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A VIDENTE DE SEVENWATERS / Juliet Marillier
A VIDENTE DE SEVENWATERS / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Sibeal sempre soube que estava destinada a uma vida espiritual e entregou-se de corpo e alma à sua vocação. Antes de cumprir os últimos votos para se tornar uma druidesa, Ciarán, o seu mestre, envia-a numa viagem de recreio à ilha de Inis Eala, para passar o Verão com as irmãs, Muirrin e Clodagh. Sibeal ainda mal chegou a Inis Eala, quando uma insólita tempestade rebenta no mar, afundando um barco nórdico mesmo diante dos seus olhos. Apesar dos esforços, apenas dois sobreviventes são recolhidos da água. O dom da Visão conduz Sibeal ao terceiro náufrago, um homem a quem dá o nome de Ardal e cuja vida se sustém por um fio. Enquanto Ardal trava a sua dura batalha com a morte, um laço capaz de desafiar todas as convenções forma-se entre Sibeal e o jovem desconhecido. A comunidade da ilha suspeita que algo de errado se passa com os três náufragos. A bela Svala é muda e perturbada. O vigoroso guerreiro Knut parece ter vergonha da sua enlutada mulher. E Ardal tem um segredo de que não consegue lembrar-se - ou prefere não contar. Quando a incrível verdade vem à superfície, Sibeal vê-se envolvida numa perigosa demanda. O desafio será uma viagem às profundezas do saber druídico, mas, também, aos abismos insondáveis do crescimento e da paixão. No fim, Sibeal terá de escolher - e essa escolha mudará a sua vida para sempre.

 


 


Remai! Por todos os deuses, remai!
Puxo o remo, cada músculo mais retesado do que o outro. Suores frios arrepiam-me a pele. Cega-me a espuma salgada. Ou será que choro? A morte cerca-nos. Vamos desaparecer no mar gelado, longe de casa. Remai! Remai! Remamos com as nossas entranhas, com os nossos corações, com o que resta das nossas forças. Nós dezassete, nós sobreviventes, exaustos, em desalento - como prevalecer sobre mares como estes? O Freyja estremece por instantes, num impasse entre músculo e vaga, e mergulha de costados, direito aos rochedos. As ondas agarram o barco, içam-no e, num súbito ímpeto que deflagra, atiram-no contra o recife que se ergue ao fundo.
Uma lança de rocha denteada rasga-nos a proa. Voam lascas. O carvalho maciço estilhaça-se como um toro de madeira à mercê do seu machado. Fragmentos chovem sobre o convés, efémero padrão de augúrio, sumindo-se quase sem me dar tempo de ler os sinais: Eolh: protecção; Eoh: conforto; Nyd: coragem na presença da morte. O mar inunda o barco, levando num sopro os caracteres rúnicos. Gritos enchem o ar; remos abandonados partem em todas as direcções. Atingido numa têmpora, um homem cai. Outro jaz, inanimado, sobre o banco, uma mancha vermelha alastrando-se pela túnica. Outros ainda percorrem o convés aos tropeções, empurrando, gritando. Sinto o coração, que troveja. Tento pôr-me de pé. O ponto de apoio é arriscado: o convés oscilante inclina-se como o telhado de uma igreja. O recife rasga o Freyja como a faca de um caçador a carcaça do veado.
- Felix! A corda, rápido!
Paul, deuses, Paul com os pés ainda amarrados... Dirijo-me a cambalear ao lugar onde ele se encontra, metade do corpo sobre o banco, a outrametade fora, agarrado a um remo partido. A corda à volta dos seus calcanhares prendeu-se na superfície irregular de uma lasca de madeira. Uma vaga passa por mim, encharcando-me até ao peito e submergindo-o a ele. A água recua. Paul tosse e arqueja, sorvendo o ar. Os costados do Freyja gemem, rangem, partem-se. São os estertores da morte. Homens afundam-se, aos gritos, no abismo de água. Não há para onde subir. Não há abrigo possível. Nenhuma superfície larga, plana ou alta o suficiente para nela se apoiar um único homem que seja, à espera de socorro. Não está longe a terra firme; há espirais de fumo no céu. Mas esta tempestade vai afogar-nos antes que alguém tenha tempo de vir.
- Aqui.
Baixo-me, procurando a corda às apalpadelas. Está submersa, os nós terrivelmente cerrados, as pontas bem presas à madeira partida. Sou lento demais. Uma faca, preciso de uma faca... Vejo um homem morto, o cadáver desliza de um lado para o outro no intervalo estreito entre os bancos. Arranco-lhe a arma presa ao cinto: deuses, dai-me tempo, deixai-nos viver a ambos.
Ouço a voz de Paul atrás de mim:
- Salva-te, Felix.
Ao virar-me para ele, sou engolido por uma vaga monstruosa. A água entra-me pelo nariz, os ouvidos, a boca. A sua canção turbulenta afoga o mundo inteiro. Mãos de ferro fecham-se em torno do meu peito. O mar leva-me para longe.
Capítulo 1
SIBEAL
Eu tinha chegado a Inis Eala apenas há um dia quando um barco naufragou no recife norte da ilha. Estava na falésia e afastava-me, de cesto no braço, para ir colher algas marinhas, quando ouvi os homens a gritar lá em baixo, perto da povoação. Assim que olhei para o mar, o barco embateu nos rochedos.
- Que Manannán seja misericordioso - murmurei, com um nó de pânico no ventre. As ondas eram monstruosas à volta daquele recife. Como se uma pérfida mão revolvesse a água, subindo até à margem para levar algum pobre louco que se abeirasse do abismo. Estava vento nesse dia - eu tivera o cuidado de afastar-me da boca da falésia, porque dali se caía de muito alto mas em terra, na ilha, não havia tempestade. Um estranho revés do tempo agitara as águas naquele preciso lugar. Transportaria aquele barco alguém que tinha provocado a ira dos deuses?
Parei, imóvel, ao vê-lo colidir, torcer-se e partir-se em bocados. Homens eram lançados ao mar como bonecos de trapos. Quando os gritos da povoação se converteram numa metódica sequência de ordens, seguida de uma disciplinada coreografia de movimentos - a corrida dos homens ao ancoradouro, a largada de uma flotilha de pequenos botes em socorro dos náufragos, a súbita azáfama das mulheres entre a enfermaria e a cozinha consegui sair do meu torpor e, descendo a colina, regressei. Havia muita gente capaz em Inis Eala, mas, em alturas como esta, dava sempre jeito mais um par de mãos.
Encontrei a enfermaria mergulhada num frenesi silencioso: mulheres pondo lençóis em enxergas, varrendo o chão de pedra, desimpedindo o espaço. A minha irmã mais velha, Muirrin, instalara-se na bancada de trabalho a preparar cataplasmas, e uma jovem ajudante verificava a reserva de ligaduras. Um tacho fumegava ao lume; o aroma a ervas medicinais enchia o ar.
- Que posso fazer? - perguntei.
- Por aqui, nada, enquanto não começarem a trazer os sobreviventes - respondeu Muirrin. O seu cabelo preto fora esticado e envolto numa imaculada touca de pano; um avental largo, fiado em casa, protegia-lhe o vestido. Era o retrato da calma ordenada.
- Onde está Evan? - perguntei-lhe, não vendo, entre os ajudantes, a silhueta alta e escura do seu marido.
- Saiu num dos barcos. É útil ter um curandeiro experiente no local, assim que recolherem os sobreviventes.
Parecera-me um barco imponente, com muitos remos. Nórdico, pensei. Desses que exigem uma tripulação numerosa. Os botes da ilha só tinham capacidade para levar alguns passageiros. O transporte dos sobreviventes para a povoação talvez demorasse algum tempo.
Dirigi-me à cozinha, onde a minha irmã Clodagh estava a ajudar Biddy, cozinheira e matriarca da comunidade da ilha, a preparar a comida. Um enorme caldeirão fervilhava sobre uma trempe de ferro. Biddy atarefava-se em torno de um grande pedaço de massa, as mãos batendo e socando com uma violência que sugeria que os seus pensamentos, tal como os meus, acudiam às pobres almas perdidas no mar. Clodagh estivera a cortar legumes, mas pousara a faca e contemplava agora o intervalo entre as portadas abertas. A brisa apanhava-lhe mechas do cabelo cor de fogo, lançando-as em torvelinho em torno do rosto. Uma mão descansava sobre a barriga protuberante. O seu bebé, e de Cathal, nasceria dali a dois ciclos lunares.
- Posso ajudar? - perguntei a Biddy.
- Podias falar com a tua irmã - volveu, olhando de relance na direcção de Clodagh.
Aproximei-me da janela.
- Clodagh? Sentes-te bem?
Segui-lhe o olhar. A vista daquela janela mostrava o trilho até ao ancoradouro. Na água, os pequenos botes iam avançando com firmeza na direcção do recife. O barco atingido parecia quase submerso. Julguei avistar 20 pontos na água, homens a nadar ou a flutuar, mas a rebentação das ondas em torno daquelas rochas impedia-me de ter a certeza.
Os meus sonhos não me tinham mostrado isto. Chegara cansada da viagem e, na noite anterior, dormira profundamente. Agora, lamentava não ter resistido ao sono e consultado a minha bacia de vidente. Por outro lado, mesmo que me tivessem concedido uma visão da tempestade, do naufrágio, que poderia eu ter feito para impedi-lo? Uma vidente não era uma deusa, apenas uma infeliz mortal, com os olhos mais abertos do que os demais. Demasiado abertos, por vezes. Mesmo ali, ao lado da minha irmã, uma cacofonia de vozes enchia-me o pensamento: gente a gritar, a berrar, rogando aos deuses por socorro, chamando a plenos pulmões, como faria uma criança perdida. Acontecia, por vezes, o meu dom de vidente extravasar-se, num desgoverno, quando os pensamentos e sentimentos alheios me tomavam de assalto. Esta fora uma das razões por que Ciarán, o meu mestre, me enviara para ali - Inis Eala.
- Cathal está ali em baixo, no cais - disse Clodagh. - Sei muito bem o que lhe vai na alma. Uma tempestade insólita, um barco naufragado tão perto da nossa costa... Acha que é o pai dele a agitar as coisas, a tentar atraí-lo para fora da ilha.
Dali, eu conseguia ver o vulto negro de Cathal, o seu manto fustigado pelo vento, os olhos fixos na flotilha que atravessava a baía. Não podia ir com os outros; todos o compreendiam. Inis Eala era protegida por uma força poderosa, uma coisa boa e antiga que abrigava a ilha inteira no seu abraço defensor. Ali, Cathal estava a salvo das garras do seu pai, um traiçoeiro príncipe do Outro Mundo.
- Que poderia ele ter feito que Johnny e os outros não possam fazer? - perguntei, ignorando o clamor de vozes na minha mente.
- Podia ter acalmado as águas, Sibeal. Talvez. Mas não lhe é sequer permitido tentar. Se executasse tal proeza fora dos limites da ilha, o pai não tardaria a descobrir. Aquela criatura tem espiões por toda a parte. É difícil, para Cathal, estar ali a ver homens a afogarem-se à sua frente, sabendo que podia salvar alguns não fora a necessidade de proteger-me, a mim e à criança.
- Não te culpes - repliquei, pousando o braço à volta dos ombros da minha irmã. - Vocês vieram para aqui para garantir a tua segurança, e tu estás em segurança. Pergunta-lhe; tenho a certeza de que Cathal te dirá que isso é mais importante para ele do que qualquer outra coisa. Aliás, a tempestade parece ter amainado: as águas estão muito mais calmas. E, repara, estão a recolher alguém.
Os rochedos pontiagudos erguiam-se do mar como fiadas de presas de algum arcaico monstro marinho. A volta deles, as ondas tinham-se quebrado e o feroz temporal esmorecera, transformando-se numa brisa forte. Dois homens debruçavam-se, agora, sobre a amurada do barco de Johnny, para puxar alguém para dentro. Os outros botes tinham-se dispersado, de maneira a cobrir a zona em redor do recife.
- Que os deuses sejam louvados - disse Clodagh, em voz baixa. Endireitando os ombros, virou-se e dirigiu-se ao forno num passo enérgico.
- Biddy, vou fazer mais uma fornada de pão.
Eu queria ajudar, mas as vozes saturavam-me o pensamento. Se ficasse ali, corria o risco de cair desmaiada no chão e dar ainda mais trabalho àquelas mulheres, já tão atarefadas. Pedindo desculpa, saí para a horta, que crescia entre a cozinha e a enfermaria, protegida dos ventos persistentes por um muro de pedra sobre pedra. Ali, sentei-me, de costas viradas para as pedras, e pousei a cabeça nos joelhos. Sentia o corpo tenso de terror, o medo tóxico dos homens no extremo limite. Lutei para recuperar o fôlego. A visão turvou-se. A minha cabeça parecia prestes a rebentar. Murmurei uma oração, esforçando-me por recuperar o controlo.
- Danu, guarda-nos na tua mão. Que Manannán seja misericordioso.
Respirei devagar, repetindo as palavras uma e outra vez, para me acalmar.
Os aromas doces da nêveda e do tomilho impregnavam o ar. As pedras nas minhas costas retinham o calor do Sol, ancorando-me ao aqui e agora. Lá no alto, gaivotas chamavam. Mais à mão, a cadela da ilha, Fang, saiu de uma esquina onde estivera a escavar um buraco e aproximou-se de mim, rebolando até ficar de barriga para cima, a pedir atenção. Estiquei o braço para lhe fazer uma festa, contente por ela estar de bom humor. A minúscula criatura não ganhara o seu nome feroz por mero acaso. Esperei, fazendo com os dedos movimentos lentos e regulares na barriga quente do animal. As vozes zurziam, ainda. Talvez só se calassem quando todos estivessem mortos.
Passou algum tempo até os gritos esmorecerem o suficiente para eu conseguir voltar a mexer-me. Espreguiçando-me, pus-me de pé. A cadelinha escapou-se para investigar algo num arbusto de consolda. Para lá dos muros da horta, a povoação parecia quase deserta, mas ouviam-se vozes no salão comum, adjacente à cozinha. Não estava ninguém ao pé da enfermaria, embora a porta estivesse aberta. Nenhuma actividade no recinto de treinos, onde a principal missão de Inis Eala - a instrução de guerreiros - era levada a cabo. Deviam estar todos ocupados dentro de casa, ou fora, nos botes salva-vidas. Mas a pequena embarcação já devia estar de volta. Na minha mente, uma última voz chamou - Mãe, ajuda-me! - e calou-se.
Na baía abrigada de Inis Eala, existia um comprido pontão de madeira e uma velha cabana onde, noutros tempos, vivera um pescador. Subi até aocimo da íngreme encosta e olhei para baixo: muitos tinham-se reunido na praia, em pequenos grupos silenciosos. Entre eles, encontravam-se Clodagh e Cathal, ele com o braço à volta dos ombros da mulher, ela abraçada à cintura dele. Não desci, mas instalei-me numa rocha lisa à beira do caminho e esperei.
O barco de Johnny já virara na direcção de casa. Os outros passavam, uma e outra vez, em torno dos rochedos. Alguns destroços de madeira flutuavam na ondulação, mas o barco tinha desaparecido.
- Que Danu vos guarde na sua mão e vos traga a salvo para terra firme - murmurei. - E, se tiver chegado a vossa hora, que Morrigan vos guie até ao outro lado. Que a luz ilumine os vossos passos; que possam seguir caminho, sem medo.
Algum tempo depois, Fang regressou de mansinho para junto de mim e instalou-se, de nariz sobre as patas, concentrada na sua própria vigília. Não era permitida a entrada de cães em Inis Eala. Para aquele invulgar animal, abrira-se uma excepção. Rezava a história que ela fora trazida, no regresso de uma missão, pelo temível Snake: um homem que esperaríamos ver acompanhado de um feroz cão-lobo, ou de um entroncado cão de luta, tudo menos aquela minúscula e temperamental bola de pêlo branco. Eu ainda tinha esperança, antes de a minha visita à ilha chegar ao fim, de ouvir a história completa de como isso acontecera.
- És uma rapariga cheia de sorte, Fang - murmurei, coçando-a atrás das orelhas. Um rugido subterrâneo ressoou no pequeno corpo, e retirei a mão. Os estados de espírito de Fang eram lendários, tão volúveis como o tempo na Primavera. - A julgar pelo som, parece que caíste de pé.
Snake partira em viagem, com um grupo de quinze homens, numa missão para um chefe de clã do Sul. Tinham levado o maior barco de Inis Eala, o que tornara a operação de resgate mais lenta do que poderia ter sido. O bote de Johnny já vinha a meio caminho da costa. Iam quatro homens a remar, incluindo o meu primo, e Evan na popa, com o braço a amparar um homem envolto num manto espesso. Apenas um. E, agora, via-se mais um barco da ilha a virar na direcção de casa. A tripulação içara uma vela rudimentar. Eu não conseguia ver se trazia sobreviventes. Os outros mantinham o seu curso, à procura.
Abrandei a respiração, acalmando os meus rebeldes pensamentos. Tentei abstrair-me daquelas vozes angustiadas. Disse a mim mesma que a missão de socorro se pusera a caminho muito depressa, que a tripulação de um barco como aquele seria composta por homens capazes e em boa forma física, que muitos seriam salvos. Mais pessoas acorriam agora à praia, levando macas, cobertores. O barco de Johnny aproximou-se do pontão. Ele lançou uma corda a Cathal, que amarrou o barco. O homem embrulhado no manto foi ajudado a trepar para o cais. Recusou a maca e começou a subir a ladeira, com Evan de um lado e Cathal do outro. O sobrevivente tinha um ar robusto e altura mediana, uma constituição sólida e um cabelo que seria louro quando secasse. Estava muito pálido e, apesar da coragem que o levara a tentar subir o caminho a pé, era evidente a sua exaustão.
Quando já estavam quase a chegar ao cimo do carreiro, o segundo barco entrou no ancoradouro. O homem de cabelos claros virou a cabeça nessa direcção e, em violento sobressalto, desatou aos berros. Parecia querer lançar-se pelo caminho abaixo, mas a força combinada de Evan e Cathal conseguiu detê-lo.
Naquele barco, havia mais um sobrevivente, e era uma mulher. Parecia encontrar-se em profundo estado de choque, com os olhos arregalados, o rosto azul-violeta, por causa do frio e do cansaço. Quando a ajudaram a sair do barco e a subir para o pontão, os seus joelhos fraquejaram e ela caiu no chão de madeira. Uma mulher num barco nórdico. Portanto, talvez não se tivesse tratado de uma viagem de ataque e rapina, mas sim de comércio e busca de um lugar para viver. Haveria outras mulheres lá fora, no mar gelado? Crianças pequenas, a afogar-se? Aquela dir-se-ia que contemplara o Inferno.
Clodagh ajudou-a a subir. A sobrevivente era muito mais alta do que a minha irmã; igual, em altura, à maior parte dos homens que se encontrava lá em baixo. Uma manta ocultava quase toda a sua silhueta. Por momentos, olhou directamente para o cimo da colina, para o meu poiso entre as rochas, e uma dor súbita e aguda atravessou-me como uma faca espetada no coração. Enquanto eu arquejava, aturdida, a mulher desviou o olhar e a dor desapareceu.
O homem de cabelos louros recusou-se a dar mais um passo enquanto não a trouxessem até ao cimo da ladeira. Quando ela o alcançou, ele pegou-lhe nas mãos e beijou-a nas duas faces. A mulher permaneceu rígida, atravessando-o com um olhar vazio. Ocorreu-me que ela não devia sequer saber onde estava.
Os dois sobreviventes foram levados para cima, mas eu não saí do mesmo sítio. Aquela dor lancinante perturbara-me, e o meu coração levou algum tempo a bater a um ritmo normal. Mesmo então, fiquei onde estava. Pareceu-me importante não abandonar o meu posto de vigia até o último bote regressar a casa. Fang deitou-se aos meus pés, e o seu pequeno volume de calor tranquilizou-me. Rezei.
- Que Danu vos embale com brandura nos seus braços... Que Morrigan vos conduza pelo portal... Durmam, meus queridos, durmam docemente...
Tinha esperança de me ter enganado a respeito das crianças. Que vira aquela mulher para o seu rosto se transformar em pedra?
Quando o último barco se amarrou ao cais, Johnny veio à minha procura. As buscas estavam concluídas. As macas tinham sido usadas para transportar sete homens mortos pela encosta acima, até solo plano. Duas formas sem vida jaziam ainda nesse último bote.
- Sibeal - disse o meu primo, sentando-se nas rochas ao meu lado. - Ainda de vigia?
Ao ouvir a voz dele, Fang rebolou de repente até ficar de barriga para cima. Johnny coçou-lhe o ventre, distraído. Parecia sombrio, o seu rosto tatuado.
- Apenas onze, incluindo a mulher - comentei. - Devem ter sido muitos mais para tripular um barco daquele tamanho. Tantos perdidos... Irão as correntes devolvê-los a esta costa, Johnny? Ou flutuarão com as algas e os peixes, até não restar nada deles?
- É possível que as ondas tragam alguns corpos até aqui. Vigiaremos os lugares mais prováveis. Sibeal, temos de fazer alguma espécie de rito fúnebre. Os dois que salvámos ainda estão demasiado aturdidos para dizer seja o que for, mas tenho esperança de que o homem, que se chama Knut, consiga falar connosco mais logo. Alguns de nós sabem o suficiente de nórdico para estabelecer um diálogo, e este indivíduo conhece uma palavra ou duas de irlandês.
- E a mulher?
- Chama-se Svala. É a mulher de Knut, se o percebi bem. Está em profundo estado de choque. Ainda não a ouvi dizer uma única palavra. Parece que os deuses olharam por eles os dois. Imagino que um barco como este exigisse uma tripulação de quarenta ou mais. Desapareceram tão depressa...
- Clodagh suspeita que Mac Dara teve mão nisto.
- Talvez. - Johnny não quis comprometer-se.
- Um guerreiro nórdico é sepultado num barco. Ou numa sepultura em forma de barco. Posso dirigir um ritual para eles, uma cerimónia simples. Talvez Knut e Svala queiram acrescentar as orações do seu povo. Quando pensas realizá-lo?
Johnny era um chefe. Embora jovem, dirigia a comunidade de Inis Eala e a sua escola de guerra. Tinha um talento natural para decifrar as pessoas.
- Algo te perturba, Sibeal - dizia-me, agora. - Algo para além daquilo a que assististe aqui hoje.
- Eu estou bem. - Não me atreveria a confessar a Johnny que uma pequena parte de mim continuava incomodada com a insistência de Ciarán para eu passar o Verão em Inis Eala, com as minhas irmãs, antes de cumprir o meu juramento final como druidesa. Que essa preocupação pessoal ainda tivesse lugar no meu espírito perante a tragédia que ocorrera naquele dia era um egoísmo. - Estarei pronta para ajudar assim que decidires onde e quando devo conduzir o ritual. Não esperava ter de cumprir tão depressa os meus deveres druídicos. São todos homens, os afogados que trouxeste?
Johnny aquiesceu.
- Tal como seria de esperar num barco daqueles. É muito invulgar que Svala se encontre no meio deles. Se era uma viagem de povoamento, devia haver mais mulheres.
- Talvez tenham sido as primeiras a afogarem-se.
- A seu tempo, saberemos. Por enquanto, não quero sobrecarregar os sobreviventes com perguntas. Vem. - Levantou-se e estendeu-me a mão.
- Precisas de comida, de calor e de companhia. Tenho ordens para me assegurar de que cuidam bem de ti enquanto estiveres aqui connosco.
Apoiei-me no braço de Johnny e caminhámos juntos até ao salão.
- Ordens de quem? - perguntei.
- De Ciarán. Não sentiste curiosidade em saber qual era o conteúdo da missiva que ele te deu para me entregares a mim?
Fiz uma careta.
- Pensei que se tratava de algo complicado e estratégico, não de instruções a respeito da minha dieta e horas de sono.
O meu primo sorriu.
- Na verdade, havia um pouco de ambas as coisas. Parece-me que ele vem aqui buscar-te pessoalmente, no fim do Verão.
Um Verão inteiro. Por que razão teria Ciarán julgado necessário enviar-me para fora durante tanto tempo? Eu já estava pronta para fazer o meu juramento; aliás, já o estava há algum tempo. É certo que, por vezes, os pensamentos e sentimentos dos outros me invadiam e inundavam, como se eu fosse um receptáculo de tudo aquilo que os seus próprios seres não eram capazes de conter. Mas, nos nemetons, como druida, eu podia procurar uma forma de controlá-lo. Podia aprender a transformar num dom aquilo que ainda era um fardo. Ali, em Inis Eala, a única coisa que eu estaria a fazer durante o Verão era esperar. Esperar até chegar a altura de regressar a Sevenwaters; esperar até chegar a altura de cumprir, por fim, a minha vocação. Desde os seis anos que eu sabia que a vida do espírito era o meu destino. Soubera-o desde a primeira vez que a Senhora da Floresta aparecera diante de mim: uma figura majestosa, envolta num manto azul, manifestando-se sem ser solicitada, à beira de um lago imóvel, ao abrigo dos carvalhos. Ela reconhecera-me como vidente; oferecera-me o seu solene conselho. Que pensaria Ciarán que eu iria fazer ali, em Inis Eala? Apaixonar-me por um jovem guerreiro musculoso e permitir que a minha vida se desviasse do curso há tanto desejado? Nunca deixaria que tal acontecesse.
- Sibeal?
Acordei do meu devaneio.
- Sim, Ciarán está a planear vir até aqui e acompanhar-me até casa. Ele quer conversar com Cathal.
- Hum. De qualquer modo, fico feliz por estares aqui. Não apenas porque esta parte afastada da família gosta de estar contigo, mas também porque a ilha carece de um druida ou de uma mulher sábia. Lamento ter de pedir-te que executes um ritual tão cedo após a tua chegada, mas as pessoas ficarão satisfeitas por vê-lo realizado com a autoridade que só um druida pode fornecer. Aqueles desgraçados conheceram uma morte violenta. Temos de pô-los em sossego o melhor que soubermos.
- Ainda não sou uma druidesa de pleno direito - retorqui. - Mas farei o meu melhor.
Havia pessoas no salão, não a rir e a conversar como era hábito durante as refeições, mas sentadas num silêncio derrotado. As malgas de sopa e os pedaços de pão acabado de fazer, que teriam dado para alimentar um pequeno exército de sobreviventes, eram um mudo testemunho das vidas que se tinham perdido. Johnny falou a um ou dois ali presentes, sobretudo membros seniores da comunidade da ilha, que já viviam em Inis Eala desde o tempo do seu pai. Depois, veio dizer-me que o rito funerário teria lugar no dia seguinte, ao anoitecer, se eu estivesse de acordo. Seria preciso algum tempo para escolher um lugar apropriado, escavar o solo duro da ilha e dispor as pedras, grosso modo, em forma de barco.
- É muito tempo de espera para os mortos que ali jazem - repliquei.
- Eu devia dizer algumas preces, junto deles, quando forem amortalhados.
- Obrigado, Sibeal. Seria um gesto bem-vindo. Os corpos foram levados para o telheiro onde se remendam as redes.
- Primeiro, gostava de falar com os sobreviventes. Tenho esperança de que Knut me diga quais são os nomes dos mortos. Devem ser ditos em voz alta, se não agora, amanhã, sem falta, como parte do ritual. Onde estão Knut e Svala? Na enfermaria?
- Ainda lá devem estar, sim. Os nossos curandeiros estão a examiná-los, à procura de ferimentos. Encontrarás Jouko ao pé deles; está a servir de tradutor para Muirrin e Evan. Sibeal, tem cuidado com Knut. Parece calmo e composto, mas aqueles homens eram seus colegas de tripulação, talvez amigos. Vai custar-lhe enfrentar os seus rostos de afogados. Ele fala muito pouco irlandês. Jouko ajudar-te-á.
Durante a minha estada na ilha, eu ficara a dormir na enfermaria. Não havia muita privacidade em Inis Eala, onde as mulheres solteiras dormiam numa zona comum e os homens solteiros noutra, existindo para os casais um edifício compartimentado. Apenas os casais com filhos tinham direito a casa própria. Tendo em atenção o meu estatuto de druida e a minha necessidade pessoal de silêncio, fora-me atribuído um quarto individual: um espaço exíguo, situado numa ponta do edifício, onde costumavam ficar os doentes que, por uma razão ou outra, tinham de ser isolados. Quando entrara ali pela primeira vez, tinha sentido a tristeza que habitava aquelas paredes, e a bondade. O espaço encontrava-se separado da enfermaria em si por uma cortina de serapilheira e tinha a sua porta para o exterior, por onde se podia entrar e sair - para ir às latrinas, por exemplo - sem atravessar a sala principal. Na noite anterior, antes de dormir, desenhara nas paredes, a carvão, runas protectoras. Pelos vistos, escolhera-as bem, uma vez que nenhum pesadelo perturbara o meu descanso. A minha túnica de druidesa estava pendurada num gancho na parede do quarto. Teria de mudar de roupa antes de dizer as preces pelos defuntos.
Ao entrar na enfermaria, parei, perscrutando o interior. Tinha esbarrado num silêncio tão saturado de inquietude que me fazia um formigueiro na pele. Svala estava encostada à parede do fundo, ainda com as roupas molhadas, uma camisa, um par de calças de homem. O cabelo, comprido, caía-lhe sobre os ombros até aos joelhos. Tinha os olhos fixos em Muirrin, que estava a três passos de distância, com um pano na mão. Todos os músculos daquela mulher pareciam tensos; o meu corpo pressentiu o seu desejo urgente de fugir. Antes de eu ter tempo de articular uma palavra, Muirrin deu um passo em direcção à mulher nórdica. Do corpo de Svala, libertou-se um som que me pôs os pêlos da nuca em pé: um ruído rosnado, do fundo da garganta, como se ela fosse lançar-se sobre a minha irmã para rasgar e morder. Muirrin recuou, empalidecendo.
Pigarreei, sem saber muito bem se alguma delas me vira entrar. O olhar de Svala caiu num ápice sobre mim, e a minha cabeça começou a latejar. Que Danu me ajude, o que era aquilo?
- Sibeal! - Era inegável o alívio na voz de Muirrin. - Eu estava apenas... - A minha irmã aproximou-se e levou-me para um canto, falando-me em segredo. - Nem sequer consigo convencê-la a tirar as roupas molhadas. É como se quisesse atacar-me. Está gelada e em estado de choque; tenho de aquecê-la. Não me deixa sequer aproximar-me.
- Julguei que Evan e Jouko estavam aqui. E Knut. - À excepção das duas mulheres, o lugar estava deserto.
- Mandei-os sair, para o jardim, para Svala poder lavar-se e mudar de roupa. Trouxe algumas coisas de Biddy para ela vestir. Conseguimos que Knut lho explicasse antes de os homens saírem. Pensei que, quando ficasse sozinha comigo, talvez... - Baixou ainda mais a voz. - Aconteceu uma coisa pavorosa, Sibeal. O filho deles, de Knut e de Svala, com apenas quatro anos de idade... Ia com eles, no barco. Knut contou-nos. Ela deve ter perdido a cabeça de desgosto. Ainda não disse uma palavra. Sibeal, tentas falar com ela?
Sem me virar na sua direcção, eu sabia que Svala me olhava fixamente. Senti o poder daquele olhar; senti a sua tristeza, da mesma forma que tinha sentido o terror daquela gente a afogar-se na baía. Uma criança, da mesma idade que o meu irmão Finbar. Só de pensar nisso, doía-me o peito.
- Não sei falar nórdico - repliquei, ciente de que era algo que eu teria de tentar. Uma missão para um druida.
- Fá-lo-ás de certeza melhor do que eu - insistiu Muirrin. - Pelo menos, ela está a olhar para ti como se te visse, de facto.
Aproximei-me de Svala. Era muito mais alta do que eu, com o tipo de figura que atraía o olhar dos homens e provocava o ciúme das mulheres. Tinha um rosto forte, maçãs do rosto salientes, nariz orgulhoso, lábios bem desenhados e carnudos. O cabelo estava a secar com o calor da lareira da enfermaria; o seu tom natural seria um dourado cor de sol. Os olhos eram cinzentos como o mar no Inverno. Havia, nesse preciso momento, uma estranha ausência nas harmoniosas feições. Quem sabe se, ao reclamar-lhe o filho, o naufrágio não levara também uma parte vital do seu ser? Svala vigiou-me todos os passos enquanto eu me aproximava. Era inquietante o turbilhão de emoções que dela emanava: desgosto, perda, fúria, confusão. Lutei por contê-las a todas. Respirei segundo um padrão já muito praticado, acalmando-me.
- Está ferida? - perguntei a Muirrin.
- Ela não me deixa observá-la. Não existem sinais óbvios de ferimentos físicos. Neste momento, se conseguíssemos tirar-lhe as roupas molhadas e metê-la dentro destas que estão secas, eu já me dava por satisfeita.
Parei a três passos de Svala, sem desviar o meu olhar do seu. Deuses, que dor de cabeça!
- Svala - disse-lhe, em voz baixa -, sou uma druidesa, uma mulher sábia. - Inclinei a cabeça, indicando respeito e saudações. Depois, estiquei os braços para os lados, com as palmas para cima, e fechei os olhos, tentando sugerir sacerdotisa ou aquela que reza. - Lamento a tua perda. Mas, agora... Deves estar com frio. - Fiz a mímica de alguém a tiritar e, depois, fingi vestir roupas: enfiar um vestido pela cabeça, alisando a saia para baixo; cobrir os ombros com um xaile; calçar os chinelos. - Deixa-nos ajudar-te - pedi.
Algo estremeceu no rosto de Svala. Por momentos, vi nos seus belos olhos uma espécie de reconhecimento. As mãos dela moveram-se, graciosas como uma alga agitada pela corrente, imitando os meus gestos.
Sorri, aquiescendo, embora a minha cabeça ameaçasse fender-se com a dor.
- Sim - disse-lhe. - Roupas secas, boas e quentes. - Dei um passo em frente, pensando ajudá-la com os atilhos, mas ela encolheu-se e estendeu os braços, como se quisesse empurrar-me para longe. Tinha os dedos retorcidos, como garras. - Não vou fazer-te mal. - Era difícil manter a voz firme. Perguntei a mim mesma se os homens estariam à distância de um simples chamamento.
- Assim, vês? - Muirrin falou atrás de mim. Quando virei a cabeça, vi que estava a fazer uma demonstração, tirando o próprio xaile, desatando o enorme avental de linho, pousando cada peça de roupa sobre a bancada de trabalho, uma de cada vez. Comecei a fazer o mesmo, esperando que não fosse necessário despir-me até ao fim.
- Tu também - disse-lhe, pondo o meu xaile em cima do banco e apontando para ela.
As mãos de Svala tornaram a mover-se, puxando qualquer coisa no pescoço, rasgando os cordões da camisa. Depois, emitiu um som que fazialembrar um animal em agonia, um profundo gemido de angústia ou frustração.
- Que Danu nos preserve - disse Muirrin, entredentes. - Já me arrependi de ter mandado Knut sair. Talvez tivesse sido preferível deixá-lo lidar com isto.
Agora, Svala estava a puxar a camisa como se, de repente, não pudesse esperar um minuto para despi-la. Arrancou-a pela cabeça, revelando o corpo pálido e perfeito que estava por baixo, tirou as calças à pressa e lançou-as para o meio da sala com alguma violência. Ficou nua à nossa frente, tendo como único traje o longo cabelo, e fitou-nos com um olhar de desafio.
- Muito bem - disse a minha irmã, com uma calma admirável. - Agora, seca-te e veste isto.
Svala passou de fugida o pano oferecido pelo corpo, atirou com ele para o chão e pôs-se a olhar para mim, como se estivesse à espera. Muirrin passou-me o vestido de Biddy e eu estendi-lho.
- Toma, é para ti.
Ela recuou, como uma égua nervosa.
- Para tu vestires. - Comecei a enfiar o vestido pela cabeça, mostrando-lhe: a mim, muito mais esguia, ele ter-me-ia ficado a nadar. - Por favor - insisti. Dando um passo em frente, pu-lo nas suas mãos.
Antes de ela retirar a mão e agarrar na roupa, tocámo-nos por um brevíssimo momento. Mas foi o suficiente para sentir não só a sua dor, mas algo mais. Não! Errado! Errado! Os pensamentos de Svala eram como uma vaga monstruosa, a rebentar; uma rajada de vento gelado. Fechei os olhos, rezando para conseguir manter-me de pé e capaz até aquilo acabar.
- Sibeal, sentes-te bem? - O olhar astuto de Muirrin caíra sobre mim. A minha irmã, curandeira.
- Uma ligeira dor de cabeça. Não te preocupes. - Eu era uma druidesa. Seria forte. Não permitiria que aquilo me derrubasse.
Svala vestiu o vestido atabalhoadamente. Era como se o desastre lhe tivesse roubado a capacidade de executar as tarefas mais simples. Depois, lançou o xaile sobre um ombro.
Muirrin dirigiu-se à porta das traseiras; ouvia-a chamar os homens. Peguei na toalha e comecei a recolher as roupas que Svala tinha despido. Antes de eu dar dois passos, ela já estava ao meu lado, a sua mão fechando-se com força à volta do meu braço. Gelei. Svala não precisava de falar. Aquele toque gritava Ajuda! Ajuda-me!
Mais um pouco e cairia no chão, desmaiada. Senti a cabeça a latejar; as pernas como gelatina. Nesse momento, a porta das traseiras abriu-se com um rangido. O aperto no meu braço desapareceu e, enquanto os três homens entravam, dirigi-me ao banco e deixei-me cair. A maré de emoções recuou. Respirei, recitando em silêncio um trecho de doutrina. Sopro dos ventos; chama dançante; paz da terra; canção das ondas. Serena. Ficaria serena.
Knut correu para junto da mulher, pegando-lhe nas mãos, murmurando palavras em nórdico. Ela inclinou a cabeça. Não falou.
- Ainda está muito perturbada - comentou Muirrin. - Não consegui observá-la, mas não me parece que esteja ferida. Precisa de tempo. De tempo a sós com Knut, talvez. Jouko, podes perguntar-lhe o que ele acha que é melhor?
Eu conhecia muito bem Jouko, de cabelos cor de trigo, das suas visitas a Sevenwaters. Como herdeiro do meu pai, Johnny vinha a nossa casa pelo menos uma vez por ano e trazia sempre alguns homens consigo. Jouko não era um homem do Norte, mas falava a língua fluentemente. Naquele momento, traduzia para Knut, enquanto Evan, alto e negro no seu traje branco de curandeiro, se atarefava na bancada de trabalho.
- Knut diz que Svala não fala. Nem mesmo quando está tudo bem.
Isto foi uma espécie de choque.
- Ele está a dizer que ela é muda? - perguntou Muirrin a Jouko. - E surda?
- Não é surda, diz ele - traduziu Jouko. - Ela percebe o que ele lhe diz. Mas é muda, sim. Mesmo antes desta triste perda, Svala não era exactamente como as outras mulheres.
Knut já libertara as mãos da sua mulher. Ela quedara-se ao lado dele, o seu belo rosto convertido numa máscara de impassibilidade. Os olhos azuis do homem nórdico tinham brilhado de emoção enquanto lhe falava, num tom sentido. Como devia ser difícil ser homem, pensei. A criança também fora dele. Seu filho. Mas ele não podia deixar-se ir, como ela. Não podia chorar e lamentar-se e insurgir-se contra os deuses, porque tinha de ser forte, por ela. Falava na língua do Norte, gesticulando.
- Knut diz que a mulher melhorará com o tempo. É possível que se aflija na presença de muita gente. Se houver um sítio onde ela possa descansar em sossego... Ele espera que Svala não vos tenha transtornado ou ofendido. - O olhar de Jouko fixou-se em Muirrin e, depois, em mim.
- De modo nenhum - respondeu Muirrin. - Quanto a aposentos privados, diz a Knut que são raros em Inis Eala. Talvez Biddy consiga arranjar alguma coisa. Jouko, podes explicar a Knut quem é Sibeal?
- Ele sabe que temos aqui os corpos de nove homens? - perguntei.
Knut parecia saber e, quando Jouko lhe explicou quem eu era, o nórdico dirigiu-me um aceno respeitoso.
- Knut - disse eu, e olhei para ele, a tradução de Jouko seguindo as minhas palavras -, direi muito em breve algumas orações pelos mortos e, amanhã, conduzirei um rito fúnebre. Sentes-te preparado para vir comigo e dizer-me como se chamam? Sei que será uma tarefa difícil para ti. Não pedirei a Svala que venha.
Deuses, seria um suplício, sem dúvida; de cada vez que olhasse para os rostos daqueles afogados, Knut veria o rosto do filho morto.
A sua boca crispou-se quando Jouko verteu o meu pedido em nórdico, mas apressou-se a dizer que me acompanharia.
- Mulher sábia - acrescentou, em irlandês, com um sotaque cerrado.
- Oração. Bom.
Pouco tempo depois, Johnny veio à nossa procura. Eu me recolhera ao meu quarto, para vestir a túnica cinzenta, enquanto na enfermaria propriamente dita Jouko traduzia para Biddy: ela viera buscar Svala para ir ao salão comer alguma coisa e, depois, ao alojamento dos casais, para descansar. Johnny trouxera mais um falante de nórdico, Kalev. Este seguiu-me de perto enquanto nos dirigíamos os quatro ao alpendre onde as redes eram remendadas. Levantara-se um vento agreste, que trazia o cheiro do mar.
Os afogados tinham sido dispostos em duas filas ao abrigo do telhado de ripas de madeira do casebre. Enquanto Johnny aguardava, passei em silêncio por cada um deles, com Knut ao meu lado. O rosto do nórdico estava pálido, cor de cinza.
- Como se chama este homem? - perguntei, com delicadeza. - E este? O que sabes a seu respeito, Knut?
Tinha de memorizar cada um deles para o ritual do dia seguinte correr sem falhas e os mortos atravessarem o grande portal sem impedimentos. Este homem de cabelo ruivo era Svein Njalsson; o jovem de barba era Thorolf Magnusson. Aquele homem era simplesmente conhecido pelo nome de Ranulf.
Knut acrescentou algo a este último nome, e Kalev traduziu por "irmão".
Fiquei chocada.
- Este homem era irmão de Knut?
Deuses, iriam famílias inteiras a bordo daquele barco? Os dois homens possuíam, de facto, o mesmo queixo quadrado, mas as feições do morto eram um lívido simulacro das do vivo.
Kalev fez-lhe a pergunta. Knut respondeu.
- Não - disse aquele, no seu irlandês com sotaque. Kalev vinha de uma terra de lagos e florestas. Na minha anterior visita a Inis Eala, eu tinha ouvido algumas das suas histórias, e eram diferentes das nossas, cheias de estranhas entidades aquáticas e árvores altas, de madeira clara. - Ranulf e Thorolf eram irmãos.
- Nesse caso, temos de pô-los lado a lado - repliquei, perguntando-me quem levaria a terrível notícia à mãe daqueles defuntos marinheiros. Podiam passar muitos anos até lhe chegar aos ouvidos. Podia nunca vir a saber que os filhos se tinham perdido em águas distantes e jazeriam, para sempre, entre desconhecidos. Bondosos desconhecidos, é certo. Encarregar-me-ia de que tudo seria feito com respeito. Mas, no fim, um homem quer sempre voltar a casa.
Um homem grande, de barba negra: Mord Asgrimsson. Outro, muito jovem, com uma ferida terrível na cabeça: Starkad Thorkelsson. Um indivíduo de rosto largo, entroncado: Sam Gundarsson.
Chegámos ao pé de um homem mais velho, de barba grisalha, vestido com uma túnica de lã de boa qualidade. O mar fora severo com ele; tinha a pele manchada, branca e amarelada, a têmpora direita pisada. Knut pôs-se ao seu lado e abanou a cabeça.
- Ele não sabe qual é o nome? - perguntei ao meu intérprete.
Aparentemente, não sabia.
- Não é um membro da tripulação - traduziu Kalev. - É um passageiro. Knut não sabe nada a seu respeito.
- E como se chama este homem?
O último corpo na fila era bem constituído, relativamente jovem, de cabelo castanho. Toquei-lhe na mão gelada e, ao virá-la, reparei em algo que poderia ter sido uma linha de bolhas na palma inchada e sem cor. Tinham remado pela vida, e apenas a força dos seus braços se erguia entre eles e a morte.
- Não ter nome - disse Knut, em irlandês. - Eu não saber.
Fiquei surpreendida; de todos eles, aquele homem novo e robusto era o que mais se parecia com um marinheiro.
- Porquê? - perguntei, sem pensar.
Knut não respondeu.
- Kalev, pergunta a Knut se este homem era um membro da tripulação ou um passageiro.
- Um passageiro. - Kalev traduziu a resposta de Knut. - E o outro homem também, sim. Não sei nada acerca deles. O meu trabalho era remar, não fazer perguntas.
Pensei que Johnny faria um comentário, mas limitou-se a acenar, guardando a sua opinião para si.
- Obrigado, Knut - disse ele, e aproximou-se para pousar a mão no ombro do nórdico. - És um homem corajoso. Tu e a tua mulher serão bem tratados aqui. Quando ela recuperar do tormento que sofreu, podemos arranjar-vos passagens para regressarem a casa. Em breve, teremos de falar da viagem. Com tantos mortos, vejo-me obrigado a enviar algumas mensagens.
Os lábios de Knut estremeceram enquanto Kalev traduzia as palavras de Johnny para nórdico. Uma lágrima deslizou-lhe pela face. Ele levantou a mão e limpou-a com um gesto brusco.
- É bom chorar - disse Johnny, numa voz suave. - Perdeste o teu filho, segundo me disseram. Perdeste os teus companheiros. Quanto à conversa, posso esperar até te sentires preparado. Vem, vamos arranjar-te de comer e de beber. Aqui, estás entre amigos, Knut.
Também eu me sentia, de súbito, à beira das lágrimas. Estava exausta, esvaziada de toda a minha energia. Tanto desgosto. Tanto sofrimento. E Svala... Não sabia o que pensar dela. Era um mistério, uma amálgama de emoções desgovernadas que mal cabiam na forma de uma mulher tão bonita. Enquanto os homens se dirigiam ao salão, regressei ao meu pequeno quarto. Despi a túnica e deitei-me, a descansar, os fiapos da história triste do dia formando no meu espírito uma teia confusa. Fechei os olhos, expulsando-a. Sopro dos ventos; chama dançante...
Acordei de repente, com a boca seca e o coração disparado. Olhando para as marcas rúnicas escritas nas paredes, não consegui, de imediato, decifrá-las. Algo estava errado. Algures, algo correra mal.
Sentei-me na cama e esforcei-me por acalmar a respiração. O reconhecimento do tempo e do espaço regressou devagar. Teria sonhado? Se sim, não me recordava de nada, a não ser da sensação de pânico que perdurava. Concentrei-me nas runas, vendo nelas mensagens que não tivera em mente quando manuseara o carvão. Tais eram a natureza e o propósito daqueles caracteres: fornecer várias interpretações possíveis. Eoh. Sim, era apropriado, uma vez que podia significar um bordão de apoio em tempos de treva e aquele quarto já tivera, sem dúvida, a sua dose de escuridão. Gyfu. Era desconfortável enfrentar a sua sabedoria, uma noção que, segundo Ciarán, ainda me faltava alcançar: o crescimento espiritual tinha sempre um preço. Não estarás preparada enquanto não compreenderes o verdadeiro valor daquilo de que tens de abdicar. Havia compaixão nos olhos dele quando me dissera isto. Talvez o seu próprio entendimento desta verdade lhe tivesse vindo com um preço elevado. Mas Ciarán enganava-se a meu respeito. Eu compreendia o significado da escolha. Adorava a minha família. O meu irmão mais novo tinha apenas quatro anos. É claro que eu sabia aquilo de que estava a abdicar.
Eohj Gyfu, Beorc, Ing. Rodeara-me de sinais de protecção; procurara limpar o pequeno quarto das mágoas do passado. Apesar disso, algo estava errado; sentia-o em todos os cantos do meu corpo. E, agora, a urgência de agir apoderava-se de mim, sem eu saber o que me chamava.
Era um quarto sem janelas, mas a luz do dia entrava por debaixo da porta. Talvez não tivesse dormido muito. Enfiei o vestido azul e a túnica por cima da muda que tinha posta, escovei o cabelo, voltei a entrançá-lo, calcei os sapatos e saí. Talvez tivesse ouvido alguma coisa durante o sono, alguma comoção que criara em mim este alvoroço. Mas tudo parecia, agora, em sossego, embora ouvisse muita gente a andar de um lado para o outro. As pessoas estavam sempre atarefadas em Inis Eala. Respeitando a filosofia da povoação original, fundada pelo pai de Johnny, Bran, aquele era um lugar de esperança e determinação. O trabalho árduo era uma das regras tácitas e aplicava-se a todos os homens e mulheres da ilha, do curandeiro ao druida, do guerreiro ao professor, do pescador ao cozinheiro.
Havia duas faces nesta moeda. Inis Eala aceitava o forasteiro. Tinha lugar para o sem-abrigo, o defeituoso, o desenraizado, desde que esse homem estivesse preparado para se libertar daquilo que o impedia de avançar e oferecer a melhor versão de si próprio. Por outro lado, assim que fosse integrado na pequena comunidade da ilha e no bando de guerreiros de Johnny, em particular, um homem deixava de ter segundas oportunidades. Se transgredisse os regulamentos de Inis Eala, seria expulso assim que houvesse um barco livre para o levar para o continente.
Eu já lá tinha estado uma vez, dois anos antes. Vira o que acontecia aos homens quando vinham para a ilha: como se modificavam, tornando-se rijos e esguios, os olhos ganhando brilho e serenidade. Ali, a confiança germinava e florescia. Ali, homens cépticos e cautelosos desabrochavam como professores de talento, amigos leais e, em alguns casos, maridos e pais extremosos. Porque as mulheres, por razões só delas, também vinham para a ilha: à procura de parentes, em busca de novas oportunidades, oferecendo esta ou aquela perícia. Biddy, a cozinheira, viera depois de o seu primeiro marido, um membro do bando de foras-da-lei original de Bran, ser morto num terrível acidente. Os Homens Pintados tinham acolhido a viúva ao abrigo das leis da camaradagem. Na comunidade, havia uma complexa rede de relações. Biddy e o seu segundo marido, Gull, eram os pais de Evan, o que os tornava sogros da minha irmã Muirrin. Através de Gull, um homem das terras quentes do Sul, a família de Sevenwaters ganhara um ramo exótico e de pele escura.
O que quer que tivesse perturbado o meu sono tardava a desaparecer. Sentia o corpo ainda crispado de tensão, e a mente refém de uma urgência que não parecia ter razão de ser. Precisava de fazer uma breve caminhada. Deduzi, pela qualidade da luz, que faltava uma hora ou duas para o pôr do Sol. Iria buscar um cesto e concluiria a missão de recolha de algas antes interrompida.
A maré estava a subir. Nuvens plúmbeas, cor de ardósia, moviam-se no céu, perseguidas pelo vento oeste, mas calculei que não choveria antes de anoitecer. A planta que Muirrin mencionara era conhecida na região pelo nome de "lágrimas de sereia". Seca, triturada e misturada com uma série de outros ingredientes, podia ser convertida num tónico que fortalecia o sangue. Muirrin dissera-me que existia uma enseada na costa ocidental da ilha onde eu encontraria um carregamento fresco. Um cesto cheio seria suficiente.
Segui o trilho que percorrera mais cedo, antes do naufrágio. A alguma distância do lugar onde tinha voltado para trás da última vez, o caminho bifurcava-se. Segui para oeste. Dei por mim a acelerar o passo, correndo quase, e forcei-me a abrandar. Para lá da zona plana onde a comunidade de Inis Eala construíra as suas casas, o terreno da ilha era íngreme e traiçoeiro, mais apropriado a cabras do que a homens e mulheres, e seria um disparate correr riscos enquanto estivesse ali fora, sozinha.
No cimo de uma colina, parei, verificando se estava a ir na direcção certa. Existia uma gruta perto da ponta noroeste da ilha, um lugar que eu tencionava visitar em breve, porque era a origem da poderosa rede protectora que envolvia Inis Eala. A gruta fora, noutros tempos, a morada de um membro solitário da nossa família, um homem sábio e bom, mas incapaz de viver em sociedade. Era um lugar de quietude, uma casa de velhos espíritos. Ali, diria as minhas preces; procuraria respostas às perguntas que me atormentavam. Mas não hoje, que se fazia tarde, e as nuvens começavam a unir-se.
Encontrei a enseada, desci e enchi o cesto com os fios escorregadios da alga marinha. A partir daqui, o terreno inclinava-se numa subida íngreme. O caminho bifurcava-se de novo, um dos trilhos serpenteando para oeste ao longo de um espinhaço cada vez mais estreito. As encostas de ambos os lados eram interrompidas por montes de terra e pedras soltas, sobre os quais se achavam, aqui e ali, trilhos erráticos até ao mar. Viam-se focas nos rochedos mais abaixo, e os penhascos pareciam vibrar com a passarada. Aquele lugar era um refúgio para muitas criaturas selvagens. Era justo que também se tivesse tornado uma casa e abrigo para alguns dos homens mais selvagens do mundo.
Tornei a subir pelo mesmo caminho. A certa altura, detive-me. Havia algo de errado, ainda. Algo que estava próximo e me mantinha alerta e imóvel, à procura do invisível, à escuta do inaudível. As nuvens reuniam-se lá em cima, pesadas e escuras. O mar suspirava e agitava-se, suave acompanhamento ao pipilar agudo das gaivotas. Que sensação era esta que não me deixava retomar o caminho para casa? A minha mente procurou, estendeu-se e encontrou... Um fio, um sopro, uma luz trémula, como a chama de uma vela derretida, esmorecendo depressa. Havia outro sobrevivente. Ali perto, no dia que escurecia, algures entre maré e fachada de falésia, um homem jazia entre a vida e a morte. Mas estava vivo. Por enquanto.
Deuses, que fazer? Correr em busca de ajuda e arriscar-me a perder aquele rasto quase imperceptível? Correr na esperança que ainda houvesse luz para procurá-lo no regresso, onde quer que as ondas o tivessem largado, naquela sinuosa paisagem de falhas, brechas e mares revoltos? Correr esperando que a chuva aguentasse até eu conseguir voltar, com homens, cordas e tochas? Ou procurar agora, sozinha? Ele estava perto. Eu sentia-o.
Não havia tempo. Não havia escolha. Enquanto me afastava ao longo do alto e estreito braço de terra, uma parte de mim revia todos os argumentos que ditava a sensatez: és demasiado pequena para suportar o peso de um homem; a maré está a subir; nem sequer trouxeste o manto; e se não conseguires alcançá-lo?E se... E se... Não tomei atenção. Alguém estava vivo ali perto. E eu tinha de encontrá-lo.
O trilho tornava-se mais estreito à medida que ia subindo, revelando abismos vertiginosos de um lado e do outro. Gaivotas voavam em círculos em torno dos penhascos isolados. Agora, coroas de espuma branca salpicavam o mar. Já sentia o vento frio atravessar o tecido de lã do vestido. O céu escurecia.
- Onde estás? - murmurei, entredentes, mal me atrevendo a sondar a mente em busca da ténue fagulha de vida que pressentira momentos antes, não fosse ter-se extinguido para sempre. Como poderia alguém ter sobrevivido durante tanto tempo? - Respira! Mantém-te vivo! Estou quase a chegar.
Uma rajada de vento apanhou-me desprevenida e cambaleei, tentando recuperar o equilíbrio. Quando me endireitei, o coração a bater muito depressa, vi-o. Estava estendido no chão, muito abaixo de mim, numa estreita língua de seixos, de braços e pernas abertos, cabeça virada para a fachada do penhasco e a maré faminta a lamber-lhe os pés. Roupa escura rasgada; cabelo escuro em desalinho; um pedaço de madeira caído ao lado do corpo deitado de bruços. Talvez o tivesse ajudado a flutuar até terra firme, naquela costa improvável. Parecia frouxo, extenuado. Tanto tempo na água... Devia estar moribundo de frio e de cansaço.
Desci, repetindo em silêncio, uma e outra vez, as mesmas palavras. Não estejas morto. Não estejas morto. O penhasco era um pesadelo de rochas soltas, brechas inesperadas, incertas saliências. Rastejei e andei de lado, escorreguei e deslizei, rasgando as palmas das mãos nos tufos de erva áspera a que me agarrava para controlar a velocidade rebelde da descida. Não pensei muito no que estava a fazer. Se os meus instintos me tinham levado até ali era porque eu devia ser capaz de salvá-lo.
Saltei os últimos palmos de caminho e aterrei com ruído nos seixos ao seu lado. Uma onda chegou-lhe aos joelhos, encharcando a bainha do meu vestido, e recuou. Maldição de Manannán, aquela maré subia com invulgar rapidez. Quando me baixei ao lado do tripulante caído, um pequeno grupo de gaivotas grasnou comentários trocistas dos rochedos em redor. Desloquei a cabeça do homem para o lado, afastando-lhe o cabelo para poder encostar os dedos ao seu pescoço e sentir-lhe os sinais de vida. Deuses, como estava gelado! Sob os meus dedos, batia uma fraca pulsação. No rosto branco como a cal, destacavam-se as manchas escuras à volta dos olhos cerrados.
- De pé! - Esbofeteei-o com força. - Ajuda-me!
Mais uma onda; num ápice, o mar alcançaria o sopé da falésia e galgaria as rochas.
- Acorda! Tens de ajudar-me! - Esbofeteei-o outra vez. Nenhuma resposta. Cerrando os dentes, tentei levantar a parte de cima do corpo para poder agarrar-lhe no peito, por baixo dos braços, e arrastá-lo pela encosta acima. Disparate. Algumas mulheres talvez conseguissem fazê-lo, mas eu tinha uma fraca constituição. És uma druidesa, Sibeal. Serve-te dos teus conhecimentos. Encontra uma solução.
Perscrutei a fachada do penhasco sobre nós, à procura de referências. Ali estava a preia-mar. Se conseguisse levá-lo até à saliência que havia mesmo por cima, bastaria mantê-lo quente e esperar que alguém viesse à minha procura. Como plano, deixava a desejar, mas era um claro progresso perante a hipótese de esperar ali em baixo até nos afogarmos os dois. Olhei para o espaço em redor da estreita faixa de seixos, procurando outras soluções, e detive-me no pedaço de madeira em que tinha reparado antes. Pertencera certamente ao barco nórdico, pois, esculpidos ao longo da sua curva elegante, viam-se sinais rúnicos, sem dúvida ali gravados para proteger o barco e a tripulação. A tempestade desse dia fora, contudo, demasiado forte para qualquer talismã protector.
Runas. Adivinhação. Sentidos ocultos. De vaga em vaga, fixei os olhos nos símbolos ali gravados.
- Manannán, dai-me sabedoria - rezei. - Trouxestes-me até aqui. Deveis querer que ele sobreviva. Mostrai-me como devo cumprir a minha parte.
A onda seguinte galgou a margem. Empurrou o homem para a frente, e um som desprendeu-se dele, um gemido profundo. A água recuou. Ao fazê-lo, deixou seixos espalhados sobre a madeira esculpida, tocando em Lagu, Nyd, Eh. Três runas e apenas um sopro de tempo para interpretá-las. Água, marés. Força interior. Um puzzle para resolver, uma ferramenta a descobrir. Eu não tinha forças para levantar um homem, mas o mar podia fazê-lo por mim.
- Levanta-te! - gritei, e ele estremeceu, mexendo-se sobre os seixos.
- Rápido!
Com um grande esforço, conseguiu pôr-se de joelhos. Acocorando-me ao seu lado, apoiei o braço dele sobre os meus ombros. Dai-me forças para aguentá-lo contra a maré. Dai-me coragem.
- Aguenta-te. Quando vier a próxima onda, vamos levantar-nos. Pronto?
Um som da parte dele, mais resmungo que palavra.
- Aqui vem ela. Um, dois...
A vaga apanhou-nos, encharcando-me até à cintura enquanto eu tentava pôr-me de pé. O homem agarrou-se. Estávamos de pé.
- Mexe-te! - gritei, porque a onda seguinte chegava, veloz, e era muito maior, capaz de esmagar-nos contra os rochedos. - Agora!
Dirigi-me aos tropeções ao lugar por onde tinha descido, arrastando-o comigo, ou quase.
- Rápido!
Mas ele não podia ser rápido; precisava de todas as suas forças para pôr um pé à frente do outro. Não chegaríamos lá acima a tempo. Aí vinha ela. Ouvi o seu bramido atrás de nós.
- Respira! - gritei. Firmei as pernas e lancei os braços à volta da sua cintura, segurando-o com todas as minhas forças. Não havia tempo para rezar.
A onda atingiu-nos. Procurei um ponto de apoio e agarrei-me ao meu companheiro quando a água chocou comigo, à altura do peito, dispersando-se em seguida pelas rochas. À nossa volta, o mundo era um turbilhão branco. Depois, veio o recuo da onda, a puxar-nos, e rezei mesmo uma súplica descuidada, sem palavras. Passou, e nós ainda ali estávamos. Ele tentou respirar, o som como o de uma faca arranhando ferro. As suas pernas fraquejaram. Tentei mantê-lo de pé.
- Bom trabalho! - gritei. - Agora, sobe! Sobe, depressa!
Arrastei-o para cima, um passo cambaleante atrás do outro, sobre as rochas escorregadias. A sua respiração vibrava no meu corpo.
- Lá em cima. A próxima onda... Até à saliência. Mais acima! Sobe! Sobe!
Só espero que aproxima onda não me esmague a cabeça contra um pedregulho, ou morremos aqui os dois.
Doíam-me as pernas. Ardiam-me os ombros como se estivessem em chamas. Demos mais um passo, e outro. Só esperava não me ter enganado na velocidade a que subia aquela estranha maré. Só esperava que aquela onda nos levasse até à saliência. A voz do mar trovejou o seu desafio. Ei-la, agora.
Encontrei a raiz de uma árvore no meio das rochas e agarrei-a com a mão esquerda. O meu braço direito estava enrolado na cintura do homem.
- Inspira! - ordenei, respirando fundo para dentro do peito, como me tinham ensinado. A água veio, gelada e maciça. Molhou-me o rosto, entrou-me pelo nariz, encheu-me os ouvidos. Bati com a cabeça. Vim à superfície, o ombro chocando contra as rochas. O homem escorregava-me dos braços, para baixo, mais para baixo, quase solto. - Não! - gritei, desafiando os mares, e agarrei-o pelos cabelos, sem largar, como uma lapa presa à sua rocha. - Não! Vais viver!
A onda desfez-se, deixando-nos mesmo à beira da saliência segura.
- Para cima! - crocitei. A respiração dele era um grito de dor. Tinha o rosto lívido, os olhos como dois buracos negros. Eu tinha de ser cruel.
- Mexe-te! Por aqui! - A próxima onda levar-nos-ia até lá. Tinha de levar. Tornei a pôr o braço dele à volta dos meus ombros. O homem fez um esforço por se endireitar. Nyd. Coragem perante o impossível. - Bom trabalho - disse-lhe. - Não me largues. Eu não te deixo ir.
Debatemo-nos com um troço de pedras escorregadias e passámos por um pedregulho sobressaído. Quando a onda seguinte rugiu atrás de nós, alcançámos a saliência. A vaga empurrou-nos até lá, como se estivesse cansada do nosso jogo. Por fim, a água recuou e ficámos a salvo.
Primeiro, limitei-me a respirar. A cada lufada, o meu espírito encheu-se de gratidão pela bênção do ar, pela graça da sobrevivência. O homem também respirou, produzindo um som que indicava que metade dos seus pulmões se enchera de água. Estava deitado de costas, ao meu lado. Tremores sacudiam-lhe o corpo. A água encharcara-o até aos ossos, e a mim também. As forças que ele reunira no último momento tinham desaparecido. Não iria a andar para lado nenhum, nem mesmo com a minha ajuda. E eu não podia deixá-lo ali sozinho. Quanto tempo seria preciso para alguém se lembrar de vir à minha procura, quanto tempo levariam a encontrar-nos? Eu tinha deixado o meu cesto lá em cima, no caminho. Mais tarde ou mais cedo, reparariam nele e chamar-me-iam, e eu responderia. Mas estava frio, a noite caía, e nós não podíamos dar-nos ao luxo de esperar.
És uma druidesa, Sibeal. Usa aquilo que está aqui. Usa o que tens. Que tinha eu? O meu dom de vidente era poderoso, mas não me permitia chamar com a mente, como faziam alguns membros da minha família, comunicando à distância e sem palavras. Ciarán estava a ensinar-me a linguagem dos animais e o poder de manipular os elementos, mas eu era apenas uma iniciada e não me ocorria nenhuma maneira de pôr em prática os meus limitados conhecimentos. Se o mestre ali estivesse, na ilha, teria pressentido que algo de errado se passava e vindo em meu socorro. Se... Mas, espera. E Cathal? O marido de Clodagh pertencia aos dois mundos. Na verdade, era um perito nas artes mágicas, embora não fizesse uso delas, tendo escolhido viver como um homem entre os homens. Seria Cathal capaz de sentir um apelo da mente, se eu me empenhasse muito em enviá-lo?
O homem tremia com tanta violência que se arriscava a cair da saliência para o mar. Deuses, esperava não me ter enganado a respeito da preia-mar.
- Vem - disse-lhe. - Aproxima-te. - Porque, apesar de ter feito a loucura de ir até ali sem xaile, capa ou manto, eu tinha o calor do meu corpo. Pensando melhor, "calor" não era a palavra certa. Sentia-me encharcada e gelada até aos ossos. Como o homem estava demasiado exausto para se sentar, empurrei-o e puxei-o para a parte de trás da saliência e deitei-me atrás dele, cobrindo-o com o meu braço e pressionando o meu corpo contra o dele. Era um pouco impróprio, mas necessário, dadas as circunstâncias. O homem balbuciou qualquer coisa. As suas palavras não pertenciam a nenhuma língua que eu conhecesse. Nem se assemelhavam sequer aos sons do nórdico.
- Assim é melhor - repliquei. - Agora, reza para que isto funcione. Não me apetece nada passar a noite ao relento. - Se ninguém viesse, morreríamos de frio antes da madrugada.
Fechei os olhos e evoquei essa calma profunda que deve entrar no corpo antes de tentarmos abrir o olho da mente. Varri do pensamento o frio glacial da saliência de rocha, a escuridão, o mar agitado. Ignorei a dor no cotovelo, no pescoço, na anca. Água e pedra tinham-nos testado com dureza enquanto realizávamos a nossa improvável subida a partir da enseada. Não tinha importância. Os bosques tranquilos de Sevenwaters estavam longe, mas eu podia transportar-me até lá e caminhar no xadrez de luz e sombra sob a copa dos enormes carvalhos. Os reinos do espírito eram vastos e surpreendentes. No limite máximo do cansaço, era sempre possível encontrar uma força mais funda. E, em momentos de grande tormento, sentir o toque delicado da paz. Ou assim me fora ensinado. Sossega a tua mente. Inspira devagar; expira ainda mais devagar. Sente a terra por baixo dos teus pés. Tu és parte da terra, ela ampara-te e sustenta-te. Respira. Agora, deixa que a floresta se abra à tua volta.
Nunca fora tão difícil criar o tempo necessário para este exercício, com um homem moribundo nos braços e o meu corpo incapaz de ficar quieto, a tremer e a tiritar como uma folha agitada pelos ventos de Outono. Por fim, consegui desligar a mente, nadar até ao lugar onde podia chamar Cathal e concentrar nele toda a minha vontade. Imaginei-o sentado no salão, ao lado de Clodagh, a falar do naufrágio; imaginei-o a passar a mão de dedos compridos pelo cabelo preto e, depois, a gesticular enquanto explicava algo à mulher. Chamei-o. Cathal! Estamos aqui. Tentei mostrar-lhe o caminho ao longo do estreito braço de terra, a descida íngreme. Evoquei uma imagem do tripulante caído. Mostrei-me a mim própria naquele lugar, sem nenhuma das coisas de que precisava, como uma candeia ou um cobertor.
Um salpico nas rochas à nossa volta; começara a chover. A minha concentração dissipou-se. Lágrimas corriam-me pelo rosto, lágrimas de pura exaustão. O rugido das ondas parecia ameaçador, como se o próprio Mac Dara revolvesse as águas, esticando-se para nos puxar para baixo. A água subira mesmo até à saliência. De vez em quando, uma pequena onda molhava-nos, trocista, como se ainda não tivesse decidido se ia afogar-nos ou não. Até ali, o mar não chegara ao lugar onde estávamos abraçados. A chuva começou a cair com mais força.
- Está tudo bem - disse, mais para mim mesma do que para o homem encostado ao meu corpo, que não devia compreender uma palavra de irlandês. - Vais ficar bem. A ajuda vem a caminho. Isto não pode ter sido em vão. Não acredito.
Nesse momento, se eu fosse outra pessoa, talvez tivesse sido capaz de matar por um manto seco.
Ele virou-se, surpreendendo-me. Senti-o pôr o braço à minha volta e apertar-me. Disse-me qualquer coisa, na sua língua estrangeira, talvez Obrigado. Ou Não chores. Encostei a cara ao tecido da sua túnica - que pingava, uma lágrima ou duas não fariam diferença - e fechei os olhos. Em momentos de provação, existe uma arma que um druida tem sempre ao seu dispor: a doutrina.
- E que tal uma história? - murmurei. - Conheço muitas.
E, ali, na escuridão cada vez mais cerrada, com o mar revolto a entrar e a sair, e os nossos corpos a partilhar as suas últimas reservas de calor, contei uma história de heróis e de monstros e a história de um rapaz que, por acidente, bebera do caldeirão do conhecimento; e, depois, contei parte da história da minha família, porque, no passado, havia irmãos que se tinham transformado em cisnes e uma feiticeira má, cujo filho era agora o meu adorado mestre, Ciarán. Uma vez que aquele desconhecido em cujos braços eu me encontrava não devia perceber uma palavra do que eu dizia, não era grave se alguma parte da história fosse demasiado íntima para ser contada.
- Mas, no fim, ele tudo encaminhou no sentido do Bem - disse, por fim. - E ensinou-me tudo o que sei. Ou quase tudo. Quando voltar, farei o meu juramento final para me tornar uma druidesa. Depois, viverei nos nemetons a tempo inteiro e só verei a minha família nos dias de ritual.
- Druida - disse o homem, mostrando-me que não só estivera a ouvir como talvez percebesse mesmo uma palavra ou duas. Depois, ambos estacámos, porque no meio do estertor da rebentação e dos gritos das gaivotas chegou-nos um outro som: o latido estridente de uma pequena cadela, no caminho mais acima. Fang encontrara-nos.
Sentei-me de repente, dando uma cotovelada no peito do meu companheiro.
- Aqui! - gritei. - Aqui em baixo!
Não muito depois, vimos luzes e homens a descer o trilho íngreme - Cathal, seguido de Gareth e de Johnny -, e o calor abençoado de um cobertor envolveu-me os ombros. Eu queria subir pelo meu próprio pé, mas Gareth pegou em mim e levou-me até ao cimo da falésia, como se aquele fosse o trilho mais fácil do mundo. Os outros transportaram o homem para cima, entre eles. No topo, Fang saltitava de um lado para o outro, visivelmente satisfeita consigo própria, e ali perto estava Clodagh, bem agasalhada, com uma lanterna na mão e o meu cesto de algas marinhas no outro braço. Gareth pôs-me no chão. Clodagh pousou a lanterna e o cesto e abraçou-me.
- Por todos os deuses, Sibeal - disse a minha irmã será que este lugar já te transformou, em tão pouco tempo, numa feroz lutadora? - Recuando, com as mãos sobre os meus ombros, examinou-me com mais cuidado.
- Estás gelada - observou. - E ferida. Tens sangue no rosto.
- Estou bem - repliquei, fungando. - Não te preocupes comigo. É ele quem precisa de ajuda...
Os meus joelhos cederam. Um dos homens deixou escapar uma praga. Caí nos braços de alguém quando o mundo se fez negro.
Capítulo 2
Felix
O nevoeiro pesa sobre mim. Esmaga-me. As minhas pálpebras lutam contra ele. Enchente, vazante. Enchente, vazante. Marés. Rostos sobre mim, que vêm e vão.
Julguei ver uma mulher. Por entre cortinas de sombra, virou os seus estranhos olhos para mim. O véu tornou a cair. Perdi-a.
Doem-me os olhos. Dói-me a cabeça. Tento virá-la e o meu pescoço grita um protesto. Mãos de ferro à volta do peito, apertadas, cada vez mais apertadas. Cada sopro é como subir uma montanha. Se estivesse morto, senti-lo-ia?
Tenho frio. O gelo está-me nos ossos e no sangue. Cobertores fazem pilha sobre mim. Uma pedra aquecida aos meus pés, um animal ao meu lado, na cama. Tenho tanto frio...
São três mulheres. Uma vem mais vezes, rosto aprumado, cabelo preto, olhos verdes, uma linha entre as sobrancelhas quando se inclina sobre mim. As outras são como ela, mas não exactamente. A segunda tem caracóis da cor do sol quando toca nas folhas de Outono e sardas dispersas na pele creme. A terceira... A terceira tem olhos que assustam e atraem, olhos como dois lagos tranquilos sob o sol da madrugada. Quando me fitam, sinto o seu poder num lugar intacto, bem fundo dentro de mim. Sinto que a conheço.
Estou no Além, talvez, ou a caminho, e estas mulheres são três guardiãs. Três deusas? Três Destinos? Qual das três cortou o fio que era a minha vida? Que querem de mim? E o que é... O que é...
Serão três irmãs? Também vejo um homem de pele escura, que vem observar-me, um homem de olhar sereno e túnica branca. Um curandeiro? Por vezes, parece velho, outras, novo. Que lugar é este?
Lá fora, é noite. A luz de uma candeia ilumina uma paisagem de sombras movediças: monstros, demónios, serpentes. Um outro homem senta-se na cama, ao meu lado, e deixa-se ficar algum tempo. O seu rosto está tatuado com uma máscara de corvo. Tem um olhar sombrio. Estou às portas da morte. Este é um espírito de fronteira, um guerreiro guardião. Fala de confiança, de escolhas e oportunidades. Diz-me que aqui estou seguro. Diz-me o nome deste lugar: Inis Eala. Ilha dos Cisnes? Não me recordo de ter ouvido este nome. Não me recordo...
Acordo com o coração desgovernado, a pele húmida de suor, a mente numa vertigem de terror. De quê, não sei. Por baixo de todas estas cobertas, estou nu. Onde... O quê... Não há pergunta que possa fazer. Não sei nada. Nada. Salvo que, afinal, talvez não esteja morto.
A mulher de feições aprumadas, a irmã mais velha, senta-se ao lado da enxerga. O homem de pele escura está de pé atrás dela, com a mão sobre o seu ombro. É jovem, agora. Será o marido? Ele move-se para enfiar um braço por baixo de mim, soergue-me, leva uma taça de água aos meus lábios. Deuses, tenho sede. Era capaz de beber um oceano.
- Devagar - diz ele. - Pouco de cada vez. Assim mesmo. Agora, descansa.
Compreendo o que diz, mas a língua que ele fala não é a dos meus pensamentos. É a mesma que usou o homem-corvo. Ter-me-ei afastado muito de casa?
A mulher pousa em mim os seus olhos cor de esmeralda.
- Como te chamas? - pergunta-me, articulando as palavras com cuidado. Aponta para si própria. - Muirrin. - E para o homem. - Evan.
- Depois, de novo para mim. - Qual é o teu nome? - Ao dizer isto, aponta para mim, de sobrancelhas arqueadas.
Não posso responder. Não tenho resposta. Fecho os olhos.
Os dois conversam um com o outro. Percebo uma parte do que dizem, não tudo. O homem fala de um barco e de alguém que se chama Knut e que talvez me conheça. A mulher diz que eu não pareço um homem do Norte. Falam do meu peito, da minha respiração.
- Talvez o consigamos salvar disto - diz Evan. - Esperemos que o esforço heróico de Sibeal não tenha sido em vão.
- Sibeal daria o mérito aos deuses - diz Muirrin.
Continuam a falar e, depois, ela vai-se embora, os seus passos suaves no chão de terra batida. Deixo que as minhas pálpebras se fechem. Talvez durma. Será noite ou dia? Talvez volte a acordar em pânico, sem saber de onde vem este terror tão grande. Algo inconcebível. Inefável. Varreu-se-me do pensamento, bem como tudo o que daria sentido a este dia, a esta hora, a este momento. Sopro a sopro. Não consigo lembrar-me do meu sonho. Não consigo lembrar-me de como vim aqui parar. Não consigo lembrar-me.
Sibeal
Gareth insistiu em levar-me ao colo o caminho todo até à povoação, embora eu pudesse perfeitamente ter ido pelo meu pé assim que recuperei do desmaio. O homem que eu salvara foi de imediato levado para a enfermaria. Clodagh empurrou-me com alarido até aos banhos, onde me fez mergulhar numa tina até eu ficar rosada e brilhante dos pés à cabeça. Depois, esperou enquanto eu vestia roupas limpas. Secou-me o cabelo diante da lareira dos banhos, que desempenhava a dupla função de aquecer a água e conservar o calor do espaço. Biddy trouxe-me de comer e de beber, num tabuleiro, e as duas mulheres recusaram-se a deixar-me sair para onde 48 quer que fosse enquanto eu não tivesse comido e bebido tudo até ao fim.
- Não me parece que tenhas consciência do susto que nos pregaste - disse Clodagh, fitando-me de braços cruzados. - O mínimo que podes fazer agora, Sibeal, é ser sensata.
Nem sequer me foi permitido regressar sozinha à enfermaria: Cathal acompanhou-me, moderando a sua longa passada para andar ao meu ritmo. O meu cunhado vinha embrulhado no seu manto negro. Não estava muito falador.
- Obrigada - disse eu. - Não tinha a certeza de que me ouvirias. Foi a única solução de que me lembrei para pedir ajuda depressa. Se ficássemos à espera que alguém desse pela minha falta, ele podia ter morrido.
- E tu também - replicou, embora não o dissesse em tom de censura.
- Imagino que não te tenha ocorrido.
- Ocorreu-me, sim, mas parecia... Não sei bem como descrevê-lo, Cathal, mas algo me levou até lá. - Julguei que ele compreenderia aquilo que outros apenas veriam como um risco disparatado. - Parte de mim sabia que aquele homem ainda estava vivo e precisava de ser encontrado. Deve haver uma razão para tudo isto.
- Preocupaste Clodagh e Muirrin. Para elas, és a irmã mais nova e sentem-se responsáveis por ti. Quanto ao meu papel nisto tudo, a única coisa que posso dizer-te é que os teus apelos me chegaram com absoluta clareza. Facto que prova, no meu entender, que és uma druidesa antes de seres uma irmã mais nova. - Cathal raramente sorria, mas fê-lo naquele momento, as suas sombrias feições transformando-se com o sorriso. - Salvaste a vida de um homem. As tuas irmãs podem ralhar contigo, mas ficaram impressionadas. Todos nós ficámos. Quanto ao motivo por que foste chamada a fazê-lo, este episódio é, todo ele, perturbador. Não foi uma tempestade vulgar.
- Suspeitas da intervenção de forças misteriosas? - Não me sentia preparada para lhe perguntar, sem rodeios, se ele julgava que o pai fora o responsável.
- Quem sabe? - respondeu-me, num tom desprendido, embora o sorriso lhe tivesse fugido do rosto.
Tínhamos chegado à enfermaria. Cathal acompanhou-me até à porta e, depois, voltou para trás.
Ao contrário do que era seu hábito, Muirrin não estava a trabalhar, mas parada diante da lareira, a contemplar as chamas. Atrás de uma divisória improvisada, Evan e o pai, Gull, cuidavam do sobrevivente.
- Gostava de ajudar a tratar dele - disse-lhe. - Sinto que é a coisa certa a fazer.
- Não há nada que possas fazer para ajudar, Sibeal - retorquiu Muirrin, com secura. - Talvez não te tenhas apercebido da gravidade do estado em que ele se encontra. Houve uma imersão na água, que lhe afectou os pulmões. O frio e o cansaço enfraqueceram-no. E penso que há mais qualquer coisa que não está bem. Tenho de ser franca contigo: mesmo com os cuidados de curandeiros experientes, é possível que ele não sobreviva aos próximos dias.
Havia algo de profundamente errado em salvar a vida de um homem e vê-lo perecer pouco tempo depois. Como poderia eu permitir que isso acontecesse? Por momentos, escutei as vozes sussurradas de Gull e Evan enquanto faziam o seu trabalho, calmos e metódicos. Depois, disse:
- Muirrin, posso não ser uma curandeira, mas sou uma druidesa, ou sê-lo-ei assim que chegar a Sevenwaters e fizer o meu juramento. Se este homem está a morrer, aquilo que tenho para lhe oferecer pode ser o que ele mais precisa.
Seguiu-se uma longa pausa. Muirrin foi sentar-se no banco ao pé do fogo, e eu vi que os seus olhos se tinham enchido de lágrimas. A minha serena e eficiente irmã, aquela que costumava fazer frente a todos os problemas.
- Desculpa, Sibeal - disse, esfregando a cara com a mão. - Pregaste-nos um susto. Não tínhamos dado pela tua falta aqui na povoação e, quando Cathal se levantou de repente e nos disse que estavas algures lá fora, na escuridão... Fizeste uma coisa muito corajosa. Não percebo como consegues estar tão tranquila e composta depois do que aconteceu.
- Não me pareceu perigoso na altura - repliquei. - Quanto ao homem, julguei que poderia sentar-me ao seu lado, uma vez por outra, e dizer uma prece ou contar uma história, para lhe lembrar que ele se encontra entre amigos. Penso que Clodagh fará um turno também. Não estorvaremos o teu trabalho.
- Claro - disse Muirrin. - Pode ser esta noite. Se for possível evitá-lo, não o deixaremos morrer, Sibeal. Evan e eu vamos tratar dele durante o dia. Gull ofereceu-se para fazer o turno da noite o tempo que for necessário: há uma enxerga ali no canto onde, por vezes, nós dormimos.
- Biddy não vai importar-se?
Muirrin sorriu.
- O mais certo é que ela aprecie algumas noites de sono seguido.
- Porquê? - indaguei, confusa.
- Gull levanta-se três ou quatro vezes por noite para ir às latrinas - respondeu. - Não consegue conter-se; é um problema comum nos homens mais velhos. Tornou-se uma piada recorrente entre as pessoas de cá, embora não seja tão divertido para o próprio. É bom que o saibas, porque talvez o ouças a entrar e a sair quando ele dormir aqui.
- Não me incomodará - repliquei. As latrinas ficavam do outro lado da porta dos fundos, a seguir a um particularmente viçoso canteiro de ervas medicinais. - Se acordar, não tardarei a adormecer outra vez.
Sentei-me algum tempo à beira da lareira. Não recolheria ao meu quarto enquanto não tivesse olhado com mais atenção para o homem que tinha libertado das garras do mar. Por fim, Evan levou o biombo e, com a ajuda de Gull, começou a arrumar a zona à volta da enxerga onde jazia o sobrevivente. Tinham-no apoiado em almofadas. Estava consciente, os olhos abertos apenas uma nesga. Apele era de um pálido cinzento-esbranquiçado. O cabelo, que eu julgara preto, revelava-se, após a secagem, de um tom de castanho profundo. O rosto era interessante, embora tão magro que quase parecia lúgubre. Tinha uma testa alta, nariz direito, lábios generosos. Com saúde, talvez as suas feições fossem atraentes. Naquele momento, tinha um aspecto miserável.
- Vou sentar-me um pouco ao lado dele, se concordares.
Gull não colocou objecções; sorrindo, pôs um banco ao pé da enxerga para eu me sentar. Perguntei-me o que pensaria o sobrevivente deste seu enfermeiro, que parecia um guerreiro da cabeça aos pés, com a sua pele negra como a noite, a compleição poderosa, as mãos tolhidas no habitual número de dedos. Antes do incidente que o mutilara assim, tinha sido um guerreiro de excepcional talento. Depois, quando já não conseguia segurar na espada, continuara a dar provas do seu valor em Inis Eala como herbanário e curandeiro. Fora, nos primeiros tempos da comunidade, o confidente e amigo mais chegado do pai de Johnny, Bran, e todos os habitantes da ilha tinham por ele um respeito especial.
- Pareces cansada, Sibeal - dizia-me, agora, perscrutando-me do outro lado da enxerga. - E se eu te preparasse uma infusão? Uma coisa que te ajude a dormir? Tenho o ideal.
- Obrigada. Estou bem. - Mas não estava, não completamente. Tinha o corpo cheio de cortes e nódoas negras e, agora que via de perto o aspecto mórbido do sobrevivente, sentia-me cheia de dúvidas.
- Parece que não há meio de aquecê-lo - disse Gull, por cima do ombro, enquanto partia em busca de ingredientes na miríade de frascos e garrafas que enchiam as prateleiras da enfermaria. Evan juntara-se a Muirrin ao pé da lareira, onde conversavam em voz baixa. - Está gelado até aos ossos. Sei qual é a sensação.
Apesar da lareira e das várias camadas de cobertores, o homem estava, de facto, gelado. Tremores sacudiam-lhe o corpo.
- Ele falou contigo? - perguntei. - Compreende irlandês?
- Ainda não disse uma palavra. Não parece um homem do Norte, pois não? Creio que Johnny tenciona trazer o outro indivíduo aqui antes da hora de deitar. Knut, quero eu dizer. Talvez este se sinta mais seguro se vir uma cara familiar. Agora, onde se meteu aquele frasco...?
- O que vais dar à minha irmã, Gu? - perguntou Muirrin, sorrindo.
- Uma pitada de escutelária, água quente, uma gota de mel... Faz maravilhas aos nervos.
Não sabia se haveria de rir-me daquilo, ou sentir-me insultada. Uma das coisas que as pessoas mais comentavam, quando falavam de mim, era a minha tranquilidade.
- Sofreste um choque. - Gull reparara na minha expressão. - Isto afastará os pesadelos.
Engoli o orgulho, que não tinha razão de ser naquele momento. Gull não era Ciarán, mas era sábio à sua maneira, e eu podia aprender com ele enquanto estivesse na ilha. Tornei a olhar para o homem deitado na enxerga.
- Aqui, estás em segurança - disse-lhe, numa voz que se dirigia apenas aos seus ouvidos. - Estás entre amigos. Nós vamos cuidar de ti.
Deuses, respirar devia ser, para ele, uma chama acesa no peito. Só o som arranhado do ar era doloroso de ouvir; de cada vez que inspirava, o corpo inteiro crispava-se.
- Tens dores, eu sei - sussurrei-lhe. - Mas vais ficar melhor. Manannán escolheu libertar-te. Não o teria feito sem um propósito.
Ele estava a olhar para mim, consciente da minha presença, mesmo se não compreendia as minhas palavras. Os seus olhos, semiabertos, eram de um invulgar azul-escuro. A mão de dedos compridos, pousada sobre as cobertas, chamou-me a atenção.
- Ele tem bolhas, como o outro homem - observei, num tom de voz diferente.
- Eles devem ter remado com todas as forças que tinham - retorquiu Evan.
- Não estaria a tripulação de um barco habituada a remar todos os dias? Não pensei nisso antes, mas as mãos deles deviam ser duras e calejadas. A pele deste homem assemelha-se mais ao estado em que ficaria a minha após um árduo dia de remo.
- O que pensas que isto significa, Sibeal? - perguntou Muirrin.
- É verdade que Knut disse que havia passageiros. Talvez este homem fosse um deles. Mas, decerto que seria a tripulação a remar, mesmo durante a tempestade. - Aqueles olhos continuavam a observar-me e parecia-me ver neles algum entendimento. - Espero que nos deixes ajudar-te - murmurei, pensando em Svala.
Quando Gull acabou de preparar a sua infusão, Johnny já tinha entrado com Knut e Kalev. Aos pés deles, ia Fang, com um ar altivo. Afastei-me quando os homens se aproximaram da enxerga, mas não antes de ver o doente fechar os olhos.
Knut olhou de cima para ele. A sua expressão era grave. Falou, e Kalev traduziu as palavras num irlandês com sotaque.
- Parece muito debilitado. Às portas da morte. Já falou convosco?
- Nem uma palavra - disse Evan. - Podes dizer-nos quem ele é, Knut?
- Não é um membro da tripulação. Estava com os outros. Os três iam juntos para as Órcades. Desconheço quais eram os seus planos. Este homem vai morrer?
- A nossa vontade é mantê-lo vivo. - A crueza da pergunta de Knut, que a tradução de Kalev em nada suavizara, surpreendera visivelmente Muirrin. - O meu marido e eu, e o pai dele que aqui está, somos todos curandeiros experientes. Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para ajudá-lo.
Knut inclinou a cabeça e tornou a falar, mas depressa hesitou, parando.
- Agradeço o vosso saber e a vossa bondade - traduziu Kalev. - Morreram demasiados. O meu filho...
- Lamentamos a tua perda, Knut. - Gull falou com sinceridade, como o guerreiro que um dia tinha sido. - É um fardo difícil de suportar. O mais difícil.
- As Órcades. - Johnny parecia pensativo. - Então, era esse o vosso destino?
Knut aquiesceu.
- O barco tinha de ser entregue lá - traduziu Kalev. - Ouvimos dizer, eu e mais alguns homens, que o Lord das Órcades acolhia de bom grado novos povoadores, guerreiros, sobretudo. Tínhamos esperança de começar uma vida nova naquela terra. Vários companheiros meus levavam mulheres e crianças a bordo. - Seguiu-se uma longa pausa. Por fim, Knut acrescentou algo. Kalev disse: - Agora, já não vou.
Fez-se silêncio. O desgosto e o arrependimento de Knut contagiaram-me, deixando-me à beira das lágrimas. Ao mesmo tempo, senti algo no homem deitado na enxerga, que parecia estar a dormir, mas não estava. Um nervosismo, a tensão de um animalejo na mira do caçador.
- Não sabes nada a respeito dos planos deste homem, ou dos seus dois companheiros de viagem? - perguntou Johnny a Knut. - Onde embarcaram eles?
- Em Ulfricsfjord.
Eu nunca tinha ouvido falar de tal lugar, mas Johnny sim.
- Esse é o nome nórdico da Baía das Penas de Ganso, a norte de Dublin. A via mercantil da costa leste de Erin até às Órcades levar-te-ia para os lados da costa de Dalriada, Knut. Inis Eala fica bem longe, a ocidente, da vossa rota natural.
- É verdade. Mas um vento estranho apanhou o Freyja, desviando-nos para oeste. Não havia como fazer-lhe frente, apesar de remarmos até se nos quebrarem as costas.
- Freyja - repetiu Evan. - Então, o vosso barco foi nomeado em homenagem à deusa nórdica da Primavera.
- Era uma bela nave. Uma perda terrível. - Knut estava a fazer um esforço por manter os ombros direitos e o queixo erguido, mas a sua voz vacilou enquanto falava. Kalev traduziu, com calma: - Espero que consigam salvar a vida deste homem. Virei vê-lo todos os dias. Quando recuperar a consciência, quando quiser contar a sua história, talvez um rosto familiar possa ajudá-lo.
Tendo em conta que Knut não sabia sequer como se chamava o outro homem, a ideia pareceu-me um pouco estranha, mas não fiz qualquer comentário. Tinham vivido um pesadelo juntos, sobreviventes e falecidos. Se aquelas palavras não faziam muito sentido, havia boas razões para isso.
- Voltaremos a falar disto mais tarde - disse Johnny. - Agora, devias voltar para junto da tua mulher. Obrigado pela ajuda. - O meu primo olhou de relance para o homem deitado na enxerga e pareceu-me que via o mesmo que eu: alguém que simulara muito bem que estava a dormir.
- Só mais uma coisa - acrescentou. - Sabes se este homem compreende irlandês? É um homem do Norte?
- E estrangeiro - respondeu Knut. - Sabe algum nórdico. Mais, não sei dizer-te. Ele não falou de todo?
- Nem uma palavra - disse Muirrin.
- Quando acordar, vai sentir-se confuso - acrescentou Knut, examinando de perto as feições do sobrevivente. Talvez tivesse percebido, também ele, que o homem não estava a dormir. - Tudo baralhado: sonhos e verdade misturados, como um guisado de vários tipos de carne.
Muirrin fez um sorriso forçado.
- Já me daria por satisfeita se ele falasse. - Apressou-se a acrescentar:
- Desculpa, não quis ofender a tua mulher, Knut. Sei que ela é muda e não pode falar connosco.
- Muda, sim. E perturbada. Vou ter com ela agora. Mais uma vez, agradeço-vos a todos.
- Kalev leva-te para a camarata - disse Johnny. - Dorme bem. Fica descansado que este homem está em muito boas mãos. Se há alguém que consegue salvá-lo são os nossos curandeiros.
A porta fechou-se atrás de Kalev e do nórdico. Johnny sentou-se ao lado do doente e falou-lhe em voz baixa, em irlandês, explicando-lhe em poucas palavras onde se encontrava, dizendo-lhe que estava em segurança, garantindo-lhe que não tínhamos qualquer intenção de fazer-lhe mal. Depois, o meu primo repetiu o que dissera numa língua que me pareceu, ao meu ouvido desconhecedor, um nórdico bastante razoável. Talvez a presença de Kalev como intérprete tivesse sido desnecessária. Isto não me surpreendia; podia ser uma vantagem para um chefe não revelar o que sabia de uma outra língua. Johnny demorou-se ainda algum tempo, enquanto eu bebia a minha infusão de ervas e os outros concluíam o empacotamento desse dia. Reparei que o doente abrira novamente os olhos e fitava Johnny com a mesma desconfiança que me dirigira a mim. Antes de o meu primo se levantar, a cadela avançou com passinhos rápidos e lançou-se num voo estouvado para cima da enxerga. Depois, apalpou terreno, deu várias voltas e deitou-se ao lado do inválido.
- Ela ajudará a mantê-lo quente - comentou Gull. - É pena não termos um cão maior. Evan, tu e Muirrin podem muito bem ir deitar-se. Sibeal e eu encarregamo-nos disto. Johnny, com a chegada dos homens de Connacht a qualquer momento, vamos ter de conversar.
- Hum! - O meu primo ficara sério de repente. - Isto criou algumas complicações suplementares que não me agradam, é verdade. Mas a nossa conversa pode esperar até depois do rito fúnebre. A história de Knut é um pouco vaga. Talvez, com o tempo, ele possa dizer-nos algo mais.
- Homens de Connacht? - perguntei.
- Temos um grupo a chegar para receber treino - respondeu. - Os nossos inesperados visitantes dificultam um pouco as coisas, mas não precisas de preocupar-te com isso, Sibeal. - Sorriu. - Estamos a exigir muito de ti, não estamos? Um salvamento heróico num dia, um rito funerário no outro. É fácil esquecer que ainda és muito jovem.
- Se os meus dons são necessários aqui, eu devo usá-los - repliquei.
- Não era o que Ciarán tinha em mente quando te enviou para Inis Eala, tenho a certeza, mas foi, sem dúvida, uma sorte para este homem - disse Johnny. - Agora, desejo-te uma boa noite. Muirrin, Evan, acompanham-me no regresso?
Um silêncio abateu-se sobre a enfermaria, apenas interrompido pela respiração laboriosa do sobrevivente. Gull acendeu mais uma candeia e veio sentar-se na enxerga, do outro lado. O homem jazia, imóvel, com os olhos de novo fechados. Agora, talvez estivesse mesmo a dormir.
- Fizeste uma coisa corajosa - disse-me Gull, num sussurro. - Fazes-me lembrar a tua tia, Liadan. Parece que não conhecem o medo. Apenas a vontade de fazer o que tem de ser feito.
Sorri.
- Não sei se lhe chamaria coragem. Para dizer a verdade, não estava sequer a pensar, no momento. Não me pareceu que tivesse escolha.
- Salvaste a vida deste homem. E arriscaste a tua, no processo.
- Tal como tu arriscaste a tua ao salvar Bran, há muito tempo - retorqui, lembrando a história épica do salvamento de Bran por dois inusitados heróis: a franzina Liadan e Gull, com as mãos estropiadas envoltas em ligaduras tingidas de sangue.
- Hum - murmurou ele. - Tens razão: nessas circunstâncias, um homem não pensa em mais nada a não ser no passo seguinte. Limita-se a continuar até chegar ao fim. Eu tinha boas razões para isso, é claro: corria risco de vida, Liadan e Johnny estavam em perigo, e Bran era meu amigo. Este homem é um perfeito desconhecido.
A ideia fez-me pensar.
- Eu sabia que ele estava lá em baixo antes de o ver - confessei. - Faz parte do meu dom de vidente, que é bênção e maldição. Aparece do nada: um rastilho de sensação, ideia ou sentimento. Um mero vislumbre de Visão. A maior parte das vezes, não há nada que eu possa fazer, porque se dissipa sem me dar tempo de decifrar o seu significado. Mas senti a presença dele; algo me levou àquele lugar.
Gull pensou nisto alguns instantes.
- Se acreditas que foste levada a encontrá-lo - disse -, isso significa que ele vai sobreviver?
- Espero que sim. Muirrin não me pareceu optimista. Qual a tua opinião?
- Ainda é cedo para dizer. Não me agrada este assobio que ouço quando ele respira. Mas ainda tem garra. Deve ter nadado pelo menos uma parte do caminho. Nem o próprio Cú Chulainn sobreviveria tanto tempo inconsciente dentro de água. Tens razão quanto a essas bolhas, Sibeal: as mãos dele parecem doridas. Até pode ser um pequeno problema, em comparação com os seus outros males, mas é um problema que eu talvez possa solucionar. Tenho um bálsamo. Vou buscá-lo agora mesmo...
Assim que Gull se levantou, afastando-se, o homem abriu os olhos. Se antes tinha um ar desconfiado, agora parecia estar a olhar para um abismo sem fundo. Desconcertava-me a ideia de poder ser eu a fonte de tal inquietação. Nem sequer trazia vestida a minha túnica de druida, apenas um vestido e um xaile, com o cabelo molhado caído sobre os ombros.
- Gull, ele acordou - anunciei. - Dou-lhe água?
Mas, antes que Gull pudesse responder, as pálpebras pesadas do doente já se tinham fechado outra vez. Fang levantou-se, deu três voltas sobre os cobertores e, com um suspiro, tornou a deitar-se.
Gull cuidou das bolhas do doente, as suas mãos, também elas desfiguradas, movendo-se com suavidade e firmeza. Estivemos de vigília algum tempo, sem falar muito. Era agradável estar ali em silêncio, à luz quente da lareira e da candeia, deixando que os sons amargos e as imagens sinistras do dia assentassem nas nossas mentes. Julgava eu que a comunidade inteira já se fora deitar, mas, um pouco mais tarde, Clodagh entrou, seguida de Cathal.
- Ainda de pé, Sibeal? - Era evidente que a minha irmã já o esperava e fora por isso mesmo que viera. - Para a cama! Vai lá. Nós fazemos companhia a Gull durante algum tempo. Podes ser druida, e heroína também, mas precisas do teu sono.
Talvez fosse da infusão que Gull me tinha preparado, ou do simples cansaço que finalmente me vencia, decidi não argumentar, embora me parecesse que a minha irmã, já tão perto da sua hora, devia precisar mais de descanso do que eu. A presença de Cathal tranquilizou-me. Ele não a deixaria ficar acordada até muito tarde. Desejei a todos eles uma boa noite e retirei-me para o meu pequeno quarto, onde uma corrente de ar frio entrava, assobiando, por debaixo da porta. Ao enfiar-me dentro da cama, desejei que houvesse mais de um cão naquela ilha.
Na manhã seguinte, o vento transformou-se num furioso temporal. O mar cinzento ergueu-se em cristas de espuma branca e as nuvens cobriram o Sol. A preparação da sepultura prolongou-se sob o céu carregado: os homens saíam em grupos e voltavam periodicamente para junto do forno de lenha da cozinha, a tiritar, as mãos geladas envolvendo malgas de sopa de legumes feita por Biddy. Passei uma grande parte do dia no meu quarto, a preparar-me para a cerimónia. Na enfermaria, o trabalho seguia a sua rotina habitual, Muirrin cuidando de vários pacientes que entravam e saíam, com a ajuda pontual de Clodagh, enquanto Gull e Evan faziam turnos para velar o homem que eu tinha socorrido. Fiz o meu turno quando os outros foram comer. Era notório que o seu estado se agravara. A tez assumira um alarmante matiz acinzentado e, quando os olhos se abriam, pareciam vidrados, como se não estivessem, de facto, a ver-me. Segurei-lhe na mão e murmurei algumas orações.
Um pouco mais tarde, quando já estava calmamente sentada no meu quarto a planear as palavras do ritual que executaria ao cair da noite, ouvi Muirrin e Evan a conversar na sala principal da enfermaria.
- Olha para isto. A urina dele é tão escura como madeira de carvalho.
- Passou muito tempo no mar - retorquiu Evan. - Isso arruina as entranhas de um homem. Devo dizer... - A voz quebrou-se, num murmúrio.
- Talvez seja melhor que Sibeal não saiba disso - volveu a minha irmã e, nesse momento, entrei na enfermaria.
- Não saiba do quê? - indaguei.
- Vais ficar transtornada - disse Muirrin.
- Ficaria mais transtornada se pensasse que estavam a esconder-me algo - retorqui. Talvez lhe tivesse falado menos como irmã do que como druidesa, porque Muirrin tratou de explicar tudo do princípio ao fim, como faria a um outro curandeiro. Após uma longa imersão na água e exposição ao frio, o corpo perde, por vezes, a capacidade de executar certas tarefas vitais. A urina escura era um sinal ominoso. Outros sintomas poderiam seguir-se: a incapacidade de verter água durante dias, provocando uma acumulação de humores doentios. Ou o contrário: uma súbita descarga que deixava o doente vazio e fraco.
- Existe algum remédio? - perguntei. Ela tinha razão: eu estava transtornada.
- Nada que tenhamos a certeza de que funciona - respondeu, sem rodeios. - Talvez Gull saiba mais alguma coisa.
Depois disto, sentei-me num lugar de onde conseguia ver o doente. Talvez se o velasse e lhe ordenasse que vivesse, Morrigan não viesse buscá-lo. Mas era uma ideia absurda: nenhum druida ou guerreiro, rei ou sábio tinha o poder de enganar os deuses. Senti-me aliviada quando Gull entrou. A sua presença forte e serena acalmava-me.
- Continua a dar-lhe água - disse ele, quando Muirrin lhe explicou o problema. - E vegetais: feijões, cenoura, beterraba, nabo, tudo o que tivermos em reserva ou na horta. Biddy pode fazer uma sopa com tudo triturado, que seja fácil de engolir.
- Só legumes? - Muirrin parecia céptica.
- Já vi isto funcionar no passado - replicou, e eu senti-me logo mais animada. - Leva o seu tempo. O truque é mantê-lo vivo até as vísceras começarem, de novo, a fazer o seu trabalho. Um de nós terá de ficar aqui, a mantê-lo quente, a ver se está bem instalado e se consegue respirar, a dar-lhe força. Nisto, podes ajudar, Sibeal: os druidas conhecem muitas e boas histórias. Algumas delas não seriam mal empregues.
- Ajudo de bom grado - respondi, admirada com a maneira como o seu pragmático discurso me dera ânimo.
- Eu gostava era de ouvir a história dele - comentou. - Deste rapaz. Johnny enviou uma patrulha esquadrinhar as enseadas à volta da ilha, para ver o que deu à costa, e os homens estão a trazer para cima algumas coisas surpreendentes.
- Que coisas? - perguntou Muirrin.
- Coisas valiosas. Uma caixa de madeira de carvalho com frisos de metal à volta; um livro com uma capa revestida a pedras preciosas; restos de tecido, talvez seda. Arruinados, claro. Faz-me pensar que talvez alguém levasse oferendas. Talvez houvesse um grupo de emissários a bordo. Parece que Knut não sabe grande coisa.
- Havia três homens cujo nome ele desconhecia - disse eu. - Este e dois que morreram.
- Ah, enfim, a história acabará porvir à superfície, creio eu - retorquiu, contendo um bocejo. - Pobre homem. Knut, quero eu dizer. Quanto à mulher, parece quase destruída pela dor. Biddy contou-me que ninguém no alojamento dos casais conseguiu descansar a noite passada, por causa do choro convulsivo de Svala. O que torna a ideia de dormir aqui em cima por uns tempos quase tentadora.
No fim do dia, o vento amainara, mas o mar entrava pela costa com impiedosa ferocidade, erodindo as falésias, arrastando as praias de seixos, recordando-nos o poder que, em breves instantes, já levara tantas vidas. As nuvens pairavam, escuras e maciças, e o Sol descia no horizonte. Johnny decidiu não esperar pelo anoitecer tardio do Verão e realizar a cerimónia assim que tudo estivesse a postos.
Tochas tinham sido dispostas em torno da zona escolhida, onde a forma de um barco fora escavada no chão e delineada com uma dupla fileira de pedras. Constituímos uma procissão solene. À cabeça, iam dois dos homens mais altos da ilha, um deles levando uma espada e um escudo, o outro, uma lança. A seguir, iam os defuntos, cada um transportado numa maca por dois guerreiros de Johnny. Eu vinha atrás, com a minha túnica de capuz. Tinha entrançado o cabelo e prendera-o em cima. Nas mãos, levava uma pequena tigela com ervas aromáticas para queimar no braseiro que fora colocado junto da sepultura. Os homens e mulheres de Inis Eala seguiam-me. Julguei que Svala não viria, mas ali estava ela, a caminhar ao lado do marido, os cabelos dourados soltos e um vazio nos belos olhos azuis.
Gull ficara na enfermaria e uma ou duas pessoas estavam a cuidar do gado ou a tomar conta das crianças, mas quase toda a comunidade da ilha se reunira ali, em silêncio, à volta da sepultura. Os mortos foram dispostos em duas filas, e os guerreiros que tinham encabeçado a procissão pousaram a lança, o escudo e a espada no chão, entre os defuntos. Knut explicara-nos que um homem do Norte era sepultado com as respectivas armas, em reconhecimento da sua virilidade: um guerreiro, em particular, tinha de ir armado para a outra vida. Como o mar levara tudo o que pertencia àqueles homens, a comunidade de Inis Eala fornecera-lhes esses objectos, para serem partilhados.
Dei um passo em frente, para espalhar as ervas sobre a fogueira e dar início às orações. Não executei um ritual druídico completo, mas tentei, com gestos e palavras simples, transmitir o desejo de que os deuses que agora nos olhavam com benevolência conduzissem os marinheiros afogados ao que quer que fosse que os esperava a seguir. No meu entendimento, os Nórdicos acreditavam que os homens que morriam com bravura, no campo de batalha, ascendiam ao reino dos imortais, onde celebrariam a eternidade ao lado da sua venerada divindade bélica. Era provável que o mesmo destino estivesse reservado à tripulação de um barco que se desentendera com o vento e com as vagas. Era uma crença diferente da nossa, mas devia, na mesma, ser respeitada.
Muirrin caminhava entre os mortos com uma malga de água, salpicando o ar, e Brenna trazia folhas aromáticas esmagadas que ia espalhando pelo caminho. Johnny falou da coragem que levava os homens para longe das suas terras em busca de novas oportunidades e de como os riscos faziam parte do que era ser homem e viver uma vida boa e plena.
Quando terminou, passei por entre os mortos, ajoelhando-me ao lado de cada um deles para lhes pousar a mão na testa. E, embora dissesse apenas os seus nomes, invoquei em espírito os meus próprios deuses, os velhos, bons deuses, para levarem os defuntos suavemente até à outra margem, na sua derradeira e mais misteriosa viagem.
- Thorolf Magnusson e Ranulf, seu irmão. - Três passos. - Svein Njalsson. - E o próximo. - Mord Asgrimsson. - Morto; morto e frio. Perguntei-me se não teria uma mulher, algures, a manter o fogo do lar aceso, para alumiar o seu regresso. - Starkad Thorkelsson. - Tão jovem que ainda mal começara a ser um homem. - Sam Gundarsson. - Aproximei-me do homem de barba grisalha. - E este ancião, cujo nome desconhecemos. - Mais alguns passos. - E este jovem, que morreu antes do tempo. - Que morreu com as mãos cobertas de bolhas. - Prestamos-lhes homenagem. Que a bênção dos deuses recaia sobre eles e sobre todos os homens, mulheres e crianças que pereceram quando o Freyja aqui naufragou. Para os que aqui jazem, agora, e para os que repousam no abismo, dizemos a mesma oração. Que os seus espíritos voem com os ventos; que as suas almas sejam acolhidas no berço das ondas; que as suas vidas sejam celebradas em histórias cativantes à volta de uma lareira. Que o seu amor pela família e pela terra, pela pedra do lar e pelo chefe do clã, pelo clã e pelo parente, permaneça forte nos seus filhos e nos filhos dos seus filhos.
O rosto de Knut parecia duro como pedra. Ao seu lado, sustinha-se Svala, sem verter uma lágrima, de olhos fixos no vazio à sua frente. Kalev traduziu as minhas palavras, num murmúrio.
Eu tinha falado com Knut acerca da parte seguinte do ritual, mas era difícil na mesma articular as palavras na presença de ambos, ali no círculo. Pigarreei.
- Digo uma oração especial pelas crianças que se perderam. Sobretudo, por Svein Knutsson, filho dos nossos novos amigos, aqui presentes. - Lágrimas caíam sobre as faces de Knut, um ribeiro sobre granito. A expressão de Svala não revelava uma só centelha de mudança, embora me devesse ter ouvido dizer o nome do seu filho. - Foi levado pelos deuses mais cedo do que o previsto. Agora, está em paz, ao lado dos seus antepassados, nesse lugar que existe para além da morte. Rezem por ele e por todos os que aqui se perderam.
Momentos depois, saí do interior do desenho feito com pedras, seguida por Muirrin e Brenna. Os homens que tinham escavado a cova, mais cedo nesse dia, pegaram nas suas pás para deitar o último lençol de terra sobre aqueles que dormiam. Um silêncio fantasmagórico pairava no ar, apenas interrompido pelo choro de uma criança que a mãe abafou contra o ombro.
- Agora, Sibeal? - perguntou Johnny, numa voz delicada.
Aquiesci. As pás ergueram-se e baixaram-se; a terra caiu suavemente, chuva negra sobre as mortalhas dos mortos. A luz trémula de uma tocha bruxuleava no círculo de rostos sombrios e vigilantes.
Aconteceu num segundo. De um momento para o outro, eu, que estava de pé, fiquei estendida no chão com a cara virada para baixo, derrubada por Svala, que se lançara para a frente. Enquanto tentava sentar-me, agarrou-me pelos ombros e abanou-me com tanta força que senti os dentes a chocalhar. Um grito rebentou dentro dela, estridente, ululante. E, depois, Knut começou a arrancá-la de ao pé de mim, puxando-a para longe, enquanto Johnny e Cathal acudiam em meu socorro.
- Estás ferida, Sibeal?
- Estou... Estou bem. Ela apanhou-me desprevenida. Temos de continuar o ritual, Johnny. - Olhei para lá do meu primo. Ali estavam Muirrin e Clodagh, um pouco mais pálidas do que era costume. E Knut, que segurava Svala com os dois braços, falando-lhe numa voz sussurrada. O seu peito erguia-se e baixava-se, mas ela estava em silêncio. Não enfrentou o olhar firme do marido; os seus belos olhos tinham-se virado para o chão.
- O desgosto apoderou-se dela, penso eu - disse Johnny, em voz baixa.
- E é melhor libertar a dor do que fechá-la cá dentro. Mas isso não é desculpa para um acto de violência.
Não fora desgosto o que eu sentira no aperto das mãos fortes de Svala. O que eu sentira fora um pedido de socorro.
- Tens a certeza de que consegues continuar, Sibeal?
- Claro. - Ainda estava a tentar respirar normalmente. - Precisamos de uma última bênção, é só isso. Seria bom seres tu a dizê-la, enquanto chefe da comunidade.
O ritual não podia terminar numa nota de violência ou de discórdia. Os deuses ficariam descontentes, e os espíritos dos mortos viajariam sob uma sombra.
O meu primo deu um passo em frente, silhueta sombria na sua túnica escura, as marcas do corvo nas faces e testa ganhando misteriosamente vida à luz movediça do archote. O céu como que se dissolvia agora em crepúsculo.
- Que os deuses vos protejam na vossa viagem - disse, numa voz serena. - Homenageamos o vosso esforço. Saudamos a vossa coragem. Oferecemos as nossas preces na vossa transição para o Além. Que a memória do que foram fique guardada em todas as pedras desta ilha. Que as vossas canções sejam assobiadas pelo vento. Que as línguas dos bardos contem a vossa história até ao fim dos tempos.
As pás ergueram-se e tornaram a cair. Algum tempo depois, um tempo feito de silêncio, apesar do embate seco do metal na terra e da suave descida do solo, a cova converteu-se num monte. Pedras seriam ali colocadas para lhe dar firmeza; aquele barco manteria a sua rota para nordeste, na direcção da casa ancestral dos marinheiros. Com o volver das estações, exibiria um trémulo manto de erva.
O crepúsculo desceu sobre a ilha. Enquanto regressávamos à povoação e ao calor da lareira, a chuva começou a cair em aguaceiros súbitos, encharcando os homens e mulheres ali presentes, alagando os caminhos e inundando todas as covas com uma água escura, cor de ardósia. As tochas silvaram e morreram. Atrás de nós, a sepultura jazia, silenciosa, na luz morrente. O ritual estava concluído.
Sentia-me demasiado cansada para ir cear ao salão e demasiado inquieta para pensar em dormir. Na enfermaria, Muirrin tratou das minhas nódoas negras e Clodagh trouxe-me de comer e de beber. Pessoas entraram e saíram. Fiquei a saber, através de Evan, que a Knut e Svala fora oferecida a cabana do pescador, lá em baixo ao pé da grande enseada, longe do resto da comunidade, e que ele a aceitara de bom grado. Svala não tinha aparecido para jantar, contou Evan, mas Knut viera ao salão e percorrera as várias mesas, com Kalev, para agradecer pessoalmente a todos os membros da comunidade a amabilidade com que os tinham recebido, a ele e à mulher.
Mais tarde, já Evan e Muirrin se tinham ido deitar e eu estava sentada à cabeceira do doente, absorta nos meus pensamentos, enquanto Gull se atarefava na bancada de trabalho, Johnny entrou na enfermaria. Saudou Gull com um aceno e, depois, veio ter comigo.
- Como te sentes, Sibeal? Aquilo foi... inquietante.
- Tenho mais uma nódoa negra ou duas para além das que arranjei ontem, mas nada de grave.
- Fizeste um bom trabalho. Permaneceste calma, concluíste o ritual... Ciarán teria orgulho em ti.
Johnny sentou-se à minha frente. Senti o seu escrutínio. Estava a fazer aquilo em que era perito: absorver o que jazia sob a superfície.
- Hum. - Eu sabia muito bem o que teria dito Ciarán se ali estivesse. O que poderias ter feito de diferente, Sibeal? Que lição podes tirar daqui? Um druida estava sempre a aprender. Buscava sabedoria em tudo o que acontecia à sua volta, no previsto e no imprevisto. Naquele momento, eu não me sentia muito sábia. Sentia-me exausta, sem pé, à beira das lágrimas. Svala precisava de ajuda. Estava a tentar dizer-mo, ou assim me parecia. Mas agredira-me com alguma violência quando eu estava a fazer o meu melhor para executar um ritual solene no qual homenageava o seu filho morto. Por que faria ela tal coisa? Ter-me-ia enganado a respeito desse pedido de ajuda? Talvez estivesse fora de si e incomunicável. - Espero que os deuses nos tenham olhado com benevolência. O desgosto de Svala despedaçou-a, bem sei. Mas aqueles homens mereciam melhor. Eu devia ter previsto que ela podia cometer um acto de loucura e tomado medidas para evitá-lo.
- Sibeal, olha para mim.
Olhei. Pareceu-me um esforço imenso.
- Estavas exausta e transtornada. Evan contou-me que o homem que salvaste pode não sobreviver e imagino o que deves sentir a esse respeito. No entanto, assumiste essa responsabilidade perante nós. Depois da explosão de Svala, recompuseste-te e concluímos o ritual. Fizeste um bom trabalho.
Tive relutância em dizer-lhe que o que provocara o meu colapso fora mais do que simples exaustão. A falha que levara Ciarán a mandar-me para longe, a janela aberta que eu parecia ter dentro de mim para os medos e as dores dos outros, nunca fora tão clara como naquele dia. Falar disso seria admitir uma fragilidade de que poucos tinham conhecimento.
- Espero que Svala consiga recuperar, com o tempo.
- Tempo - repetiu Johnny. - É precisamente aquilo que não temos, por infortúnio, com a chegada iminente destes homens de Connacht.
- Que diferença faz isso?
- Segredos - interveio Gull, do lugar onde estava, a cortar algo sobre a bancada. - Ninguém vem a Inis Eala sem marcar encontro prévio. Estamos mais acostumados a receber grupos de guerreiros do que marinheiros de má sorte. Quando recebemos homens em busca de instrução, tomamos precauções para que aprendam apenas aquilo que quisermos ensinar-lhes.
- Compreendo. - Desde os tempos de Bran que os homens de Inis Eala ensinavam não só métodos de combate, o fabrico de armas e tácticas de batalha, mas muitas outras competências que um chefe poderia pôr em prática para conservar a sua vantagem: cartografia, por exemplo, vigilância dissimulada e códigos secretos. Aquilo que, noutros tempos, tornara o bando de proscritos de Bràn temido e invejado em todo o norte de Erin, fazia agora de Inis Eala um lugar muito procurado enquanto recinto de treino para guerreiros de elite. - Que tem isso a ver com Knut e Svala? Ou com ele? - O homem na enxerga estava a dormir, as suas pesadas pálpebras fechadas, o rosto, um esboço a branco e cinzento.
- Sabemos muito pouco sobre estas pessoas, Sibeal - disse Johnny.
- Parece que Knut ofereceu de bom grado os seus serviços como remador e não mostrou qualquer interesse em saber quem era o dono do barco ou o motivo por que este levava alguns passageiros. Não é capaz de indicar-me um único nome em Ulfricsfjord a quem eu possa enviar a minha missiva. A minha vontade é despachá-los, a ele e à mulher e a este indivíduo, para o continente, antes de os nossos visitantes chegarem. Os meus companheiros da povoação do outro lado arranjam-lhes passagens para casa. Mas Muirrin disse-me que, caso sobreviva, este homem não estará em condições de viajar durante muito tempo. E é evidente que Svala não pode ir a lado nenhum. Teremos de conservá-los aqui por uns tempos.
- Não creio que algum deles seja um espião - repliquei, interrogando-me se fora isso que Johnny insinuara-, ou teriam chegado por vias menos trágicas.
- Pois, também não creio. Mas, enquanto aqui estiverem, teremos de mantê-los debaixo de olho. E, vendo os cuidados que este homem exige, os nossos curandeiros vão andar muito atarefados. Quando estamos em fase de treinos, há sempre ferimentos.
- Darei a minha ajuda, é claro - disse eu.
- Óptimo - retorquiu Johnny. - Sibeal, sinto que não interiorizaste as minhas palavras. Não devias permitir que o que aconteceu no enterro te pesasse na consciência. Nunca minto aos meus homens acerca do seu desempenho no terreno, e não te mentiria a ti. Quando te digo que executaste bem a tua tarefa, devias acreditar em mim.
- Obrigada, Johnny.
Os homens respondiam-lhe a ele enquanto comandante, e cabia-lhe a ele determinar se se tinham portado bem ou não. Na ausência de Ciarán, apenas os deuses poderiam avaliar os meus êxitos e os meus fracassos. E eu não conseguia afastar o sentimento de que, de alguma forma, estavam a observar-me com uma certa desilusão.
- És muito dura contigo mesma - comentou.
- O caminho que sigo é o da constante aprendizagem. Constante aspiração ao aperfeiçoamento.
- Não te esqueças de que a tua família está aqui. Podes ser uma druidesa, mas devias recorrer ao nosso apoio, se precisares dele. Agora, tenho de ir. Boa noite, Sibeal. Boa noite, Gull.
- Boa noite.
Fui sentar-me na esteira diante do fogo, observando o padrão das chamas. Gull deslocava-se em silêncio pela enfermaria, trancando portadas, abrindo a porta para deixar sair Fang e recebendo-a de volta com um murmurado "Vossa Senhoria". Por fim, instalou-se na cama-beliche, ao canto. Garantira-me que tinha um sono leve e que acordaria se o doente precisasse dele, pelo que eu podia ir deitar-me quando quisesse. A cadela adormecera na curva dos joelhos do doente. Uma candeia continuava acesa. A minha cabeça era um atropelo de pensamentos, e eu sabia que o sono tardaria a chegar. Ouvi os sons que vinham da sala ao lado: a crepitação do fogo, o ranger das madeiras com o vento, o ressonar fanhoso de Fang, a pieira laboriosa da respiração do sobrevivente... Estava acordado. Sentia-o sem ter de aproximar-me. Acordado; sozinho; assustado.
Fui sentar-me à beira da enxerga. Ele tinha os olhos abertos: janelas de um azul intenso. Havia sombras à volta deles, covas nas maçãs do rosto. A pele assumira essa palidez que caracterizava as criaturas marinhas, seres que nunca viam a luz do Sol. Os braços jaziam, sem vida, sobre as cobertas, os dedos compridos das mãos abertos. Fang encostara o focinho à sua mão direita. Fechei os meus dedos à volta da esquerda. Algo se alterou no olhar dele.
