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- Vamos lá! Acende o papá Kroull! - disse um homem de macaco azul a um outro vestido do mesmo modo.
Ambos estavam de pé, em cima do pesado carro vermelho, instalado diante do Phoenix Picture Palace e o suor escorria pelos seus jovens e belos rostos. "Papá Kroull" era um grande projector que tinha o seu nome próprio como todos os projectores em Hollywood, e a família estava com ele no carro: Mamã Kroull" e "Bebé Kroull". "Bebé", um pequeno projector insignificante, não tivera ainda ensejo de entrar em acção, pois o desfile, diante do cinema, não estava ainda no seu ponto culminante. Os dois homens, esses não tinham nome: eram electricistas de terceira categoria e mais nada. O mais novo fez o contacto. Imediatamente, do "Papá Kroull" uma toalha de luz resplandeceu voltada para o céu: a saudação em honra de uma vedeta.
Ao longe, sobre o Oceano, e muito por cima da sierra o céu formigava de estrelas que pendiam, na noite, muito baixas, quais frutos maduros e grandes.
E estava fresca, esta noite, como todas na Califórnia. No entanto, o canto violento das cigarras, a transparência do céu, a sombra negra das palmeiras, davam-lhe um não sei quê de tropical. Às vezes, um desses astros destacava se e caía, grão maduro de luz, deixando após si a clara fita da sua trajectória; depois, logo um ramo de estrelas farandolava atrás, em linha curva ao longo do céu para ir afogar-se na orla de prata do horizonte, no sítio onde uma pequena lua de aspecto artificial começava a subir das trevas do mar para as trevas do ar.
Sobre a cidade, não havia estrelas. Esta cidade, demasiado clara, não suportava nem noite, nem céu, Lançava as suas próprias luzes para o teto de bruma que a encimava. As ruas eram redes cintilantes atravessadas pelos cordões luminosos e densos dos boulevards. Os postos de T. S. F. entrelaçavam, bem alto, no céu, grinaldas de luz vermelha e branca. De vários arranha-céus dos boulevards de Hollywood e da interminável e brilhante fila das ruas de Wilshire jorravam fluxos de claridade. Apareciam icebergs iluminados, montanhas do Graal, castelos de fadas, cristal de um azul-esverdeado. Da negra boca de um canhão, saía, de vez em quando, para o colo de Cahouenga, um traço azul, ardente e frio, que se extinguia e voltava a aparecer, para de novo se apagar e voltar ainda: uma tomada de vistas na Universal City, Na outra extremidade da cidade, onde, por detrás de Culver City, os derriegs trepam como uma sarabanda de esqueletos, o Baldwin Hill, o misterioso gigantesco "57" é projectado em caracteres de fogo, símbolo enigmático de uma fábrica célebre de conservas. Por toda a parte, nas encostas das montanhas e das colinas, brilhavam colossais aparições, inscrições luminosas, os cartazes, os ruídos da luz eléctrica: Hollywoodland, Pilgrim, Play, Cak Crest, nomes de hotéis ou de terrenos, títulos de filmes. Letras gigantescas deambulavam pela atmosfera, uma após outra, sobre um inexplicável fundo de vácuo e de negro: C. A.R.D.O.G.A.N.-C.A.R.D.O.G.A.N. Letras gigantes, letras de fogo, azues, depois verdes, depois encarnadas: CARDOGAN.
De súbito, através a poeira luminosa, em revolta sobre a cidade, passou, cortante e recto, o jacto brilhante do projector, mais claro e mais cru que todos os outros. Rebuscavam o céu em todos os sentidos, como à procura de um outro. Começou uma espécie de combate de raios frios e azues. Mas não eram os simples e pueris raios que se pintam em redor das estrelas e das cabeças dos santos; era uma luz compacta, tornada por milagre fantástico, um ser concreto.
- É preciso ligar também o bebé ? - preguntou o electricista.
- Sim, com certeza! - respondeu o outro - Depois acrescentou:
- Mete vermelho, é a Ria Mara.
"Bebé Kroull" projectou a sua luz como uma explosão, assim que se fez contacto. O seu raio arrancou reflexos brancos aos rostos suados dos operadores, ao vermelho de zarcão do pesado carro, galgou o cordão de policia que fechava a rua e lançou-se brutalmente sobre uma senhora frágil, vestida de veludo vermelho-claro, brilhante como o vidro, que descia do seu carro. Depois, subiu até ao cimo do arranha-céus fronteiro. Lá em cima, no décimo segundo andar quebrou-se contra o título do filme: Cardogan.
Em baixo, na avenida, dir-se-ia ter acontecido um desastre, uma revolução. Alguns agentes sorriam ainda; outros apertavam os maxilares com ar sombrio. Tinham estendido cordas para conter a multidão mas esta não se deixava conter. Constantemente, em grupos ululantes, ganhava terreno.
Grande e sólido como um monumento, um polícia erguia-se no meio dos redemoinhos dos autos que desciam lentamente da Dren. Os chauffeurs, de rosto contraído, com o cotovelo esquerdo encostado com uma espécie de afectada indolência, na beira do carro, guiavam com uma só mão. O sinal de parar féz-se ouvir. O reflexo vermelho e verde das lâmpadas que dão o sinal de paragem bateu-lhes nos rostos: negros, filipinos, mexicanos, alemães. Proletários de cor originários do sul, falhados de Harvard, fugidos do cinema, engenheiros sem êxito. Entre os carros parados os peões cruzavam em zigue-zague até ao Phoenix Picture Palace. Viam-se impacientes casacos de arminho protegidos por senhores de casaca negra e chapéu alto. Atrás das cordas o borborinho recomeçava. Dir-se-ia que, agora, a senhora frágil, de vestido vermelho-claro, ia ser feita em pedaços, levada à força - mas era apenas uma homenagem a Ria
Mara, a vedeta. Ela sorria, feliz, e cumprimentava com as suas luvas de couro vermelho. O vermelho, com os seus reflexos translúcidos, aquecia-lhe o rosto claro e perfeitamente regular. À entrada do Phoenix Picture Palace a luz era tão branca que rostos e corpos perdiam as suas sombras e as suas linhas. Um homem pálido e esbelto, de casaca, lançou com ar crispado palavras agradáveis para o ponto, à altura da sua boca, donde, quási invisíveis no meio de todo esse borborinho, pendiam dois microfones. Outro, mais esbelto ainda, separava sorrindo, mas com um gesto brutal, os pares que desciam dos carros e penetravam na brancura sem sombras do vestíbulo. Esses dois homens tinham um nome. Eram Mr. Keller e Mr. Mac Olehan, do Publicity Department, da Phoenix Picture Corporation. Umas vezes era uma mulher, outras um homem, que eles arrastavam, como uma presa, para diante do microfone. De cada vez, a multidão, comprimida atrás das cordas, soltava gritos. De cada vez brilhava uma chama azul de magnésio e os projectores lançavam uma saudação para o céu. O cheiro a fio queimado enchia o ar, nuvens de fumo flutuavam diante das portas que davam acesso ao Phoenix Picture Palace. Dois alto-falantes faziam ruído: um no oitavo andar distribuía a música; o outro por cima da marquise, repetia com uma espessa voz de baixo o que Mr. Keller e as suas vítimas gritavam ao micro.
Na entrada lateral, mais calma, em frente da praça do Parque, tinha sido instalada uma estação de ambulâncias. Embora a representação não tivesse ainda começado, já tinham sido trazidas cinco pessoas desmaiadas: dois homens e três mulheres. Um dos homens tinha várias costelas desastradamente quebradas e cuspia sangue, com uma tosse doentia, inconsciente.
-Provavelmente as costelas perfuraram o pulmão...
- disse o médico inclinado sobre ele.
- Perigo de morte? - preguntou o pequeno Joê Ray, do Publicity Department da Phoenix Picture Corporation que tornava notas para o seu relatório da estreia.
- Não. - respondeu o doutor.
- Tem a certeza ?
- Sim.
- Tanto melhor. - replicou Joe Ray.
As suas costas tinham um ar descontente. As suas costas diziam "tanto pior". Debaixo do ponto de vista do Publicity Department, um esmagamento numa primeira, valia por dez costelas quebradas como havia em qualquer filme.
Cardogan era uma sensação. Cardogan era a produção mais importante que a Phoenix Picture Corporation apresentava esse ano. Dois milhões de dólares aproximadamente. Duas grandes cenas, uma paisagem do litoral escocês, nove meses e meio de trabalho com o manuscrito, sete semanas de tomada de vistas, catorze semanas de montagem. Cardogan com Oliver Dent e Ria Mara.
Joe Ray fechou o seu livro de apontamentos e seguiu, desapontado, a maca que levava para o carro da ambulância, aquele ferido destituído de interesse.
Emquanto que, sem dar muito nas vistas, o automóvel se afastava pela avenida por trás das casas, a multidão desencadeava-se para a frente onde, com três quartos de hora de demora, os últimos convidados se apresentavam. Desta vez a multidão foi mais forte do que a polícia. Devido aos gritos e aos encontrões, as cordas cederam e os polícias, de expressões resignadas, convencidos da inutilidade de qualquer resistência, contentavam-se em olhar.
Oliver Dent acabava de chegar.
Oliver Dent, como todos se lembram, passava, na época em que foi apresentado Cardogan, por ser o homem mais belo do mundo. O Publicity Department tinha-o provado por meio de estatísticas e de concursos, colocando assim Dent sob uma luz um tanto incomodativa. Porque na realidade, não havia no verdadeiro Oliver Dent nada dessa beleza publicitária.
O seu rosto tinha uma dureza fotogénica que mesmo a caracterização mais espessa e mais lisa não chegava a embotar. O público, ávido de sonhos realizados, adorava o sem saber porquê. A crítica encontrava sempre
para ele os mesmos epítetos, que todos tinham qualquer aproximação com a luz: brilhante, luminoso, resplandecente.
A multidão pôs-se a gritar assim que ele saiu do automóvel. O sr. Keller voltou-se para o saudar com um gesto, mas o artista foi arrancado ao homem da publicidade. Oliver imobilizou-se um instante no estribo, voltando o claro rosto para uma dama a quem estendia a mão para a ajudar a sair e que parecia hesitar. Ele sorria, surpreendido e um pouco tímido embora estivesse habituado às ovações, que não apreciava muito. Depois, sentiu-se rodeado: parecia que a multidão o queria levar em triunfo, mas, na realidade, era somente o mais alto de todos.
Mr. Keller voltou para junto do microfone.
"Atenção, escutem! O barulho que ouviram agora, significa que Oliver acaba de chegar. Gostava que podessem ver o que se passa aqui. Os polícias estão exaustos. Lá em baixo, uma velha senhora atravessa a rua para ver Ol. Este distribue autógrafos. Ri. Fala. Atenção! Se conseguirmos libertá-lo, dirigir-vos-á também algumas palavras".
Efectivamente, Oliver, no meio da multidão que se comprimia, falava. "Sejam razoáveis, meus amigos. -dizia ele-Vão despedaçar-me! Tenham cuidado com a minha casaca nova. Não posso dar autógrafos. Tenho que ir assistir ao espectáculo. Vamos, meus filhos, sejam prudentes, sejam bons meninos e boas meninas ... Gosto muito de vocês..."
Os seus maleáveis ombros ágeis de boxeur e o seu rosto risonho, ondulava sobre a multidão. Fazia tudo quanto podia para ser amável. "Tentava desprender-se sem empurrar as pessoas e sem as esmagar, embora o empurrassem a ele e o pisassem. A alguns passos de distância, notou, quási ao nível do seu, um rosto que, com a memória dos nomes, particular aos americanos, reconheceu imediatamente.
- Alo! Aldens, gritou-lhe. Acuda-me.
- Alo! Ol, respondeu o rapaz que era quási tão alto como Oliver Dent.
- Será capaz de me ajudar a sair daqui sem assassinar nenhuma destas gentis senhoras ? -gritou Oliver.
- Se você der a esta que está aqui o autógrafo que ela reclama.- respondeu o outro erguendo, como se fosse uma criança, sobre a multidão ululante, uma rapariga loira platinada. Um segundo mais tarde, o círculo formado em redor de Oliver brandia as canetas. Ele serviu-se como secretária, para escrever os autógrafos, das costas de um homem de estatura mediana que se prestou voluntariamente e até com alegria, a esta operação. Já tinha cinquenta e nove minutos de atraso. Mr. Mac Olehan fez uma ofensiva. "Senhoras e senhores, - disse ele - isto não pode continuar assim. Deixem o nosso Ol vivo, O espectáculo vai começar, espera-se Oliver Dent!"
Seguindo o rapaz a quem tinha chamado Aldens, Oliver, um pouco fatigado e saturado de popularidade, deu alguns passos à frente e chegou até ao microfone. Sobre ele, do teto de vidro, a luz caiu, assim como o raio dos três projectores e os relâmpagos do magnésio dos repórteres fotográficos. Oliver lançou para dentro do micro as palavras adequadas a situações idênticas.
"Alo, a todos. vou ver Cardogan, o mais belo filme do ano. Fui eu que o interpretei mas nem por isso estou menos curioso e menos nervoso. Muito obrigado e boas-noites".
E, depois de se ter submetido assim a todas as imposições da popularidade, depois de ter feito aos repórteres fotográficos um leve cumprimento, de ter apertado a mão aos dois empregados do Publicity, e, para acabar, de ter agitado o seu chapéu alto na direcção da multidão, agora outra vez atrás da linha divisória, voltou-se para a senhora que o acompanhava. Entretanto, ela, que tinha saído do carro e estava ali ao pé dele, envolveu-o com um estranho olhar dos seus olhos oblíquos.
Esta senhora era, digamo-lo imediatamente, Donca Moresco. Havia sido numa época que, para a curta memória de Hollywood estava já relegada para o passado, a grande vedeta de um filme mudo. Saíra
da cidade dois anos antes, depois de uma dolorosa e desgraçada tentativa para se adaptar ao sonoro que acabava de fazer a sua aparição. Depois, tinha desaparecido e estava considerada como "acabada". Agora, eis que surgia de novo, completamente mudada; reaparecia ao lado de Oliver Dent. Muitos não a reconheceram e outros, muitos, já a tinham esquecido. Muita dessa gente que estava atrás das cordas, olhava para ela em silêncio, Outros preguntavam: "Não é a Moresco?" Alguns gritaram o seu nome, mas a sua voz soou fraca e sem eco. Ela ali estava de pé, sapatos prateados, de tacões altos incrustados de pedras verdes, esperando que Oliver Dent a fizesse entrar no Pahce. Esperava ainda quando os fracos gritos já tinham cessado. Para Dent, tinham soltado verdadeiros brados.
Oliver Dent estava no auge do sucesso; Donca Moresco no declínio. Era isto, em suma, o resumo da situação.
O rosto da mulher era de um branco ardente, como de um metal em fusão, sob o pó delicado, tom de azeitona. Os seus olhos verdes subiam obliquamente, mas as sobrancelhas abrigavam-nos em linha direita e forte e essas duas linhas, em contraste, davam-lhe uma fisionomia estranha. Oliver, que amava Donca e que há dois meses estava possuído por uma paixão devorante e que ele mesmo não podia explicar, dirigiu-se rapidamente para ela. Parecia de tal forma abandonada, de tal forma vencida, ali, em pé, na espectativa de qualquer coisa que não chegava, sobre essa passadeira vermelho-morango que ia do passeio à entrada!
Dos dois lados e até ao fundo do vestíbulo, todo Hollywood se comprimia e se enchia de sensações. O regresso de Donca foi uma delas.
Mr. Keller hesitou um segundo diante do micro. Trocou um olhar com Bill Turner, presidente da Phoenix Picture Corporation, um homem de cabelo grisalho, rubicundo e simpático, que fingia não se interessar por coisa alguma. Bill contentou-se em piscar as pestanas claras. O seu interlocutor, um homem também de cabelo grisalho, Sam Houston, membro do Conselho de Direcção da
Phoenix Picture Corporation, fez um imperceptível sinal com um dedo da mão esquerda. Donca Moresco continuava ali, sobre a passadeira, entre o passeio e a claridade da marquise,
Mr. Keller segredou uma palavra a Mac Olehan e voltou-se para o microfone. "Calculem - disse ele - a surpresa que Oliver acaba de nos fazer. A senhora a quem dá o braço é Donca, Donca Moresco. Ela regressou a Hollywood para entrar no sonoro que durante tanto tempo desdenhou. Está bela e original como sempre, com os seus cabelos muito negros que lhe ficam muito melhor que os antigos cabelos ruivos. Veste um vestido que me parece feito de tule verde... com zibelina russa... Traz as suas famosas esmeraldas. Está talvez um pouco mais delgada que antigamente. Ela própria vos irá dizer como o conseguiu. Miss Moresco, quere ter a gentileza ? Algumas palavras, apenas".
Nada do que se passou nesses momentos escapou a Donca. O sussurro e a atenção concentradas nos rostos aglomerados, a imperceptível hesitação de Mac Olehan antes de lhe beijar a mão e de a saudar em nome da Picture Corporation, o breve sinal pelo qual Mr. Keller se tinha decidido a "fazer-lhe publicidade" e depois a quente pressão da mão de Oliver no seu braço. "Querida, é preciso dizer qualquer coisa". Por fim, o micro a vinte e cinco centímetros da sua boca. Um instante, ela reencontrou inteiramente a rotina da popularidade.
-Alo a todos! Sinto-me tão feliz por me encontrar em Hollywood! É a primeira vez que assisto de novo a uma apresentação. Vim apenas para ver Oliver no papel de Cardogan. Creio que vai ser uma grande noite. Adeus, meus amigos".
O alto-falante, por sobre a marquise, repetiu as suas palavras, ao mesmo tempo que as repetiam todos os alto-falantes do cinema e de Hollywood. Dois senhores sairam da multidão para cumprimentarem Donca: Bill Turaer, director geral da Phoenix Picture Corporation e um gigante, de cabelo escasso e rosto vagamente holandês: o célebre realizador Eisenlohr. Depois, foram as mãos enluvadas e os beijos repenicados das mulheres.
Alguém preguntou, surpreendido ao vizinho: Ela aprenderia a falar ? Agora já sabe!
- Naturalmente aprendeu com Ol, respondeu o outro. Tem agora um sotaque inglês em vez do sotaque balcânico.
com um movimento ligeiramente protector, Oliver retomou o braço de Donca. Sentiu que ela tremia e amou-a por isso. Ela exibia, entrando assim, a sua ligação com ele e ele sabia o que ela queria com isso. Se era para ela um triunfo entrar assim, pelo seu braço, ele sentia-se feliz por ela, depois de tantos dissabores que a vida tinha dado a esta alma pródiga.
- Vem, minha querida, - disse ele docemente - e puseram-se em marcha sobre a passadeira vermelho-morango, com a graça inveterada de um casal que, durante toda a sua carreira, sofreu a vigilância da câmara.
- Desta vez, és tu a vedeta. - disse Donca emquanto caminhava. Aludia aos cartazes colocados no exterior, nos quais o nome de Oliver vinha em primeiro lugar e em caracteres maiores que o de Ria Mara. Ele tinha já interpretado três filmes com ela e fora seu amante durante seis meses, antes de Donca o encontrar em Paris e o ter levado com ela para a ilha de Rhodes, como presa sua.
- Sou. - respondeu ele.
Entraram e desfilaram entre duas alas compactas e roçagantes de convidados. O rosto de Donca resplandecia, com um sorriso inocente e embriagado.
- Quero que penses em Rhodes... agora - murmurou ela.
- Sim. Eu não gosto disto... de tudo isto que se faz aqui, - respondeu ele sem que se apagasse o brilho do seu rosto.
- Oh! eu gosto! - replicou ela.
Atrás deles, a bicha dos espectadores desfez-se, seguiram-nos para a sala como teriam seguido um casal de noivos. De resto, a sala parecia uma igreja, uma igreja de Espanha, de inspiração moirisca.
Oliver apresentou os seus bilhetes; um pajem, trajando à escocesa indicou-lhes o caminho. Todos os pajens, nessa noite, traziam um kilt e um boné escocês, em honra de Cardogan, e pareciam ainda mais bonitos e mais efeminados do que habitualmente.
- Anda! - ordenou Oliver apoderando-se outra vez do braço de Donca, pois passavam justamente diante de uma fila, no fim da qual estava Ria Mara com o seu vestido de veludo vermelho-claro. Ele sentiu uma necessidade excessiva de proteger Donca.
As narinas frementes dela vibraram, no momento em que atravessaram a curta vaga de perfume que espalhava o vestido de Ria Mara. Donca cumprimentou .sorridente e, sorrindo também, Ria Mara agradeceu. Mil binóculos se deleitaram com este espectáculo.
- Gosto desse teu gesto protector. Tu és assim, todo inteiro, tu e os velhos lords da tua família... e Oxford ... e tu, emfim ...
- Ah! como é snob, Princesa!-disse Oliver, sorrindo.
Ele esperou que ela se sentasse para se sentar também a seu lado. Um dos numerosos maridos que Donca tinha tido, era príncipe russo.
- Se preguntassem às mulheres por que motivo elas amam este ou aquele homem seria uma boa trapalhada
- disse Donca emquanto abria o programa. Também aí o nome de Oliver estava impresso em letras grandes e em primeiro lugar. - Eu, por exemplo, poderia dizer que acho encantadora a tua maneira de te sentares e de desfazeres a prega do joelho das tuas calças.
- Ora vamos .. encantadora ... - objectou ele sem poder desta vez deixar de rir.
Falavam agora como numa comédia e Oliver estava reconhecido a Donca por tê-lo feito rir, porque, afinal de contas, ele estava ali como numa montra de vidro e devia, de vez em quando, mostrar o seu sorriso célebre. Estava ali Hollywood inteira. Hollywood inteira com os seus olhos ensombrados a lápis ou debruados de pestanas falsas, através dos lorgnons, dos óculos e dos binóculos contemplando Donca e Oliver.
Dois mil e quinhentos pares de olhos habituados, de pessoas cuja vida consiste em ver, observavam este casal de amantes. Actores, realizadores, escritores, pintores,
fotógrafos, directores, toda a gente para quem os olhos são tudo, tudo: a visão plástica, a arte de ver e de pôr no écran, ou então de estar no écran e de ser vista. Qualquer coisa de cruel e de incomparável tinham esses dois mil e quinhentos pares de olhos que governavam Hollywood. Todos olhavam para Donca e Oliver e Donca e Oliver sabiam-no. Eles estavam como em cena e vigiavam cada um dos seus gestos.
Lá fora, diante do teatro, Mr. Keller, já quási áfono, tinha parado de falar um instante para tossir. O suor inundava-o como o orvalho intenso das noites da Califórnia. O alto-falante, na sala, tossiu igualmente e, no mesmo instante, um clarão azulado e misterioso surgiu do buraco da orquestra.
Donca olhou para o seu companheiro e esse olhar que ela lhe lançou sob a estranha luz, não era velado, para o rosto de arcanjo de Oliver, com os seus cabelos cor de alfa, a sua cabeça um pouco estreita, o seu pequeno e sólido mento, a sua expressão altiva de pureza e de nobreza, e essa linha que ia da boca às fontes e que era de uma perfeição inexplicável... Ele inclinou se para ela.
- Assim não... aqui, não, minha querida! - disse ele num tom de censura.
E o seu rosto, ao dizer isto, era apenas delicado.
- É realmente um cómico!-pensou ela.
Na realidade, ninguém no mundo pensava que Oliver Dent fosse um comediante. Bastava que ele fosse Oliver Dent.
De-repente, o rosto dela foi sincero:
- Amo-te! - disse.
- Bem sei... porque eu desfaço graciosamente a prega das minhas calças... e levo-te pelo braço...
- Sim. Também por isso - respondeu ela.
Do precipício mágico de azul surgiu um homenzinho diante de um pequeno teclado. A sala tornou-se sombria e mais silenciosa.
-O primeiro amante que tive batia-me - disse Donca de-repente.
- Não, isso não. - murmurou Oliver.
- Não tinha ainda quinze anos nessa época -continuou ela, teimosa.
- Não, não, isso não. - repetiu ele, encolerizado.
- Porquê? Incomoda te?
- Sim. Tudo isso é... Bucareste.
Tinha por hábito atirar lhe de imprevisto, como chicotadas, com recordações da sua mocidade miserável na Roménia. Riu de tal forma que, atrás deles, na décima nona fila, alguém se ergueu e estendeu o pescoço, para ver.
-Exactamente, é Bucareste. - disse ela - E sou eu: Donca Moresco.
O rosto de Oliver continuou amável.
- Se isto ao menos começasse... E se já tivesse acabado! disse ele com violência que terminou numa espécie de gemido.
Donca olhou-o, surpreendida.
- Estás nervoso por acaso?
No mesmo instante, o homem começou a tocar no teclado. Também ele recebeu um raio do projector, uma luz crua sobre a sua cabeça calva de músico. Oliver estremeceu, assim que se ouviu o poderoso som de órgão, seguido de um tumulto sincopado de música clara e aguda.
- Sim. É provável que esteja nervoso, ou que tenha medo. Ou então... - hesitou, continuando a sorrir com a sua boca bela e cortês. - Estou um pouco aborrecido... de tudo.- concluiu sem se explicar mais. Tirou o lenço, e, durante dois compassos, mergulhou no perfume seco da alfazema o rosto fatigado.
Fora, em frente do teatro, Mr. Keller, exausto, lutando contra uma rouquidão total, terminava a sua alocução ao microfone.
- Acabam de testemunhar o maior acontecimento de Hollywood de um ano a esta parte: a primeira representação do filme monstro: Cardogan, realizado pela Phoenix Picture Corporation, que começou há instantes.
- Tem a bondade de me deixar passar? -disse o rapaz à rapariga.
Acabavam de tirar as cordas e a multidão começava a dispersar. Tratava-se do rapaz loiro e esbelto que tinha trocado algumas palavras com Oliver e a rapariguirinha platinada para quem ele tinha obtido um autógrafo. Ela estava ali, imóvel como se tivesse criado raízes, mordiscando o lábio inferior até fazer desaparecer o bâton. Dava apenas pelo ombro dele que a olhava de cima, com ar descontente.
Ele poderia de resto muito bem passar diante da rapariga sem a incomodar, mas era uma fácil manha esta de parecer que ela lhe barrava a passagem.
- Pronto, acabou-se... -disse ele, encolhendo os ombros ligeiramente; e ela pôs-se em movimento. Ele ficou muito perto dela, deixando um espaço entre os seus braços - o mais pequeno possivel.
- Não está contente ? - preguntou ele - E então... agora?
- Agora ? Um pouco de dinamite no teatro, um pouco de dinamite e toda a Phoenix Picture Corporation saltaria. - respondeu ela, o que não era uma resposta conveniente.
- Assim encolerizada ? E contra quem ? - preguntou ele.
- Contra toda a gente. Odeio todos os que podem assistir. Calcule que eles pedem quinze dólares pelos bons lugares!
- Lugares tenho eu, mas não dos bons. Se quere ? Segundo balcão de lado, ao fundo.
Falando sempre, a rapariga não tinha deixado de contemplar a biqueira dos seus sapatos de camurça: era um monólogo íntimo.
Pela primeira vez levantou os olhos para o seu vizinho.
- O senhor tem lugares? Não está a troçar de mim, não? Porque não está lá dentro se tem lugares?
- Primeiro porque aqueles ostrogodos não me deixaram passar. Depois, queria ver se não a esmagavam.
Ela tinha a pele doirada, olhos escuros, finas sobrancelhas negras e um narizito pequeno. Possuía duas bocas; uma, pintada admiravelmente, em forma de coração, e por baixo, outra, ligeiramente sentimental. Os cabelos eram, sem dúvida, da mesma cor que os olhos, e só Deus sabia quanto dinheiro e paciência tinham sido precisos para conservar esse reflexo branco, ligeiramente sombreado de alfazema - a pintura mais fotogénica.
- Ah! sim, foi a si que Oliver Dent falou... -disse ela - como se só agora reconhecesse o rapaz que a tinha, durante a passagem das estrelas, protegido com o seu corpo e toda a força dos seus músculos, para que não fosse esmagada.
- Foi Oliver que lhe deu os bilhetes?
- Não, deu mos um dos directores da Phoenix Picture Corporation.
- Ah! -exclamou ela, subitamente muito interessada - Quem foi? Grant? Conhece o Grant? Êle tem muita influência.
- Não. Quer dizer, conheço-o também, naturalmente. Quanto aos bilhetes, foi o Eisenlohr que mos deu.
- Ah ! - murmurou com deferência - Conhece o Eisenlohr?
Estavam em frente da entrada, agora mais silenciosa. Os projectores continuavam a perscrutar o céu, ou pelo menos o que, todas as noites, se estendia em lugar de céu, sobre Hollywood e, como um espelho, reflectia a luz. A rapariga contemplou, de novo, a biqueira dos seus sapatos. O sapato direito estava um pouco estragado, um pouco lustroso o que na camurça é sintoma de decadência. Voltava entre os dedos a malita de mão, igualmente de camurça, e que também não estava muito fresca.
-Então, entramos? - preguntou o rapaz que sabia o que queriam dizer sapatos gastos e outros sintomas de declínio.
- Eu também podia ter bilhetes, se quisesse. O Simons convidou-me. Conhece-o?
- Quem é o Simons?
- O cenarista. Aquele do estúdio da Phoenix Picture Corporation.
- Ah! sim... Mas você não quis?
- Não. Eu sei o que isto quere dizer. Depois convidam-nos para cear; em seguida é o apalpão no automóvel e mais o amor e tudo que se segue. Os escritores são tão pouco razoáveis!
- Lá por isso pode estar tranquila que eu não a convido para cear - disse o rapaz.
Que havia ela de responder? Em suma, ele não tinha muito empenho em a convencer. Se não fosse justamente um desses serões aborrecidos de solidão e de nostalgia...
- Além disso, eu não estou vestida para ir seja onde for... - disse ela vivamente.
Na mesma situação, qualquer outra rapariga teria dito o mesmo. As americanas que se não conhecem, dizem sempre o que se espera delas. Mais tarde, quando se conhecem bem, são às vezes cheias de surpresas. O rapaz baixou o olhar para ela e disse, muito à vontade:
- Vamos. Você vale um milhão de dólares.
A rapariga era uma beleza : o rapaz compreendeu-o sem grande emoção, O seu fino vestido, de um cinzento pálido, cingia-lhe o corpo esbelto, o mais requintado, o mais elegante que se possa imaginar. Mas, em Hollywood, a beleza vale menos que um pedaço de pão.
- Bem! Então, vamos. Foi amável em me convidar. - disse ela emfim, esperando que ele lhe desse o braço como Oliver Dent fizera a Donca Moresco - Mas ele nem pensou nisso.
- Você é alemão, não é verdade ?
- Porque imagina isso ?
- Percebe-se logo pela sua pronúncia.
- Sério ? - preguntou ele.
Este pequeno reparo pareceu aborrecê-lo muito. Parou mesmo no meio da escada que, entre candeeiros
mouriscos e paredes de estuque ia dar ao segundo balcão.
- Acha realmente que tenho ainda muito sotaque alemão ? -preguntou num tom insistente e sombrio.
- Imenso! - respondeu ela alegremente.
- Ainda hoje falei com o Eisenlohr e ele afirmou que já não tinha sotaque nenhum, ou, pelo menos, nada que valesse a pena ser considerado como sotaque- afirmou, com teimosia.
- Mas se ele também é alemão!
- É um encenador admirável-fez observar o rapaz com fogo, como se este reparo pudesse atenuar-lhe o sotaque.
- Tem muita influência. - repetiu a rapariga, sonhadora.
De-repente, pôs-se a sorrir.
- Naturalmente podem utilizá-lo nas versões alemãs. - disse ela num tom encorajante e maternal.
O rapaz calou-se, engolindo a saliva.
Entretanto, tinham chegado à entrada. Na sua frente, deslizava um pajem escocês munido de uma lâmpada de algibeira -mesmo no segundo balcão onde estavam, em honra da festa, era obrigatório o trajo de gala. Colocou os lá em cima, muito atrás sobre os vitrais imitando os de uma igreja.
A orquestra tocava um belo trecho: Oliver reconheceu sem custo um fragmento da sinfonia em si menor, de Schubert. Para a secção musical da Phoenix Picture Corporation Schubert era uma mina de oiro -e no entanto, só Deus sabe como era possivel que a sua música se adaptasse bem a um discurso do presidente Hoover, aos mineiros de Scranton e Pensilvânia, a um rodeo em El Paso, Texas. Conseguiam este milagre, juntando-lhe um pouco de jazz...
No écran, passavam as actualidades. A atmosfera era já pesada e densa, crepitante da dureza dos peitilhos engomados das cadeiras de orquestra e da doçura das capas de pele roçando nucas e jóias. Muitos perfumes. Mas o aroma das gardénias frescas, rodeando os decotes, triunfava de todos os outros. Da rapariga sentada a seu
lado, esse mesmo perfume adocicado se exalava, esse perfume a terra: também ela trazia uma gardénia no ombro. Uma gardénia muito grande, demasiado aberta, como as que dão de brinde os vendedores de flores e frutos japoneses.
Embora este aroma e o calor da vizinhança da rapariga e o à vontade com que ela se tinha instalado ao pé dele na sua cadeira estreita, lhe fossem agradáveis, Aldens ficou um instante melancólico. Esse pedacito de mulher loira platinada tinha, em duas palavras, posto a nu todo o seu destino, um destino que ele mesmo se inclinava a achar bizarro, se não trágico.
Filho duma boa família de Darmstadt, essa pequena cidade da Alemanha do Sul que hesitou sempre entre a apatia e o radicalismo, era o mais novo dos quatro irmãos: os quatro célebres Aldensleben, os mais belos rapazes da cidade. Três deles morreram durante a guerra. A notícia chegou sempre da mesma forma simples. Primeiro, a ordem do dia do exército, depois a informação : desaparecido. Depois, ainda outra informação: morto. A seguir, cartas de pêsames do comandante e do capitão, acompanhadas de algumas lembranças. Depois, o silêncio em casa, onde não ousavam olhar uns para os outros. Quando, por sua vez, aos dezassete anos, ele foi chamado às fileiras, sua mãe tomou veronal. Seu pai, conselheiro da corte, seguiu-a sem fazer grande barulho. Um bocado de gripe, falta de alimentação, o receio de ter que sofrer mais. Mas, quási logo a seguir, o armistício trouxe ao país, pelos caminhos inundados de chuva, ondas de soldados. A pátria! pensava Aldensleben com ardor. Ele pensava nela com frequência, e em alemão. Mesmo agora ainda lhe acontecia pensar em alemão, o que era horrível para a sua pronúncia. Censurava-se disso como de uma falta de disciplina. Mas sonhava em alemão e então nisso é que não havia nada a fazer, sonhava com Darmstadt - três vezes por semana. Eram, na verdade, inconvenientes esses sonhos nostálgicos, contra os quais não se podia defender e que lhe roubavam a energia.
Darmstadt depois do armistício. Um imenso borburinho.
Aldensleben apresentou-se no ministério da guerra. Foi rejeitado. Cresceu ainda um pouco mais, embora se sentisse já velho. Que fazer? Era a pregunta que todos faziam. Havia um clube onde discutiam. Cabeças exaltadas, raparigas, busca de novos caminhos para a arte e para a vida em comum, discursos, teatro de amadores. Eisenlohr era um deles, um jovem actor a quem não confiavam nenhum papel, esse Eisenlohr. Revolucionou o antigo teatro da corte, fez parte do Conselho de operários e soldados. Mais tarde tornou-se gerente do teatro. Pôs na rua a antiga companhia e reuniu gente nova. Aldensleben era um destes. Tinha tão boa figura que poderia permitir-se representar ainda pior do que representava. Teve êxito. O êxito em Darrnstadt embriaga tanto como em qualquer outro lugar do mundo.
Eisenlohr foi para Munique e mandou ir Aldensleben. Eisenlohr foi chamado a Berlim. Seis meses mais tarde contratou Aldensleben. Servia-se desse grande sedutor como de um projéctil, que atirava de cada vez que se tratava de destronar actores velhos e gastos. Mas geralmente, depois disto, o êxito de Aldensleben diminuía. No clube dos actores, os dois amigos trocavam pequenas recordações ternas: "-Lembras te, Aldensleben, em Darmstadt, quando eu não tinha nada que comer? À tua, Aldensleben!".
Eisenlohr foi encarregado da mise en-cèm de um filme e Aldensleben teve um papel. Êle era belo, mas no cinema os outros também o eram. Não representava bem e compreendia o. Teve uma sensação desagradável quando se viu no écran pela primeira vez. "- Aldensleben é decorativo"-dizia Eisenlohr, indulgente. A sua fidelidade ao seu protegido era comovedora, e agradava-lhe tanto que a mantinha. O teatro não renovou o contrato de Aldensleben que, no entanto, representou ainda em dois filmes onde só era preciso ser decorativo. Depois, Eisenlohr partiu para Hollywood. Chamou Aldensleben.
Foi no momento dos grandes filmes históricos que precederam a desaparição do filme mudo. Eisenlohr
disse: "Conheço na Alemanha um rapaz que ficará radiante se lhe derem cem dólares por semana. E é decorativo! É preciso ver como ele se veste!"
Aldensleben chegou, vestiu-se, subiu escadas, ajoelhou-se diante de rainhas, acompanhou vedetas ao cadafalso e conseguiu ganhar trezentos dólares por semana. O seu nome vinha algumas vezes escrito em penúltimo lugar-e outras não chegava mesmo a ser escrito - nas longas listas de personagens que se desenrolavam, preto no branco, acompanhadas de música, à guisa de introdução ao filme. Então já não se chamava Aldensleben, mas Aldens, simplesmente. Nem um gato em Hollywood teria podido pronunciar Aldensleben, como o tinha decretado com veemência Eisenlohr. Aldens representou duas vezes de casaca. Era muito decorativo mas representava mal.
- Ora vamos, meu velho, aqui faz-se cinema. Não representes Schiller.
Depois, veio o sonoro e nesse dia foi o fim.
- Meu pobre amigo, que queres que eu faça de ti com essa pronúncia ? - disse Eisenlohr, que tagarelava também uma língua fantástica da sua invenção, sendo um encenador maravilhoso e sabendo tirar de cada um as qualidades mais extraordinárias. Isto arrastou-se assim durante seis meses. Exercícios de dicção, nostalgia e nenhum dinheiro para pagar o regresso. Foi então que começaram, a despeito dos exercícios de inglês multiplicados durante o dia, os inconsistentes sonhos em alemão. Eisenlohr foi correctíssimo durante esse tempo.
- Meu velho, tens saudades da pátria, hein? - preguntou ele a Aldens.
-Darmstadt! -suspirou -Lembras te ainda do clube? E quando tomávamos banho no Woog? Lembras-te de Kiselack? - Era um membro do clube, o filho dum carniceiro da Hcinrichstrasse. Como Aldens se lembrava!
- Se tens saudades da terra, meu velho, porque não te vais embora ? - preguntou Eisenlohr.
Aldens olhou-o sem responder. Pelo Natal, Eisenlohr ofereceu-lhe uma passagem para a Europa... em primeira.
- Dá saudades a Darmstadt!- disse êle - Aqui não conseguirias governar-te com essa pronúncia.
Aldensl partiu. No navio, não sonhou uma vez única com a Alemanha.
A Alemanha é um país maravilhoso... para inspirar nostalgia. Mas, quando a gente lá está, - pensava Aldens - é menos belo. A Alemanha regorgitava de actores sem trabalho, de desempregados de todas as profissões, de pobres indivíduos amargos, excitados, com os nervos ao vivo. No teatro não precisavam de emigrantes que chegavam com as suas decepções. No sonoro, ainda menos.
Ao sonoro nasciam-lhe ainda os primeiros dentes, como diziam elegantemente os críticos. A principal condição de triunfo era saber cantar canções; nisto, Aldens era ainda mais "Schiller" que em Hollywood. E depois, nas agências de colocações, diziam-lhe: "O seu sotaque inglês é incomodativo. Você tornou-se americano". Lamentável e còmicamente, tornou a fazer, durante os quatro meses que se seguiram ao seu regresso, o contrário do que fizera em Hollywood. Sonhava em inglês. Sonhava com Hollywood. com as suas esquinas ardentes onde se esperava o sinal de paragem, com as suas colinas de ruas escuras, com a avenida de palmeiras, papoilas amarelas, danças nos bailes de noite dos negros estúdios: ah, nostalgia, nostalgia!
Escreveu a Eisenlohr. Eisenlohr mandou-lhe algum dinheiro e respondeu: "Deixa-te aí estar, meu velho, aqui também não andamos em maré de rosas". Serviu-se ainda do calão do seu tempo de Darmstadt. Aldens pegou no dinheiro e partiu para a América, na entreponte.
Mal chegou, o suplício recomeçou: sonhos, saudades da pátria e "all that sort of things", - como ele se esforçava por dizer em inglês. Muitas vezes, a fome, outras um "job" de trinta dólares numa versão alemã. Como a rapariga tinha concretizado bem tudo em duas frases! As raparigas americanas têm ideas claras!
- Então, está contente agora ?-preguntou lhe ela com um sorriso, sentindo lhe o olhar.
Isto não tinha importância, era apenas uma das mil gentilezas com que os americanos untam a grande máquina da existência. Aldens tinha estado um pouco apaixonado pela pequena enquanto a protegera na multidão. Agora, ao pé dela, sentia entre eles um oceano de indiferença. O reflexo do écran dava-lhe no rosto, nesse delicioso encantador não sei quê, tão mortalmente longínquo, que formava uns olhos, uma boca e um maquillage. A sua existência inteiramente desenraizada, planando ao acaso no vácuo, apareceu lhe um instante, emquanto olhava para ela. Estava ali, em Hollywood, assistindo a uma estreia... e, em Darmstadt nada tinha mudado: Kiselack continuava a tomar banho no Woog e na montra do pai, na Hcinrichstrasse, estava pendurada uma salsicha chamada "queijo de porco".
- Olhe. - disse a pequena -E a sala tornou se clara. A curta divagação de Aldens tinha durado apenas o tempo das Actualidades. - Oliver está ali em baixo. Levantou-se, agora, -gritou ela agarrando no pulso de Ricardo - Mas olhe, está realmente com a Moresco. Ela tem, pelo menos, mais vinte anos do que ele, aquela mulher ... é espantoso!..
- Eu acho a Moresco dez vezes mais bonita e vinte vezes mais nova que a Ria Mara. - disse Ricardo, que se inclinou para a frente.
Lá de cima, as pessoas da plateia pareciam muito pequenas, distinguiam lhes apenas os contornos, os movimentos, as cores, mas nem sequer uma cara. Um grupo tinha, ao centro, o vermelho-claro do veludo de Ria Mara e outro, mais importante, estava em redor do verde-esmeralda de Donca e do elegante preto e branco da casaca de Oliver. Instintivamente, Ricardo tomou um partido. A sorte de Moresco tinha empalidecido com o filme mudo ao mesmo tempo que o seu pequeno êxito, o seu pequeno êxito, de trezentos dólares. Mas eis que ela voltava, nova e magnífica, delgada, I com os seus cabelos negros, a sua zibelina e as suas esmeraldas... era como se os mortos voltassem à vida.
-Apaixonado pela Moresco? - preguntou-lhe a sua vizinha. E, nestas palavras, havia um ligeiro tom de ciúme.
Ele pensava: -Já dormimos na mesma cova... -Era um pensamento sombrio, absolutamente alemão e que ele não poderia exprimir alto, em semelhante lugar. Cerrou os lábios um contra o outro.
- Apaixonada pelo Oliver? - preguntou ele, um momento mais tarde.
- Loucamente, perdidamente. Estou completamente louca! - foi a resposta.
- Só me resta matá-lo. -respondeu ele galantemente.
Mas, desta vez, a rapariga não seguiu o tom brincalhão e fácil da conversa. Dir-se-ia que um véu lhe ensombrou o rosto :
- Devemos dar-nos por felizes só pelo facto de ele existir. Creio que haveria menos pessoas felizes na terra se não conhecessem Oliver Dent. - declarou muito a sério - Mas tudo isto são tolices - acrescentou imediatamente, apagando quanto acabara de dizer.
Tirou o bâton vermelho apenas para mascarar o seu embaraço. Quási no mesmo instante, a luz apagou-se para "Flippy valse casar" o pequeno filme que precedia Cardogan.
Flippy era uma invenção dos chefes da Phoenix Picture Corporation, após cem conferências custosas, febris e aflitivas, com o propósito de fazer concorrência a Mickey. Presidentes e autores de desenhos animados, inventores de gags, poetas, realizadores, supervisores, compositores, assistentes e toda uma horda de ajudantes de menor categoria, tinham sofrido durante meses, antes que nascesse Flippy, a sardinha de lata, Mas, finalmente ela ali estava, curiosa, e triunfante, capaz de representar o seu papel nas séries de filmes de curta metragem. Ela realizava espantosos prodígios, saltando através das situações mais difíceis, esbugalhando os olhos, untuosa, achatada: sardinha de lata cem porcento. Não era o fruto da inspiração, mas de um duro trabalho - e fora um êxito. A sala dava gargalhadas sem se fazer rogar, e os aplausos tornaram-se frenéticos assim que Flippy, para acabar, partiu num automóvel que ela fabricou com a própria lata de sardinhas.
- Agora outro intervalo. - disse, em baixo, Oliver a
Donca - Estas primeiras partes do programa são de matar. Uma verdadeira tortura para os nervos.
Donca olhou-o com uma piedade trocista, emquanto se levantava.
- Púiú, meu pobre Púiú! - murmurou com ironia Ela via, nas fontes de Oliver, no sítio em que o loiro dos seus cabelos tomava reflexos brancos, finas gotas de suor, como têm os doentes.
- Sinto-me mal, queixou-se êle, dirigindo-se a seu lado para a saída. Palavra que me dói o estômago!
- Gin a mais, meu herói, - respondeu ela, traquina Amava-o tão desesperadamente nesse momento, que deu, instintivamente, uns passos mais rápidos para se afastar dele, só para não o abraçar ali, diante de Hollywood inteira. Era um elemento do seu triunfo ouvir esse resplandecente Oliver, sorridente, confessar lhe o seu sofrimento, o seu receio, as suas fraquezas. Era talvez o maior triunfo que ela podia ter. Por um instante, deitou o corpo para a frente, como para se proteger contra a tempestade emquanto subia a coxia central, cumprimentando e correspondendo a cumprimentos, sempre escoltada por Oliver.
O seu amor por ele penetrava a toda. Sentia-o nas ancas, na pele, até à raiz dos cabelos, até ao centro da palma das mãos; todas as fibras do seu corpo apaixonado sofreram, por um instante, esse amor vitorioso. com um ligeiro movimento de ombros, fez descair o casaco; o seu vestido era decotado até aos rins; a sua pele queria estar mais próxima da de Oliver.
Ele respondeu, sem hesitação, ao imperceptível apelo deste movimento, chegou-se muito para junto dela, o seu hálito aflorou-lhe os ombros, as suas mãos, com uma pressão secreta dos dedos nas costas, ajudaram Donca a subir o casaco. O vestido vermelho de Ria Mara, um pouco mais longe, flutuava. Música e um pouco de ar, vinham do palco.
- Diz-me, Donca, como te arranjas para seres tão bela ? - disse um homem gordo à sua passagem. Ela reconheceu-o, era Granit, o gordo Granit que tinha sido, dois anos antes, como encenador, uma revelação -e que
não era agora, debaixo do ponto de vista artístico, mais do que um zero. Ele tinha encontrado um refúgio na direcção do "Cersing" da Phoenix Picture Corporation. Donca acariiciou-lhe a face, ao passar; era dos gestos espontâneos com que ganhava todos os corações. Oliver sentiu se um pouco incomodado atrás dela e meteu as duas mãos nas algibeiras. Sentiu uma ligeira dor nas costas; um pouco de excesso de treino sem dúvida, depois da vida preguiçosa de Rhodes.
Estavam agora no pátio, cópia de um célebre pátio de Aragão. Os seres mais belos do mundo inteiro encontravam-se ali reunidos; estrelas de todas as grandezas circulavam através dos arcos moiriscos: os mais jovens, os "Rabies stars" de dezasseis anos, apoiavam-se ao rebordo do poço com os seus fatos da cor das flores de macieira ou de pessegueiro, como devia ser.
Os snobs davam audiência. Os chefes das firmas concorrentes batiam nos ombros uns dos outros, porque afinal estavam ligados ao mesmo negócio e isso fazia-os ter uma consideração recíproca. Também aqui, nos quatro cantos, os projectores brilhavam e os ambiciosos podiam, como por acaso, pôr-se em plena luz ou à frente da câmara dos repor teres. O fumo de dois mil cigarros subia lentamente em espirais brancas. Em cima, os chalés espanhóis pendiam das arcadas; os donos dos lugares baratos encostavam-se, com arte e graça, à balaustrada das varandas. Também eles queriam pôr-se em pose, também pertenciam ao cinema. Em Hollywood todos pertencem ao cinema. Quem não pertence, não existe.
-Lá está o Eisenlohr - disse Aldens à sua companheira.
- E Oliver também. Ele deixou a Moresco. - respondeu ela.
Aldens inclinou-se mais para a frente e olhou para
a multidão que fremia por baixo deles.
- É como no gimnásio, durante os exercícios ... quando se cospe lá de cima sobre os professores - disse Aldens.
- Que é um gimnásio? - preguntou Francis -Ela chamava-se Francis Warrens, como o tinha dito ao seu vizinho - um nome absolutamente desconhecido.
Ele fez um gesto vago.
- Ah! nada, é uma espécie de escola que há na Alemanha .. - respondeu com hesitação.
De novo a nostalgia o asfixiava. A Bergstrasse, a floresta de Odenwald, a Torre de Luís ...
No pátio, seis palmeiras rodeavam o poço. O cimo das palmeiras chegava ao teto. Lá em cima agitavam-se chalés vermelhos e amarelos. Em baixo, as palmeiras projectavam fora do solo os seus anéis vigorosos.
Oliver Dent estava ao pé de uma das palmeiras e examinava a com a expressão séria e distante de uma criança que se diverte.
- É verdadeira - disse, e isso foi para ele uma descoberta surpreendente. com a sua larga mão, o gigantesco Eisenlohr, agarrou no extremo da árvore, mexeu-lhe no tronco, bateu na casca e passou à árvore seguinte.
- Meu velho, - disse Eisenlohr - a tua árvore é verdadeira, a minha é falsa.
À maneira de conspiradores, deslizaram de palmeira em palmeira. Havia seis. Três eram verdadeiras, naturais, autênticas, com as raízes na terra, seiva nas arterias verdes, folhas vivas e móveis. Três eram falsas: madeira, fibra de coco, cola, celulóide. As falsas tinham o ar um pouco mais verídico do que as verdadeiras.
Eisenlohr desatou a rir.
- É de vomitar! Que maravilhosa intrujice! Se todas fossem falsas, vá lá. Mas alternaram as verdadeiras com as falsas! Isto é bem Hollywood!
Oliver atirou fora o cigarro e tirou do bolso um pequeno cachimbo que não ficava muito bem com a sua casaca.
- Parece-me que parto um destes dias para Clearwater... vou pescar trutas.
Era uma idea que tinha uma vaga aproximação com a conversa.
Eisenlohr olhou-o um momento com ar inquisitorial.
- Quando as Pedras Miliares estiverem terminadas respondeu, chupando o seu cigarro de mentol. Era o último filme que Eisenlohr devia fazer com Oliver Dent Quanto ao cigarro de mentol, Eisenlohr tinha-o trazido cinco anos antes da Alemanha para se deshabituar de fumar. Desde então, os períodos de mentol alternavam com semanas em que se entregava a orgias de tabaco.- Depois das Pedras Miliares meu velho-disse amavelmente - poderás ir quando quiseres, pescar...
- Depois... ou antes. - respondeu Oliver.
Aqui, Eisenlohr voltou-se outra vez para o tronco da palmeira e fez apenas um reparo:
- Donca não é uma mulher tranquilizadora.
Lá em cima, na segunda ordem, Francis acabava de dizer de-repente a Aldens:
- Quero ir-me sentar.
Até então, não tinha despregado os olhos de Oliver. As pétalas da gardénia que trazia ao peito estavam agora murchas.
- Porquê tão cedo ? Isto não a diverte ? - preguntou Aldens.
- Sim... mas... estou um pouco cansada. Desculpe-me...-respondeu ela com uma espécie de pudor na voz.
- Estou bem. - acrescentou com um suspiro, assim que ele a levou para o seu lugar na sala que recomeçava a encher-se - Estou bem, sentada. Tive uma vertigem. É provável que esteja um pouco ennervada por causa do Cardogan. Não está ?
- Domino-me. Assisti a uma porção de tomadas de vistas.
- Meu Deus! Você é um dos actores da fita ?
- Não, não, isso não. Eu ... é que .. utilizam-me várias vezes como doublure, como standing, no lugar de Oliver.
- Como standing em lugar de Oliver ? - disse ela com um gritinho, e, dizendo isto, agarrou-lhe a mão entre as suas tão delgadas- Mas isso é uma sorte extraordinária !
- Chame-lhe sorte, se quiser; eu chamo a isto prostituição. - respondeu ele, teimoso.
O mais frequente era guardar para si os pensamentos que não podiam ser aceites na América.
- Você é muito europeu. - tinham-lhe dito várias vezes e ele fazia o possível por se corrigir. Mas agora que isto lhe tinha escapado, não se conteve:
- Estar meia hora, uma hora, duas, três horas em pé, em velhas farpelas sujas fornecidas pelo estúdio, pintado como Oliver, à espera que a luz esteja perfeita, que todas as coisas estejam colocadas como deve ser, e que todo o idiota maquinismo funcione bem, ensaiar réplicas emquanto afinam os microfones e a iluminação, e a altura e a largura, e os passos e tudo o resto ... Depois, quando a cena começa realmente, quando se vai dar à manivela, quando o caso é a sério, então Oliver aparece: e - Adeus Aldens, obrigado, já não preciso de ti" Sorte! Se isto se pode chamar sorte!
- Mas com certeza, é sorte. - repetiu Francis, com energia.
Sacudiu mesmo três vezes a cabeça para dar mais força ao que afirmava.
- Que diabo, vêem-no, reparam em si. Um dia será um grande êxito, bem vê, standing de Dent! De resto, eu nem compreendo como você pode ser seu standing!-acrescentou. E disse isto num tom ingénuo, mas que nem por isso foi menos ofensivo. com um ar sonhador, fitou os seus cabelos louros, o seu rosto ligeiramente fechado. Ele era belo, embora de feições fortes demais, como se um bom escultor tivesse feito a sua maquette e se tivesse desgostado antes de a acabar.
- Sim? -disse Aldens engolindo a saliva -Pois fique sabendo que tenho a sua estatura, exactamente-seis pés e duas polegadas -e justamente a mesma largura de ombros. De resto, as nossas dimensões de conjunto são as mesmas. A cor dos cabelos arranja-se um pouco... E
imagina, por acaso, que Oliver não os arranja ? (perfeitamente, Francis prova que o acredita avançando um pouco o lábio inferior). Em todo o caso a cor dos meus cabelos é melhor para fazer a experiência da luz. E o maquillage, bem sabe o que isso faz... e a sugestão... Evidentemente, eu não tenho o alfaiate de Oliver, como se compreende - concluiu, um pouco vexado.
Mas um leve sorriso flutuava no rosto de Francis, um sorriso de sonho iluminava de doçura a sua máscara elegantemente pintada.
- Ah ! Oliver... - disse ela, simplesmente.
E depois, mais nada, até que, num acompanhamento de música sombria, e de nuvens após uma interminável lista de nomes, Cardogan começou a passar no écran.
Este filme não tinha custado menos de dois milhões. Devia, por consequência, trazer muito mais de dois milhões para que o negócio corresse bem. Quarenta milhões de pessoas deviam ali ir ver e mandar vinte outros milhões de espectadores. Sessenta milhões de espectadores, todos diferentes, pobres e ricos, instruídos e incultos, snobs e agricultores, coleccionadores new-yorkinos de jóias antigas e cow-boys do Arizona, negros e adeptos da Christian-Science operários e professores, mormons e pagãos, plantadores de algodão e advogados, senhoras de sociedade e coristas de todos os países e de todas as raças, de todas as cidades e de todas as aldeias, da montanha e dos vales, da província e dos Estados, dos arranha-céus e das barracas de lata, da América inteira -era preciso que todos preferissem este filme para que ele se tornasse um bom negócio.
Sob esse ponto de vista, mesmo que não correspondesse a todas as exigências de que a publicidade o tinha acompanhado, Cardogan não seria mau.
Podia mesmo considerar-se como perfeito quanto a produção, indústria e técnica.
Quanto a métier merecia todos os elogios.
Quanto à arte... não tinham evidentemente pretendido ... mas era, em todo o caso, uma das melhores realizações de Eisenlohr e talvez a melhor de Dent. Ria Mara também ia muito bem. Talvez não muito nova,
mas muito bem. Mas cansavam-se dela facilmente; sabia-se sempre antecipadamente o que ia fazer um instante depois por pouco que se conseguissem entender os truques excessivamente gastos dos seus olhares hesitantes e dos seus gestos inacabados.
Ela representava neste filme a little sis a pequena irmã amimada por esse rapaz fascinante que era Cardogan - até ao momento em que se sabia que ela não era sua irmã.
Daí nasciam as complicações, um acréscimo de interêsse, o ponto culminante do filme e o autor parecia não ter tido outro interesse senão chegar a um final trágico. Tinham realmente enjoado de tal maneira a gente de Hollywood com o happy end que, três meses antes da primeira de Cardogan um filme causara sensação apenas porque o par amoroso havia morrido numa derrocada de gelo. Esse foi o ponto de partida para uma época de desenlaces desgraçados, indo da catástrofe propriamente dita à falsa resignação. Todos tiveram êxito. Eis porque Cardogan-Dent depois de ter escapado a todos os perigos ficou reduzido a acabar num acidente de automóvel no momento em que se dirigia para o seu casamento. Final arrancado pelos cabelos, mas Dent representava com tanta calma e humanidade, que nem se deu pelo que isto tinha de teatral.
A sala não sabia ainda se Cardogan morria, ou se
- o que era igualmente possível - ficaria aleijado, devendo renunciar à noiva e à pátria, quando a atenção de Ricardo Aldens, lá em cima, na segunda ordem, foi desviada de imprevisto.
Aldens tinha seguido o filme, ao princípio com enfado depois com um interesse crescente. Francis, a seu lado, estava tão ardentemente mergulhada na contemplação do écran que projectava, à sua volta, como um pequeno dínamo, ondas e raios. Era contagioso.
- Um bom actor, não há dúvida! -murmurou Aldens no momento em que a sala inteira estalava em aplausos entusiásticos a propósito de um sorriso de Dent e de um gesto da sua mão. Mas, santo Deus, que sorriso e que gesto! Francis tinha-se levantado para aplaudir,
inclinou-se sobre o ombro das pessoas sentadas à sua frente, e voltando a instalar-se, soltou um suspiro longo, como de quem desperta. O seu calor penetrava Aldens. Ela estava muito mais perto dele do que antes, pelo menos parecia-lhe. Enlaçou-lhe delicadamente os ombros. Repararia ela nesse movimento ? De qualquer forma, fingiu não dar por ele. Assim que Aldens colocou desta forma a mão, logo o filme lhe pareceu melhor. Coisa estranha, pensou ele, como a gente se sente cada vez mais só. Os meses passavam e ele para ali estava sem uma amiguinha "seul et sevré de toute joie", como dizia um estribilho que lhe não largava a mente e que era duma canção que esquecera havia muito.. Aldens abriu a mão e aproximou-a cautelosamente do pescoço da rapariga. Agora podia sentir as artérias dela a baterem: era engraçado. Sentia-se enlanguescido, palpando as pulsações dessa jovem desconhecida; era quási como se andasse a apanhar borboletas.
À medida que o filme avançava, os pequenos suspiros de Francis tornaram-se mais frequentes e o seu rosto foi pesando cada vez mais no ombro do seu vizinho. Duas ou três vezes, este desviou os olhos do écran, para olhar para ela, que continuava com a fronte apoiada às mãos e a cara oculta na direcção dele. Quando se deu o acidente de automóvel, Francis apertou-se com mais força contra Aldens. Ele ouviu um pequeno suspiro de dor, delicado como o lamento de uma ave. O seu braço cingiu mais a rapariga contra o seu peito. As mãos dela pendiam. Aldens teve um pressentimento de perigo, de tal forma isto dava a impressão de uma mulher que se abandona, de tal forma parecia o rápido começo de uma conquista. Depois, de-repente, viu que Francis tinha simplesmente desmaiado.
Desconcertado, Aldens olhou primeiro à sua volta, depois pousou o seu olhar em Francis. Tinha os olhos fechados e o seu pequeno rosto parecia espectral, lasso, sem vida. Acariciou-a, sacudiu-a, mas ela ficou inerte, suspensa, pesada e inconsciente, sobre o seu ombro. Hesitou um instante, depois levantou-a, murmurando quaisquer palavras de desculpa aos vizinhos
e levou-a para fora, sem que isso causasse grande emoção, pois o filme era bem mais interessante.
O Phoenix Picture Palace era novo e os seus corredores cheiravam a tinta e a madeira, como os cenários fabricados à pressa nos estúdios. Um pouco de ar fresco da noite corria ali, sob a luz das lâmpadas multicores. Dois pajens desceram, segredando. Aldens pôs Francis de pé e encostou-a contra a parede de estuque. Ela tombou, com a cabeça inclinada para a frente. Ele pegou, resmungando, nesse peso de cinquenta quilos, nos braços, e reflectiu. Por fim, um dístico luminoso mostrou-lhe o caminho da toilette das senhoras. Decidiu-se por ali e empurrou com o pé a porta cor de pêssego, pintada de fresco.
Contra a sua espectativa, não encontrou nenhuma empregada. Teve de se encarregar completamente de Francis. Paredes cobertas de espelhos, cadeiras de veludo, lavatórios, toucadores - tudo no Phoenix Picture Palace era de primeira categoria, mesmo nas profundezas da segunda ordem. Aldens instalou a doente numa cadeira e esfregou-lhe a testa com água. Causava-lhe pena mas, ao mesmo tempo, estava encolerizado contra ela. Uma espécie de ciúme surdo de Oliver Dent misturava-se a esta irritação. Oliver perturbava o coração das raparigas quási até à apoplexia ... e era ele, Aldens, que tinha os aborrecimentos. A vedeta recolhia os aplausos e a emoção desta pequena Francis; ele, o standing, servia só para a borrifar com água fria, no lavatório, preguntando a si próprio o que iria ainda acontecer.
Antes mesmo de voltar a si, Francis pôs se a sorrir, e esse sorriso testemunhava eloquentemente a sua delicadeza e boa educação. Tinha os olhos ainda fechados. "É ridículo." - disse ela a si própria, num tom de censura-"É ridículo." E só então, com certa dificuldade, os seus olhos reapareceram sob as pálpebras, esses olhos indiferentes e negros, esses olhos de flor que estavam agora cheios de uma espécie de embriaguez.
- Desculpe-me, portei-me desastradamente - murmurou ela, mortificada.
- Está melhor ?-preguntou Aldens arranjando o vinco das calças que, no decurso dos trabalhos de salvamento, tinha perdido a elegância. No casaco viam-se vestígios vermelhos dos lábios desmaiados de Francis: verificou-o com desagrado.
- Foi este filme idiota que a ennervou assim? -preguntou, sem delicadeza.
Ela disse: "Não" com a cabeça e ele pareceu-lhe notar que tinha dificuldade em se lembrar de que filme se tratava. Aldens contemplava-a, preocupado. A rapariga estremeceu:
- Brr... - murmurou.
Aldens pegou-lhe nas mãos, umas pequenas coisas geladas, inertes, e soprou-lhas.
-Muito obrigada. - murmurou ela, afastando-as docemente da boca. Teve os primeiros frémitos de febre, mas tentou ainda assim fazer boa figura. "A minha mala!"
- lamentou. Ah! sim, Aldens tinha salvo até a malinha de camurça, Francis tirou o rouge, apertou os dentes, que batiam, e tentou refazer a sua beleza. Mas todo o seu arsenal lhe escapou das mãos e caiu por terra. Aldens ajoelhou-se sobre o tapete cor de pêssego e apanhou tudo. Reflectia. Tirou primeiro o casaco e estendeu-o sobre a trouxazinha trémula de fazenda cinzenta que acabava de cair debaixo da sua protecção. Francis acolheu o calor desse casaco com uma profunda gratidão exagerada: quási chorou. Enroscou se muito no casaco. Lá dentro havia calor, calor humano.
- com certeza não poderá andar ? - preguntou Aldens.
- Oh! sim ... - afirmou ela, mas não era verdade. Ele continuou a reflectir. O filme parecia ter acabado. Na sala, ouviam se aplausos, chamadas, barulho de portas. Ouviu se um galope, depois os corredores foram de-repente invadidos pelo barulho, pelas conversas, pelas pessoas. Aldens não se sentiu muito à vontade ali, em mangas de camisa, na toilette das senhoras. Efectivamente, quási logo, a porta abriu se, e duas burguesas maciças entraram e ficaram por momentos hirtas como estátuas de gelo.
- Perdão. - murmurou Aldens - Esta menina não se sentia bem.
Francis, muito acanhada, sorriu, mas o seu sorriso pintado de vermelho vivo não era de natureza a calar susceptibilidades. As duas senhoras trocaram, puritanas, um olhar, e desapareceram no interior. Tinham a ponta do nariz vermelho e os olhos húmidos. Via-se logo que Cardogan morrera. Aldens envergou o casaco: não podia continuar a passear meio nu. Francis, pelo seu lado, fazia a diligência por não recomeçar a tremer.
- Já estou bem. - disse ela.
- Mas, afinal, o que é que tem, na verdade? preguntou Aldens.
Ela não respondeu.
- Um regime muito severo ? - acrescentou ele - pois era o mais verosímil, Ah! vocês, as mulheres e a vossa maldita linha ..
Nesse momento, Francis começou lentamente a sorrir.
- Sim, é possível. - respondeu ela - Um regime muito severo, de vários dias...
Foi preciso algum tempo para que Aldens compreendesse o sentido dessas palavras. Depois, acrescentou:
- Espere, já a venho buscar. Que imbecil eu fui! E partiu a correr.
Por onde começar ? - pensava ele abrindo caminho aos empurrões através da multidão - Uma refeição, um jantar é, o que é preciso primeiro que tudo. Um carro para a levar, porque ela morre de fome.
Aldens pertencia à classe mais baixa e mais infeliz de Hollywood, a das pessoas que não têm automóvel. Para melhor dizer, o seu automóvel estava na casa de penhores. Ele possuía quatro coisas susceptíveis de irem para o penhorista: o relógio de pulso, um relógio caro que datava da sua "bela época" de Berlim, a sua casaca, o seu smoking e a sua velha carripana. Jogava com estes objectos de valor como um malabarista hábil o faria com quatro bolas. Era raro que todos estivessem ao mesmo tempo em seu poder. Quási sempre, era um
após outro que desaparecia para a "casa de prego". Ora justamente nesse dia, nenhum deles estava livre. Emquanto abria assim caminho através da massa compacta e entusiasta que enchia a escada, reflectia com todas as forças.
Quando chegou abaixo, à marquise muito quente, onde se renovavam as cenas que tinham precedido a representação, precipitou-se para o telefone e chamou Feliciano.
Este, Aldens sabia-o, trabalhava de noite no estúdio. Feliciano era desenhador e amigo de Aldens, era em casa dele que dormia havia quinze dias.
- Feliciano, - disse-lhe ele depois de ter conseguido obter ligação através das quatro secretárias sonolentas escuta bem, meu velho. Tens o carro em frente do estúdio ? Sim ? Preciso dele... vou buscá-lo... Obrigado. Tenho a chave. Também preciso do teu quarto por esta noite... Não, meu velho... não adivinhas. Depois te conto. Há qualquer coisa no frigorífico? Leite ou ovos ? Que diabo! Sempre hás-de ter leite em casa. Bem .. Obrigado, Feliciano ... Onde vais dormir ? Oh! demónio, ouve... Tu lá te arranjarás ... Em qualquer bungalow... Desligo ...
Feliciano, o pequeno francês que parecia corcunda sem o ser, ria a bom rir quando largou o aparelho. "Aldens arranjou qualquer coisa." - pensou ele com alegria - Depois, voltou ao ídolo indiano que tinha de desenhar para os estucadores. Em Hollywood todos são camaradas. Se assim não fosse, seria um inferno para os que não triunfam.
Aldens, durante esse tempo, de cabeça descoberta, corria a toda a velocidade até ao parque do estúdio Astor. Descobriu o Tac-Tac, o carro de Feliciano, entre duzentos outros carros e conseguiu esgueirar-se através de todos os que voltavam do Phoenix Picture Palace. Quando ele chegou ao lavatório da segunda ordem, tinha as mãos molhadas de suor e a camisa colada ao corpo. Francis ainda lá estava. Mostrava um ar submisso, disposta a deixar-se beijar. Aldens nem nisso pensou. Levou-a até ao carro, instalou-a e o Tac-Tac pôs-se em marcha com ruído, mais de-pressa do que seria natural.
- Ora vamos. - disse Aldens quando saíram das ruas mais movimentadas e chegaram a uma região mais tranquila - Quere agora contar-me tudo ?
- Que quere que lhe conte ? É a história banal. Toda a gente tem épocas de desgraça, não há job e não há nada para comer. Nunca lhe aconteceu isso ?
- A mim ? Oh ! sim .. mas eu sou homem. As mulheres têm outros meios de saírem de apuros. - objectou Aldens.
- Sim. - respondeu Francis - E houve um silêncio. Estavam ao pé de um sinal de paragem. -Sou tola.-continuou ela quando voltaram a pôr-se em marcha. Havia despeito e confusão na sua voz. - O primeiro passo é que custa. - E não se sabia se ela falava do primeiro passo na carreira do cinema se numa outra carreira implicando o abandono de si própria e o resto. Aldens aprovou com a cabeça.
- É do Sul ? - preguntou ele.
- Sou. Porque diz isso ?
- Pela sua pronúncia, -respondeu ele com uma ponta de rancor- e por tudo... As raparigas do Sul não são tão resistentes como as outras.
- Não ? É possível. Temos a família por trás de nós, compreende ? Uma coisa parecida com a tradição. Duas tias velhas em casa, solteiras, que falam do bisavô, contam histórias da guerra civil e da época do algodão e da abolição da escravatura. Conhece as pequenas cidades do Sul? Eu nasci em Fairmont, Carolina do Sul... um buraco. Casas de madeira com uma varanda e colunas. Só a igreja e a Câmara Municipal é que são de tijolo. E toda a gente é horrivelmente beata. São coisas de que a gente não se desembaraça facilmente. Em casa há pouco dinheiro... os meus irmãos estão na Virgínia Military School... isso custa caro ... e depois tenho ainda uma irmãzita. Havia de conhecer a mamã! Eu gosto muito da mamã, uma senhora baixinha, míope e tão boa!
