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Longas filas de videiras estendem-se pelas colinas suaves de Borgofranco. Há dois séculos que a família Brugliani é proprietária daquele antigo burgo e das vinhas, tratadas com paciência para delas extrair vinhos preciosos e únicos. Aos 35 anos, Angelica é a herdeira da tradição e do património familiar. Mãe, esposa, empresária de sucesso: tudo parece perfeito na sua vida. Só ela sabe que por detrás daquela fachada se esconde um mundo sombrio, feito de mentiras - as do marido - e de sonhos pueris. Numa noite, em que conduzia a sua moto e sentindo-se dominada pela amargura e pelas lágrimas, Angelica não se apercebe de que o carro à sua frente está a travar. O choque é violento, mas felizmente sem consequências graves, quer para ela, quer para o condutor do automóvel, Tancredi D’Azaro. Angelica não sabe ainda que aquele homem é um dos chefs mais aclamados em todo o mundo. E ambos ignoram que, depois daquele encontro fugaz, o destino voltará a entrelaçar os seus caminhos, suscitando a tentação de um novo começo. É então tempo de fazer escolhas, tendo em conta o peso do passado e as responsabilidades do presente - porque a vida é feita de sonhos e paixões.
A Vinha do Anjo conta-nos a história envolvente de uma família e de uma tradição milenar, o retrato de uma protagonista fascinante no qual se reveem muitas das mulheres empreendedoras e corajosas que anonimamente constroem as nossas sociedades.
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No fim de uma reunião muito animada, durante a qual cada um tinha acrescentado o seu contributo de criatividade e competência, decidiu-se finalmente qual o nome a dar ao novo espumante das caves Brugliani: Falce di Luna (lua em quarto crescente ou minguante, quando assume a forma de uma foice). Tinham sido necessários cinco anos de trabalho para afinar aquele néctar amarelo-palha com reflexos de ouro, que tinha um aroma fresco e macio e comunicava ao palato um sabor suavíssimo a pêssego e alperce, deixando um travo a laranja que o destinava a acompanhar carnes brancas, escalopes com limão ou ouriços-do-mar. Qualquer vinho que se preze é o resultado de um longo e paciente trabalho, no qual a natureza tem um papel determinante. Com efeito, se a saraiva não destruir os bagos da uva e a chuva excessiva não os desbotar, se o sol forte os levar a uma maturação certa, enquanto a terra alimenta generosamente a planta, então o viticultor poderá iniciar o seu trabalho para produzir um bom vinho, o néctar mais antigo do mundo. Angelica Brugliani, administradora-delegada da empresa familiar, brindou ao recém-nascido com os seus colaboradores, dedicando a cada um deles aquele sorriso franco que a caracterizava. Todos gostavam dela e a respeitavam, porque era uma excelente diretora, que sabia transmitir confiança e energia positiva mesmo nos momentos mais difíceis. Angelica tinha 35 anos e, desde que assumira as suas funções, fizera apenas dez vindimas; porém, acabada de nascer, o pai, Giovanni Brugliani, tinha pegado nela ao colo e tinha-lhe aproximado do narizinho uma flúte de espumante Brugliani Brut, ao mesmo tempo que dizia à mulher:
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- Tal como os irmãos, também ela tem de sentir imediatamente o aroma do bom vinho. Enquanto crescia, Angelica foi aprendendo com ele a considerar o vinho como o côté intelectual de uma refeição e a perceber que, para o produzir, é preciso paciência e grande sabedoria, assim como um palato e um olfato muito refinados. Naquele momento, Angelica disse:
- Obtivemos um produto superior e demos-lhe um nome lindíssimo. A partir de amanhã, vamos começar a desenvolver um programa para o lançar no mercado e estabelecer o preço a que o devemos vender. Agora vou deixar-vos, porque tenho um jantar na cidade e corro o risco de chegar atrasada, mas quero agradecer a todos vós pelo trabalho excelente que realizaram. Agradeço-vos do coração. Deixou a sala de reuniões, saiu do edifício onde ficavam os escritórios, percorreu a longa alameda que se desenrolava pelo meio de pequenas casas de pedra e tijolo, recobertas de hera e jasmim, e chegou à casa senhorial, onde vivia com o marido e Elisabetta, a filha de 14 anos. Aquele conjunto de construções, rodeado por muros antigos, albergara na Idade Média uma comunidade monástica e mantivera ao longo dos séculos o nome original de Borgofranco. Com efeito, era um pequeno burgo no planalto de uma colina coberta de vinhas, e os monges beneditinos tinham-no enriquecido com frescos, parcialmente recuperados e restaurados pelos Brugliani. Os monges tinham plantado as primeiras videiras nas encostas da colina. Depois, as guerras e as epidemias tinham-nos levado para outro lugar. As vinhas abandonadas foram invadidas pelas silvas até que, no início do século XIX, um Brugliani, notário na vizinha cidade de Brescia, adquiriu a colina e o seu pequeno burgo com a decisão de o fazer reviver. Depois dele, os seus herdeiros e as gerações seguintes continuaram a obra de limpeza e restruturação, fazendo da produção vinícola a atividade da família.
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Angelica, ao contrário dos dois irmãos mais velhos, que tinham outros interesses, dedicara-se à empresa, imprimindo-lhe uma lufada de modernidade. Depois de uma adolescência e de uma juventude inquietas e transgressoras, casara aos 20 anos com Raffaello Rovesti, um jornalista que trabalhava no jornal diário local, Fatti e Opinioni, dele tivera a sua única, queridíssima filha e sentira-se, finalmente, realizada e serena. No entanto, recentemente, o surgimento de um facto inquietante, que confiou apenas ao seu advogado, veio perturbar toda aquela tranquilidade. Há mais de um mês que chegavam ao seu telemóvel mensagens anónimas que a informavam de que o marido tinha uma amante. Por muito que desprezasse aquele género de revelações, não conseguiu ignorá-las e, também naquela tarde, poucos minutos antes de começar a reunião com os seus colaboradores, tinha chegado mais uma, com a hora e o local do encontro amoroso do marido. Reencaminhou imediatamente a mensagem para o seu advogado, que estava a organizar um dossier sobre as traições de Raffaello e que tinha descoberto o nome da amante: Pippa Premoli, uma figura conhecida no mundo da economia. O sucesso daquela reunião de trabalho tinha apagado a frustração de Angelica devido àquela nova mensagem, mas a amargura voltou a dominá-la, enquanto se preparava para o serão na cidade. Reprimiu as lágrimas, apanhou os longos e fartos cabelos castanhos dourados numa grande trança que enrolou na nuca, vestiu umas calças e casaco de crepe de seda verde-esmeralda, calçou uns sapatos de camurça e pegou na bolsa da mesma cor. Quando desceu ao rés do chão, Elisabetta estava na sala de estar a falar com Rosina, a empregada que vivia em casa dos Brugliani há quase trinta anos. Assim que viu a mãe, gritou:
- Falce di Luna é um nome lindíssimo. O Emilio veio dar-nos a provar. Mãe, tenho mesmo de te dizer: estas novas borbulhinhas não são um vinho, são um sonho. Emilio, o enólogo da empresa, estava convencido de que, no momento certo, a jovem Elisabetta se colocaria com muita dignidade ao lado da mãe naquela atividade.
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Elisabetta tinha aprendido com o avô a provar os vinhos. Ele tinha-lhe ensinado como levar o copo aos lábios e provar um pequeno gole, depois de ter aspirado o seu aroma, mantendo-o entre a língua e o palato e depois deixando-o escorrer lentamente na garganta. Era já capaz de captar a rotundidade de um vinho, as nuances do sabor e o aroma. Angelica acalentava o projeto de um futuro, nem sequer muito distante, em que se ocuparia de outras coisas, no âmbito de Borgofranco, enquanto a filha se dedicaria à produção vinícola. Naquele momento sorriu-lhe, satisfeita, e deu-lhe um grande beijo na testa.
- O teu marido ligou para avisar que não vem jantar - comunicou-lhe Rosina. Angelica já imaginava, mas não fez comentários. Disse então à filha:
- Vou tentar regressar muito cedo, para não perdermos a nossa conversa do fim de dia.
- Pois eu queria dizer-te que podes até regressar tardíssimo, se me deixares convidar o Gianmarco para me fazer companhia disse Elisabetta, dedicando-lhe um sorriso cativante. Gianmarco era o namorado. Morava num complexo rural na colina em frente a Borgofranco, e todas as manhãs apanhavam juntos o autocarro que os levava à escola, na cidade, onde ela frequentava o liceu com ótimos resultados e ele, também um excelente aluno, uma escola técnica. Conheciam-se desde crianças e gostavam muito um do outro.
- Convida-o para jantar. A Rosina arranja qualquer coisa para os dois. Mas às dez horas ele tem de voltar para casa. Quanto a mim, em qualquer caso, vou regressar muito cedo - disse, e saiu. Entrou na garagem. Antes de se sentar na moto tirou da pequena mala o blusão preto de Kevlar com proteção de costas, o capacete integral e as sapatilhas. Vestiu-se e colocou na mala os sapatos elegantes e a carteira. Subiu para a moto, acelerou e partiu. A cidade ficava apenas a dezoito quilómetros de distância, mas se levasse o carro ia apanhar o engarrafamento do trânsito da hora de ponta e faria uma péssima figura ao chegar tarde a casa dos Favaretto, que a tinham convidado, com mais alguns amigos escolhidos a dedo, para o jantar em honra de um escritor que tinha recebido inúmeros prémios literários com o seu último romance, aborrecidíssimo mas muito na moda naquela altura.
Amalia Favaretto organizava frequentemente jantares com artistas e escritores, não porque fosse uma amante da arte e da literatura, mas para ler, no dia seguinte, nas páginas da crónica citadina, o resumo do serão que se realizara na sua bela mansão, no centro da cidade, e ter um lugar de destaque entre as mulheres mais notórias da cidade. Angelica Brugliani aceitava um convite em cada quatro, para manter por sua vez o papel de mulher importante na alta sociedade, limitando ao mínimo os custos. Efetivamente, os jantares em casa dos Faveretto eram muitas vezes entediantes, mas toda a gente comparecia para fazer parte daquela elite. Angelica era uma motociclista muito experiente. Quando tinha 19 anos, o pai impusera-lhe um curso de condução dado por um ex-piloto que tinha sido um ás do motociclismo mundial, e aprendera que a velocidade anda de mão dada com a prudência. Nunca tivera um acidente. Avançava agora aos ziguezagues ao longo da estrada repleta de carros. Como sempre, quando andava de moto, tinha os seus pensamentos a fazer-lhe companhia e, naquele fim de tarde, estavam concentrados na amargura provocada pela traição do marido. Após uma primeira experiência conjugal, falhada, com um poeta sem dinheiro, considerara Raffaello Rovesti um porto seguro para uma vida feliz a dois. Mas afinal tinha-se enganado mais uma vez. Dizia para si mesma que devia ter dado conta há muito tempo de que aquele belo rapaz, ambicioso e determinado em emergir no mundo da imprensa, não era tão fiel como ela julgava. Recuando na memória, regressavam-lhe agora à ideia alguns pormenores que devia ter registado se não se tivesse deixado influenciar pela confiança que depositava nele. Lembrou-se daquilo que lhe tinha recomendado o seu advogado: «Conhecendo-te como te conheço, sei que estás magoada, ofendida e muito zangada. Mas tens de te calar e continuar a fazer de conta que ignoras a traição. No momento oportuno, veremos como vamos usar as provas que estamos a juntar».
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Havia já várias semanas que Angelica ostentava uma serenidade que não tinha, mas quando estava sozinha abandonava-se ao choro. Mesmo agora, enquanto conduzia a moto, deixou-se dominar pelos soluços. As lágrimas embaciaram a viseira do capacete e não se apercebeu de que as luzes de travagem do carro que ia à sua frente se tinham acendido. Foi chocar com violência contra o automóvel. O impacto fê-la saltar da moto, foi catapultada e ficou estatelada numa zona relvada, para além da berma da estrada, perdendo os sentidos. Quando recuperou os sentidos, abriu os olhos e viu o olhar apreensivo de um homem, debruçado sobre ela, que lhe estava a tirar o capacete. Ele disse-lhe:
- Já chamámos uma ambulância, está quase a chegar. Esteja sossegada e não se mexa.
- Sinto muito - disse Angelica num sussurro, e desmaiou outra vez.
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Tinha uma faixa a cingir-lhe o braço. Abriu os olhos para um céu que ia escurecendo e desenhava estrias rosadas no horizonte. Era junho e ela estava ainda estendida no relvado. Havia alguém que lhe media a tensão e que, ao ver que ela tinha recuperado a consciência, a tranquilizou:
- Sou médico e, de acordo com um exame superficial, parece não ter sofrido nenhum traumatismo. O capacete e o blusão protegeram-na. Agora vamos levantá-la e estendê-la na maca. O ruído monótono e incessante do trânsito ao longo da estrada era um zumbido incomodativo que lhe feria os ouvidos. Dois homens e uma mulher vestidos com o macacão vermelho da assistência rodoviária pousaram-na numa maca, com todo o cuidado.
- Sabe dizer-me o seu nome? - perguntou-lhe o médico, enquanto a maca era empurrada sobre o asfalto.
- Angelica - respondeu ela, num sopro. O médico prosseguiu:
- Não se aflija. Vamos levá-la para o hospital. Enquanto a maca era empurrada para dentro da ambulância, aproximaram-se dois polícias. Um deles reconheceu-a e perguntou-lhe:
- É a Angelica Brugliani? Ela assentiu e ele perguntou-lhe:
- Está em condições de me dizer para onde se dirigia?
- Para a cidade, para casa dos Favaretto, jantar - respondeu, com um fio de voz.
- Nós avisamos a sua família - concluiu o polícia.
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Quando as portas da ambulância estavam prestes a fechar-se, o segundo polícia voltou-se para o médico, que estava agora sentado ao lado de Angelica, e disse:
- O homem que a socorreu era o condutor do carro que foi atingido pela moto; descreveu-nos o acidente e seguiu no reboque que lhe veio buscar o carro. Temos todos os dados para o contactar. Depois acrescentou: - A moto meteu-lhe a mala dentro mas ele, felizmente, ficou ileso.
- Agora temos de nos despachar - rematou o médico, e pediu ao motorista para arrancar.
No serviço de Urgências do hospital, Angelica estava a descansar num quarto onde havia outras camas, para além da sua, separadas umas das outras por uma cortina. Os médicos tinham-na submetido a todos os exames necessários e tinham concluído que apenas sofrera um choque violento e uma contusão no joelho esquerdo. Depois deram-lhe soro com sedativos. Angelica viu por poucos instantes a filha e o marido. Depois chegou Gaspare, o mais velho dos irmãos, chefe do serviço de Oncologia daquele mesmo hospital. Animou-a com o seu vozeirão de barítono:
- Olá, maninha. Estás muito bem. Eu sei que tens saudades minhas, mas podias ter escolhido uma maneira menos teatral para me visitares.
- Palerma! - disse ela, e logo a seguir desatou a chorar. Gaspare abraçou-a.
- Ainda estás em estado de choque e as lágrimas vão ajudar-te a diluir a tensão. Querida Angelica, lamento muito ter de te dizer que os meus colegas se querem ver livres de ti o mais depressa possível e que amanhã de manhã te vão mandar para casa. Eu gostava de te ter aqui durante um mês em repouso forçado, mas não há nada a fazer. Parece que estás sã como um pero.
- Não é verdade. Estou desfeita - soluçou Angelica.
- Coragem, amanhã de manhã vais estar ótima e voltar para casa pelo teu pé. Já sosseguei o teu marido e a tua filha.
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A crise de choro estava a esgotar-se e Angelica abandonou-se ao sono que aos poucos a ia envolvendo: os sedativos começavam a fazer efeito. No entanto, ainda ouviu o irmão dizer:
- Um colega disse-me que passou por aqui o homem que ia a conduzir o carro em que tu bateste. Sofreu uma chicotada no pescoço, mas não havia razões para um internamento. Perguntou por ti e a médica sossegou-o. Nesse instante, Angelica adormeceu. Foi acordada pelo aroma do café que a enfermeira lhe ofereceu com um sorriso, dizendo-lhe:
- Está quente, forte e bem açucarado, segundo a indicação do Dr. Brugliani. Angelica tomou-o em pequenos goles.
- Deixei-lhe em cima da cadeira o saco com a roupa que o seu marido trouxe. Ele está ali fora, à espera. Vista-se com calma e depois vá ter com o médico de serviço para assinar a alta - acrescentou a enfermeira, antes de a deixar. Angelica ouviu vozes excitadas e um ruído de passos. Afastou ligeiramente a cortina e viu passar uma maca empurrada a grande velocidade pelos maqueiros, seguida por dois polícias e por um médico que dizia:
- Rápido, para a sala de operações ou ainda a perdemos. Duas enfermeiras aproximaram-se da cortina de Angelica e disseram entre si:
- O costume, o ajuste de contas de madrugada.
- Em vez de os deixarem esganar-se uns aos outros na sua santa paz, lá temos nós que lhes dar precedência sobre a gente boa que sofre - comentou a outra. No ar pairava um cheiro a desinfetantes. Angelica abriu o saco que continha a sua roupa e começou a vestir-se. Recordou tudo o que tinha acontecido na noite anterior e reconstituiu os factos: seguia pela estrada nacional em direção à cidade e soluçava a pensar no falhanço do seu casamento. Depois tinha havido um choque violento contra o carro que ia à frente dela, o voo e a queda sobre o relvado. Quando recuperou os sentidos viu um homem que a tinha socorrido. Lembrava-se de tudo com clareza e agradeceu aos céus por não se ter magoado. Acabou de se vestir.
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Por cima da T-shirt enfiou o blusão azul e encontrou no bolso um papel dobrado. Abriu-o e reconheceu imediatamente a caligrafia angulosa da sua Elisabetta: «Olá, mama. Estou feliz porque sei que te vou encontrar em casa quando voltar da escola. O tio Gaspare garantiu-me que estás inteira. A casa e aos telemóveis chegam telefonemas contínuos a perguntar como estás. O teu acidente tornou-se do domínio público no espaço de poucas horas. Espero que a roupa que te meti no saco seja apropriada. Gosto muito de ti. A tua filhota». Havia ainda um post scriptum: «Ontem a noite o Gianmarco estava comigo quando a polícia telefonou e deu a notícia do teu acidente ao pai, que estava no jornal. Esteve sempre comigo até eu ter entrado no carro com o pai para vir ter contigo». Angelica sorriu e depois soltou um queixume, porque o joelho, envolvido por uma grande ligadura, lhe doía. Com um passo hesitante foi até ao gabinete do médico que assinou a autorização de saída das Urgências. Enquanto se dirigia à porta, perguntou a si mesma o que teria acontecido ao seu telemóvel. Após um breve abraço, foi a primeira pergunta que dirigiu ao marido, que estava à espera dela no corredor.