- Vi que estavas acordado - disse-lhe. - Chamo-me Sibeal. Sou uma druidesa; uma mulher sábia.
Pareceu-me necessário falar, mesmo que ele não percebesse as palavras, apenas para lhe dar algum conforto. Mas não podia mencionar o naufrágio, os afogados, o enterro, a interrupção no ritual desse dia. Não devia dizer nada que o perturbasse. Uma história. Contar-lhe-ia uma história.
- Não vivo aqui, na ilha - comecei por dizer. - Vivo longe, no Sul, em Sevenwaters, onde o meu pai é o chefe do clã. Quando sair daqui, no fim do Verão, não voltarei para casa, para junto dos meus pais, da minha irmã e do meu irmão mais novo, que ainda lá vivem. Se o meu mestre achar que estou preparada, farei finalmente o meu juramento como druidesa. Viverei fora de casa, na floresta de Sevenwaters, como membro da comunidade druida que aí se encontra instalada.
Sevenwaters: a sua imagem nunca estava longe do meu pensamento. Os trilhos mosqueados da floresta, os sete ribeiros nos seus vários estados de alma, as rochas à beira do lago, onde gerações e gerações de crianças se tinham sentado a sonhar. O bosque de carvalhos jovens. O vidoeiro solitário. Todos os espaços tinham a sua história. A própria torre da fortaleza, com os degraus de pedra até ao telhado, onde uma criança podia sentar-se a contemplar a imensidão da floresta à sua volta. E essa floresta, com os seus caminhos caprichosos e os seus lugares recônditos, lugares secretos onde se abriam portas para um mundo ainda mais estranho do que a mais estranha das histórias. Sevenwaters: casa não só de homens e mulheres, mas de misteriosas e inquietantes raças do mundo antigo... Como podiam simples palavras explicar uma coisa tão prodigiosa, tão cheia de beleza, tão arreigada na sua diferença?
- Mas não estou triste por me separar da minha família - continuei, encorajada pelo aparente interesse com que a minha assistência me observava. - Sei, desde muito nova, que fui destinada a uma vida espiritual. Quando me sinto confusa ou agitada, quando algo me preocupa, recordo o dia em que o descobri. Devia começar por explicar que Sevenwaters, a minha casa, é um lugar de muitas histórias; histórias de família, histórias de mistério e de magia, histórias de povos estranhos e diferentes. Nós somos fiéis à velha fé. Agora, à nossa volta, muitas outras famílias são cristãs. Aos poucos, isso separar-nos-á. As fortificações do meu pai protegem não só a nossa casa e os nossos povoados, como os druidas e... certos outros.
"É claro que, quando era criança, eu não percebia tudo isto. Só sabia que o tio Conor nos vinha visitar nos dias de festival, com a sua túnica branca e o seu torque de ouro, e que executava o ritual. Por vezes, se tivéssemos sorte, pediam-nos a uma de nós, raparigas, que desse uma pequena ajuda, talvez levando um objecto na procissão, ou dando a voz no canto de uma oração. Tenho cinco irmãs, quatro mais velhas, uma mais nova, e um irmão pequenino. Quando chegámos a uma certa idade, todas nós tivemos a nossa oportunidade de dançar no Meán Earraigh, a celebração da Primavera, em cujo ritual uma rapariga jovem desempenha o papel da virgem.
Hesitei, dando-me conta de que isto não era inteiramente verdade. A vez de Maeve nunca chegara. Quando tinha apenas dez anos de idade, queimara-se num terrível acidente e, pouco tempo depois, deixara Sevenwaters para ir viver com a tia Liadan, na Bretanha. O extraordinário dom de curandeira da minha tia destacara-a como a pessoa mais indicada para ajudar uma rapariga com as mãos deformadas e o rosto cheio de cicatrizes. E Clodagh também perdera a sua vez, porque o ano que lhe calhara fora o ano desse desastre. No seu desgosto, Sevenwaters fora indiferente ao ritual.
- Muito antes de ter idade suficiente para executar eu própria esta dança - contei, pensando em como era complexa a teia de mágoas, alegrias e experiências partilhadas da família -, descobri que os deuses me tinham reservado um caminho especial. Até àquele momento, não creio que o resto da família soubesse que eu via o mundo de uma forma muito diferente. Os meus olhos devem ter-me denunciado. As minhas irmãs têm olhos verdes, mas os meus, como vês, são de um azul-claro-acinzentado. Olhos como estes só nascem com os membros da minha família que possuem o poderoso dom da Visão. - Fiz uma pausa, de súbito invadida pela imagem do meu irmão, com o seu cabelo escuro em desalinho e o olhar claro e firme. Aos quatro anos de idade, Finbar tinha o porte de um sábio eremita, o que não era pouco desconcertante. Os seus olhos repetiam os do seu homónimo, o homem com a asa de cisne; e os meus. - Este dom manifesta-se em muitos elementos da minha família. Alguns são capazes de comunicar em pensamento, sem palavras. Outros têm sonhos proféticos. Outros ainda possuem o talento da interpretação de sinais e presságios. Em alguns de nós, o dom é... mais poderoso. Perigoso, se não for bem governado.
"Soube, desde muito cedo, que não era como as minhas irmãs. Nunca me apetecia correr de um lado para o outro, brincar, fazer barulho. Preferia sentar-me em silêncio, a contemplar e a meditar. Tinha uma sede de conhecimento; estava sempre a atazanar o escriba do meu pai para ele me ensinar a ler e a escrever, antes mesmo de fazer três anos. Descobri que os animais confiavam em mim. Ao observá-los, percebi que era capaz de sentir, dentro de mim, o modo como os seus corpos funcionavam, as suas diferentes maneiras de ver e ouvir, os seus pequenos segredos. Não gostava de estar fechada dentro de casa muito tempo; precisava de sentir a terra por baixo dos pés e o vento nos cabelos. Mas todas essas coisas poderiam ter significado, apenas, que eu era uma criança pensativa, estudiosa e sossegada. Porém, quando tinha cinco anos, eu vi-a.
Nos nemetons, tinha aprendido a arte de contar histórias e deixei o silêncio prolongar-se. Ele devia compreender o que eu dizia; como poderia uma expressão tão atenta significar outra coisa qualquer?
- Um dia, estava sozinha nas rochas, à beira do lago, perto de casa - prossegui. - As outras tinham ido apanhar agriões à foz de um ribeiro. Eu estava a olhar para a água e a perguntar-me por que razão ali via sempre algo que eu sabia que não podia, de facto, lá estar: um barco no meio do mar, uma multidão de pequenas, estranhas criaturas, uma torre com uma bandeira no cimo... E, nesse momento, alguém falou atrás de mim. - Sibeal, vira-te, criança.
"E que voz era aquela! Feita de mel e de Sol, de ribeiro e de carvalho, uma voz que não pertencia, eu sabia-o, a nenhuma mulher humana. Levantei-me e encarei-a. Trazia um vestido azul e um manto que parecia mover-se sozinho, como fumo, água ou nuvem flutuante. Tinha o cabelo escuro e uma pele clara. Era mais alta do que todas as mulheres que eu conhecia e erguia-se, imponente, diante dos meus escassos cinco anos. Como aparecera ali, tão silenciosa? Ninguém entrava em Sevenwaters sem a permissão do meu pai. Ninguém vinha sem ser convidado.
" - Sibeal, deixa-me olhar para ti. - Os seus olhos acetinados fixaram-se em mim, em cuidadosa avaliação. - Criança, sou Deirdre da Floresta. Sou tua amiga; não tenhas medo de mim.
"- Senhora - repliquei, nervosa, num fio de voz sede bem-vinda. - Porque a minha mãe me ensinara boas maneiras. Acudiam-me ao pensamento as histórias que tinha ouvido a respeito dos Tuatha De Danaan, as Criaturas Encantadas. Dizia-se que algumas viviam nas profundezas da floresta de Sevenwaters. Parecia-me que aquela fascinante mulher só podia pertencer a essa nobre e antiga raça. Na verdade, eu já conhecia o nome Deirdre da Floresta de uma história da nossa família.
"- Vem, Sibeal - disse ela, levando-me de volta à beira do lago. Ainda a caminho, já eu via imagens a dançar na superfície da água: guerreiros, cavalos e águias em pleno voo. - Diz-me o que vês. Não tenhas medo. - Com o seu vestido esvoaçante, ajoelhou-se ao meu lado, e eu senti o perfume das brisas de Verão e o aroma do orvalho sobre o espinheiro-alvar. Descrevi-lhe os homens na água, as criaturas, as coisas estranhas para as quais eu não tinha nomes. Coisas assustadoras, por vezes. A Senhora explicou-me o que significava ver o que eu via e como poderia começar a procurar um sentido para tudo aquilo. Falou-me com simplicidade, tendo em conta a minha idade, mas não fugiu à verdade. Foi a minha primeira lição enquanto vidente. Mais tarde, veio uma outra espécie de instrução, a de Ciarán, rigorosa e desafiadora, como convinha à disciplina druídica, segundo a qual muitos anos deviam ser consagrados ao estudo da doutrina e de outros elementos. Ciarán é meu parente e meu mestre. Honro-o e respeito-o. Mas, naqueles primeiros tempos, Deirdre vinha muitas vezes ao meu encontro, na floresta, e a sua orientação forneceu-me os alicerces desta minha demanda para me tornar druida. Nunca deixei de sentir surpresa pelo facto de ela me ter escolhido a mim, pequena Sibeal, para ser o receptáculo de tal sabedoria.
Lembrava-me de ter guardado o tremendo segredo da sua visita durante o que me pareceu, na altura, uma eternidade, embora o mais provável fosse ter sido apenas do meio-dia até à hora da ceia, momento em que Maeve mo conseguiu arrancar.
- Nos velhos tempos, as pessoas pensavam que os Tuatha De Danaan eram deuses, ou algo próximo dos deuses - contei-lhe. - Os druidas discutem com rigor o que eles são e encontram várias respostas. Ao longo dos anos, as Criaturas Encantadas traçaram o caminho da família de Sevenwaters, para o bem e para o mal. Por vezes, parecem ser mensageiros dos deuses; a maior parte das vezes, têm as suas próprias intenções a respeito dos humanos, os seus próprios planos. São uma raça mais antiga do que a nossa: mais sábia, mais subtil, mais experiente. Mas não são assim tão diferentes de nós e criaram, por vezes, laços afectivos com homens e com mulheres, dos quais nasceram crianças em que as duas raças se encontram e misturam. Numa outra noite, contar-te-ei uma história a respeito dessas pessoas. - Não era preciso dizer-lhe que Cathal, que ali vivia em Inis Eala e era casado com a minha irmã Clodagh, era um deles, e que Ciarán era outro. Embora não fizéssemos segredo disso - sabia-se, na ilha, que a ascendência de Cathal era, de alguma forma, invulgar -, também não andávamos a espalhar a notícia aos quatro ventos. - Mas, por ora, dou por terminada a minha história e já te roubei demasiado tempo de sono. Está na hora de dormires.
Levantei-me, aconchegando-lhe a roupa de cama. Quando me endireitei, um sorriso fugidio aflorou ao rosto pálido do doente e, por instantes, consegui vê-lo como ele devia ser quando se sentia bem e feliz: um homem atraente, com lábios delicados e um olhar pensativo. Imaginei-o a lançar a bola a um cão, a pintar um quadro, a jogar com os amigos. Ou a escrever; aquelas mãos não eram as mãos de um agricultor, de um pescador, de um construtor.
- Desejo-te uma boa noite - disse-lhe, de súbito embaraçada. Quem quer que ele fosse, de onde quer que viesse, caber-lhe-ia a ele contar-nos a sua história, quando se sentisse capaz.
No meu pequeno quarto, confortável sob os cobertores, enquanto a corrente de ar frio entrava por debaixo da porta, rezei para que ele sobrevivesse e pudesse fazer isso mesmo. E pensei em Deirdre da Floresta, que me conduzira com tanta sabedoria e que eu já não via, agora, há muitos anos. Ela foi-se embora, dissera-me Ciarán. Partiu para o mar para nunca mais voltar. Muitos como ela tinham deixado aquelas paragens quando a humanidade impusera o seu domínio na viçosa terra de Erin. E, quando os sábios partem, não é raro que os que tomam o seu lugar sejam sucedâneos de inferior qualidade, gente para quem a ambição e a sede de poder superam o sentido da justiça e da compaixão. Um deles era Mac Dara, o pai de Cathal. Com o passar do tempo, este príncipe perverso seria capaz de fazer um mal incalculável às várias comunidades que partilhavam aquele lugar, incluindo o nosso povo. Perguntei a mim mesma quem teria o poder de impedi-lo.
Capítulo 3
Felix
omens caindo, mares encapelados, mandíbulas escancaradas com presas longas e afiadas. Acordo. Não consigo respirar. Arquejo, fazendo um esforço para me sentar, mas o corpo recusa-se a obedecer. Nada funciona. Articulo um ruído asmático, o grito patético de um animalejo preso na armadilha do caçador. Eles vêm, como um dueto de espíritos vigilantes, ocupando os seus lugares de um lado e do outro da cama. Levantam-me, seguram-me, falam-me com vozes suaves. São escuros, silenciosos, imponentes. Chamam-se... Gull. Gull e Evan. Pai e filho?
- Respira - diz Evan. - Respira.
Tento respirar. Quem sonharia que podia ser tão difícil?
Ela esteve aqui. A quietude em pessoa, a contar-me uma história de árvores e água e criaturas mágicas. Esteve aqui, à minha cabeceira, com os seus dedos delicados e uma voz doce e cristalina, como um ribeiro de montanha. Esteve aqui e desapareceu. Até a cadela desapareceu.
Muito tempo depois, respiro com mais facilidade. Evan lava-me e muda-me a roupa. Urino no balde que ele segura. Eles afastam-se para examinar o conteúdo, os rostos graves. Algo não está bem. Evan faz uma cara tranquilizadora e vem dar-me caldo de carne. Lá fora, é dia. Um vento frio assobia por debaixo da porta. Ele volta a fazer-me as mesmas perguntas.
É um homem paciente. Como te chamas? Percebes irlandês? Não tenho respostas para lhe dar.
O tempo passa. Uma luz forte: alguém abriu as portadas. Lá fora, o Sol brilha, mas está frio. Estou sempre com frio. A cadela não voltou. Sinto falta da sua pequena forma encostada a mim, da sua respiração quente, dos seus suspiros e resmungos lembrando-me que estou vivo. Penso que sim, que estou vivo.
O frufru de uma saia, além, ao pé da bancada. O meu coração bate com mais força. Ela está aqui! Tento virar a cabeça; o esforço extenua-me. Vejo uma mulher, esguia, de cabelos escuros, inclinando-se sobre um homem sentado. O meu coração dispara. Não é Sibeal, mas a outra, a curandeira, envolvendo o braço do homem com uma ligadura. Fecho os olhos. Quero falar. Quero perguntar. Faço o ensaio na minha cabeça. Onde está ela? Onde está ela com os seus olhos que escutam e uma voz que fala verdade? Não me atrevo a perguntar, receando que me digam que a imaginei.
Durmo. Ondas deflagram, homens gritam, algo se ergue, imenso e negro. Acordo a suar, tonto, com o quarto a girar à minha volta. Devia... Tenho de... Uma urgência pulsa-me no sangue e morde-me o coração até o fazer disparar a um galope furioso. Depressa, depressa, quase tarde demais... As imagens do desespero perdem força e desaparecem. Ao meu lado, na cama, senta-se a outra irmã, a que tem o cabelo cor de fogo e a pele cremosa como natas frescas. Talvez eu tenha estado a gritar. Ela humedece-me o rosto com um pano, os seus olhos semicerrando-se enquanto me examina.
- Melhor agora? - pergunta, com um pequeno sorriso. - Lembras-te de mim? Chamo-me Clodagh. Os teus sonhos atormentam-te. Respira devagar.
Deixa-se ficar ali sentada, quieta, enquanto faço um esforço por obedecer. A dor preside a cada inspiração; disseco-a nos seus vários elementos: o garrote que sinto no peito, a sensação de aspereza e ardor na garganta, a pontada no pescoço e nas têmporas.
- Tens sorte por estares vivo - diz-me Clodagh, encostando o tecido fresco à minha testa. - Sibeal salvou-te a vida.
Sibeal! Não pretendo dizer o nome em voz alta, mas talvez os meus lábios se movam para articular a palavra, porque os olhos dela se arregalam.
- Afinal, percebes - murmura. - Sibeal desconfiou que sabias um pouco de irlandês. Ela foi passar o dia fora. Foi à Gruta do Vidente, para orar e meditar. Regressa à hora de jantar.
Entra um homem de cabelo preto, e Clodagh levanta-se para saudá-lo.
- Cathal!
Observo-os enquanto falam. Quando Cathal olha para Clodagh, os seus olhos suavizam-se. Ela olha para ele com a mesma ternura. Está grávida. São marido e mulher, creio. Há uma estranheza em Cathal, um toque da floresta nocturna, da bruma sobre o lago, do poço proibido. Faz-me lembrar a história impressionante de Sibeal. Agora, diz à mulher que ela parece cansada, que devia estar a repousar e não a cuidar de mim.
- Muirrin não vai tardar - replica, serena. - Eu estou bem, Cathal. Já sabes como me custa ser ociosa.
Ele lança-lhe um olhar ameaçador. É um homem temível.
- E a criança?
- Há mulheres que lavram a terra, tecem cobertores e apanham colheitas durante todo o período de gravidez, e as crianças que dão à luz não são piores por causa disso - retorque ela, temível por sua vez. - Fico muito bem aqui até Muirrin voltar. Não tens trabalho para fazer, com estes visitantes a chegar a qualquer hora?
- Minha querida - diz ele, envolvendo-a nos seus braços -, desculpa-me. Não consigo evitar preocupar-me. - Toca no sítio em que o vestido dela cobre a forma da criança. - Se pudesse, passaria noite e dia a vigiar-vos a ambos.
Clodagh devolve o abraço, e eu desvio o olhar. O momento é terno, belo. Não se destina ao meu escrutínio.
- Vai, Cathal - diz ao marido. - Johnny precisa de ti.
Com alguma relutância, ele parte. Ela aproxima-se de mim com uma malga desse caldo que me têm dado à boca como se eu fosse um bebé. Dá-me algumas colheres, uma operação deplorável, para os dois. Engulo, obediente, e depressa me canso. Ela ajuda-me a recostar-me.
- Agora, dorme - diz-me. Mima a frase, com a cabeça pousada nas mãos, em almofada. - Estou aqui se precisares de alguma coisa. Descansa bem.
Os seus modos são os de uma pessoa habituada a dar ordens e acostumada a que os outros lhe obedeçam. Fecho os olhos e fico quieto enquanto ela se afadiga de um lado para o outro, executando várias tarefas. Faço jogos com o destino. Se conseguir suster a respiração enquanto conto devagar até trinta, Sibeal virá. Se me contar mais uma história, esta noite, começarei a recordar...
SIBEAL
A Gruta do Vidente situava-se no extremo norte de Inis Eala. Cheguei ao lugar através de uma estreita abertura no rochoso promontório, a partir da qual um túnel sombrio serpenteava terra dentro. Ao fim de algum tempo, virei numa curva e entrei na gruta recôndita. As paredes descreviam um arco até ao tecto e a sensação que nos invadia era a de estar dentro de uma flor. No centro, havia um pequeno lago de água imóvel. A luz entrava por uma fenda no cimo, e o céu sem nuvens tingia a água ali em baixo de um azul diáfano. Fiquei de pé algum tempo, a contemplar, a absorver. Havia naquele lugar um profundo silêncio, a mais absoluta tranquilidade. Sentia-se que uma presença o habitava, uma presença sábia, antiga e, de certo modo, triste.
Pousei o saco que tinha trazido comigo, estendi o meu manto sobre as pedras lisas à beira do lago e sentei-me de pernas cruzadas. Queria meditar. Rezar. Talvez tentasse ler a superfície da água. Sabia que Finbar, o parente de quem o meu irmão mais novo herdara o nome, usara a água daquele lago como um espelho negro, uma ferramenta para o olho do vidente. Vivera ali sozinho muitos anos, refugiado naquela ilha graças à bondade de Bran e de Liadan. Dizia-se que as forças do bem que zelavam pela segurança de Inis Eala se centravam naquela gruta. Muito antes da vinda de Bran e do seu bando de proscritos, a ilha já era referida como um lugar sagrado, a morada de velhos deuses. Mas parecia-me a mim, e a toda a minha família, que a estada de Finbar fortalecera o poder espiritual daquele lugar e até da própria ilha.
Era uma história triste, a sua. Ainda jovens, ele e os irmãos tinham sido transformados em cisnes por uma madrasta vingativa. Três anos mais tarde, a irmã deles salvara-os, mas Finbar ficara com uma asa no lugar de um braço. Fora condenado a viver entre dois mundos.
Era grande a minha dívida para com ele, pois morrera a salvar a vida de Ciarán. Sem esse sacrifício, o meu mestre não teria vivido tempo suficiente para regressar à comunidade druida. Eu acreditava que, com o tempo, outros acabariam por perceber também o alcance daquele acto de altruísmo. No futuro de Ciarán, eu tinha visto algo tão importante, tão assustador, que mal me sentia preparada para pensar no assunto, quanto mais dizer-lhe o que suspeitava que lhe estava reservado. O dom da Visão deixava entrar a luz e a sombra; não era por acaso que nos ensinavam a ser cautelosos e reservados. Por vezes, perguntava-me quanto vislumbrara Ciarán do seu próprio destino e se alguma vez desconfiara que eu, a sua jovem protegida, podia ter intuições que escapavam ao seu conhecimento.
Passaria o dia sozinha naquela gruta, que fora, durante tanto tempo, a casa de Finbar. Fang já se instalara à minha espera na entrada do túnel e tudo na sua pose sugeria dever, não desejo. Foi só quando já estava dentro da gruta que me lembrei de algo: o tio Conor dissera-me que, na sua forma de homem-pássaro, Finbar tivera um pavor de cães. Ainda bem, assim sendo, que Fang não quisera entrar, porque me parecia que a presença deste homem solitário se demorara naquele lugar, muito tempo depois da sua morte. Conseguia sentir o seu desgosto, a quietude, a profunda meditação. Sentia a coragem que o levara a sair do seu santuário, sabendo, talvez, que nunca mais voltaria.
- Lamento - murmurei, dirigindo-me à sombra de Finbar. - Lamento que a tua vida não tenha sido mais feliz; lamento ter quase desrespeitado as memórias deste lugar. Saúdo a tua presença. Homenageio a tua coragem. Espero que a tua sabedoria me ajude a fazer as escolhas certas.
A única resposta que obtive, porém, foi o sussurro do mar.
Só depois de ter passado algumas horas em meditação é que me senti preparada para procurar sabedoria no lago de águas tranquilas. Bebi do odre que tinha trazido, ponderando que visões mais gostaria de ter nesse dia. Cathal, em cujas veias corria o sangue dos Tuatha De Danann, podia encomendar uma visão específica à bacia de vidente, quando precisava dela. Ao fazê-lo, ou via aquilo que procurava ou não via nada. Este dom seria improvável numa pessoa como eu, filha de dois pais humanos, mas a extensão do meu poder era, ainda assim, considerável. Já era uma vidente desde a minha tenra infância, nascida com um talento invulgar. Não podia desejar não ter esse dom porque era uma dádiva dos deuses. Mas desejava, sim, ser capaz de controlá-lo melhor e de suportar melhor as dificuldades que me criava.
Tal como acontecia com as varas de runas, a prática habitual na adivinhação era pedir a resposta a uma pergunta específica, ou o esclarecimento de um puzzle ou dilema. O que o vidente via, então, na sua bacia, podia sera resposta a essa pergunta ou a qualquer outra. Não tinha necessariamente uma relevância imediata para o que se pretendia saber. A visão podia pertencer ao passado, ao presente ou ao futuro, ilustrar um difícil talvez, ou um doloroso podia ter sido. Já tinha visto coisas que me davam vómitos. Coisas que me faziam chorar. Coisas que me provocavam um terror desesperado.
Muito do que vira não comentara com ninguém.
Levei algum tempo a entrar no transe. A prolongada meditação não me limpara o pensamento de todo o tumulto dos últimos dois dias. Quando o Sol se moveu no céu e a luz que entrava pela fenda no tecto da gruta se deslocou e alterou, fiz a minha primeira pergunta.
Sinto a dor de Svala. Sinto o seu pedido de socorro. Como posso comunicar com ela?
Durante muito tempo, a água do lago mostrou-me apenas uma sucessão de pequenas ondas, um padrão subtil e profundo. Depois, de repente, havia ondas a rebentar por cima da minha cabeça, tirando-me o ar dos pulmões; mãos prendiam-me os braços como grilhões de ferro, algo me arrastava pela areia pedregosa, e eu gritava e gritava... Não, não era a minha voz, mas os gritos de homens: Não nos abandones! Que fazes? Por piedade, não nos abandones! As mãos içaram-me, lançaram-me ao chão. Bati com a cabeça algures, e tudo escureceu no lago imóvel. Por fim, respirei, tornei a respirar, e a visão de pesadelo desapareceu.
Levei tempo a recompor-me, usando técnicas já muito praticadas para me acalmar. Deuses, a visão fora tão real! Não tentaria, para já, interpretá-la. Bebi água do odre. Escutei os guinchos das gaivotas pela abertura no tecto da gruta e o incessante marulho das ondas. Pensei no homem que me fora trazido pela ondulação gelada. Quando senti o coração mais lento, a respiração mais pausada e regular, fiz a segunda pergunta. Não perguntei:
Irá sobreviver? Não queria resolver essa incerteza; precisava de esperança.
Graças à misericórdia de Manannán, salvei um homem do mar. De que precisa ele, mais do que tudo o resto?
Esperei, mantendo a mente aberta e vazia. Respirei. O lago jazia, imóvel, à minha frente, sem uma onda na superfície espelhada que agora escurecia sob o céu crepuscular.
Começa com um nome. As palavras entraram dentro de mim tão cristalinas como se tivessem sido ditas em voz alta. Na água, onde se desenhara o meu reflexo, via-se agora a sombra de um homem. Era um homem desgrenhado, com um cabelo de todos os tons que é possível encontrar desde o branco até ao preto, um rosto magro e oblongo e olhos como os meus.
Vestia uma velha túnica, rasgada e andrajosa, e, no lugar do braço esquerdo, tinha uma asa de cisne.
- Um homem precisa de um nome.
Finbar. Por todos os deuses. Os meus instintos não me tinham enganado; uma parte dele ainda habitava aquele lugar onde fora quase feliz. Será que podia fazer-lhe mais perguntas, ou desvanecer-se-ia assim que eu falasse?
- Ele já deve ter um nome. Formei as palavras na minha mente, mas mantive-me em silêncio. Mas está demasiado fraco para nos dizer qual é.
- Tens de escolher um nome para ele. É o primeiro passo.
Aquiesci, sem conseguir desviar o olhar daqueles dois olhos irresistíveis e sentindo um formigueiro na pele que denunciava a estranheza do momento. Não sabia se podia perguntar muito mais; mas, deuses, tinha tanta coisa para lhe dizer, tanto para lhe contar... Teria de arriscar uma só, mesmo se significasse perder a sua imagem.
- Vive, agora, em Sevenwaters, um rapazinho. Herdou o teu nome. O meu irmão. Creio que será um vidente. Ainda és amado; recordado com a mais alta consideração.
Um sorriso fugaz. Um brilho nos olhos estranhos.
- Age depressa, Sibeal. Ele precisa da tua ajuda. A água agitou-se. Uma sombra percorreu as paredes de rocha, arrepiando-me a pele, e a imagem dissipou-se até desaparecer.
Fiquei na gruta, a pensar nas palavras de Finbar, até a alteração da luz me dizer que era altura de voltar para a povoação. Fang já devia ter regressado a casa há muito tempo. Cobri-me com o manto e recolhi as minhas coisas.
- Adeus - sussurrei. - Obrigada.
Mas não houve resposta. No entanto, Finbar ainda ali estava. Senti a sua presença no profundo silêncio da rocha, na sombria quietude da água e na delicada nesga de céu. Que quisera ele dizer? Dar um nome a um homem que decerto já teria um bom nome de seu parecia-me uma estranha solução e de urgência duvidosa. Saí da gruta para a passagem estreita e escura. Não conseguia tirar da cabeça aquela primeira visão: a vertigem do mar encapelado, as mãos cruéis, os gritos. Passado ou futuro? Facto ou possibilidade?
Fang ainda me esperava à entrada do túnel, encolhida no caminho estreito, a tiritar.
- Pobrezinha. - Inclinei-me para lhe fazer uma festa, e ela atirou-se aos meus dedos. - Lamento que tenhas tido de esperar ao frio - murmurei, endireitando-me -, mas não o suficiente para te deixar morder-me. Anda.
Assim que percebeu que nos dirigíamos ao abrigo e ao jantar, a pequena cadela rompeu numa correria, de novo bem-disposta. Avancei com energia e, durante o caminho, perguntei-me que nome se adequaria a um homem que vacilava entre a vida e a morte. Não me ocorria um motivo forte para lhe dar outro que não o dele. Mas também era verdade que um nome podia ser um símbolo: podia indicar uma determinada qualidade interior. Em Inis Eala, os nomes eram de extrema importância. Tudo começara com o pai de Johnny, Bran. Fora a tia Liadan quem lhe pusera este nome. Até então, Bran fora apenas conhecido pelo título de Chefe. Ela dera-lhe aquele nome em homenagem ao corvo, porque o seu corpo tinha sido decorado com um padrão elaborado, inspirado na plumagem da ave. Os mercenários fora-da-lei que Bran reunira à sua volta usavam todos nomes de animais: Gullj Spider, Snake e assim por diante. Eram eles, agora, os guerreiros seniores de Inis Eala e detinham um lugar especial na comunidade. Não via que animal poderia dar o nome ao meu homem, mesmo que tal se adequasse ao seu caso. Estava demasiado doente para nos mostrar como era a sua personalidade. Tudo o que restava do seu verdadeiro ser resumia-se aos olhos, olhos desconfiados, cheios de perguntas, mas sedentos de histórias. Talvez um nome lhe desse forças até se sentir capaz de falar connosco. Impunha-se uma escolha que sugerisse coragem.
- O que te parece, Fang? - indaguei, quando parámos no caminho, para descansar. Eu sentada numa rocha à beira do trilho da falésia, e a cadela de pé, com as orelhas arrebitadas, de olho num rebanho de ovelhas que pastava com confiança na encosta íngreme sob os nossos pés. - Que tal Conall? Deves gostar deste; significa "forte como um cão de caça". Ou talvez Ardal?
Mais abaixo, havia uma pequena enseada. Dali, eu tinha uma vista desafogada para a leve ondulação que subia a praia, os seixos claros que a cobriam. Havia rochedos maiores no sopé da falésia e, neles abrigada, uma figura acocorara-se, solitária. Estava descalça, o vestido escurecido pela água até à altura dos joelhos. Xaile e manto tinham sido abandonados nas pedras ali perto. O Sol já ia baixo; tocava-lhe no cabelo dourado, iluminando-lhe a pele branca. As mãos pareciam atarefadas com alguma coisa, e reparei numa diferença, como se ali, naquele lugar isolado, sozinha com o mar e o céu, Svala tivesse baixado a sua guarda.
- Vamos lá abaixo - murmurei para Fang.
Quando me levantei, a cadela começou a correr à minha frente, pelo caminho íngreme até à enseada. Segui-a mais devagar, pois o longo dia passado em isolamento mudara o meu estado de espírito de tempestade para calmaria. A luz do Sol varria o oceano com dedos de prata; ao meu lado, as ervas altas dobravam-se à passagem da brisa marítima, e as ovelhas nos penhascos trocavam balidos delicados, as mais velhas pastando ao lado das crias, na encosta traiçoeira. Ninguém podia sentir desânimo num dia como aquele.
Svala continuava absorvida nessa tarefa que a prendia. A cadela e eu já tínhamos pisado a praia de seixos quando ela se deu conta de que já não estava sozinha. Ainda acocorada, levantou a cabeça e olhou na minha direcção, o corpo de súbito muito quieto.
- Não quero fazer-te mal - disse-lhe, parando onde estava. Por instinto, baixei-me também, evitando assim olhá-la de cima para baixo. Separava-nos uma distância de doze passos; não me atreveria a aproximar-me mais, a menos que ela me desse sinais de confiança. Fang parara ao meu lado. Um rugido ressoou no seu pequeno corpo.
- Quieta, Fang - murmurei, mas a cadela não obedeceu. - Svala, posso falar contigo?
Ah, como seriam úteis umas palavrinhas de nórdico! Uma simples saudação já faria grande diferença. O que era aquilo sobre as pedras à frente dela? Espinhas de peixe? Eu já tinha ouvido falar do uso de entranhas em augúrios, espinhas também. Mas aquelas pareciam demasiado finas e desordenadas para servirem esse propósito. A postura de Svala modificara-se. Agora, parecia uma criatura em guarda para proteger um bem precioso, um ninho, um tesouro.
Quando falara com o homem na enfermaria, fizera-o na certeza de que ele compreendia pelo menos uma parte do que eu lhe dizia. Era diferente com Svala. Ou não percebia uma palavra de irlandês, ou fazia ouvidos moucos àquilo que não queria ouvir. Apontei para ela - tu - e depois levei as mãos aos olhos, fingindo chorar - triste. Por fim, juntei-as em concha e encostei-as ao coração. Sinto o teu desgosto.
Estava tão quieta; dir-se-ia uma escultura perfeita, talhada em pedra branca. Os seus olhos, porém, já não eram dois globos vazios: estavam bem abertos e cristalinos, cinzentos como o oceano sob o céu nublado, e tinham-se virado para mim com algum entendimento.
Tornei a apontar. Tu - eu - e, depois, os braços estendidos para ela e enrolados num abraço - amigas?
Por cima de nós, no cimo da falésia, uma ovelha baliu um aviso à sua cria. Fang desapareceu pelo caminho acima, um borrão branco na paisagem. Esperei, observando a mulher, olhando de novo para esse tesouro sobre o qual se inclinava de uma forma tão protectora. Espinhas, sim. Uma amálgama de espinhas, as costelas de um pescado grande e de vários mais pequenos, e um sortido de outros ossos que brilhavam, brancos, à luz do Sol. Sem vestígios de carne à volta. Não eram os restos de uma refeição humana, pois nenhum habitante da ilha deixaria os resíduos na praia. Além disso, não se viam sinais de uma fogueira. Talvez as gaivotas tivessem debicado os fragmentos de peixe. Por que motivo reunira ela aqueles restos?
Tu - isso - augúrio? A última palavra era difícil de mimar. Levei a mão à testa, indicando reflexão, e depois repeti um gesto que já tinha usado com ela, esticando os braços para os lados, com as palmas para cima. Svala não mostrou qualquer sinal de entendimento.
- Deixa estar - disse-lhe, levantando-me. - Só quero que saibas que sou tua amiga e que gostava de poder ajudar-te...
Ela também se levantou. Estendeu a mão para mim, com algo na palma. Com a outra mão, fez sinal para eu me aproximar. Senti um soluço no peito, de surpresa. Lá em cima, no cume do penhasco, Fang começara a ladrar. Esperei que a cadela não estivesse a perseguir as ovelhas.
- O que é isso? - perguntei, dando pequenos passos ao seu encontro.
Não obtive resposta. Mais perto, vi que o pequeno item que ela tinha na mão e que queria oferecer-me era um pedaço de peixe. Peixe cru. Cuidado, Sibeal. Esta pode ser a tua única oportunidade com ela.
Svala fez um ruído, não eram palavras, mas um murmúrio de incentivo cujo significado eu podia adivinhar: Toma, partilha comigo. Este pedaço é para ti.
- Obrigada - disse, aceitando o peixe. - Apanhaste-o tu mesma? - Tentei mimar a ideia. Não se via por ali nenhuma linha de pesca ou rede, nada a não ser a mulher descalça e o seu monte de espinhas limpas.
Svala tornou a murmurar algo; era quase uma melodia, uma melodia triste, cheia de sons líquidos. Depois, executou a sua própria mímica, a mim dirigida, e revelou-se mais eficaz do que eu, porque a percebi de imediato. Come. É bom. Enquanto tentava assimilar a estranheza do pedido.
- comer um pedaço de peixe cru? -, reparei nos seus dedos engordurados e na mancha de óleo que tinha à volta dos lábios carnudos. Aquelas espinhas não eram instrumentos de augúrio; eram os restos da sua refeição.
Coisa estranha, de facto. De que espécie de lugar viria aquela mulher para comer assim, como um animal selvagem? Porém, não havia como escapar. Svala tivera um gesto de confiança para comigo e, se eu queria que ela aceitasse a minha ajuda, não podia repeli-lo.
- Obrigada, Svala - disse-lhe.
Respirando fundo, pus o peixe na boca e tentei não pestanejar enquanto mastigava. Esperei com fervor que aquilo que estava a comer tivesse sido apanhado no momento e não fosse algo que dera à costa e que ela apanhara do chão. Era escorregadio, viscoso, um desafio para os dentes. Sabia a água salgada e a vida selvagem. Engoli sem mastigar mais. Que pena não ter podido atirá-lo discretamente a Fang, que se teria deleitado com o petisco. Inclinei a cabeça com cortesia, tentando mostrar gratidão.
- És generosa. Era a tua última porção! - Indiquei as espinhas, grata por ela não me ter oferecido um peixe inteiro.
Svala aquiesceu. Depois, de súbito, as suas mãos avançaram de novo, desta vez fechando-se à volta dos meus braços. Deuses, como era forte!
- Estás a magoar-me - disse-lhe, fazendo um esforço para não altear a voz.
Em resposta, ela virou-me para a frente, de maneira a segurar-me por detrás, e começou a levar-me até ao mar. Debati-me com a possibilidade de estar perante uma louca que se preparava para afogar-me. Ali ao longe, no sopé da falésia, ninguém ouviria os meus gritos. Fang talvez; mas, que podia ela fazer? Quando conseguisse trazer-me ajuda, eu já estaria a boiar, tão mole e sem vida como os desgraçados que tínhamos enterrado. Respira devagar; Sibeal. Ela partilhou a sua comida contigo. É um sinal de amizade.
Já estávamos na água pouco funda. Svala libertou-me e pôs-se ao meu lado, pousando-me a mão sobre o ombro. Não me mexi, embora o mar já me cobrisse os sapatos e encharcasse a bainha do vestido. Era um exercício de confiança. Com a mão livre, apontou para fora, na direcção do horizonte, como se estivesse a tentar agarrar alguma coisa que ali estava, algo há muito desejado, algo precioso. Demasiado longe. Demasiado longe para lá chegar. A expressão no seu rosto provocou-me um aperto no peito; o turbilhão de sentimentos que me invadiu quase me tirou a respiração. Perda, luto, fúria, desespero, desejo... Fechei os olhos, esmagada. Imagens acudiram-me, então, ao pensamento: o mar imenso, encapelado; vultos de rochedos na neblina, as suas silhuetas como monstros de cócoras, prontos a saltar; cinzas negras redemoinhando sobre uma esteira grossa. Sons: gritos de homens e, sobrepondo-se às vozes desesperadas, um outro chamamento, um profundo rugido de dor que me cerrou os órgãos vitais. O coração estremeceu-me no peito. Tremi de horror.
Ouvi chamar do cimo da falésia: não era uma voz sobrenatural, mas a voz de um homem. Os meus olhos abriram-se num ápice e virei-me ligeiramente. Knut descia pelo trilho em passadas mais rápidas do que seria seguro naquela íngreme encosta. Svala não se virou, mas senti o seu corpo gelar. O ânimo abandonou-lhe o rosto.
- Sentes-te bem? - murmurei, mas não me respondeu. Enquanto o seu marido avançava pela praia ao nosso encontro, regressámos para a areia seca.
A pele clara de Knut vinha corada de embaraço. Evitando olhar para mim, chegou-se perto de Svala, tirou um lenço do bolso e pôs-se a limpar-lhe a boca como se ela fosse uma criança ainda a aprender a alimentar-se. Falou-lhe com delicadeza. Imaginei que estivesse a dizer-lhe que ficara preocupado e que era com alegria que a encontrava. O seu olhar absorveu a pilha de espinhas, a roupa encharcada da mulher, as peças que ela tinha abandonado sobre as rochas, os pés descalços. Era evidente que desejava que eu não tivesse visto aquilo.
- Perturbar-te... Lamentar, desculpa - disse-me, num irlandês balbuciante. - A minha mulher... tonta. - A mão dele parecia firme à volta do braço dela. Svala permaneceu em silêncio ao lado do marido, com a cabeça curvada, os ombros caídos.
- Não tem importância.
Knut parecia mortificado, com vergonha da mulher. O rubor tingia-lhe a pele até à base do pescoço. E ali, esculpida numa pedra lisa suspensa num cordão gasto de couro escurecido, estava algo a respeito do qual eu poderia tecer um comentário sem correr o risco de agravar o constrangimento da situação. Toquei no meu pescoço e disse-lhe:
- Vejo que estás a usar uma runa. Eolh. Por vezes designada "garra".
Era um poderoso símbolo de protecção. Se fizesse parte da tripulação de uma nave que cruzava os oceanos, eu teria escolhido o mesmo símbolo.
O maxilar cerrado de Knut descontraiu-se um pouco.
- Eolh - repetiu, enfiando o sortilégio por baixo da túnica. - Manter seguro. Do mar, tempestade.
- Knut... - Como dizer aquilo sem ofendê-lo? - A tua mulher... ofereceu-me comida. Não me perturbou de maneira alguma. Creio que estava a tentar falar comigo, dizer-me algo.
Tentei não falar por cima dela, embora Svala não compreendesse as minhas palavras. O marido tratava-a como se ela fosse uma criança, ou uma idiota. Uma criança não era de certeza; e, depois de ver os seus olhos sem guarda, começava a interrogar-me se não teríamos todos subestimado a sua capacidade de pensar por si própria.
- Não falar irlandês bom - disse Knut, interpelando Svala em nórdico, a apontar para as roupas que ela abandonara sobre as rochas. Depois, libertou-a, e ela foi buscar o xaile e o manto, obediente como um cão castigado. Incomodava-me observá-los, porque havia tanta coisa naquela relação que parecia errada: a subserviência silenciosa de Svala, o evidente embaraço de Knut. Eram marido e mulher, mas não havia naquele dia sinais do respeito terno que eu via diariamente entre as minhas irmãs e os seus maridos, entre Biddy e Gull, ou mesmo entre a minha mãe e o meu pai. Seriam os costumes nórdicos assim tão diferentes dos nossos?
- Tenho de ir - afirmei, entredentes, apontando vagamente para o cimo do caminho, onde se via Fang a investigar algo debaixo de uma pedra. - Espero que fiquem bem - acrescentei, olhando para Svala. Mas ela estava a cobrir os ombros com o xaile, de costas para mim, e não se virou.
- Tu, não falar. - Knut encostou os dedos aos lábios, apontando para mim e indicando a mulher com um gesto brusco da mão. - Não dizer. - Apontou para a povoação. - Não dizer... Johnny... mulher, aqui.
- Não direi a ninguém - retorqui. Não entendia muito bem os seus motivos, mas parecia-me sensato que aquele episódio não virasse tema de mexericos na comunidade. - Não falar. Não contar.
Knut conseguiu esboçar um sorriso e um aceno.
- Adeus, então. Adeus, Svala.
Subi o caminho mais rápido do que seria confortável. No cimo, assobiei para Fang e dirigi-me à povoação sem olhar para trás uma única vez.
- E foi assim (contei à minha família) que escolhi um nome para ele.
Estávamos no salão comum, onde a comunidade de Inis Eala se sentava para jantar em quatro mesas compridas, sem seguir uma ordem particular. Ali, as pessoas gostavam de misturar-se. Mas era hábito as famílias ficarem na mesma mesa, pelo que nos tínhamos reunido na mesa mais próxima do fogo da cozinha. Johnny sentava-se ao lado de Gareth, que era não só seu amante como o seu melhor amigo e camarada de armas. Este invulgar acordo fazia simplesmente parte da vida de todos os dias em Inis Eala, onde havia uma maior tolerância do que no continente. Clodagh e Cathal estavam presentes, bem como Muirrin, Gull, o filho de Biddy, Sam, e a mulher dele, Brenna. Evan ficara na enfermaria, onde, tinham-me dito, o nosso doente continuava vivo, embora sem sinais de melhoria. Biddy estava ocupada a orientar os seus ajudantes, que andavam de um lado para o outro com caldeirões de sopa e travessas de pão. Ela, por sua vez, comeria mais tarde, quando se tivesse assegurado de que todos se tinham alimentado como devia ser.
Eu acabara de fazer um breve resumo do meu dia: a viagem à gruta; a meditação em silêncio; algumas revelações, que não descrevi. A sugestão de dar um nome ao anónimo sobrevivente, pelo menos até ele começar a falar connosco. Não referi a presença de Finbar. Não disse uma palavra acerca do meu singular encontro com Knut e Svala. Fizera uma promessa e pretendia cumpri-la. Os dois tinham chegado para jantar muito depois de mim e estavam sentados na outra ponta do salão, ao lado de Kalev. Svala mudara de vestido e escovara o cabelo. Do meu lugar, eu não conseguia ver se ela se calçara. Tinha os olhos virados para baixo. Mexia na comida que estava na escudela, mas não vi uma única porção passar-lhe pelos lábios. Knut conversava com as pessoas sentadas à volta deles, talvez exercitando as suas poucas palavras de irlandês. Parecia ter recuperado do constrangimento dessa tarde e sorria; na sua mesa, as pessoas riam-se às gargalhadas. O único sinal de desconforto residia nos seus dedos inquietos, torcendo e virando o amuleto que trazia ao pescoço.
- Um nome seria útil, sem dúvida - disse Muirrin. - Pelo menos, até sabermos qual é o verdadeiro. Ele parece relutante em dá-lo a conhecer; já deve ter percebido os nossos simples pedidos para nos dizer como se chama, mesmo se souber apenas uma ou duas palavras de irlandês. Que nome escolheste, Sibeal?
- Ardal - respondi. - Um homem com tantos desafios pela frente precisa de um nome corajoso.
Em redor, gerou-se um breve silêncio enquanto a minha família ponderava o que eu tinha dito. Nas outras mesas, o tinido de colheres e escudelas, o tilintar das taças e os sons do convívio continuavam. Na verdade, nessa noite, não havia tanto ruído no salão como era costume; na noite da minha chegada fora difícil para qualquer um fazer-se ouvir. Esta noite era diferente. A comida à nossa frente fora preparada para alimentar os sobreviventes do naufrágio. A comunidade levaria ainda alguns dias, pensei, a regressar à sua rotina nocturna de canções e histórias a seguir ao jantar.
- Ardal - cogitou Gareth. - Significa "coragem excepcional", não é assim? Um homem não poderia queixar-se de semelhante nome. Mas talvez se visse em apuros para estar à sua altura.
- É uma boa escolha - disse Johnny. - É preferível que seja um nome ao qual se aspira do que um que pouco ou nada significa. Todos nós esperamos ser fortes na adversidade.
A conversa enveredou para assuntos mais práticos enquanto os homens discutiam a chegada iminente dos visitantes e o modo como seriam feitos os preparativos para os treinos e posta em prática a estratégia de segurança. Mesmo os hóspedes convidados para vir à ilha eram, pelos vistos, sujeitos a uma vigilância mais ou menos constante.
- É feito com alguma subtileza, Sibeal - comentou Gareth, reparando na minha expressão. - Eles não sabem que há sentinelas de olho neles.
- A não ser que alguém transgrida os limites do comportamento aceitável - acrescentou Johnny. - No dia em que os nossos convidados chegam, nós enunciamos as regras. Costumamos fazer uma demonstração, que apresenta o tipo de trabalho que aqui se desenvolve. É uma forma de entretenimento e de instrução. Para isso, abrimos o recinto de treinos a toda a gente.
- Até dos druidas se espera que venham gritar palavras de incentivo, Sibeal - disse Clodagh, com um sorriso. Era bom vê-la sorrir. O seu aspecto pálido e cansado chamara-me a atenção. Cathal parecia pouco melhor. Tinha olheiras profundas.
- Sibeal não deve gostar muito de gritar - observou Sam. Sam era o ferreiro da ilha e saía a Biddy no porte: alto, robusto e louro. O irmão, Ciem, casara-se com uma rapariga do continente e vivia e trabalhava na povoação do outro lado, cuidando do transporte de bens e homens pelo mar.
- Enfim - repliquei -, já assisti aos vossos torneios em Sevenwaters e tenho uma ideia do que me espera. Mas, se o que pretendem é alguém que grite com entusiasmo, é uma pena eu não ter trazido a minha irmã mais nova.
Eilis, agora com doze anos, tivera desde sempre um profundo interesse por todos os assuntos relacionados com a arte da guerra. Aliás, chegara mesmo a persuadir um ou dois homens de Johnny, aquando das suas visitas anuais a nossa casa, a ensinarem-lhe várias técnicas de combate. Não só era capaz de gritar, como de oferecer um comentário informado, enriquecido com sugestões úteis.
Aproximava-se o fim do jantar; o salão começou a esvaziar-se. Biddy veio sentar-se ao lado de Gull, diante da sua refeição, enquanto os ajudantes circulavam pelas mesas a recolher as escudelas para lavar. Johnny ficaria mais um pouco. Era costume, após o jantar, os membros da comunidade virem apresentar-lhe as suas dúvidas e querelas, de modo que tudo se resolvesse com justiça. Uma das suas regras - uma regra importante num lugar como aquele, onde não havia como evitar o convívio com os outros habitantes - era que o Sol não devia pôr-se sobre a fúria de ninguém. Johnny escutava-os com calma, arbitrava, oferecia conselhos e, por vezes, dava ordens. Havia um ou dois homens de pé, na zona descoberta, onde, em noites mais felizes, os músicos se reuniam para entreter a multidão. Era claro que aguardavam a sua vez de serem ouvidos.
- Desejo-vos a todos uma boa noite - disse eu, levantando-me. Quanto mais depressa regressasse à enfermaria, mais depressa Evan poderia descer para jantar. Talvez tivesse algum tempo a sós com o doente, para lhe transmitir o seu novo nome sem audiência. - Biddy, queres que eu leve alguma coisa para a enfermaria?
- Quero, sim, Sibeal, obrigada. - Biddy levantou-se e foi buscar um pequeno tacho com tampa. - Confesso que não é o jantar que eu gostaria de ter; não há sequer um osso cozido no caldo para lhe dar um pouco de sabor. Isto é tudo o que o desgraçado aguenta tomar, segundo Gull. Podes aquecê-lo na lareira da enfermaria.
- Não tentes dar-lho a comer tu própria, Sibeal - avisou-me Muirrin. - Espera por Gull. O homem ainda tem graves problemas respiratórios, o que torna difícil engolir sem sufocar.
O olhar da minha irmã acompanhou-me enquanto eu me dirigia à enfermaria, o caminho alumiado por tochas dispostas em estacas ao longo da povoação. Vira nos seus olhos que ela pensava que o homem - Ardal, tinha de começar a tratá-lo assim - não ia sobreviver. Lembrando os tristes cadáveres amortalhados que tínhamos enterrado tão longe de casa, senti uma súbita urgência em provar que ela estava errada.
Como o inválido adormecera, Evan concordou em ir jantar. Pus o tacho ao lume e instalei-me no banco ali perto. Em silêncio, ensaiei um longo excerto de doutrina adequado à celebração do solstício de Verão. Como era o único druida em Inis Eala, parecia lógico que fosse eu a conduzir o ritual. Pelo menos, ofereceria os meus préstimos.
- Sibeal.
Um sussurro áspero, vindo da enxerga. Afinal, não dormia; estava acordado. Os olhos azuis, profundos, fitavam-me agora, e a expressão no rosto cavado chocou-me tanto que, por momentos, senti-me incapaz de um gesto ou palavra. Não era medo; nem confusão; nada de que eu estivesse à espera. Ele parecia... transformado. Como se, embora moribundo, a minha presença o enchesse de alegria. Nunca nenhum homem me olhara daquela forma, e a sensação era profundamente perturbadora.
- Sibeal - repetiu, pronunciando o meu nome de maneira estranha. Articular aquela simples palavra envolvia um grande esforço. Arquejou, sorvendo o ar.
- Não tentes falar. - Reagi, por fim, perguntando-me se não imaginara o que tinha visto, porque aquele olhar desaparecera, substituído pelo esgar tenaz de alguém cuja mente está toda concentrada no acto de respirar.
- Escuta, vou ajustar as almofadas, pôr-te mais confortável...
E foi o que fiz, enfiando o braço por debaixo dos seus ombros, para soerguê-lo, e entalando as almofadas no sítio certo. Tinha ansiado por um momento a sós com ele. Agora, estava demasiado consciente de que não era uma curandeira e que, se ele piorasse de repente, eu não seria uma grande ajuda. Havia um jarro e uma taça numa prateleira, não muito longe dali. Pelo menos, oferecer-lhe-ia um pouco de água. Ele bebericou, engoliu. Uma parte foi para baixo; o resto derramou-se na enxerga. Seguiu-se um arquejo dorido, estertoroso. Fez-me doer o peito a mim também.
- Mais? - perguntei.
Ele articulou um pequeno som, sem palavras, e tomou mais um gole. O esforço esgotara-o. Voltou a afundar-se nas almofadas.
- Muito bem - disse-lhe, embora a sua fragilidade me horrorizasse.
- Respira devagar, se puderes... Para dentro, dois, três; para fora, dois, três... - demonstrei, pondo a mão nas minhas costelas.
Ele conseguiu esboçar um aceno. Não haveria mais palavras. Sentei-me no banco à beira da enxerga, estendendo o braço para lhe tocar na mão.
- Estás frio - observei. - Precisamos de Fang. A cadela. Nome, Fang. - Imitei o latido e apontei para o lugar onde ela se deitara, na curva dos joelhos dele, para o aquecer. Um sorriso fugaz aflorou-lhe aos lábios. Isto percebera de certeza. - Está a chegar, com Gull, espero eu.
Ele ficou em silêncio. Parecia estar à espera de algo.
- Lembraste-te do meu nome - disse, apontando para mim. - Sibeal. - Apontei para ele. - Podes dizer-me o teu?
O sorriso sumiu-se. As suas mãos compridas pareciam inquietas, puxando o pêlo do cobertor de lã.
- Lembras-te? - perguntei, num impulso. - Lembras-te da pequena enseada e de como desci a encosta e te encontrei? Lembras-te das ondas, que nos empurraram para cima, da madeira com as marcas rúnicas, das histórias que contei para vencer a escuridão?
Nenhuma resposta. Parecia-me que o olhar dele se virara para dentro, embora os seus olhos me fitassem ainda. Estava demasiado cansado para pensar; demasiado cansado para ouvir. Mas eu devia falar-lhe do nome.
- Hoje, passei o dia a orar e a meditar. - Quem me dera saber se era preciso continuar a ilustrar o discurso com gestos; sentia-me, de facto, um pouco ridícula. - Fui a uma gruta, um lugar que pertence aos deuses, onde se procura a sabedoria.
Passos lá fora, e o latido familiar de Fang. Gull tinha chegado.
- Disseram-me que teria de dar-te um nome - expliquei. - Escolhi "Ardal", se concordares. Significa "coragem excepcional". Usá-lo-emos apenas até conseguires dizer-nos qual é o teu verdadeiro nome, é claro. - De novo, cumpri o ritual de apontar. - O meu nome, Sibeal. O teu, Ardal. Por enquanto.
Enquanto eu falava, a porta rangeu ao abrir-se e Gull entrou, seguido da cadela.
- Disseste-lhe o que significava, Sibeal? - perguntou-me.
A pergunta surpreendeu-me.
- Disse. Achas que ele percebe?
- É isso que tu achas, não é? Knut explicou-nos que ele ia no barco como passageiro, não como membro da tripulação. Talvez seja mais estudioso do que guerreiro. Pode ser um escriba, ou um homem religioso. Creio ter visto algum entendimento no seu rosto quando lhe falas. Existem muitas razões possíveis para o facto de ele não estar a comunicar connosco, sendo a simples exaustão a mais provável de todas. Vou aquecer o caldo, está bem? Vamos alimentá-lo antes de começarmos a preocupar-nos com o resto.
- Deixa estar que eu faço. - Fui para junto do fogo, queria um momento a sós para pensar. Não me saía da cabeça o olhar que Ardal me lançara ao acordar, como se o simples facto de me ver fosse uma bênção. Parecia-me muito errado e, no entanto, tocara-me, enchendo-me de calor. Que estranho dia aquele: a sombra de Finbar na água; Svala com os seus peixes; e agora, isto.
- Esta ilha é um lugar estranho, Gull - comentei, mexendo o conteúdo do pequeno tacho.
- Inis Eala muda as pessoas - replicou, enquanto pendurava o seu manto num gancho, de costas para mim. - Traz a verdade à superfície, para o melhor e para o pior. Para alguns, é rápido. Para outros, leva muito mais tempo. - Descalçou as botas de andar na rua e colocou-as aos pés da sua enxerga. - Estás bem, Sibeal?
- Eu?
- Não fiques tão surpreendida. Só chegaste há alguns dias e repara em tudo o que já aconteceu. Não era uma pausa para ti, este Verão na ilha?
- Na verdade, era. - As minhas irmãs deviam ter andado a fazer comentários. - Mas, se há trabalho para mim, tenho de fazê-lo. Qualquer coisa, desde conduzir um ritual fúnebre até ajudar a cuidar de um homem doente.
- E salvar gente de morrer afogada. - Havia bondade na voz gutural de Gull. - Que idade tens tu? Dezasseis?
- Tenho a mesma idade que tinha a tia Liadan quando salvou Bran - assinalei. - Tenho a mesma idade que tinha Clodagh quando entrou no Outro Mundo para salvar Cathal. E tenho a mesma idade que tinha a minha mãe quando se casou com o meu pai. Não sou uma criança a precisar de protecção. Mas sou uma vidente que vê demais, e Ciarán acha que isso me torna perigosa. - Além disso - acrescentei, sobretudo para mim -, passei uma grande parte dos últimos quatro anos nos nemetons. - Tirei o tacho do lume. - Fui treinada para fazer turnos de vigília, jejuar, sobreviver com muito pouco sono. Sou mais forte do que pareço.
- És nova para esse tipo de vida - retorquiu ele, num tom prudente.
- Demasiado nova, na tua opinião?
- Não me cabe a mim dizê-lo. Ouvi parte do que lhe contaste a ele ontem à noite. Pareces segura de ti.
- Sei, há muito tempo, que os meus pés percorreriam este caminho.
- Hum! Tens sorte, então. A maior parte de nós leva metade da vida a descobrir. Basta olhares para os sujeitos que aqui vieram parar. Desperdiçaram a juventude, muitos deles, virando na direcção errada uma e outra vez. Alguns o destino tratou com rudeza; outros só podem culpar-se a si próprios. Mas nunca é tarde para um homem mudar, mesmo se tiver trinta e cinco anos e um fardo de preocupações sobre os ombros. Ou até quarenta e cinco. E agora, devíamos dar de jantar a este jovem, mesmo que não seja bem um jantar. - Com um ar pensativo, Gull verteu uma porção do caldo do tacho para a tigela. - Deve ser bom ter esse caminho claro e direito diante dos olhos - comentou. - Seguir em frente, sob o olhar dos deuses, tudo limpo e certo à nossa volta.
- Hum! - O caminho não era sempre claro e direito, sobretudo quando Ciarán decidira que, após tantos anos de estudo e disciplina, eu ainda não estava preparada.
Entre nós, eu e Gull conseguimos enfiar metade da tigela de caldo na garganta de Ardal, antes de ser evidente que ele estava demasiado cansado para continuar. Gull levou a tigela e pousou-a no chão. Fang depressa acabou com os restos.
Fui buscar um pano húmido e limpei-lhe a cara. De repente, lembrei-me de Knut a fazer o mesmo a Svala. Era triste que ele sentisse vergonha do comportamento da mulher. É claro que devia custar-lhe estar ali, no meio de desconhecidos, a tentar tomar conta dela. Perguntei-me se alguma vez teria sido capaz de falar. Se alguma vez se sentara com as outras mulheres no afã da roca e da agulha, trocando histórias de maridos e crianças, nesse tagarelar doméstico de uma comunidade normal. Talvez lhe devesse ser oferecida, ali na ilha, essa camaradagem. Talvez eu sugerisse a ideia a Clodagh.
Fang já terminara a sua inesperada refeição e lançou-se, num salto prodigioso, para cima da enxerga. Dando três voltas, como era seu hábito, meteu-se ao lado de Ardal com um suspiro de satisfação. Os dedos compridos do doente procuraram o calor do seu pequeno corpo enroscado. Quando olhou para ela, as suas feições suavizaram-se; algo lhe estremeceu no olhar. Reparei que a pele da sua mão era pouco mais escura do que o pêlo branco da cadela.
- Um dia comprido - observou Gull.
- Para todos nós - disse eu.
- Hoje não há histórias?
Enquanto considerava a pergunta, vi-o reprimir um enorme bocejo.
- Vou sentar-me aqui um pouco, ao lado de Ardal - disse-lhe. - Por que não dormes um bocado? Eu acordo-te, se precisar de ti.
- De certeza?
- Sim, de certeza.
- Há uma ou duas coisas que Ardal e eu precisamos de fazer primeiro. É melhor virares-te para o outro lado.
Enquanto Gull atendia às necessidades pessoais de Ardal, peguei numa vela e fui para o meu quarto. Pousei-a sobre a arca, e a chama vacilou na corrente gelada que entrava por debaixo da porta, iluminando as runas a carvão que eu tinha escrito nas paredes. Algo me beliscava o pensamento. Fora uma peça de madeira do barco nórdico, esculpida com marcas de runas, que trouxera Ardal para terra firme. Isso e a misericórdia de Manannán. Talvez a noite não fosse indicada para contar histórias, mas para fazer uma adivinhação.
Deslocando a vela, abri a arca e tirei para fora o saco que continha as minhas varas de runas. Eram vinte e quatro, feitas com as minhas próprias mãos e consagradas com o meu sangue. Embrulhada à volta delas, dentro do saco, estava a minha toalha de ritual, tecida em linho puro. Sentindo-lhes o peso, a reconfortante solidez, pensei que talvez tivessem algumas respostas para me dar.
- Sibeal? Já acabámos.
Na enfermaria, Gull vertia agora o líquido para o balde, para depois o levar para as latrinas. Ardal estava quieto, de olhos abertos, a mão curvada à volta da cadelinha. Tinha o rosto lívido.
- Alguma melhoria? - perguntei, num sussurro.
- Parece estar tudo na mesma. Ele tem de continuar a beber água. Quanto mais, melhor. Lava os venenos do corpo. - Mais um bocejo. - Vou só despejar isto e, depois, cama. Se quiseres mesmo ficar...
- Ficamos bem os dois, não te preocupes.
Enquanto Gull concluía a sua tarefa, tirei do saco a toalha de ritual e estendi-a diante do fogo. Depois, sentei-me de pernas cruzadas à sua frente e contemplei, no linho branco, as sombras das chamas que dançavam na lareira. Gull voltou para dentro, trancou a porta, despediu-se de mim e deitou-se na sua cama-beliche. Ardal estava imóvel; talvez não tardasse também a adormecer. Respirei devagar. No meu íntimo, repeti uma breve oração. Aos poucos, a minha mente foi-se abrindo a um estado receptivo à sabedoria da adivinhação.
O tempo passou; talvez muito tempo, talvez menos do que isso. Por fim, tornei a procurar dentro do saco e cingi o molho de varas de vidoeiro com as minhas mãos. Uni-as sobre a toalha, sentindo-lhes o poder, o conhecimento que nelas residia. Fechei os olhos e, em silêncio, fiz a minha pergunta. Qual a melhor maneira de ajudar este homem a quem eu dei um nome?
Larguei as varas. A música de ruídos que provocaram ao cair levou-me, por instantes, ao coração da floresta de Sevenwaters. Imaginei-me sentada o dia inteiro, à beira de um espelho de água, em profundo transe. Senti o aroma fresco das agulhas de pinheiro; um coro de pássaros ressoou lá no alto. O chão onde me sentara tornou-se a terra de uma clareira de Sevenwaters; a lareira uma labareda ateada nas pedras tumulares do bosque onde Ciarán adorava meditar.
De olhos bem fechados, estendi o braço e peguei numa vara, depois noutra e numa terceira, deixando o instinto guiar a minha escolha. Por instantes, encostei as três varas ao peito. Abri os olhos.
Os, Ger, Nyd. Pousaram na minha mente e aí começaram a fundir-se, a tingir-se e a influenciar-se umas às outras. Algumas ideias vieram depressa. Nyd podia ser interpretada como a expressão máxima da coragem, essa coragem que um homem pode revelar quando olha a morte nos olhos, talvez na forma de um mar revolto. Já tinha visto as linhas cruzadas de Nyd lá em baixo, naquela praia gelada, quando os seixos trazidos pela maré cobriram algumas runas esculpidas na madeira do barco. Uma imensa bravura, quase insana; uma profunda força interior.
Nyd combinado com Os. Profecia e revelação. Tranquilidade e sabedoria. Talvez a coragem estivesse lá no fundo, uma convicção nascida da fé; talvez fossem a minha própria fé e coragem que ali estivessem a ser chamadas. Eu tinha perguntado como podia ajudar.
Mas havia Ger, que virava as coisas do avesso. Ger podia significar um revés, mas também o cumprimento de visões e a conclusão de demandas. Um círculo completo. Talvez uma missão se desenhasse à nossa frente. A de Ardal? Viveria ele tempo suficiente para tentar algo semelhante? Talvez a missão me coubesse a mim.
- Sibeal.
Apanhei um susto tão grande que deixei cair as três varas no colo. Ardal tinha virado a cabeça na minha direcção. Estava a fazer-me sinal para eu me aproximar.
Recolhi as varas, as três escolhidas na mão direita, as outras na saia, e levantei-me. Sentia-me trémula e doente. O transe da meditação não deve ser interrompido de forma tão abrupta, podendo prejudicar o vidente. Não me tinha apercebido de que ele estava a observar-me.
Aproximei-me da cama.
- Assustaste-me - disse-lhe.
- Sibeal. - Pronunciou o meu nome com cuidado; senti o esforço que fazia para articulá-lo bem. Depois, acrescentou mais uma palavra que não percebi e apontou para as varas. Mostra-me.
Não havia grande necessidade de guardar segredo. Os nórdicos habitavam muitas regiões da nossa terra. Os seus símbolos apareciam nas cercaduras das portas, nas madeiras dos barcos, em armas, em talismãs protectores, como aquele que Knut usava à volta do pescoço. A sua interpretação podia ser uma arte oculta, mas os símbolos em si não eram proibidos. Abri as varas em leque, sobre a enxerga ao lado de Ardal, e ajudei-o a sentar-se.
- Varas de runas - expliquei, reduzindo a voz a um murmúrio. - Usadas na adivinhação. Os sinais que me vieram parar às mãos indicam que há uma missão no horizonte. Talvez tua, talvez minha, talvez nossa. Seja o que for, exigirá uma grande coragem.
Ardal examinou as varas com muita atenção. Depois, começou a deslocá-las. Fiquei em silêncio, à espera. Gull repousava tranquilamente sob os cobertores, adormecido. Por fim, Ardal pegou numa vara, depois noutra e numa terceira. Segurou-as na mão aberta, mostrando-mas.
Is. Ger. Lagu. Apontei para uma de cada vez, sentindo um arrepio de estranheza. Aquela não era uma escolha fortuita. Ger: revés ou cumprimento, como na minha leitura. Lagu: um símbolo lunar, cheio de mistério. E, quer fosse a minha própria preparação para o ritual, ou a sensibilidade que eu tinha ao sofrimento dos outros, julguei saber o motivo por que ele escolhera aquelas três runas.
- Não podes confiar - disse-lhe, olhando-o nos olhos. - Nem em mim, nem nos outros, em ninguém. Sentes-te como se caminhasses em areias movediças. - Vi-o no seu rosto. - Nada é certo, nada é seguro, não há nada a que possas agarrar-te. - Ele confirmou com um aceno. - Mas tens Lagu combinado com Ger. Isso significa que podes cumprir um objectivo. Está próximo do resultado da minha adivinhação: diz respeito a uma demanda ou missão, um assunto que fechará o seu ciclo. Sim?
Ele pousou duas varas, retendo uma. Is: literalmente, gelo, que transforma o que é líquido num sólido gelado, fechando-o, isolando-o... O fechamento da vida na imobilidade. Enquanto eu hesitava, ciente de que estava à beira de uma descoberta, Ardal encostou a vara Is ao coração.
- Is refere-se a ti próprio? - sussurrei. - Fechado? Isolado?
Ele tornou a mostrar-me a runa e, depois, levantou a mão para tocar na testa. Moveu os dedos de um lado para o outro, à frente dos olhos, como se sugerisse tontura, vertigem.
- Fechado; desorientado; incapaz de pensar com clareza - observei, deixando os meus pensamentos tocar em várias possibilidades. - Cercado por pesadelos, sonhos, visões...
Ardal esperou que eu chegasse à solução.
- Sei que queres dizer-me algo - afirmei. - Posso continuar indefinidamente a tentar adivinhar e, mesmo assim, não perceber o que é. Pelo menos, parece-me que compreendes um pouco de irlandês. Não consegues falar comigo? Aqui, estás em segurança; somos todos teus amigos. Mas tu nem sequer nos dizes o teu nome.
Ardal deixou escapar um gemido de frustração. A sua mão esquerda formou um punho nos cobertores. Na sombra, Gull estremeceu.
- Sossega - disse-lhe -, não te preocupes. Estou a perturbar-te. - Estendi o braço para recolher as varas de runas. Talvez devesse acordar Gull. Havia um furor nos olhos de Ardal, um tremor no seu corpo esquálido. A mão direita agarrou-se à vara onde Is fora esculpido.
Por momentos, pensei que ele tinha enlouquecido. Talvez não percebesse nada, e a minha suspeita de que sabia irlandês o suficiente para seguir as minhas histórias e a minha conversa correspondia ao meu próprio desejo de que assim fosse. Talvez me tivesse persuadido a mim mesma de que conseguira comunicar com ele, apenas porque não suportava a ideia de ser um fracasso. Suspirando, estiquei o braço para pegar na última vara.
Ardal deu-ma. Ao fazê-lo, ergueu a outra mão e esboçou os mesmos gestos que fizera antes, tocando na testa, abanando os dedos diante dos olhos. Deuses, a expressão daqueles olhos! Pensa, Sibeal. Ele quer que tu percebas. Quere-o com o mesmo desespero com que tu queres que ele fale.
A runa: Is. A mão na cabeça: a minha mente, os meus pensamentos. Os dedos ondulando. Caos? Sonhos?
Apontou para mim.
- Sibeal. - Disse o meu nome nesse murmúrio áspero. Depois, apontou para si próprio e para a vara de runa que eu tinha na mão.
- Is representa-te a ti, isolado de nós. Essa parte eu percebi.
- Sibeal - disse outra vez, apontando para mim. Depois, apontou para si próprio e repetiu o gesto da ondulação, como se quisesse sugerir um torvelinho na mente.
Com uma súbita, arrepiante lucidez, percebi que esta era a mesma troca de ideias que Muirrin, Gull e eu já tínhamos tentado: o meu nome, o teu nome.
- Oh, deuses - exclamei, gelada. - Tu não consegues lembrar-te de nada. Nem mesmo do teu nome.
Capítulo 4
Felix
Noite e dia fundem-se num só. Pessoas entram e saem, portas abrem-se e fecham-se. No intervalo, não escapa aos meus ouvidos essa sinistra melodia: as várias versões da minha respiração, crepitando, sibilando, estalando. O sono acontece por fragmentos. O tempo é medido pelo ritual invariável dos meus protectores. As mãos feias e amáveis de Gull levantando-me, virando-me, mantendo-me limpo. O que esconderá o seu passado para um homem com tantas cicatrizes ser capaz de contemplar o mundo com tanta serenidade? Evan, calmo e majestoso, dando-me assistência com um cuidado experiente. Os seus olhos avaliam-me. Vejo-o a pensar: Viverá mais um dia. Muirrin, eficaz, trabalhadora. Todos dependem dela.
E Sibeal. O seu olhar como um poço de água cristalina, as palavras como gotas de chuva no meu solo ressequido. Mal a tenho visto. Desde a noite em que me mostrou as runas, uma neblina abateu-se sobre mim. Penso que travaram uma árdua batalha para me manterem vivo. O tempo passou; dias, talvez muitos dias. Uma ou duas vezes, ouvi-a: Evan, posso ajudar? Podia sentar-me ao pé dele. E a resposta: está tão fraco que nem daria pela tua presença. Se tivesse forças, teria chorado ao ouvi-lo.
Sem um passado, eu andava à deriva. Sem um nome, não era nada. Ela deu-me um nome que é a chama viva da coragem. Ela acredita em mim. É esta a escada que vou trepar para escapar ao abismo de trevas.
Custa-me falar. As palavras não me saem dos lábios, embora estejam na minha mente. Tento. Consigo Sim, Não, Isso dói. Sinto um fardo sobre mim, algo pesado. Trouxe comigo uma sombra deste naufrágio. Sibeal, onde estás?
Já me distanciei mais um passo do abismo. Gull e Evan examinam as minhas águas, murmurando entre si. Ouço Gull dizer: está a aguentar-se. Devem achar que conseguirei sobreviver, caso contrário Evan não continuaria a dar-me este caldo interminável. Explicou-me que isto me ajudará a ficar melhor; ajudará o meu corpo a funcionar como devia. E para a minha cabeça, onde está o remédio?
Evan lava-me, seca-me, aconchega-me na cama, como se eu fosse um bebé. Sinto-me tão fraco. Dorme, Ardal, diz ele. A cadela salta e deita-se ao meu lado. Uma boa companheira; uma amiga simples. Fang. Não me interessa o nome. Dizem que morde. Não vi nada disso.
Vagueando, já perto do sono, penso no meu cãozinho. Naquele primeiro dia, corri da quinta para casa com ele nos braços, o mais precioso, o mais emocionante dos presentes. Vou chamar-lhe Noz. O meu pai riu-se. Noite? É um grande nome para esse vira-latas! Mas o nome eraperfeito. Preto como carvão. Preto como um corvo. Preto como a lua nova. Quando Noz se escondia por debaixo dos cobertores, a única coisa que eu via eram os seus olhos brilhantes.
Visitas: três homens vestidos como guerreiros. Um deles já veio antes. Traz uma runa ao pescoço, num pedaço grosseiro de couro: Eolh.
- Está demasiado fraco para receber visitas - diz Muirrin. - Quase o perdemos, três vezes seguidas.
- Não vamos demorar - replica um homem de cabelo claro, cor de trigo. - Knut só quer ver como ele está, desejar-lhe as melhoras.
- Então, deixa Knut falar-lhe sozinho, e não por muito tempo. Explica isso a Knut, Jouko. - Muirrin é inflexível.
Jouko traduz para Knut. Mais uma língua; não a minha, embora eu a perceba bem. Jouko e o terceiro homem esperam à porta, falando baixinho entre si, e Knut vem até à minha enxerga e senta-se, a sua pose como a de um camarada que vem fazer perguntas amáveis.
- Espero que estejas a sentir-te melhor, amigo - diz. O tom é amigável, mas o sorriso arrepia-me.
Quero fechar os olhos, fazê-lo desaparecer, mas o seu olhar segura-me. Um amigo? Não me parece. Há morte nos olhos deste homem.
A voz de Knut reduz-se, então, a um sussurro.
- Dizem que perdeste a memória. Dizem que mal consegues juntar duas palavras. Talvez seja verdade, talvez não seja. Mas vê se percebes isto: diz uma palavra que seja acerca do que aconteceu, uma única palavra, e zás... - Passa o dedo pela garganta, numa ilustração inequívoca. Está de costas para os outros. - Isto que fique claro entre nós.
Ao ouvi-lo, não consigo manter-me calado.
- Como te atreves a ameaçar-me? - devolvo, na mesma língua. Mas a minha voz, longe do desafio intimidante que eu pretendera, escoa-se num fraco murmúrio. Os outros continuam a falar; o meu protesto não foi mais longe do que os ouvidos de Knut.
Ele ri-se de mim. Converte o escárnio no riso brando de um homem que tenta animar o camarada ferido.
- Louco - murmura. - Vais fechar a boca, se tens algum amor à tua miserável vida. - Levanta-se. - Fico feliz por te ver mais animado, companheiro. - O tom é caloroso, agora. - Estão a cuidar bem de ti.
Jouko traduz isto para Muirrin ouvir.
- Ele cansa-se facilmente - comenta ela. - Os efeitos de uma longa imersão na água do mar, o frio, o choque provocado por tudo o que aconteceu... Fizeram-lhe um grande mal. É melhor irem, agora.
Deixo as pálpebras cobrirem-me os olhos. A porta abre-se, fecha-se. Muirrin está ocupada com algo, na mesa de trabalho. Fico quieto, deitado. Passa muito tempo até o meu coração começar a abrandar. Leio uma mensagem nos olhos frios daquele homem: Que azar não teres morrido.
Durmo e sonho. Uma carroça desce o caminho até à quinta. Estou a colher bagas. O cesto foi tecido num padrão de girassóis. Não tenho altura suficiente para chegar aos melhores frutos. Enquanto ali estou, em bicos de pés, todo esticado, ouço o grito do carreteiro e um ruído estranho, estridente, de súbito interrompido. Corro, mas Noz já morreu. Morto na rua. Estúpido cão, diz o homem. Foi mesmo para debaixo das rodas. Estás bem, rapaz? Acordo lavado em lágrimas, os meus dedos procurando a cadelinha que respira suavemente ao meu lado. Um cão que não é preto, mas de um branco puro.
SIBEÀL
Ardal teve uma recaída, e os curandeiros de Inis Eala ficaram, de facto, muito atarefados, preparando infusões, aplicando cataplasmas, tentando expulsar os venenos com sanguessugas. Quando me dirigia à enfermaria, ouvia o ruído áspero e desesperado da sua respiração e sentia o miasma da doença e da derrota. As minhas funções incluíam tudo, desde varrer o chão e lavar ligaduras a pegar na mão de Ardal à luz das velas e incentivá-lo a respirar mais uma vez. Caía na cama tão exausta que mal sabia se estava acordada ou a dormir. Sonhava com vagas colossais, rochedos perigosos, homens gritando, em desespero. De manhã, acordava com o coração aos pulos e a pele suada e murmurava uma prece de agradecimento pelo facto de os meus pesadelos não serem reais. A primeira coisa que fazia quando me levantava era ver se Ardal ainda respirava. Já não olhava para mim como se me reconhecesse. Quando tinha forças para abrir os olhos, dir-se-ia que contemplava uma insondável escuridão. Não falava, nem em nórdico nem em irlandês. Muirrin parecia destroçada, Evan sombrio. Até Gull já tinha parado de dizer que o nosso doente ainda podia sobreviver, embora permanecesse calmo e composto, tratando de tudo e de todos com mãos delicadas e palavras atenciosas.
Não fui à Gruta do Vidente. Não fui a muitos lados; as quatro paredes da enfermaria tornaram-se as fronteiras do meu mundo. Salvara a vida de Ardal. As runas tinham revelado que o aguardava uma missão, um apelo à acção que eu começara a acreditar que teria de ser cumprido por nós os dois. Ele não podia morrer.
Era difícil orar, difícil levar a cabo uma conversa, difícil até ordenar um pensamento. Sentia um nó no estômago; a cabeça atordoada com tantas lágrimas por chorar. O mundo entortara-se. Já tinha cuidado de doentes no passado, mas nada se comparava a isto. Era como se - estranha sensação - parte de mim estivesse dentro daquele homem que jazia na enxerga a lutar contra a vontade de Morrigan. Se ele morresse, essa parte de mim morreria com ele.
Por fim, chegou o dia em que Muirrin me expulsou da enfermaria.
- Vai, Sibeal. Tens de descansar disto, mesmo que seja só uma manhã. Vai ver Clodagh. Ou tagarelar com Biddy, e deixa-a dar-te de comer.
- Não posso. E se ele morrer quando eu não estiver aqui?
Muirrin pôs-me o braço sobre os ombros.
- Não podes mantê-lo vivo apenas com a força da vontade - disse-me.
- Estamos a fazer tudo o que podemos, Sibeal. Tu sabes isso. Mas não vais ajudar Ardal, ou ajudar-nos a nós, se adoeceres também, de cansaço. Vai. Apanha algum ar fresco, pelo menos.
Biddy estava na cozinha a amanhar o peixe. Quando cheguei, sentou-me à mesa e pôs uma tigela de papas de aveia à minha frente.
- Come - ordenou. - Pareces um fantasma. Come tudo até ao fim, Sibeal. E bebe este hidromel. Quero ver um pouco de cor nessas bochechas.
Comi, embora a comida me soubesse a cinzas. Observei-a durante algum tempo, dando-me conta de que, absorvida na luta de Ardal, tinha negligenciado outras pessoas na ilha que podiam precisar de mim.
- Como está Svala? - perguntei. - Melhor, agora que ela e Knut foram instalados numa casa à parte?
Há dias que eu não saía da enfermaria; tantos que já perdera a conta.
- Não a tenho visto muito, Sibeal. - O cabelo louro de Biddy estava preso atrás com um lenço; as suas mãos, os nós dos dedos vermelhos, manejavam a faca com precisão. - Ela vem jantar com Knut, mas não me parece que seja louca pelos meus cozinhados. É raro vê-la comer um pedaço que seja, e é uma mulher grande. Já levei comida lá abaixo, à cabana, algumas vezes. Ela não me convidou para entrar. A casa estava um caos, do que pude ver, roupa de cama espalhada pelo chão, peças de roupa atiradas para os cantos. Ou não é uma grande dona de casa, ou ainda está demasiado aturdida pela dor para dar importância a essas coisas. Quanto à comida, tirou-me o prato das mãos, tornou a entrar e fechou-me a porta na cara. Tenho muita pena de Knut. É um bom homem, sempre disposto a dar a mão numa tarefa quando é preciso. E também tem a sua própria dor com que lidar.
- Svala parece desconfortável quando está connosco. Como se não estivesse habituada a ter gente à sua volta. Pergunto-me onde viveriam eles antes disto.
- A dor faz coisas estranhas às pessoas - comentou Biddy. - Talvez ainda não tenhas vivido tempo suficiente para te dares conta disso. Quando perdi o meu primeiro marido, também perdi, durante algum tempo, o sentido da esperança. Se não fossem os rapazes, Sam e Ciem, teria sido difícil continuar. Mas, quando tens pequenos a pedirem-te o jantar e a treparem-tepara os joelhos para te darem um abraço, acabas por continuar mesmo, por muito que te doa. Sentia-me só. A solidão foi o pior. Depois, vieram os homens, Snake e Gull, aquele caminho todo até à Bretanha, e trouxeram-me para aqui, a mim e às crianças. Eu não tinha qualquer intenção de voltar a casar; a ferida ainda não fechara. Se alguém me tivesse dito que acabaria por casar-me com aquele negro de ar selvagem, penas no cabelo e menos dedos do que a conta habitual, eu teria pensado que era uma piada de mau gosto. - Sorriu, a faca parando-lhe na mão. - Todos os dias, peço aos deuses que abençoem Bran pela sua bondade em levá-los ao meu encontro - disse, numa voz doce. - Sou a mulher mais sortuda do mundo, Sibeal, por ter encontrado dois homens assim numa vida só. O meu Evan era o marido mais bondoso que alguém poderia ter. Gull é... Enfim, é como nenhum outro. Ele e eu temos tido a nossa dose de perdas e desgostos. E vivemos momentos de rara felicidade juntos. - De repente, Biddy dirigiu-me um olhar perscrutador. - Vais sentir falta disso, com o futuro que escolheste para ti. Nunca conhecerás a alegria e o terror de amar alguém como eu amo Gull, ou como as tuas irmãs amam os seus homens.
- Mas ouço as vozes dos deuses - repliquei. - E os grandes silêncios.
A alegria do espírito supera, por certo, as alegrias da carne.
Biddy sorriu.
- Não é apenas a carne, embora ela seja, sem dúvida, uma parte boa disto tudo. Se dependesse de mim, coisa que nunca será, eu diria que uma pessoa deve casar primeiro e ter alguns filhos e depois, então, decidir se a vida do espírito é melhor e mais elevada do que uma existência comum.
- Mas, nesse caso, se decidisses que era, terias de abandonar a tua família para te tornares uma druidesa. Seria fazer as coisas ao contrário.
- Cá para mim, uma pessoa pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo - retorquiu ela. - Cá para mim, ser mulher e mãe, ou marido e pai, talvez nos torne mais sábios e ponderados. E isso pode fazer-nos melhores druidas ou sacerdotes ou o que quer que seja. Mas ninguém pediu a minha opinião.
Poder-lhe-ia ter falado dos anos e anos que eram precisos para memorizar o imenso corpo de doutrina que requeria o ofício de druida. Poder-lhe-ia ter descrito os jejuns, a solidão, os vários testes de resistência.
A necessidade de silêncio; os longos períodos de oração. Mas sentia-me demasiado cansada e desanimada para evocar as palavras.
- Espero não te ter aborrecido - disse-me. - E uma opinião honesta, apenas isso. Se tomares a tua decisão e fizeres esses votos, ou lá o que são, e depois mudares de opinião, o que acontece?
- Eu não vou mudar de opinião. E tu não me aborreceste, Biddy. Gosto que as pessoas sejam honestas comigo.
- No que diz respeito a Svala - prosseguiu ela talvez seja melhor deixá-la sozinha. Eles também não devem ficar muito mais tempo, ela e Knut. Johnny vai querer pô-los fora da ilha assim que ela estiver preparada para viajar. Imagino que regressem ao lugar de onde vieram. Pobres desgraçados; viajar em busca de uma nova casa, mil esperanças, e tudo acabar assim.
- Hum.
Era triste, sem dúvida. Para cada um dos homens que tinham morrido afogados, havia uma história como a de Knut e Svala, uma história de oportunidades perdidas, caminhos interrompidos, gente abandonada. Ardal não podia acabar da mesma forma. Não podia.
- Sibeal? - Biddy estava a observar-me com atenção. - E se fosses dar um passeio? Está um dia lindo. Gull disse-me que trabalhas de mais, e vejo que assim é. Termina a tua refeição primeiro e, depois, sai e vai gozar o sol. Não melhoras as coisas se deres cabo de ti, rapariga.
- Eu devia estar ali. Ao lado de Ardal. Sinto que é a coisa certa a fazer.
- Ardal não ia querer que adoecesses por causa dele, a não ser que não tenha juízo nenhum.
Biddy tinha razão, é claro. Além disso, se voltasse para a enfermaria, Muirrin limitar-se-ia a enxotar-me outra vez.
Como não tinha ainda explorado o extremo leste de Inis Eala, foi para lá que me dirigi, contornando os aposentos das mulheres. Mais abaixo, junto do pequeno aglomerado de casas que albergava as famílias com filhos, uma jovem mulher que eu sabia chamar-se Alba brincava com uma pandilha de crianças pequenas. O jogo envolvia perseguir, apanhar e fazer uma série de ruídos de animais. Levantei o braço, saudando-a. Alba, corada e às gargalhadas, devolveu o aceno efusivamente.
Um grupo de homens concluía a construção de uma pequena casa. Dois deles cobriam o telhado de colmo, outros colocavam pedras para fazer um caminho. Spider, alto e esgalgado, supervisionava as operações. Parei para cumprimentá-lo.
- O que achas disto, Sibeal? - perguntou ele, envolvendo com o olhar a habitação humilde mas agradável.
- Fizeste um óptimo trabalho. Esta é a nova casa de Clodagh e de Cathal?
- É isso mesmo, e é um prazer construí-la para eles. Deve estar terminada muito antes de o bebé nascer; o nosso trabalhador suplementar tem feito uma grande diferença. - Spider apontou com a cabeça para os homens que estavam a levantar as lajes de pedra e a colocá-las no lugar certo. Vi que um deles era Knut, de tronco nu e a pingar de suor. Quando me viu, endireitou-se e saudou-me com um aceno.
- Este homem faz o trabalho de dois. - Spider sorriu para o nórdico. - Não sei como teríamos conseguido sem ele.
- Tu andares - disse Knut, interpelando-me em irlandês - muito sozinha. Não ser seguro.
Apanhada de surpresa, não me ocorreu uma resposta para lhe dar.
- Homens ir contigo. Mais seguro.
O sorriso de Spider abriu-se. Não fez qualquer tentativa de interceder em minha defesa.
- Estou habituada a caminhar sozinha - repliquei. Quem pensava Knut que eu era? Uma princesa mimada sem nenhum sentido prático da vida? Se era essa a sua postura, não admirava que a tendência da mulher para vaguear descalça pela praia o incomodasse. - Sou uma druidesa; caminho sob a protecção dos deuses.
Não era possível saber se ele me tinha compreendido. Ficou ali a observar-me, de braços cruzados. Não fazia ideia do que ele estava a pensar.
- Desejo-te uma boa manhã, Spider - atalhei, por fim. - Muirrin mandou-me vir apanhar ar fresco e fazer um pouco de exercício, e tenciono cumprir as suas instruções.
Quando me virei, Knut tornou a falar:
- O homem. Muito doente. Morrer em breve, sim? - Antes que eu pudesse responder, acrescentou: - Triste.
Knut não parecia muito triste, mas, por outro lado, o seu domínio da língua era limitado: talvez não se desse conta da crueza com que falara.
- Ardal ainda está vivo. - A resposta saiu-me mais ríspida do que ditava a cortesia. Ali fora, com a luz do Sol na cara e o vento nos cabelos, eu tinha começado a pensar que talvez tudo corresse bem; que Ardal venceria a sua luta e cumpriria a sua missão e... Os meus pensamentos ficaram por aqui. As palavras de Knut evocavam imagens de Ardal torturado pela tosse, Ardal a tremer enquanto vomitava para uma bacia, Ardal deitado na cama, inconsciente, enquanto eu tentava ver se o seu peito continuava a subir e a descer. - Se depender de mim, não morrerá.
Virei as costas e segui caminho, avançando num passo estugado. Só abrandei quando os dois homens já não conseguiam ver-me. O meu coração batia por todos os lados. Respirei fundo e tentei acalmar-me. Era ridículo. Um druida era um exemplo de serenidade e compostura, alguém que procurava sabedoria a todos os instantes, todos os dias. Um simples comentário irreflectido não devia ter o poder de irritar-me daquela maneira.
Os trilhos naquele extremo oriental de Inis Eala pouco mais eram do que caminhos de cabras, estreitos e irregulares. Mais adiante, erguia-se um imponente afloramento de rocha, rodeado de ovelhas a pastar. Na verdade, a formação rochosa fazia, de certo modo, lembrar um enorme carneiro. Imaginei-o como um espírito guardião, olhando pelo gado enquanto este tomava o seu pequeno-almoço, e a ideia fez-me sorrir.
Quando cheguei às rochas, estava cansada. Sentar-me-ia uns instantes, a beber um pouco de água do odre que tinha trazido, e regressaria à povoação. Já me tinha afastado tempo de mais da enfermaria.
Ao olhar para o mar, enquanto bebia, vi algo inusitado naquela paisagem despida: um par de pequenas árvores, lado a lado, não muito longe do precipício. Não pertenciam a nenhuma espécie que eu reconhecesse, o que, só por si, já era surpreendente, uma vez que um druida conhece as árvores. Revestiam-se de agulhas de um verde-escuro-acinzentado, e os seus ramos eram disformes e nodosos como os dedos de um idoso. Quando me aproximei para examiná-las de perto, vi um caminho que descia pela encosta da falésia até à praia, lá em baixo. E ali, na areia, silhueta imóvel no seu manto escuro, encontrei o meu cunhado Cathal.
Estava sozinho. Não me tinha visto. Calculei que, se fora tão cedo a um lugar tão inacessível, era porque não queria companhia. Mas fiquei onde estava, a observá-lo, incapaz de sair dali.
Cathal estava virado para o mar, com os braços esticados, as palmas viradas para a água. A expressão do rosto denunciava a sua profunda concentração; era como se estivesse num outro mundo. Toda a sua postura corporal me indicava que estava a lançar um feitiço. Observei-o, abismada. Ele nunca recorria aos seus talentos mágicos em Inis Eala. Procurara aquela ilha para ser um homem como os outros. Para esquecer que era filho de Mac Dara. E, no entanto, ali à minha frente, o legado do pai revelava-se em toda a sua dimensão.
As águas pararam. Onde, instantes antes, a enseada parecera fervilhar com o tumulto das ondas a subir e a explodir em efémera filigrana, estendia-se agora um espelho líquido sob o céu matinal, tranquilo como um lago, seguro para acolher uma criança a brincar. Não estremecia a mais ténue ondulação. Arquejei. Nunca tinha visto nada assim. Nem mesmo Ciarán seria capaz de executar semelhante proeza.
Os braços de Cathal baixaram-se ao longo do corpo e ele tornou a levantar as mãos, à sua frente, movendo-as numa sequência de gestos demasiado complexa para eu conseguir segui-la. O mar agitou-se; ondas ergueram-se uma vez mais, subindo a praia, uma de cada vez, para rebentar na areia clara. Uma gaivota desceu do céu e pousou ao lado de Cathal, seguida de outra. Agora, vinham às dúzias, aterrando no areal à volta dele, duas nos ombros, uma empoleirada na cabeça morena, até formarem um bando de duas vezes cinquenta, ou mais. Por momentos, perguntei-me o que era estranho naquele cenário; depois, reparei que os pássaros estavam em absoluto silêncio: não havia gritos, nem grasnidos, nenhum som. Então, Cathal levantou os braços e o bando ergueu-se como se fosse um só corpo, batendo as asas para leste.
Eu devia sair dali. Ou avisá-lo de que tinha assistência. Abri a boca para o chamar, mas, antes de articular a palavra, ele virou-se para trás e fitou-me. Instantes depois, estava a subir pelo trilho.
- Desculpa - disse-lhe, quando chegou ao pé de mim. - Vim caminhar um pouco e reparei que estavas aqui. Não pensei que...
- Que eu ainda praticava estas artes? Já não o faço há algum tempo, Sibeal. Sempre me pareceu melhor não fazer nada que pudesse atrair a atenção do meu pai. A protecção que existe nesta ilha devia resguardar-nos do seu olhar, mas não podemos nunca ter a certeza absoluta. Tudo se altera, com o tempo. É perigoso esquecê-lo. - Cathal hesitou, dirigindo-me um olhar penetrante. - Posso falar contigo abertamente, Sibeal? Sei que já tens muitas preocupações neste momento, mas...
- Claro. Imagino que me fales em confidência. Estes assuntos não são para espalhar aos quatro ventos.
Cathal aquiesceu.
- Regressamos juntos? - E, enquanto caminhávamos lado a lado:
- Comecei a praticar, sim. Desde o naufrágio... Espero nunca mais ter de enfrentar uma decisão como esta, Sibeal. Sei que podia ter ajudado aquelas pessoas, salvado vidas e, porém, não agi, com receio de pôr em perigo os que me são mais próximos. Não admira... não admira que os meus sonhos sejam atribulados. Aquilo que tenho visto... Pareceu-me importante verificar se ainda conseguia pôr em prática alguns talentos especiais. Na verdade, tenho de trabalhar para afiná-los - concluiu, com um ar especialmente grave.
- Falas de sonhos, Cathal. Que tipo de sonhos?
- O mesmo sonho tem-me visitado todas as noites, desde que a nave naufragou no nosso recife. É intenso, misterioso, menos sonho do que Visão. Há uma tempestade e vozes a gritar. É sombrio. Cheio de violência e ruptura. Acordo com uma sensação de urgência, mas não consigo perceber porquê.
As minhas noites também tinham sido visitadas por imagens de tempestade e tumulto, algo semelhante às visões adivinhadas nos primeiros dias. As runas que escrevera a carvão não tinham sido eficazes durante muito tempo.
- Pergunto-me o que terá chegado a Inis Eala no dia em que o Freyja naufragou - cogitei. - Dois homens e uma mulher, é certo. E algo mais.
- Mesmo antes do naufrágio, eu tinha recomeçado a praticar a minha arte. Clodagh sabe; mais ninguém. O nosso filho vai nascer em breve. Precisarei de todas as armas que tenho para o manter em segurança.
- E um filho?
- Rezo para que seja uma rapariga, porque o interesse de Mac Dara não seria, nesse caso, tão forte. Mas pressinto que vamos ter um filho. É verdade que sou capaz de fazer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, para garantir que o meu pai não se aproxime do nosso filho. Se tiver de enfrentar a sua magia com a minha magia, fá-lo-ei. - Um arrepio percorreu-lhe o corpo alto. - Mas espero que as coisas não cheguem a esse ponto.
- Já visitaste o lago do vidente, Cathal? - perguntei, hesitante. - Talvez te trouxesse algum esclarecimento. - Como os dons de Cathal eram singulares, a adivinhação podia, no seu caso, mostrar uma janela para o futuro. Se ele queria ou não olhar por essa janela, já era uma outra história. Quanto a mim, se fosse capaz de ver a verdade nua e crua na superfície da água, como ele, talvez me recusasse simplesmente a fazer adivinhações.
- Sou demasiado cobarde para isso - respondeu. - Além disso, as perguntas que eu gostaria de fazer não se enquadram na prática corrente: subordinam-se demasiado aos meus interesses pessoais. Por ora, limitar-me-ei a esperar e a apurar os meus talentos, e a minha esperança. Se os sonhos persistirem, tornarei a procurar o teu conselho.
Cathal regressou comigo; se os homens que estavam a construir a casa nos vissem, talvez Knut achasse mais apropriado ver-me na sua companhia do que nesse passeio solitário de uma jovem mulher. O seu estranho comentário fizera-me, de novo, pensar em Svala e no peculiar episódio na enseada. Ela parecia uma outra pessoa quando o marido não estava por perto. Um dia destes, eu teria de ir ao seu encontro; tentar novamente comunicar. Mas só quando Ardal recuperasse.
- A bandeira amarela foi hasteada - disse Cathal quando chegámos ao cimo de uma colina.
- Bandeira amarela? Que bandeira?
- Na povoação do continente. Ali, repara.
Ao longe, a sul, a flâmula brilhante esvoaçava por cima de um telhado, na outra margem. Entre as pequenas embarcações de pesca ancoradas no cais do continente, destacava-se um barco maior, que não estivera ali no dia anterior.
- Significa que os homens de Connacht já chegaram - disse Cathal.
- Alguém irá buscá-los mais tarde. Não autorizamos os visitantes a ancorar directamente em Inis Eala. Ciem verifica se está tudo em ordem antes de içar o sinal. A exibição de técnicas de combate será amanhã.
- Penso que não vou estar presente. Sou precisa na enfermaria.
Um silêncio. Quando olhei de relance para ele, Cathal fez-me um sorrisinho enigmático.
- Afeiçoaste-te por esse sujeito, Ardal, não foi?
- Afeiçoaste-te... O que queres dizer com isso?
- Gostas dele.
- É verdade que o tirei de dentro do mar, grosso modo.
- Johnny tirou Knut de dentro do mar e não existe entre eles nenhum afecto especial, embora Knut tenha conquistado a estima de toda a gente.
- Não é a mesma coisa, Cathal. O que estás a tentar dizer-me, ao certo?
Ele suspirou.
- Nada, Sibeal. Espero que consigas ter algum tempo para Clodagh, é só isso. Ela ficou muito entusiasmada com a tua visita, mas não te tem visto muito. Sente a falta da família, de Deirdre, sobretudo. E, segundo ouvi dizer, Ardal tem recebido os cuidados experientes dos nossos três curandeiros. Clodagh apreciaria a tua companhia durante a exibição, em particular. Costuma ficar ansiosa quando me envolvo nestas coisas, sobretudo agora, que está grávida.
- Desculpa. Tenho sido egoísta. Claro que irei.
- Egoísta? Não, Sibeal, é precisamente o contrário. Pensa nisto como um favor pessoal que te peço. Amo a minha mulher. Quero que ela seja feliz. É por isso que... É por isso que pratico magia, mesmo se, a longo prazo, isso possa pôr em perigo aqueles que mais amo.
- Eu sei, Cathal - retorqui.
Passei o resto do dia na enfermaria. Ardal parecia estar a resistir e, a dada altura, chegou mesmo a sussurrar em irlandês "Obrigado, Sibeal". Isto levou-me lágrimas aos olhos, e reparei que Muirrin me observava de uma maneira estranha. Quando Gull me ordenou, por fim, que fosse deitar-me, fechei-me no meu quarto e num sono agitado, visitado pelos mesmos sonhos das últimas noites: mares montanhosos, abismos impossíveis, gritos, sangue e treva.
De manhã, após um pequeno-almoço ruidoso no salão - os homens de Connacht fizeram crescer o número de guerreiros, enchendo o espaço, e parecia que todos falavam ao mesmo tempo -, a única coisa que me apetecia fazer era passar o dia ao lado de Ardal. Talvez ele dissesse mais alguma coisa. Talvez começasse, de facto, a falar comigo. Mas o prometido era devido e fui à procura de Clodagh no espaço apertado que ela partilhava com Cathal, no alojamento dos casais. A minha irmã estava a vasculhar uma arca.
- Ah, aqui está ela! - exclamou, tirando para fora uma meada de lã e acrescentando-a ao cesto. - Este verde é para o manto de Spider. Estou a fazer, para todos os homens que ajudaram a construir a nossa casa, uma nova peça de roupa com a sua escolha de cores e padrões.
Soube, sem perguntar, que ela faria tudo sozinha: fiar, tingir, tecer, coser. O presente sairia das suas próprias mãos, como a casa saíra das mãos deles. Para além dos dedos habilidosos, Clodagh sempre tivera um coração generoso.
- Spider contou-me que foste lá acima ver a casa - disse-me, enquanto nos dirigíamos à sala de trabalho. - Não achas que estão a fazer um trabalho maravilhoso? Adoro a maneira como as pessoas trabalham aqui. Mesmo as tarefas mais banais são executadas com tanto zelo... Quase poderíamos chamar-lhe alegria.
Era verdade. Bastava observar Biddy a cozinhar, Sam a polir uma espada, ou Gull a cortar ervas no seu jardim.
- É curioso - comentei. - Este lugar é um recinto de treino para guerreiros. Prepara homens cujo ofício é distribuir a dor e a morte. E, no entanto, as pessoas fazem o seu trabalho como os druidas fazem o deles:numa consciência do prodígio. No conhecimento de que o sopro dos deuses lhes flui pelo corpo e lhes acelera o sangue.
- Johnny não mantém este lugar vivo para atiçar o conflito, Sibeal - replicou Clodagh. - O treino é fornecido para as pessoas saberem combater quando a vida as empurrar para isso. Há homens que não têm muito para oferecer ao mundo a não ser a sua perícia no campo de batalha. Homens que, se não tivessem uma casa e uma função nesta ilha, não teriam sítio para onde ir, nem uma razão para viver.
Pensei no pequeno número de ilhéus que restava do bando de proscritos original: Gull, Spider, Rat, o ausente Snake. E mais um punhado de homens.
- Não será sempre assim - disse eu.
- Pois não, Sibeal. E Johnny não ficará aqui para sempre, a liderá-los. Quando o nosso pai morrer, ele será o novo chefe de clã de Sevenwaters e terá de desistir deste lugar. Creio que a comunidade continuará. Haverá um outro chefe. Dizes que é estranho que estas pessoas vivam as suas vidas com a consciência do bem, quando o objectivo da ilha é aperfeiçoar a arte da guerra. Mas a terra de Erin foi fundada pela guerra. Os homens nunca deixarão de lutar; faz parte da sua natureza. Mais vale estarem bem preparados.
O meu pensamento desviara-se, agora, por um outro caminho.
- Cathal será o novo chefe, quando Johnny deixar a ilha? - perguntei.
Seguiu-se uma longa pausa. Clodagh sacudiu uma partícula invisível da sua manga, sem olhar para mim.
- Tu conheces-me, Sibeal - acabou por dizer, num tom contrafeito. - Sou uma mulher comum, sem qualquer dom de vidente. Mas sinto no meu íntimo que nos iremos embora desta ilha antes de chegar esse momento. O instinto diz-me que Cathal se envolverá em acontecimentos decisivos, quer seja essa a sua vontade, quer não. Espero estar errada. Ficaria muito feliz a viver em Inis Eala. - Momentos depois, acrescentou: - É verdade que sinto falta da família. Gostava de poder visitar Eilis, Finbar e os nossos pais algumas vezes. E adoraria fazer uma visita a Deirdre. Nem acredito que a minha própria gémea já teve dois filhos e que eu nunca os vi. Mas fiz a minha escolha, e não me arrependo dela.
Enquanto atravessávamos o pátio, os homens acorriam à zona de treinos, um recinto fechado, circular, rodeado por uma dupla muralha de pedra, mais alta do que um homem alto. Clodagh conduziu-me com confiança pela enchente de guerreiros - que se desviaram, corteses, para nos deixar passar - e entrámos no comprido edifício com telhado de colmo. Aqui, duas rapariguinhas atarefavam-se a cardar lã, enquanto as mulheres mais velhas trabalhavam com o fuso e a roca, ou em teares. Num cesto pousado ao lado de uma delas, dormia um bebé. O fogo crepitava na lareira, aquecendo a sala, de maneira que os dedos não ficassem demasiado rígidos para executar trabalhos delicados. O Sol da manhã entrava pelas janelas de portadas abertas, enchendo de luz aquele quadro tranquilo e ordenado.
Clodagh admirou o trabalho de tecelagem de uma mulher e os bordados de outra. Depois, foi buscar a roca e o fuso e um cesto de lã cardada e começou a fiar um fio fino e uniforme. Descobri alguns remendos simples para fazer - a nossa mãe fizera questão de que fôssemos todas competentes nestas tarefas - e instalei-me ao lado dela. As mulheres tinham muito de que falar. Dei por mim a responder a uma enchente de perguntas, explicando como era ser druida para uma mulher e por que razão escolhera eu aquela vida. Respondi o melhor que podia e, em troca, ouvi-as falar longamente dos vários caminhos que as tinham trazido à invulgar comunidade de Inis Eala.
Alba, cujo irmão, Niall, era um dos homens de Johnny, fugira de casa. Não quisera ser obrigada a casar-se para saldar uma dívida de família. A dívida fora resolvida sem alvoroço; Johnny tinha o dom de concretizar as coisas sem grande espalhafato. Alba não trouxera consigo nenhuma habilidade particular, a não ser a de tocar a rabeca e cantar, mas encontrara o seu lugar naquela ilha.
- Conserto redes de pesca e tomo conta das crianças - afirmou, com um sorriso. - E penso que serei uma boa mulher, quando decidir de quem gosto mais. Não te entristece perderes tudo isso, Sibeal?
- Se a entristecesse - retorquiu Clodagh, com rispidez -, não me parece que tivesse cumprido todos estes anos de preparação para ser uma druidesa.
- É uma boa pergunta - disse eu. - Não, não creio que vá sentir falta de algo que nunca tive. O druida possui um laço estreito com os deuses; mais estreito ainda, penso eu, do que o laço que existe entre marido e mulher, ou entre uma mãe e o seu filho.
Agora, era Clodagh quem olhava para mim de soslaio.
- Não concordas? - perguntei-lhe.
- Não posso saber, Sibeal, uma vez que nunca tive uma vocação espiritual. Nem tu, uma vez que nunca amaste um homem nem foste mãe. Custa-me imaginar algo mais forte do que o laço que existe entre pais e filhos. Uma mãe faria qualquer coisa para garantir a segurança do seu bebé. Qualquer coisa.
Eu não podia argumentar com ela. Embora o seu bebé ainda não tivesse nascido, Clodagh já provara a teoria quando viajara até ao Outro Mundo para salvar o nosso irmão mais novo das garras de Mac Dara, devolvendo, ao mesmo tempo, uma criança desse estranho reino à respectiva mãe.
- Talvez algumas de nós não sejam talhadas para a maternidade - retorqui. - Sei que o caminho que escolhi é aquele que tenho de percorrer. Sempre soube.
- Nesse caso, tens sorte - interveio uma rapariga de faces rosadas chamada Suanach. - Sorte por teres tido tanta certeza e sorte por teres podido escolher. Algumas de nós não tiveram essa felicidade; pelo menos, antes de virmos para aqui, para a ilha. Flidais, por exemplo.
A esguia e delicada Flidais já nos tinha contado a sua história. E que funesta era: fugira de uma família abusiva e chegara à povoação do outro lado do mar apenas com a roupa que trazia no corpo. O tempo sarara-lhe as feridas, tanto as do corpo como as da alma. Agora, era casada com o muito mais velho Rat, e a sua filha era uma das duas crianças atarefadas com a lã.
- É certo - interveio uma outra mulher - que o caminho de qualquer pessoa pode dar uma reviravolta. Mesmo o teu, Sibeal. E se decidisses usar os teus talentos, não como druidesa, mas como escriba ou compositora de música? Ou contadora de histórias errante?
Eu já tinha terminado a minha bainha.
- Não creio que me caiba a mim decidir - volvi. - Se os deuses me chamarem para seguir um determinado caminho, é esse caminho que terei de seguir. Mesmo se a minha inclinação pessoal me leve para outro lugar.
De repente, todas me fitavam.
- Não que me leve - apressei-me a acrescentar, sentindo um rubor desconfortável subir-me às maçãs do rosto. - Não vim aqui com a ideia de seduzir um marido promissor. Embora imagine que exista muita oferta num lugar como este.
- Por falar em músicos e contadores de histórias - interrompeu Alba, talvez reparando no meu embaraço -, Johnny disse que talvez haja algum entretenimento após o jantar desta noite, em honra da chegada dos nossos visitantes. Não haverá bailarico; ainda é cedo para isso. Mas vai ser divertido na mesma. Não queres contar-nos uma história, Sibeal? Imagino que tenhas um grande talento, como druidesa. Niall e eu encarregamo-nos da música, com mais um ou dois.
- Claro que sim - respondi, mas senti um aperto no peito. Vendo o rumo que as coisas tomavam, passaria muito pouco tempo na enfermaria nesse dia. Desculpa, disse, em pensamento, com a esperança absurda de que, de alguma maneira, ele me ouvisse.
Mais tarde, nessa manhã, Brenna veio à porta chamar-nos. Os homens já estavam prontos para receber o seu público. Em uníssono, as mulheres largaram os seus instrumentos de trabalho e dirigiram-se ao recinto de luta.
Entrámos por uma arcada na muralha dupla. Os pesados portões de ferro que costumavam barrar aquele acesso tinham sido abertos, de par em par, para nos dar passagem. Entre as duas muralhas, havia várias câmaras onde se armazenavam as armas e se executavam outras actividades, incluindo, presumi, a instrução das partes mais secretas do treino oferecido na ilha.
No interior do recinto fechado, havia uma zona ampla de terra batida, rodeada por uma dupla fila de bancos. O lugar podia acomodar tudo, desde um combate de luta livre entre dois homens, até à simulação de uma batalha de vinte contra vinte. Os guerreiros da ilha exercitavam as suas técnicas mesmo quando não havia visitantes em treino. Os seus serviços eram requisitados com frequência: uma força de combate com aquela perícia podia dar conta de um vasto leque de trabalhos. Johnny escolhia as suas missões com extrema prudência; eu sabia que, em dez, ele talvez aceitasse uma. Enquanto futuro chefe de clã de Sevenwaters, não podia dar-se ao luxo de fazer novos inimigos.
Os bancos não tardaram a encher-se.
- Virá toda a gente - disse Brenna, que se sentara à minha direita. - Ou quase toda a gente. E vai haver barulho quando as coisas começarem, Sibeal.
A mim, já me parecia que havia barulho suficiente, com o entusiasmo a crescer à medida que as pessoas iam entrando, as mulheres e crianças acompanhadas por um número razoável de homens.
- Apenas alguns irão lutar - disse Clodagh, que estava à minha esquerda. - Isto foi planeado com cuidado, para mostrar aos visitantes aquilo que sabemos fazer e a que eles terão de aspirar enquanto aqui estiverem. É claro que a maior parte dos nossos homens ajudará nos treinos, assim que estes começarem. Imagino que Muirrin e Evan terão algumas nódoas negras e entorses pela frente; acontece sempre. Como está o teu homem?
- Menos mal - respondi. - Mas ele não é o meu homem, Clodagh. É apenas alguém que enganou a morte, com alguma ajuda da minha parte.
- Hum. Tens passado muito tempo na enfermaria.
- Repara - disse eu, mudando de assunto -, Svala está ali, com Knut e Kalev. Não esperava vê-la aqui, no meio de tantas pessoas.
- Está com ar de quem preferia estar noutro sítio qualquer - comentou Brenna.
- Não há dúvida de que é muito reservada - disse Clodagh.
- Convidei-a para vir ter connosco à sala de trabalho, qualquer dia de manhã. Ou, pelo menos, pedi a Kalev para pedir a Knut que lhe transmitisse que era bem-vinda. As mulheres nórdicas são peritas em bordados, segundo ouvi dizer. Mas Knut explicou-nos que ela prefere estar sozinha. Parece tão triste.
Naquele momento, Svala não parecia triste, apenas desligada. Enquanto Knut andava de um lado para o outro, a cumprimentar este e aquele, trocando sorrisos e palavras amigáveis, ela permanecia mais atrás, sem olhar para o marido ou para o que quer que fosse em particular. O seu cabelo fora preso numa trança grosseira, sobre a qual usava um pano de linho de cobrir a cabeça. Este não conseguia esconder-lhe a beleza, e vi olhos virarem-se na sua direcção, sobretudo os dos homens de Connacht. Terminadas as saudações, Knut voltou para junto dela. Kalev disse algo e os dois homens deram uma gargalhada.
De súbito, fez-se silêncio. Um par de lutadores entrou na zona de combate. Traziam facas presas aos cintos; Jouko, de cabelos claros, e Niall, mais robusto, irmão de Alba. Os dois combatentes viraram-se para Johnny, que estava sentado ao lado de Gareth no meio da multidão, e inclinaram as cabeças em jeito de reconhecimento. Momentos depois, começaram a circular à volta um do outro, em posição de combate, e a multidão explodiu em brados de alento e gritos de conselho: "Vai-lhe aos joelhos, Jouko!", "Niall, protege as costas! Se antes eu achara que o encontro era ruidoso, ainda estava longe da realidade.
O combate era intenso e sério. Jouko era mais ágil do que Niall; lutava como um dançarino. Niall parecia mais forte. Pensei que poderia triunfar se, a dada altura, conseguisse imobilizar o nortenho. Lembrei-me de dois animais - Jouko um veado, Niall um javali -, enquanto os dois homens rodopiavam, investiam e se esquivavam de um lado para o outro da luta e de volta outra vez. Foi então que, cortando a respiração à assistência, Jouko pregou uma rasteira ao adversário, com um movimento poderoso, económico e completamente inesperado. Niall caiu, e a faca voou-lhe das mãos. Aproveitando a vantagem, Jouko pôs-se num ápice a cavalo do outro homem, com os joelhos no chão, e encostou a faca à garganta de Niall.
- Alto! - gritou Johnny. - Bom trabalho.
Jouko tornou a enfiar a faca no cinto, pôs-se de pé e estendeu a mão para ajudar Niall a levantar-se. Com acenos curtos, acolheram a aprovação entusiástica da multidão e saíram da zona de combate.
Johnny levantou-se sem sair do lugar; cabeças viraram-se na sua direcção.
- Sejam bem-vindos, todos vós. - O meu primo não alteou a voz, mas a multidão emudeceu; alguns homens possuem uma autoridade natural, e ele possuía mais do que a maioria. - Uma saudação especial ao nosso contingente de Connacht; fizeram uma longa viagem para estar aqui, agora. Este combate foi apenas uma amostra do que aí vem. Hoje, teremos em exposição algumas das nossas técnicas, algumas das nossas armas, alguns dos homens que irão trabalhar convosco durante a vossa estada. O vosso chefe explicou-me o que precisam de aprender e, a partir de amanhã, serão divididos em grupos, e cada grupo confiado a um guerreiro de Inis Eala, que será o vosso tutor. Vocês estão aqui porque são os melhores de entre os melhores. A nossa missão é tornar-vos ainda melhores. Trabalhem com afinco, cumpram as nossas regras e regressarão a Connacht com um domínio perfeito do vosso mister. "Em Inis Eala, as regras são simples. Os vossos tutores voltarão a enunciá-las mais tarde, mas o essencial é isto: se quebrarem os códigos de conduta que são seguidos nesta ilha, não só serão de imediato recambiados para casa, como o mesmo acontecerá a todo o vosso grupo. Não vos pedimos mais do que exigimos aos nossos próprios homens e mulheres. A primeira regra é o respeito. Isso aplica-se a todos nós, a todos os instantes, todos os dias. A segunda regra é que ninguém sai desta ilha sem a minha permissão. Os nossos barcos fazem a travessia para o continente com intervalos de alguns dias e pode acontecer que um ou dois de entre vós tenham de acompanhá-los, uma vez por outra. Não pensem sequer em expedições solitárias. A terceira regra é a honestidade. Se cometerem um erro, assumam-no, admitam-no em público. A última regra é esta: aqui, não deixamos que o Sol se ponha sobre a nossa fúria. É natural que haja desentendimentos à medida que formos avançando. Nenhum de nós é imune à irritação, ao ciúme, aos sentimentos que vêm à superfície quando estamos a ficar cansados e cheios de nódoas negras e algo acontece que nos ofende. Resolvam depressa os vossos ressentimentos e, se não conseguirem, tragam-nos até mim depois do jantar, nesse mesmo dia, e ajudar-vos-ei a resolvê-los. Se sentirem necessidade de usar os punhos para lidar com um problema, façam-no como deve ser, à vista de todos e com um terceiro homem como árbitro. Quando o combate acabar, que seja também o fim dessa querela. - Johnny olhou em redor, como se quisesse incluir cada um dos homens de Connacht no seu discurso. - Sei que têm perguntas para fazer. Reservaremos algum tempo para vos responder no fim dos combates. Agora, vamos mostrar-vos novas espadas, fabricadas pelo nosso ferreiro. Levanta-te, Sam, para que todos te vejam.
Sam ergueu-se em toda a sua imponente altura, o cabelo, de um amarelo ranúnculo, brilhando à luz do Sol. Sorriu de orelha a orelha.
- As novas armas são mais leves, mais fáceis de manusear, superiores, em todos os sentidos, às pesadas espadas que a maior parte de nós tem usado - prosseguiu Johnny. - Vamos treinar-vos a usá-las. O talento a manusear o sabre tradicional não vos fará peritos nestas novas armas. E também pediremos a vossa opinião. Se, no futuro, o vosso chefe de clã quiser adoptá-las, terá de ter um ferreiro instruído na sua manufactura. Nós podemos fornecer-lhe essa instrução.
Observámos Spider e Otter a testar as novas lâminas de Sam. Não pareciam equiparados, sendo um alto e magro e o outro corpulento e entroncado. Mas nenhum deles ganhava com facilidade vantagem sobre o outro. O combate pô-los a percorrer, com leveza e graça, a zona aberta, a agilidade e a força de ambos mascarando o facto de já terem vivido mais de quarenta Verões.
- Estas espadas permitem-lhes moverem-se com muito mais facilidade - explicou Brenna. - Sam aprendeu a fabricá-las com um ferreiro franco que passou aqui alguns Invernos. E acrescentou certas mais-valias de sua lavra. Viram a rapidez com que eles recuperam de um ataque? Não conseguiriam fazê-lo com as espadas antigas, a menos que tivessem braços como os de Cú Chulainn.
- E estas têm uma ponta mais afiada - disse Clodagh. - Como a ponta de uma lança. Conseguem infligir um ferimento espetando e não apenas retalhando. Seria impossível fazê-lo com as antigas; são demasiado pesadas.
- Hum - murmurei. Viver em Inis Eala fornecia a uma mulher uma invulgar amplitude de conhecimentos.
Otter conseguiu furar a defesa de Spider e podia tê-lo golpeado nas coxas, mas converteu o golpe numa estocada com a prancha da espada, dando provas de um extraordinário controlo. Algum tempo depois, Spider virou-se inesperadamente e desferiu, não um golpe de fora de combate, mas uma pancadinha delicada na cabeça de Otter, protegida com um elmo de couro. Johnny ordenou, então, que parassem, e assim fizeram. Spider pousou o braço comprido sobre os ombros do amigo; Otter levantou a espada, saudando Johnny e a assistência, que aplaudia.
A seguir, foi a vez de Rat, que derrotou o muito mais novo Oran ao fim de um longo combate. Os gritos de Flidais, uma nesga de mulher, seriam capazes de afugentar as gaivotas do céu e, assim que o confronto acabou, o marido galgou os bancos para colhê-la nos seus braços e dar-lhe um beijo caloroso.
Gareth defrontou um homem grande, cujo nome não fixei, e acabou por vencê-lo, embora, aos meus olhos sem instrução, o combate parecesse muito equilibrado. Depois, dois homens combateram com as pesadas espadas de folha larga, que confinavam os lutadores - ambos bem musculosos - a ataques lentos e pesados e a movimentos cambaleantes. Era de uma evidência gritante que as novas lâminas mudavam a maneira de combater.