Aldens desviou o olhar do caminho para o fixar em Francis; tinha afrouxado o andamento.
- Onde vamos ? - preguntou a rapariga, e as suas
pupilas cheias da sonolência vegetatíva do Sul, abriram-se e tornaram-se maiores, como flores que se movem, lentamente. Este pensamento não o exprimiu Aldens. Havia pensamentos que guardava, para sempre, na categoria alemã, e que não dizia.
- E ganhou um prémio de beleza ... - disse friamente, para a ajudar a contar.
- Sim. - respondeu Francis - Qualquer coisa parecida com isso. Precisava de arranjar uma situação. O papá era um pequeno empregado bancário, o Banco faliu e as coisas passaram a correr mal. Eu devia ser bibliotecária. Uma boa situação. Mas então imaginei entrar para uma Beauty Shop, um salão de beleza. Não era muito elegante, nem digno de uma verdadeira Warrens. - Ela teve um riso acanhado.-Em Fairmont, sabe, há apenas cinco famílias capazes e os Warrens são uma delas. Foi então que surgiu esse caso da revista Dadys Weekly. Publicaram uma série de fotografias intitulada "A beleza na sombra". Comissionários deram uma volta pelas pequenas cidades para encontrarem raparigas bonitas. Ò meu retrato apareceu na revista em traje de banho - o que também não era muito correcto. Recebi então cartas engraçadas, propostas de casamento e tudo o que se segue. Por fim, a revista mandou, por sua conta, dez raparigas que descobriu, para Hollywood. Isto deu muito reclame à revista. Quanto às raparigas acabaram todas mal.
- Você também acabou mal ? - preguntou ele vivamente.
- Hum... Talvez ainda não completamente. É preciso começar por algumas provas de ensaio. As provas mostraram que os meus cabelos não davam. Pintaram-se. Depois foi a boca. Depois acusaram-me de não ter bastante temperamento. Um dia dei uma bofetada a um... e então acharam que tinha temperamento de mais. Mas não é verdade que o triunfo seja certo por uma pessoa se deitar com toda a gente. É justamente o contrário... Eu compreendi que era preciso primeiro aprender qualquer coisa. A dançar, a cantar, a falar. O trabalho é o menos ... mas como pagar as lições ? Por fim, lá consegui ter um dia um job e, três semanas
mais tarde, outro, É com isso que tenho vivido, com esses sete dólares e meio. Maquillage, mandar descolorar o cabelo todas as semanas, aluguer de fato para as cenas de sala... Então, sentei-me à secretária e escrevi: "Querida mamã, isto corre maravilhosamente. Daqui a pouco vão dar-me um grande papel..." A gente tem vergonha, sabe ?.. E para que causar ainda mais desgostos, lá em casa ? Eles nem sequer nos podem mandar o dinheiro do regresso! E depois é preciso que façam tudo pelos rapazes. Então, cá estou, esperando... O pior é o telefone. - acrescentou ela depois de um silêncio durante o qual contemplou fixamente, lá em baixo, o caminho unido, que se desenrolava à sua frente entre os ramos das pimenteiras, pois a casa de Feliciano ficava muito longe, numa espécie de cânon. Depois, ela continuou:
- O telefone! Todos os dias, das quatro às sete, quando o Central Casting Office manda vir as extras, a gente ali está no quarto, sentada, esperando que nos chamem. Todos os dias é a mesma esperança. Mas se, por acaso, alguém chama, é sempre o leiteiro com a conta. Ah! como é feliz aquele que não sabe o que isto é! Mas todos nós sabemos, não é verdade ? Estamos ali sentados no quarto, à espera, à espera, à espera ... E isto é quando a gente tem quarto... quando tem telefone...
- Você não tem quarto ? - preguntou Aldens, que conhecia estas coisas.
- Eu ?.. Oh! sim ... Nos últimos tempos habitei.. não, dormia... nas trazeiras de uma estação de gazolina. Mas a polícia não deixa. Conhece a lei, não ? ÉE proibido habitar nos locais destinados ao comércio, etc.." Agora moro com Kit Dalas. É uma das dez raparigas que foram mandadas pela revista. Ela já passou muito mas agora começa a galgar o barranco. É uma rapariga rija. Quando se pode, é fácil... Há-de conhecê-la. Ah! se eu já estivesse tão adiantada como ela! - acrescentou pouco depois - Eu não penso na carreira, penso... no resto. A primeira vez, compreende, a primeira vez! Seria preciso fazer
isso para nós, encontrando-se no facto uma certa beleza. Depois... paciência... seja como for!
- E então ? - preguntou Aldens manejando o volante com precaução, sem despregar os olhos do caminho - Ainda não houve a primeira vez ?
- Não. - respondeu Francis, vivamente - Foi como se, de uma vez para sempre, quisesse fixar qualquer coisa importante entre ela e ele.
- E, neste momento, temos uma formidável paixão por Oliver Dent, acabou ele por dizer, sorrindo.
- É verdade.
Qual a rapariga que no coração, Não guarda um sonho de amor?
trauteou ela, recordando o estribilho de uma canção da moda. É preciso agarrar-se uma pessoa a qualquer coisa quando não se quere acabar na Florência.
Florência era a mulher a quem pertencia a maior parte dos clubes de noite e os lugares de prazer de Los Angeles. Tinha além disso um negòciozinho mais prosaico, era a ela que certos cavalheiros se dirigiam... e as raparigas pedidas eram-lhes enviadas ao domicílio... Florência, que conhecia os segredos da alma humana, era o último recurso das bonitas extras sem trabalho, de Hollywood. Toda a gente a conhecia. Aldens também. Lembrava-se até de uma noite passada numa das suas casas e sentiu uma viva compaixão por esta pequena Francis. Ele estava, ao mesmo tempo, um pouco apaixonado por ela, mas a compaixão era o mais forte sentimento e cobria o pequeno ardor sentimental que lhe inspirava a sua beleza.
- Está muito abatida esta noite. - disse ele para a consolar - Amanhã terá coragem outra vez.
- Não é a coragem que me falta. - respondeu ela com uma espécie de surpresa.
Subiram a encosta, e o carro, indignado, fazia grande barulho. Depois, viraram, na noite. Agora sentia-se o odor da folhagem húmida, um odor raro em Hollywood. Aldens parou.
- Onde me leva ? - preguntou Francis.
- Moro aqui... com um amigo. Primeiro vou dar -lhe uma omelete, depois veremos. - disse num tom decidido.
Era uma minúscula, uma estranha casa esta que ele abria. Tinha dois andares e um único compartimento em cada andar; era antes, uma pequena torre. Ficava situada à entrada de um caminho, e árvores altas e frondosas batiam-lhe na janela. Aldens precipitou-se para a pequena cozinha emquanto Francis passava revista à sala. Uma certa demência ordenada tinha presidido à sua instalação. Móveis metálicos, aparelhos luminosos, cilindros fabricados à mão, de um efeito mágico, bibelots de Java, livros, uma mesa de desenho junto à janela, e, num poleiro, um papagaio adormecido. Francis acordou-o, mas ele não compreendia senão francês, e repetia sem cessar: Fiche moi la paix, o que ela tomou por um cumprimento.
Quando Aldens voltou com a omellete e as torradas, Francis já estava como em sua casa. Tinha achado cigarros, dado corda ao gramofone e descoberto, no armário, o resto do chianti da Califórnia.
A presença de Francis tinha bastado para dar a esta casa, a despeito da sua atmosfera de boémia europeia, qualquer coisa de inexplicavelmente americano, Em todo o caso, era agradável ver a rapariga sentada no divã. "Só por esse motivo ele está mais atraente." - pensou Aldens observando, com satisfação, como Francis comia. Ela fazia-o gentil e comedídamente, embora tivesse desmaiado de fome uma hora antes. E o sentimento de piedade e de responsabilidade por essa pequena desconhecida, sua companheira de infortúnio, assaltou-o de novo.
-Daqui a pouco levo-a a casa.-disse êle-Onde mora ?
- Onde moro ? - respondeu, irónica - devia ser em Orange Drive, ao pé de Highland Avenue. A dificuldade é que a minha presença em casa de Kit, esta noite, é absolutamente supérflua.
- Pode dormir aqui. O quarto é lá em cima, o
meu amigo não vem ficar esta noite. - respondeu Aldens, depois de um silêncio.
Francis hesitou.. apenas um décimo de segundo.
- E o senhor onde vai dormir? - preguntou ela.
- Cá em baixo, no divã, onde durmo sempre - respondeu ele.
Ela reflectiu. A gardénia que tinha ao peito, completamente fatigada agora, tinha a ponta das pétalas castanhas e todas murchas. O aposento inteiro estava impregnado do perfume da gardénia murcha. Francis olhou Aldens com insistência, com os seus olhos de animal inocente. As pálpebras estavam ensombradas de um azul barato, as pestanas enceradas e duras como pequenas escovas, e o rouge tinha desaparecido. A-pesar-de tudo eram olhos inocentes.
- Obrigada. - disse ela - É muito amável. Estendeu-lhe a mão por cima da mesita. E, quando ele subiu ao andar superior, para lhe preparar a cama, não teve de maneira nenhuma, a impressão de ser um pouco ridículo.
-Ó rapazes! -exclamou Sam Houston, um dos membros da direcção da Phoenix Picture Corporation, entrando às três horas da manhã no salão superior do Club 111, reservado aos jogadores de poker-Que noite, rapazes! Não a esqueceria nunca na minha vida nem que chegasse a velho, tão velho como o velho Laemmlé.-Henri, um old fashioned. Percebe-se já que Donca está de volta... cem por cento de volta ... E se alguém me disser que ela está pronta, eu, Sam Houston, digo que ela vai tornar-se no que foi, uma das maiores. Apostemos!
"Os nossos Publicitymen receberam um choque nervoso colectivo, ora preguntem ao Keller. Mac Olehan vai ser forçado a passar quinze dias em Palm Spring para
convalescer, e o pequeno Joe está na agonia. De quem é a culpa? De Bill. Vocês conhecem a direcção geral, o Front Office, pois bem, antes de cada primeira, têm um medo horrível e Bill Turner é bem a velha mais supersticiosa que jamais foi presidente de uma sociedade. A culpa é dos seus sonhos. Henri, outro old fashioned. Eu sou um pouco pessimista, mas o que digo é verdade. Pois, por superstição, Bill não quis mais uma vez encomendar o banquete para depois da representação, porque, na noite da Louca Sorridente ele ficou com um banquete inutilizado para cento e oitenta convivas, no Âmbassador. Desde então, não encomenda mais banquetes antes do êxito. Então, no momento da grande cena final de Oliver, vocês sabem, quando ele descobriu que lhe cortaram o braço, lá veio o meu Bill ter com Keller e comigo e nos disse em segredo, para irmos tratar de tudo ... um pequeno jantar íntimo, - disse ela apenas para trinta pessoas. Estão a ver! Telefonou-se para o Âmbassador e para o Light para encomendar três caixas; arranja-se tudo, começa-se a avisar a nossa gente, de-vagar, para a apoteose. Quando chega a Oliver, eis que começa logo a fazer o seu nariz de coelho... vocês sabem... assim, com o lábio superior, absolutamente à inglesa: "Se Donca quiser... com muito gosto." E Donca, cem por cento: "com muito prazer, mas não quero encontrar-me com Ria Mara." Então eu disse-lhe: "Donca, minha linda, mas foi Ria Mara a vedeta, não a podemos proibir de vir ao banquete. Tu ficaste cá em baixo, como convidada, uma encantadora convidada e todos nos sentimos felizes por te tornar a ver, e os cabelos pretos ficam-te deliciosamente, mas Ria Mara é natural que venha ao banquete."
"Nesse caso não vou eu. - disse Donca - Toda a vida preferi as refeições a dois."
"E lá arrastou Oliver e foi-se embora. Durante esse tempo, Ria Mara tinha sido levada para o Âmbassador no carro de Bill. vou apanhá-lo em baixo e digo-lhe: "Oliver não vai porque, etc. etc ..." Bem. Vocês conhecem o Bill quando fica contrariado... Henri, outro old fashioned. "Se Oliver não vai, não se faz nada."-respondeu-me
com o seu ar de Napoleão - Agarrei-me a Oliver, diligenciei humanizar Donca. Vocês já jogaram ao poker com Donca ? Não ? Pois bem, é de primeira força nesse jogo e Oliver, na sua mão, é um trunfo de primeira. Arrastei-os à força para o Ambassador. Era quási meia-noite. Tinham instalado um pequeno bar no salão amarelo: a gente moça consolava-se emquanto esperava. Ria não tinha bebido. Vocês sabem como ela é; tem as suas ideas, não bebe, não fuma, não come mais que as suas 82 calorias bem pesadas, bem contadas, a cada refeição. Eu pensei: - Isto vai ser uma beleza. Ria é nitro-glicerina e Donca é fogo. Que bela explosão, quando elas se encontrarem ! Mas Donca não entrou e Ria não saiu. Quanto a Oliver, nunca se viu nada de mais encantador do que ele. Tomou o partido de Donca, o animal. Parece que ela lhe deu qualquer coisa a beber. Vocês dizem que ela é velha ? Donca ! Ora vejamos : eu cheguei aqui, com Bill, há vinte e um anos ... Não tenham medo que não lhes vou contar os meus princípios, num alpendre. Caramba, era então uma bela terra! Isto empestava. Faziam-se exteriores e mais exteriores e tudo metia cavalos com freios nos dentes. Pois bem.. Donca... descobrimo-la nós, pouco depois, em Chicago, num show. Tinha dezoito anos nessa época, ou que o diabo me leve! Tem hoje trinta e seis anos, nem mais um dia, e parece ter vinte e quatro. E se ela não quere sentar-se à mesa com Ria Mara, tem razão, pois foi Ria Mara e mais ninguém, que espalhou que Donca tem cinquenta e oito anos. Foi ela quem incitou esse tipo do Observer, que chamou a Donca "veterana, embranquecida a trabalhar". Sem contar que lhe tirou o príncipe para se casar com ele... e o príncipe foi o único homem de quem Donca gostou seriamente um pouco. Não estou a tomar um partido... não, por nada no mundo, - mais um old fashioned, Henri - mas quando a gente viu as duas, hoje, uma ao lado da outra, uma de vermelho e outra de verde, Ria muito fria com os pés chatos e Donca tão ardente, que uma gota, se lhe caísse em cima, seria vaporizada ... não se podia senão
dizer que a Moresco vale ainda os seus cinco mil dólares por semana. E, meus filhos, escutem o que vos diz o papá Sam, há-de tê-las, as suas cinco notas! Santo Deus, que rica cena elas representaram as duas! Espantosa! Sou eu que vos digo! Se a gente pudesse levar aqueles animais assim, para defronte da máquina!
"Ria estava encostada ao bar e foi-se tornando cada vez mais encarnada porque empalidecia cada vez sob o maquillage; por fim, só se viam dois triângulos vermelhos, como num palhaço; e ela sorria... e ninguém se sentou à mesa antes de ver o fim daquilo, Donca, essa, esperava sentada no hall, fazendo valer as suas esmeraldas e a sua zibelina. Uns após outros, todos vieram ter com ela. Bill foi o último, mas também veio. De forma que Ria acabou por ficar só no bar, só com o pequeno Joe Ray do Publicity Department, que aguentou até ao fim. Eu vi o, tinha o colarinho amarrotado de tal maneira que me pareceu pouco digno de um cavalheiro.
"Por fim, Oliver entrou. Meus filhos, meus pequenos, vocês haviam de ter visto aquilo! Ele entrou como uma gazela; falou um momento com Ria, tomou-a pelo braço, foi-lhe buscar o casaco ... "Ria está fatigada, coitada!"-disse ele - Vou levá-la a casa e volto já." E levou-a no seu automóvel. "Estamos desolados" - acrescentou ele - "mas não é possível retê-la." Afinal, pô-la simplesmente na rua, mais nada. Oliver é assim. Vocês acham isto desagradável? Mas não, de maneira nenhuma, em Oliver nada há que possa ser desagradável. Talvez que ele a beijasse em baixo, no carro. Que sabemos nós ? Talvez que Ria, há três meses, não sonhe senão com esse beijo de Oliver. Talvez que esses cinco minutos passados com ele tivessem mais valor para ela do que o banquete de Bill Turner. As mulheres são uns animais esquisitos, meus rapazes, e nós ainda não conseguimos conhecê-las bem. Mais um old fashioned... Henri. Talvez que Ria tenha armado em obediente por Donca gostar de mandar. Porque é que uma se veste de vermelho e a outra de verde? Porque é que uma não bebe nunca, emquanto que a outra está quási sempre embriagada ? Porque se enamoram elas quási sempre
do mesmo homem, e porque querem representar sempre os mesmos papéis, se são diferentes uma da outra como o dia da noite ? É a isto que a Secção Literária chama: "o segredo da alma feminina". Em todo o caso, Donca teve um êxito tão grande que até lhe foi difícil aguentar. Era um bombom grande de mais, para se engolir. Ora imaginem, pequenos: ela tirou a Ria Mara o...seuhomem. Que digo eu ? O seu homem ? Oliver é o mais belo homem de Hollywood, dos Estados Unidos, do mundo! Ela impediu Ria Mara de assistir ao banquete, dado em sua honra, de gozar o seu próprio triunfo após a primeira. Ria voltou para casa. Dez minutos mais tarde, Oliver estava de regresso e, como Ria não bebe, como ela não toma cocaína, pregunto a mim próprio que terá ela feito para digerir esta história ?! E Donca tomou o lugar de Ria entre Oliver e Bill Turner e não houve um só que tivesse a coragem de dizer uma palavra contra ela. E não ficarei surpreendido se Bill lhe oferecer em breve um novo contrato, pois ele parecia muito interessado. Agora vou explicar-lhes o que é ser Donca cem por cento. Eu conheço a Donca desde a época do alpendre. Quando nos estreamos, aqui. Fomos os primeiros; e sei o que quere dizer quando as suas narinas fazem um certo trejeito, e as bochechas lhe pesam... e que a boca... emfim, não é preciso explicar mais. Quando ela está bem disposta tem esta expressão, mesmo nos filmes; numa palavra, eu sei que paixoneta ela tem por Oliver. Melhor para eles... Então, ela começou a comer umas ostras... à sopa já estava distraída... tanto que, mesmo antes da perua, se levantou e disse: "Obrigada, Bill... foi uma noite deliciosa, mas tenho que recolher. Tenho ainda uma longa caminhada a fazer... moro em Beach... Oliver, acompanha-me..." E Oliver levantou-se, belo como um serafim, arvorou o seu sorriso que desarma e foi-se, como um verdadeiro aristocrata inglês. "Desculpem-me, vou acompanhar miss Moresco a casa e volto já. Podemos encontrar-nos mais tarde no 111. E saiu com Donca, pelo fundo. Estou ansioso de saber o que os Jornais dirão disto amanhã.
"É preciso que ele esteja louco, dizem vocês? É
bem provável que o esteja, mas é uma loucura que lhe podem invejar. Pensem vocês, cáfila de ignorantes, pensem no que vale para um filme uma mulher que sabe enlouquecer a esse ponto um tipo como Oliver! Porque o Oliver só era um grande amoroso no écran, isso todos nós sabemos. É um ponto de vista novo, hein? Quem sabe se ele virá ainda esta noite ao clube. Vamos, continuem o seu poker, e desculpem me se os incomodei... Não... não quero mais old fashíoned, Henri. Um whisky seco.
"E se vocês quiserem saber de mim, Bill Turner, o que havia quando Sam Houston construiu o seu primeiro hangar em Hollywood ...
"Mas não, esta noite, ele já não vem ao clube..."
-Pare, quero guiar! -disse Oliver.
Acabavam de atravessar a encruzilhada de Santa Mónica, onde se erguia a pequena fonte luminosa, e obliquavam para os bairros mais frescos e menos densos. No ar já se sentia o iodo, limos e o Pacífico.
- Não... não quero... Porquê ? - protestou Donca, arrancada bruscamente ao prazer profundo que sentia em esmagar os lábios contra a palma da mão de Oliver.
- Peço te, estou um pouco tonto Donca, queria refrescar o cérebro.
- Gosto de te ver um pouco tonto. - disse ela, rindo sem barulho.
- Stop, Mayer. - ordenou Oliver.
E Mayer estacou, com expressão descontente, numa paragem brusca. Mayer era o chauffeur de Donca, um alemão resmungão, rude, um antigo engenheiro que sofria na sua dignidade ofendida. Oliver levantou-se, procurando sair do carro sem partir a cabeça.
- Mudança de cenário.- disse Donca-Mayer pode vir para trás, eu quero ir a teu lado quando tu guias.
Oliver deixou-se cair no assento e pegou no braço da sua companheira.
- Não quero ir sentado a teu lado.-disse ele em voz baixa -Que má Donca esta! Então não compreendes que eu quero guiar só? Tu endoideces-me, tocas nos meus nervos uma música terrível. Que queres tu, afinal? Que eu te viole aqui mesmo?
Donca sorriu, num lento e voluptuoso sorriso, olhando fixamente os olhos de Oliver. No fundo do carro, os grandes candeeiros do bonkvard deixavam cair um pouco de luz... minúsculas faíscas redondas, jorravam das pupilas de Oliver, Mayer, resmungando, escutava os segredos e o silêncio, atrás. Estava fatigado. A mulher sofria dos rins, e tinha passado metade da noite a dar-lhe maçagens. Perdera o dia à espera, nos parques, e a noite diante dos cinemas primeiro, depois diante do Ambassador, no meio de negros e de gente de todas as cores, ele, um engenheiro, o doutor Mayer, que tinha sempre no carro uma data de livros, como uma muralha para o separar dos párias de que se tinha tornado colega.
- Vá, Mayer, continue. - ordenou madame Moresco.
Atmosfera húmida, saturada de oceano, cumes de árvores, folhas dentadas de palmeiras, candeeiros mirando-se no asfalto, canto incessante, obstinado, das cigarras. Deviam ser duas horas da manhã. Em longa fila, ao seu encontro, vinham carros.
- Volte à esquerda, pelas colinas, Mayer. - ordenou Donca.
- Não,-objectou Oliver - é mais longo. Isto já dura há muito.
- Tens pressa ?-preguntou ela, em segredo-Ele não respondeu. Apenas um pouco mais tarde... rolavam já, sós, nas colinas, diante do céu prateado e cheio de estrelas, ele murmurou de mau humor:
- Sim ...
Donca soltou os dedos que apertavam a carne fresca
e doce do seu braço e tomou meigamente, entre as mãos, uma das mãos de Oliver.
-És tolo, Púiú. - disse ela um pouco mais tarde Tu não entendes. Sinto me feliz. Inteiramente feliz, percebes? Oliver, inteiramente feliz... em toda a minha vida, nunca me senti tão feliz como agora. Este minuto, justamente este minuto, é o mais feliz da minha vida... Púiú, quero que ele dure muito tempo, muito tempo... Ah! não compreendes, meu tolo...
Oliver, que se tinha encostado, num abandono, no ombro da amante, ergueu-se.
- Foste má com a Ria. - disse ele severamente.
- Não tão ignóbil como ela foi para mim. Não te metas em histórias de mulheres. - respondeu Donca.
É verdade. - pensava Oliver - Donca é má mas Ria é ignóbil. Donca nunca é ignóbil, nunca .. Ele sentia a sua mão repousar entre as mãos dela, como numa concha quente. - Minha conchinha! - murmurou imperceptivelmente. Esta era uma palavra de amor que empregavam nos instantes mais íntimos da sua paixão. Ela beijou-lhe a testa com os lábios entreabertos. - Amo-te. - murmurou ele tão baixo, que ela mal ouviu. Talvez não quisesse que ela ouvisse.
- Sim, Oliver.
- Amo-te, Donca, amo-te ...
- Sim, Oliver, sim.
-Donca, ouves? Amo-te, amo-te, amo-te...
- Sim, meu pequeno... sim. - disse Donca -O seu rosto parecia não compreender, de tal forma era feliz. O carro, agora, estava num alto, as encostas da serra apareciam uma após outra na claridade da noite.
- Diz-mo também... - murmurou Oliver com insistência. Ela calou-se. "Já to disse muitas vezes... tenho medo ... - pensou no fundo de si própria.
- Amo-te, Donca.
- Amo-te, Oliver. - disse ela em voz baixa, num tom cheio de risos e de lágrimas... não sabia bem se eram risos ou lágrimas.
O carro virou para descer. Um monte de estrelas, espalhara-se, através do céu, no horizonte.
-Oh!
- O que é?
- As estrelas ... que caem ...
- Podemos fazer um pedido.
- Podemos. Mas nunca se deve dizer o que pedimos. - respondeu ela, seriamente.
Saíram das alturas e desceram lentamente entre os eucaliptos de altos e claros troncos prateados. Já se ouvia o canto do mar, um canto sombrio e desigual. "É preciso que isto dure mais." - pensava a Moresco - E logo a seguir: "Isto não pode durar!" Mayer, à frente deles, tinha ouvido algumas palavras. Estava indignado por ver que não se acanhavam de segredar amor na sua presença. Tudo se reunia para o humilhar. Endireitou bruscamente o carro e voltou, atingindo a estrada que ia dar ao mar e pela qual os últimos automóveis regressavam à cidade. Sentia-se o cheiro de madeira queimada; aqui e ali, em frente das barracas de "camping" cintilavam lumes acesos, a margem estava salpicada de pequenas chamas amarelas. Muito longe, no mar, erguiam-se, rodeados de grinaldas de luz, os barcos de gambling onde passavam as noites a jogar as cartas. Para o norte, a costa pendia mais abrupta, o mar lançava a espuma branca sobre a areia sombria. Mayer, num gesto de ombros, ofensivo, parou, e Oliver ajudou Donca a descer. Em casa, as luzes estavam acesas.
- É preciso levar o sr. Dent a Beverley? - preguntou Mayer, por pura maldade, quando Donca passou diante dele, com os seus sapatos prateados - Imaginou que ela teria acanhamento em lhe responder, mas Donca não se acanhava nunca, por nada.
- Não, Mayer, o sr. Dent dorme cá. - respondeu, desaparecendo em casa sem se voltar para Oliver.
Este ficou uns minutos de cabeça nua, ao ar, respirando profundamente, como para afastar o peso que o oprimia, depois atravessou o pequeno pátio entre a garagem e a casa. De uma corda pendiam os maillols de banho, sentia-se o cheiro às tábuas das barracas, à madeira queimada dos fogos acesos na praia, o cheiro de mar, de noite, de verão! Chegando à porta, hesitou,
olhou para o cimo das colunas que suportavam a varanda e continuou a marcha para a pista fechada onde na praia, jaziam, como anões adormecidos, as pequenas cadeiras e os bancos. Já não havia lua, mas uma claridade transparente enchia o ar, muito alto, emquanto as trevas chegavam à margem do mar e da areia.
Na garagem, Mayer, ostensivamente, fazia um barulho enorme com o carro. Donca esperava que aquilo acabasse. Tinha sede de silêncio. Doíam-lhe os pés e a nuca, tão grande tinha sido a tensão nervosa durante o serão. Um criado chinês, inverosimilmente magro, acordou no momento em que ela entrava no vestíbulo.
- Às suas ordens, minha senhora. - murmurou ele, ainda a dormir.
- Podes-te deitar de-pressa. Anda! - disse ela com impaciência - E a branca libré desapareceu. Mas, um instante depois, apareceu Applequist, o chefe de mesa, muito digno, embora estivesse também meio adormecido. Donca gostava muito de ver Applequist em sua casa que, sem ele, teria tendência a parecer uma casa de doidos. Era ele que lhe dava respeitabilidade. Mas, a esta hora, não apreciou a sua aparição.
- Que aconteceu ?-preguntou com impaciência. O criado de mesa lançou-lhe um olhar doloroso, tirou-lhe o casaco e preguntou, em tom reservado:
- A senhora precisa de alguma coisa ?
- De paz e mais nada!-respondeu ela secamente.
- A senhora não deseja beber-murmurou Apple quist.
- Não. - disse Donca, o que surpreendeu o criado.
- A senhora ainda não deu as suas ordens para amanhã de manhã? -insistiu ele com tenacidade - Quere que a acorde? Treino? Maçagem? Cavalo? Automóvel?
- Não. Nada... nada. - gritou ela, tapando os ouvidos - Deixe-me em paz.
- Lamento importunar a senhora. - disse Applequist, ofendido, e depois retirou se, muito solene. Embora fosse criado de mesa desde sempre, portava-se como um mau actor que estivesse encarregado de representar um papel.
Donca olhou para as suas sobrancelhas arqueadas e foi assaltada pelo ódio e pelo remorso.
Ele apagou algumas luzes, acendeu outras, e desapareceu.
Agora, através do silêncio, ouvia-se o mar fremir profundamente, em grandes vagas que chegavam até à casa. Donca prestou atenção; descalçou os sapatos prateados e esteve a brincar com os dedos de unhas pintadas a vermelho forte. Os seus pés eram preciosos e célebres. Impaciente, a sorrir, subiu, descalça, a escada que ia dar ao quarto de cama.
À entrada, um homem levantou-se do divã, mas não era Oliver, era Tacus ou antes, Spartacus Lew, como era o seu verdadeiro nome. Vendo-o, Donca rebentou:
- Vocês estão todos doidos ? - exclamou, estendendo um punho enérgico-Eu encomendei alguma comissão de recepção ? Querem mandar vir os bombeiros de Santa Mónica para me receber quando eu chego, à noite?
- Ora, vamos, ora vamos, Donca, minha filha...- murmurou Tacus meigamente e entristecido.
Era um homem bastante idoso, vestindo umas velhas calças de flanela e uma velha camisa de polo que lhe cobria o corpo curvado. Tinha as alpergatas húmidas, como se tivesse feito uma longa caminhada à beira mar, os cabelos grisalhos, pendiam, molhados, sobre a fronte de uma extraordinária beleza. Tinha olhos de judeu, pesados e cinzentos, e um nariz muito grande.
- Donca... esperei-te, minha querida. - disse com um sotaque russo-Pensei que talvez a minha pequenina tivesse necessidade esta noite do seu velho Tacus... Não ? Ainda bem ... Tanto melhor! Como era o filme? Como foi o nosso herói? Brilhante, hein ? Foi brilhante? com certeza que foi...
Donca lançou à sua volta um olhar furioso. Por toda a parte, no quarto atapetado, se viam os vestígios húmidos dos grandes pés de Tacus.
- Tacus,-disse-és insuportável. Não sentes quanto és insuportável ?
- bom ... bom... Sinto, sim, tranqúiliza-te. Mas pensei... como era uma primeira; Ria Mara representa,
é uma das vedetas. Donca vai ser obrigada a vê-la, e pensei: Ria Mara vai triunfar, é uma grande noite para ela, pensei: "é melhor tu esperares pela tua filha". Tal vez que ela precise de alguém. Talvez queira falar romeno, ou beber, ou chorar, ou esquecer... por isso esperei.
- Estás bêbedo, an ? - preguntou Donca indo colocar-se em frente do espelho. Começou a despir-se, sem prestar atenção ao homem que ali estava. Assim que os seus ombros saíram, nus, do invólucro verde, ele lançou sobre ela um olhar de cão, depois voltou-se.
- Bêbedo ? repetiu - Para te servir. Mas tenho o cérebro claro. Se quiseres, posso jogar o xadrez. Isso costuma distrair-te espantosamente...
- Distrair-me ? De quê ? Foi a grande noite de Mara, pensas tu? És um cretino. Foi a minha noite, a minha noite! Esta noite foi para mim, Tacus, para mim! - gritou Donca.
Eram gritos abafados, contidos, uma dança vitoriosa sobre os pés nus e arqueados, feita diante do espelho.
- Onde está a presa ? - preguntou Tacus, trocista.
- Posso-te pedir que te vás embora ? - respondeu Donca desdenhosamente como se só agora notasse que estava quásí nua. - Alma do outro mundo! - disse ainda assim que a porta se fechou atrás da personagem de fla nela toda amarrotada.
Havia quem afirmasse, que esse Spartacus Lew tinha sido dantes marido de Donca. Mas não era verdade. Talvez ela tivesse vivido algum tempo com ele, antigamente, quando principiou, em New-York, quando aparecia ainda numa burlesk show, uma pantomina grotesca da Bowery. Essa é que devia ser a verdade. Ela tinha esquecido completamente esse pormenor, o que nada tinha de espantoso, dada a prodigalidade com que se atirava constantemente para novos amores. Tacus ainda se lembraria ? Quem sabe! Nunca se aludia ao caso. Tendo-o encontrado, bastantes anos depois, numa situação lamentável, ela ajudara-o primeiro e recolhera-o em sua casa. Que um indivíduo a mais ou a menos por lá andasse sem fazer nada, pouco lhe importava. De resto,
às vezes, Tacus sabia tornar-se útil. Mas, encontrá-lo no seu quarto de cama quando ela entrava com Oliver, não era propriamente o que desejava. Donca voltou ao divã com um roupão transparente e encontrou lá um livro russo. Ela sabia russo, como sabia todas as línguas da Europa. O livro intitulava-se: "Pensamentos dum revolucionário sobre a revolução universal". Ergueu o mosquiteiro da janela e deitou fora os "Pensamentos dum revolucionário" que se achataram com ruído surdo sobre o telhado, A maior parte das casas de Santa Mónica e de Malibu, ao longo da costa, são feitas pelo modelo das casas de pescadores, com tetos de madeira, móveis simples e lâmpadas de barco adaptadas à electricidade; e por toda a parte em Santa Mónica e em Malibu, como nas cidades de Beverly Hill, rondam no quarto de hóspedes, fantasmas semelhantes a Tacus, farrapos do passado, ébrios, morfinómanos, cocainómanos, personalidades em decadência, seres exaustos, desesperados, prontos ...
Assim que Donca ficou só, o seu amor por Oliver assaltou-a como uma tempestade. Ela conhecia muitas espécies de homens e muitas espécies de amor. O que sentia agora não sentira ainda nunca. Uma tal embriaguez, uma tal satisfação, tais altitudes não se podiam atingir senão uma vez na vida... e era preciso para isso que essa vida fosse rica.
Em baixo, um relógio tocou cedo de mais, pois em casa de Donca os relógios nunca estavam certos. Além disso este indicava a hora europeia.
Oliver estava ali. As paredes vibravam, de tal forma este pensamento era violento. Donca pôs-se à procura dele.
Oliver detestava sentir-se vigiado quando estava com ela. Excelente Púiú, corajoso Púiú... que lhe tinha ficado fiel, durante toda a noite, como um soldado à sua bandeira. Aquilo devia ter sido uma tortura para ele. Percorreu os diferentes aposentos, chamando meigamente: "Oliver!". Era tarde. A maré tinha descido, o Oceano acalmava-se debaixo das suas janelas. Atravessou a varanda envidraçada, desceu entre as colunas. Tudo estava sombrio, silencioso. Escutou; um vento leve deu-lhe
no amplo pijama. Teve a impressão que nesse momento os seus olhos deviam estar fosforescentes como os dos gatos. Depois ouviu, vindo da piscina, um leve ruído e um riso abafado. Deslizou tateando ao longo da casa e baixou uma pequena alavanca húmida de orvalho. Os projectores, aos quatro cantos da piscina, acenderam-se, discos duros de luz branca ..
Nesse momento, Oliver tinha mergulhado. Nadava agora entre duas águas, justamente ao nível dos azulejos de faiança esverdeada do fundo. Tinha os braços colados ao corpo e só mexia com as mãos e a ponta dos pés. Estava estendido ao comprido e todo doirado. Os cabelos eram dum oiro mais pálido que o resto do corpo. Em volta da piscina, as espadanas reflectiam na água as suas altas hastes e as suas grandes cabeças amarelas e vermelhas. Havia qualquer coisa de absolutamente inverosímil e artificial na forma com que estas flores luxuriantes surgiam muito direitas da areia, e na maneira como a estátua de oiro, perfeita, que era o corpo de Oliver, flutuava, quási imóvel, no fundo da água, brutalmente iluminada pelos projectores. Silenciosa, encantada e paciente, Donca esperou que ele reaparecesse. Desde a sua permanência em Oxford, que Oliver detinha um record de natação entre duas águas. Ela foi para a extremidade da prancha. Oliver estava ainda no fundo, semelhante a um peixe; virou-se e continuou a nadar de costas, depois voltou lentamente à superfície, agarrou-se, para sair, ao rebordo da piscina e atirou se de um salto para a prancha ao lado de Donca. O seu corpo salpicou água para o corpo de Donca.
- Onde tens a tua roupa, meu garoto ? -preguntou-lhe ela. E a pura, a simples felicidade, estava nos seus olhos. Oliver, com um sinal, mostrou lhe a praia. Efectivamente, o seu fato estava espalhado na areia. O colete branco agitava-se ao vento leve como um animal sonolento.
- Sabes que tenho a casaca estragada ? Rasgaram-ma toda. Fizeram-ma em farrapos à saída do cinema! - queixou-se ele num tom infantil.
- Tu gostas disso ? - preguntou ela sorridente.
- Detesto.-respondeu ele em tom indiferente.
Donca estendeu um dedo que passou sobre a omoplata molhada de Oliver, sobre a curva do ombro, ligada aos músculos do braço. Depois chupou as gotas que trouxe nos dedos. Ele via ela proceder assim, demonstrando o máximo interesse. Ela deixou derreter-se na língua aquele aroma delicado e salgado. O nevoeiro matinal fazia-se sentir; no horizonte, aparecia uma delgada linha verde.
- Não é bom. - disse ela num arzinho traquina.
De-repente, Donca encontrou-se nos braços de Oliver : ele estava molhado, fresco, cheio de violência, impregnado de sabor marinho. A prancha, sob os seus pés, fremia como um ser vivo.
- Vem para a água. - pediu ele.
Deixou-a e pôs-se a respirar profundamente e com força.
- A água é maravilhosa!
- Mas fria. - respondeu ela - Queria retê-lo e arrastá-lo, mas, vergando os joelhos, ele saltou. A luz dos projectores quebrou-se à superfície estalada da água verde. Em seguida, o rosto de Oliver reapareceu, com os cabelos molhados caindo-lhe para a cara.
- Vem ! - disse ele ofegante - Vem!
Hesitante, ela esfregou um momento os pés nus sobre a rude esteira que cobria a prancha. De-súbito, decidiu-se e deixou cair o pijama, húmido ainda do contacto de Oliver. O seu corpo tinha qualquer coisa de esplêndido e elegante; os joelhos, os tornozelos, os ombros, eram extraordinariamente delicados. Fina de cintura possuía um peito, umas ancas e umas coxas vigorosas. A sua pele, sob a luz dos projectores, apareceu de uma inverosímil brancura no momento em que saltou. Oliver, involuntariamente, soltou um grito de alegria e encantamento. Nalgumas braçadas, foi ter com ela que, ofegante, emergiu.
- Está frio, vou-me deitar. - declarou Donca, sem fôlego.
Ele nadava a seu lado, fazendo uma longa braçada emquanto ela fazia três precipitadas.
- Já ? Já ? Está tão bom aqui...
- É preciso levar Donca para ela fazer ó ó. -Sim, vou levá-la, mas primeiro, é preciso mergulhar.
- Não, mergulhar, não.-respondeu ela, nadando, sem respiração - É sempre a mesma coisa, não sei mergulhar. Como se faz para mergulhar?
- Vem !
Era um problema que se punha desde a permanência deles em Rhodes.
- Hoje vais mergulhar. Tu és corajosa, vamos. Só tens que ter confiança em mim. Só tens que te fazer pesada e deixares-te ir, mais nada... até ao fundo. Eu seguro-te, fico a teu lado. É preciso ter os olhos abertos. Vem comigo.
Donca, criada numa viela miserável de um bairro de Bucareste, tinha um medo horrível da água e de todo o desporto. Montava a cavalo, sim, nadava, é verdade, porque era preciso, mas detestava tudo isso. Teria lutado, só contra um esquadrão de cavalaria e teria feito coisas semelhantes na sua mocidade oprimida, tinha mesmo, nessa noite, provocado e vencido Hollywood: mas na água era cobarde.
- Só deixar-me escorregar, mais nada ? - preguntou ela, aflita. Mais nada ? És bem inglês!
- E tu, cigana medrosa ... vá! - respondeu Oliver sem suspeitar sequer da expressão altiva da sua boca.
- Bem, vamos. - respondeu Donca, raivosa.
O coração batia-lhe furiosamente. Deixar-se ir até ao fundo, pensava ela, até ao fundo ! Talvez houvesse lá no fundo, debaixo do terror que a possuía, novas sensações a descobrir. Deixou de nadar. A água fez um grande murmúrio nos seus ouvidos, Donca sentiu-a fechar-se sobre si. Então, longa e lentamente, meteu-se nesse murmúrio. De-súbito, sentiu que a agarravam; uns lábios buscavam os seus. A custo, abriu os olhos, I Oliver tinha-a nos braços, com o rosto muito perto do seu, modificado pela refracção da água, mas belo, calmo, com um sorriso nos lábios muito fechados. Era um rosto novo, desconhecido, cheio de mistério - o rosto do seu amante. Os projectores mandaram os seus raios até lá,
ao fundo da piscina. Donca sentiu um estranho bemestar. O coração batia-lhe num ritmo forte e livre. Depois subiram, estreitamente apertados um contra o outro, mais leves, cada vez mais leves, mais leves ... até que os seus olhos reencontraram o ar.
- Foi bom ? - preguntou Oliver.
- Foi bom ! - respondeu ela, retomando o fôlego. E quando Donca, mais tarde, muito mais tarde, se
recordasse de Oliver, seria sempre nesse momento em que ela pensaria, nesse mergulho e nesse regresso à superfície entre os seus braços, como no mais alto grau de felicidade que jamais atingira na vida.
Muito cedo, Wang, o criado chinês, encontrou a casaca de Oliver estendida na areia húmida de orvalho, do pórtico. Apanhou com os dedos afilados as peças espalhadas do fato de gala de Mr. Dent e, rindo, foi entregá-las a Applequist. Este nem pestanejou. Dirigiu-se compassadamente para a copa, onde, ao pé, na cozinha, reinava Ilonka, a cozinheira húngara, artista de grande linha, magra e prodigiosamente histérica. "Pequeno almoço para dois". -disse ele num tom que excluía toda a espécie de observações. Manuela, a criada de quarto espanhola, sentada, com os joelhos afastados e as duas mãos em redor da sua caneca de café, fez ouvir um assobio. Extraordinariamente ordinária, silenciosa mas cheia de força e de sensualidade, era a preferida de madame Moresco. Passado um momento, apanhou com o índex as pantufas que tinha deixado cair, calçou-as e subiu ao primeiro andar. "-O correio."-segredou-lhe Applequist, entregando-lhe um cesto mexicano cheio de cartas.
- Já estão levantados ? -preguntou Manuela. Applequist encolheu os ombros. Havia um grãozinho de reprovação neste gesto ... Preparou os cigarros ingleses e abriu a janela. Um sol prateado irrompeu. Sob esta claridade, Applequist piscou os olhos e desceu. Manuela, com as mãos cheias de cartas, parou, contendo a respiração, para ver o que se passava. No primeiro quarto, nenhum ruído. No quarto da senhora, reinava também o silêncio, mas um silêncio diferente, cheio de movimentos e respirações, como o seu faro revelou a Manuela,
Não tinha inteligência, mas instinto. Refugiou se na sala de banho, em plena confusão, com os frascos abertos. Soltou um suspiro; perfumes, toalhas molhadas juncavam o chão. Era uma espécie de desordem peculiar aos homens. Manuela pôs-se a arrumar. Do segundo quarto, situado na extrema direita do corredor, saiu Tacus com os olhos lacrimosos. Não podia habituar-se à luz da Califórnia e sofria de uma conjuntivite crónica.
- Ela já está acordada?-inquiriu, sem falar, com um leve sinal de cabeça.
- Vá ver. - respondeu a criada, insolente - Deus tinha colocado, há muito tempo, a inimizade entre eles. Ela encontrou o pijama de Donca a um canto. Estava roto, pô-lo no braço e levou-o para arranjar, Tacus remexeu um momento dentro do cesto das cartas. Tinha boca móvel e lábios de macaco, grossos e expressivos. O correio pareceu não o contentar. isto vai outra vez torto". - pensou, reflexão que se relacionava com a vida pecuniária de Donca. Desceu a escada arrastando as velhas alpercatas cinzentas e foi para a praia até à beira-mar, até ao sítio em que a água trazia algas e limos. Sobre os postes, entre os quais uma corda estava estendida para dar aos banhistas um ponto de apoio contra as duras vagas do Pacífico, grandes pássaros pousavam: eram pelicanos. Sobre cada poste, via-se um pelicano, e cada um deles se parecia com Tacus. Gaivotas, em pleno voo, rodopiavam em redor das águas, como acrobatas no circo. "Tudo isto vai a trouxe mouxe..."- pensou Tacus -Tinham casas, terras, um rancho, e tudo estava cheio de hipotecas, cujos juros não chegavam mesmo a pagar... Cinco criados, dois carros bons... e dívidas no homem da hortaliça. As esmeraldas verdadeiras foram vendidas, e a cópia, em vidro, custou ainda assim dois mil dólares... dois mil dólares que não tinham sido pagos. Havia dois anos que não aparecia um contrato: desde o princípio do sonoro que Donca Moresco se tinha tornado inútil. E o professor de dicção, com quem tinha trabalhado desesperadamente durante dois anos, três horas por dia, aprendendo a respirar, a falar, a formar as sílabas, como uma criança, o que se lhe tinha pago! E a cura para ficar como nova,
num sanatório misterioso da Suíça ? E a viagem à ilha de Rhodes? E os homens, em geral?
Coisa estranha, tudo quanto Donca, essa pródiga, empreendia, custava caro. Tacus ao mesmo tempo que olhava para os pelicanos com os seus olhos irritados de sedentário, fazia o balanço. Casamentos: cem mil rés! Divórcios: trezentos mil! Um grande amor: um milhão. Oliver Dent, milionário, embora não tivesse senão vinte e seis anos, não tinha ainda dado a Donca senão uns pequenos elefantes para a sua colecção. Nem ela aceitaria outra coisa. Eram elefantes de toda a parte do mundo, alguns preciosíssimos. Havia agora uma vitrina cheia de elefantes. Tanto melhor! Mas, na próxima semana, o rancho de Myrthle Valey, ia ser vendido em leilão. Donca tinha-se arruinado com Oliver: festas em Paris, orquestras de zíngaros, dançarinas indus, uma casa em Nápoles que, na realidade era um palácio, seis meses alugado para lá estar uma semana com ele. Um iate para ir a Rhodes. "Não tenho cinco reis - declarou ela no regresso - mas valeu a pena." - Tinha de vez em quando ataques de economia ainda mais desastrosos que a sua prodigalidade. Uma vida de cão em Paris, do hotel para uma pensão de família cara, desta para uma barata, e daqui para uma absolutamente miserável. Tacus resmungava os seus desgostos ao ar morno. Quando os negócios de Donca não corriam bem, tratavam-no mal a ele. Ora agora, a situação parecia desesperada. Por trás da casa, a costa erguia-se, amarela e abrupta, coroada de espessas palmeiras. Um pelicano bateu pesadamente as asas, mas continuou quieto. Tacus voltou à cozinha, furioso.
- A senhora não tem força de vontade. - lamentou-se Ilonka, meditando sobre a ementa - É difícil cozinhar para uma senhora que quere ficar magra e não tem força de vontade.
De revés, Ilonka vigiava o chinês que queria obrigar a comer um tomate cru. Os chineses perdem toda a energia com o seu eterno arroz - isto era, pelo menos, o que Ilonka pensava, ela tinha de vez em quando, para o pessoal, solicitudes de mãe.
- bom ; outra vez peru. - gemeu ela - Podem comer-se pratadas sem engordar.
Na sua expressão, a resignação reúnia-se ao descontentamento. Sonhos de folhas de vinha, recheadas, guisados em bom molho, goulache à Szegedin, choucroute feita em gordura de pato, eram acepipes que morriam insatisfeitos no seu cérebro.
E depois, ela tivera uma paixão infeliz pelo chauffeur antecedente que tinha saído por sua causa. Mayer também era um belo homem e instruído, pelo menos Ilonka assim o considerava. Mas Mayer passava as noites de folga a tratar da mulher doente.
- Uma casa levada da breca, não é verdade Applequist ? - disse Tacus ao criado de mesa que entrava Applequist, muito orgulhoso para responder e. muito delicado para ficar calado, fez que não ouviu. "Sim, sim, sim," suspirou Tacus, dirigindo-se para a geleira de onde tirou garrafas a fim-de preparar um cocktail. No hall, o telefone soou.
Justamente nesse momento, Donca acordou por completo. Estava já havia um longo momento quási desperta, sob o véu leve de um sonho. Tinha, nessa sonolência, sentido os seus próprios membros, e percebeu nitidamente que Oliver estava a seu lado. Abriu os olhos. Perfeitamente, ele estava lá e respirava. As cortinas, de um cinzento-rosado, coloriam a luz. O quarto estava inundado de ar marinho; ouvia-se o Oceano, poderoso ainda mas mais meigo que durante a noite. Donca sentou-se cautelosamente para não acordar Oliver e olhou-se no espelho que ocupava, ao pé da cama, quási metade da parede. "Não estou mal" pensou. Não dormira muito mas tinha os membros repletos dessa pésada frescura que se segue a uma noite de felicidade.
Oliver, durante o sono, havia-se afastado dela, estava como de costume, deitado para a direita. Tinha uma forma de dormir absolutamente infantil: a almofada fechada nos braços, os joelhos subidos até à boca com um trejeito de ofensa. Donca ria de-vagar, porque as mãos dele, no sono, se agitavam como patas de um cão que sonha. Aproximou os lábios entreabertos desses cabelos
de um loiro prateado, impertinentemente claro, esses cabelos brilhantes que não conheciam tinta. Tinham sempre um cheiro a macela, esses queridos cabelos uma essência feita expressamente para eles. Donca aspirou profundamente esse delicado amargor; isso tornava-a feliz, tão feliz que se sentia prestes a estalar!
- Pertences-me. -murmurava ela -Oliver Dent pertence-me. - pensava. Oliver Dent, o nome todo, tal como aparecia nos cartazes e nos reclamos luminosos. Na realidade, o seu nome era Edward Drake, era da família desses Drakes cujo avô proferiu o famoso discurso de Setembro na Camara dos Lords e cujo antepassado tinha tomado parte na derrota da Invencível Armada, no reinado de Isabel de Inglaterra, Outros, no cinema, tinham que mudar de nome porque o seu era muito vulgar. Pois o dele era demasiado distinto. Ela, Donca Moresco, não o tinha mudado, tinha continuado Donca Moresco toda a vida. Tomava a responsabilidade do seu nome, da sua idade, das suas primeiras e leves rugas, do seu sotaque romeno, da sua má reputação, do seu extravagante passado, de todas as loucuras que cometera e que cometeria ainda. Tornou a mergulhar na contemplação do rosto adormecido de Oliver. Tinha as pestanas tão loiras como os cabelos, mas tão longas e tão espessas que pareciam mais escuras. Ensombravam-lhe os olhos fechados. Ficou estranhamente surpreendida e aflita por encontrar duas linhas finas nas comissuras da boca amuada, maravilhosamente desenhada. Reflectiu sobre isso. "Qualquer coisa ... ou alguém... deve ter-te feito mal..."
Pensou: "Ninguém te conhece assim e uma nova onda de felicidade inundou-a, essa vaga de felicidade que animava sempre o seu amor por Oliver. "Só eu! Só a mim é que tu pertences assim !
O mundo inteiro conhecia o rosto de Oliver; não havia, do polo Norte ao polo Sul, uma única aldeia onde ele não tivesse mostrado o rosto. Conheciam-no sorridente, sonhador, enamorado, a beijar, na dor, na fadiga, em todas as expressões que o fotógrafo e o realizador tinham podido arrancar-lhe. Oliver havia até representado
de adormecido diante da máquina. Mas dormir, dormir de verdade, ninguém, além dela, o tinha visto dormir. Era por ele que o sabia. Tinha-lhe confessado, numa das suas raras horas de confidências, que nunca se resolvera a dormir com uma mulher. "Só minha mãe me viu dormir... e ela morreu quando eu tinha sete anos." Aquilo tinha acalmado o ciúme furioso que Donca sentia por todas as que ele tinha amado antes dela. Possuía segredos, este Oliver, e às vezes, qualquer coisa de silencioso e fechado. com freqúencia, sentia uma grande tristeza, como certos animais muito belos. E ela imaginava a imagem de um Oliver que tivera amores mesquinhos, insatisfeitos, contactos silenciosos sem comunidade de corações, depois dos quais ele se fechava sobre si mesmo e se afastava. Donca, mulher experimentada, conhecia tudo isto. Ela sabia que, em parte alguma, a solidão é mais profunda que no amor. Ela tinha lutado por Oliver e tinha ganho. Era a única mulher que o vira a dormir.
O telefone voltou a tocar. A escada rangeu, os grandes e ennervantes pés de Tacus desceram. Donca pegou no auscultador. Desta vez, era o controle e antes mesmo que tivesse tempo de desligar, Poulsky estava na outra ponta do fio, Poulsky, o encarregado da publicidade particular de grande número de estrelas. Ela deixou Tacus falar e desligou. Mas, desta vez, Oliver tinha acordado.
Ansiosa, viu-o abrir os olhos e examinar, primeiro o teto, depois o travesseiro que conservava ainda abraçado, até que reconheceu onde estava. Ela sorriu; ele ficou silencioso. "Há uma coisa no mundo que eu detesto : é o Circ". Foram as suas primeiras palavras. Donca desatou a rir. Lembrou-se da véspera, no carro, quando ele estava um pouco ébrio. Mesmo depois do banho, fora ainda rebuscar à copa e tinha feito cocktails.
- Dói a cabeça ? - preguntou ela, trocista. Ele tateou uma após outra, as costelas que, sob o esforço da respiração, se erguiam, e pousou por fim a mão no estômago, justamente abaixo da depressão encantadora do
esterno. Havia aí qualquer coisa de parecido com uma dor, sem o ser verdadeiramente.
- É este malvado estado de que não me vejo livre sem whisky. - acrescentou ele - Donca pegou no telefone e ordenou: "Whisky. Água. Gelo". Oliver ouvia com atenção. Tinha um gosto desagradável na boca. Foi Manuela que veio, mandada pelo tato de Applequist, trazer o whisky. Donca tinha-se levantado para o receber, à porta. Oliver viu-a agir. Sentiu-se melhor logo que ouviu o barulho dos grandes pedaços de gelo, no copo. Donca sentou-se na borda da cama, como para um doente. Ele brincava com o roupão da sua amiga que tinha justamente o tom de marfim da sua pele.
- És tão linda - disse ele - e tão saudável! Havia nestas palavras como que um lamento. Donca não pôde ainda desta vez deixar de rir.
- Pobre Púiú, tão doente, tão fraquinho ! - disse Beijou-o, ele aguentou por segundos o seu beijo, depois afastou-a.
- Estou fatigado. A boca, os olhos, as mãos, tudo está fatigado... - Desta vez, tinha o tom de uma criança amimada. Donca sacudiu-o:
- Ainda estás a dormir, Oliver. - disse severamente.
Ele já tinha acabado o primeiro copo; estendeu-lho vazio e observou a forma como ela o enchia, primeiro com o oiro do whisky, depois com pequenas pérolas geladas de água mineral. "Agora estou melhor. - disse, quando acabou de beber - O despertar é qualquer coisa de odioso".
Donca passeava, cantarolando. Tinha encontrado uma escova em qualquer sítio e escovava os cabelos, mirando-se no espelho da parede. Oliver, que a observava, achou que ela tinha o rosto e o corpo duma jovem camponesa.
- Esta noite sonhei com Bucareste. - disse ele, de-súbito.
Donca voltou-se bruscamente. "Tu ? - preguntou estupefacta - Como é isso possível? Tu?"
- Porque não hei-de eu também sonhar com Bucareste? -censurou ele, teimoso - Também já lá estive uma vez, quando era pequeno.
- Tu, em Bucareste?- exclamou Donca como se isso fosse uma pretensão exorbitante.
- Sim, senhora. Lembro-me muito bem, agora: meu pai fôra transferido nessa época de Constantinopla para Varsóvia e nós dormimos em Bucareste.
O pai de Oliver era diplomata e as recordações de infância de Oliver reportavam-se aos lugares mais variados e faziam passar diante dos seus olhos as pessoas mais diversas, em saltos e em fragmentos, como um filme, até que paravam e se fixavam em Oxford, no Magdalen College.
- Havia uma rua com candeeiros que me parecia feita de prata, percorremo-la de carro, meu pai, um outro senhor e eu. O senhor dava de vez em quando um pontapé ao cocheiro e então, voltávamos para a direita ou para a esquerda; ainda me lembro disto perfeitamente. O cocheiro era muito gordo... ainda sonhei com ele esta noite... era espantosamente gordo, de tal maneira que eu tive medo dele. Creio que não vi nada de Bucareste senão o posterior desmedido desse
cocheiro.
- Era um biryar. - disse Donca sem se voltar - São
eunucos.
- Quê? Eunucos? - repetiu ele, estupefacto.
- São eunucos, sim. É uma seita ... de resto está a extinguir-se. Mas ainda há alguns.
-Essas coisas existem realmente! - exclamou Oliver
em voz fraca.
A lembrança do cocheiro gordo foi tal que sentiu necessidade dum outro whisky. Estendeu o braço para a garrafa. - Vocês têm bonitos costumes, em Bucareste.- censurou.
- E depois ?
- Mais nada. Fomos ao Café, parece-me... ainda lhe sinto o cheiro, sim, exactamente... café e cigarros, ambos extremamente fortes, e depois estavam lá oficiais, belos e delgados... eu gostava de ser assim...
Donca esperou ainda um instante, mas a descrição
acabou. Aproximou-se de Oliver, que tinha os olhos fechados.
- Que idade tinhas tu então? - preguntou ela.
- Mais de seis anos. A mamã já tinha morrido. respondeu sem despertar.
- Foi no Café que tu viste esses oficiais, não é verdade ? Então foi no Capsa, na Calea Viciaria. Poderias lembrar-te da rapariguinha que vendia cigarros no Café ? Uma garotita magra, esfarrapada? Certos oficiais eram grosseiros com ela. Tinha quinze anos. Lembras-te?
Oliver abriu os olhos.
- Essa pequena era eu. Oliver continuou silencioso.
- Sim, era eu. - repetiu Donca, cantarolando, como fazia às vezes - Tinha fugido de casa e fui morar com duas raparigas da rua. Elas recolheram-me, por bondade, sabes ? Havia em casa delas uma espécie de tabique e, através da cortina, ouvia tudo quando traziam clientes. Nunca esquecerei o cheiro dessa casa, o cheiro a ácido acético concentrado. Serve para destruir os percevejos, sabes ?
- Donca ... - gritou ele, como se tratasse de a despertar, mas ela continuava em Bucareste.
- Que queres à Donca ? - preguntou com os olhos perdidos na distância - Tínhamos percevejos e então ? A parede ao lado da minha cama estava cheia das suas marcas e cheirava horrivelmente.
- Porque me fazes mal? - queixou-se Oliver, sacudindo-lhe o ombro.
- Porque... porque tudo é tão liso .. porque o nosso maquillage é muito espesso! Não quero nada disto. Quero ser como sou. Quero que gostes de mim como sou. Dez anos mais velha do que tu... com as minhas rugas... Podia ter posto pó antes que acordasses, mas não... quero que me adores com as minhas rugas e as minhas taras.-disse ela brutalmente.
Tinha ido até à janela e, afastados os cortinados, colocou se ao sol como diante dum projector. Oliver sentara-se na cama, e via as linhas ousadas do seu rosto, as suas espessas sobrancelhas, os contornos do seu corpo.
- Sim, sim. - disse baixo - Oh! sim, sim.
Havia momentos em que compreendia o seu irresistível amor por ela. Tudo que a rodeava era bonito e doce. Nada havia de amargo. O telefone tornou a soar no hall, em baixo. Donca não se importou. Aproximou-se da cama:
- Temos que nos levantar, preguiçoso. -disse -Vais tornar-te velho e feio, aqui. Vai tomar o teu banho, lá fora. Depois servem-te o pequeno almoço na pérgola ... e mais uma gota de whisky.
Ela tinha os olhos radiosos de embriaguez. Justamente no momento em que Oliver estendia a mão para a atrair a si, Tacus arranhou a porta com o pé, como um cão.
- Que foi ? - gritou madame Moresco, furiosa.
- Precisas falar ao telefone, é importante. -anunciou, fora, a voz enrouquecida de Tacus. - É importante.
- Ora! Importante! Que é então?
- Nada. Bill Turner quere falar-te. - segredou a voz, do exterior.
Donca ficou um momento petrificada. Soltou a mão da de Oliver.
- Bill ? - disse em seguida - Está bem, vou falar-lhe.
Conservou-se ainda um momento sentada ao lado de Oliver antes de ir ao telefone, mas já não estava a seu lado.
-Ah! Ah! Bill Turner quere falar-me. Sabes o que isto quere dizer?
- Ele ontem estava muito bem humorado. Vai pedir-te para dormires com ele. Ou então oferecer-te um contrato...-"Talvez as duas coisas", conjecturou Oliver, com indiferença.
Assim que pegou no aparelho, Donca deixou de ter os mesmos olhos. Tinha a nuca altiva, hirta ...
- Um contrato! - disse desdenhosamente - Há dois anos que não me oferecem nenhum. É preciso que o paguem bem, desta vez.
Um lemon um "limão", é o nome que em Hollywood dão a um cenário que não chega a bom fim. Desgraçado, sem sumo, espremido, anda de escritório em escritório na secção dos cenaristas, de mão em mão, de cérebro em cérebro, submetido sem cessar a novas personalidades competentes, responsáveis e autorizadas, instaladas no que chamam Front Office da Direcção Geral, e que o chefe recusa sempre como execrável, impossível e idiota. Um lemon é uma história que se modifica e se recusa... que torna a modificar-se e a recusar-se outra vez... que se modifica e se recusa de novo... que se modifica e se recusa até que já não exista nem uma palavra, nem uma idea da primeira versão. Durante mais de seis meses, A Noite do Destino tinha sido um "limão" deste género.
Ao princípio, era um romance bastante vulgar mas de êxito, de um jovem russo emigrado em New-York: Fedor Siolgoubof. Uma revista tinha-o publicado em folhetins; um director de agência lera-o nessa revista. Esse director era um checo de nome Nedruhal, que chamou sobre o romance a atenção do dramaturgo Ralph Chestley... Este fez uma peça e vendeu-a ao director do teatro, C. H. Velkers que a mandou adaptar pelo seu factotum intelectual, Hooper Benson e a representou. Foi um fiasco, mas, no entanto, o romance, tinha tido êxito. Nedruhal foi ter com Bill Turner, director da Phoenix Picture Corporation e convenceu-o a comprar, barato, para um filme, a peça e o romance, e assim se fez. Bill Turner, durante três dias e meio, ficou entusiasmado com o enredo e teve conferências com Sam Houston e o director da secção de cenaristas, Erbacher, e o argumento foi mandado a esta secção para ser afinado.
Uma secção de cenaristas é um prédio, de corredores estreitos e flanqueado por pesadas portas. Cada
porta dá para um pequeno aposento com secretária, rocking-chair e ventoinha. Diante de cada máquina uma rapariga espera que o cenarista tenha uma idea. O cenarista, sentado no rocking-chair, com os pés em cima da secretária, espera igualmente que lhe venha uma idea. A ventoinha faz o seu rom-rom. Há writers, escritores que não saem do escritório e não travam nunca conhecimento com o irmão writer, sentado no escritório vizinho. Há writers sociáveis que se reúnem aos outros e passam a jogar o poker as suas oito horas de serviço. Há outros, espantosamente indiferentes, que não gastam nunca os seus cento e cinquenta dólares por semana. Há outros extraordinariamente ambiciosos... que também não gastam nunca os cento e cinquenta dólares. Há cínicos cuja única preocupação é fornecer, pelo máximo de dinheiro, o mínimo possível de trabalho. Há emfim outros, conscienciosos, que se batem pelo seu argumento, tão seriamente como nenhum artista no mundo o poderia fazer, desesperados até ao suicídio quando não triunfam. Quanto ao manuscrito, deve, antes de constituir uma trama útil, passar por diversas fases como o bicho da seda e ser tratado e vigiado com o mesmo cuidado.
Primeiro, levam-no do seu estado primitivo, a um esquema.
Condensam-no, sob a cómoda forma de um resumo de vinte páginas: a synopsis. Assim, os interessados podem, sem perda de tempo, ler, em breves palavras secas, do que se trata. A synopsis transforma-se em story: história que já não é a original, mas contém modificações destinadas a satisfazer o gosto do Front Office, a censura preliminar, as estrelas de que se dispõe e o desejo de agradar a cinquenta milhões de espectadores. A partir desse primeiro estado, elevam-se nuvens, produzem-se atritos, brilham os primeiros relâmpagos. Querem fazer duas coisas: primeiro, realizar um belo filme, depois, ganhar muito dinheiro. Uma não exclue necessariamente a outra mas... às vezes acontece. O que torna o êxito inteiramente incerto e impossível de prever é precisamente o facto de, às vezes, os bons filmes triunfarem e os maus não triunfarem, e outras, os maus agradarem e os bons
não agradarem, outras, filmes caros com vedetas caras não darem nada, emquanto que filmes baratos com estreantes desconhecidos, fazerem sensação, o que acontece às vezes; mas o contrário sucede muito mais. Por isso, nada se pode prever, absolutamente nada, e só meses depois da estreia é que se sabe a pouco e pouco se o filme triunfou. São estes os factos que, desde princípio, tais como um leve nevoeiro de histeria, rodeiam o nascimento do manuscrito e à medida da projecção, se metamorfoseiam em convulsões e em psicose colectiva.
A história, a story, é então dividida em pequenas cenas e toma o nome de treatment. O treatment é posto ao jeito da câmara pelos técnicos e transforma-se em continuity. A continuity é confiada ao metteur-en-scène que, em Hollywood, se chama director. Ele tem acessos de raiva, rejeita tudo, e por fim é o seu trabalho que constitue o cenário, quere dizer, o que, no final, será realizado.
Aqui está qual é a evolução complicada mas, de qualquer forma normal, do cenário. Pelo contrário, quando se trata de um "limão" de um cenário nascido sob uma estrela má tal como A Noite do Destino, o manuscrito segue um caminho difícil, em ziguezague, para voltar sempre, como um boomemng para sobre a secretária daqueles que nele trabalharam antes.
Foi assim que, durante mais de oito meses, esse cenário errou à aventura, transpondo em saltos irregulares do escritório 768 para os 734, 193, 742, 856, 872, 834 e 751. Começado por James W. Simon, os cenaristas Mário Nesrnith, Parker Reeves, Harry Crevens, Mabel Calhoun, Walter Robinson, Harryman S. Lewis e Piotr Kvastchenko haviam gasto os dentes a aperfeiçoá-lo.
Aproximadamente no quarto mês da sua existência, o manuscrito tinha emfim chegado a um ponto quási satisfatório. Mas, justamente nesse momento, a Phoenix Picture Corporation teve arrelias com William Williams, a vedeta que devia representar o principal papel, o do revolucionário russo. Williams faltara; tinha-se contratado na Pacific Company, o que não era muito leal... e desde esse dia, A Noite do Destino não tinha
deixado de se tornar pior até que se sumiu sem ruído, É certo que, em qualquer parte, ainda se debruçava sobre ela um principiante de sessenta dólares, um russo que ainda não sabia bem o inglês e que nem sequer possuía dactilógrafa. Mas isto não tinha a menor importância e só servia para ocupar aquele indivíduo a quem, a-pesar-de tudo, pagavam. Às vezes, viam-no errar, melancólico, absorvido pelos seus pensamentos, roendo as unhas através das ruas numeradas e asfaltadas do estúdio, sempre ao sol, mesmo quando o calor era ardente, pois sofria do peito. E quando o chamavam, sobressaltava-se.
- Alo, Petr, que há de novo ? (Chamavam-lhe Petr, pois o seu verdadeiro nome russo era impossível de pronunciar).
- Obrigado. Trabalho no meu cenário, um assunto magnífico, tirado da revolução russa. Compreende ?
E aqui está o que convém saber sobre os cenários em geral e sobre A Noite do Destino em particular.
Na manhã seguinte à estreia de Cardogan, Bill Turner chegou ao estúdio uma hora mais cedo que de costume. O porteiro, logo que fez entrar o seu automóvel, precipitou-se para o telefone para avisar o Front Office que Bill já lá estava. Mas as duas dactilógrafas, Ruth e Mabel, preparadas para surpresas deste género, estavam no seu posto, e acolheram o chefe com o seu mais encantador bom-dia. Bill inclinava-se para o pessimismo mas apreciava muito o optimismo... nos outros. Todos os dias tinha o mesmo prazer em ver o maneta posto como um guarda à esquina da quarta rua do estúdio no sítio que vai dar aos stages, às tomadas de vistas, e que berrava com um imperturbável sorriso: "Está hoje um dia magnífico, não é verdade ?" E todos os dias, Bill respondia: "Está realmente um lindo dia". E subia, um pouco reconfortado, as escadas que levavam ao seu escritório, escadas pouco cómodas, sem elegância, espécie de escadas de incêndio, improvizadas, mais do que construídas, no exterior do edifício.
com um olhar ausente mas de espírito atento, Bill passava em revista o correio que estava nos pequenos cestos rectangulares, de metal, fazia algumas assinaturas, dava
brandamente algumas ordens pelo dictafone colocado no seu escritório e aproximava-se da janela aberta. Em baixo, ficava a primeira rua, com alguns canteiros e algumas mimosas, por trás da qual trabalhava a serra eléctrica da carpintaria. Fazia um ruído infernal, mas Bill gostava disto. Gostava do cheiro da madeira fresca e da serradura, da gama cromática, ascensional e ululante, da serra. Isso ajudava-o a pensar.
Bill era um homenzinho de idade imprecisa, cor saudável e ombros de jogador de golf. Tinha os seus segredos... mas quem os não tem ? Amava Van Gogh, Stendhal e uma rapariga de cabelos ruivos de S. Francisco, com quem não era casado. O seu escritório, havia algum tempo, estava decorado com móveis de aço, desse estilo moderno que espantava os sibaríticos habitantes de Hollywood. Também lá se viam, isso é verdade, dois gigantescos candelabros de igreja, candelabros antigos, de prata, com enormes velas, por baixo das quais a cera se juntava havia dois séculos, formando um colar. Sempre que Bill tinha problemas importantes a resolver, gostava de acariciar essas estalactites e o delicado cheiro da cera dissolvia qualquer coisa no seu cérebro, tornando-o mais claro.
