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A VINGANÇA DE OLHOS NEGROS / Lisa Gardner
A VINGANÇA DE OLHOS NEGROS / Lisa Gardner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A VINGANÇA DE OLHOS NEGROS

 

               Virgínia

A boca dele aflorou-lhe o pescoço. Gostava de sentir o beijo, leve, desafiador. Deixou descair a cabeça para trás. Ouviu o seu próprio riso. Ele prendeu-lhe o lóbulo da orelha entre os lábios e o riso transformou-se num gemido de prazer.

Céus! Como gostava quando ele lhe tocava.

Os dedos dele ergueram-lhe a pesada cabeleira. Dançaram sobre a nuca e deslizaram pelos ombros nus.

- Bonita, Mandy - sussurrou ele. - Tão sensual, Mandy.

Soltou mais uma risada. O riso transformou-se em gargalhada e depois sentiu o gosto do sal nos lábios e apercebeu-se de que chorava. Ele virou-a de barriga para baixo em cima da cama. Ela não protestou.

As mãos dele percorreram-lhe a coluna vertebral até se deterem na cintura.

- Gosto desta curva aqui - murmurou, enterrando um dedo na concavidade ao fundo das costas. - Perfeita para sorver champanhe.

Que os seios e as coxas fiquem para os outros homens. Eu só quero este sítio aqui. Posso tê-lo, Mandy? Dás-mo?

Talvez ela dissesse que sim. Talvez apenas gemesse. Já não sabia. Uma garrafa de champanhe vazia em cima da cama. Outra semivazia. A boca dela era um formigueiro de sabor proibido e continuou a dizer para consigo que tudo estava bem. Era apenas champanhe e estavam a celebrar... Ele acabava de encontrar um novo emprego, o GRANDE emprego, que era muito longe. Mas haveria visitas de fim-de-semana, talvez algumas cartas, telefonemas...

Estavam a celebrar, e a carpir... Era uma foda de despedida, e de qualquer maneira o sexo com champanhe não contava para o seu simpático grupo dos Alcoólicos Anónimos.

Ele derramou a garrafa aberta de espumante sobre os seus ombros. O líquido frio e borbulhante escorreu em cascata pelo pescoço, formando uma pequena poça no lençol de cetim branco. Ela tentou desesperadamente sorver algumas gotas.

- Assim mesmo, miúda - murmurou ele. - Minha doce e apetitosa miúda... Abre-te para mim, querida. Deixa-me entrar em ti.

Ela afastou as pernas. Arqueou as costas, ao mesmo tempo que todo o seu ser se focava lá em baixo, no lugar entre as pernas, onde a dor se formara e agora só ele podia apaziguá-la. Só ele podia salvá-la.

Entra em mim. Enche-me toda.

- Bonita, Mandy. Sensual e apetitosa, Mandy.

- Por... por... favor....

Ele afundou-se nela, que arqueou as ancas. Teve a sensação de que a espinha se fundia sob as suas mãos e abandonou-se-lhe.

Enche-me. Enche-me toda!

Sal nas faces dela. Champanhe na língua. Porque não conseguia deixar de chorar? Enterrou a cabeça nos lençóis e sorveu o champanhe, ao mesmo tempo que o quarto girava e sentia a cabeça à roda.

De súbito, a cama desapareceu. Estavam lá fora. Junto à garagem. Roupas vestidas, faces secas. O champanhe desaparecera, mas não a sede. Há seis meses que se mantivera sem beber. Agora, ansiava terrivelmente por mais uma bebida. Uma garrafa de champanhe ainda intacta. Talvez conseguisse que ele lha desse para o regresso a casa. Uma bebida para o caminho.

Não vás...

- Estás bem, miúda?

- Sim - murmurou com uma voz pastosa.

- Talvez não devesses conduzir. Talvez devesses passar cá a noite... - Estou bem - repetiu. Não podia ficar e ambos o sabiam. As ocasiões boas iam e vinham.

Se agora tentasse insistir, apenas contribuiria para piorar as coisas.

No entanto, ele hesitava. Fitava-a com aqueles olhos profundos e preocupados, que formavam pequenas rugas nos cantos. Um detalhe que adorara quando o tinha visto

pela primeira vez. A forma como os olhos dele se encarquilhavam como se estivesse a estudá-la intensa e verdadeiramente, a vê-la como era na verdade. Uma fracção de segundo depois sorrira, como se o simples facto de a descobrir o tivesse feito tão feliz.

Nunca até ali um homem lhe sorrira daquela maneira. Como se ela fosse alguém especial.

Oh, Deus do céu. Não vás...

E depois: Terceira garrafa de champanhe. Todas cheias. Mais uma pelos velhos tempos. Mais uma para o caminho.

O amante tomou-lhe suavemente o rosto entre as mãos e acariciou-lhe as faces com os polegares.

- Mandy... - sussurrou ternamente. - Se soubesses até que ponto adoro a curva dos teus rins...

Ela já não foi capaz de responder. As lágrimas sufocavam-na.

- Espera aí, querida - disse ele subitamente. - Tenho uma ideia.

Conduzia, obrigada a concentrar-se porque a estrada estreita era extremamente sinuosa. com a estranha impressão de que um abismo separava os seus pensamentos das suas reacções. Ele ia sentado ao lado, no banco do passageiro. Queria certificar-se de que ela chegava a casa em segurança; depois apanharia um táxi. Talvez fosse ela que devesse apanhar um táxi. Talvez não estivesse em condições de conduzir. Mas se ele insistira em acompanhá-la, por que razão era ela que ia ao volante?

Tantas perguntas para as quais Mandy já não tinha força para encontrar as respostas.

- Abranda - preveniu ele. - A estrada aqui é perigosa.

Ela assentiu com a cabeça, franzindo o sobrolho e tentando concentrar-se. O volante parecia-lhe estranho nas mãos. Redondo. Uf.. Carregou no travão. Em vez disso premiu o acelerador e o jipe deu um solavanco para a frente.

- Desculpa -murmurou.

O mundo rodopiava cada vez mais depressa à sua volta. Não se sentia bem. Como se estivesse prestes a vomitar ou a desmaiar. Talvez as duas coisas. Se ao menos

pudesse fechar os olhos...

A estrada deslizava sob os pneus e o carro dançava perigosamente no asfalto.

Cinto de segurança. Preciso de pôr o cinto de segurança.

Procurou a correia às apalpadelas, agarrou na fivela. Puxou. O cinto de segurança esticou-se sem se fixar.

É isso. Partido. Preciso de mandar arranjá-lo. Um dia. Hoje. Socorro. As estrelas girando, o céu começando a clarear. Agora só falta uma menina a cantar: "Amanhã,

amanhã, há sempre um amanhã..."

- Abranda - repetiu ele no banco do passageiro. - Há uma curva apertada aí à frente.

Ela fitou-o estupidificada e detectou-lhe um brilho estranho nos olhos. Um brilho divertido cujo motivo lhe escapava.

- Amo-te - ouviu a sua própria voz dizer.

- Eu sei - respondeu ele e estendeu o braço ternamente na direcção dela, pousando a mão no volante. - És tão doce, tão sensual, Mandy. Nunca irás esquecer-me.

Ela anuiu com a cabeça. O dique rompeu-se e as lágrimas correram-lhe pelas faces. Soluçou, desesperada, enquanto o Ford Explorer guinava de um lado ao outro da estrada e o brilho ardia no olhar dele.

- Nunca encontrarás ninguém como eu - prosseguiu, impiedoso.

- Sem mim, Mandy, não és nada.

- Eu sei, eu sei.

- O teu próprio pai abandonou-te. Em breve, será a minha vez. As visitas de fim-de-semana acabarão, depois os telefonemas. E restarás apenas tu, Mandy, sozinha noite após noite.

Ela soluçou com mais força. Sal nas suas faces, champanhe nos lábios. Tão só. O abismo negro. Sozinha, sozinha, sozinha.

- Enfrenta isso, Mandy - continuou ele, num tom suave. Nunca soubeste prender um homem. Não passas de uma bêbeda. Deus do céu! Estamos prestes a separar-nos para sempre e apenas consegues pensar naquela terceira garrafa de champanhe. É verdade, não é? Não

é?

Ela tentou abanar a cabeça. Acabou por assentir.

- Acelera, Mandy - sussurrou ele.

Porque é que o papá não veio a casa para o meu aniversário? Preciso tanto de ti, papá!

Doce, e sensual Mandy Enche-me. Enche-me toda! Tão só...

- Estás magoada, Mandy. Sei que estás. Mas eu vou ajudar-te, querida. Acelera.

Sal nas faces dela. Champanhe nos lábios. O pé carregando no acelerador...

- Um leve toque no acelerador e nunca mais voltarás a estar só. ; Nem mesmo sentirás a minha falta.

O pé dela... A curva da estrada a aproximar-se. Tão só. Céus, estou cansada!. ,

- Vá lá, Mandy. Acelera.

O pé dela a fazer força... ;

Quando o avistou, era demasiado tarde. Um homem na curva apertada da estrada rural. A passear o cão, parecendo sobressaltado por ver um veículo àquela hora da

manhã, depois ainda mais surpreendido ao vê-lo avançar na sua direcção. Virar! Virar! Tenho de virar!.

Amanda Jane Quincy guinou freneticamente o volante e tentou desviar-se do homem. Apesar de todos os seus esforços, o volante recusou mover-se, bloqueado pelo punho

enérgico do amante sentado ao lado dela.

O tempo parou. Mandy ergueu os olhos sem compreender para o rosto que amava. Viu a noite fechar-se atrás dela através do vidro da janela. Viu o cinto de segurança

bem apertado sobre o forte e largo peito dele. E ouviu-o dizer:

- Adeus, doce Mandy. Quando chegares ao inferno, não te esqueças de dar os meus cumprimentos ao teu pai.

O Explorer atingiu o homem. Um barulho surdo. Um pequeno grito. O carro seguiu em frente. E, no preciso instante em que pensou que tudo estava bem, que continuava

ilesa, que continuavam ilesos, o poste telefónico surgiu da escuridão.

Mandy não teve tempo de gritar. O Explorer embateu no grosso poste de madeira a sessenta quilómetros à hora. Sob a violência do impacte, o pára-choques baixou e

a traseira subiu quase na vertical. E o corpo dela, sem cinto, voou do banco do condutor contra o pára-brisas, cuja estrutura metálica lhe esmagou o cérebro.

O passageiro não teve problemas. O cinto segurou-lhe o peito, puxando-o contra o assento, mesmo quando a parte da frente do

Explarer se amachucou. O pescoço deu

um esticão. Os pulmões esvaziaram-se de um golpe, cortando-lhe momentaneamente a respiração. Arquejou, com os olhos desorbitados e, segundos depois, a pressão dissipou-se.

O jipe imobilizou-se. Ele também. Estava salvo.

Desapertou o cinto de segurança. Fizera o trabalho de casa e não estava preocupado com impressões digitais. Tão pouco lhe importava a hora. Uma estrada rural ao amanhecer. Decorreriam dez, vinte, trinta minutos antes que alguém passasse por acaso.

Inspeccionou a bela e sensual Mandy. Ainda tinha uma leve pulsação, mas a maior parte do cérebro esmagara-se contra o pára-brisas. Embora o corpo estivesse a travar uma derradeira luta, o cérebro nunca mais iria recuperar.

Após um ano e meio de esforços, recebia finalmente a recompensa: a satisfação de saber que Amanda Jane Quincy morrera aterrorizada, confusa... e de coração despedaçado.

As contas entre ele e Pierce Quincy ainda não estavam saldadas, pensou o homem, mas já era um começo.

 

Catorze meses depois Porúand, Oregon

Na segunda à tarde, a detective particular Lorraine Conner estava sentada à secretária pejada de papéis. Carregou furiosamente nas teclas do seu velho computador portátil, após o que franziu o sobrolho ante os resultados indicados no ecrã. Alinhou novas colunas de números, obteve os mesmos desastrosos resultados e brindou-os com a mesma expressão sombria. Contudo, o orçamento não se deixou intimidar.

Maldito computador, pensou. Maldito orçamento, maldito calor. E maldita ventoinha que tinha comprado na semana anterior e se recusava permanentemente a funcionar, excepto se lhe desse duas pancadas no cimo. Parou, nesse momento, para lhe aplicar a necessária pancada dupla e foi, por fim, recompensada com uma ligeira brisa. Céus. Aquele tempo estava a dar cabo dela.

Eram três da tarde. Lá fora, um sol capaz de derreter o alcatrão abatia-se sobre a cidade e não ficaria surpreendida ao saber que acabava de se bater um novo recorde de calor em Portland. Tecnicamente falando, Pordand beneficiava de um clima mais temperado do que as grandes metrópoles da costa leste. E, em teoria, também não atingia a humidade dos estados do Sul. Mas o clima parecia ter-se esquecido disso nos últimos tempos. Rainie há muito que trocara a T-shirt por um top de algodão branco. Sentia-o agora colado à pele, e os cotovelos deixavam manchas redondas de vapor condensado no tampo da secretária. Se o tempo aquecesse mais, levaria o computador portátil para debaixo do duche.

Rainie tinha ar condicionado no sótão, mas, como parte do seu programa de "apertar o cinto", refrescava o seu amplo apartamento de uma divisão à maneira antiga: abrira as janelas e ligara uma pequena ventoinha de secretária. Um método ineficaz, que lhe permitia beneficiar da poluição devida à canícula, sem que por tal baixasse a temperatura.

O momento fora mal escolhido para fazer economia na electricidade. A situação era ainda mais frustrante pois vivia desde há pouco no centro de Pearl District, um bairro famoso pelas geladarias chiques, onde se servia café gelado em quase todas as esquinas das ruas. Preferia não pensar em todos os yuppies das redondezas que a essa hora deviam estar tranquilamente sentados nos Starbucks, usufruindo de um fantástico ar condicionado, enquanto tentavam decidir-se entre um Chat gelado ou um café moca.

Não era o caso de Rainie. A nova Lorraine Conner, cheia de boas intenções, estava sentada no moderno sótão daquele bairro elegante, tentando decidir o que era mais importante: gastar os dólares que lhe restavam na lavandaria, ou num carburador novo para a sua campana de quinze anos. Por um lado, roupas limpas causavam sempre uma boa impressão ao conhecer um novo cliente. Por outro, de nada lhe servia arranjar casos novos, se não tivesse um meio de locomoção. Detalhes, apenas detalhes.

Experimentou uma nova rodada de cálculos. Mas o computador, pouco compreensivo, cuspiu os mesmos resultados negativos. Suspirou. Rainie tinha acabado de obter a sua licença de detective particular do Conselho do Oregon. No âmbito das boas notícias, tal significava que passara a ter o direito de vestir a pele de Paul Drake para os Peny Mason locais, oferecendo os seus serviços aos advogados de defesa da região. No âmbito das más notícias, a licença de dois anos custara-lhe setecentos dólares. Acrescidos dos novecentos de seguro obrigatório. Mil e seiscentos dólares que haviam largamente reduzido o magro pecúlio das Investigações Conner.

- Mas tenho o direito a comer, não? - resmungou na direcção do computador, só que ele não queria saber disso.

Soou o intercomunicador. Rainie endireitou-se, passando uma das mãos desanimadamente pelo cabelo, ao mesmo tempo que piscava os olhos duas vezes, surpreendida. Nesse dia, não esperava clientes. Virou-se para o ecrã do sistema de segurança instalado no vestíbulo de entrada. Um homem elegante, de cabelo grisalho, aguardava pacientemente do lado de fora da porta da frente. Enquanto o observava, ele voltou a carregar no botão do intercomunicador. Depois, ergueu os olhos para a câmara.

O coração de Rainie ameaçou sair-lhe pela boca. Ficou petrificada, de olhos fixos no rosto do visitante. Era a última pessoa que esperava ver nesse dia e sentiu-se completamente alterada.

Passou mecanicamente a mão pelo cabelo. Ainda não se habituara ao cabelo curto e o calor tornava-o espetado como um esfregão cor de avelã escuro. Sem falar do top, amarrotado e ensopado de suor, nem dos calções de ganga, esfiados, coçados e nada profissionais. Dedicara esse dia para tratar da papelada e não achara necessário arranjar-se; teria posto desodorizante nessa manhã? Na verdade, estava um forno ali e já não tinha nenhumas certezas.

O agente especial supervisor Pierce Quincy do FBI continuava de olhos fixos na câmara de segurança instalada por cima da porta de entrada.

A qualidade da imagem do pequeno monitor estava longe da perfeição, mas tal não a impedia de detectar a intensidade dos profundos olhos azuis.

com a mão na garganta, analisou Quincy com um ar pensativo. Há quase oito meses que não o via, e há seis que não lhe ouvia a voz ao telefone.

Ele não mudara. Os olhos ainda formavam rugas nos cantos. A testa continuava marcada por fundos sulcos. Tinha as feições duras e austeras de um homem que passara muito tempo a lidar com a morte... e diabos a levassem se tal não lhe agradara nele. O mesmo fato de corte impecável. O mesmo rosto impenetrável. Não havia ninguém como Quincy, agente especial supervisor.

Ele carregou no botão pela terceira vez. Não se ia embora. Quando queria verdadeiramente algo, Quincy raramente desistia. À excepção dela...

Rainie abanou a cabeça, desanimada, Não queria voltar a pensar em tudo isso. Tinham tentado, tinham falhado. A vida era assim. Duvidava que Quincy desejasse algum envolvimento pessoal. Premiu o portão para o deixar entrar.

Oito andares depois, ele bateu-lhe à porta da frente. Ela tivera tempo de pôr desodorizante, mas nada neste mundo poderia salvar-lhe o cabelo. Abriu a porta com um ar falsamente descontraído, de mão na anca.

- Olá - saudou-o lacónica.

- Olá, Rainie.

Ela ficou à espera. A pausa prolongou-se e verificou, satisfeita, que foi Quincy o primeiro a romper o silêncio.

- Receei que pudesses ter saído para tratar de qualquer caso retorquiu.

- Nem mesmo os bons conseguem estar sempre a trabalhar. Quincy ergueu uma sobrancelha.

- A quem o dizes - respondeu em seguida, num tom seco que lhe provocou uma incontestável nostalgia.

Rainie esboçou um sorriso involuntário. Abriu um pouco mais a porta e deixou-o entrar.

Quincy não começou a falar de imediato. Pôs-se a percorrer o sótão com um ar casual, mas Rainie não se deixou enganar. Gastara a maior parte das suas economias com

aquele sótão há uns quatro meses, e sabia perfeitamente que ele não esperava encontrar um apartamento tão bonito, com os tectos a quatro metros de altura. Um antigo armazém, espaçoso e soalheiro, dispondo apenas de um balcão de cozinha e oito pilares gigantes para delimitar quatro simples espaços: cozinha, quarto, sala e escritório. Tudo iluminado por soberbas janelas envidraçadas de alto a baixo, em estilo art déco, dando para a rua.

A proprietária anterior revestira a entrada com tijolos vermelhos cor de ferrugem que davam um toque de calor ao resto do apartamento, inteiramente pintado em tons rústicos de ocre e castanho dourado. O resultado cifrou-se na aparência sobriamente chique sobre a qual Rainie lera nas revistas, e achara mais prudente não tocar em nada.

O sótão quase a levara à bancarrota, mas, no preciso momento em que Rainie o vira, soubera que era a casa dos seus sonhos. Era moderno, chique, elegante. Imaginara, sem dúvida, que a nova Lorraine Conner seria influenciada pela graciosidade daquele lugar, em simultâneo sofisticado e sóbrio.

- Nada mal! - observou Quincy finalmente.

Rainie perscrutou-lhe o rosto para tentar saber se ele estava a ser sincero e depois resmungou um agradecimento entre dentes.

- Não sabia que tinhas talentos ocultos de decoradora - retomou Quincy.

- É tudo obra da anterior proprietária.

- Ah! Fez um belo trabalho. Mudaste de penteado?

- Fui obrigada a vender as minhas longas tranças para comprar este cantinho paradisíaco!

- Sempre soube que recursos não te faltavam. Por outro lado, a nível de organização deixas muito a desejar, a julgar pelo estado da tua secretária.

- O que te trouxe aqui?

Quincy fez uma pausa e depois esboçou um arremedo de sorriso.

- Vejo que continuas a ser muito directa - declarou.

- E tu arranjas sempre maneira de tornear uma pergunta.

- Um a zero a teu favor.

Rainie arqueou uma sobrancelha, indicando que continuava a aguardar uma resposta à pergunta. Apoiada à secretária e, dado conhecer perfeitamente Quincy, ficou à espera que ele se decidisse a continuar.

O agente especial superior Pierce Quincy iniciara a sua carreira no FBI como especialista em perfis psicológicos, numa altura em que ainda existia o Departamento de Psicologia Criminal e não tardara a adquirir fama. Há seis anos, depois de um caso particularmente brutal, pedira transferência para o Departamento de Ciências Comportamentais, onde se dedicou a pesquisar futuras práticas de homicídio e a dar aulas em Quantico. Rainie tinha-o conhecido há um ano, na sua cidade natal de

Bakersville, no Oregon, quando um assassínio em massa numa escola devastara a sua antiga comunidade e requisitara a atenção de Quincy. Rainie pertencia, então, à

polícia local. Por um conjunto de circunstâncias ficara encarregada do caso. No dia da chegada de Quincy, levara-o ao local do crime e ficara de imediato impressionada pelo seu sangue-frio e aparente impassibilidade diante dos contornos desenhados a giz dos corpos de duas rapariguinhas.

A própria Rainie levara vários dias a aceitar o horror do drama, à medida, que no decurso da investigação, se vira pessoalmente envolvida nesse caso sinistro. Desde o início que Quincy se revelara um aliado fiel; apoiara-a nos momentos difíceis e, no final do caso, quase nascera algo mais entre os dois.

Depois, Rainie fora obrigada a pedir a demissão do seu lugar de ajudante do xerife, devido a uma acusação de homicídio ligada a um crime cometido catorze anos antes. Passara quatro meses à espera do dia de se apresentar em tribunal. Há oito meses, sem qualquer aviso ou explicação, as acusações contra ela tinham sido retiradas. O pesadelo terminara.

O advogado de Rainie dera-lhe a entender que alguém poderia haver intercedido a favor dela. Rainie nunca tocara no assunto, mas sempre suspeitara que essa pessoa era Quincy. E, longe de os juntar, tal acabara por afastá-los completamente.

Pierce Quincv, um dos melhores agentes especiais do FBI, capturara os tristemente célebres Jim Beckett e Henry Hawkins e constava que estava bem informado sobre a morte de Jimmy Hoffa, um sindicalista cujo desaparecimento misterioso fora primeira página dos jornais em

1975.

Rainie era, pelo contrário, simplesmente Lorraine Conner, uma ex-polícia de um buraco do Oregon e ainda lhe faltava um longo caminho a percorrer para encarrilar a vida.

- Tenho um trabalho para ti - disparou Quincy.

- O quê? - retorquiu Rainie, erguendo a voz. - O FBI já não te serve?

- É... uma coisa privada - explicou ele, após uma hesitação.

- Sabes bem que não tens vida privada, Quincy. A tua vida privada é o FBI.

- Desta vez é diferente. Dás-me um copo de água? Rainie franziu o sobrolho, intrigada.

Dirigiu-se à cozinha, preparou dois copos de água com muito gelo e depois foi juntar-se-lhe na sala. Quincv aproveitara para se instalar no seu sofá estofado de riscas azuis. A poltrona estava velha e no fio, um dos poucos restos da sua vida em Bakersville. Lá, vivera numa pequena casa de estilo rústico, com um alpendre nas traseiras, rodeada de altos pinheiros e o ar cheio dos pios lúgubres de mochos. Nem um som de sirene ou de boémios nocturnos. Apenas noites intermináveis a abarrotar de recordações - a mãe embriagada, a mãe erguendo o punho e batendo-lhe. A mãe... que acabara tragicamente com a cabeça semidesfeita por um tiro de caçadeira.

As mudanças recentes na vida de Rainie não eram más.

Quincy bebeu um longo gole de água. Depois despiu o casaco e dobrou-o cuidadosamente sobre o braço do sofá. A tira de cabedal do coldre ressaltava, escura, sobre a camisa branca.

- A minha filha... Enterrámos a Mandy no mês passado.

- Oh, Quincy! Lamento! - reagiu Rainie instintivamente, após o que cerrou os punhos antes que fizesse algo inoportuno, como estender os braços para ele.

Conhecia a história que se encontrava por detrás do acidente de carro de Mandy. Em Abril, a filha de vinte e três anos de Quincy embatera de frente contra um poste telefónico na Virgínia, o que lhe causara danos irreversíveis no cérebro e mutilara o rosto. No hospital fora imediatamente ligada ao ventilador, embora só com o objectivo de aguentar os órgãos o tempo suficiente para se obter a permissão de desligar a máquina. Infelizmente, a ex-mulher de Quincy, Bethie, tinha confundido manter a vida com a própria vida e recusou que se desligasse a máquina. Quincy e Bethie tinham discutido. Por fim, Quincy abandonara a vigília nocturna para voltar ao trabalho, uma decisão que ainda descontrolara mais a ex-mulher.

A Bethie acabou por dar permissão? - indagou Rainie.

Quincy assentiu com a cabeça.

- Nunca imaginei... No meu pensamento, há mais de um ano que a Mandy estava morta. Nunca pensei que fosse assim tão difícil.

- Tratava-se da tua filha. Seria estranho se fosse fácil.

- Rainie... - Dava a sensação de que ia acrescentar qualquer coisa, naquele momento em que pareciam novamente velhos amigos. Depois o momento passou e ele abanou a cabeça. - Quero contratar-te

- esclareceu.

- Porquê?

- Quero que investigues o acidente da minha filha. Quero que te certifiques de que foi um acidente.

Rainie ficou demasiado estupefacta para conseguir falar. Quincy leu-lhe o pensamento.

- Surgiram elementos novos - apressou-se a acrescentar. - Quero que os investigues.

- Julguei que ela estava embriagada - ripostou Rainie, tentando controlar-se. - Embriagada, atropelou um homem, um cão e chocou com um poste telefónico. Final da história.

- Estava embriagada, sim - aquiesceu ele. - O hospital confirmou que tinha uma taxa de alcoolemia duas vezes superior ao limite legal, mas o que me preocupa é como se embriagou. Conheci algumas das suas amigas no funeral e uma delas, a Mary Olsen, garante que a Amanda passou a maior parte da noite em casa dela, a jogar às cartas e a beber Coca-Cola. Há bastante tempo que eu não falava com a Mandy. Tu... tu sabes que não mantínhamos uma relação muito íntima. Mas parece que a Amanda se juntara a um grupo de Alcoólicos Anónimos seis meses antes do acidente e deixara de beber. As amigas sentiam-se muito orgulhosas dela.

- Passou-se algo de estranho durante o jogo de cartas? - perguntou Rainie involuntariamente e franzindo o sobrolho. - Algo que a transtornou e a fez pegar no carro e ir direita a um bar?

- Segundo a Mary Olsen, não. E a Amanda só se foi embora às duas e meia da manhã. A essa hora, todos os bares estão fechados.

- Estava só?

- Sim.

- Talvez tivesse conduzido até casa e se embriagasse lá.

- E depois metia-se novamente no carro para ir onde?

- De acordo - anuiu Rainie, mordendo o lábio superior. - Talvez tivesse uma garrara no carro e começasse a beber, mal saiu da festa.

- Não foram encontradas garrafas no carro, nem no apartamento. Além disso, todas as lojas de bebidas estavam fechadas, portanto não poderia ter comprado nada nessa noite.

- Talvez as tivesse adquirido antes de chegar à casa da amiga e depois deitado fora as garrafas vazias no caminho de regresso. Para eliminar pistas.

- A Amanda bateu com o carro a mais de vinte quilómetros de casa dela, numa estrada secundária perdida no campo, longe da casa da Mary Olsen.

- Pode ter querido conduzir para aclarar ideias...

- Embriagada, às cinco e meia da manhã, sem uma gota de álcool no carro? - redarguiu Quincy, acabando a frase. - Não, Rainie. Isso não faz sentido.

Rainie não respondeu de imediato. Continuou a avaliar os factos mentalmente, tentando que as peças se encaixassem.

- Podia ter ido a casa de alguém depois de sair de junto da Mary

- declarou, por fim.

- É uma hipótese. A Mary confiou-me que a Amanda tinha conhecido um homem há uns meses. Ainda não fora apresentado a nenhuma das amigas da Amanda, mas tratava-se, segundo parece, de um indivíduo muito simpático, que a apoiava muito. A minha filha... a Amanda confessou mesmo à Mary que achava que estava apaixonada.

- Mas nunca conheceste esse famoso tipo?

- Não.

- Então... e no funeral? - retorquiu, pondo a cabeça de lado. Ele deve ter ido ao funeral, não?

- Não foi ao funeral. E como ninguém sabe o nome dele, é impossível contactá-lo.

- Se ele é assim tão fantástico - redarguiu Rainie, olhando fixamente Quincy -, nesta altura já te teria encontrado. A Mandy decerto mencionou o pai, além de que não és propriamente um desconhecido. Falaram bastante de ti nos jornais.

- Já pensei nisso.

- Mas nem sombra do Príncipe Encantado.

- Nenhuma.

- Não achas que se tratou de um acidente, pois não? - compreendeu Rainie, finalmente. - Achas que a culpa foi desse tal Príncipe Encantado. Embebedou a tua menina e depois deixou-a conduzir até casa.

- O que ele fez não sei - declarou Quincy num tom calmo -, mas sei que a Amanda teve de qualquer forma acesso ao álcool entre as duas e meia e as cinco e meia da manhã e isso custou-lhe a vida. Estava perturbada. Tinha um passado de bebida... Sim, gostava de encontrar esse tipo e ouvir a sua versão da história.

- Falas como um polícia, Quincy. O teu problema é que não consegues fazer o luto pela tua filha. Ainda estás na fase da... rejeição.

Rainie tentou pronunciar as palavras suavemente, mas saíram-lhe áridas e Quincy retesou-se de imediato. Os lábios formaram um esgar. Os olhos escureceram e as feições tornaram-se mais duras. Por norma, Quincy era um pragmático, propenso a encarar o mundo como um quebra-cabeças que devia ser analisado e resolvido. Contudo, era igualmente um homem de acção; Rainie também já lhe conhecera essa faceta. Uma vez - na sua última noite juntos - lera-lhe no peito, sob forma de cicatrizes, o seu passado de caçador de cabeças.

- Quero descobrir o que aconteceu na última noite de vida da minha filha - pronunciou Quincy num tom firme e inabalável. - Estou a pedir-te que investigues... e disposto a pagar-te honorários. Então? Aceitas o caso ou não?

- Ora! Por amor de Deus! - exclamou Rainie, levantando-se repentinamente da cadeira e percorrendo várias vezes a sala para não explodir. - Sabes que te ajudarei e sabes que não quero o teu maldito dinheiro - acrescentou em seguida, num tom amargo.

- É um casO Rainie. Um simples caso e não me deves nada.

- Uma ova! É mais uma migalha que estás a atirar-me e ambos o sabemos. O teu trabalho dá-te acesso aos laboratórios mais sofisticados da América, sem falar dos bancos

de dados informáticos nem dos meios gigantescos de que o FBI dispõe.

- Basta que carregue numa tecla de computador para que toda a gente fique a par dos meus pequenos segredos de família. Talvez os meus cofegas tenham tacto suficiente para não me dizerem que me encontro na fase da rejeição, mas tal não os impedirá de me julgarem.

- Só quis dizer-te...

- Sei muito bem o que quiseste dizer-me e sei que tens razão. Mas sou o pai dela, raios! Claro que me é difícil aceitar a morte da minha filha. Contudo, também sou um investigador treinado, tal como tu, Raime, e há algo aqui que cheira mal. Olha-me nos olhos e diz-me que estou errado.

Rainie deteve-se. Fitou-o bem de frente com uma expressão de desafio. Em seguida, desejou não o ter feito, pois ele tinha o maxilar retesado e os punhos cerrados e ela gostava dele quando o via assim, com mil diabos! O resto do mundo podia ficar com o Pierce Quincy rígido e profissional. Ela desejava aquele homem. Pelo menos, desejara.

- Suponho que foste tu que pediste ao delegado do Ministério Público que retirasse as acusações contra mim? - indagou, por fim, num tom rouco.

- O quê?

- Pediste ao dekgado do Ministério Público que retirasse as acusações contra

mim!

- Claro que não - respondeu Quincy, abanando a cabeça com uma expressão de surpresa. - Rainie, lembra-te de que fui eu que te aconselhei a ires por diante com o

julgamento, que era provavelmente a melhor forma de exorcizares os demónios do teu passado. Porque é que havia de interferir?

- Muito bem. Aceitarei o teu caso.

- O quê?

- Aceitarei o teu caso. Quatrocentos dólares por dia, mais despesas. Acrescento desde já que nunca fui à Virgínia, que não entendo nada de investigação sobre acidentes de carro e, portanto, não venhas acusar-me mais tarde de falta de experiência. Não sei rigorosamente nada disso, mas, mesmo assim, vai custar-te quatrocentos dólares por dia.

- A Rainie numa das suas grandes ofensivas de charme...

- Não te preocupes com o meu charme. Aprendo depressa. Os dois sabemos que aprendo depressa - vincou num tom mais brusco do que pretendera.

Õ rosto de Quincy quase se suavizou, mas depois controlou-se.

- Combinado - declarou bruscamente, após o que pegou no casaco, de onde tirou um envelope que pousou na mesinha de café em vidro. - Tens aí o relato do acidente. Inclui o nome do agente encarregado do inquérito. Estou certo de que vais querer começar por ele.

- Deus do céu, Quincy! Não devias ter lido isso. Quiseste meter o dedo na ferida, ou quê?

- A minha filha morreu por causa deste acidente, Rainie. É o mínimo que posso fazer por ela. Agora, vem. Sou eu que pago.

- Pagas o quê?

- O jantar. Aqui faz um calor dos diabos, Rainie, e precisas de mudar de roupa.

- Só por isso, vou assim vestida para o jantar. Pior para ti. E já que pagas, vamos a um sítio caro, ao Oba s.

 

Pearl District, Portland

As velhas recordações apenas precisavam de um pretexto para vir à superfície. Tudo concorria para tal: a chegada inesperada de Quincy e um jantar num dos restaurantes

de luxo da cidade com uma ementa de camarão dos trópicos, atum marinado e enchiladas com molho de manteiga. Quincy bebeu dois daiquiris, servidos em copos de martini gelados. Rainie optou por água, porque num sítio tão selecto como o Obas se sentia demasiado embaraçada para efectuar o seu pequeno ritual de encomendar - sem a beber - uma Bud Light.

Falaram um pouco. Falaram muito. Céus! Como era bom vê-lo novamente.

- Então que tal o negócio de investigação? - perguntou Quincy a meio da sobremesa, quando tinham esgotado as banalidades.

- Bem. Acabei de conseguir a minha licença. Número quinhentos e vinte e um, sou eu.

- Tens trabalho privado?

- Algum. Mas trabalho sobretudo para os advogados de defesa. Foram eles que me convenceram a pedir a licença. Agora, investigo o passado de algumas testemunhas, tento reconstituir a cena do crime, analiso em detalhe os relatórios da polícia. Também tenho muito trabalho de secretária, mas sempre é melhor do que andar atrás do marido ou da mulher infiel.

- Parece interessante.

- Parece chato! - troçou Rainie. - Passo o tempo na Internet, no site do Departamento de Justiça do Oregon. Nos dias mais excitantes, sirvo-me do passe para rebuscar os arquivos da Polícia do estado de Oregon. Não digo que seja um trabalho idiota, mas daí até poder chamar-lhe interessante...

- Também passo muito tempo a ler relatórios - arguiu Quincy, um pouco na defensiva.

- De acordo. Mas viajas muito, falas com todo o tipo de pessoas e chegas ao local do crime quando o sangue ainda está fresco.

- Sentes assim tanto a falta do trabalho prático, Rainie?

Ela desviou o olhar, esquivando-se à resposta. Se, ao menos, tivesse uma garrafa de Bua Light à mão...

- Como está a Kimberly? - perguntou, optando por mudar de assunto.

- Não sei.

- Julguei que te entendias bem com a tua filha mais nova redarguiu Rainie, franzindo o sobrolho.

- Que tacto o teu, Rainie!

- Esforço-me pôr ser coerente.

- A Kimberly precisa de espaço. Acho que o acidente da irmã a afectou mais do que a todos nós. Sente-se revoltada e não me parece que o tenha aceite.

- Revoltada com a Amanda, ou revoltada contigo e com a Bethie?

- Para ser honesto, não sei.

- Sempre desejei ter uma irmã - replicou Rainie, assentindo com a cabeça. - Alguém do meu sangue que estivesse sempre ao meu lado. Alguém com quem brincar, alguém com quem discutir. Alguém que tivesse os mesmos pais e pudesse dizer se a nossa mãe estava mesmo louca, ou se tudo não passava de imaginação. Contudo, não me parece que a Mandy tenha sido uma aliada da Kimberly. Era, em vez disso, o elemento perturbador.

- Exacto. Para a Kimberley, a Mandy era a irmã mais velha, a rebelde, a que monopolizava a atenção dos pais.

- Enquanto a Kimberly era a filha modelo, a autêntica diplomata.

- A Bethie odeia que eu o diga, mas a Kim dará uma polícia fantástica um dia.

- Ela continua a estudar criminologia?

- Acabou de se formar em Psicologia. Agora, quer fazer o mestrado em Criminologia.

Por momentos, as linhas da testa de Quincy atenuaram-se. Sentia um grande orgulho na sua filha mais nova, o que se lia no rosto.

- Como vão as coisas em Bakersville? - indagou, mudando de assunto.

- Bem, na medida do possível, depois de um drama como o do ano passado.

- O Shep e a Sandy?

- Continuam juntos - respondeu Rainie, abanando a cabeça com uma expressão descrente. - O Shep trabalha para uma companhia de segurança em Salem. A Sandy anda muito empenhada numa associação que trata de problemas de delinquência juvenil.

- Óptimo para ela. E o Luke Hayes?

- Está a dar-se bastante bem no seu novo cargo de xerife, segundo me diz. Fui visitá-lo há uns cinco, seis meses. A cidade encontra-se em boas mãos.

- Nunca pensei que regressasses lá tão depressa.

- O Luke tinha umas coisas a dizer-me.

Quincy fitou-a demoradamente, aguardando que ela se explicasse.

- Andou a fazer umas investigações sobre a minha mãe - decidiu-se, por fim, Rainie com um encolher de ombros.

- A tua mãe? - surpreendeu-se Quincy.

A mãe de Rainie fora assassinada havia quinze anos, com um tiro de caçadeira que lhe desfizera a cabeça. Muitos dos habitantes de Bakersville achavam que tinha sido Rainie a puxar o gatilho, tanto mais que ela fora vista a sair da casa, pouco depois do drama com pedaços de cérebro a escorrerem-lhe dos cabelos.

- Sim. Apareceu um tipo qualquer na cidade, tentando encontrá-la. O Luke achou que devia pôr-me ao corrente.

- Porquê depois de todos estes anos?

- O tipo acabara de sair da prisão, depois de cumprir trinta anos por homicídio qualificado. A minha mãe sabia escolhê-los a dedo redarguiu Rainie com um sorriso amargo.

-E, ao que parece, deixava-lhes recordações indeléveis, já que esse tipo não a esqueceu passados trinta anos - brincou Quincy.

- O Luke contou-lhe o que se passara, depois de se certificar de que ele estava limpo. Contudo, optou mesmo assim por me falar do assunto.

O rosto de Quincy denotava novamente uma expressão estranha. Rainie achou que ele ia fazer qualquer comentário, mas recuou no último instante.

O empregado trouxe a conta. Quincy pagou. E, tal como nos velhos tempos, Rainie fingiu achar o gesto normal.

Talvez o mais sensato tivesse sido ficarem por ali. Quincy aparecera inesperadamente para lhe propor uma investigação de que ela tanto precisava e tinham jantado juntos, depois de assentes os pormenores. Raime sabia que devia ficar por ali, enquanto ainda era senhora da situação. Contudo, eram apenas sete horas da tarde, começava a ficar mais fresco e o seu amor-próprio espicaçava-a como sempre.

Decidiu mostrar-lhe o bairro, Pearl District. Num determinado lugar, uma loja de antiguidades com um Porsche num local de estacionamento proibido, só para marcar posição; noutro sítio, um salão de chá, uma galeria de arte, o salão de exposição de um criador de móveis em voga. Conduziu-o ao longo de uma série de armazéns transformados em apartamentos de luxo, com as fachadas pintadas em tons de creme e tijolo e casas dúplex de preços proibitivos. Alguns dos proprietários apanhavam o fresco nos pequenos jardins que pontilhavam cada uma das portas de entrada. Outros passeavam os seus labradores pretos com um ar descontraído e roupas desportivas de marca.

Vejam só o lugar onde moro, pensou Rainie. Olhem bem para mim. Nada mal para uma rapariga de uma cidade como Bakersville.

Em seguida, baixou os olhos para os calções coçados e o top amarrotado e caiu das nuvens. Aquele mundo de sonho atraía-a e repugnava-a em simultâneo. Aos trinta e dois anos, ainda não sabia quem era ou o que desejava fazer da sua vida. Um ressentimento virado sobretudo contra si própria.

Parou bruscamente e deu meia volta, com grande espanto de Quincy que acabou por ir atrás dela.

Uns minutos depois chegaram ao Touché, um bar local da época em que o bairro ainda era um refugio para estudantes, que pagavam um aluguer baixo nos velhos armazéns de Pearl District. Era muito provável que o Touché continuasse ali quando os yuppies se cansassem dos sótãos e emigrassem para sítios mais verdes. O rés-do-chão era um restaurante bastante aceitável, mas a fama do local devia-se sobretudo ao salão de snooker instalado no andar de cima.

Rainie entregou a carta de condução e algumas moedas ao homem que dirigia o bar e recebeu em troca dois tacos, um conjunto de bolas e uas Bud Light. Quincy, intrigado, franziu o sobrolho e, em seguida, despiu o casaco. Era o único homem com fato completo na sala mal iluminada, no meio de meia dúzia de motoqueiros e duas dúzias de estudantes. Era ali o peixe fora de água e tinha essa consciência.

- Um joguinho de oito? - propôs Rainie. - A branca não conta e, se tocares na oitava à primeira tacada, perdes a vez.

- Conheço as regras - replicou Quincy num tom calmo.

- Vamos lá então.

Rainie juntou as bolas no meio da mesa com a ajuda do triângulo e estendeu-lhe um taco. Quincy fê-lo rolar na mesa para o testar, surpreendendo Rainie, que não esperava um especialista.

- Não está mal - comentou ele.

- Aqui, eles conhecem bem a profissão. Agora, deixa-te de tretas e começa.

Rainie já compreendera que Quincy seria um adversário à sua altura. Durante os raros momentos que haviam passado juntos, ainda não lhe descobrira o ponto fraco, algo que simultaneamente a irritava e atraía. Contudo, há quatro meses que Rainie estava a viver em Pearl District e o Touché continuava a ser o único sítio onde se sentia à vontade. As mesas estavam gastas pelos anos, a alcatifa usada e o lugar já conhecera melhores dias. Tal como ela.

Quincy meteu duas bolas e continuou a jogar até falhar a sétima. Leonard, o barman, deixou-se ficar um bocado junto da mesa a observar e depois afastou-se com um encolher de ombros. O Touché era o ponto de encontro dos "tubarões" de snooker da cidade e já vira melhor.

Rainie avançou com um ar confiante. Adrenalina nas veias e um zumbido agradável nos ouvidos. Sorriu. Dobrada sobre a mesa, sentia o olhar de Quincy nos seus braços nus. Ele desapertara o colarinho da camisa, enrolara as mangas e o pedaço de giz que segurava na mão deixara-lhe uma mancha azulada na face.

Rainie saboreou o terreno perigoso que agora pisavam.

- Buraco do canto - anunciou, passando bruscamente a coisas sérias.

Jogaram durante três horas. Quincy ganhou a primeira partida quando ela falhou uma tacada mais audaciosa e depois a segunda num momento em que o adversário, cada vez mais agressivo, quis forçar demasiado a sorte. Contudo, Rainie ganhou as três seguintes, conseguindo executar as jogadas que lhe haviam custado as duas primeiras derrotas e dando algo que pensar à natureza meticulosa de Quincy.

- Dás-te por vencido?

- Estou só a aquecer, Rainie.

Ela dirigiu-lhe um largo sorriso e retomou o seu lugar junto à mesa. Na sexta partida, ele surpreendeu-a, trocando parte do habitual requinte pela força. Queria, então, apimentar um pouco a noite, o que tornava tudo mais interessante. Venceu-a na sexta partida e resolveram desempatar com mais uma.

-Tens praticado muito - observou ele no meio de uma série de quatro.

As leves gotas de suor que se lhe formavam na testa contrariavam a aparente desenvoltura com que se expressava e estava visivelmente mais concentrado do que no início.

- Gosto disto aqui.

- É um lugar simpático - concordou ele. - Mas se queres jogar snooker a sério, tens de ir a Chicago.

Quincy falhou a oitava bola e Rainie fitou-o com um arzinho de satisfação.

- Que se lixe Chicago! - exclamou, juntando as bolas na mesa forrada de feltro.

- Qual é o programa seguinte? - quis saber Quincy, com a respiração ofegante, tal como ela.

Na sala, a atmosfera tornara-se pesada. Era tarde, e Rainie percebeu a segunda intenção da pergunta. Passeou demoradamente o olhar pela decoração gasta, detendo-se no exterior, onde as luzes da rua emitiam um brilho forte. Pensou no seu belo e luxuoso sótão. Pensou na sua velha casa, dos anos 50, em Bakersville, perdida no meio dos altos pinheiros que tanta falta lhe faziam. Depois, ergueu o rosto para Quincy.

- Acho que vou para casa - disse.

- Tens razão.

- Amanhã espera-me um longo dia de trabalho.

- Rainie...

- Além de que nada mudou, não é verdade? Sabe-lo tão bem como eu. Não vale a pena estarmos com rodeios.

- Não sei se alguma coisa mudou, Rainie. Nunca soube, aliás, o que me reprovas.

- Aqui não, está bem?

- Porque não aqui? Compreendo o que aconteceu naquela última noite. Talvez tivesse sido um tanto desajeitado, mas estava disposto a tentar novamente. Só que estás sempre demasiado ocupada para me ver quando venho à cidade e nem sequer respondes às mensagens que deixo no atendedor de chamadas. Céus, Rainie! Sei perfeitamente o que passaste. Sei que a tua vida não é um mar de rosas...

- Lá vens tu com a história da pena.

- Não é por tentar compreender-te que tenho pena de ti.

- Anda lá muito perto!

Quincy fechou os olhos, forçando-se visivelmente a contar até dez para resistir ao impulso de a estrangular. Havia uma certa ironia na atitude, pois a violência física era algo que ela teria compreendido melhor e ambos o sabiam.

- Sinto imenso a tua falta - declarou ele, por fim. - Passaram oito meses e ainda sinto a tua falta. E, sim, foi provavelmente esse o motivo por que vim aqui oferecer-te trabalho, mas...

- Eu sabia!

- Um dia vou acabar por me cansar, Rainie!

As palavras ficaram suspensas no ar. Rainie tinha perfeita consciência de que estava a esticar a corda. Voltou a pensar em Bakersville, na casa de madeira onde crescera, na floresta que adorava. Depois pensou naquele dia trágico, quinze anos antes, na noite trágica que se seguira e sabia que também ele devia estar a pensar no mesmo. Quincy dissera-lhe um dia que ela se libertaria, se contasse a verdade.

Um ano mais tarde, ainda não estava assim tão certa. Vivera durante todo esse tempo com a verdade brutal da sua adolescência, mas ainda lhe faltavam tantos obstáculos a superar...

- Acho que vou para casa... - disse mais uma vez.

- Tens razão - repetiu ele.

Rainie regressou a casa sozinha. Acendeu as luzes do sótão, tomou um duche frio, lavou os dentes e meteu-se na cama. Só, desesperadamente só.

Teve uma noite cheia de pesadelos.

Encontrava-se num deserto nas profundezas de África. Reconheceu o lugar por já o ter visto uma noite no Canal Discovery. No seu sonho, as cenas do documentário misturavam-se com as da sua realidade, em tempo real.

Vastas extensões desertas devastadas por uma seca horrível. Um elefante bebé, acabado de sair do ventre da mãe, ergueu-se desajeitadamente nas patas, ainda pegajoso, no momento em que a mãe expirou.

- Corre, bebé, corre - ouviu Rainie a sua própria voz enquanto observava a cena de longe, sem poder ajudar e sem saber porque sentia aquele medo instintivo.

A cria acabou por se afastar penosamente da mãe, depois de ter tentado mamar em vão.

Rainie seguiu-o através do deserto. O calor era intenso, quase palpável, e a terra fendida estalava sob os seus pés. O elefante bebé órfão soltava pequenos gemidos enquanto procurava comida e companhia. Ao chegar junto de um bosque de árvores semimortas esfregou o corpo num tronco.

"O paquiderme recém-nascido confunde o tronco de árvore com as patas da mãe", dizia a voz do comentador. "Esfrega-se contra ele para assinalar a sua presença e procurar conforto. Esgotado, continua a sua busca de comida e de água através da savana ressequida."

- Corre, bebé, corre - sussurrou novamente Rainie.

A cria prosseguiu caminho. À medida que as horas passavam, avançava cada vez com mais dificuldade e caía frequentemente, voltando a levantar-se mal recuperava algumas forças.

"O elefantezinho precisa absolutamente de encontrar água", prosseguiu o narrador num tom monótono. "Em pleno deserto, a água é a única diferença entre a vida e a morte."

De súbito, uma manada de elefantes recortou-se no horizonte. Aproximaram-se e Rainie não tardou a avistar pequenas crias que avançavam prudentemente à sombra das

mães. Quando a manada parou, os bebés aproveitaram para mamar, acariciados pelas trombas das mães.

Rainie sentiu-se aliviada. Outros elefantes tinham aparecido e o pequeno órfão estaria salvo.

A manada aproximou-se mais e a cria correu na sua direcção. O elefante chefe avançou de imediato, agarrou no elefante bebé com a tromba e atirou-o brutalmente para longe. A cria de nove horas de vida aterrou com força no chão, onde permaneceu imóvel.

"Não é raro uma manada de elefantes adoptar um órfão", comentou novamente o narrador. "O comportamento agressivo que acabaram de observar deve-se à extrema secura da savana. Demasiado preocupados em sustentar os seus próprios membros, estes elefantes não podem acolher mais nenhum. Para o chefe, o recém-nascido perdido constitui uma ameaça para a sobrevivência da manada e age segundo essa perspectiva."

Rainie queria correr para junto da cria, mas o deserto formava uma barreira intransponível ao seu redor.

- Corre, bebé, corre! - incitou.

Por fim, a cria mexeu-se. Abanou a cabeça e, com dificuldade, pôs-se de pé. As patas tremiam-lhe. Rainie julgou que ele voltaria a cair, mas o pequeno elefante baixou a cabeça, apelou às forças que lhe restavam e pôs-se novamente a caminho.

A manada ainda continuava à vista e a cria precipitou-se atrás dela.

Um jovem elefante virou-se e deu uma patada maldosa na cabeça da pequena cria, que caiu gemendo. A cena repetiu-se e dois outros elefantes machos aproximaram-se. O pequeno elefante correu para eles e voltou a ser brutalmente repelido. Lançaram-no ao chão. Ele pôs-se de novo em pé. Deitaram-no ao chão duro e fendido. Depois viraram-se e afastaram-se pesadamente.

- Corre, bebé, corre - sussurrou Rainie, rompendo em soluços.

A cria voltou a levantar-se penosamente. Sangrava da cabeça e as moscas já voavam em redor da carne ensanguentada. Tinha um olho inchado, semicerrado. Ainda acabara de nascer e já se via confrontado com a tragédia da vida.

Deu um passo e depois mais outro. Seguiu a manada sem gemer nem se aproximar, a fim de evitar que o maltratassem.

Três horas depois, a manada encontrou um charco. Os paquidermes aproximaram-se da água lodosa. De acordo com o narrador, o órfão recém-nascido esperava que eles se saciassem até chegar a sua vez.

Rainie respirou, por fim, mais calma. Estava convencida de que a cria se salvara. Tranquilizados pela presença da água, os paquidermes podiam agora ajudar o órfão. Devido à sua coragem e persistência, ele merecia ser aceite pela manada. A prova terminara e o conto podia ter um final feliz.

Foi nesse preciso momento que avistou os chacais. Num abrir e fechar de olhos precipitaram-se sobre o pequeno elefante e despedaçaram-no sob o olhar indiferente dos outros elefantes.

Rainie acordou sobressaltada. Os gemidos dilacerantes da cria moribunda ainda lhe soavam aos ouvidos e as lágrimas corriam-lhe pelas faces.

Levantou-se pesadamente da cama e atravessou o sótão às escuras até à cozinha, onde bebeu um enorme copo de água fresca.

O sótão estava silencioso. Eram três horas e a noite reinava, escura e densa. As mãos tremiam-lhe e tinha a sensação de que o próprio corpo não lhe pertencia.

E desejava...

Desejava que Quíncy estivesse ali.

 

South Street, Filadélfia

Elizabeth Ann Quincy envelhecera bem.

Tinham-lhe ensinado desde muito jovem que uma mulher devia cuidar-se; sobrancelhas depiladas, penteado impecável, rosto tratado. Sem esquecer o uso diário do fio dental. As bactérias alojadas nas gengivas eram o símbolo personificado da negligência e do declínio.

Elizabeth seguira todos estes preceitos à letra. Depilava-se, penteava-se e cuidava do rosto. Vestia-se com elegância até mesmo para ir às compras e nunca usava ténis senão nos locais onde se praticava esse jogo.

Aliás, Elizabeth orgulhava-se muito desta sua postura. Filha de uma família nobre dos arredores de Pittsburgh, crescera a fazer equitação todos os fins-de-semana, praticando assiduamente os saltos de obstáculos. Aos dezoito anos dançava O Lago dos Cisnes com tanta graciosidade como fazia panos de tabuleiro em croché. Também aprendera a molhar os bonitos cabelos castanhos com cerveja, antes de os enrolar com bigudis e a servir-se do ferro de engomar para os alisar. As jovens de hoje censuravam a frivolidade da sua geração, mas iriam ver se um dia tentassem alisar os cabelos numa tábua de engomar.

Contudo, Elizabeth não era uma figurinha de porcelana. Insistira em frequentar a universidade, contrariando a vontade da mãe. Fora aí que conhecera um rapaz muito diferente dos do seu meio. O enigmático Pierce Quincy era natural de Nova Inglaterra, o que agradara à mãe de Elizabeth. Quem sabe se não descenderia dos primeiros imigrantes do Mayflowerl Talvez não tivesse antepassados ingleses nobres, mas o pai possuía vários hectares de terra em Rhode Island. Quincy estava a preparar um doutoramento em Psicologia. A mãe de Elizabeth via com muito bons olhos a entrada para a família de um genro universitário. Uma vez terminados os estudos, decerto abriria um consultório privado e, com todas as mentes perturbadas que caracterizavam a época, decerto não tardaria a conseguir uma boa situação.

Quincy sentira-se de facto atraído pelas mentes perturbadas. Devido aos vários anos passados na polícia de Chicago, tinha decidido especializar-se em criminologia. Sentia-se mais fascinado pela psicologia das mentes criminosas do que pelas armas de fogo e a testosterona inerente à profissão de polícia.

Qual era a origem de uma personalidade distorcida? Porquê e como cometiam o primeiro crime? Como impedi-los de recomeçar?

Tantas perguntas que haviam sido tema de outras tantas conversas entre Pierce e Elizabeth. Ele fascinava-a com o seu espírito lógico e clareza de raciocínio, a paixão

com que se expressava. Era, além disso, uma pessoa calma e bem-educada e possuía uma capacidade surpreendente de se meter na pele de um assassino em série e analisá-lo.

Elizabeth sentia uma secreta atracção por esse lado obscuro da sua profissão. Observava-lhe, fascinada, os gestos das mãos quando ele falava de um certo psicopata

ou sádico, imaginando os dedos crispados numa arma... Na verdade, Pierce era um teórico brilhante, mas também um homem de acção e Elizabeth orgulhava-se disso.

Pelo menos no começo, quando ainda pensava que iriam casar e levar uma vida de família normal. No começo, antes de perceber que, para um homem como Pierce, a normalidade não passava pela sua vida familiar, mas pelo trabalho. Quincy precisava e vivia apenas para o seu trabalho e ela e as duas filhas desempenhavam um papel secundário no seu quotidiano.

Elizabeth quebrara a tradição familiar ao pedir o divórcio, a fim de educar sozinha as duas filhas. A mãe tentara chamá-la à razão, aconselhando-a a evitar esse procedimento, mas Elizabeth provara uma vez mais a sua forte personalidade e insistira na decisão. Amanda e Kimberly precisavam de estabilidade, de uma vida tranquila, longe de um pai mais interessado em cadáveres do que em jogos de futebol. Fora sobretudo Amanda quem tivera mais dificuldade em aceitar a carreira do pai. Não compreendia porque é que apenas via o pai quando os psicopatas faziam uma pausa.

Elizabeth dedicara-se, pelo contrário, de corpo e alma às duas filhas. Era um pensamento que repetia com frequência nos últimos tempos, como que para se convencer a si própria.

Mesmo quando desligarei a maquinal

Aos quarenta e sete anos, Elizabeth Ann Quincy era uma mulher muito bonita. Culta, elegante e terrivelmente só.

Nessa segunda-feira à noite, em Filadélfia, ela descia a South Street com um passo firme, indiferente à alegre multidão que deambulava em frente da estranha mistura de lojas chiques e sex-shops. Ultrapassou sem os ver três adolescentes com enormes tatuagens e evitou maquinalmente uma comprida limusina preta. As caleches para os turistas tinham saído em força nessa noite e um forte cheiro a estrume misturava-se com o habitual, proveniente da transpiração e do pronto-a-comer.

Bethie avançava sem se preocupar com os odores circundantes, ao mesmo tempo que ignorava aplicadamente os demais transeuntes.

Tinha uma única ideia em mente: regressar o mais depressa possível ao calmo conforto da sua bela casa em Society Hill, de paredes cor de linho cru e sofás forrados de seda. Passar mais uma noite só, em frente da televisão, evitando olhar para um telefone que nunca tocava.

Imersa nos seus pensamentos, não viu o homem que saía da loja de especiarias a tempo de evitar a colisão. Ter-se-ia estatelado ao comprido na rua, se ele não tivesse tido a presença de espírito suficiente para lhe agarrar no braço.

- Lamento muito - desculpou-se ele. - Ultimamente não sei onde ando com a cabeça. Mas está bem, não está? Se a tivesse magoado, nunca me perdoaria.

Elizabeth assentiu com a cabeça, ainda atordoada. Apressou-se a debitar os agradecimentos habituais, mas, ao observar as feições do desconhecido que lhe dera o encontrão, quedou-se a meio da frase. O homem em causa tinha um rosto muito marcante. Traços denotando uma origem europeia, olhos de um azul profundo que emanavam um brilho divertido, madeixas grisalhas pintalgando os caracóis pretos junto as têmporas. Devia andar na casa dos cinquenta e vestia uma camisa de linho branco de colarinho aberto, revelando o pescoço distinto e a leve penugem grisalha do peito. Umas calças beges impecavelmente vincadas, um cinto Gucci e sapatos Armani completavam a toilette. Tinha um ar... muito atraente.

Elizabeth apercebeu-se subitamente de que ele ainda não lhe largara o braço.

- A culpa foi minha... - balbuciou. - Caminhava sem olhar, absorta nos meus pensamentos. Por favor, não peça desculpa...

- Mas a senhora é... a Elizabeth! Elizabeth Quincy!

- Como sabe o meu nome? - retorquiu, voltando a perscrutá-lo e muito perturbada pelo aparecimento inesperado daquele homem na sua vida. Ignorava que postura adoptar.

Como era possível que soubesse o seu nome? Tinha a certeza de que era a primeira vez que o via.

- Desculpe - redarguiu ele de imediato. - Lá estou eu a armar confusão. De facto, conheço-a, mas não me conhece.

- Não o conheço mesmo - anuiu Bethie com a máxima honestidade, baixando os olhos para a mão que continuava pousada no seu braço.

O indivíduo largou-a de imediato e Bethie verificou, surpreendida, que ele corava.

- A situação está a tornar-se cada vez mais difícil - gaguejou com uma expressão atrapalhada que lhe acentuava o encanto. - Não sei bem como lhe explicar. Nunca devia ter dado a entender que a conhecia, nem pronunciado o nome, mas já que o mal está feito... É muito simples. Vi-a o mês passado. No hospital, na Virgínia.

Elizabeth demorou uns segundos a relacionar os factos. De súbito, o corpo petrificou-se, empalideceu e pôs os braços à volta do peito, como que para se proteger. Se ele a tinha visto no hospital... Julgou perceber e o sangue gelou-lhe nas veias. Fechou os olhos e engoliu em seco.

- Como... como se chama?

- Tristan. Tristan Shandling.

- Pode dizer-me exactamente como me conhece, Mister Shandling?

Como já esperava, ele manteve-se em silêncio. Limitou-se a soltar a camisa de tecido fino do cinto das calças para lhe mostrar o lado direito.

A cicatriz, de um vermelho-escuro, indicando uma operação recente, media uns escassos centímetros. Contudo, dali a um ou dois meses acabaria por desaparecer e o inchaço diminuiria. Ficaria reduzida a um fino traço num tronco robusto e bronzeado.

Estendeu maquinalmente a mão trémula e tocou na cicatriz.

Emitiu um pequeno grito que a trouxe de volta à realidade. Pestanejou, tomando bruscamente consciência de que percorria com os dedos a pele do dorso de um desconhecido e agora as pessoas paravam a observar.

Bethie começou a chorar. Não se apercebera, mas as lágrimas tinham-lhe saltado dos olhos e rolavam pelas faces.

- A sua filha salvou-me a vida - declarou Tristan Shandling num tom calmo.

Elizabeth Quincy perdeu o controlo da situação. Envolveu, a cintura daquele homem que vivia doravante com o rim de Mandy. Abraçou-o com a mesma força com que costumava abraçar a filha, abraçou-o como se esse gesto pudesse devolver-lhe Mandy. Uma mãe nunca deveria sobreviver a um filho. E ela pedira que desligassem a máquina. Acabara por se resignar a aceitar o inaceitável e tinham-lhe levado a filha para sempre...

Tristan Shandling enlaçou delicadamente Elizabeth. Ali, no meio de toda aquela multidão que enchia South Street, dava-lhe pancadinhas no ombro, primeiro de uma

forma desajeitada, depois com mais firmeza.

- Calma! Calma! Isso vai passar - dizia, tentando apaziguar-lhe a dor. - Estou aqui, Bethie. Tomarei conta de si, se me deixar.

 

Pearl District, Portland

Rainie saiu penosamente da cama às cinco da manhã. Para martirizar o corpo e correr os seus dez quilómetros diários sob um calor já tórrido àquela hora e noventa por cento de humidade. Para seu espanto, não morreu...

De regresso a casa, quarenta minutos mais tarde, tomou um duche gelado, enquanto se interrogava como seria a vida na Virgínia.

Nunca, até então, saíra do estado do Oregon. Por uma ou duas vezes pensara viajar até Seattle, mas a ocasião nunca se apresentara e agora, aos trinta e dois anos, Rainie não conhecia nada dos EUA. Estava longe de constituir uma excepção no Oregon, um imenso estado que proporcionava aos seus habitantes uma incrível diversidade de praias, montanhas, desertos, lagos, metrópoles modernas e pequenas cidades fronteiriças. E podia fazer-se de tudo um pouco ou quase: surfe, escalada, esqui, marcha, golfe, pesca, vela, equitação, sem falar dos casinos. Dadas as circunstâncias, qual a vantagem de visitar outros estados?

Saiu do duche, limpou-se e optou por escolher roupas leves de algodão para o avião, após o que assumiu oficialmente o seu novo trabalho, reservando um lugar de última hora por dois mil dólares. O carro que alugara na agência foi mais um buraco no orçamento, abençoado pelo crédito do American Express.

A questão seguinte era como trabalhar fora do estado, dado a maioria dos organismos públicos da Virgínia exigir uma licença local aos detectives particulares antes de responder às suas perguntas. Agarrou na lista telefónica classificada e ligou ao acaso para uma agência privada da Virgínia. Um quarto de hora mais tarde, depois de ter indicado o número da sua licença no Oregon e explicado a sua missão ao interlocutor, Rainie tinha um "sócio". Em caso de necessidade, Phil de Beers teria todo o prazer em efectuar os passos oficiais no seu lugar a troco de um montante razoável. A ocasião sonhada por Rainie para justificar os mil e seiscentos dólares que lhe custara a licença.

Meteu rapidamente coisas para três dias num saco de viagem e, dado o último caso que vivera com Quincy, achou mais prudente juntar o seu Glock. Uns instantes mais

tarde, fechou a porta do sótão.

O avião atingira a velocidade de cruzeiro quando Rainie decidiu finalmente desapertar o cinto de segurança. Mergulhou na leitura do relatório oficial da morte de

Amanda Jane Quincy.

O primeiro polícia a chegar ao local do crime pertencia à brigada de trânsito, respondendo a uma chamada do telemóvel de um camionista que dera o alerta. O telefonema fora registado às cinco e cinquenta e dois minutos, e a testemunha, muito emocionada, contara que tinha parado ao avistar um corpo inanimado à beira da estrada. O corpo era o de um homem de idade que lhe pareceu morto; ao lado dele jazia um cãozinho. Um pouco mais adiante, no meio das moitas, descobrira um Ford Explorer enfiado num poste telefónico. Ainda saía fumo do capo amachucado. O camionista tentara em vão reanimar verbalmente a condutora. Não lhe tocara nem a deslocara, pois sabia que nunca se devia mexer no corpo de um acidentado antes da chegada dos socorros.

O camionista ainda se encontrava no local do acidente quando o polícia aparecera. Tinha-o levado até junto do corpo do velhote e o agente constatou que ele estava morto. Aproximaram-se depois do Explorer; o polícia, após ter forçado a porta da frente, tomara o pulso da condutora e verificara que ela ainda estava viva. Apressara-se a comunicar com a central pedindo o envio de uma ambulância, enquanto o camionista virava as costas e vomitava ao dar-se conta do estado da jovem mulher.

Como o polícia chegara antes dos socorros, o relatório era extremamente pormenorizado. Rainie sabia por experiência que nada melhor do que os bombeiros e os condutores de ambulância para darem cabo das pistas em caso de crime ou acidente.

Observou demoradamente as polaróides e os esboços que mostravam onde o peão e o cão haviam sido encontrados, bem como a posição do veículo contra o poste. Tratava-se de um Ford Explorer verde de

1994, registado no nome de Amanda Jane Quincy e comprado em segunda mão, três anos antes. Era um modelo vulgar sem direcção assistida e, infelizmente para Mandy, também sem airbag.

Na altura do embate, a condutora não levava o cinto de segurança posto. Segundo uma nota do polícia, o cinto estava "inoperacional". Rainie ignorava o que tal significava e não encontrou mais nenhuma alusão ao facto no relatório.

No Oregon, a brigada de trânsito possui uma unidade especial encarregada de estudar e analisar os acidentes de viação. Ou na Virgínia não havia nenhuma, ou não se julgara necessário chamá-la. O polícia fizera, pelo menos, um bom trabalho; não observara qualquer marca de pneus na curva, indicando que a condutora não tivera tempo de travar. Nem sinais de embate na traseira ou nos lados do Explorer que assinalassem a presença de outro veículo no local.

A conclusão do polícia era inequívoca: "Acidente envolvendo um único carro. Condutora responsável pela perda de controlo do veículo. Proceder a testes de despistagem

de álcool ou droga na vítima."

Nas urgências, a vítima fora submetida a uma análise de sangue e o polícia pudera concluir o relatório: "As análises ao sangue confirmam uma taxa de alcoolemia de 2,20 g 1. Condutora responsável gravemente ferida na cabeça. Poucas hipóteses de sobreviver."

O dossiê não continha mais nada. A "condutora responsável" nunca recuperara a consciência, portanto não fora acusada e morrera um ano mais tarde. Caso encerrado.

Rainie sentiu um calafrio.

Pôs o dossiê de lado e observou novamente as fotografias: o pobre homem que andava a passear o cão de manhã; o pequeno fox terrier sem uma trela com o comprimento suficiente; a frente destruída do Exflorer, amachucado pelo impacte.

A equipa do Serviço de Emergência Médica transportara Mandy para as urgências antes da chegada do fotógrafo, evitando a toda a gente o horror dessas imagens. Contudo, o agente tirara vários instantâneos do pára-brisas, incluindo um grande plano da parte superior esquerda do vidro estilhaçado, onde se via um molde macabro do rosto de Amanda Quincy.

Quincy estudara estas fotos e Rainie interrogou-se sobre quanto tempo demorara a desviar os olhos.

Soltou um fundo suspiro. O relatório não lhe dava esperança de descobrir algo de novo. Nenhum rasto de qualquer outro veículo implicado. Nenhum traço de uma terceira pessoa no local do acidente. Até a ausência de travagem não tinha nada de anormal, dado que a maioria dos condutores em estado de embriaguez perde a capacidade de travar frente a um obstáculo inesperado. O polícia da brigada de trânsito redigira o seu relatório de uma forma clara e circunstancial e, nesse ponto, Rainie tinha de concordar.

Restava, porém, compreender por que razão Mandy se encontrava numa estrada rural às cinco e meia da manhã, embriagada, quando as amigas afirmavam tê-la visto sóbria três horas antes. E havia também o cinto de segurança "inoperacional", que transformara um banal acidente numa tragédia. Por fim, Rainie não podia esquecer o homem mistério por quem Amanda Quincy estava apaixonada e que ninguém dos seus conhecimentos alguma vez vira.

- Um caso sem nada de especial - murmurou Rainie, mas as suspeitas de Quincy eram, aparentemente, contagiosas, pois também já não se sentia muito convencida.

Greenwich Village, Nova Iorque

Kimberly August Quincy voltara a ter uma das suas crises. Encontrava-se na esquina de Washington Square, no coração da cidade universitária nova-iorquina. Um dia perfeito, com um sol radioso e o céu de um azul profundo. A relva à volta do arco no meio da praça formava uma serena mancha verde.

A fauna habitual de residentes do bairro circulava com roupa moderna e óculos escuros à John Lennon. Alguns estudantes em calções de ganga e T-shirt aproveitavam o bom tempo para trabalhar ou dormir a sesta.

Uma bela tarde de Julho. Um sítio seguro e encantador, até mesmo segundo os padrões de Nova Iorque.

Kimberly sentia dificuldade em respirar. Ofegava. Mudava continuamente a mochila de um ombro para o outro. Nem sequer sabia para onde se dirigia. O suor escorria-lhe pelas faces.

Um homem de fato completo que caminhava com um passo decidido pelo seu passeio olhou-a casualmente e depois parou, perguntando se ela se sentia bem.

- Desande!

- Miss...

- Desande, já lhe disse!

O homem afastou-se, abanando a cabeça e, sem dúvida, arrependido por ter querido ajudar o próximo numa cidade de doidos como era Nova Iorque.

Kimberly não estava doida. Ainda não. No fundo de si própria, conseguia racionalizar o medo. Assistira a um número bastante de aulas de Psicologia para saber que estava a ter um ataque de pânico. Há meses que era vítima dessas crises, cada vez mais assustadoras.

Durante dias, semanas mesmo, tudo correra na perfeição. Acabava de passar o ano na Universidade de Nova Iorque, frequentara dois seminários nesse Verão e tivera a sorte de ser aceite como estagiária pelo seu professor de Criminologia, sem falar no seu trabalho de voluntariado num lar de sem-abrigo. Tinha, por conseguinte, com que se ocupar, mas Kimberly era uma pessoa hiperactiva, que saía de casa às seis e quarenta e cinco da manha e raramente voltava antes das dez da noite.

Agora, nada era como dantes...

Os ataques de pânico começavam em regra por uma sensação estranha, um calafrio que lhe percorria a espinha, uma impressão na nuca. Parava no meio da rua para olhar em volta, ou então virava-se bruscamente no metropolitano a abarrotar para perscrutar o rosto dos outros passageiros. Sem um motivo real, com a desagradável impressão de que alguém a observava, alguém que lhe escapava à vista.

Os ataques de pânico de Kimberly desapareciam tão rapidamente como apareciam. Ô coração retomava a batida normal, a respiração acalmava e tudo corria bem durante uns dias, uns meses, até à crise seguinte...

A situação piorara desde o funeral da irmã. Os ataques sucediam-se quase de hora a hora antes de a deixarem em paz dois ou três dias. De um momento para o outro, sem aviso, entrava no metropolitano e o seu universo ruía de novo.

Explicações lógicas não lhe faltavam. Perdera a irmã, a sua relação com a mãe não era fácil e sabe-se lá o que ia na cabeça do pai. Tinha consultado o Dr. Marcus Andrews, o seu professor de Criminologia que atribuíra as crises ao stresse.

- Abrande um pouco - aconselhara-a. - Precisa de repousar. O que não consegue aos vinte e um, conseguirá aos vinte e dois. Tem a vida pela frente.

Contudo, os dois sabiam que ela não abrandaria o ritmo. Não era o seu estilo. Tal como a mãe gostava de dizer com uma certa amargura, Kimberly parecia-se demasiado com o pai. Uma constatação que apenas dificultava mais as coisas, pois, tal como o pai, Kimberly nunca sentira medo em toda a sua vida.

Devia ter uns oito anos e fora a uma feira local com Mandy e o pai. As duas irmãs estavam excitadíssimas com a ideia de passarem uma tarde inteira com um pai raramente disponível, sem falar do algodão-doce e das voltas no carrossel.

Andaram juntos na roda gigante, antes de visitarem o castelo fantasma e subirem à montanha-russa. As miúdas tinham-se enchido de caramelos, pipocas e regado tudo com Coca-Cola gelada. Sob o efeito do açúcar e da cafeína, insistiram com o pai para prosseguirem a aventura.

Contudo, Quincy parecia distraído. Há uns minutos que observava atentamente um homem encostado a uma das colunas do carrossel. O homem tinha vestido um sobretudo comprido e sujo, e Kimberly lembrava-se perfeitamente de que a irmã tapara o nariz, dizendo: "Ufa! Que cheirete!"

Depois, o pai fizera-lhes sinal para que se calassem e bastara-lhes um olhar para perceberem que ele não estava a brincar.

O desconhecido tinha uma máquina a tiracolo de que se servia para fotografar as crianças que andavam no carrossel.

- É um pedófilo - murmurara subitamente o pai. - Começam sempre da mesma maneira, com fotografias de todas estas crianças que gostariam de possuir. Este ainda não passou à acção, caso contrário, não se interessaria por crianças vestidas, mas não resistirá muito tempo. Quando acabar por ceder à sua depravação, fará tudo para se convencer de que não teve culpa, de que foram as crianças que o desviaram.

Mandy encontrava-se ao lado de Kimberly e esta vira como a irmã se alterava. Fitava o estranho homem de máquina fotográfica a tiracolo e o lábio inferior começou a tremer-lhe.

- Se alguma vez avistarem um indivíduo deste género, meninas continuou o pai -, afastem-se logo. Confiem sempre nos vossos instintos. Vão de imediato à cabine de segurança mais próxima ou, se acharem que está demasiado longe, refugiem-se atrás de uma mulher que ande a passear com os filhos. Ele partirá do princípio de que é a vossa mãe e deixar-vos-á em paz.

- O que vais fazer, papá? - perguntara Kimberly, de olhos brilhantes.

- vou dar os sinais dele à segurança. Depois, voltarei aqui amanhã e nos dias seguintes. Se vir que ele não abandona o local, arranjarei forma de o prender. Isso vai acalmá-lo.

Nesse mesmo momento, Mandy pusera-se a chorar, dizendo que queria voltar para casa.

Kimberly fitara-a sem compreender, antes de se virar para o pai. Este ficara desolado com a atitude da filha mais velha. Kimberly não o censurava. Mandy chorava por tudo e por nada, ao passo que Kimberly nunca o fazia.

Em Setembro, quando o novo professor perguntara a cada uma das alunas a profissão dos pais, Kimberly respondera que o pai era o Super-Homem. As outras crianças tinham troçado dela o ano inteiro, mas jamais dera o braço a torcer.

O pai protegia as crianças das garras de terríveis desconhecidos. Um dia seria como ele.

Excepto naquela tarde, em que apenas desejava que a pulsação abrandasse, a respiração acalmasse e as manchas diante dos olhos desaparecessem. O Dr. Andrews sugerira-lhe que tentasse exercícios de biofeedback: fê-lo nesse momento, fixando as mãos e imaginando-as quentes, cada vez mais quentes.

O nevoeiro dissipou-se aos poucos. O céu ficou novamente azul, a relva verde e as ruas cheias de vida. Deixou de sentir os pêlos da nuca arrepiados. O suor secou na testa.

Kimberly diminuiu a força com que agarrava a mochila e deu lentamente uma volta sobre si própria para retomar a sensação de realidade.

- Pronto, pronto - disse para consigo. - Todos caminham normalmente pela rua, como se nada se passasse. Ninguém está a observar, não há nada a temer. Está tudo na tua cabeça, Kimmy. Tudo na tua cabeça.

Retomou a marcha, mas, ao chegar ao cruzamento seguinte, voltou a parar. Um segundo calafrio percorreu-a da cabeça aos pés, embora fizesse um calor incrível. De nada lhe valeu repetir em voz baixa que tudo aquilo era um absurdo e que era tão forte como o pai; desatou a correr como se o diabo a perseguisse.

 

Quantico, Virgínia.

Quincy abrandou ao chegar ao posto de controlo do FBI e parou diante do segurança. Esperou até o agente ver o autocolante de identificação colado no pára-brisas

e assentiu com a cabeça quando ele lhe fez sinal para avançar. Quincy acenou-lhe, mas não se ressentiu por não ser correspondido. Sabia que os indivíduos da segurança

não podem sorrir e têm mesmo, por vezes, de intimidar. Por outro lado, pensou que era sempre um começo promissor do dia.

Como não precisava de dormir muito, Quincy tinha-se levantado às três da manhã, a fim de apanhar um voo directo para Seattle. Passara tantos anos a viajar pelo país

de um lado para o outro que não suportava as paragens inúteis e regressava a casa assim que podia. Preferia, aliás, conduzir e, já há uns anos, levava o carro para distâncias pequenas. Julgou que as coisas seriam diferentes depois do acidente de Mandy, mas tal não aconteceu.

Quincy estacionou próximo do campo de tiro e, em seguida, percorreu a pé o caminho que o separava das traseiras do edifício. Passou o cartão pelo controlo electrónico e a porta abriu-se.

Os gabinetes reservados ao Departamento de Ciências Comportamentais situavam-se no segundo piso do subsolo. Ao descer as escadas, cruzou-se com um colega e esboçou-lhe um aceno de cabeça. O agente especial Deacon correspondeu, evitando olhá-lo de frente. Há mais de um mês que era assim e Quincy já nem ligava. A morte acidental de uma filha era motivo bastante para mexer com as emoções das pessoas em qualquer ambiente profissional, mas aquele tipo de drama ainda parecia mais intenso num meio em que as pessoas lutavam para prevenir as tragédias. Aos olhos dos colegas, Quincy era a prova de que a morte escolhia as suas vítimas às cegas, até mesmo nas fileiras de uma instituição como o FBI. Ninguém se atrevera a dizer-lho abertamente, mas reprovavam-lhe em parte o facto de continuar a aparecer no trabalho como se nada se tivesse passado, com o risco de abalar as certezas dos colegas.

Quincy soubera mesmo que, nas suas costas, alguns o censuravam por ter começado a trabalhar logo a seguir ao enterro da filha. A sua aparente frieza chocara os colegas.

Quincy não dera importância. Cada pessoa tem a sua própria forma de reagir à morte de alguém chegado.

Empurrou a porta metálica anti-incêndio e entrou nas instalações do Departamento de Ciências Comportamentais.

Ao contrário das imagens dadas por Hollywood, as instalações do FBI em Quantico eram puramente funcionais. As do seu departamento, no subsolo, mesmo por baixo das salas de tiro, talvez ainda o fossem mais do que as restantes, constituídas por blocos de cimento pintados de branco e sem janelas.

O gabinete do responsável pelo departamento situava-se no centro, rodeado pelos dos adjuntos. Uma disposição curiosa que Quincy sempre havia associado à das prisões de alta segurança, em que a sala da guarda fica no meio das celas dos detidos mais perigosos. Talvez as cabeças pensadoras do FBI imaginassem que esse ambiente ajudaria os agentes a penetrarem melhor na mente dos criminosos.

O Departamento de Ciências Comportamentais orgulhava-se de possuir uma sala de reuniões ultramoderna, semelhante a um estúdio de televisão para a organização de videoconferências. Quincy chegava a divertir-se com o contraste entre a simplicidade do seu espaço de trabalho e a sofisticação dos meios de comunicação ao dispor. O FBI tinha as suas prioridades!

Quincy nem sempre trabalhara para aquele departamento. Fazia parte dos poucos agentes que tinham fugido às regras da instituição e recebido aulas na unidade afecta aos raptores de crianças e assassinos em série. Tanto os teóricos como os práticos na área do crime haviam recorrido aos seus serviços, transformando-o num caso

à parte, em relação ao qual nenhum dos lados tinha uma opinião solidamente formada.