- Uma espada de folha larga como aquelas pode rachar o crânio de um homem ao meio - explicou-me Clodagh, numa voz tranquila. - Ou arrancar-lhe um braço ou uma perna. Mas o que as torna letais também estorva o utilizador. Assim que começas o ataque, todo o peso do teu corpo parte com ele.
- Compreendo.
- E isso - acrescentou Brenna - significa que, se a tua arma falhar o seu alvo, o adversário pode matar-te enquanto ainda estás a tentar recuperá-la.
Pouco depois, Johnny gritou "Alto!" Os combatentes, ofegantes, já reluziam de suor quando se chegaram à frente para receber os aplausos da multidão. Assim que o entusiasmo esmoreceu, Johnny levantou-se para voltar a falar.
- Enquanto os nossos visitantes aqui estiverem, faremos uma sessão pública, como esta, de sete em sete dias. Na próxima, a vossa participação, homens de Connacht, será bem-vinda, se assim o quiserem. A sessão é feita na base de desafios. Se quiserem participar, avisem Rat com alguns dias de antecedência. Escolham o vosso adversário: um dos nossos, ou um dos vossos. Se esse homem aceitar, o combate vai para a frente. Rat, levanta-te.
Rat obedeceu.
- Rat já era um homem de armas quando eu ainda era um bebé de cueiros - disse Johnny. - É ele o responsável pelos dias de torneio. Homens de Connacht, esperamos que todos vocês participem, pelo menos uma vez, antes da vossa partida. - A julgar pelo burburinho, calculei que Rat teria mais candidatos do que o tempo permitia. - Responderei às perguntas de todos no fim deste último combate. Preparados, homens?
Agora, parecia que chegara a vez de Cathal, e o seu adversário era Kalev. Assim que eles entraram na zona de combate, dir-se-ia que o contingente em peso de guerreiros de Inis Eala viera, a sós ou a pares, sentar-se nos bancos à volta do recinto, até todos os lugares ficarem ocupados e a orla do círculo estar apinhada de gente.
- É numerosa a assistência - sussurrei para a minha irmã.
- Os homens gostam de ver Cathal lutar - murmurou Clodagh. Parecia serena, mas estava a agarrar-me a mão com tanta força que me deixaria marca.
Os dois combatentes usavam o mesmo tipo de traje que os outros lutadores tinham usado: roupa de lã acolchoada com uma peça de couro sobre a túnica, a proteger o peito; correias protectoras, afiveladas à volta dos antebraços e dos queixos, e um elmo de couro. Ambos traziam uma espada leve.
Agora que o seu combate terminara, Niall viera sentar-se entre Brenna e Alba.
- Contagem a cinquenta - ouvi-o dizer ao homem atrás dele.
- Dou-te setenta.
- Aceito. Não gosto das tuas probabilidades.
- Quarenta e cinco - dizia outro.
- Apostas? - perguntei, sem saber como se fazia uma aposta sem nomear o homem que esperávamos que ganhasse.
- É verdade - respondeu Niall, encostando o punho fechado ao punho do homem atrás dele, num gesto que parecia denotar entendimento. - Não se aposta em ninguém para vencer Cathal. A não ser que ele esteja a lutar contra Johnny. Apostamos no tempo que o adversário conseguirá aguentar. Repara, Johnny talvez lhes tenha pedido para fazerem o combate de hoje durar, uma vez que é essa a natureza da demonstração. Posso perder os meus dois dinheiros. Não tem importância; recupero-os num instante.
- Compreendo. - Observei os dois homens, que assumiam agora as suas posições de combate: espadas em punho, olhos nos olhos, prontos a ler um movimento quando este ainda não passava de uma centelha no olhar do adversário. - E se Cathal enfrentasse Johnny, em quem apostarias?
Niall sorriu.
- Não costumamos apostar nesses combates. Johnny parece ter sempre uma última carta na manga. Deve ser a magia que herdou do pai dele. Dizem que Bran era um lutador excepcional. Intrépido.
Não olhei para Clodagh. Se tivesse escolhido usar a magia do seu pai, Cathal teria derrotado qualquer adversário humano, mesmo um guerreiro com as notáveis qualidades de Johnny.
Kalev e Cathal possuíam uma constituição semelhante, alta e seca; pareciam fazer um bom par. Em escassos instantes, tornou-se óbvio o motivo por que aquele combate ficara para o fim: estava um grau acima de tudo o que tínhamos visto até ali. Fiquei surpreendida com o estilo hábil de Kalev, com a rapidez de relâmpago dos seus pés, porque das vezes que estivera na sua companhia parecera-me sempre um pouco desajeitado, como se não tivesse ainda crescido o mesmo que a sua altura. Mas era lógico que não teria sido escolhido para aquele combate se não conseguisse dar algum trabalho ao seu adversário, pelo menos enquanto durava a contagem até cinquenta, setenta, ou o que quer que o destino lhe reservava.
- Kalev é bom - sussurrei aos ouvidos de Clodagh, enquanto a multidão gritava e batia com os pés no chão, incentivando os dois combatentes.
- Um dos nossos melhores - replicou ela, continuando a segurar-me na mão com desconfortável firmeza.
Os dois homens estavam colados um ao outro, com as armas fechadas num impasse, os olhos duros. As lâminas rasparam uma na outra, fazendo um ruído áspero como o grito de um corvo, e a posição desfez-se. Circularam à volta um do outro. Kalev estava ofegante. Vários homens à minha volta contavam pelos dedos.
Kalev deu um passo para a esquerda, simulou um ataque à direita, apareceu atrás de Cathal, pronto a desferir o golpe. Mas Cathal já não estava ali; o seu movimento fora tão rápido que eu mal o tinha visto. Os meus olhos procuraram os de Clodagh.
- Ele é muito rápido, é só isso - disse a minha irmã. - Não há truques; pelo menos, não aqueles em que estás a pensar.
Ela tinha razão. Tornou-se claro, enquanto Kalev tentava técnica após técnica e Cathal se revelava sempre demasiado rápido, que o meu cunhado era simplesmente o melhor lutador.
Os homens de Connacht estavam sentados no limite dos seus bancos, silenciosos no meio do tumulto rouco da multidão. Johnny não gritava. Não estava sequer a ver o combate, parecia-me, mas a observar o comportamento dos visitantes, como se tivesse começado a avaliar a qualidade de cada um deles antes mesmo do início dos treinos.
- Quarenta e oito, quarenta e nove - dizia Niall, entredentes. - Maldito sejas!
Kalev continuava de pé. O seu contributo fora muito superior à mera autodefesa. Vários golpes de mestre tinham acertado no alvo, mas a velocidade de Cathal - quase, mas não exactamente do outro mundo - dera-lhe a vantagem. As feições de Kalev denotavam concentração, os seus olhos semicerraram-se. Se sabia que a derrota era inevitável, isso não o impedia de dar tudo o que tinha naquele combate.
- Cinquenta e oito, cinquenta e nove...
De repente, Kalev recuava, retrocedendo ao longo da zona aberta perante a acção súbita e letal do braço direito de Cathal. Cambaleando, levou um joelho ao chão e preparou-se o melhor que podia para aguentar a violenta investida. Com o punho da espada bem firme entre as duas mãos, Cathal executou uma manobra sinuosa e a espada do adversário caiu no chão.
- Alto. - O tom de Johnny era neutro; se tinha alguma opinião a respeito da perícia ali demonstrada, não deu sinais disso. Kalev levantou-se, recuperou a sua arma e veio pôr-se ao lado de Cathal. A multidão bradou o seu contentamento, e os dois homens devolveram a saudação com o habitual aceno curto. Kalev parecia cansado. Cathal estava imperturbável.
- Bom trabalho, da parte de todos aqueles que participaram nos combates de hoje - disse Johnny. - Foi o fim da nossa exibição. Dentro de momentos, comes e bebes para toda a gente, no salão. Homens de Connacht, reúnam-se. Vamos dar-vos mais alguns pormenores e apresentar-vos aos vossos tutores. E eu responderei a todas as perguntas.
As mulheres, as crianças e muitos homens dirigiram-se à saída.
- Espera, Sibeal, só saímos quando a maior parte das pessoas já tiver passado o portão - disse Clodagh. - Estou a ficar tão grande que acabo por estorvar a passagem.
- Mais perto de setenta - resmungou Niall para com os seus botões, depois de confirmar várias vezes a contagem com os dedos. - Ora, são só uns cobres. - Seguiu para baixo, ao encontro do grupo de homens reunidos à volta de Johnny.
Quando eu e a minha irmã nos dirigíamos à saída, na cauda da multidão, ouvi um tumulto de vozes atrás de mim: uma conversa agitada, em nórdico. Depois, veio a voz de Knut, falando num irlandês com um sotaque cerrado.
- Eu lutar. Espada nova, sete dias. Eu lutar com aquele.
Virámo-nos, Clodagh e eu. Knut caminhara contra a maré de gente e parara junto do grupo reunido ao pé de Johnny. Jouko agarrara-lhe no braço e falava-lhe em voz baixa, num tom severo, quem sabe dizendo-lhe algo como cala-te, louco, não é assim que se fazem as coisas. Mas a sua presença ali era indiferente. A atenção de Knut concentrara-se em Johnny Olhava-o com tenacidade, de ombros direitos e botas afastadas. A pose de um guerreiro. Não havia dúvida de que conseguira chamar a atenção do grupo. Os homens de Connacht observavam-no com curiosidade; os homens de Inis Eala com um espanto admirado.
Johnny não se surpreendia facilmente, mas, por momentos, vi-o sem palavras.
- Jouko - disse Rat -, explica a Knut que estes combates se destinam apenas aos homens em treino, os nossos visitantes de Verão. Além disso, ninguém será perito na nova espada em sete dias. Mesmo que conseguisse sê-lo, não aguentaria uma contagem até dez contra Cathal.
Então era Cathal que o homem do Norte tinha desafiado. Knut devia ser tolo. Não assistira ele ao último combate?
A resposta de Knut a Jouko parecia enfática.
- Knut quer muito testar os seus talentos contra Cathal. - Havia uma nota apologética na tradução de Jouko. - Ele pede isto como um favor especial da tua parte, Johnny. Não espera poder participar nos treinos, apenas usar uma das espadas de Sam para praticar até aos próximos combates. É um guerreiro e deseja mostrar-te o que sabe fazer. Desculpa. Tentei explicar-lhe o melhor que pude.
- Eu lutar - disse Knut, em irlandês. - Mostrar coragem. Forte. Lutar com o melhor homem daqui.
Cathal desdobrou a sua longa silhueta sentada e levantou-se para encarar o nórdico.
- Então, não sou eu aquele que procuras - retorquiu. - Johnny é meu superior no manejo da espada, quer na velha espada de folha larga, quer na nova. E não acredito que tenhas o descaramento de desafiá-lo a ele.
Fez-se um breve silêncio, apenas interrompido pela tradução murmurada de Jouko.
- Eu, tu. Boa luta. - O olhar de Knut cruzou-se com o de Cathal, os olhos azuis fitando com ferocidade, os pretos, se tanto, vagamente divertidos. Entre os homens gerou-se um rebuliço, um burburinho, enquanto aguardavam a resposta de Johnny.
- Tomarei o teu pedido em consideração, Knut. - Johnny falou, como sempre, num tom sereno. - Como Rat já explicou, os combates fazem parte do treino dos nossos visitantes e são uma forma de manter o engenho dos nossos homens apurado. Se tu e a tua mulher ainda aqui estiverem na ilha dentro de sete dias, e se Rat achar por bem facultar-te entretanto o uso de uma espada de Sam, talvez te seja dada a oportunidade de mostrares o teu valor.
Se Johnny pretendera fazer a sugestão, não muito subtil, de que Knut tinha mais olhos do que barriga, a mensagem não chegou ao seu destinatário.
- Eu lutar. Dar-me espada, eu mostrar.
- Ninguém duvida da tua coragem - replicou Johnny, lançando-lhe um olhar indecifrável. - Mais alguma pergunta?
- Anda, Sibeal. - Clodagh puxou-me pela manga e dirigiu-se aos portões. Não havia sinais de Svala; já se tinha ido embora. Talvez o comportamento de Knut fosse tão constrangedor para ela como o dela era para ele.
Ao pequeno-almoço, Cathal pedira-me para eu obrigar Clodagh a descansar durante a tarde. Depois de tomarmos uma refeição ligeira, fomos juntas para os aposentos dos casais. Ali, sentei-me à sua cabeceira e contei-lhe histórias até ela adormecer, o cobertor moldando-se à sua expansiva silhueta. Com os caracóis cor de fogo espalhados sobre a almofada e as feições suavizadas pelo sono que depressa a levara, Clodagh parecia jovem e vulnerável. Não era a primeira vez que me sentia a irmã mais velha, não a mais nova.
Saindo em bicos de pés, dirigi-me à enfermaria. Fui às latrinas, escovei o cabelo e lavei a cara. Depois, aproximei-me de Ardal, que dormia, parte de mim com vontade que ele acordasse para saber que eu estava ali, a outra consciente de que aquele sono tranquilo era o que ele mais precisava.
Muirrin estava a pendurar molhes de alga marinha para secar.
- Esta chama-se Cauda de Tritão - explicou-me. - É eficaz numa infusão, para aliviar cãibras. Tem um sabor parecido com o do agrião. - Como não reagi, ela olhou para mim e acrescentou: - Ele está melhor, Sibeal. Tem descansado com muito mais conforto, e Evan diz que já não verte águas tão escuras.
Olhei para baixo, para o homem adormecido.
- Ele disse alguma coisa hoje? Falou alguma vez convosco?
- Não tenhas grandes expectativas, Sibeal. Respirar, para ele, é como subir uma montanha íngreme. Na verdade, perguntou por ti, num irlandês muito razoável. Eu disse-lhe que virias mais tarde.
Uma luz pequena e quente acordou dentro de mim.
- Obrigada - respondi.
Seguiu-se um silêncio. Quando reparei, as mãos da minha irmã tinham parado de fazer o seu trabalho e ela observava-me com atenção.
- O destino deste homem significa assim tanto para ti? - perguntou-me, numa voz serena.
Aquiesci, plissando uma ponta do cobertor de Ardal entre os meus dedos. Fang não estava em parte nenhuma. A sua presença seria necessária mais tarde. As noites na ilha eram frias; eu não invejava a Gull as três viagens nocturnas que ele fazia às latrinas, e de lá para cá. A cadência destas viagens dava-me uma certa segurança, o ranger da porta das traseiras quando ele saía, o mesmo ruído quando voltava a entrar. Adormecia depressa quando sabia que Gull já tinha voltado para dentro. Mas dava-me por satisfeita com o calor dos meus cobertores e o abrigo do meu pequeno quarto.
- Porquê, Sibeal?
Porque acredito que os nossos destinos se encontram ligados. Mas não podia dizê-lo à pragmática Muirrin.
- Creio que posso ajudá-lo - respondi. - Mais tarde, quero dizer, quando ele se sentir melhor.
- Bem, parece que talvez tenhas a tua oportunidade. Penso que conseguiremos salvá-lo desta. O teu homem é um lutador. Não estás a chorar, pois não, Sibeal?
- Claro que não. Vou um pouco para o meu quarto, Muirrin. Concordei em contar uma história depois do jantar e tenho de escolher uma.
Consegui reter as lágrimas apenas tempo suficiente para passar a cortina que dividia o meu quarto do resto da enfermaria. Depois, afundei-me na enxerga, pousei a cabeça nas mãos e autorizei-me a chorar.
Capítulo 5
SIBEAL
e foi assim - contei, mais tarde, à assistência silenciosa reunida no salão - que Osgar desembainhou a sua espada e pelejou, chacinando o Homem Cinzento. Ao ver o irmão deitado no seu próprio sangue, Ailne caiu morta, de desgosto. Quanto aos Fianna, banquetearam-se pela noite dentro com as requintadas iguarias e bebidas que encontraram naquele lugar, e dormiram até tarde na manhã seguinte. Quando acordaram, tudo tinha desaparecido: a fortaleza, as ricas tapeçarias, os trajes sumptuosos, até a sinistra masmorra onde o seu captor os tinha enclausurado. Só havia prados, árvores e o Sol que subia no céu, dizendo-lhes que chegara a altura de seguirem caminho. Dir-se-ia que nada lhes acontecera, não fora a pele de ovelha que Conan usava sobre as costas, como se fizesse parte do seu corpo. Essa pele acompanhou-o todos os anos até ao fim da sua vida e, quando a mulher lhe cortava o cabelo, tinha de tosquiar-lhe a lã também. Como era uma mulher prática, como a minha irmã aqui presente - acenei na direcção de Clodagh -, conservou a lã até se fartar e, depois, fiou-a e teceu-a, fabricando com ela toda uma série de úteis objectos. E aqui finda a minha história.
Um aplauso ruidoso disse-me que eu tinha feito uma boa escolha: era uma história que já todos deviam conhecer, sobre o grande guerreiro Finn e o seu bando e de como tinham caído na armadilha de Ailne e do seu misterioso irmão. Histórias como esta criavam bons momentos de entretenimento sem levantar a polémica, ou tocar demasiado fundo no coração dos ouvintes; era o que se pretendia naquela noite. Knut gritava aprovação, em coro com os outros. Svala não estava presente. Talvez estivesse sozinha lá em baixo, na cabana do pescador, acocorada à beira de uma pequena fogueira, ou sentada ao lado do coto derretido de uma única vela. Não, errava. Imaginei-a na praia, olhando para longe, para ocidente, na escuridão; ou a caminhar, os pés descalços firmes e seguros sobre os seixos soltos. Ou sentada nos rochedos à luz da lua-nascente, esperando que as focas passassem por ali a nadar. O coração doía-lhe no peito, doía-lhe de uma perda que nunca poderia repor...
Alguém me estendeu uma taça de hidromel. Quase a deixei cair no colo, em sobressalto: por momentos, a onda de desgosto arrastara-me para outro lugar.
- Sentes-te bem, Sibeal? - Gareth veio tirar-me a taça das mãos e pousou-a na mesa ali perto.
- Sinto-me bem, sim, mas...
- Vais ficar para ouvir a música, Sibeal? - Era Alba. Trazia o cabelo atado atrás, com uma faixa, e a rabeca e o arco nas mãos. Olhou de relance para os lados, enquanto esperava a minha resposta, e um dos homens de Connacht, um rapaz bonito de cabelo ruivo, sorriu como se estivesse à espera que ela reparasse nele. Alba devolveu o sorriso, mostrando as suas covinhas. Atrás dela, Niall dedilhava a sua harpa, de sobrolho franzido, apertando uma cravelha ou duas.
Eu tinha pensado desculpar-me com o cansaço e escapar.
- Claro - respondi. - Estou desejosa de vos ouvir tocar.
Alba e o irmão eram músicos de talento. Acompanhava-os um sujeito de dedos hábeis, no assobio, e dois tambores de grande qualidade. Via-se que as pessoas ansiavam por dançar, mas continham o impulso por respeito a Knut e às recentes perdas. Pareceu-me, contudo, que o próprio Knut, que batia com o pé no chão, se teria levantado e posto a dançar, com ou sem a mulher, se alguém lho tivesse sugerido. Numa outra ocasião, eu teria apreciado a música. Nessa noite, só queria que chegasse a altura de poder sair sem ofender ninguém.
- Posso apresentar-me, a mim e ao meu amigo?
Uma voz cortês: o guerreiro de pé à minha frente era um dos visitantes, não o ruivo que olhara para Alba, mas um homem mais baixo, com um sorriso radioso e caracóis escuros.
- Sou Brendan, filho de Marcán, e este é Fergus. Ambos do distrito de Long Hill. É uma bela história a que contaste.
- Obrigada. Sou Sibeal, filha de Lorde Sean de Sevenwaters, como sabem. Prima de Johnny. Druidesa, ou em vias de tornar-me.
- Podemos sentar-nos, Sibeal?
Acedi com um aceno; não podia recusar. Fiquei sentada no meio dos dois, a ouvir a música que continuava a tocar, e a única coisa em que conseguia pensar era em Ardal, acordado, na enxerga da enfermaria, como um rapazinho à espera que a mãe viesse aconchegá-lo à cama. Embora não fosse, de todo, a mesma coisa.
- ...e a terra do meu pai estende-se da costa oeste até ao Lago Oculto - dizia um dos homens.
- Hum - murmurei, ponderando se seria boa ideia entreter Ardal com uma história, caso ainda estivesse acordado quando eu lá chegasse.
- ...espero acabar com isto de uma vez por todas. Fursa Uí Conchobhair já cobiça há muito as terras de Curnán; se não o travarmos agora, a situação depressa se tornará mais grave do que uns quantos assaltos de gado...
- Hum.
Apesar da sesta que fizera à tarde, Clodagh estava, de novo, com um ar cansado. Sentara-se na mesa do fundo, ao lado de Cathal, com a cabeça apoiada no ombro do marido. Os músicos continuavam a tocar, mas os pais começavam a ir buscar os filhos à multidão para os levar para a cama. Johnny envolvera-se numa conversa com o chefe dos homens de Connacht, talvez a planear as actividades do dia seguinte. Os dois deslocavam objectos sobre a mesa, como se estes fossem pontos de referência num plano de batalha: esta colher é aponte sobre o ribeiro, e a tigela o lago...
Dei-me conta de que um dos homens sentados ao meu lado me acabara de fazer uma pergunta e que eu não fazia ideia do que se tratava. Qual dos dois era Brendan e qual era Fergus? Enquanto balbuciava, à procura de algo para dizer, a silhueta alta de Kalev ergueu-se à minha frente.
- Foi uma bela história, Sibeal. Se desejares, acompanho-te de volta à enfermaria. Preciso de falar com Evan. Quando estiveres pronta.
A salvação chegara numa forma inesperada.
- Obrigada - respondi, levantando-me. - Desejo-vos uma boa noite - disse aos dois homens de Connacht, sorrindo a cada um deles e permitindo a Kalev segurar-me no braço. - Obrigada - tornei a murmurar, enquanto nos afastávamos por entre as mesas. - Precisava mesmo que alguém me salvasse.
Kalev corou.
- Eles esperam muito de ti. Mais do que é razoável.
- Tenho todo o gosto em contribuir com uma história ou duas. Faz parte dos deveres de um druida.
Kalev não disse nada até sairmos para o ar livre e atravessarmos o recinto na direcção da enfermaria. Levantara-se um pé-de-vento; as tochas pareciam longas bandeiras de chama, iluminando o caminho.
- Tu contas histórias, cuidas dos doentes, dizes orações pelos mortos, concedes o teu sorriso ao homem que combate e ao que te passa o cesto do pão - observou Kalev, surpreendendo-me. - És jovem.
Pensei alguns instantes nas suas palavras.
- Enveredei por este caminho quando era ainda muito nova - contei-lhe. - É uma vocação. Não me parece que seja insensato. A não ser quando... - Hesitei. Afinal, não conhecia muito bem aquele homem.
- A não ser quando os teus pensamentos te levam para outros lugares e os homens esperam que mostres fascínio pelas suas historietas?
Kalev aproximara-se demasiado da verdade.
- Foi uma descortesia da minha parte - retorqui. - Perdi-me em divagações.
- Com licença, deixa-me abrir-te a porta.
Estávamos na enfermaria. Por entre as fendas das portadas, brilhava a luz das candeias, e uma espiral de fumo saía da chaminé.
- Obrigada, Kalev - disse, antes de entrarmos. - És muito atencioso. E perspicaz.
O meu comentário não obteve resposta, tirando o habitual rubor nas faces, visível até à meia luz.
No interior, Evan preparava-se para sair, pronto a passar o testemunho a Gull. E Ardal estava acordado. Os seus olhos caíram sobre mim no instante em que passei a soleira da porta; senti aquele olhar como sentiria o calor de uma lareira. Agora, eram as minhas faces que ardiam.
- Como está ele? - perguntei, olhando de relance para Evan.
- Estou satisfeito - respondeu o meu cunhado. - Hoje, os sinais melhoraram. Vamos deslocá-lo quando o pai chegar. Kalev, talvez possas dar-nos uma ajuda. Temos de pôr lençóis limpos na cama.
- Claro que dou - respondeu. - Evan, gostava de falar contigo sobre algo, antes de Gull chegar.
- Hum?
Enquanto conversavam, fui sentar-me ao lado de Ardal.
- Estou aqui - murmurei, enquanto os dois homens continuavam a sua conversa ao pé da bancada de trabalho. Peguei-lhe na mão. Ainda estava lívido, a pele esticada sobre os ossos fortes do rosto. Isto realçava-lhe o tamanho dos olhos, que pareciam enormes, com um brilho quase sobrenatural. - Estás com melhor aspecto - observei. - Fico feliz.
O polegar de Ardal moveu-se na palma da minha mão; senti o seu toque bem fundo dentro de mim. Um gesto perturbador, íntimo. Errado. E, no entanto, não suportáva a ideia de retirar a mão.
- Tive saudades tuas - sussurrou-me.
Um calor subiu-me às faces, envergonhando-me. Era, sem dúvida, a sua pouca familiaridade com a língua que o fazia falar-me assim, dando às palavras uma intimidade não intencional. Não sabia o que havia de dizer-lhe.
- ...o homem precisa de algum apoio - dizia Kalev a Evan. - Talvez o desafio fosse disparatado, mas está feito, e todos nós achamos que Johnny vai deixá-lo ir com a coisa avante, nem que seja para ilustrar os perigos de se agir por impulso. Knut é apreciado na comunidade. Se Sam não lhe der uma espada, os homens emprestam-lhe uma. Alguns de nós estão dispostos a dar-lhe instrução nas horas livres. Mas, sete dias... não é muito tempo. Ele precisa de ser treinado por um perito, e os nossos melhores estão todos ocupados com os homens de Connacht.
- E tu? - perguntou Evan.
- Tu sabes que eu não sei ensinar tão bem como Gull. Além disso, fui destacado para trabalhar com os visitantes. Mas não pedirei ajuda ao teu pai se isso causar alguma ofensa ou acordar memórias tristes.
Seguiu-se uma pausa.
- Devias perguntar-lhe - disse Evan. - Desde que possas encarregar-te de uma ou outra demonstração, penso que o meu pai adorará fazer a parte da instrução. Ele nunca o admite, mas sente falta do combate. Mais do que qualquer um de nós pode imaginar. Estás assim tão desejoso de ver Cathal derrotado?
Kalev riu-se entredentes.
- É improvável, Evan. Alguns acham que Knut é pouco sensato. Mas a maior parte viu coragem naquele franco desafio. Não irá derrotar Cathal; ninguém está à espera disso. Mas é um guerreiro, como nós, e está longe de casa. Parece-me justo que o ajudemos a ter o melhor desempenho possível.
- O que diz Cathal? - não pude deixar de perguntar.
- Assim que tiver a resposta de Gull - disse Kalev -, é o que tenciono descobrir.
Pouco depois, Gull chegou, trazendo o já esperado tacho de caldo. Enquanto eu o aquecia, os homens tiraram Ardal da cama, cobriram-lhe os ombros com um cobertor e instalaram-no numa cadeira à beira da lareira. Como se esperasse apenas que aquela interrupção terminasse, Fang latiu do outro lado da porta. Quando a deixei entrar, correu direita a Ardal e saltou-lhe para os joelhos. Vi-o estremecer com a sua aterragem, mas, quando me preparava para pô-la no chão, ele travou-me com a mão.
- Nann - murmurou, ou algo do género. Não.
Os homens continuavam a falar de Knut e do desafio.
- Creio que posso dar-lhe alguns conselhos - disse Gull. Falara com a mesma calma com que responderia se a sua ajuda fosse requisitada para plantar uma fileira de cenouras, mas os seus ombros tinham-se endireitado quando Kalev lhe fizera aquele pedido. Perguntei-me se as pessoas se esqueceriam de que ele fora, em tempos, um guerreiro de formidável talento e destemida bravura. Contariam ainda a história do dia em que ele salvara Bran da masmorra? - Gosto do espírito de Knut. Gosto de um homem que consegue pôr-se de bom humor mesmo depois de sofrer uma tragédia. Embora desafiar Cathal tenha sido, talvez, levar as coisas longe de mais. Por outro lado, pergunto-me se aquilo que sugeres é, de facto, justo.
- Não acredito que penses que isto dará a vantagem a Knut - observou Evan, enquanto tirava os lençóis da cama e os lançava para o canto.
- Dificilmente - replicou o pai, que fora buscar um frasco de ervas secas. Os aromas da lavanda, da hortelã-pimenta e da camomila soltaram-se no ar quando ele as polvilhou sobre o colchão de palha. - Ele tem sete dias para treinar com a nova espada, não vamos oferecer-lhe o treino que os outros homens vão receber e o suplício do naufrágio deve tê-lo enfraquecido, já para não dizer que não tocou sequer numa arma desde que aqui chegou. Se tivesse desafiado um dos homens de Connacht, talvez me sentisse tentado a fazer uma aposta, a favor do nórdico. Mas Cathal? Seria um milagre. Aqui entre nós, talvez possamos prepará-lo para atingir esse ponto em que não passará uma vergonha absoluta. Falei de justiça porque... Enfim, não me parece que fosse isto que Johnny esperava que fizéssemos.
Kalev sorriu.
- Penso que é precisamente o que ele esperava que fizéssemos. Agora que concordaste, Gull, vou transmitir a Johnny e a Cathal aquilo que combinámos.
- Também não havia grande esperança de guardar segredo - replicou Gull, com uma careta. Depois, esperou de braços cruzados que Evan e Kalev fizessem a cama de lavado, com roupa tirada da arca de arrumos. Pareceu-me reconhecer o toque de Clodagh naquela roupa dobrada com tanto cuidado. - Teremos de aproveitar todos os momentos livres. Johnny só aprovará isto se não interferir com a rotina de trabalho de ninguém.
- Eu ajudo aqui na enfermaria - propus. - Não posso fazer os trabalhos mais pesados, mas posso dar as refeições a Ardal e vigiá-lo quando estiveres ocupado durante o dia, Gull.
- Obrigado, Sibeal. - Sorriu para mim. - A tua visita a Inis Eala não está a ser o descanso que Johnny me disse que fora previsto.
- Nunca pedi para descansar - retorqui. - Tenho muito gosto em ajudar.
- É melhor voltarmos a pôr Ardal na cama - disse Evan, quando a enxerga ficou feita de lavado. - Depois, deixamos as coisas contigo, pai. O meu estômago está a dar horas.
Gull olhou para Ardal, sentado na outra ponta da sala, com a luz do fogo a aquecer-lhe o rosto cavado e a cadela tranquilamente enrolada nos joelhos.
- Deixem-no estar, por agora - disse ele. - Sibeal e eu cá nos arranjaremos.
- Não me parece que...
- Vai lá, Evan. O homem mal se levantou da cama desde que aqui chegou. Tu e Kalev, levem os cobertores para baixo e entreguem-nos a Biddy. Ardal só tem de cambalear alguns passos para atravessar o quarto. Nós ajudamo-lo.
O olhar de Evan tirou-nos as medidas: um homem com mãos estropiadas, uma rapariga franzina de dezasseis anos de idade.
- Boa noite, então - disse ele.
- Boa noite, Sibeal, Gull - disse Kalev. E os dois saíram.
- Ora bem - disse Gull. - É melhor comeres alguma coisa, Ardal. Sibeal ajuda-te. Depois, talvez tenhamos direito a uma história. A luz da lareira é a melhor para contar e ouvir histórias. Kalev disse-me que estiveste a entretê-los lá em baixo, com a história de Finn e do Homem Cinzento, Sibeal.
- É verdade.
- Portanto, agora é a minha vez. Pensa no que gostarias de ouvir.
Enchi uma malga de caldo e, hesitando um instante, passei a colher a Ardal.
- Eu seguro na tigela - disse-lhe. - Vê se consegues comer sozinho.
Enquanto o caldo viajava da tigela até aos lábios, a colher estremecendo com alguma violência na mão do doente, fiquei quieta e muda ao seu lado. Vi quanto lhe custava engolir; sabia o esforço desesperado que ele estava a fazer para não falhar aquele simples desafio.
- Estás a ir bem, Ardal - observei, quando ele já tinha quase terminado. - Comer sozinho pode parecer-te uma pequena conquista, algo que até uma criança seria capaz de fazer. Mas não é; é mais um passo para voltares a ser tu próprio. Não exige só coragem, mas força e esperança. Talvez comeces, em breve, a recuperar a memória.
- Nunca vi nada assim - observou Gull, sentando-se no banco à nossa frente. - Um homem perder a memória por completo. Já os vi desorientados durante algum tempo, depois de levarem uma pancada na cabeça, mas não dura. Por outro lado, o que lhe aconteceu a ele, Ardal, não é muito diferente do que nos foi acontecendo, a muitos de nós que aqui vivemos, ao longo dos anos. Viramos a página, as coisas mudam e algumas partes da nossa história fecham-se cá dentro. Para muitos de nós, existe uma linha traçada no passado. E o antes é algo para o qual não perdemos muito tempo a olhar.
A sopa estava terminada.
- Bom trabalho, Ardal - murmurei, tirando-lhe a colher dos dedos. Fang atirou-se a mim.
- Deiz, nannl - exclamou ele, e a cadela cedeu, a rosnar. Gull e eu olhámos para ele, admirados.
- Deste um novo nome a Fang? - perguntou Gull, numa voz suave.
- Deiz, não é?
Ardal olhou para nós.
- Um nome melhor do que Fang, creio - respondeu. - Significa "dia".
- Sorriu.
Se Snake ficaria ou não satisfeito por encontrar a sua cadela com um novo nome quando regressasse a casa, era irrelevante. Ardal acabara de dar um enorme passo em frente. Gull e eu trocámos sorrisos de alegria.
- Parece que o teu irlandês é muito melhor do que pensávamos - observou Gull, sem dar ênfase à ideia. Agora, pergunto-me... Por acaso não te recordas de um rapaz chamado Corentin que esteve aqui connosco há uns anos atrás, pois não, Sibeal? Ardal faz-me lembrar esse rapaz. Têm o mesmo ar, e semelhanças no sotaque. Corentin era originário da Armórica, perto dos territórios gauleses.
Ardal baixara os olhos; as pestanas compridas escudavam-lhe o olhar. Se aqueles nomes tinham algum significado para ele, não o diria, ainda não. Teríamos de avançar com cuidado.
- Gull, disseste que os homens daqui não gostam de pensar no antes - repliquei, mudando de assunto. - Antes de quê? Antes de virem para Inis Eala?
- Para alguns. - Gull olhou para baixo, para as mãos fortes, mutiladas, que contavam uma história só delas. - Para outros, foi mais cedo. Morte; perda; guerra. Um acto que se quer esquecido. Para mim, a linha foi traçada quando conheci o Chefe. Quando me lembro da vida que tive antes, não penso tanto no que aconteceu. Recordo-me do que sentia quando estava à beira de desistir e de ser fisicamente arrastado para trás. Ele ensinou-me a ter esperança. O mais engraçado é que ele próprio só aprendeu o que era a esperança quando a tua tia Liadan o puxou para fora desse poço escuro onde se encontrava. Foram tempos formidáveis, Sibeal. Ainda sinto arrepios só de pensar nisso.
- Como conseguiu ela?
Graças a Ciarán, eu sabia mais acerca daquela história do que a maior parte das minhas irmãs. Bran e Gull tinham ambos sido presos e torturados, e Liadan, desprezando, como era seu hábito, as convenções, correra a acudi-los. Bran ficara muito doente depois disso, fechado para o mundo. Os meus pais não falavam desses tempos. Ao contrário de outros episódios da história da nossa família, que entravam no repertório de histórias para o serão, havia, sobre esta, um véu de silêncio.
- Como o trouxe ela de volta? - repetiu Gull. - Liadan pôs-nos a todos a contar histórias ao Chefe. Dizíamos-lhe como ele tinha encontrado cada um de nós, quando estávamos no pior momento das nossas vidas, e nos dera uma nova oportunidade, uma nova vida, uma vida melhor do que essa coisa miserável que era o antes.
- Por que não nos contas essa história esta noite? - sugeri. - A história de como tu e a tia Liadan salvaram Bran do seu inimigo. Sei que Ciarán vos ajudou.
Talvez a minha voz se tivesse alterado ao dizer aquele nome, porque Gull sorriu.
- Tens muita consideração por esse homem, não tens?
- Devo-lhe mais do que posso explicar por palavras. Ele não é só meu parente, é o meu mentor. O meu mestre. E mais do que isso ainda.
- Muito mais, se conseguiu convencer uma mulher jovem como tu a consagrar-se a uma vida espiritual. Existem outras mulheres entre esses druidas de que falas?
- Três.
- Novas? Velhas? Que tipo de mulher escolhe esse caminho?
- São todas bastante mais velhas do que eu - respondi. Na verdade, havia um intervalo de cerca de trinta anos entre mim e a mais nova das três, mas decidi omitir essa informação. - Não se trata tanto de uma escolha nossa, mas de ser escolhida.
- Hum. Essas mulheres druidas também vão ensinar-te alguma coisa?
- Elas não são eruditas, como Ciarán, ou como o meu tio Conor. Ciarán ensina todos os jovens druidas. Conor especializou-se em ramos específicos do conhecimento, que partilha comigo. - Instantes depois, acrescentei: - A última vez que contei uma história a Ardal, falei-lhe da minha escolha de uma vida espiritual. Ele não vai querer ouvir a mesma conversa outra vez.
- Eu gostava de ouvir - disse Ardal.
- Não me surpreende - comentou Gull. - A tua vocação tem sido um frequente tema de conversa entre os jovens de Inis Eala desde que aqui chegaste, Sibeal. Há uma escassez de mulheres casadoiras por estas bandas, como deves ter reparado. Quando nos visita, Liadan é tratada como uma espécie de divindade. Evan e Cathal são vistos como homens de grande fortuna por se terem casado com duas das suas sobrinhas. Quando uma terceira sobrinha aparece, jovem, graciosa e descomprometida, é natural que os homens discutam se ela deveria seguir o seu mestre numa vida de rezas e abnegação, ou enveredar pelo mesmo caminho que a tia seguiu. É certo que Liadan não escolheu simplesmente casar e ter filhos quando decidiu ficar ao lado de Bran. Ao acolher o Chefe, acolheu-nos a todos nós, um bando de reles sem-abrigo, desesperados por uma gota que fosse dessa magia que ela trazia dentro dela. Não era apenas Bran que a amava; éramos todos nós, até ao último homem imperfeito e de má reputação. - Pousou o queixo na mão, recordando. - Sibeal, quando falam das tuas escolhas, os nossos rapazes perguntam-se se não gostarias de ter a possibilidade de viver uma vida plena e fazer feliz um pobre qualquer.
- Chocas-me, Gull. Nem acredito que os homens tenham essas conversas.
- Fazem-no com todo o respeito. Não creio que nenhum dos rapazes ache que teria a mais ínfima hipótese de desviar-te da tua vocação. Quando vestes a túnica cinzenta e prendes o cabelo em cima, bem esticado, o teu ar severo é suficiente para assustar os mais intrépidos. Mas deixa-os sonhar. Há muitos sonhos aqui na ilha.
Eu não tinha nada a dizer acerca disto. Fiquei sentada, em silêncio, durante algum tempo, seguindo o movimento regular da mão de Ardal no pêlo branco de Fang. Um druida estava sempre a aprender; a sua viagem durava uma vida inteira. Os meus sentimentos a respeito do discurso de Gull não eram de modo algum lineares. Parecia-me a mim que tinha acabado de aprender várias coisas, algumas delas bem inesperadas.
- Para ti, Sibeal, qual é o melhor género de histórias? - A voz profunda de Gull lembrava um manto macio, confortável e quente. - As que falam de verdades, ou os contos de prodígios e magia?
- O conto maravilhoso pode ser mais verdadeiro do que a própria verdade - respondi. Tinha aprendido, durante a minha estada nos nemetons, que a verdade mais profunda se encontra, por vezes, nas histórias mais estranhas e afastadas da razão. Talvez não nos cruzemos com um dragão cuspidor de fogo a caminho do poço. Talvez não tropecemos num exército de serpentes com presas, sob o telheiro da lenha. Isso não torna a sabedoria existente nessas histórias menos real.
- Não sou nenhum erudito - retorquiu Gull, lançando-me um sorriso. - E não sou um druida, como sabes. Mas cresci a ouvir algumas das histórias mais inusitadas de que há memória, histórias de uma terra quente do Sul onde as serpentes se escondem por debaixo das pedras e o céu chove terra vermelha. Era um país rico em espíritos e presságios. Se estivermos aqui os três instalados algum tempo, contar-vos-ei histórias desse reino. Esta noite, dou-vos aquela que me pediste, Sibeal. Com a ressalva... - Hesitou. - Não sei bem que parte dessa história tu já conheces. Havia assuntos sombrios naqueles tempos, os primeiros tempos da amizade de Bran com Liadan. Não creio que o teu pai gostasse que alguns pormenores circulassem por outras terras.
Espevitei o fogo com o atiçador de ferro. As brasas moveram-se e voltaram a pousar.
- Por causa de Ciarán, já conheço a maior parte dessa história - respondi. - Aqui, em Inis Eala, outros deverão conhecê-la, já que muitos dos homens da ilha estavam presentes quando salvaste Bran. Pelo menos, foi o que ouvi dizer por uma fonte ou outra.
- Vendo bem, há muitos salvamentos na história da família. Tu acrescentaste mais um ao arrancares Ardal às garras do oceano. Foi, na verdade, o nosso segundo encontro com esse homem a quem chamas mestre, dessa vez em que Bran fugiu de um certo lugar de encarceramento. - Gull olhou de relance para mim e, depois, para Ardal, os seus olhos brilhantes à luz da lareira. - Ardal, ainda não viste muito deste lugar aonde vieste parar, trazido como foste, meio afogado. Terás percebido, pelas conversas que ouves à tua volta, que os homens vêm a esta ilha para aprender técnicas específicas de combate. O primo de Sibeal, Johnny, dirige uma escola de combate, altamente especializada e organizada, assente em princípios de disciplina e controlo. E excelência. E um lugar como não há outro. É por isso que tantos querem vir até aqui. Na verdade, mais do que podem ser admitidos.
"Mas nem sempre foi assim, e as pessoas que aqui vivem não foram sempre requisitadas como tutores na arte da guerra. Muitos de nós éramos proscritos, vivendo fora das margens da sociedade comum, sem casa ou família para onde ir, sem um rumo a seguir, a não ser aquele que dita a sobrevivência. E o Chefe, o homem que fundou este lugar e que nos uniu a todos numa comunidade imbuída de um espírito e de um desígnio, era apenas mais um patife a fugir das autoridades. - Gull deteve-se nisto alguns instantes, os seus olhos escuros saltitando entre mim e Ardal enquanto entrelaçava as mãos deformadas sobre o joelho. - Não estou a ser rigoroso. Um patife, sim, aos olhos de alguns, pelo menos. Um fora-da-lei, sim. Um mercenário, também. Mas o Chefe nunca era apenas alguma coisa. Era sempre mais. Nascera para liderar. Nascera para inspirar. Nascera para fazer a diferença. Alguns possuem este dom, por muito grandes que sejam os obstáculos que encontram pelo caminho. Bran era um deles.
"Enfim, foi buscar-nos a todos, um a um, puxou-nos para fora dos nossos infernos, deu-nos esperança, mostrou-nos o que fazer para voltarmos a ser homens. Tornámo-nos conhecidos como os Homens Pintados: as marcas na pele do Chefe eram parte da sua identidade, e nós também fizemos as nossas, cada um escolhendo um animal cujo desenho devíamos seguir. Na minha pele negra, as marcas são quase invisíveis. Ganhei este meu nome por causa das penas que costumava pôr na cabeça, nos velhos tempos. Agradava-me a imagem da Gaivota, havia nela uma liberdade que me chamava. Para chegar a esta ilha, percorri um longo caminho; deixei muito para trás.
Gull não parecia triste. Talvez essas coisas, essas pessoas, já estivessem demasiado longe, em milhas e em anos, para lhe levarem lágrimas aos olhos. Eu soubera, através de Muirrin, que ele tinha perdido a família inteira num massacre sangrento, antes de conhecer Bran. Fora preciso um esforço hercúleo da parte do Chefe para arrancá-lo ao desespero profundo em que se encontrava. Uma e outra vez, Bran fizera este tipo de coisas para reunir o seu bando original de seguidores. E a verdade é que, quando aprendiam a ter esperança de novo, também aprendiam a ajudar-se uns aos outros. Era uma história extraordinária.
Ardal observava Gull com atenção, os seus olhos fixos e absortos.
- Nessa altura - continuou Gull -, nós éramos um grupo heterogéneo de guerreiros. Tínhamos talentos. Sabíamos como trabalhar em conjunto. Mas, enquanto homens, ainda tínhamos muito que aprender. Havia ainda dentro de nós muitas peças partidas a precisar de conserto. E ele, o Chefe, estava mais quebrado que muitos, apesar da força que aparentava ter. Fora ferido, em criança, e escondera a dor bem fundo.
"Chegou, então, o dia em que ele e eu fomos traídos e entregues a um velho inimigo, que nos encarcerou. Este indivíduo achou que podia explorar os nossos pontos fracos para conseguir o que queria. - Gull lançou-me um olhar; por certo, perguntava-se se eu saberia que o inimigo em questão era Eamonn, o irmão da minha mãe. - Ele conhecia o horror do Chefe a espaços confinados e sabia que ele temia a escuridão mais do que tudo o resto. Por isso, fechou-o num buraco por debaixo do chão, onde mal tinha espaço para respirar e nenhum para se mexer. Eu tive mais sorte: fui atirado para dentro de uma masmorra e pendurado pelos pulsos. O problema é que, sempre que iam buscar o Chefe ao seu pequeno cubículo e o submetiam a um interrogatório, e sempre que ele se recusava a falar, eu perdia um dedo. - Levantou as mãos estropiadas. - Nós, os Homens Pintados, obedecíamos a um código. Nunca cedíamos a pressões daquela natureza. Eu sabia que o Chefe não ia falar só para me salvar. De qualquer maneira, aquele sujeito também não manteria a sua palavra. Queria o Chefe morto; assim que tivesse tido a sua dose de diversão, despachá-lo-ia sem hesitar. O nosso captor tinha um duplo ressentimento: o Chefe superara-o em combate e levara-lhe a mulher, ou, pelo menos, a mulher que ele acreditava que lhe estava destinada. Era uma questão de orgulho. Nós nunca seríamos libertados com vida.
Embora eu já conhecesse aquela história, que me fora contada por Ciarán, ainda era um choque ouvi-la dos lábios de alguém. Tantos anos volvidos sobre o que acontecera não atenuavam a sua crueldade. Embora os pormenores precisos do que Eamonn fizera a Gull e a Bran nunca tivessem chegado aos ouvidos da minha mãe, ela soubera certamente do amor do irmão por Liadan e do seu ódio ciumento pelo homem que lha roubara.
- Portanto, ali estava eu - disse Gull -, na fortaleza daquele homem, pendurado pelos braços, prestes a desencaixarem-se dos ombros, e com as mãos um pouco maltratadas pelo desgaste da ligeira carnificina, sem saber como nos livraríamos daquela alhada, quando entra Liadan acompanhada por um guarda de archote. Percorrera o caminho todo de sua casa até ali guiada por uma intuição, um súbito receio pela segurança de Bran. O acordo que fizera com o nosso captor é coisa que desconheço por completo. Só sei que, de repente, se pôs a dar ordens e que alguém cortou as cordas que me prendiam - deuses, foi a pior dor que senti na vida, quando recuperei a sensação nos braços - e saímos dali à procura do Chefe. Sem sabermos como, aquela rapariga, com a mesma idade que aqui a nossa Sibeal e muito semelhante em aparência, conseguira negociar a saída de nós os dois daquele lugar. Só para tornar a história ainda mais admirável, devo dizer-vos que ela levava um bebé pequenino com ela, num pano preso às costas.
- Esse bebé era Johnny - disse eu. Ardal olhou para mim, surpreendido. - Sim, o mesmo Johnny que agora chefia a comunidade desta ilha e que veio falar contigo uma ou duas vezes. É o filho mais velho de Bran.
- E Bran é o Chefe - explicou Gull -, embora "Bran" não seja o seu verdadeiro nome, mas o nome que Liadan lhe deu, porque se recusava a chamá-lo pelo outro. Bem, encontrámo-lo, e em que mísero estado! Inconsciente e cheio de cãibras, por ter estado enfiado num buraco sem espaço para conter uma amostra de cão, como aqui a nossa Fang, quanto mais um homem adulto. Liadan não conseguia transportá-lo. Eu pouco melhor estava, com os braços em chama e as mãos enroladas em trapos ensanguentados. Mas era a única ajuda que ela tinha.
"Acontecia que a fortaleza em questão fora construída no meio de um pântano, um lugar onde um passo em falso significava ficar enterrado na lama até à cabeça. Havia um caminho elevado, mas não nos foi oferecido o uso desse passadiço. Em vez disso, tivemos de fazer o nosso caminho de tufo de vegetação em tufo de vegetação, um passo de cada vez, um salto, um acto de fé de olhos vendados. Liadan levava o filho às costas; eu carregava o Chefe sobre os ombros. O nosso captor era um homem que gostava de jogos. Para ser justo, disse ele, planeara deixar-nos percorrer uma certa distância até os seus arqueiros nos usarem como alvos num exercício de tiro com arco.
Ardal murmurou algo que parecia uma imprecação armórica.
- Já era tarde - continuou Gull, os olhos perdendo-se num horizonte distante, como se, tantos anos depois, revissem aquela cena com pavorosa nitidez. - A luz esmorecia. Liadan era uma rapariga débil, não muito alta; custava-lhe saltar de um ponto seguro para o próximo. Eu estava quase esgotado. Se alguma vez me senti à beira de abandonar toda a esperança, foi ali. Mas ele sempre nos dera esperança, a cada um de nós, nos nossos momentos mais difíceis; sempre nos dissera que valia a pena continuar, que seríamos capazes de encontrar a solução, que bastaria sermos o melhor que sabíamos. E ali estava aquela rapariguinha, com o seu bebé, que revelara a coragem de um guerreiro calejado. Eu não tinha alternativa senão estar à altura daquele acto. No entanto, as circunstâncias não nos sorriam.
"Precisamente quando alcançámos um ponto em que já não víamos mais caminho à nossa frente, a ajuda chegou. Primeiro, uma luz, atravessando a superfície do lodaçal na nossa direcção. Ao aproximar-se, vi que tinha a forma de um pássaro, um corvo. Era uma criatura sobrenatural; até fico com pele de galinha só de pensar nisso. À sua passagem, a folhagem de plantas aquáticas que existia no solo começara a entrelaçar-se e a achatar-se, formando uma espécie de caminho. Não parámos para pensar muito. O corvo alcançou-nos, deu meia volta e tornou a afastar-se. Nós seguimo-lo. Liadan murmurou uma canção de embalar. O bebé sossegou. Caminhámos sobre aquele tapete de fronde enlaçada, sem questionar como se sustinha ou se conseguiria suportar o nosso peso. Ainda olhei para trás uma vez ou duas, pensando que, se nós podíamos usar aquele carreiro, o mesmo fariam os nossos perseguidores. Mas o trilho desaparecia assim que passávamos; ninguém nos seguiria por ali.
"Mal tive forças para sentir alívio, apenas a vontade de pôr um pé à frente do outro, manter o Chefe equilibrado sobre os ombros, ignorar a dor que sentia nas mãos. E assim atravessámos o pântano. No fim, lá estava ele, à nossa espera, do outro lado: o teu Ciarán, Sibeal, embora não fosse um druida naqueles tempos, mas um feiticeiro, penso eu. O pássaro em forma de chama transformou-se num corvo comum e pousou nos seus ombros. Ele saudou-nos. Da escuridão, um a um, saíram os nossos homens, prontos a levar-nos para um lugar seguro. Vou dizer-vos uma coisa: aqueles guerreiros de pé descalço, com as suas caras moídas, pareceram-me a mais bela visão do mundo.
"É claro que isto é apenas uma pequena parte da história. O Chefe afundara-se nas trevas; Liadan trouxe-lhe luz. Curou-o, o corpo e a alma. Mas todos nós fizemos a nossa parte, Ardal. Enquanto ele ali estava, fechado no seu pesadelo, todos nós encontrámos uma mensagem de esperança no nosso passado, algo que ele nos tinha dado, e falámos-lhe disso. Lembrámos-lhe que ele não era um proscrito, um canalha, um pedaço de lixo atirado para uma pilha de sucata, mas um homem de valor e de bondade, um homem cuja coragem irradiava de dentro dele, um homem que pensava sempre primeiro nos outros do que em si próprio. - Os dentes brancos de Gull reluziram num súbito sorriso. - Tudo isto foi construído por ele: esta ilha; esta escola; este lugar de comunidade e desígnio. Embora, é claro, ele o tenha confiado ao filho. O Chefe e Liadan seguiram caminho. Por vezes, quando Bran visita Inis Eala, fico com a sensação de que ele ainda preferia estar aqui. Mas um homem faz aquilo para que é chamado. E aqui termina a minha história. Liadan salvou Bran do cativeiro e da morte. Sibeal salvou-te do mar. Se não fosse ela, tu terias perecido naquela noite. Há pessoas formidáveis na família de Sevenwaters. Johnny seguiu as tradições do pai nesta ilha, o que significa que podes confiar nele, e em mim. Mesmo que exista no teu passado algo que não desejas recordar, algo difícil, fica a saber que, se há lugar onde um homem pode começar de novo, esse lugar é Inis Eala. Desde que digas a verdade, ninguém te julgará.
- Não me lembro de nada - sussurrou Ardal. - Nada mesmo.
Capítulo 6
Felix
É noite. O sono de Gull é o sono de um guerreiro: acordaria num ápice. No quarto de Sibeal, silêncio. Imagino-a profundamente adormecida, os olhos claros fechados, os lábios doces em repouso. O cabelo escuro espalhado em ondas sobre a coberta que lhe aconchega o corpo esguio. Uma druidesa, votada a essa viagem do espírito que dura uma vida inteira. Creio que já me cruzei com druidas no passado. Mas nenhum era como ela.
É noite e estou acordado. Algures para lá destas paredes existe um homem que seria capaz de matar pelas minhas memórias. Não foi uma ameaça fortuita; os seus olhos lembravam a geada espessa. O que lhe fará tanto medo?
Não tenho nada para contar, de nenhuma natureza. A minha mente é uma concha vazia onde chocalham velhas imagens. Noz, o meu cão. Uma fila de oliveiras. Uma carroça a percorrer a estrada poeirenta. E agora que aqui jazo no escuro, de olhos bem abertos, um pântano, um nevoeiro, uma fagulha do outro mundo.
Gull dorme tranquilo no seu canto, não o perturbam as memórias que a sua história acordou. Vejo colinas desertas. Uma terra desolada, vazia, onde os homens improvisam uma vida frugal e os espíritos erram, em abandono. Uma neblina envolve as encostas, tornando-as incertas, traiçoeiras. Em baixo, ao fundo, estende-se Yeun Ellez, onde luzes estranhas aparecem e desaparecem. Salpicadas no lodo preto, vêem-se erupções de bolhas aziagas. Charcos de água fétida desafiam a busca da vara mais comprida. Existem lugares onde, se lançarmos um objecto, ele desaparece como se colhido por uma mão invisível. Cintilando; extinguindo-se; transformando-se. Um portal para um outro mundo...
Quem me terá contado isto? Seria uma história narrada à volta da lareira, uma coisa de magia e assombro herdada de outros tempos? Lembro-me da voz, madura, experiente no ofício de contar. Vejo os olhos, de um azul muito vivo, a pele enrugada como um antigo pergaminho. Uma mão sobre a minha, dedos nodosos, calorosos no amor. Será uma memória verdadeira? Terei invocado estas presenças da minha vida real, a vida que esqueci? Estendido nesta enxerga, na escuridão, vejo o Ankou sair do pântano em grandes passadas, farrapos pingando lodo, o olhar monstruoso, distorcido pela loucura, as mãos com unhas em foice, pretas como breu. Tem a pele clara; a passada longa. Dispara-me o coração, como um tambor. Sinto os pés pregados ao chão. Devagar, começo a afundar-me. Vejo-me nessa descida contínua, inexorável, para o lugar que existe por debaixo de mim. O terror tira-me o ar. Estico a boca num grito mudo.
Se queres ir até lá, Felix, vai pelo menos armado com conhecimento. A voz sábia, anciã, fala-me em pensamento, e estou de novo no quarto, às escuras. O Ankou desapareceu. Sinto o coração a bater contra as paredes do peito; suores frios cobrem-me a pele. Devo ter feito algum som. Mas Gull não se mexe e, no pequeno quarto separado pela cortina, o silêncio é total.
Felix. Creio ser esse o meu nome. Não o direi. Neste lugar de ameaças secretas, o conhecimento é perigoso. Servirá o nome intrépido que Sibeal me deu. Tremo ao recordar o gesto daquele homem, a faca atravessada sobre a garganta. Fá-lo-ia assim? Ou com uma corda súbita, à volta do pescoço, ou gotas de veneno vertidas no cântaro? Talvez eu tenha feito mal a alguém que lhe era querido. Ou roubado o seu tesouro. Talvez tenha traído a sua confiança. Não. Usa a tua inteligência, Felix. Ele teme o meu conhecimento. Vi qualquer coisa. Assisti a qualquer coisa que ele quer manter esquecida, algo que não deseja que esta boa gente saiba. Sinto um arrepio na nuca; o coração gelado. Lembra-te, Felix. Por que não te lembras?
Não creio que consiga dormir esta noite. Oh, Sibeal, quem me dera que entrasses no meu quarto e viesses sentar-te à minha beira. Quem me dera que estivesses perto, com a tua voz clara e doce e esses olhos cheios da lonjura de outros lugares. Ajuda-me a recordar, Sibeal. Ajuda-me. Só sei que tenho uma tarefa a pumprir, uma missão, e que o tempo se escoa depressa. Tenho de recordar antes que seja tarde demais. Demónios vencidos... Enfrentar o Ankou... Sê um herói, como Gull e Liadan na sua história... Ah! Que espécie de herói é este que durante tanto tempo nem conseguia falar em voz alta? Deiz, cadelinha, mostras mais coragem do que eu, com os teus saltos arrojados para cima da minha enxerga, e desta para o chão, e os teus rugidos de alerta. E, porém, aqui estás tu, pouco maior do que um esquilo.
A noite prolonga-se. Há um silêncio profundo, interrompido pelo grito esporádico de uma ave marinha a voar lá no alto, ou pelo balido sonolento das ovelhas. Gull levanta-se e sai. Regressa; pára ao lado da minha cama, a bocejar.
- Acordado, Ardal? Vou buscar-te um pouco de água. - A vela é posta com cuidado no banco à beira da enxerga; a malga erguida entre as suas palmas. Chamas duplas brilham nos olhos negros. - Toma - diz ele. Soergo-me sobre o cotovelo e pego na malga com as minhas mãos, surpreendendo-o. Amanhã, mostrarei a Sibeal que consigo fazer isto.
- Bom trabalho - murmura Gull. - Recosta-te, agora. - E, quando volta a deitar-se na sua cama, diz: - Que os deuses velem pelo teu sono.
Dói-me o braço. O ombro. A garganta. Que grande herói! Este pequeno esforço deu cabo de mim.
Aquele homem disse que me matava se eu falasse. E os que tratam de mim? Quando eu me lembrar, quando contar a minha história, talvez ponha em perigo não apenas o meu miserável ser, mas todos os que me ouvirem. Talvez a minha simples presença os ponha em perigo. Quem sabe que género de homem sou?
Enquanto espero pela madrugada, imagino um augúrio para Sibeal. Em pensamento, seguro as varas de runas como um ramo solto na minha mão e faço a pergunta: que futuro aguarda Sibeal? Que caminhos lhe serão oferecidos? Deixo as minhas varas imaginárias caírem livremente, descrevendo um padrão na toalha de ritual. Três jazem atravessadas sobre as outras. São as runas do augúrio: Daeg; Beorc; Gyfu.
Que dirias tu, Sibeal, se visses isto? Há amor nelas e sacrifício e conclusão. Há uma luz viva em tempos de treva. Há, no fim, um entendimento que vem dos lugares mais remotos do espírito. Esses homens de que falou Gull, os que têm esperança, uma esperança tola, egoísta, de que não tenhas ainda selado um compromisso com o teu futuro - porque és jovem em anos, senão em sabedoria - esperam em vão. Se alguma vez houve um augúrio para um druida, esse augúrio está aqui. Vindo de um homem como eu, o caminho deverá levar-te longe, muito longe.
SIBEAL
- Posso falar contigo, Sibeal?
Estremeci, assustada; não tinha ouvido Cathal aproximar-se.
- Claro. Levantaste-te cedo.
Estava sentada nos rochedos que davam para a pequena enseada onde tinha encontrado Svala, no dia em que Knut me pedira para guardar os segredos da sua mulher.
- Tu também.
- Costumo fazer uma caminhada antes do pequeno-almoço.
Era uma viagem para saudar a terra e o vento, o Sol e as nuvens e as gaivotas que pairavam no céu. Ajudava-me a sair da paisagem irracional dos sonhos.
Cathal instalou-se ao meu lado, contemplando os ilhéus rochosos ao largo da nossa costa. Parecia sombrio e, nesse dia, o mar espelhava o seu estado de espírito; era uma extensão cinzenta e lúgubre sob um tecto de nuvens arrastadas pelo vento. Durante algum tempo, nenhum de nós falou. Quando o silêncio já se tornara quase constrangedor, Cathal disse:
- Sibeal, já falámos de adivinhação.
- Hum.
- Os sonhos continuam. Persistem, sempre o mesmo, noite após noite.
- O que desejas saber e não tens coragem para perguntar?
- Quero saber da criança: se nascerá sem problemas, se vai crescer e dar-se bem. Quero saber de Clodagh. - Havia uma rigidez na linha do seu rosto. Alguém que não o conhecesse poderia pensar que aquele olhar era de raiva. Talvez fosse, em parte; raiva por ter sido levado a fazer isto. - Preciso de saber, Sibeal. Pensei que talvez tu...
Eu não tinha visto nada relacionado com Clodagh ou com o bebé; não tinha procurado conselhos sobre o tema e não era minha intenção fazê-lo. Nesse momento, com uma brusquidão que estava a tornar-se familiar desde a minha chegada a Inis Eala, uma imagem invadiu-me o pensamento: uma criança muito pequena, um rapaz, deitado, nu, sobre um xaile de muitas cores. Era tão pequeno. Mesmo o meu irmão mais novo, Finbar, nascido muitos dias antes do seu tempo, fora desde o início mais robusto do que ele. Ou será que a memória me traía? A vigiar o bebé, um homem alto, embrulhado num manto negro. Estavam fora de casa, à sombra de velhos carvalhos. Eu não via bem o rosto do homem, mas devia ser Cathal. Eu esperava que fosse Cathal. A visão dissipou-se.
- O teu medo é partilhado por todos os homens que estão prestes a ser pais pela primeira vez, Cathal. - Fiz um esforço por manter a voz serena. Tentei afastar do pensamento a ideia de que Cathal e o pai eram tão parecidos que até Clodagh confundira Mac Dara com o filho da primeira vez que o tinha visto. - Clodagh é jovem e saudável. E há ajudas experientes aqui na ilha; Muirrin cuidará dela. A menos que tenhas decidido, de repente, voltar para Sevenwaters, não vejo motivos de preocupação.
Mas havia. Estavam-lhe estampados no rosto. E Cathal não era pessoa para se deixar dominar pelos seus medos; era um guerreiro, forte e sábio, um homem que os outros admiravam com aspiração.
- Os meus sonhos estão cheios de tempestade, violência e morte - confessou-me, entrelaçando os dedos. - Estou a perder o sono por causa deles, e Clodagh também. Disseste-me uma vez que sentias que o naufrágio não trouxera apenas dois homens e uma mulher para esta costa. Passa-se algo de errado aqui, Sibeal, de muito errado. Já ouvi mais do que uma pessoa falar de maus presságios, de sombras e pressentimentos. Não sou o único homem em Inis Eala perturbado pelos seus sonhos. O alcance do meu pai estende-se a lugares distantes. Mesmo aqui, nesta ilha protegida, trago comigo talismãs para me escudar da sua influência.
Cathal oferecera a Clodagh o anel de vidro verde que fora passado de geração em geração na família da sua mãe. Esse anel garantira a segurança de Cathal durante a infância. A sua magia protectora valera-lhe, a ele e a Clodagh, a libertação do Outro Mundo, numa altura em que Mac Dara tentara encarcerar o filho. Talvez a vida em Inis Eala fosse segura para eles, mas eu tinha reparado que Clodagh ainda usava o anel e Cathal um exército de talismãs cosidos no forro do seu longo manto.
- Tenho tido os mesmos sonhos - disse-lhe. - Escuros, violentos, assustadores. Mas... sombras e maus agouros? Que dizem as pessoas ao certo?
- Até agora, não passa de uma agitação geral entre os homens. Talvez desapareça naturalmente. Ouvi certas conversas.
- Que conversas, Cathal? E que tem isso a ver com Clodagh e com a criança?
Cathal estava sentado com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos ainda entrelaçadas. Não olhou para mim.
- Nada, talvez - respondeu, com calma. - Mas cada episódio inusitado, cada surpresa levam-me a temer a influência do meu pai. O súbito temporal que destruiu o barco ali à frente... Não era um temporal como os outros. Vi nele a mão do Outro Mundo, e desconfio que outros viram o mesmo do que eu. E...
- Continua, Cathal - disse eu, interrompendo o silêncio. - Posso não ser capaz de te dar as respostas que pretendes, mas ouvir-te-ei sem tecer juízos de valor e não trairei confidências.
- Aquilo que viste na outra manhã foi apenas um pequeno exemplo do que sou capaz de fazer. Eu podia tê-los ajudado. Àquelas pobres almas. Podia ter ido num dos barcos. Podia ter... - Cathal parecia profundamente triste.
- Foi uma tempestade feroz, Cathal. Uma tempestade estranhamente feroz. Nem mesmo tu terias conseguido deter aquelas vagas ou impedir a tormenta de estilhaçar o Freyja contra os rochedos.
No meu coração, porém, duvidei. Afinal, Cathal era o filho de Mac Dara.
- Eu devia ter tentado - retorquiu ele. - Mas, em vez disso, pus os meus interesses em primeiro lugar: o interesse de escapar ao escrutínio do meu pai, o interesse de manter a minha família em segurança. Entretanto, as mulheres e crianças de outros homens morreram à minha frente. Não é de admirar que seja visitado por pesadelos.
- Se atravessares a fronteira de Inis Eala, se te expuseres e o teu pai te encontrar - repliquei, com cuidado, sentindo algum desconforto -, Clodagh poderá ficar sozinha com a criança nos braços.
- Foi por isso que não intervi. Sou um cobarde, Sibeal. Se conseguisse saber o que lhe está reservado, se pudesse ter a certeza de que eles ficarão em segurança, os dois...
- Procuraste respostas na bacia de vidente? Usaste outros instrumentos de adivinhação?
As ondas entraram na enseada que se estendia sob os nossos pés, uma canção sussurrada no silêncio da manhã.
- Tu sabes que não o fiz - respondeu ele.
- Então, não me peças que o faça. Ela é minha irmã.
Cathal não reagiu.
- Além disso - continuei -, as minhas visões são muitas vezes fragmentárias, herméticas, saturadas de símbolos. Estão abertas a muitas interpretações. Não há janelas que se abram, claras, para o futuro. Alarmar-me-ia se houvesse: isso significaria que não tínhamos qualquer poder para influenciar o que está para vir.
O meu companheiro fez um sorriso desconsolado.
- Se conseguíssemos ver um futuro possível, talvez pudéssemos tomar medidas para impedir que ele se cumprisse.
- Não somos deuses - repliquei. - Há boas razões para a adivinhação nunca ser executada em nome de quem a faz. Se obtivesses respostas, talvez estas te paralisassem.
- Compreendo. - Instantes depois, acrescentou: - Por vezes, pergunto-me como pode alguém tão jovem ser tão sábio.
Fiz uma careta.
- Nem sempre me sinto sábia. Mas é esse o caminho do druida: dura uma vida inteira e nunca paramos de aprender.
Com a chegada dos homens de Connacht vieram mudanças na rotina diária de Inis Eala. Os treinos começavam bem cedo pela manhã e duravam até à hora do jantar. Tanto os homens da ilha como os visitantes se encontravam fechados no recinto de treino, onde não era possível vê-los, ou espalhados pela ilha a treinar toda a espécie de manobras. Vi-os partir com laçadas de corda e ouvi dizer que iam praticar escalada nas falésias. Perguntei-me se os guerreiros de Connacht não estariam a preparar-se para um ataque específico na terra deles: talvez um assalto surpresa a uma fortaleza de ilha considerada inexpugnável. Ninguém discutia o tema. Biddy e os seus ajudantes preparavam refeições gigantescas, que eram devoradas num quase silêncio. As pessoas recolhiam cedo aos seus quartos.
Os homens aproveitavam todos os momentos livres. Raras vezes vi algum usar esse tempo para descansar, apesar dessa exaustão que chegava mesmo a tolher os rostos dos homens de Inis Eala. Em vez disso, faziam pares e treinavam para o torneio. Tornou-se costume tropeçar num combate a caminho do estendal da roupa, ou do poço onde se ia buscar água. Todos os recantos livres pareciam acolher um desses intensos desafios, travados com espadas, facas, bordões, punhos.
Estes combates eram consumados à vista de qualquer transeunte. Lá fora, nas traseiras da enfermaria, do outro lado do muro de pedra sobre pedra que abrigava o jardim de ervas medicinais, uma actividade semelhante, mas menos pública, tinha lugar: Gull e Kalev estavam a treinar Knut. Ao sair para estear plantas ou espalhar palha, eu via Kalev e Knut fechados num combate, com as novas espadas em punho, enquanto Gull circulava, de olhos semicerrados, observando e instruindo. E, uma ou duas vezes, vi Gull e Knut a trabalhar na ausência de Kalev, o nórdico a praticar com a sua arma, o mestre corrigindo o modo como o seu aluno pegava na espada, ou a posição do tronco, sem precisarem de nenhuma língua comum a não ser a do combate. Via-se no rosto de Gull - de olhos brilhantes e decididos, o maxilar muito firme - que o guerreiro que ele fora em tempos não diferia muito do curandeiro que ele se tornara. Aquilo dava-lhe gozo. Quanto a Knut, o trabalho árduo da preparação parecia assentar-lhe bem. Quando falava comigo, de passagem, fazia-o com grande cortesia. Tinha o ar de um homem que começava a encontrar o gosto pela vida.
Ao terceiro dia, Rat parou de aceitar combates; o programa estava completo. Nenhum homem de Connacht levantara o braço para lutar com as novas espadas. No entanto, os visitantes ansiavam por mostrar o que valiam. Muitos deles tinham requisitado confrontos entre si, ou contra os ilhéus, e um ou dois homens de Inis Eala tinham desafiado os visitantes mais promissores. Seria um dia pleno de diversão.
A conversa com Cathal deixara-me inquieta. Não mencionei o assunto a Clodagh, mas fiz um esforço para passar algum tempo com ela todos os dias, seja fazendo-lhe companhia de manhã, enquanto fiava, tecia ou ajudava nas mil e uma tarefas necessárias para gerir o dia-a-dia da comunidade, seja sentando-me à sua cabeceira durante a tarde, quando se deitava na cama a descansar. Se ficasse sozinha, Clodagh teria continuado a trabalhar. Já a ouvira dizer que a sesta era uma ridícula indulgência. O crescente cansaço que sentia deixava-a frustrada. A semelhança da nossa mãe, queria encher o dia de actividades para não ter tempo de pensar em cenários assustadores. A tarde, eu contava-lhe histórias enquanto ela adormecia. Escolhia-as a dedo, e a minha irmã decifrou o meu cuidado.
- Estás determinada a fazer-me acreditar em finais felizes, Sibeal.
- E não acreditas?
Uma sombra aflorou-lhe ao rosto.
- Talvez já tenha tido o meu quinhão de sorte.
- Disparates - repliquei. - És uma das pessoas mais fortes que eu conheço. Estás cheia de coragem e de bondade. Serás tu a fazer os teus próprios finais felizes.
- Espero que sim. Mas a verdade é que me sinto cansada, Sibeal. Cansada e fraca. Odeio isso. E estou preocupada com Cathal. Tem sonhado com coisas terríveis. Ontem à noite, acordou aos gritos e recusou-se a partilhar o pesadelo comigo.
- Um sonho não é real - argumentei. - Quanto ao cansaço, não precisas que eu te relembre que as mulheres que estão quase a dar à luz se sentem cansadas. Podias pedir um tónico a Muirrin.
Clodagh fez uma careta.
- O último que ela me deu sabia a algas podres.
- Não duvido que uma cura eficaz possa envolver algas podres - repliquei, com um sorriso. - O doente melhora por simples força de vontade, só para evitar uma segunda dose. Agora, fecha os olhos. Vou contar-te a história das guerras entre clurichauns.
- Eu já conheço essa história.
- Ah, mas eu inventei a minha própria versão, especialmente destinada a uma assistência de guerreiros, e quero testá-la antes de contá-la a toda a gente no salão.
Eu andava a contar muitas histórias. Havia as que ajudavam Clodagh a dormir e as que entretinham o pequeno número de convivas que ficava no salão depois do jantar, e havia as histórias de Ardal, as que eu guardava para o fim da noite, para serem partilhadas no sossego da enfermaria.
Ardal mostrava-se determinado a recuperar. Todos os dias alcançava um novo marco: comendo sozinho, levantando-se da enxerga sem ajuda, caminhando até à lareira com a mão pousada no ombro de Evan. Os dois homens eram da mesma altura e, quando os vi de pé, lado a lado, fiquei chocada. Era dolorosa a magreza de Ardal, os seus braços esqueléticos, a túnica emprestada que lhe ficava a nadar. Ao lado do robusto Evan, parecia um fantasma.
Aqueles que se ocupavam dele durante o dia mal acreditavam que falava irlandês com fluência, embora Gull e eu lhes garantíssemos que assim era. A eles, o doente dizia apenas as poucas palavras que eram essenciais para facilitar o trabalho. De noite, quando os outros se iam embora, Ardal superava novos marcos, embora eu sentisse nele uma certa reserva, mesmo quando apenas Gull e eu estávamos presentes. Nós os dois revezávamo-nos a contar histórias, escolhendo por instinto. Algumas pretendiam dar conforto e segurança. Com as outras, esperávamos dar-lhe alguma coisa a que agarrar-se, uma corda com que puxar a complexa rede do passado. Por vezes, limitávamo-nos a falar, e todas as noites Ardal contribuía com um pouco mais. Se a sua memória continuava perdida no nevoeiro, não havia como negar a vontade de recuperá-la. Quanto ao irlandês que ele falava, embora com um sotaque carregado, foi-se revelando tão fluente que comecei a pensar se não teria ali vivido alguns anos. Gull e eu falámos disto em privado, porque nenhum de nós percebia por que razão o nosso doente decidira ocultar durante tanto tempo o seu conhecimento da nossa língua. Gull dizia que, se fosse outro homem, já teria desconfiado de segundas intenções: a tentativa de respigar informação sob falsos pretextos. Para mim, o choque do naufrágio, associado à perda de memória, era suficiente para levar qualquer um a comportar-se de maneira estranha. Eu própria não conseguia imaginar como reagiria se tal calamidade me atingisse. Tendo perdido tudo, incluindo a noção da própria identidade, a que podia uma pessoa agarrar-se? Ninguém seria de confiança.
- Armórica - cogitou Gull, uma noite, recuperando a ideia já mencionada acerca das possíveis origens de Ardal. - Parece-me uma terra de boas histórias. Corentin sabia algumas. Cheias de pessoas que se transformavam em criaturas, e de criaturas que se transformavam em pessoas. Lembro-me de uma em particular em que, pela desobediência de uma mulher, uma cidade inteira ficara submersa no fundo do mar. Rezava a história que, se navegássemos numa certa baía, sob certas condições de vento e de maré, ainda ouviríamos o repique dos sinos a tocar debaixo de água. Não sei se é verdade ou se faz parte da história, mas imagino que fosse assaz perturbador.
- Douarnenez - disse Ardal. - A baía de Douarnenez.
Estávamos à lareira, nós os três, Ardal instalado na cadeira, Gull no banco e eu de pernas cruzadas numa esteira diante do fogo. Fang estava no seu lugar habitual, enroscada no joelho de Ardal.
- Conheces esta história? - perguntou Gull, numa voz serena; por várias vezes, estremecêramos à beira de uma descoberta, de um momento de revelação em que Ardal parecia ter reconhecido algo, vendo-o logo depois refugiar-se no silêncio. - Talvez tenha sonhado. A baía... Os sinos... As ondas a tragar a terra...
Olhei para as chamas que lambiam os torrões de turfa. Escutei os sons nocturnos da enfermaria, o subtil sibilar e crepitar do fogo na lareira, o ranger das madeiras visitadas pelo vento, a respiração regular da cadela.
Pensei nas lareiras da minha casa e nos momentos partilhados. O passado dera-me forma: a família, a fortaleza, a floresta, as histórias e as canções, as alegrias, as tristezas, os desafios. A perda dos meus irmãos gémeos, um dia antes de nascerem, quando eu mal tinha idade para compreender o que significava a morte; anos mais tarde, quando a minha mãe quase julgara ser tarde de mais, a chegada prodigiosa do bebé Finbar. A estada breve, turbulenta, da prima Fainne em nossa casa. O incêndio que marcara para sempre a minha irmã Maeve e a sua dolorosa viagem de convalescença, uma das poucas vezes que vira Muirrin a chorar. A decisão de Ciarán de ser meu mestre. A missão de Clodagh para salvar Cathal do seu pai. O meu pai, tão firme e sábio, o núcleo forte da família e da comunidade. O amor irreprimível de Eilis pela vida. Tudo isto fazia parte de mim, até ao mais ínfimo pormenor. Não me ocorria nenhuma pergunta segura para lhe fazer.
- Breizh - disse Ardal. - É esse o verdadeiro nome. Armórica é o nome dado pelos romanos.
- O teu irlandês é fluente, Ardal - observou Gull. - Não é uma língua muito fácil de aprender. Descobrirás, assim que Evan te deixar sair da enfermaria, que nós somos uma comunidade de gente vinda de toda a parte. Nos primeiros tempos, os homens de Bran falavam uma língua interessante, feita de várias línguas: o irlandês, em grande parte, mas com palavras emprestadas aqui e ali, um contributo de todos os elementos do grupo.
Nessa altura, éramos nómadas, sempre um passo à frente dos sarilhos, aceitando uma missão a seguir à outra, fugindo de esconderijo em esconderijo.
Agora, isso mudou. Estamos instalados nesta ilha e toda a gente fala irlandês, porque fornecemos um serviço aos reis e chefes de clã irlandeses que precisam de treinar os seus homens. Podes ver, pelo tom da minha pele, que não sou daqui, nem a minha mulher, que vivia na Bretanha antes de a trazermos para esta ilha. Somos como seixos no leito de um rio, de várias formas, tamanhos e cores, mas reunidos no mesmo lugar. Entre nós, contam-se uma dúzia de línguas diferentes. Corentin foi o único rapaz que tivemos da... Como era mesmo? Brez!
- Breizh. - A resposta pouco mais era do que um sussurro.
- Breizh. - Gull experimentou a palavra estranha, tentando reproduzir o "r" enrolado de Ardal e o remate suave. - Corentin também falava bem irlandês. Talvez os homens de Breizh tenham uma veia erudita. Ele aprendeu a língua na corte de um rei irlandês, antes de vir ter connosco. Lamentámos vê-lo partir.
- Por que partiu ele? - perguntei. Quando um homem era aceite na comunidade de Inis Eala, era muitíssimo raro partir de livre vontade.
- Foi para casa. Certo dia, chegou uma missiva avisando-o de que o seu pai tinha morrido e que a mãe estava a ter dificuldades em conservar as terras da família. Uma luta territorial qualquer. Foi pena não podermos enviar um bando de guerreiros com ele, mas penso que terá dado bom uso ao que aprendeu aqui.
- Um rei irlandês - disse Ardal, virando para Gull os olhos de um azul profundo. - Como se chamava esse rei?
- Ah, isso não sei dizer-te - respondeu. - Johnny talvez se lembre, ou Sigurd, quando voltar. Sigurd era amigo de Corentin.
- Ardal - arrisquei -, é verdade que me perguntei se alguns dos objectos que deram à costa depois do naufrágio não seriam oferendas de um indivíduo de estatuto para outro. Não me pareciam bens de comércio. Knut não sabia a quem pertenciam, ou qual era o seu destino. Achas que, se olhares para eles...?
Um arrepio atravessou o corpo de Ardal. A sua mão direita enrolou-se à volta da cadela, como se procurasse conforto no calor adormecido.
- Ainda só consigo dar alguns passos da cama para a lareira.
- Alguém podia trazê-los até aqui. Há pedaços de seda, outrora encantadora, imagino, mas destruída pelo mar. Uma caixa contendo adornos de prata, brincos, braceletes. Os restos de um livro com uma encadernação de jóias; a tinta foi levada pela água e não se vê se era um livro de salmos cristão, ou uma antologia de histórias antigas.
- Paul? - sussurrou Ardal, de repente, fitando o fogo. - Onde está Paul?
Silêncio, apenas interrompido pelo som do vento nocturno do outro lado das quatro paredes. O meu coração gelou.
- Não sei, rapaz - respondeu Gull, numa voz calma.
- Ele era um bom nadador - disse Ardal. - Só um ano mais velho do que eu, mas de longe mais forte, a todos os níveis. Por vezes, íamos a Yeun Ellez, ao lugar no pântano onde diziam que morava o Ankou, emergindo do lodo quando desejava. Temíamo-lo e, porém, sentíamo-nos atraídos por aquele lugar proibido, enfeitiçados pelo terror que dele emanava. Desafio-te Fe... - Uma brusca interrupção, como se Ardal tropeçasse numa palavra que não queria dizer. De novo, baixou os olhos. - Desafio-te, dizia ele. Desafio-te a ires mesmo à beirinha, sozinho, e a não saíres dali enquanto não tiveres contado até vinte. Como podia eu não responder àquele repto? Fiz o que me sugeriu, com os joelhos a bater de terror, a água negra estendendo-se à minha frente. A qualquer momento, o Ankou erguer-se-ia, eu sabia-o, e sairia das águas, agarrando-me e levando-me para o fundo, de onde não havia regresso. Imaginei que me afogava, que sensação seria a da água a cobrir-me a cabeça, a entrar-me pelo nariz, pela boca, a dor no peito, como uma chama ardente, o conhecimento gelado da morte... Contei: um, dois, três, até vinte, e o Ankou permaneceu submerso. Depois, virei-me e fugi disparado. Mas Paul já tinha desaparecido.
Um silêncio pesado.
- O teu irmão? - perguntou Gull, numa voz suave.
- O meu irmão. O meu irmão grande e forte, que me desafiava e me provocava e cuidava de mim. Gritei: Paul! Paul, onde estás? Mas a única resposta que obtive foi o silêncio das árvores e das trevas de Yeun Ellez. Enquanto eu contava, enquanto eu esperava, o Ankou levara-o. Corri para casa sozinho, a chorar. A culpa era minha. Eu não o tinha vigiado, não tinha pensado, tinha deixado que o levassem, que ele se afogasse... - Ardal empalidecera. Estava ali mesmo, a viver aquele momento. - E, quando cheguei a casa - acrescentou -, ali estava Paul, sentado no degrau à minha espera, com um sorriso de orelha a orelha, enquanto eu corria escada acima com o nariz a pingar, o peito em alvoroço, a cara lavada em lágrimas. Ele sempre fora um corredor veloz. Fiquei tão zangado que lhe bati. Paul levou-me dali para eu lavar a cara, para ninguém saber que eu tinha estado a chorar.
- Deuses - exclamei, um momento depois. - Então, ele pregou-te uma partida. As crianças são cruéis, às vezes.
- Ardal - disse Gull -, o que é o Ankou?
- É o ajudante da Morte. No pântano, sim, mas com mais frequência na estrada, numa carroça carregada de pedras. Vem buscar um homem, uma mulher, uma criança frágil. Vem buscar-vos a vocês. De noite, na cama, com os cobertores por cima da cabeça, procurávamos o ruído surdo e arrastado das rodas, o som das pedras deslocando-se. - Ardal levantou a cabeça e olhou para mim. - E aparece no mar. Como uma onda gigante. Esmagando, partindo, despenhando-se sobre nós. Sibeal, onde está Paul?
Até onde iria a memória de Ardal? A infância e a idade adulta, o passado e o presente pareciam misturar-se na sua mente. Imaginei-o a escutar os gemidos e tremores do telhado e das paredes fustigadas pelo vento, ouvindo neles a voz do Ankou, chamando-o. Chegou a tua hora. Se eu dissesse, agora, a palavra errada, se não fosse prudente, poderia enviá-lo para um lugar ainda mais sombrio do que Yeun Ellez.
- Ardal - perguntei-lhe, numa voz calma -, o teu irmão, Paul, também ia contigo no barco?
- O meu irmão - respondeu, numa voz trémula. - Era forte. Sempre foi um nadador vigoroso. Mas não... Ninguém podia... Tentei desamarrá-lo, tentei, mas estava muito cerrado, e a onda veio... - Cobriu a cara com as mãos.
- Ah, o que eu não dava agora por um jarro do melhor hidromel de Biddy - murmurou Gull. - É pena que um homem no estado de Ardal não possa dar um trago numa bebida forte. - Olhou de relance para mim, talvez a pensar no mesmo: aquele rapaz que jazia no meio dos afogados, um homem alto e forte, com o cabelo do mesmo tom de castanho que o de Ardal, podia ter sido seu irmão. O homem que estava à nossa frente parecia demasiado frágil para ouvi-lo, demasiado transtornado para responder à pergunta que confirmaria o facto. O Ankou veio buscar o teu irmão. Veio do mar.
- Não precisamos de falar nisto agora, Ardal - disse eu, sentando-me ao seu lado e pousando a mão sobre o seu joelho. Fang estremeceu, rosnando a dormir. - É bom que tenhas começado a recuperar a memória, mas não há pressa.
Knut tinha dito que aqueles dois homens afogados, os passageiros sem nome, viajavam com Ardal. Eu queria esquivar-me à necessidade de contar-lhe o que sabia; no entanto, enquanto druidesa, teria de ganhar coragem para o fazer. Lembrei-me que Knut sugerira que as memórias de Ardal seriam confusas quando ele as recuperasse, a verdade embrulhando-se nos trajes do pesadelo.
- Como te dissemos - acrescentei, com delicadeza -, só houve três sobreviventes do naufrágio: Knut, Svala e tu.
Não havia uma maneira agradável de dizê-lo.
Ardal levantou a cabeça; retirou as mãos que a cobriam.
- Na água... Quanto tempo estive na água?
- Muito tempo. O barco embateu no recife de manhã. Knut e Svala foram colhidos não muito depois disso. Encontrei-te ao fim da tarde, já era quase crepúsculo. Mas dizem que não podes ter passado tanto tempo no mar, nem mesmo agarrado a madeiras flutuantes. Nenhum homem teria sobrevivido tanto tempo. Johnny acha que, quando te encontrei na praia, já lá devias estar há algum tempo.
Por momentos, as feições esguias de Ardal tornaram-se ferozes.
- Ele era forte. Podia ter nadado até à costa. Eles mataram-no. Afogaram-no. Os nós...
- Então, o teu irmão ia a bordo? - perguntou Gull. - Vocês os dois viajavam juntos.
Seguiu-se um longo silêncio.
- Quando eu voltar para casa - disse Ardal -, talvez ele esteja de novo à minha espera, sentado nos degraus, a rir-se de mim. Enganei-te, F... - Aquela hesitação outra vez, antes de dizer a palavra que não queria que nós ouvíssemos. Seria o seu nome? - Nessa altura, erguer-se-á, um homem feito, e pousará o braço sobre os meus ombros. Seca essas lágrimas, irmão. O Ankou não me leva assim tão facilmente.
Eu tinha de contar-lhe. Tinha de dizer-lhe.
- Ardal, nós trouxemos alguns homens para cima, para os enterrar; nove, ao todo. Entre eles, estava... - Falhou-me a voz. - Segundo Knut, dois homens que morreram afogados eram teus companheiros de viagem. Ele não sabia como se chamavam. Um deles era jovem, um homem alto e bem constituído, com os cabelos castanhos e de pele clara. Era muito parecido contigo, Ardal. Se era teu irmão, lamento muito que o tenhas perdido. Também havia um homem mais velho. Knut disse-me que vocês iam os três algures, em grupo.
- Mais velho... Não sei... - As superfícies cavadas do rosto de Ardal estavam cobertas de lágrimas. - Não sei o que aconteceu antes. Só me lembro da onda e de Paul... Se os meus dedos tivessem sido mais rápidos, se eu tivesse conseguido desatar... Ele era tão forte, teria nadado até à costa... Eu podia tê-lo salvado.
- Desatar o quê? - perguntou Gull, momentos depois.
- O... o... - Ardal vacilou. - Não, não posso falar disto. Já chega, não quero continuar.
- Lamento - disse eu, aquém do que gostaria. - O teu irmão foi enterrado com respeito e orações. Lamento que tenhamos sido obrigados a fazê-lo antes de te sentires capaz de receber a notícia e de estar presente. Quando puderes ir caminhar lá para fora, levo-te a visitar o lugar. - Não entendia por que razão se culparia Ardal da morte do irmão. Eu tinha visto o barco estilhaçar-se contra o recife. Tinha visto a rapidez com que o mar o tragara. Haveria por certo na tripulação outros nadadores vigorosos e, apesar disso, tinham-se afogado. - Percebo a tristeza que deves sentir neste momento e não voltarei a falar disto, não esta noite. Mas, queria recordar-te as runas e aquilo que diziam a teu respeito, Ardal. Uma missão. Coragem perante a adversidade. Enquanto recuperas as tuas memórias, enquanto elas se agitam na tua mente, concentra-te nisso. Foste salvo com um propósito.
Gull levantara-se e preparava-se calmamente para ir deitar-se, verificando portas e portadas, apagando a candeia e deixando-nos à luz das velas e do fogo, enquanto aconchegava os cobertores de Ardal.
- Acreditas mesmo nisso, Sibeal? - A voz de Ardal não passava de um murmúrio. Passou a mão pelas faces. - Se existe uma missão, uma demanda, por que não Paul? Porquê eu?
- Agarra a minha mão. Ninguém sabe por que razão morre um homem antes do outro. Os deuses tomam as suas decisões e nós não temos o poder de contrariá-las. A única coisa que podemos fazer é viver as nossas vidas o melhor que soubermos. Com amor, coragem e bondade. Vejo que gostavas muito do teu irmão. Ele haveria de querer que seguisses o teu caminho com esperança; que cumprisses a tua missão, seja ela qual for.
- E se eu não me lembrar? E se o passado se tiver perdido para sempre? Há tantos caminhos, labirintos, armadilhas. Posso vaguear até ser um homem de muitos anos e nunca encontrar a saída.
Reparei num ligeiro tremor na sua mão.
- Nada está perdido - retorqui, com firmeza. - Já começaste a recuperar uma parte. Vais conseguir lembrar-te. Vais cumprir a tua missão. Nós acreditamos em ti, Gull e eu. Tu também tens de acreditar em ti; faz com que isso aconteça.
Nenhum de nós dormiu muito naquela noite. Sempre que Gull se levantava para ir às latrinas, Fang seguindo-o em passinhos rápidos, eu acordava. Por duas vezes, ouvi os dois homens a conversar e fui até lá para ver se estava tudo bem. Ardal fora incomodado por sonhos sombrios, cujos pormenores se recusou a partilhar connosco. Eu própria tinha sonhado com uma busca interminável ao longo de trilhos sinuosos, cujo desígnio me era desconhecido. Tinha ouvido a voz de Ciarán dizer-me: A verdadeira missão está dentro de ti, Sibeal. Se não aprendeste isso, então, não aprendeste nada. Depois, soube-me bem sentar-me um pouco diante da lareira, com o manto sobre os ombros. Gull aqueceu o resto da sopa e partilhámo-la.
- Também tive sonhos estranhos - disse ele. - Actos de violência que pertencem ao passado. Desgostos que deviam permanecer adormecidos. Dir-se-ia que atiçamos monstros.
O dia amanheceu ameno e cheio de sol. O vento caíra e o mar em torno de Inis Eala cintilava sob o céu limpo. Dirigi-me ao salão de refeições, a bocejar, e encontrei Clodagh muito animada.
- Pensei que podíamos ir apanhar cogumelos esta manhã, Sibeal.
- Hum.
- É uma manhã perfeita para isso. Posso mostrar-te uma parte da ilha onde nunca estiveste. Vais gostar; existe um pequeno pomar de macieiras, rodeado de espinheiros-alvar.
- Palavra?
O litoral rochoso e os ventos impiedosos de Inis Eala não pareciam favoráveis ao crescimento de qualquer outra vegetação para além dos prados que alimentavam as robustas ovelhas da ilha. Eu já tinha visto espinheiros retorcidos, com as raízes bem enterradas nas fissuras dos rochedos; e alguns juníperos solitários, inclinando-se sob o vendaval como velhos encurvados. Maçãs, não tinha visto.
- Traz um cesto que eu mostro-te.
Quando acabámos de reunir cestos e mantos, a maior parte dos homens já se dirigia a mais um árduo dia de trabalho no recinto de treinos. À saída da enfermaria, cruzei-me com Kalev, que vinha a entrar. Knut seguia-o; ambos traziam espadas.
- Começam cedo - observei. Gull devia estar tão cansado como eu. Ainda bem que não lhe era pedido que fizesse demonstrações.
- Peço desculpa pelo incómodo. - Kalev era sempre cortês. - Hoje, os homens de Connacht vão aprender certos truques com a espada, e os meus serviços serão requisitados dentro de pouco tempo. Agora é a única altura que tenho disponível para trabalhar com Knut.
- Com certeza. Knut, não vi Svala ao pequeno-almoço.
Kalev traduziu as minhas palavras, mas Knut respondeu-me directamente em irlandês.
- Mulher triste. Não querer comida. - Observou o xaile que eu trazia atado sobre os ombros e o cesto que levava no braço. - Tu ires passear?
- Com a minha irmã. Desejo-vos um bom dia a ambos. - Estaria errada em julgar a sua pergunta de certo modo inapropriada? Desde que começara a treinar com Gull, Knut tinha sido infalivelmente educado comigo, mas, de cada vez que nos cruzávamos, eu gostava um pouco menos dele. Não fazia sentido; não havia motivos para isso, tirando um comentário ou outro e uma estranheza no modo como tratava a mulher. E talvez a estranheza da própria Svala o tornasse inevitável.
Clodagh esperava-me, de cesto no braço.
- Tens a certeza de que te sentes preparada para uma longa caminhada? - perguntei.
- Fui eu que a sugeri, lembras-te? Se tivesse de deitar-me e repousar o tempo todo, enlouqueceria. Nem mesmo Cathal desaprovaria um passeio agradável para apanhar cogumelos.
Seguimos pelo caminho que nos levava para oeste, deixando a povoação para trás. Já tinham passado anos desde a minha última visita a Inis Eala e apercebia-me agora de que a ilha era maior do que eu a recordara. Contornámos o local do enterro do barco e atravessámos uma zona de colinas delicadas, forradas de erva esparsa. Durante algum tempo, caminhámos em silenciosa companhia. As ovelhas que ali pastavam trocavam balidos discretos; um bando de gansos grasnou-nos avisos das margens de um pequeno lago bordejado de canaviais.
- Existe uma nascente do outro lado da próxima colina - disse Clodagh. - A água doce atrai aves de toda a espécie. Eu sabia que ias gostar deste passeio. Sentes falta da floresta, não sentes?
- Inis Eala é muito diferente. Um desafio.
Clodagh sorriu.
- Falaste como uma druidesa, Sibeal. Tratas cada experiência como um exercício de aprendizagem. Dir-se-ia que nunca perdes a calma, que nunca sentes dúvidas ou tens um dia mau, como as outras pessoas; ponderas tudo, como uma velha e sábia anciã. Mas a verdade é que, mesmo em criança, já tinhas um invulgar autodomínio.
Pensei naquele comentário.
- Dizes isso como se fosse uma coisa má.
- Não era essa a minha intenção. Sempre admirei essa qualidade em ti.
- Mas? - Eu tinha detectado a reserva no seu tom de voz.
- Não sei. Simplesmente... Bem, creio que me interrogo se será mesmo bom para ti controlares os teus sentimentos dessa maneira. Os sentimentos podem ser desconfortáveis, mas fazem parte do que é estar vivo: alegria e sofrimento, entusiasmo, medo, dor. Imagina uma história em que todas as personagens tivessem um domínio perfeito de si mesmas, a todos os momentos. Faltar-lhe-ia qualquer coisa, na minha opinião.
Fiz uma careta.
- Começo a desconfiar de uma conspiração. Para onde quer que me vire, alguém questiona a minha vocação, seja sublinhando os prazeres do casamento e da maternidade, seja sugerindo que se passa algo de errado comigo porque não me ponho aos gritos quando estou transtornada com alguma coisa.
- Não quis dizer...
- Clodagh, acredita, tenho muitas dúvidas. Sobre mim, sobre o meu futuro, sobre a minha capacidade de seguir a via de druida. Não tenho qualquer dúvida de que os deuses me chamaram, e isso significa que terei de dar o meu melhor. Quanto ao domínio que exerço sobre mim mesma, fui treinada para o manter, pelo menos por fora. Não mostrar emoções não significa que não as tenha. - Instantes depois, acrescentei: - Na tua história, todas as personagens seriam druidas, suponho eu. Na verdade, é sabido que as pessoas já perderam a calma nos nemetons. Ficarias surpreendida se visses quão aceso pode tornar-se um debate sobre a maneira correcta de conduzir um ritual.
Subimos uma pequena ladeira e parámos. Sob os nossos pés, estendia-se um pequeno vale recolhido na encosta, uma súbita surpresa de muitos tons de verde no meio dos castanhos e cinzentos da ilha. Um anel de espinheiros-alvar protegia o pomar de macieiras, fazendo lembrar graciosas mulheres com vestidos verdejantes, talvez preparando-se para dançar. Vestidos curtos; as ovelhas tinham mordiscado até ao ponto mais alto que conseguiam alcançar. Era um lugar encantador, cheio de quietude e de doçura.
- Estas árvores dão frutos de grande qualidade - observou Clodagh. - Frescos e sumarentos. Já não vais estar aqui quando amadurecer a colheita deste ano. Os cogumelos estão além, daquele lado.
Uma impressionante colheita de chapéus largos de cor creme destacava-se das folhas de erva. Obriguei Clodagh a sentar-se e a descansar enquanto eu colhia os cogumelos, enchendo depressa os dois cestos.
- Como está Ardal? - perguntou, enquanto me via a trabalhar.
- Melhor. Já se lembra de uma coisa ou de outra. Parece que o irmão também ia no barco. Está muito confuso. Tive de explicar-lhe que, se o irmão ia a bordo, deve ter morrido afogado. Parecia convencido de que isso era, de algum modo, culpa sua.
- Então, lembrou-se do naufrágio. E que disse ele?
Sentei-me sobre os calcanhares, recordando os olhos turvos de Ardal e o seu rosto coberto de lágrimas.
- Não creio que se lembre de muito. Só de uma vaga que veio direita a eles, engolindo-os. Disse-nos que não conseguia desatar algo, mas não nos explicou o que era. A sua mente saltita de um lado para o outro, um instante na infância, o seguinte em tempos recentes. E mistura velhas histórias com a realidade. Ou talvez as velhas histórias o tenham ajudado a dar um sentido à vida real. Ficámos, sim, a saber que é natural da Armórica, embora lhe chame Breizh. Está muito longe de casa.
- Julgo que vão regressar muito em breve - disse Clodagh. - Os três.
- Não nos tempos mais próximos. Ardal só consegue dar alguns passos.
- Por falar em andar, podíamos pôr-nos a caminho. Biddy ficará encantada com a colheita.
Ajudei Clodagh a levantar-se.
- Que planeia ela fazer com eles?
- Vai pôr uma parte num guisado de peixe e pendurar o resto, a secar - respondeu, pegando no cesto. - Aqui, nada se desperdiça. Não, não, Sibeal, eu consigo levá-lo. Não sou completamente inútil.
- Nunca me atreveria a sugerir tal coisa - retorqui, rindo. - Mas não queria correr o risco de desagradar a Cathal, apresentando-lhe a mulher exausta. - Podemos regressar pelo outro lado, seguindo a falésia?
Foi ao passar pela terceira enseada que a vimos. Estava parada na praia, lá em baixo, de mãos nas ancas e pernas afastadas, a olhar para o chão. Ao longo da costa, seguindo a linha da maré alta, estendia-se uma forma sinuosa feita de seixos empilhados e areia grossa, decorada, aqui e ali, com pedaços de alga e conchas grandes. A criadora contemplava atentamente a sua obra, mechas molhadas de cabelo caindo-lhe sobre os ombros e as costas. Sob este fino véu natural, Svala estava nua.
- Que faz ela? - sussurrou-me Clodagh enquanto a fitávamos, paralisadas com o choque. Podia ser Verão, mas não estava calor. E havia homens por todo o lado, espalhados pela ilha.
- É uma serpente - murmurei, observando melhor a criação de Svala.
- Repara, fez os olhos com conchas e... Não, talvez não seja uma serpente. É demasiado grosso e tem pernas. Será um dragão? Ela deve estar gelada. E qualquer um pode passar por aqui e vê-la. Temos de ir lá abaixo falar com ela. Ou talvez vá só eu; aquele trilho parece muito íngreme.
- Eu cá me arranjo. Deixamos os cestos aqui.
A meio caminho, parei de repente.
- Cuidado! - Clodagh vinha mesmo atrás de mim. - Quase choquei contigo.
- Espera, vi uma coisa. - Pelo canto do olho, julguei ter entrevisto um movimento subtil, lá em cima, nos penhascos, na outra ponta da baía, onde os arbustos escondiam o caminho. Uma ovelha? O que quer que fosse já tinha desaparecido. - Pensei... Por momentos, pensei que era um homem. Alguém escondido, a espiá-la. Mas não acredito que alguém o fizesse. - Sobretudo quem ouviu o discurso de Johnny aos recém-chegados. Deve ter sido uma ovelha.
Continuámos a descer até à praia. Svala já nos tinha ouvido. Virando-se, viu-nos ir ao seu encontro sem fazer qualquer gesto para se cobrir. As suas roupas estavam espalhadas pelo chão, embrulhadas em pedras e areia, como se ela se tivesse perdido no afã de escavar e construir. Vendo o seu olhar desviar-se de mim para Clodagh e de novo para mim, perguntei-me se não se sentiria uma criatura selvagem, ao libertar-se da roupa que a cobria.
- Não te aproximes muito - sussurrei para a minha irmã. - Bom dia, Svala - disse, parando a alguns passos da mulher nórdica. - O que é isto que fizeste? - Apontei para a criatura feita de areia. Agora que estávamos mais perto, dei-me conta do tamanho da obra; Svala devia ter começado a trabalhar ao nascer do Sol.
Ela observou-me por instantes e depois estendeu a mão, chamando-me. Não me disse nada, mas percorreu a criatura em todo o seu comprimento, gesticulando com frenesi. E, enquanto a seguia, julguei compreender: Já viste como são brilhantes os seus olhos, como cintila a sua pele? Repara nas pernas vigorosas, na cauda temível! E nas presas! Dir-se-ia uma criancinha a exigir o elogio da mãe a uma coisa que fizera com todo o esmero. As presas eram conchas pontiagudas e davam ao seu dragão um ar ao mesmo tempo feroz e cómico.
- Bonito, muito bonito - disse eu, aquiescendo e sorrindo. - Mas tu... fria.
Fiz a mímica de alguém a tiritar, envolvendo o corpo com os braços. Na verdade, Svala não dava sinais de estar com frio, nem tão-pouco com vergonha da sua nudez. Ficou ali, ao meu lado, imponente figura de mulher, de seios firmes e cheios, cintura estreita, ancas generosas, os pêlos do corpo do mesmo dourado que as suas longas tranças. Apele clara era homogénea e perfeita, e não se viam nela as rugosidades provocadas pelo frio. Tinha, sim, alguma areia grossa agarrada ao corpo e perguntei-me se não teria estado a nadar antes de começar a sua obra de amor.
Atrás de nós, Clodagh apanhara o vestido do chão e tentava sacudir a areia. O xaile caído ao seu lado parecia encharcado. Svala não tinha mais nada para vestir.
- Devias vestir-te. - Ilustrei. - Frio. E os homens podem ver-te. - Apontei para o cume dos penhascos. - Os homens percorrem aquele caminho. Vêem-te, sem roupa. Não é bom.
Em resposta, Svala ajoelhou-se ao pé da cabeça da criatura, a olhar para as duas conchas que eram os olhos, sem vida. E começou a cantarolar uma pequena melodia desafinada.
- Svala - disse Clodagh, aproximando-se -, eu empresto-te o meu manto. Toma. - Desatando-o, estendeu-lho.
- É melhor regressarmos - disse eu. - Vem connosco. Ou, pelo menos, veste-te, para os homens não te verem nesse estado.
Svala devia ter compreendido; os nossos gestos eram muito claros. Mas não se mexeu. A melodia prosseguiu, com agudos e graves; talvez fosse uma canção de embalar, ou um lamento.
- O mar levará a tua criatura quando a maré subir - disse eu. - É uma pena. Tanto trabalho...
A melodia de Svala tinha a tristeza de uma criança que vê o mar engolir a sua criação. Era uma canção de despedida.
Quando chegou ao fim, ela levantou-se, de olhos fechados. Depois, estendeu a mão, cega, e agarrou-me no braço. Os meus ouvidos escutaram a dor da criança, e os meus olhos viram a mulher em todo o seu esplendor, como uma deusa da História antiga. No coração, senti uma perda terrível, um sofrimento tão dilacerante que não caberia em palavras. A sua angústia preencheu o meu corpo. Indistinto, ouvi o grito de Clodagh e, logo a seguir, caí de joelhos na areia, com as mãos na cabeça.
Foi Svala quem me ajudou a levantar. Senti a força dos seus braços, o poder das suas mãos. E, quando abri os olhos e olhei para os olhos dela, soube que aquilo que eu sentira por um breve instante ela sentia a todos os momentos do dia, todos os dias. Vestia essa dor como se fosse a própria pele.
Não lhe disse que tinha compreendido. Sabia que ninguém poderia compreender, a não ser os que haviam sofrido o mesmo desgosto. Tentei mostrar-lhe, com os olhos e com a mão no ombro dela, que sentira uma parte da sua dor e que era sua amiga. Depois disso, Svala permitiu que Clodagh a ajudasse a vestir o vestido molhado e, num gesto indiferente, lançou o manto quente sobre os ombros. Mas recusou-se a vir para casa connosco. Em vez disso, sentou-se, de pernas cruzadas, ao pé da cabeça da escultura de areia, pousou a mão no pescoço da criatura e olhou para o mar.
No cimo do penhasco, olhámos para baixo. Svala continuava sentada, imóvel, como se estivesse de vigia. Talvez à espera que a maré subisse.
- Sentes-te bem, Sibeal? - perguntou Clodagh. - Por momentos, pensei que ias desmaiar. Ainda estás muito pálida.
- Agora, estou bem.
A maré de emoções vazara depressa, deixando-me atordoada. Ter tanta coisa dentro dela... Não admirava que, por vezes, parecesse existir num mundo diferente daquele em que nós vivíamos.
- Devíamos falar com alguém acerca disto - comentou Clodagh, enquanto seguíamos caminho. - Ela é como uma criança pequena, sem noção do perigo, quanto mais da decência.
- Hum...
Se andasse nua pela ilha, Svala podia instalar o caos, sobretudo na presença dos homens de Connacht. Tentei imaginar contar a Knut o que tínhamos visto e soube que não seria capaz de fazê-lo, quer directamente, quer através de Jouko ou de Kalev, o que seria ainda mais constrangedor. Confrontada com essa tarefa, senti-me muito mais próxima da jovem donzela do que da sábia druidesa. Nem sequer tinha a certeza de conseguir abordar o assunto com Gull.
- Podes deixar o problema comigo, Sibeal - disse Clodagh. - Falarei com Cathal, ele transmitirá a Johnny e, se Johnny achar que Knut deve saber, ele próprio lho dirá. Isto só reforça a urgência de os pormos fora da ilha.
- Já a vi comportar-se de forma estranha, mas nada comparado com isto. Dessa vez... Knut apareceu e tratou do assunto. Mas parecia constrangido na presença da mulher, como se ela o envergonhasse. Pergunto-me se ele compreenderá.
- O quê?
- Sei que o comportamento de Svala é estranho. Mas não acredito que ela tenha perdido a razão, Clodagh. Quando estávamos lá em baixo, senti por momentos a força do seu sofrimento, e era avassaladora. Sei que ela perdeu o filho; sei que deve ser terrível. Mas não sei se não haverá mais alguma coisa no seu passado, algo mais do que o naufrágio e a morte da criança. Pressinto que há uma história por contar e que, até essa história vir à superfície, nós não conseguiremos ajudá-la.
- Se é verdade o que dizes, por que não nos contou Knut essa história? Svala não pode contá-la por palavras.
Era uma pergunta legítima.
- Talvez seja algo que só ela sabe. Ou talvez Knut saiba mais do que decidiu dizer-nos.
- Se tiveres razão - cogitou Clodagh -, é possível que esteja relacionado com Ardal. Quando ele recuperar a memória, talvez se venha a saber tudo, seja lá o que isso for.
- Talvez.
- Já sabes o que os homens dizem por aí, não sabes? - Clodagh passou-me o cesto enquanto tentávamos atravessar uma vedação. - Que ele trouxe a má sorte para a ilha. Que leva uma sombra com ele para onde quer que vá.
- Ardal? - Isto chocou-me. Cathal não sugerira que as conversas de pressentimentos e maus augúrios se referiam a alguém em particular. - Por que razão pensariam tal coisa?
- Não sei, Sibeal. Não fiques tão transtornada; talvez sejam apenas mexericos. Talvez tenham sido as estranhas circunstâncias em que ele foi encontrado e o facto de ter alcançado a costa após tanto tempo passado no mar. O naufrágio perturbou toda a gente. As pessoas andam inquietas. Cathal não é o único a desejar ter feito mais; todos eles o lamentam. Não gostam de ver homens a morrer quando há uma possibilidade de salvá-los. Se tantos pereceram tão depressa, perguntam, por que razão sobreviveu este homem, sobretudo depois de passar tanto tempo dentro de água? Além disso, houve a estranha tempestade que provocou o naufrágio; há muitas teorias a respeito disso.
- Queres dizer que as pessoas acham que foi a presença de Ardal a bordo que fez com que o mar levasse o Freyja para os recifes? O que pensam eles que ele é? Algum espírito maligno?
- Só pensam que ele traz má sorte, Sibeal. Não fiques tão preocupada. Não tardarão a perceber que não há motivos para tais superstições.
Felix
Ela está inquieta. Não o mostra; dominou a voz, as feições estão graves e serenas. Mas algo a preocupa; vejo-o nos seus olhos.
Gull deitou-se cedo depois de um longo dia de trabalho. Amanhã será o combate de Knut. Tem-me perturbado vê-lo atravessar este quarto todos os dias; esse homem de olhos frios. Ao passar, observa-me. Por vezes, saúda-me - Camarada, como estás? -, mas não precisa de falar para eu saber que é meu inimigo. Mesmo assim, não consigo lembrar-me. Dizem que era um membro da tripulação. Dizem que a mulher ia a bordo do barco com ele. E o filho. Afogado. Não me lembro de nada, rigorosamente nada, a não ser de Paul e dos nós e da onda a vir na nossa direcção. Quando o mar veio, levou tudo.
Hoje, esforcei-me de novo por recuperar forças. Já sou capaz de caminhar da cama até à lareira e regressar, apoiando-me no ombro de um homem, ou de uma mulher. Sete passos para lá e sete para cá. Antes de aceitar retirar-se, Gull pediu a Sibeal para me mostrar que conseguia suportar o meu peso. Não posso sair da enfermaria. Esses sete passos já me tiram o ar. Sou como a boneca de uma criança, um manequim com recheio de lã. Fraco. Demasiado fraco para me defender, a não ser com palavras.
Finalmente, um momento a sós com Sibeal.
- Em que pensas, Sibeal?
Ela levanta os olhos para mim, surpreendida. O seu lugar preferido é na esteira, diante da lareira. Não creio que seja calor o que procura, mas visões nas chamas.
- Estava a pensar lançar as runas outra vez.
- Qual a pergunta para a qual precisas de uma resposta?
As labaredas tremeluzem nos seus olhos.
- Não tem importância - responde.
- Não pode ser verdade. Queres lançar as runas por uma pergunta trivial? És uma druidesa. Não o farias.
Sibeal não responde durante algum tempo. As suas palavras, quando chegam, são hesitantes.
- Há certas coisas que é preferível não partilhar.
- Sibeal, olha para mim. - Ela olha, admirada com o meu tom de voz. - Não me consideras merecedor da verdade?
Sibeal envolve o corpo com os braços, como se mesmo ali, à frente da lareira, lhe tocasse um frio glacial.
- Não posso contar-te isto, Ardal. É o segredo de outra pessoa. - Momentos depois, acrescenta: - Não te menti, limitei-me a omitir-te algo.
- Disseste-me que a tua pergunta não tinha importância. Não acredito que isso seja verdade.
- Na realidade - replica, e vejo que a aborreci -, se lançasse as runas esta noite, mal saberia que pergunta escolher. Tenho vários temas em mente, todos eles igualmente perturbadores.
- E preferes não partilhar nenhum desses temas?
Sibeal olha para mim. Sinto um aperto no coração; acontece sempre que a olho nos olhos. Não existe mais ninguém no mundo com aqueles olhos. Ela não responde à minha pergunta.
- Ah, enfim - suspiro -, compreendo. Sou apenas um destroço à deriva que deu à costa na tua terra. Só trago comigo os trajes do agora, não tenho um manto de história à volta do corpo. Sou um desconhecido até para mim próprio. Que direito tenho eu de exigir-te a verdade? A cada palavra posso estar a dizer uma mentira.
Sibeal sorri.
- Se me pedissem para adivinhar, em três tentativas, o que eras antes de vires para aqui, a minha primeira hipótese seria um discípulo de filosofia.
Estou na biblioteca, em St. Laorans. Por todos os santos, Felix, surpreende-me o teu argumento, diz-me o irmão Bernez. É melhor não falares assim diante dos outros. Se as tuas teorias a respeito da natureza da divindade chegassem aos ouvidos do Duque Remont, porias em perigo não só este teu velho mestre, como a ti próprio e toda a tua família. A luz jorra de um vitral e ilumina-lhe a cabeça tonsurada, coroando-o com jóias de cobalto e carmesim. Tem uns olhos meigos. Estou a falar a sério, Felix, diz o velho filósofo. Já lá vão os dias em que podíamos exprimir semelhantes ideias livremente. Sob o governo de Remont, não se questionam os ensinamentos da fé instituída. O teu pai podia perder a sua posição na corte.
Pergunto-lhe, em que medida pode ser um erro procurar a verdade?
- O que foi, Ardal? - A voz de Sibeal traz-me de volta. Soergueu-se, está de joelhos, empalideceu. - Que vês tu?
- Eu...
Acontecera ali, por instantes, tão nítido: o Sol, as paredes de pedra do mosteiro, o meu sábio amigo... O teu pai podia perder a sua posição na corte... Mas não perdeu. Não perdeu porque eu parti a tempo. Fui-me embora, e Paul veio comigo.
Não podes ir sozinho. Quem te impedirá de te meteres em sarilhos, se eu não estiver lá?
Nem sequer sei para onde vou, Paul E se nunca mais voltar?
Somos irmãos, lembras-te? Não te livras de mim assim tão facilmente.
- Sentes-te bem? - Os olhos de Sibeal revelam a sua ansiedade. Pousa a mão no meu joelho, como já fez uma vez, e o calor sabe-me bem.
- Eu... - Era tão nítido, tão real. Uma memória verdadeira, sem dúvida. Por que motivo não me lembro do que aconteceu depois? - Um filósofo - repeti, num fio de voz. - E qual seria o teu segundo palpite?
Ela sabe que preciso de tempo.
- Um aprendiz de sacerdote - responde.
- E o terceiro?
O sorriso de Sibeal sossega-me o coração desenfreado. Enche-me de coragem.
- Um poeta - diz-me.
Respiro. Dói-me o peito; desde que estive no mar, sinto que as coisas aí não estão como deviam.
- Sibeal, tu sabes que já recordei um pouco, antes. O meu irmão. Memórias antigas.
Ela espera.
Olho de relance sobre o ombro, para Gull.
- Está ferrado a dormir - diz Sibeal, num murmúrio.
- O passado regressa, mas em fragmentos. O meu nome. Parte das circunstâncias que nos levaram, a mim e ao meu irmão, a sair de casa. Mas... creio que seria melhor não te descrever o que vi. Aquilo de que me lembro... não tem importância.
- Como assim? O teu nome, as tuas origens, a viagem: se não nos contares essas coisas, como poderá Johnny ajudar-te a regressar a casa?
É uma amarga realidade. Se Paul estiver morto, se essa memória for verdadeira, alguém terá de levar a notícia à nossa mãe e ao nosso pai. Alguém terá de levar a história a Breizh. É longo o caminho de regresso. O mais longo que os pés deste vosso filho rebelde alguma vez hão-de percorrer.
- Não posso ir para casa, Sibeal. Levo o perigo comigo. Levo as trevas. Levo a má sorte. Seria melhor que o Ankou me tivesse colhido naquele dia, em Yeun Ellez. Seria melhor, talvez, nunca ter nascido. O meu irmão ainda estaria vivo.
- Isso não é verdade. - Os olhos de Sibeal cresceram num rosto que se tornou inexplicavelmente pálido. Uma coruja branca. Fita-me com um olhar peculiar. Sinto que me vê por dentro. - Não podes saber o que teria acontecido se não tivesses estado presente. Não podes inventar um passado que nunca foi. Só existe esta vida e o caminho em frente.
Não respondo. Momentos depois, ela acrescenta:
- Ardal, vamos lançar as runas outra vez. Não para esclarecer esses dilemas de que falei há pouco, mas para dar um sentido a tudo isto, por ti. Acredito que tens uma missão pela frente. Da sua natureza, nada sei. Mas talvez precises de cumprir essa missão, pelo teu irmão. Quando o fizeres, é possível que consigas entender melhor a sua morte.
- Ou provar-lhe que, agora que ele já não se encontra entre nós, serei corajoso sem a sua ajuda.
- Vais fazer-me chorar, Ardal.
- Ati? Não creio.
- Julgas-me incapaz de verter uma lágrima? - pergunta-me, desviando o olhar.
- Julgo que as guardas dentro de ti - respondo. - Com medo de deixá-las escapar, porque vês nelas um sinal de fraqueza.
Se estiver certo, e penso que estou, Sibeal deve achar-me um pobre exemplo de homem. Quando me disseram que Paul se tinha afogado, chorei um lago de lágrimas.
- Ardal?
- Sim, Sibeal?
- Não viverás sem ele. Paul está morto, é verdade; o mais provável é que tenha sido enterrado ao som das minhas orações. Mas caminhará ao teu lado, passo a passo, até ao fim dos teus dias. Sentirás a sua presença no ar que respiras. No grito de uma gaivota, reconhecerás o seu riso; no marulho das ondas, ouvi-lo-ás sussurrar-te uma história, já tarde na noite, quando as velas estiverem apagadas. Lembrar-te-ás da sua bondade e coragem sempre que vires um homem ajudar o seu semelhante. Verás as suas feições vigorosas, o seu humor, a sua amabilidade, quando tiveres, um dia, uma criança.
Se Sibeal não é capaz de chorar, eu sou. Ela procura um pedaço de linho na bolsa que traz à cintura, estende o braço e põe-no na minha mão.
- Ele era um desconhecido para ti. Mas é como se o conhecesses.
- Conheço-te a ti, Ardal. Ouço o amor na tua voz quando falas dele. As tuas palavras dizem-me o tipo de homem que ele era.
Lançamos as runas juntos, na toalha de linho do ritual, diante da lareira. Quero sentar-me na esteira à frente de Sibeal, mas ela receia não conseguir levantar-me e levar-me para a cama, pelo que fico na cadeira, com as faces coradas de vergonha. Amanhã, farei um esforço ainda maior. Caminharei até mais longe. Hei-de tornar-me forte outra vez.
Sibeal fecha os olhos - são tão compridas as suas pestanas - e respira fundo, com as costas muito direitas, as mãos em repouso no colo. Não consigo respirar da mesma forma, ainda não. Dói-me o peito quando tento; ao respirar, faço um som áspero, perturbando a sua concentração, à medida que ela vai caindo no estado de espírito receptivo necessário à adivinhação. Em vez disso, fecho os olhos e evoco uma imagem de vidoeiros ao vento, pedras verticais dispostas em círculo, um lago que reluz sob o céu pálido da madrugada. Afago a cadela. Tento afastar do pensamento todas as distracções. Aguardo.
Quando se sente pronta, Sibeal pega no saco. As varas deslocam-se no interior, como se batessem ao de leve na porta do conhecimento. Abro os olhos. Ela desata o cordão. Em vez de lançá-las sobre a toalha, levanta o saco e estende-mo. As nossas mãos tocam-se por instantes quando, em conjunto, deixamos as varas cair no quadrado de linho. Juntos, estudamos o padrão à nossa frente.