Nessa manhã, acariciou a cera durante três minutos, aproximadamente. Depois, mandou chamar os senhores Houston, Hopkins e Erbacher. Eles chegaram apressados, dando-se o ar de quem vinha de-vagar, cumprimentaram com o à-vontade ruidoso a que Bill os tinha habituado e sentaram-se nos móveis de aço. No meio do aposento, ficava livre um espaço para Bill que, durante todas as conferências, tinha que passear sem descanso.
Hopkins e Houston eram personagens influentes da Phoenix Picture Corporation, velhos pioneiros: Sam Houston, alto, pesado e agitado; Stewart E. como chamavam amigavelmente a Hopkins, gracioso, amável, silencioso e diplomata. Erbacher era menos importante, mais novo. Embora fosse um homem de valor, nunca tinha a consciência tranquila. Isso provinha do facto de ter muitas coisas a esconder. Fizera o seu doutoramento em filosofia
numa universidade alemã, lia o grego com facilidade. Platão era o seu autor favorito. Tinha escrito duas peças de teatro muito distintas, que haviam sido representadas na Europa. Estava, numa palavra, sempre exposto a ver-se considerado em Hollywood como híghbrow, o que era lá muito mal visto. Isto designa uma mistura de ciência, de pretensão, de inaptidão para as coisas da vida prática, quere dizer: orgulho intelectual junto a incapacidade comercial. Embora Erbacher tivesse abandonado o seu título de doutor, escondido Platão, renegado os seus escritos e reorganizado brilhantemente a secção dos cenaristas, ficava-lhe ainda qualquer coisa de suspeito na rede de rugas da sua fronte. Sentava se nas bordas das cadeiras, vigiava-se a si próprio e o lábio superior humedecia-se-lhe às vezes de finas gotas de suor, como os vidros de uma janela num aposento excessivamente aquecido.
- Meus filhos, - disse Bill passeando ao longo do aposento, com impetuosidade - vai ser preciso modificar umas pequenas coisas. Primeiro, temos As Pedras Mi liarias. Deviamos começar essa filmagem aí a... vamos... a 10 de Junho. Um pouco de paciência, Sam. Temos ainda o negócio Ria Mara.
Stewart E. fez uma cara que queria dizer: temos ainda alguma trapalhada com Ria Mara?
- Sim. - respondeu Bill, sem esperar a pregunta Ria arma sarilho, e é natural, depois de a termos deixado cair como fizemos ontem. Sim, nós deixámo-la cair. Eu deixei-a cair... e sei o que fiz. Acho que ela foi lamentável em Cardogan, absolutamente lamentável e afectada e que o público está farto dela. Nós tínhamos sobre ela uma opção, por cinco mil dólares semanais. Pois bem, não quero pagar tanto por esse disco arranhado, de gramofone. Ela telefonou-me esta manhã para casa...
- É possível ? - exclamou Sam, estomagado, pois a casa de Bill era considerada como um santuário em que a paz nunca devia ser perturbada.
- É facto. Queixou-se dos nervos e declarou não saber se estaria em estado de trabalhar com Oliver. Tranquilisei-a. Repouso, precauções. O diabo é que ela
devia trabalhar com Oliver... Mas também, ela tem trinta e cinco anos; quando a vemos só, parece ter vinte e sete, mas ao lado de Ol aparenta sessenta e dois... Vamos contratar Peggy para Às Pedras Miliárias.
- Esse bebé ?
- Exactamente. Quando elas são novas não sabem fazer nada; quando sabem, estão velhas. É sempre assim. É preciso um pouco de prática, aperfeiçoamento e publicidade. Penso que, num mês, sou capaz de fazer qualquer coisa dela. Cortamos-lhe o papel, arranjamos as coisas para pôr Oliver ainda mais no primeiro plano. Oliver é o trunfo que é preciso valorizar. Ol sempre em primeiro plano. Sam, querias dizer alguma coisa ?
- E achas que se pode deixar Oliver sem fazer nada durante um mês inteiro? É preciso pólo a trabalhar o mais de-pressa possível. Já teve férias de mais. É uma coisa que não lhe faz bem.
- Não lhe faz bem ... Vai-te instalar numa ilha deserta com a Moresco e tu verás se te faz bem.
- Não é em Donca que penso... É preciso fazer com que Oliver beba menos.
- Caluda! - repreendeu Bill olhando à sua volta, como se o público tivesse podido penetrar até ao isolamento sagrado da sua conferência. Oliver não bebe. Se as mãos lhe tremem às vezes é porque ele faz muito training, toda a gente o sabe.
Erbacher fez-se ouvir:
- Tive uma estranha conversa com Oliver Dent. Ele é muito ingénuo para saber exprimir-se, mas, sob a sua radiosa aparência, há uma espécie de lassidão, parece que está estalado. Se bebe, é para ganhar coragem. É novo e já teve tudo. Muito sucesso, muito amor, muito prazer. Está fatigado, saciado, de tal maneira que é quási uma doença.
Erbacher calou-se, com um pouco de fino suor no lábio superior. Houve um silêncio embaraçoso, como depois de palavras absolutamente deslocadas. Erbacher, convencido de que seria sempre um estranho naquele meio, tirou um lenço que, para cúmulo de infelicidade,
estava impregnado de um perfume muito efeminado, e limpou os lábios.
- Então, meus filhos, - continuou Bill sem prestar atenção às palavras infelizes de Erbacher-a primeira coisa a fazer é arrancar, durante o próximo mês, qualquer coisa de sensacional. com Cardogan, estabelecemos um record, é preciso de futuro continuar a manter os negócios à mesma altura. O que podemos fazer...
- Infelizmente as sensações não nos nascem na palma da mão. - observou Steward, olhando a palma da mão como se realmente esperasse ver sair de lá qualquer coisa.
- Parece-me que Bill já tem a sua sensação preparada. - resmungou Sam - Terás tu algum filme para Donca?
Bill lançou-lhe um olhar rápido; sentia-se um pouco vexado pelo seu velho companheiro de lutas lhe estragar um efeito. "Pensei que vocês me ajudariam" - disse ele dirigindo-se aos seus candelabros.
- Marquei uma entrevista à Donca, às duas horas. Também desejaria tirar-lhe algumas fotos para experiência.-E pôs-se a acariciar a cera dos candelabros. Tinha preocupações, preocupações muito maiores do que mostrava. Depois, o ambiente típico das conferências de negócios estabeleceu-se. Os três homens encostaram a cabeça à mão ou escrevinharam pedaços de papel, ou brincaram com a fivela do cinto. De vez em quando, um deles soltava um suspiro, murmurava algumas palavras sem sequência e retirava a sua proposta antes mesmo de a ter expressamente formulado. Ao pé da janela, pacientemente, Bill ouvia o ruído da serra.
- Algum de vocês se lembra ainda dessa coisa russa... A Noite do Destino ? - preguntou ele por fim.
Erbacher, o sonhador, estava maravilhosamente ao corrente de tudo o que se relacionava com a secção por ele dirigida. Fez uma rápida descrição do assunto e lembrou que um russo ainda trabalhava nele. Soube mesmo pronunciar o nome desse infeliz: Kvastchenko, e propôs mandar vir a synopsis.
- Tenho-a aqui, - disse Bill com ar natural - e reli-a
esta noite. Se lhe meterem um writer capaz, emfim... vamos... James Simons fará, certamente disto em setenta e duas horas, um manuscrito capaz... Creio que será possível. É um assunto russo, Donca pode conservar o seu sotaque e cantar em voz de baixo tanto quanto quiser.
Erbacher tinha-se levantado para pegar nas folhas dactilografadas, amarelas, que o seu director lhe estendia.
Desolador de secura e de regularidade, com o seu número de ordem e a margem prescrita, o manuscrito, colocado nos joelhos, tinha bem mais o aspecto de um requerimento que de uma obra literária.
- vou ver se o Simons está cá. - disse ele timidamente.
No imenso formigueiro que era a secção dos cenaristas, James Simons era a formiga mais bem dotada, mas também a mais preguiçosa.
- Foi esta burrice que encomendamos o ano passado a William Williams? - preguntou Sam Houston lembrando-se a custo do que se passara vários meses atrás. Havia qualquer coisa de fantástico nesta reaparição de projectos e assuntos caídos no esquecimento.
- É preciso que Simons tire daqui um papel de mulher, um papel para a Moresco. Acho este assunto admirável.
- É um assunto idiota... mas para Donca, uma coisa assim é que é preciso. Donca com zibelinas, Donca com botas, Donca num palácio, Donca nas barricadas. É isto, não é, Erbacher? Precisas de te pôr ao facto. Tu é que vigiarás a produção... e será uma produção à altura. - declarou Bill com energia.
Erbacher, que sabia de cor todos os manuscritos que passeavam pela sua secção, pôs-se logo a contar o enredo. Conhecia a antipatia dos membros da direcção pela leitura de manuscritos.
- A história é esta: Tatiana é a jovem esposa do príncipe Gregorievitch, o chefe cruel e brutal da polícia secreta de S. Petersburgo.
- Que idade ? - murmurou Stewart E.
- Então è que o príncipe é chamado a S. Petersburgo
onde os primeiros movimentos revolucionários acabam de se declarar. Tatiana ficou no campo, num pequeno castelo, não longe da cidade. O Neva, vidoeiros, terraços, etc. Durante a noite um homem refugia-se no seu quarto, um revolucionário fugido da prisão. A polícia vem procurá-lo. Tomada por uma súbita piedade, ela oculta-o na casa de banho. Emquanto ela entretém um pouco os policias, o rapaz, que se chama Akim, se bem me lembro, corta a barba e veste o roupão do marido. Ajudado por Tatiana consegue, com a sua habilidade, desnortear a polícia fazendo-se passar pelo príncipe. Os agentes saem de casa e os dois jovens ficam sós. Um amor violento liga-os um ao outro. Depois, é a noite de amor.
- Que não há-de ser noite de amor, mas de aborrecimentos com a censura. - murmurou nessa altura Sam Houston.
- De manhã, Akim continua a fuga deixando a Tatiana um anel com um sinal secreto que deve servir para a proteger em caso de revolução. A vida continua. A sociedade de S. Petersburgo dança sobre um vulcão. Revolução. No meio de uma festa sumptuosa, os revolucionários irrompem. O príncipe e sua mulher são presos e condenados à morte. E depois ... - disse Erbacher que estava farto da história e das suas negras cores - pode continuar como se quiser. Akim encontra Tatiana na prisão ou então ela vai ter com ele e ele salva-a ... Ou então ele foge com ela ... ou então impede a sua execução no último minuto. Pode acabar bem e eles passarem a fronteira, ou acabar mal e serem fuzilados, ambos, ou ele, ou então ela terá um filho, um filho de Akim. Grande cena para a Moresco. Os finais que acabo de enumerar já estão todos redigidos.
Parou bruscamente, tirou o lenço perfumado e limpou o lábio superior. Sentia uma vergonha lancinante cada vez que tinha de contar um argumento de filme, e, no entanto, esse era o seu emprego.
- Parece-me que este será um assunto espantoso.
- disse, emfim, Stewart E.
Bill, ao microfone, disse:
- Quero falar ao sr. Simons.
- O sr. Simons não está. - respondeu a dactilógrafa um minuto depois.
Erbacher suspirou. Bill olhou para o relógio de pulso.
- Preciso, para daqui a dez minutos, quando Donca chegar, de uma boa cena deste filme. Deixo-a entusiasmar-se e farei em seguida algumas fotografias.
Erbacher tirou a caneta do bolso e começou, sem mais demora, a gizar um diálogo no verso das folhas amarelas. Piscava os olhos, ao fazer isto, pois era muito míope mas não queria usar óculos, com medo de parecer um intelectual.
- Como se chama o tipo que embrutece agora a trabalhar neste manuscrito?-preguntou Bill, impaciente.
- Kvastchenko. Um estreante. O seu manuscrito está em russo. - respondeu Erbacher, desolado.
- Bem. Ele que traga o manuscrito. Eu sei russo... melhor que inglês.
Assim acabou a carreira de James Simons e assim começou a carreira de Piotr Kvastchenko. Assim começou a produção do grande filme A Noite do Destino, com Donca Moresco no principal papel.
Em meados de Junho caiu sobre Hollywood o que os jornais chamaram "a vaga de calor mais terrível dos últimos trinta anos". Afirmação difícil de verificar num lugar que não tinha ainda trinta anos de existência. O céu, já transparente, empalidecido pelo excesso do sol, desaparecia inteiramente no zénite dos caminhos sem fim e dera lugar a um ar leitoso e perturbado, de onde caía um calor seco. Um pequeno dirigível prateado, ornado de um reclamo qualquer, planava sobre a imensa cidade, como um peixe num aquário sujo e muito quente,
O asfalto da rua amolecia e dele surgiam miragens: os motoristas julgavam vê-lo molhado, coberto de poças de água, pequenas lagoas que, à sua aproximação se dissolviam em ar quente e fremente. As uvas amadureciam, mas as flores secavam, com excepção da multidão tenaz de gerânios vermelhos em todas as colinas e de girassóis selvagens e altos que davam um aspecto ainda mais queimado às vertentes secas das montanhas. E, emquanto na rua, as congestões se multiplicavam, trabalhava-se nos estúdios, onde trinta e cinco sunlighs iluminavam e aqueciam conscienciosamente a cena. A produção das Pedras Miliárias tinha sido demorada um pouco, emquanto A Noite do Destino avançava. No terreno da Phoenix Picture Corporation, demoliram Notre Dame e construíram S. Petersburgo, edificaram, com equipas dobradas, dia e noite, as margens do Neva, Schlússelbourg e o Palácio de Inverno, entre uma viela mal afamada de Marselha e a selva de um filme de Bornéo. No pequeno palco de ensaios, Eisenlohr manejava os actores, paciente e fanático como um íaquir, para preparar, limar, triturar a acção antes de passar para a câmara. Cheirava a cola, a poeira, a suor. O ar entrava em golfadas, mortífero como um metal em fusão provindo de um outro planeta. Eisenlohr tirou o casaco, depois a camisa, em seguida o pull-over de seda. Nu até à cintura, representava as cenas principais. Donca Moresco, sentada a um canto, ia vendo o que queriam conseguir dela. Estava carregada de faíscas como um felino em caça. Era o seu primeiro papel falado. Todo o seu futuro estava em jogo.
Esta Noite do Destino decidiria se uma ascensão nova lhe estava reservada, se teria influência, dinheiro, êxito - ou se voltaria, definitivamente e sem esperança, às trevas da esterilidade. Era um duro, um terrível combate que tinha a sustentar. A sua voz, a sua língua, a sua mímica, tudo era muito alto, muito forte, muito expressivo. Cinema antigo. Pertencia ainda à época dramática dos grandes gestos, das explosões, tinha aprendido a sublinhar os ódios, o amor, o desespero-a sublinhar tudo. Agora - era preciso que ela se habituasse -: tinha
apenas que sugerir. O olhar, o olhar humano, uma palavra interrompida, um frémito de mão, menos do que isto... de um dedo... era tudo quanto permitia esse novo instrumento: o cinema sonoro. Eisenlohr, com as duas cicatrizes em ziguezague que lhe tinha deixado na omoplata um estilhaço de granada, parecia um demónio. De manhã, chegava barbeado, saido do banho, mais civilizado que ninguém. À noite, tinha o queixo azul e estava sujo da cabeça aos pés: um verdadeiro diabo, de cabelos eriçados, trabalhando com fúria, como um louco, durante catorze horas seguidas, o que não estava de acordo com o seu contrato. Madame Moresco trabalhava sem descanso. Era uma alma obediente entre as dores criadoras do purgatório.
Oliver, durante esse tempo, estava de licença. Era para ele uma época singularmente aborrecida. Dizia várias vezes ao seu secretário que se queria ir embora, para qualquer parte, pescar trutas, mas não se podia decidir a partir. Esteve mesmo adoentado durante três dias. Meteu-se na cama e recusou se a falar fosse com quem fosse. A grande casa espanhola de Beverley Hill tornou-se muda ao mesmo tempo que ele. O cozinheiro italiano, no rés-do chão, deixou de cantar as suas melodias... também ele tinha tido, ao princípio, antes de as meter no fogão, as suas ambições cinematográficas... O criado preto, Dan, errava, rolando os olhos brancos, procurando consolação numa pequena bíblia velha. Jerry, o secretário, sentado, no quarto, contemplando as cem mil luzes que planavam de noite sobre Hollywood, não podia deixar de chorar. Jeny era terno e feminino, o menos indicado possível para o cargo de secretário de uma vedeta, com a sua cara de rapariga e uma pulseirinha no pulso delgado. Só tinha uma qualidade : ter sido educado no Magdalen College, como Oliver Dent, na época em que se chamava ainda Edward Drake. Podia falar com ele no calão de Oxford e mais nada. Além disso, estimava Oliver, desde a infância, com um amor oculto, confuso e desastrado. Toda a gente, de resto, estava apaixonada por Oliver; mesmo em casa, rodeavam-no de uma pegajosa simpatia que lhe
estragava o feitio. Era amado sem poder retribuir. A casa inteira estava muda, caminhavam em bicos de pés, desolados. Isto tornava-o furioso. Até tinham proibido aos cinco cães de ladrarem no canil. O próprio automóvel descia a encosta da entrada em roda livre, para evitar barulho.
Assim que os jornalistas farejaram a sua ligeira indisposição, o que aconteceu ao fim de trinta e seis horas, Oliver tratou logo de se levantar, curado. Teve uma curta conversa monossilábica, a sós, com Bill Turner.
Que tinha ele ?
Nada. No fundo, nada. Nada senão a sensação de ter algodão na cabeça em vez de uma substância apropriada. Estava ali, queimado pelo sol, com os seus olhos claros, sólido e belo - o ideal que os rapazes Sonhavam imitar.
Bill recomendou lhe uma boa cura de disciplina. Disse que, muitas vezes, não tomar álcool durante algum tempo, dava resultados maravilhosos.
-Acho também que é uma excelente idea ir para qualquer parte pescar trutas. Adeus, meu rapaz...
Oliver subiu, resmungando, para o automóvel e partiu. Corrida louca, ao acaso, sem finalidade, através de Hollywood, através de Los Angeles, através de horríveis ruas repletas e sem fim, através do bairro chinês, do bairro negro, diante do Stadio, através de bairros, de campos de petróleo, ao calor ardente e fremente das ruas asfaltadas que não o levavam a parte alguma.
Era Donca que lhe faltava. Eles tinham-lha tirado, a sua boémia, a camponesa que amava e o tratava mal. As cenas que ela lhe fazia, os beijos que ela lhe dava. O seu riso, a sua respiração! O acre atractivo do seu passado reles, a linha dos seus ombros onde gostava de adormecer tranquilo, como junto de uma doce mãe. Mas essa que aparecia durante uma hora breve e tardia, era uma estranha, uma mulher exausta, de olhos desvairados, mãos aborrecidas, com duas rugas profundas nas comissuras dos lábios, que se queixava asperamente de Eisenlohr e da dificuldade de pronunciar o "th" inglês. Já não era Donca. Era Donca Moresco, ou Tatiana de
A Noite do Destino, a menos que não fosse simplesmente a evocação de uma sombra do écran...
Oliver impôs-se, de-resto, uma disciplina severa. Deixou o whisky e bebeu xaropes de frutas, muito doces, que não conseguiam matar-lhe a sede. A impressão do algodão continuou. Sentiu um peso indefinível no esto mago, não doloroso, mas bem mais desagradável. E, ainda em cima, toda essa sobriedade lhe causava uma completa impossibilidade de dormir. Tomou veronal, um bocadinho só. Coisa estranha, o veronal não fez nenhum efeito. Oliver continuou acordado e ouviu os automóveis correndo a toda a velocidade no Sunset Boulevard. Uma noite acendeu a luz, desenhou bonecos em quatro traços e dois círculos até cair de sono, apagou a luz e logo se tornou lúcido. Na obscuridade, telefonou a Donca. Ela ainda não tinha entrado. Foi a voz de Tacus, que ele odiava como veneno, que o informou. Lá ficou, lutando com toda a força contra a idea de descer e preparar whisky; muita soda e pouco whisky. Disciplina. Não se levantou. Continuavam os carros em Sunset Boulevard.
Por detrás das suas pálpebras, uma pequena luz verde aparecia e desaparecia. Passava talvez da uma. Nos outros países, o canto dos pássaros, gorgeando, anunciava o nascer do sol. Aqui, em Hollywood, não havia pássaros senão no inverno. Apenas o canto dos grilos, forte, agudo, sem fim. Já não era amor o que sentia por Donca, pensou revoltado. Apenas nervosismo. Voltou a pegar no telefone. Passaram duas, três horas. Desta vez Donca respondeu.
- Ainda não dormes, Púiú? Que te aconteceu?
- Nada, queria só dar-te as boas-noites. Desculpa-me. É uma loucura, não ?
- De maneira alguma. És muito amável. Boas-noites, meu filho.
- Dorme bem, Donca.
- Obrigado, igualmente.
- Estás muito fatigada ? Nada de novo ? -Muito fatigada. Eisenlohr mata-me. E Williams não é um partenaire para mim... É um manequim para montra.
- Sempre conseguiram que Williams representasse?
- Sim, e barato. Choramingou tanto à porta do palácio de Bill que ele tornou a contratá-lo. Livra! Que idiotazinha, esse Williams... Está furioso porque o papel dele foi cortado.
- Compreende-se. - disse Oliver delicadamente. Esperou uns segundos. - Donca! - chamou com precaução.
- Que é, Púiú ?
- Nada, bem sabes que eu só faço declarações quando estou embriagado. Fazes-me falta, Donca.
- Eu sei, Púiú. - replicou ela docemente. Estava deitada e encostava o auscultador, com força, contra o ouvido, parecia-lhe poder assim ouvir melhor, no silêncio, a respiração de Oliver. - Vejo-te, através do telefone.
- disse ela, rindo com o seu riso leve e grave. Por um instante esteve ao pé dele...
- É noite. - respondeu Oliver que também se pôs a rir - Continuas a não ter tempo para mim ? - preguntou num tom que diligenciou tornar indiferente.
- Uns dias mais. Tu sabes o que é quando a gente começa a estudar um papel. Tu és muito exigente, muito absorvente.. Oliver. - disse ela bruscamente - Eu não filmo há dois anos. Tu não sabes o que isto é. Não sabes o que isto quere dizer. Esses dois anos de Paris.. não, tu não sabes.
Calou-se. Oliver esperou.
- Roga por mim. - disse ela - Daqui a um mês, toda esta história terá acabado.
- E depois ? Assim que o teu filme terminar virá a minha vez e eu serei tão mau para ti como tu és agora para mim. É evidente.
Ficaram um momento silenciosos. Ambos sentiam, de uma forma indefinida e confusa que tudo aquilo era vão. Um filme após outro, um papel depois de outro, gestos, imagens, medo, o sucesso, um êxito, ainda mais um êxito que será talvez o último. E a vida, a verdadeira vida, terá passado, entretanto, longe deles.
Estes pensamentos não os penetravam profundamente. Oliver disse apenas:
- Podíamos ainda ir juntos a Rhodes.
- com certeza, muito breve. Quando o meu filme e o teu acabarem.
Oliver puxou o auscultador e meteu se com éle debaixo dos cobertores; delicada e pueril idea. Já em criança, ele construía assim cazinhas em que se sentia muito bem, pequenas pátrias, à falta da verdadeira, criança órfã, filho dum diplomata escorraçado de país em país, de meio estrangeiro para meio estrangeiro.
- Donca, ainda pensas em Rhodes?
- Sim, com frequência. Muito,
- No dia que passamos em Lindos?
- No plátano da Mesquita de Mustafá. Lembras-te?
- No velho turco que nos mostrou a torre do relógio? Ele estava apaixonado por ti.- Nas casinhas azues de Lindos?
- Havemos de comprar uma, queres?
- Sim ... as casinhas azues, -disse ele, muito quente debaixo dos cobertores, ensonado como uma criança.
Donca escutava. Via-o agora avançando na água esverdeada da baía de Lindos, doirado e belo como uma estátua do Arquipélago. Era único e escolhido como o mais puro dos diamantes. Mais uma vez ela sentia fortemente que um grande amor é qualquer coisa que não volta mais, qualquer coisa de absolutamente raro, de muito precioso, num tempo em que os sentimentos são medíocres e em que se cora das grandes paixões,
- Boa noite. - disse ela - Mando-te um beiJoe
- Boa noite, minha conchinha. - murmurou ele. -As casas azues.. as lindas casinhas azues! Que cor! Se os flamingos fossem azues... seriam azues como as pequenas casas azues de Rhodes... - pensou Oliver. Mas já dormia. O seu secretário cortou a ligação e, quando ficou certo de que Oliver adormecera, apagou a luz do quarto. "-Um homem e uma mulher: como é simples!", pensou ele, cruzando sob a cabeça o braço, demasiado fino.
De manhã muito cedo, Poulsky, o agente de publicidade, veio por causa das fotografias. No jardim, dois homens trabalhavam com a máquina. Tinham até trazido um pequeno projector. Joe Ray, do Publicity Department, veio pomposamente do campo de golf em plusfours brancos, dar as suas ordens. A idea do Publicity Department era espalhar o êxito monstro de Oliver Dent no papel de Cardogan. O intervalo entre esse filme e o seguinte devia estar repleto, bombardeando de informações sobre Oliver todos os jornais do mundo. A Phoenix Picture Corporation estava disposta a arriscar quinze mil dólares neste negócio. Oliver os faria entrar. Ele pagava do seu bolso a Poulsky um ordenado de cem dólares por semana para o seu reclamo pessoal e além disso deitava bastante dinheiro para a direita e para a esquerda como é preciso, quando se é presa do público.
A vida das pessoas de Hollywood tem duas faces : uma real, outra fotográfica. O verdadeiro Oliver Dent fazia, de-resto, o que o divertia, o que convinha à sua existência insignificante de belo rapaz bem construído. Montava a cavalo, jogava o box, nadava, esgrimia; tinha uma casa e um jardim, swimming pool e court de ténis; possuía dois automóveis, cinco cães, um cavalo
- um só, mas de raça mais nobre ainda do que a sua. Dava festas e frequentava clubes, dançava com mulheres, lia na sua rede e dava esmola aos pobres. Tudo isto era natural. Mas ao mesmo tempo era fotografado, publicado, utilizado, tornando-se irreal, perdendo a sua verdade, transformando-se numa espécie de impostura. Faltava-lhe a dor, a baixeza, o mistério, a miséria humana, e assim, a sua vida perdia toda a vitalidade para se tornar às vezes insuportável.
- As pessoas como nós não chegam nunca ao fundo das coisas!- lamentava-se Oliver, incapaz de se exprimir mais claramente.
Donca, muito séria, respondia :
- Sim, somos uns intoxicados, todos... também o sentes? É um vácuo à tua volta não é verdade? Não podes agarrar nada. Ludibriam-te. É como se se tomasse morfina ou cocaína. Podes acreditar-me ... - acrescentava ela, impaciente, vendo Oliver olhá-la com ar surpreendido. Eu sei o que digo, já tive as minhas épocas de morfina e de coca...
- E pudeste deshabituar-te? - preguntava ele inquieto, quási invejoso.
- Posso deshabituar-me de tudo quanto quero. - e com um ligeiro beijo na redondeza do lóbulo da orelha dele, acrescentava : - Mesmo de ti... meu amor.
Nessa manhã, ao bater das sete, Oliver foi acordado pelo seu treinador Nando, um mexicano delgado e musculoso. Era uma parte do regime que Bill Turner lhe tinha tão cordialmente recomendado. Obediente, arrancou-se às profundezas do sonho. Quando se meteu debaixo do duche sentia-se mal disposto.
- Quando se toma veronal devia-se dormir oito horas. - disse ele aborrecido.
- Três horas a saltar à corda fazem desaparecer o efeito. - afirmou Nando.
com a cabeça pesada, Oliver abandonou-se às maçagens artísticas das mãos peludas de Nando. Isso não melhorou o seu estado. Tinham-lhe cortado ao meio um sonho de que ele não se podia lembrar. Não lhe restava nas veias desse sonho incompleto, senão uma sensação ennervada, lancinante, crispada. Barbeando-se com atenção, Oliver percebeu que era desejo de voltar a ver Donca - Pensou, brutal: - "Que o diabo leve as mulheres!" E desceu para o terraço onde o esperava um copo de sumo de pamplemousse. Nando, com as luvas de box suspensas ao pescoço, por uma correia, seguiu-o.
- Tira-me daí esse horrível instrumento. - pediu Oliver, vendo à sua mesa Joe Ray ocupado a chocalhar um lindo shaker de prata.
- É para aqueles que já acabaram o golf e o trabalho.
- declarou Joe - A ti preferimos fotografar-te com o teu
inocente sumo de frutos: isso agradará às ladies da American Women Association.
Oliver lembrou-se que sempre antipatizara com as pessoas sardentas. Ora Joe tinha sardas e o rosto claro, sem, no entanto, ter os cabelos ruivos. O sumo de fruto era detestável. Um homem veio a correr do fundo do jardim, com um cabo, procurando um contacto para o seu pequeno projector. Oliver estava ali sentado, com o seu roupão ante-diluviano que já tinha em Oxford, e que nessa época era vermelho. Jerry
saiu de casa.
- Duzentas e quinze cartas sem contar com os recortes de jornais. - disse ele voltando a cabeça e pondo diante de Oliver vinte que escolheu entre as outras.
Este repeliu-as:
- Não, Nando, primeiro quero aquecer-me.
Havia um autêntico ring ao pé do swimming-pool e um punching-ball, no qual Oliver deu alguns murros sem convicção antes de entrar no ring. O som forte e surdo do coiro divertia-o um pouco.
- bom dia, Charlie, - disse, negligentemente, ao fotógrafo.
Joe Ray proprôs cautelosamente:
- Um pouco de maquillage antes de começar.
- Primeiro, salte. - respondeu Nando, metendo a corda na mão de Oliver.
Oliver saltou molemente com os seus sapatos
de box.
- Comece. - disse Nando, de cronometro na mão. Oliver pôs se a saltar com uma facilidade e uma perfeição maravilhosa. Os seus pulmões e o seu coração trabalhavam como boas máquinas e o suor corria-lhe pelo rosto. Saltou muito tempo, nove minutos, e durante esse tempo, não pensou um segundo em Donca. Dan, o seu criado, trouxe uma toalha e limpou o. Quando Dan ria parecia ter quatro vezes mais dentes que as outras pessoas, e ria sempre, mesmo quando estava triste.
- Agora, cuidado. - disse Charlie muito atento - Pôs a sua máquina em acção no momento em que Oliver avançava para Nando. - Fique um pouco quieto Ol.
- Alto! -ordenou Joe, severo como um árbitro - é preciso maquilhar-se primeiro.
Dan já ali estava pronto, com a sua caixa de maquil lage cheia de batons amarelados. Oliver olhou-os e sentiu de súbito um desagrado semelhante ao que tinha quando era garoto, pelas lombrigas.
- Não, maquillage não - disse ele pondo-se diante da máquina.
- Sem maquillage não fica bem. - objectou Joe com energia - vais ficar com o nariz lustroso como um pepino.
Oliver voltou a olhar para as pinturas. Era completamente ridícula essa impressão de desagrado... mas era um facto. Pôs apenas um pouco de pó no rosto. Charlie lançou a Joe um olhar hesitante. Joe suspirou.
- Acenda! - ordenou Charlie.
E o projector pôs-se a inundar o jardim com os seus raios de sol. Oliver estava em posição de boxeur, ligeiramente tapado pelas mãos enluvadas. Nando já tinha sido fotografado mais de cem vezes em atitude de jogar o box com vedetas. Colocou-se automáticamente de forma a não tapar um centímetro do precioso objecto.
- Ready ? - preguntou Joe, atento - Go! Eram as vozes de comando do estúdio. No momento em que elas soaram, Oliver abriu o seu brilhante sorriso.
Depois disto vieram dois ronds sérios contra Nando. Este jogava com precaução; Oliver dava forte: tinha um esquerdo excelente e sentia se sempre muito feliz emquanto jogava o box. Uma pancada que recebeu no estômago fê-lo empalidecer até aos lábios, mas nem por isso deixou de sorrir. Teve o sentimento de ter encaixado muito bem, sentindo- se espantosamente mal. Nando viu-o dobrar-se ao meio, cambalear, parar, e lamentou ter-lhe tocado. Depois correram ainda em volta da piscina e acabaram por um pequeno desafio de natação. Tudo isto, se bem que muito sério, era interrompido por poses e fotografias. Finalmente, quando Oliver começou a sentir que estava farto, eles foram ao canil. Desceram à parte baixa do jardim passando diante dos grandes vasos
azues semeados de agave; neste sítio avistava-se a parte baixa da cidade, brilhante de calor.
- Às vezes parece que seria agradável a gente sentar-se nu em cima de figos da índia - disse Oliver, de-repente. Todos se riram. Olhou-os, e, finalmente, riu-se também.
Os cinco cães ladraram de alegria ao vê-lo. Eram belos cães célebres, de grande raça e bastante loucos. Um só era fotogénico: Pluck um chow-chow fleugmático e sem energia. Oliver queria-lhe particularmente porque ele era difícil de conquistar: um favorito amimado e inacessível. Às vezes, deixava-o dormir no seu quarto. Outras desejava violentamente que Pluck correspondesse ao seu afecto e que se dignasse lamber-lhe as mãos com a sua lingua azul e quente, como o fazia muitas vezes o impetuoso terrier sealham, Tobias. Mas Pluck não lambia as mãos de ninguém.
Assim que se estendeu para a maçagem, Oliver teve que tornar a pensar em Donca. Tinha que ser, não podia deixar de pensar nela. Passar sem whisky era uma brincadeira de crianças, bastava um pouco de disciplina. Mas Donca... Fazia-lhe falta, naquele momento. Gemeu porque Nando o magoou.
- Que foi ? - preguntou este, limpando a testa com o braço.
- Nada. Tens uma forma de me triturar o estômago...-resmungou Oliver-Nando resmungou também. Nada o satisfazia nessa manhã. Oliver estava mal de peso, tinha diminuído, o que não podia ser. A pele de Oliver desagradava-lhe. Puxou por ela, um pedaço nas costelas, e largou-a depois.
- Que tem a minha pele ? -preguntou Oliver, inquieto.
Sentia-se um pouco apaixonado por si próprio, pelo brilho mate e contraído do seu corpo.
- Não avermelhou, está apática.-resmungou Nando. Oliver já não o ouvia; voltara a pensar em Donca: era pura loucura.
Oliver preocupava-se pouco com as mulheres. Dificilmente inflamável, nunca se arrebatava. Nunca se
deu ao trabalho de conquistar uma mulher; às vezes, muito raramente, tinha-se deixado conquistar por comprazer, por negligência, por delicadeza. Representava o papel de apaixonado em todos os filmes e nos sonhos de milhões de mulheres; mas na vida, nunca o tinha representado... até ao dia em que Donca apareceu. A um homem como ele, todas as mulheres deviam parecer desavergonhadas. Exibiam-se sem recato à sua passagem, manifestando demasiadamente a sua esperança, oferecendo-se muito abertamente. Ele não ligava importância nem a elas nem aos seus olhares, nem aos seus vestidos, nem às suas alusões, nem aos seus contactos fortuitos que o deixavam frio. com Donca, era outra coisa...
Emquanto Nando o friccionava com uma agradável essência que cheirava a turfa e a folhas de inverno e que refrescava e queimava fortemente a sua pele, acudiu-lhe uma idea clara e calma: visto que Donca se fora deitar às três horas da manhã, como eram nove, ainda devia estar a dormir. Todos os contratos garantem um repouso de doze horas entre os dois ensaios. Não havia nada mais simples do que partir e estar ao pé de Donca quando ela acordasse.
Pegou no carro pequeno, o roadster, que ele próprio guiava. No ar havia ainda um perfume matinal, embora já fizesse muito calor. Desceu primeiro, lentamente, o Sunset Boulevard mas, à medida que se aproximava da costa, aumentava a velocidade impacientemente e, por fim, foi numa velocidade louca que fez a volta abrupta que vai dar às casas de Santa Mónica. Chegando diante da casa, não teve sequer tempo de guardar o carro, deixou-o num caminho inutilizado, num vago terreno coberto de ervas - e precipitou-se para o interior. O quarto de Donca estava vazio e nu, em perfeita ordem. Na pequena secretária viam-se alguns cheques. Donca não usava qualquer perfume, era uma das suas singularidades e, no entanto, o seu odor flutuava no ar. Oliver desceu a estreita escada; a casa parecia inteiramente morta. Na pequena sala de jantar, redonda, de paredes amarelas, encontrou um prato com um pêssego
começado. Riu nervosamente, Donca costumava andar com um caroço de fruta, na mão, sem saber onde o pôr. Chamou:
- Applequist, Tacus, Manuela ... - Ninguém. No hall encontrou finalmente o pequeno chinês Wang que diligenciava calçar-se com um ar embaraçado. Estava com os pés nus e ocupava-se a pôr coberturas lavadas nas cadeiras. À pregunta impaciente de Oliver, estendeu a mão num gesto indeciso. Oliver acompanhou com o olhar os dedos amarelos e delgados dirigidos para o mar.
As casas da praia de Santa Mónica estão amontoadas umas sobre as outras. Diante de cada uma fica um pedaço de areia, um pedaço de praia e o mar. O Pacífico forma aí imensas vagas duma água sombria e espessa, carregada de iodo, de amargor e de sal. Oliver procurou com o olhar a touca de banho vermelha, de Donca. Havia já muita gente na água; alguns reconheceram-no e fizeram-lhe um sinal. Mais longe, uma pequena jangada estava amarrada. Se Donca estivesse em qualquer parte, era ali. Oliver foi às barracas onde o seu maillot pendia, seco e cheio de areia, da última vez. Viu-se um momento ao espelho e despiu-se. Estava escuro e o cheiro de terebentina enchia o ar. A sua pele estava em forma, a despeito de Nando resmungar. Estava quente e avermelhada mesmo antes do banho. Contraiu-se quando entrou na água e gelou ao contacto da primeira vaga, que chegou dura e alta.
Donca não estava nem na jangada nem nas imediações. Desiludido e um pouco cansado, Oliver deitou-se sobre as tábuas molhadas. Tinha agora uma lancinante certeza: que lhe era preciso encontrar Donca. Alguém, em maillot preto de criança, avançou baloiçado por uma vaga, preguiçosamente estendido de costas e veio arribar à jangada. Era Peggy, a jovem actriz que devia representar em lugar de Ria Mara no próximo filme de Oliver.
- bom dia, Peggy. - disse ele.
- bom dia, sr. Dent. - respondeu ela, delicada e com certa timidez.
Tinha uns bonitos membros, longos, mas ainda não perfeitos e de que não sabia tirar partido.
- Sabes, por acaso, onde está Madame Moresco?
- Creio que foi, para Beverley. Mrs. Mackenzie disse qualquer coisa a esse respeito. Da minha janela, eu vi o carro dela, às nove horas. Eu estou aqui a passar uns días com mrs. Mackenzie.-Esfregou a perna direita com o pé molhado.
- Mackenzie diz que talvez seja ele o director das Pedras Miliárias.
- Então.. para Beverley ? Oh! sim, é verdade, as Pedras Miliárias. É agradável irmos trabalhar juntos, não é?
- É. - respondeu Peggy, acanhada.
- Tenho de continuar. - declarou Oliver, entrando na água. Peggy nadava a seu lado, o rosto atento voltado para ele, que deixara de falar. Teve a impressão que a curta distância entre a jangada e a margem o fatigava, o que era ridículo. Passou sob uma vaga em vez de passar por cima e engoliu uma boa quantidade de água.
- Cuidado! - disse Peggy assim que ele reapareceu, e a próxima vaga surgiu prestes a lançar-se sobre ele. Lutou corajosamente mas sentiu-se pouco à vontade. Havia uma corrente submarina, violenta, traiçoeira e mal afamada que arrastava para o mar alto. Todos os domingos, um bom número de pessoas se afogava nesta praia sorridente. Peggy ficou corajosamente ao pé de Oliver até ele chegar sem fôlego à costa.
- Obrigado. - disse ele - Foi muito gentil, Peggy. Ela fugiu, a correr. Oliver pós a mão no coração.
Durante uns segundos, o céu pareceu-lhe todo negro. Fechou os olhos, irritado por se sentir fraco. Uma língua quente passou-lhe pelo rosto. Ergueu-se, a-pesar-da fadiga. Um novelo de seda branca estava sentado a seu lado, na areia, e contemplava-o com uns olhos suplicantes, negros e contristados.
- Tobias! - disse Oliver surpreendido e severo. De onde vens tu ? Correste atrás de mim ?
Tobias, o pequeno sealham arranhava o chão com a patita embaraçada. Era, dos cinco cães de Oliver, aquele que mais o amava, mas o seu dono pouco se preocupava com ele. Embora acabasse de tomar banho, já estava suJo e Tinha feito uma longa caminhada de Beverley até à praia e no caminho, muita poeira e ervas secas se tinham agarrado ao seu pêlo. Tobias estava quási sempre sujo e era por isso que não tinha nunca a consciência tranquila. O causador disto era o seu pêlo, que, em vez de ser áspero e duro se tinha tornado, por uma razão deSconhecida, macio e sedoso a despeito dos nobres sealhams de que se compunha o seu pedigree. Era pequeno, fraco, delicado e terno e, por consequência, fatigava um pouco o seu dono. Como tinha o sentido do bom humor, Tobias escondia os seus sentimentos e, com a melhor boa vontade, fazia de palhaço. A sua melhor farça consistia em andar de volta, correndo atrás da cauda. Fazia esta brincadeira sempre que julgava ter cometido qualquer acto que desagradasse a seu dono. Repetiu-a neste momento, embora estivesse cansado pela longa corrida atrás do automóvel.
- Como foi que me encontraste ?-preguntou o dono.
- Não foi difícil. - pensou o cão. -Oliver levantou-se e verificou que lhe tinham acabado as vertigens.
-Vamos embora. Não temos tempo a perder, agora
vens comigo.
Isso era, para Tobias, uma honra imensa e inesperada. O seu corpito inchou de felicidade e gratidão, quando saltou para o carro. Aí, tudo estava maravilhosamente impregnado do cheiro do seu dono. Tobias lamentou que ele, num dia tão extraordinário e tão esplêndido, não se sentisse bem... porque até isso farejava e adivinhava.
Iam a toda a velocidade para Beverley Hill. Agora, as ruas estavam cheias de gente que ia ao seu trabalho, para Los Angeles.
- Somos uns idiotas, os dois, Tobias. - disse num tom decisivo Oliver ao seu cão. - Este não compreendeu
lá muito bem.
No jardim de Donca, por trás das altas palmeiras de Beverley Drive, as mangueiras atiravam para a relva dez pequenos arco-íris.
Percebia-se que havia mudança. Madame Moresco tinha, segundo parecia, numa das suas imprevistas decisões, abandonado Santa Mónica para voltar a Hollywood. O jardineiro estava lá assim como Tacus, Applequist, Manuela e até o chaufer Mayer. Todo o pessoal trabalhava.
Encolheram os ombros e abanaram as cabeças. Não sabiam nada. A senhora não estava. com o pressentimento de qualquer coisa dolorosa, Oliver foi-se embora. Ainda não eram onze horas. Sentia necessidade de tornar a tomar banho, de se fazer massar, esfregar um pouco mais, desejava uma camisa fresca e limpa. Tobias, compadecido, deitou a língua de fora, uma língua rosada, fina como papel, retorcida: "Eu também tenho sede", queria dizer.
- O carro recolhe, senhor? - preguntou Dan quando Oliver chegou.
- Como ? - olhou durante um meio segundo com profundo espanto o rosto escuro e dedicado do preto.
- Não. - disse por fim - Torno a sair.
Por volta do meio dia não havia um bocadinho de sombra no terreno da Phoenix Picture Corporation. As grandes paredes amarelas, sem janelas, as oficinas de tomadas de vistas, espalhavam o calor como gigantescos reflectores. Donca piscava os olhos ao sair do stage 12 para a claridade viva, espessa e vibrante. "Ah! aqui está fresco!"- exclamou ela. Desde as dez horas que trabalhava sob os sunlights. Manuela, a criada de quarto, apresentou-lhe uma caixa de pó e ela pôs ao acaso, um pouco sobre o ocre de que o seu rosto estava pintado. Atrás dela, Eisenlohr apareceu no buraco negro da porta, vestia uma camisola muito decotada e enfiava o braço na manga do casaco, porque queria ir almoçar. As calças brancas estavam todas sujas nos joelhos, por causa do trabalho.
- Falaste ao Jig? Como está? - preguntou Moresco, nervosa.
- Assim, assim. - respondeu sem entusiasmo o director de cena.
Jig era o engenheiro de som que, numa cela impermeável
ao barulho, escutava, a uns metros de distância
da cena.
- Quando posso ouvir as primeiras provas de experiência? Amanhã?
- Não te aflijas nem nos aflijas. Tudo se há-de
fazer.
- Que efeito te fez, Manuela? Alto de mais? Ora.. tu não entendes nada, deixa-me em paz com o teu pó. Preciso que me deixem tranquila, ouviste? Você estava lá dentro? - preguntou ela a um electricista que passava-Era claro? Compreendeu bem quando eu falava?
- Perfeitamente, minha senhora. Primeira classe. Disse isto e seguiu o seu caminho. Cheirava a óleo.
- Que rapaz amável! - disse Donca nas costas dele. Era o dia das primeiras fotografias e ela estava
espantosamente nervosa. Estendeu uma das mãos: tremia como se tivesse bebido toda a noite e todo o dia. Disse, descontente: - E, no entanto, vivo como uma freira do Sacré Coeur. Eisenlohr caminhava a seu lado mas sem se preocupar com ela. Estava completamente ausente, metido nos seus cálculos como uma toupeira no seu buraco. Uma rapariga ruiva seguia-o, como uma sombra, levando um livro de registos; por trás dos óculos tinha os olhos mais atentos, mais inquietos que jamais teve o secretário particular de qualquer grande personagem. Caminhando sempre, ela anotava no seu livro as observações murmuradas por Eisenlohr. Ele possuía uma espécie de linguagem secreta, um código sintético que ninguém compreendia além da pequena Smith. Os dois assistentes seguiam, jovens, descuidados, contando anedotas picantes.
- Jig. - gritou Madame Moresco à passagem dum rapaz magro - Querido Jig, único Jig, diz-me como aquilo decorreu: sinceramente. Mas com toda a sinceridade. Como está o som ? Bem ? com certeza ? Razoável ? Essa maldita frase Peço-te para que acabes com esses exercícios. Como está? É idiota escreverem-se frases semelhantes, todas com ss. Está baixo demais? com sinceridade, Jig, achas que está muito baixo?
- Penso que tudo irá às mil maravilhas, minha senhora. - respondeu Jig eclipsando-se.
Era um rapaz muito novo que tinha imenso medo das mulheres.
- Vês? -disse a Moresco, muito séria, a Eisenlohr - Houve um médico em Paris que me levantou a voz três tons e meio. Um quarto mais alta. Foi um trabalho de cão mas é espantoso, an? Um tipo formidável! Vocês deviam mandar-lhe a Ria Mara. - acrescentou ela ainda, justamente no momento em que chegavam à porta da cabine.
Esta porta era muito pequena e parecia dar acesso a uma colmeia, com os seus grupos de pessoas que entravam, saiam ou esperavam. "Que diabo é isto?"-disse Eisenlohr, furioso, pois acabavam de lhe dar com a porta no peito justamente no momento em que ia abri-la.
- Uma rapariga loira, platinada, vestida de branco, murmurou desculpas que ele já não ouviu. Ela ficou ali, ainda a seguir o gigante com o olhar, mas já ele se tinha como que fundido no barulho das vozes e da agitação da cantina.
- Viste o Eisenlohr? - preguntou a rapariga, que não era outra senão Francis, a figurante em auxílio de quem Aldens tinha ido na outra noite. O mesmo continuava ainda a fazer hoje. Servindo-se de recomendações e de relações de toda a espécie, conseguira-lhe do Central Casting Ofice uma dessas convocações por que ela ansiara até enlouquecer. Devia apresentar-se à uma hora ao sr. Granit, o director do Casting da Phoenix Picture Corporation. E ali estava ela.
- Viste o Eisenlohr ?
- Vi, sim, vi. Não é uma das sete maravilhas do mundo. Ou será? - preguntou Aldens, aborrecido. Estava de melhor humor e vestia um sweater novo, amarelo, comprado num saldo por um dólar e um quarto. Empregavam-no na dobragem de Cardogan, o filme de êxito cuja versão alemã estavam a realizar. Não tinha, bem entendido, o papel principal mas o dum simples cavaleiro. Era um trabalho de pequena importância e mal pago a-pesar-de ennervante. Tanto pior, mas em
todo o caso era o protector de Francis. Acabava de lhe pagar o almoço no bar económico da cantina: leite e uma tríplice sandwich, a especialidade da Phoenix. Além disso emprestara-lhe cinco dólares para o cabeleireiro e para se pôr de ponto em branco, o que era indispensável para este lance decisivo: -falar à uma hora com o director do Casting. Era uma menos dez. Na opinião de Aldens, Francis estava com muito boa cara mas parecia-lhe, no entanto, que ela lhe ligava pouca importância.
- São horas, vai.-disse-lhe, empurrando-a um pouco. Mas Francis criara raízes no lugar.
- Achas que ele estará zangado? - preguntou. Estava muito arranjada, excessivamente à moda, com
as pálpebras demasiado verdes.
- Zangado? Quem? Eisenlohr? Nem sequer reparou em ti. - respondeu ele brutalmente.
- Achas que lhe devo pedir desculpa ?
- És doida.
- Não estou ainda, mas parece-me que se entrasse simplesmente e lhe pedisse perdão...
- Naturalmente leste isso nalguma revista de cinema de vinte e cinco cêntimos, como sendo o melhor meio de triunfo? Vai antes ao Casting. Granit nunca chega tarde.
O Casting Office ficava muito longe, ao pé do armazém dos móveis, uma pequena casa semelhante a uma antiga hospedaria inglesa. Um dos truques da Phoenix Picture Corporation consistira em construir os seus cem escritórios em diversos estilos.
Não havia um só que não pudesse ser utilizado para qualquer tomada de vistas. Uma idea admirável do velho Bil Turner. O Casting tinha tido o seu lugar em Cardogan. Visto de fora, era um pequeno edifício, mas, uma vez lá dentro, ficava-se surpreendido com as dimensões da sala de recepção, semelhante ao hall de uma grande empresa de viagens. Barreiras separavam os visitantes dos empregados. Cartazes nas paredes, jornais espalhados por toda a parte assim como grandes anuários onde, contra bom dinheiro de contado, apareciam os retratos
de todos quantos mantinham qualquer relação com o cinema. Era uma hora e, no entanto, o pontual Granit ainda não tinha chegado. Em compensação, umas vinte raparigas para ali estavam em pé, sentadas, encostadas, posando. Todas loiras platinadas, vestidas de branco, nenhuma com mais de vinte anos nem pesando mais de cinquenta quilos.
- Meu Deus! - murmurou Francis.
Aldens lançou um olhar desanimado sobre esta assemblea de graças loiras.
- Bem, - disse ele - diverte-te e boa sorte. Depois te veJo.
Nesse momento, Madame Moresco, preguntava: "as loiras estão no galarim ?" -pois havia na cantina também uma dezena de jovens loiras platinadas, pequenas, todas do mesmo tipo. "Provavelmente são as damas de honor do Casamento de Bily." - respondeu Mackenzie, o director de cena. Parecia-se, feição por feição, com Stewart E, Hopkins, e este parecia-se feição por feição com qualquer americano vulgar, mais inteligente do que os outros imaginavam. Mackenzie e Eisenlohr bateram-se nos ombros e apertaram as mãos. Mackenzie era homem de futuro e, havia entre os dois, uma tensão secreta, uma luta oculta para obter a mise-en-scène das Pedras Miliárias. De resto, cada um deles punha o outro muito acima de si próprio. Era talvez isso que fazia deles os dois melhores cenaristas de Hollywood.
A aparição de Donca na cantina, produziu certa sensação na sala cheia. O contra-regra e supervisores, à mesa dos quais ela se sentou, tinham-se todos levantado, o que era contrário à má educação e à familiaridade decretada no estúdio. Movimento certamente instintivo, porque era a primeira vez, depois de dois anos, que ela se encontrava no meio dos seus camaradas.
Percorreu com os olhos a sala clara, simples e cheia de gente, e que era até certo ponto uma pátria. Teve a sensação física de que todos aqueles olhares a avaliavam. Endireitou os ombros e empertigou-se, sentiu na nuca toda a concentração da sua força. Vestia um roupão de seda muito fina, desse estranho azul que, na
fotografia, dá branco. Mr. Brown, um dos jovens cenaristas, sentado no topo da mesa e que ainda não a conhecia, ficou muito corado quando o apresentaram. Donca sorriu, encarando o rapaz loiro, como para mostrar que o compreendia.
Do outro lado da mesa falavam de Peggy.
- Ainda é muito nova. - dizia Eisenlohr, chupando o seu eterno cigarro de mentol - Ainda está muito verde.
Mackenzíe tinha a sua idea.
- Ela amadurecerá. Deixem-na representar As Pdras Miliárias e subir um pouco de categoria.
- Essa rapariga tem temperamento, - disse Donca
- será superior a Ria. com Ria, tem-se a impressão de que tudo é feito no laboratório. Tantos miligramas disto, tantos miligramas daquilo... Evidentemente, é possível que seja a isso que se chame arte. Eu ignoro tudo da arte. Mas sei um pouco o que é temperamento.
- Esperemos que o temperamento dela não se desenvolva de mais a representar com Oliver. - disse Mackenzie. - Esta manhã nadaram juntos. Ela ficou completamente transformada: foi impagável. Minha mulher pôs-lhe o termómetro na boca. Vocês acreditam que a pequena tinha 37 e 8?
- Só por ter nadado com ele ? Promete... - exclamou alguém. Houve um curto silêncio. Donca tirou uma pevide de melão, esmagou-a entre os dentes, com ar absorto, e deitou a casca fora. Era sem dúvida ainda um hábito da sua infância romena. Era indiscutível que Oliver podia nadar com quem lhe aprouvesse. Apertou ainda outra pevide entre os dentes contraídos.
- Aí está Bill.-disse Eisenlohr, fazendo-lhe um sinal. Bill Turner instalou-se numa mesita ao pé da janela,
acompanhado de Sam Houston e de Keller do Publicity Department. Parecia de bom humor, o que queria dizer que tinha preocupações. Pôs o jornal à sua frente, no qual ia batendo, emquanto falava com Keller. Na mesa dos cenaristas alguém desdobrou o mesmo jornal: era o Observer da manhã.
- Que grande maçada aconteceu a Granit! - disse o jovem e loiro cenarista.
O pensamento de Donca deixou Oliver para voltar à mesa da cantina.
- Que aconteceu a Granit ? - preguntou ela, que o estimava muito.
- Não leu o jornal? - preguntou Mackenzie.
- Não, sou uma analfabeta. Tacus é que lê os jornais por mim.
- Essa espécie de eunuco revolucionário?- resmungou Eisenlohr.
Ele e Spartacus Lew eram os únicos comunistas de Hollywood e nunca conseguiam estar de acordo.
- Ele não é uma coisa nem outra. - observou Donca sorrindo.
- Nós somos todos uma data de sentimentais, - disse Eisenlohr - fazemos muito caso desses malandrins que foram dantes nossos amigos. Se Granit...
- Granit não é um malandrim. - disse Mackenzie. Recordo-me ainda do tempo em que ele era um tipo de génio,
- Ah! meus filhos, o Caminho do Inferno! algum de vocês ainda se lembra ? Foi em... mil novecentos e quinze... Meu Deus, isso é que era um filme. Granit...
- Se me lembro ? Foi o meu primeiro papel. Que aconteceu então a Granit? -preguntou Donca outra vez.
Não recebeu resposta: Bill Turner tinha-se aproximado da sua cadeira e dizia-lhe delicadamente:
- Queres vir um momento para a minha mesa? Temos umas ideas para o teu papel, Keller e eu...
- Vou.-disse Donca. Desculpem-me um instante, meus filhos.
Levantou-se e sorriu a Eisenlohr cujo olhar, surpreendido aparentemente e um pouco fixo, aflorou Donca antes de ir mais longe.
- Oliver, - disse ele - que vens aqui fazer ? Oliver estava nesse dia, na hora em que entrava na cantina, quási esgotado de forças. Apenas quatro horas de sono e, durante essas quatro horas, tinha corrido em sonhos atrás de Donca que fugia de comboio - tinha-se lembrado, no decurso da manhã, pedaço a pedaço, de todo o sonho esquecido. O comboio vinha de um
livro de crianças: Intenções e Aventuras que êle lera no Cairo, com a mestra, quando tinha oito anos; era um comboio absurdo, dos bons tempos - que andava de resto muito de-pressa no seu sonho. Das onze horas à uma, depois dessas duas tentativas infrutíferas para ver Donca, tinha lutado consigo mesmo para saber se devia ainda continuar. Decidira que aquilo não era mais possível em caso algum.
E ele ali estava à uma e vinte e três, com os nervos tensos, a rebentarem. Mas nada disto se poderia notar se não fosse o seu riso radioso demais.
- Que fazes tu aqui, Oliver?- preguntou Eisenlohr.
- Um pobre actor sem trabalho vem saber se não haverá maneira de conseguir um pequeno job.
Donca estava de pé; ia justamente dirígir-se para a mesa de Bill Turner. Oliver ainda não a tinha visto maquilhada para o filme. Estava um pouco estranha, com a sua máscara amarela, mas não tão bela como habitualmente, O seu olhar feriu-o como uma punhalada no coração. Estava quási nua, pelo menos parecia-lhe nua, com o seu roupão azul-filme, no meio desta cantina clara e cheia de gente, Oliver meteu as duas mãos nos bolsos.
- bom dia, Donca. - disse. -Também cá estás? bom dia, Oliver.
Dir-se-ia que ela tentava compreender o que significava a sua aparição na cantina.
- Tenho de falar com Bill. - disse ela por fim, e afastou-se.
- Quere sentar-se ? - preguntou Brown, o jovem cenarista, fazendo menção de se levantar.
Todas as cadeiras em redor da mesa estavam ocupadas, só a cadeira de Donca se encontrava livre, com uma charpa pendurada nas costas.
- Não, obrigado, muito obrigado. - disse Oliver Não tenho fome, não se incomode.
Apertou com força o espaldar da cadeira e sentiu um pouco de calor na fina charpa de gase. "- Meu Deus, estarei eu doido?..." - pensava, irritado, agarrando violentamente o tecido, como se fosse a própria Donca.
"- Estou a fazer uma cura para engordar. O meu treinador faz-me maçagens. Arroz, polenta, e afinal diminuía-disse confidencialmente. Donca não voltava e ele não podia ir ter com ela à mesa de Bill Turner.
- E Mount Rainier, como vai isso ? - preguntou Eisenlohr. -
- vou partir para Clearwater, pescar trutas. Ou então para a Europa.
Fora uma idea que lhe passara pela cabeça bruscamente. Via Londres, sentia Londres. Fumo, lama, uma atmosfera rude... e nada de mulheres.
- Na próxima semana há a regata de Oxford contra Cambridge. Devia assistir.-disse ele, deixando cair a charpa.
- Esta velha aristocracia inglesa!-exclamou Mackenzie, trocista. - Tem-la bem no sangue.
- Partindo já, podia chegar a tempo. - continuou Oliver, que sentia um estranho alívio em brincar com este pensamento. - Três dias daqui a New-York, cinco de New-York a Southampton. Lá, deve estar com certeza menos calor.
- Se houver um navio que parta justamente nesse dia. - observou alguém.
Oliver perdeu a coragem.
- Sim, bem entendido, se houver vapor que parta justamente nesse dia. Emfim, adeus, tenho que me ir embora.
Afastou-se, um pouco hirto. Era evidente que não podia fazer outra coisa senão ir-se embora e deixar Donca entregue às suas ocupações. Assim que ele passou diante do bar grande, onde se vendiam bebidas baratas, notou que tinha sede. Todo o pensamento se evaporou por um instante. O mixer interrogou o com o olhar. "-Que hei-de beber?"-preguntou Oliver, distraído. Perdeu um certo tempo com a sua laranjada, fria demais e muito doce ... Nesse momento, ouviu atrás de si o riso abafado de Donca, o seu riso profundo e discreto, através de todo aquele barulho de vozes. Não se voltou. Donca caminhava para a saída entre Eisenlohr e Bill Turner. Os dois homens iam levar o seu cheque à caixa e pagar. Donca esperava. O seu olhar era vago; era difícil detê-la.
- Ah, ainda aí estás, Púiú ? - disse ela, vindo para junto dele - Que fazes aqui no estúdio ?
Ele mentiu :
- Telefonaram-me para um contrato.
- Ah !.. E mais nada ?
- Sim, além disso .. mais nada. Faz muito calor.
- Sim, muito calor. -disse ela, num tom distante.- Estiveste hoje no mar?
- Não. - respondeu ele precipitadamente.
Mentia muito mal. Donca sorriu. Era-lhe indiferente que ele fosse tomar banho com Peggy, mas sentia uma dor dilacerante ao verificar que ele lho escondia. Apaixonadamente ciumenta, corou, dissimulando, mas fazia-lhe muito mal. Ela costumava chamar a isso "engolir punhais". Oliver, teimoso, olhava para a frente. Não lhe era possível confessar que tinha corrido atrás dela, todo o dia, como um doido. Ambos estavam doidos, como todos os que amam.
- Porquê ? - preguntou ele.
- Como? Porquê?
- Porque havia eu de ir ao mar? -Ah! Por nada.
A conversa terminara. Não podiam falar naquele local. Em Rhodes não havia estúdio. Mas ali parecia absolutamente impossível que existisse qualquer coisa como em Rhodes. No meio do barulho, em pé diante do balcão de zinco, guarnecido de breteels molhados, ambos compreenderam num momento que o amor é apenas um jogo de balança sobre a linha delgada, como uma lâmina de navalha, que separa a imaginação da realidade.
"Não é Donca".-pensava Oliver-"Não é bonita, está envelhecida, meu Deus! Um tanto avelhentada e ordinária. Estava enfeitiçado, não pode ser outra coisa".
"Como mente bem!"-pensava Donca-"Com uns olhos tão límpidos... Ele é o seu próprio cartaz: o belo Oliver. Deixei-me prender... não sei porque se há-de amar um homem só porque ele é bonito e mais nada".
- Então adeus. - disse ela em tom agressivo.
- Adeus. - respondeu ele voltando a meter as mãos nos bolsos.
Eisenlohr apoderou-se de Donca. Bill Turner veio, por um momento, ter com Oliver ao balcão.
- Então, como se suportam as bebidas inofensivas?
- preguntou.
Oliver conservou as mãos nas algibeiras. Raivoso, respondeu:
- Maravilhosamente.
Entre os estúdios da Phoenix Picture Corporation e os terrenos sem construções nos quais se montam os grandes cenários, alonga-se uma linda avenida sem números, formada pelos bungalows das vedetas. Risonhas casas de estilo espanhol ou colonial, floridas e precedidas de pequenos relvados idílicos.A empresa põe à disposição de cada uma das suas estrelas um desses bungalows. É generoso e dá interesse. Podem servir-se das casas para os filmes e, durante as produções fatigantes, exercer vigilância sobre as vedetas.
A pequena avenida em questão ia ter aos terrenos de cenários da Phoenix Picture Corporation. Terminava por um prédio de quatro andares, de aspecto oficial, com um grande portão, algumas estátuas de grés e um muito sumptuoso perístilo. Quando depois de ter subido a escada, se transpunha o portão, ficava-se em frente do nada; algumas tábuas sobre andaimes e uma taboleta com esta inscrição: "Atenção! Perigo!" As casas que arderam até às paredes mestras têm este aspecto. Mas, o que ali se via, não era mais do que um bastidor.
Quando Donca, acompanhada por Eisenlohr, desceu a pequena avenida, a porta e a escada estavam cheias de animação. As jovens loiras, vestidas de branco, desciam os degraus e alinhavam-se. Em baixo, alguns homens olhavam e flanavam. O conjunto dava uma impressão nítida de preguiça.
- Filma-se ? - preguntou Donca com indiferença. Ainda pensava em Oliver.
- Não. Estão a escolher actrizes.
- Ah! Ah ! Procuram uma estrela loira platinada ?
- É possível. Granit tem faro.
- É verdade, mas já não há milagres.
- Granít já tem feito descobertas que se parecem com milagres. - disse Eisenlohr emquanto se aproximavam de-vagar. Bruscamente, Eisenlohr arrancou da boca, com uma praga, o cigarro de mentol e tirou um grosso charuto embrulhado em celofane, respirou profundamente e acendeu-o, respirou mais um vez profundamente e pôs-se a fumar como um doido. Donca sorriu docemente a esse desvio na cura de desintoxicação. Distraída, ela olhou para as raparigas que deambulavam. Todas se pareciam perfeitamente umas com as outras. Era impossível distingui-las.
A dor da sua curta conversa com Oliver sobrevivia ainda nela. Como era estranha aquela morte súbita do que há pouco ainda vivia! Que bonecos, as raparigas! Hollywood tem um estranho clima : tudo seca.. Oliver... Afastou-o do seu pensamento. Acudiu-lhe ao espírito uma frase da próxima cena: "Se você faz um gesto, atiro... Se você..."- que imbecis, estes cenaristas! -Se se mexe, atiro". Como é complicado. "Um gesto e atiro, seria bem mais simples... Oliver parecia sofrer de qualquer coisa, Ah! Oliver...
- Que te queria o Bill ? - preguntou Eisenlohr.
- Nada, era por causa da publicidade. Coisas repugnantes! Creio que ele quere tirar partido, para o reclame, das minhas relações com Dent, "Que mulher imoral é esta Moresco, mas que sex-appeall Qualquer coisa como isto, entendes ? Nojento.
- Poderá servir-te.
- Poderá servir-me? Porque não a Dent? -preguntou ela altivamente.
- Mas tu mesma já te serviste disso, minha filha, para teu reclamo!
"Será possível?"-pensou ela espantada -"Será possível?" O sangue subiu-lhe visivelmente à cabeça porque o sentiu bater contra a caracterização como contra uma parede. "Somos uns intoxicados, - pensou de novo
- intoxicaram-nos, estamos todos intoxicados. Eisenlohr olhou para ela, tirou o charuto da boca e olhou para as raparigas loiras que desciam e subiam os degraus:
- Isto é de vomitar. - disse.- Não te dá vontade de vomitar ?
- bom dia, Eisenlohr. - saudou um rapaz alto, de um loiro-cinzento, que se aproximava.
- bom dia, Aldens. Como vai isso? Donca, este é Aldens, um velho amigo meu. Então, meu velho, ainda te lembras de Darmstadt? Como vai isso?
- Menos mal, obrigado. - respondeu Aldens em inglês, muito correctamente.
Eisenlohr tinha falado em alemão. Aldens olhava Donca. "É bonita, mas muito mais velha vista de perto." - pensou. No mesmo instante, Eisenlohr pensava justamente o contrário: cQue rosto verdadeiramente humano! -analisava, olhando alternadamente as loiras e Donca. "Como se sente que ela viveu, como está alterada pela paixão! Uma verdadeira maravilha. Vinte anos de cinema, e ainda mulher!"
- Vem. - disse ele. - Vamos para o nosso teatro, muito bonito, muito limpo e fresco. Aqui apanha-se uma insolação.
- Vamos já. Olha, lá está Granit. - disse ela, dando alguns passos na escada.
Num pequeno banco, Granit, o director do Casting, estava sentado, com um livrinho na mão, tão imóvel que parecia dormir ou representar um quadro vivo. Era engraçado, Granit era um homem extraordinariamente gordo e pesado. O seu banco era pequeno demais para ele. A cabeça também era pequena demais para a sua enorme nuca. Os cabelos eram de uma bela cor, castanha-doirada e brilhante. A curva era elegante. Dos seus cabelos, por dois pequenos regos, o suor escorria-lhe para o pescoço e caía no pull-over azul, guarnecido com desenhos muito vistosos, que se lhe colava aos ombros.
Era um espectáculo pouco vulgar ver Granit sentado e imóvel. Pertencia a essa categoria de obesos ágeis, vivos e activos, de gordura leve e musculosa, que
estão sempre em movimento, fazem desporto, vivem em regime e, a-pesar-de tudo, por causa do mau funcionamento de certas glândulas, tornam-se cada dia mais gordos e mais grotescos.
- bom dia, Granit. - disse Donca.
Ele não a ouviu nem se mexeu. com a caneta e o livro imóveis entre os dedos, olhava para as loiras, Tinha as mãos peludas, extraordinariamente finas e delgadas. Donca conhecia bem essas mãos; reconheceu-as com um sorriso. Tinham-se conservado as mesmas, emquanto o jovem, ardente e genial Granit se havia tornado director do Casting, doentio e gordo. Ela lançou-lhe sobre o ombro, um olhar para o livro de apontamentos. Estava inteiramente coberto de espantosos desenhos. Tumbas e cruzes, mais tumbas e mais cruzes, um minúsculo cemitério cheio.
- bom dia, Granit. - repetiu ela, pondo-lhe a mão no ombro. Desta vez ele voltou a cabeça, lentamente, como se sentisse uma dor. Donca ficou alarmada.
Granit nunca tivera sardas e agora tinha. Estava de tal maneira pálido, que uma multidão de sardas acastanhadas lhe aparecia no rosto. Donca, na sua mocidade, tinha comido carne de cavalo. Verificou que o rosto de Granit apresentava a mesma cor amarelada que a gordura dos cavalos que se acabam de matar. Tinha a vista esquerda com um círculo azul e o lábio superior ligeiramente inchado, o que lhe dava uma lamentável expressão de amuo.
O esforço que fez para sorrir com este lábio inchado agravou ainda mais o seu estado. Donca informou-se:
- Que foi isso ? Um desastre de automóvel ? Granit olhou-a fixamente e não respondeu.
- A que se segue.-disse, voltando-se para a escada. E a porta vomitou a rapariga seguinte.
- Raparigas às grosas. - disse Eisenlohr, aproximando-se.-Raparigas envernizadas de fresco e baratas. Para seis, que são precisas, passam cinquenta em revista. Porque andam todas da mesma maneira, estas donzelas?
Granit não deu resposta. Desenhava mais um túmulo no seu livro. Dir-se-ia que tinha a mão paralisada.