- Entregaram-mo ontem a noite, juntamente com os teus objetos pessoais, e está em casa - respondeu ele. As rugas verticais na testa do marido disseram-lhe mais do que muitas palavras.
- Vou levar-te a Borgofranco - anunciou, enquanto lhe dava o braço para a ajudar a caminhar. Angelica observou-o durante um instante. Raffaello tinha sido um belo rapaz, saudável, exuberante, inteligente, hiperativo, e continuava a ser, aos 40 anos, um homem lindíssimo.
- Primeiro quero ir ao centro: preciso urgentemente de um cappuccino e de um brioche com compota. Entrou no carro do marido, que arrancou rapidamente, sem fazer comentários. Arranjaram estacionamento em frente a pastelaria Giuliani. Àquela hora, na rua, as lojas começavam a abrir as grades. Os turistas mais madrugadores, com as máquinas fotográficas penduradas ao pescoço, circulavam preguiçosamente. Um empregado negro levava a passear o cão dos patrões.
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Alguns ciclistas passavam como flechas a ziguezaguear por entre os porteiros dos edifícios que varriam a rua em frente às entradas. Sentaram-se a uma mesa da pastelaria mais bonita da cidade. Angelica devorou um brioche, enquanto Raffaello saboreava um café. Não tens nada para me dizer? - perguntou ela.
- O que é que tu achas? - respondeu ele, com uma voz áspera.
- Que estás desesperado a pensar como vais sair da encrenca em que foste apanhado. Tendo tido na mão o meu telemóvel e lido as mensagens recebidas e enviadas, também deves ter visto as que eu recebi nestes dias e as que enviei ao advogado - disse de um fôlego.
- É verdade - sibilou Raffaello. Angelica observou o belo rosto do marido e perguntou a si mesma se alguma vez ele a teria realmente amado. Raffaello sempre fora muito ambicioso e, de simples jornalista do jornal local, tinha chegado em pouco tempo a vice-diretor. Hábil e inteligente como era, em menos de dois anos tinha sido nomeado diretor. Não, provavelmente Raffaello nunca a tinha amado, não porque amasse outra, mas porque se amava demasiado a si mesmo.
- Leva-me para casa, por favor - pediu-lhe ela, ao mesmo tempo que se levantava da mesa.
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Raffaello parou o carro em frente à residência de Borgofranco. Durante o trajeto, ele e Angelica não voltaram a trocar uma palavra. Agora, enquanto a ajudava a sair do carro, ele disse:
- Temos de esclarecer esta situação. Ela virou-se a olhar para ele e replicou:
- Naquilo que me diz respeito, não tenho nada para te dizer. Tomei conhecimento das tuas tramas mesquinhas e peço-te que te vás embora. Abriu a porta de casa, enquanto Raffaello dizia:
- Se estiveres de acordo, mudo-me para a Villa Brugliani, durante algum tempo. A Villa Brugliani, um palacete de três pisos, tinha sido projetada pelo arquiteto Portaluppi e edificada na cidade nos anos 40 pelo avô Brugliani. Os pais de Angelica tinham destinado um piso a cada um dos três filhos: Gaspare morava lá, tranquilamente, com a sua família, Luigi utilizava-o como ponto de apoio durante algumas breves estadias, e Angelica ocupava-o com o marido e a filha sobretudo de inverno, quando uma camada de neve cobria as vinhas de Borgofranco. Agora Raffaello pedia-lhe hospitalidade na casa da família. Angelica anuiu com um breve aceno de cabeça e fechou a porta. Ele regressou ao carro. Pela enésima vez, perguntou a si mesmo quem teria informado Angelica sobre a sua relação com Pippa. Quando chegou à casa da cidade, a mulher do porteiro recebeu-o com um ar um pouco surpreendido.
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- Se eu soubesse que vinha, tinha feito uma limpeza à casa disse-lhe.
- Pode fazer isso logo à tarde, quando eu sair para o jornal. Agora preciso de trabalhar - sossegou-a. A mulher não se deu por vencida.
- Quer que lhe arranje alguma coisa para comer? É quase uma hora - observou.
- Não preciso de nada, obrigado - resmungou ele, e começou a subir os degraus da escadaria para entrar em casa. Precisava de estar só para refletir e medir a dimensão da confusão em que se tinha metido. Raffaello conhecia bem os Brugliani e sabia que podiam chegar a qualquer lado, que podiam até decidir destruir-lhe a carreira. Subiu ao segundo andar e fechou-se no escritório que dava para o jardim. Através da porta de vidro, viu a empregada peruana do cunhado Gaspare a falar com a mulher do porteiro. Tinha a certeza de que estavam a questionar-se sobre a sua chegada inesperada. Imaginou que dali a pouco ia avisar a mulher de Gaspare e que esta lhe ia bater à porta. Paciência, havia de a despachar de qualquer maneira. Agora tinha de pensar em como não perder a mulher e a filha. Gostava de Angelica. O tempo da paixão tinha passado, mas ele continuava a gostar dela porque era inteligente, espirituosa e determinada. Tinha gostado de Angelica antes de saber que era uma Brugliani. Tinha-se casado, o nascimento de Elisabetta deixara-o feliz e tinha passado a fazer parte da família.
- Dei cabo de tudo - disse em voz baixa, relembrando aquilo que tinha acontecido na noite anterior, quando correra até ao hospital, angustiado com o que tinha acontecido à mulher. Isto, no entanto, não o impedira de ligar a Pippa e de lhe contar o que tinha sucedido.
- Não vou a tua casa hoje à noite - concluiu.
- Vemo-nos noutro dia - respondeu ela, como sempre a despachar, e era claro que não lhe importava nada o acidente de Angelica. Pippa era assim, egoísta e egocêntrica, e não tinha tempo a perder com palavras inúteis. Tinha a arrogância dos ricos e a indiferença pelos sentimentos alheios, próprio dos empresários de sucesso.
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Habituada a medir forças com o ambiente cínico do mundo empresarial, assumira comportamentos muito masculinos e apenas exprimia a sua feminilidade quando faziam amor. Também Angelica era uma empresária de sucesso, mas era antes de mais uma mulher, generosa, simpática e sempre atenta para não ofender a sensibilidade dos outros. Raffaello pensou que, durante muito tempo, tinha sido feliz com ela. Estava convencido de que aquela união era sólida e destinada a durar ao longo do tempo. Mas não tinha feito as contas à sua necessidade de agradar as mulheres para vencer as inseguranças que o casamento com Angelica, rica e influente, criava nele. Voltou a aproximar-se da janela do escritório. O jardineiro limpava uma alameda, o gato da casa apanhava sol estendido num banco de pedra, uma brisa ligeira acariciava o canteiro da alfazema. Agora arriscava-se a perder aquilo que mais amava: a sua família. Tinha absolutamente de arranjar uma maneira de recuperar o seu casamento.
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Tiziana Scaroni, secretária de Rafaello Rovesti, entrou no gabinete do diretor para lhe organizar a escrivaninha. Através das grandes janelas que davam para a praça, entrava no aposento a luz dourada que precede o pôr do sol. Aquele era o momento mais bonito do dia, porque a redação se animava de vozes, de passos e de telefones a tocar, depois da pausa da hora de almoço e da calma do início da tarde. Em breve, os chefes e os redatores começariam a afluir ao grande gabinete, instalar-se-iam em volta da mesa e esperariam a chegada do diretor para acertar com ele os temas a aprofundar relativamente à edição que seria impressa à noite. Raffaello escreveria o habitual artigo de fundo, exprimindo um ponto de vista favorável ao alinhamento político a que pertencia o editor, sem fazer demasiada pressão sobre as correntes adversas, habilíssimo, como sempre, em salvar os equilíbrios. Os seus jornalistas deveriam seguir a mesma linha. Tiziana, que trabalhava no jornal há mais de trinta anos, reconhecia-lhe um talento muito superior ao dos dois diretores que o tinham precedido, e admirava-o. Só a incomodava a sua tendência para cortejar as mulheres jovens e bonitas, apesar de o fazer com discrição. Até no jornal, onde a bisbilhotice era prática corrente, ninguém sabia. Só ela estava ao corrente, porque o seu gabinete confinava com o de Raffaello e ela captava os seus telefonemas privadíssimos através da fina parede divisória. Tiziana estava apaixonada por ele, como já tinha estado pelos dois diretores precedentes.
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Nunca tendo tido uma vida sentimental própria, apaixonava-se pela dos outros e vivia-a por interposta pessoa, alinhando sempre do lado do amado diretor, confortada pelo facto de que aquele tipo de histórias duravam pouco e, sobretudo, não deixavam marcas, porque aquele «rabo de saia», como ela o definia para si mesma, era muito hábil a terminar as relações antes que elas se tornassem comprometedoras. A secretária admirava a sua extraordinária capacidade de conservar a estima das mulheres que abandonava, com um cinismo revestido de desesperadas crises de consciência. «Que filho da mãe», comentava para si própria, sorrindo, satisfeita, com as fraquezas do seu amado diretor. Tiziana vivia com a mãe, que dependia dela para tudo. - Que filha maravilhosa me ofereceu o Senhor - dizia-lhe a sorrir. Às vezes tinha pena dela: - Minha pobre menina, a vida poupou-te a muitos sofrimentos, mas a verdade é que também não te deu grandes alegrias. A culpa foi minha, porque não te dei um pai. Ocultava-lhe o facto de a sua «pobre menina», que tinha já ultrapassado os 60 anos, ter sido sempre uma criatura sem graça que, mesmo em rapariga, parecia já uma solteirona. Apenas uma vez, quando Tiziana tinha 20 anos, um jovem relojoeiro lhe fizera seriamente a corte, embora tivesse fugido quando ela lhe disse: - Se eu me casasse, não deixava a minha mãe, que não tem mais ninguém no mundo para além de mim. A mãe não pronunciara uma única palavra para a encorajar a casar-se com aquele jovem e construir uma vida com ele. Tiziana era o fruto de um amor juvenil com um infame que a seduziu e abandonou assim que soube que a tinha engravidado. Desde então, aquela filha passara a ser o seu único investimento afetivo. As duas mulheres eram inseparáveis. Iam juntas às compras, ao cinema, aos concertos, de férias. Discutiam e faziam as pazes como se fossem irmãs, e não mãe e filha. Tiziana tinha ciúmes da mãe que, ao contrário dela, tinha sido muito bonita. Quando era ainda criança, tinha conseguido afastar alguns pretendentes, de modo nenhum desprezíveis, encenando crises histéricas. A mãe tinha-se deixado chantagear afetivamente por Tiziana porque a amava e porque se sentia culpada por a ter concebido com um homem infame e bastante feio.
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Tinha revelado a Tiziana que o pai era o advogado Leopoldo Marani, um profissional muito respeitado na cidade. Tratava dos interesses de grupos importantes, incluindo aquele que possuía o jornal diário Fatti e Opinioni, pelo qual Tiziana foi contratada como secretária assim que terminou os estudos. Mãe e filha sabiam que aquele emprego seguro se devia ao advogado Marani, num assomo tardio de responsabilidade paterna. Tiziana tinha sempre realizado o seu trabalho de uma forma exemplar, de tal forma que era considerada a vestal dos segredos do grupo editorial e dos seus diretores. Era a memória histórica de Fatti e Opinioni e, ao cumprir os cinquenta anos, o editor tinha organizado uma festa em sua honra, oferecendo-lhe um relógio de pulso em ouro e brilhantes. Nenhum diretor sabia que aquela secretária impecável espiava as suas vidas do seu gabinete. Ela tinha necessidade de penetrar na sua vida privada para se alegrar ou entristecer, para se sentir viva, em suma. Sobre aquilo que descobria não dizia uma palavra a ninguém, com exceção da mãe, a quem contava tudo, à noite, quando regressava do jornal, e a senhora acompanhava a evolução de todas as histórias com a mesma participação com que se deixava envolver por um filme ou por um romance. Mãe e filha falavam muitas vezes de Raffaello Rovesti como se fosse um elemento daquela família. Sabiam a história do pai ferroviário e da mãe doméstica, dos trabalhos de circunstância que tinha feito para pagar os estudos até à licenciatura em Economia, obtida com distinção e louvor, dos primeiros encargos como correspondente para alguns jornais locais, e depois da sua entrada no Fatti e Opinioni. Em pouco tempo, a sua carreira levantou voo. Finalmente casou-se com Angelica Brugliani e entrou no círculo da alta sociedade citadina. Depois, Raffaello passou a diretor do jornal e Tiziana meteu-o debaixo da asa, apesar das suas transgressões conjugais. Durante o inverno, logo a seguir ao período das festas, surgira uma nova chama. Ao escutar os telefonemas, Tiziana captou o nome: Pippa.
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Não foi preciso muito para perceber que a mulher em questão era a badalada e poderosa Pippa Premoli, jovem e lindíssima docente de Economia na Bocconi de Milão, filha de um rico construtor, voz de grande autoridade na Confederação da Indústria, convidada muito requisitada nos debates televisivos. A assiduidade dos telefonemas e dos seus encontros era alarmante. Tiziana, como sempre, conversou com a mãe.
- Esta Premoli é mimada e muito determinada. Ele até pode acabar por se apaixonar por ela - concluiu, preocupada.
- Convinha que a mulher soubesse, para se poder proteger - sugeriu a mãe.
- Tens razão. A Pippa Premoli é uma mulher perigosa e não podemos permitir que esta história vá avante - decidiu Tiziana, e começou a mandar a Angelica mensagens anónimas com a hora e o local dos encontros clandestinos do marido. Agora, enquanto acabava de organizar a secretária daquele «rabo de saia» que era o seu querido diretor, sentiu-lhe os passos no corredor. Um instante depois, Raffaello perfilou-se à entrada, dirigiu-lhe um meio sorriso e perguntou-lhe com segurança, olhando-a nos olhos:
- Hoje não tem mensagens anónimas para enviar à minha mulher? Tiziana corou e abriu a
boca como se procurasse oxigénio. A expressão decidida com que Raffaello a fitava deu-lhe a entender que era inútil tentar desmentir.
- Como é que sabe que fui eu que as mandei? - perguntou, com um fio de voz.
- Só a senhora consegue ouvir os meus telefonemas - respondeu rapidamente.
- O que tenciona fazer?
- Mandar despedi-la? Bem gostava, mas a senhora é uma colaboradora preciosa, uma instituição para o jornal, e goza da proteção do editor. Regresse ao seu gabinete, se faz favor - concluiu.
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O advogado Raimondo Agosti era um cinquentão gordo e jovial. Gostava do trabalho, da família, dos amigos, da boa mesa e dos bons livros. Frequentava desde sempre a casa dos Brugliani, tendo sido colega de escola de Gaspare, desde a escola primária até ao primeiro ano de Medicina, quando Raimondo, interrompendo a tradição da família, se mudou para Direito. Bastou-lhe um desmaio à vista do sangue que escorria de uma ferida que fez, ao cortar um dedo, para o convencer a mudar de curso. Formou-se em Direito com distinção e louvor e fez o serviço militar como soldado raso, colocando as suas aptidões jurídicas ao serviço dos comandantes, em troca de licenças e outros privilégios. Depois entrou como estagiário num escritório em Verona e, ao fim de alguns anos, abriu um seu em Brescia. Agora o escritório de Agosti tinha doze associados, uma clientela vasta e importante e relações influentes. Mas para Raimondo Agosti os amigos verdadeiros eram poucos, um bem precioso a que dava muito valor, e os Brugliani contavam-se entre estes. Naquela altura, levou a peito as desventuras de Angelica, que conhecia desde que ela era uma criança e ele um adolescente. Naquela manhã, Angelica telefonou-lhe e ele foi a Borgofranco para a ouvir. Foi Rosina quem o recebeu, encaminhando-o para um escritório afastado onde ninguém os iria perturbar.
- A senhora vem já ter consigo - disse-lhe, e acrescentou: - Entretanto ofereço-lhe uma flúte de Falce di Luna, o recém-nascido da casa Brugliani.
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Não sei se aprecia, como aperitivo, mas vale a pena provar.
- Talvez com duas fatiazinhas daquele vosso salame condimentado - sugeriu ele.
- E um queijo fresco que o caseiro veio entregar há pouco acrescentou Rosina, com um sorriso cúmplice, já que conhecia os gostos do advogado. A grande porta de vidro estava aberta de par em par sobre um pequeno claustro com relva que tinha no meio um velho poço. O claustro dava para um grande pomar onde cresciam árvores de fruto. No meio das árvores, Raimondo viu Angelica que avançava lentamente na sua direção enquanto a brisa tépida de junho fazia flutuar a saia ligeira de seda estampada com flores de cores fortes, apertada na cintura com um cinto do qual nascia o busto bem modelado que uma camisola justa de malha imaculada fazia realçar. A lentidão do passo era devida ao joelho magoado e envolvido numa ligadura. O advogado foi ao encontro dela e abraçou-a com afeto. Depois disse-lhe, espantado:
- Pareces uma miúda!
- Agradeço-te, mas estou cansada, ofendida e infeliz - desabafou Angelica, enquanto entravam no pequeno claustro e depois na salinha onde Rosina dispunha em cima de uma mesa uma garrafa de vinho, os copos, os enchidos e os queijos. Angelica deixou-se cair em cima de uma poltrona e apoiou em cima de um puff a perna doente. O advogado sentou-se num divã em frente dela e, por um instante, recordou a «miúda» da casa Brugliani quando tinha 5 anos e deixava que ele lhe desse pão e salame, de que ela tanto gostava. Naquela época, ele tinha 20 anos e frequentava Borgofranco para estudar com Gaspare ou para participar nas festas de verão no jardim. Desde então, considerava Angelica como a irmã mais nova que ele nunca tivera. Rosina deixou-os a sós; ele saboreou um gole daquele novo vinho e depois disse:
- Então, estou pronto para te ouvir.
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Ela contou tudo e concluiu:
- Agora o Raffaello sabe que temos as provas desta traição e sente-se culpado.
- Onde é que ele está agora? - quis saber.
- Mudou-se para o apartamento da cidade. Vem à noite para estar com a Elisabetta, que não sabe de nada, mas que percebeu que há problemas entre nós. Por enquanto não faz perguntas, e é bom que assim seja - explicou Angelica, e acrescentou: - De qualquer maneira, é o pai dela, apesar de ser um traidor miserável.
- Angelica, não exageres. O teu marido é bonito, ambicioso, um grande trabalhador e gosta de ser admirado pelas mulheres. Reconhece-lhe pelo menos a discrição. Sem as denúncias anónimas, nunca terias sabido de nada - comentou o advogado.