Tenho-me perguntado se nos calharão as mesmas runas que Sibeal tirou do molho na primeira noite: Os, Ger e Nyd. No entanto, embora três runas se tenham sobreposto às outras, são todas diferentes. À nossa frente, aparecem agora Ken, Gyfu, Sigel. Uma voz ressoa na minha mente, a voz de Magnus, que me ensinou: As runas não falarão contigo se as apressares. Deixa que os seus significados assentem no teu pensamento, deixa que se misturem e combinem para ti, ou não conseguirás tirar delas qualquer sentido. A sabedoria não chega como uma maré de Primavera. Assemelha-se mais ao lento desabrochar do carvalho, de bolota a árvore jovem. Antes que esse carvalho seja uma árvore altaneira, tu serás um homem velho. Magnus, amigo, mestre... Vejo-o, grande, largo, de barba alourada. Nórdico. Um parente. O irmão da minha mãe. Vejo-o ao meu lado, sentado a uma mesa e, à nossa frente, um conjunto de varas de runas muito idênticas às de Sibeal, mas feitas a partir de uma madeira mais escura, talvez carvalho.
- Falas tu primeiro, Ardal.
Estremeço com alguma violência. A memória abandona-me; à minha volta, o fogo, a cadela, a enfermaria escurecida. Ao meu lado, Sibeal, que falou com uma calma sussurrada e não merecia esta reacção.
- Desculpa, eu... não posso continuar.
- Ardal - diz ela -, sei que compreendes a linguagem das runas. Podes interpretar o que aqui vês sem referência ao passado. Não precisas de tocar nesses assuntos de que falas com tanta relutância. Quando lancei as runas, fiz uma pergunta acerca do caminho que tens pela frente. - Hesita e, depois, acrescenta: - Preferia ouvir a tua interpretação antes de dar a minha. Quero ter a certeza de que não estou a influenciar-te.
- Muito bem - digo, curioso por saber o que pensará uma druidesa da minha leitura. Estará Sibeal a pôr-me à prova? Não sou um ignorante e, porém, à luz dos seus critérios, não devo passar de um inexperiente iniciado. - Ken é a luz nas trevas; visibilidade; a iluminação de coisas ocultas. Gyfu, uma dádiva. A dádiva de um dom ao serviço dos deuses, ou ao serviço de outrem. Sigel, luz do sol, visão, realização.
Sibeal permanece em silêncio, sem me apressar. Olha para baixo, para as varas ali espalhadas, as pestanas pretas velando-lhe os olhos. A luz do fogo tinge-lhe a pele de um brilho rosado.
Encontro coragem para continuar. Tenho de correr o risco de ofendê-la.
- Tu és a dádiva e a luz, Sibeal. Nas trevas do desconhecido que me invadiram, tu és a tocha ardente que me conduz. O nevoeiro do esquecimento cegou os meus olhos; tu és a visão clara que mantém os meus pés assentes no caminho. Decidiste ajudar-me porque és uma serva dos deuses e vês isto como a missão de que foste incumbida, um dever ditado pela tua vocação espiritual.
De repente, os seus olhos estão em mim, nítidos e perscrutadores.
- Dever? Pensas que estou a ajudar-te por dever? - Lembrando-se de Gull, baixa a voz. - Tens uma estranha noção do que é um druida, Ardal. Primeiro, acusas-me de ser incapaz de sentir como os outros e, agora, isto.
- Eu digo a verdade tal como a vejo. Talvez a verdade te ofenda. Preferias uma mentira?
- Claro que não. - É a primeira vez que a ouço ser ríspida. - Não devia ter pedido a tua interpretação. Não admira que a tua resposta tenha sido, de algum modo...
Em vez de morder a língua, como devia, agravo o meu erro.
- Por que estás a ajudar-me, Sibeal?
Ela entrelaça as mãos no regaço, franzindo o sobrolho.
- Perturbaste a adivinhação - diz-me, numa voz tímida, fria.
- Ora aí está - replico -, mudas de assunto, distancias-te de novo, como se fosse demasiado perigoso olhares para o teu coração. Será essa reserva algo que te ensinaram, o teu Ciarán e os seus seguidores? Seres sempre contida, estares sempre sob controlo, nunca mostrares ao mundo o teu verdadeiro ser: uma mulher viva, que respira? É isso que os teus deuses exigem de ti?
Sibeal olha para mim fixamente. Instantes depois, diz-me:
- A preparação de um druida é um processo muito demorado, Ardal. Passei grande parte dos últimos quatro anos nos nemetons, em Sevenwaters, e a maior parte desse tempo, sozinha, a orar, a memorizar a doutrina, ou a descobrir que ainda tenho muito que aprender. Se deixar que os meus sentimentos me invadam o pensamento, não sobrará espaço para as vozes dos deuses. Se esgotar a minha força nos cuidados de todos os dias, não poderei percorrer como devia o caminho espiritual que me coube. - Faz uma pausa, ponderando o que acabou de dizer. - Não me expliquei bem - acrescenta. - Ardal, tenho de ser distante. É uma das razões por que estou aqui, em Inis Eala: porque tenho, por vezes, uma grande dificuldade em desligar-me dos sentimentos dos outros. É algo que terei de aprender antes de fazer o meu último juramento.
- Não estou a falar do que sentem os outros, Sibeal. Estou a falar do que tu sentes.
- O que eu sinto não interessa.
É uma simples afirmação, mas traz-me uma profunda tristeza.
- Então, desperdiças o que tens para dar - replico, numa voz calma. - O facto de não seres honesta contigo própria torna o teu compromisso com os deuses uma dádiva incompleta. - Revejo o irmão Bernez, os seus olhos alegres, a sua bem-humorada sabedoria; tinha uma família grande e adorava falar dela. Também falava da angústia com que, muitos anos antes, tomara a decisão de dedicar a vida a Deus. - Quatro anos, dizes tu. Portanto, já te submetes a este treino desde os teus...?
- Doze anos. É muito comum. - O rosto de Sibeal fechou-se; o tom é o mais arrepiante que lhe ouvi desde que a conheço.
- E, desde os doze anos, és contida, serena, ponderada, dedicada à vontade dos deuses. Uma serva obediente.
Ela não responde. Lembro-me da história que me contou na primeira noite. Desconfio que nunca chorou, riu ou bateu com o pé no chão, de raiva, desde os seus cinco ou seis anos de idade. Perscruto-lhe o rosto, embora já não precise de olhar para vê-la; trago a sua imagem gravada bem fundo dentro de mim. Há uma mágoa nos seus olhos, embora não a liberte em lágrimas. Por que razão a desafiei desta maneira? Que espero eu? Uma declaração de amor? Pobre Felix. Nunca aprendeste a manter a boca fechada.
- Vou dar-te a minha interpretação das runas - diz-me, desviando o olhar para baixo, para a toalha de ritual. A sua postura é a de um mestre que corrige um aluno insubmisso. - O caminho em frente já não é obscuro como era dantes. A luz dos deuses ilumina a nossa senda. A missão pode ser cumprida. Mas não é evidente. A possibilidade de vitória é contrabalançada pela presença da morte nestas runas. Talvez se refiram ao teu irmão e aos outros que pereceram no mar. Mas Sigel também nos diz que podemos reunir a força necessária para travar os poderes que conspiram contra nós. Podemos resistir às influências caóticas que presidiram à minha primeira adivinhação, na noite em que usaste Is para me dizer que tinhas perdido a memória. Ken não é simplesmente luz, como numa tocha ou candeia; também significa a luz do conhecimento. Ken e Is são opostos, Ardal. Contra a imobilidade gelada de Is, Ken é transformação.
Como não reajo, ela continua:
- A adivinhação através das runas inclui muitos níveis, do mais esotérico ao mais simples e directo. A minha interpretação é a de um druida; difere da tua, mas não a invalida. - Um sopro profundo, engasgado. - Ardal...
- Peço desculpa se te magoei, Sibeal.
- Não faço aquilo que faço por dever, mas por amor.
Não sou louco ao ponto de interpretar isto da maneira que mais me agradaria. Espero que ela conclua o seu raciocínio.
- Estamos todos unidos em espírito, Ardal. Todos os homens, mulheres e crianças; todas as criaturas, até à mais fina folha de erva. A maçã que vês na macieira. A onda que rebenta na praia. Como poderia eu não ajudar? - O tom altera-se, suaviza-se. - Foi um desconhecido quem encontrei na praia. Mas agora és meu amigo. Quanto à tua interpretação das runas, é verdade que desconfiei que pudesses ser um poeta e aquilo que disseste faz-me pensar que tenho razão.
Um sorriso aflora-me aos lábios.
- Lamento ter perturbado a adivinhação. Parece que tenho um talento para isso.
- Se a discutirmos com calma, talvez consiga evitar uma enxaqueca. A interpretação parece clara.
- Mas, não haverá muitas interpretações possíveis, quem sabe até contrárias? Não poderíamos dizer, por exemplo, que o elemento mais significativo desta adivinhação é o elo ou união? Gyfu pode ser interpretado como a união de dois elementos díspares. Ken, a tocha, não traz apenas luz.
A tocha envolve a destruição da madeira, para além da criação de luz e de calor. Talvez esta adivinhação se refira à mudança. Com uma transmutação, não apenas a nível físico, mas espiritual também.
- Isso está tudo muito certo, Ardal. - Sibeal começa a descontrair-se. Sente-se muito mais confortável num debate filosófico do que a discutir os seus sentimentos. - Contudo, para realizarmos plenamente esta adivinhação, terás de relacionar a tua interpretação geral com a pergunta que eu fiz quando lançámos as varas. Ou, melhor ainda, com uma pergunta só tua, que não tenhas partilhado comigo. Foi incorrecto tentar a prática do ritual em conjunto. Não devíamos voltar a fazê-lo.
- Porquê incorrecto?
Ela cora ligeiramente.
- És inexperiente. E... Não, não sei explicar-te. Parece errado. Os meus instintos dizem-me que não é sensato.
- Não sou inexperiente - respondi, com calma. - Posso não ter o teu nível de instrução, mas recebi uma boa orientação nesta matéria, como noutras. Havia um... havia um nórdico na minha família, um erudito, que me ensinou a linguagem das runas.
- Então, lembraste-te de mais coisas - diz Sibeal. - Conta-me.
- Do naufrágio, da viagem, de tempos recentes, não me recordo de nada. O que me vai na mente é um chocalhar de velhos ossos, fiapos de um passado distante. - Hesito. Isto não é inteiramente verdade; e acabo de desafiar Sibeal a ser mais honesta. - Parti da minha terra porque a minha presença punha os outros em perigo - confesso. - Paul acompanhou-me para tomar conta de mim e morreu. Trago o infortúnio comigo, Sibeal. Trago má sorte. Não quero puxar-te para dentro deste círculo de sombras.
Sibeal estende as mãos e reúne as varas. O ruído acorda Deiz, que salta do meu joelho para o chão. Sibeal começa a arrumar as varas.
- Nunca mais quero ouvir-te a dizer isso, que trazes má sorte. - O tom é severo. - Não acredito que seja verdade para nenhum homem.
- Isso foi o que Paul me disse. - Vejo-o ao meu lado no convés de uma nave, um barco mercantil, com uma tripulação de gauleses, não de nórdicos. É um disparate, Felix. São apenas as circunstâncias, nada mais. É verdade que tens tendência para falar alto quando outro homem julgaria prudente manter a boca fechada, não nego isso. Mas não significa que tragas contigo um manto de perdição.
- Então, Paul era um homem sábio, para além de ser um homem bom.
- E eu matei-o.
Ouço-a inspirar.
- O mar matou-o - replica.
- Fui lento, desajeitado. Não consegui desamarrar... - Fecho a boca para não deixar sair as palavras. A voz dele, o seu rosto, a corda amarrada aos tornozelos, os nós... a onda...
Com calma, Sibeal continua a guardar as varas no saco.
- Aconteceu tudo tão depressa... - diz-me, num murmúrio. - Eu estava a olhar para o mar, da falésia, lá fora. Era o meu primeiro dia em Inis Eala. Deve ter sido o caos a bordo. Imagino que as pessoas estivessem presas quando tudo ruiu. E as ondas eram... eram de um tamanho invulgar.
Salva-te, Felix. O mar engole-me outra vez. Fecho os olhos, perdido na escuridão.
Mais tarde, já Sibeal se foi deitar, continuo acordado a contemplar as sombras movediças, projectadas pelas brasas da lareira. A última candeia foi apagada, a última vela derreteu. Respiro. Quanto tempo levará o meu corpo a ser inteiro outra vez? Quantos dias, quantas mudanças de maré, até me sentir com forças para desempenhar esta tarefa, esta tarefa incógnita que as runas me ditaram?
Deiz encosta-se a mim, suspirando no seu sono. Confia em mim. É uma pequena bênção; os cães perdoam muita coisa. Quem me dera poder rezar. Quem me dera poder acreditar numa divindade benigna, num bom pai que zela pela nossa segurança e sara as nossas feridas. Quem me dera poder acreditar que o meu irmão foi para um sítio melhor. Mas perdi a fé nesse deus há muito tempo. Perdi a minha confiança nele quando vi homens reclamarem poder para si próprios em seu nome. Existem outros deuses; outros rumos. Com o tempo, talvez os meus pés me conduzam a um caminho verdadeiro. Talvez erre, sem destino, até morrer. Talvez morra amanhã, ou no dia seguinte, ou no outro dia ainda, na ponta da espada de Knut, tudo por causa de uma verdade de que não consigo recordar-me.
Capítulo 7
SIBEAL
No dia das provas, levantei-me cedo, como de costume, e fui dar um passeio com Fang. Muirrin, que socorrera centenas de guerreiros feridos durante os anos passados na ilha, ficaria na enfermaria com Ardal enquanto durassem os combates, pronta para ajudar quem quer que precisasse dela. A sua presença ali tinha, por isso, um duplo propósito: Evan ainda achava que Ardal estava muito fraco para ficar sozinho.
Um grande interesse fora despertado pelo desafio de Knut a Cathal, interesse esse que cresceu quando se soube que Gull andava a treinar o autor do repto. Isto significava que tanto Gull como Evan, para além de toda a população masculina de Inis Eala, assistiriam nessa manhã ao confronto entre os dois homens. Também significava que haveria uma boa assistência nos primeiros combates, nos quais os homens de Connacht faziam uma demonstração do seu talento. Perguntei-me se não conseguiria escapar a esses e assistir apenas ao confronto de Cathal. Provavelmente, não; Clodagh já devia estar nervosa e precisaria do meu apoio.
Fang comportara-se de maneira estranha toda a manhã. Ia muito bem a correr de um lado para o outro e, de súbito, estacava, tensa, com as orelhas espetadas. Uma ou duas vezes, este súbito alerta fora acompanhado por um som: não o típico rugido prolongado, mas um ganido subtil. Quando me inclinei para ver se tinha um espinho na pata, tentou morder-me. Segui caminho e, pouco depois, ela pôs-se a correr ao meu lado, como se nada de invulgar se passasse.
- Que história é a tua, cadelinha? - perguntei. - Mais uma que não pode ser contada?
Fang ignorou-me, mas, durante o caminho de regresso, tornou a fazê-lo três vezes: a súbita paragem, a pose imóvel, vigilante, como quem descobre um rasto que não pode ignorar. Mas, assim que as casas baixas da povoação apareceram no horizonte, era como se tivesse esquecido o sucedido, correndo à minha frente na direcção da cozinha, onde Biddy já lhe teria preparado uma saborosa tigela de restos.
Apesar de ser cedo, o salão estava quase cheio. Os homens faziam apostas, discutiam estratégias e técnicas, debatiam os resultados prováveis de cada combate. As mulheres davam a sua opinião e trocavam gracejos a respeito da perícia dos seus maridos, irmãos ou namorados. Knut estava sentado ao lado de Kalev, na mesa do fundo, absorvido numa conversa. Se tivera dúvidas acerca do seu precipitado desafio, não mostrava sinais de inquietude. Não vi Svala.
Havia uma pequena ilha de silêncio na mesa onde a minha família se sentara. Cathal parecia ter terminado o seu pequeno-almoço; Clodagh mal tocara no dela. Ele estava absorto. Ela, pálida. Gareth e Johnny falavam em sussurro, concentrados apenas um no outro. Sam e Brenna comiam as suas papas de aveia com a determinação de quem tem um dia inteiro de trabalho pela frente.
Sentei-me ao lado de Gull e de Evan. Biddy serviu-me uma concha de papas de aveia. Quando a tigela fumegante apareceu à minha frente, percebi que não tinha apetite. Na minha mente, um homem caía, caía de um ponto muito alto... Uma onda erguia-se, levando-o dos rochedos, envolvendo-o no seu amplexo, virando-o ao contrário e rodando-o... Mandíbulas arrebataram-no, lançando-o para cima; um banho de sangue explodiu no ar...
- O que se passa, Sibeal? - O murmúrio de Evan quebrou a visão. Regressei à mesa, sentindo no braço a mão tranquilizadora do meu cunhado.
Respira. Respira fundo.
- Nada - respondi, enquanto o meu coração abrandava. - Caindo, caindo no fundo... Mais depressa, ainda mais depressa... - Estou um pouco cansada, é só isso.
- É melhor tomares o teu pequeno-almoço - aconselhou Gull, encetando o seu. - Não admira que estejas cansada. Ficaste na conversa até tarde, hein?
Senti um calor indesejado no rosto. Que parte da conversa da noite anterior teria Gull ouvido? Eu tinha a certeza de que ele estava a dormir quando verifiquei.
- Era tarde, sim. - Peguei na colher.
- Na conversa até tarde? - Cathal voltara desse lugar para onde os seus pensamentos o tinham levado. - Não foi com Gull, imagino. Ouvi dizer que o vosso homem está a recuperar a memória.
- Um pouco. - Obriguei-me a engolir uma colher cheia de papa.
- É uma manta de retalhos.
- Então, quem é ele? - perguntou. - Um guerreiro, um sacerdote, um artesão, um erudito?
- Não é um guerreiro. E creio que não é um sacerdote, embora me tenha, de facto, ocorrido essa possibilidade. Parece gostar de um bom debate.
Clodagh lançou-me um olhar do outro lado da mesa.
- Não admira que tenhas ficado a conversar até tarde, Sibeal. Ele é mesmo o teu tipo.
Fiz-lhe uma careta de irmã.
- Ouvi dizer que ele fala muito bem irlandês quando está sozinho contigo e com Gull - comentou Johnny, que fora desviado da sua conversa com Gareth. - Dir-se-ia que já passou algum tempo nestas terras. É possível que o irmão também.
- E onde está esse irmão? - perguntou Gareth.
- Afogou-se - respondi. - Penso que o irmão de Ardal era um dos homens que enterrámos após o naufrágio. Um dos mortos parecia-se com ele. Ardal recorda-se de uma onda que veio e levou o irmão. E qualquer coisa relacionada com nós, ou tentar desatar nós... - Baixei a voz ao dar-me conta de que os meus companheiros estavam a olhar para algo atrás de mim. Ao virar a cabeça, vi Kalev à espera que eu terminasse. Ao lado dele, estava Knut.
- Não queria interromper-te, Sibeal - disse Kalev. - Quando terminares, gostávamos de falar com Gull acerca das actividades desta manhã.
Os olhos azul-claros de Knut tinham-se fixado em mim.
- O homem lembra-se? - O seu olhar parecia uma súbita lâmina, provocando-me um sobressalto de susto. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, acrescentou: - Ele está melhor. Estar bom, sim?
- Está melhor do que estava, é certo - respondi, com uma calma forçada. Era evidente que mais ninguém notara nada de invulgar. Teria eu imaginado aquele momento? - Mas ainda está muito doente.
- Dizes irmão?
Knut compreendia melhor o irlandês do que eu pensava.
- É provável que o irmão fosse no barco com ele, sim. Era um dos que enterrámos. Um dos homens cujos nomes tu não sabias.
Kalev traduziu isto para Knut e apresentou a resposta do nórdico:
- De que se lembra o desconhecido? Já contou a sua história?
- Não nos disse grande coisa. Aquilo de que se recorda são sobretudo memórias antigas, de quando ele e Paul, o irmão, ainda eram crianças. Suponho que, com o tempo, acabará por recordar, aos poucos, em fragmentos. Ainda está muito debilitado. Gull e eu não queremos pressioná-lo muito.
Knut tornou a falar.
- Knut diz que, se a história vier à superfície, talvez Ardal a conte a ti, Sibeal. - Um rubor familiar subiu às faces de Kalev enquanto falava. - Ele ouviu dizer que vocês os dois eram muito próximos.
Maldito Knut! Como se atrevia a fazer uma tal insinuação à frente da minha família? Abri a boca para responder, mas tornei a fechá-la. A melhor resposta era a dignidade do silêncio.
Gull levantou-se.
- Conversamos lá fora, rapazes. - Olhou para o outro lado da mesa, para Cathal. - Vai ser um bom combate.
- Que vença o melhor - replicou este, num tom ligeiro.
Ainda havia tempo a preencher até ao início dos combates. Biddy, sensível ao alheamento de Clodagh, mandou-nos às duas ir buscar legumes ao celeiro. Quando regressámos, pôs-nos a cortá-los, enquanto ela depenava e estripava as galinhas. A minha faca movia-se com firmeza: círculos de cenoura vermelhos e dourados, como sóis em miniatura; cremosas fatias de nabo; pungentes e translúcidas rodelas de cebola. Do lado de Biddy na bancada, uma nuvem de penas enchia o ar, como uma estranha neve de Verão.
- Vens assistir ao combate, Biddy? - perguntou Clodagh.
- Darei lá um salto para ver como se sai o nórdico contra Cathal. Se o meu homem tiver feito milagres, não quero ter de dizer-lhe que me escaparam.
A faca parou na minha mão. Um homem a cair, a cair... Sangue nas pedras. Um grito bruscamente interrompido. A cabeça dele... Oh, deuses, a cabeça dele, no ponto em que tinha batido... Sentei-me de repente, com as mãos na testa, balbuciando algo a respeito de uma tontura.
Clodagh trouxe-me uma taça de hidromel, uma mistura capitosa para aquela hora da manhã. Enchi a boca e engoli. A minha irmã sentara-se ao meu lado, pousando a mão no meu ombro.
- Que viste tu, Sibeal? - Da última vez que assistíramos a um combate de Cathal, ela tinha ficado nervosa. À medida que a hora do parto se aproximava, pensei, mais doloroso devia ser ver o marido em perigo.
- Nada de preocupante - respondi. - Um rasgo de Visão, apenas isso.
Quem era aquele homem em queda e por que razão o vira eu?
Biddy pendurara as galinhas em cordões, enquanto as arranjava. Havia um balde por debaixo de cada uma, para recolher as vísceras. Eu não conseguia olhar para as aves sem ver, de novo, aquela imagem: a cabeça de um homem esmagada na pedra, o conteúdo espalhado, servindo de banquete a um bando de gaivotas estridentes.
- Com licença - murmurei, e saí à pressa para o jardim da cozinha. Ali, vomitei a um canto o meu escasso pequeno-almoço. De súbito, senti-me gelada e trémula. Trago sombras. Trago má sorte. Eu tinha proibido Ardal de dizer estas coisas, de pensá-las até. Mas sentia esse arrepio. Sentia a sombra. Se era verdade o que ele dizia e trouxera, de facto, as trevas para a ilha, ou se uma outra força se insinuara entre nós, eu sentia o seu domínio e estava com medo.
Esperei até recuperar a compostura para voltar a entrar.
- Sentes-te melhor? - Clodagh perscrutou-me.
- Estou bem. Não foi nada.
- Talvez pudesses ir colher-me um bom ramo de salsa, Sibeal - disse Biddy, limpando a testa com as costas da mão.
Clodagh soergueu-se para vir comigo, mas fiz-lhe sinal para voltar a sentar-se.
- Eu vou - disse-lhe. - Tu ficas aqui à conversa com Biddy.
- Está bem, Sibeal. - O facto de ela ter concordado sem discutir mostrou-me como estava cansada. Mas Clodagh não tinha mudado assim tanto. Enquanto me afastava, de faca na mão, ouvia-a dizer: - Vou depenar-te as outras galinhas, está bem?
O dia começava a aquecer. Subi sem pressas o caminho do jardim murado, desde a zona ao pé da porta da cozinha, com os seus canteiros de legumes cobertos de palha e as suas ordenadas filas de esteios, até à zona mais próxima da enfermaria, onde tanto as ervas aromáticas como medicinais cresciam em abundância. Nesta ponta, havia bancos de pedra no meio das plantas. Seria um bom lugar para Ardal se sentar ao ar livre, a apanhar sol, quando estivesse mais forte.
As ervas pareciam muito bem cuidadas, em parte graças ao tempo que eu passara a podá-las, a esteá-las e, de um modo geral, a tratar de tudo. Era uma forma de meditação que muito me agradava. Com as mãos enterradas na terra e o aroma das plantas enchendo o ar à minha volta, sentia um espírito poderoso em acção, uma entidade que não tinha nome, mas que fazia parte de mim e, ao mesmo tempo, daqueles arbustos de lavanda e absinto, das ovelhas que pastavam no cume dos penhascos, das maçãs no pequeno pomar e dos seixos nas enseadas de Inis Eala. Mesmo agora, ao baixar-me para colher algumas folhas verdes de uma planta e um rebento ou dois de outra, murmurei uma bênção e a minha gratidão, sentindo o coração sossegar. Por esta abundância, agradeço-vos. Por esta dádiva, estou-vos grata.
Não demorei muito a recolher o suficiente para responder às necessidades de Biddy. Ainda havia tempo para passar pela enfermaria e desejar os bons-dias a Ardal antes de voltar. Hesitei, recordando a noite anterior. Ele perturbara-me. Talvez eu lhe tivesse feito o mesmo. De qualquer modo, era improvável que se criasse um momento de constrangimento na presença de Muirrin.
A entrada das traseiras da enfermaria, parei. Ouviam-se vozes do outro lado da porta fechada, e o tom em que falavam era inquietante. Seguiu-se um silêncio, que me pareceu ainda mais aflitivo. Empurrei a porta.
Ardal estava deitado na cama. Muito perto, ao seu lado, estava Knut, olhando-o de cima. Não havia nada de incorrecto naquela cena e, no entanto, quando me aproximei, fui invadida por um turbilhão de emoções: mal-estar, ressentimento, uma coragem furiosa. E terror puro. Não havia como saber a qual dos dois homens pertenciam que sentimentos. A expressão de Knut não podia ser mais cortês; o rosto de Ardal eu não conseguia ver.
- Melhor - disse Knut, olhando de relance na minha direcção e apontando para o outro homem. - Óptimo. Eu ir agora.
Dei por mim incapaz de falar. O tumulto abafava tudo o resto.
- Ires ver? - perguntou Knut. - Boa luta. Ires ver?
Ardal cuspiu algumas palavras em nórdico. Eu nunca lhe ouvira aquele tom. Knut fitou-me por momentos e, depois, lançou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. A porta da frente abriu-se e apareceu Muirrin com uma tigela coberta com um pano.
- Knut - exclamou, surpreendida. - O que estás aqui a fazer?
- Ver ele - respondeu, esticando o queixo na direcção da cama. - Eu ir agora. Lutar em breve. - Dirigindo-me um sorriso vago, saiu.
Recuperei a fala.
- Pensei que Evan tinha dito que Ardal estava demasiado doente para ficar sozinho. - Ainda sentia a tensão daquele encontro, sem fazer a mais pequena ideia do que os dois homens tinham dito um ao outro.
Muirrin pousou a tigela na bancada.
- Só me ausentei por uns instantes, Sibeal. Tenho um homem a chegar daqui a pouco com um tornozelo dolorosamente inchado. Não podia fazer esta cataplasma sem uma viagem ao armazém. E Ardal está bem, como podes ver.
Era impossível descrever o que eu sentira ao entrar naquela sala. Uma coisa era ter o dom da Visão, estar aberta às vozes dos deuses, em sintonia com visões, presságios e premonições. Outra coisa era ser um receptáculo onde jorrava, sem ordem aparente, uma mistura volátil do amor e ódio, da cobardia e coragem, da inveja, ganância e desejo dos outros. Uma coisa eu tinha aprendido: Knut e Ardal juntos era sinónimo de perigo.
- Sibeal. - O sussurro de Ardal chamou-me à sua cabeceira. Sentei-me no banco. - Não te preocupes comigo. Não é preciso. - Mas era. Seria cega se não visse como ele estava pálido. Pegou-me na mão, apertando-a.
- Se vais ficar aqui, Sibeal - disse a minha irmã -, podes ir buscar-me ligaduras. Prevejo mais alguns golpes e nódoas negras ao longo desta manhã. Os homens de Connacht até podem estar a fazer progressos, mas não têm a experiência dos nossos homens.
- Não posso ficar - repliquei. - Quem me dera poder, mas prometi fazer companhia a Clodagh durante a manhã. Não há mais ninguém que possa vir ajudar-te?
- Mais tarde, sim. Esta manhã, todas as mulheres da ilha vão assistir aos combates. Não te preocupes, eu cá me arranjo. - Muirrin atravessou a sala para espevitar o fogo.
- Sibeal, tem cuidado - segredou-me Ardal.
- O que queres dizer com isso? - perguntei, segredando também e inclinando-me para mais perto. - Cuidado com o quê? - Não era eu quem ia empunhar uma espada nessa manhã.
- Não vás passear sozinha. - A aflição espelhara-se nos olhos dele. - Por favor.
Outra vez? Que diabo lhe dissera Knut?
- Ardal, eu vou passear sozinha todos os dias. Não só tenho bom senso, como caminho sob a protecção dos deuses.
- Por favor, Sibeal. Por favor, faz o que te peço.
- Julguei que tinhas dito que precisavam de ti noutro lugar. - Muirrin voltara para junto de nós, a limpar as mãos a um pano.
Ardal largou a minha mão, e eu levantei-me.
- Não te preocupes - disse-lhe. - Eu sei tomar conta de mim. - No fundo dos meus pensamentos, a visão persistia: um homem a lançar-se do trilho que bordejava a falésia e a cair num abismo de esquecimento. - Voltarei assim que os combates terminarem.
- Sentes-te bem, Sibeal? - Muirrin tinha percebido que eu não estava bem e aproximava-se, agora, pondo-me a mão na testa e observando-me de olhos semicerrados. - Não me digas que também tens tido pesadelos.
- Queres dizer que tu também os tens? Que tipo de pesadelos?
Ela fez uma careta.
- Pesadelos de curandeiro. Podes imaginar do que se trata. Não costumo sonhar muito. Evan e eu estamos tão cansados que dormimos como pedras e, se sonhamos, não nos lembramos do sonho. Estas últimas noites têm sido difíceis. É melhor ires, Sibeal. Tens razão, o melhor lugar para ti hoje é ao pé de Clodagh.
Com uma grande força de vontade e alguns preceitos bem aprendidos, consegui mostrar a Clodagh uma cara sorridente. Quando chegou a altura dos combates, sentei-me ao seu lado, com Alba do outro lado. Até ao fim do torneio, não pensaria em mais nada a não ser na excelente arte de combate em exposição. Não cismaria naquela visão de morte violenta. Não pensaria em má sorte. Esqueceria o veneno que impregnara o ar quando tinha entrado na enfermaria, momentos antes, deixando entrever uma história que nem Knut nem Ardal nos tinham ainda contado.
Os homens de Connacht revelavam bom discernimento nos seus desafios. Quase todos os combates eram equilibrados e, em muitos casos, Johnny gritou "Alto!" quando os dois adversários ainda estavam de pé e a combater, não com um deles estendido no chão ou despojado à força da sua arma. Embora cada combate fosse travado com feroz intensidade, tudo era conduzido num espírito de boa vontade. A assistência gritava palavras de coragem sem tomar partido - isto é, o mais alto que podia, quer fosse um homem de Connacht ou um dos seus - e felicitava-os, no fim, da mesma maneira. O lugar estava apinhado de gente e havia uma multidão de pé, atrás dos bancos.
Ao todo, eram dez combates, cada um uma exibição de rara perícia e, em alguns casos, de algo próximo da graça. Tornei a reparar na leveza dos pés de Jouko e na resistência de Niall, forte como um touro, a golpes que teriam derrubado qualquer outro combatente. Admirei a velocidade e o equilíbrio do homem de Connacht que me interpelara, depois do jantar, na noite em que eu contara a minha história. Como era mesmo o seu nome? Brendan? E fiquei a saber que Kalev era tão hábil no combate desarmado como era no manejo da espada. Tanto Brendan como Kalev fizeram questão de olhar-me nos olhos antes e depois dos seus combates, como se ávidos da minha atenção. Se a minha vida tivesse tomado um outro rumo e eu quisesse um namorado, disse-lhes, em silêncio, não escolheria um guerreiro, por muito impressionantes que fossem as suas habilidades em combate. Ocorreu-me que amar um homem cujo modo de vida implicava um risco constante devia ser penoso para o coração de uma mulher.
- Só falta um para o confronto entre Cathal e Knut - disse Clodagh, olhando de relance para a multidão. O grupo de Gull movia-se agora para dar espaço a Biddy, que acabara de entrar. Mais pessoas tentavam enfiar-se no espaço estreito atrás dos bancos. Dir-se-ia que todos os homens, mulheres e crianças da ilha se encontravam ali reunidos. Com uma notável excepção.
- Não vejo Svala - disse Flidais, sentada ao lado de Alba. - Sei que é muito reservada, mas não acredito que não venha ver o marido lutar; não é propriamente um combate de vão de escada.
Alba esticou o pescoço.
- É possível que Knut não lhe tenha dito. Ou talvez ela ache que o desafio foi um disparate. Não seria a única.
Clodagh e eu trocámos um olhar.
- Talvez não goste de lutas - disse eu.
- Uma mulher do Norte? - Alba arqueou as sobrancelhas. - Deve estar habituada a ver este tipo de coisas desde que era um bebé de colo.
Lá em baixo, na zona de combate, um homem de Inis Eala preparava-se para o próximo confronto, verificando a faca, apertando o cinto, olhando de relance para uma rapariga no meio da multidão, que lhe respondia com um aceno esfusiante. O seu rosto fora decorado com um padrão semelhante a uma máscara de texugo. Do seu adversário, não havia sinais. Passado algum tempo, Rat levantou-se e gritou:
- Rodan de Carna! Andas a testar o teu charme nas senhoras, é isso?
- Ruidosas e apreciativas gargalhadas saudaram este gracejo, embora a postura de Rat não fosse muito amigável; parecia muito contrariado. O atraso revelava falta de disciplina, qualidade tão essencial num guerreiro como era num druida. - Traz para aqui a tua desgraçada pessoa, antes de eu contar até vinte, ou ficas desqualificado!
A multidão sossegou. As pessoas olhavam em redor, à espera de ver um envergonhado Rodan sair a correr do canto onde se enfiara. Esperámos. Se Rat começara, de facto, a contar até vinte, fazia-o em voz baixa e muito devagar.
- Este rapaz, Rodan, está metido em sarilhos - observou Alba. - Mais tarde ou mais cedo, teria de acontecer. Suanach disse-me que ele não descansou enquanto não se enfiou na cama dela; não queria ouvir um "não". Tentou a mesma coisa com Flidais, até ela lhe dizer que era mulher de Rat. Se há alguém capaz de fazer com que sejam todos recambiados é ele. Aposto os meus dois dinheiros nisso.
- Quinze! Dezasseis! - berrava Rat. - Não desafies a minha paciência, homem!
Um homem a cair; a cair num abismo... Um boneco de trapos aos trambolhões pelo ar cabelo ruivo ondeante, pernas e braços sacudidos de um lado para o outro...
- Alba - perguntei, com uma mão gelada a cingir-me o peito -, Rodan é ruivo?
- E isso mesmo, Sibeal. É ele o homem de quem eu julgava gostar. Arghn! Esse só quer levantar a saia das raparigas e nem sequer é esquisito a escolhê-las.
Pus-me de pé, sentindo a pele húmida de terror.
- Clodagh, desculpa, tenho de ir - anunciei, entredentes, abrindo caminho pela turba à cotovelada, até ao portão, enquanto Rat, atrás de mim, chamava pelo nome de Rodan uma última vez. - Desculpem, dêem-me licença, vou vomitar...
Saí para o exterior. E agora? Na minha mente, a visão repetia-se, um homem vacilando no cume da falésia, a queda, uma queda muito, muito longa, o embate - deuses, o cabelo ruivo tingido de violento carmesim -, a celebração ruidosa das gaivotas. Corre, Sibeal! Corre, corre, vais conseguir alcançá-lo a tempo! Se não tinha o poder de evitá-lo, por que razão me era revelado?
Corri, deixando-me guiar pelo instinto, como acontecera quando encontrara Ardal estendido na enseada onde o mar o depositara. Os meus pés seguiam sozinhos o seu caminho; eu não estava consciente de escolher a esquerda ou a direita, de ir para cima ou para baixo. Corri até a dor me esmagar o peito e os joelhos me falharem. Para longe da povoação, ao longo do trilho da falésia, na direcção da ponta da ilha onde se situava a gruta de Finbar, passando uma pequena enseada, mais outra, uma terceira... Quase lá... Parte de mim, a parte que ainda era capaz de um raciocínio lógico, dizia que eu devia ter trazido alguém comigo, um dos homens; ou, então, ter dito a Clodagh para onde ia e porquê. Devia ter avisado Johnny. Devia ter trazido uma corda. Não vás passear sozinha...
Antes de encontrar o lugar, ouvi as gaivotas e soube que tinha chegado tarde de mais. Mais à frente, via-se o caminho que virava na ponta noroeste da ilha, onde ficava a entrada da gruta, escondida entre os rochedos. À minha esquerda, a encosta erguia-se num declive íngreme apenas adequado a cabras montesas. À direita, a dois passos do caminho, a terra dava lugar ao mar num abismo vertiginoso. Lá em baixo, um alvoroço de guinchos e grasnidos. Parei, sem fôlego, com os olhos cheios de lágrimas e o nariz a pingar. A borda da falésia era irregular, fendida em muitas ravinas estreitas; tufos de relva com folha pontiaguda cresciam aqui e ali.
Aproximei-me um passo. Dois passos. Espreitei, o meu coração como um tambor tocando a canção do pânico. Não via nada a não ser a superfície negra do mar e o claro rendilhado da rebentação que cercava as rochas. Recuei, deitei-me de barriga e rastejei para a frente até a minha cabeça ficar sobre o precipício. Uma mulher caindo, caindo... Cabelos negros ondulando para cima, boca aberta num grito mudo... Pára, Sibeal. Faz o que tem de ser feito. Olhei para baixo e vi-a, a matéria da minha visão, completa em todos os seus pormenores. Rodan aterrara com a forma da runa Nyd: desafio na presença da morte certa. Recuei um centímetro, pus-me de joelhos e vomitei o pouco fluido que ainda tinha no estômago.
Não havia tempo para ceder à fraqueza. Eu tinha de marcar o lugar para os outros poderem localizá-lo depressa. Johnny ia querer recuperar o corpo. A operação teria de ser organizada com rapidez, ou o mar roubaria àquele homem a possibilidade de ser enterrado com um ritual apropriado. Não via nenhum trilho para baixo, mas talvez os homens descobrissem um.
Percorri o caminho à procura de alguma coisa fora do sítio, perguntando-me o que poderia ter atraído um homem de Connacht até à extremidade da ilha, no próprio dia em que devia apresentar-se e mostrar o seu talento.
- Quem eras tu? - cogitei. - Um cristão? Um seguidor da velha fé? Talvez fosses um homem ímpio.
Tudo indicava que seria eu a dizer as preces de Rodan antes do seu enterro. A única coisa que sabia a seu respeito era que ele tinha dificuldade em aceitar um "não".
Via, agora, o lugar onde ele tinha estado. Num ponto, a terra à beira do caminho fora mexida e, perto do precipício, os seus pés tinham deixado marcas profundas. Vi-o perder o equilíbrio, esbracejar, desesperado por se agarrar a qualquer coisa. Os pés escorregam. Os olhos arregalam-se. A boca estica-se num último grito prolongado. Nãoooooo...
- Que os deuses sejam piedosos com este homem - murmurei.
- Manannán, peço-vos que não levais os seus restos mortais, que permitais que ele seja enterrado aqui, sob o olhar dos seus amigos.
A notícia que Johnny teria de enviar a Connacht talvez fosse um pouco mais suave se ele pudesse dizer ao chefe de Rodan que o tínhamos enterrado com dignidade.
- Mas, se as tuas ondas tiverem de levá-lo, rezo para que o embalem com delicadeza, como se embala uma criança recém-nascida, adormecida no seu berço. Morrigan, Senhora Negra, sabei que Rodan era um guerreiro e que estava longe de casa. Levai-o, são e salvo, a atravessar o último portal. Que na sua nova viagem ele encontre a paz.
Eu trazia um pedaço de linho na bolsa. Coloquei-o no caminho em frente ao lugar onde Rodan tinha caído. Prendi-o com uma pedra. Respirei fundo, para me acalmar, e regressei à povoação. Corri; não tão depressa como antes, mas o mais depressa que pude. Não tinha ido longe quando vi dois homens altos a vir na minha direcção: Gareth e Kalev corriam ao meu encontro num passo determinado.
- Por todos os deuses, Sibeal - observou Gareth quando nos juntámos -, corres como uma gazela. O que foi, o que aconteceu?
Sentei-me, de súbito, nas rochas.
- Encontrá-lo-ão mesmo ali à frente - respondi, sem saber se o facto de o mundo estar a rodar significava que eu ia desmaiar e muito grata por isso não ter acontecido à beira da falésia. - Rodan. Está morto. No sopé da falésia. Já assinalei o lugar. - Pousei a cabeça nas mãos. - Quanto a correr depressa, não fui rápida o suficiente.
Kalev foi à frente, para ver, e Gareth ficou à espera ao meu lado, acocorado e com o braço sobre os meus ombros. Depois, Kalev regressou a correr à povoação, para dar a notícia, e Gareth e eu seguimo-lo mais devagar. Ele explicou-me que o corpo de Rodan podia ser recuperado com a ajuda de cordas; teriam de ser rápidos e actuar antes de a maré começar a subir, mas havia tempo.
Foi só depois de termos chegado à povoação e de Gareth me entregar aos cuidados de Clodagh que me lembrei do combate entre Knut e Cathal.
- O que aconteceu? - perguntei à minha irmã, que me levava na direcção da cozinha. - Como se portou Knut?
- Extraordinariamente bem - respondeu Clodagh. - Perdeu, é claro. No fim. Mas todos ficaram impressionados. É um guerreiro de grande perícia. Os homens deram aplausos calorosos a Cathal quando ele conseguiu finalmente arrancar-lhe a espada. Mas não tão calorosos como os aplausos que Knut recebeu. Andam todos a sugerir a Johnny que lhe ofereça um lugar aqui, se ele quiser.
Havia um trânsito constante de pessoas a entrar e a sair do salão, e desconfiei que o lugar estivesse apinhado.
- Clodagh, eu preferia ir para um lugar sossegado, sozinha - disse-lhe. - Posso ir para a enfermaria?
- Mais tarde - respondeu ela. - Eles estão ocupados, na enfermaria. Um dos homens de Connacht fez um golpe fundo, parece que uma faca deslizou, e os seus dois companheiros estão determinados a não sair de ao pé dele até se certificarem de que Muirrin lhe dará todos os cuidados de que precisa. Um outro homem está a receber tratamento ao tornozelo. - Clodagh olhou para mim com atenção. - Vou levar-te para um lugar sossegado.
- Mas...
- Não discutas, Sibeal. Para ser franca, estás com um péssimo aspecto. Tens a pele esverdeada e estás a tremer. Repara. - Pegou na minha mão e levantou-a à minha frente. Eu não conseguia mantê-la quieta. - Vês? Não podes negar isto.
Instalada num recanto acolhedor perto da lareira, com o xaile de Clodagh sobre os ombros e uma taça de cerveja quente e aromática nas mãos, deixei-me ficar ali em silêncio, enquanto as pessoas entravam e saíam. Era costume na ilha oferecer-se uma refeição substancial a seguir a uma manhã de torneio, mas a morte de Rodan perturbara a rotina. Estava muita gente no salão, a maior parte a comer, mas as conversas eram sussurradas e faltavam muitos rostos familiares. Vi Knut no meio de um grupo de guerreiros de Inis Eala. Conversavam em voz baixa, bebericando as suas taças de cerveja, e faziam gestos que sugeriam que talvez estivessem a discutir o combate dessa manhã. O Knut que eu via agora não parecia o mesmo homem que se inclinara sobre Ardal no princípio do dia. Na altura, eu sentira uma mistura de fúria e terror a brotar dos dois homens. Ali, a trocar gracejos fáceis com os companheiros, ele parecia estar em casa. Parecia pertencer.
- Por ora, Rai vai manter os outros homens de Connacht no recinto de treinos - explicou Clodagh. - Johnny está a falar com eles; e Gareth a organizar o grupo que vai recuperar o corpo. Isto é um desafio para Johnny. Não é o tipo de notícia que ele gostaria que chegasse à terra deles depois de uma estada na ilha.
A dada altura, o meu primo chamar-me-ia para eu contar o que tinha visto; para relacionar a visão que me levara ao cimo daquela falésia com a realidade que lá tinha encontrado. Não podia retirar-me para o meu quarto enquanto esse dever não fosse cumprido. Tinha de comer e beber. Tinha de recompor-me. Mas era difícil fazê-lo no meio das idas e vindas, do ruído de vozes e pratos a bater, do odor a especiarias e a lenha queimada. Por que razão me fora mostrado o homem em queda? Por que me chegara essa visão quando já era demasiado tarde? Seria? A minha mente deixara-se absorver por assuntos que só a mim diziam respeito, sobretudo, Ardal. Eu estava distraída. O aviso fora muito claro. A terrível verdade era que, se eu tivesse contado a alguém da primeira vez que a visão me tocara, talvez Rodan ainda estivesse vivo.
Ardal. Eu queria Ardal. Queria falar com ele, só os dois, sozinhos. Queria libertar-me da maré fervente de culpa e desnorte que subia dentro de mim. Ardal ouvir-me-ia sem me julgar. Podia contar-lhe qualquer coisa. Ele segurar-me-ia na mão e far-me-ia sentir bem outra vez. Mas isto não fazia sentido nenhum. Era uma coisa sem pés nem cabeça e eu não queria pensar no que significava. Apertei a taça com mais força, perguntando-me quando parariam as minhas mãos de tremer. Uma druidesa. Quase druidesa. A desmoronar-se como uma criança derreada.
Não estava habituada a sentir-me assim, quase como se estivesse a afogar-me. Recorre a uma técnica simples, Sibeal, algo que domines tão bem que já o faças sem pensar. Um padrão de respiração, lento e regular. Era essa a chave da calma. A primeira coisa que todos os noviços aprendiam nos nemetons.
Não estava a funcionar. Sentia o coração desenfreado, a cabeça a andar à roda, o corpo sacudido por picos de tremor. Sentia-me à beira das lágrimas. Não ia funcionar. Em breve, teria de enfrentar Johnny. Comer. Beber. Recuperar a calma, ordenei a mim mesma. Debiquei o pão acabado de fazer que Biddy me trouxera. Beberiquei a minha cerveja. Quando já tinha conseguido impor alguma ordem aos meus rebeldes pensamentos, perguntei-me por que razão um homem jovem e saudável, com amigos, um ofício e, suponho eu, um bom futuro à sua frente, se afastaria para longe, perderia o equilíbrio e cairia de um penhasco ao encontro da morte.
Algum tempo depois, alguém veio buscar-me e houve um encontro constrangedor, em que eu e Clodagh nos sentámos a uma mesa com Johnny, o chefe dos homens de Connacht e um ou dois indivíduos a assistir, e eu apresentei a minha versão dos acontecimentos. Senti-me, então, como se estivesse num outro lugar, de onde me observava a mim própria a falar com calma e rigor, sem esquecer qualquer pormenor. Na morte de Rodan, o como era evidente. Mas o porquê escapava-me completamente. Talvez os seus amigos pudessem lançar alguma luz sobre o assunto.
Aceitei conduzir o ritual fúnebre no dia seguinte. Rodan não era um homem de fé, mas o pai seguia os velhos costumes, e o chefe de clã de Connacht queria poder dizer à família que o filho deles fora enterrado ao som das orações apropriadas. Apresentei as minhas condolências pela perda, e os três homens de Connacht ali presentes agradeceram-me. Fora necessário explicar-lhes que eu era uma vidente, e que um fragmento de visão me conduzira ao homem caído. Não lhes contei que já tivera essa visão antes, várias vezes, e que não a mencionara a ninguém. Quando terminámos, Johnny acompanhou-me à porta e, antes de eu sair, sussurrou-me:
- Voltaremos a falar sobre isto, Sibeal.
- Hum - murmurei. Li-lhe no rosto que ele sabia que eu omitira algo e interroguei-me se ele próprio teria falado com absoluta franqueza na presença daqueles homens. - Mas não agora - acrescentou. - Pareces muito doente. É melhor ires deitar-te um pouco. - Os seus olhos cinzentos procuravam algo. - Não podes salvar toda a gente.
Felix
Anoitece de novo. Por fim, há silêncio.
Um homem morreu hoje, numa queda do cimo de um penhasco. A enfermaria estava apinhada de gente; ouvi esta notícia enquanto falavam entre si. Um dos visitantes. Um acidente. Vi os olhares que me lançaram, os homens que entravam e saíam com feridas que aguardavam curativo, e os amigos que os acompanhavam. Leio a mensagem nos seus olhos frios, nas bocas crispadas. Olhavam e, depois, viravam-me as costas. É ele.
É o homem aziago. Até os guerreiros de passagem na ilha me lançam olhares. Não sou bem-vindo aqui. Talvez nunca tenha sido. Que sou eu para esta comunidade senão um fardo e um problema? Devia partir. Assim que puder, irei, levando a má sorte comigo. Não importa a missão. Não importa a sombra que espreita mesmo à porta do meu entendimento, a escuridão que me espicaça, procurando ser compreendida. Posso passar aqui o Verão inteiro e, mesmo assim, não recordar. Posso ficar aqui para sempre, um espinho cravado neste lugar e na sua boa gente.
Gull vem tratar de mim, delicado como é hábito. Ajuda-me a lavar-me e a vestir-me. Segura no balde e, depois, observa as minhas águas com um olho fechado e outro aberto, aquiescendo com sabedoria.
- Gull - digo-lhe -, partirei em breve.
- Hum. - Coloca o balde à porta, pronto para ser despejado. - E para onde?
- Para longe. Para longe desta ilha.
- A intenção é essa, desde o início, é claro - replica ele, aproximando-se da enxerga, em cuja beira me sento, desajeitado, com os ombros caídos e as pernas a abanar. - Que vocês fossem todos para casa quando estivessem bem: tu, Knut e Svala. Mas tu ainda não estás bem, Ardal. Ainda precisas de algum tempo até estares preparado para viajar. Deves saber isso.
E sei. Se me sentisse bem, teria ferido Knut quando ele aqui veio esta manhã. Ter-lhe-ia feito mal. Ainda vejo os seus olhos, gelados de medo, quentes com uma fúria violenta. Escolheu o momento em que Muirrin saiu; devia andar à espreita. Num segundo, ali estava ele, na enfermaria, mesmo ao lado da minha cama. Nem sequer tive tempo de me sentar.
- Tu lembraste-te - disse ele. - Tu contaste.
- Não me lembro de nada.
- Estás a mentir. A rapariga, Sibeal. Tu falaste-lhe do teu irmão.
Senti uma tensão no corpo todo. Sibeal. Ouvir o nome dela nos lábios daquele homem encheu-me de horror.
- Vocês os dois são próximos, não são? - disse ele, fazendo um gesto rude com as mãos. - É o que dizem por aí. A rapariga não consegue estar longe de ti, muito embora se diga druidesa. Sabias que ela gosta de passear sozinha por aqueles trilhos na falésia? Uma coisinha leve como uma pena: basta uma rabanada de vento e aí vai ela.
- Como te atreves? - Fiz um esforço para me soerguer. Knut pousou a sua mão larga no meu ombro e empurrou-me para baixo. - Como te atreves a ameaçá-la?
- Ah! Vejo que toquei num ponto sensível. Pelos vistos, acertei: dás mais valor à vida dela do que à tua própria vida. Eu podia matar-te já, é claro: estás tão fraco como um recém-nascido. Mas isso chamaria muito as atenções.
- Se lhe tocares com um dedo que seja, eu...
- Tu o quê? Bates com o pé no chão? Choras? Poupa-me. Está ao teu alcance protegeres a rapariga. Basta fechares essa boca miserável.
Eu queria apertar-lhe o pescoço e tirar-lhe a vida com as minhas próprias mãos. Mas a única força que tinha eram as minhas palavras, e estas só lhe davam vontade de rir.
- Gull, tenho de partir deste lugar - digo, agora. - Trago uma ameaça comigo. Trago má sorte.
Gull está atarefado a reunir uma toalha, um pano e um balde, a pendurar uma peça de roupa num gancho, a lançar outra para o canto, a arranjar-me uma camisa limpa.
- Sempre acreditei que são as pessoas que fazem a sua sorte - responde, algum tempo depois. - Não podes trazer má sorte, a não ser que tenhas más intenções. Mas não sou um perito na matéria. Devias perguntar a Sibeal; ela é o druida.
- Onde está ela, Gull?
Sibeal não apareceu durante todo o dia. E, durante todo o dia, o meu medo por ela cresceu, como um peso gelado no ventre.
- Foi directamente para o seu pequeno quarto, descansar. Teve um dia difícil.
Dardos de alarme percorrem-me as veias.
- Difícil como?
- Foi ela quem encontrou o corpo daquele homem - responde Gull. - Isso transtornou-a.
Fico em silêncio. Esta parte da história eu não tinha ouvido.
- Imagino que ela própria te conte o que aconteceu, quando se sentir preparada. Ou talvez não; já teve de apresentar várias vezes a sua versão dos acontecimentos, para Johnny ter a certeza absoluta do que se passou.
- Há dúvidas?
De repente, Gull atarefa-se outra vez, põe-se a dobrar algo. Se calhar, já falou de mais.
- Gull?
- Hum?
- Se Sibeal acordar, se vier sentar-se à lareira esta noite, eu gostava de falar com ela a sós.
- Ah, sim? Sabes, creio que há duas razões para eu estar a passar aqui as minhas noites, e não na minha cama, onde tenho a minha mulher para me aquecer. Uma delas é para tomar conta de ti. A outra é para garantir um mínimo de decoro a Sibeal, uma vez que não está muito certo que ela durma aqui contigo no quarto ao lado. A minha presença torna a coisa quase aceitável. A família de Sibeal não aprovaria que eu vos deixasse sozinhos depois do anoitecer.
- É por pouco tempo - replico. - Só quero falar com ela, Gull, nada mais. Não tenho por ela nenhum desses sentimentos, do tipo que estás a sugerir...
Ele olha para mim, eu olho para ele.
- Tretas! - exclama.
- Creio que não conheço essa palavra. - Mas, a verdade é que não preciso de conhecê-la para perceber o que Gull quer dizer.
- Disparates. Talvez tu e ela gostem ambos de ideias e de debates. Talvez partilhem a mesma inclinação para o saber. Mas eu sou um homem, Ardal, tal como tu. Há muito mais do que isso a acontecer entre vocês os dois.
Consegui esboçar um sorriso. Ele surpreendeu-me. Serei assim tão transparente?
- Falas como um pai a um filho desobediente - replico. - Muito bem, corrijo o que disse antes. Os meus sentimentos por Sibeal são muitos e complexos. Primeiro que todos, virá sempre o respeito. Respeito-a como druidesa, como erudita e como mulher. Olha-me nos olhos quando digo isto, Gull, e diz-me se minto.
Gull sorri. Agora fui eu que o surpreendi.
- Nesse caso, deixamos a decisão para Sibeal - diz ele. - Talvez esteja demasiado cansada para querer mais do que uma malga de comida e uma boa noite de sono.
- Gull?
- Hum?
- Obrigado. Lamento que a tua mulher tenha de dormir sozinha.
- Ora - diz ele -, espero compensar isso mais tarde. Que tal tentarmos um passeio até à lareira? Se estás tão desejoso de sair desta ilha e ir para longe, é melhor continuarmos a trabalhar nessas pernas.
Gull já boceja quando Sibeal sai do seu pequeno quarto na ponta da enfermaria. Está pálida; sombras escuras, de cansaço, cercam-lhe os olhos deslumbrantes. Cobre-se melhor com o xaile que traz sobre os ombros. Se eu pudesse ser aquele xaile, protegê-la-ia com o calor dos meus braços e a coragem do meu coração. Mantê-la-ia a salvo de todos os perigos. Deuses, que entrave é esta fraqueza!
- Ficaram acordados - diz Sibeal, aproximando-se da lareira onde estamos os dois sentados. Parece trémula no seu andar, como se a qualquer momento pudesse desmaiar. - Desculpem-me, hoje perdi a noção das horas. Já deviam estar deitados, os dois. - Vira os olhos para mim com tanto receio e cuidado que me deixa sem palavras.
- Não tem importância - diz Gull, sem esforço. - Tenho estado a descrever os combates de hoje a Ardal, mas desconfio que o tema não podia interessar-lhe menos. - Levanta-se. - Senta-te aqui, Sibeal.
- Dizem por aí que Knut se saiu muitíssimo bem - comenta ela.
- Deves estar satisfeito.
Gull faz um sorriso rasgado.
- Deram-me gozo estes sete dias de trabalho, não posso negá-lo. Bran teria achado graça se tivesse assistido. Ele sempre me disse que o pacífico curandeiro era apenas uma fina pele a cobrir o homem que já fui. Não sei bem se concordo, para vos dizer a verdade. Adoro a técnica que um guerreiro pode pôr em prática numa boa luta, a velocidade e a força nela envolvidas, a estratégia calculada e o instinto que vem no calor da batalha. Mas já tive a minha dose de carnificina. Hoje em dia, coser os homens agrada-me mais do que dar cabo deles. Devo estar a ficar velho.
- Velho, não. Sábio - replica Sibeal.
- Descansaste bem, Sibeal? - pergunto, embora veja que a resposta é negativa.
Ela estremece.
- Diria que os sonhos que tive não eram bem-vindos, mas espero que haja alguma lição a retirar deles. Eram sombrios e confusos; levarei tempo a decifrar o seu significado. Já trouxeram o corpo de Rodan, Gull?
Gull aquiesce, agora mais sombrio.
- Johnny queria que eu te perguntasse se tens a certeza que podes conduzir o ritual amanhã.
- Claro que tenho.
- Por ora - diz Gull -, deram-me instruções para te obrigar a comer e a beber. Biddy pôs algo de parte para ti.
- Não tenho fome nenhuma.
- São instruções muito rígidas, das tuas irmãs. Não precisas de descer até à cozinha. Eu posso ir buscar o teu jantar. - Gull lança-me um olhar de relance. - Ardal quer falar contigo a sós. Se concordares, aproveitarei para tomar uma bebida e trocar dois dedos de conversa com Biddy antes de voltar. Se não estiveres de acordo, enfio a cabeça na porta e assobio para alguém subir.
- Obrigada, Gull. Ficamos bem sozinhos. - Sibeal olha para as chamas. Há um brilho suspeito nos seus olhos. Estará a travar as lágrimas? Terá sonhado com o quê?
Ficamos em silêncio algum tempo depois de Gull sair. O fogo tremeluz; as sombras movem-se; o vento nocturno abana as portadas.
- Querias falar sobre o quê? - pergunta-me, com uma voz contida e fechada.
Eu já esperava que ela tentasse obter explicações. Por que razão lhe pedi para não sair sozinha? De onde me veio a ideia de lhe dizer semelhante coisa? Não tenho uma resposta pronta; não posso contar-lhe o que Knut me disse. Ela iria directamente falar com Johnny e Johnny confrontaria Knut. De uma maneira ou de outra, seguir-se-ia a catástrofe. Knut fará tudo para impedir que eu fale. Seja o que for que se esconde atrás deste véu de esquecimento, deve ser muito poderoso. A minha única forma de manter Sibeal a salvo é deixar Inis Eala. Ainda não tenho forças para isso, mas Gull ajudar-me-á. Afinal, em sete dias, conseguiu tornar Knut exímio no manejo da espada. Tenho a certeza de que conseguirá treinar-me a mim a andar, a correr, a ser de novo dono de mim próprio. Nessa altura, partirei. Tinha planeado dizer a Sibeal que tomara esta decisão. Em vez disso, digo:
- Falas tu, Sibeal. Eu ouço.
É então que ela me conta: a visão que teve de um homem a cair, ocorrendo-lhe uma e outra vez antes de tornar-se realidade, e o facto de só ter actuado quando já era tarde demais. Descreve-me o homem morto, estendido nas rochas, com o crânio aberto. Desconfia que não será capaz de conduzir o ritual fúnebre, embora já tenha concordado em fazê-lo, porque sente que talvez não esteja, afinal, à altura da vocação de druidesa. Incapaz. Confusa. É apenas uma parte dos nomes que chamou a si própria. Fico em silêncio, a ouvir.
- Como poderei fazê-lo? - pergunta-me, sem esperar pela resposta. - Como poderei ir para ali e dizer orações perante o corpo de um homem que, não fosse a minha falta de discernimento, ainda poderia estar vivo? A única coisa que eu tinha de fazer era falar com alguém, descrever o homem na visão, tentar descobrir quem ele era e avisá-lo. Mas tinha outras coisas em mente e não contei a ninguém. O que pensaria Ciarán de mim?
Vejo uma coisa extraordinária: lágrimas transbordando dos seus olhos e caindo-lhe sobre as faces pálidas. Ela não parece consciente do facto.
- Ardal, sei que a visão nem sempre revela a verdade. Não prevê o futuro nem reflecte o passado: mostra-nos imagens que podemos relacionar para chegar a algumas respostas. Percebes isso, não percebes? Oh, deuses, agora até parece que estou a tentar desculpar-me... Não consigo ultrapassar a ideia de que isto é culpa minha. De que fui avisada, para impedir que aquilo acontecesse, e demorei demasiado tempo a reagir. O que pensaria a família de Rodan se soubesse que ele ia ser enterrado pela pessoa que o deixou morrer? Por que razão não consigo fazer o que está certo, Ardal, porquê?
Sibeal vira os seus olhos cintilantes para mim e, depois, enterra a cara nas mãos.
Levanto-me, estou de pé. Dou quatro passos e sento-me no banco ao seu lado. Sinto o coração a bater muito depressa, uma batida de dança. Os meus braços envolvem os seus ombros. Ela vira-se para mim e encosta o rosto ao meu peito. Seguro-a nos meus braços; ela chora. Recordo todas as coisas que lhe disse na noite anterior e sinto vergonha de mim mesmo.
Ficamos assim sentados, durante algum tempo. Espero que Muirrin não decida regressar com Gull, para ver se Sibeal está bem. A nossa pose podia ser a de um irmão a consolar uma irmã; é muito casta. Os meus pensamentos, porém, não são fraternais. Gull já reparou nisso. Levanto a mão para lhe tocar no cabelo, um cabelo fino e ondulado, preto como a asa de corvo. Sibeal parece saída de uma história antiga: uma princesa proibida, ou a feiticeira que aparece num bosque misterioso. É a criatura mais requintada que encontrei em toda a minha vida. Mesmo na parte perdida, a parte de que não consigo lembrar-me, não pode ter havido ninguém como ela.
- Sossega - murmuro. - Pronto, já passou. - E, momentos depois, começo a trautear uma melodia, como quem embala uma criança.
- Ardal - diz ela, com a voz abafada pela minha camisa. Uma camisa limpa, graças a Gull.
- Hum?
- Que canção é essa?
- Uma canção de embalar. Chamarei cem cotovias do prado para adormecerem com o seu canto o meu menino. Chamarei cem corujas da floresta negra para velarem o berço do meu menino. Chamarei cem estrelas do céu para alumiarem os sonhos do meu menino. - A voz da minha mãe vem ao meu encontro, cantando em nórdico. Vejo os seus olhos azuis de cantos inclinados, a sua trança cor de trigo enrolada sobre a cabeça como uma coroa de ouro, o seu avental de linho com filas de bordado vermelho, casas, cavalos e árvores. Aprendi as duas línguas no berço, o brezhoneg e o nórdico. Não admira que tenha facilidade em traduzir. Gostaria que a minha mãe conhecesse Sibeal, mas sei que isso nunca acontecerá.
- Que canção maravilhosa. Deuses, não sabia que tinha tantas lágrimas dentro de mim. - Ela endireita-se; retira os braços da minha cintura. Liberto-a. É como se perdesse o meu coração. Mas talvez já esteja perdido.
Sibeal procura um lenço de bolso. Encontra um preso no cinto, limpa os olhos, tenta recuperar a compostura. Mesmo com os olhos vermelhos e o nariz a pingar, é lindíssima. De súbito, senta-se muito direita, a olhar para mim.
- Ardal, andaste sozinho!
É verdade. Só agora me dou conta.
- Quatro passos - digo, sentindo um sorriso no canto da boca. - Uma verdadeira proeza.
- Fizeste algo que não conseguias fazer antes. Quatro passos hoje, talvez oito amanhã. Evan disse que podíamos chegar ao solstício de Verão e não estares ainda em condições de viajar. Tenho muito orgulho em ti, Ardal.
Agora, já não consigo dizer-lhe que tenho de sair desta ilha, tal como não consigo chamar as cem estrelas da canção que trauteei. Devia ir-me embora. Tenho de ir. Sou o homem aziago, o que traz a ruína e a destruição. Sou aquele que devia ter-se afundado com o barco; aquele que devia ter caído do penhasco. Mas vivo, e, a cada momento que aqui passo, ponho a vida dela em perigo. Diz-lhe, Felix. Não consigo. Esta noite, deixai-me fingir que posso ficar aqui. Deixai-me fingir que posso voltar a apertá-la nos meus braços; deixai-me sonhar com um futuro onde estamos os dois juntos. Deixai-me acreditar em milagres.
Capítulo 8
Sibeal
Rodan foi enterrado junto dos defuntos da ilha, que jaziam numa área abrigada por um muro de pedra sobre pedra, no cimo de uma colina com uma bonita vista para ocidente, sobre o mar. Uma missiva fora enviada ao seu chefe de clã, em Connacht, levada por um homem da povoação do continente. Quanto aos companheiros de Rodan, tinham decidido ficar e cumprir até ao fim o seu período de treino. Todos eles disseram que era isso que ele teria esperado.
Demasiadas mortes. Demasiada ansiedade. Todas as manhãs, eu acordava com o objectivo de caminhar até à Gruta do Vidente e passar ali o dia, em preces e meditação. E todas as manhãs encontrava uma razão para não ir: Clodagh estava com dores nas costas; Muirrin estava atarefada com homens feridos e precisava de ajuda; o jardim tinha de ser mondado; Ardal tinha de ser vigiado, porque desenvolvera uma súbita, feroz determinação em recuperar as suas forças e corria o risco de esgotar-se no exercício árduo. Agora, já conseguia ir a andar até ao jardim e sentar-se ao sol, a observar-me, enquanto eu podava, desbastava e colhia. Se se lembrara de mais alguma coisa do seu passado, eu não fazia ideia. Tornara-se muito silencioso, mesmo comigo.
Os dias foram passando desta feita, dias em que me fui apercebendo cada vez mais dos murmúrios da comunidade a respeito da má sorte e de quem a poderia ter trazido para Inis Eala. Agora, todas as quedas acidentais, todas as querelas, todos os pequenos reveses pareciam reforçar a ideia de que uma força maligna se encontrava entre nós. Johnny disse-me que os rumores absurdos acabariam por passar e que eu não devia deixar-me afectar por eles. As minhas irmãs não davam importância ao facto. Quando Cathal os ouvia, a sua boca parecia mais crispada e o rosto mais pálido. Tinha um olhar assombrado. Eu sabia que ele estava a pensar no pai.
Para chegar à Gruta do Vidente, havia que passar pelo lugar onde Rodan caíra no abismo. Eu não podia adiar aquela expedição para sempre. Numa manhã clara e luminosa, parti com algumas provisões, o meu manto quente e a escolta de Fang. Iria àquele lugar no cume do penhasco e ofereceria as minhas preces pelo espírito de Rodan. Depois, seguiria caminho, para passar o dia no santuário de Finbar. Procuraria uma sabedoria mais elevada do que a da humanidade.
O comportamento de Fang tornara-se mais estranho ainda. Era capaz de correr pequenas distâncias e parar de repente, como se convertida em pedra, o focinho espetado na direcção do mar. Quando se punha nesta pose, a cadela era indiferente a tudo o resto. Não valia a pena chamá-la. Mesmo as ovelhas de passagem eram ignoradas. Depois, num repente, caía em si e corria atrás de mim como se nada se tivesse passado.
- O que é, cadelinha? - perguntei-lhe, enquanto seguíamos o trilho que conduzia às falésias. - Que vês tu? - Mas a única resposta era o ímpeto das ondas por debaixo de nós e o grito agudo das aves marinhas.
O passo errático de Fang tornara o passeio mais lento do que poderia ter sido. Preocupava-me o suficiente com o seu bem-estar para não me afastar ao ponto de a cadela me perder de vista. Por outro lado, talvez fosse uma cobardia. Talvez os meus pés se arrastassem porque eu não queria chegar àquele lugar para onde Rodan tinha ido. Cerrando os dentes, segui caminho.
Com a cadela atrás de mim, virei numa curva e senti um aperto no peito. Um corpo nu erguia-se à minha frente, como que suspenso, os braços estendidos para fora como se fosse voar e os pés descalços à beira do precipício. O cabelo dela ondulava ao vento; os seus olhos fitavam o horizonte distante, a norte. Svala, como uma belíssima figura de proa esculpida. Se eu fizesse um som, se a assustasse, ela cairia. Estava precisamente no mesmo sítio onde Rodan perdera o equilíbrio.
Fang não teve os mesmos escrúpulos. Passou por mim, percorreu o trilho em passinhos rápidos e parou para farejar o monte de roupas que Svala tinha abandonado no chão.
- Svala - chamei, num murmúrio. - Afasta-te do precipício. - Mesmo enquanto falava, a minha mente mostrou-me uma imagem da mulher a cair.
Ela virou-se, com uma confiança gloriosa no seu equilíbrio, e dirigiu-se ao caminho. Ali, inclinou-se para recolher o seu vestido. Senti o coração a bater por todos os lados, as palmas das mãos húmidas. Obriguei-me a respirar.
- Assustaste-me - disse-lhe. - Pensei... - Não, não ia dizer-lhe o que me atravessara o pensamento, porque era evidente que me tinha enganado. Ela não tivera qualquer intenção de saltar. Vi-o na sua postura orgulhosa e nos olhos calmos. - Não faças caso - acrescentei, sabendo que não me compreenderia.
Svala pôs o vestido e o xaile. Não parecia ter trazido sapatos. Vestida, chegou-se para o lado para me deixar seguir caminho até à gruta. Só quando já tinha percorrido uma certa distância é que percebi que ela me seguia, firme e silenciosa, alguns passos mais atrás.
A lógica dizia-me: Svala é grande, forte, imprevisível, e o caminho é estreito. O instinto dizia-me: continua a andar, e foi o que fiz, muito embora me tivesse dado conta, ao virar-me para trás, que Fang já não nos acompanhava. Alcançámos a abertura que conduzia à gruta de Finbar. Enfiei-me lá dentro, seguindo pelo túnel estreito e sombrio, e Svala veio atrás de mim, silenciosa como uma sombra. Talvez eu devesse ter ficado assustada. Mas senti que a sua presença fazia sentido. Que era uma espécie de ponto de viragem.
Apesar de comportar-se tantas vezes como uma criatura selvagem, Svala percebeu de imediato o que me levara àquela gruta. Instantes depois de eu me sentar de pernas cruzadas à beira do lago imóvel, apareceu ao meu lado, de costas direitas, as mãos soltas no regaço, os olhos fixos na água. E ali permaneceu enquanto eu percorria os meus demorados padrões de respiração; enquanto dizia as minhas orações, repetia excertos de doutrina e esperava pela sabedoria dos deuses. Não articulou um único som. Não fez o mais ínfimo gesto.
A minha preparação demorou muito tempo. Esperei que os raios de Sol atravessassem a abertura sobre a água, banhando de ouro a gruta sombria. O lago tornou-se, então, uma bacia de luz. Agora. Agora era o momento.
Contemplei a superfície e, em pensamento, disse: fui levada a salvar a vida de Ardal para ele poder cumprir uma missão. As runas pareciam confirmá-lo. Ambos acreditámos que era urgente que ele se lembrasse e agisse. Mas Ardal recusa-se a contar-me aquilo de que se lembra. A meu ver, este silêncio dá voz aos murmúrios, aos rumores do homem aziago. Isso projecta uma sombra sobre todos nós. Como será conhecida a verdade?
Nada. Nada de nada, a não ser a luz a incidir na água e a cadência regular da respiração de Svala. Durante todo aquele tempo, ela ficara de vigia, ao meu lado. Esperei, e pareceu-me que o silêncio na gruta se adensara e que a água estava mais nítida, como se não tivesse nada para me mostrar. Os deuses estavam mudos. Nem mesmo Finbar me ajudaria. Era muito fácil dar uma resposta a mim mesma. Estás distraída. A tua mente dispersa-se com demasiada facilidade. Como vidente, tornaste-te falível.
A mão de Svala fechou-se à volta do meu braço. Após tanto tempo em transe, saltei, qual lebre assustada, ao sentir o seu toque. O coração disparou-me no peito. Olhei para o lado, e Svala olhou-me nos olhos e encostou um dedo aos seus lábios. Chiu. Sem me largar, desviou o olhar para o lago. Momentos depois, fiz o mesmo.
Agora, algo se agitava na superfície da água. Uma visão ganhava forma. Ondas estoirando nos rochedos; um barco sacudido por mares monstruosos. No momento em que olhei, senti o convés a abanar sob os meus pés, a chicotada da espuma salgada, o embate surdo, traumático, de corpos lançados de um lado para o outro. Um vendaval. Uma borrasca. Uma tempestade, varrendo o barco à sua frente como um pedaço de madeira à deriva. Fui tomada por um profundo terror; apertava-me com mais força do que a mão forte de Svala. Isto vai destruir-nos. Nenhum homem sobrevive a uma tempestade como esta...
E, depois, terra. Erguendo-se com sombria inevitabilidade, terra. Uma ilha escarpada, uma montanha solitária emergindo do mar com a sua saia de espuma branca a embater nos recifes. O barco avançou a grande velocidade, empurrado pelas ondas. No meu pensamento, homens gritavam, praguejavam, imploravam aos deuses que os salvassem. A nave continuou a sulcar as águas. Via-se agora uma abertura estreita entre dois rochosos braços de terra e, mais além, uma baía e uma faixa de costa plana, forrada de seixos. Remos!, gritou alguém.
Sentiu-se uma vibração, um estremecimento, e o barco mudou de rumo. Já não ia direito às rochas, mas seguia na direcção desse intervalo e de águas mais seguras. Remai! Remai! Entraram na passagem estreita, os rochedos agora tão próximos que se viam os moluscos agarrados às superfícies negras. Penhascos erguiam-se, colossais, de ambos os lados; o barco seguia na sombra. Remai! E, de repente, estávamos na baía, os remadores ofegantes do esforço, o barco abrandando enquanto descansavam os braços. A salvo. Oh, deuses, finalmente a salvo.
Então, como um relâmpago riscando o céu limpo, ei-lo que emerge das águas junto à proa, mais imponente do que um carvalho, mais alto do que o torreão de um castelo. Os olhos brilham de malícia, as garras são afiadas como foices, a boca... Oh, da boca emerge uma fila de presas brancas e compridas, e a língua, azul-esverdeada, salivando... O pescoço serpenteia de um lado para o outro, olhando, escolhendo: qual levarei primeiro?
Os homens gritam. Procuram, em alvoroço, bestas, lanças, facas. Remai!, brada alguém com mais presença de espírito do que os outros, e a tripulação levanta os remos, na tentativa de escapar ao monstro. A cabeça horrenda da criatura afunda-se a pique no convés; o seu hálito nauseabundo sufoca-nos e engasga-nos. Brinca connosco algum tempo, movendo-se de um lado para o outro, impedindo a passagem do barco. Com a cauda, chicoteia a água, erguendo vagalhões. Remai! Remai! Um homem, pelo menos, domina o seu terror. Mais perto da costa, agora, mais perto ainda e... Um grito como um pano a rasgar-se quando a criatura estende a pata dianteira e, num gesto que apunhala, enterra a sua garra no peito de um marinheiro, empalando-o. Lança-o no ar, abre as mandíbulas, colhe-o quando ele cai e, num trago convulsivo, engole-o por inteiro.
Respira, Sibeal. A visão dissipou-se em fragmentos e estilhaços; o barco numa rota errática em direcção à costa, homens de olhos arregalados remando com a força bruta do pânico; o monstro marinho a abrir a bocarra crivada de presas, exibindo uma amálgama de pele ensanguentada e ossos partidos, e a colher outro membro indefeso da tripulação. Antes que eu o visse levá-lo, a visão desfez-se. Ficou apenas a água tranquila do lago do vidente, dourada pelo sol do meio-dia. Respira. Usa aquilo que aprendeste.
O asco torcia-me o ventre, arrepios percorriam-me a pele, senti o coração contraído de horror. Respirei. Rezei. Fiz um esforço para controlar o vómito. Quando consegui mexer-me, virei-me para Svala, que retirara a mão do meu braço e aguardava, em silêncio, ao meu lado. A sua expressão chocou-me. Ela sorria. Havia uma luz no seu olhar, como se aquilo que tinha acabado de ver lhe desse ânimo e alegria. Talvez a sua visão tivesse sido muito diferente da minha. Talvez os deuses lhe tivessem concedido um vislumbre de tempos mais felizes, antes de ela vir para Inis Eala, antes de sofrer a perda que lhe despedaçara o coração.
Procurei o meu odre de água, tirei a rolha e bebi profusamente. Ofereci-lhe um pouco, mas ela afastou-o. Pondo as mãos em concha, tirou água do lago do vidente e levou-a à boca para beber. Isto chocou-me; parecia um acto de sacrilégio.
Svala estava a tentar dizer-me qualquer coisa, gesticulando. O lago; ela própria - os dedos batendo nos ossos do peito com alguma força - e, depois, um gesto largo na direcção da saída da gruta. O lago outra vez, ela própria e eu. Depois, uma mímica que sugeria, sem equívoco, o gesto de remar. Quero ir. Tenho de ir ali. Tu levas-me.
- Não podes estar a falar a sério - soprei. - Não podes.
Ir para aquele lugar de monstros e ondas impossíveis? Svala e eu, remando ao lado uma da outra? Devia tê-la percebido mal. Por outro lado, se a sua visão não fora a mesma, talvez estivesse a pedir-me que a levasse a outro lugar, um lugar que não conseguiria descrever-me. Quero ir para casa. Regressar à terra de onde venho.
- Tu vais voltar para casa - disse eu, ignorando a conversa que tinha ouvido no salão a respeito do eventual convite a Knut para ficar por um período de teste em Inis Eala, onde o seu admirável talento em combate seria um trunfo. - Tu e Knut. Johnny organizará a vossa viagem assim que tiver a certeza de que vocês estão bem.
Isto fez-me pensar. Não se podia descrever a vigorosa Svala como uma mulher que não estava bem, mas ela não era como as outras mulheres, e eu percebia a relutância de Johnny em enviá-la para a povoação do continente, ou mais além. Não a imaginava a viver numa aldeia vulgar, ou mesmo numa casa vulgar. Knut fazia o seu melhor por protegê-la, mas não seria capaz de fazê-lo a todos os instantes, e ela tinha a capacidade de semear o caos.
- Um barco, sim. Uma viagem para... o lugar de onde partiste. Ulfricsfjord. Não comigo. Com Knut. O teu marido. - Isto eu não conseguiria mimar, mas esperava que ela reconhecesse os nomes.
Svala ergueu-se em toda a sua altura, agigantando-se sobre mim no lugar onde eu me ajoelhara à beira da água. Tinha cerrado os punhos. Fitando-me, cuspiu para o chão da gruta sob os seus pés. Um som saiu de dentro dela, uma explosão de fúria e frustração.
Senti-me como uma criança que, de súbito, se visse sozinha num descampado com um touro bravo. O seu furor assustava-me. Estávamos longe da povoação, e Fang já não estava comigo. Por outro lado, eu não a dissuadira de acompanhar-me. Era possível que quiséssemos ambas a mesma coisa: a verdade. Teria de esforçar-me mais por perceber.
- Uma serpente - disse-lhe, levantando-me e imitando a figura com as mãos, à beira do lago. - Boca, morde, assim. Garras, assim. - Forcei-me a fazer uma bizarra reconstituição daquela cena hedionda. Deuses, eu já tinha visto aquilo; na minha primeira visão da queda de Rodan, um homem fora levado por um monstro marinho. Nos olhos de Svala, detectei um reconhecimento imediato. Desarmada num segundo, acocorou-se ao meu lado, observando com aparente fascínio.
Barco. Como mostrar um barco? Ah, o odre meio vazio. Empurrei a rolha com firmeza e pus o odre a flutuar no pequeno lago, mostrando com as minhas mãos os remadores e a costa para onde se dirigiam. Quando a pesada embarcação passou por Svala, ela estendeu o braço para acrescentar a sua versão da história, usando o braço, a mão, os dedos para desempenhar o papel do monstro. Zás! Levo este homem primeiro. Zumba! Agora levo este. E agora este, e este... Já não havia qualquer dúvida de que tínhamos tido a mesma visão.
Trouxe o barco de volta às margens do lago, puxei-o para a praia e deixei-o, levantando-me.
- Este lugar? - perguntei, apontando para o pequeno cenário. - Tu e eu, irmos a este lugar?
Ela deu um pulo e agarrou-me nos braços com as duas mãos, aquiescendo e sorrindo com uma energia quase delirante. Finalmente! Finalmente alguém percebe!
- Mas porquê? Porquê, Svala? E onde fica esse lugar? - Descrevi um círculo com a mão e, depois, apontei para Norte, Sul, Este, Oeste.
O braço de Svala ergueu-se com absoluta confiança. Para norte. Para norte? O que existia no norte? As Orcades, destino da viagem que eles tinham feito, situavam-se a nordeste. Eu não sabia da existência de nenhuma terra a norte.
- Gostava que pudesses explicar-me porquê - disse, mais para mim própria do que à minha companheira. - Talvez seja a chave de tudo. Se ao menos tu pudesses contar-me a tua história, Svala.
Ela abraçou-me, chocando-me profundamente, porque era a última coisa que eu esperava que ela fizesse. Devolvi o gesto, entristecida com o facto de não ter percebido tudo e de talvez nunca vir a perceber; preocupada porque o que ela queria, pelos vistos, era uma loucura, uma coisa que não fazia sentido, mesmo se eu fosse capaz de concretizá-la.
Svala murmurou algo. Não eram palavras, mas um som melodioso, como o fragmento de um canto fúnebre. Ela era tão mais alta do que eu que, naquele abraço, a minha cara ficava encostada ao seu coração. Quando cantou, senti a sua mensagem pulsar dentro de mim, ao ritmo de um enorme tambor de marcha. Casa! Casa!
Deuses. Casa? Aquela ilha onde não crescia nem a sombra de uma folha, aquele rochedo cercado por ventos coléricos e mares montanhosos? Ninguém conseguiria sobreviver num lugar como aquele. Tentei imaginar Knut e Svala a subsistir com dificuldades numa cabana isolada, arrancando moluscos das rochas e trancando a porta de noite enquanto o monstro rondava a baía. Impossível. Não era capaz de acreditar nisso. Eles não podiam vir de um lugar assim. Além disso, fora no nosso recife que o barco naufragara, não no recife de uma ilha selvagem e remota. Não fazia sentido.
- Tentarei ajudar - murmurei, sem saber por onde começar. Um lugar daqueles só seria uma casa para as criaturas marinhas, e mesmo essas tinham provavelmente o bom senso de se afastarem, para não irem parar à barriga do monstro. Talvez a visão fosse apenas simbólica.
Regressámos à povoação. De Fang ainda não havia sinais, mas a meio do trilho encontrámos Knut, que vinha na nossa direcção. Estava pálido, de maxilar cerrado, o olhar enraivecido. Aproximando-se em grandes passadas, agarrou no braço de Svala. Ela ficou em silêncio ao lado dele, de olhos postos no chão.
- Ires onde? - perguntou-me, a gritar. - Eu procurar... mulher... todo o lado. - Um movimento circular do braço.
- Fomos caminhar. - Todo o meu corpo se crispara.
- Desculpa - disse ele, demasiado tarde para eu acreditar na sua sinceridade. Ainda tentou esboçar um sorriso, mas saiu-lhe uma careta.
- Preocupado. Mulher... - Sem encontrar a palavra certa, bateu na cabeça, de lado. - Não ser seguro passear aqui. Eu procurar todo o lado.
- Knut - repliquei, com alguma hesitação -, onde viviam antes de virem para aqui? Onde é a vossa terra, a tua e a de Svala?
Ele semicerrou os olhos.
- Não falar bom irlandês - respondeu.
- Não tem importância. - Perguntei-me se Knut se esqueceria do seu irlandês rudimentar quando lhe faziam uma pergunta a que não queria responder. - Vou andando, então. Obrigada por me teres feito companhia, Svala.
Passei por eles e, enquanto me afastava, ouvi-o falar com ela num sussurro furioso. Interrogava-me muito a respeito do crescente rumor de que Knut poderia vir a instalar-se na ilha. Não havia dúvida de que se encaixaria bem. Era, na opinião de todos, um guerreiro exímio, e as pessoas pareciam gostar dele. Uma vez que eu ia deixar Inis Eala no fim do Verão, o facto de sentir uma suspeita instintiva daquele homem era irrelevante. Mas não me parecia que Svala pudesse vir a ser feliz ali.
Talvez devesse partilhar a visão desse dia com Johnny. Ou com outra pessoa: Gull, Clodagh, Cathal? Seria sensato ter uma conversa séria com Knut, com a ajuda de Jouko e Kalev? Talvez fosse melhor esperar até ficar com uma ideia mais clara do significado daquelas imagens, imagens que não faziam sentido nenhum, porque entre os muitos rostos presentes no barco ameaçado, havia três que eu conhecia: Ardal, lívido, de maxilar cerrado; o jovem que eu julgava ser seu irmão, Paul, afastando alguém do caminho, agarrando num remo, gritando ordens; e Knut, remando com os outros. Não era uma visão do futuro ou de um futuro possível. Eu tinha visto o corpo afogado de Paul ali na ilha; tinha conduzido o ritual do seu enterro. Na visão, ele ainda vivia, era forte. Fora ele quem assumira o controlo, impondo a ordem no caos. As imagens pertenciam ao passado, imaginado ou real. Se fosse real, quando Knut fizera a sua vaga descrição da viagem a Johnny, só lhe contara metade da história.
Felix
Caminho. De cá para lá, de lá para cá. Paro para respirar, ordenando aos meus membros que recuperem a sua força. Depois, outra vez, de cá para lá. Muirrin observa-me enquanto trata do joelho de outro homem, mas não faz comentários.
Sibeal foi à Gruta do Vidente, o lugar de que me falou, onde consegue encontrar paz e pôr os seus pensamentos em ordem. Penso que está zangada comigo. Queria que eu lhe contasse tudo aquilo de que me tenho lembrado, uma coisa de cada vez. Não percebe por que razão me mantenho em silêncio. Há algo escondido na minha mente, uma verdade perigosa. Creio que tem o poder de semear a destruição neste lugar.
O homem aziago. Muitos já sofreram por minha causa. Demasiados. De cá para lá, caminho, e de lá para cá, e a cada passo que dou penso neles: o meu pai, que quase perdeu as graças do duque porque eu não fui capaz de manter a boca fechada; a minha mãe, que tinha dois filhos saudáveis e agora não tem nenhum; o meu irmão, que era meu amigo do peito, meu companheiro de viagem e que agora está morto. Não posso ficar aqui. Quem sabe se o naufrágio não foi também culpa minha, provocado por algum acto de negligência de que me esqueci? Quem sabe que desastres não terei causado nesse tempo perdido na memória? Tenho de deixar este lugar sem demora.
Gull entra e saímos para nos sentarmos no banco do jardim.
- Por ora, já chega de andar - diz-me, instalando-se ao meu lado. - Tentar cedo de mais é um convite ao fracasso. Exercita a respiração. Faz parte da cura. Quase morreste, Ardal. O teu corpo tem de reaprender a funcionar, e não pode aprender se tu o esgotares.
- É demasiado lento - resmungo, sabendo que o meu sábio amigo merece mais pelo tempo e cuidados que me dispensa. Não estou zangado com Gull, apenas com este corpo fraco.
- Se pretendes voltar para a cama por mais um ciclo lunar, então, por quem és, ignora o meu conselho. Pediste-me que te ajudasse, Ardal. Se estivesse a treinar um homem para voltar à luta depois de ser ferido em combate, proibi-lo-ia de fazer esforços inúteis, tal como estou a proibir-te a ti.
Endireitei as costas. Tentei respirar fundo várias vezes, como me fora ensinado, enchendo o peito de ar devagar e parando mesmo antes do pico de dor. Depois, digo:
- Desculpa.
- Não tem importância, desde que continues a ouvir os bons conselhos, quando te são dados. Ficamos aqui sentados mais algum tempo e, a seguir, vamos tentar pôr os teus braços a trabalhar.
Gull obriga-me a dobrar-me e a esticar-me, e o exercício cansa-me. Faço o que me é dito. Ele declara-se satisfeito com os meus esforços. Quando me diz que está na hora de eu voltar para dentro e deitar-me um pouco, porque o meu corpo precisa de repouso constante, mordo as palavras que me afloram aos lábios: não há tempo para descansar! Verdade seja dita, doem-me as pernas e os braços, arde-me o peito, quero o conforto da minha cama mais do que tudo o resto. Ou quase tudo.
Ao sentar-me ao lado de Gull, sem saber se terei forças para subir os dois degraus até à porta das traseiras, essa porta abre-se e Johnny e Cathal saem, este último transportando uma caixa grande unida com correias de couro.
- O que se passa? - pergunta Gull.
- Queríamos dar uma palavra a Ardal. - Johnny vira-se para mim. - Estes são alguns dos objectos que deram à costa depois do naufrágio. Queremos que olhes para eles, talvez te ajudem a espevitar a memória. - Olha de relance para Gull. - É uma boa altura? Se quiseres, podes deixar-nos por uns instantes. Vai ter com Biddy.
Gull sorri.
- Achas que estou a negligenciar a minha mulher? Duvido que ela me queira à perna quando está atarefada na cozinha.
Johnny devolve o sorriso; não é um homem especialmente bonito, mas há uma gravidade e um equilíbrio nas suas feições que atraem o olhar.
A tatuagem de um corvo em rodopio só lhe dá um ar ainda mais distinto.
- Vai lá - diz ele -, nós arranjamo-nos sem a tua ajuda.
Cathal ainda não disse nada. Pousou a caixa no banco ao meu lado e está a desatar as correias. Quando Gull desaparece, abre a tampa.
- Fico feliz por saber que estás a melhorar, Ardal - diz Johnny. - Gull contou-me que os teus próprios esforços desempenharam um papel importante na tua recuperação. - Hesita e, depois, continua. - Compreenderás, tenho a certeza, que é fundamental para mim saber mais acerca deste barco, da sua tripulação, da sua carga, do objectivo da viagem, para poder informar as pessoas de direito a respeito destas perdas. Já enviei, há algum tempo, uma mensagem a Ulfricsfjord, com base no que Knut me contou. Mas o seu conhecimento é limitado e não consigo verificar se a minha mensagem foi parar ao destino certo.
- Sibeal diz que estás a omitir informação. - Cathal é muito mais directo. Sinto a hostilidade na sua voz. - Tens de contar a Johnny tudo aquilo de que te lembras. O motivo por que estavas naquele barco, quem mais ia contigo, a quem pertenciam os recursos que tornaram a viagem possível. Para começar, o que te trouxe a Erin.
- Ardal - diz Johnny -, se te lembraste de alguma coisa, o que quer que seja, que possa ser relevante para aquilo que aconteceu, tens de contar-me. Inis Eala está sob a minha liderança. Sou responsável pelo bem-estar dos seus habitantes e pela segurança da comunidade. Enquanto os nossos visitantes aqui estão, exijo deles o mesmo comportamento que espero de todos os homens e mulheres que vivem nesta ilha. Isso inclui contar toda a verdade.
Sentado no banco com os dois homens de pé à minha frente, sinto-me, de certo modo, em desvantagem. Não sei como responder a Johnny.
- Não me recordo de nada do naufrágio, ou da viagem - digo -, a não ser que o meu irmão ia a bordo e que veio uma onda e me levou.
- O destino da viagem eram as Órcades, disse-me Knut. A promessa de novas terras para os homens da tripulação, alguns dos quais levavam as mulheres com eles. Para ti, para o teu irmão e para um homem mais velho que viajava convosco, o propósito da viagem era outro.
- Não me recordo de nada. - Olho-o nos olhos e espero que ele veja que, neste ponto, eu estou mesmo a dizer a verdade.
- Queremos que olhes para os objectos que estão dentro da caixa, Ardal - diz Johnny. - Parece-me a mim que podem estar, de algum modo, relacionados com a tua missão. Tenho algumas teorias, mas quero ouvir as tuas ideias antes de partilhá-las contigo.
Pressinto o que fica por dizer: caso contrário, podias colar-te à que te parecesse mais conveniente para não teres de contar-nos a verdade.
- Muito bem - respondo. O que era mesmo que Sibeal me dissera que tinham encontrado? Sedas? A encadernação de um livro?
Cathal retira os objectos de dentro da caixa, um a um, e coloca-os em cima do banco. O pedaço de tecido é uma sombra do que era; o mar converteu o violeta original num desbotado vermelho-azulado, e o sal incrustou-se nos seus delicados refegos. Os braceletes de prata e o torque perderam o brilho; das páginas do grande livro, desapareceu a caligrafia. O mar afogou toda a sua sabedoria. Fora um dia um livro de histórias, em escrita semiuncial, com minúsculas ilustrações de flores e criaturas. Uma pequena maravilha. Há objectos mais miúdos, bugigangas para a mulher e para a filha do Jarl: um bando de delicados pássaros de bronze, um pequeno cofre com fechos de prata e banho de esmalte brilhante, um elaborado anel de dedo. Eu estava presente no dia em que Eoghan escolheu aquele tecido. Disse que ficaria bem à filha do Jarl, sendo ela de sangue nórdico e bela como uma manhã de Primavera. Conheço o artesão que fez os pequenos pássaros de bronze. Lembro-me do olhar deliciado do meu irmão quando o príncipe nos mostrou o livro. Paul não sabe ler. Não sabia ler. Mas sorriu para as minúsculas raposas, corujas e texugos, para o corvo de olhos cruéis e para o pónei branco.
A imagem de Knut a passar o dedo pelo pescoço atravessa-me o pensamento. Shhhhh! Ainda as memórias daquele tempo não se tinham dissipado - ah, Matha, sábio conselheiro, também tu, pelos vistos, te perdeste no mar -, digo a Johnny:
- Estou muito grato pela bondade e a preocupação com que me recebeste, mas não há nada que eu possa dizer-te a respeito destes objectos. - Não vou mentir-lhe, não a ele, e isto não é uma mentira.
- Deixa-me fazer-te uma outra pergunta - retorque Johnny, num tom neutro. - Sibeal acha que és um homem de alguma erudição. Imagina estes bens antes de serem danificados pelo mar. Na tua opinião, com que propósito estariam estes objectos a bordo de uma nave que viajava de Ulfricsfjord até às Órcades? Podes responder a esta pergunta sem teres de ser específico.
- Não sou um comerciante.
Cathal aproxima-se, segura-me pelos braços e levanta-me. Não me liberta quando já estou de pé. - Responde à pergunta - diz-me. E, na tranquilidade do tom, há uma ameaça que me gela por dentro.
- São objectos valiosos - observo. Por momentos, pondero dizer-lhes o que acabei de recordar: os tempos que passei na corte de Muredach, a minha amizade com o seu filho, Eoghan, príncipe de Munster, a missão até ao Jarl. Haverá ali alguma coisa que pudesse levar Knut a fazer as suas ameaças? Não sei. Não posso saber. Não me lembro de nada desde o instante em que subi a bordo do Freyja, a não ser da tempestade, Paul, a onda. O risco é demasiado grande. A vida de Sibeal está nas minhas mãos. - Suponho que pudessem ser presentes - acrescento. - Todos parecem ser de grande qualidade. Uma oferta destas pode ser feita por um rei, por um príncipe, ou por um influente chefe de clã. O livro talvez sugira um envolvimento monástico.
- Liberta-o, Cathal - ordena Johnny, sem levantar a voz, e Cathal obedece. Os meus braços ficam doridos nos pontos em que ele me segurou.
Por que razão é tão hostil?
- Tens alguma ideia de quem poderia ser o rei, príncipe ou influente chefe de clã que decidiu enviar estes presentes para as Orcades, Ardal? Tens a certeza absoluta de que não os viste antes?
- Eu tenho muito poucas certezas.
Deuses, os outros. Eram mais cinco, connosco: Artan e Donn, Fiac e Demman, o jovem Colm, na sua primeira viagem marítima; todos nós partimos da corte de Muredach - estariam eles a bordo quando o barco naufragou? Terão desaparecido todos, todos eles afogados? Sinto os joelhos a fraquejar e deixo-me cair de novo no banco, desejoso que os dois homens partam e me deixem a sós com os meus enredados pensamentos.
Talvez tenha empalidecido, porque Johnny diz:
- Por agora, chega. Guarda tudo, Cathal. Preciso de dizer mais uma coisa a Muirrin e depois regresso contigo. - Entra na enfermaria.
Cathal arruma os objectos. Não leva muito tempo. Ninguém aparece. Quando termina, vem encostar-se à parede, ao meu lado. É uma pose casual, quase indolente. Mas os seus olhos contam-me uma história muito diferente. Eis um homem que não desejo ter como inimigo.
- Quero dizer-te uma coisa. - Cathal esforça-se por manter um tom neutro. - Vou dizê-lo depressa. Tenho família aqui na ilha. Uma mulher que amo mais do que a própria vida, e um filho por nascer. Se alguém te enviou aqui, alguém com pérfidas intenções a meu respeito, fica a saber que posso destruir-te e que o farei sem hesitar. A simpatia que Sibeal tem por ti não fará a mais pequena diferença. Agora, diz-me a verdade, Ardal. Quem te deu ordens para vires até aqui? Que cruel senhor te enviou para o meio de nós para semeares o pandemónio nos nossos sonhos?
A surpresa impede-me de responder. Cathal está convencido de que alguém me enviou aqui para lhe fazer mal, para ferir os que lhe são próximos? Por que pensaria ele tal coisa? Abro a boca para dizer que as suas suspeitas são absurdas e torno a fechá-la. Enquanto houver partes do meu passado fechadas no esquecimento, não posso saber por que me encontro nesta ilha, ou com que desígnio. Sim, viajei para norte, numa missão organizada pelo rei de Munster. Levávamos presentes de noivado do seu filho para a filha do Jarl orcadiano, objectos encantadores que ela nunca chegou a receber. Era uma missão pacífica e, nela, a minha função era a de mero intérprete. Porém, enquanto não conseguir recordar o que correu mal, o que nos deixou desfeitos e a naufragar nos rochedos de Inis Eala, não posso dar a Cathal a certeza de que sou inocente. Não posso contar-lhe nada. E quero contar. Não só porque ele me inspira assombro e o temo, embora seja verdade, mas porque ouço a sinceridade na sua voz e a dor.
O silêncio arrastou-se mais do que devia. Ele está à espera, fitando-me com os seus olhos escuros como a noite.
- Não me recordo de tudo, Cathal - digo-lhe. - Se o teu inimigo te procura, creio que é improvável que me use como seu agente.
- Improvável. - O seu tom não se alterou. - A resposta é inadequada, Ardal. Não confio num homem que omite informação quando não precisa de fazê-lo. Tu lembraste-te de algo. Vejo-o nos teus olhos. Estava ali quando retirei aqueles objectos de dentro da caixa. Só me ocorre uma razão para o facto de não falares, e ela não me agrada. Que fazias a bordo daquele barco? Quem te enviou e com que desígnio?
Não digo nada. Rezo para que Johnny regresse. Instantes depois, ouço a voz dele no interior da enfermaria, despedindo-se de Muirrin com cortesia. Volto a respirar.
- Se acontecer alguma coisa a Clodagh - diz-me Cathal, num sopro enfurecido -, ou à criança, eu faço-te falar, Ardal. Sou capaz de o fazer, acredita. Mais um aviso: é melhor recuares na tua amizade com Sibeal. Ela é jovem, salvou-te a vida em circunstâncias extraordinárias e sente, sem dúvida, um laço contigo. Mas nada de bom virá de uma relação com um homem que se recusa a dizer a verdade. O que quer que estejas a fazer, não arrastes contigo a irmã mais nova da minha mulher.
Engulo a minha raiva. De certo modo, o seu ataque é legítimo.
- Assim que me sentir capaz, partirei deste lugar - digo. - Só desejo o bem para ti e para a tua família, Cathal. Mas, não vês que não posso... - Falha-me a voz; ainda não tenho a força de que preciso. - Até me lembrar de tudo, nada é certo - acrescento, mais calmo. - Nem para ti, nem para mim, nem para ninguém aqui na ilha. É essa a maldição do homem aziago.
Os seus olhos semicerraram-se.
- O que queres dizer com isso? - pergunta, num tom muito diferente.
Não respondo; alguém se aproxima, vindo da outra ponta do jardim: Knut, de maxilar cerrado, avançando num passo enérgico. Quando chega, Johnny sai da enfermaria.
O olhar azul gélido de Knut paira sobre nós, pousando na caixa, que já está fechada e com as tiras de couro atadas.
- Procurar mulher - explica ele. - Viram?
- Não - responde Cathal.
- Svala não está aqui - acrescenta Johnny.
Knut olha para mim.
- Nenhum de nós a viu - digo, em nórdico. Há uma pergunta silenciosa no seu rosto. Aquela caixa já lhe foi mostrada; ele sabe o que contém. Viu-me com Cathal. Os seus olhos perguntam: que lhes contaste tu, homem aziago? Depois, vira-nos as costas e sai.
Vejo o pontão em Ulfricsfjord, homens carregando provisões, a tripulação a preparar o barco para navegar. Um deles tem a cara de Knut. Paul está a vigiar a caixa que contém os presentes e a arca com o seu carregamento de prata. Colm está excitado, os seus olhos disparam em todas as direcções, o seu entusiasmo contagia os outros, mesmo os experientes marinheiros nórdicos. Os homens metem-se com ele, dizem-lhe que vai encontrar uma nórdica roliça e consumar uma outra estreia pelo caminho.
Uma rapariga. Uma mulher. Mas não no barco, porque não há mulheres a bordo do Freyja. Há uma tripulação de marinheiros nórdicos, uma comitiva de cortesãos irlandeses e, com eles, dois irmãos, ambos breizhiz.
Estou quase a dizê-lo a Johnny e a Cathal: essa mulher, Svala, não ia a bordo quando a nave partiu de Ulfricsjjord. Qual o significado disto, desconheço em absoluto, mas sinto dentro de mim uma necessidade forte de contar. A imagem dos olhos de Knut trava-me o impulso. Há perigo nessa última memória perdida. Agora compreendo o que sente Cathal, o tumulto interior que o levou a ameaçar-me. A infelicidade invade-me. Olho para cima, para Johnny, e ele devolve-me o olhar. Um homem forte, inteligente, justo; um verdadeiro chefe. Um homem que me ouviria, tenho a certeza, se eu contasse a verdade. Mas de que serve uma verdade incompleta, uma verdade cuja peça em falta pode pô-los a todos em perigo? A mulher e a criança por quem Cathal tanto teme, o generoso Gull e Sibeal, a mais preciosa de todos eles?
- Quero sair da ilha - declaro a Johnny. - Assim que estiver capaz de sobreviver sozinho, tens de mandar-me embora.
Sibeal
Contaria primeiro a Ardal a visão de Svala. Ele talvez a interpretasse como algo oculto, a exigir uma ponderação erudita. Afinal, a cena fazia lembrar um excerto de uma velha história, com a sua ilha solitária, os seus mares colossais, o seu monstro feroz e homens desesperados. Mas talvez Ardal me dissesse que era verdade. Talvez ele se lembrasse.
Regressei à povoação num passo rápido. Quando ia a passar pelo salão, a porta abriu-se e a cabeça de Clodagh apareceu na abertura.
- Sibeal! Entra aqui!
No interior, fiquei de certo modo surpreendida por ver Muirrin sentada num canto da cozinha, com uma taça de hidromel à sua frente, sobre a mesa, e as faces coradas num agradável tom de rosa. Biddy estava sentada ao lado dela, e Brenna à sua frente.
- O que foi? - perguntei, parando ao lado de Brenna e aceitando o hidromel que me fora oferecido. Muirrin mal saía da enfermaria durante o dia e, por momentos, temi alguma infelicidade, mais um desastre que a comunidade poderia atribuir ao homem aziago. Mas havia sorrisos por toda a parte.
- Conta-lhe, Muirrin - disse Clodagh.
- Conta-me o quê?
A minha irmã mais velha olhou para mim do outro lado da mesa. Vendo a alegria que lhe iluminava os olhos, adivinhei a notícia antes de ela falar.
- Sibeal, estou grávida. Finalmente! Pensei que nunca iria acontecer, e agora... - Havia lágrimas nos seus olhos.
- Oh, Muirrin, é maravilhoso. Muitos parabéns. - Contornei a mesa para abraçá-la, dando-me conta de como me distanciara, naqueles últimos anos, das preocupações da casa e do lar. Nunca me parecera invulgar que, em mais de seis anos de casamento, Muirrin e Evan não tivessem tido filhos. Não me ocorrera que eles poderiam tê-lo desejado, talvez dolorosamente, e enfrentado a possibilidade de nunca virem a ser pais. Só os vira como curandeiros, dedicados ao seu ofício.
- Já desconfiava há algum tempo - dizia ela -, mas não contei a ninguém a não ser a Evan, porque... Enfim, já tivemos desilusões no passado, acreditando que eu estava grávida e depois... Mas agora tenho a certeza. Até tenho uma barriguinha, repara.
Muirrin era uma mulher pequena e esguia, como todas nós, irmãs. Por debaixo do tecido prático, fiado em casa, do seu vestido, o ventre aparecia, de facto, muito redondo. Mesmo eu sabia que isto significava uma gravidez já avançada, três mudanças de lua, ou quatro. Olhando para Clodagh, cuja forma se assemelhava agora à de um fruto muito maduro, senti um profundo arrepio de desconforto. Os sonhos, as visões, os murmúrios entre os habitantes da ilha... Deuses, protegei as minhas irmãs, rezei. Permiti que os seus filhos nasçam ilesos e saudáveis.
- Vamos todas tirar a tarde, até Muirrin - afirmou Clodagh. - Vamos procurar um belo lugar ao sol e sentarmo-nos sem fazer absolutamente nada. Tu também, Sibeal.
Um protesto aflorou-me aos lábios, mas reprimi-o. Nunca tinha visto aquele olhar no rosto de Muirrin, salvo, talvez, quando nos contara que Evan lhe tinha perguntado se ela queria ser sua mulher. A sua felicidade era uma dádiva de grande valor, e eu não faria nada que pudesse estragá-la.
- Biddy, vais voltar a ser avó! - disse eu. Ciem e Annie tinham três filhos, Sam e Brenna um.
As feições afáveis de Biddy coraram de prazer.
- E o meu homem vai ser avô - disse ela. - Não que ele não pense nos meus rapazes como seus filhos também, é claro. Mas isto é diferente.
Evan era o único dos três filhos de Biddy que fora concebido por Gull.
Sam e Ciem eram filhos do primeiro marido. Era fácil imaginar Gull como avô de uma pequena criança. Já o via a cantar canções; a contar histórias; a segurar a mão miúda na sua mão grande e estropiada e a levar o neto até à enseada para ver os barcos a entrar no cais. Sim, era um rapazinho que eu via: uma criaturinha de cabelo aos caracóis com pele cor de amêndoa e travessos olhos pretos. Uma criança robusta e saudável. Recordei a minha visão do filho de Clodagh, débil e minúsculo, nu na floresta, e contive um arrepio.
- Gull já soube da notícia? - perguntei.
Muirrin contou-lhe hoje de manhã - disse Biddy. - Ele precisa de tempo para se habituar a estas novidades, por muito bem-vindas que sejam. Trazem o passado de volta, percebes? Gull não fala disso, mas, há muito tempo, anos antes de nos casarmos, perdeu a família inteira: mãe e pai, irmãs e irmãos, mulher e filhos, todos eles chacinados por salteadores. Se não fosse a intervenção do Chefe, teria posto fim à própria vida. Gull é feliz aqui. Ama a família que tem agora. Mas estas coisas nunca nos largam. A sombra perdura. Ao olhar para o seu novo neto, verá os bebés que perdeu.
Vi vestígios dessa sombra no rosto de Biddy e perguntei-me quantas vezes teria acalmado os pesadelos de Gull.
O pomar de macieiras teria sido um bom lugar para nos sentarmos a conversar, mas nesse dia Clodagh não era capaz de fazer uma caminhada tão longa. O bebé já se tinha virado e estava a fazer uma pressão incómoda em baixo. Doíam-lhe as costas e, entre o seu próprio desconforto e os sonhos de Cathal, não andava a dormir muito.
- O jardim da cozinha, não - disse Brenna, com firmeza. - Se Muirrin estiver a ver a enfermaria, há-de querer lá ir para começar a preparar uma infusão qualquer. E também não pode ser em nenhum lado perto da sala de trabalho, ou Clodagh não será capaz de tirar as mãos do tear. Não sei o que se passa convosco, raparigas de Sevenwaters, mas vocês parecem gostar de estar sempre ocupadas.
- É a influência da nossa mãe - explicou Clodagh. - Ela nunca se sentiu confortável com a preguiça. E se fôssemos para aquela zona abrigada nas traseiras do alojamento dos casais?
- Levem algumas dessas bolachas de aveia convosco - disse Biddy, que, pelos vistos, não tencionava acompanhar-nos. - E um pouco de queijo. Sibeal, eu dou-te um cesto.
Não me admirei que Clodagh fosse ao quarto buscar o seu bordado, para ocupar as mãos enquanto conversávamos. Estava a fazer um debruado numa túnica minúscula, com o desenho de uma alga marinha e curiosos peixes de olhos esbugalhados.
- Não terás de coser um único ponto para o teu bebé - disse ela a Muirrin, com um sorriso, instalando-se num dos dois bancos de madeira que havia naquele recanto ensolarado. A parede do alojamento dos casais abrigava-nos de um lado e, do outro, erguia-se um solitário espinheiro negro. - Tudo o que fiz para o meu pode passar a outrem.
- Ainda bem - replicou Muirrin, com humor. - Até sou capaz de dar pontos num ferimento, mas duvido que esteja à altura de uma obra tão delicada como essa. O meu bebé usará com orgulho o teu trabalho de mãos, Clodagh.
- Já passei as roupas mais pequenas de Fergal ao mais novo de Annie - interveio Brenna. - Ele cresceu depressa. Sai ao pai.
- Onde está Fergal esta tarde? - perguntei distraidamente.
- Com um bando de outras crianças, ao cuidado de Alba. Quando ela assentar e tiver um filho, já será uma especialista. - Brenna mudou de tom.
- Choca-me pensar que Alba tenha gostado daquele fulano, Rodan, que os deuses guardem o seu espírito. Vi-o por dentro assim que ele tentou abrir caminho até ao leito de Suanach. Segundo esta, ele julgava que ela estaria pronta a abrir as pernas assim que ele lhe pedisse. - Olhou de relance para mim. - Espero não te ter ofendido, Sibeal. Nós, mulheres, podemos ser muito francas nas nossas conversas quando não há homens por perto a ouvir.
- Rodan devia estar convencido de que era irresistível - disse Clodagh, espetando a agulha no linho com mais força do que seria necessário. - Mal se viu escorraçado por Suanach, já estava a tentar outra vez, com Flidais. É certo que não devíamos falar mal dos mortos. Mas ficarei contente quando estes homens de Connacht se forem embora. Estes últimos tempos não foram agradáveis. Há um nervosismo no ar.
A semente de uma ideia começara a germinar no meu pensamento, e não era coisa que me agradasse. Svala nua na praia, a brincar com a areia, como se fosse uma criança. O vislumbre de um movimento, nos arbustos no cimo da falésia. Eu já tinha abandonado a ideia de um homem. Depois, a imagem de Svala, nessa manhã, à beira do precipício. Senti um aperto no peito. Era um engano da minha parte. Só podia ser um engano.
- Brenna - perguntei -, achas que era verdade o que os homens de Connacht pareciam estar a insinuar acerca de Rodan na altura do enterro? Que ele não se importava muito se uma mulher era casada ou solteira? Que, se sentisse atracção por ela, abordá-la-ia de qualquer maneira?
Três pares de olhos arregalados viraram-se na minha direcção; ninguém esperara aquela pergunta vinda de mim.
- Ouvi alguns comentários dessa natureza, sim - respondeu Brenna.
- Flidais achava que fora a identidade do seu marido que dissuadira Rodan, não o facto de ela ser uma mulher casada. Nenhum homem no seu perfeito juízo se arriscaria a enfurecer Rat. Mas, porquê a pergunta, Sibeal?
- Tive um estranho encontro com Svala hoje de manhã e ocorreu-me... Perguntei-me se Rodan teria alguma vez tentado...
Brenna olhou para Clodagh, que disse:
- Qualquer homem que se aproximasse de Svala teria de haver-se com Knut. Toda a gente viu Knut a lutar. E toda a gente sabe que ele tem muito orgulho na sua bela mulher, por muito invulgar que ela seja. Segundo Cathal, Knut fala dela de uma maneira que desperta a inveja de alguns homens. Quase como se Svala fosse um troféu.
- Svala é o tipo de mulher que os homens cobiçam - disse Brenna.
- Que sujeito se importa que ela tenha um parafuso a menos quando o seu corpo foi moldado à imagem da deusa do amor?
- Sibeal - disse Muirrin -, não estás a sugerir que Knut teve alguma coisa a ver com a morte de Rodan, pois não?
- Não exactamente, mas...
- Mesmo que Rodan se tenha aproveitado de Svala - disse Clodagh -, e não creio que alguma vez cheguemos a saber se assim foi, Knut não poderia ser responsável pela sua morte. Rodan desapareceu durante a sessão de combates da manhã. Knut esteve presente o tempo todo.
Mas Svala não estivera. A minha mente mostrou-me aquela esplendorosa criatura à beira do precipício, abrindo os braços ao vento, o cabelo a esvoaçar como uma bandeira selvagem e, nos olhos, um brilho de... Vingança? Era muito fácil reconstituir a cena e imaginar que Rodan, atraído àquele lugar pelo desejo por uma mulher que era, sem dúvida, o maior troféu da ilha, se encontrara com ela, a beijara, sentira a pressão súbita das suas mãos fortes e dera por si a cair, a cair ao encontro da morte nos rochedos lá em baixo.
- Estás a pensar em quê, Sibeal?
Não o diria. Não havia provas. Svala era muda e Rodan estava morto. Nunca saberíamos o que tinha acontecido. Isso não impedia a minha mente de continuar a mostrar-me Svala com os braços à volta de Rodan, oferecendo-lhe os seus lábios. Um instante de distracção, não mais do que isso, bastaria para o fazer cair da falésia. Recordei o dia em que ela tinha partilhado o seu peixe comigo e o momento em que eu julgara que ela me ia afogar.
- Estou a pensar em Svala - respondi. - Passei algum tempo com ela esta manhã, na Gruta do Vidente, e contou-me uma história muito estranha.
- Contou-te? - perguntou Clodagh. - Isso quer dizer que ela falou, finalmente?
- Não me contou por palavras. Mostrou-me, numa visão. - Eu não tencionava contar-lhes a história, mas, de repente, precisava de desabafar.
Rodan já tinha morrido; era tarde de mais para contar a sua história. Isso tornava ainda mais importante partilhar a outra, mais estranha ainda.
- Na gruta, com Svala, creio ter visto imagens que vinham da sua mente, não da minha - disse-lhes. - Não consegui perceber se era uma visão real de algo que lhe acontecera, ou uma espécie de... mito. Era assustador. E extravagante, quase como um sonho. Svala ficou muito zangada quando não compreendi bem o sentido do que tinha visto. De uma coisa tenho a certeza: ela está desesperada por sair de Inis Eala. Quer voltar para casa. E a casa dela parece ser... num lugar impossível.
- Conta-nos - pediu Brenna, aproximando-se.
Narrei a história o melhor que podia: a fulminante tormenta, a ilha inóspita e rochosa, os penhascos, a passagem estreita. O alívio de chegar a águas seguras e, depois, o monstro.
- Uma serpente marinha ou dragão de água - disse. - Emergiu das ondas e trespassou o peito de um homem com a sua garra. Pergunto-me, agora, se não estaria lá há mais tempo, empurrando o barco pelo intervalo entre as rochas para encurralar os homens na baía.
A minha audiência de três ficara enfeitiçada pela dramática narrativa.
- Queres dizer que estava a... pescar. - Brenna falou num tom sussurrado.
- Sibeal, parece-me mais uma velha história do que qualquer outra coisa - observou Clodagh. - Imagino-a como parte das aventuras de Cú Chulainn ou de outro herói qualquer. Tens a certeza de que esse barco foi o mesmo que naufragou aqui, no recife? O barco que trouxe Svala e Knut para Inis Eala?
- Penso que sim. Um barco sólido, com um porão de carga e a capacidade de navegar à vela ou a remos. - Desejava, agora, ter prestado mais atenção aos pormenores. - Mas não iam com as velas desfraldadas. Havia homens a remar, muitos homens. Knut era um deles. Quando a tempestade os empurrou contra os rochedos, entraram em pânico e perderam o controlo. O irmão de Ardal, o homem que eu penso que era seu irmão, teve presença de espírito e começou a gritar ordens. Manobrou o barco até à abertura. Depois do ataque do monstro, conseguiu levá-los para terra.
- E depois? - perguntou Clodagh, com alguma ansiedade.
- Não sei. Acabou aqui. Uma visão nem sempre mostra a história toda, ou mesmo a história verdadeira.
Muirrin ouvira-me em silêncio. Uma ruga de concentração vincava-lhe a testa.
- E Svala mostrou-te isto - disse ela.
- Não sei se ela possui o dom da adivinhação e o poder de partilhar a sua visão. Talvez os sentimentos que acumulara dentro de si fossem tão fortes que assumiram o controlo sobre o que apareceu à superfície da água. Tenho a certeza de que aquelas imagens vinham dela.
- Pensei que estava infeliz por causa do que perdeu quando o barco naufragou - disse Brenna. - O filho, em particular.
- Mencionaste Knut e Ardal - disse Muirrin. - E ela? Svala também aparecia na visão?
- Não a vi. Mas o barco era grande. Imagino que as mulheres e as crianças viajassem lá em baixo, no porão, em segurança.
Eu mal conseguia conceber o terror que deveria ter sido estar sob o convés, a sentir o vento e as ondas a fustigar o barco, a ouvir os gritos de pânico dos homens quando perderam o controlo dos remos.
- Se ela tivesse estado no porão, não teria visto o que aconteceu - assinalou Clodagh.
- É verdade. Mas as visões nem sempre mostram a realidade tal como aconteceu. Não são como as memórias. Talvez isto fosse o que ela achava que eu precisava de ver.
- O que querias dizer com isso de Svala querer voltar para casa, Sibeal? - perguntou Muirrin. - Que tem isso a ver com esta visão?
- Ela não foi capaz de mo dizer, é claro. Mas senti o que estava no seu coração. - Na verdade, ainda sentia o poder do desejo de Svala dentro de mim. - Ela quer voltar àquele lugar. Tenho a certeza de que estava a tentar explicar-me que aquela ilha inóspita era a sua casa.
Seguiu-se um longo silêncio.
- É uma loucura - acabou por dizer Brenna. - Não faz sentido. Quem viveria no meio do oceano, num rochedo? Com monstros marinhos à porta?
- Parece-me inverossímel - observou Clodagh. - O barco vinha de Ulfricsfjord, com destino às Órcades. É uma rota marítima muito concorrida. Mercadores usam-na a todo o momento. Se existisse semelhante ilha entre Ulfricsfjord e a costa norte de Erin, nós saberíamos da sua existência. Se uma serpente marinha gigante rondasse aquelas águas, haveria centenas de histórias a seu respeito.
Eu começava a pensar que devia ter falado com Johnny antes de discutir fosse o que fosse na presença de outros, mesmo sendo estes outros as mulheres fiáveis da minha família.
- E se eles não estivessem a caminho das Órcades quando o barco embateu no nosso recife - sugeri -, mas de retorno?
Todas olharam para mim enquanto digeriam aquela possibilidade.
- Estás a sugerir que Knut mentiu a Johnny? - perguntou Clodagh, de sobrancelhas arqueadas.
- Svala tinha a certeza de que a ilha se situava a norte de Inis Eala. Não entre Ulfricsfjord e Inis Eala.
- Porquê mentir a respeito de uma coisa dessas? - perguntou Brenna.
- Uma tempestade, um monstro, quase perder o barco... Knut teria desembuchado tudo.