Ainda não falara do assunto a ninguém, nem mesmo a Rainie, mas fazia tenção de voltar a abalar as tradições. Há um mês, a direcção do FBI tinha-o sondado para integrar o Centro Nacional de Análise Criminal na qualidade de especialista em perfis psicológicos. A mudança não lhe desagradava; com quase cinquenta anos voltaria a trabalhar no próprio terreno. Depois de anos de teoria, sentia a falta da prática.

No início, Quincy considerava o seu trabalho para o FBI como um sacerdócio. Ao cabo de dois anos lucrativos (o que não desagradara a Bethie) e, todavia, interessantes, como psicólogo particular, desejara passar a algo mais concreto. Quando deixara a polícia para estudar, fora sobretudo para compreender melhor a psicologia criminal, mas tinha descoberto que lhe faltava o trabalho de detective. Sentiu uma verdadeira saudade da emoção da caçada, da camaradagem muito especial que reina na polícia, do peso reconfortante da arma. Ao ser contactado por um amigo do FBI, não levou muito tempo a decidir-se.

Num abrir e fechar de olhos, Quincy viu-se com uma média de cento e vinte casos por ano. Chegava a visitar quatro cidades diferentes em cinco dias, munido de uma pasta a abarrotar de fotografias dos mais bárbaros crimes. Graças à sua intuição, salvara vidas humanas, mas também lhe acontecera negligenciar pistas, com trágicas consequências.

Entretanto, as filhas cresceram e o seu casamento desabou. O homem que tantas vezes testemunhara em processos relativos a custódia de filhos fora o último a dar-se conta da situação.

No dia em que Jim Beckett se evadira de uma prisão no Massachusetts, degolando dois guardas, Quincy esgotara praticamente as forças. Quando esse caso chegou ao fim, depois de custar a vida a vários colegas que apreciava e respeitava, resolveu que chegara a altura de mudar.

A transferência para o Departamento de Ciências Comportamentais tinha-lhe permitido limitar as deslocações e consagrar mais tempo às filhas. Já que não as vira crescer, esperava pelo menos acompanhá-las na adolescência.

Dava aulas em Quantico e pôde, assim, assistir aos jogos de futebol e peças de teatro em que as filhas participavam, e também reabrir alguns dossiês - em particular o de Russell Lee Holmes, um tristemente célebre assassino de crianças -, a fim de alimentar o banco de dados do FBI. No ano em que Mandy acabou o liceu, interessara-se por crimes de assassinos em série que nunca haviam sido resolvidos. Mais tarde, enquanto ajudava Kimberly a escolher o curso que queria tirar, criara um sistema de avaliação que permitia detectar potenciais assassinos em série. Foi nessa altura que, uma manhã, lhe telefonaram de um hospital na Virgínia para lhe anunciar que a filha mais velha estava à beira da morte.

O tempo causara desgostos a Quincy, mas também o ensinara a ser honesto. Acabara por compreender que não viera à terra para salvar o mundo, mas simplesmente para desempenhar a sua profissão de investigador, como outros a de contabilistas, advogados ou funcionários públicos. Era bom no que fazia, gostava do desafio e, no final, tinha a sensação do dever cumprido.

Não fora um marido ideal, nem o pai que gostaria de ter sido, mas tal não o impedira de obter resultados concretos na sua profissão; um ano antes, citando apenas um exemplo, estabelecera a ligação entre três crimes do mesmo assassino e que se julgara tratar-se de casos isolados.

Quincy sempre fora um excelente profissional; ninguém pensaria em negá-lo. E, com os anos, esforçara-se por melhorar a nível pessoal. Antes do acidente, fizera tudo para se dar bem com Mandy e tentara não se afastar de Kimberly, embora esta se mostrasse rebelde, nos últimos tempos. Um mês antes, passara mesmo uma tarde inteira com o pai de oitenta anos, que estava internado num lar em Rhode Island e sofria de Alzheimer; nem sequer reconhecera o filho e mandara-o embora, mas ele ficara. Por fim, Abraham Quincy deixara de protestar e tinham passado várias horas sentados um em frente do outro, enquanto Quincy tentava recordar alguns momentos que haviam partilhado, pois sabia que o pai não seria capaz.

Quincy aprendera à sua custa que o isolamento e a solidão são biombos frágeis, que a sua familiaridade com a morte dos outros não o tinha verdadeiramente preparado para a morte da sua própria filha e que, embora o tempo fosse passando, continuava a ser difícil dormir só.

Um dia, Rainie acusara-o de ser demasiado brando. Respondera-lhe que o mundo já era suficientemente duro para que contribuísse com mais agressividade e estava a ser sincero.

Quincy amara verdadeiramente Mandy.

O seu maior desgosto era que ela nunca o soube.

Virgínia

Quando o avião aterrou no Aeroporto Nacional Ronald Reagan, Rainie sentiu-se um pouco perdida. Pegou no saco de viagem e, depois de ter recolhido no tapete rolante a mala que continha a sua Glock, dirigiu-se à agência de aluguer onde escolheu um carro económico. Para a sua primeira viagem longe de casa não estava a sair-se nada mal.

Dado não ter tocado na amostra de refeição que lhe haviam servido durante o voo, o estômago começou a dar sinal, mas, como já eram quatro da tarde, e o trânsito era intenso, não quis correr o risco de chegar à sede da polícia depois da mudança de turnos. Teria todo o tempo para comer mais tarde.

Dirigiu-se à esquadra da polícia que figurava no dossiê de Mandy. com um pouco de sorte, Vince Amity, o agente encarregado da investigação, ainda lá estaria.

Uma hora e meia de engarrafamento depois, apanhou Amity no momento em que ele ia a sair.

- Agente Vince Amity? - gritou à alta silhueta que o oficial de plantão acabara de lhe indicar.

O polícia virou-se e constatou, interessado, que a mulher que lhe acenava era jovem e bonita.

Rainie aproveitou para o brindar com um sorriso encantador. Embora tivesse fama de nunca se mostrar simpática em serviço, o resultado foi animador, pois o agente

Amity retrocedeu. Era um indivíduo com mais de um metro e noventa, ombros largos, pescoço de touro e um maxilar decidido, sem dúvida de origem escandinava e um

praticante ferrenho de futebol.

- Posso ajudá-la, minha senhora? - inquiriu o gigante com um leve sotaque sulista que agradou a Rainie, embora lhe mostrasse de imediato o distintivo de detective

particular, pois não estava ali para engatar.

O rosto de Amity ensombrou-se.

- Tenho umas perguntas a fazer-lhe sobre um acidente na estrada explicou Rainie. - Ocorreu há mais de um ano e foi você que redigiu o relatório de inquérito.

Amity manteve-se em silêncio.

- O caso está encerrado - prosseguiu ela. - A condutora morreu no hospital, mas a família encarregou-me de esclarecer alguns pontos.

- Tenho de sair em patrulha - limitou-se Amity a responder.

- Não há problema. Acompanho-o

- Receio que não seja possível, minha senhora. Os civis não podem andar nos carros-patrulha. É demasiado arriscado.

- Garanto-lhe que não faço tenção de o processar.

- Não sei se sabe, minha senhora...

- Ouça. Vim propositadamente de Pordand para fazer-lhe umas perguntas. Quanto mais depressa responder, mais depressa se verá livre de mim.

O agente Amity franziu o sobrolho. Dada a sua altura, a expressão severa funcionava perfeitamente. A sua presença decerto bastaria para que as pessoas com qualquer peso na consciência levantassem de imediato os braços. Como mulher, Rainie não usufruía dessa vantagem. Na maioria dos casos, tivera de lutar para manter a ordem.

Amity continuava a fitá-la com a mesma expressão severa. Rainie cruzou pacientemente os braços e esperou. Ele acabou por ceder.

- bom. vou avisar a central - declarou com um suspiro. - Encontramo-nos no meu gabinete.

Rainie assentiu com a cabeça, mas, dada a sua experiência, preferiu segui-lo até à central para evitar que ele escapasse por qualquer saída das traseiras. Cinco minutos mais tarde, estavam sentados um em frente do outro à secretária dele, ambos com chávenas de café na mão.

- Dia vinte e oito de Abril - especificou Rainie. - No ano passado. Um acidente com um único carro, um jipe que atropelou um homem que passeava um cão antes de se esmagar contra um poste telefónico. O jipe atingiu o homem e o cão e foi destruído pelo poste.

- com uma rapariga ao volante?

- Sim. Amanda Jane Quincy. Depois do acidente, ela permaneceu em coma durante meses, antes que os pais dessem autorização para a desligar da máquina, há umas semanas. Tenho comigo uma cópia do relatório do inquérito.

- O pai da rapariga era polícia federal, não é verdade? - retorquiu Amity, fechando os olhos para se recordar melhor.

- Exacto.

- Bem me parecia - resmungou entre dentes, com um suspiro. Abriu uma gaveta da secretária de onde tirou uma agenda de lombada em espiral e com a data do ano anterior e pôs-se a folheá-la.

Rainie deu-lhe tempo para reavivar a memória, antes de atacar a fundo.

- Era o único agente no local, não é verdade? - indagou em seguida.

- Sim.

- Porquê?

- O peão estava morto, a condutora encontrava-se em estado crítico, nada que justificasse o pedido de reforços.

- A condutora ainda estava com vida. Além disso, verificara-se a morte de um homem e tudo indicava que a rapariga não conduzia no seu estado normal. No Oregon, isso é considerado no mínimo um homicídio por negligência e recorre-se automaticamente a investigadores especializados.

- com o devido respeito - replicou Amity, abanando a cabeça -, a condutora não levava cinto de segurança e foi esmagar-se contra o pára-brisas, onde ficou metade do cérebro. Talvez não estivesse morta, mas era apenas uma questão de tempo. Não conheço os procedimentos no Oregon, mas, na Virgínia, não é costume fazer inquéritos quando o condutor responsável fica feito em papa.

- Cortes orçamentais - comentou Rainie, com um ar entendido. Amity fitou-a surpreendido e aquiesceu com um aceno de cabeça vagaroso, estudando a interlocutora com curiosidade.

O universo da polícia não difere em muito do resto da sociedade; com a crise, as equipas das brigadas de trânsito nas estradas foram as primeiras a sofrer cortes orçamentais, embora os acidentes de trânsito sejam a primeira causa de mortalidade para a polícia, bem acima dos homicídios. Como se a morte fosse mais aceitável quando a responsabilidade cabe à estrada.

- Fale-me um pouco do cinto de segurança - pediu Rainie, aproveitando para retomar o assunto que lhe interessava.

- Ela não o levava posto.

- No seu relatório afirma que o cinto estava "inoperacional". Em que sentido?

Amity franziu o sobrolho e coçou a cabeça, antes de começar a folhear de novo a sua agenda.

- No momento em que tomei o pulso à condutora para verificar se ainda estava viva - precisou -, toquei com o braço no cinto e ele caiu, como se o encaixe estivesse partido.

- Quer dizer que o cinto estava estragado?

- Disse apenas que não funcionava.

- Ora então, vejamos! - exclamou Rainie com uma leve excitação na voz. - Porque é que não funcionava?

- Não faço a mínima ideia - retorquiu Amity com ar displicente.

- Quer dizer que não verificou? Não brinque comigo. Sabe tão bem como eu que esse cinto podia ter salvo a vida da Amanda Quincy, Era algo merecedor de atenção, não acha?

- Um cinto de segurança defeituoso pertence ao âmbito civil e não ao criminal, minha senhora. Se o nosso trabalho fosse apenas esse e o dinheiro corresse a rodos, estou convencido de que passaríamos o tempo a verificar esse género de pormenor, mas, no estado em que as coisas estão, contentamo-nos em

cumprir a nossa função, o que já não é nada mau. Rainie pestanejou e depois voltou a franzir o sobrolho ao detectar o sarcasmo sob o sorriso amistoso. Ali estava

a diferença entre o que se aprendia nas escolas de polícia e a realidade no terreno, reflectiu como já o fizera antes. Se tivesse sido confrontada com um acidente como o de Mandy quando era polícia em Bakersville, teria examinado o cinto de segurança.

- De qualquer maneira, fiz um telefonema - continuou Amity com a mesma expressão imperturbável, mas num tom mais surdo, como se tivesse um peso na consciência.

- Acerca do cinto? - quis saber Rainie, baixando igualmente a voz.

- Sim. Não me agradava o facto de que talvez não lhe tivesse acontecido nada, se o cinto não estivesse estragado. Portanto, liguei para a garagem que fazia a revisão do Explorer. Parece que o cinto não estava em condições há pelo menos um mês. A condutora marcara um dia para ir repará-lo; mas nunca apareceu.

- Quando era esse dia?

- Uma semana antes do acidente.

- A garagem informou acerca do motivo?

- Ela telefonou a preveni-los de que surgira um imprevisto e marcaria outro dia em breve - sublinhou Amity com um encolher de ombros. - Está a ver o quadro, não? Uma rapariga anda sem cinto de segurança durante um mês e uma noite pega no volante, completamente embriagada. Não sei o que acha, minha senhora, mas, na minha opinião, ela tinha um parafuso a menos.

- Pois. O que não impede que esta história do cinto "inoperacional" não me agrade - redarguiu Rainie, mordendo o lábio inferior com uma expressão preocupada.

- Suponho que o papá deva ter achado estranho, não? - ironizou Amity.

- Mais ou menos. E o velho que andava a passear o cão? - inquiriu Rainie, mudando bruscamente de assunto.

- Um tal Oliver Jenkins que vivia a menos de dois quilómetros do local do acidente. Segundo a mulher, costumava passear o cão na berma da estrada e ela sempre lhe dissera que era perigoso.

- Algum motivo para pensar que ele teve qualquer coisa a ver com o caso?

- Mister Jenkins era um antigo combatente da Guerra da Coreia. Vivia de uma pequena reforma e adorava gelado de noz. Não, não me parece que fosse o alvo de uma conspiração internacional. Por outro lado, acho que o cão tinha o mau hábito de roer os sapatos dos vizinhos

- precisou Amity com um ar impassível.

Rainie interrogou-se sobre se todos os sulistas teriam um humor tão requintado ou se apenas lhe saíra um espécime raro.

- Não havia sinal de travagem - retomou, sem largar as suspeitas.

- Nunca vi um condutor embriagado com tempo para travar.

- E se o Explorer tivesse sido abalroado por um outro carro? sugeriu ela.

- Não havia o mínimo vestígio de tinta ou um arranhão no jipe. Nenhuma marca de pneus ou qualquer outro indício na estrada. Se me permite, minha senhora, basta-lhe examinar as fotografias do acidente.

Rainie começava a sentir-se agastada com a desenvoltura de Amity.

- E se houvesse outra pessoa no veículo? Um passageiro? - indagou.

- Não vi ninguém.

- Verificou?

- Olhei para o lado do passageiro e posso garantir-lhe que não havia ninguém.

- Impressões digitais?

- Porque havia de procurar impressões digitais? - arguiu Amity, revirando os olhos. - Primeiro, nunca ficam no plástico do painel. Segundo, as superfícies lisas, tais como fivelas de cintos de segurança, maçanetas de portas ou o volante, foram tocadas por tanta gente que nunca se chega a nenhuma conclusão. Permita que lhe recorde que o procedimento habitual de inquérito...

- Eu sei, eu sei. Você é um polícia modelo, o melhor de todos, e não havia sinal de uma segunda pessoa no local do acidente.

- Vejo que estamos finalmente de acordo, minha senhora.

- Não tentou por mero acaso abrir a porta do lado do passageiro?

- Rainie sorriu, inclinando-se um pouco para diante.

Os olhos de Amity estreitaram-se, pois compreendera onde ela queria chegar.

- Na verdade... - hesitou.

- A porta abria normalmente, não?

- Sim.

- Ocorreu-lhe verificar se não havia pegadas?

- A relva era demasiado espessa. Não se via nada.

- Mas, mesmo assim, deu-se ao trabalho de verificar, não é verdade? Porquê?

- Não sei - disse Amity, após um prolongado silêncio.

- Não estou a pedir-lhe uma resposta oficial.

- Não sei mesmo.

- O que vou dizer-lhe não passa de uma impressão. Acompanhou obviamente o caso, mesmo depois de saber que a condutora estava moribunda. Ainda há um instante me confessou que vocês, os polícias de trânsito, têm demasiado trabalho deste género e não deixam nada ao acaso. Portanto, algo o perturbou e continua a perturbá-lo. Quase me sinto disposta a apostar que a minha visita não o surpreende.

Amity não respondeu, mas, quando Rainie julgou que ia continuar a fazer-se difícil, atirou subitamente:

- Quando lá cheguei, tive a impressão de que não estava só.

- O quê?!

Premiu os lábios e as palavras seguintes saíram-lhe de rajada:

- Aproximei-me do jipe e examinava a pobre rapariga enquanto o camionista vomitava nas minhas costas quando... iria jurar que ouvi alguém a rir.

-Alguém a rir? Mas quem?

- Não sei. Talvez se passasse tudo na minha cabeça. O Sol ainda não se tinha levantado e estas pequenas estradas rurais estão cheias de vegetação. Os cantoneiros só raramente desbastam as bermas e qualquer pessoa podia esconder-se nesta selva. Olhei à volta, mas não vi nada de anormal e, provavelmente, foi tudo impressão minha. Convém acrescentar que o bom samaritano não me ajudou muito. Quase me vomitou em cima.

- Quero examinar o carro.

- Boa sorte.

- Vá lá! Não se arme em mau. Apenas uma espreitadela ao depósito de carros confiscados da polícia.

- Ainda conservámos realmente o Explorer uns tempos, mas só até os problemas com o seguro ficarem resolvidos. Levaram-no há uns meses e a carroçaria deve estar em qualquer cemitério de automóveis.

- Merda! - praguejou Rainie entre dentes, mordendo novamente o lábio em busca de uma solução. - Julgo que não se pode voltar a utilizar os cintos de segurança depois de um acidente...

- E então?

- Então, o cemitério de automóveis deve, pelo menos, ter conservado os cintos de segurança.

- Se é que, entretanto, não os deitaram no lixo.

- vou arriscar. Onde é esse cemitério?

- Não faço a mínima ideia. É a companhia de seguros que trata de tudo.

- Vá lá ... - insistiu com um sorriso.

- Talvez possa telefonar a informar-me... - anuiu Amity. Rainie esboçou um sorriso ainda mais encantador, mas Vince Amity

há muito que não acreditava no Pai Natal e limitou-se a abanar a cabeça, com um grunhido.

- Devia tê-lo dito logo - deixou escapar.

- O quê?

- Que já foi polícia.

- Fui polícia numa pequena cidade. Surpreende-me que tenha adivinhado.

- Sou bom em adivinhas.

- Foi o que me pareceu - replicou Rainie com uma expressão sombria.

 

Society Hill, Filadélfia

Bethie sentia-se nervosa. Levara tanto tempo a aprender a viver sozinha que não desejava correr o risco de mudar novamente de hábitos. Por que razão aceitara? E aqueles brincos condiziam com o vestido? Talvez fossem demasiado chiques. Tal como o vestido. Céus! Tinha de mudar-se dos pés à cabeça e já estava atrasada.

Despiu o vestido preto e enfiou um camiseiro de cetim azul-escuro e uma saia preta até abaixo dos joelhos. Era muito mais apropriado. Decidiu manter as sandálias de salto alto. Bethie orgulhava-se da barriga das pernas, sobretudo com a sua idade. Que mal havia em mostrá-las um pouco por compensação com os quilos a mais que tinha noutras partes do corpo? Bethie ainda era uma mulher bonita, mas no seu primeiro encontro em mais de dois anos não conseguiu deixar de pôr em causa alguns estragos causados pela idade. Por que razão os homens tinham tendência a envelhecer melhor do que as mulheres?.

Restava o problema dos brincos, mas tratava-se, afinal, de um primeiro encontro. Bethie agarrou no primeiro par em ouro que lhe foi parar à mão e dirigiu-se à porta de entrada.

Aquele jantar com Tristan Shandling fora, no mínimo, inesperado. Tudo começara quando ele a tinha convidado a tomar um café no dia anterior. Queria fazer-se perdoar a qualquer preço pela sua atitude desastrada e ela não resistira. Levara-a a um dos pequenos cafés de South Street onde lhe mandara servir um cappuccino antes de contar todo o tipo de histórias que acabaram por provocar-lhe um sorriso.

Passado um momento, ela deixou de olhar de lado e pôs-se mesmo a escutar as narrativas das viagens que ele fizera à Irlanda, à Inglaterra e à Áustria, as estadias de mergulho nas zonas de coral australianas e a procura de pedras preciosas nos bairros de Hong Kong. Ele possuía uma bela voz de barítono, perfeita para aquele tipo de histórias, e Bethie nem sequer queria saber se ele dizia a verdade ou fantasiava. Era o tipo de pessoa que se gosta de ouvir e agradava-lhe a maneira como os olhos azuis se estreitavam, sempre que ele sorria. Gostava da sua forma de olhar, como se Deus o tivesse enviado à terra a fim de lhe devolver a felicidade.

Quando a convidara para jantar no dia seguinte, tinha hesitado e fizera-se um bocado difícil. Tudo estava a acontecer tão rapidamente...

Ele mostrara-se muito convincente. Estava em Filadélfia de passagem, apenas uma semana, um jantar não era um compromisso e ela acabara por ceder. Shandling marcara-lhe encontro no Zanzibar Blue, um famoso clube de jazz e um dos restaurantes preferidos de Bethie.

Bethie não era propriamente uma mulher inexperiente. Tinha lido artigos suficientes na Cosmopolitan para saber que a mulher se desloca sempre pelos seus próprios meios, a fim de poder retirar-se quando quiser. Nunca divulgar pormenores pessoais em excesso, sobretudo a morada, no primeiro encontro. Começar a aprender a conhecer melhor o outro antes de lhe fazer confidências. Só porque um indivíduo é encantador e veste bem não significa que mereça confiança. Bastaria perguntar a Pierce, o seu ex-marido.

Bethie fez sinal a um táxi e indicou a morada do Zanzibar.

Tristan Shandling esperava-a galantemente à porta do clube. Vestia umas calças pretas com uma camisa cor de ameixa e uma gravata em tons de prata e turquesa num fundo colorido. Como o tempo estava quente e húmido, optara por dispensar o casaco. De mãos nos bolsos e as pernas cruzadas, era um modelo de elegância e descontracção. Bethie lamentou de imediato não ter posto o vestido preto que a teria feito parecer mais nova. Aquele homem precisava de uma mulher loura e jovem ao seu lado e não de uma quarentona à beira da menopausa.

Alisou a saia, incomodada, antes de sair do táxi, depois de ter pago ao motorista. Um sorriso estampou-se de imediato no rosto de Tristan, que se precipitou ao seu encontro.

- Elizabeth! - exclamou. - Que bom ter vindo!

De pé, no passeio, com bolsinha preta na mão, Bethie não sabia o que responder. Ele deu-lhe o braço e o coração saltou-lhe no peito.

Shandling continuava a sorrir e fitava-a com uma infinda delicadeza. Bethie percebeu que ele estava a dar o seu melhor para a fazer sentir-se à vontade.

- Cheguei atrasada - desculpou-se.

Ele deu-lhe uma palmadinha na mão, a inspirar-lhe confiança.

- Sou um fã de jazz - sussurrou-lhe ao ouvido, ao mesmo tempo que a conduzia até à porta do Zanzibar, de onde se escapavam notas de trompete. - Espero que não a incomode.

- Muito pelo contrário - retorquiu. - Também adoro.

- A sério? Prefere Miles ou Coltrane?

- Miles Davis.

- Round Midnight ou Kind of Blué!

- Round Midnight, claro.

- Ah! Mal a vi, soube logo que era uma mulher de gostos requintados. E óbvio que depois aceitou sair comigo e a minha teoria caiu por terra - acrescentou com uma piscadela cúmplice.

Bethie correspondeu com um sorriso, sem mesmo se dar conta.

- Não há nenhuma regra que impeça de se gostar do mar e da montanha - retorquiu, bem-humorada.

- Engano-me, ou acabou de me insultar?

- Não sei. Tudo depende de o colocar do lado do mar ou da montanha. Tenho a noite toda para me decidir.

- Elizabeth! Imagino que vamos passar uma noite inesquecível! redarguiu ele com entusiasmo.

- Mentiria se dissesse que não o desejo...

Era a primeira vez desde há muitos meses que Elizabeth dava livre curso às suas emoções.

Um pouco mais tarde, diante de um prato de mexilhão com massa, regado com um óptimo bordo, ela fez finalmente a pergunta que lhe queimava os lábios.

- Diga-me, Tristan. É doloroso? - quis saber, dirigindo os olhos para o seu lado direito.

- Sim. Contudo, agora já é muito melhor - respondeu ele, assentindo com a cabeça. - Há uns tempos que deixei de ter picadas.

- Mas como se sente?

- Sabe, minha querida... - Sorriu-lhe. - O bom Deus presenteou-me com dois rins defeituosos. O primeiro deixou de funcionar, tinha eu dezoito anos e o segundo começou a falhar no ano passado. Fiz hemodiálise durante dezasseis longos meses, o que não é propriamente uma maravilha. Em contrapartida, desde a operação, vivo nas nuvens.

- Há... há algum risco de rejeição?

- Tal como no amor, tudo é possível. Mas tomo todos os meus medicamentos como um bom soldadinho e nunca me esqueço de fazer as orações antes de me deitar. Ignoro como é que Deus dá uma segunda oportunidade a bandidos como eu, mas não me queixo.

- Imagino a satisfação da sua família!

Ele voltou a sorrir, mas desta vez Bethie julgou detectar uma ponta de nostalgia no olhar.

- Não tenho muita família, Bethie - retorquiu. - Um irmão mais velho que não vejo há muito. Uma mulher que amei e me anunciou que esperava um filho meu. Nessa altura era jovem e estúpido e não reagi como ela desejava. Quando me informaram de que precisava do transplante de um rim, não tive muita coragem de soltar as emoções e dar sinal de vida. Sou um velho urso solitário, o género que raramente dá um bom pai.

- Lamento - desculpou-se Bethie. - Não era minha intenção entristecê-lo.

Não faz mal. Cometi erros como toda a gente, lambi as feridas, mas... cá vou indo. Tudo é preferível ao tédio de uma vida tranquila. Pertenço à raça dos que morrem de pé. Provavelmente ligado a uma máquina de hemodiálise - ironizou.

- Não fale assim. Conseguiu chegar até aqui e estou convencida de que a vida ainda lhe reserva boas surpresas. Encontrar esse seu filho, por exemplo.

- Acha mesmo que isso será possível?

- Sem dúvida.

- Porquê?

- Muito simplesmente por ter falado no assunto com uma perfeita desconhecida. É sinal de que isso o preocupa.

Shandling não respondeu logo. Os dedos envolveram vagarosamente o copo de vinho.

- Ignoro se já o referi, Elizabeth - pronunciou finalmente -, mas é uma mulher muito perspicaz.

- Sou mãe. É tudo.

- Nem sei... - começou, recostando-se na cadeira, levando o copo aos lábios e bebendo um pequeno gole. - Nem sei se é um rapaz ou uma rapariga e muito menos se essa criança é realmente minha... Passo a maior parte do tempo a correr mundo e não me parece ter o perfil do pai ideal.

- O que faz na vida, Tristan?

- Sou especializado em pequenos negócios.

- Pequenos negócios?

- Sim - redarguiu com uma gargalhada. - Corro o mundo à procura de coisas fora do comum e baratas. Caixas de madeira da Tailândia, objectos de laca preta de Singapura, papagaios de papel fabricados na China. Tudo isso que encontra nas lojas de presentes sou eu que importo, fazendo bom dinheiro.

- É assim que ganha a vida? - interessou-se Bethie, com um ar divertido.

- E muito bem, se quer saber. Mando vir tudo em contentores e a quantidade é importante.

- Há que ter visão para uma profissão assim.

- Não. Apenas experiência e intuição. Mas fale-me um pouco de si. A pergunta surgia na sequência de ele ter abordado a sua vida privada, mas Bethie retraiu-se, e a sua reacção não escapou a Shandling.

- Desculpe - disse de imediato. - Tenho este mau hábito de falar sem pensar. Procuro sempre mudar, mas...

- Não, não. Foi uma pergunta muito natural, sobretudo depois de tudo o que me contou.

- Sei que atravessa um momento particularmente difícil. Não tenho mesmo emenda e não devia ter cometido a mínima indiscrição.

- Não... não é isso - balbuciou Bethie.

Shandling assentiu com a cabeça, incitando-a a prosseguir e fitando-a com os seus cândidos olhos azuis. Bethie concluiu que era fácil abrir-se com ele. Muito mais fácil do que pensara.

- Venho de uma família da alta sociedade em que as raparigas são educadas para se tornarem esposas modelo - começou. - Ensinaram-me a ter uma bela casa, a receber bem, a sorrir ao lado do meu marido. E a ser, obviamente, uma mãe ideal para perpetuar a tradição.

Tristan aquiesceu com uma expressão grave.

- E depois... depois, divorciei-me, o que foge à regra. Curiosamente, não entendi logo o que me acontecia. Pensava sobretudo no destino da Kimberly e da Amanda, que não tinham tido uma infância muito feliz. Precisavam de atenção e foi o que lhes dei. Em vez de ser a sombra submissa do meu marido, tornei-me a das minhas filhas. Na altura pareceu-me natural...

- Só que elas cresceram.

- A Kimberly partiu, de facto, para a universidade há três anos prosseguiu Bethie num tom abafado. - E nunca mais nada foi como dantes.

Ela baixou os olhos, incapaz de o fitar de frente. A orquestra tocava blues e a cantora, uma mulher já de bastante idade, evocava o amor reencontrado com uma surda nostalgia. Bethie sentia um nó na garganta. Reviu mentalmente a sua bela casa. A sua casa desesperadamente vazia, envolta num silêncio que o telefone só raras vezes quebrava. Os quadros pendurados nas paredes, testemunhas silenciosas dos rostos dos que amara e nunca mais voltaria a ver. Reviu sobretudo o buraco negro, cavado

na erva demasiado verde, onde desaparecera para sempre uma parte de si própria... Lembra-te de que és pó...

Aos quarenta e sete anos já não sabia quem era. Aos quarenta e sete anos deixara de ser a mulher de Quincy e a mãe de Mandy.

Tristan estendeu a mão e entrelaçou os seus dedos nos de Bethie. Ela ergueu o rosto e deparou com o seu olhar grave. Por um instante, surgiu-lhe uma imagem dele, acordando no dia seguinte ao do transplante, sem ninguém ao lado que lhe agarrasse a mão. Só ele podia compreender, disse para consigo.

Bethie entrelaçou os dedos nos dele. A velha cantora continuava a celebrar um amor impossível e o tempo parecia ter parado.

- Não quer passear um pouco, Bethie? - perguntou Tristan num tom suave.

Lá fora, o ar estava quente e húmido, mas o Sol não tardaria a pôr-se. Bediie sempre gostara daquela hora do dia em que o mundo se tranquiliza, os ruídos ficam mais abafados, as cores perdem intensidade e as formas se suavizam. O crepúsculo confortava-a.

Caminharam em silêncio, sem rumo determinado, na direcção de Rittenhouse Square.

- É a minha vez de lhe fazer uma pergunta - disse Tristan, que alargara o nó da gravata e enrolara as mangas da camisa, tentando fugir à humidade ambiente.

- Força - incitou-o com um ar de desafio, consciente de que Tristan a observava.

- Mas primeiro tem de prometer que não se ofende.

- Depois de dois copos de vinho, acho que seria preciso muito para me ofender.

Tristan parou no meio do passeio e obrigou-a suavemente a virar-se de frente para ele.

- Não é só por causa do meu rim?

- Como?

- Não é só por causa do rim da sua filha que se encontrou comigo esta noite? Sei que a pergunta pode parecer rude, e longe de mim querer perturbá-la, mas a noite tem corrido tão bem, que preciso de saber. Diz-se que quando se recebe o órgão de uma pessoa, se recebe também um pouco da sua alma. Foi o único motivo que a levou a aceitar jantar comigo esta noite? Para encontrar a sua filha por procuração? Coloco-lhe a questão - apressou-se a acrescentar -, porque me apetece imenso beijá-la, Elizabeth Quincy, e não deveria fazê-lo, se me vir com esses olhos.

Bethie sentia-se aturdida. Largou a mão de Tristan e pôs-se a brincar mecanicamente com a gola do camiseiro.

- Não... claro que não! Isso é perfeitamente ridículo! Não acredito nessas histórias. São pura superstição! - respondeu por fim.

Tristan esboçou um aceno de satisfação. Iam retomar o passeio quando ela se atraiçoou, ao indagar:

- Mas sente-se... sente-se exactamente como antes?

- Desculpe?

- Encontrámo-nos por acaso e, no entanto, soube logo quem eu era, embora só me tivesse visto uma vez e de longe - justificou rapidamente. - Não acha estranho? Quando vou a qualquer festa, só depois de ter visto alguém três ou quatro vezes é que consigo ligar o rosto à pessoa.

- Não se esqueça de que me salvou a vida. É muito diferente de se cruzar com alguém num evento social.

- Há outra coisa, tenho a certeza.

- Outra coisa? Mas o quê?

A voz de Tristan deixou transparecer uma genuína preocupação. A noite fora perfeita e Bethie já se sentia arrependida das suas próximas palavras.

- Sabia o meu diminutivo.

- O seu diminutivo?

- Bethie. Desde o início que me chamou Bethie. Nunca Liz ou Beth. Contudo, nunca lhe disse que era esse o meu diminutivo. Quantas Elizabeth conhece que as tratem por Bethie?

Shandling ficou muito pálido, de olhos semicerrados. Por um momento, ela quase desejou não ter feito o comentário. Os olhos de ambos fixaram-se em simultâneo no lado direito dele, no sítio exacto onde a camisa dissimulava uma pequena cicatriz rosada.

- Caramba! - murmurou.

Bethie sentiu um calafrio. A noite estava quente e húmida, mas esfregou os braços para se aquecer.

- Fizemos mal - exclamou bruscamente.

- Não...

- Sim!

- Mas claro que não, Deus do céu!

Voltou a pegar-lhe no braço com um gesto autoritário antes de acrescentar:

- Não sou a sua filha.

- Sei muito bem.

- Tenho cinquenta e dois anos, Bethie... Elizabeth. Adoro comer carne e Glenftddich é a minha bebida favorita. Tenho um negócio próprio, gosto de carros velozes e de barcos de corrida e compro regularmente a Playboy sem ser pelos artigos. Deus é minha testemunha. Acha que me pareço com uma jovem de vinte e três anos?

- Como é que sabe a idade da Amanda?

- Porque os médicos me disseram .

- Fez-lhes perguntas sobre ela?

- Bethie, minha querida... claro que sim. Ao morrer, alguém permitiu-me que vivesse. Há noites em que não consigo dormir a pensar nisso. Não sou a sua filha, nem sequer o fantasma dela. Sou apenas um homem grato.

Bethie manteve-se longo tempo imersa nos seus pensamentos e depois assentiu com a cabeça.

- É possível que alguém no hospital me tenha chamado Bethie.

- Sim. Deve ter sido isso - anuiu Tristan, largando-lhe o braço. No entanto, Bethie continuava em busca de respostas.

- Falaram-lhe sobre o acidente?

- Sei que ela tinha bebido, se é o que quer saber.

- Quando penso nos progressos que ela já fizera - murmurou Bethie. - Há seis meses que tinha ingressado num grupo de Alcoólicos Anónimos e estou certa de que ia conseguir.

Ele não respondeu, mas a expressão do rosto suavizou-se. Puxou-lhe suavemente uma madeixa para trás da orelha e os dedos demoraram na nuca. Acariciou-lhe o queixo com o polegar.

- A Mandy era uma pessoa extremamente sensível - continuou Bethie. - Desde muito pequena. Nada meda medo à Kimberly, mas a minha Mandy foi sempre diferente. Era tímida, reservada. Não gostava de insectos, tinha até medo dos pássaros desde que viu o filme do Hitchcock. Quando era miúda, o escorrega da escola aterrorizava-a, nunca se soube porquê. Até aos doze anos dormiu sempre com uma luz de vigia acesa.

- Deve ter-se preocupado muito com ela.

- Queria tanto que ela se sentisse bem, que fosse forte e independente. Queria para ela tudo o que eu nunca fui.

- Não deve culpar-se pelo que lhe aconteceu - retorquiu Tristan.

- É o que tento dizer a mim própria - declarou com um sorriso tímido. - Em vez disso, culpo o meu marido.

- Porquê?

- Por causa da sua profissão. Entrou para o FBI quando as filhas eram pequenas e nunca o víamos. Suponho que o seu trabalho era importante, mas sempre achei que as nossas filhas estariam em primeiro lugar. Parvoíce minha! - Ao tomar consciência da amargura com que se expressava, esboçou um pequeno sorriso. - Desculpe estar para aqui a confessar-lhe tudo isto.

- Não tem que se desculpar - ripostou, sorrindo também.

- Fico-lhe muito grata por me ter ouvido - prosseguiu Bediie, agora já sem a descontracção que mostrara ao jantar, mas num tom suave.

- Oh, Bethie! Repito o que lhe disse antes. Há muito tempo que não passava uma noite tão agradável. Mas há males que vêm por bem. Precisei de chegar aos cinquenta e dois anos e ter feito uma cirurgia de risco para o saber, mas compreendi a lição.

- Está mesmo aqui só por uma semana?

- Sim, mas posso perfeitamente voltar.

- Para tratar de negócios?

- Se é assim que quer chamar-lhe.

Bethie baixou a cabeça, corando. Tristan apercebeu-se e ergueu-lhe o rosto, chegando-se mais a ela. Bethie sentiu-lhe o calor do corpo e soube que ia beijá-la. Inclinou-se para diante.

- Bethie - sussurrou ele, antes de os lábios se unirem. - E se amanhã fôssemos dar um passeio pelo campo?

 

Casa de Quincy, Virgínia

Passava das dez da noite quando Quincy regressou finalmente a casa, que estava mergulhada na obscuridade. Fez malabarismos com a pasta do computador portátil, o telemóvel e um caixote cheio de dossiês, antes de encontrar a chave. Mal abriu a porta, o sistema de segurança disparou o sinal de alarme.

Transpôs a ombreira e marcou mecanicamente o código sem sequer olhar para as teclas. Um minuto depois, com a porta de novo fechada à chave, reactivou os sensores exteriores, deixando os interiores desligados. Lar, doce lar.

Quincy tinha um orgulho enorme no seu sistema de alarme. Era, aliás, o único objecto de valor na sua casa.

Entrou na cozinha e pousou a pasta e o caixote com os dossiês no balcão. Depois, abriu o frigorífico, embora sabendo que ele não se enchera sozinho durante a sua ausência. Fechou a porta e encheu um copo com água da torneira que bebeu em pequenos goles, encostado ao lava-louça.

A cozinha era espaçosa e moderna. Tinha o chão de madeira de carvalho e um grande fogão em aço inoxidável com uma tampa enorme, a que se sobrepunha um frigorífico gigante e de aço inoxidável. Os armários eram de madeira de carvalho e os balcões em granito preto. Quando comprara a casa, o agente imobiliário explicara-me que a cozinha fora concebida para organizar recepções: cinco anos mais tarde, o recanto junto às janelas de sacada continuava à espera de uma mesa.

Quincy passava a maior parte do tempo a viajar, e a casa revelava isso.

Afastou-se do balcão e começou a percorrer a casa de um lado para o outro. Fora um longo dia, como habitualmente. E mais um regresso a casa para... falar com quem?

Talvez devesse comprar um animal: um gato, um peixe-vermelho, um papagaio, qualquer coisa... Quincy não era muito exigente no seu quotidiano. Podia dispensar facilmente móveis nas divisões e quadros nas paredes. Ainda era jovem quando a mãe morreu, e nunca se habituara ao conforto. Mas o silêncio... Nunca se acostumou ao silêncio.

Ainda se recordava das noites da sua infância, sentado em frente do pai, à. velha mesa de pinho da cozinha, partilhando uma refeição simples, sem pronunciarem uma palavra. O trabalho na herdade exigia um grande esforço físico. Abraham levantava-se ao nascer do Sol e raramente voltava antes do anoitecer. Comiam, ficavam uns minutos em frente à televisão e liam muito. Pai e filho sentavam-se todas as noites, cada um na sua poltrona, mergulhando num romance que os transportava a universos diferentes.

Quincy abanou a cabeça. Abraham educara o seu filho único da melhor maneira que sabia. Trabalhara arduamente para que não faltasse nada a Quincy e fora ele que lhe inculcara o gosto pela leitura. Quincy ficar-lhe-ia eternamente reconhecido.

Se lhe tivessem feito a pergunta um mês atrás, Quincy teria respondido que se sentia em paz consigo próprio, mas o desgosto é um veneno lento de efeitos perniciosos. A morte de Mandy, as dúvidas sobre as circunstâncias em que se dera o acidente haviam-no abalado profundamente, e as peregrinações que efectuava com regularidade ao túmulo da filha no Cemitério de Arlington em nada contribuíam para melhorar as coisas. Tão-pouco os olhares de viés dos colegas que lhe punham os nervos à flor da pele.

Quincy não estava habituado a viver dessa maneira, roído pela dúvida e a incerteza, convencido de que a qualquer momento podia mergulhar no abismo. Acordava a meio da noite, o coração a bater-lhe com força no peito, desejando poder telefonar a Kimberly para se certificar de que ela estava bem, mas também para se convencer de que ainda tinha uma filha viva. Também lhe acontecia sentir necessidade de telefonar a Bethie porque, embora soubesse que ela o desprezava profundamente, fora alguém que amara Mandy. Um dos poucos laços que ainda o ligavam à filha.

Quincy nunca imaginara que fosse tão difícil. Contudo, enquanto psicólogo, sabia o que era o luto. Conhecia tudo, pelo menos em teoria. Na sua profissão, acontecera-lhe muitas vezes ter de anunciar a alguém a morte de um ente próximo. Nesses casos, recomenda-se uma alimentação saudável, exercício e nem uma gota de álcool. Sugere-se que se pense no defunto com a maior objectividade, sem nunca ceder à histeria.

Contudo, Quincy era igual aos demais, convencido de que o destino nunca viria bater-lhe à porta. Esquecia-se de fazer uma alimentação adequada, revelava-se incapaz de pensar serenamente na filha e havia dias em que ansiava, com desespero, beber para esquecer.

O grande agente especial supervisor Pierce Quincy. O melhor entre os memores de Quantico. Como pode ser grande a queda dos poderosos!, reflectia, perturbado com o seu egocentrismo, mesmo tratando-se da morte da filha.

Se, ao menos, Rainie lhe telefonasse. Surpreendia-o que ela ainda não lhe tivesse dado notícias. Massajou as têmporas devagar, com a esperança de diminuir a dor de cabeça que há alguns dias não o abandonava. Nesse mesmo momento tocou o telefone pousado em cima do balcão da cozinha.

- Até que enfim! - murmurou Quincy, pegando no auscultador

- Está?

Obteve o silêncio como única resposta. Um silêncio ritmado por barulhos estranhos ao fundo, como se alguém batesse instrumentos metálicos uns nos outros.

- Ora, ora, ora! - soou uma voz masculina. - A grande individualidade em pessoa.

Quincy franziu o sobrolho. Aquela voz trazia-lhe vagas recordações.

- Quem fala?

- Não te recordas de mim? Fico muito desiludido, amigo. Eu que pensava que era o teu tarado favorito. Têm a memória assim tão curta no FBI?

Quincy lembrou-se imediatamente de um nome.

- Quem lhe deu este número? - indagou num tom tenso. Sentiu as palmas das mãos suadas e olhou de relance para o sistema

de alarme, a certificar-se de que estava ligado.

- Não vais, por acaso, dizer-me que ainda não sabes?

- Quem lhe deu este número?

- Calma, amigo. Só queria ter uma conversinha contigo, recordando velhos tempos.

- Vai-te foder!

O insulto saíra-lhe sem pensar. Quincy era uma pessoa que só muito raramente dizia palavrões e lamentou de imediato a frase quando o interlocutor reagiu com uma gargalhada.

- Ora, Quincy, meu amigo. Precisas de um pouco mais de imaginação, se queres aprender a falar à maneira. Não somos meninos de coro, meu. Podias tentar "Que se foda

a puta da tua mãe." Ou: "vou ao cu da tua mãe e sem vaselina." Esta é boa. Sobretudo porque tem variantes - precisou o homem num tom abjecto. - O que dirias de:

"vou enrabar a puta da tua filha no cabrão do seu túmulo com a puta da cruz branca." Tenho a certeza de que te agrada, não?

Os dedos de Quincy crisparam-se no auscultador, ao mesmo tempo que uma onda de ódio o percorria. Teve vontade de esmagar o telefone contra o balcão da cozinha ou o duro chão de madeira. Apetecia-lhe sobretudo partir a cara àquele verme, Miguel Sanchez, o condenado à morte de trinta e quatro anos que ria do outro lado da linha.

Quincy nunca atingira um estado assim. Tinha o corpo rígido de raiva e era como se as têmporas fossem explodir a qualquer momento.

Pousou subitamente os olhos no atendedor. A luz vermelha piscava, indicando que havia mensagens e o ecrã digital mostrava-lhe o número: 56. Cinquenta e. seis mensagens,

embora o seu número fosse confidencial!

- Ouve-me bem, Sanchez - pronunciou, surpreendido com o tom calmo e pausado da própria voz. - Um telefonema meu

bastá para que te ponham na solitária. E sabendo como eu sei o pavor que tens ao isolamento...

- Isso quer dizer que não te agrada falar da tua filha, amigo? Da tua filhinha linda, com um nome tão bonito.

- Pensa bem. Várias semanas no buraco sem teres com quem falar, sem poderes abrir o bico, sem ninguém para violares no duche quando perceberes que nunca mais vais tocar numa mulher, Sanchez.

- Olha, polícia de merda. Quando ouvires a gravação desta conversinha, pensa na tua filha da minha parte. E não te esqueças de dar um beijo por mim à mais nova. Um dia, vou encontrar maneira de sair da puta desta choldra e já estou teso só de pensar que ainda te resta uma filha.

- Pela última vez, Sanchez. Quem te deu o meu número confidencial?

- Confidencial? Já foi, amigo - gargalhou Sanchez.

Quincy acabara de desligar, quando o telefone tocou de novo.

- Está? - perguntou bruscamente ao levantar o auscultador. Após uns segundos de silêncio, reconheceu a voz da sua ex-mulher.

- Pierce?

Quincy fechou os olhos, consciente de que precisava de recompor-se. Estava prestes a perder o controlo.

- Sim, Elizabeth.

- Queria que me fizesses um pequeno favor - murmurou Bethie.

- Nada de complicado. Apenas que me verifiques uma coisa.

- Mais um pedido do teu pai?

Quincy agarrava o auscultador com tanta força que sentiu a mão dormente. Tentou diminuir a pressão e respirou fundo. No ano anterior, o ex-sogro mandara aumentar a casa e pedira à filha que telefonasse a Quincy para que ele se inteirasse da honestidade dos operários.

- Desta vez, não. Queria que te informasses sobre uma pessoa de nome Shandling. Tristan Shandling.

Quincy pegou num pedaço de papel e anotou o nome. Sentia-se um pouco melhor. O ritmo cardíaco começara a voltar ao normal, deixara de ver estrelas diante dos olhos e acalmava aos poucos. O contador digital do atendedor continuava a piscar insolentemente. Cinquenta e seis mensagens. Devia haver qualquer problema. Trataria do assunto, como sempre fizera. Tudo a seu tempo.

- É urgente? - perguntou a Bethie.

- Não propriamente. Quando puderes. Penso que mora na Virgínia, se isso te ajuda.

- Tudo bem, Bethie. Dá-me uns dias.

- Obrigada, Pierce - agradeceu num tom que pela primeira vez lhe pareceu sincero.

Quincy não desligou logo o telefone. Ela também não.

- Tens... tens tido notícias da Kimberly?

- Não, mas julguei que tu tivesses - retorquiu, visivelmente apanhada de surpresa.

- Ah! O que significa que anda a evitar-nos aos dois.

- Talvez tenha tentado ligar na tua ausência - sugeriu Bethie e apressou-se a acrescentar: - Não é a primeira vez que te telefono esta semana, mas ninguém respondeu e não quis deixar mensagem.

- Estive em Portland. Fui visitar uma velha amiga.

Ignorava o que o levara a dar a explicação e arrependeu-se, mal pronunciou as palavras. Uma velha amiga? A quem é que queria enganar?

- Achas que devia ir ver a Kimberly? - retomou, porém, Bethie, sem parecer irritada ou tensa. - Estou a uma hora de carro e posso dizer que tinha que fazer em Nova Iorque. Já passou um mês.

Quincy esteve quase a responder que não, mas controlou-se. Rainie censurara-o por tomar sempre as decisões pelos outros no trabalho, o que se repetia na sua vida privada.

- Talvez a Kimberly precise de um pouco de espaço - redarguiu num tom neutro.

- Não percebo porquê. Somos a única família que lhe resta. Para te falar com toda a franqueza, julguei que ia aproximar-se de nós e não o contrário.

- Sei como te sentes triste, Bethie - disse, massajando as fontes.

- Também eu me sinto.

- Pára de me falar como se eu tivesse cinco anos, Pierce!

- Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance por ela. Sei que nem sempre concordámos sobre a educação das nossas filhas, mas ninguém pode acusar-nos de não termos amado a Mandy. Tanto eu como tu queríamos que ela fosse feliz. Estávamos dispostos... dispostos a dar-lhe tudo. E o que fez ela? Recomeçou a beber, pegou no carro e provocou um acidente que matou um homem inocente. Se soubesses até que ponto a amo e como sinto a falta dela... Há momentos em que me apetece partir tudo.

Voltou a pensar no telefonema de Sanchez, na onda de raiva que o invadira. Uma raiva inquietante, persistente, de que talvez levasse anos a libertar-se.

- Bethie - prosseguiu. - Queria saber se também te sentes enraivecida?

Elizabeth não respondeu logo. Quando acabou por retomar a palavra, fê-lo num tom estranho:

- Pierce, achas que se herda uma parte da personalidade de alguém quando se recebe um dos seus órgãos?

- Claro que não. Um transplante é apenas uma operação.

- Tinha a certeza de que me darias essa resposta.

- Voltando à Kimberly...

- Ela sente-se infeliz, precisa de estar sozinha, eu sei. Entendi, Pierce. Não sou assim tão estúpida.

- Bethie...

Tarde de mais. Ela desligara.

Quincy pousou o auscultador lentamente. E pensar que aquele telefonema fora um dos momentos mais calmos do dia!

Uns minutos mais tarde, Quincy sentou-se ao balcão da cozinha com um caderno e três canetas. Afastou o pedaço de papel onde estava escrito o nome de Tristan Shandling e carregou no botão do atendedor.

Cinquenta e seis mensagens mais tarde, tinha na frente uma lista impressionante de assassinos perigosos. Segundo parecia, todos tinham telefonado para o seu número confidencial para me deixar ameaças de morte.

A luz do painel do sistema de segurança piscava, indicando que tudo estava em ordem. Fitou-a demoradamente e pensou em Kimberly e em Mandy.

Pouco depois, levantou-se e dirigiu-se ao escritório. Remexeu numa série de dossiês em que se lia "Criminologia. Teorias Elementares", até encontrar uma cassete com a inscrição: "Miguel Sanchez. Oitava vítima". A gravação original encontrava-se num departamento do FBI, na Califórnia; aquela era apenas uma cópia de que Quincy se servira em algumas das aulas.

Colocou a cassete num velho gravador, que pôs a funcionar antes de se sentar. O escritório estava mergulhado na penumbra e as paredes ressoaram com os gritos desesperados de Amanda Johnson, de quinze anos, a oito longas horas da morte.

- Nãã...ãããÕãõoooo - gritava ela. - Nãã...ãããããõoooo Quincy apoiou a cabeça entre as mãos, consciente do longo percurso que ainda tinha pela frente: um mês depois de haver enterrado a filha, continuava incapaz de chorar.

 

Motel 6, Virgínia

- Quem é esse Miguel Sanchez? - perguntou Rainie uma hora mais tarde.

Estendida na cama, com as costas apoiadas à parede de cor indefinida do quarto, acabara por decidir telefonar a Quincy, depois de ter substituído o jantar por uns

crepes de mirtilo num pronto-a-comer.

Avistara a tabuleta do Motel 6 na auto-estrada e parecera-lhe um lugar tão bom para dormir como qualquer outro. A cinquenta dólares por noite, ninguém questionaria a factura. E como havia aquele pronto-a-comer tão peno...

Jantara sozinha, reflectindo no que Vince Amity lhe dissera sobre as circunstâncias do acidente. Comidos os crepes, passara o tempo a observar os outros clientes. Eram na maioria operários que tinham levado a namorada a comer, mas também havia algumas famílias. Embora fosse a primeira vez que se encontrava a cinco mil quilómetros de casa, nada lhe parecia muito diferente.

Por fim, regressara ao motel, decidida a ligar a Quincy. Mas em vez de lhe telefonar a relatar-lhe o dia, ligara a televisão e fizera zapping pelos cinquenta e sete canais sem encontrar nenhum programa interessante. Afinal, quase não tinha nada que contar a Quincy e não queria sobretudo dar-lhe a impressão de que sentia a falta dele. Estava apenas a fazer uma investigação para Quincy. Ponto final.

Depois de todo aquele tempo embrutecida diante do televisor, acabara por telefonar e dera-se imediatamente conta de que o devia ter feito mais cedo. Quincy respondera com uma voz cansada, desprovida de emoção. Nunca lhe ouvira aquele tom.

- O Miguel Sanchez foi o primeiro tipo que apanhei - explicou.

- Praticava sevícias na Califórnia em meados da década de oitenta juntamente com o primo, um tal Richard Millos. Dois sádicos que violavam e torturavam prostitutas adolescentes, antes de as assassinarem. Mataram oito, até serem apanhados. O Sanchez gostava de gravar os gritos das suas vítimas.

- Que maravilha! - comentou Rainie, desligando a televisão com o comando. - E foste tu o responsável pela prisão do Sanchez?

Sim. Apresentei à polícia um plano que permitiu apanhá-lo.

Uma testemunha tinha visto dois homens a transportarem a oitava vítima numa carrinha branca vinte e quatro horas antes de se descobrir o seu corpo mutilado na berma da auto-estrada. Então, já se sabia que estávamos a lidar com um assassino muito especial. Tal como expliquei nessa altura aos investigadores da polícia de Los Angeles, os psicopatas raramente recorrem a cúmplices, mas em alguns casos têm necessidade de saciar as pulsões na presença de um comparsa, como se quisessem audiência. Uma vez identificados os dois suspeitos, sugeri aos investigadores que atacassem o mais fraco dos dois, que o levassem a denunciar o cúmplice. Foi assim que o Richard entregou o Miguel, que era indubitavelmente o mais perigoso dos dois, a troco de uma redução de pena.

- Mais fácil de dizer do que fazer, suponho.

- Sim. O Richard idolatrava esse seu primo mais velho e também sentia muito medo dele. Tinha, aliás, motivo para tal. Seis meses mais tarde, encontraram-no no duche da prisão, com o pénis cortado e metido na boca. O Miguel não é propriamente subtil.

- E foi esse encantador espécime de Homo sapiens que te telefonou hoje para a tua linha privada?

- Ele e mais quarenta e sete dos companheiros. Recebi igualmente oito chamadas de vários directores de penitenciárias, avisando que o meu número de telefone circulava actualmente nas suas instituições escrito em pedaços de papel e embalagens de cigarros. Numa destas prisões, encontraram mesmo o meu número gravado com uma faca, na parede do duche.

- Quincy...

- Ao todo, recebi chamadas de detidos de vinte e uma penitenciárias diferentes e parece que isto não vai parar.

- Quincy...

- Não te preocupes - prosseguiu num tom de novo agressivo. A maioria destes estabelecimentos vigia os telefonemas feitos pelos presos. Os membros do meu clube de fãs arriscam-se, por conseguinte, a sofrer as consequências mediante sanções disciplinares ou medidas de isolamento. Castigos mais que suficientes para fazerem reflectir os que estão a pensar divertir-se à custa de um agente federal.

- Basta mudares o número.

- Ainda não!

- Não sejas ridículo, Quincy!

- De forma alguma. Sou apenas um homem paciente.

- Estás à espera que um desses tarados acabe por te dizer de onde partiu tudo isto, é isso?

- Faço tenção de participar o incidente ao FBI amanhã, e eles não costumam deixar-se intimidar. A minha linha vai ser posta sob escuta e isso fará ondas. Talvez o Miguel Sanchez ouça falar de mim nos próximos tempos.

- Tens alguma ideia de quem fez isto? Trata-se obviamente de alguém que conheces.

- Talvez, mas não é certo. Pode ser igualmente obra de um estudante de informática que resolveu divertir-se a piratear os ficheiros da companhia dos telefones.

- Não me pareces muito seguro.

- E não estou. Acho que se trata de algo pessoal. Penso mesmo que o engraçadinho não vai parar por aqui. Ao falar da minha filha, o Sanchez mencionou a "puta da cruz branca". Porquê uma cruz branca?

Rainie fechou os olhos. Imaginou uma cruz branca e sentiu um murro no estômago. Apercebeu-se de que não devia estar naquele motel idiota, nem para ali sentada a pensar que negócios eram só negócios. Devia estar na casa de Quincy. Devia estar a abraçá-lo, como ele tão bondosamente fizera com ela outrora.

- Arlington - murmurou.

- Exacto. O Cemitério de Arlington. Quem fez isto, não se contentou em pôr a circular o meu número privado. Encarregou-se também de informar esse sádico psicopara de que a minha filha está enterrada em Arlington. O cabrão!

Rainie ficou a aguardar que Quincy recuperasse a calma. Do outro lado da linha, a respiração foi-se normalizando. Ouvia-se, quase de uma forma palpável, os esforços que ele fazia para voltar a agir como o agente especial ponderado que tanto se orgulhava de ser. Era a primeira vez que Rainie o via deixar-se abater, facto que também a magoava. Tal como ela, Quincy precisava de dissimular emoções por trás de uma máscara de serenidade.

Sem saber porquê, voltou a pensar na corrida inútil do elefante bebé do seu sonho, que acabara por se precipitar irremediavelmente em direcção aos chacais.

- Achas que há qualquer ligação? - perguntou ela, após um longo momento.

- Como assim?

- Entre esses telefonemas e o acidente da Mandy. Não te parece estranho receberes ameaças telefónicas no momento em que contratas alguém para investigar a morte da tua filha?

- Não sei, Rainie. Talvez seja um mero acaso. Fiz muitos inimigos ao longo da minha carreira. Basta que um deles tivesse ouvido dizer que a minha filha morreu e resolvesse divertir-se um pouco. Não é a primeira vez que isso acontece a um agente do FBI.

- De qualquer maneira, esta história não me cheira bem - ripostou Rainie secamente. - O Sanchez referiu a Mandy no telefonema e não acredito em coincidências.

- Não sei - repetiu Quincy num tom cansado. - Sinto que deve haver uma relação entre estes acontecimentos, mas, ao fazer uma análise de cabeça fria, tenho a impressão de que estou a ser paranóico. Não sei. Acho que... neste momento não sou eu próprio.

Rainie manteve-se em silêncio, incapaz de encontrar palavras que lhe levantassem o moral. com a infância que tivera, faltava-lhe experiência nessa matéria. Era incrível o quanto ainda tinha para aprender aos trinta e dois anos.

- Falei com o agente que se encontrava no local do acidente disse, preferindo optar por regressar ao campo profissional. - É um tipo sério que não deixou nada ao acaso.

- E o cinto de segurança?

- A condutora... - começou, mas deteve-se, chocada com a própria frieza.

Quincy permaneceu calado e um silêncio denso instalou-se entre ambos. Nunca conseguiriam entender-se, pensou Rainie, desesperada. Nunca conseguiriam, por mais que tentassem.

- A Mandy percebeu que o cinto de segurança estava estragado um mês antes do acidente - retomou num fio de voz. - Fez uma marcação na garagem para o mandar consertar, mas cancelou-a à última hora.

- Queres dizer que há um mês que ela conduzia sem cinto?

- Assim parece.

- E ninguém a apanhou? Julguei que o uso do cinto de segurança era obrigatório neste país! - exclamou indignado.

Rainie optou pelo silêncio.

- O que aconteceu ao cinto? - prosseguiu Quincy. - Porque é que estava estragado?

- Ainda não sei. O polícia da brigada de trânsito, um tal Amity, vai ajudar-me a encontrar a carroçaria do Explorer, mas, catorze meses depois, será difícil. O jipe da Mandy já deve estar num cemitério de salvados.

- Quero saber o que aconteceu ao cinto.

- Eu sei, Quincy, e estou a dar o meu melhor.

- Conseguiste saber mais sobre o tipo com quem supostamente andava?

- Tratarei disso logo de manhã. Tenho um encontro com a Mary Olsen. Espero que ela possa ajudar-me. Também tenciono informar-me junto dos membros do seu grupo de Alcoólicos Anónimos. Eles devem saber alguma coisa.

- Os Alcoólicos Anónimos, como o nome indica, não costumam revelar os pequenos segredos dos seus membros.

- Usarei o meu charme.

- Rainie...

- Não te preocupes, Quincy. As coisas começam a ganhar forma e sei que precisas de respostas. vou consegui-las.

Voltou a instalar-se o silêncio, menos denso agora. Embora estivessem a pouca distância um do outro, havia um fosso a separá-los. Rainie interrogou-se sobre se ele estaria às escuras, se se esquecera de jantar como também ela se esquecera de almoçar depois de ter apanhado o avião de estômago vazio. Interrogou-se sobre se, nessa noite, ele andaria muito tempo às voltas pela casa, antes de mergulhar num sono pesado. Interrogou-se sobretudo sobre o facto de terem tanta dificuldade em comunicar, embora se conhecessem tão bem.

- Tenho de ir deitar-me - concluiu Quincy. - Preciso de telefonar ao Everett muito cedo.

- Everett?

- O meu chefe no FBI. Preciso de avisá-lo acerca destes telefonemas, se é que já não está ao corrente. Necessito sobretudo de fazer uma pequena investigação sobre todos os tipos que me ligaram.

Rainie olhou para o despertador pousado em cima da mesa-de-cabeceira. Pouco passava da meia-noite.

- Quincy...

- Não te preocupes comigo. Sinto-me bem.

- Não estou muito longe. Posso chegar aí em menos de uma hora.

- Imaginas talvez que podes resolver tudo, se me puseres debaixo da tua asa? Julguei que a piedade era algo que te repugnava.

- Mas a piedade não é para aqui chamada!

- Ah, sim? Lembras-te de como reagiste quando me ofereci para te ir ver? Desculpa! Estava a esquecer-me de que não sabes estabelecer a diferença entre piedade e generosidade.

- Quincy...

- Obrigado pelo seu relatório, detective Conner. Boa noite. Desligou mal acabou de pronunciar estas palavras. Rainie premiu os

lábios, abanou a cabeça e pousou lentamente o auscultador.

- O meu caso era diferente - murmurou. Apenas obteve o silêncio como resposta.

Seis horas mais tarde, o despertador do motel tocou. Rainie saiu da cama penosamente, desfasada devido à diferença horária. A Coca-Cola com que começou o dia não chegou para lhe aclarar as ideias.

Para não perder os bons hábitos, fez a sua corrida matinal de cerca de trinta minutos pela faixa alcatroada à volta da zona comercial onde se encontrava o seu motel,

ouvindo o ruído dos automóveis que circulavam na auto-estrada próxima. Àquela hora, a costumada fauna de homens de meia-idade vestidos com fatos amarrotados saía do motel e já havia uma fila de veículos junto ao McDonald s.

Rainie correu através dos parques de estacionamento, evitando condutores descuidados e antecipadamente cansados pelo trajecto que tinham de fazer. Avistava um pouco mais longe elevados áceres e magnólias. Mesmo naquela selva urbana, a natureza parecia decidida a reivindicar os seus direitos, e a madressilva selvagem crescia junto às barreiras de cimento à volta dos estacionamentos. Rainie tossia devido aos fumos dos tubos

de escape e retomou o caminho do Motel 6 com urn aperto no coração, ao pensar nas paisagens verdejantes e na brisa marítima de Bakersville.

Tomou um duche rápido, secou os cabelos curtos com uma toalha e penteou-os com gel. Na expectativa de mais um longo dia, enfiou um par de calças de ganga coçadas e uma T-shirt branca, o uniforme oficial de uma aspirante a detective particular. Ouviu as mensagens do atendedor de casa, enquanto se calçava. Lá fora, o calor já era asfixiante. O que não daria por uns calções e sandálias!

Ficou surpreendida ao ver que tinha seis novas mensagens. Um recorde para uma agência nova como a sua. Pegou no bloco de apontamentos e na caneta fornecidos pelo motel.

As duas primeiras mensagens eram de clientes que queriam actualizações dos seus casos. Teria de lhes telefonar. As três mensagens seguintes eram todas não identificadas e feitas com uma hora de intervalo. Se não tinham deixado mensagem, não iria preocupar-se, pensou. A última era de um advogado de quem nunca ouvira falar e que queria saber o seu tarifário.

Olhou de relance para o relógio e calculou que seriam quatro da manhã na costa do Pacífico. Aproveitou para ligar para o escritório do advogado e informar que a sua secretária enviaria as informações requisitadas. Depois, deixou o número do Motel 6 na eventualidade de o advogado pretender uma resposta mais rápida. Sentia-se cheia de energia e esperteza e ainda não era meio-dia.

Rainie acabou de apertar os sapatos e, após uma ligeira hesitação, decidiu levar a arma. Debaixo do casaco preto e metida no coldre, a Glock não se via.

Eram sete da manhã quando pegou nos apontamentos e saiu do quarto. Ofuscada pelo sol, piscou os olhos ao abrir a porta e dirigiu-se ao pequeno carro de aluguer que devia estar a escaldar. Um dia fatigante em perspectiva.

 

Quantico, Virgínia

- O primeiro telefonema ficou registado às duas e meia da tarde de terça-feira.

Nas instalações no subsolo do Departamento de Ciências Comportamentais, Quincy fazia um relatório exacto dos acontecimentos da véspera ao seu responsável, o agente especial Chad Everett. Este contentou-se em assentir com a cabeça, denotando uma expressão preocupada. Por cima da sua cabeça, o zunido da lâmpada de néon parecia acentuar a gravidade da situação.

- Às dez e dezoito minutos, atendi pessoalmente o Miguel Sanchez. Seguiram-se outras chamadas, mas, dadas as circunstâncias, preferi que ficassem registadas no atendedor.

Quincy distribuiu cópias do dossiê que elaborara aos colegas reunidos à volta da mesa. Todos tinham escutado em silêncio com rostos atentos.

- Encontrarão neste dossiê a lista completa dos autores dos telefonemas e das penitenciárias a que pertencem - prosseguiu Quincy. Como podem verificar, oito dos responsáveis por estes estabelecimentos contactaram-me pessoalmente. Na maioria dos casos, queriam prevenir-me de que o meu número de telefone particular circulava entre os detidos. Outros dois avisaram-me de que a informação fora divulgada sob a forma de um pequeno anúncio publicado nos boletins internos. Num deles, sou indicado

como um produtor à procura de entrevistar detidos para um documentário sobre o universo prisional. As pessoas interessadas são convidadas a telefonar-me directamente para o número mencionado no anúncio. No outro, ando simplesmente à procura de um correspondente.

Quincy esboçou um pequeno sorriso, antes de retomar a palavra.

- Estou à espera de mais alguns telefonemas, mas parece que pequenos anúncios deste género foram publicados em, pelo menos, mais seis jornais internos, a saber: Companheiros de Cela, Liberdade para Todos e o meu favorito, O Jornal das Prisões, com uma distribuição mensal de mais de três mil exemplares. Sem falar dos sites na Internet como "correspondenciadeprisao.com" que foram pagos para enviar o meu anúncio por e-mail a todos os detidos à procura de um "amigo". Ainda não sabiam - ironizou -, mas tenho

um dos clubes de fãs mais activos deste país.

Quincy fechou o dossiê e sentou-se com uma expressão sombria. Todos os rostos continuavam virados para ele, mas nada mais tinha a acrescentar. A sua vida fora violada por essas dezenas de mensagens de morte que não lhe tinham saído da cabeça durante toda a noite.

Podia pelo menos reconfortar-se com o pensamento de que o FBI encarava o assunto muito a sério. Everett tinha convocado imediatamente uma chamada "célula de crise" composta por vários especialistas: o agente especial Randy Jackson, um homem novo com uma cabeleira castanho-clara pertencente aos serviços técnicos e encarregado da escuta telefónica; a agente especial Glenda Rodman, do Centro Nacional de Análise Criminal, uma mulher de idade indefinida e com uma maneira de vestir austera; e, por fim, o agente especial Albert Montgomery, cujos olhos injectados de sangue e as feições de buldogue tinham posto Quincy pouco à vontade. Ou regressava de

uma missão longínqua e não dormira no avião, ou tinha bebido. Talvez as duas coisas. Quincy censurou-se pela sua dureza; depois da noite que acabara de passar, decerto

não estaria com muito melhor aspecto do que Montgomery.

- Consegue precisar-nos de memória quem tem normalmente acesso ao seu número privado? - perguntou Everett, ao mesmo tempo que a agente especial Rodman se endireitava na cadeira, pronta a tomar notas.

- A minha família - apressou-se Quincy a responder -, bem como colegas daqui e de vários organismos da polícia. Alguns amigos, também. Incluí uma lista o mais completa possível no dossiê. Na verdade, há cinco anos que tenho esse número e confesso que eu próprio me admirei com a quantidade de pessoas que o conhecem.

- Verifiquei nos arquivos da polícia que trabalhaste activamente em duzentos e noventa e seis casos - precisou Glenda.

Quincy assentiu com a cabeça, um tanto surpreendido. Pensava que seriam mais, dado os especialistas em perfis psicológicos como ele serem chamados a intervir como conselheiros em centenas de casos.

- São outras tantas pessoas que se acham com direito a querer-te mal.

- Partindo do princípio de que conheciam o meu envolvimento

- anuiu Quincy. - Sabes tão bem como eu, Glenda, que, na grande maioria dos casos, somos contactados por telefone, ou recebemos um dossiê pelo correio, bastando-nos enviar o nosso relatório por faxe. Em todos estes casos, só com muita dificuldade vejo o culpado a querer mal a outros para além dos investigadores locais.

- De acordo. Pondo esses casos de lado, quantos suspeitos restam?

- Diria uns cinquenta presos - respondeu Quincy, após um rápido cálculo de cabeça.

- E os casos em aberto?

- Há seis anos que deixei de trabalhar directamente no terreno.

- Excepto no ano passado - retorquiu Glenda.

- O Henry Hawkins está morto.

Montgomery inclinou-se para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos. A luz de néon dava-lhe um tom amarelado à pele e Quincy voltou a interrogar-se sobre o que poderia fazer o seu colega naquela reunião. Montgomery tinha um ar sombrio, quase como se estivesse ali contrariado. A sua atitude hostil era tanto mais inexplicável quanto os agentes do FBI têm fama de se mostrar muito solidários sempre que se toca num deles.

- Não estaremos a pôr a carroça à frente dos bois? - resmungou Montgomery. - O Quincy recebeu umas ameaças por telefone. Não me parece que seja assim um assunto

tão sério!

- Para mim, o simples facto de ver circular por uma vintena de instituições prisionais o número privado de um dos meus agentes é efectivamente um assunto muito sério e não faço tenção de cruzar os braços - replicou secamente Everett.

Humilhado, Montgomery virou-se para o chefe. Quincy pensou que tudo ficaria por ali, mas enganava-se.

- Tudo isto é pura treta! - ripostou Montgomery, surpreendendo todos. - Se se tratasse de algo pessoal, se fosse uma coisa séria, quem o fez não se contentaria em dar o número do Quincy a um bando de presos frustrados. Iria directamente a casa dele ou arranjaria forma de mandar alguém no seu lugar. Faz-me rir com essas ameaças no atendedor.

O rosto de Everett ensombrou-se. Tinha trinta anos de serviço e pertencia à velha escola. Desde que era responsável, sempre exigira um mínimo de compostura por parte dos seus agentes, reagindo mal a discursos grosseiros e fatos amarrotados.

-Montgomery...

- Um momento - interferiu Quincy, erguendo o braço e salvandoMontgomery de uma prelecção que não seria benéfica para a sua carreira. - Podes repetir o que acabas de dizer?

- Telefonemas - redarguiuMontgomery com um encolher de ombros. - O problema não está em saber quem, mas saber por que razão se servem da tua linha privada para te atingir.

Glenda Rodman recostou-se na cadeira e assentiu com a cabeça.

- OMontgomery tem razão - observou Randy Jackson, o especialista dos serviços técnicos. - Se esse tipo conseguiu o número privado do Quincy pirateando os ficheiros da companhia dos telefones, teria toda a facilidade em descobrir a sua morada pessoal. E se o número lhe foi parar às mãos por qualquer indiscrição, seria uma brincadeira de criança telefonar para as informações e obter a morada. Em qualquer dos casos, uma coisa é certa: ele sabe onde o Quincy mora.

- Óptimo! - comentou este último.

O raciocínio era elementar, mas não o fizera. Mais uma prova de que deixara de ser quem era desde a morte de Mandy. A dor de cabeça não lhe dava descanso, uma espécie de ressaca de que não conseguia livrar-se.

Porquê telefonemas! A resposta óbvia era que alguém lhe queria mal, provavelmente um criminoso por cuja prisão ele era responsável. Os psicopatas assemelham-se aos tubarões. Atraído pela morte da filha como se fosse sangue, o seu misterioso inimigo estava pronto a atacar. Mas se era esse na verdade o caso, por que razão não dava cabo dele directamente, num momento em que se encontrava tão vulnerável?

Talvez fosse esse o motivo porque se dirigira a Rainie, com medo de não se mostrar à altura. Rainie não era mulher para se deixar ir abaixo, mesmo quando a situação parecia desesperada.

Tudo isso não lhe indicava por que razão o desconhecido divulgara o seu número de telefone a metade da população prisional do país.

- Estou convencido de que nos encontramos na presença de um caso muito grave - retomou Everett. -

Peço-vos que investiguem imediatamente os boletins internos e sites na Net para se saber de onde provêm estes pequenos anúncios. É preciso também determinar com precisão o número de detidos actualmente na posse deste número de telefone.

Acabaremos por descobrir alguma coisa.

- Equivale a procurar uma agulha num palheiro - murmurou Quincy. - Certamente ele pôs o anúncio em dezenas de boletins internos e sites na Net e precisaríamos de um tempo infinito...

Quincy deteve-se a meio da frase, de olhos muito abertos. Acabara de compreender.

- Uma manobra de diversão! - exclamou.

- O que quer dizer, Quincy?

- Uma manobra de diversão - repetiuMontgomery entre dentes.

- Sim. Talvez tenhas razão - anuiu, contrariado. Suponhamos que o tipo tem a tua morada particular, o que é provavelmente o caso. Se te fizer a folha amanhã, acabaremos por descobrir-lhe a identidade através da análise mais pormenorizada dos teus casos. Mas se ele der o teu número a dezenas de criminosos que se encarregam de o passar entre eles, complica-nos a tarefa. Se vier a matar-te, corremos o risco de ainda andar atrás dele anos depois do teu funeral.

- Uma perspectiva encantadora! - ironizou Quincy.

- OMontgomery tem razão - interferiu Glenda num tom visivelmente mais preocupado do que o do colega. - Psicopatas é o que não falta nas prisões e, se te acontecesse alguma coisa, não saberíamos por onde começar. Qualquer um podia ser culpado: um neonazi que odeia agentes federais, um gângster pronto a tudo para ganhar fama, um assassino em série por uma questão de tédio. Bem vistas as coisas, é uma estratégia brilhante.

- Trata-se de um assunto muito sério - repetiu Everett. Desde a véspera que Quincy tinha essa convicção.

- Alguns destes boletins internos são mais conceituados do que outros - observou Glenda, folheando o dossiê preparado por Quincy.

- Para publicarem o anúncio, receberam o texto e o dinheiro pelo correio. Se não deitaram fora o envelope e a carta, temos uma pequena oportunidade. O carimbo do correio indicar-nos-á o local de envio, podemos procurar impressões digitais e fazer testes de ADN. Por outro lado... - Glenda hesitou, lançando um olhar de desculpa a Quincy, antes de prosseguir: - Por outro lado, estes boletins são redigidos por voluntários e o processo pode levar semanas...

Não precisou de acabar a frase. Todos compreenderam. O inquérito tinha poucas hipóteses de resultar. Nos anos sessenta, os maços de cigarros enviados aos presos do exterior serviam para pôr a informação a circular. A fim de reduzir o tráfico de droga, as autoridades penitenciárias haviam acabado por proibir todo o tipo de encomendas. A partir de então, os detidos apenas tinham direito a receber dinheiro que lhes permitia comprar tabaco dentro da instituição. O sistema não acabara com os problemas de droga, mas limitara a circulação de informação.

Nos anos noventa, com base no artigo primeiro da Constituição que garante a liberdade de expressão, os detidos tinham conseguido o direito de se servirem de computadores para publicar boletins especializados, difundidos em larga escala por alguns. Assistira-se, então, ao aparecimento dos pequenos anúncios codificados, permitindo a qualquer um a comunicação com o exterior a troco de uns dólares. Sem falar dos sites da Internet especializados que apresentavam a vantagem suplementar de serem gratuitos. Não é porque um louco furioso assassinou oito pessoas que perde o direito de se expressar ou é proibido de arranjar uma bela correspondente na Net.

- Infelizmente tens razão, Glenda - concordou Quincy. - Muitos destes boletins funcionam de uma forma artesanal. Quanto aos outros, duvido que guardem o correio que lhes enviam, a não ser para evitar inquéritos como este.

- Mesmo assim podemos tentar a sorte com O Jornal das Prisões

- sugeriu Glenda.

- Perfeito - aquiesceu Everett com um aceno de cabeça.

- Posso telefonar à companhia dos telefones - ofereceu-se Jackson -, para me certificar de que ninguém pirateou, nos últimos tempos, os seus sistemas informáticos. Se se mostrarem dispostos a admiti-lo.

Everett voltou a aprovar com a cabeça, visivelmente satisfeito, mas Quincy mostrava-se mais vacilante.

- Duvido que se consiga encontrar o envelope e a carta. - Suspirou, massajando as fontes. - E mesmo que seja esse o caso, não haverá ADN nem impressões digitais. Uma pessoa que monta uma operação desta envergadura não se esquece de uma coisa tão simples como impressões digitais no envelope ou saliva no selo. Quem quer que procureflios é muito mais esperto.

- Pareces pensar que se trata de um ajuste de contas pessoal comentou Glenda.

- Ninguém se daria a tanto trabalho, se assim não fosse - retorquiu Quincy, fitando-a.

- Há uma outra hipótese - sugeriuMontgomery. - Mandar vigiar a campa da tua filha.

- Nem pensar! - insurgiu-se Quincy.

- Mas é um processo normal... - começouMontgomery.

- Que se foda o processo! - replicou Quincy num tom frio e utilizando, contra seu hábito, uma linguagem grosseira pela segunda vez nos últimos dias. - É a minha filha e recuso que se utilize a sua campa como uma armadilha.

Monrgomery levantou-se pesadamente. Os olhinhos negros lembravam os de uma ave de rapina. Quincy interrogou-se sobre se seria aquela a imagem que dava aos familiares da vítima, quando investigava um crime.

- Mas ainda há pouco afirmaste que o Sanchez parecia saber onde a tua filha está enterrada - ripostouMontgomery.

- Enganei-me.

- Uma ova! O Sanchez sabe perfeitamente onde ela está enterrada. O nosso desconhecido deu-lhe essa informação, o que significa que está interessado na campa dela. O tipo deve calcular que vamos vigiar a tua casa e pode dar-se o caso de se dirigir ao túmulo da tua filha e rir nas tuas costas.

- Não quero câmaras escondidas junto à campa da minha filha! explodiu Quincy.

Como Glenda e Jackson não pareciam partilhar a sua indignação, Quincy virou-se para Everett. Este fitou-o com um ar compreensivo, mas também se deixara convencer

pelo raciocínio deMontgomery.

Quincy sentiu uma vertigem. De súbito, e sem um motivo palpável, veio-lhe uma recordação à memória. Voltou a ver-se com as duas filhas numa feira, vários anos antes. Excepcionalmente, uma vez passara a tarde com Mandy e Kimberly, proporcionando-lhes as voltas de carrossel que conseguissem aguentar. A certa altura, elas tinham querido algodão-doce. Fora então que avistara um homem a fotografar crianças.

Passara-lhe uma nuvem pela cabeça, como nesse momento, ao detectar a manobra do pedófilo, postado com a máquina fotográfica a dois passos das crianças sorridentes e só conseguiu pensar que as suas filhinhas, de tranças louras, se encontravam a pouca distância.

De repente, quase se mostrara brutal para com elas. com o coração a bater-lhe com força no peito, explicara-lhes que aquele homem de aparência inofensiva era perigoso

e que não deviam hesitar em fugir, caso alguém do seu tipo se aproximasse delas algum dia.

Kímberly assentira gravemente com a cabeça, registando as suas informações com um ar concentrado, mas Mandy começara a chorar. Durante várias semanas tivera pesadelos, sonhando que o homem da máquina fotográfica queria raptá-la.

