua, chega à Praça do Município e mete pela Rua Direita, onde está o jornal. Pois sabes o que faz o doutor Tomás Ferreira quando o vê passar?"

"Quem?"

"O doutor Ferreira. O director do nosso semanário, o Tempo. Estás a ver quem é?"

"Ah, sim. O que faz ele?"

"Acerta a hora!"

"Estás a brincar."

"A sério", garantiu ela. "O homem confia mais na hora de passagem do Mário à frente do jornal do que no próprio relógio!"

Apesar da relutância surda de Amélia, os casais passaram gradualmente a despender mais tempo juntos. As desculpas para a ausência da dona da casa tinham um limite para lá do qual se tornaria estranho o seu comportamento. Foi assim que a resistência da antiga namorada se foi a par e passo desmoronando, até ao dia em que o marido, durante um jantar na companhia do casal Afonso, deu inadvertidamente o passo decisivo. "Vocês já repararam como o tempo melhorou?" "É a Primavera, meu capitão", observou Luís. "O sol já espreita."

"Pois é", suspirou o anfitrião, saboreando um trago de branco verde. "Este fim-de-semana vamos para a quinta. Querem vir?" "Onde?"

"A nossa quinta, ali em Castelo de Paiva." "Não sabia que vocês tinham uma quinta." "Temos duas até. Uma é a Quinta de Pousada e a outra é a Quinta de Vales. Mas olhe que são coisas rústicas, não têm nada de especial."

"Ah, pois não!", exclamou Amélia com um sorriso irónico. "Pois foi graças a essas duas coisas rústicas que conquistaste a minha mãe."

"Que queres dizer com isso?", admirou-se o capitão Branco. "Eu casei contigo, não foi com a tua mãe."

"Eu cá me entendo."

Fez-se um silêncio breve. Surpreendido, Luís percebeu de imediato o alcance da inesperada observação de Amélia; era como se a antiga namorada lhe tivesse lançado uma mensagem velada, lembrando-lhe que o seu casamento não fora inteiramente livre. Aquelas palavras contrastavam frontalmente com o comportamento que Amélia adoptara desde que ele se tornara visita frequente da casa, pelo que as escutou com um indisfarçável sentimento de alívio. Era como se uma luz de esperança se tivesse acendido na desesperança em que se perdia.

O capitão, porém, não entendera o comentário da mulher e olhava-a com uma expressão interrogativa. Sentindo que era necessário desviar-lhe a atenção do assunto, Luís tratou de relançar a conversa.

"O meu capitão anda a comprar propriedades?"

"Não, claro que não."

"Então como tem essas quintas?"

Mário Branco indicou com o polegar um retrato pousado na estante; tratava-se de uma fotografia antiga onde se via um casal já idoso, ele em pé de gravata negra e bigode branco, ela sentada com um grande vestido escuro, a imagem granulada já a desbotar-se com o tempo.

"Herdei-as dos meus pais, que eram pessoas abastadas e tinham muitos terrenos nesta região. Quando eles faleceram, algumas foram para os meus irmãos e duas vieram para mim. Este sábado vamos para uma dessas propriedades, a Quinta de Pousada, ali em Castelo de Paiva." Inclinou a cabeça para os hóspedes. "Se vocês quiserem ser nossos convidados, teríamos muito gosto."

"Ah, Luís, vale a pena!", intercedeu Joana. "A quinta é uma maravilha, vais ver."

Luís lançou um olhar de relance a Amélia, tentando adivinhar-lhe a reacção à perspectiva de passar dois ou três dias com ele num espaço tão recluso. A antiga namorada manteve o rosto fechado, quase impenetrável, mas um leve movimento dos belos olhos dourados deu ao alferes o reconfortante sinal que procurava.

"Muito bem", decidiu naquele instante. "Contem connosco."

Cruzaram o Douro na estreita ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, terra assim chamada por ser justamente o local onde o Douro e o Tâmega confluíam. Do alto da ponte admiraram as duas estradas de água a convergir à esquerda, a união de ambas a formar um vigoroso caudal que passava por baixo da ponte e se perdia no horizonte à direita, em direcção ao Porto.

Uma vez na outra margem subiram a encosta pela estrada serpenteada, de um lado a verdura em socalcos, do outro a paisagem aberta para o grande rio. Mário ia ao volante, com Luís ao lado e as mulheres atrás, apertadas com as três crianças. Na borda da estrada apareciam esporadicamente casas de pedra ou muros rústicos, como megalitos embrenhados na verdura, até que, já lá no alto, o automóvel largou o caminho principal e meteu por um trilho que o conduziu a um portão estreito.

"Chegámos!", anunciou o capitão.

Para lá do portão, Luís deparou-se com um terreno inclinado pela encosta verde e castanha do monte, a vasta correnteza prateada do Douro a mover-se lá em baixo, enérgica quando vista de perto, plácida àquela distância. Toda a

propriedade estava coberta de vinhas, à excepção da grande casa de pedra assente em forma de L e do belo espigueiro mesmo em frente.

A chegada dos proprietários e dos convidados desencadeou um frenesim na quinta. Viam-se crianças a correr de um lado para o outro e da confusão emergiu um vulto corpulento.

"Chico!", guinchou Joana.

As duas irmãs foram ter com ele e Luís ficou a observá-los com sentimentos contraditórios; aquele rapaz era suposta­mente irmão delas, mas sabia que não se tratava de um irmão verdadeiro, antes de uma criança abandonada que a mãe das raparigas adoptara. Mais do que isso, aquele moço de feições grotescas tinha-se revelado uma espécie de homem de mão de dona Beatriz, como Luís descobrira à sua própria custa. Duvidava que alguma vez se viesse a habituar à presença de Francisco. A vantagem, pensou, é que aquela figura era quase invisível.

"Luís!", chamou a mulher. "Deixa-me apresentar-te o meu irmão."

Quase contrariado, o marido aproximou-se.

"Já o conheço", disse, estendendo o braço ao rapaz. "Então, Chico?"

"Olá."

Apertaram as mãos e Francisco virou a cara, fitando o rio lá em baixo.

"Sempre salamurdo, hem? Falar não é contigo..."

O cunhado não respondeu. Luís mirou-o com atenção e estudou-lhe as linhas goriláceas do rosto, tentando decidir se o rapaz era calado ou imbecil. Inclinou-se para a imbecilidade.

"Anda, vou mostrar-te a casa", disse Joana, puxando-o pelo braço.

Afastaram-se ambos em direcção à casa de pedra. Tratava-se de um edifício de campo, de aspecto rústico e frio, decerto desaconselhável para o Inverno. Com a chegada do tempo mais ameno, porém, constituía uma interessante fuga da rotina em Penafiel.

"O que está o gajo aqui a fazer?", perguntou Luís quando ficaram a sós.

"Quem? O Chico?"

"Sim. Não pôs os pés no nosso casamento mas vejo-o agora aqui. Vamos ter de o aturar?"

Joana respirou fundo.

"Ele é um pouco... como direi? Um pouco..."

"Abrutalhado?"

"... especial."

"Especial em quê?"

"Enfim, tem um feitio muito seu, não se dá com as pessoas. A minha mãe gostava dele, apesar de ser um rapaz pouco sociável. Mas tem muita força física, sabes? Além disso, era-lhe fiel. Fiel como um cão, estás a ver o género?"

"Pois, isso percebi eu."

Joana franziu o sobrolho.

"Já o conhecias?"

"Quer dizer... vi-o em casa da tua irmã, só isso. O que está ele agora aqui a fazer?"

"O Chico vive nas propriedades da Amélia... ou melhor, do Mário. Gosta da vida rude do campo e de trabalhos pesados. Como a minha irmã o acolheu, transferiu para ela aquela fidelidade canina que tinha em relação à minha mãe." Olhou para o marido. "Mas porquê? Isso incomoda-te?"

"Não, não é isso. Acho-o é um pouco estranho, percebes? Deixa-me assim meio inquieto, não sei bem explicar."

"Porquê? É por falar pouco?"

Luís encolheu os ombros.

"Sei lá", disse. "Nem interessa."

A mão esquerda de Francisco agarrou a galinha pelo pescoço e com a direita o rapaz torceu-lhe a cabeça e matou-a. Luís estava sentado nos degraus e observou a cena com desconforto. Aquele bruto matava um animal com a mesma indiferença com que bebia um copo de água.

"Venha daí", disse uma voz. "Vou mostrar-lhe a propriedade."

Era o capitão Branco, que, igualmente incomodado com os modos embrutecidos do cunhado, o veio puxar para um passeio para conhecer a Quinta de Pousada. Meteram ambos pelas vinhas e desceram os socalcos da encosta até chegarem junto de um homem de pele gasta e trigueira que se encontrava acocorado a inspeccionar as uvas.

"Então, Tino? Como vai isso?"

O homem ergueu-se, surpreendido, e limpou as mãos às calças.

"Oh, senhor capitão! Não sabia que vossa senhoria cá vinha hoje."

"É a Primavera", disse o proprietário, apontando para a luz que jorrava da abertura azul entre os flocos brancos de nuvens. "O Sol põe-se a espreitar e eu cá estou."

"Bons olhos o vejam, senhor capitão. O tempo está a ficar melhorzinho, graças a Deus."

O capitão olhou para o seu convidado, que vinha atrás.

"Este é o nosso caseiro, o Constantino Latino", apresentou-o a Luís. "Chamamos-lhe Tino." Virou o rosto para o homem e piscou-lhe o olho. "Mas não sei se você tem muito tino."

O caseiro soltou uma risada gutural, exibindo uma dentadura esburacada e apodrecida.

"Faz-se o que se pode, senhor capitão. A minha patroa bem se queixa do meu juízo."

O proprietário apontou para as vinhas.

"Então e as uvas? Vamos ter uma boa vindima este ano?"

"Se Deus quiser, senhor capitão. A chuva foi boa. Queira Deus que o sol ajude agora."

Luís acocorou-se para espreitar as uvas.

"São vermelhas", constatou, passando os dedos por um cacho escondido pelas folhas verde-esmeraldas. "Vocês fazem tinto, é?"

"O melhor de Castelo de Paiva."

"Lá está o meu capitão a exagerar...", sorriu o alferes veterinário.

Mário Branco fez um sinal ao caseiro.

"Se bem o conheço, Tino, você não larga a pinga. Tem aí alguma coisa para mostrar aqui ao nosso alferes, que pelos vistos desconfia das minhas palavras?"

O caseiro retirou um copo e duas garrafas de um cesto pousado junto a um pé de vinha.

"Está aqui, senhor capitão."

O proprietário despejou um dedo de tinto no copo e estendeu-o ao convidado.

"Ora experimente."

Luís pegou no copo e saboreou o vinho.

"Agh!", gemeu involuntariamente, sentindo os pelos eriçarem-se-lhe e a pele arrepiar-se. "Brrr..."

O capitão e o caseiro riram-se.

"Então? Não gostou?"

"Confesso que não", admitiu Luís. Depois da careta que fizera, não era possível esconder a verdade. "É... sei lá, um pouco azedo."

"É raspado", corrigiu o capitão.

"Sei lá o que é. Mas, se isto é o melhor da região..."

"E porque você não está habituado a estes néctares." Arrancou o copo da mão de Luís e engoliu o que restava. "Aaah!" Depois de o esvaziar, ergueu a garrafa e admirou o líquido escuro que bailava no interior. "Para quem gosta de tinto verde, este é de excelente qualidade." Agarrou na outra garrafa, despejou uns golos e voltou a estender o copo ao convidado. "Agora experimente este."

Com ar desconfiado, Luís estudou o líquido amarelo-esver-deado que balouçava no copo e, quase a medo, experimentou um trago. Era totalmente diferente; tinha um paladar fino, melífluo, e deslizava suavemente pela língua.

"Hmm, é bom!"

"E verde branco", disse o capitão, apontando para o outro lado da encosta. "É feito com aquelas uvas ali. Apanham muito sol e ficam adocicadas. Dão este vinho magnífico."

"É tudo produzido aqui na quinta?"

"Sim. Aqui o Tino e a família, mais o Chico, fazem a vindima, pisam a fruta, colocam tudo nuns lagares que temos para ali e depois metem o vinho em pipas. E um trabalho dos diabos. As uvas que sobram são vendidas à Quinta da Aveleda."

Sentiram movimento atrás e viram Amélia a aproximar-se.

"Meninos!", chamou. "O almoço está na mesa."

Vinha radiosa, com o cabelo a brilhar ao sol e as faces coradas. Ao vê-la assim, tão bela e apetitosa, Luís sentiu inesperadamente a volúpia despertar dentro de si. Já não era apenas a paixão platónica da juventude que o atraía, embora ainda endeusasse a primeira namorada como se ela fosse um anjo; mas agora alimentava-o também o desejo mais visceral e lascivo da carne. Amélia não era apenas a deusa idealizada da adolescência; a seus olhos tornara-se uma fêmea carnal.

Vendo-a ali no meio das vinhas, tomou consciência nesse instante de que já possuíra muitas mulheres na sua vida, mas nunca aquela que verdadeiramente amava. A constatação deixou-o assombrado. Como era possível que nunca tivesse amado aquela que verdadeiramente amava? E como poderia viver tranquilo quando a via tão perto e a sabia tão definitiva­mente para além do seu alcance?

"Viver é sofrer", murmurou, ecoando uma velha frase dos tempos da faculdade.

"Como?", perguntou Mário Branco, que caminhava já em direcção ao casarão.

Luís fez um gesto largo e melancólico que abarcou a quinta.

"Não há dúvida que o meu capitão é um homem de sorte", disse, desviando o pensamento. "Sabe porventura o que tem aqui?"

"O quê?"

"O paraíso."

E os seus olhos pousaram em Amélia.

 

"No próximo sábado voltamos cá e ficamos uma semana inteira."

Amélia contemplava da janela um dos jornaleiros a juntar palha para as mulas e as palavras do marido deixaram-na petrificada.

"O quê? Uma semana inteira?"

"Sim. Vamos começar os preparativos para as vindimas e eu tenho de andar por cá."

"Tu estás doido?"

O capitão Branco possuía duas quintas e, com a chegada da Primavera, os fins-de-semana passaram a ser vividos alternadamente em cada uma delas. Umas vezes iam para a Quinta de Pousada, outras seguiam para uma propriedade ainda maior, a Quinta de Vales, situada em Cadeado, Paços de Sousa.

Foi em Vales que pernoitaram nesse dia. A propriedade era dominada por uma enorme casa de forma circular, com um

pátio no meio; parte do solar ficara reservada aos aposentos dos proprietários, onde o casal se encontrava agora, e o resto estava dividido por lagares, adegas e cortes de gado, ou entregue às várias famílias de caseiros e a outros homens que trabalhavam a terra, entre eles os jornaleiros, encarregados dos jardins e que ajudavam nas vindimas e noutras tarefas pontualmente necessárias, e os moços, rapazes incumbidos das ceifas, de tratarem do gado e de levarem a cabo todo o tipo de trabalhos pesados que a manutenção da propriedade requeria.

Trabalho era coisa que não faltava por ali, uma vez que a quinta, para além das vinhas e de toda a cadeia de produção de vinho, dispunha ainda de campos de milho e de centeio, para além de outros produtos agrícolas. Daí que o capitão Branco optasse com mais frequência por vir para aqui. Dizia que precisava de seguir os trabalhos, mas a verdade é que apreciava o labor do campo.

O problema é que Amélia gostava mais da tranquilidade que encontrava na outra propriedade e a escolha tornou-se objecto de acaloradas discussões entre o casal. As divergências não eram muito graves enquanto se tratava de ir a um lado ou outro num mero fim-de-semana, mas naquele momento o capitão punha uma hipótese diferente. O que estava agora em questão era instalarem-se na Quinta de Vales durante uma semana inteira, possibilidade que deixou a mulher fora de si.

"Não posso deixar de vir a Vales", argumentou ele, tentan­do parecer razoável. "Há muito trabalho para fazer e eu preciso de estar cá para coordenar as coisas. Senão, já se sabe como é: patrão fora, dia santo na loja."

"Eu é que não tenho culpa", insistiu Amélia. "Saio da cidade justamente para ficar tranquila, mas aqui em Vales isso é impossível. Se é para andar no meio da confusão, mais vale ficar em Penafiel."

"O que queres que eu te faça?", perguntou o marido, abrindo os braços num gesto de impotência. "O trabalho tem de ser feito..."

A mulher apontou lá para fora, indicando o jornaleiro que retirava palha de uma carroça.

"Para ti este trabalho é diversão, mas para mim é um verdadeiro suplício. Ainda se fosse um fim-de-semana, vá lá, aguentava. Mas... uma semana inteira?"

O capitão Branco sentou-se na cama e ficou a tamborilar com os dedos na mesinha-de-cabeceira, matutando no assunto. Ele queria vir para Vales, ela não. Podia forçá-la, claro, mas depois teria de a aturar. Como resolver o problema?

"Ouve, vamos fazer assim", disse, confrontado com a solução óbvia. "Eu tenho mesmo de vir para Vales toda a semana, isto não pode ficar entregue aos caseiros. Mas, se não queres vir, então fica em Penafiel."

Amélia inclinou a cabeça e curvou a boca, numa expressão de desagrado.

"Então tu vens para o campo divertir-te e deixas-me abandonada em Penafiel?"

Ele fitou-a, baralhado.

"Não é isso que tu queres?"

"O quê? Ficar em Penafiel? Claro que não! Prefiro ir para Pousada."

"Então porque não vais?"

"Sozinha?"

"Com os miúdos, claro."

"Eu quero ficar tranquila, Mário, mas não planeio tornar-me uma eremita. Já viste o aborrecido que é eu e os miúdos sozinhos em Pousada? Morríamos de tédio!"

"Está lá o teu irmão."

"Ah, sim! Há-de valer-me de grande coisa, falador como ele é. Fico a vê-lo a torcer o pescoço às galinhas ou a degolar os porcos. Está-se mesmo a ver que vai ser divertido..."

O capitão coçou o queixo, absorto no problema.

"E porque não levas a tua irmã?"

"Já sabes que ela não vai sem o marido."

"Então ela que leve o marido."

"Leve o marido como? O Luís está no quartel a tratar da bicharada. Sabes muito bem que ele não se pode ausentar assim sem mais nem menos."

Os dedos do capitão voltaram a deslizar pensativamente pelo queixo.

"Eu trato disso", disse ele. "Há em Castelo de Paiva umas tarefas que requerem o trabalho de um veterinário e eu vou ver se arranjo maneira de o dispensarem do quartel por uma semana. Além do mais, ele precisa de treinar o cavalo que apadrinhou lá no quartel."

"É essa a tua ideia? A Joana e o Luís irem comigo para Pousada?"

"Sim", confirmou o marido, com esperança de ter encontrado a solução para o problema. "Tenho a certeza de que eles não se importam nada e eu fico com as mãos livres para vir a Vales tratar do que é preciso. Parece-te bem assim?"

Amélia sorriu pela primeira vez nesse dia.

"É perfeito."

Logo que na semana seguinte chegaram à Quinta de Pousada, Luís percebeu que algo havia mudado em Amélia. O distanciamento que a antiga namorada cultivava desde que ele começara a frequentar a sua casa parecia ter dado lugar a uma subtil aproximação. Não era uma postura directa ou óbvia,

mas uma maneira de estar, um estado de espírito, uma disposição de certo modo insinuante.

Apercebeu-se da mudança logo no primeiro dia em Pousada, quando estava sentado nas escadas do casarão a admirar o espigueiro. Sentiu uma presença à esquerda e virou rapidamente a cara, surpreendendo-a a mirá-lo. Logo que se viu descoberta, Amélia afastou os olhos e simulou indiferença. O incidente repetiu-se mais duas vezes, sempre com ela a procurar disfarçar o seu interesse. Mas disfarçava mal e, à medida que o tempo ia passando, tornou-se gradualmente claro que, naquele ambiente em que todos viviam perto uns dos outros, Amélia sentia crescentes dificuldades em reprimir os sentimentos.

Passaram assim os dois primeiros dias, entregues a este jogo de olhares dissimulados. Mas os acontecimentos precipitaram-se ao pequeno-almoço do terceiro dia.

"Estou farta de estar aqui fechada", queixou-se Joana enquanto barrava compota numa tosta. "E que tal se descêssemos até ao rio?"

"Sim!", concordaram em coro as duas crianças mais velhas, as bocas lambuzadas.

"Eu não posso", avisou logo Luís. "O Relâmpago precisa de treino e vou aproveitar a manhã para trabalhar com ele."

"Eu não posso ir", disse Amélia, olhando de relance para a loiça suja. "Há aqui coisas para fazer."

"Oh, mãe!", implorou o filho mais velho, puxando-lhe o braço. "Anda lá. Vamos ver os peixinhos."

"Já disse que não posso ir." Fez sinal à irmã. "Porque não vão vocês com a tia?"

"Podemos, tia?"

Joana encolheu os ombros.

"Porque não?"

Partiram dez minutos depois e deixaram Amélia e Luís inopinadamente sós. Ou talvez aquele momento inesperado não fosse tão inesperado quanto isso. Desde que o capitão o convidara para ir passar aquela semana a Pousada que Luís alimentava o secreto desejo de se apanhar a sós com Amélia. É certo que sempre pensara que, quando isso acontecesse, o desejo se dissolveria em fantasia e a realidade acabaria por se impor, mas logo que se viu na quinta percebeu que não seria assim. Se alguma coisa acontecera nesses três dias fora apenas o intensificar do desejo por Amélia. Era como se o corpo tivesse tomado conta da mente. Amava-a, sem dúvida. Amava-a com uma força redobrada, amava-a ainda mais do que nos dias em que com ela passeava a caminho do liceu de Bragança. Mas agora havia algo mais. Queria-a. Desejava-a acima de tudo e sentia que o desejo era recíproco.

Naquele instante, todavia, duvidou. Talvez estivesse a confundir as coisas; talvez a fome o fizesse alucinar. Talvez o desejo por ela lhe fizesse ver nela um desejo que se calhar ela não tinha.

"Ajudas-me a fazer as camas?"

A pergunta foi feita em tom casual, mas teve um efeito eléctrico em Luís. Nunca Amélia lhe tinha pedido que a ajudasse a fazer a lida da casa. Mas pedira agora. Era como um convite implícito a passarem juntos aqueles momentos em que os outros se tinham ausentado. Tão depressa suspeitou do pedido como logo abanou a cabeça. Que disparate, concluiu de imediato. Lá estava ele a ver o que não existia. Amélia precisava de ajuda porque não tinha a irmã ali e deixara a empregada em Penafiel. Tão simples quanto isso.

"Não ajudas?", admirou-se ela ao vê-lo a abanar a cabeça.

"Claro que ajudo", prontificou-se Luís, levantando-se da mesa da copa. "Começamos por qual?"

"Pela minha."

Amélia certificou-se de que a bebé dormia no berço e levou-o pelo corredor até ao quarto principal da casa. Entraram no compartimento e Luís viu a cama de casal desfeita. Amélia inclinou-se, pegou nos lençóis que estavam aos pés da cama e puxou-os para a frente, esticando-os sobre o colchão. Luís ajudou-a a alisar os lençóis e acompanhou-a no mesmo movimento até aos pés da cama para apanhar o cobertor.

Esticaram a manta e ficaram os dois pendentes para a frente, um de um lado da cama e o outro do outro, as cabeças convergindo até quase se tocarem. Luís cheirou-lhe o aroma a lavanda e sentiu a frescura suave dos lençóis a deslizar-lhe pelos dedos. Sem perceber como, constatou que as calças já mal lhe disfarçavam a erecção. Pararam o movimento, os cabelos muito próximos, cada um sentindo a respiração do outro. Luís ergueu a cabeça e viu-a a olhar para ele com aqueles grandes olhos de caramelo muito abertos. O peito inchava-lhe e desinchava-lhe, como se ela estivesse ofegante.

Permaneceram dois longos segundos assim paralisados, os olhos de um mergulhados nos do outro, os lábios abrindo-se devagar como pétalas molhadas ao sol, os corações a palpitar e palpitar e palpitar. Luís experimentou uma leve tontura e sentiu o controlo fugir-lhe e o instinto apossar-se dele.

"Hmmmm."

Caíram um sobre o outro com um gemido e colaram os lábios quentes e trémulos. Começaram devagar, quase delica­damente, a medo até, mas logo as bocas impacientes se puseram a devorar, sôfregas, as línguas húmidas deglutindo-se com voracidade, as mãos sedentas a agarrar a carne do outro, o calor a crescer e a transformar-se em ardor e depois em brasa, os corpos tão quentes e tão esfaimados e tão gulosos que se desnudaram às cegas, quase rasgando as roupas em gestos bruscos e impacientes, tão agitados e desesperados que se lamberam sem parar enquanto apalpavam e sentiam e despiam.

Num acesso de consciência, Amélia voltou-se para a porta e trancou-a. Depois encostou-se à madeira e olhou-o, afo­gueada e selvagem. O momento de controlo racional foi efémero, pois o corpo logo se tornou uma besta entregue aos sentidos. Incapaz de se conter mais, agarrou-se a ele e perdeu-se naquele corpo de homem. Lambeu-o na boca, ávida e molhada, como se o quisesse devorar. Luís largou-lhe os lábios e deslizou para os seios, gordos e arrebitados. Apertou os mamilos cor-de-rosa, tão largos que enchiam toda a ponta dos peitos, e abocanhou-os com gula. Ela deixou-o, a cabeça descaída para trás, as madeixas douradas e onduladas a tombarem-lhe no rosto, o corpo derramando-se em prazer, mas depois descolou-se e ajoelhou-se sobre o ventre dele para o saborear também ela.

"Pára!", gemeu ele, sentindo-se à beira do descontrolo. "Pára!"

Amélia parou e olhou-o. Agarrou-o pela cintura e puxou-o para ela, as pernas abrindo-se e enrodilhando-se nele. Os corpos começaram a nadar um no outro, primeiro devagar e depois num ritmo frenético, eléctricos já, ele com força, ela com fome, ambos gemendo ao ritmo do movimento, a cama a martelar a parede, ela sentindo-o a enchê-la, ele sentindo-a a derreter-se. Era como se os dois corpos se tivessem tornado um, ferro duro em lava incandescente, as batidas sincro­nizadas, o ritmo intensificando-se a cada pancada, sempre mais depressa, mais depressa, depressa, depressa, depressa, depressa.

A lágrima brotou do canto do olho e escorreu pelo rosto num ziguezague hesitante, aqui apressando-se, ali parando. Amélia passou as costas da mão pela face e espalhou a bátega de remorso pela bochecha corada.

"O que fizemos nós?", soluçou, a voz embargada. "Meu Deus, o que fizemos nós?"

Luís inclinou-se sobre ela e afagou-lhe o cabelo ondulado, tentando reconfortá-la.

"Chiu...", soprou, meigo. "Pronto, pronto."

"E agora? O que será de nós?"

"Nada."

"Nada, como? Tu tens a noção do que fizemos?"

O amante assentiu com a cabeça.

"Fizemos o que nos mandou o coração."

Amélia arregalou os olhos, como se o enunciado do acto fosse ainda mais horrível do que o próprio acto.

"Tu estás doido? Nós... nós cometemos adultério! Meu Deus! Cometemos adultério! Eu

"Chiu..."

"... eu sou uma adúltera. Traí o meu marido!" Fungou. "Pior..."

"Pronto, pronto."

"... do que isso, traí a minha irmã! A minha própria irmã!" Escondeu a cara nas mãos e os soluços tornaram-se quase contínuos. "Como pude eu fazer isto? A minha própria irmã! Meu Deus! Meu Deus! Que coisa horrível!"

Começou a chorar baixinho e Luís abraçou-a, procurando ajudá-la a controlar-se. Depois beijou-a na testa e nos cabelos e colou-lhe os lábios a uma orelha.

"Tem calma, meu amor", segredou-lhe. "Está tudo bem. Tem calma. Eu estou aqui e não vai acontecer nada."

O choro tornara-se um gemido contínuo, mas Amélia fez um esforço, engoliu em seco, fungou e o gemido parou, transformando-se numa sequência de soluços que com o tempo se foram tornando cada vez mais espaçados.

"E agora?", perguntou logo que assumiu maior controlo de si própria. "O que fazemos? O que vai ser de nós?"

"Nada, meu amor. Nós não fizemos nada de grave."

"Nós cometemos adultério, Luís!", repetiu ela, obcecada com a ideia. "Eu traí o meu marido e a minha irmã! O que pode haver de mais grave que isso?"

Luís pousou-lhe o indicador nos lábios, como se a mandasse calar.

"Chiu... nós não traímos ninguém."

"Traímos, sim. É horrível!"

"Nós não traímos. Nós fomos traídos, o que é bem diferen­te. Nós fomos traídos pela tua mãe quando ela te forçou a casar com o... com o teu marido. Ela é que nos traiu, enten­deste?"

Amélia fez que sim com a cabeça, mas nada disse.

"O amor que nos juntou hoje é o amor que nos alimenta há anos. Eu estou apaixonado por ti e tu estás apaixonada por mim. Não há nada que possamos fazer, é mais forte do que nós. Qual é o crime que duas pessoas apaixonadas cometem quando se amam? Nenhum. A traição não foi cometida por nós, foi cometida sobre nós. Tu não devias estar casada com o teu marido, eu não devia estar casado com a tua irmã. Nós devíamos era estar casados um com o outro, entendes? Se a tua mãe não se tivesse metido onde não era chamada, seria isso o que acabaria por acontecer. Nós casar-nos-íamos."

"Mas não casámos, Luís. Nós estamos casados com outras pessoas e agora nada pode mudar isso."

"Eu sei."

"Então o que fazemos?"

Luís pegou na mão dela e colou-a ao peito, comprimindo-a para que ela sentisse melhor as batidas do coração.

"Podemos não estar casados perante a lei, mas estamos casados perante nós próprios. Percebes? A tua mãe roubou-nos tudo, mas não roubou o que sentimos um pelo outro. Os nossos corpos podem estar entregues a outros, mas a minha alma pertence-te e a tua alma pertence-me. Não há nada a fazer. Mesmo que o quiséssemos, não existe coisa alguma que possa alterar isso. Nós pertencemos um ao outro. Temos de aceitar o nosso destino."

"Sim, mas... e agora? O que fazemos?"

O amante olhou para a janela, como se a resposta estivesse para além dela.

"Porque não fugirmos?"

"Estás doido?"

"Sim, vamos fugir!"

"Então e os meus filhos? Então e a minha irmã? Então e o Mário? Achas que algum deles merece isso?" Amélia estremeceu.

"Além do mais, seria incapaz de me separar dos meus filhos. Isso está totalmente fora de questão."

Luís suspirou.

"Tens razão."

Um grande soluço pareceu quase estrangular Amélia.

"O que vai ser de nós, meu Deus? Como poderemos estar ao pé um do outro à frente... deles?" Olhou-o. "Temos de deixar de nos ver."

"O que estás para aí a dizer?"

"Não nos podemos ver mais."

"Eras capaz disso?"

"Tem de ser, Luís. Não nos podemos ver um ao outro. Se estivermos juntos..."

"Tu eras mesmo capaz disso?

Ela calou-se por um momento, considerando essa possibilidade. Depois abanou a cabeça, os olhos quase desesperados.

"Não. Nunca."

Luís beijou-a com ternura na testa.

"Nem eu."

"Então o que fazemos?"

"Teremos de viver em segredo."

Amélia olhou-o interrogativamente.

"O que queres dizer com isso?"

"Aos olhos do mundo estamos casados com outros, aos nossos olhos estaremos casados um com o outro."

"O quê?"

"Seremos marido e mulher em segredo."

"Queres dizer... queres dizer que seremos amantes?"

"Vês alguma alternativa?"

"Nós? Amantes?" Pronunciou a palavra como se ela fosse maldita. "Mas isso é horrível!"

"Vês alguma alternativa?"

Ela manteve os olhos muito fixos nele, como se tentasse lê-lo, mas depois de um longo instante pestanejou e acabou por baixá-los, devagar, em rendição.

"Não."

"Então é o que seremos."

Os olhares entre Luís e Amélia tornaram-se diferentes, culpados quando Joana se encontrava presente, cúmplices quando se cruzavam a sós. Passaram a viver num desassossego miudinho, acossados por uma ambivalência dilacerante: temiam que alguém se apercebesse de algo, ansiavam por um novo ensejo de se juntarem em segredo. Começaram por tentar ser pacientes e aguardar tranquilamente a ocasião propícia, mas ela não surgiu de imediato e depressa ficaram inquietos.

Onde num momento prevalecia a paciência, passou a do­minar a inquietação. Já em desespero, na manhã seguinte Luís tentou a todo o custo criar uma oportunidade.

"Ó António", disse, interpelando o filho mais velho de Amélia. "Gostaste ontem de ir ao rio?"

"Sim."

"Querias voltar?"

"Queria."

Luís olhou para a mulher.

"Se calhar fazia-vos bem dar o mesmo passeio, Joana. Os miúdos gostam e..."

"Ai, hoje não. Descer até ao rio foi agradável, mas a subida... ufa, custou-me muito."

"Olha que te fazia bem", insistiu o marido. "O ar é óptimo e vieste com magníficas cores."

"Pois, mas é uma grande estafa." Franziu o sobrolho. "Olha lá, porque nao vais tu?

A tentativa não resultou, mas Luís não se deu por vencido. Ao almoço, e enquanto saboreava um copo de verde branco caseiro, lançou uma nova sugestão: e que tal Joana levar as crianças a ver como se fazia leite e queijo? Havia uma vacaria ali em Castelo de Paiva, a uns quilómetros da Quinta de Pousada, e decerto que seria uma tarde bem passada. Luís insistiu na sugestão, mas a mulher recusou liminarmente a ideia, alegando que queria passar a tarde a ler.

No primeiro instante em que, por momentos, Amélia o apanhou a sós na cozinha, logo depois do almoço, não escapou a uma repreensão.

"Tu estás maluco?", murmurou ela com muita intensidade, os olhos carregados.

"O que foi?"

"Tens de parar com essas sugestões despropositadas", disse Amélia, desviando a atenção para a porta de modo a assegurar-se de que ninguém vinha aí. "Se continuares a tentar mandá-la embora, ela vai acabar por perceber."

"Não percebe nada."

A amante apontou-lhe o dedo, como se o estivesse a avisar.

"A minha irmã pode ainda ser nova, mas não é parva. A partir de agora, bico calado, ouviste?"

Era evidente que Amélia tinha razão, mas não era isso que lhe resolvia o problema. Desejava-a ardentemente e as coisas eram agravadas por aquela situação de se encontrar tão próximo e tão distante dela. Luís estava a ficar desesperado; sentia absoluta necessidade de estar a sós com a mulher que amava, mas não via modo de aparecer uma nova oportunidade. Assim não poderia ser, concluiu, já cego pelo desejo. Se não conseguia chegar a ela de uma maneira, teria de ser de outra. Aquela semana na Quinta de Pousada acabaria em breve e

talvez tão cedo não dispusessem de uma oportunidade como aquela.

Na noite do quarto para o quinto dia, quando todos dormiam a sono solto, levantou-se cuidadosamente da cama, deslizou em silêncio pelo corredor e entrou com muito cuidado no quarto de Amélia.

"És tu, Luís?"

Era a voz da amante. Amélia estava acordada e soergueu-se na cama, apoiada nos cotovelos.

"Chiu."

Luís debruçou-se sobre ela muito devagar, quase com medo de que a sua respiração fosse audível por toda a casa, e bei-jou-a com paixão. Depois envolveu-se no cobertor, deitou-se ao seu lado e mergulhou-lhe no corpo, mas de imediato imobilizaram-se os dois. A cama chiava muito, cada movimento era um guincho e decerto que todos haviam sido despertados pela chinfrineira aguda das molas e pelo ranger dorido da madeira.

Aguardaram um instante, a respiração suspensa, os dois muito alerta, quase a ouvirem os próprios corações, os olhos vidrados, ambos a tentarem detectar algum movimento na casa. Nada aconteceu, porém. Tudo permanecia calmo. Tranquilizado, Luís debruçou-se de novo sobre Amélia para a beijar, mas a cama voltou a chiar.

"Porra!", praguejou muito baixinho. "Isto faz uma baru­lheira inacreditável!"

"Não pode ser mais devagar?"

Luís tentou movimentar-se com maior cuidado, movendo o corpo muito lentamente, mas os guinchos recomeçaram; pare­cia que a cama fazia de propósito.

"E agora?", perguntou ele, percebendo que era impossível não fazer barulho. "O que fazemos?"

Amélia ficou um instante calada, a avaliar as opções.

"E se fôssemos lá para baixo?"

A sugestão deixou Luís espantado. A casa tinha dois pisos, é certo, mas só aquele onde eles se encontravam, o primeiro, era habitável.

"Como assim?"

"Vamos lá para baixo."

"Mas lá em baixo não há nada."

"Há o curral."

Atravessaram com muito cuidado o corredor, evitando as partes do soalho que rangiam, e abriram a porta exterior. O gelo da noite húmida envolveu-lhes os corpos num abraço arrepiante. A tremer de frio, desceram as escadas e, uma vez cá em baixo, meteram-se no curral, situado mesmo por baixo da cozinha. Chamavam-lhe curral, mas na verdade era mais uma pocilga e um galinheiro, uma vez que ali só havia porcos e galinhas. Pairava no ar um forte cheiro a animais e os suínos, sentindo o movimento, puseram-se a grunhir; mas ao menos estavam longe do piso residencial da casa e, pormenor igualmente relevante, o espaço apresentava-se relativamente quente.

Escolheram um canto onde era guardada a palha e deitaram-se ali, envolvendo-se um no outro. Ainda tiritavam de frio, mas o calor dos corpos apertados foi crescendo ao ritmo dos beijos e das carícias e logo Amélia começou a sentir os lábios a arder. Tremiam ainda, mas já de antecipação, os corpos famintos, a carne voraz, os sentidos despertos. Luís lambeu-lhe a boca, os ouvidos, o ventre, lambeu-a com gula e avidez; tentou adiar o momento o mais possível até que se tornou impossível adiar mais e, com os gestos bruscos dos possessos, virou-lhe o corpo, assentou-a de gatas e entrou nela.

Os gemidos de Amélia irromperam pelo curral, misturados com o grunhido dos suínos; os porcos agitavam-se de um lado da cerca, os amantes bailavam do outro lado, animais uns e outros. As mãos dela agarravam-se à madeira enquanto o corpo balouçava ao ritmo das pancadas de Luís, ele arfando e ela vagindo. Sentindo aproximar-se o ponto para além do qual não se conseguiria controlar mais, Luís interrompeu os movimentos e recuou.

Foi o suficiente para recuperar algum controlo. Já mais recomposto, deitou-se de costas sobre a palha e fez-lhe sinal de que se sentasse em cima dele. Amélia obedeceu e montou-o, enterrando-se com um suspiro. Começou a subir e a descer, primeiro devagar, depois mais depressa, os gemidos acompanhando o ritmo dos movimentos.

"Quem está aí?"

Os amantes paralisaram, horrorizados.

Olharam em redor, atarantados, procurando identificar a direcção de onde vinha a voz. Viram um clarão azulado cair-lhes em cima e uma mão a segurar um candeeiro a petróleo. A luz bruxuleante bailava como um pêndulo, projectando sombras em movimento pelo curral e banhando de perfil os traços rudes e gastos de um homem que os observava embasbacado, o canto dos olhos sulcado de rugas, os dentes apodrecidos intervalados por buracos negros.

Era Tino, o caseiro.

 

O corpo compacto e grosseiro de Francisco cruzou a ombreira da porta da copa e imobilizou-se diante da mesa do pequeno-almoço. Luís parecia alheado de tudo, os olhos fixos para além da janela, perdidos num horizonte longínquo. Joana afadigava-se a dar de comer aos sobrinhos, parecia uma andorinha a esvoaçar no meio das crias.

"A Amélia?", perguntou Francisco.

"Ainda não se levantou", esclareceu a irmã, remexendo energicamente o copo de leite.

"Porquê?"

"Está mal disposta." Pegou no copo e estendeu-o à pequena Rosinha. "Anda, já tirei as natas. Podes beber."

Francisco deu meia-volta e desapareceu no corredor.

As crianças na copa agitavam-se, inquietas; queriam ir lá para fora brincar e o pequeno-almoço era um ritual que as enervava. A mãe conseguia mantê-las sob controlo, mas, sem Amélia ali, as coisas eram diferentes. A tia exercia menos

autoridade e os pequenos aproveitavam para montar na copa um verdadeiro circo.

" Luís, podias ajudar", queixou-se Joana, incapaz de dar resposta a todas aquelas solicitações.

O marido parecia vidrado na janela, entregue aos seus pensamentos, e estremeceu ao perceber-se interpelado.

"Hã?"

"Olha lá, estás a dormir ou quê? Ajuda-me! Isto está um pandemónio, valha-me Deus."

"Que queres que eu faça?"

A mulher indicou o sobrinho mais velho, que dava saltos frenéticos e guinchava como um cabrito junto à porta da cozinha.

"Então não vês o estado em que se encontra o António? Olha para aquilo! O diabo do rapaz foi ali às natas e despejou-as na cabeça!"

Luís observou a criança e constatou que, de facto, tinha uma pasta branca a pingar-lhe dos cabelos.

"Caramba, que porcaria!" Levantou-se, foi buscar um pano e esfregou-o na cabeça do pequeno. "O António, o que é isto?"

"É neve! É neve!"

"Qual neve, qual carapuça! É uma nojeira, é o que é!"

"Eu quero neeeeeeve!"

"Vá, juizinho."

Pegou no pequeno e, apesar da resistência que ele mostrou, obrigou-o a sentar-se à mesinha da copa. Cortou uma fatia de regueifa e barrou-a com manteiga, entregando-a a António.

"Vamos, come!"

"Não quero!"

"Come, António."

"Não queeeeero!"

"Ó meu grandessíssimo teimoso!", rugiu, já impaciente. "Ou tu comes isto tudo, ou então..."

"Senhor Luís."

Luís virou a cabeça para trás e viu Francisco de novo parado à porta, dessa vez com os olhos postos nele. Aquela pose surpreendeu-o. Que se lembrasse, era a primeira vez que o troglodita lhe dirigia palavra por iniciativa própria.

"Sim?"

"A Amélia pede que o senhor vá lá ao quarto."

Luís franziu o sobrolho, olhou de relance para Joana, que continuava às voltas com o leite da pequerrucha, levantou-se e saiu da copa com Francisco no encalço. Percorreram ambos o corredor até chegarem diante do quarto de Amélia. Luís deu três toques leves na madeira e a voz de Amélia mandou-os entrar.

"Querias falar comigo?"

Com os olhos vermelhos de fadiga, Amélia mirou o amante e o irmão adoptivo e fez-lhes sinal de que se instalassem aos pés da cama.

"Fechem a porta e sentem-se aqui", ordenou.

Os dois homens obedeceram e acomodaram-se na cama, a porta do quarto já trancada.

"O que se passa?", perguntou Luís.

Amélia suspirou.

"Acho que não precisamos de fingir ao pé do Chico."

"O que queres dizer com isso?"

"O Chico é a única pessoa que sabe que namorámos em Bragança. Não te esqueças de que ele estava lá e assistiu a tudo."

Luís estreitou os lábios.

"Como poderia eu esquecer?", perguntou com sarcasmo, espreitando Francisco de soslaio. "E então?"

"Ele é uma pessoa de confiança."

O amante coçou a cabeça, indeciso.

"Achas mesmo?"

"Desde a morte da minha mãe que o Chico me é muito dedicado. Como te disse, ele sabe que fomos namorados e, como vês, nunca contou a ninguém. Isso prova alguma coisa, não prova?"

Luís assentiu.

"Está bem, é de confiança. Mas por que razão estás a metê--lo nisto?"

Amélia olhou para o irmão adoptivo.

"Conta-lhe, Chico."

O brutamontes pigarreou, desconfortável. Estava mais habituado a ouvir do que a falar.

"A pela manhã passei pelo Tino."

"E então?"

Francisco engoliu em seco.

"Disse que não tarda nada o patrão vai correr-nos a todos daqui para fora."

A frase atingiu Luís com brutalidade. A realidade impunha-se de um modo cru e não havia maneira de lhe escapar. Desde a noite anterior que ele e Amélia viviam numa aflição, tentando adivinhar quais as intenções do caseiro depois de os ter visto juntos no curral. Sabiam que a denúncia constituía uma forte probabilidade, mas enquanto permanecia uma mera hipótese era uma coisa. O cenário que se desenhava agora diante deles, porém, já não era uma simples probabilidade, tornara-se algo mais do que isso. Transformara-se em certeza.

"Ele explicou porquê?"

"Eu perguntei-lhe."

"E ele?"

Os olhos de Francisco saltaram para a irmã adoptiva.

"Riu-se e disse: «Pergunta à tua maninha.»"

Fez-se um curto silêncio.

"E tu?"

"E eu vim aqui perguntar."

Foi a vez de Luís e Amélia trocarem olhares. A conversa entre Francisco e Tino tinha sido curta, mas muito reveladora. Não restavam dúvidas de que em breve todos iriam ser confrontados com um grande problema. Era como uma bomba à espera do momento de detonar. Quando explodisse, sabiam que ninguém sairia ileso. Haveria consequências para Amélia e para o marido, haveria consequências para os filhos, haveria consequências para Francisco, haveria consequências para Joana e para Luís. A bem dizer, não era que Luís estivesse grandemente preocupado consigo mesmo. Não se envergonhava de nada e, para ser honesto, na sua perspectiva a denúncia tinha até a virtude de tornar transparente a sua relação com Amélia; quem sabe se não seria mesmo aberta a oportunidade de viverem juntos. Não era isso, pois, o que o preocupava. O verdadeiro problema estava nos estilhaços que atingiriam toda a gente à sua volta.

"Será que me podem explicar?", insistiu Francisco.

Amélia ajeitou o cobertor.

"Eu e o Luís continuamos a ser namorados", disse, sem se atrever a olhar para o irmão adoptivo. "O que se passou é que o Tino nos viu juntos ontem à noite."

"Onde?"

Amélia corou de vergonha e encolheu-se na cama, como se tentasse desaparecer por entre os lençóis.

"No curral."

"E depois?"

"Viu-nos e... e foi-se logo embora."

"Não disse nada?"

"Não. Viu-nos e foi-se embora."

Fez-se um silêncio embaraçado.

"E a mana?"

"A Joana? Não sabe de nada. Ninguém sabe de nada. Só nós os três."

Francisco olhou para a porta trancada.

"Só nós os três mais o Tino."

Luís abanou a cabeça e respirou fundo.

"Só nós os três, mais o Tino, e a mulher do Tino, e a sogra do Tino, e os pais do Tino, e os filhos do Tino e toda a gente da quinta. O que quer dizer que amanhã já toda Castelo de Paiva sabe. E depois de amanhã já toda Penafiel sabe."

"Não", disse Francisco.

"Como assim, não?"

"A família do Tino não está cá."

"Ai não?"

"Foi ontem para Penafiel por causa da feira de São Martinho."

"O Tino está sozinho?", admirou-se Luís. "Não acredito. Deve ter ficado cá alguém, não se iam todos embora..."

"Foram todos para Penafiel", repetiu Francisco. "A feira de São Martinho é um grande acontecimento cá na terra, de maneira que a família do Tino foi para lá."

"Fazer o quê?"

"Foram vender regueifas e o vinho que restou das vindimas do ano passado."

"E o Tino? Porque ficou ele cá?"

"Tinha umas coisas para arranjar." Contraiu a boca e arqueou as sobrancelhas, para sublinhar a frase seguinte. "As vedações da pocilga."

"Ah."

Isso explicava a presença do caseiro no curral na noite anterior.

"Tens a certeza que ele ainda não contou a ninguém?", perguntou Amélia.

"Sim. Não está cá ninguém para contar."

"Pode ter contado aos vizinhos", disse Luís.

"Quais vizinhos? Foram todos para a feira de São Martinho."

"Todos, não acredito."

Francisco encolheu os ombros.

"Mesmo que tenham ficado alguns, o Tino ainda não saiu da quinta esta manhã. Portanto, não contou a ninguém."

Amélia e Luís suspiraram, aliviados.

"Quando é que essa feira acaba?"

"Começa hoje e acaba depois de amanhã."

Luís fez as contas.

"Portanto, temos dois ou três dias."

"Não", retorquiu Francisco. "Só algumas horas."

"Porquê?"

"Porque o Tino vai esta tarde para Penafiel."

Mal acabou de ouvir esta informação da boca de Francisco, Luís ergueu-se de um salto e abriu a porta do quarto.

"Vamos", disse, subitamente cheio de energia. "Não há tempo a perder."

"Vamos onde?"

"Falar com ele, claro."

 

A Primavera chegara, mas não sorria. O céu apresentava-se coberto por um tecto metálico, parecia prata líquida, e mesmo a verdura da encosta desmaiara sob a luz pálida da manhã. O dia nascera anémico e frio, influenciado pela nortada que atravessava o rio e agitava as árvores e os arbustos, o farfalhar inquieto a adensar o ambiente lúgubre da quinta. Ninguém diria que estavam em Abril.

Deram com o caseiro a aparelhar a mula à carroça. Os garrafões de tinto verde acumulavam-se na carga; eram os restos da vindima que iam ser vendidos na feira.

"Senhor Constantino", chamou Luís, aproximando-se a passos largos. "Dá-me licença?"

O caseiro voltou-se e mirou-o, desconfiado. Tinha um cigarro no canto da boca e mudou-o para o outro canto quando viu Francisco e Amélia a aproximarem-se também. Estreitou os olhos e focou o seu interlocutor.

"Faça o favor de dizer, senhor capitão."

"Não sou capitão", corrigiu Luís. "Sou alferes."

"Sim, senhor capitão."

Luís fitou-o, subitamente embaraçado. Nos olhos do caseiro fixara-se certamente a cena com que se deparara na noite anterior no curral, e o alferes veterinário tinha isso bem presente na mente. Por onde poderia começar a conversa?

"Oiça", disse. "O senhor... enfim, como hei-de dizer? O senhor esteve ontem no... no curral, não é verdade?"

"Estive sim, senhor capitão."

Luís olhou para trás, inseguro, como se buscasse apoio de Francisco e Amélia, e voltou a encarar o caseiro.

"O que eu... que nós queremos saber é se... enfim, se o senhor tenciona... quer dizer, queremos saber se o senhor vai... vai contar a alguém aquilo que viu."

O caseiro voltou-lhe as costas e puxou uma correia com força, para garantir que ela estava solidamente apertada. Feito isto, encarou de novo Luís. Aspirou fundo o cigarro e libertou devagar uma nuvem acinzentada.

"Direi o que tiver de dizer a quem tiver de dizer, senhor capitão."

Luís passou a mão pela testa, limpando as gotas de suor que lhe começavam a escorrer do couro cabeludo.

"Oiça, se o senhor disser alguma coisa, vai ser... vai criar muitos problemas. O senhor não quer criar problemas, pois não?"

"Não quero não, senhor capitão."

Acendeu-se uma luz de esperança.

"Então... então está ver que... enfim, se contar alguma coisa, cria-se um problema, não é?"

"Isso não sei, senhor capitão."

"Não sabe como? Então não vê que, se contar o que viu, se cria um grande problema?"

"Eu acho que não, senhor capitão."

"Então o que pensa você que vai acontecer se contar?"

"Resolve-se um problema, senhor capitão."

Fitou o caseiro com uma expressão interrogativa. Seria o homem parvo ou estaria a gozar com ele?

"O que quer dizer com isso?"

O homem mudou o cigarro de um canto para o outro da boca apenas com um rápido movimento dos lábios.

"Quero dizer que o senhor capitão Branco tem um problema, mas não sabe que o tem", disse, lançando um olhar hostil na direcção de Amélia. "Quando eu lhe contar, fica a saber a verdade e pode assim resolver o seu problema."

"Mas, oiça, ele não precisa de saber nada", insistiu Luís, vendo a conversa virar numa direcção que não lhe agradava. "Garanto-lhe que não se vai passar mais nada semelhante a... àquilo que o senhor viu no curral."

"Isso já não sei, senhor capitão."

"Mas sei eu. Aquilo não volta a acontecer, garanto-lhe. E se o senhor for contar ao capitão... cria-se um grande problema."

"Talvez sim, mas não será um problema meu, senhor capitão."

Luís suspirou. O homem era casmurro. Daria muito trabalho demovê-lo da ideia.

"Será um problema para toda a gente. Não se esqueça de que o senhor capitão Branco e a dona Amélia têm filhos. Eles vão sofrer com a sua atitude."

"Não serei eu quem os fará sofrer", retorquiu o caseiro, num tom indiferente. "Será quem anda a fazer coisas que não devia fazer e que são contra as leis de Deus."

Ainda por cima um beato, concluiu Luís. Pela conversa, percebeu que assim não iria lá. Tinha de recorrer à sua última

cartada, a mais forte de todas. Pôs a mão no bolso, retirou a carteira e extraiu uma nota.

"Dou-lhe vinte escudos", disse, estendendo-lhe a nota. "Por vinte escudos, e a minha promessa de que isto não voltará a acontecer, peço-lhe o seu silêncio."

"Não quero."

Sacou outra nota igual.

"Quarenta escudos, então."

"Nem que fossem dez contos", atalhou o caseiro com desdém, enquanto afastava as notas que lhe eram estendidas. "Não quero o seu dinheiro. O que eu quero é estar de bem comigo, com a minha família e com Deus."

"Mas qual é o problema? Você fica com o dinheiro e ninguém sabe de nada. Qual é o mal?"

O caseiro indicou o seu olho direito.

"Deus tudo vê e tudo sabe. Pode mais ninguém saber que eu recebi o dinheiro e me calei, mas Deus sabe." Apontou para cima. "Deus exige a verdade e será a verdade que eu direi."

O homem voltou as costas de novo, dando por encerrada a conversa, e recomeçou a aparelhar a mula.

Impotente, Luís voltou-se para trás e trocou com Amélia um olhar de desânimo. Foi nesse instante que Francisco deu dois passos em frente, empurrou Luís para o lado e chegou junto do caseiro.

"Ó Tino."

O homem manteve o corpo virado para a mula, mas voltou a cabeça e espreitou sobre o ombro.

"O que é?"

"Se contas alguma coisa, mandam-me embora aqui da quinta."

O caseiro soltou um riso seco e encolheu os ombros.

"Tanto melhor."

"Tanto melhor, o quê?"

Tino parou de fazer o que estava a fazer e virou-se finalmente para Francisco, que era dois palmos mais alto do que ele. Olhou para os pés do rapaz diante dele e subiu devagar os olhos até ficar com a cabeça voltada para cima.

"Tanto melhor mandarem-te embora", disse por fim, num tom de profundo desprezo. "Não estás aqui a fazer nada. Ninguém gosta de ti, és um merdas que para aqui anda. Até os miúdos têm medo quando te vêem. Chamam-te mostrengo."

Num acesso de fúria, Francisco pegou no caseiro pelos colarinhos e puxou-o para si, deixando-o pendurado, os pés no ar.

"Repete lá isso."

O homem riu-se.   '

"Ui, que medo! Vais bater-me, vais?"

"Tem calma, Chico", disse Luís lá atrás. "Assim não vamos resolver nada."

Mas o rapaz nem parecia ter ouvido.

"Repete lá isso."

Tino cuspiu o cigarro para o chão e libertou o fumo no rosto do seu adversário.

"Tu ouviste muito bem. Tens a mania que és mau, mas a mim não me acagaças, ouviste? Aqui o Tino é teso. Quando eu chegar a Penafiel, vou direitinho ter com o patrão e conto-lhe tudo. Tudinho. Depois quero ver como é."

Francisco colou o nariz ao nariz do caseiro e carregou os olhos.

"Não contas nada."

"Ai não? E como é que me vais impedir?"

O rapaz pôs o braço direito em gancho em torno da cabeça de Tino, de forma a que a mão lhe agarrasse a cara, e com o esquerdo manteve-o imobilizado.

"Assim."

Puxou nesse instante com inesperada brutalidade, torcendo a cabeça do caseiro. Ouviu-se um estalido brutal, como o crac seco de um tronco a partir-se numa árvore. Os pés pendurados agitaram-se num espasmo e o corpo imobilizou-se, a cabeça voltada para trás numa posição impossível, os olhos brancos, a língua roxa ao canto da boca.

Amélia gritou, horrorizada.

Com um movimento de desprezo, Francisco atirou o corpo para o chão. O caseiro ficou estendido como um espantalho partido, a barriga para cima, o rosto enterrado na lama, os pés ainda a tremerem num derradeiro estertor.

"Agora já não conta a ninguém."

Todo o inesperado da situação deixou Luís pregado ao chão, vendo e não acreditando no que via, experimentando um sentimento de irrealidade, como se tudo aquilo não passasse de um pesadelo, pouco plausível era verdade, mas incri­velmente realista.

As palavras de Francisco, porém, tiveram o condão de o despertar da letargia em que havia mergulhado. Acto contí­nuo, saltou para a frente e ajoelhou-se diante do corpo inerte estendido na lama. Rodou devagar a cabeça imóvel do caseiro e fez uma careta preocupada ao ver-lhe os olhos fixos. Aquilo não era bom. Premiu o dedo sobre a carótida e procurou a pulsação, mas não a sentiu. Inclinou a cabeça sobre o coração e pôs-se à escuta.

Nada.

"Está morto", constatou, endireitando-se.

Amélia mostrava-se siderada. Tinha as mãos a tapar a boca e não conseguia tirar os olhos do cadáver.

"E agora? E agora?"

Luís ergueu-se lentamente e encarou Francisco.

"Tu tens a noção do que fizeste?"

"Calei-o."

"Lá isso é verdade", concordou, olhando por instantes para o corpo estendido atrás dele. "Lá calado está ele, não há dúvida nenhuma. Só que, para resolver um problema complicado, criaste um problema ainda maior. A bem dizer, muito maior."

"Ele não me devia ter chamado mostrengo."

"Tens razão", voltou a assentir Luís. "Mas não era caso para o matares, pois não? O que vais agora dizer à polícia?"

Francisco fungou e não respondeu, os olhos sempre pousados no cadáver do caseiro.

"Vais chamar a polícia?", questionou-o Amélia.

A pergunta deixou Luís surpreendido.

"Quer dizer... ainda não pensei nisso. Mas é evidente que a polícia vai aparecer. Mais tarde ou mais cedo, eles vão surgir aí. Ou pensas que se mata uma pessoa e continua tudo na mesma?"

Ainda em estado de choque, Amélia sentia enormes dificuldades em raciocinar.

"Tens razão. A polícia vai aparecer."

"E irá começar a fazer perguntas", acrescentou Luís. "Muitas perguntas, mesmo. Quem o matou, porquê, o que aconteceu... tudo isso eles vão querer tirar a limpo."

Amélia indicou o irmão adoptivo com a cabeça.

"Achas que o vão prender?"

"O que achas tu?"

A amante manteve-se calada e o irmão adoptivo também.

"Diz-me, o que achas tu?", insistiu Luís, enervado por só ele estar a ver o óbvio. "Pensas que eles chegam aí, percebem que o Francisco matou o Tino e dizem: ó, coitadinho, vamos deixá-lo em paz, se calhar foi sem querer. Achas que vão dizer isso?"

"Tens razão."

"O Chico vai para a choça."

"Oh, não!"

"E se calhar nós também."

"Nós?"

"Claro. O adultério é um escândalo, mas o assassínio é um crime. Um grande crime. Se fores a ver bem, nós viemos aqui para tentar calar o Tino e o Francisco calou-o de facto. Tínhamos um bom motivo e dispusemos da oportunidade." Indicou o cadáver. "Quem é que vai convencer o juiz de que não tivemos nada a ver com isto?"

Posta perante a real magnitude do novo problema, Amélia escondeu a face com as mãos.

"Meu Deus! Meu Deus, meu Deus! Estamos perdidos! O que vai ser de nós, Virgem Santíssima?" Soluçou. "O que vai ser dos meus filhos?" Mais soluços. "No que nos fomos meter, Santo Deus? Que loucura é esta? Como é que isto chegou a este ponto?"

Vendo-a entrar em pânico, Luís aproximou-se e envolveu-a nos braços, já arrependido da crueza com que apresentara os factos.

"Pronto, pronto", murmurou. "Não te preocupes, tudo se há-de resolver, vais ver."

Amélia encarou-o, buscando esperança onde já a perdera.

"Como é que tudo se há-de resolver? Tu próprio o disseste: nenhum juiz vai acreditar que não tivemos nada a ver com... com isto. Como é que se vai resolver? Diz-me: como?"

"Eu sei o que disse. Mas, se nós explicarmos tudo muito bem explicadinho, vais ver que a polícia e o juiz percebem. Tem calma, não te enerves."

Vendo que nada mais lhe restava fazer, Francisco saiu do local e dirigiu-se ao casarão. Luís ficou a tentar confortar Amélia, mas na realidade nem ele próprio acreditava que fosse possível escaparem todos à cadeia. Falava por falar, para a acalmar, para a ajudar a preparar-se para os tempos complicados que já antevia. Não era difícil, aliás, prever a sucessão de acontecimentos que seria em breve desencadeada. O morto seria encontrado, a polícia interrogá-los-ia, provavelmente seriam detidos, haveria um escândalo, seguir-se-ia o julgamento, depois a condenação e a destruição de todas e de cada uma das vidas a que os três estavam ligados. Em suma, as coisas dariam uma grande volta, e para muito pior.