Eu ainda estava a pensar nas rotas marítimas.
- Existe uma outra possibilidade. Se eles se dirigiam às Órcades e se já tinham percorrido uma distância razoável para nordeste, para lá de Dalriada, e a tempestade os desviasse da rota, é possível que tivessem ido parar a norte de Inis Eala. Talvez o barco estivesse danificado. Talvez tivessem perdido tantos homens que se viram obrigados a desistir do plano original. Podiam ter voltado para trás e navegado para a terra mais próxima. Isso tê-los-ia trazido directamente a Inis Eala.
Havia um desconforto no silêncio que se seguiu. Adivinhei o que Muirrin ia dizer antes de as palavras lhe saírem da boca.
- Sibeal, isto são conjecturas. Que Knut tenha mentido a respeito de uma coisa tão significativa parece-me extraordinário. Além disso, se ele e Svala viviam os dois numa ilha deserta, que fazia ele na tripulação de um barco que partira de um porto irlandês com destino às Órcades? Se as duas versões, esta e a de Knut, fossem apresentadas, lado a lado, sei com toda a certeza qual seria aquela em que as pessoas acreditariam. - Muirrin observou-me com atenção. - És próxima de Ardal, eu sei. Já lhe contaste esta história?
Irritou-me sentir um calor nas faces.
- Não. Vinha da gruta quando Clodagh me chamou para ir ter convosco à cozinha. A única pessoa que eu vi, além de vocês, desde que Svala me mostrou a visão, foi Knut. E não comentei nada com ele. Muirrin, não acredito que estejas a sugerir que eu seria capaz de alterar os factos para que a versão de Knut fosse menos credível do que a de Ardal, quando esta nos for, por fim, revelada. - Sentia-me magoada e sem ânimo. Estava profundamente arrependida de ter partilhado a visão com elas. Já devia ter aprendido que era melhor guardar segredo destas intuições. - Além disso, esta é a versão de Svala, não a de Ardal. Tanto quanto sei, ele ainda não se recorda de nada a respeito de tudo isto.
- Tanto quanto sabes? - perguntou Brenna, os seus olhos saltitando com algum nervosismo entre mim e as minhas irmãs. Era invulgar discutirmos umas com as outras.
- Penso que talvez se tenha lembrado de mais do que já disse - respondi. - Mas não vai falar sobre o assunto. A única coisa que ele quer neste momento é recuperar forças para poder partir.
Mais um silêncio constrangedor.
- E isso é precisamente o que Johnny pretende, não é? - acrescentei, sentindo a tristeza invadir-me de mansinho, apesar do esforço que fazia para resistir-lhe.
Passado algum tempo, Clodagh comentou, com delicadeza:
- Sempre se soube que ele ia partir, Sibeal, assim que se sentisse melhor.
- E o mesmo se passará contigo - disse Muirrin. - É melhor afastares-te de tudo isto, Sibeal. É essa a nossa opinião. Tu salvaste-lhe a vida. Foi um extraordinário acto de coragem. Sei que te preocupas com ele. Mas Ardal é um homem adulto. Há-de sobreviver sem a tua protecção. - Como não reagi, ela acrescentou: - Sibeal, é claro que não acredito que fosses capaz de alterar os factos. Mas foste tu própria quem me falou da dificuldade de interpretar visões e de como o seu significado é, muitas vezes, muito diferente das imagens que se vê. E Svala está longe de ser uma guia fiável nessa matéria.
Afundei-me no meu silêncio, desejando de todo o coração que Ardal tivesse sido o primeiro a ouvir aquela história.
Elas continuaram a conversar, desviando-se da viagem para outros temas. Algum tempo depois, Biddy e Flidais juntaram-se a nós e eu lembrei-me, tarde demais, do motivo por que estávamos ali reunidas. Sentei-me ao lado de Brenna, ouvindo-as tagarelar acerca dos filhos, do trabalho diário, dos maridos. Os comentários de Muirrin não se tinham ainda dissipado, espicaçando-me por dentro, impossíveis de esquecer. Fiz um teste a mim mesma: enquanto as outras mulheres tentavam adivinhar se Clodagh e Muirrin dariam à luz rapazes ou raparigas, imaginei-me numa situação como a de Brenna. Nesse momento, ela começara a contar uma história: Sam estivera a brincar com o pequeno Fergal e dera um pontapé numa bola com tanta força que a fila de roupa pendurada na corda fora directamente parar à lama. E, enquanto nos contava que tinha repreendido Sam e obrigado Sam e Fergal a apanharem as roupas, fazia-o com a voz quente do amor e o riso suave da ternura.
A minha mente evocou uma imagem agradável: ali estava eu, sentada à lareira, o rosto iluminado pela luz das chamas, a esculpir signos Ogham em varas de vidoeiro. Em cima de uma mesa, havia um tinteiro, penas dentro de um frasco, uma folha de pergaminho. Um jovem escrevia, ali sentado. Tinha cabelos castanhos, que lhe caíam sobre os ombros; olhos como as águas profundas sob o céu nocturno. Um rosto magro, de queixo vigoroso, nariz direito, boca generosa. Ardal. E, na esteira diante do fogo, um bebé de cueiros. A criança tinha um tufo de cabelo preto e fino. Estava sentada com as pernas abertas e, entre elas, via-se um pequeno molho de varas de runas. Na minha imaginação, o bebé escolhia uma, agitava-a com o braço e, depois, deixava-a cair e escolhia outra. E mais outra. Os, Ger, Nyd. A criança levantou o rosto para mim, extasiada com a sua própria inteligência, e os seus olhos eram de um claríssimo azul-acinzentado, tão claros que quase não tinham cor. Olhos como os de Finbar. Como os meus.
Repara, Sibeal, disse Ardal no meu devaneio. Ela escolheu as mesmas runas que te foram mostradas naquele primeiro augúrio, depois de me teres salvado a vida. Virei-me para ele, sorrindo, e vi que, para lá das janelas abertas, se estendiam, não os espaços vazios e abertos de Inis Eala, mas os infinitos tons de verde de uma grande floresta. Mais uma druidesa em gestação, disse Ardal.
De súbito, lágrimas inundaram-me os olhos, assustando-me. A cena parecera real. Verdadeira. O meu coração ansiava por ela; o meu corpo estava cheio de um desejo irracional. O que se passava comigo? Eu sabia que aquilo nunca ia acontecer. Pensaste que nunca abdicarias da tua vocação, sussurrou uma voz dentro de mim. Pensaste que nunca ponderarias sequer a hipótese. Mas conheceste o único homem capaz de fazer-te mudar de ideias. Ele é o teu complemento perfeito. É Cathal para a tua Clodagh; é Bran para a tua Liadan. Não admira que tenhas evocado essas imagens. Não admira que te façam chorar.
Isto não. Não podia ser assim. Não permitiria a mim mesma abandonar-me, de novo, a tais fantasias. Expulsá-las-ia do meu pensamento. Porque o juramento já fora selado, se não formalmente, até articular as palavras do voto, por certo no meu coração. Quem poderia negar o chamamento dos deuses? Desde criança que eu sabia qual seria o meu caminho; soubera-o quando era pouco mais velha do que aquela rapariguinha, a minha filha, que nunca chegaria a nascer.
Mais tarde, deixei as minhas irmãs e regressei à enfermaria. Descobri que Ardal fora caminhar com Gull.
- Foram ao lugar onde se realizou o enterro do barco - disse-me Evan. - Não acredito que Ardal consiga lá chegar, mesmo com apoio, mas ele insistiu em tentar.
Tirei o meu manto do gancho onde o tinha pendurado, com a intenção de segui-los.
- Talvez eles fiquem melhor sozinhos, Sibeal - observou o meu cunhado, numa voz delicada. - Ardal já passou muito tempo com um ar frágil à tua frente. Essas coisas são constrangedoras para a maior parte dos homens, sobretudo quando a mulher é alguém que eles estimam.
- Mas...
As palavras de Evan deixaram-me atónita. Não me parecera que Ardal, naqueles primeiros tempos, se importasse com o facto de eu presenciar a sua debilidade. Pelo contrário, mostrara-se sempre disposto a falar e a ouvir. Mas eu não podia negligenciar o conselho de Evan. Era o palpite de um homem, algo que não me teria ocorrido. Quando recolhi ao meu quarto, a imagem traiçoeira que me assaltara antes tornou a invadir-me: esse futuro impossível em que eu era a mulher de Ardal e a mãe da sua filha. Só de pensá-lo, já sentia os braços dele à minha volta, os seus dedos a acariciarem-me o cabelo. Todas as palavras doces que ele me tinha dito acudiam-me, num murmúrio, ao pensamento, ténue brisa primaveril atravessando a paisagem inóspita do Inverno. Dentro de mim, senti algo desabrochar com uma graça tímida, esticando-se para a luz.
Rezei. Procurei sabedoria nas vozes dos deuses. Murmurei o meu caminho ao longo de excertos de doutrina. Estudei as runas de carvão que marcara nas paredes logo no primeiro dia, antes de saber que Ardal existia. Observei as sombras a alongarem-se.
Por fim, eles chegaram. Ouvi a voz de Gull, grave e encorajadora, e a resposta sincopada de Ardal, uma palavra, uma pausa, outra palavra. Sentada atrás da cortina que ocultava o meu quarto, senti o cansaço que o acometia.
Não apareci na enfermaria. Deixei-me ficar em silêncio na minha cama, perguntando-me o que Ciarán julgaria melhor naquelas circunstâncias. Como interpretaria o meu sábio mentor a visão de Svala? Talvez achasse preferível que eu contasse primeiro a Johnny, antes de contar a Ardal. As respostas estão dentro de ti, Sibeal. Quase o ouvia dizer-mo. Ciarán nunca me indicava o que eu tinha de fazer. Por vezes, recordava-me que os conhecimentos adquiridos nos nemetons me ajudariam a encontrar as minhas próprias soluções. Era a via do druida. Às vezes, quando as vozes dos deuses se silenciavam, podia ser um caminho muito solitário.
Chegada a hora, saí para jantar. Finda a refeição, os músicos tocaram, e eu contei a história de Deirdre e Naoise, que é uma história triste de amor. A seguir, Kalev foi persuadido a levantar-se e a oferecer-nos uma história da sua terra natal, um conto estranho e violento acerca de uma rapariga que se casara com uma serpente. No fim, elogiei-o, fazendo-o, de novo, corar. Quando regressei à enfermaria, Ardal já dormia.
Algo me acordou em sobressalto. Sentei-me na cama, com o coração disparado. Tudo estava em silêncio. Teria ouvido a porta a ranger instantes antes? Ou seria apenas o vento? Não: do outro lado da cortina, ouvia passos furtivos no chão da enfermaria. Um pressentimento gelado invadiu-me, sem deixar espaço às explicações mais lógicas: Gull dirigindo-se às latrinas, lá fora; Ardal acordado e irrequieto. Deslizei para fora da cama e agarrei no xaile. Ao afastar a cortina para o lado, uma voz gritou-me em pensamento: socorro!
O lugar estava mergulhado na quase penumbra, o fogo fora abafado, as candeias extintas, as velas apagadas com os dedos. Havia apenas luz suficiente para eu me aperceber do contorno de uma massa negra, informe, no sítio onde deveria estar a figura deitada de Ardal; algo se movia, debatendo-se, e ouvi o som de uma dor abafada. Uma vertigem de sentimentos atravessou-me; choque, terror, desespero, ódio. Uma vontade indómita de sobreviver; a necessidade sombria de matar. Dois homens fechados numa luta feroz. Um deles estava a morrer. Senti o coração soluçar, hesitar no meu próprio peito. Ele cedia, deixando-me para sempre...
Atravessei a sala a correr, registando o cabelo loiro quase branco do agressor, a sua posição invulgar, com um joelho sobre a enxerga, os seus dedos no pescoço de Ardal, pressionando-o com força. Agarrei-lhe no braço, tentando afastá-lo dali. Dir-se-ia uma rocha, inamovível.
- Gull. - gritei. - Gull, socorro!
O braço regressou, sacudindo-me como a um incómodo insecto. Caí redonda no chão, batendo dolorosamente com a anca e o cotovelo. Vacilei à beira do pânico absoluto. Deuses, dali a instantes Ardal estaria morto e eu não podia, não podia... És uma druidesa, Sibeal, disse uma voz miúda e forte dentro de mim. Usa o teu conhecimento. Usa o que já está aqui. Uma distracção. Só precisava que ele o libertasse um instante. Um instante de magia elemental - usa o que já está aqui: o fogo, brilhando, vermelho, sob um manto de cinzas. Agora, depressa! Concentrei a mente naquele vermelho, sentindo o seu calor, sentindo a sua força a pulsar-me nas veias.
Ajuda-me. Ajuda-nos. Disse uma palavra que tinha aprendido com Ciarán, uma palavra de poder.
O fogo cintilou com um brilho súbito, as chamas ganhando altura. O agressor exclamou algo, talvez uma imprecação nórdica, e, nesse preciso instante, Ardal rebolou para fora do seu alcance, caindo da enxerga e aterrando no chão ao meu lado. A sua respiração lembrava o som do metal a arranhar a pedra.
Tentei pôr-me de joelhos e, depois, de pé. O fogo já esmorecera. Knut estava muito quieto, virado para mim; a luz bruxuleante tremeluzia nos seus olhos e reflectia-se na faca que ele trazia presa ao cinto.
- Estavas a tentar matá-lo - disse eu, ouvindo o tom gélido, metálico, da minha própria voz. - Vi-te debruçado sobre ele, com os dedos no seu pescoço. Vi-te.
- Não, não - disse Knut, dando um passo na minha direcção. - Não veres nada. Engano. - A sua mão deslocou-se para o cabo da faca. - Não veres nada. Sim? - Ouviu-se um pequeno ruído metálico, e a faca estava agora nas suas mãos.
Como Ardal conseguiu fazê-lo, não sei, mas levantou-se num ápice, agarrou-me pelo ombro e empurrou-me para trás dele. Depois, abriu os braços para me proteger. As suas mãos tremiam. A voz saiu-lhe num sopro áspero e, embora tivesse falado em nórdico, consegui adivinhar o significado: toca-lhe com um dedo e és um homem morto, juro-te.
Um estrondo: a porta das traseiras abriu-se de rompante. Gull entrou em grandes passadas. A luz da candeia que trazia projectou um turbilhão de sombras nas paredes em torno do quarto.
- Em nome dos deuses, o que se passa aqui?
Num momento de distracção, Knut moveu-se, desferindo um golpe com a faca. Ardal gritou, cambaleou e caiu. Ao cair, bateu com a cabeça na arca ao pé da enxerga, com uma pancada seca.
- Alto! - rugiu Gull, correndo para nós, e seguiu-se um alvoroço. Baixei-me e pousei a mão no ombro de Ardal. Estava tão quieto. Tão terrivelmente quieto. Eu já ouvia a aproximação ruidosa do Ankou na sua carroça de pedras. Depois, mais perto, o som de um golpe e de uma pancada, seguido da voz de Gull:
- Sibeal, se conseguires levantar-te, leva a minha vela, acende as duas candeias e traz-me um pedaço de corda. Ardal, estás ferido?
Fiz o que me fora dito, sabendo que não se podia fazer nada por Ardal sem uma boa luz. Com grande presença de espírito, Gull pousara a sua vela numa prateleira ao voltar para dentro. Encostei a chama aos pavios de dois candeeiros a óleo. Uma luz cálida espalhou-se pela enfermaria, revelando o corpo de Knut, deitado de bruços, com a cara virada para baixo e visivelmente inconsciente. O pé de Gull estava plantado nas suas costas.
- Ardal está ferido - disse eu. Não parecia uma pessoa que acabara de praticar um acto de magia elemental. A minha voz era a voz de uma criança assustada.
- Sibeal, a corda. Evan tem uma laçada lá atrás.
Quando a trouxe, Gull disse-me:
- Tens de fazer os nós por mim. Punhos atrás das costas, tornozelos unidos. Ele não tardará a recuperar os sentidos; só lhe bati com força suficiente para atordoar e, por experiência própria, conheço a sua força.
- Ardal...
- Eu ajudo-o quando isto estiver feito. Assim, não, passa-o pelo meio e por cima... É isso mesmo. Depois, terei de pedir-te que vás buscar ajuda. Não vou deixar-te aqui sozinha com Knut, mesmo de mãos e pés atados. Que estava ele a fazer, em nome dos deuses? Tentou atacar-te?
- Teria morto Ardal. Acordei e Knut estava ali, a enterrar os dedos no pescoço dele. Depois, golpeou-o com a faca. Gull, por favor, vê se Ardal está bem. Está inconsciente e penso que a sangrar...
- Temos de fazer isto primeiro. Agora, os tornozelos. Consegui desferir-lhe um belo golpe porque ele foi apanhado de surpresa. Não gostaria de tentar a minha sorte uma segunda vez. Amarra-o com firmeza.
Gull puxou o nórdico até à parede, colocando-o numa posição sentada.
Deuses, não permiti que Ardal tenha morrido, suplico-vos... Farei qualquer coisa, qualquer coisa que queirais que eu faça...
Ardal estava deitado tal como eu o deixara, a cabeça descaída para o lado, o rosto branco como a cal. Havia uma mancha escura de sangue no chão, ao seu lado. Por favor, por favor...
- Traz um candeeiro para aqui, Sibeal.
Gull pôs a mão no pescoço do homem caído, procurando a batida do coração. Eu só queria que o meu coração batesse pelo de Ardal; enterrei os dentes no lábio, à espera.
- Ainda não foi desta que ele se ficou - disse Gull, e senti lágrimas inundarem-me os olhos e caírem-me sobre as faces, bem-vindas como as chuvas de Primavera. - Arregaça-lhe a manga esquerda, está bem, Sibeal? Penso que o sangue vem daquele braço. Ah, sim... Um golpe feio, aqui, mas não parece fundo. Por ora, vou atar-lhe um pedaço de tecido à volta. Quanto à cabeça... - Chegou-se mais acima, segurou na cabeça de Ardal com uma mão, apalpou-lhe delicadamente o crânio com a outra, sob a espessa camada de cabelo. - Ele vai ficar com uma enxaqueca monstruosa e com um galo do tamanho de um ovo; aliás, já está a inchar. Mas a minha opinião é que sobreviverá tanto a isto como ao golpe da faca. Ardal é um homem em missão, mesmo que não saiba muito bem de que missão se trata. Não se deixará travar por uma coisa destas. Quanto a Knut, tem uma ou duas explicações a dar, e não me parece que isso possa esperar pela manhã.
- Obrigada - disse eu, limpando as faces. - Obrigada, Gull. Por teres entrado quando entraste. Por nos teres salvado. Por seres tão sábio e sereno. Por me teres dito que Ardal não estava morto.
- Só gostava de ter sido mais rápido. Agora, é melhor ires buscar ajuda. A Johnny, directamente. Pede-lhe que traga Gareth e Cathal, e talvez um dos homens que falam a língua do Norte, se for possível ir buscar alguém sem acordar a comunidade inteira. Creio que precisamos de ouvir os dois lados desta história, seja o que for que ela venha a revelar-se. O mais certo é encontrares alguém a caminho daqui; foi um grito e pernas. O suficiente para dissuadir um homem de ir sozinho às latrinas a meio da noite durante muito tempo.
Fui buscar o meu manto ao pequeno quarto e regressei pela enfermaria. Gull pusera uma almofada por debaixo da cabeça de Ardal e um cobertor sobre as suas pernas. Ardal mexeu-se; murmurou qualquer coisa na sua língua natal.
- Deixa-te estar quieto, filho - disse Gull, em voz baixa. - Estás ferido. Vou só procurar uma faixa para te ligar o braço, e Sibeal está de saída para ir buscar Johnny.
- Não me demoro nada - disse eu, tentando uma voz tranquilizadora e saindo-me um coaxo sufocado.
Quando me aproximei da porta, Ardal falou. O som da sua voz parou-me o coração. Dir-se-ia que abrira uma janela e se deparara com o seu pior pesadelo. Percebi nesse momento que ele tinha, por fim, recuperado a memória.
- Abandonámo-los. Que os deuses tenham piedade de nós, nós deixámo-los ficar para trás.
Capítulo 9
SIBEAL
Eles foram à procura de abrigo, de um sítio seguro... Se ele não tivesse voltado mais cedo... Eles não queriam ouvir... Quando Paul tentou...
Depois do longo silêncio, as palavras saíam em atropelo da boca de Ardal, como um rio a romper uma represa. Não havia maneira de mantê-lo quieto. Apesar do golpe, que Gull protegera com uma ligadura - Evan cosê-lo-ia mais tarde, à luz do dia -, não queria sentar-se, não parava de andar de um lado para o outro, gesticulava, o corpo possuído por uma energia irrequieta. Não fazia muito sentido o que dizia.
Eu tinha batido com força à porta de Johnny, aliviada por ele e Gareth viverem numa cabana à parte, uma vez que a alternativa teria sido acordar a camarata dos homens em peso. Gareth fora buscar Kalev e Cathal; Johnny e eu tínhamos regressado à enfermaria. Quando lá chegámos, Knut já recuperara a consciência e tanto Evan como Muirrin já lá estavam, atraídos pelo meu grito.
Assim que os outros homens entraram, Johnny ordenara que se desatassem as cordas que prendiam Knut. O nórdico parecia tão ansioso por explicar-se como Ardal, mas Johnny silenciou-o.
- Terás a tua oportunidade de falar, Knut. Mantém a boca fechada até eu te dizer que chegou a tua vez. E não te mexas, a menos que queiras ser amarrado outra vez.
- Mas...
- Tu ouviste-me.
Kalev e Gareth posicionaram-se, um de cada lado de Knut. Cathal veio pôr-se atrás de mim, perto da lareira.
Ardal continuava a falar.
- ...e nós deixámo-los lá. Paul tentou... Ele tentou, mas... - Fez um gesto bruto com o braço ileso, falhando o nariz de Gull por um triz.
- Tenho de ir, tenho de ir já... Eles ainda podem estar vivos...
- Ardal - disse Johnny, dando um passo em frente para pôr as mãos sobre os ombros do outro homem -, nós queremos ouvir a tua história. Mas não assim, aos pedaços. Respira fundo e senta-te.
- Eu não posso... Eu...
- É uma ordem - declarou Johnny. - Senta-te aí ao lado de Gull e não te levantes enquanto eu não te der permissão para isso.
Ardal sentou-se, a inquietação estampada no rosto.
- O meu nome é Felix - afirmou, numa voz abafada.
Tive de lutar contra o impulso de ir ter com ele e apertá-lo nos meus braços. Fiquei onde estava, no outro banco, ao lado de Muirrin e Evan. A melhor maneira de ajudá-lo era permanecer calma. E eu não me sentia de todo calma.
Johnny aquiesceu.
- Muito bem, Felix. Nós precisamos de ouvir a tua história, e é evidente que já não desejas escondê-la de nós. Mas tudo a seu tempo. Quero um relato claro e verdadeiro do que acabou de acontecer aqui. Sibeal, vamos ouvir a tua versão dos acontecimentos.
Levantei-me, pensando que a ocasião assim o exigia, e descobri que estava a tremer. Unindo as mãos com firmeza, descrevi a minha experiência: o súbito despertar, consciente de que algo de errado se passava; a passagem para a outra sala e a imagem dos dois vultos fechados numa luta; a percepção de que Knut estava a tentar matar Ardal. Felix. Teria de habituar-me ao nome. Falei-lhes da minha tentativa de intervir, contei-lhes que Knut me atirara para o chão. Não falei do que tinha sentido: o tumulto interior dos dois homens, as suas sombrias emoções.
- Criei... uma distracção, com o fogo. Knut largou Ardal. Depois, eu... eu dirigi-me a Knut, acusei-o... Ele negou, disse-me que estava enganada. Estava zangado. Julguei que ia atacar um de nós, talvez os dois. - A minha voz vacilou.
- Não temos pressa, Sibeal - disse Johnny.
Respirando fundo, para me acalmar, continuei.
- Ardal pôs-se à minha frente, e Knut golpeou-o com a faca.
Nunca me esqueceria disso: perante a faca de Knut e o seu olhar assassino, Ardal, sem pensar duas vezes, usara o seu corpo para escudar o meu. Tão rápido. Tão corajoso. Teria morrido para me salvar.
- E, depois, Gull entrou - prossegui. - Não vi o que aconteceu em seguida, estava a ajudar Ardal... Felix... Mas Gull atingiu Knut, e Knut caiu. Gull disse-me para ir buscar a corda e pedir ajuda, e foi o que fiz.
- Obrigado, Sibeal. Senta-te, por favor. - Johnny virou-se para Gull.
- É um relato fiel, Gull?
- A mim, parece-me correcto - respondeu ele. - Estava nas latrinas quando ouvi Sibeal a chamar. No momento em que entrei, Ar... Felix estava virado para Knut com Sibeal atrás dele. Knut usou a faca; Felix caiu. Perante esta situação, imobilizei Knut. - Olhou de relance para o nórdico. Não havia nenhum julgamento no seu olhar. Assim era o código que vigorava em Inis Eala: todos seriam ouvidos antes que se apurasse a culpa ou a inocência. - Felix estava ferido, talvez Sibeal também estivesse. Alguém tinha de ir buscar ajuda. Por isso, dei um sopapo no queixo de Knut, apenas o suficiente para pô-lo fora de combate e podermos amarrá-lo. Assim que lhe garanti que Felix viveria para ver nascer o Sol, Sibeal sentiu-se pronta para vos ir buscar. - Gull sorriu para mim, mas o sorriso desfez-se. - Felix tem nódoas negras no pescoço. Mostra-as, Felix. Um homem que faz pressão naquele ponto específico sabe bem ao que veio. A sua intenção é matar depressa, com eficiência, em silêncio. Se não houvesse uma vidente no quarto ao lado, Felix não teria vivido para nos contar a sua história. O seu assassino podia ter entrado, consumado o acto e tornado a sair antes de eu voltar das latrinas. Esse homem talvez achasse que eu só repararia que o doente ao meu cuidado estava morto quando ele não acordasse para tomar o pequeno-almoço. Isto, naturalmente, não é facto, mas teoria.
- Isso não é importante agora... Nada disto tem importância... Há homens a precisar de ajuda, homens em sofrimento, eu tenho de ir para lá...
- Basta. - Havia um certo tom de voz, um tom de voz muito discreto, que eu supunha que pusesse em sentido até os mais calejados guerreiros de Inis Eala. Johnny falara nesse tom, e Felix calara-se, mas a tensão dentro dele levara-me à beirinha do banco, cheia de impaciência. - Talvez seja melhor Felix ir descansar agora e contar-nos a sua história de manhã - acrescentou. - Evan? Muirrin?
- Não! - gritou Felix, levantando-se de um salto e reprimindo um grito de dor. - Têm de ouvir a minha história esta noite! Há vidas em jogo!
- Não me parece que estejas em condições de contá-la - retorquiu Johnny.
- Tenho uma sugestão - interveio Gull, com serenidade. - E se deixássemos Sibeal fazer as perguntas e os outros recuassem um pouco? É evidente que Felix precisa de contar isto agora. O rapaz passou por um mau bocado. Um homem tem de ser meio cego para olhar para a cara dele e não ser capaz de ver isso.
Fazia sentido. E em quem mais se poderia confiar para ser calmo e justo se não num druida? E se Ardal... Felix - eu tinha de pensar nele como Felix - confiava em alguém ali presente, esse alguém era eu. Mas, fazê-lo sob o escrutínio de todos, fazê-lo na presença de Knut, a meros passos de distância, Knut com o seu maxilar cerrado, os olhos a brilhar e a raiva a crescer dentro dele a cada palavra que Kalev traduzia... Eu teria de encarar isto como uma prova de força interior.
- Por favor - disse Felix. - Por favor, ouçam-me.
Palavras rebentaram nos lábios de Knut, uma furiosa torrente de nórdico.
- Knut opõe-se a esta ideia - disse Kalev. - Ele acredita que, dado o seu afecto por este homem, Sibeal não será imparcial. Conseguirá persuadir-vos a todos a acreditar na história de Felix e não na dele, por mais extravagante que aquela seja. Não duvidem de que Felix já lhe contou esta história e de que ela a recebeu instantaneamente como sendo verdade, como acontece com as mulheres que se deixam dominar pelos seus sentimentos. Este homem é um mentiroso, um manipulador. Knut oferece-te o seu respeito, Johnny, e pergunta se este assunto pode esperar pela manhã, para ser ouvido por um grupo representativo da comunidade da ilha. - Kalev pigarreou, baixando os olhos. - Traduzi, à letra, o que Knut disse.
Johnny virou-se para Knut muito devagar. Falou-lhe em nórdico, num tom ponderado. Quando terminou, disse:
- Acabei de dizer a Knut que ouvirei a sua história antes de ouvir a versão de Felix. Isto dará a Felix tempo para se recompor. Disse-lhe claramente que acredito que temos aqui um grupo representativo, esta noite, e que reuni, aliás, este conjunto particular de pessoas porque tenho plena confiança em todos vocês. Knut não compreende, talvez, o que significa ser um druida. - Johnny olhou para mim, e vi o fantasma de um sorriso pousar nos seus lábios um instante e desaparecer em seguida. - Por fim, tornei a repetir o que a agitação do momento pode ter levado alguns a esquecer: em Inis Eala, sou eu o chefe, e a decisão final em qualquer assunto de peso é minha e só minha. - Olhou para Kalev. - Kalev, por favor, pede a Knut que nos dê a sua versão do que aconteceu esta noite. Diz-lhe que se cinja aos factos e que seja breve. Pode começar por explicar-nos o que estava a fazer na enfermaria a meio da noite, com uma arma na mão.
Não observei Knut enquanto nos contava a sua história, e não olhei para Kalev enquanto ele a traduzia. Os meus olhos tinham-se fixado no homem que agora conhecíamos pelo nome de Felix, e o meu coração sentiu a força dos sentimentos que o povoavam: desgosto, culpa, horror, raiva.
Uma necessidade desesperada de agir, tão desesperada que quase raiava a loucura. Via-se obrigado a reunir todas as suas forças para permanecer ali sentado, ao lado de Gull, em silêncio. Pedi-lhe em pensamento que olhasse para mim, e ele olhou. Um rosto de onde desaparecera toda a cor. Olhos cheios de demónios. Boca contraída numa fina linha de tristeza, maxilar tão cerrado como o de Knut. Mãos fechadas em punhos, nós dos dedos esbranquiçados. Se alguma vez um homem precisara do conforto do toque, era ele, naquele momento. E eu ansiava por rodeá-lo com os meus braços e dizer-lhe que ia correr tudo bem. Sentia um desejo ardente de sentir o seu coração a bater na minha pele. Deuses, estaria corada? Ardiam-me as faces.
Que pensaria ele? Pára, Sibeal; éperfeitamente inadequado.
Havia um sinal que eu podia dar-lhe, e foi o que fiz. Com a máxima discrição possível, cruzei os dedos indicadores de cada mão, um direito, outro de través, para fazer a runa Nyd: força interior, coragem na presença do impossível. Mantive o desenho apenas um instante, pois não tinha qualquer desejo de dar a Knut mais uma razão para duvidar da minha imparcialidade.
Felix precisaria de ajuda para levar a cabo o seu relato, e eu era a pessoa mais indicada para o apoiar. Quando recolhi as mãos no regaço, Felix descerrou os punhos e fez com as duas mãos a runa Ken, a tocha. Luz nas trevas.
Knut falou com veemência, ilustrando com muitos gestos a sua versão.
A tradução de Kalev era muito mais serena.
- Aquele homem, Felix, tem andado a espalhar mentiras a meu respeito, mentiras perigosas. Sim, vim aqui para assustá-lo. Sim, esperei lá fora que Gull saísse do caminho. Não se trata de desrespeito para com Gull, um guerreiro valoroso, um homem de coragem, mas é uma piada recorrente entre os homens desta terra que ele vai às latrinas três ou quatro vezes durante a noite. A minha intenção não era matar. Levo sempre a faca comigo. No lugar de onde venho, só um louco andaria pelas ruas de noite sem uma arma a postos. Não esperava que a rapariga acordasse e viesse ao nosso encontro. Tenho a certeza de que não fiz barulho nenhum. A minha intenção era pregar um susto a esse homem, avisá-lo de que teria de parar de espalhar as suas pérfidas histórias. Ele quer dar uma má imagem de mim para compensar as suas próprias falhas. Quer que me mandem embora.
Eu não fiz nada de mal. Nada. Este homem é um metediço. Só diz mentiras.
- Kalev - disse Johnny -, relembra a Knut que eu lhe ordenei que se cingisse aos factos. Querias assustar Felix, dizes tu. Como o fizeste?
Knut estava de pé, com as mãos nas ancas, a nódoa negra provocada pelo golpe de Gull escurecendo-lhe a pele branca do rosto.
- Pressionei-lhe o pescoço com os dedos, ali, onde ele tem a marca. - Ao fitar Felix, não fez qualquer esforço para disfarçar a hostilidade do olhar. Aqueles olhos diziam claramente: devias estar morto. - Não para matar. Por que haveria eu de matar, aqui, em Inis Eala, um lugar tão bom? Só queria assustá-lo, dar-lhe uma lição. A rapariga entrou a correr, pôs-se na frente, caiu. O homem caiu. Tudo se baralhou, era difícil ver no escuro, havia gritos, comoção. Quando tentei ajudar, ela pensou que eu ia atacá-la. Chamou-me assassino. Por que faria eu uma coisa dessas? Atacar uma mulher indefesa? Na confusão, o homem ficou ferido. Um acidente. - Quando Kalev acabou de traduzir isto, Knut acrescentou: - Gull atingiu-me e já não vi mais nada. Fico-lhe grato por não me ter batido com mais força. - Premiou Gull com o que parecia ser um sorriso de genuína admiração.
- Obrigado, Kalev - disse Johnny. - Pergunta a Knut se tem mais alguma coisa para dizer. Não quero saber a sua opinião a respeito de Felix, de Sibeal ou seja o que for desta situação, só quero os factos.
Breve troca de palavras.
- Knut diz que já concluiu a sua exposição e agradece-te pelo teu sentido de justiça. Nem todos os chefes lhe teriam permitido que se explicasse, dadas as circunstâncias.
- Diz a Knut que pode sentar-se.
Knut sentou-se no banco ao lado da enxerga. Kalev e Gareth permaneceram de pé, um de cada lado.
- Estamos prontos para ouvir a versão de Felix, Sibeal - acrescentou Johnny. - Qual a melhor maneira de fazer isto?
Confia nos teus instintos, disse a minha voz interior. Fui sentar-me no tapete à frente da lareira, não muito longe dos pés descalços de Felix. Controlando a respiração, bloqueei a minha consciência da presença dos outros naquela sala e concentrei-me no homem ao meu lado. Gull sentou-se à minha beira, como um sábio guardião.
- Conta-me o que acabou de acontecer, Felix - pedi, como se nós os três estivéssemos a partilhar histórias antes de nos irmos deitar. Senti o calor do fogo; vi a sua luz faiscar de modo estranho nos olhos de Felix, chama em água escura. - Começa pelo momento em que acordaste, antes de eu entrar.
- Mas isto não é...
Estendi o braço e pousei a minha mão sobre a mão dele, no joelho.
- Eu sei que a outra parte é mais importante para ti - retorqui -, mas tens de contar esta primeiro. Lembra-te que estás entre amigos.
- Eu estava a dormir. Ouvi... ouvi primeiro o estalido da porta, quando Gull saiu. Ouvi-o sem acordar. Depois, de súbito, senti a mão no pescoço, a pressão dos dedos... Sabia que era Knut. Quem mais poderia ser?
Fiz-lhe a pergunta antes de qualquer outro ter tempo de fazê-la.
- Como sabias tu quem ele era? Conseguias vê-lo?
- Eu mal tinha acordado e a luz era fraca... Sabia-o porque ele já me tinha ameaçado antes. Disse-me que me mataria se eu contasse a história do nosso passado. Ao sentir a pressão dos seus dedos, ao sentir o coração disparar e o ar desaparecer, soube que ele viera consumar essa ameaça. Mas não disse nada. Não espalhei qualquer história a seu respeito, boa ou má. Não havia nada a dizer. Até esta noite, a única coisa de que eu me lembrava acerca deste homem era que ele tinha embarcado no Freyja como membro da tripulação.
Senti-me gelada dos pés à cabeça.
- Quando é que Knut te ameaçou? - perguntei.
- Pouco tempo depois de aqui chegarmos. Nos primeiros dias, quando não me lembrava de quase nada. Ele pensou que eu estava a disfarçar, à espera do momento certo para contar. Disse-me que, se eu falasse do que tinha acontecido, ele me rasgaria a garganta. - Silêncio, troca de olhares chocados entre os ouvintes. - E, quando achou que eu tinha ignorado o seu aviso, ameaçou-te a ti, Sibeal. Foi no dia em que encontraste o corpo daquele homem. Knut disse... - Pigarreou. - Disse que sabia que tu e eu éramos amigos. Disse-me que tu gostavas de passear nos trilhos da falésia, sozinha. Insinuou... insinuou que podias sofrer um acidente. - Levantou o rosto e olhou directamente para a outra ponta da sala, para Knut, que o observava de lábios cerrados. - Não percebi que segredo sombrio poderia levar um homem a cometer tal acto de crueldade. Não o percebi na altura. Por isso, planeei sair de Inis Eala o mais depressa possível, sabendo que, se partisse, não contaria segredo algum e tu ficarias em segurança, Sibeal.
- Tenho uma pergunta para fazer a Knut - disse Gareth.
Johnny aquiesceu.
- Knut, se isto é verdade, a que histórias te referias há pouco? Tanto quanto sei, Felix mal saiu da enfermaria desde que deu à costa em Inis Eala, e mal trocou uma palavra com alguém, excepto com os curandeiros e Sibeal. Não ouvi quaisquer histórias a teu respeito, ou a respeito do teu passado, para além do que tu próprio contaste a Johnny, e nada que sugerisse que és um malfeitor. Aposto que, quando digo isto, falo por todos os homens. Eles têm uma grande consideração por ti.
Quando Kalev acabou de traduzir, Knut fitou Felix com um olhar gelado.
- Ele mente - afirmou. - Não fiz ameaças. A sua história é pura fantasia.
- Então, é a palavra de um homem contra a palavra de outro - disse Johnny. - Sibeal, é melhor ouvirmos o resto da versão de Felix.
Eu tinha um exército de perguntas para lhe fazer, mas teriam de esperar. Conduzir aquela conversa como Johnny precisava que ela fosse conduzida era, a longo prazo, a melhor maneira de ajudar Felix. Roguei aos deuses, fosse qual fosse a sua história, que não permitissem que lhe chamassem mentiroso.
- Felix, vamos regressar à noite de hoje. Disseste-nos que tinhas acordado com as mãos de Knut a pressionarem-te a garganta. E depois disso, que aconteceu?
- Tudo se apagava, o meu coração estava quase a rebentar, comecei a ver tudo negro. Tão fraco, deuses, sentia-me tão fraco... Não podia fazer nada para me libertar da pressão daquela mão. Um grito súbito, o teu, Sibeal, e o meu agressor lançou o braço para trás, mas continuou a agarrar-me. As chamas refulgiram de um modo estranho, vi sombras a dançar no tecto, e a pressão desapareceu... Rebolei da enxerga para o chão, e ali estavas tu, Sibeal, encolhida, ferida. Se já tinha sentido medo antes, com os dedos dele no meu pescoço, as rodas da carroça do Ankou rangendo mesmo ali, à porta da enfermaria, agora, era como se soubesse, de facto, o que era o medo.
Tu levantaste-te, com a coragem de um guerreiro, e confrontaste-o com a verdade. Ele disse que era tudo um equívoco, mas mentiu, porque, enquanto falava, desembainhou a faca e avançou para ti. Não parei para pensar. Ali estava eu, de pé entre vocês os dois, esperando que as minhas forças durassem tempo suficiente. Depois, bem-vindo como o calor do Sol no solstício de Inverno, entrou Gull. A porta rangeu, ele chamou-nos, Knut esfaqueou-me, uma, duas vezes. Bati com a cabeça ao cair. Perdi os sentidos. Quando acordei... - Tremia convulsivamente. - Quando acordei, ali estava ela, no meu pensamento, a memória que me escapou durante tanto tempo. Há uma história para contar, uma história de fazer chorar homens graúdos. Antes de o dia raiar, essa história tem de ser contada. - Felix olhou em frente, para Knut, cujo rosto parecia talhado na pedra. - Nós fizemos uma coisa terrível - disse. - Nós traímos os nossos companheiros. Knut seria capaz de matar para impedir que esta história se soubesse. - Baixou os olhos. - Uma estranha reviravolta, Sibeal. Até ser esfaqueado, até cair e bater com a cabeça, não tinha recuperado a memória que ele tanto temia.
Durante algum tempo( um silêncio absoluto abateu-se sobre a enfermaria, apenas interrompido pelo marulho longínquo e insaciável do mar.
- Obrigado, Felix - disse Johnny. - É melhor ouvirmos essa tua história. - Olhou em redor para o círculo de observadores: Cathal com o ombro encostado à parede, uma silhueta comprida, envolta no seu manto; Muirrin e Evan sentados ao lado um do outro, ao pé da lareira; Gull do outro lado, junto de Felix; eu de pernas cruzadas sobre a esteira. O carrancudo Knut, no meio dos seus dois imponentes guardiães. A luz das chamas tremeluzia no círculo de rostos sombrios. - Há mais alguém que aches que deveria estar presente para ouvi-la? - perguntou.
Felix abanou a cabeça. Johnny olhou para mim e aquiesceu.
- Felix - disse eu, estranhando o nome -, quando e onde começa esta história? Com a partida do barco de Ulfricsfjord, ou mais cedo? Podes contar-nos o que te levou a ti e ao teu irmão até Erin?
- Eu... Claro que sim, mas eu... - Felix inspirou fundo, todo ele estremecendo. - Venho de Finistère, em Breizh, a região conhecida entre vós pelo nome de Armórica. O meu pai é um conselheiro do duque Remont, que ali governa. A minha mãe é uma mulher nórdica. O meu irmão e eu crescemos a falar as duas línguas. Partimos de nossa casa quando... - Fraquejou, os olhos ensombrados pela memória do passado. - Um passo de cada vez - disse eu, num sussurro.
- Paul tinha a mestria e a força necessárias para ser um guerreiro; era um membro da guarda do duque. Eu era mais talhado para a carreira intelectual. Cheio de ideias. Argumentativo. Demasiado ansioso por dizer o que pensava. Os meus tutores avisaram-me, mas nunca aprendi a manter a boca fechada.
Um ruído irónico da parte de Knut quando Kalev lhe traduziu aquela frase. Gareth silvou-lhe algo ao ouvido, e Knut calou-se.
- Nem tudo isto tem de ser ouvido esta noite - prosseguiu Felix. - Basta dizer que certas palavras minhas chegaram aos ouvidos do duque, palavras que questionavam a autoridade da Igreja e a influência dos bispos sobre Remont. A posição segura do meu pai na corte, que ele mantivera durante tantos anos, ficou, de repente, ameaçada. Em vez de sujeitar-me a um servil pedido de desculpas, em público, parti. Paul veio comigo.
Cruzámos os mares, primeiro rumo ao sudoeste da Bretanha, em direcção a um lugar onde outros nativos de Breizh se tinham instalado. Os nossos conhecimentos garantiram-nos um tecto sob o qual dormir, moedas nos bolsos, comida para nos sustentar. Paul era um homem de grande coragem. - Falhou-lhe a voz. - Deitava a mão a qualquer coisa. Eu encontrei trabalho como escriba e tradutor: sei ler e escrever em latim, e já sabia irlandês, graças ao irmão Seanan, um viajante erudito que passara algum tempo na corte de Remont. Por isso, viemos para Erin.
Ajudei Paul. Ajudei-o com o seu irlandês, ajudei-o a aprender. E ele... Ele protegia-me, zelava pela minha segurança. Ele era a casa que eu levava comigo. - Felix ergueu a cabeça, os seus olhos fitaram Knut e, se eu tinha visto a morte no rosto do nórdico, via agora um olhar à altura nas feições esquálidas de Felix. - Tu mataste-o - declarou, e o seu tom de voz era como o golpe castigador do mangual. - Se não o tivesses amarrado, ele teria nadado para terra. O meu irmão era jovem. Era forte. Por causa da sua coragem, tu prendeste-o e ele morreu.
Vi Johnny a olhar para Gareth, e Gareth acenou discretamente. O que isto significava, eu não sabia.
- Felix - disse Gull, sem se dar ao trabalho de pedir a Johnny permissão para falar -, há quanto tempo é que tu e o teu irmão saíram de casa?
- Há quase três anos. Eu tinha dezassete quando deixámos aquela terra; Paul era um ano mais velho do que eu. Durante os últimos dois anos, estivemos na corte de Muredach, o rei de Munster. Eu sou - era - o tradutor e primeiro escriba do rei. Paul era o guarda pessoal do filho de Muredach, Eoghan. - Silêncio. - Tornou-se, para além de guarda, seu amigo.
- E era ao serviço do rei de Munster que iam a bordo daquele barco? - adivinhei.
- Levávamos presentes - respondeu Felix. Os seus olhos pareciam agora mais serenos, como se revissem a promessa brilhante da viagem, a esperança com que tudo começara. - O filho de Muredach vai desposar a filha do Jarl Thorkel, governante das Órcades. Os objectos que me mostraram foram escolhidos por Eoghan para dar de presente à sua prometida e à mãe dela. A nossa expedição era chefiada pelo alto-conselheiro de Muredach: um dos homens que foi enterrado aqui na ilha, junto com Paul. Paul... O meu irmão não precisava de ter vindo nesta viagem. Havia outros na comitiva que poderiam ter desempenhado a função de guardas. Eoghan não queria que Paul nos acompanhasse; os dois tinham-se tornado próximos, e o príncipe confessou que sentiria demasiado a sua falta. Mas o meu irmão argumentou que prometera tomar conta de mim e que Eoghan estaria tão ocupado durante o Verão, com os seus cavalos, os seus falcões e os seus jogos, que mal daria pela nossa falta. Ou lhe era permitido acompanhar o seu irmão mais novo, disse Paul ao príncipe, ou abandonava em absoluto o serviço a Eoghan. Eoghan deixou-o vir comigo. Deixou o meu irmão seguir-me até à sua morte.
Um silêncio seguiu-se à tradução de Kalev para Knut. Depois, ouviu-se a voz de Cathal.
- Dás-me permissão para fazer uma pergunta, Johnny?
- Muito bem.
- Quantas pessoas vinham a bordo do barco quando este partiu de Ulfricsfjord?
Felix suspirou.
- Quarenta remadores, entre eles, Knut. Cinco outros membros da tripulação. Oito passageiros.
- E quantos se encontravam no barco quando este se afundou na nossa costa?
- Cathal... - protestei, mas parecia que Felix estava preparado para enfrentar aquela funesta verdade.
- Quando nos aproximámos da ilha, sobravam dezassete. Os últimos dezassete. - Momentos depois, acrescentou: - Dezoito, com a mulher.
Cathal observou-o com um olhar impassível.
- Só dezassete para um barco daquele tamanho? - indagou. - Não admira que tivessem bolhas nas mãos.
Knut estremeceu quando Kalev lhe segredou a tradução, mas não se pronunciou.
- Então, as perdas tinham sido catastróficas - prosseguiu Cathal -, mesmo antes de chegarem à ilha. Se dizes a verdade, por que razão é que Knut não...
- Cathal - interrompeu Johnny -, deixa-o contar ao seu ritmo.
- Se partiram de Ulfricsfjord - continuei, numa voz calma -, devem ter percorrido alguma distância por terra para alcançarem o barco.
- Cavalgámos durante alguns dias, sim. Muredach tratara das passagens para a nossa comitiva de oito. Um barco nórdico; havia homens entre a tripulação que tencionavam ficar nas Órcades. Percebi que o plano era recolher marinheiros pelas ilhas, para a viagem de regresso.
- Disseste quarenta remadores, cinco outros membros da tripulação e oito passageiros. Esses passageiros eram a vossa comitiva, presumo eu, da corte de Muredach.
- Precisamente, Sibeal. O conselheiro, Matha, que vinha discutir alguns assuntos mais delicados com o Jarh, eu e o meu irmão; e mais cinco homens, todos eles irlandeses.
- Sabemos que Svala e o filho viajavam com Knut - disse eu. - E não levavam alguns desses marinheiros que queriam estabelecer-se nas Órcades as suas mulheres e crianças? - Isto fora o que Knut dissera a Johnny. Os números não batiam certo.
Felix olhou de relance para Knut.
- Quando partimos de Ulfricsfjord, não havia mulheres a bordo do Freyja, nem crianças - respondeu. - E, no regresso, só havia uma mulher. Não sei dizer-vos como apareceu a bordo. Ele diz que ela é mulher dele. Não creio que isso possa ser verdade.
Johnny levantou a mão, fazendo sinal a Felix para esperar até Kalev completar a tradução. Ao ouvi-lo, Knut deu uma gargalhada de desdém.
- Isto é um disparate pegado, uma fábula! - exclamou ele. - Já vos disse que este homem só tem histórias extravagantes para contar. Tem inveja, como muitos outros. Que homem não desejaria uma mulher tão bela para lhe aquecer a cama à noite? O resto do seu relato deve ser o mesmo disparate, não duvidem. Havia mulheres a bordo, quatro ou cinco. Viajavam no porão, com a carga. Todas pereceram no naufrágio do Freyja. - Instantes depois, acrescentou: - Ele faz uma paródia da minha perda.
Quando Kalev acabou de traduzir, Felix levantou-se de repente, cambaleando.
- Como te atreves a mentir acerca disto? - perguntou, sorvendo o ar com um ruído áspero. Estava tão crispado que eu conseguia sentir as vibrações da sua raiva. Julguei que ia lançar-se sobre Knut e cometer o seu próprio acto de violência. - Com tantos mortos, tantos que se perderam por causa do que nós fizemos, como podes ter espaço na tua mente para algo que não seja a necessidade de voltar, de salvar aqueles que abandonámos, de remediar o pouco que podemos...
- Calma, filho - murmurou Gull, pousando a mão no braço de Felix.
Evoquei um tom de voz que ouvira Ciarán usar, em certas ocasiões, com noviços conflituosos.
- Senta-te, Felix - ordenei. - Respira devagar, como se estivesses a preparar-te para uma adivinhação. Chegou a altura de deitares essa história cá para fora. Conta-a com calma, como faria um druida.
Felix respirou fundo, trémulo, e deixou-se cair no banco ao lado de Gull. Um silêncio absoluto encheu a sala.
- Partimos com destino às Órcades - disse ele. - Seguíamos uma rota mercantil já estabelecida, ou pelo menos foi o que Paul me disse. Ele sabia mais a respeito dessas coisas do que eu. O plano era contornar a costa de Erin e, depois, definir um caminho entre Dalriada e as ilhas, antes de seguirmos para nordeste. O Freyja içava as velas quando os ventos o permitiam. Nos intervalos, cabia aos remadores fazer o trabalho. Durante a noite, lançávamos uma âncora flutuante. Cada homem pedia ao seu deus que, entre o crepúsculo e a madrugada, não nos afastássemos demasiado da nossa rota. Desde o marinheiro experiente ao rapaz que embarcara na sua primeira aventura, todos nós temíamos acordar em águas desconhecidas. É poderoso o terror que nos invade quando nos viramos e viramos e só vemos mar a perder de vista, sem um único sinal de terra.
Os remadores dormiam nos seus bancos; não havia outro sítio. Nós, passageiros, abrigávamo-nos no porão, para não estorvar a tripulação.
A maior parte de nós adoecera. Matha, o conselheiro do rei, era o mais atingido. O balanço constante do barco e o confinamento sob o convés atacaram-lhe o ventre. Já só conseguia engolir pequenos goles de água. Quando o barco içava as velas, era-nos permitido subir ao convés, mas Matha não conseguia ir lá acima.
Na segunda noite, aquilo que mais temíamos aconteceu. Na escuridão, fomos levados por correntes contrárias e desviados para oeste, para muito longe da rota pretendida. Oeste e, depois, norte, para mares não cartografados. Acordámos com um vendaval calamitoso, vagas altas como montanhas, nas quais o Freyja era sacudido como um brinquedo de criança. Não era possível navegar à vela: a vela seria feita em farrapos no momento em que a içassem. Não era possível usar os remos, porque a mais forte equipa de remadores não aguentaria firme naqueles mares. Agarrámo-nos a tudo o que encontrávamos: bancos, remos, cordas, uns aos outros, e rezámos por um milagre.
A tempestade viera de parte nenhuma. Durante esse dia interminável, a noite solitária e feroz e uma grande parte do dia seguinte, empurrou-nos para diante. Nuvens carregadas cobriram o Sol. A pouca luz que rompia o fino véu mostrava aqui dois homens, ali mais três, agarrados uns aos outros contra a espuma do mar, os rostos pálidos como espectros. Paul e eu fomos fazendo turnos no porão, junto de Matha, que não podia ficar sozinho. Nos olhos do meu irmão, eu via um reflexo do meu pensamento: que importância tem agora este enjoo de mar quando todos nós enfrentamos o abismo da morte?
Felix conseguira enfeitiçar a sua assistência. Agora que nos contava, enfim, a sua história, já estava muito mais calmo. Já lhe ouvira antes uma voz de poeta, e ela presidia de novo àquele sinistro relato. Até Knut parecia segui-lo com enlevo. Muito quieto, o nórdico olhava em frente, como que transido, e perguntei-me se não estaria a reviver aqueles momentos.
- A tempestade roubou sete homens à nossa tripulação - prosseguiu. - Seis foram varridos borda fora por uma onda que quase nos submergiu. Um foi atirado ao mar por um pedaço de madeira solta que o vento lançava em todas as direcções. Era o marinheiro mais experiente com o remo de governo. Perguntei-me se seríamos todos colhidos da mesma maneira, deixando o Freyja seguir caminho com uma carga de preces vãs e terríveis memórias.
Mas eu estou aqui, como podem ver, e Knut também, e assim, por um breve período de tempo, ia o Freyja, com as sobras miseráveis da sua tripulação. A certa altura da nossa vertiginosa viagem, avistámos terra: uma ilha em forma de lança, rochedo estreito e altíssimo erguendo-se, solitário, na desolação do oceano. A imagem daquela ilha inóspita encheu-me de alegria. Qualquer coisa era preferível àquele barco desditoso, àquela tempestade, ao mar deserto... Os homens estavam doentes, assustados, exaustos. Nenhum deles tinha ânimo para assumir a liderança. Paul fez o que a tripulação não era capaz de fazer: apoderou-se do remo de governo e começou a gritar ordens, incitando os homens a lutar pela vida. Não havia tempo para desferrar a vela. Mas podíamos remar. - Felix olhou de relance para Knut. - Este homem que aqui está também revelou presença de espírito. Manteve-se lúcido e ajudou a acalmar os outros, alguns quase enlouquecidos pelo medo. Remámos, tripulação e passageiros em conjunto, a voz de Paul vibrando nos nossos ouvidos, um grito de batalha, um toque a reunir. Remai! Remai!
Durante todo o caminho até à ilha solitária, enfrentámos o vento e as ondas. Deixámos Matha, devastado, sozinho no porão. Todos os homens capazes remavam. Aproximámo-nos. Dir-se-ia que a ilha estava rodeada de falésias íngremes por todos os lados, sem um lugar onde atracar. Foi então que Paul avistou uma estreita abertura, uma fenda entre ameaçadores promontórios, pela qual talvez fosse possível seguir caminho. Do outro lado da brecha, vislumbrei uma tranquila enseada, com a sua faixa de terra plana.
Arrepios percorreram-me a pele. Eu tinha-me perguntado se seria a mesma história. Esperara-o, quase. Mas ouvi-lo contá-la, reconhecero relato de Svala na narrativa de Felix, era como ver a mensagem escrita nas runas tornar-se realidade.
Remámos com todas as nossas forças na direcção daquela brecha nas rochas. Paul manteve a sua firme orientação, desviando o Freyja para um lado e para o outro, corrigindo a remada, gerindo uma distância da largura de um cabelo entre o barco e as imponentes paredes de pedra. Passámos para o outro lado, o Freyja saindo disparado para as águas da baía como se nascido de uma vaga diabólica.
Salvos. Finalmente salvos. Cheio de alegria e esquecendo, por instantes, que estávamos num lugar selvagem, longe de casa, relaxei a mão que segurava o remo. Sorrisos iluminaram os rostos pálidos da tripulação. "Remem para terra, homens", disse Paul, e ouvi a mesma satisfação na sua voz.
E depois... E depois, oh, deuses... - Felix cobriu a cara com as mãos.
Sustive a respiração.
- Depois, ei-la, emergindo da água mesmo junto àproa, uma cabeça medonha crivada de presas pontiagudas, os olhos esgazeados, o pescoço grande e grosso como o tronco de um carvalho. Ergueu-se sobre nós, uma criatura de proporções gigantescas, um pesadelo tornado realidade... "Remai!", gritou o meu irmão. Tolhidos pelo terror, nenhum de nós conseguiu obedecer. Além disso, a coisa bloqueava-nos o caminho. Chicoteava a água com a sua cauda, e as ondas abatiam-se sobre o Freyja, tornando a encharcar-nos. Depois, empinou-se, golpeando o ar por cima das nossas cabeças com os seus membros compridos. Cada dedo da pata terminava numa garra cruel do tamanho de um antebraço. Paul continuava a gritar, ordenando coragem, exigindo que não ficássemos ali parados à espera que a criatura afundasse o barco e a nós com ele.
Enquanto tentávamos atabalhoadamente repor alguma ordem nos bancos, o monstro brincava connosco, criando correntes com a cauda, que ora levavam o barco para mais perto da costa, ora o afastavam de terra firme. Um dos marinheiros encontrou o seu arco, fixou a seta com mãos trémulas, puxou a corda. O míssil acertou no pescoço da criatura e ali ficou, a balouçar. O monstro estacou, fitando o exímio atirador. Depois, sacudiu-se, e a seta caiu à água. Não vi qualquer ferimento entre as escamas verdes e lustrosas que formavam a sua carapaça. A criatura estendeu, então, a pata monstruosa na direcção do homem que disparara o dardo e, com uma longa garra, empalou-o pelo peito. O sangue jorrou, vermelho vivo, quando o lançou ao ar como se fosse um boneco. Depois, abriu a bocarra. Quando o homem caiu, colheu-o com precisão e tragou-o.
- Pelas bragas de Morrigan! - murmurou Gareth. Ele e Kalev entreolharam-se. Vi nesse olhar o reconhecimento de uma grande história, e a dúvida de que tal história pudesse ser verdade.
- Remámos para salvar a vida - disse Felix. - Ao passarmos pelo monstro marinho, este abriu a mandíbula por um instante infernal, revelando os restos daquela última refeição, uma imagem que eu daria muito para varrer da minha memória. Pelos vistos, a criatura saciara o seu apetite, porque nos deixou passar. Mas vi o que mediam aqueles pérfidos olhos. Estavam a avaliar-nos, um a um. Imaginei-o a pensar: aquele homem será o jantar desta noite; o outro guardo para amanhã. Quando varámos o Freyja na praia de seixos, o monstro já tinha desaparecido sob as águas. Descemos a custo até às pedras, com as pernas trémulas, a cabeça numa tontura de choque perante o que acabara de acontecer. A nossa situação era extrema. A ilha era alta e rochosa e não se via um tufo de erva em parte alguma. Tínhamo-nos desviado muito da nossa rota, estávamos moídos e exaustos, reduzidos em número, com provisões calculadas para uma viagem de escassos dias até às Órcades. Mesmo imaginando que conseguiríamos sair da baía sem despertar a atenção do monstro, quem sabe se seríamos capazes de encontrar o caminho de volta a Erin, ou até ao nosso destino original? Ali ficámos, em silêncio, todos os que tinham sobrevivido, excepto Matha, que continuava no porão.
"Água. Comida. Abrigo", disse Paul, tornando a assumir o controlo, uma vez que mais ninguém parecia preparado para o fazer. "Vou levar um grupo comigo e procurar uma gruta, ou algo semelhante, um lugar onde a criatura não consiga chegar. Felix, é melhor regressares a bordo e cuidares de Matha. Não vale a pena trazê-lo para terra enquanto não tivermos um abrigo; ficará mais confortável onde está. Aos outros, sugiro que descarreguem alguns mantimentos, água e comida para um dia e pouco, os vossos mantos quentes, cobertores, se os tivermos. Levem tudo para cima, para fora do alcance do monstro. Quando tivermos encontrado um abrigo e água doce, levaremos para lá o que for necessário." Alguém perguntou: "E quem foi que te nomeou chefe assim de repente?" E os outros resmungaram os seus receios, esquecendo que o tinham seguido sem hesitar no momento de maior aperto. "Se tens um plano melhor, vamos ouvi-lo", retorquiu Paul. Vendo que ninguém se pronunciava, reuniu a sua expedição, os cinco homens da corte de Muredach e dois da tripulação nórdica, e pôs-se a caminho, atravessando a praia.
Quando tornei a subir a bordo, grato por o barco ter sido varado mais ou menos direito, ouvi Knut a dar instruções aos homens que tinham ficado. Foi rápido a assumir o controlo na ausência de Paul, embora no Freyja fosse apenas um membro da tripulação, não um chefe. Cinco homens para localizar e descarregar as provisões. Os outros, divididos em grupos, para inspeccionar as imediações e ver se havia sinais de água doce, ou de qualquer coisa comestível: frutos do mar, algas marinhas, talvez focas, que poderiam ser trespassadas com lanças. As vozes esmoreceram quando os homens se separaram nas suas diferentes missões. Desci ao porão, onde encontrei Matha com pior aspecto. Já não era apenas o enjoo de mar. Tinha-se ferido na perna durante a tempestade e estava com muitas dores. Fiz o que pude por ele enquanto alguns homens tentavam encontrar as nossas provisões de comida no meio do caos que nos cercava.
O tempo passou; os mantimentos foram descarregados e, pelo silêncio que reinava lá fora, deduzi que a tripulação levara tudo para um lugar cimeiro, como Paul sugerira. Dei água a Matha; rasguei a túnica de alguém para lhe ligar a perna; embrulhei-o numa manta que estava um pouco menos molhada do que as outras. Eu próprio estava encharcado, a tiritar, ainda incapaz de registar plenamente o que nos tinha acontecido. Os dentes de Matha não paravam de bater; não conseguia aquecer-se. Deitei-me, então, ao seu lado, cobrindo-nos a ambos com a manta e dizendo-lhe que ia correr tudo bem.
Felix olhou para mim de relance e vi nos seus olhos a memória desse primeiro crepúsculo em que eu o puxara para cima, na enseada, e nos encostáramos um ao outro para nos mantermos quentes. Já parecia ter sido há tanto tempo... Os seixos tinham tocado em três runas na madeira esculpida: Lagu, Eh, Nyd. Já nessa altura, os deuses tinham-me dito que este seria um mistério de demorada e dolorosa revelação.
- Devo ter adormecido - disse Felix. - Se ao menos tivesse conseguido ficar acordado... Se tivesse permanecido alerta... Podia tê-los travado... - Engalfinhou as mãos uma na outra e, na luz macia da candeia, as suas feições eram uma máscara de angústia. - Como pude adormecer? Como pude ser tão imprudente?
- Felix - interrompi, numa voz serena -, conta-nos o que aconteceu a seguir. O que te acordou? Ouviste alguma coisa?
- Passos no convés, lá em cima. Vozes. Estava meio adormecido, desorientado, sentia o corpo rígido e dorido. Alguém caiu no porão, frouxo, como se estivesse morto. Era uma mulher, de cabelos dourados, o corpo branco como mármore. Nua. Nua no frio glacial daquele lugar remoto.
Despi o meu manto e lancei-o sobre ela; não estava morta, como eu tinha pensado, mas profundamente inconsciente, com uma marca na testa como se tivesse batido com força com a cabeça, ao cair. De onde viera? Como podia estar ali? Talvez fosse um sonho louco, porque era o tipo de mulher que aparece muito nas fantasias de marinheiros solitários, uma criatura forjada no molde de uma deusa. Matha gemeu. Ele não a tinha visto, mas a sua queda arrastara uma trouxa que lhe caíra sobre a perna ferida, e estava com muitas dores.
Foi então que ouvi gritos, lá fora. Levantei-me e icei-me para espreitar para fora do porão. Knut estava no convés, a gritar, a chamar, e havia homens a correr, brancos como a cal, os olhos arregalados de terror, batendo em retirada para o Freyja como se perseguidos por demónios. Aconteceu tudo muito depressa. Knut ordenou-me que voltasse para o porão e eu obedeci, sem saber o que os tinha assustado. Assim que tornei a deitar-me ao lado de Matha, com a mulher desmaiada ali perto, senti que nos movíamos e ouvi os seixos a estalar por debaixo do ventre do barco. Estavam a lançar o Freyja ao mar. íamos partir da ilha. E o grupo do meu irmão ainda não tinha regressado.
"Esperai!", gritei. "Em nome dos deuses, esperai!" Os homens empurraram; o barco deslizou pela praia e entrou na água, avançando para o fundo. "Empurrai!", veio a voz de Knut. "Empurrai, homens!" Depois, ao longe, uma outra voz gritou: "Que fazeis? Onde está o meu irmão?"
Tornei a enfiar a cabeça lá em cima e, apesar das ordens de Knut, icei-me para me sentar na abertura do porão. O meu irmão vinha a correr pela praia direito a nós. Estava sozinho. O Freyja já balouçava nas águas pouco fundas. Os homens correram às amuradas, usando as pernas e as mãos, pegaram nos remos e olharam para Knut, esperando a ordem de remar. "Paul!", gritei, sabendo que não me ouviriam, mas pensando que talvez o meu irmão lhes incutisse algum bom senso.
"Eles esperaram por ele. Esperaram que ele nos alcançasse, que sulcasse as águas e se içasse para junto dos outros. "Porquê deslocar o barco?", perguntou. "É melhor que fique aqui. Encontrámos uma gruta com espaço para nos abrigar a todos e uma nascente de água doce. Precisamos que os mantimentos sejam levados para cima..." A torrente de palavras cessou. "Não me digam que planeavam partir sem nós", disse, num outro tom. "Não há tempo para isto", replicou Knut, e a sua voz confirmava que a intenção era precisamente essa" "Remai, homens!"
Paul tentou travá-los. Seguiu-se uma luta. Foi tudo tão rápido que não consegui ajudá-lo. Além disso, não sou um homem de armas. No fim, o meu irmão juntou-se a nós, no porão. Tinha as mãos e os pés atados e ordenaram-me que não tocasse nas cordas, ou ele seria lançado borda fora ainda amarrado. Paul tremia de fúria, tinha nódoas negras no rosto e um brilho perigoso no olhar. A tripulação remou. A qualquer momento, eu esperava ouvir o rugido da serpente, os gritos enquanto colhia um homem e depois outro, mas só se ouviam as ordens de Knut, os costados do barco a ranger, a espuma das ondas. O Freyja atravessou a baía, aproximou-se da fenda estreita e dirigiu-se ao mar alto.
Felix fez uma pausa, respirando fundo. Senti o que ele devia ter sentido naquela altura: a culpa, o horror, a impotência na presença do crime.
- Só libertaram Paul quando já estávamos longe, no alto mar - prosseguiu. - Deixaram-me desatar as cordas que lhe amarravam as mãos, mas não as dos pés. Foi-nos dada uma explicação para aquilo que tinham feito, embora nada pudesse desculpar semelhante acto de crueldade. Um grupo de marinheiros dera a volta até à enseada seguinte. Ali, tinham encontrado uma gruta, bastante acima da preia-mar e razoavelmente seca e exploraram-na, pensando que poderia ser um bom abrigo. Quando vinham a sair, o monstro ergueu-se das águas, com o pescoço a serpentear, a boca a salivar de expectativa. Fugiram; a coisa perseguiu-os, rugindo. Para horror dos fugitivos, saiu da água, movendo-se como uma foca, mas muito mais depressa, tão depressa que não conseguiam ser mais velozes do que ela.
Desse grupo, apenas dois sobreviveram. Os outros, a criatura esmagou-os com um só golpe da sua enorme cauda. Enquanto os devorava, os dois homens fugiram. Cruzaram-se com os companheiros, contaram-lhes a sua história e correram para o barco. Tomaram, então, uma decisão impensável: aproveitariam a oportunidade para sair da ilha, enquanto o monstro estava ocupado com a sua refeição. Salvar-se-iam à custa de Paul e dos seus homens, os oito que tinham ido à procura de abrigo. Porque acreditavam que, se ficássemos, todos nós acabaríamos por morrer.
Johnny levantou a mão, sinal de que Felix deveria esperar que Kalev terminasse a sua tradução antes de contar o resto. Feito isto, o meu primo disse:
- Pergunta a Knut, por favor, o que pensa ele deste relato até agora.
A resposta foi rápida e feroz.
- Ele mente! Monstros marinhos? Não me parece. A história é pura fantasia, cada palavra!
Reparei que Knut não estava a olhar para os olhos de Felix, nem para os de Johnny.
- Estávamos desesperados por fazê-los voltar para trás - continuou Felix -, para salvar aqueles que abandonáramos ao seu destino, entre eles um rapaz que nem quinze anos tinha. Mas éramos só dois; Matha era velho e estava demasiado doente para fazer o que quer que fosse. Ameaçaram matar-me se Paul desamarrasse a corda que lhe prendia os tornozelos. Fizemos a viagem de regresso a Erin com uma tripulação de apenas vinte e três remadores, um número muito reduzido para um barco daquela dimensão. Tínhamos deixado para trás a maior parte das nossas provisões. Foi... difícil. Quando o barco naufragou no vosso recife, já só éramos dezassete, incluindo o meu irmão, eu e Matha. Paul e eu estávamos os dois a remar, ele com os pés ainda amarrados. - Felix levantou a cabeça e olhou directamente para Knut. - Se não o tivesses prendido, o meu irmão ainda estaria aqui hoje, connosco. A sua morte é o teu fardo e a tua perdição. A ti te culpo, nórdico.
O silêncio que se seguiu parecia vibrar com a tensão.
- Tolices - disse Knut, entredentes, ao ouvir a tradução. - Só um louco diria semelhante coisa. A viagem foi como vos contei, nem mais nem menos.
- E a mulher? - perguntou Gull. - Era Svala, deduzo eu?
- Ela recuperou os sentidos quando estávamos no mar alto - respondeu Felix. - Ficou sentada, quieta, no porão, sem dizer uma palavra. Parecia atordoada, como se inconsciente do que a rodeava. Encontrei roupa para lhe dar. Tentámos falar com ela, em vão. Alguns homens perguntaram a Knut de onde vinha, e ele disse-lhes que a tinha encontrado na ilha, completamente só, e que a salvara. Ninguém se deu ao trabalho de pedir mais explicações. Estávamos demasiado ocupados a manter o barco à tona da água e, esperávamos nós, na rota certa de regresso a Erin.
- Que Danu tenha piedade - murmurou Muirrin. - Completamente só, disseste tu? Não havia uma criança?
O silêncio arrastou-se. As implicações eram chocantes. Era impensável que Knut tivesse mentido acerca do afogamento do seu próprio filho.
De súbito, lembrei-me da visão que me assaltara na gruta de Finbar da primeira vez que eu lá tinha ido: mãos agarrando-me, arrastando-me pelo areal na direcção da água. A pancada na cabeça; a queda. Soube, então, que era a experiência de Svala que eu tinha vivido, Svala, que viera para Inis Eala a rebentar de desgosto. Desgosto, não pela morte de um filho, mas pelo que lhe tinha sido feito a ela. Não fora salva. Fora raptada.
Felix levantou-se.
- Tenho de voltar lá - afirmou, olhando para Johnny. - Tenho de partir imediatamente. Abandonámos os nossos camaradas. Tenho de encontrá-los. Isto é urgente; todos os instantes contam.
- Não duvido da tua coragem, ou da tua sinceridade - replicou Johnny, devagar. - Mas, compreenderás, Felix, que, após a tua perda de memória e a grave crise por que passaste, um homem pode interrogar-se se as tuas recordações serão de absoluta confiança.
As feições pálidas de Felix tingiram-se de vermelho.
- É a verdade - declarou, apenas.
- Vamos supor que aceitamos essa verdade - retorquiu Johnny. - Esse lugar fica... a quantos dias de navegação, calculas tu?
- É difícil dizer. Chegámos à Ilha da Serpente quatro dias depois de termos partido de Ulfricsfjord. Mas fomos desviados da nossa rota, como vos disse. Os ventos eram extremos. No regresso, remámos a maior parte do caminho.
- Posso dizer uma coisa? - perguntou Gareth. Vendo o aceno de Johnny, prosseguiu. - Felix, tu falas como se pretendesses meter-te dentro de um barco e partir sozinho, de preferência amanhã de manhã. Todos nós sentiríamos a mesma urgência, nessas circunstâncias. Compreendemos o horror de abandonar companheiros. Mas o modo como pensas fazê-lo não é muito prático. A viagem é longa. Implica uma travessia pelo mar alto. O teu barco chegou a esta ilha por mero acidente, no meio de uma tempestade, sem estrelas à vista, penso eu, que ajudassem a definir uma rota. Precisarias de uma embarcação robusta, de longo curso, de uma tripulação experiente e de boas provisões. Subsiste o pequeno problema do monstro marinho, partindo do princípio que a tua história é rigorosa. Já passou algum tempo desde que o Freyja encontrou aqui o seu fim. Lamento ter de dizer isto, mas é muito provável que todos os homens que vocês abandonaram naquele lugar já estejam mortos. Presumo que peças ajuda a Johnny para te fornecer um barco e tripulação. Dadas as circunstâncias, quem, no seu perfeito juízo, quereria ir?
Cathal pigarreou.
- Não acreditam na história? - Era Gull quem falava agora, levantando-se e pousando a mão disforme no ombro de Felix. - Acham que a memória do rapaz está virada do avesso?
- É possível, não é? - perguntou Gareth, olhando de relance para Evan.
- Muito possível - respondeu Evan, num tom compassivo. Por outro lado, o facto de esta história ser improvável não significa que não seja verdadeira. Felix descreveu-nos os acontecimentos de uma forma coerente, e a trama é complexa. Se for verdade o que diz, vejo vários motivos para Knut estar a mentir.
Knut reagiu com fúria quando estas palavras foram traduzidas, e Johnny disse:
- Espera, Knut. Evan, explica-nos o que queres dizer com isso.
- Alguém mente - disse Evan. - As histórias de Knut e de Felix não podem ser ambas verdadeiras. Se a versão de Felix for correcta, então, a história de Svala é muito diferente daquilo que pensávamos. Há muita coisa por explicar. Como foi parar àquela ilha? Por que razão foi trazida até aqui? Por que nos disse Knut que ela era sua mulher? E a criança?
- E é evidente que Svala não pode dar-nos a sua versão - disse Johnny.
- Uma parte desta história, eu sei que é verdade. Quando os meus homens tiraram os afogados do mar, um deles tinha uma extensão de corda esfiapada à volta dos tornozelos. - Vi Felix estremecer com a imagem. - Foi cortada quando o levaram para dentro da sepultura em forma de barco, para preservar a dignidade do cadáver. Quando o amortalharam, o seu traje mortuário ocultava a pele pisada. Pedi aos que tinham reparado nisto para não comentarem o facto, porque me perturbou. Não falei do assunto até agora. Dos que estão aqui presentes esta noite, apenas eu e Gareth o sabíamos. Felix, parece que o teu irmão valida o teu testemunho, neste pormenor, pelo menos. Kalev, pergunta a Knut como explica ele o facto.
Depois de uma troca de palavras, Kalev traduziu.
- Knut diz que o homem era um arruaceiro, violento e imprevisível. As cordas foram para seu próprio bem.
Felix começou a dizer algo, e Johnny fez-lhe sinal para parar.
- Há uma outra parte desta história que pode ser posta à prova. Podemos enviar uma segunda missiva a Ulfricsfjord, fazendo certas perguntas acerca das pessoas que iam a bordo do Freyja e pedindo mais informação a respeito da viagem pretendida. - Johnny olhou de relance para Knut, e havia uma nova frieza nos seus olhos cinzentos. - Pelo menos, ficaremos a saber se Svala ia a bordo nessa altura. Também devíamos enviar uma mensagem à corte de Muredach - acrescentou, olhando para Felix, que continuava à frente dele, de punhos cerrados, os olhos um pouco esgazeados. - São notícias desagradáveis para o teu príncipe, Eoghan. Notícias desagradáveis para todos.
- Obrigado - disse Felix, num sopro, como se expirasse a palavra.
- Redigirei essa mensagem logo de manhã. Mas...
Johnny levantou a mão, silenciando-o.
- Mas há assuntos mais urgentes, na tua opinião. Sim, eu sei. Sei que acreditas que a tua versão é a verdade. Pesadas todas as coisas, estou inclinado a concordar. Mas não podemos ter a certeza e, a menos que possamos ter a certeza, estás a pedir-nos muito quando pedes a nossa ajuda. Gareth explicou-o com clareza. Uma expedição de salvamento seria um risco extremo. Quem quer que levasse a cabo essa missão, estaria a pôr em perigo a própria vida e as vidas dos seus companheiros. Podemos perder o barco. Podemos nunca encontrar esse lugar, ou, encontrando-o, não conseguir regressar em segurança. Tudo isto tem de ser pesado contra a exígua possibilidade de alguém da vossa expedição ter sobrevivido durante todo este tempo naquela inóspita ilha.
Felix inclinou a cabeça.
- Eu sei disso - replicou. - Mas acredito que tem de ser feito. Sibeal lançou as runas não muito depois de eu ter chegado a Inis Eala, antes mesmo de eu me recordar do que quer que fosse do meu passado. A adivinhação mostrou uma missão; coragem na presença da morte; o fecho de um círculo; a possibilidade de cumprir um objectivo. Tenho de fazê-lo. Se não puderem ajudar-me, fá-lo-ei sozinho.
Felix ali ficou, à nossa frente, com o corpo escanzelado da doença, o rosto cheio de covas, os olhos em chamas, e eu achei que todas as pessoas presentes naquela sala, excepto uma, deviam ter ouvido a coragem que emanava da sua exposição - e a verdade.
- Devo dizer-te - replicou Johnny - que, de momento, não temos em Inis Eala nenhum barco adequado a uma viagem dessa natureza. Nem existe nenhuma nave capaz na povoação do outro lado do mar. A nossa maior e mais possante embarcação, o Liadan, encontra-se no Sul. Deverá regressar em breve, mas não sei com rigor quando será. Mesmo que a comitiva de Snake chegasse amanhã, haveria reparações a fazer antes de o barco voltar a partir numa viagem tão exigente. Quanto à tripulação, o processo de recrutamento colocar-nos-ia alguns problemas. Felix, senta-te agora. Agradeço-te o relato que nos fizeste com bravura. Temos de dar a Knut a sua oportunidade de falar. Kalev, pede a Knut que nos dê a sua versão da viagem do Freyja. Até agora, contou-nos muito pouco. Se tiver alguma coisa a acrescentar, sobretudo no que diz respeito a Svala, este é o momento de o fazer. Lembra-lhe que não quero a opinião dele, apenas os factos.
- A história é simples - traduziu Kalev. - Foi exactamente como Knut te disse antes: o barco partiu de Ulfricsfjord com destino às Órcades, levando passageiros e tripulação, e algumas mulheres, incluindo Svala. Algures entre a costa norte de Erin e Dalriada, o Freyja foi apanhado por ventos peculiares e desviado para ocidente. Naufragou no recife de Inis Eala, com a perda de muitas vidas, incluindo a do filho de Knut. A história de Felix é uma invenção. Knut diz que não compreende como podem dar crédito a um relato tão mirabolante. Diz que não é preciso fazer perguntas em Ulfricsfjord. Além disso, pouca gente conhecia Svala. Não é o tipo de mulher que faça amigos com facilidade.
- Haveria, por certo, homens no cais que se recordariam de Svala se ela tivesse entrado naquele barco - retorquiu Gull. - Os homens não esquecem facilmente uma mulher como ela.
- Há aqui um elemento que me confunde - disse Johnny. - Se a história de Felix for verdade, o que fazia Svala na Ilha da Serpente, sozinha? Como poderia ter sobrevivido naquele lugar? A sua história talvez nos ajudasse a apurar a verdade, mas ela não é capaz de no-la contar.
- Já contou - disse eu, no silêncio que se seguiu.
- Como? - perguntou Gareth.
- Sabem que sou uma vidente. - Falei, sobretudo, por causa de Knut. A última coisa que eu queria era ser acusada de inventar histórias em nome de algum tipo de sentimentos pessoais por Felix. - Tenho visões, rasgos de vidência. Se outra pessoa sentir uma forte corrente de emoções, seja desgosto, fúria ou frustração, essa corrente por vezes extravasa e contagia-me. É um fenómeno sobre o qual não tenho qualquer controlo. Aconteceu hoje, quando apanhei Knut a atacar Felix. E aconteceu com Svala, mais do que uma vez. Eu soube, desde o primeiro dia em que Svala apareceu aqui na ilha, quão infeliz ela se sentia. Aliás, tentou várias vezes mostrar-me o que lhe tinha acontecido. Clodagh estava presente numa dessas vezes. E...
Johnny travou-me com um gesto, esperando que a tradução acompanhasse o meu ritmo. Enquanto Kalev falava, Knut levantou-se de um salto, fitando-me com indisfarçada hostilidade. Todos os homens ali presentes ficaram, de súbito, em tensão; eu senti-o.
- Não podes acreditar na versão dela! - gritou o nórdico. - Visões, sentimentos... Não são fiáveis! Ela podia dizer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo! Ela e este homem são próximos, demasiado próximos... Devem ter engendrado esta história toda juntos. A rapariga dirá qualquer coisa para que tu acredites nele! - Reparando, talvez, no olhar de Johnny, Knut moderou o tom e a expressão. - Peço desculpa; não devia ter falado assim. A rapariga tem boas intenções, não duvido. Talvez acredite na sua própria versão, seja ela qual for. Mas Svala não pode contar a dela. Não só não é capaz de falar, como é... - Repetiu o gesto que eu já o vira fazer uma vez, batendo na têmpora com o dedo. - Seja o que for que ela deu a entender à vossa rapariga, não é fiável. - Kalev esforçou-se por acompanhar a enxurrada de palavras.
- Senta-te - disse Johnny, nesse tom em que os homens nunca deixavam de obedecer. - Sibeal, no interesse da justiça, tenho de pedir-te que respondas à acusação de que a tua imparcialidade pode estar comprometida no que diz respeito ao bem-estar de Felix. Lamento ter de fazê-lo.
Senti um rubor nas faces. Quando respirei fundo, sem saber como responder melhor, a voz da minha irmã manifestou-se, fria e precisa.
- Já que Knut acha que Sibeal não pode dar-vos uma visão desinteressada do assunto - disse Muirrin -, fá-lo-ei eu por ela. Cerca do meio-dia de hoje, Sibeal regressou da Gruta do Vidente, onde se cruzara com Svala. Veio directamente de lá para o refeitório e, depois, passou a tarde comigo, com Clodagh e com Brenna. Como não voltou a entrar na enfermaria, não teve a oportunidade de falar com Felix, ou mesmo com Gull, Evan ou Johnny. E descreveu-nos uma visão que tinha partilhado com Svala na gruta, uma visão que ela acreditava ser o reflexo do que Svala queria contar-lhe.
A minha irmã olhou para a outra ponta da sala, para Knut, as suas feições aprumadas, calmas e compostas, como sempre.
- A visão, tal como Sibeal a descreveu, era rigorosamente consistente com a história que Felix nos acabou de contar - acrescentou. - O Freyja arrastado até à ilha solitária; a estreita abertura por onde entraram na baía; o aparecimento do monstro, que matou um membro da tripulação, comendo-o; um homem - Paul, segundo Sibeal - a reunir a tripulação e a ordenar aos outros que remassem para terra. Foi só isto que ela viu. Depois, contou-nos Sibeal, ela e Svala tornaram a representar a cena, usando os objectos que tinham à mão, para Sibeal se certificar de que a sua visão correspondia à de Svala. Sibeal disse-nos que achava que Svala estava desesperada por regressar àquele lugar. A mensagem que ela lhe transmitira fora: Casa. Ir para lá, ir para casa.
A tradução murmurada de Kalev chegou ao fim. Seguiu-se um silêncio absoluto.
- Um dia, antes de isto acontecer, Svala fez um monstro marinho na praia, usando areia e conchas - disse eu. - Era uma criatura que, de alguma forma, se assemelhava à que Felix descreveu, muito parecida com a da minha visão, com uma longa cauda e uma assustadora fileira de presas. Svala tentou dizer-me algo acerca disso, usando gestos, e ficou frustrada quando eu não percebi. Não parava de apontar para o mar. Casa. Quero ir para casa. Pressenti a sua saudade, e a sua dor. Clodagh também estava presente e pode confirmar esta parte da história. - Eu não tencionava falar do nosso encontro no trilho da falésia, da visão de Svala, nua, no lugar onde Rodan caíra.
- Uma história engendrada - replicou Knut. - Quem pode dizer que ela e Felix não a inventaram há muito tempo?
- Eu era capaz de jurar que o rapaz só recuperou a última parte da sua memória esta noite - disse Gull, numa voz grave e segura. - Vi-o nos seus olhos, quando acordou depois de ter batido com a cabeça. Ouvi-o na sua voz. Nós deixámo-los ficar para trás, disse ele. Nunca esquecerei o som destas palavras. - Virou-se para Knut. - Farias bem melhor se nos dissesses a verdade - observou, sem ser indelicado. - Quanto mais tempo a rejeitares, mais severas serão as consequências. Sei que queres muito ficar aqui. Se mentires a Johnny, ele nunca te deixará viver em Inis Eala.
Nem tampouco, pensei eu, deixaria ficar um homem que tentou matar outro para impedi-lo de contar a verdade, uma verdade que faria Knut parecer menos admirável naquele lugar onde se tornara amigo de tanta gente. O nórdico queria muito viver em Inis Eala. Estaria com medo de regressar a Ulfricsfjord e ter de justificar-se?
- Falam de pesadelos - disse Cathal. - Devo dizer-vos que os maus sonhos que me perseguem desde que o barco naufragou no nosso recife estão povoados de mares monstruosos, ventos medonhos, mandíbulas a morder, homens aos gritos. Vi esta ilha no meu sono. É um lugar de rochedos altíssimos, onde não cresce uma árvore e a terra é cinzenta no meio do seu xaile de espuma branca. Um lugar sinistro. Um lugar onde reina a morte. - Fez uma pausa antes de continuar. - Sei que tens de ter tempo para pensar nisto, Johnny. Sei que não tomarás nenhuma decisão esta noite. Mas quero dizer-te, Felix, que acredito na tua história. E apresento-te as minhas desculpas. Julguei-te mal.
Eu não fazia ideia do que Cathal queria dizer com aquilo, mas vi Felix inclinar a cabeça com cortesia, como se aceitasse o pedido de desculpas, e vi o calor nos seus olhos quando fitou os olhos negros de Cathal.
- Obrigado - limitou-se a dizer.
- É tarde - declarou Johnny, levantando-se. - Todos nós precisamos de dormir. Farei uma reunião de manhã. Vou pensar no que aqui foi dito e tomarei a minha decisão. Felix, pareces um fantasma. Tens de descansar. Tu também, Sibeal. - Olhou para Knut, que se erguera, ladeado pelos mais altos Kalev e Gareth. Um brilho de transpiração cobria a pele branca do nórdico. Os seus olhos moviam-se, inquietos; os dedos torciam o fio de couro que suportava o talismã rúnico que ele trazia ao pescoço. - Gareth, Kalev, levem Knut para o quarto pequeno na ponta da camarata dos homens - disse Johnny. - Passará aí a noite, e quero um guarda à sua porta. Acordem Niall; vocês os dois precisam de dormir. Knut, um dos meus homens ficará contigo a todos os instantes de luz do dia, até a situação ficar esclarecida. Mantém-te longe de Felix e de Sibeal. Fui claro?
Knut arrastou os pés. Resmoneou algo.
Kalev conteve um bocejo enquanto traduzia:
- Ele diz que a história talvez não seja exactamente como ele a contou.
Eu ainda estava sentada na esteira à beira da lareira, com a mão sobre a de Felix. Senti-o estremecer, como se um choque lhe tivesse sacudido o corpo.
- Sê breve. - O rosto de Johnny parecia feito de pedra.
- Em parte, a versão dele é verdadeira - disse Knut. - Havia uma outra ilha, no extremo norte. A tempestade, a baía, o monstro... É correcto, sim. Como achei que nunca acreditariam em tal coisa, não disse nada sobre o assunto. Nenhum homem gosta de ser chamado mentiroso.
Estas palavras pairaram no ar, uma sentença a que ele próprio se condenara.
- Mais alguma coisa? - O tom de Johnny era neutro e sereno. Não deu qualquer sinal do que estava a pensar.
- Svala - disse Knut, olhando para as suas botas - não é minha mulher. Não no sentido que as pessoas dão à palavra, mas...
- Mas o quê? - perguntou Gareth, numa voz cortante. Todos estavam cansados e, o que quer que acontecesse, o dia seguinte prometia novos desafios.
- Ela estava sozinha na ilha, nua e linda, na praia. Completamente só, abandonada naquele lugar sinistro. Uma mulher, isolada, sem abrigo, sem os meios de fazer uma fogueira, sem um trapo sequer sobre o corpo. Como pode alguém acreditar que ela quer voltar para lá? Um lugar daqueles só é casa para lapas e caranguejos. Eu não podia deixá-la ali, à mercê daquele monstro. Por isso, salvei-a, resgatei-a. Ela é minha, minha mulher em todos os sentidos menos aos olhos da lei, e isso pode ser corrigido. Comigo, ela tem abrigo, comida, companheirismo, tudo o que uma mulher precisa que um homem lhe dê. Eu providencio, eu mantenho-a em segurança. A maior parte dos homens não se daria ao trabalho com uma mulher que é... - Knut não tornou a fazer o seu gesto, aquele que significava maluca, desorientada, mas era claro o que pretendia dizer.
- Portanto, mentiste - disse Johnny.
Knut hesitou. Perguntei-me se estaria a medir as suas possibilidades: seria preferível contar já a desagradável verdade ou perpetuar, de alguma forma, a mentira?
- Nunca houve uma criança - acrescentou, entredentes.
- Por que razão inventarias uma coisa dessas? - perguntou Muirrin, claramente chocada. - As perdas do Freyja não foram suficientes para ti? Tiveste de acrescentar mais drama à história?
- Svala - respondeu Knut. - Louca. Imprevisível. Pensei... Pensei que, sem uma boa justificação para o desvario, não a deixariam ficar aqui. Pensei que depressa nos mandariam embora.
- Tenho mais uma pergunta para ti - disse Johnny, e até eu me assustei com a calma virulenta do seu tom de voz. - Tentaste matar Felix esta noite para impedi-lo de contar esta história?
- Não! Matar, não, só avisá-lo. Ouvi Sam a falar; ao jantar, falava de uma ilha e de um monstro. Como poderia tê-lo sabido, a não ser através de Felix? Eu não queria que a história fosse contada. Confesso que me revela a uma má luz e... Mas não o teria assassinado. Por que razão o faria? Fui pregar-lhe um susto, certificar-me de que ele mantinha a boca fechada, nada mais.
- Sam - disse eu, vendo como as coisas se tinham passado. - Brenna deve ter comentado com Sam o que eu lhes tinha contado nessa tarde. - Virei-me para Knut. - Brenna não ficou a saber da história através de Felix - disse-lhe. - Ficou a saber por Svala, através de mim. O que Gull disse é verdade. Até o atacares e ele bater com a cabeça, Felix não tinha memória disto.
Knut abriu a boca e tornou a fechá-la. Ninguém disse uma palavra. Johnny fez um movimento com a cabeça, indicando que Gareth e Kalev deviam ir-se embora. Os dois homens saíram com o nórdico no meio deles. Cathal despediu-se e seguiu-os.
- Evan - disse Gull -, aconteça o que acontecer, diz-me que posso dar a Felix mais qualquer coisa para além da sopa, esta noite, dizes-me? Vai custar-lhe muito a adormecer, depois disto.
- Podes experimentar dar-lhe pão e leite. Não te levantes, pai. Eu vou buscar. - Evan olhou para o exausto, lívido Felix, afundado no banco ao lado de Gull. Não era difícil imaginar o que o meu cunhado estava a pensar naquele momento. De todas as vezes que falara, Felix referira-se à expedição de socorro como uma operação em que ele próprio estaria presente. E só isso parecia raiar o impossível.
- Muirrin - chamei, quando ela e Evan se dirigiam à porta -, obrigada por teres falado.
A minha irmã sorriu.
- Não precisas de agradecer-me por dizer a verdade, Sibeal.
Na enfermaria, tinham ficado apenas Johnny, Gull, Felix e eu. Pensei que Johnny sairia de imediato. A noite já ia longa e, com os homens de Connacht na ilha, ele teria de levantar-se cedo. Mas o meu primo deixou-se ficar mais algum tempo, absorto nos seus pensamentos.
- Tu queres lá ir, aconteça o que acontecer - disse, por fim, de olhos postos em Felix, avaliando-o. - Sozinho, se tiver de ser. Fraco, doente, sem grande costela de marinheiro, sem grande costela de guerreiro, irias na mesma. Não consigo decidir se és o homem mais corajoso que já conheci, ou o mais louco.
Felix começara a tremer; se de alívio ou mero cansaço, eu não sabia. Recuperar a memória, contar a história e ver que só em parte acreditavam nela - era demais para uma noite só. Já para não mencionar o facto de Knut lhe ter quase posto fim à vida. Ajoelhei-me ao seu lado, segurando-lhe nas mãos. Gull cobriu-lhe as costas com o seu manto. Talvez nesse momento Felix não fosse a imagem clássica do herói, mas, para mim, era um farol de coragem, uma chama de verdade.
- Ele tem de ir - disse eu a Johnny. - Sei que não poderá fazê-lo antes de o Liadan regressar e, mesmo depois, talvez ainda demore algum tempo. Mas as runas disseram-nos que, chegada a altura, Felix teria de participar no salvamento. - Lembrei-me das minhas adivinhações, ambas apontando para uma missão que nós os dois, juntos, levaríamos a cabo. Lembrei-me da voz de Felix, suave e segura, dizendo-me que eu era a tocha ardente que o conduzia. Evoquei na minha mente a visão de Svala de nós as duas, ela e eu, atravessando a remos um oceano ínvio rumo ao norte. - Svala também tem de ir - acrescentei. - Tal como eu.
Capítulo 10
Felix
Desejei tanto uma refeição decente. Agora, mal saboreio a fatia de pão, a taça de leite de cabra aguado. Sinto a cabeça a fervilhar. Uma armadilha. O destino lançou-me uma armadilha. As palavras de Sibeal gelaram-me o coração. Vi-o no rosto de Johnny, e no de Gull, o mesmo horror. Não posso discutir com as runas. Mas Sibeal, lá fora, naqueles mares, Sibeal naquele lugar abandonado pelos deuses, Sibeal nas garras do monstro... Vejo como seria, e a imagem faz-me recuar, de corpo e alma. E se nesta desesperada demanda para salvar os meus companheiros eu arrastasse a minha amiga mais preciosa, a minha luz, o meu tesouro, para uma morte sangrenta e hedionda? Preferia morrer a vê-la sofrer.
Se eu não for, ela não precisa de ir. Mas eu tenho de ir. Tenho de dar o meu melhor para corrigir o mal que foi feito. Se houver esperança, por mais ténue que seja, de que um só homem ainda se agarre à vida naquela ilha, eu tenho de encontrá-lo. Tenho de trazê-lo para casa.
Havia morte nas runas. Não me ocorreu que pudesse ser a morte dela.
- Come - diz Gull, bocejando. - Devemos, pelo menos, tentar adormecer antes da madrugada, e descansarás melhor com uma boa refeição no estômago.
Não posso dizer aquilo em que estou a pensar. Não posso dizer a Sibeal que não quero que ela venha. As runas não mentem. Questioná-las é pôr em causa a sua integridade como vidente.
- Achas que ele o fará? - pergunto, em vez disso. - Ajudar-me-á?
- Só o próprio Johnny poderá responder-te - volve Gull. - Ele acredita em ti, disso não duvido; vi-o nos seus olhos, embora não o diga claramente até decidir como vai proceder. Enquanto chefe de um bando de guerreiros, Johnny já teve a sua dose de decisões difíceis. Não arriscará a vida dos seus homens por uma causa perdida, por muito que tu queiras que isso aconteça e por muito grande que seja o teu desespero. Suponhamos que decide mesmo pôr em prática uma expedição de socorro desses pobres infelizes. Nada pode ser feito até o Liadan voltar. Depois, há o problema da tripulação. Imagino que pedisse voluntários, e nem todos os homens terão a liberdade de pôr o braço no ar. O próprio Johnny não irá, por uma série de razões. Cathal não pode ir; a mulher está prestes a dar à luz a primeira criança e existem certos factores que o prendem a Inis Eala: não é seguro para ele sair desta ilha. Todos os que estão comprometidos com o treino dos homens de Connacht têm de ficar aqui até os visitantes partirem. E isto exclui um número razoável dos nossos guerreiros mais capazes. Johnny não permitirá que a expedição se faça à vela, a menos que esteja convicto de que a tripulação é adequada à missão que tem pela frente. Terá de pedir às pessoas que ponham a sua vida em perigo. Não que os homens de Inis Eala sejam avessos ao risco, mas isto...
Gull suspira e bebe um bom trago de cerveja.
- Se ao menos pudéssemos saber se alguém sobreviveu. Para ser franco, Felix, não me agrada a perspectiva de perder bons homens à conta disto. Sobretudo se vier a revelar-se um passeio à senhora da asneira e os teus companheiros já tiverem sucumbido ao frio, à fome, ou às garras dessa criatura. Fui um pouco bruto, talvez, mas tinha de dizer-te isto.
- Na tua opinião, não devíamos tentar fazê-lo? - A dúvida de Gull perturba-me ainda mais; sinto náuseas.
- Eu não disse isso, rapaz. Se queres a minha honesta opinião, julgo que haverá homens suficientes para formar uma espécie de tripulação. Mas, se eu fosse Johnny, ia querer mais certezas. - Olha de relance para Sibeal, que veio sentar-se no banco à nossa frente, com a taça de cerveja nas mãos. A luz do fogo, os seus olhos estão bem abertos e vigilantes.
- Eu podia lançar as runas outra vez - diz ela -, mas penso que elas nos mostrariam o mesmo que mostraram antes. Também podia fazer uma adivinhação, colocando a pergunta dos sobreviventes. E até podia ter uma visão de homens na Ilha da Serpente, mas não saberia se estava a olhar para o passado, o presente ou o futuro, ou se as imagens queriam dizer algo diferente do que mostravam. Se é certeza aquilo que procuras, não posso dar-ta. Só posso dar-te esperança. E a minha convicção de que é isto que deve ser feito, por ti, Felix, por Svala, pelos homens que deixaste para trás. E até por Knut.
- Por que dizes isso? - pergunto.
- Porque todos os homens devem, a dada altura, enfrentar a verdade sobre si próprios. Ainda não consigo compreender por que disse Knut tantas mentiras.
- É um choque. - O tom de Gull reflecte o sentimento; aquilo transtornou-o. Tornara-se amigo de Knut. Gostava do homem. - Talvez tenha começado por dizer uma mentira e tenha acabado enredado numa teia delas.
- Pareceu-me lógica a explicação que deu para ter levado Svala: ela estava sozinha naquela ilha selvagem e escarpada, ele pensou em protegê-la, mas... - Sibeal hesita. - A luz da tua história, recordei uma visão mais antiga que tive da primeira vez que fui à Gruta do Vidente. Creio que Knut pode tê-la levado da ilha à força. Se isso for verdade, se ele a raptou, fizemos-lhe um grande mal ao aceitar a história que ele nos contou. Ela tem estado sozinha com ele naquela cabana, talvez mesmo contrariada...
Isto choca-me. Não sei o que dizer.
- Espero que estejas enganada, Sibeal - diz Gull. - Svala tem parecido razoavelmente satisfeita na companhia de Knut, nas raras ocasiões em que se apresentou em público. É um pouco alheada, é certo. Mas quem sabe o que lhe aconteceu antes de o barco chegar à ilha? Talvez fosse a única sobrevivente de uma viagem anterior. Isso bastaria para enlouquecer a mais lúcida das mulheres.
- Satisfeita - repete Sibeal. - Não, Gull, ela está longe de sentir satisfação. Mas não consegue explicar-se por palavras, e isso enfurece-a. Por várias vezes, tentou contar-me a sua história, e eu não consegui perceber nada, salvo quão miserável e frustrada ela se sentia. Svala muda quando Knut não está presente. É mais forte. Mais corajosa. Mais colérica. Quando ele se aproxima, ela volta a fechar-se, como um animal escondendo-se na sua concha. Creio que tem medo dele.
Termino a minha refeição em silêncio, ponderando a ideia, recordando a criatura débil e sem vida que partilhara o porão connosco, na difícil viagem de regresso da Ilha da Serpente. Não era forte nem corajosa. Sentava-se a um canto, encolhida, e, sempre que eu descia ao porão, recuava para longe de mim, cobrindo o rosto com as mãos. De noite, chorava, perturbando o nosso sono, já muito intermitente. Lembro-me de Knut lhe falar em sussurro, uma ou duas vezes. Doente, exausto e perturbado como eu estava, com o meu irmão amarrado ao meu lado e Matha a gemer de dor, não lhe dei tanta atenção como devia.
- Não creio que consiga pregar olho esta noite - diz Sibeal. - Felix, fico feliz por teres sido finalmente capaz de contar a tua história, e triste por esta ser tão horrível. Mas agora podemos agir. Podemos dar resposta ao apelo dos deuses. - Ela sorri, o rosto pálido de cansaço, e eu tento devolver-lhe o sorriso. O peso do que não foi dito esmaga-me.
- É melhor ires para a cama e fechares um pouco os olhos, pelo menos - diz-lhe Gull. - Prevejo para amanhã um dia longo e cansativo. Quanto a ti, Felix, se queres realmente fazer parte disto, se a coisa se concretizar, será uma corrida para te pôr bom a tempo. Uma árdua tarefa para nós os dois.
Murmuro uma resposta. A magnitude desta missão é intimidante. Tento não pensar no que pode correr mal, nas vidas que poderão vir a perder-se, no novo peso que a minha demanda poderá lançar nos ombros desta boa gente. Por aí jaz a loucura.
- Sibeal - diz Gull, numa voz serena. - Compreenderás que, apesar da autoridade que possuis enquanto druidesa, a tua família terá relutância em aceitar que participes numa aventura como esta. Ao dizeres que os deuses querem que vás, estás a tornar a decisão de Johnny muito difícil.
- É meu dever seguir a vontade dos deuses - replica ela, numa voz clara e segura. - Era evidente, nas runas, que nós os dois, juntos, levaríamos a cabo esta missão. Quero dizer, Felix e eu. Acredito que, se não formos os dois, com Svala, a missão não vingará. Não posso ser mais clara do que isto.
- É possível que tenhas algum trabalho a convencer Johnny - retorque Gull, entredentes. - Ainda bem que não tenho de ser eu a tomar a decisão. Pensa no que diria o teu pai, se soubesse. Ou Ciarán.
- Sou uma mulher adulta - replica, tranquila. - E, uma vez que nem o meu pai nem Ciarán podem ser consultados a tempo, não vale a pena tentarmos imaginar o que pensariam.
Gull sorri, mas vejo temor nos seus olhos.
- Ah, enfim, de manhã logo veremos - diz ele. - Felix, precisas de ir às latrinas antes de te deitares?
Abano a cabeça. Ele vai; eu fico. Tenho tempo para falar a sós com Sibeal: um tempo curto, precioso. Não encontro palavras. Estamos de pé, virados um para o outro. Ela estende as suas mãos. Quando as seguro, parecem desaparecer dentro das minhas. Foi feita assim: pequena e delicada em todos os pormenores.
- Viveste à altura do nome que eu te dei - diz-me, fitando-me com os seus olhos fascinantes. - Foste corajoso e vais continuar a sê-lo, aconteça o que acontecer. Nós somos capazes de fazer isto, Felix. E fá-lo-emos.
Agora, tenho palavras a mais dentro de mim e nenhuma delas pode ser dita. Não quero ir. Podes morrer; e eu não o suportaria. Ou, pior: amo-te;
Sibeal. Desejo do fundo do coração que não fosses uma druidesa. Digo isto e perderei a sua amizade para sempre. Além disso, é apenas uma meia verdade: a fé de Sibeal é parte dela; parte do que a torna tão admirável.
- Sibeal - pergunto -, o que aconteceu ao fogo, quando Knut estava a atacar-me? Que fizeste tu?
Um sorriso subtil, peculiar, torce-lhe os lábios.
- Não sabia se alguém tinha reparado. Magia druídica; magia elemental. Nunca a tinha usado fora dos nemetons. Foi Ciarán quem ma ensinou, embora, é claro, o seu talento supere muito o meu.
- Claro. - O ciúme deflagra dentro de mim, pobre iludido. Quem pode competir com este adorado mentor, este mestre tão admirado, este parente mágico e brilhante de quem ela fala tantas vezes? Não sou mais do que um intérprete errante, um filho mais novo cuja incapacidade de respeitar as regras pôs a família inteira em perigo e provocou a morte do irmão. Creio que odeio este Ciarán.
- Felix?
Permaneci num silêncio enfurecido enquanto ela me observava. Abrando o aperto das minhas mãos sobre as suas, relaxo o maxilar cerrado, obrigo-me a respirar.
- O que se passa? - A voz de Sibeal é como a água fresca que corre nas montanhas, doce e cristalina. Ao ouvi-la, não consigo manter a minha fúria. Talvez devesse desejar que Ciarán aqui estivesse. Se ele tentasse travá-la, como faria certamente qualquer homem sensato, talvez ela hesitasse.
- Felix? - repete, arqueando as sobrancelhas.
- Sibeal, quem me dera que... Não, esquece. Devias ir para a cama. Já é quase dia.
Sibeal observa-me com atenção. Sabe que estou a esconder-lhe algo. A minha boca estica-se num bocejo. Nisto, não há artifício. Estou exausto.
- Desejo-te uma boa noite, então - diz-me ela.
- Boa noite, Sibeal.
Espero que não consiga ler nos meus olhos o desejo que tenho de envolvê-la nos meus braços e de sentir o calor dos seus lábios contra os meus. Encostar o corpo dela ao meu; tocar-lhe. Liberto as suas mãos e recuo, educadamente, para lhe dar passagem.
A caminho do seu pequeno quarto, ela vira-se e olha-me por cima do ombro.
- Felix é latim, não é? Significa o venturoso, ou algo assim?
Sinto os lábios estremecer, mas não estou a sorrir.
- Alegre - respondo. - Significa "alegre". Dorme bem, Sibeal.
- Tu também. Sonha com a tua casa. Lembra-te, Paul está perto, a zelar por ti. Ficaria orgulhoso do que fizeste esta noite.
Inclino a cabeça, não vá Sibeal reparar que os meus olhos se encheram de lágrimas.
Sibeal
O sono foi intermitente. Fiquei deitada, de olhos fechados, a respirar devagar. Quando me pareceu que era quase de dia, levantei-me, vesti-me e saí. Da enfermaria, não me chegavam ruídos de movimento e tive esperança de que tanto Gull como Felix estivessem a dormir.
Caminhei até ao lugar do enterro do barco, onde nove homens afogados jaziam na sua elevação tumular. Braços de erva já tinham começado a trepar a sepultura. O lugar era sereno e silencioso na luz da manhã. Sentei-me no chão, a pensar na viagem de pesadelo que aqueles homens tinham sofrido, e em como era cruel que, no preciso momento em que avistara terra firme, a tripulação tivesse caído nas garras do vento e de mares encapelados. Ponderei o longo alcance de Mac Dara.
- Paul - murmurei -, o teu irmão vai regressar àquele lugar. Vai salvar os homens que vos obrigaram a deixar para trás. Orgulha-te de Felix. Agora que partiste, ele terá de tomar a dianteira e não está habituado a fazê-lo. Ajuda-me a olhar por ele, se puderes. Foste o melhor e mais leal dos irmãos. Ele ama-te e sente a tua falta.
Fiquei ali algum tempo enquanto, devagar, o Sol subia no céu e a comunidade de Inis Eala despertava para as suas rotinas diárias. Homens desciam na direcção do cais. Uma rapariga levava um pequeno rebanho de cabras de um cerrado para o outro. Pessoas circulavam entre as camaratas e o salão de refeições; entre o salão e o recinto de treino. Algum tempo depois, levantei-me e regressei, seguindo por um desvio que tinha vista para a enseada principal e para a cabana do pescador, onde Knut e Svala se encontravam instalados. Ele não devia lá estar, mas ela talvez estivesse. Em breve, alguém teria de tentar explicar-lhe o que fora planeado. O mais provável era que essa tarefa recaísse sobre mim.
O barco de pesca estava na baía, lançando redes de arrasto. A porta da pequena cabana à beira de água estava aberta, mas não se via Svala em lado nenhum. Talvez tivesse ficado preocupada quando o marido não regressara na noite anterior. Talvez tivesse ficado aliviada.
O meu olhar deslocou-se para o pontão e semicerrei os olhos. Seria Fang, lá em baixo? Fang, que se comportara de forma tão estranha nos últimos dias e que não voltara de todo para casa na noite anterior? Estava agachada na extremidade do pontão, ao que parecia de olhos postos na água. Havia algo de muito estranho naquela posição gelada. Estaria a cadelinha ferida?
Desci até lá abaixo, sentindo-me na obrigação de verificar se estava tudo bem. A alguns passos de distância, parei, acocorei-me e falei-lhe em voz baixa.
- Fang? - E, como não houve resposta: - Vem cá, pequenina. - Estalei os dedos, e as orelhas dela estremeceram. - Linda menina. Anda. Pequeno-almoço.
Estava a tremer de frio. Um gemido saiu-lhe da garganta, capaz de derreter o coração mais empedernido. Tentava aliciá-la a aproximar-se quando Biddy desceu o trilho com um cesto no braço.
- Ela está aqui desde a noite passada - disse-me. - Não tentes tocar-lhe, a menos que queiras sentir os seus dentes crivados na tua mão. - Biddy tirou do cesto um odre com água e uma tigela rasa e usou o primeiro para encher a segunda. Depois, colocou a tigela perto da cadela. Fang rosnou sem virar a cabeça) e, ao lado, uma mão cheia de restos de carne do jantar do dia anterior. - Eu tenho uma teoria.
- Eu também - repliquei. - É a primeira vez que Snake se ausenta desde que trouxe Fang para a ilha?
- É a primeira vez que a deixa ficar aqui. Parece que está à espera dele. Faz-nos pensar, não é? Talvez haja videntes mesmo entre os cães. Caso contrário, como saberia Fang que ele vem a caminho?
- Acreditas, então, que o Liadan chegará em breve - observei.
Biddy olhou para mim de soslaio.
- Contaram-me uma parte do que aconteceu ontem à noite, mas não tudo - disse ela. - Subimos juntas e contas-me o resto? Ouço uma nota na tua voz, quando falas do barco, que me preocupa. Espero que aquele meu homem não esteja a pensar em fazer disparates. Reparei no gozo que lhe deu ensinar Knut no manejo da espada. Fê-lo sentir-se jovem de novo, sem dúvida; jovem e inteiro. O problema é que, quando voltam a sentir-se como guerreiros, costumam pôr-se a milhas e acabam mortos.
No ponto em que o cais dava lugar à terra, parei e olhei por cima do ombro. Fang estava a devorar a carne.
- Uma vez que te levantas tão cedo - disse Biddy, sorrindo -, podias fazer-me o favor de dar-lhe de comer amanhã.
- Com todo o gosto. Quanto à noite de ontem, Felix... Ardal... contou-nos uma história extraordinária. Foi assim...
Mesmo numa forma muito abreviada, a história acompanhou-nos durante todo o caminho de regresso até ao salão, onde os ajudantes de Biddy já tinham ateado o fogo, que crepitava, e começavam a preparar as papas de aveia para o pequeno-almoço.
- Johnny convocará a reunião esta manhã, presumo - disse-lhe. - Não creio que Gull queira fazer esta viagem. Mas é possível que Evan queira. Há circunstâncias que tornam útil a presença de um curandeiro.
- Que Danu seja misericordioso - retorquiu ela, entredentes. - Não sei se quero ouvir isto. O meu filho ir parar àquele lugar maldito, agora que Muirrin finalmente engravidou? Não tarda estás a sugerir que Cathal também vá.
Não comentei estas últimas palavras. Era impensável que Cathal fizesse a viagem connosco, com a chegada próxima do bebé de Clodagh e a poderosa mão de Mac Dara tacteando a fronteira segura de Inis Eala. E no entanto... no entanto... preferia que Biddy não tivesse falado do assunto, nem mesmo a brincar. Preferia não ter pensado no que isso podia significar.
- Naturalmente - continuei -, a demanda depende da decisão de Johnny. E do regresso do Liadan.
Não disse que Felix e eu tencionávamos ir os dois. Desconfiava que esta notícia provocaria uma longa cadeia de reacções chocadas durante o dia, e não as convidaria antes da altura devida.
Johnny fora confrontado com uma extraordinária sequência de acontecimentos. Lidou com a situação como o verdadeiro chefe que era: não houve qualquer anúncio urgente a interromper a rotina a que os homens de Connacht estavam habituados; nem um envolvimento imediato de gente que não precisava de saber. E, porém, ao pequeno-almoço, apercebi-me de que muitos planos já tinham sido feitos à porta fechada. Pareceu-me que o meu primo e Gareth tinham ficado acordados a noite inteira e que certas figuras-chave no seio da comunidade masculina de Inis Eala tinham sido acordadas mais cedo do que era costume.
Ao pequeno-almoço, Rat anunciou que todo o contingente de Connacht dedicaria o dia ao trabalho com cordas e a outros exercícios semelhantes na ponta ocidental da ilha. Ele supervisionaria, e três guerreiros de Inis Eala dar-lhe-iam assistência. Como passariam o dia inteiro fora, disse Rat aos homens, era aconselhável tomarem um bom pequeno-almoço. Esta era a oportunidade de os visitantes porem em prática tudo o que tinham aprendido até ali.
Comi sem grande apetite. Começara a sentir-me nervosa, apesar da minha convicção de que a missão se iria realizar. Clodagh pousara em mim o seu olhar, e esse olhar dizia-me com toda a clareza que ela já soubera da história através de Cathal, que estava a par da minha intenção de ir e que achava a ideia ultrajante. Mas não me disse nada, nem Cathal ou Gareth, que vieram para a nossa mesa depois de Rat terminar o seu discurso aos visitantes. Embora eu não tivesse feito um voto de silêncio, percebi que nada seria dito acerca do drama da noite anterior, pelo menos até os homens de Connacht estarem fora de cena. Knut não se encontrava no salão. Nem Svala. Oxalá ela não estivesse sequer nas imediações do lugar onde Rat levaria a cabo o seu exercício.
Tomámos o pequeno-almoço num silêncio pesado. A gravidade do que nos esperava impedia o diálogo trivial. Evan subiu à enfermaria, levando víveres para Felix, e Gull desceu e juntou-se a nós, a bocejar. Por fim, Johnny, que andara a circular pelo salão, falando com um grupo aqui e outro acolá, regressou à nossa mesa e sentou-se.
- Encontramo-nos aqui no fim da manhã - anunciou, num tom calculado para ser apenas ouvido pelo nosso pequeno grupo. - Mandarei chamar toda a comunidade, mas por pouco tempo. Explicar-lhes-ei o que aconteceu e apresentarei uma proposta de actuação. Voltaremos a reunir-nos quando as pessoas já tiverem tido tempo para pensar no assunto. Evan disse-me que Felix se sentia capaz de ser trazido até cá abaixo para assistir à reunião, Gull. Tratas disso?
Gull aquiesceu.
- É importante, ou eu não o teria sugerido. Quero pôr um fim a estes rumores de má sorte e acredito que, nesse ponto, ele será o melhor advogado de si próprio. Depois das revelações desta noite, tenho-me interrogado se Knut não terá sido a fonte desses rumores. Desacredita o homem e desacreditarás a sua história quando ela vier enfim à superfície. Gull, avisa Felix de que deverá estar preparado para falar em breve. Quando a comunidade souber o que se passa, os visitantes poderão ser informados. Não tenho dúvidas de que, à hora do jantar, já todos estarão por dentro do que se passa. - Virou-se para mim. - Sibeal, penso que Svala devia estar presente. Consegues persuadi-la a juntar-se a nós?
- Ela não estava na cabana quando desci até ao cais, esta madrugada - comentei. - Posso ir à procura dela, é claro. Mas, mesmo que a encontre, não sei se consigo explicar-lhe algo tão complexo.
- Não vás à procura dela sozinha. - Notei, na voz de Johnny, uma invulgar veemência. - Leva Brenna ou uma das outras mulheres.
Olhei para ele sem ser capaz de fazer a pergunta: se Knut está fechado na camarata dos homens; qual é o teu receio? Não era a primeira vez que me interrogava se Johnny teria a mesma suspeita que eu a respeito da morte de Rodan.
- Eu vou - disse Clodagh. - A caminhada vai fazer-me bem. Não fiques assim, Cathal. Sim, doem-me as costas, mas não melhoro a situação deitando-me para aí como uma foca prenhe.
- Eu também vou - propôs Muirrin, surpreendendo-me. - Se nós as três juntas não conseguirmos persuadir Svala a vir a esta reunião, creio que ninguém conseguirá.
Encontrámo-la sentada nas rochas numa das pequenas enseadas. Era uma manhã calma e o mar reluzia como prata fina polida. Mais longe, no mar alto, algo se moveu sob a superfície da água, talvez um cardume de peixes, talvez um peixe maior. Svala estava vestida nessa manhã, mas o vestido fora puxado para cima, até ao joelho, desnudando-lhe uma parte da perna bem feita, e uma crosta de areia cobria-lhe os pés descalços. Virou a cabeça, vendo-nos chegar, e os olhos grandes encheram-se de desconfiança. Tinha o cabelo encharcado.
A uma certa distância, parámos as três, cumprindo o plano que fizéramos a caminho.
- Bom dia, Svala - disse eu. - Estas são as minhas irmãs. - Fiz uma série de gestos, tentando mostrar que nós as três tínhamos sido pequenas juntas, tínhamos crescido juntas, éramos unidas pelo amor.
Svala inclinou a cabeça com gravidade. Até ali, muito bem.
- Trouxemos uma coisa para ti - disse Muirrin, avançando com o nosso presente embrulhado em algas marinhas. Detendo-se a alguns passos de Svala, inclinou-se e depositou-o nas rochas: um pesado e cintilante bacalhau, que Biddy nos arranjara. Jouko saíra cedo nessa manhã, para pescar à linha; aquele espécime era parte da sua impressionante colheita.
Os belos olhos de Svala desviaram-se do peixe para Muirrin e de Muirrin para mim e para Clodagh, regressando ao peixe.
- Podes comê-lo - disse eu. - Come. Bom. - Demonstrei com gestos, esperando que, desta vez, não nos fosse oferecida uma porção.
Ela aproximou-se, mantendo-nos debaixo de olho, como se achasse que podíamos mudar de ideias e recuperar o presente. Foi rápida; num abrir e fechar de olhos, aproximou-se, agarrou no peixe e voltou para o seu poleiro, apertando o troféu contra o peito.
- Come - tornei a dizer. - Apanhado hoje, fresco.
Svala levantou o bacalhau e atravessou escamas e carne com os seus dentes brancos, rasgando um bom pedaço e engolindo-o como se já não tivesse uma boa refeição há dias. Ouvi Clodagh fazer um pequeno som, depressa suprimido, e esperei que ela não vomitasse. Eu tinha avisado as minhas irmãs.
- É bom? - perguntei-lhe, continuando a falar sem esperar pela resposta. - Svala, o teu homem, Knut, não foi a casa a noite passada. Magoou outro homem. Preso. - Muirrin e eu fizemos uma mímica bizarra, ela desempenhando o papel de Knut. Tentámos mostrar quem ele era indicando o amuleto à volta do pescoço. Eu fiz o papel de Felix. - Johnny prendeu-o, por ora. - Clodagh, com a sua grande barriga, fez de Johnny, conduzindo Muirrin para um quarto imaginário e fechando a porta. - Estás em segurança - disse eu. - Estamos todos em segurança.
Svala observou o nosso pequeno espectáculo com aparente curiosidade, sem parar de rasgar e mastigar com vigor. Não admirava que os seus dentes fossem tão bons. Por outro lado, se tivesse sido abandonada durante anos na Ilha da Serpente e sucumbido à loucura, não era surpreendente que tivesse desenvolvido um apetite por peixe cru e a capacidade de saciá-lo. Pouco mais haveria para lhe matar a fome.
- Svala - disse eu, avançando -, sabes que falámos sobre a ilha, lá ao longe. - Apontei para norte. - A Ilha da Serpente. - Usei o braço e a mão para imitar a criatura, como ela fizera na Gruta do Vidente. - Um barco, remando, velejando, para te levar até lá. Tu e eu. - Era fácil mostrar-lhe; já tínhamos feito aquela parte uma vez.
Svala parou de comer e fitou-me, os olhos de súbito muito acesos.