- Nem pensar - repetiu num tom rouco. - Não quero câmaras escondidas no cemitério. Se desobedecerem às minhas ordens, mando transladar o corpo da minha filha.

Os colegas fitavam Quincy com um ar preocupado.

- Talvez devesse tirar uns dias de férias, Quincy... - sugeriu finalmente Everett.

- Não preciso, obrigado!

Contudo, Quincy não transmitiu a convicção desejada. Dava-se perfeitamente conta de que estava no limite das suas

forças e ninguém ali era idiota.

De súbito, a verdade abateu-se sobre ele como um raio. Claro! Era exactamente o que o desconhecido pretendia! Não se contentara em pôr a circular o seu número privado,

mas contava também divertir-se à sua custa. O seu objectivo consistia em por o dedo na ferida.

Quincy humedeceu os lábios com a língua, tentando mais uma vez recuperar o sangue-frio.

- Ouçam! Não se trata da minha filha. Esse tipo está-se nas tintas para a minha filha. Só faz tudo isto para me atingir.

- Falas dele como se o conhecesses! - exclamou Glenda Rodman.

- Não, não sei quem ele é, mas faço uma pequena ideia da forma como actua.

- Por outras palavras, não sabes a ponta de um como - acrescentouMontgomery com a sua delicadeza habitual.

- Pensa o que quiseres,Montgomery, mas não transformarás a campa da minha filha numa tenda de circo.

- E porque não? Não é nada que não tenhas pedido às famílias das vítimas.

- Filho-da-mãe...

- Quincy!

A intervenção de Everett bastou para chamar Quincy à realidade. Apercebeu-se, com alguma surpresa, de que tinha o dedo estendido na direcção deMontgomery, como se quisesse trespassá-lo.

- Tenho consciência de que está a atravessar uma fase difícil - retomou Everett -, mas apelo ao seu sentido de responsabilidade. O mínimo deslize pode revelar-se perigoso para todos nós. Quero que descanse uns dias. Uma equipa vigiará a sua casa e preveni-lo-emos imediatamente se houver qualquer problema. Entretanto, sugiro-lhe que alugue um quarto de hotel ou passe algum tempo com a sua família.

- Ouça...

- Há quanto tempo não dorme, Quincy?

Quincy preferiu não responder. Tinha papos por baixo dos olhos e emagrecera tanto que o fato lhe dançava no corpo. Quando Mandy morrera, jurara não se deixar abater, mas a realidade era outra.

Os colegas continuavam a fitá-lo. Quincy sabia muito bem o que lhes ia no pensamento. O Quincy está descontrolado. Nunca devia ter regressado tão depressa ao trabalho depois de perder a filha...

Em muitos aspectos, o FBI era uma matilha de animais selvagens, pronta a eliminar os mais fracos para garantir a sua sobrevivência, pensou Quincy.

- Muito bem! - articulou, por fim. - Só preciso de meter umas coisas num saco e vou para um hotel.

- Excelente. Glenda, peço-lhe que, juntamente com oMontgomery, monte vigilância à casa do Quincy.

- Mando-te relatórios diários - prometeu a Quincy num tom profissional, mas com um olhar compreensivo.

- Obrigado, Glenda - agradeceu ele num tom seco.

- Temos a situação sob controlo - rematou Everett. - Não se preocupe, Quincy. Tudo correrá bem.

Quincy limitou-se a assentir com a cabeça e depois levantou-se e dirigiu-se ao gabinete. Pelo caminho, fitou demoradamente as paredes de cimento e interrogou-se sobre como era possível alguém passar a vida metido num piso do subsolo.

Quando chegou ao gabinete, fechou a porta e pegou no auscultador para telefonar à única pessoa capaz de ajudá-lo a proteger Mandy dos predadores que tencionavam profanar-lhe o repouso.

Algures, em Filadélfia, uma campainha soou demoradamente sem resposta: Bethie não atendeu.

 

Greenwich Village, Nova Iorque

Kimberly afastou-se de casa com um passo rápido. Levantara-se cedo, como todas as quartas-feiras, para a sua aula semanal de tiro. Há algum tempo que o que tinha começado como um simples passatempo acabara por se tornar uma espécie de terapia. Vestida com calças de ganga e T-shirt, os cabelos louros presos num rabo-de-cavalo, dirigiu-se à estação para apanhar o comboio de ligação a Nova Jérsia. Desejava pensar que tudo estava normal, que aquela era uma quarta-feira igual a todas as outras.

Avançava rapidamente sob o ar carregado dos gases dos tubos de escape, a respiração acelerada.

Contudo, essa quarta-feira era diferente das outras. Antes do mais, não tinha de ir trabalhar. Estava tão cansada e nervosa que, na véspera, o Dr. Andrews ordenara-lhe que tirasse o resto da semana de férias, as primeiras desde a morte de Mandy. Dispunha, pois, de todo o tempo do mundo, e contava aproveitá-lo bem, como Andrews lhe recomendara.

Tal não a impedia de caminhar num passo tão rápido que até parecia correr, olhando constantemente por cima do ombro. Contra todas as regras de segurança, decidira levar a sua Glock de calibre quarenta carregada e pronta a disparar. Por muito que tentasse raciocinar e repetir de si para si que não havia motivo para ter medo, de nada valia.

Curiosamente, não se sentia mal. Nada de calafrios na espinha, nem os pêlos da nuca eriçados. Nenhum dos sintomas que, por regra, anunciavam os seus ataques de pânico.

O tempo estava bom e a quantidade de transeuntes que a rodeavam chegava para que se sentisse segura, sem qualquer impressão de ansiedade. E, mesmo que alguém tentasse atacá-la, pensou, estava preparada para se defender e, ainda por cima, armada.

Tal não a impedia de querer chegar sã e salva a Penn Station. Momentos depois, subiu para o comboio e sentou-se, não sem ter observado demoradamente os outros passageiros.

Concluiu que nenhum parecia interessado nela. Gente que lia revistas ou olhava pela janela, mais preocupada com a sua pequena vida do que com Kimberly Quincy.

- És mesmo paranóica - murmurou entres dentes, o que lhe valeu um olhar do passageiro sentado ao seu lado.

Pensou em dizer-lhe que estava armada, mas talvez também ele estivesse, uma vez que se dirigiam a Nova Jérsia. O Dr. Andrews gostava sempre de dizer que a normalidade era um termo relativo.

No momento em que o comboio abrandou antes de parar, dirigiu um enorme sorriso ao vizinho, que baixou rapidamente os olhos. Há muito tempo que Kimberly não se sentia tão bem.

Desceu do comboio com um passo ligeiro e foi de imediato atacada pela pesada humidade. Bem-vinda a Nova Jérsia!

Remexeu no interior da mochila, reajustou a pistola e encaminhou-se para o clube de tiro com um passo mais sereno. Nova Iorque parecia-lhe distante, embora Nova Jérsia não fosse, de facto, mais segura do que Greenwich Village. Kimberly ignorava o motivo, mas sentia-se muito mais descontraída ali.

A sua paixão pelas armas de fogo não era recente. Tinha apenas oito anos quando pedira pela primeira vez aos pais que a autorizassem a inscrever-se num clube de tiro. O pai, como seria de esperar, mandou-a falar com a mie e esta, como seria de esperar, respondera que nem pensar em tal coisa. Contudo, Kimberly não era do género de contentar-se com uma recusa. À força de acompanhar o pai aos treinos e de atazanar a mãe, esta acabara por ceder quando ela fizera doze anos.

- As armas são violentas e orutais. Espalham a morte e a desolação. Mas, já que não queres dar-me ouvidos, filha, vai lá brincar aos cowboys.

A irmã também pedira permissão, mas os pais, de acordo por uma vez, haviam-se oposto, e Mandy fizera uma cena. A situação não desagradara a Kimberly que, subitamente, passara a usufruir da companhia do pai uma tarde por semana.

Nunca soubera o que o pai pensava. Quem é que conseguia alguma vez saber o que o pai pensava?

Quando das primeiras lições, ele insistira nas regras de prudência e segurança elementares, explicando-lhe, em pormenor, como manejar uma arma. Mostrara-lhe como desmontar uma Chiefs Special de calibre trinta e oito e como limpar as diversas partes, antes de voltar a montá-la. Ensinara-lhe depois a apontar a arma, a carregá-la apenas no momento de disparar, a proteger devidamente os olhos e os ouvidos, a obedecer às ordens do instrutor.

Uma vez assimiladas essas regras, o pai colocara-se atrás dela, a fim de a ajudar a ajustar a arma antes de disparar contra um alvo em cartão

com a arma descarregada. Ainda se recordava da voz surda do pai junto ao ouvido, abafada pelo capacete de protecção. Depois de duas horas de recomendações e exercícios, ficara impaciente por passar à prática, mas o pai, com a sua fleuma habitual, encarregara-se de moderar o seu entusiasmo.

- Uma arma não é um brinquedo. Enquanto não lhe pegares, é um objecto inanimado. És tu que lhe dás o seu poder ofensivo e, portanto, deves mostrar-te responsável, sempre que a usares. Quem é responsável pela tua arma?

- Eu.

- Muito bem. Agora, recomecemos tudo...

Levara quatro sessões, antes de conseguir permissão para disparar com balas verdadeiras. Ele colocara o alvo a cinco metros e ela atingira-o com seis balas, quatro delas no centro. Kimberly sentira-se tão feliz que largara a arma e tirara os óculos de protecção para abraçar o pai.

- Consegui, papá! Consegui!

Quincy moderara-lhe imediatamente o entusiasmo.

- Nunca largues a arma dessa maneira! - dissera. - Corres o risco de ferir ou matar alguém, se ela disparar sozinha. Primeiro, tens de travá-la e afastar-te da linha de tiro. Lembra-te de que tens de mostrar-te responsável sempre que usas uma arma.

Este pequeno sermão assemelhara-se a um duche frio. Talvez as lágrimas lhe tivessem assomado aos olhos. Não se lembrava. Apenas se lembrava da curiosa transformação que o rosto do pai sofrera. Ao vê-la tão desiludida, a expressão dele suavizara-se.

- De qualquer maneira, estiveste muito bem, Kimberly - elogiou.

- Mas sabes, querida... às vezes o teu pai porta-se como um idiota...

Até então, nunca ouvira o pai atribuir a si próprio qualquer epíteto negativo. Apercebera-se subitamente de que aquela pequena conversa devia ficar entre os dois, que era uma espécie de segredo. Partilhava um segredo com ele. Não só sabia disparar, como também que o pai podia ser um idiota.

Para ela, esta sessão marcara o início de uma verdadeira paixão. Sob a tutela do pai, aprendera a servir-se sucessivamente de uma Chiefs Special de calibre trinta e oito, de uma Magnum 357 e de uma semiautomática de nove milímetros. com a esperança de que ela perdesse o gosto pelas armas de fogo, a mãe achara por bem inscrevê-la num curso de bailado. Ao cabo de duas aulas, Kimberly regressara a casa, furiosa.

- Que se foda o bailado! - explodira. - Quero que me comprem uma arma!

Esta linguagem valera-lhe a boca lavada com sabão e a proibição de ver televisão durante uma semana, mas nunca lamentara a atitude. Até Mandy a imitara: durante algumas semanas, a irmã mais velha repetia "que se foda!" por tudo e por nada e as duas haviam recebido o mesmo castigo. Em resumo, um estranho e delicioso mês, quando os quatro ainda eram uma família.

Kimberly não sabia porque lhe ocorriam todas estas recordações agora. Invadiu-a uma estranha sensação de mal-estar, como se acabasse de receber um soco no estômago, uma espécie de peso que não a deixava respirar.

Raios, Mandy. Não podias ter passado o volante a alguém? Claro que é difícil deixar de beber, mas podias, pelo menos, manter-te afastada da estrada!

O bailado fora para o diabo, como tudo o mais. Só restava uma cruz branca no famoso Cemitério de Arlington, ao lado dos túmulos dos heróis da nação, graças à família de Bethie que estava ligada ao exército.

Kimberly tivera muita dificuldade em controlar-se durante o enterro. Achava que a ironia do destino iria enlouquecê-la e decerto a mãe não aguentaria se ela começasse a rir histericamente no meio da cerimónia, passara, assim, o tempo todo de lábios premidos. O pai mantivera-se impassível, com a expressão impenetrável de sempre.

Há algum tempo que Quincy telefonava regularmente à filha, contentando-se em deixar mensagens preocupadas. Ela nunca atendia nem respondia aos seus telefonemas, nem aos da mãe, nem, aliás, aos de ninguém. Ainda não se sentia preparada. Era cedo de mais. Mais tarde, talvez...

Envergonhava-se dos seus ataques de pânico e receava que o pai se apercebesse imediatamente do seu mal-estar, caso lhe falasse ao telefone.

Sabes uma coisa, papá? Eu, que era a mais forte, nunca consegui influenciar a Mandy. E agora, é ela que me influencia. Que sorte a tua, teres tido duas filhas tão cobardes!

Quando chegou ao clube de tiro, empurrou a porta de madeira e foi acolhida por uma lufada de ar fresco ao penetrar na sala de entrada mal iluminada. Àquela hora ainda estava vazia. Sem reparar no sofá puído nem nas altas montras cheias de medalhas e trofeus de animais que decoravam as paredes, Kimberly procurou com o olhar Doug James, o seu novo monitor de tiro.

Bem gostaria de se convencer do contrário, mas era um pouco por causa dele que viera tão cedo. com o espesso cabelo castanho grisalho nas fontes e os olhos muito azuis com rugas nos cantos, a pele bronzeada e os ombros largos, Doug James já fizera estragos entre as alunas desde a sua chegada há seis meses.

No entanto, Kimberly não tinha esse género de ligação com os homens. Contrariamente a Mandy, sempre pronta a atirar-se ao pescoço do primeiro que aparecesse. E também diferente da mãe que, durante muito tempo, só existira através dos olhos do marido. Além de que Doug James poderia ter sido seu pai e era casado. E era, obviamente, um atirador de primeira. Corriam boatos de que conquistara inúmeras vitórias nos mais prestigiados concursos.

Tratava-se sobretudo de um instrutor que lhe ensinara muita coisa, dando provas de uma paciência de santo, sempre que praticava com ela. Tinha uma forma muito própria de a olhar e de a escutar como se estivesse verdadeiramente interessado em tudo o que ela dizia, de a receber em todas as aulas, como se apenas a presença dela contasse. Manifestava sobretudo uma maneira muito especial de se lhe dirigir, adivinhando-lhe os pensamentos, sem que alguma vez precisasse de falar-lhe dos seus pesadelos, da solidão que a asfixiava desde a morte da irmã, da impressão de abandono que sentia desde a separação dos pais...

Só ele parecia capaz de entender a sua necessidade de disparar contra alvos de cartão, como se isso a tornasse mais forte.

Aproximou-se do balcão, onde a cabeça de Fred Eagon, o responsável pelo clube, se debruçava sobre uma pilha de papéis.

- Tenho uma aula com o Doug - anunciou.

- O Doug não pôde vir hoje. Está doente - respondeu Fred, folheando os documentos que assinava ao fundo. - Tentou telefonar-te para tua casa, mas já tinhas saído.

- Mas... - balbuciou Kimberly.

- Suponho que foi uma coisa repentina.

- Mas...

Kimberly parecia aparvalhada e Fred acabou por levantar os olhos da sua papelada.

- Ouve. Se alguém adoece, não há nada a fazer. Dar-te-á a aula na próxima semana.

- Claro. Na próxima semana - murmurou, tentando recompor-se.

Ele estava doente. Ponto final. Não havia motivo para fazer um drama. Afinal, Doug era apenas o seu instrutor de tiro. Não precisava dele. Aliás, não precisava de ninguém. Mas, nesse caso, porque lhe tremiam as mãos? E por que razão, de repente, se sentia só no mundo, abandonada por todos?

Tirou a arma da mochila, entrou na sala de tiro e começou a preparar-se: os óculos de protecção, o capacete, uma caixa de munições. E, no ar, aquele cheiro a pólvora com que crescera, o peso reconfortante do aço inoxidável na mão.

Optara por alvos à distância de vinte metros que destruiu conscientemente, pulverizando corações de cartão, cabeças de cartão. Depressa se apercebeu de que aquela sessão de tiro solitário não chegaria para lhe dissipar a angústia. Viera ali porque precisava de uma presença.

E a situação era estranha porque Kimberly, sempre dona de si própria, nunca precisara de ninguém.

Quando saiu do clube uns minutos depois, quase corria e, apesar do calor intenso, Kimberly tinha frio.

Society Hill, Filadélfia

Bethie sentia-se nervosa. Ou melhor, tinha a cabeça a andar à roda. Bem, as duas coisas.

Esperava diante da sua bonita casa de tijolo em Society Hill, numa soalheira manhã de quarta-feira. Para dominar a impaciência, alisou o vestido de seda com um padrão de florinhas púrpuras, retirando um fio imaginário. Inspeccionou depois as unhas dos pés acabadas de pintar para se certificar de que o verniz não estalara e fez o mesmo com as mãos. Estava tudo em ordem.

Levantara-se às cinco da manhã; fora a primeira vez desde há meses que não sentira a mínima dificuldade em sair da cama, entusiasmada com a perspectiva de passar

aquele bonito dia na companhia de Tristan. Tinha duas horas pela frente e mergulhara com deleite num banho de espuma, antes de tratar dos pés e das mãos. Há algum tempo que andava a negligenciar-se...

Decidira levar o seu bonito cesto de vime de piquenique. Comprara-o há uns anos, numa altura em que ainda sonhava com fins-de-semana ao sol na companhia do marido

e das filhas. Curiosamente, pensara logo nesse cesto quando Tristan lhe propusera um passeio no campo, mas tinha levado uns vinte minutos a encontrá-lo, enfiado no fundo de uma prateleira da despensa. Enchera-o com tostas de queijo, uvas e caviar, uma baguete de pão fresco e uma garrafa de champanhe. Tristan era um homem de gostos requintados e não queria desiludi-lo.

Consultou o relógio. Passavam dez minutos das sete. Sentia-se cada vez mais nervosa. E se ele não aparecesse? Estava a tirar conclusões precipitadas. Ela própria, na véspera, chegara com vinte minutos de atraso ao encontro no restaurante.

Sentia-se impaciente por vê-lo. Queria sentar-se ao lado dele no banco do carro, afastar-se o mais longe possível daquela casa grande de mais, daquela cidade cheia de recordações dolorosas. Queria sentir a carícia do sol no rosto, esquecer por um momento que era divorciada, sentir-se mais nova.

Na noite anterior, ao regressar do seu primeiro encontro com um homem desde há anos, resolvera deixar-se levar pelo curso da vida. Não era fácil, mas chegara a altura

de reagir.

Uma leve buzinadela arrancou-a às suas reflexões. Bethie ergueu o rosto e avistou um pequeno descapotável vermelho com a matrícula de Nova Iorque a dobrar a esquina para se deter junto dela com um ruído de travões.

- Deus do céu! O que é isto? - perguntou a Tristan, com ar seguro de si e sorridente.

- A sua carruagem, minha senhora.

- Incrível! É uma maravilha!

- Minha querida Bethie, permita que lhe apresente o novo Audi TT Duzentos e Vinte e Cinco - anunciou, orgulhoso. - Um modelo largamente inspirado no célebre Porsche Boxter dos anos cinquenta. Bonitinho, não?

Abriu a porta do lado dele e saltou lestamente para fora, dando a volta pela frente e aproximando-se para a saudar.

Bethie segurava o cesto, pensando que deveria fazer um comentário oportuno, mas ficou fascinada pelos olhos onde brilhava um sorriso.

- Preparei um piquenique - começou, mas sentiu-se uma idiota ante uma afirmação tão óbvia.

- Genial!

Assentiu com a cabeça, quase embaraçada, e apressou-se a dar-lhe os pormenores sobre o conteúdo do cesto.

- Trouxe champanhe, caviar e queijo. Espero que goste - disse.

- Adoro champanhe, caviar e queijo - respondeu ele, pegando no cesto.

Bethie achou-o particularmente sedutor nessa manhã, vestido com as calças bejes e a camisola azul-escura. Tristan mantinha-se muito próximo dela e respirou discretamente o seu perfume. Uma fragrância com um misto de limão e madeira de sândalo.

- Dormiu bem, minha querida Bethie? - perguntou, acariciando-lhe a mão.

- Muito bem. E você?

- Não consegui dormir. Estava ansioso por vê-la. Bethie corou, antes de acrescentar com um sorriso:

- Adulador!

- Tomo-o como um cumprimento. Pratiquei durante todo o caminho - brincou.

Em seguida, e sem lhe dar tempo para responder, beijou-a na boca. Bethie ainda se sentia estonteada, quando ele se afastou uns momentos mais tarde com o cesto na mão.

- A sério que nunca me senti tão impaciente por encontrar alguém - confiou-lhe, abrindo o porta-bagagem. - vou levá-la a um bonito lugar, Bethie, e vamos passar um dia maravilhoso. De acordo?

- Se soubesse o quanto preciso de distrair-me...

- Perfeito!

Tristan fechou o porta-bagagem e regressou para lhe abrir a porta. A pequena viatura vermelha reluzia ao sol. Um descapotável de filme de Hollywood, de linhas arredondadas e cheio de pretos e cromados no interior. Um carro digno de Marilyn Monroe ou de James Dean. Bethie hesitou em entrar, mas Tristan pegou-lhe na mão e ajudou-a a sentar-se no banco baixo de cabedal preto.

- Tenho uma ideia! - exclamou subitamente. - É você que vai conduzir.

- Oh, não. Eu não...

- Claro que vai. Todos devemos conduzir um carro desportivo pelo menos uma vez na vida.

Ajudou-a a sair novamente, obrigou-a a dar a volta ao descapotável e colocou-a atrás do volante, apesar dos protestos dela. Num abrir e fechar de olhos, Bethie tinha o porta-chaves na mão e um sorriso aparvalhado nos lábios. Observou demoradamente os mostradores cromados, antes de agarrar na alavanca das mudanças e Tristan aproveitou para se instalar ao seu lado. Bethie nem sequer o olhou. Antes mesmo de arrancar, já se apaixonara por aquele pequeno carro.

- Está a ver o botãozinho prateado? - perguntou Tristan, indicando um pequeno botão debaixo do porta-chaves. - Carregue.

Ela obedeceu e a chave de ignição saltou do porta-chaves, como a lâmina de uma navalha de ponta e mola. Surpreendida, quase a deixou cair e depois soltou uma gargalhada.

- Fantástico. Nunca tinha visto uma coisa assim.

- Mais um brinquedo da moda, mas, mesmo assim, eficaz. Agora, basta meter a chave na ignição, querida. Aqui, são as luzes, aqui os limpa-pára-brisas e aqui o travão de mão! Vamos lá.

Bethie meteu a primeira, arranhou ao passar para a segunda e acabou por encontrar o ponto certo. Desde os seus tempos de estudante que não tocava num carro com mudanças manuais, mas depressa recuperou os antigos reflexos e invadiu-a a sensação de conduzir um puro-sangue, de dominar a estrada. Virou a esquina com um arranhar das mudanças, sem que Tristan parecesse minimamente preocupado. Aquela aventura inesperada colocou-a num perfeito estado de euforia. O pequeno descapotável agradava-lhe, a companhia também, a vida era bela.

- Ouça isto, Bethie. É uma surpresa para si.

Tristan fez rodar um painel prateado, revelando um rádio com uma miríade de botões. Carregou em dois deles e a melodia de Round Midnight de Miles Davis soou através de dois pequenos altifalantes discretamente incrustados.

- Lembrou-se.

- Como podia ter esquecido, Bethie?

Ao ritmo do trompete de Miles Davis, Bethie foi-se habituando gradualmente as mudanças e o pequeno descapotável ronronava de prazer. Tristan tinha razão, pensou. Deve-se conduzir um carro daqueles pelo menos uma vez na vida.

Meteu pelo acesso da Auto-Estrada 76, sentindo bem o carro. Primeira, segunda, terceira... O ponteiro do conta-rotações tocava na zona vermelha. Quando o segundo turbo entrou em funcionamento, ficaram colados aos assentos. Oitenta, noventa, cento e trinta à hora. O Audi deslizava pela auto-estrada com a suavidade da seda.

- Muito bem! - encorajou-a Tristan, - Já vi que entendeu as manobras. Vá em frente, Bethie. A estrada pertence-lhe.

Bethie sorriu, carregou no acelerador e atingiu os cento e sessenta, os cabelos ao vento e a cabeça erguida para que o sol lhe queimasse bem o rosto.

- Segue à velocidade de uma tartaruga com travão, Bethie. Coragem. Não tenha medo.

Ela soltou uma gargalhada e acelerou, sem pensar em dizer-lhe que "tartaruga com travão" era uma das expressões favoritas de Mandy. Amo-te, pensou. Sinto-me tão feliz, céus!

Tristan observava-a atentamente. Calçara um par de luvas de cabedal preto e acariciou-lhe suavemente a face com um dos dedos.

- Bethie - pediu por fim. - Queria que me falasse da sua filha mais nova. Fale-me da Kimberly...

 

Residência dos Olsen, Virgínia

Rainie fizera quatro tentativas antes de encontrar a casa de Mary Olsen.

Na primeira vez nem sequer havia dado pelo estreito caminho de acesso através dos bosques. Na segunda, reparara no caminho, mas não na casa, e imaginara que se tratava de qualquer atalho da floresta. À terceira passagem decidira-se finalmente a seguir pelo mesmo: ao ver uma imensa mansão, fez imediatamente marcha atrás com medo de que qualquer mordomo soltasse os cães atrás dela. À quarta, acabou por estacionar na berma da estrada, desceu do carro e aproximou-se com prudência da caixa de correio preta colocada numa coluna de ferro forjado, a fim de verificar o nome do proprietário.

- Devo ter-me enganado - pronunciou em voz alta, folheando apressadamente as notas, a fim de verificar a morada. - Mas o sítio é mesmo este! Uma criada de mesa desempregada de vinte e cinco anos a viver numa casa destas? Deita-se, no mínimo, com um banqueiro. Se o tipo estiver à procura de uma amante, não precisa de ir mais longe.

O banqueiro revelou-se um neurocirurgião, como Rainie não tardou a saber pela própria Mary após ter decidido bater à porta da imponente mansão. O Dr. Olsen já saíra para a clínica, mas deparou-se de imediato com um retrato a óleo do avô pendurado no átrio, até onde um mordomo a conduzira. Era mesmo um mordomo que a deixou a admirar o local, enquanto ia chamar Mrs. Olsen.

Para passar o tempo, Rainie divertiu-se a tentar adivinhar o preço certo do que a rodeava. Uma enorme mesa de cristal encimada por um candeeiro de Lalique? Por baixo, vinte mil dólares. Uma consola em madeira de bordo com um friso em nogueira preta e uns pés de fazer inveja a Luis XIV? Provavelmente uns quinze mil. Cortinados de veludo cor de pêssego com pompons e cordões dourados? Vinte mil, talvez trinta mil dólares. De qualquer maneira, nada abaixo de quinze mil dólares e apenas no átrio de entrada. com a sua roupa de baixo preço, Rainie sentia-se completamente deslocada.

- Aceita um café?

A voz chegou-lhe de cima. Rainie ergueu os olhos e avistou uma silhueta no cimo da escadaria em caracol. Nessa altura da situação quase estava à espera de deparar com Scarlett O Hara e ficou desiludida ao descobrir uma Mary Olsen vestida com muita simplicidade. Nem uma saia de balão, nem longos caracóis presos com uma fita, mas uma jovem mulher com um modelo Laura Ashley, azul e amarelo, debruçada sobre a balaustrada dourada.

- Um café seria bem-vindo - respondeu Rainie, e a voz ecoou no mármore do átrio.

- Normal ou descafeinado?

- Confesso que nunca percebi o interesse do café sem cafeína.

Mary Olsen esboçou um pequeno sorriso forçado que mal dissimulava o nervosismo. A jovem Mrs. Olsen não estava muito à vontade, o que não desagradou de todo a Rainie.

Finalmente, alguém que tinha medo dela.

Mary desceu a escada, agarrando o corrimão com as duas mãos, um pormenor que levou Rainie a concluir que a ex-empregada de mesa estava a viver numa mansão, mas obviamente ainda não se habituara. Quando Mary chegou ao fundo da escada, Rainie teve uma segunda surpresa ao notar que a jovem era uns bons dez centímetros mais alta do que ela e tinha os olhos negros e as feições delicadas de uma modelo. Estava explicado o interesse do neurocirurgião pela jovem mulher.

O conjunto Laura Ashley não condizia em nada com o seu género de beleza, pensou Rainie. Quando se tinha um corpo daqueles, devia usar-se um vestido escarlate com um decote cavado. Por outro lado, assim evitava problemas com o mordomo ou o motorista.

- Estaremos mais confortáveis no salão - sugeriu Mary num tom de voz propositadamente neutro. - Siga-me.

Rainie obedeceu. A divisão era maior do que o sótão inteiro de Raime e estava a abarrotar de móveis franceses antigos num fundo de paredes em tons de azul e bege.

Mary sentou-se num sofá entre duas almofadas de flores a condizer com o vestido. Enquadrava-se tão bem no cenário que dir-se-ia uma poltrona decorada com uma cabeça humana.

- Como lhe disse ao telefone - começou Rainie -, tenho umas pequenas perguntas a fazer-lhe sobre a Amanda Quincy.

- O café - interrompeu Mary, erguendo a mão.

Rainie pestanejou, apanhada de surpresa, e percebeu que o mordomo aguardava pacientemente atrás dela com uma bandeja de prata na mão, onde estavam pousadas uma cafeteira e duas chávenas minúsculas de uma porcelana quase transparente. Colocou devagar a bandeja com movimentos estudados numa mesinha e encarregou-se de encher uma chávena, que estendeu cerimoniosamente a Rainie. A chávena não devia conter mais de três goles e, portanto, seria obrigada a voltar a servir-se da pesada cafeteira em prata se quisesse mais. Talvez pudesse contentar-se com aquela dose.

- Tem uma bonita casa - aventurou-se Rainie, tentando equilibrar a chávena em cima do joelho e interrogando-se sobre o que poria a anfitriã tão nervosa.

- Há várias gerações que esta propriedade pertence à família do meu marido.

- Se bem entendi, o seu marido é cirurgião?

- Sim.

- Trabalha muitas horas?

- Claro. É um dos mais famosos neurocirurgiões dos Estados Unidos e extremamente solicitado.

- Mais velho? - prosseguiu Rainie, decidida a aprofundar.

- Na casa dos quarenta.

- Conheceu-o quando era empregada de mesa, suponho. Às grandes gorjetas seguiu-se a decisão de a sustentar em permanência. Nada mal.

- Suponho que podem ver-se as coisas dessa maneira - replicou Mary, corada ante o insulto.

- Não leve a mal. Longe de mim querer ofendê-la, bem pelo contrário. Também me conviria muito conhecer um neurocirurgião como ele.

- O Mark é um marido fantástico - redarguiu Mary, ainda na defensiva.

- Mark e Mary. Que bonito! Deve ficar bem nos cartões de boas-festas.

- Julguei que queria falar-me do acidente da Mandy.

- Tem razão. Estava a desviar-me do tema. Na noite em questão...

- Qual é o problema? - interrompeu Mary. - Não compreendo muito bem o motivo da sua entrevista, tanto mais que o acidente ocorreu há mais de um ano. A Mandy embebedou-se e pegou no carro. Não foi a primeira vez. Porque é que vem falar-me disso hoje?

- Tinham-me dito que fazia um café muito bom e como vinha a passar por perto... - ironizou Rainie antes de prosseguir e dando-se conta de que a sua interlocutora não apreciara o sarcasmo. - Voltando a essa noite, informou o pai da Mandy de que ela estivera consigo para um jogo de cartas.

- Exacto. Jogávamos todas as quartas-feiras.

- Jogávamos... quem?

- A Mandy, o Tommy, a Sue e eu.

- Davam-se há muito tempo?

- Trabalhávamos todos no mesmo restaurante antes de eu conhecer o Mark. Mas porquê todas estas perguntas? - voltou a inquirir Mary, na defensiva.

- Mera curiosidade - redarguiu Rainie com um ar desprendido.

- Jogaram, portanto, às cartas. A que horas começou a vossa pequena festa?

- Não foi propriamente uma festa. Só havia Coca-Cola, como já disse a Mister Quincy.

- Sim, ele falou-me disso. Jogaram, portanto, às cartas e beberam Coca-Cola. A partir de que horas?

- Não sei. Nove ou dex da noite. Quando a Sue acabou o turno no restaurante.

- Costumavam reunir-se assim tão tarde em noites de semana?

- O Tommy era empregado do bar, a Sue e a Mandy serviam às mesas, e ninguém recomeçava a trabalhar antes do meio-dia do dia seguinte. No meu caso, deixei de ter problemas de horários.

Pareceu a Rainie que detectava uma ponta de amargura na voz de Mary. Visivelmente, nem tudo corria pelo melhor entre a Cinderela e o Príncipe Encantado.

- Jogaram até que horas?

- Duas e meia da manhã.

- E só havia Coca-Cola.

- Sim - apressou-se a confirmar a anfitriã sem fitar a visitante nos olhos.

- Disse ao pai da Mandy que ela só tinha bebido Coca-Cola Light, não é verdade?

- Disse que não a tinha visto beber outra coisa.

- Não viu?

- Não vi.

Rainie levantou-se e pousou a chávena na bandeja de prata, aliviada por não ter feito estragos. Em seguida, virou-se para Mary e indagou num tom duro:

- Não viu, Mary? Não viu! Pela forma como está a relatar os factos, poderia julgar-se que a Mandy tinha bebido, mas você não queria confessá-lo.

Mary, de cabeça baixa, cruzava e descruzava os dedos, rodando febrilmente o enorme diamante que usava no anelar da mão esquerda.

- Juro-lhe que não sabia - murmurou.

- Faça um favor às duas e conte-me tudo.

Mary levantou bruscamente o rosto com uma expressão sombria.

Talvez a jovem mulher do Dr. Olsen não fosse tão apagada quanto

parecia.

- Ela não largou a lata de Coca-Cola a noite toda, nem mesmo para ir à casa de banho. Na altura, não prestei atenção, mas agora que penso no assunto...

- Quer dizer que talvez ela tenha adicionado qualquer coisa. Da cor da Coca-Cola, e com um sabor semelhante. Talvez uma boa dose de rum para reforçar.

Não teria sido a primeira vez.

- É verdade que os alcoólicos aprendem uns bons truques aquiesceu Rainie. - Se bem entendo, Mandy percebia um pouco de misturas. Chegou às dez, foi-se embora às duas e meia da manhã. Mais de quatro horas de Coca-Cola reforçada e não se apercebeu de nada?

- Não! - exclamou Mary num tom visivelmente mais firme. Mesmo quando ela bebia muito, ninguém percebia e continuava a comportar-se como se nada fosse. No restaurante, gabava-se muitas vezes de aguentar bem o álcool e todos acreditávamos nela. Na verdade, nunca... nunca soubemos que ela tinha um problema com a bebida.

- Ficou portanto surpreendida ao saber que ela se juntara a um grupo dos Alcoólicos Anónimos?

- Completamente, embora mais tarde, pensando em certas coisas, fizesse todo o sentido. Algumas noites, depois de fecharmos, ela sentava-se no bar e tomava sete ou oito copos, antes de voltar para casa. Tinha um ar normal, mas devia fazer-lhe algum efeito, tanto mais que ela era quase tão magra como eu e o álcool não se evapora com essa facilidade.

- É então possível que ela tivesse bebido nessa noite sem que você se apercebesse?

- Sem dúvida - replicou Mary, assentindo energicamente com a cabeça. - É verdade.

- E esse tal homem mistério?

- O homem mistério? - repetiu Mary, piscando os olhos.

- No enterro, deu a entender ao Quincy que a Mandy tinha encontrado o homem da sua vida.

- De forma alguma.

- Não lhe disse isso?

- Não. Ignoro onde é que Mister Quincy foi desencantar essa ideia. Porque é que havia de contar-lhe uma história dessas?

Mary Ôlsen pronunciou as palavras depressa de mais para estar a ser sincera. Rainie pôs a cabeça de lado e estudou demoradamente a sua interlocutora antes de retomar o diálogo.

- Talvez o Quincy tivesse percebido mal.

- Talvez. Era o enterro da filha e ele não estava na sua melhor forma. Aliás, nenhum de nós... - A voz prendeu-se-lhe na garganta e baixou a cabeça. - ... Nenhum de nós.

- Tem a certeza de que quer manter essa versão dos factos, Mary? Ou seja, que a sua melhor amiga bebeu às escondidas, que se foi embora sozinha de carro e estava sozinha quando atropelou um pobre homem e o seu cão?

- Estou a contar-lhe o que sei, nada mais.

- O problema é que contou uma outra versão no dia do enterro.

- É falso! Mister Quincy compreendeu mal. Não sei. Talvez estivesse tão desorientado que se agarrou a qualquer coisa, ao ponto de deturpar o que lhe contei. Vá-se Tá saber o que se passa na cabeça de um pai enlouquecido pela dor!

- Enlouquecido pela dor? O Quincy? - ecoou Rainie num tom de dúvida.

Mary, com o rosto muito vermelho, desviou o olhar, pondo-se a torcer nervosamente os dedos, Rainie respirou fundo e observou Mary com um ar pensativo. Depois, começou a percorrer a sala de um lado para o outro.

- Belos móveis! - elogiou.

Mary não reagiu. Parecia à beira das lágrimas.

- O seu marido deve ter pago um balúrdio.

- O Mark herdou quase tudo o que se encontra aqui - murmurou Mary.

- De qualquer maneira, deve ter-se sentido nas nuvens quando chegou aqui pela primeira vez. A Cinderela a entrar no castelo.

- Por favor. Disse-lhe tudo o que sabia a respeito da Mandy.

- Muito bem. Está a dizer-me a verdade e nunca afirmarei o contrário. Ou seja, eu não estava presente na noite fatídica. Como posso saber o que a sua melhor amiga bebeu na noite em que jogaram as cartas juntas pela última vez? Se ela ria naturalmente ou se estava tão bêbeda que já náo sabia o que fazia? Nem sequer sei se ela a beijou antes de se ir embora, agradecendo-lhe a noite fantástica e o facto de se ocupar dela sempre que estava à beira de uma recaída? É difícil deixar de beber de um dia para o outro, sabe? Sei do que estou a falar. É difícil, mas consegue-se quando se está rodeada de amigos verdadeiros.

Mary baixou novamente a cabeça e os ombros tremiam-lhe.

- Sente-se muito só, não sente, Mary? - atacou bruscamente Raime. - Descobriu uma maneira de viver numa casa de conto de fadas que veio a revelar-se uma prisão dourada.

- Não tenho mais nada a dizer-lhe.

- A sua melhor amiga está morta e o seu marido passa o tempo a trabalhar. Se me sentisse assim tão só e conhecesse o homem certo que me dissesse que era bonita, alguém que elogiasse o meu sorriso, acho

que faria tudo o que ele me pedisse.

- Basta! Ignoro onde quer chegar, mas basta - retorquiu Mary,

erguendo a cabeça. - Saia!

Sem se deixar intimidar, Rainie continuou a falar com a mesma falsa ingenuidade que Mary demonstrara minutos antes.

- Tem a certeza de que não precisa de uma nova amiga, Mary? - inquiriu. - A quem possa trair como fez com a Mandy?

- O diabo que a carregue! - explodiu Mary, levantando-se bruscamente.

- Harold! - gritou. - Harold!

O mordomo acorreu ao ouvir os gritos histéricos da patroa e encontrou

Rainie a bocejar com um ar despreocupado, ao mesmo tempo que Mary, vermelha de raiva, indicava a visita com um dedo acusador.

- Ponha-a lá fora! - guinchou. - Já, já,

O mordomo fitou Rainie. Era um homem de meia-idade, com um ar fatigado e uma calvície avançada, que em nada intimidava. Rainie, pelo contrário, pousara estrategicamente a mão direita numa consola perto de um pesado candelabro, e o pobre Harold não sabia o que fazer.

- Continua a pensar na Mandy? - dirigiu-se Rainie a Mary. Sente a falta dela nas noites de quarta-feira?

- Saia!

- O mais estranho - insistiu Rainie - é que, apesar de a Mandy ser uma alcoólica, aposto que dava valor à amizade. Se as vossas posições estivessem invertidas, tenho a certeza de que ela sentiria a sua falta.

- Harooooold!!!!

O mordomo acabou por dar um passo na direcção de Rainie e agarrou-lhe firmemente o braço, esforçando-se por manter intacta a sua dignidade. Por consideração para com ele, Rainie deixou-se levar sem resistência até ao átrio da entrada.

Estranhamente, Mary seguiu-os, com as feições distorcidas pelo ódio, a mão direita colocada defensivamente sobre o ventre.

- Obrigada pelo café - agradeceu Rainie ao mordomo, antes de se virar para Mary. - Estou certa de que teremos ocasião de retomar esta pequena conversa.

Antes de abrir a porta do seu carro de aluguer, virou a cabeça na direcção de Mary Olsen. De pé, no alpendre da sua enorme casa, esta pôs-se a gritar a plenos pulmões:

- Você não faz ideia do que está a falar! Não faz a mínima ideia!

Alguns quilómetros mais adiante, Rainie parou o carro na berma da estrada, incapaz de prosseguir caminho. Conseguira manter a calma até ao fim, mas a prova fora

difícil e as mãos tremiam-lhe.

- Por isto é que não esperava... - murmurou.

Pensou na expressão de ódio e nas últimas palavras de Mary Olsen. Pensou em Quincy e em todas as ameaças registadas no atendedor. Ouviu um zunido familiar nos ouvidos.

Rainie inclinou-se e apoiou a testa no volante. Sentia-se repentinamente muito cansada. Na última vez que os ouvidos lhe haviam zunido daquela maneira, acabara de descobrir os cadáveres de duas meninas ao dobrar o corredor de uma escola. Desde então, a sua vida não voltara a ser a mesma.

Levou algum tempo a acalmar-se e a elaborar um bom plano. Voltou a arrancar e meteu-se por uma pequena estrada rural. Na falta de um telemóvel, parou na primeira estação de serviço para telefonar a Phil de Beers, o seu novo colaborador na Virgínia. Por sorte, apanhou-o no gabinete e sem nenhum assunto urgente entre mãos. Após uma curta exposição do caso, pediu-lhe que vigiasse Mary Olsen.

Rainie telefonou depois a Vince Amity para a esquadra, mas o polícia de serviço informou-a de que ele saíra em patrulha. Propôs-lhe transferir a chamada para a central e ela pediu-lhe, no seu tom de voz mais sedutor, que a ligasse ao carro de Amity.

- O que deseja? - perguntou o agente, mal atendeu.

- Como está o meu polícia favorito?

- O que deseja?

- Desejava simplesmente saber se conseguiu localizar o jipe da Amanda Quincy.

- Vimo-nos há menos de doze horas. Acha que não tenho mais nada que fazer?

- É por isso que estou a telefonar.

- E quando é que faço o meu trabalho?

- A resposta é, portanto, um "não"? E eu a pensar que tinha um fraco por mim.

- Duvido - respondeu ele secamente.

- Acha que terá tempo de arranjar essa informação amanhã?

- Não sei. Tudo depende dos nossos condutores. Se conseguir que eles se matem menos na estrada nas próximas vinte e quatro horas, talvez consiga um momento.

- Se bem percebo, terei de dar calmantes a todos os habitantes da região.

- Vejo que percebeu.

Rainie soltou um profundo suspiro. Para obter qualquer coisa daquele superagente, mais valia usar o sentido de humor. Amity suspirou por seu turno.

- Folgo às quintas-feiras - anunciou o agente. - Se não tiver tempo hoje, vou fazê-lo amanhã.

- É um amor, Amity!

- Só me faltava esta! - resmungou. - A primeira vez que consigo impressionar uma mulher, ela mora a cinco mil quilómetros. Até amanhã, minha senhora.

Desligou sem dar tempo a que Rainie respondesse, o que a poupou de lidar com a última declaração.

Regressou ao carro e examinou o relatório do acidente de Mandy, antes de desdobrar o mapa da Virgínia que acabara de comprar.

Quarenta minutos depois, encontrava-se no local do acidente. Quincy não lhe mentira. Mandy não tinha qualquer motivo para seguir por aquela estrada sinuosa depois de sair da casa de Mary Olsen. Tratava-se de uma estreita estrada rural que não levava a parte alguma.

A curva onde ocorrera o acidente era particularmente perigosa devido à presença do poste contra o qual o jipe embatera. Muito próximo do local, Rainie avistou uma pequena cruz com uma coroa de flores em plástico, sem dúvida colocada pela viúva de Oliver Jenkins.

Rainie estacionou um pouco mais à frente e saiu do carro. Man teve-se parada durante algum tempo, embalada por uma ligeira brisa. A estrada estava silenciosa e não se viam carros. O vento agitava as folhas das árvores proporcionando uma atmosfera estranha que a fazia pensar no bater dos ossos de uma dança macabra.

Percorreu os vinte metros que separavam a estrada do poste telefónico. Mesmo que se fosse a uma

certa velocidade, havia tempo de parar ou, pelo menos, começar a travar.

Percorreu com os dedos as marcas deixadas pelo carro de Mandy no poste. Entalhes profundos que tinham marcado a madeira, deixando uma cicatriz que tentou fechar, puxando as compridas lascas, talvez para apagar o drama que ali ocorrera.

O vento levantou-se. Uma súbita rajada agitou as árvores à volta, provocando um murmúrio fácil de confundir com uma gargalhada.

A pulsação de Rainie acelerou-se. Mandy embatera contra o poste às cinco da manhã. A essa hora, quando os primeiros raios da aurora começavam a clarear a copa das árvores, ainda estava frio e o lugar parecia terrivelmente sinistro.

A tremer, Rainie meteu-se de novo no carro, pôs-se atrás do volante e trancou as portas.

Manteve-se assim, imóvel, de ombros curvados, à espera que o coração se acalmasse, interrogando-se sobre quantas vezes Quincy fizera aquela peregrinação. De súbito, ligou o motor, com pressa de se afastar, persuadida de que alguém a observara enquanto tinha passado em revista o poste telefónico.

 

Campo nos arredores de Filadélfia

Há muito tempo que Bethie não se sentia tão feliz. O céu estava límpido e uma pequena brisa refrescava-lhe a nuca. Nunca a invadira tamanho prazer a conduzir um carro. Ao seu lado, Tristan desdobrava-se em histórias sobre a sua vida, num tom despreocupado. Também ela lhe falou, prazenteira, da mãe, das filhas e mesmo do marido, Pierce, que ela suspeitava ter uma namorada em Portland, no Oregon.

O tempo correu com a mesma velocidade dos quilómetros. Tinham começado por se dirigir para oeste, sem rumo preciso, antes de mudarem de opinião e seguirem para sul, através dos espaços verdejantes e das velhas herdades daquela zona da Pensilvânia. Avistaram mulheres percorrendo estradas cobertas de pó, protegidas com chapéus de algodão branco. Passaram por carroças puxadas por cavalos. Â certa altura, avistaram um homem prestes a rachar lenha com um machado diante de uma granja.

Tristan sabia tudo sobre as várias seitas religiosas de origem germânica ainda existentes na região. Bethie escutava-o, fascinada, aspirando o cheiro a feno acabado de ceifar e respirando vida por todos os poros. A dado momento, chegaram a uma estrada estreita, que serpenteava entre dois campos.

- E se a explorássemos? - propôs Tristan, no que foi de imediato

obedecido pela companheira.

A estrada cedeu lugar ao cascalho e seguiu-se um caminho de terra apenas com a largura suficiente para deixar passar o Audi vermelho por entre as espigas maduras.

- Continua - ordenou Tristan, a quem Bethie não conseguia

recusar nada.

Ao fundo de um campo de trigo, o caminho desembocava na mar gem relvada de um pequeno rio, e Bethie, apanhada de surpresa, travou no momento exacto antes de irem parar à água, o que muito os divertiu.

Tristan saiu do descapotável, antes de convidar a companheira a imitá-lo.

- O lugar ideal para o nosso piquenique - sugeriu. - Também eu trouxe champanhe.

Beberam champanhe, comeram o caviar e saborearam o queijo brie. Tristan instalara-se na relva, e Bethie, encostada a ele, pusera um braço protector sobre a preciosa cicatriz. Quando acabaram de comer, ele sacudiu as migalhas do vestido da companheira e deitou-a suavemente sobre a relva, antes de a beijar nos lábios, enquanto as mãos procuravam os seios.

Depois, Bethie acariciou-lhe ternamente o flanco direito...

Quando se levantaram para se vestir de novo, não foram necessárias palavras.

- Que lugar maravilhoso! - murmurou. - Que tranquilidade! Que beleza! E pensar que basta seguir este atalho para se encontrar o paraíso. Dir-se-ia que estamos sós no mundo, como se este lugar nos pertencesse.

Tristan virou-se para a fitar com um olhar que depois de fazerem amor se tornara ainda mais brilhante.

- Vamos passear - sugeriu simplesmente. E Bethie seguiu-o.

 

Virgínia

Rainie preparava-se para se meter em sarilhos. Em vez de regressar ao Motel 6, como fora sua intenção, decidiu bruscamente pôr-se a caminho da casa de Quincy. De

tanto reflectir no assunto, chegara à conclusão de que devia ter uma conversa com ele.

Embora nada houvesse descoberto de concreto, achava que qualquer coisa não encaixava bem no acidente de Mandy, e nem pensar em explicar-lhe isso por telefone. Quincy era um homem que analisava tudo até ao último pormenor, e já o imaginava, sentado na obscuridade do escritório, conjecturando sozinho sobre coisas horríveis como o assassínio da filha.

Perguntas não faltavam. Claro que talvez Mary Olsen não passasse de uma pequena arrivista um tanto estúpida, talvez a avalancha de mensagens no atendedor de Quincy fosse uma simples coincidência, uma forma como qualquer outra de uns tipos tarados gastarem o tempo. Nesse caso, a morte acidental de Mandy resumia-se a um pretexto para traumatizar um agente do FBI.

Ou talvez existisse mesmo um homem misterioso. Talvez ele tivesse forçado Mandy a beber na noite do acidente, consciente das consequências do seu acto. Se o objectivo era desestabilizar Quincy e levá-lo a desconcentrar-se, não seria difícil prever a sua reacção à morte da filha.

Ainda há bem pouco tempo, Rainie teria recusado acreditar na teoria da conspiração, considerando-a demasiado fria e maquiavélica. Contudo, após o drama de Bakersville no ano anterior, tinha aprendido a conhecer a perversidade da mente humana. Uma tomada de consciência que a aproximava de Quincy. Sabia, agora, que o homem é, por vezes, capaz de matar e que tudo pode acontecer.

A maioria das pessoas imagina que os assassinos matam por necessidade. É verdade em muitos casos, os menos complicados. Pelo contrário, para alguns psicopatas, o sofrimento e a morte são um prazer, um desporto que os descontrai.

Quando Rainie descobrira à sua custa esta triste realidade, Quincy encontrava-se a seu lado e, agora que os papéis se tinham invertido, longe de si pensar em abandoná-lo.

Rainie voltou a consultar o mapa de relance e concluiu que falhara a saída indicada. Fez imediatamente uma inversão de marcha ilegal, mas que a pôs no bom caminho.

A rua era elegante, com passeios impecáveis, ladeada de magnólias plantadas há pouco. Um bairro novo, dinheiro novo. Enfiou por um beco e descobriu - com alguma surpresa - uma longa fila de bonitas casas estilo colonial com vastos e soberbos relvados, protegidos por muros com portões gradeados.

Imaginara a casa de Quincy num bairro burguês, mas não esperava uma coisa destas. Avançou de olhar atento aos números até ao fim da rua, onde se erguia uma casa mais pequena e mais discreta, um pouco afastada. Rainie não precisou de verificar a morada para saber que era aquela a casa de Quincy: as árvores e os arbustos tinham sido cuidadosamente arrancados, a fim de evitar a presença de intrusos.

- Quincy, Quincy - murmurou entre dentes, ao deparar com o jardim mal cuidado. - Estás mesmo a precisar de umas férias!

Parou diante do portão preto de ferro forjado e premiu o botão do intercomunicador. Na verdade, eram só quatro da tarde e não esperava que ele estivesse em casa, ficando surpreendida quando uma voz lhe respondeu. E ainda mais por se tratar de uma voz feminina.

- Agradeço que me indique o seu nome e motivo da visita - pronunciou a voz.

- Hum.... Chamo-me Lorraine Conner e trabalho com o Quincy. Quase correspondia à verdade.

- Por favor, olhe para a câmara e mostre-me a sua identificação. "É agora ou nunca", pensou Rainie, decidida a entrar no jogo, ao

mesmo tempo que olhava de frente para a câmara, exibindo a sua licença de detective particular.

O portão começou a deslizar quase de imediato sobre o carril com um leve estremecimento, e Rainie pôs-se a subir o acesso que conduzia à casa, ao volante do carro. A porta da casa estava aberta e uma mulher aguardava-a à entrada. Rainie saiu do automóvel, intrigada e desapontada.

Tratava-se de uma mulher de idade indefinida. Talvez na casa dos quarenta, talvez menos, cujo corte de cabelo, roupa severa e sapatos pretos em nada contribuíam para que parecesse mais nova. Aguardava a visita, muito direita, de braços cruzados sobre o peito.

"Não parece a governanta", pensou Rainie. "E muito menos a ex-mulher, se bem conheço o tipo do Quincy. Por outro lado, conhece na perfeição o papel de governanta", concluiu, aproximando-se de ombros direitos e cabeça erguida.

- Quem é a senhora? - inquiriu de imediato.

- Creio que devo ser eu a fazer essa pergunta.

- Se sabe ler, já está a par. Mostrei-lhe a minha documentação diante da câmara. Além disso, fui a primeira a perguntar.

Esboçou um sorriso forçado.

- Talvez tenha razão, jovem, mas as minhas referências são superiores - replicou, exibindo o crachá do FBI, para lhe dar a entender a insignificância da sua licença de detective.

- Queria falar com o Quincy - declarou Rainie franzindo as sobrancelhas e subitamente inquieta.

- Por que motivo?

- Julgo que isso diz respeito a ele e não a si.

- Neste momento, o que diz respeito a Quincy também me diz a mim, jovem.

- Porquê? Dorme com ele?

- Parece-me que não entendeu bem a natureza do meu trabalho...

- pronunciou-se ela, após uma leve hesitação.

- Portanto, não dorme com ele. Nesse caso, as minhas coisas e as dele não lhe dizem respeito.

A agente do FBI levou uns segundos a interpretar o conteúdo das palavras e acabou por corar.

- Julguei ter percebido que era detective particular - redarguiu em seguida, com um ar surpreendido.

- Na eventualidade de poder estar a falar com a ex-mulher dele...

- mentiu Rainie. - Agora, se não se importa, e já que sabe tudo a meu respeito, pode dizer-me onde está o Quincy?

- Suponho que o encontrará em Quantico - respondeu a severa guardiã, parecendo debater-se consigo própria. - É tudo o que posso dizer-lhe.

- Ele não volta hoje?

- Não posso dar-lhe mais nenhuma informação.

- Oh! Percebo! - exclamou Rainie, subitamente, batendo na testa com a mão. - Os telefonemas. Ah, é a guarda avançada.

A agente não respondeu logo, mas assentiu lentamente com a cabeça. Rainie correspondeu-lhe com um movimento idêntico, observando-a com outros olhos e sentindo vontade de se enfiar pelo chão abaixo, ao compreender: a roupa ideal para dissimular uma arma, o corte de cabelo regulamentar, o rosto impenetrável. Em suma, tinha à sua frente uma genuína e treinada agente federal. E ela não passava de uma detective particular.

Era aquele o mundo de Quincy, e Rainie sentiu um súbito arrependimento por ter interferido.

- Bem. Vou-me embora - deixou escapar.

- Dir-lhe-ei que esteve cá.

Rainie mordeu o lábio inferior. Não duvidava de que a agente o poria ao corrente. Tratava-se de uma mulher que vivia, obviamente, para a Sua profissão.

- Obrigada. Entretanto, vou tentar passar pelo gabinete dele...

- Quantico.

- Sim, em Quantico.

- É uma base de fuzileiros...

- Eu conheço bem Quantico, obrigada!

A agente esboçou um pequeno sorriso. Também ela observava a interlocutora com outros olhos e, obviamente, sem qualquer vantagem para Rainie.

Que se lixe!, Rainie nem sequer se preocupou com despedidas. Meteu-se novamente no carro e saiu a toda a velocidade da propriedade para que o portão não se fechasse nas suas costas.

- Convencida do caraças - resmungou, antes de tomar consciência de que ia a uma velocidade excessiva para um bairro residencial tão chique como aquele.

Quanto mais pensava, mais achava que nunca mais se safaria. Na vida, há os que estudam e conseguem aceder ao FBI e há os outros. Não sabia muito bem a que categoria pertencia...

- Que se lixe! - repetiu entre dentes.

Rainie não devia ter insistido, mas era teimosa. Seguiu pela saída para Quantico e atravessou uma floresta durante uns bons quinze minutos, ultrapassando várias vezes alguns pelotões de fuzileiros que corriam pelo lado esquerdo da estrada. O ruído de tiros rompia frequentemente o silêncio. Passou junto a várias filas de edifícios, cada vez mais convencida de que era uma intrusa naquele santuário das tropas de elite americanas. Contudo, ninguém a mandou parar e ninguém lhe pediu que se identificasse. Não sabia muito bem se devia sentir-se grata ou nervosa.

Acabara de começar a descontrair-se quando avistou bruscamente um posto da guarda. O governo pensava, sem dúvida, que os fuzileiros podiam cuidar de si próprios, contrariamente aos agentes do FBI. Parou diante da barreira e um guarda de expressão severa perguntou-lhe o nome e pediu-lhe a identificação. Examinou demoradamente a licença antes de a informar de que não podia entrar. De nada lhe valeu repetir o nome e insistir no seu estatuto de detective particular. O indivíduo continuou a impedir-lhe o acesso.

- Ouça, trabalho com o agente especial Pierce Quincy - tentou.

- Não estou a pedir-lhe para ir a qualquer lugar. Só preciso de lhe falar no seu gabinete. Não têm um passe para visitas?

Ficou a saber que, para ter esse direito, precisaria de dar o nome com muita antecedência. Depois de uma morosa troca de impressões, o guarda autorizou-a, finalmente, a esperar dentro do carro, enquanto ele contactava o Departamento de Ciências Comportamentais.

Decorridos quinze minutos, Rainie viu aparecer o carro de Quincy. Parecia cansado e não particularmente feliz em vê-la. A cena distanciava-se em muito do encontro hollywoodesco em que correriam um para o outro de braços abertos. Quincy saiu do recinto do FBI e fez-lhe sinal para que seguisse atrás dele. Tomaram a direcção da cidadezinha próxima, onde estacionaram, lado a lado, no parque de um restaurante.

- Preciso de um café - contentou-se em dizer, ao sair do carro.

- Olá para ti também! - replicou ela.

- Costumas forçar muitas vezes as regras de uma instituição governamental?

- Nunca pensei que fosse assim tão difícil!

- Ora, Rainie! É a sede do FBI. Temos processos regulamentares e um protocolo. Não é propriamente um sítio de entrada livre.

- Não há problema. Da próxima vez, trago um vestido comprido.

- Céus! É impossível que sejas tão infantil! - Suspirou, revirando os olhos, antes de se dirigir à entrada do restaurante.

Rainie mantinha-se petrificada, junto ao carro, incapaz de digerir

aquela frieza. Demorou uns momentos a segui-lo.

- O que se passa contigo? - inquiriu Rainie num tom agressivo, agarrando-lhe no braço quando ele se aproximou do balcão. -

- Dois cafés - pediu Quincy ao empregado. - Um simples e um com muitas natas e açúcar.

- Não quero café, apenas uma explicação, Quincy.

- Um café é mais fácil - limitou-se ele a responder. O empregado, com uma expressão divertida no rosto, trouxe os cafés.

Quincy pegou-os e arrastou Rainie para fora, até uma mesa de piquenique,

debaixo de umas árvores em que não reparara. Longe de servir para a acalmar, esta atitude irritou Rainie ainda mais.

- Muito bem! - exclamou, mal Quincy se sentou. - O que se passa, raios? Aconselho-te a dares-me uma resposta, se não queres levar com um oceano de leite e uma montanha de açúcar na gravata.

Imperturbável, Quincy soprou ao de leve o seu café fumegante. Raime apercebeu-se das fundas olheiras e das faces inchadas, como se ele não dormisse há mais de uma semana. Sentiu-se perturbada com a ironia da situação. Há um ano, era ela quem tinha o ar de um fantasma e Quincy não parava de aconselhá-la a comer e a dormir. "O stresse é mais uma razão para que uma pessoa trate de si", dissera-lhe. "A saúde física passa pelo aspecto psíquico." Bem lhe apetecia recordar-lhe os pequenos sermões do ano anterior, mas arriscava-se a que ele voltasse a acusá-la de ser infantil.

- Já ouviste falar de "roubo de identidade"? - perguntou-lhe à queima-roupa.

Rainie sentou-se e bebeu um pequeno gole do seu café, antes de assentir com a cabeça.

- Se soubesses até que ponto hoje é fácil apropriarmo-nos da identidade de alguém. Basta arranjar o número da Segurança Social e o nome de solteira da mãe da pessoa em causa para se obter uma certidão de nascimento... e está feito! É uma loucura o que pode acontecer em seguida. Para começar, obter uma carta de condução perfeitamente válida. Depois, abrir uma conta bancária ou pedir um cartão, antes de se comprar a crédito um bonito descapotável vermelho Audi TT, tudo em nome da vítima inocente.

- Alguém se serviu do teu nome para comprar um carro desportivo?

- Em Nova Iorque, há duas semanas. Neste momento, devo ao concessionário da Audi de Westchester a quantia de quarenta e oito mil dólares, pagável em mensalidades de oitocentos dólares durante cinco anos.

- Queres dizer que alguém roubou a identidade de um agente do FBI?

- Porque não? Ele já tinha dado o número do meu telefone privado a metade dos criminosos com poder neste país. Comparado com isso, comprar um descapotável em meu nome foi uma brincadeira. Mas, pelo menos, há que reconhecer que o homem tem bom gosto em matéria de carros - acrescentou Quincy, após uma pequena pausa.

Rainie não acreditava no que ouvia.

- Mas o FBI não tem especialistas nesta área? - acabou por inquirir.

- O FBI tem especialistas em tudo - respondeu-lhe Quincy com uma expressão sombria.

Pousou a chávena de café e Rainie verificou, surpreendida, que as mãos lhe tremiam.

- Puseram a minha casa sob vigilância, Rainie - acrescentou, num fio de voz. - Esta tarde, colegas meus dissimularam câmaras junto à campa da minha filha. A ironia é que, habitualmente, sou eu que me ocupo deste género de coisas. Contudo, desde as sete e cinco desta manhã que nem sequer me pedem opinião. Às sete e cinco desta manhã, passei de investigador a vítima, e nunca me senti tão mal na vida.

- Sempre te disse que eram uns imbecis, Quincy. Se os agentes do FBI fossem espertos, deixariam de passear-se por aí todos vestidos de preto, quando o resto das pessoas passou a usar calças de ganga. Quem é que, nos nossos dias, ainda vai para o emprego de gravata?

Quincy olhou de relance para a sua gravata cor de vinho, com os inevitáveis desenhos geométricos azuis e verdes.

- Não posso mais - proferiu. - Alguém está a apoderar-se da minha vida e nem sequer sei o motivo.

- Claro que sabes. Tu és o tipo bom e todos os vilões detestam o bom da fita.

- Os meus colegas Rodman eMontgomery estão a ocupar-se das mensagens que me deixaram no atendedor. Vigiam a minha casa e tentam investigar os pequenos anúncios publicados nesses boletins da prisão, como se isso servisse para alguma coisa. Tentam também descobrir pistas junto do concessionário da Audi. Ignoro se existe qualquer relação entre as duas coisas, mas trata-se provavelmente de mais uma estratégia do desconhecido. Enquanto eu me esforço por resolver o quebra-cabeças, ele diverte-se a comprar um carro de luxo com o meu cartão de crédito. Neste momento, leva-me um bom avanço.

Quincy emitiu um longo suspiro e passou a mão pelos cabelos com um ar cansado.

- Hoje, dediquei o dia inteiro a ler dossiês antigos para elaborar a lista de todos os tipos que mandei para a prisão - prosseguiu. - Acredita que suspeitos não me faltam, embora a grande maioria deles esteja morta ou na prisão. Alguém me escolheu para alvo, Rainie. O problema reside em saber quem e porquê. Provavelmente trata-se de uma vingança.

É a explicação mais lógica.

- O que aprecio em ti, Quincy, é que, mesmo quando te sentes perturbado, nunca abandonas a lógica.

Quincy aquiesceu com um ar ausente, antes de retomar a palavra:

- Seja como for, a aranha teceu a teia e eu estou preso por todos os lados.

- Não te esqueças de que tens amigos, Quincy - replicou ela com uma voz meiga. - Amigos com quem podes contar. Á começar por mim.

- Verdade? - redarguiu ele, fitando-a bem de frente. - Diz-me o que soubeste hoje a respeito da Mandy. Preciso de ouvir da tua boca ! o que ambos sabemos por intuição.

Rainie não conseguiu aguentar o olhar dele. Engoliu o resto do café, voltou a pousar a chávena vazia em cima da mesa e pôs-se a rodá-la entre as mãos. Não lhe apetecia responder à pergunta dele, mas também não queria jogar ao gato e ao rato. Se tinham alguma qualidade em comum, era a franqueza. Rainie, à semelhança de Quincy, preferia ir directamente ao assunto.

- Tens razão - afirmou. - Há algo que não me cheira bem em tudo isto.

- Ela foi assassinada?

- Isso ainda não sei - apressou-se a retorquir num tom firme. - Num inquérito, a regra número um consiste em não se tirar conclusões precipitadas. Até agora, ainda não disponho de nenhum elemento concreto que me permita afirmar que ela foi assassinada.

- Por outro lado... - sugeriu ele.

- Por outro lado, há algo de estranho relativo à Mary Olsen.

-Ah, sim? - exclamou Quincy, sem procurar dissimular a surpreHsa sentida.

- Esta manhã fui visitá-la, Quincy, e ela negou tudo o que possa ter-te dito no enterro da Mandy. Segundo a sua versão, a Mandy deu a sensação de ter passado essa noite a beber Coca-Cola, mas talvez tenha adicionado rum à lata. Quanto ao amiguinho misterioso, decerto interpretaste mal as suas palavras, pois a Mandy não tinha nenhum caso.

E acrescentou que, como não era a primeira vez que a Mandy conduzia embriagada, a conclusão falava por si.

- Queres dizer que a Mandy foi encontrada meio morta depois de embater contra um poste, algures numa estrada perdida, por ter bebido Coca-Cola com rum?

- Não afirmei que a Mary tinha uma boa versão, Quincy. Apenas disse que tinha uma nova versão.

- Mas porquê? Ela era a melhor amiga da minha filha. Porquê . Por detrás daquela pergunta, ocultava-se uma outra interrogação ainda mais inquietante. Por que razão aquilo acontecera a Mandy e a ele também? Por que motivo o mundo não era tão simples quanto o desejavam todos os especialistas do comportamento humano?

- Acho que a Mandy era uma espécie de princesinha solitária respondeu Rainie. - Estou convencida de que não foi preciso muito para a manipular.

- Referes-te à pessoa que me persegue? Queres dizer que lhe soprou uma outra versão?

- A menos que lhe tenha fornecido a primeira versão para te atingir. Nem sequer sabemos se se tratou de um acidente. Apenas sabemos que a Mary te contou umas coisas no enterro da Mandy que te levaram a pensar que talvez ela tivesse sido assassinada.

- Alguém está a tentar desestabilizar-me - prosseguiu Quincy. Estas mensagens no meu atendedor, este carro comprado no meu nome, estes rumores sobre a morte da minha filha... Merda! Tudo isto fode-me o juízo - concluiu, endireitando-se.

- Desde quando voltaste a dizer palavrões? - indagou Rainie, surpreendida.

- Desde ontem, e o pior é que estou a gostar. É como a nicotina. Basta fumar um cigarro.

- Recomeçaste a fumar?

- Não, Rainie, mas ainda não renunciei ao meu enorme prazer pelas metáforas.

- Metes-me medo, Quincy. A sério. Estás à beira de um ataque de nervos.

- Aparentemente, também não perdeste o teu senso inato de diplomacia.

- Quincy!

- Qual é o problema, Rainie? - retorquiu num tom cortante. Incomoda-te que também possa ter reflexos humanos?

Rainie levantou-se de rompante sem se dar conta do que fazia, com o coração junto à boca e de punhos cerrados.

- Podes explicar-me o que isso quer dizer?

- Quer dizer... quer dizer pura e simplesmente que estou cansado

- replicou Quincy num tom mais conciliador. - Quer dizer que me encontro sob pressão e que me agarro à mínima hipótese de poder

discutir.

- Quer dizer sobretudo que és o alvo errado. Paremos com isto, antes que seja tarde de mais. Peço-te que esqueças estas minhas palavras.

- Tarde de mais.

- Também te apetece discutir, Rainie?

Ela sabia que ele tinha razão, que mais valia apaziguar o jogo, que ambos estavam excessivamente fatigados para desperdiçar forças. Seis longos meses sem um único telefonema!

- Talvez - limitou-se a responder, erguendo orgulhosamente a cabeça.

Quincy levantou-se por sua vez da mesa, sacudindo a poeira das mãos. Fixou-a bem no fundo dos olhos e de uma forma bem mais recomposta do que poderia pensar. Sentiu-se mais uma vez espantada ante a sua capacidade de controlo.

- Queres saber porque é que a nossa relação falhou? - perguntou bruscamente. - Queres saber por que é que o vulcão se extinguiu, mal entrou em erupção? vou explicar-te,

Rainie. Foi por causa da tua descrença. Porque, um ano mais tarde, a nova Lorraine Conner continua descrente. Não acreditas em mim e, sobretudo, não acreditas em ti.

- Não acredito? - contrapôs ela. - Sou eu que não acredito? Acho tudo isso muito curioso vindo de um homem que se sente obrigado a acreditar que a filha foi assassinada para conseguir aceitar que ela morreu.

- Um a zero para a rapariga de calças de ganga - murmurou Quincy, muito pálido, num tom neutro.

Contudo, Rainie não estava disposta a ceder. Desde muito miúda, encarava a vida como uma luta implacável.

- É inútil esconderes-te por detrás dos teus belos sermões, Quincy

- replicou. - Se queres que te considere humano, age como tal. Não percebes que passas o tempo a dar-me lições, como se eu fosse uma miúda?

- Limitei-me a comentar que não acreditas em nós e...

- Pára de te armares em psicanalista, raios! Preciso de um homem e não de um terapeuta...

- Precisas de um homem? Da última vez que tentei agir como um homem, olhaste-me como se fosse bater-te. Não é de um homem que precisas, Rainie. Precisas de um boneco insuflável ou de um santo!

- Cabrão!

Rainie dispunha-se a prosseguir com os insultos, mas lembrou-se bruscamente daquela noite. Da última noite que tinham passado juntos, há oito meses, em Portland. Haviam começado em Pioneer Square, bebendo um café na esplanada do Starbucks, a assistir à exibição de um grupo. Conversaram despreocupadamente. Tinham seguido para o hotel dele. Rainie ainda não morava no sótão e vivia num pequeno estúdio. Há muito que ela se sentia sozinha na cidade e estava contente por vê-lo.

Chegara-se mais a ele para lhe sentir o perfume. Sempre adorara aquele cheiro. Quincy mantinha-se perfeitamente imóvel, como se um sopro tivesse sido suficiente

para a afastar. Ela aproximara-se mais ainda, roçando-lhe o pescoço e a orelha com os lábios. Não sabia ao certo o que a levava a agir daquela maneira. Sem dúvida, o desejo, mas como nunca conhecera o verdadeiro desejo... Queria tocar-lhe. Tocar-lhe no corpo todo. Na condição de que ele se mantivesse assim, imóvel, sem respirar.

Desapertara-lhe os botões da camisa, um após outro, antes de a fazer deslizar pelos ombros. O tronco dele, musculoso devido a anos de corrida diária, revelava-se de uma suavidade incrível sob a carícia dos seus dedos. Pousou-lhe a mão no coração e escutou as batidas.

À altura da clavícula e no antebraço, três pequenas cicatrizes eram uma recordação de projécteis que o colete antibalas não conseguira deter. Detivera-se sobre as cicatrizes com as pontas dos dedos. Quincy, o super-herói...

A mão do companheiro rodeara-lhe subitamente o pulso. Surpreendida, erguera o rosto e detectara o desejo no olhar dele.

A magia quebrara-se de imediato. O seu próprio desejo evaporara-se, ao mesmo tempo que o corpo se petrificava e a mente se fixava nos campos de flores, na água de um ribeiro, em todas as receitas que aprendera a usar ao longo de tantos anos para se encerrar no seu desejo solitário. Continuara a acariciá-lo, mas de uma forma mecânica, quase rude, como fizera com outros.

Quincy afastara-a, pedindo-lhe uns minutos de paciência, mas era tarde de mais. Sentira-se envergonhada, humilhada, embaraçada. E, dada a sua personalidade, dissera-lhe que a culpa era toda dele e abandonara o quarto sem uma palavra. Nos meses seguintes, deixava tocar o telefone sem atender. E, quando ele casualmente conseguia apanhá-la em casa, abreviava a conversa, fingindo estar ocupada.

Quincy tinha razão. Fora ela que deixara de responder aos seus telefonemas. Mas ele deveria ter entendido e prosseguido a conquista. Só que não o fizera.

- Em princípio, devo ser paciente - replicou Quincy, como que adivinhando os seus pensamentos. - Devo mostrar-me paciente, obstinado, devo aceitar as tuas mudanças de humor, o teu temperamento e o teu passado sem uma palavra. Devo mostrar-me tudo, menos frustrado ou enraivecido...

- Conheces tão bem como eu os meus problemas...

- Também eu tenho problemas, Rainie. Toda a gente os tem e não apenas tu, contrariamente ao que pensas. Sei que vou surpreender-te, mas, neste momento, tenho pena de mim próprio. Enterrei a minha filha no mês passado e agora os meus colegas montaram vigilância à sua campa. Eu não posso fazer nada e a única pessoa que podia deter isto é a minha ex-mulher porque a sua família está muito bem relacionada, mas não consigo apanhá-la. Não estou louco, Rainie. Estou enraivecido!

- É esse exactamente o problema, Quincy. Estás prestes a tornar-te tão agressivo como eu, quando deveria ser a tua calma a apaziguar-me.

- Lamento desiludir-te, Rainie, mas estou longe da perfeição, sobretudo neste momento.

- Mas não é isso o que te peço, raios!

- Não acreditas - contentou-se ele em responder, abanando a cabeça. - Sei que não é fácil, mas há uma altura em que temos de acreditar. Algumas pessoas são más, mas há outras generosas e desinteressadas. Não é por te fechares na tua torre de marfim que consegues proteger-te. A solidão não passa de uma protecção efémera, Rainie. Sei-o por experiência. Durante muito tempo, vivi afastado da minha família, julgando estar a proteger-me. Mas depois perdi a minha filha e, na verdade, sinto que estou a afundar-me, Rainie.

- Quincy...

- Não te preocupes. Acabarei por me recompor - prosseguiu, como se não a tivesse ouvido. - vou descobrir o filho-da-puta que fez isto. E se for necessário odiar para o conseguir, será esse o meu caminho. Se for necessário falar como um carroceiro e portar-me como um bruto, não há problema. Faço o que posso, Rainie, mesmo que não seja grande coisa. Agora, desculpa, mas preciso absolutamente de telefonar à Bethie.

Quincy virou-lhe as costas e dirigiu-se ao carro. Rainie gostaria de dar-lhe uma resposta mais pertinente, mas não estava no seu melhor.

- Não é por conseguires sobreviver que tudo correrá melhor gritou-lhe à distância. - E não é por enfrentares o problema que sairás vencedor. Sabes que o pior está para vir. Aparentemente não percebes, mas vivemos num mundo de chacais... chacais por todo o lado...

- Boa noite, Rainie.

Quincy não tinha intenção de parar. Cabia-lhe a ela dar o primeiro passo, por uma vez na vida. Reviu a infância num abrir e fechar de olhos e tomou consciência de que ninguém a tinha ensinado a amar.

- Burro velho não aprende línguas - pronunciou entre dentes, orgulhosa de mais para ceder.

As suas palavras perderam-se no vento, pois Quincy já se afastara. A noite começava a cair. Enquanto conduzia, Quincy pegou no telemóvel e tentou mais uma vez ligar para a ex-mulher. Em vão.

Como Rainie não tinha telemóvel, retomou o caminho do restaurante para ligar da cabine telefónica da entrada.

- Boa noite, meu caro - disse um momento depois ao seu interlocutor. - Venho convidá-lo para um copo.

 

Virgínia

Às nove horas dessa noite, Rainie sentia-se nervosa e tensa. Tivera tempo de passar pelo motel e tomar um duche rápido antes do seu encontro com Vince Amity. No quarto, esperava-a uma mensagem do advogado que já tentara contactá-la nessa manhã. Um tal Carl Mitz parecia muito interessado em falar-lhe. Deixara-lhe vários números.

Era bastante estranho... Por hábito, os clientes em perspectiva nunca se mostram tão ansiosos. Esforçam-se por dar a entender que são eles que pretendem ser servidos e não o contrário. Rainie anotou escrupulosamente os contactos de Mitz num pedaço de papel e decidiu não telefonar de volta.

Rainie pousou novamente o bloco em cima da mesa-de-cabeceira. Despiu-se e tomou um duche. Lavou o cabelo e permaneceu muito tempo com a água quente a escorrer pelo pescoço e os ombros. Depois, vestiu a mesma roupa velha e dirigiu-se ao bar, onde marcara encontro com Amity.

O agente já lá estava. Também ele tomara um duche. Pusera uma camisa preta de cowboy com umas calças de ganga coçadas e calçava botas mexicanas usadas. A camisa salientava os ombros largos e as calças marcavam-lhe as coxas. Um belo espécime masculino.

Rainie mandou vir a sua habitual Bua Light gelada e tentou convencer-se de que não tinha saudades de Quincy.

- Aqui servem umas costeletas óptimas - disse Vince num tom desprendido.

- Por mim, tudo bem.

- E devia provar as batatas fritas. Já alguma vez provou batata-doce frita? Nada bom para o colesterol, mas deliciosas.

- De acordo.

A empregada aproximou-se e Vince esperou que ela tomasse nota do pedido para retomar a conversa:

- Conta ficar uns tempos na Virgínia?

- Não sei. De momento, tenho mais perguntas do que respostas e, pelo andamento das coisas, pode demorar uns tempos.

- Onde está hospedada?

- No Motel 6.

- Longe de mim criticar, mas há sítios melhores do que o Motel 6. Se tiver algum tempo livre e lhe apetecer conhecer um pouco da região...

Deixou que o convite pairasse no ar. Rainie limitou-se a assentir delicadamente com a cabeça. E ficou surpreendida, quando ele acrescentou num tom calmo:

- Fiz uma pequena investigação a seu respeito, Rainie. Não tem de fingir comigo.

O corpo ficou tenso de imediato. Nada tinha a criticar-se, o passado era passado. Só que ninguém se recompõe num dia após anos seguidos de desconfiança e Rainie apercebeu-se de que acariciava furiosamente o gargalo gelado da garrafa de cerveja intacta

- Faz investigações sobre todas as raparigas com quem sai? - perguntou finalmente.

- Um homem tem de se acautelar.

Rainie deitou um olhar significativo para o físico bem constituído e ele respondeu-lhe com um leve sorriso.

- Foi visitar-me no local de trabalho, fez-me uma série de perguntas e nunca mais me largou - redarguiu ele. - Pode chamar-me bota-de-elástico, mas gosto de informar-me sobre as mulheres que me perseguem. Além disso, o seu amigo, o xerife Hayes, fez grandes elogios a seu respeito...

- Também lhe contou que já fui acusada de assassínio?

- Acusada, mas não condenada.

- Nem todos conseguem estabelecer a diferença.

- Sou um homem da Geórgia, querida. Lá, consideramos todas as mulheres perigosas. Faz parte do seu encanto.

- Os famosos cavalheiros sulistas. Quem iria pensar?

Amity voltou a sorrir. Inclinou-se sobre a mesa de madeira, onde apoiou firmemente os antebraços.

- Você agrada-me - declarou sem rodeios -, mas não gosto de passar por imbecil.

- Não sei o que quer dizer...

- Sabe perfeitamente que não era comigo que queria jantar esta noite.

- O Luke não sabe calar-se - retorquiu Rainie com um esgar.

- O xerife Hayes é um bom amigo. Fico feliz em saber que também os há no Oregon. Contudo, antes de a noite acabar, também ficará a acreditar na minha amizade.

- Ah, sim? Porquê?

A empregada de mesa interrompeu a conversa, trazendo dois pratos cheios de comida. Vince esperou que ela se afastasse para comentar:

- Primeiro, coma as suas costeletas, querida senhora. Depois, iremos ver o que resta do carro da Amanda Quincy.

Society Hill, Pemilvânia

Bethie cantarolava baixinho o velho refrão de uma cantiga quando, por fim, o pequeno descapotável vermelho parou diante da sua casa às escuras, por volta das dez da noite. Estava lua cheia e uma brisa refrescante e perfumada acariciou-lhe o rosto, o fim ideal para um dia maravilhoso. Um dia que Bethie não queria que acabasse, mau grado a hora tardia.