- E estou muito grata à espia que me abriu os olhos - afirmou Angelica, com amargura. Raimondo estendeu-lhe uma fatia de pão estaladiço sobre a qual tinha colocado duas fatias finas de salame, como fazia quando ela era pequena. Angelica sorriu e recusou.
- Não tenho fome - resmungou.
- Estás furiosa, e é natural que assim seja. Mas peço-te que reflitas com calma. Olha à tua volta. O nosso mundo está repleto de maridos infiéis e de mulheres que os traem por sua vez. Muitos separam-se, muitos não o fazem, ou porque não sabem, ou porque fingem não saber. Se estás a pensar no divórcio, ficas a saber que nunca vais poder apagar tudo aquilo que existiu entre ti e o Raffaello, para além do facto de terem uma filha em quem pensar.
- Mas tu de que lado estás? - perguntou Angelica, irritada. Ele sorriu-lhe e acabou de saborear o queijo fresco. Depois bebeu mais um gole de espumante, com evidente satisfação, e disse por fim:
- Apenas te estou a convidar à reflexão, e a dar algum tempo.
- Serve-me dois dedos de espumante - pediu ela, mais calma. Provou um gole e sorriu. - Grande vinho, este Falce di Luna! Devia estar no escritório com a minha gente a programar o lançamento e, em vez disso, estou aqui contigo a falar das minhas frustrações. Tu sugeres-me que reflita, mas eu nunca mais vou conseguir manter o meu casamento e viver em paz.
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Não posso e não quero enganar-me a mim mesma nem aos outros. Só tenho 35 anos e assiste-me o direito de arranjar um companheiro que me ame apenas a mim, e que mo demonstre todos os dias. Não estou disposta a tolerar enganos. Sei muito bem que o Raffaello é o pai da minha filha, mas isso não me chega para manter o nosso casamento. Até porque receio que estejamos a percorrer caminhos diferentes: ele só vê a carreira, porque é ambicioso e quer resgatar as suas origens modestas, eu adoro o que faço e gostava de realizar o sonho de produzir um vinho perfeito. Achas que pode haver alguma afinidade entre as aspirações dele e as minhas?
Naquele momento, alguém bateu à porta e logo a seguir o marido de Angelica surgiu à entrada da sala. - Incomodo? - perguntou, com um sorriso.
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6
- O teu sentido de oportunidade é extraordinário - disse Angelica, gélida, ao mesmo tempo que lhe indicava a poltrona vazia ao lado da dela. Raffaello sentou-se e disse: - Soube pela Rosina que estavas aqui com o Raimondo, e assim aproveito para falar com os dois. Raimondo Agosti levantou-se do divã. - Pois eu, pelo contrário, acho que devem ficar os dois sozinhos. Vou ter com a Rosina para ver se ela me diz o que é que está previsto para o almoço, porque este aperitivo abriu-me o apetite. E escapou com a agilidade de um passarinho. Angelica levantou-se por sua vez e saiu da sala a sibilar: - Isto aqui dentro é demasiado íntimo para o meu gosto. Raffaello foi atrás dela até ao pátio, onde Angelica se aproximou do poço e apoiou as mãos na beira de pedra. Ele colocou-se ao lado dela. - Quando nos casámos eu não sabia que, ligando-me a ti, ia casar também com a tua família, e estes anos com os Brugliani não têm sido fáceis para mim - começou.
- Mas o que é que tu estás a dizer? - retorquiu ela, irritada. - A verdade. Os Brugliani são uma tribo. A tua família sempre me fez sentir observado, escrutinado. Todos muito simpáticos, por amor de Deus, todos grandes senhores, são inegáveis, mas sempre com ar de quem se interroga: O que é que este arrivista quer da nossa menina? Porque a menina da casa não é a nossa filha, és tu.
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O teu pai e os teus irmãos, as cunhadas e os filhos, sogras e comadres, primos em primeiro e segundo grau, todos me trataram sempre como se pensassem: este não tem nada a ver connosco, é um gazetista de província que aspira a tornar-se numa estrela do jornalismo aproveitando o parentesco connosco. A nossa menina tem a ilusão de que ele está apaixonado por ela, mas não passa de um oportunista que aproveitou a ocasião para se casar o melhor possível.
- Tu és louco! Ou talvez não; és muito esperto. Estás a tentar fazer-me sentir culpada das tuas histórias nojentas - respondeu Angelica, furiosa.
- Põe a questão assim, se quiseres. De resto, é verdade que te traí. Mas faço apelo à tua inteligência para te perguntar: tens a certeza de que não tens qualquer responsabilidade em tudo isto? Achas mesmo que quando um casal tem problemas isso depende unicamente de um dos dois? Se estás realmente convencida disso, eu vou-te facilitar a vida e fazer aquilo que tu quiseres. Angelica dirigiu a Raffaello um olhar feroz.
- Achas que estás a lidar com uma palerma que se deixa encantar com a tua habilidade dialética? Pareces um ladrão apanhado a roubar, que tenta atribuir a responsabilidade do furto à pessoa roubada. És patético. Virou-lhe as costas e regressou à sala, para voltar a sair e ir ter com Raimondo à cozinha. Estava furiosa.
- Pareces um porco-espinho - comentou Raimondo, quando a viu chegar. Estava sentado à mesa diante de um grande prato de lasanha com carne que tinha acabado de sair do forno.
- Não tenciono deixar-me condicionar pela argumentação capciosa do meu marido - disse, irritada.
- Olhe que a Elisabetta está quase a chegar da escola. É melhor acalmar-se - avisou Rosina, que andava às voltas com o fogão.
- Não comeces tu também a dar-me conselhos. Sei muito bem que, seja qual for a decisão que eu tome neste momento, provavelmente não vai ser a mais correta, mas pelo menos será uma escolha minha, não sugerida por outros - afirmou, enquanto olhava para os interlocutores.
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Fez-se silêncio. Depois, Rosina pôs na mesa uma taça com morangos que exalavam um belíssimo aroma.
- Apanhei-os hoje de manhã; vai ver, senhor doutor, como são doces. Rosina tentava diluir aquela tensão, mas Angelica ficou ainda mais furiosa.
- Vão para o inferno - sibilou, ao mesmo tempo que saía da cozinha.
- Coitada da menina! - suspirou Rosina.
- Temos de lhe dar tempo para digerir a raiva - disse Raimondo.
- A verdade é que não acerta uma, pelo menos com os homens - suspirou mais uma vez Rosina, e perguntou a Raimondo: - Como é que o senhor doutor vê esta história?
- A menina é sensata, e forte como um carvalho. Vai perceber por ela própria se há de acabar com o casamento ou tentar salvá-lo. Ainda que... - deteve-se.
- Ainda que... - insistiu Rosina.
- Se encontrasse um homem que a fizesse perder a cabeça...
- Por amor de Deus! Só nos faltava mesmo um terceiro casamento - interrompeu-o Rosina, alarmada. Entretanto, Angelica tinha saído de casa para se dirigir ao edifício dos escritórios. Empregados e colaboradores estavam no intervalo do almoço. Fechou-se no seu gabinete. Em cima da secretária encontrou uma série de esboços para a etiqueta de Falce di Luna e deteve a sua atenção numa espécie de recriação gráfica de uma célebre pintura de Van Gogh: no céu noturno desenhava-se um quarto crescente com a «corcunda» voltada para oriente.
- Quarto crescente - sussurrou, ao mesmo tempo que pegava no esboço; depois pousou-o na mesa e observou os outros. Em todos eles predominava a cor amarelo-alaranjado, exceto num, negro com traços dourados. Por fim, viu um esboço com uma garrafa bojuda sem etiqueta, com letras verticais cor de ouro escuro: Falce di Luna.
- É isto - sussurrou, recuperando o sorriso. Era a magia do seu trabalho: fazia-a esquecer todas as amarguras, contrariedades ou tristezas.
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Com o esboço na mão, aproximou-se da janela para o observar com mais luz e viu a filha, com o rosto iluminado de alegria, a correr em direção ao pai. Elisabetta tinha desde sempre uma relação fantástica com Raffaello que, com ela, era sempre condescendente, preferindo delegar em Angelica a tarefa de a censurar.
- Entendam-se as duas - dizia ele, de cada vez que surgia um problema, desaparecendo com a velocidade de um relâmpago. Este comportamento irritava Angelica que, mais do que uma vez, lhe disse:
- Porque é que eu tenho de ser sempre a mãe má e tu o pai bom? Obviamente, não obtinha resposta. Agora, ao observar Elisabetta a abraçar o pai, pensou que se lhe anunciasse que se ia separar dele, a sua menina ia sofrer muito. No entanto, os filhos precisam de certezas e de clareza e, portanto, tinha de lhe explicar os problemas que existiam entre ela e Raffaello e falar-lhe-ia do seu primeiro casamento, do qual Elisabetta sabia muito pouco. Tinha chegado o momento de lhe contar tudo. Naquela noite, Raffaello ficou para jantar, e depois foi para o jornal. Então Angelica disse à filha:
- Vamos para o meu quarto, instalar-nos comodamente na cama grande, porque eu tenho de te contar uma história.
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O PRIMEIRO CASAMENTO
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- Há duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. E, em relação à primeira, ainda não tenho a certeza absoluta - resmungou Giovanni Brugliani, citando Einstein. Angelica, muito direita à frente dele que, sentado atrás da escrivaninha, a observava de sobrolho franzido, limpava as lágrimas com a palma da mão.
- Sei perfeitamente que fui muito estúpida, mas vai servir-me de lição! - soluçou, com uma voz infantil que enterneceu o pai. Giovanni Brugliani levantou-se, foi até junto ela, puxou-a para si e abraçou-a.
- Menina tonta, agora as lições já não servem para nada - sussurrou-lhe.
- Mas para mim sim, querido pai, e isto vai servir-me para toda a vida - garantiu, ao mesmo tempo que tirava do bolso do casaco do pai um lencinho imaculado com que assoou vigorosamente o nariz. Giovanni acariciou com ternura os ombros magros da sua menina, enquanto a conduzia em direção ao austero sofá forrado a pele, e mandou-a sentar-se ao lado dele.
- Olha só para estes ossinhos. Tenho de instruir a Rosina para te pôr na engorda, minha pequenina - disse-lhe, com ternura, enquanto observava o rosto pálido e magro da filha. Angelica tinha 19 anos e, de cabeça quente, um ano atrás, tinha decidido casar com Andrea Biolcati, um homem de 30 anos que não fazia nada e se declarava poète maudit, poeta maldito, filho de um pescador de enguias do delta do Pó, que a levou para morar numa casa no campo, perto de Ravenna, lhe declamava poemas obtusos e jurava que um dia o mundo haveria de o proclamar «voz emergente» no panorama esquálido da mediocridade literária daqueles anos.
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Recitava-lhe versos improváveis, dos quais ela não captava o sentido, mas que lhe pareciam obras-primas de uma mente superior. Tinha passado um ano exato desde aquele casamento insensato e Angelica apresentou-se em Borgofranco de repente, numa velha moto Guzzi. Irrompeu no escritório do pai e disse-lhe:
- Estou aqui para te pedir que voltes a receber-me nesta casa.
- O que foi que aconteceu? - perguntou o pai, sem se mexer da secretária.
- O Andrea morreu - sussurrou Angelica, e desatou a chorar. Giovanni Brugliani conseguiu conter um suspiro de alívio, enquanto pensava que, as vezes, a divina providência intervém mesmo. Enquanto ela continuava a chorar no seu ombro, ele disse-lhe:
- Chora tudo o que quiseres, porque eu estou aqui, ao teu lado.
- Sinto-me tão infeliz, pai - replicou eh., entre lágrimas. - Porque é que a vida é tão dura?
- Diz-se que quando nascemos já está escrito que um terço dos nossos anos será de sofrimento, e apenas um terço será de alegria.
- E o terço que sobra?
- Será aquilo que nós quisermos que seja. Depende de nós fazer com que seja de felicidade.
- Eu quero ser feliz, pai. Giovanni pensou que aquilo era um bom princípio para recomeçar.
- Então vais ser - garantiu. Estava um lindo pôr do sol de fins de agosto. Através da janela aberta sobre o jardim, ouvia-se o bater de asas das andorinhas que regressavam ao ninho, tal como a sua menina que tinha regressado a Borgofranco depois de uma experiência difícil e dolorosa. Angelica observou um ramo de dálias vermelhas e amarelas numa jarra pousada na secretária do pai.
- São do nosso jardim, não são? - perguntou, a apontar para elas.
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O pai assentiu. - Foi a Rosina que as apanhou.
- Recebes-me outra vez aqui, junto de ti? - perguntou em voz baixa, e acrescentou: - Quero dizer, a trabalhar também? Já perdi uma vindima, a do ano passado. Daqui a pouco vai haver uma nova e eu quero estar aqui, como sempre estive, antes de...
- Vai ser uma vindima fantástica, nesse caso. Para dizer a verdade, a do ano passado foi um pouco triste, porque tu não estavas cá. Angelica acariciou com o olhar o rosto severo do pai, que lhe sorria e não fazia perguntas, respeitador, como sempre, das suas escolhas e dos seus sentimentos. Sentiu o aroma ligeiro do perfume que ele usava: alfazema com um toque de menta. As rugas que lhe sulcavam a testa denunciavam a ansiedade que sentia em relação a ela.
- Dei-te muitas preocupações, eu sei - desculpou-se.
- Ainda está para nascer o filho que não dê preocupações aos pais. Quando a tua mãe e eu nos queixávamos, ela dizia-me: «Imagina as dores de cabeça que Jesus Cristo não terá dado a Maria e a José». Grande mulher, a tua mãe - acrescentou em voz baixa, depois de uma breve pausa. Cristina Acerbi, mulher de Giovanni Brugliani, tinha-se afastado de Borgofranco quando Angelica tinha 15 anos. Uma noite em que estavam todos à mesa, depois de Rosina ter servido uma convidativa tarte de ginja, anunciou:
- Como o vosso pai já sabe há algumas semanas, dentro em breve vou apanhar um avião para Londres, onde viverei daqui em diante. Dediquei-vos muitos anos da minha vida, com uma alegria infinita. Gosto muito da minha família, mas agora preciso de viver para mim. No entanto, saibam que lá estarei sempre para vós, em qualquer momento, se precisarem de mim. Sobre a sala de jantar de Borgofranco caiu um silêncio espetral.
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- Era linda, a mãe - disse agora Angelica
- É linda - corrigiu ele.
- Voltaste a vê-la? - perguntou ela, surpreendida. O pai assentiu.
- Quando?
- Comuniquei-lhe que te tinhas casado.
- Porquê?
- Precisava de um ombro para chorar. Os teus irmãos são uns rapazes fantásticos, mas são homens. Quando se sofre e se precisa de consolo, só as mulheres sabem ouvir.
- O que foi que ela te disse?
- Voltou cá. Não faças essa cara. Foi só durante alguns dias, mas voltou. E ajudou-me.
- Como?
- Com o seu sorriso e com as suas palavras. Disse-me: «Deixa a água correr para o mar. De qualquer maneira, ali evapora, sobe ao céu e depois volta a cair. Deixa a Angelica ir-se embora. Ela vai regressar». E agora tu estás aqui. Bem-vinda a casa, minha menina.
- Obrigada, pai. Ainda vais ficar no escritório?
- É sábado à tarde e, depois de uma semana de trabalho, preciso de organizar as ideias. Vai para casa. A Rosina vai atirar-te os braços ao pescoço e chorar de alegria. Vemo-nos logo à noite e vamos estar os dois sozinhos.
- Obrigada, pai - repetiu Angelica, abraçando-o. Saiu do escritório e avançou ao longo da alameda coberta de saibro em direção a casa. A hera que revestia os muros brilhava na luz do entardecer. Passou ao lado das três enormes amoreiras, com quatrocentos anos de idade, que espalhavam a magnificência da sua folhagem. No tronco de uma delas tinha-se aberto, sabe-se lá quando, uma grande fissura que lhe parecia o acesso ao antro das bruxas. Quando era pequena metia-se ali, ferindo as pernas e os braços contra aquela casca áspera, convencida de que ninguém a iria encontrar. Agora pareceu-lhe que aquelas árvores seculares estavam a dar-lhe as boas vindas e a sorrir-lhe. Entrou em casa e foi recebida pelo latido alegre de Tommaso, um pequeno basset de pelo sedoso com manchas de pele de leopardo. Não o via há um ano, mas era como se tivessem acabado de se separar. O animal deu um salto e ela agarrou nele e apertou-o contra o peito, enquanto ele continuava a ganir, a tremer e a lamber-lhe a cara.
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Angelica sorriu e sussurrou:
- Estou outra vez em casa, meu amigo. à porta da cozinha apareceu a vestal da casa Brugliani: Rosina. Por um instante olhou, incrédula, depois levou as mãos ao rosto e, enquanto os olhos se lhe enchiam de lágrimas, exclamou:
- Voltaste, finalmente!
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2
Angelica estava mergulhada até ao pescoço numa banheira de água quente e perfumada. Ao fim de tanto tempo, saboreou de novo as comodidades da sua casa e recordou com aversão os aposentos em que tinha vivido com o marido: escaldantes no verão e gelados no inverno, já para não falar da cozinha esquálida onde sobressaía um enorme televisor ultramoderno que Andrea dizia ter comprado com o seu dinheiro. No entanto, um dia em que lhe escovava o casacão de veludo, caiu ao chão um envelope dirigido a ela. Abriu-o e encontrou um cheque de quinhentas mil liras assinado pelo irmão Gaspare, com um bilhete em que dizia, entre outras coisas: «Aí vai a minha pequena ajuda do costume». Assim descobriu que o irmão mais velho lhe mandava dinheiro que o marido metia ao bolso, sem lhe dizer nada. Angelica já se tinha apercebido da trapalhada em que se tinha metido ao casar com Andrea. Acreditara que a felicidade se fazia com dois corações e uma cabana: a cabana encontrou-a, e não cheirava propriamente a flores do campo. Para além do mais, Andrea era um homem problemático, um alcoólico que lhe roubava dinheiro para perseguir os seus delírios de glória. Os versos que a tinham fascinado perdiam, dia após dia, cada vez mais, o traço da beleza inexprimível, devido às inúmeras dificuldades que tinha de enfrentar.
- Tu és como a lua de agosto que sorri trocista aos meus sonhos - declamava Andrea, quando ela o observava em silêncio, desconcertada.