- Talvez ir - disse eu, vendo como tudo poderia tornar-se difícil se ela não percebesse bem. - Johnny decidirá. Johnny... - Como mostrar-lhe? Movi a mão à volta do olho esquerdo, tentando evocar a tatuagem do corvo, mas havia tantos homens em Inis Eala com marcas semelhantes que duvidava que ela o identificasse. Talvez já reconhecesse, pelo menos, aquele nome. - Tu vens, ouvir a história. Vens connosco? Todos seguros agora. Talvez ir, pequeno barco, remar para ilha.
- Serias capaz de explicar-lhe se estivessem na Gruta do Vidente? - perguntou Muirrin, em voz baixa.
- Hoje, não há tempo para isso. Além disso, foi mais ao contrário: Svala não viu a minha visão. Eu é que vi a dela. - Muitas vezes, quando Svala me tocava, eu sentia o seu tumulto interior, mas a única vez que ela me transmitira imagens claras fora através do lago do vidente. - Quando acabar de tomar o seu pequeno-almoço, tentarei outra coisa - declarei.
Observando-a enquanto devorava o peixe, perguntei-me se não teria passado fome durante a sua estada em Inis Eala. Nunca comia muito no salão de refeições. Eu e as minhas irmãs esperámos calmamente que a carne desaparecesse. Depois, Svala pousou as espinhas sobre a rocha, ao seu lado, como se cumprisse um ritual. Tinha comido tudo menos o esqueleto: escamas, tripas, até os olhos.
- Svala - disse-lhe, quando ela se levantou e limpou as mãos ao vestido, deixando-o manchado de gordura. - Svala, vem. - Estendi os braços.
Ela desceu dos rochedos e agarrou nas minhas mãos.
- Fecha os teus olhos - pedi, fechando os meus. Contei a história em palavras, para as minhas irmãs poderem seguir, e enquanto falava imaginava cada cena: o ataque de Knut, o alvoroço na escuridão, o meu terror de que Felix fosse assassinado. A verdade enfim revelada, as negações de Knut e, por fim, a sua contrariada revisão da história e a serena sabedoria de Johnny. Evoquei uma imagem da comunidade reunida no salão, de Knut dominado por dois guardas, de Johnny a falar. E, depois, imaginei um barco, o Liadan, velejando para norte e, a bordo, Svala, Felix e eu. A tripulação que imaginei não incluía Knut.
A minha mente concentrara-se tanto naquelas imagens que não me dei conta, quando tornei a abrir os olhos, de que Svala estava a apertar-me as mãos. Senti uma onda de entusiasmo fluir através dela, uma ânsia apaixonada, uma alegria louca. Parte da minha mensagem, pelo menos, ela tinha compreendido. Mas não o elusivo talvez.
- Hoje, só conversa - disse-lhe, pensando em como era difícil distinguir as mandíbulas de um monstro de uma boca a falar quando só tínhamos uma mão para ilustrar. - Tu vens, sim?
- Roupa lavada - disse Clodagh, entredentes. - Se vai aparecer à frente de todos, devia mudar de vestido.
- Uma nódoa de peixe não mata ninguém - disse Muirrin. - Svala, vens agora? - Apontou para o trilho, arqueando as sobrancelhas interrogativamente.
Mas Svala largou as minhas mãos, virou-nos as costas e entrou no mar, até a água lhe dar pelos joelhos. Por momentos, ficou muito quieta, depois, levantou os braços para os lados, devagar, com as palmas viradas para cima. Um grito poderoso, lancinante, rebentou dentro dela, como se quisesse enviar uma mensagem aos confins do mundo. O som ressoou pelo oceano. Esperámos, mas ela não deu sinais de querer vir connosco.
- Por ora, devíamos deixá-la.
- E se Johnny decidir que não fará a expedição de salvamento? - perguntou Clodagh. - Talvez tivesse sido melhor não contar a Svala até termos a certeza.
- Mas ela precisava de saber por que razão o marido não voltou para casa ontem à noite - assinalou Muirrin.
- Sibeal - disse Clodagh, enquanto subíamos pelo trilho, deixando Svala absorta atrás de nós -, é mesmo verdade que tencionas embarcar tu própria nesta viagem? Tens noção da loucura que isso representa?
Pensei nisto antes de dar uma resposta.
- Não é uma loucura maior do que a tua quando entraste no Outro Mundo para salvar Cathal - retorqui. Não valia a pena argumentar que eu a tinha ajudado a esgueirar-se para fora de casa para ela poder fazê-lo. Essas coisas nunca são esquecidas entre irmãs.
- Tens a certeza de que não estás meio apaixonada por Ardal? Aliás, Felix? Não vejo outra razão para perderes de repente toda a sensatez.
Olhei de soslaio para Clodagh. Era errado não ser honesta com ela. Mas não podia dar-lhe a resposta que me parecia mais verdadeira: se alguma vez decidisse desistir da minha vocação por um homem, seria por este homem.
- Nunca abdicaria da minha vocação - repliquei. E, com isto, também estava a dizer a verdade. - Além disso, se gostasse dele, haveria de querer o que é melhor para ele. É melhor irmos os dois. As runas mostraram-no de uma forma inequívoca.
- Hum - murmurou Clodagh.
- E a história é esta - disse Johnny. - Uma história impressionante, tão estranha como um conto dos antigos. Percebo que possam duvidar da sua veracidade, ao ouvi-la por si só. Mas também temos as visões de Sibeal, que iluminaram certos aspectos com absoluta clareza. Temos a prova do pedaço de corda à volta dos tornozelos de Paul, que eu vi com os meus próprios olhos. E há pessoas que têm estado a sonhar desde o naufrágio, pessoas qui só ouviram esta história ontem à noite. Os seus sonhos confirmam o que Felix nos contou. Talvez o argumento mais convincente de todos seja o facto de Knut, depois de afirmar que a história de Felix era um chorrilho de mentiras, ter reconhecido que a maior parte do que fora dito era verdade. Parece que este indivíduo, que travou amizade com tantos de nós durante a sua estada aqui na ilha, é um mentiroso descarado. Mais grave ainda, tentou matar um homem que se encontrava sob a nossa protecção, e não só ameaçou como feriu a minha jovem parente. Por estes motivos, qualquer um seria instantaneamente escorraçado desta ilha. Mas, para este homem, tenho outros planos.
O salão silenciou-se; os homens e as mulheres ali reunidos tinham bebido todas as palavras do discurso de Johnny. Ele fornecera-lhes uma descrição calma e ponderada dos acontecimentos da noite anterior, incluindo uma breve versão da história de Felix. A notícia do que Knut tinha feito provocara a indignação geral. Era evidente que muitos tinham dificuldade em acreditar que ele fosse capaz de semelhante duplicidade. Mas Johnny dissera-o, e nunca ninguém duvidava de Johnny. Knut permanecera impassível, entre Niall e Jouko, enquanto as suas más acções eram descritas em público. Johnny não lhe pedira para falar.
- Tenho fé em Felix e acredito na sua história - dizia, agora. - Vejo honestidade nos seus olhos. Ele fez um pedido que, se lhe for concedido, terá consequências de peso na nossa comunidade. Felix, aproxima-te e explica o que estás a pedir de nós e por que razão é tão importante.
Felix pôs-se de pé, rejeitando com um aceno de mão o braço de Gull, e colocou-se ao lado de Johnny. A sua boca contraíra-se numa linha firme; os olhos espelhavam a sua determinação.
- Alguns de vocês chamaram-me homem aziago - afirmou, numa voz serena. - Talvez haja nisso algum fundo de verdade, porque o meu irmão morreu nesta viagem, afogado no recife aqui em baixo. Morreu porque se bateu pelo que estava certo. Como quis impedir a fuga desses homens da Ilha da Serpente, a fuga que abandonou seis companheiros ao seu destino, a nossa tripulação amarrou-lhe os tornozelos. Não consegui desatar os nós a tempo e, por isso, ele afogou-se. O meu irmão era um homem bom. Um homem bom nunca abandona os seus amigos. Por vezes, somos confrontados com escolhas muito difíceis, escolhas de partir o coração, que parodiam a diferença entre o Bem e o Mal. Mas a escolha com que Knut e os seus companheiros se depararam na Ilha da Serpente era fácil: só exigia coragem.
"Sinto-me obrigado a regressar a esta ilha, pelos meios que estiverem ao meu alcance, para tentar salvar aqueles homens. É o que faria Paul se aqui estivesse. Não sei se estão vivos ou mortos. Não possuo conhecimentos de navegação, nem experiência na arte de navegar. Julgar-me-ão louco; mas nunca me senti tão lúcido. Os deuses chamam-me. Sibeal lançou as runas para mim; a mensagem foi clara. Tenho de ir, e irei. Ontem à noite, perguntei a Johnny se podia ajudar-me. Se ele não puder, se vocês não quiserem, encontrarei uma outra maneira de fazer isto. - Olhou de relance para Johnny, que o observava com um sorriso subtil. - É tudo o que tenho para vos dizer.
- Obrigado, Felix. Senta-te, por favor - disse Johnny, virando-se para a multidão. - Dar-vos-ei tempo para pensar. Antes disso, porém, esclarecerei a minha própria posição. Esta expedição não pode ser levada a cabo sem um barco com robustez suficiente para suportar a viagem. Não pode ser realizada antes de o Liadan regressar. Não temos um guia fiável que nos mostre onde fica esta ilha, uma vez que o barco em que Felix e o irmão viajavam foi desviado da sua rota por uma insólita tempestade. Não sabemos se há muitos sobreviventes. Teremos um monstro marinho pela frente, uma criatura grande, feroz, e que não vê os homens com grande amabilidade. É um risco considerável. Do outro lado, temos um grupo de homens abandonados naquele lugar por amigos em quem achavam que podiam confiar. Um grupo de camaradas lutando pela sobrevivência contra todas as expectativas, lutando por uma existência nas mais duras condições de vida, esperando e rezando para que alguém tenha a coragem de regressar por eles. - Fez uma pausa, olhando em redor. Um silêncio profundo enchia o salão. - Não acredito que tenhamos grande escolha - disse ele. - Autorizarei o uso do Liadan nesta missão. Se conseguirmos reunir uma tripulação, avançaremos.
Spider levantou-se.
- Como tencionas reunir essa tripulação? - perguntou.
- Pedirei voluntários - respondeu Johnny. - Homens experientes para tripular o Liadan; outros com conhecimentos específicos. Creio que todos compreenderam de que tipo de missão estamos a falar. Não quero que ninguém tome decisões irreflectidas. Amadureçam a ideia, conversem com as vossas mulheres e não menosprezem o imenso risco que está em jogo. Vão precisar de alguns dias, no mínimo, para tomar uma decisão. Não levarei voluntários entre os que estão a treinar os homens de Connacht. A nossa principal missão é em Inis Eala, e temos de manter as coisas como estão.
- O barco pode precisar de restauros - disse alguém. - Isso leva o seu tempo. O plano é partir o mais depressa possível após o seu regresso?
- Todos os dias contam para estes homens - replicou Johnny, num tom grave. - Os trabalhos no barco começarão no dia em que o Liadan entrar na baía. Desde que tenhamos uma tripulação, o Liadan partirá assim que estiver pronto. As provisões para a viagem podem ser reunidas agora, enquanto esperamos pelo seu regresso.
Um burburinho rebentara por todo o salão, agora que as pessoas ali reunidas se apercebiam das implicações do que lhes fora anunciado. Senti as dúvidas e receios das mulheres, a tensão entre o orgulho nos seus homens e o terror de perdê-los numa viagem onde o heroísmo convivia com uma assustadora incerteza. Senti a inspiração que enchia os corações dos homens, a consciência de que ali estava uma missão que nenhum guerreiro digno desse nome poderia recusar. Haveria voluntários, sim; muitos mais do que Johnny precisava. Eu via a chama que se acendera nos olhos deles.
- Johnny - disse Gareth -, o que acontece se não conseguires voluntários suficientes para formar uma tripulação?
Parecia-me que Gareth já sabia a resposta - não havia segredos entre aqueles dois -, mas vira necessidade em que esta fosse dita em público.
- Nesse caso, a missão não poderá ir para a frente. - As consequências eram claras.
- Tenho uma pergunta - disse Sam, erguendo-se e revelando a sua total e imponente altura.
- Estou a ouvir-te.
- O que quiseste dizer a respeito de Knut? Todos nós sabemos que um homem que se comporta como ele é imediatamente expulso desta ilha. Por outro lado, Knut é um bom guerreiro e, para muitos de nós, tornou-se um amigo. Que outros planos são esses a que te referiste?
Jouko estivera a traduzir para Knut. Agora, Knut entregava-se a uma torrente de palavras emocionadas, gesticulando na direcção de Johnny. Jouko arqueou as sobrancelhas, intrigado.
- Traduz, por favor - disse Johnny.
- Knut diz que o seu único desejo é ficar aqui e conquistar o seu lugar na comunidade que o acolheu. Ele acha que o seu valor como homem de armas te seria muito útil e promete que aquilo que aconteceu ontem à noite não voltará a repetir-se.
- Esperemos bem que não - murmurou Gull, que estava sentado ao meu lado.
- Mais alguma coisa? - perguntou Johnny, olhando para Knut.
- Ele diz - prosseguiu Jouko, traduzindo - que tem a firme convicção de que todos aqueles que foram abandonados na Ilha da Serpente já estarão mortos por esta altura. Como, aliás, estariam ele e os homens da sua tripulação se não tivessem partido no momento em que partiram. O monstro tê-los-ia devorado a todos. Knut diz que esta é uma viagem condenada, o tipo de demanda que apenas um homem como Felix seria capaz de conceber, porque é um estudioso, cheio de sonhos e brandura. Não é um guerreiro. Um homem como ele não tem coragem para combater.
Johnny não falou de imediato; deixou o veneno daquelas palavras assentar alguns instantes, para que todos os homens e mulheres ali presentes o assimilassem. Depois, disse:
- Felix, queres responder?
Felix esboçou um sorriso oblíquo.
- Poucos homens encontrei na vida com a coragem do meu irmão. Agora que ele desapareceu, tenho de ser destemido pelos dois.
- Bem dito - observou Gull, e ouvi outros ecoarem o mesmo sentimento.
- Knut - disse Johnny -, estás longe de compreender o modo como as coisas são feitas nesta comunidade. A tua qualidade como guerreiro é excepcional, e isso fez com que ganhasses amigos entre nós. Temos uma regra, aqui, de que o passado pode ser esquecido, desde que essa pessoa, homem ou mulher, esteja preparada para começar de novo, com as atitudes certas e as intenções certas. Não, não fales... Ouvi o que me disseste antes e continuo a não acreditar na tua sinceridade. Ainda ontem à noite, tentaste matar este homem. Puseste a minha prima em perigo. Só isso seria motivo de sobra para te expulsar de Inis Eala, como Sam muito bem assinalou. Mas ainda há a questão de Svala. Ela não se encontra entre nós, esta manhã...
Johnny deteve-se, fitando a porta aberta. Quando virei a cabeça, vi uma silhueta familiar ali parada, descalça, com o cabelo húmido espalhado sobre os ombros. A expressão do seu rosto fazia lembrar um veado cercado por uma alcateia. Levantando-me, aproximei-me e peguei-lhe na mão, trazendo-a para a frente.
Palavras dispararam dos lábios de Knut, uma furiosa enxurrada de nórdico. Apanhando os guardas de surpresa, atravessou o salão em grandes passadas na nossa direcção. Estava a três passos de distância quando Niall o agarrou pelos braços, imobilizando-o. A mão de Svala tremia na minha. A mulher forte e vigorosa que ela era escondera-se atrás de mim, como se a minha débil silhueta pudesse servir-lhe de escudo. Estava a respirar muito depressa, quase sem sorver o ar.
- Tragam-no de novo para aqui - disse Johnny. - Knut, pára e olha para mim: ainda não acabei. Não ouvimos toda a versão de Svala, mas parece que lhe fizeste um grande mal, se bem que com a melhor das intenções. Sê bem-vinda, Svala. - Fez um aceno cortês. - Espero que possamos corrigir o que te aconteceu.
- Corrigir? O que queres dizer com isso? - perguntou Knut.
- Sibeal acredita que Svala foi levada da Ilha da Serpente contra a sua vontade - respondeu Johnny, num tom impassível. - Se for provado que isso é verdade, a nossa missão não será apenas trazer de volta os homens abandonados naquele lugar, mas levar Svala para casa, sã e salva.
Um clamor de conversas cruzadas acolheu estas palavras. Johnny deixou-o correr durante algum tempo. Depois, ergueu a mão, impondo silêncio.
- Knut, ficarás sob vigia por tempo indefinido, longe de Svala. Não falarás com ela, a menos que ela peça para falar contigo. Quanto ao teu futuro, confia em mim, sinto-me muito tentado a banir-te neste preciso instante. Mas sempre acreditei que se deve dar a um homem uma segunda oportunidade.
Sustive a respiração. Como podia ele conceber a ideia de conservar Knut em Inis Eala? O homem não sabia a diferença entre o certo e o errado. Ou sabia, e não se importava com isso.
- Quando o Liadan partir com destino à Ilha da Serpente, tu irás a bordo - disse Johnny. - Não estou a oferecer-te uma escolha. Se Svala quiser regressar à ilha, tu vais levá-la até lá. Ajudarás os nossos homens na navegação. Darás auxílio na operação de resgate dos teus companheiros abandonados. Quando voltares desse lugar, se eu vir uma mudança em ti, uma mudança em que acredite realmente, só então ponderarei o teu desejo de permaneceres entre nós. És um bom guerreiro. Mas, aqui, não faltam bons guerreiros.
Quando Jouko acabou de traduzir, Knut já desviara o seu olhar do de Johnny. Agora, de olhos fixos nas botas, torcia nervosamente o fio de couro que trazia ao pescoço. Eolh era uma runa de defesa. Mas não o defenderia de um homem como Johnny, um homem que conhecia por dentro o medo, a fraqueza, a falta de confiança. Não afastaria a sabedoria e a compaixão com que fora tecida aquela severa decisão.
- Sibeal - disse Johnny, virando-se para a porta -, Svala quer dizer alguma coisa? Poderá fazê-lo através de ti?
Agora que Knut fora afastado, Svala sossegara, embora eu sentisse a sua inquietude. As quatro paredes, o fogo, a multidão, o som das vozes, tudo aquilo a incomodava. Ela tinha vindo porque sabia que era importante. Permanecer implicava da sua parte uma enorme força de vontade. Já fora difícil transmitir-lhe os meus pensamentos lá em baixo, na praia, apenas na presença das minhas irmãs.
- Ela ficará satisfeita com a decisão que tomaram - disse eu. - Explicar-lho-ei em privado. - Instantes depois, acrescentei o que pressenti que fosse a verdade. - Ela agradece-vos por levarem a cabo esta viagem. Do fundo do coração. Já me disse o quanto deseja regressar àquele lugar.
- Podemos fazer mais perguntas? - indagou alguém.
- Se precisarem das respostas agora, sim - respondeu Johnny.
- Não é tanto uma pergunta, mas um comentário. - O dono da voz levantou-se. Era Badger, um dos mais velhos. - Penso que há algo que um homem gostaria de saber antes de levantar o braço para ir nesta missão: se existe alguma hipótese de alguém ainda estar vivo nesse lugar. Compreendo que não possamos sabê-lo. Mas, se soubéssemos, facilitaria muito a decisão. Se estiverem vivos, é uma demanda heróica. Se estiverem todos mortos, é um passeio à senhora da asneira.
Cathal moveu-se. Passara todo o encontro atrás de Clodagh, imóvel e silencioso, as feições fechadas numa expressão sombria. O meu olhar cruzou-se com o dele, e uma espécie de reconhecimento aflorou-lhe ao rosto. Quebraria a regra que impusera a si mesmo, oferecendo-se para procurar a resposta na adivinhação? Os companheiros sabiam que a sua ascendência era, de certo modo, invulgar. Eu duvidava que eles compreendessem a extensão das suas habilidades, ou os riscos que ele corria ao servir-se delas. Clodagh franziu o sobrolho. Tornei a olhar para o meu primo.
- É um comentário legítimo, Badger - replicou Johnny. - Como disseste, não podemos saber. Temos de acreditar no que nos dizem estes sonhos e visões e o nosso sentido de justiça. Ninguém deverá sentir-se obrigado a dar o nome. Não ficarei com uma má opinião de nenhum homem por não querer ir.
Um dos homens mais novos levantou-se, um indivíduo robusto, de pele tisnada e a cabeça rapada como um ovo.
- Tenho uma pergunta para fazer a Felix.
Felix estava cansado. Tinha o rosto pálido como a cera, mas conservava os ombros bem direitos. Johnny olhou de relance para ele, e ele aquiesceu.
- Fui membro da tripulação de um barco mercante entre Dublin e as ilhas - disse o jovem guerreiro. - A viagem de que falas significa andar vários dias no mar sem terra à vista; tempo incerto; nenhuma forma de traçar uma rota. Espaço estreito, pouco descanso, provisões limitadas. Dizes que não és marinheiro e, no entanto, afirmas que farás esta viagem. Serei franco: esta demanda é apenas para os mais fortes e mais duros. Podes já ter feito a viagem uma vez, mas não como membro da tripulação. E não tens estado confinado à enfermaria desde o dia em que aqui chegaste, sob cuidados constantes e quase incapaz de sair do leito? Estudioso, não é? Se me coubesse a mim reunir a tripulação para uma missão desta natureza, tu serias um dos últimos homens que eu haveria de escolher.
- Não tem papas na língua - ouvi Gull murmurar.
- Compreendo o teu argumento - disse Felix, levantando-se uma vez mais. - Quando o Liadan partir com destino à Ilha da Serpente, eu estarei pronto.
Um silêncio breve seguiu-se a esta declaração, que fora articulada numa voz forte e confiante. Do lugar onde me encontrava, ao lado de Svala, perto da porta, eu conseguia ver que Felix unira as mãos com força atrás das costas, para ocultar os tremores.
- Cinco dinheiros em como o consigo pôr em forma a tempo - gritou Gull, um sorriso espalhando-se pelas feições escuras. - Algum interessado?
Seguiu-se uma gargalhada estrepitosa e um coro de ofertas. Se havia coisa que aqueles homens apreciavam era uma boa aposta. E assim o encontro chegou ao fim, num espírito de boa vontade. Se esse espírito prevaleceria depois de todos terem tido tempo para pensar no que os esperava, só o futuro o diria.
Nem toda a gente no salão fora distraída do assunto em causa pelo momento de humor de Gull. Cathal costumava ter um ar sombrio, mas, nesse dia, dir-se-ia que uma sombra exclusiva o acompanhava. Perguntei-me o que teria provocado o seu pedido de desculpas a Felix na noite anterior, quando dissera que o tinha julgado mal. Gareth não estava animado, como era hábito. Atribuí isto à falta de sono, mas talvez pressentisse uma separação iminente. Se mais nenhum outro chefe capaz de liderar a expedição oferecesse os seus serviços, Gareth sentir-se-ia obrigado a voluntariar-se, por uma questão de honra, assumindo o compromisso que Johnny não podia assumir. Tal era o complexo laço de lealdade que existia entre os dois homens, que eram amantes, melhores amigos e companheiros de armas.
As minhas irmãs estavam muito silenciosas. Ninguém mencionara que eu também iria a bordo do Liadan, num espaço exíguo, por mares intransitáveis, com provisões limitadas e por aí adiante. Ainda havia algumas batalhas por vencer.
- Svala, podemos ir - murmurei, apontando para o exterior. - Vem comigo. - Senti no seu aperto trémulo uma forte necessidade de fugir. Mas não lhe larguei a mão até estarmos lá fora, no pátio, momentaneamente sós. - Está tudo bem - disse-lhe, segurando-a com as minhas mãos e com os meus olhos. - Agora, estás em segurança. Knut não vai regressar à tua cabana, nem à tua cama, a menos que o queiras. E nós vamos levar-te para casa. - Exortei-a a compreender-me; formei imagens na minha mente, simples imagens que eu esperava que fizessem sentido para ela. Ficámos ali até outras pessoas começarem a sair do salão. As suas vozes quebraram a minha concentração, e o laço perdeu-se. Senti-me, de súbito, esgotada. Os meus joelhos fraquejavam. - Vai agora, se quiseres - disse, libertando as suas mãos.
Ela desapareceu num abrir e fechar de olhos, correndo pela encosta abaixo na direcção da baía, com o cabelo a esvoaçar atrás dela. Teria visto um sorriso antes de lhe ter virado as costas?
- Sibeal! - Clodagh estava ali, ao meu lado, a segurar-me no braço, a manter-me direita. - O que foi?
- Nada. Estou um pouco tonta. Preciso de sentar-me.
- Volta para dentro, deixa-me ir buscar-te um pouco de hidromel...
- Eu estou bem, Clodagh...
- Mentira, estás quase a desmaiar. Faz aquilo que te digo.
Comecei a ver pontos brilhantes; senti um vómito. Era evidente que as minhas pernas já não me levariam a parte nenhuma. Deixei a minha irmã conduzir-me a um banco fora do salão, onde me sentei com a cabeça entre os joelhos, à espera que a fraqueza passasse. Lembrando o que dissera aquele homem a respeito de Felix não estar preparado para fazer a viagem, isto era uma infelicidade. E tornou-se uma infelicidade ainda maior quando Johnny saiu do salão e se acocorou ao meu lado.
- Estás doente, Sibeal?
Abanei a cabeça. Má ideia; senti uma volta no estômago.
- Não, eu estou... É só... Com Svala, as coisas podem ser esgotantes...
- Clodagh leva-te à enfermaria para descansares - disse Johnny.
- Depois da noite de ontem, não me admira. Sibeal, tu e eu temos de conversar os dois, mais tarde. Irei ter contigo quando já tiveres dormido um pouco.
- Tenho de ir - repliquei, de olhos fechados. - Os deuses...
- Chiuuu - sussurrou Johnny. - Faremos isto com calma, com cuidado, com a melhor preparação possível. Temos muito tempo para falar depois de descansares. Serias capaz de andar, agora?
As pessoas saíam, naquele momento, do salão, regressando às suas tarefas. Os olhos de cada potencial membro da tripulação do Liadan podiam estar postos em mim.
- Claro - respondi, levantando-me. O chão inclinou-se por debaixo dos meus pés. - Só preciso de... - Dei um passo e o mundo escureceu.
Acordei no meu pequeno quarto a sentir-me de perfeita saúde, embora ainda um pouco cansada. Deixei-me ficar deitada algum tempo, a olhar para as minhas runas de carvão e a desejar com muita força não ter mostrado semelhante fraqueza em público. Não me lembrava de grande coisa depois de ter desmaiado, mas tinha a vaga recordação de alguém me levar ao colo e de Clodagh inclinar uma taça com água para eu conseguir beber.
A luz na cercadura da porta indicava que a tarde ia a meio. Tinha de levantar-me, vestir-me e preparar-me. Algures nesse dia, seria preciso apresentar o meu caso a Johnny; não havia dúvidas de que era acerca disso que ele queria conversar comigo. O meu desmaio não facilitaria as coisas. Talvez devesse pedir a Gull para me treinar a mim também, além de Felix.
Ali dentro, o silêncio era quase total. Quem sabe, todos recuperavam o sono perdido. Saindo da cama, peguei nos sapatos e afastei a cortina para o lado.
A única pessoa que se encontrava na enfermaria era Felix, e ele não estava a dormir mas de pé, à lareira, fitando-me, como se estivesse à minha espera. Quem me dera ter escovado o cabelo antes de sair. Quem me dera... E depois, sem pensar muito no que estava a fazer, avancei direita a ele. Felix abriu os braços e eu entrei naquele abraço. Ele já me tinha abraçado uma vez, por um breve instante, mas aquilo era diferente: era como regressar de uma longa viagem e, ao mesmo tempo, como o primeiro dia de Primavera, quando toda a beleza e promessa da estação se estendem à nossa frente. Ficámos ali, sem dizer uma palavra, os seus braços rodeando os meus ombros, os meus à volta da sua cintura, a minha cara encostada ao seu coração, os dedos dele a deslizarem pelo meu cabelo. Não pensarei em mais nada a não ser neste momento, disse para comigo. Guardá-lo-eipara me lembrar sempre.
Foi Felix quem recuou primeiro, pegando-me nas mãos e levando-as aos lábios um instante.
- Pareces pálida - disse-me, numa voz vincadamente insegura.
Julguei que as minhas faces estivessem luminosas como botões de rosa.
O sangue fervia-me nas veias; inexperiente como era, reconheci, ainda assim, os sinais de desejo do meu corpo.
- Eu estou bem - respondi, quando, na verdade, me sentia confusa, perturbada e perigosamente feliz, tudo ao mesmo tempo. - Era cansaço, não doença. Devo ter dormido uma eternidade... Onde estão todos? E tu, descansaste? - Ouvi-me a mim própria a tagarelar, enchendo o silêncio com palavras vazias. Obriguei-me a parar. Sentei-me no banco à beira da lareira. Felix sentou-se ao meu lado, a segurar-me na mão. O seu toque aquecia-me o corpo todo. Não conseguia obrigar-me a retirar os meus dedos da sua mão, embora me parecesse que devia fazê-lo, porque o que acabara de acontecer entre nós não devia ser encorajado.
- Estive algum tempo a fazer exercícios com Gull e, depois, ele mandou-me vir para aqui, para descansar. Mas não dormi; tenho a cabeça demasiado cheia. Gull foi para o alojamento dos casais dormir. Já estava a fazer um esforço para se manter acordado. Evan e Muirrin estão a conversar com Johnny. E eu estou aqui, como vês. À espera que tu acordes, Sibeal.
Depois do que acabara de acontecer, senti-me estranhamente tímida ao pé dele.
- Pareces mudado - disse-lhe.
- Sou o mesmo homem que era ontem.
- Mais forte. Mais seguro de si. Ontem, eu teria pensado que nunca recuperarias a tempo de fazer esta viagem. Hoje, não tenho dúvidas de que conseguirás.
- Johnny acredita em mim - disse Felix. - Isso faz toda a diferença. Se te pareço mais forte, ainda bem. Tenho de convencer todos os homens que fizerem parte desta missão de que serei capaz de desempenhar o meu papel. - Hesitou. - Sibeal, há uma coisa que tenho de dizer-te. Creio que não te agradará ouvi-la.
Eu não fazia ideia do que poderia ser. Oxalá não fosse algo que estragasse a memória dos seus braços à minha volta, do seu toque macio, o toque não de um amigo, mas de um amante. Ainda o sentia: uma dádiva, uma promessa, um sentimento raro que devia ser estimado, por muito errado que fosse.
- Sibeal - continuou acredito em ti, acredito na tua capacidade para nos guiares neste momento. Quem mais consegue comunicar com Svala? Quem mais conseguirá ouvir as vozes dos deuses? Compreendo por que razão é importante para ti vires nesta viagem. As runas não mentem. Se fosses uma estranha para mim, suponho que pensaria o que a maior parte das pessoas nesta ilha vai pensar: que tu não tens, de maneira alguma, a força necessária para suportar esta missão. As pessoas de Inis Eala sabem que és forte de espírito, mais sábia do que os teus anos levariam a crer. Mas também te viram desmaiar esta manhã. Vêem como és pequena, de constituição delicada. Como poderiam imaginar-te num barco a cruzar mares encapelados, rumo a uma ilha de mitos e monstros?
- Eu sei disso, Felix - repliquei. - Mas não preciso de convencer a população inteira de Inis Eala de que sou mais do que uma jovem rapariga desamparada. Só preciso de convencer uma pessoa: Johnny.
Felix não respondeu, limitou-se a olhar para mim.
- Desembucha, então. Diz o que tens a dizer, seja lá o que for.
Ele pigarreou.
- Sibeal, não quero que venhas na viagem.
Isto atingiu-me como um soco de punho fechado. Toda a serenidade druídica me abandonou; faltava-me o ar.
- O quê? - perguntei, levantando-me de um salto.
- Sibeal, não falo como o homem que partilhou contigo aquela adivinhação rúnica, mas como aquele que te apertou nos seus braços apenas há instantes. A missão é demasiado perigosa. Não devias ir. - Felix procurou, de novo, as minhas mãos, mas eu cruzei os braços. Sentia uma pedra fria no lugar do coração.
- Como podes dizer isso? - perguntei. E não era a voz serena da druidesa, mas o tom vacilante da rapariga vulnerável que desmaiava quando se sentia esmagada; a voz trémula da rapariga que, momentos antes, se derretera nos seus braços. Eu estava a perder-me. E não podia permitir que isso acontecesse.
- Sibeal, deixa-me explicar-te, por favor. A única coisa que estou a tentar fazer é ser honesto contigo, mas...
- Mas o quê, Felix?
- Estás zangada. Transtornei-te.
- Pensei que acreditavas em mim. Pensei que eras a única pessoa que tinha uma absoluta confiança em mim. Pensei que tinhas visto a minha força, não a minha fraqueza. - Oh, deuses, agora estava a chorar. - Pensei que compreendias.
- Oh, Sibeal. - Felix estendeu o braço para limpar as lágrimas que me caíam sobre as faces, e eu fechei os olhos, incapaz de suportar o sentimento nu que se espelhara no seu rosto. Havia tanta ternura naquele toque que eu não conseguiria escudar o meu coração. Sabia que tinha de afastar-me, mas os meus pés recusavam-se a sair do mesmo sítio. - Sibeal, por favor, ouve-me. Eu acredito em ti. Sei por que tens de vir nesta viagem. Se desejares, terás o meu apoio quando falares com Johnny. Mas... agora que a expedição parece vir a concretizar-se e que podemos, de facto, lá ir e encontrá-los, não paro de pensar no que pode acontecer-te. Se fosses morta, se eu te perdesse, penso que o meu coração não aguentaria. Meço as duas coisas, a tua morte contra o resgate dos homens que abandonámos, e começo a duvidar da sensatez desta missão. Não posso duvidar. Tenho de fazer isto, por Paul.
Os meus olhos já se tinham voltado a abrir.
- Oh, Felix - disse-lhe, encostando a mão ao seu rosto. - Não penses assim. Não duvides. - A mão dele cobriu a minha. - Além disso - obriguei-me a dizer -, estou destinada a um futuro nos nemetons. No fim do Verão, vamos despedir-nos um do outro, aconteça o que acontecer.
Felix fechou os olhos. Disse-o tão baixo que podia estar a falar consigo mesmo.
- Isso não faz qualquer diferença - declarou. - Não posso alterar o que sinto.
Contra a minha vontade, eu sabia que aquelas palavras eram a mais pura das verdades; porque a mesma certeza tinha acordado no meu coração.
- Eu sei - murmurei. - E lamento. Lamento por ti. Lamento por mim; oh, lamento tanto...
- Lamentas ter-me conhecido? - Felix tentou esboçar um sorriso, sem êxito. - Ou lamentas que tenhamos de arriscar as nossas vidas juntos, numa missão com tão poucas hipóteses de êxito?
- Nunca lamentarei ter-te conhecido, Felix. Foi... um privilégio. Uma dádiva. Quanto à missão, confio nos deuses. Eles mostraram-nos que podemos cumpri-la, se formos corajosos. E nós os dois podemos ser muito corajosos. No dia em que o mar te trouxe à costa, aqui na ilha, foi isso que provámos.
- Tu és corajosa, Sibeal. Eu, nem tanto. Por duas vezes salvaste-me a vida, uma na enseada e outra ontem à noite, com a tua... manobra de distracção. Espero ter coragem suficiente para te levar ao encontro do perigo e, apesar disso, agir com equilíbrio e sabedoria. Espero que o meu terror de que algo te aconteça não me paralise.
- Quando eu era criança - contei-lhe, engolindo as lágrimas -, as minhas irmãs diziam-me, por vezes, que eu pensava demais, que devia andar a correr de um lado para o outro e a trepar às árvores. Neste momento, talvez estejamos os dois a pensar demais. Se confiarmos um no outro, conseguiremos atravessar este momento. O resto não tem importância.
Alguém se aproximava; ouvi passos lá fora e a porta das traseiras a ranger.
- Sibeal? - murmurou Felix.
- Hum? - Os meus dedos tocaram-lhe na face, ao de leve; retirei-os.
- Mostraste-me não só a tua força como a tua fraqueza - disse ele. - Isso também foi um privilégio. Uma dádiva de grande valor. Mais do que eu mereço.
Quando Muirrin entrou com um cesto no braço, seguida de Evan, Felix levantou-se e afastou-se. Eu virei-me de costas, incapaz de fazer uma conversa trivial. Sentindo o oposto da coragem, murmurei algo a respeito de banhos, dirigi-me à porta da frente e fugi.
Concedi a mim mesma o prazer de uma longa imersão. Clodagh lavou-me o cabelo e emprestou-me roupas limpas, uma saia e uma túnica que era dela, tecida em dois tons de verde. Não me perguntou se eu tinha estado a chorar. Na verdade, parecia invulgarmente absorta e pouco faladora. Quando me senti limpa e arranjada, fui dar um passeio. Falaria com Johnny no regresso. Fang continuava lá em baixo, no cais. Não muito longe, dois rapazes pescavam à linha. Enquanto eu observava, um deles lançou-lhe um pequeno peixe, e a cadela apanhou-o com uma habilidade experiente. Fang não morreria à fome antes de o seu adorado Snake regressar a casa.
No trilho da falésia, a meio caminho da ponta norte da ilha, encontrei Cathal sentado nas rochas a olhar para o mar. Embrulhado no manto negro, com o cabelo preto afastado do rosto longilíneo pela brisa da tarde, parecia o príncipe melancólico de uma história antiga. Quando subi, chegou-se para o lado, para me dar espaço. Contemplámos, por momentos, o bailado do vento e da água. Depois, ele disse:
- Eles estão vivos, Sibeal. Pelo menos, três.
Talvez não devesse ter ficado chocada, mas estava.
- Foste à Gruta do Vidente?
Cathal suspirou.
- Não me pareceu que houvesse alternativa. Não posso permitir que os homens arrisquem a vida numa missão inglória. Sobretudo se possuo o dom de evocar uma visão verdadeira. Sim, usei o lago do vidente. Vi os três sobreviventes numa gruta, no cimo dos penhascos. Aquela ilha é um lugar desolado. Eles tinham alguns mantimentos: uma espécie de manta grande que os aquecia, uma ou duas outras coisas. Não me parece que Knut e os amigos tenham parado para recarregar o que fora retirado do barco, antes de recuarem mar adentro. Esses três que eu vi... não estavam em boas condições. Espero que o Liadan regresse em breve. - Um arrepio sacudiu-lhe o corpo. - Sibeal, este lugar é exactamente como nos meus sonhos. Pergunto-me quem, ou o quê, teria o poder de trazer esses sonhos para Inis Eala. Trata-se de um dom extraordinário, se é que podemos chamar-lhe dom. Alguém nos arrastou para a sombra dos seus pesadelos. Um homem, ou uma mulher.
Reflecti acerca disto.
- Ainda achas que Mac Dara pode estar envolvido? - acabei por perguntar. - Seria uma forma rebuscada de te expor ao perigo.
- Ele não é capaz de exercer a sua influência no interior de Inis Eala - replicou, olhando para longe, para o oceano. - Tem de atrair-me para fora. O meu pai não tem escrúpulos. Não se importa nada com as vidas que se perdem pelo caminho. E entedia-se com muita facilidade. Um monstro marinho é precisamente o género de pormenor que o divertiria.
- Não é uma certeza, pois não? - cogitei. - Não podes saber se o teu pai está envolvido, a menos que partas de Inis Eala e, mesmo então, é possível que não consigas determiná-lo. Ele pode estar a manipular tudo isto de muito longe.
- Correcto, Sibeal. Tudo isto, todas as coisas que aconteceram até aqui podem não ter qualquer relação com a guerra que existe entre mim e o meu pai. Não o chamarei a ele ao lago do vidente. Fazê-lo poria em perigo tudo o que me é mais querido. - Respirou fundo. - O teu amigo ficará aliviado por saber que pelo menos alguns dos seus companheiros ainda vivem. Ele interessa-me. A experiência debilitou-o tanto, e é evidente que não é um homem de armas, mas está cheio de coragem para levar a cabo esta missão. Cometi um grande erro de julgamento. Pensei que se tratava de um emissário do meu pai. Mas, nem mesmo o meu pai teria a subtileza necessária para usar semelhante agente. A menos que o fizesse sem o conhecimento de Felix.
- Cathal - repliquei, sem saber se ele me ouviria ou se se revoltaria com a minha interferência -, estás a fazer o mesmo que Felix: estás a pensar demais. A missão será levada a cabo, quer tudo isto tenha sido engendrado por Mac Dara, quer não. Todas as pessoas que subirem a bordo daquele barco fá-lo-ão de livre vontade. Excepto Knut, julgo eu, mas quem semeia ventos colhe tempestades. Quanto ao teu pai, ele não me quer a mim, ou a Felix, ou a Svala; quer-te a ti. Ou ao teu filho. Tu sabes que podes proteger Clodagh e o bebé. A única coisa que tens de fazer é ficar em Inis Eala.
A seguir a estas palavras, arrastou-se um silêncio terrível, um silêncio em que eu era a única pessoa a pensar demais e a temer o que Cathal não estava a dizer.
- Não o farias... - acrescentei, num sussurro horrorizado. - Com a chegada tão próxima do bebé, não conceberias sequer a hipótese de fazer parte de uma coisa destas. - Mas eu via-o com clareza: as ondas, a maré, o monstro e a perícia de Cathal na magia da água. A sua presença naquela missão podia ser a diferença entre o êxito e o amargo fracasso. Entre a vida e a morte.
- Volta para a povoação, Sibeal. - Cathal usou o seu tom mais desagradável, aquele que dizia, sem rodeios, deixa-me sozinho. - Johnny quer falar contigo.
E, dado que apenas Clodagh sabia enfrentá-lo quando ele se encontrava neste estado de espírito, obedeci. Regressei, sem tomar atenção ao que me rodeava. Como podia Cathal considerar a hipótese de participar naquela missão? Como podia partir, se isso o impediria de assistir ao nascimento do seu primeiro filho? Eu sabia que alguns homens não davam grande importância a essas coisas. Mas Cathal não era um homem como os outros. Amava a minha irmã de corpo e alma. E a criança... Esta era a criança que Mac Dara cobiçava, a criança que o pai de Cathal faria tudo para levar com ele. Se deixasse a ilha, Cathal abriria caminho a Mac Dara. Se fosse morto, Clodagh e o bebé ficariam sozinhos. Se partisse, era...
Pára, Sibeal. Não o julgues. Se fosse eu a escolher a tripulação desta viagem, quem escolheria? Uma rapariga sem qualquer conhecimento da arte da navegação, ou um guerreiro com provas dadas, um chefe, um lutador excepcional? Uma jovem chorosa, sempre pronta a desmaiar, que começava a perder a noção da druidesa que almejava ser, ou um praticante da poderosa magia da água? Não podia permitir que as emoções dominassem o meu senso comum. Acima de tudo, urgia acabar com essa culpa que crescia dentro de mim à medida que imaginava, primeiro um, depois outro membro da minha família ferido ou morto porque eu tinha acreditado que esta viagem era a vontade dos deuses. Não podia permitir que a dúvida me tolhesse, porque, se eu perdesse a minha fé naquela missão, não tinha o direito de esperar que Felix conservasse a dele.
Tinha estado a ensaiar o que iria dizer a Johnny, ponderando a melhor maneira de convencê-lo de que a vontade dos deuses teria de sobrepor-se ao seu sentido de responsabilidade para com uma prima jovem à sua guarda. Encontrei-o no jardim, à porta das traseiras da enfermaria, sentado no banco, à minha espera. O Sol descia agora a ocidente, tocando no rosto cansado de Johnny com uma suave luz dourada. Não que houvesse grande suavidade naquele homem. Conseguia ser amável e compassivo. Mas era um guerreiro e um chefe e, quando se tratava de tomar decisões difíceis, não perdia tempo. Tomava a sua decisão e mantinha-se firme.
Talvez tenha sido por isso que não esperou para ouvir os argumentos que eu reunira com tanto cuidado, falando antes mesmo de eu poder começar.
- Uma pergunta, Sibeal. Concordarias que, se eu te deixasse ir nesta viagem e tu fosses ferida ou morta, uma farpa seria cravada na minha relação com o teu pai que não desapareceria até ao fim das nossas vidas?
Não era uma pergunta banal. Não só existiam fortes laços de parentesco entre nós, como Johnny era o herdeiro do meu pai. Se esses laços se desfizessem, a sucessão em Sevenwaters poderia, uma vez mais, tornar-se um rastilho para o conflito territorial. O próximo na linha, o meu irmão Finbar, só tinha quatro anos de idade.
- A situação - retorqui - envolve um potencial de culpa suficiente para nos paralisar a todos. Sabias que Cathal foi hoje à Gruta do Vidente?
- Foi de sua livre e espontânea vontade, não por ordem minha. Viste-o?
- Ele disse-me que havia três homens ainda vivos na Ilha da Serpente. E... - Não, não lhe diria nada mais. Que Cathal contasse a Johnny o que quisesse, se as minhas suspeitas se confirmavam. Que nenhum suspiro chegasse aos ouvidos de Clodagh antes de Cathal poder contar-lhe. - Quanto à tua primeira pergunta - prossegui -, antes de partirmos, escreverei uma carta à minha mãe e ao meu pai, uma carta que ficará ao teu cuidado. Explicar-lhes-ei que foi esta a minha decisão e que sei que é a decisão certa. - Imaginei o meu pai a ler essa carta depois de lhe terem dito que eu tinha perecido longe de casa, talvez devorada por um monstro marinho, talvez vítima do frio e da fome. - Sim, creio que causaria alguma amargura - senti-me obrigada a dizer. - Talvez não para toda a vida. O meu pai é um homem sábio e equilibrado. Em muitos aspectos, é parecido contigo. Mas tu não tens filhos, e penso que os filhos mudam as atitudes de um homem.
Johnny sorriu.
- É difícil para qualquer homem enviar um ente querido numa missão como esta, Sibeal. Aqui, já toda a gente aprendeu essa lição, uma e outra vez. Não se torna mais fácil com o tempo. Apesar disso, ficarás contente por saber que tenho voluntários suficientes para ir para a frente com isto.
- Em tão pouco tempo! - No mesmo dia. De um momento para o outro, os homens tinham apostado as suas vidas.
- Não precisaram do tempo que lhes ofereci. Não me surpreende. Foram cativados pela narrativa de Felix. Vêem-se a si próprios ou aos amigos no lugar daqueles homens, agarrados ao último fiapo de coragem perante o impossível. É disto que as lendas são feitas. Portanto... - Johnny olhou-me nos olhos. - Tudo leva a crer que isto vá avante, desde que o Liadan regresse a tempo.
- E regressará.
- Como podes falar com tanta certeza?
- Sinto-o, Johnny. Sei. Os deuses querem que Felix triunfe. Não o deixarão falhar por falta de uma embarcação.
- A tua fé impressiona-me, Sibeal. Embora eu não tenha o mesmo grau de certeza, sinto cá dentro que isto vai acontecer.
- Já tens um chefe entre os teus voluntários?
- Tenho. Gareth.
Senti que não havia nada a dizer. Lamento não seria apropriado. Gareth era um guerreiro experiente. Era o tipo de homem capaz de liderar uma expedição com tranquila confiança. Se Johnny queria ou não que Gareth fosse, ou se Gareth se oferecera ou não porque sabia que Johnny não podia ir, não era coisa que me dissesse respeito.
- Ele fará um bom trabalho - acabei por dizer.
- Sim.
- Johnny, eu...
- Tenho de pedir-te um favor, Sibeal.
Esperei que ele me dissesse que eu devia deixar aquela tripulação de profissionais fazer o seu trabalho e ficar na ilha, em segurança.
- Que favor?
- Quero que voltes a lançar as runas, na minha presença. Podes ter quem tu quiseres a assistir, ou apenas nós os dois, se preferires. - Vendo que eu não reagia, acrescentou: - Não duvido da primeira adivinhação, Sibeal. Sei que nos dirás sempre a verdade. Não duvido dos sonhos de Cathal, da sua visão no lago, ou do que Svala te transmitiu. Peço-te isto porque tenho esperança de que essa adivinhação possa lançar mais luz sobre o assunto.
- Muito bem - respondi. - Há alguma pergunta em particular que gostasses que eu colocasse?
- Podes perguntar o que pesa mais na balança desta aventura: a salvação ou o sacrifício.
Uma pergunta grave, sem dúvida.
- E se a resposta for sacrifício, recusar-te-ás a deixar-me ir? - perguntei. - Sabes que a minha primeira adivinhação sugeria que a missão só seria cumprida se Felix e eu estivéssemos presentes.
- No mínimo - replicou Johnny -, a adivinhação fornecerá algum esclarecimento. Estamos muito precisados dele neste momento.
O instinto dizia-me que Svala devia estar presente quando eu lançasse as runas, uma vez que os temas em causa a afectavam tão intimamente. Quando chegou a altura, desci até à cabana do pescador para ir buscá-la. Estava sentada na praia, não muito longe da porta aberta, à luz morrente, murmurando uma canção e dispondo conchas na areia, ao longo de uma linha comprida e sinuosa. Quando lhe fiz sinal para vir, ela levantou-se e seguiu-me de boa vontade.
Todos aqueles que eu tinha chamado já lá estavam quando chegámos ao jardim: Johnny e Gareth, Cathal e Clodagh, Muirrin e Evan, Gull e Biddy. E Felix, cujos olhos se fixaram em mim assim que Svala e eu entrámos no jardim. Tentei não olhar para ele. A sua simples presença fazia o meu coração bater mais depressa. Pensamentos ordenados ameaçavam perder-se numa selva de emoções cruas. Não podia permiti-lo. A adivinhação rúnica exigia calma, controlo, distanciamento.
Johnny colocara Kalev e Niall mais abaixo, a caminho do salão. Àquela distância, não conseguiriam ouvir-nos, mas estavam próximos o suficiente para interceptar quem quer que se lembrasse de interromper-nos. Eu já tinha preparado, mais cedo, a zona do ritual. Era simples: um círculo de chão varrido, um cobertor dobrado onde ajoelhar-me, uma candeia a óleo. Gull e Biddy sentaram-se num banco, Clodagh e Muirrin no outro. Evan e Felix nos degraus de trás; os outros homens ficaram de pé. Quando viu quantos se encontravam ali reunidos, Svala estacou.
- Vem - disse eu, chamando-a. - Estás entre amigos.
Ela aproximou-se um pouco, mas manteve-se à distância. Mesmo à beira do círculo de luz projectado pela candeia, deteve-se e acocorou-se, à espera.
- Isso mesmo - disse eu, tranquilizando-a com um sorriso. Tinha esperança que ela ficasse. Talvez já estivesse familiarizada com as runas. Antes de ir parar àquela ilha solitária, era muito provável que tivesse vivido numa comunidade nórdica. Esta raça era, de um modo geral, de pele branca e compleição robusta, como ela, embora a beleza de Svala fosse excepcional.
Eu já tinha avisado toda a gente de que os preparativos demoravam algum tempo. Todos aguardaram em silêncio enquanto me ajoelhei no cobertor e estendi no chão a toalha de linho do ritual. Fechei os olhos. Aos poucos, fui-me aproximando desse estado em que a mente se abriria à sabedoria dos deuses. Não era possível abreviar o processo. Abrandei o ritmo da minha respiração. Com um grande esforço, afastei pensamentos rebeldes, tranquilizando a mente. O tempo passou. Na escuridão atrás das pálpebras fechadas, não pude permanecer indiferente ao que me invadia de mansinho, vindo da minha silenciosa assistência: alguém cuja mente não parava de trabalhar, fazendo planos, antecipando situações; alguém que estava tenso, ansioso, desejando uma resposta específica da parte das runas. Uma outra pessoa debatia-se com uma terrível indecisão. Outra ainda percorria o caminho comigo, passo a passo; eu sabia quem era. Por fim, alguém sofria uma ansiedade tão forte que eu quase conseguia tocar no sentimento. Quem seria? Quem se sentara na beira do banco, com todos os músculos contraídos em temerosa antecipação da mensagem das runas? Não abri os olhos. Respirei mais devagar ainda, deixando passar tudo isto. Quando me senti pronta, peguei no saco e desatei o laço. Pelos outros, fiz a pergunta de Johnny em voz alta.
- O que pesa mais na viagem que planeamos: a salvação ou o sacrifício?
Sem abrir os olhos, virei o saco ao contrário, espalhando as varas de runas na toalha do ritual. Svala susteve a respiração.
Abri os olhos. Era errado tentar descobrir antes do tempo aquilo que revelaria a adivinhação, mas parte de mim esperara que as três runas portadoras de sentido fossem exactamente as mesmas da primeira adivinhação, quando tinha tentado ajudar Felix: OR, Ger e Nyd. Mas ali, por cima das outras, destacavam-se Rad, Ken, Eolh. Todas diferentes. Todas inesperadas.
Permaneci sentada algum tempo, deixando os símbolos trabalhar dentro de mim, misturando-se e modificando-se. Observei que sinais se encontravam mesmo por debaixo destes três. Havia várias hipóteses, Devia-o a Johnny seleccionar as que julgasse mais adequadas para responder à sua pergunta. Seria fácil escolher uma interpretação que garantisse a minha presença no barco. Mas não era essa a maneira do druida. Uma escolha egoísta enfureceria os deuses, mesmo se a vontade destes fosse que eu viajasse para a Ilha da Serpente. As runas não mentiam. Mas uma vidente podia quase fazer com que mentissem, se se deixasse influenciar pelo seu interesse próprio.
Para evitar uma dor de cabeça latejante e um estado de desorientação, saí do transe aos poucos, com várias mudanças no ritmo da respiração. Enquanto o fazia, tomei de novo consciência do que me rodeava: o pequeno círculo de espectadores, os seus rostos iluminados pela luz quente da candeia; a Lua subindo no céu nocturno; os olhos de Felix fitando os meus, o conhecimento no seu rosto dizendo-me que também ele lera uma mensagem nos sinais. Clodagh sentada na beirinha do banco, a roer as unhas. A absoluta imobilidade de Svala, atraindo-me o olhar. Estava sentada de pernas cruzadas, costas direitas, cabeça erguida, olhos tranquilos, observando-me.
- Água, Sibeal? - Muirrin aproximou-se, oferecendo-me uma taça.
- Obrigada. - Sorvi com a sede de quem não bebera uma gota o dia inteiro. - Dir-vos-ei o que vejo. Há dois sinais preponderantes: Rad, a viagem, e Ken, a tocha. Fazendo a leitura mais simples, isto poderia significar que existe uma luz nesta demanda, ou que os viajantes serão iluminados; que haverá uma aprendizagem no caminho. Penso que não precisaríamos de uma adivinhação para o saber. Rad e Ken são um par; existe uma harmonia no facto de surgirem juntos. O terceiro sinal, menos preponderante, é Eolh: uma runa de defesa. - Peguei na vara, com a sua mão ou garra de três bicos, e Svala fez um pequeno ruído. Talvez tivesse reconhecido a escolha de Knut para a sua autoprotecção. - Eohl é um escudo. Protege contra todos os tipos de ataque, não apenas o ataque físico. Se eu pudesse dar aos homens que estão na ilha uma runa que os guardasse do perigo, essa runa seria Eolh. Quando rezar pela sua sobrevivência, agradecerei aos deuses terem enviado este sinal.
Parei. Até aqui, era simples.
- Johnny - disse -, seria fácil para mim dar-te a interpretação que mais me convém. Sabes que acredito que a missão não vingará se eu não estiver presente. Esta minha convicção foi baseada numa leitura das runas muito diferente. Nas três runas que aqui vemos, a necessidade de tanto eu como Felix viajarmos até à ilha é menos clara. Rad diz-me que os deuses acreditam na nossa demanda. Ken diz-me que os que nela participarem poderão embarcar numa viagem sombria, onde o conhecimento talvez seja a única luz a mostrar-lhes o caminho. Um caminho pejado de sombras; um caminho que poderá conduzir os viajantes ao limiar da morte. A presença de Eohl pode ser interpretada como prova de que eles conseguirão, apesar de tudo, passar por tudo isto intactos, protegidos pelo amor dos deuses e pela sua própria coragem. Vejo sacrifício e salvação nestas runas. Mas não me vejo a mim - obriguei-me a dizer. Tinha sido treinada apenas na prática da verdade.
- Mas, Sibeal - retorquiu Felix, com uma voz quente e segura -, é claro que estás aí. Ken, a tocha. - Olhou para Johnny, que permanecia de braços cruzados, o rosto tatuado fechado e sombrio. - Também eu percebo a importância da honestidade nesta interpretação. Dir-te-ei que aprendi a ler as runas com o irmão da minha mãe, um homem sábio, formado em certas artes. Não tenho a veleidade de possuir a erudição de Sibeal, mas vejo o que ela não consegue ver: o significado que a ela própria se refere. Rad, a viagem: é a vontade dos deuses que vamos para a Ilha da Serpente. Eohl, o escudo contra todos os males: talvez os deuses nos protejam; talvez o escudo seja o valor e a coragem daqueles que estão preparados para levar a cabo esta missão. E Ken: luz nas trevas; clareza no seio da confusão. Atocha que ilumina o nosso caminho. É Sibeal.
Para um homem que pouco tempo antes me dissera que não queria que eu fosse, Felix apoiara a minha causa com eloquência.
Durante algum tempo, ninguém falou. Depois, Johnny disse:
- Em tempos idos, um chefe de clã levaria o seu druida com ele para toda a parte, mesmo para o campo de batalha. Mas temos tendência a imaginar esses druidas como anciãos de barbas longas.
- Conor esteve presente na batalha contra Northwoods - interveio Gull. - Duvido muito que ele se visse como um ancião de barbas longas, embora pareça um sábio venerável. E Fainne também estava presente nesse campo de batalha.
- É verdade - disse Johnny. A memória escurecera-lhe os olhos. - Nessa altura, a nossa prima não era mais velha do que Sibeal é agora. Foi a presença de Fainne que fez pender a balança para o nosso lado, embora ela o tenha conseguido com grande custo pessoal. - Suspirou. - Sibeal, fiquei impressionado com a tua honestidade. E com a tua, Felix, pois desconfio que, por ti, preferias que Sibeal ficasse.
Felix inclinou a cabeça, em concordância.
- As runas não mentem - afirmou ele.
- Sibeal - disse Johnny -, compreenderás que a tua presença nesta aventura pode ser uma faca de dois gumes. Por um lado, temos de contar com a tua mestria nas artes druídicas, apoiada na tua convicção de que os deuses pretendem que estejas lá. Numa demanda como esta, a orientação espiritual pode desempenhar um papel importante. Os meus homens serão sensíveis ao argumento. Contra esta teoria, temos de pesar a tua vulnerabilidade e o impacto que ela pode ter na capacidade de os homens cumprirem o que tem de ser feito. Todos os homens a bordo deste barco entenderão que é seu dever proteger-te. Sem essa distracção, um homem terá por certo mais facilidade em navegar, tomar decisões, lutar, se preciso for. Cathal, o que pensas disto?
Uma mão esmagou-me o ombro, assustando-me. Svala aproximara-se em silêncio. Fez um pequeno som interrogativo.
- Johnny - disse eu -, tenho de tentar explicar-lhe aquilo que temos estado a discutir. - Podes esperar enquanto tento comunicar com ela?
Levantei-me e segurei nas mãos de Svala. Imaginei o barco a partir de Inis Eala, a sua tripulação incluindo Gareth e Felix e uma série de outros homens cujos rostos não imaginei em pormenor. Acrescentei a própria Svala, na proa, com o cabelo a esvoaçar ao vento, enquanto os homens içavam a vela e estabeleciam uma rota para norte. Mostrei um grupo de pessoas no pontão, a dizer adeus: Johnny, Gull, Biddy, Clodagh e eu própria.
Um som explodiu nos lábios de Svala: um som agudo e chilreado, de protesto. Mais abaixo, no jardim, Niall e Kalev viraram as cabeças, surpreendidos. Mais perto, olhos arregalaram-se. Mesmo Johnny parecia apanhado de surpresa.
Svala libertou-me e deu um passo na direcção de Johnny, o medo posto de parte, por agora. Depois, apontou para mim, para si própria, para Felix e fez a mesma mímica que fizera na gruta: o gesto inequívoco de remar. O seu braço rodopiou e apontou para norte.
Ninguém disse uma palavra. Tanto quanto eu sabia, esta era a primeira vez que Svala revelava a extensão do seu entendimento na presença de outras pessoas que não eu e as minhas irmãs. Quando terminou, recuou e envolveu os meus ombros com o braço, apontando de novo. Ela. Eu. As duas. Duas mulheres.
- Há uma coisa em que vocês, homens, não pensaram - disse Biddy. - Se Sibeal não for, Svala será a única mulher a bordo. E isso não me parece muito apropriado.
- Por outro lado - interveio Muirrin se Svala acabar mesmo por ficar naquela ilha, Sibeal será a única mulher a bordo no regresso.
- Talvez estejamos a precipitar as coisas - disse Johnny. - É evidente que Svala pensa que Sibeal devia ir, embora não possa dizer-nos porquê. Quanto à questão da decência, Gareth e eu não escolheríamos nenhum homem para fazer parte desta tripulação que não fosse de absoluta confiança. - Na pausa que se seguiu, pensei em Knut, que iria a bordo e que era um dos homens menos fiáveis que eu tinha conhecido. - Acreditem, pensei muito neste assunto. A segurança pessoal de Sibeal é uma preocupação que tem crescido no meu pensamento, bem como o que o pai dela julgaria apropriado. Os perigos da viagem em si ocuparam a linha da frente destes pensamentos; nunca pensei que pudesse haver alguma ameaça da parte dos meus próprios homens, e continuo a não pensar.
- Pergunto-me se pensaste realmente - comentou Biddy, em voz baixa. - As consequências são capazes de nos gelar até aos ossos. É preciso muita coragem para ir lá para fora enfrentar monstros. Mas é preciso ainda mais para ficar aqui e esperar. Ver aqueles que mais amas lançarem-se no olho da tempestade.
Gull olhou de relance para ela e pigarreou.
- Parece-me um momento tão bom como qualquer outro para falar. Nesta viagem, será preciso um curandeiro. E aqueles rapazes que por lá ficaram vão exigir alguns cuidados. Já para não dizer que alguém terá de ocupar-se dos contratempos que surgirem pelo caminho. - Olhou de relance para Muirrin e, depois, para Evan. Biddy estava branca. Tinha os lábios contraídos numa linha. - Parece-me que esse curandeiro devia ser eu, velho e barbudo como sou. E, embora não possa fazer-me passar por mulher, tenho servido de dama de companhia a Sibeal desde que ela aqui chegou, a Inis Eala. Fazendo as vezes de um pai, verdade seja dita. A minha presença na viagem resolveria esses receios a respeito do que é decente e indecente. - Após alguns momentos de atordoado silêncio, Gull acrescentou: - Sibeal, por sua vez, pode ser as minhas mãos. Juntos, faremos um bom trabalho.
Fiquei chocada e eufórica ao mesmo tempo. Queria protestar. As palavras de Biddy e a sua expressão diziam-me que isto alteraria a nossa relação para sempre. Johnny era perito a esconder o que sentia, mas, naquele momento, o choque estampara-se-lhe no rosto. Gull era o amigo mais velho do seu pai, venerado e adorado por todos em Inis Eala. Era como um pai para os habitantes da ilha. Para Johnny, seria muito fácil argumentar que, com as mãos estropiadas, ele não poderia combinar os deveres de curandeiro e membro da tripulação, como Evan. Mas eu sabia que o meu primo não o faria.
- Pai... - dizia agora Evan, levantando-se do seu lugar nos degraus.
- Silêncio - ordenou Gull. - És meu filho. A tua mulher está grávida; Nada mais tem de ser dito a respeito deste assunto.
- Maldição! - A voz era a de Cathal, destroçado, furioso. - A cada instante, a ondulação alarga-se para engolir mais um! Não é Felix o homei aziago, sou eu!
Clodagh pôs-se de pé, a sua fúria quase palpável, e saiu para o jardim sem dizer uma palavra, aconchegando o xaile com firmeza. Cathal resnoneou algo em voz baixa e seguiu-a num passo decidido. Muirrin levantou-se, como se quisesse ir atrás, mas tornou a sentar-se.
- Biddy - disse Johnny -, acredita que compreendo o que isto signific; tanto para aqueles que vão como para os que ficam. Sempre que envio homens para a guerra é a mesma coisa. Tens mais razões do que ninguém para perceber o que está aqui em causa, eu sei. Mas todos nós sofremos perdas.
Olhei em redor para o círculo de rostos, todos eles tolhidos pela dúvida. Enfrentando o olhar de Johnny, procurei fundo a minha voz mais confiant e a expressão à altura dessa voz.
- É importante encararmos isto como a heróica expedição de resgat que prendeu a imaginação dos teus homens - afirmei -, e não como a aventura arrojada e perigosa em que se podem perder vidas. Tens um comandante experiente (acenei na direcção de Gareth) e uma boa tripulação. En Gull, encontrarás o coração forte e seguro desta missão. Em Svala, alguén que sabe o caminho; o seu desejo intenso de regressar a casa conduzirá Liadan por esses mares tempestuosos. Em Felix, o vento de feição que nos enche as velas, uma brisa fresca de coragem e determinação. Quanto a min própria (pensei depressa, pouco inclinada a descrever-me como a tocha que iluminava o caminho), a minha presença é o reconhecimento da vontade dos deuses. Estou sintonizada com as suas vozes e, enquanto viajar a bordo do Liadan, o barco navegará sob a sua protecção. Não podemos dar-nos ao luxo de empreender em possíveis desastres, mágoas pessoais, sentimentos de culpa ou de incerteza. Agora que a decisão foi tomada, urge seguir em frente.
Um sorriso espalhou-se devagar pelas feições de Johnny. Vi o seu ecco no rosto de Gareth e no de Gull.
- Bem dito, Sibeal - comentou o meu primo. - Falas com a voz da esperança. E isso, na minha opinião, é essencial numa viagem ao desconhecido.
Esforcei-me por manter o tom e a postura de uma druidesa.
- Dizes, então, que posso ir - consegui articular.
- Digo, sim. Enquanto chefe, assumo toda a responsabilidade pela aventura e pela segurança dos que nela participam. Que os deuses nos sejam favoráveis, a todos nós. Não consigo imaginar melhor equipa com quem partilhar este fardo e só lamento não poder viajar convosco e estar ao vosso lado nesse lugar remoto. - Olhou de relance para Gareth. - Amanhã, revelaremos à comunidade quem vai partir. A partir desse momento, Gareth assumirá a liderança. Sibeal, podes pedir aos deuses que soprem um vento favorável nas velas do Liadan. Quanto mais depressa regressar, mais depressa poderá fazer-se à vela outra vez.
Agora que ele o dissera, o terror invadiu-me. Era real: o barco, a viagem perigosa, a ilha no fim do mundo, o monstro... Fora-me dado a escolher e, em vez de um Verão tranquilo na companhia das minhas irmãs, seguido de um regresso seguro a Sevenwaters, eu tinha escolhido aquilo.
- Tenho de dar a notícia a Svala - declarei e, virando-me para ela, tornei a pegar-lhe nas mãos. Desta vez, a imagem na minha mente mostrou-nos a ambas na frente do Liadan. Svala erguia-se como antes, uma figura de proa em carne e osso, bela e altiva. Ao seu lado, eu estava um pouco esverdeada, mas a fazer os possíveis por acompanhar o seu ar destemido. Entre os membros da tripulação, incluí Gareth, Felix, Knut e a figura sorridente e de pele escura que era Gull. No cais, a olhar para nós, imaginei Johnny, Biddy, Muirrin, Evan e Clodagh. Cathal não pus em lado nenhum. O barco na imagem zarpava rumo ao norte, sob o céu rosado da madrugada, a vela inchando com um vento favorável.
Svala deixou cair as mãos e abraçou-me. Quando me libertou, vi que a sua boca se abrira num sorriso luminoso e que os seus olhos se tinham enchido de lágrimas. Finalmente! Finalmente! Em seguida, foi ajoelhar-se diante de Johnny. Pegando na mão dele, encostou a testa aos seus dedos num gesto de gratidão. Antes que Johnny pudesse dizer alguma coisa, levantou-se e saiu disparada para o jardim.
- Que os deuses tenham piedade de mim se tomei a decisão errada - disse ele. - Agora, para a cama, todos vocês. Lembrem-se das palavras de esperança de Sibeal e não deixem que as vossas dúvidas, se as tiverem, cheguem aos ouvidos da comunidade. Temos uma equipa forte e cumpriremos esta missão como sempre fazemos: com coragem e profissionalismo. Agora, desejo-vos as boas-noites. Gull, oxalá o meu pai aqui estivesse para assistir ao teu voluntarismo.
- Pergunto-me se ele teria aceitado ou recusado.
- Recusado, se tivesse algum juízo - comentou Biddy, embora de braço dado com o marido. Se estava zangada, não me pareceu que fosse com Gu mas com a complexa rede de lealdades familiares que o obrigara a oferecer os seus serviços. - Mas, o mais provável, era enfiar-se no barco contigo. Todo o velho guerreiro acredita que ainda tem uma última aventura para viver dentro de si.
Capítulo 11
Felix
O Liadan regressa à ilha dez dias depois de Johnny ter tomado a sua decisão. Estou no lugar do enterro do barco, num ponto cimeiro da colina, quando o vejo aproximar-se da baía, um vento oeste persistente enfunando-lhe a vela quadrada. Sinto um esticão no peito. Podemos ir, digo ao meu irmão. O barco está aqui.
Pergunto-me se Paul, tão forte e corajoso, alguma vez se sentiu como eu me sinto agora: dividido entre o terror absoluto perante a magnitude da tarefa e uma vontade poderosa de cumpri-la. Talvez o meu irmão nunca tenha conhecido a dúvida. Serei corajoso, digo-lhe. Serei tão corajoso como tufoste.
Regresso à povoação. Outros já viram o barco e as gentes descem aos magotes à baía para acolher os viajantes. Pessoas riem, sorriem, gesticulam, tagarelam. Homens vêm do recinto de treinos ao encontro da multidão de mulheres e crianças. Do trilho da falésia suspenso sobre o mar, vejo Deiz plantada na extremidade do pontão, uma bola a vibrar de expectativa.
O seu pequeno corpo palpita com o desejo de pular, de nadar, de voar, de fechar o intervalo que a separa do barco de todas as maneiras possíveis.
Não seria bom para mim ir até lá abaixo, por isso, procuro um lugar no cimo do trilho, sobre as pedras. Não muito tempo depois, ainda o Liadan se encontra a alguma distância da costa, sinto uma presença atrás de mim.
- Sibeal - digo, sorrindo.
- Como sabias que era eu?
Vem sentar-se ao meu lado.
- Sabia, simplesmente.
Sentamo-nos a observar a chegada do barco. O Liadan é mais pequeno do que o Freyja. Estremeço, fechando as mãos sobre as bolhas há muito saradas. As rochas, os costados em estilhaços, a vaga... Serei corajoso, diz uma voz dentro de mim.
- Parece um barco robusto - comento, e isto, pelo menos, é verdade. O Liadan deve ter sido feito para o comércio, não para a guerra. Estão baixar a a vela e a usar remos para o trazer para a baía: dois pares à proa, dois à ré, os remadores de pé. A meia-nau, vejo o porão, fundo e aberto. Parece ter tamanho suficiente para acomodar uma carga razoável, embora esteja quase vazio; não foi uma viagem mercantil. Homens entopem os passadiços de ambos os lados, os olhos já postos em casa.
Sibeal detectou a minha reserva.
- Se Johnny e Gareth acreditam que o trabalho pode ser feito com este barco - diz-me -, é porque pode ser feito. Afinal, acabou de percorrer o caminho todo até ao Sul e voltar.
Nenhum de nós acrescenta que essa viagem pôde ser concluída sen que o barco tenha alguma vez de afastar-se da costa; a qualquer momento a sua tripulação podia ter recolhido a uma baía segura para evitar perigo ou tempestades.
- Às vezes, gostava de ser esse homem que não pensa demais e si limita a acreditar - digo. - Um homem de fé cega. A vida seria muito mais fácil. No entanto, foi por ter visto essa mesma fé em acção, em Breizhqo, que deixei de acreditar.
- Talvez tenhas mais fé do que julgas - diz Sibeal, erguendo a mão graciosa para entalar o cabelo preto atrás das orelhas. A brisa sopra mais forte.
- A defesa eficaz que fizeste da nossa causa baseava-se, pelo menos em parte, nas minhas adivinhações rúnicas. Tenho a certeza de que referiste OS deuses mais do que uma vez.
Como não respondo, Sibeal olha para mim e sorri. A honestidade que vejo nos seus olhos é uma luz viva. Como pode um homem ver essa luz e não acreditar? É difícil explicá-lo, a ela, por palavras.
- Penso que a tua fé é tão forte - replico, balbuciando um pouco - que uma parte dela deve ter-me contagiado. Ao teu lado, já não sou capaz de dizer, sem hesitar, que não acredito em nenhuma espécie de deuses.
Sibeal toca-me ao de leve com a mão, despertando no meu corpo uma vertigem de desejo. Nestes últimos tempos, estar assim tão perto dela é um prazer e um tormento. Creio que não se apercebe do efeito que tem sobre mim.
- Diz antes que ainda estás à procura - replica. - Estás a fazer uma viagem, uma viagem interessante, cheia de possibilidades. Cheia de oportunidades de debate, de conhecimento, de expansão da mente.
O barco está quase a chegar a terra. No cais, uma mulher pula de entusiasmo, acena com frenesi, gritando Daigh! Daigh! Um homem salta do barco, entre gargalhadas, e nada até à costa. A cadelinha emite um latido agudo.
- Mas, primeiro, uma outra viagem - digo a Sibeal. - Também interessante, mas de uma maneira um pouco diferente.
- Estás com medo? - pergunta-me ela.
- Até à medula - respondo. - E tu?
- Ficarei melhor quando esta espera acabar.
- Não respondeste à minha pergunta. Talvez um druida não sinta medo. Talvez a fé prevaleça sobre qualquer mau pressentimento.
Sibeal olha em frente, para o horizonte, enquanto lá em baixo, no cais, o nadador é içado para terra e envolve a mulher num abraço molhado, ao som de vivas. Uma corda é lançada; o Liadan é amarrado, e um guerreiro de aspecto formidável dá um passo comprido do barco para terra. Deiz salta-lhe para os braços, e ele embala-a como se ela fosse uma criança.
- Não creio que estivesse realmente assustada até ver o Liadan entrar na baía - diz. - Agora, é real, Felix. Vamos mesmo fazê-lo, tu e eu.
Aperto-lhe a mão discretamente. Quando estivermos no barco, todos nós em estreito desconforto, semelhante gesto não será de todo possível. E talvez seja melhor assim.
- Um mistério - murmuro.
- O quê?
- A frequência com que temos os mesmos pensamentos.
- Não é um mistério, é... - Falha-lhe a voz. Seja o que for que ia dizer-me, arrependeu-se.
Eu podia completar a sua frase. É porque somos o mesmo. É porque cada um é metade do outro. É porque somos perfeitos um para o outro. Um par. Concebidos para estarmos juntos.
- Então, é aquele o famoso Snake - comento, observando o homem alto no cais, com a criaturinha branca nos braços a contorcer-se e a lambê-lo. Snake usa o cabelo cortado rente. Tem um desenho complexo tatuado na testa e marcas, como braceletes largas e sinuosas, na pele dos pulsos. Sobre a túnica, usa uma veste que parece ter sido feita a partir de uma pele de cobra. Lembro-me que a nossa viagem envolve um monstro marinl e arrependo-me logo a seguir de me ter lembrado.
Agora, outros desembarcam, fardos são descarregados, pessoas abraçam-se, homens pegam em crianças às cavalitas. Snake pousa a cadela para dar um abraço a Gull, outro a Johnny e para trocar murros amigáve com vários companheiros. Deiz saltita de um lado para o outro, à altura de seus tornozelos, ladrando.
- É Snake, sim - diz Sibeal. - Um homem único. É um velho amigo de Gull, dos primeiros tempos. O homem muito alto com a barba escura é Wolf, mais um dos originais Homens Pintados. É um nórdico. O home com a túnica azul é Sigurd. E aquele jovem lá em baixo é o meu primo Cormack, irmão de Johnny.
Cormack viu-nos e já vem a subir pelo carreiro acima, todo sorridente. É parecido com Johnny, sim; mas não exactamente igual. É mais alto, mais magro, mais alegre, sem a reserva e a compostura que fazem com que Johnny pareça mais velho do que é. Este homem está próximo de mim, em idade. No olhar intenso, nos braços bem musculados e nas pernas compridas que abarcam a colina na sua passada. Vejo que é um guerreiro da cabeça aos pés. Faz-me pensar nas minhas muitas deficiências como homem.
- Sibeal! - chama, radiante. Agarrando-a pela cintura, levanta-a do chão e rodopia com ela uma e outra vez, tornando a pousá-la com um beijo ruidoso nas bochechas. - Que Morrigan nos salve, cresceste muito desde a última vez que te vi! Serias a imagem chapada da tua mãe, se não fossem esses olhos. E presumo que este rapaz sisudo seja o teu ciumento namorado. - Vira-se para mim, e não me ocorre nada para lhe dizer.
Sibeal ri. Corou muito, de repente.
- Apresento-te Felix - diz-lhe. - Um estudioso. Da Armórica. Felix apresento-te o meu primo Cormack. - Subitamente séria, acrescenta. - Tenho muita coisa para te contar, Cormack. Demasiado, por ora. Sê beim-vindo a casa. Fico contente por teres regressado são e salvo.
Talvez eu esteja com ciúmes. Não no sentido que ele sugeriu, mas com ciúmes da família de Sibeal, das suas irmãs, primos, e mesmo daquele como Gull e Biddy, que são parentes mais afastados. Há uma força no amor que sentem uns pelos outros, um sentimento profundo e seguro. Ela tem cinco irmãs e um irmão; Johnny tem três irmãos. Eu só tinha Paul. Também eu posso ser corajoso.
- Alguém me acompanha? - pergunta Cormack, e sei que não me incluiu no seu convite.
- Fico mais um pouco - digo a Sibeal. Os seus olhos vêem-me à transparência. Ela aquiesce, compreensiva. Cormack envolve com o braço os seus ombros esguios e partem na direcção da povoação. Ciumento namorado. Nem sequer isso sou. Sou o homem que a ama mais do que à própria vida. E sou apenas uma amizade de Verão.
SIBEAL
Com a eficácia que fazia parte de tudo em Inis Eala, o barco ficou pronto poucos dias depois do seu regresso. Homens formigavam à volta dele, atarefados do nascer ao pôr do Sol, e, no telheiro onde se reparavam as redes de pesca, um grupo de mulheres industriosas remendava uma parte da vela que sofrera alguns estragos. As provisões que haviam sido preparadas enquanto esperávamos pelo barco incluíam materiais para lidar com todo o tipo de danos no mar. Esperava que não viéssemos a precisar delas.
Embora não lho tivesse dito, até eu duvidara que Felix seria capaz, em tão pouco tempo, de recuperar o suficiente para enfrentar aquela viagem. Mas ele exercitara-se com a determinação de um guerreiro que se prepara para a batalha. Todos os dias, de manhã à noite, treinava-se para a missão que tinha pela frente, descansando apenas quando Gull lho ordenava. Sob a supervisão de Evan, foi variando aos poucos a sua dieta, para incluir carne, peixe, pão, os alimentos que tinham sido proibidos. Já não eram apenas os curandeiros a ajudá-lo, mas muitos outros também. Costumava vê-lo lá fora a caminhar com Kalev; encontrava-o num recanto tranquilo, sentado ao lado de Cathal, ambos absortos em intensa troca de ideias. Uma manhã, vi Gareth, Felix e um pequeno grupo de outros homens no caminho do cais, subindo e descendo o íngreme declive com fardos às costas. Aos poucos, iam acelerando o ritmo, até o último troço ser percorrido a correr. E ali estava Felix, a acompanhar os outros homens, embora Gareth o mantivesse, reparei, debaixo de olho. No cimo do caminho, não houve espalhafato, apenas um aceno de reconhecimento da parte de Gareth, a mesma aprovação do esforço de todos eles.
Enquanto Felix andava concentrado na sua recuperação, pouco tempo havia para nos vermos a sós, e talvez fosse melhor assim. Ultimamente, a sua presença afectava-me de uma maneira estranha. Quando estava por perto, eu tinha dificuldade em concentrar-me fosse no que fosse. O pensamento fugia-me, perturbadora tendência, para aquela tarde em que ele me envolvera nos seus braços e eu lhe molhara a túnica com as minhas lágrimas. Ansiava por essa proximidade, de novo. Nos seus braços, sentira o mesmo que um animal perdido que achara o caminho de regresso a casa; e, ao mesmo tempo, uma sede de viver, como se estivesse à beira de uma grande aventura. Não a aventura que agora enfrentávamos, com os seus mares gelados e o seu monstro de presas afiadas. Mas a aventura que existia entre um homem e uma mulher - essa viagem secreta e extraordinária que me fora negada para sempre.
Com todo o saber druídico que adquirira ao longo dos anos, a minha impotência para calar estes sentimentos fez-me duvidar de mim própria. Fez-me sentir vergonha. Podia ter falado com Clodagh, que era uma boa ouvinte, mas, depois da adivinhação, algo mudara entre nós. Em público, era muito cortês comigo; em privado, evitava-me. Sempre que eu mencionava a viagem na sua presença, ela fechava-se no seu silêncio. Quanto a Cathal, não voltara a procurar-me, e concluí que fora um engano pensar que ele ponderaria a hipótese de vir connosco. Afinal, nem Gareth nem Johnny tinham referido essa possibilidade e, agora, já era tarde demais para acolher outro voluntário. Portanto, por que teriam Cathal e Clodagh o aspecto de quem enfrentava uma catástrofe iminente? Teria Cathal visto o Liadan afundar-se e, com ele, toda a tripulação?
Na véspera da nossa partida, ao fim da tarde, Clodagh veio ter comigo. Eu estava no quarto, a conferir pela vigésima vez a minha parca bagagem, tentando fazer corresponder o pequeno fardo autorizado a bordo com o que poderia ser necessário para lidar com todo o espectro de cenários que se desenhava mais à frente. Varas de runas ou um segundo xaile quente? Ervas de ritual ou um rolo de linho para o caso de ter o meu sangramento mensal antes de voltarmos para casa? E que dizer de Svala, que também poderia vir a precisar do rolo de linho e nunca se lembraria de tal coisa? Ela sabia que partiríamos na manhã seguinte; eu explicara-lho mais cedo com muita clareza, mostrando-lhe o Sol a passar pelo céu, o tempo de sono, o raiar da aurora, o barco a fazer-se à vela. Na cabana do pescador, as peças de roupa que Biddy lhe oferecera, e outras, jaziam caídas a um canto, em completa negligência, juntamente com uma chaleira, uma concha e um cântaro. Não me pareceu que ela estivesse a fazer as malas.
Clodagh não veio pela enfermaria, mas bateu-me à porta.
- Sibeal, preciso de falar contigo.
Deixei-a entrar e, com ela, uma vaga de ansiedade.
- O que se passa? - perguntei, pondo de lado o constrangimento que se criara entre nós. Fiz-lhe sinal para se sentar ao meu lado.
Clodagh baixou-se devagar até à cama. Olhando de relance para a cortina, arqueou as sobrancelhas.
- Evan foi ao recinto de treinos para ligar uma ferida - disse eu. - Gull está lá fora algures, com Felix. E Muirrin está enjoada. Foi descansar.
Nunca tinha visto Clodagh tão séria.
- Preciso de um favor, Sibeal - disse ela.
Continuei a trabalhar, tentando dobrar uma veste com a precisão com que a própria Clodagh o faria.
- Continua - repliquei.
- Quero que vás à procura de Cathal e que fales com ele a sós. Penso que ele foi à Gruta do Vidente, outra vez. Isto está a destruí-lo, Sibeal. Ele precisa de ajuda e, desta vez, não creio que esteja a conseguir dar-lhe essa ajuda.
Aquilo não era nada do que eu esperara desta conversa.
- Se eu te fizer perguntas acerca da viagem, tu respondes-me?
Clodagh limitou-se a olhar para mim. Eu bem via que ela tinha estado a chorar.
- Estive a pensar que talvez ele sinta que é seu dever acompanhar-nos, na mesma lógica de obrigação familiar que motivou Gull a oferecer-se - prossegui. - É verdade que me perguntei se terias ficado aborrecida na outra noite, porque Gull levantou o braço e pensaste que isso significava que Cathal seria o próximo. Compreendo todos os motivos por que ele não deve vir, Clodagh. Seria incapaz de sugerir que ele deixasse a ilha, mesmo sabendo que possui certos e determinados talentos que fariam toda a diferença lá fora. Ninguém espera que ele arrisque todo o seu futuro na missão de outro homem.
Clodagh fez uma careta.
- E não é isso que todos os elementos da tripulação vão fazer?
- Poderias dizê-lo dessa forma, sim. Mas mais ninguém tem Mac Dara como inimigo.
- Pensas que nós discutimos porque ele quer ir e eu estou a tentar impedi-lo - replicou.
- Nos últimos dias, vocês os dois têm estado um pouco tensos. Pareceu-me que essa era a explicação mais provável. Devias ter vindo falar comigo mais cedo, Clodagh. É meu dever ajudar quando as coisas se complicam.
- Não vim consultar-te enquanto conselheira espiritual, Sibeal - retorquiu, com um sorriso oblíquo. - Vim falar-te de irmã para irmã. Estás enganada a respeito deste assunto. É certo que Cathal compreende que a sua presença podia ser uma ajuda preciosa nesta viagem. Na verdade, se se tivesse oferecido logo no início, poderia ter poupado Gareth à necessidade de ir, uma vez que é capaz de liderar a expedição. Mas ele diz que não vai. Não é a sua segurança pessoal que o preocupa; simplesmente, não suporta a ideia de deixar-nos, a mim e à criança, sozinhos, à mercê de Mac Dara, se alguma coisa lhe acontecer.
As minhas mãos continuaram a dobrar e a arrumar, alheias à vertigem de choque que me tomava o pensamento.
- Estás a dizer que Cathal não quer ir e que tu queres que ele vá?
- Eu quero que tu estejas tão segura quanto possível - responde a minha irmã, num tom sereno. - Acredita, fico horrorizada só de pensar que ele vai. Pergunta a qualquer mulher o que sente a respeito de o seu homem arriscar a vida nesta aventura, e ela dir-te-á que só desejava que o teu desgraçado Felix nunca tivesse posto os pés nesta ilha para espicaçar a imaginação dos homens com a sua louca missão de resgate. Pergunta-lhe o que pensa da decisão do seu homem de fazer parte disto, e ela dir-te-á que tem tanto orgulho nele que quase lhe rebenta o coração. Tudo isto faz part de amar um homem, Sibeal, algo que nunca chegarás a compreender É claro que não quero que Cathal vá. Quero-o aqui, seguro. Quero que ele possa segurar o filho nos braços no dia em que nascer. Mas acredito que ele tem de ir. Sei que a tripulação é forte, experiente, corajosa, capaz de lidar com crises de toda a natureza. Mas não conseguem fazer o que Cathal consegue. Nenhum deles possui qualquer habilidade no domínio da magia. Se Mac Dara estiver envolvido nisto, vocês ficarão completamente desprotegidos. Não quero que tu vás, Sibeal. És a minha irmã mais nova. Não quero que Gull vá, embora ainda me revolte mais a ideia de Evan ir... seria muito cruel para Muirrin. Mas já está decidido e vocês vão. Se Cathal estiver ao vosso lado, pelo menos eu saberei que fiz tudo o que estava ao meu alcance para vos manter a salvo.
De súbito, os meus olhos encheram-se de lágrimas. Era a decisão mais altruísta que eu podia imaginar, típica de Clodagh.
- Não chores, Sibeal - disse a minha irmã. - Vai ter com ele. Diz-lhe que é mesmo essa a minha vontade. Diz-lhe que acreditas que ficarei em segurança até ele regressar a casa. As mulheres têm bebés a toda a hora E Mac Dara não me alcançará aqui.
- Não, mas Cathal ficará à sua mercê assim que sair da baía.
- Tens a certeza?
- Tenho, sim. O nosso medo de Mac Dara condiciona-nos. A sua influência governa todos os nossos pensamentos. Já conversámos sobre isso, e ambos sentimos o mesmo. É um erro. É dar a vitória a Mac Dara. Pensámos nisto vezes sem conta, e Cathal acumulou tanta culpa e tanta desorientação que já não me quer ouvir. Creio que te ouvirá a ti.
Deuses, era um caminho traiçoeiro. Se eu conseguisse persuadi-lo a vir e ele fosse morto... Se ele viesse connosco e não conseguisse proteger-me... Se ambos viajássemos para longe e, no regresso, descobríssemos que Clodagh morrera a dar à luz...
- Vai agora, por favor, Sibeal - disse ela. - Eu acabo de fazer a tua trouxa. Sou capaz de enfiar o dobro das coisas dentro desse saco. O segredo está no modo como se dobra.
Entardecia, e uma luz suave enchia a Gruta do Vidente: violeta, lilás, cinzento. Nuances de uma mesma tristeza. Cathal estendera o seu manto e sentara-se nele. Os seus olhos não fitavam a água, em adivinhação, mas um ponto indistinto, em frente. Nas feições atormentadas, eu via a sombra de um homem muito mais velho.
Sentei-me, a uma certa distância.
- Foi Clodagh quem te enviou - disse-me, momentos depois.
- Ela pediu-me para vir falar contigo, sim. Oxalá o tivesse feito um pouco mais cedo. Não são grandes as minhas possibilidades de fazer com que mudes de ideias, um dia antes da partida.
- Verdade. Não percebo o que lhe passou pela cabeça para achar que tu conseguirias o que ela não conseguiu.
O tom era sarcástico. Senti-me tentada a levantar-me e a sair, mas engoli a irritação. Nunca chegarás a compreender, dissera-me Clodagh. Tinha de servir-me do pouco que sabia para quebrar aquela distância. Devia-o a ela.
- Imagino que saibas que Clodagh teve de encher-se de coragem para decidir que devias ir - disse-lhe.
- Não preciso de ouvir isto.
Respirei fundo.
- Mas vais ouvir, Cathal. Essa decisão foi tomada por amor; nada mais, nada menos. Ela está a pôr de parte os seus interesses pessoais para fazer o que está certo por todos aqueles que ama. Eu, tu, Gull, Johnny, a vossa criança ainda por nascer. O amor presidirá às escolhas de Clodagh, sempre. Foi essa a mulher com quem te casaste. Se fizeres o que ela te pede, honrarás a mulher que ela é.
Cathal nem sequer pestanejou. Era como se eu não estivesse ali.
- Além disso - acrescentei lá bem no fundo, tu és como todos os outros guerreiros. Esta missão conquistou os seus corações: lealdade acima do terror, sobrevivência para lá dos limites da resistência. Não me digas que parte de ti não anseia por partir em socorro daqueles homens.
Ao dizê-lo, achei que ele podia virar-se contra mim, em fúria; o seu rosto era um poço de sombras. Deixei-me ficar sentada, em silêncio, a contemplar a água parada. Esperei. O silêncio arrastou-se.
- Sibeal - replicou, por fim, com uma voz onde não havia, afinal, traços de fúria, mas o soluço quase imperceptível de quem está a fazer um esforço para não chorar -, em que medida é que esta é a decisão certa para o nosso filho?
- Fazes-me a mais difícil de todas as perguntas. Clodagh acredita que ficar aqui, permanecer para sempre em território seguro, é o mesmo que dar a Mac Dara o poder de governar a vossa existência. Manterem-se sempre fora do alcance do teu pai é como viver numa espécie de prisão. Foi isso que ela quis dizer. Um druida pode debater longamente este assunto e não chegar a conclusão nenhuma. Mas é esta a lógica do pensamento de Clodagh e quem poderá dizer que está errada?
- Já conversámos sobre isso. É um tema inesgotável. Percorremos todos os argumentos.
- Ela disse-me que, a certa altura, tu deixaste de ouvi-la.
Cathal pegou numa mão-cheia de pequenos seixos e lançou-os ao lago com alguma violência. A superfície tranquila estremeceu com a força do impacto.
- Aquilo que ela quer parece-me errado - disse ele. - Como posso deixá-los? Mas também sinto que está certo. Parte de mim quer, de facto, ir. Não consigo decidir-me. Vim até aqui para fazer uma última adivinhação, antes de o Liadan partir, e não sou capaz, Sibeal. Vim munido de várias perguntas, sobre a eventual influência do Outro Mundo nesta viagem. Mas não consigo pensar noutra coisa senão em Clodagh e na criança. Sibeal, como posso ir-me embora? O bebé vai nascer a qualquer momento.
- Se já tomaste uma decisão, por que vieste até aqui?
Ele olhou de relance para mim.
- Hoje, és uma druidesa - replicou, dando uma entoação negativa à palavra.
- Limito-me a fazer as perguntas que têm de ser feitas. Saberá Gareth que existe a possibilidade de tu ires? Ou Johnny?
- Suponho que o meu estado de espírito tenha sido transparente nestes últimos dias. Fui dispensado da responsabilidade de treinar os homens de Connacht pouco tempo depois de a tripulação ser nomeada, apesar de o meu nome não constar da lista. - Pensou um instante e, depois, acrescentou: - Sibeal, percebo que uma grande parte do saber druídico e dos seus ensinamentos seja segredo. Mas ajudar-me-ia se pudesses explicar-me a extensão dos teus talentos. Sei que Ciarán possui uma certa facilidade com a magia, que lhe vem tanto da sua ascendência como do treino druídico. Sei que ele é o teu mestre. E Felix contou-nos que provocaste algo no fogo, naquela noite em que Knut o atacou.
- Aprendi os rudimentos da magia natural. Sou uma iniciada, Cathal. Sou capaz de atiçar uma fogueira, ou de conjurar uma brisa fugaz. Não mais do que isso. Não seria uma grande ajuda para ti, mas faria todos os possíveis. É verdade que tenho o ouvido dos deuses. - Nos últimos tempos, havia razões para duvidar disso. - E a capacidade de encontrar soluções para certos problemas. Somos treinados para esse efeito.
- Tens muito mais do que isso - retorquiu Cathal -, porque parece que consegues ouvir a voz de Svala, uma voz silenciosa para o resto de nós. Só por isso, a tua presença na viagem deve ser muito valiosa.
- Creio que cada um de nós terá um papel a desempenhar: Felix, Gull, Gareth, e todos os que vão a bordo. E isso inclui-me a mim também, embora desconheça que papel me caberá. Imagino que vá descobri-lo pelo caminho.
- Sinto que também eu posso ter um papel a desempenhar. Sei que, se ficar, a perda desse elemento poderá condenar a missão.
- Tens de medir os dois lados do dilema quando tomares a tua decisão.
- Ouço a voz de uma sábia anciã nos lábios de uma adorável rapariga - volveu Cathal -, e isso entristece-me. Não sei bem porquê. Ah, se houvesse alguma certeza, Sibeal. Se houvesse, ao menos, a promessa de que regressaríamos sãos e salvos, todos nós, e de que aqueles que deixamos para trás também ficariam em segurança...
- Não podemos prever o futuro. A única coisa que podemos fazer é enfrentá-lo com bravura. Devemos ouvir aqueles que amamos e respeitamos. Mas, no fim, tomamos as nossas decisões sozinhos.
Como ele não reagiu, levantei-me. Cathal não estava a olhar para mim. Tinha a cabeça curvada, as mãos coladas aos joelhos.
- Diz a Clodagh que regressarei antes do pôr do Sol - pediu-me. - Devia agradecer-te, admito. Mas sinto que não tenho coragem para o fazer, ainda não. Fico grato pela tua honestidade, Sibeal.
- E eu não preciso de mais agradecimentos - repliquei.
A cena que evocara na minha mente para transmitir a Svala tornou-se, enfim, realidade. Estávamos de pé, no cais, de manhã, os que partiam e os que vinham dizer adeus. As verdadeiras despedidas tinham sido feitas em privado, atrás de portas fechadas, e talvez tivesse havido lágrimas, fúria, ou uma certa amargura. Ali, no pontão, todos os rostos exibiam o mesmo arrojo da bandeira que esvoaçava no topo do mastro do Liadan. As provisões tinham sido carregadas no dia anterior: alimentos, água doce, materiais para consertar o barco. Os recursos necessários para montar um acampamento rudimentar, caso nos demorássemos na Ilha da Serpente, ou noutro sítio qualquer. Armas. Os meios para fazer uma fogueira. Reservara-se algum espaço para os nossos objectos pessoais: uma pequena trouxa por passageiro. Não haveria como nos lavarmos, nem mudas de roupa, nenhuma privacidade para o desempenho das necessidades básicas do corpo. Imaginei que talvez pudesse estender um xaile, lá em baixo no porão balouçante, enquanto Svala usasse o balde, e que ela retribuiria o favor. Era o melhor que podíamos esperar.
Desde a noite em que Felix contara a sua história, Rnut fora proibido de aproximar-se de Svala. Na ilha, era fácil zelar por essa separação, mas, no interior apinhado do barco, seria impossível manter a distância. Svala ficaria no porão a maior parte do tempo, comigo, com Gull e Felix. Definira-se que os marinheiros manobrariam o barco e que os passageiros não estorvariam a tripulação. Mas todos precisavam de descansar, o que significava que todos os homens, incluindo Knut, desceriam ao porão para dormir, uma vez por outra. Gareth pedira-me para manter Svala debaixo de olho: impedir que ela se agitasse com alguma coisa.
E, agora, ei-la no cais, quieta e calada no meio da multidão ruidosa, de olhos fixos no mar. Não trazia bagagem.
- Pronta, Sibeal? - Era Gull, ao meu lado, com a trouxa debaixo do braço. Um saco maior, que continha os seus instrumentos de curandeiro, já fora arrumado no porão. Atrás dele, estava Biddy, com um sorriso bem controlado no rosto.
- Tão pronta como alguma vez hei-de estar - volvi. - Mas vou esperar até subirem todos a bordo. Johnny quer que eu diga uma prece, a pedir uma viagem segura.
- Dá-me o teu saco, eu levo-o.
- Levo eu. - Era a voz de Felix, de costas muito direitas, cabeça erguida, pálido como uma manhã de Inverno. Dir-se-ia que falava entredentes cerrados. Senti o seu terror gelar-me os ossos. A onda aproximando-se... Os olhos de Paul abrindo-se... Um estrépito surdo e arrastado, como o ruído das rodas de uma carroça... Era a primeira vez que ele entrava num barco desde o naufrágio. Em todo o rigoroso treino de Gull, nada o preparara para isto.
- Obrigada - retribuí, passando-lhe a minha trouxa. - Um passo de cada vez. E lembra-te: Paul está mesmo ao teu lado.
Vi-os a embarcar, todos eles. Quando Knut passou por Svala, com o rosto duro como pedra e os dedos torcendo, nervosos, o amuleto pendurado no cordão, ela encolheu-se. A luz morreu-lhe nos olhos. Um ar fechado, familiar, apoderou-se das suas feições. Gareth, que já estava abordo, esticou o braço para ajudá-la a subir para o convés. Ela ignorou-o e subiu sozinha, sem dificuldade.
Observei os rostos dos que tinham ficado para trás, esposas e amantes, crianças, familiares, companheiros. A perda seria, de facto, imensa, se a nossa expedição fracassasse. Como devia ser difícil para uma mulher viver num lugar assim, onde todas as estações incluíam a ameaça de uma despedida. E que difícil era a vida do guerreiro, dividido entre a missão que lhe ardia no peito e o amor ao lar e à família.
- Sibeal? - Clodagh estava ao meu lado. Estendeu-me mais um saco.
- Fiz esta mala para Svala. Contém coisas práticas, que ela não se lembraria de levar para si. - As sardas sobressaíam-lhe na pele muito branca: uma mancha vermelha rodeava-lhe os olhos. Tal como Biddy, pusera um sorriso na cara.
- Obrigada. - Olhei em redor, à procura de Cathal, e senti algo chocar contra as minhas pernas e quase derrubar-me. Fang lançara-se numa corrida pelo pontão, parando abruptamente no lugar onde Felix acabara de subir a bordo. A voz da cadela elevou-se, silenciando todas as outras com o seu esganiçado uivo de angústia. O sorriso de Clodagh desfez-se, e o de Biddy também.
- Pelas bragas de Morrigan, que bicho te mordeu? - Snake avançou em grandes passadas; a multidão dividiu-se para lhe dar passagem. Ele estendeu o braço para pegar na cadelinha, mas o grito de aflição não cessou.
Fang estava num frenesi, a tentar fazer tudo ao mesmo tempo: morder a mão de Snake, saltar do cais para dentro do barco, berrar a sua confusão para o resto do mundo.
- A causa é Felix - disse eu, aproximando-me e perguntando-me por que diabo me sentia, de repente, à beira das lágrimas. - Ela quer estar em dois sítios ao mesmo tempo: aqui, contigo, e no barco, com ele. Deixa-a despedir-se, Snake, e talvez se acalme.
Snake subiu para o barco, com a cadela ao colo, e Felix tomou-a nos seus braços. Os uivos pararam. Felix murmurou algo, encostando a face à cabeça dela, por momentos. A cadela torceu-se para lhe lamber a cara. Depois, Felix devolveu-a a Snake, que regressou ao pontão. Fang desatou numa lamúria sem esperança, e Snake segurou-a com firmeza.
- Sibeal, penso que estamos prontos - disse Johnny. - Dizes agora a tua prece?
Tornei a olhar para Clodagh. Continuava muito serena, pálida e quieta. Vi que ainda havia uma trouxa na sua mão.
- Se estamos prontos, sim - respondi, e virei-me de frente para o barco, para a baía e para o oceano imenso mais além. Levantei os braços. - Que os deuses do vento e das ondas olhem para esta viagem com compreensão. Manannán, não permitais que as tuas criaturas nos façam mal ou que os maus ventos e a tormenta nos afundem. Vamos em paz, corrigir o erro que foi feito. Vamos em busca de homens cruelmente abandonados num lugar distante. Que ventos constantes enfunem as nossas velas, que a viagem siga lesta e segura, que o regresso nos traga a todos e à missão cumprida. Que aqueles que deixamos em terra sejam guardados e protegidos de todo o mal. Pedimos a vossa solene bênção para o Liadan e todos os que nele navegam.
Chegara o momento. E ali, como se conjurado pelas minhas palavras, estava Cathal, tirando casualmente a trouxa das mãos de Clodagh, dando-lhe um beijo casto na testa e caminhando comigo pelo pontão, como se a sua presença naquela demanda nunca tivesse estado em dúvida. Segurou-me na mão, enquanto eu dava esse salto desastrado que as pessoas de pernas curtas têm de dar quando sobem a bordo, e depois subiu ele próprio numa única, elegante passada. Gareth gritou uma série de ordens e a tripulação obedeceu, um homem dirigindo-se ao remo de governo e oito aos remos de remar, situados nas duas extremidade do barco. Fui sentar-me ao lado de Svala, no convés da proa. Em breve, teríamos de descer ao porão, mas parecia mal encetar aquela corajosa missão no meio da carga.
A multidão no cais começou a dispersar-se. E o intervalo a crescer. Felix veio pôr-se ao meu lado. O fantasma da outra viagem pairava nos seus olhos.
- Vai correr tudo bem - disse-lhe. - Nós vamos conseguir fazer isto.
Mais depressa do que eu esperava, saímos da baía e rumámos ao mar alto.
A tripulação armou os remos. Içaram-se as velas. O Liadan começou a mover-se para cima e para baixo, para cima e para baixo, e eu perguntei-me se não iria enjoar e, se assim fosse, quanto tempo duraria o enjoo. Perguntei-me também a que distância de Inis Eala teríamos de estar até Mac Dara sentir, uma vez mais, a presença do seu filho. Procurando Cathal, vi-o a trabalhar com o resto da tripulação, todo ele metódico e determinado.
Ao meu lado, Svala não perdia o seu perfeito equilíbrio, apesar do crescente balouçar da nave. Nem sequer precisava de segurar-se. Os seus cabelos dourados esvoaçavam ao sabor do vento, tão brilhantes que parecia que neles se enredara o sol da manhã.
Felix murmurou algo na sua língua materna.
- Que quer isso dizer? - perguntei.
- Que a grande águia te abrigue nas suas asas - respondeu. - Que os lobos da floresta te guardem das sombras. Que as criaturas do pélago nadem ao teu lado. E que a tua coragem te traga, intacta, para casa.
- É uma oração antiga, de Breizh?
- Uma nova.
Gareth gritou algo que não consegui perceber.
- Está na hora de recolhermos ao porão - disse Felix. - Eles vão querer aproveitar o vento favorável. Deixa-me ajudar-te a descer, Sibeal. Se te servir de consolo, o enjoo não vai durar.
Felix
O Liadan tem algumas vantagens: há espaço no porão para vários homens descansarem no meio das bagagens, e as mulheres conservam ainda um recanto só seu. E tem algumas desvantagens: o porão pode ser grande, mas é aberto às intempéries. Está tudo húmido, nós e as roupas que vestimos.
O único abrigo é por baixo das amuradas dos conveses da proa e popa e, ali, até o vento morde. Sibeal está muito mal: dorme aos soluços, acordando para vomitar para dentro do balde, o rosto lívido e esgotado. Gull cuida dela o melhor que pode. Svala não tem feitio de enfermeira. Acocora-se no meio das trouxas, como fazia no Freyja, atenta a cada homem que desce para descansar, e a cada homem que torna a subir ao convés. As suas mãos não param quietas, puxando pelo vestido, torcendo mechas do cabelo comprido.
Penso em viagens que fiz no passado. A partida de Breizh com Paul, um punhado de moedas de prata comprando-nos a passagem para a Bretanha no barco de um mercador, os músculos de Paul impedindo que, pelo caminho, fôssemos despojados do restante conteúdo da nossa bolsa. Aquela nave era como esta, o barco de um mercador, construído com solidez, concebido para navegar sobretudo à vela. Aconteça o que acontecer, creio que não terei de remar.
A viagem da Bretanha para Erin, fizemo-la num barco de pesca. Paul ajudou com as redes. Eu estudei as nuvens, o padrão intrincado das ondas, o som áspero e musical da língua quando a tripulação ria e gracejava, balouçando ao sabor da ondulação. Foi uma boa viagem; íamos de corações ao alto.
A última viagem: o Freyja. Tento não pensar nela. Tento não me lembrar da onda que levou o meu irmão.
Anoiteceu. Navegamos agora pelas estrelas, em direcção ao lugar onde a tempestade colheu o Freyja, ou o mais próximo desse lugar que nos levarem os cálculos de Gareth. Os homens revezam-se, dormem poucas horas, fazem turnos de vigia no convés. Quando Knut desce ao porão, Svala recua ainda mais para o seu canto. Inclina a cabeça; o cabelo cobre-lhe o rosto.
Sigurd vem sentar-se ao meu lado. É o único homem da expedição de Snake que partiu também nesta viagem. Imagino que tenha sido escolhido pela sua fluência em nórdico. Além disso, não tem mulher nem filhos. É um homem da mesma idade que Johnny, de pele clara, traços francos, com o cabelo cortado rente como parecem preferir muitos dos guerreiros de Inis Eala. Os desenhos que lhe decoram a testa e o rosto fazem lembrar uma foca.
- És da Armórica, não és? - pergunta ele. - De que parte?
Este é o homem que tinha um amigo que era meu conterrâneo. Lembro-me do seu nome: Corentin.
- Da região de Finistère - respondo. - Na extremidade oeste.
- Hum. Contam-se histórias estranhas nesses lugares. Corentin sabia muitas. Monstros e transformações. Voltas para casa depois disto?
Abano a cabeça.
- Duvido.
- Tens lá família?
- Os meus pais.
- Corentin e eu costumávamos falar acerca disso. - Sigurd deita-se para trás, pousando a cabeça nos braços, mas parece estar com vontade de conversar, não de dormir. - Fizemos planos, não que algum de nós tivesse pensado em sair do grupo de Johnny, mas não há mal nenhum em fazer planos. Eu ia levá-lo a ver o Norte, a neve e o gelo, os ursos e os lobos. Ele ia levar-me a esse reino de estranhas fragas, deixadas pelos antigos, e ilhas que aparecem e desaparecem. Diz-te alguma coisa, isto? Ele costumava falar-me de uma baía onde existem mais de trezentas ilhas. Dizia que, quando as pessoas tentam contá-las, chegam sempre a um número diferente. Pensámos em arranjar um barco pequeno e partir em exploração até as encontrarmos a todas. - Sorri. - Imagina o que se pode descobrir num lugar como esse. Mas Corentin teve de ir para casa a correr, e eu não podia abandonar Johnny. Quem me dera saber como ele se saiu; se conseguiu salvar as terras da família. Agora, talvez já seja um grande proprietário. Talvez tenha mulher e filhos. Ou talvez esteja morto.
- O sorriso sumiu-se-lhe do rosto.
Pensei que não queria falar da minha terra. Afinal, este homem é quase um desconhecido. Mas os seus modos desarmam-me.
- Sabes onde vive a família dele? Em que região?
- Perto daquela baía de que falei, se te serve de referência.
Aquiesço. É perto da minha casa.
- Conheço esse lugar - digo-lhe. - Espero que o teu amigo tenha sido capaz de conservar a terra dele. A região é um poço de disputas territoriais. Nesse aspecto, não difere muito de Erin. É possível que os terrenos de Corentin se encontrem sob a suserania de um determinado nobre, uma pessoa com muita influência e pouca consciência. Espero que ele tenha conseguido lutar pelo que é seu.
- Ah, não duvides de que lutaria - retorque Sigurd, com um ar funesto. - O que me preocupa é se lhe ceifaram a vida depois disso. Há momentos em que gostaria de ter o dom da Visão. - Olha de relance para Sibeal, que está dobrada, a arquejar, enquanto Gull lhe pressiona a testa com um pano.
- Mas, quando penso melhor, não é coisa que eu quisesse ter. Podia ser mais maldição do que bênção. E um homem quer ser livre para fazer as suas próprias escolhas. Pelo menos, é assim que eu penso.
Na penumbra, dou por mim a sorrir. Aqui, não há candeias; o risco de um incêndio é demasiado grande. Mas, no Verão, as noites nunca são muito escuras, e nós navegamos para Norte. Uma luz lá em cima, no convés, projecta um raio oblíquo no porão, apanhando os olhos hostis de Knut, e o rosto branco, como um espectro, de Sibeal.
- Sibeal diria que ainda pode fazer escolhas, apesar de ter essa janela com vista para um futuro possível - replico. - A Visão ajuda-nos a escolher bem. Não diz o que vai acontecer, apenas o que pode acontecer.
- Hum. - Sigurd fecha os olhos. - Gostas dela, não gostas?
Digo o que tenho de dizer.
- Ela é uma druidesa. Destinada à vida espiritual.
- Isso não é uma resposta.
- É a melhor que tenho para dar - concluo.
Sigurd não diz mais nada. O progresso do Liadan abrandou; o vento caiu. Manannán, o deus do mar, embala esta frágil embarcação e a sua carga humana: os convictos e os corajosos, os hesitantes e os descrentes, os ressentidos e os indignados. É hora de dormir. Haverias de gostar desse plano, digo ao meu irmão. Uma expedição a todas as ilhas. Um pequeno barco, nós os dois a remar, uma missão fantástica, insana... Bons sonhos, Paul. A respiração de Sigurd abranda; já dorme. Envolto em sombras, Knut vigia-me, quieto, de olhos semicerrados.
Segunda noite. O nosso progresso tem sido lento, o tempo calmo o dia inteiro. Agora, o céu encheu-se de nuvens. As estrelas esconderam-se e não podemos avançar. Baixa-se a vela. Lançamos mais uma âncora flutuante. Gareth ordena à maior parte da tripulação que vá descansar. O porão está frio, húmido e apinhado. Doem-me as articulações.
Sibeal parou de vomitar e começou a beber pequenos goles de água. Tem os olhos encovados; o maxilar rígido, em firme determinação. Obrigo-me a levantar-me e a desentorpecer os membros, como Gull me ensinou. Um homem da tripulação chamado Garbh é responsável pelas rações: pão duro, queijo, lascas de carne de carneiro seca ao vento. Torno-me útil indo buscar provisões para Gull, para Svala e para mim. Seguindo a sugestão de Gull, ensopo o pão na água antes de o comer. Não há caldos nutritivos nesta viagem. Ele pode dar-nos poções de ervas, mas não pode fazer infusões frescas até pisarmos terra firme e acendermos uma fogueira. Se eu adoecer, é possível que não consiga salvar-me desta vez.
Svala recusa-se a comer. Não a vi engolir uma única porção de comida.
- Não acredito que ela coma este tipo de comida, Felix - diz Sibeal.
- Se pudéssemos pescar...
- Não há como cozinhar o peixe - diz Gull. - Tanto pior.
- Ela come-o cru.
- Ora, por que será que isso não me surpreende? Apanha-o com as próprias mãos, não é?
Sibeal olha fixamente para Gull, admirada.
- É possível - responde.
- Penso que alguém deve ter uma linha de pesca. Podemos tentar de manhã. Depende do tempo. E do que Gareth decidir fazer.
Nem Knut nem eu somos guias fiáveis para indicar o caminho até à Ilha da Serpente. Eu passei grande parte daquela viagem no porão e nada percebo da arte de navegar. Quanto a Knut, o desejo de estar noutro lugar emana de todos os seus poros. Quando Gareth lhe pede conselho, responde com parcimónia, dando o mínimo que pode. Percebo o seu medo. Gareth tem várias maneiras de procurar o caminho: pontos de referência, tais como rochedos e ilhas, as estrelas durante a noite e, de dia, uma pedra-do-sol, como usam os Nórdicos. Longe da costa, sob céus enevoados, o instinto é o único guia. Gareth pensa que o dia de amanhã nos levará para perto do lugar onde a tempestade se abateu sobre o Freyja. A incerteza pesa sobre todos nós. E se navegarmos para noroeste desse ponto durante dois, três dias e não encontrarmos a ilha? Abandonamos o plano e regressamos a casa? Continuamos a navegar até aos confins do mundo?
- Felix. - Sibeal levanta-se e aproxima-se de mim. Está tão frágil que o próximo balanço do barco poderia derrubá-la. Parece transparente como vidro fino. - Sentes-te bem?
- Estou bem. Tu... - Contenho-me para não dizer o que penso: quero embrulhá-la e levá-la para casa, em segurança, nesse preciso momento. - Parece que estás a ganhar as tuas pernas de marinheiro - digo-lhe.
- Espero bem que sim. Não sou muito útil para ninguém com a cabeça enfiada no balde. Talvez amanhã Gareth nos deixe subir ao convés durante algum tempo. - Olha de relance para Svala, que está acocorada no seu canto, uma desajeitada trouxa de desconforto. - Tenho a certeza de que ela ficaria mais feliz lá em cima, ao ar livre - acrescenta, em voz baixa. - Odeia estar confinada e rodeada de gente.
E tem medo, penso, sem o dizer. Nós os três, únicos sobreviventes do Freyja, estamos a viver outra vez aquela malograda viagem. O ranger dos costados, o interminável vaivém da ondulação, o fedor acre do mar, o som da água a bater, tudo isto nos leva de volta ao lugar dos nossos pesadelos. Se Svala está assustada, tem boas razões para isso.
Paul, serei corajoso. Serei tão corajoso como tu foste, meu irmão.
Terceiro dia. Os ânimos inflamam-se; estamos todos com os nervos à flor da pele. O céu enevoou-se. A pedra-do-sol é inútil. O vento, um sopro fraco. Sigurd apanha um peixe. Svala recebe-o com mãos desconfiadas Depois, leva o seu troféu para um canto escuro do porão, onde se acocora protegendo-o. Ao comer, vira-se de costas para nós. O banquete desaparece num ápice.
Mais tarde nesse dia, Gareth chama-me ao convés. Um lençol de nuvens forra o tecto do mundo, de norte a sul, de este a oeste; se o tempo não abrir, será mais uma noite de âncora. O mar cerca-nos por todos os lados, estendendo-se até à linha do horizonte, extensão interminável e fremente de água cinzenta. Nenhuma ilha à vista; nenhum recife; nem o mais insignificante penhasco. Não há pássaros no céu. Estamos sozinhos.
Encosto-me na amurada, ao lado de Gareth.
- Já estamos perto do lugar, não estamos? - pergunto-lhe. - O sítio onde o Freyja foi colhido?
- Ou o mais próximo que dele chegaremos com pouco mais do que a intuição a orientar-nos. - Há uma certa severidade na voz de Gareth. - Que te diz o teu instinto, Felix? Parece-te que estamos a ir bem? Lembras-te de algum sinal? Qualquer coisa que possa ajudar-nos a encontrar um caminho?
Quem me dera poder ajudá-lo.
- O meu instinto seria um mau guia. Como já disse, passei a maior parte da viagem do Freyja no porão. Que pensas fazer?
- Esta brisa parece-me virada a sudeste, e está a crescer aos poucos. Mas só retomo viagem se tiver a certeza da direcção. Pede aos deuses um céu limpo.
De noite, no porão, ouço Knut dizer a Sigurd que eu sou o homem aziago e que esta viagem insana e absurda foi exclusivamente engendrada pela minha loucura. O meu objectivo é conseguir que todos acabem mortos, diz ele. Quero vingar a morte do meu irmão e as minhas próprias insuficiências. Sigurd ouve-o sem fazer comentários e, depois, muda de assunto e começa a falar de pesca.
Quando Gareth desce, ele e Cathal discutem em voz baixa. Cathal pensa que, se o vento ganhar força, devíamos seguir na direcção que nos parecer o noroeste. Mesmo se as nuvens nos impedirem de usar os instrumentos de navegação. Gareth discorda. Cathal parece inquieto, a voz cheia de uma urgência de ir, de seguir viagem, de concluir a tarefa. Gareth é a voz da razão: a voz do nosso comandante. Cathal sobe para fazer o seu turno sem que qualquer decisão tenha sido tomada. Olhando de relance para o porão, vejo que Sibeal está acordada, de olhos fechados e mãos no regaço, com um cobertor pelos ombros, folgado. Aguardo que ela termine: passa muito tempo. Enquanto a observo, um poema ganha forma na minha mente, um poema que nunca direi em voz alta.
Ela regressa, pestanejando, espreguiçando-se. O véu desse outro mundo demora a desunir-se das suas feições. Estou a postos, com um odre de água.
- Toma. Bebe.
Ela sorri.
- Obrigada, Felix.
Falamos em sussurros; à nossa volta, muitos dormem. Tem-me custado adormecer a bordo do barco. Embora já não sofra de enjoos de mar, não consigo deitar-me sem sentir o imenso poder que jaz por debaixo deste frágil berço. Não consigo fechar os olhos sem ver a onda a chegar. De cada vez que respiro, sinto o abraço gélido da água a levar-me para longe.
Não pergunto a Sibeal o que viu. Espero que ela me conte.
- Encontraremos o lugar - diz-me. - Tenho a certeza. - Não é nada do que lhe ocorreu em meditação; nada que diga respeito à vontade divina ou ao olhar dos deuses sobre a nossa demanda. Sibeal vestiu a sua máscara de segredo, o ar adequado ao cumprimento do ritual. Pergunto-me se viu o desastre e deseja poupar-me. - É melhor dormir um pouco - diz-me.
- Descansa bem, Felix. - Olha para Svala, cujos olhos nos fitam a ambos, vigilantes, vigilantes, e faz a mímica do sono, descansando a cabeça nas mãos. - Boa noite, Svala.
Mas, enquanto nos deitamos, a uma distância respeitável um do outro, Svala não se mexe, salvo para olhar para cima, pela abertura que dá para o céu sem estrelas. Fecho os olhos e espero que a onda venha.
Já não há motivos de discórdia entre Gareth e Cathal. A escolha não é feita por eles. Na escuridão, levanta-se um vento estranho e feroz, que nos acorda a todos de repente. Já não precisamos da orientação das estrelas ou do Sol. É o mesmo vento, soprando para noroeste. Sei-o dentro de mim. Algo corta a corda da nossa âncora flutuante. Com uma calma admirável, Gareth ordena à tripulação que ice a vela. Temos de avançar à frente da tempestade, ou seremos um destroço à deriva, impotente contra a força da ondulação. As juntas do Liadan estalam e gemem. Por cima de nós, no convés, marinheiros lutam, entre brados, para impor ao barco alguma espécie de controlo. O mar eleva-se. Espuma branca ergue-se bem alto sobre a amurada, salpicando o porão e encharcando os tripulantes. Gareth chama Knut ao convés; nestas circunstâncias, todos os homens capazes a bordo têm de arregaçar as mangas. Knut obedece. Sou obrigado a reconhecer a sua coragem. Assim que ele desaparece do nosso campo de visão, algo muda em Svala. Ou será a tempestade? Um brilho acende-se no seu olhar, as costas endireitam-se, a cabeça ergue-se, altiva. Levantando-se, dirige-se à abertura no porão, como se também ela quisesse içar-se lá para cima, para o meio do vendaval e da espuma do mar.
- Não, Svala! - Gull tem de altear a voz para ser ouvido no crescente temporal. - Sibeal, diz-lhe que não é seguro.
Sibeal aproxima-se de Svala, a cambalear, pega-lhe no braço, diz-lhe algo que não ouço. Svala parece compreender as palavras, ou o toque, porque volta para trás e torna a sentar-se, mas há uma energia inusitada que lhe contagia o corpo. Podia ser uma mulher diferente. Quanto a mim, dou graças por termos esta tripulação, este comandante. Se os homens de Inis Eala não conseguirem fazer frente a esta tempestade, creio que ninguém conseguirá.