Enquanto ia prevendo os acontecimentos, Luís reparou que Francisco saía do casarão com um objecto às costas. Parecia um saco. De início não deu importância ao assunto, mais preocupado com Amélia e com o prenúncio do que aí vinha. Mas, à medida que ele se aproximava, começou a interrogar-se. Onde iria Francisco? Para que raio quereria ele o saco? Seria possível que planeasse meter o caseiro lá dentro? Que diabo teria na cabeça?

Caminhando com uma despreocupação desconcertante, Francisco aproximou-se dos dois e parou quando chegou ao local onde eles se encontravam.

"Vou-me embora, senhora."

Amélia, que chorava baixinho encostada ao peito de Luís, afastou o cabelo e olhou para o irmão adoptivo.

"Onde vais?"

"Vou fugir."

A resposta deixou-a abismada.

"Vais onde?"

"Vou fugir."

"Mas... mas tu não podes fazer isso."

"Ai não? Então faço o quê? Fico aqui à espera que me venham prender?"

"Bem... temos de enfrentar a justiça, não achas?"

"Para quê?"

A pergunta era embaraçosamente certeira. Para quê enfrentar a justiça? Que fim serviria tal sacrifício? Ficaram os três a olhar-se, sem saberem o que dizer.

Percebendo enfim que aquela era uma despedida, Amélia soltou-se do amante e abraçou-se ao rapaz que a mãe adoptara, afagando-lhe os cabelos com os dedos.

"O Chico! Desculpa! Desculpa tudo isto... toda esta confusão! Se eu tivesse juízo..."

"Fui eu que o matei. A senhora não tem de pedir desculpa."

Amélia fungou e fitou-o nos olhos.

"Tens a certeza do que estás a fazer?"

"Não."

Luís meteu a mão no bolso.

"Ele está a fazer a única coisa que pode fazer", observou, retirando a carteira. Tirou todo o dinheiro que lá tinha e entregou-o ao rapaz. "Toma. São cento e quarenta escudos, é tudo o que trago neste momento. Não é muito, mas sempre vai dar jeito."

Sem dizer uma palavra, Francisco aceitou o dinheiro e guardou-o no bolso. Depois beijou Amélia no rosto, pegou no saco e começou a andar em direcção ao portão.

"Para onde vais, Chico?", perguntou Amélia, ainda sem acreditar na rapidez com que os acontecimentos se haviam precipitado. "Para onde vais tu?"

"Para onde não me encontrem."

E desapareceu para lá do portão sem olhar uma única vez para o passado que deixava para trás.

 

                         1936

                   Não creias nele, porque tudo é nada

O rapaz perfilou-se à cabeça da fila, nu, plantado diante da secretária do oficial. O alferes Luís Afonso olhava para a rua pela janela, apreciando o ar pacato da cidade. Já se habituara a ela, de tal modo que contemplava com uma certa familiari­dade as fachadas dos edifícios e das lojas da Avenida Sacadura Cabral e o aspecto prazenteiro que o Campo do Conde de Torres Novas apresentava, mesmo em frente ao quartel.

Suspirou e olhou enfim para a ficha pousada na mesa.

"Nome?", perguntou, mirando a ficha.

"Aurélio do Carmo Silva."

O oficial miliciano levantou a cabeça, segurou os olhos do recruta e arregalou uma sobrancelha, com ar de quem não gostou da resposta.

"Aurélio do Carmo Silva, meu alferes", corrigiu Luís, acentuando o meu alferes.

O rapaz pareceu ter-se assustado e ficou ainda mais hirto.

"Aurélio do Carmo Silva, meu alferes."

O alferes veterinário pegou na caneta e tomou nota do nome na ficha.

"Data de nascimento?"

"Uh...", atrapalhou-se o rapaz. "Não sei, meu alferes."

O oficial mirou de novo o recruta, dessa vez com mais atenção. Tinha um ar rude, as mãos grosseiras, as unhas encardidas de preto; era um moço do povo, viera do campo e provavelmente os pais não o tinham registado logo à nas­cença.

"Em que ano nasceu você?"

"Em 1920, meu alferes. A minha mãe disse-me que foi na altura das colheitas, mas não sei o dia."

Luís voltou a levantar a sobrancelha.

"Não sei o dia, o quê?"

"Não sei o dia, meu alferes."

"Hmm", murmurou o oficial, debruçando-se mais uma vez sobre a ficha. Escrevinhou o ano, mas deixou em branco os espaços relativos ao dia e mês de nascimento. "Naturalidade?"

"Faz favor de dizer, meu alferes?"

"Naturalidade?"

"Como diz, meu alferes?"

"Onde nasceu você, rapaz? Aqui em Penafiel?"

"Ah! Nasci na casa da minha avó, mesmo ao pé do riacho, ali em Guilhufe, meu alferes."

No momento em que Luís ia a anotar a informação, o telefone negro pousado na secretária começou a tocar com um riiiiiing aflitivo. O oficial pousou a caneta e atendeu.

"Está sim?"

Uma voz metálica, quase eléctrica, respondeu-lhe do outro lado.

"Olá, Luís, como vai isso?"

Era o capitão Branco.

"Estou aqui a atender os novos recrutas", disse, olhando de relance para o homem nu à sua frente. "Preferia ir treinar o Relâmpago, mas o coronel Silvério insiste em pôr-me aqui nestas funções..."

"Nem tem ele outro remédio. O Porto ainda não nos mandou nenhum médico, de modo que tem de ser você a tratar das provas de aptidão." Pigarreou. "Por falar no coro­nel Silvério, veio aqui ter comigo o oficial de operações, o alferes Boavida, a convocar-nos para uma reunião esta tarde."

"A convocar quem?", perguntou Luís, convencido de que havia escutado mal a última frase.

"A nós."

"A mim também?" -

"Sim."

O veterinário coçou a cabeça, surpreendido.

"Mas o que raio me quer o nosso comandante?"

"O alferes não me explicou. Disse-me apenas que se tratava de um assunto melindroso e confidencial. Temos de estar no gabinete do nosso coronel às três da tarde."

Luís desligou e permaneceu um longo momento a olhar pela janela, meditativo, interrogando-se sobre que assunto seria esse que tanto melindre suscitava e para que raio o quereriam envolvido nele. Haveria novidades sobre Francisco? Desde o crime na Quinta de Pousada que ele e Amélia viviam em sobressalto. Quando a GNR aparecera para investigar a morte do Tino, a versão que apresentaram foi que tinham encontrado ali o corpo quando saíam do casarão depois do pequeno-almoço, tendo ainda constatado que Francisco havia desaparecido. Era, na verdade, a única coisa que poderiam dizer. Se revelassem a verdade, ela seria demasiado suspeita. Além do mais, forçá-los-ia a explicar como tudo tinha começado e tal explicação pertencia ao domínio do inconfessável. Com que cara iriam dizer que tudo acontecera porque o Tino os havia apanhado em flagrante no curral?

A versão que apresentaram revelou-se de longe a mais simples e inatacável, mas tinha um importante senão: se Francisco viesse a ser apanhado, seria uma catástrofe. O irmão adoptivo de Amélia não estava inteirado da versão que ambos acordaram para relatar os acontecimentos, pelo que depressa a polícia notaria as contradições que inevitavelmente iriam emergir durante o interrogatório. Era por isso imperativo que Francisco nunca viesse a ser capturado. Mas como diabo poderiam eles ter a certeza de que tal jamais aconteceria?

O dia-a-dia dos dois amantes havia-se assim tornado um inferno, sempre com receio de que rompesse a notícia da detenção de Francisco. E agora o coronel Silvério, que era nem mais nem menos que o comandante do regimento, queria falar com ele! E não era só com ele: era também com o marido de Amélia! Pior augúrio não poderia haver. De certeza que havia novidades, de certeza que a polícia tinha...

"Meu alferes", disse uma voz.

O oficial despertou dos seus pensamentos e, como se regressasse de um país longínquo, libertado da letargia pelo estalar dos dedos de um qualquer hipnotizador, olhou para o recruta nu e viu-o hirto à sua frente, uma expressão intrigada desenhada nos olhos.

"O que é, rapaz? Tens frio?"

"Uh... não, meu alferes."

"Então? E vergonha de estares como vieste ao mundo?" Sorriu. "Não te preocupes." Pegou no formulário e acabou de o preencher. "Daqui a um bocado passas pelo dispensário com este papel que te vou dar e eles entregam-te roupa

interior, lâmina de barbear e pincel, dois fatos de cotim, botas e alpergatas." Ergueu a cabeça e apontou para o recruta com o dedo. "Mas primeiro vais ter de tomar banho, ouviste? Cheiras mal, tresandas a bosta de boi."

"Sim, meu alferes." Hesitou. "Mas eu queria mesmo era saber outra coisa, meu alferes."

"O que é?"

O recruta indicou com o queixo o telefone pousado sobre a secretária.

"Eles falam mesmo de lá, é? Ou isso é conversa para nos enganar?"

O movimento na praça diante dos Paços do Concelho era lento, apesar de ser o centro da cidade. Alguns homens vestidos de preto ou castanho-escuro concentravam-se diante do Café Lima e do Café da Sociedade, locais que Amélia sabia serem-lhe interditos. Eram antros de álcool, tabaco e bilhar, zona exclusiva para homens. Passou por isso pelos cafés em passo lesto, sem sequer espreitar para o interior, como convinha a uma senhora da sua condição.

Entrou na Farmácia Oliveira e encomendou as aspirinas e o xarope Bromil que lhe tinham sido receitados por Luís. Desde a tragédia que fora a morte do Tino que Amélia não se sentia bem. Sofria de insónias frequentes e, quando acabava por adormecer, era acossada por sucessivos pesadelos relacionados com o que acontecera. Umas vezes sonhava que o marido a apanhava com Luís no curral de Castelo de Paiva; outras vezes imaginava que era a ela que Francisco partia o pescoço. Mas os sonhos mais frequentes eram aqueles que envolviam a polícia a algemá-la ou o juiz aos gritos a condená-la por assassínio e adultério ou o Tino a reaparecer vivo e a clamar por justiça.

Ao sair da farmácia sentiu uma mão a agarrá-la no braço e teve um sobressalto.

"Preciso de falar contigo."

Era Luís.

"Ai, Luís, que susto!", exclamou, pousando a mão no peito sobressaltado. "O que estás aqui a fazer?"

"Temos de conversar."

Amélia olhou em redor, aflita.

"Não pode ser aqui, à frente de toda a gente. Vão comentar."

"Eu sei, mas tenho urgência em falar contigo."

A amante indicou com a cabeça a grande igreja do outro lado da rua, mesmo no meio da praça.

"Vamos ali à Misericórdia, estamos mais tranquilos."

Cruzaram a estreita Rua Serpa Pinto aparentando o ar mais natural do mundo. Para reforçar essa aparência, Luís indicou o embrulho que Amélia tinha nas mãos e entabulou conversa.

"O que é isso?"

"São as aspirinas e o xarope que me receitaste. Fui agora à farmácia aviar a receita."

"Tens tido dores de cabeça?"

"Ainda esta manhã."

"Então toma as aspirinas depois de comeres alguma coisa. E os pesadelos?"

"O costume. Esta noite sonhei que me tinham atirado para os calabouços e que não conseguia andar na cela porque havia ratazanas por toda a parte."

"Usa o xarope para isso."

Amélia tirou o frasquinho do embrulho.

"Não sabia que havia medicamentos para os pesadelos."

Luís pegou no frasco e abanou-o, como se assim conse­guisse testar o líquido no interior.

"Na verdade, nem sei se isto funciona. Mas recebemos no quartel uns jornais do Brasil que dizem que o Bromil serve para tudo, desde a sífilis até aos pesadelos."

"Estás a brincar. Resulta mesmo?"

O alferes veterinário devolveu o frasco de xarope.

"Não há nada como experimentar, não é?"

Entraram na velha igreja seiscentista da Misericórdia e de imediato se calaram, sentindo a imponência do santuário. O interior apresentava-se cheio de luz e ricamente decorado, com uma vasta abóbada de pedra em caixotões trabalhados e pilastras toscanas a sustentar um entablamento classicista. Era talvez a mais bonita das muitas igrejas existentes em Penafiel.

"Tens a certeza de que este é um bom sítio para falarmos?", sussurrou Luís, sentindo as palavras retinir pela igreja.

Amélia indicou as bancadas vazias.

"Não vês que não está aqui ninguém?" Ajoelhou-se, juntou as mãos em oração e murmurou: "Faz de conta que estamos a rezar."

Luís achou boa ideia e imitou-a, ajoelhando-se e começan­do a fingir que rezava.

"Ligou-me o teu marido", disse ele, soprando as palavras como se rogasse perdão ao Senhor. "Disse-me que o comandante quer falar comigo e com ele."

"Sobre quê?"

"Não sei. Mas estou preocupado."

"Porquê? Pode ser um assunto qualquer do quartel."

"Lá poder, pode. Mas é a primeira vez que o comandante me convoca para uma reunião. E logo com o teu marido também presente."

"Achas que apanharam o Chico?"

"Não sei. Talvez."

Amélia quase gemeu.

"Ai meu Deus, Virgem Santíssima! Isto não pode estar a acontecer!"

"Tem calma, isto sou eu apenas a especular."

"Como é que te soou o Mário?"

"Normal. Mas ele também não sabe qual o assunto da reunião."

Amélia benzeu-se, embora dessa vez não tenha sido a fingir.

"Queira Deus que esteja tudo bem. E agora, o que fazemos?"

"A reunião é às três. Vamos esperar para ver o que o comandante tem a dizer."

A amante olhou para ele, subitamente irritada.

"Se não sabes ainda do que se trata, porque me vieste aqui desinquietar?", protestou, erguendo ligeiramente a voz. "Já sabes que eu ando com os nervos à flor da pele..."

"Desculpa", apressou-se ele a dizer, tentando acalmá-la. "É que a convocatória pôs-me nervoso e eu próprio precisava de desabafar com alguém."

Calaram-se um momento.

"Bem, não há-de ser nada", devolveu ela por fim, de novo a sussurrar. "Andamos os dois nervosos com a possibilidade de o Chico ser apanhado. Vais ver que não há-de ser nada."

"És capaz de ter razão." Chegou-se um pouco mais a ela. "Tenho saudades tuas."

"Eu também", devolveu a amante. "Tenho muitas saudades. Muitas, muitas."

"Não podemos continuar a viver assim."

Amélia afastou-se, fazendo um esforço por manter a dis­tância.

"Não temos alternativas, Luís. Não podemos voltar a fazer aquilo que fizemos em Castelo de Paiva. Nunca mais."

"Não consigo estar longe de ti."

"Tens de conseguir. Lembra-te que eu sou casada e tu também és casado, ainda por cima com a minha irmã. A nossa loucura em Castelo de Paiva provocou uma desgraça. Não podemos deixar que uma coisa dessas volte a acontecer. Se o Tino nos descobriu logo à segunda vez, a Joana também vai descobrir e o Mário também acabará por descobrir."

"Fugimos."

"Já te disse que não pode ser. E os meus filhos? Como poderei eu viver sem estar com eles?"

"Levamo-los connosco."

"Estás doido? Queres passar a vida toda com medo de ser preso?"

"Preso? Que eu saiba, não vou quebrar nenhuma lei."

"Mas vou eu. Não sabes que a lei agora diz que o homem é o chefe de família e que a mulher lhe deve obediência? Isto quer dizer que o Mário manda em mim. Se lhe desobedecer, estou a cometer um crime." Deixou escapar um suspiro. "Além do mais, se fugíssemos, que iria eu fazer? Ia esconder-me num sítio qualquer com os miúdos?"

"Podias trabalhar..."

"Isso é que era bom! Não sei se sabes, mas preciso de autorização do meu marido para poder trabalhar. Achas que, se eu fugisse e levasse as crianças comigo, ele me dava autorização para trabalhar?"

Sentindo-se apanhado numa ratoeira e sem ver como sair dela, Luís desistiu de argumentar. A lei fazia dela uma refém do marido.

"Porra para isto."

Respirou fundo e ergueu-se. Doíam-lhe os joelhos e as costas devido à posição em que estivera, mas isso não era nada comparado com a angústia que o agrilhoava. Precisava de se sentir livre e aquela igreja parecia-lhe um túmulo. Sem dizer mais uma palavra, sem sequer voltar a olhar para Amélia, virou as costas e foi-se embora.

 

O enorme Junkers inclinou-se para a esquerda, barulhento, rodou pesadamente no ar, à procura do vento dianteiro, e estabilizou no enfiamento da estreita faixa de alcatrão. Mas estabilizar é forma de dizer, o aparelho perdia altitude aos solavancos, como se descesse uma montanha invisível, aos saltos, aspirado por buracos de ar, tombando sempre mais e mais ainda.

Francisco Latino sentiu gotas de suor deslizarem-lhe pelas têmporas e os músculos retesarem-se a cada abanão; cerrou os olhos e murmurou um ansioso ave-maria, as palavras mais sentidas na parte final da oração, quando entoou o "rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte". Considerava-se um homem destemido, capaz de afrontar tudo e enfrentar todos, já o provara inúmeras vezes ao longo dos seus curtos e turbulentos dezanove anos de vida, mas aquilo, ah!, aquilo parecia-lhe loucura a mais, meter-se numa caixa fechada e voar sobre as nuvens como um pássaro afigurava-se-lhe

uma aventura demente, coisa de doidos. Onde é que já se vira alguém meter-se assim num caixão com asas?

Uma brutal sacudidela, acompanhada por um guincho estridente, anunciou-lhe que o avião tocara no solo. Apertou a almofada do assento diante de si com as grossas mãos, como se assim se conseguisse salvar, como se da sua enorme força dependesse a segurança da máquina. Mas as coisas pareceram acalmar; o JU-52 assentou por completo na pista e perdeu velocidade, ao ponto de quase parar.

Uma erupção de aplausos estalou dentro do avião.

"Viva la Légion!", gritou uma voz.

"Vivaaaaa!", devolveu o coro.

Os homens da 12.a companhia abandonaram em fila o Junkers da Lufthansa e Francisco foi dos últimos a sair. Sentiu o ar quente e seco do Sul de Espanha a bater-lhe na face. Corria o dia 27 de Julho de 1936 quando cruzou a porta do aparelho e desceu as escadas, ainda mal refeito das emoções do voo. Mas o calor não o impressionava; no fim de contas acabara de deixar Tetuán, e aí, mesmo às portas do grande deserto do Sara, é que se sabia o que era calor a sério, calor daqueles que seca a boca e deixa um homem prostrado, calor que mata e não amola apenas.

Pisou a pista da base de Tablada e seguiu a fila com a mochila às costas; os homens guiados por oficiais caminhavam para um hangar em busca de sombra e água fresca, mas alguns paravam pelo caminho e urinavam no alcatrão. Francisco passou por eles e só parou quando chegou ao hangar e deitou a mochila ao chão.

"Entonces, Paço?", disse-lhe um militar aloirado, de olhos ver-de-garrafa e um sorriso traquina a bailar-lhe no rosto. "Qué tal?"

"Qué tal o quê, ó merdoso?", rosnou Francisco. "Já te disse que não me chames Paço, ouviste?"

"Ay, carayl Entonces como te llamo, hombre?"

"Chico, já te disse mil vezes."

"Paço es mejor."

"Olha lá, Juanito, Paço é para espanhol. Eu sou portu­guês."

"Qué mal tiene Paço? El comandante Franco se llama Paço, no?"

"Quero lá saber!"

"Paço esta bien."

"O paneleiro, presta bem atenção." Ergueu o dedo, como quem faz um derradeiro aviso. "Na minha terra, Francisco dá Chico, percebes? Não dá Paço porra nenhuma, hã? Portanto, acaba lá com essa merda de me chamares Paço."

"Si, Paço."

"Cabrão!"

Francisco esticou o enorme braço e fez um movimento em gancho, tentando apanhar Juanito, mas o espanhol antecipou-se, ágil e rápido, e escapuliu-se com uma gargalhada. Juanito escondeu-se atrás de um grupo de militares e espreitou por entre eles com ar trocista.

"Paço! Paço!"

O português era um homem largo e forte, um verdadeiro Neanderthal, o corpo peludo e musculado, mas com os membros curtos; tinha a cabeça pequena, o cabelo cortado à escovinha, maciças arcadas supraciliares e olhos negros miú­dos encovados no rosto. Sabia que em força não havia quem o batesse, mas em velocidade era diferente. Juanito tinha-se escapado e nem foi atrás dele para o apanhar; não o conseguiria se tentasse. Em vez disso, acomodou a mochila contra a parede e sentou-se no chão, as largas costas assentes sobre ela.

Um burburinho nervoso enchia o hangar. Viam-se militares por toda a parte, uns a conversar, outros estendidos no chão

ou encostados às paredes, enquanto lá ao fundo os mecânicos se afadigavam em torno do motor dianteiro do único avião estacionado no local; o aparelho exibia na carlinga umas divisas bizarras, pareciam dois raios paralelos.

"Que avião é aquele?", perguntou Francisco a um homem que descansava à sua direita.

"Es un Savoia 81."

"Um quê?"

"Un Savoia 81. Es italiano. Acabo de llegar de Milano, emprestado por Mussolini." O legionário riu-se. "Pêro me parece que ya veyo con problemas, no?" Fez um gesto de desdém em direcção ao trimotor rodeado de mecânicos. "Mira. Solo nos mandan la mierda."

"Mas aquele em que viemos era diferente."

"Ah, pêro ese era de los alemanes. El tio Adolfo manda todo que es bueno, no?"

Francisco acomodou-se no seu lugar e fechou os olhos. Sabia que não dispunha de muito tempo para descansar e queria aproveitar todos os minutos que lhe concediam. Contudo, não conseguiu adormecer e, ao fim de uns quinze minutos, sentiu alguém encostar-se do seu lado esquerdo. Abriu os olhos e reconheceu Juanito.

"Hola, Paço."

"Cala-te com isso, paneleiro."

Juanito não respondeu. Pegou no cantil de alumínio, protegido por uma cobertura verde-azeitona, e bebeu um golo. Depois estendeu-o ao português.

"Quieres?"

"Não."

O espanhol enroscou a tampa e guardou o cantil junto à anca direita. Encostou-se à sua mochila e ficou a mirar o Savoia italiano.

"Ay, madre miar, suspirou. "Estive a falar com um tipo da V Bandera que veio cá. Disse-me que Sevilha está controlada e que começaram agora a ocupar o maior número possível de povoações, de preferência ao longo da fronteira com o teu país. Acho que os mandaram ontem tomar um povoado qualquer, chama-se Utrera ou Utreta ou lá o que é. Conquistaram a povoação num instante e deram cabo dos rojos que tentavam fugir pela carretera de Jerez de La Frontera. Foi tudo despachado a tiro de metralhadora."

Francisco encolheu os ombros, indiferente.

"Bom proveito."

O camião progredia aos solavancos e Francisco saltitava no assento de madeira, emparedado pelos homens da 12.a companhia. Juanito dormitava encostado ao seu ombro esquerdo, os lábios entreabertos e um fio de saliva a escorrer-lhe da boca. À direita, a cabeça apoiada no cano da sua metralhadora, estava o sargento Gomez, e mesmo em frente, os olhos perdidos na lona do camião, sentava-se Murillo, o italiano folgazão cuja jovialidade era vencida pela monotonia da viagem.

"Che ore sono?", quis saber Murillo.

Francisco consultou o relógio.

"Cinco da tarde. Já aqui estamos fechados há quatro horas."

"Quattro ore? Madona!", exclamou o italiano, rolando os olhos azuis. "Che viaggio!"

"Vá lá, não te armes em maricas. Já deve faltar pouco para chegarmos."

"Mi dispiace, non capisco."

"Capiscas, capiscas. Se eu te capisco, tu também me capis­cas, ou não é assim?"

O italiano não respondeu. Recostou-se no assento e fechou os olhos. Francisco percorreu o rosto dos homens que com ele seguiam no camião de transporte de tropas e percebeu que estavam todos demasiado cansados. Não tinham dormido na noite anterior devido aos preparativos para a viagem que o capitão Fuentes repentinamente lhes anunciara. Voaram do Norte de África nessa mesma manhã e, pouco depois de chegarem a Sevilha, foram metidos no camião para ajudarem a "limpar" um bairro da cidade, até ali nas mãos dos rojos. A operação revelou-se tranquila, uma vez que os legionários de outra unidade tinham já feito o essencial, pelo que acabaram depressa o trabalho e viram-se de novo atirados para o camião. Estavam finalmente a fazer aquilo para que haviam sido treinados, mas, ao cabo de tantas horas de viagem, já ninguém parecia especialmente excitado com a perspectiva de entrar em combate.

Francisco fungou e escarrou lá para fora. O camião erguia uma nuvem de poeira no seu encalço, ocultando os camiões que seguiam atrás. Murillo tinha razão, pensou o português. A viagem estava a tornar-se demasiado longa. Com um pouco de sorte, considerou, ainda lhes dariam umas horas de descanso antes de voltarem a entrar em acção. Mas talvez não o fizessem; afinal eles eram a ralé, os piores dos piores, os mais brutos da criação, e provavelmente ninguém se preocuparia com questões tão insignificantes como o cansaço.

A verdade é que a piores viagens já ele se submetera. De olhos fixos na nuvem de pó que se levantava atrás do camião, Francisco reviu a sua vida desde o momento fatídico que tudo mudara, o instante em que matara Tino com as suas próprias mãos em Castelo de Paiva. Tratou-se de um momento de viragem na sua vida porque foi nessa altura que se tornou um animal acossado. Saltitando ao ritmo dos solavancos do

camião, passou na mente as imagens da aventura que foi a fuga à GNR. Depois de sair da Quinta de Pousada, meteu-se pelos montes, atravessou o rio e refugiou-se sob a giesta de uma grosseira cabana do vale do Sousa, mas a guarda começou a rondar o local e fora obrigado a mudar-se para Trás-os-Montes. O cerco apertou-se de novo e viu-se forçado a descer para Castelo Branco. Descobriu que afinal o seu nome tam­bém estava referenciado pela polícia de toda aquela região, pelo que, após algumas semanas a saltitar daqui para ali, roubando comida e assaltando viajantes, sentiu-se cansado de tanto fugir e decidiu cruzar a fronteira.

Começou a deambular por Espanha. Voltou aos assaltos e aos roubos, era a única maneira que tinha de comer para viver, e depressa acabou com a Guardiã Civil no encalço. Foi nessa altura que as conversas com outros vagabundos lhe revelaram a existência de uma organização militar onde, dizia-se, se aceita­vam recrutas sem perguntas nem documentos, e ainda era ofere­cido um prémio de quinhentas pesetas por uma comissão de cinco anos e quase quatro pesetas mensais de soldo, mais uma gratificação anual de mil e quinhentas pesetas.

Um paraíso.

Francisco dirigiu-se à localidade mais próxima, que no caso foi Salamanca. Perguntou por um posto de recrutamento e, quando o encontrou, nem hesitou. Entrou lá dentro e quis saber se tudo o que lhe haviam dito era verdadeiro, se ninguém fazia perguntas e até lhe pagavam um soldo. Responderam-lhe que sim. Satisfeito por ouvir a confirmação, logo anunciou que se queria inscrever.

"Como te llamas?", perguntou o graduado que lhe preencheu os documentos.

Francisco hesitou. Depois do "Francisco" ainda esteve para dizer o nome da família que o adoptara e com o qual se baptizara, "Rodrigues". A boca ainda tinha formado o "Ro...", mas conteve-se a tempo; apesar de a inteligência não ser um dos seus principais atributos, percebeu nesse instante que começaria ali uma vida nova e precisava de um novo nome. Mais do que isso, precisava de um nome limpo. Limpo. Lembrou-se do Tino, do Constantino Latino que assassinara semanas antes com as suas próprias mãos, e achou que seria boa ideia ressuscitar o morto. Era uma forma de desfazer o que havia feito e talvez assim conseguisse um perdão dos céus.

"Latino."

"Francisco Latino?"

"Isso."

Rabiscou desajeitadamente uma cruz nos papéis que lhe estenderam e foi cumprimentado pelos homens do posto de recrutamento, que lhe ofereceram um copo de Rioja para assinalar o momento. Se soubesse ler teria logo decorado o nome da organização na qual acabara de se inscrever. O topo do papel de inscrição ostentava um logótipo e três palavras castelhanas. Tercio de Extranjeros.

A Legião Estrangeira.

 

Esperaram algum tempo sentados numa velha e dura cadeira de madeira, o sol forte da tarde a jorrar pela janela, transformando a salinha que servia de antecâmara ao gabinete do comandante num verdadeiro forno. O Verão ia adiantado e o calor apertava naquele dia de Agosto de 1936, fazendo da sala uma estufa abafada, como se os seus ocupantes estivessem a banhos.

O coronel Silvério tinha ido almoçar a casa e estava atrasado; é certo que a falta de pontualidade era desaprovada pela etiqueta militar, mas o facto é que a violação dessa etiqueta constituía uma prerrogativa que alguns superiores hierárquicos gostavam de chamar a si.

"Acha isto normal?", quis saber Luís, rodando a cabeça num irreprimível tique nervoso.

A convocatória enervara-o e via naquele atraso mais um mau augúrio. Seria possível que o coronel se encontrasse naquele momento na polícia? Teria Francisco sido mesmo

capturado? Estaria a demora relacionada com trâmites poli­ciais ou judiciais? A espera deixava-o inquieto para além do suportável. Com toda aquela ansiedade, não conseguia ficar quieto na cadeira; mexia os braços e as pernas sem cessar, dobrando-os e esticando-os, os pés quase a dançarem no soalho, as mãos ocupadas com tudo e com nada.

"Tenha calma, homem", pediu o capitão Branco, impressionado com tamanho desassossego. "Ele já aparece."

"Mas não acha estranho todo este atraso? Já estamos aqui há quase meia hora, que diabo! Deve estar a passar-se qualquer coisa..."

"Que coisa?"

"Não sei. Qualquer coisa, sei lá."

"Não se apoquente, o nosso comandante é mesmo assim."

"Meia hora de espera?" Luís pôs-se de pé, já incapaz de conter o nervosismo. "Não, não é normal."

"Oiça, Luís, por que razão está assim tão nervoso?", perguntou o capitão. "Passa-se alguma coisa?"

"Não, nada. É só que estranhei esta convocatória. Não acho normal o nosso comandante querer falar comigo. Ainda por cima chega atrasado..."

"Você não roubou nada, pois não?"

"Que eu saiba, não."

"Então está preocupado com quê?" Baixou a voz, para não ser escutado. "Você não sabe que o nosso comandante não é uma pessoa pontual? Ele até costuma dizer que os subordinados foram feitos para esperar..."

"O meu capitão tem a certeza?"

"Claro. Eu próprio já o ouvi dizer isso."

As palavras do capitão Branco acalmaram momentaneamente Luís, que voltou a sentar-se. Tinha de controlar os nervos, pensou. Estivesse ou não ansioso, isso não impedia

que o que tivesse de acontecer acontecesse. Além do mais, se Francisco tivesse sido capturado, tal já se saberia. Ou não?

O alferes Boavida entrou na antecâmara e interrompeu o vicioso e obsessivo ciclo de maus augúrios.

"Vem aí o nosso coronel", anunciou.

A chegada do comandante do regimento foi precedida pelo som de passos apressados a aproximarem-se, traque, traque, trunque, trunque, até que a porta se abriu com fragor e o coronel Silvério entrou de rompante na antecâmara, como se uma súbita tempestade ali tivesse desabado.

Com um salto, Luís e o capitão Branco ergueram-se da cadeira e fizeram continência ao mesmo tempo, os movimentos coordenados, como se tivessem ensaiado a saudação.

"Meu comandante."

O coronel acenou com a cabeça, fazendo sinal aos subordinados de que o seguissem.

"Ah, meus senhores", disse, abrindo a porta do seu gabinete. "Venham daí, temos de conversar."

O tom tranquilizou de imediato o alferes veterinário. Se fosse caso de polícia, o comandante teria falado de outro modo e provavelmente viria acompanhado da polícia militar ou civil. Foi como se um peso lhe tivesse saído do peito, embora se mantivesse em alerta. Fosse qual fosse o assunto, decidiu, convinha ser prudente na conversa. Meteu na cabeça que o importante era ouvir e não falar, não se fosse dar o caso de dizer algo que atraísse desnecessariamente as atenções sobre si.

O comandante do regimento era um indivíduo baixo, de cabelos brancos a escassearem no topo da testa e uma barriguinha que traía a natureza indolente de homem pachorrento

e amigo do bom garfo. No gabinete ostentava as bandeiras portuguesa e do regimento instaladas por trás da secretária, mesmo ao lado de uma enorme fotografia a preto e branco com o rosto seráfico de Salazar. Contudo, e ao contrário do que era habitual quando despachava com subordinados, o coronel optou por se sentar no sofá, convidando os dois subalternos a fazerem o mesmo.

"Fumam?", perguntou Silvério, exibindo um maço de cigarros logo que se acomodou.

"Agora não, meu comandante", disse o capitão, secundado pelo alferes. "Obrigado."

Silvério acendeu um cigarro e soltou uma nuvem cinzenta de fumo.

"Gosto sempre do meu cigarrinho depois do almoço", comentou com ar descontraído. "Os senhores não?"

"Eu prefiro o meu café, meu comandante."

Luís permaneceu calado, deixando o capitão Branco fazer as despesas da conversa e limitando-se a emitir um grunhido enquanto fazia sim e não com a cabeça.

"Querem que eu peça um café?"

"Não, não. Já tomámos ao almoço, meu comandante. Obrigado."

O coronel aspirou o cigarro e inclinou-se para a frente, assinalando que o curto interlúdio para a conversa de circunstância tinha terminado. Chegara a altura de ir direito ao assunto.

"Meus senhores, chamei-vos aqui por causa de uma missão delicada que vos vou confiar." Mirou o cigarro que lhe ardia entre os dedos amarelados de nicotina como se procurasse palavras para introduzir o tema. Ergueu por fim os olhos e fixou os subordinados. "Como sabem, houve no mês passado um levantamento militar em Espanha e aquilo vai

para lá uma enorme confusão, com os tipos todos aos tiros uns aos outros."

Fez uma pausa, como querendo confirmar que as suas palavras não traziam novidade nenhuma aos seus interlocutores, esforço decerto escusado, uma vez que por essa altura não devia haver adulto em Portugal que não soubesse que a guerra civil eclodira em Espanha.

Mesmo assim, e confrontado com aquele silêncio interrogativo do seu superior hierárquico, Mário Branco sentiu-se na obrigação de corresponder.

"Temos ouvido as notícias, meu comandante."

Luís continuou calado. Não era um oficial de carreira, mas um médico veterinário, pelo que não percebia bem o seu papel naquela conversa.

"E qual a vossa opinião?", quis saber o comandante.

Os dois homens remexeram-se no sofá, pouco à vontade. Não ignoravam a simpatia com que o regime encarava a revolta em Espanha e sabiam que um alinhamento errado poderia trazer-lhes problemas. As cautelas eram maiores da parte de Luís, devido ao seu menor estatuto no quartel, mas também por causa das opiniões antagónicas que nutria em relação à ditadura e sobretudo pelo facto de estar determinado a manter-se o mais invisível possível. Olhou por isso para Mário Branco, como que a pedir-lhe que respondesse por ele.

"Meu comandante, acho que se está a passar agora em Espanha o que aconteceu em Portugal em 1926", começou o capitão por dizer. "Os Espanhóis cansaram-se da bagunça republicana e querem pôr ordem na casa, só isso. Não nos podemos esquecer do que foram aqueles tempos de anarquia no nosso país, com a carestia de vida, a fome que havia por toda a parte, a violência, a indisciplina a todos os níveis da

sociedade, incluindo nos quartéis. Enfim, o caos. Não se lembra o meu comandante que, em apenas cinco anos, tivemos uma série de governos?"

"Dezoito."

"Pois, está a ver. E ao longo dos dezasseis anos de república houve também uns dezoito golpes de estado e revoluções."

"Foram mais", corrigiu o comandante. "Foram dezoito governos e vinte e dois golpes e revoluções. Contei-os todos, um a um. Vinte e dois golpes e revoluções, veja só!" Indicou com a cabeça a enorme fotografia de Salazar pregada à parede, por detrás da secretária. "Se não fosse aquele senhor ali, não sei não. Portugal não se punha direito."

"Pode ter a certeza disso, meu comandante. A diferença entre nós e os Espanhóis é que a nossa transição da bagunça para a ordem foi relativamente pacífica e a deles não está a ser."

O coronel Silvério aspirou de novo o cigarro que lhe bailava entre os dedos e inclinou-se para a frente, sinalizando que queria ser ele a dirigir a conversa dali para a frente.

"Há uma outra diferença, capitão", observou por entre o fumo, respeitando mais uma pausa, dessa feita com um certo ar de melodrama. "A nossa revolução de 1926 não teve impacto nenhum em Espanha. Nós ficámos com a ditadura e progredimos. Mas eles não foram influenciados pelo nosso rumo e caminharam em sentido contrário, pondo fim à monarquia e instituindo a democracia parlamentar, que abriu a porta a toda esta confusão. Primeiro ganharam as esquerdas, depois as direitas, e agora as esquerdas outra vez. O problema é que o que se está a passar em Espanha poderá ter um profundo impacto aqui em Portugal."

"O que quer dizer com isso, meu comandante? Não estou a entender..."

"Sabe, capitão, desde que foi instituída a república em Espanha que a gentinha do reviralho, que deixou de ter espaço aqui para as suas intrigas mesquinhas, resolveu fugir para lá. Encon­traram entre os Espanhóis o espaço ideal para alimentar as suas conspirações da treta contra o regime. Isso seria para rir, não se desse o caso de esses idiotas encartados terem começado a ser usados pelos comunistas espanhóis para fomentar o grande plano de Moscovo de uma Península Ibérica vermelha. Os bol­chevistas querem expandir o comunismo internacional e estão a encorajar os Espanhóis a abocanhar Portugal. Ora os palermas do reviralho que fugiram para Espanha aceitaram transformar-se em instrumentos dessa política expansionista dos vermelhos, tornando-se assim verdadeiros traidores à pátria."

Até aí sempre calado, Luís não conseguiu resistir nesse ponto e deu consigo a meter-se na conversa.

"Mas o meu comandante acha mesmo que os Espanhóis nos querem invadir? Não lhe parece que isso é um bocado conversa do... enfim, do regime?"

Silvério esboçou um gesto de impaciência.

"O alferes, não seja ingénuo! Então não sabe que a estratégia dos bolchevistas passa pela internacionalização do comunismo?"

"Mas quais bolchevistas, meu comandante?", insistiu Luís. "É verdade que a república tem comunistas, mas também tem socialistas, libertários e anarquistas."

"E então?"

"Bem, que eu saiba os socialistas, os libertários e os anar­quistas não são bolchevistas."

"Não lêem Marx?"

"Sim, é verdade..."

"Então são marxistas! Socialistas, comunistas, anarquistas, libertários, sindicalistas... são tudo designações diferentes para

a mesma coisa! O que eles querem é subverter a ordem social, ou tem dúvidas?"

O alferes veterinário sentiu que não poderia ir longe de mais. Já questionar a ameaça do reviralho e a imagem que o regime dava dos republicanos espanhóis fora uma temeridade.

"Não, claro que não."

"Podem usar nomes diferentes, mas no fundo são todos comunistas." Ergueu o dedo indicador. "E, se os comunistas assumiram o poder em Espanha, pode ter a certeza de que foram incumbidos por Estaline de o expandir. Eles querem repúblicas soviéticas por toda a parte. Olhe para a China! Não sabe que os comunistas decretaram para lá a República Soviética de Jiangxi? A Espanha é a próxima peça do dominó. E agora diga-me lá: para onde é que a Espanha pode expandir o comunismo, hã? Para a França? Para o mar?" Abanou a cabeça, veemente. "Não!" Apontou para o chão com um movimento enérgico. "Para aqui! Para Portugal! Eles querem criar a União das Repúblicas Socialistas Ibéricas!"

Luís calou-se, intimidado com o tom peremptório do comandante. Mas o capitão Branco, mais à vontade e com outro estatuto, não hesitou em contra-argumentar.

"A Inglaterra nunca o permitiria, meu comandante", disse. "A nossa aliança com os Ingleses é a garantia de que os vermelhos espanhóis não se atreverão a incomodar-nos."

"Não vejo porquê."

"Porque os Ingleses, sendo nossos aliados, não vão deixar."

"Isso não é um obstáculo intransponível para os Espanhóis."

"Desculpe, meu comandante, não sei se será bem assim."

"Ai não? Então como será?"

A pergunta atrapalhou o capitão. A aliança com Inglaterra era um assunto elementar, sobretudo para um oficial do

exército, uma vez que se tratava de matéria abordada na Escola do Exército.

"Bem... tem a ver com os nossos posicionamentos estratégicos", disse, como se expusesse uma evidência. "Como o meu comandante muito bem sabe, a independência de Portugal as­senta na ideia de que o país tem de viver de costas voltadas para a Espanha e de rosto virado para o mar. E o que está no mar? A Inglaterra. Os Ingleses ajudam-nos porque não querem uma Península Ibérica unida, seria uma ameaça demasiado grande. Nós ajudamo-los porque queremos continuar independentes. Não vejo como possam os Espanhóis quebrar esta aliança."

O coronel Silvério deitou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

"O coronel, você está a ensinar o pai-nosso ao vigário?", perguntou. "Eu sei isso muito bem e os Espanhóis também sabem. E evidente que a nossa aliança com a Inglaterra resulta de uma convergência de interesses. Esses interesses mantêm-se."

"Então o meu comandante está a dar-me razão."

"No que diz respeito às vontades de Portugal e de Inglaterra, sim. O problema é que há interesses que colidem com os nossos e esses interesses estão a desenvolver um plano muito subtil contra nós."

"Está a falar de quê?"

"Estou a falar de Moscovo e de Madrid. A ideia dos bolchevistas é, primeiro, instalarem comunistas em Portugal e só depois criarem a grande Ibéria vermelha. Com um governo comunista português a aceitar a integração do país numa federação de Repúblicas Socialistas Ibéricas, os Ingleses nada poderão fazer."

"O meu comandante acha que é para aí que as coisas apontam?"

"Como é evidente", confirmou Silvério. "Mas nós vamos jogar na antecipação."

"O que quer dizer com isso?", admirou-se o capitão. "O que podemos fazer?"

"Podemos ajudar o exército espanhol, caro capitão."

Mário Branco arregalou os olhos, alarmado.

"Ajudar o... o exército espanhol, meu comandante? Mas nós vamos meter-nos nessa guerra?"

O coronel Silvério riu-se com gosto.

"Não no sentido em que está a pensar, capitão", exclamou com ar bem disposto. Recostou-se no sofá, um sorriso a bailar-lhe nos lábios. "Vamos ajudar o exército espanhol a derrotar os comunistas de Madrid, mas vamos fazê-lo em segredo."

"E podemos, meu comandante?"

"Se o vamos fazer, é porque podemos, não acha?"

"A minha dúvida refere-se às questões legais", explicou o capitão. "Uma ajuda ao exército espanhol não vai contra o Acordo de Não-Intervenção?"

O oficial referia-se ao plano proposto pela França de nenhum país ajudar qualquer das partes em conflito em Espanha. A ideia foi inicialmente aprovada por um conjunto de países, incluindo a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, mais três outros que aderiram com relutância, a União Soviética, a Alemanha e a Itália. Pressionado pelo consenso alargado, Portugal deu o acordo de princípio, mas foi atrasando a formalização dessa posição.

"Que eu saiba, ainda não assinámos o acordo."

"Mas diz-se que vamos assinar, meu comandante", observou o capitão, bem informado por O Comércio do Porto.

"Oh, diz-se tanta coisa! Os Russos também assinaram o plano e é só vê-los a enviarem armas para os comunistas

espanhóis. Os Alemães e os Italianos também assinaram o acordo e já estão a ajudar o exército espanhol."

"Mas o que vão dizer os Ingleses quando perceberem que nós estamos a violar o acordo?"

"Não dizem nada! Foram eles quem teve a ideia deste esquema todo!"

"Não estou a entender, meu coronel. Se os Ingleses apoiam o Acordo de Não-Intervenção, é evidente que o vão fazer respeitar e que..."

O comandante ergueu a mão para o travar.

"Os Ingleses não vão fazer nada", interrompeu-o. "Eles estão assustados com a confusão que vai em Espanha, uma vez que os seus interesses se encontram seriamente ameaçados. E sabe de onde vem a principal ameaça? Dos comunistas e dos anarquistas. Vocês acham que os bifes gostam destas frentes populares que aparecem para aí como cogumelos a anunciar revoluções sociais? E pensam que eles têm algum interesse em ver aparecer na Europa ocidental uma União das Repúblicas Socialistas Ibéricas? Claro que não! Se fosse criada aqui uma União Socialista Ibérica, isso poderia contaminar toda esta parte do continente. Já basta a que existe na Rússia!"

"Mas, se é assim, por que razão não ajudam os Ingleses directamente o exército espanhol?"

"E muito complicado. O problema dos bifes é que estão atados por uma catrefada de compromissos internacionais e pela simpatia de parte da sua opinião pública pelos republicanos." Encolheu os ombros. "Isso significa que não podem actuar abertamente, mas precisam que alguém faça o trabalho sujo por eles. E quem é esse alguém, digam lá?"

"Nós?"

O comandante abriu as palmas das mãos e sorriu.

"Claro!", exclamou. "Reparem que, como pequena potência, Portugal pode servir de intermediário de uma grande potência, resolvendo assuntos de enorme melindre. Digamos que somos uma espécie de... de agentes dos Ingleses, estão a ver?"

"Hmm..."

"Aliás, se repararem, esta treta do Acordo de Não Intervenção não saiu da cabeça dos Franceses, mas dos Ingleses."

"Não foi isso que veio nos jornais."

O comandante tirou uma pequena maçã amarela do cesto de fruta que se encontrava pousado na mesinha do candeeiro.

"Os jornais apenas mostram a bonita superfície desta maçã, não o interior podre", disse, exibindo a peça de fruta. "Se bem se lembram, quando o exército espanhol se revoltou, os Franceses começaram a enviar equipamento militar para os vermelhos, através dos Pirenéus. Ora os Ingleses, que queriam cortar a ajuda aos vermelhos para facilitar o êxito da revolta, avisaram os Franceses de que teriam de fechar a fronteira. A Inglaterra disse que, se a França continuasse a ajudar os comunistas e, por causa disso, viesse a entrar em guerra com a Alemanha, se sentiria desobrigada de ajudar os Franceses. O Blum, em Paris, quando ouviu isto ficou borrado de medo, pois claro, e fechou mesmo a fronteira. Mas, como os bolche­vistas franceses e os sindicatos se puseram a protestar, ele inventou esta xaropada do Acordo de Não-Intervenção para se safar do engulho."

"Estou a ver", assentiu o capitão.

O coronel Silvério aspirou o cigarro pela última vez e esmagou-o no cinzeiro que se encontrava na mesa ao lado do sofá. Deixou sair o fumo pela boca e pelas narinas e pigar­reou, como se estivesse a indicar que por fim iria direito ao assunto.

 

"Ora bem, meus caros", começou por dizer. "Eu queria ouvir a vossa opinião e explicar-vos todas estas coisas porque vou incumbir-vos de uma missão muito delicada." Afinou a voz, como se estivesse rouco, e ergueu dois dedos. "Na verdade, são duas missões." Apontou para o capitão. "A primeira é consigo." Pegou nuns papéis que tinha pousado sobre a mesa. "Foram emitidas ordens de Lisboa para serem criadas duas organizações especiais. Uma é a Legião Portuguesa, dependente dos ministérios do Interior e da Guerra e que se destina a criar uma milícia paramilitar, organizada à maneira da Legião Estrangeira espanhola, com batalhões, terços, lanças, secções e quinas, para fazer frente a eventuais focos de contestação interna dos comunistas e reviralhistas que queiram aproveitar os maus ventos que vêm de Espanha."

"Se me permite, meu comandante, isso parece-me uma coisa inspirada no Mussolini. Não sei se me agrada..."

O coronel Silvério suspirou.

"A bem dizer, nem a mim me agrada. Acho esta força paramilitar uma ideia concebida pelos fascistas, e aproveitada pelo regime, para nos manter nos quartéis e para mostrar que não precisam de nós na manutenção da ordem nas ruas." Encolheu os ombros. "Mas, enfim, ordens são ordens, não é verdade? De qualquer modo, esta força nada tem a ver consigo, fique descansado." Fez uma pausa e ergueu as sobrancelhas. "A segunda organização, no entanto, é diferente. Já ouviu falar na Mocidade Portuguesa?"

"Claro que sim. E uma nova organização de escuteiros, não é verdade?"

"De certo modo, mas com uma componente política. A Mocidade Portuguesa vai abranger toda a juventude, incluin­do a que não anda na escola. O regime quer estimular o exercício físico, as actividades de grupo, o amor à pátria, o

sentido de ordem, disciplina, respeito... essas coisas. A ideia é mudar a mentalidade do povo, está a ver? Queremos acabar com a desorganização, o caos, a falta de solidariedade, o desregramento e esta coisa muito portuguesa de falar muito e fazer pouco." Fez um gesto enfático com a mão, quase galva­nizado. "Vamos pôr fim ao português da bandalheira e criar o português novo, moderno, solidário, respeitador, patriota."

"Assim dito, meu comandante, parece uma ideia interessante."

O coronel Silvério sorriu, satisfeito com a sua tirada, e apontou o dedo ao subordinado.

"Ainda bem que acha isso, porque será você quem vai organizar e chefiar o núcleo de Penafiel da Mocidade Portuguesa."

"Eu?", admirou-se o capitão Branco. "Não haverá outra pessoa que possa fazer isso?"

"Você é um organizador nato e esta missão assenta-lhe que nem uma luva." Depois olhou para Luís. "A segunda missão envolve-vos aos dois. É uma coisa estritamente confidencial e nem sequer às vossas famílias podem falar disso, entendido?"

Os dois subordinados assentiram. O coronel levantou-se e dirigiu-se a um mapa de Portugal pregado na parede.

"Ora bem, em algumas áreas raianas estamos a montar operações de apoio ao exército espanhol", disse, indicando a linha de fronteira. "Coisa secreta, bem entendido. Algumas destas operações envolvem a recepção e o alojamento de fugitivos espanhóis, muitos dos quais precisam de assistência médica. Daí que o exército esteja a incluir médicos nas unidades encarregadas de ajudar os espanhóis." Indicou Luís. "Pois é aí que você entra. Recebi esta manhã ordens para contribuir com uma companhia que integre um médico. Mas, como sabe, o problema é que perdemos o doutor Maurício e o Porto

ainda não nos enviou um substituto. Logo, terá de ser você a fazer o lugar."

"Não há problema", devolveu Luís. "Para onde vamos nós, meu comandante?"

O coronel Silvério indicou no mapa o ponto da fronteira em Valença.

"Aqui para o Minho, junto à fronteira galega." Olhou para o outro oficial. "O nosso capitão também irá para chefiar a nossa companhia."

Mário Branco fixou a atenção no mapa.

"Será uma operação da nossa exclusiva responsabilidade, meu comandante?"

"Claro que não. Vocês irão articular-se com o regimento de Viana do Castelo, que também enviou uma unidade para Valença." O coronel Silvério voltou a sentar-se e pegou no cigarro que tinha deixado pousado no cinzeiro. "Preparem-se para uma missão complicada."

"Porque diz isso, meu comandante?"

Com intencional lentidão, o responsável pelo regimento cruzou as pernas, inspirou fundo o cigarro e exalou uma densa nuvem de fumo cinza que rodou pelo ar em rolos, como anéis etéreos em metamorfose.

"É possível que alguns refugiados sejam comunistas."

 

O calor era insuportável e por várias vezes Francisco teve de passar a manga pela testa para enxugar o suor que lhe escorria do topo do couro cabeludo. Ajeitou a Hotchkiss, realinhou a mira da velha metralhadora e largou mais uma rajada sobre a porta da igreja. Da entrada veio a resposta, três tiros de pistola, mas o português não se intimidou e descarregou nova chuva de projécteis sobre o local.

"Mete-me um novo cinto", grunhiu para o lado quando sentiu o gatilho a disparar em seco.

"Outra vez?"

"Mete-me um novo cinto, caraças!"

Juanito pegou em mais um cinto metálico, carregado com duzentas e quarenta e nove balas, e encaixou-o na metralhadora francesa. Tinha nas mãos uma arma de oito milímetros caída em desuso, uma espécie de relíquia da Primeira Guerra Mundial que sobreviveu na Legião unicamente graças à sua fiabilidade. Pelos padrões modernos, a Hotchkiss podia ser

uma metralhadora ultrapassada, mas o facto é que chegava perfeitamente para dar cabo das bordas rojas que se opunham ao pronunciamiento.

"JoderV', praguejou Juanito entre dentes. "Temos de acabar com esta mierda."

"O que queres? Os gajos entrincheiraram-se bem. Vais ver que vamos precisar de deitar a torre sineira abaixo!"

O espanhol benzeu-se.

"Deitar a torre sineira abaixo? Ay, carayl Não pode ser! Não se bombardeia uma igreja, hombre!"

"Qual é o problema?"

"É pecado."

Francisco rolou os olhos e fez um ar de enfado.

"Quero lá saber! A malta tem é de despachar serviço. Se não usarmos a artilharia, bem que podemos ficar aqui a semana toda..."

Combatiam em Almendralejo. A IV Bandera concentrara-se ali para vencer a resistência da Frente Popular. Logo que o regimento de Francisco chegara a Espanha, proveniente de Marrocos, as suas unidades foram imediatamente envolvidas em operações de limpeza. Primeiro Sevilha e, quando o comandan­te Franco deu ordens para começar a marcha sobre Madrid, a 1 de Agosto, chegara a vez das povoações da Estremadura, numa rota paralela à fronteira portuguesa. Os revoltosos queriam controlar toda a área fronteiriça, de modo a estabelecer uma base de apoio para o avanço sobre a capital, pelo que a Legião e as tropas regulares foram enviadas de Sevilha para norte, numa coluna comandada por Asensio na direcção de Mérida, procurando juntar-se às forças chefiadas por Mola, que vinham de norte também ao longo da fronteira portuguesa, igualmente apontadas para aquela cidade.

As operações seguiam um padrão simples. Os legionários entravam numa localidade, venciam a resistência das milícias populares e executavam alguns dos inimigos que se rendiam, mas apenas quando tinham sofrido baixas; esses fuzilamentos eram vinganças a quente, tiros disparados no rescaldo da refrega. Depois entregavam o controlo das povoações recém-conquistadas a forças leais aos revoltosos, nuns casos a polícia, noutros as milícias da Falange, o partido fascista espanhol, e avançavam para a localidade seguinte.

Como peças de dominó que vão caindo sucessivamente, as povoações de Monesterio, Santa Olalla, Herencia, Fuente de Canos e outras foram sendo tomadas pelos legionários e pelas tropas regulares. Por vezes Francisco ouvia falar em execuções efectuadas pelas novas autoridades militares que assumiam o controlo das vilas que a Legião ia deixando para trás, mas isso deixava-o indiferente; não se tratava de problema seu, que se lixasse.

O português ocupava o posto de legionário de segunda classe da 12.a companhia da IV Bandera, um dos três regimentos da Segunda Legión, e a sua função resumia-se a andar com a Hotchkiss ao ombro e a usá-la para apoiar as operações de assalto, tendo Juanito como ajudante de munições. Como se tratava de um homem corpulento e o transporte da metralhadora se revelava penoso para a maior parte dos legionários, sempre eram uns fatigantes cinquenta quilos, Francisco foi integrado na companhia das metralhadoras, justamente a 12.% com a missão de dar cobertura às cargas efectuadas pelas restantes companhias da IV Bandera, em particular a 10.a e a 11.% mas também a 16.a. Era isso o que fazia; e procurava fazê-lo bem. O resto não lhe interessava.

As coisas haviam corrido com relativa facilidade ao longo da primeira semana da marcha sobre Madrid, mas era agora, ali em Almendralejo, que os legionários da coluna Asensio enfrentavam a primeira resistência séria. Almendralejo constituía um dos mais importantes municípios da província. Os revoltosos tinham chegado à povoação dois dias antes, a 6 de Agosto, e começaram por cercá-la, de modo a não deixar escapar o inimigo. Depois de resistirem em bairros, edifícios e ruas, os milicianos, recuando perante os legionários, entrincheiraram-se na igreja. Com a localidade nas mãos das milícias populares, o santuário tinha sido transformado numa garagem e encontrava-se pejado de automóveis e camiões. Naquele momento, perante o assalto dos revoltosos, situava-se ali o derradeiro bastião republicano de Almendralejo.

Com a mira da Hotchkiss apontada contra a porta da igreja, Francisco voltou a mudar a posição do corpo para combater o tédio.

"Estes rojos vão pagá-las bem caras", vociferou Juanito.

"Então e porquê?", perguntou o português sem tirar os olhos do alvo.

"Cono, não viste o que eles fizeram aos presos políticos da direita?"

"Não."

"Ay, carayi Estás-te mesmo a cagar para isto tudo, não estás?"

Francisco riu-se.

"Por acaso, estou."

"Então não sabes o que eles fizeram aos presos de direita?"

"Já te disse que não."

"Hombre, foi anteontem. Quando nos aproximámos aqui de Almendralejo, os rojos tiraram todos os presos que se encontravam na cadeia, no matadouro e no hospital, regaram--nos com um líquido inflamável e dispararam sobre eles."

 

"Ah, pois. Já ouvi falar nisso." Tirou pela primeira vez os olhos da porta da igreja para olhar de relance para Juanito. "Não deve ter sido agradável. Morreram muitos?"

"Joder! Então não haveriam de morrer? Foram logo vinte e oito, pobrecitos. E cento e cinquenta ficaram feridos."

"Ena! Isso foi onde?"

"Na cadeia municipal, caray. Levo-te lá quando terminar o nosso turno. Tens de ver aquilo."

Um fumo escuro erguia-se de um dos lados da cidade e espalhava-se por toda a zona, envolvendo as ruas em torno da igreja numa neblina gordurosa. Francisco esticou o nariz para cima e inspirou, rápido, tentando identificar o cheiro.

"Não me digas que este pivete é dos mortos da cadeia."

O amigo também cheirou o ar. Pairava por ali o odor acre a pólvora, misturado com um fedor enjoativo de churrasco.

"Não", disse Juanito, olhando na direcção da origem do fumo. "Isto vem do cemitério. É o cheiro dos cadáveres que os nossos compatieros estão a queimar."

O português voltou a cheirar o ar.

"Já me está a dar fome."

"És um cotio!", protestou Juanito. "Como é possível que o cheiro dos cadáveres a serem queimados te possa dar fome? Mas que raio de animal és tu?"

Francisco encolheu os ombros.

"Cheiram a cabrito, o que queres?" Passou a língua pelos lábios. "Até me fazem crescer água na boca!"

"Ah, cala-te!"

Ficaram em silêncio durante dois minutos, os olhos pregados na igreja onde os republicanos permaneciam entrincheirados.

"Tenho fome", voltou a dizer Francisco.

"Cala-te!"

O português apoiou-se na arma e ficou a contemplar a porta da igreja. Estava tudo calmo.

"Mas por que razão não atacamos de uma vez?"

"É a táctica do desgaste", explicou o espanhol.

"Desgaste de quem? Nosso?"

"Deles. A ideia é desgastar os rojos e obrigá-los a renderem-se pela fome."

"Mas isso vai levar tempo, caraças."

"Y entonces? Não se pode ter tudo, nof"

Francisco suspirou. Agarrou a metralhadora e rodou-a, apontando a mira à torre sineira. Ainda acariciou o gatilho, com vontade de o premir, mas resistiu à tentação; se disparas­se sem ordens teria de ouvir o sargento Gomez, sempre preocupado em poupar munições. Ajeitou-se no seu lugar e voltou a cheirar o fumo que vinha do cemitério.

"Tenho fome, porra!"

O turno mudou duas horas depois, pelo final da manhã, altura em que Francisco e Juanito foram à escola onde o refeitório havia sido instalado e se apresentaram para o rancho. Os panelões exibiam uma paella com muito arroz e pouco mais, mas comeram-na com a ajuda de um Rioja duvidoso. Após a refeição, o espanhol guiou o companheiro até à cadeia municipal, mostrando-lhe o local onde os presos nacionalistas tinham sido massacrados pelos milicianos pouco antes da chegada dos legionários a Almendralejo.

Nas paredes do pátio apresentavam-se pintadas formas humanas, figuras fantasmagóricas em contornos a negro; além disso, via-se sangue seco no chão e gotas escuras a salpicar os muros. O odor adocicado de carne queimada revelava-se aqui mais forte do que em qualquer outra parte da povoação, à excepção do cemitério.

"Já viste isto?", perguntou Juanito, apontando para as manchas.

Francisco grunhiu algo de imperceptível.

"Impressionante, eh?"

O português fungou e escarrou no chão, a indiferença estampada no rosto.