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Agora, mergulhada naquela água perfumada, deliciava-se num prazer que tinha esquecido, enquanto observava, feliz, a sua casa de banho com azulejos imaculados e torneiras de latão brilhante. Saiu da banheira e regressou ao quarto, tendo vestido um comprido roupão de felpo que tinha encontrado no meio da roupa que deixara em casa antes de se casar. Olhou em volta. O quarto estava tal como o tinha deixado um ano atrás. As paredes cor de marfim, a cama Império, os tapetes macios cor de nata pousados no chão de tijoleira, as cómodas da avó materna sobre as quais estavam alinhadas as fotografias da família em molduras de prata e a cadeira de baloiço ao lado da mesinha, junto à janela, sobre a qual Rosina tinha pousado o tabuleiro do pequeno-almoço. Deu um profundo suspiro e enterrou a colher na taça de salada de fruta. Finalmente, sentia-se a salvo. Barrou uma fatia de pão torrado com uma camada de compota de uva americana. Era uma especialidade de Rosina que, com aquele doce, fazia tartes para toda a família. Rosina tinha entrado em casa dos Brugliani levada pelo avô materno de Angelica, Pompeo Acerbi, engenheiro hidráulico, aquando do regresso de uma estadia da costa da Romagna, onde tinha projetado uma complexa série de redes de esgotos.
- Encontrei esta pequena num convento de monjas - disse Pornpeo, entregando-a à sua filha Cristina, e acrescentou: - Ficou órfã em pequena e cresceu com as freiras. Tem muita vontade de fazer alguma coisa e, como é inteligente, vai ser-nos muito útil. O avô Pompeo identificava imediatamente as pessoas com capacidades. Rapidamente, Rosina tornou-se num membro da família. Agora Angelica deixou escapar um sorriso ao recordar a figura mítica do avô Pompeo, de quem os concidadãos diziam que era «tão genial como original». Tinha uma expressão severa, nunca se ria, mas tinha um sentido lúdico da vida e adorava fazer brincadeiras.
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Quando fez 60 anos, escreveu o seu próprio elogio fúnebre e mandou o empregado, vestido de luto, à sede do jornal local para o mandar publicar entre os anúncios da necrologia. Depois escondeu-se em Borgofranco ã espera dos acontecimentos.
- Quero mesmo ver quantos amigos me vão chorar - anunciou aos Brugliani, que se riam e lhe chamavam louco. O embuste apenas foi descoberto à noite, mas durante uma grande parte do dia o telefone não parou de tocar, os telegramas de chegar, o sino da casa da cidade de tocar. Os jovens Brugliani, mandados por ele fazer uma prospeção pelos cafés, trouxeram-lhe notícias de uma dor profunda. Daquela vez, excecionalmente, sorriu, satisfeito. Morreu no ano seguinte, de repente, com um enfarte, e ninguém foi ao funeral. Toda a gente pensou que era mais uma brincadeira. Quando, no cemitério, o caixão foi retirado do carro fúnebre, no meio das lágrimas dos Brugliani que o seguiam, avançou um pequeno grupo de curiosos e um deles perguntou:
- Mas o senhor engenheiro morreu mesmo? Com aquela lembrança, Angelica sorriu e recordou a sua história desatinada com Andrea Biolcati, iniciada num carro funerário.
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Era primavera. O pai tinha ido esperá-la à saída da escola onde, apesar de ainda não ter 18 anos, frequentava o último ano, e arrastou-a com ele para Verona, onde havia uma importante feira de vinhos e onde, pela primeira vez, os Brugliani tinham o seu próprio stand como produtores. Queria afastá-la de um bando de cábulas, como ele tratava os rapazes e as raparigas de boas famílias que estudavam o mínimo indispensável. Apesar de a filha ter umas notas excelentes, começava a revelar uma inquietude preocupante e escolhia as piores companhias. Angelica, como sempre, tinha tentado reagir, mas depois resignou-se e foi com ele. Na feira, pelo meio da confusão de visitantes, compradores e jornalistas do setor, havia grupos de jovens que passavam de um stand a outro apenas para conseguirem provar vinhos e, muitos deles, estavam já decididamente embriagados. Enquanto o pai conversava com o proprietário de uma cadeia de garrafeiras, ela tinha-se posto no balcão das provas, ao lado de um empregado e de uma rececionista que explicavam a três rapazes bêbedos que não podiam servir mais vinho. Um dos três começou a levantar a voz, enquanto os outros dois tentavam arrancar uma garrafa das mãos da rececionista. Sem perder tempo, Angelica marcou no seu telemóvel o número do serviço de segurança. Entretanto, ia-se preparando para o pior, enquanto recordava o mote do pai: O vinho é um néctar que se saboreia com parcimónia para a alegria do palato e do espírito».
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Enquanto os dois seguranças, que acorreram prontamente, se afastavam com os rapazes, perfilou-se a figura magríssima de um jovem de rosto pálido, longos cabelos negros despenteados e fato de bom corte, embora gasto, que se esforçava por se controlar para parecer sóbrio. Os seus olhos, amarelos como os de um gato, tinham-se fixado nos de Angelica, e uma voz que parecia brotar das profundezas de um impetuoso rio subterrâneo disse-lhe:
- Tu não és uma ninfa celeste, não és a visão de uma mente obnubilada pelo alcoólico fumo, não és a feiticeira que esfarela os meus sonhos, nem o anjo que os eleva. Quem és tu, magnífica criatura? Angelica não conseguiu conter uma gargalhada.
- Tu não és bom da cabeça - reagiu.
- Eu sei. Não ser «bom da cabeça» é a cifra do meu génio literário. Pegou-lhe numa mão, levou-a aos lábios e acrescentou:
- Permita-me que me apresente. Andrea Biolcati, para a servir, vossa magnificência. Já acontecera a Angelica encontrar homens e rapazes que tinham bebido demais. Alguns ficavam taciturnos e carrancudos, outros falavam sozinhos, outros berravam. Ela sempre detestara as pessoas bêbedas, tinha pavor. Mas o rapaz que estava à frente dela era diferente. Parecia feliz com a sua embriaguez, e ela achava divertida aquela linguagem estranhíssima com que se exprimia e aqueles olhos amarelos de gato, nada embaciados pelo álcool, que a perscrutavam e afagavam.
- Eu sou Angelica Brugliani, meu senhor, e não tenho qualquer necessidade dos seus serviços - replicou, divertida.
- Já viu? Estava escrito nos nossos nomes que tínhamos de nos encontrar: têm a mesma inicial. Não se foge ao nosso destino - sentenciou ele.
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À volta deles, no pavilhão da feira, havia um crescendo de confusão, de anúncios lançados pelos altifalantes, de gente que abria caminho pelo meio da multidão, de aplausos pela visita de um personagem político com o seu séquito de cortesãos, de forças da ordem que controlavam o público, mas Angelica sentia-se como que protegida por uma bola de vidro que a isolava, a ela e a Andrea, do resto do mundo.
- Seria um destino bem triste, o meu, se tivesse de o partilhar com alguém que faz do álcool a musa do seu génio criativo - disse Angelica, para tentar furtar-se ao magnetismo daquele indivíduo, que considerava pouco recomendável.
- Já alguma vez ouviste falar de Charles Bukowski? Aposto que nem sequer sabes quem é, porque trazes em cima de ti o cheiro inconfundível da estudante de liceu que vai levar para o exame Quasimodo e Montale como golpe extremo de modernidade - replicou ele, e estendeu uma mão para apanhar uma flúte de espumante. Ela tirou-lha rapidamente, dizendo:
- Já bebeste o suficiente. Eu estou aqui para trabalhar, por isso sugiro-te que vás para outro lado desperdiçar o teu tempo. Estava irritada pelo facto de ele ter percebido que era uma aluna de liceu, e era verdade que ia levar para o exame Quasimodo e Montale. Gostaria de poder replicar que conhecia em linhas gerais os textos de Bukowski e a sua apologia do alcoólico, que resumira em duas linhas: «Porque bebo? Porque não consigo enfrentar a vida quando estou sóbrio». Era a afirmação de um medroso.
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- Estou a trabalhar, tal como tu. Eu sou um génio e, além de mim, ninguém sabe - replicou ele, caricaturando um aforisma de Bukowski. E acrescentou: - Eu sou um poeta que ainda ninguém conhece, mas eu bem sei no espírito e no coração: virá o dia...
- Em que será destruída a sacra Ilion, assim como Príamo e o povo de Príamo - concluiu Angelica, citando os versos da Ilíada. Giovanni Brugliani materializou-se atrás da filha e disse:
- Talvez eu possa ser útil...a este senhor? Angelica pensou que, mais uma vez, o pai tinha intervindo no momento errado: ela estava a divertir-se com aquele jovem estranho que lhe fazia a corte, e ele acabava de quebrar o encanto.
- Com certeza! Esta jovem recusou-me uma prova do vosso néctar - respondeu Andrea Biolcati.
- A minha filha tem 17 anos e é muito inteligente. Eu sugiro-lhe que regresse a casa imediatamente, enquanto consegue aguentar-se nas pernas - rematou Giovanni Brugliani, que tinha elogiado a filha e sublinhado que era menor. Não havia dúvidas de que aquele sujeito escanzelado, de modos rebuscados e trato de artista falhado, estava a exercer o seu fascínio de ator sobre a sua curiosa e inteligente filha. Já no ano anterior, durante uma visita de estudo a Inglaterra, fora obrigado a intervir para a retirar das garras do seu professor de Inglês, que ela tinha conquistado com a sua carga de sedução. Quando tinha 15 anos, durante as férias de Natal, na Áustria, Angelica tinha entretecido uma história com o instrutor de esqui, um jovem de 18 anos, ignorante mas lindo como o sol. Giovanni Brugliani levou-a de volta para casa e fechou-a no quarto, enquanto censurava Cristina, a mulher, que a tinha deixado andar à vontade.
- Como é que tu a educaste? Aos 15 anos as minhas irmãs ainda brincavam com bonecas e a nossa filha, pelo contrário, brinca a seduzir homens.
- Quando as tuas irmãs tinham a idade dela, a pílula não existia. Por medo, mantinham-se castas até ao casamento. Já olhaste para a tua filha? Ainda não percebeste que é uma mulher? Felizmente tratei de a levar ao ginecologista. A tua filha toma a pílula. Já ficas a saber - retorquiu Cristina.
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- A minha menina toma a pílula? - perguntou ele, escandalizado.
- Talvez queiras impedi-la de fazer amor? - desafiou-o.
- Claro que sim!
- Acorda, Giovanni. Os tempos mudaram. Alguma vez sonhaste impedir os nossos filhos de fazerem amor com as amiguinhas deles? E não me digas que eles, enquanto homens, têm direito a isso; porque se assim for, pego na mão da minha filha e saímos imediatamente desta casa - disse Cristina, furiosa.
- A família Acerbi é toda louca, a começar pelo teu avô, que Deus o guarde, que em frente ao arcebispado abriu um círculo anarquista, defendia o «amor livre num Estado livre» e engravidou criadas e patroas de meia cidade. Já para não falar do teu pai, que passava as noites a engendrar brincadeiras nas costas dos amigos e dos parentes. Quanto a ti...
- Porque não terminas? Quanto a mim? - desafiou-o a mulher.
- Amei-te precisamente por seres fascinante e...louca - sussurrou ele, já mais calmo. Acabou por se render à evidência, a filha era meia Brugliani e meia Acerbi, metade estava ancorada nas raízes profundíssimas da terra e metade era convidativa como a uva madura. Depois a mulher foi-se embora, mas ele não renunciou a manter Angelica sob controlo, e intervinha para evitar que se metesse em complicações. Fez a mesma coisa naquele dia, no pavilhão da feira, e regressou com ela a Borgofranco, lamentando o facto de Cristina ali não estar para dissipar os fantasmas dos seus receios de pai. Não sabia que aquele poeta meio bêbedo tinha conseguido passar para a mão de Angelica um cartãozinho com o telemóvel que ela enfiou habilmente no bolso dos jeans. Quando regressaram a casa, era quase hora de jantar e ela anunciou:
- Vou para o meu quarto estudar. Mas apenas se afastou para telefonar a Andrea Biolcati. Ele disse-lhe que vivia na costa da Romagna, numa casa que herdara do avô, no Lido degli Estensi. O pai tinha sido pescador de enguias. Tinha morrido de uma «doença incurável» quando ele era criança.
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A mãe tornara-se governanta do pároco e ele tinha crescido na casa da paróquia. Ali, o velho don Pacifico tinha sido o seu professor, e com ele aprendera o grego e o latim. Sabia de cor o Evangelho e a Divina Comédia. O Antigo Testamento lera-o às escondidas, porque don Pacifico lhe tinha explicado que não era uma leitura aconselhada. Entretanto, pediu à Câmara para lhe darem um trabalho como jardineiro. Depois, o avô paterno morreu e deixou-lhe aquela casa no meio dos campos, para onde fora viver sozinho, uma vez que a mãe continuou a tratar do pároco. Descobrira então em si o «génio poético» e preferia escrever versos do que ir estupidificar de cansaço a podar tílias e plátanos, ou a plantar flores nos canteiros para os turistas que atulhavam a costa durante o verão. Leu-lhe pelo telefone um poema seu: Cúmulo-nimbos de névoas duvidosas abafam sons e olhares / que só a minha mente de ébrio di-vinho (di-vino no original, com duplo sentido: divino ou de vinho) / penetra para trespassar / enclausurar / aniquilar uma humanidade inepta.
- O que é que achas? - perguntou-lhe.
- Sublime - disse ela, que não tinha percebido nada.
- Vim para aqui porque tenho de ter alguma coisa que fazer enquanto espero a morte - explicou. Angelica pensou que aquele homem precisava de se sentir amado.
- O que é que estás a fazer? - perguntou-lhe.
- Ia a caminho de Vicenza entregar um carro funerário para fazer um favor a um amigo. Mas em Cesena o motor começou a fazer birra. Partiu-se o veio de transmissão. Tive de o mandar levar à oficina de outro amigo meu que fica aqui na zona. Sabes, eu tenho amigos um pouco por todo o lado, companheiros de bebedeiras e de poesia. Agora o motor já foi reparado e eu tenho de seguir viagem para chegar a Vicenza, mas se me disseres onde estás eu vou ter contigo, porque preciso de te ver, de te tocar, de te acariciar, porque tu és Angelica e tens de me salvar. Angelica mantinha-se calada, enquanto tentava dar alguma ordem àquele emaranhado de palavras.
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- Ouviste? - perguntou Andrea.
- Um carro funerário? Com um morto dentro? - sussurrou.
- Sem morto - esclareceu ele. - Faço pequenos trabalhos, aqui e acolá, só para me sustentar. Mas isto são banalidades de que não se deve falar - rematou. E apressou-se a perguntar: - Então, onde é que eu vou ter contigo? Estou na oficina que fica mesmo em frente ao recinto da feira de vinhos. Meto-me na autoestrada e vou a tua casa.
Angelica jantou com o pai, que depois a deixou sozinha para ir ao seu clube na cidade, até porque Rosina tomava conta dela. Então ela esgueirou-se para fora de casa, pegou na motorizada, saiu do burgo e desceu lentamente a colina. O carro funerário estava parado na estrada, ao lado da bomba de gasolina, que encerrava durante a noite. Andrea Biolcati abraçou-a com ternura e ela sentiu-se envolvida pelo seu perfume de terra molhada e de casca de árvore. Fizeram amor no carro funerário e a seguir ele disse-lhe:
- Agora a asa acolhedora da morte poderá envolver-me no seu gélido abraço, sem aniquilar o meu espírito, que se alimentará de ti até a eternidade.
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Era julho. Angelica, acompanhada por Rosina, entrou no vasto átrio do liceu onde estavam afixadas as pautas com os resultados dos exames. Um magote de jovens apinhava-se no átrio. Havia quem exultasse, quem estivesse com uma expressão triste, quem chorasse. Angelica viu Ortensia, mais conhecida por Tessi, a sua amiga do peito, com a mãe, que a abraçava com força e lhe dizia: - Parabéns, minha Tessi! A alegria que me dás! Angelica apenas tinha a sua empregada para lhe dizer que era fantástica, porque tinha obtido a nota máxima. Quando regressou a Borgofranco, encontrou o pai que a felicitou pelos excelentes resultados. Sentia-se feliz e não estava certamente à espera daquilo que, um instante depois, Angelica lhe anunciou: - Pai, vou casar-me. - Com quem? - sibilou Giovanni Brugliani, sentindo fugir-lhe o chão sob os pés. - Sabes perfeitamente quem é o rapaz que eu escolhi, porque o viste andar por aí, pelo meio das vinhas, mais do que uma vez, e até já falaste sobre ele com os meus irmãos. Estava tensa, emocionada, mas determinada a atingir o seu objetivo. Efetivamente, nas semanas anteriores, o pai tinha manifestado a sua preocupação aos filhos, e tanto Gaspare, o cirurgião, como Luigi, o professor, tinham tentado sossegá-lo, dizendo-lhe:
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- A nossa irmã é menos inconsciente do que tu pensas, e quando perceber que está a cometer um erro vai voltar atrás. A pior coisa que tu podes fazer é pôr-lhe uma trela. Deixa-a seguir o caminho dela.
- A vossa irmã é uma louca, como todos os Acerbi. É tal e qual a vossa mãe!
- A mãe sempre foi um espírito livre. Desempenhou o papel de mãe de família enquanto aguentou, e depois recuperou a sua liberdade. Conforma-te, pai. Ele pensou que os rapazes eram dois grandes egoístas que não queriam assumir nenhuma responsabilidade em relação a Angelica. Na realidade, primeiro Luigi, e depois Gaspare, tinham sondado o campo minado em que Angelica estava a mover-se e tinham tirado a mesma conclusão: a menina da casa estava transtornada por uma paixão absurda. Gaspare até tinha querido encontrar-se com aquele mandrião alcoolizado e presunçoso e, como médico, tirara as suas conclusões. Disse então a Luigi:
- Se aquela criatura não deixa de beber, vai ter grandes problemas de saúde. Mas não disse uma palavra ao pai, o qual, vermelho de cólera, enfrentava agora a filha.
- Não vou ficar aqui a ver-te cair num precipício - declarou Giovanni Brugliani.
- Eu vou casar-me com o Andrea e vou ser feliz, porque sei que ele é o homem da minha vida. O que poderia saber da vida uma rapariga de 18 anos criada numa redoma? Claro, há algumas semanas tinha entrado na maioridade e, atendendo às notas que tinha tirado, podia considerar-se madura, mas apenas para iniciar a universidade, para enfrentar um posterior ciclo de estudos e aprofundar a sua paixão, a agronomia. Obviamente, não para se casar. Tanto mais que o personagem por quem tinha perdido a luz da razão era um mentecapto. O seu dever de pai era detê-la. Mas como? Amarrando-a A cama? Internando-a à força numa clínica para doentes mentais? Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, enquanto apertava contra o peito a sua menina, que estava a avançar para a ruína sem que ele tivesse maneira de a travar.