Não sei se acredito no deus do mar, mas dirijo-lhe as minhas preces: Zelai, pelo menos, pela segurança de Sibeal. Vou sentar-me ao seu lado e seguro-lhe na mão. Que importam as boas maneiras? Do outro lado, está Gull, sereno e silencioso. Enquanto no céu clareia uma tímida madrugada, nós lançamo-nos contra o mar monstruoso, de vela enfunada, numa rota direita à Ilha da Serpente.
Capítulo 12
SIBEAL
Continuámos a navegar à frente da tempestade. O ritmo era inexorável. Manter o Liadan inteiro e numa rota constante tornou-se a nossa única preocupação. Os dias seguiram-se às noites, fundindo-se com elas. Um homem descia ao porão, lívido e a tremer de cansaço, para agarrar uns minutos de sono; outro trepava até lá acima para ocupar o seu lugar no convés. Deitavam-se e adormeciam nesse mesmo instante, inertes como árvores abatidas. Gull contava-nos histórias para ajudar a passar o tempo, mas nem mesmo ele suportaria aquilo para sempre. A memória da morte era uma sombra nos olhos de Felix.
Enquanto druidesa, eu tinha sido treinada para resistir. Silenciei o corpo e a mente; abrandei a respiração. O meu pensamento reduziu-se ao miolo de uma noz, à pétala de uma flor, a uma fina folha de erva. A noite seguiu-se ao dia. Uma pequena parte de mim permanecia consciente da presença daqueles homens resolutos e funestos, do balanço violento do barco, da passagem das ondas pelo convés, do rosto plúmbeo de Felix, ao meu lado.
Na terceira noite, sonhei com uma luta feroz, com gritos e dedos que eram garras. Acordei de repente, alguém me tocava no ombro, e nadei até à superfície da consciência, vendo Cathal acocorado ao meu lado. Amanhecera. Na abertura do porão, brilhava um quadrado de céu azul-pálido.
- O que foi, Cathal?
- Temos de falar.
Sentei-me. Gull e Felix estavam ambos acordados, não muito longe de mim. Felix tinha umas olheiras fundas. E Svala... O que se passava com ela? Estava de pé, numa posição incómoda, com as mãos erguidas à frente do corpo e...
- Amarraram-na! - exclamei, horrorizada. Seria real, ou sonhava ainda? Os seus pulsos tinham sido atados com uma corda, e uma extensão dessa corda prendia-a às balizas no interior do porão. Não admirava que Felix estivesse com o ar de quem tinha visto um fantasma. - O que foi que aconteceu? - perguntei, tentando levantar-me. O sono agitado entorpecera-me as pernas. - Quem fez isto? Tenho de libertá-la de imediato.
- Deixa-a, Sibeal. - Gull esticou o braço para me travar. - Ordens do comandante. Tu dormiste o tempo todo, mas, ontem à noite, Svala subiu ao convés quando a nave ia a todo o pano. Eu estava cá em baixo, mas Gareth disse-me que ela tinha provocado o caos lá em cima e que ele ordenara aos homens que a trouxessem de volta para o porão e que a prendessem. Enfrentou quatro marinheiros. Fez muitos estragos. Tenho estado atarefado a cuidar de arranhões e nódoas negras. Acredita em mim, Sibeal, Gareth não teve alternativa.
Era um erro, um erro grave. Uma paródia da nossa demanda; o mesmo que engaiolar uma bela ave marinha. E eu não suportava aquela expressão no rosto de Felix, dizendo-me que tudo aquilo lhe lembrava Paul; não a suportaria nem mais um minuto.
- Como podes aceitar isto com tanta serenidade, Gull? - explodi.
- Não me importa o que ela fez! Está assustada... Olha para ela!
Svala puxava as cordas com alguma violência. Um círculo vermelho de pele pisada rodeava-lhe os pulsos. Deixou escapar um queixume, o som rouco, derrotado, de alguém que passara a noite a chorar.
- Eu própria a libertarei se nenhum de vocês tiver coragem para o fazer!
Dirigia-me a ela quando o braço de Felix me envolveu os ombros, segurando-me, travando-me.
- Sibeal - murmurou ele ao meu ouvido -, sei o que estás a sentir. Espera.
O seu toque abrandou o meu coração desenfreado. A voz segura dizia-me que eu estivera à beira de comportar-me de uma maneira que não era digna de um druida. Talvez houvesse uma outra forma de fazer isto, uma forma melhor.
- Eu consigo acalmá-la - disse eu, olhando para Cathal. - Por favor, pergunta a Gareth se posso desamarrar as cordas. Ela tem uma ligação comigo. Ouvir-me-á.
- Não, Sibeal, não vou perguntar-lhe. Tu não a viste. Nenhum marinheiro quer correr o risco de ter uma mulher louca a bordo. E ela estava louca, rindo, cantando, gritando, trepando pela enxárcia, inclinando-se para o lado com ondas do tamanho de montanhas a deflagrar por toda a parte. E se houvesse um recife? A tripulação estava tão distraída que teríamos ido todos ao fundo. Não vou perguntar a Gareth e não vou desamarrá-la. E tu também não. Num assunto como este, não se desobedece às ordens do comandante.
Era um estalo na cara. A minha autoridade como druidesa não contava para nada. Fiquei em silêncio ao lado de Felix. Prender Svala era fazer troça dos deuses. Doía-me o peito com o erro de tudo aquilo. De pé ao lado de Felix, com o corpo dele encostado ao meu, senti a sua dor. Como conseguia ser tão estóico?
- O que foi que vieste dizer-nos cá abaixo? - perguntou Gull a Cathal.
- O dano nos homens e no barco é demasiado grande. Começo a duvidar da rota. É possível que tenhamos passado pelo lugar e seguido caminho? - Olhou para Felix.
- Não te saberia dizer - respondeu ele. - As condições parecem ser as mesmas, o vento, o mar, a luz. Este troço da viagem foi mais curto para o Freyja. Mas temos de ponderar as diferenças entre os dois barcos: o ponto de partida, que era, quase de certeza, outro; a velocidade do vento e...
- A voz esmoreceu.
- É essa a questão. Será uma tempestade como as outras? Um fenómeno talvez muito comum neste lugar? Ou mais alguma coisa? Que mão gigante agita estes mares? A quem pertence o sopro imundo que empurra o Liadan para a frente?
- Imagino que não estejas a referir-te a Manannán - retorqui. Estava furiosa com ele, com Gareth, com Gull, por permitirem que fizessem aquilo a Svala. Mas isso não me privava de todo o meu senso comum. Corríamos riscos. A situação era perigosa. Se Cathal precisava do meu conselho, eu dar-lho-ia.
- Não, Sibeal, não me refiro a qualquer poder divino. Faz parte da natureza do meu pai brincar com as pessoas, pregar-lhes partidas, exercer a sua forma particular de crueldade. Podíamos continuar a navegar indefinidamente e...
- E nunca chegarmos a terra? - interveio Gull. - O vento não sopra na mesma direcção para sempre. Mais cedo ou mais tarde, vai virar. Se for mais tarde do que cedo, Gareth não terá alternativa senão dar meia volta e dirigir-se a casa, uma vez que as nossas provisões são limitadas.
- Não está a soprar na mesma direcção, Gull - disse Cathal, com um ar grave. - Algures a meio da noite, mudámos de rumo, para mais perto do Norte. Ainda agora, as nuvens afastaram-se o suficiente para Gareth poder confirmá-lo com a sua pedra-do-sol, e a leitura prova isso mesmo.
Felix estava silencioso, a linha do maxilar cerrada.
- Isso não significa que nos tenhamos desviado da rota - observei. - Nós partimos de Inis Eala, não de Ulfricsfjord. O vento pode ter-no colhido a ocidente do lugar onde colheu o Freyja. Se aceitarmos que esta tempestade não pertence a este mundo, seja ela enviada pelos deuses ou por outro poder qualquer, então, talvez sopre sempre na direcção da Ilha da Serpente.
- Nesse caso, se estivesses no lugar de Gareth, não tentarias sequer estabelecer um rumo? - Cathal arqueou as sobrancelhas.
- É apenas uma teoria. E não, não proporia tal coisa a Gareth. Não foste tu que sugeriste que a palavra do comandante era lei? - Senti um novo acesso de fúria e poderia ter falado com aspereza, mas ouvi um outro tipo de ruído vindo de Svala e vi-a olhar para um canto específico. - Gul - disse-lhe -, como pode Svala ir à latrina de mãos atadas?
Sem dizer uma palavra, Gull foi desatar a longa corda que prendia Svala às balizas. Não fez nada para lhe libertar os pulsos, ou os tornozelos, que percebi que estavam unidos por uma corda com cerca de dois palmos de comprimento.
Sem palavras, dirigi-me ao canto onde o balde estava entalado entre vários outros objectos. Durante a tempestade, nem sempre fora possível manter a carga nos lugares respectivos. Felizmente, parecia que Gull subira a esvaziá-lo pela amurada nessa manhã.
Eu tinha a certeza de que nenhum dos homens considerara a dificuldade com que uma mulher de pulsos e tornozelos amarrados, por muito lassa que a corda estivesse, desempenharia aquela função. Ajudei-a o melhor que pude. Enquanto lhe compunha a saia do vestido, ela levantou as mãos atadas, movendo-as para a frente e para trás. Os seus olhos imploravam-me. Nunca senti dentro de mim um impulso tão forte para desobedecer a uma ordem directa. Não deixaria Gull prendê-la de novo às balizas. Não podia permitir que isso acontecesse. Abri a boca para dizer isso mesmo, mas Felix falou primeiro.
- Cathal, disseste que o vento tinha virado durante a noite. Quando? O que estava a acontecer nessa altura?
De pé ao lado de Svala, com a mão pousada no seu braço, para a sossegar, senti uma súbita tranquilidade. Percebi qual era a ideia de Felix e, para mim, ela fazia todo o sentido.
- Creio que foi na mesma altura em que Gareth deu ordens para levarem Svala para o porão. Não tenho a certeza, Felix. Todos nós estávamos, de certo modo, apreensivos.
- Portanto, ela foi trazida à força cá para baixo e amarrada e, depois, o vento virou? - perguntei.
- Reparei nisso quando voltámos a subir para o convés - disse Cathal, e vi no seu rosto que ele estava a tentar seguir o nosso raciocínio. - Não dei grande importância ao facto, na altura... Não tinha a certeza. Depois, Gareth perguntou-me se eu sentira alguma mudança; ele sentira-a também.
Ficámos sentados, em silêncio, durante algum tempo, a ouvir o estridor do temporal e o embate das ondas contra o casco. Por fim, afirmei:
- Ela conhece o caminho. Svala conhece o caminho. Gareth tem de libertá-la e deixá-la voltar a subir para a proa. Não interessa, por ora, quem está a agitar os mares e a fazer soprar o vento. Sem a ajuda de Svala, não encontraremos a Ilha da Serpente.
- O vento mudou porque ela não estava lá para nos guiar? - Gull parecia um pouco céptico. - E quem é ela, alguma deusa?
- Eu também não compreendo, Gull, mas o meu instinto diz-me que isto é o que devemos fazer. Avisa Gareth, Cathal, e põe-na lá em cima depressa, antes que nos desviemos demasiado da nossa rota. - Dei-me conta de que estava a dar ordens. - Diz-lhe, por favor, que tenho a certeza de que é isso que devemos fazer.
- Felix? - Cathal arqueou as sobrancelhas. - Concordas com isto?
- Concordo - respondeu ele. - Quanto mais depressa Svala ficar livre, mais depressa chegaremos àquele lugar. Talvez ainda hoje. Talvez possamos encontrá-los ainda hoje.
Cathal subiu ao convés. Pouco depois, tornou a descer.
- Ele está preparado para tentar. Felix, podes desamarrar Svala?
Não pensei que fosse possível Felix empalidecer ainda mais, mas era o que acontecia.
- Posso - respondeu ele. - Sibeal, talvez precise da tua ajuda.
Fiquei ao pé de Svala, usando gestos para lhe explicar o melhor que podia o que se passava. O meu laço com ela era mais fraco ali em baixo, no porão; talvez houvesse demasiadas pessoas à nossa volta para permitir essa união de pensamentos que tínhamos experimentado algumas vezes. Mas podia, sim, mantê-la calma, enquanto Felix desatava os nós e lhe libertava as mãos. Podia murmurar-lhe algo enquanto ele se ajoelhava para lhe desamarrar as cordas à volta dos tornozelos. Era uma operação demorada. As mãos de Felix tremiam. Compreendi por que razão Cathal o incumbira a ele em particular, daquela tarefa.
- Já está - disse, por fim, levantando-se. Lágrimas corriam-lhe pelas faces. - Estás livre.
Pensei que Svala sairia disparada assim que o último nó fosse desatado. Mas pousou as mãos nos ombros de Felix - era ligeiramente mais alta do que ele - e acenou com gravidade, como se o compreendesse. Depois pegou no meu braço e apontou para cima, para o convés, dando voz a uma sequência de sons líquidos, a meio caminho entre o discurso e a canção. Seguiu-se uma série de gestos claros: tu, eu, lá em cima. Depois, um movimento amplo, quase imperioso, do braço, indicando Felix. E ele. Apontou para Gull. Aquele também.
- Devíamos fazer o que ela quer - observei, tentando ignorar o terror que se agitava no meu ventre. Lá em cima, no meio da tormenta, a céu aberto, cercada por mares montanhosos...
- Tens a certeza, Sibeal? - Gull estava a pôr-se de pé. Estremeceu ao endireitar-se. O confinamento do porão e a falta de oportunidade para desentorpecermos as pernas tinham tido o seu prejuízo.
- Sim, tenho a certeza - repliquei. Havia uma razão para tudo o que Svala fazia; eu estava cada vez mais convencida disso. Mesmo as coisas que pareciam selvagens e descontroladas tinham a sua razão de ser.
- Cathal, existe algum lugar no convés onde possamos estar, sem atrapalhar a tripulação?
- Se conseguires impedir Svala de instalar o caos, presumo que Garet concorde com isso.
- Farei o meu melhor.
- Deixa-me subir primeiro, então. Vou arranjar-vos um lugar.
Lá em cima, na boca do vento, eu pouco mais conseguia pensar senão em manter-me de pé. Encaixei-me na amurada, e Felix pôs-se entre mim e o temporal. Quanto a Gull, no instante em que subiu ao convés, mudou de curandeiro para marinheiro. Havia tarefas que até as suas mãos estropiadas conseguiam desempenhar: arrumar equipamento depressa e com rigor, emprestar a força a trabalhos que exigiam o esforço de vários homens, estar atento ao membro da tripulação que precisasse de descansar e chamar o próximo para o revezar. Percebi que, se eu não estivesse a bordo do Liadan, a sua viagem teria sido muito diferente. Vi nele um orgulho e uma determinação que me comoveram mesmo enquanto me agarrava à amurada com uma mão, e a Felix com a outra, rezando sem palavras a Manannán para nos deixar viver.
Svala voltou a ser quem era. Parecia ainda mais alta, sobre a proa, indiferente aos salpicos do mar, à temível ondulação e ao açoite do vento. Ela e o mar eram um só. Os seus cabelos de ouro esvoaçavam, selvagens, sobre o rosto, soprados em todas as direcções. Os pés descalços agarravam com firmeza o chão do barco. Enquanto eu não teria sido capaz de dar um só passo sozinha sem cair, porque o convés se inclinava ora para um lado ora para o outro, Svala não precisava de agarrar-se a lado nenhum. Observei-a com assombro. Havia nela uma espécie de liberdade, e um poder, que acordou em mim um desejo ardente, uma ânsia por algo que não consegui nomear. Por vezes, virava-se para mim, de olhos bem acesos, como se quisesse partilhar o seu entusiasmo. Aqui estamos nós! Não é maravilhoso? Consegui responder-lhe com uma careta. Verdade seja dita, não estava a enfrentar a situação com a força que tinha desejado. Sentia-me apavorada.
Felix inclinou-se para dizer algo: a única maneira de fazer-se ouvir por cima do rugido do vento e das ondas era encostando a boca ao meu ouvido.
- Eu agarro-te, Sibeal. Não te vou largar, prometo.
Pôs, então, o braço à minha volta e, embora o mar se erguesse, imenso, e a tormenta fosse poderosa, senti-me mais protegida. Enfiei um braço à volta da sua cintura; a minha outra mão, no seu quase rigor mortis, não largaria a amurada. Por momentos, encostei a cabeça ao peito dele e pareceu-me que, por debaixo da lã suja e molhada da túnica, eu ouvia o seu coração a bater, firme e seguro.
- Eu sei - repliquei. - Eu também não te vou largar.
Durante algum tempo, repeti, em silêncio, excertos de doutrina. Quando já não tinha forças para tal, deixei-me simplesmente ficar onde estava. Sabia que, sem o calor do corpo de Felix encostado ao meu e a consciência da sua esperança a pulsar no meu peito, desataria a correr para o porão e ali me enrolaria como uma bola patética no meio da bagagem, desejando nunca ter partido numa viagem tão destemperada.
A certa altura, ouvi uma série de ordens ríspidas. A vela estalou. O Liadan estremeceu e posicionou-se numa rota em frente, lançando-se numa corrida desenfreada.
- O vento mudou, Sibeal - murmurou Felix ao meu ouvido. - Tinhas razão.
- Hum - consegui dizer. Era, de facto, extraordinário. Os deuses sorriam-nos e teríamos de mostrar-lhes a nossa gratidão. Mas eu já não me sentia capaz de evocar nem a mais simples das orações.
Durante horas, ou assim nos pareceu, ficámos ali, no convés movediço agarrados uns aos outros, vendo Svala oscilar, forte e confiante, sobre a proa, e a tripulação a fazer todos os esforços para exercer algum domínio sobre o veloz Liadan. Tinham trocado alguns olhares de inquietude quando o vento mudara, porque os marinheiros têm um temor legítimo do sobrenatural. Mas ninguém fez um único comentário; estavam demasiado ocupados. Por fim, sobrepondo-se ao estrépito do vento e à explosão das vagas contra o barco, ouvi o grito de um homem:
- Terra! Terra à vista!
Svala estendeu os braços como se tentasse tocar em algo que se erguia à nossa frente. Lançando a cabeça para trás, soltou um grito ensurdecedor. Então, do norte, chegou-nos um som, um rugido, que me arrepiou da cabeça aos pés. Felix estremeceu como se alguém lhe tivesse batido. Era um rugido do outro mundo, denso e triste, tão profundamente estranho que não havia palavras para o descrever com justiça. Svala chamara. E alguém - alguma coisa - lhe respondera.
Avistei a ilha. Apareceu, indistinta, mais adiante, solitária no mar revolto, um bastião de negritude cercado por um anel de espuma branca, uma fortaleza erguida aos céus, de pináculos pontiagudos e paredes verticais, sem porto à vista. Não se via qualquer entrada para uma baía secreta, nenhuma brecha nos baluartes impossivelmente altos, nenhum ilhéu nas imediações, onde o barco pudesse atracar.
Felix resmoneou entredentes, na sua língua materna, talvez uma imprecação. Gareth deu uma série de ordens, e a tripulação esforçou-se por obedecer. Sigurd estava a manobrar o remo de governo; um segundo homem foi ajudá-lo. Prepararam-se os remos. Se a aproximação à Ilha da Serpente era como Felix a descrevera, os homens teriam de manobrar o Liadan ao longo de um canal estreito, até alcançarem águas abrigadas. Os marinheiros permaneceram a postos para baixar a vela. Uma resolução inalterável presidia a todos os gestos.
- Não posso acreditar - disse Felix. - Mas aqui estamos nós.
O rugido do outro mundo tornou a fazer-se ouvir, e eu senti nos meus ossos a sua sinistra vibração. Mais perto, alguém percorria aos tropeções a passagem estreita ao longo do porão aberto. Um vulto frenético, gritando invectivas num nórdico furioso. Não percebi as palavras de Knut, mas senti uma vertigem provocada pela intensidade dos seus sentimentos: raiva, terror, o pânico absoluto que preside à intuição da ruína. Não! Para ali não! Não voltarei, não posso, não posso...
Todos os marinheiros no convés estavam ocupados a manobrar o barco. Gareth gritou:
- Pára! Que fazes, homem?
Mas Knut continuou o seu louco progresso ao longo da embarcação, aproximando-se cada vez mais da coberta de proa, onde Felix e eu nos encontrávamos, não muito longe da absorta Svala. Já se sentia o odor do medo que dele emanava. Ao passar por um membro da tripulação cujas mãos estavam ocupadas a ajustar um moitão, roubou a faca presa à cintura do homem.
Felix agarrou-me e empurrou-me para trás dele, de costas para a amurada. Knut já alcançara a íngreme coberta de proa, esforçando-se por manter o equilíbrio, as feições contorcidas numa sinistra máscara de guerra.
- Homem aziago! - gritou, em irlandês, dando um passo esforçado na nossa direcção. - Trazes o medo contigo! Trazes a morte! Maldito sejas! - Mais um passo. O corpo de Felix endureceu. Knut empunhou a faca, pronta a desferir o golpe. Moveu-se para dar o passo que encurtaria a distância entre os dois. Mas Felix foi mais rápido. Largando-me, lançou-se para a frente e desviou-se num abrir e fechar de olhos. Apanhado em desequilíbrio, Knut vacilou e caiu no convés. Felix recuou, de braços estendidos, escudando-me mais uma vez.
O nórdico rosnou, como um animal ferido, tentando levantar-se. Tinha os olhos postos em Felix e neles estava escrita a palavra "morte".
- Svala - gemi, numa voz demasiado fraca para competir com uma brisa delicada, quanto mais com tão louca ventania.
Mas ela virou-se num ápice. Em duas longas passadas, pôs-se ao nosso lado e enfiou os dedos no cordão que Knut trazia ao pescoço. Puxou-o com força; ele arquejou de dor ao sentir a estreita fita de couro enterrar-se na pele, cortando-lhe a respiração. Svala içou-o em peso. O rosto de Knut tingiu-se de violeta; os olhos pareciam ameaçar sair das órbitas. Ia morrer ali mesmo, à nossa frente. Não, sussurrei, não era isso o que eu queria que tu fizesses. Ou talvez só o tivesse pensado. Espreitando à volta de Felix, soube que não havia nada que eu pudesse fazer para impedir o que aí vinha.
Svala segurou-o por instantes - era formidável a força do seu braço - e o rosto dir-se-ia, de facto, o de uma deusa, severo no seu julgamento. Algo mudara; a presença de Knut já não a intimidava nem assustava. O cordão partiu-se, e ele caiu no convés. Liberto, o talismã onde a runa Eolh fora esculpida, voou pelo ar, descrevendo uma pirueta pelo caminho, e caiu ao mar. Svala encostou o cordão puído aos lábios, num gesto de estranha ternura, e enfiou-o no seu corpete. Para meu espanto, vi uma lágrima escapar-se do seu olho e rolar pela face perfeita.
Agora, Cathal aparecera no convés, ao nosso lado, levantando o arquejante Knut e arrastando-o para longe. Sigurd subiu para ajudar; juntos, levaram o nórdico para o porão. Svala tornou a virar-se para norte. Já não havia gritos, nem canções, nem chamamentos. Estava serena e silenciosa.
- Estás bem? - perguntou-me Felix, quase sem fôlego.
- Hum. E tu?
- Inteiro. Sibeal, é melhor ires para baixo neste último troço da viagem. É... um pouco perigoso.
Uma gargalhada cresceu dentro de mim; não tanto de diversão, mas do terror puro que me invadia.
- Pensei que me tinhas jurado, uma vez, que me dirias sempre a verdade - esforcei-me por retorquir.
- Aqui, agora, é assustador - disse Felix, sem traços de riso na voz.
- Mas a passagem entre os rochedos é... diferente. E há...
Há o que jaz do outro lado, pensei. O monstro.
- Eu sei - devolvi. - Mas não vou descer ao porão com Knut, nem mesmo amarrado. - Era a primeira vez que eu via um homem enlouquecido pelo medo. A custo, evoquei um tom de voz confiante. - Esta é a melhor tripulação que podíamos ter. Há-de levar-nos ao outro lado.
- Estamos quase lá, Sibeal - murmurou Felix, apertando-me nos seus braços. O seu calor contagiou-me uma vez mais; senti o coração ao alto.
- Talvez os encontremos antes do pôr do Sol. Talvez amanhã já estejamos a caminho de casa. Ficarei em dívida para contigo até ao fim da minha vida.
- Não digas isso, por favor. - Oh, aquilo sabia-me bem. Ali, no convés, com Liadan a sulcar o mar encapelado, o ar cheio de salpicos salgados, os rochedos impiedosos da Ilha da Serpente cada vez mais perto, senti-me, por momentos, mais segura do que alguma vez me sentira na vida. - A tua coragem tornou isto possível. A tua esperança manteve acesa a chama desta missão. Sem ti, ninguém teria vindo em socorro destes homens.
- A minha coragem é a tua coragem, Sibeal. A minha esperança é a tua esperança. Tu ajudaste-me a sair da minha própria Yeun Ellez, o berço das sombras e do nevoeiro.
Fechei os olhos, agarrando-me àquele momento, desejando que ele durasse para sempre. Grava-o na tua memória, Sibeal. Guarda-o bem, porque é uma raridade de valor inestimável.
Quando nos aproximámos da ilha, tanto Gareth como Cathal subiram à coberta de proa e puseram-se ao nosso lado.
- Pergunta a Svala onde fica a entrada, Sibeal - pediu Gareth. - Tive esperança de que Knut pudesse guiar-nos, mas não está a dizer coisa com coisa.
Não foi preciso perguntar. Quando a vela foi recolhida e o Liadan avançou a remos com prudência, Svala apontou com absoluta convicção para o que a mim me parecia uma parede de pedra ininterrupta e compacta. Por ali.
- Que Manannán tenha piedade - disse Cathal. - Vêem alguma coisa?
- Não há uma única brecha em lado nenhum. Sibeal, podes...
Gareth deteve-se. Svala virara-se para o outro lado. Os seus belos olhos arregalaram-se, seguindo um movimento atrás de nós, ao longo do barco. Silvou, emitindo um som de ultraje. Acompanhei o seu olhar e vi os homens passarem lanças e arcos uns aos outros e lançarem facas de dentro do porão.
O silvo tornou-se uma torrente de sons, não o chilreio melodioso dos melhores momentos, mas um grito de desafio, colérico e lancinante. A raiva de Svala apoderou-se de mim; a sua intensidade fez-me cambalear, e Felix teve de agarrar-me no braço para eu não cair.
- Nada de armas - soprei, ofegante. - Diz aos homens para guardarem as armas. Se queres que ela nos indique o caminho, faz como te digo.
- Pelas bragas de Dagda, Sibeal - protestou Gareth -, há um monstro comedor de homens mais adiante!
O mundo começou a girar à minha volta; os meus olhos encheram-se de pontos luminosos.
- Nada de armas - murmurei, vacilando. Apoiei-me em Felix, fazendo um esforço para não desmaiar.
- Guardem as armas! - gritou Gareth. - Que os deuses nos ajudem, é melhor que tenhas razão a respeito disto. Algum sinal de uma passagem?
Devíamos estar muito perto de terra. Viam-se xailes de algas sobre as rochas e saliências mais acima, onde mergulhões fariam os seus ninhos. Gull bradava ordens aos remadores. Os homens já tinham os rostos vermelhos do esforço, os corpos testando os seus limites. Não nos afundaremos, disse para comigo, como se repetir as palavras pudesse torná-las realidade. Não nos afundaremos. Havemos de encontrar o caminho.
- Ali! - Felix apontou para a frente. E ali estava ela: uma brecha estreita apenas visível como subtil variação de cor no cinzento das rochas.
- Remai! - gritava Gull, posicionando-se ao lado de Sigurd e do seu ajudante. - Remai!
Lembrei-me de um jogo infantil que as minhas irmãs costumavam fazer em Sevenwaters. Procurávamos um ribeiro cheio, na força da Primavera com penhascos, quedas-d agua e rápidos em miniatura. Depois, púnhamos barcos feitos de folhas e casca de árvore a navegar pelo curso de água, para ver qual chegava primeiro ao lago, em baixo. Vi-me sentada sob a copa de um carvalho, observando as outras a gritar, a correr e a encharcar os vestidos. Agora, íamos numa dessas frágeis embarcações, e este era o nosso rápido: uma turbulenta massa de água, agitada por correntes demasiado violentas e rebeldes para serem conquistadas pela força de uns escassos oito remadores. Não nos afundaremos. Havemos de encontrar o caminho.
O Liadan esquivou-se dos rochedos, aproximando-se do lugar ond um estreito orifício se abria na fachada do penhasco. Uma torrente de água branca enchia o canal, rodopiando e redemoinhando para dentro e para fora. Gull gritou ordens; o Liadan estremeceu enquanto os remadores se batiam por conduzi-lo pelo centro. Sobrepondo-se à voz firme de Gull, veio a voz de Svala, ululando alto e forte, repetida em eco pela abóbada de vozes mais acima, como se uma centena de mulheres selvagens cantassem um hino à nossa passagem. E, do outro lado do canal, um rugido veio, em resposta. Por entre as paredes de rocha, avançámos, as suas superfícies erodidas passando por nós a uma velocidade vertiginosa, a menos de dois braços de distância.
- Segurem-se, homens! - gritou Gareth.
- Armar remos! - berrou Gull. E a tripulação obedeceu.
O Liadan precipitou-se para a frente, como um pedaço de madeira numa maré de águas vivas, e saiu disparado para as águas da baía. Quando voltei a respirar, murmurei uma oração.
- Que Manannán seja abençoado. Agradecemos.
Dei-me conta de que estava agarrada a Felix, como uma lapa à sua rocha, e recuei, libertando-o. Ali, no interior da protectora barreira de pedra, a água parecia um espelho. O Liadan seguiu em frente, os homens remando com precisão, embora os seus rostos tivessem perdido toda a cor. Aqueles que não estavam a remar permaneciam nos seus lugares, fechados num silêncio funesto. Apenas Gull se mexeu, vindo juntar-se a nós na coberta de proa.
O grito de Svala cessara. O seu olhar percorria a baía como se bebesse cada recanto daquela lúgubre paisagem: a imagem que eu formara em pensamento, ao ouvir a história de Felix, não se comparava ao que viam agora os meus olhos - um cenário de pesadelo, onde tudo era desproporção e exagero. Os penhascos mais altos, impossivelmente íngremes, os lugares mais baixos, uma amálgama de rochas disformes que faziam lembrar monstros agachados, cheias de arestas afiadas e súbitas reentrâncias. A baía ou enseada era maior do que eu imaginara: uma longa, curva extensão de água abrigada, com uma fina língua de praia. Não se via um único arbusto, árvore ou tufo de folhagem brotando do solo; um só pé de erva daninha, ou folha de erva; uma só planta desesperada e raquítica.
- É como um lugar abandonado pelos deuses - sussurrei.
- Talvez haja outros deuses - replicou Felix.
E, durante aquele intervalo de tempo, nós continuávamos à espera. Todos tinham ouvido a história de Felix. Todos sabiam o que se seguiria.
- Remem para terra! - gritou Gareth, e a sua voz era uma intrusão naquele lugar deserto. Não pertencia. Nenhum de nós, aliás. Os remadores obedeceram ao comandante, e o Liadan deslizou pelas águas quietas em direcção à estreita faixa de seixos.
Svala fez um pequeno ruído trinado. Olhando para fora, vi uma turbulência crescer na superfície da água, um cardume de pequenos peixes, talvez maiores, ou muito grandes, na verdade...
Algo se ergueu, então, das águas, numa explosão cintilante de escamas azul-esverdeadas, a uma altura tal que tapava o Sol, agigantando-se sobre nós. Os remadores estacaram, remos caindo com estridor por toda a parte. A criatura era imensa, maior do que o Liadan, o seu perímetro maciço. Os olhos brilhavam como duas gemas pretas, as longas mandíbulas exibindo uma fila de presas serrilhadas, com um desígnio inequívoco. Ficámos perplexos, mudos. As nossas armas não nos teriam servido de nada; picadas de alfinete num javali.
Gull foi quem recuperou primeiro.
- Remai! - bradou, percorrendo o passadiço em correria, até à popa, onde Sigurd permanecia imóvel, mãos no remo de governo, olhos esbugalhados pregados no monstro. - Arregacem as mangas! Que julgam vocês que isto é? Um passeio de pesca?
Svala tornou a chilrear e a criatura desceu, as suas quatro patas mergulhando a bombordo, o corpo serpenteando, a cauda erguendo-se para esmagar a superfície da água, uma, duas, três vezes. Celebrando, pensei, em delírio, ao baixar-me para evitar um banho. Está a celebrar o regresso dela com danças e tambores. O Liadan balouçava com violência, o convés inclinando-se para um lado e para o outro. A criatura fazia uma tempestade sozinha, cabriolando à volta do barco, com mergulhos e piruetas. Na proa, Svala ria-se e batia palmas.
A coisa nadou para longe; respirei, voltei a endireitar-me. Que os deuses fossem louvados, deixar-nos-ia alcançar a costa. Revi, então, Svala na praia, em Inis Eala, a construir o seu imponente monstro de areia, tocando-lhe com mãos extremosas, mostrando-o em todo o seu esplendor. Cantando-lhe canções. Sentando-se ao lado dele, quando a maré o reclamou. Por incrível que parecesse, o monstro comedor de homens era amigo dela. A criatura - ele - estava feliz por termos trazido Svala para casa.
Mergulhando sob a superfície da água, desapareceu. O mar acalmou-se, imóvel como antes. Não se via a mais leve ondulação, um único distúrbio, nada que revelasse que aquilo lá tinha estado. Apenas os rostos lívidos e os olhos chocados da tripulação do Liadan, e a batida trovejante do meu coração.
- Quem são vocês? Homens ou ratos? - rugia Gull. - Remem, seus inúteis filhos de vermes!
Os homens agarraram nos remos. Remaram. A costa aproximou-se.
Senti-o um momento antes de acontecer, como se o destino me batesse no ombro, com um dedo de gelo. A água agitou-se. Lembrando o míssil de uma catapulta gigante, a criatura emergiu, lançando-se no ar, mesmo sobre o Liadan, tão perto que vi a estrutura engenhosa das escamas entrecruzadas que lhe forravam o ventre, tão perto que pensei que o mastro se ia quebrar, tão perto que achei que nos ia esmagar. Num ápice, já tinha descido, mergulhando de cabeça na água, do outro lado do barco. Uma onda abateu-se sobre o Liadan, inundando-o até ao porão. E, no lugar onde estava Gull, no passadiço, já não se via ninguém.
Um momento de silêncio atordoado. Depois, homens moveram-se, descalçando as botas e tentando chegar à amurada. Um grito subiu dentro de mim.
- Esperem! - gritou Gareth. - Ninguém salta... Aquela coisa ainda está na água! Armar remos!
Senti-me gelada até aos ossos. Que dizia ele? Que Gull devia ser abandonado e afogar-se?
- Temos de salvá-lo! - gritei. - Gareth, alguém tem de ir buscá-lo!
Mas Gareth permaneceu em silêncio, de maxilar cerrado, olhos na costa. Não percebi. Tê-lo-ia a missão transformado num outro homem?
Um homem capaz de deixar morrer um velho amigo, sem pensar duas vezes?
Acalma-teSibeal. Pensa numa solução. Cathal. Estava mesmo ali. Podia acalmar as águas, podia... Vi que ele já estava na amurada, de braços esticados, a olhar para o sítio onde Gull tinha desaparecido e a articular palavras numa língua que me era desconhecida. Graças aos deuses. Graças a todos os deuses que Cathal viera connosco.
Gareth deu mais uma ordem; os remos pararam. O tempo passou, tempo medido na batida frenética do meu coração. Na água por debaixo de nós, nada se mexia. Cathal tornou a chamar, a sua voz poderosa e ressonante. A única resposta que obteve foi o silêncio.
Baixando, então, os braços, virou-se para nós. O seu rosto era uma máscara de pedra branca.
- Não consigo - declarou. - Há uma força neste lugar, uma força contrária... Algo está a bloquear-me. - A voz quebrou-se-lhe. - Não consigo salvá-lo.
- Mas... - comecei por dizer, mas ocorreu-me que me tinha esquecido de algo. Svala era amiga do monstro. Chamara-o, e ele respondera-lhe.
- Svala, ajuda-nos! - Agarrei-lhe no braço, esperando que ela sentisse o meu desespero como, um dia, eu sentira o dela. Ela virou os seus belos olhos cinzentos para mim, mas não fez qualquer gesto. - Por favor, Svala! O monstro marinho é teu amigo, tenho a certeza de que podes fazer alguma coisa... - Oh, deuses, aquilo não podia estar a acontecer.
Atrás de mim, um alvoroço.
- Não! - gritaram Gareth e Cathal, em uníssono.
Eu não conseguia mexer-me; não conseguia respirar. Porque, naturalmente, havia um homem a bordo que não era membro da tripulação, um homem que podia, numa situação extrema, desobedecer às ordens do comandante. Felix estava sentado a cavalo na amurada. Primeiro, ganhou coragem, depois, passou a outra perna e, por fim, mergulhou, direito como uma seta, na baía. As águas fecharam-se e, tal como Gull, também ele desapareceu. Desapareceu num abrir e fechar de olhos. Desapareceu entre o ar que se inspira e o ar que se expira. Desapareceu como se nunca tivesse existido.
Corri à amurada, esforçando-me por trepar. Se saltasse agora, podia salvá-lo, tinha de fazê-lo, não era tarde demais, ele não podia morrer...
Duas mãos fecharam-se em torno dos meus braços, prendendo-me com convicção e delicadeza.
- Não, Sibeal - disse Cathal. Enquanto eu me contorcia e pontapeava e me debatia, gritando a minha raiva, ele segurou-me, firme, todo o caminho até à costa.
Estava na praia. O Liadan fundeara na água, a pouca distância. Os homens tinham-me trazido para terra num pequeno barco a remos. Sentia os seixos duros por debaixo do corpo; o ar gelado nas faces molhadas. Ouvi Gareth a dar ordens ríspidas, num tom que proibia qualquer comentário. E alguém fazia um som parecido com um gemido, ou o ganido de um cão açoitado. Talvez fosse eu. Não havia ali nenhuma druidesa, nenhuma mulher corajosa, com o ouvido dos deuses e o espírito moldado por anos de disciplina para ser um exemplo de força e de sabedoria. A última centelha dessa pessoa tinha esmorecido e morrido mais além, naquelas águas. Só havia um vazio no lugar onde o coração me fora arrancado do corpo. Expulso. Sumindo-se num buraco tão fundo como a morte.
- Sibeal?
Cathal acocorou-se ao meu lado, falando-me com invulgar brandura. Pousou-me a mão no ombro.
- Não me toques! - Recuei para dentro de mim, abraçando a minha angústia.
- Sibeal, precisamos da tua ajuda. Respira fundo e olha para mim. Sibeal, olha para mim.
- Vai-te embora.
Um som de seixos esmagados quando ele se sentou ao meu lado. Um silêncio. Depois, disse-me:
- Liderar uma missão envolve certas responsabilidades. Estas incluem tomar decisões no calor do momento. Por vezes, essas decisões parecem erradas. Se não fores um guerreiro, podem parecer muito erradas até. Sibeal, Gareth não pode dar-se ao luxo de perder mais nenhum homem. Se o número de homens envolvidos nesta missão cair abaixo de um determinado nível, não seremos capazes de regressar a casa. O que aconteceu podia ser uma armadilha pensada para nos atrair a todos, um de cada vez, para dentro de água, numa vã tentativa de socorro. Ele tinha de fazer aquilo que fez. - Um momento depois, acrescentou: - Ambos desapareceram assim que mergulharam na água. Podíamos sair no bote. Podíamos ir à procura deles até ao cair da noite, colocando-nos na posição ideal para sermos apanhados pelo monstro. E é provável que não lhes encontrássemos o rasto.
Tentei tapar os ouvidos. Gull. Felix. Desaparecidos.
- Gareth enviou uma expedição de busca ao longo da costa, caso tenham saído mais acima.
- E depois vai pedir-me para conduzir um ritual fúnebre, imagino eu. - A minha voz parecia a voz de outra pessoa, amarga e colérica.
- Sibeal, não temos muito tempo. Quero que me respondas a uma pergunta. - Como não reagi, Cathal avançou com a mesma. - Por que razão levámos a cabo esta demanda?
Felix. O meu corpo inteiro doía de desgosto.
- Responde, Sibeal. Ou falta-te a coragem?
Virei-me para ele.
- Coragem? Não me fales de coragem! Só houve um homem no meio de todos vós que teve a coragem de saltar atrás de Gull, um homem que tinha mais razões do que qualquer outro para temer a água! Todas as noites, quando fechava os olhos, a única coisa que via era a onda a chegar e a levar-lhe o irmão! Como te atreves? Como te atreves a falar-me de...
A hemorragia de palavras estancou-se. Agora que tinha levantado a cabeça e aberto os olhos, via por toda a parte à nossa volta uma azáfama ordenada: homens trazendo equipamento para terra, no pequeno bote, outros passando objectos de mão em mão pelas rochas acima, a lugares mais altos, Gareth e Sigurd estudando as encostas e conversando em sussurros, um pequeno grupo pondo trouxas às costas e tirando lanças de uma pilha de armas. E Svala, que não estava a saltar, a cantar, ou a celebrar o seu regresso, mas agachada nas rochas, como quem espera algo. Estava a olhar directamente para mim. As águas da baía eram como vidro polido sob um céu azul. A tempestade tinha passado.
- Muito bem - cedi. - Estamos aqui porque Felix acreditava na sua causa. - Mal tinha coragem para dizer o nome dele. - Porque ele é... era... um bom homem, um homem corajoso que sabia que tinha de fazer o que estava certo.
- Hum.
- Ainda não acredito que ele tenha partido, Cathal. E Gull... Tão depressa, como velas apagadas por uma corrente de ar. Tão depressa, como se nem sequer tivessem importância.
- Eu sei. - Cathal inclinou a cabeça. Dei-me conta de que também ele sofria, chorando um velho amigo de quem muito gostava e um novo, que tanto prometia. Rompendo o nevoeiro da minha própria tristeza, reconheci o que ele estava a tentar dizer-me.
- Temos de encontrar aqueles homens - afirmei. - Encontrá-los e levá-los para casa. Devemo-lo a Felix, e a Gull, concluir esta missão.
Cathal aquiesceu.
- Se não o fizermos - disse ele -, o sacrifício de Felix foi em vão. - Levantando-se, estendeu-me a mão. Pus-me de pé. Sentia as pernas tremer. Estávamos encharcados; as nossas roupas caíam, pesadas, à volta do corpo, pingando. - Subiremos esta encosta até ao abrigo daquelas saliências de rocha, se é que podemos chamar-lhe abrigo - afirmou. - Garet está a insistir numa pausa para comer e descansar; os homens estão nas últimas. A única excepção é a expedição de busca que ele vai enviar para percorrer a costa. Quando esses homens voltarem, alguns de nós partirão em busca dos sobreviventes. Outros terão de ficar aqui a vigiar o barco, e... - Olhou de relance para cima, para as rochas onde Svala se empoleirarara. - E ela, penso eu. Não me parece que queira fugir disparada para onde quer que vivesse antes. Knut continua desnorteado; não pode fazer parte de nenhuma expedição. Se ficar aqui contigo e com Svala, teremos de deixar vários homens de guarda.
Knut estava sentado na praia, não muito longe dali. Tinha uma corda amarrada a um tornozelo, que o prendia a um bloco de pedra. Estava encolhido, retrato vivo da miséria, com os braços à volta dos joelhos e o manto de alguém a cobrir-lhe as costas curvadas. Dois homens vigiavam-no de perto. Um casualmente apoiado numa lança; o outro com facas presas ao cinto.
- Não vou ficar aqui - declarei, tentando secar os olhos com a manga molhada. Vou convosco à procura desses homens. Uma vez que Felix não pode fazê-lo, terei de ir em vez dele.
Recordei as primeiras adivinhações, quando lançara as runas depois de as ondas trazerem Felix à minha porta. Teria depositado demasiada fé em Nyd - a força para lá da resistência? Teria dado uma ênfase inadequada ao poder benéfico de Os? Ao escolher as runas, Felix incluíra Is. Quando relacionara isto com a sua falha de memória, ter-me-ia esquecido que Is também podia significar um desastre vindo do nada? E, vendo-o chegar, ter-me-ia sido dada a possibilidade de alterar esse padrão? Teria podido salvá-lo?
- Sibeal - disse Cathal.
Assustei-me, pestanejando. Estava a dizer-me algo e eu não o ouvira de todo.
- O que foi?
- Isto pode ser difícil. Nem mesmo Felix sabia onde se encontravam os sobreviventes. Nem Knut. A única coisa em que podemos basear-nos é na minha visão, e a visão só mostrava uma gruta. É possível que a busca seja longa.
Cathal não mencionou o monstro, o qual, segundo a versão de Felix, se deslocava tanto no mar como na terra.
- Eu vou contigo.
Talvez fosse algo na minha postura, ou nos meus olhos. Talvez o meu cunhado achasse que qualquer coisa seria preferível à pobre desgraçada que ainda há pouco não parava de lamuriar-se. Eu não podia ser essa mulher, não naquele momento. Havia trabalho a fazer.
- Que seja, então - replicou Cathal. - Vê se consegues arranjar roupa seca. Garbh e Rian estão a separar as coisas que trouxeram do porão, ali, nas rochas. - Hesitou. - Penso que Svala quer dizer-te algo. Talvez ela possa ajudar-nos. Se pertence, de facto, a este lugar, é possível que saiba qual é o sítio mais provável para criar um abrigo.
Rian e Garbh arranjaram-me uma camisa e uma túnica que escapara aos piores salpicos de água, e eu enfiei-me atrás de uma protuberância na rocha para mudar de roupa. Não havia uma saia de sobra. Despi a minha, torci-a e tornei a vesti-la, a tiritar. A noite, quando viesse, traria consigo um frio capaz de gelar-nos até aos ossos. As minhas meias estavam encharcadas e imundas. Enfiei os pés nus dentro dos sapatos. Enrolei as vestes molhadas. Ao sair, quase choquei com Svala, que estava de pé, de braços cruzados e pernas afastadas, à minha espera. Aquela pose não era encorajadora, nem a crispação da boca fechada. Pousando a trouxa, estendi os braços para lhe pegar nas mãos e senti um tremor percorrer-lhe o corpo todo. Fechei os olhos, esperando que ali, com espaço aberto à nossa volta, os seus pensamentos pudessem entrar dentro de mim de uma forma mais clara do que no barco. Estaria assustada? Zangada? Com frio? Como poderia aquela alegria louca extinguir-se tão depressa?
Não a censures, disse a mim mesma. Eles não desapareceram por causa dela. Nem sequer por causa do monstro. Embora quisesse culpar alguém, eu tinha visto que as ferozes tropelias da criatura não eram uma tentativa de matar, mas pura exuberância. O que tinha acontecido fora um infortúnio, nada mais. Respirei devagar; abri a mente aos pensamentos de Svala.
Uma amálgama frenética de imagens contraditórias invadiu-me, em torrente. Ela estava a rebentar com aquilo que sentia, aquilo que queria, aquilo que precisava de mim. Algo relacionado com o gesto de vestir-se e despir-se... A criatura, a cauda batendo na superfície da água, a onda vir... Agora, era eu quem tremia. Os sentimentos de Svala acumularam-se dentro de mim, provocando-me tonturas, nauseando-me. Estava zangada, assustada, confusa. Queria... Oh, queria, precisava... Onde está? Onde escondeu ele aquilo? Por momentos, Knut apareceu na imagem, e as mãos dela, a arrancarem-lhe o talismã do pescoço. Dá-ma! Devolve-ma! Libe tando uma mão, enfiou-a dentro do vestido e puxou o pedaço de couro puído e torcido que lhe arrancara do pescoço. Os seus olhos pareciam loucos quando abanou a fita de couro à frente da minha cara. Isto! Isto! Meu! As imagens que me invadiam mudavam tão depressa que não conseguia perceber nada do que via.
Não era capaz de fazer aquilo. Sentia-me demasiado fraca, demasiado pequena para conter os seus poderosos sentimentos, bem como a minha própria dor. Não fazia ideia do que Svala estava a querer dizer-me.
- Não creio que possa continuar a ajudar-te, Svala - sussurrei, largando a mão dela. No fundo da minha mente, certos pensamentos envergonhavan-me: por que o faria? Tu não quiseste ajudar-me. Ficaste ali parada, deixastes que eles se afogassem. Agora, Felix desapareceu e, se tu pensas que amas este lugar, com o monstro e tudo o resto, o teu amor não é nada comparado com o que eu sinto!
Quando me afastei, ela fez aquele seu som chilreado, e eu virei a cabeça vendo-a mimar a mesma ideia que os seus pensamentos tinham sugerido. Vestir roupa, talvez um manto com capuz, ou algo semelhante, que cobrisse o corpo todo. Depois, alisou a veste imaginária para baixo, rodou-a à volta do corpo, aquiesceu. Agora, está tudo bem. Quando o estranho teatro acabou, Svala tornou a estender as mãos para mim e a fazer o mesmo som. Agora, parecia tanto uma ameaça como uma súplica. Apontou para a água. Faz o que te digo, ou farei com que ele venha outra vez, com as suas garras afiadas e as suas presas pontiagudas. Fá-lo. Mais além, nas águas tranquilas da baía, julguei ver algo a emergir na superfície da água, a sugestão subtil de um corpo imenso, a ondulação provocada por uma cauda gigantesca. Pestanejei, e desapareceu.
Tornei a afastar-me e fui ao encontro dos homens. Oh, Ciarán, pensei, preciso da tua sabedoria, agora. Mas fico grata por não estares aqui a ver-me chegar a este ponto. E pareceu-me ouvir a sua voz murmurar-me ao ouvido sábia e calma como sempre: em toda a experiência, há algo a aprender. Na dor mais profunda, há uma lição de sabedoria. Do fundo do poço do desespero, a esperança emerge.
Os homens dormiam, embrulhados em qualquer coisa que pudessem encontrar que estivesse toleravelmente seca. A saliência de rocha era uma cama dura, mas aqueles guerreiros estavam habituados a descansar onde e quando o descanso lhes fosse proporcionado, e estavam esgotados. Os que fariam parte da expedição de resgate receberam ordens para descansar primeiro, incluindo eu e Cathal. O meu cunhado deitou-se e fechou os olhos, com o manto negro estendido sobre o corpo. Talvez a dormir; ou, mais provável, acordado. Eu sabia que não conseguiria dormir.
Quatro homens ficaram de vigia à nossa volta, três dos quais virados para a baía, com lanças na mão. Gareth andava de um lado para o outro. Descobri que não era capaz de olhar para ele. Compreendia a lógica do raciocínio de Cathal, mas não conseguia aceitá-la. Aquele era Gareth, o amado de Johnny, um homem que punha sempre as necessidades dos outros à frente das suas. Um brincalhão; um árbitro; um pacificador. O comandante que ordenara à sua tripulação que não salvasse a vida de um camarada estava a oceanos de distância do homem que eu conhecia. Um amigo familiar tornara-se, num abrir e fechar de olhos, um perfeito desconhecido.
- Sibeal - dizia-me ele, agora, falando baixo para não acordar quem dormia -, se vais com Cathal, tens de deitar-te e repousar.
Ignorei-o, indo sentar-me a alguma distância dos outros. Mais abaixo, nas rochas, Svala continuava acocorada. Cantarolava uma pequena melodia lúgubre, uma e outra vez. Sentei-me de pernas cruzadas, com as palmas das mãos sobre os joelhos, viradas para cima. Fechei os olhos. Gareth não disse mais nada.
Precisaria de todas as minhas forças para entrar num transe meditativo. O meu corpo contraíra-se de dor; a tristeza habitava todos os recantos do meu ser. Pulsava com o coração e corria-me no sangue. À minha mente, acudia, incessante, a imagem de Felix, grácil como uma andorinha, a mergulhar da amurada e a desaparecer nas águas mais abaixo. Invoquei a minha aprendizagem. Invoquei a disciplina ganha à custa de tanto esforço. Respirei. Limpei as lágrimas. Pensei nos olhos sábios de Ciarán, na sua voz ponderada, na sua presença tranquilizadora. E em Finbar, há muito desaparecido, mas ainda vivo em espírito, um poder a favor do Bem. Passado muito tempo, quando, por fim, me senti pronta, rezei. Dai-me força. Ajudai-me a sobreviver a isto. E, depois, a parte mais difícil: Guiai-os com bondade na sua viagem, guardiã do grande portal. Eram homens bons, ambos.
Gull, guerreiro e chefe, amado pela sua família, amigo de absoluta lealdade, luz de bondade para todos os que o conheciam. E Felix... Respira, respira... E Felix, um coração tão forte, tão delicado e, porém, tão corajoso... Morrigan, confio-o nas vossas mãos. Mas, oh, se a mão dele ainda estivesse na minha, eu lutaria por conservá-lo, lutaria como uma loba para lhe dar mais uma oportunidade. Manannán, levaste-o demasiado cedo. Não chegara, por certo, a sua hora. Apesar dos meus esforços, deixei escapar uma lágrima.
Já passara tanto tempo desde que os deuses me tinham concedido respostas que fiquei atordoada quando uma voz me falou em pensamento. Uma voz tão forte como o trovejar de uma cascata e tão discreta como o sopro de uma criança adormecida. Serias capaz de desafiar os deuses, Sibeal?
Por que quereriam os deuses que Felix morresse antes de concluir a sua demanda? Se fosse possível que o discurso da mente soluçasse de fúria, o meu fazia-o certamente. As runas disseram que ele conseguiria fazê-lo! Falavam de uma missão cumprida! Se eu soubesse, nunca o teria encorajado afazer esta viagem, nunca!
A missão ainda pode ser cumprida.
Devia seguir caminho e salvar os sobreviventes, sem Felix. Bem, era o que eu estava a fazer. Partiríamos assim que a pausa terminasse.
Ele nunca te esteve destinado, disse a voz. Tu foste prometida ao serviço dos deuses, Sibeal O teu destino é muito mais elevado do que o dele alguma vez poderia ser. Tu sabes isso.
Deixei-me penetrar por aquelas palavras, recordando a mim mesma o que há tanto tempo eu sabia ser verdade. Esse conhecimento guiara os meus passos desde a minha tenra infância. Seria esta a resposta dos deuses à pergunta porquê? Por que mo levaram? Porque ele não se encaixava no cenário. Porque era um obstáculo.
- Oh, não - soprei. - Não! É um erro! E um erro tão grave que não consigo exprimi-lo por palavras! Sacrificá-lo para garantirdes a minha lealdade... Não o permitirei! - Ciarán teria ficado aterrado; falar com os deuses naquele tom era o mesmo que pousar a cabeça no cepo. Eu não me importava. - Se é isto que ser um druida requer, então, renuncio a essa vida! Ainda não fiz os meus votos.
Tremia, chocada, dividida entre a tranquilidade do transe e o reconhecimento enfurecido de uma traição que abalava as minhas mais profundas convicções.
Não prometeste uma vez que farias qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, para que ele pudesse sobreviver?
- Mas não sobreviveu - exclamei, em voz alta. - Não foi sequer autorizado a viver tempo suficiente para encontrar os seus amigos e cumprir a promessa que fez ao irmão. Peço-vos, não brincais comigo: é cruel.
Espera, Sibeal. Era uma voz calma e grave. Demasiado distante para se ofender com o meu desrespeito; demasiado distante para se importar com algo tão trivial como o amor humano. Espera.
- Sibeal? Sentes-te bem?
Os meus olhos abriram-se quando ouvi o som de uma voz real. Cathal viera sentar-se perto de mim. Os seus olhos negros estavam cheios de apreensão.
Ainda retida no transe, não consegui responder-lhe. Abanei a cabeça e, depois, fechei os olhos, esforçando-me por recuperar o padrão da minha respiração. Tinha de sossegar a tempestade de sentimentos que não tinha lugar numa mente meditativa. Tinha de deixar ir. Tinha de deixá-lo ir. Tinha de...
- Não posso - afirmei, tornando a abrir os olhos. - Não posso aceitar isto. Cathal, devíamos ir. Agora, de imediato. - Tentei pôr-me de pé, mas senti a cabeça a andar à roda e voltei a cair. - Que Danu me preserve - disse, entredentes. - Sinto-me tão fraca como um cordeiro recém-nascido.
- Comeste alguma coisa?
- Não tinha fome. - Enquanto os homens devoravam o seu pão duro e a carne seca, eu ficara à parte. Ocorrera-me que podia nunca mais querer voltar a comer.
Cathal tornou a afastar-se. Continuei a olhar para fora, para o mar.
Nunca tinha desafiado os deuses. Nunca recusara o seu conselho. Senti-me como se estivesse à beira de um abismo, a olhar para baixo, para o imenso vazio que era o meu futuro.
- Toma. - Cathal regressara com uma malga de água na mão, um pedaço de pão duro, uma fatia de queijo. - A escalada pode ser longa. Será de certeza exigente e perigosa. Mesmo as pessoas mais espirituais não podem enfrentar um desafio como este de estômago vazio. Vamos lá, Sibeal. Eu parto-o aos bocadinhos, para ti.
A delicadeza de Cathal desarmou-me, e dei por mim a aceitar cada pedaço de pão que ele me estendia e a conseguir mastigar e engolir.
- Deves estar com saudades de Clodagh - disse-lhe, em voz baixa.
Um aceno curto. Momentos depois, comentou:
- Mais do que poderia dizer-te por palavras.
- Não dizes "mais do que poderias compreender", como diria Clodagh. Foi rápida a desafiar-me quando defendi que a vida do espírito era melhor e mais elevada do que a da carne, o casamento e os filhos, a família e o lar.
Cathal mergulhou um pedaço na água e passou-mo.
- Agora, sei que compreendes - disse-me. - Lamento, Sibeal. Lamentamos todos, mesmo se não falamos disso. Em missão, não há tempo para sentir dor. Enterramos os que caem com a dignidade que nos for possível e, depois, guardamos os nossos sentimentos bem fundo dentro de nós e seguimos com o que tem de ser feito. Quando voltamos a casa, as nossas mulheres e mães fazem o melhor que podem para recolher os bocados.
- Eles não podem ser enterrados - repliquei, com a garganta atravessada de lágrimas. - Estão por aí algures, a boiar com as algas e os peixes, de olhos abertos para o vazio, como muitos homens da tripulação do Freyja.
- E pergunto-me - replicou Cathal que mão estará por detrás disto.
Engoli o último pedaço de pão e bebi um gole de água. Era verdade que já me sentia um pouco melhor.
- Os deuses disseram-me que esperasse - contei-lhe. - Pelo quê, não sei Mas não posso esperar. Foi como naquele dia em que fui atraída para a pequena enseada onde estava Felix. E no dia em que cheguei tarde demais para salvar Rodan de cair no precipício. Sinto um impulso, uma necessidade de ir. Quanto tempo falta para os homens terem descansado o suficiente?
- Estiveste ali sentada algum tempo. Creio que podemos partir em breve. - O olhar de Cathal desviara-se para a praia, onde o grupo que fora percorrer o caminho à beira de água regressava, agora, de lanças na mão. Se tinham encontrado os afogados, não os traziam com eles. - Garet vai pôr aqueles homens a descansar. Temos de partir em breve, ou arriscamo-nos a ser apanhados no meio dos penhascos depois do anoitecer. - Olhou de relance para cima. - Estamos bem longe, a norte. Nesta altura do ano, não teremos uma noite cerrada, mas este lugar está cheio de ciladas. Seria uma loucura fazer a escalada a meia luz. E, se encontrarmos os sobreviventes, é possível que tenhamos de levá-los às costas.
- Cathal - disse eu.
- Hum?
- Obrigada.
- Sempre às ordens. Vou falar com Gareth, para ver se podemos avançar. - Hesitou. - Felix era um bom homem, Sibeal. A dada altura, vais precisar de ter um momento só teu, para chorares, gritares e berrares a tua raiva aos céus. É difícil guardares tudo aí dentro. Mesmo para um druida, suponho eu.
- Pensei que podia. Pensei que seria capaz de lidar com qualquer coisa.
- Ninguém tem essa força - replicou.
Pouco depois, estávamos a caminhar, a escalar, a percorrer com cuidado encostas escarpadas, a atravessar brechas que se abriam sobre um mundo de sombras subterrâneo, a trepar pequenas montanhas de pedregulhos partidos. Seguindo o instinto; o meu instinto. Ninguém sabia para onde ir. Felix permanecera no Freyja durante a duração total da sua visita à Ilha da Serpente, a cuidar de um homem doente. Knut estivera na praia, perto do lugar onde tinham varado a nave; vira, apenas, a direcção em que partira a expedição de Paul, e era esse o caminho que percorríamos agora.
A minha intenção era fazer mais uma tentativa junto de Svala, esperando que ela nos mostrasse onde procurar. Mas o seu olhar desencorajara qualquer aproximação. Estava zangada, frustrada, suspensa nalgum acto de iminente violência, tinha a certeza disso. Não precisava de tocar nela para o sentir. A sua urgência era paralela à minha, mas, sem compreender melhor o que se passava, eu não podia ajudá-la.
Éramos um grupo de oito. Se encontrássemos realmente os três sobreviventes, como sugerira a visão de Cathal, e se nenhum estivesse capaz de regressar pelo seu próprio pé, deixaríamos alguns homens com eles e voltaríamos em busca de ajuda. Gareth não se sentira preparado para enviar mais do que oito homens, e eu compreendia os seus motivos. O grupo que ficara para trás teria de vigiar não apenas o Liadan, mas a imprevisível Svala e o lívido, trémulo, agrilhoado Knut.
Além disso, o monstro continuava por ali, nas águas da baía. Por vezes, emergia apenas o suficiente para revelar um fulgor de escamas reluzentes, a curva das suas costas, as garras de um enorme membro superior, antes de mergulhar, de novo, no mar. A espera. Svala e a criatura estavam ambas à espera. Agora que eu desafiara os deuses, agora que eu lhes dissera, grosso modo, que estava desiludida com eles, talvez nunca mais voltasse a ter o dom de ler o pensamento de Svala. Talvez nunca descobrisse o que ela tinha perdido e que tão desesperadamente queria recuperar. Que faria ela se acreditasse que eu lhe falhara? Sob a minha dor, o meu assombro, a minha necessidade de cumprir a missão, o medo repousava como uma pedra fria e dura.
O ritmo era veloz, mesmo quando o adaptavam ao comprimento das minhas pernas, mais curtas. Cathal liderava a expedição. Para além de Cathal, Sigurd era o único homem do grupo que eu conhecia bem. Ninguém perdia tempo a conversar. Os homens avançavam, de rosto fechado, cumprindo a tarefa que tinha de ser feita. Todos iam armados. Eu vira Svala a olhar para os machados, para as mocas e para as facas. Os seus olhos tinham-se semicerrado quando o outro grupo regressara do caminho ao longo da costa, de lanças na mão, lanças que teriam sido usadas contra a serpente, se esta tivesse atacado. Parecia-me que lutar contra uma criatura daquele tamanho seria um esforço inútil. No entanto, percebia o que os levaria a tentar. Naquele momento, na amurada do Liadan, eu teria mergulhado para salvar Felix, mesmo sabendo que não tinha forças para socorrê-lo, ou mesmo para sobreviver à tentativa. Por vezes, a única solução era lutar.
O tempo passou. O Liadan e a sua tripulação já tinham desaparecido há muito do nosso campo de visão e seguíamos agora por uma cumeeira muito acima da baía. A certa altura, Cathal mandou-nos parar para descansar as pernas. Um odre com água circulou de mão em mão, e eu bebi com gratidão o seu conteúdo salobro. Sigurd e Cathal estavam a conversar um com o outro, perscrutando a ilha em redor, à procura de trilhos possíveis num terreno que parecia desprovido de qualquer suavidade, porque todo ele era rocha e calhau, sem um traço de verde.
- Sibeal? - Cathal arqueou as sobrancelhas. - Não há sinais de um só trilho. Seja o que for que decidamos, o percurso será feito a passo de caracol e o dia está a passar. Que te dizem os teus instintos?
Levantei-me para olhar bem para a paisagem à minha volta. Os meus instintos puxavam-me na direcção menos provável, a ocidente, rumo a um conjunto de torreões de rocha que coroavam um vertiginoso farelhão. Naquele inverosímil castelo, recolhiam-se muitos pássaros. Em cima, o ar parecia vibrar com um rodopio de mil silhuetas. Do lugar onde estávamos, não conseguíamos ver a base do penhasco, apenas a sua coroa recortada.
- Ali - respondi.
- Estás a brincar. - Sigurd olhou para o lugar, tornou a olhar para mim.
- Estás a falar a sério.
- E uma distância razoável - observou Cathal. - Tens a certeza, Sibeal? Eu diria que mal temos tempo para ir até lá e voltar antes que escureça em demasia. Não faria mais sentido continuar nesta direcção, seguindo a curva natural da baía?
- Creio que devíamos ir por ali. - O sentimento que me invadira era poderoso, puxando-me para ocidente. Estamos quase lá, Felix. Encontrá-los-emos por ti.
- Muito bem - disse Cathal. - Homens!
Alguns olharam para mim quando Cathal lhes explicou para onde íamos; é verdade que parecia a direcção menos promissora. Mas eles eram profissionais e, em pouco tempo, estávamos a seguir caminho, com cautela, até àquele lugar. Doíam-me os pés e arrependi-me de ter descalçado as meias. Já sentia as bolhas a despontar. À medida que nos fomos aproximando dos penhascos, o chão tornou-se mais acidentado. Era muito fácil imaginar rachas a abrirem-se sob os nossos pés, ou blocos de rocha separando-se e estilhaçando-se no abismo de mar ao fundo. Quando descíamos de um ponto alto, o farelhão tornava-se menos visível, o seu estranho cume pontiagudo sendo muitas vezes a única parte visível sobre o limite da falésia. Por cima de nós, gaivotas gritavam com estridência, talvez em defesa dos seus ninhos.
E, no entanto, na sua desolação, na sua paleta de cinzentos sobre cinzentos, aquele lugar era belo. Ali, o céu tocava o mar como se fossem um só. Ali, onde tudo era agreste, limpo e árido, havia uma estranha paz. Era um lugar para ermitãs, um lugar de oração, um lugar de profundo e eterno poder. Por debaixo dos meus pés, senti pulsar o coração de um deus antigo. Olhei de relance para Cathal, que caminhava ao meu lado, e, quando ele me devolveu o olhar, vi nos seus olhos a mesma percepção. Lembrei-me que ele era descendente do Povo do Mar.
Era uma longa e dura caminhada. Mais perto dos penhascos, o chão abria-se em fendas escarpadas que davam para um reino subterrâneo de grutas e túneis: um favo de mel em versão de pesadelo. Aqui, pela primeira vez desde que chegáramos à ilha, vimos líquenes e musgo a brotar das rochas, coisas minúsculas e rastejantes que se agarravam e encolhiam sob a força dos elementos. A brisa convertera-se num vigoroso vento oeste, que nos feria o rosto e cortava a respiração. Ao descermos por um declive esburacado, mais uma novidade: a alguns metros a norte do sítio onde estávamos, uma profunda ravina dividia os rochedos. Pela mais recôndita dobra deste abismo, caía uma delicada cascata. Não conseguíamos ver a sua fonte, quiçá uma nascente mais acima na encosta, mas, ao longo do canal, cresciam pequenas plantas, formando uma espantosa faixa de verde no impenetrável fundo cinzento. Pássaros gorjeavam, saltitando e dançando, por cima deste curso de água, não as gaivotas, mergulhões e grandes aves marinhas que tínhamos visto noutros lugares, mas pássaros mais pequenos, alguns tão grandes como carriças. Perguntei a mim mesma como sobreviveriam naquele lugar tão remoto. Deviam estar sob a protecção de algum espírito benigno.
- Os teus instintos acertaram, Sibeal - disse Cathal. - Esta talvez seja a única fonte de água doce na ilha inteira. E já vimos que existem aqui grutas, por muito inóspitas que nos pareçam. Se esses homens ainda estiverem vivos, é provável que estejam aqui.
- É longe do lugar de desembarque - observou Sigurd. - Se fizeram o caminho todo até aqui é porque não tinham grande esperança num salvamento imediato.
Seguiu-se um silêncio. Talvez, pensei, não tivessem qualquer esperança. Mas como podia um homem sobreviver sem esperança?
- E se chamássemos por eles? - sugeriu um dos homens, Oschu. - Isto é, se de facto acreditam que eles podem estar aqui, algures.
- Mal não fará - respondeu Cathal. - Sibeal, ainda queres ir para o farelhão de rocha? O caminho aproxima-se perigosamente da beira das falésias. Por que não nos dirigimos antes ao ribeiro? Talvez haja um trilho para descer aquela ravina e poderíamos, por fim, voltar a encher os nossos odres.
Concordei com um aceno. A urgência de seguir para ocidente desaparecera. Ou me tinha enganado, ou já nos tínhamos aproximado o suficiente.
Chegados aos lábios do precipício, reunimo-nos num pedaço de piso plano. Dali, conseguíamos ver, à justa, por onde poderia um homem descer para uma zona mais baixa, senão mesmo até à base. A ravina era tão estreita e irregular que eu não conseguia discernir o ponto em que se abria para o mar. Mas não haveria, é certo, uma ancoragem benigna lá em baixo, apenas a fachada de um penhasco, fustigada pelos temporais, e uma ou duas lajes de pedra onde as focas repousariam fugazmente.
Mais acima no abismo, onde o tapete verde de folhagem atenuava a dureza das rochas, havia reentrâncias na fachada de pedra. Eram demasiado pequenas para lhes chamarmos grutas; não vi nenhuma com dimensão para ser um bom abrigo, nem mesmo para um homem só. No entanto, no meio do frio e da tempestade, preferiria, de longe, estar ali do que na baía ou na encosta descoberta. Aquele lugar tinha um encanto peculiar. Era como se uma deusa de coração quente tivesse pousado a sua mão naquele único recanto da inóspita ilha. Depois disso, partira, sem dúvida, para regiões mais amenas.
- Está aí alguém? - berrou Sigurd, assustando-me tanto que quase caí.
- Oláaaa! - Depois, gritou algo em nórdico.
A sua voz ressonante desencadeou um coro de ecos. Um pequeno exército de aves voou para cima e tornou a pousar, sendo logo sacudido pelo brado de Cathal:
- Homens do Freyja! Onde estão? Chamem-nos, camaradas!
Os ecos foram esmorecendo. Ficou apenas o movimento das ondas, o suspiro do vento oeste, o chilreio dos pássaros. E...
- Ouviste isto? - sussurrei, sem acreditar nos meus ouvidos. - Chiu!
Ei-lo, de novo.
Um grito. Sem dúvida, um grito de resposta que vinha algures de debaixo de nós, na ravina.
- Aqui! Estamos aqui!
Gelei. Aquela voz. Era a voz de Felix. Só podia ser um sonho.
- Aqui em baixo!
A expedição de socorro resmoneou vários palavrões e desatou num frenesim metódico, retirando cordas de dentro de trouxas, pondo sacos às costas, reunindo o que eu agora via serem partes de uma maca capaz de transportar um homem ferido. Não conseguia mexer-me. Mal conseguia confiar na minha razão. Não podia ser. A dor e a perda tinham acabado por me levar à loucura. E no entanto... no entanto...
- Sibeal - disse Cathal -, havia algum homem na tripulação do Freyja com um sotaque da Armórica?
Combatendo a esperança louca que se acendera no meu coração, porque aquilo era impossível, abri a boca para responder que não, apenas dois irmãos, e estavam ambos mortos. Antes que eu pudesse falar, chegou-nos uma outra voz.
- Sigurd, és tu? Despacha-te, sim? Temos aqui três homens feridos e é noite daqui a nada!
Os rostos de todos aqueles duros guerreiros iluminaram-se com um sorriso.
- Por tudo o que é sagrado - alguém disse, gritando em seguida: - Gull!
Pelos deuses, como foste parar aí abaixo? Pensámos que tinhas ido desta para melhor!
- Não percas mais tempo e despacha-te, Berchan! Traz tudo contigo.
Há uma maneira mais fácil de descer, mas nós os dois não conseguimos levar estes homens sozinhos.
O meu coração tinha parado; ou, pelo menos, era essa a sensação.
- Gul. - chamei, e dir-se-ia a voz de uma velha, rachada e trémula.
Deixai que seja verdade. Deixai que os meus ouvidos não me tenham enganado. - Felix está aí, contigo?
Esperei, e foi a espera mais longa da minha vida.
- Sibeal! Sibeal, estás aí em cima?
A maior das bênçãos. Um soluço arquejante rasgou-me o corpo. Não prometeste uma vez que farias qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, para que ele pudesse sobreviver? Agora, possuída pela felicidade, não pensaria quão sinuosos podiam os deuses ser.
- Felix! - gritei, sem pensar um instante nos que me rodeavam.
Primeiro, levaram Berchan, mais leve, para baixo. Uma sequência de saliências estreitas ofereciam, de facto, uma espécie de caminho para o interior da ravina, embora este não fosse seguro, mesmo com a ajuda da corda que Cathal prendera no cimo. Quando chegou junto dos outros, Berchan fixou a ponta de baixo da corda para criar uma espécie de apoio de mão. Desconfiei que aquilo fosse, sobretudo, uma atenção para comigo. Numa outra altura, teria precisado de todas as minhas reservas de coragem para enfrentar semelhante descida. Agora, a alegria sobrepunha-se ao medo. Não interessava como; não interessava porquê. Ele estava vivo. Felix estava vivo. Afinal, os deuses sorriam-nos.
Desci com a confiança de uma aranha a percorrer um fio de teia. Sigurd ia mesmo abaixo de mim, pronto a travar a queda, mas eu não precisava dele. Chegámos a uma saliência. Na saliência, uma abertura dava para uma gruta e, mesmo do outro lado, estava Felix, encharcado, desmazelado e a rebentar de alegria. Atrás dele, o espaço na penumbra fervilhava de actividade, mas eu não tinha olhos para isso. Lancei os meus braços à sua volta e os braços dele envolveram-me, e o mundo desapareceu durante alguns instantes. Voltei a casa, pensei. Casa. E, mesmo enquanto saboreava a alegria do momento, percebi: era isto que Svala queria. Era isto o que ela esperava quando chegámos a esta ilha. Perdeu aquele que amava e pensou que estava a regressar para junto dele. Sei o que ela sentiu em Inis Eala, como se estivesse tão quebrada que nunca mais teria conserto. E sei o que ela pensou que ia sentir quando voltasse à Ilha da Serpente. Esperava sentir-se como eu me sinto agora: curada, inteira, a transbordar de alegria.
Não podíamos ficar ali para sempre, a abraçar-nos e a estorvar os outros. O tempo escoava-se e havia coisas a fazer. Recuámos, dando espaço aos últimos homens para entrarem na gruta com as peças da maca. O que nos parecera um espaço razoável depressa ficou apinhado.
- Estou tão feliz por te ver - segredou-me Felix ao ouvido. - O meu coração canta de alegria, Sibeal. Mas tenho de dar aqui uma ajuda. Como vês, temos sobreviventes para levar deste lugar.
- Estás vivo - solucei. - Não te afogaste. Como pode ser?
Gull ajoelhara-se ao lado de um homem encostado à parede, coberto por algo que parecia um cobertor grande e grosseiro. O homem estava lívido, as suas feições cavadas de tanta privação, mas os olhos reluziam de esperança. O seu cansaço era tão grande que eu não conseguia adivinhar que idade tinha: podia ter vinte anos, ou cinquenta. Quanto aos outros dois sobreviventes, um era muito jovem e o outro um homem na casa dos vinte. Estavam magros como espetos, com feridas na cara, cortes e esfoladelas nas mãos e nos pés, mas tinham-se levantado e faziam um esforço por saudar os seus salvadores.
- Fomos levados a toda a brida ao longo da baía, a maior parte do caminho debaixo de água - disse Gull, respondendo à minha pergunta. - Este lugar está cheio de estranhas correntes. Quando viemos à superfície pela primeira vez, Felix conseguiu agarrar-me, mas não havia como alcançar a margem. Fomos puxados à volta da curva da baía, para muito longe dos vossos olhos. A corrente era feroz. O mais poderoso dos nadadores não seria capaz de enfrentá-la. É verdade que me perguntei se aquela coisa, aquela criatura, estaria, de algum modo, a provocar a corrente: trata-se, afinal, de uma enseada abrigada, não de um rio selvagem. Por fim, acabámos por ser levados, não para a costa, como seria de esperar, mas para uma espécie de túnel, uma passagem subterrânea. Pensámos que tínhamos morrido outra vez: estava escuro, e o lugar quase cheio de água. Havia uma saliência de lado, mas não conseguíamos subir para esta. Algum tempo depois, o chão elevou-se, a água tornou-se menos funda e saímos para as rochas. Uma vez que não era possível regressar, seguimos em frente. Havia uma abertura ou duas no tecto da gruta... devem ter visto o labirinto de passagens que é este lugar..., pelo que conseguíamos ver o caminho, a custo. Quando saímos, viemos aqui parar. Estes homens julgaram que estavam a ver fantasmas.
- Pelas bragas de Dagda - exclamou Cathal. - É a história menos plausível que ouço em anos, Gull.
Felix estava a tossir. Doía-me ouvi-lo. O som transportava-me de volta à enfermaria e às noites que passara em branco, a ouvi-lo lutar e a suplicar aos deuses que o deixassem viver mais um dia.
- Cathal - disse Gull -, temos de levar estes rapazes para fora daqui o mais depressa possível. Não os quero a passar nem mais uma noite sem os cuidados adequados, e não poderei fornecer-lhes esse serviço sem as minhas provisões de curandeiro. Não seremos capazes de levar aqui o Thorgrim pela ravina acima, mas podemos sair pelo túnel.
Cathal lançou-lhe uma espécie de olhar directo.
- Não disseste que parte desse túnel estava submersa?
- Os rapazes dizem-me que há um grande fluxo de maré a correr por aqui. Tendo em conta o que me explicaram, se formos rápidos, sairemos antes que comece a subir outra vez. Calculo que a água nos dê pelos joelhos, no máximo, quando chegarmos à outra ponta do túnel, e devemos conseguir regressar para junto do Liadan bordejando a baía. - Como Cathal não respondeu logo, Gull acrescentou: - A menos que queiras voltar pelo mesmo caminho que vieste e deixar-nos aqui até amanhã.
A crise de tosse de Felix tinha passado. No silêncio da gruta, a pieira da sua respiração lembrava o sussurro de um canavial molhado sacudido pelo vento. Todos conseguiam decifrar a expressão de Thorgrim: um desejo claro de estar, de novo, em segurança, quente e seco e em boas mãos.
- A criatura. - Era o jovem que falava, agora, um rapazinho de cerca de quinze anos. - O monstro. Ainda lá está?
- Está, Colm - respondeu Felix. - Mas estes homens não vão fugir. Vão permanecer firmes e defender-te, se o monstro voltar. E há um barco à nossa espera, um barco veloz, com uma tripulação muito capaz de levar-te a casa.
O rapaz fazia o seu melhor para não chorar. O maxilar tremia-lhe.
- A coisa levou Artan - disse ele. - Antes de descobrirmos este lugar. Levou Demman. Levou um dos nórdicos. Devorou-os, mesmo à nossa frente.
- Nós sabemos, filho. - A voz de Gull era um sussurro. - Tu disseste-nos. E nós estamos aqui para te levar, antes que se percam mais vidas. Cathal, se vamos fazê-lo, temos de sair agora.
Confirmei, de novo, o que as pessoas diziam a respeito dos homens de Johnny: que eram os melhores entre os melhores. Trabalhavam sem espalhafato, montando a maca, deslocando o homem doente para cima dela, com mãos fortes mas cuidadosas, decidindo quem a transportaria e quem ajudaria os dois homens que conseguiam andar. Ouviam-se poucas palavras; todos eles sabiam, com rigor, o que estavam a fazer. Esperei em silêncio, a observá-los. Aquela pequena gruta fora habitada pela fome, pelo frio, pela solidão, pelo medo. Vira homens à beira da morte; homens desesperados, a tentar sobreviver num mundo que se tornara hostil. Não havia fogueira, ali. Nada com que atear o fogo. Como, por deuses, teriam sobrevivido às noites frias do norte? Onde teriam ido buscar esperança?
Olhei de relance à minha volta quando os homens começaram a deslocar-se para a parte de trás da gruta e a entrar no túnel. Havia muito pouca coisa naquela câmara. Uma pedra com uma cavidade natural, quem sabe usada para recolher água. Salpicos da queda-d agua, talvez, ou água da chuva. Num canto, uma pilha de conchas vazias; tinham andado à procura de comida nas rochas das imediações. Talvez tivessem roubado um ovo ou dois aos ninhos de gaivotas. Se tivessem ficado na gruta, teriam morrido à fome. Perguntei-me o que acontecera ao outro homem, aquele que não fora levado pela criatura. Talvez tivesse morrido de desespero. O lugar tresandava. Eles tinham feito ali todas as suas necessidades. Não era esse o único odor: também cheirava a doença, e a derrota. Diria uma oração ao partir, ou a sombra triste dos seus habitantes humanos perduraria naquele lugar.
Os homens que levavam a maca não tinham trazido a pesada coberta que o nórdico doente, Thorgrim, usara para se aquecer.
- Não devíamos levar aquilo connosco? - perguntei a Cathal. - Para aquecer Thorgrim no regresso?
- É demasiado grande e pesada. Seriam precisos dois homens só para transportá-la. Não podemos dar-nos ao luxo de levar coisas que nos abrandem. Thorgrim sobreviverá com um manto sobre o corpo. - Olhou de relance para a coberta.
- De onde veio isso, Donn? - perguntou Felix, que pusera os braços à volta dos ombros do jovem Colm; o rapaz estava lívido, as memórias acudindo-lhe ao pensamento. Levá-lo pela passagem subterrânea não seria uma tarefa fácil.
- Fiac encontrou-a lá em baixo, na praia - disse o terceiro sobrevivente.
- Ele convenceu-nos a trazê-la para cima para nos podermos aquecer. Dormimos debaixo dela todas as noites. Teríamos morrido, se não fosse isso. Todos nós, um a um. Fiac morreu de qualquer maneira. Os pesadelos enlouqueceram-no. Caiu do abismo. - A sua expressão era impassível, o tom neutro. Já tinha, porventura, assistido a tanta coisa que já não conseguia sentir nada.
- Está na hora de irmos, rapazes. - Berchan acenou para Donn e os dois saíram juntos. Felix seguiu-os, levando Colm. Os outros foram atrás deles, deixando-nos apenas a nós, Cathal e eu.
- Que Danu olhe para este lugar com benevolência - murmurei.
- Aceitai a nossa gratidão pelo abrigo que ofereceu a homens aflitos. Que o sopro dos deuses o purifique; que a voz suave da queda-d agua lhe traga, de novo, paz. Que seja lavado de todos os sofrimentos. Que este lugar se torne solo sagrado.
A primeira parte do túnel era menos difícil do que esperávamos. A luz jorrava de fendas e buracos no tecto alto, mostrando-nos onde colocar os pés no chão de rocha desnivelado e, muitas vezes, escorregadio. O caminho era estreito em certos pontos e a maca, difícil de fazer passar pelas curvas abrandava-nos. Ouvi Felix a tossir. Rezei para que ele não voltasse a adoecer. Porque eu conseguia ver, à nossa frente, um futuro possível, capaz de inspirar uma trágica e eloquente narrativa, e só de pensar nisso sentia-me gelada até aos ossos.
Donn parecia ser o mais saudável dos três sobreviventes que tínhamos socorrido. Fez um esforço decidido para caminhar sem ajudas e saía-se bem embora avançasse devagar. Berchan ficou ao seu lado. Felix continuavva a acompanhar Colm. Donn fechara-se num silêncio fúnebre, toda a sua energia concentrada em seguir em frente. Colm falava sem cessar; uma torrente de palavras fluía-lhe dos lábios como se, agora que a expedição de salvamento tinha, enfim, chegado, ele precisasse de libertar tudo o que acumulara dentro de si durante essa longa, solitária sequência de dias e noites. Falou do monstro, dos homens que vira morrer, do momento em que regressara à costa e vira que o Freyja tinha partido, do dia em que o corpo de Fiac ficara entalado numa fenda mais abaixo, no abismo, e de como não tinham conseguido alcançá-lo e de como as gaivotas tinham vindo e...
- Cala-te, Colm - rosnou Donn. Para meu grande alívio, o rapaz silenciou-se.
O túnel começou, aos poucos, a inclinar-se para baixo e a escurecer. Naquelas zonas mais profundas, havia menos aberturas em cima, no tecto. Talvez lá fora o Sol já estivesse a pôr-se.
Chegámos à água. Ela estendia-se à nossa frente, escuridão dentro. Na parede esquerda do túnel, havia uma saliência, talvez com dois passos de largura, à altura da cabeça de um homem.
- Por onde? - perguntou Cathal, olhando para Gull. - Se tiveres razão e as águas forem pouco fundas até ao fim do caminho, avançar por dentro de água será mais fácil e o mais provável é que seja mais seguro. Mas acredita que não queremos ser apanhados aqui em baixo quando a maré subir.
- Se subirmos para aquela saliência, temos de deixar a maca para trás - disse um dos homens que a transportavam. Tinham pousado o doente em baixo, à beira de água, e estavam a flectir os braços e a esfregar os ombros.
- Aqui o Thorgrim terá de ir às cavalitas de alguém. - Temos quanto tempo? - perguntou Sigurd. - Tens a certeza quanto à maré?
- Tenho a certeza. Desde que avancemos a direito, estaremos lá fora, do outro lado, em cima das rochas, antes que a água nos chegue aos joelhos, mesmo os de Sibeal - Gull lançou-me um olhar perscrutador, como se se lembrasse, tardiamente, que eu não era um dos guerreiros de Johnny.
- Estás bem?
- Estou. - Se havia uma tensão na minha voz, ela devia-se menos à antecipação de uma travessia molhada e escura, rumo a um ténue simulacro de segurança, do que a uma outra inquietude cuja causa eu não era capaz de definir. Fazia sentido, tudo aquilo... Os homens socorridos estavam fracos e cansados, o túnel era o caminho mais rápido de regresso, Gull conhecia as marés... Então, por que razão me parecia tão horrivelmente errado? - Eu... Não, está tudo bem, não é nada. - Não podia obrigar aqueles homens a esperar que eu passasse um tempo precioso a examinar as minhas vagas reticências e semiformadas ansiedades. - O que vai ser? A saliência ou a água?
- A água - disse Cathal. - Avancem a um ritmo constante e não se apressem. Não quero que ninguém saia daqui ferido. Nós conseguimos passar. - Olhou de relance para os outros. - Sigurd e Oschu, vocês vão à frente. - Ambos eram altos. - Maqueiros a seguir. Lembrem-se que terão de transportar Thorgrim o caminho todo até ao outro lado sem poder pousá-lo. Mantenham-no seco; um banho frio é a última coisa de que ele precisa. Felix, tu tomas conta de Sibeal. Sibeal, não saias de ao pé dele. Gull, tu vais atrás. Os outros acompanham Donn e Colm, e eu vou no fim. Prontos?
Avançámos. O túnel escureceu, a água foi-se tornando mais funda. Arregacei a saia, não tanto para mantê-la seca - tinham-me pesado as suas dobras pegajosas durante a maior parte da viagem -, mas para caminhar com mais facilidade. O solo era traiçoeiro e, muitas vezes, só a mão segura de Felix me impedia de cair para a frente. A minha mente encheu-se de pensamentos cobardes, pensamentos que não eram dignos de uma druidesa, mesmo de uma que não selara ainda a sua promessa final. Oxalá tivéssemos uma luz. Que rumor é este que ouço? Quero ir para casa.
- Coragem, querida - disse Felix. Falou em voz baixa, apenas para os meus ouvidos, mas, no silêncio do túnel subterrâneo, as palavras fizeram-se ouvir com clareza.
Senti as faces a arder. Não tinha dito uma palavra, mas ele ouvira-me. Ouvira o que eu não me atreveria a dizer: estou com medo.
Apertei-lhe a mão. Em pensamento, disse-lhe: amo-te.
Como se respondesse ao meu medo, o túnel fez uma curva e a escuridão atenuou-se. Uma fenda lá no alto admitia um raio de luz difusa, tão bem-vindo como a chuva depois da seca.
- Recuem! - O grito de Sigurd gelou-me o sangue nas veias. Recuámos alguns passos.
- O que foi? - Cathal passou por mim, dirigindo-se à cabeça da fila. Apertei a mão de Felix e perscrutei o caminho, envolto em sombras.
- Sigurd, o que...
Dois olhos gigantes cintilavam mais adiante. Olhos familiares, brilhantes na penumbra. Atrás deles, o corpo do monstro enchia o túnel. Não haveria passagem. Os olhos atraíram-me. Reconheci-lhes a beleza selvagem, a paleta de cores que se acendia nos seus abismos, as lágrimas contidas de sofrimento. Pensei... Quase pensei que...
A criatura abriu a bocarra. Quando sorveu o ar, as suas compridas presas brancas reflectiram a luz filtrada. Rugiu. O som ressoou em todas as superfícies de rocha, poderoso como um trovão. Tapei os ouvidos com as mãos. Colm baixara-se dentro de água, com os braços à volta da cabeça, o corpo sacudido por violentos tremores. Os homens que transportavam a maca cambalearam de assombro, quase deixando cair Thorgrim. O rugido prolongou-se, interminável, vibrando em todas as fibras do meu corpo. Sentia o coração a bater por todos os lados; a cabeça a latejar. Fechei os olhos.
Nada fora resolvido; ele pensara que estava resolvidoo. Ela tinha regressado, tudo devia ter voltado ao que era dantes; mas perdera-se algo, faltava algo, e agora ele ia chorar, ia encher-se de raiva, ia fazer explodir a sua tristeza nos abismos da terra, até a ilha inteira rebentar por dentro. Destruiria aqueles forasteiros, aquelas insignificantes criaturas que se tinham atrevido a roubá-la e que a tinham trazido de volta incompleta...
Só havia uma coisa a fazer. Larguei a mão de Felix e avancei. Passei pelos maqueiros e pelo esquálido Thorgrim. Cheguei ao lado de Sigurd, Oschu e Cathal. Dei mais um passo.
- Não, Sibeal! - silvou Cathal, agarrando-me no braço e impedindo-me de avançar. - O que estás a fazer?
A criatura sossegara, embora o rugido ainda ecoasse nas superfícies de rocha. Agora, os seus estranhos olhos fitavam-me. Profundos, distantes. Olhos que continham a pedra e o céu, o vento e as ondas, a beleza solitária de um lugar remoto, uma fortaleza, um refúgio. Selvagens. Sábios. Olhos como os de Svala.
Capítulo 13
SIBEAL
- Larga-me, Cathal - disse-lhe, quando todas as peças daquele enigma se uniram no meu pensamento. - Se queres que passemos ilesos, deixa-me fazer isto.
- Não, Sibeal! É uma loucura!
- Deixa-a ir, Cathal. - Felix e Gull falaram em uníssono.
Cathal libertou-me, praguejando entredentes. Avancei, de novo. Olhei para cima. Concentrei toda a minha vontade na serpente. Na minha mente, formei uma mensagem simples e clara. Eu posso ajudar-te. Porque naqueles olhos eu tinha visto a solução. Tinha percebido, finalmente, o que Svala andara tão desesperadamente a tentar dizer-me.
Rápido como uma pulsação, o monstro moveu-se, recolhendo-me com a sua pata dianteira e erguendo-me para junto do seu rosto. Senti o estômago às voltas. Tão perto! Conseguia sentir-lhe o hálito. Via lágrimas naqueles olhos gigantes. A pele era feita de cintilantes escamas de oito faces. As suas garras fecharam-se à volta do meu corpo, formando uma gaiola. Ouviu-se o ruído de metal a deslizar quando várias facas foram desembainhadas.
- Diz-lhes que não, Cathal - gritei. - Nada de armas. - A voz saíra-me frágil e trémula; assim, não. Nunca tinha negociado com um monstro marinho. Esperava que fosse a primeira e última vez. Não era tarefa para uma rapariguinha chorosa e dada a desmaios. Era missão para um druida.
Sentei-me na palma da criatura; era fria e macia. Abrandei a respiração. Em pensamento, evoquei uma imagem de Svala, alta e imponente, na costa de Inis Eala, a sua perfeita silhueta vestindo apenas o manto dourado dos seus cabelos. Mostrei o Liadan ancorado na baía e o nosso grupo de homens perscrutando a paisagem desolada. Evoquei Knut, agachado na areia, com uma corda à volta do tornozelo. Uma vibração percorre o corpo da serpente e ouviu-se um crepitar quando as suas garras se fecharam mais um pouco.
Mas vai correr tudo bem. Tornei a minha voz interior serena e forte. Sei do que precisas e vou buscá-la agora. Vou ajudar-te. Sou amiga dela. Evoquei uma imagem de Svala a vestir uma peça de roupa, algo entre um manto e um vestido; a minha imaginação não me levava mais longe.
Pareceu-me durar uma eternidade, mas talvez não tenha durado tanto até a criatura baixar a sua pata com cuidado e abrir as garras para me libertar na água pouco funda, ao lado de Cathal. Os outros tinham recuado un pouco mais para cima no túnel.
- Cathal - disse eu -, é uma pele. Aquela coisa, a coberta que os homens usaram para se manterem quentes é a pele dela.
- Queres dizer que... - Silenciou-se.
- Não nos disseram que um dos homens a tinha encontrado na praia depois de o Freyja partir? Pertence a Svala. É aquilo que ela quer. Não acredito que demorei tanto tempo a perceber isto. Conheço dezenas de histórias de selkies. Cathal, temos de ir buscá-la e mostrar-lha, a ele.
- A ele?
- A criatura. Tenho a certeza de que é a coisa certa a fazer, Cathal. Se for a correr até lá e voltar, talvez consiga passar antes de a água subir muito. Isto não pode esperar até amanhã.
O olhar de Cathal percorreu os três sobreviventes: Colm estava encolhido junto de Gull, a soluçar de pânico; Donn era um espectro branco na penumbra; Thorgrim jazia, mole, como se morto, na maca, ainda acima do nível da água, graças aos dois robustos maqueiros.
- Estás a dizer que nós devíamos esperar aqui, com o monstro a respirar-nos para cima, enquanto tu vais a correr até à gruta e voltas?
- É isso que estou a dizer, sim. - Não tinha sentido a vontade dos deuses com tanta força desde o dia em que conhecera Deirdre da Floresta. As runas não me tinham mentido. Eu tinha um papel a desempenhar nesta missão, e chegara a altura de o fazer.
- Devia ir outra pessoa - disse Cathal. - Nunca conseguirás trazer essa coisa sozinha. Não viste como era grande? - Fitámo-nos um ao outro quando as implicações do seu tamanho se tornaram claras.
- Eu vou - disse Felix, subindo até ao lugar onde nós estávamos. - Esta é a minha missão; a minha responsabilidade. Sibeal e eu devíamos ir juntos.
- Não, rapaz. - Gull falou, a voz da experiência. - Se não queres morrer de uma febre aguda a caminho de casa, não vais a lado nenhum. Além disso, preciso de ti aqui. - Olhou de relance para Colm, que choramingava.
- Cathal, vai tu com Sibeal. Eu tomo conta da situação nesta ponta do túnel. Içaremos Thorgrim para cima da saliência e cobri-lo-emos até vocês voltarem. - Olhou para o monstro, que se agitava, impaciente, o seu olhar saltando de um homem para o outro, como se estivesse a fazer uma selecção. Ocorreu-me que, mais acima, no túnel, já perto da gruta, o caminho seria demasiado estreito para a criatura passar. Ali, bastava dar um passo em frente para recolher um homem com as suas mandíbulas.
- Sibeal - disse Gull -, se tens alguma forma de comunicar aqui com o nosso amigo, podias pedir-lhe que não comesse nenhum de nós antes de tu voltares? E despacha-te, sim? Se há coisa capaz de provocar-me pesadelos para o resto da vida, é isto.
Olhei para os olhos do monstro e transmiti-lhe a mensagem. Vou agora buscar aquilo de que precisas. Não faças mal a ninguém na minha ausência. Espera. Espera só. Sou uma amiga. Mostrei-lhe Svala a abraçar-me, a minha esguia silhueta quase desaparecendo no meio da sua forma imponente. Mostrei-lhe a dança de alegria da serpente, na baía, quando chegámos e ele viu que ela tinha voltado para casa. Evoquei uma imagem dos homens que esperavam no túnel e da serpente a dormir no lugar onde ele estava, e de mim e Cathal a voltar, segurando o cobertor - a pele - entre nós os dois. Depois, recuei. A criatura estava calma. Agachou-se na água pouco funda, fechando os olhos até ficarem reduzidos a duas ranhuras, embora, atrás deles, se mantivesse alerta.
Corremos. Fixei os meus pensamentos na gruta; concentrei-me em manter-me de pé. Aqui e ali, abrandámos, e Cathal segurou-me na mão para me ajudar. Uma ou duas vezes, parámos para recuperar o fôlego, embora ele não parecesse, de todo, ofegante, apenas mais pálido do que era costume. Não desperdiçámos energia a conversar, porque chegar à gruta era apenas metade da viagem. Por fim, passámos por debaixo da arcada de rocha e entrámos no lugar onde os homens perdidos se tinham abrigado. Para lá da boca da gruta, a ravina estava mergulhada na penumbra; caía o crepúsculo.
Curvei-me para pegar na coberta que salvara a vida de três homens durante os dias solitários que tinham decorrido entre a partida do Freyja e a chegada do Liadan.
- Pela virilidade de Dagda! - exclamou Cathal, arquejando -, creio que tens razão. Se isto não é uma pele, não sei o que será. Deuses poderosos, Sibeal, aquela pobre criatura... Pergunto-me se Knut sabia o que lhe tinha feito.
Examinei a pele com mais atenção. Era toda ela em tons pardos de castanho e cinzento, com um curioso padrão de formas geométricas de oito faces. E ali, na extremidade, havia um pedaço rasgado, como se uma mão desajeitada aí tivesse enfiado uma faca sem o devido cuidado.
- Ele tinha, pelo menos, uma ideia - respondi. - Cortou uma tira da pele e pôs à volta do pescoço. Vês como está rasgada nesta ponta? Depois, pendurou nela o seu amuleto. Não era o mesmo que tirar a pele inteira, mas o suficiente para dominar Svala, pelo menos enquanto ela estivesse longe daqui e não conseguisse alcançar a parte que lhe faltava. Não admira que lhe tenha arrancado o cordão do pescoço com tanta violência. Talvez fosse o facto de estar perto dele - da criatura, quero eu dizer - que finalmente lhe deu coragem.
Olhámos um para o outro naquela gruta de onde a luz se esvaía, assombrados pela estranheza de tudo aquilo. Depois, Cathal disse:
- Tu impressionas-me, Sibeal. És, de facto, extraordinária. Agora, como vamos transportar isto?
Inevitavelmente, o regresso foi mais lento. Enrolámos a pele num longo cilindro e cada um de nós pegou numa ponta. Avancei primeiro, imprimindo o ritmo mais rápido que pude, e Cathal veio atrás de mim. Escureceu. Escureceu tanto que já não podíamos continuar com a mínima segurança. Parámos.
- Sibeal.
- Hum?
- És capaz de fazer uma luz? A minha magia é inútil nesta ilha; nem a chama de uma vela eu seria capaz de conjurar para nos mostrar o caminho. Não sei de que nos valeu a minha decisão de deixar Clodagh e juntar-me à missão. Parece que qualquer um podia ter vindo no meu lugar.
- Não acredito, Cathal. O tempo revelará por que razão a tua magia é bloqueada nesta terra. Haverá, tenho a certeza, alguma sabedoria por detrás disso.
- Não se o meu pai for o responsável. Consegues fazê-lo, Sibeal?
A magia elemental. Eu conhecia os seus rudimentos. Tinha conseguido atiçar o fogo na noite em que Knut atacara Felix. Naquele momento, estava tão cansada que apenas a premência da tarefa me dava ânimo para continuar.
- Vou tentar. Podemos pousá-la um instante?
Ainda não tínhamos alcançado a água: água que seria mais funda, agora, talvez muito mais funda. O que aconteceria quando a criatura se deslocasse? Não queria pensar nisso. Invocaria as minhas mais profundas reservas de força. Obrigar-me-ia a ficar calma e aberta. Usaria aquilo que já tinha: a última réstia de sol, as pequenas criaturas que deslizavam e corriam pelas paredes do túnel, os répteis e rastejantes que se escondiam em fendas e escaninhos. Usaria a memória dos homens que tinham perecido naquela gruta e na ravina, homens que tinham resistido até poderem. Usaria o momento em que Felix mergulhara atrás de Gull, como uma chama de coragem feita carne. Criaria uma luz.
Fechei os olhos e disse as palavras de um velho encantamento. Respirei. Enviei o calor do meu sopro para fora, para a escuridão, tocando cada minúscula e nocturna forma de vida. Ajudem-nos. Ajudem-nos a trazerem-na de volta.
Ouvi Cathal suster a respiração antes de eu própria abrir os olhos para ver. O túnel estava transformado. Centenas de pequenos pontos de luz rompiam a escuridão. Era como se as próprias estrelas tivessem descido à terra para nos mostrar o caminho. Cada uma delas, minúscula; cada uma delas, um clarão tão miúdo como o pulsar de uma mosca. Todas juntas, revelavam o chão de pedra, a saliência, as paredes altas e o tecto abobadado da passagem. Todas juntas, alumiavam o caminho em frente.
Sem dizer palavra, avançámos, transportando a grande pele entre os dois, com todo o cuidado. Cathal, pensei, terás uma história fabulosa para contar um dia ao teu filho ou filha bebé. Sem ser convidada, uma visão veio ao meu encontro. Era a mesma casa humilde que eu já tinha visto uma vez, a mesma janela abrindo-se para o arvoredo, a mesma candeia de luz suave no interior tranquilo. Ali estava eu, diante da lareira. Felix estava sentado à minha frente, perfeitamente recuperado, com boas cores, o cabelo lustroso dominado por uma faixa que o atava na nuca. A criança sentada no seu joelho era mais velha do que da última vez que eu a vira; em vez dos cueiros, usava um pequeno vestido com um bordado de corujas. Com os olhos grandes, fitava o pai, fascinada com a história que ele lhe contava. Depois, a tua mãe avançou até à serpente, mesmo até aos seus pés, e a serpente levantou-a do chão na sua mão. A nossa filha protestou. Mas, papá, as serpentes não têm mãos. São como as cobras, mas maiores. Não são? Ele sorriu. Esta tinha mãos. Mãos com garras compridas e afiadas. Talvez não fosse tanto uma serpente, mas um dragão marinho. A tua mãe é a mulher mais corajosa de toda a terra de Erin. Por momentos, a nossa filha virou os seus belos olhos para mim e disse: Eu sei, pai. Conta-me o que aconteceu depois.
A visão começou a dissipar-se. Tropecei, no desespero de agarrá-la, no desespero de dizer: Amo-te, desejo de todo o meu coração que fosses real, não vás! Tola Sibeal.
- Espera. - Cathal parou para segurar melhor no rolo de pele. - Estás bem?
- Estou - respondi, lúgubre. - Vítima de pensamentos inúteis, é só isso.
- Sei bem do que falas.
Alcançámos a água mais cedo do que eu esperava. Ou talvez esta tivesse chegado a um ponto mais alto do túnel. Avançámos a chapinha o fardo desconfortável entre nós. Aqui, o número de pequenas luzes diminuíra. O meu talento para a magia natural era limitado; em comparação com o de Ciarán, não era nada.
- Disse a mim próprio que não pensaria em Clodagh. - A voz do meu companheiro chegou, suave, aos meus ouvidos, rompendo a semipenunbra. - Mas não pensei em mais nada ao longo do caminho.
- Esperança - repliquei. - Guiando-te em frente. A consciência de que a tua casa estará à tua espera quando a missão acabar. - Mesmo enquanto falava, ocorreu-me que a minha ideia do significado da palavra casa mudara muito durante aquele Verão. Que tinha eu à minha espera?
Silêncio, por momentos, enquanto avançámos pela água. Agora, quase me chegava aos joelhos.
- Não me parece que tenha importância - comentei - se molharmos a pele. - Imaginei a criatura marinha a saltar e a mergulhar na baía, em harmonia com as ondas.
- Penso que não.
Uma a uma, as restantes luzes começaram a apagar-se. Não terei medi disse a mim mesma. É muito pior para os homens que estão à espera do que é para nós. A única coisa que precisamos de fazer é caminhar em frente e lá chegaremos. Mesmo que esteja escuro. Mesmo que seja tarde. Mesmo que...
- Sibeal? - chamou Cathal.
- Hum?
- Conheces aquela canção acerca da senhora e do sapo?
- Hum, hum.
- O quê? Mesmo as partes grosseiras? Estou chocado.
Sorri, embora ele não conseguisse ver o meu sorriso na escuridão.
- Ficarias surpreendido com o que aprendemos nos nemetons, Cathal. Como fazemos? Uma estrofe cada um e o refrão juntos?
- Parece-me justo. Começas tu.
Passo a passo. Verso a verso. De estrofe obscena em estrofe ainda mais obscena. Quando chegámos ao fim da canção, cantámos outra, sobre o amor de um infeliz clurichaun por uma jovem senhora dez vezes maior do que ele. Não fazia ideia de que Cathal sabia cantar, ou de que tinha humor suficiente para apreciar canções daquela natureza, canções que os mais desordeiros habitantes de Inis Eala gostavam de cantar no fim de um bom jantar e de uns quantos jarros de cerveja. Gull, ou Snake, eu imaginava a participar com algum entusiasmo. Quando o clurichaun já fora recambiado, a soluçar de mágoa, para a sua colina ancestral, começámos a cantar uma balada acerca de um amante infiel. Ao fim de duas estrofes, Cathal parou, deixando-me sozinha com o refrão. Falhou-me a voz.
- Estamos quase lá - disse ele. - Repara como a luz é mais viva ali ao fundo, no lugar onde o tecto se abre para o céu.
A luz não era muito mais viva. Mais tarde, haveria lua cheia, mas a noite não ia assim tão longa que ela já fosse alta no céu, a projectar os seus raios até àquele lugar recôndito. Mas era verdade, já se via um pouco melhor. A água dava-me pelas coxas. Não pensaria na corrente que levara Gull e Felix para dentro do túnel, a corrente que Gull dissera que nem mesmo o mais vigoroso nadador seria capaz de vencer.
- Óptimo - respondi, com uma voz esganiçada.
Virámos numa esquina, e ali estavam eles. Todos em cima da saliência, muito acima do nível da água. Thorgrim deitara-se com a cabeça no colo de Gull. Felix pusera o braço à volta de Colm; o seu sorriso de boas-vindas tirou-me um peso do coração. Os outros esperavam estoicamente. E ali estava a criatura, os olhos abrindo-se de repente quando nos aproximámos.
- Mostra-lhe, Cathal - disse eu. - Levanta-a e desenrola-a.
Sigurd e Oschu desceram para nos ajudar. Nós os quatro desenrolámos a pele, cada um a segurar numa ponta. A largura do túnel não era suficiente para acolhê-la em toda a sua dimensão. Os meus olhos cruzaram-se com os da serpente. Isto é aquilo de que precisas. Repara, nós trouxemo-la. Agora, peço-te que nos ajudes a levá-la até ela em segurança. Mostrei-lhe uma imagem de todos nós a sair do túnel, a subir para as rochas, a formar uma procissão ao longo da costa até ao lugar onde o Liadan estava ancorado. Mostrei-lhe Svala à nossa espera, a sorrir. Rezei para que a criatura não agarrasse na pele com as presas e saísse pela passagem, deixando a maré entrar. Fechei os olhos.
Um sentimento semelhante a um sorriso grande e quente espalhou-se pelo meu corpo. Bom. Amiga.
Os homens levantaram-se, ficando de pé ao longo da saliência. Dois tinham lanças na mão; outros tinham desembainhado as suas facas.
- Esperem - ordenou Cathal, em voz baixa. - Confiem em Sibeal. Ela sabe o que está a fazer.
A criatura moveu-se, erguendo-se sobre as suas patas com garras. Uma enxurrada de água passou-lhe pelos lados, apanhando-me pela cintura. Cambaleei perante a sua força. Sigurd agarrou-me e manteve-me firme contra a corrente. A água recuou. Continuei a segurar na minha ponta da pele, e Cathal e Oschu fizeram o mesmo.
- Enrolem-na - exclamei, arquejando. - Temos de avançar. Deixa-nos avançar. Deixa-nos levá-la até ela, agora.
- Avançar? - repetiu Gull, no cimo da saliência. - Pode não ser longe daqui, mas...
A criatura virara-se um pouco, manobrando a sua longa cauda com alguma dificuldade naquele espaço confinado. Depois, aproximou-se de um lado do túnel, até ser fácil, para um homem de pernas compridas, saltar da saliência para cima das suas costas largas, cobertas de escamas. Por fim, estacou. Parecia estar à espera.
Lá em cima, na saliência, ninguém dizia palavra, embora eu ouvisse Colm a choramingar. Cá em baixo, na água, Sigurd, Oschu e Cathal enrolaram a pele. Olhei para a criatura. Tinha a cabeça virada para trás, para mim; os seus olhos sobrenaturais fitaram os meus. Aquilo que pressenti na sua mente foi: Venham. Venham agora. Despachem-se. Mas não deu um passo em frente. Ninguém conseguiria passar aquela corpulência.
- Sibeal. - A voz suave pertencia a Felix. - Estará a criatura a oferecer-se para nos levar nas suas costas?
- Pelos tomates de Dagda - comentou alguém.
Venham agora. Despachem-se. A água sobe.
Seria possível, mesmo para mim, saltar da saliência para as costas da serpente, com a ajuda de uma mão. Aquele lombo possuía largura suficiente para acomodar-nos a todos, se nos sentássemos ao lado uns dos outros. E talvez tivesse altura suficiente para nos transportar em segurança, mesmo no pico da maré alta. Uma criatura capaz de saltar por cima de uma nave de alto mar podia muito bem ter forças para resistir à corrente que Gull descrevera.
- É isso que temos de fazer - disse eu. - Sigurd, podes içar-me até à saliência, por favor?
Ele fez-me a vontade, levantando-me do chão como se eu não pesasse mais do que uma criança. A pele foi posta lá em cima; depois, Cathal, Sigurd e Oschu treparam por sua vez, para junto de nós.
- Tens a certeza? - perguntou-me Cathal, embora eu visse que ele sabia que aquela era a nossa melhor hipótese. Fazia a pergunta por causa dos homens. A tripulação do Liadan enfrentaria mais este teste infernal com profissionalismo. Se sentiam medo, disfarçavam-no bem. Felix e eu tínhamos sido puxados para o coração da missão; as nossas convicções eram mais fortes do que o nosso medo. Mas, para Thorgrim, Donn e Colm, estar tão perto do monstro que devorara os seus companheiros seria um desafio quase intolerável.
- Tenho a certeza - respondi.
Oshu subiu primeiro. Depois, deu-me a mão para apoiar o meu passo saltitante para o outro lado. Instalei-me perto do que poderíamos considerar a nuca da criatura. Os outros seguiram-nos. Sigurd levava Thorgrim nos seus braços. Donn destacava-se, lívido, na quase penumbra, mas subiu ao lado de Berchan, e os dois sentaram-se sem dizer palavra.
Colm berrava, lutando contra aqueles que tentavam ajudá-lo, e Gull e Felix, um de cada lado, levaram-no à força para cima do monstro. A criatura permanecia imóvel. Nem a ponta da cauda estremecia; não lhe escapava sequer um suspiro de impaciência com a nossa lentidão. Tentei não me lembrar que ele tinha furado o peito de um homem com a sua garra, ou que quase afundara o Liadan num momento de mera exuberância. Quando o último homem - Cathal - já saíra da saliência, deitei-me de cara para baixo, encostada à pele da criatura, e formei de novo uma imagem de todos nós emergindo, sãos e salvos, nas lajes de rocha na extremidade da baía. Confiamos em ti. Veneramos-te e veneramo-la a ela. Esta terra é vossa. Quando acabarmos de fazer o que tem de ser feito, navegaremos para longe desta ilha. Ficarão, de novo, em paz. E tudo estará certo.
Desta vez, não houve um pensamento em resposta, mas o monstro marinho moveu-se, completando a sua volta e lançando-se para a frente de uma forma tão súbita que quase nos desalojou. Colm abriu a boca para gritar de novo, e Gull deu-lhe uma bofetada com a palma da mão.
- Está na hora de seres um homem, rapaz - disse.
A criatura avançou pela água, rumo à escuridão. Já não havia dentro de mim uma única canção para afugentar as sombras. Não podia segurar na mão de Felix. Eram precisos os seus esforços, combinados com os de Gull, para impedir Colm de saltar das costas da serpente e acabar esmagado contra as rochas, ou esborrachado até à morte. Ou afogado. A água borbulhava e jorrava em torno das pernas da criatura, num ímpeto crescente.
- Que a mão de Danu nos proteja - rezei. - Que a coragem dos antigos flua nas nossas veias. Que o assombro das coisas selvagens não seja um terror para nós, mas uma inspiração. Que a memória de bons companheiros, de lareiras partilhadas, de cumpridos actos de bravura pulse nos nossos corações e nos dê força.
Fez-se silêncio durante algum tempo e, depois, uma voz ergueu-se a cantar. Não a minha voz ou a de Cathal, mas a voz de Felix, cantando en irlandês.
Adeus, minha mãe, minha casa
Adeus, irmãs minhas, todas três
Fui chamado pelo mar que não acaba]
Às ilhas de incerta solidez.
Trarei comigo aves faladoras
Broches de ouro e anéis reluzentes
Uma fiada de pérolas, um fecho de prata E muitos outros presentes.
Seguiu-se um refrão, cheio de oh-lá-oh e alguma melancolia no estilo. A voz de Felix era forte e doce como um bom hidromel, e era de louvar a sua firmeza. Se ainda sentia algum aperto no peito, isso não transparecia na encantadora toada da balada. Gull apressou-se a juntar-se ao refrão, seguido de Sigurd, e, instantes depois, outras vozes uniram-se às primeiras. O monstro marinho avançou noite dentro a um ritmo constante.
O bravo marinheiro os mares cruzou
Viu chãos vizinhos e terra distantes
Um raro tesouro por fim achou.
Como as estrelas era, e mais brilhante.
Ei-la nas rochas à beira-mar Escovando o cabelo de luz dourada
Princesa das histórias de encantar Mais bela nunca viu a madrugada.
Oh-lá-oh, cantámos, um coro dissonante, sem dúvida, mas cheio de um novo ânimo.
Vinde, vinde, formosa criatura
Vinde comigo sem para trás olhar.
Dou-te casa, fogo e água pura
E filhos quantos há gotas no mar.
Começámos o refrão, uma vez mais; agora, até Donn se juntara a nós. Enquanto cantávamos, dei-me conta de um outro som. Sob a melodia, um murmúrio grave acompanhava-nos, um ruído que parecia nascer do mar e da sombra, ou emergir das próprias profundezas da rocha. Senti-o vibrar dentro de mim, enchendo o meu corpo. Um a um, vacilámos e silenciámo-nos. Gull pigarreou.
A bela riu-se do vivo galanteio, cantava Felix. Eu já não conseguia vê-lo, porque a escuridão era quase cerrada, mas imaginava-o sentado muito direito nas costas do monstro, o braço em torno de Colm, os olhos fixos no caminho em frente. Onde os outros só viam trevas, ele via a luz clara da missão cumprida. Se alguma vez a tua esperança falhar, pensei, recordar-te-ei este momento.
A bela riu-se do vivo galanteio E sacudiu as tranças que a prendiam Nas ondas.
pôs os olhos por inteiro E nunca mais falou, assim diziam.
Felix continuou a contar como é que o rapaz marinheiro descobrira uma pele de foca nas rochas, ali perto, e, enquanto a beldade estava distraída, a escondera por debaixo do convés do seu barco. Depois, levara a mulher para casa com ele, não para junto da mãe e das três irmãs, que não ficariam por certo muito bem impressionadas, mas para uma pequena cabana à beira-mar. E ali viveram durante algum tempo. Ele sentia-se feliz, casado com a mulher mais bela que as gentes daquele lugar alguma vez tinham visto. Mas ela definhava. Vagueava pela costa; virava-se e revirava-se durante a noite; andava sempre à procura daquilo que lhe fora roubado.
A medida que a história se foi desenrolando, estrofe a estrofe, a escuridão que nos cercava foi clareando aos poucos. A água no túnel tinha subido. A criatura fazia um som a chapinhar enquanto avançava. A mim, não me saía da cabeça a descrição que Gull fizera da monstruosa corrente que o colhera, a ele e a Felix, arrastando-os para longe, até ao cimo da passagem subterrânea. Encostei a cara à pele do monstro marinho, fechando os olhos. Tu és forte. Tu és corajoso. Sei que zelarás por nós. O murmúrio profundo continuava; tomei-o como um bom augúrio.
A balada de Felix chegou ao fim. Uma mulher sábia da aldeia ajudar; a selkie a procurar a sua pele, e as duas juntas encontraram-na escondida por debaixo de um monte de redes de pesca. Quando a passagem clareou à nossa volta e se ouviu, mais adiante, o som das ondas a bater, Felix cantou a última estrofe:
Na pele prateada asinha se enfiou.
De novo como foca existia
Ao mar profundo o ser encomendou.
Leda, forte e livre o mar a via.
Antes de sorvermos o ar para um último refrão, a criatura lançou a cabeça para trás e rugiu. Não era um som de desafio ou uma trombeta de guerra. Era um grito de triunfo. À nossa frente, abria-se a boca do túnel. Mais além estendia-se a água da baía, o céu nocturno mais acima e a Lua que já ia alta cheia, fria e brilhante.
- Segurem-se! - ordenou Cathal.
A água afluía em torrente de ambos os lados à medida que o túnel se dilatava. A maré subia a toda a brida. Uma imagem acudiu-me ao pensamento: o monstro a saltar para a frente e a mergulhar nos abismos da baía, como fizera a selkie da balada, e os seus passageiros humanos a serem sacudidos de um lado para o outro e a perderem-se na corrente selvagem, ou desfeitos contra as rochas. Mas não, ele não o faria. Nós levávamos connosco a pele de Svala.
Antes, a criatura chegara-se para o lado, para podermos subir-lhe para as costas. Agora, estava a fazer uma ponte com o pescoço e a cabeça, pousando o queixo numa prateleira de rocha que existia de um lado da entrada do túnel. Se fôssemos corajosos e guardássemos o nosso equilíbrio, seria possível atravessar aquela ponte e chegar a bom porto. Dali, o luar dar-nos-ia luz para contornar a baía até ao lugar onde Gareth e os outros nos esperavam.
O pescoço do monstro marinho tinha largura suficiente para lhe caminharmos por cima, embora a operação exigisse um certo grau de confiança: a pele escamosa estava molhada e escorregadia. Calculei que o comprimento fosse cerca de oito passos. A parte mais difícil seria caminhar em cima da cabeça da criatura; para chegar aos rochedos, tínhamos de passar entre os seus enormes olhos e a uma proximidade inquietante das formidáveis mandíbulas. Cathal assumiu a liderança.
- Sigurd, tu vais primeiro. Quando chegares à testa, esperas e ajudas os outros a transpor essa última fronteira. Gull, tu vais a seguir: passa, pára nas rochas e certifica-te de que toda a gente sobe para o caminho e se afasta depressa. Oschu, tu levas Thorgrim às costas. Berchan e Felix, vocês ocupam-se de Colm. Donn, sentes-te capaz de ir com os guerreiros? - Donn respondeu com um aceno curto e rígido. Percebi todo o bem que aquilo lhe faria. Cathal acabara de reconhecer, em público, que ele estava apto, capaz, preparado para seguir em frente.
- Sibeal - disse Cathal -, tu e eu levamos a pele para o outro lado. Vamos no fim, está bem?
- Está bem - repliquei. Era sábio, da parte dele. A preciosa pele garantira-nos a passagem segura do subsolo até à superfície. Era possível que a criatura nos tivesse olhado com benevolência naquele momento, porque a tínhamos recuperado. No entanto, o monstro marinho era uma coisa selvagem, e o modo como funcionava a sua mente era algo que escapava ao nosso entendimento. Cathal sabia, tal como eu, que enquanto transportássemos a salvação de Svala o seu amado não nos faria mal.
Johnny teria ficado orgulhoso da sua equipa. Atravessámos para terra firme em ordenada procissão. Mesmo o vigoroso Oschu, com o doente em equilíbrio sobre os ombros, caminhava com tanta segurança como se percorresse uma ponte vulgar, feita de pedra ou de madeira. Quando todos já tinham passado, Cathal e eu pegámos na pele. Desta vez, ele obrigou-me a ir à frente. Pensei que seria capaz de atravessar com a mesma facilidade que os guerreiros, mas era difícil equilibrar-me com aquele fardo pesado. A certa altura, escorreguei. Ao recuperar o equilíbrio, cometi o erro de olhar para baixo. Uma maré revolta numa noite de luar é uma visão assombrosa: magia natural no auge do seu poder. Ocorreu-me que ficaria muito satisfeita se nunca mais visse uma na vida.