- Que noite magnífica! - murmurou alegremente.

Tristan respondeu-lhe com um sorriso. Três horas antes, à medida que o calor cedia lugar a um pôr do Sol de cor púrpura, ele despira a camisola e tapara-lhe os ombros com ela. Nesse momento, enroscada na larga camisola de lã grossa, inalando o perfume do companheiro, sentia-se tão emocionada como quando tinham feito amor nessa tarde. Tristan foi buscar um btazer azul-escuro ao porta-bagagem para se aquecer. O casaco assentava-lhe bem, mas Bethie achara-lhe qualquer coisa estranha. Conseguira, finalmente, descobrir do que se tratava e acabou por confessar-lhe que ele parecia um agente do FBI com aquele casaco, o que muito divertiu Tristan.

- E agora? Qual é o programa? - perguntou, retomando o ar sério.

- É a tua vez, minha linda.

- Não estás por acaso a armar-te em difícil?

- Porque não? Serviria para apimentar um pouco a noite.

Bethie soltou uma pequena gargalhada. Ainda continuava provavelmente a sentir os efeitos do champanhe que bebera, pois nunca fora do género de dar risadas por tudo e por nada, nem sequer no auge da adolescência. Contudo, depois de uma primeira garrafa à beira do rio, seguida de uma outra ao fim do dia em Filadélfia nas docas, para regar uma lagosta memorável no Bookbinder s, tinha atenuantes a seu favor. Recusara mesmo pegar no volante no caminho de regresso a casa; felizmente para eles, Tristan dava a sensação de aguentar bem o champanhe.

Por um breve momento, chegara mesmo a interrogar-se como é que um homem que acabara de fazer um transplante de rim podia beber tanto. E nem sequer o vira tomar qualquer medicamento.

- Tenho a impressão de que não estamos sós - murmurou Tristan.

- O quê? Onde? - inquietou-se Bethie, virando a cabeça para todos os lados.

Tristan pousara despreocupadamente o braço nas costas do assento dela e Bethie aproximou-se mais.

- Não vejo ninguém - replicou com um ar demasiado teatral.

- Os teus vizinhos. Por trás da cortina.

- Ah! É a velha e boa. Betty Wilson. Passa o tempo a observar-me. Já era altura de ter algo a mostrar-lhe.

Bethie passou o braço à volta da cabeça de Tristan e beijou-o na boca. Ele não ofereceu resistência e tentou mesmo apertá-la mais, sendo apenas impedido pela alavanca de velocidades. O desconforto da situação acabou por fazê-los parar. Bethie sentiu que queria estar com ele e surpreendeu-se com a violência do seu próprio desejo.

Os olhos de Tristan ficaram novamente mais escuros. Ela adorava quando lhe via aquele brilho intenso, quase inquietante.

- Bethie... - pronunciou ele num tom rouco.

- Vem comigo!

- Julguei que nunca mais me pedias. - Sorriu.

Virgínia

O cemitério de automóveis estava mergulhado na obscuridade, mas Vince Amity pensara em tudo. Tinha trazido duas potentes lanternas e depois prendeu um estranho saco cheio de ferramentas à volta da cintura. Rainie sentiu-se impressionada.

- Nunca pensei que o Vince Amity tivesse pinta de assaltante exclamou ela.

- Quando telefonei esta tarde - redarguiu Vince com um encolher de ombros -, o proprietário não me pareceu muito cooperante. É muito frequente entre esta gente. Quando compram um carro, é sempre para o desmontar e vender novamente. Não têm o mínimo desejo de que ele seja confiscado como objecto de um inquérito policial. Comprende-se, mas, por outro lado, não vejo porque não havemos de dar uma vista de olhos a esse jipe, quando basta escalar uma rede de arame.

- Não são as redes de arame que me assustam - garantiu Rainie.

- São sim os dobermans que habitualmente se encontram por detrás delas.

- Não há cães. Já verifiquei antes.

- Um cemitério de automóveis sem um cão de guarda? Seria a primeira vez que via tal coisa.

- Acontece. O director da Sociedade Protectora dos Animais já apresentou queixa duas vezes contra o dono disto por maus tratos contra os animais. Agora, ele assinou contrato com uma empresa de segurança que faz rondas por aqui de hora a hora. Se avistar faróis, mergulhe de cabeça.

- Fixe! - exclamou Rainie, pondo-se a assobiar o tema de O Feiticeiro de Oz para mostrar a sua admiração.

Cinco minutos depois, escalada a rede de arame, deambulavam tranquilamente pelo meio de um oceano de automóveis, contornando carroçarias enferrujadas e comprimidas e montanhas de pára-choques. Os veículos mais recentes encontravam-se um pouco mais longe, aguardando em longas filas que alguém decidisse o seu destino.

- Merda! - assobiou Amity, passeando os olhos por um espaço que correspondia a dois campos de futebol a abarrotar de carros de sucata e montanhas de pneus.

- Julguei que um jipe não seria difícil de encontrar, mas, dada a paisagem actual, acho que fui um tanto convencida.

- O gosto americano pelos automóveis gigantescos - concordou ele. - É irónico andarmos a procurar um Explorer como se se tratasse de uma agulha num palheiro.

- Separamo-nos?

- Não.

Rainie assentiu com a cabeça, fingindo não se ter apercebido do tom de preocupação na voz do companheiro. Estava uma noite de lua cheia e via-se como se fosse de dia, mas o espesso silêncio que reinava à volta deles e as sombras ameaçadoras das carcaças de automóveis teriam bastado para dissuadir os mais temerários.

Continuaram em silêncio. Sempre que se aproximavam dos restos de um jipe, verificavam qual era o modelo, com a ajuda das lanternas, antes de prosseguir a sua busca

interminável.

A dado momento, chegaram junto aos restos do que fora um carro e Rainie recuou ante o odor insuportável a sangue seco.

- Que horror! - exclamou, antes de levar a mão à boca para abafar um grito.

Um pouco mais adiante, Vince Amity fez incidir o feixe da lanterna numa carrinha de quatro portas que se transformara à força num descapotável. O tecido dos assentos que havia sido azul apresentava-se coberto de sinistras manchas acastanhadas.

- Esta deve ter-se enfaixado num camião - comentou Amity.

- E os passageiros foram provavelmente decapitados com o choque

- gemeu Rainie, afastando-se a toda a pressa.

Um ruído de motor quebrou bruscamente o silêncio. A ronda da empresa de segurança. Esconderam-se de imediato por detrás de uma montanha de carroçarias retorcidas, demasiado próximo do descapotável ensanguentado, o que levou Rainie a tapar o nariz para não vomitar.

Pensou novamente no relatório redigido no dia seguinte ao do acidente de Amanda, que Quincy lera dezenas de vezes, a fim de entender as circunstâncias da tragédia. O jipe esmagara-se contra o poste a mais de cinquenta quilómetros à hora. Ante a violência do embate, o carro levantara-se, projectando a infeliz para a frente. O volante tinha amortecido o choque e a coluna de direcção dobrara-se como estava previsto, protegendo os órgãos internos, mas nada pudera impedir que o tronco de Amanda se esmagasse contra o painel, ao mesmo tempo que a parte de cima do crânio se enfiava no metal e o vidro do pára-brisas lhe desfazia os ossos do rosto.

Por fim, o carro da segurança afastou-se, permitindo que Amity e Rainie se endireitassem.

- Acho que descobri a maneira de identificar facilmente o Explorer .- murmurou ela.

- O pára-brisas?

- Sim.

A resposta poderia parecer horrível, mas a ideia de Rainie não tardou a provar-se eficaz.

Encontraram finalmente os restos verde-escuros do jipe ao fundo do cemitério de salvados. A carroçaria, ou melhor, o que dela restava. Toda a parte traseira do Explorer fora cortada à serra, provavelmente para ser aplicada num jipe com uma frente em bom estado, à maneira do monstro de Franfcenstein. As portas e os bancos haviam desaparecido, bem como os pneus. O carro de Amanda Quincy assemelhava-se a uma cabeça de peixe morto, com o pára-choques esmagado e a frente escancarada, sorrindo de forma obscena sob o olhar imperturbável da Lua.

- Que coisa sinistra... - comentou Amity.

- Sim. Apressemo-nos - sugeriu Rainie.

O polícia abriu imediatamente a bolsa de onde tirou dois pares de luvas. Decerto não havia perigo de deixar impressões digitais, mas nunca se sabia. Amity munira-se também de um canivete, um torniquete, uma chave de fendas, quatro sacos de plástico e uma lupa.

Estendeu o torniquete a Rainie e lançaram-se em silêncio ao trabalho, começando por desmontar o encaixe do cinto de segurança do lado do condutor. Rainie verificou que o fecho não funcionava, tal como constava do relatório de investigação de Amity. Rainie aproveitou a luz da lanterna dele para examinar o encaixe com a lupa. Ao cabo de uns instantes, virou-se para o companheiro com uma expressão sombria: o encaixe de protecção do cinto apresentava riscos perfeitamente visíveis, indicando que não eram os primeiros a abri-lo.

- Doravante, juro que vou verificar todos os cintos antes de redigir um relatório de um acidente de automóvel - murmurou Amity.

Rainie pousou a lupa e agarrou no canivete de que se serviu para abrir o encaixe, pondo a descoberto um mecanismo de enrolar a correia equipado com duas cavilhas: uma grande e uma mais pequena para o caso de a primeira não funcionar. Durante um choque, as duas cavilhas serviam, regra geral, para bloquear mecanicamente o cinto, mas, na situação presente, a primeira fora limada e a mais pequena arrancada. Rainie testou o mecanismo mais uma vez e constatou a sua inutilidade.

- Se ela tivesse levado o carro à garagem, como devia ter feito, o mecânico verificaria logo o problema - concluiu Amity, passado um momento.

- O nosso indivíduo teve, por conseguinte, de impedi-la a todo o custo de ir ver o que se passava com o carro.

- Mas, mesmo assim, é estranho. Porquê esperar tanto tempo depois de ter inutilizado o cinto? No seu lugar, arranjaria forma de provocar o acidente nesse mesmo dia. Contudo, talvez ande a ver televisão a mais.

- Acho que é mais complicado do que isso - replicou Rainie. -. Ela percebe que o cinto está avariado, habitua-se a não o colocar e, no dia em que tem um acidente depois de ter bebido, ninguém se preocupa em verificar o mecanismo do cinto.

- É verdade - concordou Amity. - Num caso destes, diz-se apenas que a rapariga era uma idiota, pensa-se simplesmente que teve a sorte que merecia e não se fazem muitas perguntas.

- Uma encenação perfeita - concluiu Rainie, mordendo o lábio inferior com o sobrolho franzido. - Mesmo assim é arriscado - acrescentou. - As hipóteses de ela ter um acidente antes de mandar arranjar o cinto eram bastante reduzidas.

- Não necessariamente. Os amigos da vítima sabem que ela costuma conduzir em estado de embriaguez. O suspeito arranja uma maneira de a levar a beber antes de a mandar para casa, na esperança de que tenha um acidente. Se não acontecer da primeira vez, acabará por se verificar em qualquer outra ocasião.

- Acredita mesmo nisso? Quando se pensa na quantidade de pessoas que conduzem embriagadas diariamente e nunca lhes acontece nada...Talvez a própria Mandy o tenha feito dezenas de vezes na vida.

- A menos que o tipo estivesse muito atento. Pense nisto: mesmo que se desse logo por isso, como se provaria quem avariara o cinto umas semanas antes do acidente? Só nos resta descobrir quem a levou a beber, mas, como ela já era maior, nada impedia o culpado de lhe servir álcool. Quanto a deixá-la pegar no volante do carro em estado de embriaguez, trata-se de um delito menor.

- O assassino planeou tudo e quis proteger-se - murmurou Raime com o olhar perdido no vazio -, mas comigo não pega. Não acredito. Ninguém se diverte a montar um plano tão elaborado sem a certeza de que dará resultado. Mas é claro, raios! Somos uns idiotas!

Antes que Vince Amity pudesse recompor-se, Rainie pegara na lupa e dera a volta ao carro destruído até ao lado do passageiro. Puxou o cinto com força e este bloqueou de imediato. Do lado do passageiro, o mecanismo funcionava na perfeição. Obviamente!

- Filho-da-mãe - murmurou entre dentes.

Amity já se aproximara e, com a lanterna na mão, iluminou Rainie para que ela pudesse examinar com a lupa o material do cinto.

- Cá está! - exclamou ela, apontando com um dedo um sítio onde as fibras do tecido do cinto se haviam esticado uns centímetros, devido ao peso do passageiro no momento em que o jipe se enfaixara no poste telefónico. - Cá está a prova de que havia alguém ao lado da Mandy! - concluiu num tom vitorioso.

A sua alegria foi de curta duração, pois avaliou rapidamente as implicações da sua descoberta,

- Meu pobre Quincy! - suspirou com um nó na garganta.

 

Society Hill, Pensilvânia

No instante em que Bethie abriu a porta de casa, um pequeno sinal assinalou a presença do alarme. Transpôs a ombreira e dirigiu-se à caixa de comando. Como era seu hábito, começou por desactivar o alarme por meio do código e verificou na memória do sistema se tudo estava em ordem à volta da casa. A oeste nada de novo!

Tristan aproveitou para fechar a porta atrás dele e trancá-la.

- Que sistema tão sofisticado! - comentou.

- Acredites ou não, o nosso acordo de divórcio obriga o meu ex-marido a garantir a minha segurança e a das nossas filhas até ao fim dos seus dias. Mas o Quincy não se importa nada com essa condição, pois, à força de se ocupar de tantos crimes abomináveis, vê psicopatas e assassinos em série por todo o lado.

- Nunca é de mais desconfiar - retorquiu Tristan.

- Talvez tenhas razão.

Bethie pousou o cesto de piquenique na entrada. Teria tempo de se ocupar dele mais tarde. Pôs-se a cantarolar, pensando na manhã seguinte e no pequeno-almoço que tomaria com Tristan na cama. Há quanto tempo não preparava uma omeleta, panquecas ou crepes Suzette? Quando fora a última vez que começara o dia sem uma tosta que se limitava a ensopar no café? Aquele passeio com Tristan fora maravilhoso. Para Bediie, era como se tivesse renascido.

Olhou de relance para o atendedor de chamadas e ficou surpreendida ao ver que indicava oito novas mensagens.

- Desculpas-me um instante? - perguntou, fazendo sinal para o mostrador digital.

- Fica à vontade. Tens xerez? Aproveito para servir uma bebida para nós.

Bethie indicou-lhe o pequeno bar na sala de jantar, esperando que a empregada tivesse limpo o pó às garrafas de cristal. Há quanto tempo não bebia xerez? Uns cinco anos, pelo menos. Mais um indício de que estava a começar uma nova vida.

Agarrou num caderninho que estava ao lado do atendedor e carregou no botão.

A primeira chamada ficara registada às sete e dez dessa manhã, mas a pessoa tinha desligado; Bethie acabara de partir com Tristan. Uma nova chamada sem mensagem e mais outra. À quarta, reconheceu a voz de Pierce que lhe telefonara pouco depois do meio-dia.

- Tenho uma coisa urgente para falar contigo - dizia a voz do ex-marido. - Sobre a Mandy.

Bethie franziu as sobrancelhas, um pouco inquieta. Três novas chamadas sem mensagem. Bethie, cada vez mais nervosa, esperava agora o pior.

A última mensagem, registada às oito horas e dois minutos da noite, provinha novamente de Pierce.

- Elizabeth, tentei contactar-te o dia inteiro. Para ser franco, estou muito preocupado. Agradeço que me ligues para o telemóvel assim que ouvires esta mensagem, seja a que hora for. Tenho coisas muito importantes a dizer-te. Além de que precisamos absolutamente de conversar sobre esse Tristan Shandling de que me falaste. Hoje, fiz uma investigação sobre ele e essa pessoa não existe. Telefona-me com urgência.

Bethie ficou petrificada. Tentou desajeitadamente desligar o altifalante do atendedor, mas era demasiado tarde. Tristan, de pé na ombreira da porta, com dois pequenos copos de xerez na mão, fitava-a com um olhar estranho.

- Pediste ao Pierce que fizesse uma investigação a meu respeito? Muito pálida, limitou-se a assentir estupidamente com a cabeça.

Sentia tudo a andar à roda e teve de amparar-se à parede para não cair.

- vou dizer-te uma coisa, Elizabeth Quincy. Conseguiste finalmente surpreender-me.

Tristan pousou lentamente os dois copos com xerez numa mesinha. Foge, pensou Bethie. Contudo, estava na sua casa e não sabia para onde ir. Recordou subitamente todos aqueles dossiês horríveis que Pierce costumava trazer do trabalho. Um dia, encontrara as filhas a examinarem, com um ar aterrorizado, pilhas de fotografias a cores de corpos mutilados, torturados, desfigurados. A uma delas haviam mesmo arrancado os seios.

- Quem... quem és tu?

- Não me reconheces? Sou o agente especial Pierce Quincy, claro. Queres ver a minha carta de condução?

- Mas... mas tens essa cicatriz. Vi-a, toquei-lhe! Não pudeste inventá-la! - gritou num tom muito próximo da histeria.

- De facto, não a inventei - replicou ele, parecendo muito calmo. - Fi-la no próprio dia em que permitiste que desligassem o ventilador da Mandy. Foi fácil. Bastou

uma lâmina esterilizada, uma agulha e um pouco de linha. Não pode deixar-se nada ao acaso.

- Mas então... conhecias a Mandy! Por isso sabias o meu diminutivoe usavas as mesmas expressões que ela!

- Espanta-me a tua inconsciência, minha querida Bethie. Viste-me tomar algum comprimido hoje? E nunca te interrogaste como é que o meu belo rim novinho em folha

poderia filtrar uma tal quantidade de champanhe? Contudo, deixei-te algumas pistas. Gosto sempre de dar uma pequena chance ao adversário. O problema com as mulheres

é que... insistem em ver apenas o que querem ver. Pelo menos, quando estão apaixonadas. Depois, é outra história.

- Não... não compreendo.

- Estou-me nas tintas para que compreendas ou não, minha querida Bethie!

- O Pierce tem um cargo muito importante no FBI. Não te safarás assim tão facilmente!

Ele esboçou um pequeno sorriso e tirou do bolso um par de luvas de cabedal preto.

- Espero bem que sim. Para ser sincero, não tencionava terminar tão depressa a nossa bela história de amor. Preferia esperar que um dia te lançasses nos meus braços, explicando-me o que acabava de acontecer à tua pequena Kimberly. Aproveitaria para te dizer até que ponto ela te odiava, a tua pequena Kimberly. Também a Mandy te odiava. Sabes, Bethie, nunca foi o pai que as traumatizou. Foste tu, com a tua personalidade de mãe galinha, possessiva, teimosa e estúpida.

- Suplico-te! Não faças mal à Kimberly! Deixa a minha filha em paz!

- Infelizmente, é tarde de mais para lamentações - murmurou ele, calçando as luvas. Em seguida, acrescentou: - Foge, Bethie, foge!

Greenwich Village, Nova Iorque

Kimberly Quincy acordou sobressaltada a meio da noite. Sufocava, tinha a T-shirt encharcada de suor e, no entanto, tremia de frio. Apenas se recordara de que vivera um pesadelo horrível.

Esforçou-se por controlar a respiração, a fim de acalmar as batidas do coração. Por fim, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira e dirigiu-se à cozinha às apalpadelas. O seu companheiro de apartamento tinha a porta fechada, mas ouvia a respiração regular de Bobby, embora abafada. O som acalmou-a. Bobby andava com uma nova namorada e nos últimos tempos ficava muitas vezes fora. Não tinha obviamente nada a ver com isso, mas Kimberly gostava mais que ele estivesse presente. Pelo menos, não ficava sozinha no pequeno apartamento.

Sentou-se à mesa da cozinha, sabendo de antemão que não conseguiria pegar novamente no sono tão depressa. E, mesmo que voltasse a adormecer, como evitar ter pesadelos outra vez? Por vezes, Mandy ia a conduzir o Explorer e Kimberly tentava desesperadamente arrancar-lhe o volante das mãos. Outras vezes, corria até ficar sem fôlego através de um interminável túnel escuro, tentando em vão juntar-se ao pai. Acontecera-lhe mesmo sonhar com a mãe. Bethie dançava num grupo de bailado, vestida com um tutu branco imaculado, mas, por mais gestos que Kimberly fizesse, a mãe nunca

olhava na sua direcção. Nessa altura, abria-se uma fenda no meio do palco e a mãe desaparecia bruscamente, engolida pelo chão.

Sonhos terríveis, resultantes de um subconsciente aterrorizado. Kimberly pousou os olhos no telefone. Bastava-lhe levantar o auscultador para ligar à mãe ou ao pai e solucionar de uma vez por todas os problemas que a atormentavam.

Não era a primeira vez que a invadia a tentação de lhes telefonar, mas não esboçou qualquer gesto e deixou-se ficar deitada sobre a mesa da cozinha, a escutar o

silêncio da noite. Só voltou para a cama uma hora depois, completamente esgotada.

Motel 6, Virgínia

No regresso da sua expedição ao cemitério de automóveis na companhia de Vince Amity, Rainie enfiou-se na cama no preciso instante em que tocou o telefone. O mostrador

luminoso do despertador indicava três horas da manhã. Intrigada, fitou o aparelho, interrogando-se sobre quem poderia ligar-lhe àquela hora: Quincy, ou então Carl

Mitz, o advogado misterioso que a perseguia há dois dias? Talvez se tratasse de algo pior, mas atendeu. Era Quincy.

- Rainie, estou em Filadélfia, na casa da Bethie. Ela foi assassinada.

- vou já - respondeu simplesmente Rainie.

 

Society Hill, Pensilvânia

Rainie estava muito agressiva quando chegou a Filadélfia duas horas depois. Ignorara todos os limites de velocidade e as regras mais elementares de cortesia na estrada.

Não teve qualquer dificuldade em encontrar a bonita casa de Elizabeth Quincy, em Society Hill: bastou-lhe seguir a panóplia de luzes que iluminavam o bairro. A carrinha

branca do médico-legista encontrava-se estacionada em cima do passeio, atrás de três carros-patrulha e de um automóvel vulgar. Provavelmente o dos agentes da Brigada de Homicídios. Tinham tido a feliz ideia de estacionar igualmente em cima do passeio para permitirem a circulação, mas a precaução fora inútil pois outros três carros oficiais aproveitaram para estacionar no local que eles haviam deixado livre, bloqueando momentaneamente o trânsito. Tratava-se certamente das equipas do FBI. Generais a mais e soldados a menos, pensou Rainie, interrogando-se sobre como Quincy estaria a reagir.

Parou o carro um quarteirão mais adiante e chegou à casa de Elizabeth quando o dia começava a clarear. Alguns vizinhos, vestidos com roupões de seda e gabardinas Burberry, observaram-na com um ar circunspecto da entrada das suas casas luxuosas. Todos denotavam uma expressão receosa. Um dos moradores acabava de encontrar a morte num bairro burguês, supostamente de uma grande tranquilidade. Apesar da opulência discreta do local, as casas encontravam-se pegadas umas às outras, como em qualquer vulgar complexo de apartamentos, e todos tomavam consciência de que o dinheiro apenas fornece uma barreira efémera contra a violência e a morte.

Ao chegar à residência de Bethie, Rainie mostrou a sua licença de detective ao jovem agente que estava encarregado de vigiar o local do crime, bebendo maquinalmente um café entre dois bocejos.

- Não se pode entrar - declarou.

- Trabalho para o agente Pierce Quincy do FBI - esclareceu prontamente.

- E eu sou o Pai Natal. Desapareça.

- Falas assim com a tua mãe? - redarguiu com uma expressão suave e o sobrolho franzido. - Vais fazer-me o favor de ir procurar o Lente especial Quincy e informá-lo de que a Lorraine Conner o aguarda.

- Por alma de quem?

- Simplesmente porque trabalho para ele, que me telefonou esta noite e me pediu que viesse aqui e também porque não deves querer começar o dia a levar um pontapé

no eu de uma bonita jovem. Serve-te como explicação?

- Seja como for, não faço tenção de começar o dia a obedecer às ordens de uma...

- Agente!

O jovem polícia virou-se. De pé, na ombreira da casa, a agente Glenda Rodman fez-lhe sinal. Usava o mesmo fato cinzento da véspera, mas tinha o cabelo preto um pouco mais desalinhado devido à pressa com que acorrera. Rainie nem sequer se preocupou com esse tipo de pormenor, humilhada por ser apanhada de novo numa posição de fraqueza.

- O agente Quincy pediu realmente a presença de Miss Conner - limitou-se a declarar Glenda ao polícia. - Deixe-a passar e não se preocupe, porque ela está sempre de mau humor a esta hora da manhã.

- Não é a hora que me incomoda, mas a estupidez das pessoas - resmungou Rainie.

- Se quiser seguir-me... O agente ergueu relutantemente a protecção de plástico que delimitava o seu reino e Rainie dirigiu-lhe um sorriso sedutor, antes de retomar a expressão de circunstância. O cheiro a sangue era insuportável logo à entrada da porta, e sentiu-se, de imediato, agoniada. Glenda Rodman parou para lhe deitar um olhar quase compreensivo e Rainie teve consciência de que o pior estava para vir.

Havia, na verdade, sangue por todo o lado: nas paredes beges e nos quadros e em grandes poças espalhadas pelo soalho e nas preciosas alçatifas da infeliz Bethie. A mesinha da entrada fora derrubada, a ficha do telefone arrancada, o atendedor de chamadas atirado pelos ares contra um espelho antigo de moldura dourada e os estilhaços de vidro de uma garrafa partida explicavam o cheiro adocicado do álcool à mistura com o da morte.

Meu Deus, pensou Rainie. Foi tudo o que lhe ocorreu.

Glenda Rodman entrou na sala de jantar e Rainie foi atrás. Os técnicos afadigavam-se à volta de uma mesa de nogueira com tampo encerado em busca de impressões digitais, enquanto outros dois agentes enrolavam com todo o cuidado um tapete oriental, a fim de ser enviado para o laboratório. Glenda parou novamente e Rainie compreendeu que ela avançava por etapas, a fim de lhe dar uma ideia das circunstâncias da tragédia.

Bethie fora atacada na entrada. A julgar pelo formato das manchas de sangue, o assassino servira-se de uma faca ou de qualquer instrumento cortante. Rainie imaginou o filme dos acontecimentos: Bethie, surpreendida no momento da chegada a casa, tenta defender-se. Corre para a sala de jantar. Ali, alguém agarra num candeeiro cujo abajur está caído no chão um pouco mais à frente e em cuja base há vestígios de sangue e madeixas de cabelos. Cabelos dele? Dela? Tudo depende de quem agarrou primeiro no candeeiro. Mais algumas manchas de sangue na parede do fundo, onde alguém recebera uma terrível pancada. Muito provavelmente, Elizabeth.

Pegadas ensanguentadas atravessavam a sala de jantar. Glenda e Raime seguiram-nas até à cozinha e descobriram um conjunto de facas espalhadas no balcão forrado de mosaicos. As mais pequenas tinham sido atiradas ao chão por alguém - mais uma vez, ele ou ela, quem chegara primeiro? - que procurava freneticamente as lâminas mais afiadas, como o indicava uma enorme mancha de sangue no chão.

Rainie via a cena com uma crescente clareza. A delicada Elizabeth atacada, ferida, enlouquecida pelo terror, enfraquecida pelo sangue que perdera, tentando inutilmente refugiar-se na cozinha. Ciente de que a batalha estava de antemão perdida, procurara vender cara a sua vida. O instinto de sobrevivência é sempre o mais forte. Avista as facas de cozinha, afasta as mais pequenas com um gesto desajeitado, resolvida a tentar tudo por tudo.

Pobre, pobre Elizabeth. Demasiado bem-educada para saber que as mulheres nunca lutam com facas. Para se defender eficazmente com um objecto cortante, é preciso ser hábil, ter força e o braço mais comprido que o do adversário, atributos mais adequados a um homem. Nas escolas de polícia, explica-se que a grande maioria das mulheres que procura defender-se com uma faca de cozinha acaba por ser morta com a própria arma. Bethie deveria ter agarrado numa caçarola ou em qualquer outro objecto pesado, capaz de fazer recuar o adversário.

Acabara, sem dúvida, por compreendê-lo depois de ficar encurralada contra o balcão da cozinha, mas era tarde de mais e escorregara até ao chão, agarrando-se desesperadamente às maçanetas dos armários.

Ainda podia ver-se a marca da anca e da perna no lugar onde caíra. Devia ter resistido, pois a mancha de sangue estendia-se para além do balcão. Bethie não fora uma vítima fácil, a menos que o agressor tivesse querido prolongar o prazer.

- A partir daqui - murmurou Glenda Rodman -, preste atenção, por favor, e siga as marcas do chão.

Rainie não reparara numa fita adesiva colada no chão em ziguezague e atravessando toda a casa. Na medida em que já se vira confrontada com uma situação idêntica na altura da matança na escola de Bakersville, Rainie sabia até que ponto se torna difícil impedir as equipas de socorro e os técnicos de destruírem eventuais pistas. Aprendera à sua custa, um ano antes, que era indispensável isolar os sectores a proteger.

Seguiu a marcação nos bicos dos pés até ao vestíbulo, onde havia outras manchas de um vermelho-escuro. Mãos ensanguentadas tinham deixado uma quantidade terrível de impressões digitais, que formavam Desenhos sórdidos nas paredes. Meu Deus, pensou novamente Rainie.

- Achamos que isto é obra do assassino depois de ter morto a vítijpa - comentou Glenda.

- Mas... as impressões digitais são pequenas de mais para poderem ser dele.

- Não são dele - redarguiu a agente num tom neutro.

- O Quincy passou por aqui? - perguntou Rainie de imediato. -Várias vezes.

As duas mulheres chegaram finalmente ao quarto de Bethie. Rainie evitou olhar para a cama ao dar-se conta de que o assistente do médico-legista, ocupado com qualquer tarefa sórdida, estava prestes a vomitar. Preferiu examinar o resto da divisão. Também ali os espelhos tinham sido estilhaçados, os apliques arrancados das paredes e o telefone atirado ao chão. As almofadas haviam sido esventradas, espalhando uma chuva de penas sobre a alcatifa. Os frascos de perfume de Bethie também tinham sido partidos, deixando uma curiosa mistura com o odor a sangue.

- Os vizinhos devem ter sido alertados pelo barulho - sugeriu Rainie num fio de voz. - Como é que ninguém chamou a polícia?

- O antigo proprietário da casa era um pianista - explicou Glenda. - Há vinte anos, foi necessário isolar completamente as paredes para deixar de incomodar os vizinhos.

- Nesse caso, quem chamou a polícia?

- O Quincy.

- O Quincy?! Mas ele estava aqui?

- Afirma que chegou pouco depois da meia-noite, inquieto por não conseguir contactar a ex-mulher por telefone.

- Afirma? - reagiu de imediato Rainie. - O que quer dizer com isso?

Glenda Rodman hesitou um momento antes de responder, evitando olhar a jovem mulher de frente.

- Descobrimos um vidro da janela partido na casa de banho principal - proferiu por fim. - Uma das teorias é a de que o assassino entrou furtivamente na casa ao começo da noite e esperou que Mistress Quincy regressasse.

- Uma das teorias?

- A propriedade está equipada com um sistema de alarme extremamente sofisticado, que não disparou.

- O alarme tinha sido activado?

- Estamos a tentar averiguar junto da empresa de segurança. Pedimos que nos fornecesse um relatório pormenorizado logo que possível.

- Se bem entendi, há uma segunda teoria, ou seja, que foi atacad por um familiar - explodiu Rainie. - E pensam que esse alguém é Quincy? Suspeitam que ele possa

ter assassinado a ex-mulher?

- Claro que não.

Glenda Rodman respondera num tom firme, mas procurando não elevar a voz. Olhou de relance para o médico-legista e assistente, antes de se aproximar de Rainie.

- Ouça, Miss Comer - disse. - Não é meu hábito fazer confidências à primeira pessoa que aparece quando estou a investigar um caso, muito menos tratando-se de qualquer pseudo-agente. Mas vou mesmo assim dar-lhe um conselho: se é amiga do Quincy, ele vai precisar de si. Até agora, o FBI dá-lhe todo o apoio. Pelo meu lado, passei o dia a escutar metade dos psicopatas deste país a deixarem-lhe mensagens obscenas no atendedor. Temos perfeita consciência de que este caso não é tão simples como parece, mas nada nos indica que a polícia local vá reagir da mesma forma.

- Mas o FBI pode chamá-la à razão, não é verdade?

- Claro que não.

- Uma treta!

- Ignoro se está ao corrente, minha querida, mas ainda existem leis neste país.

- Onde está o Quincy? - indagou Rainie de cenho franzido. Quero falar-lhe.

- Se os investigadores da polícia de Filadélfia estiverem de acordo, não há problema.

- Quero vê-lo.

- Então, siga-me.

Glenda deu meia volta na direcção da entrada. No momento em que ia a transpor a ombreira da porta, Rainie cometeu o erro de olhar para a cama e julgou que ia desmaiar.

- O Quincy vai precisar de nós - limitou-se a repetir Glenda, ao vê-la ficar branca como a cal da parede.

Quincy encontrava-se retido por dois inspectores à paisana que o interrogavam numa das raras divisões da casa poupadas à carnificina. Noutras circunstâncias, Rainie teria achado a cena divertida. O quarto pertencia a uma das filhas, a julgar pelo papel de parede amarelo-claro com florinhas rosas e lilases, a cama tapada com um edredão da mesma cor e um romântico dossel com cortinas de musselina. Encostado a uma das paredes havia um toucador branco encimado por um espelho oval coberto com fotografias... para mais tarde recordar: um desfile de jovens, o retrato de um colega, um instantâneo do baile de finalistas. Um raminho de flores secas pendia de uma fita sobre o rebordo do espelho e animais de peluche de todas as cores estavam alinhados sobre o tampo do toucador.

O mais alto dos dois inspectores instalara-se como pudera no único assento do quarto, um elegante banquinho forrado de lilás, obrigando o colega a ficar de pé.

Quincy tinha-se sentado na cama de dossel com a perna encostada a uma almofada amarelo-claro amachucada. A Gestapo de visita a Loura Ashley, pensou Rainie, sentindo um aperto no coração ao olhar o rosto desfeito de Quincy.

- A que horas chegou aqui? - perguntou o inspector que se mantinha sentado.

O indivíduo tinha umas sobrancelhas grossas que se uniam por cima do nariz e formavam uma linha à altura da testa, acentuando o contraste entre o seu aspecto de homem das cavernas e as roupas citadinas.

- Pouco depois da meia-noite. Como já disse, não olhei para o relógio.

- A vizinha, Mistress Betty Wilson, afirma que viu a vítima regressar a casa por volta das dez horas na companhia de alguém que corresponde à sua descrição.

- Apenas posso garantir que não estava aqui às dez da noite. Repito-lhe que só cheguei depois da meia-noite.

- Onde estava às dez?

- Pela lógica, inspector, estava no meu carro, algures entre este local e a Virgínia, onde moro.

- Tem testemunhas?

- À excepção do meu carro, ninguém.

- Talões de portagem?

- Não me ocorreu pedir talões. Nesse momento, estava longe de pensar que iria precisar de um álibi.

Os dois inspectores trocaram um olhar cúmplice. Testemunha hostil, depoimento evasivo, altura de passar a coisas sérias. Rainie aproveitou o momento para interferir.

- Meus senhores - pronunciou calmamente.

Os rostos viraram-se na sua direcção. Os dois inspectores, convencidos de que se tratava da advogada de Quincy, não dissimularam a irritação sentida. Quincy, ainda em estado de choque após a visão de horror dos restos do corpo da ex-mulher em cima da cama, nem sequer reagiu.

- Quem é você? - gritou o homem das cavernas.

- O que acha? O meu nome é Conner, Lorraine Conner - respondeu, estendendo a mão com um ar decidido.

O homem das cavernas apertou-lha de má vontade e uma força bruta, soltando um enorme suspiro.

- Inspector Kincaid - murmurou entre dentes.

Rainie virou-se para o colega dele, um homenzinho com uns olhos azuis cortantes.

- Albright - apresentou-se este último, apertando-lhe por sua vez a mão, ao mesmo tempo que a observava dos pés à cabeça.

Não havia dúvida de que AIbright era o cérebro e Kincaid as pernas. Rainie aprendera a desconfiar dos polícia baixos com um ar insignificante. São geralmente os mais perigosos.

- Em que ponto estamos? - perguntou Rainie, instalando-se em cima da cama, como se a sua presença fosse natural.

Na ombreira da porta, Glenda Rodman observava a cena com um pequeno sorriso.

- A tentar verificar o álibi...

- Estão, por acaso, a afirmar que um agente do FBI é suspeito . surpreendeu-se, olhando AIbright fixamente.

- Não se esqueça de que se trata do ex-marido da vítima.

- Há quanto tempo estavam divorciados? - indagou Rainie, virando-se para Quincy.

- Oito anos.

- Algum processo em curso contra a Elizabeth Quincy?

- Não.

- Tem direito a qualquer herança?

- Não.

- Confesso que me é difícil entender o que poderia ter levado o Quincy a assassinar a ex-mulher - concluiu Rainie, virando-se novamente para o inspector mais baixo.

Evitando dar-lhe uma resposta directa, AIbright continuou a interrogar Quincy.

- Confirma que comprou um Audi TT vermelho há duas semanas, em Nova Iorque?

- Não - respondeu Rainie em lugar dele.

- Senhora advogada, temos em nosso poder o registo do veículo em causa no nome de Mister Quincy.

- Trata-se de uma compra fraudulenta efectuada por um desconhecido que se fez passar pelo agente especial Quincy. ê FBI já se encontra ao corrente e está a investigar a ocorrência, como pode ser confirmado pela agente Rodman, aqui presente.

- É verdade - declarou Glenda, da ombreira.

Rainie aproveitou-se do efeito produzido para prosseguir num tom decidido:

- Sabem, certamente, que o agente especial Quincy está a ser alvo da perseguição de um desconhecido. O número do seu telefone privado foi divulgado entre detidos em várias penitenciárias do país. No vosso lugar, informar-me-ia antes de ir mais longe.

- Suponho - redarguiu AIbright sem pestanejar - que está ao corrente dos oito telefonemas feitos pelo agente Quincy à ex-mulher nas últimas vinte e quatro horas?

- Segundou explicou, estava preocupado com ela.

- Por que motivo? Há oito anos que estavam divorciados. O detective da Brigada de Homicídios marcara um ponto.

- A Elizabeth tinha-me pedido que fizesse uma investigação sobre uma pessoa - interferiu Quincy num tom calmo.

Rainie teria preferido que ele continuasse calado. Dada a sua incrível capacidade para dissimular emoções, Quincy parecia demasiado composto, demasiado profissional,

habituado aos crimes mais monstruosos. Ela sabia que essa indiferença não passava de uma fachada, o que era demonstrado pelos punhos cerrados. Conhecia-o bem e sentia a raiva surda por detrás daquele desprendimento simulado. Teria dado tudo para poder abraçá-lo. Em vez disso, devia contentar-se em brincar aos advogados, consciente de que a sua falsa compostura poderia levá-lo a afundar-se aos olhos dos dois polícias locais.

- Como não encontrei nenhum registo do nome que a Bethie me indicara - prosseguiu Quincy -, fiquei preocupado com ela, sobretudo depois do que me acontecera.

- Que nome é que ela lhe indicou?

- Tristan Shandling.

- De onde é que ela o conhecia?

- Não tenho a mínima ideia.

- Há quanto tempo o conhecia?

- Também não sei.

- Então, não compreendo - replicou o inspector Albright, franzindo o sobrolho. - Você, que é um modelo de consciência profissional, faz uma investigação a pedido da sua ex-mulher, sem lhe perguntar nada?

- Como teve a delicadeza de me recordar, inspector, há oito anos que estamos divorciados. Nada tenho a ver com a sua vida privada.

- Vida privada? Suspeitou, então, que se tratava de um amante...

- Não disse isso - interrompeu-o Quincy secamente. Contudo, era tarde de mais. A sua reacção não escapou a Albright,

que se apressou a tomar apontamentos. Eis o móbil de que precisavam, pensou Rainie. Um tipo com ciúmes da ex-mulher.

- Meus senhores - declarou num tom brusco. - Não duvido do interesse desta conversa às cinco da manhã, mas tenho a impressão de que estão a ignorar o óbvio.

Albright fitou-a com uma expressão intrigada. Quanto ao homem das cavernas reagiu de imediato com a habitual subtileza.

- Como? - quis saber.

- Olhem à vossa volta. Observem o estado da casa após esta horrível carnificina. Não há a mínima dúvida de que aqui ocorreu uma luta feroz. Pessoalmente, nada vejo

no agente Quincy que possa permitir associá-lo a este crime. Não tem o mínimo vestígio de sangue na roupa, os sapatos estão impecavelmente engraxados, não apresenta uma só escoriação nas mãos ou no rosto. Não acham estranho?

- Deve ter aprendido com o O. J. Simpson - comentou o homem das cavernas.

Rainie suspirou e procurou apoio por parte do inspector Albrigljt Constatou, surpreendida, que os seus argumentos não pareciam provocar-lhe a mínima emoção.

Virou-se para Quincy. com os olhos perdidos nos padrões floridos do papel de parede amarelo-claro do quarto, ele evitou olhá-la, tal como Glenda Rodman.

Havia certamente algo que ela ignorava. Algo que Quincy e Glenda não tinham querido revelar aos inspectores da polícia de Filadélfia, o que ainda se tornava mais

inquietante.

Que outra surpresa desagradável aguardava Rainie? E como reagiria Quincy quando ela lhe dissesse que o assassino de Bethie era provavelmente o mesmo que lhe matara

a filha há catorze meses?

O assistente do médico-legista apareceu à entrada da porta.

- Hum... Pensámos que deviam ver isto - murmurou o homem de camisa branca.

Segurava um saco de plástico nas mãos enluvadas. Glenda recusou pegar-lhe, deixando que fosse Albright a fazê-lo. O inspector agarrou-o com uma mão trémula e observou-o

à luz, exclamando de imediato:

- Deus do céu!

Petrificado, deixou cair o saco que rolou pela alcatifa lilás, formando uma mancha vermelho-escura.

- Era...

O assistente do médico-legista, com o rosto da cor da cal, mal conseguia dissimular o seu horror, fitando o saco de plástico, como que hipnotizado pelo seu conteúdo.

- Encontrámos isso... na cavidade abdominal.

O homem das cavernas nem se atrevia a respirar. Em cima da cama, Quincy apertava o edredão com tanta força que os tendões da mão se assemelhavam a cordas de violino.

Rainie foi a primeira a reagir e baixou-se lentamente para pegar no saco com mil precauções, como se se tratasse de uma víbora pronta a atacar.

Dir-se-ia um pedaço de papel de embrulho vermelho com listas prateadas, como os que se usam nas prendas de Natal.

Era uma folha de papel ensanguentado, com letras formando palavras, escritas grosseiramente com a ajuda de parafina, para se poder ler quando fosse descoberto nas

entranhas de Elizabeth Quincy.

- Parece uma mensagem - balbuciou Rainie.

- Lê-a - sussurrou Quincy.

- Não!

- Lê-a!

Rainie fechou os olhos. Já decifrara as palavras terríveis.

- Está escrito... Está escrito: "Despacha-te, Pierce. Ainda resta uma."

A Kimberly! - exclamou Glenda Rodman da porta.

Ninguém esperava a reacção de Quincy, cujo corpo foi sacudido

um tremor incontrolável, ao mesmo tempo que um riso seco e ter Vel lhe saía bruscamente da garganta.

-Uma mensagem numa garrafa! Foda-se! Esse cabrão envia-me mensagem... - gritou entre dois soluços. - A Kimberly...

Leva-me daqui, Rainie! - pediu.

Ela levou-o.

 

Greenwich Village, Nova Iorque

Rainie e Quincy percorreram em silêncio os cento e sessenta quilómetros que separam Filadélfia de Nova Iorque. Ela ao volante e ele com a cabeça apoiada contra o vidro do lado do passageiro. Quincy tinha os olhos fechados, mas Rainie sabia que não adormecera. Em menos de uma hora chegariam ao apartamento da filha, e Rainie encolheu a cabeça entre os ombros só de pensar nas notícias que o pai lhe levava. Depois de ter enterrado a irmã há umas semanas, Kimberly iria saber que a mãe fora brutalmente assassinada por um louco e que ela seria com toda a probabilidade a próxima vítima.

Quincy precisava de recompor-se, pensou Rainie. O tempo começara a contar e não podia deixar o campo livre ao adversário.

- Começa a falar - dirigiu-se-lhe ele bruscamente.

- Descobrimos o jipe da Mandy. Tencionava ligar-te de manhã para te dar a notícia.

- Alguém deu cabo do cinto de segurança.

- Sim. Mas o importante é que havia uma pessoa no carro com a Mandy na altura do acidente. Descobrimos vestígios que não deixam margem para dúvida no cinto do lado do passageiro. Ás boas notícias são que o Vince Amity encontrou alguns cabelos no banco desse lado. Se conseguirmos deitar mão ao nosso homem, podemos, pelo menos, provar que ele estava no local do crime.

- Que crime? Tanto quanto sei, não há nenhuma lei que impeça alguém de se sentar ao lado do condutor num jipe.

- Veremos, Quincy. O Amity é um bom profissional e tenho a certeza de que encontrará provas para apresentar diante de um júri. Agora, é a minha vez de te fazer uma pergunta: porque vieste a casa da tua ex-mulher precisamente esta noite?

- Estava preocupado com ela. A Elizabeth... ABethie nunca saía muito e tive um mau pressentimento depois de ter tentado em vão falar com ela ao telefone durante todo o dia.

- Interrogo-me sobre se ele o saberia.

-Acho que sim - replicou Quincy, virando-se finalmente para Rainie.

Numa questão de horas, parecia que o rosto ganhara mais rugas e o cabelo embranquecera nas têmporas. Ele era um experiente agente do pBI, um homem que ganhava a vida a ser confrontado todos os dias com cenas indiscritíveis. Contudo, Rainie não estava segura de que a experiência lhe servisse de muito num momento como aquele. Conhecia bem a perversidade de alguns psicopatas para não temer o pior relativamente a Kimberly.

- Não restam dúvidas de que esse tal Tristan Shandling está a fazer tudo para te encostar à parede - retomou Rainie num tom suave. Compra um carro em teu nome e arranja forma de parecer-se contigo no dia em que acompanha a Bethie a casa. Mas queria sobretudo saber o que tu e a tua colega descobriram e não contaram aos inspectores locais.

- A janela da casa de banho foi uma coisa encenada. Quando os especialistas examinarem os estilhaços, descobrirão logo que o vidro foi partido do lado de dentro.

- Mas os bocados de vidro foram encontrados no chão da casa de banho e não no exterior.

- É verdade. Mas basta observar com um pouco mais de atenção para perceber que a pancada foi aplicada do interior. Depois, nada mais fácil do que apanhar os pedaços caídos no chão para os colocar na casa de banho. O que não impede os especialistas de perceberem que o ângulo em que o vidro foi quebrado não corresponde ao objectivo. O assassino já estava dentro de casa quando estilhaçou a janela. E vais ver que, quando a polícia de Filadélfia receber o relatório da companhia de segurança, a memória do alarme revelará que ele foi desactivado normalmente.

- Ele entrou, portanto, com a Elizabeth - redarguiu Rainie, pensativa. - Refiro-me ao tipo parecido contigo e que foi visto pela vizinha às dez da noite.

- É muito provável. E há ainda o local do crime. O nível de destruição é superior ao do crime. Na realidade, as manchas de sangue linutam-se a lugares exactos, ao passo que a maioria das divisões foi vandalizada. Na minha opinião, a luta foi breve. A Elizabeth foi morta mediatamente e o resto da destruição foi depois.

- Para tornar tudo ainda mais horrível?

- Exacto. Foi mais uma forma de me atingir. Esse tipo é um profissional.

- Quanto ao corpo... - murmurou Rainie.

- Quanto ao corpo - repetiu Quincy num tom estranhamente calmo. - O relatório da autópsia vai confirmar, mas apostaria que a Elizabeth foi morta com bastante rapidez e não violada, ao contrário do que ele pretendeu dar a entender pela forma como a colocou em cima da cama. Não notei a mínima escoriação nos pulsos e nos tornozelos, o que prova que ele a atou depois de a ter morto. O mesmo em relação às mutilações.

- Qual o objectivo?

- Pura encenação para despistar: dar a ideia de que o assassino era um tarado sexual sádico. Que suspeito melhor do que um ex-marido, especialista em assassinos em série e outros psicopatas?

- A polícia de Filadélfia não cairá nessa armadilha.

- Não poria a minha mão no fogo.

- Os próprios agentes puderam verificar que não tinhas nenhuma escoriação, nem qualquer mancha de sangue pouco depois do crime.

- Argumentarão que eu tinha preparado bem o golpe. Verás que descobrirão sangue nos tubos da canalização da casa de banho, provando que o assassino se lavou depois do crime. Não me surpreenderia nada que o nosso desconhecido, se já o conheço um pouco, tenha tomado medidas para que o sangue encontrado na canalização seja do mesmo grupo sanguíneo do meu. Vá-se lá saber...

Rainie detectou um tom de amargura na voz.

- E essa mensagem horrível? - insistiu Rainie. - É a prova de que não tens nada a ver com o caso.

- Bem pelo contrário.

- Como assim?

- Acredita no que te digo - contrapôs com um estranho sorriso nos lábios. - A caligrafia da mensagem... é a minha! Não sei como conseguiu, Rainie, mas esse tarado está a apoderar-se da minha personalidade.

Kimberly estava a beber um café, sentada à mesa da pequena cozinha, reflectindo no programa do seu segundo dia de liberdade forçada, quando o intercomunícador soou. Bobby tinha ido trabalhar depois de a informar que na noite seguinte dormiria em casa da namorada e não lhe apetecia ver ninguém. Kimberly tinha o dia todo para

fazer exercício, dormir um pouco, comer montes de legumes e fruta, e pôr as ideias no lugar.

Kimberly bebeu um gole de café, esgotada por uma noite de insónia, interrogando-se sobre quantos quilómetros precisaria de correr para voltar a sentir-se humana.

O intercomunicador insistiu e ela decidiu ver quem poderia incomodá-la àquela hora.

- Sim?

- Kimberly, é o teu pai.

Merda, pensou, carregando no botão para abrir a porta do prédioO prédio antigo não tinha elevador, mas o pai demorou uns escassos minutos a subir os sete andares,

um tempo decididamente curto mais para ela ganhar mais cinco quilos, recuperar o sono perdido, lavar os cabelos e dar-lhes um pouco de brilho. As calças do fato de treino caíam-lhe pelas ancas e a velha T-shirt mostrava a pele dos ossos.

Perdida no meio da cozinha, ouviu o pai bater à porta. Não lhe apetecia abrir, sem que na verdade soubesse explicar porquê. Quincy voltou a bater e o coração de Kimberly começou a pulsar com mais força. Atravessou a cozinha muito devagar e abriu a porta.

O pai fitava-a com uma expressão grave e vinha acompanhado de uma mulher jovem que Kimberly não conhecia.

- Lamento tanto - pronunciou num tom rouco. Rodeou Kimberly num abraço e ela rompeu em soluços, mesmo sem saber que má notícia lhe trazia o pai.

Meia hora mais tarde, estavam sentados na sala, Kimberly de pernas cruzadas no chão, Quincy e a sua amiga, Rainie Conner, no sofá. Kimberly já gastara uma caixa de Kleenex, passando da incredulidade ao horror para depois mergulhar num estado muito próximo do torpor. De olhos perdidos nos motivos da alcatifa azul usada, tentava inutilmente recompor-se.

A tua mãe morreu.

A tua mãe foi assassinada.

Um assassino resolveu destruir-nos. Matou a Mandy, matou a Bethie e tenciona atacar-te.

- Não... não fazes a mínima ideia de quem poderá ser? - perguntou finalmente.

Tinha dificuldade em pronunciar as palavras, as ideias coníundiam-se e tentava aguentar-se com todas as suas forças. Kimberly, a forte, como a mãe dizia sempre.

A tua mãe morreu.

A tua mãe foi assassinada.

Um assassino resolveu destruir-nos. Matou a Mandy, matou a Bethie e tenciona atacar-te.

- Não - respondeu Quincy num tom calmo. - Mas andamos a investigar.

- Deve tratar-se sem dúvida de alguém ligado a qualquer dos teus casos, não? Alguém que mandaste para a prisão, ou quase, ou um parente. Um pai, um filho, um irmão...

- É provável.

- Nesse caso basta fazer uma lista com todos os nomes dos casos de que te ocupaste. Dando, sem dúvida, prioridade aos que saíram recentemente da prisão. Vai-se eliminando e acaba por se encostar o tipo à parede!

Kimberly expressava-se com uma voz à beira da histeria.

-Andamos a investigar - repetiu o pai, tentando acalmá-la.

- Não compreendo - murmurou num tom trémulo e prestes a romper novamente em soluços. - A Mandy... a Mandy sentia-se sempre atraída pelos homens errados! Contudo, a mamã era cuidadosa e nunca se deixaria iludir por qualquer um e muito menos o meteria dentro de casa.

- Tinhas falado recentemente com a tua mãe?

- Não - confessou Kimberly, baixando a cabeça. - Andei... andei ocupada.

- Ela telefonou-me há dois dias. Estava preocupada contigo.

- Eu sei.

- Também tenho andado preocupado.

- Eu sei.

Preferiu manter-se calado. Sabia sempre poupar as palavras na altura exacta, mas Kimberly não se deixou levar. Também isso fazia parte de seguir as pisadas do pai. Durante muito tempo, até começar a estudar psicologia, tinha-o considerado um deus. Depois, passara a compreender o mecanismo de funcionamento do pai, o seu lado manipulador. E se, no início, se sentira um tanto orgulhosa, tudo mudara desde a morte de Mandy.

Quincy levantou-se do sofá e pôs-se a andar de um lado para o outro, como era seu hábito quando estava muito tenso ou a trabalhar num caso particularmente difícil. Kimberly nunca o tinha visto tão pálido nem tão magro. Tal pai, tal filha. Quase recomeçou a chorar ao escutar na cabeça a voz da mãe: És igual ao teu pai! Nessas alturas, para se vingar, respondia inevitavelmente: Eu sei, mamã. E a Mandy é igual a ti!

- Devíamos recomeçar do zero - propôs a jovem mulher morena, sentada no sofá.

Quincy virou-se e fitou-a com aquele seu ar duro, tão peculiar, mas ela não se deixou intimidar.

- Quer queiras quer não, Quincy - prosseguiu -, agora a tua filha faz parte do caso. Mais vale dizer-lhe tudo. Pode ser essa a nossa única defesa.

- Não quero...

- Ela tem razão! - interveio Kimberly. - Estou realmente metida nisto. Quero saber tudo... Tem de haver alguma coisa que possamos fazer.

- Mas és minha filha, raios...

- Sou também o próximo alvo.

- Lembro-te que tens apenas vinte e um anos...

- E eu lembro-te que pratico artes marciais e sei usar uma arma. Não sou indefesa!

- Está a acontecer-me tudo o que sempre tentei evitar. Se pudesse...

- Eu sei - interrompeu-o Kimberly num tom mais calmo. - Mas a realidade é diferente da que querias e estou convencida de que posso ser-vos útil.

Quincy fechou os olhos. Por um instante, Kimberly achou que o pai ia chorar, mas ele recompôs-se, virou-se e foi sentar-se no sofá, suspirando.

Quando retomou a palavra, voltara a ser o homem impenetrável, quase desprendido, mais parecendo o agente do FBI do que o pai, e Kimberly sentiu um certo alívio.

- Recomecemos do princípio - declarou. - Sabemos que alguém

está a tentar vingar-se de mim. Não sabemos quem, mas, tal como sugeriste, Kimberly, usemos o processo de eliminação. Tudo o que sabemos é que há muito tempo que alguém anda a planear isto. Pelo menos um ano e meio, talvez dois.

- Pelo menos um ano e meio? - redarguiu Kimberly, chocada.

- Achamos que começou com a Mandy - explicou Rainie. - Estamos convencidos de que a sua primeira vítima foi a Mandy. Conheceu-a provavelmente através dos Alcoólicos Anónimos.

- O novo namorado! - exclamou Kimberly. - Mencionou-o uma vez, mas confesso que não prestei muita atenção. Ela mudava frequentemente.

- O indivíduo arranjou maneira de ocupar um lugar importante na sua vida - prosseguiu Quincy. - Andaram vários meses. A Mandy parecia muito apaixonada.

- Mas... e o acidente? - contrapôs Kimberly. - Sabe-se que ela tinha bebido antes de pegar no carro, o que, entre parênteses, não era a , primeira vez. Qual é a relação entre esse tipo e o acidente da Mandy?

- Estamos convencidos de que ele ia com ela no carro nessa noite - respondeu Rainie. - A acreditar numa das suas amigas, a Mandy teria começado a beber no começo da noite, mas este depoimento é suspeito, e a Mandy pode ter sido embriagada depois pelo famoso namorado. Quem quer que seja, o nosso desconhecido conseguiu avariar o cinto de segurança do jipe do lado do condutor.

Meteu-se no carro com a Mandy e colocou o seu cinto de segurança. Agora, há duas hipóteses:

ou contou com a sorte e arrastou-a para uma estrada secundária sinuosa, ou agarrou no volante para que o Explorer se enfaixasse no poste telefónico.

- Ele estava com ela na altura do acidente?

- Sim.

- Céus! Mas então foi também ele que matou o velhote que andavá a passear o cão!

Kimberly tapou a boca com a mão, horrorizada. Se tudo aquilo era verdade, ultrapassava o que pudesse ter imaginado. Mandy sempre viver de uma forma perigosa, tomando sistematicamente as piores decisões. Quando Bethie lhe telefonara para a informar do acidente da irmã, Kimberly não ficara surpreendida por aí além. Sempre soubera que a vida de Mandy terminaria de uma forma trágica. com o seu comportamento autodestrutivo, a irmã atraía a má sorte. E Kimberly pensara muito mais no pobre velhote e no cão.

- Mas a Mandy não morreu - acabou por dizer. - Isso terá feito com que o seu pseudonamorado entrasse em pânico?

- Não necessariamente - replicou Rainie, encolhendo os ombros

- Talvez pudesse ter sobrevivido, mas ficaria em coma devido as lesões cerebrais.

- Ele estava a salvo, portanto.

- Podemos dizer que tudo aconteceu segundo o plano.

- Mesmo assim, continuamos sem saber como é que ele se aproximou da mamã. A Mandy era muito frágil a nível afectivo, mas a mãe não era do género de se lançar nos braços do primeiro desconhecido.

- Não podemos esquecer a sua vulnerabilidade - contrapôs Raime. - A Bethie acabava de enterrar a filha mais velha e devia sentir-se muito só. Aparece então este tal Tristan Shandling que andou uns meses com a tua irmã. O tempo bastante para ter reunido muitas informações sobre a tua mãe: os seus gostos musicais, os pratos preferidos, a forma de vestir... Tudo se torna muito simples. Um homem encantador e bem-educado conhece casualmente uma mãe que acaba de perder a filha e os dados estão lançados.

- Desconfio que ele ainda foi mais longe para ganhar a confiança da Bethie - replicou Quincy. - Estou convencido de que... de que fingiu ter recebido um transplante de um dos órgãos da Mandy.

- O quê? - exclamaram Rainie e Kimberly em simultâneo.

- Na última vez que falei com a Bethie ao telefone, ela fez-me perguntas estranhas sobre transplantes. Queria saber se o dador podia transmitir ao receptor alguma coisa mais para além do simples órgão. Um pouco da sua personalidade ou da sua alma. Na altura, contentei-me em dizer que era perfeitamente ridículo, mas, depois do que aconteceu, questiono-me a esse respeito.

- Deus do céu! - murmurou Rainie. - com a morte na alma, a Elizabeth autoriza os médicos a não prolongarem indefinidamente a vida da filha. Umas semanas mais tarde aparece de súbito na sua vida um tipo que finge ter uma parte da Mandy dentro dele.

- Um cálculo perverso, mas inteligente - comentou Quincy.

- A teoria dos dominós - observou Kimberly por sua vez. - Começou pelo elo mais fraco, ou seja a Mandy. Depois, aproveita o traumatismo resultante da sua morte para chegar à mãe. Agora...

Um olhar de relance para o rosto grave do pai impediu-a de concluir o pensamento.

- Merda! - exclamou Rainie bruscamente, levantando-se do sofá como que impelida por uma mola. - Está tudo explicado! O golpe montado... Lembra-te do que ainda há pouco te dizia, Quincy. Bastaria muito pouco para que resultasse. A Bethie foi assassinada e ele arranja forma de ficares debaixo dos olhos da polícia. O resultado dos testes do laboratório torna-te o suspeito número um. Tudo se encadeia: a morte da Mandy fragiliza a Bethie. Por sua vez, a Bethie é assassinada, acusam-te do crime e, enquanto apodreces na prisão, a Kimberly torna-se uma presa fácil. Simples e eficaz!

- Se te prenderem, papá... achas que podes sair em liberdade condicional? - perguntou Kimberly, nervosa.

Quincy olhou fixamente para Rainie e, durante uns instantes, nada

- Não... não interessa - balbuciou finalmente. - A Rainie tem razão. A partir do momento em que a polícia desconfie de mim, o FBI será posto ao corrente. Num caso destes, a lei dita que me coloquem no serviço burocrático, sem a mínima prerrogativa. Terei até de entregar a arma. Mesmo que fique em liberdade enquanto aguardo o desenrolar do processo, estarei de pés e mãos atados. Céus! Esse tipo pensou em tudo.

- Mas quem é esse filho-da puta? - gritou Kimberly. Ninguém tinha uma resposta.

 

Greenwich Village, Nova Iorque

As coisas iam de mal a pior. Quincy, convencido de que a filha corria risco de vida, queria mandá-la para a Europa, mas Kimberly recusou categoricamente. Em poucos

minutos, a discussão acendeu-se, o pai acusou a filha de ser arrogante e Kimberly respondeu que era o "roto a falar ao nu" e, em seguida, desatou a chorar, o que em nada melhorou a situação. Quincy, de pé na sala de estar, não sabia o que fazer.

Por fim, Rainie decidiu tomar as rédeas da situação e começou por mandar Quincy para a cama. Nas últimas quarenta e oito horas, ele dormira no máximo quatro e estava completamente esgotado. Uma vez afastado o pai, ocupou-se da filha, sentando-se com ela à mesa da cozinha, depois de fazer café. Kimberly, tal como o pai, bebia café preto e sem açúcar, mas, mesmo assim, Rainie conseguiu descobrir uma garrafa de leite no frigorífico e um açucareiro no fundo do armário.

- Não te rias - dirigiu-se a Kimberly, que a fitava de olhos muito abertos, a vê-la juntar toneladas de leite e açúcar no café. - Não suporto café preto.

- O meu pai viu-te fazer isso?

- Algumas vezes, sim.

- Suponho que não te poupou a comentários desagradáveis?

- Desagradáveis? Numa escala de um a dez, diria doze.

- Nada mal. com o meu avô, terias chegado aos quinze.

- O teu avô ainda é vivo? - surpreendeu-se Rainie.

Quincy nunca falava do pai nem da mãe. Contudo, Rainie recordava-se vagamente de o ter ouvido dizer uma vez que a mãe morrera quando ele era ainda muito novo.

- Sim, ainda é vivo - respondeu Kimberly, soprando o café para que arrefecesse. - Pelo menos, tecnicamente. Sofre de Alzheímer e está internado num lar desde os meus dez ou onze anos. Dantes, íamos visitá-lo várias vezes por ano, mas há muito tempo que não o vejo. Ele já não reconhece ninguém, nem sequer o papá, portanto...

- Deve ser difícil. Que género de pessoa era ele antes da doença?

- Duro. com um sentido de humor muito próprio. Quando eu era miúda, íamos muitas vezes à herdade dele, em Rhode Island. Havia galinhas, vacas, cavalos e um pomar enorme. A Mandy e eu adorávamos. Tínhamos espaço para correr e muitos sítios onde nos esconder e construir cabanas.

- A tua mãe também gostava? - indagou Rainie, céptica.

- Não diria isso - respondeu Kimberly com um pequeno sorriso.

Lembro-me de um dia em que um balão de ar quente, uma coisa para turistas, aterrou de emergência perto da herdade. O tipo encarregado da manobra gritava aos passageiros que se agarrassem aos ramos das macieiras para tentar amortecer a queda do balão e ele acabou a corrida mesmo no meio do campo do meu avô. Ainda me recordo da mamã a sair de casa, muito excitada, aos gritos: "Estão a ver isto? Oh, meu Deus!" Então, o meu avô sai do galinheiro e vai plantar-se diante dos cinco infelizes passageiros do balão que não sabiam onde se meter. Olha-os fixamente, sem pronunciar uma palavra. O proprietário do balão, muito atrapalhado, pega numa garrafa de vinho e começa a explicar que lamenta o sucedido, que o carro para os vir buscar aparecerá a qualquer momento e estende a garrafa ao meu avô pelo incómodo causado. ê avô fixa-o durante um momento, antes de responder: "A terra pertence ao bom Deus." E volta ao galinheiro. Era assim a personagem.

- Tenho a certeza de que me agradaria - comentou Rainie, sincera.

- Era um avô maravilhoso - confirmou Kimberly. - Mas não gostaria de o ter como pai - acrescentou.

Instalou-se o silêncio, apenas interrompido pelo barulho da colher de Rainie na chávena.

- Andas com o papá? - perguntou finalmente Kimberly.

- Tens um dom para as perguntas fáceis - redarguiu Rainie, fixando o café.

Kimberly não deixava o crédito do pai por mãos alheias e prosseguiu o interrogatório.

- És bastante nova - comentou.

- Nunca disse o contrário. - Que idade tens?

-Trinta e dois.

- A Mandy tinha vinte e quatro quando morreu.

-Mais um motivo para não ligar a essa estupidez da idade.

- Andas, então, com o papá?

- Andámos, há uns tempos. Agora, não sei muito bem. Quando o Quincy acordar, faz-me um favor e pergunta-lhe.

- Como é que se conheceram?

- No ano passado. Na altura da tragédia de Bakersville.

- Oh! - exclamou Kimberly, com um esgar. - Foi de facto um caso horrível.

- É verdade.

- Suponho que és a rapariga que perdeu o emprego por causa dessa história.

- Não se te pode esconder nada.

- Acho que compreendo - retorquiu Kimberly, assentindo com a cabeça com um ar entendido.

- Ah, sim? Queres explicar-me?

- A diferença de idade entre vocês não explica tudo. O fosso é tanto maior porque ambos se encontram em momentos muito diferentes do vosso ciclo de vida. De um lado, uma mulher ainda jovem que recomeça do zero. Do outro, um homem maduro no topo da carreira. O tipo de desafio com que as futuras gerações serão confrontadas com uma frequência cada vez maior.

- O preâmbulo perfeito para uma tese de psicologia - ironizou Rainie.

- Se queres saber, estou a defender uma tese chamada "Os Desafios da Modernidade: As Consequências do Desenvolvimento Urbano nas Personalidades mais Perturbadas".

- A minha foi sobre distúrbios emocionais. Em resumo, por que razão, de famílias burguesas, saem pequenos psicopatas.

- Ah, sim? - replicou Kimberly, sem procurar dissimular a surpresa. - Também eu me interesso pelos distúrbios emocionais. Não sabia que tinhas estudado psicologia.

- Nunca cheguei a fazer o mestrado.

- Fixe, mesmo assim.

- Obrigada.

A conversa parou e ambas voltaram a mergulhar no silêncio. Passado um momento, Kimberly perguntou num fio de voz:

- Rainie, não te importas de continuar a falar? Impede-me de pensar no que está a acontecer-me neste momento.

- Lamento muito, Kimberly.

- Agora, quem é que vai ajudar-me a planear o meu casamento? A quem telefonarei quando tiver um filho e reconhecer traços da Mandy e da mamã no rosto dele?

- Vamos descobrir o safado que fez isto e obrigamo-lo a pagar caro.

- Interrogo-me sobre se servirá para alguma coisa. Pensa no que te aconteceu no ano passado. Descobriste o assassino dessas pobres miúdas com a ajuda do meu pai e mataste-o, mas nem por isso esqueceste.

Rainie não sabia o que responder e Kimberly acabou por concluir:

- Como vês, tenho razão.

Nesse preciso momento, Quincy sonhava que estava em Filadélfia. Errava pela casa destruída de Bethie, com uma almofada na mão, recolhendo uma a uma as penas espalhadas e voltando a colocá-las no lugar. Acabado o trabalho, tentava fazer o mesmo com as entranhas da ex-mulher, voltando a enfiar-lhas, desesperado, no ventre.

Mesmo no sonho, o subconsciente ordenava-lhe que não se deixasse manipular pelo assassino. Pára! Lembra-te da Bethie como a conheceste e não te deixes dominar por esta imagem horrível!

Por um efeito Àeflashback, viu-se, então, muito mais novo, sentado ao lado da mulher. Bethie, com o cabelo despenteado e o rosto suado, sem maquilhagem nem colar de pérolas, tinha um sorriso do tamanho do mundo, deitada na cama da clínica, com a filha mais velha nos braços. Quincy pousou suavemente a mão no rosto de Mandy e maravilhou-se ao examinar as mãozinhas delicadas, os pés perfeitos, antes de acariciar o rosto da mulher, murmurando-lhe palavras ternas. Nessa altura, cheio de boas intenções, prometeu ser um pai melhor do que o seu.

De súbito, reviu Bethie, dezasseis anos mais tarde, entrando no salão, com um ar perdido. Ao preparar cenouras na cozinha, tinha cortado um dedo. A sua primeira reacção quando ela lhe explicara o que acontecera fora dizer-lhe que não passava de um arranhão. Na altura, acabara de chegar da Califórnia onde descobrira vinte e cinco cadáveres numa encosta, dos quais quinze eram de mulheres jovens e dois de recém-nascidos.

- Não aguento mais! - gritara Bethie, chocada com tamanha indiferença. - Como é que pude casar-me com alguém tão frio? Não és humano, Pierce. És um cubo de gelo.

A cena seguinte era mais recente. Ele encontrava-se no Massachusetts, a fim de vigiar Tess Williams, a ex-mulher de um perigoso assassino em série procurado por toda a polícia americana. Convencera-se de que o psicopata acabaria por voltar ali, mas a realidade transformara-se em pesadelo. Encontrava-se dentro de casa no momento em que os primeiros tiros soaram na rua. Avisara Tess de que não se aproximasse da porta, mas, quando Jim Beckett aparecera, tinha atingido Quincy com uma rajada da caçadeira de cano duplo.

Lembrava-se de ter pensado por um breve instante: Para alguém que é de gelo, sinto-me a arder. Mais tarde, à saída do hospital, tinha decidido abrandar o ritmo durante uns tempos.

- Como estás? - perguntara a Bethie num fim-de-semana em que viera buscar as filhas.

- Melhor, agora que te foste embora.

- Fazes-me falta, Bethie.

- Mentira.

- Bethie...

- Regressa ao trabalho, Pierce. As meninas e eu não precisamos de alguém que se considera Deus.

Acordou sobressaltado e não compreendeu logo que se encontrava no apartamento da filha. Deitado em cima da cama, na penumbra, observou a luz misturada com

poeira que se infiltrava através das persianas corridas, escutando os sons da cidade lá em baixo.

- Lamento, Elizabeth - disse.

Levantou-se e dirigiu-se à sala, onde a única sobrevivente da sua triste família assistia a um episódio de MASH, sentada ao lado de

Rainie. Assaltou-o de imediato

o contraste entre os compridos caracóis lou os de uma e o cabelo curto e castanho da outra, as feições delicadas da primeira, os grandes olhos cinzentos e as maçãs

do rosto salientes da segunda. O yin e o yang. Eram as duas bonitas à sua maneira e quase chorou ao vê-las. Não tinham dado pela sua presença e ficou muito tempo

a observá-las. Gostaria de poder parar o tempo, preservar aquele instante para a eternidade.

- Minhas senhoras - disse. - Tenho um plano.

 

                       Casa de Quincy, Virgínia

Naquela quinta-feira à tarde, a agente especial Glenda Rodman tinha apenas vontade de se deitar, quando avistou no monitor de controlo a silhueta de Quincy, em pé diante do portão da entrada. Na noite anterior, dormira apenas duas horas, antes de a convocarem de urgência para Filadélfia, e a fadiga começava a fazer-se sentir, física e moralmente. Uma coisa é não dormir, outra é vigiar uma casa onde ocorreu um crime horrível, além de ter de escutar mensagens de psicopatas num atendedor.

Ao todo, trezentos e cinquenta e nove telefonemas, provenientes de alguns dos criminosos que Quincy mandara para a prisão, de detidos que tinham contas a ajustar com o FBI ou de presos que procuravam apenas matar o tédio. Não fora preciso muito tempo para que o boato se espalhasse pelas prisões americanas: através dos boletins internos de numerosos estabelecimentos prisionais era possível arranjar facilmente o número privado de um especialista em perfis psicológicos do FBI e muitos deles haviam-se apressado a prestar as suas homenagens. Depois de ter escutado as mensagens durante horas a fio, Glenda estava disposta a admitir que, a alguns, imaginação era coisa que não faltava. Havia um especialmente criativo que fora ao ponto de compor uma ameaçadora canção rap sobre Quincy e o resultado não era nada mau.

Glenda carregou no botão do controlo remoto que permitia o acesso de Quincy. O agente não mudara de roupa e tinha um ar cansado. No ecrã, tornava-se difícil adivinhar o seu estado de espírito. Pierce Quincy era conhecido como um lobo das estepes no FBI, onde os colegas o consideravam uma verdadeira lenda. A agente Rodman lamentava profundamente o que lhe acontecera. Sentia-se sobretudo curiosa em saber como ele reagiria àquela acumulação de dramas pessoais.

Quincy bateu à porta da frente e Glenda apressou-se a abrir.

- Vim buscar umas coisas - declarou.

- Fica à vontade.

- Tenciono afastar-me durante uns dias. com a bênção do Everett, claro.

- Receio que não seja muito do agrado da polícia de Filadélfia

- Lamento muito, mas a minha filha está primeiro.

Sem esperar a resposta da colega, desapareceu no escritório e Glenda ouviu-o a abrir e fechar armários.

Resolveu aguardar, pois não sabia muito bem que atitude tomar. Há dois dias que estava a vigiar aquela casa e continuava a achá-la muito impessoal. Várias divisões estavam desocupadas, a maioria das paredes apresentava-se nua e a cozinha terrivelmente vazia. A única divisão um pouco menos sinistra era o escritório de Quincy e era sempre para lá que os seus passos a dirigiam quando queria escapar à atmosfera sufocante que a rodeava.

O escritório não tinha nada de luxuoso, mas dava, pelo menos, a impressão de um mínimo de conforto, com a aparelhagem de som e as cassetes dejazz. Um faxe da última geração estava pousado numa bonita mesa antiga em madeira de cerejeira, e os diplomas de Quincy, em molduras douradas, aguardavam encostados a uma parede que alguém os pendurasse, junto a uma pilha de caixotes de cartão. A poltrona em couro preto era visivelmente confortável e de qualidade. Tratava-se, sem dúvida, da divisão favorita de Quincy sempre que estava em casa e ainda emanava um pouco do seu perfume.

No momento em que se sentou no sofá, o telefone tocou. Segundo as instruções recebidas, deixou que o atendedor de chamadas disparasse.

- Olá, meu - saudou uma voz rouca. - Constou-me que arranjaste uma nova forma de contactar connosco. Fantástico, meu. Sobretudo porque nestas bandas não há nenhuma conversa interessante. Lamento as notícias sobre a boazona da tua filha. O mesmo não direi em relação à tua frígida ex-mulher. Constou-me que alguém quer apanhar-te. O caçador transformou-se na presa. Mas não te preocupes, caro Quincy, apostei em ti, em cem contra um. Não me desiludas e continua. Pelo menos, ajuda a passar o tempo. Ciao, dão.

O interlocutor anónimo desligou. O telefonema durara o tempo suficiente para permitir saber de onde fora feito, mas não serviria para provar grande coisa, salvo a eficácia dos boletins internos das prisões. Além disso, metade dos que ligavam deixava o nome e o número prisional, a fim de zombar do sistema.

Ao sair do escritório, Glenda avistou Quincy na cozinha, com um saco de viagem na mão, fixando o atendedor com uma expressão sombria.

- Estamos a registar todas as mensagens - explicou ela.

- Ele apostou em mim, cem contra um - contentou-se Quincy em replicar com um olhar na sua direcção. - Quando penso em todos os tipos que meti na prisão, acho que merecia melhor do que isso.

- Tenho cópia do anúncio publicado em todos os boletins apressou-se a elucidar Glenda Rodman, tentando dar um ar profissional.

Enquanto ela foi buscar o anúncio ao escritório, Quincy pousara o saco de viagem e abrira a porta do frigorífico vazio. Dir-se-ia que espera que alguém tivesse vindo enchê-lo durante a noite. Glenda comreendeu-o perfeitamente. O seu próprio frigorífico continha apenas iojrurtes de baixas calorias e água e, no entanto, punha-se sempre à procura de algo mais.

Estendeu-lhe o faxe.

O anúncio indicava num pequeno enquadramento: Jornalista das produções DCCprocura informar-se sobre a vida no corredor da morte. Os presos interessados devem contactar

o agente Pierce Quincy para o número mencionado em baixo. Na sua ausência, contactar a sua assistente, Amanda Quincy, na morada indicada.

- Não é muito subtil - comentou Quincy com a costumada frieza. - As produções DCC, o agente, o corredor da morte.

- Os códigos podem ser mais elaborados. Tanto quanto sei, alguns presos comunicam entre eles com a ajuda de códigos mais subtis. Na maior parte das vezes, publicam

anúncios a pretexto de arranjarem correspondentes e brincam com os acrónimos. Em vez do habitual DRB PP, "Detido de Raça Branca Prisão Perpétua", servem-se de truques como OBP M para "Organização Black Power Mensagem", a fim de chamar a atenção dos outros membros da organização, acrescentando informações codificadas nos anúncios.

- O poder e o jugo do jornalismo! É o que acontece quando as pessoas não têm nada melhor para ocupar o tempo.

- Segundo sabemos, este anúncio saiu em quatro boletins diferentes: Jornal das Prisões, Boletim das Prisões Americanas, Amizades Prisionais e Liberdade para Todos. Mais de cinco mil assinantes. O número não é muito elevado atendendo à população prisional, mas os quatro boletins chegam aos principais estabelecimentos prisionais do país. O "passa palavra" terá feito o resto.

- Os porteiros não têm motivo para invejar as nossas prisões em matéria de alcoviteirice - redarguiu Quincy. - Mantenho a posição do outro dia na reunião. As minhas coordenadas foram comunicadas a tantas pessoas diferentes que nunca saberemos quem esteve na origem.

- Mesmo assim descobrimos o original do pequeno anúncio que foi enviado ao Boletim das Prisões Americanas. O laboratório está a examiná-lo e devemos ter mais informações dentro de dias. E o Randy Jackson, dos serviços técnicos, está a tentar investigar como é que o nosso desconhecido pode ter tido acesso ao teu número privado. Também ele deve dar-nos notícias em breve.

- Não vale a pena procurar muito longe. Ele conseguiu o meu número privado através da Mandy. Serviu-se muito simplesmente da minha filha - declarou, pousando o faxe e fitando Glenda de frente pela primeira vez.

O contraste entre a sua calma aparente e a intensidade do olhar apanharam a agente desprevenida. Ainda sob o choque dos últimos acontecimentos, Quincy só conseguia controlar-se mediante um desdobramento de personalidade. O seu olhar emanava uma tal violência que Glenda sentiu um calafrio na espinha. Pensou imediatamente em Ted Bundy, surpreendida ante a semelhança do olhar do colega com o do ramoso assassino. Fala-se com frequência das semelhanças entre o caçador e a presa. Por uma vez, o cliché funcionava.

- A morte da minha filha não foi um acidente - acrescentou ele.

- A Rainie Conner descobriu a prova de que alguém tinha avariado o cinto de segurança dela.

- Oh, não! - exclamou Glenda, horrorizada.

- Começou por ganhar a sua confiança, antes de fazer com que se enfaixasse num poste telefónico. Vá-se lá saber tudo o que conseguiu descobrir a meu respeito, antes do acidente. Os meus hábitos, os meus gostos, as minhas manias. É possível que a Mandy lhe tenha falado igualmente dos meus amigos. Foi assim que conseguiu a minha morada e o meu número de telefone privado. Não deves permanecer aqui sozinha, Glenda. É perigoso.

- Não te preocupes. Não estou sozinha. Tenho o meu adjunto AlbertMontgomery.

Quincy lançou-lhe um olhar interrogativo, erguendo as sobrancelhas. Desde a sua chegada,Montgomery não tinha dado sinal de vida.

- Tinha outras coisas para fazer - apressou-se Glenda a replicar para defender o colega.

- Porque o encarregaram deste caso? Não tem o perfil adequado.

- Foi ele que insistiu. Na tua qualidade de agente especial do FBI, o que te acontece diz-nos respeito a todos.

Quincy fixou-a novamente. Ela começava a compreender de onde lhe vinha a reputação de frieza. Tinha uma maneira muito própria de perscrutar os outros, como se lhes chegasse ao íntimo. Foi ela que acabou por baixar os olhos.