"Cagativo."

Deambularam mais um pouco pelo pátio, até que ouviram o ar ser rasgado por uma rajada e uma detonação, a que se seguiram novas rajadas de metralhadora.

"O que é isto?"

Saíram da cadeia apressadamente e imobilizaram-se diante do portão, tentando localizar a origem do tiroteio.

"É na igreja!"

Os dois legionários desataram a correr em direcção à zona da igreja, de onde vinham os tiros. Viam-se alguns homens a andar apressadamente de um lado para o outro e deram com um legionário que vinha a correr com a Mauser a tiracolo; reconheceram Murillo, o italiano da bandera.

"Qué pasa?", perguntou Juanito.

"Foi o comandante Asensio", explicou Murillo, ofegante. "Mandou incendiar a chiesa."

"Qual chiesa."

"A igreja, imbecille!"

Quando chegaram diante da igreja deparou-se-lhes o caos. As metralhadoras da 12.a companhia davam cobertura à operação, disparando sem cessar sobre portas e janelas, de modo a impedir que os milicianos pudessem ripostar. Legionários da 16.a corriam diante da igreja, numa azáfama coordenada; dirigiam as chamas que lambiam a palha húmida e o enxofre, tentando assim direccionar o fogo e o fumo para o interior e

vencer os sitiados pelos efeitos tóxicos e pela possível explosão dos depósitos de combustível das viaturas estacionadas dentro do santuário.

Os legionários recém-chegados assumiram as suas posições e depressa Francisco se viu agarrado à sua metralhadora a descarregar balas sobre todos os orifícios na igreja. Não se via o inimigo, que se recolhera ao interior, mas isso não impediu os homens do Tercio de metralhar as portas e janelas, na vaga esperança de que o fogo sobre esses pontos viesse a atingir alguém.

A operação prolongou-se por toda a tarde, mas nenhum miliciano se rendeu. Pelo contrário, à primeira oportunidade os sitiados responderam com tiros e lançamento de explosivos, obrigando os legionários a recuar e a procurar posições mais bem defendidas.

"Corôo/", praguejou Juanito, a cara já enegrecida pela pólvora. "Devem ter-se abrigado numa qualquer câmara da igreja."

Ao lado, Francisco encaixava já mais balas na Hotcbkiss.

"Isto não vai durar para sempre."

 

Quando soaram os primeiros estampidos do dia, secos e longínquos, a única reacção visível foi a dos pássaros. As andorinhas e os estorninhos ergueram-se em nuvens irrequietas; eram bandos que emergiam da copa das árvores e dos fios eléctricos e telefónicos e esvoaçavam em vagas desorientadas, ora nesta direcção, ora na contrária, como folhas perdidas ao sabor do vento.

Atraídos pelo barulho das detonações, o capitão Mário Branco, o alferes veterinário Luís Afonso e um pequeno grupo de oficiais do regimento de Viana do Castelo convergiram para as ameias de um dos fortes de Valença do Minho e espreitaram para o casario do outro lado do espelho azul e prateado do rio Minho. Na margem norte estendia-se a terra verde da Galiza, tão verde como o Norte de Portugal. Os pontos brancos com telhados de um vermelho cor de tijolo eram as casas de Tui, o derradeiro bastião da república naquela região de Espanha.

"Estão outra vez aos tiros", observou o capitão Branco.

"É sempre a mesma coisa", retorquiu Luís com um enco­lher de ombros. "Ouvem-se uns tiritos, mas acaba por não acontecer nada."

"Olhe que desta vez é diferente", argumentou o capitão. Apontou para a ponte. "Está a ver os comunistas na ponte? Parecem mais nervosos do que de costume..."

De facto, uma pequena multidão de homens armados formigava junto à entrada norte da ponte internacional, procurando refúgio por detrás de muros de tijolo que tinham sido erguidos nos últimos dias. Concentrava-se ali mais gente do que o habitual; um furriel português contabilizou, da margem sul do rio, cerca de quinhentos homens do lado galego da ponte, embora talvez esse número fosse exagerado. A multidão vagueava por trás dos muros, num frenesim agitado; viam-se homens a correr de um lado para o outro. A dado momento soaram mais alguns tiros, mas a calma depressa voltou.

Convencidos de que a animação havia acabado, os oficiais portugueses desceram da muralha do forte e percorreram as ruas empedradas de Valença do Minho. O passeio terminou diante de um pequeno restaurante do bairro velho, onde foram almoçar; o prato forte à mesa era, naturalmente, o que se passava do outro lado da fronteira e em particular o momento em que tudo se precipitaria.

"Acha que a coisa está para breve?", perguntou Luís, que das coisas militares nada percebia.

O capitão Branco pegou na garrafa e despejou mais vinho no copo.

"Isto ainda vai levar tempo", vaticinou, engolindo um trago. "Ah, maravilha! Bela pomada!" Olhou para Luís e exibiu-lhe a garrafa. "Você não quer mais?"

"Fico-me com o que já tenho no copo, "obrigado."

"Faz mal!", exclamou. "Um copo de vinho dá de comer a um milhão de portugueses!"

"Dizem eles."

"E é verdade." O capitão ergueu o copo. "Beber vinho engrandece a economia nacional. Você não viu as minhas duas quintas? O que seria delas se ninguém gostasse da pingoleta?"

"Produziam batatas."

"Quais batatas! O vinho é que é bom! Além do mais, dizem que é um alimento de primeira ordem e que está cheio de vitaminas."

Luís meteu o garfo à boca e espreitou pela janela do restaurante.

"De vitaminas vamos nós precisar para aguentar esta chatice. Será que a guerra não acaba?"

"O homem, tenha calma!", sorriu o capitão Branco. "Ela ainda mal começou."

Uma vez concluída a refeição, voltaram para o forte e foram espreitar de novo a ponte internacional. A multidão armada permanecia entrincheirada na parte norte do tabuleiro, enquanto as ruas de Tui se apresentavam desertas, despidas de vida, entregues ao vento estival que nesse dia soprava de sul e transformava a povoação numa lúgubre e triste cidade fantasma.

Uma rajada de metralhadora rasgou o silêncio e lançou a confusão entre os homens armados que se concentravam junto à ponte. Uma nuvem de fumo ergueu-se perto de um muro de tijolo, seguida de um roncar cavado; era o som da explosão que chegava, ao retardador, ao lado português.

"Eh lá!", exclamou o capitão Branco. "Isto agora está a aquecer!"

"Recomeçaram", constatou Luís. "Pelos vistos vai ser mais rápido do que o meu capitão previa..."

"Tenha calma", disse o capitão. "Ainda é cedo para tirar conclusões. Mas é verdade que parece que estavam à espera que acabássemos de almoçar para se porem a dar bordoada a sério..."

O sargento Guedes riu-se.

"Se calhar também pararam a guerra para almoçar. Agora vem a sobremesa..."

O capitão Branco mirou o subalterno com ar agastado.

"Nosso sargento, dispensamos os seus comentários."

O diálogo depressa foi interrompido pelo agravar da situação no lado galego. Viram-se, e ouviram-se, novas explosões; uma granada sobrevoou o rio Minho e deflagrou no meio de Valença do Minho, erguendo um penacho de fumo negro por entre o casario da povoação portuguesa. Para o grupo de oficiais instalado junto às ameias do forte, esta detonação marcou o momento em que os combates deixaram de ser um inofensivo espectáculo que decorria do outro lado do rio e se tornaram uma preocupação séria.

Alguns militares abandonaram apressadamente o forte e precipitaram-se para junto da ponte, mas Luís ficou para trás a observar os acontecimentos daquele ponto privilegiado. O capitão Branco enviou uma ordenança para o local da explosão e o homem voltou pouco depois com a notícia de que a granada tinha feito dois feridos ligeiros, já enviados para o posto. Nada de muito grave.

As metralhadoras voltaram entretanto a costurar na margem espanhola, desta vez com crescente intensidade. A multidão de homens armados encolhia-se junto ao tabuleiro norte da ponte, por detrás dos muros de tijolo, e respondia ao fogo que convergia sobre ela; mas os seus tiros eram esporádicos, quase anárquicos, contrastando com o tiroteio nutrido que batia as suas posições. Viam-se alguns corpos caídos, como sacos abandonados no chão; eram já restos desamparados, pedaços de carne estendidos ao sol, inertes, sem vida.

Instalados na sua margem como se estivessem no balcão de um animatógrafo, os portugueses tudo observavam com pasmo. Viram um carro blindado emergir de uma ruela do lado galego, acompanhado por vultos esverdeados a pé, homens que curvados; pareciam corcundas minúsculos. Eram as tropas nacionalistas que se acercavam da ponte, preparando-se para o golpe final.

O aparecimento desta força teve um profundo impacto junto da multidão que defendia a ponte. Ouviu-se um clamor, o pânico libertado por dezenas de gargantas, e primeiro cinco, depois dez, depois vinte, depois quarenta, cada vez mais homens abandonaram os muros de tijolo e desataram a correr, em desespero; tornaram-se uma manada em fuga, atropelando-se pelo tabuleiro num alvoroço descontrolado. Convergiram para sul, em direcção a Valença do Minho, rumo a Portugal, em busca da salvação, como alguém que se está a afogar e no derradeiro momento emerge à superfície em busca desesperada de ar, numa arrebatada e violenta pulsão de vida.

Portugal era o ar.

A vida.

"Desarmem-nos!", ordenou o capitão Branco aos seus homens, apontando para a multidão que atravessava desordenadamente o tabuleiro da ponte.

Os soldados portugueses colocaram-se em posição de tiro, aguardando a chegada dos fugitivos. Os primeiros milicianos galegos cruzaram a fronteira portuguesa e deram com uma barreira de soldados portugueses.

"Non díspar en gritou um dos fugitivos no que parecia um português espanholado. "Somos irmáns! Somos galegos!'

"Alto lá!", ordenou o capitão Branco aos recém-chegados. "Larguem as armas!"

Os milicianos deixaram cair as espoletas, as pistolas, as facas, as foices e os ancinhos. Tornava-se ali evidente que o seu armamento era ridiculamente deficiente; não tinham quaisquer hipóteses diante de um exército organizado como aquele que terminava agora a ocupação de toda a cidade de Tui.

"Somos galegos", insistiu o mesmo homem, os olhos sombreados de olheiras e a barba por fazer havia vários dias. "Somos irmáns, non somos casteláns!"

Os fugitivos foram todos arrebanhados e o capitão deu ordem para que os levassem para o forte. Tinham já sido improvisadas instalações para acolher refugiados; a ideia ini­cial era proteger civis e nacionalistas que tivessem necessidade de abrigo, mas afinal, e conforme previra em Penafiel o coronel Silvério, as instalações seriam usadas para albergar hóspedes diferentes, os milicianos leais à república.

Os tiros pararam no outro lado da margem. O exército revoltoso ocupava enfim toda a cidade. Alguns homens puseram-se a arrastar os corpos dos milicianos mortos para junto de um candeeiro e, quase de seguida, apareceu um camião militar no local, para cuja carga os cadáveres foram atirados como sacos. Terminada a limpeza, o camião arrancou e desapareceu nas ruelas de Tui.

Os civis iam, entretanto, aparecendo, alguns com a bandeira de Espanha. Ao fim de algum tempo, quando os populares já eram tantos que perfaziam uma multidão, surgiram insígnias e braceletes da Falange. Os simpatizantes fascistas espanhóis vitoriavam o exército por entre crescentes aclamações em coro.

"Arriba Espana!", gritava a turba num coro que se escutava, forte, da margem sul do rio.

"Arriba!"

 

À noite, quando iam a caminho dos quartos que tinham ocupado para boleto em Almendralejo, Francisco e Juanito passaram diante da esquadra da Guardiã Civil. Um grupo de mulheres, todas vestidas de negro, aguardava à porta, algumas chorosas, a maior parte em silêncio.

"Quem são estas?", perguntou o português ao companheiro.

"São as mulheres dos rojos."

"Dos comunas? São mulheres dos comunas?"

"Sim. Eles estão presos lá dentro. Vão ser fuzilados."

"E elas?"

"Elas? Cofio, estão ali a ver se alguém tem pena delas e os liberta."

Francisco parou e consultou o relógio. Faltavam duas horas para ambos começarem o turno de cerco à igreja. Era tempo suficiente para o que lhe apetecia fazer.

"Juanito, vai andando, vai andando", disse, voltando as costas ao companheiro. "Eu já vou ter contigo."

Aproximou-se do grupo de mulheres e estudou-as com atenção. A maior parte tinha um ar gasto, três estavam grávidas, mas havia duas que lhe pareceram mais bonitas. Agarrou no braço de uma delas, uma morena alta e bem proporcionada, e puxou-a para si.

"Anda cá, espanholita."

"Larga-me, bruto!", protestou ela.

Um coro de revolta ergueu-se do grupo, mas Francisco mostrou-se indiferente. Saiu dali arrastando a morena aos gritos atrás dele. Duas mulheres mais idosas seguiram-no, berrando para que libertasse a morena, mas o português rodopiou e desferiu um soco brutal na mais próxima, que tombou inerte no chão. As restantes perceberam a mensagem e, apesar dos gritos de protesto e dos insultos, não se atreveram a segui-lo mais.

Francisco calcorreou as ruas sombrias de Almendralejo, sempre a arrastar a morena, que se debatia em desespero. Isso era--lhe, porém, indiferente; tinha de a possuir e possuí-la-ia. A última vez que tivera uma mulher havia sido duas semanas antes, no prostíbulo do quartel de Dar Riffien. Descobrira o sexo no ano anterior, nos bordéis frequentados pelos legionários, mas até ali apenas pudera usufruir de marroquinas, berbe­res e uma negra do Sudão, todas elas experimentadas numa cantina do acampamento da Legião ou no barrio de pecadoras da povoação. Aquela espanhola iria ser a sua primeira europeia.

"Cala-te, espanholita", rugiu para trás, já cansado dos gritos. "Já te vou dar o que mereces."

A morena hesitou, momentaneamente assustada com o tom raivoso das palavras, mas logo recomeçou a lutar, tentando hbertar-se da mão forte do português.

"Cabrón! Hijo de una puta!", praguejou. "Larga-me!" Rodou a cabeça para os lados, em procura de auxílio.

voltou a gritar a plenos pulmões. "Socorro! Quem me ajuda? Socorro!"

Francisco não se sentia minimamente preocupado com a possibilidade de alguém a acudir. Ela era mulher de um comunista e ninguém, mas mesmo ninguém, lhe roubaria o prazer de a desfrutar. Os berros, no entanto, acabaram por enervá-lo. Irritado, puxou-a com um esticão, de modo a posicionar-lhe a cabeça ao alcance da mão, e desferiu-lhe uma sonora estalada na face. A mulher calou-se, estonteada, e logo se afogou numa avalanche de soluços; parou de lutar e dei-xou-se arrastar pela rua escura, resignada ao seu destino.

Quando chegou ao quarto, o português acendeu uma vela e atirou a mulher para cima da cama. As sombras oscilavam nas paredes, embaladas pela dança da chama amarelada. Arfando de desejo, o legionário tirou as calças. Ao vê-lo despir-se, a morena pareceu recuperar energia e recomeçou a gritar. Francisco segurou-a pelo pescoço, puxou-a para si e fixou-lhe os olhos.

"Ouve, minha grande puta", rosnou, ameaçador, o nariz quase colado ao dela, as palavras saindo-lhe entre os dentes. "Se voltas a fazer barulho, mato-te depois de te usar." Ergueu uma sobrancelha. "Entendes?" Deixou a ideia assentar. "Mas, se te portares bem e eu no fim ficar contente, então talvez vivas."

A mulher devolveu-lhe o olhar, assustada, e percebeu que ele não brincava. Calou-se. Francisco atirou-a de novo para a cama, arrancou-lhe as saias e, sem mais delongas, impaciente e ofegante de desejo, mergulhou nela com violência, como um animal esfaimado. Satisfez-se por três vezes no espaço de duas horas e só a largou quando chegou a altura de voltar ao posto.

A noite em torno da igreja decorreu calma, tal como o dia seguinte. Disparavam-se tiros, explodiam granadas, largavam-se rajadas e trocavam-se insultos. No essencial, porém, tudo se mantinha na mesma: os legionários a rodearem o santuário, os milicianos entrincheirados lá dentro. O coman­do permanecia na expectativa de vencer os sitiados pela fome e pela sede, mas, com o tempo, começou a tornar-se óbvio que a espera poderia alongar-se.

Foi Juanito quem deu a notícia a Francisco. Era o final da manhã do dia 10 e o turno estava a chegar ao fim quando o espanhol, que havia abandonado o ninho de metralhadora para se ir refrescar, regressou para junto do companheiro com ar excitado.

"Vamonos, hombre!"

"Vamos onde?"

"Vamos a Mérida; caray."

"Vamos à merda?"

"A Mérida!"

O português esboçou um gesto na direcção da igreja diante deles.

"Então e os comunas? Ficam sozinhos?

"Que te interessa isso? Vamos embora, hombre!"

"Mas porquê?"

"É Castejón! Já está a bombardear Mérida!"

"E então?"

"Asensio não pode deixar Castejón passar-nos à frente! Se as banderas de Castejón avançam, nós também temos de avançar. As forças do Sul têm de se encontrar com as do Norte e Mérida fica no caminho."

Francisco ergueu-se do ninho de metralhadora e alongou o corpo, sentindo-o dorido por permanecer demasiado tempo na mesma posição.

"Esta terriola também fica no caminho e, que eu saiba, ainda não foi toda conquistada."

"Não te preocupes, hombre. A I Bandera vai deixar aqui uma companhia para tratar dos rojos." Bateu com o indicador no relógio. "O resto do pessoal tem uma hora para se apresentar diante dos camiões."

"Uma hora?"

"Si. Asensio diz que estamos aqui a perder tempo." Fez um gesto com a mão. "Vamonos, Paço!"

"Voltas a chamar-me Paço e levas uma chapadona!"

Juanito correu, ganhando uma distância prudente em relação ao português.

"Paço! Paço!"

A IV Bandera seguiu pela estrada em camiões formados em coluna. O horizonte enchia-se de fios negros de fumo, pareciam vulcões a expelir fúria; eram incêndios que decorriam em pequenas povoações onde os milicianos resistiam ao avanço das tropas revoltosas.

De quando em vez, nas bermas, via-se um, três ou dez corpos estendidos, a maior parte de barriga para o ar, por vezes rodeados de moscas, em alguns casos com homens a abrirem buracos ao lado para os enterrar; tratava-se dos fuzilados dessa manhã ou da véspera. Os legionários não dispensaram mais do que um breve olhar de curiosidade a esses cadáveres; tudo o que lhes interessava era sair dali e procurar novas emoções, partir à aventura, desafiar a morte noutras paragens, arriscar a vida em qualquer novo ponto da frente.

Já perto de Alanje, o sargento Gomez começou a cantar La canción dei legionário e logo os homens fizeram coro.

Soy valiente y leal legionário, Soy soldado de brava legión,

Pesa en mi alma doliente calvário Que en el fuego busca redención.

Mi divisa no conoce el miedo, Mi destino tan solo es sufrir, Mi Bandera luchar con denuedo, Hasta conseguir Vencer o morir.

Chegaram a Zarza e tentaram cruzar aí o Guadiana, mas a corrente mostrou-se demasiado forte, o que era surpreendente, considerando que estavam em Agosto e normalmente o caudal era menor no pico do Verão. Por outro lado, havia milicianos na outra margem, todos armados com escopetas. Um exibia até uma metralhadora ligeira.

O comandante Vierna, que chefiava a IV Bandera, avaliou a situação. Faltavam-lhe os meios para construir uma ponte militar sobre o rio; além disso, iria certamente sofrer baixas inúteis, uma vez que a travessia exporia os legionários ao fogo inimigo. Após estudar o mapa, Vierna fez sinal aos seus homens de que regressassem aos camiões.

"Vamonos!", gritou. "A la carretera!"

A coluna deu meia volta e regressou a Almendralejo, onde apanhou a carretera general em direcção a uma ponte romana que, dizia-se, os milicianos não tinham ainda destruído.

De facto, assim era. Atravessaram a ponte e aproximaram-se de Mérida por oeste. Grossas colunas de fumo negro erguiam-se do casario longínquo, sinal de que o assalto à cidade já ia avançado.

"Joder!", praguejou Juanito. "Vais ver que não deixaram nada para nós."

Francisco avaliou a dimensão dos incêndios.

"Quem são os gajos que estão a atacar?"

"São os camaradas da I e da V Bandera", replicou o espanhol. "E acho que também o segundo tabor de Ceuta."

"Merda!"

Quando a IV Bandera entrou em Mérida, os combates já haviam terminado. Os legionários e as tropas marroquinas fuzilavam os sospechosos, mas, no momento em que saltaram do camião, em plena Plaza de Espana, Francisco e os seus companheiros tinham mais que fazer do que ajustar contas com os defensores da cidade; a verdade é que o seu regimento não sofrera baixas e a sorte dos derrotados era-lhes por isso indiferente. Não tinham a vingança a roer-lhes o estômago.

O português acompanhou os camaradas numa correria pelas ruas de Mérida, um tropel que só terminou perto do Arco de Trajano, à frente de uma ourivesaria cujas vitrinas foram de imediato despedaçadas pelas coronhas das Mauser. Com o caminho aberto, os homens entraram na joalharia em catadupa, como a corrente de um rio, e deitaram mão a tudo o que viam ao seu alcance, enchendo os bolsos de jóias, ouro e dinheiro. Para abrir o cofre usaram explosivos e, meia hora depois, quando saíram do local, já nada havia para brilhar nas prateleiras e gavetas da ourivesaria Oro de Amor.

O saque de Mérida prolongou-se por todo o dia, apenas interrompido pelos esporádicos bombardeamentos da aviação governamental. Os aviões emergiam de vez em quando das nuvens e lançavam umas bombas tímidas, mas não passava tudo de diversão; as barulhentas explosões não mataram ninguém, apenas serviram para aterrorizar os civis e moer a paciência dos legionários.

Na manhã seguinte, e na ressaca da orgia de pilhagens, Francisco e Juanito foram colocados de plantão junto à ponte

sobre o Guadiana. Montaram um posto com sacos de terra dispostos em U e ficaram com a missão de controlar os acessos à cidade.

Foi ao verificar o salvo-conduto de uma coluna de camiões proveniente de Sevilha com víveres e munições que souberam das novidades.

"Entonces la Columna Madrid?", perguntou o motorista do primeiro camião, enquanto Francisco estudava os documentos que o homem lhe tinha apresentado. "Tudo bueno?"

"Hã?", resmungou, sem tirar os olhos do salvo-conduto. "Qual coluna Madrid?"

"Hombre! Pois não és da IV Bandera?"

"Sim, sou."

"Então não sabes que a IV Bandera foi integrada na Columna Madrid?"

"Eu não. Aqui nunca nos dizem nada, caraças."

"Pois é verdade. Franco nomeou Yagiie para comandar a coluna."

"Quem?"

"Yagúe."

"Não conheço. Joga no Benfica?"

O motorista rolou os olhos e fez um estalido com a língua.

"Ay, hombre! Vocês, os da Legião, não percebem nada de nada..."

Francisco devolveu os documentos e fez sinal para o camião prosseguir.

"Digam-me quem tenho de matar e eu mato. Agora essas conversas não são comigo."

"Pois fazes mal", devolveu o motorista, enquanto subia para o seu lugar. "O Yagúe mandou punir os legionários que andam nas pilhagens." Ligou o motor e sorriu. "Talvez te interesse saber isso, hem?"

O português hesitou um instante, o suficiente para denunciar a culpa, mas logo recuperou o semblante despreocupado e fez um gesto em direcção à cidade.

"Adiante. Vá, despacha-te."

Quando a coluna passou, Francisco foi chamar Juanito e relatou-lhe a conversa do motorista. O ajudante de munições abandonou o posto para ir informar-se sobre o caso junto do sargento Gomez e voltou uma hora depois com um papel nas mãos.

"É tudo verdade", confirmou, acenando com a folha. "O tenente-coronel Yagúe emitiu esta ordem." Ajeitou o papel e leu-o. "Los actos de crueldad serán severamente castigados", recitou em voz alta. "Las razias y el pillage desprestigian a la unidad que los cometen y desbonran ai Ejército.'" Ergueu a cabeça e olhou para Francisco. "No pueden admitirse."

Um pequeno grupo passou por eles. Eram três legionários da I Bandera e acompanhavam um rapaz novo, de aspecto andrajoso e que caminhava em peúgas. Do outro lado da ponte, os legionários mandaram-no parar, afastaram-se dois passos, apontaram as Mauser e dispararam. O rapaz tombou no chão com um barulho seco, como um saco, sem uma palavra, sem sequer um ai.

"E isto?", perguntou Francisco, apontando para os legionários que empurravam o corpo para uma vala. "Este fuzilamento vai ser castigado?"

Juanito abanou a cabeça.

"Não, hombre. Este castigo foi ordenado pelo comando."

"Ah! O comando pode ser cruel, mas nós não. É isso?"

"Sim."

O português suspirou.

"Está bem, está bem. Já percebi." Olhou em redor e fez uma careta impaciente. "Estou farto desta merda, sabes? Quando é que saímos daqui?"

"Pois essa é a outra novidade que o sargento me deu."

"Ai sim?"

"Vamos partir, hombre! E desta vez não será para enfrentarmos uma escaramuçazita, não. Cono! Vamos envolver-nos numa coisa maior."

"Que coisa?"

"Uma grande batalha."

Francisco sorriu.

"Aleluia! Vamos para Madrid?"

"Não, hombre. Ainda não."

"Então?"

"Vamos tomar Badajoz."

 

O apoio aos refugiados ficou a cargo do capitão Branco, coadjuvado por Luís, a quem cabia tratar de toda a parte sanitária. Os dois oficiais ergueram um campo nos arredores de Valença para alojar os galegos e organizaram a estrutura logística de suporte. Tratava-se, como seria de esperar, de hóspedes indesejados, pelo que depressa vieram ordens do Porto para evitar os contactos entre os milicianos galegos e a população portuguesa; era evidente que o regime receava contágios ideológicos. O próprio capitão Branco se sentiu inicialmente desagradado por estar a lidar com comunistas e anarquistas, mas trabalho era trabalho.

Luís, no entanto, ganhou uma certa amizade a um dos galegos, um indivíduo de bigode fino chamado José Alexandre, evidentemente mais instruído do que os restantes. Ambos conversavam amiúde à hora do almoço, por vezes na companhia do capitão Branco, que se ia habituando e se mostrava particularmente interessado em perceber o que tinham os comunistas contra a Igreja.

"A relixión é o ópio do pobo", explicou-lhe José Alexandre naquele galego quase igual ao português.

"Que disparate é esse?"

"Foi Marx quen o dixo. Para el, a crítica da relixión é o fundamento de toda a crítica.'''

"Mas o que diabo vos fez a Igreja de mal?"

"A Igrexa non nos causou ningún mal a nós, ou a min en particular, mais ás masas si que lies causou moito mal argumentou o miliciano. "A Igrexa educou as persoas a resignárense ás relacións de poder existentes na sociedade, convencéndeoas para que non se revoltasen contra a inxustiza, contra a degradación, contra a miseéria, mais antes a aceptarem todo, a aguantaren todos eses males, a conformárense coa súa situación, a daren a outra fazula a quen as agredia. Como é evidente, esa postura é a que convén aos capitalistas explotadores, que dese xeito ven perpetuar a súa dominación sobre as masas explotadas. Por iso é importante encarar a relixión e acabar con ela, erradicala da nosa cultura. Sen a relixión, o proletariado e os campesinos libértanse do medo e revóltanse contra este sistema que os oprime sen piedade."

Estas conversas acabavam sempre em acaloradas discussões, com o português e o galego em pólos opostos e Luís no meio a tentar conciliá-las. Mas o capitão apreciava as disputas ideológicas com o miliciano, elas davam-lhe acesso a ideias que nunca tinha considerado; reconhecia até fundamento em muitas delas, pareciam-lhe fazer sentido, mas a verdade é que um pensamento tão radical não se coadunava com a sua natureza conciliadora e a educação católica que recebera. Gostava de conhecer aquela perspectiva diferente, mas sabia que nunca a partilharia.

Por entre o trabalho com os refugiados, os dois oficiais enviados de Penafiel foram também envolvidos no abastecimento humanitário à Galiza, uma região já totalmente nas mãos dos revoltosos. Gerara-se por Portugal inteiro um sentimento de solidariedade para com os espanhóis. Os simpatizantes dos republicanos comentavam em surdina os acontecimentos, mas os apoiantes dos nacionalistas não ocultavam o seu fervor; para eles a guerra era uma cruzada do cristianismo contra a ameaça vermelha.

A Igreja apoiava a cruzada, uma reacção natural perante as insistentes notícias de que os comunistas e anarquistas espanhóis andavam a queimar igrejas e a assassinar padres e freiras com requintes de crueldade, actos que incendiavam os ânimos dos católicos portugueses e os impeliam à acção. Daí até se organizarem campanhas para enviar auxílio às populações espanholas na zona nacionalista, em especial na irmã Galiza, foi um pequeno e inevitável passo.

Quando lhe apareceu a primeira coluna de camiões na ponte internacional, seis dias depois da tomada de Tui, Luís estava determinado a ser rigoroso. Bem vistas as coisas, tratava-se da primeira inspecção sob a sua responsabilidade, pelo que optou por não se contentar em despachar a burocracia.

O alferes veterinário pediu a identificação dos motoristas e consultou os salvo-condutos e toda a documentação da coluna; os papéis revelavam que os camiões transportavam leite e alimentos destinados às populações espanholas.

"Não é melhor verificar isso?", perguntou Luís, olhando com desconfiança para os documentos.

"Para quê?", perguntou o capitão Branco, pegando nos papéis. Inspeccionou as assinaturas e os carimbos. "Está tudo regular."

Luís apontou para a referência à carga.

"Eles levam leite e alimentos. Será que está tudo em condições? O leite é coisa para se estragar depressa, sobretudo com este calor."

"Você acha?"

"Qual o problema de verificar? Afinal sou médico, não sou? Não custa nada dar uma vista de olhos."

Convencido, Mário Branco saltou para a carga do segundo camião com Luís e o sargento Guedes no encalço e foi verificar os contentores que o veículo transportava. Eram caixas de madeira, com a palavra Beirolas impressa sobre as tábuas. O capitão estranhou a palavra e mandou o sargento Guedes abrir um dos contentores.

"Meu capitão", protestou o responsável pela coluna. "Os contentores só podem ser abertos no destino."

"Eu é que sei onde podem ser abertos", retorquiu o oficial de uma forma que não admitia discussões.

"Mas essas são as'minhas ordens", insistiu o responsável.

"E as minhas ordens são garantir que o abastecimento às populações chega em condições à Galiza." Apontou de novo para o condutor. "Abra a caixa, se faz favor."

Com a ajuda de uma alavanca metálica, o sargento levantou umas tábuas e expôs o interior escuro da caixa. O capitão pegou numa lanterna e apontou-a lá para dentro. Reconheceu cartuchos para espingardas Lebel e granadas de morteiro de 50 milímetros, obviamente retirados do depósito que o exército português tinha em Beirolas. Mandou fechar a caixa e saltou para fora do camião.

"Podem prosseguir", disse ao responsável da coluna, num tom azedo. "Já vi que têm ali muito leite para as crianças galegas."

Não voltaram a inspeccionar colunas.

Nessa noite, depois do jantar e com um cálice de conhaque na mão, os dois oficiais de Penafiel comentaram o assunto com o major Tereso, que chefiava a unidade de Viana do

Castelo também estacionada em Valença. O oficial minhoto ouviu-os e riu-se com o incidente.

"O meus amigos, vocês realmente...", desabafou Tereso, abanando a cabeça. "Então não sabem que andamos a armar os nacionalistas à socapa?"

"Agora sabemos", disse o capitão com um encolher de ombros. "Mas antes não sabíamos, o que quer que lhe faça? Pensávamos que era mesmo ajuda alimentar e quisemos ver se a comida estava em condições de consumo."

Nova gargalhada do major.

"Vocês são cómicos!" O major Tereso engoliu um trago do seu conhaque. "Oiçam, nunca vos contaram o que se passa no porto de Lisboa?"

O capitão e o alferes entreolharam-se.

"Não."

"O meu cunhado é despachante em Lisboa e esteve-me a contar que aquilo vai para lá agora um corrupio que só visto", disse com uma expressão enigmática, como quem se prepara para partilhar um grande segredo. "Chegam navios e navios da Alemanha e de Itália, descarregam material sanitário e pianos em contentores, essa carga é colocada nos comboios e ala para Espanha!" Fez um ar sarcástico. "Claro que chamar material sanitário e pianos àquilo é uma forma de falar. Noutro dia, o navio alemão Kamerun descarregou no cais de Santa Apolónia um fornecimento de combustível. O meu cunhado estava por lá a tratar de uns assuntos quando um dos contentores caiu do guindaste e se partiu. Pois sabem o que viu ele?"

Os dois interlocutores inclinaram-se para a frente, curiosos, os olhos muito abertos.

"Partes de aviões desmontadas e empacotadas em caixas", exclamou o major, olhando de relance para os lados como se se quisesse assegurar de que mais ninguém escutava a conversa.

"Ele pôs-se lá a meter o nariz e percebeu que eram aparelhos de reconhecimento Heinkel 46." Voltou a rir-se. "Ora aí está o abastecimento às populações que nós estamos a enviar para Espanha! Mandamos aviões de guerra, tanques ligeiros, bombas, granadas, munições, espingardas, metralhadoras e gases asfixiantes."

Luís fez uma careta, agastado.

"Se isso se sabe, é uma grande bronca."

"Ora! Já toda a gente percebeu o que se passa."

"Eu digo lá fora. Se os Ingleses sabem disto, por exemplo, vai ser uma chatice. Eles fazem tanta questão no Acordo de Não Intervenção..."

O major agarrou no cálice e mirou o líquido cor de caramelo que bailava no interior.

"Na semana passada estiveram aqui os bifes."

"A sério?"

"O regime autorizou os Ingleses a inspeccionarem a nossa fronteira, não sabiam?"

"O meu major deve estar a brincar", disse o capitão Branco. "Isso não pode ser."

"O nosso capitão acha-me com cara de brincalhão? Estou-lhe a dizer que o regime autorizou os bifes a fiscalizarem o que aqui se passa. Pois eles na semana passada vieram cá e viram as colunas a passar para o outro lado da fronteira."

"Mas os Ingleses inspeccionaram a carga?"

"Eu estava com eles quando foram espreitar, assim à socapa. Eram Mauser novinhas em folha."

"E então? O que fizeram eles?"

O major Tereso acabou de engolir o conhaque que lhe restava no cálice e ergueu-o no ar, como se fosse fazer um brinde.

"Confirmaram que era tudo bens de primeira necessidade destinados a aliviar o sofrimento da população civil, coitadinha!"

 

Os legionários colocaram as baionetas na ponta das Mau-ser e ajeitaram as cintas de lona, onde guardavam as munições e o cantil de alumínio. Contemplaram as muralhas do outro lado do rio e sentiram a ansiedade crescer-lhes no peito, como se o ar os sufocasse. A tez rosada de Francisco transpirava com abundância. Eram duas da tarde e o sol brilhava alto e inclemente, fustigando com dureza o bairro de San Roque e os homens que ali se encontravam.

Depois de ultimarem os preparativos, alguns legionários ajoelharam-se para rezar, outros sentaram-se no chão e voltaram o rosto para o céu, os olhos fechados e as narinas dila­tadas, tentando acalmar o coração descontrolado e aspirar a brisa quente desse dia 14 de Agosto.

"São malucos", comentou Francisco.

"Sim, é uma loucura", concordou Juanito. "Não se monta assim um assalto."

O português cuspiu para o chão.

"Vamos ser massacrados.

Sem pronunciar mais uma única palavra, Francisco verificou pela sexta vez a colocação da cinta de munições na Hotchkiss e passeou a mira pelo topo das muralhas diante dele.

Instantes depois, o sargento Gomez aproximou-se do local onde os homens da companhia das metralhadoras se sentavam.

"Hombres de la 12." compartia", disse, o tom um pouco solene. Era notório o seu nervosismo. "A bandera vai avançar dentro de alguns minutos. É vossa responsabilidade dar a cobertura adequada às outras companhias."

Francisco ergueu a mão.

"Meu sargento, então e os outros?"

"Quais outros?"

"Onde está a cobertura da artilharia, meu sargento? Onde está a protecção dos aviões?"

Gomez fez um ar resignado.

"A bandera irá avançar apenas com a cobertura das metralhadoras da 12.a companhia."

"Mas isso é uma loucura!"

"Silêncio!" Ergueu a voz. "Ordens são ordens! Cada homem fará o seu dever. Arriba Espana!"

O sargento deu meia volta e afastou-se. Os homens agitaram-se com nervosismo e Juanito levantou-se e foi a correr na direcção do sargento, que conhecia bem por serem ambos da mesma região de Espanha.

Sem compreender a táctica, Francisco voltou para o seu lugar e pôs-se a estudar de novo as posições inimigas. Estariam os oficiais a ver alguma coisa que ele não descortinava? Quanto mais perscrutava as muralhas de Badajoz, todavia, mais se convencia de que o assalto era de facto uma acção suicida. Os republicanos estavam bem entrincheirados por detrás dos muros protegidos por sacos de terra e dispunham

de várias metralhadoras em posições cruzadas. Um ataque frontal sem qualquer cobertura parecia-lhe uma loucura.

"Madre mia, estamos tramados."

Ouviu uma voz atrás dele. Olhou para trás e viu Juanito juntar-se a ele, os olhos injectados de medo.

"Então?", perguntou. "Qual é o plano desses idiotas?"

"Não são idiotas, são orgulhosos." O espanhol apontou na direcção de Badajoz. "Estás a ouvir este tiroteio?"

Ouvia-se de facto tiroteio intenso por trás das muralhas. O pop-pop-pop contínuo lembrava a Francisco o estalar dos foguetes em dia de feira de São Martinho, em Penafiel.

"Sim", confirmou. "E daí?"

"São os homens de Castejón. O sargento disse-me que eles penetraram no Sul da cidade pela Puerta dei Pilar. Estão a combater nas ruas há quase quatro horas." Fez um gesto em redor. "E aqui encontramo-nos nós, retidos no bairro de San Roque. Asensio diz que não pode ser."

"Não pode ser, porquê? Estamos retidos porque temos estas muralhas à nossa frente, não por sermos maricas."

Juanito abanou a cabeça.

"Não pode ser", repetiu. "O sargento disse-me que o comandante Asensio não aceita isto."

"Não aceita, como?"

"É uma questão de orgulho, hombrel O comandante Asen­sio decidiu que nós não podemos ser ultrapassados pelos homens de Castejón. É uma vergonha."

Francisco olhou para o amigo com uma expressão de incredulidade. Podia ser um abrutalhado, mas de golpes de mão e de assaltos a posições inimigas percebia ele.

"É por isso que vamos atacar sem protecção da aviação ou da artilharia? Para que o comandante Asensio não passe uma vergonha?"

"É estúpido, não é? O sargento disse-me que o comandante está possesso, grita que é preciso atacar, custe o que custar. Temos de nos juntar àquele cofio do Castejón porque se não...

"Senão, o quê?"

"Joder! Senão vamos ser a chacota da Legião!"

"Se me disserem para avançar, eu avanço", retorquiu Francisco. "Mas isto não é normal. Ninguém manda os seus homens suicidarem-se por uma questão de orgulho. Nós precisamos de cobertura aérea ou de artilharia para termos alguma hipótese de êxito. Senão vamos morrer todos."

O espanhol baixou a voz.

"Não é só a reputação da IV Bandera que está em jogo", adiantou, num tom secretivo. "O sargento acha que o comandante Asensio tem medo de ser substituído na chefia das banderas. Foi sobretudo por isso que mandou atacar."

Carregando as sobrancelhas numa expressão de perplexidade, Francisco fixou os olhos na muralha.

"Mas atacar por onde?"

Juanito indicou um ponto na muralha.

"Por ali", disse. "É a Puerta de la Trinidad. O sargento ouviu o capitão Fuentes dizer que é a nossa única hipótese."

Francisco observou com atenção a entrada, aberta na base do paredão, e estudou as posições defensivas que a protegiam. Concluída a inspecção, suspirou e abanou a cabeça, pessimista.

"Não vai ser fácil."

As duas e meia da tarde soou o cornetim da IV Bandera dando a ordem de ataque, e, acto contínuo, um carro blindado, comandado pelo capitão Fuentes, pôs-se em marcha.

"Hombres de la 16.* compania", gritou uma voz, a do capitão Caballero, reverberando no ar com emoção. "Adelan-teeeeeeee!!!"

Um bruá rouco ergueu-se de San Roque. Eram os legionários do primeiro pelotão da 16.3 companhia a largar em direcção a Badajoz, homens unidos num grito, unidos no medo, unidos como irmãos numa arrancada louca, bravos touros lançados na arena da morte.

"A mi la Legión!", berrou o capitão Caballero, que comandava a carga de pistola em punho.

"Viva la muerteeee!", retorquiram os legionários em coro, na sua corrida atrás do blindado em direcção às metralhadoras inimigas.

Francisco reconheceu naquele clamor o grito de guerra dos legionários, o bramido enraivecido lançado das entranhas, bem do fundo, como se todos tentassem assim libertar o pavor que os paralisava, como se aquele grito lhes permitisse exorcizar o terrível medo da morte, abraçando-a como se ela fosse bem-vinda, dando-lhe vivas como se não a receassem. Ele próprio já o gritara mil vezes, "viva a morte", gritara-o em português, mas gritara-o. Porém, ali, naquele arremedo insano, naquela arrancada cega, o grito a saudar a morte percorreu-lhe a espinha e eriçou-lhe a pele, impressionou-o tanto que logo o dedo se contraiu no gatilho, como se a sua Hotchkiss pudesse impedir o que lhe parecia inevitável, o encontro daqueles legionários com aquela a quem tantos vivas davam.

As metralhadoras de Badajoz abriram fogo em resposta. O primeiro pelotão de legionários conseguiu enganar as primeiras balas, mas os republicanos corrigiram o tiro e as rajadas começaram a ceifar os homens que avançavam em terreno descoberto.

"Segundo pelotón", gritou nova voz. "Adelanteeeeee!"

Uma nova leva de homens da 16.a companhia largou em corrida, dando vivas à morte, para a encontrar alguns passos adiante, quando o primeiro legionário tombou, e depois outro e outro ainda.

"Tercero pelotón. Adelanteeeeeel"

Os pelotões arrancaram uns atrás dos outros, numa cadência ritmada, quase cronometrada, os homens aos berros em direcção ao fogo inimigo, primeiro mortos de medo, depois mortos pelas balas que rasgavam o ar e a carne e os ossos.

Francisco premia o gatilho da sua metralhadora como um louco, virava para a direita, depois para a esquerda, tentava atingir as metralhadoras republicanas instaladas no alto das muralhas, procurava travar o seu fogo assassino. Mas parecia-lhe inútil, estava excessivamente longe e o inimigo era demasiado eficiente.

As metralhadoras republicanas encontravam-se posicionadas em frente e de flanco, e o tiro que vomitavam era certeiro e mortífero. Os legionários iam tombando uns atrás dos outros, como coelhos numa carreira de tiro, mas os que sobravam continuavam em corrida, no desespero de fintar a morte e chegar às Puertas de la Trinidad. Esgotaram-se os pelotões da 16.3 companhia e logo avançaram os da ll.a companhia e depois os da 10.a companhia, todos empenhados no assalto, a IV Bandera a ser dizimada pelo fogo inimigo às portas de Badajoz, os homens cobertos apenas pelas metralhadoras da 12.a companhia.

Foi nessa altura que o blindado do capitão Fuentes virou para a direita, atraindo para si o fogo inimigo. Por momentos livres da chuva de balas que até aí interditava a progressão, os sobreviventes do segundo e terceiro pelotões atravessaram o leito seco do rio Rivillas e lançaram granadas em direcção às

Puertas de la Trinidad, criando assim uma nuvem de fumo que momentaneamente ocultou a sua progressão.

Mas depressa as metralhadoras inimigas se voltaram para eles e de novo travaram o avanço da infantaria, agora acompanhadas por morteiradas.

"Juanito", gritou Francisco, frustrado por não conseguir calar as balas republicanas. "Vamos também."

"Quer

"Anda!" O português pegou na Hotcbkiss e largou em corrida, juntando-se à carga da IV Bandera. "Despacha-te, pandeiro!"

Vendo o companheiro a correr por ali fora, o espanhol pegou em três cintas de munições e, grazinando joder, cofio e outros palavrões, foi atrás dele. A meio do percurso, já perto do leito do Rivillas, quando as balas começaram a assobiar à sua volta, Francisco mergulhou sobre um molhe de legionários mortos. Eram três homens estendidos no chão em posições estranhas, desarticuladas; entre eles reconheceu Murillo, o jovial italiano com quem uma vez partilhara uma prostituta berbere na cantina de Dar Riffien.

Com os seus braços poderosos, o português pegou nos cadáveres dos companheiros caídos e estendeu-os uns por cima dos outros, como se fossem uma parede, amontoando-os como sacos de terra para lhe darem protecção. Meteu a Hotcbkiss pelo meio, por baixo da cabeça inerte de Murillo, e, satisfeito com a aproximação às muralhas, abriu fogo cerrado sobre a metralhadora mais próxima, uma que se encontrava posicionada de flanco. A rajada foi tão intensa e certeira que a metralhadora inimiga se calou imediatamente por entre uma nuvem de poeira.

"Já levaste", rosnou entre dentes.

Girou a Hotcbkiss para a frente, apontou para outra me­tralhadora inimiga e abriu de novo fogo, largando uma nova

nuvem de poeira no sector da muralha de onde partiam as balas que dizimavam a IV Bandera.

"Entonces?", perguntou Juanito, ofegante, atirando-se para o seu lado com as cintas de munições. "É melhor daqui?"

"Muito melhor."

O sargento Gomez apercebeu-se do sucesso da manobra e deu ordens para que se imitasse a iniciativa de Francisco e Juanito. Uma outra metralhadora da 12.a companhia avançou de imediato, posicionando-se a meio do terreno, igualmente protegida pelos corpos dos legionários abatidos no assalto. As duas metralhadoras encontravam-se agora bem mais expostas ao fogo inimigo, mas, em compensação, o seu tiro revelava maior precisão e eficácia.

Foi o momento decisivo.

O avanço das duas metralhadoras da 12.a companhia desorientou os defensores de Badajoz, divididos entre o fogo sobre os legionários que se aproximavam perigosamente da Puerta de la Trinidad e a necessidade de neutralizarem a 12.a companhia, cujo fogo certeiro aniquilava agora as metralhadoras defensivas. Esta indecisão revelou-se fatal.

Em alguns minutos, os sobreviventes da 16.a companhia alcançaram a brecha aberta na muralha. Uma vez ocupada a Puerta de la Trinidad, procederam de imediato à limpeza do sector, logo acompanhados pelos homens da ll.a e da 10.a companhias, que entretanto penetraram também nas muralhas pela mesma entrada. Os legionários transformaram-se numa corrente que jorrava para dentro da cidade com as baionetas em riste, reluzentes, varrendo tudo o que mexia naquela arrancada final, uma enxurrada de homens e fogo e lâminas que arrastou tudo o que encontrou naquela carga cega, um rio de fúria a transbordar pelas margens vencidas das muralhas de Badajoz.

Passou a combater-se bairro a bairro, rua a rua, casa a casa. Os sobreviventes da 16.a companhia, o capitão Caballero, um cabo e catorze legionários, invadiram o parapeito das muralhas e, movidos por uma ferocidade de bestas, abateram o que restava dos seus defensores. Lá em baixo, os restantes pelotões da IV Bandera espalharam-se pelas artérias da cidade. Logo que encontravam posições inimigas, chamavam os homens da 12.a companhia para regar os focos de resistência com fogo de metralhadora. Francisco e Juanito passaram a tarde e a noite a dar apoio aos múltiplos assaltos às posições defensivas republicanas, respondendo às sucessivas chamadas que lhes chegavam a todo o momento de toda a parte.

Ao amanhecer, os republicanos já só se encontravam entrincheirados na catedral. A 12.a companhia recebeu ordens para dar fogo de cobertura ao assalto final. A porta da catedral foi arrasada a tiro de canhão e os legionários irromperam pelo santuário, aniquilando o derradeiro foco de resistência dos republicanos.

Badajoz caíra.

 

A vida em Valença do Minho tornou-se uma rotina para Luís e o capitão Branco. Os dois oficiais alugaram quartos na Praça de São Teotónio, junto à Casa do Eirado, e saíam todas as madrugadas para gerir o campo de refugiados ou fiscalizar a passagem das colunas de "ajuda às populações" para a Galiza. Em fins-de-semana alternados davam um salto a Pena­fiel para se juntarem à família. Uma vez ia o capitão e na vez seguinte seguia o alferes veterinário, mas no domingo à noite já estavam de volta aos seus deveres na fronteira luso-galega.

Foi no dia a seguir a um dos regressos de Luís de Penafiel que as coisas começaram a correr mal. O alferes encontrava-se junto ao acesso à ponte, encostado a um muro a aguardar a chegada de mais uma coluna, quando, logo pela manhã, um carro militar espanhol entrou no tabuleiro, vindo de Tui, e se imobilizou ao seu lado. As portas abriram-se e do interior da viatura saiu um coronel espanhol, um homem aloirado e muito penteadinho.

 

"Arriba Espanar, saudou, esticando o braço na saudação à romana.

Luís fez continência militar, mas sem muito entusiasmo.

"Bom dia."

"Soy el coronel Manuel Iriarte", apresentou-se o recém-chegado. "Quiero hablar con el capitán Blanco.."

"O capitão Branco, quer o senhor dizer. Com certeza. Os seus documentos?" O oficial espanhol apresentou os papéis e Luís, constatando que se encontrava tudo em ordem, devolveu-os e fez-lhe um sinal com a cabeça. "Venha comigo."

O alferes deu ordens ao sargento Guedes de que assumisse o comando do acesso à ponte e pôs-se a caminho. Os dois homens calcorrearam o piso empedrado de Valença do Minho, trocando palavras de circunstância sobre o calor que apertava nesses dias, e subiram até ao forte.

Luís apresentou o capitão Branco ao coronel espanhol, o qual, após as amabilidades habituais, revelou ao que vinha.

"Tenho ordens para vir buscar os milicianos rojos que aqui se esconderam", anunciou Iriarte.

"Ai sim?", admirou-se Branco. "Não sabia de nada."

O coronel tirou documentos de uma pasta e entregou-os ao oficial português.

"Pois está aqui tudo."

Tratava-se de uma guia assinada pelo general Machado, do comando do Porto, autorizando a entrega dos refugiados. O capitão pegou no telefone e ligou para o Porto, para confir­mar a ordem de entrega. A ligação foi difícil, como era habitual nas chamadas para sítios tão longínquos, mas do outro lado da linha acabaram por lhe indicar que, sim senhor, tinham recebido os papéis correspondentes de Lisboa, pelo que a guia do coronel Iriarte era genuína.

O capitão Branco pediu a Luís que os acompanhasse até ao campo de refugiados e seguiram os três em direcção ao local. Iriarte trazia já na cabeça um plano para a entrega dos milicianos.

"Era bom que vocês os pusessem a meio da ponte", disse. "Os meus homens estão em Tui e vão lá buscá-los. Vale?"

O capitão mirou Luís.

"Você faz isso, alferes?"

"Sim, sem problemas. Só preciso de uns cinco camiões. Será que o meu capitão mos pode arranjar?"

"Claro. Vou dizer ao alferes Monteiro que trate do transporte." Voltou-se para Iriarte. "Quando quer proceder à transferência, coronel? Amanhã?"

"Manana?", surpreendeu-se o espanhol. "No." Abanou a cabeça com ênfase. "Hoy. Ahora."

O capitão riu-se.

"Agora? Ena! Isso é que é pressa, homem!"

"Si. Tenemos prisa en ganar la guerra."

Chegaram ao campo de refugiados e o capitão Branco deu ordens para que os galegos formassem no pátio. O aparecimento de um oficial espanhol com os dois portugueses provocou um burburinho surdo entre os milicianos, que não tiravam os olhos do coronel Iriarte.

Luís detectou os esgares de medo no rosto dos refugiados e procurou José Alexandre. O seu amigo galego tinha desenhada na face a mesma apreensão que adivinhava nos olhos dos seus companheiros e o alferes aproximou-se dele, empenhado em tranquilizá-lo.

"Então, Zé? Nervoso, hã?"

José Alexandre apontou Iriarte com a cabeça.

"Que está a facer aquel carajo aqui?"

"É um oficial do exército espanhol. Veio buscar-vos."

"Veu buscamos? Para nos levar onde?"

"Para a Galiza, homem. Têm lá um campo de detenção à vossa espera."

O galego riu-se sem gosto.

"Un centro de detención, é? Uma cova, quere dicir."

"Uma cova?"

"Si, alférez. Vannos fusilar."

"Disparate, não vão nada!"

"Vannos fusilar, iso é o que lie digo."

O receio do galego era genuíno, percebeu Luís. Preocupado, foi chamar o capitão Branco e explicou-lhe o que o refugiado lhe dissera. O capitão foi ter com José Alexandre.

"Então o que se passa?"

"Ese cabrón quere levamos para nos fusilar."

Mário Branco abanou a cabeça, uma expressão condescendente no rosto.

"O exército espanhol é católico", anunciou-lhe, com ar pedagógico. "Isso dos fuzilamentos é coisa vossa, dos comunistas e anarquistas de quem você tanto gosta. Vocês é que andam para aí a matar padres e freiras. Um exército católico e honrado não tem esses comportamentos de fací­nora..."

"Quere burlarse de min, non?"

"Quero burlar quem?", admirou-se o capitão. "Não, claro que não."

José Alexandre voltou a indicar Iriarte com a cabeça.

"Foi o cabrón quen falou de que nos ían levar para un centro de detención, non?"

"Sim... quer dizer, não", gaguejou o capitão, atrapalhado. "Na verdade, não falámos sobre isso."

"Entón como o sabe?"

"Bem... presumo que vocês vão para um campo de detenção, não é? Para onde é que haviam de ir?"

Foi a vez do galego suspirar.

"Ai, capitán, capitán!", desabafou, abanando a cabeça. "Entón non sabe o senor que os nacionalistas andan a fusilar a todos os milicianos que apanan por diante?"

O capitão Branco esboçou uma expressão céptica.

"Ena! Onde isso já vai..."

"Estou a falar verdade, capitán. Preguntelle ao cabrón para onde nos van levar. Pregunte, pregunte."

Com a dúvida a palpitar-lhe no coração, o capitão fez sinal a Luís, combinou com ele o modo de obter a informação e voltaram ambos para junto de Iriarte, que observava os milicianos a formarem no" pátio. Deixaram passar um minuto. Obedecendo a um sinal do capitão, Luís simulou que lhe tinha acabado de ocorrer uma ideia e formulou então a pergunta.

"Vai levar muito tempo a julgar esta malta toda, hem?"

"Juzgar a quiénf Estos capullos?"

"Sim. Afinal de contas, é muita gente..."

O coronel espanhol riu-se.

"Não vai haver julgamento nenhum!"

"Ai não? Então? O que lhes vão fazer?"

Iriarte mirou os milicianos e mostrou um esgar de desdém.

"Que los fusilen!"

Era mesmo verdade.

"Vão fuzilá-los?"

"Claro! O que queriam que lhes fizéssemos, hã? íamos alimentá-los na prisão, não? Caviar e champanhe, venga!" Voltou a rir-se. "Daqui a bocado até queriam que os levásse­mos às putas, para os manter satisfeitos!" Abanou a cabeça. Não. Temos de acabar com toda esta bazofia roja, extermi­ná-los hasta el último!"

Os dois oficiais portugueses trocaram olhares; primeiro o espanto, depois a irritação a enrubescer-lhes as faces. O capitão deu um passo atrás e o alferes veterinário imitou-o, distanciando-se ambos do espanhol.

"Coronel Iriarte", disse Mário Branco, a voz muito firme. "Não lhe vamos entregar estes homens."

O oficial espanhol observou-o com ar surpreendido.

"Como? Qué pasa?"

"O que se passa é que não lhe vamos entregar estes homens", repetiu o capitão. Branco mirou Luís de relance. "Alferes, mande destroçar os refugiados."

Era tudo o que Luís queria ouvir. O alferes veterinário voltou-se para os galegos e deu-lhes ordem de que regressassem às tendas; iam ficar em Portugal. Onde antes se vislumbravam rostos carregados de apreensão mortal, surgiram prudentes sorrisos de alívio. Luís procurou José Alexandre com os olhos e piscou-lhe o olho, num sinal de que estava tudo bem; o galego respondeu-lhe com uma vénia com a cabeça.

Cá atrás, Iriarte quase que se engalfinhava com o capitão Branco.

"No es posible!", gritou o espanhol, rubro de fúria, ace­nando com um documento na mão. "O general Machado autorizou a entrega destes rojos!" Pôs o papel à frente do nariz do português. "Veja!"

O capitão Branco ignorou o documento.

"O general Machado desconhecia certamente o destino que os senhores reservavam aos refugiados", devolveu, com ar impassível.

"Vocês não têm de conhecer ou desconhecer destino nenhum! Têm é de nos entregar os rojos, mais nada!"

O capitão fixou os olhos no oficial espanhol.

"Caro coronel, o senhor não está em Espanha, entendeu? O senhor encontra-se em Portugal." Elevou o tom de voz. "E, que eu saiba, em Portugal ainda mandam os portugueses! Se não está contente, vá queixar-se ao papa!"

"Mas o general Machado autorizou a transferência dos rojos, caray!", insistiu Iriarte, acenando ainda com o documento que tinha nas mãos. "Você só tem de mos entregar!"

O capitão Branco apontou o indicador ao espanhol.

"Coronel Iriarte", vociferou. "Portugal foi dos primeiros países do mundo a abolirem a pena de morte! Está fora de questão um oficial português entregar alguém para ser executado. Que vocês se portem como animais é lá convosco, mas neste país actuamos de maneira diferente. Que fique claro que a honra do exército português não será manchada por mim, entendeu? Nem por mim, nem por nenhum oficial que aqui esteja!"

"Aqui debe de haber algún error", argumentou Iriarte, baixando a voz e tentando parecer razoável. "Que eu saiba, não são vocês que vão fuzilar os rojos." Pousou a mão no peito. "Somos nosotros."

"Não interessa. Se os entregarmos sabendo que vão ser executados, tornamo-nos cúmplices e autores morais dos fuzilamentos."

"Cono! Mire, hombre, escucbe lo que le ..."

"Meu capitão", interrompeu Luís com a voz o mais firme possível, hirto, assumindo uma postura formal. "Dá licença que eu escolte o nosso convidado até à ponte internacional?"

"Licença concedida", apressou-se a responder Mário Branco, satisfeito com a intervenção do subordinado.

O coronel espanhol calou-se e mirou os dois oficiais por­tugueses; percebeu nesse instante que estava a ser expulso. Num assomo de orgulho, voltou as costas e pôs-se a caminhnhar com vigor em direcção à estrada. Atrás dele, os galegos soltaram urros de chacota enquanto Luís apressava o passo para o ultrapassar e acompanhar até à ponte. Fizeram o caminho em silêncio e nem um olhar trocaram no momento da despedida.

No dia seguinte, à hora de almoço, José Alexandre ergueu-se da mesa, os talheres ainda nas mãos, e aproximou-se do capitão Branco.

"Foi unha cousa boa, a que vostedes fixeron otite."

"Não fizemos nada de especial."

O galego sorriu e baixou a cabeça, como se estivesse a apreciar a batata que tinha espetada no garfo; depois levantou os olhos e, com uma expressão intensa, voltou a encarar o oficial.

"Sabe o que acostumamos dicir en Galicia?"

"O quê?"

"Que un galego é un português que se rendeu."

"Ah, sim? E um português, o que é?"

Um brilho cintilou no olhar do refugiado.

"£ un galego que non se rende."

Bonk. Bonk.

O barulho de alguém a esmurrar a porta com vigor arrancou Luís do sono. O alferes veterinário ouviu dona Palmira, a proprietária da pequena casa da Praça de São Teotónio onde alugara o quarto, sair para o corredor; resmungava impropérios em voz baixa e fazia estalidos de irritação com a língua, e assim prosseguiu a matutar para si mesma enquanto descia vagarosamente as escadas.

O som da fechadura a rodar e da porta de entrada a abrir-se percorreu a casa, e, do quarto, Luís escutou dona Palmira à conversa com alguém; era uma voz masculina e parecia

excitada, mas, sufocadas pela distância e pelas portas, as palavras tornavam-se abafadas, imperceptíveis. Os passos da proprietária voltaram às escadas, aproximaram-se e só pararam ao fundo do corredor.

Toe. Toe. Toe.

"Senhor capitão?"

Ela batia à porta do quarto do capitão Branco.

"Sim?"

A resposta era do capitão Branco, a voz com o timbre enrouquecido de quem acabava de despertar. Luís sentou-se na cama, estremunhado, e ficou a ouvir a conversa.