- Mais três passos, Sibeal - disse Felix, e olhei para cima. Ele estava à minha espera mesmo à beira da boca do monstro, estendendo-me a mão. Atravessei, e Cathal veio atrás de mim. Quando pisei as sólidas rochas, Felix pegou na minha ponta da pele para eu poder trepar para um ponto mais alto, uma zona plana onde os outros aguardavam em muda reunião. Cathal encontrava-se agora sobre o focinho do monstro marinho; por cima da boca; em terra firme. Passou, então, a ponta da pele a Berchan, que ali o esperava, e virou-se para a criatura.
- Nós agradecemos-te - disse, numa voz solene. - Nós prestamos-te homenagem. Agora, vamos levar-lhe isto a ela e corrigir a injustiça cometida.
Porventura, depois de dizer estas palavras em irlandês, palavras que o monstro marinho por certo não compreendia, talvez lhe tivesse transmitido uma outra mensagem. Porque a ascendência de Cathal era, em parte, a do Povo do Mar, gente não muito diferente de Svala no seu poder e na sua intrínseca liberdade. No momento em que parara diante do monstro, imóvel e silencioso, quem sabe se semelhante não falara a semelhante. Por fim, virou-se para nós.
- Vamos levar estes homens para um abrigo seguro - disse. - Todos conseguem andar?
À excepção de Thorgrim, todos conseguiam, e Oschu declarou-se capaz de transportar o homem doente o caminho todo, até ao acampamento. Ou, pelo menos, eu esperava que houvesse um acampamento. Perguntei-me se os outros teriam encontrado alguma coisa com que acender uma fogueira e se tinham conseguido apanhar algum peixe. De repente, parecia-me que passara uma eternidade desde a última vez que eu tinha comido. Quando partimos, trepando os rochedos, virei a cabeça e vi a criatura nadar com vigor para águas mais fundas e desaparecer sob a superfície.
Já não se ouviam canções. Mesmo os mais fortes deviam estar exaustos, e o caminho era difícil, apesar do luar. A distância não era muita, mas o avanço era lento. A pequena praia de seixos onde tínhamos desembarcado talvez fosse o único lugar na ilha com aquele tipo de chão. Trepámos por montes de fragas que jaziam como peças abandonadas de um jogo de malabarismo feito à medida de gigantes. Seguimos por um trilho através de fendas estreitíssimas no que, à primeira vista, pareciam impenetráveis botaréus de rocha. Caminhei ao lado de Felix. Por vezes, tocávamos um no outro de raspão, e não era propriamente acidental. Uma ou duas vezes, levantei o rosto e vi os seus olhos postos em mim. Aquilo que via neles enchia-me de alegria e de tristeza ao mesmo tempo. Outras vezes, era eu quem o observava, sem ele dar por isso. Dei por mim a memorizar as suas feições, o maxilar vigoroso, o nariz direito, o cabelo castanho - belo mesmo em desalinho como estava, com uma crosta de sal -, os olhos azuis profundos como dois lagos, olhos como os de um sábio numa história antiga... E, quando olhou para cima e me viu a observá-lo, Felix sorriu.
- Estamos quase lá, Sibeal - disse-me.
Aquiesci, sem dizer nada. Quase lá. Quase no fim desta missão. Quase no ponto em que, de uma maneira ou de outra, o meu coração estalaria certamente.
Felix
Gareth e os companheiros fizeram uma fogueira. Vemo-la quando nos aproximamos da praia, um sinal bem-vindo de calor e vida. Só agora me apercebo de como estou frio e molhado, a tiritar, exausto. Algo para além deste meu corpo frágil me trouxe até aqui. Em breve, a missão será cumprida e esse sentimento - seja inspiração, seja compulsão - terá desaparecido. Durante um breve período de tempo, fui mais do que um homem comum. Em breve, voltarei a ser quem sou. Mas não o meu antigo ser. Isto modificou-me. Penso que nos modificou a todos.
Quando nos vêem, a mim e a Gull, no meio dos outros, os homens que ficaram para trás gritam saudações e correm ao nosso encontro, ajudando a trazer os três sobreviventes para junto da fogueira. Encontraram pedaços de madeira à deriva para queimar. Uma boa provisão foi cuidadosamente empilhada, pronta a ser usada. Sinto o aroma do peixe cozinhado.
Observo Gareth. Ele não falou; não correu para nós quando nos viu, ficou ao pé da fogueira. Em Inis Eala, parecia um homem de temperamento afável, mais dado a sorrisos do que a explosões de fúria, um homem cujo prazer era fazer os outros felizes. Dir-se-ia o irmão que qualquer um gostaria de ter. Durante a viagem, assumiu completamente o papel de chefe, tomando as decisões rápidas e difíceis que um chefe tem de tomar. Vejo, agora, que essas decisões lhe causaram um grande transtorno; não são naturais num homem como ele. Quando nos vê, o seu rosto revela um alívio notório. É como se lhe tivessem tirado dos ombros um peso insustentável. Quando chegamos à zona plana onde fizeram a fogueira, Gareth dá um passo em frente e abraça-nos, primeiro a Gull, depois a mim. Saúda os sobreviventes; mostra o seu reconhecimento a todos os homens que participaram nesta missão. Ordena, então, que alguém vá buscar o saco de Gull, aquele que traz as suas provisões de curandeiro. Os homens que tinham ficado começam a organizar roupas secas, lugares junto da fogueira, comida e bebida para os sobreviventes e para os seus salvadores.
Só então é que Gareth se aproxima de Sibeal, que está silenciosa e reservada, a observar tudo aquilo. Assisti à sua reacção no barco, quando ele ordenou que Svala fosse amarrada; vi a sua expressão quando ele proibiu os homens de mergulhar atrás de Gull. Pergunto-me se recusará um simples olhar de relance. Mas ela segura-lhe nas mãos, ergue os olhos para ele, com a paz escrita no rosto, e fala-lhe numa voz serena. Estou demasiado longe para ouvir o que diz. Gareth aquiesce e leva a mão ao rosto. É possível que esteja a limpar uma lágrima. Sibeal foi fiel a si mesma. Se não ofereceu o seu perdão, não deixou de mostrar-se compreensiva. Poderá um homem ser, em simultâneo, guerreiro e pacificador? Só a grande custo. Só em alguém como Sibeal, cujas armas são a coragem e a convicção, a compaixão e a inspiração, é que os dois poderão fundir-se de verdade.
No seu ancoradouro, o Liadan balança suavemente na água salpicada de luar. Perto desta pequena praia, não há sinais da monstruosa corrente de maré que nos levou, a Gull e a mim, pelo túnel de rocha ainda essa manhã. Hoje. No mesmo dia. Tão curto o tempo para abarcar tanta coisa.
Sinto que, se me sentar, posso nunca mais voltar a levantar-me. Assim que parei de andar, a dor desabrochou em todas as partes do meu corpo. Doem-me as articulações. Dói-me o peito. Há um cansaço no âmago do meu corpo, e anseio por dormir. Mas ainda não. A missão não foi concluída.
Eles estão ambos aqui, Knut e Svala. Uma corda prende-lhe ainda o tornozelo, não lhe dê um acesso de loucura e se magoe a si próprio e a outros. Mas puseram-no mais perto do calor do fogo. Está sentado em cima de um cobertor, com um manto sobre os ombros. O luar toca-lhe na pele, de um branco pérola. Tem os olhos esgazeados. Está a olhar fixamente para a pele de Svala, enquanto Cathal e Gareth a desenrolam sobre as rochas, a uma distância segura do fogo. Manuseiam-na com cuidado, como se fosse tecida em seda fina.
Svala esteve empoleirada num lugar estratégico, com uma vista panorâmica, muito acima do acampamento. Agora que a pele é revelada, ela desliza para baixo, como um caranguejo, transpirando desconfiança em todos os seus movimentos. É como se não acreditasse realmente no que vêem os seus olhos. Acredito. Cresci a ouvir histórias de marinheiros e de sereias, de selkies e dos homens tolos que por elas se apaixonaram. Esta história, a história de Svala, está cheia de dor, tristeza e beleza. Quando chegar ao fim, escreverei uma nova canção.
- Felix! - chama Sibeal, numa voz delicada. - Chegou o momento.
Vou ter com ela e ponho-me ao seu lado. A pele jaz à nossa frente, uma tapeçaria de estranho formato e tons terra, ardósia e cascalho, areia e seixo, pedra e sombra. A luz das chamas toca-lhe suavemente.
Svala alcança o piso plano e caminha na nossa direcção, devagar, tão devagar. Penso que, mesmo agora, ainda duvida da prova que se estende diante dos seus olhos. Alcança a extremidade da pele. Um tremor sacode-lhe o corpo, mas permanece tão direita e orgulhosa como uma rainha. Os seus olhos estão postos em nós os dois, em Sibeal e em mim.
- Felix - murmura Sibeal -, diz o que tem de ser dito. Penso que ela compreenderá.
No meu coração, ouço o toque de um sino imenso e solene. Lembro-me do som da criatura a cantar, unindo-se a mim na celebração da injustiça corrigida. Penso em Paul.
- O que te foi cruelmente roubado agora te devolvemos - digo a Svala, olhando-a nos olhos e tentando formar na minha mente as imagens certas, como sei que Sibeal faz. - Isto pertence-te; leva-a. Lamentamos. Lamentamos mais do que caberia em palavras. Nunca mais voltaremos a perturbar as tuas terras.
Não lhe peço que nos deixe sair da baía em segurança. O momento pertence a este gesto apenas.
- Leva-a, Svala - diz Sibeal, numa voz tão encantadora como a do rouxinol. - Sê tu própria de novo, com toda a tua força e dignidade. Leva-a.
Então, sem uma palavra ou um olhar, recuamos em uníssono. À nossa volta, os homens estão quietos, em silêncio, enfeitiçados pela força do momento. Esqueceram, por agora, quantas vidas se perderam naquela ilha.
Svala acena, em concordância. É um reconhecimento do que fizemos. Dobra-se para pegar na extremidade da grande pele. Fito-a, sem saber o que vou ver, sem perceber como poderá isto alguma vez funcionar, mas consciente de que estamos prestes a assistir a algo de extraordinário.
Svala levanta a pele com uma só mão, lança-a para cima, no ar, como se não pesasse mais do que o lenço de seda de uma senhora. Quando a pele paira sobre ela, Knut dá um grito.
- Não! Não! Em nome de Thor, não! - Levanta-se, tenta arrancar a corda que o prende, desesperado por fugir dali. Ninguém o ajuda. Todos os olhos se fixaram nela.
A pele desce, moldando-se à sua silhueta. Tudo acontece em escassos instantes: à luz da Lua, ela transforma-se, torna-se mais alta e mais alta ainda. Da altura de um velho carvalho. Mais larga, mais comprida, as suas formas esticando-se, os membros engrossando, as feições de uma bela mulher convertendo-se nas de uma serpente, um monstro, um predador marinho, como o que está na baía. O maxilar alonga-se; a pele que a cobre parece dilatar-se à medida que o seu corpo se expande para enchê-la toda. Só os olhos são os mesmos, líquidos, tremeluzentes, cheios de Lua e do mar selvagem, mas maiores, muito maiores. São iguais aos da criatura que pulou sobre o Liadan num salto imenso; o monstro que nos trouxe, em segurança, do subsolo. Ela está feita. Está completa.
- Maldição de Morrigan - alguém murmura, entredentes. Outro homem faz o sinal da cruz.
Svala ergue-se bem alto, golpeando o ar com as garras compridas de suas patas dianteiras, como se quisesse testar que tudo está a funcionar como devia. Move, depois, a longa cauda de um lado para o outro, e os homens recuam, encostando-se às rochas. O luar resplandece na sua pele coberta de escamas. Já não é uma manta de retalhos em tons de castanho e cinzento, mas um traje glorioso de prata cintilante e revérberos de ouro. Svala era bela enquanto mulher. Enquanto criatura, é magnificente.
Knut geme.
- Salvem-me! Oh, deuses, salvem-nos a todos!
Um ou dois homens ordenam-lhe que seja corajoso. O seu colapso é desconcertante; um triste contraste com a bravura dos três sobreviventes. Mesmo Colm está agora em silêncio, de braço dado com Gull.
A criatura lança a cabeça para trás e troveja. O som ressoa como a fanfarra de uma enorme trombeta, ecoando por toda a baía. Depois, esmorece. Segue-se o silêncio de um instante. E eis a resposta. Da água espelhada onde se reflecte a luz da Lua, emerge uma grande cabeça, um pescoço vigoroso, um lombo largo e coberto de escamas em reflexos de azul e verde. As mandíbulas recheadas de presas abrem-se, escancaradas, e o companheiro de Svala brame a sua resposta. É um grito sem palavras, mas conpreendo o seu apelo. Aqui! Estou aqui, adorada! Vem até mim!
Mas ela ainda não está preparada para isso. Há uma coisa que tem de fazer primeiro, um último acto para concluir a história. Vira-se. Agarro na mão de Sibeal e recuamos para uma zona segura, pois a criatura poderia esmagar-nos sem sequer dar por isso.
- Recuem! - berra Cathal, e os homens correm aos tropeções para o outro lado da fogueira. Não há lanças nas mãos, nem facas ou clava. Os homens reconhecem a autoridade de Sibeal como druida e, embora o instinto lhes diga que é loucura enfrentarem aquele monstro sem armas, todos eles lhe obedecem.
- Não! Não! - guincha Knut. - Ajudem-me!
Tarde demais. Tarde demais para fazer seja o que for, os homens percebem o que vai acontecer. Vários gritam, e um ou dois dão um passo em frente, mas não há tempo. A criatura dobra o pescoço e a cabeça desce. Agarra no nórdico com as presas, levanta-o, sacode-o como um cão sacod um rato. Ouve-se um grito agudo e esganiçado. Sibeal empalidece, horrorizada. Svala lança a sua presa no ar. Há salpicos de sangue quando ele cai. A criatura apanha-o com a boca, fecha as mandíbulas e engole. Knut desapareceu.
O silêncio que se segue é absoluto. Os homens que correram a ajudar Knut gelaram no lugar onde estão. Eu parei como uma pedra, com a mão de Sibeal na minha. Ouço-a forçar a respiração num padrão certo, constante e lento. Faço um esforço para seguir o seu exemplo. É tarde demais para ajudar. Tarde demais para fazer seja o que for.
O monstro marinho que está na baía volta a trovejar. Svala vai ter com ele. O seu progresso pelas rochas até à água é fluido e gracioso, admirável para uma criatura daquele tamanho. Ela escorrega, desliza, dança pelo caminho até ao mar. Chega à beira de água e, por momentos, detém-se. Vira a cabeça maciça, olhando para trás, para nós. Sibeal sustém a respiração, como se a tivessem magoado.
- Sentes-te bem? - sussurro.
- Hum.
Ela inclina a cabeça para Svala. É um gesto de reconhecimento e de despedida. Faço o mesmo. Um braço de lua ilumina a pele cintilante da criatura, como a mãe mostrando o caminho ao filho perdido que regressa a casa. Svala avança pela água, nada, mergulha, desaparece.
Não há nada a dizer. Nada. Algum tempo depois, os homens atrás de nós começam a andar de um lado para o outro, sussurrando entre si. Sibeal e eu ficamos ali, de mãos dadas, em contemplação. Ela está a tremer. Pergunto-me o que terá sentido no momento em que os olhos de Svala procuraram os seus. Por fim, ao longe, na baía, os monstros vêm à superfície. Ali, nadam e fazem piruetas e tornam a mergulhar, movendo-se em perfeita harmonia, como se fossem duas partes do mesmo corpo. É uma dança de extática saudação, uma grácil, poderosa celebração do amor. Sinto um estremecimento no peito, porque me parece profundamente íntima. E, porém, escolheram celebrar à luz do luar. Sabem que têm uma assistência enfeitiçada e dão-nos a honra de partilhar connosco a sua alegria. Circulam e brincam, rodopiam e saltam em torno um do outro, agitando as águas tranquilas da baía em grandes ondas que esparrinham. Olhando de relance, vejo que Sibeal está a chorar. Do outro lado, Cathal subiu, em silêncio, para junto de nós. Olha em frente, para a baía, envolto no seu manto preto, o rosto grave transformado pelo assombro que o habita. Deuses, a canção que se tira desta história!
- Eu vi, Felix - murmura Sibeal. - Vi tudo, num breve instante, como se, na sua forma de monstro, Svala pudesse mostrar-me o que pensava e sentia com perfeita clareza. Enquanto mulher, mal conseguia fazer-me compreender. Mas, naquele momento relâmpago em que olhou para trás, para mim, eu vi tudo: o rapto desta ilha quando desceu até à costa, curiosa com o barco; o rude confinamento no porão do Freyja-, o terror de Inis Eala, um mundo que lhe era estranho, um mundo onde apenas eu tinha uma ínfima ideia da sua miséria. E... e Knut. Knut dominando-a por causa daquele estreito pedaço de pele que usava ao pescoço. Knut levando-a, à força, para a sua cama. Knut enchendo-a de nojo, aversão, terror. Nós fizemos-lhe isso. Nós fomos responsáveis, porque acreditámos na história dele e instalámo-los juntos, longe da comunidade. - Um arrepio percorre-lhe o corpo. - Até a vi com Rodan.
- Rodan? - Não me recordo do seu nome.
- O homem de Connacht que caiu do desfiladeiro. Ele... ele insinuou-se junto dela e ela empurrou-o do precipício abaixo. Era sempre mais forte, mais ousada, mais segura, quando Knut não estava por perto. Oh, deuses. - Sibeal levanta a mão para limpar as lágrimas da cara. - A justiça foi severa. E Knut... Quem me dera não ter visto aquilo. Mas é uma forma de pôr fim a esta história. No fim, ela estava a explodir de alegria. Voltara a ser igual a si própria, como a mulher selkie da tua canção, Felix. Leda, forte e livre o mar a via.
Estamos todos exaustos. Gareth define os turnos de vigia para a noite. Dois ficam de guarda enquanto os outros descansam. Sibeal acha que não corremos qualquer perigo, desde que não nos demoremos nesta ilha demasiado tempo. O acampamento sossega. O fogo esmorece, torna-se uma pilha de brasas.
Pensei que sucumbiria de imediato a esse sono profundo por que anseia o meu corpo. Mas não consigo dormir. Sinto a mente desperta. Vivi uma vida inteira desde que cheguei a Inis Eala com o passado envolto em sombras. A seu tempo, narrarei esta aventura. Talvez não numa canção. Apreender tão monumentais eventos na forma de uma balada seria torná-los mais pequenos; forçá-los a encaixarem-se nos limites do que a nossa mente consegue aceitar. Esta história exige algo mais longo, mais amplo, um relato que evoque todo o seu horror e toda a sua grandeza, o perigo e o profundo mistério. Um dia, fixá-la-ei por escrito. Mas ainda não. Desconheço o que o futuro me reserva. Não sou capaz de adivinhar. Só sei que, em breve, ela vai partir. Depois, o abismo espreita.
Fico acordado muito tempo, à luz da Lua. A certa altura, enquanto a noite se escoa, olho para o lugar onde Sibeal estava deitada, não muito longe de mim, e vejo que ela já não está ali. Como sei que não vou conseguir dormir, levanto-me e vou à sua procura. Não sei se será o momento certo para falar no que vem depois. Já há algum tempo que afasto esse tema dos meus pensamentos, concentrando-me apenas na missão. Mas, em breve, estaremos de volta a Inis Eala. Não podemos partir com tanta coisa por dizer um ao outro. Não sei o que pensa Sibeal acerca disto; não sei como se sente, apenas que está infeliz. Para mim, a nossa separação é o mesmo que cortar em pedaços uma coisa bonita que está a crescer; é esmagar um instrumento cuja música tem o poder de mudar o mundo; é dividir um único ser em dois. É um erro. Mesmo à luz da sua vocação, do seu extraordinário talento druídico, da sua devoção pelos deuses, é um erro. Na grande matriz de flor e árvore, pássaro e besta, pedra e estrela, o que existe entre mim e Sibeal encaixa-se na perfeição. Como pode não estar certo? Mesmo a mente labiríntica de um druida como o seu Ciarán deve saber que está certo.
Encontro-a não muito longe dali, na outra ponta da praia de seixos. Está sentada nas rochas, tão imóvel que poderia ser uma rocha no meio das outras, esculpida pela força da natureza com a silhueta de uma delicada rapariga. E Cathal também está aqui, mais abaixo na faixa de seixos, à beira de água. O luar projecta a sua sombra comprida na praia.
Está rodeado de focas. Subo até ao lugar onde se encontra Sibeal; ela encosta um dedo aos lábios, e eu sento-me ao seu lado sem dizer uma palavra. A mão dela enfia-se na minha.
Torno a olhar. Não são focas, mas pequenos seres com mantos de capuz cinzentos. Ou talvez seja a pele deles. Na escuridão de cada capuz, o luar reflecte-se num par de olhos brilhantes que pertencem a uma criatura que não figura, por certo, no mais completo bestiário. Sejam eles quem forem, são Outros. Mesmo se não confiasse no que vêem os meus olhos, sabê-lo-ia no meu íntimo.
Estão a conversar com Cathal. Não tenho a certeza se falam em irlandês ou nalguma língua do Outro Mundo que, pela sua própria natureza, possa ser percebida por pessoas como Sibeal e eu. Julguei que o dia não podia trazer-nos mais prodígios, mas estava enganado. A estranheza desta cena corta-me a respiração.
- Ele está perto - diz um dos seres, e a sua voz é como a pedra da ilha, dura, forte, proibitiva. - Só ela o impede de entrar aqui; é grande o seu poder. Na sua ausência, travámos uma dura batalha para defender a nossa ilha contra ele. Ela regressou a casa mesmo a tempo.
- Dizeis que o meu pai está perto. - Cathal está a fazer um grande esforço para controlar a sua voz. - Então, por que não senti eu a sua presença na viagem até aqui? Pensei que me desafiaria. Esperou quatro anos para eu sair de Inis Eala e ficar à sua mercê. Por que razão não me confrontou assim que saí do meu refúgio?
Um outro ser responde; a sua voz faz-me lembrar o gorgolejo da água que corre num ribeiro.
- Ela está em casa. Mac Dara não virá até aqui enquanto a sua protecção se estender sobre a ilha. Nenhum feiticeiro possui o poder de desafiá-la. Nenhum mago violará as fronteiras que ela traçou, a não ser quando ela decidir permiti-lo. Como aconteceu contigo, filho de Mac Dara.
- E para lá da ilha, na viagem?
Fala um terceiro ser. Ouço-lhe na voz o estridor esganiçado das gaivotas e a infinita canção do oceano.
- Tu pertences ao Povo do Mar - diz. - És da mesma família. A caminho daqui, trouxeste a nossa rainha no teu barco. A sua protecção estendeu-se a ti e aos dois que caminham ao teu lado. - A cabeça encapuçada gira em torno do seu eixo; os dois alfinetes de luz que formam os seus olhos pousam-se em Sibeal e em mim. - Druida e bardo; contador de histórias e cantor de canções. - Um momento depois, o ser acrescenta: - Luz da esperança e espírito em demanda.
- Mão esquerda e direita - acode mais uma das pequenas criaturas.
- Lua e Sol.
- Sombra e Luz. - Todos contribuem, agora, como se fosse uma espécie de jogo.
- Espelho de água e catarata.
- Consciência e coragem.
Segue-se um silêncio, e todos viram os olhos para aquele que acabou de falar, como se o seu contributo fosse, de alguma forma, inapropriado. Quanto a mim, aprecio muito o que foi dito, porque reconheço a profundidade do laço que me une a Sibeal.
- Dizeis, então, que o meu pai vos atormentou antes de trazermos de volta a vossa rainha - diz Cathal. - Como?
- Tempestades.
- Vagalhões.
- Nuvem. Tormenta. Frio glacial.
- Monstros dos abismos. Uma praga que matou os peixes e nos deixou à fome.
- O Pai Mar lutou por nós - disse uma criatura. - O combate enfraqueceu-o, e a perda daquela que ele amava. Se ela não tivesse voltado a casa quando voltou, nós podíamos tê-lo perdido, e a nossa ilha com ele. Mac Dara é forte.
Cathal olha para longe, para o oceano.
- Não consigo enfrentá-lo - afirma, em voz baixa. - Os meus poderes abandonaram-me. Já não há um grão de magia dentro de mim. Nem uma centelha de luz fui capaz de criar quando foi necessário. Mesmo no passado, lutei para igualar os poderes do meu pai. Agora, ele rir-se-ia de mim. Não consigo declarar guerra a um príncipe do Outro Mundo. Não consigo sequer defender a minha família.
Segue-se um silêncio que se arrasta. Os pequenos seres cinzentos começam a dissipar-se, fundindo-se com as rochas, a areia e a água, como se fossem figurantes de um sonho.
Sibeal levanta-se.
- Esperai! - chama, numa voz doce.
Olhos viram-se na sua direcção.
- Cathal não é um cobarde - diz ela. - O que ele precisa é de uma explicação. Julgai-o só depois de ele a ouvir.
Parece que esperam por algo mais.
- Não é verdade - prossegue Sibeal - que, no interior das fronteiras desta ilha, a vossa rainha detém todo o poder? Se esse poder é suficiente para manter Mac Dara à distância, não bloqueará também os feitiços e encantos de qualquer mago que atravesse os seus domínios?
Os rostos destes seres encontram-se velados pela sombra dos seus capuzes; os olhos brilhantes pouco deixam escapar. Mas sinto que se aquecem, que se suavizam.
- É verdade, sábia criatura - diz um deles. - O filho de Mac Dara deixará os limites desta ilha sem a Rainha Dourada. Para lá da barreira dos nossos penhascos, ficará livre do freio que a presença dela lhe impôs.
- Mas - retorque Cathal, agora numa voz menos cautelosa - Sibeal usou um sortilégio druídico para iluminar o caminho no túnel subterrâneo. Por que razão não foi a magia dela também bloqueada?
- Ahhh. - Articulam o som em uníssono. É um suspiro, uma canção, uma profunda e fervorosa prece de agradecimento. - Ela é a amiga dadeusa. Ela é aquela que vê a verdade. Eles são abençoados, a mulher sábia e o homem que caminha a seu lado. Se não fossem eles, filho de Mac Dara, tu não estarias aqui para receber o teu presente.
- Um presente. - Cathal fala como se, mesmo para ele, tudo aquilo já fosse difícil de conceber. - De que presente se trata?
Os pequenos seres deslocam-se, quebrando o círculo à volta dele, e convergem num aglomerado. Dir-se-ia uma colecção de rochas cobertas de algas. Neste lugar de pedra e água, parecem fundir-se num todo homogéneo. A certa altura, um deles desliza para a frente, detendo-se diante de Cathal. Estende algo que poderia ser uma mão. Não consigo ver o que esta mão oferece.
- Aceita isto. - Fala o da voz cortante e enfática. - Guarda-o bem. Usa-o bem. Aproxima-se o momento em que Mac Dara terá de ser confrontado. Não podemos permitir que ele continue a agitar os mares com a sua mão caprichosa, ou a arruinar um reino que antes foi pacífico e justo. Não, não fales - acrescentou, quando Cathal se preparava para contestar -, ouve apenas e toma cuidado. Apressas-te a dizer que esta não é a tua missão, que não consegues fazê-lo, que não queres fazê-lo. De uma maneira ou de outra, tem de ser feito e, sem ti, não pode ser feito. Há, porém, um dilema que te atormenta; nós compreendemo-lo. Este talismã é a insígnia da nossa rainha. Protegerá aquilo que te é mais querido, até cumprires a tua missão. Pendura-o ao pescoço na viagem de regresso a casa, e o Povo do Mar protegerá o teu barco da tempestade.
Cathal recebeu o minúsculo objecto na sua mão de dedos compridos e está a examiná-lo à luz do luar.
- Obrigado - diz. Nada mais.
- Avança, Coração Brilhante - chama o ser.
Olho para Sibeal; devem estar a referir-se a ela.
Ela abana a cabeça.
- Eles querem-te a ti, Felix. Vai. - Liberta a minha mão.
Desço a praia de seixos e o som dos meus pés a esmagar as pedras é uma intrusão no silêncio da noite. Agora, estou ao lado deles, e mal consigo respirar com a estranheza de tudo aquilo. O ser torna a estender a sua mão. A mão tem três dedos e é tão suave e cinzenta como o manto da criatura. Na sua palma, descubro um objecto que poderia ser uma concha, ou uma pedra, ou um artefacto. Tal é o seu brilho que penso que a Lua lhe emprestou a sua luz.
- Para ti - diz o ser e, virando a mão, deixa cair o talismã na minha palma. - Não é para ti exactamente. Nem para a criatura sábia, porque ela não precisa: leva a sua protecção dentro dela. Isto é para a vossa filha. Usa-a com sabedoria. Protege-a bem.
Sou incapaz de fazer a pergunta que me enche o coração. Não consigo dizer uma palavra. Fecho os dedos à volta do talismã. Inclino-me perante cada um deles, à vez. Uma prece silenciosa invade-me, uma prece feita de esperança e de medo e de escolhas difíceis.
Quando me sento, de novo, ao lado de Sibeal, os seres já desapareceram. Não desapareceram numa nuvem de fumo, diluíram-se simplesmente no espaço que os rodeava. Cathal pegou no seu talismã e foi para a outra ponta da praia, onde está sentado nas rochas, sozinho, com as mãos à volta dos joelhos. Não vamos perturbá-lo; não esta noite.
- Felix? - pergunta Sibeal, em voz baixa.
- Hum?
Não responde. Creio que talvez esteja a chorar.
- Não te contei, mas já a vi. A nossa filha. Vi-a em visões, duas vezes. Foi a coisa mais cruel. - As lágrimas caem-lhe, abundantes, sobre o rosto. A minha sábia druidesa sente-se, neste momento, à deriva e desamparada.
Tenho um nó na garganta; os olhos marejados. Abro a mão para examinar o que aí se encontra.
O talismã é uma lua em miniatura. Nacarado, cintilante, irradiando luz, tão fino como uma bolacha e duro como uma concha. Tem um furo minúsculo, junto ao rebordo. Uma visão. A nossa filha. Passaria pelo furo um cordão de seda, para ela usar à volta do pescoço. Por momentos, permito-me imaginá-lo, a afastar-lhe os caracóis escuros e a atar-lhe o fio à volta do pescoço. Ela diz Obrigada, pai.
- Sibeal.
Não responde.
- Sibeal, tenho de dizer-te o que sinto. Até aqui, estive a conter-me; tentei igualar o teu autodomínio, mas não posso continuar a fazê-lo. Chegou a hora de dizer a verdade, de desabafar. Amo-te, Sibeal. - Ela inclina a cabeça, como se estas palavras lhe carregassem os ombros delicados com um peso intolerável. Mas já comecei e tenho de continuar. - Respeito a tua vocação; honro o laço que te une aos deuses, a tua sabedoria druídica. Mas amo-te enquanto mulher; amo-te enquanto a única mulher com quem quero passar a minha vida. Amo-te como a árvore ama a chuva; amo-te como a flor ama o Sol. Sibeal, sei que os teus pés percorrem o caminho que conduz aos nemetons e a uma vida de celibato.
Deuses, o meu coração bate como um tambor; a minha pele enche-se de suores frios. Mas ela continua ali sentada, de olhos baixos, mãos no regaço.
- Sei que estás convencida de que este é o único futuro que os deuses te reservaram. Mas... - Respiro fundo, trémulo. - Não acredito que não exista uma alternativa, nenhum meio pelo qual poderíamos ficar juntos, tu e eu. Eu honrar-te-ia, amar-te-ia e estimar-te-ia a minha vida inteira, Sibeal. Seria o teu protector. Caminharia ao teu lado, passo a passo, onde quer que escolhesses ir. Sei, no fundo do meu coração, que nós os dois fomos feitos para estar juntos. Acredito que, se os teus deuses decidirem de outra maneira, estarão a negar uma verdade essencial.
Faço uma pausa; Sibeal levanta o rosto e olha para mim. Está lívida. A luz da Lua mostra-me os seus olhos brilhantes, cheios de lágrimas.
- Pronto, já o disse. Disse-te a verdade. Quero que o faças também, Sibeal, mesmo que me partas o coração. Magoa-me ver-te aí, fechada dentro de ti, a segurar com firmeza os teus sentimentos para que não perturbem a calma druídica. Se me julgas presunçoso, se me julgas insensato, diz-mo. Se as minhas palavras te ofendem, grita comigo, insurge-te contra mim, bate-me, se quiseres. E se, por um instante que seja, fores capaz de conceber um futuro que siga um caminho diferente, um caminho que eu possa percorrer ao teu lado, fala-me disso agora. Desafio-te, Sibeal. Ou preferes passar a tua vida inteira fechada e inacessível, como o miolo de uma noz que nunca amadurecerá? Tu dás muito de ti própria; estás cheia de compaixão e de sabedoria. Mas, se nunca permitires que a outra parte do teu ser floresça, aquela que chora e se enfurece e duvida, aquela que um dia se derreteu nos meus braços, como se tocada pela mesma chama que a mim me queima, então, não viverás uma vida plena, mesmo se fores a mais sábia e devota druidesa de toda a terra de Erin. Esta é a opinião deste poeta, erudito e tolo que nunca aprendeu a manter a boca fechada. Por favor, Sibeal. Por favor, deixa-me ouvir o que te vai na alma.
Ela deixa escapar um grande, sufocado soluço, e põe os braços à minha volta. Puxo-a para mim.
- Desculpa - diz-me, com o rosto encostado ao meu peito. - Felix, tenho tanta pena. Não vejo nenhuma maneira de isto poder ser. Falas como se fosse fácil para mim, e não é. Quando pensei que te tinhas afogado, eu... Foi... Nunca me passou pela cabeça abandonar a minha vocação. Naquele momento, esteve por um fio.
Sinto o coração pesado, como chumbo. Ouço nas suas palavras que ela não será desviada do seu caminho. E, porém, o seu corpo diz-me o que a mente não consente, essa mente tão treinada a controlar-se. Sinto no seu abraço que ela me deseja como eu a desejo; que nos completamos na perfeição, duas metades do mesmo ser. Oh, Sibeal, deixa-te ir. Deixa-te ir só por um instante.
- Os deuses ainda precisam de mim - diz. - Svala, a pele... Não teria conseguido falar com ela sem o dom que eles me concederam. Como poderei ignorar a sua vontade em nome dos meus egoístas desejos pessoais?
Egoístas. Não me parece que seja egoísmo. É a atitude certa. Sibeal ergue o rosto para mim e beijo-a. O nosso primeiro e, provavelmente, último beijo. Sinto o sabor salgado das lágrimas e o prazer doloroso do que poderia ter sido. E, no entanto, mesmo agora, não sou capaz de ficar em silêncio.
- Pergunta a ti mesma o seguinte - digo. - Se até quando respiras o fazes com reverência, por que razão te castigam os teus deuses?
Passamos duas noites na Ilha da Serpente. O Liadan é esfregado de uma ponta à outra; roupas e provisões são trazidas para terra e postas a secar ao sol. Enchem-se os vasilhames com água da nascente. Verificam-se as reservas de pão duro e carne seca para a viagem de regresso. Faz-se uma nova âncora flutuante com pedras e corda atada em nós habilidosos.
Gull ocupa-se dos três sobreviventes. Obriga-me a beber uma poção feita com alga marinha e um pó castanho que trazia no seu saco de curandeiro. Faço o que me é dito. Uma vez que esta abjecta mistura pode afastar a doença que quase me matou, ou assim o diz Gull, bebo-a com a mesma prontidão com que beberia o melhor hidromel. Foi-me dada uma segunda oportunidade quando Sibeal me encontrou meio afogado em Inis Eala.
Travei, então, uma batalha, por Paul, pelos homens que aqui foram abandonados. Agora, a missão foi cumprida e parece que um novo desafio se ergue à minha frente. Talvez eu tenha de ganhar coragem para viver a minha vida sem ela, e vivê-la bem. Mas recuso-me a aceitar essa possibilidade, por enquanto. Coração Brilhante, chamaram-me. Ainda continuo a lutar.
Na terceira manhã, reunimo-nos na praia, todos nós, à espera que o barco a remos nos leve até ao Liadan. O tempo está ameno e não há nuvens no céu. Os homens trabalharam arduamente e está tudo a postos. Chegou a hora.
Subimos a bordo. Por momentos, todos se reúnem no convés. Gareth dá um passo em frente. A sua expressão é grave e pergunto-me o que irá dizer. Um discurso encorajador, talvez, ou o aviso de que, enquanto estivermos no mar, a palavra dele ainda é lei. Mas Gareth limita-se a anunciar:
- Amigos, vamos para casa.
Dirigimo-nos, a remos, ao perigoso canal. Não vislumbramos o Pai Mar ou a Rainha Dourada, mas, ao transitarmos pela passagem estreita e de paredes altíssimas, sinto os seus olhos gigantes pousados em nós. Saímos para o mar alto. Um vento suave enche as velas do Liadan e o barco define a sua rota para sul, rumo a Inis Eala.
Capítulo 14
SIBEAL
Tínhamos feito a viagem de Inis Eala para a Ilha da Serpente em cinco dias. O regresso a casa levou muito mais tempo. Não fomos assolados por tempestades, ou desviados da nossa rota por ventos tumultuosos; muito pelo contrário. Após um dia de fresca navegação, a natureza decidiu lembrar-nos que era Verão. As nuvens afastaram-se.
O tempo tornou-se mais ameno. Os ventos fizeram um intervalo. Flutuámos, arrastando a nossa nova âncora flutuante, durante seis dias, até chegar o vento norte. Depois, a tripulação içou a vela do Liadan, o quadrado de tecido de lã enfunou-se e, ao som de vivas, dirigimo-nos a casa.
Os enjoos de mar tinham-me atacado apenas no primeiro ou segundo dias. Depois, mantive-me ocupada a ajudar Gull a cuidar de Thorgrim.
Na verdade, mantive-me muito ocupada. Tratei de exibir uma máscara de serenidade, dando uma mão em tudo o que podia, sentando-me a orar em silêncio, metida comigo mesma. Sob esta aparência de calma, eu era uma amálgama de sentimentos em ebulição e, todos os dias, eles ferviam mais perto da superfície. Não havia, na verdade, nenhuma oração silenciosa. Quando me sentava de pernas cruzadas e olhos fechados, não conseguia rezar nem meditar. Só conseguia pensar em Felix. Os excertos de doutrina que, outrora, me ocorriam com tanta facilidade, os padrões de respiração que fora capaz de impor a mim mesma nas situações mais difíceis, tinham-me escapado; estavam para além das minhas forças. Quando Felix subia ao convés para pescar com Sigurd ou conversar com Cathal, eu só desejava que ele voltasse para baixo, para poder olhar para ele. Quando estava perto de mim, um simples olhar de relance trazia de volta a vertigem dos seus lábios nos meus e a profunda tristeza de sair dos seus braços. Mal tinha coragem para lhe falar, não fosse ir-me abaixo completamente. Ciarán teria ficado horrorizado.
Estava demasiado absorta para sentir prazer com o progresso dos nossos sobreviventes. Thorgrim já conseguia manter a comida no estômago, e parecia melhor a cada dia que passava. Embora enfraquecido pela sua provação, Donn ansiara, desde o início, por começar a trabalhar. Gareth pedira-lhe, assim, que se juntasse à tripulação, atribuindo-lhe tarefas adequadas às suas reduzidas capacidades. Quanto a Colm, de pouco lhe padecia o corpo que repouso e boa comida depressa não reparassem. A mente já era uma outra história. Felix ouvia-o com toda a paciência contar uma e outra vez o que tinha acontecido, o que ele tinha visto, o que tinha sentido, e garantiu-lhe que a sua vida anterior o esperava, em Munster, e que, com o tempo, o pesadelo se dissiparia.
Quando Thorgrim melhorou, ficámos a saber que ele tinha conhecido Knut em Dublin.
- Knut tinha mulher e filhos, ali - traduziu Sigurd, para nosso espanto. - Mas meteu-se em sarilhos duas vezes seguidas. Devia dinheiro. Muito dinheiro. Embora fosse um homem atlético e capaz, nunca havia o suficiente para arranjar a casa ou vestir os pequenos. Gostava muito de uma boa aposta, o nosso Knut, e de mulheres que não aquela com quem era casado. As coisas agravaram-se com a esposa, e ele chegou-lhe a roupa ao pêlo. Parece que se esqueceu que ela tinha cinco irmãos. Partiu de Dublin à pressa, sem qualquer intenção de regressar, e dirigiu-se a Ulfricsfjord na esperança de arranjar lugar numa nave. Quase teve sorte. Teria desembarcado do Freyja nas Orcades e começado tudo de novo, se o barco não tivesse sido desviado da sua rota.
- Que Danu nos salve - murmurou Gull. - Portanto, quando viu Svala na praia, achou que tinha encontrado a substituta perfeita para a sua mulher. Não só era bela como nenhuma outra, como, assim que lhe tirou um pedaço de pele, se tornou dócil e silenciosa. Não admira que ele tivesse tanta vontade de conquistar um lugar em Inis Eala, onde as pessoas valorizavam o seu talento e ninguém sabia do seu passado. Deve ter-lhe parecido perfeito. E também não admira que ele quisesse, a todo o custo, manter Felix calado.
- Aquele monstro marinho - cogitou Sigurd. - O outro, quero eu dizer, Se Svala conseguia libertar-se da sua pele e tornar-se humana, será que ele também podia fazê-lo? A criatura daria um belo pedaço de homem.
Felix manteve-se ocupado, como eu. Conversava com Gareth, Cathal, Sigurd, Gull. Empenhava-se na pesca à linha e, por vezes, chegava mesmo a ajudar na navegação. Deitava as mãos a qualquer tarefa que lhe fosse atribuída. A tripulação tratava-o como amigo. E eu observava-o, vendo o homem atlético e saudável da minha visão emergir do trémulo inválido que tantas vezes eu velara em ansiosa vigília. Agora, tinha uma nova visão: via os ombros fortes, o porte altivo, as pernas compridas e a graça do movimento. Via-o rir, ou sombrio, pensativo, determinado. Quando pensava no futuro, perguntava-me quanto tempo eu levaria a esquecer todos aqueles bons momentos; quanto tempo levaria ele a dissipar-se numa memória querida e, depois, em nada? Ou ficaria a sua imagem gravada para sempre no meu pensamento, como um ferrete a lembrar o sacrifício que eu fizera para seguir o caminho que me fora destinado? Uma alternativa, dissera-me. Como fazê-lo compreender? Não havia alternativa.
Cathal ganhou o hábito de levar-me ao convés pelo menos uma vez por dia. Passar muito tempo no porão era mau para toda a gente, dizia-me. Não havia dúvida de que isto era verdade, mas ele tinha um outro motivo: queria conversar.
- Não há um dia que passe que eu não esteja à espera que aconteça - disse-me, da primeira vez, enquanto contemplávamos juntos o vasto oceano. Um pequeno bando de gaivotas juntara-se a nós, temporários passageiros. Empoleiravam-se no cordame, com as penas despenteadas pela brisa. - Espero, a qualquer momento, que o meu pai faça algo. Uma tempestade; uma onda gigantesca; um relâmpago; um barco sobrenatural tripulado por misteriosos guerreiros. Se aqueles pequenos seres na Ilha da Serpente disseram a verdade, o talismã protegerá aqueles que eu amo e zelará pela segurança do Liadan no regresso a casa. Mas é ter demasiada fé num minúsculo pedaço de concha, por muito mágico que possa ser. Custa-me a acreditar que o meu pai não aproveitasse esta oportunidade para nos afundar. Para me afogar a mim e ter Clodagh e a criança à sua mercê. Por que hesitaria, se possui o poder de agitar os mares e conjurar tempestades? Por que se coibiria de intrometer-se, uma vez que não tem quaisquer escrúpulos? É um homem que mata sem mais pretexto do que o de divertir-se. É um homem que vira a vida das pessoas do avesso sem pensar duas vezes.
Esforcei-me por encontrar a resposta sábia que, noutros momentos, me teria ocorrido com tanta naturalidade.
- Tu és o seu único filho. É certo que, agora, talvez esteja mais interessado na criança. Mas não te fará mal se não precisar, tenho a certeza.
- Tu não o conheces.
- Há uma outra possibilidade - repliquei.
Felix tinha acabado de emergir da escotilha aberta; dirigia-se agora à proa, para falar com Sigurd. Levantou o braço, numa saudação casual. O vento apanhou-lhe o cabelo e ergueu-o em torno do rosto, como uma alga levada pela corrente. Que bonitos olhos tinha, de um azul que afogava.
- Que possibilidade?
Fiz um esforço por me lembrar do que queria dizer.
- Os pequenos seres sugeriram que alguém teria de enfrentar Mac Dara e que o homem certo para o fazer talvez fosses tu. Sei bem que não tens qualquer intenção de regressar a Sevenwaters, Cathal. Mas devias considerar a hipótese de o teu pai estar a conter-se porque te teme. Porque teme que a tua magia possa superar a dele.
- E o Freyja, o naufrágio, as vidas perdidas?
- Não há maneira de saber se foram obra sua. Foi estranho, sim. Mas esta história está recheada de coisas estranhas, e nem todas são da responsabilidade de Mac Dara.
- Hum. - Cathal calou-se por momentos. Depois, perguntou: - Sibeal, estás bem? Pareces... outra pessoa.
- Estou bem. - A nota de aspereza na minha voz fê-lo semicerrar os olhos. - Um pouco cansada, talvez - acrescentei. - Isto desgastou-nos a todos.
Mais de meio círculo lunar depois de partirmos, passámos pelo recife onde o Freyja naufragara e entrámos na baía abrigada de Inis Eala. Uma multidão reunira-se na praia para nos dar as boas-vindas. Sobrepondo-se aos gritos de saudação, chegou-nos um som lancinante: o latido esganiçado de uma cadelinha.
- Parece que ela sentiu a tua falta - disse a Felix, que estava atrás de mim, na amurada.
Mas não creio que me tivesse ouvido, porque estava a olhar fixamente para a praia. Seguindo-lhe o olhar, vi que, no meio dos rostos familiares sobre o pontão, estava um que não assistira à nossa partida. Pusera-se um pouco à parte, figura alta e imóvel, com o cabelo de um profundo castanho-acobreado, as feições atraentes na sua gravidade. Trazia uma austera túnica cinzenta. Ciarán. Já ali estava. Uma e outra vez, ao longo daquele Verão tão exigente, eu tinha ansiado pelo seu conselho. Agora, sentia-me, de alguma forma, à beira do desespero.
- Aquele é Ciarán, presumo eu? - Felix mal disfarçava o seu descontentamento.
Aquiesci.
- Felix - disse Gareth, aparecendo do outro lado -, foi uma missão capaz de pôr à prova os espíritos mais aventureiros. Erudito sejas, mas em coragem e tenacidade superas os guerreiros mais valorosos. E, sem ti, Sibeal, isto não teria sido alcançado.
Eu mal o ouvia. O intervalo entre o Liadan e o pontão diminuía, à medida que o barco se acercava, a remos, da costa. Ali estava Snake, a agarrar uma corda, e Niall, pronto para agarrar a segunda. E os olhos cor de amora de Ciarán, no rosto pálido e solene, a observarem-me. Consegui esboçar um aceno brusco e desajeitado de saudação, e ele agraciou-me com um dos seus raros sorrisos. Fang plantara-se na extremidade do pontão e fazia mais ruído do que todas as pessoas ali reunidas juntas.
- Não vejo Clodagh. - Cathal aparecera, agora, ao meu lado, perscrutando os rostos.
Ele tinha razão. Evan estava ali, e Muirrin. Biddy estava ao lado deles, radiante, a agitar os dois braços para Gull. Entre as mulheres, via-se Flidais e Suanach, Alba e Brenna. Johnny ajudava Niall a firmar a segunda corda para podermos passar do convés para o pontão. O meu primo olhou para cima, para Gareth, e sorriu, e não havia apenas alívio e amor naquele sorriso, mas também um pedido de desculpas. Liderar aquela missão fora uma dura prova para Gareth, e as marcas transpareciam no seu rosto.
Cathal foi o primeiro a saltar do barco e a dirigir-se a Evan e Muirrin, antes de eu fazer um gesto. Houve uma breve troca de palavras, e ele desatou a correr pela ladeira acima, seguido de Muirrin, que avançava mais devagar.
Felix estendeu-me a mão e eu saltei para o pontão. Ciarán estava do outro lado, para me apoiar. Olhámos um para o outro. O meu mestre pousou as mãos nos meus ombros e inclinou-se para me dar um beijo paternal na testa.
- Estás a salvo - disse ele.
Felix já aparecera ao meu lado.
- Ciarán - disse eu -, apresento-te Felix. É um erudito, da Armórica. Felix, apresento-te o meu parente e mestre Ciarán, de quem te falei. - Naquele momento, mesmo a ténue aparência de calma me abandonou; tremia-me a voz.
Ao longo da praia, mulheres abraçavam os seus homens, homens pegavam nos filhos às cavalitas, mães saudavam os seus filhos, e os guerreiros que tinham ficado em casa davam palmadas amigáveis nas costas dos aventureiros e falavam de jarros de cerveja e de histórias para partilhar. Os homens de Connacht misturavam-se com os outros. O lugar parecia inundado de alívio e de alegria, excepto ali, onde nós os três estávamos fechados no nosso pequeno mundo. Ciarán e Felix trocaram um olhar. O que ainda não fora dito encheu o ar de tensão.
- Sibeal, tens uma nova sobrinha - anunciou Evan, que se aproximava com um sorriso rasgado. - E um novo sobrinho.
Caiu-me o queixo.
- Gémeos?
- Nasceram na sexta à noite depois de vocês partirem. Clodagh está bem. Não tenho a certeza se posso dizer o mesmo de Cathal; pareceu-me muito abalado. Deves querer vir vê-los agora mesmo. Eu levo-te até lá.
Gémeos. Não admirava que a minha irmã tivesse ficado tão inchada.
- São saudáveis?
- São saudáveis, sim senhora. E não te surpreenderás se eu te disser que Clodagh é uma mãe notável. Houve uma certa altura do processo em que amaldiçoou Cathal por não estar presente, mas agora está tudo ben E a cabana deles está concluída. Ela queria ir para a sua casa. Queres que te leve o saco?
- Eu levo-o. - Felix aliviou-me do saco e desapareceu na multidão.
- Quem é ele? - Ciarán caminhava ao meu lado enquanto seguíamos Evan pela íngreme ladeira, até à povoação.
Esta não era a pergunta clara que parecia ser.
- Já terás, por certo, ouvido a história - respondi. - A menos que tenha acabado de chegar.
- Já cá estou há alguns dias. Vim mais cedo do que combinámos. Espero que isso não seja um incómodo para ti, Sibeal. Se desejares, terei todo o gosto em ficar em Inis Eala até ao fim do Verão. Preciso de conversar com Cathal e com Johnny.
- Assim que o fizeres, podemos ir embora - retorqui, absolutamente incapaz de igualar o tom moderado da sua voz. Para que adiar a dor da partida? Quer acontecesse já amanhã, ou no dia seguinte, ou no fim amargo do Verão, ela não se atenuaria.
Ciarán olhou-me de través.
- Alguma coisa te preocupa, Sibeal?
- Não.
- Falaremos em breve - replicou, numa voz tranquila. - Primeiro, tens de ver a tua irmã. - Olhou de relance para mim e acrescentou: - Clodagh vai querer ver caras sorridentes.
- Aqui estamos nós - disse Evan, quando chegámos à cabana que Spider tinha construído para Clodagh e Cathal. Estava concluída, e Clodagh já começara a plantar um jardim na zona murada nas traseiras da casa. Já se via a terra mexida e uma fila de rebentos verdes. Ali perto, roupa de cama esvoaçava num estendal. Ciarán deixara-nos, desaparecendo com a mesma prontidão que Felix.
Respirei fundo várias vezes, medindo a respiração. Pus um sorriso no rosto. Evan bateu e abriu a porta quando Clodagh gritou "Entrem!"
A minha irmã estava sentada na beira de uma cama de beliche, a alimentar um dos bebés. Este mamava com energia, batendo na pele creme da mãe com um pequeno punho cerrado. Cathal sentara-se à frente da lareira, com o outro bebé nos braços. Pai e filho fitavam-se com olhos negros e brilhantes, medindo-se um ao outro demorada e pausadamente. E, embora eu tivesse pensado que já não tinha lágrimas para chorar, elas inundaram-me os olhos. Os bebés eram tão perfeitos como dois botões de rosa.
- Clodagh! - Inclinei-me para abraçar a minha irmã e o bebé que ela segurava nos braços. - São lindos! - Já esperava amá-los no instante em que os visse. Mas não antecipara aquele desejo intenso por uma criança minha. - Estás bem?
- Muito bem, Sibeal, embora me sinta um pouco como uma vaca leiteira. Nunca tive tantas pessoas a trazerem-me comida, a oferecerem-se para me lavar e remendar a roupa e a obrigarem-me a descansar durante o dia. Biddy diz que eu devia aceitar qualquer ajuda que me fosse oferecida. É verdade que a comida é bem-vinda. Parece que estou sempre cheia de fome.
- Quais são os nomes dos bebés? - perguntei.
- A nossa filha vai chamar-se Firinne, em homenagem à mãe de Cathal - respondeu Clodagh. - Ainda não escolhemos o nome para o nosso filho. Gostávamos que conduzisses um ritual de escolha do nome para nós, enquanto aqui estiveres.
Eu estava a olhar em redor, para a pequena casa, vendo como se enchera com a presença carinhosa de Clodagh. Não me admirava que Cathal parecesse tão diferente, as suas feições transformadas pela felicidade, o temor que lhe crispara o rosto, naqueles últimos dias da viagem, desaparecendo sem deixar rasto. Não era apenas o milagre do filho que segurava nos seus braços, e da filha ao peito da mãe; era a presença de Clodagh que o modificava. O laço que existia entre eles era capaz de sobreviver a qualquer coisa. Podia ser uma cabana modesta, sim, mas era tanto uma casa como a fortaleza de Sevenwaters tinha sido para várias gerações de crianças. A visão invadiu-me o pensamento: Felix e eu numa casa pequena, só nossa, com a sua cálida luz de candeia e as suas janelas abrindo-se para o arvoredo. Era a casa certa para a criança do vestido com bordado de corujas, a menina dos olhos iguais aos meus. Fazei com que se torne realidade, sussurrava uma voz dentro de mim, uma voz traiçoeira que, como Felix, não conseguia calar-se. Oh, por favor, fazei com que se torne realidade. Fiquei sentada, em silêncio, a observar Clodagh e a filha. Esforcei-me por conter a maré de sentimentos que subia dentro de mim.
- Pareces diferente, Sibeal - observou a minha irmã, enquanto encostava o bebé ao ombro, com mestria, e começava a dar-lhe palmadinhas nas costas. - Esta viagem... Cathal contou-me o que aconteceu em traços largos e parece que foste excepcionalmente corajosa, capaz de feitos extraordinários. Ciarán já chegou. Sabias?
- Sibeal? - Era a primeira vez que Cathal falava desde que eu ali entrara. Vi algo no seu rosto que nunca tinha visto antes: um sorriso radioso, espontâneo. - Gostavas de segurar nele?
- Eu estava habituada a bebés, tendo ajudado a cuidar do meu irmão desde o dia em que ele tinha nascido. Peguei no rapazinho e embalei-o nos meus braços. Por debaixo da mantinha, via-se um pequeno vestido feito por Clodagh, com bordados de bagas e folhas. A volta do pescoço, tinha um cordão tecido em lã fina e, ali enfiado, via-se um talismã em forma de meia lua, feito do mesmo material cintilante e semelhante a uma concha que fora oferecido a Felix na Ilha da Serpente.
- Aquilo que me deram foi um só talismã, com dois furos - disse Cathal. - Quando o trouxe para mostrar a Clodagh, tinha-se partido quase até ao centro. Se os Seres Cinzentos forem de confiança, os nossos filhos caminham, agora, sob a protecção dos deuses.
Não comentei. Ao sentir o peso quente da criança contra mim, o seu olhar solene cruzando-se com o meu, algo estalou cá dentro. Um soluço rebentou; lágrimas brotaram-me dos olhos. Deixei-me cair num banco, encostando o bebé ao peito e embalando-o para trás e para a frente.
- Não consigo continuar a fazer isto! - chorei. - É demasiado difícil, está tudo errado, nem sequer sou capaz de orar como devia, e Felix vai partir, e nunca o terei, nunca terei aquilo que vocês têm, nunca existirá uma cabana no bosque, Felix a escrever à luz da candeia e aquela rapariguinha de olhos sábios, porque, se for essa a minha escolha, passarei a vida inteira a saber que abdiquei da minha vocação e virei as costas aos deuses e desiludi Ciarán e fui capaz de um extremo egoísmo! Mas amo Felix! O que ele disse estava certo, completamente certo, ele e eu devíamos ficar juntos, somos como o vento e a chuva, como a folha e a flor, como... Como poderei deixá-lo partir e nunca mais o ver? Sei que devia ter calma, sou uma druidesa, e se não aprendi, até agora, a aceitar, é porque não aprendi nada nos nemetons, mas não posso ter calma, já nada faz sentido, está tudo errado...
Reparei vagamente num breve sinal entre Clodagh e Cathal, depois do qual ele saiu, fechando a porta da cabana atrás de si. A minha irmã levantou-se e pôs a rapariguinha num cesto. Instantes depois, sentou-se ao meu lado. Os seus braços envolveram-me, a mim e ao filho, e ficou assim por momentos, sem dizer palavra. Esperou que as palavras, os soluços e as lágrimas se reduzissem a um suspiro gaguejado e, depois, tirou-me o bebé dos braços - que permanecera extraordinariamente calmo até ao fim - e voltou para a cama para lhe dar de mamar.
- Há um lenço limpo naquela prateleira, Sibeal. Limpa os olhos e assoa-te. Depois, põe a chaleira ao lume, por favor, e prepara-nos uma bebida. Alimentar os gémeos dá-me sede. A seguir, falamos melhor.
Chaleira. Fogo. Água. Taças. Uma mistura de ervas secas num frasco rolhado. Alguém bateu à porta, e Clodagh gritou:
- Estamos ocupadas! Volte mais tarde.
Enquanto a água aquecia, fui olhar para a rapariguinha que estava no cesto. Dormia, os olhos de longas pestanas estavam fechados, o rosto minúsculo contorcido em sonhos misteriosos. Tinha mais cabelo do que o irmão, uma penugem aveludada, com um distinto matiz avermelhado. A minha filha tinha os cabelos escuros... Mais lágrimas. Não conseguia contê-las. O que se passava comigo? Não conseguia sequer enfrentar a ideia de sair dali. Não conseguia enfrentar nada.
- Espero não o ter perturbado - balbuciei. - Ao bebé.
- As crianças são mais robustas do que parecem. E, pelos vistos, não lhe afectou o apetite. - Pouco depois, Clodagh acrescentou: - Devias dar algum tempo a ti própria. Sei que tudo parece negro, neste momento, mas acabaste de desembarcar e estás cansada...
- Pronto, pronto, Sibeal, de manhã, estará tudo bem? Não está tudo bem, Clodagh. Nunca estará. O que quer que eu faça, seja qual for a decisão que eu tome, passarei o resto da minha vida a lamentar aquilo de que abdiquei. Quem me dera que Felix nunca tivesse vindo para aqui! Quem me dera nunca o ter conhecido!
Clodagh olhou para mim, e os seus olhos verdes estavam cheios de compaixão e entendimento. Devolvi-lhe o olhar.
- Não é verdade - acrescentei, a fungar. - Amo-o. Nunca poderia lamentar tê-lo conhecido. Nunca poderia lamentar ter feito parte da sua grande missão. Mas isto está a partir-me o coração.
- Disseste seja qual for a decisão que eu tome. Isso significa que considerarias com seriedade abdicar da tua vocação por Felix?
- Como posso fazer semelhante coisa? Como posso virar as costas aos deuses? Como posso negar o chamamento que ouvi na minha tenra infância?
- Há quem o faça, creio eu. Não o fez o próprio Ciarán? Era um druida noviço quando conheceu a tia Niamh. E partiu, muito embora estivessem proibidos de casar.
- Não é a mesma coisa. Além disso, ele regressou aos nemetons.
- Só anos mais tarde, quando Niamh já tinha morrido e depois de Fainne ter crescido e partido ao serviço dos deuses, na Needle.
- Não interessa quanto tempo demorou a voltar. Ele acabou por conseguir esquecer. Ciarán é forte na sua fé. Eu também pensei que era forte; nunca tive qualquer dúvida, até este Verão. Mas sei que, se abdicar de Felix, hei-de lamentá-lo todos os dias para o resto da vida, Clodagh. Por muito sábia que me torne, enquanto druidesa; por muito que estude e ore e medite. Isto abalou a minha fé. Sinto que é errado negar aquilo que existe entre nós; sinto que seria o mesmo que negar a mudança das estações, o crescimento de uma árvore, ou o padrão que as ondas descrevem na praia. E é do amor a estas coisas que se faz um bom druida. Simplesmente, não consigo perceber.
- Parabéns - disse-me Clodagh.
- Pelo quê?
- Cresceste, Sibeal.
- Cresci? Acabei de desfazer-me em lágrimas e de balbuciar disparates! Perdi completamente a noção dessa pessoa calma e controlada que pensei que era! Não cresci. Voltei a ser uma criança!
- Estás apaixonada. É uma condição famosa por fazer as pessoas passar da alegria à tristeza, à confusão e à perplexidade, à mais ínfima desculpa. Quanto a teres crescido, todos nós gostamos da Sibeal calma, sábia, reservada; ela é a pessoa que eu conheço e estimo como minha irmã mais nova. Mas acabaste de descobrir, para tua surpresa, que essa pessoa é apenas metade de ti. A outra metade é uma mulher: uma mulher que ri, chora e ama, uma mulher que comete os seus erros e tem de esforçar-se muito por corrigi-los. Uma mulher que duvida de si mesma; uma mulher que, por vezes, não consegue encontrar respostas sem ser ajudada.
Atarefei-me a verter água quente sobre as folhas secas, mexendo, filtrando a infusão para dentro de taças, pousando uma delas num lugar ao alcance de Clodagh.
- Tenho um desafio a propor-te, Sibeal.
Fitei-a, incapaz de imaginar qualquer desafio em que, naquele momento, não falhasse desgraçadamente.
- A partir deste instante e até acabares de beber essa infusão - prosseguiu Clodagh -, põe de parte a druidesa que há em ti, a que debate argumentos filosóficos e se preocupa em ser leal aos deuses. Sê a mulher, aquela que acabou de descobrir que o amor pode encher-nos de alegria num momento e afundar-nos na mais profunda tristeza no momento seguinte. Sou tua irmã, e as irmãs são-nos dadas para termos alguém com quem conversar nestas alturas. Fala-me de Felix. Esquece o que poderia acontecer, ou aquilo que achas que devia acontecer. Diz-me por que o amas.
E assim fiz, continuando a responder-lhe muito depois de terminarmos o nosso chá. Preparei-nos uma segunda taça. Clodagh encontrou um bolo de mel que fora guardado, e eu dei-me conta de que estava com uma fome voraz. Mais tarde, tornaram a bater à porta, e eu abri-a, vendo Biddy do outro lado, com um sorriso apologético no rosto.
- Peço desculpa por vir incomodar-vos. Pensei que já estarias pronta para o teu banho, Sibeal. Os homens já estão todos despachados e tenho água quente e limpa à tua espera. Flidais diz que te lava o cabelo.
Era quase impossível ela não reparar que eu tinha estado a chorar; eu própria sentia a cara toda vermelha e inchada. Mas não fez qualquer comentário.
- E depois disso - disse Clodagh com firmeza - Sibeal tem de comer e dormir. Uma fatia de bolo de mel não faz maravilhas. Biddy, dizes a Cathal que ele já pode voltar? Presumo que já tenha tomado o seu banho.
Biddy fez um sorriso trocista.
- Esfregou-se até ficar num brinco. Agora, está sentado no salão a dizer a quem o queira ouvir que os filhos dele são os mais perfeitos que os deuses ao mundo deitaram. Sibeal, que história tinha Gull para me contar! Svala, uma espécie de monstro marinho? E Knut... - Abanou a cabeça. - Ainda estou a tentar assimilar tudo.
Eu não disse nada, mas dei um beijo a Clodagh e segui Biddy. Quando me virei para fechar a porta, a minha irmã disse:
- Ciarán é a outra parte disto, Sibeal. Amanhã, tens de falar com ele.
Felix
Ao sair do Liadan e pisar terra firme, senti-me forte. A missão fora concluída, e eu podia dizer ao meu irmão que tinha cumprido a minha palavra. Fora corajoso.
Depois de desembarcarmos, Sibeal foi à cabana de Clodagh e não voltei a vê-la. Sigurd levou-me para os banhos, e voltámos a sair com roupas lavadas e um odor adequado à vida em sociedade. No salão, comemos peixe cozido com legumes assados. Um banquete digno dos deuses. Gull ajudou-me a levar as minhas coisas para fora da enfermaria, para dar lugar a Thorgrim, e Sigurd arranjou-me uma cama na camarata dos homens. Deitei-me quando o Sol se pôs e, se sonhei, não me lembrava de nada ao acordar. Só trago uma coisa em mente. O dia de hoje encerra um novo desafio: tenho de falar com Ciarán.
Encontro-o lá fora, sentado nas rochas, fitando o recife onde o Freyja naufragou; o lugar onde o Ankou se ergueu dos mares e levou o meu irmão. O mestre de Sibeal é um homem de formidável aparência, com a sua pele clara, o cabelo de um ruivo profundo, os olhos da cor das amoras maduras. As feições são atraentes, mas há nele uma reserva que o torna distante. Tal como Cathal, este homem tem um toque do outro mundo. Ao olhar para ele, penso num poço mais fundo do que a tristeza, na sombra da Lua, em domínios que a humanidade não alcança. Quase receio incomodá-lo, mas subo o caminho e saúdo-o com cortesia.
- Mestre Ciarán, gostaria de falar-lhe.
Ele levanta-se. Os seus movimentos são fluidos. Sibeal disse-me que ele era tio do pai dela, mas não pode ser tão velho. Impossível. Parece ter quarenta anos, no máximo.
- Felix. - O tom não é caloroso, nem frio. - Caminhamos juntos?
Tenho tudo planeado, o modo como lhe farei a minha proposta, como me manterei calmo, uma vez que um homem como ele não ficará bem impressionado se eu me deixar dominar pelos meus sentimentos. É uma pessoa de erudição e subtileza. Eu sou um estudioso. Nesta luta, é possível que isto seja a minha melhor arma.
- Desejo falar-lhe a respeito do futuro - começo por dizer, enquanto percorremos o caminho. Seria mais fácil fazê-lo se estivéssemos sentados, em frente um do outro, para eu poder ver o seu rosto. Mas Ciarán quer caminhar, e nós caminhamos.
- Ah.
Parece que ele não vai ajudar-me.
- Sibeal e eu tornámo-nos muito próximos durante o Verão. - Voz calma, postura relaxada. Requer tão-só uma respiração pausada e concentração. Tento lembrar-me disso. - Fiquei muito impressionado com aquilo que ela tem feito e com o que me ensinou acerca da via druídica. Fui criado na fé cristã, mas a minha crença foi destruída pelos maus actos que vi serem praticados em nome da Igreja. Foi por isso que saí de casa; porque não conseguiria ficar em silêncio.
- Hum. - Ele continua a andar, a um ritmo certo.
- Este Verão, durante a nossa estranha aventura, comecei a ver um vislumbre de luz na escuridão espiritual que senti ao deixar a minha terra. A inabalável fé de Sibeal nos seus deuses abriu a minha mente ao que é real e verdadeiro. Contemplei a profunda magia da terra, do céu e do mar, e presenciei os extraordinários talentos de um druida para comunicar com os outros, fazer a paz, encontrar soluções para problemas impossíveis. Mestre Ciarán, sou um estudioso desde os meus doze anos de idade. Adoro ideias. Adoro ler e escrever. Adoro o debate e a descoberta. Existe em mim uma ânsia por aprender mais. Não posso voltar para casa; a minha franqueza valeu-me a fúria do nobre ao serviço do qual o meu pai está empregado. Se voltasse para trás, poderia pôr a minha família em perigo. Não ficarei na corte de Munster, onde eu e o meu irmão trabalhávamos, porque só encontraria memórias cruéis. Estava com esperança de que...
Faço uma pausa quando chegamos a uma couceira. Ciarán espera que eu passe primeiro. Não diz uma palavra enquanto trepo a vedação e passo para o outro lado. Vejo-o repetir o movimento, com a sua elegante economia de gestos.
- Estava com esperança de que talvez houvesse um lugar para mim entre os seus noviços, em Sevenwaters. - Pronto, já o disse. Agora, não me atrevo a olhar para ele. Encoraja-me o facto de não ter desatado numa gargalhada trocista. - Estou preparado para trabalhar arduamente. Para aprender. Já terá ouvido, por certo, a história da nossa missão. Penso que ela mostra que sou um homem de princípios. Não fui educado na vossa fé, mas creio que há nela uma vida inteira de aprendizagem, e o conhecimento é algo que amo e respeito. Possuo algumas ferramentas que poderiam ser úteis: línguas, o talento de um escriba.
- E a voz, já ouvi dizer - diz Ciarán, que podia estar a pensar em qualquer coisa, tão indecifrável é o seu tom.
- Sei cantar, sim. E sei escrever poemas. - Pergunto-me quem lho terá dito.
- Vamos sentar-nos aqui um pouco. - Ciarán senta-se numa rocha adequada; eu procuro outra. Olho-o nos olhos e não fico a saber mais do que.
- Felix - diz -, Sibeal é a noviça mais notável que entrou nos nemetons de Sevenwaters desde que há memória. Possui alguns dons muito especiais, dons que acreditamos ser talvez a única a possuir. Terás porventura visto alguns em acção, durante a tua missão. Os seus dons tornam-na preciosa para a nossa comunidade, não apenas nos nemetons de Sevenwaters, mas em toda a terra de Erin. Porém, também a tornam vulnerável.
O silêncio arrasta-se enquanto tento adivinhar o que ele pretende de mim.
- Compreendo - acabo por dizer.
- Compreendes? Não me parece. Depois de um Verão incompleto de convívio, estás convencido de que conheces Sibeal. Sim, é verdade que viste um pouco do seu talento; um vislumbre das suas nobres qualidades. Mas o teu conhecimento de Sibeal é uma gota no oceano; uma folha de erva num prado. Sibeal é minha parente, minha favorita, minha pupila. É-me mais chegada do que uma filha. Ensinei-a e guiei-a desde os seus doze anos. Será uma druidesa de extraordinário poder e bondade. Nos nemetons, pode desenvolver os seus dons até à sua expressão máxima. E pode ser protegida.
- Protegida? Do quê? - Já não sou capaz de serenar a voz; vibra nela o meu ultraje. Respiro fundo, uma, duas, três vezes, como ela faria.
- De si própria, talvez.
Conto até dez, em silêncio.
- Sibeal é diferente de todas as pessoas que conheci até agora - replico. - Rara, preciosa e maravilhosa. A estrela mais brilhante que há no céu; a flor mais bonita do campo; a mais subtil e cativante das histórias. A mais bela nota de uma harpa. Conheço-a. A sua vocação pode ser forte como o ferro, mas ela está muito infeliz. Se lhe é assim tão próximo, não consegue ver isso?
- Responde-me a uma pergunta, Felix.
Aguardo.
- Pedes um lugar nos nemetons, em Sevenwaters. Estás a dizer-me que possuis uma vocação espiritual?
Respira, Felix. Acalma-te.
- Isso depende da sua definição de vocação, mestre Ciarán. Não fui visitado por presenças do Outro Mundo, como Sibeal, na infância. Não ouvi as vozes dos deuses ou dos espíritos a sussurrarem-me ao ouvido. É como descrevi antes: o sentimento de que uma luz me tocou num lugar que eu julgava condenado à escuridão eterna. Uma pequena vela nas masmorras da dúvida, mas uma luz, ainda assim. Vi-a no dom de Sibeal a lançar as runas, na sua habilidade para comunicar com Svala, a mulher do mar, na sabedoria das suas histórias e na bondade do seu conselho. Vi-a na amizade de Gull, uma amizade que me chegou sem condições. Vi-a na coragem pura do meu irmão. Agora, vejo-a todos os dias no poder das ondas, no voo das aves marinhas, no bailado veloz das nuvens no céu. Ouço-a no choro de um bebé recém-nascido. Vejo-a no rosto tranquilo de um homem velho à espera da morte. Apele de pergaminho do meu avô; a sua voz suave e sedutora, a contar-me histórias. Os seus olhos fechando-se pela última vez, com tão pouca surpresa como se fizesse uma sesta a meio da tarde. Quando o Ankou veio buscá-lo, apareceu docemente.
Ciarán observa-me durante algum tempo. Parece estar a ponderar as minhas palavras com cuidado. Permito que uma esperança frágil entre no meu coração.
- Imagino que tenhas coisas para fazer - diz. - Ouvi uma boa parte da tua história contada por Johnny e por Gareth. O rei de Munster vai precisar do teu relatório, no mínimo. Não abandonarás esse posto sem alguma negociação.
Espero pela parte seguinte: Mas, depois disso, se não tiveres mudado de ideias, podes vir a Sevenwaters para um período de ensaio.
- Vem ter comigo daqui a dez anos - convida. - Nesses dez anos, vive a tua vida. Os teus pais já perderam um filho. Só os castigarás ainda mais se permitires que os teus princípios te impeçam de ir para casa. Deixarias que um desconhecido desse à tua mãe a notícia da morte do seu primogénito? Faz as pazes com a tua família. Trabalha com afinco enquanto escriba, tradutor, poeta, amante de ideias. Se não tiveres mudado de ideias daqui a dez anos, vem a Sevenwaters falar comigo outra vez.
É como se me tivesse batido. A fúria tira-me o fôlego e um desgosto amargo enche-me o coração. Domino o impulso de gritar com ele.
- Dez anos - digo e, apesar do meu esforço, a voz treme-me. - É muito tempo.
- Tu és jovem. Sibeal é ainda mais jovem. Vocês os dois juntos, no ambiente austero e celibatário dos nemetons, em Sevenwaters... Não me parece.
- Eu...
- Felix. És transparente. Os teus sentimentos por ela estão escritos em toda a parte do teu ser. Vi-o no momento em que vocês os dois saíram do barco. Esse plano não é mais do que um espinho no teu caminho, e no dela também. Volta para casa, para a Armórica. Antes de cumpridos dez anos, já terás encontrado uma mulher, sido pai de um filho ou dois e feito os teus pais felizes.
Levanto-me de um salto, demasiado zangado, agora, para medir as minhas palavras. Encaro directamente o olhar impassível do druida. Endireito os ombros.
- Subestima aquilo que eu sinto, e que ela sente, quando fala assim - digo. - O que existe entre nós é profundo como a terra, vasto como o céu, infinito como o grande oceano. Negá-lo é o mesmo que negar a mudança das estações, o fluxo e refluxo da maré, as viagens do Sol e da Lua. Sempre respeitei a vocação de Sibeal. Não tentei desviá-la do seu caminho contra a sua vontade; a única coisa que fiz foi confrontá-la com a necessidade de ser honesta nas suas escolhas. Sei quão infeliz se sente. Angustia-a a despedida iminente. Aquilo que sugeri não é o que o meu coração mais deseja. Não faço segredo disso. Quero que ela me escolha como marido e pai da sua filha. Sei que a rapariguinha que lhe apareceu em visões é nossa filha, dela e minha.
Uma mudança subtil aflora ao rosto de Ciarán, disfarçada quase no instante em que aparece.
- Mas Sibeal acha que não existe uma terceira via, um compromisso em que ela pudesse honrar tanto os seus sentimentos por mim como o seu amor pelos deuses - prossigo. - Não posso deixá-la para sempre, mestre Ciarán. Não suporto a ideia de me separar dela. Se não pudermos ser marido e mulher, então, deixai-me ficar perto dela, deixai-nos viver como colegas. - Inclino a cabeça. - Nunca desposarei outra mulher. Ela é a outra metade de mim.
- Tens a certeza de que os sentimentos de Sibeal são tão poderosos como os teus?
Naquele momento, só me apetecia estrangulá-lo.
- Talvez ignore o seu desgosto como um sentimento fugaz e insignificante - replico. - Talvez não a conheça tão bem como pensa.
Ciarán abre a boca, e espero que me diga algo como Tudo é passageiro, ou, Tu és jovem. Mas o que diz é:
- Respeito o teu sofrimento, Felix. Diz-me, quantos anos tens?
- Estou no meu vigésimo ano, mestre Ciarán. Dir-me-á, sem dúvida, que sou muito novo para saber do que falo; muito jovem, ainda, para compreender o verdadeiro amor, com a sua felicidade louca e os seus ácidos desgostos.
Ele olha, então, para mim, e os seus olhos estão cheios de uma terrível tristeza.
- Aos dezanove - replica - compreendemo-lo demasiado bem. Voltaremos a falar, Felix. - Levanta-se, acena com a cabeça e sai.
Voltaremos a falar. Rir-me-ia desta frase se não estivesse tão cheio de amargura e de raiva. Dir-se-ia um desses contos cruéis de amantes separados.
O herói pode conquistar a sua senhora se levar a cabo uma missão, e a missão dura tanto tempo que, quando ele regressa para reclamá-la, já são ambos velhos e grisalhos e incapazes de sentir os prazeres da carne. Ou pior: ela morreu ou casou-se com outro homem. Após dez anos passados nos nemetons, Sibeal ter-se-á tornado igual ao seu mestre, tão embrenhada no estudo da doutrina e no amor dos deuses que já terá esquecido qual é a sensação de chorar, gritar, rir e estar viva. Se se lembrar de mim, será com arrependimento e bondade, não com amor e desejo.
Corro. Não consigo parar de correr. Corro até sentir o peito a explodir, a respiração a assobiar, a cabeça a andar à roda. Quando já não posso avançar mais, detenho-me no cimo da falésia e lanço pedras para o abismo.
Cada projéctil leva a minha raiva para o resto do mundo. Não tenho palavras para descrever o que sinto; sei apenas que o meu coração pode rebentar. Fico sem pedras para lançar. Por toda a parte à minha volta, gaivotas levantam voo gritando o seu protesto alarmado. Quedo-me, a respirar. Devagar, peça a peça, Inis Eala regressa, nítida, à minha volta. As ondas ao longe, a embater na base da falésia. O mar estendendo-se à minha frente, transformado pelo sol de Verão num tapete de verdes e azuis profundos e ouro reluzente. Os pássaros. O espaço imenso e aberto. Coisas mais pequenas: uma espécie de feto brotando das rochas entre os meus pés; um junípero, a alguma distância, como uma velha mulher tenaz resistindo ao vento oeste. Deve haver algo a aprender com aquilo que aconteceu hoje. Um druida encontra uma lição em tudo, no êxito e na catástrofe, no triunfo e na amarga derrota. Na destruição desse belo sentimento que floresceu entre mim e Sibeal, não encontro nenhuma sabedoria.
Levo algum tempo a regressar à povoação; o Sol já vai alto no céu. Quando procuro Sibeal, descubro que ela ignorou o conselho de Muirrin para descansar e foi à Gruta do Vidente. Esperam que regresse apenas à hora do jantar. A caminho da camarata dos homens, Sigurd vem buscar-me - Johnny quer falar comigo.
Sigurd leva-me até ao recinto de treinos. Passamos pelo portão de ferro. Pares de homens fechados em combates intensos e habilidosos pululam na zona aberta. As espadas parecem ser a arma do dia. Rat está de pé em cima de um banco, de braços cruzados, olhos semicerrados a observar a cena. Snake está no lado oposto, numa pose semelhante.
- Os homens de Connacht estão a chegar ao fim do seu treino - comenta Sigurd. - Em breve, haverá a última exibição de técnicas de combate antes de deixarem a ilha. Johnny vai enviar algumas espadas novas com eles. Não é uma compensação; a morte de Rodan foi acidental. Mas um presente como este silencia todos os rumores de negligência. Foi isso que ouvi dizer. Por aqui, Felix.
Entramos numa pequena câmara, instalada no interior da dupla muralha maciça que cerca o recinto. Johnny, Gareth e Gull estão sentados a uma mesa na qual se espalharam documentos e material de escrita. Vejo um mapa que mostra o litoral sul de Erin, a Bretanha e parte da Gália. Sigurd fecha a porta, permanecendo no interior.
- Sê bem-vindo, Felix - diz Johnny. - Senta-te, por favor.
Johnny já me felicitou pelo regresso seguro dos três homens abandonados; falou com todos nós, um de cada vez, na noite anterior, antes de nos irmos deitar. Agradeceu-me pessoalmente por ter mergulhado em socorro de Gull, embora a nossa sobrevivência naquele estranho dia pouco devesse à minha intervenção. Como chefe, Johnny não falha em nada.
- Vou direito ao assunto - prossegue, agora. - Gull disse-me que tanto Donn como Colm estarão aptos a regressar a casa dentro de dez dias, desde que seja reunida a escolta adequada. Desconheço quais são os teus planos a longo termo, dado o desaparecimento do teu irmão, mas terás de daralguma satisfação ao rei de Munster acerca da viagem e das vidas que se perderam, pelo menos. Os objectos que recuperámos do Freyja devem ser-lhe devolvidos. Gull diz que seria ideal para Colm se tu o acompanhasses na viagem. Parece que sofre de pesadelos.
- Ele vai precisar de mim, sim - respondo. - Quando chegar a casa, recuperará mais depressa. O pai é um dos camareiros de Muredach; a mãe trabalha na corte como costureira. Ele tem irmãos e irmãs.
Que sorte a de Colm. E que azar, por ter assistido a tais horrores antes mesmo de tornar-se um homem. Quando se vir a salvo, na sua terra, é possível que nunca mais queira voltar a sair.
- Lamento que tenhamos de resolver isto tão cedo após o teu regresso, Felix - diz Johnny, numa voz calma. - Mas sei que tens deveres a cumprir noutro lugar. Quais são os teus planos depois de falares com o rei Muredach? Pensas ficar na sua corte durante algum tempo? A julgar pela história que nos contaste naquela noite, imagino que seja difícil para ti regressares a Armórica.
Johnny tem o cuidado de não me perguntar quem levará a notícia da morte do meu irmão à minha mãe e ao meu pai.
- Não vou demorar-me na corte de Muredach - respondo. - Lamento muito não poder levar a má notícia pessoalmente aos meus pais. O Duque Remont não é um governante justo. Deixa-se influenciar pelos bispos locais, que eu enfureci por falar com demasiada liberdade. A minha simples presença, na melhor das hipóteses, custaria ao meu pai a posição que ele detém há vinte anos. Mas podia custar-lhe mais do que isso. Não posso correr esse risco. Creio que terei de enviar uma carta. Tal carta tarda em ser escrita. Não tenho tido coragem de executar essa tarefa.
Sigurd pigarreia.
- Temos uma proposta para te fazer, Felix - diz Johnny.
Dou-me conta de que esta proposta não tem grande significado para mim. Depois da conversa com Ciarán, sinto-me destruído e esgotado, sem grande interesse no futuro que me aguarda.
- Sim? - replico.
- Lembras-te que falámos do meu companheiro da Armórica, Corentin - diz Sigurd. - Um elemento nuclear da equipa de Inis Eala; um homem corajoso, de bom fundo, grande amigo meu. Desde a nossa conversa, pus-me a pensar como seria bom saber como ele está e se sempre conseguiu recuperar as terras da família. Expliquei a Johnny aquilo que tu me contaste, que a região onde vive a tua família é próxima do lugar para onde Corentin se dirigia quando regressou a casa. Johnny deu-me licença para eu te acompanhar, Felix. Se formos dois, a tarefa de fazer chegar Donn e Colm, sãos e salvos, a Munster será mais leve. Pensei que, se não tencionas ficar na corte, talvez pudéssemos embarcar numa nave com destino à Armórica.
Preparo-me para interromper com argumentos que invalidam este plano, mas Sigurd levanta a mão para me silenciar.
- Sei por que razão te sentes relutante em ir, e respeito isso, Felix. Mas a questão é que Corentin já deve ser, por esta altura, um opulento proprietário de terras, um homem influente na região. Mesmo que não possas ir a tua casa, se o encontrarmos, ele estará bem posicionado para fazer chegar um mensageiro pessoal aos teus pais, alguém que possa dar-lhes a notícia de uma maneira delicada. Se o teu pai puder viajar, talvez possamos combinar um encontro seguro. Somos homens de Inis Eala, Corentin e eu. Peritos na organização deste tipo de coisas. - Um momento depois, acrescenta: - Gostava de voltar a vê-lo.
As suas feições grandes e rudes são suavizadas por um olhar que me desarma. E a verdade é que não tenho mais nenhum lugar para onde ir. Não agora. Dez anos de vazio estendem-se à minha frente.
Há uma coisa que me perturba.
- O meu irmão veio comigo para Erin - replico -, e acompanhou-me até ao Norte, para tomar conta de mim. Pelo cuidado que tinha comigo, Paul pagou com a vida. Não quero que o mesmo destino se abata sobre outro homem bom.
Sigurd lança-me um olhar perscrutador.
- Correr riscos faz parte de ser um homem - replica ele. - Faz parte da vida, Felix. Não podes embrulhar todos os amigos que tens e arrumá-los num lugar seguro, para não tropeçarem ou se magoarem. Ninguém te agradecerá por isso. Se ainda estás a pensar naqueles boatos de infortúnio que te perseguiram no passado, esquece-os. Estou a oferecer-me para ir contigo porque quero e porque acredito que podemos ajudar-nos um ao outro. Isso devia ser suficiente para ti.
Aquiesço. Não posso contestar este ponto.
- Os nossos homens no continente arranjarão cavalos e provisões para a vossa viagem para sul, até Munster - diz Johnny. - Haverá recursos à vossa disposição. Caber-vos-á aos dois decidir como se servirão deles. Que nos dizes, Felix?
- É bom ter um objectivo - respondo. - Fá-lo-ei. Agradeço-vos, a todos vós. Agradeço a fé que têm em mim.
Agora, todos me observam, e vejo que talvez o meu tom não tenha correspondido às minhas palavras. Neste momento, não me é possível parecer outra coisa que não triste.
- Óptimo - diz Johnny. - Deixo-vos, a ti e a Sigurd, definirem os pormenores ao vosso ritmo. Talvez seja melhor não perderem muito tempo, se quiserem garantir uma passagem a partir do Sul, antes do pico das tempestades de Outono. Dei a Sigurd até um ano de licença para se ausentar.
Um ano. Noutra altura, ter-me-ia parecido uma eternidade. Agora, apenas me diz que haverá, a seguir, mais nove anos de espera. Nove anos em que envelhecerei, em que Sibeal envelhecerá, e os nossos caminhos se apartarão ainda mais um do outro.
- Felix. - É Gareth quem fala agora, em voz baixa. Ainda é o homem afectuoso e amável que era antes da viagem e, porém, não exactamente o mesmo. Os olhos são mais vigilantes; a boca parece esconder algo. - Imagino que, neste momento, o futuro distante te pareça, de certo modo, vago. Devo dizer-te que vários de nós, de uma forma independente, sugeriram a Johnny que te oferecesse um lugar em Inis Eala, um lugar permanente, assim que concluíres esta tua outra tarefa, e que Johnny concordou. Podes regressar para aqui quando Sigurd voltar. Os homens têm uma grande consideração pela tua coragem. Acolher-te-íamos como um de nós.
Fico estupefacto. Sei bem que esta proposta é uma honra, quão raramente se oferece um lugar na ilha.
- Não sou um guerreiro - replico - e nunca serei.
- És um jovem de bravura exemplar. - É Gull quem o diz. A sua voz é suave e profunda. Faz-me pensar em sombras e madeira de carvalho. - E isso é uma arma mais forte do que a melhor espada alguma vez forjada, Felix. És um homem de grande coragem. Além disso - acrescenta, com um sorriso travesso -, nós gostamos das tuas canções.
- Obrigado - digo, a todos eles. - Sinto-me mais honrado do que conseguiria dizer por palavras. Muito do meu futuro ainda me é desconhecido. Muito ficou por decidir. Quer o meu caminho me traga de novo para aqui, quer me leve para longe, nunca esquecerei este vosso gesto de reconhecimento para comigo.
Ninguém diz nada. Johnny aquiesce. Gareth sorri. Gull lança-me um olhar que reflecte o seu conhecimento da verdade: que o discurso cortês e o porte sereno mascaram um homem amargurado, desditoso e infeliz.
- Podíamos remar até ao continente e dar uma palavra ao filho de Biddy, Ciem, Felix - diz Sigurd, pousando a mão no meu ombro. - É ele quem se ocupará dos preparativos da primeira parte da viagem. Se formos agora, ainda aproveitamos o fluxo da maré. Ciem dar-nos-á dormida durante a noite e voltamos de manhã.
- Por que não? - replico.
É o princípio do fim.
Capítulo 15
SIBEAL
Ciarán é a outra parte disto, dissera-me Clodagh. A parte espiritual; a parte sábia, ponderada. Acordei de uma noite de sonhos labirínticos e soube que não estava preparada para enfrentá-lo. Que poderia eu dizer-lhe? Que me sentia dividida entre dois caminhos e já não conseguia pensar com clareza? Que tornara a encharcar a almofada de lágrimas e, quando sucumbira por fim a um sono agitado, Felix invadira todos os meus sonhos? Como poderia eu explicar ao meu sábio parente que o meu corpo ardia de desejo pelo toque das mãos dele e pelo calor dos seus lábios nos meus? Como poderia eu dizer-lhe que me arrependia agora de não termos fugido juntos, naquela noite de luar, a noite em que os Seres Cinzentos tinham conversado com Cathal na Ilha da Serpente? Como poderia eu admitir que desejava que tivéssemos encontrado um recanto escondido e dado prazer um ao outro? Pelo menos, levaria essa memória comigo para um futuro de austeridade e reclusão. Como poderia eu dizer ao meu mestre que as vozes dos deuses tinham caído num silêncio cerrado e profundo?
Não era capaz de enfrentar ninguém. Precisava de estar sozinha. Vesti-me e afastei a cortina para o lado, vendo que Evan já se tinha levantado e estava a cuidar de Thorgrim.
- Evan? Se alguém perguntar onde estou, por favor, diz-lhes que fui passar o dia à gruta. Regresso à hora do jantar.
Retirei-me e saí pela minha porta antes que ele pudesse verbalizar a dúvida que eu lhe via no rosto. Não havia sinais de Fang nessa manhã.
Talvez fosse cedo, até para ela. Mas não para toda a gente. Enquanto me dirigia ao trilho da falésia, vi dois vultos lá em baixo, à beira de água, perto da cabana do pescador, profundamente absorvidos numa conversa. Um deles usava a túnica do druida, o outro estava vestido de preto dos pés à cabeça. Um tinha o cabelo de um vermelho profundo, o outro era escuro como a noite. Ciarán e Cathal. Estremeci. Enredada nas minhas próprias angústias, tinha perdido de vista aquilo que os esperava a ambos e, talvez, a todos nós. Para lá da fronteira segura de Inis Eala, Mac Dara continuava à espreita. Pensei nos minúsculos amuletos pendurados nos pescoços frágeis dos dois bebés. E se um talismã fosse perdido ou se partisse? E se o cordão se rompesse? E se a criança estivesse a brincar na rua e... Não, não ia pensar nisso. Assim que imaginei Firinne e o irmão com três ou quatro anos, vi a minha própria filha a correr, a trepar e a ser lançada ao ar pelo pai, também ela com o seu talismã à volta do pescoço, e isso era simplesmente demasiado difícil de suportar.
Passei pela enseada onde Svala se acocorara sobre uma pilha de espinhas de peixe. Passei pelo lugar onde ela empurrara Rodan para o abismo da morte. Agora, quase a compreendia. Fora escravizada por Knut, vergada à sua vontade, obrigada a partilhar o seu leito, embora só desejasse fugir de ao pé dele; aquele pequeno fragmento de pele bastara para lhe dar poder sobre ela enquanto estavam perto, pelo menos até chegarmos à Ilha da Serpente e o grito do seu amante lhe instilar uma nova coragem nas veias. Mas Rodan não possuía semelhante talismã e, quando se aproximou dela, Svala fez-lhe a ele o que há muito desejava fazer ao homem que lhe chamara sua mulher. O homem que a roubara à terra onde vivia, que mentira a respeito dela e que a usara como se fosse um objecto, não uma mulher viva, que respira. Uma criatura viva, que respira. Deuses, aquela história fazia lembrar uma antiga epopeia de monstros e heróis.
Ponderando isto, cheguei à passagem estreita no rochoso promontório e esgueirei-me para dentro da gruta de Finbar.
Àquela hora da manhã, a gruta estava mergulhada na penumbra. Sombras azuis reflectiam-se nas esquinas, e a água do lago jazia, negra, por entre as rochas. Estendi-me sobre as lajes planas, de súbito tão cansada como se tivesse escalado uma montanha. Não me parecia que valesse a pena tentar a prece, a adivinhação ou a meditação. A minha mente fora tomada por Felix: Felix lançando-se do barco e desaparecendo por debaixo de água, Felix desafiando-me a ser honesta comigo mesma, Felix usando a runa Is para me explicar que tinha perdido a memória. Felix olhando, maravilhado, para o talismã que lhe fora oferecido para proteger a nossa filha - como teriam aqueles Seres Cinzentos sabido da sua existência, se ela não estava destinada a existir? Felix com os braços à minha volta e os lábios encostados aos meus. Felix a cantar enquanto avançávamos, escuridão dentro, às cavalitas do monstro. O meu belo, corajoso homem.
Fiquei ali deitada muito tempo; talvez tenha dormido. Quando abri os olhos, a gruta estava muito mais clara. Ao sentar-me, vi o lago à minha frente encher-se de uma ténue luz dourada. Não esperara ter visões. Não esperara nada, a não ser, talvez, no silêncio da gruta, conseguir ordenar os meus pensamentos. Mas ali, na água, estava a silhueta de um homem.
Um homem alto, de cabelos castanhos, um jovem bem constituído, com uma boca bem-humorada e risonhos olhos azuis. Não era Finbar. Era Paul.
Paul, que agora jazia sob um monte de terra no lugar do enterro do barco.
No interior da gruta, reinava o mais absoluto silêncio, mas ouvi a sua voz em pensamento. Quero que ele saiba que estou satisfeito, disse-me. Não quero que sinta qualquer arrependimento pelo que aconteceu. Nós sempre soubemos, o meu pai, a minha mãe e eu, que era ele quem deixaria a sua marca no mundo, quem abriria novos caminhos, quem descobriria trilhos nunca antes explorados. Estava dentro dele desde o início, quando era apenas um rapazinho.
Não tem culpa que eu tenha desaparecido. Fiz a minha escolha e foi aqui que ela me trouxe. Ele devia seguir caminho, falar alto, ser o homem corajoso que sempre foi. Não creio que alguma vez se tenha apercebido do orgulho que o meu pai sentia por ele; não creio que o meu irmão alguma vez se tenha dado conta de quão rara é a sua coragem. Paul olhou para fora da água, para os meus olhos, e sorriu. Contigo ao seu lado, ele será feliz, disse, enchendo-me os olhos de lágrimas. Toma conta dele, sim? E, com uma leve ondulação e uma sombra passageira, desapareceu.
- Não posso - soprei para o silêncio. - Não posso fazê-lo. Não posso honrar os teus desejos. Não posso obedecer aos deuses. Não posso fazer nada.
Pelos vistos, ainda não tinha chorado todas as minhas lágrimas, pois corriam agora como no dia anterior, impotentes, as lágrimas de uma criança perdida num labirinto, a quem já não restavam muitas alternativas. Solucei até me pingar o nariz e arder o peito. Já não sentia uma gota de força druídica dentro de mim e, de qualquer modo, não tinha a certeza de a querer. Enterrei a cabeça nas mãos e deixei-me tomar pela dor.
Muito tempo depois, quando o pior já tinha passado, levantei a cabeça, limpei a cara à manga da túnica e reparei que já não me encontrava sozinha na gruta. Ciarán estava sentado a escassa distância de mim, na sua pose habitual, de pernas cruzadas e costas direitas, sem olhar na minha direcção. Esperava, apenas, os olhos calmos e claros contemplando a outra margem do lago. Dentro de instantes, perguntar-me-ia o que se passava. Eu não sabia que resposta dar-lhe.
- Talvez ajude se eu te disser que estou ciente de que travas, neste momento, uma luta com a tua vocação, Sibeal, e que sei que o teu jovem armórico, Felix, é parte do problema. Não fiques tão admirada; bastou-me vê-lo pegar na tua mão, no cais, para me aperceber do laço que existe entre os dois.
- Eu... não posso... Não compreenderias. Nem mesmo eu compreendo.
Se era isto que significava crescer, ocorreu-me que talvez preferisse ser uma criança para sempre. E, no entanto...
Ciarán dirigiu-me um sorriso reservado.
- Experimenta-me, Sibeal.
- Não vais gostar.
- Sabes fazer melhor do que antecipar a minha resposta. Vejo quão infeliz te sentes. Diz-me porquê.
Respirei fundo, trémula.
- Ciarán, eu amo Felix. Amo-o com todo o meu coração. Ele transformou a minha vida. Até este Verão, nunca tive a mais ínfima dúvida a respeito da minha vocação. Sabes bem como me esforcei no estudo, como me apliquei na aprendizagem, como tentei, em todos os momentos, ser a melhor druidesa que podia ser. Agora, a dúvida consome-me. As vozes dos deuses já não vêm ao meu encontro com a facilidade com que vinham noutros tempos; muitas vezes, estão silenciosas. - Estremeci, dando-me conta de que não era capaz de olhá-lo nos olhos. Ciarán ia ficar tão desiludido comigo. Chocar-se-ia com a minha fragilidade. - Adoro a vida nos nemetons, com a sua tranquilidade e o seu desígnio. Na viagem até à Ilha da Serpente, descobri novas maneiras de usar os meus dons, maneiras que eu não suspeitava que fossem possíveis. Amo os deuses, e acredito que ainda me chamam para os servir. Mas também amo este homem; quero ser sua mulher e dar à luz os seus filhos. Quero a vida que Clodagh tem, cheia de ternura, paixão e surpresas. Não posso ter ambas as coisas. Felix falou-me de outros caminhos, de compromisso, mas, na verdade, não existem outros caminhos. Só existe esta escolha. Esta escolha impossível.
- Diz-me por que é impossível.
- Porque... porque seja qual for a decisão que eu tomar, levarei uma vida de arrependimento. Se me casar com Felix e me afastar do caminho druídico, pensarei para sempre na vocação para que fui chamada em criança, na paz dos nemetons, na miríade de atalhos que existem na mente, no companheirismo de outros estudiosos, na prodigiosa oportunidade de servir os deuses com tudo o que tenho dentro de mim. E, se tiver de abdicar de Felix, não serei a druidesa que devia ser. Parte de mim nunca deixará de pensar nele, de imaginar onde se encontra, e se sonha comigo, chorando pela vida que poderíamos ter tido juntos.
- Felix deve ser um jovem notável - replicou Ciarán, numa voz serena -, para ter despertado em ti, em tão pouco tempo, tais sentimentos.
- Irás talvez desvalorizá-lo como um amor ainda jovem, uma paixão que arde com esplendor e se extingue depressa, a chama de uma vela que treme e se apaga à primeira corrente de ar frio - disse. - Mas não é assim. Peço-te, acredita em mim. Felix e eu pertencemos um ao outro. Amo-o como a minha outra metade, aquele que me completa na perfeição. Amo-o de corpo e alma. É um homem bom, excepcional, um erudito e um pensador, sensível e sábio. E corajoso; extraordinariamente corajoso. Não há outro como ele.
Ciarán uniu as palmas das mãos e encostou as pontas dos dedos à boca. Parecia estar a ponderar os meus argumentos.
- Sei o que vais dizer - continuei. - Que o amor aos deuses deverá sempre pesar mais do que o amor entre um homem e uma mulher. Dir-me-ás que, com o tempo, acabarei por esquecer; que a dor vai desaparecer. Mas não vai, Ciarán. Este amor é profundo e duradouro. É vibrante como as notas da harpa e resistente como o coração de uma pedra. É imenso como o céu e vasto como o oceano. É grandioso como uma montanha altíssima; encantador e delicado como uma solitária gota de orvalho.
Ciarán sorriu.
- Pareces invulgarmente disposta a pôr palavras na minha boca - disse ele.
- Desculpa - repliquei. - Mas pareceu-me evidente que conselho me darias. Dedicaste anos da tua vida aos deuses. Se não fosse o facto de Conor ser teu irmão e de seres incapaz de questionar a sua autoridade, já serias chefe-druida há muito tempo. És respeitado, em toda a terra de Erin, pela tua erudição e sabedoria. Não vais aconselhar-me a abandonar tudo e a fugir para me casar.
- É verdade, Sibeal, eu não o faria. Raramente digo a alguém o que fazer, e ainda menos a um companheiro druida.
Esperava que ele me dissesse A resposta está dentro de ti, ou Há conhecimento até na perda.
- Sibeal - continuou, e vi no seu rosto uma expressão que nunca tinha visto antes, uma expressão de profunda tristeza. - Vou contar-te algo que nunca contei a ninguém. Não há um dia que passe, um único dia, em que eu não chore a morte de Niamh. Não há uma hora que passe que eu não deseje que a minha vida tivesse sido diferente, e que não a tivesse perdido uns escassos três anos depois de tê-la reencontrado. A todos os instantes do dia, ela povoa os meus pensamentos, sacudindo o cabelo, olhando-me de relance por cima do ombro, dançando no prado, embalando a nossa filha nos seus braços. Se pudesse tê-la de volta, deixaria a irmandade sem pensar duas vezes. Ela era a luz da minha vida. Era a outra parte de mim. Éramos jovens quando nos vimos pela primeira vez, como tu e Felix, e, assim que os nossos olhares se cruzaram, fui transformado por ela. Amávamo-nos da maneira que descreveste, de corpo e alma, para sempre e a todos os momentos. Oh, Sibeal, sei precisamente o que vocês os dois estão a sentir. E também sei o que é viver uma vida inteira de arrependimento por não termos seguido esse caminho. Roubou-mo a morte. Não tive escolha. Mas tu foste abençoada, Sibeal. Tu tens essa escolha.
Sentia-me tão abalada pela paixão das suas palavras que mal conseguia responder.
- Desculpa. - A minha voz tremia. - E perdeste Fainne, também. Vi a minha própria filha, Ciarán. Vi-nos aos três, juntos, numa casinha na floresta. Felix, eu e uma criança amorosa com olhos iguais aos meus. Magoou-me vê-la e saber que a mim pertence a decisão de ela não nascer. Parece-me tão errado. Tão contrário a tudo o que sei enquanto druidesa. Tão contrário ao conhecimento de que todos os seres vivos são sagrados.
- Creio que te ensinei demasiado bem - replicou Ciarán. Parecia calmo, agora, mas tinha as mãos unidas com força, os nós dos dedos esbranquiçados. - Sim, perdi Fainne, mas foi diferente. Sei que a minha filha está viva e que tem um companheiro do peito e está a fazer um grande trabalho ao serviço dos deuses. Vejo-a em visões; ela vê-me a mim. Não é assim tão cruel. E tenho-te a ti, Sibeal. Tu tens um pai sábio e extremoso, mas há muito tempo que te vejo como minha segunda filha. Magoa-me ver-te tão infeliz. Aí está, agora disse algo inapropriado para um druida, portanto, estamos em pé de igualdade. Deixa-me fazer-te uma pergunta.
- Que pergunta?
- Disseste que Felix te falou de uma hipótese de compromisso. Parece-me que há uma solução possível para o vosso problema. Depende do ponto a que estás preparada para levar esse compromisso. Não se trata de tudo ou nada, Sibeal. Tens, pelo menos, uma outra alternativa à tua disposição.
Eu mal conseguia respirar, quanto mais falar. Não me atrevia sequer a ter esperança.
- Existe uma comunidade no Sul, em Kerry. Chamam-se a si próprios Irmãos de Brighid. São seguidores fiéis da velha fé, mas não são druidas. Pelo menos, não no sentido que tu e eu damos à palavra. Vivem em comunidade, e há casais e crianças no seu seio. Dão à doutrina e à oração uma ênfase muito menor do que nós estamos habituados a dar nos nemetons.
Há menos rigor, menos disciplina; uma maior liberdade de pensamento, demonstrada em vigorosos debates nocturnos; são tão amantes destes debates como da música que compõem. Mas, acima de tudo, mostram o amor que têm pelos deuses no trabalho diário, seja na terra que cultivam, seja lá fora, no mundo exterior, onde são professores e curandeiros, executam rituais fúnebres e a cerimónia dos Punhos Ligados, confortam os moribundos e conduzem os ritos sazonais para as gentes da terra e para os pescadores. É uma vida muito diferente, Sibeal, longe de Sevenwaters. Conheço várias pessoas que lá vivem e só tenho coisas boas a dizer a seu respeito. Estou convencido de que vos acolheriam, a ti e a Felix, nos seus lares e nos seus corações. Em troca, terás muito para lhes oferecer, e acredito que ele também.
Fitei-o, incapaz de pensar para além das emoções contrárias que me invadiam: alegria, horror, esperança, choque, incredulidade.
- Tu... tu... estás a aconselhar-me a desistir da minha vocação?
Ele tornou a sorrir, mas os seus olhos estavam tristes.
- Sabes, não creio que o esteja. Sim, esta escolha significa que não selarás os teus votos finais em Sevenwaters. Significa que te perdemos para os nossos nemetons, e será, sem dúvida, uma grande perda, para Conor e para mim, sobretudo. Mas, Sibeal, minha querida, o teu espírito é tão grande, a tua fé tão rica, que é indiferente o caminho que escolheres. Quer como mulher e mãe, como druidesa, como professora em Kerry, ou mesmo na corte, na Armórica, se o teu caminho te levar até lá, viverás a tua vida plenamente, com o amor dos deuses. Eles pousaram em ti as suas mãos quando eras ainda uma pequena criança. Nunca vacilaste, Sibeal; e o amor que eles sentem por ti nunca perdeu força, mesmo quando as suas vozes não te alcançavam. Devias ir em frente, com alegria e confiança, sabendo que, seja qual for a decisão que tomares, ela será a decisão certa.
As palavras de Ciarán ressoaram dentro de mim como uma canção. Eram uma dádiva preciosa, tão preciosa como o amor de Felix. Havia nelas uma sabedoria que me daria forças até ao dia da minha morte.
- Mas pensei... não é verdade que me enviaste para aqui porque eu não conseguia fazer frente à tarefa?
- Por vezes, o teu talento é quase esmagador, sim, e isso preocupou-me. Medi-o bem na balança antes de falar-te da comunidade em Kerry. Os teus dons seriam porventura mais protegidos se decidisses ficar na segurança dos nemetons. Mas, com Felix ao teu lado, sei que terás força para viver nesse mundo mais aberto. Sibeal, as razões por que te enviei para Inis Eala são várias. Entre elas, havia o meu desejo de que passasses algum tempo com as tuas irmãs. Queria que chegasses a um entendimento mais profundo daquilo de que terias de abdicar para seres uma druidesa. Não te enviei para aqui para te partir o coração, Sibeal. Não podemos fazer isso, minha querida.
Ciarán deu um passo em frente e pôs os seus braços à minha volta, como um pai faria, e eu agarrei-o, sentindo a sua profunda força passar para mim, e pensando, não pela primeira vez, quão extraordinário ele era, quão sábio e altruísta. Tal como Clodagh. Que sorte tinha eu com a família e amigos.
- Pensa nisto com calma - murmurou Ciarán. - Mas não demores muito. Estive a falar com Johnny. Felix tem muitos assuntos pendentes por tratar, a começar por uma viagem para acompanhar os sobreviventes a Munster. Depois, irá à Armórica levar a notícia da morte do irmão a casa dos pais. É muito provável que se ausente durante um ano, Sibeal, e ele e Sigurd partirão daqui a dez dias.
- Dez dias? - Desencostei a cabeça do seu peito e olhei para cima, para os olhos cor de amora. - Tão cedo?
- Talvez não seja uma coisa assim tão má, se decidires ir para Kerry. Um ano dá-te tempo para falares com o teu pai, para eu falar com Conor e, depois, para nós os dois viajarmos para sul para eu te apresentar aos Irmãos de Brighid. Quando Felix voltar, terás todas as informações de que precisas para saber o que significa esta decisão. É claro que estou a partir do princípio que ele seja receptivo à ideia. Já lhe sugeriste, em algum momento, que ponderasse a hipótese de uma vida espiritual?
- Não, eu... - Deuses, não permiti que isto seja apenas um sonho; que eu acorde e me veja sozinha à beira do lago do vidente, com o coração ainda pesado de desgosto.
- Podes fazer-lhe essa pergunta. Parece que o teu Felix nunca recusa um desafio. Até pode não ter qualquer vocação religiosa, isso depende de como cada um de nós define vocação -, mas, segundo as descrições de Gull e de Johnny, é um homem de bom coração e abertura de espírito. Isso e o laço que tem contigo bastariam para conquistar o ingresso na Irmandade de Brighid. Sibeal, há muito tempo para tu e Felix pensarem nisto. A decisão final pode esperar até ele regressar da Armórica.
- Não preciso de tempo - retorqui, sentindo algo a desabrochar dentro de mim: grandioso, quente e fascinante, feito de Sol e de Lua, de ondas a rebentar e pétalas a abrir e pássaros a cruzar um céu descoberto. Era verdade o que Clodagh me dissera. Eu tinha crescido. Tinha aprendido que ser uma mulher era saber quando manter-me firme e quando aceitar o compromisso. Tinha aprendido a rir e a chorar; tinha aprendido que era, ao mesmo tempo, forte e frágil. Tinha aprendido a amar. Já não era essa árvore rígida e vertical, incapaz de flectir-se e vergar-se, mesmo que a tempestade ameaçasse parti-la ao meio; era o salgueiro que se inclina, estremece e vacila e, porém, continua inteiro. - Se Felix concordar, irei para Kerry. É longe de Sevenwaters; sentirei a falta da família. E a tua falta, e a de Conor e dos outros, mais do que poderia exprimir por palavras. Sei que me sentirei perdida, no início, sem a doutrina e os rituais e tudo aquilo que faz dos nemetons um santuário e um abrigo. Mas tenho a certeza de que esta é a decisão certa. - Pus-me em bicos de pés e beijei Ciarán nas faces, algo que nunca fizera antes. - Acabaste de dar-me um presente maravilhoso - disse-lhe.
- Então, por que choras, Sibeal? - O seu sorriso era um pouco quebrado; seriam lágrimas o que eu via nos seus olhos? - Vai, então, leva esta notícia a Felix. Surpreender-me-ia se ele não concordasse com a proposta. Creio que o encontrarás perto do local onde o irmão foi enterrado. Pelo menos, era onde ele estava quando vim à tua procura. Voltaremos a falar disto mais tarde.
- Não sei como hei-de agradecer-te - disse-lhe, quando saímos da gruta. - Não caberia em palavras.
- Sê feliz, Sibeal. Esse é o único agradecimento de que preciso.
Vi Felix antes de ele me ver a mim. Estava no cimo da colina, no lugar do enterro do barco, sentado numa pedra lisa, com a cabeça inclinada sobre os joelhos levantados. Nunca o tinha visto assim: derrotado. E isso não podia ser, não Felix, que tinha coragem dentro dele para fazer qualquer coisa. Olhei de relance para Ciarán, que parara ao meu lado.
- Vai, Sibeal. Não precisas de mim.
Ciarán seguiu pelo caminho que conduzia à povoação, e eu comecei a subir a encosta. A andar. Depois, quando Felix levantou o rosto e virou para mim os olhos vermelhos inchados, a correr. Levantou-se no instante em que cheguei junto dele e me lancei nos seus braços, fazendo-o cambalear.
- Sibeal, o que foi, o que se passa?
- Eu... Eu... - Isto não era bom; ele julgaria que o desastre se abatera sobre nós. - Felix, eu... - Obriguei-me a recuar um passo, segurando as suas mãos nas minhas. DepressaSibealdiz algo que lhe tire esse olhar perdido do rosto; algo que faça com que tudo fique bem, de repente. - Felix - disse -, eu amo-te. Queres casar comigo e ir viver para Kerry, numa comunidade religiosa? Talvez gostes da experiência, não é como os nemetons, há música e debates e lavoura e muitas outras coisas; diz que sim, por favor, significa que, afinal, podemos ficar juntos e que tudo vai correr bem; eu nem acredito, não acredito que sempre houve esta outra possibilidade, nem acredito que Ciarán está preparado para me deixar ir, até parece julgar que é uma boa ideia...
A torrente de palavras cessou. Olhei para cima, para o rosto de Felix, e vi nele a expressão por que ansiara - a madrugada do prazer, um sorriso de surpresa, os olhos azuis enchendo-se com uma esperança ainda tingida de incredulidade, mas ganhando força a cada momento. Olhei para ele profundamente, absorvendo-o em todos os pormenores, sabendo que haveria sempre mais qualquer coisa para conhecer a seu respeito, todos os dias e todas as noites, até ao fim dos meus anos. O seu sorriso prudente abriu-se num sorriso rasgado, rematado por covinhas.
- Digo que sim, Sibeal, à única parte desse discurso que consegui, grosso modo, perceber. Sim, caso-me contigo. Nem acredito que me pediste em casamento. Mal consigo crer em tudo isto, mas acredito, porque só a mais extraordinária das notícias te poria a rir, a chorar e a correr pela íngreme colina acima, tudo ao mesmo tempo.
- Agora, também tu ris e choras - retorqui, aproximando-me de novo e pondo os braços à volta do seu pescoço, sob a cascata de cabelos cor de avelã. - Parecias tão triste. Não suportei.
- Oh, deuses, Sibeal, diz-me que não estou a sonhar. É real? Poderá ser real?
- É real. Ciarán já o sabia, mas nunca mo mencionou, porque, antes de eu te conhecer, não fora necessário. E, antes de te conhecer, talvez eu própria tivesse desdenhado dos Irmãos de Brighid - é assim que eles se chamam por não serem verdadeiros druidas, porque veneram os deuses com o trabalho das suas mãos, mais do que com a oração e a contemplação. Tu mudaste-me, Felix. Este Verão mudou-me. E, porém, parece que consegui conservar a velha Sibeal e descobrir a nova.
- Fico feliz por isso, minha querida - disse Felix, encostando os lábios, ao de leve, na minha testa, têmpora, face e, por fim, na minha boca. Um arrepio de prazer percorreu-me o corpo. - A velha Sibeal foi a mulher por quem me apaixonei no primeiro dia em que a vi, embora julgasse que fosse fruto da minha imaginação. Adoro a minha pequena e sábia druidesa, com o seu ar controlado e a sua aguda análise de ideias. E adoro a mulher que está agora nos meus braços, Sibeal. De mente, corpo e alma, até ao fim dos tempos e mais além.
- Podias escrever uma canção sobre o tema.
- Espero escrever muitas. Não disseste que esses Irmãos de Brighid gostavam de música?
- Ouvi dizer que a adoravam. Penso que vamos viver muito bem, meu amor. - Falar nestes termos tingiu-me as faces de rosa, o que era uma tolice, na verdade. A sensação, porém, era agradável. - Mais tarde, diremos a Ciarán que nos fale mais desta comunidade.
- Vem, senta-te aqui ao meu lado. - Sentámo-nos, encostados um ao outro, o braço dele sobre os meus ombros, o meu à volta da sua cintura. À nossa frente, estendia-se a povoação de Inis Eala: fumo libertando-se da chaminé da cozinha, homens entrando e saindo do recinto de treinos, alguém chamando um bando de galinhas para dentro de uma cerca murada, e a figura alta de Ciarán percorrendo o seu caminho até à enfermaria. - Ele disse-te que tinha falado comigo?
- Ciarán? Não. Que te disse ele? Não deve ter sido o mesmo que me disse a mim, ou não terias ficado com o ar de quem vê o mundo ruir em cinzas à sua volta.
- Creio que estava a testar-me; a avaliar se eu era um homem de boas intenções, ou um inútil, sem qualquer préstimo, que estava a tentar desviar a sua preciosa Sibeal do verdadeiro caminho. Parece que ficou satisfeito. E, pelos vistos, não é o homem que julguei que ele era. Na altura, sentia-me... Descontente. Infeliz. Não me separei dele com a devida cortesia.
- Ele ouviu coisas boas a teu respeito, Felix. Sobretudo, ditas por mim. Tem uma grande consideração por ti. Seja o que for que lhe disseste, causaste a impressão certa.
- Sibeal?
- Hum? - A sensação dos seus dedos a tocar-me no braço começava a tornar difícil a concentração.
- Tenho de partir. Talvez por um ano inteiro. Gostava que não fosse assim, mas é necessário.
- Eu sei. Ele disse-me. O tempo há-de passar; tem de passar. Por ora, temos dez dias antes da tua partida, dez preciosos dias. Vamos saboreá-los; guardá-los cá dentro para enfrentar a longa espera que aí vem.
- Sibeal, talvez aches disparatado, mas... Paul. Quero dar-lhe a boa notícia.
- Ele sabe - retorqui. - Repara como estas pedras guardam o beijo do Sol. O seu calor é a bênção de Paul. O amor dele por ti está no ar salgado, e no odor a fumo da fogueira que aquece a comida; está em todas as minúsculas flores e folhas de erva que crescem aqui, neste outeiro. - Não lhe falaria da minha visão; já bastava o que tinha para resolver dentro dele. Com o tempo, contar-lhe-ia. - Mas fala-lhe, se quiseres; penso que ouvirá todas as tuas palavras.
E assim falou Felix; e fê-lo de irmão para irmão, de coração para coração, íntimo e terno, e não para aqui ficar escrito. Quando terminou, perguntou-me:
- Que gostarias de fazer agora, meu amor?
- Ficar aqui sentada ao teu lado mais um pouco - respondi. - E, depois, correr até lá abaixo e contar a toda a gente, sem falta.
Felix
O barco está pronto para nos levar ao continente. Hoje, iniciamos a nossa longa viagem para sul, até à corte de Muredach. A caixa que contém os tristes restos do presente galante de Eoghan é arrumada, e seis remadores aguardam para nos levar para a outra margem. No pontão e ao longo da costa, muitos esperam o momento de nos acenar a sua despedida. Tem sido uma estranha estação para Inis Eala. O Verão do naufrágio. O Verão da mulher do mar. Para mim, foi o Verão em que perdi o meu irmão e encontrei o verdadeiro amor. Agora, o Verão está quase a acabar, e chegou a hora de dizer adeus.
Estamos de pé perto do cimo da encosta, com o vento a dançar-nos nos cabelos e a imensidão de mar aos nossos pés, estendendo-se até aos puros pináculos de rocha da Ilha da Serpente. As mãos de Sibeal seguram as minhas, quentes e firmes. Os seus olhos têm algo do mar e do céu. Hoje, parecem maiores, cristalinos, cheios de esperança e de amor.
- Talvez não demore tanto tempo - diz-me. - Todos os dias, a todos os momentos, Felix, guardar-te-ei no meu coração. A cada sopro, pensarei em ti. Prometo.
Levo as suas mãos aos meus lábios, vendo como está segura e tão diferente dessa tarde em que correu até mim, a rir e a chorar, e se lançou nos meus braços e me pediu em casamento, tudo ao mesmo tempo. Enquanto viver, estimarei esse momento.
- Eu também, meu amor - respondo. - Quando escrever uma canção sobre isto, não será elegia, mas celebração. Podemos viajar para longe um do outro, mas cada mudança de estação aproximar-nos-á.
Um ano. Neste momento, parece uma eternidade, mas não o direi. Estudo o seu rosto doce e solene, a pele pálida como a luz da Lua, os lábios simultaneamente austeros e tentadores, os olhos belíssimos. Já gravei estas coisas na minha memória; precisarei delas nos tempos que se avizinham.
- Amo-te, Felix - diz Sibeal, num sussurro, e envolve-me com os seus braços. - Mais do que às estrelas do céu. Mais do que às árvores da floresta. Mais do que às ondas do mar.
Puxo-a para mim e beijo-a nos lábios. Alguém lá em baixo, no pontão, faz um assobio lancinante; estamos à vista de todos.
- Amo-te - digo e, de repente, já não tenho mais palavras, mas esta é suficiente. Seguramo-nos com intensidade. Escapam-nos os últimos momentos, preciosos.
- Felix! - grita alguém lá de baixo. - Despacha-te!
- Não vou dizer adeus. - A voz de Sibeal é quase inaudível; uma lágrima estremece-lhe no canto do olho. - Onde quer que nos levem os nossos caminhos, tu estarás sempre comigo, e eu contigo. Vem, é melhor descermos.
De mãos dadas, descemos o trilho íngreme até à baía, onde Sigurd, Colm e Donn já se encontram a bordo do bote. Abraço Gull-, despeço-me de Johnny, de Gareth e de Cathal, todos os bons amigos que fiz este Verão. Subo a bordo, e os remadores pegam nos remos.
Ela fica no pontão, silhueta esguia e direita, no seu vestido azul. O vento levanta-lhe os caracóis escuros em torno do rosto. Vê-la-ei nos meus sonhos, todas as noites. Um ano de sonhos. Levanto a mão; meio aceno, meia saudação. Ela levanta a dela; meio aceno, meia bênção. Os remos deslocam-se; o bote vira. Dirigimo-nos ao continente, e à longa viagem para casa.

 

 

                                                   S.D. Perry         

 

 

 

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