- O que uma mulher vale, só no seu andar se conhece. - disse, para ficar bem notado, o jovem cenarista loiro que tinha almoçado com eles.
Era o seu primeiro filme e tomava tudo exageradamente a sério.
- As qualidades eróticas ... as qualidades morais ... a capacidade de se deixar entusiasmar. - prosseguiu com a mesma precipitação.
Donca olhou-lhe para a boca com ar trocista.
- Sim ? Se arranjares uma rapariga que se entusiasme logo à primeira, peço-te que ma mandes. - respondeu Eisenlohr, deitando fora a ponta mordiscada do charuto. Aldens, rapidamente, ofereceu-lhe cigarros. Conhecia a raiva e a violência com que o seu velho amigo fumava e queria manter-lhe o bom humor. Era o gesto dedicado e inútil, que leva todos os subordinados da terra a oferecerem cigarros aos seus superiores ou às pessoas influentes.
- A que se segue. - disse Granit.
Desta vez, foi Francis que saiu. Ergueu as sobrancelhas, teve um sorriso forçado, avançando o pequeno pé e, em passinhos curtos, desceu, delgada e demasiadamente graciosa, os degraus do perístilo. Aldens achava-a encantadora.
- Esta é realmente engraçada. - disse ele, alto. Embora isto fosse expontâneo, não tinha o acento
da sinceridade. O olhar de Eisenlohr tornou-se mais penetrante; observou Francis. Ela descia, levemente embaraçada, e veio enfileirar em baixo, entre as outras. O jovem Brown observou Eisenlohr. Isto durou um segundo.
- Não. - disse Eisenlohr, dando uma reviravolta e abalando.
- Não. - repetiu Brown.
Granit, com a sua mão paralisada, tinha desenhado um túmulo, antes mesmo que os realizadores tivessem falado. "Adeus, Granit"-disse Donca, e tirou, hesitante, a mão do ombro dele, que não respondeu. Quando se ia embora, Donca sentiu que o jovem realizador a seguia com o olhar. Sentiu também o seu próprio andar elástico
e belo. Os seus passos eram um pouco largos, mas tais como convinham a uma mulher de sobrancelhas pronunciadas como as suas.
- Que aconteceu a Granit ? - preguntou ainda quando chegou junto de Eisenlohr.
- Não sabes nada ? Não leste ? Um grande escândalo. Está horrível, não é verdade ?
- Sim, realmente.
- Descobriu que a mulher o enganava.
- Ele não sabia ?
- Parece que não. É uma velha regra do jogo: o marido é sempre o último a saber.
-Meu Deus, mas há cinco anos que ela não faz outra coisa, a desavergonhada. - Quem era ele ? O Adolfi?
- Desta vez era o Cortez, aquele que representou em Astor, um filme de gangsters. Parece que ela tem um fraco pela raça latina.
- E Granit bateu-lhe?
-Se fosse só isso! Bater na mulher? Livra! -disse Eisenlohr - Que porcaria! E cuspiu o cigarro. Donca parou. Tinham atravessado a zona do sol e esperavam à porta do stage 11. - Granit soube que eles se encontravam em Arrowheadlake. Às seis horas da manhã partiu para Arrowheadlake. Quando chegou, às nove, encontrou-os no terraço preparando-se para almoçar.
- E que fez o idiota ? Bateu na mulher.
- Coisa má!
- Horrível. Impossível de reparar. Bater na mulher! Cortez atirou-o ao chão com um murro e agora é considerado como um tipo muito bem visto. A senhora Granit é um anjo a quem brutalizam, e Granit ficará infeliz até ao fim da sua vida. Vão ser obrigados a pô-lo na rua. Completamente idiota. Bater na mulher em público! Tu estás a ver o que se vai passar ?
- Pobre diabo! Gosto bem dele. Ele é que tem razão, gosto das pessoas que não fazem o que devem fazer, mas aquilo que as prejudica. No entanto, quando se tem o físico de Granit, como se exigir fidelidade ?
- Ah! Como pode um ser qualquer esperar fidelidade? Grave problema, não é, Madame Moresco?
Donca sorriu. Ela e Eisenlohr haviam tido uma curta aventura e ela havia-o abandonado brutalmente por um homem que tinha vindo do Arizona e montava cavalos selvagens nos filmes de Wild-West.
- Ora vamos! -disse Eisenlohr. - São duas horas e dois minutos. Também é preciso trabalhar, de vez em quando.
Donca abandonou bruscamente o desgraçado Granit e voltou ao seu papel.
- Não poderás modificar-me esta horrível frase: "Se faz um único movimento, disparo". Desloca-me a lingua. Tenho medo desta frase. Deixa-me dizer: "Se se mexe, atiro". Ou então, "se você...
- Não, minha filha, diz o texto exactamente como o escreveram as pessoas que sabem o que fazem. Hás-de sair-te maravilhosamente.
E metendo novamente entre os dentes o seu cigarro de mentol, empurrou a pesada porta de ferro e fez passar Madame Moresco.
Oliver achou o dia cada vez mais insuportável. Dormir... estava muito calor. Nadar, era muito fatigante. Ficou sentado um momento sem pensar em nada sobre os degraus de faiança do Lago, na água morna. Grandes larvas que flutuavam na água expulsaram-no.
Em casa, as janelas estavam fechadas e os estores corridos. Abafava-se. No jardim, o sol queimava. No terraço, Dan, com a mangueira, refrescava os mosaicos vermelhos. Oliver foi buscar Pluck, o seu chow-chow, e quis divertir-se com ele. Mas Pluck recusou-se. Tobias é que teria querido, pediu, suplicou mesmo. Trouxe quanto encontrou: bocados de paus, uma velha bola de
tennis; por fim, com o ar alegre de um velho cómico, um tijolo.
- Não me maces.- disse Oliver. Tobias achatou-se todo no chão, muito mortificado, com as patas de trás estendidas como uma lebre pronta a entrar no tacho. E como Pluck não quisesse brincar, ele foi procurar Jerry, o secretário.
Jerry e Oliver jogaram uma partida de xadrez no terraço, emquanto Dan continuava a regar e a refrescar o solo. Oliver jogava mal e irritava-se por ver com que falta de jeito Jerry se esforçava para o deixar ganhar. Depois, foi uma partida de gamão, mas Oliver estava distraído e tornou a perder. Conversaram sem entusiasmo sobre as regatas que se deviam realizar na semana seguinte e na possibilidade de esperarem o Europa em New-York e chegarem a tempo a Inglaterra.
Finalmente, Oliver pôs se a olhar para a cidade que ficava por baixo dele. Hollywood, ao calor, tinha perdido os contornos; não era mais que uma vibração vaporosa, e os montes da Sierra tinham recuado.
Não longe do Pico Boulevard, havia qualquer coisa de redondo e cintilante, devia ser o grande e prateado reservatório de água da Phoenix Picture Corporation. Oliver não desfitou mais os olhos dali. Pelas cinco horas mandou Jerry ao telefone preguntar se Madame Moresco ainda estava em cena. Responderam-lhe que sim.
"Desta vez, Dan é que guiará!" - disse Oliver fracamente. Eram cinco e vinte quando o porteiro da Phoenix lhe abriu as portas, pela segunda vez nesse dia,
Oliver fez parar o carro diante do Stage 12 e entrou, primeiro por um estreito corredor, depois por uma grande porta de ferro. O sinal luminoso indicava que estavam em descanso. Oliver ficou sem se mexer até que o som do apito anunciou que o ensaio acabara e que se podia andar livremente. O cheiro forte da madeira e da juta de que as paredes estavam forradas, flutuava. Na penumbra, Oliver, em bicos de pés, saltou por cima das cordas, passou por trás dos bastidores e chegou à câmara escura ao pé da qual esperou, na obscuridade. Em cima, em baixo, à esquerda, à direita e
por toda a parte, os electricistas, agachados com os seus projectores, tinham apagado as lâmpadas pois, num segundo plano, um homem, sentado diante de um registo, vigiava, para impedir todas as despesas inúteis. Uma única lâmpada vazava a sua luz velada e fria. No ar cheirava a mínio quente. A cena representava um quarto de cama de estilo antigo, cuja autenticidade era apenas perturbada por um leito um pouco chocante. Almofadas e édredons, eram de uma seda azul semelhante à do roupão de Donca. Ela estava sentada à beira da cama e Eisenlohr a seu lado. Falavam a meia voz. O operador segredava com os assistentes. Era um ser doentio, com os nervos ao vivo. Chamava-se Piloulef e tinha trazido para Hollywood uma porção de ideas russas, incompreensíveis, sobre a repartição dos planos em fotografia. Os electricistas punham-se de acordo em voz baixa, e por monossílabos. Suspenso no fim de uma longa antena, o micro baloiçava-se no meio da cena na sua forma estranha, semelhante à de um animal do planeta Marte. Embora tudo parecesse extraordínàriamente silencioso, lento, preguiçoso e se pudesse julgar que estava na mais completa inacção, Oliver reconheceu logo a atmosfera do trabalho a alta tensão. Esperou muito tempo. Oliver Dent, vedeta de cinema, tinha a paciência sem limites das pessoas que filmam.
Por fim, tudo estava pronto: sunlights, máquinas, microfone. Eisenlohr deixou o leito de Donca e voltou à máquina ao pé da qual uma cadeira com o seu nome o esperava. Tinha o olhar de um cão de caça a farejar. Donca deitou-se. Williams, o seu parceiro, abandonou o espelho, a caixa de pó e o cigarro começado, para ir por-se ao pé de uma mesa. Um pouco velho para o papel do revolucionário Akím, não fazia, no entanto, má figura.
A jovem Smith, a sombra de Eisenlohr, trazia na mão o livro de registos e segredou algumas palavras ao seu chefe. Um assistente, com um metro, mediu as distâncias. O pequeno apito soou. Alguém pegou num cartão prateado cujo brilho foi reflectir-se nos olhos de Donca, Outro mostrou o número da foto, depois fez
cair a prancheta sobre a qual ficara este número. Era o sinal para fazer as fotografias. Um número. Eisenlohr contraiu-se, dir-se-ia que queria saltar: "Ready ?" gritou. Num segundo, concentrou toda a sua atenção e disse "Go"
Williams Akim fez um movimento. Caiu uma cadeira. Donca, no seu leito, ergueu-se e disse: "se faz um gesto, atiro!"
O apito ouviu-se. As lâmpadas apagaram-se. A fotografia estava feita. Eisenlohr ergueu-se exausto e voltou a sentar-se ao pé de Donca, na cama, continuando a conversa a meia voz.
- Repete se isto ? - preguntou o operador.
- Repete. - respondeu Eisenlohr.
Pilouief meteu as duas mãos nos cabelos. Depois, tudo recomeçou.
Foi preciso uma hora aproximadamente para que esta frase estivesse capaz e para Oliver aparecer. Eisenlohr mostrou pouco prazer em o ver ali. Estendeu-lhe a mão mole, a mão seca no interior e húmida no exterior.
- Olha! Que vens cá fazer?
- Preciso dizer uma palavra à Moresco. -declarou Oliver o mais categoricamente possível.
- As serenatas sentimentais, durante o trabalho, não vêm a propósito. - respondeu Eisenlohr. No entanto, deixou-o passar e afastou-se. Oliver dirigiu-se a Donca que, estendida na cama, olhava para o ar com uma expressão de beatitude e esgotamento. Não lhe tinha visto esta expressão desde Rodes, desde essas horas maravilhosas que planavam entre o amor e o amor, entre o sono e o sono.
O leito no qual ele se sentou era duro, sem molas. As almofadas de seda cheiravam a nafetalina, a armazém de móveis, a acessórios, a filme. O olhar de Donca fez uma longa viagem antes de chegar a Oliver. Este compreendeu o. Por fim, ela notou o.
- Oliver ? És tu ? - preguntou, surpreendida.
- Ouve, preciso ver-te esta noite. - disse num tom breve. Verificou que estava rouco como um colegial, mas não tinha tempo para se envergonhar.
-Sim? Precisas?
- Preciso. Não posso mais. Desde esta manhã que corro atrás de ti como um doido. Estive na praia, na Beverley Drive e em toda a parte. Hollywood vai devorar-te. Pois bem, eu não quero que te devorem.
- Não. Peço-te.
Os sunlights apagados, olhavam-na assim como a máquina, os electricistas. Os assistentes e o ultra nervoso Pilouíef.
- Vamos continuar. - disse ela.
Manuela apareceu, como para a visar, trazendo a caixa do pó. Donca maquilhou-se cuidadosamente.
- Depois, estarei estafada.
- Sei. Depois, ajudo-te a repousar, tratarei de ti.
- Como ? Os meus dois quartos estão em desordem, em plena mudança. Applequist é um tirano. Os tapetes estão enrolados e só teremos um jantar frio.
- Não faz mal. Vens a minha casa. Arranjarei tudo muito bonito, mando-te servir em pratos de faiança de Rhodes. Queres?
- Oh! sim. -Vais? -vou.
Ele pôs no olhar todo o seu ardor.
- Sim? -preguntou. Isto queria dizer: "Amas-me?"
- Sim. - respondeu ela baixinho, com os olhos nos olhos. Isto queria dizer: "Amo-te."
Estavam sentados longe um do outro, não tinham mesmo apertado as mãos. Em volta deles, bastidores, cabos, filmes, aparelhos e máquinas. O microfone espreitava. Eisenlohr voltou e, cheio de impaciência, disse:
- Quando o idílio estiver acabado, talvez possamos voltar a filmar. Cada minuto custa mil dólares.
Quando Oliver voltou para o automóvel, o sol tinha desaparecido. A noite fria e húmida de Hollywood caía subitamente, ao mesmo tempo que se acendiam as lâmpadas em arco, sobre as ruas dos estúdios. Oliver, sem casaco, estremeceu ligeiramente. Aspirou o ar fresco, sabendo a gazolina. Sentia-se muito cansado.
Dizia a si próprio que era feliz... mas não era.
Às oito e meia, Eisenlohr interrompeu o ensaio. Estava como um carvoeiro. Só Deus sabia como podia acumular em cima de si toda a porcaria circunvizinha. Williams partiu de muito mau humor, tinham tirado todos os efeitos do seu papel em favor de Donca Moresco, ele sentia-se vítima e não tinha o dom de disfarçar. Donca estava rouca, deu por isso à primeira palavra que tentou articular.
- Queria o Jim. -disse baixo, para poupar a voz, a Manuela que lhe estendia um leve chale. Jim não era um homem mas um objecto, um sweater cinzento como usam em volta do pescoço, quando não jogam, os homens de uma equipa de football. Donca tinha-o recebido de um rapaz chamado Jim, o célebre Jim Moore, aquele que tinha ganho o famoso touch down, nos jogos de Stanfort S. C. U. em 1928. Quando ela estava cansada, tiritava, e quando tiritava gostava de se embrulhar no Jim. Era áspero e quente e tinha conservado um certo fogo de mocidade. A vida inquieta e infiel de Donca era acompanhada de alguns objectos aos quais ela estava particularmente ligada e que tinha, por essa razão, gratificado com nomes: o seu sweater, Jim ; a sua almofada de couro negro, Coco, na qual se podia chorar inteiramente à vontade, quando era preciso ; o seu samovar, Tchai Tchai, para as noites solitárias ; o seu revólver, Chérami, enorme acessório da guerra mundial, fora de moda, amigo encantador em todas as circunstâncias, e a sua maleta, Amélia.
Envolvida no calor rugoso de Jim, ficou um momento imóvel, pensando na noite que tinha prometido a Oliver uma hora antes. Tinha, então, um imenso desejo de o ver. Agora já não, mesmo nada. Sentia necessidade de ir para a cama e dormir, de não falar, de beber chá com muito conhaque.
Em frente da entrada dos artistas encontrou Eisenlohr e Sam Houston que discutiam em voz baixa,
- Não posso. - dizia Eisenlohr. -Já te disse que não posso, acredita.
Levantava as mãos poeirentas, como para se defender. Sam, sacudiu a cabeça grisalha; tinha um ar ligeiramente deprimido.
- Trata-se de Granit. - disse ele a Donca, que não sentia nenhum desejo de parar.
- Estou muito inquieto por causa dele, muito inquieto. - explicou Sam. Encaminharam se juntos para o bungalow de Donca, pela ruazinha estreita, pequena passagem em forma de túnel e que ressoava. Havia dois anos que ela não tinha bungalow, agora tinha um, como todas as estrelas.
- Bill partiu esta noite para S. Francisco e deixou-me no meio desta trapalhada toda para me desembaraçar sozinho. - resmungou Sam. -Vocês leram os jornais da noite ?
Eisenlohr fumava com paixão, sem dizer uma palavra, enchendo os pulmões de fumo. Donca também não o ouvia.
- Não há ninguém no estúdio. - lamentou-se Sam.
- Todos exactos. Trabalham as suas oito horas e raspam-se. Eu fico sozinho, com esta porca história, e eu é que serei responsável pelo que acontecer.
Sam era injusto. Sobre as suas cabeças soava a orquestra de metais que ensaiava. Filmava-se ainda em três lugares. Caminhões transportavam ainda diligentemente alguns objectos inanimados para o campo onde a equipa da noite levantava os cenários para A Noite do Destino. Atrás das janelas dos escritórios, viam-se luzes espalhadas por toda a parte. Empregados andavam, apressados, pelas ruas.
- Granit fechou-se. - disse Sam. - Não queria ter aborrecimentos com ele. Há já quatro anos que não há suicídios por cá. O último foi o de uma simples girl e, a-pesar-disso, sempre tivemos bastantes incómodos.
- Oh! os suicidas que eu conheço ainda estão todos vivos... - notou Eisenlohr friamente, com o cigarro ao canto da boca.
- Que bom coração!-zombou Sam.- Que profunda
sensibilidade! Absolutamente alemã. De qualquer maneira não se pode deixar morrer esse rapaz diante dos nossos olhos. Bill falou-lhe esta tarde e despediu-o. Receberá ainda um cheque e acabou-se. "É melhor que você desapareça por um tempo." - disse-lhe Bill. Granit estava ali... eu tive o prazer de assistir à conversa. E depois Bill partiu para S. Francisco ao encontro da sua dama. "Vê se tudo corre bem. - disse-me ele - Tem cuidado, principalmente se ele se fechar." Fala-lhe tu, Eisenlohr, ele ouve te melhor que a qualquer outro, tens o talento de sugestionar as pessoas. Pois bem, tira partido disso, ao menos uma vez.
- Santo Deus! - disse Eisenlohr, atirando fora o charuto.-Então tu não compreendes nada? Não sou o homem indicado para consolar Granit. Eu estive... eu estive também... com a mulher dele. Compreendeste agora?
- Ah! Bem. Também és desses?
- Pois sou. Sou um desses e Deus sabe que não me sinto muito orgulhoso. Tenho demasiadamente o sentimento da... da limpeza, para representar o papel de consolador do marido. Boa noite. Boa noite, Donca. Amanhã, às nove horas, a cena dois, a do jardim, para começar.
- Que vou eu fazer desse farrapo do Granit? preguntou Houston num tom lamentoso.- Eu fui contratado para fazer negócios e não alta psicologia, eu...
Haviam chegado ao bungalow de Donca, ela já tinha a maçaneta de ferro na mão e a frescura da relva subia-lhe até aos joelhos.
- Está fechado? - preguntou ela. Não imaginava este caso como uma coisa verdadeira, mas como uma cena de filme.
- Sim, no escritório. Fechou se à chave. Quando Bill lhe falou, estava a chorar.
Donca largou lentamente a maçaneta e continuou o caminho com Sam. Passaram além da cantina e chegaram ao Casting Office. O hall estava iluminado, mas as outras janelas estavam às escuras. O aposento vazio, com os seus quadros sorridentes e os cartazes, parecia
inútil. Toda a espécie de perfumes, trazidos pelos figurantes que desfilavam ali diariamente, se encontravam imobilizados no ar. Atrás da porta do escritório de Granit ouviram um amarrotar de papéis. Sam, bateu e chamou: cGranit!" Mas tudo estava fechado e não obteve resposta. "Granit, Donca Moresco está aqui. Ela queria falar-te. - gritou Houston. Nenhuma resposta. Pouco depois, qualquer coisa caiu no interior. Granit, provavelmente, tinha deixado cair um objecto.
- Para que apagaste a luz? - preguntou Donca. Sam encolheu os ombros.
- É preciso fazê-lo sair daqui, obrigá-lo a beber muito.- respondeu. - Levá-lo a casa da Florência e rodeá-lo de raparigas... ou então jogar com ele um bom pocker... - e olhava para Donca com ar perplexo. Ela bateu ainda mais umas pancadas na porta, chamando; Granit não respondeu.
- Não querias mandar arrombar a porta, não?- preguntou ela de-vagar.
- Não. - respondeu Sam lacònicamente. Voltaram para o bungalow de Donca.
- Seria idiota. Não lês nos jornais todos os dias ? Não se mandam arrombar as portas senão depois de acontecerem as desgraças. Em todo o caso, boa noite e obrigado. Toda esta história não te diz respeito. Eu volto para o meu escritório onde passarei a noite. Nós não estamos nada fatigados lá no escritório, bem entendido : trabalhamos só dezasseis horas por dia, não é ? Boa noite.
O bungalow de Donca tinha um andar elevado e, em baixo, uma pequena cozinha. Uma escada de madeira levava ao quarto de cama, ao quarto de banho e ao vestiário. Este bungalow era mobilado um pouco à aventura, no estilo exagerado que, cinco anos antes, parecia ir tornar-se moda mas que não triunfara. Donca despiu rapidamente o roupão com que tinha filmado todo o dia e de que estava farta. Sentou-se diante do grande psyché, tirou com os dedos enormes pedaços de vaselina e pôs-se a desfazer o maquillage.
- A senhora quere que a ajude ? - preguntou, ao
fundo do quarto, a silenciosa Manuela que se tornava muito dócil quando a ama estava cansada.
- Não. - respondeu Donca, obsecada pelo pensamento de Granit - "Aquelas sardas no rosto inchado e amarelo... Não há esperança, pobre rapaz!" Amachucou as toalhas de papel engordurado e deitou as para longe, uma após outra. Tinha ainda pintura nas pálpebras e em redor das orelhas. Tirou-a cuidadosamente.
Duas vezes na vida assistira a casos de suicídio. Uma vez; em Paris, antes de vir para a América, já há muito tempo. Um rapaz tinha-se enforcado, por causa dela, no quarto, no fecho da janela, com a corda em que habitualmente punha as meias a secar. Era um caixeiro viajante. Chamava-se Paulo Têtain. Amava-a e não queria voltar para junto da mulher, em Lião. Pode imaginar-se que o amor tem pouca importância para os caixeiros viajantes, mas eles são exactamente como os outros seres e não como os representam os jornais humorísticos.
Todos os seres são idênticos mesmo os actores de cinema...
O outro foi o duma mulher de quarenta anos, a mulher do pintor inglês Ashcott que fez o famoso retrato de Donca. Esta tinha ido passar o fim da semana na casa que o pintor tinha em Surrey. Madame Ashcott veio encontrá-la no seu quarto. Sentou se em frente do espelho. Falaram um momento acerca de ciúme. "Parece-lhe que o ciúme vem da cabeça ou do coração?" tinha-lhe preguntado Madame Ashcott. "Do coração" havia respondido Donca que sabia o que era ser ciumenta. Depois disto, Madame Ashcott tirara um pequeno revólver da saca e metera uma bala no coração. Fora uma cena teatral. Quando os suicidas estão mortos tomam uma expressão que parece que â morte foi para eles um alívio.
Donca, sem pintura já, enfiou um vestido. Pegou maquinalmente no báton e maquinalmente o pousou. Nunca punha rouge nos lábios quando ia beijar alguém.
- O sr. Dent já chamou duas vezes.- disse Manuela que tinha notado o gesto da patroa. Donca olhou-a sem compreender. Esquecera-se de Oliver.
- Prepara um banho muito quente, venho já.
O escritório de Granit continuava sem luz. Donca reflectiu sobre isto e bateu à porta aferrolhada. Chamou em voz baixa. Era possível que os seres infelizes assim como os doentes e os apaixonados, fossem ávidos de escuridão. Donca tentou colocar-se na situação de Granit como fizera cem vezes nos seus papéis. Agora compreendia perfeitamente que não o podia abandonar a si próprio. Sentia-se muito cansada, mas, ao mesmo tempo, pronta para a luta. Os actos nos quais ela podia medir as suas forças, atraíam-na sempre. Fez, contra a porta fechada, toda a espécie de propostas com a sua voz que enrouquecia. Desejava ardentemente que estivesse ainda nesta casa fechada e inflexivelmente muda, um ser vivo. Reflectiu um momento, de sobrancelhas franzidas. Via Granit como ele era em New-York quinze anos antes, no momento do Caminho do Inferno. O atelier bizarro, em baixo, na 5ª avenida. O estranho papel que ela tinha ... a grande cena. E Granit, o grande e belo rapaz de cabelos castanhos, ao volante de um carro alto que fazia sem custo os seus trinta quilómetros à hora. E de-repente, lembrou-se do nome de amizade que ela lhe dava e que andava a procurar na memória: - Boutz...
- disse ela docemente - Escuta-me, Boutz, deixa-me falar-te... vai fazer-te bem.
No interior, qualquer coisa mexeu mas não teve resposta. Donca esperou, com o coração a bater mais forte. Isto tornou-se para ela, sem que o pudesse explicar, um dever, isto de arrancar ao seu isolamento o infeliz Granit.
- Boutz... -disse, - Anda, preparei-te um banho muito quente, vai fazer-te bem, Boutz...
Houve ainda um meio minuto de silêncio. Depois, Granit abriu a porta. Tinha até acendido a luz.
Estava lastimoso. Uma vez, Donca vira um afogado que tentavam reanimar.
Granit parecia esse afogado, com as marcas azuladas, na face amarelenta. Por todo o escritório se viam papéis espalhados. O grande recipiente de água estava vazio. Devorado pela febre, Granit tinha engolido vinte litros.
- Estava a arrumar a mesa. Adormeci... - murmurou ele - Era uma tentativa desastrada e heróica para se dominar.
- Muito bem, Boutz. - disse Donca, docemente, tomando-lhe o braço.-Poderás arranjar isso mais tarde. Vem ao meu bungalow, tenho um banho quente para ti.
Deus sabe que alívio esse banho quente parecia prometer aos nervos devastados de Granit... e seguiu-a, obediente.
- Estive ontem em Arrowheadlake. - disse ele.-Foi lá em baixo que o caso se deu. Uma data de gente. Uma quantidade de automóveis na rua. Não pude dormir muito, sabes? Hoje trabalhei, conservei-me no meu posto todo o dia. Tive uma desagradável discussão com Bill. Agora estou arrazado.
- com certeza, Boutz. O banho vai fazer te bem.
- disse Donca como a uma criança.
Tinha-o levado para o seu bungalow. A pequena escada gemeu, sob o peso do gorducho.
- Não posso voltar para casa, compreendes ? Não sei para onde ir. Não posso ir para a minha casa. Ela está lá... e eu não posso ir para lá.
Isto soava como se ele tivesse repetido esta frase durante horas.
- Compreendo. Passarás aqui a noite. Mas primeiro toma o teu banho. - disse Donca.
Acompanhou-o à sala de banho. Ao passar em frente do espelho, ele voltou os olhos... teve um soluço seco como depois de ter chorado muito.
- Anda, anda.- disse Donca ajudando-o a despir-se. Ela meteu a mão na água muito quente, que cheirava a plantas.
- Queres que fique ao pé de ti, emquanto tomas banho ? - preguntou. com um pequeno gesto de mão, abolia quinze anos de separação e voltava a ele. Pareceu compreendê-la, se bem que não tivesse consciência do que se passava.
- Não, obrigado, Lulu.
Era assim que ele lhe chamava dantes. Nesse
tempo, tinha sonhado levar ao écran o Espírito da Terra com Donca no principal papel.
- Tens roupões pendurados na porta. - esclareceu Donca, saindo.
- Manuela, - disse entrando na cozinha - é preciso ir buscar à cantina um jantar e gelo. Depois, corres a casa a buscar de beber-o suficiente. Champagne, cognac, duas garrafas de wiskhy. E soporíficos. Mayer ainda aí está com o carro? Bem, ele que te leve, depressa. com certeza passarei a noite aqui.
- Sim, minha senhora. - disse a criada de quarto.- Manuela tinha uma qualidade muito agradável: falava pouco e não se admirava com coisa nenhuma. Donca foi até ao hall e olhou à sua volta. Havia dois anos que não ia ali. Agora, voltava. Esses dois anos tinham sido horríveis. HaVia uma porção de coisas horríveis na vida que é afinal um matadouro encantador, onde não se fazem cerimónias - muitas vezes poderia ver-se bater na carne rija, despedaçada, sangrenta.
Já que não havia ninguém que cuidasse de ajudar Granit a passar esta noite, ela cumpria o seu dever. Já que ninguém podia vir em seu auxílio... talvez ela o conseguisse. Estava ao pé do telefone, com as sobrancelhas franzidas, reflectindo. Coisa estranha, nessa hora, tinha esquecido até o número de Oliver. A menina do telefone teve que vir em seu auxílio. Depois, estava muito cansada, horrivelmente cansada, simplesmente. Por fim, Oliver respondeu.
- Meu querido, - disse ela - acabo de chegar do ensaio. Chamaste-me?
- Chamei. Espero te com impaciência. Estou hoje muito nervoso.
- Isso é verdade ? És uma criança, Púiú. Hoje não fomos gentis um para o outro, não é verdade ?
- Tu, para mim, não. Eu vou encastoar-te em oiro de dezoito quilates quando voltar a ter-te.
- Tenho medo... de não poder ir.
- Não entendo. Estás rouca ?
- Sim, um pouco. Tenho que dizer o meu papel
sempre três tons e meio mais alto do que a minha voz habitual. Isto fatiga horrivelmente.
- Faço idea. Que dizias ainda agora ?
- Tenho medo de não poder ir... Um silêncio.
- Mas isso não é possível, Donca!
- E tenho muita pena, Púiú, mas estou muito fatigada. Muito fatigada, pura e simplesmente. Não posso falar, compreendes ? Só posso ir-me deitar e dormir. De resto, a dormir já eu estou.
- Ah! Donca, é absolutamente impossível. Tu não terás necessidade de dizer uma palavra só. Olharemos para as imagens, as belas gravuras japonesas de madeira, queres? Ou então... nada, absolutamente nada... senão ... Escuta, está tudo lindamente preparado para te receber. As loiças de Rhodes e os copos vermelhos de que tu gostas. E depois, mandei cortar em tua honra todas as orquídeas da estufa. É absolutamente necessário que venhas, isto vai ser uma verdadeira festa, uma grande festa, só para ti.
- Infelizmente não pode ser.
- Não me obrigues a mendigar assim. Já me parece que sou como Tobias, o meu cão, quando me importuna.
Um silêncio. Donca continuava, de auscultador na mão, vendo Oliver. O seu amante, o homem mais belo, o mais maravilhoso do mundo. As orquídeas, os copos, todas as coisas preciosas reunidas em seu redor. O seu desejo de ir ter com ele era ilimitado, sem fundo, sem fim. E, ao mesmo tempo, tudo nela, amarga e obscuramente, tomava partido contra ele. Contra Oliver e a favor de Granit. Contra aquele que gosava e por aquele que sofria.
- Só te posso dizer isto, Oliver, não posso ir. Passo a noite no meu bungalow.
- Hás-de arrepender-te.
- Deixa-te de ameaças. Tens muito mimo, Oliver. Não sejas mau.
- vou eu aí, deixas ?
- Não, de maneira nenhuma. Sobre o solo sagrado
dos estúdios não é admitido o deboche. Boa noite. Ouve, Oliver... se for possível.. não bebas. Um silêncio.
- Posso experimentar. Dás-me licença que te chame se não conseguir dormir?
- Dou.
- Mesmo no meio da noite ?
- Sim. Mas é preciso que durmas.
- Boa noite, Donca.
- Boa noite.
A conversa tinha acabado. Donca soltou um profundo suspiro e desligou. Oliver continuava de auscultador na mão.
- Tenho medo.- disse ele.- Sinto-me mal, sinto-me morrer. - Mas isto já foi dito para o ar mudo, imóvel. Já não foi para o telefone que ele falou.
Donca, durante esse tempo, voltava para junto de Granit. Estava ainda sentado na banheira e parecia não querer abandonar esse asilo. Por fim, ela conseguiu obrigá-lo a meter-se na cama, com os cabelos ainda molhados, mas tendo, nos olhos, um clarão de consciência. Tinha a camisa de dia, uma camisa de lindas riscas azues. O colarinho e os punhos estavam desabotoados e, na ponta dos dedos finos, formavam-se numerosas rugas como consequência de uma longa permanência dentro de água. Visto bem, este homem era monstruoso. Ainda não falava, seguia Donca com o olhar e, quando ela se dirigiu para a porta, disse numa voz violenta e cheia de estranha severidade:
- Não me deixes só, Lulu.
Ela voltou à pressa para junto dele e abraçou-o, fazendo por ele tudo quanto pôde. Pegou-lhe nas mãos, acariciou-lhe os cabelos molhados. Ela era amável para tudo o que subsistia ainda do antigo Granit. Depois, fazendo um esforço para se dominar, puxou a cabeça dele contra o seu ombro. Até o beijou. Não sentia nenhum prazer mas também nenhuma repugnância. Sentiu antes uma espécie de satisfação estranha e de contentamento, assim que o corpo pesado e crispado de Granit começou a distender-se. Tacus tinha dito
dela um dia que era "boa como uma rameira". Pois bem, tanto melhor, pensava com orgulho. E sentia ao mesmo tempo um indomável sentimento de força. Ela podia tudo quanto queria. Tinha conquistado Oliver, fora uma grande vitória, mas não lhe custara muito. Obrigar a viver esse pobre Granít era bem mais difícil. Ele não podia já nem beber, nem chorar, nem fazer fosse o que fosse. "Estou esmagado. Ferido em cheio. Deixem-me rebentar".
A mulher lera isso a que Hollywood chama : um bebé falhado, mercadoria de saldo, tudo o que havia de mais barato. As casas mobiladas da cidade regorgitavam de mulheres semelhantes, Um pouco de lama animal e vulgar. Granit lutara, como um louco, para fazer dela qualquer coisa de humano; mas não tinha deixado de saber que aquela que estava condenado a amar, era apenas um pouco de lama e nada mais. - Muita mágoa para tão pouca coisa! - pensava Donca - Mas é sempre o amor que importa e nunca o objecto desse amor.. Donca já tinha feito numerosas e dolorosas experiências. E quando Granit começou a falar, foi uma espécie de inferno de sofrimento humano que se abriu diante dela: subidas e descidas numa mina de torturas, sempre para mais baixo. Donca conhecia os caminhos para onde ele a levava; podia segui-lo sem custo.
Meia-noite. Diante do edifício A a fanfarra continuava o ensaio; era preciso muita música agradável para as Actualidades Sonoras. Até aqui os grilos cantavam nos minúsculos relvados do estúdio. Os gatos, ao acaso, deambulavam entre os edifícios de filmagem que fazem pensar em gares de província, fechadas. As equipas de bombeiros rendiam-se. A cantina estava muito íluminada, ainda lá havia gente a jogar os dados. Nos estúdios, a noite não contava nunca. A inscrição luminosa sobre a porta era vermelha, verde e branca e dum brilho exagerado. A entrada dos automóveis estava fechada por uma cadeia. Sentado na sua casa, o porteiro lia o que os primeiros jornais da manhã contam do caso Granit.
Dez minutos depois da meia-noite chegou mais um carro, era o roadster de Oliver Dent. O travão cansado
cheirava a queimado e ao vapor que jorrava do radiador. Mas Oliver Dent não bebeu nada; o porteiro, ao abrir a corrente, notou esse pormenor com um olhar inquisitorial. Oliver vinha numa corrida doida da montanha, nem ele sabia donde. Seguira por caminhos em ziguezague, caminhos estreitos não asfaltados onde se viam letreiros, dizendo: "Atenção! Perigo!"
Estava em jejum. A toda a velocidade passou diante da sua casa, a sua bela casa onde o esperava uma mesa bem posta e faianças de Rhodes. Os píncaros das colinas enlouqueciam-no, com as suas hordas de automóveis parados, cheios de pares de namorados que se abraçavam. Tinha-se afastado da cidade e do seu marcado encanto, das suas luzes, das suas mulheres, das suas casas de jogos, das suas orquestras de negros, da sua embriaguez. Metera-se na obscuridade, perdera-se num cânon perigoso, onde os bootkggers descarregavam de noite, de revólver na mão, as mercadorias vindas de S. Francisco. Caminhava no desconhecido, sempre seguindo o cone luminoso do seu carro; tinha descido, seguindo o leito da água, já seco; subia sempre para mais alto, para as regiões onde animais atravessavam, correndo, os atalhos, e onde se sentia o cheiro dos skunks, para voltar a descer uma rua que começavam a abrir. Em vários sítios, filas de lanternas vermelhas indicavam o perigo e o precipício; em muitos outros o perigo não era mesmo indicado e isso era bom, distraía. Perdia por uns instantes a recordação de Donca. No entanto, para acabar, foi em frente do estúdio que parou, com o pé direito quási morto, o radiador ardente e as mãos crispadas.
O carro parou justamente ao pé da porta, no lugar onde se lia o aviso: "É proibido parar". Oliver foi, rápido e quási sem ver nada, até ao bungalow de Donca. Vestia ainda o smoking com que a tinha esperado, pois detestava, por um preconceito altivo e bem inglês, o hábito que Hollywood tinha de passar as noites de calça de flanela branca. Maquinalmente, aflorou com a mão o peitilho que lhe pareceu amarrotado. Teria querido um espelho e sentia-se incomensuràvelmente cansado desde que saíra do automóvel,
A avenida dos bungalows estava vazia e pouco iluminada. Em qualquer sítio, tocava uma orquestra. Alguém saiu da arcada do edifício quatro, e projectou no solo uma sombra delgada e ligeira. Era um guarda, um maneta, Oliver conhecia-o.
- Está uma noite maravilhosa, não é verdade?-disse o guarda da noite, alegremente.
- Sim, espantosa. - respondeu Oliver, parando. Tem lume ?
- Parece-me que sim.
- Obrigado. Um cigarro ?
- Muito obrigado, não fumo. Quero fazer economias para comprar uma casa com piscina.
Era um optimista e um velhaco. Já haviam despedido seis guardas e a ele tinham-no conservado. Não tinha um braço e era optimista.
- Então boa noite. Durmo hoje no meu bungalow.
- disse Oliver.
Ardia de impaciência e estava mortalmente fatigado.
- Excelente idea. Aqui é bem mais tranquilo que em Beverley. Durma bem! - disse o homem.
Oliver seguiu-o com os olhos até que ele saiu da avenida e levou a sua sombra fina e maneta. Então, rapidamente, dirigiu-se para o bungalow de Donca. A casa não tinha luz mas não estava fechada. Ele transpôs as duas portas, a de vidro e a de rede de mosquiteiro e deixou-as cair atrás de si com precaução. Parou um momento na obscuridade, não encontrando imediatamente o comutador. Ouviu alguém respirar, depois acendeu.
Numa poltrona, diante da chaminé, Manuela estava sentada e dormia. com a boca aberta e o chapéu na cabeça, tinha um ar extenuado. Oliver dirigiu-se para a escada. Nesse momento, ela acordou.
- Não pode subir. - disse, aflita.
Estava bastante acordada para perceber de-repente a situação mas ainda bastante a dormir porque falou espanhol.
Oliver fez-lhe um sinal.
- O quê ? Durma, eu só quero dar as boas-noites à senhora.
- Não pode ser, é impossível. - disse Manuela. Parecia tão angustiada que Oliver teve medo também,
um medo surdo e sem fim. Como ela quisesse detê-lo, empurrou-a, ouvindo-a murmurar qualquer coisa em espanhol e seguiu o seu caminho. À porta do quarto de Donca não estava fechada: abriu-se com precaução quando ele a empurrou. No interior, estava escuro. Mas, emquanto ele estava ainda à entrada, o candeeiro da mesa de cabeceira acendeu-se. Tinha um abat-jour em pergaminho feito de velhas cartas geográficas. À luz da lâmpada, a mão de Donca apareceu, inerte, e depois o braço. Oliver ainda não conhecia este aposento, mas viu-o todo com um só olhar, com extrema precisão. Tinha paisagens pintadas nas paredes claras, o leito era muito grande, muito baixo e estava todo em desordem. Ao pé do leito, estava Donca. Vestia um velho roupão de caracterização, todo desbotado, cujo desenho de flores era apenas marcado por manchas de ferrugem. Ela sorriu. Retirou do candeeiro a mão que ergueu para ele com um gesto estranhamente resignado ou aflito ou explicativo, que Oliver não compreendeu. Nesse momento viu um homem na cama.
Foi horrível. Assim como um murro muito forte no estômago, como no box... talvez não tão doloroso. O homem era feio, gordo, tinha os cabelos pendentes, para a cara; um pesadelo. Dormia, e o silêncio era tão perfeito neste quarto, que não tinha nenhum motivo para acordar. O seu rosto não pareceu desconhecido a Oliver. Talvez fosse um boxeur. Tinha um olho inchado. Donca estava de pé junto à cama; o seu rosto enérgico, graças ao seu sorriso, tornara-se quási imaterial.
- Oliver. - disse ela em voz baixa.
- É como o enjoo.-pensou Oliver.- Sentiu os cabelos gelados e molhados, assim como as pálpebras. Era preciso sair dali imediatamente.
Peço-lhe desculpa. -murmurou ele. - Não queria incomodar.
Era uma saída pouco razoável, como num filme. Diafragma. Fechou a porta e desceu as escadas. O peitilho estava amarrotado sim, e todo molhado...
Pois desta vez também as coisas não tinham corrido bem para Francis. Não fazia parte das seis loiras platinadas que deviam representar de damas de honor em o Casamento de Billy. Ela não compreendia bem porquê.
- Sempre há um raio de uma lógica neste negócio!- dizia ela num enérgico calão que tinha aprendido com a sua amiga Kít Dalas. - Não sei que andam a fazer. Isto é assim uma espécie de lotaria, an ?
Continuava a não ter quarto seu. Kit fazia lhe a esmola de a receber na sua elegante casa de Orange Drive. Não podia fazer mais nada senão esperar ali que a chamassem pelo telefone do Central Casting Office. Em parte alguma do mundo a miséria é mais bonita nem mais sedutora que em Hollywood. É bem pintada, elegantemente vestida, alojada em quartos claros que dão sobre os cimos das palmeiras e cujo aluguer fica por pagar, passeia em pequenos automóveis comprados a prestações, embriaga-se todas as vezes que tem ocasião para isso, e leva o seu mundo, homens e mulheres, infalivelmente, à ruína. "Exigem que a gente se pareça com a Greta Garbo, que saiba dançar como a Pavlova e cantar como Jeritza, que se tenha espírito como Bill Rogers e por fim não nos dão sequer um job de sete dólares." - resmungou Francis.
Ela vestia um pijama de praia que Kit já não usava, e lavava com ar preocupado, o único par de meias que possuía.
- Sim, e depois é preciso dormir com toda a gente, desde o vice-presídente, até ao último boy. - acrescentou Kit, assando maçãs num minúsculo fogareiro, alimentação barata e que não comprometia nem a pele nem a silhueta.
- Isso dizes tu, a mim ainda ninguém mo pediu.
- Naturalmente, eles não se dão a esse trabalho. É preciso gritar, sim, antes mesmo que eles o peçam, é preciso pendurar um letreiro ao pescoço: "Eu quero,
suplico, quero dormir com toda a gente, com toda a gente, com toda a gente."
Este era um ponto sobre o qual não chegavam a acordo.
-Talvez sim... ou talvez não..-dizia Francis. - Olha a Peggy. Ainda há dois anos era extra e os seus negócios corriam tão mal que roubava o leite das garrafas que ficavam às portas da avenida Franklin... Li isso no Modern Serem. Agora fizeram dela uma vedeta. E porquê ? Queres que te diga porquê ? Porque se vê perfeitamente à distância de um quilómetro que Peggy ainda não esteve com ninguém. Aqui está.
- Sim, Peggy é outro género. Inocência, desporto. Sabonete para crianças. Isso fica-lhe bem. A ti, não.
Francis parou de conversar.
- Posso pôr um pouco do teu verniz de unhas ? ,- preguntou ela, pois o brilho anterior produzido pela manicure ficara prejudicado com a lavagem. Agora, sentada ao pé da janela, estendia com o pincel sobre as unhas um verniz vermelho-escuro, com a atenção de um monge iluminando um missal. Mas aquilo nunca ficava tão bem quando a gente tinha que o fazer a si própria. Suspirou. Pensou um pouco na casa. Lá havia uma árvore, e em frente gardénias. Durante as férias do Natal, seus irmãos iam caçar patos bravos. Quando era pequena, antes do pai falir, possuia um poncy no qual passeava pelos campos de algodão. Os negros traziam os sacos até ao velho navio, que era tão engraçado, e entoavam cânticos que eles mesmos compunham. Mas, de Hollywood, nunca se regressa a casa. As suas unhas estavam um pouco escuras de mais e cheiravam a drops. De-facto, Kit não era uma prova das vantagens que o vício traz. Também não encontrava um job, devia dinheiro à costureira e todos os sábados era um drama para que a conta do alfaiate e o aluguer fossem pagos. O mais que conseguira fora uma ligação com um bootleger chamado Light. Um belo rapaz, de claro rosto irlandês, gentil e bem educado, que fazia todo o possível para que Kit não tivesse filhos. Nunca estava absolutamente em jejum,
nem absolutamente embriagado. A culpa era da sua profissão. Quando tinha dinheiro, saía com Kit e comprava-lhe bonitos presentes: uma raposa argentée e um relógio de pulso, tudo coisas agradáveis e que se punham sem dificuldade na casa de penhores. Muitas vezes era ele próprio que estava embaraçado quando precisava de pagar à polícia ou quando lhe confiscavam uma mercadoria importante. E havia gente de bem, entre os seus clientes. Kit devia acompanhá-lo aos clubes noturnos e aos speak-easies, ser amável com os clientes e mante-los bem humorados. Uma vida divertida, mas deplorável para a pele e para a voz. Francis duvidava que isto a deixasse fazer carreira. "É o meio, pensava ela, de ir acabar em casa da Florência. E, quando pensava em Florência, sentia um arrepio gelado na espinha.
Uma hora mais tarde, Kit continuou a conversa.
- Vocês ligam muita importância a todas essas aborrecidas histórias.
- É uma delicadeza, uma formalidade, uma pequena maçada. Quando te atiram com um fato, que trinta já vestiram antes de ti e encheram de suor, e encontras no pescoço as marcas amarelas do maquillage e és ainda assim mesmo forçada a vesti-lo... também te deve repugnar e, no entanto, veste-lo.
Francis reflectiu. Conhecia bem isso: as longas filas diante da arrecadação de fatos, o cheiro dos vestiários repletos, as ordens draconianas impressas nas paredes, a espera sem fim, as conversas, a rigorosa vigilância. Ao princípio era repugnante, mas depois habituavam-se.
- Talvez já não ligue tanta importância quando souber com que hei-de contar. - disse ela. - Falavam uma linguagem franca mas, dentro disso, punham ainda qualquer coisa, sonhos, desejos que não eram senão a simples, a forte angústia da virgem.
- Se ao menos tivesses uma paixoneta por algum, para te decidires ...
- Sim, é isso. Assim, poderia ser, naturalmente.
- Mas não há nenhum que te agrade mais do que os outros?
- Não.
- Qual é o que te agrada mais ?
- Oliver Dent.
- Oliver Dent? Sim senhor! E porque não o imperador da China?
Francis calou-se. Em pensamento, já ela tinha ido muito mais longe, com Oliver.
- E o teu rapaz, o Aldens, não te agrada?
- Sim. É gentil.
- Bem, e então ?
- Creio que não estou apaixonada por ele.
- Bravo! E ele está apaixonado por ti?
- Julgo que bastante, até.
- E então? Eu começaria por esse. Não encontrarás melhor.
- Sim, mas... é um pouco extravagante. É alemão... bem sabes. Acho que os alemães são todos extravagantes. Nunca se sabe o que eles pensam. Nunca se pode saber o que lhes dá prazer e o que lhes desagrada. Muitas vezes é assim: acabamos de nos beijar como loucos. É claro que ele já me beijou... - disse ela levantando rapidamente os olhos -e depois, de repente, ficamos um ao lado do outro, na sua carripana, muito perto, e tão estranhos um ao outro, tão abandonados ...
Ela calou-se com os olhos muito abertos.
- És muito complicada para mim. - disse Kit. Desta vez, a conversa não continuou.
Sim, era nesse ponto que estavam Aldens e Francis. Ele estava apaixonado pela rapariga, preocupava-se com ela, ajudava-a, tentava impedir que tornasse a desmaiar de fome, recomendava-a, esperava-a. Ela deixava-se proteger. Mas quando estava com ele, sentia-se solitária e abandonada; ele, ao pé dela, sentia-se horrivelmente só. Francis achava-o supérfluo quando ele estava, sentia amargamente a sua ausência quando ele não estava. Durante este período, Aldens adquiriu uma pronúncia um pouco melhor e recebeu alguns beijos que o deixaram insatisfeito e perturbado. E desde que amava, sentia mais do que nunca a nostalgia da pátria.
Desde que amava parecia-lhe que estava condenado
a representar num palco sem bastidores. Não havia lá nem pano de fundo, nem acessórios indispensáveis ao amor. Nada de longos e silenciosos passeios. (Quem, em Hollywood iria passear, além dos mendigos e de Greta Garbo ?) Nada de longas e hesitantes conversas nocturnas, nem de cartas cheias de desejos. Eles não tinham de comum nem poesia, nem música, nem recordações. Haviam dançado juntos uma única vez e não fora um êxito. O seu ritmo era diferente. Não existiam em Hollywood nem matas para errar, - oh! as florestas de faias que rodeiam Darmstadt! - nem prados para se estenderem, nem rios para repousarem nas suas margens, nem campos à beira dos quais a noite caísse, com o vento deitado nas espigas e o som de um sino vindo da aldeia próxima. Aldens, que a paixão amolecia, podia suspirar até as lágrimas, ao ouvir um apelo do cuco, o murmúrio duma fonte através das pedras e do musgo, os sons desharmónicos de uma trompa de caça, ao dobrar um atalho da montanha, por um guarda de vinhas,-tudo coisas tão distantes no espaço e no tempo! No entanto, pedia emprestado o maior número de vezes possível Tac-Tac, o bulhento automóvel do seu amigo Feliciano, pagando ele a gasolina. Instalou mesmo uma espécie de posto de T. S. F. e fazia o que fazem em Hollywood os outros jovens namorados. Levava Francis a passeio, parando onde podia no meio de uma multidão de outros automóveis, na praia ou numa altitude, beijava-a, jantava com ela, encontrava-a encantadora e divertida, depois levava-a a casa de Kít e deixava-a. Ele teria querido mais alguma coisa. Mas tinha um certo medo.
No dia que se seguiu à derrota sorridente e toda vestida de branco de Francis, no perístilo do estúdio da Phoenix Picture Corporation, Aldens foi buscá-la com o Tac-Tac. Ela estava mal disposta nesse dia de esperanças perdidas e precisava que lhe dessem coragem. Aldens, pelo contrário, estava em forma: tinha um sweater novo, amarelo, e uma grande provisão de energia e de confiança em si. Isto vinha do facto de que, após ter vivido como parasita durante meses no quarto de Feliciano,
possuir emfim um aposento seu, a metade de um bungalow cuja totalidade custava quarenta dólares por mês. A outra metade era ocupada durante o dia, por um artista de music-hall e ficava vasia de noite. Aldens associava à posse deste alojamento toda a espécie de esperanças vagas, mas cheias de doçura. Tinha feito, para a recepção de Francis, toda a espécie de preparati vos cujo conhecimento devia às comédias francesas. Bombons, frutos, vinhos e flores. Tinha tapado a gaiola do papagaio, preparado os sais para banho no seu gabinete de toilette e estendido em cima da cama o seu mais belo pijama de seda artificial. Embora este aposento fosse exactamente igual a todos os quartos mobilados de Hollywood, com seu rocking-chair, a sua chaminé, os seus móveis em estilo moirisco, Aldens achava que tinha uma atmosfera aparte, aquilo a que ele chamava a sua "atmosfera". Tinha lá o seu velho chicote, a sua raquete, o seu alaúde, recordação da época em que fazia parte do grupo das "Aves emigrantes". Quem tinha ainda um alaúde em Hollywood ? Alguns livros, uma caixa com fotografias, uma paisagem do pintor Thoma que ele adorava, e alguns discos alemães para o seu estragado gramofone. Não queria de maneira nenhuma esmagá-la com o seu amor. Queria apenas fazê-la entrar lentamente dentro do seu mundo. Ela tinha estremecido quando ele a beijara da última vez. Criança, criancinha. Havia qualquer coisa nesse frémito que um homem nunca mais pode esquecer...
- Foi bom teres vindo, - disse Francis quando ele apareceu - tens dinheiro ? Podemos fazer loucuras ? Parece-me que hoje preciso de fazer loucuras para me alegrar.
- bom. -disse Aldens. Já que ela tinha necessidade de se alegrar ele não desejava melhor. Fez rapidamente as contas. Renunciando mais uma vez a desempenhar o relógio, podia oferecer-lhe uma noite cheia de loucuras.
- Mas em quê, não me dirás ?
- Num gambling-boat, se quiseres.
- De acordo. - disse Aldens.
Ele fazia uma idea imprecisa e perturbada desses barcos iluminados e cheios de atractivos que se viam à noite, imóveis, para além de uma zona fixada, protegida pela lei. Diziam uns que lá se entregavam a orgias, outros que aquilo não era isento de perigo e que às vezes os revólveres chegavam a falar. Isso pouco lhe importava.
- Queres jogar ? - preguntou ele, pondo o motor em marcha.
-Serias muito amável se me emprestasses um dólar. - disse ela.
Eram seis horas da tarde e, emquanto o céu se obscurecia rapidamente, as ruas tornavam-se resplandecentes. Tac-Tac pôs-se em marcha ruidosamente.
Atravessaram Hollywood e as suas avenidas bordadas de vivendas que não eram senão um enorme bairro de Los Angeles, pois ela própria era Los Angeles. Aldens pensou que esta cidade tão grande como um reino médio era, muito provavelmente, uma das mais feias do mundo. No entanto, não disse nada. De resto, Francis não o teria compreendido. Chegaram finalmente à comprida estrada que vai dar a Long Beach. Havia uma porção de automóveis à frente e atrás deles. Aldens desejava que Francis pusesse os braços em redor dos seus ombros como faziam todas as outras raparigas em todos os outros carros; mas ela não o fez. Manipulava o aparelho de T. S. F. onde conseguia apanhar de vez em quando alguns pedaços de música que não continuava.
- Quanto dinheiro tens contigo ? - preguntou ela mais tarde.
- Não precisas de saber. - respondeu ele com orgulho, embora não cessasse de pensar se seria suficiente. Tinha um pouco mais de dezassete dólares.
Passaram diante de numerosos derricks e meteram-se pelo campo. Aí, tudo estava sombrio e sem ninguém, mas o cheiro a gasolina era tão forte como antes. Enganaram-se duas vezes no caminho e foram dar a uma rua debruada de eucaliptos delgados e munida de um letreiro indicador. Um fino nevoeiro caía, já não se via a cidade, mas apenas o seu reflexo no céu.
- É por ali que entraremos. É preciso prestar atenção às árvores. - disse ele. - Estava um pouco perturbado pensando no barco de jogo e guiava muito bem e muito de-pressa. Depois sentira o cheiro intenso de grude vindo de uma fábrica que ficava no porto, com grandes paredes brancas e fileiras de janelas iluminadas. Por fim, chegaram a Long Beach. Encontraram o parque de estacionamento, e a canoa automóvel levou-os às embarcações. Estava cheio de gente nova como eles, com alguns habitantes de Los Angeles. Baixo e rápido, ondulava atravessando o sulco dos barcos que partiam. Dois rapazes ébrios cantavam à maneira dos negros, embora fossem brancos. A água saltava para a canoa; riam. Passaram adiante da luz vermelha, e da luz verde que marca a entrada do porto; depois a calma e o silêncio e uma languidez sentimental pesaram sobre o barco.
Dois barcos de jogo" estavam ancorados fora. Barcos de excursão, de grandeza média brilhavam, iluminados: uma quermesse em pleno mar. Dos dois ouviam-se ruídos de música. Sem mais formalidades, os nossos heróis foram colocados numa das embarcações. Tiveram que pagar o regresso adiantado, medida de precaução contra as pessoas que, depois de lá terem perdido até ao último cobre pretendiam ainda que os levassem a casa. Aldens empurrou Francis para a entrada. Estava fresco e ela vestia o pijama de praia que Kit lhe tinha emprestado: uma calça larga e uma blusa de malha azul, no bolso da qual ela metia as mãos como um rapaz.
No interior, o barco parecia um restaurante extremamente suJo e Os ladrilhos tinham inúmeras marcas de sapatos e baloiçavam-se um pouco da direita para a esquerda. Exceptuando a música que tocava na sala vizinha, reinava o silêncio. Havia ali gente de várias espécies.
Novos e velhos, namorados e casados, pares que, visivelmente se detestavam, indivíduos isolados. Havia jogadores profissionais e croupiers de caras respirando honestidade, burgueses que tinham apertado o cinto em cima da barriga para darem às suas pessoas certa elegância e antigas prostitutas ultra-velhas, com boas plumas
e maus dentes, - irmãs sórdidas das cocotes septuagenárias de Monte Carlo. Contra as paredes, em redor, havia aparelhos automáticos onde podiam arriscar dois cêntimos e várias mesas silenciosas e sérias de poker...
Uma banca subiu a mil e setecentos dólares. Em volta da mesa os homens tinham as barbas crescidas, pois a partida já durava havia dois dias, como alguém segredou a Aldens. Havia um grande número de roletas e de rodas da fortuna, uma lotaria e diversos outros aparelhos. E, em todas as mesas, isolados ou em monte, grandes dólares mexicanos, dinheiro todo cinzento.
Aldens trocou dez dólares e deu um a Francis que logo o jogou e perdeu.
- Tens aqui mais cinco. - disse ele. - Quando acabarem, não te dou mais.
- És um amor, obrigada.
Ela escolheu uma mesa de roleta, instalou-se, olhou um momento e começou a colocar as moedas, com ar de quem se aborrecia imenso. Aldens contemplava-a de perfil. Era sem dúvida a mais linda rapariga que estava no barco e agradava-lhe tanto que chegava a fazer-lhe mal. Não era amor o que sentia, mas um sentimento muito forte. Estava seduzido pelo seu rosto delicado, e a cabeleira polvilhada de platina, pela curva do seu verdadeiro lábio superior que adivinhava sob o bâton e pela cinta ridiculamente delgada que facilmente se podia abranger com as duas mãos.
- Não estamos aqui muito tempo. - disse ele numa voz enrouquecida.
- É esplêndido, isto. - disse ela. -É tão divertido! Aldens olhou à sua volta. Raramente tinha visto
tanto mau humor reunido num só lugar. O chão movia-se. O croupier tinha o nariz partido, era um antigo boxeur, ou. talvez um sifilítico. Tudo era horrorosamente insípido neste barco. Aldens rodeou a cintura de Francis. Ela deixou. As suas ternas espáduas responderam-lhe mesmo por uma ténue pressão. Estava a ganhar, julgou ele. Quando a foi buscar, tinha um ar fatigado, mas agora estava com uma bela cara. Ganhava, perdia e tornava a ganhar. Aldens tirou bruscamente
os seus outros quatro dólares e de-pressa os perdeu. Isto causou-lhe certa amargura. Ele era de Darmstadt, de boa família, nunca podia adquirir a inconsciência infantil desses americanos. Tinha ainda cinco dólares e cinquenta cêntimos na algibeira. Pagara antecipadamente o direito de estacionamento assim como os bilhetes do barco.
- Vem. - disse ele - Vamos comer. Não fiquemos aqui muito tempo.
Tinha uma certa piedade de si próprio, ao pensar nos preparativos que tinha feito em sua casa. Uma paisagem de Thoma e canções acompanhadas ao alaúde.
Sentia-se desagradàvelmente só consigo mesmo, na terra.
- Pronto! - disse Francis. - A menina vai já acabar, a menina ganhou sete dólares. Tanto como um dia de trabalho. Foi maravilhoso.
Apanhou o dinheiro e esperou.
- Tens aqui cinco que são teus, Achas que posso guardar o resto ? - preguntou num tom infantil e tímido.
- com certeza. - disse Aldens.
Agora ele tinha outra vez um pouco mais de dez dólares. Francis tinha sete.- Vamos comer.- disse.
- Sim, e beber. - acrescentou Francis.
Ela deu-lhe o braço, cantarolando uma ária, ao compasso da qual caminharam.
O restaurante do barco era uma pequena sala mal iluminada, ao pé da sala de jogo. Havia ali um bar onde não se vendiam senão limonadas e leite com malte. Entre as mesas pouco numerosas, tinham reservado um espaço para dois pares dançarem. O criado era um homem de cor, de maneiras um pouco familiares.
Aldens encomendou. Os preços eram exorbitantes.
-Queres dançar? - preguntou Aldens.
- Sim, daqui a pouco. Primeiro quero beber. - disse Francis.
Aldens olhou à sua volta.
- Aqui não há nada que beber. - respondeu pouco à vontade.
O barco representara-se-lhe como um lugar de orgia mas afinal tudo era insípido e burguês.
- Parecia-me que devia haver que beber, mas não há. - disse ele, observando, receoso, o rosto de Francis e tornando-Se triste.
- Não há que beber ? Olha que brincadeira! Vai ser uma noite divertida. Tu não trouxeste nada para beber?
- Não, com certeza. - respondeu ele, teimoso. Existia constantemente entre eles um motivo de
discussão. Ele recusava-se a trazer, como todos os outros, na algibeira do revólver, um frasco chato, de álcool, e a deitar, com ar de conspirador, gin no seu ginger ale. Isto parecia-lhe muito ingénuo e infantil e não sentia nenhum prazer com a bebida que daí resultava. Mas Francis, educada nas doutrinas da sua geração, achava que um homem sem um frasco no bolso não era um homem.
- Vamos, vamos! Arranja qualquer coisa que se beba senão tenho uma crise de nervos.
Aldens levantou-se, furioso. Dirigiu-se ao bar com o ar decidido que se toma antes de um duelo.
E quando se voltou e olhou para Francis, não eram dois metros de chão sujo que o separavam dela, mas um iceberg, um oceano, um precipício.
Era profundamente injusto com Francis, nesse momento. Sentada diante do seu ginger ale, ela tinha lágrimas nos olhos e torcia as mãos. Tomara uma decisão. Estava pronta, disposta e decidida a dar "o primeiro passo" nessa noite. Tinha tomado a resolução de se tornar nessa noite amante de Aldens. Mas, com a breca! para isso era necessário que a ajudassem um pouco. Era preciso que se embriagasse, que tudo andasse à sua volta, que se sentisse turvada, era preciso beber e dançar, e andar a uma velocidade louca e que a beijassem de tal forma que mais nada existisse. Agarrou desesperadamente, com as mãos na pequena garrafa de ginger ale, fria e sem poesia, e invocou o céu para que ele lhe enviasse, com a embriaguez, o seu socorro e a sua assistência. Estava longe de pensar que, no
quarto de Aldens, estava uma paisagem de Thoma e um alaúde destinado a seduzi-la lenta e ternamente.
- Gostava bem de arranjar um pouco de dores de cabeça. - disse Aldens ao homem do bar.
- Isso não temos. - respondeu-lhe ele.
- Ora vamos, é assim tão rigoroso ? O ginger ale não tem gosto nenhum sozinho.
- Lamento. Quem quere ter aqui dores de cabeça, deve-as trazer consigo. - disse o homem. - Há muita polícia a bordo. - acrescentou, baixo.
- Sim ? Então nada feito ?
O homem já não ligava importância a Aldens, que se voltou para Francis. Tinha um ar desesperado. Compreendeu-a um pouco e adivinhou que precisava de beber para se aturdir.
- Parker talvez lhe arranje qualquer coisa, ele está teso. - disse-lhe, ao passar, o homem do bar. Aldens fez-lhe sinal e saíram juntos. Numa piscadela de olhos, mostrou-lhe um homem de calças de tennís e casaco azul, em pé, junto do bar. No lavatório foi-lhe revelado que o homem tinha um grande frasco quási cheio de gin fabricado em casa. O homem fez-lhe notar que esse gin era muito forte, que embriagava muito de-pressa e pediu-lhe cinco dólares. Era um preço vergonhoso, mas os dedos do homem tremiam, não tinha nada nas algibeiras como mostrou a Aldens e não podia deixar de jogar. Aldens comprou o gin e o homem voltou para a sala de jogo. Era um tráfico repugnante, e Aldens corou. "Pronto! Agora podes envenenar-te. Tem álcool etílico lá dentro." - disse ele, indo ter com Francis e dando-lhe a garrafa,
A-pesar-de tudo, o gin era forte e bom e, depois de ter bebido três copos, Aldens começou a sentir-se feliz. Francis e ele conversavam agora e divertiam-se. Dançaram, desta vez em perfeito acordo. Voltaram à sala de jogo e perderam mais algum dinheiro. Depois, voltaram a dançar e beijaram-se na ponte, ridiculamente pequena, pegada ao barco como se não fizesse parte dele. E dançaram mais, desta vez de acordo, dizendo que era tempo de regressarem. Aldens preguntou
ao ouvido de Francis se ela queria -ir a casa dele ouvir alguns discos de gramofone. Ela olhou-o de soslaio, e, corajosamente, fez sinal que sim. Depois, entre eles, caiu o silêncio e uma atmosfera, ardentes. Desceram para o barco e Aldens aproveitou os quarenta minutos que durou a travessia para fazer pequenas excursões na mão de Francis, uma nervosa mão, trémula, meiga e viva.
Francis encostou a cabeça contra o ombro do seu companheiro e sentiu-lhe o calor e a respiração. Pensou que estava finalmente apaixonada por ele e alegrou-se com isso. Tentou imaginar o seu corpo e não teve medo nenhum. Mas, na realidade, era o corpo de Oliver Dent, que ela via de olhos fechados na cena de um filme passado em Honolulu e em que ele aparecia em aquaplano.
No porto, foram procurar Tac-Tac. O cheiro da cola voltou a ser mais forte; a fábrica trabalhava ainda mas o nevoeiro era tão denso já que só se lhe viam as luzes e não a forma.
- Empresta-me um dólar? Já não tenho nada.
- disse Aldens. - Preciso de cravar alguém.
Francis meteu a mão na carteira: ainda tinha dois dólares. Deu-lhe primeiro um, depois, muito de-pressa, o segundo. E a seguir rodeou-lhe os ombros com os braços como ele antes desejara.
Partiram e encontraram a alameda dos eucaliptos. Mas, depois de terem rolado um momento entre as árvores, não viram mais nada. Uma bruma espessa, como se forma no mar, tinha-se estendido sobre o caminho e abafado todas as coisas. Já não viam as árvores nem a margem da estrada. Acabaram por não ver mesmo a luz dos próprios faróis. Em frente do automóvel, tudo era espesso e sombrio como algodão negro. Acharam isto muito engraçado. Aldens desceu e pôs-se em frente do carro; de-repente, desapareceu como por encanto. Voltou, tomou outra vez lugar ao volante e tornaram a pôr-se em marcha. Uma ligeira claridade permitiu-lhes distinguir uma casita ao pé da estrada; depois o nevoeiro adensou outra vez, passando adiante
deles em massas redondas. Um automóvel passou rente a eles. Era soberanamente perigoso. Aldens parou para o deixar passar à frente não querendo expor-se a entrar por ele dentro, do lado de trás. De súbito, caíram nos braços um do outro e beijaram-se furiosamente. Já não havia nada de estranho entre eles - quási nada. Francis deixava-se beijar num abandono quási doloroso. Quando a deixou e os seus lábios se separaram, Aldens tremia todo. Voltou a pegar no volante e continuou o seu caminho.
- Estás embriagado ? - preguntou ela.
- Sim, de ti. - respondeu ele.
O carro ia aos safanões. Era ainda capaz de dar, se fosse preciso, velocidades espantosas, mas para andar lentamente estava muito mal. Cada safanão encostava mais Francis contra Aldens. Ela deixava se tombar contra ele e repousava um momento antes de se endireitar. Ele ria, num riso embaraçado. Carregou na velocidade. Um pouco de luz apareceu através o nevoeiro.
- Ainda vamos na estrada ?
- Creio que sim.
- Podes ver do teu lado a margem da estrada ?
- Não. E tu ?
- Eu também não. Deve haver árvores por aí.
- Creio que vamos mesmo no meio da estrada.
- Bem. - respondeu Aldens.
Nesse momento, ouviram qualquer coisa, mas era já tarde demais. Em frente deles, o nevoeiro negro tornou se cinzento, depois esbranquiçado, depois triangular, depois pôs-se a uivar. Eles sabiam já que era um choque. No entanto, o último centésimo de segundo antes que ele se desse, pareceu espantosamente longo. Depois, foi o choque.
Oliver Dent havia percorrido centenas de infernos de toda a espécie desde que tinha deixado o bungalow
de Donca, infernos vermelhos, negros, amarelos como enxofre. Assim que regressou, tinha começado a beber e desde então nunca mais tinha parado. Vinte e quatro horas de embriaguez, de dor de cabeça, de uma espécie de enjoo, de dor interna ao pé do estômago, ou no coração ou na alma. Tudo isto era pouco preciso. Tinha bebido e dormido, acordado e tornado a beber. Acordara, tomara banho, tinha mesmo feito a barba mas o copo de whisky ali estava, no seu quarto de toilette ao pé do espelho. Tinha bebido e feito um assalto de box: seis rounds sérios. Tinha vencido Nando. Nada. Nenhum alivio. Tornou a beber. Depois, o automóvel: o grande Lincoln, desta vez, ao qual podia pedir qualquer velocidade. com Jerry atrás, e a mala cheia de garrafas à frente tinha partido para Aguas-Calientes. Mais de trezentos quilómetros em menos de quatro horas. Como refeição, apenas algumas nozes. Bêbedo como um cacho. E a respeito de alívio, nada. Continuou o seu caminho para Tia Juana, salão de uma das cem tabernas que por lá se encontram. Músicos mexicanos, dançarinas mexicanas garridas e sujas. Creoulas de Cuba a quem a rumba arranca o vestido dos ombros. Toda a gente está bêbeda e cheia de poeira. Puff! Mulheres ! Puff! Mais bebida. Vontade de vomitar. Fuga. Regresso, pela fronteira, dentro da noite, para a Califórnia.