"É para si."

"Quem é?"

"Um soldado. Está lá em baixo, à porta, e diz que precisa de falar consigo."

"Diga-lhe que já vou."

Dona Palmira recolheu-se de volta ao seu quarto sem transmitir a mensagem. O hóspede que o fizesse; moça de recados é que ela não era. Já bastava terem-na acordado àquela hora de doidos.

Fechado no seu quarto, Luís consultou o relógio. Os ponteiros assinalavam três da manhã. Tinha de ser coisa grave, considerou, porque não se acordava um oficial àquela hora. Vestiu um roupão, calçou os chinelos e saiu para o corredor, ficando a aguardar que o capitão aparecesse.

A porta do quarto do capitão abriu-se e Mário Branco surgiu também de roupão.

"O quê? Também o acordaram a si?"

"Despertei com o barulho", explicou Luís. "Será que se Passa alguma coisa?"

Desceram ambos as escadas ao encontro do visitante nocturno. Como dona Palmira tinha anunciado na sua voz ensonada

nada, era de facto um soldado, um rapaz novo e ossudo, que fez continência mal viu os superiores hierárquicos.

"O que se passa?", perguntou Mário Branco, ainda a apertar o cinto do roupão.

"O sargento Guedes mandou chamar o meu capitão, meu capitão."

"Porquê? O que aconteceu?"

"A PVDE apareceu no campo de refugiados, meu capitão."

O capitão Mário Branco franziu o sobrolho, subitamente muito desperto, e trocou um olhar com Luís. A PVDE, ou Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, era a polícia política do regime, encarregada da prevenção e da repressão de crimes políticos, e especialmente temida porque actuava fora da alçada do poder judicial. Ambos sabiam que a sua lista de poderes era extensa. Era a PVDE que prendia e incriminava os suspeitos de actividades políticas interditas, submetendo-os sem fiscalização ou apelo a qualquer tratamento que considerasse necessário para a defesa do regime. Era verdade que a sua acção decorria, em geral, de forma relativamente discreta. Até então Luís apenas notara a sua presença nos jornais, em particular nas notícias e artigos censurados, mas já por mais de uma vez suspeitara que as suas cartas haviam sido violadas. Para o caso, no entanto, o mais importante era que os poderes da PVDE incluíam a vigilância das fronteiras e de todos os estrangeiros que entravam no país. O seu aparecimento no campo de refugiados, perceberam os dois oficiais instantaneamente, não augurava por isso nada de bom.

Os dois oficiais voltaram ao quarto e fardaram-se apressadamente. Saíram da casa e acompanharam o soldado pelas ruas de Valença do Minho, noite escura, em direcção ao acampamento onde haviam sido concentrados os milicianos galegos.

Ao chegarem ao local perceberam que havia algo errado. A sentinela tinha desaparecido e o portão estava escancarado. Dirigiram-se à casa da guarda, onde as luzes permaneciam acesas, e entraram de rompante. O sargento Guedes e três soldados descansavam nas cadeiras, com ar prostrado. Ao verem os dois oficiais deram um salto e puseram-se em sentido.

"O que se passa, sargento?", quis saber Branco. "Onde estão os refugiados?"

"Foram-se embora, meu capitão."

"Foram-se embora, como?"

O sargento evitou o olhar do superior hierárquico; mostrava-se visivelmente atrapalhado.

"Apareceu aqui a PVDE com uns oficiais espanhóis, meu capitão. Trouxeram uns camiões e levaram os refugiados."

"Mas quem é que autorizou isso?"

"Bem... a PVDE, acho eu."

"Mau! Afinal quem é que lhe dá ordens, hã? A sua hierar­quia ou a PVDE?"

"Meu capitão, eles eram para aí uns quinze e vinham armados até aos dentes. Nós só éramos quatro, não podíamos fazer nada. Mandei ali o Rui chamá-lo, mas já foi tarde."

"Quando é que os camiões saíram daqui?"

"Foi há uns dez minutos, meu capitão." Apontou para norte. "Seguiram naquela direcção."

Luís e o capitão Branco ainda convergiram para a ponte internacional, já sem muitas esperanças de inverter o que fora feito; as sentinelas da ponte confirmaram-lhe a passagem dos camiões e a entrega dos refugiados no tabuleiro havia apenas cinco minutos. Olhando para a margem norte do rio, a noite parecia adormecida em Tui, embalada pelo soprar suave da brisa que vinha dos lados do mar.

Apenas o estampido longínquo de várias descargas de espingardas, meia hora depois, revelou que a escuridão profunda ocultava algo mais sombrio e sinistro do que a própria treva.

O fuzilamento de José Alexandre.

 

O que traiu o rapaz foi o esgar de medo que deixou transparecer ao cruzar-se na Calle de San Juan com o grupo de legionários. O sargento Gomez reparou nesse olhar furtivo e, desconfiado, parou e fixou a atenção nele.

"Quem és tu, cbavaYf

O rapaz estacou, os olhos arregalados.

"Chamo-me Joaquín."

"O que fazes aqui?"

"Eu? Uh... eu vou... vou a casa da minha mãe."

"És um rojo!"

"Não, não. Sou nacionalista."

"Mentes."

O rapaz olhou para o sargento com uma expressão de súplica.

"Não, sehor. Sou nacionalista." Estendeu o braço e fez a saudação romana. "Arriba Espana!"

"Tira a camisa."

"Não, não. Por favor, eu sou nacionalista."

O sargento voltou-se para Francisco.

"Tira-lhe a camisa."

O português pegou no rapaz como se ele fosse um fardo de palha e rasgou-lhe a camisa suja, de modo a revelar o peito e as costas. No ombro direito era visível uma nódoa negra. Com uma careta de desdém, Gomez apontou para o hematoma.

"O que é isto? Hã?"

O rapaz abanou a cabeça.

"Fui eu que caí das escadas, senor. Juro."

"Mentiroso! Esta é a nódoa provocada pela coronha da espingarda que andaste a usar." Ergueu o dedo, ameaçador. "A espingarda que andaste a usar contra nós, cabrón."

"Não. Juro, senor. Eu sou nacionalista! Arriba Espana!'''

O sargento deu uma estalada brutal ao rapaz e fez novo sinal a Francisco.

"Vá, leva-o para a Plaza de Toros."

Uma pequena multidão de mulheres formigava junto ao portão da praça de touros, tentando vislumbrar os rostos no grupo de prisioneiros que marchava para o recinto. Ouviam-se gemidos, choros, alguns gritos, era uma ou outra mulher que reconhecia um marido, um filho, um namorado no grupo. Os homens desfilavam, cabisbaixos e silenciosos; a maior parte trazia um mono no corpo, o fato-macaco azul que os identificava irremediavelmente com as milícias populares.

Francisco empurrou o rapaz da Calle de San Juan para o grupo e acompanhou-o até à arena. O sol batia com força sobre a terra pálida e no ar pairava o omnipresente cheiro a pólvora e madeira queimada. Obedecendo a uma ordem gritada por um tenente, os prisioneiros sentaram-se de cócoras e ficaram a aguardar.

"Monta a metralhadora", ordenou o sargento Gomez a Francisco.

O português instalou-se do outro lado da arena, no sector da praça de touros junto à muralha da cidade, e aparelhou a Hotchkiss a um tripé. Com a ajuda de Juanito, encaixou uma cinta de balas na metralhadora e rodou-a para todos os lados, experimentando a sua maleabilidade. O tripé parecia oleado, não havia problemas.

Terminados os ajustamentos, sentou-se sobre um saco de terra e puxou de um cigarro, no que foi acompanhado por Juanito. Quando davam as primeiras passas, ouviram os sinos da catedral a repicar à distância e, acto contínuo, sentiram um ronco surdo, como o zumbido de abelhas a laborarem. A multidão agitou-se, com as mulheres lá fora a procurarem refúgio junto às carcaças carbonizadas dos camiões das milícias populares. Um burburinho excitado ergueu-se do grupo de prisioneiros, todos com o nariz voltado para o céu. Os legionários olharam também e Francisco viu pontos escuros a cruzarem o vazio azul.

"São rojos", observou Juanito.

Logo a seguir ecoaram detonações na cidade; eram as bombas a explodir, mas os aviões depressa desapareceram e a calma voltou. Enfadado, Francisco atirou o resto do cigarro consumido para o chão e acendeu outro.

O dia prometia ser longo.

Ao longo das horas seguintes, novos prisioneiros chegaram ao local. Formavam já um grupo razoável, talvez uns quinhentos homens. De vez em quando aparecia um oficial e mandava chamar um cativo, que era transportado para o exterior e entregue a alguém; pelos abraços e risos de alegria tornava-se evidente que o homem acabara de ser libertado e largado nas

mãos de um familiar. Estas libertações decorriam a conta-gotas e em geral envolviam prisioneiros vestidos à civil.

"Olha-me para aquele tipo", disse Juanito, observando um homem a ser libertado e a abraçar-se à família junto ao portão. "Parece que ganhou El Gordo!"

"Não sei como o comando permite isto", observou Francisco.

"O quê? A libertação destes tipos?"

"Sim. Se andaram a disparar contra nós, têm de ser punidos. Porque estão a libertá-los?"

"Hombre, podem estar inocentes."

O português escarrou para o chão.

"Se lutaram contra nós, são culpados."

"Mas é isso o que eu te estou a dizer, Paço. Devem ter concluído que estes não lutaram e vieram aqui parar por engano."

"Qual engano? Se têm a nódoa negra no ombro, não há qualquer engano."

"Os que estão a ser libertados não têm nódoa nenhuma."

"Como sabes?"

"Disseram-me. Os que são encontrados com nódoa ficam na arena, não têm qualquer hipótese."

Francisco passou os olhos pelo grupo de prisioneiros sentados na terra seca e poeirenta da Plaza de Toros.

"Acho bem."

Ao fim da tarde, já o Sol se ia encostando ao horizonte, um oficial apareceu na arena e aproximou-se do sargento Gomez. Francisco inclinou-se para a frente e tentou escutar a conversa, mas encontravam-se ambos demasiado longe para que se conseguisse entender o que era dito. De qualquer modo, tudo se clarificou de imediato. O sargento fez sinal a um grupo de

legionários e estes gritaram ordens aos presos, que se puseram de pé. De seguida, Gomez veio ter com Francisco e Juanito e apontou para o grupo de prisioneiros que aguardava do outro lado da arena.

"Fuzila-os!"

Sem sequer hesitar, Francisco atirou o cigarro para o chão, pisou-o e acomodou-se por trás da metralhadora. Os legionários que guardavam os presos afastaram-se, as Mauser ameaçadoramente voltadas para quem se atrevesse a tentar sair dali, e logo um burburinho de ansiedade percorreu os condenados. O português girou a Hotcbkiss, exercitando a sua maleabilidade, apontou-a para o grupo e, sem esperar nem mais um momento, carregou no gatilho.

Trá-trá-trá-trá-trá-trá-trá-trá.

Um ladrar raivoso encheu a arena, abafando os gritos de pânico dos prisioneiros, sobrepondo-se aos urros de terror. Numa derradeira pulsão de vida, os condenados tentaram a todo o custo fugir, sair dali, escapar ao fogo mortífero que chovia sobre eles, protegendo-se por trás dos que já tinham caído, atirando-se para as bancadas, procurando escapar à massa humana que tombava sob a sangrenta nuvem de poeira. Mas as rajadas prolongaram-se, implacáveis, certeiras, estenderam-se por longos segundos, um eterno minuto ao fim do qual o cano enrubescido se calou, restabelecendo enfim o silêncio.

O silêncio.

Do amontoado de corpos erguiam-se agora apenas vagos sons de dor, um gemido aqui, um suspiro ali, uma mão que tremia numa convulsão e um pé que se agitava num derradeiro estertor. Mas só isso.

O oficial voltou a aproximar-se de Gomez e falou com ele. O sargento pegou na pistola e calcorreou vagarosamente o

aglomerado de corpos, por vezes inclinando-se para verificar uma respiração, para sentir um pulso, para escutar um som. Sempre que descobria alguém com vida, apontava a pistola à testa, às têmporas ou à nuca e premia o gatilho.

Paw.

Silêncio.

Paw.

Disparou uma, duas, três vezes, disparou quantas vezes achou necessárias até o trabalho ser dado por concluído.

 

A porta abriu-se e o homem magro e baixo, com o cabelo negro brilhante puxado para trás, entrou no gabinete de enfermaria veterinária a segurar uma pasta castanha já muito gasta. Apanhado de surpresa, Luís levantou os olhos e encarou o recém-chegado; conhecia-o de algum sítio, apercebeu-se, mas não sabia de onde.

"Então?", disse o desconhecido, ignorando a mão que o alferes veterinário lhe estendeu para o cumprimentar. "Sempre nos voltamos a encontrar, hem?"

"Desculpe?"

O homem sorriu com malícia.

"Já vi que não me reconheceu."

"O seu rosto é-me familiar", admitiu Luís, esforçando-se por integrar aquela cara num contexto. "Mas, para falar com franqueza, não o estou a situar. O senhor é de Trás-os-Montes?"

"Não."

"Então devo conhecê-lo de Lisboa. Andou em Veterinária?"

O desconhecido sentou-se e cruzou a perna, fitando o alferes com uma expressão enigmática.

"Chamo-me Aniceto Silva. O nome diz-lhe alguma coisa?"

Luís varreu de novo a mente, dessa feita para tentar situar o nome.

"Não."

"O coronel Silvério não lhe explicou quem eu sou?"

"O nosso comandante disse-me há bocadinho que um inspector da PVDE veio cá a Penafiel e queria falar comigo. É tudo o que sei."

"Pois eu de si sei muita coisa." Abriu a pasta e tirou uns papéis. "Sei, por exemplo, que alimenta ideias perigosas sobre o modo como o nosso país deve ser governado. Sei que..."

"Não alimento nenhuma ideia perigosa", apressou-se Luís a esclarecer. "Só acho é que..."

"Cale-se!", cortou o homem da PVDE num tom ameaçador. "Eu sei muito bem quais as ideias do cavalheiro!"

Os modos bruscos e agressivos do homem apanharam Luís desprevenido, mas o alferes logo se recompôs e respondeu no mesmo tom.

"Não lhe admito que me mande calar!"

"O cavalheiro admitirá isso e muito mais", berrou Aniceto Silva, de repente muito exaltado. "Ou não admite que anda por aí a criticar o regime? Ou não admite que ajudou os comunistas num comício-relâmpago que eles efectuaram na Escola de Veterinária? Ou não admite que fez amizade com os comunistas espanhóis no campo de refugiados de Valença? Ou não admite que se opôs à entrega desses comunistas ao exército espanhol?"

Confrontado com o tom colérico e o nível de pormenor da informação que o inspector disparava naquelas perguntas,

Luís hesitou. Aquele rosto, aquela fúria, aquele modo de dizer o cavalheiro num tom insultuoso eram-lhe vagamente familiares. De repente, como se um holofote se tivesse acendido na treva da sua memória, encaixou o rosto no seu arquivo mental e identificou enfim o homem.

"Você é o tipo do Parque Mayer!", exclamou, quase surpreendido.

Aniceto Silva interrompeu o acesso de fúria e deixou um sorriso desenhar-se nos seus lábios finos.

"Vejo que já me reconheceu."

"Você é o homem que... que..."

Calou-se antes de completar a frase. O inspector da PVDE era o homem com quem quase andara à bulha por causa de uma reprimenda dentro de um café.

"Sou o homem que defende a ordem no nosso país", completou Aniceto Silva. "E o cavalheiro é o sujeito que quer pôr tudo em causa. Incluindo o regime."

Encolhido no seu lugar, Luís percebeu que se encontrava numa situação inesperadamente delicada. Para dizer a verdade, era uma situação perigosa. Pelos vistos o inspector da PVDE estava informado sobre o que ele pensava do regime e até sabia que, nos seus tempos de estudante, tinha ajudado um comunista a fugir à polícia. Como diabo podia o homem ter conhecimento disso?

Mas o pior já nem era isso. O pior é que descobrira que o agente da Polícia de Vigilância do Estado que o interrogava era o mesmo homem com quem quase chegara a vias de facto no Parque Mayer. E tudo porquê? Por causa de uns miseráveis beijos que dera em público a uma namorada tão insignificante que até o nome já se lhe apagara da memória! E agora? O que mais saberia o inspector sobre a sua vida? De certeza que estava a par da morte do Tino!

Luís caiu em si, horrorizado. Era evidente que a PVDE tinha uma ficha sobre ele. E, se dispunha de tal ficha, nela teria necessariamente de constar o facto de que o alferes Luís Afonso se encontrava na quinta de Castelo de Paiva no dia em que o caseiro aparecera morto! O homem à sua frente trabalhava para a PVDE e os inspectores dessa polícia eram tudo menos parvos. Se quisessem fazer a associação entre as coisas, fá-la-iam sem dificuldades. Teria de ter muito cuidado...

"Oiça, eu não quero pôr nada em causa", disse Luís no tom mais razoável que conseguiu adoptar. "Eu quero é seguir a minha vidinha sem problemas."

"Isso é o que todos dizem quando se sentem apertados", exclamou o inspector com desdém. "Tenho pena que não tenha pensado nisso quando ajudou aquele marxista a fugir à autoridade ou quando se pôs a proteger em Valença os comunistas espanhóis."

"Foi uma questão humanitária."

"Ah, sim?" Consultou um papel. "E a morte do senhor Constantino Latino? Também foi uma questão humanitária?"

Ai, ai, ai.

"Isso... enfim... é um outro assunto e não tive nada a ver com isso. O Tino apareceu morto e nós avisámos de imediato a GNR."

"Pois, é o que diz o relatório." Ergueu o sobrolho, sibilino. "Mas será que foi isso o que aconteceu mesmo?"

"Claro que foi." Luís respondeu depressa e com a maior convicção e confiança que foi capaz de reunir. "Porquê? Tem alguma indicação em contrário?"

O inspector estudou-o por um momento, como se tentasse ler-lhe o semblante. O alferes veterinário esforçou-se por permanecer opaco e Aniceto Silva acabou por baixar os olhos para os papéis que havia extraído da sua velha pasta.

"Bem, vamos ao que interessa", disse, isolando uma folha. "O seu comportamento em Valença deixou muito a desejar e decidiu-se que seria melhor devolvê-lo à vida civil." Estendeu-lhe o papel. "Tem aqui a guia a desmobilizá-lo do serviço militar obrigatório, com efeitos a partir do dia 1 do próximo mês."

Luís pegou no documento.

"Vou deixar a tropa? Mas ainda me faltam uns meses..."

"Já não faltam." Folheou mais uns papéis. "Põe-se agora o problema de decidir o que vai o senhor fazer depois de desmobilizado."

"Vou exercer veterinária, naturalmente. São essas as minhas qualificações."

"E onde planeia fazê-lo?"

"Aqui em Penafiel claro. É aqui que vivo."

O inspector abanou a cabeça.

"Não", disse. "O senhor é oriundo de Trás-os-Montes, não é? Então é para lá que vai."

"Peço desculpa? Quem é o senhor para decidir para onde vou ou não vou trabalhar?"

"Creio já me ter identificado suficientemente. Vamos mandá-lo para Trás-os-Montes."

"Vocês não podem fazer isso."

"Podemos e faremos."

"Mas com que direito? Eu vou para onde muito bem entender, vocês não têm nada a ver com isso."

"Ai sim? E vai para onde quiser fazer o quê?"

"Vou exercer a minha profissão."

"E quem o empregará?"

"Bem... o Estado. Há falta de veterinários no nosso país, que eu saiba."

Com os dedos a dançarem por entre as folhas que tinha nas mãos, o inspector da PVDE exibiu um sorriso manhoso.

"Deixe-me explicar-lhe uma coisa", disse. "No ano passado saiu uma lei que prevê a aposentação ou demissão dos funcionários públicos ou militares que se oponham à Constituição ou que não cooperem na realização dos superiores interesses do Estado. E sabe a quem cabe determinar se esses empregados ou militares são ou não opositores?" Colou o polegar ao peito. "A nós, a PVDE. Ora o senhor acaba de ser desmobilizado à luz dessa lei. E, em bom rigor, tendo em conta o seu historial n em sequer devia ser contratado pelo Estado para ir trabalhar para Trás-os-Montes! A sua sorte é que há mesmo falta de veterinários. Uma vez que nenhum dos seus actos ou palavras é de gravidade transcendente, foi decidido dar-lhe uma segunda oportunidade num lugar onde decerto não causará incómodo." Estendeu-lhe mais uns documentos. "Assine aqui."

Luís pegou nos papéis e estudou-os.

"O que é isto?"

"É a minuta de admissão à função pública."

Contrariado e relutante, o alferes veterinário começou a ler o texto mas deteve-se a meio.

"Que raio de coisa é esta?"

O inspector inclinou-se para a frente e espreitou o trecho indicado.

"É o juramento a repudiar o comunismo e as ideias subversivas."

"Eu tenho de jurar que não sou comunista?"

"O cavalheiro é comunista?"

"Claro que não."

"Então assine."

Leu mais um pouco.

"Também tenho de jurar que aceito a Constituição?"

"Não aceita?"

Luís hesitou. Na verdade, não aceitava. A Constituição aprovada três anos antes rejeitava a democracia multipartidária, proibia os sindicatos livres e autorizava a prisão sem culpa formada. Como poderia ele subscrever tal documento?

"Oiça, eu não conheço bem a Constituição", disse, procurando arranjar maneira de não assinar sem denunciar a sua opinião. "Como posso jurar que aceito uma coisa que desconheço?"

"É muito simples, eu vou explicar-lhe", devolveu o inspector, um brilho de gozo a cintilar-lhe nos olhos. "A Constituição prevê que quem manda no país é o governo. Não existem partidos em Portugal, uma vez que eles só servem para dividir a nação e provocar instabilidade. O governo manda e os cidadãos obedecem, como é dever de uns e obrigação de outros. Ninguém se mete em política e a vida corre às mil maravilhas. Como vê, não há nada aqui de complicado."

"Pois, mas isto é legal?"

"A lei que obriga a prestar juramento para entrar na função pública vai sair no próximo mês. Estará em vigor quando o cavalheiro começar a exercer funções."

Nova hesitação. Como poderia libertar-se daquele colete—de forças?

"Ouça, eu não gosto de aceitar coisas que não conheço em profundidade. O que acontece se eu não assinar?"

"Não terá emprego no Estado."

"O que significa que só poderei trabalhar para o privado."

"Qual privado?", riu-se Aniceto Silva. " O cavalheiro acha que alguém o irá contratar se for considerado um opositor à ordem estabelecida?"

Não era na verdade uma pergunta, mas uma afirmação. Sentindo-se encurralado, Luís respirou fundo. Não dispunha de alternativas e suspeitava que, se continuasse a hesitar,

confirmaria as suspeitas que sobre ele já se levantavam e poderia perder definitivamente aquela oportunidade. O que seria dele sem emprego?

"Onde é que assino?", rendeu-se.

O inspector da PVDE indicou um espaço ao fundo da folha. Luís pegou numa caneta e rabiscou o seu nome no local. Aniceto Silva recolheu a folha e guardou-a na pasta, juntamente com todos os documentos que exibira antes.

"O cavalheiro teve sorte em haver falta de veterinários", disse ao levantar-se para sair. "Muita sorte."

"Não há sorte nisto. Só azar em ter nascido na merda deste país."

O inspector abriu a porta para sair do gabinete, mas parou a meio e voltou a cabeça para trás. Fitou Luís com tanta intensidade que os olhos até faiscaram e, sem pestanejar, bateu com o indicador nas próprias têmporas.

"Juizinho."

 

Depois da mais cruel e sangrenta faena que a Plaza de Toros de Badajoz alguma vez vira, Francisco e Juanito foram destacados para as operações de limpeza. Os dois legionários ajudaram a amontoar nos camiões os corpos dos fuzilados e seguiram com eles pelas ruas amedrontadas da cidade, o céu avermelhado pela ferrugem luminosa do final da tarde.

Um longo muro branco a abraçar um mar de tabuletas esperava-os ao virar de uma esquina.

"£/ camposanto'"', disse Juanito.

"O quê?"

"O cemitério."

Os camiões imobilizaram-se junto ao portão e os legionários saltaram da carga e começaram de imediato a retirar os cadáveres dos milicianos, amontoando-os atrás dos veículos.

"Joder!", praguejou Juanito, bufando com o esforço. "Da próxima vez mais vale fuzilá-los já no cemitério, caray. Sem­pre se poupa esta trabalheira."

O sargento Gomez, que tinha ido inspeccionar o cemitério, aproximou-se dos homens.

"Atirem-nos para ali!", ordenou, apontando para uma estrutura montada lá ao fundo.

Os legionários formaram pares e despejaram os corpos para macas cujo pano desenhava sombras acastanhadas de sangue coagulado. Francisco não precisou de par e carregou a sua maca como quem carrega um saco de batatas, dirigindo-se com a carga para o local que lhe havia sido indicado.

Num degrau cavado na terra, de modo a aproveitar uma diferença de nível, deparou-se com a estrutura de traves de madeira, todas elas dispostas transversalmente como linhas de caminhos-de-ferro. A estrutura tinha uns quarenta metros de extensão e Francisco atirou sobre ela o cadáver que trouxera do camião. Depois voltou para trás e foi buscar mais. Quando o seu camião ficou limpo, ajudou a descarregar os cadáveres que vinham nos outros.

A operação de trasfega durou uma hora e, quando terminou, o sargento Gomez pôs-se diante da pilha a contabilizar os corpos. Era um mar de cabeças e braços e pernas, alguns dispostos nas mais bizarras posições, um pé junto a uma cabeça, uma mão esticada no ar. Pareciam bonecos partidos que alguém empilhara ao acaso.

"Trezentos e doze", disse o sargento depois de terminar a contagem. "Vão buscar a gasolina."

Os legionários pegaram nos bidões e regaram os corpos com combustível. Com o seu habitual zelo, Francisco meteu-se por entre a pilha para espalhar gasolina sobre os cadáveres que se encontravam no meio da estrutura. A operação foi relativamente rápida e minutos depois já os legionários haviam esvaziado todos os bidões e abandonado a estrutura de madeira.

O sargento Gomez acendeu um fósforo e atirou-o para o monte de corpos. Percorreu uns metros em torno da estrutura e atirou outro fósforo num ponto diferente. Francisco tinha um cigarro nos lábios e, percebendo que eram necessárias várias ignições, lançou-o também. As chamas irromperam aqui e ali, violáceas e nervosas, a madeira a crepitar inin­terruptamente, e num instante o fogo alastrou a toda a estrutura, incendiando a monumental pira.

Chegara o crepúsculo. O firmamento rasgava-se de escarlate, como se reflectisse o sangue da terra, e uma enorme coluna de fumo negro ergueu-se da pira estralejante; pareciam almas a recortar o brilho moribundo do horizonte na sua ascensão à eternidade. A fogueira estalava com fúria e o amontoado de carne em brasa começou a exalar um enjoativo cheiro a churrasco doce, um fedor a morte tão intenso que os agoniados legionários tiveram de se afastar e cobrir o nariz com os lenços.

Se havia inferno na terra, ele ardia no cemitério de Badajoz.

Era já noite escura quando os camiões fizeram em coluna a viagem de regresso ao centro da cidade, os faróis a perscrutarem os cantos sombrios das fachadas desfeitas, o rumor dos motores a rasgar o silêncio de medo. Não se via vivalma em parte alguma. Embalado pelo rumor monótono dos motores, Francisco sentiu os olhos pesarem-lhe de sono e por duas vezes deixou tombar a cabeça.

Despertou no instante em que os motores se calaram e os veículos se imobilizaram.

"Vamonos, Paço!", disse Juanito, puxando-o pelo braço.

Saltaram do camião e o português percebeu que estavam de volta à Plaza de Toros. Olhou em redor e quase estranhou

aquele lugar, tão diferente era o ambiente. A agitação que ali se vivera durante o dia dera lugar a um sossego sinistro. Os camiões destruídos das milícias populares permaneciam abandonados no local, como estátuas esventradas. Viam-se bandeiras brancas na maior parte das janelas e as ruas quase desertas pertenciam já às forças paramilitares da Falange, a quem fora entregue o policiamento da cidade.

Vergados pelo cansaço de dois dias de combate sem interrupção e por uma tarde sangrenta na arena e no cemitério, Francisco e Juanito caminharam em silêncio e aos tropeções por entre as artérias sujas e os escombros de paredes desabadas, dirigindo-se ao boleto que lhes fora destinado perto da Comandancia.

A luz ténue dos candeeiros desenhava sombras fugidias pelos passeios, banhando as ruas de desgraçada solidão, e as pedras prolongavam com um tilintar metálico e sinistro o som cadenciado dos passos a calcorrearem a noite. Aqui e ali viam-se ainda bombas por explodir, silhuetas tenebrosas que tiveram o cuidado de contornar. Por vezes cruzavam-se com uma ou outra mulher vestida de negro, a dor travada pelo medo, ou com grupos de falangistas ou de requetés que cantavam canções patrióticas. Contudo, em grande parte do trajecto não encontraram vivalma; era como se Badajoz se tivesse transformado numa cidade-fantasma.

De repente, já perto da Comandancia, Francisco sentiu as pernas falharem-lhe e tombou pesadamente no chão.

"O que é esta merda?", interrogou-se, meio atordoado.

Uma dor aguda irrompeu-lhe na anca, como se uma faca tivesse penetrado fundo na carne, e ouviu uma detonação. Com um gemido, desceu o olhar e viu, surpreendido, a farda empapar-se de vermelho. Como se a acção decorresse muito lentamente, observou Juanito erguer a Mauser e disparar para os telhados. Percebeu então que fora atingido pelo tiro desesperado de um qualquer derradeiro resistente que se posicionara nas redondezas.

Deitado no solo, antes de perder os sentidos, ergueu a cabeça e, juntando as forças que ainda não se tinham esvaído, abraçou o destino com o grito arrebatado dos legionários.

"Viva a morte!"

 

Ding-dong.

O toque na campainha arrancou um protesto baixo de Amélia. A dona da casa ultimava nessa altura os preparativos para o almoço e não gostava de visitas àquela hora; eram normalmente oportunistas que se lhe introduziam na sala de jantar sob os mais variados pretextos, fazendo-se convidados para o repasto. Desceu as escadas a resmungar, calculando ser um qualquer camarada de armas do marido, mas, quando abriu a porta, não pôde evitar uma expressão de surpresa ao identificar o visitante.

"Luís! O que estás aqui a fazer?"

"Preciso de falar contigo."

Ele trazia no olhar uma opacidade fatigada que a inquietou. Amélia espreitou para a rua, procurando certificar-se de que não estavam a ser observados, e fez-lhe sinal de que entrasse.

"O Mário deve estar quase a chegar", avisou, fechando a porta. "O que se passa?"

"Fui desmobilizado. No dia um vou deixar a tropa."

"Já no dia um? Mas não é um pouco cedo de mais?"

"Foi uma decisão da pevide." Pevide era a alcunha que a PVDE tinha nas ruas. "Mandaram um inspector falar comigo por causa do que aconteceu em Valença. Se calhar também vão criar problemas ao teu marido."

"Já criaram", revelou ela. "Ele vai passar à reserva."

"O quê?"

Amélia encolheu os ombros.

"Não é grave, fica descansado. Ganha o salário na mesma e ainda temos o dinheiro gerado pelas duas quintas. A única diferença é que não tem de estar todos os dias no quartel, o que até é uma vantagem porque o regimento vai sair de Penafiel."

"A sério?"

"Ainda é um segredo, mas Infantaria 6 segue para o Porto já em Outubro. Se o Mário ficasse no regimento, teríamos de nos mudar também para lá. De modo que até ficámos a ganhar."

"Portanto, está tudo bem."

"Sim. E verdade que lhe tiraram igualmente a organização do núcleo de Penafiel da Mocidade Portuguesa, mas isso..." Encolheu de novo os ombros, como se essa decisão não tivesse importância nenhuma. "Mas nunca pensei que também se fossem meter contigo. Acho até um pouco estranho. Tu não passas de um subordinado, não é verdade? Por que razão te foram punir?"

"Digamos que eu tinha antecedentes dos meus tempos de estudante em Lisboa e... enfim, tive uma vez um incidente desagradável com o inspector que cá veio. O tipo pelos vistos tomou-me de ponta."

Amélia passeou os olhos pelo uniforme, como se quisesse gravar na memória a imagem do seu amante fardado.

"O que vais fazer agora?"

"Aquilo que sei fazer e sempre quis fazer. Vou ser veterinário."

"Já falaste com o presidente da Câmara? Se quiseres, o Mário dá-lhe uma palavrinha. Ele é um..."

"Não vou ficar em Penafiel", anunciou Luís a frio.

Amélia calou-se por um momento, os olhos muito abertos a absorver o impacto da notícia inesperada.

"Não queres ficar cá?", perguntou, quase a medo.

"Mandaram-me embora."

"Quem é que te mandou embora?"

"A pevide."

"Não estou a perceber. Eles podem mandar-te embora de Penafiel?"

"Pelos vistos a pevide tem o poder de expurgar a função pública de elementos que sejam considerados subversivos. Com o que se passou em Valença, e tendo em conta também o meu passado de estudante em Lisboa, digamos que me aproximo perigosamente dessa definição. A pevide deixa-me trabalhar para o Estado na condição de eu aceitar ser desterrado lá para trás do Sol posto."

"E onde é isso?"

"Trás-os-Montes."

"A Joana também vai?"

"Claro."

"Ela já sabe?"

"Não. Primeiro vim falar contigo."

As consequências destas decisões começaram enfim a ser apreendidas por Amélia na sua plenitude. Os seus olhos humedeceram e bailaram de brilho; o lábio inferior começou a tremer-lhe, mas conseguiu manter a compostura.

"Quando partes?"

"Logo que receba a ordem oficial. Deve ser daqui a duas semanas."

Ela baixou os olhos.

"Talvez seja melhor assim."

"O que queres dizer com isso?"

"Quero dizer que talvez seja melhor assim."

Luís encostou a palma da mão à face de Amélia e fê-la deslizar suavemente pelo rosto perfeito. Sentiu-lhe a pele quente e sedosa e suspirou, angustiado com a separação que sabia ser inevitável. Como podiam as coisas ter corrido assim tão mal?

"Virei cá tantas vezes quantas puder", murmurou. "Não suporto estar longe de ti."

Amélia abanou a cabeça com tristeza.

"Não venhas."

"Porquê? Não me queres cá?"

Ela limpou uma lágrima que lhe nascia no canto do olho.

"Ainda não contei a ninguém, mas tenho uma coisa para te dizer. Uma coisa muito... enfim, muito aborrecida."

"O quê?"

"Tenho medo de te dizer", gemeu, a voz trémula de quem receia dar um passo irreversível. "Sei que vais odiar-me."

Luís encostou-se a ela e abraçou-a, tentando confortá-la.

"Ó meu amor, nunca te odiarei", disse, muito terno. "Aconteça o que acontecer, sou teu e tu és minha. Não há nada que possa alterar isso."

"Juras?"

"Pela minha vida."

Com a cabeça encostada ao ombro do amante, Amélia respirou fundo. Se não dissesse naquele momento, percebeu, jamais conseguiria dizê-lo. E seria pior quando mais tarde Luís viesse a saber da notícia pela boca de outros. Tinha de ser agora.

Agora.

"Estou grávida."

A revelação deixou Luís estarrecido. Deu de imediato um passo atrás e ficou especado a olhá-la. Se tivesse acabado de levar um soco no fígado não teria ficado mais chocado do que se encontrava nesse momento.

"Grávida? Grávida como?"

Empalidecendo, Amélia espreitou-o com um sorriso que­brado, envenenado pelo pavor e pela insegurança. Tentava ler-lhe o rosto e receava o pior.

"Estou grávida, Luís."

"De certeza?"

"Fui ontem a uma consulta e o doutor Reis confirmou-me."

A pergunta seguinte era sensível, quase informulável, mas Luís não podia viver na dúvida e tinha mesmo de a fazer.

"De... de quem?"

Amélia olhou-o, subitamente zangada.

"Que achas tu?"

Ele abriu a boca, sem perceber se o coração se lhe apertava de esperança ou de horror.

"Meu?"

"Do Mário."

Chocado, Luís já não sabia o que era pior, se Amélia ter um filho seu se do marido.

"Do... dele?"

"Sim", disse Amélia, evitando olhá-lo nos olhos.

"Tens a certeza?"

"Nós só fizemos duas vezes em Castelo de Paiva. Estive a fazer as contas e a minha gravidez bate certo com... com o Mário."

"Tu fizeste com o Mário?"

A amante ruboresceu, algures entre a vergonha e a indignação.

"Sim, fiz com o Mário", exclamou, fitando-o enfim e quase erguendo a voz. "O Mário é meu marido. Fiz com o Mário, como podia recusar-lho?" Colou-lhe o indicador ao peito. "E tu? Não fazes com a Joana?"

Luís ficou sem palavras. Era verdade que ela estava casada com o capitão e era verdade que ele fazia amor com a sua mulher. Tudo isso era inegável, mas mesmo assim custava-lhe enfrentar a realidade. A mulher que amava fazia amor com outro homem! Se calhar fizera ainda na noite anterior... Caramba, como lhe doía! Imaginou-a com o capitão, ambos a gemerem e a suspirarem, a cama a bater na parede ao ritmo das investidas, e estremeceu. Era evidente que ela já tinha feito amor com o marido, no fim de contas era casada e gerara filhos, mas sempre supusera que, desde que a amara em Castelo de Paiva, ela se lhe tinha tornado fiel. Tratava-se de uma suposição absurda, claro, infantil mesmo, uma vez que ele próprio não se tornara fiel a Amélia.

"Tens razão sobre a minha ida para Trás-os-Montes", disse num sussurro decepcionado. "Talvez seja melhor as­sim."

Abriu a porta e saiu sem olhar para trás.

 

                                 1939

                   E nunca vem aquilo que há-de vir

A luz do clarão rubro-amarelado da fogueira que estalava no chão, os ponteiros pareciam alfinetes incandescentes, os mais grossos imóveis lá no alto, como se estivessem incrustados no mecanismo, o mais fino a rodar num tiquetaque nervoso, escalando os pontinhos num inexorável movimento ritmado. Quando o ponteiro mais fino se juntou aos restantes no pico do círculo e assinalou enfim a meia-noite, Juanito ergueu o copo de vinho tinto, o vidro sujo a cintilar como cristal no lampejo bailante do fogo ateado a seus pés, e abriu-se num sorriso.

"Feliz ano nuevo, Paço!"

"Não me chames Paço, já te disse mil vezes!", resmungou Francisco. "Da próxima levas uma chapadona."

"Ay! Mira, que sensible!"

O espanhol esvaziou o copo de um só golo. Fios cor de sangue escuro escorreram-lhe pelos cantos da boca e atravessaram os pelos aloirados da barba até se juntarem no queixo

pontiagudo. Dali o vinho começou a pingar; eram gotas grossas, gordas, suculentas. Pousou o copo, respirou fundo, sentiu o ardor do álcool aquecer-lhe o peito, arrotou e limpou a boca e o queixo à manga do casaco imundo.

"Entonces? Não celebras o ano novo?"

Francisco encolheu os ombros.

"Para quê? É um dia como outro qualquer!"

"Mas entrámos agora em 1939, bombre!"

"E depois?"

Juanito rolou os olhos e fez uma careta de enfado.

"Ay, cofio!", suspirou, baixando-se para pegar na garrafa verde-escura que repousava junto a um saco de areia. "Vocês, os Portugueses, são mesmo uns tristonhos!" Voltou a encher o copo. "Nunca vi coisa assim, madre miai"

"Mas o que queres tu celebrar, meu grande maricas? O que tem 1939 assim de tão especial?"

"Bueno, 1939 vai ser o ano da paz, wof" Pousou a garrafa. "Vamos acabar com os rojos e teremos a paz em Espanha e a paz no mundo." Pegou de novo no copo e mirou o companheiro. "Salud!"

O português esfregou os olhos. Sentia-se com falta de paciência e as celebrações do ano novo pareciam-lhe um ritual sem sentido, criado com o único objectivo de o enervar. Para ele, o português sisudo, o homem que não gostava de festas, aquela noite era exactamente igual a todas as outras, não via diferenças; o ar permanecia gelado e a treva dominava tudo, uma sombra igual à de qualquer outra noite de Inverno.

Esticou o pescoço e olhou lá para baixo, tentando destrinçar as águas azuladas do rio Segre. Escutava na perfeição o gorgulhar fresco e cristalino das correntes, mas àquela hora as águas fluíam negras, pretas como o vinho ardente que bailava no copo de Juanito.

Os dois legionários encontravam-se de plantão na margem esquerda do Segre, com ordens para guardarem uma ponte conquistada uma semana antes pela Divisão Littorio, uma das quatro divisões italianas agora empenhadas na guerra. Já não integravam a IV Bandera, mas a VII Bandera, e a Legião já não se chamava Tercio de Extrangeros, mas Legión Extran-gera, o que, aliás, lhes parecia fazer muito mais sentido e correspondia a uma velha aspiração do seu corpo de mercenários.

A mudança de regimento tinha sido um produto do ferimento sofrido por Francisco em Badajoz, quando um franco--atirador lhe alojara uma bala na bacia. Passou dois meses no hospital e mais quatro meses em convalescença, o suficiente para perder o resto da campanha da Columna Madrid. Falhou a épica libertação do Alcazar de Toledo e a grande batalha pela capital, mas, feitas as contas, concluiu não ter perdido nada de especial. Afinal o duelo por Madrid terminara num empate, sem que nenhum dos lados se conseguisse impor ao outro. Os nacionalistas tinham ficado a cercar a cidade e os republicanos barricados lá dentro, um fiasco no qual felizmente não estivera envolvido.

Fora quando ainda se encontrava no hospital de Badajoz que o primeiro novo regimento da Legião, a VII Bandera, tinha sido criado, depois de se ter aberto um banderín central de engacbe em Talavera. Os elementos desta nova bandera foram recrutados nesse banderín e enquadrados por legionários mais experientes, todos eles homens das outras banderas que haviam sido feridos e, ainda no hospital, acabaram por ser transferidos para a VIL Fora o caso de Francisco.

Quando lhe deram a notícia da transferência compulsiva Para o novo regimento, a única coisa que pediu, deitado na cama da enfermaria com a anca toda ligada, arrancou um sorriso ao sargento Gomez.

"Transfiram-me também aquele maricas."

"Quem?"

"O pandeiro do Juanito."

"Quem? O Juan Escoso?"

"Sim, esse cabrão."

"Mas vais ter muitos novos companeros na VII Bandera, hombre! Olha, estão a chegar agora muitos portugueses, os Mariachos, e..."

"Os Viriatos."

"Isso, uh... os Viriachos... de modo que eles vão ser colocados em todas as banderas." Bateu-lhe no ombro. "Não estás contente? Vais ter compatriotas a combater ao teu lado, carayl"

"Quero lá saber."

"Hombre, mas não queres ter novos amigos portugueses?"

"Eu quero é o pandeiro do Juanito, porra."

Quando Francisco regressou à Legião, na Primavera de 1937, foi já para ingressar promovido a legionário de primeira classe na 27.a companhia da VII Bandera, para onde também fora transferido Juanito. A unidade defendia as relativamente calmas linhas da frente Madrid-Toledo e a tranquilidade apenas seria interrompida em Fevereiro. Nessa altura, o regimento integrou as cinco brigadas nacionalistas que atacaram a estrada de Valência e cruzaram o rio Jarama, enfrentando forte oposição republicana.

A batalha do Jarama revelou-se a mais violenta do ano e a VII Bandera foi a unidade nacionalista mais sacrificada, sofrendo mais de uma centena de baixas, incluindo a de Juanito, atingido no antebraço por um estilhaço de granada. As perdas acabaram por ser tantas que, pelo final do mês, o regimento teve de ser substituído e Francisco regressou à relativa apatia da tranquila linha Madrid-Toledo, o sítio ideal para lamber feridas e restabelecer forças.

As coisas só voltaram a aquecer no ano que agora acabara, quando a VII Bandera fora sucessivamente envolvida nas batalhas de Teruel, Aragão, do Levante e do Ebro, sempre com os nacionalistas a acabarem por impor a sua força. Com 1938 a terminar, o inimigo encontrava-se reduzido a Madrid, à Catalunha e a Valência. Sentindo a vitória à distância de um derradeiro empurrão, as forças nacionalistas iniciaram, apenas uma semana antes, a campanha da Catalunha, empenhan­do trezentos mil homens contra cento e quarenta mil republicanos. Francisco estava convencido de que vencer a guerra se tornara nesta altura uma mera questão de tempo.

Algumas coisas tinham entretanto mudado na Legião Estrangeira. O corpo já não se limitava às seis banderas do início da guerra, tendo sido alargado para dezoito regimentos. Mas, apesar do aumento significativo de efectivos, Francisco apercebeu-se de que a influência da sua força no conjunto das operações nacionalistas foi diminuindo com o tempo. Tomou gradualmente consciência de que isso se devia ao aparecimento de um novo exército nacionalista, formado por voluntários e homens recrutados à força. Quando o conflito eclodiu, em 1936, os nacionalistas quase só dependiam dos legionários e dos marroquinos. Mas agora, três anos volvidos, já não era bem assim. Por outro lado, as operações iniciais provocaram muitas baixas às depauperadas fileiras de legionários, eliminando os homens mais experientes e bem treinados. Francisco e Juanito tornaram-se raridades; tinham apenas vinte e um anos de idade e já eram veteranos.

Apesar disso, a Legião Estrangeira permaneceu uma tropa de choque, usada nas situações mais difíceis. O comando parecia encontrar-lhe utilidade nos confrontos renhidos, mas Francisco tinha noção de que essas missões lhes eram atribuídas também para cultivar a lenda da Legião; era preciso cimentar essa mística, a mística dos legionários, e, por arrastamento, a mística de Francisco Franco, o antigo comandante da Legião Estrangeira, o agora chefe supremo das forças nacionalistas, el jefe, a encarnação espanhola de il Duce e do Fúhrer, o homem providencial que travaria o comunismo e salvaria a Espanha e o catolicismo. El Caudillo.

 

Os enjoos de Joana começaram ao segundo dia de 1939. Viviam nessa altura numa velha casa rústica de dois andares, erguida com blocos de xisto e coberta de colmo. Em cima existia um quarto, uma sala e a cozinha, onde o escano servia de assento e mesa; em baixo ficava a adega, o cortelho dos porcos e o celeiro, vazio pois o casal não planeava dedicar-se à agricultura.

Nessa tarde fria de Janeiro, Luís chegou a casa e deu com a mulher estendida no sofá, pálida como leite, um lenço amarelo pousado na cabeça, as cortinas fechadas para a protegerem da luz.

"Joana, o que tens tu?", perguntou ele, preocupado.

"Nada, nada."

Luís aproximou-se e ajoelhou-se diante do sofá, a mão a acariciar a fronte da mulher.

"Nada, não. Pareces debilitada."

"Não é nada, já te disse. São só uns enjoos."

"Uns enjoos? Que tipo de enjoos?"

"Sei lá! São uns enjoos. Sinto-me infareada. Deixa-me estar aqui, não me arrelies. Eu já me ponho boa."

Luís afagou o queixo e observou-a, pensativo. Os olhos desceram-lhe do rosto para os seios, avaliando-os, e depois mais para baixo.

"Estarás grávida?"

A hipótese fez Joana abraçar o ventre num gesto instintivo de protecção.

"Tu achas, Luís?", perguntou.

Fitaram-se mutuamente, esperando contra a esperança.

"Bem... os enjoos são um sintoma de gravidez." Baixou o olhar de novo para o ventre dela e assumiu uma expressão interrogativa. "Há quanto tempo não... enfim..."

"Há dois meses. Mas isso não quer dizer nada, sabes que eu sou muito irregular."

O marido ergueu-se e deu-lhe a mão.

"Anda, vamos ao Fernando."

O veterinário ajudou a mulher a descer as escadas de pedra e acomodou-a entre almofadas e uma grossa manta na carroça que guardava à porta do celeiro. Foi buscar Relâmpago, o cavalo que o capitão Branco arranjara maneira de lhe ser vendido, e atrelou-o à carroça.

Com dois estalidos e um "uga!" veemente, convenceu o belo cavalo a pôr-se em marcha e a carroça começou a rodar aos solavancos pelo caminho de pedras e poças e lama. Já daquela forma tinha por várias vezes percorrido a estrada sinuosa que bordejava as margens escarpadas do Baceiro e do Tuela, atravessando os prados alcatifados de verdura entre Vinhais e Bragança para transportar animais doentes ou rações especiais. Dessa vez, porém, a carga era a própria mulher e o filho que talvez ela lhe trouxesse.

O delegado de saúde preparava-se para sair do hospital civil quando Relâmpago se imobilizou à porta das urgências e Luís saltou da carroça.

"Olá, Fernando, dás-me aqui uma ajudinha?"

"O que se passa?"

O veterinário dirigiu-se para a traseira da carroça.

"É a Joana", disse, estendendo o braço para ajudar a mulher a descer. "Acho que está grávida."

O doutor Fernando Leite era o seu velho amigo da Escola Superior de Veterinária. Depois de terminar o curso de Veterinária havia concluído que o que queria mesmo era ser médico, pelo que pedira equivalências e terminara Medicina no Porto. Uma vez completado o curso, fora de imediato colocado como delegado de saúde de Vinhais, uma terriola acima de Bragança, perto da fronteira galega, onde viera encontrar Luís, que tinha ido ocupar o lugar de veterinário quando ali chegara três anos antes, vindo de Penafiel.

O médico conduziu o casal pelos corredores ainda a cheirarem a novo do hospital acabado de construir, sempre a espreitar a paciente pelo canto do olho.

"É verdade que o senhor doutor se vai embora no final do ano?", perguntou Joana, que não se habituara a tratar o velho amigo do marido por tu nem pelo nome próprio.

"Verdadíssimo!", retorquiu o médico. "Fui promovido e vou dirigir o Hospital de Bragança."

"Isso é que é uma ascensão rápida", observou Luís. "Já viste, Fernando? Terminaste o curso há dois anos, foste colocado aqui em Vinhais e... pimba!, já estás de malas aviadas para ser director de um hospital!"

"Tens razão, tenho sorte."

"Sorte?", exclamou Joana. "Isto é um azar, senhor doutor!"

"Não diga isso! Ser director do Hospital de Bragança é uma grande honra..."

"Pois sim, mas quem me fará o parto?"

"Calma", pediu Fernando, forçando um sorriso. "Cada coisa a seu tempo. Primeiro temos de ver se está mesmo grávida. Não devemos vender a pele do urso antes de o termos morto."

O médico levou-os ao seu gabinete, um compartimento arejado com janelas em duas paredes e um cartaz pregado atrás da secretária a exibir o interior do corpo humano. Deitou Joana numa marquesa e auscultou-lhe o ventre. Efectuou ainda mais alguns testes antes de a mandar erguer-se e convidá-los a sentarem-se diante da sua secretária.

"É como eu pensava", avisou. "Falso alarme."

Um esgar de decepção perpassou pelos dois rostos que fitavam o delegado de saúde.

"A Joana não está grávida?"

"Lamento muito."

Luís encostou-se à cadeira e deixou cair a cabeça para trás, desanimado.

"Oh, não."

"Eu sei que vocês têm tentado ter filhos", disse Fernando. "Mas mantenho o diagnóstico que fiz no ano passado. A Joana tem um problema que a impede de conceber."

"E não há nada que possamos fazer?"

"Nada."

A súbita saída de Penafiel convencera Luís de que era altura de dar um novo rumo à sua vida. Amélia estava-lhe entranhada na carne, mas, se não podia tê-la, tentaria esquecê-la. A melhor rota de fuga pareceu-lhe ser Joana, pelo que decidira investir no casamento. Tinha deixado de acreditar nele antes mesmo de dizer "sim", devido ao inesperado reen­contro com a sua velha paixão do liceu. Mas as coisas haviam mudado de novo. Precisava de apagar Amélia da memória e Joana teria de ser a borracha.

Tentaram gerar filhos, na esperança de que as crianças lhes trouxessem a alegria que manifestamente lhes faltava. Passavam manhãs inteiras entre os lençóis e chegaram a tomar as mais variadas mezinhas, umas para o dotarem de força, outras para a tornarem mais fértil, mas, por mais que se esfor­çassem, não havia modo de conseguirem resultados. Joana não emprenhava.

O diagnóstico do delegado de saúde tinha, por isso, a ressonância de uma sentença. Tentaram e não conseguiram. Aquela manhã de enjoos foi a última de esperanças e a primeira de certezas. Não haveria filhos. Sem eles e sem Amélia, a vida de Luís parecia decorrer num deserto, sem rumo nem sentido, entregue ao mero desfiar vagabundo dos dias.

Em busca de um propósito que o guiasse na vida, o novo veterinário da vila entregou-se então com abandono à nature­za. Começou a deambular durante horas com Relâmpago pelo Parque de Montezinho, como se procurasse na floresta o propósito que lhe faltava entre os homens. Tinha ali a ilusão de um retorno à pureza inicial da condição humana.

Sempre que deambulava pelo bosque enchia os pulmões com o ar puro e perfumado dos carvalhos, dos pinheiros, dos freixos e dos vidoeiros que cobriam o horizonte de verde, e mergulhava no terreno xistoso do vasto e sereno parque, onde as urzes e giestas do cume das serras eram rasgadas por vales atravessados pelos rios, sinuosos e agitados, que traçavam sulcos por entre salgueiros e amieiros, cursos de água frios e transparentes que ia percorrendo com a sua montada em busca do sabor límpido e revigorante do Rabaçal ou do Tuela.

Descobriu que o local era perfeito para quem dedicava a vida aos animais. Nos seus longos passeios pela floresta, Luís deparou-se amiúde com a vida selvagem que ela ocultava. Por entre os ramos de um carvalho situado a meia encosta detectou um ninho de águias-reais e passou a incluir o local no seu roteiro semanal. Vezes sem conta viu o caminho ser cruzado por lebres, veados, javalis e corços; junto aos riachos encontrou lontras, martas, toupeiras de água e até uma víbora cornuda que enervou Relâmpago.

A floresta derramava uma vitalidade serena, como a de uma besta adormecida, traiçoeira ao despertar. Luís descobriu-o quando, certa vez, desmontou junto ao rio Baceiro e se deparou com uma alcateia de lobos ibéricos, de pêlo castanho-avermelhado e ferozes pupilas oblíquas. Ao ver os lobos, Relâmpago assustou-se, empinou o corpo, apoiando-o sobre as patas traseiras enquanto relinchava de pavor, e deu meia volta, fazendo tenção de fugir a galope. Luís conseguiu segurar a correia do cavalo e prendê-la a um salgueiro o tempo suficiente para montar o animal. Tudo isto se revelara, porém, desnecessário, uma vez que os lobos tinham passado ao largo e ignorado as presas potenciais; ou a fome não era muita ou Luís lhes parecera temível.

 

O tenente Gutierrez apareceu numa camioneta, cinco dias depois da solitária passagem do ano na ponte sobre o Segre, e fez sinal aos dois legionários de que montassem na carga.

"Vamonos", gritou.

Francisco e Juanito pegaram na mochila e nas armas e aproximaram-se da camioneta.

"Vamos embora?"

"Si."

"E quem nos vem substituir, meu tenente?"

"Ninguém."

"Ninguém como? Fica a ponte abandonada?"

"Já não é preciso guardá-la", devolveu o oficial com um sorriso. "Tomámos Borjas Blancas e os rojos estão em debandada. Vamonos!"

Chegaram perto da nova zona da frente ao fim da manhã. A estrada enchera-se de refugiados. Eram velhos, mulheres e crianças que passavam para cá envoltos em trapos andrajosos,

de ar abatido, o corpo extenuado, carregando as roupas e móveis e comida em carroças e mulas e muares; tudo o que tinham podido tirar de casa fora, na urgência da partida, embrulhado em lençóis e cobertores, e era com os poucos haveres que lhe restavam que aquela massa humana, curvada e miserável, se arrastava penosamente ao longo da estrada lamacenta.

Atrás das filas de gente, as colunas de fumo riscavam o horizonte como vulcões activos, os fios negros de fuligem a ziguezaguearem na vertical até se fundirem no tecto branco--cinza das nuvens; ouviam-se detonações longínquas, o tique-taque remoto do tricotar das metralhadoras, os estampidos fracos do ocasional tiroteio, o enervante zumbido dos aviões no seu bailado celeste. Eram as notas da estranha sinfonia dos homens em fúria, a raivosa cacofonia de morte e destruição que abalava aquele dia cinzento e triste de Inverno na Catalunha.

Passaram pelos escombros de Borjas Blancas, a povoação totalmente devastada pelos combates dos últimos dias; viam-se paredes retalhadas, telhados derrubados, crateras cavadas na rua, automóveis carbonizados. Cruzaram em silêncio o casario esventrado e seguiram em frente, na direcção de Castellnou de Seana. Juntaram-se a mais colunas; havia legionários e regulares a marchar na estrada ou transportados em camiões, alguns a cantar, a maior parte a dormitar.

Francisco inclinou-se na borda da carga da camioneta, a cabeça quase a entrar pela janela lateral dianteira, e espreitou o tenente Gutierrez.

"Meu tenente, fomos nós quem tomou isto?"

"Claro."

"A VII Bandera?"

"Não, não foi a Legião, hombre. Foram as Flechas."

"Os Italianos?"

O tenente fez um trejeito irritado.

"Italianos e Espanhóis, hombre." Abanou a mão, como quem não está com disposição para conversar. "Agora vá, não me incomodes."

Francisco endireitou-se na carga. As Flechas Negras, as Flechas Azuis e as Flechas Verdes eram divisões italianas, embora incluíssem soldados espanhóis enquadrados por oficiais italianos, facto que as forças nacionalistas, embaladas na rivalidade entre tropas de nacionalidades diferentes, não se cansavam de sublinhar sempre que as Flechas registavam um êxito.

"Porra", praguejou o português, olhando para Juanito. "Agora são os italianos quem combate."

"Joder."

Francisco fungou e cuspiu para a margem da estrada.

"Já não confiam na Legião, caraças. Tudo por causa destes putos novos, uns pandeiros a combater. Com uns mariconços assim, já ninguém quer a Legião para a porrada."

"Isto já não é o que era, caray!"

"Lembras-te do assalto a Badajoz? Ah, aquilo é que foi uma coisa em grande, hem? A malta a carregar a peito descoberto sobre a porta da Trinidad sob uma chuva de balas." Suspirou. "Estes maricas que agora andam na Legião não têm tomates para fazer uma coisa dessas, caraças. Até já precisamos dos macarrões para nos ajudarem..."

"Que importa!", devolveu Juanito. "Já estou farto disto..."

"Não interessa! A Legião é a Legião! Nós somos os piores gajos que por aqui andam, ouviste? Não há tipos mais maus nem mais brutos do que nós, porra! Se estes putos novos, estes meninos da mamã, se eles não arreganham as beiças e mostram os dentes, qualquer dia as pessoas cruzam-se com um

legionário na rua e... e não se borram de medo!" Deu uma palmada no joelho. "Porra, isso não pode ser!" "Cofio! Estás cada vez mais louco, Paço!" "Não me chames Paço. Estou a avisar-te..."

O tenente Gutierrez largou-os perto de Bellpuig, onde se juntaram à sua unidade. Decorriam os preparativos para o ataque à povoação e era preciso o apoio das metralhadoras.

Francisco foi destacado para um campo de milho, onde alguns milicianos se tinham entrincheirado para travar o avanço dos nacionalistas. O português passou a tarde toda a metralhar os redutos republicanos cavados na terra, mas, ao anoitecer, e depois de uma carga dos legionários, os combates cessaram. Os milicianos sobreviventes foram arrebanhados e atirados para o curral de uma casa de campo das redondezas, tendo Francisco recebido ordens para os guardar.

Ali ficou para além do crepúsculo. Já noite cerrada, viu um vulto aproximar-se com uma lanterna na mão. Pegou na Mauser de sentinela e apontou-a à figura sombria.

"Alto! Quem vem lá?"

"Soy yo, hombre."

O clarão da lanterna deixou-lhe adivinhar o rosto macilento do oficial que nessa manhã o fora buscar à ponte do rio Segre.

"Ah, meu tenente!"

Endireitou-se e fez continência. O tenente Gutierrez cum-primentou-o com um aceno da cabeça e olhou para a porta do curral.

"Bueno, vou fazer a triagem."

"Sim, meu tenente", devolveu Francisco, destrancando o ferrolho e abrindo a porta.

O oficial fez menção de entrar, mas hesitou e parou. Inclinou-se para o lado e murmurou à sentinela portuguesa.

"Prepara-te, hem?"

"Preparo-me para quê, meu tenente?"

"Vou identificar os patriotas que foram obrigados a lutar pelos rojos e os duvidosos. Os outros ficam contigo, en­tendes?"

"Ficam aqui no curral?"

"Sim, bombre. Para tratares deles."

"Ah." Fez um ar intrigado. "E o que devo fazer com eles, meu tenente?"

"Ora, ora", riu-se Gutierrez. "Fuzila-os, claro."

O oficial deu-lhe uma palmada nas costas, virou a lanterna para a frente e entrou-no curral.