- OMontgomery... OMontgomery foi o primeiro a ser encarregado de investigar o caso Sanchez - balbuciou ela.

Não precisava de dizer mais. Toda a gente no serviço sabia que ele tinha sabotado o caso Sanchez há quinze anos. Demasiado seguro de si, afirmara que o culpado actuava sozinho e que se tratava de um psicopata saído de um meio social privilegiado, tal como Ted Bundy. Contudo, a polícia já tinha provas de que várias pessoas estavam presentes na altura dos assassínios. Além disso, encontrara-se poeira de cimento no local dos vários crimes e a polícia de Los Angeles pretendia investigar no meio operário, ao passo queMontgomery insistia para que o inquérito se fizesse entre a burguesia. A polícia local acabara por levar a melhor e o FBI afastaraMontgomery, antes de confiar o caso a Quincy. O resto fazia doravante parte da lenda de Quantico.

- Isso explica a atitude e a postura doMontgomery frente ao Everett no outro dia - comentou Quincy.

- É verdade que já não tem muito a perder em termos de carreira - reconheceu Glenda, com um leve sorriso.

- Ele está errado e não é a primeira vez. Não queria que fosses tu a pagar pelos próximos erros.

- Não te preocupes por minha causa. Já tinhas um sistema de alarme de primeira categoria, mas ainda o melhorámos. Anda. vou mostrar-te.

Arrastou-o até ao jardim e fechou a porta da frente atrás deles, antes de lhe mostrar orgulhosamente uma caixa nova instalada ao lado da campainha. Era sem dúvida maior do que a anterior: juntamente com um teclado, dispunha de um scâner e de um ecrã a cores.

- Além do código tradicional, o scâner lê as impressões digitais explicou Glenda. - Em vez de destrancar a porta e desactivar o alarme da entrada, o sistema protege igualmente a porta de entrada. É preciso marcar duas vezes o código e colocar em seguida o indicador no scâner para desbloquear o alarme. O sistema apenas reconhece obviamente as impressões digitais colocadas na memória. A partir do momento em que se fecha à porta, o sistema de protecção exterior reactiva-se e a casa encontra-se sob protecção constante. Portanto, um simples código já não basta para entrar na tua casa.

- Suponho que devem ter colocado na memória as impressões digitais de várias pessoas.

- Sim. As tuas, claro, as minhas e as doMontgomery. Podem acrescentar-se mais, se necessário. E não são precisas chaves; portanto, não há o risco de as perder ou de serem roubadas.

- E se alguém se apoderar das minhas impressões digitais? - quis saber Quincy. - O assassino da Bethie já se serve do meu nome. Nada o impede de ter obtido as minhas impressões digitais a partir, por exemplo, de uma carta enviada à Mandy.

- Nada feito. O scâner não só analisa o desenho da impressão, mas calcula igualmente a temperatura do corpo e as características electromagnéticas da pessoa em causa. Uma falsa impressão digital não permitiria que o alarme se desactivasse. Nem mesmo um dedo cortado acrescentou com um sorriso forçado.

Quincy assentiu com a cabeça, visivelmente impressionado.

- Mas deve haver uma maneira de provocar um curto-circuito no scâner em caso de necessidade - replicou. - Suponhamos que fico com a mão engessada, ou corto um dedo. O que acontece?

- O dono da empresa é ainda mais perverso do que tu, Quincy. O sistema memoriza as impressões digitais dos dez dedos. Desde que tenha um único dedo disponível, o proprietário pode entrar em casa.

- Pergunto a mim mesmo porque é que não mandei instalar um sistema desses há mais tempo - murmurou Quincy.

- Só agora é que ele está à disposição de casas particulares. Glenda, satisfeita com a sua demonstração, marcou o código duas vezes seguidas e colocou o indicador no scâner para abrir a porta.

- com este sistema primorosamente eficaz, câmaras instaladas em todas as divisões e o teu telefone sob escuta - comentou ao transpor a ombreira -, não imagino o que possa acontecer-me. E mesmo que, por milagre, o desconhecido conseguisse entrar na casa, ainda me resta isto - concluiu com uma leve palmada na arma de serviço que usava no coldre.

- De acordo. Mas não te esqueças de que a minha mulher também estava convencida da eficácia do seu sistema de alarme, tinha frequentado cursos de autodefesa e não era nenhuma idiota.

- É verdade. Contudo, ignorava que se encontrava em perigo, e eu não. Não me subestimes, Quincy.

- Não te subestimarei, se também não subestimares o nosso homem - retorquiu Quincy com uma espécie de sorriso que lhe acentuou a gravidade do rosto.

Glenda compreendeu pela primeira vez até que ponto ele estava preocupado. Preocupado e ferido no mais fundo de si, sem dúvida mais do que confessava a si próprio.

- Onde tencionas ir? - perguntou num tom suave.

- Para longe daqui. A minha filha está a fazer o saco neste momento e a Rainie a ocupar-se dos últimos pormenores. Partimos amanhã de manhã cedo. Ele sabe demasiado sobre nós. Quem somos, onde e como vivemos. Num outro sítio, espero poder desestabilizá-lo.

- Tens razão.

- Não sou perito. Pergunta à Bethie ou à Mandy o que acham.

- Quincy...

- bom. Preciso de ir andando.

- O que devo dizer à polícia de Filadélfia?

- Que estou a cuidar da minha filha e os contactarei.

- Sabes perfeitamente que não é assim tão simples. Sobretudo com o que vão descobrir na casa da tua ex-mulher.

Ele não respondeu.

- É um golpe encenado, Quincy. Sei-o tão bem como tu, mas não é esse o caso dos dois inspectores da Brigada de Homicídios. Corres o risco de encararem a tua fuga como mais uma prova de que és culpado. Afinal, quem melhor do que um agente do FBI para montar um cenário destes?

- Sei disso.

- Para não falar desta mensagem, deixada propositadamente no ventre da vítima. Um acto terrível que parece um ajuste de contas.

- Tiveste alguma notícia do laboratório a esse respeito? - inquiriu ele bruscamente.

- Não - respondeu Glenda, abanando a cabeça. - É cedo de mais. Mas não bastará para os convencer de que és um alvo. Para eles, és o ex-marido da vítima e não irão

procurar mais longe.

- Não matei a Elizabeth!

- Claro que não!

Falo-te sinceramente, Glenda. Sei que és uma boa agente e que o que acredites que não assassinei a minha ex-mulher.

Glenda acusou o golpe. Não fizera carreira no FBI sem um mínimo fe discernimento e teria de ser surda para deixar escapar as entrelinhas.

- Queres dizer que há algo mais? - inquiriu.

- Este tipo... - balbuciou Quincy num fio de voz. - Este tipo é mesmo muito forte.

- Pode ser, mas já conhecemos piores. Acabaremos por encontrá-lo.

- Achas mesmo? Andei à procura em todos os meus dossiês e não encontrei nada de conclusivo. Por favor, Glenda, Não fiques aqui sozinha.

- Não te preocupes, Quincy.

- Não estás a perceber, Glenda. vou levar a minha filha para longe daqui. Se ele não puder chegar-lhe, sabe-se lá quem atacará.

 

Universidade de Nova Iorque, Nova Iorque

- Não consigo acreditar que ela esteja morta.

No gabinete do professor Andrews, os últimos raios de sol haviam dado lugar ao cinzento do crepúsculo. Para Kimberly Quincy, prostrada numa cadeira, essa quinta-feira

era o primeiro dia. O primeiro dia sem a mãe. De dedos fincados nos braços da cadeira, dir-se-ia que queria parar o tempo. No entanto, sabia que ao primeiro dia se seguiria o segundo, depois o terceiro e que se apagariam lentamente, numa sequência de semanas, meses, anos... Grossas lágrimas rolavam-lhe pelas faces.

Contudo, fora ali com a firme intenção de não perder o controlo. Precisava da bênção do professor antes de sair de Nova Iorque e queria pô-lo a par dos últimos acontecimentos. Tinha intenção de lhe anunciar a sua firme decisão de renunciar àquele lugar de estagiária que, contudo, tanto se esforçara por obter. Prometera a si própria mostrar-se digna e calma. Uma estudante em vias de fazer o mestrado não se comporta como uma adolescente. Após ter enterrado a irmã mais velha, acabava de perder a mãe. O encadeamento das circunstâncias marcara definitivamente a sua entrada na idade adulta.

Chegara, por conseguinte, com um ar seguro ao gabinete do professor. Mas, confrontada com a desordem daquele venerável aposento, com as suas plantas verdes cobertas de poeira e as pilhas de livros antigos, toda a sua segurança desaparecera. Sentiu um nó na garganta, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas e foi incapaz de fingir indiferença frente àquele homem que respeitava quase tanto como o pai. Antes mesmo que se desse conta, toda a tristeza acumulada nas últimas horas rompera os diques.

O Dr. Andrews tinha-a conduzido suavemente até junto de uma cadeira, antes de lhe levar um copo de água. Depois, sentara-se do outro lado da secretária, as mãos cruzadas, uma expressão grave à espera que ela se recompusesse, poupando-lhe as frases feitas de compaixão.

Há dez anos que o Dr. Marcus Andrews ensinava na Universidade de Nova Iorque e ganhara fama de severo junto dos estudantes. Era célebre pela sua capacidade de fazer com que os alunos mais brilhantes rompessem em lágrimas, só com o seu intenso olhar azul. Na casa dos sessenta, tinha o cabelo fino e grisalho, a testa permanentemente franzida e uma inclinação pelo tweed. De estatura mediana e uma forma física mantida por anos de ioga, Marcus Andrews era um monumento de dignidade quando subia à cátedra, incitando os estudantes a demonstrarem rnais curiosidade e imaginação e, sobretudo, mais inteligência.

A acreditar nos boatos, começara a carreira como psiquiatra da tristemente célebre Prisão de San Quentin, na Califórnia. Apaixonado pelo seu trabalho, defendera uma tese sobre criminologia e ganhara fama graças aos seus estudos vanguardistas sobre o mundo das penitenciárias, declarando que a própria natureza do universo prisional levava irremediavelmente os presos postos em liberdade a reincidirem, em vez de se reabilitarem.

Marcus Andrews era rude, exigente e tirânico com os seus alunos, mas também um brilhante investigador, e Kimberly votava-lhe um enorme respeito.

- Talvez devesse começar pelo princípio - sugeriu ele à jovem.

- Não. Não me sinto capaz. É muito doloroso e não conseguiria aguentar. Curiosamente, nunca fui capaz de entender como é que o meu pai fazia para se mostrar sempre tão calmo quando regressava a casa depois do trabalho. Os polícias que aparecem nas séries televisivas nunca são assim. Bebem para esquecer ou fumam como chaminés e praguejam como carroceiros. Lembro-me de que eu e a minha irmã achávamos normal. Mas sempre que o nosso pai chegava, não sei explicar-lhe... era como um lago. Por mais que o observássemos, nada perturbava a superfície das águas. Hoje, acho que entendo melhor. Era um pouco como se voltasse da guerra. Para se conseguir viver normalmente, não há lugar para a emoção.

- Como acha que o seu pai se sentiria, se pudesse ouvi-la neste momento? - perguntou o Dr. Andrews.

- Ficaria magoado.

- Na sua opinião, o que pretende esse homem que anda a atacar o seu pai?

- Fazer-lhe mal - respondeu ela num fio de voz, percebendo onde ele queria chegar.

- Se isto é na verdade uma guerra, Miss Quincy - retomou Andrews num tom doutoral -, de que lado está actualmente a vitória?

- A minha mãe detestava o trabalho dele.

- A polícia é uma das profissões com a taxa de divórcio mais elevada.

- Quando falei no facto de a minha mãe detestar o trabalho dele, referia-me ao horror que ela tinha à violência. À forma como ele parecia pertencer mais à profissão do que à família. Ela fizera tudo para nos proporcionar a maior harmonia possível. Dera-lhe duas filhas maravilhosas e criara um lar fantástico. Mesmo assim, ele sentia-se aparentemente melhor no meio da sordidez.

- Tem de entender que, para o seu pai, se tratava de uma missão

- É exactamente o que tento dizer-lhe. A minha mãe está morta, e eu estou triste e furiosa, mas também estou... motivada. É a primeira vez desde há meses que me sinto lúcida. Tenho vivido numa espécie de ruga constante, ao passo que agora... Quero encontrar esse filho-da-mãe Quero ler os relatórios da polícia e da autópsia. Quero descobrir os passos desse monstro, dissecar-lhe a personalidade doentia e desmascará-lo. Penso mais nele do que na minha pobre mãe e isso preocupa-me. O que há de errado com os Quincy, doutor Andrews?

A pergunta acabara por arrancar um sorriso ao austero professor.

- Ah, Miss Quincy! Já alguma vez se interrogou porque é que os criminologistas nunca se dedicam a um estudo sobre os criminologistas?

- Quer dizer que não somos normais?

- Quem pode definir a normalidade? Sei apenas que temos uma maneira muito própria de intelectualizar as coisas. O nosso desejo de entender os mecanismos humanos supera a raiva suscitada pelos actos daqueles que estudamos.

- Mas a raiva é um sentimento nobre - replicou a jovem com uma ponta de amargura.

- Sem dúvida, mas a raiva cega não leva a lado nenhum. Encare as coisas assim: os polícias têm uma visão positiva do mundo. Ficam, obviamente, revoltados com o que vêem e fazem prisões. É a sua maneira de controlarem a situação, mas actuam sempre depois do facto consumado. Não se esqueça de que os criminologistas, os sociólogos e os especialistas em comportamento são intelectuais. Somos sobretudo curiosos. Efectuamos pesquisas, tentamos elaborar o perfil psicológico dos criminosos, esperando ajudar a polícia e fazer progredir a justiça.

- Quando era mais jovem - redarguiu Kimberly -, via o meu pai como uma espécie de general que combatia num país longínquo. Tinha muito orgulho nele, mesmo quando me sentia abandonada, mesmo quando ficava furiosa por ele faltar a um jogo de futebol ou a um aniversário.

- Acredito sinceramente no orgulho que diz sentir pelo seu pai, Miss Quincy - declarou o Dr. Andrews num tom suave e inclinando-se para a frente. - Mas tal não me impede de notar que ultimamente se tem distanciado dele. Qual é o motivo?

- Não percebo o que quer dizer - reagiu Kimberly, contraindo-se.

- Refiro-me aos ataques de pânico. Falou-me neles, mas tenho a impressão de que os omitiu ao seu pai.

Kimberly voltou a baixar a cabeça, cruzando e descruzando os dedos com nervosismo.

- Eu, eu... não sei. Acho que não quis preocupá-lo. Não, não é verdade. De facto... foi para evitar que me julgasse, que me achasse uma pessoa assustadiça. Como era a Mandy.

Andrews esboçou um leve sorriso. Encostou-se para trás e Kimberly notou pela primeira vez quanto parecia emocionado. As rugas de expressão tinham-se acentuado e o olhar era menos austero. Por um momento, quase lhe pareceu humano.

Quero confessar-lhe algo, Miss Quincy. Receio tê-la induzido

em erro.

- Como? - redarguiu, endireitando-se, com o coração aos pulos. Oh, não!, pensou. Não me desiluda, professor.

Não estava preparada para tolerar a mínima falha em Andrews, um dos professores mais respeitados e temidos da Universidade de Nova Iorque. Talvez fosse infantil

da sua parte, mas nos últimos tempos encaixara demasiados golpes para poder ver um dos seus ídolos deitado por terra.

- Enganei-me quando atribuí os seus ataques de pânico meramente ao stresse - prosseguiu Andrews.

- Fazia todo o sentido. Sobretudo depois da morte da minha irmã.

- Sim, mas hoje dispomos de alguns dados suplementares. Recorde-se do que lhe disse o seu pai. Alguém decidiu atacar a sua família. Esse alguém fá-lo há mais de dois anos.

- E daí?- - redarguiu Kimberly, perplexa, antes de compreender bruscamente.

Lívida, tomou súbita consciência das implicações das palavras que acabava de ouvir. Oh, não! Isso não...

- Quer dizer... Quando estava convencida de que me espiavam, não era apenas uma impressão, é isso? Acha... acha que era ele?

- Não afirmo nada, mas é possível - replicou Andrews num tom pausado, antes de acrescentar com uma doçura invulgar: - Lamento muito, Miss Quincy. Tirei uma conclusão apressada. Eu que passo o tempo a recomendar prudência aos meus alunos, não devia ter sido tão imperativo. Talvez deva dar mais ouvidos as minhas próprias prelecções...

- Ele anda a perseguir-me...

Kimberly não conseguia tirar essa ideia da cabeça, mas a sua própria reacção espantou-a. Por um lado, sentia-se violada na sua intimidade ante a ideia de servir de presa àquele predador anónimo que se aplicava a destruir a sua existência. Por outro, quase ficara aliviada, porque toda a angústia que há semanas a oprimia não era fruto da sua imaginação. Sempre que um calafrio lhe percorria a nuca ou ficava com pele de galinha, havia um motivo. Ela, a mais forte das duas Quincy, não estava à beira da loucura. Graças a Deus...

- Enquadra-se nos métodos do indivíduo que persegue a sua família - prosseguiu o Dr. Andrews.

- Quando penso que esse safado anda a perseguir-me há tanto tempo!

A surpresa de Kimberly cedera lugar à cólera. Uma raiva salutar que lhe coloriu um pouco as faces pálidas e lhe devolveu o sentido de luta. Nem pensar em ir-se abaixo!

Andrews, que a observava com um ar aprovador, encorajou-a de imediato.

- Lembre-se do que sempre lhe disse. Nunca perca a curiosidade que a incita. Ponha-se na peugada do predador, interrogue-se sobre como funciona. O que o move?

- Gosta de jogar ao gato e ao rato - respondeu ela sem hesitar

- Um jogo de nervos.

- Isso já sabíamos. Que mais?

- Não tem tenção de nos matar já. São os preliminares que lhe dão prazer, muito mais do que o crime em si. Trata-se de algo pessoal.

- É, então, provável que conheça o assassino.

- Talvez não. Talvez ainda não o tenha visto... Kimberly reflectia em voz alta.

- Esta impressão de que me observam... - prosseguiu. - Se o conhecesse, não precisaria de vigiar-me à distância. Já faria parte da minha vida.

- Ele contenta-se em reconhecer o terreno - observou Andrews.

- Desde quando exactamente tem a impressão de que a seguem?

- Há uns meses. Ele leva o seu tempo, como se aguardasse o melhor momento.

- Um namorado novo - sugeriu o professor.

- Não. Obvio de mais. Além disso, já fez esse número com a Mandy e depois com a minha mãe. com ela, procedeu de uma forma mais hábil, fazendo-se provavelmente passar por um receptor de um órgão da Mandy.

- Brilhante! - comentou Andrews.

- Sou supostamente o cérebro da família - murmurou Kimberly num tom surdo, continuando a reflectir em voz alta. - A mamã e a Mandy puseram-no certamente a par. Kimberly, a boa aluna, a que quer entrar para a polícia. A que começou a praticar artes marciais aos oito anos, que gosta de futebol e de armas de fogo...

Hesitou, pois uma silhueta tomara subitamente forma no seu cérebro. Um professor de sorriso encantador recrutado há pouco pelo seu clube de tiro. Doug James...

- Ocorreu-lhe alguém, Miss Quincy?

- Não quero tirar conclusões apressadas.

- Mais vale prevenir do que remediar, se quer a minha opinião.

- É a primeira vez que lhe ouço um cliché desde que nos conhecemos - replicou Kimberly, com um pequeno sorriso cúmplice. - Mas vou tomar nota.

- Se bem entendo, veio despedir-se, não é? - proferiu Andrews, correspondendo ao sorriso. - Uma retirada estratégica é uma opção perfeitamente válida.

- Ignoro quanto tempo vou estar ausente.

- Não se preocupe.

- Não posso dizer-lhe para onde vou.

- Nunca me ocorreria perguntar.

- Sabe.. Entendo perfeitamente que arranje outra estagiária.

- Ora! É tarde de mais para pensar nisso. E só me fará bem ser eu próprio a ler os meus apontamentos, em vez de preguiçar. À força de Descansar nos meus estudantes, ainda acabo por dizer tolices.

- Não sei como agradecer-lhe, professor. - O prazer foi todo meu, Miss Quincy.

Sem saber o que mais dizer, Kimberly levantou-se. Estendeu a mão, obrigando Andrews a levantar-se também para lha apertar. Kimberly sentiu-se tocada pelo ar solene dele.

- Um último conselho, se me permitir - acrescentou ele.

- Por favor.

- Sei até que ponto é uma apaixonada pelas investigações criminais, Miss Quincy. Este homem tem visivelmente o dom de detectar as fraquezas dos outros. Ele sabe sem dúvida como respeita o que está ligado à polícia. Sobretudo as pessoas fardadas ou com distintivo.

- Mensagem registada. Estarei atenta, prometo.

Kimberly teve uma última hesitação antes de sair. Não lhe apetecia fazer uma figura ridícula diante do professor, mas por outro lado... Primeiro dia, pensou. A minha, irmã morreu, a minha mãe morreu e estou a aprender a. pôr tudo em causa. Perscrutou a noite através da janela. Lá fora, o tubo de escape de um carro rompeu o silêncio, como um disparo em plena rua,

- Doutor Andrews - arriscou. - Se me acontecer alguma coisa, importa-se de transmitir uma mensagem ao meu pai? A última pessoa que irei ver esta noite é um novo monitor do meu clube de tiro. Chama-se Doug James.

 

Gabinete de William Zane, Virgínia .

- Preciso de um nome.

- Tal como a nossa designação indica, o anonimato é o alicerce dos Alcoólicos Anónimos e não costumamos infringir a regra.

- Como quiser. Que se lixe o nome. De qualquer maneira, será sempre um pseudónimo. Preciso sobretudo de uma descrição.

- Vai afirmar que estou a repetir-me, mas o anonimato é o alicerce dos Alcoólicos Anónimos e não costumamos infringir a regra.

- Não está a perceber, Mister Zane. Trata-se da investigação de um homicídio e pode optar: ou me dá imediatamente as informações de que preciso, ou será forçado a fazê-lo à polícia como parte de um inquérito oficial, com a devida repercussão na imprensa. Só estou a pedir-lhe que me descreva um suspeito numa conversa entre nós. A menos que deseje ver publicado que um psicopata se infiltrou nas vossas reuniões para escolher as suas vítimas.

William Zane, presidente do grupo de Alcoólicos Anónimos a que Mandy Quincy pertencera, hesitou longamente. Era um gigante de um metro e noventa e cinco e cento e dez quilos, vestido com um fato de três peças e que cheirava a banqueiro à distância. Estava visivelmente pouco habituado a que se discutissem as suas ordens. Rainie aproveitou a pausa para reflectir que ele devia ir pelo menos no terceiro divórcio e tivera problemas com cocaína no passado. Simples intuição de polícia. Teoricamente estava limpo e desempenhava na perfeição o papel de presidente do seu grupo de AA. Não poderia esquecer-se de lhe mandar um cartão de boas-festas no Natal a felicitá-lo, mas de momento só estava interessada no nome e na descrição do "amiguinho" de Mandy.

Eram seis da tarde de quinta-feira e faltavam doze horas para que todos se refugiassem em Portland, mas agora Rainie sentia-se cada vez mais preocupada com Kimberly

e não fazia tenção de andar a fazer de detective na Virgínia.

William Zane suspirou. Só aceitara receber Rainie porque ela lhe dissera que o acidente de Amanda Quincy era, na verdade, uma tentativa de homicídio, mas já lamentava a decisão. Levantou-se da secretária e foi fechar cuidadosamente a porta do gabinete.

- Ignoro se tem noção do que me pede - retomou. - O funcionamento dos Alcoólicos Anónimos assenta num princípio simples: fechar os olhos ao passado dos que se nos juntam, na condição de deixarem de beber. Não temos de prestar contas a ninguém. Nem sequer à polícia ou à justiça. Somos uma associação de utilidade pública e, nessa qualidade, servimos de colete salva-vidas a essas pessoas.

- Lá onde se encontra, a Amanda já não precisa de colete salva-vidas.

- Mas não é da Amanda que se trata, pois pede-me que forneça informações confidenciais relativas a um dos membros actuais.

- vou pô-lo à vontade, Mister Zane - prosseguiu Rainie por sua vez, após soltar um suspiro. - Eu própria me filiei nos Alcoólicos Anónimos e garanto-lhe que nunca teria continuado a assistir às reuniões, caso o anonimato não fosse respeitado. E, quando era polícia, nunca teria continuado a ir às reuniões, se elas não fossem anónimas. Portanto, entendo perfeitamente a sua posição. Por outro lado, este indivíduo assassinou a Amanda Quincy. Arranjou maneira de ela se enfeixar no pára-brisas e, em seguida, fez o que fez à mãe. Quer que lhe mostre fotografias?

- Não, não, não - apressou-se a responder Zane, empalidecendo e agitando as enormes mãos brancas em sinal de recusa.

Talvez não tivesse sido casado três vezes, mas Rainie imaginava-o facilmente na maternidade, a andar de um lado para o outro com um grande charuto entre dentes para não assistir ao parto. Interrogou-se sobre se ele alguma vez teria mudado a fralda aos filhos.

- Ando à procura de um assassino, Mister Zane - insistiu. - Se quer ser um colete salva-vidas, então seja-o para as mulheres que correm o risco de morrer em circunstâncias abomináveis por causa deste homem. Pense nas futuras vítimas. Neste momento, é a minha única testemunha.

- Não sei se faço bem - concordou finalmente Zane. - Contudo, tem de prometer guardar segredo.

- Prometido. Agora, sente-se e conte-me tudo o que sabe. Zane voltou a sentar-se atrás da secretária e Rainie aproveitou para pegar no bloco de apontamentos.

- Recorda-se da Amanda Quincy? - começou.

- Sim. Juntou-se a nós há cerca de um ano e meio.

- Suponho que, como todos os membros, tinha um padrinho.

- Sim, mas preferia não lhe indicar o nome, a menos que seja absolutamente necessário.

- Acho que não me fiz entender. Quer que lhe mostre o estado em que fica um crânio depois de se esmagar contra um pára-brisas?

- Não, não! - gritou Zane, apavorado. - A Amanda Quincy foi apadrinhada pelo Larry Tanz. Um indivíduo muito decente.

- Como é que a Amanda conheceu esse tal Larry Tanz?

- É o dono do restaurante onde ela trabalhava. O Larry juntou-se aos Alcoólicos Anónimos há mais de dez anos e não foi a primeira vez que serviu de padrinho a um funcionário. - Zane fitou-a de esguelha antes de acrescentar: - É incrível a quantidade de empregados de bar que são alcoólicos. Para não falar dos cozinheiros...

Rainie revirou os olhos e depois rabiscou uma nota. De qualquer maneira, se Larry Tanz era o patrão do restaurante onde Mandy trabalhava, tal significava que era também o antigo patrão de Mary Olsen. Interessante.

- Sabe se a Mandy e esse tal Mister Tanz tinham relações extraprofissionais? Ou seja, além do facto de ser seu padrinho nos Alcoólicos Anónimos?

- No nosso grupo, sugerimos aos novos membros que esperem, pelo menos, um ano antes de iniciarem a mínima relação sentimental

- respondeu Zane. - Sabe tão bem como eu que o álcool é uma droga dura de que não nos libertamos facilmente. Para já não falar noutros tipos de stresse. Vi alguns dos membros mais motivados voltarem a entregar-se à bebida por causa de simples namoros e é por isso que recomendamos, pelo menos, um ano sem álcool antes de retomar uma vida afectiva normal.

- Que romântico. Mas então a Mandy e o Larry andavam ou não a foder?

- Não me parece - replicou Zane com uma expressão chocada.

- Porque não?

- Por um lado, o Larry é um bom tipo, como já lhe disse. Por outro, sei até que ponto ficou triste e desiludido com o acidente da Mandy, embora não destroçado. Foi uma morte trágica e sentiu-se talvez um pouco responsável, mas não o afectou pessoalmente.

- Estou a ver que se trata na verdade de um bom tipo - ironizou Rainie. - E quem mais? Suponho que ela devia dar-se com outros membros do grupo?

- Era, de facto, muito sociável.

- Outros membros que tivessem ingressado nos Alcoólicos Anónimos ao mesmo tempo que ela e ficado verdadeiros amigos, por exemplo.

Zane mostrou uma hesitação que não escapou do olhar atento de Rainie. Para ganhar tempo, pôs-se a brincar com um pisa-papéis colorido, sem dúvida uma recordação trazida de quaisquer férias exóticas. Resolvida a não o deixar escapar-se, Rainie olhou-o fixamente.

- bom... Havia um tipo...

- Nome?

- Ben. Ben Zikka.

- Descreva-mo.

- Não sei bem. Um homem mais velho que ela. Provavelmente na casa dos cinquenta. Não muito alto, menos de um metro e oitenta. Cabelo castanho, meio calvo, com barriga. Sempre mal vestido - acrescentou Zane, passando mecanicamente a mão pelo seu fato feito à medida. - Parece-me tê-lo ouvido dizer que era reformado da polícia ou algo do género, o que explicaria o ar de quem comeu muitos donuts. Rainie absteve-se de comentar a descrição de Zane, que não era de forma alguma o que esperava. O perfil do indivíduo não correspondia em nada à ideia que fizera do assassino.

- Um homem mais velho e pouco interessante? E afirma que saía com a Mandy?

- Tenho quase a certeza. Começaram a sair juntos das reuniões. Um dia, chegaram no mesmo carro.

- Suponho que estamos a falar da mesma Mandy? Amanda Quincy, uma bonita rapariga de vinte e três anos, loura, de olhos azuis, que fazia palpitar os corações masculinos?

- Era realmente muito bonita - anuiu Zane. Rainie mal conseguia acreditar no que ouvia.

- E acha que ela andava a sair com esse tal Zikka?

- Ignore o que faziam juntos, apenas sei que se davam. Pediu-me que lhe falasse nos membros com quem estabeleceu amizade. Além disso, o Zikka não ficou muito tempo connosco. A Mandy ainda participou em várias reuniões, mas cada vez mais espaçadas. O Larry Tanz tencionava telefonar-lhe por causa disso, quando soubemos do acidente.

- Se bem entendi, ela aderiu ao grupo e foi depois de ter conhecido este tipo que começou a distanciar-se.

- Sim - anuiu Zane com um encolher de ombros. - O caso dela não é único - prosseguiu. - As pessoas já têm dificuldade em admitir que são alcoólicas, mas mais difícil ainda é deixar de beber. Na maioria das vezes, têm várias recaídas, antes de atingir a sobriedade.

- A Mandy tinha outras amizades no grupo? Digamos, com mais de um metro e oitenta, elegante, bem vestido, na casa dos quarenta e muitos?

Rainie indicava palavra a palavra a descrição do assassino feita pela vizinha de Bethie Quincy. Zane abanou a cabeça.

- Tem a certeza? - insistiu ela.

- Vejo que deixou de frequentar os grupos dos Alcoólicos Anónimos, Miss Conner. Entre nós, são raras as pessoas elegantes e bem vestidas, sobretudo após uma vida de excessos. Talvez seja o caso de algumas estrelas de Hollywood, mas, quando se passa metade da vida a beber ou a drogar-se, pode crer que se nota. Até mesmo em alguém como a Amanda Quincy, já começavam a ver-se as marcas.

Rainie franziu o sobrolho. Agora de posse de um nome e de uma descrição, ainda se sentia mais confusa do que no início. Fitou Zane bem de frente e ele aguentou o olhar. Céus! Numa época em que metade da humanidade passa o tempo a mentir, ali estava um tipo que dizia a verdade.

Consultou o relógio de relance. O seu dia estava longe de ter acabado. Levantou-se, apertou a mão a Zane e esforçou-se por ignorar o visível alívio do homem ao vê-la sair.

Na ombreira da porta, virou-se e fez-lhe uma última pergunta-

- Suponho que nas vossas reuniões falam de coisas bastante íntimas?

- Claro. Porquê?

- De que falava a Mandy?

Ao vê-lo hesitar, decidiu atear o fogo.

- Tem a certeza de que não quer ver as fotos do acidente, Mister Zane? - atirou. - Nem as do corpo mutilado de Mistress Quincy?

- A Mandy era muito insegura. Terrivelmente... Insistia sempre em que o pai era um ás na carreira, como a mãe era bonita e a sua irmazinha muito inteligente. Quanto a ela... como dizer-lhe? Achava-se uma loura descartável.

- Uma loura descartável?

- A Mandy vivia obcecada com a violência, Miss Conner. Não falhava um único filme de terror que se estreava nas salas de cinema e devorava livros sobre as grandes investigações criminais. Contava-nos que, quando era pequena, remexia nas coisas do pai para ler os dossiês e os relatórios. Ficava horrorizada, mas nunca desistia. Não me parece que o fizesse para se endurecer, e sim para se punir. Na maioria das vezes, quando se vê um filme de terror ou se lê um romance policial, identificamo-nos com o polícia ou o herói. Contudo, a Mandy identificava-se sempre com a vítima loura, de olhos azuis. Foi por esse motivo que usei a expressão de "loura descartável". Do seu ponto de vista, fazia parte dessas belas raparigas que servem de presa aos psicopatas.

Rainie ainda se sentia perturbada com a visita a Zane, quando estacionou diante do prédio baixo onde se situava o escritório de Phil de Beers. O céu estava encoberto e havia electricidade no ar. Era quase lua cheia, mas a noite apresentava-se densa e sufocante. Até os grilos se tinham calado.

Saiu do carro, de ombros curvados, pronta a disparar primeiro e a perguntar depois. Já eram nove da noite. Kimberly encontrava-se provavelmente na relativa segurança do seu apartamento. Quanto a Quincy, depois de ter resolvido os seus assuntos e falado com o chefe em Quantico, devia ir a caminho de Nova Iorque. Rainie tinha ainda duas entrevistas antes de se lhes juntar.

Em vez de se dirigir de imediato ao escritório de De Beers, parou no meio do parque de estacionamento e ergueu os olhos, tentando inutilmente distinguir as estrelas através da bruma. Chegava-lhe vagamente o ruído dos carros na auto-estrada. Quatro candeeiros de rua iluminavam frouxamente o asfalto preto. Devido à humidade, entrou-lhe pelas narinas um forte odor a madressilvas e amoras silvestres.

Boa noite, minha senhora.

Surpreendida, Rainie rodou sobre os calcanhares, pronta a servir-se Já sua Glock.

phil de Beers, em pé, diante da entrada do prédio, observava-a em silêncio. Ela reconheceu-o logo por ter visto a fotografia dele no site da Internet.

- Estaríamos melhor lá dentro - propôs Phil num tom simpático. Rainie sentiu um calafrio, mas assentiu com a cabeça.

- Fiz café - disse ele, momentos depois, indicando-lhe o escritório. - Não sei porquê, mas a tempestade produz-me sempre o mesmo efeito. Apesar do calor e da humidade, apetece-me sempre beber uma coisa quente. Ou então uísque. Dado tratar-se de um encontro profissional, pensei que o café seria mais adequado.

- Bolas! - replicou Rainie, o que provocou um largo sorriso no rosto do detective negro, baixo e impecavelmente vestido.

- Apanhou-me - brincou ele. - Tenho uísque também...

- Lamento desapontá-lo, mas sou uma alcoólica recuperada e o café será óptimo.

- Bolas! - disse ele por sua vez, conquistando imediatamente a simpatia de Rainie.

Quando chegaram à pequena cozinha que os vários ocupantes do prédio partilhavam, Phil deitou uma dose de uísque no café. Rainie juntou tantas natas e açúcar ao seu que o detective desatou a rir.

- Estou a ver alguns sinais de dependência - comentou ele.

- Sem dúvida, mas, numa sociedade como a nossa, o açúcar e as gorduras são drogas aceites.

- E como essas boas decisões não a fazem engordar... - acrescentou ele galantemente e brindando-a com um olhar de admiração, antes de a conduzir ao escritório.

De Beers sentou-se atrás da sua secretária numa cadeira de couro vermelho-vivo e Rainie teve de contentar-se com uma velha e bamba cadeira de cozinha.

- MÔ"M? - ofereceu o detective, estendendo-lhe uma tacinha de chocolates.

Rainie recusou, enquanto Phil agarrava numa mão-cheia deles.

- Também eu sou dependente do açúcar - confessou com um pequeno sorriso, mastigando os AÍ M, enquanto Rainie olhava em volta.

A divisão era bastante pequena, mas apropriada, com uma parte da parede coberta de prateleiras onde se viam pilhas de revistas, bem como os grossos volumes do Código Civil da Virgínia. Na parede em frente estava pendurada uma série de molduras: um diploma da Academia de Polícia de Virgínia e várias fotografias de De Beers pousando ao lado de homens com fatos domingueiros. Provavelmente os grandes cá do sítio, pensou Rainie, servindo-se apenas do poder de dedução.

- Alguém famoso? - perguntou, apontando uma delas ao acaso

- O director Freeh - respondeu ele.

- Freeh quê?

De Beers, divertido com a sua ignorância, exibiu o seu mais belo sorriso.

- O chefe do FBI.

- Ah! Esse Freeh...

Receosa de continuar a passar por imbecil, mergulhou o nariz no café, lamentando profundamente não poder beber um uísque. De Beers aproveitou para falar de negócios.

- Tenho andado a vigiar a Maiy Olsen, como me pediu. Uma cliente muito pouco interessante, essa jovem Mistress Olsen. Desde ontem que não sai de casa.

- Não é uma grande ajuda essa.

- Não, mas tenho um contacto na companhia dos telefones. Vai passar-me o registo das chamadas para que lhe dê uma vista de olhos. Se a assustou, duvido que passe o tempo diante do televisor.

- Acha que ela vai telefonar?

- Não se lhe pode esconder nada. Graças aos meus conhecimentos, não terei qualquer problema em conseguir os nomes, as moradas e números das pessoas a quem telefonar.

- Se pudesse enviar-me por faxe as informações sobre aquelas a quem liga mais, seria excelente. Conheço um agente da polícia estadual que pode fazer as verificações necessárias.

- Sem problema.

- Entretanto, continue a vigiar a Mary, caso ela decida sair de casa. Ah! Antes que me esqueça. Gostaria que investigasse um tal Larry Tanz. Se as minhas informações estão correctas, trata-se do dono do restaurante onde a Amandy Quincy trabalhava na altura do acidente e onde a Mary Olsen teria trabalhado, antes de casar. Estou curiosa por saber se o Tanz fez recentemente uma visita à Mary.

- com a Internet, é fácil consolar uma mulher assustada à distância.

- Claro - anuiu Rainie. - E já agora, anda armado, suponho? Sempre?

- Oh, oh! - exclamou De Beers, fitando-a com uma expressão interrogativa. - Vejo que não estamos apenas a brincar aos polícias e ladroes.

- Temos a prova de que a filha do meu cliente não morreu em consequência de um acidente de automóvel, como se julgava - explicou Rainie. - Tratou-se, na realidade, de um crime. Quanto à ex-mulher do meu cliente, foi brutalmente assassinada ontem à noite, em Filadélfia. Certamente pelo mesmo indivíduo.

De Beers franziu o sobrolho e levantou-se para ir buscar um jornal dobrado que estava numa prateleira. Pousou-o em cima da secretária de forma a que Rainie lesse o título da primeira página: "Cena de horror na alta sociedade." Um fotógrafo free-lance conseguira fotografar o vestíbulo de entrada da casa de Bediie Quincy, com as sinistras impressões ensanguentadas.

- Brutalmente é o termo - contentou-se em observar De Beers. - Diz aqui que a vítima era a ex-mulher de um agente do FBI. Sem dúvida, o seu cliente.

- Não foi em vão que escolheu ser detective.

De Beers voltou a sentar-se e observou demoradamente a sua visitante.

- Recapitulemos, minha jovem amiga. Se bem entendo, pede-me que vigie uma rapariga, na esperança de que ela nos conduza àquele que anda a divertir-se a atacar familiares dos agentes do FBI...

- Não agentes, mas um agente. Parece que o assassino tem contas pessoais a ajustar.

- Contas pessoais a ajustar? - surpreendeu-se De Beers, deitando , maquinalmente um olhar à primeira página do jornal. - Corrija-me se me enganar, mas esse tipo deve ter uns tomates de aço.

- Antes de lhe bater, calce umas luvas de boxe.

- E eu que julgava tratar-se de um assunto simples... - De Beers suspirou. - Devia ter-me prevenido mais cedo para tomar as minhas precauções.

- Andei muito ocupada - respondeu simplesmente Rainie com um encolher de ombros.

- Está bem - disse De Beers, voltando a suspirar. - É melhor ir buscar a minha bela TEC-DC9 novinha em folha e deixar a minha Special " de calibre trinta e oito para uma emergência. Há algo mais sobre esse merdas? Nome, idade, descrição?

- Conhecem-se-lhe, pelo menos, dois pseudónimos - respondeu Rainie, consultando o bloco de apontamentos. - Tristan Shandling, o nome que usou em Filadélfia com a Elizabeth Quincy, ou ainda Ben Zildta, o nome de que se servia há mais de um ano e meio quando conheceu a Amanda Quincy, aqui em Virgínia. Ainda não tive tempo pára efectuar pesquisas sobre esse tal Ben Zikka, mas o Tristan Shandling í não existe. Soube-se logo que era falso, mal tentámos introduzir o nome no sistema.

- É estranho. Um homem disposto a atacar um agente do FBI devia ser mais cuidadoso.

- A Elizabeth Quincy e a filha nunca iriam desconfiar. Não eram polícias e não tinham qualquer motivo para efectuar a mínima investigação.

- Isso facilita-me as coisas - replicou De Beers, assentindo com a cabeça. - Basta-me pegar na lista telefonemas que me vão dar e verificar os nomes um a um. Mal veja um apelido suspeito, entro em contacto com o seu amigo da polícia estadual.

Rainie teve subitamente uma ideia perante aquela observação.

- Por falar em lista de telefonemas - disse -, o nosso desconhecido utilizou um nome para abrir uma conta...

- Qual?

- O do agente do FBI Pierce Quincy.

De Beers arregalou os olhos, o que provocou um sorriso em Rainie

- Pois é. Ele foi ao ponto de roubar a identidade do meu cliente. Soubemos isso há dois dias. O FBI tem vários investigadores a trabalhar no caso, mas, dado o assassínio em Filadélfia, receio bem que muitas coisas lhes escapem.

- Tomates de cimento - resmungou De Beers entre dentes. Esse tipo tem tomates de cimento armado. Mas voltemos ao nosso assunto. Tem alguma descrição do indivíduo?

- Duas, mas são diferentes.

- Vejamos!

- O tal Ben Zikka, que a Amanda Quincy conheceu, era um alcoólico em recuperação, com um metro e oitenta, barrigudo, calvo, mal vestido. A acreditar nos seus antigos colegas dos Alcoólicos Anónimos, fazia-se passar por polícia. Ainda não tive tempo de verificar. Acabaram de me dar a informação.

- A outra descrição?

- Em Filadélfia, usou o nome de Tristan Shandling. Segundo a nossa única testemunha, era alto, bem constituído e elegante. Um pouco como o meu cliente e mais ou menos da mesma idade. Quarenta e muitos, início dos cinquenta.

- Em resumo, procuramos um indivíduo de raça branca e de meia-idade. O que reduz em muito o campo das nossas investigações brincou De Beers. - Nada mais?

- Não - respondeu Rainie com ar pensativo. - É tudo.

- Sem problema. Mal aviste alguém semelhante a esse retrato robô, disparo a matar. Se todos os meus clientes fossem como você, jovem!

- Eu tento. Ouça. vou sair da cidade amanhã de manhã. Em caso de necessidade, pode ligar-me para o número indicado no meu cartão, mas, como estarei a cinco mil quilómetros, não poderei fazer muita coisa. Se se vir em sarilhos, telefone da minha parte ao Vince Amity da polícia da Virgínia. É ele quem está à frente da investigação do acidente da Amanda Quincy. Um tipo fixe. Mais uma coisa, Phil. Contente-se em observar e tomar notas. Se a Mary Olsen se encontrar com o nosso desconhecido, evite armar em herói. Estive nessa casa em Filadélfia e posso garantir-lhe que a fotografia do jornal é uma brincadeira em comparação ao que ele fez passar à vítima.

- Como tenciona agir?

- O meu cliente tem mais uma filha viva - respondeu Rainie com um pequeno sorriso -, e quero que assim continue.

Dois minutos mais tarde, Rainie arrancou sob o olhar atento de De Beers. Ele insistira em acompanhá-la até ao carro e ficara-lhe agradecida por isso. Mal saíra do parque de estacionamento, a tempestade tinha desabado e trombas-d água abateram-se sobre o carro, ao mesmo tempo que os trovões ribombavam à distância. Rainie assegurou-se de que o cinto de segurança funcionava normalmente.

Passava um pouco das dez da noite. Oito horas mais tarde, estariam a salvo.

 

Clube de tiro de Kimberly, Nova Jérsia

- Quero falar com o Doug James.

- Está a dar uma aula.

- Ele é meu instrutor. Só levarei um minuto...

- O mais simples seria deixar-lhe uma mensagem.

- Não. Preciso de falar-lhe pessoalmente. Juro que demoro apenas um instante.

O adolescente sentado atrás da secretária na recepção do clube emitiu um profundo suspiro. Era novo ali e ainda não a conhecia, caso contrário tudo seria mais fácil. Tinha visivelmente a intenção de obedecer às regras. Kimberly, à beira de um ataque de nervos e com as mãos trémulas, esperava que o estúpido jovem acabasse por ceder. Se necessário, dar-lhe-ia um abanão.

O rosto devia expressar o que lhe ia na mente, pois o pobre moço olhava-a com inquietação.

- Nunca se deve enervar uma rapariga com tensão pré-menstrual - sussurrou-lhe para o desestabilizar.

O adolescente corou até à raiz dos cabelos e afastou-se na direcção das salas de tiro. Argumento irrefutável, pensou Kimberly. Tenho consciência de que até eu poderia ser uma maníaca com instintos homicidas.

Uns minutos depois, Doug James apareceu, vindo de uma das salas de treino. Olhou-a bem de frente e Kimberly teve de fazer um grande esforço para não esmorecer quanto à resolução tomada.

James era elegante, mas sem o pretensiosismo ou a superficialidade dos playboys que se encontram às dezenas nas praias. Era um homem maduro com fios grisalhos nos cabelos castanhos que faziam sobressair o bronzeado da pele. Tinha o olhar atento e perscrutador dos que estão habituados a viver ao ar livre e a apanhar sol. De manhã apresentava-se barbeado, mas, no final do dia, as faces já estavam cobertas de uma fina penugem sedutoramente grisalha.

De estatura média, tinha um físico de atleta, e ela lembrava-se da força dos seus braços quando a ajudava a ajustar a arma.

Desde as suas primeiras lições juntos, Kimberly notara a aliança que Ae usava no anelar esquerdo. Aos seus olhos, James era um homem casado e inacessível, o que não a impedia de fantasiar sempre que ele estava perto dela.

É provável que conheça o assassino.

Ocorreu-lhe o aviso do professor Andrews e sentiu um aperto no estômago. Observou demoradamente o elegante Doug James e o desejo invadiu-a de novo, apesar do medo físico. A mãe reagira da mesma maneira, antes de o assassino a ter feito em postas? E Mandy?

- Olá, Kimberly. Em que posso ajudar-te?

Ela fitou-o com um olhar vago, os lábios entreabertos, incapaz de pronunciar uma palavra.

- Desculpa. Não quis assustar-te. - Sorriu.

- Tenho de cancelar as minhas aulas.

James franziu o sobrolho e parecia sinceramente preocupado. Ele transforma-se no que as vítimas pretendem, explicara-lhe o Dr. Andrews. Ternura. É isso o que as

mulheres pretendem. Alguém que seja terno.

- Lamento mesmo. Nada de grave, espero?

- Onde estava ontem?

- Não me sentia bem e foi por isso que faltei. Tentei telefonar-te para casa, mas já tinhas saído.

- E ontem à noite?

- Em casa, com a minha mulher. Porquê todas estas perguntas?

- Pareceu-me vê-lo num sítio qualquer. Num restaurante.

- Não, não era eu. Só vim aqui de passagem buscar uns papéis, mas fui directo para casa.

- Esteve sempre com a sua mulher?

- Sim.

- Como é que ela se chama?

- Laurie. Mas Kimberly...

- Não têm filhos, pois não?

- Ainda não.

- Há quanto tempo estão casados?

- Escuta, Kimberly. Desagrada-me o rumo que a conversa está a tomar. Ignoro o que se passa na tua cabeça, mas não me parece apropriada.

- Julgava que éramos amigos. Os amigos podem fazer perguntas, não?

- Talvez sejamos amigos, mas as tuas perguntas não são nada amistosas.

- Enervam-no?

- Para ser sincero, sim.

- Acha que estou a meter-me no que não me diz respeito?

- Exacto.

- Porquê? Tem alguma coisa a esconder?

Doug James manteve-se silencioso, limitando-se a observá-la. Kirn berly, com o coração aos saltos e os punhos cerrados, aguentou o olhar sem pestanejar.

- vou regressar à minha aula - acabou por dizer.

- Não voltarei mais...

- Lamento muito.

- vou sair de Nova Iorque e nunca mais me verá.

- Está bem, Kimberly.

- Não pense que sou tão fácil como a minha mãe.

- Preciso de ir-me embora.

- A minha mãe era uma mulher fantástica, sabe? Talvez devesse ter-se esforçado mais para manter o casamento, mas amava-nos muito. Mesmo nos momentos mais difíceis, fez tudo o que era possível para ser feliz...

A voz de Kimberly morreu-lhe na garganta e rompeu em soluços. De pé, no átrio do clube de tiro, no meio dos trofeus e das cabeças de animais embalsamados, chorava copiosamente sob os olhares dos outros membros do clube que passavam por ali.

Doug James recuou até à entrada da sala de treino, procurando desesperadamente a maçaneta da porta por detrás das suas costas.

- Sinto a falta da minha mãe - murmurou Kimberly de um fôlego, contendo as lágrimas.

De olhos secos, oferecia agora uma imagem ainda mais patética. Os que assistiam à cena desviaram a cara e Doug James aproveitou para desaparecer.

Ao cabo de um minuto que pareceu durar uma eternidade, Kimberly virou-se para a secretária onde o empregado novo a observava boquiaberto e nervoso.

- A que horas é que o Doug passou por aqui ontem? - perguntou ela.

- Por volta das oito - balbuciou o jovem. - Veio buscar uns papéis. A mulher ficou à espera lá fora.

- Viste-a?

- bom... sim.

- Como era ela?

- Menos bonita que você - apressou-se ele a responder, sem saber muito bem onde ela queria chegar.

Kimberly assentiu vagarosamente com a cabeça. Tentava encaixar as peças. O que dissera a vizinha da mãe? Elizabeth e o desconhecido tinham chegado a casa dela cerca das dez da noite num descapotável vermelho. A acreditar na senhora, a sua mãe estivera ausente o dia inteiro.

- Como era a mulher que vinha com o Doug? Loura, na casa dos quarenta, bem

vestida?

- Nem pensar - respondeu o jovem, franzindo o sobrolho. - A mulher do Doug é uma morena baixa e para o forte. Julgo que está grávida.

- Oh?!

Não era, por conseguinte, a sua mãe quem estava com Doug na véspera à noite. Devia efectivamente tratar-se da mulher, e James era com toda a probabilidade um instrutor de tiro, casado e um futuro chefe de família.

É apenas o primeiro dia e estou completamente baralhada. Tenho medo, Mandy... Lamento tanto nunca ter percebido o que é estar sempre com

medo.

Kimberly girou subitamente sobre os calcanhares e saiu. Lá fora, a noite estava escura como breu e o ar continuava asfixiante. Nove e meia. A tempestade aproximava-se.

Quantico, Virgínia

Quincy abandonou as instalações do FBI pouco depois das dez da noite, quando começaram a cair as primeiras gotas. Ergueu os olhos e verificou que nuvens ameaçadoras tapavam por completo a Lua. Levantara-se vento, anunciando a tempestade. Acabara de se meter pelo acesso da Auto-Estrada 95, quando o primeiro clarão iluminou o céu.

Faltava pouco, pensou.

Everett não dissimulara a sua insatisfação quando Quincy lhe tinha anunciado que tencionava abandonar a região. Pedira-lhe que se mantivesse em contacto com o FBI e ficasse totalmente disponível. A medida não era muito prudente, pois nenhum organismo se encontra ao abrigo das fugas. Por outro lado, Quincy dificilmente teria coragem de dizer ao chefe que não confiava nele, quando este fazia todo o possível para lhe proteger a família e a carreira. Os dois homens acabaram pois, por se despedir sem grande entusiasmo. Tratava-se de uma situação de compromisso.

Quincy metera o computador portátil e uma pilha de velhos dossiês no porta-bagagem do carro. Recusara igualmente desfazer-se da sua arma de serviço de dez milímetros. Numa palavra, estava tão preparado quanto era possível.

Faltavam poucas horas.

O vento soprava agora com mais força, agitando as copas das árvores e forçando-o a abrandar. Dez e meia. Afilha precisava dele.

Faltavam poucas horas.

Pelo retrovisor, avistou, inquieto, os faróis de um carro que se aproximava.

Motel 6, Virgínia

Eram dez e quarenta e cinco quando Rainie saiu a toda a pressa do carro de aluguer e correu para a entrada do motel. Chovia a cântaros e ficou encharcada em menos de cinco segundos. O guarda da noite levantou a cabeça quando ela atravessou a porta como um raio, a pingar água e pedaços de folhas

trazidas pelo vento.

- Que tempo horrível! - comentou.

- Uma noite de merda! - corrigiu-o ela.

Percorreu o corredor e dirigiu-se ao quarto, a tremer por causa do ar condicionado. Era só o tempo de arrumar as coisas e voltar a partir Tomaria um duche quando tivesse tempo. O jantar também podia esperar. Precisava de chegar a Nova Iorque o mais rapidamente possível. Faltavam sete horas.

No quarto, a luz vermelha do atendedor indicou-lhe que tinha mensagens e cerrou os dentes, inquieta. Suspirou, pegou no bloco de apontamentos e sentou-se em cima da cama.

Havia, na verdade, seis mensagens. Um recorde, tomando em consideração que ninguém ou quase ninguém sabia onde contactá-la. Quatro dos seus interlocutores - ou talvez o mesmo - haviam desligado sem uma palavra. O quinto deixara mensagem. Tratava-se de Carl Mitz.

- Continuo a tentar contactar Lorraine Conner para um assunto do seu interesse.

Pelo tom urgente da voz, devia ter sido provavelmente Mitz que desligara das outras vezes.

A sexta mensagem era sem dúvida mais surpreendente, pois fora feita pelo seu ex-colega Luke Hayes, agora xerife da polícia municipal de Bakersville.

- Rainie, anda por aí um advogado que não pára de fazer perguntas estranhas sobre ti e a tua mãe. Um tal Carl Mitz. Achei por bem prevenir-te.

Rainie consultou o relógio de relance. Não tinha tempo para tratar do assunto nesse momento. Por outro lado, o Mitz em causa parecia ter muita urgência em falar-lhe, a ponto de ir a Bakersville fazer perguntas sobre os seus antecedentes. Quinze anos depois da morte da mãe, a recordação do que lhe acontecera ainda a perturbava.

Decidiu telefonar a Luke para casa dele e respondeu-lhe o atendedor.

- Olá. Fala a Rainie - anunciou. - Obrigada pela informação. Neste momento não estou em casa, mas regresso amanhã de manhã. Faz-me um favor, Luke. Combina um encontro com esse tal Mitz. Tu e ele. Depois, informa-me de maneira a que possa aparecer de surpresa. Há três dias que esse tipo anda atrás de mim e já chegou a altura de termos uma conversa.

Desligou. Os cabelos molhados continuavam a pingar sobre a T-shirt. Olhou-se ao espelho e verificou, surpreendida, que tinha papos, um ar cansado e estava pálida. O cabelo parecia uma vassoura ensopada.

Parecia uma punk, pensou, divertida. Ou a vítima de um vampiro.

Tinha dificuldade em reconhecer a sua imagem no espelho e sentiu repentinamente o peso da fadiga sobre os ombros.

Bethie lutara até ao limite das forças. Conhecia o agressor e tentara inutilmente escapar-se. O que sente uma mulher num momento desses? Haverá tempo para se sentir atraiçoada pela vida? Ou terá simplesmente medo? Adrenalina ou testosterona? O instinto de sobrevivência é sempre mais forte?

Quando era mais nova, divertia-se a observar os gatos selvagens a perseguirem os ratos. O gato prendia sempre o rato entre os dentes e depois largava-o. O infeliz continuava a guinchar, primeiro num tom agudo e depois mais fraco. O rato acabava sempre por desistir, porque era mais fácil morrer do que viver. Uma forma de a natureza se mostrar misericordiosa frente aos mais fracos.

Rainie pensou em Mandy, que voltara subitamente a beber depois de todos os meses de abstinência e se pusera atrás do volante, sem o cinto de segurança. Pensou em Bethie que optara por abrir a porta a um desconhecido depois de anos de solidão.

Como se fosse mais fácil morrer do que viver.

Rainie levantou-se e atirou as coisas para dentro do saco de viagem. Onze horas. Faltavam sete horas para a partida e tinha duas de estrada pela frente. A vida é uma batalha, pensou, disposta a enfrentar o que quer que fosse.

Casa de Quincy, Virgínia

A agente especial Glenda Rodman mantinha-se enroscada num canto

do escritório, sentada na alcatifa. No ar pairava o odor da água-de-colónia de Quincy. Lá fora, o vento soprava, a chuva batia de encontro aos vidros, os ramos das árvores entrechocavam-se, agitados pelo temporal.

De vez em quando, ainda se ouvia ao longe o ruído da trovoada, mas os raios começavam a diminuir.

O alarme disparara pelo menos cinco vezes, devido a cortes de electricidade.

O gerador auxiliar não devia estar devidamente ligado. De todas as vezes, Glenda Rodman telefonara à empresa de segurança e tinha decorado rapidamente o número. Quanto ao seu colega, AlbertMontgomery, nem sombra.

A campainha do telefone voltou a tocar e o atendedor respondeu na cozinha.

- Morte, morte, morte, matar, matar, matar, crime, crime, crime - entoou uma voz do outro lado da linha. - Vai dar uma olhada à tua caixa de correio, Quincy. Degolei o bonito cãozinho só para ti. Simpático, não? Morte, morte, morte, matar, matar, matar...

Glenda enroscou-se mais sobre si própria, balançando-se nervosamente para a frente e para trás, ao mesmo tempo que as luzes se apagaram e o alarme disparou mais uma vez.

 

Greenwich Village, Nova Iorque

- Spray de gás-pimenta? - perguntou Quincy.

- Sim.

- Armas?

- Tenho a minha Glock - disse Rainie -, mas preciso de declará-la. Os detectives particulares não podem viajar de avião armados.

Quincy assentiu com a cabeça e depois virou-se para a filha, que estava de pé diante da mala.

- Também tenho uma Glock - declarou Kimberly num tom pausado e o pai sobressaltou-se.

- Tens o quê?

- Já que se está armado, que se esteja devidamente. Como queres que me defenda com uma arma de calibre vinte e dois?

Quincy franziu o sobrolho e exibiu a sua Smith o" Wesson, cromada, de dez milímetros. Nove balas no carregador, mais a que já se encontrava no cano. Por uma questão de segurança, usava dois carregadores suplementares no estojo de cabedal castanho. Ao todo trinta balas, o suficiente para aguentar um cerco.

- Dado que sou o único a poder levar a arma comigo no avião disse -, fico encarregado de vos proteger durante a viagem. Levo também o spray para um caso de força maior. A partir da chegada a Portland, quero que recuperem as vossas armas e as conservem sempre ao alcance da mão. De acordo, Thelma e Louise?

- Tenho um encontro com o Luke Hayes à chegada - explicou Rainie. - Posso pedir-lhe que nos envie reforços da polícia de Bakersville à cautela. Mal não fará.

O rosto de Kimberly iluminou-se ante aquela sugestão, mas Quincy abanou a cabeça.

- Demasiado chamativo - objectou. - Além disso, não acredito na eficácia de agentes por perto. O nosso homem não é do género de atirar de longe. Não o vejo a abater-nos de um carro ou do alto de um telhado. Prefere os cenários elaborados, uma coisa mais pessoal. Os guarda-costas não servem de nada quando a própria vítima deixa entrar o lobo no curral.

- O doutor Andrews pensa que se trata provavelmente de alguém que eu conheço - afirmou Kimberly num tom calmo. - Na opinião ele, o culpado procura antes de mais os pontos fracos das vítimas. AMandy sempre desejou que se ocupassem dela e ele sabia até que ponto a mamã sentia a falta da Mandy. Quanto a mim... sempre tive um fascínio por fardas e distintivos.

Quincy, que se dedicava a dobrar com todo o cuidado uma das camisas da filha, parou bruscamente. Fixou as riscas azuis e brancas do tecido com uma expressão vazia.

- Kimberly...

- Não tens culpa, papá. Não tens culpa.

Por fim, Quincy esboçou um aceno de cabeça duvidoso e meteu a camisa num saco de viagem. Passava um pouco da uma da manhã. Há dois dias que quase não dormiam e preparavam maquinalmente as bagagens para se manterem acordados.

- E que mais? - acabou por perguntar Quincy.

- Os objectos de toalete - respondeu a filha, dirigindo-se à casa de banho.

Instantes depois, chegou-lhes o ruído de frascos, enquanto ela remexia no armário.

- Chegaste a ver esse tal detective, Rainie? - inquiriu Quincy em voz baixa, deitando um olhar inquieto para a porta aberta da casa de banho.

- Sim, mas não deu nada. E tu? Novidades?

- Ainda não descobriram que a caligrafia da mensagem encontrada no ventre da Bethie é a minha. Mas a verdade é que trabalho não lhes falta. Precisarão de alguns dias para examinar em pormenor todas as pistas encontradas na casa da Bethie. com um pouco de sorte, a mensagem ficará para o fim.

- Como podes afirmar que a caligrafia é tua? Não foste tu que escreveste aquele horror!

- Não sei, mas é mesmo. A inclinação das letras, a colocação dos pontos nos ii... Esse tipo andou obviamente a praticar.

- Deve haver um meio de provar que é falsa.

- Não sei. Tudo depende dos seus talentos de falsificador e do perito em grafologia. Para falar verdade, duvido que a imitação seja perfeita, mas não me servirá de nada. Ele apenas quer que se julgue reconhecer a minha caligrafia. Quando o FBI se aperceber de que é falsa, já terei sido preso, desarmado e desacreditado. Trata-se de um tipo não só esperto, mas também eficiente. É o que me fascina nele.

Kimberly regressou ao quarto, atirou o nécessaire para dentro do saco de viagem e a conversa ficou por ali.

- O que se segue? - perguntou.

Tinham finalizado os preparativos. Instantes depois, os sacos estavam empilhados junto à porta. Dali a três horas, seria altura de partir para o Aeroporto JFK onde

Rainie deveria começar por entregar o seu carro de aluguer, antes de embarcar rumo a Portland com os seus dois companheiros, no voo das seis da manha. Lá fora, a tempestade desabava e Quincy olhava regularmente através da janela com uma expressão inquieta. Não eram os raios e trovões que o assustavam, mas a ideia de que o voo pudesse estar atrasado.

Sentaram-se à volta da mesa da cozinha e Kimberly encheu as chávenas de café, embora já tivessem a sua conta de cafeína. Bobby, que partilhava o apartamento com Kimberly, decidira ir-se embora quando Quincy lhe explicara a situação, preferindo consolar-se nos braços da namorada a sobressaltar-se ao mínimo ruído durante a ausência deles. Bobby era um rapaz esperto.

Rainie, com as mãos à volta da chávena fumegante, tentava aquecer-se por todos os meios. Apanhara uma constipação devido as roupas molhadas em cima do corpo.

- Que mais te disse o teu professor? - indagou finalmente a Kimberly.

A jovem limitou-se a encolher os ombros. Estava a aguentar-se muito bem, pensou Rainie. Pálida, nervosa, mas funcional. No fundo, todos tinham atingido aquela fase em que se continua a avançar para não cair.

- A propósito do professor Andrews... ele aconselhou-me a contar-te... - Kimberly hesitou, lançando um olhar furtivo ao pai e voltando a fitar a chávena de café. - Há... há uns meses que tenho ataques de pânico. De qualquer maneira, foi o que pensei. Estava persuadida de que me espiavam constantemente e a angústia era tanta que sentia dificuldade em respirar.

Quincy pousou bruscamente a chávena, derramando algumas gotas de café em cima da mesa.

- Porque não me disseste nada?

- Na altura, julgava que era tudo devido ao stresse. A morte da Mandy, a faculdade, o lugar de estagiária que tanto desejava... Não sei. Além de que não é importante. O que conta é que agora já sabes. Depois de tudo o que se passou nos últimos dias, não me parece que se devessem unicamente ao stresse.

- Ele andou a espiar-te - afirmou Quincy num tom cortante. Passava o tempo a vigiar-te e não me disseste nada.

- Ando sempre com um spray de gás-pimenta na mochila, sou muito atenta e sei defender-me. Ora, papá! Não vais passar a vida inteira a proteger-me!

- Claro que vou. É o meu trabalho. Pergunto a mim mesmo de que me serve esta profissão se nem sequer a minha família consigo proteger?

- Os filhos crescem e acabam por se afastar. É a lei da vida. Sabe-o tão bem como eu.

- Esqueces que sou polícia...

- És sobretudo humano, como todos os outros pais. .- Mesmo assim, devias ter-me falado, Kimberly!

- Também eu sou humana.

- Começo a ficar farto desta história toda! - explodiu Quincy.

- Eu também, se queres saber - ripostou Kimberly no mesmo tom. - Portanto, vamos mas é apanhar esse safado para que possa acabar tranquilamente os meus estudos. Depois, poderei ingressar na polícia, ter um marido e filhos que negligenciarei e o ciclo ficará completo.

Quincy cerrou os maxilares. Abriu a boca várias vezes, sem conseguir articular uma palavra. Em desespero de causa, levantou-se, foi até à janela e mergulhou o olhar no escuro, com a chávena de café na mão.

- Sabem uma coisa? - redarguiu Rainie. - Estes momentos em família são muito tocantes.

- Talvez tenha uma pista - anunciou Quincy, trinta minutos depois.

O relógio marcava duas horas da manhã, mas, por uma espécie de acordo tácito, ninguém fora deitar-se. A arma de Quincy estava pousada em cima da mesa, pronta a disparar e tinham descido as persianas e diminuído as luzes para não servirem de alvos. Lá fora, o temporal continuava.

Tinham acompanhado o boletim meteorológico na televisão e previa-se uma calma para o início da manhã, mas Rainie duvidava que os Quincy, no estado de tensão em que se encontravam, tivessem realmente acreditado no locutor.

- Não me contaste o que soubeste - observou Rainie. Kimberly, de olhos pregados na mesa, evitava fitar o pai de frente.

- Um dos tipos encarregados do inquérito, o AlbertMontgomery, tem umas contas antigas a ajustar comigo por causa do caso Sanchez. O inquérito começou por lhe ser entregue, mas ele lixou tudo e o FBI passou-me o caso.

- De que constava o caso Sanchez?

- Há quinze anos, na Califórnia, o Sanchez e um primo assassinam jovens prostitutas. Oito raparigas ao todo. Por vezes... prolongam o prazer sentido.

-Ah, sim! As cassetes! - exclamou Kimberly.

- Tu ouviste-as?

- Eu não. A Mandy - respondeu a filha, encolhendo os ombros.

- Era obcecada pelo teu trabalho e quando te foste embora...

- Céus!

- Estavas a dizer que oMontgomery embirrava contigo - interveio Rainie, procurando acalmar o ambiente.

Quincy virou-se para ela, de olhos brilhantes e um ar irritado.

- O Monrgomeiy está convencido de que o desgracei ao pegar no caso Sanchez - retorquiu. - Digamos que, no dia em que o suposto relatório de "provas" chegar de Filadélfia, não levantará um dedo para me ajudar. Tenho quase a certeza de que lançará achas na fogueira.

- Então, não temos muito tempo - murmurou Kimberly.

- Três dias no máximo - precisou Quincy num tom fatalista. -

A partir do momento em que o relatório lhe chegar às mãos, o Everett vai telefonar-me e mandar-me regressar.

- Ainda não chegámos lá - interrompeu-o Rainie. - Hoje, soube algumas coisas interessantes. Avistei-me com o presidente do grupo dos Alcoólicos Anónimos de que a Mandy fazia parte, um tal Williarn Zane. O homem confirmou-me que ela conhecera alguém nas reuniões, mas a descrição do indivíduo está longe de corresponder às minhas expectativas. Menos de um metro e oitenta, calvo, barrigudo, descuidado.

- A vizinha referiu-se a um homem de aspecto agradável, alto e bem vestido - lembrou Kimberly.

- Exacto. Por outro lado, passou mais de um ano e meio desde que a Mandy conheceu esse tipo e teve tempo de mudar de aspecto.

- O Ted Bundy, o assassino em série, mudava regularmente de aspecto e de personalidade - confirmou Quincy. - Houve uma altura em que engordou vinte quilos, a ponto de ficar irreconhecível. Os gordos dão frequentemente a ideia de que são mais baixos do que na realidade são. O Jim Beckett, por exemplo, conseguiu escapar à polícia durante mais de um ano, mudando várias vezes de aparência. Usava roupa enchumaçada e punha silicone na cara para modificar o aspecto geral.

- O que significaria que o nosso homem é um ás do disfarce retomou Rainie. - Sabe-se também que é muito paciente, pois aguardou mais de um ano após o acidente da Mandy para recomeçar.

- Não há dúvida de que obedece a um plano cuidadosamente elaborado - aquiesceu Quincy.

- bom. Recapitulemos. Mal cheguemos a Portland, levo-os ao hotel onde se registarão sob um nome falso, enquanto vou à minha entrevista. Pedi também ao Vince Amity que reabrisse o inquérito sobre o acidente da Mandy. O Phil de Beers, o detective particular com quem me encontrei esta noite, vai ocupar-se da Mary Olsen e manter-me ao corrente. E mesmo que oMontgomery não seja de fiar, Quincy, o teu patrão parece apoiar-te e a Glenda Rodman não é do género de se deixar enganar pelo primeiro que apareça. Considero-a perfeitamente capaz de separar o trigo do joio.

- Se bem entendo, só nos resta esperar tranquilamente pelo assassino - suspirou Kimberly num fio de voz.

- Nada disso - contrapôs Rainie. - Ele safou-se com a Mandy porque foi a sua primeira vítima. Conseguiu prosseguir tranquilamente com a Bethie, porque ainda não nos tínhamos apercebido do caso, mas a situação mudou. E daqui a exactamente três horas – rematou olhando para o relógio -, estaremos longe da zona de ataque, o que prova que tomámos a dianteira.

Kimberly e Quincy assentiram com a cabeça, mas muito pouco tranquilizados. Rainie aproveitou para consultar de novo os seus apontamentos.

- Tenho também uma nova pista. A acreditar no William Zane, o tipo dos Alcoólicos Anónimos, o padrinho da Mandy era nem mais nem menos do que o patrão, um tal Larry Tanz. A Mary Olsen também trabalhou para ele. Ainda não sei nada sobre esse Tanz, mas a julgar pelo estranho comportamento da Mary...

- Uma pista a ter em conta - sublinhou Quincy.

- Coloquei o meu novo amigo Phil de Beers na peugada. A propósito, o Phil junta uísque ao café. Acho que o meu leite com açúcar pode agora parecer perfeitamente respeitável.

Quincy e Kimberly reviraram os olhos ao mesmo tempo. Era incrível a semelhança entre pai e filha.

- Por fim, tenho um segundo pseudónimo para o nosso assassino - prosseguiu Rainie, virando uma página do seu bloco. - Sabe-se que usou o nome de Tristan Shandling em Filadélfia... Já agora, Quincy, acho que devias passar uma vista de olhos por esses teus dossiês antigos, para ver se esse nome te lembra alguma coisa. Depois, há um ano e meio, na Virgínia, serviu-se do nome de Ben Zikka para se aproximar da Mandy.

- Que nome disseste? - indagou bruscamente Quincy.

- Ben Zikka - repetiu Rainie.

- Cabrão de merda. Filho-da-puta. Não tinha esse direito Quincy saltara literalmente da cadeira. Precipitou-se para o telefone sem fios, marcou um número e ficou à espera, de maxilar cerrado e os dedos crispados no aparelho. Rainie nunca o tinha visto assim. Sem compreender o que o pusera num tal estado, virou-se para Kimberly e viu que a filha estava lívida.

- O meu avô - murmurou ela.

- Deus do céu! - exclamou Rainie, fechando os olhos. Quando haviam elaborado a lista das pessoas ameaçadas, ninguém pensara no pai de Quincy internado num lar por causa da doença de Alzheimer.

- Ligue-me à Casa de Repouso de Shady Acres - rugiu Quincy ao telefone. - Depressa.

Decorreram alguns instantes num silêncio de morte.

- Abraham Quincy, por favor... Como? Ele não está? Claro que tem de estar. Não é autónomo e não podia ir-se embora sozinho... Diz que o filho foi buscá-lo ao princípio da tarde? Pierce Quincy? Suponho que lhe pediu que se identificasse... Mostrou-lhe a carta de condução e era mesmo Pierce Quincy?

Quincy estava desfigurado. Na pequena cozinha, ninguém se atrevia a mexer-se. Abraça-o, faz qualquer coisa, pensou Rainie, incapaz de esboçar um gesto. Sabia que Kimberly devia estar a pensar o mesmo, sem ousar romper o silêncio. O pesadelo continuava para Quincy. Um terrível pesadelo.

Desligou, mas em vez de largar o telefone, apertou-o de encontro ao corpo, como que a procurar um conforto impossível.

- O Ben Zikka era o melhor amigo do meu pai - murmurou Quincy. - Cresceram juntos, fizeram a guerra juntos, uma vida de camaradagem...

Kimberly e Rainie mantinham-se silenciosas.

- É um velho - prosseguiu Quincy num sussurro. - Aos setenta e cinco anos, nem sequer consegue urinar sozinho, céus. É um homem de idade doente, que tem medo de tudo. Não se reconhece ao espelho. Já nem sequer sabe que tem um filho, nem como me chamo.

Kimberly e Rainie não pronunciaram uma palavra.

- Trabalhou arduamente durante toda a vida. Construiu uma quinta e criou-me sozinho. Mandou-me para a faculdade, quando mal tinha para comer. Porque era natural e achava que era seu dever. Aos setenta e cinco anos, merece, pelo menos, morrer com dignidade.

- Quincy...

- O meu pai nem sequer se recorda de mim! Porque é que esse fiIho-da-puta quer matá-lo? Ele não se recorda de nada, merda! De NADA!

À beira de uma crise de histeria, lançou o telefone pelo ar, que se desfez em pedaços no mosaico. Como se não lhe bastasse, agarrou numa cadeira que quebrou contra o balcão, antes de atirar a cafeteira para o lava-louça e virar a mesa com um uivo de raiva impotente.

- Papá...

Quincy, cego pela dor, nem sequer a ouviu.

- Tenho de ficar. Nunca se sabe. Talvez ele ainda esteja vivo, talvez esse porco não o tenha morto. É meu pai, raios, e nem sequer sabe que tem um filho. É bem possível que esse safado o torture antes de o assassinar e quando se pensa no que fez à Bethie, em Filadélfia... Ele é um velho e já nem sabe que tem um filho. Não compreendes, Rainie. Nem sequer sabe que tem um filho...

- Vens para Portland connosco.

- Fora de questão!

- Vens connosco, Quincy, Não vou deixar-te aqui sozinho. Não percebeste que é precisamente isso o que esse psicopata quer?

- E o meu pai...

- Ele está morto, Quincy! Lamento muito por ti, mas o teu pai está morto. Sabe-lo tão bem como eu. Lamento muito...

De súbito, os joelhos de Quincy cederam e ele tombou sobre os bocados de madeira e de vidro espalhados no chão da cozinha, com um olhar para Rainie que ela nunca mais esqueceria.

- O meu pai - murmurou. - O meu pobre pai...

- Papá. Tenho medo. Por favor. Preciso de ti.

Quincy virou-se para a filha sem se levantar. Kimberly rompera em lágrimas. Durante um segundo, o tempo parou. Só Deus sabe no que ele pensaria nesse momento. Abriu os braços e Kimberly precipitou-se para ele.

- Tudo correrá bem, Kimmy - sussurrou-lhe ao ouvido. - Prometo-te que tudo correrá bem.

Fechou os olhos e Rainie sabia a razão, Não queria que nenhuma delas visse que ele acabara de dizer uma mentira.

 

Aeroporto Internacional JFK, Nova Iorque

Na sexta-feira, às cinco e trinta e cinco da manhã, hora de Nova Iorque, subiram a bordo do avião com destino a Portland. Tinham sido obrigados a identificar-se ao balcão da companhia aérea antes de receber os bilhetes pagos na véspera em dinheiro, mas Quincy servira-se do seu distintivo do FBI para que os cartões de embarque fossem passados com nomes falsos, a fim de evitar indiscrições. A funcionária apressara-se a executar a tarefa, encantada por participar no que julgava tratar-se de uma operação secreta. Sob o efeito do cansaço e dos nervos acumulados, os três mal conseguiram percorrer a passadeira rolante.

O temporal afastara-se finalmente, mas o céu permanecia ameaçador e a pista estava escorregadia devido à chuva. Funcionários com capas de oleado amarelo-vivo afadigavam-se e gesticulavam à volta do aparelho, arrumando as bagagens. Rainie observava-os do seu lugar, mas não conseguia perceber o que diziam.

Kimberly ocupou o seu lugar junto à janela e adormeceu de imediato, com a testa apoiada ao encosto. Rainie passara a fase de cansaço em que o sono ainda é uma possibilidade. Sentada entre o pai e a filha, tinha uma percepção aguda, quase dolorosa, de tudo o que a rodeava. À sua direita, Quincy assumira uma máscara artificialmente impassível. Ao aflorar-lhe a mão numa carícia, ele retirara-a de imediato. Não voltara a tentar.

- Quando a minha mãe morreu, odiei o meu pai - confessou ele.

- De que morreu ela?

- Ataque cardíaco. Como tinha apenas trinta e quatro anos, ninguém estava à espera.

- Mas o teu pai não teve culpa nenhuma.

- Eu era muito jovem. Achava que o meu pai tinha poder para tudo, até mesmo para impedir que a minha mãe morresse. Considerava-o responsável pelo sucedido. Perguntava-lhe constantemente por que razão ela tinha morrido e ele respondia-me sempre: "Porque sim."

- A vida tem dessas merdas - comentou Rainie.

- Para um fazendeiro ianque como ele, era a sua maneira de o dizer. Levei anos a perceber que ele tinha razão. Há coisas que pura e simplesmente não se explicam.

Mas o que é a sabedoria divina para um miúdo? Como inculcar-lhe o sentido do destino? A minha mãe morreu "porque sim". À sua maneira, o meu pai tentava fazer-me compreender algo de essencial.

Rainie manteve-se silenciosa.

- A Mandy não merecia morrer - prosseguiu Quincy. - Também a Bethie não merecia morrer, tal como o meu pai. Desta vez, já não se pode dizer "porque sim". Não aconteceu. Alguém o fez.

- Vamos descobri-lo. Quincy.

- Faço tenção de o matar, Rainie. Tornei-me especialista em perfis psicológicos com o objectivo de ajudar as pessoas. Hoje, é como se isso tivesse sido inútil. Quero mesmo encontrá-lo e matá-lo. Achas que é um crime?

Rainie hesitou.

- Mais uma vingança - respondeu finalmente, no momento em que o avião, com os motores ligados, se preparava para descolar.

Quincy assentiu com a cabeça,

- Se é assim, penso que não terei problemas de consciência rematou.

 

Bakersville, Oregon

O xerife Luke Hayes, apoiado despreocupadamente ao carro em frente do Martha s Diner, parecia um lagarto ao sol. com o seu metro e setenta e cinco, careca e uma constituição física frágil, não inspirava terror. Só na aparência, porque aquele porte inofensivo dissimulava um homem capaz de bater com a rapidez e a força dos melhores lenhadores da região. Há muito que a população de Bakersville o sabia. Vês aquele gajo calvo? Afasta-te dele. É um osso duro de roer. Já era humilhante ser derrotado numa rixa de bar, quanto mais por um tipo com um físico daqueles.

O trunfo principal de Luke Hayes não era a sua força, mas o seu olhar. Uns olhos azuis que trespassavam a alma. Só com o olhar, Luke conseguia acalmar o ímpeto dos bêbedos mais aguerridos ou pacificar jovens demasiado enervados. Um suspeito acusara-o uma vez de praticar magia com o olhar, mas Luke afastara o argumento com um gesto da mão. Para ele, era muito mais simples: a sua força vinha-lhe da calma e da ponderação. Era aliás o que o tornava um sedutor para as mulheres, Encostado ao carro, de olhos fechados, parecia dormir. Na realidade, protegia os olhos da luz do Sol, com a cabeça um pouco erguida, imaginando uma brisa do mar naquele dia de canícula. Luke emitiu um leve suspiro, voltou a abrir os olhos e deparou com Rainie, em pé, na sua frente.

- Mais um dia agitado em Bakersville - ironizou ela. - Podes ter a certeza de que vamos ter uma briga antes das seis da Itarde. Talvez mesmo duas, com este calor.

- Escolheste mal a profissão. Em vez de polícia, devias vender ar condicionado.