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Perguntava a si mesmo onde teria errado na educação que lhe dera, e não encontrava nenhuma resposta. De resto, não havia respostas sequer para a fuga de Cristina, a sua mulher. Tinha partido porque queria ocupar-se consigo mesma e não dos outros. Se a mulher tivesse tido um amante, podia ter lutado para a trazer de volta a casa. Mas, tanto quanto sabia, não era disso que se tratava.
- Pai, por favor, deixa-me viver, deixa-me seguir o meu caminho. Aquilo que para ti é um erro, para mim é a felicidade - soluçou Angelica.
- Mas o Andrea não quer trabalhar, é um alcoólico - tentou ele, apesar de saber que denegri-lo não ia adiantar nada para a deter. Foi Rosina quem levou Angelica de carro até à cidade, naquela noite. Tinha com ela uma mala atulhada de roupa e uma mochila cheia de livros. Num bolso dos jeans tinha enfiado as suas economias: um maço de notas. Foi ter com a sua amiga Ortensia, que fora sua colega de carteira durante os cinco anos de liceu. Não podiam ser mais diferentes uma da outra e, talvez precisamente por isso, tinha nascido entre elas uma amizade sólida. Ortensia admirava a índole transgressora de Angelica, a sua capacidade de lançar o coração para além de qualquer obstáculo, a incapacidade de suportar qualquer forma de convencionalismo, que já tinha atingido muitas das raparigas daquela idade, a veia polémica que, por vezes, irritava até os professores, a extraordinária capacidade de aprendizagem, a elegância inata. Angelica admirava a pacatez de Tessi, a sua racionalidade, a generosidade em relação aos outros que a impedia de exprimir juízos negativos em relação fosse a quem fosse, mesmo àquela amiga, quando errava. Agora recebeu-a de braços abertos para a sua última noite na cidade.
- Os meus pais foram para a praia e eu organizei para ti uma despedida de solteira - disse-lhe.
- Quem convidaste? - perguntou Angelica, aflita, porque não tinha previsto uma festa para a sua retirada de cena. Tessi sorriu-lhe e explicou:
- Estás quase a deixar um ambiente que só te ofereceu privilégios, e o primeiro de todos é nunca teres passado necessidades.
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Vais casar-te com um homem que, como tu mesma disseste, só vai poder oferecer-te pão e poesia. Não sei se a tua escolha foi de grande coragem ou de sublime inconsciência, mas por esta noite ainda pertences ao nosso mundo. Vamos ser cinco. Convidei a Tina, a Laura e a Giulia, as nossas amigas de sempre. Todas nós queremos que leves contigo, para os dias que virão, a recordação de um belo serão entre raparigas.
- E então? - perguntou Angelica, cada vez mais preocupada, ao mesmo tempo que pensava que não tinha vontade nenhuma de ir a uma discoteca e de vestir uma roupa apropriada, já que os vestidos mais bonitos tinham ficado no seu armário, em Borgofranco, de rir e dançar, até porque as lágrimas do pai e de Rosina tinham quebrado as suas certezas.
- Tira o pijama da mala e vai à casa de banho arranjar-te para a noite. Daqui a pouco chegam as outras e também vão trazer camisa de noite e escova de dentes. Vamos fazer uma festa de pijama e alimentar-nos a Coca-Cola e sandes de queijo. A Giulia fez uma seleção de filmes românticos para vermos e hoje de manhã alugámos Dirty Dancing, Breakfast at Tiffany’s, Pretty Woman, Casablanca e O Grande Gatsby. Podemos vê-los todos, se não adormecermos primeiro, e seja como for amanhã às seis e meia levamos-te à estação e metemos-te no comboio para Ravena. Angelica abraçou a amiga num impulso. Tinha os olhos brilhantes e estava quase a chorar.
- Guarda as lágrimas para os filmes que vamos ver logo à noite sugeriu Tessi. De manhã, as cinco raparigas tinham os olhos marcados pelo cansaço. Choraram todas enquanto o comboio se punha em marcha e Angelica, debruçada numa janela da carruagem de segunda classe, agitava um lenço e dizia adeus, não só a elas, mas também ao pequeno universo em que tinha crescido, para ir ao encontro de um futuro incerto, tendo como único apoio o amor por um poeta incompreendido que cheirava a terra molhada e a casca de árvore e a perscrutava com aqueles olhos mortiços, encantadores, que lhe afagavam a alma. O génio de Andrea Biolcati precisava do seu amor incondicional, e ela ia oferecer-lho às mãos-cheias.
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No momento de entrar no comboio, as amigas tinham-lhe dado o seu presente de casamento. Agora, enquanto o comboio saía da estação, Angelica abriu a grande caixa branca apertada com uma fita de veludo cor de rosa. Encontrou um conjunto completo de roupa para a noite: camisa, roupão, chinelos de seda imaculada. Imaginou o quarto muito espartano que Andrea lhe descrevera e depois ela própria dentro daquelas peças preciosas que representavam uma ligação com o mundo do bem-estar. Então, apesar de ter gostado muito delas, decidiu que não lhe iam fazer falta nenhuma. Atirou-as para fora da janela, espalhando-as ao vento com o seu passado.
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Saiu do comboio a abarrotar de domingueiros que iam passar aquele dia abafado de julho em algumas praias do Lido de Ravena.
- Bem-vinda à antiga capital do Império do Ocidente - disse Andrea que, enquanto aguardava a sua chegada, estivera a enganar a espera no bar da estação. Angelica estava exausta e muito confusa. Queria sentir-se feliz, mas apenas sentia vontade de chorar. Andrea abraçou-a e ela desatou a soluçar como uma menina assustada. Acabava de deixar Borgofranco, que representava o centro das suas certezas, e só agora se dava conta de que as tinha perdido para sempre.
- Onde é que foi parar toda a tua descarada segurança? - tentou brincar Andrea, ao mesmo tempo que a libertava do seu abraço para enfiar na bagageira do Fiat Tipo a mala que ela trazia. Ela sentou-se no carro, ao lado do lugar do condutor, e Andrea estendeu-lhe um lencinho de papel, dizendo-lhe:
- Agora vou levar-te para minha casa, mas se não paras de chorar logo à noite meto-te no comboio e regressas aos Brugliani. Bastou aquela ameaça para lhe deter as lágrimas, porque nunca, de modo nenhum, voltaria atrás. Percorreram a marginal muito devagar, no meio de uma confusão delirante de veículos a buzinar, de banhistas mal-amanhados e de uma música ensurdecedora que provinha dos bares ao longo da estrada, no calor exasperante do meio-dia. Angelica perguntou:
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- Aqui é sempre assim?
- É o verão. De inverno só há o mar, o nevoeiro e a sirene do farol a quebrar um silêncio irreal. Então é realmente a poesia que habita os areais, a lagoa, a terra plana e finalmente despojada desta horrível futilidade.
- Falas tão bem - sorriu Angelica, e sentiu-se animada, imaginando o rio de palavras que Andrea iria verter sobre ela como mel. Disse para si mesma que tinha uma vida inteira para viver e muitas curiosidades para satisfazer. Ia descobrir o que havia para além do caminho traçado pelos Brugliani, geração após geração, como se não houvesse outros mundos para explorar. O pai, mesmo sem lho dizer, tinha-a feito sentir-se uma estúpida. Agora tinha de lhe demonstrar, mas sobretudo a si própria, que não o era. Andrea continuava a falar. Agora contava-lhe qualquer coisa sobre a casa de Anita Garibaldi.
- Vou levar-te a visitá-la. Era uma grande mulher, que tinha percebido a força, a genialidade do companheiro e que, para ir atrás dele, superou incómodos de todos os géneros e aqui morreu. Tu deixaste para trás uma vida confortável, mas vivendo ao meu lado vais ter muito mais. Não me refiro ao vil metal, aos vestidos, às joias, mas ao alimento refinado do espírito. De repente, Angelica sentiu-se dominada pelo cansaço.
- Não durmo desde ontem. Queria uma cama, Andrea - sussurrou.
Tinham deixado a confusão da marginal e seguiam agora pelas estradas de campo assediadas pelo canto ensurdecedor das cigarras, pelo meio das extensões imóveis de salinas. Ele parou o carro ao lado de um gradeamento de rede metálica que delimitava um terreno de erva inculta, para lá do qual surgia uma construção minúscula de um só piso: uma porta ao meio e duas janelas, uma de cada lado.
- Chegaste a minha casa, aliás, à nossa - anunciou Andrea, enquanto abria o porta-bagagens para tirar a mala de Angelica. E acrescentou: - Pesa uma tonelada. Trouxeste contigo todos os adereços de Borgofranco?
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Ela continuou colada ao assento do carro. Apesar de estar muito ensonada e exausta, perguntou:
- É esta a herança do teu avô?
- Antigamente era só uma cabana para os utensílios. Depois ele aumentou-a e acrescentou um quarto e uma casa de banho, construiu uma lareira e cá fora há um forno para o pão. Anda, sai daí. Avançou à frente dela em direção à porta, tapada com uma cortina de algodão verde. Angelica viu uma cama meia desfeita num canto do aposento. Era uma otomana sobre a qual, obviamente, Andrea dormia. Deixou-se cair ali, estendeu as pernas, fechou os olhos e adormeceu. Foi acordada pelo miar de um gato que arranhava a beira do colchão. O aposento estava mergulhado na penumbra e, através da janela escancarada sobre uma zona com vegetação selvagem, viu a luz do entardecer. Estava sozinha com aquele gato branco e cinzento que não parava de miar.
- Estás com fome - disse-lhe. E acrescentou: - Também eu. O relógio de pulso marcava as oito horas. Olhou em volta. No centro do quarto, em cima de uma mesa de madeira escura, estava uma folha de papel onde Andrea tinha escrito: «Orfeu envolveu-te na nuvem do sonho. Repousa, terna rosa. Apanhar-te-ei quando despertares. Andrea».
- O que é que eu estou aqui a fazer, no meio desta miséria? sussurrou, enquanto observava a lareira apagada e ferrugenta, um bidão de plástico cheio de garrafas vazias, um móvel sem nada, duas cadeiras empalhadas e uma estante atulhada de livros numa grande desordem. Afastou uma cortina de um branco incerto e espreitou para o outro quarto, onde havia duas camas gémeas encostadas, uma velha cómoda e um lavabo. Perguntou a si mesma onde ficaria a casa de banho. Então saiu para as traseiras da casa e achou-se no centro daquilo que mais parecia uma lixeira. Debaixo de um alpendre havia cadeiras de plásticas desconchavadas e uma mesa de ferro ferrugento em frente a uma porta de madeira. Abriu-a.
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Aquilo era a casa de banho, com uma sanita, um lavabo e um chuveiro fechado com uma cortina de plástico.
- Mas onde é que eu vim parar? - sussurrou. Entretanto, o gato tinha ido atrás dela e, sempre a miar, esfregava-se nos jeans.
- Mas tu quem és? És a futura mulher do Andrea? - perguntou uma voz que vinha da zona da vegetação. Sentia-se um calor opressivo e o zumbido fastidioso de moscardos e mosquitos. Angelica ergueu os olhos e viu uma mulher idosa, com o rosto cheio de rugas, a olhar para ela.
- A senhora quem é? - perguntou Angelica.
- Sou a Tognina. O Andrea não está? Deve ter ido ao café da aldeia. Mais cedo ou mais tarde ele volta. Espera por ele. Como te chamas? - perguntou, chegando perto dela.
- Angelica - respondeu.
- Ontem dei uma limpadela à casa. Estava uma grande confusão. Coitadinha, agora toca-te a ti andar atrás daquela cabeça tonta. Sabes, o Andrea é muito bom rapaz, se não fosse aquele vício de beber e a pouca vontade de trabalhar. Pode ser que aproveite a cabeça que tem, agora que se vai casar. A verdade é que escolheu uma bela mulher. Tens fome? Trazia na mão qualquer coisa embrulhada num guardanapo.
- Fiz uma piadina (pão típico italiano, redondo e plano, que se recheia). Ainda está bem quente. No frigorífico deixei pancetta e presunto. Mete-os na piadina e come. Vais ver como é bom - disse ainda, ao mesmo tempo que lhe estendia o embrulho.
- Onde está o frigorífico? - perguntou Angelica, com um fio de voz, perguntando a si mesma se estava a viver um pesadelo. O calor cortava-lhe a respiração e a humidade tornava a pele pegajosa. Tinha fome, mas mais do que tudo queria tomar um duche. Mas onde? Ali dentro?, interrogou-se, enquanto a mulher, que trazia um avental de chita às flores, não parava de falar, e o gato não parava de miar.
- Dá um bocadinho de piadina à Georgia - sugeriu-lhe, indicando a gata.
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Naquele momento, Angelica sentiu o ruído de um automóvel que parava em frente à casa.
- Acho que o Andrea voltou - disse Angelica.
- Estás a ver? Se tu não estivesses aqui, não tinha voltado a casa tão depressa - comentou Tognina, e foi-se embora. Angelica valeu-se de todas as suas forças para sorrir a Andrea, que tinha chegado junto dela. Entraram em casa e ele pousou em cima da mesa um saco térmico que abriu, dizendo:
- A senhora será servida. Trouxe-te um jantar digno de uma rainha. Tagliatelle allo scoglio (massa com moluscos e crustáceos cujo molho é confeccionado com tomate, alho, salsa e vinho), dourada no forno, fritura de gambas e lulas e, para terminar, bolo gelado e espumante fresquíssimo.
- A Tognina trouxe-me uma piadina quente - replicou ela, pensando que na manhã seguinte se iam casar na igreja da aldeia, e perguntou a si mesma se aquele seria realmente o primeiro passo para a felicidade.
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No início do outono, as primeiras neblinas ligeiras começaram a tapar o sol. Angelica, da porta de casa, observava aquela paisagem melancólica, mas fascinante. Tinha tirado a carta e aprendido a conduzir a moto de Andrea. As vezes, quando ele estava a dormir, embotado pelo vinho, ela pegava no carro ou na Guzzi e ia até à praia. Sentava-se na areia húmida e observava o mar, uma massa cinzenta que se esfumava no branco argênteo do céu. Percebia então de que maneira aquela atmosfera rarefeita podia influir sobre o frágil equilíbrio psicológico do marido que, tal como Tognina tinha dito, seria um excelente rapaz se não se tivesse deixado devorar pelos demónios da poesia e do vinho, que o compensavam de muitas frustrações. Andrea participava em inúmeros concursos para poetas emergentes e de todas as vezes esperava receber um prémio, mas não obtinha sequer uma menção honrosa. Entretanto, ela tinha esgotado as poupanças para construir uma casa de banho decente, com acesso direto do quarto e aquecimento elétrico.
Agora estava sentada na cozinha e apercebeu-se de que já não havia mais dinheiro. Não sabia como pagar a conta da luz e comprar a comida para pôr na mesa. Era inútil pedir ao marido, que tinha sempre os bolsos vazios. Sentiu uma mão que lhe afagou levemente as costas e uma voz ensonada que lhe disse:
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- Vai à taberna do Titto e pede para te darem dois garrafões de tinto. Uma vez, Angelica tinha provado aquele vinho. Era péssimo, carregado de tanino para corrigir a falta de corpo. Cuspira-o no lava-louça.
- Eu não vou comprar vinho a crédito - reagiu, olhando com severidade para o marido. Andrea deixou-se cair em cima da otomana, que era o seu refúgio quando regressava a casa bêbado e não ousava entrar no quarto.
- Por favor, Angelica, sabes bem que se não bebo, não funciono. Ela não respondeu, saiu de casa e foi bater à porta de Tognina, que estava a esticar a massa para os tortellini. Tinha a certeza de que, durante algum tempo, Andrea ia ficar tranquilo, julgando que ela tinha ido à aldeia comprar o vinho. Tognina era viúva e vivia com o filho e com a nora, que tinham uma banca de peixe no mercado de Cesena, e com dois netos, que àquela hora estavam na escola.
- Entra e prepara um café. Depois dou-te uns tortellini para levares para casa - disse. Tognina gostava de Angelica e respeitava a sua escolha de se dedicar àquele marido problemático que não lhe facilitava a vida mas que tinha, no entanto, alguns laivos de genialidade.
- Preparo o café, mas não quero os tortellini, até porque não tenho vontade nenhuma de comer - respondeu Angelica, enquanto punha em cima do fogão uma cafeteira para as duas.
- Se continuas a mastigar amargura, em vez de comida, também tu vais ficar doente. Quando cá chegaste eras uma flor e agora pareces um espargo murcho - observou Tognina, ao mesmo tempo que continuava a passar o rolo na massa, que ia ficando cada vez mais fina e mais larga. Angelica não replicou. Só ela sabia o que custava estar ao lado de um marido que afogava no vinho os seus fantasmas. Serviu o café nas chávenas e estendeu uma a Tognina, que se sentou num banco e saboreou com satisfação aquela bebida aromática.
- Então, conta-me lá - pediu, finalmente.
- Conta-me tu, primeiro, as novidades da aldeia - respondeu
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Angelica, sabendo que todos os dias Tognina recolhia novas bisbilhotices da pequena comunidade e Angelica achava a maneira de ela contar muito divertida.
- Há duas, e grandes - começou Tognina. Respirou fundo e prosseguiu: - Uma soube-a no talho, depois de ter deixado os pequenos na escola. Então, deves saber que o Briganti, o serralheiro, agora arranjou uma amante em Cesena. Conheceste o Briganti, não conheceste?
- Claro! Mudou-me os caixilhos das janelas do quarto e da casa de banho. Fez realmente um bom trabalho. Quem é a amante?
- Uma morenaça avantajada que trabalha no teatro Bonci. Ele alugou-lhe uma casa em Brisighella e estava tudo a correr às mil maravilhas até ontem, quando a mulher do Briganti descobriu a tramoia e perdeu a cabeça. Primeiro deu uma tareia no marido, depois foi a correr para Cesena e deu umas estaladas à bela morena dentro do teatro cheio de gente. Agora esperamos o que se segue - concluiu Tognina, divertida.
- E a outra novidade? - quis saber Angelica.
- Aquela palerma da minha nora inscreveu-se num curso de dança do ventre e o cretino do meu filho está todo contente. Sou obrigada a ver uma nora a abanar-se vestida como a deusa Kali e um filho que lhe bate palmas. Angelica não fez comentários, porque estava agora a pensar nos seus problemas. Após um instante de silêncio, confessou:
- Tenho de arranjar um emprego, rapidamente. Ficámos sem dinheiro. Tognina olhou para Angelica com ternura e perguntou-lhe:
- O teu marido já te limpou as tuas poupanças?