Aguas-Calientes e Tia Juana são lugares de prazer, plantações de orgia, após a fronteira mexicana. Aí, tudo é permitido: álcool, jogos de azar, prostituição. Aguas-Calientes é cara e crapulosa. Tia Juana é crapulosa e barata. Aí, do lado californiano da fronteira, pequenas aldeias estão delicadamente dispostas ao fundo das baías e os japoneses estendem panos sobre os campos de flores para as proteger contra o sol e o frio. O silêncio é um suplício para os nervos de Oliver. Toca a busina e faz um concerto com ela; o seu automóvel corre e baloiça, roçando por todos os outros.
- Deixe-me guiar. - suplicou Jerry, mas Oliver estava profundamente embriagado. Parecia-lhe que aquilo lhe doía menos guiando e praguejando. "Aquilo", era
a dor interna que Oliver não definia bem. Uma vez passado o estado de embriaguez tumultuosa veio o da embriaguez teimosa e muda. O carro fende a noite à velocidade de oitenta e cinco quilómetros. "Preciso de me distrair."-pensou Oliver. Isto pareceu-lhe uma boa idea e que merecia ser comunicada.
- Preciso de me distrair. - confiou ele a Jerry.
As palavras têm um rosto. Distrair-se era uma linda palavra leve e flutuante, mas onde se encontrava também um pouco de cemitério. Preciso de me distrair."-cantou Oliver. No cemitério as ossadas estão ao acaso. Entrou em San Diego, cantando.
Um polícia multou-o.
- Senhor, - disse Oliver, à guisa de explicação - eu só queria distrair-me. É muito importante que eu me distraia.
San Diego é uma bonita localidade com o seu posto, os seus pequenos navios de guerra muito gentis e, nas ruas, marinheiros muito limpos, vestidos de branco. Oliver convidou quatro a entrarem para o seu carro. Estava aborrecido das mulheres. Tinha um vivo desejo de ter homens ao pé de si, de conversar com eles, de ouvir as suas palavras, palavras simples e nas quais se pudesse fiar. Os marinheiros levaram-no a uma casa fora da cidade, que tinha uma janela gradeada. Era uma casa de bem, evitando-se o primeiro andar onde dançavam raparigas.
O rés-do-chão ficava no flanco duma colina: cactos, uma linda vista sobre a baía, um bar com imensas garrafas. Whisky não havia, mas havia gin. Esse gin não sabia a gin mas era agradável, Tinha um gosto a metal ardente e a outra coisa ainda. Oliver, com a língua paralisada, procurava reconhecer esse extranho sabor. Bebeu três copos puros. O quarto caiu e entornou-se sobre a mesa. Jerry, que não tinha bebido, olhou-o com inquietação. Tinha o sentimento do perigo. A casa era tranquila e limpa, na parede via-se o cartaz sorridente dum dentrífico e o horário dos camiões postais. O perigo não era aparente, mas invisível e oculto. E o gin não sabia a gin.
De repente, Oliver levantou-se. Tinha as pernas firmes; e só quem o conhecesse bem como Jerry podia saber que ele estava bêbedo.
- Já basta. - declarou subitamente.-Nem uma gota mais. Basta.
Bebeu uma água mineral mas o gasoso frio dessa bebida não foi bastante forte para fazer desaparecer o gosto metálico e tenaz do gin. Oliver pagou e voltou para o automóvel.
- Deixe-me guiar. - suplicou Jerry. Oliver olhou-o pensativo.
- Quando estiveres como eu, meu filho, deixo-te guiar.
Tinha as pestanas cheias de poeira e os lábios secos e gretados.
- Aqui nem a lua se vê. - disse ele, abanando a cabeça como diante de uma coisa incrível. Partiram.
Foram bem durante cerca de vinte minutos. Depois entraram no nevoeiro, que subia do mar, espesso, coisa compacta e que suprimia os arredores, pura e simplesmente. Não podiam fazer outra coisa senão avançar no invisível. Oliver teve por momentos a sensação de dormir, tanto vácuo havia à volta dele. Às vezes, parecia-lhe que iam direitos a um ponto onde o mundo deixava de existir e que a queda ia dar-se. Pensamento agradável e reconfortante no estado em que se encontrava. Pensamento inseparável do desejo de se distrair. E andava, andava. Pela primeira vez, nessas vinte e quatro horas, sentiu-se um pouco mais aliviado. Andava sem saber há quanto tempo nem em que velocidade. Andava e isso satisfazia-o. Talvez dormisse realmente até chocar com o pequeno Ford de Aldens.
No momento do choque os dois travões gritaram assim como as quatro pessoas que estavam nos dois carros, o vidro e o metal. Depois houve uns minutos de silêncio. Então Aldens, preguntou:
- Francis, aconteceu-te alguma coisa?
- Não, creio que não. - foi a resposta.
Saíram do carro amachucado, com as pernas e os lábios trémulos, mas sãos e salvos.
- Bonito serviço! - disse Aldens, olhando para o carro.
O pára-brisas estava feito em bocados. O radiador torcido. O Lincoln tinha sido desviado mas parecia não lhe ter acontecido mais nada além da rutura do pára-choques. Por causa do nevoeiro não se via grande coisa mas o carro de Oliver possuía poderosos faróis que ardiam ainda, fazendo de tudo uma pequena bola de luz. O Lincoln tinha o ar dum animal escuro, encolerizado. Jerry saiu primeiro. Depois Oliver. Também estavam sãos e salvos. Assim que se encontraram na estrada todos os quatro vivos, puseram-se a rir, num riso estúpido, nervoso, ruidoso; uma espécie de grunhido.
Não se puderam conter durante muito tempo e quando aquilo acabou, tinham também quási deixado de tremer.
- Você teve sorte meu rapaz! - disse Oliver.
- Mais que o senhor! - respondeu Aldens - Porque vai ter que pagar ao meu amigo Feliciano qualquer coisa parecida com um carro novo.
- O meu secretário vai dar-lhe a minha direcção.- replicou Oliver cerimoniosamente.
- Mas que é isso, Oliver? Nós conhecemo-nos.
- É o Sr- Sr, Aldens. - explicou Jerry, Ajudou-o no Cardogan... foi o seu standing.
- Pois é. Eu bem veJo e Tenho muita pena, Aldens. Mas neste maldito nevoeiro a gente não vê nada. E depois eu bebi uma certa quantidade de gin. Desculpe.
- De nada. Eu também não estou em jejum. Examinaram os estragos dos carros. Francis ficou
à beira da estrada, contemplando com os olhos esgazeados os vultos que o nevoeiro envolvia.
- Espero que não tenha acontecido nada a essa menina. - disse Jerry.
- Não ; ela é rija. Vem cá Francis. Cumprimenta.- disse Aldens em tom de proprietário. É miss Warrens, Oliver uma das suas grandes admiradoras.
- Encantado, miss Warrens. - respondeu Oliver, cortesmente,
Estava outra vez senhor de si depois do choque que tinha recebido no estômago e no cérebro.
- Tudo isto me causa muito desgosto mas ninguém é culpado.
E quando Francis pôs a mão, a sua mão trémula na de Oliver que tremia um pouco, também a rapariga não sabia ao certo se estava acordada ou desmaiada.
O sonho tinha demasiado lugar neste primeiro contacto. Ele conservou por uns instantes a mão de Francis na sua. O nevoeiro rolava, fugia, adelgaçava-se a cada segundo. Francis, nesse momento, sentiu com particular precisão que era pequena, muito jovem e indefesa.
- Esta menina está a deitar sangue, Aldens! - exclamou Oliver.
Francis passou pela cara a mão que tinha livre.
- Não sinto nada. - disse ela. - Talvez algum arranhão de um estilhaço de vidro.
A sua mão tinha vestígios de sangue, e ao mesmo tempo, começou a sentir no olho esquerdo um certo ardor. Voltou a tocar-lhe.
- Não é nada. - disse.
Aldens mexia no seu carro. O motor trabalhava ainda mas a roda direita da frente estava torcida e, Tac -Tac, dava pulos e coxeava lamentavelmente.
- Chegarão a Los Angeles ? - preguntou Jerry. - Ou querem que os levemos?
- Obrigado. Não vale a pena. Não posso deixar aqui o carro, que não é meu. vou mesmo a coxear.
- Nós levamos esta menina.- disse Oliver com indiferença.
Estava um pouco menos embriagado e aquilo" recomeçava a doer-lhe lá ao fundo, mesmo no fundo.
- Obrigado, mas creio que miss Warrens prefere regressar comigo. - disse Aldens, um pouco secamente.
Era bom viver, mas muito aborrecido estar ali com o carro escangalhado e ver escangalhar também uma noite que começava a ser esplêndida. Olhou Francis à luz do farol. Ela tinha os lábios entreabertos mas não dizia nada. Um leve fio de sangue corria da pequena ferida.
- Ninguém pode pedir a esta senhora para ficar em tal caranguejola. Nós levamo-la primeiro que tudo a uma farmácia. É preciso ligar-lhe a ferida. - declarou Oliver, muito razoavelmente.
- Sim, Leve-me, peço-lhe.-disse de-repente Francis. Aldens estava debruçado em via de mexer no guarda-lama; endireitou-se e bruscamente olhou para ela.
- Isso não é possível! - disse severamente.- Tu ficas comigo.
Era, sem dúvida, uma ordem brutal. Ela estava ali em pé, à luz do farol, com manchas leves, de nevoeiro, diante do fino rosto. Ele conservava ainda nos lábios o gosto dos beijos loucos que tinham trocado há pouco. O choque não o havia tornado mais terno, mas, pelo contrário, absolutamente rebelde.
- Não; comigo é que tu vais voltar. - disse ele. Pendiam-lhe as mãos e sentiu-as de-repente tão pesadas como se tivesse um martelo em cada uma. Sentiu uma grande vontade de bater em qualquer coisa com os seus dois martelos. Francis deu rapidamente volta ao carro. Ele dirigiu se para ela e agarrou-a pelos ombros.
- É absolutamente preciso que me deixes ir com ele, É a minha melhor oportunidade. Pois tu não compreendes isto ? A minha melhor oportunidade.
Ela segredava, e aquilo tinha o ar de um segredo apaixonado. Depois de ter falado, olhou-o ainda uns segundos nos olhos, silenciosamente e com insistência. Houve entre eles um momento de tensão espessa e dura como um cabo: de-repente, tudo acabou.
- Vai para o diabo! - exclamou Aldens, em voz alta. Voltou-lhe as costas completamente e entregou-se
ao carro. Ter esperado tanto, ter suplicado tanto, gasto tanto amor, desejo, (ele pensou a palavra alemã: Sehnsu chi, essa palavra absolutamente intraduzível) e depois, à noite, a dança, as promessas, os beijos. Quando tudo tinha atingido esse ponto, a vedeta chegava e levava Francis. Ele, Aldens, ficava no fosso. Standing! As grandes cenas era sempre o outro que as representava. O êxito era sempre para ele, Standing! Cena da vida de um Standing. Delicioso! Tinha um frio estranho no céu da boca. Num esforço, endireitou o guarda-lama; depois disto, sentiu-se um pouco melhor. Francis estendeu-lhe a mão que ele fingiu não ver e que caiu como um pequeno animal.
- Telefono-te amanhã. - disse ela. Era a frase com a qual se acabam hoje três quartas partes das ruturas e das tragédias. Francis rodeou o carro e desapareceu um momento no nevoeiro e na obscuridade, depois, reapareceu. Oliver tinha esperado com impaciência, mas aparentemente indiferente. Voltava a doer-lhe a cabeça.
- Agora quem guia sou eu. - disse Jerry com inesperada energia agarrando o volante com as suas mãos frágeis.
- Pois sim. - respondeu Oliver.
Empurrou Francis para o carro e entrou após ela.
Puseram-se em marcha, deixando Aldens no caminho. Os faróis estavam destruídos e, logo a seguir, a noite envolveu-o.
Oliver meteu-se a um canto e durante algum tempo só se preocupou em arranjar lugar para a cabeça, mas doía-lhe sempre, fosse qual fosse a posição, e renunciou.
Francis esforçou-se por conservar uma atitude natural e por não olhar para ele. No entanto, nunca o desfitou.
Ele fez-lhe algumas preguntas, absolutamente distraídas e de pura delicadeza. Se ela também fazia cinema. Em que companhia. Como ia a sua ferida. Se lhe doia. Uma vez cumpridas estas formalidades, fechou os olhos. Daí a pouco perdeu-se no país-fronteira, entre o sono e o estado de vigília, país cheio de sustos súbitos e de arrepios. O silêncio, no carro, tornou-se impenetrável. Jerry marchava lentamente, evitando safanões. Oliver preocupava-o.
O nevoeiro continuava, mas agora era mais delgado, deixava passar a luz e tinha o sabor de uma essência composta de benzína e de alcatrão. Tudo isto era quási irreal e andavam ao acaso. "Brr." fez Oliver, estremecendo. Francis tomou uma decisão: aproximou-se dele, oferecendo-lhe o calor do seu corpo. Sem abrir os olhos, ele rodeou-lhe os ombros com o braço e
puxou-a contra si. Era o movimento reflexo de um animal triste, desejoso de escapar ao frio. Francis não percebeu nada e achou este gesto maravilhoso. Tudo nela era tensão e espectativa. Em Oliver, só havia lassidão. Deixou a sua boca aflorar esses cabelos estranhos. Nem uma palavra foi trocada durante, pelo menos, uma hora.
Um pouco antes de Los Angeles, a nuvem desapareceu como cortada ao meio por uma faca e a cidade surgiu, iluminada com todas as suas luzes, as casas e os arranha-céus. Estavam já em Vine Street uma das ruas mais longas que ligam Los Angeles a Hollywood, quando Jerry se voltou e inquiriu: "Onde quere que a deixemos, miss Warrens ?
Francis tinha partido para muito longe em pensamentos e em imaginação durante aquela hora. Sentia-se feliz, numa felicidade sem limites e sem medida, tendo o braço de Oliver em redor dos ombros, esse braço quente em volta das suas espáduas ardentes e muito magras, e a boca de Oliver contra a sua testa. Ao mesmo tempo fizera uma carreira vertiginosa, tendo sido descoberta e representado com Oliver grandes filmes. Tudo isso já ela tinha gozado durante uma hora, os filmes, os cartazes, os vestidos, os passeios a cavalo de manhã, com Oliver. Vira-o uma vez passear a cavalo com Ria Mara e duas com Madame Moresco. Isto tinha-lhe parecido sempre o cúmulo da felicidade: era tão elegante, e depois, toda a intimidade da noite planava ainda sobre o casal de amantes que saía de manhã a passeio. Assim que Jerry a despertou, ela desceu à pressa do seu cavalo de sonho:
- Moro em Orange Drive.- disse submissa.
Tudo tinha acabado, tudo tinha acabado num momento. O carro passou além dos terrenos do golf em miniatura e os blocos resplandecentes dos mercados com as suas pirâmides de melões e as suas colinas de pêssegos. Aí começava já a atmosfera mais fresca de Hollywood. Um moinho, com montras cheias de doces, uma parede coberta de cartazes de cinema; um restaurante mexicano, outra parede cheia de anúncios de cinema,
um sinal de paragem diante do qual se agrupavam os automóveis, mais uma parede coberta de anúncios de cinema.
Acabou-se! Ainda uma rua a voltar, depois, era preciso apear-se. Tinha dado um passeio de uma hora de automóvel com Oliver Dent. Parecia-lhe até que ele a tinha beijado. Agora, era o fim. Ele não a reconheceria se a encontrasse no estúdio, Francis não tinha ainda chegado a perceber porque é que as pessoas não a reconheciam ou a confundiam com outras; não tinha ainda discernido que a sua desgraça e o seu destino se encontravam circunscritos pelo facto dela ser como todas as outras. Na sua terra, era a mais bonita. A mais bonita rapariga de Fairmont. A beleza na sombra. Uma pequena rainha de beleza. Em Hollywood, só havia rainhas de beleza, e faziam quanto podiam para se valorizarem. Cabelos platinados, unhas encarnadas, faces ocre, sobrancelhas azues. Ontem, era uma vedeta que usava isto, hoje és tu, amanhã é toda a gente. As pequenas Francis não podem compreender porque as grandes Moresco fazem sucesso e elas não ...
- Nesta esquina ou na outra ?-preguntou Jerry, voltando-se. Francis afligiu-se. Concentrou toda a energia que lhe restava. Por felicidade, sentia-se ainda um pouco embriagada; o gin que Aldens tinha comprado, no lavatório do barco de jogo, continha força e dava coragem.
- Escute, - disse ela-eu enganei-o. Não tenho casa. Esta noite ia dormir com Aldens, agora já não é possível, ele está zangado e depois ... precisa ainda de algumas horas para poder chegar a casa. - acrescentou, vendo Jerry recuar. Ele parou. O seu rosto de rapariga, de bigodinho, apareceu inquieto. Reflectia.
- Podemos levar miss Warrens para casa ? - preguntou emfim. Oliver acordou a custo. Também ele sonhava. Tinha assassinado Donca e isso tinha sido para ele um grande alívio. Logo a seguir foi a um rio muito bonito pescar trutas à linha. Vira esse rio um dia em que filmava na montanha e desde então o rio reaparecia sempre nos seus sonhos. Ficou contente por se encontrar na Vine Street.
- Quê ? Quê ? Esta senhora ? Evidentemente, leva-a.
E como ele era Oliver Dent, por amabilidade inata, sorriu a Francis antes de fechar os olhos. Ela enganou-se sobre o significado deste sorriso.
A casa de Oliver era qualquer coisa de estranhamente vazio, de cavo e sonoro. Foi pelo menos o que lhe pareceu quando chegaram de noite, muito tarde. O seu quarto de cama ficava no primeiro andar, ao lado, havia uma pequena sala de almoço, nunca utilizada, depois três quartos de amigos e a casa de banho. Por fim, no termo do corredor, dois aposentos para Jerry. Emquanto subiam, Oliver ia ainda abraçado a Francis, estava tão fatigado que não tinha forças para se separar daquele calor. Deu-lhe as boas-noites, mas deixou aberta a porta do seu quarto de cama. Não era uma conclusão clara? Já dentro, encontrou Tobias que, no tapete, tamborilava com a pequena cauda uma fanfarra de boas-vindas.
- Quem te deu licença para me esperares aqui ?
- preguntou Oliver, severamente, à bolinha de seda branca. Tobias, desta vez, havia tomado o seu banho e estava perfeitamente limpo; ele sabia-o. Tinha estado em cuidado com o dono, todo o dia. Voltou os olhos para ele. - Tu és um preto. - disse Oliver, Era uma velha brincadeira entre eles, uma brincadeira que aludia ao olhar negro que a pupila azul-clara de Tobias tinha de vez em quando. Tobias sorriu amavelmente, mas ainda com certa inquietação. Depois, saltou para o leito do seu dono emquanto ele se dirigia para a sala de banho e abria as torneiras.
- Que liberdades são essas ?-preguntou Oliver, desta vez zangado. Tobias olhou em frente, o que costumava fazer quando lhe ralhavam a sério. "O meu dono está doente. - pensou - Não haverá realmente ninguém que saiba que o meu dono está doente?"
- Fora daqui! - ordenou Oliver, dirigindo-se para a porta.
No corredor, Francis estava em pé, rindo, enleada, olhando para um velho calendário solar tolamente pendurado ao cimo da escada. Esperava.
- Vá para o quarto que quiser. - disse Oliver abrindo uma das portas. Deu volta ao comutador. Este quarto estava cheio de ar viciado, forrado de cretone com flores e tinha uma grande cama. Francis olhou para o seu pijama cheio de poeira. Oliver afastou-se e encontrou Jerry.
- Pus o carro na garage. - disse este - É o dia de saída de Dan.
Jerry estava pálido, o seu rosto tinha adelgaçado e estava mais descorado que de costume. Oliver passou à frente dele e desceu. No rés-do-chão, foi ao frigorífico buscar refrescos. Mas tudo quanto encontrou, lhe desagradou sem que soubesse porquê. Tobias estava ao pé dele e o seu focinho negro tremia na mais concentrada atenção.
- Não aborreças as pessoas! Vai dormir para o teu lugar. - disse Oliver, que abriu uma porta.
Tobias lançou-lhe um olhar doloroso e saiu.
Quando Oliver voltou ao quarto, o corredor estava vazio. Jerry e a rapariga tinham desaparecido.
No meio da escada, justamente no sítio em que estava suspensa uma péssima cópia de um S. Sebastião qualquer, eis o que aconteceu a Oliver: diante dos olhos viu tudo vermelho primeiro, depois negro, um negro berrante que não existe na realidade. Depois, sentiu um calor ao mesmo tempo explosivo e acabrunhante. O coração abandonou-o e o sangue afluiu-lhe tão forte às carótidas que se sentiu asfixiar. Gemeu e ouviu o seu gemido. Quando isto acabou, tinha frio e o corpo húmido; sentia os poros contrairem-se para expulsarem o suor, um suor de agonia. Depois, pôs-se a tremer. Apertou os maxilares, mas em vão; sentia-os bater brutalmente. O calafrio transformou-se num vivo tremor. Todas estas sensações não duraram mais que um momento. Tudo se acalmou em breve, deixando Oliver exausto e aterrorizado.
- Santo Deus!-pensou ele. -Bebi um gin bem mau. Encaminhou-se pesadamente para o quarto, içando-se
pelo corrimão. No quarto tinha sempre uma garrafa com leite gelado. Bebeu esse leite e respirou profundamente.
Depois, foi à sala de banho e vomitou, com custo, tudo quanto tinha bebido. "Basta! - pensou - Não quero ficar aqui mais tempo. Matam-me. Partirei amanhã para a Europa". Sentou-se à borda da cama, estava muito doente e muito fatigado para se deitar. Durante minutos lutou com uma necessidade irresistível de chamar Donca. Reprimiu-a. Mas isso foi mais custoso do que um assalto de box.
Um pouco mais tarde bateram-lhe à porta. Em voz fraca, ele disse:
- Entre.
Não era Jerry. Era a rapariga. Vestia, um dos pi jamas de tom heliotrópio que Jerry lhe tinha certamente emprestado. Ficou à porta, com um sorriso confuso. Tinha tornado a pôr bâton nos lábios, as mãos saíam-lhe, pequenas e embaraçadas, das mangas dobradas e, sobre o olho esquerdo, corria-lhe para a cara um fio de sangue.
- Que aconteceu ? - preguntou Oliver, sempre sentado à borda da cama.
- Desculpe... eu... o senhor. tinha-me prometido adesivo... isto deita sangue.
Mostrava a ligeira arranhadura como uma prova concludente. Também ela tinha lutado, no seu quarto, em pé, diante do espelho, olhando o seu rosto pálido, por baixo do rouge. Havia relembrado todos os conselhos de Kit Dalas. Tinha aprendido a lição de cor. Principalmente, sentira por Oliver um desejo desgarrador. Era um sentimento absolutamente novo que nunca sentira e que a alvoroçava. Era como uma árvore muito nova, muito débil que, pela primeira vez, se encontra em plena tempestade.
- Não tenho adesivo.- disse Oliver. E envolveu-se melhor no seu velho roupão vermelho, continuando sentado. Compreendia que era indelicado, mas sentia-se assim mais seguro.
- Prometeu-me ... - disse Francis mais uma vez. Isto não tinha senso comum, mas era preciso salvar
as aparências.
- Quere mais alguma coisa? - interrogou Oliver,
vendo-a entrar no quarto, afastar-se da porta e dar dois passos para ele.
- Obrigado. - disse ela. Trazia consigo um perfume, um perfume muito ordinário, que não era seu, tinha-o naturalmente pedido emprestado a Kit. Isto ennervou Oliver. Donca nunca usava perfumes.
- Então, boa noite. - disse ele.
- Boa noite. - respondeu Francís e, de súbito, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Era horrível sentir-se assim só na terra! O homem não pode falar aos animais, ele não compreende a pedra, nem a planta, nem o ar vibrante. O homem não compreende o seu vizinho e o que ele próprio pensa, não o pode exprimir por palavras. Os homens são, como disse um grande poeta "ilhas que, sobre os oceanos dos mal-entendidos, se atiram mutuamente com mentiras."
Para Oliver, Francis era uma rapariga que ele tinha apanhado uma noite à beira de uma estrada e que vinha procurá-lo ao seu quarto. Para Francis, Oliver era o ente que ela melhor conhecia. E amava-o. Estendeu para ele o braço, num gesto quebrado, e esperou.
- Não me mande embora ... - murmurou. De-repente, Oliver levantou-se e caminhou para ela.
- Afinal, que espera de mim ? - preguntou, muito baixo. - Que querem todas de mim? Não me podem deixar em paz? Se soubessem como estou farto! Se soubessem! isto é de fazer náuseas. Percebeu ? De fazer náuseas. Tudo isto são porcarias. Todas as noites a mesma coisa, não é verdade? As mulheres e os homens são sempre iguais, não ? Que sabem vocês fazer? Adoecem-me, fatigam-me, arrasam-me, não quero saber das vossas manigâncias. Isto é desagradável, o mais grotesco, o mais tolo que pode ser. Deixe-me, quero dormir.
Passou em frente dela e abriu a porta como a tinha aberto momentos antes a Tobias. Foi esse momento que decidiu da vida de Francis. Ela não percebeu nada, teve apenas a impressão de que ia morrer ali, no meio do quarto de Oliver, vestida com um pijama de homem, tom de heliotrópio, que lhe tinham emprestado.
- Oliver! - murmurou ela, suplicante e sem voz.
- Lamento. - disse ele.- A nossa casa hoje não serve para nada. Eu estou indisposto, Jerry não se interessa pelas mulheres, e o meu criado Dan saiu de licença.
Ele continuava com a mão no puxador, sem reparar que o roupão se tinha aberto e que o seu peito, de um brilho mate, saía da fazenda vermelha, desbotada. Tinha-o assaltado um furor frio, uma raiva assassina, um ódio por si próprio e por todas as coisas. A sua boca inchava de arrogância e maldade. Francis deslizou diante dele. Nem a viu. Todo o tempo, todo, via Donca e o candeeiro da mesa de cabeceira de Donca, com o seu abat jour feito de mapas geográficos e a mão de Donca e a cama de Donca e o homem deitado na cama de Donca.
Fechou a porta ruidosamente e seguiu Francis até à porta do seu quarto, como um prisioneiro.
- Jerry! - berrou de súbito. Jerry apareceu logo. Estava ainda vestido e pronto para prestar os seus serviços. Somente tinha as pupilas maiores, em resultado de uma extrema fadiga. - Quero que um dos meus cães durma comigo. - gritou Oliver - Tobias não; é um maçador. Não quero que me incomodem. Mande-me Pluck. Parto amanhã para a Europa. Se me obrigam a ficar aqui mais um dia, rebento. - Estava de uma palidez espectral.
Francis, no seu quarto, sorriu sem compreender. Despiu lentamente o pijama heliotrópio de Jerry, e voltou a envergar as calças poeirentas.
- Também ele tem um grão na asa.-pensou.-Adeus, vou-me embora.
Aflorou com a ponta dos dedos a sua pequena ferida onde o sangue começava a secar.
"A gente não pode ser pior tratada em casa da Florência, com certeza".
E este pensamento era penetrante como o raio de um projector que lhe desse em cheio nos olhos.
Pouco depois das dez da manhã, tinham visto Oliver na direcção geral. Subiu ligeiro a escada e conseguiu ser recebido por Bill Turner. Meia hora mais tarde, deixou o estúdio, sorrindo, e com gestos de amizade. De chapéu de palha e fato cinzento-claro, parecia-se com o retrato dos seus cartazes. O maneta disse mais tarde ao guarda-portão que a cor de Ol não lhe agradara. O homem não prestou nenhuma atenção a este reparo, embora fosse coisa rara ver o maneta criticar fosse o que fosse. Ao almoço já se sabia na cantina que Oliver tinha conseguido licença de partir para a Europa. Um dos jornais da tarde, vendido às duas horas no estúdio, dava pormenores. Oliver Dent tinha intenção de deixar Hollywood nessa mesma tarde no comboio de luxo que partia de Los Angeles às 8 h. e 45. Queria dar uma passeata pela Europa apenas para tornar a ver as "velhas e queridas regatas". Estava de óptimo humor e parecia uma criança feliz com a idea de tornar a ver Londres.- acrescentava o jornalista. Estaria de volta dentro de três semanas para representar o principal papel do grande filme Pedras Miliárias. Aqui têm, meus amigos, o ritmo da época.
O chefe da secção dos cenaristas, o dr. Erbacher, ficou, depois de ler isto, algum tempo mergulhado nas suas reflexões. Farejava, adivinhava qualquer coisa que se escondia entre estas linhas banais. "Isto parece uma fuga. - pensou. - A fuga do paraíso". Chamou Sam Houston ao telefone e preguntou-lhe se era realmente preciso que o cenário das Pedras Miliárias estivesse pronto no dia marcado. "com certeza, bem entendido" foi a resposta.
- Mas têm a certeza que Oliver estará de regresso nessa ocasião?
- Absoluta certeza, certeza completa. Organização perfeita. No dia em que Noite do Destino estiver terminada,
começa-se a trabalhar nas Pedras Miliárias. É preciso que a secção de cenaristas não faça cera.
Etbacher, vexado, fez observar que a secção dos cenaristas nunca tinha feito falhar fosse o que fosse. Queria só saber qual dos cinco finais apresentados para a Noite do Destino tinha sido aprovado pela direcção geral. Depois desta conversa, Erbacher sentou-se ao pé da ventoinha para refrescar a cabeça que lhe doía um pouco. Estava um dia ardente, o vento não vinha do mar, mas do deserto do sudoeste,
Um outro jornal da tarde, sob o título "Porque parte Oliver para a Europa?" publicava um artigo de Mary Plag, a jornalista melhor informada de Hollywood. Este artigo apareceu às quatro horas e fez saber a todos que Oliver Dent e a Moresco se tinham zangado e que esse amor que, ao princípio, tinha sido tão romanesco, vinha de acabar como todos os amores: disputas, infidelidades, ciúmes de uma parte e da outra. Havia muitas coisas inventadas nesta história, mas dela se desprendia ainda assim um leve perfume de verdade. Oliver sentiu-se mal lendo isto:
- É como se eu tivesse a bicha solitária, - explicou a Jerry - Estes estúpidos animais entram-nos na carne e nunca se saciam. Entram e são como ventosas. Uma solitária tem muitas ventosas, não tem ? - preguntou a sério.
Jerry sorriu melancolicamente.
- Não gosto disto.- declarou Oliver, com energia Quero que me deixem em paz o pouco que me resta de vida privada. Poulsky deverá fazer qualquer coisa contra isto durante a minha ausência. Não quero nem escândalo, nem falatórios nos jornais antes das Pedras Miliárias.
Estava fazendo as malas. Dan metia os sapatos de Oliver nos esticadores e as calças na mala guarda-roupa de viagem. Oliver sentia-se excitado pela aproximação da partida. Jerry estava ofendido: não o levavam, o que era razoável, mas triste. Depois de certa hesitação, Oliver decidiu que Dan ficaria também. Tinha uma profunda necessidade, pouco precisa, de estar só. Por fim, teve piedade de si próprio e desejou fazer-se acompanhar
por um dos seus cães. Problema mais difícil de resolver do que a escolha das gravatas. Era de Pluck que Oliver gostava mais, Pluck, o chow-chow orgulhoso e amimado. De resto, o único que era fotogénico e Oliver estava sempre seguro de ser fotografado cem vezes com o seu cão no decurso da viagem. Mas era impossível impor a Pluck as fadigas da viagem, a permanência em fourgons de comboio e em porões de navio. Pluck tinha hábitos e exigências solidamente enraizados. Oliver foi ver os cães e examinou-os. Por fim, com indiferença, indicou Tobias, o mais pequeno e o mais agitado dos cinco. Tobias não sabia do que se tratava, mas sentia que devia ser qualquer coisa importante. Punha-se ora sobre uma, ora sobre outra das suas curtas patas emquanto o dono escolhia. Era ridículo, como todos os que amam com um amor infeliz. Foi isto que resolveu a decisão. Deram-lhe um banho, o segundo do dia, o que não era divertido. Mas quando o puseram no automóvel com as bagagens, assim que Pluck e os três outros cães regressaram ao jardim que encheram com os seus latidos, emquanto ele, Tobias, partia com o seu dono, único escolhido entre todos, para o acompanhar, foi então que compreendeu a honra e a felicidade que lhe haviam sido concedidas. Embora meio louco de alegria, conservou a sua dignidade e boa educação, não mordeu as almofadas do carro, não lambeu o dono atrás das orelhas, não lhe saltou à cara nem sequer gritou, por difícil que fosse conter-se, mas a respiração tornou-se lhe muito rápida e teve que deitar a língua de fora, uma língua seca, para que a corrente de ar a refrescasse.
Donca, foi quási a última a saber da partida de Oliver para a Europa. Eram quási quatro horas e ela dirigia-se ao camarim afim de mudar de fato para a cena seguinte. Esse dia fora tão absorvido pelos trabalhos que ninguém almoçara; tinha apenas bebido o café sem leite que Manuela lhe trazia sempre que saía de cena.
-Vais à estação despedir-te de Ol ? - preguntou Eisenlohr.
Donca teve, nesse momento, uma sensação semelhante
à que se sente quando se dá com o nariz contra uma porta: dor, faíscas, uma espécie de entorpecimento.
- Não. - respondeu apenas.
- Tens razão. As despedidas, na estação, são sempre a coisa mais irrisória do mundo.
- Pois são.
- Bem, vou comer qualquer coisa. Às quatro em ponto recomeçamos. - disse Eisenlohr, deixando-a à porta do seu bungalow.
Donca arrancou à passagem uma grossa e mole folha de bananeira e meteu entre os dentes a espessa nervura. Entrou e subiu. A escada rangeu sob os seus pés, como tinha rangido sob os de Oliver quando ele abalara.
Os estores encontravam se corridos, um único fio de claridade filtrava-se por uma fenda, mas as luzes estavam acesas. Alguém tinha posto dois jornais em cima da mesa de toilete. Donca leu-os, em pé, inclinada sobre a mesa onde apoiou as mãos. "Um pequeno mal-entendido". - pensou. No espelho, viu-se sorrir, um sorriso absurdo, vazio.-Obrigada, Manuela. dispo-me sozinha. - disse meigamente. Manuela esperou, hesitante.
- Deixa-me em paz, preciso de paz!-gritou Donca, e a criada de quarto desapareceu por trás da porta que fechou com ruído,
- Um pequeno mal-entendido . , Ele não pode partir, preciso falar-lhe. Tricas de jornais. Sem Oliver... não, não poderei viver sem Oliver. Se ele parte ... Ele não pode partir, não partirá. É um mal-entendido.
Deixou cair o vestido de flores, de Tatiana. "Preciso chamá-lo, explicar-lhe: Oliver, Oliver, tu não podes partir, temos que nos explicar. Temos que falar deste assunto". Sombreou de ocre as pálpebras; por um instante, ficou assim, sem pensar, segurando as pestanas postiças ; lembravam minúsculas saias de dançarina. Donca humedeceu com a língua a ponta da fina película e colou as pestanas. Era um trabalho a que precisava de consagrar toda a sua atenção. "Oliver, não podes partir. Não, não podes fazer isso, meu pequeno".
Pegou no telefone. A voz lassa de Jerry, respondeu
que o sr. Oliver não estava. Desde a véspera que já dera por sete vezes esta informação. "Bem". - respondeu ela com altivez.
- Bem. - pensou. - Podes partir, não nos compreendemos. Tu não me compreendes. Que sabes tu de mim? Oliver, de mim, Donca? Adeus, boa viagem. Tenho que fazer.
Tirou do guarda-fato um vestido de noite e chamou Manuela. O homem que desenhara este vestido devia ter uma idea insensata das princesas russas. Era um vestido doirado, pesado, berrante, todo coberto de pedras falsas. Era horrível de ver, mas sem dúvida muito fotogénico por causa dos seus reflexos brilhantes. Além disso, Donca tinha a especialidade de aparecer, com qualquer vestido, nua e régia, ao mesmo tempo. Estudou-se séria e severamente no espelho; as sobrancelhas estavam descidas por causa da sua sobreexcitação.
- com a breca! -disse ela. E em romeno: "Ah! dmcu-dracu!-" Pôs no pescoço o colar de esmeraldas, a cópia que ninguém sabia que era cópia. Pôs o diadema, pulverizou-se. Os seus olhos verdes pareciam negros naquele rosto ocre. O sinal luminoso junto ao espelho acendeu-se, transformando de-repente toda a elegância do aposento num camarim de teatro. O cheiro amargo de pintura flutuava, inapagável.
Assim que Donca atravessou o aposento do andar inferior, encontrou Tacus em frente do fogão de sala. -Que há? -disse ela impaciente.
- Vim com o carro.
- E depois?
- Pensei que precisasses de mim. Pus aí os jornais da noite.
- Obrigada.
- Pensei que talvez precisasses do carro.
- Não. Ignoro quanto tempo trabalharemos. vou para casa nos carros do estúdio.
- Então posso ir-me embora?
- Certamente.
- E levo o carro ?
- Sim.
Parou ao pé da porta. Parecia uma dessas saídas falsas que ela odiava na cena. - "O carro pode ficar." disse. Eram quatro e cinco. Nesse dia filmavam as cenas entre Tatiana e o príncipe, no baile da corte. O papel sombrio e tirânico do marido, chefe da polícia secreta, tinha sido confiado a James Blackeley, um grande actor que não tinha ainda nenhuma experiência de cinema. Era um homem vaidoso, exigente e difícil de aturar. Trabalhar com ele era um suplício. Pilouíef tomava cola, Eisenlohr bebia brometo e Donca engolia café. Repetiam uma cena quatro vezes, cinco vezes, discutindo, tornando a repetir sem luz e sem máquina. O vestido de Donca pendia-lhe dos ombros, pesado. Não pensava em Oliver absolutamente nada emquanto trabalhava. Blackeley tornou a zangar-se com Eisenlohr. Blackeley tinha as suas ideas. Donca encostou-se, aborrecida, a uma coluna que tinha uma só face. No estúdio, nada tinha duas faces. Fechou os olhos, para repousar um pouco. De-repente, Oliver reapareceu. Apenas uma linha do seu rosto, a que partia da orelha e que, sob a curva dos cabelos loiros-claros chegava à nuca, essa linha rara e única. "Não, Oliver, não, meu filho, não fujas de mim."
- Vossa Alteza dorme ? - preguntou Eisenlohr.
Ela voltou a si imediatamente. Eram cinco horas menos um quarto.
Às cinco e vinte começaram a filmar a cena. Eisenlohr desapareceu para ir falar a Jig, à sua cela. Tinha um ar sério e inquieto. Donca, cujos olhos estavam fatigados da luz, retirou-se para um canto escuro e encostou a cara contra a parede. Relembrava as frases que devia dizer.
- Tacus?- preguntou ela ouvindo passos. Reconheceria em qualquer parte do mundo o andar arrastado dos seus pés. Era um ritmo que, havia anos, deslizava no segundo plano da sua vida.
- Sim, Donca.
- Que fazes aqui ?
- Pensei que ... em qualquer caso ..
- Como correrá isto? -preguntou ela, primeiro.
-Bem.
Falavam romeno, marca de intimidade que Donca não concedia muitas vezes.
- Podes mandar já um telegrama ?
- com certeza. Aqui tens papel e pena.
A luz da lâmpada vermelha suspensa dum fio de ferro, escreveu à pressa um bilhete.
- Lê e manda.
Tacus pôs o bilhete diante dos seus olhos de míope.
- São duzentas e três palavras. - disse em seguida, sorrindo.
- Esquece-as. O comboio parte às 8 e 45. O telegrama chegará a tempo ?
- Levo-o eu mesmo ao comboio.
- Não; preciso do carro e do chaufeur. - disse ela violentamente.
- vou de táxi.
Bem. Tens dinheiro ? -Não.
- Manuela dá-te o que for preciso.
Tacus fitou Donca com o seu olhar pesado.
- Isso é que é difícil. - disse em alemão.
- Como ?
- Sou invulnerável... salvo num ponto.-disse, arrastando os pés.
Donca voltou-se para os bastidores.
- Como ficou ? - preguntou ela.
Eisenlohr estava sentado, de pernas abertas, na sua pequena cadeira. Tudo de que se servia, parecia muito pequeno para ele. Os fatos, os móveis, as amigas.
- É preciso repetir a cena toda.- disse em tom breve. Donca voltou para a coluna.
- Não sei porque me segues com os olhos toda a noite. - começou ela. - Era a sua primeira frase, uma das que a preocupavam.
- Não tenha pressa. - disse Eisenlohr. - O sr. Blackeley deve primeiro refazer a caracterização.
- Não irá ele jogar o bridge para nos obrigar a ficar cá mais tempo ? - objectou Donca, enervada.
Eram cinco horas e trinta e cinco. O comboio
partia às oito e quarenta e cinco. Ainda nem uma frase estava apurada. E Donca sabia, com uma precisão que lhe viera de-repente e que a libertava, que precisava de ver Oliver antes da sua partida.
Às cinco e cinquenta e dois, James Blackeley voltou do camarim. As suas suíças tinham agora um ar menos demoníaco do que antes. O ponteiro do relógio, suspenso em qualquer parte entre as sombras entrecruzadas dos bastidores, continuou a sua marcha. Donca, emquanto ensaiava, esquecia Oliver. Eram perto das seis e meia quando as três primeiras réplicas começaram a desenhar-se. Puderam abandonar a meia coluna de mármore fingido e ir para a escada onde se passava a cena seguinte. Manuela trouxe o pó. Donca sentiu o rosto húmido. Não tinha bom parecer. De-repente, pareceu ter a sua verdadeira idade; mais de trinta e oito anos. O suor atravessou a nova camada de pó. Durante a última cena, um electricista ficara diante dela segurando uma lâmpada de 1.000 velas, uma dessas lâmpadas poderosas e quentes, cuja luz apaga as rugas e as sombras .
- Não basta já por hoje? - preguntou.
Oliver sofria da doença dessa gente que costuma chegar sempre cedo demais à estação; ela sabia-o. De-certo, já tinha partido para Los Angeles e ela ainda ali estava em cena, pintada e cheia de jóias como a grande prostituta da Babilónia.
- Endoideceste?-preguntou Eisenlohr.-O dia custa trinta mil dólares e sonorisamos só três frases. Faltam-nos ainda três cenas, pelo menos.
A sua grande estatura desapareceu e pôs-se a fazer alguns exercícios de respiração, por um método indiano que adoptava. Blackeley fazia também uma espécie de pantomima de faquir, emquanto mudavam os bastidores e as luzes. Pôs-se em bicos de pés e olhou para um pequeno espelho redondo como esses que distribuem, como prémios, nos armazéns de preço único, os ten cents stores.
- Isto ajuda a fixar as ideas. - disse ele, em voz sombria e teatral.
Na escada só tinha que trocar duas frases, depois Blackeley saía lentamente. Esta saída teve que ser repetida quatro vezes. Donca assistia, tremendo de cólera, mas sem querer tremer. Sentia que estava furiosa e isso tornava-a feia. Finalmente, pelas sete horas tudo estava pronto. Eisenlohr arvorou uma expressão letárgica e sofredora e deixou pender o queixo. Quando ele estava assim, os actores também sentiam alívio. Às sete e dez tudo estava pronto para a cena seguinte que se passava numa porta ornada com enfeites rocócó. Dez minutos depois, Blackeley teve uma crise de nervos; levantou os braços ao céu fazendo discursos cheios de censuras e a caracterização marcava-se nas várias rugas do seu rosto de comediante. A jovem Smith emergiu das trevas por trás da câmara e ofereceu-lhe água de Colónia. Eisenlohr esperava, mastigando o seu cigarro de mentol. Um dos seus princípios fundamentais era não ceder às crises de histeria dos actores.
- "Oliver! Oliver!-pensava Donca.-Oliver, espèra-me. Espera-me, não partas. Eu vou já. Tudo se há-de arranjar. Espera-me. Espera". - Pela centésima vez agarrou o braço esquerdo de Manuela para ver o relógio de pulso. O ponteiro dos segundos voara mais trinta e cinco minutos até chegar às oito horas. Saindo do estúdio às oito, podia, correndo bem, chegar a tempo à estação. "Só te quero dizer adeus, Oliver, ver-te apenas um instante". Tirou a pintura. Mudou de fato. O boulevard de Wilshirp estava cheio àquela hora ... talvez passando pela 6.a rua ...
- Pode-se continuar?-preguntou Eisenlohr, friamente. Blackeley compôs o seu uniforme. A crise de nervos que acabara de representar parecia ter-lhe feito bem. De qualquer forma, fora uma crise de primeira ordem. Blackeley sofria realmente para se adaptar à técnica discreta e precisa que exigia o filme falado. Donca sentia por ele uma vaga simpatia. Também ela sabia quanto custava renunciar aos processos aprendidos no teatro.
Sete horas e um quarto.
- Não se pode parar? Estamos fatigados. Eu também estou. - disse ela a Eisenlohr.
- Isso nunca.
Já os sunlights a estonteavam. Deixou de ver Eisenlohr e ouviu apenas a sua pregunta: "Ready?"
Nesse momento cheio de tensão descolou-se do cenário e dirigiu se a Eisenlohr, passou entre a câmara e o microfone, entre o nervoso Pilouief e os assistentes impacientes e os pacientes electricistas, saltou por cima dos cabos e chegou à zona escura e cheia de vultos que limitam o domínio horrivelmente iluminado da cena. Pôs as duas mãos na cara de Eisenlohr e inclinou-se para ele. Era um dos seus gestos cheios de naturalidade pelo qual ela conquistava e encantava as pessoas.
-Tenho de ir ao comboio. - murmurou-lhe ao ouvido.
Eisenlohr perscrutou lhe o rosto, num ar surpreendido. Depois, pôs-se a sorrir. Tinha lido o escândalo de Mary Plag. "O diabo leve as mulheres! -disse ele.- Podias ter-me avisado mais cedo... Ainda tens tempo, só te falta uma cena, mas deixo-te sair quando for preciso".
Ela fez sinal que sim e voltou docilmente ao seu lugar. Desta vez, era um sofá império debaixo de um candeeiro de coluna, ao pé de um piano de cauda.
Eisenlohr lembrou: "Tiras uma rosa da jarra e esfolha-la lentamente, emquanto ele fala". Tudo estava pronto. Donca teve um leve movimento de ancas que fez cair melhor o seu vestido, depois pegou na rosa. Sentia-se que não era a primeira rosa que esfolhava num filme, mas hoje o seu coração batia pesada e lentamente. Contava os segundos.
Blackeley aproximou-se. Desprendia-se dele um cheiro a pintura e a suor. "Responde-me".-disse, segurando-lhe o braço. Havia qualquer coisa neste contacto, nesta aproximação indesejada que lhe fez mal aos nervos.
Empurrou-lhe as mãos: "Não quero que me toque", -disse violentamente, em voz baixa.
Era uma frase do seu papel que devia gritar. De-repente, esta frase saiu surda, sibilante e perfeitamente natural. Eisenlohr, mexeu-se, sem ruído, e fez o gesto de aplaudir. Donca tinha o dom de sentir os aplausos,
por discretos que fossem. Sentia-os nas costas, nos ombros, na ponta dos dedos. Agarrara a cena, agarrara-a! Voltou-se para Blackeley, com os punhos erguidos: "Não tem o direito de me tocar, a-pesar-de ser meu marido. Detesto-o, ouviu? Detesto-o!" - gritou- "Vi os prisioneiros de Schlusselbourg... vi crianças a morrerem de fome... mulheres mortas, tudo o que o senhor sabe fazer, é matar, tudo a quanto aspira é ao poder".
O papel elevava-se, arrastado por ela. Cavalgava-o como a um cavalo maravilhoso, como no píncaro de vagas altas; todas as pedrarias do seu vestido tremiam, os seus movimentos atraíam a luz dos projectores. Eisenlohr continuava de pé, com os punhos fechados, poderoso como um feiticeiro, para melhor reter este grande minuto. O homem da câmara trabalhava até perder o fôlego, todos continham a respiração, mesmo os assistentes, os electricistas e a jovem Smith com o seu livro de registos; Madame Moresco arrastava Blackeley consigo no entusiasmo desta cena. De-repente, tudo quanto havia nele de teatral desapareceu... e pôs a voz no diapasão da de Donca. Ela pegou-lhe na mão, falando-lhe mais baixo, e docemente. Afastou depois a mão para longe. Ele tentou agarrá-la. Ela libertou-se. "O meu lugar não é junto de si. O meu lugar é nas barricadas, junto dos infelizes a quem manda assassinar!"
- gritou. Depois conseguiu fugir pela porta do fundo, atrás da qual, na sombra, estava Manuela. O apito anunciou que a cena tinha terminado.
Eisenlohr, aproximou-se rapidamente de Donca.
- Muito bem ! - gritou ele - Admirável! Absolutamente grande.
Ela olhou-o e sorriu, um sorriso espantosamente distante e lasso.
- Foi o que a Moresco ainda fez de melhor.- disse ele, batendo-lhe nos ombros como a um cavalo que acaba de ganhar uma corrida.
Donca pegou, com as mãos ligeiramente trémulas, no café que Manuela lhe oferecia. Esta tinha lágrimas nos olhos negros. Moresco também chorava. Agora que a cena tinha acabado, as lágrimas corriam dos seus
olhos, desbotando-lhe a pintura do rosto. Limpou-as com os dedos e sorriu, um pouco envergonhada. Eisenlohr sorriu também. Era um sorriso indulgente, terno e vagamente comovido, que os domadores têm às vezes quando tiram sem acidente a cabeça da boca de um lião.
De-repente, Donca puxou a mão de Manuela que lhe ia estendendo sempre, ostensivamente, o relógio de pulso.
Já eram oito horas e oito.
- Tenho que sair, já sabes.-disse ela, com voz abafada, a Eisenlohr.
- Vai, vai. - respondeu ele.-Vai, devoradora de homens.
Ela correu, fazendo tilintar as pedrarias do seu vestido.
Tacus andava de um lado para o outro em frente do stage, mas o carro não estava lá, esperava já ao pé do bungalow.
Donca arregaçou o vestido e correu, seguida pelos olhares espantados de alguns homens do atelier. Corria, murmurando: "Oliver, Oliver, Oliver". Dois minutos preciosos, perdidos. Saltou para o carro, tal como estava, pintada e tudo. Manuela conseguiu ainda atirar-lhe um casaco.
Mayer pôs-se em marcha. A sua indiferença colocou Moresco fora de si. Ameaçadora, gritou:
- Para a estação, o mais de-pressa possível. E se não chegarmos à passagem do rápido ...
Mayer olhou para o relógio e encolheu os ombros. Às oito e doze o automóvel transpôs o portão.
Noite brilhante de Hollywood. Cadeias de luz, palmeiras, montras: teorias intermináveis, lentas, inquietantes, de automóveis. Música dos alto falantes, gritos dos vendedores de jornais, toques, sinais de paragem. Como é grande esta cidade com as suas inúmeras casas! Um cancan leva cinco minutos a percorrê-la de um lado ao outro; um automóvel leva mais de uma hora.
Mayer toca a buzina, hábito alemão desconhecido aqui. Cheios de medo, os carros deixam-lhe livre o trânsito. Projectores, bandeiras. Que febre, nesta cidade!
Os candeeiros são sempre claros demais. Ela embandeira, ilumina, dá conceitos sem motivo algum, Toques de buzinas. Um incêndio na floresta, como há todos os dias nas colinas dos arredores. Mayer tem que ceder lugar aos carros dos bombeiros. Donca suplica:
- De-pressa, de-pressa, de-pressa !
Pelo boulevard de Fico dava-se uma volta, o boulevard de Wilshire estava cheio de gente e de carros. Donca ordenou:
- Pelas drives. - (as ruas estreitas).
Tirou o pesado diadema, cujas flores apertou com as mãos. Ia sentada ao pé do chauffeur, inclinada para a frente como um corredor. Em Ogden Drive, uma cadeia de lanternas encarnadas vacilantes, barrou a rua em toda a sua largura. Era uma casa que transportavam, um bumgalow, levado em dois automóveis, seguido de outro carro no qual iam duas velhas oliveiras com as raízes o tronco e a copa: uma casa e um jardim em mudança. Não havia maneira de passar por este lado. Meia volta. Uma cidade de enlouquecer, gente mascarada, ruas mascaradas. Cowboys, cenários, eremitas, malaios, casas espanholas, inglesas, mexicanas, chinesas e egípcias. Eléctricos. Vendedores. "Lindas rosas, minha senhora". Sinais de paragem, obstáculos, obstáculos por todos os lados.
Mayer guiava bem mas estava nervoso. A mulher encontrava-se doente, com os demónios! E ele nunca dormia o preciso.
-Não pode ir mais de pressa, Mayer?
- Lamento, minha senhora, mas é impossível. Donca praguejou em romeno. Oito horas e trinta
e seis e sem chegarem sequer ao sítio em que Hollywood se funde insensivelmente com as ruas mais comerciais de Los Angeles.
- Apanharemos o comboio?
-Não.-disse, parando um instante. - Não. É impossível, minha senhora.
Estavam à esquina de Western Avenue. O sinal de paragem fora aceso. Não havia esperança nenhuma. Oliver ia partir.
Mas justamente no momento em que a luz verde restituía a circulação, Donca tomou uma resolução.
- Suba Western Avenue e vá a Pasadena. O comboio leva meia hora até lá. Podemos apanhá-lo.
Mayer olhava-a de revés. Ela parecia completamente louca, sentada no automóvel, pintada e assim vestida, pretendendo passar à frente dum rápido. Naturalmente enlouquecera. A maior parte das pessoas de Hollywood enlouquecem de qualquer maneira. Os lábios dela moviam-se e tinha as mãos cruzadas sobre o diadema. Talvez rezasse. O chaufeur Mayer, engenheiro, desprezava cordealmente esta comediante. Agarrou o volante e, brutalmente, fez curvas e subiu píncaros.
Donca não pensava em grande coisa no decurso desta corrida e o que pensava era afinal monótono como um rosário. "Oliver, Oliver, Oliver. Preciso ver-te, Oliver, não deves partir, Oliver!" Já não podia vê-lo todo mas apenas pedaços dele: o riso, um gesto, uma palavra pueril e sem importância. Como ele se baixava para colher uma dessas anémonas cor de laca vermelha que há em Rhodes, como se inclinava para sacudir com o chicote a poeira das calças. Como arrumava unia cadeira e como batia três vezes com o cigarro antes de o acender. Via-o agora subir uma escada, pôr o boné e olhar-se, com ar profundo, no espelho da barba. O que ele tinha de mais bonito eram os ombros e as unhas finas e também os joelhos; tinha os joelhos perfeitos de uma estátua de bronze. Suspirava muitas vezes sem nenhum motivo. Usava, nas algibeiras do pijama, as iniciais bordadas a seda.
"Que sabes mais dele? O quê? A gravata mais bonita que ele tem é aquela das pintas cinzentas claras. Gosta da sua velha maleta pelada. Odeia colarinhos de goma. Os seus cabelos cheiram a macela. Crê em Deus mas não muito. Tem o peito liso e abaulado, debaixo do braço tem pêlos loiros, usa no dedo um anel com um pequeno brilhante desbotado que sua mãe lhe deixou e que não tira nunca. E que mais? Quê? Será tudo quanto guardo de ti emquanto te afastas, Oliver, meu pequeno, meu Deus.. e se já partiste?"
De súbito, em pesadas ondas, o cheiro das laranjeiras em flor chegaram até ao carro. Seguiam agora, a toda a velocidade, as plantações de frutos, fora da cidade. Los Angeles estendia-se já para baixo. A estrada em curvas, saltava de colina em colina.
- Chegaremos, Mayer?
- Talvez.
- Quantos quilómetros ainda? Um encolher de ombros.
Ela meteu uma das mãos na algibeira do carro e acendeu um cigarro. Fumou-o um instante depois meteu-o na boca do chauffeur. Ele aspirou profundamente, com reconhecimento, o fumo até aos pulmões. Teve até um leve sorriso.
- Mais de-pressa, mais de pressa, mais de-pressa.
O carro balouçou. O ar fendia-se ao contacto do pára-brisas. A busina tocava.
- Vai bem, Mayer, vai bem, vai bem. Letreiros indicadores, casas, estradas.
- Mais depressa, mais de-pressa!
Letreiros brancos, onde se lê: "Pare. Mayer pára.
- Não pare Mayer, passe de qualquer maneira.
- Não posso.
- É preciso.
- Não posso fazer isso.
- Então dê me o volante.
Estavam já em Pasadena. Donca empurrou o chauffeur para fora do seu lugar.
Gastou uns segundos a trocar o lugar com ele. Tinha formigueiros nas mãos.
Empunhou energicamente o volante ainda quente do contacto de Mayer, e pisou o acelerador. Na Broadway de Pasadena as pessoas que davam o seu passeio da tarde vendo as montras e os cinemas, ficaram cheias de medo vendo um carro chegar a toda a velocidade tocando a busina, quebrando a fila dos outros carros, desprezando os sinais de paragem. A circulação ficou desorganizada. Os piões correram. Um agente fez sinais. Deixaram atrás deles a impressão de um carro doido no qual ia sentada uma mulher brilhante como um fantasma.
A pequena estação estava cheia de lâmpadas brancas, em arco, e pimenteiras gentilmente alinhadas, ao longo da gare empedrada.
Quando saltou do carro, as pernas de Donca tremiam.
- O rápido já passou ? -preguntou a um homem que empurrava o carro das bagagens.
- Passa daqui a um minuto. - respondeu o homem, surpreendido mas muito delicado, para se atrever a fitar Donca de frente. Foi só quando ela voltou costas que teve realmente consciência do fenómeno. Uma mulher pintada como um fantasma amarelo e vestida como uma rainha, de cabeça nua, de noite, no cais da estação de Pasadena. "Talvez vão filmar", pensou. As outras pessoas, pouco numerosas, que atravessaram o cais tiveram aproximadamente a mesma opinião. Mayer com as pernas hirtas, desceu do automóvel e pôs o casaco pelos ombros de Donca. Estava furioso contra ela mas tinha uma certa piedade por vê-la ali, de pé, fixando a dupla fila dos raids e sorrindo como narcotisada. Tinha esquecido completamente o sítio em que se encontrava.
Depois desta corrida vertiginosa, era longo um mi nuto de espera. Por fim, sinais, dois faróis na linha que iam aumentando, o ruído da máquina, pessoas que se agitavam pela gare deserta. Um empregado saiu sem se apressar. Dois homens com sacos de correio. A máquina, o comboio, um comboio comprido com muitos vagões. Entrou rapidamente na gare e por segundos, dir-se-ia que não parava. O coração de Donca enlouqueceu durante este minuto. O ponteiro grande do relógio da estação passou das nove horas e catorze às nove e quinze. O comboio parou.
Donca levantou o casaco e o vestido e passou rapidamente diante das carruagens para procurar Oliver. Não estava em parte alguma. - Meu Deus! não está em parte nenhuma, esconde-se, e o comboio partirá com ele para a escuridão. E tudo estará acabado.
De súbito o seu coração parou, depois voltou a bater, mais pesadamente, mais lentamente, aliviado: Oli ver estava ali.
Em pé, sobre o estribo do vagão segurava o seu cãozito branco debaixo do braço. Vestia um fato de viagem bege, o do barco, e a sua gravata de pintas verdes. Parecia emmagrecido, com duas rugas profundas nas faces e sorria, sorria porque conversava com o condutor negro e porque era Oliver Dent. Calçava luvas e estava de cabeça nua. Donca viu tudo isto num olhar, com precisão, com tanta precisão como se vêem as imagens através duma lente e as coisas num filme, com essa precisão que não se tem nunca para as coisas reais.
- Oliver! - chamou ela com prudência. Imediatamente ele desceu e pôs-se ao lado dela.
- Tu ?-exclamou. Estava de pé junto de Donca, que lhe sorria. Ele sorria-lhe também, muito grave.
- Recebeste a minha carta?
- Recebi.
- Compreendeste-me ? Acreditaste-me? -Oh! Sim.
- E partes para a Europa ?
- Assim é preciso.
- E será realmente preciso ? -É.
-Não podes ficar?
- Não. E tu não podes partir comigo ? -Não.
Tobias gemeu devagarinho.
- Quanto tempo se demora o comboio aqui? preguntou Donca ao homem que passava com o seu carro vazio.
Ele respondeu:
- Parte imediatamente, minha senhora.
Deteve-se, curioso. Não a tinha reconhecido porque ela não vestia à moda, mas reconheceu Oliver Dent.
- Estás pintada ? - preguntou Oliver.
- Estou, venho do ensaio. Queria ver-te ainda uma vez.
- Sim, eu sei. Tu és boa. É uma pena.. nós ?dois..
Isto tinha o tom de qualquer coisa irremediável. Donca estendeu rapidamente as mãos como que para aparar um golpe. "Não, não, não" - pensou.
- Desce e fica aqui.
- Não posso. Estou aborrecido. Tenho necessidade da Europa.
- Fica uma noite só, para despedida.
Depois não disse mais nada, apenas quis com força. Donca Moresco era uma pagã. Não tinha reli gião. Mas sabia que na vida se obtém sempre o que se quere realmente. Querer é mais poderoso, mais duro, mais laborioso, mais fatigante e mais difícil do que agir.
-Para despedida? - repetiu Oliver lentamente.- Mas onde?
- Em qualquer sítio. Em minha casa, na tua, no hotel.
- Não posso perder o barco.
- Tens avião amanhã de manhã. Amanhã à tarde terás apanhado o comboio.
- Luz pálida de cais, cheiro de vapor deixado pela locomotiva, o pesado perfume da despedida, sempre o mesmo em todas as gares do mundo.
- Queiram subir, por favor. - disse o homem negro de fato branco.
Deus sabe que ondas, que raios, que vibrações saem dos entes dotados de vontade, dos entes como Donca Moresco: cruéis quando agarram, prodigiosos quando dão. Oliver desceu o degrau que separava o cais do vagão. Lá em baixo, ao fim do comboio, fechavam as portinholas.
- Mayer, pode ir buscar a minha bagagem num instante ? - preguntou ele. Pôs o Tobias em terra; o cão tinha um ar desamparado e ficou ao pé das pernas do dono. O casaco de Donca não lhe cobria completamente o vestido. Por todos os lados reaparecia o esplendor bordado e russo do baile da corte; de todas as portas olhavam para eles. Oliver deu-lhe o braço com esse jeito protector pelo qual ela se apaixonara. Estava junto dela, ficava. O comboio partiu e Oliver ficou. Ao
lado dela dirigiu-se para o carro que esperava ao pé da estação. com uma inquietação estranha e alegre, ele sentiu que qualquer coisa o retinha mais uma vez, qualquer coisa diante da qual já quisera fugir.
É a última noite", pensou. Já podia gozar o sabor de Donca. Ela estava extremamente meiga e um pouco amarga .. como um fruto demasiadamente maduro.
De manhã, um pouco antes das dez horas, um rapaz em traje de viagem bege apresentou-se no campo da aviação de Glendale, ao pé de Pasadena. Pediu um avião pequeno para apanhar o rápido que atravessara na véspera à noite a estação de Pasadena. Conseguiu-o. As pessoas apressadas ganhavam as vinte e quatro horas que separava Los Angeles de New-York, tomando um avião durante o dia e continuando a viagem de noite, em combóio. Assim, a viagem durava só trinta e seis horas e poupava-se o calor tórrido do deserto. Mas o avião regU lar já tinha partido, por isso o jovem viajante pediu para alugar um dos aviões pequenos de desporto que estão, em casos semelhantes, à disposição dos viajantes.
Estava uma esplêndida manhã, com um pouco de vento de oeste e algumas nuvens delicadamente frisadas no meio dum céu azul-pálido.
O rapaz olhou para o ar e respirou profundamente. Levava à trela um estranho cãozito branco, que parecia deprimido. Um criado do Hotel Pasadena trouxe uma mala que dir-se-ia ter já viajado pelo universo inteiro. O passageiro, o cão e a mala foram instalados. Um jovem piloto chamado Cross fez avançar a máquina, uma avioneta de ventre vermelho.
- Que engraçada caixinha! - disse o passageiro, antes de subir - Não é novo ...
- Mas tem uma boa máquina. Talvez se incline
um pouco para a esquerda, mas a não ser isso voa como uma flecha e nunca se lhe partiu nada.
- É uma velha Fairchild com motor Wright, não é verdade ?
- É. O senhor também é aviador?
- Não. Mas fiz o meu exame de piloto. Sei voar um pouco, mas para aterrar é que...
- Ah! Ah! -disse o piloto com ar entendido.- De resto, vi logo que o senhor percebia disto. Faz cinema, não é verdade?
- Qualquer coisa. - respondeu o outro, que parecia descontente. - Paramos no caminho?
- Não sei. Talvez possamos almoçar em Winslow.
- disse o piloto vestindo o fato-macaco. O passageiro agarrou no cão, subiu para a minúscula cabina, aspirou o cheiro da gasolina, do gás, outra vez da gasolina, ficou logo ensurdecido pelo ruído da descolagem e encostou-se com satisfação quando o aparelho se moveu.
- Não tenhas medo, Tobias, - disse ele. - Aqui ninguém nos faz mal.
Tobias era incapaz de partilhar o bom humor do dono. Tinha passado uma noite execrável num quarto horrível: um quarto de hotel. É assim que se chama a um aposento que cheira como se mil pessoas já lá tivessem vivido, dormido, comido, sido felizes e desgraçadas, verdadeiro suplício para um cão cheio de faro e de raça. Além disso, tinha partilhado esse aposento com um indivíduo irascível chamado Mayer que usava em baixo, à roda das pernas, em vez de calças, canudos de couro. Não só lhe era impossível morder as polainas, como estas voavam pelo ar e vinham cair na cabeça do pobre cãozinho, assim que ele começava a ganir.
- Estamos bem, Tobias. - disse o dono. Deu pancadinhas nas costas do cão e deixou repousar, no seu pêlo branco e quente, a mão fresca, que vibrava docemente.
Tobias estava sentado, de orelhas direitas, como a prestar atenção a qualquer coisa muito distante.
- Estamos bem, Tobias. - repetiu o dono. - Agora vão-nos deixar em paz.
O dono adormeceu. O cão estava sentado, vigi lante e atento. Tinha sido gratificado com a honra excepcional desta viagem, desta viagem com o seu dono; confiavam-lho, ele o guardaria. Não consentiria que lhe acontecesse nada, mesmo se tivesse que passar coisas ainda mais horríveis do que ser metido numa caixa e ver a terra desaparecer debaixo de si num barulho ensurdecedor. O dono tinha mudado muito; tinha pregas no fato e os cabelos não brilhavam tanto quanto deviam. O seu sono parecia um esforço horrível. O suor perlava-lhe a testa. Acordou sobressaltado assim que o aparelho caiu nas depressões de ar e se ergueu novamente.
O piloto sorriu, olhando pela janelinha que dava para a cabina. O passageiro sorriu-lhe também, mas a custo. Lá dentro estava um calor infernal. Voavam sobre o deserto, um gentil desertozínho com colinas e automóveis não muito maiores do que moscas. Calma. O aparelho marchava tranquilamente e raramente caía num pérfido buraco de ar. Não havia razão para que o passageiro estivesse doente.
No entanto, estava. Depois de uma hora aproximada de sono, acordou e desde esse momento sentiu-se pior. Para falar a verdade, foi o seu mal-estar que o acordou. Um mal estar que ele conhecia. Já sentira a mesma coisa, havia dois dias, debaixo do quadro de S. Sebastião. Foi, outra vez, o vermelho-púrpura, o negro brilhante e o calor explosivo. Depois, afrontamentos, um suor gelado e assustador, arrepios e tremores, e em seguida uma fraqueza absoluta, lamentável. Depois, ainda uma vez, quási a seguir, o mesmo acesso, do princípio ao fim. "Meu Deus, meu Deus, sinto-me mal, Tobias! Isto volta. Meu Deus, meu Deus!"
Em baixo, a terra é pequena e bem ordenada. O piloto vai em boa velocidade. De vez em quando volta-se e vê sempre o passageiro curvado, com as mãos na cara e fazendo esforços por vomitar. O piloto sorri. "Tem carta de piloto, que reinadio!" e para se divertir, faz a curva um pouco inclinada. Não simpatiza muito com os gabarolas, Oh, como o cãozinho o olha, aflito!
Que pode fazer o Tobias? Que pode tentar emquanto o seu dono está doente e lhe pede auxílio sem que ele o possa prestar? "Tobias, ajuda-me... Meu Deus, meu Deus! já não posso mais! - geme o dono. "Tobias, ajuda-me, ajuda-me, Donca, ajuda-me, Donca!"
Ouvindo este nome, Tobias julgou-se no dever de ir procurar Donca. Mas a caixa em que voavam estava fechada; tinham-nos fechado à chave e não os deixavam sair nem a ele nem ao dono. Tobias arranhou a parede, lambeu as mãos do dono, gritou, ladrou, chorou. Nada. Estavam prisioneiros. O piloto tornou a olhar mas deixou de sorrir. O passageiro portava-se de uma forma estranha. Tirou o casaco, abriu brutalmente a camisa, dir-se-ia que abafava. O suor inundava-lhe o rosto, estava pálido. O suor caía-lhe no queixo e formava longas cadeias de gotas; era feio. O belo homem tornava-se feio.
O piloto teve pena dele. Deixou de brincar com o aparelho. Agora bem queria voar tranquilamente e deixar o pobre diabo melhorar um pouco. Mas eis que se levantou um vento do este carregado de areia; pequenos turbilhões de areia volitavam no ar e o avião baloiçava de alto a baixo, qualquer que fosse a altura a que o piloto procurasse voar.
Ao segundo ou terceiro acesso, foi exactamente como se estivesse perdido, como se o matassem ali mesmo. Sentiu no centro do corpo uma dor ardente, escondida mas ardente, e que voltava sempre. "Ó meu Deus, Tobias, eu não resisto, ajuda-me, anda!"
Quando isto dura assim duas horas, três, sem descanso, acesso sobre acesso, afrontamentos, suor, dores, agonias, bater de dentes, uma pessoa nem dá pela sua capacidade de resistência. Deixa-se ir. Abandona-se, Deixa de ser um homem para se tornar um objecto entregue à tortura e que não se pode defender. Está completamente exausto, O coração cansa. A própria dor, por fim, parece cansada.
- Devíamos ter trazido álcool. - disse o dono ao cão.
Tornou a vestir-se. Limpou a cara, coberta de suor e o lenço ficou todo molhado. Atirou-o para o chão.
As mãos ainda lhe tremiam tanto que parecia uma convulsão, em sobressaltos, sem descanso. Tobias deitou-se nos joelhos do dono e apertou-se muito contra ele. Talvez isto lhe desse um pouco de calma.