- Não é uma ideia má de todo. Podia começar por vender um a mim próprio. Olá, Rainie. Que prazer voltar a ver-te.

Estendeu a mão, que Rainie conservou muito tempo entre as dela. Ele achou-a cansada, como era hábito sempre que trabalhava demasiado. Contudo, em nada a desfavorecia, pois Rainie sempre fora uma bela rapariga, com as maçãs do rosto salientes, a boca de lábios grossos e os olhos cinzento-claros. Não engordara desde a última vez, bem pelo contrário, e a sua constituição musculosa valorizava-a. Além de que adoptara um penteado curto, o que talvez não agradasse aos homens de Bakersville, que sempre haviam fantasiado sobre os seus longos caracóis castanhos, sonhando acariciá-los na almofada. Em Oregon, os Invernos são compridos...

- A farda de xerife fica-te mesmo bem, sabes? - brincou Rainie.

- Eu sou um garanhão - retorquiu Luke, enchendo o peito de ar.

- Imagino as burguesas protestantes a fazerem bicha para te apresentar as filhas.

- É duro ser herói, mas alguém tem de fazer o papel.

- Se soubesses as saudades que tenho de Bakersville...

- Calculo, Rainie. Também temos saudades de ti - redarguiu dando-lhe o braço e levando-a para o interior do Martha s.

Marcara um encontro com Carl Mitz para dali a uma hora, o que lhes dava tempo para conversarem. Ocuparam a divisória de sempre.

- Como está o Chuckie? - perguntou Rainie depois de ter encomendado o prato do dia: um bife com muito molho e puré de batata com alho. Mais um quilo garantido nas ancas, ou então teria de ser reembolsada.

- O jovem Cunningham acalmou-se - respondeu Luke. - Mostra-se mais confiante agora. Já para aí há um mês que não se atira a um pobre civil que apenas passou um semáforo vermelho.

- Queres dizer que deixou de agredir os seus conterrâneos? Não vou reconhecê-lo. E o resto da cidade?

- O primeiro aniversário depois da carnificina foi bastante difícil - observou Luke, repentinamente sério. - Muita paranóia, velhas querelas de novo à tona. Detesto dizê-lo, mas acho que a Sandy e o Shep fizeram bem em abandonar a cidade. As pessoas não os teriam aguentado.

- Que vergonha!

- A natureza humana é mesmo assim, Rainie. Andamos sempre à procura de bodes expiatórios.

- Eu sei, mas...

- À parte isso, nada de novo. Como em todas as cidades pequenas. Nada muda. E tu?

Rainie não respondeu logo, o que ele já esperava. Ela sempre fora muito reservada, mesmo na altura em que trabalhavam juntos sob as ordens de Shep. Contudo, Luke gostava de Rainie como era, com o seu humor instável e o seu mau feitio. Era conscienciosa e, quando as coisas haviam dado para o torto no ano anterior, soubera enfrentar os acontecimentos com coragem.

Luke não tinha escondido a sua tristeza, ou melhor o seu descontentamento quando o Conselho Municipal exigira o afastamento de Rainie. Convencido de que ela lutaria para manter o posto, ficara surpreso, desiludido mesmo, por ela aceitar a sentença sem uma palavra. A atitude de Rainie também surpreendera muitos outros em Bakersville. - O Quincy está na merda - disse ela bruscamente. - Já tinha percebido. - É grave, Luke. Muito grave. – O acidente da filha não foi um acidente? Rainie assentiu com a cabeça.

- A Amanda foi assassinada por alguém que odeia o Quincy. Mas não parou aí e o tipo aproveitou a morte da Mandy para escolher como alvo a ex-mulher do Quincy. Arranjou forma de a conhecer e seduzir, antes de a matar. Uma carnificina horrível. Menos de vinte e quatro horas depois, raptou o pai do Quincy.

Luke franziu o sobrolho.

- Como reagiu o FBI? - indagou num tom grave.

Luke simpatizava bastante com Quincy, acerca de quem tinha uma boa opinião. Pelo menos, para um agente federal.

- O FBI está obviamente em campo. O único problema reside em que o Quincy pode ser preso de um momento para o outro.

- O quê?

- O assassino tenta culpá-lo do homicídio da ex-mulher.

- Não deve ser pêra doce trabalhar para o FBI. Quando esses tipos fazem inimigos é para a vida inteira. Como é que ele está a aguentar-se?

- Não sei muito bem.

- Se alguém conhece bem o Quincy, és tu - redarguiu Luke, aproximando-se de Rainie. - Mudou alguma coisa entre vocês?

- Ora, Luke! Deves calcular que o Quincy não está no seu estado normal. Querem dizimar-lhe a família e não me vejo a mandá-lo deitar num sofá para me contar tudo.

- Para ti é fácil, não?

- O que queres dizer? - retorquiu num tom cortante, rubra de cólera.

Se Rainie tivera a intenção de intimidar o interlocutor, falhara rotundamente, pois Luke tinha o ar de quem ficara satisfeito. Pelo menos, a cor subira de novo ao rosto de Rainie. Apenas desejou ter trazido uma caixa de lápis para que ela pudesse parti-los uns atrás dos outros, como nos velhos tempos.

- Simplesmente que...

- Sei muito bem o que quiseste dizer. Aliás, nunca devia ter-te contado isso.

- De qualquer maneira, teria sido eu a puxar o assunto. É para isso que servem os amigos.

- A propósito de amizade, obrigada por dizeres a um polícia da Virgínia que eu tinha um fraco por um tipo do FBI.

- E tens?

- Luke Hayes!

Ao detectar o brilho divertido nos olhos dele, Rainie sentiu que a sua raiva desaparecia. Um momento depois, Luke retomou o tom sério quando se lhe dirigiu.

- Sabes, Rainie? Acho que tu e o Quincy foram feitos um para o outro. A maior parte das pessoas leva a vida à procura da alma gémea, sem nunca a encontrar. Falo-te por experiência.

- Pois.. - murmurou Rainie entre dentes.

Franziu o sobrolho, mas Luke não se deixou iludir e leu nos olhos da jovem algo muito semelhante à gratidão. Ou talvez ao alívio. Não era, pois, a única a achar que o seu caso com Quincy podia resultar, que uma rapariga do campo como ela podia despertar o interesse de um dos grandes do FBI.

Luke sentiu vontade de lhe dizer: "Não foste feita para passar a vida num buraco como Bakersville, a patrulhar os jogos de futebol de fim-de-semana. Orgulho-me de ti, raios!" Contudo, preferiu calar-se com medo de que ela reagisse mal.

A empregada chegou com duas Coca-Colas e Luke recebeu-as com um sorriso, enquanto Rainie pousou maquinalmente a dela na mesa com uma expressão ausente.

- Tudo isto é uma loucura... - murmurou. - Esse filho-da-mãe passa o tempo a perseguir o Quincy e nem sequer sabemos quem é, com quem se parece, nem porque faz isto.

Sabe-se apenas que é esperto, muito organizado e. nos leva sistematicamente dias de avanço.

- Tens algum plano de ataque? - indagou Luke num tom calmo.

- "Ataque" é uma palavra um tanto forte. De momento, trata-se sobretudo de um plano de retirada. Decidimos refugiar-nos aqui com a Kimberly, a segunda filha do Quincy. O assassino conhece bem os hábitos deles na costa leste.

- Precisas de ajuda?

Rainie abanou a cabeça e passou a mão pelo cabelo curto.

- É difícil explicar - respondeu finalmente. - Não percebemos muito bem o funcionamento deste homem. É mais um caçador do que um simples assassino. Leva tempo, mas consegue sempre atingir os seus objectivos. Acabará por nos descobrir e, nesse dia, podes estar certo de que não atacará em força. Arranjará forma de um de nós lhe abrir a porta.

- O Carl Mitz.

- Há que admitir que esse tipo surge numa altura suspeita.

- Percebo o que queres dizer... - Luke suspirou, pousando as mãos de palmas abertas em cima da mesa. - Não sei muita coisa sobre ele. O Mitz contactou-me pela primeira vez há quatro dias. Indaguei junto dos escritórios da Avery

Abbott em Portiand e eles confirmaram que faz parte do seu pessoal. Figura igualmente na lista da Ordem dos Advogados de Oregon. Por outro lado, também me parece que ele surge numa altura suspeita.

- Nada de estranho, na tua opinião? - O Mitz tem ar de advogado.

- E o seu cliente?

- Que cliente? - redarguiu Luke, intrigado.

Rainie assentiu com a cabeça e inclinou-se para diante, numa atitude de confidência.

- O nosso homem... - começou. - vou chamar-lhe Tristan Shandling, na falta do seu verdadeiro nome. Ele tem-se servido sempre de um membro da família para saber coisas sobre os outros. Começou pela Mandy, que lhe falou da Bethie e a Bethie falou-lhe, por sua vez, da Kimberly. É assim que actua. Só que a Amanda e a Elizabeth não sabiam nada a meu respeito e a Kimberly conheceu-me ontem.

- Percebo onde queres chegar - retorquiu Luke. - Se ele sabe que o Quincy tem uma amigua em Portland...

- O que é altamente provável. Ele parece saber tudo sobre o Quincy. Serviu-se mesmo, por várias vezes, da sua identidade. Para se descobrir o número de alguém, basta dar um nome e o número da Segurança Social à companhia dos telefones.

- Nesse caso, o Shandling precisou de uma fonte de informação sobre ti.

- Não pode tê-lo feito pessoalmente - reflectiu Rainie em voz alta. - Andou demasiado ocupado com a Bethie, em Filadélfia.

- Contratou, portanto, alguém.

- Provavelmente. Uma pessoa respeitável, na eventualidade de podermos desconfiar e investigá-la.

Luke aprovou a dedução com um ar pensativo.

- Tens razão. Ele é esperto e organizado. Quais são, então, as tuas regras de jogo?

- Não temos tempo para esquemas complicados. vou sentar-me na divisória ao lado e escondo-me atrás de um jornal para que o Mitz não possa reconhecer-me ao entrar. Tu recebe-lo, convida-lo a sentar-se e finges-te disposto a colaborar.

- Faço o papel de bom polícia - aquiesceu Luke.

- Isso mesmo. Entretanto, não perco uma palavra da vossa conversa e quando ele se sair com o habitual: "Não podemos dar informações sobre os nossos clientes", adro-me a ele e desfaço-o.

- O polícia mau.

- Exacto - anuiu Rainie com um sorriso de carniceiro.

- Decididamente, é um prazer voltar a ver-te - concluiu Luke, abanando a cabeça.

Eram cinco horas em ponto quando Carl Mitz entrou no Martha s Diner. com o fato de linho bege e a enorme pasta de cabedal castanho destoava no meio da clientela, fiel às calças de ganga e às camisas aos quadrados. Identificou facilmente Luke devido à sua estrela de xerife e aproximou-se da mesa.

Rainie, escondida atrás do jornal, tentava passar o mais despercebida possível, sentada na banqueta de napa vermelha, mas sentia-se vulnerável. Não que o recém-chegado lhe despertasse qualquer receio: cabelo escasso, um rosto de rato de biblioteca, fato de mau corte e óculos antiquados. Não devia ser um advogado de casos bicudos, pois nenhum júri do mundo o levaria a sério.

Mitz esboçou um esgar quando Luke lhe apertou a mão. Rainie não conseguiu suster um sorriso, meio convencida da inocuidade da personagem: o assassino jamais lhe enviaria uma caricatura daquelas.

Mitz sentou-se e colocou ao seu lado a enorme pasta que ocupava quase toda a banqueta. Não queria obviamente largá-la um instante.

- Desejava antes do mais agradecer-lhe por ter aceite este encontro - começou.

- De nada - respondeu Luke num tom magicamente arrastado e grave. - Pareceu-me um indivíduo sério. É sempre mais fácil conversar com alguém a quem se aperta a mão e está diante de nós.

- Tem toda a razão. Nada melhor do que um contacto directo, mas espero não lhe tomar muito tempo...

- Oh! Sabe como é a vida nestas cidades pequenas. Tempo é o que não falta e é sempre um prazer conhecer outras pessoas.

Por trás do jornal, Rainie revirou os olhos. Achava que Luke exagerava um pouco no seu papel de polícia da província, mas Mitz pareceu descontrair-se e acabou mesmo por se recostar na banqueta.

- Trata-se de um assunto simples - retomou Mitz. - Estou encarregado de um inquérito de rotina a propósito de uma pessoa que viveu há muito tempo em Bakersville, Lorraine Conner. Se as minhas informações estão correctas, ela fez parte da polícia daqui.

- Exacto.

- Ela viveu aqui?

- Sem dúvida.

- Quanto tempo?

- Oh... bastante. Diria... anos.

- Pois. Muito bem. A mãe dela chamava-se Molly Conner?

- Sim. Creio que sim.

- Sabe por acaso a idade de Lorraine?

- Isso não, meu amigo. Sempre me ensinaram que não se deve perguntar a idade a uma senhora.

- Mas deve haver dossiês... A sua ficha pessoal, na qualidade de polícia.

- É possível que esteja registado algures, mas ela trabalhava aqui na altura do meu antecessor, o xerife Shep O Grady. Teria de perguntar-lhe, só que ele já não vive em Bakersville.

- Shep O Grady? - repetiu Mitz, tomando notas.

- Longe de mim desejar parecer indiscreto, meu amigo, mas pode explicar-me o motivo de todas estas perguntas? Não é todos os dias que um advogado da cidade vem interrogar-nos sobre ex-colegas.

- Um simples inquérito de rotina, como lhe disse.

- Ela candidatou-se a algum lugar na sua firma, é isso?

- Oh... não.

- Então, pediu um cartão de crédito?

- Não, não. Sou advogado, xerife, e não funcionário de um banco.

- Desculpe, mas então para que precisa de saber tudo isso?

- Infelizmente, é confidencial. Trata-se de motivos que dizem respeito apenas a Miss Conner.

- Então, não insisto. Compreendo que se encontre sob segredo profissional. Mas talvez possa dizer-me qual a sua especialidade? Simples curiosidade da minha parte.

Mitz não era, porém, nenhum idiota.

- Não posso revelar-lhe mais nada. Trata-se de algo que só diz respeito a Miss Conner. Durante quantos anos é que a Lorraine Conner prestou serviço na polícia municipal?

- Vários - respondeu Luke despreocupadamente.

- Constou-me que pediu a demissão no ano passado.

- Exacto.

- Falou-se de um escândalo, ou melhor, de um incidente de há quinze anos, é isso?

- A Lorraine Conner pediu a demissão por motivos perfeitamente honrosos, Mister Mitz - respondeu Luke com um encolher de ombros. - Acrescentarei que nada temos a censurar-lhe e nos sentimos muito orgulhosos com a prestação dela na polícia municipal.

- Ainda bem - replicou Mitz vivamente. - Julgo que não me levará a mal se fizer um pequeno inquérito a algumas pessoas durante a minha permanência aqui.

- Faça favor - acedeu Luke delicadamente.

- Muito bem. Passemos agora ao resto da família.

- O que quer saber a esse respeito?

- Quer dizer então que ela tem família? - surpreendeu-se Mitz. Pela primeira vez, Luke hesitou, visivelmente apanhado desprevenido.

- Não que eu saiba - apressou-se a rectificar. - Foi você que fez a pergunta.

-Não tem, portanto, marido, filhos, irmãos?

- Não que eu saiba. Porque é que pergunta? - Rotina - retorquiu Mitz secamente.

Dispunha-se a tomar mais apontamentos quando Luke lhe agarrou na mão. O xerife cedera bruscamente lugar a um polícia resoluto, quase agressivo.

- Acho que faz perguntas muito pessoais para um mero inquérito de rotina, como lhe chama. Talvez a Rainie já não viva aqui, mas contii nua a ser uma amiga e pergunto-lhe

mais uma vez de que trata toda i esta história. í 191

- E eu repito-lhe que estou sob segredo profissional - insistiu Mitz num tom seco.

Rainie achou que chegara a altura de intervir. A conversa não levava a parte alguma e Luke já começava a esquecer o seu papel de polícia delicado e a mostrar-se agressivo. Deslizou para fora da sua divisória e juntou-se aos dois homens com um largo sorriso estampado no rosto.

- Surpresa, surpresa, caro Mister Mitz - atacou, sentando-se na banqueta ao lado do advogado, impedindo-lhe a retirada.

- Mas... mas não estou a perceber - gaguejou ele.

Já tinha a testa transpirada e Rainie não lhe dava mais de dez minutos antes que começassem a cair grossas gotas de suor para o seu fato de linho. Aproximou-se dele e pousou despreocupadamente a mão na volumosa pasta de cabedal.

- Tem-se esforçado imenso para me encontrar, Mister Mitz observou Rainie.

- Sim. É verdade. Deixei-lhe várias mensagens na Virgínia, mas não sabia... Quando regressou à costa oeste?

- Incomoda-o?

- Sim. Quer dizer, não. De forma alguma - disse o advogado, recuperando o fôlego. - Teria sido mais simples fazer-me um telefonema a avisar. Poderia trazer todo o dossiê e vir prevenido. Mas já que está aqui...

- Interessa-se muito pelo meu passado, não é verdade?

- com toda a honestidade, devo informá-la de que sabemos tudo sobre o seu passado. Inclusive o... o incidente de há quinze anos. Mas ele não se preocupa nada com isso. Esteja descansada.

- Ele não se preocupa? De quem está a falar?

Rainie, sem entender nada, deitou um olhar surpreendido a Luke, mas este parecia tão baralhado como ela.

- Falou com ele, não falou? - apressou-se Mitz a acrescentar. Dei-lhe o seu número de telefone na Virgínia e ele prometeu que lhe telefonava. Afinal, seria mais adequado que fosse ele a dar-lhe a notícia.

Rainie pensou imediatamente no interlocutor anónimo que desligara várias vezes, sem lhe deixar mensagem. Sempre pensara tratar-se de Mitz. É sempre um erro pôr a carroça à frente dos bois.

- A que notícia se refere? - indagou maquinalmente.

- À herança, Miss Conner. É esse o motivo da minha presença aqui. Sou especialista em testamentos e represento-o.

- Mas representa quem .

- Oh, céus! - exclamou Mitz, pestanejando por detrás das lentes.

- Ele não lhe telefonou, pois não? E, no entanto, garantiu-me que o faria. Mas na nossa profissão é normal. Nunca se sabe como os clientes reagem.

- Mister Mitz, aconselho-o a que me explique tudo, se não quer que lhe parta todos os ossos do corpo.

Mitz pestanejou novamente.

- Fui contratado por Mister Ronald Dawson - confessou por fim quase num murmúrio. - O Ronnie acha que... bom, achamos que ele é seu pai. O que a torna a sua única herdeira, Miss Conner.

 

Portland, Oregon

- Tens um pai?

- Duvido muito.

- Não pareces muito contente...

- Contentei Estás a gozar comigo, não?

De pé, na suíte que Quincy e a rilha ocupavam num hotel do centro de Portland, sob os nomes de Larry e Barbara Jones, Rainie fitou Kimberiy, como se ela não tivesse todos os parafusos. Regressara de Bakersville em menos de uma hora e meia, ao passo que o trajecto demorava normalmente mais de duas horas a efectuar, fazendo ultrapassagens e desobedecendo a sinais de luzes. Quase abalroara um carro-patrulha e só não ficara sem a carta porque o polícia da brigada de trânsito era um amigo de Luke Hayes.

Em vez de se acalmar, percorria a suíte em grandes passadas como um animal enjaulado. Quincy estava a dormir no quarto ao lado. Kimberiy via televisão com uma expressão ausente quando Rainie irrompera como um furacão. Não a conhecendo o bastante para temer as suas mudanças de humor, Kimberiy tivera a infeliz ideia de querer saber a sua reacção ante a notícia de que talvez tivesse um pai. Furiosa ao ver-se encarada como cobaia pela jovem estudante de psicologia, Rainie decidiu que, se ela lhe deitasse mais um olhar curioso, a obrigaria a engolir o televisor.

- Antes do mais - replicou Rainie num tom cortante -, vejamos quem é o pai, o tal homem chamado Ronald Dawson, Ronnie para os íntimos. Um bandido da pior espécie que passou trinta anos de vida atrás das grades por homicídio qualificado. Só voltaram a pô-lo em liberdade aos sessenta e oito anos, por estar compleramente ancilosado

e não representar qualquer perigo para a sociedade. Mas garanto-te que não foi sempre assim. Aos trinta anos, degolou dois tipos numa rixa de bar. Segundo o seu

advogado, o Carl Mitz, o pobre Ronnie tinha circunstâncias atenuantes. Ou seja, estava demasiado bêbedo para saber o que fazia. Um pai, dizes tu!

- De qualquer maneira, contratou um advogado para te descobrir . arriscou Kimberly num fio de voz.

Rainie fuzilou-a com o olhar.

- Em segundo lugar - prosseguiu -, se o Ronnie anda à procura de um herdeiro é supostamente para lhe legar os bens, pelos quais nada fez. Herdou uma quinta de quarenta hectares em Beaverton. A quinta pertencia ao pai, mas nunca trabalhou nela, porque preferiu dar cabo tranquilamente dos seus conterrâneos num sábado à noite. Enquanto esteve na cadeia, foi o pai que se encarregou de tudo e fez prosperar a herdade. Na altura da explosão imobiliária em Beaverton, no começo da década de noventa, o pai vendeu as terras a um agente imobiliário , por dez milhões de dólares. Portanto, sinto-me grata ao avô Dawson, mas decerto concordas que me mostre menos afectuosa com o tal Ronnie .

- Lá diz o ditado que não se escolhe a família - retorquiu Kimberly com um leve sorriso.

- Continua assim, minha filha, e o Tristan Shandling não precisa rá de ter muito trabalho. Eu própria me encarregarei de dar cabo de ti.

- Então, Rainie. É mesmo assim uma boa notícia. A tua mãe morreu, não tens tios, tias, irmãos ou irmãs e cai-te assim um pai do céu. Um pai de carne e osso que procura encontrar-te por todos os meios.

- Não há nenhuma prova de que seja meu pai - explodiu Rainie ; num tom brusco. - Até prova em contrário, contentou-se em ir para a cama com a minha mãe há trinta e dois anos. E acredita que não foi o único.

- Hoje em dia, basta um teste de ADN para se saber.

- Não sei.

- Ora, Rainie!

- Digo-te que não sei. Esta história não me agrada nada. Nada mesmo! É

Porque ele é um preso, um ex-condenado.

- Claro que é um preso. A minha mãe não andava com muitos cientistas. Não é isso o que me espanta. O que me espanta é que o tenham posto cá fora.

- Então... é o dinheiro o que te desagrada? - retorquiu Kimberly, franzindo o sobrolho. - Tens toda a razão. Deve ser chato herdar dez milhões de dólares!

- Deixa-te de parvoíces, Kimberly! Sabes com o que é que sonham todos os órfãos? com os pais. Passam o tempo a fantasiar coisas do género: "Sou o último herdeiro do rei e da rainha da Prússia, forçados a esconderem-se para fugir aos comunistas." Ou então: "O meu pai é um Prémio Nobel de Física assassinado pelos serviços secretos de uma grande potência que queria apoderar-se das suas descobertas." Os miúdos inventam histórias, caricaturas da vida real. Contudo, ninguém sonha que o pai é um gângster ou um bêbedo. É sempre bonito, inteligente e rico.

Kimberly reflectiu por momentos, seguindo a linha de raciocínio de Rainie.

- Queres, portanto, dizer que esta história é falsa. Bela de mais para ser verdadeira.

- Como é que o Tristan Shandling opera? - perguntou Rainie, fitando Kimberly bem de frente. - Começa por identificar os desejos da vítima, antes de se lhe apresentar.

Há quinze anos que estou só no mundo, Kimberly. Tu própria falaste na ausência de tios, tias, irmãos e irmãs. A solidão é um sentimento que apenas aqueles que a viveram podem compreender.

- Contudo, nada te prova que seja uma armadilha, Rainie.

- Pensa na altura em que surgiu.

- Lá porque náo acreditas em coincidências, não quer dizer que elas não existam.

- Não te esqueças de que o Tristan Shandling tem o dom de se misturar com a paisagem. Seria capaz de se disfarçar de cordeiro para entrar no redil - respondeu Rainie, atirando-se para cima do sofá e martelando uma almofada com força.

- Tens medo - declarou Kimberly suavemente.

- Deixa-te de psicanálise barata.

- Não é isso. É só que... tens medo.

- Estava convencida de que ele se apresentaria como polícia - replicou Rainie. - Ou como detective particular. Embora conhecendo os seus métodos, não esperasse isto.

O tipo é um génio do mal. Sinto-me completamente dividida. Por um lado, incito-me a não cair na armadilha... Por outro, quase acredito no Pai Natal.

Kimberly foi sentar-se no sofá ao lado de Rainie. Tinha os cabelos louros apanhados atrás com uma fita. Graças às horas que dormira no avião, sentia-se mais repousada, mais revigorada. A gravidade dos acontecimentos parecia até ter-lhe aumentado a combatividade. Apesar da sua juventude, Kimberly não tinha medo de nada; a determinação compensava a falta de experiência.

- Analisemos a questão - disse num tom resoluto. - Qual é o passo seguinte?

- vou começar por fazer uma análise ao sangue para ver se o meu ADN corresponde ao do Ronald Dawson. O Mitz deu-me o contacto de um laboratório especializado.

- Parece-me sensato.

- Mas sabes quanto tempo podem levar a dar-me o resultado? retorquiu Rainie com um sorriso amargo. - No mínimo quatro semanas, talvez mais. Se for uma armadilha, o Shandling terá todo o tempo do mundo para conseguir o seu objectivo.

- Podemos fazer uma série de investigações primeiro - redarguiu Kimberly. - Dizes que o pai do Dawson vendeu as suas terras a um agente imobiliário de Beaverton. Nada mais fácil de verificar. O mesmo relativamente à condenação do Dawson.

- Já tratei disso. O Luke Hayes consultou o dossiê do Dawson a meu pedido e tudo corresponde. Também contactou os notários de Beaverton relativamente à venda dos terrenos.

- Fantástico! - exclamou Kimberly, excitadíssima.

Rainie não partilhava o mesmo entusiasmo. Além da fadiga, sentia um medo incompreensível, com toda a probabilidade devido a uma sua faceta vulnerável que sempre recusara assumir. Apesar de toda a sua desconfiança, não conseguia impedir-se de afastar do mais fundo de si um sentimento que em muito se assemelhava à esperança.

Aos trinta e dois anos, nunca passara o Dia de Acção de Graças, o Natal ou a Páscoa em família. Quando fazia parte da polícia de Bakersville, pedia sempre para trabalhar nos dias feriados por não ter mais nada que fazer. Ao longo do ano, via os colegas a regressarem à noite a casa. Ouvia-os a queixarem-se dos sogros, a criticarem as festas de família, a troçarem dos presentes pirosos que os filhos preparavam para o Dia do Pai. Aos seus olhos, a família era um clube reservado a uma elite, um domínio privado a que ela não tinha direito. E, quando a convidavam para jantar, ficava invariavelmente numa ponta da mesa, com a impressão de receber uma esmola.

Se, ao menos, Quincy estivesse acordado. Queria falar-lhe de tudo aquilo. Talvez desejasse mesmo que a abraçasse e lhe murmurasse palavras ternas. Ele sempre lhe garantira que era preciso confiar no destino. Fácil de dizer...

- Há oito meses, apareceu um tipo em Bakersville que se pôs à procura da minha mãe - confessou ela a Kimberly. - O Luke levou bastante tempo a dizer-mo e nunca mencionou o nome dele por não lhe parecer importante. Na verdade, tratava-se do Ronald Dawson. O Luke ainda tinha a indicação nos apontamentos. Umas semanas após a passagem do Dawson por lá, o delegado do Ministério Público decidiu retirar as acusações contra mim. Na altura, pensei que fosse por intervenção do Quincy e fiquei irritada com ele. Esta tarde, depois do encontro com o Mitz, liguei ao adjunto. Na realidade, o Quincy nunca lhe telefonou; ele recebeu ordem para arquivar o caso do próprio delegado. Este faz tenção de se candidatar às próximas eleições. Segundo o adjunto, o seu comité de campanha teria recebido uma choruda soma de um tal Ronald Dawson.

- Mas, então, esta história não é uma coincidência, Rainie! Tens aí a prova de que o Ronald Dawson não é uma invenção do Tristan Shandling, pois há mais de um ano que andava à tua procura.

- Não te esqueças de que há vinte meses que o Shandling está no activo. Pode tratar-se perfeitamente de parte do esquema.

- Só que nessa altura ele só se interessava pela Mandy. A minha mãe veio muito mais tarde. Esse tipo pode ser maquiavélico, mas não tem o dom da ubiquidade.

- Na época da televisão por cabo e da Internet não me parece que as distâncias sejam um problema para ele. Além disso, Oregon fica apenas a umas horas de avião da costa leste. É mesmo possível ir e voltar no mesmo dia. Cansativo, mas possível.

- Mesmo assim há meios mais baratos e mais simples de te apanhar do que untar as mãos a um delegado do Ministério Público - retorquiu Kimberly.

- Não me parece que Mister Shandling ande propriamente a contar os cêntimos. Tem um Visa falso. Quanto à simplicidade, já se viu que não é do seu âmbito.

- Diz-me a verdade - pediu Kimberly, franzindo o sobrolho. Queres ou não que este tipo seja mesmo o teu pai?

- Não sei. Garanto-te que é verdade. Não sei mesmo. Kimberly manteve-se silenciosa uns momentos.

- Nunca me tinha apercebido de que eras tão pessimista, Rainie - disse por fim.

- Ora! Deixa-te de psicologias de trazer por casa!

- Mas é verdade! Talvez esteja prestes a acontecer-te uma coisa fantástica e fazes tudo para criares uma barreira de defesa, convencendo-te a ti própria de que é impossível. Estou aqui a pensar... Claro! É por isso que te entendes tão bem com o meu pai.

- Por amor de Deus, Kimberly! Não é propriamente dessas parvoíces que preciso neste momento.

Contudo, Kimberly não se deixou convencer.

- Até aqui, estava convencida de que o problema na vossa relação era o meu pai - prosseguiu. - Por vários motivos: as dificuldades de se entender com o pai dele, a sua reserva com os próprios filhos, o distanciamento com a minha mãe. Mas agora sei que o problema não está no meu pai. És tu que não confias nele. Estou errada, Rainie?

- Por que raio é que todos vocês insistem em falar na confiança, como se a vida fosse um filme da Walt Disney? Tens de compreender que a minha mãe me batia por mero gozo, Kimberly. Quanto ao meu pai, foi um mero dador de esperma que fodeu a puta de Bakersville, antes de partir para outro lugar. Dezassete anos mais tarde, o amiguinho de momento da minha querida mãe decide que prefere carne fresca, vira as atenções para mim e ainda me falas de confiança? Claro que passo a vida a desconfiar dos outros. Embora a minha mãe fosse uma puta alcoólica e agressiva, amava-a. Acredita que o mundo em nada se assemelha ao universo da Disney.

- O meu pai não bebe.

- Dá-lhe uns dias e verás - redarguiu Rainie num tom amargo.

- Até há três dias também não dizia palavrões e tinha horror à palavra vingança. Vê como mudou em tão pouco tempo.

- O papá nunca te faria mal - declarou Kimberly com uma expressão grave.

- Que mal fiz eu a Deus para que passe o tempo a impingir-me psicólogos baratos? - resmungou Rainie. - Ouve bem, Kimberly. Sei que o teu pai é diferente dos outros. Mas não basta saber. Não sei muito bem se me faço entender. Uma coisa é ter uma visão racional dos factos, outra é estar convencido por dentro. É inútil repetir a mim própria que o Quincy não é como os outros, que nunca me fará mal. Não chega para confiar nele. Não é de um dia para o outro que se mudam os hábitos de uma vida inteira. Confiar cegamente, sem pudor nem reservas, não está ao alcance de todos.

- É inútil repetir a mim própria que a minha mãe morreu... Não acredito - confessou Kimberly num tom pensativo.

- Vejo que entendeste - redarguiu Rainie, assentindo com a cabeça.

- Tento convencer-me de que a culpa não é da minha mãe, da Mandy, nem do meu pai, mas sinto-me zangada com todos eles. Por me terem abandonado. Passaram a minha vida a dizer-me que era forte e capaz de encaixar tudo, mas não quero ser forte. E por isso que me sinto zangada.

- Tenho o mesmo pesadelo duas ou três vezes por semana - explicou Rainie. - Vejo um elefante bebé a correr pelo deserto. Ele perdeu a mãe e procura desesperadamente uma gota de água. Surge, então, uma manada de elefantes, mas, em vez de o ajudarem, fazem tudo para afastá-lo, considerando-o uma ameaça à sua própria sobrevivência. Apesar de tudo, ele segue a manada aos tropeções. Num dado momento, os elefantes encontram água. Então, sinto-me aliviada, convencida de que o pequeno elefante vai salvar-se, que a sua persistência valeu a pena. Mas, nesse preciso instante, aparece um bando de chacais esfaimados. Desfazem-no em bocados e acordo, sobressaltada, com os gritos do elefante bebé na cabeça. Ignoro porquê, mas não consigo fugir a este pesadelo.

- No ano passado - reagiu Kimberly -, estudámos a fase da infância em que todos os miúdos querem que se lhes conte sempre a mesma história. Segundo os especialistas, as crianças identificam-se com a problemática da história e precisam de a ouvir um número de vezes suficiente até a assimilarem.

- Achas que tenho uma idade mental de quatro anos?

- Não, mas identificas-te com um dos protagonistas da tua história. Provavelmente com o elefante bebé.

- No meu sonho é ele que morre.

- Sim, mas luta para sobreviver.

- Ninguém o ajuda. Ele faria qualquer coisa para se juntar à manada, mas teria agido melhor em viver só.

- Ele segue o seu instinto. E o instinto gregário que rege a humanidade e está provado que a união faz a força.

- Não no meu sonho, pois o que provoca a morte ao elefante bebé é o seu desejo de se unir aos outros.

- Não acredito, Rainie. No teu sonho, é, pelo contrário, esse desejo o que o mantém vivo. Porque é que ele decide atravessar o deserto?

E porque se levanta sempre apesar de tudo? Não é só para viver. Se luta é para se juntar à manada, com a esperança de ser reconhecido pelos outros, caso se mostre suficientemente forte. Quer a manada encontre água e ele consiga um lugar entre eles, quer acabem por aceitá-lo devido à sua força de carácter. Em qualquer destes casos, unir-se-á à manada. Tal como tu, Rainie. A tua mãe batia-te, mas tu continuavas a pensar que as coisas iam melhorar. Se não fosse o teu instinto de sobrevivência, estarias morta de uma cirrose ou já te terias suicidado. Não o fizeste. Porquê?

- Porque sou teimosa - murmurou Rainie. - E estúpida.

- Sem dúvida - anuiu Kimberly com um sorriso. - Mas também porque acreditas no futuro. Há coisas que te incomodam, o que é normal. Também eu, por exemplo, espero sinceramente matar esse safado do Shandling, o que me põe pouco à vontade. Levarei algum tempo a habituar-me à ideia.

- Kimberly - pronunciou Rainie carinhosamente. - Não costumo meter-me na vida dos outros ou dar-lhes conselhos, mas não faças isso. O Shandling é um tipo abjecto e ias pôr-te ao nível dele, se o fizesses. Nunca conseguirias recompor-te.

- Porque dizes isso?

- Porque o sei. Matei uma pessoa, Kimberly. Graças ao Ronnie Dawson, a justiça acabou por me deixar em paz, mas a verdade é que assassinei alguém aos dezassete anos, o que me torna uma criminosa. Nunca virei a saber que adulta seria, caso não o tivesse morto. Acredita que não é uma coisa com que se possa conviver diariamente.

Para não mencionar que se tirou a vida a uma pessoa, o que é um peso adicional.

- Não... não sabia.

- Cada um carrega o seu fardo na vida - replicou Rainie, encolhendo os ombros. - Mas pensa duas vezes, antes de pores uma pedra ao pescoço.

- Mas ele não vai deixar-nos em paz - insistiu Kimberly. Nunca o fará, salvo se o matarmos. Precisamos de defender-nos, Rainie.

Meia hora mais tarde, Kimberly adormecera no sofá, o rosto oculto pelos compridos cabelos louros. O Sol quase desaparecera no horizonte e as paredes brancas da sala começavam a escurecer. Lá fora, o ar devia ser irrespirável, mas na suíte com ar condicionado estava-se bem, e Raime deixou-se ficar muito tempo encostada ao parapeito, a observar o movimento da rua, seis andares abaixo. A diferença norária começava a produzir o seu efeito. Kimberly dormiria provavelmente toda a noite e não lhe chegava qualquer ruído do quarto onde Quincy descansava.

Depois de todas aquelas horas de angústia e agitação, a calma que reinava na suíte era quase irreal. Rainie nunca tinha percebido até que ponto amava e detestava o silêncio ao mesmo tempo.

Estava obcecada com a ideia de que talvez tivesse um pai. Era tão pouco provável... Um dia a mãe dissera-lhe, com a sua habitual delicadeza, que o seu pai poderia ter sido qualquer um. Na altura em que ela fora concebida, deitara-se com uma boa dezena de tipos de cujos nomes se esquecera. "Os homens

são como a maré", dissera-lhe Molly. "Partem tão depressa como chegam. Portanto, não tenhas muitas ilusões."

Aos trinta e dois anos, Rainie continuava sem ter uma ideia do pai. Na sua cabeça, ele não tinha olhos, nem cabeça ou idade. Era apenas uma silhueta negra, como a que se vê por vezes nas revistas com um grande ponto de interrogação branco no meio. Dei-te a vida. Sabes quem sou?

Rainie não fazia a mínima ideia.

Talvez tivesse mesmo um pai. A menos que se tratasse de uma armadilha com a assinatura de Tristan Shandling. Precisava de esforçar-se por acreditar e não se deixar levar uma vez mais pelo cinismo.

Afastou-se da janela, atravessou a sala e empurrou a porta do quarto. As persianas estavam descidas e a divisão mergulhada numa obscuridade intersectada pela luz do fim do dia. Quincy dormia completamente vestido, em cima da colcha, com um braço estendido ao longo do corpo e o outro por cima da cabeça. Contentara-se em tirar os sapatos e a gravata. Pousara a arma em cima da mesa-de-cabeceira, ao alcance da mão.

Rainie entrou no quarto e fechou a porta atrás dela. Estendeu-se ao lado de Quincy, sem que ele se mexesse. Tinha o colarinho da camisa branca aberto, por onde saíam uns tufos de pêlos escuros que ela já acariciara. Nesse dia, chegara a sentir-lhe o coração. - Quincy - chamou baixinho para não o assustar. - Sou eu.

Ele suspirou fundo sem acordar e virou-se para o outro lado. Sentada contra ele, respirou devagar o seu perfume. Há um ano que o conhecia e ainda não sabia que perfume é que ele usava. Interrogou-se sobre a razão de nunca lho ter perguntado. Na altura em que se viam com regularidade, levava sempre o cheiro dele para casa, como se fosse um tesouro. Adormecia a cheirar a Quincy, aconchegando-se no meio da roupa. Quando acordava na manhã seguinte e o odor já havia desaparecido, ficava desapontada...

Estendeu a mão e tocou-lhe delicadamente no ombro. O tecido da camisa de algodão era macio e o braço quente. Desta vez, não a afastou. Rainie não se mexeu, surpreendida

por não ter medo nem se sentir desconfortável, por não ver desfilar ante os olhos campos de flores ou a água de um ribeiro, todos esses artifícios de que sempre se servira para escapar aos companheiros de uma noite. Naquela ocasião, havia apenas o calor do corpo dele contra o seu. Lembrou-se da última noite que haviam passado juntos. Desejara-o verdadeiramente. E ficara tanto mais espantada quanto nunca se julgara capaz de desejar alguém. Kimberly garantira-lhe que Quincy nunca lhe faria mal. Ela já o sabia e estava convencida disso. Mas daí a aceitar essa verdade... As pessoas têm mil e uma maneiras de nos magoar. Podem bater-nos, ferir-nos; podem também morrer e abandonar-nos à nossa solidão sem esperança. Podem deixar-nos física e moralmente destruídos, com o único desejo de nos fazer pagar até à última gota, nem que isso signifique a sua própria degradação.

E quando a nossa própria mãe já não pode fazer-nos nada porque morreu, também existe a autopunição. Podemos escolher entre castigarmo-nos diariamente ou prolongarmos a violência que nos destruiu, simplesmente porque não sabemos agir de outro modo.

Pode fazer-se tudo isso ou, então, tentar mudar. Pode deixar-se de beber. Pode deixar-se de ir para a cama com todos. Pode tentar-se conseguir um pouco de auto-estima. Mas para tal é necessário confiar em si próprio, e Rainie ainda tinha de fazer muitos progressos nesse domínio. Sempre pensara que era mais fácil mostrar-se agressiva e dura, para jamais ser acusada de haver querido criar ilusões.

Poderia ter morrido no deserto, mas optara por lutar, a fim de encontrar o seu lugar no mundo dos humanos. Contudo, ainda não aprendera a viver.

Encostou a cara às costas de Quincy. Sentia-lhe as batidas do coração. Batidas regulares, lentas, fortes. Pôs-lhe o braço à volta da cintura e ele murmurou palavras ininteligíveis no sono. E depois agarrou-lhe na mão.

Rainie esperou que o medo a invadisse, esperou as imagens de campos de flores e rios da montanha. Nada disso aconteceu.

Inalou demoradamente o perfume dele, arrebatada pelo calor da mão na sua e dizendo de si para si que nunca se sentira tão bem. Por fim, fechou os olhos e adormeceu, agarrada a Quincy.

 

Casa de Quincy, Virgínia

- Onde estiveste? Procuraram-te por todo o lado.

Era sábado e até mesmo para uma agente do FBI ser acordada às seis e meia da manha não era agradável: Glenda Rodman, com o olhar enevoado pelo sono, no vestíbulo de entrada da casa de Quincy, dirigia-se ao seu colega AlbertMontgomery, que acabava de chegar. Há quarenta e oito horas que Rodman não lhe punha a vista em cima. Passara a noite no escritório de Quincy, sentada na sua poltrona e tinha o fato cinzento todo amarrotado. O rosto vira melhores dias e não apenas por causa do cansaço. Todos aqueles dias a ouvir os telefonemas ameaçadores deixados no atendedor de chamadas de Quincy haviam deixado as suas marcas.

E as coisas não ficaram por ali. Há algumas horas que tinham começado a chegar presentes. Na véspera de manhã, um cão mutilado na caixa de correio de Quincy. À tarde, quatro cascavéis soltas junto ao portão de entrada. Duas tinham conseguido deslizar para o jardim e as outras puseram-se a reconhecer o bairro, chamando a atenção de um gato e de uma criança de dois anos. Por sorte, a mãe da criança afastara-a a tempo e os bombeiros, chamados de urgência, tinham-se encarregado de controlar a situação. Nessa mesma noite, um interlocutor anónimo, visivelmente orgulhoso de si próprio, anunciara a Quincy no atendedor que no dia em que as cascavéis tivessem acabado com ele, teria todo o prazer em vir esfolar pessoalmente o agente e fazer um cinto com a sua pele.

Quando finalmente adormeceu, Glenda não teve propriamente sonhos cor-de-rosa.

Agora, de cenho franzido, deitou um olhar furibundo aMontgomery, que, contrariamente a ela, tivera tempo de tomar um duche e mudar de roupa desde que o vira pela última vez. A raiva da agente fazia pensar na das mulheres enganadas que vêem regressar o marido tarde e a más horas.

- Onde achas que estive? - perguntouMontgomery com um ar surpreendido, fechando a porta com o pé atrás de si, antes de despir o velho impermeável. - Fui a Filadélfia investigar, claro.

- A Filadélfia? Lembro-te que a nossa missão era a de vigiarmos juntos a casa do Quincy.

- Sim, mas isso foi antes de ele transformar a mulher em picadinho. Imaginas, por acaso, que os agentes locais sáo capazes de tratar devidamente um cenário desses? Raios! Tive até de lhes mostrar como se examinam estilhaços de vidro. Esses pobres idiotas estavam convencidos de que a janela fora partida do lado de fora.

-Montgomery, lembro-te de que a tua missão...

- Podes enfiá-la pelo cu acima. Não se encontrará nada de interessante aqui, Rodman.

É em Filadélfia que se desenrola a acção e, se queremos perceber o que se passou, é lá que temos de concentrar-nos.

- Esta casa não está tão calma quanto parece.

- Só por causa dos telefonemas e do cadáver de um cão? Tens razão, Rodman. Diz-me lá o que descobriste de interessante nestes últimos três dias.

Glenda Rodman mudava o peso do corpo de um pé para o outro sob o olhar cheio de insinuações do colega.

De facto, à excepção dos telefonemas, não se tinha passado grande coisa nos últimos dias. Fora, pelo contrário, em Filadélfia que haviam assassinado a pobre Bethie. Na véspera, Everett telefonara a Glenda para a avisar de que o pai de Quincy tinha sido raptado da casa de repouso de Rhode Island. Everett pusera imediatamente três dos seus agentes a trabalhar no caso, mas, a julgar pela sorte reservada à ex-mulher de Pierce, ninguém tinha muitas ilusões quanto ao futuro do pai.

O que se passara nas últimas quarenta e oito horas não fora na casa de Quincy. À excepção de escutar o triste rosário de ameaças contra o dono da casa, Rodman contentara-se em aguardar num estado de tensão crescente. Contudo, era essa a missão que lhe havia sido confiada e Glenda Rodman não costumava pôr em causa as decisões dos seus superiores hierárquicos. E chocava-a queMontgomery não tivesse tido a decência de a consultar, embora soubesse o que esperava a colega na casa de Quincy.

- É indispensável detectar a origem desta fuga de informação declarou aMontgomery. - E quem sabe se o culpado não acabará por vir aqui?

- Que culpado? O perseguidor fantasma com que o Quincy nos martela a cabeça? Espera aí, Rodman. Não vais por acaso dizer-me que acreditas nesse rol de mentiras.

- Não entendo...

- Entendes e muito bem. Contudo, já que precisas de que ponha os pontos nos ii, vou explicar-te o que descobri nas minhas quarenta e oito horas em Filadélfia. Primeiro, ninguém assaltou a casa daquela mulher.

Tudo foi encenado de forma a fazer-nos pensar que a vítima não conhecia o agressor, mas é treta. A história até parece um desses shows da Broadway. A começar pela janela da casa de banho pela qual o culpado terá supostamente entrado. Foi partida do lado de dentro, Rodrnan, e os pedaços colocados de maneira a ocultar o facto. Temos, em seguida, esse sistema de alarme de último grito destinado a proteger a casa... desactivado com a ajuda do código secreto perto das dez horas da noite, ou seja, quando a vizinha jura que viu Elizabeth Quincy a entrar em casa com um homem que corresponde à descrição do Quincy. Até mesmo o cenário do crime prova que tudo se desenrolou muito rapidamente, sem violação nem tortura, ao contrário do que se pretendia que acreditássemos. Aposição do corpo, as mutilações, tudo uma treta! Só para nos fazer engolir a tese de um predador sexual sádico.

- Estás convencido de que o Quincy matou a mulher!

- Não estou convencido, mas sei. Só que, contrariamente a ti, não tenho uma carreira a proteger no FBI e isso permite-me uma certa lucidez frente ao teu querido Quincy. É incrível a atitude das pessoas face às hierarquias! A mera ideia de desconfiar do Quincy põe-vos todos a tremer de medo...

- Cala-te!

Furiosa, Glenda virou-lhe as costas e refugiou-se na cozinha, ondeMontgomery foi juntar-se-lhe uns instantes depois.

- Sei perfeitamente que não gostas de mim, Glenda. Não precisas de fazer-me um desenho - insistiu. - Tenho consciência de que não me visto bem, não engraxo os superiores e recuso o papel de soldadinho obediente, sempre que me dão ordens. Mas isso não faz de mim um idiota.

- A tua incompetência nada tem a ver com a tua maneira de vestir, mas com a tua conduta no caso Sanchez.

Monrgomery não esperava um ataque tão directo e cerrou os punhos.

- Há muito tempo que não me vinham com uma dessas! - retorquiu.

Glenda sentiu-se repentinamente melhor, pois acabava de ganhar um ponto. Sabia, desde o início, que o crime de Society Hill não era tão óbvio como parecia, mas ainda tinha dificuldade em escutar os argumentos de um colega tão suspeito comoMontgomery. Longe de aceitar a tese dele, passou à ofensiva.

- Toda a gente sabe que lixaste o caso Sanchez.

- Enganei-me, é tudo. Pode acontecer a qualquer um.

- Mas foi o Quincy que salvou as aparências.

- Nunca disse que ele era um mau profissional.

- Ora! Toda a gente sabe que não tens o mínimo respeito por ele! Já foi difícil aceitares que te enganaste, quanto mais haver um colega que resolve o enigma e fica com o mérito. Isso ficou-te atravessado na garganta. Confessa, Albert. Quantas vezes passas em revista todo o caso e detestas o Quincy por causa da tua incompetência? Estou errada? O silêncio deMontgomery falou por si. O agente foi mesmo ao ponto de desviar os olhos.

- Há anos que aguardas este momento - prosseguiu Glenda Rodman. - Este caso deu-te a oportunidade ideal de torpedeares a carreira do Quincy.

- Não!

- Sim. Confessa.

- Não! Raios! Já te disse que não! - rugiuMontgomery, obstinado. Parecia uma criança apanhada na teia das suas próprias mentiras.

Visivelmente incomodado, procurava a todo o custo uma saída elegante.

- Queres, então, saber a verdade? - acabou por confessar. - Não vais acreditar, nem tu nem ninguém, mas pouco me importa. Só aceitei ocupar-me deste caso para ajudar o Quincy. Surpreendida? Mas não é difícil de perceber. Depois do caso Sanchez, pensei que, já que não podia ser o herói, podia pelo menos salvar o herói. Ganharia, assim, um lugar ao sol.

- O quê? - retorquiu Glenda, estupefacta.

- Queres que te faça um desenho? Julguei que podia ajudar o Quincy. E é verdade! Pensei também que isso podia ajudar-me a refazer a minha carreira. Não sou um santo como Mister Quincy, mas também não sou um idiota chapado. Tinha consciência de que só uma boa acção me daria um futuro no FBI. Estou com cinquenta e dois anos, Glenda. A minha ex-mulher não quer ver-me nem pintado, nem os meus filhos. Tenho, quando muito, novecentos dólares no banco. Como queres que me safe se me despedirem?

Glenda franziu o sobrolho, sem saber o que pensar. Não sentia qualquer simpatia porMontgomery, mas ele argumentara de uma forma plausível. Podia ser vulgar e indisciplinado, mas nada tinha de estúpido. Pelo menos, estava certo num ponto. No seio de uma instituição como o FBI, salvar um colega era um acto heróico. SeMontgomery fosse o primeiro a deitar a mão a quem perseguia Quincy, teria uma segunda oportunidade na carreira. Provavelmente a única.

- E apesar de todas as tuas boas intenções - retomou Glenda -, estás agora convencido de que o Quincy matou a ex-mulher.

- Podes crer.

- Gostava de saber o que te levou a mudar de opinião. O facto de tudo ter sido encenado?

- Isso e muitas outras coisas - respondeuMontgomery com um encolher de ombros. - Para te falar verdade, todos esses telefonemas me deixam perplexo. Se quisesses mesmo mal a alguém e tivesses o seu número de telefone, achas que te divertirias a passá-lo a presos para que eles deixassem ameaças aberrantes, quando podias matá-lo a qualquer momento? Eu não. Suponhamos que o Quincy é mesmo perseguido por alguém. Trata-se, sem dúvida, de um tipo que se cruzou com ele em qualquer altura da sua carreira. Um psicopata, portanto. Tu que conheces os psicopatas, diz-me

se algum deles se divertiria a falar em matá-lo, podendo ele fazê-lo?

- Debatemos longamente esse problema. Trata-se de uma simples armadilha para baralhar as pistas e criar uma infinidade de suspeitos possíveis.

- Exacto. Mas, por outro lado, essa pequena teoria tem o inconveniente de colocar a potencial vítima à defesa - retorquiuMontgomery.

- O inconveniente é de vulto, especialmente numa época em que é tão fácil cometer um crime no anonimato. Não faltam sites na Internet a explicarem o modo de cometer o crime perfeito. Ignoro a tua opinião, mas eu pensaria duas vezes antes de atacar um tipo como o Quincy, ainda mais se ele estivesse ao corrente de que querem eliminá-lo. Preferia de longe o elemento surpresa.

- Quem diz que o culpado preferia a facilidade? Partindo do princípio de que a vingança era o móbil, podia perfeitamente querer que ele sofresse o máximo antes de o matar.

- Talvez. Ou talvez estejamos a complicar tudo. A minha teoria é mais simples e mais plausível. Suponhamos que o Quincy montou esta história de fio a pavio. Ele próprio arranjou maneira de pôr o seu número a circular por todas as prisões da América através de pequenos anúncios, antes de ir pedir ajuda ao Everett, sabendo de antemão que o Everett abriria logo um inquérito. A partir de então, no dia em que se sabe que a sua mulher foi brutalmente assassinada, o FBI em peso está disposto a jurar à polícia de Filadélfia que o Quincy é perseguido por um misterioso desconhecido. Para dar mais consistência ao caso, o seu pai é raptado no meio de toda a confusão. Mas será que esse misterioso desconhecido existe mesmo? E se fosse um golpe montado pelo Quincy com o objectivo de matar a sua ex-mulher com toda a impunidade?

- Essa história não pega, Albert. Estás a querer dizer-me que o Quincy montou uma armadilha ao FBI e fez mal ao próprio pai para matar tranquilamente a mulher?

- Nota que ainda não foi encontrado o corpo do pai!

- O Abraham Quincy é um homem de idade que sofre de Alzheimer. Há mais de vinte e quatro horas que desapareceu da casa de repouso onde se encontrava internado. Não, a tua história não tem fundamento.

- Estás a esquecer que o papá Quincy foi levado pelo Pierce Quincy em pessoa e identificado.

- Qualquer um pode falsificar uma carta de condução.

- Sim, ou usar uma verdadeira. Ainda não se encontrou o corpo, Glenda. O velho Abraham pode ter sido instalado facilmente em qualquer lugar pelo próprio filho. Verás que, se a polícia engolir a tese do assassino fantasma, o papá Quincy voltará a aparecer milagrosamente de um dia para o outro, após ter escapado às garras do agressor. A menos que o Quincy faça um telefonema anónimo aos investigadores e se encontre o pai algures. Em qualquer das hipóteses, o Quincy safa-se sem problema.

- Tenho dificuldade em acreditar nisso e por três boas razões

protestou Glenda. - Em primeiro lugar, viste o Pierce em Filadélfia e não tinha o mínimo vestígio de sangue.

- Fácil. Matou a ex-mulher de surpresa. Portanto, ela não teve tempo de o arranhar ou ferir. Quanto ao sangue, sabe-se que o assassino se lavou no local do crime. Encontraram-se vestígios nos canos.

- Além disso, continuo sem perceber qual poderia ser o móbil prosseguiu Glenda, sem perder a calma. - Há anos que o Quincy e a mulher estavam divorciados. Estás para aí a descrever um esquema longamente premeditado, mas esqueces de dar uma razão válida para este crime monstruoso.

- É verdade que não tenho explicação - anuiuMontgomery. Ainda é demasiado cedo. Quem te disse que ela retirou o nome dele do seguro de vida? Ou que não o responsabilizava pelo acidente da filha? Deixa-me investigar e encontrarei o que procuro, garanto.

- Vejo é que a tua teoria não tem pés para andar - redarguiu Glenda com uma expressão satisfeita. - Por fim, está precisamente a morte da filha. O Quincy tem provas de que não se tratou de um acidente, como se julgava. AAmanda Quincy foi assassinada, provavelmente pelo mesmo desconhecido.

- O quê?! - exclamouMontgomery, perdendo o fôlego. - Sempre disseram que a filha foi vítima de um acidente de viação. Condução em estado de embriaguez. Qual é a relação com um crime?

- Concluiu-se que alguém avariara o cinto de segurança e que havia uma pessoa no lugar do passageiro quando se deu o acidente. A polícia da Virgínia acaba de reabrir a investigação.

- Talvez tenha sido a própria filha a avariar o cinto de segurança para se suicidar.

- Tu falas mesmo por falar, Albert. Se ela tivesse querido suicidar-se, bastava-lhe simplesmente não colocar o cinto. Não precisava de avariá-lo - replicou Glenda, encolhendo os ombros com um ar desdenhoso.

- Hum... - grunhiuMontgomery.

Visivelmente desacoroçoado, começou a percorrer a divisão de um lado para o outro com um esgar, antes de retomar a palavra.

- Não sei. Preciso de reflectir em tudo isso - declarou por fim.

- Esta história é inacreditavelmente complexa - confessou Glenda. - Três dos familiares de um dos nossos agentes estão mortos ou desaparecidos. Não devíamos tirar conclusões precipitadas.

- O Everett não é dessa opinião.

- Já falaste da tua teoria ao Everett? - surpreendeu-se Glenda.

- Claro que sim. Telefonei-lhe ontem à noite. Se for o Quincy o assassino, o FBI acabará por sofrer com isso. Era normal que lhe falasse.

- Não devias tê-lo feito, raios!

- Porque não, Glenda? Detestas-me mesmo para dizeres isso replicou, abrindo a porta do frigorífico com um gesto brusco.

Glenda, de pé no meio da cozinha, os punhos cerrados e o coração semelhante a um cavalo de corrida, tentava desesperadamente manter a calma. Nunca sentira tamanha raiva em toda a sua vida e recriminava-se por perder assim o sangue-frio. Agora que estava ao corrente, havia fortes probabilidades de que Everett mandasse regressar Quincy de urgência. Não lhe restava alternativa. E se Quincy estivesse inocente, a sua vida encontrava-se agora mais do que nunca em risco.

Estúpido de merda,Montgomery. Porque é que não podias ter esperado mais um ou dois dias? Mas tinhas de mostrar zelo para ganhares louros. Safado!.

O toque do telefone interrompeu os sombrios pensamentos de Glenda e o atendedor disparou. A agente tentou minorar a dor de cabeça, massajando lentamente as fontes, mas em vão. Já não sabia o que pensar.Montgomery tinha levantado algumas questões interessantes e, se Quincy fosse realmente o assassino, cabia-lhe a ela desmascará-lo.

Por outro lado, se não houvesse nada a reprovar-lhe e tivesse dito a verdade...

Fosse como fosse, estavam todos prestes a cair na armadilha montada pelo assassino e este devia estar a esfregar as mãos de contente. A essa hora, estaria decerto encantado por ter posto três dos melhores agentes do FBI a dançar ao som da sua melodia. O que podia fazer Quincy, se Everett lhe desse ordens para regressar? A partir do momento em que franqueasse a ombreira do seu gabinete, pedir-lhe-iam que devolvesse o distintivo e a arma de serviço. Deixaria, assim, de poder ajudar a filha. Mas Quincy tinha, de facto, alternativa? Não podia infringir a lei para defender Kimberly. O FBI nunca o permitiria e todos conheciam a eficácia com que sabiam meter na ordem os funcionários recalcitrantes.

Duas hipóteses... e nenhuma delas brilhante para ninguém. De qualquer maneira, ou Quincy era o criminoso mais inteligente com que o FBI alguma vez lidara ou a vítima da maior das injustiças.

A campainha do faxe soou no escritório. Um leve ruído anunciou que a máquina estava em funcionamento e Glenda resolveu ir ver de que se tratava, deixandoMontgomery na cozinha, entregue aos seus pensamentos.

Era o relatório preliminar do laboratório sobre o original do anúncio colocado no Boletim das Prisões Americanas. Eram ao todo quatro páginas que Glenda leu atentamente à medida que saíam do aparelho.

Tinham encontrado cinco impressões digitais na folha de papel em que fora dactilografado o anúncio. Todas pertenciam a funcionários do Boletim das Prisões Americanas. Não havia cabelos nem qualquer fibra de tecido, apenas uns grãos de poeira idêntica à que havia na sede do jornal. E para completar, não se encontrara o mínimo vestígio de ADN no papel ou no envelope.

Contudo, os funcionários do laboratório tinham-se divertido a examinar o documento com uma minúcia que lhes permitira encher três páginas de relatório. Ficara demonstrado que a tinta usada provinha de um tinteiro negro de impressoras laser HP, o que reduzia o campo de investigação a milhões de máquinas desse tipo comercializadas por todo o planeta. Quanto ao programa de computador de que se servira o autor do anúncio, fora possível determinar que era PowerPoint. As maravilhas da tecnologia...

Glenda suspirou, lembrando-se da época gloriosa em que os criminosos ainda escreviam à mão. Para que poderia servir a análise de um sistema informático? O tratamento de texto acabara com os pontos de interrogação hesitantes e os "t" cortados com raiva. Os investigadores tinham um bom motivo para se preocuparem quanto ao futuro de uma época em que os assassinos em série começavam por se servir de um programa da Microsoft antes de passarem às coisas sérias.

A última página do relatório era nitidamente mais esclarecedora. Em vez do papel branco vulgar que seria de esperar, o redactor do anúncio servira-se de um papel de escritório, com marca-d água. Fora, por conseguinte, fácil identificar o fabricante; segundo os especialistas do laboratório, o papel provinha de Itália e era vendido exclusivamente numa pequena loja de luxo, em Old Bond Street, em Londres. Vendiam-se, aparentemente, duas mil caixas por ano no mundo inteiro, ao preço de cem dólares por vinte e cinco folhas.

Glenda pousou o relatório. Sabia-se, portanto, que o desconhecido era dono de um computador com o programa PowerPoint e tinha gostos requintados em matéria de papel de carta. com os diabos, quem poderia divertir-se a enviar pequenos anúncios para um boletim de presos num papel de cem dólares? Imaginou folhas apresentadas em atraentes caixas de cartão decoradas com flores secas e com uma bonita cinta à volta. Talvez um presente que uma mulher podia oferecer ao marido, uma filha ao pai, um patrão a um dos empregados?

Glenda olhou em volta, examinando o elegante escritório de Quincy, a luxuosa secretária, o seu faxe de último modelo, o sofá de couro. Tudo de bom gosto. O tipo de mobiliário que Bethie Quincy, como digna esposa burguesa, devia ter escolhido para o escravo de trabalho do marido na altura em que ainda eram casados...

Glenda abriu maquinalmente a primeira gaveta da secretária e encontrou lápis, canetas, um porta-cheques Louis Vuitton. Continuando a busca, foi abrindo as várias gavetas. Por fim, na última, havia três maços de papel de carta, quase por encetar.

Enganara-se ao imaginar caixas de cartão decoradas com flores secas, envoltas numa bonita cinta. O papel de carta de Quincy encontrava-se no interior de luxuosas caixas de madeira de sândalo, atadas com uma tira de cabedal. Papel de carta de luxo, importado de Itália, fabricado pela Papelaria Geppetto. Ao todo, Quincy tinha ainda dezanove folhas. - Quincy! - balbuciou Glenda, com a caixa na mão. - Como pudeste fazer-nos isto?

 

Portland, Oregon

Quando Rainie acordou, Quincy já não estava ao seu lado. Deitou um olhar de relance para o despertador cujos dígitos vermelhos brilhavam no escuro sobre a mesa-de-cabeceira.

Eram sete da manhã, ou seja, dez na costa leste. Há horas que Quincy e Kimberly deviam estar a pé. Passou uma das mãos pelos cabelos, observou-se no espelho colocado por cima da cómoda e fez uma careta. Os cabelos espetados no alto da cabeça davam a sensação de que metera os dedos numa tomada. Tinha sobretudo um gosto desagradável na boca. Um quadro encantador para um sábado de manhã...

Saiu da cama e dirigiu-se à casa de banho. A pasta de dentes contribuiu para um hálito melhorado e, depois de tomar um duche rápido que a despertou completamente, enfiou antes de sair do quarto as calças de ganga coçadas e a T-shirt branca com que andava há três dias.

Quincy e a filha estavam sentados lado a lado na mesinha redonda na cozinha acoplada ao extremo oposto da sala. Quincy inclinava-se sobre o computador portátil; Kimberly, apoiada no ombro dele, olhava fixamente o ecrã. Munidos de chávenas de café, travavam uma acesa troca de impressões. Rainie avistou uma terceira chávena de café trazida do Starbucks, sem dúvida para ela. Agarrou-a de passagem, antes de se interessar pela conversa.

Eles trabalhavam aparentemente na base de dados reunidos por Quincy. Kimberly centrava-se mais na pista Miguel Sanchez, mas Quincy achava que ele não podia fazer grande coisa da cela onde se encontrava, em San Quentin.

- E a família dele? - argumentou Kimberly.

- Que família? - redarguiu Quincy. - O Sanchez não tem ninguém à excepção da mãe, uma mulher de setenta anos, dependente do ventilador. Pessoalmente, não consigo imaginá-lo no papel de criminoso da semana.

- Um a zero para o Quincy - contabilizou Rainie.

Pai e filha viraram-se ao mesmo tempo, e Rainie detectou uma sombra no rosto de Quincy, sem determinar o porquê.

- Bom dia, Rainie - saudou num tom calmo. - Há croissãs no saco, se quiseres.

Rainie abanou a cabeça.

- Levantaram-se há muito? - perguntou em seguida.

- Umas horas - respondeu Quincy, evitando-lhe o olhar.

Tal agradou a Rainie, que também não conseguia fitá-lo. Teria gostado de saber como é que ele reagira quando acordara e a vira ao seu lado. Teria ficado contente ou encarara a atitude pelo lado prático, pois Kimberly já ocupara o sofá?

- Onde é que chegaram? - interessou-se, mergulhando os olhos na chávena de café.

- Estamos a passar a pente fino a minha base de dados.

- Acho que devíamos examinar mais a fundo o dossiê do Sanchez - salientou Kimberly. - Não só é o único que conseguiu falar directamente com o papá ao telefone, como o tratamento que deu ao seu primo Richie Millos prova que desconhece o perdão. Sem esquecer o factorMontgomery, pois foi a seguir ao caso Sanchez que o papá arranjou um inimigo mortal no AlbertMontgomery.

- Esqueces que foi por acaso que atendi o telefonema do Sanchez - rectificou Quincy. - Ele teve a sorte de me apanhar, mas o mesmo podia ter acontecido a qualquer dos outros quarenta e sete condenados que já haviam deixado mensagens no meu atendedor. Quanto ao "factorMontgomery", como lhe chamas e muito bem, não se pode encarar uma simples coincidência como uma verdadeira conspiração. Mas uma coisa é certa: o Miguel Sanchez encontra-se atrás das grades na Califórnia e, com toda a franqueza, não o acho com inteligência bastante para ter montado este esquema.

- E o primo dele? - inquiriu Rainie.

- O Millos? O que tem ele a ver com isto?

Rainie sentou-se, decidida a pensar apenas no caso para não ter de se aventurar no terreno escorregadio da relação deles.

- É este o meu ponto de vista: graças a ti, a polícia decidiu concentrar todas as atenções no Richie, que era o elo mais fraco do duo, o que acabou por causar a morte do Richie às mãos do Miguel. Podem concluir que foste tu o responsável pela morte dele.

- Alguém a incriminar-me pela morte do Richie - murmurou Quincy com uma expressão vaga. - Nada mal...

- Sabes se os pais do Richie ainda estão vivos? - perguntou Kimberly.

- Não faço a mínima ideia. Basta consultar o dossiê. Kimberly começou a remexer na caixa junto aos pés de Quincy.

Não era visivelmente a primeira vez que fazia aquele trabalho, pois exibiu um grande envelope de papel segundos depois.

- Millos, Richie - leu na etiqueta. - Vejamos quantos desmiolados tem na sua árvore genealógica.

Abriu o envelope com dedos firmes e tirou um relatório do interior pondo-se a folheá-lo rapidamente.

- Aqui está! Temos uma mãe. Cinquenta e nove anos, doméstica. O pai, um antigo porteiro de sessenta e três anos recebe uma pensão de invalidez. Aparentemente por artrite reumatóide crónica, o que, à partida, o elimina.

- Irmãos e irmãs? - perguntou Quincy.

- Dois irmãos e uma irmã, todos mais novos do que ele. José, trinta e cinco anos, já não é propriamente um menino de coro. Condenado várias vezes por roubo, de momento em liberdade. Será de verificar. Temos depois o Mitchell Millos, conhecido por Mickie, trinta e três anos e sem cadastro. Boa... Tem mesmo um diploma de engenheiro da Universidade do Texas. Parece que a família não produziu apenas fruta podre. Por fim, Rosa Millos, a mais nova, vinte e oito anos, mas não se sabe nada a seu respeito. Porque será?

- Chauvinismo. O FBI sempre teve fama de subestimar as mulheres - brincou Rainie.

- Prefiro ignorar esse género de insinuação - murmurou Quincy. -Tanto mais que sou minoritário nesta sala. E agora a sério. Podes dizer-me algo mais sobre esse tal Mickie, Kimberly?

A jovem voltou a folhear o dossiê.

- Não vejo nada mais a respeito dele. Tudo indica que o agente encarregado da sua investigação não foi mais longe, provavelmente porque ele não tinha antecedentes criminais.

- Tem lógica ?- replicou Quincy, parecendo aborrecido com aquela falta de pormenores.

Fitou Rainie, que se detivera a observar-lhe a curva do pescoço, valorizada pelo pólo azul-marinho que lhe ressaltava a cor dos olhos. Por que razão Quincy insistia em usar fatos completos, quando a roupa desportiva lhe assentava tão bem...?

Porque não a acordara nessa manhã? Podia, pelo menos, ter-lhe acariciado a face ou dizer-lhe qualquer coisa.

Corou bruscamente ao aperceber-se de que ele a observava e desviou de imediato os olhos, pouco à vontade.

- Rainie? - dirigiu-se-lhe num tom meigo.

- Hum... O irmão mais novo. Tens razão. É preciso tentar saber mais alguma coisa.

- Porquê ele? - ripostou Kimberly, franzindo o sobrolho. - Nem sequer tem a idade adequada. O nosso tipo é muito mais velho.

- Nada mais fácil do que enganar na idade - replicou Quincy, sem desviar os olhos de Rainie. - Além disso, as testemunhas erram muito quanto aos cálculos da idade

de um suspeito. Dá-se facilmente vinte anos a alguém sob pretexto de que usa T-shirt e calças de ganga. O mesmo tipo, de fato completo, dará a sensação de ter ultrapassado os trinta. Não quero dizer com isto que se deva desconfiar das testemunhas; elas desempenham um papel primordial na maioria dos inquéritos, mas são facilmente manipuláveis, sobretudo por alguém que tenha lido algo sobre o tema.

- O Mickie é engenheiro - lembrou Kimberly. - Não tem de forma alguma o perfil de um criminoso.

- Exacto - concordou Rainie. - O nosso homem é sofisticado. Trata-se, sem dúvida, de uma personagem subtil e manipuladora, capaz de montar estratégias complexas e perversas. Vê com que facilidade conseguiu seduzir uma jovem como a tua irmã, antes de fazer o mesmo com a tua mãe, que, no entanto, pertencia a outra geração. Se me pedissem que o descrevesse, diria que o nosso desconhecido é um homem inteligente, culto, elegante e desenvolto.

- E também uma pessoa com dinheiro - acrescentou Quincy. Nas actuais circunstâncias, não me surpreenderia que este caso monopolizasse todo o seu tempo, o que significa que tem meios para não trabalhar. As suas deslocações custam igualmente dinheiro. Entretanto, há a considerar os novos desenvolvimentos que se referem a ti, Rainie. A Kimberly contou-me o teu encontro com esse tal Carl Mitz. Se esse pseudopai que te cai do céu for efectivamente o Tristan Shandling, como pareces acreditar, tal significa que o nosso homem desembolsou um contributo apreciável para o fundo da campanha do delegado do Ministério Público e que contratou os serviços de um advogado. Precisou mais uma vez de dinheiro. Muito dinheiro. O problema reside em saber se um engenheiro de trinta e três anos do género deste Mickie Millos tem tanta massa à disposição. A priori, diria que não, mas na nossa época, com todos os informáticos e outros especialistas da Internet que ganham somas astronómicas, quem sabe? ê Mickie pode ter feito uma pequena fortuna em alguns anos.

- Não tinha pensado nisso - observou Kimberly, assentindo com a cabeça. - Precisamos, pois, de fazer uma investigação exaustiva sobre o jovem Millos, incluindo a sua conta bancária. Já temos um nome. Suspirou, fitando o monte de dossiês que lhe faltava examinar. - Mais cinquenta e podemos ir para a cama.

- com o devido respeito - arguiu Rainie -, não me parece que esta base de dados nos leve muito longe.

Quincy e a filha fitaram-na com um ar surpreendido, mas Rainie encolheu os ombros.

- Reflecte um segundo, Quincy. É provável que o nome do nosso homem se encontre algures nos teus dossiês ou nos do FBI. Não contesto isso. Por outro lado, não me parece que isso seja uma grande ajuda pelo simples motivo de que ele também sabe que o seu nome está lá.

Rainie inclinou-se para a frente, defendendo o seu ponto de vista num tom decidido.

- Na vossa opinião, qual é o seu principal ponto vulnerável? O processo de eliminação. Esse tipo tem contas pessoais a ajustar contigo e sabe que, com um pouco de tempo, acabarás por identificá-lo. Como actuar para contornar esse obstáculo? Começa por trabalhar na sombra, optando por escolher a Mandy, dado ela ter poucos contactos com o resto da família. Disfarça-se, usa um nome falso e mascara o seu crime de acidente. Tudo corre sobre rodas, mas ele está perfeitamente consciente de que não poderão afastar-se as suspeitas para sempre. A partir do momento em que se ocupar da Bethie, sabe que ninguém é estúpido e as investigações começarão. Portanto, prepara-se.

Catorze meses após o acidente da Mandy, monta uma nova estratégia, começando por uma táctica de diversão. Dá a tua morada e o teu número de telefone particular

a todos os psicopatas americanos. Passa depois a uma segunda fase que consiste em confundir pistas. Assume o teu nome, faz-se passar por ti, deixa atrás de si uma série de provas falsas, a fim de confundir os investigadores de Filadélfia. Enquanto andarem atrás de ti, toda a gente o deixa em paz. Resta passar à última fase, a que designarei de rapidez.

- Que consiste em acelerar os acontecimentos - concordou Quincy.

- Na quarta-feira assassina a mamã - suspirou Kimberly num fio de voz. - Na quinta rapta o avô. Na sexta, fugimos todos e a Rainie é contactada por um advogado desconhecido sobre o pai. O que significa que nem sequer nos dá tempo de reflectir, analisar e antecipar. Muito simplesmente porque sabe que o tempo é o seu pior inimigo.

- Este tipo é um verdadeiro enigma, Quincy - vincou Rainie. Quem, como, porquê? Nada sabemos dele, nem das suas intenções. Ele toma todas as precauções para não nos fornecer qualquer pista concreta sobre os seus motivos. E, sobretudo, até agora, nunca cometeu o erro de te subestimar. Sabes porquê?

- Sim. Porque o conheço - respondeu Quincy.

- Melhor ainda - acrescentou Rainie com um sorriso. - Porque ele te conhece. Sabe até que ponto gostas dos mistérios, jogos e quebra-cabeças. Sabe que é essa a tua vida. Portanto, o primeiro passo reside em não suspeitares de nada, o máximo de tempo possível. Agora que sabes, quer obrigar-te a actuar, sem te dar tempo para reflectir. Enquanto fizeres o que espera de ti, nunca conseguirás apanhá-lo. Enquanto reagires às suas provocações, sais a perder, e ele sabe isso. Urge quebrar esse círculo vicioso, Quincy. Há que tomar a ofensiva, estabelecer o nosso próprio plano de batalha. Na minha opinião, não é ficando escondido em Portland a examinar uma base de dados que o conseguiremos. Se ficarmos aqui, ele acabará por nos encontrar, mais cedo ou mais tarde. Provavelmente mais cedo do que pensas.

Quincy manteve-se silencioso durante um longo momento. Pof fim, ergueu os olhos para Rainie.

- O que achas das declarações desse tal Carl Mitz sobre o teu pai - indagou.

- Não sei.

- Só porque se trata de uma coincidência, não quer dizer...

- Entendi, obrigada! - explodiu Rainie num tom seco e retomando o fôlego em seguida. - Preciso de agir com a máxima cautela. O Mitz parece sincero e a história pessoal desse tal Ronald Dawson joga a seu favor. Passou a maior parte da vida na prisão e foi fácil verificar que o pai fez realmente fortuna com a venda das terras a um agente imobiliário. Por outro lado, o Tristan Shandling tem o mau hábito de dizer às suas vítimas o que elas desejam ouvir. Não posso negar que esse tal Ronald Dawson me interessa. Mentiria se dissesse o contrário, o que me assusta de morte.

- E se o Mitz arranjasse uma maneira de te encontrares pessoalmente com o Dawson?

- Nem pensar - respondeu Rainie de imediato, abanando obstinadamente a cabeça.

Todavia, Quincy tinha aquele brilho nos olhos de quando o seu cérebro congeminava um plano elaborado.

- Seria a armadilha ideal - concluiu a meia-voz.

Rainie fechou momentaneamente os olhos. Entendera na perfeição o que ele desejava. Para ela, tratava-se de uma prova quase insuperável, mas não podia deixar de dar-lhe razão. Mais uma vez.

- bom. Já percebi - concordou Rainie, fechando os olhos. - Se queres que me encontre com esse tal Ronnie, óptimo, mesmo que me custe os olhos da cara. Mas depois não digas que nunca fiz nada por ti.

- É impossível que estejam a falar a sério! - explodiu Kimberly.

- Se for ele o assassino, pode perfeitamente atacar-te, raptar-te ou pior ainda.

- Não me parece que o teu encantador pai tenha tenção de me mandar sozinha para o matadouro - replicou Rainie. - Ainda que não se importe muito de usar-me como isco...

- Eu nunca...

- Ora. Cala a boca, Quince. Sei muito bem o que faço. Fui eu que acabei de explicar-vos em pormenor que precisamos de passar ao ataque.

Se for o LJawson o assassino, troquemos-lhe as voltas. Éeste o meu plano: vou telefonar ao Mitz para que marque um almoço, mas com o Luke e os rapazes de olho em mim. Aproveitarei para sondar o Ronnie sobre as suas supostas relações com a minha mãe. Na pior das hipóteses, regressarei com uma nova descrição do Shandling, o homem das mil caras.

- E se ele tentar qualquer coisa? - preocupou-se Kimberly.

- Não o fará - garantiu Rainie.

- Como podes estar tão segura?

- Por causa da técnica dele - elucidou Rainie. - Se o Ronald Dawson e o Tristan Shandling forem uma e a mesma pessoa, não se precipitará sobre mim para me fazer em picado. Pelo contrário. Começará por dizer que sempre sonhou ter uma filha, tentará aliciar-me com o seu dinheiro e todas as histórias do que posso fazer com dez milhões de dólares, sem esquecer que sou a melhor coisa que lhe aconteceu na vida. Durante todo esse tempo, rangerei os dentes, duvidando de cada palavra, sem saber se encontrei finalmente o meu pai, ou se estou sentada em frente de um perigoso psicopata. Bela perspectiva!

- Rainie...

- vou fazê-lo, Quincy.

- Mudei de opinião. Já não quero que vás. Cometi um erro.

- Não cometeste erro nenhum - empolgou-se ela. - Tens razão e sei-o tão bem como tu, portanto não tentes dissuadir-me. A minha decisão está tomada.

Um pesado silêncio pairou na sala. Quincy, de cenho franzido, fitou Rainie sem desviar o olhar.

- Mas é muito perigoso! - acabou Kimberly por comentar.

- Muito mesmo - concordou Quincy, assentindo com a cabeça e continuando a fixar Rainie.

- Nem sequer sabemos quem é este tipo e porque te quer tanto mal. Matou a mamã e a Mandy e agora receias pela vida da Rainie e pela minha.

- Sempre receei pela vida dos meus.

- Mas não desta maneira. Sem saber de onde vai partir o tiro.

- Desde que faço este trabalho - retomou Quincy num tom invulgarmente calmo -, nunca deixei de ter medo. São ossos do ofício e nunca paro de pensar nisso, sobretudo à noite.

- Tenho a certeza de que tudo correrá bem - disse Kimberly num tom decidido.

- Começaremos por investigar o Mitchell Millos - prosseguiu Quincy. - Farei o mesmo com mais cinco ou dez nomes dos meus dossiês. Depois, verei se o Everett tem alguma novidade, se conseguiu saber alguma coisa sobre o meu pai...

Por um momento, o olhar toldou-se-lhe, mas recompôs-se de imediato.

- Depois, passaremos ao Ronald Dawson. Acabaremos de qualquer maneira por saber quem é realmente esse tipo.

- Temos mais uma ajuda na Virgínia - interveio Rainie. O Phil de Beers. Pedi-lhe que continuasse a vigiar a Mary Olsen e muito francamente acho que fiz bem. Ali está uma rapariga que atraiçoou a sua melhor amiga e sente uns remorsos horríveis, caso contrário não me falaria assim. Estou convencida de que terá tentado contactar com o nosso desconhecido e fará tudo para o encontrar. Nesse dia...

- Precisamos de fotografias - declarou Quincy. - Diz ao De Beers que se arranje como quiser, mas queremos as melhores fotos possíveis, para sabermos por fim como é o nosso homem fisicamente.