Por mais que Francisco se admirasse, a verdade é que não foi chamado a participar em nenhuma grande batalha no avanço das colunas nacionalistas pela Catalunha. Tudo o que encontrava pela frente não passava de escaramuças, recontros na estrada ou no campo, operações de limpeza, bombardeamentos de povoações, tiroteios esporádicos e assaltos de baioneta a pequenos redutos de milicianos.

"Já viste isto?", chegou a dizer a Juanito quando as operações se aproximaram de Bellpuig. "Ainda não nos chamaram para fazer nada de jeito!"

"Mejor ast, no?"

"É melhor para maricôncios como tu, porra. Eu cá aborreço-me de morte."

Francisco limpava a sua velha Hotcbkiss; o óleo faltava-lhe e recorria agora à sua própria saliva.

"Para que andas tu sempre a limpar a ametralladora, bombre?"

"Ora! Para estar operacional."

"Mas tu próprio o disseste: já não nos metem em grandes operações."

O rosto do brutamontes português abriu-se num sorriso grotesco e os olhos cintilaram-lhe.

"Há sempre os fuzilamentos."

Em poucos dias os legionários ultrapassaram Bellpuig e chegaram a Montblanc, cruzaram o rio Ebro e entraram em Tarragona, tocando no Mediterrâneo. Não havia dúvidas, a resistência republicana desmoronava-se como um baralho de cartas; bastavam pequenos empurrões e era logo desbaratada.

Uma das grandes vantagens destes avanços, na perspectiva de Francisco, era o acesso a mulheres novas; havia muitas viúvas de rojos por toda a parte. Mas já nem estas violações, a que antes se dedicava com afinco nas pausas dos combates, o satisfaziam.

A culpa era de Rosa.

Durante um ano, o português habituara-se a possuir à força as namoradas e mulheres dos republicanos presos ou abatidos, até ao dia em que, em Getafe, nos arredores de Madrid, se cruzou com Rosa Fuentes, uma mulher morena e roliça, na casa dos vinte anos, viúva de um operário fuzilado três meses antes por milicianos da Falange. Francisco apanhou-a na rua, à noite, e arrastou-a à força para o seu boleto, onde a violou da forma habitual, com ameaças e estaladas, a receita do costume para as amansar e fazer cooperar.

Na noite seguinte, porém, quando regressava do turno, o legionário deu com a mesma mulher à sua espera à porta da casinha do boleto.

"Então?", admirou-se. "Não te chegou ontem?"

A mulher baixou a cabeça e quase fez beicinho.

"Não sejas bruto."

Francisco riu-se.

"Está bem, podes ficar descansada que hoje não me apetece nova dose. Mas, diz-me, o que estás aqui a fazer?"

"Chamo-me Rosa."

"Hmm... Rosa, é? O que estás aqui a fazer, Rosa?"

Ela soergueu os olhos e mirou-o com uma expressão de desafio.

"Não me queres?"

Francisco hesitou, surpreendido, mas apenas por um instante. Julgando compreender, soltou uma gargalhada.

"Precisas de dinheiro?" Abanou a cabeça. "Estás com azar, espanholita. Já te disse que hoje não estou para aí virado, venho muito cansado. Além do mais, já não pago por mulheres, sabes? Pego no que há por aí e sirvo-me."

Rosa fez um ar ofendido.

"Quem te falou em dinheiro? Achas que sou alguma puta?"

O português hesitou, desconcertado.

"Não queres dinheiro? Então o que queres tu?"

Rosa deixou a pergunta pairar no ar por momentos, como se esperasse que o silêncio respondesse por ela. Mas, pela cara de Francisco, era evidente que ele não tinha entendido, tornava-se necessário explicar-lho.

"Não me desejas?", insistiu, quase num sussurro inaudível.

"Desculpa?"

Ela endireitou o rosto bolachudo e cravou os olhos nele.

"Escolhi-te a ti, tonto."

Foi a primeira mulher que se entregou a Francisco de livre vontade. Até ali, o legionário habituara-se a pagar pelo sexo ou a forçar a mulher de um rojo que por azar se cruzasse com ele na rua. Nunca lhe tinha ocorrido que havia mulheres que se lhe poderiam oferecer voluntariamente. Sabia que algumas o faziam, claro; tinha o exemplo de Amélia em relação a Luís, mas acreditava que só o faziam aos outros, não a ele. Não imaginava que o pudessem fazer a ele, que se oferecessem a ele, a ele, a ele que era tão feio e tão bruto e tão mau, a ele, o enjeitado, a besta, o gorila. O monstro.

E, no entanto, ali estava ela, a ardente Rosa Fuentes, abraçando-o com intensidade, acariciando-lhe as costas, bei-jando-lhe os lábios, digladiando-se com a língua, abrindo-lhe o calor do ventre, mergulhando a boca na sua erecção, cheia de iniciativa, submetendo-se-lhe com prazer, suspirando e gemendo, soltando ais e obscenidades em castelhano, vagindo descontroladamente no auge da entrega.

Com o tempo foi-se habituando a Rosa. A espanhola instalou-se no seu quarto de Getafe e tratou dele. Limpava-lhe a roupa, arrumava-lhe o quarto, preparava-lhe uma paella ou um pollo frito; não era boa cozinheira, é certo, ora ali estava um ponto em que as portuguesas batiam qualquer espanhola; mas, para quem se habituara ao insonso rancho da Legião, aquelas paellas de Rosa sabiam-lhe a cozido à portuguesa, aqueles pollos fritos equiparavam-se às melhores feijoadas que comera em Trás-os-Montes.

De modo que, assim amancebado, passou a violar menos viúvas de rojos e, nas raras vezes que o fazia, algo que só acontecia quando se cruzava com o que designava por "gado de primeira qualidade", já não as arrastava para o boleto, onde Rosa o esperava agora, mas tinha o cuidado elementar de resolver o assunto no pinhal mais próximo.

Não encontrou em Tarragona mulher que o satisfizesse. Violou duas, é verdade, mas, depois da experiência de Rosa, as coisas deixaram de ser iguais. Francisco constatou que o sexo forçado não era a mesma coisa, mesmo que a mulher fosse mais desejável, mais voluptuosa do que Rosa. Começou a sentir falta das carícias voluntárias, dos beijos apaixonados, dos suspiros e dos gemidos, dos gritos e dos abraços, dos arranhões; em suma, começou a sentir a falta de Rosa. Nunca imaginara que alguma vez pudesse ter saudades de uma mulher, para além da mãe que o acolhera em Bragança; no entanto, ali estava ele, dois meses volvidos, sessenta dias depois de ter deixado Rosa em Getafe para partir em direcção à Catalunha, ali estava ele a suspirar pela sua Rosa, a roliça, inflamada, fogosa Rosa.

Passou a ter pressa, a desejar que a campanha terminasse depressa, que os comunistas enfrentassem já a derrota e que em breve lhe fosse concedida autorização para regressar a Madrid, a Getafe, aos braços quentes e impetuosos da mulher ardente que deixara para trás.

"Já estou como tu", acabou por confessar a Juanito. "Tomara que esta merda acabe num instante.

 

"Coitada da dona Mercedes."

Luís lia a edição de O Comércio do Porto que acabara de chegar aos Correios e Telégrafos de Vinhais e o comentário de António, o rapaz que estava ao balcão, fê-lo erguer a cabeça.

"Quem?"

"É uma senhora que eu conheço numa aldeia aqui perto", explicou António. "Ela vive de um pombal e está aflita porque anda para aí uma epidemia a matar-lhe os pombos todos."

O assunto despertou a atenção do veterinário.

"Uma epidemia?"

"Sim, coitada." O rapaz fitou-o com um fogacho de esperança a tremeluzir-lhe nos olhos. "O senhor doutor era capaz de lá ir ver aquilo, era?"

"Claro que sim, Tónio. É o meu trabalho." Pousou o jornal sobre o balcão. "Onde fica esse pombal?"

"No Montezinho", disse António, pegando numa caneta e fazendo um rabisco numa folha quadriculada. "Eu mostro-lhe o sítio."

Luís partiu na manhã seguinte para a aldeia do Montezinho. A consulta fazia, com efeito, parte das suas obrigações. Os passeios purificadores pelas florestas transmontanas não passavam de fugazes interlúdios na atarefada vida de veterinário de província, de quem se esperava que resolvesse todos os problemas da região. Para além das responsabilidades inerentes ao seu cargo público, Luís exercia também a profissão no âmbito privado, ajudando pastores e agricultores a manterem gado e rebanhos saudáveis a troco de pequenas quantias ou de ofertas menores, como galinhas e patos, que Joana, cujo dom para a culinária se revelava a cada refeição, transformava em pratos suculentos.

O veterinário de Vinhais chegou naquele dia ao pombal de onde viera o pedido de socorro e deu com a proprietária em estado de pânico.

"Aiche, sô'dotor! Estou farta de gaitar! Sem os meus pom­binhos, fico derruída, valha-me Deus. O que vai ser de mim e dos meus meninos, Senhor?"

A mulher deitava as mãos à cabeça e depressa se tornou claro que o caso não era para menos. O pombal constituía a sua principal fonte de receita e o facto de os pássaros se encontrarem doentes era para ela uma catástrofe. Os pombos forneciam alimento e também excrementos, muito apreciados em Trás-os-Montes como fertilizantes, pelo que a sua morte iminente ameaçava lançá-la na ruína, facto particularmente grave dado que se tratava de uma viúva com dois filhos.

"Tenha calma, minha senhora", disse, tentando controlar a corrente de ansiedade que jorrava daquela mulher. "Vamos lá ver isso. Onde é o pombal?"

"Por aqui, sô'dotor. Por aqui."

O veterinário amarrou Relâmpago a um castanheiro e encaminhou-se para o pombal, uma casota de xisto caiado de branco e em forma de ferradura, situado no meio de um olival. Luís espreitou pela porta e viu as aves deitadas no chão enquanto os ninhos construídos nos buracos das paredes se encontravam abandonados. Alguns pombos esvoaçavam no interior, dois ou três entravam e saíam por orifícios abertos no telhado, mas a maior parte agonizava pelo chão.

"Quantos já morreram?", perguntou o veterinário à angustiada viúva.

"Uns vinte, sô'dotor. Tive de os botar num furoco, ali ao pé de uma cornalheira. Ah, bem m'eu finto da minha desgraça, Jesus!"

Luís voltou a passar os olhos pelo interior do pombal, sentindo o odor fétido que dali era exalado.

"Traga-me um balde de água, se faz favor", pediu.

Foi então que reparou no cão.

Era um rafeiro castanho que acompanhava a situação com ar apreensivo; parecia perceber tudo o que se passava e aparentava até sentir o afogo da patroa. Quando o veterinário lhe pediu o balde de água, a viúva olhou para o cão e apenas precisou de pronunciar uma palavra.

"Vai."

Luís viu o cão dar meia volta e correr em direcção à casa da proprietária, uma velha construção em pedra com varan­das de madeira, à maneira tradicional da região. Quando chegou à casa, o rafeiro agarrou num balde com os dentes e deslizou encosta abaixo com o recipiente assim transportado, chocalhando e tilintando pelo chão; lá no fundo, junto a um fio de água que descia célere pelo monte, meneou a cabeça de modo a fazer com que a água entrasse no balde, após o que se pôs a subir a encosta, desta feita em direcção ao pombal, arrastando com tenacidade o recipiente a transbordar de água.

Chegou ofegante e depositou com alívio o pesado balde aos pés do veterinário estupefacto.

"Este cão é seu?"

A viúva sorriu, orgulhosa.

"É sim, sô'dotor. É esperto, não é? Uma espantação! Até esmilha, credo! Ainda por cima, é falgoseiro." Os olhos brilharam-lhe. "Fui eu que o treinei, sabe?"

"Como se chama ele?"

"Nilo."

"E isto é tudo do treino?"

"Ah, não. O treino ajuda, mas aqui o meu Nilo é espabila-do que se farta!" Fez um gesto em direcção à casa. "Tenho para ali um outro molosso que é o contrário. Um mogengo de primeira. Por mais que o treine, não dá nada. Passa o dia a fazer mofo, até me mete ranço." Com o indicador sob o olho, como quem diz que o outro cão não a enganava, acrescentou: "Está cheio de manhas, mas eu já o manquei."

Luís dedicou uma semana inteira àquele pombal. Todos os dias saía de casa pela manhã e cavalgava com Relâmpago até ao Montezinho, onde passava horas com os pombos doentes. Tanto se aplicou que apenas morreram mais cinco aves; as restantes começaram em breve a dar sinais de melhoras e alguns dias depois já todas esvoaçavam pelo pombal, exalan­do saúde e arrulhando com alegria.

"Sô'dotor", disse por fim a viúva, no dia da última visita do veterinário. "Nem sei como pagar-lhe."

"Oh, não faz mal."

"O que quiser, sô'dotor. O que quiser. Não tenho cunfres, o dinheiro faz-me falta para os meus meninos, mas ofereço--lhe o que pedir."

"Deixe estar. Faço-lhe isto a nome de palhas."

"A nome de palhas, não, que eu não sou nenhuma pedinte, valha-me Deus. Onde é que já se viu? Tenho de lhe pagar, antão não é? Quer uma dezena dos meus pombinhos, ora quer?"

"Pombos?", riu-se Luís. "O que faria eu com os seus pombos?"

"Oh, tanta coisa. O sô'dotor é lambiteiro, qu'eu bem sei. A sua senhora podia-lhe fazer uns esturgidinhos..."

"Ah, não! Esturgido de pombo, não!" Ergueu a sobrancelha, como quem acabou de ter uma ideia. "Sabe do que gostaria eu?"

"Diga, sô'dotor."

O veterinário olhou para o rafeiro, que parecia vigiar o pombal.

"De ficar com o seu cão."

A viúva quase deu um salto.

"O Nilo, sô'dotor?"

O cão ergueu a cabeça e as orelhas ao ouvir o seu nome e mirou a patroa, atento.

"Sim, o M/o."

"Mas... não me posso quitar do Nilo."

"Ainda lhe pago por cima", insistiu. "Dou-lhe um malmu-de de azeite e cinquenta escudos."

A viúva hesitou.

"Não... não pode ser, sô'dotor..."

"Ah", exclamou Luís, escondendo a decepção, quase envergonhado por ter feito a proposta. "Eu compreendo. Então não me dê nada, deixe estar. Dá-me uns pombos da próxima, está bem?"

O veterinário ergueu-se da cadeira, pôs o chapéu na cabeça e deu meia volta, dirigindo-se ao seu cavalo. A mulher vacilou, indecisa; foi apenas um instante, porque de imediato se levantou.

"Espere, sô'dotor."

Luís estacou junto a Relâmpago e mirou-a, expectante.

"O que é?"

"Leve Mo"

"Ah, não. Deixe estar."

"Leve-o."

 

O caudal líquido deslizava vigoroso pelo vale, a corrente de um tom de prata cristalino, o espelho de água a reflectir as nuvens baixas que deslizavam em silêncio ao sabor da brisa.

Llobregatr, gritou uma voz no camião da frente. "Chegámos ao Llobregat!"

Os homens do camião onde seguia Francisco ergueram-se de imediato e viraram os olhos para a dianteira, tentando vislumbrar a maravilha que era anunciada com tanta excitação.

"O que se passa?", perguntou o português, empurrando os seus camaradas para ganhar um melhor ponto de observação no camião. "Chegámos onde?"

"Chegámos ao Llobregat", disse Juanito, esforçando-se também ele por espreitar lá para a frente.

"A obra do gato?"

"Llobregat!"

"O que é isso?"

"É um rio, hombrer Rolou os olhos. "Ay, madre mia, vocês os Portugueses não sabem nada de nada!"

Francisco fixou a atenção no caudal de água que cortava o vale ao pé da estrada.

"E o que tem este rio de especial?"

"Barcelona, Paço!", gritou o amigo quase em êxtase. "Barcelona fica já a seguir!"

A informação incendiou os olhos do legionário português. Tinha pressa de acabar com a guerra e voltar para os braços de Rosa, e fora essa pressa que o levara às posições de vanguarda nas colunas do regimento. O legionário português via-se nesse instante entre os primeiros a atingir o rio Llobregat e a voltar-se em direcção a Barcelona. Poderia haver melhor notícia?

Por essa altura, a guerra apresentava-se, porém, algo diferente da que conhecera quase três anos antes. As valorosas e destemidas cargas de infantaria, de baioneta calada e aos berros de " Viva la muerte!", não passavam já de resquícios da memória, substituídas pelas modernas barragens de artilharia e pelos pesados bombardeamentos da aviação. O soldado inimigo deixara de ter um rosto, tornara-se invisível, transfor-mara-se numa abstracção.

Depois de inspeccionarem as margens do Llobregat, os legionários foram instalar-se em Montblanc, que havia caído pouco tempo antes. Que contraste com os combates renhidos do início da guerra, quando ficavam dias para tomar uma simples igreja, como acontecera em Almendralejo! Agora tudo parecia rolar com facilidade.

Uma vez acomodado no boleto que lhe fora destinado, Francisco recebeu ordens para fazer o turno de sentinela às muralhas medievais da povoação. Não era um trabalho que apreciasse, mas o tempo morto permitia-lhe reflectir sobre as suas experiências, e as últimas deixavam-no algo desconcertado. Enquanto vigiava o horizonte não pôde deixar de estranhar as mudanças na forma de conduzir as operações. Parecia-lhe mesmo que a guerra já não era matança crua, já não era carne, nem sangue, nem fúria, já não eram lágrimas nem dor; era luz e era cor, transformara-se num espantoso espectáculo feérico que enchia de fulgor a linha onde o céu se colava à terra.

Ao cair da noite, sentado junto ao portão de Sant Jordi, viu o horizonte incendiar-se com o clarão escarlate e azulado da fornalha de guerra. Eram os canhões a bater as posições inimigas numa erupção de chamas e ferro, uma deslumbrante visão de luz acompanhada pelo ribombar remoto das detona­ções, estampidos surdos que estralejavam à distância. Lampejos sanguíneos denunciavam incêndios, Barcelona ardia sob a chuva de granadas que cruzava os céus, uma tempestade de ferro uivava com silvos sinistros e explodia com fragor ao tombar na cidade sitiada.

"Para a semana estaremos lá", observou Juanito.

Mas foi ainda mais depressa do que isso.

O camião onde seguiam Francisco e Juanito cruzou o rio Llobregat a 25 de Janeiro, integrado numa coluna que progredia com cautela. Apesar da prudência, a força nacionalista quase não encontrou resistência. Apenas uma estrada deserta.

"Estranho, isto", observou Francisco, desconfiado. "Os gajos não combatem?"

A coluna prosseguiu devagar, como se esperasse uma em­boscada ao virar da esquina, mas não encontrou obstáculos até se deparar com as primeiras casas.

"Alto!", ordenou o coronel Fuentes, que seguia atrás e ultrapassou a coluna para inspeccionar o início do perímetro de Barcelona.

 

A coluna imobilizou-se e os motores foram todos desligados. Os oficiais subiram aos camiões e, de pé no tejadilho, perscrutaram o horizonte urbano com binóculos, tentando detectar sinais de qualquer armadilha. Ficaram por ali duas dezenas de minutos à procura de vultos suspeitos ou de posições fortificadas, mas nada conseguiram vislumbrar de anormal. Como tudo permanecia calmo, tomaram uma de­cisão.

"Vamonos", disse o coronel, descendo do camião e, com a mão esquerda, fazendo ao motorista um gesto para avançar.

Os roncos dos motores rasgaram o sossego e os camiões retomaram a marcha. Avançavam devagar, sempre à espera de uma surpresa, mas não havia sinais de resistência. Sentados na carga dos veículos, os homens viram em silêncio o casario dos arredores de Barcelona desfilar em torno deles, as ruas desertas, as persianas fechadas, o lixo a acumular-se por toda a parte.

Grossas nuvens negras rolavam para o céu e enchiam o firmamento; era a gasolina dos postos da Campsa que ardia, incendiada pelos republicanos em fuga.

Cata-cata-cata-cata-cata.

Uma súbita erupção de tiroteio obrigou a coluna a imobilizar-se.

"Porra!", resmungou Francisco, encolhendo-se no assento. "Estava a ver que os tipos não faziam nada..."

"Oitava companhia!", gritou o sargento Gomez. "Descer!"

Uma companhia de legionários apeou-se e seguiu imediatamente para o local de onde vinha o tricotar dos disparos. De imediato o tiroteio recrudesceu de intensidade e, depois de atingir um pico de fúria, pontuado por duas grandes detonações, logo se calou, como se alguém tivesse amordaçado o cano das armas.

Instantes mais tarde, a companhia retomou a sua posição na coluna, os soldados a rirem e a festejarem o último triunfo.

"Eram duas ametralladoras rojas", gritou o sargento Go-mez, regressado daquele foco de combate. "Vamonos."

Barcelona caiu assim, com um leve empurrão, como se estivesse apenas protegida por uma muralha de papel. Caiu após uma tímida defesa, quase simbólica; não passaram de uns quantos tiros disparados por uma mão-cheia de resistentes mais teimosos. Teimosos, mas não demasiado. Os restantes, aqueles que perfaziam o grosso da força republicana na Catalunha, haviam deixado já de acreditar em milagres e escapavam-se agora em direcção à fronteira, em busca de refúgio na vizinha França. Deixaram atrás deles uma Barcelona deserta, temerosa, moribunda, entregue ao inimigo, abandonada às pilhagens, cheirando a podre, a tremer de medo, à espera do pior.

Ao fim da tarde, deambulando por entre aquelas ruas desertas e largadas ao invasor, Francisco viu o silêncio absoluto ser timidamente quebrado. Primeiro uma voz e depois outra e outra ainda. Aos poucos, de forma hesitante, mas gradual, as ruas por onde os legionários passavam foram recebendo homens, mulheres, crianças. De início era um punhado inseguro, depois o punhado cresceu e ganhou atrevimento, chegaram mais e mais pessoas, a certa altura a longa avenida das Les Rambles encheu-se de carros e de festa, de buzinadelas e de vozes; eram os nacionalistas que sempre se haviam mantido calados na Catalunha e que, em catarse, saboreavam o seu triunfo.

"Arriba Espana!", gritavam desordenadamente.

Na euforia da vitória, três civis abraçaram Francisco e algumas mulheres beijaram os legionários, mas o português

constatou que nenhuma se aproximava dele. Também não queria aquelas cabras, pensou com desdém; Rosa valia por elas e por muitas mais.

A certa altura, o grupo de populares em festa cresceu muito, cresceu tanto que se tornou uma vaga, depois uma maré, era já um rio a transbordar na Placa de Catalunya; viam-se lágrimas nos rostos e bandeiras rubro-douradas a esvoaçar sobre as cabeças, estendiam-se milhares de mãos no ar, ouviam-se sucessivas aclamações, gritos, vivas, agitavam-se lenços brancos, davam-se abraços, escutavam-se exacerbados arriba Espana!, a loucura envolvia os combatentes, tragava-os na mole humana, engolia-os numa inesperada vaga de arrebatado nacionalismo em terra até aí republicana.

Apesar da noite de folia e álcool, Francisco mal teve tempo de saborear a conquista de Barcelona, pois a VII Bandera recebeu imediatamente ordens para se dirigir aos Pirenéus e dar caça aos republicanos em fuga. A progressão para norte revelou-se, no entanto, inesperadamente difícil, não por causa do inimigo, mas devido a outro tipo de obstáculos.

"É só tralha!", observou o português.

Ao percorrerem o caminho, os legionários depararam-se com a estrada pejada de entulho e destroços. O estorvo era tanto que foi preciso ir procedendo a limpezas à medida que se avançava. Os soldados tiveram de se apear e atirar todo o lixo para as bermas; viam-se uniformes, carros a muares, carroças, cavalos mortos, automóveis avariados, pilhas de papéis, tábuas, pneus, móveis partidos, detritos de toda a espécie empilhados por onde quer que os olhos se voltassem.

O som de explosões irrompeu mais à frente, na estrada, quando os batedores se aproximaram de Gerona. Estabeleceu-se a confusão, o que é, o que não é, chamou-se a aviação, empurraram-se as peças de artilharia para a dianteira e as forças nacionalistas começaram a despejar ferro e fogo sobre o casario da povoação catalã. Os legionários foram espalhados pelos campos em redor, com Francisco e Juanito a montarem um ninho de metralhadora por entre duas vistosas azinheiras, num promontório de giestas com vista para os acessos a Gerona e ao rio Onyar.

"Mas estes gajos estão ali a fazer o quê?", interrogou-se Francisco, enquanto contemplava o povoado do outro lado do rio. "Ainda julgam que vão ganhar a guerra?"

"Não, Paço. Estão a ganhar tempo."

"A ganhar tempo? Para quê?"

"Para que os outros consigam fugir, hombre, não percebes? Os tipos deixaram homens e artilharia aqui em Gerona para nos travar e darem tempo ao resto dos rojos de escaparem para França."

"Ah." Francisco coçou a barba rala que lhe crescia no queixo. "E os Franceses vão deixá-los entrar?"

Juanito riu-se.

"Sei lá! Se não deixarem, esses cohos estão todos tramados!"

Permaneceram uma semana inteira naquele promontório arborizado, Gerona a seus pés. Instalaram uma tenda atrás de uma azinheira e era ali que resistiam ao frio e à chuva do desagradável Inverno catalão. Para compensar, o rancho me­lhorou um pouco, à custa dos enchidos que encontraram escondidos numa casa de agricultores das redondezas; dia e noite refastelaram-se com butifarras e llangonissetas, que acompanhavam com batatas ou fideus, uma espécie de massa comum na região, tudo abundantemente regado com vinhos de Alella que pilharam de uma adega abandonada.

Os bombardeamentos de Gerona tornaram-se uma constan­te ao longo daqueles dias; os incêndios no povoado constituíam mesmo a única atracção na vida de Francisco e Juanito naquele promontório para onde ambos pareciam ter sido desterrados. Até que, corria o dia 4 de Fevereiro, as forças nacionalistas decidiram forçar os acontecimentos e procederam a um vigoroso bombardeamento com bombas incendiárias.

Gerona transformou-se num vulcão, o solo tremia sob o impacto das detonações, o ar reverberava, viam-se chamas por toda a parte, ardia o velho bairro judeu de El Call, ardiam os edifícios na Placa Sant Feliu, na Placa Catedral, no Carrer Ballesteries, por toda a parte lavrava um fogo infernal. Os blindados e os soldados nacionalistas carregaram pela estrada, lá pela esquerda. Vistos do promontório das azinheiras, máquinas e homens pareciam baratas e formigas a convergir para o rio e a mergulhar na fornalha de guerra.

Gerona caiu nesse dia.

Dali até aos Pirenéus foi um passo. A resistência dos republicanos fora quebrada, o último bastião ultrapassado.

Uma bandeira francesa içada num poste distante, o pano sacudindo ao sabor do vento forte do entardecer, assinalou a chegada do camião de legionários ao destino.

"La Junquera", anunciou Juanito.

Francisco olhou para a balbúrdia em redor.

"O que é isto?"

O espanhol apontou para a tricolor para lá do arame farpado.

"Corâo, então não vês ali a bandeira francesa?"

"Sim."

"É a fronteira, caray.

Os legionários foram despejados do camião e o português hesitou diante da indescritível confusão estabelecida na estrada. Um cenário de verdadeiro caos revelava a dimensão da

fuga de meio milhão de pessoas para aquela zona, muitas delas autorizadas pelos Franceses a atravessar a fronteira.

Mal se conseguia caminhar junto àquele sector, tão pejado se apresentava o caminho de obstáculos; eram cavalos esventrados, tanques destruídos, automóveis carbonizados, carroças amontoadas, tendas desfeitas, lixo acumulado, ratos com as tripas a secar ao sol, entulho, imundice, os restos da miséria humana abandonados na loucura cega da fuga.

O sargento Gomez apontou para a cordilheira que rasgava o céu em redor.

"Atenção, legionários!", chamou. "Há muitos rojos a tentar passar a fronteira pelos Pirenéus. Recebemos ordem para ficarmos à espera deles naquele monte."

Um murmúrio impaciente cresceu no grupo.

"Estão com medo?", perguntou o sargento com uma ponta de sarcasmo na voz.

"Nós somos legionários, meu sargento", protestou Francisco, sempre desejoso de acção. "Ficar num monte à espera que os comunistas apareçam é coisa para gente amaricada, como os requetés e os falangistas. Com tanto monte por aí, o mais certo é não se passar nada."

"Fiquem descansados que os rojos vêm ter connosco."

"Mas como sabemos isso, meu sargento?"

"A cavalaria está a tratar do assunto. Os nossos homens andam numa azáfama atrás dos rojos, ali para os lados de Requens, e vão tentar empurrá-los para nós."

Os legionários alinharam em pares na estrada, preparando--se para marchar até aos pontos de emboscada. O sargento Gomez percorreu o grupo, como se o estivesse a inspeccionar, e parou junto a Francisco e Juanito.

"És tu o impaciente, hem?", disse, encostando-se ao por­tuguês.

"Sou legionário, meu sargento."

"Caluda! Vem para aqui." Apontou para Juanito, que se encontrava ao lado. "E tu também."

O par abandonou a fila e pôs-se em sentido diante do sargento. Gomez apontou para o arame farpado ao fundo da estrada.

"Estão a ver a fronteira? Sigam até lá e apresentem-se ao graduado que está a controlar o trabalho dos prisioneiros."

"Mas... não vamos com o resto dos camaradas para o monte?"

"Não discutas a minha ordem!", gritou o sargento. "Cumpre-a!"

Os dois legionários fizeram continência e encaminharam-se para a linha de fronteira. Quando chegaram à curta estrada para onde foram destacados, esperava-os um espectáculo inaudito. Aquele trecho de cinco quilómetros de asfalto parecia um verdadeiro cemitério de carros, um depósito de ferro--velho aberto no meio de uma imensa lixeira; o entulho era tanto que se tornava difícil caminhar por ali.

No ar pairava um fedor ácido a podre e alguns pneus ardiam devagar, erguendo rolos de fumo negro que se abraçavam como serpentes. Francisco e Juanito apresentaram-se diante do graduado e ficaram incumbidos de orientar o trabalho dos presos. Os republicanos aprisionados, agora armados de pás e carrinhos, procuravam desobstruir o acesso à fronteira.

O trabalho era aborrecido e por várias vezes o português perscrutou os Pirenéus, arrependido por ter questionado a ordem de se emboscarem ali.

"Trabalha, cabrão!", exclamou, dando um primeiro ponta­pé a um preso que demorou um pouco mais a erguer um pedaço de sucata.

O pontapé soube-lhe bem, era uma forma de descarregar a frustração. Seguiram-se outros e outros ainda.

"Andem, mulas! Mais genica nisso!"

Por vezes, entre duas ordens gritadas ou uma coronhada desferida a um prisioneiro mais lento, Francisco espreitava para o outro lado do arame, para o posto de Perthus, em cujo mastro tremulava a bandeira tricolor. Por detrás dos soldados franceses, o legionário vislumbrava uma multidão andrajosa, os rostos congelados voltados para cá, as expressões carregadas de melancolia, os olhos a chisparem de saudade pela Catalunha que haviam deixado para sempre.

Sempre imaginara que seria uma alegria ver o inimigo assim vergado. Mas, agora que esse momento chegara, cons­tatou com surpresa que não era isso o que sentia. A verdade, a estranha verdade, é que não sentia nada. Nada.

A não ser tédio.

"Trabalhem, pandeiros!"

 

Nilo foi um sucesso, primeiro lá em casa, depois por Vinhais inteira. Nunca ninguém havia visto tal fenómeno por aquelas paragens, cão assim tão vivaço nem no seminário de Nossa Senhora da Anunciação. Como bom veterinário e aman­te de animais, Luís afeiçoou-se ao rafeiro e fez dele um companheiro inseparável, levando-o nos passeios com Relâmpago pelo Parque de Montezinho. Joana também lhe achava piada, mas começou a sentir-se incomodada com tanto bicho em casa e nos primeiros tempos não viu qualquer vantagem em adicionar o cão à família.

A verdade é que os animais animavam a casa numa terra onde a vida não era fácil. Situada no topo norte de Portugal, Vinhais estava sujeita ao vento frio e cortante que descia do nordeste, um clima tão rude que o casal teve de voltar a conviver com frieiras nos dedos e as articulações das mãos da cor da ginja madura. A vila tinha pouco mais de dois mil habitantes, que viviam da produção da castanha e dos frutos secos, mas também da manteiga de Travanca e da indústria da seda e da lã, nas mãos de velhas famílias judias convertidas, como as da falecida sogra de Luís. Havia uma escola, um posto da GNR, uma estação telégrafo--postal, umas igrejas, o seminário e um hospital civil. Claro, existiam ainda umas mercearias, onde toda a gente fazia as compras.

Toda a gente, que é como quem diz. Joana era mulher mimada, habituada à abundância que o juiz Brandão lhe proporcionara em Penafiel e aos frequentes passeios ao Porto para mirar as elegantes vitrinas da Cedofeita e da Rua de Santa Catarina. Não era fácil para ela viver em tal lugarejo, para mais porque estava convicta de que a mulher de um médico veterinário tão distinto como o doutor Luís Afonso não era mulher, era senhora. Humilhava-a por isso ter de se misturar com o povo descalço e malcheiroso na mercearia do senhor Manuel; achava-se melhor do que aquela gentinha e com direito a dispensar o incómodo de tais visitas.

As deslocações à mercearia eram habitualmente uma função de Filomena, a moça que contratara para a ajudar na lida da casa. Mas nesse Verão Filomena recebeu uma carta a informá-la de que a mãe se encontrava às portas da morte na sua velha casa, numa aldeola perto de Bragança, pelo que teve de se ausentar por um mês.

"Preciso de uma nova empregada", explicou Joana ao jantar do segundo dia sem Filomena.

"Então e a Filomena?"

"A Filomena não está cá. Ainda hoje tive de ser eu a ir à mercearia e cozinhar e limpar a casa. Não estou para isto, é de mais."

"Sim, mas o que se faz com a Filomena?"

"Ora! Despede-se e arranja-se outra!"

"Ah, não! Isso não. Então a moça ausenta-se porque tem a mãe doente e ainda por cima botamo-la na rua? Isso é desumano, não se faz, nem eu aceito."

"Mas... e eu?"

 

"Arranja-te, Joana. Eu passo o dia a trabalhar e tu estás em casa sem fazer nada. Bem podes aguentar-te um mesinho sem a moça, ou não?"

A mulher olhou em redor, como se avaliasse o trabalho.

"A mim, o que me custa verdadeiramente é ter de ir ao senhor Manei", acabou por confessar. "A mercearia está cheia de campónios, é muito aborrecido."

"Paciência. É só um mês."

O marido agarrou-se à sopa, mas Joana ficou a matutar no assunto. Precisava mesmo de resolver o problema! Ainda nessa manhã estivera na mercearia e não esquecia o fedor avinagrado a povo que os fregueses exalavam pelos sovacos; muitos não deviam tomar banho desde o Verão do ano anterior! Mas como poderia fazer para adquirir os produtos sem ter de se rebaixar a misturar-se com aqueles rústicos para os ir lá buscar?

O cão aproximou-se da mesa e ganiu, interrompendo-lhe o raciocínio. O dono arrancou uma costeleta de porco que estava na mesa e entregou-a ao animal, que a abocanhou e a foi comer para o seu canto na cozinha. Joana seguiu o rafeiro com o olhar, absorta em novos pensamentos, uma ideia a geminar-lhe no espírito.

"Olha lá, o Nilo é inteligente, não é?"

"Até esmilha!"

"Será mais esperto do que a Filomena?"

Luís riu-se.

"Não me admirava nada", gracejou.

Joana agarrou na colher e começou também ela a comer a sopa, muito satisfeita consigo mesma. Tinha encontrado a solução.

O senhor Manuel deu de caras na manhã seguinte com um rafeiro castanho parado junto ao balcão da mercearia; o animal trazia um cesto de vime na boca e o olhar expectante.

"Xó!", gritou, gesticulando com as mãos. "Fora daqui! Susquedono! Vai-te embora! Andor!"

Mas o cão não obedeceu. Permaneceu quieto, os olhos castanhos muito abertos, numa piedosa expressão de súplica. Esticou repetidas vezes o pescoço, emitindo o que parecia uma ténue lamúria, como se lhe quisesse dar a ver o cesto. A teimosia intrigou o senhor Manuel, que vislumbrou uma mancha branca no interior do cabaz. Focou melhor os olhos e percebeu que se tratava de uma folha de papel. Pôs a mão dentro do cesto e tirou o papel; era um bilhete de dona Joana a encomendar arroz, tomate, cebolas, alho e um frango, cuja conta saldaria no final do mês, como era hábito.

"Aiche!", exclamou o merceeiro, mirando o cão com pasmo. "Hom'essa! Pode lá ser! Que espantação!" Virou a cabeça para dentro da loja. "O Ermelinda! Anda cá, mulher! Anda cá ver isto, c'um canudo!"

A mulher, uma baleia rosada com um ténue bigode sobre os lábios, aproximou-se enquanto limpava as mãos molhadas ao avental sujo.

"O que é, Manei?"

O merceeiro acenou com o bilhete e apontou para Nilo.

"Ora vê-me tu isto, Ermelinda! A senhora do doutor, camano... a senhora do doutor mandou-me uma besta às compras!"

Ermelinda cerrou as sobrancelhas, intrigada.

"Ó home, 'tás emborrachado ou quê?"

"É como eu te digo, Ermelinda. Mandaram-me um... um lobo às compras, c'um caneco!" Voltou a acenar com o bilhete. "Concho! O para isto! Ora vês? Vês?"

A mulher analisou o bilhete, mirou o cão, pegou no cesto e foi enchê-lo com os produtos solicitados.

"És mesmo um ovo goro, Manei!", disse, voltando-lhe as costas. "Põe-te guicho, home! O que te interessa a ti que man­dem um bicho ou uma sopeira, hã? Desde que o doutor pa-gue..."

Nilo voltou nesse dia a casa com o cesto repleto de produtos para o almoço, todos eles criteriosamente seleccionados pela mulher do merceeiro, que achara graça ao cão. A ideia foi tão bem sucedida que daí em diante, mesmo após o regresso de Filomena ao trabalho, passou a ser ele o encarregado das compras da casa do veterinário, fenómeno muito comentado pela vila de Vinhais, todos admirando tamanha "espantação".

 

O tenente Gutierrez mandou chamar os homens da 27.a companhia. Esperou que eles se aproximassem e ergueu os dois braços, como se pedisse silêncio.

"Hombres de la Legión!", gritou. "Os rojos renderam-se. A vitória é nossa!" Cerrou os punhos. "'Arriba EspahaaaaaaaV

Um clamor rouco encheu o posto dianteiro e alguns homens atiraram os bonés ao ar. Francisco pegou na sua velha Hotchkiss e largou uma rajada para as nuvens, no que foi imitado pelos legionários. Todos se puseram aos tiros para cima, usando as Mauser checas apreendidas ao inimigo para festejar o triunfo.

Os legionários foram destacados para protecção de vários pontos de Madrid. Depois da campanha da Catalunha, a VII Bandera voltara para o sector da capital, mas, como se esperava a queda da cidade a todo o momento, os legionários ficaram aquartelados num bairro de Mostoles, nos arredores de Madrid, sem autorização para se ausentarem. Francisco sentia saudades de Rosa, mas não havia maneira de abandonar o posto ou comunicar com ela, pelo que teve de ter paciência e resignar-se. Mais tarde ou mais cedo, a oportunidade surgiria.

Não admira, por isso, que fosse ele um dos mais eufóricos com a notícia da rendição. Para o português o importante não era que o anúncio da rendição de Madrid significava o fim da guerra, mas a possibilidade que se lhe abria de ir ver a sua espanhola. Com os republicanos a entregarem-se, sem dúvida receberia em breve a tão ansiada autorização.

No meio da euforia desencadeada pela notícia dada pelo tenente Gutierrez, o sargento Gomez aproximou-se dos homens e berrou a peito cheio.

"Hombres de la Legión... formar!"

Os legionários ouviram a ordem e de imediato puseram-se em sentido, alinhados segundo a ordem previamente estabele­cida no regimento, cada companhia no seu lugar.

"Madrid já celebra esta grande vitória! Mas, para nós, o trabalho não acabou. Os patriotas madrilenos estão a começar a festejar o triunfo e a bandera recebeu ordens para garantir a segurança da população." Consultou o relógio. "Quero toda a gente nos camiões em dez minutos, pronta para partir."

A coluna de legionários arrancou em nove minutos num ambiente de grande excitação. Os homens iam eufóricos e puseram-se a cantar em coro El novio de la muerte, a grande canção que Lola Montes imortalizara na telefonia.

Nadie in el Tercio sabia Quién era aquel legionário, Tan audaz y temerário Que en La Legión se alisto.

Nadie sabia su historia,

Mas La Legión suponía

Que un grande dolor le mordia

Como un lobo en el corazón."

Foi com os homens a cantarem a plenos pulmões que os camiões de transporte da bandera atravessaram as ruas desertas de Carabanchel e se aproximaram de Madrid, soluçando pelas estradas escavacadas. Quando chegaram diante do rio, porém, todos se calaram ao deparar-se com a grande cidade. As tropas marroquinas controlavam a ponte de Toledo e mandaram-nos parar para verificar a guia de marcha. Depois a coluna recomeçou a andar e entrou em Madrid.

"Para onde vamos?", quis saber Francisco.

"O sargento disse que o nosso trabalho será manter a segurança na Puerta dei Sol."

"O que é isso?"

"Uma praça. E lá que está o Ministério do Interior."

As ruas de Madrid permaneciam desertas, quase como em Barcelona, mas quando os camiões dobraram uma esquina tudo mudou e os legionários depararam-se com a loucura.

Uma imensidão humana enchia a praça; era como se a folia nocturna de Barcelona se repetisse, mas à luz do dia. Os legionários deveriam estar de serviço, mas depressa foram engolidos pelos festejos. Davam-se arribas a Espanha e a Franco, os sinos tocavam a repique e os foguetes estrelejavam no céu, mas eram as melodias que mais faziam vibrar a multidão; entoava-se o la-la-la do hino nacional e cantava-se a Cara ai Sol da Falange, depois o Oriamendi da Comunión Tradicionalista, mas Francisco só juntou a sua voz à da massa humana que enchia a Puerta dei Sol quando escutou as estrofes familiares de La canción dei legionário.

Legionário, legionário

Que te entregas ai luchar Y que ai azar dejas tu suerte Pues tu vida es un azar.

Legionário, legionário

De bravura sin igual,

Si en la guerra bailas la muerte

Tendrás siempre por sudário

Legionário

La Bandera Nacional.

Terminada a canção, milhares de mãos estenderam-se em direcção à torre do relógio do ministério, o austero edifício de tijolo vermelho que dominava a praça da Puerta dei Sol, e um urro a uma só voz perpassou pela multidão.

"Arriba Espanar

Na manhã seguinte, e após uma noite intensa de festejos que se estenderam à Gran Via, à Plaza de la Cibeles e ao Paseo dei Prado, Francisco recebeu por fim a tão aguardada autorização para abandonar o posto e ir descansar. Apanhou o metro para oeste e, na última estação, arranjou boleia num carro de falangistas que seguia para o aeródromo de Getafe. Chegado à povoação, seguiu a pé para a casinha onde antes se havia alojado, o lugar onde Rosa o esperava após meses de ausência.

A casa lá estava, com umas roupas estendidas à janela, a secar. Cruzou o pátio lamacento, por onde deambulavam umas galinhas e uns pintos, e entrou no pequeno edifício. Tremendo de antecipação, agarrou na maçaneta e abriu a porta do quarto.

"Rosa", chamou.

Um gemido estremunhado foi a resposta. Estreitou os olhos para se habituar à escuridão e distinguiu o vulto roliço da sua Rosa, remexendo-se nos lençóis brancos. Olhou melhor e percebeu que o vulto era maior do que inicialmente notara; havia um segundo corpo naquela cama.

Um segundo corpo.

"Francisco", murmurou ela, surpreendida. "Que fazes aqui?"

Francisco sentiu-se paralisado, sem saber o que pensar, o que fazer, o que dizer. A humilhação enrubesceu-lhe as faces e apeteceu-lhe fugir, ir para longe dali, esconder-se num buraco perdido. Quase se voltou para se ir embora, mas alguma coisa tomou conta dele, uma sombra negra toldou-lhe a alma e abateu-se-lhe sobre os olhos, exactamente como naquele fatí­dico dia, três anos antes, em Castelo de Paiva, quando partira o pescoço ao Tino.

Tal como então, a fúria cega tomou conta da sua vontade e, sem se controlar, avançou sobre Rosa, agarrou-a pela cabeça e torceu-lhe o pescoço até lhe quebrar a coluna. Sentiu o homem que com ela dormia erguer-se num salto, assustado, e percebeu que não podia deixá-lo fugir. Soltando a mulher, agarrou-o pelo pescoço e também o matou com as mãos.

Deixou os dois corpos estendidos sobre a cama, contorci­dos como acrobatas inertes, bonecos quebrados numa fúria de criança. Recuperou a compostura e espreitou para fora do quarto; não viu ninguém. Voltou a cabeça para trás e, antes de fechar a porta, lançou um derradeiro olhar sobre a única mulher que verdadeiramente amara.

"Puta!", exclamou, como se cuspisse.

 

Os dedos anafados do juiz, o meritíssimo doutor Alberto Machado, acariciaram a carta, ao de leve, como se ele ante­cipasse o gozo que lhe daria o momento em que a ia lançar à mesa. Afagou o bigode farfalhudo e analisou os parceiros. O delegado de saúde e futuro director do Hospital de Bragança, doutor Fernando Leite, tinha acabado de jogar e o mesmo fizera o doutor Joaquim Garcia, jovem advogado da terra, bom rapaz mas talvez com ideias demasiado avançadas para o seu gosto. Apenas o veterinário, o circunspecto doutor Luís Afonso, parecia indeciso, analisando com cuidado as opções do seu baralho.

O veterinário levantou uma carta, preparando-se para a lançar sobre a mesa, mas um ganir súbito atrás dele fê-lo suspender o gesto.

"O que é, Nilo?"

O cão ganiu de novo, descontente por ver o dono extrair aquela carta em particular.

"Achas que esta não? Mas olha que é boa..."

Nilo ganiu mais uma vez, como se o pressionasse a devolver a carta ao baralho.

As tardes de sábado na sala de chá da Pensão Alves eram passadas em amena cavaqueira. Os quatro homens distintos da terra juntavam-se ali periodicamente, todos ao borralho, sentados à mesa de jogo com as cartas na mão e um copo de porto a jeito. Na maior parte das vezes optavam pelo brídege, mas desta feita estavam na bisca.

Nilo plantara-se por detrás dos jogadores e espreitava-lhes o jogo; seguia depois para junto do dono e gania quando Luís pegava numa carta que lhe parecia errada. O cão tornara-se um conselheiro precioso do veterinário, mas começava já a suscitar legítimas suspeitas junto dos restantes jogadores.

"Mas afinal quem é que joga aqui?", impacientou-se o juiz. "É você ou é a besta?"

"Sou eu, sou eu", apressou-se a esclarecer Luís.

"Então jogue, homem. Não faça caso do bicho, isto é jogo de gente."

O veterinário hesitou só um instante mais. Nilo já havia espreitado as cartas dos seus parceiros com atenção, o pescoço esticado e as orelhas empinadas, compreendendo o jogo como qualquer outro jogador; e o facto é que se mostrava apreensivo com a possibilidade de o dono jogar a carta que destacara do baralho. Se Nilo gania, era porque a carta que ele tinha na mão não seria a mais aconselhável. Mas o juiz tinha razão, caramba! O jogador era ele, Luís, não era o cão! Além do mais, que imagem daria se recuasse? Ainda iam pensar que quem mandava lá em casa era o animal! Para não falar no facto de que iriam confirmar que havia ali marosca. Decidindo-se, lançou a carta para a mesa.

"Manilha, hã?", riu-se o juiz. Tirou enfim a carta que os seus dedos saboreavam havia algum tempo e largou-a com aparato sobre as restantes. "Pois eu ataco de trunfo!"

Nilo quase uivou de angústia; percebeu que o seu dono acabara de perder.

"Pronto, Nilo, pronto", murmurou Luís, afagando o pescoço do rafeiro. "É só um jogo, não faz mal."

"Esse cachorro é estranho", observou o juiz enquanto açambarcava as cartas na mesa, espreitando o cão por cima dos óculos redondos. "Põe-se à husma ao meu jogo, como quem me quer escabichar as cartas, e depois rosna quando acha que você vai botar a carta errada e mete-se a gaitar sempre que você perde." Torceu a boca e abanou a cabeça. "Não me parece lá muito católico."

"O Nilo é vivaço", concordou o veterinário.

O advogado, que também mirava o cão, afagou o bigode.

"Você acha que ele era menino para ir lá a casa cuidar-me também das pequenas?"

"Não exageremos", disse Luís. "Mas ele pode ir buscar a ama, se quiser. É só ensinar-lhe onde ela mora e o Nilo vai lá chamá-la."

"Ah, bom!", riu-se o juiz. "Estava a ver que o cachorro também era capaz de dar o leite às pequerruchas aqui do Garcia."

O meritíssimo doutor Machado recolheu as cartas e entre-gou-as a Fernando, a quem cabia a vez de baralhar.

"Se calhar dava para governante", alvitrou o doutor Garcia, homem de uma magreza quase cadavérica, piscando os olhos num tique nervoso. "Sempre fazia melhor figura do que alguns animais que para lá temos em Lisboa." O advogado ergueu o sobrolho e fitou o dono do cão. "Não acha, doutor Afonso?"

O veterinário riu-se.

"Não me puxe pela língua."

"Ó Garcia, não diga disparates", atalhou o doutor Machado, sempre atento às provocações do advogado. "Se não fossem os nossos governantes, onde estaríamos nós?"

"Estaríamos felizes."

O juiz rolou os olhos, como se se enchesse de paciência.

"As suas modernices cegam-no, homem", exclamou. "O regime está a fazer um verdadeiro milagre com este país. Um verdadeiro milagre!"

"Qual milagre?", zombou o doutor Garcia. "O das rosas?"

"O da ordem e do progresso."

"Como na bandeira brasileira?"

"Goze, goze. Mas tente comparar o que o país é agora com o que era há uns dez anos. Não há comparação! Onde antes só se via confusão, agora impera a paz. E, sobretudo, percebe-se que as coisas avançam, percebe? Há um rumo, as finanças estão sólidas, a moeda é forte, constroem-se estradas, temos a campanha do trigo a absorver o desemprego e a combater a nossa dependência alimentar em relação ao estrangeiro... é uma maravilha! Onde é que alguma vez se viu isto neste país?"

"Isso é só para os ricos."

"Lá está você sempre a falar mal", entoou, condescendente. "Então as estradas são só para os ricos? A ordem é só para os ricos? O progresso é só para os ricos? Olhe, a assistência de saúde é melhor, as pessoas vivem mais tempo, há mais emprego, há mais escolas primárias, fomentou-se a harmonia social..."

"Portanto, vivemos no paraíso", ironizou o doutor Garcia.

"No paraíso, não direi. Mas vivemos melhor do que vivía­mos antigamente, isso você não pode negar."

"E o pessoal que o regime manda para o degredo lá em Cabo Verde? Também vive melhor agora?"

O doutor Machado encolheu os ombros.

"Ora, comunistas!", disse com uma ponta de desprezo no tom. "O regime devolveu ao país o orgulho, a ordem e a esperança. Ao pé disso, o que vale um punhado de bota-abaixo que só sabem dizer mal de tudo e de todos?"

"O senhor doutor juiz desvaloriza os atropelos que se sucedem em nome dessa ordem, mas faz mal", insistiu o causídico, procurando puxar a conversa para um terreno que lhe era mais favorável. "Tem porventura visto as leis que andam para aí a sair?"

"A que leis se está o senhor a referir?", perguntou o juiz, que encarava a legislação quase como propriedade sua.

"Olhe, o novo Código do Processo Civil, por exemplo. O senhor doutor juiz já viu as bestialidades ali contidas?"

"Os textos da lei não contêm bestialidades", sentenciou o doutor Machado.

"Pois este contém. Descobri que agora tenho poder de depósito sobre a minha mulher." Fez um gesto para todos os ocupantes da mesa. "E vocês também. Acham isto normal?"

"É a ordem natural das coisas", disse o juiz.

Luís e Fernando trocaram um olhar. Nos tempos da faculdade eram eles quem se digladiava naquelas conversas políticas, mas agora, sendo ambos os novatos daquele grupo, preferiam permanecer calados, uma vez que se sentiam pouco à vontade para exprimir as suas opiniões políticas em público. Porém, neste ponto da conversa, o veterinário não se conteve.

"Desculpem, mas não estou a perceber", disse, interrompendo o duelo entre juiz e advogado. "O que é isso de poder de depósito?"

"É uma coisa que existia no tempo da Maria Cachucha e que foi abolida em 1910", explicou o doutor Garcia. "Se a sua mulher por algum motivo sair de casa, você pode fazê-la regressar de forma compulsiva mandando que ela seja depositada em casa, como se fosse um saco de batatas. Ou seja, aquelas grandessíssimas luminárias que agora mandam em nós decidiram tornar legal o uso da força por parte do marido."

"Acho bem", riu-se o juiz. "Qual é o mal de a mulher levar umas lapadas uma vez por outra, quando é preciso? Ela tem de respeitar o marido, que diabo! E olhe que algumas até estranham se não levam." Assumiu uma expressão pensativa, mergulhando nas reminiscências de magistrado. "Eu uma vez tive o caso de uma mulher que se queixou de que o marido era amaricado porque tinha a mão leve..."

"O senhor doutor juiz, francamente!", protestou o advogado. "O senhor até parece do povo."

"E qual é o mal? O povo é sábio", decretou, o tom peremptório de quem está habituado a emitir acórdãos. "O lugar da mulher é em casa, a criar os filhos e a obedecer ao marido. É esta a ordem natural das coisas."

"Tudo tem um limite", insistiu o doutor Garcia. "Não estamos na idade das trevas, por amor de Deus! Ou estamos?"

"Estamos num país onde reina a lei e a ordem. E isso é muito melhor do que a bandalheira de antigamente, se quer que lhe diga."

"Não me venha outra vez com essa conversa."

"Desculpe, mas é a verdade. O que nos trouxeram as modernices de que o senhor tanto gosta? O caos, como muito bem sabe! Não tenha dúvidas: para termos ordem é necessário respeitarmos os valores tradicionais. Ora há alguma coisa mais tradicional do que a família? A família é a base da sociedade e aí todos têm o seu lugar. O homem sustenta e chefia a família, a mulher fica em casa a tratar da lida doméstica e das crianças. Se não for assim, a família desagrega-se, a sociedade desmorona-se e regressamos à confusão do antigamente."

"Isso é a sua opinião. Nem vou discutir o que o senhor acabou de dizer porque temos maneiras diferentes de ver as coisas. Mas eu continuo na minha: a lei que nos rege está a ir longe de mais. E nem sequer falo de política! Limito-me ao direito comum."

"Dê-me exemplos."

"Já lhe dei o exemplo do poder de depósito que acabei de descobrir no novo Código do Processo Civil."

"Só isso?"

"Quer mais? Então veja os poderes dos maridos sobre as mulheres."

O juiz tirou os óculos redondos, colou a lente à boca e expirou, humedecendo-os, e começou a limpá-los com um pano branco.

"Eu cá conheço é a Constituição, que deu às mulheres o direito de voto e o direito de serem eleitas, coisa que as grandes figuraças da república, esses democratas de pacotilha, foram incapazes de lhes dar."

"Caramba!", exclamou o advogado num tom irónico. "O senhor doutor juiz tornou-se agora defensor dos direitos das mulheres?"

"Sempre fui um defensor dos direitos das mulheres, em especial do direito que elas têm de se dedicar à família e contribuir para a harmonia do lar." Terminada a limpeza das lentes, o doutor Machado voltou a encavalitar os óculos no nariz. "Mas falei-lhe no envolvimento das mulheres nas elei­ções só para lhe lembrar alguns factos que o senhor, com a sua habitual verborreia reviralhista, tem tendência a esquecer." Ergueu o dedo, sentencioso. "Quem lhes deu o voto foi o Estado Novo!"

"A ditadura só deu o voto às mulheres porque sabe que elas tendem a ter um voto conservador."

"Mas deu."

"Ora! Deu-lhes um bombom e logo a seguir espetou-lhes com o óleo de fígado de bacalhau. O artigo sobre os poderes dos maridos é, a este propósito, esclarecedor."

"Vejo-o muito preocupado com esse artigo, mas sincera­mente não percebo qual o problema..."

"Claro que percebe! É o artigo que diz que uma mulher não pode exercer comércio nem sair do país sem autorização do marido. E há o outro que prevê que um homem pode anular um casamento se descobrir que a mulher não casou virgem..."

"O homem, isso é velho!", exclamou o juiz com um tre­jeito condescendente. "E então?"

"O senhor doutor juiz acha normal?"

O doutor Machado encolheu os ombros.

"Não acho mal."

"Mas como pode o senhor doutor juiz dizer uma coisa dessas? Isto é uma coisa de... de trogloditas! Além disso, o artigo é uma aberração jurídica."

"Não vejo porquê."

"Porque não prevê a reciprocidade. Se uma mulher descobrir que um homem não casou virgem, não pode anular o casamento. Mas, na situação inversa, ele pode. Acha que isto faz algum sentido?"

"Se o homem casasse virgem é que a mulher teria razões para anular o casamento", gracejou o juiz. "Era sacrafineiro, certamente."

O médico, que permanecia silencioso, acabou de baralhar as cartas e entregou-as a Luís, a quem cabia dá-las. O veterinário fervia por se pôr ao lado do advogado, mas foi-se calando enquanto pôde. Até que foi vencido pela curiosidade.

"É possível haver sentenças diferentes para crimes, conforme o seu autor seja homem ou mulher?", perguntou Luís, metendo-se de novo na conversa.

"Claro que sim", devolveu o advogado. "O próprio Código Penal o prevê."

"A sério?"

"Artigo 461", recitou o doutor Garcia, como se estivesse na barra do tribunal. "O marido pode violar a correspondência da esposa. Mas ela não pode violar a correspondência do marido."

"Muito útil", observou o juiz, pegando nas cartas que Luís já lhe atirara para a frente. "Tem-me feito um jeitaço lá em casa."

O advogado ignorou o comentário.

"E não é tudo", acrescentou. "O mesmo artigo 461 prevê pena branda para o marido que assassine a mulher caso a apanhe em situação de flagrante adultério. Mas já o contrário não acontece. Se a mulher apanhar o marido em flagrante adultério e o matar, a pena será pesada."

"A cada um o seu lugar", insistiu o juiz, já a olhar para as cartas ordenadas nas suas mãos, os trunfos à esquerda, os outros naipes à direita. "A mulher é a fada do lar e é assim que se deve comportar." Mantinha a cara voltada para baixo e os óculos redondos na ponta do nariz. Ergueu os olhos castanhos na direcção de Luís, espreitando-o por cima dos óculos. "Não concorda comigo, doutor Afonso?"

Luís terminara de dar as cartas e estudava o seu jogo.

"Acho que o doutor Garcia tem razão", disse, deslizando a mão para voltar a afagar o pêlo de Nilo. "No que diz respeito a governar, até o meu cão fazia melhor figura."

Fez-se um súbito silêncio e o médico, que optara por não se meter na conversa e permanecera calado, aproveitou para afinar a voz.

"Meus senhores", disse Fernando. "Vamos jogar?"

A primeira carta foi atirada à mesa e depressa se seguiram outras. A meio da partida, o veterinário notou, sem prestar muita atenção, que um dos seus adversários havia regressado ao seu velho hábito de anotar num papel as cartas que já tinham saído, de modo a melhor controlar os trunfos que ainda restavam em jogo. O que Luís não percebeu, porque dali não conseguia ver, é que aquelas anotações não diziam, na verdade, respeito à partida.

Eram um registo do que se dissera naquela conversa.

 

O vulto procurou esgueirar-se por entre os fiéis, mas era demasiado corpulento para ser capaz de efectuar movimentos ágeis; parecia um gorila a tentar deambular por entre um canteiro de flores. Apesar dos seus melhores esforços, a verdade é que Francisco Latino não conseguiu abrir caminho com a subtileza aconselhável, acabando por empurrar quase toda a gente que lhe apareceu pela frente. Ao cabo de alguns esforços falhados desistiu de tentar a delicadeza e assumiu-se como um paquiderme em progressão.

"Ai", gemeu uma senhora de negro que empurrara brutalmente pelas costas.

"Cuidado", implorou um velho, levando com um ombro maciço na cabeça.

"Credo!"

Alheio às queixas que ia deixando como um rasto, Francisco rompeu por entre os crentes que acompanhavam a missa em pé, numa das alas da grande Igreja do Sameiro, e só parou

quando chegou aos bancos e ficou com a vista desimpedida para as primeiras filas. O padre fazia a homilia, a voz a ecoar cavada pelo santuário, e a atenção do intruso deslizou pelas cabeças alinhadas lado a lado até se fixar numa nuca que se encontrava a meio da terceira fila.