- Mais de metade gastei eu para tornar a casa habitável, o resto gastámos no dia a dia. Agora quer que eu lhe vá comprar vinho a crédito. Nunca o farei.
- Fazes bem. O facto é que o Andrea está mal e, ainda que o quisesse, já não tem condições para trabalhar; e tu, pobre pequena, não tens uma profissão. Dá ouvidos a esta velha, volta para a tua família e abandona-o ao seu destino. Angelica considerou que aquele era um conselho sábio, mas ela tinha de fazer as contas com o seu orgulho.
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Tinham-lhe chegado aqueles poucos meses de vida conjugal para perceber como tinha sido estúpida. O pai e os irmãos estavam cheios de razão, tinha sido uma loucura casar com Andrea. Mas ainda não lhe apetecia regressar a Borgofranco com a cabeça salpicada de cinzas e admitir que tinha errado. Algum tempo atrás, o irmão Gaspare tinha-lhe ligado para o telemóvel, dizendo-lhe, para começar:
- Como estás, maninha? Quero que saibas que te trago sempre no meu coração. Esteve quase a ter um ataque de choro, mas sufocou as lágrimas e respondeu:
- Estou bem, mano, e não passa um dia em que eu não pense com muito amor em ti, no Luigi e no pai.
- Precisas de alguma coisa?
- Obrigada, não me falta nada. Aprendo coisas novas, conheço gente diferente. Vê lá, tirei a carta e descobri que também gosto de andar de moto.
- Sempre foste uma maria-rapaz, maninha.
Agora disse a Tognina:
- Eu julgava que era uma pessoa capaz de ir em frente pela sua estrada a desafiar o mundo, e afinal estou cheia de receios. Primeiro fiz sofrer a minha família. Agora ia fazer sofrer o Andrea, se o deixasse. Por isso, peço-te, ajuda-me a arranjar um emprego. Aprendi a fazer muitas coisas durante estes meses. Até consegui tratar da casa. Antes, nem sequer sabia lavar um lenço. Não achas que eu podia arranjar um emprego em qualquer hotel da cidade? Tu conheces toda a gente...Tognina olhou para ela, sorriu-lhe e disse:
- Esquece as profissões que não são próprias para ti. Eu acho que podias ensinar as crianças. Aquele asno do meu neto, por exemplo, está no sétimo ano e tem negativa a todas as disciplinas. Ele precisava muito de umas explicações. E não é o único. Há os dois filhos da Menica, a do quiosque, e a filha do Floriano, o do Bagno Miami, que também precisavam de explicações. Tu tens instrução e podes ganhar bem dando aulas às crianças. E depois, uma coisa puxa a outra. Todas as tardes tenho de regressar à aldeia para ir buscar os meus netos e faço constar.
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- Parece-me boa ideia, mas...
- Já sei o que me vais dizer, que a mim e à minha família não levas dinheiro. Mas vais levar, porque a instrução é importante e quem transmite aos outros o seu saber tem direito a ser retribuído. Angelica passou o inverno a ir de casa em casa dar explicações a várias crianças que começaram em breve a tirar benefício disso. À noite, quando regressava a casa, o marido dormia, bêbedo, estendido na otomana. Ela não o acordava, olhava para ele com uma infinita piedade e perguntava a si mesma até quando duraria aquela agonia.
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Uma das crianças a quem Angelica dava explicações era Ombretta, de 13 anos, filha de Susanna Mazzeo, que tinha uma loja de equipamento e vestuário náutico perto do porto e que ia no segundo mandato como presidente da Câmara. Ombretta era uma menina inteligente, seguia com atenção os ensinamentos de Angelica, estudava e estava a tornar-se na melhor aluna da turma. Tinha regressado a primavera, na vila começavam os trabalhos de melhoramento dos hotéis para receber os veraneantes que, desde que o tempo o permitisse, começariam a afluir no início de junho. Uma manhã, Susanna Mazzeo apresentou-se em casa de Angelica, que estava a arrancar ervas daninhas de um canteiro do pequeno jardim frente da casa, numa tentativa de o tornar mais acolhedor.
- Incomodo? - perguntou a presidente da Câmara.
- Nem pensar. Queres um café? - propôs Angelica.
- Onde está o teu marido? - perguntou Susanna Mazzeo, que tinha ido atrás dela até ao interior da casa e observava o aposento modesto que Angelica mantinha arrumado e tentava alegrar com jarras cheias de flores apanhadas aqui e ali.
- Não o vejo há alguns dias - respondeu tranquilamente. Susanna não fez comentários. Enquanto Angelica punha a máquina de café em cima do fogão elétrico, observou aquela bela rapariga de modos elegantes e, mais uma vez, perguntou a si mesma o que a teria levado a deixar uma vida desafogada para viver tantas privações com Andrea.
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Angelica nunca tinha dito uma palavra sobre as suas origens, mas o marido tinha tratado de divulgar informações sobre a prosperidade da família donde ela provinha. No aposento iluminado pelo sol da manhã espalhou-se o aroma do café que subia na cafeteira, a borbulhar. Enquanto Angelica dispunha sobre a mesa duas chávenas de porcelana, as colherinhas e o açucareiro, Susanna disse:
- Vim perguntar-te se te apetece trabalhar na Câmara para mim. Não te posso contratar, porque as contratações apenas se fazem por concurso, mas faço-te um contrato de consultoria e pago-te bem. Sei que me podias ser útil. Angelica serviu o café e Susanna prosseguiu:
- Sabes, a Câmara envia cartas, circulares, avisos que têm de ser escritos de forma correta. Também temos de responder a uma vilazinha em Inglaterra que quer criar uma geminação com a nossa e tu dominas bem o inglês. As duas mulheres, depois de terem tomado o café, saíram de casa e sentaram-se no banco encostado à parede. Angelica não tinha ainda pronunciado uma única palavra.
- Então, o que me dizes? - perguntou Susanna.
- Para já vou mostrar-te uma coisa - respondeu Angelica, ao mesmo tempo que retirava do bolso dos jeans um papel dobrado. Era a cópia de uma ata de detenção do marido, que depois tinha sido libertado pela polícia de Cesena, na qual, ao abrigo de um determinado artigo do código relativo ao crime de ato obsceno num local público, se especificava que «.. Andrea Biolcati, que se encontrava no segundo andar de um edifício que alberga um círculo literário, dominado pelos vapores do álcool, debruçado da varanda do dito círculo às vinte e três horas para satisfazer uma necessidade imperativa, ziguezagueando o dito cujo regava o guarda municipal que estava parado por baixo da varanda». Susanna e Angelica olharam uma para a outra e desataram a rir clamorosamente. Pouco depois apareceu Andrea ao volante do seu carro, que estacionou na berma da estrada de terra batida e de onde saiu ostentando um sorriso radioso.
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- Eu vou-me embora - disse a presidente da Câmara, e acrescentou: - Pensa na minha proposta. Andrea foi ao encontro dela com um passo seguro, fez-lhe uma vénia um bocado ridícula e cumprimentou-a:
- Senhora presidente da Câmara, os meus respeitosos cumprimentos.
- Em tantos anos, é a primeira vez que te vejo sóbrio - comentou a senhora.
- E vais ver-me sempre assim no futuro. Podes afixar um aviso na Câmara para informar os cidadãos de que Andrea Biolcati, o mais incompreendido dos poetas, deixou de beber - disse-lhe.
- É uma brincadeira? - interveio Angelica, observando-o com suspeição.
- É uma coisa séria. Eu sei que já não me vês há uns dias, e peço-te desculpa, minha mulher. Passei este tempo todo com um médico ex alcoólico que encontrei no hospital de Cesena. Arrastou-me para a Associação dos Alcoólicos Anónimos, passei três dias e três noites com eles e vou continuar a frequentar a associação durante muito tempo - afirmou, abraçando-a. E concluiu: - Angelica, o teu marido deixou de beber.
- É um milagre - exultou Tognina, quando Angelica lhe contou a novidade. Angelica abanou a cabeça tristemente e replicou:
- Temo que a verdade seja outra. O Andrea deve ter-se sentido mal e por isso o levaram para o hospital de Cesena, onde o internaram e lhe fizeram o diagnóstico, informando-o sobre a gravidade do seu estado de saúde.
- Tens razão, minha menina, deve ter sido isso - concordou a vizinha. Depois perguntou-lhe: - E tu, o que vais fazer?
- O meu dever de esposa - respondeu Angelica. Explodiu o verão e a vila iluminou-se de berrantes anúncios de neon. Os exércitos de veraneantes encheram as praias e ocuparam os hotéis e as pensões familiares. Angelica, com a Guzzi do marido, chegava à Câmara de manhã, trabalhava com a presidente durante grande parte do dia e regressava a casa à noite, sabendo que ia encontrar Andrea à espera dela, adormecido debaixo do alpendre, e uma refeição cozinhada por ele e servida na mesa da cozinha.
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Comia, tomava um duche e depois sentava-se na cadeira de baloiço ao lado do marido, que tinha deixado de beber, de ler e de escrever. Ela acariciou-lhe o rosto e perguntou-lhe com ternura: Como estás?
- Bem - respondeu ele, apesar de não ser verdade.
- O que fizeste hoje?
- Limpei os canteiros, levei uma série de tralhas para o lixo, fiz as camas e varri o chão. Aquilo que faço sempre, em suma. - Fez uma pausa e prosseguiu: - Deixei de beber e de acreditar que era um poeta. Mas atormenta-me a sensação de culpa por te ter levado a deixar a tua família e tudo o resto.
- Fui eu que decidi, não deves sentir-te culpado - garantiu-lhe Angelica, ternamente. Caiu entre eles um longo silêncio.
- Amanhã vou comprar uma ventoinha, assim pelo menos de noite conseguimos dormir - disse por fim Angelica, e beijou-o na testa com ternura.
- Quando eu já cá não estiver, o que é que tu vais fazer? - sussurrou Andrea. Ela abraçou-o e manteve-o apertado contra o peito até que ele adormeceu. Andrea Biolcati morreu em finais de agosto no hospital de Cesena. Tinha acabado de fazer 33 anos. Angelica fechou aquela casa onde tinha vivido durante um ano, pegou na moto e regressou a Borgofranco.
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- Que Santa Luzia te conserve a vista, minha menina! Comeste o pequeno-almoço todo
- exultou Rosina, irrompendo no quarto de Angelica. Depois notou o olhar triste de Angelica, que tinha ainda o roupão vestido, e perguntou:
- Maus pensamentos?
- Estive a recordar o meu último ano de vida e estava a tirar as minhas conclusões - respondeu Angelica, desconsolada. Rosina sorriu e disse:
- Tens muito tempo para as tuas reflexões, mas agora precisas de reagir e de voltar a viver. Do fundo da alameda chegava até elas o ruído dos camiões que chegavam e partiam do burgo e as vozes alegres e excitadas das mulheres e dos trabalhadores que descarregavam as uvas acabadas de colher. Durante duas semanas haveria setenta e tal pessoas a animar o burgo durante a vindima.
- Como é que esteve o tempo durante a minha ausência? - perguntou Angelica, enquanto se vestia.
- Seco, como nós gostamos. Este ano as uvas estão uma beleza, e cheias de açúcar - respondeu Rosina. E prosseguiu: - Não como no ano passado que, até certa altura, parecia que estava a correr tudo bem e depois abriram-se as cataratas do céu, temporais, granizo, vendavais e água que nunca mais acabava - concluiu Rosina, abraçando-a.
- Mas agora eu estou aqui - respondeu Angelica, que tinha enfiado uns jeans desbotados e uma túnica de linho.
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- Resolveste ir vindimar?
- Nada, nem ninguém, poderá nunca mais tirar-me da minha terra - disse Angelica, ao mesmo tempo que arregaçava as mangas até ao cotovelo.
- Os teus irmãos estão lá em baixo - comunicou Rosina, feliz. Todos os anos, tanto Luigi como Gaspare, na primeira semana da vindima, abandonavam um a universidade e o outro o hospital, para participar no grande momento que coroava o trabalho de um ano inteiro, quando o produto da primeira prensagem era metido nas enormes tinas de aço que se impunham, umas ao lado das outras, sob as abóbadas do edifício que as albergava. Iam também as mulheres de ambos e os outros parentes mais chegados, para festejar o novo vinho. Angelica desceu ao rés do chão e entrou nas arrecadações, onde encontrou um par de botas de borracha, que calçou. Depois dirigiu-se a zona onde estavam a descarregar as uvas e chocou com Luigi. Olharam-se por um breve instante e depois ele abriu os braços para a receber.
- Bem-vinda, maninha - sussurrou-lhe ao ouvido. Depois afastou-a de si e, pousando-lhe as mãos nos ombros, observou-a com satisfação.
- O pai disse-me que tinhas emagrecido muito. Mas eu acho que tu estás fantástica.
- A Rosina já me pôs na engorda com os petiscos dela.
- Vamos? - sugeriu Luigi, que lhe deu a mão como quando ela era pequena e ele tinha a incumbência de a levar a escola. Caminharam juntos e Angelica pensou que aquela era de facto a sua vida, como o era para o pai e como o tinha sido para o avô e o bisavô, e que não havia nada que lhe desse maior satisfação do que dedicar-se a atividade da família. Para se aperceber disso tivera de enfrentar um ano de vida difícil e dolorosa, mas agora estava em casa, no meio da sua gente, nas suas vinhas. Ela era uma mulher do vinho, como outras mulheres que se tinham tornado parte integrante das suas empresas vinícolas e eram agora conhecidas em Itália e no mundo pelas suas extraordinárias capacidades na produção de vinhos fantásticos.
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Por baixo do pórtico, ao fundo do pátio onde a prensa estava a funcionar a pleno ritmo, as empregadas tinham posto uma longa mesa para servir água fresca, sumos de fruta, café e bolos feitos em casa. Entre uma carga e outra, os trabalhadores, os técnicos e os camionistas faziam uma pausa antes de voltar ao trabalho. Giovanni Brugliani estava a descer de um camião carregado de uvas. Tinha as mãos e os antebraços negros de sumo de uva acabada de colher e os lábios abriram-se-lhe num sorriso feliz quando viu Angelica ir ao seu encontro.
- Acabou o período de isolamento? - perguntou.
- Acho que sim - replicou ela, respondendo ao seu sorriso.
- Então dá aí uma mão a descarregar as caixas - ordenou com alegria. Gaspare estava noutro camião que ia a sair do terreiro. Viu-a e, agitando uma mão, gritou:
- Olá, maninha! Ela atirou-lhe um beijo com a ponta dos dedos. Os trabalhadores que a conheciam receberam-na com naturalidade, como se nunca tivesse saído de Borgofranco. Giovanni Brugliani observava-a a trabalhar e perguntava a si mesmo até quando duraria o entusiasmo de Angelica. Nos dias de isolamento tinha-a espiado nos momentos em que se afastava de Borgofranco na sua Guzzi. Da primeira vez, receara que desaparecesse de novo. Mas os homens que trabalhavam nos campos tinham-lhe dito que Angelica dava uma volta pelas vinhas, controlava a maturação dos cachos e quando via o agrónomo parava a conversar com ele. Às vezes, abandonava a moto e dava longos passeios por entre as vinhas a meio da colina. Em suma, estava lentamente a reapropriar-se da sua realidade, da qual, durante um ano, se tinha afastado. Agora, durante uma pausa, diante de uma chávena de café, o pai disse-lhe:
- Parece-me que a tua Guzzi já deu o que tinha a dar. Ou não?
- Eu também acho. O motor está sempre a gripar.
- No fim da vindima dou-te uma nova, se concordares em fazer um curso de condução segura.
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Estava à espera de uma réplica polémica, mas ela disse:
- Negócio fechado, apesar de saber que preferias oferecer-me um carro. Naquele momento, Luigi aproximou-se deles, acompanhado por uma rapariga loira e bem constituída que destilava alegria.
- Quero que tu conheças a Sabine - disse à irmã. Foi assim que Angelica ficou a saber que o circunspecto professor universitário, pai de três filhos, se tinha apaixonado pela sua aluna mais brilhante, Sabine, tinha deixado a mulher e tinha passado a viver com aquela linda estudante.
- E a Gabriella como reagiu? - perguntou Angelica em voz baixa, referindo-se à mulher. Conhecia o temperamento forte da cunhada que, como todas as mulheres criadas no meio das vinhas, tinha os pés bem assentes na terra, e imaginou que tivesse esbofeteado o marido.
- Se eu te dissesse que recebeu a notícia com uma sensação de libertação tu não ias acreditar, mas foi assim - confessou Luigi, enquanto trincava uma fatia de bolo de amêndoa regado com a aguardente dos Brugliani. E prosseguiu: - Ela não se sentia bem em Trieste e já voltou para a família. A verdade é que sentia falta do trabalho que desenvolvia na empresa vinícola dos pais. Agora, tal como nós, também ela anda nas suas vinhas a vindimar. Naquele momento, tocou o telemóvel de Angelica, e ela atendeu. Era Susanna Mazzeo, a presidente da Câmara da vila do falecido marido.
- Agarra-te bem, Angelica, porque eu tenho uma notícia incrível - começou.
- Estou a ouvir - disse Angelica.
- O teu marido foi distinguido com o título póstumo de maior poeta contemporâneo pelo júri do Premio Corona d´Alloro, que é atribuído em Roma, de cinco em cinco anos, e que vai ser entregue aos seus herdeiros, ou seja, a ti, pelo Chefe de Estado.
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- Tens a certeza? - perguntou Angelica à sua amiga Susanna.
- De acordo com as tuas instruções, o diretor dos correios mostrou-me o telegrama que te tinha sido enviado e que te comunica a atribuição do prémio póstumo. Há também uma carta para ti. Não a abri - explicou a presidente da Câmara. Angelica afastou-se e pediu-lhe para a ler. O texto especificava, entre outras coisas, o valor do prémio: dez milhões de liras.
- Peço-te que o levantes em meu nome e que uses esse dinheiro para ajudar alguém que precise - decidiu Angelica, enquanto se sentia envolver pela melancolia. Afastou-se ainda mais, seguida pelo olhar preocupado do pai, que não sabia o motivo da repentina mudança de humor da filha depois do telefonema. Foi sentar-se na cavidade da sua velha amoreira. Depois de tanto sofrimento, pensava que tinha deixado para trás o casamento. Mas, afinal, Andrea Biolcati regressava de repente à sua vida. O fascínio que o poeta tinha exercido sobre ela tinha-se rapidamente diluído num quotidiano conjugal miserável e difícil, e ela acabara por ter muitas dúvidas sobre o seu talento poético. Agora um júri, composto por um filósofo, um grande literato, um académico excelso e outros ilustres estudiosos, tinha declarado que o marido era um génio da poesia. Recordou uma noite de inverno, enquanto se aqueciam ao lado do fogão, em que ele, com um livro na mão, lhe tinha dito:
- Vou ler-te algumas reflexões de Kafka sobre aqueles que são perseguidos, como eu, pelo demónio da poesia.