- Mas ele usa tantos disfarces - arguiu Kimberly. - As duas primeiras descrições não conjugam. Para que nos serviria uma terceira?

- Nós supomos que o Shandling é um mestre do disfarce, baseando-nos em testemunhos muito vagos, não esqueças - corrigiu Rainie. . As pessoas baralham-se frequentemente ao descrever os suspeitos, como o teu pai disse ainda agora. Nada mais fácil nos nossos dias do que mudar a cor do cabelo ou dos olhos, vestir-se de forma diferente, usar barba ou rapá-la. Os únicos critérios fiáveis são a forma geral do rosto, a das orelhas ou do queixo, a separação dos olhos. com uma fotografia, os especialistas desenhariam facilmente um retrato robô credível do assassino.

- Contactas, então, o De Beers? - perguntou Quincy.

- vou já telefonar-lhe - prometeu Rainie. - Depois, ligo ao Mitz para combinar esse famoso almoço com o papá - acrescentou com um leve sorriso. - Temos de nos mexer. Há trinta e seis horas que o nosso psicopata favorito não ataca. Duvido que nos dê muito mais descanso.

 

Residência dos Olsen, Virgínia

Encolhida no canto mais fundo do seu roupeiro, Mary Olsen segurava o auscultador junto ao ouvido. Tinha os cabelos negros despenteados, a maquilhagem esborratada

e o leve roupão de seda azul-clara tapava dos olhares indiscretos um enorme hematoma arroxeado no ombro esquerdo. Quando o marido regressara, ao amanhecer, de uma operação que correra mal, vinha com uma horrível disposição e vingara-se nela. Mal desaparecera umas horas mais tarde ao volante do seu Jaguar, com um guinchar de pneus, Mary agarrara no telefone.

- Sei muito bem que me proibiste de ligar - apressou-se a dizer ao seu interlocutor -, mas não posso mais. Não imaginas o calvário que estou a viver. Preciso de ver-te. Por favor, meu querido, suplico-te...

- Vá lá. Acalma-te. Respira fundo. Tudo se resolverá.

- Não se resolverá nada. Eu sei!

A voz da jovem mulher, cada vez mais aguda, estrangulou-se num soluço. Doíam-lhe as costas, o ventre, as costelas, todo o corpo. Ficaria novamente cheia de nódoas negras. Quem iria pensar que um homem que parecia tão meigo pudesse ser tão violento?

- Sinto-me tão só! - prosseguiu com um gemido. - Há semanas que este tormento dura e nem sequer posso consolar-me com a ideia de que vou ver-te. Não posso mais!

- Eu sei, minha querida. Acredita que sei como tem sido difícil. A voz era tão calma quanto a de Mary Olsen era histérica. com o auscultador colado à face esborratada pela maquilhagem, ela podia finalmente dar livre curso às suas frustrações.

Sempre adorara a voz dele. Um dia, Mandy dissera-lhe que se sentira atraída pelo poder de sedução do seu olhar, mas Mary, que o via raramente, era sobretudo sensível à encantadora doçura da voz. Apesar de estarem separados, ele sabia apaziguar as suas angústias melhor que ninguém. À noite, quando o marido estava a dormir, deixando-lhe umas escassas horas de repouso, era ele o único a murmurar-lhe ao ouvido as palavras que lhe davam força para continuar a viver.

- Ele ordena-me o que hei-de dizer, fazer, como vestir-me - prosseguiu. - Nunca julguei que fosse assim. Porque quis casar comigo se me detesta a este ponto?

- Tu és uma mulher bonita, Mary. Nem todos os homens sabem lidar com isso.

- Mas nunca lhe dei qualquer razão de queixa! - gemeu. - Quero dizer... bom... antes de ti, não. Não aguento mais, Deus do céu! Fazes-me falta. Preciso de ti. Daria tudo para que estivesses ao meu lado e me agarrasses na mão com aquele teu sorriso adorável. Só tu podes fazer com que volte a sentir-me bonita.

- Também adoraria ver-te, amor - respondeu num tom desolado.

- O que é que te impede? Nunca mais ouvi falar dessa Lorraine Conner, a detective particular. Não temos nada a recear. Diz-me onde queres encontrar-te comigo, seja onde for. Tomarei as precauções que me ensinaste. Suplico-te, meu querido!

- Mas sabes que é impossível, meu amor! Estás a ser vigiada.

- O quê? - arquejou, surpreendida.

- Há uns dois dias tentei fazer-te chegar um bilhete às mãos explicou. - Ao aproximar-me, vi um pequeno carro cinzento metalizado escondido nos bosques num sítio estratégico, de onde pode ver-se tudo o que se passa na tua casa. Mantive-me lá durante horas e o carro não se mexeu. Lamento, querida, mas acho que o teu marido mandou alguém seguir-te.

- Cabrão ciumento! Nunca lhe dei qualquer motivo... pelo menos, antes. Que se foda! O que vamos fazer?

- O que podemos fazer? Se ele consegue fotografar-nos, sabes tão bem como eu o que acontecerá. Não podemos correr esse risco, sobretudo depois de tudo por que passámos.

- Nunca lhe darei essa satisfação! - jurou Mary. - Acredita que, no dia em que o deixar, o filho-da-mãe vai pagar-me bem caro. Se tivesse dois dedos de cabeça, ia-me embora já. Aliás... nada me impede!

- Não, não podes fazer isso. Quanto menos tempo durar o casamento, menos dinheiro conseguirás arrancar-lhe.

Apesar do tom calmo da voz dele, Mary recomeçou a soluçar.

- Não aguento mais. Sinto demasiado a tua falta. Acho que vou enlouquecer!

A voz calou-se do outro lado do fio. Não havia provavelmente mais nada a dizer, embora Mary não quisesse admiti-lo. Casada, sem recursos, não podia dispensar o dinheiro do Dr. Olsen. Contudo, doía-lhe o corpo todo. O peito, os braços, os ombros. Havia manhãs em que nem sequer se sentia com forças para se levantar. Quanto mais o marido lhe batia, mais parecia odiá-la, embora ela ignorasse se ele a odiava porque lhe batia, ou porque ela o permitia.

Como pude chegar a este ponto? Não sei... Já não sei nada...

- Acho que tenho uma ideia - disse o amante.

- Oh, sim, meu amor. Qualquer coisa. Por favor.

- Esta tarde, vais receber uma caixa de chocolates. Provavelmente Godiva. A marca não interessa. Estás a ouvir-me?

- Sim, sim - murmurou Mary num fio de voz.

- Pega na caixa, sai de casa e dirige-te ao carro cinzento metalizado de que te falei. Encontrarás um negro atrás do volante.

- Oh, meu Deus!

- Ele não te fará mal, querida. É um investigador privado, decerto o melhor que o dinheiro do teu marido pôde comprar. Bate no vidro da janela com o melhor dos teus sorrisos e diz-lhe que estás ao corrente da sua missão de te vigiar. Ele ficará atrapalhado e surpreendido por se ver apanhado. Então, usa todo o teu charme. Diz-lhe que queres falar com ele e senta-te do lado do passageiro, sem lhe dares tempo a reagir. Depois, abre-lhe o coração sobre o teu marido. Durante a conversa, aproveita para lhe ofereceres um chocolate, com um ar despreocupado. Se recusar, come tu um na frente dele, antes de insistires mais. Arranja forma de que ele coma dois ou três. Será suficiente.

- Porquê? Estão envenenados? - perguntou, ao mesmo tempo que sentia um calafrio na espinha.

- Claro que não. Não te disse que tu própria comesses um? O teu marido deu-te mesmo volta à cabeça para pensares que eu seria capaz de te envenenar.

- Desculpa, querido...

- Terei apenas injectado um laxante nos bombons, com uma seringa. Um só não deverá fazer-te mal nenhum. Dois ou três, pelo contrário, obrigarão o polícia a abandonar precipitadamente a vigilância. Enquanto ele estiver aflitíssimo à procura de uma casa de banho, aproveitas para fugir.

- E vou ter contigo!

- Exacto. Se soubesses até que ponto também sinto a tua falta.

- Diz que me achas bonita.

- És a mulher mais bonita que já conheci - apressou-se a dizer num tom convicto. - Sobretudo, quando usas roupa interior de renda preta.

- vou pôr o cinto de ligas só para ti - sussurrou Mary.

- E eu não porei nada...

- Mal posso esperar para te ter nos meus braços!

- Falta pouco, meu amor. Uma caixa de chocolates e os dados estão lançados.

Pela primeira vez nesse dia, ela esboçou um sorriso.

- Sabes... Dói-me o corpo todo e não devo parecer nada apetitosa - murmurou em seguida.

- Para mim, serás sempre bonita. Basta que te beije toda para que a dor desapareça.

No fundo do roupeiro, Mary Olsen chorava em silêncio, mas agora de alívio. Dali a umas horas ele faria com que esquecesse tudo, como sempre. Na primeira vez que lhe vira as equimoses, ela dissera-lhe que tinha caído nas escadas. Ele adivinhara imediatamente a verdade e, em vez de a repelir, abraçara-a com ternura para a confortar.

- Minha pobre querida - dissera. - Como puderam fazer-te tanto mal?

Nessa noite, Mary chorara durante horas a fio, enquanto ele lhe acariciava os cabelos, mantendo-a abraçada de encontro ao corpo. Nunca ninguém a tratara com tanta doçura em toda a sua vida.

Por um momento, recordou o rosto de Amanda. Amanda que nunca lhe fizera mal. Amanda que era a sua melhor amiga. Amanda que ficara toda excitada ao apresentar-lhe o seu novo amor...

Mas tu continuaste a beber, Mandy, pensou. Tinhas o homem mais perfeito do mundo e mesmo assim não abandonaste a bebida. Afinal, só te aconteceu o que merecias. Além disso, sempre tiveste todos os homens que querias... e eu precisava dele.

Pousou o auscultador e limpou os restos de maquilhagem e de lágrimas com a manga do roupão. Uma caixa de chocolates e estaria novamente ao lado dele, pensou. Só esperava que chegassem depressa.

 

Pearl Distríct, Portland

Passava um pouco das onze da manhã quando Quincy acompanhou Rainie até ao sótão onde ela morava. Rainie acendeu maquinalmente as luzes, embora o sol já entrasse a rodos pelas janelas. O apartamento emanava aquele cheiro a poeira e mofo dos lugares desabitados e que Quincy tão bem conhecia, já que o sentia sempre que regressava a casa.

- Tenho que fazer umas coisas - anunciou Rainie secamente.

Quincy esboçou um aceno de cabeça distraído e dirigiu-se à área da sala, enquanto Rainie se entregava às suas ocupações. Desde o começo da manhã que ela estava de mau humor, nervosa e pouco à vontade, desviando o olhar sempre que se cruzava com o dele, sobressaltando-se sistematicamente quando ele passava ao seu lado. Quincy julgava saber o que a atormentava, mas, nesse momento, não tinha certezas em relação a nada.

Pouco depois da conversa dessa manhã, Rainie deixara uma mensagem no atendedor de Carl Mitz. Dado ser-lhe impossível indicar o número do telemóvel de Quincy sem correr o risco de revelar que ele estava com ela e ainda menos dar-lhe o do hotel em Portland sem comprometer o seu esconderijo, decidira comunicar o único número já conhecido de Mitz, o do seu sótão em Pearl District.

Kimberly tinha optado por ficar no hotel, onde já usava o número de licença profissional de Rainie para obter as informações de que necessitavam junto dos organismos oficiais em causa. Fora decidido que Quincy e Rainie esperariam o telefonema de Mitz em casa dela, partilhando as tarefas da forma mais eficaz e sem segundas intenções.

Quincy deu a volta ao sofá e parou diante de uma janela, expondo o rosto à carícia dos raios solares. Imóvel, de olhos fechados, sentiu que toda a tensão dos últimos dias desaparecia dos músculos contraídos. Respirou fundo e tentou concentrar-se na ideia de que o tempo não pára.

Telefonara a Everett para saber se havia novidades a respeito do pai. Ainda não o tinham encontrado e Quincy sabia melhor do que ninguém que esse silêncio nada tinha de tranquilizante. Cada minuto passado sem notícias de Abraham Quincy reduzia as hipóteses de achá-lo com vida. Há trinta e seis horas que ele desaparecera, abandonando repentinamente o quarto onde vivia tranquilo para partir pelo braço de um desconhecido que se fizera passar por seu filho. Um funcionário da casa de repouso declarou ter visto o velho senhor a subir para um pequeno descapotável vermelho, com toda a probabilidade aquele em que o assassino fora buscar Bethie.

Depois, mais nada. Ninguém voltara a pôr a vista no carro nem no velho Abraham. Não havia o mínimo indício capaz de confortar Quincy. Aos seus olhos, e mais ainda do que os assassínios de Mandy e de Bethie, o rapto do pai era a derradeira prova do seu fracasso e da sua impotência. O homem orgulhoso e independente, que educara sozinho Pierce Quincy, cedera lugar a um velho vulnerável e indefeso, e o filho nunca se perdoaria por não ter sabido protegê-lo.

Ante esta ideia, Quincy sentia-se ao mesmo tempo perdido e furioso, triste e inquieto, aniquilado, mas decidido a não baixar os braços. A sua raiva era tanto maior quanto lhe era impossível entender o que lhe acontecia. A sua lógica infalível e perfeitamente racional de nada lhe servia.

Por que razão o meu pai desapareceu? Porque sim.

Pela primeira vez na vida, o isolamento por detrás do qual sempre procurara esconder-se não bastava para protegê-lo, bem pelo contrário.

Bruscamente, saído do nada, veio-lhe à memória um episódio há muito esquecido. Kimberly, aquela a que chamavam afectuosamente "pequena Kimmy", regressara a casa muito nervosa, na tarde da sua segunda aula de bailado. Voltou a vê-la, entrando como uma seta no salão onde se encontravam a irmã e os pais. Estacara diante deles, de mãos nas ancas e anunciara num tom irreversível: "Que se foda o bailado!"

Quincy lembrava-se da expressão horrorizada de Bethie e do ar espantado de Mandy, enquanto ele fazia esforços desesperados para não desatar à gargalhada. "Que se foda o bailado." Toda a segurança e determinação da sua filha mais nova estavam contidas nessa frase e ele sentira-se particularmente orgulhoso.

Não sabia se chegara a contar aquela história a Abraham. Decerto lhe agradaria muito. £ óbvio que não o diria, mas teria sorrido de uma forma inequívoca. Também ele sentia muito orgulho em Kimberly. Cada geração tem por dever conduzir a seguinte sempre mais longe no caminho do sucesso e esta era a prova de que o velho camponês ianque desempenhara bem o seu papel ao fazer do filho um brilhante agente federal, por sua vez pai de uma futura criminologista de personalidade vincada.

O isolamento não servia de protecção a Pierce Quincy. Ao raptar-lhe o pai, quem sabe se o destino não quisera dar-lhe a oportunidade de redescobrir Kimberly?

- Preciso de mudar de roupa - anunciou Rainie do enorme roupeiro que lhe servia de quarto de vestir. - Se o telefone tocar, deixa-me atender.

- Não estou aqui - prometeu Quincy.

- Achas que a Kimberly precisa de qualquer coisa?

- Penso que sabes melhor do que eu - respondeu com um leve sorriso.

- Porquê? Não és nenhum autista ignorante.

- Vindo de ti, considero um cumprimento.

Rainie apareceu. Pequenos indícios mostravam que se sentia feliz por estar em casa. A começar por uma vivacidade que não mostrava nessa manhã e lhe aligeirava o passo. Trocara a velha T-shirt por uma camisa azul. Quincy não pôde deixar de notar a curva graciosa dos rins quando ela passou junto dele na direcção da cozinha.

Como é bonita, pensou, e surpreendeu-se com essa reflexão. Ela não era simplesmente atraente ou sensual. Era bonita. Bonita com umas calças de ganga e uma camisa. Bonita na noite em que conseguira enganar os dois detectives da polícia de Filadélfia, fazendo-se passar por advogada, porque sabia que ele precisava dela. Como era bonita na presença dos seus colegas do FBI, apesar dos complexos que decerto sentiria ante profissionais nitidamente mais qualificados do que ela. Tal como era bonita na simplicidade com que decidira ficar ao lado dele, num momento em que teria sido muito mais fácil afastar-se.

Rainie dissera-lhe um dia que desconhecia tudo sobre relações ou compromissos. Era, porém, a pessoa mais leal e digna de confiança que conhecera.

- Rainie! - murmurou de súbito. - Esta manhã portei-me como um idiota!

Ela estacou bruscamente com um pé na cozinha e outro no quarto.

- Não sei do que estás a falar - respondeu.

- Estava a meio de um sonho, o primeiro desde todos estes meses de pesadelo. Estávamos juntos, numa praia, deitados na areia e lembro-me de que te acariciava os cabelos. Não dizias nada, eu também não. Éramos simplesmente felizes.

- Então, não há dúvida de que era mesmo um sonho.

- Só que no momento em que acordei, encontravas-te realmente ao meu lado.

- Estava a ressonar?

- Não.

- Uau! Escapei de boa! - brincou, enxugando a testa com um gesto falsamente dramático. - E eu que estava convencida de que fugiras por causa do meu ressonar.

- Tinhas a cabeça pousada no meu ombro... - prosseguiu ele num tom meigo - e abraçavas-me. E puseras a perna... por cima da minha.

- Isso é porque tenho frio durante o sono.

- Não sei como te dizer isto, mas... nunca nenhuma mulher se mostrou tão compreensiva comigo.

- Vai-te lixar, Quincy!

Apanhado de surpresa, ele pestanejou. Sem lhe dar tempo para se recompor, Rainie avançou ao seu encontro, de faces afogueadas e o dedo ameaçador. Em qualquer momento, sem que ele se desse conta, o seu discurso devia tê-la irritado, pois mostrava-se furiosa. Esconder-se, pensou Quincy de imediato. Mas onde? Estavam num sótão!

- Não sou compreensiva - protestou Rainie. - Quero que metas isso na cabeça. Nunca o fui em toda a minha vida!

- Está certo. Tudo certo - apressou-se ele a replicar num tom dócil, hipnotizado pelo dedo acusador.

- Não fui deitar-me ao teu lado por ser compreensiva. Nem foi por isso que me encostei a ti, ou que adormeci nos teus braços. Entendido?

- Mas não queria...

- Claro que querias. Estendi-te a mão, o que representou um passo enorme para mim. E não só te afastaste como um cobarde esta manhã como continuas a fazê-lo, ao tentares convencer-me de que agi por piedade.

- Tencionas furar-me com isso?

- com o quê?

- com esse dedo acusador.

- Quincy! - rugiu ela, erguendo os braços. - Deixa de armar em palhaço por um minuto. Dir-se-ia que me imitas. Pára já com isso ou zango-me a sério.

Como ele não lhe deu resposta, a fúria de Rainie desapareceu tão depressa como surgira.

- Confesso que senti medo ao acordar esta manhã - disse ele por fim.

- Fico encantada com essa confissão.

- Podias, pelo menos, mostrar-te um pouco mais condescendente. É bastante difícil admiti-lo.

. - E que mais? Vá lá. Continua.

-Talvez tenha reagido de uma forma egoísta - prosseguiu ele num tom humilde. - Quando acordei e te vi ao meu lado, fiquei extremamente satisfeito, mas... Sabes,

Rainie, não é este o momento mais adequado para me interessar por alguém. As pessoas que amo denotam tendência a ser assassinadas num curto espaço de tempo.

- Os namorados pedem desculpa, Quincy. Os psiquiatras analisam. Qual é o teu campo?

- Sabes que estás a tornar-te boa neste jogo?

- Vá lá. Õ Mitz pode telefonar a qualquer momento e não haverá tempo para explicações. Pede desculpa e não se fala mais nisso.

- Desculpa - obedeceu ele docilmente.

- Por... - acrescentou ela, agitando os dedos.

- Desculpa por ter saído do quarto como um ladrão a meio da noite, sem sequer te acordar, embora o desejasse. Por ter fingido que não aconteceu nada, embora o simples facto de teres dormido comigo e agarrada a mim te custasse um esforço considerável, de que estou consciente...

- Okay - apressou-se a interrompê-lo. - Pára antes que seja tarde de mais. E se te propuserem um talk-show na televisão, aceita sem hesitar. Farás um sucesso.

- Adorei acordar ao teu lado, Rainie.

Pela primeira vez, desde o início da conversa, Rainie deixou de agitar as mãos.

- Para falar verdade, também não achei desagradável - sussurrou, deitando-lhe um olhar de relance.

- E eu não ressonei?

Incapaz de se conter por mais tempo, deu um passo na direcção dela e Rainie não procurou esquivar-se.

- Não, não ressonaste - respondeu.

- Nem dei voltas e mais voltas? Não te roubei a roupa? Não te impedi de dormires?

Continuou a aproximar-se, sem que ela fizesse qualquer movimento.

- Não. Achei-te mesmo muito acolhedor para um agente federal. Quincy encontrava-se agora muito próximo dela. Sentia os nervos à flor da pele, chegava-lhe o perfume a sabonete e ao champô de maçã. Estava tão próximo que lhe parecia ver pela primeira vez cada traço do rosto, a curva decidida dos lábios, o queixo voluntarioso. Era agora ou nunca. Se Carl Mitz telefonasse, esperaria. O mundo podia acabar ali. Desejava tanto tocar-lhe que sentia as pontas dos dedos dormentes. Fora ela que o procurara, que o desafiara. Mas sobretudo fora ela a trazer-lhe sonhos de uma praia de areia fina em vez de pesadelos... E ele que durante tempo lutara por dissimular as suas emoções por detrás de um profissionalismo metódico.

- Não quero magoar-te - sussurrou.

- O que tem de acontecer, acontece, Quincy. Alguém que muito respeito disse-me uma vez que não se pode afastar o infortúnio. Portanto, resta-nos usufruir dos bons momentos.

- Se te perdesse...

- Continuarias a viver - interrompeu-o bruscamente. - E eu também. Ambos somos demasiado pragmáticos para reagirmos de outra forma. Mas somos fortes e vamos safar-nos. Agora, pára de falar. Pára de reflectir e analisar toda a gente e beija-me.

Ele obedeceu.

Apesar das suas ousadas palavras directas, ou talvez por causa delas, Quincy sabia até que ponto ela tinha medo. Sentiu-lhe a rigidez da nuca no preciso instante em que a acariciou suavemente. Rainie hesitou um último instante antes de erguer o rosto e oferecer-lhe os lábios.

Esperava, sem dúvida, que ele fosse violento e preparou-se para o ataque. Contudo, Quincy não fazia a mínima tenção de ceder às pulsões masoquistas de Rainie. Conhecia bem a sua história. Sabia até que ponto ela encarava o sexo como dor e castigo e não desejava precipitar as coisas, mesmo que ela achasse que esta seria a solução mais fácil.

Começou por roçar-lhe o canto da boca com os lábios, antes de lhe acariciar o cabelo. Rainie fechara os olhos e Quincy passou o polegar sobre as longas pestanas.

- Fazes-me cócegas - murmurou, o que lhe provocou um sorriso.

- Abre os olhos, Rainie. Olha para mim. Confia em mim. Nunca te magoarei.

A jovem mulher obedeceu, exibindo um olhar cinzento e límpido, de uma profundidade insondável. Ele nunca vira uns olhos assim, da cor de uma noite enevoada. Sem deixar de a fitar, baixou um pouco a cabeça para a beijar no rosto.

- Acho que nunca te disse quanto gosto do teu perfil - murmurou num tom suave. - Gosto desse queixo decidido, das maçãs do rosto orgulhosas...

- Descreves-me como se eu fosse um quadro de Picasso - replicou ela.

- És a mulher mais bonita que conheço, Rainie.

Os lábios de Quincy desceram lentamente até aos de Rainie e esta estremeceu uma última vez, antes de se entregar. Rodeou-lhe a nuca com as mãos e colou-se contra o corpo dele.

Desde o primeiro encontro que ele apreciara a sua boca carnuda, o curioso contraste entre aqueles lábios gulosos e o resto da cara, talhada a cinzel. Lábios que apetecia beijar, comer. Lábios capazes de inspirarem os mais belos sonetos, de fazerem vender a alma. Como era possível que ela tivesse chegado aos trinta e dois anos sem deixar que a amassem? E sentiu-se honrado com a confiança que ela lhe oferecia.

com a mão a envolver-lhe a cintura, Quincy sentiu a pressão do corpo dela, incitando-o. Roçou-lhe o queixo com os lábios, antes de se demorar longamente na curva delicada do pescoço. A respiração dela acelerou-se. Quincy sentia mesmo as batidas do coração.

- Fala comigo - sussurrou, ao mesmo tempo que mergulhava a cabeça no decote da camisa, embriagado pelo perfume da sua pele.

- Não... não consigo falar.

- Queria que deixasses de pensar, que esquecesses tudo menos nós, Rainie.

Pegou-lhe meigamente na mão e colocou-a sobre o seu peito, no sítio onde o seu próprio coração parecia um cavalo.

- Fala comigo. Diz-me o que quiseres, enquanto te toco - pediu. com um movimento suave, pousou novamente os lábios no pescoço de Rainie.

- Quando... quando era miúda - começou ela num tom rouco queria... queria fazer ginástica... tornar-me campeã olímpica. Hum...

- Tens um físico de atleta - replicou ele.

Enquanto falava, acariciava-lhe o corpo musculoso. Tal como ele, também Rainie fazia jogging todas as manhãs. Por um momento, imaginou os seus dois corpos entrelaçados numa cama branca, mas era demasiado cedo. Não queria arriscar-se a perdê-la, precipitando as coisas.

- Tiveste aulas? - perguntou em voz baixa, começando a desabotoar-lhe a camisa.

- Aulas?

- De ginástica.

- Hum...

Quince continuou a beijar-lhe o pescoço.

- Não...

- Já assististe a competições?

Roçando os lábios pela clavícula, deslizou uma perna por entre as de Rainie e atraiu-a de encontro ao corpo, provocando-lhe um gemido de prazer.

- Via... via os Jogos Olímpicos na televisão.

- Percebo - comentou, desapertando o último botão da camisa. Rainie estremeceu, sem oferecer resistência.

- A minha favorita era a Nadia Comaneci - retomou ele. Deslizou as mãos por baixo da camisa de Rainie. A pele era quente e sedosa e o corpo bem musculado. Acariciou-a devagar, enquanto ela se abandonava cada vez mais.

- Favorita como? - balbuciou ela.

- Na ginástica...

- Ah, sim... É verdade. Ooooh...

Ele não lhe despiu logo a camisa, preferindo ir ao encontro dos lábios que finalmente se entreabriam. Beijou-lhe a linha do queixo, roçando o lóbulo da orelha, mas Rainie virou a cabeça e atraiu-o contra si, fundindo-se no corpo dele, antes de lhe prender a língua.

Quincy acariciou-lhe as costas, aproveitando para desapertar o fecho do sutiã, que se abriu, revelando os seios.

- Em princípio, devias fazê-lo só com uma mão - murmurou-lhe ela ao ouvido.

- É falta de prática. Na próxima, não me esquecerei...

- Quincy? - chamou-o num tom meigo. - E se fôssemos para a minha cama?

Sem hesitar, ele pegou-a ao colo e levou-a para a enorme cama no extremo oposto da divisão. No último instante, tropeçou num par de sapatos, mas conseguiram aterrar em cima da cama. Rainie desatou a rir-se às gargalhadas e Quincy, com a cabeça entre os seios dela, beijou-a ternamente. Primeiro um, depois o outro. Tomou-lhe um mamilo entre os dentes e, em vez de o repelir, ela apertou-o com mais força.

- Pensemos apenas nos exercícios de ginástica - murmurou Raime. - Um trampolim, barras paralelas... Oooh, Quincy...

Aquele suspiro fê-lo entrar de novo em transe. Apeteceu-lhe gemer ao mesmo tempo, sentir a pele dela contra a sua. Mas não podia precipitar-se. Contudo, ia enlouquecer se não despisse rapidamente a camisa.

Arrancou-a com um gesto e fez o mesmo com a camisa e o sutiã de Rainie. Sem saber como, viu-se de costas, debaixo dela, os seios brancos de Rainie contra o seu tronco bronzeado.

- Já não me apetece falar dos Jogos Olímpicos - sussurrou ela.

- O quê? - replicou ele num tom rouco.

- Vejo que me percebes...

Rainie notou a cicatriz que ele tinha no ombro esquerdo. Prendeu-a entre os lábios, antes de fazer o mesmo com a outra mais pequena no braço e depois, com a terceira, à altura da clavícula.

- Quem te fez isto? - perguntou.

- O Jim Beckett.

- Mataste-o?

- Não. A ex-mulher encarregou-se disso.

- Uma mulher às direitas...

Interrompeu-se e cobriu-lhe o peito e o ventre de beijos. Quincy susteve a respiração. O cabelo curto de Rainie fazia-lhe cócegas, uma sensação maravilhosa que lhe punha a cabeça à roda.

- Quincy - pronunciou num tom grave. - Não quero vir a ser como a minha mãe.

- Mas tu nunca serás como a tua mãe.

- Um homem diferente todas as noites.

- Se tiveres outro amanhã à noite, mato-o.

- Okay, então. - Rainie?

- Não digas nada - pediu ela, pousando-lhe um dedo sobre os lábios.

- Deixa alguma coisa para mais tarde.

Rainie despiu as calças de ganga, antes de o ajudar a tirar as dele. Desta vez, Quincy deitou-se sobre ela. Rainie abriu as pernas e ergueu as ancas. Como que

hipnotizado, ele não deixava de olhar para o rosto de traços decididos onde lia pela primeira vez um resquício de esperança.

- Rainie - sussurrou. - O prazer é um direito.

- Não sei como.

- Nem eu. Aprenderemos juntos.

Rainie entrelaçou as pernas nas dele e Quincy penetrou-a suavemente, de dentes cerrados, atento às mínimas reacções. Sentiu imediatamente que o corpo dela se tornava tenso e o rosto se contraía. Parou, decidido a dar-lhe prazer. Retomou fôlego. Não podia precipitar-se. De súbito, a expressão quase dolorosa do rosto dela desvaneceu-se. As feições suavizaram-se e o corpo descontraiu-se, ao mesmo tempo que um brilho se fixava no olhar. Sentiu-a mover-se contra ele, à volta dele, num movimento de vaivém cada vez mais rápido.

- Devagar... - suspirou ele.

- Por favor... Agora. Por favor!

Quincy baixou a cabeça, decidido a abandonar-se ao seu anseio, guiado pelas mãos ardentes de desejo de Rainie. Quincy deixou de pensar, de se controlar, arrebatado pelos gemidos e pelo corpo de Rainie, por esta suprema prova de confiança que ela lhe oferecia.

Rainie soltou um grito. Um misto de prazer e de surpresa. Quincy demorou um pouco os olhos na expressão de beatitude de Rainie, antes de se abandonar por sua vez e mergulhar com ela num abismo fremente de prazer, Rainie adormeceu primeiro. Por um instante, Quincy julgou que também adormeceria, mas não tinha sono. O edredão branco enrolara-se entre os corpos e o sol iluminava a divisão através dos vitrais coloridos. Deitado de costas, não se atrevia a mexer-se com receio de acordar Rainie que tinha a cabeça apoiada no seu ombro e um braço sobre o ventre. De vez em quando, percorria-lhe os dedos pelas costas, certificando-se de que não estava a sonhar e que ela se encontrava ali.

Quase a achava ainda mais bonita durante o sono, o rosto pálido, as longas pestanas escuras sobre as maçãs salientes, a boca entreaberta por onde saía a respiração calma. Uma Rainie semimulher, semicriança. Toda sua.

Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos e ela balbuciou palavras ininteligíveis no meio do sono.

- Nunca te magoarei, Rainie - murmurou.

De súbito, o seu olhar pousou no telefone, que podia começar a tocar a qualquer momento. As tréguas haviam sido de curta duração. Em breve regressaria o momento da caça ao homem.

Pensou na filha, com a sua personalidade decidida, sozinha no quarto de hotel, passando os seus dossiês a pente fino. Pensou em Rainie, de queixo voluntarioso, na sua maneira de chamar as atenções por onde quer que passasse. Pensou em si próprio, na idade que começava a fazer-se sentir, na sabedoria que lhe chegava através dos erros cometidos.

Concluiu que era altura de deixar de se lamentar em relação ao passado e lutar pelo que lhe restava.

 

Residência dos Olsen, Virgínia

A caixa de chocolates chegou pouco depois das três da tarde, mediante entrega especial, pois era sábado. O estafeta tinha uns bonitos olhos cor de avelã. Mary assinou o recibo que o jovem fardado lhe estendia e teve a satisfação de vê-lo corar quando lhe piscou o olho. Levou o embrulho para dentro, desejosa de abri-lo, e encontrou uma encantadora caixa verde-escura anichada num mar de papel de lustro dourado. Contrariamente ao que lhe dissera o amante, não eram trufas Godiva, mas de um fabricante de chocolates que desconhecia.

Desatou a fita e abriu a caixa que emanava um intenso cheiro a chocolate agridoce e amêndoas. Doze trufas ao todo, em filas de três, polvilhadas com cacau e com uma noz em cima. A caixa era bonita, as trufas apetitosas e restava verificar se o detective que a vigiava era guloso.

Mary voltou a fechar a caixa e observou-se no espelho colocado por cima da cómoda da entrada. Uma espessa maquilhagem ajudara a disfarçar as olheiras e tapara as nódoas negras dos braços e dos ombros com um casaco de seda rosa. Os rolos no cabelo haviam produzido maravilhas e sentia-se de novo apresentável. Mais do que isso. Estava bonita. A mulher perfeita de um médico com as suas roupas cor-de-rosa.

- Os dados estão lançados... - Dirigiu-se ao espelho, antes de pegar na caixa de chocolates e sair.

O automóvel cinzento encontrava-se no lugar descrito pelo amante e um afro-americano bem vestido aguardava calmamente atrás do volante, parecendo estudar um mapa das estradas. Mal avistou Mary Olsen, pôs-se a olhar em todos os sentidos como um animal apanhado na armadilha. Ela avançou sem hesitar e bateu no vidro da janela do lado do condutor.

- Olá, minha linda - saudou ele de imediato, baixando o vidro.

- Nunca me passaria pela cabeça encontrar alguém tão belo neste deserto. Imagine que estou completamente perdido e bem preciso de uma ajuda.

Enquanto debitava as palavras com um belo sorriso, mostrou-lhe o mapa das estradas, mas sem conseguir evitar que ela o visse empurrar algo com o pé para baixo do assento. Provavelmente a máquina fotográfica.

- Não vale a pena disfarçar. Sei que é um detective particular

replicou a jovem mulher.

- Repito-lhe que todas estas estradas no campo se assemelham e...

- Sobretudo quando se olha para a mesma estrada dois dias seguidos. Importa-se?

Indicou-lhe com um gesto o lugar do passageiro. Ele já não sabia onde se enfiar.

- Se pudesse indicar-me o caminho mais rápido para chegar à Auto-Estrada Noventa e Cinco...

- Sem problema. vou mostrar-lhe no mapa.

Mary Olsen deu a volta ao carro e instalou-se ao lado dele, sem lhe dar tempo a protestar.

Fazia um calor asfixiante dentro do carro e o vestido colou-se-lhe imediatamente à pele sobre o assento de veludo. O plástico do porta-luvas queimava e Mary disse de si para si que devia ter trazido limonada ou chá gelado. A quem apeteceria comer chocolate com um tempo daqueles? Mas era tarde de mais para mudar de estratégia e estendeu-lhe a caixa de chocolates.

- Trouxe-lhe uma coisa - disse. - Achei que devia estar com fome.

- Mas...

- Por favor! Não me tome por uma imbecil. Não tenha medo. São apenas trufas.

- Trufas de chocolate? - indagou o detective com uma ponta de gulodice.

Contudo, hesitou antes de pegar na caixa que ela lhe estendia. Mal a abriu, espalhou-se um intenso odor a amêndoas e chocolate. Devido ao calor e ao espaço confinado, o odor era quase desagradável, e ele apressou-se a fechar a caixa. Mary quase ficou aliviada.

- Agradeço-lhe muito - respondeu delicadamente, pousando a caixa no painel. - Sou guloso, mas acho que vou resistir. Acabei de almoçar.

Instalou-se um silêncio desconfortável que a jovem mulher foi a primeira a quebrar.

- Chamo-me Mary Olsen - declarou, estendendo-lhe a mão. Mas certamente não estou a dar-lhe uma novidade.

- Phil de Beers - respondeu o indivíduo, após um longo momento de hesitação.

- Trabalha para o meu marido, tanto quanto sei,

- Neste momento, sou apenas um homem a viver um mau dia suspirou ele.

- O meu marido não me ama - retomou Mary. - Quando nos conhecemos, eu era uma mera empregada de mesa e senti-me lisonjeada pelo interesse dele. Ele é um famoso neurocirurgião. Resolve casos desesperados e ajuda crianças. Sinto muito orgulho no trabalho dele.

Phil de Beers assentiu com a cabeça, muito pouco à vontade.

- Quando me pediu em casamento - prosseguiu a jovem mulher -, senti-me nas nuvens. - Tive a impressão de estar a viver um conto de fadas. Na altura, não sabia o que me esperava. Ainda não compreendera que ele detestava a minha maneira de vestir e de falar. Eu era um tanto ingénua, acho, Mister Beers, pois estava convencida de que ele me escolhera por amor.

- Não sei se consigo segui-la - confessou De Beers e talvez estivesse a falar verdade.

O pobre sentia-se verdadeiramente perdido.

- Ele acha que o engano, não? - indagou Mary, virando-se para De Beers e fitando-o bem de frente. - Julga que passo o tempo a ir para a cama com os meus amantes, mal ele vira as costas. Porque o faria? Porque rrie deixa tanto tempo sozinha? Porque me proíbe de ver a família e os amigos? vou explicar-lhe. Não trabalho, não vejo ninguém, e a minha vida resume-se a esperar o meu querido marido em casa. Ele também lhe disse isso, não é verdade?

Fez deslizar o casaquinho rosa, desnudou o ombro e mostrou uma enorme equimose. Phil de Beers semicerrou os olhos e contraiu o maxilar. com um tal argumento a seu favor, Mary não duvidava da sua simpatia. Talvez conseguisse mesmo arranjar um aliado. Quem sabe se não ganharia a batalha contra o marido?

De Beers não pronunciou uma palavra e o silêncio tornou-se cada vez mais pesado. Por fim, Mary desviou a cabeça, sentindo-se repentinamente desesperada e exposta. Voltou a ajeitar o casaco de malha e abotoou-o até ao pescoço.

-Acho... acho que vou comer um chocolate - disse ela num fio de voz.

De Beers estendeu-lhe a caixa e ela pegou-lhe, sem o fitar. Desta vez, soube que o apanhara.

-Aceite uma trufa para me acompanhar - murmurou. - vou sentir-me menos culpada.

Ofereceu-lhe uma trufa, antes de comer uma e depois pousou a caixa em cima do painel. Como é que ele poderia recusar, sobretudo num país como a Virgínia, famosa pela delicadeza sulista? Ergueu a trufa como se fosse um copo, dizendo: "Saúde." Depois, meteu-a na boca, obrigando De Beers a imitá-la, após uma breve hesitação.

Preparou-se para um gosto químico ou farmacêutico, mas enganou-se. A trufa, deliciosamente fresca, derreteu-se-lhe na boca, exalando um sabor a álcool misturado com o de amêndoa e chocolate preto.

- Quem é o fabricante? - indagou De Beers, franzindo o sobrolho.

- Não são óptimas? Quer outra?

- Obrigado, mas são um pouco fortes para o meu gosto. Mary assentiu com a cabeça, mas voltou a estender a mão para a

caixa. Nesse mesmo momento, sentiu um leve ardor na língua. O coração começou a bater com mais força, o sangue subiu-lhe à cabeça e tudo começou a girar à sua volta.

Agarrada ao painel, deu-se conta de que também Phil de Beers arquejava. Grossas gotas de suor corriam-lhe da testa e os olhos saíam-lhe das órbitas.

- O que é que pôs nestes chocolates, céus?

Mary quis responder-lhe, mas a garganta ardia-lhe e o rosto, a suar, estava como que paralisado. Sentia-se a espumar.

- Arde - murmurou. - Arde...

Fez um esforço desesperado para agarrar a maçaneta da porta que conseguiu abrir penosamente.

Ele estava ali, na sua frente.

Deus do céu! Não!, Queria gritar, mas as palavras presas na garganta não chegaram aos lábios de onde corria a espuma. Tentou esboçar um gesto para que se afastasse, mas as mãos recusaram obedecer-lhe. Vai-te embora. Ele não pode ver-te. Já o obriguei a comer um chocolate. Mais uma hora e estaremos juntos. Beijarás as minhas nódoas negras. Farás com que me sinta bonita. Por favor...

Contudo, o homem dos seus sonhos, imóvel, fitava-a de uma maneira estranha. Parecia nunca a ter visto, nunca a ter abraçado, nunca lhe ter murmurado palavras ternas ao ouvido. Os lábios desenhavam um sorriso cínico. Não era o mesmo homem. Aliás, por que razão cortara o cabelo?

Quis falar, mas não conseguia respirar.

- Ajuda-me - balbuciou penosamente, estendendo as mãos na sua direcção. - Ajuda-me...

Em vez de lhe pegar na mão, o homem afastou-se. Viu-o dar a volta ao carro e aproximar-se de Phil de Beers, agarrado com força ao volante e que observava o desconhecido, procurando algo debaixo do assento.

- Fi... filho da mãe - balbuciou De Beers. - O gosto a amêndoas...

O braço surgiu finalmente e Mary, horrorizada, viu que ele segurava uma arma com mão trémula.

Mary desejou gritar, dizer ao homem que amava para se afastar, mas as palavras não lhe saíam da boca. Ardia-lhe terrivelmente a garganta e tudo girava à sua volta. Um sofrimento atroz. Ajuda-me. Ajuda-me...

Phil de Beers ergueu a arma com mão trémula, tentando desengatá-la. O braço descaiu...

Mary não desfitava De Beers e, naquele carro sufocante que não parava de girar, os olhares cruzaram-se finalmente. Ele pareceu pedir-lhe perdão, desculpando-se por não poder fazer nada por ela. Um gorgolejo sinistro saiu-lhe da garganta, os olhos reviraram-se e tombou sobre o volante num dilúvio de baba, enquanto a arma caía ao chão.

Mary via-a girar loucamente ao ritmo do carro.

Arde. Não consigo respirar... No meu ventre... As amêndoas, mas porquê? Arde... A minha maquilhagem escorre... Não me olhes...

Num derradeiro esforço, ergueu os olhos para o homem que tanto amava. Porque é que ele estava quase calvo? E por que motivo olhava para ela sem erguer um dedo para a ajudar?

- Não te preocupes. Não te resta muito tempo - declarou friamente, consultando o relógio. - Um minuto, no máximo. Estou aliás surpreendido por teres aguentado tanto tempo. É a prova de que as pessoas reagem todas de forma diferente.

As amêndoas, as amêndoas...

- Oh! Acho que me esqueci de te dizer ao telefone. Mudei de opinião. Em vez de um laxante, achei que seria mais prudente injectar cento e cinquenta miligramas de cianeto em cada uma dessas belas trufas. O odor não é muito agradável, confesso, mas é duplamente eficaz.

Os lábios da mulher ainda se mexiam e ele aproximou-se para captar as palavras.

- O que estás a dizer? Rezas? Mas, minha pobre Mary, vejo que tens memória curta. Já te esqueceste de que atraiçoaste a tua melhor amiga? Temo que Deus não te queira no seu paraíso.

Endireitou-se e os raios do sol em contraluz davam-lhe um ar de anjo exterminador.

E eu que te amei tanto, pensou ela no momento em que a vida se apressava a deixá-la. Devia ter desconfiado. Quem se interessaria por uma rapariga como eu?

Um pensamento ainda mais forte pairava no seu espírito enevoado pelo veneno, ao mesmo tempo que os espasmos da morte lhe sacudiam o corpo.

- É teu - conseguiu murmurar milagrosamente. - É teu...

Ele franziu o sobrolho e seguiu maquinalmente com o olhar o movimento das mãos crispadas à volta do ventre. De súbito, crispou os olhos.

- Oh, não! Isso não...

- Teu - pronunciou Mary Olsen num último fôlego.

O desconhecido precipitou-se e arrancou-a bruscamente para fora do carro. Deitou-a sobre o asfalto quente e tentou reanimá-la com palmadas nas faces.

- Acorda! Acorda, raios! Não me faças isso, Mary. Suplico-te... Contudo, Mary Olsen já não o ouvia. No seu peito, o coração havia

parado para sempre. O cianeto provoca uma morte dolorosa, mas extremamente rápida. De pé, ao lado do cadáver da jovem mulher, o homem fitava enlouquecido o ventre que começara a arredondar-se.

Se a tivesse deixado viver, ela dar-lhe-ia a notícia nessa mesma tarde. Fitá-lo-ia com uma expressão doce e inquieta, procurando a sua aprovação. E ele, depois de todos aqueles anos de solidão e abandono, ele que perdera irremediavelmente a família...

- Cabrão! Filho-da-puta! - sussurrou entre dentes. - Pierce Quincy, meu safado! Vê o que me fizeste! Vais pagar! Vais pagar!... Agora, AGORA

 

Portland, Oregon

Kimberly aplicou-se a reler o dossiê de Miguel Sanchez pela quarta vez em menos de duas horas. Finas madeixas louras, escapando do rabo-de-cavalo, caíam-lhe sobre os olhos e ela tentava voltar a colocá-las no lugar com um gesto impaciente. Agora que estava só, devia ter aproveitado para tomar um duche e mudar de roupa, mas não conseguia desviar a atenção daquele maldito dossiê. Estava convencida de que deixara escapar uma pista importante. O pai tinha razão em vincar que só o acaso o fizera atender a chamada de Sanchez; ela sabia também que a presença de AlbertMontgomery na equipa de investigação organizada pelo FBI era uma simples coincidência, mas havia algo mais. O seu instinto sussurrava-lhe que a chave do enigma se encontrava algures no caso Sanchez.

Foi interrompida por um ruído estranho do lado de fora do quarto.

Um chiar de rodas, como se alguém empurrasse dificilmente algo no corredor, sem dúvida um velho carrinho metálico. Kimberly franziu o sobrolho e voltou a mergulhar no seu dossiê.

Encerrado há vários anos em San Quentin e condenado a prisão perpétua, Sanchez vivia sozinho numa cela de dois por três metros, o que excluía a possibilidade de um ex-condenado cúmplice ter decidido vingar Sanchez em seu lugar. Devia haver outras hipóteses.

Por outro lado, Kimberly sabia que alguns presos têm direito a quatro horas de passeio diário no pátio da prisão, no meio de outros sessenta detidos com quem jogam basquetebol, fazem musculação e sabe-se lá que mais.

A acreditar no pessoal da penitenciária, San Quentin tinha dois tipos de presos, classificados nas categorias A e B. Pertenciam à primeira os que se haviam acostumado sem muita dificuldade às restrições da vida prisional. Obedeciam às regras e não causavam problemas aos guardas, em troca do que usufruíam de alguns privilégios, especialmente o de conviver com os colegas na hora do recreio.

Por outro lado, os presos da categoria B nunca se tinham resignado à prisão. Estavam sempre a arranjar brigas com os outros detidos, a ameaçar os guardas. A maioria deles passava grande parte do cumprimento da pena em isolamento administrativo, o termo oficial para designar o que os presos chamam a "solitária".

Miguel Sanchez era um habitue da solitária; segundo o dossiê, começara a pena como detido da categoria B, antes de se acalmar e passar à categoria A em 1997. Menos de seis meses depois, regressou à B; na realidade, tal significava que não tivera tempo de estabelecer relações em San Quentin. Teoricamente, pelo menos, pois tal não impedira que Richard Millos fosse assassinado no dia em que Sanchez se encontrava como por acaso na solitária. Na verdade, as mais rígidas medidas disciplinares não bastavam para tornar inofensivo um preso do arcaboiço de Sanchez.

O chiar das rodas no corredor começou a bulir seriamente com os nervos de Kimberly. O pessoal do hotel podia olear os carros de vez em quando.

O dossiê de Sanchez continha dezenas de recortes de imprensa e perfis psicológicos. O facto de ter agido em parceria era tão raro no pequeno mundo dos assassinos em série que tanto jornalistas como criminologistas se haviam debruçado sobre o seu caso. As entrevistas que Sanchez lhes concedia ajudavam-no sem dúvida a quebrar o tédio do quotidiano. Sob o manto da pesquisa científica, estes encontros lisonjeavam-lhe o ego, ao permitirem que revivesse os momentos mais excitantes do seu horrível percurso.

Kimberly ficara a saber através destes artigos que Sanchez e Millos tinham sido precedidos por várias parcerias homem-mulher. Contudo, nesses casos, a mulher, mais testemunha e vítima do que cúmplice, servia de escrava ao acólito. A maioria dos psicopatas, incapaz de se relacionar em sociedade, é, por regra, pouco inclinada a fazer amizades. No caso de Miguel e Richard, os peritos opinavam que o segundo servia de testemunha aos actos de Miguel. Richard Millos tinha medo do primo e este retirava um certo prazer da situação.

Um perito em criminologia escrevera um dia que Richard era a personificação das tendências homossexuais retraídas de Miguel. Quando este perito pedira para voltar

a entrevistar Sanchez, ele esperara o momento de ficar a sós na sala de visitas, sem algemas, com o interlocutor, para se atirar a ele e tentar estrangulá-lo. Foram necessários quatro guardas para dominar Miguel e arrastá-lo para fora da divisão. Sanchez não gostava, obviamente, que se evocasse a sua homossexualidade latente. Uma coisa era inegável: Miguel Sanchez nada tinha de cordeiro.

Kimberly conseguira encontrar a sua foto na Internet. Era muito moreno, com uma cabeleira rebelde que agradaria a Charles Manson e uns olhos cavados num rosto talhado a cinzel. Tinha os ombros cobertos de tatuagens; segundo um relatório da prisão, ele próprio enriquecera a sua colecção em San Quentin, com a ajuda de uma agulha e uma caneta. Segundo as suas palavras, tratava-se de uma homenagem às suas

vítimas. Kimberly tivera de observar demoradamente a fotografia para conseguir decifrar as letras tatuadas num dos ombros, com arabescos: Amanda.

O coração dera-lhe um salto no peito e levara um bom momento a recompor-se. Sabia perfeitamente de que Amanda se tratava, dado ter ouvido com Mandy as terríveis cassetes de Sanchez, quando eram miúdas. Mais um elo entre o psicopata e a família de Kimberly. Ou melhor, o que dela restava.

O chiar das rodas, cada vez mais próximo, impediam-na de se concentrar.

Levantou-se e dirigiu-se à porta. Dispensava bem aquele tipo de distracção. A sua tarefa já era bastante penosa sem que viessem perturbá-la com tais ruídos.

Paradoxalmente, se a morte de Mandy a pusera a flutuar num conflito de raiva, tristeza e medo, o assassínio da mãe devolvera um objectivo à sua vida. Mergulhada nas pesquisas, após meses de desconforto, Kimberly reencontrou toda a sua combatividade. Apesar dos avisos de Rainie, estava firmemente decidida a matar aquele safado. Não era a morte de um tarado como Miguel Sanchez que a faria sentir-se culpada.

Danuinismo, pensou. O mais forte mata o mais fraco. Ao atacar a minha família, este porco deve estar preparado para as consequências. Desde os doze anos que espero esse dia e não desisto facilmente.

Kimberly acabava de entrar na kitchenette, quando bateram à porta. Estacou, subitamente insegura. Num segundo, todas as suas resoluções se esfumaram. Pálida e transpirada, sentia palpitações.

- Serviço de quartos - anunciou uma voz aguda do outro lado da porta.

O truque do serviço do quarto era da idade do mundo e Kimberly não nascera ontem. Precipitou-se para o quarto, remexeu febrilmente a mochila de onde tirou a Glock, antes de se dirigir em passo de corrida para diante da porta, onde se plantou com a sua semiautomática.

- Deve ter-se enganado no quarto - gritou. - Vá-se embora imediatamente!

Obteve o silêncio como única resposta. As mãos de Kimberly tremiam tanto que não conseguia apontar a arma. Quarta-feira, a minha mãe, quinta, o meu avô. Sexta, conseguimos fugir, e hoje será a minha vez! Nem pensar! Não vou deixar-me ir abaixo!.

- Oh...Tenho aqui um pedido para o serviço de quartos.

- Afaste-se imediatamente dessa portal

- Muito bem. Quando quiser os seus morangos e o champanhe, basta ir buscá-los à cozinha...

O chiar das rodas voltou a soar e Kimberly ouviu o homem murmurar:

- Não sei o que lhes deu hoje. Deve ser da lua cheia... Baixou lentamente a arma. Tremia de alto abaixo e tinha a T-shirt

ensopada de suor. O coração batia-lhe com tanta força como se tivesse corrido a maratona e forçou-se a respirar fundo e a retomar o fôlego.

Sem se sentir em segurança, pôs-se de gatas e espreitou por baixo da porta. Foi só ao constatar que não havia qualquer sombra suspeita que se sentou no chão, a Glock entre as pernas.

- E eu que julgava estar melhor - murmurou com um ar sombrio e as costas apoiadas na parede.

- A propósito, Quincy. Nem penses em dar-me diminutivos ridículos do tipo dos que se encontram nos cartões de aniversário ou nas novelas da televisão. Não é nada o meu género. Para teu governo, não sou do género de adorar cartões do Dia dos Namorados. Acho que podia habituar-me às flores, sobretudo rosas. Julgo que me agradaria.

O que nos conduz ao assunto espinhoso das caixas de chocolates e outros doces semelhantes. Os chocolates, sim, mas podes esquecer as caixas em forma de coração.

Ah! É verdade. Nada de coisas com veludo vermelho. O que te parece?

Rainie e Quincy, deitados lado a lado na cama dela, ainda não se tinham voltado a vestir. Passava do meio-dia, o sol era intenso e o telefone podia tocar a qualquer

momento.

com a cabeça pousada no ombro de Quincy, ela traçava-lhe padrões imaginários sobre o peito. Gostava do torso bronzeado e musculoso, dos pêlos crespos, mas sedosos; gostava do cheiro, uma mistura de água-de-colónia e de sexo. Esteve quase a propor-lhe que retomassem a interessante conversa sobre as medalhas dos Jogos Olímpicos.

- vou recapitular: de acordo quanto às flores e aos chocolates, desde que a caixa seja quadrada, e a proibição absoluta de se inventarem diminutivos ridículos -

repetiu ironicamente Quincy, acariciando-lhe o cabelo.

Também a ele não lhe apetecia levantar-se. Recuou a cabeça para a fitar e declarou no tom mais sério do mundo:

- Mas preciso que me expliques o que entendes exactamente por "diminutivos ridículos". Não quero correr o risco de morrer estrangulado às tuas mãos.

- Muito fácil. Evita a todo o custo, "meu docinho", "meu rebuçadinho", "meu torrão de açúcar" - enumerou Rainie. - Numa palavra, todos esses nomes que quando os ouvimos na boca dos outros nos dá logo vontade de os matar.

- Vejo que tens aversão por tudo o que se relacione com açúcar.

- Entendido. Se não me chamares "torrãozinho", não te chamarei "meu queque machão adorado"...

- Sabes Rainie, pensando bem, talvez gostasse do nome... Rainie deu-lhe um pequeno soco no peito e ele fingiu-se atingido

de morte. No preciso momento em que ela se preparava para o ressuscitar com a respiração boca a boca, tocou o telefone.

- O Carl Mitz - murmurou Quincy.

- Preferia continuar a nossa discussão sobre ginástica - redarguiu.

- Receio que não seja o momento indicado.

- É um empata! - explodiu Rainie, ao mesmo tempo que se virava e estendia a mão para o telefone. - Sim?

- Lorraine Conner! Que prazer falar consigo! Rainie franziu o sobrolho. A voz não lhe dizia nada.

- Quem fala?

- Sabe perfeitamente. Passe-me o Pierce.

Ela deitou um olhar interrogativo ao companheiro. Não podia ser Carl Mitz ou o pseudopai de Rainie, pois queria falar com Quincy. O mais estranho era que ninguém ou quase ninguém o tratava pelo primeiro nome... E se...

Levantou-se subitamente como uma fúria e o coração a bater desenfreado. Acabava de se fazer luz no seu espírito.

- Como conseguiu este número, raios?

- Telefonando para as informações. Passe-me o Pierce.

- Vai-te foder. Não vou fazer nada disso.

- Então! Nada de criancices. Passe-me o Pierce.

- Quando falas para minha casa é comigo que falas, meu cabrão. Portanto, se tens qualquer coisa a dizer, aconselho-te a que te despaches, se não, dês...

Não teve tempo de acabar a frase, pois Quincy arrancara-lhe o auscultador das mãos. Rainie quis recuperá-lo, mas ele cortou-lhe o ímpeto com um olhar.

- Está? - perguntou num tom calmo. - Quem fala?

- Pierce Quincy, claro. Quer ver a minha carta de condução? Ou a minha caligrafia?

- Vejo que estou a lidar com um paranóico que sofre da mania das grandezas,

- Ora, caro amigo! Como se fosse uma honra estar na pele do Pierce Quincy. A sua filha mais velha está morta, a sua mulher está morta e o seu pai desapareceu. Não o acho assim tão poderoso.

- Não sou casado, portanto não posso ter mulher - ripostou Quincy.

- Desculpe, meu amigo. Estava a referir-me à sua ex-mulher. Não me parece que seja muito elegante da sua parte apagá-la tão depressa da sua existência. É decididamente um animal de sangue-frio, Pierce.

- O que quer? - inquiriu Quincy, fazendo um sinal a Rainie para que fosse buscar um gravador, a fim de registar a conversa.

Sem se preocupar com a nudez, ela saltou imediatamente da cama.

- Não é o que quero, mas quem quero, Pierce. Contudo, diz-se que quem espera sempre alcança. Tem algo a dizer ao seu querido pai?

- Sabemos ambos que ele está morto.

- Como pode sabê-lo? Parte do princípio de que está morto para evitar qualquer sentimento de culpa. Se não me engano, ele criou-o sozinho, fazendo o papel de pai e de mãe. E é assim que lhe agradece?

Mal o seu pai desaparece do lar, mete a cabeça na areia como a avestruz? Esperava mais de si.

- Não duvido.

Rainie já estava de volta com um gravador. Quincy colocou o telefone o mais perto possível do microfone e ela carregou no botão para gravar.

- O seu pai está vivo - retornou o homem. - Bem escondido dos policiazecos do FBI, mas bem vivo. E bastante agitado.

Quincy não respondeu.

- Talvez pudesse fazer-se uma troca. A sua filha pelo seu pai. De facto, ela é muito mais nova, mas, por outro lado, menos adulta do que ele.

Quincy continuou em silêncio.

- Ou então, podia fazer-se uma troca com a bela Lorraine. O seu pai pela sua amante. Acrescento que ela tem um bonito cuzinho e como você nunca conserva as mulheres por muito tempo... Ela grita quando a fode, Pierce? De qualquer maneira, posso dizer-lhe que a sua mulher gritava quando eu a fodia. A sua filha também.

- Como está o tempo no Texas? - perguntou Quincy. Rainie fitou-o, surpreendida, antes de se lembrar que Mickie Millos

vivia no Texas. Quincy estava a apalpar terreno.

- Porque me fala do Texas? Vejo que está no caminho errado.

- Que caminho me aconselha a tomar? O que já me permitiu dar cabo da sua carreira, arruinar-lhe a vida?

É curioso como pude ter tanto impacte na sua vida e tê-lo

esquecido tão depressa! Na verdade, cruzaram-se tantos tarados na minha vida! - comentou num tom despreocupado.

A voz do desconhecido tornou-se repentinamente mais agressiva.

- Não tente irritar-me, Pierce. Ainda posso matar muita gente que o rodeia.

Quincy bocejou ostensivamente.

- Sabe que está a ficar muito chato, meu caro?

- Talvez fique menos chateado, quando tratar da sua fllhinha, quando lhe despir a camisa para lhe acariciar o peito. E isso pode acontecer mais depressa do que julga.

- Começo a achá-lo muito presunçoso. Não estou muito preocupado com ela, sabe?

- O papá faz tenção de montar guarda junto da menina?

- Não preciso. No seu lugar, não me aproximaria muito dela, pois pode enfiar-lhe os tomates na garganta.

O homem soltou uma gargalhada.

- Engraçado! - troçou. - A Bethie e a Mandy preferiam dar-lhes outro uso.

Foi a primeira vez desde o início da conversa que Quincy apertou o auscultador com mais força.

- Vá lá, Pierce. Chega de piadas - prosseguiu o desconhecido. Se não quer trocar o seu pai, tenho de matar alguém no lugar dele. Dou-lhe uma hora para se meter num avião de regresso à Virgínia.

- Não me parece.

- Nesse caso, arranjarei maneira de a fazer sofrer terrivelmente antes de a matar...

- Já lhe disse que a minha filha...

- Não me referia à Kimberly. No seu lugar, agente especial Quincy, iria a correr para o aeroporto. Não lhe restam muitos amigos. Ah! Não se esqueça de dar um recado da minha parte a Miss Conner. Da próxima vez que contratar um detective particular, deve arranjar um que não goste de trufas de chocolate.

O homem interrompeu a ligação e Quincy desligou, antes de se virar para Rainie, com um brilho indescritível nos olhos. Ela só lho vira uma única vez, na noite em que Hemy Hawkins tentara matá-la.

- Ele pensa atacar-te - murmurou. Rainie abanou a cabeça.

- Não, não creio. Lembra-te das palavras dele, Quincy. Quer que voltes e atacou sem dúvida o De Beers, o que significa que está na costa leste. Provavelmente, algures

na Virgínia.

- Mas quem...?

- A Glenda! - pronunciaram ao mesmo tempo.

- Temos uma hora - exclamou Quincy, precipitando-se para o telefone e marcando um número com raiva.

 

Casa de Quincy, Virgínia

- Sai já dessa casa!

- Pierce? Não creio...

- Escuta bem, Glenda. O assassino acaba de falar comigo ao telefone. Exige que eu regresse à Virgínia e ameaça matar alguém para me forçar a obedecer. Estou convencido que és o alvo dele. Suplico-te que saias já dessa casa.

Os dedos de Glenda crisparam-se à volta do auscultador. De pé, no escritório de Quincy, só tinha olhos para o papel de carta dele de onde retirara uma folha para a enviar para o laboratório. Desejou não ter aceite aquele maldito caso.

- Não devo falar contigo - declarou ela calmamente.

- OMontgomery está aí?

- Isso não te diz respeito, Quincy.

- Estás só, é isso? Nem sequer está aí para te proteger? Raios! Como pudeste confiar uma missão destas a esse incompetente doMontgomery? O assassino tem a minha morada, Glenda. Conhece perfeitamente como funciona o FBI e sabe, sem dúvida, que haverá alguém a vigiar. Tanto quanto sei, conhece a disposição do sítio, o melhor local para escalar a sebe e o acesso à propriedade. Ele é extremamente perigoso, Glenda. É um monstro.

- Suponho que estejas a falar do teu misterioso assassino. Quincy manteve-se em silêncio.

Chegou a tua. vez de ficares surpreendido, pensou ela. Há três dias que estou a viver nesta casa a escutar mensagens cheias de ódio e afora interrogo-me sobre quem está a jogar ao gato e ao rato em toda esta história. Sem saber se tu és o gato ou o rato, Pierce. Tenho a cabeça em água com tantas dúvidas, e sabes que mais? Estou fana!.

- O que se passa, Glenda? - acabou por perguntar Quincy, parecendo inseguro.

Algures, no seu íntimo, Glenda sentiu-se satisfeita ao vê-lo hesitar.

- O crime perfeito não existe, Quincy. Devias sabê-lo melhor que ninguém. Há sempre um ou dois pormenores que falham.

- O relatório grafológico chegou de Filadélfia, não? E os peritos sabem que a letra da nota encontrada na Bethie se parece com a minha, é isso?

- O quê?

Quincy não sabia o que dizer. Estava perdido. E Glenda sentiu-o. Mas tal nada era comparado ao mal estar que a invadiu. Mesmo depois de ter encontrado o papel de carta, ainda duvidava da culpabilidade de Quincy. Mas agora... Aquele bilhete atroz e mórbido, ensopado de sangue, encontrado nas entranhas de Elizabeth Quincy! Fora, então, ele que o tinha escrito! Pierce Quincy, um dos seus colegas mais conceituados. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós...

- És um monstro, Quincy - arquejou ao telefone. - OMontgomery tinha razão. És um monstro.

- Glenda...

Ela fechou a tampa do telemóvel com um gesto raivoso e atirou-o para cima da alcatifa, como se se tratasse de uma víbora. Sentia-se arrepiada. Após todas aquelas

noites de vigília, o cansaço apoderara-se dela. Tinha medo, tinha frio. Acreditara naquele homem. Como era possível? Nunca mais se sentiria limpa.

No chão, o telemóvel começou a tocar, mas não quis atender. Não deixaria que ele a manipulasse. O toque prolongou-se durante uns dez segundos antes de chegar à caixa de mensagens e reinar o silêncio. Começara a descontrair-se quando o telemóvel voltou a tocar, desta vez sem parar.

Merda! Apanhou o telemóvel e abriu bruscamente a tampa para o desligar.

- Não acredito em ti! - gritou. - Passas o tempo a mentir. E não poderás matar-me com a facilidade que pensas. Estou armada, Quincy!

- Estou no Oregon, Glenda. Não posso fazer-te mal - redarguiu.

- O que me prova que falas verdade?

- Escuta, Glenda. Não temos muito tempo. Não fui eu que escrevi esse bilhete. Sei que tudo parece contra mim, mas não escrevi esse bilhete.

- Claro que escreveste. Tu próprio o confessaste há momentos!

- Nada disso. Pensa um pouco. Achas que não reconheço a minha letra? No minuto em que o médico-legista me estendeu o papel, compreendi logo. Mas não fui eu que o escrevi. Esse tipo arranjou uma amostra da minha letra e a sua imitação é quase perfeita. Ignoro como o fez, mas, de qualquer maneira, posso jurar-te que foi ele e não eu.

- Ouve-te a ti próprio, Quincy. É a minha letra, mas não fui eu. Até já nem mentir sabes.

- Raios, Glenda! Porque havia de usar a minha letra? Sou um profissional e recebi aulas sobre como analisar caligrafias. Se sou assim tão malvado, porque havia de cometer tamanha estupidez?

- Talvez não por estupidez, Quincy, mas por arrogância. De tanto te achares mais esperto que os outros, subiu-te à cabeça. E não há apenas o bilhete encontrado na tua ex-mulher. O laboratório analisou o original do pequeno anúncio enviado aos jornais prisionais e sabemos que foi redigido no teu papel de carta.

- A... a gaveta de baixo da minha secretária - gaguejou ele. Deus do céu! Mas há anos que... Seja como for - constatou, recompondo-se -, isso prova que ele já esteve em minha casa. Não fiques aí, Glenda, Suplico-te.

- Não quero ouvir mais nada - gritou ela, à beira da histeria.

Olhou, inconscientemente, à volta e verificou que as janelas do escritório nem sequer tinham cortinas. Teve a súbita impressão de estar fechada num aquário à mercê

de um gato. Quem sabe se Quincy não estaria a vigiá-la do exterior? Ou o seu misterioso assassino, se é que existia, ou ainda mais serpentes como as outras? Sentia-se

cansada. Tão cansada. E onde estariaMontgomery?

- Reflecte um minuto, Glenda - insistiu Quincy. - És uma mulher inteligente. Eu também. Porquê elaborar um esquema tão complicado para depois me atraiçoar com o meu próprio papel de carta? Porquê deixar um bilhete sem me preocupar em disfarçar a minha letra depois de querer dar a entender que a Bethie fora assassinada por um assaltante? O que teria a ganhar com esses crimes?

- Sentires-te intocável. Porque piraste depois de todos estes anos de investigações.

- Há uma eternidade que não estou no terreno.

- Talvez sentisses a falta e quiseste vingar-te.

- Assassinando a minha própria filha e a minha ex-mulher? Essa tese não tem fundamento e sabe-lo muito bem. Agora, suplico-te. Não fiques nem mais um minuto nessa casa.

- Tarde de mais - balbuciou ela.

- O que queres dizer?

- Acho... acho que está alguém lá fora.

- Oh, não!

Ouviu-o retomar fôlego e falar em seguida em voz baixa com alguém que estava ao lado dele. Reconheceu distintamente uma voz feminina. Lorraine Conner era então sua cúmplice.

Pela primeira vez, Glenda começou a achar a situação bizarra. Sua cúmplice? Por que motivo? Qual o objectivo de ajudá-lo a matar a filha e a ex-mulher, a atemorizar uma colega? Decididamente, não fazia sentido. Os argumentos de Quincy começaram a abalá-la. Para quê divertir-se a enviar um pequeno anúncio anónimo num papel de cem dólares? Estupidez ou provocação?

Sem largar o telemóvel, Glenda saiu do escritório e passou à cozinha, de onde podia observar melhor o jardim e a porta de entrada. Desapertou o coldre que usava ao ombro para poder sacar mais facilmente da arma em caso de necessidade e verificou em seguida o revólver que tinha atado à volta do tornozelo.

- Não te preocupes, Glenda. Sairás dessa - retomou ele num tom seguro. - vou ajudar-te. Entretanto, quero que ouças uma gravação feita pela Rainie há vinte minutos. A gravação de um telefonema recebido no seu sótão de Portland. E a voz do assassino, Glenda. Se não me acreditas, escuta bem.

Glenda ouviu um clique do outro lado da linha, seguido de uma gravação de má qualidade. Em menos de três minutos, percebeu a gravidade da situação. Arranjarei maneira de a fazer sofrer terrivelmente antes de a matar... Esta frase bastara para lhe abrir os olhos. Então, Quincy não estava a mentir... as provas contra ele eram demasiado perfeitas e a ausência de móbil demasiado flagrante.

O que significava que o criminoso existia. Era perigoso. Tinha assassinado sem escrúpulos a filha de um agente do FBI e esventrado a sua ex-mulher. Sem falar do pai de Quincy que, nessa altura, devia estar morto. Deus do céu...

- De acordo - articulou finalmente. - O que fazemos?

- Tens carro?

- Não no jardim. Está estacionado na rua.

- Longe?

- A três ou quatro minutos.

- Vais fazer o que te digo, Glenda. Pensa como se fosse um exercício de treino. Pega na tua Smith dr Wesson, desengata-a e corre até ao carro.

- Nem pensar.

- Glenda...

- Não tenho sítio onde me refugiar, Quincy. Ele pode estar escondido no jardim do vizinho, numa árvore, em qualquer lugar. O teu jardim não oferece protecção. Mal ponha um pé lá fora, abate-me como a um coelho. Não. Acredita que estou mais segura aqui dentro.

- Glenda! Ele conhece a casa. Arriscas-te a ser apanhada se ficares aí, enquanto lá fora...

- Não. É demasiado arriscado. Cá dentro, vejo-o pelo menos chegar. Além disso, mudámos o sistema de alarme, como sabes; não só precisa do código de acesso, como

as suas impressões digitais não estão computorizadas. Isso pode demorá-lo e dar-me algum tempo.

Enquanto falava, perscrutava o jardim da janela da cozinha. Segurava na sua arma de dez milímetros que desengatou com dificuldade devido às mãos suadas.

- Ele não se deixará impressionar pelo novo sistema de segurança. Até agora, sempre demonstrou ter recursos para tudo.

Glenda conseguira finalmente ter a arma preparada. Respirou fundo e tentou dominar o medo.

- Lembra-te da sua forma de operar - disse a Quincy com voz trémula. - Esse tipo só está à vontade quando manipula as vítimas. Não vejo como possa manipular um alarme tão perfeito como este.

- Pede reforços - aconselhou Quincy num tom premente.

- Já de seguida.

- Quanto tempo levarão a chegar?

- Cinco minutos. Dez no máximo.

- Se ele chegar entretanto, não o deixes falar. Atira primeiro e deixa as perguntas para depois. Promete-me, Glenda.

Glenda concordou distraidamente, ao mesmo tempo que pegava no rádio para chamar reforços. No momento em que ia carregar no botão, o telefone particular de Quincy começou a tocar. Mais um dos seus admiradores, pensou. O atendedor disparou e reconheceu de imediato a voz de AlbertMontgomery.

- Deus do céu, Glenda - pronunciou, enervado. - Podias atender, quando telefono. Há uma hora que estou a tentar contactar-te para o telemóvel. É urgente! O assassino não é uma invenção do Quincy. Existe mesmo e está aqui. Atenção! Está armado. Tem uma faca.

Quincy gritou algo aos ouvidos de Glenda, mas ela não prestou atenção. Pousou o telemóvel em cima do balcão da cozinha e tentou agarrar no telefone branco sem fios de Quincy, mas uma dor horrível atravessou-lhe a mão. Como se alguém a tivesse queimado com um ferro em brasa. Soltou um grito e largou o telefone, que se quebrou no chão da cozinha. Nesse preciso momento, reconheceu o som característico de alguém a desactivar o sistema de alarme seguido da abertura da porta de entrada.

Procurou com os olhos a sua arma, pousada um pouco mais longe. Baixou os olhos para a mão direita, queimada com uma espécie de ácido, cheia de bolhas, impossibilitando-lhe qualquer movimento dos dedos.

- Lamento, Quincy - murmurou, antes de ver AlbertMontgomery a entrar na cozinha, com o telemóvel numa mão e a arma de serviço na outra.

- Surpresa, querida! Sou eu!

Quincy ouviu um tiro e depois mais nada...

- Glenda! Glenda! Responde! Responde!

Quincy pôs a cabeça entre as mãos, respirando com dificuldade. A comunicação fora cortada e deixara cair o telefone em cima da cama de Rainie. Não posso perder o sangue-frio. De maneira nenhuma. Não é a altura...

Rainie rodeou-lhe os ombros com um braço, sem pronunciar palavra. Chorava.

- Preciso de telefonar ao Everett para saber o que aconteceu balbuciou ele. - Chamar a polícia...

Rainie preferiu manter-se silenciosa, também ela convencida de que Glenda fora morta.

Quincy suspirou e estendeu a mão para o telefone. Nesse mesmo instante, o aparelho começou a tocar. Pegou lentamente no auscultador, julgando adivinhar de quem se tratava, decidido a não permitir que o interlocutor o apanhasse desprevenido.

- Acabo de atirar contra o Monrgmery - anunciou Glenda do outro lado do fio.

- Glenda? És mesmo tu? Deus seja louvado!

- Ele tinha posto qualquer ácido no telefone, sem dúvida quando esteve aqui. O cretino julgou que me poria fora de combate, mas devia ter consultado o meu dossiê, antes de me atacar. O meu pai era polícia e ensinou-me a disparar com as duas mãos, dizendo-me que nunca se sabe o que pode acontecer debaixo de fogo. Hoje, devo-lhe a vida.

- Estás bem?

- Por sorte, o Albert é tão mau atirador como investigador. Preciso de tratar da mão direita, mas sobreviverei.

- E oMontgomery?

- Apontei a matar.

- Glenda...

- Não te preocupes, Quincy. Feri-o apenas no joelho e na mão direita. Sabia que querias obrigá-lo a falar. A propósito, ele recusa responder às nossas perguntas e diz que só falará contigo. Afirma saber onde está o teu pai. Precisas de voltar o mais rapidamente possível, antes que eu mude de opinião e dê cabo dele.

- Glenda.

- Estava a brincar - declarou com uma leve risada e desligou.

 

Portland, Oregon

De volta ao hotel, Quincy apressou-se a meter algumas coisas no saco de viagem, enquanto Rainie, sentada no sofá da sala de estar, discutia ao telefone com Vince Amity. De pé, na ombreira da porta, Kimberly observava-os em silêncio, de ombros curvados, como que pronta a atacar. Durante a ausência deles, tivera um problema com o serviço de quartos. Segundo parecia, um jovem empregado stressado enganara-se no número de quarto e tentara entregar uma surpresa de aniversário a Kimberly. O rapaz estava à espera de uma boa gorjeta e deparara em vez disso com uma jovem histérica. Felizmente para ele, nunca chegara a saber que ela tinha uma semiautomática carregada do outro lado da porta.

Mal Quincy regressou, a gerência do hotel explicara-lhe o incidente. Apressara-se a falar a Kimberly e a filha tentara encarar tudo com humor, mas ele bem vira que ficara abalada. O ataque sofrido por Glenda em nada contribuíra para a tranquilizar.

- A agente especial Glenda está mesmo bem? - inquiriu pela terceira vez com voz trémula.

A ansiedade de Kimberly em nada mudara naquelas quarenta e oito horas. Quincy em vão tentara acalmá-la.

- Não te preocupes com ela - replicou Quincy com voz calma, ao mesmo tempo que enrolava as peúgas. - A Glenda é uma óptima profissional que soube enfrentar perfeitamente o perigo. Não só disparou, como pôs oMontgomery fora de jogo com dois tiros.

- Deve ser uma excelente atiradora.

- Julgo mesmo que ganhou várias medalhas.

- Também não me saio nada mal. Pratico tiro ao alvo três vezes por semana.

- Tudo correrá bem, Kimberly - garantiu Quincy, erguendo o rosto e fitando a filha. - A Rainie vai ficar contigo e já não és uma miúda. Não te preocupes comigo.

Kimberly mordeu o lábio inferior, baixando os olhos para o chão. Quincy ignorava se a tranquilizara.

- Como está a mão da Glenda Rodman? - perguntou.

- Ainda não se sabe. OMontgomery confessou que aplicara Teflon no telefone com um spray, e depois pusera uma boa camada de ácido íluorídrico, um produto extremamente corrosivo. Devido ao contacto com a mão suada de Glenda, o ácido queimou-lhe a palma da mão e os dedos. Ainda desconheço o prognóstico a longo prazo.

- Além disso é a mão direita. Pode ficar inutilizada...

- Encontra-se sob os cuidados dos melhores especialistas. Tenho a certeza de que tudo correrá pelo melhor.

- Mas não sabes...

- Ouve, Kimberly! - explodiu secamente. - O Albert ia matá-la. Sabe-lo tão bem como eu. Em vez disso, conseguiu superar a dor e pô-lo fora de combate. Para ela, já é uma vitória. Não te desmoralizes.

- Não quero que te vás embora - sussurrou a filha.

Quincy fechou os olhos para dominar os nervos. Sentia-se totalmente sem forças.

- Eu sei - respondeu num tom meigo.

- Quer dizer... Eu sei que o AlbertMontgomery foi preso, mas tenho a certeza de que não está sozinho nisto. Há mais alguém. Se ele é como me descreveste, não o vejo a seduzir a mamã. Para já nem falar da sua estupidez. Se o Albert fosse assim tão esperto, nunca teria tido problemas a nível do FBI. Não te parece?

- Seja como for, corresponde à descrição do indivíduo que a tua irmã conheceu no seu grupo de Alcoólicos Anónimos - ripostou Quincy, embora sem muita convicção.

A filha nada tinha de idiota. Fitou-o com uma expressão abatida, descontente com as explicações recebidas. Quincy não sabia o que dizer nem o que fazer. Queria incutir-lhe confiança, tanto mais que a mãe de Kimberly já não podia ajudá-lo nessa tarefa. Bethie sempre soubera falar melhor com as filhas do que ele. Mau grado o seu doutoramento em Psicologia, Bethie sempre se havia mostrado mais dotada com as filhas.

- Amo-te, Kimberly - pronunciou finalmente.

- Papá...

- Também eu não quero deixar-te, mas não me resta alternativa. Talvez te pareça que confundo o querer e o dever, mas garanto-te que não é assim. É mesmo uma questão

de dever. OMontgomery afirma que tem informações relativas ao teu avô e só a mim as dará. Sabes que já se passaram quarenta e oito horas, Kimberly. Se não encontrar

rapidamente o teu avô...

A voz morreu-lhe na garganta. Se a filha queria ingressar na polícia, sabia perfeitamente que a esperança de encontrar Abraham com vida diminuía de hora para hora. Õ desconhecido garantia que o velho senhor estava a salvo, mas Quincy recebera novos pormenores nesse mesmo dia. Telefonara a Everett logo a seguir à sua conversa com Glenda. Ele informara-o de que o pequeno Audi vermelho fora encontrado pela polícia às quarro horas da manhã no preciso local onde Mandy tivera o acidente há catorze meses. Os técnicos forenses do FBI haviam descoberto vestígios de urina no lugar do passageiro, possivelmente de Abraham Quincy. Tinham trazido reforços para perscrutarem os arredores, bem como cães. Cães treinados na pesquisa de cadáveres...

- A culpabilidade doMontgomery está mais que provada - retomou Quincy num tom firme. - Ficou a odiar-me desde o caso Sanchez e terá procurado vingar-se. Se tal se confirmar, tudo acabou, Kimberly, e podes respirar fundo. Verás que tudo se comporá.

- Então, porque não nos deixas voltar contigo?

- Porque não estou cem por cento seguro e não quero que corram o mínimo risco. Até ter a certeza de que é ele, estarão melhor aqui.

- E tu? Não achas que é perigoso voltares à costa leste com tudo o que esse homem sabe a teu respeito?

- Tenho muito mais prática do que vocês as duas.

- A mamã não está aqui! - explodiu Kimberly. - Nem a Mandy! Nem o avô, e agora também tu te vais embora!

Quincy tinha finalmente compreendido. Kimberly não receava por ela, mas por ele. Após haver perdido a maioria dos familiares, assistia horrorizada à partida do pai rumo a um perigo desconhecido. Devia ter entendido logo a reacção dela. Que estúpido!