- Está bem, Tobias. - disse Oliver em voz surda. Docemente e sem barulho, o avião desceu para o solo.
Assim que aterraram, a porta se abriu e o ar entrou em jorros na cabina, o ar ardente de Winslow, a pequena cidade do deserto, e que o piloto meteu a cabeça lá para dentro, Oliver tornou-se sorridente. Levantou-se do seu lugar, cambaleou um pouco ao descer a escada, para sair. Os joelhos pareciam de borracha emquanto que, de pé, no meio do campo de aviação, olhava para o sol, piscando os olhos.
- Fez-lhe mal? Enjoo? - preguntou o piloto com certo tacto.
- Não.. não me parece ... Devo ter bebido qualquer porcaria.
Caminhavam sobre o chão asfaltado da pista. Era meio-dia, um meio-dia ardente,
- Coma qualquer coisa que isso passa. O lunching?roam é lá em baixo. - explicou o piloto, afastando-se Daqui a vinte minutos podemos partir.
O cão levou o dono até à sala de jantar. com o olhar, implorou o criado, Tobias tinha uma vaga impressão de que aquele homem podia acudir ao seu dono, O criado trouxe uma tigela de comida para o cão e um copo de sumo de tomate para o dono. Este bebeu o líquido frio e vermelho. Deixou pender as mãos e tomou um ar estupefacto. O piloto aproximou-se da pequena mesa. As janelas tinham cortinas espanholas: amarelas e encarnadas. Dois mecânicos jogavam os dados. Fora, um avião poisou sem barulho. Alguém passou em frente da porta e gritou qualquer coisa.
- Então como vai isso ? Podemos partir daqui a pouco ? - preguntou o piloto.
O passageiro corou. O seu rosto pálido, exausto pela luta, tornou-se vermelho. Tinha vergonha.
- Não. Creio que é melhor voltar sem mim para Pasadena. Eu vou de comboio.
- Sim, se quiser... mas então não tem pressa ?
- Tenho... queria apanhar o barco de têrça-feira.
- Mas não indo de avião, não pode estar em NewYork na têrça-feira.
- Bem sei.
O piloto olhou para o passageiro, que estava sentado de cabeça baixa e mãos pendentes. O cão estava também sentado numa cadeira junto dele, com o olhar desconfiado, ciumento e inquieto de um guarda de serralho.
- Bem, então vou-lhe trazer a mala.
- Pois sim. Obrigado. - e quando o piloto se retirava, acrescentou : - Não é enjoo, é qualquer coisa horrível. Não posso suportar isto segunda vez. Quando se tem vontade de vomitar, é horroroso.
- Pois é. - disse o piloto.-Todos têm isso, uma vez ou outra. São coisas que acontecem. Quere... prestar-me um grande serviço ? Dê-me um autógrafo, sr, Dent. Uma pequena recordação pelo prazer que tive em o trazer. Chamo-me Cross... Isso dará tanto gosto à minha mulherzinha... levar-lhe o autógrafo! É pena ter que desistir ..
O passageiro ficou um momento de boca aberta, a pensar. Depois, pôs-se a rir.
- Lamento, sr. Cross. Mas está enganado. Eu não sou Oliver Dent. Acontece às vezes tomarem me por ele. Mas não sou eu; Oliver Dent não desistia da viagem ...
- Ah! sim ... É pena. Pensei... desculpe... Então eu vou... boa viagem ...
O passageiro ficou ainda sentado um certo tempo junto à mala velha de pele de porco com numerosas etiquetas comidas pelo sol. Depois disse:
- Tobias, não iremos para a Europa. Desta vez, não iremos à Europa.
O dr. Bratt, de Winslow tinha uma boa clientela. Pelo lado de fora das janelas do seu consultório estava
afixada uma grande tabuleta de letras doiradas. Bratt era de origem alemã, tinha barriga e era calvo. Usava óculos. As quatro rocking-chairs da sua sala de espera estavam sempre cheias e sobre a mesa os dois últimos anos da Saturday Evening Post eram constantemente folheados. Na parede do gabinete estava pendurado o seu diploma de médico, obra-prima de aplicação caligráfica, representando as ruínas do Castelo de Heidelberg. Também lá se via a fotografia de uma senhora fora de moda, de longos cabelos soltos, abundantes, celibatária e ingénua. Em cima da secretária via-se uma rapariga em imitação de bronze, dando de comer aos pombos, também de bronze, a fingir.
- Então que sente? - preguntou ao seu novo doente o dr. Bratt, baixando maquinalmente as pálpebras.
O doutor pertencia à geração de médicos que explicam uma porção de coisas por anemia.
- Não sei bem. Parece que é o estômago, o... disse o doente, um rapagão estranho na terra, de aspecto um pouco doentio e que trazia um pequeno cão cheio de poeira. - Desculpe ter trazido o meu cão, mas estou aqui de passagem... e não o queria deixar sozinho no hotel, ele não é nada razoável.
Tobias sentou-se tranquilamente sobre a cauda. Para dizer a verdade, ele é que era razoável, não deixando o dono, doente, sair sozinho.
- Sim senhor, um lindo cão. Sim, sim .. Então, é o estômago? Como se chama? Que idade tem?
O doente disse chamar-se Edward O. Drake e ter vinte e seis anos. Foi inscrito e depois historiou.
O doutor Bratt ouvia-o esfregando, com o polegar e o índex, os cantos da boca. com o bico de uma caneta dava pancadinhas no peito da rapariga de bronze fingido. Desenhou pequenos chapéus altos numa folha de papel, uma multidão de pequenos chapéus altos, muito bem feitos.
- Então, chegou hoje de avião? Pois é... isso acontece muito facilmente quando se anda de avião, não é preciso estar doente. Mrs. Bratt, minha mulher, não andaria de avião nem por mil dólares. Dores? na
região do apêndice? Não é? Ah! Não tem apêndice? Felicito-o. Vale mais quinhentos dólares. Que género de dores ? Pítuíte ? Mais forte ainda ? Então é que não teve nunca pituite a sério. E quando teve o primeiro acesso? Há dois dias? E nessa altura não andava de avião? Apareceu-lhe de-repente? Ah! Ah! Primeiro bebeu? No México é assim. Têm sorte; no México, bebem quanta cerveja querem. E depois, um acidente de automóvel? Nesse caso é natural que tenha algumas caímbras de estômago; é nervoso. Dispa-se um pouco, se faz, favor.
Vendo o torso que o seu doente exibia, fez uma pequena reverência e disse em tom respeitoso:
- Muito bem. Belos músculos. Muito desporto, não é verdade? Joga o golf? Ainda cheguei a fazer os meus noventa e quatro buracos. Hoje não, bem entendido. Mas lá de vez em quando ainda o consigo. É o meu récord. Então, onde lhe dói? Aqui? Aqui? Aqui, não? Mas vamos lá, o senhor deve saber onde lhe dói. Vista-se.
E seguindo com o olhar as espáduas que desapareciam de novo dentro da camisa de desporto, o doutor acrescentou:
-Belos músculos... os músculos estão bem, mas o senhor está um pouco anémico, meu rapaz. Será por acaso um desses loucos que fazem regime?
- Precisamente, não.
- Agora é que me vai dizer a última palavra. O que foi que já comeu hoje?
- De manhã um copo de sumo de fruto.
- E depois?
- Depois, tive uma crise.
- Sim, sim, sim ... E ao almoço ?
- Sumo de tomates.
- E depois?
- Depois, não me sentia bem. Tive dores.
- Mais dores? Bem, meu rapaz, você tem um pouco de acidez no estômago e nada mais. A doença da moda. Isso é ocasionado por um mau regime. compre um bocado de carvão e coma umas pastilhas. Depois vá para casa e diga à sua mulher que lhe mande
assar um bom naco de carne, leve-lhe os cumprimentos do velho dr. Bratt e explique-lhe que um homem, de manhã, deve comer ovos com presunto e não beber sumo de frutas ácidas. Não, meu caro amigo, não é por emquanto que enriquecerá os médicos. Tem uma boa saúde.
- Para um homem de boa saúde, sinto-me bastante mal.
- Comece a comer carne assada. Tome carvão. Diga-me: nunca esteve doente?
- Um pouco, como toda a gente. Depois de fazer a operação à apendicite, em pequeno, tive a bílharzia.
- A bilharzia? O senhor? Que história vem a ser essa ?
- Uma espécie de verme que há no Nilo, muito desagradável, e a que os indígenas são atreitos. A minha criada não devia ter muito cuidado comigo.
- Isso é interessante. Que fazia no Nilo com essa idade?
- Meu pai era funcionário e estava no Egipto. Sou inglês.
- Nota-se pela pronúncia, ora espere... não será o senhor... -disse o médico, olhando para a ficha do doente - Julguei por momentos que era um tipo de cinema. Oliver Dent. Passaram aqui alguns filmes dele. Mas, no fundo, não se parece muito consigo. Pois, como lhe disse, coma carne assada. E boa viagem.
O homem e o cão foram-se embora. Ele sentia-se bem, sem dores. Não, agora não tinha dores. Apenas o vago pressentimento de que elas podiam voltar. Winslow era quente, morta e cheia de poeira. O crepúsculo caía já, as montras das lojas iluminavam-se. Foram comprar carvão a uma farmácia, três caixas de uma vez. Voltaram ao hotel, um hotel para caixeiros viajantes, ao pé da estação. O vestíbulo da entrada estava cheio de homens sentados em rocking chairs.
Depois, Oliver ficou muito tempo em frente do espelho a olhar-se, preguntando como era possível não se parecer nada consigo. Sim, o seu físico modificara-se. O seu nome também; Edward Q. Drake. Edward Drake
tinha o direito de estar com mau parecer, de ter dores, de se sentir mal no avião, de ser ridículo, de tornar a ter dores, de viver num hotel de segunda ordem e de se ver livre dos repórteres, das mulheres e do público. Tinha-se metamorfoseado. O estudante de Oxford, o filho do diplomata Edward Drake tornara-se o actor de cinema, Oliver Dent, o mais belo homem do mundo, cartaz radiante e sorridente. Era uma divertida facécia esta de se transformar de novo, fugir de si próprio, fazer desaparecer Oliver Dent até ao próximo filme. "Perfeitamente. Deixem-me em paz, bem sei que é só até ao próximo filme... Acalma-te Tobias, iremos pescar trutas a Clearwater, grandes trutas, assim..."
Viu a língua no espelho: estava negra como o carvão, por causa das pastilhas que trincava. Sentia-se bem. Nada de dores. Uma vaga quietação. "Sim, Tobias, podes vir dormir ao meu lado".
Deitou-se, fechou os olhos. O cão aquecia-lhe os pés. Sentia o estômago leve, sob a influência do carvão. "Veludo preto. Bonito. Agradável. É como um peixe-tinta. Todos negros, muito peixe-tinta por dentro. Em Rhodes havia... Nostalgia de Donca? Sim, ainda e sempre. Boa noite, Donca. Muitas trutas prateadas a saltarem. Um homem com saúde. Mais nenhuma dor. Apenas veludo negro".
Na têrça-feira seguinte apresentou-se em Clearwater-Cottage um rapaz que pediu quarto e sala de banho. Tinha chegado no autobus que parte de Beattle ao meio-dia e trinta, e trazia um lindo cãozinho muito sujo mas muito contente. Nessa época do ano, em pleno verão, ainda estava claro quando o autobus chegava a Clearwater-Cottage, mas o sol já tinha desaparecido atrás das montanhas e mais de metade do lago estava na sombra.
Clearwater-Cottage possuía apenas dois quartos com
sala de banho. Esses dois quartos estavam ocupados mas, no primeiro andar, havia um quarto que só era separado por duas portas, da casa de banho. O rapaz inspeccionou o quarto. Continha um rocking chair e uma mesa, o guarda-roupa era aberto, as paredes cheiravam a tinta fresca. No chão, um tapete indiano branco e vermelho. A janela era grande e dava para o sul. Via-se um pedaço de lago e o perfil da montanha que se elevava na outra margem. A própria montanha não era mais do que massa purpúrea e azul, pois o sol já estava por trás dela colorindo o céu de amarelo, um amarelo suave e claro como casca de limão. Debaixo da janela ficava a horta de onde subia o cheiro dos pepinos e das couves verdes. Dois esquilos cinzentos brincavam nas largas folhas de uma árvore. Numa corda, secavam camisas, as mangas agitavam-se lentamente assim que o vento descia da montanha. Um carreiro, partindo do jardim, seguia por certo tempo o lago e depois perdia-se em cima, na floresta, que começava imediatamente, na margem da estrada grande. Estores de madeira estavam amontoados à borda do caminho.
Sentia-se o cheiro forte e um pouco amargo de resina. Num embarcadoiro, três crianças estavam sentadas de pernas estendidas: uma pequenita de cinco anos aproximadamente e dois garotos mais crescidos que pareciam gémeos. Não faziam barulho nenhum, provavelmente porque um dos rapazes tinha uma linha na água. Pequenas ondas, com um ruído quási imperceptível, batiam contra as estacas do embarcadoiro e contra uma barca encarnada presa por uma corrente. O rapaz olhou por um momento. Três patos bravos, de grande pescoço, chegavam em triângulo e, num voo ligeiro, afloravam o lago. Alguém que, até então, tinha serrado madeira, parou. O silêncio tornou-se mais profundo.
O rapaz voltou para o quarto. Sobre a cómoda de madeira clara, estava uma Bíblia. Ao lado, uma caneca de água e um copo azul. Embora não tivesse gelo, a água estava fresca e a caneca embaciada. O homem encheu um copo que bebeu.
-Também tens sede, Tobias ? - preguntou ao cão.
Este, desde que entrara, tinha-se posto em frente da parede caiada de fresco e olhava com nervosismo uma minúscula aranha verde, esfregando com a pata trazeira a orelha direita cheia de poeira do comboio. Quando o dono o interpelou, cessou esse movimento e continuou sentado, dizendo que sim com a cauda.
- Gostava de ficar aqui um tempo, para pescar. Trouxe o meu equipamento de Seattle. Ainda está tudo à entrada. Como são os regulamentos da pesca ? Não gostaria de pescar no lago mas ir buscar as trutas lá abaixo, ao rio.
- O sr. Colmore pode elucidá-lo. Ele é que trata de tudo isso com os clientes. - disse a estalajadeira, uma bonita rapariga de pernas e braços morenos e nus, tendo um vestido de cretone com flores.
- O sr. Colmore é o patrão ?
- Sim, é meu marido.
- Obrigado, sr.a Colmore. Se pudesse dar de beber ao meu cão... E a minha maleta ainda lá está em baixo. Isto aqui é muito tranquilo.
- Sim, é um bocado isolado. Mas ao fim de certo tempo, a gente habitua-se. E depois temos também o rádio...
- Muito bem.
Assim que a mulher saiu do quarto, o rapaz sentou-se na cadeira e estendeu as pernas. Observou também a aranha verde que era muito interessante. Depois, virou preguiçosamente a cabeça e olhou para a janela. A montanha tornava-se mais sombria, mais negra; o céu- por trás, era de um vermelho de framboesa. Para lá do cume da montanha, algumas pequenas nuvens brilhantes surgiam e pareciam apressadas. Agora, no ar puro, ouviam-se vozes de crianças no embarcadoiro. O rapaz não pensava em nada. Tudo estava calmo - isso lhe bastava.
Pelas sete horas, desceu, com os cabelos molhados e bem escovados para trás. O cão estava também molhado e um pouco mais limpo. O recém-chegado inscreveu-se no livro dos hóspedes: Edward Drake, natural de Atenas, cidadão inglês, vindo de Los Angeles, actualmente
em viagem e sem domicilio certo. O estalajadeiro, sr, Colmore, era um rapaz de tipo francês, provavelmente oriundo do Canadá.
- Quere pescar no rio, sr. Drake ?
- Quero. Ouvi dizer que o melhor sítio é ao pé dos "Quatro irmãos".
- Sim, é um bonito sítio, se quere só trutas. Se não, o lago também é bom. Daqui até aos "Quatro irmãos" ainda é longe. Duas horas a pé e não se pode ir de automóvel.
- Não faz mal.
- Tem que se levantar muito cedo. O meu rapaz acompanha-o. A não ser que conheça o caminho.
- Já cá estive uma vez... a trabalhar. Não me demorei. Mas tomei logo a resolução de voltar.
- Isto aqui é muito bom para os nervos, senhor.
- disse o estalajadeiro, lançando um breve olhar para o rosto do seu hóspede. - Quere mais alguma coisa ? Os seus apetrechos estão em ordem ?
- Parece-me que sim. Só as moscas é que me parece que não prestam para nada. Não encontrei em Seattle o que queria.
Drake tirou da algibeira a caixa da isca e olhou desconfiado para o seu conteúdo, que mostrou ao estalajadeiro.
- Sim, não são famosas, mas se tem boa mão não faz mal.
- Há muito tempo que não pesco. - disse Drake, olhando para as moscas, inhàbilmente feitas e muito grossas.
Da casa vinha um cheiro a manteiga quente e peixe grelhado. A entrada era longa e estreita, com vigas ennegrecidas. Três animais empalhados estavam suspensos das paredes caiadas. Um gato bravo, uma ratazana e um grande pássaro que Drake não conhecia e que Tobias, que estava ao pé do dono, olhava também com surpresa. Uma sineta tocou, com um som de vidro. O estalajadeiro disse:
- A sr.a Colmore acabou de fazer o jantar.
Na sala das refeições havia quatro mesas de carvalho
encerado e cada uma tinha em cima uma vela. Era bonita e agradável a impressão de silêncio e de limpeza que reinava em toda a parte, no Clearwater-Cottage. Os donos da casa e os seus três filhos estavam sentados numa das mesas. Outra encontrava-se vazia. Drake estava só, na sua, com Tobias aos pés. Na quarta, vieram sentar-se um pouco depois, e murmurando palavras de desculpa, dois senhores de sweater. Um deles estava queimado do sol, tinha a cara brilhante de vaselina. Inclinaram-se ligeiramente para o lado de Drake. Depois do jantar travaram conhecimento. O mais idoso, alto e magro, de cara simples e inteligente, era de Chicago e chamava-se Smith. Segundo o que Drake compreendeu, fabricava papel. O mais novo chamava-se Clyde, era muito modesto e um pouco acanhado quando Smith o fazia arreliar. Mais tarde soube que era o famoso Clyde, um dos quatro grandes escritores americanos. A conversa andou sempre à volta da pesca; era uma verdadeira conversa de homens, e do melhor género. Drake tornou a mostrar as suas moscas; a sua má qualidade parecia causar-lhe uma verdadeira inquietação.
Clyde não pescava senão no lago, com minhocas e à linha; parecia que lhe era indiferente pescar trutas ou qualquer outra coisa.
Smith fazia troça dele. Pretendia ter apanhado no ano anterior, mesmo na embocadura do rio, uma truta de onze polegadas (30 centímetros) com uma simples mosca de metal, sem importância. Evocou o testemunho do sr. Colmore. Este sorriu com indulgência. Drake informou-se sobre os "Quatro irmãos" e sobre o melhor lugar para a pesca à linha.
Clyde pediu uma bebida a que chamou soro de leite, mas que era, na realidade, um julepo de hortelã-pimenta. Os altos copos estavam embaciados; pequenos pedaços de gelo flutuavam no whisky e as folhas de hortelã-pimenta, verdes e frescas, na borda do copo, tinham um perfume frio e estavam todas perladas. Drake bebeu o primeiro copo muito de-pressa, depois o segundo lentamente e com extraordinário prazer. Desconfiava do gosto a metal que, havia vários dias, tinha na boca.
Pela primeira vez, desapareceu. Bebeu um terceiro copo, depois toda a gente foi lá fora ver o tempo.
Em frente da casa havia uma varanda assente em quatro colunas de madeira, onde estavam quatro rockings?chairs. Saindo, ouviram um ruído igual e baixo sobre o teto da varanda e sobre as moitas próximas da casa. Olharam para o céu. Tobias, nascido e criado em Hollywood, onde o mau tempo não existe, não percebia bem o que se passava.
- Pronto, chove! - disse Clyde.
- Calma! Vai chover esta noite e amanhã estará bom tempo. - disse Smith, para o consolar.
O sr. Colmore saiu para a chuva, foi até ao fim da casa e voltou, dizendo:
- É apenas uma nuvem; lá em baixo já se vêem as estrelas.
Os dois homens entraram. Drake desceu os três degraus da varanda e pôs-se à chuva. Através das janelas iluminadas podiam ver-se as gotas caírem, apertadas umas contra as outras como filas de pérolas de um reposteiro chinês suspenso na obscuridade. Tobias seguiu-o, ao princípio com hesitação, tendo sempre no ar uma das patas da frente antes de se arriscar a um passo mais. Mas, assim que os pingos começaram a atravessar-lhe o pêlo e chegaram até à pele azul-escura, respondeu por um latido de alegria à fresca e rápida sensação da chuva. Tentou agarrar qualquer coisa que caía lá de cima. Era um mundo maravilhoso de onde se exalava o cheiro excitante a ratos molhados.
- Depois da chuva, as trutas pegam bem!-disse o sr. Colmore a Drake.
- Julgava que era antes.
- Antes e depois. - replicou, sorrindo, o sr. Colmore. Drake passou a mão pelos cabelos molhados e abriu
a boca. Engoliu o ar húmido, quente e fresco. Tudo rumorejava em seu redor.
- A chuva é uma coisa maravilhosa. - disse ele.
- Vem do México?
-Não, porquê? Venho de Los Angeles.
-Ah, sim! Também é muito seco. Há gasolina
em vez de ar ao longo da costa sudoeste. Pode cortar-se à faca. Só se compreende bem o valor da chuva quando se esteve muito tempo sem a ver.
- Sim, tem razão.
- Já estive uma vez no México, sr. Drake. Nove meses sem ver chuva. Mais nada senão cactos e impaludismo. Sempre um pouco de febre e um zumbido nos ouvidos, por causa do quinino. Por fim, vim para Chicago e quando saí da estação já chovia. Estava tudo molhado, a rua suja, as mulheres tinham guarda-chuva e calçavam galochas. Parei e ri com o maior prazer e respirei, enchi os pulmões. Nunca tinha sido tão feliz como ali, diante daquela gare, à chuva suja do Centro-Oeste, em Chicago. Não me podem dizer nada sobre a chuva, eu sei o que ela significa para quem vive num país seco. Los Angeles é muito seco.
- Sim, não sentimos tanto quando lá estamos, mas é realmente seco.
- Bem. Boa noite, sr. Drake. Vai dormir muito bem.
- Oxalá.
- com certeza, cá toda a gente dorme bem. Quando as pessoas chegam, ainda trazem pior parecer do que o sr. Drake. Mas ao fim de uns dias, estão irreconhecíveis. Toda a gente precisa repoisar de vez em quando, não é verdade? Então, boa noite, sr. Drake, espero que os galos não o incomodem muito. O velho é razoável, mas temos um novo que costuma cantar antes do nascer do sol, aí pelas três e meia.
A chuva murmurava e caía no lago; os lençóis estavam frios e um pouco húmidos: aqueciam lentamente, ao mesmo tempo que o corpo. Dormiu bem. Depois, o galo novo pôs-se a cantar. Em seguida, nasceu o sol, o cume da montanha iluminou-se com os primeiros raios que deteve de passagem. Mais abaixo, planava uma nuvem mais espessa e branca e o nevoeiro cobria o lago. Assim que o nevoeiro aligeirou e se dissipou, viram-se, aqui e acolá, os peixes a saltarem na água, depois, à superfície cinzenta de ardósia, ficou um círculo prateado. No parapeito da janela uma borboleta pousou e dormia ainda com os élitros trémulos, baixos, semelhante
a uma barca à vela. O canto do galo acordou Drake que foi à janela; depois voltou a deitar-se e adormeceu.
Pelas sete horas apareceu Georgie Colmore, um dos gémeos, um rapazito de nove anos, de calça de cotim e grandes botas, um perito em questões de pesca à linha. Havia três dias que Drake se preocupava em deixar crescer o bigode, nesse dia nem sequer fez a barba. O seu duche matinal foi reduzido também à expressão mais simples. Vestia uma calça de fazenda e um sweater em cima da camisa e gozou profundamente esse prazer sorna que os homens têm de passear pouco vestidos. Em qualquer sítio, na gare de New-York, estavam duas malas cheias de roupa, que não haviam sido reclamadas.
O Europa baloiçava-se já em pleno Oceano e, na cabina nº 256, estavam, imobilizadas, flores, cartas, telegramas, esperando, em vão, o destinatário.
- Preciso avisar Jerry. - pensou Drake distraidamente, mas deixou isto para mais tarde, e assim que começou a caminhar para os "Quatro irmãos" não pensou mais em tal assunto.
O caminho dos "Quatro irmãos" é todo a subir, primeiro ao longo da floresta, depois na floresta, em seguida por cima de uma pontezinha de madeira e outra vez através da floresta. Era um terreno pedregoso, onde brilhavam de vez em quando pequenas parcelas de mica. As árvores, altas e belas; cedros, não muito juntos, mas de grandes ramadas, fetos e outras folhagens, grandes, moles, dentadas, ocultavam o solo. Nos taludes estavam ainda suspensos por toda a parte ninhos de aranhas cobertos de orvalho; grandes bagos e cogumelos de cabeça alaranjada cresciam igualmente e cheiravam deliciosamente a terra húmida. Esquilos cinzentos saltavam pelos caminhos e ramadas; depois ficavam sentados e direitos, silenciosos, cruzando as patitas da frente, olhando para baixo. Tobias, sempre na frente, embora não conhecesse o caminho, tinha acessos de louca alegria. Corria de-repente, a toda a velocidade, com expressão preocupada como se tivesse acabado de receber um telegrama.
Voltava, de nariz pensativo, perseguindo não sabia que pista. Agarrava as libélulas que passavam diante de si fazendo vibrar as suas hélices azues, e anunciando que a água estava próxima. Ficava para trás, raspando o chão com as patas, com expressão furiosa de máscara chinesa. Depois voltava, com ar desprendido, de orelhas arrebitadas, e seguia o dono, com o nariz colado às suas pernas, cheio de uma distinção demonstrativa que tinha adquirido logo na sua infância. Em suma, foi o dia mais feliz que Tobias jamais viveu -o cãozinho ciumento e sacrificado. Era ele que estava com o dono, ele e não Pluck e o dono estava bem. Tobias revirou os olhos e olhou para ele, com inquietação : sim, ele estava bem.
O pequeno rio onde chegaram tinha uma inclinação rápida, corria veloz e parecia muito frio. Cinzento esverdeado, só era transparente nos sítios mais calmos e mais profundos. Pedras e ramadas embranquecidas jaziam no fundo, e, em certos sítios, erguiam-se pequenas ilhotas de uma areia branca que luzia ao sol. O jovem Georgie cantava sem descanço, mas o rio fazia tanto barulho que lhe cobria a voz. Drake levava a linha num estojo de lona, o que era um pouco incómodo. Pararam uma vez, beberam quando passaram junto a uma fonte captada na rocha e uma terceira vez, um pouco antes da subida que vai dar aos "Quatro irmãos".
Os "Quatro irmãos" são quatro pequenas quedas de água, semelhantes a cascatas, onde o rio corre pelas partes escarpadas e polidas do leito. Por baixo de cada cascata, o choque incessante da água cavou uma pequena bacia onde a água chega crepitante para parar e ennegrecer antes de descer para a queda seguinte. Uma frescura musgosa enchia o ar, em redor. O segundo dos "Quatro irmãos" captava os raios de sol de tal maneira que estes formavam um arco-íris.
Assim que Drake viu brilhar a primeira truta na cascata, saltar e tornar a saltar mais abaixo, despediu um grito de alegria. Mas logo se tornou silencioso como todo o pescador que se respeita. Pôs-se a ajeitar a linha.
Georgie já tinha deixado de cantar e Tobias tomara uma posição de espectativa deitado sobre a barriga, com as patas de trás estendidas.
Drake apanhou primeiro uma grande truta muito bonita, depois, durante muito tempo, mais nada. A sua mão tinha encontrado logo o movimento circular e ligeiro da pesca às trutas, mas as moscas não prestavam para nada. Georgie era da mesma opinião e dizia que preferia fazê-las. Para isso, tinha trazido minhocas numa caixa de lata, redonda e esburacada, que enchera de terra e onde elas se moviam preguiçosamente. Mas Drake não queria saber de nada. Brincava com a linha e não a desfitava. Tobias ainda abriu a boca e em seguida adormeceu. Os pescadores desceram até à primeira cascata, depois ainda um pouco mais abaixo até ao sítio em que o rio fazia uma curva e aparecia, verde com um pouco de espuma branca. Aí, Drake apanhou a segunda truta: ela lutava com a linha, estorcendo-se, e ele julgou por um momento que iria escapar-se. A-pesar-de tudo, conseguiu tirá-la da água. Era magnífica. Tinha o lombo cor da água verde e prateada, os flancos estreitos eram claros e salpicados de oiro. Os olhos compunham-se de um círculo prateado, um círculo de oiro e outro negro. Drake ficou surpreendido por ver isto tão distintamente.
Dantes, nas suas férias em Oxford, pescara muitas trutas com o mesmo prazer impetuoso que sentia hoje nas veias, mas, afinal, nunca tinha visto como as trutas eram feitas. Passou duas vezes os dedos pelas barbatanas superiores, mais resistentes do que pareciam: isto foi como uma carícia. Quando quis tirar o anzol da boca do peixe, este debateu-se furiosamente: era muito vigoroso e queria lutar. O anzol estava muito em baixo, a ponta saía de banda, ao pé dos ouvidos e o animal sangrava. A cada movimento respiratório saía um pouco de sangue pelo ouvido. Teve mesmo força para saltar sobre a relva da margem, depois de haver repelido a mão de Drake, que teve de tornar a apanhá-la com a linha. Georgie foi buscar uma pedra ao rio. Tinha as calças molhadas até ao joelho.
- É preciso dar-lhe uma pancada na cabeça. - disse, dando a pedra a Drake.
A truta desmaiou e morreu provavelmente à segunda pancada. Mas, quando Drake lhe tirou o anzol, o seu corpo tremia ainda.
Pescou mais duas trutas, uma pequena, e outra ainda maior do que a primeira, lá em cima, ao pé da quarta cascata. Foi obrigado a descer à água para a agarrar.
- É preciso abri-las e tirar-lhes as tripas. - disse Georgie que, naturalmente, tinha tomado o comando.
- Bem, então estripa-as, eu não tenho faca. - respondeu Drake.
Olhava para as quatro trutas e queria-lhes bem. Eram maravilhosas. Georgie tinha um canivete que enterrou na terra para o limpar. Depois introduziu-o, perto da barbatana inferior, no ventre da truta e abriu-a a toda a largura. Tobias, excitado, olhava. Drake desviou os olhos. Assim que as trutas ficaram limpas e as tripas foram deitadas para a erva, Tobias veio cheirar. Depois afastou-se com desprezo e foi sentar-se mais longe.
- É preciso enchê-las de ortigas. - disse Georgie.
- Para quê?
- Porque é preciso.
- Mas onde vais tu arranjar ortigas ?
- Por toda a parte onde há gente há ortigas. - disse Georgie, categórico e sentencioso,
Efectivamente, daí a pouco voltou com elas; cheiravam fortemente a verdura e a frescor. Drake, durante esse tempo, ficara deitado na erva, de costas, sem pensar em nada. Era esplêndido estar deitado na erva e pescar trutas. Era esplêndido estar em Clearwater, ser um cavalheiro mal barbeado, chamado Drake. Principalmente, era sobretudo esplêndido não estar em Hollywood. "Leve o diabo Hollywood e tudo que lhe diz respeito. Tudo? Sim. Nada de restrições. Tudo".
Sentou-se, a ver como Georgie enchia as trutas e as empacotava.
- Não te picas ? - preguntou.
- Não. Basta agarrá-las com as mãos bem abertas,
em cheio. - explicou Georgie, que tinha adoptado, mais uma vez, o tom doutoral.
No regresso, foi ele que trouxe a linha. Drake pôs ao ombro o saco das trutas. Através do tecido impermeável, sentia-lhes a frescura. Estava cansado mas feliz. Georgie caminhava à frente com Tobias e falava muito com ele. Drake ia um pouco mais atrás. A cada volta, Tobias parava e voltava à espera do dono. Duas horas de descida na montanha é trabalho rude para quem não está habituado. Doíam-lhe os pés. Entre as omoplatas sentia um ardor, talvez um golpe de sol. Era engraçado acontecer isto a quem vinha do brazeiro solar da Califórnia. Drake contraiu as omoplatas; sentia os músculos. Tudo isto era tão agradável, esta pequena dor e este cansaço nas pernas! O peso do saco com os peixes e o murmúrio que sentia nos ouvidos ocasionado por ter escutado, durante horas, o ruído do rio e das cascatas! Quatro belas trutas. Um bom sono. Repouso. Nenhuma dor no estômago. Nenhuma saudade de Donca. Era como se Donca não existisse.
E assim foi na quarta-feira, na quinta e na sexta. Todos os dias eram bons, um pouco melhores que os anteriores. Nada de jornais, nem de cartas, nem de mulheres, nem de êxito. As coisas mais simples: a chuva, o sol, o lago e a montanha, a manhã e a noite. O silêncio era tal que as vozes das crianças constituíam o maior barulho de Clearwater.
Foi de-certo a primeira vez que o silêncio entrou na vida deste homem, deste Edward O. Drake, deste Oliver Dent, o rapaz bonito e amável que, nos cartazes, exibe o mais radioso sorriso do universo e que o sr. Colmore imagina exgotado pelo trabalho.
Quando Edward Drake está deitado na relva, olhando para o céu, sentindo o prazer de não pensar em nada, parece-lhe que nunca teve tranquilidade na vida e que sofreu de agitação antes mesmo de ter nascido. Contavam-lhe muita vez que sua mãe passeava entre as estátuas do museu de Atenas durante horas, quando esperava o seu nascimento. Queria ter um belo filho. E teve-o. Já havia dois irmãos, mas a mãe, que se aproximava dos
trinta anos, sofria desse nervosismo particular às mulheres bonitas a quem a beleza vai abandonar, O pai era secretário de legação, saiu do seu lugar de Atenas assim que o nervosismo da mulher se transformou em doença. Saía de todos os lugares ao fim de pouco tempo. A vida em comum com uma neurasténica, tinha-o tornado irritável se é que o não fora sempre. A atmosfera da casa paterna de Edward, estava em alta tensão: trovoada, relâmpagos, raios. O pai já não podia viver em paz com a família, tinha sempre qualquer aborrecimento particular de que falava em voz alta e vibrante de cólera: o ministro, o segundo secretário, o primeiro adido. Sua mãe tinha crises de lágrimas e não podia dormir; o seu quarto cheirava a éter assim como a casa toda. Esta casa mudava constantemente. A criada mudava também. A língua que ela falava, a cor da sua pele, os passeios que dava, os castigos que lhe infligiam, tudo era sempre diferente, tudo mudava diariamente.
Atenas, Cairo, Constantinopla, Varsóvia, S. Petersburgo. A morte da mãe. A reforma de seu pai. Um semestre numa escola de Zuoz, na Suíça. Muito caro, Saint-Thomas, em Londres. Cheiro a sabão. Professores tristes. Nunca estava só, Edward ou Oliver, nunca estava só. Em casa, os irmãos mais velhos e ciumentos do mais novo. Em Saint-Thomas, os camaradas de aula, os companheiros de dormitório. Edward Oliver odiava os dormitórios em comum, tinha lhes tal horror que isso se tornara em si uma espécie de fobia. De noite, ficava acordado até que todos dormissem, então punha a coberta por cima da cabeça e escondia-se para dormir. Oh! o cheiro inesquecível da ordinária coberta de algodão que ele respirava de noite! Obrigava-se a acordar de manhã antes dos outros. Não podia suportar que alguém o visse dormir. Só Deus sabia porquê. Fora sempre o mais belo e o mais forte da sua aula, e portava-se, como era natural, como um garoto com o seu físico. Talvez que, no fundo, tivesse receio de ser diferente durante o sono: mais parecido talvez com o que na realidade era, mais tímido, mais triste, mais fraco. De qualquer forma, ele era o que exigiam que fosse: um bom jogador ao
rugby, um excelente guarda-rêdes ao hockey e o melhor nadador da escola. O facto de dormir pouco era apenas um pormenor insignificante, doentio, e profundamente oculto no seu organismo.
Por fim, Oxford. Finalmente, um quarto só para si, alguns metros quadrados de ar que lhe pertenciam exclusivamente. Mas já se agarravam a ele de uma forma mais directa agora, mais indiscreta e desagradável. Punham flores e sonetos, que lhe eram dedicados, no seu quartito obscuro, e escreviam-lhe cartas, davam-lhe o braço, faziam-lhe cenas de ciúmes. Eram os camaradas. Quando as mulheres o descobriram, ainda foi pior, eram mais violentas e tinham menos pudor. A primeira que teve foi uma viúva; parecia-se um pouco com sua mãe e ele deixava-se amar com certa surpresa. Depois, teve muitas. Cada uma trazia a sua novidade, todas pretendiam dar qualquer coisa de novo... e era sempre o mesmo. Isto tornava-o orgulhoso e solitário de uma forma especial. Era essa forma perniciosa de solidão de que sofrem aqueles a quem nunca deixam sós. A-pesar-disso, Oxford era agradável e foi a primeira pátria que Oliver conheceu.
A morte do pai. Uma herança espantosamente módica. Luta entre os irmãos, cuidadosamente mascarada. Era preciso sair de Oxford. Um amigo-o que lhe punha os sonetos em cima da mesa - tomou-o sob a sua protecção. Edward Oliver resvalou rapidamente para a boémia literária de Londres. Voltou a dormir muito pouco. Exibiam-no como um animal curioso. Foi então que descobriu o whisky e o gin. Estava prestes a tornar-se um original cheio de orgulho e de silêncio. Até então, nunca tinha bebido. Assim que começou, foi o que desejavam que fosse, alegre e um tanto louco. Arrastaram-no para uns clubesitos de artistas, a exposições de falhados, as festas de atelier. Pintaram-no e esculpiram-no todo nu, sem verem que ele sofria com isso. Ele próprio não se compreendia e não podia dizer nada. A conclusão foi a sua descoberta para o cinema.
Depois, veio Hollywood, o seu grande êxito, o grande público; agora tinha uma casa só sua mas ainda se
pertencia menos do que no seu buraco de Magdalen College. O Publícity Department arranjava-o, os directores de cena poliam-no. Ele só valia pela sua bela expressão, pela sua extraordinária expressão, melhor que a de ninguém. Não tinha ilusões a seu respeito. Esse pouco de orgulho solitário que tivera, esse nada que o distinguia dos outros, tinham-lho tirado quando o pintaram. Tinha um não sei quê de indestrutivelmente puro que era novo no cinema. Exageraram ainda essa particularidade, esfregando-o com sabonete, friccionando-o até o polirem, fazendo-o brilhar, com uma escova. E o resultado radioso desta engenhosa indústria, foi isto: Oliver Dent.
Oliver Dent, um homem a quem fartavam das coisas que menos lhe apeteciam, e que não tinha nunca a única coisa a que aspirava: calma, muita calma para se poder encontrar a si mesmo.
Um dia, quando faziam um filme na montanha, e haviam ido buscar ao pé de uma casa isolada água para o radiador, teve a idea de voltar a esse sítio para repousar e pescar. Tomou nota do nome: Cranvaíer-Cottage, do lago, da montanha. Depois, continuou o seu caminho. Falava, às vezes, do projecto que albergava de ir pescar a Clearwater, mas tinha que filmar. Foi fazer um filme num grande hotel de Honolulu. Depois, um filme em Paris com Ria Mara (e a ligação fria, cristalina e ruidosa que teve com ela não lhe desagradou de todo). Depois, partiu para Rhodes com Donca. Em Rhodes não fazia cinema ... mas também não repousava. Foi um encantamento apaixonado, um sonho ardente, uma embriaguez sem medida. Rhodes estava bem mas Clearwater era melhor. Era curioso que tivesse sido preciso um pouco de enjoo e peso no estômago, acompanhado de uma estranha, profunda e misteriosa angústia, para o trazer até ali!
Deitado de costas na erva, olhava para o céu. O regato murmurava. Oliver pescou trutas, três na quarta-feira e seis na quinta. Estavam ali estendidas ao pé dele, na erva, essas seis trutas mortas, todas de oiro e prata, bem cheias de ortigas e com os ouvidos tintos de
sangue. Cravos selvagens inclinavam-se-lhe para o rosto; em cima, desagregou se uma pequena nuvem. Reinava sossego.
Evidentemente, Clearwater era muito agradável. Pensando bem, era o que Edward Drake, homem, e Oliver Dent, vedeta de cinema, ainda haviam experimentado de melhor na vida: esses quatro dias passados em Clearwater, de têrça-feira à tarde a sexta à noite.
A rua que levava ao novo hospital de Seattle, subia em inclinação rápida através de pequenas casas sujas e sem poesia, do bairro chinês. O velho Ford do sr. Colmore subia a rampa custosa, em primeira velocidade, com muito ruído e o mais rapidamente possível. De vez em quando, o estalajadeiro voltava-se para ver como o viajante suportava os solavancos. Drake vinha sentado ao fundo. Tinha olheiras e tentava humedecer, com a língua, de vez em quando, os lábios secos e gretados.
O oleado novo do vestíbulo da entrada do hospital pareceu-lhe muito liso, era difícil andar nele. O próprio Tobias, que trotava a seu lado, escorregava fazendo barulho com as unhas.
- É o sr. Drake, para o dr. Olafson, telefonámos-lhe; vimos de Clearwater-Cottage. - declarou o sr. Colmore à irmã de caridade, no pequeno escritório de recepção.
A irmã, rebarbativa e armada de óculos, telefonou e escreveu.
- O cão não pode entrar na sala de consultas. disse depois, severamente.
- Diga-me dessas. Experimente .. Ele ia deitando a casa abaixo quando o quisemos lá deixar.
Tobias procedeu como se não falassem dele. Olhou fixamente na sua frente com os olhos um pouco perturbados. Era evidente que ele não admitia que privassem
o seu dono, já tão doente, da sua protecção. De resto, haviam-se esquecido de lhe dar de comer. A irmã olhou-o, suspirando.
- Quere ir de ascensor ? - preguntou.
Uma outra irmã, mais nova, que respirava demasiada alegria de viver, acompanhou o doente. Era desta espécie de grande ascensor de hospital, onde se espera sempre ver entrar macas com moribundos. Drake ficou em pé, indiferente às formalidades da entrada, humedecendo de vez em quando os lábios e sentindo-se pouco seguro nas pernas.
- Pode andar? -preguntou a irmã alegre, amparando com braço firme Oliver, para o suster.
- Obrigado, estou bem. -disse ele, recusando-lhe o braço.
Atravessaram o corredor branco. Sala de operações nº 1, sala de operações nº 2; Laboratório, quartos de
56 a 86; Secção J. "Atenção aos degraus". "Para o dr. Olafson, dirigir-se ao quarto 67. Cá estamos.
- Tu vais deitar-te ali à minha espera. - disse Drake a Tobias no tom mais severo que lhe foi possível arranjar. Tobias lançou-lhe um olhar triste; os seus olhos negros velaram-se de água, embora não chorasse nem gemesse. Deitou-se contra a porta, com a cabeça entre as patas, e passou uma meia hora horrível.
Haviam-lhe confiado o dono, a ele, Tobias, a ele e não ao chow-chow Pluck, e tinha que faltar ao seu dever porque o dono adoecera! Tobias lambeu o pêlo sujo, como se fosse um gato; ele sabia que estava outra vez sujo e tinha vergonha. Não podia haver outro pequeno terrier sealham que tivesse uma consciência mais inquieta do que este Tobias, a quem aconteciam coisas tão terríveis emquanto viajava com o seu dono!
No consultório do dr. Olafson reinava o forçado optimismo de hospital novo, equipado com todos os aparelhos recentes, tendo um médico moderno e zeloso. Paredes amarelas, claras, grandes janelas, sol, nem um objecto a mais no aposento, sugestão psicológica do doente.
O dr. Olafson era um homem de rosto comprido
e de cabelos cor de areia; não tinha, por assim dizer, olhos, pois os seus óculos espessos, polidos em hemisferio, ocultavam-nos inteiramente. Aproximou-se do doente, de uma forma insinuante. Preguntas costumadas, consulta costumada. Os seus dedos cheiravam a uma mistura de cigarros e de sabonete para bebés, o seu contacto era rígido. Drake deu as informações pedidas. Teve uma crise durante oito horas, dores, impressão no coração, calafrios, angústias. Oito horas de dores mudam um homem, fazem de um homem um objecto que deixa andar tudo à revelia. com os ombros ligeiramente inclinados para a frente, Drake estava sentado e contava o seu caso. Vestia um fato de viagem castanho-claro, tendo na lapela cravos selvagens, murchos, colhidos quando do seu último passeio às cascatas. Despiu-se, mostrou o seu belo torso, respirou obediente, curvou-se, distendeu docilmente o diafragma, sentou-se e esperou.
- Hum ... - disse o doutor. Parecia tomar isto um pouco mais a sério, do que o tinha feito o homem de Winslow. - Se o doente tivesse ainda o apêndice, seria desse lado que se procuraria, mas infelizmente, já não o tem.
O dr. Olafson olhou para o enfermo com mais atenção do que desejaria.
- E que sente, agora?
- Tenho assim a impressão... de um envenenamento. Sinto qualquer coisa no estômago, aqui... Se me tirassem isto, tudo corria bem.
- Um envenenamento ? De quê ? De conservas ?
- Não. Talvez de gin. Isto acontecia-me nos últimos tempos sempre que bebia gin. com whisky não, mas assim que bebia gin...
- Ah! Mas que me diz? Não há em toda a América gin capaz de envenenar ninguém. - disse o doutor num tom mais humano - A quantidade é que é perigosa e não a qualidade. No seu lugar, tomava whisky, pois o senhor tem uma idiosincrasia pelo gin. Que diz?
- Se me tirassem isto, tudo corria bem. Eu não sou doente. - disse Oliver, modestamente. Sorriu com
amabilidade como é costume sorrir dos gracejos dos chefes influentes.
- Pois bem, vamos começar por fazer uma lavagenzinha ao estômago. É muito divertido. Fica aqui esta noite e amanhã veremos o que há a fazer. Vamos pô-lo bom, vai ver; de resto, cá em casa não há gin. - concluiu o dr. Olafson tocando uma das campainhas de que tinha variada colecção na secretária, nua, de optimista. A irmã vai prepará-lo.
A irmã alegre apareceu, levou o doente para o quarto clínico do dr. Olafson e pôs se a prepará-lo. O doente é uma coisa sem vontade, sem carácter e sem sexo. O homem Edward O. Drake transformou-se no número 62.
"Uma lavagem de estômago para o número 62".- disse ao passar a irmã alegre a uma outra, coberta de sardas, que saía do laboratório. A irmã sardenta estava extenuada, era assistente do chefe em todas as operações e os seus nervos não resistiam muito; tinha os cabelos cheirando a éter. O doente número 62 reconheceu este cheiro, era assim que cheirava sempre no quarto de cama de sua mãe. Enguliu docilmente o tubo que lhe meteram na boca e entregou-se aos preparativos da lavagem ao estômago. Isto, longe de ser divertido, como dissera o médico, fatigava-o muito. Depois, descansou na cama número 62, esperando para ver se as dores aumentavam ou diminuíam. Diminuíram.
- Estou muito melhor. - disse ao seu cão. Tobias tinha conseguido ficar ali, fizera a corte às irmãs e esperava mesmo fazê-las compreender que tinha fome e que o dono se havia esquecido de lhe dar de comer.
Os doentes têm um imenso privilégio: têm o direito de estar doentes. É-lhes natural, é o que lhes convém. A vedeta de cinema Oliver Dent não podia estar doente sob nenhum pretexto. Imagine-se o tumulto que iria nos jornais e no Front Office, se o artista Oliver Dent resolvesse adoecer! Mesmo para um homem de boa saúde, adoecer, não é lá muito correcto. E era uma vergonha para uma pessoa saudável, não suportar três horas de avião. O homem são defende-se
contra a doença; deve mesmo fazê-lo, e isso arrasta-o a lutas encarniçadas. Mas o doente pode permitir-se adoecer e obtém assim uma impressão de alivio infinitamente agradável.
Encontra-se deitado num leito metálico, construído para corpos doentes; tem em cima de si uma coberta branca maravilhosamente leve e em cima da mesa de cabeceira um candeeiro de quebra-luz verde. Ao alcance da mão direita, uma campainha. Uma irmã trata dele, e, frequentemente, pregunta-lhe se já não sofre. Quando não pode dormir, dão-lhe pilulas. Durante a noite, os navios apitam em baixo, no porto. Tudo é um pouco estranho. Os móveis são estranhos e lançam sombras sobre as paredes também estranhas.
A enfermeira da noite, entra: é velha e tem qualquer coisa de maternal, mas as suas botas rangem. O número 62 no novo hospital de Seattle. Um caso pouco grave mas não determinado. Vive-se ali um tanto à margem da vida, como uma peça de xadrez retirada do jogo.
Isto durou três dias, sem resultado: visitas, observações, radiografias, alimentação líquida de gosto enjoativo mas que fazia bem. O primeiro dia passou-o, quási todo, deitado. Ao segundo, levantou-se e tornou-se impaciente, passeou em pijama pelo quarto estreito, sentou-se na varanda e viu, em frente, uma varanda exactamente igual à sua, sobre a qual estava também sentado outro doente. Pensou um pouco em Hollywood. Escreveu mesmo umas linhas a Jerry, explicando que tinha renunciado ao seu projecto de viagem à Europa e que pensava em ir pescar nas imediações de Seattle. Não deu a direcção, não queria ter correspondência. Mandou-lhe muitas lembranças. Vestiu o seu velho roupão vermelho, de banho, e foi ter com a irmã à radiologia para ver as provas. Pô-las contra a luz, como um pedaço de filme. Algumas nuvens sombrias sobre placas de vidro inúteis, e sem o menor interesse. Os dedos do dr. Olafson tornaram-se cada vez mais duros e o seu diagnóstico cada vez mais indeciso. Ao terceiro dia, Drake odiava furiosamente o médico. Partilhava com Tobias esse sentimento.
O doutor fora a primeira pessoa em quem Tobias tentara morder. Um homem que vem da sala de operações e traz consigo o cheiro a sangue fresco não pode esperar outra coisa da parte de um cão inquieto e perturbado. Tobias tinha decuplicado a vigilância, pois havia muitos inimigos em redor do seu dono. É certo que aquele senhor dizia que ele ia melhor, muito melhor, quási bem. Mas Tobias sabia, ele que farejava as coisas com as suas narinas negras, trémulas e húmidas, sabia que isso não era verdade.
Durante a noite do terceiro para o quarto dia, a-pesar-dos conselhos da irmã de calçado rangente e da acção de um soporífico mais activo, Oliver não conseguiu dormir. Sentado na cama, fazia cálculos. Tinha-se tornado demasiado indiferente nos últimos tempos. De-repente, verificou com terror que as três semanas de licença estavam quási acabadas e que a produção das Pedras Miliárias ia começar. Era preciso, até lá, não somente curar-se, mas arranjar bom aspecto. Levantou-se, acendeu a luz e viu-se ao espelho do toucador. Não estava muito claro no quarto 62, mas via-se ainda assim o bastante para que pudesse adivinhar quanto o seu rosto estava alterado. De bonito tinha apenas o novo bigodinho, um pouco mais escuro do que os cabelos, e muito fino. Levantava-se ligeiramente na comissura dos lábios, e era muito engraçado de ver. Oliver sorriu para o espelho. Agora os seus lábios estavam sempre secos e cheios de gretas, o que lhe dificultava o riso. O seu riso era, de resto, medíocre e pouco utilizado. Oliver voltou para a cama e pôs-se a contar. Não sabia exactamente que dia era da semana, teve que estender os dedos sobre a coberta e contar como uma criança.
O ponto fixo sobre o qual insistia era a sua última noite passada com Donca; essa louca noite de Pasadena, "Viagem de avião para Winslow, estadia em Winslow, três dias de caminho de ferro até Seattle, autobus até Clearwater, quatro dias de pesca às trutas, acesso durante a noite de sexta para sábado, um, dois, três dias de hospital e pronto, estamos em segunda à tarde." Metade das três semanas de licença tinham passado. Como podia ele viver assim aos zigue-zagues? Era, agora ou nunca, a hora de retomar a sua linha recta.
- Estou farto de dores de estômago. - pensou Oliver, colérico - Estou farto de médicos de província. Estou farto de Olafson. É terrivelmente míope. Se não me decido, qualquer dia abre-me a barriga. Muito obrigado. vou daqui direito para New-York consultar Dworsky.
Depois de ter tomado esta resolução, bebeu um gole de água, e, aproximadamente uma hora mais tarde, conseguiu adormecer.
No dia seguinte, o 62 saiu do hospital de Seattle, a despeito das objecções do dr. Olafson, e dos encorajamentos da irmã alegre. Vestiu-se e calçou-se, tudo aquilo lhe parecia não lhe pertencer, e o casaco não lhe assentava bem. Barbeou-se cuidadosamente e, em seguida, sentiu-se fatigado, mas limpo e de boa saúde. Pagou a conta e procurou um comboio conveniente. Gastou nisto tudo uma quantidade de coragem e de energia. Tirou mesmo da mão da irmã a maleta das longas viagens e levou-a ele até ao elevador. Os cravos bravios da botoeira estavam secos, mas deixou-os ficar, com um sorriso. Era ainda um pouco de Clearwater. Os belos dias, as belas noites que lá passara nas quedas de água, o lago e o silêncio, o bom tempo, o bom tempo! Escreveu uma carta sentimental, de adeus, ao senhor e à senhora Colmore. "Os meus mais sinceros agradecimentos. Voltarei. Não esqueçam o vosso fiel Edward O. Drake. - P. S. Georgie pode utilizar os meus apetrechos de pesca até ao meu regresso."
Apertou com antipatia a mão do dr. Olafson, muito descontente, e deu ao porteiro uma gorgeta avultada. O táxi desceu para a gare entre pequenos chineses que brincavam. Tobias não pôde conter se; saltou à cara do dono e beijou-o com o seu focinho negro, luzidio e fresco. O dono nem sequer se zangou.
- Já sei, Tobias, já sei, meu cãozinho. - disse ele,
meigamente.
A viagem de Seattle a Chicago durou quási quatro dias. Para um doente, era uma viagem desesperada.
Pobre Oliver, pobre Edward Drake, que se enfronhava cada vez mais nos seus sofrimentos e na sua decomposição tenebrosa e penetrante ! Não tinha já acessos, é certo, não tinha ataques violentos e acabrunhantes, mas não deixava de sofrer e de estar doente. Voltaram a mani festar-se sintomas, horríveis e aterrorizadores. Secreções sanguinolentas, um enfraquecimento do organismo que dava que pensar. O comboio fazia tanto barulho, um ruído tão horrível, arrastando os vagões através dos dias e das noites, através das montanhas e das grandes planícies! Drake tentou ficar sentado no seu compartimento, mas não pôde. "Se estivesse na sua cama, aquilo iria melhor". Tocou e o empregado preto fez-lhe a cama, mesmo de dia. "Não me sinto bem". -disse com o resto do seu sorriso no rosto devastado. Agora não tinha medo, aqui ninguém o conhecia. Mesmo deitado, piorou. O anelzito de sua mãe, de brilhante baço, que há anos tinha no dedo, caiu de manhã e rolou para longe, sem que lhe mexesse. O dedo parecia não lhe pertencer, com a sua risca de pele mais clara. Tudo tinha um ar estranho. "Se o comboio pudesse parar... ficar quieto, nem que fosse só um quarto de hora, melhoraria". O comboio parou, mas ele não se sentiu melhor, sentiu-se talvez mesmo pior; na quietação, as dores tornavam-se mais cruéis, a angústia mais forte. "Ah! se o comboio andasse, se continuasse sempre, de-pressa, até New-York, até Dworsky, era bem bom". Dworsky era uma autoridade, um criador de milagres. Dworsky, de New-York, era o maior especialista nos Estados Unidos, de doenças internas. Ele saberia fazer o milagre. Havia de arrancar-lhe aquilo do estômago e curá-lo rapidamente, quási instantaneamente. Tinha ainda dez dias de licença até às Pedras Miliárias. De qualquer forma, terão que adiar a produção das Pedras Miliárias e se o restabelecimento demorar, alguém que faça o seu papel, Williams, ou outro qualquer. Mas Oliver afasta este pensamento. "Se estivesse mais alto, sentir-se-ia melhor.. Se bebesse água sentir-se-ia melhor. Se tentasse mais uma vez não engorgitar nada, mas nada absolutamente, sentir-se-ia melhor. Se estivesse mais fresco ... se fizesse
mais calor... se chegasse a Chicago... se tivesse um pouco de morfina, sentir-se-ia melhor".
Mas não se sentia melhor.
Estava só. Fecharam Tobias, cruelmente, no fourgon das bagagens, atando-o e açaimando-o porque ele quisera morder, porque era mau e dava a impressão de estar hidrófobo. De vez em quando, a preta de serviço vinha ver Oliver. Era uma mulher larga, meiga, que tinha umas longas mãos escuras de unhas claras e palmas pálidas e aveludadas. Os seus olhos estavam cheios de compaixão e o seu corpo cheirava bem, como pão saído do forno. Tinha o ar de ter deitado ao mundo e amamentado doze filhos. Na sua presença, Oliver não sentia respeito humano. Ela ajudava o, amparava-o. Num dos momentos de depressão, durante os quais apoiou a cabeça ao seu peito, gemeu em voz alta, meia hora, até que o acesso acabou. Tornava a encontrar, quando ela lhe dava coragem, as amas negras da sua infância. Esta chamava se Mary Jones e era de Oklahoma. Em Chicago deu-lhe cinquenta dólares, e ela chorou duas lágrimas solitárias, entregando os dois viajantes aos cuidados dos carregadores.
Sentiu-se em tal estado, que não podia andar. Um dos bagageiros pegou-lhe na maleta, dois seguraram-no, evitando fitarem sobre ele os olhos inquietos e brancos, de negros. Um quarto, encarregou-se de Tobias.
Também o bicho se modificou. Era agora um embrulhinho cinzento-sujo, tendo nos olhos dois riscos húmidos e negros, feitos pelas lágrimas. O seu focinho já não brilhava, estava cinzento, como que bolorento.
Tobias lançou um olhar de censura ao dono, cujo busto inclinado, arrastando as pernas pesadamente, avançava na gare. Tobias gemeu, pôs a barriga no chão e lambeu as botas do dono.
Houve um certo heroísmo na forma como Oliver atravessou a gare até ao táxi e saiu do táxi para o quarto do hotel. "Estou um pouco doente, declarou à criada que devia ajudá-lo a deitar-se. Tinha sempre um sorriso confuso, como para se desculpar quando era forçoso confessar que estava doente. Ei-lo deitado e cheio de
uma fraqueza sem limites. Durante alguns minutos pensou seriamente em telefonar para Hollywood a prevenir Dan. Jerry não; era muito fraco e pouco prático, mas o seu criado de quarto Dan, com grande riso de negro e grandes mãos, era o que lhe convinha. Mas não tinha tempo de ficar em Chicago à espera de Dan, precisava de ir de-pressa para New-York, consultar Dworsky.
O médico do hotel era calmo e simpático um pouco céptico com respeito á ciência que professava. Propôs chamar um colega para conferência, um especialista, uma autoridade. Propôs toda a espécie de coisas: levá-lo para o hospital: exame sério, radiografia, toda a série das experiências de Seatrle, mais uma vez.
- Não, obrigado. - murmurou Drake - Não posso parar aqui. Queria só que me ajudasse um pouco até amanhã, só até chegar a New-York.
- Ajudá-lo? Mas como? Que quere?
- Talvez um bocado de morfina. - propôs Oliver com os lábios secos.
O médico lançou-lhe um olhar desconfiado. Conhecia os morfinómanos que simulam acessos para obterem a sua querida picada. Mas este homem não fingia. Este não deixava dúvidas, depois de se olhar o seu rosto devastado, a sua pele exangue, e essa ruga dolorosa sob o bigodito elegante.
Oliver recebeu uma picada. Coisa estranha, não lhe serviu para nada, nem sequer para o fazer dormir. As noites de Chicago são ruidosas, o seu eco sobe até ao vigésimo quarto andar e o brilho dos seus grandes projectores sobre as grandes fachadas do lago Michigan cortam a obscuridade. Esta noite passada em Chicago, doente, quási a morrer, a última etapa antes do fim, foi a pior noite que Oliver jamais passou. Mais tarde, quando tiver perdido a consciência, há-de encontrar-se melhor. Mas, durante esta noite em que está ainda em plena consciência, tem de suportar e resistir, não há mais nada em si do que o instinto de toda a criatura que trava o seu derradeiro combate.
Uma enfermeira levou o de Chicago a New-York.
No borborinho da gare central algumas pessoas olhavam para a maca em que transportavam um rapaz. Oliver tinha os olhos fechados, sentia os passos dos enfermeiros ao ritmo da maca, respirava o vapor da gare e ouvia o barulho de serrar que o aborrecia e lhe causava vertigens. Caía sempre mais, à medida que o transportavam, era como a descida num ascensor cujos cabos se tivessem partido. É um inferno de vergonha através do qual o transportam. Não sabe, evidentemente, que já parece morto, com os olhos fechados num rosto dolorido. Sente que ainda é o grande e belo Oliver Dent, que usa agora bigode e tem uma flor na lapela ... Que aconteceria se alguém reconhecesse Oliver Dent, transportado numa maca através da Gare Central de New-York?
A porta do carro da ambulância fechou-se sobre ele, e lá foi, baloiçado. Alguém lhe pôs a mão na testa e outra no pulso. Não tinha uma compreensão muito clara do que se passava mas conservava-se bastante lúcido para não revelar a sua identidade na casa de saúde de Dworsky. Puseram no ascensor a maca que o levava. Rolaram-no através de corredores que não via. Despiram-no e meteram-no na cama. Era uma boa cama, uma cama amiga e que adoçava os seus sofrimentos, parecia-lhe. Não tinha parede por todos os lados, segundo lhe parecia também. Reinava uma certa frescura que vinha não sabia de onde; retalhos negros apareciam-lhe suspensos no ar quando abria os olhos.
O homem que o despertou era Dworsky. Um homem severo, uma autoridade. Um homem de cabelos grisalhos que não o deixava perder-se no inconsciente. Ali, as ordens eram cumpridas com rigor. Não se dava aos doentes a possibilidade de se entregarem a uma cómoda apatia mortal. Voltado ao estado de consciência, Oliver tinha realmente dores agudas, mas ao mesmo tempo pensava que era preciso curar-se completamente. E declarou, muito razoavelmente: "Preciso curar-me o mais de-pressa possível por causa dos meus deveres profissionais". Indicou depois o mais que sabia acerca da moléstia. Sob a rude disciplina de Dworsky sentiu-se melhor
e voltou a ter esperança. Dworsky não perdeu tempo : o doente foi posto na maca e levado para uma sala, onde, sob lâmpadas poderosas, foi examinado e depois radiografado. No meio dos preparativos feitos com toda a espécie de chapas de chumbo, sentiu-se tomado por enorme angústia; pareceu-lhe que ia ter de cuspir o próprio coração; sim, na realidade, era isso o que ele sentia. Sorriu às irmãs para as consolar, quando elas o limparam. É bem estranho esse sorriso pelo qual as pessoas doentes costumam desculpar-se junto dos que têm boa saúde e se esforçam por os consolar e os enganar. Morrer é um assunto de que o pudor está ausente, é preciso reconhecê-lo. Mil vezes mais ainda quando se trata de um homem tão belo, tão orgulhoso, tão apaixonado da solidão como Edward O. Drake. Tudo desaba à volta de um homem assim; nada resta além das suas crispações e da sua decadência.
- Que temos ainda para o 168? - preguntou a irmã da noite, ao tomar o serviço.
- Para o 168 ? Um estômago. - respondeu a irmã de dia.
Era o calão da casa. De resto, nada mais tinham a dizer.
Três dias depois da entrada do doente para a sua clínica, Dworsky decidiu-se a operar esse estômago. Era um estômago muito suspeito. Dworsky estava inclinado a supor que se tratava de um caso muito raro, de uma linite plástica, quere dizer, em linguagem menos científica, de uma lesão crónica das paredes do estômago. Arrancou outra vez o doente ao seu estado de letargia, acordou-o completamente por meio de uma leve picada e pediu-lhe licença para o operar. Oliver não compreendeu a gravidade do seu estado senão quando o médico pediu, com uma expressão séria, para lhe dar a direcção dos seus parentes afim de os avisar. "Não tenho parentes", balbuciou Oliver. Os seus lábios tinham dificuldade em falar: estavam inchados, e não eram já os seus lábios. Ele próprio o observou rigorosamente. Nada lhe doía mas deslizava cada vez mais para o fundo da cama e encolhia-se;
- Operar ? Para quê ? E será difícil ?
- Para quem sabe do seu ofício, nenhuma operação é difícil, - respondeu Dworsky - Ele era o maior cirurgião dos Estados Unidos, e só via as coisas por um aspecto.
- E depois fico bom ? - preguntou Oliver num tom infantil.
- Assim o espero.
Oliver reflectiu um instante sobre esta resposta capciosa. De minuto a minuto, o seu espírito tornava-se mais lúcido. Na verdade, nunca tinha visto a cara de Dworsky, desde que estava na cama. Até então, só fragmentos, pedaços ennevoados: um olho, um sorriso, a testa cheia de rugas sob os cabelos grisalhos, recalcitrantes. Agora via-o todo inteiro, com formidável precisão. com tanta precisão como tinha visto, uma vez, em Clearwater, a truta morta. Dworsky tinha os olhos cinzentos, uma grande pupila negra com pequenas veias vermelhas no globo branco. Via-o como vira a truta morta: os olhos redondos, com um círculo doirado, um círculo prateado, um círculo preto, E ouvidos sangrentos.
- Haverá perigo ?
- Muito mais haverá se não se operar, - Dworsky hesitou um momento. Não gostava de enganar. Os doentes tinham mais resistência quando sabiam em que estado se encontravam.
- Tem certo perigo. - acrescentou - É preciso resistir bem.
Oliver caiu na almofada. Reflectia intensamente. Levantou a mão, procurou a testa que encontrou depois de certo esforço e acariciou-a pensativamente. Era então perigoso? Tratava-se, evidentemente, de vida ou de morte. Aqui dizem as coisas sem precauções. Dworsky parecia não se interessar muito com o caso. "Talvez se interessasse mais, se soubesse quem eu sou". - pensou Oliver. Engoliu duas vezes a saliva, e o seu coração, cansado, apático, voltou a bater mais de-pressa.
Até agora, tivera uma única idea: ocultar de todos que Oliver Dent estava doente. Procedia assim por várias
razões: "Ser célebre e doente, é uma coisa levada da breca. Os repórteres, os jornais, os bisbilhoteiros, os reclamistas, os rivais, os curiosos, as pessoas que se condoem, os espertalhões e os que não têm em que pensar, todos, todos o perseguiriam.
Até agora havia conseguido escapar a tudo isto. Tinha-se escondido orgulhosa e silenciosamente como um animal doente. Mas, agora que isto se tornava sério, que se tratava de vida ou de morte, esse orgulhoso silêncio quebrava-se bruscamente em pedaços. Edward O. Drake, retirava-se, sombra muda feita de uma substância nobre ; o que restava e se agarrava às mãos de Dworsky era Oliver Dent, um doente, uma vedeta na agonia.
- É preciso que me salve. - disse ele imperiosamente - Sou Olivier Dent.
Olhava para o médico com ansiedade para observar o efeito desta comunicação. Sim, produzira efeito.
- Vai fazer um barulho horrível se me deixar morrer. - murmurou ele com os lábios pouco ágeis - Era ameaçador e comovente ao mesmo tempo. Ele próprio teve medo ao ouvir-se pronunciar a palavra: morrer. Dworsky agarrou nas mãos de Oliver e colocou-as sobre a coberta.
- Não tem vergonha ? Não se trata disso. Eu não o abandonarei... se o senhor não me abandonar.
Considerou com atenção esse rosto que tinha debaixo dos olhos. Era belo ainda, era o rosto de um crucificado, a palavra Ecce Homo, inscrevia-se nele com todas as letras. Mas não tinha a menor parecença com o rosto desse Oliver Dent dos cartazes de publicidade.
Dworsky era um adversário do cinema e não apreciava muito os artistas, provàvelmente porque já tinha tratado muitos. "Caramba - pensou - estamos metidos em bons lençóis.
- Está então de acordo em se deixar operar. - concluiu ele levantando-se.
Oliver seguiu-o com o olhar. Não podia mexer bem a cabeça mas os seus olhos funcionavam ainda,
Para lá dos pés da cama, havia sombra. O médico desapareceu.
- Este cão não o incomoda ?-preguntou ele -Tinha descoberto a um canto, uma troixita escura que respirava rápida e violentamente.
- Que cão?-preguntou Oliver-Depois, lembrou-se. Era Tobias que estava ali. Tinha-o esquecido completamente.
Tobias arrebitou as orelhas e estremeceu ouvindo o o seu nome. Mas sentiu-se muito fatigado para ir ter com o dono. Doía-lhe o coração desde o dia em que o tinham separado dele para o atirarem para o fourgon das bagagens. Mexeu o rabo fracamente e ficou deitado, com o focinho metido no pêlo suJo.
A operação realizou-se no dia seguinte. Haviam narcotizado cuidadosamente Oliver e ele tinha podido contar até oitenta e quatro, antes de dormir. Por fim, a poderosa lâmpada de operações transformou se para ele num projector e o resto numa tomada de vistas na qual não gostaria de tomar parte. Dworsky, que esperava de pé, com as suas grandes botas de borracha, reparou nesta resistência tenaz como o sintoma típico dos organismos habituados ao álcool. Foi uma magnífica operação. Os dois assistentes ainda falaram dela durante muito tempo. Ressecou quási todo o estômago, ligou ao intestino o pedaço que restou e tudo estava terminado ao fim de uma hora e oito minutos. Oliver Dent voltou ao número 168, o seu estômago foi mandado para a dissecção, na cave, que era dirigida por um tal doutor Oloughfield.