"Senhora", sussurrou.

A guerra civil tinha acabado e Francisco aproveitara uma licença na Legião e metera-se no comboio para visitar o seu país. Partira em segredo, nunca assumindo a sua verdadeira identidade; mantinha sempre presente que poderia ainda ser procurado pela justiça portuguesa e sabia que todo o cuidado era pouco. Além do mais, é preciso não o esquecer, Francisco Rodrigues morrera no momento em que se alistara na Legião; naquele momento chamava-se Francisco Latino e a última coisa que queria era ressuscitar o passado.

Nesta viagem da saudade, a sua prioridade era rever a família. Não se tratava, é certo, verdadeiramente de uma família. Francisco sabia que fora adoptado e apenas dona Beatriz o fizera sentir-se de facto desejado; não lhe dera educação, era uma realidade, mas talvez isso se devesse mais à natural relutância de Francisco em estudar do que à vontade da mãe adoptiva de usar os seus consideráveis músculos para a ajudar nos trabalhos pesados de casa ou da loja. Ou pelo menos era isso o que ele gostava de pensar.

Quando dona Beatriz morreu, o rapaz ficou entregue à irmã mais velha, apesar de a relação entre ambos nunca ter sido muito estreita. Beatriz era a sua verdadeira família, Amélia uma pobre substituta. Mas era o que tinha. À ou­tra irmã, Joana, poucas vezes lhe pusera os olhos em cima, até porque a rapariga cedo fora para casa do padrinho e apenas após a morte da mãe se haviam aproximado, já em Penafiel.

Vendo Amélia sentada na terceira fila, Francisco suspirou. A irmã adoptiva não estava à altura de dona Beatriz, sabia-o. Mas era o mais próximo que tinha do conceito de família. Como ele ansiava por uma família! Toda a sua infância se concentrava agora naquela mulher. Se ela o enjeitasse, nada mais lhe restaria no mundo.

Alheia aos olhos que a espreitavam lá atrás, Amélia virou a cara para a direita e inclinou-se para o lado, subitamente ocupada com algo que Francisco não descortinava no local onde se encontrava. Intrigado, mudou de posição e, já com um melhor ângulo de visão, percebeu que a irmã adoptiva ajeitava a roupa de uma criança muito pequena, devia ter uns dois anos. Pelos vistos, era um novo filho. Nos lugares ao lado dela sentavam-se as outras crianças, que ele já conhecia, embora estivessem agora maiores. As duas meninas pareciam--lhe diferentes, mais alongadas, mas conseguiu reconhecer António, o mais velho, já um rapazinho muito bem aperaltado, franzino e tenro. Um copinho de leite, pensou com um sorriso velhaco; não daria para legionário.

Quando a missa acabou e os fiéis dispersaram, Francisco seguiu a irmã a uma distância prudente na descida pelo jardim do Sameiro e só se deu a ver já a uns passos de casa dela.

"Senhora", chamou. "Senhora."

Amélia olhou para trás e quase se assustou ao reconhecê-lo.

"Chico!"

"Como está, senhora?"

A irmã olhou em redor, quase aflita, preocupada com a possibilidade de serem vistos. Na verdade, muita gente olhava. A missa tinha acabado e a multidão descia ainda pela rua.

"O que estás aqui a fazer?" Deu meia volta e dirigiu-se apressadamente à porta de casa com a chave na mão. "Anda, vamos entrar."

Abriu a porta e quase empurrou Francisco para dentro. Depois ajudou os filhos e fechou a porta. Já tranquilizada por estarem resguardados da curiosidade alheia, pousou os olhos no irmão adoptivo e estudou-o dos pés à cabeça.

"Meu Deus!", exclamou. "Estás ainda mais forte! Como é possível?" Abraçou-o. "Graças a Deus que te vejo de saúde. Tenho andado tão ralada, nem imaginas!" Afastou-se e olhou-o nos olhos, como se buscasse confirmação. "Estás bem, não estás?"

"Sim, senhora."

"Como... como tens feito tu para fugir à... enfim, tu sabes."

"Fui para Espanha, senhora. Tenho vivido em Espanha."

Amélia considerou a revelação por um instante e logo um sorriso se lhe desenhou nos lábios.

"Esperto", disse, colando-lhe o indicador à testa. "Afinal tu és esperto. Com que então em Espanha?" Riu-se. "Aí é que ninguém te encontra. Diabo do rapaz que me saiu mais esperto do que eu pensava. A mãe é que ficaria orgulhosa."

Ao ouvir a referência a dona Beatriz, o rosto duro de Francisco abriu-se num sorriso quase infantil.

"Pois, lá eles não me apanham."

"Mas tens vivido de quê? As coisas em Espanha não têm andado nada boas..."

"Fui para a tropa, senhora."

Amélia colou a mão à boca, quase assustada.

"Para a tropa? Estiveste na guerra?"

"Sim, senhora."

Ela voltou a examiná-lo de alto a baixo, desta vez à procura de alguma anomalia, de qualquer sinal de que estivesse estropiado, de algo que o denunciasse como eventual vítima.

"E... e estás bem? Não te aconteceu nada?"

Pousou a mão ao fundo das costas, indicando o local onde havia sido baleado em Badajoz.

"Fui atingido aqui na anca por duas balas. Mas não custou nada, agora estou bem."

"Ah, coitado! Foste ferido!"

"Sim, mas não há problema", insistiu ele. "Para matar um homem é preciso atingi-lo na cabeça. Se for no corpo é mais difícil acabar com ele."

Amélia pegou Francisco pelo braço e puxou-o, encaminhando-se pelo corredor para as escadas.

"Dispenso esses pormenores", disse. "Anda daí, vem comer alguma coisa." Pegou no filho mais pequeno e puxou-o para o colo. "O Mário foi visitar a irmã, que está doente, e só deve voltar depois do almoço."

"O senhor capitão está bem?"

"Sim, vai andando. Mas vai ser um problema quando ele te vir."

"Porquê, senhora?"

Iam já a meio das escadas, Amélia a arrebanhar as crianças e com o mais pequeno nos braços, quando parou e olhou para trás.

"Chico, tu mataste-lhe o caseiro", disse, muito séria. "Isso é coisa que não se esquece."

De facto, o capitão Branco não esquecera. Quando ao início da tarde entrou em casa e deu com Francisco sentado na sala, estacou por um longo momento no topo das escadas, o rosto pálido, o corpo crispado, os olhos a dançarem entre os dois irmãos.

"O que está ele aqui a fazer?", perguntou, muito tenso.

Francisco e Amélia puseram-se de pé, na expectativa.

"Veio visitar-me."

O marido permaneceu um instante calado, a avaliar a inesperada situação.

"Ele matou o Tino", disse enfim. "Eu conheço o Tino desde criança. A família dele foi viver para a nossa quinta no tempo dos meus pais. Eu não posso ter o assassino do Tino em minha casa. Na verdade, tenho até o dever de o denunciar à polícia."

"O Chico é meu irmão."

"Adoptivo."

"Não interessa. A minha mãe acolheu-o na família. Não posso entregar o Chico à polícia, isso está fora de questão."

"Eu compreendo", cedeu o capitão. "Mas ele não pode ficar na nossa casa. Uma coisa dessas não é aceitável."

"Eu já me vou embora", disse Francisco, pegando no casaco.

O dono da casa lançou-lhe um olhar irritado.

"Vais, sim senhor", disse, fitando-o com uma expressão penetrante. "Mas antes explica-me uma coisa que eu ainda não percebi: porque mataste o Tino? Que mal te fez ele para merecer que lhe torcesses o pescoço como fazias às galinhas?"

O visitante baixou a cabeça, sem resposta. Na verdade, tinha uma resposta, mas não podia dá-la. Percebendo o dilema, a irmã veio em seu socorro.

"Foi um acidente."

"Um acidente?" O capitão ergueu a voz, quase alterado. "O Tino tinha o pescoço partido, Amélia! Ninguém parte o pescoço a alguém por... por acidente! Além do mais, mesmo que fosse um acidente, há uma coisa que não está explicada: por que motivo se agarrou o teu irmão ao pescoço do Tino?"

Era uma boa pergunta.

"Foi para me defender", disse a mulher.

O capitão fez um esgar de perplexidade.

"Defender? Defender de quê? Que história é essa?"

Amélia percebeu que tinha entrado no pior caminho possível: o das explicações com a introdução de dados novos. Quanto mais respostas desse, mais perguntas suscitaria. Mas o facto é que embarcara já naquele rumo e tratava-se de um caminho sem retorno. Abrira pistas que teria de fechar, sob pena de suscitar desconfianças. Percebeu que precisava de ser convincente e coerente, e sobretudo de sair daquele terreno minado o mais depressa possível.

"Ele defendeu-me do Tino."

"Mas o que te fez o Tino?"

A mulher não queria difamar a vítima, mas tomou consciência de que não tinha agora qualquer alternativa.

"Ele queria dar-se a... a certas liberdades comigo", mentiu.

"O quê?"

"Pois, foi isso. O Chico defendeu-me e a coisa correu mal."

O capitão cravou os olhos na mulher, atónito.

"O Tino queria dar-se a liberdades contigo?"

Amélia fugiu com o olhar, descendo-o para o soalho da sala; não conseguia mentir a olhar nos olhos, pelo que preferiu simular vergonha.

"Sim."

O marido abanou a cabeça.

"Não acredito. O Tino não faria isso."

"Então não acredites", retorquiu ela com um encolher de ombros.

O capitão comprimiu os lábios.

"E porque não me contaste essa história logo? Por que razão só agora me dizes isso?"

Ding dong.

O toque na campainha veio em socorro de Amélia.

"É o senhor Cunha com o mel", disse o capitão, voltando a cabeça para trás. "O António! Vai lá abrir a porta!"

O filho mais velho desceu as escadas num tropel, vindo do piso superior, e continuou até ao rés-do-chão.

A interrupção acalmou um pouco o capitão. Puxou de uma cadeira e sentou-se com um suspiro.

"Ainda não percebi por que motivo não me contaste na altura que o Tino tinha sido incorrecto contigo", murmurou em tom fatigado, retomando o fio à meada. "Se bem me lembro, disseste à polícia que não estavas presente quando o Tino morreu. Como é que agora me dizes o contrário?"

A pausa oferecida pelo toque da campainha dera a Amélia o tempo necessário para improvisar uma explicação plausível.

"Foi para não angustiar ainda mais a família dele. Já viste o que sentiriam se eu dissesse isso naquele momento? Achei melhor calar-me, não adiantava nada estar a manchar a me­mória do Tino. O que estava feito estava feito. Já não tinha remédio."

O capitão voltou a respirar fundo.

"Tens razão", rendeu-se. "Se calhar fizeste bem. Mas de­vias ter-me contado pelo menos a mim."

A mulher quase suspirou de alívio. Fora complicado, mas tinha conseguido escapar ao campo minado.

"O meu capitão dá licença?"

A voz veio das escadas e os três olharam naquela direcção. Um homem fardado encarava-os da ombreira da porta e as cabeças de dois outros emergiram das escadas. Eram polícias e os dois de trás vinham armados com caçadeiras.

O capitão levantou-se, surpreendido.

"Faz favor?"

"Eu sou o tenente Lopes, meu capitão", disse, fazendo continência. O olhar do polícia desviou-se para Francisco, que assumira uma postura de alerta. "Recebemos na esquadra a denúncia de um cidadão que disse ter visto um foragido à justiça a entrar na sua casa. Como deve compreender, estamos aqui no cumprimento do dever e viemos dar ordem de prisão ao suspeito em causa."

Todos os olhos pousaram acto contínuo em Francisco. O legionário encarou os polícias, avaliando a situação. Poderia saltar em frente e dar cabo deles, mas era provável que levasse com um tiro de caçadeira a um metro de distância. Era capaz de doer, considerou, eliminando de imediato essa hipótese. A alternativa era entregar-se.

Ou fugir.

"É melhor ir com eles", aconselhou o capitão, preocupado em evitar um confronto violento em sua casa e diante da mulher e dos filhos.

Francisco recuou um passo e outro ainda, sempre a encarar os recém-chegados, o corpo tenso à espera da explosão, a mente a fervilhar em busca de uma saída.

Os polícias avançaram, as caçadeiras em riste.

"Tenha calma", disse o tenente, adiantando-se aos outros. "Acompanhe-nos à esquadra, se faz favor."

Mas Francisco tomara a sua decisão e não estava disposto a entregar-se. Não fugira de Portugal, não se alistara na Legião Estrangeira, não sobrevivera a uma guerra sangrenta para se render assim, sem mais nem menos, como um cobarde. Não, isso ele não faria.

O tenente chegou-se ao pé de Francisco para consumar a prisão, mas, com um movimento rápido, viu-se agarrado pela cabeça e pelo tronco e virado ao contrário, preso naqueles braços poderosos como se o tivessem de repente metido num colete-de-forças, o rosto voltado para os seus subordinados.

"Quietos!", rugiu Francisco, transfigurando-se. Já não era o submisso e dócil irmão adoptivo de Amélia, mas o temível legionário e o frio assassino de Tino. "Nem mais um passo!"

O capitão Branco ainda considerou por instantes a possibilidade de intervir, mas de imediato percebeu que a sua prioridade era proteger a mulher e os filhos. Amélia acompanhava o confronto com uma expressão horrorizada, o filho de dois anos abraçado à perna, e o marido agarrou-se a ambos e puxou-os para o corredor, afastando-os do local do confronto.

O assunto ficou entregue aos guardas, que não sabiam o que fazer. Tinham as caçadeiras apontadas, embora na mira tivesse deixado de estar Francisco e aparecesse nesse momento o seu superior hierárquico, cujo corpo era usado como um escudo. O legionário tentou tirar a pistola da cintura do refém, mas o homem debateu-se e a arma tombou no chão. O tenente tinha o tronco e os braços imobilizados por aqueles braços possantes e duros como aço, mas com um movimento da perna direita conseguiu pontapear a pistola para a frente.

"Assim é pior", disse o tenente Lopes, tentando tirar vantagem do efeito de a arma estar agora fora do alcance do seu captor. "É melhor o senhor acompanhar-nos à esquadra. Vai ver que tudo se resolverá a bem, não é preciso nada disto."

Francisco não era tolo e ignorou as palavras conciliadoras; era já demasiado vivido para ir naquele conto. Vendo-se sem hipóteses de alcançar a pistola, readaptou-se à situação. Sempre a prender o tenente e a usá-lo como escudo, recuou devagar até as costas tocarem na porta traseira da casa. Nesse instante, ergueu o tenente e lançou-o contra os outros dois polícias, como se o guarda não passasse de um fardo de palha, e virou-se bruscamente, abriu a porta e saltou pelas escadas a grande velocidade, quase se estatelando no quintal.

"Alto!"

O fugitivo reequilibrou-se e correu como um desvairado pelo rectângulo de terreno, por entre as macieiras e a horta, os ramos de verdura fustigando-o na cara mas sempre correndo como se estivesse a fazer uma carga, como se se lançasse de novo sobre as Puertas de la Trinidad, como se gritasse "viva a morte!", só que agora não corria em direcção a ela. Fugia dela.

Paw.

Um tiro rasgou o ar, mas Francisco não ouviu o silvo da bala. Deviam ter disparado para o ar, presumiu. Pela experiência sabia que quando se ouve o disparo é porque não se foi atingido e quando se é atingido nem se ouve o disparo, a bala é mais rápida que o som, primeiro ocorre o impacto, depois é que se ouve a detonação.

Sempre a correr, arrependeu-se de não ter tentado recuperar a pistola do tenente, lamentou não ter com ele a velha metralhadora da Legião. Ah, o que a Hotchkiss não faria àqueles imbecis!

Chegou ao muro do fundo do quintal e abriu o pequeno portão salpicado de ferrugem. O ferro chiou de preguiça. Quando pôs o pé na rua, no entanto, imobilizou-se.

"Onde vais, malandro?"

Em redor tinha três caçadeiras apontadas para ele; uma à esquerda, na descida da rua, outra em frente, a terceira à direita, na subida. Atrás ficava o muro e ouvia já os passos dos primeiros polícias a cruzarem o quintal. Estava encurralado.

Devagar, percebendo que já não dispunha de opções, endireitou-se e ergueu os braços.

Havia sido apanhado.

 

Com a testa alagada de suor, Luís inspeccionou o carabelho da adega. O Verão tinha chegado, quente e abafado, e a fechadura de madeira da porta que dava para o compartimento dos vinhos parecia ter apodrecido. Toda a zona entre Bragança e a fronteira galega, o espaço selvagem onde se encerrava Vinhais, tornara-se conhecida por Terra Fria, mas o ar estival revelava-se a brutal excepção. A amplitude térmica era de tal modo radical que, devido à dilatação, nem os carabelhos se aguentavam.

O veterinário endireitou-se, esfregou o queixo e ponderou o problema.

"O Nilo", disse, dirigindo-se ao cão que o observava com curiosidade. O rafeiro ergueu as orelhas, imediatamente alerta. "Vai à cozinha buscar a caixa das ferramentas." O cão fez um movimento com a cabeça e ganiu de mansinho, como que a pedir um esclarecimento. "A caixa de ferramentas", quase soletrou Luís. Mostrou com as mãos o tamanho da caixa e depois fez o gesto de martelar. "Ferramentas."

Nilo arregalou os olhos, como se tivesse entendido, e partiu em velocidade.

"O sô'tor", chamou uma voz.

Luís voltou a cabeça e viu o serra-cancelas aproximar-se.

"Olá, Ti Manei. Então?"

O pastor tirou o chapéu, respirou fundo e limpou a transpiração.

"Puf! Vai um calor do arco-da-velha. Nossa Senhora!"

"Lá diz o povo, Ti Manei", sorriu Luís. "Aqui em Trás-os-Montes, nove meses de Inverno e três de inferno."

"Antão não é, sô'tor?"

Luís limpou as mãos ao rabo das calças.

"Como vão as coisas consigo?"

O serra-cancelas mirou o veterinário, cabisbaixo.

"Aiche! Vão mal, sô'tor."

"Então, Ti Manei?"

"É a minha vaca mais gorda, sô'tor. A Rosinha. Recusa-se a comer."

"Ena, homem! Será que se decidiu a fazer dieta, a esperta-lhona? Se calhar tem um boi na mira e quer pôr-se bonita, hã?"

"Não brinque, sô'tor. O caso é sério."

"Não se aflija, homem. Onde está o seu gado?"

"Anda no monte, sô'tor. Botei as ovelhas acarradas à sombra, por causa do calor, mas elas só querem ceibar-se."

"E a vaca também?"

"Não, sô'tor. Ela anda muito murchita, coitadinha, assim toda afinhada, até faz espécie. Ademais, o abarro está-lhe a sair a modos que aguado. O aspeito dela não é nada bô, de maneira que a deixei deitada ao lameiro, no repouso."

"Hmm, está bem. Vou só arranjar aqui este carabelho e depois já lá vou vê-la, está bem?"

O homem hesitou.

"Já agora, sô'tor. Eu não queria ceranganhar, mas também não ando lá muito católico."

"Então?"

O serra-cancelas assentou a mão na região lombar e esboçou um esgar dorido.

"Tenho aqui uma moléstia nas costas e mal consigo andar no cangaço. Até parece que me aboncaram, caramba! Será que o sô'tor me poderia também botar os olhos nisto?"

Luís ergueu as sobrancelhas.

"Calculo que você saiba que eu sou veterinário..." O rosto abriu-se num sorriso. "Bem, suponho que não faz mal. Se vou a sua casa ver a vaca, também o posso ver a si, que diabo. Sempre despacho dois animais de uma só vez."

"Deus lhe pague, sô'tor", agradeceu o serra-cancelas, voltando a pôr o chapéu na cabeça. Ia despedir-se mas bateu com a palma da mão na testa; havia algo mais para dizer. "O sô'tor, óquaisque já não m'alembrava, c'um catano! O Toino dos Correios passou por mim há bocadinho, estava eu a abantar para aqui, e pôs-se à cumbersa comigo. Pediu-me para lhe dizer que tem lá uma cartita para si."

"Uma carta nos Correios para mim?"

"Sim, sô'tor. Chegou à pela manhã."

Luís decidiu alterar o plano que havia traçado; tinha curiosidade de ler a carta, podiam ser novidades dos Cerejais ou, o que seria ainda mais importante, notícias de Penafiel. Desde que viera para Vinhais que alimentava um sentimento ambivalente: queria esquecer Amélia mas receava que ela o esquecesse. Sabia que não havia futuro para eles, embora mantivesse uma esperança secreta; ansiava por ir a Penafiel vê-la, mas temia fazê-lo e, das duas vezes que Joana lá fora

em visita, decidira não a acompanhar. Amélia dera à luz mais um filho e custava-lhe ver aquele novo fruto do casamento, sobretudo porque fora produzido já depois de a ter reencontrado.

"É a cara chapada do Mário", dissera-lhe Joana com um sorriso inocente quando viera de Penafiel logo após o nasci­mento da criança.

Isso doera.

Na verdade, Luís não sabia o que queria. Ou melhor, sabia. Sabia que queria Amélia, sempre quisera e sempre ia querer. O problema é que ela estava fora do seu alcance, a mente dizia-lhe que para sempre, o coração respondia-lhe que por enquanto. Desorientado por aquele conflito interior, refugiava-se no trabalho e convencia-se a si mesmo de que atrás do tempo viria uma resposta.

E se a resposta viesse na carta que o Ti Manei lhe anun­ciara? Quando chegava correio, Luís mal continha a ansiedade, tão grandes eram as suas expectativas de uma novidade de Penafiel que, como um maravilhoso passe de mágica, tudo viesse a mudar. Mas seguia-se a inevitável decepção. Ou as cartas não eram de Penafiel, ou se eram não passavam de missivas de Amélia para Joana, que se mostravam desapontadoramente mundanas; davam-lhe notícias da terra, dos filhos e de pouco mais. Talvez a única coisa de facto reveladora fosse a fórmula que a sua antiga namorada usava para a despedida; escrevia "dá um beijo muito afectuoso ao teu marido" e Luís sabia que aquelas palavras lacónicas enco­briam um ardor ferido e amordaçado.

Com um gesto impaciente, atirou o martelo para a caixa das ferramentas e resolveu deixar o conserto do carabelho para mais tarde; a fechadura da adega podia decerto esperar mais uma hora. Saber que correio seria aquele que o serra-cancelas lhe anunciara parecia-lhe bem mais importante naquele momento.

Deixou a caixa trazida por Nilo junto à porta, aguardando o seu regresso para retomar o trabalho, e subiu ao quarto.

"Joana, vou aos correios", anunciou, abrindo a gaveta à procura de roupa limpa. "Chegou uma carta."

Sentada à mesinha de costura, a mulher pregava os botões de uma camisa de Verão.

"Levas o Nilo?"

"Sim."

"Mas eu preciso dele para ir à mercearia buscar umas alheiras."

"Eu vou lá."

Mudou de camisa, fez sinal ao cão de que o seguisse e desceu até ao centro da vila.

O empregado dos Correios, António, estava sentado ao balcão a separar encomendas quando viu o veterinário e o seu inseparável cachorro entrarem.

"Ora viva!"

"Olá, senhor doutor", cumprimentou António, voltando-se para um cacifo onde se encontrava correspondência amontoada. "O Ti Manei falou consigo, ora é?"

"Sim, homem. Tem aí uma carta para mim?"

O empregado tirou um envelope do molho e analisou o espaço do remetente.

"Tenho, senhor doutor." Estendeu-lhe a carta. "Aqui está."

Com um gesto sôfrego, Luís pegou no sobrescrito e, a esperança a encher-lhe de novo o peito, reconheceu o traço nervoso de Amélia impresso na textura lisa do papel.

"Você é um barbino, Toino", repreendeu-o amigavelmente. "Eu já lhe tinha pedido que me entregasse imediatamente

em casa todo o correio de Penafiel. É por causa da minha mulher. Sabe como é, anda sempre com saudades da irmã..."

"Eu sei, senhor doutor. Mas esta manhã recebi muita coisa e acredite que não tive tempo, tenho andado todo afergulhado. Até tive de levar um telegrama ao senhor doutor Leite, veja lá."

As cartas de Amélia eram sempre endereçadas à irmã. Dessa vez, porém, e ao passar uma segunda vez com os olhos pelo sobrescrito, Luís reparou que Amélia também escrevera o seu nome.

Para: Joana e Luís Afonso.

"Mas que raio!...", admirou-se.

"Está tudo bem, senhor doutor?"

Absorvido nos seus pensamentos, Luís resmungou uma resposta distraída e saiu da estação telégrafo-postal na dúvida sobre se deveria ou não abrir de imediato o envelope. O facto de o seu nome lá constar era uma indicação de que o conteú­do lhe dizia directamente respeito. Mas o que seria? Apossou-se dele um nervoso miudinho, feito de desejo e esperança e ansiedade. Talvez a carta lhe desbravasse novos caminhos para Amélia, embora o mais provável fosse isso não acontecer. Receava a decepção, mais uma na longa lista. A hesitação prolongou-se até ao fim da rua, que percorreu em diálogo consigo mesmo, abro não abro?, mas ao entrar na mercearia tomou enfim a decisão.

Ia abrir.

Quando chegou a casa pousou pesadamente a cesta com as compras no chão e sentou-se no cadeirão diante da mesinha de costura, o corpo esvaziando-se como um saco furado. Ainda às voltas com os botões da camisa, Joana ergueu a cabeça para olhar o marido e suspendeu o movimento da agulha, algures entre intrigada e alarmada.

"Então, Luís? O que tens?"

Já se habituara ao ar distantemente melancólico do marido, mas não era melancolia o que lhe lia nos olhos nesse momento. Era desânimo, era inquietação, era qualquer coisa pesada que logo a inquietou.

"Fala, homem! Estás a assustar-me! O que se passa?"

Luís meteu a mão no bolso e tirou um envelope dobrado, que estendeu à mulher.

"Lê."

Joana fixou os olhos no sobrescrito e pôs a mão no peito ao ver a letra do remetente, o alarme disparando-lhe no coração.

"Ai Jesus! O que é?" Olhava a carta que o marido lhe estendia, mas tinha medo de pegar nela. "Aconteceu alguma coisa à minha irmã?"

"É o teu irmão."

"Qual irmão?"

"Não tens um irmão?"

"Ah, estás a falar do Chico?" A admiração de Joana era genuína; sabia que Francisco era o seu irmão adoptivo, claro, mas raramente o via como tal. "O que se passa? O que lhe aconteceu?"

Luís voltou a agitar o envelope que mantinha estendido na direcção da mulher.

"Lê."

Os dedos já a tremerem, Joana pegou por fim na carta.

"Morreu?"

"Foi apanhado."

"Mas está bem?"

"Foi apanhado, Joana. A polícia prendeu-o em Penafiel."

A mulher quase suspirou de alívio e desdobrou de imediato a carta que ainda momentos antes receara.

"Credo, Luís!", protestou, lançando um olhar ressentido na direcção do marido. "Pregaste-me cá um susto! Chiça! Pensei que tinha acontecido qualquer coisa de muito grave..."

"O teu irmão foi preso. Não achas que isso é muito grave?"

"É melhor do que estar morto", retorquiu ela, colando os olhos às primeiras linhas da missiva. "Agora ao menos sabemos onde ele está. Ademais, não te esqueças que ele matou o Tino. Tem de ser punido, não achas?"

Surpreendido com a reacção da mulher, Luís ficou sem saber o que dizer. A detenção de Francisco era uma notícia desastrosa, mas a verdade é que só ele e Amélia conheciam a verdadeira amplitude daquele desastre. Para toda a gente, incluindo Joana, o que estava em causa era apenas a captura de um assassino. Para os dois amantes, porém, tratava-se de uma caixa de Pandora prestes a abrir-se. Se Francisco começasse a falar, a relação amorosa entre os dois tornar-se-ia inevitavelmente conhecida. Seria uma catástrofe!

A mente fervilhava-lhe em busca de saídas para aquele problema. Que deveria fazer? Ao reordenar os pensamentos, tornou-se evidente que a grande prioridade era convencer Francisco a manter-se calado. Mas como assegurá-lo? Olhou para a mulher e, no ardor da sua ansiedade, viu uma oportunidade. Teria de ser pela compaixão. Francisco teria de perceber que, se falasse, arrastaria toda a família para uma tragédia de dimensões incomensuráveis. E a melhor maneira de perceber isso era ver a família, sentir as irmãs junto dele, perceber que elas o ajudavam naquele momento difícil.

"Talvez seja melhor ires a Penafiel."

"Para quê?"

"Para o veres, claro. Afinal, ele é teu irmão e precisa de ti."

Joana considerou por instantes a ideia e dobrou a camisa que havia remendado.

"Tens razão", disse, pondo-se de pé. "Vou ver a que horas é amanhã a caminheta para Bragança." Desapareceu no quarto, onde se começaram a ouvir as gavetas a serem abertas. "Tu também vens?"

"Receio que a minha presença seja contraproducente."

"Porquê?"

"Para ser sincero, acho que o Chico não simpatizou comigo."

A mulher espreitou da porta do quarto.

"Ora! Ele nunca simpatiza com ninguém..."

Luís ergueu-se do cadeirão, foi buscar as botas para montar e assobiou na direcção de Nilo, chamando-o para um passeio.

"Ele precisa da família, Joana", disse num tom final. "Quem tem de estar com ele és tu e a tua irmã."

E saiu de casa.

A carta incendiara-lhe o dia. Estava convencido de que a detenção de Francisco teria consequências e precisava de ficar sozinho para melhor ponderar a nova situação.

 

Um toque na porta do gabinete interrompeu a redacção do ofício por parte do graduado de serviço. O tenente Lopes praguejou e levantou os olhos na direcção da entrada.

"Entre."

O ajudante abriu a porta com suavidade e fez continência.

"O meu tenente dá licença?"

"Vocês não sabem que eu estou a trabalhar?", perguntou o tenente, sem esconder a irritação. "O que é agora?"

"Está aqui um senhor para si."

O graduado ajeitou o gesso no braço esquerdo e debruçou-se sobre a secretária para retomar a escrita.

"Ele que espere."

O ajudante manteve-se colado à porta, como se tivesse medo de sair.

"É o senhor inspector Silva..."

"Ele que espere, já disse."

"... da PVDE."

O tenente imobilizou a mão e ergueu as sobrancelhas espessas, de repente muito alerta. Tinha estampada na cara a expressão de um menino mal comportado a quem os pais haviam apanhado em flagrante. Teria ouvido bem?

"Da... da Polícia de Vigilância?"

"Sim. Veio de Lisboa e..."

"Ele que entre!"

O ajudante desapareceu e o tenente pôs-se de pé, sem saber o que fazer. Não era todos os dias que se recebia um inspector da PVDE. Mirou-se no reflexo da vitrina da estante com os livros, para se assegurar de que estava apresentável. Tinha a camisa desabotoada e ligeiramente desfraldada, o que de imediato corrigiu. Certificou-se de que o distintivo com o emblema da PSP e o seu nome se encontrava pregado em conformidade com os regulamentos. O seu braço esquerdo continuava ao peito, como um destroço ali abandonado, mas quanto a isso nada podia fazer.

Um homem baixo de cabelo negro reluzente entrou no gabinete com ar de quem tinha pouco tempo a perder.

"O cavalheiro é que é o responsável por esta chafarica?", disparou.

O tenente pôs-se muito hirto e fez continência.

"Senhor inspector, é uma honra tê-lo por cá. Eu sou o graduado de serviço e não sabia que..."

"Onde está ele?"

O graduado olhou para o homem da PVDE, desconcertado.

"Como?"

"Onde está o tipo que vocês prenderam?"

"Qual deles?"

"O que veio de Espanha, homem!"

Os olhos do tenente Lopes dançaram de um lado para o outro, tentando perceber o que se passava. O inspector viera

de Lisboa de propósito para falar com o matulão que haviam detido na semana anterior?

"O senhor inspector está a referir-se ao indivíduo da Le­gião Estrangeira?"

"Sim, esse mesmo. Onde está ele?"

O graduado tirou da gaveta um molho de chaves longas, tão grandes que pareciam gazuas para abrir castelos, e fez um gesto em direcção à porta, convidando o homem da PVDE a sair à sua frente.

"Queira vir comigo, senhor inspector. Eu levo-o à cela."

Abandonaram o gabinete e meteram pelo corredor, rumo à ala onde os presos eram mantidos provisoriamente. O tenente caminhava à frente, as chaves a tilintarem-lhe no cinto como moedas num mealheiro, o braço engessado preso ao peito.

"O que lhe aconteceu?", perguntou o inspector, lançando um olhar para o braço.

"Foi o preso", devolveu o tenente, mal-humorado com a referência ao ferimento. "Ele resistiu à ordem de prisão e partiu-me um osso. Um outro camarada meu ficou com o sobrolho aberto."

"Caramba!", exclamou o homem da PVDE. "Deve ter sido uma tourada!"

"Nem imagina."

"Espero ao menos que vocês o tenham deixado em condições de falar."

"Perdão?"

"Bem... suponho que lhe tenham dado uma sova de caixão à cova, não?"

O tenente suspirou.

"Ninguém dá nenhuma sova a um homem destes."

"Porquê?"

O graduado abriu uma porta e assomaram aos calabouços da cadeia municipal.

"O senhor inspector já vai ver."

Os calabouços revelaram-se húmidos e escuros, com um forte hálito a podre; era o cocktail putrefacto do odor a mofo misturado ao fedor ácido da urina e das fezes. Uma claridade ténue desenhava silhuetas fantasmagóricas no chão e nas paredes, as formas banhadas por um anélito de luz. Devido à diferença de luminosidade, o inspector levou alguns segundos a adaptar-se à penumbra; conseguia ver as grades e as janelinhas pequenas e ainda uns vultos difusos sentados nas celas, mas não distinguia feições.

O graduado imobilizou-se diante de uma cela e agarrou uma grade da porta, abanando-a para a fazer retinir como um sino.

"É aqui", anunciou.

O inspector estreitou os olhos e esforçou-se por destrinçar o interior. Distinguiu um vulto volumoso sentado numa esteira ao canto. O vulto tornou-se ainda maior quando se levantou para encarar os recém-chegados.

"Caramba!", exclamou o homem da PVDE, impressionado com o corpanzil do suspeito. "É este o nosso homem?"

"Chama-se Francisco Rodrigues, senhor inspector."

"Eu sei muito bem como ele se chama. Pode abrir a porta?"

O pedido deixou o graduado desconcertado.

"O senhor inspector quer libertá-lo?"

"Não, homem. Quero é entrar."

Sem questionar a ordem, que manifestamente considerava bizarra e até perigosa, em virtude do perfil violento do recluso, o tenente pegou no molho e, à meia-luz, os olhos colados

às chaves para as ver melhor, procurou aquela que correspondia à fechadura da cela. Encontrou-a, encaixou-a na enorme fechadura da porta e rodou-a para abrir.

Clank.

O inspector entrou na cela e virou-se para o graduado, as grades agora a separá-los.

"Tranque a porta e vá-se embora."

"Mas, senhor inspector, isso não é..."

"Vá-se embora!", cortou o homem da PVDE com impa­ciência. "Eu chamo-o quando terminar."

Sem se atrever sequer a resmungar, o graduado trancou a porta e afastou-se, os passos a reboar pelo corredor até se sumirem, deixando os calabouços entregues aos reclusos e ao recém-chegado.

O inspector girou a cabeça em redor, os olhos já adaptados à penumbra. Um dos presos começou a cantarolar, desafinado, e outros puseram-se a tagarelar. Do tecto pingavam gotas de água que tombavam em poças com um clac metálico. Um sopro de aragem traçava um rasto de pó desde a janelinha; parecia o rendilhado de uma galáxia a flutuar à meia-luz da eternidade. As celas estavam nuas, despojadas, apenas decoradas por uma esteira suja e por um balde imundo; os corpos transpirados dos presos languesciam ao longo das esteiras e sobre os baldes zumbiam furiosamente varejeiras, num festim de detritos e imundice.

"O cavalheiro é o legionário?", perguntou, dirigindo-se ao vulto maciço que o olhava em silêncio do canto da cela.

A massa de homem deu dois passos e ficou frente ao inspector. A diferença de estatura e de volume de corpos tornou a cena bizarra; era como se um gorila olhasse para um chimpanzé.

Quem e você?

O inspector estendeu o braço.

"Chamo-me Aniceto Silva e sou inspector da PVDE." Aper­taram as mãos. "Presumo que saiba o que é a PVDE..."

Francisco abanou a cabeça.

"Não."

"Chama-se Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e serve para combater os comunistas e os espiões." Olhou em volta da cela. "Oiça, não há aí nenhum sítio onde nos possamos sentar?"

O prisioneiro indicou a esteira.

"Só se for ali." Girou o dedo noutra direcção e apontou para o balde. "Ou ali."

As moscas zuniam em fúria sobre o balde e o recluso sorriu .com desdém. O inspector espreitou o recipiente com um esgar de repulsa e dirigiu-se à esteira, evitando os pequenos charcos que a humidade gotejante semeara pelo chão.

"Isto é perfeitamente nojento", observou.

Verificou se a extremidade da esteira que escolhera para se sentar estava limpa e acomodou-se com mil cautelas.

Francisco encolheu os ombros e sentou-se também.

"Já vi pior", disse o legionário. "Quando fiz a recruta em Dar Riffien, os tipos puseram-me um dia inteiro mergulhado nos esgotos. E uma vez no Jarama apanhei na cara com as tripas de um camarada esfrangalhado por uma bala de canhão." Indicou o balde com a cabeça. "Depois de se passar por trampas dessas, isto não é nada."

"O cavalheiro fez a guerra toda?"

"Quase toda. Fiz a Andaluzia, fiz Badajoz, estive em Madrid, andei no Jarama, fiz a conquista de Barcelona, fui até à fronteira..."

O inspector assobiou, impressionado.

"Ena... isso é um curriculum e peras." Estudou Francisco com atenção. "Matou muitos comunistas?"

Os olhos do legionário brilharam.

"Muitos", confirmou. "O inferno está cheio de filhos da puta que mandei para lá."

O inspector soltou uma gargalhada e inclinou-se para a frente, batendo na perna do legionário em sinal de aprovação.

"O cavalheiro é cá dos meus!"

Francisco arreganhou um sobrolho desconfiado.

"Pois sim", disse, no tom céptico de quem já viveu muito. "Mas a verdade é que estou aqui enjaulado como se não passasse de um animal."

O homem da PVDE tirou um maço de cigarros do bolso de trás das calças.

"Pois é justamente sobre isso que lhe quero falar", disse. Estendeu o maço na direcção do prisioneiro. "Vai um cigar­rinho?"

Francisco aceitou o cigarro, que o inspector alumiou com os dedos amarelecidos de nicotina. Em breve havia duas pontas rubras de luz a dançar na escuridão e uma nuvem de fumo cinzenta tornou-se branca ao ascender diante da janela; o aroma acre parecia perfume na pestilência nauseabunda dos calabouços.

"O senhor pode tirar-me daqui?", quis saber Francisco, as palavras saindo-lhe cautelosas, como mãos a tactearem o caminho.

"Posso", confirmou o inspector. "Mas primeiro preciso que me conte o que se passou em Castelo de Paiva."

O prisioneiro hesitou, cauteloso, e perscrutou melhor o seu interlocutor. Seria aquilo uma armadilha? Não conhecia o homem de parte alguma, aparecia-lhe ali todo simpatia e cheio de salamaleques, chamava-lhe cavalheiro, sentava-se

com ele, dizia-se um grande manda-chuva, oferecia-lhe um cigarro... e depois queria arrancar-lhe uma confissão.

Não, nesse truque não cairia ele.

"Não sei."

"Oh, não me venha com essa! Então o cavalheiro não sabe o que se passou em Castelo de Paiva?"

O homem da PVDE aguardou um momento pela resposta, mas Francisco manteve-se calado. O inspector era um polícia experiente em interrogatórios e sabia que teria de ser subtil para extrair do prisioneiro o que queria dele. Os assaltos directos teriam de ser intercalados por formas mais insidiosas de actuar.

"Oiça, eu vou ser sincero consigo", disse, exalando duas baforadas de fumo pelo nariz, como um dragão pachorrento. "Como lhe disse, sou inspector da PVDE. A minha missão é combater os comunistas e os inimigos da nossa pátria, não é desvendar casos de delito comum. Isso é para a Judiciária." Apontou para o seu interlocutor. "Eu olho para si e o que vejo? Vejo um patriota, vejo um herói, vejo um homem disposto a dar a vida para acabar com a terrível ameaça do comunismo à nossa civilização. O que o cavalheiro fez e o que o cavalheiro faz é, não duvide!, digno da maior admiração." Pôs a mão no peito. "E olhe que é com a maior sinceridade que o digo: o cavalheiro é mesmo digno de admiração! Um exemplo para a nossa juventude!" Indicou a cela com um gesto furtivo. "Faz algum sentido a pátria ter o cavalheiro aqui trancado? Não faz. Mas também Cristo teve de passar pela cruz antes de atingir a redenção, não é verdade?" Fitou Francisco nos olhos. "O cavalheiro está a entender o que estou a tentar dizer-lhe?"

O legionário abanou a cabeça, baralhado.

"Não muito bem."

O inspector respirou fundo. O homem era um calhau, percebeu.

"O que lhe quero dizer é que me estou a marimbar para o que se passou em... em... como é que se chama a terriola onde o outro gajo se finou?"

"Castelo de Paiva."

"Isso. Não tenho nada a ver com a investigação ao que ali se passou, nem me apetece meter-me nisso."

"Então porque me faz perguntas sobre... sobre o que aconteceu?"

"Porque há um processo que está a decorrer. Porque o processo se encontra em fase de instrução e o cavalheiro vai ser acusado de homicídio. Porque, quando isto chegar ao tribunal, o cavalheiro será inapelavelmente condenado por ter morto um homem." Ergueu o dedo, solene. "E só há uma pessoa que pode travar tudo isso."

"Quem?"

"Eu."

O inspector largou mais uma baforada lenta, as volutas de fumo a rolarem como anéis, enlaçando-se umas nas outras até se perderem difusamente na sombra e acenderem de novo ao passar pelo hálito de luz que a janela expirava.

"O que pode o senhor fazer por mim?"

"Posso e quero tirá-lo daqui. Não faz para mim nenhum sentido que um cavalheiro como o senhor se encontre nesta situação por causa de um incidente infeliz que ocorreu há uns anos." Fez uma careta. "O problema é convencer o Ministério Público a retirar a queixa que impende sobre si. É que, bem vê, existe em toda esta história um homem assassinado. E, havendo um homem assassinado, há necessariamente um

assassino. Como ocorreu um crime público, é preciso dar-lhe solução. Está a ver onde eu quero chegar?"

"Não."

O homem da PVDE não se surpreendeu. As subtilezas não eram, definitivamente, o ponto forte do legionário.

"O que eu quero dizer é que, para o libertar, preciso de arranjar um assassino, percebeu? Não precisa de ser o cavalheiro, pode ser qualquer outra pessoa."

"Ah, já entendi", exclamou Francisco, o rosto iluminando-se. "Então... faça isso. Por mim, maravilha!"

"Mas qual é a outra pessoa que se pode acusar?"

"Não tem aí um comunista qualquer?"

O inspector abanou a cabeça.

"Não funciona assim", disse. "Tem de ser um suspeito credível, alguém que possa verosimilmente ter cometido o crime."

"Oh."

Fez-se silêncio. O agente fez deslizar o pé pelo chão húmi­do de cimento, à espera que o prisioneiro avançasse com uma sugestão. Mas Francisco permanecia calado, manifestamente sem ideias para resolver o problema.

Era preciso dar mais um empurrão.

"Oiça, quando o crime ocorreu, o cavalheiro estava sozinho?"

"Bem... não. Estava lá o Tino."

"Quem é o Tino?"

"É o... o morto."

"Não foi isso o que perguntei", insistiu o inspector, revirando os olhos. "O que eu quero saber é se havia nas redondezas mais alguém para além de vocês os dois."

Francisco manteve-se calado e desviou o olhar. Ao ver esta reacção, o inspector quase sorriu. Tornara-se claro que existia

ali de facto matéria a explorar; era só uma questão de esperar pelo momento certo e desferir então o golpe de misericórdia.

Tirou umas folhas do bolso e desdobrou-as.

"Aqui o relatório da GNR fala na presença do senhor alferes veterinário Luís Afonso, e de mais outras pessoas." Fixou os olhos em duas linhas do relatório. "A senhora dona Joana Afonso, a senhora dona Amélia Branco e respectivos filhos." Fitou Francisco. "Confirma?"

Sem dizer palavra, o prisioneiro assentiu com um movimento afirmativo da cabeça.

"Em bom rigor, qualquer destas pessoas pode ter cometido esse crime. Estavam todas presentes na mesma quinta. Está a entender onde eu quero chegar?"

Francisco voltou a assentir com a cabeça.

"Claro que me parece fora de questão que as senhoras ou as crianças tenham cometido um crime tão hediondo. Além do mais, e mesmo que quisessem, nem teriam força para partir o pescoço à vítima." Soergueu a sobrancelha. "Mas já este alferes veterinário Luís Afonso parece-me um caso diferente." Cravou os olhos com intensidade no seu interlocutor. "Não acha?"

O prisioneiro manteve-se calado.

"O cavalheiro porventura simpatiza com este senhor alferes veterinário?"

Francisco encolheu os ombros e esboçou um esgar de indiferença.

"Então qual é o problema?", persistiu o inspector, tentan­do forçar a nota neste ponto decisivo.

"Ele é marido da minha irmã."

O agente da PVDE inclinou-se para a frente e assumiu uma postura de conspirador.

"Temos informações de que este sujeito desenvolve actividades contrárias ao interesse da nação", murmurou, como se estivesse a desvendar um segredo de Estado. "Poderá mesmo ser um comunista." Deixou a última palavra fazer efeito na mente do seu interlocutor. "Por que razão está o cavalheiro a defender tal verme? Não é evidente para toda a gente que é ele o verdadeiro assassino? Ser marido da sua irmã não é um inconveniente para que a verdade saia cá para fora: é mesmo uma vantagem. Pois se o homem é comunista, então o cavalheiro está até a prestar um serviço inestimável à senhora sua irmã ao livrá-la de um sujeito com ideias tão nefastas, não lhe parece?"

O silêncio abateu-se sobre a cela. As gotas de água continuavam a lacrimejar ritmadamente sobre as poças abertas no chão, clac, clic, clac, e o rumor desordenado das conversas sussurradas nas restantes celas prosseguia aos tropeções, ora agora recrudescia, ora agora amainava.

"Repare", porfiou o inspector, avançando para desferir a estocada final. "Se o assassino for o cavalheiro, o que acontecerá? Um grande patriota irá para a cadeia por homicídio. Mas, se o crime foi cometido pelo outro, o patriota ficará livre para sempre e, ainda por cima, ajuda a retirar um perigoso comunista da circulação. Qual é a dúvida?"

Os olhos de Francisco cristalizaram-se num ponto indefinido da sombra, a mente intensamente ocupada no processamento de todas as ideias que lhe acabavam de ser sopradas. A opção era realmente essa: ou ia ele para a cadeia ou quem ia era aquele presumido, o marido infiel de Joana, o porco que uma vez quase esganara dona Beatriz, o cabrão que realmente o metera naquela confusão. Sim, era preciso não esquecer que tudo aquilo começara porque o marialva se atrevera a meter-se com a filha da dona Beatriz! Não fosse isso e o Tino a esta hora ainda estaria vivo. Não fosse isso e ele próprio, Francisco, não teria sido obrigado a fugir! Não havia dúvida, o culpado era aquele.... aquele comunista!

O prisioneiro olhou por fim para o inspector da PVDE e suspirou.

"Muito bem", disse. "Vou contar-lhe tudo."

 

A vaca mostrava-se realmente murcha, quase apagada. Estava deitada no lameiro no meio da palha, os olhos mortiços e uma baba branca a escorrer-lhe dos cantos da boca. O veterinário molhou o indicador na baba e aproximou-a do nariz para a cheirar; não gostou do odor. Pôs-lhe o polegar sobre a órbita esquerda e puxou-lhe a pálpebra para cima, analisando-lhe o branco do olho.

"A Rosinha vai finar-se, sô'tor?"

O serra-cancelas seguia a consulta com muita atenção, quase como se o bovino fosse um membro da família.

"Tenha calma, Ti Manei", devolveu-lhe Luís, já ocupado com a parte de baixo do olho.

"Ai, arreceio tanto por ela, valha-me Deus. Ando mesmo ralado de a ver com este aspeito assacrado, tadinha. Isto não é nada bô. Ela era tão abalofada, o sô'tor havia de ver! Agora, ó, botou-se-me assim afinhada." Cerrou a fronha, numa expressão inquisitiva. "O sô'tor acha que a Rosinha tem os pordentros arruinados?"

"Vamos ver, vamos ver." Procurou em redor. "Oiça lá, você tem aí uma amostra das fezes?"

"O quê, sô'tor?"

"O abarro. Onde está o abarro dela?"

"Botei-o lá fora, sô'tor. Vou buscar."

O homem levantou-se e saiu do estábulo. O veterinário permaneceu ajoelhado diante da vaca, procurando sintomas adicionais que confirmassem o diagnóstico que já ia forman­do na mente.

"Sô'tor!"

A voz vinha da entrada e Luís nem voltou a cabeça, tão concentrado se encontrava na avaliação do estado da vaca.

"O que é, Ti Manei? Não encontrou o abarro?"

"Está aqui um carro oficial."

O veterinário olhou por fim para trás, intrigado com a informação.

"Que carro oficial? Do que está você a falar, homem?"

"É um carro oficial, sô'tor." Fez um sinal para trás "Deve ser o senhor presidente do Conselho a convidá-lo para minis­tro, c'um caneco."

"À certa!", exclamou Luís. "Então vá lá ver o que lhe querem, eu espero pelo abarro."

"Mas não sou eu que eles querem, sô'tor. É o senhor."

"Eu?", admirou-se o veterinário. "Mas quem é?"

"É um home-de-recibo todo bem apessoado q'anda p'rá'li à escogita. Demandou por si."

Com uma expressão intrigada no rosto, Luís ergueu-se e veio à porta do estábulo. Viu um automóvel negro no caminho de terra e reconheceu no interior o rosto anafado do meritíssimo doutor Machado, o eminente juiz da terra, voz conservadora e parceiro das grandes jogatanas de domingo na sala de chá da Pensão Alves.

"Por aqui, senhor doutor juiz?", cumprimentou, limpando as mãos à bata enquanto se aproximava do recém-chegado.

Ao vê-lo, o doutor Machado abriu a porta do automóvel e apeou-se com esforço.

"Ah, doutor Afonso, finalmente que o encontro."

"Então? O que se passa?"

O rosto do juiz pareceu toldar-se por uma névoa de chumbo. Mergulhou a mão sapuda no casaco e extraiu uma folha.

"Recebi de manhã este ofício de Lisboa a seu respeito."

O doutor Machado calou-se; parecia manifestamente em­baraçado. Os olhos do veterinário pousaram no documento que o vento sacudia nas mãos do juiz.

"E então?"

"É do Ministério do Interior." Hesitou e carregou as sobrancelhas, interrogativo. "O doutor, diga-me lá: o senhor tem-se metido em sarilhos?"

"Do que está o senhor doutor juiz a falar? Que ofício é esse?"

"Estão a pedir que intime o senhor doutor a apresentar-se em Lisboa para prestar esclarecimentos."

"Esclarecimentos de quê?"

"Pois... é isso que me faz espécie. O senhor doutor envolveu-se em alguma situação... enfim, menos clara, digamos assim?"

Luís mordeu o lábio, sem saber para onde exactamente a conversa se dirigia mas pressentindo o seu rumo.

"O que diz a carta, senhor doutor juiz?"

O doutor Machado estendeu-lhe o documento.

"O ofício não revela nada", disse. "Ora veja."

O veterinário pegou na carta e passou os olhos pelo cabeçalho. Tinha timbrado o escudo português e era do Ministério do Interior. Em letra dactilografada numa fita já muito gasta,

requeria a sua excelência, o senhor doutor juiz Alberto Machado, digníssimo magistrado em Vinhais, que intimasse o senhor doutor Luís António Afonso, médico veterinário na mesma vila, a apresentar-se no dia 15 de Agosto, pelas 11 horas, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, a fim de prestar os esclarecimentos tidos por convenientes. O ofício terminava com o tradicional "a bem da Nação" e tinha por baixo uma assinatura ilegível.

"Que esclarecimentos são estes?", perguntou Luís, devolvendo a carta ao juiz.

"Só sei o que li aqui. Os senhores do ministério solicitam a sua presença em Lisboa. Quanto ao resto, nada sei." Os olhos do juiz tornaram-se perscrutadores. "O senhor não se tem envolvido em confusões, pois não?"

"O senhor doutor juiz, a minha vida é toda ela uma confusão." Baixou os olhos para a carta que o doutor Macha­do mantinha nas mãos. "Diga-me uma coisa: e se eu não quiser ir?"

"O senhor doutor tem mesmo de ir."

"Sim, mas e se eu não quiser?"

O doutor Machado mudou de perna de apoio, claramente pouco à vontade.

"Não se meta nisso, doutor Afonso. Olhe que eles até estão a ser simpáticos ao solicitar-lhe que se apresente voluntariamente. Se eu fosse a si ia lá, prestava os esclarecimentos devidos e voltava. Se o senhor doutor não fez nada, não tem nada a temer, não é verdade?"

"Pois, mas se eles querem mesmo falar comigo, que venham cá. Agora eu sou algum moço de recados que esteja aqui às ordens de suas senhorias de Lisboa?"

"Não faça isso, doutor. Vá e resolva o assunto, vai ver que é melhor."

"É melhor, porquê? Então eu é que tenho a maçada e eu é que entro com as despesas e isso é melhor? Melhor para quem?"

"Faça o que eu lhe digo: vá."

"Mas porquê? O que me acontece se não for?"

"Se o doutor não for, eles vão ficar melindrados e... enfim, irão adoptar medidas menos agradáveis."

"Ai sim? Tais como?"

O juiz passou com as costas da mão pela testa, para limpar a transpiração, e respirou fundo.

"Mandam prendê-lo."

"Mandam-te prender?"

A reacção de Joana foi de absoluta estupefacção quando Luís lhe reproduziu a conversa dessa manhã junto ao estábulo do Ti Manei.

"Foi o que o juiz disse."

"Mas porquê? O que fizeste tu?"

O marido afagou o queixo, quase incapaz de conter a ansiedade. Queria discutir o assunto que verdadeiramente o atormentava e todas as suas ramificações, mas não o podia fazer, não com Joana. Quanto muito, poderia apenas aflorar a questão.

"Deve ser por causa do teu irmão."

"Quem? O Chico?"

"Sim, claro. Não te esqueças de que estávamos na quinta quando o teu irmão partiu o pescoço ao caseiro."

"Também eu lá estava e que eu saiba ninguém me convocou para prestar quaisquer esclarecimentos."

Luís calou-se, reprimindo os seus pensamentos. Ao contrário da mulher, ele tinha testemunhado o crime. Mas isso Joana não sabia. A versão que ele e Amélia na altura haviam

concertado fora que se tinham deparado com o cadáver ao sair lá para fora. O problema, claro, é que isso só era sustentável enquanto Francisco se mantivesse calado. Mas com ele detido em Penafiel não havia modo de saber se o rapaz ia ou não dar com a língua nos dentes.

"Que tipo de pessoa é o teu irmão?", perguntou de chofre, quase a despropósito.

"O Chico? Se queres que te diga não sei bem. Como sabes, não me dava muito com ele. Porquê?"

"Achas que ele era menino para andar a inventar coisas contra outras pessoas?"

Joana ficou a olhar para o marido, como se tivesse acabado de cair em si. Ficou um longo instante ali especada, avaliando se aquela linha de pensamento fazia algum sentido.

"Pensas que o Chico ia dizer que tu o ajudaste a matar o Tino?", perguntou ela muito devagar.

"É uma hipótese."

A mulher permaneceu uns segundos em silêncio, equacionando a possibilidade.

"Não me parece", afirmou enfim.

"Pois, mas o facto é que o Ministério do Interior quer falar comigo."

"Está bem", assentiu ela. "Mas daí até ele te acusar de alguma coisa... não me parece."

"Porque dizes isso? Afinal, e como tu própria já reconheceste, não te davas assim tão bem com ele quanto isso..."

"Eu não o conhecia, é verdade, mas conhecia-o a minha mãe."

"E então?"

"Ela costumava dizer que o Chico era mais fiel do que um cão." Desfocou os olhos, como se tivesse alterado o centro da sua atenção. "Uma vez a minha mãe deu-lhe uma trepa por

ele ter devorado uma lata inteira de bolachas Maria que ela guardava lá em casa. Com a mão ainda a doer de tanto lhe bater, agarrou-o pela orelha e levou-o para a mercearia, supostamente para ir buscar mais uma lata, mas na verdade para o humilhar em público. Acontece que um labrego qual­quer os viu a passar na rua e mandou uma piadinha ordinária à minha mãe, do género: eu, com uma mãezinha dessas, fazia--lhe isto e aquilo. Pois o Chico ouviu-o e não descansou enquanto não o moeu de pancada; teve de ser a minha mãe a arrastá-lo dali. E isto, nota, poucos minutos depois de ter sido sovado por ela!"

Um sentimento de alívio assentou aveludadamente em Luís, que se descontraiu um pouco.

"Fidelidade canina, portanto."

"Isso."

Com uma expressão subitamente determinada, Joana levantou-se do lugar e dirigiu-se à escrivaninha do marido.

"Onde vais?"

"Vou começar a preparar as coisas para a tua partida."

"Calma!", disse ele. "A viagem é só na próxima semana, que diabo. Temos tempo!"

Ignorando o argumento, a mulher abriu uma gaveta da escrivaninha e retirou do interior duas folhas densamente preenchidas. Observando-as à distância, Luís percebeu que eram as tabelas de horários da camioneta de Bragança e dos comboios para o Porto e para Lisboa.

"A próxima semana é já daqui a três dias, Luís."

A ansiedade consumiu o veterinário nos três dias de espera pela partida para Lisboa. Fingiu-se despreocupado e evitou alterar a rotina, mas a verdade é que a sua mente não largava o assunto. Acordava mais cedo a pensar no que lhe quereria o Ministério do Interior, desempenhava todas as suas funções com o problema a martelar-lhe a mente e ia deitar-se sempre com a cabeça na mesma coisa. Até em sonhos o tema lhe aparecia.

Como não era capaz de viver assim, sempre obcecado com o mesmo assunto, começou a convencer-se de que o mais provável era a montanha ir parir um rato. Se Francisco tivesse proferido declarações comprometedoras, raciocinou, inevitavelmente arrastaria a irmã consigo. Ora, e atendendo ao perfil de fidelidade canina que Joana descrevera, isso não parecia provável. Além do mais, era preciso ter em conta a forma como ele mesmo havia sido interpelado. Caso o assunto estivesse relacionado com a morte do caseiro em Castelo de Paiva, o contacto não seria evidentemente feito pelo Ministério do Interior, mas pela Polícia Judiciária. E, se existissem realmente suspeitas de cumplicidade no homicídio, não lhe pediriam que fosse a Lisboa prestar esclarecimentos; viriam antes detê-lo na sua própria casa.

Este raciocínio foi-o deixando mais tranquilo, mas por outro lado criava um novo enigma. Se o Ministério do Interior não o queria ouvir sobre o crime de Castelo de Paiva, então qual seria a razão da sua convocatória? Que raio de esclarecimentos eram aqueles que lhe seriam solicitados? Foi como se tivesse saído do forno a escaldar para a panela a ferver. Se o motivo da convocatória não era a morte do caseiro, haveria de ser outra coisa qualquer. O facto é que o Ministério do Interior queria interrogá-lo e, por mais que tentasse tranquilizar-se e dissesse a si mesmo que não aconteceria nada de especial e que correria tudo bem, essa realidade permanecia incontornável.

Estava Luís em casa ainda mergulhado nos becos sem saída do problema quando Nilo assomou à porta e ganiu baixinho, fazendo sinal em direcção às escadas exteriores.

"O que é, Nilo? Vem aí alguém?"

O cão baixou a cabeça em assentimento e o dono levantou-se para espreitar lá para fora. Viu a figura ossuda do advogado da terra, o doutor Garcia, a bufar transpiração enquanto escalava os degraus.

"Ora viva, caro amigo!", acolheu-o. "Por cá?"

Ao chegar à porta de entrada, o advogado respirou fundo.

"Ufa!", expeliu, afogueado, desapertando o nó da gravata às cornucópias azuis. "Hoje está um calor do arco-da-velha, rais t'a parta o diabo!" Apertou a mão ao anfitrião. "O senhor doutor não terá por aí uma aguinha?"

"Entre", convidou-o Luís, fazendo sinal ao advogado de que passasse à frente. "Já lhe vou buscar um copo."

"Eu preciso é de uma garrafa."

O visitante instalou-se numa poltrona da sala e Luís foi à cozinha buscar a água. Voltou instantes depois com uma garrafa de litro e meio, que o doutor Garcia quase esvaziou de uma assentada.