Quincy deu a volta à cama e abraçou a filha. Por uma vez, Kimberly, tão orgulhosa da sua independência, não ofereceu resistência.

- Não me acontecerá nada - garantiu-lhe, junto ao ouvido. Prometo-te.

- Sabes bem que não podes prometer isso.

- Claro que posso. Esqueceste que o teu velho pai é o ás de Quantico?

- Papá...

- Ouve, Kimberly - declarou, recuando um passo para a olhar bem de frente. - Sou um bom profissional, nunca actuo ao acaso e jamais subestimo o adversário. É um jogo perigoso e nunca esqueço que a morte pode estar ao virar da esquina. É por esse motivo que sempre me saí melhor do que os outros.

Kimberly tinha os olhos húmidos. Estava quase a chorar, mas engoliu as lágrimas.

- Juras que não correrás riscos? - insistiu. - Que não acreditarás em tudo o que oMontgomery te contar?

- Terei o máximo cuidado, pois quero voltar para junto da minha filha. E tu vais tomar conta de ti e da Rainie.

Peço-lhes que sejam extremamente cautelosas. Não

quero que vos aconteça nada.

- Vamos proteger-nos uma à outra.

- Obrigado, filha.

De pé, na ombreira da porta, Rainie tossicou. Quincy virou-se e compreendeu logo pela sua expressão que ela tinha algo de grave a comunicar-lhe. Suspirou fundo e

largou a filha.

- Acabo de receber notícias da Virgínia - anunciou Rainie. Quincy assentiu com a cabeça.

- Desembucha - pediu.

- O Phil de Beers e a Mary Olsen estão mortos. A polícia encontrou os corpos há uma hora dentro de um carro, perto da casa da Mary. O carro pertencia ao Phil. Será necessário esperar o relatório do médico-legista, mas a polícia inclina-se para a hipótese de envenenamento. O Phil e a Mary tinham espuma branca junto à boca e havia um cheiro intenso a amêndoas...

- Cianeto - deduziu Quincy.

Rainie assentiu com uma expressão sombria.

- Encontraram uma caixa com trufas de chocolate no carro. Faltam duas e as restantes têm o mesmo cheiro a amêndoa. Segundo o mordomo dos- Olsen, a Mary recebeu uma encomenda pouco antes de sair de casa. O cartão da embalagem ainda se encontrava na entrada. Sem a mínima indicação do remetente, claro.

- Queres dizer que alguém mandou entregar chocolates envenenados à Mary e que ela foi oferecê-los ao De Beers, antes de ela própria comer um deles? Não faz sentido! - exclamou Kimberly, perplexa.

- Não estou assim tão certo - replicou Quincy. - Imaginemos que oMontgomery apanhou o De Beers de vigia perto da casa da Mary Olsen, OMontgomery conhecia a Mary por intermédio da Amanda e precisava de desembaraçar-se dela antes que ela falasse com esse detective incómodo.

- Coloca, então, veneno numa caixa de chocolates - prosseguiu Rainie -, fá-la chegar à Mary e conta-lhe uma história qualquer para que ela os dê ao De Beers. Mata dois coelhos de uma cajadada. Nada mal. Estavas certo, Quincy. Esse tipo tem uma imaginação demoníaca.

- A morte por entrega especial - observou Kimberly com um arrepio.

- OMontgomery pode ser muito esperto, Kimberly, mas vamos vencê-lo - vincou Rainie.

- Vai dizer isso ao Phil de Beers - redarguiu a jovem com um ar lúgubre.

Rainie cerrou os dentes e girou sobre os calcanhares. Uns instantes depois, o pai e a filha ouviram o som da madeira a partir-se. Rainie acabara de deitar mão aos lápis de Quincy. Partira-os, raivosa. Quincy teria de tomar os seus apontamentos com a caneta.

- Acho que cometi uma gafe - comentou Kimberly.

- É verdade.

- Lamento...

- Não é a mim que deves pedir desculpa - retorquiu secamente. Surpreendida pela sua agressividade, Kimberly baixou a cabeça.

Quincy reprimiu um suspiro. Não estava habituado a ver a filha tão frágil, mas como criticá-la nas actuais circunstâncias?

- Kimberly - retomou num tom meigo. - A Rainie conhecia o Phil de Beers e deu-lhe uma missão importante, o que significa que confiava e gostava dele. Estou convencido

de que não vai desfazer-se em lágrimas, dada a situação. Mas não penses que é insensível às pessoas e aos sentimentos. Além de que é uma estupidez pores-te a atacá-la

para despejar frustrações.

- Lamento muito... Só que já nem sequer me conheço! - explodiu num tom agudo, ao mesmo tempo que toda a sua ansiedade vinha à superfície. - Estou tensa, enervo-me por tudo e por nada. Num momento tenho a impressão de controlar a situação, mas no momento seguinte morro de medo e estremeço ao mínimo ruído. Sabes o que se passou ainda há pouco com aquele empregado do hotel. Não aguento mais. Estou farta de duvidar constantemente de mim, de nunca saber o que vai passar-se. Sinto-me de rastos, pai! Eu que sempre fui a mais forte da família!

- Voltaste a ter ataques de pânico? - perguntou Quincy. - Continuas com a sensação de que alguém te espia?

- Não... - respondeu ela com um ar pensativo. - É verdade... Isso nunca mais me aconteceu desde que estou aqui.

- Óptimo. És forte, Kimberly - tranquilizou-a o pai. - Dadas as provações por que acabas de passar, acho que te tens portado muito bem.

- Achas mesmo? - surpreendeu-se ela, na defensiva. - Também te acontece sentires-te totalmente perdido, com crises de angústia, teres medo da própria sombra a ponto de sacares da arma se um empregado do hotel bate à porta?

- Não, mas há quinze anos que ando nesta profissão.

- E não sentes medo?

- De quê?

- De lidares lado a lado com a morte todos os dias?

- Claro que tenho medo, Kimberly - respondeu ele, aproximando-se para a abraçar. - Mas, entretanto, ajuda-me a preparar a bagagem - prosseguiu, indicando o saco. - A melhor maneira de vencer é avançar.

Kimberly assentiu com a cabeça. Descruzou os braços, soltou um fundo suspiro e agarrou num monte de camisas com uma tal determinação que Quincy sentiu um aperto no coração e lágrimas nos olhos.

Mentira à filha para não a assustar. Não só duvidava de queMontgomery fosse o verdadeiro culpado, como estava mesmo convencido do contrário. Sabia ao que se expunha com o seu regresso à costa leste, consciente de que tentavam uma vez mais manipulá-lo. Mas que alternativa lhe restava? Ele, um dos melhores agentes especiais do FBI, mergulhava como um principiante na armadilha que lhe estendiam. Tinha de haver outra solução. Havia sempre uma segunda hipótese.

- Não descobri nada de interessante sobre o Millos - disse Kimberly. - Nem sequer tem muito dinheiro na sua conta bancária. Por outro lado, artigos sobre o Miguel Sanchez não faltam. Escreveu-se mais sobre esse tipo do que sobre o Bundy.

- Porque trabalhava em parceria com o primo, o que é raro.

- Quem sabe se não acontece o mesmo com o nosso caso? murmurou ela.

Quincy compreendera perfeitamente a alusão. Fechou o saco, endireitou-se e fitou a filha.

- Preciso da tua ajuda - começou com um ar despreocupado. Como tens uma memória excelente, queria que fizesses uma lista de todos os teus amigos e de todos os amigos da família, desde a tua infância. Todas as pessoas que conhecíamos quando eu ainda era casado com a tua mãe.

Kimberly não era estúpida, mas acabou por assentir com a cabeça.

- Ei, Kimberly! Que se fada o bailado! - exclamou.

A jovem manteve a expressão sombria, mas, passado algum tempo, esboçou um sorriso.

Minutos depois, Rainie e Quincy desceram no elevador. Chegados ao átrio, dirigiram-se para a saída. Precisavam de chamar um táxi que o levasse ao aeroporto. Kimberly acedera em ficar na suíte, parecendo compreender que valia mais deixá-los sós. Quincy achava que devia dizer alguma coisa a Rainie, mas as únicas palavras que lhe ocorriam eram exactamente as que Rainie o tinha proibido de dizer.

Rainie consultou o relógio.

- Ainda tens duas horas - disse.

- Sinto-me estranho com este regresso.

- Acabou o intervalo.

- Rainie...

- Não te preocupes. Não acontecerá nada à Kimberly - apressou-se a acrescentar. - Dou-te a minha palavra.

Ele contentou-se em assentir com a cabeça. Também Rainie compreendera queMontgomery não era o cerne da questão.

Diz qualquer coisa. Faz qualquer coisa. Aprende com os teus erros, repetiu Quincy de si para si antes de pronunciar num fio de voz:

- Tem cuidado contigo.

- Não sou eu que me vou atirar para o covil do lobo - respondeu ela, desviando ostensivamente os olhos na direcção de um táxi que acabava de virar a esquina da rua.

Quincy fez sinal ao motorista, que parou e saiu do carro para pegar no saco de viagem. Tudo se processava a cem à hora.

- Eu telefono - prometeu.

- Mas não para aqui. Para o sótão. É mais seguro.

- Sem falta.

O motorista mantinha a porta aberta com um ar impaciente. Quincy, fingindo-se desentendido, continuava a fitar Rainie. Tinha o coração apertado. Sabia agora o que precisava de dizer, mas apercebeu-se de que as palavras não lhe saíam. Receava ter um ar demasiado grave. Receava sobretudo deixar transparecer a angústia que o dominava.

Rainie pareceu compreender. Avançou com um movimento brusco e beijou-o na boca, sem lhe dar tempo para reagir.

- Vai, Quincy. Até breve.

Quando ele finalmente entrou no táxi, já ela desaparecera no átrio do hotel.

- Para o aeroporto - indicou ao motorista. - Também te amo, Rainie - sussurrou, encostando-se no assento.

Eram três horas da tarde quando Rainie teve finalmente notícias de Carl Mitz no atendedor de chamadas. Para não deixar Kimberly sozinha, verificara as mensagens a partir do quarto de hotel.

Kimberly, instalada diante do computador portátil de Quincy, lia pela enésima vez os relatórios sobre Miguel Sanchez. Rainie sentara-se no sofá da sala, nervosa desde a partida de Quincy, sem se sentir ela própria.

Mitz informava-a de que ouvira a mensagem dela e que estaria no seu escritório à tarde, caso quisesse telefonar-lhe. Rainie desligou e deitou um olhar de soslaio a Kimberly.

- Estava a pensar marcar um encontro com o Ronald Dawson para amanhã. O que achas? - perguntou num tom calmo.

- Acho que o AlbertMontgomery é um idiota chapado - respondeu Kimberly, erguendo os olhos do ecrã.

- Também eu.

- Penso que a minha mãe nunca o teria deixado aproximar-se mais de vinte metros. Em resumo, pode ser um soldadinho obediente, mas continua a faltar-nos o general.

- Concordo inteiramente.

- E acho que se o Ronald Dawson for o nosso homem e lhe marcares um encontro aqui... ele não pode estar na Virgínia.

- Bem visto.

- Sugere-lhe um almoço. Depois telefona ao teu amigo xerife e prepara a arma.

- Sabes, rapariga, acho que gosto do teu estilo! - redarguiu Raime com um leve sorriso.

As três e meia da tarde, Rainie ligou a Carl Mitz; às três e quarenta, o táxi de Quincy chegou ao aeroporto de Portland; às três e quarenta e cinco, o telefone tocou no gabinete do xerife Luke Hayes, em Bakersville. A conversa durou cerca de um quarto de hora, O xerife desligou, informou Cunningham que precisava de ausentar-se, pediu-lhe que tomasse conta de qualquer ocorrência durante a sua ausência e meteu-se no carro.

O plano não era perfeito, mas era um plano...

 

                           Virgínia

- Aqui tens o que precisas de saber, Quincy.

Glenda Rodman pousou um dossiê diante do colega, abriu-o e colocou o lápis atrás da orelha, antes de recomeçar a percorrer de um lado para o outro a estreita sala de reuniões. Ele seguiu-a com os olhos, sem pronunciar uma palavra. Eram quase três horas da tarde de domingo. O ataque sofrido por Glenda ocorrera há vinte e quatro horas e ainda não tinham obtido permissão para falar comMontgomery. Primeiro, este exigira ser tratado pelo médico, dado o estado do joelho e da mão direita. Transportado para as urgências, fora imediatamente levado para a sala de operações. A intervenção correra bem, mas os médicos tinham proibido que fosse interrogado logo, a pretexto de haver sido submetido a uma anestesia geral.

Depois,Montgomery pedira uma injecção para acalmar a dor obviamente para fazer esperar o FBI, dado ser impossível fazer-lhe qualquer pergunta enquanto estivesse sob o efeito da morfina. O FBI poderia ter forçado a situação, mas o primeiro juiz a ser posto ao corrente invalidaria o resultado do interrogatório. AlbertMontgomery possuía, afinal, uma aptidão: sabia esquivar-se. Cada hora que passava aumentava o calvário dos seus ex-colegas. O FBI não tinha dúvida de que algo de importante estava em jogo.

- Acalma-te! - exclamou Glenda.

Surpreendido, apercebeu-se de que rodava maquinalmente um botão do casaco e parou de imediato. Nessa manhã, Glenda trouxera-lhe um fato. Por hábito, sempre que vestia um fato completo recuperava a confiança, mas hoje tal não acontecia. Quanto mais horas passavam, mais forte era a sensação de que a gravata o asfixiava.

Interrogava-se sobre como estaria Rainie. O pior era que nem sequer podia telefonar-lhe para o hotel.

Glenda retomou o seu lugar na mesa, a fim de mergulhar novamente no dossiê. Tinha a mão direita envolta numa ligadura branca, tratada na véspera devido a queimaduras de terceiro grau. Ainda não recuperara o uso dos dedos e os médicos mantinham um diagnóstico reservado.

Ninguém sabia se haveria sequelas provocadas pelas queimaduras, pois o ácido actuara sobre vários nervos. Havia que esperar e, naquela fase do jogo, não lhe

apetecia falar do assunto.

- O caminho do AlbertMontgomery cruzou-se pela primeira vez

com o teu há quinze anos, na altura do caso Sanchez - declarou num tom neutro. - Recordemos que ele já não era muito bem-visto pela administração; esse inquérito

foi a gota de água que fez transbordar o copo. Pegou-se desde o início com a polícia local, afirmando de maneira peremptória que o Sanchez actuava só. A tua intervenção fê-lo perder

toda a credibilidade, pois resolveste o caso, provando que o Sanchez tinha um comparsa. A mulher do Albert deixou-o três semanas depois, levando os dois filhos do casal. Mencionemos entre parênteses que os

miúdos nunca fizeram muita questão de passar os fins-de-semana com ele.

- Não há dúvida de que se enquadra no perfil - comentou Quincy num tom surdo e rouco.

- Discordo totalmente - replicou Glenda. - A situação corresponde mais

ao perfil do que o próprio indivíduo. Segundo o dossiê, Alf bert tem um QI de cento e trinta, ou seja, abaixo da média. O problema reside aparentemente no uso que faz da inteligência. Como é que se chama agora, quando um idiota consegue ser bem-sucedido num

negócio e um génio veste as calças do avesso? - QE inteligência emocional - especificou ele.

- Inteligência emocional. É isso. As coisas que se inventam! - suspirou Glenda, revirando os olhos. - O Albert não a tem. Em todos os casos de que se ocupou, constata-se

que lhe falta diligência e organização básica. Em vinte anos de carreira ao serviço do FBI, teve seis reprimendas. Arguiu em todas elas que não era incompetente e que o seu superior pretendia apanhá-lo.

- AlbertMontgomery, campeão das causas dos funcionários perseguidos.

Glenda sorriu ante a observação.

- Imprime a frase num autocolante e ponho-o no carro dele declarou. - Contudo, agora mais a sério, não podemos esquecer uma coisa: o Albert talvez não seja um Einstein, mas pode ter cometido os crimes. O cálculo aproximado da morte da Elizabeth situa-se as dez e meia da noite de quarta-feira. O Albert não tem álibi para essa noite. Além disso, afirma ter passado quinta e sexta-feira com os tipos da Brigada de Homicídios de Filadélfia, o que é falso. Verifiquei junto dos investigadores que apenas o viram na manhã de sexta-feira. O restante uso do seu tempo, basicamente, de quarta à tarde a sábado de manhã, permanece um mistério. Dispôs de todo o tempo do mundo para fazer uma visita à Mary Olsen, na Virgínia, à casa de repouso do teu pai em Rhode Island ou ir a uma entrevista em Portland. Não se sabe.

- Nenhuma pista de agências de viagem, companhias aéreas ou hotéis?

- Verificámos os cartões de crédito. Nada. Tão-pouco no aeroporto de Washington, mas, como há meia dúzia de aeroportos a menos de três horas de estrada, nada o impedia de ter apanhado um avião noutro sítio comprando um bilhete em dinheiro, ou de servir-se de um nome falso... - Glenda sorriu.

- E até mesmo alguém incompetente e pouco zeloso pode causar muito mal em setenta e duas horas - retorquiu Quincy com um esgar.

- E a conta bancária?

- O Albert tem actualmente novecentos dólares na conta, o que me parece um pouco curto para cometer loucuras. Mas, imaginando que pagou tudo em dinheiro, nada impedia um cúmplice de financiar as suas deslocações. É impossível verificar enquanto não se souber o nome do cúmplice, se é que ele existe.

- Esperto, mas preguiçoso. Pobre, mas talvez subvencionado por um gangue de criminosos... Espantoso!

- De qualquer maneira, sabe-se que o Albert não se poupou a esforços para te colocar como suspeito. Fez um telefonema ao Everett na sexta à noite para lhe dizer que provavelmente tinhas morto a tua ex-mulher. Depois, semeou a dúvida no meu espírito no dia seguinte. E mostrou-se bastante convincente - confessou Glenda. - O Everett hesitou muito antes de te mandar regressar. Se não o fez, foi apenas devido à falta de credibilidade do Albert. Teria, aliás, acabado por ceder ao ler o relatório do laboratório sobre o papel de carta encontrado na tua casa. O relatório ainda não chegou, mas deve confirmar que o pequeno anúncio foi redigido no teu papel e o Everett ver-se-ia obrigado a chamar-te. Além disso, eu duvidava cada vez mais da tua inocência, o que deixava campo de manobra ao Albert para o segundo acto.

- O teu assassínio.

- Sim. Um assassínio cometido em tua casa, com um sistema de alarme ultra-sofisticado, de que eras um dos únicos a saber o código. E, ouro sobre azul, os cartuchos das duas balas disparadas pelo Albert tinham as tuas impressões digitais. Serviu-se provavelmente de uma das tuas caixas de munições numa das suas visitas.

- O quê?! Que filho-da-puta! - exclamou, momentaneamente esquecido das boas maneiras.

- Não deves falar assim... - reagiu Glenda imediatamente.

- Desculpa - pediu.

- E controla essa agitação toda.

Começara involuntariamente a triturar o botão do casaco. Parou logo, como um miúdo apanhado em falta. Ergueu mecanicamente os olhos e contemplou a sua imagem no enorme espelho pendurado na parede. O lendário agente especial Pierce Quincy, famoso pela sua impassibilidade e competência, parecia um fantasma. Quando chegasse a ordem para interrogar AlbertMontgomery, não podia estar com aquele aspecto. Meteste-te connosco,Montgomery, agora chegou a minha vez.

A falta de sono e a angústia liam-se-lhe no rosto, dando pela primeira vez a sensação de que fora ultrapassado pelos acontecimentos. Não tinha nenhum motivo palpável

para estar assim. Afinal, AlbertMontgomery não passava de um peão em toda aquela história.

- Ele quer falar - anunciou Glenda calmamente, como se lhe tivesse adivinhado os pensamentos. - O Albert só pensa em provar que é mais esperto do que tu. No teu

lugar, fingiria não acreditar numa única palavra do que me contasse. É a melhor maneira de levá-lo a dizer tudo o que sabe. Tu odeia-lo e despreza-lo e tens vontade

de esmagá-lo, mas precisas de te manter calmo. Não percas o sangue-frio e verás que tudo correrá bem.

Quincy baixou a cabeça e consultou o relógio pela enésima vez. Eram três e trinta e dois. Glenda fora atacada há vinte e quatro horas... O tempo suficiente para

alguém atravessar o país e fazer-se passar por qualquer pessoa. Se ao menos tivesse podido telefonar a Rainie. Começou novamente a rodar o botão do casaco!

Por fim, -a porta abriu-se e um jovem colega enfiou a cabeça.

- Vão escoltar oMontgomery até à sala de interrogatório - anunciou.

Glenda assentiu com a cabeça e o jovem agente fechou a porta. Sob o olhar crítico de Glenda, Quincy endireitou-se e verificou se o nó da gravata estava no lugar.

- Achas que estou bem? - perguntou.

Portland, Oregon

Ao meio-dia e dezoito minutos, hora local, Rainie e Kimberly esperavam, sentadas no estreito sofá. Uma posição estratégica, que lhes permitia vigiar ao mesmo tempo

o quarto e a entrada da suíte. Tensas e incapazes de conversar, não desviavam os olhos do telefone.

- Porque é que ele não telefona? - perguntou finalmente Kimberly.

- Não deve ter novidades.

- Mas pensei que já devesse ter acontecido alguma coisa nesta altura.

- Também eu - murmurou Rainie, fitando a porta de entrada.

Virgínia

O agente AlbertMontgomery estava sentado na sala de interrogatório, mergulhado numa semipenumbra. Para alguém atingido por balas na véspera, parecia em boa forma.

Trocara o fato habitualmente amarrotado pelo pijama azul-claro do hospital. O cabelo estava penteado para trás e o rosto menos pálido do que o costume. A mão direita,

totalmente envolta numa grossa ligadura, repousava em cima da mesa, enquanto a perna esquerda, engessada por causa do joelho operado, assentava sobre uma cadeira. Apesar desses problemas,Montgomery parecia bastante à vontade.

Os dois homens observaram-se durante cerca de trinta segundos, sem que nenhum deles quisesse ser o primeiro a baixar os olhos.

- Estás com um aspecto horrível, Quincy - articulou finalmenteMontgomery.

- Obrigado, mas trabalhei toda a noite nesse sentido - replicou o seu interlocutor, aproximando-se da mesa, mas sem se sentar.

A sua posição permitia-lhe olharMontgomery de cima. Cruzando os braços com um ar desdenhoso, fitou-o como se ele fosse o verme mais desprezível ao cimo da terra. Por seu lado, AlbertMontgomery brindou-o com um simples sorriso. Após todos os interrogatórios que fizera ao longo da sua carreira, conhecia os ossos do ofício.

- Até parece que também perdeste a voz - troçou Albert. Apanhaste frio no avião, ou quê, Quincy? Essas coisas são ninhos de micróbios e com todas as tuas idas e vindas... costa leste, costa oeste, costa leste... Como te sentes no papel de marioneta, Quincy?

O seu interlocutor cerrou os punhos. Teria caído na armadilha, caso não se houvesse recordado dos conselhos de Glenda. Impossível dar-se ao luxo de matar Albert. Dependia demasiado do que o homem tinha a dizer.

Puxou uma cadeira e sentou-se.

- Querias falar-me e aqui estou - disse. - Agora, desembucha.

- Vejo que continuas arrogante, hein, Quincy? Veremos se manterás a compostura quando os polícias de Filadélfia te deitarem a mão. Já viste as prisões deles? Devias

pedir para fazer uma pequena visita à tua futura casa.

- Não estou preocupado com a polícia de Filadélfia.

Albert deitou-lhe um olhar de ódio que ele devolveu de imediato.Montgomery foi o primeiro a ceder.

- Filho-da-mãe - arquejou num tom rouco.

- Quem é ele, Albert?

Monrgomery não respondeu logo. Deteve brevemente o olhar no relógio pendurado na parede.

- Não sei do que estás a falar.

- Agiste só?

- Claro que sim. Por quem me tomas? Não achas que tinha bons motivos? Destruíste a minha carreira, Quincy. Por tua causa, a minha mulher e os meus filhos saíram de casa e a minha vida está arruinada. Mas veremos quem ri por último. Onde está a tua bonita filha, Quincy? E a mãe das tuas filhas? E esse teu bom e velho pai que tanto precisa de ti? E não dou muito pela tua carreira quando chegar o relatório dos peritos de Filadélfia. Quanto mais alto se está, maior é a queda.

- Não montaste esta história sozinho.

- Uma ova!

- Não tens inteligência bastante, Albert. O sangue afluiu ao rosto deMontgomery.

- Achas-te assim tão esperto, Quincy? Nunca pensaste que a vingança pode dar asas? Há quinze longos anos que aguardo este momento. Podia ter arranjado maneira de trabalhar numa das tuas investigações e passar-te a perna, mas era demasiado arriscado. Ou então dar-te um tiro pelas costas e deitar as culpas para outro, mas era demasiado fácil. Então, uma noite, ocorreu-me...

- Ocorreu-lhe.

- Ocorreu-wf, a mim. Para quê atacar-te directamente? No trabalho, estás no teu elemento, não era a melhor solução. Mas não és perfeito em tudo, meu velho! Como marido, como pai ou como filho, deixas muito a desejar. No dia em que percebi isso, soube que te apanhara.

- Arranjaste forma de conhecer a Mandy numa reunião dos Alcoólicos Anónimos.

- Comecei por me informar sobre o teu pai, a tua ex-mulher, as tuas filhas. Não era preciso ser Prémio Nobel para perceber que a Mandy era o elo mais fraco. Ignoro o que lhe fizeste quando ela era uma miúda, Quincy, mas destruíste-a. Não só bebia, como ia para a cama com toda a gente. Uma miúda à deriva, angustiada. Em que é que te formaste, afinal?

Ele cerrou os dentes. Encantado com o efeito conseguido,Montgomery estava certo de haver levado a melhor. Glenda tinha razão. O seu desejo de superioridade acabaria por levá-lo ao tapete.

- Mas tens razão. Conheci a Mandy e apresentei-me como sendo o filho de um velho colega do teu pai, Ben Zikka Júnior. E o que há de bom nestas reuniões de Alcoólicos Anónimos. As pessoas sentem-se imediatamente mais próximas, mesmo quando mal se conhecem. Três reuniões depois, tinha-a na mão.

- E apresentaste-a ao teu patrão.

- Não. Era eu que a tinha na mão.

- Talvez a Mandy não tivesse amor-próprio, mas será que nunca te viste ao espelho, Albert? Jamais permitiria que lhe tocasses.

Albert franziu o sobrolho, o que significava que lhe ferira a sensibilidade.

- Enganas-te, Quincy - retomou logo de seguida. - Não precisei de muito tempo para que a tua filha me dissesse tudo sobre a tua encantadora família. Sem falar dos pormenores que me forneceu a teu respeito, Pierce. Os teus hábitos, o teu sistema de alarme, deu-me mesmo a ler as cartas deploráveis que lhe mandavas para tentar manter um simulacro de relação com ela.

- Percebo agora como é que o assassino se apoderou de amostras da minha caligrafia. Sem falar do meu papel de carta.

Albert limitou-se a sorrir e voltou a olhar para o relógio de parede.

- Numa noite em que telefonaste, estava em casa da Mandy prosseguiu. - Nem te vou falar do nível da conversa. Nunca compreendeste a tua filha. No teu lugar, sentiria

vergonha, Quincy.

- Ele arrancou-lhe informações e depois matou-a - redarguiu em voz baixa.

- Fui eu que tive a ideia de a embriagar e depois pô-la ao volante. Era um bocado arriscado. Nada me garantia que morresse. Talvez recuperasse a consciência, mas o que interessava? Estava tão bêbeda que não se lembraria de nada e bastava-nos levá-la ao hospital e arranjar lá um incidente.

- Bastava-nos. Falaste no plural, Albert.

- Bastava-me - rectificou. - A morte dela era um primeiro teste. Quis ver se irias ao fundo da questão. Tu és o ás de Quantico, Quincy. Mas não me surpreendeu muito que não te apercebesses de nada. No que se refere à tua família, és um zero à esquerda. Nem sequer ficaste à cabeceira da cama. Só a visitavas de vez em quando e concordaste em que se desligasse o ventilador. Afinal, foste tu que mataste a tua filha, Quincy. Por mim, estou-me nas tintas, mas será que já pensaste a sério no assunto?

O seu interlocutor fez-se desentendido.

- com as informações que ela te tinha dado, aproximaste-te da Bethie...

- Não se pode esconder-te nada. A Mandy tinha-nos... A Mandy tinha-me falado muito da mãe. Eu conhecia o seu restaurante favorito, os seus gostos musicais, os seus pratos preferidos. Depois, foi uma brincadeira de criança. Sou muito sedutor, quando quero.

- A Bethie detestava os sedutores. Foi ele que se encarregou de conhecê-la, fingindo que lhe tinham transplantado um órgão da Mandy. A Bethie, traumatizada, encarou-o como a imagem viva da filha.

Albert encarquilhou os olhos. Não esperava que Quincy soubesse tanta coisa. Pela terceira vez, olhou de relance para o relógio, antes de voltar a fixar o seu ex-colega com uma expressão de desafio.

- Quando sou brilhante, é a sério, meu velho.

- Ele teve de esperar mais de um ano até que a Mandy morresse

- prosseguiu Quincy, abanando a cabeça. - Não ficou ansioso? Suponho que não estava nos seus planos.

- A paciência é uma virtude.

- Não. Começou a ficar nervoso. Precisava da minha atenção para que o jogo fosse interessante. Foi por isso que me enviou a Mary Olsen.

- Não queria destruir-te assim tão depressa. A vingança é um prato que se come frio.

- A Mary Olsen está morta.

Albert não conseguiu dissimular a surpresa. Desta vez franziu os olhos e empalideceu visivelmente.

- E daí? - redarguiu sem convicção.

- Como é que a mataste, Albert?

- Eu? Quer dizer...

- Usaste uma arma, uma faca?

- Sabes tão bem como eu que a matei a tiro.

- Pobre idiota! A Mary morreu envenenada - grunhiu Quincy, que conseguiu, mesmo assim, dominar-se. - O amante conseguiu fazer-lhe chegar às mãos uma caixa de chocolates com cianeto. Uma morte horrível.

- Era mesmo uma pobre idiota - murmurou Albert, cada vez mais desconfortável.

- Como achas que ele vai matar-te?

- Cala o bico! - explodiu, voltando a olhar para o relógio.

- Veneno? Ou algo mais original? Certamente não duvidas que representas um perigo para ele. Um perigo mortal. Mas um perigo a que, graças à Glenda, talvez possas escapar.

- Calas-te ou não?

- Ou esqueceste o que aconteceu ao infeliz primo do Sanchez? Por vezes, os psicopatas têm cúmplices, mas nunca os consideram seus iguais. O Sanchez ainda está vivo, mas o primo Richie acabou a sua triste existência nos duches da prisão, com os tomates enfiados na boca.

Albert levantou-se de um salto para se atirar a Quincy. Na sua precipitação, a perna engessada tombou por terra com um ruído surdo e ele soltou um uivo, agarrando-se ao rebordo da mesa para não cair. Depois, fitou-o com o rosto rubro de raiva.

- Filho-da-mãe pretensioso! Tinha tenção de dizer-te onde está o teu pai, o pobre velho fez-me pena, mas agora ele pode asfixiar-se na merda e afogar-se no mijo, que não levantarei um dedo. Satisfeito, agora?

- O meu pai está morto - pronunciou num tom estranhamente calmo, ao mesmo tempo que o coração ameaçava saltar-lhe do peito.

Era um risco enorme. Se estivesse enganado... Meu Deus, fazei com que esteja certo...

- O meu pai está morto - repetiu. - Encontraram o corpo dele.

- Impossível!

- Queres ir vê-lo à morgue?

- Mas ele não podia ter vindo ao cimo da água tão depressa, com todos os pesos que lhe pusemos - empolgou-se Albert antes de compreender que se atraiçoara. - Filho-da-mãe! Deitaste-me o laço sem saberes se ele ainda estava vivo. És uma merda!

- Faz parte da profissão, meu caro Albert - murmurou com um ar falsamente desprendido.

Tinha um nó na garganta e sentia um peso enorme no peito.Montgomery e o seu comparsa eram dois monstros. Se, ao menos, tudo aquilo acabasse...

- Não tens saída, Albert - retomou Quincy num tom surdo. De qualquer maneira, estás acabado, portanto escolhe: ou nos contas o que sabes, ou pagas por ele.

- Já te disse que agi só!

- Diz isso à Mary Olsen.

- Raios! Sou eu que decido tudo.

- Então, prova-o. Surpreende-nos com algo, já que sabes tudo. De súbito,Montgomery esboçou um sorriso cínico. Endireitou-se e,

desta vez, fitou ostensivamente o relógio.

- Queres novidades, Quincy? Muito bem! Vais tê-las. Para teu governo, a Mandy não foi o primeiro alvo, mas sim a Kimberly, pois atraiçoou-vos a todos.

- O quê?

- Vê bem a hora, meu velho, quatro e catorze minutos. No teu lugar, telefonava para o hotel em Portland. Poderás dizer à tua filha que foi uma imprudência ficar num hotel cujas coordenadas o Everett me deu no outro dia. Mas que estúpido! Já é tarde de mais! Não poderás voltar a falar com a pobre Kimberly. A tua filha está morta, Quincy!

 

                    Portland, Oregon

Quando o telefone pousado na mesinha de café tocou finalmente, Rainie estava uma pilha de nervos.

- Merda! - exclamou, deitando um olhar de soslaio a Kimberly.

- Merda! - ecoou a jovem.

Uma hora. Não estavam à espera de aguardar tanto tempo e daí a impaciência. Rainie agarrou no auscultador sem lhe dar tempo a tocar uma segunda vez.

- Está?

- Rainie? Fala o Luke. Tenho um problema.

- O que se passa? - inquiriu maquinalmente, ao mesmo tempo que revirava os olhos e fazia sinais desesperados a Kimberly.

A jovem compreendeu logo e foi buscar o seu Glack.

- Não me parece que o encontro desta tarde seja boa ideia, Rainie

- prosseguiu o indivíduo. - É demasiado arriscado. Podemos encontrar-nos antes e discutir o assunto?

- Esta voz... É incrível - murmurou Rainie. - Se não soubesse que...

- O quê? Não compreendi o que disseste - declarou o homem do outro lado do fio com uma voz muito semelhante à do xerife de Bakersville.

Não se tratava de Luke Hayes, mas de alguém com muito talento para fazer imitações.

- Como arranjaste este número? - inquiriu Rainie.

- Procurei o nome do hotel na lista.

- Nunca te disse onde estávamos, Luke.

- Claro que disseste. No dia do nosso encontro com o Mitz.

- Não, não disse. Além disso, o Luke nunca me perguntaria onde estava. Boa tentativa, psicopata de merda, mas tens de voltar a esforçar-te.

O homem modificou imediatamente a voz para uma entoação suave e sedosa de que Rainie se recordava da conversa da véspera.

- Muito bem, Miss Conner! Constato que nem sequer nos seus melhores amigos confia! Confesso-me agradavelmente surpreendido. Já que falo nisso, também a Bethie me surpreendeu, na noite da sua morte, quando percebi que ela fizera uma pequena investigação a meu respeito. Interrogo-me porque é que o Quincy só se rodeou de mulheres desconfiadas. Devia falar com o psiquiatra.

- Isso apenas prova que sabe rodear-se de gente inteligente. Onde está?

- Ora, ora, Rainie! Não está a querer por acaso privar-me da minha pequena recompensa depois de todo este esforço? Mereço uma nota alta.

- Pelo esforço, sim. Contudo, tanto quanto sei, a Glenda Rodman está viva e não acreditei nem por um momento que você fosse o Luke Hayes.

- Não entendeu nada. A eliminação da Glenda Rodman nunca esteve em causa.

- Porquê? Tem um fraco por mulheres de farda?

- Não se faça mais estúpida do que é, Rainie - redarguiu o homem com uma leve risada. - Ambos sabemos que o AlbertMontgomery é um incompetente. Trabalhou na polícia e sabe bem a importância de se conhecerem as pequenas fraquezas dos colegas. Pedi ao Albert que se ocupasse da Glenda por conhecer o seu ódio contra os representantes da autoridade pública. Creio que herdou isso do pai, um pobre guarda-nocturno que maltratava o nosso pobre Albert. Demasiado rígido, o pai dele. Produziu um Albert resolvido a provar que era melhor do que o pai a qualquer custo. O que não o impediu de seguir as pisadas desse progenitor detestado. Mas não lhe ensino nada se lhe disser que a natureza humana não só é complexa como paradoxal. De qualquer maneira, o Albert é um falhado e eu tinha a certeza de que falharia a missão.

- Não fica bem apostar contra o próprio cavalo - comentou Rainie.

- Que importância tem? Além disso, mesmo que o Albert se saísse bem, teriam acusado o Pierce do assassínio da Glenda e os superiores obrigá-lo-iam a regressar à Virgínia, o que era o meu objectivo.

- Quis atrair o Quincy para o matar?

- Nada disso. Que falta de perspicácia, Rainie! Não. Quis afastá-lo de Portland para a matar a si.

- Ups! Cometi uma gafe. Mas já que fala no assunto, longe de mim desiludi-lo, mas não faço tenção de morrer hoje.

Rainie fez outro gesto a Kimberly. Esta assentiu com a cabeça e foi observar todas as janelas, erguendo as persianas cautelosamente, a fim de verificar se não havia ninguém escondido na escada de incêndio. Acabada a inspecção, deixou as janelas abertas como haviam planeado, fez sinal a Rainie que estava tudo em ordem e dirigiu-se

ao quarto, a fim de continuar a tarefa.

- Tem medo do inferno, Rainie? - perguntou o homem. Uma série de interferências confirmou a Rainie o que já sabia: o seu

interlocutor estava a ligar de um telemóvel. O homem podia, assim, aparecer a qualquer momento. Falava-lhe apenas para a distrair, mas não tardaria a aperceber-se do seu erro.

- Não, não tenho medo do inferno - respondeu-lhe. - Pelo simples motivo de que a nossa vida neste mundo serve de treino.

- O sofrimento terrestre? Ora! Custa-me a crer que não tenha a esperança de uma recompensa à altura dos seus méritos no dia do Juízo Final.

- Já que falamos disso, no seu lugar, preocupava-me. Passou a vida a perseguir o pobre Quincy e foi ao ponto de matar muita gente inocente. Custa-me a crer - imitou-o - que tenha a mínima esperança de algum dia ir para o paraíso. Sinto que arderá para sempre nas chamas do inferno.

Terminada a inspecção, Kimberly fez um sinal de cabeça a indicar que estava tudo em ordem. Nada do lado da escada de incêndio. Aproximou-se da porta, mas Rainie indicou-lhe que se afastasse. Ouvira dizer muitas vezes que podia ser-se atingido através de uma porta e não tinha a mínima intenção de descobrir se seria verdade. Designou a alcatifa e Kimberly pôs-se de gatas e espreitou por baixo da porta. Nada.

- Tenciona, então, matar-me, Rainie? - perguntou o homem.

- Porque não?

- Afirma-se muitas vezes que o que conta é a intenção, mas não me parece que isso chegue. É muito mais difícil passar à acção, sabe? Visualizar o alvo, imaginar-se vencedor.

- Acho-o muito fanfarrão. Para variar, gostava de ser atacada por um assassino em série mudo.

Kimberly pediu novas instruções com o olhar. Tinha visivelmente medo, e Rainie, mau grado a sua calma aparente, começava a ficar cada vez mais nervosa. Sentia que ele estava muito próximo. Aquele tipo tinha uma necessidade doentia de ver morrer as suas vítimas.

- A Kimberly está consigo? - inquiriu.

- Porquê? Não lhe chego? - replicou Rainie, percorrendo a divisão com o olhar.

Nada na escada de incêndio, nada do lado da porta, onde é que ele podia estar? Por onde iria aparecer?

De súbito, ergueu os olhos e julgou avistar a ponta de uma broca a perfurar o tecto. Como é que ele fizera aquilo, raios?

- Foge! - gritou Rainie.

Kimberly precipitou-se para a porta de entrada no preciso instante em que o homem lhe murmurava ao ouvido:

- Obrigado, Rainie! Aceito com prazer o seu convite. Apercebeu-se do erro, mas era tarde de mais. A broca fora apenas um isco. Se o homem quisesse realmente furar o tecto, tê-lo-ia ouvido antes. E espreitar por baixo da porta não era seguro. Nada mais fácil do que aguardar junto dela. Rainie levantou-se de um salto. Contudo, Kimberly já havia escancarado a porta e o homem aguardava de arma apontada ao peito da jovem.

- Carl Mitz! - exclamou.

- Oh, meu Deus... Doutor Andrews! - sussurrou por seu lado Kimberly com voz trémula.

- Decerto não me levarão a mal se as desarmar, minhas senhoras

- anunciou Marcus Andrews, entrando na suíte antes de fechar a porta com o pé.

Estava vestido de uma forma muito banal, com calças de linho beges e camisa branca. Parecia um transeunte normal, à excepção de ter na mão uma semiautomática de nove milímetros e um grande saco de lona preto no ombro esquerdo. O cano da arma encontrava-se muito próximo do peito de Kimberly. A jovem estava lívida e não conseguia parar de fitá-lo.

- Não se entrega a arma - conseguiu articular num tom forçado.

- Um polícia nunca entrega a sua arma.

- Deixa-te de parvoíces, Kimberly, e dá-lhe a pistola - ordenou Rainie, irritada. - Isto não é o exame final de um curso na polícia e tu não és imortal.

- Uma de nós pode escapar - insistiu Kimberly. - Mesmo que ele atire, não pode matar-nos às duas.

- Kimberly...

- A culpa é toda minha. Olha para ele. Não percebes? A culpa é minbal

Andrews esboçou um leve sorriso e depois pousou o grande saco de lona no chão.

- Muito bem, Kimberly. Perguntava a mim mesmo quando acabaria por entender. Repeti-lhe vezes sem conta que conhecia o culpado.

- Mas os meus ataques de pânico...

- Na verdade, andei a segui-la. Disse-lhe que conhecia o seu assassino, mas daí até querer que soubesse que já se dava com ele há bastante tempo... Não lhe ocorreu que me viu muito pouco depois do enterro da sua irmã? Imaginou, sem dúvida, que estava a dar-lhe tempo para que recuperasse do choque. Na verdade, era eu que precisava de tempo para me encarregar do resto da sua encantadora família. Todos temos as nossas prioridades...

Indicou com um gesto as suas calças impecavelmente engomadas e a camisa de linho branco.

- O que acha do meu novo aspecto? - perguntou em seguida. É incrível a mudança que uma peruca, a roupa e lentes de contacto podem produzir. Nem sempre tive o ar de um velho professor descuidado, sabe? Mas achei que jamais iria desconfiar de um universitário com casaco de tweed. Adoptei aos poucos o ar desleixado que me conheceu na universidade para ganhar a sua confiança. Paradoxalmente, precisei de inverter o processo para me aproximar da sua mãe e da Mandy. Agora que a discussão já vai longa, pouse a arma sem fazer gestos bruscos e empurre-a com o pé para junto de mim.

- Quando penso que confiava cem por cento no senhor! Era o meu mentor e foi por isso que lhe contei tanta coisa sobre a minha família. Falei-lhe do meu pai, da minha

mãe, da minha irmã... e durante todo esse tempo...

Kimberly tremia da cabeça aos pés, quase a desmaiar, mas ainda não baixara a sua pistola.

- Kimberly! - grunhiu Rainie, que transpirava abundantemente, persuadida de que a situação podia descontrolar-se a qualquer momento.

Andrews virou bruscamente o rosto na sua direcção e Kimberly seguiu o olhar dele. Rainie não teve tempo de a avisar. Mal Kimberly deixou de fitar Andrews, ele aplicou-lhe um golpe de gancho com a mão esquerda no braço direito. A jovem soltou um grito de dor e a pistola caiu no chão. Rainie tentou aproveitar para usar a sua Glock, mas Andrews antecipara o gesto e já a tinha debaixo de mira.

- Não se arme em estúpida - aconselhou-a, ao mesmo tempo que agarrava Kimberly e lhe torcia o braço atrás das costas, servindo-se dela como escudo.

Rainie fez-lhe sinal de que compreendera. Baixou-se devagar e pousou a arma na alcatifa. Ao avistar o grande saco de lona preta um pouco mais à frente, interrogou-se sobre o que poderia conter.

- Agora. Empurre a arma para mim. com o pé.

Rainie obedeceu e a pesada arma parou a menos de um metro de distância, sob a mesinha de café. Encolheu os ombros na mira de levar o adversário a acreditar que não o fizera de propósito. Tinha curiosidade em saber qual a sua reacção. Andrews franziu o sobrolho, mas conservou-se silencioso, achando que Kimberly já lhe dava bastante que fazer.

Rainie respirou fundo. Mantém a calma, disse de si para si. As mãos tremiam-lhe e o coração parecia um cavalo. Conseguira mante-lo bastante tempo ao telefone. Se Kimberly e ela fossem capaz de ganhar um ou dois minutos... As janelas estavam escancaradas, a escada de incêndio era de fácil acesso, só faltava chegar a cavalaria.

O que estaria dentro daquele saco?

Kimberly chorava em silêncio, imobilizada por Andrews, com os ombros curvos e a cabeça baixa. Perdera visivelmente toda a combatividade.

- Perfeito! - exclamou Andrews. - Agora que se portaram bem, meninas, têm à vossa espera um trabalhinho. Bombas para fabricar e detonadores a aplicar nos telefones. Vão ver como nos divertiremos os três. O seu pai vai telefonar-lhe à uma e um quarto em ponto e conto dar-lhe o privilégio de fazer ir pelos ares a sua querida filha e a amante.

Merda! Era então aquele o conteúdo do saco! Rainie fechou os olhos. Andrews nem sequer precisava de uma grande quantidade de explosivos. Um bastaria para fazer ir pelos ares uma divisão daquele tamanho e tanto pior se o mesmo acontecesse ao andar todo e aos outros hóspedes. Andrews não estaria por perto. Para ele seria ouro sobre azul. Quincy não só perderia a única filha que lhe restava como viria a saber, mais cedo ou mais tarde, que era ele o responsável pela catástrofe. Tão simples como um telefonema... Nunca se recomporia por ter morto a própria filha, para não falar de Rainie.

Rainie decidiu-se a abrir novamente os olhos ao sentir uma corrente de ar. As janelas estavam abertas, mas não lhes restava muito tempo. Era necessário impedir que aquele tarado fabricasse a bomba. Estava fora de questão que fizesse ir pelos ares metade dos clientes do hotel para saldar as suas contas com Quincy.

Fitou Kimberly, tentando chamar-lhe a atenção. Precisavam de elaborar um plano. Fosse ele qual fosse. Se, ao menos, Kimberly conseguisse distrair Andrews com perguntas, enquanto Rainie tentaria apoderar-se da arma. Esta encontrava-se a menos de um metro. Era possível. Contudo, Kimberly mantinha-se prostrada, de cabeça baixa. Afinal, era tão jovem e a viver uma situação tão horrível!

- E pensar que responsabilizava o meu pai por tudo o que nos acontecia - balbuciou Kimberly, mais para ela própria do que para Andrews. - Na realidade, fui eu que os atraiçoei a todos.

Assaltada por uma súbita ideia, ergueu bruscamente a cabeça e franziu os olhos.

- O caso Sanchez, céus! Passei o tempo a ler e a reler esse maldito dossiê, convencida de que havia uma relação com o que nos acontecia! Claro que havia! As pesquisas do doutor Andrews na Prisão de San Quentin!

Virou-se para lhe ver bem a cara, antes de acrescentar com uma expressão sombria:

- Conhecia o Sanchez! É essa a ligação. Como pude ser tão cega, meu Deus?

- Desde o início que se esqueceu de fazer a pergunta essencial respondeu Andrews num tom neutro, torcendo mais um pouco o braço da sua prisioneira, a fim de se prevenir

contra qualquer movimento inesperado.

Rainie aproveitou para avançar um pouco.

- A questão residia em saber por que razão o culpado queria vingar-se passados tantos anos - dirigiu-se Andrews à sua ex-aluna com um ar doutoral. - Podia tratar-se de um criminoso saído recentemente da prisão e estou certo de que o pensamento lhe ocorreu, mas a pista morreu à nascença. Podia tratar-se também da família de um criminoso, mas porquê ter esperado tanto tempo? Ou então, toda esta história nada tinha a ver com o trabalho do Quincy no FBI, mas com uma época anterior. Contudo, e mais uma vez, porquê passado tanto tempo? Acho, porém, que o Quincy começava a divisar a verdade.

- Pura e simplesmente porque me encontrou - concluiu Kimberly.

- Diga antes que me caiu directamente nos braços! - explodiu Andrews. - Vinte anos depois de me ter tirado as minhas filhas, esse porco punha a dele no meu caminho sem o saber! Uma filha inteligente e bonita, decidida a seguir as pisadas do papá. Como é que o destino podia ter-se mostrado tão

generoso com ele, enquanto eu me via sem nada, privado das minhas filhas por causa desse pseudopsicólogo incompetente e arrogante?

Fixou subitamente o olhar em Rainie, que logo se imobilizou. Aproveitara a raiva dele para se aproximar ainda mais da sua Glock. Mas ainda não chegava. Andrews observava-a com uma expressão estranha. Ter-se-ia apercebido da manobra? Havia que distraí-lo...

- Não compreendo - replicou. - Era então um dos pacientes dele?

- Nada disso - proferiu, enervado. - Mas a minha ex-mulher era. Um dia, foi pedir-lhe ajuda e contou-lhe uma série de histórias fantasiadas. Na opinião dela, eu era um mau pai e traumatizava as minhas filhas.

É a tua vez, Kimberly. Tens de o obrigar a falar para ganhar tempo!

- Porquê? Aplicava-lhes maus tratos ou abusou delas?

- Maus tratos? Abusar? Nunca. Eram minhas filhas! As minhas filhinhas que eu amava e por quem teria feito tudo. Contudo, a mãe não compreendia nada das minhas filhas.

Só pensava em acarinhá-las, deixá-las brincar, deixá-las crescer. Mas a vida não é uma brincadeira!

- O Quincy testemunhou contra si no julgamento e perdeu a custódia das suas filhas, é isso? - insistiu Rainie.

Vá lá, Kimberly! Faz qualquer coisa! Rápido!

- Ele declarou ao juiz que eu sofria de graves distúrbios de personalidade. Descreveu-me como um ser perigoso, egocêntrico, desprovido da capacidade de me relacionar

normalmente. Na sua opinião, eu era um verdadeiro psicopata, servia-me das minhas filhas para obter o que pretendia sem deixar que elas expandissem a sua personalidade. Após a sua acusação tiraram-me as minhas filhas e nunca mais pude voltar a vê-las. Ninguém pode imaginar o inferno por que passei. Sempre fora considerado um cidadão

respeitável. De um dia para o outro, tornei-me um pária, rejeitado pela sociedade. Por pouco não me retiraram a licença de trabalho. A minha vida estava arruinada e é essa a minha dívida para com o meu querido Quincy.

- Mas mesmo assim não se saiu nada mal depois - comentou Rainie fingindo-se surpreendida e encolhendo os ombros numa tentativa de incitar Andrews a prosseguir a sua diatribe.

- Sim, mas tive de abandonar a Califórnia para refazer a minha vida em Nova Iorque. Sem a ajuda de ninguém. Abandonado por todos. Sem nada. O pior é que talvez pudesse ter recomeçado do zero com a Mary Olsen. Ela estava grávida de mim quando morreu. Teríamos podido ser felizes, mas o Pierce arranjou forma de voltar a destruir tudo. Foi ele que me obrigou a matá-la, antes mesmo de eu saber que estava grávida.

A voz de Andrews adquiriu uma repentina tonalidade de ódio.

- O Pierce é um verdadeiro filho-da-mãe - prosseguiu. - Perdi tudo por causa dele. Tirou-me tudo o que eu amava. Tudo! Pois bem, hoje acabou! A partir de agora, sou eu a tomar as rédeas. vou mostrar ao agente do FBI o que é um verdadeiro perito. Um perito em explosivos. Já chegou a altura de passar a coisas sérias.

Martelava cada uma das palavras, abanando Kimberly como um boneco e torcendo-lhe mais o braço. A jovem aproveitou o momento para lhe pisar o pé, mas ele previu a manobra, empurrou-a e fê-la desequilibrar-se. Kimberly esboçou um esgar de dor ao cair. Rainie queria tirar partido da situação, mas ainda se encontrava demasiado longe da arma, tão à mostra debaixo da mesinha de café.

Tinham de fazer algo e decidiu jogar tudo por tudo...

- Luke! Finalmente! - gritou, olhando subitamente para trás de Andrews.

Foi um acto desesperado, mas Andrews voltou-se, sentindo pela primeira vez a corrente de ar e persuadido de que fora apanhado pelas costas. Rainie não tinha tempo de agarrar a arma, presa sob a mesa. Atirou-se a Andrews como uma leoa, agarrando de passagem a única arma a que conseguiu deitar a mão. Uma das cadeiras de metal da cozinha.

- Kimberly. Agora!

Kimberly enterrou o cotovelo nas costas do agressor, antes de lhe aplicar um pontapé magistral. Em desequilíbrio, Andrews largou-a, tentando desesperadamenté apontar a sua semiautomática na direcção do perigo. Demasiado tarde! Rainie atingiu-o em cheio com a cadeira. Ele soltou

um grito de dor e deixou escapar a arma que voou para uns metros mais longe, enquanto a cadeira se esmagava ruidosamente contra uma parede.

- Cabra! - uivou.

- Kimberly. A arma!

A salvação de ambas dependia da rapidez de acção.

Rainie pôs-se de gatas para recuperar a sua Glock, mas Andrews deteve-a com um enorme pontapé no queixo. O maxilar estalou com um ruído sinistro e ela tombou de costas, cheia de dores. Kimberly tentou aproveitar para mergulhar na direcção da arma de Andrews, mas este adivinhou-lhe a intenção. Agarrou na cadeira e atingiu-a na cabeça.

Triunfante, Andrews atirou a cadeira pelo ar e voltou a apanhar a sua semiautomática que se encontrava muito perto do corpo inerte de Kimberly. A jovem quase conseguira...

Contudo, Rainie achou que ainda lhes restava uma oportunidade. Rolando sobre o corpo, avistou a Glock muito próximo, presa no pé da mesa. Coragem, Rainie. Antes viver do que morrer!, pensou, decidida a lutar até ao fim.

Como por entre a névoa, ouviu o ruído característico de uma arma pronta a disparar e dispôs-se a morrer.

- Adeus, Rainie - despediu-se Andrews num tom frio. Nesse mesmo instante, Rainie reconheceu a voz de Quincy.

- Olá, Andrews. Tira as mãos de cima da minha filha.

Virgínia

AlbertMontgomery parecia ter recuperado a calma, quando Quincy se lhe juntou na sala de interrogatórios quinze minutos mais tarde. Quatro horas e trinta e dois minutos da tarde. Acabara certamente de receber a confirmação da morte da filha. Albert gostaria tanto de o ver chorar...

O interrogador atravessou a sala mal iluminada e parou na sua frente.

- Viva, Albert! - pronunciou com uma voz trocista que Albert não reconheceu. - É a minha vez de te dar novidades. Primeiro, a Kimberly está óptima. Segundo, não sou o Pierce Quincy.

Juntando o gesto à palavra, arrancou a peruca grisalha. Um perito do FBI levara mais de duas horas a aplicá-la. Em seguida, descalçou os sapatos de saltos altos e o casaco azul de chumaços.

- O meu nome é Luke Hayes e sou um amigo da Rainie.

Portland, Oregon

Ao ouvir a voz, Andrews empalideceu. Virou-se de rompante para a porta do quarto e baixou maquinalmente a arma, mas sem largar Kimberly.

- Qu... Quincy? Mas... como... Estás na Virgínia!

Quincy entrou na sala, vindo do quarto contíguo, com os dedos crispados na arma. Não tirava os olhos de Andrews. Perdera mais de quinze minutos no átrio do hotel em busca de um homem de negócios que estivesse a usar o telemóvel e só depois compreendeu o erro. O seu rival já devia estar no sexto andar, no quarto da filha. De acordo com o plano B, subiu os degraus da escada de incêndio o mais depressa possível.

Paradoxalmente, sentiu uma paz interior há muito esquecida diante daquele homem armado, agachado junto à filha. O tempo retomara o seu curso. Tudo se tornava possível, a partir do momento em que o assassino tinha um rosto. Aquele Andrews não era nada de excepcional: as feições vulgares de um homem vulgar, de meia-idade e estatura média, o perfil típico de um psicopata.

- Foste tu, então, que mataste a Mandy - conseguiu articular.

Aproximou-se devagar e Andrews não esboçou o mínimo gesto. Todavia, as suas vítimas estavam ali bem vivas. "Era provavelmente o sinal de que não gostava de armas de fogo", pensou Quincy, sabendo que a maioria dos assassinos em série nunca enfrentava as suas vítimas e preferia matá-las de surpresa.

- A Mandy? Uma morte engenhosa, não foi? - respondeu Andrews com um cinismo fingido que o tremor da voz atraiçoava.

Por trás dele, o braço de Rainie avançava pouco a pouco na direcção do pé da mesinha, onde Quincy avistou a pistola. Esforçou-se por desviar o olhar a fim de não a trair e fixou a atenção em Kimberly que começava a mexer-se aos pés de Andrews.

- E foste tu que mataste a Bethie - articulou ele.

- Outra proeza! - exclamou Andrews, passando bruscamente o braço à volta do pescoço de Kimberly para a manter agarrada.

Kimberly abriu os olhos e deitou um olhar surpreendido à sua volta. Ao avistar o pai, o rosto ensombrou-se-lhe.

- Está tudo bem - disse Quincy para tentar acalmá-la e apagar a tristeza do olhar da filha.

Apetecia-lhe precipitar-se para junto dela e abraçá-la, mas Kimberly era uma jovem corajosa. Sabia que a filha era capaz de aguentar até ao fim, desde que confiasse nele. Não tenhas medo, pensou. vou tomar conta, de ti.

Andrews estreitou Kimberly com mais força, esboçando um sorriso inquietante.

- Vá lá! De pé, Bela Adormecida! Chegou a hora de te despedires do papá! - ordenou, erguendo-a com um movimento brusco, sem que Quincy esboçasse qualquer gesto para o deter.

Pelo canto do olho, apercebeu-se de um ligeiro movimento junto à mesinha, mas resistiu à tentação de se certificar. Fixou Andrews intensamente, pois era preciso que ele esquecesse a presença de Rainie.

- Qual é a sensação, Quincy? - inquiriu Andrews, torcendo maldosamente o braço de Kimberly e apertando-a ainda mais. - Estava mesmo curioso por saber como é perder tudo sem sequer entender a razão!

- Para quê tanto esforço para mostrares que és mais esperto do que os outros? - redarguiu Quincy num tom coloquial, deslocando-se um pouco para a esquerda, a fim de distrair o adversário. - Tu não és real! És uma casca vazia, desprovida de sentimentos, de humanidade. Passaste toda a vida a fingir. Precisas absolutamente de copiar os outros para te sentires um homem. Nem sequer sabes quem és. Felizmente para elas, as tuas filhas nunca mais voltarão a ver-te.

Rubro de raiva, Andrews ergueu a arma, visando a cabeça de Quincy.

- Vai-te foder! - rugiu, causando um esgar de dor em Kimberly.

- vou matar-te. vou estourar-te os miolos!

- Claro que não vais! - contrapôs num tom tão calmo quanto o de Andrews era histérico.

Fixou a filha, incitando-a a não perder a coragem, a confiar nele.

- vou sim!

- Claro que não! Sem mim, a tua vida deixaria de ter sentido. O que serias sem mim, Andrews? Ficarias sem um objectivo, ficarias sem sonhos. Podes odiar-me com todas as forças, mas não podes dispensar-me. Sem mim não és nada.

Andrews, apopléctico, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, estava à beira do descontrolo. Exactamente o que Quincy pretendia. Fazer-lhe perder o pouco de sangue-frio que lhe restava, soltar o monstro que havia nele.

O dedo de Andrews crispou-se no gatilho. Quincy não desviava o olhar de Kimberly, tentando dizer-lhe quanto a amava, quanto lamentava a violência do que ia seguir-se.

Rainie e Kimberly. Kimberly e Rainie. Elas teriam de portar-se com valentia.

Um movimento pelo canto do olho...

- Kimberly - murmurou. - Que se foda o bailado!

Como se se tratasse de um sinal, Kimberly deixou-se cair no chão, qual boneca de trapos. com um uivo de surpresa, Andrews premiu o gatilho, mas o movimento brusco

da sua prisioneira tinha-o desequilibrado e a bala perdeu-se na parede. Quincy ergueu a sua arma, mas os corpos de Kimberly e Andrews estavam demasiado entrelaçados.

Era um risco demasiado.

- Kimberly! - gritou sem saber muito bem porquê.

- Pai!

- Ei, Andrews! - chamou Rainie. - Tinhas-te esquecido de mim?

O homem virou-se bruscamente e Kimberly aproveitou a surpresa para se libertar do seu abraço, ao mesmo tempo que Rainie recuperava finalmente a sua arma.

- Não! - uivou Andrews.

Apontou a arma a Rainie, mas era tarde de mais. com uma calma surpreendente, Quincy acabava de o atingir com uma bala em pleno peito. Andrews caiu para não mais

se levantar.

- Acabou? - perguntou Kimberly, quando o eco do tiro se extinguiu.

Tentou pôr-se de pé, mas o braço esquerdo não lhe obedeceu. Tinha os longos cabelos cheios de sangue de uma matéria cinzenta.

Quincy correu para a filha e abraçou-a. Ela tremia dos pés à cabeça. Apertou-a meigamente contra o corpo, como no dia em que ela nascera. Salvara-lhe sem dúvida a vida, mas também sabia que ela corria o risco de não se libertar tão cedo do trauma daquele dia. Muitos anos passariam antes que conseguissem resolver as diferenças que os separavam. Estava, porém, decidido a fazer tudo para se libertar em definitivo daquela carapaça de solidão que sempre o isolara do resto do mundo.

Pierce Quincy compreendera finalmente que a solidão não era uma defesa.

Virou-se para Rainie, que se inclinara sobre o corpo de Andrews.

- Não podemos fazer mais nada por ele - murmurou.

Kimberly, abraçada ao pai, chorava em silêncio e ele embalava-a devagar, acariciando-lhe os cabelos sujos com o sangue coagulado.

- Acabou - disse por fim, dirigindo-se às duas. - O jogo chegou ao fim.

Nesse preciso momento, bateram à porta.

- Abram! Segurança! - rugiu uma voz desconhecida.

 

                           Pearl District, Portlarut

Seis semanas mais tarde, Rainie Conner estava sentada diante do computador, na sua secretária do sótão. Oficialmente, analisava o orçamento. Na realidade, aguardava que o maldito telefone tocasse. A situação prolongava-se há dias e já não se sentia capaz de aguentar.

Levantou o auscultador para se certificar de que a linha não estava avariada.

- Que merda de som! - resmungou entre dentes.

Pousou de novo o auscultador e continuou a analisar as contas, sem na realidade se interessar pelos números.

Quincy tinha-lhe pago. De nada lhe servira gritar e ameaçá-lo em todos os tons de voz, pois ele não quisera saber. Em desespero de causa, acabara por aceitar o cheque.

A verdade era que não vivia do ar e como o preço dos bilhetes de avião já tinha sido retirado da sua conta... a empresa de Lorraine Conner não ficara com saldo positivo

muito tempo, pois não tardara a regressar à Virgínia sob vários pretextos, cada um mais falacioso do que o outro.

Antes de mais, tinha de ajudar Quincy a fazer com que Albert Montmery soltasse a língua. Este acabara por contar o seu encontro com o Marcus Andrews dois anos e meio antes. Há muito que Andrews sonhava vingar-se de Quincy.

Na altura em que Quincy ainda tinha o seu consultório particular, a mulher de Andrews, Emily, recorrera aos seus serviços de especialista para manter a custódia das filhas. O testemunho de Quincy revelara-se primordial na decisão do juiz quanto a proibir qualquer contacto entre Andrews e as filhas. Um caso que, na altura, mobilizara todos os esforços de Quincy, mas que esquecera durante anos. Andrews era um nome demasiado comum para que Quincy relacionasse os factos quando Kimberly lhe falara do seu querido professor.

Estranhamente, Bethie julgara que o perigo vinha do trabalho do seu marido para o FBI. Nenhum deles levara em consideração a quantidade de desequilibrados que ele tivera de enfrentar durante os anos em que mantivera o seu consultório prática particular.

Andrews entrevistara Miguel Sanchez no quadro das suas actividades universitárias. À medida que se familiarizava com os pormenores do caso, ficara ao corrente do papel desempenhado porMontgomery no inquérito e imaginara, com razão, que o colega de Quincy lhe votava um ódio mortal. Andrews dedicara-se, então, a encontrar o rasto deMontgomery, na Virgínia. Bastara um jantar bem regado para queMontgomery se lhe juntasse na sua acção criminosa.

Movido pelo desejo de vingança,Montgomery iniciara progressivamente Andrews nos segredos do FBI. Fornecera sobretudo respostas concretas a várias das suas perguntas: Como reagia o FBI quando um dos seus agentes corria perigo ou a sua família se encontrava ameaçada? Quanto tempo precisava um serviço como o FBI para passar a pente fino dossiês de casos antigos? O que acontecia a um agente sob suspeita de assassínio?Montgomery tinha mergulhado cada vez mais fundo na perigosa engrenagem que o levara a apresentar Mandy a Andrews, a roubar papel de carta de Quincy e, por fim, a atacar Glenda Rodman.

Há nove meses, Montgomery investigara os dossiês do Departamento de Justiça do Oregon, a fim de descobrir um candidato credível para desempenhar o papel de pai de Rainie. De facto, Ronnie Dawson existia mesmo. Embora tivesse cumprido uma longa sentença atrás das grades antes de ser posto em liberdade condicional, esse velho ruivo de um metro e sessenta, por outro lado, nunca ouvira, falar de Molly Conner e ficara surpreendidíssimo ao saber que um donativo substancial fora feito em seu nome ao comité de campanha do delegado candidado a governador.

A existência daquele pai desconhecido era ainda demasiado recente para que Rainie ficasse afectada. Acabara por fazer-lhe o luto ao cabo de três dias penosos. com uma coragem que a surpreendia, dissera a si própria que não fazia sentido perder algo que nunca se tivera. Se tinha um pai, talvez um dia o encontrasse, quem sabe?

Carl Mitz também existia. Esse advogado conceituado era mesmo um homem encantador, como Rainie tivera oportunidade de constatar durante um almoço.Montgomery apenas tivera de descobrir o seu número da Segurança Social, o nome de solteira da mãe e a sua data de nascimento. Andrews encarregara-se do resto.

Montgomery anuíra em responder a todas as perguntas de Quincy, mas não iria depor no banco das testemunhas. Andrews deixara-lhe um presente de despedida: três cápsulas de cianeto no frasco de comprimidos para a tensão arterial.Montgomery pedira inocentemente que lhe trouxessem o frasco e abrira-o ao voltar da sua última entrevista com Quincy. Destapara o frasco e o odor de amêndoa que dele se escapava alertara o guarda, que tentou tirar-lho da mão. Contudo, era tarde de mais.Montgomery já

engolira metade do conteúdo. Menos de um minuto depois, Albert já não tinha de preocupar-se com o seu futuro.

Ás coisas também não haviam sido fáceis para Quincy e Kimberly. Esta passara quarenta e oito horas no hospital para tratar de um braço partido e de um ferimento grave no couro cabeludo. Felizmente era jovem e saudável e recuperara com facilidade. Quincy quisera levá-la com ele para a Virgínia, mas ela insistira em regressar a Nova Iorque, onde queria reencontrar o apartamento, os estudos e o seu quotidiano. Nos primeiros tempos, Rainie e Quincy telefonavam-lhe todos os dias, até que Kimberly acabara por tirar o auscultador do descanso. A sua independência voltara ao de cima e, como Rainie compreendeu perfeitamente, precisava de lidar com as coisas à sua maneira e a seu tempo.

Duas semanas após o suicídio de AlbertMontgomery, a polícia de Filadélfia quisera prender Quincy pelo assassínio da sua ex-mulher, após ter recebido um relatório do laboratório. Desta vez, Rainie não regressara à Virgínia inutilmente. Tinha insultado os detectives e gritado com o delegado do Ministério Público. Por outro lado, Glenda acabou por convencer o delegado a pedir uma nova peritagem aos especialistas do FBI. Estes tinham encontrado inúmeras anomalias na caligrafia do bilhete e concluído que se tratava de uma falsificação. Quincy agradeceu a Rainie por haver comparecido e Glenda teve direito a uma promoção merecida.

Rainie regressara uma vez mais a Poruand, onde o seu trabalho a aguardava. Por seu lado, Quincy estava muito ocupado com o final do inquérito, já sem referir a filha. Sempre que se falavam ao telefone, com relativa frequência, Rainie mostrava-se particularmente compreensiva, esforçando-se por dar provas de tolerância, apoio e mesmo abnegação, sentimentos que desconhecia em absoluto. Entendia perfeitamente que não podia estar ao lado dele e mostrava-se disposta a todos os sacrifícios, como era de esperar entre dois adultos responsáveis. Quando desligava, sentia vontade de desatar ao murro por tanta compreensão.

Duas semanas antes, um barco de pesca ao largo das costas de Maryland apanhara nas suas redes o cadáver de Abraham Quincy. Após a gafe deMontgomery quando do confronto

com Luke Hayes, sabia-se que o corpo do velho, atado com lastro, fora deitado ao mar por Andrews, mas nunca fora encontrado.Montgomery não quisera dizer a verdade antes, a fim de impedir Quincy de fazer o luto pelo pai.

Rainie soubera a notícia por Kimberly. Ao telefone, deu-lhe a sensação de que ficara de repente quinze anos mais velha. Os Quincy pretendiam organizar uma cerimónia íntima em memória de Abraham e tinham pensado em convidar Rainie.

Rainie comprara imediatamente o seu terceiro bilhete para a Virgínia. Depois ficou à espera de notícias de Quincy. Cansada de esperar, decidiu ligar para o telemóvel, mas foi parar às mensagens, e ele continuou silencioso.

Rainie começara a sentir-se farta de tanta estupidez. Metera algumas coisas num saco, apresentara-se no aeroporto dois dias antes da data prevista e exigira mudar o voo a pretexto de uma emergência familiar. Oito horas mais tarde, batia à porta da casa de Quincy que não dissimulara a surpresa, antes de se mostrar realmente satisfeito. Rainie saltara-lhe para cima. Nem sequer tinham tido tempo de chegar ao quarto.

Umas horas mais tarde, foram ao Cemitério de Arlington e permaneceram lá a tarde inteira, sentados junto aos túmulos de Mandy e de Bethie, sem falarem, até o tempo começar a arrefecer. De volta ao carro, Quincy agarrara-lhe na mão. Ela tinha trinta e dois anos e nunca andara de mão dada com um homem! Em seguida, tinha-lhe aberto delicadamente a porta; quando se instalara ao lado dela, instantes depois, ela sentira um aperto no coração. Desejava tocar-lhe, recebê-lo dentro de si, rodear-lhe o corpo com as pernas, apertá-lo com força.

Contudo, haviam regressado a casa dele e Rainie metera-o ajuizadamente na cama, pois apercebeu-se de que estava exausto. Ficara muito tempo ao lado dele, acariciando-lhe o rosto, detendo-se nas pequenas rugas que se negavam a desaparecer, mesmo durante o sono. Contara os seus cabelos grisalhos, aprendera a reconhecer cada uma das cicatrizes do seu peito. Foi nesse preciso momento que compreendeu finalmente o grande segredo da vida. O que leva os que se amam a viverem juntos, a terem filhos. O que leva os elefantes bebés a tentar o impossível para sobreviver no deserto. O que leva os humanos a lutar, a rir, a odiar, a amar. O que nos leva a todos a viver.

Sabia que doravante tinha alguém com quem partilhar a dor, ao lado de quem lutar e viver a tristeza. Não sentia o mínimo desejo de voltar a apanhar o avião e partir. Para quê? Eram dois adultos, independentes, com as suas respectivas ocupações, raios! Não lhe apetecia apanhar o avião. O telefone é uma bela invenção, mas não chega.

Assistiu ao funeral de Abraham Quincy, consolando Kimberly, que chorava em silêncio, e pegando na mão de Quincy. Foi apresentada ao resto da família e espalhou simpatia a rodos. Depois da cerimónia, regressou a casa de Quincy, e fizeram amor como nunca haviam feito e como se aquela fosse a última vez.

Na segunda-feira de manhã, ele levou-a ao aeroporto e Rainie voltou a sentir o mesmo aperto no coração. Quando tentou falar, as palavras não lhe saíram.

- Eu telefono-te - acabou Quincy por dizer. Rainie assentiu com a cabeça.

- Em breve - prometeu. - Lamento, Rainie - acrescentou. Voltou a assentir com a cabeça, mas sem saber realmente o que é que ele lamentava.

Regressou a Pordand, ao seu sótão de Pearl District. Haviam passado cinco dias, seis horas e trinta e dois minutos e o seu telefone recusava-se a tocar. Tentara apanhar Quincy, mas ele nunca estava em casa. Ou não atendia...

- Não posso ser bem-comportadinha eternamente - proferiu, dirigindo-se ao ecrã do computador. - Não faz o meu género. Têm de ser sempre as mulheres a dar o primeiro passo e a curvar-se diante dos homens? Dantes, era obstinada, insuportável, sentia-me mal na minha pele e ele quis conhecer-me melhor. Agora, faço esforços sobre-humanos, comporto-me como uma pessoa responsável e ele não dá sinal de vida. Sei perfeitamente que neste momento para ele não é fácil, e que tem mais com que se ocupar, mas isso não impede que o ache detestável.

O ecrã manteve-se mudo e quedo.

- Achas que foi porque o proibi de me chamar aqueles diminutivos ridículos? Talvez se o tivesse tratado por meu garanhão adorado...

O intercomunicador soou. Rainie ergueu a cabeça e virou-se para o visor de controlo onde divisou uma silhueta masculina diante da porta do prédio. Teria reconhecido os cabelos grisalhos em qualquer lugar.

- Merda! - exclamou. - Porque é que nem sequer me deu a hipótese de tomar um duche?

Que se lixasse o duche. Carregou no botão para lhe abrir a porta e precipitou-se para o lava-louça da cozinha, a fim de passar o rosto por água. Certificou-se de que nessa manhã não esquecera o desodorizante e tirou uma camisa branca do roupeiro no preciso momento em que a campainha soou. Uma última penteadela com as mãos e abriu a porta.

- Olá, Rainie! - disse ele simplesmente.

Mantinha-se ali, de pé, sem pronunciar palavra. Era bonito dentro do seu género. Talvez um pouco rígido, demasiado formal, com o ar de trazer o mundo em cima das costas, mas de qualquer maneira bonito, com as calças de caqui e a camisa azul-marinho aberta no peito. Há semanas que não o via sem fato e gravata.

- Olá - respondeu ela por fim, escancarando a porta.

- Posso entrar?

- Penso que sim.

Fechou a porta atrás de si. O agente especial Quincy tinha obviamente qualquer ideia em mente. Dirigiu-se sem hesitar para o canto da sala de estar e pôs-se a andar de um lado para o outro com grandes passadas, enquanto ela mordia o lábio inferior. Estavam tão próximos há seis dias e agora comportavam-se como dois estranhos.

- Tinha tenção de te ligar - disse ele.

- Ah!

- Mas não o fiz. Desculpa - pediu, hesitante. - Não sabia o que te dizer.

- Bastava começar por um "olá". É o habitual. Depois, a conversa prossegue com: "Como estás?", ou uma coisa do estilo. É sempre mais simpático do que "Vai-te lixar."

- És completamente doida - redarguiu ele com uma careta.

- Vejo que estás a fazer progressos.

- Foste muito compreensiva.

- Oh, céus! Estás a acabar tudo comigo?

- Nunca disse isso - retorquiu, tão surpreendido com as palavras de Rainie que deixou de percorrer a sala.

- Então o que significa toda esta cena? Se não tencionas acabar comigo, então di-lo de uma vez por todas, raios!

- Digo-o de uma vez por todas, raios!

- Cinco dias, seis horas e trinta e sete minutos!

- De que é que estás a falar?

- Do tempo que passou desde que prometeste telefonar-me em breve. Deus do céu! - exclamou, erguendo os braços. - Estou a ficar uma dessas mulheres que passam a vida ao lado do telefone. Jurei nunca vir a ser uma delas, e eis onde cheguei! Devias ter vergonha!

- Rainie, juro que não queria fazer-te mal. Quando apareceste em minha casa na semana passada, posso garantir-te que nunca fiquei tão feliz por ver alguém em toda a minha vida. Nunca... nunca desejei ninguém como te desejei a ti. A caminho do aeroporto, só pensava numa coisa, que era não querer que te fosses embora. E depois vi-nos a passar a vida nos aeroportos, felizes por nos vermos, infelizes por nos deixarmos, tentando desesperadamente viver de uma forma normal, enquanto tudo nos separa... Depois, confesso-te com toda a honestidade, pensei que já não tinha idade para essas parvoíces. Há tão poucas coisas que me fazem feliz, Rainie. Porque é que te levava ao aeroporto?

- Talvez porque eu tinha um bilhete de avião.

Quincy suspirou e ela notou os círculos arroxeados à volta dos olhos. Encontravam-se a uns metros um do outro. Separava-os metade do sótão, mas ela não ousava aproximar-se, aguardando inquieta o que ia seguir-se.

- Já não sou agente do FBI - anunciou ele calmamente. - Pedi a demissão há dois dias.

- Não acredito - redarguiu Rainie, quase cambaleando e tão surpreendida como se ele lhe dissesse que tinha asas.

- Decidi recomeçar a minha vida. A Kimberly voltou à faculdade e disse-me que está tudo bem, o que significa que precisa de ajuda. É demasiado orgulhosa para o admitir, mas sei que necessita de mim, de poder contar comigo. Àrrisco-me a não ser um grande apoio se for morto em trabalho ou se passar o tempo a viajar, como sempre fiz.

Não vai querer que lhe agarre na mão, mas seria ideal que me encontrasse por perto. Em Nova Iorque, por exemplo, não muito longe da cidade universitária, para que ela possa vir jantar comigo ou conversar, quando lhe apetecer. Acho que vou comprar um sótão, pôr uma placa e oferecer os meus serviços como conselheiro independente.

- Especialista de perfis psicológicos...

- Não fazes ideia da quantidade de pessoas como eu que abandonam a profissão para se tornarem conselheiros. Só se aceitam as investigações que interessam, não há horários e, sobretudo, fica-se liberto da política das hierarquias.

- Faz isso, então - replicou Rainie. - Qual é o problema?

- O problema é que preciso de uma sócia.

- Percorreste toda esta distância para me anunciares que vais trabalhar com a Glenda?

- Rainie, Rainie... - replicou Quincy, revirando os olhos. - Vim até aqui para te fazer a proposta. com segurança social e reforma incluídas, claro.

- O quê? - gritou Rainie, ultrajada. - Puseste-me em pulgas durante cinco dias, seis horas e trinta e sete minutos para me anunciar que tomas a cargo as minhas despesas no dentista?

- bom. Essas talvez não - retorquiu Quincy, parecendo inquieto.

- Não te esqueças de que a minha firma está a começar.

- Qual é o teu jogo, Quincy? - ripostou Rainie, aproximando-se de sobrolho franzido e dedo ameaçador.

- Neste momento, evitar que me trespasses com o dedo.

- Apanhas o avião e vens à minha casa sem me avisar, para me propor um trabalho, é isso? Porque imaginas talvez que preciso de um patrão?

- Um patrão, não, Rainie. Não sou assim tão estúpido. Falei em sociedade, o que é muito diferente.

- Muito bem. Procuras compensar-me com uma proposta de trabalho, é isso? Pois a minha resposta é esta: não é de um trabalho que preciso ao fim de cinco dias, seis horas e trinta e sete minutos. Não fiz a viagem de ida e volta três vezes em seis semanas para encontrar trabalho. Não te saltei para cima na semana passada para ter trabalho. Merda, Quincy...

- Amo-te.

- O quê? - exclamou, ainda de dedo apontado.

- Amo-te, Rainie. Não sabes quantas vezes já to disse, porque estavas sempre a dormir ou ausente. Não tinha a certeza de que estivesses preparada. Ou talvez fosse

eu que não estivesse, mas isso não interessa. Amo-te, Rainie. Não posso abandonar a costa leste por causa da minha filha, mas também não faço tenção de passar a vida a levar-te ao aeroporto.

- Mas...

- Acho que podias mostrar um pouco mais de imaginação e dizer mais do que isso.

- Entendi.

- Estás a pôr-me nervoso.

- Sabes que não sou fácil e há cinco dias que ando confuso.

- Todos os casos que quiseres - propôs-lhe num tom calmo. Nada de fácil, nem de monótono. Sabes como funciono. Há muito que espero o momento de ser feliz, Rainie.

Cometi muitos erros no passado, mas tenho a firme intenção de me emendar. Contigo e por ti.

Ela suspirou. Voltou a sentir o aperto no coração. Era então isso... Aproximou-se e abraçou-o ternamente.

- Sabes, Quincy? - murmurou. - Também te amo.

 

                                                                                Lisa Gardner  

 

                      

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