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O poeta é sempre mais pequeno e mais débil do que a média dos homens. Por isso, sente com mais força do que os outros o peso da sua presença no mundo. O seu canto, para ele, é apenas um grito e a arte um sofrimento.»
- O problema é que o sofrimento do poeta faz sofrer quem está ao seu lado - disse-lhe.
- Sinto muito, mas não consigo ser diferente daquilo que sou - replicou Andrea, tristemente. Agora Angelica sentia-se culpada por ter duvidado do seu talento. Rosina viu-a aninhada ao pé da amoreira. Entregou um cesto cheio de pão acabado de sair do forno à mulher que a ajudava a manter a comida do buffet da vindima sempre disponível, e aproximou-se. Sentou-se na erva ao lado dela e sussurrou:
- Posso fazer alguma coisa pela minha menina? Angelica estava a remexer com um pauzinho um minúsculo monte de terra da qual emergiram formigas que começaram a correr para todos os lados, enlouquecidas. Ergueu os olhos para Rosina e dirigiu-lhe um sorriso melancólico.
- Pensei que tinha enterrado o Andrea para sempre, mas afinal ligou-me, há pouco, uma amiga da terra dele para me dizer que lhe foi atribuído um prémio póstumo importante, como melhor poeta contemporâneo.
- Não me espanta. Sempre achei que o Andrea devia ter um grande talento artístico para ter conseguido fascinar a minha menina - comentou Rosina.
- Foi muito difícil e doloroso viver com ele, mas tratei-o até ao último suspiro. Gostei muito dele e acho que o Andrea foi para mim uma espécie de desafio, para eu conhecer os meus próprios limites. Agora, acho que ele sempre soube disso e que entrou generosamente no jogo.
- Então será sempre um amigo na recordação que tiveres dele - concluiu Rosina, que se levantou e lhe estendeu uma mão para a incitar a retomar a vindima. Depois continuou: - Hoje é um novo dia para ti. Tens apenas 19 anos, toda uma vida para viver e muitos disparates para fazer ainda.
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Angelica sorriu e disse:
- Jurei a mim mesma que não vou fazer mais disparates, até porque percebi como é importante pôr de lado a presunção e escutar os conselhos de quem tem mais experiência do que eu.
- Vamos lá, porque hoje vai ser um longo dia, e temos muito trabalho para despachar - concluiu Rosina. Foram ter com os trabalhadores que estavam junto a um camião, onde Angelica entrou. Ajudou a colocar nas traseiras os caixotes vazios, depois sentou-se ao lado do condutor e dirigiram-se à vinha para enchê-los. Giovanni Brugliani reparou no entusiasmo da filha e ficou mais animado.
- Será que vai durar? - perguntou ao filho mais velho. Gaspare anuiu.
- Deverá ser ela a conduzir a empresa, porque tanto o Luigi como tu têm outros interesses - comentou o pai.
- Dá-lhe pelo menos tempo para assentar. De onde te vem esta pressa repentina de descarregar em cima dela todas as responsabilidades?
- Eu já tenho nos ombros quarenta vindimas. Ainda vou poder fazer mais uma ou duas, mas depois quero descansar. Parece-te um desejo absurdo?
- Sim, atendendo a que estás de ótima saúde e prometes continuar assim por mais vinte anos - declarou Gaspare.
- Apesar da veia de loucura anarquista dos Acerbi, Angelica é a mais Brugliani de todos os meus filhos. Tem a produção de vinho no sangue. Aprende rapidamente e os lampejos de génio do lado materno vão permitir-lhe renovar a empresa. Dou-lhe dois anos e depois entrego-lhe o comando - concluiu, satisfeito. Ao fim daquele frenético primeiro dia de vindima, estavam todos exaustos, mas também eufóricos. Emílio, o enólogo, era o mais excitado de todos, porque era dele a responsabilidade de produzir um vinho que estivesse à altura daquela colheita perfeita. Quando caiu a noite, os Brugliani regressaram a casa satisfeitos e foram aos respetivos quartos arranjar-se para o jantar.
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Também em casa reinava uma grande excitação entre o pessoal doméstico que, sob o comando de Rosina, andava de um lado para o outro entre o pátio, onde estavam a pôr uma grande mesa, e a cozinha, onde se retiravam do forno focacce recheadas com legumes, timbales de carne e cogumelos porcini, tartes de fruta, e se abriam garrafas de precioso Amarone, de saboroso Barbera e de Nero d’Avola de outros produtores, para poder prová-los e comentar, porque a qualidade dos vinhos seria o tema principal do serão. Angelica, que como todos os outros tinha subido ao quarto para tomar um duche e mudar de roupa, encontrou no armário um fato de calça e casaco de shantung de seda azul-turquesa. Tinha-o comprado um ano antes, com o aval da sua amiga Ortensia, pensando usá-lo no dia do casamento. Mas ao preparar a mala para ir ao encontro do homem dos seus sonhos achou que não ia ser o indicado para o género de vida que se preparava para enfrentar. Vestiu-o naquela noite, e apanhou os cabelos compridos num carrapito que segurou com uns ganchos de brilhantes que tinham pertencido à mãe, a mais singular das mães que, agora sabia-o, nunca tinha deixado de estar em contacto com a família e de se preocupar com ela. No fundo da escada, que desceu para se dirigir ao pátio, Angelica encontrou o pai, perfumado e elegante, que se dirigiu a ela. Ela estendeu-lhe a mão e ele tocou-a levemente com os lábios. Estava feliz. Do pátio chegavam as vozes dos convivas que se passeavam pelo relvado e junto à piscina, a saborear um espumante, no meio da algazarra das crianças que brincavam às corridas. Viram Giovanni Brugliani, o chefe da família, conduzir Angelica até uma cabeceira da mesa retangular, após o que se sentou no lado oposto e convidou toda a gente a aproximar-se. Enquanto Rosina fazia um sinal ao pessoal para começar a servir, Angelica levantou-se e, deixando correr o olhar sobre os comensais, declarou:
- O pai pôs-me à cabeceira da mesa, mas eu sei que não tenho idade nem experiência para ocupar este lugar. Nesse momento, através da porta em arco que dava da sala de estar para o pátio entrou Cristina Brugliani Acerbi envolta numa capa de seda cinza prata que deixou escorregar dos ombros, deixando perceber um elegante vestido preto e branco, enquanto um sorriso irresistível lhe iluminava o rosto.
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- O gesto do teu pai, que eu partilho, pretende ser de bom augúrio - disse a Angelica, e abraçou-a. Giovanni Brugliani levantou-se para receber a mulher, explodindo numa boa gargalhada.
- Aqui temos o típico coup-de-théâtre dos Acerbi. Os anos vão passando, mas tu consegues sempre surpreender-me - exclamou, feliz, e abraçou-a.
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Angélica
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Era quase meia-noite. Elisabetta escutara, fascinada, a longa história da mãe.
- O Gianmarco tem razão quando diz que as famílias ricas estão cheias de segredos - disse a filha.
- Nós não somos ricos, apesar de termos casas e terras. Os teus tios, os avós e nós vivemos de uma retribuição que decidimos atribuir a cada um, em função do trabalho que desenvolve na empresa. Devias saber isso - esclareceu a mãe.
- Eu sei. Os lucros são todos investidos nas vinhas e essa é a única forma de continuar a produzir. Mas eu referia-me a este teu casamento juvenil do qual sabia muito pouco até agora.
- Porque toda a gente, eu incluída, esqueceu aquele casamento como sendo uma escolha errada. Apesar de ter sido uma experiência positiva, porque me ajudou a crescer rapidamente e a assumir as minhas responsabilidades.
- Porque é que não tiveste filhos do teu primeiro marido? - indagou Elisabetta.
- Porque era demasiado jovem e, sobretudo, porque tinha de fazer de mãe daquele homem atormentado e inquieto com quem me tinha casado.
- Tomavas a pílula para não engravidar? - quis saber Elisabetta.
- Claro que sim. A minha mãe, que sempre foi uma mulher sensata, tinha-me levado ao ginecologista dela quando eu tinha quinze anos e ele receitou-ma - explicou Angelica, tranquilamente.
- Porque é que eu não tomo?
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- Tu ainda não tens 15 anos e não me parece que isso te pudesse interessar, pelo menos para já.
- Eu e o Gianmarco não fazemos nada - disse, e esclareceu logo a seguir: - Ainda não.
- Vai acontecer quando o decidirem os dois. Mas antes de o fazeres avisa-me, para tomarmos as medidas necessárias. De qualquer maneira, não tenhas pressa de que chegue a madrugada daquele novo dia, porque quanto mais longa for a espera mais bonito será o despertar. Cultiva os teus sonhos, porque a realidade nunca é tão bonita como a tinhas imaginado. E agora, minha pequenina, vai dormir. Amanhã tens escola, eu tenho os meus problemas de trabalho e precisamos de descansar - concluiu Angelica, e pediu à filha para sair da cama.
- Gosto tanto de falar contigo. Também gosto de falar com o pai. A propósito, como vão as coisas com ele? - perguntou Elisabetta.
- Posso responder-te noutro dia? - perguntou Angelica, e beijou ternamente a testa da filha.
- Tudo bem - respondeu a filha, e foi-se embora. Antes de se deixar adormecer, Angelica prometeu a si mesma acertar com o marido a linha a adotar com a filha, apesar de saber que não ia ser fácil, pois Raffaello conseguia sempre descarregar em cima dela os problemas que diziam respeito a Elisabetta. Na manhã seguinte, Angelica acordou tarde. Ainda ensonada, desceu ao rés do chão. A filha já tinha saído para a escola e Rosina não estava, mas tinha deixado o pequeno-almoço preparado na mesa da cozinha. Depois de ter bebido a primeira chávena de café, uma rajada de vento abriu a porta de vidro que dava para o relvado. Angelica foi fechá-la e viu que o céu estava coberto de nuvens escuras. Vinha aí um temporal. A gata Clotilde, que até àquele momento tinha estado a dormir em cima de uma cadeira, saltou para o chão e refugiou-se no seu cesto ao lado do frigorífico. Angelica regressou ao quarto para se arranjar e vestir. Quando entrou no escritório, a secretária anunciou-lhe:
- O Bruno está à tua espera para te levar ao hospital. Angelica tinha-se esquecido da consulta de controlo do joelho que, ao fim de uma semana de gelo e anti-inflamatórios, estava a melhorar.
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- Tenho mesmo de ir? A fiel Cesarina assentiu. Naquele momento, um trovão poderoso fez tremer o ar e uma rajada de vento abriu as duas grandes janelas do escritório, fazendo voar os papéis pousados nas secretárias.
- Estão a abrir-se as cataratas do céu. É melhor adiar a consulta - tentou ela.
- O satélite já nos tinha avisado deste temporal e os trabalhadores foram há já algum tempo para as vinhas proteger as plantas. Agora senta-te sossegada, eu vou buscar-te um café quente, quando acabares de o tomar a tempestade já deve ter passado e assim chegas a horas à consulta - disse a secretária com um tom convincente. A transmissão por satélite tinha sido um desejo dos produtores de vinho da zona. Angelica achava que a adoção daquela tecnologia não era indispensável, mas submeteu-se às decisões do consórcio, continuando a confiar muito mais nas palavras do seu agrónomo, que nunca se enganava a prever temporais e saraivadas nem a determinar o melhor momento para colher as uvas maduras. Era ele que descobria imediatamente as folhas das videiras que ficavam amarelas e indicavam que a flavescência dourada tinha atacado as plantas e as ia matar, dando cabo do trabalho paciente de um ano inteiro.
- Pronto, já está a parar a chuva - anunciou Cesarina, enquanto pedia a Angelica a chávena de café vazia. - E o Bruno está lá fora à tua espera - concluiu.
- Sabe-se alguma coisa da minha moto? - perguntou Angélica à secretária, ao mesmo tempo que punha nos ombros um casaquinho de malha leve.
- O mecânico diz que é para a sucata e eu fico bem contente por te livrares dela, porque aqui precisamos de alguém que mande e não nos apetece perder-te por causa de um acidente estúpido - respondeu Cesarina. Angelica sorriu.
- Nunca ouviste dizer que vaso ruim não quebra?
- Brinca, brinca, mas olha que nos pregaste um grande susto.
- E do carro em que eu bati sabe-se alguma coisa?
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- A companhia de seguros está a tratar disso, já que vai ter de pagar os danos ao condutor.
- Mas quem é? - perguntou Angelica.
-Chama-se Tancredi D’Azaro. Parece que tinha um voo para Nova Iorque, que evidentemente perdeu, onde estavam à espera dele para uma reunião muito importante. Quando Angelica entrou no carro, as nuvens negras tinham-se já dissipado, o sol regressara e um arco-íris triunfante atravessava o céu com as suas esplêndidas cores. Angelica perguntou a si mesma quem seria aquele Tancredi D’Azaro contra quem tinha chocado. Efetivamente a culpa não foi minha, mas daquele traidor do meu marido, pensou, para apaziguar os seus sentimentos de culpa.
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No hospital, o médico de serviço observou o joelho depois de ter lido o relatório do internamento e sossegou-a, dizendo:
- Agora já não precisa de anti-inflamatórios. Mas continue com o gelo durante mais duas semanas, porque ainda há um ligeiro inchaço.
- Daqui a oito dias vou para os Estados Unidos e não vou ter tempo para pôr o gelo - replicou ela.
- Ponha-o a noite, quando for para a cama, e de manhã, enquanto toma o pequeno-almoço. E também quando estiver no avião, porque eu sei perfeitamente que não viaja em turística e tem a possibilidade de manter a perna levantada. Se não o quiser fazer, o problema é seu - declarou o médico, perentório.
- Depois desta calorosa recomendação, como é óbvio, vou seguir a sua prescrição - replicou Angelica, em tom de brincadeira.
- Com os doentes impacientes como a senhora, não consigo ser paternal - respondeu ele, a sorrir. Depois de ter saído da consulta, Angelica decidiu ir até ao serviço de Oncologia para cumprimentar o irmão Gaspare. Encontrou-o no momento em que ele regressava ao gabinete com outros dois médicos, que despachou assim que viu a irmã. Foi ao encontro dela, abraçaram-se, Gaspare pediu a uma enferrneira para trazer dois cafés e entraram no gabinete. Ele sentou-se a secretária, exausto, e indicou à irmã a poltrona em frente dele.
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- Estás cansado - constatou ela, observando-o com afeto.
- Acabei de sair de uma cirurgia de sete horas, imagina. Até estou a precisar de uma massagem no pescoço.
- Chama um fisioterapeuta.
- Quando eras pequena, eras tu quem me fazia as massagens na cervical - relembrou o irmão.
- Era naquela altura em que queria ser médica, e dado que ao ver sangue ficava horrorizada, decidi ser ortopedista. Lembras-te?
- Depois resolveste ser advogada, porque estavas apaixonada pelo Raimondi. Dizias: «Qualquer coisa, desde que implique não estar na vinha».
- Mas no liceu já tinha percebido que trazia as uvas no sangue e inscrevi-me em Agronomia. Entrou uma enfermeira com os cafés, que os dois irmãos começaram a tomar.
- O que é que se passa com o teu marido? Não é nada comigo, e não és obrigada a responder - disse Gaspare, de repente. Angelica esvaziou a chávena e replicou:
- Falhei mais uma vez. Só que agora está a nossa filha pelo meio.
- Ele instalou-se na casa da cidade, mas quase nunca lá está.
- Deve andar muito animado com a sua Pippa.
- Chama-se mesmo assim, ou é uma alcunha que tu inventaste? - perguntou Gaspare, a rir.
- É a Premoli, a herdeira da grande imobiliária.
- Já percebi. Eu diria que o jornalista que conseguiu afirmar-se encontrou uma mulher digna dele - comentou Gaspare. Depois olhou para a irmã, preocupado: - E tu, como estás? Ela contou-lhe tudo e no fim sossegou-o:
- Agora estou melhor. O acidente de moto ocorreu porque eu estava a chorar como uma parva por causa das traições do meu marido. Mas o choque reequilibrou-me. Tomei consciência do facto de que o meu casamento naufragou. Fim da história - concluiu Angelica.
- Tens de pensar na Elisabetta. Ela é muito chegada ao pai. Recordando o recente encontro com o marido em Borgofranco, disse:
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- O Raffaello teve a coragem de me atirar à cara que eu tenho a minha parte de culpa nas suas traições. Afirma que os Brugliani sempre olharam para ele com desconfiança.
- Não está completamente errado; nunca o considerámos como fazendo verdadeiramente parte da família. Sempre o respeitámos, mas só por ser teu marido. Talvez se o tivéssemos envolvido mais... Se tivéssemos tido menos ciúmes da nossa «menina»... Nós, os Brugliani, somos um bando de snobs e sempre achámos que este segundo casamento também não era próprio para ti.
- Deves reconhecer que eu nunca critico as vossas escolhas, enquanto as minhas estão sempre sob o vosso escrutínio - queixou-se Angelica.
- Tens razão. Mas és tu que estás destinada a perpetuar a tradição da família. É fundamental que tenhas um companheiro sólido que te apoie nesta tarefa - comentou Gaspare.
- Se tencionas espetar-me com um terceiro marido que seja do vosso agrado, esquece, porque eu cortei com os homens.
- Dá tempo ao tempo... - brincou o irmão, ao mesmo tempo que se levantava da secretária. Abraçaram-se e Angelica regressou a Borgofranco. Quando entrou no escritório, uma funcionária comunicou-lhe:
- Ligaram os Crivelli a perguntar se podemos emprestar-lhes a nossa máquina bate-estacas, porque o temporal desta manhã arrancou as mais antigas da vinha deles.
- Podem vir buscá-la, mas que não digam nada por aí, porque se não vamos começar a receber pedidos de outros lavradores e não podemos ficar muito tempo sem ela. Ligou o computador e encontrou uma série de e-mails para responder. Entretanto, a secção de contabilidade passou-lhe a lista dos clientes devedores, acompanhada de uma nota da funcionária que tratava daqueles assuntos: «O que vamos fazer?». Percorreu a lista e viu o nome de uma prestigiada garrafeira de Roma que, meses antes, tinha adquirido centenas de garrafas de brut millésimé. O problema dos clientes devedores era complicado, sobretudo quando se tratava de compradores importantes, e agora competia-lhe usar uma boa dose de diplomacia para recuperar o dinheiro.