"Aaaaah! Maravilha!", suspirou o advogado ao pousar a garrafa na mesinha ao lado da poltrona. "Agora sei o que sentem os camelos depois de atravessarem o deserto, c'um caneco!"

Luís acomodou-se na poltrona ao lado.

"Então o que o trás por cá?"

"É a sua viagem, meu caro."

"O que tem ela?"

"O doutor Machado falou-me da sua convocatória e eu decidi vir aqui para lhe oferecer os meus serviços."

"Ah, muito obrigado. Espero não vir a precisar deles. Afinal isto é apenas um pedido para prestar esclarecimentos, nada mais. Se fosse coisa grave, decerto não vinha uma carta nestes termos, conforme aliás o próprio doutor Machado fez questão de me dizer."

O advogado esboçou uma careta.

"Pois, mas não sei se será assim tão simples."

Luís ergueu o sobrolho, subitamente inquieto.

"Porque diz isso?"

O doutor Garcia passou a palma da mão pela cara, como se tentasse limpar os últimos vestígios de suor, mas era evidente que procurava reordenar os pensamentos para melhor expor o que ali o trouxera.

"Oiça, o doutor Machado falou-me no assunto logo que o ofício chegou de Lisboa e eu confesso que não prestei grande atenção porque também raciocinei nos mesmos moldes. Se fosse coisa grave, tinha com certeza vindo uma ordem pior." Entrelaçou os dedos. "Mas esta manhã, no tribunal, o assunto voltou à baila e o doutor Machado, já nem sei porquê, mostrou-me o ofício." Fez um estalido com a língua. "Quan­do o li... olhe, caiu-me o coração aos pés."

Luís, que na sua poltrona se esforçava por aparentar a maior tranquilidade, descruzou a perna e inclinou-se na direcção do visitante, o alarme a perpassar-lhe pela face.

"Porquê? O que tem a carta de especial?

O advogado coçou a cabeça, como se estivesse indeciso.

"Não sei como lhe diga isto", titubeou, a tactear o caminho. "A verdade é que aquele ofício está-me a fazer espécie."

"A si e a mim. Isto do Ministério do Interior querer fazer-me perguntas é enervante, realmente. Estou farto de matar a cabeça para tentar perceber o que diabo me querem eles, mas, por mais voltas que dê, a verdade é que não encontro respostas."

"O senhor doutor leu a carta?"

"O juiz mostrou-ma."

"Não notou lá nada de estranho?"

"Quer dizer, para além da estranheza de eu ser convocado para prestar esclarecimentos sobre um assunto que desconheço, não. Porquê?"

O doutor Garcia meteu a mão ao bolso e extraiu um bloco de apontamentos com linhas azuis. Folheou-o rapidamente até se fixar numa página rabiscada a negro.

"Eu tomei a liberdade de copiar o teor do texto." Apontou para uma linha. "O que me está a fazer espécie é isto que vem aqui. Ora veja."

Luís espreitou a linha. O dedo do advogado indicava o endereço contido na carta.

"A Rua António Maria Cardoso? O que tem?"

O doutor Garcia respirou fundo, retirando daquela morada todo o significado contido no ofício.

"Esta morada não é a do Ministério do Interior, doutor", revelou. "Mas nesta rua encontra-se uma entidade tutelada pelo ministério e é ela quem o está verdadeiramente a interpelar. Não está a ver quem é?"

"Eu não."

"É a pevide."

"Quem?"

O advogado pestanejou, como se até pronunciar aquelas siglas fosse penoso.

"A PVDE."

 

Aquela zona de Lisboa era-lhe muito familiar dos seus tempos de estudante. Fora aqui no São Luiz que devorara fitas e mais fitas de Marlene Dietrich e May McAvoy, procurando sempre nesta última o rosto melancólico de Amélia; fora acolá na Bertrand que passara horas a folhear livros, desde romances até sebentas, sempre em busca da última novidade; e fora ali na Brazileira que, com um café e uns bolinhos na mesa, tivera os seus múltiplos flirts de estudante, espreitara poemas de poetas quase desconhecidos ou se digladiara ferozmente com o seu amigo Fernando em torno dos méritos e deméritos do regime.

Voltava agora ao mesmo local, embora o espírito fosse desta feita bem diferente. Já não encarnava o estudante inven­cível que acreditava ser capaz de mudar o mundo, mas o cidadão reprimido e quebrado e que já só queria levar uma vida recatada e conformada, sem problemas nem ambições, procurando viver os dias sem se fazer notado, transportando a desilusão como um animal carrega o fardo, aceitando a situação com a resignação de um mártir diante do sacrifício.

O espírito com que percorria o Chiado cristalizava-se no discreto edifício que lhe apareceu em frente ao dobrar a esquina. De um lado resplandecia a arrojada fachada do cinema São Luiz, do outro a bandeira verde com o planeta a proclamar "Ordem e Progresso" assinalava a embaixada do Brasil, e no meio, quase como uma excrescência emparedada em tão nobre vizinhança, plantava-se a sede da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. No topo da esquina, pregada a uma parede, uma tabuleta de azulejo assinava a Rua António Maria Cardoso.

Fazendo um esforço para controlar as batidas cardíacas, Luís respirou fundo e cruzou a rua.

"Venho aqui por causa de uma convocatória", anunciou na recepção.

O recepcionista, um homem calvo no topo da cabeça e com tufos de cabelos atrás das orelhas, abriu um enorme livro.

"Nome?"

"Luís Afonso, veterinário."

O dedo roído do recepcionista deslizou pelo livro até se imobilizar numa linha.

"Ah, está aqui. Tem aí o seu bilhete de identidade?"

Sem dizer uma palavra, Luís extraiu o documento do bolso e entregou-o. O homem registou o número e o nome, guardou o bilhete de identidade numa caixinha de madeira e estendeu um crachá ao visitante.

"Ponha isto ao peito", ordenou. Apontou para as escadas. "Suba até ao segundo andar e vire na primeira porta à direita."

Luís assentiu e, com a mesma vontade de um condenado que segue para o cadafalso, pregou obedientemente o crachá à camisa e escalou as escadas. Alguns homens subiam e desciam, mas não parecia haver muita azáfama no edifício; dava a impressão de que tudo aquilo não passava de mais uma repartição pública.

Ao chegar ao segundo andar viu uma porta à direita e bateu, seguindo as instruções que o recepcionista lhe dera. Um homem com ar carrancudo mandou-o sentar-se e desapareceu, deixando-o sozinho. A salinha tinha uma janela que se abria para um pátio interior, mas não se atreveu a espreitar; pareceu-lhe melhor seguir à risca as ordens. Se o mandavam sentar-se permaneceria sentado.

O homem reapareceu alguns minutos depois e, com um grunhido e um gesto da cabeça, mandou-o segui-lo. O indivíduo meteu pelo corredor e parou diante de outra porta. Deu dois toques ligeiros com as costas da mão.

"Entre", ordenou uma voz.

O homem abriu a porta e fez sinal a Luís de que passasse. O visitante cruzou a entrada e deparou-se com a figura minúscula e aprumada de Aniceto Silva sentada a uma enor­me secretária de madeira a rabiscar uns papéis. A porta fechou-se atrás de Luís, deixando-o a sós com o inspector.

"Sente-se", ordenou o homem da PVDE sem levantar os olhos.

Luís acomodou-se na cadeira diante da secretária e aguar­dou em silêncio. Havia um retrato de Salazar e outro de Carmona na parede atrás do inspector, e um mapa de Portugal na parede ao lado. Uma pequena bandeira portuguesa ornava a secretária, onde se destacavam resmas de papéis muito bem ordenadas. Da janela do gabinete vinha um hálito de claridade e lá em baixo passavam automóveis e transeuntes, percorrendo a António Maria Cardoso num bulício rotineiro.

A Luís tudo aquilo parecia bizarramente normal, o que conferia um estranho toque de irrealidade à cena. Ouvia lá fora o roncar de motores e buzinadelas pontuais, mas no gabinete o som dominante era o da caneta do inspector a deslizar pela superfície rugosa do papel.

Com um garatujo rápido, semelhante ao das assinaturas nervosas, Aniceto Silva concluiu a redacção. Pousou a caneta sobre o tinteiro, fez dois buracos na folha e inseriu-a numa pasta, que guardou numa pequena estante junto à secretária.

"Então sempre nos voltamos a ver, hem?", perguntou, encarando finalmente o visitante. "É a primeira vez que nos visita aqui nas nossas humildes instalações, presumo."

"Sim."

"Se tudo correr bem e o cavalheiro tiver juizinho, não será a última."

Luís cerrou as sobrancelhas, estranhando o comentário.

"O que quer o senhor dizer com isso?"

O inspector abriu uma gaveta e extraiu do interior uma pasta cinzento-clara.

"Já vai perceber." Abriu a pasta e começou a folhear os papéis no seu interior. "O cavalheiro sabe o que isto é?"

"Não faço a mínima ideia."

"É o seu dossier." Seleccionou um documento. "Este é o auto de informação sobre si." Acenou com a folha. "Está a ver?"

Era um papel magenta, com texto dactilografado a negro e os nomes em maiúsculas a vermelho já desbotado. Com o documento nas mãos do inspector era difícil perceber o seu teor, mas mesmo assim conseguiu ler a palavra informação no topo e logo em baixo o seu nome, Luís António Afonso.

"Posso ler?"

O inspector esboçou um sorriso ardiloso.

"Isso queria o cavalheiro!", ciciou. "Mas eu leio-lhe o essencial, fique descansado." Endireitou a folha e passou os olhos pelo texto. "Diz aqui que Rui Lopes da Silva, membro do chamado «p. c. p.» com o pseudónimo de «Victor», confessou ter sido ajudado por um estudante a escapar de uma acção de desestabilização no Instituto Superior de Medicina Veterinária, em 1935. Um inquérito permitiu identificar o referido estudante como sendo o senhor Luís António Afonso. Mais apurou o inquérito que o referido estudante era conhecido no referido instituto pelas suas opiniões contra a situação, embora não se lhe conhecessem quaisquer acções em concreto, razão pela qual se determinou não haver lugar a procedimentos nesta fase." Levantou os olhos do auto e fitou Luís. "Um fala-barato, portanto." O sorriso ardiloso regressou-lhe ao rosto antes de se voltar a concentrar no texto. "No ano seguinte, o nome do mesmo sujeito é referido em autos do processo-crime número 1598/36, respeitante ao homicídio do senhor Constantino Latino em Castelo de Paiva. O alferes veterinário Luís António Afonso aparece aqui como testemunha num caso em que as suspeitas incidem sobre o senhor Francisco Rodrigues, entretanto desaparecido." O inspector fez um estalido com a língua, como se esgravatasse comida entre os dentes, e os olhos desceram ainda mais no texto. "A última referência é recente. O senhor doutor médico veterinário Luís António Afonso foi ouvido em lugar público da vila de Vinhais a dizer, e passo a citar..." Hesitou, aproximando os olhos da folha para ler melhor a citação. "«No que diz respeito a governar, até o meu cão fazia melhor figura»." Levantou os olhos com uma expressão desdenhosa. "Portanto, por aqui se vê que o cavalheiro pensa que o seu molosso é mais qualificado para governar do que o senhor presidente do Conselho."

Luís quase se engasgou. Tentou situar a conversa e lembrou-se que, de facto, havia dito qualquer coisa naquele sentido durante uma das habituais picardias políticas à mesa de jogo entre dois dos seus parceiros, o doutor Garcia e o doutor Machado.

"Filho da puta do juiz", murmurou entre dentes ao concluir que o doutor Machado era a fonte da informação.

"Como diz?"

"Nada."

"Desculpe, mas o cavalheiro disse alguma coisa, que eu bem ouvi."

Luís suspirou.

"Estava a falar com os meus botões", explicou. "O que eu quero dizer é que essa frase tem um contexto."

"Ah, pois. Com certeza que tem. O contexto é vilipendiar a obra do regime!"

"O contexto emerge de uma conversa em privado. É preciso conhecer toda a conversa para perceber o sentido em que eu fiz essa afirmação."

Os dedos do inspector dançaram entre os papéis, extraindo mais um documento do molho que se encontrava na pasta.

"O contexto está aqui." Acenou com a folha, sem deixar Luís perceber o que nela se encontrava escrito. "É um sumário dessa conversa." Passou os olhos pelas anotações. "Conversa instrutiva, sem dúvida."

"Esse juiz é um cabrão", rosnou Luís, odiando o doutor Machado com todas as forças.

"Pelo contrário, é um homem com muito tino."

O veterinário controlou-se e reprimiu-se a si mesmo. Não estava ali para dizer o que pensava, mas porque fora convocado. Mais valia calar-se e ter daí em diante mais cuidado com tudo o que dizia e fazia em público.

"Foi para me ler o meu dossier que o senhor me convocou aqui a Lisboa?", perguntou, tentando ir direito ao assunto.

O inspector soltou uma gargalhada.

"O cavalheiro está com pressa, hem?" Ajeitou a resma, alinhando as folhas em bloco, e colocou-as dentro da pasta. "Muito bem, vamos ao que interessa. Eu mostrei-lhe um extracto do seu dossier para que o cavalheiro tivesse a perfeita noção de que o trazemos debaixo de olho. Não tem dúvidas sobre isso, pois não?"

"Nenhumas."

"Ainda bem." Arrumou a pasta ao lado. "O cavalheiro deve recordar-se que nos encontrámos pela primeira vez ali no Parque Mayer, estava o cavalheiro agarrado a uma meretriz." Calou-se para ver se o seu interlocutor reagia, mas Luís manteve-se silencioso, escudando-se numa expressão impenetrável. "Mais tarde, quando eu conduzia um inquérito àquela palhaçada ocorrida no Instituto Superior de Medicina Veterinária, apercebi-me, através de conversas, de que o estudante que teria ajudado um dos delinquentes a escapar era justamente o mesmo cavalheiro que eu surpreendera em posições indecorosas no Parque Mayer." Juntou a ponta dos dedos das duas mãos e encostou-lhes o queixo, assumindo uma postura judiciosa. "Seria fácil, como é evidente, deitar-lhe a mão de imediato e fazer-lhe pagar bem cara a afronta que teve a desfaçatez de me fazer na ocasião em que travámos conhecimento." O tom de voz tornou-se magnânimo. "Porém, não fui por esse caminho. Em vez disso, e como competente polícia que, sem falsas modéstias, me considero ser, de imediato lhe tracei um determinado perfil psicológico, perceben­do que o cavalheiro um dia ainda me poderia vir a ser útil." Arreganhou os lábios. "Esse dia chegou."

"O que quer o senhor de mim?"

"O cavalheiro encaixa-se como uma luva nas nossas necessidades operacionais. Como lhe disse há pouco, não passa de um fala-barato, um pretenso intelectual que arrota interjeições contra o regime que o alimenta, mas que, na hora da verdade, está quieto que nem o rato que é. De modo que..."

"Não lhe admito que se refira a mim nesses termos."

"O cavalheiro admitirá isso e muito mais", rosnou o inspector sem levantar a voz. "E, se for minimamente esperto, vai ouvir até ao fim o que tenho para dizer. E é se quer sair daqui inteiro."

A conversa assumia tonalidades veladamente brutais, implícitas nas palavras e sobretudo no tom. Intuindo que era contraproducente reagir às provocações, Luís fez um esforço e manteve-se calado. O que lhe interessava a ele o que aquele cretino pensava ou não de si? Deixasse-o falar...

Sentindo que o seu interlocutor se encontrava plenamente dominado, o inspector retomou a exposição.

"No meu modo de ver as coisas, o cavalheiro pode ser-nos de extrema utilidade. Diz umas coisas contra o regime, o que o deixará decerto bem visto entre os comunistas e os revira-lhistas, mas nada fez de concreto que ponha realmente em causa o Estado Novo, pelo que não está à margem da lei. Assim postas as coisas, encontra-se numa excelente posição para nós, se é que entende o que eu quero dizer..."

A frase ficou a flutuar no ar, extraindo de Luís uma opaca expressão de incompreensão.

"Não, não estou a entender."

O inspector tamborilou com os dedos na pasta cinzenta-clara que continha todo o dossier de Luís.

"O cavalheiro reparou em quão completas são as informações aqui contidas?"

"Sim."

"Sabe como as coligimos?"

"A meterem o nariz na minha vida."

O homem da PVDE sorriu.

"É uma maneira de pôr as coisas", disse. "Na verdade, toda a informação na nossa polícia é recolhida através de fontes múltiplas: escutas telefónicas, intercepção de correio, vigilância de suspeitos e interrogatórios. O problema é que os prevaricadores estão cientes das cautelas que precisam de ter quando falam ao telefone ou escrevem uma carta ou vão a qualquer sítio. E num interrogatório, sobretudo quando é usada alguma severidade, têm tendência a dizer o que pensam que nós queremos saber e não necessariamente o que de facto aconteceu. Daí que eu acredite mais num outro tipo de fonte, uma fonte humana. Como costumo dizer, para haver uma informação é preciso haver um informador. A grande dificul­dade é recrutar as pessoas certas."

Luís olhou para o polícia com uma expressão incrédula.

"A PVDE quer recrutar-me como informador?"

"Deixe-me explicar-lhe uma coisa", retomou Aniceto Silva, contornando a pergunta. "Nós temos muita gente que se oferece para ser informadora. O problema é que grande parte não serve para essa função, uma vez que as suas opiniões a favor do regime são mais ou menos públicas. O cavalheiro acha que um comunista fala à vontade quando está diante de uma pessoa que já fez afirmações a elogiar Salazar? É óbvio que essas pessoas, por muito boa vontade que tenham, não servem. O que nós precisamos mesmo é de gente de quem os suspeitos não desconfiem, de indivíduos que ao longo da vida tenham proferido declarações contra a situação." Deu uma palmada enfática na secretária. "Esses é que são os bons informadores!"

"O senhor deve estar a brincar comigo..."

O inspector torceu a boca.

"O cavalheiro acha-me com cara de brincalhão?", perguntou. "Receio que isto seja uma coisa muito séria." Voltou-se para o mapa de Portugal pregado na parede. "Sabe, a maior parte da nossa actividade decorre em Lisboa, como é evidente. Mas há muita coisa que se passa na província, porque é aí que muitos agentes subversivos se refugiam na convicção de que nas zonas rurais se encontram menos expostos. Daí que te­nhamos necessidade de uma rede de informadores a operar nos meios mais pequenos, como acontece neste caso." Indicou o Norte de Trás-os-Montes. "Precisamos do cavalheiro para nos ajudar a recolher informações sobre o que se passa em Vinhais e em particular sobre um sujeito que nós consideramos suspeito e andamos a vigiar."

"Quem?"

O inspector pegou numa outra pasta e tirou uma fotografia do interior, que pousou sobre a mesa voltada para o seu interlocutor.

"Este."

Luís reconheceu um dos seus parceiros de jogatanas na sala de chá da Pensão Alves.

"O doutor Garcia?"

"O cavalheiro já deve ter reparado que este advogado exibe uma verborreia acirrada contra a situação", disse Aniceto Silva, devolvendo a fotografia à pasta. "O que talvez não saiba é que este sujeito tem ligações a uma organização secreta e terrorista denominada Frente de Acção Popular, vulgo FAP. Pensamos até que ele está envolvido na elaboração de um panfleto clandestino e subversivo que procura propagar ideias antipatrióticas. Precisamos que uma pessoa da confiança do doutor Garcia nos informe sobre as suas actividades e, se possível, sobre as actividades desta dita Frente de Acção Popular."

O veterinário fez um gesto na direcção da pasta com o seu dossier.

"Precisam de mim para isso? Então e o bufo que vos andou a dar informações sobre mim? Porque não o usam a ele?"

"A nossa andorinha vai mudar de ninho."

"Não percebo."

"O informador que temos em Vinhais vai ser transferido."

"O juiz Machado vai sair de Vinhais?"

"Quem lhe disse que era o juiz Machado?"

"Não é o juiz Machado?"

"Claro que não! Esse não passa de um tonto, coitado. Voluntarioso, é verdade, mas um tonto. Além do mais, não se cansa de elogiar a situação. Quem seria o reviralhista ou comunista que confiaria nele?"

O veterinário manteve os olhos cravados no polícia, a mente a fervilhar de ideias. O informador não era o juiz Machado? Então quem era? O doutor Garcia também não podia ser, uma vez que se tratava do suspeito a vigiar. Além do mais, o informador ia pelos vistos ser transferido e, que Luís soubesse, nenhum destes dois planeava mudar-se para qualquer parte. Estreitou os olhos, tentando lembrar-se se haveria alguém que ia sair de Vinhais. Bem, para chefiar o Hospital de Bragança ia o... o....

"O Fernando?"

O inspector recostou-se na cadeira e manteve o olhar fixo no seu interlocutor.

"Não tenho liberdade para identificar o nosso homem, nem isso interessa para o caso. O facto é que..."

"O Fernando?", repetiu Luís, atónito com a conclusão a que de repente chegara. "É ele o... o... o informador?" Custava-lhe acreditar, o seu velho amigo da faculdade andava a dar informações à PVDE, era ele o bufo! "Mas como é isto possível?"

"A identidade do nosso informador não é para aqui chamada", insistiu o inspector. "O que interessa é que vamos precisar de si para nos informar de qualquer actividade sub­versiva que ocorra na sua área de actuação." Tirou uma caneta da camisa e começou a garatujar um papel. "O seu nome de código vai ser Alberto. Enviar-nos-á três cartas mensais a relatar o que viu e ouviu. Se achar que uma situação requer a nossa intervenção rápida, telefone-me para este número aqui e diga para virmos buscar a encomenda, código para efectuarmos uma detenção. Para cobrir as suas despesas, receberá uma boa maquia. São quinhentos escudos por mês." Levantou os olhos do papel. "Nada mau, hem?"

Sentado diante da secretária do polícia e já refeito do choque, Luís cruzou os braços e carregou as sobrancelhas.

"Desculpe, mas há aqui um engano. Eu não vou fazer nada disso. Aliás, nem consigo perceber onde foi o senhor buscar a ideia de que eu aceitaria um trabalho destes, que vai contra todas as minhas convicções. Eu não sou da situação e nunca serei um informador da polícia de vigilância. Eu sou, e serei sempre, um médico veterinário."

"Claro que é um médico veterinário. E um médico veteri­nário que nos vai dar informações sobre quaisquer actividades suspeitas do sujeito que está encarregado de vigiar."

"Já lhe disse que nunca farei isso."

O inspector inclinou-se sobre a secretária, apoiou os cotovelos nela e olhou fixamente para o veterinário, numa postura de firmeza e intransigência.

"E eu estou a dizer-lhe que fará."

"Mas onde diabo foi o senhor buscar essa ideia? Como é possível que acredite que eu aceitarei ser informador da PVDE?"

"O cavalheiro não tem alternativa."

"O que quer dizer com isso?" "Se não aceitar, irá apodrecer na cadeia." "O quê?"

"Prometo-lhe muitos anos atrás das grades." "O senhor deve estar a brincar..." "Vai para a cadeia." "Mas... porquê? Qual é a acusação?" Aniceto Silva manteve os olhos fixos, sem pestanejar, como se fossem adagas cravadas em Luís. "Homicídio."

 

Nunca como nesse instante o sentimento de irrealidade se abatera tão brutal e friamente sobre Luís. A palavra que acabara de escutar ecoava-lhe na mente como um disco riscado no gramofone. Parecia-lhe que o inspector a repetia vezes sem conta ao seu ouvido, "homicídio", "homicídio", "homicí­dio", pronunciada sempre no mesmo tom glacial.

Estava sozinho no gabinete e mal se apercebia disso. Registara vagamente a saída do inspector Aniceto Silva para ir buscar não sabia bem o quê, mas a confusão na sua cabeça era de tal ordem que sentia dificuldade em concentrar-se. Tudo o que sabia, tudo o que preenchia a sua mente, era a palavra "homicídio". O que significava que seria obrigado a fazer uma escolha: ou se tornava informador ou seria punido. A opção parecia simples, mas revelava-se terrivelmente complicada. E, no meio de tudo aquilo, o mais surreal era que havia sido traído pelo Fernando, o seu velho amigo da faculdade. Realmente, nunca se conhecem verdadeiramente as pessoas, pensou. Era verdade que ele sempre fora das direitas, mas denunciar um amigo? De facto, quando achamos que...

"Presumo que já se conheçam."

A voz do inspector rompeu a cadeia de pensamentos de Luís. Com um sobressalto, olhou em direcção da porta e viu Aniceto Silva convidar alguém a entrar. Um vulto colossal assomou ao gabinete e imobilizou-se a olhar para Luís.

"Chico!"

Já não era um rapagão, mas um homenzarrão, de barba rala e olhar vivido. Vinha acompanhado por um outro homem à civil, presumivelmente um agente da PVDE, e manteve os olhos baços pousados com indiferença no veterinário.

"Reconhece-o?", perguntou o inspector, dirigindo-se a Francisco mas com o dedo a apontar para Luís.

"Sim", assentiu Francisco.

"Foi ele que matou o senhor Constantino Latino?"

"Foi."

"De certeza?"

"Absoluta."

A voz nem vacilou e Luís observava-o boquiaberto, incapaz de pronunciar uma sílaba que fosse, estarrecido com a enormidade do que acabava de ouvir.

"Muito obrigado, senhor Francisco, pelo seu precioso testemunho", disse o inspector, quase deferente. "O Amaro acompanha-o até à saída."

O segundo homem à civil puxou Francisco pelo braço e ambos desapareceram para além da porta, que se fechou de imediato. Com movimentos ligeiros, o inspector contornou a secretária e sentou-se na sua poltrona, sempre seguido pelo olhar atónito de Luís.

"O cavalheiro está esclarecido?"

O veterinário permaneceu mais um instante com ar embas­bacado.

"Mas... isto é... é absurdo", balbuciou, tentando reordenar os pensamentos. "O que o Chico disse não é verdade. É uma mentira hedionda."

O polícia esboçou uma expressão trocista.

"Estou quase a chorar por si", gracejou. "Acho que nem vou dormir esta noite."

"Mas o senhor tem de acreditar em mim! Eu não matei ninguém!"

"Claro que acredito em si! Acredito em si e acredito em Maomé!"

"Mas juro-lhe que estou a dizer a verdade!"

"Claro que jura", riu-se. "Na hora do aperto, todos juram o que quer que seja. Até culpam a mãezinha se for preciso!"

Luís sacudiu a cabeça, como se tentasse expulsar a nuvem que lhe toldava o pensamento. Assim não iria lá. Vendo as coisas com maior lucidez, tornava-se evidente que o inspector não ia acreditar nele, fossem quais fossem as circunstâncias. Não lhe convinha.

Endireitou o corpo e fez um esforço para controlar os nervos; não era o momento adequado para fraquejar.

"Há uma testemunha", disse, preparando-se para puxar do ás que trazia guardado na manga.

"Claro que há", disse o inspector. "Chama-se Francisco Rodrigues e acabámos de o ouvir identificar o assassino do senhor Constantino Latino."

"Não estou a falar no Chico", corrigiu Luís. "Há uma terceira testemunha. E uma pessoa que poderá dizer quem está a falar verdade e quem está a mentir: se eu, se o Chico."

O homem da PVDE dedilhou a madeira da secretária como um pianista a percorrer um teclado.

"O cavalheiro tem a certeza de que quer trilhar esse caminho?"

"Peço desculpa!", exclamou Luís, surpreendido com a falta de surpresa manifestada pelo polícia perante a revelação que acabara de fazer. "Pois se lhe estou a dizer que existe uma outra testemunha dos eventos. Não acha que isso é pertinente para o apuramento dos factos?"

"Volto a perguntar-lhe", insistiu Aniceto Silva, a voz pausada e tensa, como se lhe desse sinal de que havia ali uma armadilha. "O cavalheiro tem a certeza de que quer trilhar esse caminho?"

Luís hesitou, desconcertado com a firmeza daquele tom.

"Tenho alguma alternativa?"

"O cavalheiro lá sabe da sua vida. Mas, se invocar uma nova testemunha, teremos de a ir interrogar, está a entender?"

"Sim..."

"E quando a formos interrogar iremos fazer-lhe muitas perguntas. Uma delas diz respeito a certas actividades no estábulo ou no celeiro da quinta onde decorreram os acontecimentos. Serão perguntas inconvenientes, claro, até porque pode dar-se o caso de a dita testemunha ser casada." Cravou os olhos no seu interlocutor. "Faço-me entender?"

O veterinário remexeu-se na cadeira, crescentemente desconfortável com as insinuações.

"Não estou a ver onde quer o senhor chegar."

"Claro que está", devolveu Aniceto Silva, sempre no mesmo tom tenso e agreste. "Até se pode dar o caso de o cornudo estar neste momento na paz dos anjos, ignorando em absoluto as actividades nocturnas da sua rica e ardente esposa. Porém, caso tenhamos de a interrogar, decerto essa santa ignorância se esfumará e o referido sujeito tomará conhecimento de coisas que, para ser sincero, e a bem da harmonia na vida familiar, seria dispensável que viesse a saber." Franziu o sobrolho, para enfatizar a ideia. "Continuo a fazer-me en­tender?"

Luís estreitou os olhos, sem saber o que responder. O polícia interpretou o silêncio como o assentimento de quem nada queria admitir, mas também não tinha maneira de negar.

"O que me obriga a fazer-lhe uma pergunta: o cavalheiro tem a certeza de que há uma outra testemunha neste caso?"

Uma gota de suor nasceu do cabelo castanho de Luís e deslizou-lhe pelas têmporas. Respirou fundo e recostou-se na cadeira, vencido pela pressão.

"Não."

O inspector sorriu.

"Bem me queria parecer."

Luís sentia-se perdido, mas lançou uma derradeira tentativa, como o náufrago que estica as mãos em direcção à distante bóia, na esperança de que as correntes a arrastem até ele.

"O senhor não se preocupa com a verdade?"

"Claro que preocupo", exclamou Aniceto Silva. "A verdade é que o regime salvou Portugal. A verdade é que urge defender o regime, custe o que custar, porque defender o regime é defender Portugal. O que me interessa a mim se foi o cavalheiro que matou um pobre labrego lá para trás do Sol posto ou se o criminoso foi um qualquer energúmeno desmio­lado? O que me interessa isso?" Colou o polegar ao peito. "A minha única verdade é a defesa do Estado Novo e da pátria. As outras verdades não passam de ferramentas ao serviço da verdade suprema, entendeu?"

Comprimido na sua cadeira, Luís sabia-se perdido. Racionalizou o que já intuíra: o polícia não tinha qualquer interesse em identificar o verdadeiro assassino do caseiro de Castelo de Paiva. Com toda a probabilidade, até tinha consciência de que o veterinário não matara ninguém. Mas isso parecia-lhe manifestamente irrelevante. O crime não passava de um simples instrumento para o sujeitarem a chantagem, uma arma para o dobrarem, um expediente para o vencerem.

E vencido era coisa que ele estava já.

"O que quer de mim?"        -

"Já lhe disse. Preciso de si para substituir o meu informador de Vinhais, que vai ser transferido para outro lugar. Preciso de si para vigiar as actividades subversivas do doutor Garcia."

"E o que acontecerá âo caso de Castelo de Paiva?"

O inspector da PVDE encolheu os ombros.

"O que interessa isso?"

"Interessa-me a mim. O que acontecerá ao caso?"

"Nada."

"Nada como? O que vão fazer do Chico?"

"O senhor Francisco Rodrigues é um homem às direitas e nunca será condenado por uma coisa tão... tão ridícula. Já informámos o Ministério Público de que ocorreu um caso de troca de identidades e de que este senhor não é o homem procurado pelo homicídio do senhor Constantino Latino. Vai, por isso, ser devolvido à liberdade."

"E eu?"

"Se o cavalheiro se portar bem, também não lhe acontecerá nada. Muito pelo contrário, poderá até ser premiado por serviços relevantes prestados à nação."

"E se eu não me portar bem?"

"Nesse caso, temos já em nossa posse uma declaração do senhor Francisco Rodrigues a assegurar que foi o alferes veterinário Luís Afonso quem partiu o pescoço ao senhor Constantino Latino, após a vítima ter intercedido em defesa da honra da senhora dona Amélia Branco."

Ao ouvir o nome de Amélia, Luís fuzilou o inspector com os olhos.

"O que quer dizer com isso?"

"Eu? Eu não quero dizer nada!", exclamou num tom sonso. "Quem está a fazer essa afirmação é o senhor Francisco Rodrigues no depoimento que assinou e que, se o cavalheiro se puser com palermices, será apenso ao processo."

"Os senhores vão acusar-me de ter tentado molestar a Amé... a senhora dona Amélia?"

"No caso de o cavalheiro se começar a armar em parvo, eu diria que sim." Abriu os braços e encolheu os ombros, num gesto de impotência. "É preciso um móbil para o crime, não é verdade? Se o cavalheiro assassinou alguém, o juiz vai querer saber qual o motivo. Ora, se assim é, parece-me que este faz todo o sentido: o cavalheiro tentou molestar a senhora, o caseiro interveio em defesa das virtudes da dita donzela e o cavalheiro, num acesso de fúria, apertou-lhe o gasganete." Desfraldou um sorriso malicioso. "Parece-me uma maneira elegante de ilibar a senhora de qualquer comportamento me­nos próprio, não acha?"

Luís baixou a cabeça, sentindo-se cercado por uma barreira de mentiras, meias verdades e obrigações morais. Acontecesse o que acontecesse, não poderia envolver Amélia naquela terrível confusão. As consequências seriam devastadoras.

"Estou a ver", murmurou, derrotado.

Os dedos do inspector tiquetaquearam com impaciência a madeira da secretária.

"Então?", perguntou. "Em que ficamos?"

Encolhido na cadeira, o veterinário não sabia o que dizer.

"Oiça, eu não... não consigo dar-lhe a resposta assim do pé para a mão", tartamudeou. "Dê-me algum tempo."

Aniceto Silva desferiu uma palmada sonora na secretária, como um juiz a martelar a mesa no momento da sentença.

"Tem vinte e quatro horas para me responder!", exclamou, pondo-se de imediato de pé e olhando para a porta. "Amaro!"

A porta do gabinete abriu-se e um homem fez continência.

"O senhor inspector chamou?"

"Leve-me este cavalheiro para o Governo Civil."

"Sim, senhor inspector."

Amaro aproximou-se de Luís, que se levantara e olhava interrogativamente para Aniceto Silva.

"Vou para o Governo Civil fazer o quê?"

O inspector colou o indicador às têmporas.

"Vai pensar."

"Pensar?"

Amaro pegou no braço de Luís e puxou-o em direcção à porta. O veterinário manteve os olhos fixos no inspector da PVDE, que se voltou a sentar na secretária e, antes de regressar aos papéis, lhe lançou uma expressão de desdém.

"Pode ser que uma noite aos quadradinhos o faça ver a razão", disse-lhe. "O cavalheiro está detido."

 

Ao sair para o deslavado corredor do edifício pareceu-lhe que tinha cruzado a porta de um mundo irreal. A sequência dos acontecimentos seguintes deu-lhe a sensação de que tudo decorria como numa fita americana de segunda categoria, os sentidos embotados por uma estranha mistura de rapidez e lentidão, realidade e fantasia, dor e narcose. Luís sentia-se atarantado, um mero joguete que o agente Amaro arrastava pelas entranhas da sede da polícia de vigilância, virando à esquerda e à direita, dobrando esquinas, subindo escadas, percorrendo corredores.

O polícia imobilizou-se enfim diante de uma porta e empurrou-o lá para dentro. Era um compartimento esconso e quente, as paredes recortadas por traços de luz e manchas de sombras. As mãos do carcereiro puxaram-no para diante de uma enorme máquina coberta por um pano e voltada para uma parede nua, onde se encontrava apenas uma cadeira. Teve medo; era como se o encostassem a uma parede para o executarem.

"Senta-te!", ladrou Amaro.

Luís olhou-o aparvalhado, abismado por ver o actor da cena a sair da tela para o interpelar. Até o inusitado tratamento por tu lhe pareceu confirmar que tudo aquilo não era real, embora não fosse capaz de romper com aquele pesadelo entorpecedor.

"Senta-te, não ouviste?"

Obedecendo como um sonâmbulo, Luís sentou-se e encarou o ameaçador aparelho metálico diante do qual se posicionara. No instante em que viu a lente e percebeu que se tratava de uma máquina fotográfica, uma explosão de luz encandeou-o e no quarto estalou um clac. Tinha sido o flash que o iluminara de frente.

"Volta-te!"

O detido não percebeu a ordem e viu Amaro aproximar-se com impaciência.

"Olha lá, estás a reinar comigo?", perguntou em tom de acinte, as mãos nas ancas como um forcado. Agarrou-o pelos ombros e rodou-lhe o corpo para a direita. "Assim, palerma."

O agente desapareceu e um novo clarão iluminou o com­partimento.

Clac.

"Agora para o outro lado."

Desta vez Luís obedeceu e, sem ser necessário que o forçassem, voltou-se para a esquerda.

Mais um flash.

Clac.

Sem perder tempo, o agente tirou-o daquele quarto e levou-o até um balcão, onde lhe pegou na mão direita e a espalmou numa esponja de tinta. Imprimiu todos os dedos ao mesmo tempo numa folha e depois os quatro dedos em separado, à excepção do polegar. A operação foi repetida com a mão esquerda.

"Vai lavar as mãos", ordenou Amaro. "Depois tira tudo o que tens nos bolsos."

Em estado de choque, Luís ia obedecendo maquinalmente às ordens que lhe eram vociferadas de maus modos. Sentia-se destacado daquilo tudo, como se estivesse a observar a cena, não a vivê-la. Encarava as coisas como espectador, não como actor, e foi com um misto de surpresa e curiosidade que se viu a si próprio a passar as mãos pela água que jorrava de uma torneira e a secá-las na toalha. Levantou o olhar para o pequeno espelho diante do lavatório e espantou-se com os olhos baços que o reflexo lhe devolveu.

"Então?", rompeu a voz do agente Amaro. "Estás a ver se estás bonito? Despeja-me mas é esses bolsos, e já!"

Luís tirou tudo o que trazia nas calças e pousou todos os objectos pessoais em cima do balcão onde lhe haviam tirado as impressões digitais. O agente da PVDE pegou em cada um deles e anotou a sua descrição num formulário.

"Uma carteira de calfe", registou. "Uma carta de motorista com o número 8288." Tomou nota. "Um passe da carreira de caminheta de Bragança." Mais um registo. "Uma caneta Conk-lin com o número 1902809." Rabiscou a referência. "Vinte e dois escudos e cinquenta centavos." Ergueu a cabeça e olhou para o detido. "Não tens o bilhete de identidade contigo?"

"Deixei-o na recepção ao entrar."

Amaro mandou outro funcionário buscar o documento. O homem reapareceu instantes depois e entregou-o ao agente.

"Um bilhete de identidade com o número 467845, do Arquivo de Identificação de Bragança." Espreitou Luís. "Mais alguma coisa?"

"Não."

O agente da PVDE revistou-o de alto a baixo e no final deu-se por satisfeito. O formulário estava enfim completo.

Guardou-o numa pasta com o registo das impressões digitais e dirigiu-se a um armário. Tirou de lá um objecto metálico que tilintava e que Luís, absolutamente horrorizado, percebeu serem algemas.

"Estica os braços."

O agente colocou-lhe as algemas e contemplou o detido enquanto revia mentalmente todos os procedimentos. Estava tudo tratado, concluiu. Só faltava levá-lo para os calabouços do Governo Civil.    

O braseiro do estio acolheu-os na rua.

"Vou assim?", espantou-se Luís, alteando os braços para exibir as frias argolas metálicas que lhe limitavam os movimentos.

Sentia-se chocado por ser obrigado a caminhar pela rua com as mãos agrilhoadas, à vista de todos, as sombras de carcereiro e recluso lambendo as pedras aquecidas pelo sol quente da tarde.

"O que queres tu, hã?", devolveu Amaro, com maus modos. "Ir de Rolls-Royce?" Deu-lhe um empurrão brutal que quase o fez tropeçar. "Toca a andar e caluda, meu grande camelo! Dizes mais uma e levas uma chapadona."

Calcorrearam o passeio em silêncio, Luís à frente com as mãos algemadas diante do ventre, atrás o agente sempre a empurrá-lo com o braço direito. A sensação de distanciamento regressou em força e deu consigo a encarar a cena como se fosse um mero transeunte, não a figura sobre a qual todos os olhos caíam naquela rua. Chegou a pensar que não passava tudo de um sonho, que tal coisa não lhe estava a suceder, mas logo dizia a si mesmo que não, que tudo aquilo era verdadeiro, que estava mesmo a ser arrastado por Lisboa como se fosse um vulgar criminoso.

O movimento cá fora era animado. Os transeuntes, sem descolarem os olhos do duo que saíra da sede da PVDE, aligeiraram o passo e tentaram passar despercebidos, apesar de os automóveis abrandarem para os condutores espreitarem o que se passava. No meio da cacofonia dos sons da rua soou o tilintar característico de uma campainha; era o triciclo dos gelados Esquimaux que passava, alegre e convidativo, conferindo à cena um toque de surreal jovialidade.

Esforçando-se por ignorar a atenção que estavam a atrair, guarda e detido dobraram a esquina e entraram no edifício do Governo Civil de Lisboa. Orientando-se dentro das instalações como se fosse da casa, Amaro levou o veterinário até aos calabouços e entregou-o ao responsável pelos serviços, a quem estendeu um documento.

"Assine-me a guia."

Antes de se ir embora, aproximou-se muito de Luís, como se o quisesse desafiar, e quase lhe encostou o nariz. Depois, com um movimento muito rápido e totalmente inesperado, desferiu-lhe um estrondoso estalo na cara.

Pab.

Com a bochecha incendiada, o recluso viu o agente rir-se e lançar-lhe um derradeiro olhar trocista.

"Porta-te bem, hem?"

A cela era relativamente fresca, sobretudo quando com­parada com o calor que fazia na rua, mas isso estava longe de consolar o seu mais recente hóspede. Experimentando uma claustrofóbica dificuldade em respirar, Luís sentou-se na cama e escondeu o rosto entre as mãos, como se a treva pudesse apagar o horror em que se vira inesperadamente mergulhado, e começou a soluçar. Como era possível ter chegado àquele ponto? O que fizera ele para merecer tal

tratamento? E, sobretudo, porquê ele? Porquê ele? Porque não outro?

Uma sensação de total e absoluto desespero e vulnerabilidade apossou-se de Luís. Sentia-se como um animal atirado para um curral à espera que o viessem buscar para a matança. Na verdade, para aquela gente era a isso que ele se resumia. Um animal que os iria refastelar no momento que considerassem mais oportuno. E não havia nada, mas absolutamente nada, que ele pudesse fazer. Não tinha amigos a quem recorrer, não havia uma lei na qual confiar, a arbitrariedade parecia-lhe absoluta.

Chorava quase em silêncio, apenas denunciado pelos soluços ritmados, até que um gemido lhe nasceu das entranhas e se soltou pela garganta. Achava-se perdido, desorientado, incapaz de encontrar soluções para sair daquela embrulhada. Deitou-se na cama e encolheu-se, o rosto sempre tapado, o corpo dobrado na posição fetal; era já uma criança a tentar proteger-se do mundo hostil que a agredia.

No auge da aflição, sem saber como proceder e para onde se voltar, a respiração sufocada pela desesperança, ajoelhou-se no chão, os cotovelos apoiados na cama, a testa encostada às mãos, os olhos cerrados nas lágrimas, os dedos unidos numa prece, e começou a rezar. Ele que nunca rezava, ele que se ria das superstições da populaça ignorante e crédula, ele que acreditava que fora o homem que criara Deus e não o contrário, ali estava ele a orar como o mais fervoroso dos fiéis. Entoou vários ave-marias e titubeou o pai-nosso, mas aqui embatucou nas palavras; conhecia o refrão inicial, mas apagavam-se-lhe as palavras algumas estrofes mais adiante. Constatando a sua ignorância, voltou às ave-marias e recitou-as num sussurro, as orações umas atrás das outras, numa ladainha contínua até aquele aperto asfixiante se ir esvanecendo.

"Ave-Maria-cheia-de-graça-bendita-sois-vós-bendito-o-fru-to-de-vosso-ventre-Jesus-Santa-Maria-mãe-de-Deus..."

As palavras tornaram-se um murmúrio imperceptível, como se o importante não fosse pronunciá-las, mas senti-las. Algo na mente lhe dizia que aquilo era um disparate, que não era por rezar que alguma coisa mudaria, mas a verdade é que a opressão no peito foi diminuindo à medida que pelo fervor se ia entregando ao destino.

Quando achou que chegava, ergueu-se e sentou-se na cama. Respirou fundo e verificou que se sentia mais aliviado. Era irónico como ele, que sempre se achara uma mente progressista, havia recorrido a um expediente que considerava tão primário para aplacar a ansiedade. Mas o facto é que resultara e já conseguia respirar melhor. Era como se se tivesse entregue a alguém superior, como um filho se agarra ao pai no instante em que mais teme o mundo. Se nada podia fazer, porque não acreditar que uma entidade metafísica se apiedaria dele, porque não confortar-se com a ideia de que algo maior o protegeria? O que tinha ele a perder? Podia ser uma tolice, era-o provavelmente, mas não havia dúvidas de que rezar o fazia sentir-se melhor.

Com o coração mais leve e a mente mais límpida, pôs-se a pensar no seu caso. Tinha vinte e quatro horas para dar uma resposta. O que iria ele dizer quando o abutre da PVDE lhe entrasse na cela e lhe anunciasse que chegara a hora de decidir? Tornar-se-ia um informador da polícia de vigilância ou deixaria que o condenassem por um assassínio que não cometera?

Encarou as duas opções, mediu as consequências de cada uma delas e suspirou vezes sem conta. Não ia ser nada fácil.

A noite caiu e pensou em Amélia e em Joana. Será que elas sabiam o que se passava? A mulher estaria sem dúvida nervosa.

Prometera que lhe enviaria um telegrama logo que saísse da sede da PVDE, para que Joana descansasse, mas, como era evidente, não o pudera fazer. Será que ela já tinha tomado alguma medida? Teria ido falar com o juiz? Teria mandado algum telegrama a Amélia? E isso adiantaria alguma coisa? Poderia alguém importar-se com a detenção de um veterinário de Trás-os-Montes? Não estaria ele perdido para o mundo?

Mergulhado na escuridão da cela, depois de se levantar e sentar sucessivamente, ao fim de inúmeras voltas pelo cubículo, após deitar-se e constatar que era impossível dormir, dei-xou-se ficar sentado longamente na cama até conseguir verba­lizar a velha ideia que o assombrava nos momentos difíceis.

"Viver é sofrer."

Seria capaz?

 

O atormentado e tardio sono de Luís foi perturbado pelo clang-clang metálico de uma chave a rodar na fechadura. Sonhava nessa altura que a polícia o apanhava em flagrante a partir o pescoço do caseiro de Castelo de Paiva, e os sons da chave na fechadura misturaram-se com o sonho e tornaram-se os sons da coluna do homem a estalar. Mas o chiar da porta da cela a abrir-se rompeu a fantasia do sono e o veterinário viu-se de repente transportado para a realidade.

Fui preso!, foi a primeira coisa que lhe veio à mente ao abrir os olhos. Levantou a cabeça e, subitamente muito desperto, deparou-se com a silhueta pequena e seca do inspector da PVDE a encará-lo.

"Então?", perguntou Aniceto Silva com uma expressão jovial. "Dormiu bem?"

O recluso afastou o cobertor imundo e sentou-se na cama, mas não respondeu.

"Não me diga que a noite não foi agradável", insistiu o

polícia em tom jocoso. Fez um gesto a indicar o apertado cubículo. "Aqui o Savoy não estava do seu agrado?"

Sem vontade de dar troco aos gracejos, Luís esfregou os olhos e bocejou, simulando não ter ficado afectado com aquela noite nos calabouços.

"Quando é que esta palhaçada vai terminar?"

"Só o cavalheiro é que pode responder a essa pergunta", devolveu o polícia. "Eu, cá por mim, terminava isto já neste momento."

O inspector colocou-se diante do recluso com as pernas abertas, à maneira de um forcado diante do touro. Luís sentiu que aquela postura o inferiorizava ainda mais e levantou-se, tirando partido do facto de ser mais alto que o seu carcereiro para tentar reequilibrar a relação de forças que insidiosamente se estabelecia.

"O senhor sabe muito bem que eu não matei ninguém", disse, olhando-o agora de cima para baixo.

"Não vamos recomeçar com a mesma conversa, pois não?", retorquiu Aniceto Silva, cruzando os braços num gesto de fastio. "Acho que a esse respeito as coisas ficaram muito claras entre nós, não ficaram? Ou o cavalheiro ainda tem dúvidas?"

Luís manteve por momentos o olhar fixo no inspector, mas acabou por abanar a cabeça.

"Não. Já não tenho dúvidas nenhumas."

Os lábios do homem da PVDE desenharam o esboço de um sorriso vitorioso.

"Folgo em sabê-lo." O rosto descontraiu-se-lhe ligeiramente. "Há quanto tempo o cavalheiro não come?"

A pergunta surpreendeu o recluso.

"Desde o almoço de ontem."

"Quer tomar alguma coisa?"

Luís hesitou, na dúvida sobre se a pergunta era a sério ou se havia algo por detrás dela. Decidiu que não tinha nada a perder; o pior que lhe podia acontecer era continuar sem comer. Era verdade que toda aquela situação lhe tirara o apetite, mas sabia que precisava de se alimentar; o jejum prolongado poderia deixá-lo demasiado frágil.

"Um café com leite e um pão com carne eram capazes de cair bem", sugeriu.

O inspector voltou-se para o guarda que vigiava a cena no corredor, do outro lado das grades.

"O coiso, traga aqui um galão e um prego para o cavalheiro."

O hábito de Aniceto Silva em referir-se a Luís como o "cavalheiro" havia muito que lhe mexia com os nervos. O polícia pronunciava a palavra com acinte, transformando-a quase em coisa de escárnio, mas nunca lhe parecera tão insultuosa como naquele momento. Apeteceu-lhe devolver a expressão no mesmo tom, com a mesma bílis ácida com que ela lhe chegava, mas conteve-se; sabia que nada ganharia com isso e achou que o melhor era manter a cabeça fria.

Preferiu, por isso, concentrar-se nas preocupações mais mundanas, e as mais imediatas eram as referentes a Joana e a Amélia.

"Já alertaram a minha mulher?"

"Para quê?"

"Enfim, para que ela saiba da minha... da minha situação."

"Acha mesmo que ela precisa de saber?"

"Bem, se eu não disser nada ela há-de com certeza ficar ralada."

"E se disser também ficará ralada, não lhe parece?"

Luís considerou a observação.

"Lá isso é verdade", admitiu. "Mas ela estava à espera que eu lhe mandasse um telegrama depois da nossa reunião a dizer que estava tudo bem. Como não mandei..."

"A ralação da sua mulher é a última das minhas preocupações", sentenciou o inspector. "Aliás, ela estar ou não ralada depende de si, não de mim. Se o cavalheiro se mostrar cooperante, a sua senhora nem sequer saberá que o cavalheiro pernoitou aqui no Savoy."

O guarda de serviço aos calabouços apareceu com uma bandeja a sustentar um copo longo de café com leite e um pratinho com uma sanduíche de carne. Abriu a porta da cela e, após uma curta hesitação, lá concluiu que não era moço de recados do recluso e pousou a bandeja no chão, junto à entrada, e saiu de imediato.

Com a boca subitamente a salivar, Luís foi à porta recolher o galão e o prego e começou logo a comer. Deu consigo a arfar e a emitir grunhidos; nunca imaginara que pudesse ter fome e muito menos que ela fosse tão grande.

"O cavalheiro estava mesmo com larica", observou o homem da PVDE com satisfação.

"Hmpf."

O detido mal conseguia responder, tão cheia tinha a boca. Achou o prego delicioso e apercebeu-se de que, se calhar, era muito pouca comida para tanto e tão inesperado apetite.

O inspector deu uma volta à cela, como se quisesse apreciar a comodidade do local, embora estivesse na verdade a respeitar uma pausa para deixar Luís comer. A certa altura imobilizou-se de novo diante do recluso, que se sentara na borda da cama a devorar o último pedaço do prego.

"Bem, preciso de saber qual a sua resposta", disse, subita­mente impaciente. "Vai ou não cooperar connosco?"

Luís mastigava ainda e fez um sinal para a boca, mostran-do-a a mastigar.

"Hmpf", foi tudo o que voltou a conseguir dizer.

Era evidente que não chegara ainda o momento de extrair do preso o que dele queria. Aniceto Silva aguardou mais um minuto, os olhos cravados no recluso, desviando-se apenas para consultar a progressão do ponteiro dos segundos no mostrador do relógio.

"O seu tempo esgotou-se", anunciou ao ver o ponteiro perfazer um minuto. "Como é? Vai ou não colaborar no nosso trabalho?"

O veterinário bebeu um trago de leite com café.

"Oiça, eu não estou ainda em condições de responder", disse, tentando ganhar tempo. "O que o senhor me está a pedir é algo que violenta a minha consciência. Se eu realmente tivesse morto o caseiro, era uma coisa. Mas eu não matei ninguém. Por que razão estou a ser vítima de chantagem desta forma?"

"O cavalheiro não me deu uma resposta clara."

"Nem posso dar. Como lhe expliquei, preciso de tempo para amadurecer esta questão e para..."

"Acabou-se o tempo!", berrou repentinamente o inspector. "Sim ou não?"

Apanhado de surpresa pela súbita mudança de tom do polícia, Luís estremeceu de susto e sentiu-se paralisar; não estava realmente preparado para dizer não, mas também não conseguia responder sim. As consequências de qualquer das respostas eram demasiado terríveis para serem contempladas e precisava de ganhar tempo para tentar ver se haveria uma qualquer outra solução.

"Eu... eu não consigo dar-lhe a resposta neste momento. É demasiado..."

O homem da PVDE agarrou-o bruscamente pelos colarinhos e puxou-o para si. Aniceto Silva não passava de um homem pequeno e franzino, mas Luís apercebeu-se de que o tamanho era enganador e de que a minúscula figura escondia um poderoso dínamo de energia.

"O cavalheiro está a dizer-me que não."

"Não, eu não disse isso. Repito..."

O polícia nem o deixou terminar a frase. Com um movimento rápido do braço, esmurrou Luís no fígado. O veterinário dobrou-se em dois, uma dor lancinante a nascer-lhe no estômago, o ar a fugir-lhe dos pulmões, um gemido surdo a rasgar-lhe a garganta. O inspector deu-lhe mais um soco e outro, sempre no fígado. Luís sentiu as entranhas em ebulição e uma erupção ácida bloqueou-lhe a respiração. Foi como se todo o corpo se tivesse comprimido, os músculos contraindo-se e os movimentos tolhidos.

"Agh..."

Levou uns instantes a perceber o que lhe sucedera. Quando abriu os olhos viu a massa disforme acastanhada da carne e do galão misturados num vómito ácido que alagava o chão diante da sua boca. Estava encolhido em posição fetal no chão e escutou passos a afastarem-se.

Ainda sem conseguir falar, virou a cara e, de uma forma nebulosa e desfocada, viu a parte de trás dos sapatos impecavelmente engraxados do inspector a afastarem-se em direcção à porta da cela. Os sapatos pararam e os bicos ficaram de perfil, como se o inspector da PVDE se tivesse voltado para trás.

"O cavalheiro tem até ao meio-dia para dizer que sim", disse a voz de Aniceto Silva. "Se não o fizer, a declaração do senhor Francisco Rodrigues dará a essa hora entrada no Ministério Público."

O clang-clang da chave na fechadura voltou a soar. A porta abriu-se e os sapatos desapareceram atrás do som das passadas que ia morrendo enquanto o inspector abandonava os calabouços. A porta fechou-se com estrondo e um profun­do e medonho silêncio instalou-se na cela. Apenas ouvia agora o farfalhar trôpego da sua respiração.

Com um gosto azedo a incendiar-lhe a boca e o odor acre do vomitado a invadir-lhe as narinas, Luís ergueu-se a custo e, com um longo gemido de dor, cambaleou de regresso à cama. Sentou-se pesadamente e tapou os olhos com as mãos, consciente de que o seu destino estava selado. Sabia que jamais aceitaria transformar-se num bufo e isso tinha um preço: faria dele o assassino do caseiro de Castelo de Paiva.

 

Chegou a Penafiel numa tarde tépida e lânguida, quando a penumbra do crepúsculo despontava já no horizonte e o derradeiro fulgor laranja do Sol se derramava em reflexos pelo ventre exposto das nuvens pálidas que deslizavam pachorrentas sobre o vale. Fechado na carrinha celular, Luís ouvia o ronco dos motores misturar-se com o clip-clop nervoso dos cascos dos cavalos e com o mugido calaceiro dos bois. Sentia-se um cego a tactear o caminho às escuras; não via um palmo, ouvia a vida a animar-se em redor e tudo tentava reconstituir pelos sons. Mas, apesar de todos os barulhos e do balouçar constante da viatura quando virava para esquerda ou para a direita, o facto é que não conseguia perceber em que ponto da cidade se encontrava.

A carrinha imobilizou-se com um solavanco e um suspiro, o motor estrebuchou e morreu e, após um súbito silêncio retemperador, escutou vozes e passos. A porta abriu-se e a luz invadiu o cubículo, revelando um guarda com o boné torto e a farda engelhada a esperá-lo lá fora. O guarda fez-lhe sinal com a cabeça de que descesse.

"Anda, malandro!"

Girou a cabeça logo que pousou o pé cá fora. A sua frente estava o Palacete do Barão do Calvário, onde se encontrava instalado o Tribunal Judicial, o local onde o padrinho da mulher trabalhava; do outro lado estendia-se o belo jardim da Praça da República com a magnífica vista para o vale. Fora ali que pedira Joana em casamento.

"Julgas que estás em passeio ou quê?", perguntou o guar­da com maus modos, puxando-o em direcção ao palacete. "Mexe-te!"

Foi aos tropeções que Luís se viu empurrado para o interior do edifício do tribunal. Arrastaram-no para o rés-do-chão, onde havia sido estabelecida a cadeia municipal, e acabou por ser encerrado numa pequena cela; não o sabia nem jamais poderia saber, mas tinha sido justamente naquele mesmo espaço que, semanas antes, Francisco havia ditado à PVDE a declaração que transformara Luís num assassino.

O novo hóspede da cadeia municipal de Penafiel estava, porém, por esta altura para lá de preocupações sobre quem fizera o quê, quem dissera o que mais e como demonstrar o que era supostamente necessário provar. Sabia-se inocente; o problema é que tinha plena consciência de que isso de nada importava naquelas circunstâncias. Se estava preso não era porque tivesse matado ou deixado de matar outro homem, mas porque se recusara a colaborar na vigilância de um terceiro. Ou, se calhar, nem sequer era por isso; talvez estivesse ali simplesmente porque alguém implicara com ele, porque um dia tinha estado no sítio errado à hora errada e dito algo de errado à pessoa errada. Tão simples quanto isso.

Mas nesta altura já nada importava. Fosse por isto ou por aquilo, a verdade é que fora para ali atirado e tudo o resto lhe parecia agora irrelevante.

"Psst", chamou uma voz.

Olhou e viu outro recluso fazer-lhe um sinal na cela ao lado.

"Hmm?"

"Porque te botaram aqui? O que fizeste?"

Luís encarou o outro e ainda pensou em responder. Mas logo um cansaço imenso o assaltou e fez mudar de ideias. Encolheu-se no seu canto e deixou-se ali ficar, como se aquela esquina fosse um refúgio, o amparo da agressão de um mundo hostil.

Desde que havia sido detido em Lisboa que mergulhara numa depressão, mas ali, em Penafiel, a angústia parecia ainda maior. Viviam naquela cidade pessoas que conhecia e respeitava; sobretudo estava ali Amélia, a única mulher que verdadeiramente amava. E agora encontrava-se ele naquela prisão, indefeso, alvo de suspeita, sujeito à vergonha, objecto de humilhação. Como poderia dali em diante encarar todas aquelas pessoas? Como iriam elas olhá-lo? Como conseguiria sobreviver a tudo aquilo? Amélia sabia-o inocente, é certo, mas não iria isso apenas incendiar o seu tormento? Se saber que uma pessoa amada fora presa por um crime que cometeu era terrível, que dizer do desespero de saber que uma pessoa amada estava a ser gravemente punida por algo que não fizera e não poder resgatá-la desse tormento?

A noite caiu e a sombra abateu-se sobre a cela. No afogo dos intermitentes ataques de ansiedade, Luís não conseguia permanecer quieto. Quando a aflição o assolava, saltava do seu canto e dava voltas e voltas ao compartimento. Por vezes empoleirava-se no tosco banco de madeira que lhe haviam deixado ali e espreitava o exterior pelas grades altas que

selavam a janelinha no topo da parede. Estava escuro e, de mãos agarradas às barras frias e face colada ao metal enferrujado, apenas vislumbrava silhuetas coladas aos passeios, vultos fantasmagóricos que gotejavam intermitentemente pelas ruas sombrias.