Oliver dormiu até à noite. Assim que acordou teve a impressão de estar feito de numerosos bocados, que chegavam um a um, de distantes e sombrios lugares do universo para o seu leito onde se reuniam e se tornavam um corpo, depois um inferno azul e vermelho de feridas dolorosas, depois, no fim, ficou ele próprio. Não podia falar ainda, mas, com os olhos abertos, fez a pregunta urgente que tinha a fazer. Dworsky estava ao pé dele e inclinava-se com atenção para o pulso que segurava. Tinha um ar amável, mais terno que de costume,
- Creio que isto há-de ir, que o salvaremos. - disse lentamente com precisão, para que as palavras chegassem até ao doente através do nevoeiro. Oliver fez uma pequena careta que pretendia ser um sorriso. Dworsky segurava sempre solidamente a sua mão.
De súbito, no seu canto, ao fundo, o cão levantou-se e aproximou-se da cama sobre as patitas curtas e trémulas. Estendeu-se e deitou a língua de fora como para lamber o dono, mas, como não lhe encontrou a mão, contentou-se em farejar, com uma respiração curta e violenta. Depois de ter feito isto voltou a descer e dirigiu-se para a porta. Aí, parou, estendeu o pescoço e soltou um uivo longo, desesperado.
Dworsky era uma autoridade. Tobias era apenas um
cãozito terrier sealbam, mas o grande medico teve um
arrepio como se tivesse compreendido o que o uivo do cãozinho queria dizer.
Foi Joe Ray o homenzinho da Publicity Department quem trouxe a primeira notícia ao estúdio. O seu rosto sardento estava pálido e inundado de suor, quando passou, a correr, o portão e subiu ao escritório de Bill Turner.
- Preciso falar a Bill imediatamente. - disse ele, ofegante.
As duas secretárias, optimistas, habituadas a estes acessos de loucura súbita, responderam que o sr. Turner estava ocupado.
- É preciso interrompê-lo imediatamente! - gemeu Joe - Nada pode ser mais importante.
- O estúdio não vai abaixo se o senhor não puder falar hoje com o sr. Turner. - disse a secretária com indiferença.
- Sim, vai abaixo, pode acreditar. - gritou Joe Ray com a sua voz de galo que se quebrou, como lhe acontecia
por vezes. Tinha um tal sentimento da sua própria importância, que estava capaz de explodir. As pessoas que trazem a notícia de uma grande desgraça sentem sempre esta estranha alegria triunfante. Tinha recebido a notícia pelo telefone por um amigo, jornalista em New-York, ninguém, a não ser ele ainda sabia nada, trazia um avanço de dez minutos ou de um bom quarto de hora.
Era um trunfo mestre, uma sorte, a sua sorte. Originário de Lundenbourg, uma aldeola da Morávia, tinha começado pelo mais baixo e elevara-se pouco a pouco. Tinha-se americanizado completamente. Agora, queria triunfar e fazer-se admirar pelos seus, que ficaram em Lundenbourg. Fez então qualquer coisa de espantoso: empurrou a secretária, abriu bruscamente a porta e precipitou-se, sem ser anunciado, no escritório de Bill Turner.
Este não estava, bem entendido, com nenhuma comissão. Estava sentado na sua rocking-chair, com os pés em cima da mesa, lendo uma carta.
- Oliver Dent está na agonia! - gritou Joe Ray, de braços abertos, em pé, na atitude de um mensageiro de infortúnio num drama negro.
- Estás completamente doido, meu rapaz? -preguntou Bill.
Dezoito minutos mais tarde, Bill Turner mobilizava a casa toda. Os membros da direcção foram imediatamente convocados, chamaram-nos pelo telefone, foram-nos buscar a Santa Mónica ou a Beverley, arrancaram-nos aos stages onde trabalhavam e até aos braços da família e do amor. A Publicity Department dispendia toda a sua actividade. Já não era Keller quem dirigia a manobra, mas Joe Ray, o pequeno Joe, que, com a sua presença de espírito, tinha sabido impedir que a nova desta desventura chegasse aos jornais antes de ser conhecida pela gente da Phoenix. Sam Houston, chamava a esta desventura, um "sarilho", embora estimasse cordealmente Oliver e não pudesse impedir que os seus olhos se humedecessem de vez em quando. Estavam já em comunicação telefónica com a clínica de Dvvorsky, em New-York; obtiveram a confirmação de tudo, tinham
recebido a garantia de que Oliver "vivia ainda". Foram buscar Jerry, o tímido secretário de Oliver, que ainda não sabia nada, que ficou com os olhos espantados de um coelho e que desmaiou no momento em que ninguém se ocupava dele. Foi preciso transportá-lo para a ambulância do estúdio. Alguns instantes depois, sem chapéu nem bagagem, partiu num avião privado, para New-York. Teve apenas tempo para pedir emprestado um lenço ao jovem Brown, o cenarista que acabara de fazer os exteriores de O Casamento de Billy.
Todos os ensaios haviam sido interrompidos sem ordem de ninguém, como de comum acordo, a-pesar-dos grandes prejuízos que isso acarretava. Em todo o terreno, saíam pessoas, a correr, dos cenários e dos palcos; formavam-se grupos que discutiam o acontecimento.
Pelas seis horas, também a cidade tinha conhecimento do que se passava. Uma edição especial fora impressa com toda a rapidez, tendo este título em letras gordas: "Oliver Dent gravemente enfermo. Estado grave mas não desesperado". Os vendedores de jornais faziam uma algazarra tremenda. Entre as filas de carros, saltavam como por sobre as pedras duma torrente e deixavam-se arrancar os jornais ainda húmidos. Os telefones das redacções e o P. B. X. da Phoenix Picture Corporation estavam em estado de sítio. Diante do portão do estúdio apinhava-se a multidão. O speaker da rádio adoptou, durante a "hora alegre", às sete horas, uma voz trémula de sacerdote para falar de "Ol", o "nosso grande amigo". Telegramas para New-York. Conversas telefónicas com New-York. O rápido cheio de pessoas que partiam, afim de não faltarem à morte de Oliver Dent: repórteres de todos os jornais, dois poetas, oito escritoras daquela categoria agradável, sentimental e tão apreciada pelo público, que se chamam na América Job Sisters. Delegados da Phoenix Picture Corporation, outros do Clube 111; o advogado de Oliver; o seu médico. O seu criado de quarto, Dan e o maçagista Nando - estes de sua própria iniciativa. Mr. Mac Olehan, do Publícity Department, para dirigir em New-Yoik a importante publicidade. Três senhoras milionárias de Pasadena,
apaixonadas por Oliver, cada uma no seu vagão separado e desejosas de acontecimentos que as excitassem. Homens em silenciosos grupos, de que era impossível descobrir a função. Fotógrafos, caixeiros à comissão, pessoas que, de qualquer forma, esperavam tirar proveito do falecimento da vedeta.
E numa grande carruagem, num drawing-room, uma senhora velada: Ria Mara.
Neste momento, emquanto Ria Mara partia para New-York, Donca Moresco dormia. Estendida no divã do seu bungalow, dormia, prendendo, como uma criancita, o polegar na mão fechada. Sob a face tinha a sua negra almofada consoladora: Coco. Pegara nela porque antes de adormecer se sentira infeliz sem saber porquê: extenuada, descontente, inquieta e até desesperada. Vira as provas de pedaços do filme tirados nos dias anteriores e isto provocara-lhe uma crise de melancolia e depressão. Achava aquilo tudo horrível. Entrevia a sua ruína financeira e a sua queda de artista. Naquela mesma noite, às dez horas, deviam recomeçar a filmar os exteriores de noite e era preciso que a vedeta estivesse "em forma". As persianas encontravam-se fechadas, zumbia uma mosca, Sem dizer palavra, Manuela fê-la calar.
Ao passar, Eisenlohr deitou um olhar para as janelas fechadas do bungalow. Haviam ido busca-lo, de carro, à extremidade do terreno. Passeava lá, dum lado para o outro, com o operador Pilouíef e o chefe dos maquinistas, para darem os derradeiros retoques na última cena. Margens do Neva, Schlusselbourg, duas ruas de S. Petersburgo: uma de fachadas tranquilas com colunas de estilo Império, outra toda demolida e cheia de barricadas. Eisenlohr estava um tanto nervoso, como sempre antes das cenas em que era preciso pôr multidões em movimento. com todas as suas forças armazenava fluido para a noite. Já rouco, não deixava de falar, e, sem cessar, esmigalhava nos dedos qualquer coisa que depois deitava fora. Gostava de Oliver Dent. No entanto, embora lhe tivesse uma boa e sólida amizade de homem, o seu primeiro pensamento, ao saber do que se passava, não foi para Oliver, mas para o cenarista Mackenzie,
"Mackenzie vai ter aborrecimentos com as Pedras Míliárias", pensou. Ao seu desgosto misturava-se certo contentamento. Era assim que todos estavam no estúdio e na cidade: o nervosismo era mais forte do que a mágoa. A morte é sempre um espectáculo, embora impressionante, para aqueles que ainda não estão destinados para morrer.
Por fim, todas as personagens importantes da Phoenix Picture Corporation se encontraram juntas. Bill não as convocara para o seu escritório mas para a sala de representações nº 4, onde estavam sentadas em filas como para assistir a um filme. Bill andava dum lado para outro na frente de todos, emquanto falava. Tinha, decerto, tomado uma ducha, pois o seu cabelo grisalho estava molhado e colado à cabeça.
- Meus filhos, - disse - ficamos todos muito aflitos e não tenho necessidade de vos contar o que se passou. Falei com Dworsky, parece um pachá, mas é um grande homem. Se "Ol se puder salvar, só ele o poderá fazer. Estabelecemos um serviço telefónico com a casa de saúde e teremos notícias de hora em hora. Creio que temos os jornais na mão e que a publicidade vai ser feita como nos convier, duma forma agradável e útil. Quanto ao nosso "Ol", - continuou Bill tirando os óculos e tornando a pô-los - todos sabem o que ele representa para nós. É um rapaz espantoso e quando a gente se lembra dele, logo se convence que se não deixará ir a terra. Dworsky ainda não perdeu completamente a esperança. Não desejo fazer o elogio de Oliver, isso daria a idea de que já estava morto e que nos reuníamos aqui para falarmos bem dele. Prefiro dizer: Aqui têm o que esse demónio fez à força de beber e amar, meteu-nos a ele e a nós num belo sarilho de que é preciso que o livremos e nos livremos, o mais de-pressa possível. - O momento em que, em voz rude e um pouco hesitante, pronunciou estas palavras foi o único em que se traiu a afeição que Bill Turner tinha por Oliver. Quanto ao dr. Erbacher, o impressionável chefe da secção dos cenaristas, deixou escapar dos seus olhos duas lágrimas amargas, de imprevisto e sem
motivo. - Todos nós desejamos que "Ol" volte, assim o esperamos, estamos certos. Mas por agora, devemos atender a que ele ainda cá não está, e disso resultam grandes dificuldades que vou discutir convosco. A primeira é a que diz respeito às Pedras Miliárias, a produção deve começar quinta-feira que vem, os cenários estão prontos, o pessoal contratado... e não temos outra coisa para pôr no seu lugar. Como? Alguém propôs alguma coisa? Não? Bem. As Pedras Miliárias sem Oliver, não valem nada. Parece-me que vai ser preciso fazer da mulher a vedeta e dar o papel a Ria Mara. An? Que dizes tu, Mackenzie? Ria partiu? Ela voltará se lhe derem um papel. Peggy? Não, não podemos ainda arriscar um filme com Peggy. Desta vez Peggy tem que ser deitada fora, o que de resto não tem a menor importância. (Neste momento, Peggy desapareceu, acabou. O momento favorável passara. Nunca faria carreira e empregar se-ia mais tarde num escritório de recortes de jornais). É preciso remodelar já o argumento pensando em Ria Mara. É preciso que Lewis faça isso. Quê? Despediram-no? Façam-lhe um novo contrato. Stewart E. tu vais falar-lhe. Resta a dificuldade do papel de Dent. Por pequeno que ele fique, quem o representará? Como? Williams ? E porque não Burbank ? (Burbank era o mais velho actor de Hollywood, especializado em velhos avós e pai de grandes barbas cujo filho fora assassinado). Não. Para esse papel precisamos de qualquer coisa mais nova. É preciso fixarmo nos no tipo de Oliver Dent. Pensem e se tiverem alguma idea, proponham. Sim ... para as Pedras Miliárias... O caso não é muito grave, temos ainda nove dias diante de nós para arranjar tudo isso. O que é importante, é a Noite do Destino. Meus filhos, creio que será uma coisa grande, o melhor filme que apresentamos nestes dois últimos anos, uma obra de arte... um negócio de oiro. Pode prever-se ainda seis dias para a filmagem de exteriores e teremos ganho uma data de massa com essa produção. Creio que todos sabem isso. Creio que sabem também o que me inquieta: Donca. Se a nossa Donca Moresco sabe o
que acontece a Oliver, podemos simplesmente parar a filmagem e anotar trezentos mil dólares nos "ganhos e perdas". É prejuízo que nem sequer podemos calcular, se formos obrigados a interromper a produção. Temos agora...
- E porque havemos de interromper ? - preguntou Stewart E. da terceira fila.
- Porque não nos será possível deter Donca, nem prendendo-a! É evidente que fugirá no primeiro avião, se souber como Oliver está... Não, ela não sabe ainda... dorme e eu pus um guarda ao pé do seu bungalow como diante da porta de um harém. É preciso que ela o saiba o mais tarde possível. O mais tarde possível. - repetiu Bill.
Depois, perscrutou a sala por duas vezes sem dizer nada, de cabeça baixa, justamente em face da primeira fila. Os directores estavam mudos. Alguns, sensíveis como o dr. Erbacher, por exemplo, e o próprio Eisenlohr, sentiam faltar-lhes a respiração.
De-repente, Bill levantou a cabeça e fitou a sua gente.
- Se dependesse de mim tudo se resolveria: ela não saberia nada senão no fim da Noite do Destino.
- Sim, é o que é preciso.-concordou imediatamente Eisenlohr, erguendo-se em toda a sua gigantesca estatura. Estendeu a cabeça: - É preciso que ela não saiba, é preciso. Se ela vai, o filme está perdido.
- Alto ! - declarou Sam Houston da terceira fila, em voz tão alta que toda a gente se voltou para ele Aposto que Donca resiste ao golpe. Eu conheço Donca, conheço-a, sou, de vocês todos, o que a conhece há mais tempo. Mais facilmente rebenta do que deixa a produção; sabe que todo o seu futuro depende disso.
- Ah ! sim ? - gritou Bill Turner - Pois eu conheço Donca há tanto tempo como tu e melhor do que tu. Não há ninguém mais expontâneo que Donca. Juro-lhes que teremos de parar já esta noite se Donca sabe da coisa ao acordar. Desde esta noite teremos quarenta mil dólares de prejuízo. Donca é uma selvagem. Vocês ainda se lembram das bofetadas que ela deu a mrs. Delman ?
"Uma vedeta de cinema esbofeteia, por ciúme, a mulher de um milionário em sua própria casa". Donca, é isto.
- E quando ela meteu o carro pelo vidro de uma montra para ir buscar o Cadillac que o seu príncipe desejava, depois do armazém estar fechado, isto também não é mau de todo, an ? - lançou Eisenlohr, fumando com furor o seu charuto, tão grande e tão negro que parecia um brinquedo.
- Não é preciso ir tão longe para saber até que ponto podem ir as suas loucuras. A maneira como ela correu atrás de Oliver, pintada e vestida como para o palco, passando a noite com ele no Pasadena-Hotel e, ficando fresca e cintilante... - disse a Stewart E. - Isto é que foi uma notícia para os jornais!
- Não se trata agora de recordar todas as velhas histórias de Donca. - declarou BilI, olhando para o relógio de pulso - Para nós, o problema é este: Podemos evitar que ela saiba em que estado está Oliver? E como o poderemos evitar?
A assembleia ficou um longo momento silenciosa. Todos estavam deprimidos e pensativos. Eram especialistas, tinham responsabilidades, compreendiam o que significava parar em pleno trabalho uma produção como a Noite do Destino,
É uma coisa estranha uma produção deste género... É um indefinível processo que tem por fim fazer nascer sombras sobre um écran e fornecer material para os sonhos universais. Quanto menos esses sonhos são realizáveis, mais baratos são. A produção, esse enigmático não sei quê, fornece um alimento à fantasia improdutiva de milhões de pessoas que a realidade quotidiana fere dolorosamente. Por isso é que a produção teme a realidade, por isso tem as suas leis, graças às quais lhe escapa engenhosamente. Os acessórios são duma verdade extraordinária, o mais ínfimo detalhe de segundo plano, o pontapé da bota de um revolucionário russo na Noite do Destino, deve ser de uma exactidão e de uma autenticidade perfeitas, e infelizes das secções ou dos indivíduos que cometam a mínima falta a este respeito.
Mas a revolução, no primeiro plano, é cheia de truques,
é artificial, é como as revoluções são imaginadas e não como são na realidade. Heróis, heroínas, novos, velhos, pobres, ricos, vencedores, vítimas, todos, tal como as palavras que pronunciam, as lágrimas que vertem, o amor que simulam, tudo, tudo, sem excepção, é como se representa e não como na realidade é. São... por assim dizer, o ente anónimo e estandardizado que virá ver o filme no écran.
Vocês lembram-se do tempo em que a Noite do Destino não era ainda mais que um "limão" um manuscrito inútil, uma idea falhada ? Pois bem, desde que a Noite do Destino se tornou uma produção, ganhou força e grandeza. É agora o fenómeno em redor do qual tudo converge. Como uma febre, ela domina o estúdio e os seus empregados. Decide do seu destino, ela própria ; todos os dias muda de fortuna. Sobe, desce, volta a subir, torna a descer - como toda a produção - à maneira das montanhas russas. A Noite do Destino é hoje a maior produção que jamais existiu, amanhã, será a maior porcaria que jamais se produziu. Todas as esperanças, todos os receios se concentram nela. A companhia gasta com ela o seu dinheiro. As acções da Companhia sobem ou descem na Bolsa, segundo os ruídos que, acerca desta produção transpõem os portões do estúdio. Ela pode trazer à Companhia a falência ou o êxito. Enlouquece os directores, leva os cenaristas ao desespero e ao suicídio: os actores trabalham como forçados agarrados à galera. É o que há de mais primordial em Hollywood, esta cidade onde não se faz mais nada senão "produzir". A produção é mais forte, oh! muito mais forte do que a vida real. Ela é o ídolo que devora os homens, a divindade feroz, o tabernáculo de oiro, do estúdio.
- Primeiro é preciso ir procurar Tacus, o eunuco de Donca. - disse por fim Eisenlohr - Ele sabe como há-de manobrá-la. Tem que a vigiar, é preciso não a deixar sair do estúdio. De resto, dorme aqui há alguns dias. É preciso retê-la. Eu estou à vossa disposição; tenho certa influência sobre ela. vou tentar. Creio poder prometer mante-la num tal estado de exasperação
que não pense noutra coisa senão no filme. É preciso não a deixar falar com ninguém. É necessário, por meio de promessas e ameaças, impedir que lhe digam seja o que for. A criada de quarto é segura e calar-se-á. Conversarei com Applequist. É necessário que ela não leia os jornais e que cortem a linha telefónica do seu bungalow. Embriago-a ou dou-lhe soporíficos logo que ela deixe de representar. Ainda temos filmagem para seis dias. É muito. Se... emfim ... Oliver resistir ainda esses seis dias, vou tentar retê-la, mas se acontecer alguma coisa a Oliver durante esse tempo ... então ... então não sei. Eisenlohr parou, a sua voz estava enrouquecida e hesitante. Tinha-se animado como durante uma grande cena. Bill Turner chegou ao pé dele e bateu-lhe no ombro.
- Muito bem, muito bem, Eisenlohr!
O dr. Erbacher, ao fundo, voltou-se para o seu visinho, o jovem contra-regra Brown e murmurou-lhe ao ouvido:
- Eles não compreenderão como são cruéis ?
- Como ? - preguntou Brown, sem perceber.
- Eles nem imaginam o que fazem. Viva a produção ! Morte ao homem! Acredite, a maior parte dos crimes deste mundo são cometidos por falta de imaginação.-disse Erbacher, limpando o suor do lábio superior.
Donca dormia ainda. Em frente do seu bungalow, o vigia maneta patrulhava sem descanso. Manuela, a criada de quarto, saiu de casa e foi ter com ele.
- Santa mãe de Deus! -murmurou ela-Que hei-de fazer ? Que me diz a esta desgraça ?
- Ele há-de salvar-se. - respondeu o maneta no tom mais decidido.
- Acha ?
- Sim, eu também me salvei. - e mostrou-lhe com o queixo a manga vazia que alguém pregara em cima, no interior da algibeira do casaco. Andou dum lado para outro e voltou. Estava escuro; lá em cima, brilhavam estrelas. Ele olhou para elas e achou-as belas. O maneta lembrou-se do tempo passado no lazareto, bem sabia o que era ser cortado aos pedaços; sentia-o
tão nitidamente, que podia ver Oliver Dent no seu leito de dor, emquanto ele estava ali, a olhar para as estrelas. Provavelmente, era o único no estúdio que sabia o que isso era.
- Pobre Ol! - disse num tom de boa camaradagem.
Manuela voltara para casa. Madame Moresco tocou.
Finalmente, foi Granit, o gordo director do Casting, que encontrou alguém a propor para o primeiro papel das Pedras Miliárias. Granit era cotado em Hollywood como o melhor conhecedor do mercado, como o que possuía melhor faro quando se tratava de descobrir o talento e de o recrutar. Foi por isso que Mackenzie parou logo de comer e apurou o ouvido, quando Granit, na cantina, se aproximou da sua mesa e, encostando-se às costas da cadeira, disse, com indiferença:
- Parece-me que encontrei um rapaz que pode fazer o vosso filme em lugar de Oliver. Cansei realmente a cabeça e não encontrei melhor. É o "famoso Aldens".
- O famoso Aldens? O famoso Aldens? Quem é o famoso Aldens?
- Deves conhecê-lo. Aquele rapaz alemão. Tu próprio o escolheste entre os figurantes para standing de Oliver.
- Eu ? Não me lembro. Quando foi isso ?
- No Cardogan.
- Parece-me que não me fez uma extraordinária impressão, o teu Aldens. É um baixinho, castanho...
- Não, querido ... tu não ias buscar um baixo, castanho, para fazer o standing de Oliver. Aldens é o retrato de Oliver. Nisso é que reside justamente o truque, compreendes ? Aí é que está o bluff. O verdadeiro retrato de Oliver. Pensa no efeito que causará, se, uma semana depois do enterro, pudermos dizer aos jornais:
"Descobrimos o sósia de Oliver. É ele a vedeta do próximo filme da Phoenix Picture Corporation.
Mackenzie teve um pequeno arrepio ouvindo Granit fazer, tão cruelmente, alusão ao enterro de Oliver.
- És um amor de homem.-disse ele-Um coração de oiro. De momento, Oliver está vivo e bem vivo. Aposto ainda por ele. - e voltou-se para o seu prato.
- E que é capaz de fazer, o teu Aldens ? - preguntou, emquanto comia. -Um standing não sabe nem falar, nem andar, tem uns braços maus e a pronúncia de Eisenlohr.
- Só tens que o ver. Ele não me dá percentagem, quero somente ajudar-te a sair de embaraços. - resmungou Granit, ofendido - E, além disso, eu não sou um idiota e já tenho descoberto outros artistas, não é verdade ? E se queres saber quem é Aldens, podes preguntar a Eisenlohr. Ele conhece-o muito bem, foi quem o trouxe para Hollywood.
- Sim ? - disse Mackenzie, parando de comer e empurrando até o prato. Se Eisenlohr proteje esse tipo, então a coisa começa a tornar-se interessante. Diz lá, como é ele, mas... a verdade cem por cento.
- É um grande diabo loiro, não mais velho que Oliver. Não podes, evidentemente, exigir um sósia feito por medida. Mas é o mesmo tipo.
- Será possível? E terá também essa qualquer coisa de radioso que caracterizava Dent? Tem?
- É um alemão. É talvez um pouco pesado, mas, com os demónios, para que é que pagam ao cenarista Mackenzie? Tu podes dar a um rapaz daquele género o que lhe falta de "radioso".
O pequeno contra-regra Brown que, a pouca distância, jogava os dados com o dr. Erbacher, largou o copo.
- Ah! Meus filhos... e quando Oliver se ria! Em Cardogan, vocês lembram-se? Quando ele ria! Poderemos procurar cem anos, que é uma coisa que não encontramos mais. O tipo de Oliver! Que rica brincadeira. Oliver não era um tipo, era a felicidade em pessoa.
Erbacher, em silêncio, olhou-o com os seus olhos inflamados pelo cansaço.
- Também não é muito certo que Oliver fosse o seu próprio tipo: era o tipo que representava - tentou ele explicar. - A felicidade personificada ? Talvez. Por mim, permito-me duvidar. Ele ria, sim. Porque não se há-de então fabricar uma cópia desse riso? Nós aqui também fabricamos a selva, as cidades, as guerras, as cerejeiras japonesas em flor... porque não havemos de fabricar o riso de Oliver?
Ninguém respondeu. Os aforismos de Erbacher eram sempre de molde a pôr os outros pouco à vontade. Meteu o nariz entre o polegar e o indicador, seu habitual gesto de resignação.
- Meu Deus! -pensou - Porque digo eu "ele era", porque falamos todos de Oliver como de um morto ? É mau para ele. Nós devíamos ajudá-lo... não o deixar cair...
- Posso preguntar a Eisenlohr o que pensa desse famoso Aldens? - interrogou por fim Mackenzie. - Tu podias talvez dizer-lhe para vir fazer um ensaio.
- Não te entusiasmes, meu tesoiro, As Pedras Miliarias só começam dentro de uma semana, não é verdade ? De resto, eu já convoquei Aldens, como calculas. Temo-lo cá às sete horas. Não saias do estúdio, peço-te. O Bill também cá estará. - acrescentou Granit, que largou emfim o espaldar da cadeira de Mackenzie, sobre o qual, com grande ennervamento deste, não tinha deixado de tamborilar com os dedos.
Afastou-se. Tinha, nestes últimos tempos, qualquer coisa de enfatuado e solene. Na parte interior da cantina estavam grupos de velhos russos para A Noite do Destino. Haviam-lhes posto grandes barbas grisalhas, muito imponentes, mas demasiadamente incómodas para comer. Granit cumprimentou-os com gesto indiferente, como um homem cheio de saber e influência.
Sim, Granit que quinze dias antes era um homem acabado, caído, deshonrado, posto na rua com ordem de desaparecer sem demora, exercia outra vez as suas funções e estava cheio de autoridade. Tinha-se erguido novamente graças a uma destas habilidadezinhas com que se diverte a opinião pública. Durante quatro dias, a dita
opinião tinha trabalhado encarniçadamente contra Granit, sem desprezar nenhum ponto obscuro da sua vida privada. Retratos da mulher que ele tinha maltratado, entrevistas com a desgraçada: a sua fotografia em bebé, vestida de noiva, inocente e de olhos baixos. A sua vida contada por ela própria; a história em folhetins do seu desgraçado casamento. O jornal, que lhe tinha pago dois mil dólares por isso, ganhara dez mil, graças ao aumento da tiragem.
Ao quinto dia, um outro jornal teve a engenhosa idea de empreender uma campanha de represálias, tomando impetuosamente o partido de Granit. Publicou tudo quanto sabia das aventuras eróticas da sr.a Granit: os materiais não faltavam. Retratos de Granit jovem, belo e ardente rapaz, que provocavam a simpatia. Retratos da mãe de Granit. Quem teria suposto que ele tinha mãe ? E que testemunho favorável este de ter mãe, e de a ajudar regularmente com uma mensalidade! Instantâneos mostrando Granit aniquilado, com os braços atirados para cima de uma mesa, onde apoiava a cabeça. O sub-título indicava claramente que fora a vida escandalosa da sr.a Granit que transformara o rapaz ardente num infeliz, obeso e aniquilado. Pequenas anedotas comovedoras tiradas da sua vida. Granit, um bom bebé sincero, confiante, arrastado através do casamento que era um inferno, por uma mulher sem honra e sem consciência. E para girândola final, Granit recusava-se, a despeito de lhe terem oferecido dez mil dólares, a publicar uma única palavra contra sua mulher ou a respeito do seu casamento.
Depois de ter sido assim trabalhada, a opinião pública pôs-se finalmente ao lado de Granit. Foi a vez da mulher desaparecer: partiu para Hawai e a Phoenix Picture Corporation reintegrou Granit, tão injustamente maltratado, e meteu-o outra vez dentro das suas funções.
Ei-lo no escritório do Casting Office. Tornou-se um pouco vaidoso, usa fatos novos, a risca um pouco mais à esquerda, os cabelos cheiram a perfume caro. Tudo isto é triste e digno de piedade, pois não tem outro fim senão mascarar a dor que o homem sofreu. Tentou
pôr-se de harmonia consigo mesmo. Abandona as inúteis curas de emmagrecimento e, em seu lugar, todas as tardes, quando o escritório fecha, vai ao médico da Highland-Avenue, um psicanalista.
Estende-se numa chaise-longue, que range, e confessa a sua vida, os seus sonhos, os seus desejos recalcados, as suas esperanças perdidas. Sente um certo alívio com isto. É como alguém que coça uma picada de mosquito. Depois, quando se encontra só em casa, esse ardor é ainda mais forte. Mas, por fora, a ferida já se não nota. Trabalha no seu gabinete e trabalha com importância. A secretária acha que ele começa a ennervá-la. E as figurantes, que as suas mãos afloram de vez em quando, dizem nos camarins que "o gordo Granit daqui a pouco será como os outros."
Depois do almoço, Mackenzie pôs-se à procura de Eisenlohr para lhe falar no "famoso Aldens." Foi a pé, pois o dia estava fresco. Pesadas nuvens corriam, anunciando chuva. Em Hollywood há a certeza de que não chove antes de Dezembro. As palmeiras agitavam-se fracamente ao vento. Mackenzie, entretanto, leu o jornal que tinha comprado na cantina e meteu-o no bolso. Falava de ligeiras melhoras de Oliver. O coração estava bom e o pulso também. Tinha, diziam, dormido um pouco e suportado as dores sem se queixar. Mackenzie suspirou. Era impossível imaginar Oliver Dent enfermo, Oliver infeliz e sofrendo sem se queixar. De-pressa o esqueceu, porém, assim que chegou ao sítio onde montavam os cenários das Pedras Miliárias. De uma ponta trémula de bambu, sob a qual não corria água, olhava para os operários que, do outro lado, faziam a estrada norueguesa em que se iria passar a grande cena de casamento das Pedras Miliárias. Saiu da índia árida para ir rapidamente até Montmartre. O sol pálido brilhava entre as nuvens, como através de chapas de zinco e havia silêncio e solidão completa nos cenários abandonados dos filmes concluídos. Atrás da pequena cidade mexicana ouviu-se uma sereia. Lá em baixo, filmavam a Noite do Destino.
Assim que Mackenzie chegou à esquina, apareceu-lhe
uma rua cheia de neve, de S. Petersburgo. Estava repleta de gente, a quem tinham pintado, a vermelho, rugas de miséria. As suas costas, as sobrancelhas e as barbas, estavam cobertas de neve. Um pequeno aparelho borrifava constantemente esses miseráveis, esses oprimidos, que, com as botas altas e as blusas russas, se voltavam para a receberem por todos os lados. Esta neve era feita de fragmentos impalpáveis de couro, e tão semelhante, que os olhos se enganavam. Ensaiavam intensamente a cena, durante a qual uma bomba lançada sobre o trenó do príncipe matava cinco inocentes. As mulheres e as crianças destinadas a serem mortas rodeavam o jovem assistente que lhes explicava tudo. No outro lado da rua, uma trolha atrelada, esperava. Ao pé dela, Mackenzie avistou Eisenlohr. Aproximando-se, viu Madame Moresco sentada no carro, metida até ao nariz numa peliça o que, numa tarde de verão em Hollywood, não tinha nada de divertido. Falava e ria com o Istvostchik que estava na boleia. Involuntariamente Mackenzie estremeceu e escondeu na algibeira o jornal que trazia a notícia acerca de Oliver. Ao lado de Donca, Blackeley estava sentado, em grande uniforme e fumando. Eisenlohr tinha um pé no trenó e parecia não fazer nada. Vigiava os electricistas que trabalhavam com as lâmpadas postas na beira dos telhados. Atrás do carro, Tacus rondava. Ao pé de Donca estava a sua criada de quarto com o pó, um espelho e um boné de peles. Mackenzie, aproximando-se, ouviu Madame Moresco falar russo com o cocheiro, que se voltou e fez estalar o chicote, dizendo algumas palavras aos cavalos. Eles só compreendiam o inglês e o espanhol e a sua pele estremeceu quando tocada pelo chicote. Eram cavalos de cinema, experimentados e pacientes.
- Alo, Mackenzie! - disse Eisenlohr - Não gostava de que o rival viesse assistir aos seus ensaios, mas isso lisonjeava-o.
- Alo, Eisenlohr! -respondeu Mackenzie
- Alo, Mackenzie. - saudou Moresco, estendendo-lhe a mão.
Estava tão bem no seu papel de princesa que ele
não pôde deixar de lhe beijar a mão coberta com uma fina camada de água de lírios e que cheirava a rosas e a poeira.
- Que dizes a esta luz ? - preguntou Eisenlohr, aborrecido - Se aquela maldita nuvem não correr, seremos forçados a parar a filmagem. E já estamos com dois dias de atrazo.
- Eisenlohr demonstra as suas aptidões para carcereiro. - disse a Moresco, rindo. - Eu nunca fui tão maltratada, nem mesmo por ele. Já me sinto reduzida a ter que fingir que desmaio, como a Ria Mara, para poder descansar um momento.
Lambeu rapidamente os lábios e pôs-se a falar com um sotaque mais pronunciado que de costume. Era visível que estava em excelente disposição.
- Viste a cena da prisão, Mackenzie? - preguntou ela - Pede que ta mostrem.
Pôs três dedos na boca e mandou um beiJo e Eisenlohr, de-repente, pareceu tomado de raiva.
- Podemos então voltar a isto?-gritou ele tão alto que se ouviu ao fim da longa rua - E, de-repente, a gente sombria e imóvel de S. Petersburgo aproximou-se e repartiu-se pelos degraus e pelos cantos.
- Queria dizer-te uma palavra. - pediu Mackenzie.
- Diz.- respondeu Eisenlohr sem se mexer do trenó. Tinha os olhos fixos sobre as lâmpadas Pan-ParabOl que serviam para iluminar a cena. Madame Moresco tirou pó da caixa que Manuela lhe estendia.
Mackenzie deu o braço a Eisenlohr e arrastou-o lentamente.
- Como vai Donca ? Ela ainda não sabe nada ? preguntou - Não podia falar diante dela. Trata-se do papel de Oliver nas Pedras Miliárias.
- Não, ela não desconfia de nada. Filmamos desde as cinco da manhã, depois, ela dormiu. Esperei que acordasse. Ao meio dia fui eu próprio buscá-la e hei-de arrastá-la até que caia. Se for preciso, esta noite pedirei a alguém que me ajude a embriagá-la. Amanhã de manhã recomeço a filmar. Toda a gente está avisada; se alguém nos trair, será posto na rua.
- Como podes tu suportar isto ?
- Eu ? - disse Eisenlohr esticando o seu corpo de gigante - Só aparentemente pareço um rebentado, sabes ? Já trabalhei trinta horas sem parar. E tu ?
- Sim, eu também. - replicou Mackenzie que imediatamente se informou do que respeitava a esse famoso Aldens. Eisenlohr hesitou um instante. Tinha sempre protegido Aldens, mas não fazia grande caso dele. "É uma fachada - pensava. Uma gentil fachada sem ter qualquer coisa lá dentro. Uma fachada de cinema". Olhou à sua volta. Tinham passado os cenários e encontravam-se agora atrás das estacas que os seguravam. E Oliver, não seria também uma fachada? Qualquer coisa lhe dizia: não. Mas não poderia demonstrá-lo.
- Aldens. - disse - Mas é uma idea espantosa! Aldens... meu Deus, nós estivemos em Darmstadt juntos. Não é uma nulidade, sabes? Em Berlim, era alguém, um verdadeiro actor. Não há um idiota que acredite nestas histórias sentimentais inventadas pelos jornais, de um figurante que se transforma subitamente em vedeta. O próprio Granit não acredita nisso. E com Aldens o caso é outro. É um actor. Se o quiseres, deves aproveitá-lo na corda sentimental, ele é um pouco sentimental.
- Todos somos sentimentais em Hollywood, toda a gente sabe isso. - observou Mackenzie, sorrindo.
- Justamente. Ele precisava mas era de inventar outro nariz, dir-lho-ás, ou melhor, eu mesmo lho direi. Diz-lhe que para as experiências, deve arranjar a máscara de Oliver. Se o puderem utilizar, Patapoulos deverá arranjar-lhe outro nariz. Infelizmente, desta vez não há muito tempo para isso, mas Patapoulos fabrica narizes espantosos. Foi ele que fez o de Williams. Também deverá pintar os cabelos. Ele tem esse loiro esbranquiçado que não dá em fotografia... sabes?.. província alemã. E depois tem também algum sotaque...
- Pode-se continuar? - preguntou um assistente, dos bastidores. No mesmo instante, Eisenlohr abandonou Aldens e Mackenzie, o seu olhar saltou como um motor que principia a trabalhar. A sua voz de megafone, ululou :
- Pode-se continuar. - E, de-repente, desapareceu. No céu, a nuvem tinha agora franjas de fogo, uma
réstea de sol deslizava para a terra; as numerosas lâmpadas de nomes engraçados ardiam sobre os edifícios sem teto. Madame Moresco tinha posto o seu boné de peles. Os figurantes estavam em pé ou sentados, acocorados, imóveis entre os cenários como para um quadro vivo. Ouviu-se um apito e, instantaneamente, foi como na feira quando se atira uma moeda para um diorama. com pequenos movimentos, bem medidos, bem estudados, o povo de S. Petersburgo pôs se em marcha. Blackeley, no último momento, deu o cigarro ao bombeiro que o apagou. Os cavalos arrastavam a trolha pela cena. Mackenzie ia já a caminho do escritório quando ouviu o barulho da bomba e o grande grito da multidão.
O trabalho continuou até o sol desaparecer. Donca estremeceu um pouco quando parou: a-pesar-da peliça estava tranzida. O sol fôra-se rapidamente, dando lugar à penumbra e ao frio.
- LevO-te no meu carro até ao teu bungalow. - disse Eisenlohr.
Tacus estava do outro lado, como uma sentinela. Tinham lhe prometido trezentos dólares de recompensa se conseguisse isolar a Moresco até ao fim da produção.
- O bungalow, puf! -disse ela.
Donca estava fatigada e quisera dormir ao menos uma vez na sua casa, na sua cama, na sua verdadeira cama.
- Não há nada a fazer. Caprichos de diva. - respondeu Eisenlohr, sorrindo. Tinha uma grande piedade dela. - Deitas-te onde te puseram. Sobe para o meu carro e não penses.
- Bem, como tu quiseres. Estou muito cansada para poder discutir. Fizeste-me representar até ficar exausta. Queria ir a pé e não de carro.
- Pois também eu vou a pé. - disse imediatamente Eisenlohr, pondo-se a andar ao seu lado.
Ela lançou-lhe um rápido olhar e sorriu.
- Que foi ? - preguntou ele, Nada.
Tinha vagamente a idea que Eisenlohr estava outra vez apaixonado por ela: uma idea encantadora e divertida.
O crepúsculo caía rapidamente, quási tangível como uma rede de largas malhas. Os cenários mudos e vazios através dos quais passavam, pareciam fantasmas sombrios â luz que desfalecia.
Madame Moresco parou.
- É lindo. - disse ela a meia voz, mostrando com o queixo uma rua no fim da qual se erguia o vulto da torre inclinada, de Pisa - É sempre belo, sempre.
- Tens razão, é maravilhoso. - continuou Eisenlohr
- E de tal modo que nos sentimos presos a esta magia fictícia toda a nossa vida.
Tinham chegado à esquina onde começava a avenida dos bungalows. As lâmpadas em arco acenderam-se; uma luz incerta e enganadora planava.
Ora, um pouco antes de chegarem à morada de Donca, um homem muito loiro, alto e delgado, emergiu a passo rápido do túnel que ficava em frente do bungalow. Coisa estranha: vestia um roupão de banho, incolor e solene ao mesmo tempo, nesse fim de dia.
Madame Moresco, num gesto apressado, pôs a mão no peito e parou.
- Alo! -disse ela involuntariamente, em voz rouca. Eisenlohr parou também sem dizer nada, com o
coração batendo igualmente, pois não havia dúvida que era o próprio Oliver quem saía do túnel e avançava para eles. Assim que ouviu o apelo de Donca, o homem voltou a cabeça. Continuava a ser Oliver, fantasmagórico e aflitivo como aquele que estava a morrer em qualquer parte. Quando ele se aproximou, sorrindo com hesitação, e entrou na luz crua da lâmpada vizinha, foi só então que apareceu por trás da máscara de Oliver o rosto menos perfeito de Aldens.
Madame Moresco deixou cair as mãos; a sua peliça entreabriu-se, de tal maneira a respiração era violenta.
- É idiota!-disse ela com um risinho forçado - Julguei que era "Ol". Que brincadeira!
- Não; é Aldens. Pensei que o conhecias.- retorquiu
Eisenlohr, endireitando-se, emquanto Aldens chegava ao pé deles, hesitante mas sorrindo com ar alegre. Eisenlohr respirou profundamente para dar calma à sua voz. Aldens inclinou se diante de Donca. Vestia um maillot de banho, calçava sandálias e tinha as pernas nuas. A nuca também estava nua - parecia prodigiosamente nu dentro do roupão. Donca tinha estendido a mão a Aldens, e lançou um olhar conhecedor sobre essa cabeça que se inclinava diante dela.
- Já estou ao facto da novidade: fotografias de experiências. - declarou Eisenlohr rapidamente, antes mesmo que Aldens pudesse dizer uma palavra. Lançou a Tacus um rápido olhar inquieto. Tacus, obediente, pegou no braço de Donca.
- A Donca vai ter frio.-disse êle-Donca não deve ficar aqui a gelar os pés.
Madame Moresco afastou com um gesto a mão que lhe agarrava o braço, mediu com atenção Aldens de alto a baixo e um ligeiro sorriso cheio de surpresa entreabriu-lhe os lábios.
- Como estou eu ? Que tal me arranjei ?-preguntou Aldens. Abriu o roupão. Vestia uma calça de boxeur, os músculos do peito moviam-se, e fez uma flexão de pernas.
- Menos mal. - disse Eisenlohr.
Madame Moresco semi-cerrou os olhos num ar trocista. Notara que os pêlos do peito de Aldens haviam sido rapados. Olhava-o como para um cavalo que está à venda e isso dava-lhe o mesmo prazer sem motivo.
- Então eles querem ver tudo de uma vez, meu rapaz ? - deixou cair Eisenlohr. Tinha um medo louco, era como se dançasse em cima de uma corda e isso fazia-lhe um mal horrível.
- É para uma cena de box. Como achas a minha caracterização ? Acha bem a máscara que arranjei, minha senhora? Não a fiz por nenhuma fotografia de Oliver, mas de cor. Está bem, não é verdade, Eisenlohr ? Descolori os cabelos em meia hora e isso fez-me um mal horrível... é o que se chama descoloração a fogo. Veremos se ao menos serve para alguma coisa.
- Vai, meu rapaz, - disse Eisenlohr - podes constipar-te. Eu vou lá dar uma vista de olhos. É um velho amigo meu, estivemos em Darmstadt juntos. - disse, emquanto abria a porta do bungalow de Donca. Esta ficou ainda um momento à entrada, vendo Aldens afastar-se.
- Que significa esta mascarada ? - preguntou ela, sorrindo.
- Bem vês. Precisam de um duplo para Oliver... para uma cena de box.
- Um duplo... sim senhor... Um bonito rapaz.- Depois entrou. Tacus, sem dizer palavra, acendeu a luz, o seu olhar seguia-a por toda a parte. Ela tirou a peliça e dirigiu-se para a chaminé apagada.
- Quero lume.- disse -Este vampiro do Eisenlohr suga-me todo o sangue das veias.
Eisenlohr teve um sorriso amável e familiar.
- Um duplo de Oliver, não é assim tão simples de arranjar... não achas, Tacus?
Fechou por um instante os olhos e Oliver apareceu-lhe claramente, tão próximo como se estivesse pintado no interior das suas pálpebras.
- Que sabem vocês todos de Oliver ?-disse ela com um franco sorriso.
Esfregou as mãos diante da chaminé onde não ardia fogo. Parou e franziu as sobrancelhas.
-É esquisito... por um momento, julguei que fosse de-facto Oliver. É engraçado.
Eisenlohr dirigiu-se para o outro extremo da casa e tirou um livro da estante. Tinha imensa pena de Donca, essa camarada de tantos anos, de combates, de filmes, de êxitos e derrotas.
- Não tens notícias de Oliver há muito tempo ? preguntou, voltando a cabeça.
- Não. Ol não gosta de escrever. - respondeu ela alegremente.
Tacus, ajoelhado diante da chaminé, fez crepitar a primeira acha que incendiou.
- Talvez esteja um pouco aborrecido. Parece que fui eu que lhe fiz perder o barco para a Europa.
Inclinou-se para a chama nascente que fumegava. Eisenlohr olhou para o seu livro; um livro idiota, muito relido: O Homem na caverna,
- Sabes onde está Oliver escondido ?-preguntou ele. A sua voz, ao dizer isto, pareceu-lhe profundamente
indiferente.
- Jerry diz que ele está, não sabe onde, a pescar trutas. Talvez lhe faça bem... Ele tem certa inclinação para o bucolismo. - disse um pouco mais tarde.
Atravessou rapidamente o aposento e veio pôr as mãos nos ombros de Eisenlohr.
- Quero dizer-te uma coisa. Oliver, no fundo, é um camponês. E, no fundo, eu também o sou. E quando tivermos bastante dinheiro e eu estiver livre de dívidas, casamo-nos. Casamo-nos simplesmente e desaparecemos de Hollywood e nunca mais ninguém nos encontrará. Seremos uns camponeses, com uma casinha, um pouco de floresta e água. Hei-de fazer-lhe a mamaliga romena, e engordarei. Serei dez anos mais velha que Oliver e, a-pesar-disso, ele pensará que não há no mundo outra mulher senão eu. Há muito tempo que isto está decidido. Ah! meu Deus, nem sabes, nem sabes...
Disse isto com fogo e, de-repente, calou-se. Rodeou Eisenlohr, depois, muito séria, mergulhou o olhar no dele, que se apressou a desviar os olhos.
- Não, vocês não sabem como nos queremos. De resto, vocês não sabem o que é o amor. Não acreditam mesmo que exista... o amor... -repetiu a meia voz. E quando disse isto, a sua boca ficou entreaberta num sorriso interrogador e encantado.
Eisenlohr engoliu a saliva e fechou o livro.
- Anda, vamos, já estás a dormir e sonhas em voz alta. Uma casinha sobre uma ribeira tranquila e o grande amor, qual de nós não conhece essa canção? Desvairas, Donca, anda, vou meter-te na cama. Amanhã, às dez, venho acordar-te.
- Vais meter-me na cama? Vens acordar-me? Mas, quem és tu? Minha ama, talvez?-preguntou DoncA bocejando.
De-repente, sentiu uma imensa fadiga depois do trabalho que tinha fornecido. Manuela esperava-a ao pé da escada.
- Que há de novo? - preguntou Madame Moresco.
- Nada, minha senhora, nada.
Eisenlohr chegou um pouco estafado ao stage 5 onde se faziam as fotografias de experiência, de Aldens.
Na sombra, via-se um círculo mudo de homens, por trás da câmara. Em frente, na luz crua, Aldens mexia-se imenso. O seu corpo era robusto e belo, falava quási sem sotaque. Podia talvez servir, ser ele mesmo, Aldens, um alemão pensativo, um pouco pesado, de alma nostálgica, um ser que tivera o seu quinhão de miséria de que conservava vestígios no rosto. Mas não era isso o que queriam dele.
Por isso é que ele estava ali, à luz dos projectores, com os cabelos pintados para lhe dar o brilho loiro dos de Oliver, com o perfil de Oliver e, como uma careta pintada na cara, o riso de Oliver, esse riso que tinha enchido de alegria o mundo inteiro. Não era mais do que um Oliver Dent de grande armazém, a preço módico, a cópia barata de um original precioso e era no que deveria permanecer emquanto vivesse.
- Que tal o achas ? - segredou Bill Turner a Sam Houston.
Este encolheu os ombros:
- Menos mal... é melhor que nada.
- Donca viu-o-murmurou Eisenlohr-e tomou-o por Oliver.
Bill Turner saltou.
- Sim? Tomou-o por Oliver?-disse -Bem, bem, bem, bem.
Esta palavra, repetida quatro vezes, decidiu do futuro de Aldens,
Embora as horas de trabalho de Granit terminassem às seis, ele ficou nessa noite no estúdio até que estivessem
acabadas as fotografias de Aldens. Sentia-se deprimido quando, pelas nove horas, passou o portão da entrada e se dirigiu para o parque onde estacionava o seu carro. Teve, por instantes, a idea de ir ao clube 111 beber cocktails, o remédio em voga em Hollywood contra os aborrecimentos e as fadigas de toda a espécie. Mas, por fim, dirigiu-se para casa. Não tinha voltado a pôr os pés na antiga depois da catástrofe que havia quebrado o seu casamento e morava, melhor ou pior, em dois quartos mobilados em Orange Drive. Era uma dessas casas vulgares de móveis elegantes e banais, povoadas de uma humanidade variada, uma curiosa série de aventureiros, que em qualquer outra parte do mundo pareceriam surpreendentes mas que constituíam em Hollywood a maioria dos inquilinos.
- Como vai Oliver? - preguntou-lhe uma rapariga que entrou depois dele no ascensor, a qual tinha, maquinalmente, tirado o chapéu, sem deixar de ler o jornal da noite,
- Nada de novo, o coração está bem, mas tem temperatura.
Finda a leitura, estendeu o jornal à rapariga.
- Obrigada, sr. Granit. - disse ela.
Ele olhou-a furtivamente, lembrando-se que já a tinha visto sem poder recordar o seu nome. Era uma criaturinha pequena com o vestido um tanto velho e cujo rosto estava desfigurado por uma cicatriz por cima do olho esquerdo.
- Francis Warrens. - respondeu ela ao seu olhar que se fixara com hesitação na cicatriz - Já lhe falei...
- Ah! Eu fico aqui. Vai mais para cima ? - preguntou ele emquanto o ascensor parava.
- Moro no sexto. - respondeu ela. Granit saiu. O ascensor continuou.
Granit tinha uma razão para preferir ao clube uma noite passada nos seus aposentos, uma razão fundada na sua cura de psicanálise à qual se tinha recentemente submetido. Efectivamente, o psicanalista, depois de ter penetrado várias camadas de Granit maduro e sofrendo de obesidade, descobrira na sua infância uma multidão
de desejos insatisfeitos e, de resto, aparentemente inocentes. Tinha recomendado ao seu doente que os satisfizesse sem demora para recuperar o que não con seguira no passado. Por isso Granit meteu a chave na porta com um sorriso impaciente, tirou o casaco, ligou o rádio e deitou-se no chão para brincar com um comboio eléctrico. Era um pequeno aparelho muito bem construído, com cabine de agulheiro, agulhas, passagem de nível. Uma curva ia até ao seu quarto de dormir de forma que, para passar a porta, Granit tinha que fazer prodígios de equilíbrio. Além desse caminho de ferro, tinha ainda um aquário com peixes japoneses. Isto não bastava para o compensar do seu casamento desfeito e da estima por si próprio que havia perdido, mas podia... durante dez minutos... fazer esquecer tudo. Brincou assim durante duas horas, ora distraindo-se com qualquer problema relativo ao seu brinquedo, ora perdendo-se em meditações vãs, desarticuladas e sem finalidade. Podiam ser mais de onze horas quando bateram à porta. Vivendo na espera concentrada de ver chegar qualquer coisa da parte de sua mulher, qualquer coisa que o vingasse, ou restabelecesse tudo, Granit, embora estivesse já de pantufas e em pijama, correu para a porta que abriu bruscamente. Do lado de fora estava a rapariga com quem tinha trocado umas palavras no ascensor. Vestia o mesmo vestido, um vestido azul-claro, pouco fresco e tinha o chapéu na mão. Os cabelos estavam muito descolorados nas pontas mas escureciam na raiz. Granit avaliou o que significava aquele pormenor.
- É capaz de me dar um cigarro ? -disse ela -Acabei os meus e morro por fumar.
Granit lançou para o quarto um olhar circular. Afastara-se um pouco da porta.
- Tenho pena, mas não tenho.
- Não fuma ?
- Deshabituei-me.
- É preciso muita energia para isso,
Francis estava no corredor, com a mão na maçaneta da porta aberta. Não parecia ter a intenção de se ir embora. Havia em todo seu exterior qualquer coisa de pesado,
de abandonado. Granit afastou-se ainda mais; com um gesto maquinal levou a mão ao botão do colarinho correctamente fechado. O olhar de Francis acompanhou-o até à entrada do seu quarto de cama.
- Então, dê-me qualquer coisa de beber.-pediu ela, de-repente.
Isto foi tão brusco, que Granit aproximou-se.
- Que tem ? - preguntou, pouco amável. Ela encolheu os ombros, não respondeu. Granit foi à sua pequena cozinha, tirou do frigorífico meia garrafa de chianti e trouxe-lha - Aqui tem, e boa noite.
- Não tenho copo. - disse Francis, sempre agarrada à porta.
Granit, furioso, voltou à cozinha e trouxe um copo. Ela apertou a garrafa e o copo nos braços, sem desfitar Granit,
- Obrigada. Há ocasiões assim, não é verdade ?
- É. E agora vá dormir, deve fazer-lhe bem. Mora
no sexto, não é?
- Sim, morava lá. - disse ela. Depois, pôs-se a rir, Granit teve uma idea simples e natural: chantage.
Entrar durante a noite no seu quarto, fazer escândalo e exigir-lhe dinheiro... casamento... uma situação. Era um método cómodo e cada dia mais usado na América para com os homens.
Granit que acabava de escapar a um escândalo, estava em guarda.
- Um caminho de ferro! - disse de-repente Francis, com um sorriso infantil no seu rosto delgado - É delicioso. Um caminho de ferro!
Antes que Granit a pudesse impedir, ela entrara e ajoelhara ao pé da cabine do agulheiro. Pôs a garrafa, o copo e o chapéu no chão e pegou na locomotiva. - Brinca com isto? - preguntou, sorrindo familiarmente.
Granit foi até à porta de entrada, abriu-a e prendeu-a solidamente. Era uma medida de precaução muito evidente, mas Francis pareceu não a notar ou não a compreender. Estudava agora o interior da pequena máquina.
- Desculpe-me, - disse Granit - saltou por cima do
comboio e entrou no quarto, tirou o pijama e vestiu o casaco. No mesmo instante, ouviu o barulho do pequeno caminho de ferro que, no outro aposento, corria nos rails. Durante o quarto de hora anterior, ele tinha-se obstinadamente recusado a andar.
- Agora, anda ! - disse Francis sorrindo assim que Granit entrou.
- Sim anda. - respondeu ele um tanto tolamente. Parou, olhando para o pequeno comboio, que corria a toda a velocidade. - Tem jeito -disse num tom mais amável. Coisa estranha, o facto de Francis saber brincar com o seu comboio eléctrico parecia-lhe de molde a diminuir a sua desconfiança.
- Os meus irmãos tinham um... Eu tenho dois irmãos. Estão em Military School, na Virgínia. Bonitos rapazes. - disse Francis, parando a locomotiva.
- Quere que lhe vá comprar cigarros? - preguntou Granit a quem isso parecia um meio de sair de apuros.
- Não, obrigada. É muito amável. Obrigada. Isto dura um momento... deve saber o que é quando agente pensa que assim não pode continuar...
- Que tem ? - preguntou Granit muito mais amável desta vez. Ela levantou os olhos para ele e sorriu, com um sorrisinho mudo. Granit leu a história toda, a história que lera demasiadas vezes no rosto das "extras" em busca de uma situação.
- Ah! Ah! não se arranja um job, an ?
- Sim, é isso. Mas não é só isso. com isto que arranjei na cara não posso ir apresentar-me em parte alguma. - disse Francis, passando rapidamente a mão pela cicatriz ainda fresca e irritada.-Acidente de automóvel.. isto dá um certo chique, sabe? Sim, mas é justamente isso o que me torna inútil. E depois, é a recordação da mais horrível noite da minha vida. Desde esse momento, deixei-me cair. A gente arrasta-se um pouco, mas sempre acontece qualquer coisa que nos diz não valer a pena. Então, perde-se tudo. No fundo, já renunciei ao cinema. Diga-me. Conhece a Florência ? - preguntou, mudando de assunto.
- Parece-me que sim. Todos os homens, em Hollywood
a conhecem.-respondeu Granit, pouco à vontade. Tinha-se sentado na poltrona. Francis ainda estava acocorada ao pé dos rails e tinha um vagão na mão. A porta continuava aberta.
- Ela é amável ? Há quem diga que sim.
- É, muito amável. Só a conheço superficialmente.. às vezes, vou divertir-me, com um grupo, para um dos seus estabelecimentos. É amável, sim, é...
- Tenho o número do telefone dela. - disse Francis, procurando no saco velho que deixara ao pé do chapéu um bilhete que olhou com expressão desvairada-A minha amiga largou-me deixando-me só o número do telefone da Florência. Bem entendido que é o último recurso. Ela escreveu-me dizendo que há muitas que chegam a revelar-se mesmo depois de terem passado pela Florência. Eu não acredito. Só não sei como hei-de fazer. Não tenho casa. Posso beber agora?
Francis deitou o chianti e bebeu. Puxou maquinalmente o vestido, num movimento que revelava a sua inocência. Granit olhava para os sapatos velhos que desapareciam debaixo do vestido azul-claro, ligeiramente amarrotado. Não se interessava muito com o que a rapariga dizia, mas isso fazia-lhe passar o tempo. O seu quarto cheirava a perfume, havia semanas que isso não acontecia. Francis, pelo seu lado, parecia, a falar, sentir um grande alívio, era mais um monólogo que outra coisa. Saltava de um assunto para outro, aprofundando os seus desgostos, ficando de vez em quando silenciosa, olhando para as mãos. Depois, recomeçava a falar. Granit, depois de ter escutado um momento, tinha a impressão de olhar para alguém que caíra numa água agitada e não sabia nadar, voltando à superfície, depois afundando-se, voltando a aparecer e a afundar-se de novo. Uma vez, no meio da história, levantou-se foi em bicos de pés até à porta e fechou-a; era justamente no momento em que Francis falava de Oliver Dent. Sentou-se outra vez a ouvi-la.
-Vai para casa da Florência, escreveu-me ela. Obrigada pelo conselho. Kit acha que procede bem, mas eu tenho visto o resultado. Nos últimos tempos teve o seu
bootlegger, passava todas as noites em divertimentos. Ultimamente foram para Los Angeles para um speak-easy, e depois puseram-se a dar tiros e dois homens ficaram seriamente feridos. Light -o amigo de Kit -está comprometido nisso, bem entendido, e puseram-nos à sombra e agora Kit não tem dinheiro nem nada... nem... nem. acabou-se. Ontem, um homem do bando foi avisá-la que devia desaparecer de-pressa porque a vão chamar para testemunha. Sabe o que é: mais de-pressa a matavam do que a deixariam depor. Kit fez a trouxa e desapareceu, e eu cá estou. "Vai para casa da Florência". Obrigada! A casa está fechada, selaram-na e lá ficaram as minhas coisas e as dela. Nem sequer tenho uma caixa de pó de arroz, nem um tubo de creme. A semana passada fui ao médico por causa disto do olho. Ao princípio não era nada mas pareceu-me que ia piorar e tive medo. "Já devia ter feito coser isso - disse o esculápio - era imediatamente, agora é capaz de ficar marcada". Pôs-lhe tintura de iodo, cauterizou e levou-me doze dólares pela visita. Acabou-se! A ruína completa! Ultimamente, tinha um pouco de dinheiro. Julgava que poderia economizar o suficiente para poder regressar a casa. Queria ir para casa: sou de Fairmont, Carolina do Sul... Julga que poderei ainda adaptar-me àquele buraco, depois de ter passado um ano em Hollywood? Às vezes, tenho medo de nunca mais lá voltar!
Suspirou.
- Também não foi nada fácil economizar doze dólares, não! Já tentei tudo, pode crer. Não sou dessas que se deixam ir logo abaixo e correm para casa da Florência. Estive como criada num drive-in de Santa Mónica. Foi o homem da Kit que me arranjou esse lugar. Nada brilhante, como sabe. Aceitei aquilo na mesma noite do meu desastre de automóvel. É claro que já não podia pensar em fazer cinema e também, naquela noite, tudo me era indiferente! Naquele restaurante, as criadas usam calças muito justas e bonés amarelos. É uma cor que não me fica nada bem. E é preciso, de dia e de noite, entrar e sair dos carros. Depois, à noite, há muitos clientes pretos. não, ninguém me diga que é
uma situação brilhante. Ainda aguentei duma terça a uma segunda-feira. Depois, tive uma discussão com o cavalheiro que assa as salchichas de Hamburgo e de Francfort. Um velho nojento, sabe? Nem um cabelo tem debaixo do alto boné branco, o bigode é pintado e as mãos cheiram sempre a cebola. Durante uma semana fingi que não percebia nada quando ele tinha certos atrevimentos, mas depois perdi a paciência e preguei-lhe uma bofetada, Não vim a Hollywood para que me faltem ao respeito, tal está! E assim, num restaurante manhoso, ser ofendida pelo homem das salchichas! O que era ele ? Um príncipe Auersbach, ou qualquer coisa semelhante, uma espécie de oficial de Viena, sei lá. , Muito melindrado, o cavalheiro. Era príncipe? Pois eu sou uma Warrens, e se conhece a minha terra, bem deve saber que os Warrens são uma das cinco famílias importantes de lá. Também eu tenho o meu nome, príncipe Auersbach! Duas pessoas tão distintas, com certeza que eram de mais numa espelunca de salchichas... e fui eu que tive de sair. Agora, o bootkgger da Kit está muito longe e eu não arranjo o mínimo job. Que hei de fazer? E repetiu - Que hei de fazer ?
Cruzou as mãos e olhou para Granit, preocupada.
- Quando ainda agora cheguei à porta de casa e a encontrei fechada à chave, as minhas coisas seladas e, no bolso, mais nada senão a maldita carta de Kit, houve um momento em que nem pude andar. Que hei-de eu inventar ? Quando sair daqui, quando deixar a sua casa, não conheço mais ninguém em Hollywood, mais ninguém para onde possa ir. O senhor é muito amável em me ouvir, sr. Granit, e em me deixar ficar aqui um pouco. Estou-lhe muito reconhecida. Quero só pensar no que hei-de inventar... e depois vou-me embora. Tinha pensado que Aldens me ajudaria, ele podia fazê-lo, fomos muito tempo camaradas. Conhece Aldens ? Um alemão muito alto. Mas não, não houve meio. Está um pouco frio comigo por causa... da noite do acidente do automóvel, Não me foi possível falar com ele, Não
era coisa para tomar a sério, mas Aldens fez disso um drama. Os alemães não têm o sentido do bom humor. Chamo-o ao telefone: "Lamento, miss Warrens, mas nada há de comum entre nós", diz-me. Pois bem, meu filho, como quiseres. Hoje, como tudo corria mal, tentei outra vez. Não estava visível. Tão importante como o imperador da China! Espreitei ao pé da casa dele; havia de o ver. O senhor conhece-o, sabe como ele é? "Não tenho tempo, miss Warrens, vou fazer umas fotografias de experiência, um grande segredo... papel de vedeta". Ia todo inchado de importância. Gostaria bem de lhe ter espetado um alfinete no traseiro. Pois vai à fava, meu amigo. Nós, as pessoas do sul, somos teimosas e eu não quero deixar-me pisar por um sr. Aldens. Dantes, achava-o gentil... Mas tudo isto não tem nada de grave. Eu cá me arranjarei, sempre me tenho arranjado. O que me deita por terra agora, é a minha história com Oliver. Como quere que domine os nervos e não perca o meu bom humor, se Oliver está doente ? É de enlouquecer, a espera de um jornal ao outro; é uma coisa que nos devora. E depois, ainda nos contam histórias; conservo todos os artigos e não há maneira de fazer uma idea justa. Está melhor ou pior ? Não é, com certeza, possível que ele morra, sr. Granit, pois não ?
E dizendo isto ela levantava as mãos juntas, suplicantes, como se a morte de Oliver Dent dependesse dele.
- Meu Deus, meu Deus, não o podemos deixar morrer! -Baixou as mãos e pôs-se a olhar, com profunda desolação, as palmas abertas.
- É evidente que não se deve ter cuidados por alguém que não quere saber da gente para nada. Repito isto a mim mesma muitas vezes, mas não posso deixar de pensar nele constantemente e lembrar-me como estava com má cara na última noite. Meu Deus, meu Deus, se Oliver morre ... E depois ainda há pior:-Vai a um jornal, disse-me a Kit e conta-lhes a tua história, dão-te cem dólares por isso. Não quero.-Mas quando a Kit quere qualquer coisa... O sr. conhece a Kit Dalas? -O último engraxador que limpou as botas de Oliver
fez uma história, a última criada da casa do Henry que lhe vendeu, por acaso, uma salada de tomates, tira daí proveito. Vai também. Tu és a rapariga com quem ele passou a última noite em Hollywood ... isso pesa. Tossiu e depois continuou:
Ontem, conseguiu arrastar-me à redacção; ela conhece uns rapazes de lá. "Aqui está, disse em voz de tempestade, a rapariga com quem Oliver passou a última noite em Hollywood. Olharam para mim. "Um belo título.", disse alguém com um riso idiota. Depois, começaram a fazer-me preguntas. Bem bonitas, bem escolhidas, bem porcas. Bebé para aqui, bebé para ali, e como era Oliver, e o que dizia ele, o que fazia, etc. Senti vontade de vomitar, mas engoli tudo; cem dólares. E contei que me tinha beijado, que tinha estado no seu quarto de cama, etc. Por fim, um dos rapazes, preguntou-me: "E dormiste com ele ou não?" E eu pensei: Sim ou não?.. Pois bem, não. "Ele estava doente nessa noite, mas se estivesse bom tinha dormido com ele, pronto," Se soubesse o que foi rir em toda a redacção! Havia entre eles uma espécie de literatelho de óculos, que pôs o braço no meu ombro e disse: "Podia fazer-se com isso uma linda story enternecedora e conveniente. Como Oliver Dent acolhe em sua casa uma rapariga e como foi amável e respeitoso com ela." Se o sr. Granit soubesse como Oliver me tratou! Delicado! Pôs-me na rua, e como! Mas emfim, ele estava doente e eu perdoei-lhe... e depois, ninguém tem nada com isso, é comigo. Foi qualquer coisa horrível todas essas pregun tas e respostas. Se me dissessem: Põe-te nua, garanto-lhe que não seria tão vergonhoso como estar naquela redacção. Que gente tão esquisita! Têm tesouras agarradas à mesa, com cadeias, como nas prisões. Em conclusão: um que tinha estado sempre a mexer no frasco de cola, disse que não podia fazer nada com a minha história. Tive a impressão que estiveram sempre a fazer troça de mim e só haviam querido representar uma comédia. Cem dólares ? Era bem bom. De resto, não sei se era possível pagar com cem dólares, essa meia hora passada na redacção. Emfim ... Depois, Kit desapareceu
antes que eu pudesse dizer-lhe o que pensava. "Vai a casa da Florência." Quero dizer-lhe uma coisa, sr. Granit, é preciso ter nascido para fazer porcarias, senão nada as paga. Kit e Florência, fazem um bom conjunto. Quando Kit estava sem nada, chamava Florência ao telefone e esta mandava-a a casa de qualquer, Kit recebia os seus dez dólares e Florência cinco, e tudo corria bem. Mas eu ? Tenho um medo horrível disto. Foi bonito, é claro, deixar-me o número da Florência, não é fácil consegui-lo e não está na lista. Ela deu-mo por escrito.
Francis procurou na sua malinha a carta amarrotada de Kit, leu-a sem a olhar, via-se que a sabia de cor. "Vai a casa da Florência". O número do telefone é Granit O. 2365. É curioso, - disse Francis deixando cair o papel para olhar para Granit - Granit O. 2365, é como o senhor se chama. É engraçado, não é ?
- Sim, é engraçado.
O seu olhar caiu, pensativo, na rapariga que começava a excitar o seu interesse. Um ligeiro frémito sacudiu-lhe os nervos emquanto ela falava. Bebia agora o resto do chianti, premindo os lábios contra o vidro com o ar sério de uma criança e Granit viu a garganta dilatar-se-lhe para engolir. Levantou-se e pôs-se a andar pelo aposento tanto quanto o caminho de ferro o permitia. Quanto mais a história de Francis se embrulhava, mais acordava a curiosidade de Granit. Estava já suficientemente informado e sabia que a rapariga não tinha intenção de fazer chantage. Por triste que fosse a sua situação, ela não tinha deixado de sorrir emquanto contava e isso era bo nito. O que a sua origem lhe dera de boa educação, de limpeza, de não corrupção, iluminava-a ainda: inflexões de voz, olhares, gestos. Sobre tudo isso, estendia-se como uma camada espessa a experiência de Hollywood, a derrocada, o calão, a brutalidade, o cepticismo, aquele puxar desesperado para baixo. Granit imaginava claramente a cena da redacção, uma comoçãozinha fez bater as suas veias quando ela falou na noite falhada que passara com Oliver. Granit compreendia o que os homens da redacção tinham pedido, porque haviam rido, o que
tinham sentido ... também era um homem. Voltou-se vivamente para ela, passou-lhe por trás e agarrou-lhe os ombros, levantando-a. Os seus nervos vibraram ao tocá-la e isso fez-lhe compreender que sacrifício era viver sem mulher, em companhia de uma chaise-longue, concessionário de um caminho de ferro e de um aquário. Francis pôs o chapéu e pegou na carteira.
- Foi pena não me ter podido empregar no Casamento de Billy, sr. Granit,-disse ela-tudo teria sido muito mais simples.
- Lamento. Ser director da figuração não é muito agradável, sabe ? Quando não se é um cão nem um carrasco, nem um sádico, faz mal aos nervos. Sempre esse olhar esfaimado das pessoas que querem um job e não o conseguem. Isto tira o gosto de viver, às vezes, quando se tem de passar em revista trezentos indivíduos e temos que mandar embora duzentos e oitenta. Ontem, procurei um homem só com uma perna, sabe lá quantos apareceram! Houve um que me seguiu de comboio até Santa Bárbara.
- E porque é que não posso arranjar um job?