A exaltação da ansiedade sucedia-se a letargia da depressão. Que fazer? Como sair daquela situação? Que seria dele? Voltava ao seu canto e esperava pelo novo assalto de medo descontrolado. Percebeu que não conseguiria adormecer e passou a noite inteira sem pregar olho, alternando entre estados de espírito opostos, ora agitado pela ansiedade, ora entorpecido pela depressão.

Recebeu visitas no dia seguinte. A primeira a ir vê-lo à cadeia municipal foi, como parecia inevitável, Joana. Não se tratava na verdade de quem Luís mais desejava ver naquele momento, ansiava antes pelo conforto de Amélia, mas Joana era a sua mulher e isso conferia-lhe direitos inalienáveis.

"Diz-me a verdade", atirou-lhe Joana mal se sentou diante dele, as órbitas vermelhas de aflição. "Foste tu que mataste o Tino?"

Luís inclinou a cabeça, agastado.

"O que achas tu?"

Os olhos da mulher saltitaram de um ponto para o outro, como se buscassem uma resposta num qualquer canto da salinha.

"Eu... eu não sei", titubeou. "Isto é tão incrível, tão... tão... não sei o que pensar."

"Claro que não matei o homem."

"Mas eles dizem que tu... que tu quiseste dar-te a... a liberdades com a Amélia."

"E o que diz ela?"

"Que é mentira."

Luís tinha consciência de que essa era a única resposta que Amélia poderia dar, mas saber que ela o tinha de facto dito de algum modo confortou-o.

"Claro que é mentira."

"Então por que razão te acusam eles de uma coisa destas, valha-me Deus?" Todo o corpo dela se contorcia num ponto de interrogação. "Porquê? Porquê?"

A pergunta quase arrancou dele a verdade, mas conteve-se. Havia que ter cuidado. O que deveria ele dizer sobre o assunto? Que a PVDE o pusera nas mãos do Ministério Público porque ele não aceitara espiar um amigo de Vinhais? Assim postas as coisas, a explicação parecia forçada e o castigo desproporcionado. Além do mais, era uma coisa perigosa de se dizer. Se desse essa explicação, talvez pusesse as outras pessoas em perigo. Ou talvez não.

Na verdade, não sabia o que dizer. Depois de pensar longamente no assunto, concluíra já que a verdadeira causa era provavelmente outra. Achava que na origem da sua situação estava uma mera sucessão de azares, uma troca de palavras azeda que não deveria ter ocorrido numa noite de Lisboa, uma morte que se poderia ter evitado, uma detenção que nunca deveria ter acontecido, uma falsidade que jamais poderia ter sido dita.

Fosse como fosse, pareceu-lhe mais prudente ter cuidado com o que afirmava.

"Não sei, Joana", disse. "Parece que foi o que o Chico declarou quando o prenderam."

"Mas como pode ele ter dito tal coisa?"

"Não faço ideia. Vocês é que o conhecem..."

A mulher abanou a cabeça, sabendo que não era impossível Francisco ter feito falsas declarações. Embora não tivesse convivido muito com ele, ou talvez justamente por causa

disso, a verdade é que sempre achara o irmão adoptivo uma pessoa estranha. Os acontecimentos dos últimos dias pareciam confirmá-lo de uma forma sinistra.

"Onde está ele?", perguntou ela, como se tivesse acabado de ter uma ideia.

"Quem? O teu irmão? Para que queres saber?"

"Ora, para falar com ele! Ele tem de contar a verdade!"

"O tipo está-se bem ralando para a verdade. O que ele quis foi escapar, mais nada."

"Não importa, temos de falar com ele. Onde está o Chico?"

"Sei lá", devolveu Luís com um encolher de ombros. "Libertaram-no e ele desapareceu. Suspeito que só lhe vamos pôr os olhos em cima no dia do julgamento. Ou se calhar nem aí. Parece que lhe escreveram um depoimento e ele assinou de cruz..."

Joana apertou as mãos do marido, de repente afogueada.

"Ai, Virgem Maria! O que vai ser de nós?"

Luís não sabia o que responder. Na verdade, era ele quem mais precisava de orientação e conforto, e não dispunha de energia para dar; não podia oferecer à mulher o que ele próprio não possuía dentro de si.

"O doutor Garcia?", quis saber, perguntando pelo advogado de Vinhais. "Ele vem aí?"

"Chega amanhã", afirmou ela.

O olhar animou-se-lhe, como se um lampejo de esperança refulgisse dentro de si.

"E... e já viu o processo?"

"Sim."

"O que diz ele?"

Joana hesitou o suficiente para Luís perceber que as notícias não eram boas.

"Diz que vai ver o que se pode fazer."

"Mas o que acha ele do caso?"

"Acha que... enfim, vai tentar ajudar-te."

O recluso estreitou as pálpebras e endureceu as mandíbulas, fitando-a como se lhe quisesse desnudar a alma.

"Diz-me a verdade, Joana. Que te disse ele?"

A mulher baixou os olhos, o queixo começou a tremer-lhe e uma lágrima teimosa deslizou-lhe pelo rosto.

"Disse que o caso é complicado." Fungou. "E o meu padrinho concorda."

"Quem? O juiz Brandão?"

"Sim. Pedi-lhe que te ajudasse, mas ele disse que não pode fazer nada."

"O teu padrinho e o doutor Garcia acham que vou ser condenado?"

Joana assentiu com a cabeça, incapaz de fitar o marido.

"Quantos anos?"

Ela manteve os olhos fixos na mesa, como se não fosse capaz de responder.

"Quantos anos?", insistiu ele.

Luís estava determinado a enfrentar a realidade, temendo-a em absoluto mas desejando-a com morbidez. Era como se a verdade fosse um magneto com dois pólos; queria fugir dela mas corria para ela.

"O doutor Garcia disse que é preciso ter esperança. Ele disse que vai fazer tudo por tudo."

"Não foi isso o que eu perguntei. Qual é a estimativa que o doutor Garcia e o teu padrinho fazem em caso de eu ser condenado? Quantos anos poderei ter de passar na cadeia?"

Joana fez um esforço para falar, mas falhou a primeira tentativa. Foi só ao fim de alguns segundos que a voz fina e trémula logrou responder à terrível pergunta.

"Vinte", sussurrou ela. "O quê?"

Perdida e incapaz de se conter mais, a mulher desfez-se num pranto de desgosto. "Pelo menos vinte anos."

 

Os minutos naquela cela húmida pareciam decorrer a contagotas. O monótono pingar metálico de um cano mal atarraxado no tecto era complementado pelo zumbido ener­vante das varejeiras que não largavam os baldes com dejectos, como se um violino mal afinado miasse de improviso em resposta à teimosa batida de uma tecla encravada no piano. Aqui e ali erguia-se o lamento triste de um outro recluso ou uma ordem ladrada pelo carcereiro; pareciam tenores em dueto a dar um toque humano àquela desconchavada me­lodia.

Mas Luís permanecia alheio aos sons e fedores que flutuavam avulsos pelas paredes do cárcere, mergulhado que estava num longo torpor depressivo, o olhar perdido na visão desfocada das grades, a respiração pausada e indolente, a vontade a esvair-se num sopro. Tenho de encontrar uma solução para isto, pensava obsessivamente. Não aguento esta situação muito tempo. Isto é intolerável.

Nas vinte e quatro horas que se seguiram à sua chegada à cadeia municipal de Penafiel só escapou da letargia e desper­tou para a vida durante as breves visitas que foi recebendo. Depois de Joana foi a vez de o casal Branco o ir ver, mas o encontro revelou-se embaraçoso, talvez por causa da humilhação que aquela situação representava para todos, mas mais provavelmente em virtude de a acusação arrastar o nome de Amélia para o centro da confusão.

"Quero dizer-lhe que sei que a acusação que lhe estão a fazer é absolutamente infundada", declarou o capitão Branco depois do silêncio desconfortável que se seguiu às primeiras palavras de circunstância. "É uma infâmia e espero que a verdade venha ao de cima."

"Obrigado, meu capitão."

O oficial continuou no mesmo tom de quem diz o que lhe parece correcto nas circunstâncias.

"A Amélia confirmou-me que aquilo que o Chico declarou é falso." Branco olhou para a mulher, como se buscasse confirmação. "Não é, querida?"

Amélia fitava Luís com uma expressão indefinida, perdida entre o choque e a incredulidade com o evoluir dos acontecimentos, estarrecida com o rosto inesperadamente chupado que encontrara à sua frente. Ao sentir-se interpelada, estremeceu, como se despertasse, e fez um movimento mecânico com a cabeça.

"Sim, claro."

"De modo que não vejo com que base lhe fizeram esta acusação", retomou o capitão, com a convicção de quem quer acreditar no que está a dizer. "E ridículo."

A vontade de Luís era que o capitão desaparecesse dali naquele instante, se sumisse quanto antes e o deixasse a sós com Amélia. Mal ouvia o que o seu antigo superior hierárquico

no exército lhe dizia. Escutava aquela voz familiar mencionar qualquer coisa sobre o processo e as acusações e o absur­do de tudo aquilo, mas apenas se esforçava por fingir que seguia o que era dito. Quando o tom das palavras do capitão o requeria, ia fazendo que sim com a cabeça e murmurava o seu assentimento.

"Hmm-hmm."

Não acompanhava, porém, o sentido das palavras. Limitava-se a mirar o capitão como um sonâmbulo, vendo-o a movimentar a boca como um peixe dentro de água. Voltava a assentir sempre que notava uma pausa e, à primeira oportunidade, desviava a atenção para Amélia, que não lhe largava os olhos. Comunicavam em silêncio naquelas breves trocas de olhares, as palavras transformadas em sentimentos, as expressões em carícias.

Cinco minutos.

Aquilo por que Luís mais ansiava naquele momento era por permanecer a sós com Amélia durante cinco minutos. Transformaria aquele instante numa eternidade, entregar-se-lhe-ia com toda a alma, libertaria de vez a paixão que lhe agrilhoava o peito. Mas a realidade foi-se impondo gradualmente, à medida que as palavras do capitão deixavam de ser um amontoado indefinido de movimentos de boca e se tornavam novamente audíveis. Luís tomou a pouco e pouco consciência de que estava entregue a si mesmo e de que o único conforto que alguma vez poderia receber era a compaixão que, como lágrimas quentes, Amélia derramava em silêncio pelos seus olhos tristes.

Como prometido por Joana, o doutor Garcia compareceu no dia seguinte ao da transferência do recluso para Penafiel. O advogado veio com uma aparência jovial, procurando

transmitir uma corrente de optimismo e energia positiva, mas, nas entrelinhas da exposição sobre a situação do processo e o ambiente em torno dele, Luís confirmou que a posição em que se encontrava era de grande delicadeza.

"Oiça, doutor Afonso", afirmou o doutor Garcia no final da sua exposição. "Como advogado tenho o dever de manter confidencialidade sobre tudo o que o senhor me disser."

Deixou a frase suspensa, como se houvesse nela um sentido subliminar, mas Luís devolveu-lhe o olhar com uma expressão vazia, não entendendo onde queria ele chegar.

"Sim?..."

O advogado remexeu-se na cadeira e inclinou-se na direcção do cliente, na postura de quem quer sublinhar o que tem para dizer.

"O que eu estou a tentar explicar-lhe é que o senhor, a mim, pode dizer a verdade", murmurou, como se tivesse medo de que alguém estivesse à escuta. "Entende?"

"Mas eu estou a dizer-lhe a verdade."

"Portanto, o senhor não matou o caseiro..."

"Já lhe disse que não. Foi o Chico."

"E tem maneira de o provar?"

"Provar como?"

"Sei lá, existe alguma testemunha?"

Luís hesitou. Havia Amélia, claro. Ela havia assistido a tudo e seria decisiva. Mas não, pensou. Acontecesse o que acontecesse, não podia arrastá-la para aquilo. Se a pusesse a depor, não tinha a menor dúvida de que a PVDE arranjaria maneira de inserir no processo a informação de que Amélia era sua amante. De uma assentada, colaria a Luís um móbil plausível para o crime e mancharia irremediavelmente a reputação de Amélia enquanto mulher honrada. Isso ele não podia consentir de modo algum.

"Não."

Mas o advogado era experiente e havia detectado a hesitação.

"O senhor doutor não me está a contar tudo..."

"Quero lá saber", respondeu com abandono, quase como se nada daquilo lhe interessasse.

O doutor Garcia respirou fundo, endireitou-se na cadeira e coçou a cabeça.

"O doutor Afonso, veja lá se entende isto", disse, a voz carregada de paciência. "A sua situação é de extrema gravidade." Folheou umas páginas dactilografadas que havia tirado da malinha e pousara sobre as pernas. "É verdade que existe apenas um depoimento contra si, esta declaração desse senhor Francisco. Em circunstâncias normais seria a palavra de um contra a palavra do outro e é muito possível que o tribunal não chegasse a conclusão alguma. No entanto, e por algum motivo que eu não estou a descortinar, as autoridades estão a conferir a esse senhor grande credibilidade. É provável que isso tenha a ver com o envolvimento da pevide neste caso, o que me parece tremendamente preocupante, como deve calcular." Voltou a acariciar as folhas. "Assim sendo, com base neste depoimento acusatório desse senhor Francisco, não tenho dúvidas de que, considerando o dedo da pevide neste processo e o ambiente criado em torno de si, o senhor será condenado a muitos anos de cadeia por homicídio. Está a perceber o que lhe estou a dizer?"

Luís assentiu com a cabeça, mas não emitiu um único som.

"Se há alguma coisa ou alguma testemunha que possa provar a sua inocência, então é melhor que ela apareça já. O silêncio que o senhor doutor adoptou, seja por que motivo for, é muito perigoso. Se o senhor doutor não cometeu o crime, não há nada que queira proteger que justifique passar

vinte anos na cadeia. Vinte anos de cadeia é uma vida inteira, compreendeu?"

Novo assentimento silencioso.

"Nada justifica tal sacrifício", repetiu o advogado para sublinhar a ideia. "Daí que eu formule novamente a pergunta: há ou não uma testemunha que o possa ilibar?"

A mente de Luís estava mergulhada num terrível dilema. Amélia poderia resgatá-lo. Mas a que preço?

"Não", respondeu, procurando imprimir firmeza à sua voz, mas receando ao mesmo tempo estar a cometer um terrível erro.

O doutor Garcia tomou consciência de que assim não iria lá. Havia ali alguma coisa que o seu cliente não lhe estava a revelar, percebeu. Para a arrancar, talvez fosse melhor mudar de táctica e confrontá-lo de uma forma diferente.

"A sua mulher não assistiu a nada?" Tocou mais uma vez nas folhas do processo. "Diz aqui que naquele dia ela também se encontrava na quinta de Castelo de Paiva..."

"Não, a Joana não viu nada."

"E a sua cunhada, a dona Amélia?"

"Também não."

"A dona Amélia negou que o senhor se tivesse dado a liberdades com ela." Esfregou a palma da mão no queixo. "O depoimento que ela vai fazer poderá ser uma grande ajuda."

"Nem pensar."

O advogado arregalou os olhos, sem entender.

"Como? Acha que o testemunho dela não será favorável?"

"Não é isso", corrigiu Luís. "Não quero que a Amélia preste qualquer depoimento."

"O quê?"

"É isso mesmo o que o senhor ouviu. Ela que nem ponha os pés no tribunal."

"Mas... porquê?"

"Porque não quero."

O doutor Garcia agitou a cabeça, como se tentasse expulsar algo que o impedia de ouvir bem.

"Peço desculpa, mas isso não faz nenhum sentido. A dona Amélia é referida no depoimento do senhor Francisco como estando na origem de tudo." Apontou para os papéis do processo que mantinha amontoados sobre as pernas. "Diz aqui que o senhor doutor tentou dar-se a liberdades com a dona Amélia e o caseiro apareceu em defesa da senhora. O senhor Francisco alega que foi por isso que o senhor doutor matou o caseiro. Mas, se a dona Amélia declarar que o senhor doutor não tentou dar-se a liberdades com ela, isso põe em causa o depoimento acusatório."

O raciocínio era sólido, mas Luís temia o que viesse a acontecer se Amélia testemunhasse no processo. O inspector Aniceto Silva havia sido muito claro na insinuação que fizera: se Luís queria manter secreta a sua relação amorosa com Amélia, não a podia pôr a testemunhar. Era tão simples quanto isso.

"Eu entendo o que está a dizer-me", afirmou o recluso. "Mas não quero a Amélia envolvida neste processo."

"Desculpe, mas envolvida já ela está."

"Deixa de estar."

"Deixa de estar, como? O nome da dona Amélia é mencionado no depoimento do senhor Francisco..."

"Isso torna obrigatório que ela testemunhe em tribunal?"

"Parece-me evidente."

"Ela é obrigada a testemunhar, mesmo que nós não a convoquemos?"

O advogado hesitou, desconcertado com tal cenário.

"Bem... quer dizer, para que ela testemunhe é preciso que alguém a convoque, claro. A acusação não o vai fazer, como

é evidente, uma vez que não me parece que ganhe alguma coisa com isso. Teremos de ser nós a chamá-la."

"Então se não a convocarmos ela não irá testemunhar, não é verdade?"

"Enfim... sim. Ela só irá testemunhar se a convocarmos."

"Então não a convocamos."

"Mas isso seria uma loucura", exclamou o doutor Garcia, quase revoltado com a sugestão. "Ela é a única arma que temos para montar a defesa."

"Teremos de prescindir dela."

"Como?"

"O doutor Garcia, deixe-me tornar isto muito claro", afirmou Luís, fitando o advogado nos olhos com a intensida­de de quem não admite ser contrariado. "Por motivos que não lhe posso explicar, a Amélia não irá sentar-se no banco das testemunhas. Não aceitarei isso e o senhor fará o favor de não a chamar a depor."

O advogado fitava-o boquiaberto.

"O senhor tem a certeza do que está a fazer?"

"Posso não ter a certeza de muitas coisas, mas neste ponto a minha certeza é absoluta. Custe o que custar, a Amélia não pode ser envolvida no processo."

"Mas... explique-me só porquê. Gostaria de entender."

O recluso considerou a possibilidade de abrir o jogo. Sentia-se tremendamente solitário e precisava de alguém com quem desabafar. Poderia dizer ao advogado que tudo aquilo se devia a ele próprio, doutor Garcia, que a PVDE o queria espiar, que Fernando era um bufo e que ele, Luís, estava a ser punido por se recusar a assumir também esse papel.

Mas talvez a verdade nem fosse bem essa. De novo pensou que, no fundo, estava era a ser objecto de um ajuste de contas mesquinho, pelo que não era justo reduzir toda aquela situação

à sua recusa em tornar-se um informador. Por outro lado, concluiu mais uma vez que talvez fosse melhor ser prudente. Revelar a verdade, qualquer verdade, de nada adiantaria naquele momento. Pior, o inspector Aniceto Silva ficaria furioso e, se não tivesse cuidado, retaliaria onde lhe doeria mais, expondo Amélia da pior forma possível. Desse por onde desse, Luís jamais aceitaria deixá-la naquela posição. Se alguém tinha de ser sacrificado, estava disposto a ser ele. Ela, nunca.

"Os motivos são meus", insistiu. "E a decisão também. A Amélia não pode ser chamada a depor."

"Então como quer o senhor doutor que eu monte a defesa?"

"O advogado é o senhor."

O doutor Garcia deixou a cabeça descair para trás e fitou o tecto da cela, suspirando com desânimo. Mas logo voltou a endireitar-se, ganhando balanço para tentar enfrentar positivamente a situação; tinha consciência de que não podia ser ele a desistir. O veterinário lá sabia o que estava a fazer, pensou. Se queria prescindir daquela testemunha crucial por motivos que não tencionava partilhar, que poderia ele fazer? Parecia--lhe uma loucura, mas, enfim, o cliente é que mandava.

"O senhor doutor tem a noção do que se encontra neste caminho que está a trilhar, não tem?"

"Elucide-me."

O advogado ajeitou a gravata e fungou, como se se estivesse já a preparar para o inevitável.

"O desastre, senhor doutor. O desastre."

 

Um sopro de aragem traçava um rasto cintilante no pó que flutuava à meia-luz da manhã, como se mil grãos de ouro faiscassem pelo ar. Submerso no seu mutismo deprimido, interrogando-se mil vezes sobre como sair daquela situação impossível, os ouvidos de Luís registaram o som dos passos no corredor a sobreporem-se ao interminável lacrimejar do cano do tecto, mas nem prestou atenção; a sua mente parecia fechada aos rumores que lhe chegavam do exterior.

"O Afonso", chamou uma voz. "Tens mais uma visita."

O preso levantou o olhar velado e encarou interrogativamente o carcereiro, como se lhe perguntasse porque o incomodava. Mas o homem estava concentrado na chave e na fechadura que tentava abrir, pelo que Luís teve de encontrar a resposta por si mesmo. Devia ser Joana, pensou. Era ainda muito cedo, mas se calhar dera-lhe para madrugar.

O carcereiro deixou-o sair da cela e levou-o até à sala das visitas. Quando a porta se abriu, Luís sentiu um baque ao

perceber quem estava ali para o ver. Era Amélia. Procurou em redor, em busca do marido, mas não o viu.

"Olá, Luís", murmurou ela, a voz doce e meiga.

Prenderam o olhar um no outro e ela pareceu-lhe incrivelmente bela. Vinha com um vestido azul aos folhos brancos, um fio púrpura em torno do pescoço alto, o cabelo solto sobre os ombros, os olhos banhados por uma liquidez melancólica.

"Olá, Amélia. Vieste sozinha?"

"Preciso de falar contigo."

Que bom, quase exclamou.

"Eu também."

O recluso sentou-se diante daquela criatura esplendorosa e quase sentiu vergonha de" si mesmo. Como era possível amar uma mulher tão bonita e apresentar-se diante dela assim tão porco, tão miserável, tão desgraçado? Devo cheirar a esterco e a urina, pensou, e além do mais ando magríssimo por causa desta falta de apetite. Encolheu-se de constrangimento com a figura que imaginava projectar.

Talvez intuindo a vergonha que o acossava, Amélia abriu-se num sorriso angelical e pô-lo à vontade. Se cheirava mal, ela parecia não notar; se se achava feio, ela claramente não pensava assim; se a emaciação do cárcere a chocava, ela não dava sinal. Luís acalmou, enfeitiçado pelo olhar dourado que cintilava na penumbra.

"Tenho tantas saudades tuas", disse ele, deslizando a mão pela mesa, as unhas sujas de negrura.

Respondendo ao movimento, Amélia agarrou-lhe a mão trémula e apertou-a com força. Também ela estava agitada, mas vinha quente e macia, e sentir-lhe a pele era como acariciar a pétala aveludada de uma rosa tenra.

"Eu também, meu querido. Eu também."

Ficaram um longo instante de mãos dadas, a fruir o momento, a torná-lo eterno.

"Lembras-te dos passeios até ao liceu?", perguntou Luís, como se a memória da juventude em Bragança o libertasse daquela prisão.

"íamos de minha casa a namoriscar", lembrou ela. "Naquele tempo era tudo tão simples. Meu Deus, como éramos inocentes!"

"Eu gostava de ti, tu gostavas de mim, o futuro era nosso, como poderíamos não ser inocentes?" Luís mordeu o lábio. "Mas tudo nos foi roubado."

"Não somos nós quem manda no nosso destino, pois não?"

O amante abanou a cabeça com tristeza.

"Pelos vistos, não. Não passamos de marionetas das circunstâncias."

Amélia respirou fundo, como se tentasse ganhar coragem.

"Pois é", disse, o tom tornando-se inesperadamente assertivo. "Mas eu vim aqui para reclamar as rédeas do nosso destino. Não quero continuar a ser uma marioneta."

"O que queres dizer com isso?"

"Quero dizer que chega, não aguento mais! Está na hora de assumirmos o controlo da nossa vida!"

Luís olhou-a com uma ponta de perplexidade, sem perceber exactamente o sentido prático daquelas palavras.

"E como tencionas fazer isso?"

"Contando a verdade."

"Qual verdade?"

"A verdade sobre o que realmente aconteceu em Castelo de Paiva."

"Estás doida?"

"Doida? Doida estarei eu se deixar que esta farsa continue por mais um dia que seja!"

"Mas o que lhes vais contar exactamente?"

"O que aconteceu. Que o Chico partiu o pescoço do Tino à minha frente... à nossa frente."

"E achas que isso chega?"

"Tem de chegar."

Luís apertou-lhe as mãos com mais força.

"Meu amor, eles não se vão ficar por aí. Se disseres que viste o Chico a matar o caseiro, eles vão até às últimas consequências para apurar os motivos por detrás de tudo. Ficar-se-á a saber que o Chico actuou para proteger a tua reputação e que tudo começou porque o caseiro nos apanhou juntos lá no curral a... a... enfim. Estás a perceber o que vai acontecer?"

"Sim", assentiu ela. "-Será terrível."

"É por isso que não podes testemunhar a meu favor, meu amor. Se o fizeres, a verdade virá toda à tona."

"Paciência."

"Paciência?", admirou-se Luís. "Isso será o caos na tua vida! O teu marido ficará a saber de tudo! A tua irmã odiar-te-á! Pior do que tudo, acabarás por ser expulsa de casa e ficarás sem ver os teus filhos! Serás rejeitada por toda a gente! Tens consciência disso?"

Uma grossa lágrima deslizou pelo rosto delicado de Amélia.

"Sim", sussurrou, como se estivesse esmagada pelo futuro já em gestação. "Eu sei."

"Achas-te preparada para isso?"

Amélia soluçou.

"O mais difícil será não poder ver os meus meninos..."

"Irias desgraçar-te, meu amor."

Os soluços tornaram-se um pranto. O ataque de choro impedia Amélia de fechar os olhos. Cruzou os braços sobre o

estômago e dobrou-se sobre si mesma, numa postura de desespero.

"Desgraçada já eu estou!"

Emocionado e transbordante de amor, Luís ergueu-se e abraçou-a, como se tentasse protegê-la da realidade que os cercava.

"Pronto, pronto", murmurou-lhe ao ouvido enquanto lhe afagava os cabelos. Cheiravam a eucalipto. "Tem calma, vai tudo correr bem. Vais ver."

Amélia tremia convulsivamente, como se estivesse gelada, o queixo a tiritar sem controlo, os braços a tremelicar. Luís tentava reconfortá-la como podia, mas a ele próprio faltavam-lhe as palavras, não havia nada que pudesse dizer capaz de ocultar o quão complicada era toda aquela situação. Sabia que não existiam saídas boas para aquele dilema; teriam de escolher entre soluções más e péssimas.

As convulsões prolongaram-se por alguns minutos, até que Amélia recuperou gradualmente a compostura.

"Hoje vou à polícia contar tudo", disse, mal foi capaz de recomeçar a falar.

"Não vais nada, tem calma."

"Tenho de ir."

"Não faças isso", insistiu ele. "Vais-te desgraçar a ti, vais desgraçar a tua irmã, vais desgraçar o teu marido e vais desgraçar os teus filhos. E isso para quê? Para me salvares a mim! A mim, que já estou desgraçado!"

Ela pôs-lhe as mãos quentes no rosto, uma em cada bochecha, apertou-o e aproximou a cara até os narizes estarem quase encostados.

"Ouve, Luís", sussurrou com intensidade. "Não consigo dormir mais uma única noite a pensar que estás na cadeia e só não sais por minha causa. Esta situação não pode continuar."

"E eu não conseguirei dormir tranquilamente mais uma única noite se souber que te desgraçaste para me salvar."

"Mas tu vais ser condenado a vinte anos por um crime que não cometeste! Vinte anos, Luís! Isso não quero, não posso, não vou aceitar!"

"E tu serás condenada até à eternidade por um crime que nem sequer devia ser crime. E atrás de ti será arrastada toda a tua família. Toda ela. Isso eu também não quero, não posso nem vou aceitar."

Ela permaneceu um longo tempo a fitá-lo.

"És teimoso, hem?"

Luís fez um esforço para sorrir.

"Muito. Sobretudo quando tenho razão. Mais vale eu arriscar vinte anos na cadeia do que tu, os teus filhos, a tua irmã e o teu marido passarem a eternidade no inferno para salvar quem já está para lá da salvação."

"Não digas disparates. Eu não posso consentir que estejas preso, isso está fora de questão."

"Mas terás de consentir."

Os olhos enlaçaram-se e Amélia suspirou, como se estivesse já resignada ao destino.

"Não posso deixar que isto continue por todas as razões que tu conheces e por mais uma que ainda desconheces."

"Estás a falar de quê?"

Ela estendeu a mão para baixo da mesa e levantou a malinha castanha que tinha encostada aos pés. Pousou a malinha no regaço, abriu-a e extraiu um grande envelope branco com um carimbo azul gasto a anunciar "Photo Anthony". Abriu o envelope e retirou o rectângulo rendilhado de uma fotografia.

"Estou a falar disto", disse, estendendo-lhe a imagem.

Luís pegou no rectângulo e pousou os olhos no rosto sorridente e desdentado de um menininho aloirado; posava em trajes domingueiros junto a um vaso e a um cão, e o fundo era difuso. Era uma fotografia de estúdio e provavelmente o cão não passava de um adereço da Photo Anthony, a prestigiada casa de fotografia de Penafiel.

"Quem é?"

"Não lhe reconheces os traços?"

Luís fixou os olhos no sorriso da criança e ergueu-os para o rosto de Amélia, comparando as fisionomias.

"É o teu filho?"

A amante cravou nele os olhos cor de mel com fervor, como se lhe quisesse espreitar o coração.

"É o nosso filho."

Luís abriu a boca e fechou-a sem produzir um único som. Olhou para Amélia e depois para a fotografia e depois para Amélia de novo, atordoado com a novidade.

"O... o nosso filho?", balbuciou por fim. "O que... o que queres dizer com isso?"

"O que achas?"

Voltou a cravar os olhos na imagem.

"Estás a dizer que... que este miúdo é meu?"

"Não é evidente?", perguntou ela, apontando para o rosto fixado pela câmara. "Olha aqui as linhas do queixo, assim quadradas. Olha para a expressão sonhadora dos olhos. É o teu retrato chapado, não há dúvida nenhuma."

"Mas... mas a Joana disse-me que ele era parecido com o pai..."

"E é."

"Não é isso", corrigiu. "Ela disse-me que o miúdo se parecia com o teu marido."

Amélia encolheu os ombros, como quem diz que a opinião da irmã era irrelevante para o caso.

"As pessoas vêem o que querem ver", afirmou. "Eu disse à Joana que ele se parecia com o pai e ela acreditou. Limitei-me, aliás, a dizer-lhe a verdade. Ele parece-se realmente com o pai, só não lhe disse que o pai não era o Mário." Voltou a indicar a fotografia. "Se olhares com atenção, vais ver que o Zé foi buscar os teus olhos e a tua linha do rosto."

"Chama-se Zé?"

"Não sabias?"

"Nunca quis saber."

Ela sorriu levemente.

"Tonto", disse. "Chamei-lhe José. Ainda pensei em dar-lhe o teu nome, mas percebi que seria suspeito. Se olhares bem para a fotografia, no entanto, percebes logo as parecenças."

Luís fixou a imagem com estupefacção, vendo e receando acreditar.

"Cos diabos!", exclamou. "Será possível? Ele é meu filho?"

"Todinho."

"Mas porque não me disseste nada?"

"Estou a dizer-te."

"Antes. Porque não me disseste nada antes?"

"E que querias tu que eu dissesse?", perguntou Amélia. Mudou o tom de voz: "Olá, tenho aqui o teu filho, mas tens de estar calado e fingir que ele te é indiferente. Não o podes educar, não o podes mimar, nem podemos revelar nada a ninguém." Mirou-o como quem acabara de expor uma evidência. "Achas que eu deveria ter feito isso?"

"Quer dizer... pois, não me parece uma situação normal, mas... enfim... eu gostaria de ter sabido mais cedo."

"E o que adiantaria isso?"

"E o que adianta agora?"

"Agora... agora permite-te perceber que, para além de todos os outros, existe ainda mais um motivo pelo qual não posso permitir que sejas condenado."

Com um suspiro cansado, Luís pousou a fotografia sobre a mesa e esfregou os olhos com as pontas dos dedos.

"Isto não altera nada."

"Claro que altera."

"Pensa, Amélia", disse ele, colando o indicador à testa. "O que irá acontecer quando se souber que nós... que nós nos amamos?" Passou a mão sobre o sorriso que a máquina fotográfica fixara no tempo. "O que achas que vai fazer o teu marido?"

"Não quero pensar nisso."

"Mas tens de pensar. A cidade toda vai saber que ele é... enfim, foi atraiçoado. Ele vai sentir-se humilhado, o que julgas tu? Ninguém gosta de ser conhecido por... por cornudo. A partir daí, pode fazer tudo. Pode até matar-te!"

"Ele não vai fazer isso."

"Como sabes? A lei é branda com os maridos que matam as mulheres em casos de defesa da honra."

"O Mário é boa pessoa."

"Também Abraão era boa pessoa e o facto é que ia degolando o filho."

"Oh! Não é a mesma coisa."

Luís estendeu os braços e segurou-a pelos ombros, abanan-do-a como se a quisesse despertar.

"Amélia, não te iludas. O teu marido vai ser humilhado em público. Ele é um militar de carreira e os militares têm um código de honra muito forte. Se ele não fizer nada, será

motivo de chacota por parte dos seus pares. Os militares aguentam muita coisa, mas não suportam ser apontados como bananas e gozados nos quartéis. Mesmo que ele não pegue em nenhuma arma e não cometa nenhum disparate, o mínimo que te fará é expulsar-te de casa e privar-te de ver as crianças. Não te iludas quanto a isso. Por mais que lhe custe, isso é o mínimo que ele terá de fazer para salvar a face. E se, para me atingir também a mim, isso significar punir igualmente o meu filho, fa-lo-á sem hesitações." Ergueu o dedo, sentencioso. "Que não haja dúvidas sobre isso."

"Mas, então... o que faço eu?"

"Nada."

Amélia abanou a cabeça, enfática.

"Nada, não pode ser!" exclamou. "Nunca aceitarei que sejas condenado por um crime que não cometeste. Se alguém tem de pagar, que seja eu."

"Mas tens de entender que não és só tu quem vai pagar", insistiu Luís. "Vai ser toda a família!"

"Vais ver que..."

A porta da salinha abriu-se bruscamente, interrompendo a conversa. O carcereiro espreitou e fez sinal para o relógio que trazia no pulso.

"Está na hora", anunciou.

"Só mais um instante", pediu Amélia.

O guarda deu um passo em frente e pousou a mão no ombro de Luís.

"Está na hora."

Os olhos dos dois amantes cruzaram-se, como se acreditassem que o olhar os poderia prender aos seus lugares. Queriam prolongar a conversa, ansiavam pelas palavras do outro, sentiam uma imensa fome de amor que apenas a presença do

outro conseguia saciar. Nem pensar em separarem-se naquele instante, nenhum dos dois se sentia com forças para deixar o outro.

"Só mais um momento", sussurrou ela, quase a implorar.

"Vamos!", ordenou o guarda, puxando Luís. "Está na hora de voltar para a cela!"

"Largue-me!", devolveu o recluso, contorcendo-se para se libertar. "Deixe-me!"

Mas o guarda, um homem gordo cujos braços valiam por dois do preso, bloqueou-o com as mãos e levantou-o à força.

"Já disse para irmos!"

Luís fez um esforço para se livrar daquele abraço asfixian­te, mas parecia tolhido por uma caixa de ferro.

"Largue-me!"

"Vamos!", exclamou o guarda, já à beira de perder a paciência.

Apercebendo-se de que o carcereiro estava prestes a tornar-se violento, Amélia estendeu a mão e selou os lábios de Luís com os dedos, silenciando-o.

"Chiu", soprou. "Vai."

Seguraram o olhar um no outro, como náufragos apartados por correntes irresistíveis. Havia tanto para dizer, mas já nada mais poderiam falar. Pior ainda era não se poderem despedir com um beijo, um abraço, uma mera carícia; mas ali, à frente daquele homem e tolhidos pelas circunstâncias, mais não podiam fazer do que trocar aquele derradeiro olhar.

"Não faças nada sem voltar a falar comigo", pediu Luís, arrastado já para a porta.

"Tenho de ir à polícia", devolveu ela. "Não consigo voltar a dormir se não for."

"Dá-me só mais um dia", implorou o recluso, saindo já para o corredor. "Só mais um dia."

Amélia hesitou. Queria muito descarregar aquele fardo, libertar a consciência e salvar Luís de uma vez por todas, mas o pedido foi feito com tanta paixão que sentiu que não lho podia recusar.

"Está bem", assentiu. "Até amanhã."

A resposta veio já lá do fundo, como um lamento, a voz a desaparecer na treva.

"Adeus, Amélia."

 

Havia já algum tempo que a ideia louca lhe germinara no espírito. Andava a ruminá-la com mais insistência nos últimos dias, à medida que as opções se iam fechando e deixava de ver saídas para a situação em que se encontrava, mas fora o encontro com Amélia que o pusera no limiar da decisão final.

Desde que fora preso que Luís passava quase todo o tempo a alternar entre estados de depressão e ansiedade, apenas intervalados pelos momentos de descompressão trazidos pelas breves conversas com as vozes que lhe chegavam do mundo exterior. Nenhuma visita, no entanto, teve um impacto tão devastador como a última de Amélia. Estar com ela fora infinitamente bom; quedar-se agora longe dela afigurava-se--lhe absolutamente insuportável. O seu era um amor sem esperança.

Precisava agora de considerar as consequências de tudo o que fora dito nessa conversa. A tentação de aceitar o sacrifício que Amélia se propunha fazer era enorme. Enorme. De uma

assentada, e graças a um maravilhoso passe de mágica, ver-se--ia livre do pesadelo horrendo em que a sua vida subitamente se transformara. Como não desejar isso? Mas o facto é que a magia não passava de puro ilusionismo e Luís não podia aceitar que tanta gente pagasse o preço que seria inevitavelmente cobrado pela sua ilibação. Amélia pagaria com dureza, o marido também, Joana igualmente, para não falar naquele filho que acabara de descobrir.

Pegou na fotografia que Amélia lhe havia oferecido e contemplou o sorriso infantil que o espreitava do outro lado.

"O meu menino", murmurou.

Uma e outra vez a mente voltou às consequências de aceitar o sacrifício que Amélia se propunha fazer, e sempre, sem falhar, chegou à mesma conclusão. Se Amélia contasse toda a verdade, desgraçar-se-ia a ela e a todos. Incluindo ao seu filho, dali em diante um bastardo que acabaria por ser educado longe da mãe e usado como arma para a punir por uma paixão que jamais deveria ser crime. O pequerrucho tornar-se-ia o bode expiatório do adultério da mãe e não havia nada que ele, Luís, e Amélia pudessem fazer para o proteger. E como seria a vida dela nessas condições? Expulsa pelo marido, longe dos filhos, rejeitada pela irmã, apontada perante todos como mulher adúltera, Amélia embarcaria numa viagem de perdição. Se a vida, tal como ela se apresentava nesse instante, já era dolorosa, então tornar-se-ia intolerável.

Isso ele não podia aceitar.

Não tinha dúvidas, porém, de que Amélia avançaria mesmo com o seu supremo sacrifício. Era agora evidente que ela não admitiria a continuação do processo judicial nos moldes em que o caso decorria e ia fazer o que estava ao seu alcance para o travar. Mas o preço era demasiado alto, repetiu Luís a si mesmo, determinado a poupar Amélia a todo o custo. Para o arrancar da cadeia, ela entregava-se a si e ao filho e a toda a família à ruína.

Isso ele não podia mesmo aceitar.

Se Amélia estava disposta a avançar para o supremo sacrifício, então ele não tinha o direito de mostrar menos coragem. O sacrifício teria de ser seu, só seu; essa era a única saída realista para toda aquela confusão.

Sentado na penumbra da cela, o olhar perdido no labirinto da mente, reviu vezes sem conta os argumentos que o impeliam ao sacrifício; o assunto tornara-se uma obsessão, um diálogo interior que não conhecia fim. A sua vida chegara a um beco. Joana não era capaz de lhe dar filhos, mas tinha um menino de Amélia que não podia perfilhar. Como se isso não bastasse, a liberdade fora-lhe roubada e havia sido enxovalhado com a humilhante detenção por homicídio. Ele, que sempre cuidara da sua honra e sempre defendera o que considerava justo, via-se atirado para um calabouço como um reles criminoso. Aos olhos do mundo não passava de um cobarde assassino.

Depois havia Amélia. A amante podia resgatá-lo, é certo, mas ao fazê-lo desgraçar-se-ia a ela e a todos em seu redor. E desgraçá-lo-ia também a ele, que só se salvaria graças à desgraça alheia. E tudo por causa da porcaria de país em que vivia, da mentalidade tacanha que se instalara, do consenso medroso que caracterizava aquele tempo.

Se a vida é isto, para quê viver?

Tornou-se claro que se haviam esgotado as soluções. Desde que tinha sido detido que se interrogava sem cessar sobre a sua situação. O que fazer? Como enfrentar aquilo? Como sair dali? A detenção e a humilhação revelavam-se insuportáveis. Mas o pior era não ver saídas aceitáveis. Não havia escapatória, era como se tivesse dado de caras com uma parede intransponível. Portugal era aquilo e daquilo não sairia. A desesperança instalou-se-lhe no coração.

Havia analisado todas as opções e sempre rejeitara a derradeira, mas uma a uma tivera de as descartar a todas e encontrava-se agora a encarar a última, a mais final de todas, aquela que tudo resolveria de vez. Não aguento mais, pensou. Não há nada que eu possa fazer e ninguém me pode ajudar. Impõe-se um fim a esta situação, preciso de fugir de toda a confusão, há que acabar com tanto sofrimento. Isto é intolerável. Intolerável. Tenho de escapar desta cela que me tolhe, preciso de me libertar deste julgamento que me envergonha, não consigo viver num país onde não se pode respirar.

Paz.

Foi nesse instante, ali sentado no ambiente estático da cela, os pés assentes sobre as silhuetas geométricas que a claridade da janelinha gradeada recortava no chão, os olhos perdidos na chuvada de poeira que dardejava como um punhado de pirilampos diante do hálito de luz exalado pela janelinha, que a longa cadeia de raciocínio chegou ao termo e ele tomou a decisão final. Alguém teria de se sacrificar e não podia ser Amélia.

Quero paz.

Com o processo de decisão concluído, optou por tentar não pensar mais, não lhe fosse faltar a coragem quando dela mais precisasse. O pensamento paralisa a acção, sabia. Precisava de agir sem pensar e quanto mais cedo começasse me­lhor.

Aproveitando a claridade do dia, tirou o lençol da cama e começou a rasgá-lo em farrapos longos, simulando que tossia sempre que fazia força e dilacerava o tecido, de modo a disfarçar o barulhento crrrrrrr do pano a ser rompido. Ao fim

de uma hora tinha já uma longa faixa branca aos farrapos em vez do lençol rectangular. Enrolou a faixa e escondeu-a por baixo do cobertor imundo.

Afadigara-se com o lençol e conseguira evitar pensar, mas nesse momento tinha as mãos livres e receava regressar ao fervilhar obsessivo da mente. Pegou numa folha e pôs-se a rabiscar uma mensagem para Amélia. Escreveria a Amélia, decidiu, e fá-lo-ia enquanto tivesse luz. Escrevinhou Meu amor, depois pensou que o marido poderia ver a carta e rasgou o papel, recomeçando na folha seguinte com um mais sereno Querida Amélia. Ia na segunda linha quando a porta de acesso aos calabouços se abriu e ouviu passos a aproximarem-se.

"O Afonso", chamou uma voz.

Era o guarda.

"Sim?"

"Tens aqui mais uma visita", anunciou. O homem aproximou-se da porta e tirou a chave do molho que guardava no cinto. "Olha lá, tens de dizer a esta malta que assim não pode ser, ouviste? Eu não sou nenhum moço de recados nem isto é um hotel."

"Quem é?"

"É o gajo de ontem. O... o coiso."

"Quem? O doutor Garcia?"

O carcereiro inseriu a chave na fechadura.

"Sim, é esse gajo."

O advogado, identificou. Mas que lhe quereria ele? Seria possível que Amélia já tivesse falado com o doutor Garcia? Não, isso ela não tinha feito. Prometera que permaneceria calada até ao dia seguinte e cumpriria. Provavelmente o advogado queria era convencê-lo a deixar que Amélia se sentasse no banco das testemunhas. A tentação era grande e

um fogacho de esperança reacendeu-se no espírito de Luís, mas logo tratou de o apagar com firmeza. Do que ele precisava nesse momento não era de esperança, mas de coragem. Salvar-se seria condenar Amélia e toda a família, e isso ele não podia permitir. Não se salvaria à custa do sacrifício dos outros.

"Diga-lhe que hoje estou indisposto."

O guarda acabara de abrir a porta da cela e imobilizou-se, desconcertado.

"Mau! Não queres falar com ele?"

"Não. Peça-lhe que volte amanhã."

O carcereiro fez um estalido irritado com o canto da língua.

"Ai, ai!", protestou, arqueando as sobrancelhas e voltando a fechar a porta da cela. "Já me estás a dar muito trabalho, ó Afonso! Pensas que eu estou aqui ao dispor ou quê?"

"Tenha paciência, mas o doutor Garcia que volte amanhã." Luís hesitou, considerando outras hipóteses. Gostaria de ver toda a gente, mas receava que a prova fosse dura de mais e lhe retirasse forças para levar adiante a sua decisão. "E diga o mesmo a qualquer outra pessoa que apareça para me ver."

"Incluindo à tua senhora?"

"Sobretudo a ela."

Regressou à carta e releu o pouco que havia redigido. Não seria estranho descobrirem uma carta endereçada a Amélia? Claro que isso suscitaria interrogações, por mais inócuo que o texto se viesse a revelar. Rasgou a folha em milhentas tiras, para a tornar ilegível. Não, não podia dirigir a carta a Amélia. Mas como faria então?

Tentou várias ideias até que lhe ocorreu uma solução.

Havia uma maneira de escrever a Amélia sem que ninguém o percebesse. Trilhando esse caminho, redigiu uma carta que rasgou de novo, e depois outra e outra ainda, escreveu até a luz do dia minguar e encontrar enfim a fórmula certa para explicar a sua fuga.

Releu a mensagem e deixou correr um suspiro. Era subtil e certeira; só os mais perspicazes a entenderiam. Sabia agora que, se estava preso e a esperança se fechara sobre ele, isso não se devia verdadeiramente às circunstâncias que rodearam a morte do Tino nem às mentiras ditas por Francisco nem à necessidade de impedir a desgraça de Amélia nem sequer ao ressabiamento vingativo do inspector da PVDE. Tudo isso não eram mais do que manifestações do mesmo problema. A causa verdadeira, a mais profunda de todas, estava no país em que vivia. E era isso que Amélia teria de entender na sua mensagem.

Quando fechou o envelope já a claridade tombava mori­bunda e a cela descaía para a meia-luz. Consciente de que não poderia deixar para trás nenhuma pista que denunciasse Amélia, pegou na fotografia do filho e, após prender naquele sorriso infantil um derradeiro olhar, rasgou-a também em mil tiras. Juntou os pedacinhos rasgados do cliché aos de todas as tentativas abortadas da carta que escreveu, empoleirou-se no banco e, estendendo as mãos por entre as grades da janelinha, lançou-os ao vento. Ficou a ver as tirinhas brancas a esvoaçarem com doçura, como flocos de neve a salpicarem o ar, adejando devagar sobre o jardim da Praça da República.

Respirou fundo, o sofrimento a queimar-lhe a alma. Dei-xou-se estar à janelinha e espreitou o crepúsculo que o céu avermelhado anunciava. Despediu-se do Sol sonolento e viu a noite assentar devagar. Começou por ser penumbra mas de­pressa se tornou sombra pontuada a pó brilhante, um manto

escuro que foi manchando gradualmente o céu e o afogou de negro cravado a diamantes.

Deslizou melancolicamente para a cama e ali ficou a languescer na escuridão. Nunca se sentira tão em baixo como nesse instante. Evitava raciocinar e buscava a lassidão do esquecimento, mas afogava-se em dor; não pensava noutra coisa que não fosse o poço sem fim em que a sua vida se convertera. Não havia nada que pudesse fazer, não havia ninguém que o fosse ajudar, não havia refúgio onde pudesse encontrar esperança. Passara dias e horas e minutos na cadeia à procura de soluções e apenas o silêncio lhe respondera; era como se não houvesse respostas. Por mais que se esforçasse, não encontrava paz no pensamento de que Amélia se sacrifi­caria para o salvar. Isso não seria salvação, concluiu; seria maldição eterna.

Luís jurou a si mesmo que não podia deixar que os acontecimentos seguissem o seu curso natural até à perdição. Não podia deixar que as mãos invisíveis da autoridade corrompida o arrastassem para o seu fim, pondo e dispondo da sua vida. Precisava de controlar o destino, tomá-lo em mãos e impô-lo. Tinha feito tudo o que estava ao seu alcance, havia vasculhado as diferentes alternativas, explorara todos os caminhos possíveis e a verdade, a terrível e amarga verdade, é que ainda se afundava. Esgotara as opções. Ou melhor, não as esgotara todas. Restava-lhe ainda uma derradeira, a mais desesperada, aquela que enfim o libertaria.

A final.

A sombra foi quebrada pelo aparecimento do guarda, que, como de costume àquela hora, trazia consigo um candeeiro de incandescência petromax, a única iluminação nocturna existente nos calabouços. O candeeiro emitia uma luz azulada no

meio do corredor, pestanejando ao ritmo da dança dos insectos que o orbitavam, e aos reclusos chegava já apenas uma leve claridade intermitente, bastante para discernirem os contornos das coisas, mas insuficiente para enxergarem os pormenores.

Esperou pelo jantar, que não tardou a surgir num tacho trazido pela mão do carcereiro.

"Hora do banquete", anunciou o homem.

Era uma sopa aguada, feita de legumes e decerto alguns insectos invisíveis à meia-luz, e duas fatias de broa. Olhou para a sopa com desprendimento e percebeu que não conseguiria comer; não sentia fome e pousou-a no chão. Tinha a mente ocupada com a tarefa sobre-humana que o esperava. Enquanto martelava a solução para tudo aquilo, libertou os olhos e deixou-os passearem como vagabundos, deambulando pelas sombras fantasmagóricas que o clarão azulado tingia nas paredes desbotadas da cela.

Quando a hora da refeição terminou e o guarda veio aos calabouços e apagou o petromax, a obscuridade absoluta reinstalou-se na cela. Luís ficou um instante sentado na cama, os olhos fitos na treva, a respiração leve e controlada; parecia uma estátua indiferente ao deslizar inexorável do tempo. A vida é um sonho, pensou. A morte é o despertar. Passamos um universo inteiro a flutuar no vácuo da não existência; a vida não passa de um fugaz tremeluzir da chama do petromax na vasta noite da eternidade. A vida é a anomalia, a morte é o regresso ao estado original; a vida é um sopro e a morte é o ar.

Agora, decidiu, gritando a palavra em silêncio.

Agora.

Ergueu-se com um movimento trágico, assaltado pela vertigem de quem está diante do abismo e receia perder a coragem. Tacteando às escuras, levantou o cobertor e pegou na longa

faixa esfarrapada em que transformara o lençol. Não quis pensar no que estava a fazer, mas começou a sentir o coração a saltar-lhe no peito e as mãos a tremerem e as pernas a fraquejarem e os pulmões a arquejarem e os nervos a cederem.

"Não vou conseguir", sussurrou, ofegante. Mas logo pensou em Amélia a expor-se ao mundo e no seu filho apartado da mãe e sentiu voltar-lhe a coragem do desespero. "Tem de ser, Luís. Tem de ser."

Sempre às apalpadelas, encostou o banco à parede, pôs-se em cima dele e chegou com as mãos ao ferro frio das grades. Uma luz ténue brilhava lá fora. Esticando o nariz, concedeu-se um instante de trégua para saborear o ar e aspirar a brisa de liberdade que soprava por entre as árvores e lhe acariciava o rosto. Foram só alguns segundos, porque depressa retomou os movimentos.

Com as mãos a tremerem quase descontroladamente, passou duas vezes a faixa do lençol pelas grades, de modo a garantir a sua robustez, e formou um laço que fechou com dois nós. Puxou a faixa com força, testando a sua resistência. Aguentava. O coração era já um batuque dentro do peito, a respiração acelerada tornara-se ofegante e sentia dificuldade em controlar os movimentos das mãos. Antes que a coragem se esvaísse, pôs o laço ao pescoço, apertou o nó e, com tudo já a postos, deixou-se assim ficar um longo instante.

Faltava-lhe apenas uma última coisa. Teria de fazer um jeito com os pés e derrubar o banco. Mas, agora que ali se encontrava, já depois de ter tudo preparado e a postos para o passo final, não se achava capaz de completar o acto. É ridículo isto que eu estou a fazer, pensou. Ridículo! Não vou resolver nada.

O pensamento acalmou-o um pouco e ajudou-o a regularizar a respiração. Ansiava pela libertação da fuga final, mas ao mesmo tempo esperava a salvação. Era uma estranha ambiva­lência aquela que nesse instante o dividia. Sentia que não havia outro caminho, mas simultaneamente ansiava por uma intervenção redentora. Pôs as mãos no laço e preparou-se para o retirar, consciente de que já não seria capaz de voltar a pô-lo ao pescoço. Mas, no último instante, como se uma sombra negra lhe tivesse de súbito toldado o espírito, imaginou Amélia a desfiar toda a história diante de um polícia e anteviu a infame cadeia de acontecimentos que esse simples relato iria desencadear. Primeiro a verdade, depois a vergonha, por fim a desgraça.

Num assomo final de desvario, como um espírito rebelde que se revolta contra o destino marcado, fez força com os pés, sentiu o banco balouçar e desequilibrar-se e, com o abandono louco e cego de quem se lança sobre um precipício, no momento em que o apoio lhe falhou sob os pés sentiu toda a existência derramar-se-lhe num derradeiro sopro de vida.

"Amélia."

 

O corpo inerte do doutor Luís Afonso foi encontrado na madrugada seguinte quando o guarda fez a primeira ronda da manhã pelos calabouços da cadeia municipal de Penafiel. Vendo uma sombra pendurada na grade da janela, sacou atabalhoadamente a chave que guardava no molho, irrompeu pela cela e sentiu o pulso do recluso suspenso.

Nada.

Olhou em redor e viu um envelope sujo deitado sobre o lençol. Pegou nele e franziu o sobrolho ao verificar que não tinha destinatário. O sobrescrito estava em branco, embora fosse evidente que continha uma carta no interior. Sem tocar em mais nada, saiu da cela e foi telefonar ao director da cadeia, que lhe deu ordens para chamar o médico.

Meia hora mais tarde, uma pequena multidão formigava na cela. O médico desceu o corpo e, com a ajuda do guarda, estendeu-o sobre a cama, cobrindo-o com um lençol. Uma vez confirmado o óbito, o director mandou chamar o padre, que chegou ao local em quinze minutos. De cruz na mão, o pároco benzeu o morto e, preocupado em saber quem deveria consolar, voltou-se para o director da cadeia.

"A família?"

"Ah, pois!", exclamou o director, fazendo um estalido com os dedos. "É preciso avisar a família!"

"O defunto era casado?"

"Sim", assentiu o responsável pela cadeia municipal, exibindo o envelope encontrado aos pés do recluso. "Deixou uma carta. Vamos entregá-la à mulher."

O padre pegou no envelope e estudou-o com um ar interrogativo.

"Mas isto está em branco", constatou. "Como sabe que é para a mulher?"

"Bem... na verdade não sei. O que sugere que façamos?"

Os dedos do pároco deslizaram para o canto do sobrescrito e um brilho coscuvilheiro cintilou-lhe nos olhos.

"Vamos abrir."

Sem deixar correr tempo que permitisse reconsiderar a sugestão, o padre rasgou o sobrescrito e extraiu do interior uma pequena folha dobrada em quatro. Desdobrou-a e, as sobrancelhas contraindo-se numa expressão perplexa, leu duas vezes as quatro linhas ali rabiscadas.

"Pobre diabo!", exclamou enfim. "Ficou tresloucado."

Incapaz de conter a curiosidade, o director da cadeia esticou o pescoço sobre o ombro do sacerdote e espreitou a mensagem que o recluso havia deixado.

"O que é isto?", admirou-se. "Um poema?"

"Sim, veja lá."

"Dorme, Mãe Pátria", interrogou-se, lendo o início da primeira linha. "Que história é esta?"

"Leia tudo."

O director passou duas vezes os olhos pelo verso, tentando apreender o seu significado, e terminou a leitura com as sobrancelhas cerradas em desaprovação.

"Isto é antipatriota", concluiu, quase indignado. "Já viu isto, senhor padre? O gajo está a falar mal do país... como se o país tivesse alguma coisa a ver com as trapalhadas em que se meteu! Ele há com cada uma..."

O pároco abanou a cabeça e assumiu uma condescendente expressão de benevolência.

"O desgraçado já não devia dizer coisa com coisa, coitado", murmurou, a indulgência a jorrar-lhe pelos lábios. "Que o Senhor tenha piedade da sua alma e na Sua infinita miseri­córdia o acolha no Seu Reino."

Franzindo o sobrolho, o director apontou para o nome por baixo do poema.

"E isto aqui?"

"É o nome dele."

"Não, não", disse o director, abanando enfaticamente a cabeça. "Ele não se chamava Fernando Pessoa. Chamava--se Luís Afonso. Porque raio pôs outro nome debaixo do verso?"

O padre voltou-se para o corpo estendido na cama da cela e, o olhar a transbordar de piedade beata, benzeu-o uma última vez.

"Ensandeceu, pobrezito."

O funeral foi realizado dois dias mais tarde, em Vinhais. Toda a manhã no velório havia sido triste, com um temporal a entornar-se sobre a vila, as ruas abaladas pelo ocasional descarregar do trovão; dizia uma velhinha que era o céu a bradar pelo doutor Afonso e por tudo o que lhe tinham feito. Choveu durante todo o dia, mas, quando o féretro abandonou

o hospital, a carga de água suspendeu a sua fúria, afastando-se com deferência para além do Montezinho, e um fio púrpura começou a salpicar as nuvens de sangue dócil.

Três dezenas de pessoas compareceram ao funeral, a maior parte vindas de Alfândega da Fé e de Penafiel. Foi uma cerimónia curta, mas digna, tão digna que nenhum animal pôde prestar homenagem ao homem que os amava; a ordem do responsável clínico foi de tal modo firme que nem o inconso­lável cão do defunto foi autorizado a entrar no hospital ou a acompanhar o cortejo fúnebre.

Como se percebesse tudo o que se passava, Nilo desapareceu nesse dia e nunca mais foi visto. Joana devolveu Relâmpago ao exército e vendeu a casa de Vinhais para ir viver outra vez com o padrinho em Penafiel. Uma vez que o principal suspeito estava morto, o processo do homicídio do Tino foi arquivado e esquecido. A vida retomou o curso normal, embalada na doce rotina que se reinstalou com pacata bonomia.

Apenas Amélia nada esqueceu. Viveu o luto em silêncio, a dor a incendiar-lhe a alma, o segredo a secar-lhe os olhos. A pretexto de visitar as terras da família em Trás-os-Montes, aproveitou todas as oportunidades de que dispôs para dar um salto a Vinhais, e sempre que lá ia fazia questão de depositar uma rosa na campa de Luís.

Foi assim, numa dessas visitas, que teve conhecimento do estranho rumor que circulava entre os coveiros da vila. A roda de uma sepultura acabada de cobrir, as pás ainda sujas de terra húmida e as silhuetas recortadas contra o Sol poente, os homens revelaram-lhe que desde há algum tempo não se podia vir ao cemitério durante a noite. Diziam eles que era por causa dos monstros que por lá agora apareciam.

Porém, olhando os parceiros de esguelha, logo um dos coveiros corrigiu os restantes:

"Não são monstros, não senhor, que eu o vi muito bem, sou do Montezinho e topo-os à distância, pois então! É um lobo, ouviram? É um lobo que por cá aparece! E vai sempre para ali, camano! Bota-se à pela noitinha sobre a sepultura do deitor!"

Um lobo, vejam só!, exclamaram os outros com admiração. Anda um lobo a rondar o cemitério de Vinhais à noite!

Um lobo.

Percebendo a história como mais ninguém ali a podia entender, Amélia teve de voltar as costas para ocultar as lágrimas que de repente lhe marejaram os olhos, tão inesperadas como a água de uma onda traiçoeira a galgar a praia. Corria pelo cemitério um vento quente e seco, semeando remoinhos de pó por entre as campas; eram peões difusos a rolar com repentina fúria, como se o tempo se desfizesse da poeira dos dias que se finaram.

Desculpando-se com a súbita ventania que ali se levantara, Amélia afastou-se do grupo e foi derramar a saudade diante da lápide de Luís. Feria-a a memória daquele que por ela morrera, doía-lhe a impotência que sentia perante o destino, afogava a revolta em fúria mal contida. Mas agora tudo isso superou porque sabia enfim que o seu homem não estava só, que ela não era a única que não o esquecera, que havia outro para quem Luís era mais do que uma simples memória.

Não havia lobo nenhum.

Era Nilo que zelava pelo dono.

                                                                                José Rodrigues dos Santos  

 

                      

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