- Tu? -Granit disse "tu" sem dar por isso e com os olhos semi-cerrados pôs-se a fixar Francis. Maquinalmente, ela tirou o chapéu, abriu os lábios e deixou resplandecer o esmalte branco azulado dos seus dentes.-Tu?
- repetiu -Não sei bem. Primeiro és ainda muito acanhada, e depois essa cor idiota de cabelos que arranjaste... Tudo isso é impreciso. Tu és um tipo falhado. Bebés como tu há por cá muitos.
Francis estava de pé no meio da casa e sorria vagamente; vacilava um pouco, imperceptivelmente e por dentro, como as árvores pequenas quando o ar está calmo. "Nesse caso, posso ir-me embora" - pensou.
E, em voz alta, disse: -Posso ir-me embora... e muito obrigada pelo vinho.
Houve um silêncio muito breve, durante o qual Granit se dirigiu para o aquário e acendeu uma lâmpada que ficava por detrás. Verdes, transparentes e ensonados os "caudas de gaze" japoneses, planavam na luz.
- Seria muito mais agradável se quisesses ficar. disse, de-repente, Granit.
Francis esteve ainda um momento de pé no meio da casa, depois aproximou-se com hesitação. "Que lindos peixes." -disse, e isto soou como se ela tivesse falado de outra coisa. A luz, através do aquário, dava lhe na cara. Essa cara não tinha agradado muito a Granit quando a vira pela primeira vez, agora agradava-lhe mais.
- Que houve entre ti e o Oliver ? - preguntou. Francis encolheu os ombros e deu um piparote no aquário.
- vou um dia destes a Catalina e hei-de trazer outros peixes. Sabes que lá há barcos com a base de vidro onde se pode ver o fundo do mar. Queres vir comigo passar lá um week-end, bebé ? -preguntou, encostando-se também contra o aquário.
Francis tossiu e disse delicadamente:
- com muito gosto.
- E se eu for gentil contigo e te arranjar um job, também serás gentil comigo? -preguntou Granit em voz pastosa. - Francis lançou-lhe um olhar de animal perseguido, mas sorriu. Dominava-se bem, estava satisfeita consigo. Tinha conseguido uma boa dose de coragem. No fundo, mais do que de Granit, era de si própria que ela tinha medo e da sua inexperiência. Granit era um monstro obeso, seja, mas ao menos tratava o assunto como um negócio, nada de sentimentalismos nem falsidades: estava certo.
- Sim, com certeza, porque não? -respondeu ela.
Porque não? Era isso que pensava Granit, era preciso agarrar as pequenas coisas da vida, já que tinha perdido as grandes. Contratar figurantes a sete dólares em vez de estar casado com a mulher que se ama. Era a isto que o psicanalista chamava actos de substituição.
- És gentil. - murmurou ele, rodeando-a com o braço.
- Está tão claro aqui! -disse ela.
Os rails do pequeno caminho de ferro fizeram um barulho metálico quando lhes passaram por cima para entrarem no quarto.
- Arranjei um belo tipo para a cena da parede da prisão. - disse Granit a Eisenlohr, na manhã seguinte.
- Que cena ? Que parede ? Que tipo ? - preguntou Eisenlohr.
Para a mulher que está acorrentada à Tatiana quando ela passa ao longo da parede da prisão. É uma rapariga engraçada e tem uma cicatriz verdadeira na cara.
- Pode tê-la onde quiser. Estou-me nas tintas para a cena, para a mulher e para a cicatriz.
- A mulher é muito interessante, tem um não sei quê de passivo... E uma cicatriz verdadeira na cara. - insistiu Granit.
- Será a única coisa verdadeira a existir em todo o filme. - resmungou Eisenlohr em tom mordaz, pondo-se a trincar o cigarro de mentol. Mostrava-se nessa manhã de um humor execrável, o seu grande rosto estava carrancudo. Precisava dormir, precisava de repouso e recolhimento. Tinha os nervos exaustos.
- Estou farto de dançar sobre bicos de alfinetes com a Donca Moresco. Renuncio. Pouco me importa que ela saiba onde está Oliver e que desapareça. - disse num tom abatido. - Estou-me a rir para o filme. Se a coisa fosse só comigo podiam parar a produção.
Toda a gente, no estúdio, estava nervosa e de mau humor. Esse estado de tensão durava havia três dias já e tinha-se tornado quási insuportável. As dez horas, um jornal publicara uma edição especial anunciando a morte de Oliver. Mais tarde, soube-se que era um boato. O próprio Bill Turner estava constantemente em comunicação telefónica com Dworsky. Oliver vivia ainda. Pior, mas vivo. A atmosfera era pesada, carregada de tempestade. O único ente que não suspeitava de nada e estava de bom humor, nessa manhã, era Donca. Isto tornava a situação ainda mais cruel. Vestida de prisioneira, com botas altas e saia curta, Donca estava extraordinariamente à vontade neste
disfarce, como de resto nas cenas deste género. Sentia toda a sua força latente. Possuía, como nenhuma outra, nenhuma Ria Mara, o tipo do povo.
Eisenlohr tinha-a tirado do seu posto do primeiro plano e colocara-a no meio da multidão. Era um efeito novo e poderoso. Uma longa muralha desolada, coberta de neve. Soldados com peles de carneiro, vigiando o transporte, e uma fila de duzentos prisioneiros acorrentados, dois a dois, pelo pulso, eram enxotados ao longo desta muralha até ao pátio da prisão. Tatiana era uma delas. Não se devia distinguir das outras senão pelo piscar dos olhos, quando, num dos soldados, reconhecesse o amante, Akim, e pelo longo olhar que deitasse para trás seguindo-o, emquanto caminhava.
No outro plano, os assistentes regulavam o desfile dos prisioneiros. Imensas peças de pano preto estavam estendidas sobre metade dos cenários para impedir que o sol iluminasse esta cena sombria e para fazer sombra. Estavam ali como sob a tenda de um grande circo. Eisenlohr escalou um andaime e daí deu indicações em tom rabugento. A sua voz era fraca, a despeito do porta-voz.
- Napoleão está constipado. - disse Donca alegremente.
Tirou a Williams o cigarro que tinha na boca, aspirou algumas baforadas, depois voltou a pôr-lho entre os lábios. Deu a dois homens uma pancadinha nas costas e abriu caminho à frente deles por entre a multidão. Gritou a uma velhota gorda algumas palavras em francês e parou. Gostava das botas que tinha.
- Moresco ! Moresco ! - gritou alguém.
- Presente. - respondeu ela docilmente. E com os cotovelos arranjou caminho até ao assistente que a esperava.
- Tenho que a prender. - disse ele - À esquerda ou à direita ?
- À direita. - disse Eisenlohr, descendo do seu andaime.
Donca estendeu o braço para se deixar acorrentar e sorriu a Eisenlohr.
- Está muito apertado ? - preguntou o assistente.
- Não. Podes apertar mais ainda. Queria que me fizesse realmente doer. Não a incomoda, não ? - acrescentou, virando-se para a rapariga, ao braço da qual acabavam de a prender.
- Absolutamente nada. - disse a rapariga, timidamente, cumprimentando-a com a cabeça.
Donca baloiçava os braços para a esquerda e para a direita.
- Parecemos dois cavalinhos, não é ? - disse amavelmente - Deixa que eu te arraste e não faças mais nada, entendes ?
- Muito bem. - respondeu Francis.
Eisenlohr estava de pé examinando a figurante trazida por Granit. Sim, tinha uma cicatriz; tinha uma cicatriz e era tudo. Mas as outras nem isso tinham.
- Disseram-te o que havias de fazer ? - preguntou em voz severa - Só tens que te deixar arrastar. Basta-te andar, não é preciso que te vejam, compreendes ? Tu nem sequer existes, compreendes ? E principalmente não penses em querer representar.
- Não, - murmurou Francis.
- Mete os cabelos para dentro da touca. Aqui não se precisa de platinados. - ordenou ele num tom cada vez menos amável, e abanando a cabeça descontente.
Francis recolheu imediatamente uma mecha de cabelos e olhou-o, aflita.
- Ela tem olhos.-disse Donca, como se isso fosse qualquer coisa de extraordinário, e deu a Francis uma cotovelada amigável.
-Quem te pintou?-berrou, de-repente, Eisenlohr.
- Quem é que está encarregado disso? Já disse terminantemente que não quero pinturas. Quero caras, com mil raios, quero caras e não a montra duma fábrica de pintura.
Imediatamente, alguém surgiu como saído da terra e esfregou com um pedaço de pano o rosto de Francis. Quando ela voltou a ver, Eisenlohr já estava no outro lado do cenário.
- Podem partir ? - preguntou ele pelo porta-voz.
- Espera, espera um pouco. - murmurou Donca Atenção!
com um espanto formidável, Francis sentiu Donca estremecer. Tremeu mesmo o braço ao qual ela estava acorrentada.
Ao mesmo tempo, teve justamente no momento em que o apito soou, a impressão de que Donca se deixava cair. Contraiu-se, tornou-se instantaneamente a prisioneira que enxotam para a prisão. Francis, avançando lentamente no meio da fila, arriscou sobre o rosto de Donca um tímido olhar. Não estava pintado esse rosto forte, não muito belo e simplesmente infeliz. O braço de Francis, o seu corpo, receberam o calor do contacto de Donca, O mesmo cheiro a pano, a cânfora, a guarda-roupa envolvia as duas; os seus passos seguiam o mesmo ritmo. Era uma incrível intimidade que as empurrava como duas irmãs atreladas ao mesmo fardo diante da máquina. Francis não compreendeu muito bem, teve somente uma vaga suspeita: no entanto, os seus nervos, numa emoção súbita, vibraram de ternura, de afecto, de amor por esta mulher à qual estava acorrentada. Os seus olhos inundaram-se de lágrimas, sob a força desta sensação, da luz crua dos projectores e da emoção de se sentir no meio duma filmagem. A máquina, no seu pedestal preto seguia-as lentamente fixando-as com o seu olho enorme. Donca andara olhando para trás, até que passou à porta. Justamente atrás dessa porta, Tacus esperava-a com um copo de brandy preparado. Ela pegou-lhe num movimento de violência da sua mão livre e bebeu.
- Quere ? - preguntou a Francis.
Esta sacudiu a cabeça, embaraçada. Estava surpreendida por ver agora, acabada a pequena cena, as lágrimas a correr dos olhos de Madame Moresco. Corriam rápidas e leves, ao longo do rosto, parando um momento aos cantos da boca e continuando o seu caminho sem que ela se desse ao trabalho de as enxugar.
- Obrigada, não quero pó. - disse Madame Moresco a Manuela.
O apito soou.
- Voltem ! - berrou Eisenlohr no seu megafone Está horroroso. Impossível.
Só uma hora depois separaram Donca de Francis. Ela sacudiu a mão que tinha a marca da corrente. Os figurantes precipitaram-se para uma mesa onde punham o seu talão de pagamento e dirigiram-se apressadamente para a caixa. Francis juntou-se a eles. Eisenlohr, de sobrancelhas franzidas, procurou Tacus. Sempre falando com ele não perdia de vista Madame Moresco que se afastava. Ela descompunha em espanhol a criada de quarto, muito nervosa, e isso ocupava-a suficientemente.
- Tacus, - disse Eisenlohr - não posso mais. Preciso descansar uma hora. Tem cuidado durante esse tempo.
Tacus não respondeu senão por um gemido, Eisenlohr saltou para o carro que o esperava e desapareceu. Tacus correu, arrastando os pés, na perseguição da Moresco, até ao seu bungalow. Ela tinha ido direita ao quarto de toilette para se despir.
- Que está a senhora a fazer ? - preguntou Tacus à criada de quarto, que saía com os vestidos no braço.
- Toma banho. - respondeu Manuela, descendo à cozinha.
- Precisas de mim ? - preguntou Tacus meigamente, através da porta.
- Sim, prepara-me uns bons cocktails.
Ouviu-a brincar com a água. Ela lutava contra a fadiga, bebendo todos os dias doses cada vez mais fortes de álcool. Tacus seguiu Manuela à pequena cozinha.
Donca divertiu-se um instante a brincar com a água quente; fazia derreter os sais nas mãos e olhava, com olhar perscrutador os joelhos que lhe desagradavam. "Nem se comparam com os de Oliver" constatou. Depois saiu cantando baixo e dirigiu-se para a porta sem se limpar. Abriu-a, espreitou para fora, nua como estava, e gritou :
- Gin, não. Brandy.
Voltou, tiritando, à sala de banho. Abriu a ducha fria e meteu-se debaixo do jacto gelado que se precipitou, cortando-lhe a respiração. Fechou a torneira, tirou
uma toalha do toalheiro e começou a esfregar-se, passeando completamente nua. Tiritava, olhando com certo prazer os vestígios deixados no chão pelos seus pés molhados e muito arqueados. Por fim, foi para o quarto de toilette. Assim que chegou diante do espelho, viu que alguém estava à entrada da porta e olhava para ela.
Era, como verificou um momento depois, a pequena figurante que tinha arrastado consigo toda a manhã. Pintada agora e vestida como toda a gente, estava transformada num artigo barato. Segurava um ramo de rosas amarelas e parecia ter perdido completamente a fala. Donca, só então se lembrou que estava nua, ao ver no espelho a curva elegante do seu corpo brilhante de água. Achou isto tão engraçado que se pôs a rir às gargalhadas.
- Entre, - disse ela - não tenha vergonha. Isto é apenas um camarim de artista.
Pegou no seu velho roupão desbotado e envolveu-se nele.
Francis estendeu-lhe a mão que segurava as rosas.
- Tome. - disse acanhadamente.
Eram umas rosas baratas, que vendiam à porta do estúdio. Francis, num súbito acesso de admiração, de afecto e de piedade por Donca Moresco, ao sair da caixa, tinha ido direita comprar essas flores com o seu primeiro dinheiro.
- Flores ? Tuas ? Para mim ? És muito gentil. disse Donca, olhando Francis com um olhar amigável e surpreendido -Queres qualquer coisa de mim? -preguntou, tão natural isso lhe parecia.
Francis fez sinal que não, moveu os lábios mas não pôde dizer nada.
- Portaste-te muito bem. - disse Madame Moresco. Pousou as rosas em cima do toilette, levantou-se e aproximoU-Se de Francis.
- Muito bem. - repetiu e, num desses movimen tos bem seus, pegou no rosto de Francis, com as duas mãos, levantou-o e beijou-lhe os dois olhos.
Ora foi isso, essa pequena marca de amizade inesperada, essa frase "portaste-te muito bem", que deslumbrou Francis. Deus bem sabia que ela se portava bem
desde que deixara Fairmont e viera para Hollywood. Tinha conservado a sua inocênciazinha e o seu pequeno amor estúpido por Oliver Dent, como um fósforo aceso que se leva através duma noite de tempestade. Não chorara ao perder uma e outro; não, não tinha chorado, não tinha feito barulho, não tinha deixado de se pintar e de falar como uma desavergonhada. Tinha-se portado bem. Não desmaiara quando soubera a falsa notícia da morte de Oliver. Trabalhara bem durante a filmagem, a despeito da horrível noite passada com Granit.
Ah! Sim, também ela, a pequena Francis Warrens começara por se querer tornar uma star, qualquer coisa de grande como Donca Moresco. Isso já lá ia, havia muito tempo. Tinha chegado agora a agradecer a um homem que desprezava, a paga de um job de sete dólares com a dádiva que lhe fizera do seu corpo. Era como um relogíozito barato que continua a fazer tique-taque e a andar, embora a roda grande esteja já muito partida. Portara-se bem, nunca tinha chorado durante um ano. Agora, aqui, de-repente, em contacto com a afabilidade de Donca e do seu corpo de irmã, no perfume tépido e selvagem dos sais da casa de banho, tudo se fundiu. Pôs-se a chorar e deixou-se cair contra o ombro de Donca, simplesmente cair, espalhando abundantes ondas de lágrimas sobre o velho roupão que conservava o cheiro do tempo, da pintura e da experiência cinematográfica. Donca achava a situação um pouco grotesca.
- Vamos, vamos... - disse ela, dando pancadinhas na nuca de Francis - Porque chora assim ?
-Por causa do Oliver.-disse Francis, abafando um soluço.
Foi preciso um momento para a Moresco compreender.
- Por causa do Oliver! Por causa do Oliver!
Quando compreendeu, empurrou Francis, pôs-lhe as duas mãos nos ombros e olhou-a em pleno rosto.
- Que interesse podes ter por Oliver? -preguntou ela. Sentia pele de galinha nos braços, todos os pêlos,
todos os nervos se revoltavam, ela conhecia bem isto há muito tempo: era ciúme. Lágrimas e soluços de Francis, uma nova resposta:
- Porque ele ainda está vivo, e tinha tão mau parecer na última noite... já estava doente... mas vive ainda. - disse ela, soluçando.
Madame Moresco levantou-se e empurrou-a bruscamente.
- Acaba lá de chorar!-disse, com impaciência Acaba! - gritou ela pela segunda vez mostrando-lhe os punhos. E Francis parou de-repente. Pegou na sua malinha de camurça e tirou o lenço, esfregou o narizito e limpou o rosto.
- Quere explicar-me o que significa esta cena ? preguntou Donca, sentindo a cólera apoderar-se dela.
- Francis teve ainda um profundo soluço, depois recolheu-se para uma explicação lógica.
- Não se zangue, Madame Moresco, admiro-a tanto! Ainda agora... quando representou, admirei-a tanto...
por poder representar assim quando Oliver está moribundo.
Deteve-se a um gesto da mão de Donca. Francis olhou-a bem nos olhos, como fazem às vezes as crianças tímidas, num acesso de coragem, e depois soltou um leve suspiro. De súbito, Madame Moresco caminhou para ela: dir-se-ia que lhe ia bater.
- Que estás para aí a dizer ? Que idiotices são essas ? Perdeste a cabeça ? - disse, ameaçadora, mas sem gritar, muito baixo e junto ao rosto de Francis. Esta recuou. Puxou a malita coçada, de camurça, e tirou de lá um recorte de jornal amarrotado.
- Está aqui. - disse meio arrogante, meio tímida pousando-o sobre o toucador, entre os boiões de creme e os tubos de pintura - Talvez não lesse a edição da tarde.
Donca viu o jornal, lançou sobre o rosto de Francis um olhar perscrutador, depois olhou finalmente para o jornal outra vez. Pegou-lhe e começou a ler.
Francis continuava ali, inquieta e ao mesmo tempo ofendida, Sentia-se um pouco mais à vontade agora que
havia chorado. Bem quisera pôr bâton, pois sentia que tinha a cara suja de lágrimas, mas não se atreveu. Madame Moresco continuava a ler. Pela terceira vez releu
33 três linhas do boletim médico.
OLIVER DENT AINDA ESTÁ VIVO
"A notícia da morte de Oliver Dent, que um dos nossos colegas publicou esta manhã, não é verdadeira. Oliver Dent ainda vive. O boletim médico desta manhã, das 10 horas, declara que teve às primeiras horas do dia um acesso de fraqueza cardíaca que não conseguiu vencer. O seu estado é grave, mas não desesperado. Não tem febre. O pulso está fraco".
Emquanto Madame Moresco lia, o silêncio era tão profundo que pôde ouvir-se uma folha do ramo de rosas de Francis soltar-se e cair, e depois, mais outra. Francis fez um gesto para colocar melhor o ramo. As rosas murchavam muito de-pressa. Deteve-se a meio do caminho, pois Madame Moresco voltou-se para ela. Francis viu, com certo receio, os seus olhos convulsionarem-se um momento, de tal maneira que só se lhes via o branco. A-pesar-disso, quási imediatamente, reapareceram: mas as pupilas tremiam ainda. Era horrível e dava uma certa impressão de loucura.
- Desculpe-me, - pediu Francis.
- Quere ter a bondade de se retirar agora ? - disse Donca - Havia nestas palavras uma delicadeza inconsciente, pior que qualquer explosão. Sem dizer palavra, Francis saiu para fora do aposento. Madame Moresco ficou só com o jornal e a sua imagem reflectida no espelho.
Tirou de uma almofada um alfinete de segurança e prendeu o roupão sobre a pele, ainda húmida e fresca, do banho. Não, não perdia os sentidos. Também não gritou. Nem sequer chorou. Pôs um momento a cara nos braços em cruz e ficou a pensar. Não pensava em nada e pensava em tudo ao mesmo tempo e somente em coisas sem importância. Depois, os joelhos dobraram-se-lhe e teve de sentar-se rapidamente numa cadeira
que estava em frente do espelho. Sorriu-se para desculpar tanta fraqueza e ficou a olhar para o seu rosto. Voltou a pegar no jornal e leu mais uma vez, lentamente. Voltou a folha, era uma edição especial; o verso estava em branco, o papel deixava transparecer as letras,
Donca permanecia ainda sentada em frente do espelho quando Applequist apareceu à porta e preguntou:
- Sirvo aqui ou lá fora, minha senhora ?
- Como? Lá fora, se não faz muito calor. - respondeu ela, olhando-o com uns olhos completamente vazios - Ponha também um talher para o sr. Eisenlohr, como de costume. - Era estranho e incomensurável, absolutamente louco, pensar que tudo continuaria assim emquanto acontecia qualquer coisa a Oliver.
- Feche a porta, se faz favor. - disse a Applequist que se retirou com um certo sentimento de mal-estar.
Levantou-se a custo e procurou no armário um vestido de que Oliver gostava: "Preciso de ir vê-lo imediatamente". Era o único ponto sólido que ela encontrava no nevoeiro dos seus pensamentos.
Dez minutos depois, desceu a escada. Vestia um fato amarelo-claro um pouco quente demais, tinha os cabelos molhados e bem escovados, levava a malinha e as luvas e tinha um ar extremamente correcto. Tacus, de sentinela em frente da chaminé, agitava o shaker.
- Está bem ? - preguntou ele.
- Um pouco doce demais. - respondeu ela, estendendo-lhe o copo. Os seus olhos já não eram verdes, eram completamente transparentes e incolores como a água. Tacus verificou-o com inquietação.
- Que aconteceu a Oliver? - preguntou ela.
- A Oliver? O quê, minha pomba?
- Quero dizer: é verdade que ele está a morrer? Tacus teve a sensação de se encontrar de súbito no
meio de um tremor de terra. Piscou os olhos fracamente.
- Que é isso ? Não sei. - disse tolamente - Que me dizes ?
Não estava muito claro ali, porque tinham protecção contra o sol. No minúsculo terraço, Applequist
ocupava-se a pôr a mesa. Tinha um guardanapo na mão e erguia os copos contra a luz antes de os colocar no seu lugar.
- Esconderam-me uma coisa destas! Porquê? Para me pouparem? Não sou dessas que precisam de ser poupadas.-disse Donca, docemente. Era horrível o facto de não fazer cenas. Desde que Tacus a conhecia, ela tinha feito muitas cenas maravilhosas. Desta vez, não. Ele contemplava-a desconfiado, com o lábio superior rígido, emquanto o inferior se punha a tremer.
- Ora vamos, Donca. Poupar-te... e porquê ? Tratava-se apenas da produção, sabes?
Calou-se, olhando-a novamente. Ela não respondeu logo. Depois, meneou a cabeça.
- Sim, evidentemente, a produção. - disse num tom razoável, calçando as luvas. - Há correio ? Também fizeram desaparecer o meu correio ?
- Não. - respondeu Tacus. Ela olhou-o. Ele foi à pequena antecâmara onde tinha o casaco pendurado e trouxe três telegramas que pôs em frente dela. Os três eram de Jerry. Dois, eram idênticos, um tinha sido dirigido para casa da Moresco.
Não há melhoras. Mr. Dent reclama Moresco. Jerry. Outro, para o estúdio : Mr. Dent reclama Moresco. Jerry. O terceiro telegrama era um pouco diferente: Sem melhoras. Reclama energicamente Moresco. Vir o mais breve possível. Jerry.
- Este chegou de manhã. - murmurou Tacus, pouco à vontade.
Donca estava de pé, segurando o telegrama, com os olhos vagos. Applequist passou diante dela com um ar deslizante; levava uma bandeja com duas taças de caldo e desapareceu pela outra porta do terraço.
- Parece-me que Applequist se pinta.- disse Donca. Não conseguia concentrar os pensamentos de maneira alguma. No seu cérebro, tudo nadava e não havia praia que fosse porto de salvamento. - Venha o mais breve possível, o mais breve possível. Se for possível. Sim... sim... Sim, era absolutamente possível ir de-pressa.
Nada de tolices, Oliver. Sim, era possível. O mais de-pressa, sim ...
- O almoço está na mesa.
- Obrigada, Applequist. Já te disse que ele pinta-se. Eu bem sei o que é o rouge. É claro que já vi muitos criados de mesa no cinema.
- Queres que compre bilhetes para o rápido? - preguntou Tacus que não podia ver o sorriso desolado de Donca - com certeza queres partir esta noite ?
- Esta noite? Como? Sim, é isso, compra bilhetes.
- Que quere Jerry dizer com isto: "o mais de-pressa possível?" Eu estou a filmar. Tenho que falar com Oliver. Tens o número do telefone? Fazes favor de pedir imediatamente ligação, tenho que lhe falar, já.
Donca passou para o terraço, deixando Tacus na sombra do quarto. Ele via-a cá fora, sob a tenda, em pé, segurando com a mão a colherzinha redonda do caldo gelado, depois, bebendo sem pensar em nada.
"Como imagina ela isto? Falar com Oliver? - pensava com agrura. Esta pretensão traía uma tal ignorância da situação que ele ficou como paralizado. Justamente nesse momento, Eisenlohr chegou, parecia ter também tomado uma ducha e esfregava as mãos com visível satisfação.
- A pensão está aberta? - preguntou, entrando. Tacus olhou-o sem dizer palavra, com ar sarcástico. Depois, foi direito a ele.
- Ela sabe. - murmurou, abanando três vezes a cabeça e deixando pender o lábio.
Eisenlohr não teve tempo de responder. Antes mesmo de ter compreendido a situação, Donca voltou do terraço. Parecia pronta para partir, com a sua malinha de mão, as suas luvas e o seu ar totalmente ausente. Coisa estranha, os dois homens puseram-se em guarda, quando, sem parar, ela passou em frente deles.
- Não tenho fome. - murmurou amavelmente, sem olhar para ninguém. Chegou à escada e disse:-Vou deitar-me um pouco em cima da cama. Quando a ligação com Oliver estiver feita, atendo do meu quarto.
A escada gemeu emquanto ela subia.
- Donca! - gritou Tacus, aflito - Não se pode falar com Oliver, minha pomba. Então não percebes? Ele está muito doente... muito... percebes ?
Tinha falado em romeno, ela também.
- Faz-me a comunicação e deixa-me cá.- disse chegando lá acima, numa voz ainda meiga.
A porta fechou-se sobre ela.
- Adeus! -disse Eisenlohr-Adeus, Noite do Destino. Agora só temos que bater em retirada.
Poderia julgar-se um instante que ela ia, para seu alívio, atirar ruidosamente para o meio da casa um Buda de bronze que tirara de cima da secretária. Por fim, voltou a colocá-lo cautelosamente no seu pedestal, onde o ídolo ficou sentado, fleugmático e sem pensamento.
- Adeus, Moresco. - disse ele - Adeus, filme, adeus dinheiro. Eu vou ter com Bill.
Hollywood é uma cidade alegre, extraordinariamente alegre, uma das cidades mais alegres deste planeta tão divertido, que deve ter atrás de si loucos anos de alegria. Ruas e casas muito bonitas, habitadas pelos seres mais belos, iluminados por candeeiros mais luminosos que em qualquer outro lugar. Come-se, bebe-se, dança-se, joga-se, vive-se, ama-se em todos os cantos e de todos os lados. Cem jazzbands misturam a sua música e o próprio trabalho parece ser um verdadeiro divertimento. Depois da guerra, o sentido do bom humor desenvolveu-se em toda a parte, pelo menos assim se julga. Não se chora. Que pode ainda parecer importante, trágico e digno de lágrimas, a uma geração que passou por aquilo? As lágrimas foram suprimidas. Aquele que sossobra, fá-lo silenciosamente e com discrição, a alegria é universal, fazem-se pequenas brincadeiras sobre as grandes dores. No exterior, tudo reluz de ironia e frieza elegante, o que se passa por dentro não o sabemos nós, nem queremos sabê-lo. Ninguém tem nada com isso. Ninguém quere saber dos outros, e nunca o sofrimento foi tão mudo,
O guarda maneta grita todas as manhãs a sua profissão de fé optimista:
- Que lindo dia!
Ninguém lhe pregunta quanto lhe custou para chegar a isso. O próprio Bill, o todo poderoso Bill Turner, chefe da Phoenix Picture Corporation, tem também o seu ponto fraco. A bancarrota plana sobre a sociedade e não é para se divertir que trabalha tão febrilmente, pronto a andar sobre cadáveres. E também Joe Ray, o homenzinho da publicidade. Ele sua, trabalha e tem também o seu doloroso segredo: quando tinha dezasseis anos, roubou a caixa da mercearia Abeleche em Lundenburgo, na Morávia. Só o poderá esquecer se voltar lá milionário. Oh! outra sombra ainda: a forma como a jovem Smith dos cabelos ruivos arrasta o seu destino. Ela, que parece velha, tem uma jovem mãe florescente. Em casa há um padrasto: um grande rapaz brutal que se comprou e se amima. A jovem Smith não pode deixar de amar esse desprezível intruso e é nele que pensa constantemente, emquanto que, num ar submisso, escreve no livro de registo as ordens de Eisenlohr.
O próprio Eisenlohr, esse gigante, é divorciado há nove anos e não pode ver a filhinha que vive na Europa. Às vezes, muito cansado, pára o motor furioso que trabalha em si, senta-se em frente de cartas cobertas de uma letra irregular de criança, que conhece de cor, e sente-se horrivelmente só. Não, nós não sabemos nada do que existe por dentro, não sabemos nada uns dos outros.
Não sabemos nada de Francis, a pequena figurante pela tolice de quem Madame Moresco soube que Oliver Dent estava doente, tolice que pode custar centenas de milhares de, dólares e levar a Phoenix Picture Corporation à falência e à ruína. Todo o estúdio segreda, murmura e grita que a Moresco já sabe e é uma agitação quási tão grande como quando da primeira notícia da doença de Oliver. Puseram Francis imediatamente na rua. O
director do Casting, o próprio Granit a pôs na rua, aliviando o coração com uma onda de palavras grosseiras. Por fim, inscreveu-a na lista negra. O que lhe fizessem era pouco comparado com o desastre que ela provocou, mas para ela foi bastante. Deixou o estúdio, pobre rapariga, um pouco murcha, com uma cicatriz na cara, quatro cantos de boca: dois alegres, pintados para cima, e dois verdadeiros, puxados para baixo como os de uma criança que não quere chorar. Anda pelas ruas barulhentas, depois, entra num drug-store. Come uma sandwich de presunto e um kecream, pois ganhou dez dólares e não gastou até então mais de cinquenta cêntimos com as rosas amarelas. Preguntou à caixa se podia telefonar. Indicaram-lhe o telefone. Procurou na carteira de camurça lustrosa e tirou um bilhete que leu. Pegou no auscultador.
- Dê-me: Granit O. 2365. - disse ela, baixo. Era o número secreto da Florência.
E é tudo quanto sabemos.
Ignoramos o que faz, o que sente, o que pensa Donca Moresco nessa tarde emquanto espera, no seu leito, a comunicação telefónica com a casa de saúde Dworsky. Demora muito tempo, pois a Phoenix Picture Corporation, como sabemos, tinha cortado o fio telefónico do bungalow de Donca, tentando assim, mas em vão, isolar a vedeta do mundo exterior.
Demora muito. Donca está estendida, não chora, só pensa. Pensa provavelmente em Oliver - não o sabemos, podemos apenas supô-lo. Pensa nesse grande amor, no milagre desse amor que veio para ela quando estava tanto por baixo. Pensa em Rhodes e em Pasadena; pensa em Paris, e também na sua inimiga Ria Mara. E depois, pensa na sua vida. Talvez tivesse tempo de pensar na sua vida, feita, de resto de uma cadeia de catástrofes. Depois de cada ascensão, uma queda; depois de cada felicidade, uma tragédia. Nunca teve nada que o destino não lhe fizesse pagar caro. Espera ainda que Oliver viverá, mas sabe também que as coisas não se passam tão agradavelmente como isso, na terra. Durante toda a sua vida teve que sofrer choques, preparava-se já para suportar o que chegava. Pensou em si de uma forma egoísta e calculista. Reviu o suplicio de dois anos sem contracto depois da última derrota. O medo, o trabalho, as dívidas, a descida. O cheiro da pensão ordinária da rua Pigalle. As nódoas no papel de flores que fixava durante os exercícios. A rosa de setembro perfumada e sonhadora; depois, num tom mais alto; A rosa de setembro perfumada e sonhadora, À meia- noite, num quarto vizinho, a Baronesa, encolerizada, batia na parede para obter silêncio. Jóias vendidas, móveis empenhados, dívidas, juros, usurários, hipotecas que comiam tudo. Às vezes, parecia realmente que era o fim puro e simples, o fim sem recurso, negro, durante este período de Paris. E depois, a subida. E depois, o filme A Noite do Destino. Agora ela pensava neste filme e em mais nada. A grande oportunidade, a suprema, a única para ela. Perdia-se tanto nesta idea, que quási esquecia Oliver. Havia, no fundo de si mesma, como que um sentimento de rancor contra aquele que lhe pregava esta partida de estar doente agora, justamente agora. "Jerry é um idiota, pensou e aliviou-se um pouco, deixando cair a sua cólera contra Jerry. "Ir imediatamente. É totalmente idiota". "Mas sim, Oliver.-pensava depois-Vou. Imediatamente. vou buscar-te. Não sejas tolo, Oliver, bem sabes que vou, tu precisas de mim, bem sei. Obrigado, Oliver, tu precisas de mim; obrigado, Púiú, eu vou, meu filho .."
O telefone tocou, New-York. O inter-urbano para Madame Moresco. A telefonista de New-York. A telefonista de Hollywood. A telefonista da casa de saúde de Dworsky. A telefonista da Phoenix Picture Corporation. Tantas vozes, ruídos, distância, a extensão de um
grande continente.
- Estou. Sou eu, Moresco. Donca Moresco. Preciso falar a Oliver Dent. Não é possível? Bem, então, preciso falar ao médico. Espero.
Espera. Palpitações de coração. Espera.
O assistente do doutor, depois o médico-chefe, por fim, o próprio Dworsky. Donca, passo a passo, ganha
terreno.
- Sim, o doente chamou ontem muito por si. -disse
a voz muito próxima, severa e clara do doutor - Aconselhou a vir. Como ? Quere falar-lhe ? É impossível. Não, não, não proibo, creio que não compreende bem. A senhora poderá falar-lhe, mas ele não a ouvirá.
- Morreu ? - gritou Donca ao telefone.
- Não, mas está sem conhecimento. Sim, muito fraco... Não, não está mudado. Esperança ? Bem entendido. Emquanto há vida, há esperança. O coração resiste maravilhosamente. Bem, peço-lhe. vou pô-la em comunicação com o quarto dele. Aconselho-a a vir o mais breve possível. Adeus. vou mandar que lhe dêem o número 68.
Angústia, angústia, angústia.
A irmã. Longas conversas. Depois, Jerry. Graças a Deus, Jerry. É um ente conhecido, um ente humano. Como está, Jerry ? Como ? Constipou-se ? A sua voz parece um pouco... Sim, bem, Jerry, Mas quero tentar falar-lhe. Sim, Jerry, apenas tentar. Não; sei que ele está fraco. Ouve-me, Jerry ? Ponha o auscultador muito contra o ouvido se faz favor. Tente. Sim ? Agora. Bem.
-Oliver!
- Oliver, Oliver, Oliver! -Oliver, ouves-me?
Nada. O ruído do telefone. Uma crepitação. O mundo inteiro está nessa crepitação.
- Púiú, ouves-me? Púiú, meu querido, Oliver...
Nada. Nada senão angústia. Nada senão o mortal bater do coração. Ruídos no telefone, zumbidos nos ouvidos, nas fontes - o mundo inteiro cheio deste marulhar sem palavras.
Depois uma voz, de muito longe, de um outro planeta. Não é a voz de Oliver, mas uma voz alta, quebrada, cantante, de criança:
- Don... ca.
- Oliver, sou eu, ouves-me? Oliver... vou aí... daqui a pouco, imediatamente. É preciso que me esperes, eu vou, curo-te, não podes estar doente, ouves-me? Compreendes-me ?
- Don... ca. Don... ca.
- Oliver, hás-de curar-te, eu quero, tu sabes, Donca quere. Tu também deves querer. Eu vou, beijo-te, dorme. Oliver, tu sofres? Onde te dói? Meu pequeno, meu pequeno Púiú, não quero que tu sofras. Estás melhor quando eu falo ?
Um silêncio.
- Sim ... Don ... ca.
- Vês, Oliver, vês, meu pequeno... (Queria não soluçar, agora não). Tudo se há-de arranjar. Tens que ter um pouco de paciência com Donca, um pouco de paciência. Amo-te, voltaremos a Rhodes quando estiveres... Menina, estou a falar, não corte, menina... Oliver! Oliver! Oliver! Oh! Jerry. Vê Jerry, como ele me conheceu? Falou-me. Trate-o bem, Jerry. Sim, eu vou, vou o mais de-pressa possível. Há ainda este filme, sabe?.. sim. vou, diga-lhe... que me espere. Sim, menina, agora pode cortar.
Não, ninguém sabe o que se passa em Donca Moresco, depois desta conversa nem como ela pesa todas as coisas no seu coração, nem o que dita a sua decisão. Donca é talvez a alma mais leal e a mais perfeita de Hollywood, mas a profissão, esse grande ídolo devorador não deixa subsistir, dos seres que agarrou, senão a pele. Aqui, o filme; lá, a vida. Aqui, um grande trabalho; lá, um grande amor. Mas aqui, o barulho dos apitos, os ruídos, a trepidação, a febre da oficina. Hoje, a oficina é a pátria de todos. É também a de Donca. De resto, lá em baixo, não há senão a voz fraca de um ente já virado para o outro mundo.
Assim que Bill Turner bateu, um pouco depois das cinco horas, à porta da Moresco, encontrou-a em frente do espelho. O seu rosto, cheio de creme, estava molhado. Ele pensou que ela tirava o maquillage para partir. Mas Eisenlohr, que a olhava por cima do ombro, compreendeu que era o contrário.
- Donca. - disse Bill, pondo se em frente dela, de cabeça baixa - Lamento que tenhamos representado contigo esta comédia. Tu talvez não o compreendas, mas dependia disso a produção... o dinheiro, tu sabes, todas as exigências.
- Está bem, Bill. - respondeu ela seriamente sem deixar de preparar o rosto - Eu sei: a produção. - Pegou num pouco de pó com o dedo, e esfregou as pálpebras.
- Se filmarmos dia e noite e fizermos primeiro as minhas cenas... quando poderei partir? - preguntou.
Eisenlohr avançou:
- Dois dias e uma noite. - respondeu, retendo a respiração.
- Bem, então, comecemos imediatamente. - disse Madame Moresco.
Eisenlohr foi o único a notar que a sua voz tinha baixado outra vez um quarto.
Durante toda esta semana, emquanto Oliver Dent agonizava, as sociedades de distribuição encontravam-se num grande embaraço. Os filmes de Oliver Dent eram de tal forma solicitados que não conseguiam fazer cópias bastantes.
Cardogan enchia casas em toda a América. Os antigos filmes de Dent, os mais velhos, passavam nas pequenas localidades e nos cinemas de bairro. A ocasião era bela, ganhava-se dinheiro com a desaparição de Oliver Dent, A União Telegráfica e as sociedades de telefones, os caminhos de ferro e os jornais, os poetas e os repórteres, os fotógrafos dos jornais e os messengerboys, as floristas e os vendedores de bilhetes postais, as farmácias da rua onde ficava a casa de saúde de Dworsky todos trabalhavam exaustivamente. Jerry recebia todos os dias uma porção de anúncios e de visitas de senhores de fato preto que se ofereciam para funerais solenes. Na sala de espera da clinica, a gente da imprensa tinha-se instalado como num campo de batalha, atrás da primeira linha de fogo. Ao quarto dia, Dworsky pô-los na rua, pois o barulho que faziam, o tabaco, o calão cínico perturbavam
a atmosfera desinfectada da casa de saúde e não fazia boa impressão ver as pirâmides de garrafas vazias que deixavam atrás de si. Desarvoraram em grupos e ocuparam com imperturbável alegria a farmácia Ligett, em frente. Esse drug-store tinha já retirado da montra as meias elásticas e a água dentifrica antisséptica para expor, em seu lugar, numa moldura de louros, postais e retratos de Oliver Dent. Agora, faziam mais: ficavam abertos de noite para oferecerem aos jornalistas de vela, asilo, sandwichs e a possibilidade de jogarem o bridge. Em frente da casa de saúde havia sempre um ajuntamento de pessoas que segredavam, olhavam para o ar e discutiam para saberem o que se passava.
Por trás de uma dessas janelas, Oliver Dent estava deitado e morria.. não podia já haver dúvida a esse respeito. Estava deitado de costas e respirava devagar, tinha os olhos quási sempre fechados. Apenas o lábio superior e a ponta dos dedos em cima da coberta mexiam de vez em quando, porque sofria. Quási que não sentia. Já estava muito longe e nada em si lembrava Oliver Dent são e vivo que, todas as noites, ria e despertava o amor em milhares de écrans.
Embora permanecesse a maior parte do tempo sem conhecimento, não estava ainda assim tão longe que não compreendesse o que se passava à sua volta. Tinha momentos de lucidez que não conhecera outrora. Às vezes - sempre um pouco antes da manhã, entre as três e as quatro horas -voltava de-repente das regiões ignotas e obscuras para o seu quarto de doente, número 168 e retomava conhecimento de tudo.
Ouvia ligeiros barulhos de fantasmas com os quais se agitavam os móveis, o ruído de uma gota de água caindo da torneira para a bacia. Estava de tal forma desperto que ouvia mesmo o barulho imperceptível que fazia contra a janela uma mosca mudando de lugar. Navios apitavam no porto. "Em que porto?" - pensava, concentrando os pensamentos. Navios apitavam, partindo para a Europa. Fatigava-o muito pensar, mas, por fim, chegava a descobrir onde se encontrava. Descoberta que o faria sorrir se não tivesse a boca tão seca. Não
lhe davam nunca de beber e era uma tortura. Passava longas horas no deserto, sem conhecimento. Quando abria os olhos, o que lhe causava grande fadiga, via e reconhecia certas coisas. Uma nuvem que flutuava ao pé da cama: a irmã Judite. Tinha as mãos às vezes boas mas que também sabiam torturar. Fazia muito barulho a andar. Oliver tinha medo. Havia também Jerry; aproximava-se e afastava-se como se volitasse. Cheirava a alfazema. De madrugada, quando Oliver estava acordado e partia para a viagem das descobertas, encontrava Jerry sentado numa poltrona, a dormir. "Morro", pensou Oliver, certa manhã entre as três e as quatro horas. "Que será morrer ? Bem, eu morro. Estou pronto". Pensou que estava pronto ou não pensou ; sentiu somente as pancadas fatigadas e fracas do seu coração, o pouco gosto que tinha em respirar e em sofrer a sua decisão quási alegre de acabar. Aquele que está muito doente, espera a morte como o que tomou o soporífico violento espera o sono. "Estou pronto. - pensou Oliver - Pronto... pronto...".
Era estranho, com que facilidade um Oliver Dent deixava a vida desaparecer. Era uma vida que lhe dera tudo quanto os homens desejam, uma vida de primeira classe, uma vida alta, no píncaro. Mocidade, beleza, força, riqueza, êxito. "E que mais? -pensou Oliver no seu leito de agonia, de manhã durante essa hora muito lúcida entre as três e as quatro horas
- E depois ? Se é tudo quanto se pode ter na vida, então a vida não é nada de extraordinário. Não é grande coisa a vida. Fui feliz? Sim, fui feliz... às vezes. Nunca por muito tempo. Ninguém pode ser muito tempo feliz. Mas todos são felizes, às vezes. Mesmo o empregado do porto, o cobrador dos seguros, todos são infelizes às vezes, todos são geralmente indiferentes. Não; a vida não é nada de extraordinário. Estou pronto".
Dworsky era rude para o seu doente. Sacudia-lhe os ombros, examinava-lhe a ferida, mudava-lhe os pensos, suprimia-lhe a morfina, injectava-lhe nas veias substâncias para lhe darem coragem. Dworsky considerava
sempre o facto de morrer como uma quebra de vontade e falta de carácter; tratava os doentes em estado grave com furor, como desertores apanhados. Justamente no momento em que Oliver acabava de subir, levando Donca pela mão, o caminho debruado de anémonas vermelhas para a Acrópole de Lindos, Dworsky trouxe-o brutalmente à realidade para lhe dar uma picada ou injectar-lhe uma substância nutritiva. Não lhe consentia que estivesse sem conhecimento e proibia-lhe, proibia-lhe, com todo o rigor de que dispunha, que resolvesse morrer.
- A gente não se deve deixar ir assim, meu amigo!
- gritava ele através do murmúrio abafado que enchia os ouvidos de Oliver - Coragem, é preciso ficar firme no seu posto. Tenha cuidado.
Assim interpelado, Oliver voltava ao seu posto e tentava parar o choque. Mas assim que voltava a si sofria de duas queimaduras: uma na ferida; outra na saudade que tinha de Donca.
Ah! Como Donca lhe faltava ! Como lhe faltava ! Donca era forte. Se havia alguém que o pudesse ajudar, era ela, essa Donca cheia de saúde, sempre pronta para a luta. O seu passo, o seu andar, os seus olhos, a sua voz, o seu riso, o reflexo mate da sua pele, o ranger dos cabelos: faíscas, electricidade, ondas de vida e de força. Donca, Donca, Donca !
O amor de Oliver por Donca foi durante esses últimos dias absolutamente grande e puro. "Vem. Donca, ajuda-me; fica ao pé de mim, não me deixes morrer, Donca".
Uma vez, no dia em que o coração lhe tinha de-repente enfraquecido, Donca veio até ele, chamou o e arrancou-o ao profundo desmaio em que estava mergulhado.
- Tu ouves-me, Oliver?
Sim, ele ouvia, ele respondeu. Não falava desde a narcose, a sua voz não lhe pertencia já. Entre ele e Donca havia um nevoeiro mas ele conseguiu ouvi-la e respondeu. É certo que o tornou a abandonar, mas agora ele esperava-a. O seu coração voltava a bater.
Respirava com coragem. Levantava a mão de cima da coberta. Era a cura, sem dúvida, visto que conseguia fazer coisas para as quais era precisa tanta força.
Dworsky fez-lhe cumprimentos na sua visita dessa tarde:
- Bravo! - disse-lhe ao ouvido - Muito bem, assim é que é preciso fazer. O pulso está melhor. Temos homem.
Oliver esperava por Donca.
No dia seguinte, uma mulher entrou no seu quarto. Ele percebeu que não era Donca, mas não chegou a perceber quem era. Uma mulher vestida de preto; fechou os olhos para não a ver. Ela sentou-se ao pé da cama, o que lhe causou uma dor horrível na ferida. De vez em quando, limpava-lhe a testa com um lenço perfumado. Ele conheceu a mulher, conheceu o lenço, conheceu o perfume. Sabia que não gostava nada daquilo tudo. Pediu à senhora, delicadamente, para sair do quarto. Disse-lhe que o perfume lhe fazia mal, que o seu segredar lhe era insuportável... que a estimava muito mas que lhe suplicava que se afastasse. Infelizmente não articulou nada deste longo discurso. Ria Mara, viu apenas que a testa de Oliver, molhada de suor, se contraía e que movia os lábios secos. Jerry, que estava à cabeceira, apanhou por fim uma palavra: Fora. Chorando sempre, com o seu narizito vermelho e o rosto exausto pelas vigílias, fez sair Ria Mara do quarto 168. O barulho da porta ao fechar-se, pareceu aos nervos de Oliver como um ruído de trovão. E voltou imediatamente a perder o conhecimento.
Sabia agora que havia duas maneiras de desmaiar. Uma boa e amável, que o levava a lugares agradáveis: para Clearwater, com as suas mil trutas prateadas, para Donca, para Rhodes, para a baía verde de Rhodes, para Oxford à sombra do plátano que ficava em frente da sua janela e através o chão do seu quarto de estudante, outra vez para Donca. Agora ela nadava com ele em Santa Mónica: ondas, quedas de água, espuma, frescura, humidade; era um desmaiar agradável.
O mar era árido e cheio de angústia. Constantinopla, onde ardiam casas de madeira; peregrinações no
deserto; lâmpadas Júpiter que se incendiavam, pessoas que lhe davam encontrões; Oliver subiu, subiu a uma casa, com um medo terrível. Quando conseguiu chegar ao teto, a casa inclinou-se e desabou. Reclames luminosos que caíam. Ele caía, caía sempre, cada vez mais. Sabia que ia esmigalhar-se, se caísse no chão, mas levantou se antes. "Isto não faz doer". - disse a irmã Judite, pondo-lhe um saco de areia na barriga. Um túmulo não podia pesar mais.
De sexta-feira à tarde a domingo à noite, Oliver chamou por Donca. Era um gritinho seco, quási imperceptível, quási incompreensível... mas ainda assim um grito. Tinha sede dela, esperava-a. Apenas a sua mão, a sua presença, apenas uma palavra dela: Puiu. Só Donca o podia ajudar, Donca e mais ninguém senão Donca. Não havia um nervo do seu corpo torturado, nem uma polegada da sua pele, nem um ponto do seu cérebro, nem uma pancada do seu coração, que não esperasse por Donca. Tinha a impressão de não estar nem doente, nem ferido, nem a sofrer. Só Donca lhe faltava. Tinha agora os olhos muito abertos e fixava a porta. Tratava de ver se esse rectângulo não escapava ao seu olhar. Sabia que Donca vinha e entraria por ali. Esperava-a. Chamava-a em grande alvoroço.
Jerry, enterrado na sua poltrona, ouvia esse murmúrio sem fim, incompreensível. Agarrava-se a Tobias. Toda a noite o tivera ao colo. Tobias tremia e Jerry também. Era uma das noites quentes de New-York. Oliver chamava Donca em altos gritos.
Às duas da manhã desistiu, fechou os olhos, calou-se. Jerry acordou a irmã. A irmã chamou o médico-chefe. Este chamou Dworsky. Dworsky chegou de automóvel: estava de mau humor. Havia-se deitado à meia-noite e tinha a sua primeira operação às seis da manhã. Não tinha vestido camisa, trazia o pijama por baixo do casaco. Lavou as mãos com raiva.
- Está a morrer! - murmurou Jerry com os lábios trémulos.
Dworsky ergueu as pálpebras de Oliver e examinou-lhe os olhos.
- E então? - disse, resmungando - Não precisa de mim para isso. Cada um deve morrer sozinho. De resto ele ainda não está a morrer. Irmã Judite, dê-me o cardiosol.
Da farmácia em frente viram chegar no meio da noite o carro de Dworsky. Interromperam o brídge e puseram-se na rua à espreita. Um gato andava pela beira do passeio. Um táxi que não suspeitava de nada passou. Um velho jornal ergue-se do chão como um pássaro preguiçoso, para o ar quente e caiu na valeta. Mac Olehan do Publicity Department atravessou a rua a correr e desapareceu na Casa de Saúde. Outro, ao telefone da farmácia, ditou uma impressão de conjunto, "Em título: UMA VEDETA DE CINEMA AGONIZA, reticências...".
Um pouco antes das duas horas da manhã, Blacke ley caiu sem sentidos. Não foi a fingir. Levaram-no para um canto do stage, desabotoaram-lhe o colarinho do uniforme rasgado, borrifaram-no com água fria. Transportaram-no para a sala de gimnástica e deram ordem ao maçagista do estúdio para o tratar. Tinham trabalhado como loucos, dia e noite. Blackeley já não era novo e os seus nervos não eram capazes de resistir à fadiga da filmagem. Tiveram que parar meia hora.
Era a última noite: tratava-se de cenas nas quais Tatiana e seu marido passavam diante do tribunal dos revolucionários. O stage 12 já estava evacuado para o próximo filme, apenas restava a sala da caserna onde ficava o tribunal. A Moresco estava de vestido de noite, tinha sido arrancada ao baile da corte e conduzida para junto dos revolucionários. Trazia o vestido despedaçado.
Diante do stage, Mayer esperava com o carro para levar Donca ao campo de aviação. Avião e piloto estavam prontos para irem até New-York.
Êisenlohr teve medo que ela se revoltasse quando
se aproximou de Donca para lhe anunciar que interrompiam. Havia nela qualquer coisa de totalmente árido, ardente. Tinha estado assim toda a noite. A-pesar-disso, contentava-se em rir.
- Meia hora? Bem. Não faz mal. Oliver há-de curar-se assim que eu chegar ao pé dele. Vocês deixaram-se enlouquecer pelos jornais, que fazem muito barulho com a doença de Oliver. Sabes o que eu faço com eles? Deus é testemunha, penduro-os nos W. C.
Eisenlohr, para a acalmar, passou-lhe a mão pelo ombro. Ela causava-lhe uma impressão de vidro sôbre-aquecido. Tinha a impressão de que ia rebentar ruidosamente e quebrar-se num instante.
- Tenho a certeza de chegar a tempo. - disse ela Em Pasadena também cheguei a tempo. Arranquei-o ao comboio, também hei-de arrancá-lo ao hospital. Podes ter a certeza ... Que queres ? - acrescentou. E voltando a cabeça para a mão que lhe tocava o ombro, acariciou com o queixo, ligeiramente, os dedos de Eisenlohr. - Está um bocadinho apaixonado por mim, senhor régisseur?
Ele riu-se e fez tombar do ombro a mão acariciante. Preguntou:
- Tens febre ?
- Febre? Porquê febre? Porque estou alegre emquanto os outros desmaiam ? Não. Não tenho febre. Tomei um pouco de coca, mais nada.- disse ela, fazendo um gestozinho com as costas da mão no nariz.
- Não deves fazer isso, Donca.
- Não, não devo, mas saberás dizer-me o que devo fazer para suportar tudo isto? Toda a fadiga do vosso estúpido filme que não vale absolutamente nada! Agúento-me, an ? Ficarei aqui até ao último minuto. Mas tenho que fazer qualquer coisa, santo Deus, para me aguentar!
- E com isso tens estado prodigiosa, toda a noite, absolutamente admirável, Donca!
- Sim ? Sério ? - disse ela, distraída - Estive bem ? Estou um pouco embriagada, sabes? De resto, também estou rouca, não dás por isso? É-me absolutamente impossível levantar a voz.
Reflectiu um instante.
- Tacus, café. - pediu-Muito café e os jornais.
A atmosfera do stage, de noite, durante as últimas filmagens, era estranha. Qualquer coisa de gelado e ao mesmo tempo ardente. Não tinham apagado os projectores, desperdiçavam a corrente cara durante a meia hora de intervalo, porque Donca acabava de fazer uma cena e dizia que adormecia se apagassem a luz. Os membros do tribunal revolucionário despiram as suas togas e puseram-se a jogar os dados a um canto. Eisenlohr andava de um lado para o outro, com raiva, fumando. Saltava sempre por cima dos mesmos cabos, e a Moresco tinha-se sentado numa cadeira que estava em frente da mesa nua do tribunal. Mais longe, o operador Pilouíef estendera-se no chão para dormir durante essa meia hora. Manuela, pronta para a viagem, de chapéu e luvas, trazia o café. Tacus serviu Donca e deitou-lhe conhaque. Eisenlohr aproximou se.
- Eu também quero. - disse avidamente.
Bill Turner atravessou rápido o stage vazio. Ainda não tinha saído. Às duas e vinte ainda lá estava com Sam Houston.
- Acabo de falar para New-York, -disse Bill-Tudo em ordem. Agora dorme.
- Sim ? - preguntou Donca. Esvaziou a chávena.
- Tu vês, Bill, ele dorme. Chegarei a tempo. Estamos também numa das vossas malditas filmagens que nunca mais acabam. Mas Donca chegará a tempo. Ela consegue sempre aquilo que quere. Oliver há-de curar-se. Os jornais, Tacus ?
Tacus rebuscou os bolsos e pôs alguns jornais em cima da mesa. Ao mesmo tempo, Granit estendeu a Donca, sobre o ombro, uma última edição. Ninguém tinha notado que Granit também lá estava, mas estava, assim como Sam Houston e como Bill Turner. Talvez temesse o seu quarto vazio, com um pequeno comboio de crianças. E também é possível que estivesse ali, levado, como os outros, pelo mesmo sentimento surdo, pela necessidade de prestar assistência a Donca emquanto ela estivesse no seu posto, de estar a seu lado o mais possível.
Ela tirou-lhe o jornal das mãos sem se voltar e acariciou ternamente esses dedos, os dedos de Granit.
- Obrigada, Boutz. - disse gentilmente. Desdobrou o jornal e pôs-se a ler os títulos. Ao
fim de um momento, levantou os olhos e sorriu.
- Não estejam preocupados, meus filhos. Sentem-se, bebam café. Ajudem-me, ajudem-me a passar o tempo, peço-lhes...
com o seu velho gesto habitual, apertou o pulso de Manuela e olhou para o relógio.
- Se Deus nos auxilia, o sr. Blackeley estará aqui dentro de dez minutos ... e depois ... Que tempo te parece, Eisenlohr?
- Uma hora e meia, se continuares em forma como até agora.
Donca olhou para um e para outro, sentia-se como flutuante e ébria; o seu sorriso era mais profundo, Moveu levemente os ombros.
- Vocês são amáveis em estarem todos aqui. - disse.
Cada um desses homens havia sido seu amante durante algum tempo, nenhum se havia tornado seu inimigo quando se separaram. Estavam ali, ao pé dela, na noite mais difícil da sua difícil existência; acompanhavam-na sem dizerem nada, como bons e leais camaradas. Endireitou-se. Sentia em si uma força considerável. Ela chegaria a tempo. A Pasadena, também tinha chegado a tempo.
Teve um ar trocista e empurrou bruscamente o jornal como uma coisa suja.
- Esta Mara! A nossa amiga Ria Mara arranja uma publicidade enorme graças à doença de Oliver. Ia de preto, tu leste, Eisenlohr? Tocante... Sinto-me comovida. Ela teve a bondade de conceder entrevistas. Olha, olha, esteve com Oliver! Ela viu-o! Ela viu-o, Bill!
Bill Turner teve um movimento de terror, mostrava um ar culpado. A Moresco, trémula de raiva, tinha um rosto mau, uma boca inchada e a voz era mais baixa e mais enrouquecida do que nunca.
- Que faz ela lá ? - gritou - Como se atreveu a ir ter com Oliver? Estúpido animal, canalha, fria calculadora,
ignóbil arranjista. Que faz ela, enquanto Oliver morre? Negócios, sim, negócios. É ela quem faz as honras, esse pedaço de podridão vestido de luto. Que vá para uma casa de cangalheiro como encarregada das recepções, a vossa Ria Mara!
Todos se tinham levantado, aflitos pelo estado de Donca. Dava murros contra o jornal como contra um inimigo, depois os seus gritos transformaram-se em riso. Todos esperavam uma crise de lágrimas, uma cena de histeria.
- Não, Donca, não. - murmurou Eisenlohr agarrando-a por um braço. Era ele ainda quem maior influência tinha sobre ela. Tacus voltou a meter com as mãos culpadas e trémulas os jornais nos bolsos largos do casaco. No seu canto, os actores tinham deixado de jogar aos dados; escutavam sem ousar aproximar-se. Eram pequenos actores, papéis de trinta dólares.
Erbacher, o chefe da secção dos cenaristas, saiu da sombra e, aproximando-se da mesa, fitou os olhos inflamados em Donca Moresco.
- É mais que ciúme. - pensou - É o mais profundo antagonismo, eterna inimizade. É a avarenta em face da pródiga. O gelo em face do fogo. A disciplina em face daquela que não conhece medidas. O artifício em face do natural. Ria Mara em face de Donca Moresco.
De-repente e de imprevisto, Donca acalmou-se. "Turner!" - chamou, completamente rouca. Tirou simplesmente o cigarro da boca de Eisenlohr e aspirou uma fumaça. Era um gesto de selvagem ou de cigana.
- Que vai Ria Mara lá fazer se Oliver morre ? Ela é incapaz seja do que for. - disse numa voz quási cantante à força de desdém.
Todos voltaram para ela os rostos interditos.
- Sim ... - continuou a Moresco, e Erbacher notou, com espanto, que a sua pupila se alongava como a de um felino - sim, ela é incapaz. É ainda pior do que isso. Eu nunca falei, mas sei que ela não pode chorar.
A forma por que a Moresco fez esta afirmação, era estranha.
Explicava isto como um vício, como uma deshonra
profunda e indizível. Em redor da mesa, as cabeças aproximaram-se involuntariamente.
- Não pode chorar, não, não pode ...- contava Madame Moresco em voz baixa e trocista - Preguntem a Granit, ele deve lembrar-se bem. Representámos juntas no Caminho do Inferno, Ria Mara e eu. Era uma distinta atriz de Broadway, literária, compreendes, e de uma cultura espantosa. E Granit acabava justamente de me tirar do music hall. Chegou uma cena em que Ria Mara devia chorar. Não foi capaz, é simples: não foi capaz. E quanto menos podia chorar, mais teimava. Nada de glicerina, não, glicerina não, de maneira nenhuma. Tinha ouvido dizer qualquer piada sobre as lágrimas de glicerina com que choravam as pessoas de cinema. E essas coisas com que hoje sopram nos olhos da gente, eram desconhecidas nesse tempo. Todos tínhamos que esperar que Ria Mara chorasse. Lembras-te, Granit? Tentou-se tudo, tudo. Nada feito. Ela não podia chorar. Era incapaz de fazer o que qualquer "extra" faz por sete dólares. Não tem bastante sensibilidade, bastante imaginação, não é capaz de se concentrar o suficiente para arrancar duas lágrimas. Era horrível ver essa tortura. Incapacidade, incapacidade total, entendem ? Tenho visto muita porcaria na minha vida, mas nunca vi nada tão inconveniente... nada de tão verdadeiramente repugnante. Por fim, Granit perdeu a paciência, não é verdade que perdeste a paciência? Fez um cocktail com cebolas e amoníaco e ferrou com ele no nariz daquela maldita cadela. Então, a grande Ria Mara, verteu algumas lágrimas. Aqui têm como é. Eu nunca falei disto. Tinha vergonha. Parecia-me muito chocante. Assim é que é esse animal incapaz, egoísta e sem pudor. E agora está ao pé de Oliver enquanto eu estou aqui para acabar esta porcaria deste filme. Onde está Blackeley? Esta espera é de endoidecer.
Parou de súbito e fixou os olhos para além das lâmpadas, para a obscuridade do stage. O telefone tocava sob a luz vermelha. Todos voltaram os olhos para esse lado: dir-se-ia que tinham medo de se aproximar. Por fim, foi o dr, Erbacher quem lá foi, saltando por cima das cordas.
- É de New-York.- disse ele, de auscultador na mão, voltado para o grupo que os projectores iluminavam Mac Olehan. Houve ainda agora um falso alarme, ele ainda vive, continua...
- Ainda vive ? - repetiu a Moresco. - Mas então já esteve morto?
Era curioso ver Donca sorrir fazendo esta estúpida pregunta. Blackeley chegava justamente nesse momento, já maquilhado num tom mais pálido.
- Cá estou.- disse ele, com ar ofendido - A brincadeira pode continuar.
Oliver Dent morreu duas horas antes de Donca chegar a New-York. Tinha passado o seu penúltimo dia num estado de euforia, de clarividência, de certeza, de alegria e de leveza, confiante na chegada de Donca. Três vezes ela tinha telefonado, sempre que o avião metia gazolina, e de todas as vezes ele lhe respondera. No último dia beneficiou de uma ausência completa de dores e de consciência ; claro-escuro que, docemente, deslizava para a noite absoluta. O que mais custou a morrer, foram as suas mãos mas, por fim, também elas se resignaram ao silêncio.
Os jornais contaram, detalhadamente, a chegada de Madame Moresco e o seu encontro com Ria Mara. Havia uma multidão em frente da Casa de Saúde. A rua estava juncada de máquinas fotográficas que focavam as pessoas, de câmaras cinematográficas que tiravam fotografias, outros fotógrafos que, por seu lado, fotografavam os operadores de cinema. Madame Moresco chegou num táxi miserável, de forma que, à primeira vista, ninguém adivinhou que ela estava ali. Os repórteres contaram que ela trazia um fato de viagem cinzento e que tinha um ar fatigado. Desde que aterrara no campo da aviação, tivera a idea um pouco estranha de pôr um pouco de rouge, o que nunca fazia quando estava com bom parecer, mas não queria ter um aspecto
que pudesse afligir Oliver. As suas faces estavam ridiculamente pintadas sobre um rosto pálido. Algumas pessoas cumprimentaram-na quando ela passou, outras não. Justamente no momento em que subia os degraus que iam dar à Casa de Saúde, a porta abriu-se e Ria Mara saiu. Aquilo estava perfeitamente arranjado e deu bom resultado. Ria Mara vestia de negro, tinha mesmo um véu e o feitio do seu chapelito apresentava o aspecto dum chapéu de viúva. Trazia na mão umas flores que só podiam ter em vista um fim decorativo. O seu andar era firme e dirigiu-se para as câmaras instaladas por toda a parte. Encostava-se a um senhor cuja atitude cautelosa sublinhava toda a fragilidade dolorosa da mulher. Era Mac Olehan do Publicity Department, que tinha recebido ordem de pôr Ria Mara em evidência pois era ela, no fim de contas, a vedeta das Pedras Miliárias.
No meio dos sete degraus, as duas mulheres encontraram-se; isso foi uma maravilha para os fotógrafos. Ria Mara esboçou um movimento para apertar nos braços Donca Moresco, mas esta passou hirta diante dela e entrou. Teria querido cuspir, mas conteve-se em atenção ao público.
com um gesto de dor, saudou a multidão que a esperava. Ria Mara, com ousadia, acabou o movimento que ela tinha começado. "Morreu!" disse com um sinalzinho de mão. Era uma artista consumada.
Logo que o grande momento passou, do táxi saiu ainda uma figura selvagem, de chapéu e luvas: Manuela, que pagou ao motorista e seguiu a sua ama levando nos braços Coco, a almofada consoladora e na mão a maleta Amélia.
A aparição de Ria Mara justamente naquele momento, na escada, fora tão bem combinada e tão significativa que Madame Moresco compreendeu logo que tinha chegado tarde. Até então, não pudera acreditar que isso fosse possível. Mas desta vez as coisas não tinham corrido tão bem como em Pasadena, Oliver esperara-a, ela é que faltara.
No vestíbulo, Jerry caiu contra o seu peito, pesado como um saco, e cheio de lágrimas. Não disse nada,
Ela também não. De resto, que podiam eles dizer? Ela acariciou somente os cabelos de Jerry, como os de uma criança, e afastou-se.
- Quere vê-lo? - preguntou a irmã, que esperava.
- Quero, se faz favor.
As portas eram todas idênticas, mas diante da 168 estava o negro Dan. Vestia correctamente de criado e parecia menos preto que de costume. Era a sua forma de empalidecer. Havia dignidade na sua atitude, no entanto, sorriu. Mesmo nesse dia, não podia fazer outra coisa.
- Posso ficar só? - preguntou Donca, quando a irmã abriu a porta. A irmã encolheu os ombros num ar ligeiramente vexado e ficou no corredor.
As janelas do quarto estavam abertas; as cortinas agitavam se com a corrente de ar e caíam à medida que a porta se abria e fechava. O calor entrava, com o murmúrio abafado da cidade e o barulho de um automóvel que se punha em marcha. Donca não encontrou imediatamente a cama. Na sua imaginação ela tinha-a sempre visto à direita, com a cabeceira voltada para a janela. Agora descobriu-a encostada à parede esquerda, num pequeno nicho destinado a recebê-la. Donca aproximou-se em bicos de pés.
Era muito belo o que ali estava: uma estátua séria, um pouco severa, de uma substância amarela por transparência, mais delicada que o mármore e mais nobre que o alabastro. Uma doce barba à Cristo cobria-lhe a boca e o queixo. Tinha sobre a almofada algumas flores brancas. Mas nada de Oliver estava ali. Nada, absolutamente nada. Madame Moresco olhou esta estátua estranha. O próprio amor já lá não estava. Só então compreendeu a que ponto o ente que ela mais tinha amado, desaparecera deste mundo. Antes de abrir aquela porta, tinha esperado qualquer coisa: fundir-se num rio de lágrimas que a aliviassem, cair sobre o corpo do defunto, sacudir os seus ombros frios, aquecer com o próprio hálito aquele coração frio, qualquer grande cena que a aliviasse. Mas nada. Era impossível, aqui. Talvez só se fizessem essas coisas nos filmes.
Teve um pensamento curioso: "Eisenlohr tem razão;
a realidade é menos ruidosa. Nós representamos muito. Depois, murmurou: "Adeus, Oliver." Mas também isto era teatro.
Quando, a recuar, ela desviou os olhos do cadáver, viu Tobias deitado na sombra, perto da cama - o cão Tobias. Jazia imóvel, de lado, com o dorso um pouco curvado, os flancos contraídos, as patas estendidas para a frente. O seu pêlo, que tinha sido sempre mais sedoso e delicado do que competia à sua raça, estava agora tão desbotado e tão emmaranhado, que ela não o reconheceu logo. Parecia-lhe inconveniente chamá-lo. Deu um passo para ele. Tobias olhou a com os seus olhos estranhos. Emquanto ela ali estava, hesitante, uma mosca veio traçar círculos sussurrantes por cima de Tobias, depois poisou num dos olhos abertos e negros, onde, absolutamente à vontade, se pôs a lavar as patas. Donca apressou-se a sair. Caminhava recuando, para fechar, sem barulho, mas a maçaneta escapou-lhe e a porta fechou-se com estrondo.
O dr. Ploughfield, radiologista da Casa de Saúde de Dworsky, aquele que tinha examinado o estômago de Oliver Dent e verificado que ele sofria de uma linite plástica como tinha diagnosticado o professor, pediu para fazer autópsia ao corpo do cãozinho. Concluiu que a morte tinha sido causada por ter rebentado uma artéria cardíaca. Publicou mesmo sobre esse caso e outros semelhantes, um pequeno artigo popular intitulado: "Pode morrer-se com o coração despedaçado?"
Quanto à Noite do Destino, foi um negócio medíocre. O público achou a acção fraca, a mise-en-cène de Eisenlohr excelente, e a representação da Moresco bastante má.
Donca continua a fazer cinema, mas já não é uma vedeta.
Vicki Baum
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