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Respondeu ao e-mail da contabilidade com um lacónico: «Manda a todos um novo pedido de pagamento e quando eu regressar dos Estados Unidos pões-me ao corrente da situação». Cesarina passou-lhe uma chamada do gabinete de marketing a pedir-lhe uma reunião para lhe apresentar o plano promocional para o lançamento do novo vinho. Depois telefonou-lhe a presidente da associação Le Donne del Vino para ouvir a sua opinião sobre um pequeno grupo de candidatos ao prémio que todos os anos era atribuído a um expoente destacado da cultura. Naquele momento, apercebeu-se de que ainda não tinha almoçado, desligou o computador e saiu do escritório, esperando que mais ninguém a detivesse para lhe colocar outros problemas. Entrou em casa. Rosina, com a gata ao colo, dormitava na cozinha em frente à televisão ligada. O funcionário da limpeza estava em cima de uma escada a lavar os caixilhos das janelas. Em cima da mesa encontrou a refeição que Rosina lhe tinha preparado: bresaola com rúcula e lascas de grana. Não tinha fome e tirou do frigorífico um punhado de cerejas. Pô-las numa taça e saiu para as traseiras da casa, porque queria saboreá-las à sombra, no pátio. Ouviu então Elisabetta dizer a alguém:
- Garanto-te que aqueles dois andam a ferro e fogo. O meu pai não dorme em casa, e quando aparece à hora de almoço a minha mãe tem imensa dificuldade em dirigir-lhe a palavra. A cadeira de baloiço em frente à piscina oscilava e por baixo apareciam as pernas da filha e as de um rapaz. Devia ser Gianmarco. Efetivamente, ouviu a réplica dele:
- Já alguma vez te disse que o meu pai vai dormir para o palheiro quando discute com a minha mãe?
- Estou a dizer-te que os meus pais andam com problemas. Aconteceu tudo de repente, depois do acidente da minha mãe - explicou Elisabetta. E acrescentou, preocupada: - Se ao menos eu soubesse o que está a acontecer!
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Angelica retirou-se em silêncio, subiu ao quarto e, de lá, ligou a Raimondo Agosti.
- Por favor, prepara os documentos para o divórcio. Chegou o momento de esclarecer as coisas com o Raffaello e com a nossa filha.
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- Tu aproveitas-te da minha fraqueza para me monopolizares. Desde que deixaste a tua mulher, nem sequer consigo ver os meus amigos - queixou-se Pippa, estendida na cama ao lado de Raffaello. Ele olhou para ela com um ar divertido. Pippa era uma bela mulher, com um corpo macio, atraente, ancas redondas, pernas perfeitas, seios generosos. Esticou uma mão, agarrou-a por um braço e ela caiu em cima dele a rir.
- Quero desejar-te um bom dia - sussurrou-lhe, abraçando-a. Estavam nas águas-furtadas de Pippa, no centro histórico de Milão, num edifício antigo na Via Borgospesso, onde ele ia ter com ela à noite, depois do fecho do jornal. Na noite anterior ele tinha-lhe dito:
- Gostava de fazer umas férias-relâmpago contigo, só nós os dois. Uma destas noites, gostava de apanhar um avião e de te levar a Dublin para te oferecer um autêntico Irish Coffee no Bewley’s Oriental Café, ou então ir a Madrid e passarmos uma manhã sentados a uma mesa na Puerta del Sol, a refrescar-nos com el tinto de verano, ou ainda voar até Paris e passar o domingo a passear pelas alamedas do Bois de Boulogne. Uma breve pausa de autêntico repouso. Ela fez-lhe uma carícia e disse-lhe num tom afetuoso:
- Era fantástico. Sabes, eu nunca tive tempo livre para dedicar apenas a mim, nem em criança. Quando saía da escola, tinha de aprender a tocar piano, a jogar ténis e golfe. Tinha de ir à piscina e tinha de ser a primeira em tudo. «Lembra-te de que aquilo que conta na vida é ser o primeiro», dizia o meu pai.
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Era-me proibido ter quebras, mostrar cansaço, exibir emoções. A tua bela proposta romântica entusiasma-me... Agora, enquanto a abraçava, Raffaello pensou na mulher, nos seus lábios que apenas se entreabriam ligeiramente quando faziam amor, na sua índole reservada que a tornava púdica mesmo nos momentos mais íntimos. Lembrou-se também de que, há demasiado tempo, Angelica se esquivava às suas efusões, e ele não insistia. A magia da paixão tinha passado para ambos, apesar de gostarem muito um do outro. Angelica tinha mil e um interesses que a absorviam, ele tinha o jornal e a sua carreira, onde se envolvia completamente. No fim de contas, portanto, estava bem assim, porque o importante era continuarem juntos. Mas agora ela tinha descoberto a sua relação com Pippa e tinha-o deixado. No caso de não conseguir reconquistá-la, Pippa podia representar o seu bote salva-vidas, mas precisava de conseguir ligá-la a ele, sem se comprometer demasiado. Tinha de continuar na linha do romantismo, sabendo que qualquer mulher, mesmo a mais desencantada, acaba sempre por se deixar cativar pela ternura de um parêntesis romântico.
- Levo-te a tomar o pequeno-almoço e depois tu vais trabalhar e eu também - propôs Raffaello, ao mesmo tempo que se levantava da cama.
- Vou chegar tarde à sessão do conselho da Confederação da Indústria - suspirou ela, com um ar contrariado. Mas logo a seguir sorriu e acrescentou: - Mas não quero saber. De qualquer maneira, é sempre a mesma série infinita de bla bla bla. Em frente à porta de casa, o motorista esperava Pippa ao lado do Mercedes.
- Segue-nos até ao Cova - disse ela, enquanto avançava ao lado de Raffaello. Antes daquele momento, nunca tinha acontecido percorrerem a pé aquele troço da via Borgospesso, e depois a via Montenapoleone para evitar que alguém pudesse vê-los juntos. Eram apenas nove horas da manhã, mas já havia muita gente na rua. Ao balcão do café, enquanto tomavam um cappuccino e um brioche, Pippa cumprimentou dois indivíduos de fato e gravata que estavam a tomar café e continuou a conversar com Raffaello, depois de o ter apresentado aos dois homens.
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Raffaello pensou que agora já poderia convidá-la para jantar ou para almoçar no Baretto, o restaurante mais exclusivo da cidade. Quando iam a sair do Cova ela despediu-se dele com um rápido ciao, como fazia sempre. Normalmente, naquele momento, ele sussurrava: «Depois falamos». Desta vez, porém, respondeu ele também com um ciao e foi-se embora, sem esperar para a ver entrar no carro, que estava encostado ao passeio. Virou na via Sant’Andrea e dirigiu-se à via Marina, onde estava estacionado o seu Volvo. Sorria, satisfeito, porque conhecia bem Pippa e sabia que lhe tinha causado alguma perplexidade. A partir daquele momento ia deixar de lhe telefonar e de lhe mandar mensagens e esperaria que fosse ela a tomar a iniciativa. Agora tinha de voltar a casa, a Borgofranco, porque tinha prometido à filha levá-la ao aeroporto ao princípio da tarde. Elisabetta, que tinha entretanto concluído o ano escolar, preparava-se para partir para Inglaterra. No aeroporto londrino de Heathrow encontraria os avós à espera dela e, como todos os anos no verão, ia passar com eles o mês de julho na casa de Chipping Campden, na costa do condado de Dorset. Antes de chegar a Borgofranco queria passar pelo jornal para ler o correio e tomar nota dos temas na ordem do dia. Tinha entrado há pouco na autoestrada quando tocou o telemóvel.
- Está tudo bem? - perguntou Pippa.
- Fantástico. E tu? - retorquiu, por sua vez.
- Tudo bem. Até logo - concluiu ela. Nunca tinha acontecido ela procurá-lo logo depois de o ter deixado, constatou Raffaello, satisfeito. Quando chegou ao jornal e entrou na redação estava de excelente humor. Não esperava que Tiziana Scaroni, a secretária, lhe entregasse uma carta registada na qual o advogado da família Brugliani, Raimondo Agosti, o informava do pedido de divórcio por parte da mulher.
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Angelica e Rosina estavam no quarto de Elisabetta a ajudá-la a enfiar numa mochila os CD das suas bandas favoritas, os presentes para os avós, os romances de literatura fantástica que naquele período ela devorava, tendo ultrapassado a fase das aventuras de Harry Potter e do Senhor dos Anéis, e mais uma série de tralha sem a qual ela dizia que não podia passar. Na mala estava já toda a roupa, incluindo as calças de montar, os fatos de banho e um blusão acolchoado.
- Os documentos para a viagem e o dinheiro estão bem guardados? - perguntou Rosina.
- Meti tudo no bolso do blusão - respondeu Elisabetta.
- Verifica mais uma vez - pediu a mãe.
- Ufa, parece que vou para os confins do mundo - resmungou Elisabetta, mas obedeceu.
- Então vamos levar a tua bagagem para baixo, que é para estares pronta quando o teu pai chegar - sugeriu Angelica. Rosina tinha preparado alguns pratos frios e posto a mesa no pátio. Enquanto estavam a comer, Elisabetta perguntou à mãe:
- Posso dizer aos avós que tu e o pai estão em crise?
- Podes dizer tudo o que quiseres, e podes perguntar-me tudo o que quiseres - respondeu a mãe.
- Quando é que vão fazer as pazes, tu e o pai?
- Se calhar isso não vai acontecer - respondeu ela, sem mudar de tom.
- Porquê?
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- Eu acho que marido e mulher devem estar juntos, enquanto se amam. Eu e o teu pai já não temos muito a certeza de nos amarmos e precisamos de voltar a viver cada um a sua vida. Depois se verá... Posso dizer-te que o pai nunca me teria deixado. Fui eu que tomei a decisão desta separação. Angelica tinha conseguido falar com sinceridade e sem dramatizar.
- O pai disse-me que ainda gosta de ti - afirmou Elisabetta.
- Eu também gosto dele. Foi meu marido durante quinze anos e é teu pai, e tu és aquilo que temos de mais importante no mundo, eu e ele. Mas o amor é outra coisa. Percebes?
- Tratou-te mal? - perguntou Elisabetta, num tom de preocupação. Angelica gostaria de poder responder que lhe tinha feito pior: tinha-a traído repetidamente. Mas limitou-se a responder:
- De maneira nenhuma. Mas, minha querida, nos últimos anos, para além de nos ocuparmos de ti, talvez eu e o teu pai tenhamos dedicado mais tempo ao nosso trabalho do que ao nosso casamento. Afastámo-nos um do outro. - Após um momento de silêncio, acrescentou em tom de brincadeira para diluir a tensão: - Se calhar, mais simples do que isso, eu não nasci para o casamento.
- Como a avó? - perguntou Elisabetta, e prosseguiu: - Mas ela e o avô estão outra vez juntos. É verdade que também há o Edward acrescentou com ar cúmplice, referindo-se ao amigo da avó.
- Fica sossegada, eu não tenho nenhum «amigo especial» - garantiu Angelica.
- Tens mesmo a certeza disso?
- Minha querida, eu não tenho nenhum amante. Tive dois maridos e já me chega para o resto da vida.
- Esta tenho de registar no meu diário, para o caso de se apresentar uma nova ocasião para ti - brincou Elisabetta.
- És pérfida - observou Angelica, a sorrir.
- Se um dia me casar com o Gianmarco, sei que será para sempre - afirmou Elisabetta, com muita convicção. Apesar de saber que a filha, dentro de alguns anos, entraria numa rápida sucessão de namorados, replicou:
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- Isso quer dizer que vais ter muita sorte.
- Mas um dia destes devias contar-me a história dos avós.
- Vais estar agora um mês com eles. Pede à avó que ta conte sugeriu Angelica.
- Como se fosse fácil arranjar tempo para confidências. Quando chego, tenho à minha espera um programa massacrante. Três dias de compras pelas ruas de Londres, instalados no Dukes, e depois em Dorset, entre cavalgadas, partidas de ténis, competições de canoa, almoços para me apresentarem os netos dos amigos, passeios intermináveis para visitar os jardins mais bonitos do West Dorset…enumerou Elisabetta, divertida.
- Tens sorte por não te envolverem na montagem de alguma peça de teatro. Eu também tinha essa parte, todos os anos no verão, quando ia passar um mês com a avó Acerbi, em Villa della Torre. A tua bisavó Violante tornava-se diretora e responsável pelo guarda-roupa e os netos tinham de aprender de cor comédias e dramas. Ainda me lembro como um pesadelo de Uma partida de xadrez, de Giacosa. A mim tocava-me sempre o papel daquela palerma da Iolanda, enquanto o meu primo Urbano encarnava a personagem do pajem Fernando. Era muito alto e magro, com as mãos sempre suadas e cheio de espinhas. Eu tinha de olhar para ele com paixão e de lhe perguntar: «Oh, por que sofres com presságios tão pesarosos?» e ele, atirando para cima de mim um hálito a cheirar a alho, respondia-me: «Eu? Olho-te nos olhos, que são tão formosos!» Mãe e filha desataram a rir.
- Já me contaste essa história, mas diverte-me sempre voltar a ouvi-la. E depois a bisavó Violante dirigia os atores munida de um chicote de amazona e dava-vos uns açoites quando erravam as falas - acrescentou Elisabetta. Sentiram um carro a travar sobre o saibro em frente à casa.
- Chegou o pai! - gritou Elisabetta, e foi ao encontro dele para o abraçar.
- Estás pronta para sair? - perguntou o pai, ao mesmo tempo que lhe dava alegremente o braço e se aproximavam de Angelica.
- Já comeste? - perguntou ela.
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Ainda não - respondeu ele, e acrescentou: - Estou a ver aqui os restos do vosso almoço. Apetece-me limpar isto tudo.
- Queres que mande vir mais alguma coisa? - perguntou Angélica.
- Basta-me o que está aqui, se vocês não comerem mais. Sentaram-se os três à mesa e Rosina serviu o café a Angelica, enquanto Raffaello enchia um prato com os restos.
- Quer que lhe traga vinho, senhor doutor? perguntou a empregada.
- Obrigado, a água que vejo aqui chega perfeitamente.
- Pai, não vamos chegar atrasados? - perguntou Elisabetta, preocupada.
- Dá-me dez minutos e depois vamos embora - garantiu Raffaello. Pouco depois, enquanto metia a bagagem da filha no Volvo, perguntou a Angelica:
- Não mandas ao teu pai o novo vinho para ele provar?
- Já lho mandámos. Quando estiver com ele, vai fazer os seus comentários e eu transmito tudo à mãe - garantiu Elisabetta, com um ar sério. Enquanto Elisabetta entrava no carro e se sentava, Raffaello aproximou-se da mulher e deu-lhe um beijo na face, ao mesmo tempo que lhe sussurrava:
- Recebi o teu pedido de divórcio. Não queres voltar a pensar sobre o assunto? Eu não me quero separar de ti, e sei que isso não vai fazer bem à nossa filha. Angelica baixou os olhos e não respondeu. Naquele momento, Rosina saiu de casa a correr na direção deles. Trazia na mão um embrulho bem feito e atado com uma fitinha de seda.
- Estávamos a esquecer-nos do xaile de lã que eu fiz para a tua avó - disse para Elisabetta, e depois acrescentou: - E ainda não te abracei como deve ser. Não te vou ver durante muito tempo, e vou ter muitas saudades, minha pestinha. Elisabetta deixou-se apertar pelos braços vigorosos daquela mulher que a amava como se fosse sua filha.
- Toma conta da mãe, por favor - disse-lhe Elisabetta ao ouvido.
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Angelica ficou ali a olhar para o carro que se afastava. Rosina tinha regressado a casa a limpar as lágrimas: chorava sempre quando Elisabetta se afastava durante algum tempo. No meio da alameda coberta de saibro, Angelica olhou em volta com uma sensação de vazio e de solidão. A sombra projetada na alameda pelas três amoreiras, os númenes tutelares da casa, eram um convite para ficar debaixo daquele guarda-sol acolhedor. Angelica deu alguns passos e sentou-se na erva com as costas apoiadas contra o tronco de uma das árvores. Tinha a consciência de que, com o pedido de divórcio, encerrava mais um capítulo da sua vida. Perguntou a si mesma como seria o seu futuro. Dedicar- se ao trabalho e à filha preencheria de forma satisfatória a sua existência? Tinha apenas 35 anos e era realmente demasiado cedo para renunciar a uma vida afetiva, a um companheiro com quem envelhecer. Voltou-lhe à ideia a avó Violante, que gostava de repetir: Errare humanum est, perseverare diabolicum. Achou que tinha errado uma primeira vez e que cometera ainda um segundo erro. Mas não se sentia efetivamente diabólica, apenas muito infeliz, e a sensação de vazio que lhe oprimia o coração pesava-lhe como um rochedo. Rosina surgiu à porta de casa e chamou-a em voz alta: - Estão à tua procura no escritório. Ela levantou-se e avançou lentamente ao longo da alameda. Quando Rossana, a funcionária administrativa, a viu foi ao encontro dela estendendo-lhe um e-mail impresso, ao mesmo tempo que comentava:
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- Mr. Gangi e as histórias do costume em relação ao preço do Falce di Luna. Giacomo Gangi, a quem na empresa chamavam o Filho-da-mãe, era há oito anos o importador dos vinhos Brugliani nos Estados Unidos. Para Angelica não tinha sido fácil fazer-se aceitar como cliente por aquele comerciante afamado e conhecedor, mesmo quando lhe mostrou a pontuação muito alta atribuída aos seus vinhos.
- Nem sempre uma pontuação alta garante um sucesso de vendas - disse ele, e depois falou das taxas de exportação que eram muito onerosas, do câmbio desvantajoso euro-dólar, dos custos de transporte e de entrega, das despesas para a promoção publicitária. Em suma, aproveitando-se do desejo de Angelica de se afirmar nos Estados Unidos, conseguiu obter preços muitíssimo vantajosos para ele, que era um homem riquíssimo, com escritório na Rua 45 e uma luxuosa residência em New Jersey. Ao ler aquele e-mail, a sensação de vazio desvaneceu-se e Angelica recuperou imediatamente a energia de que precisava para enfrentar o problema. Fechou-se no gabinete a resmungar:
- Este canalha pôs-me uma corda ao pescoço há oito anos e, desde então, está sempre a puxá-la cada vez mais. Chamou a secretária.
- Cesarina, Mr. Giacomo Gangi já foi avisado da minha próxima visita a Nova Iorque?
- Ia agora fazer isso - respondeu ela.
- Muito bem, não lhe digas nada. Em vez disso, manda imediatamente uma caixa de Falce di Luna a William Clifford. Não sei o endereço. Procura-o e encontra-me também o número de telefone dele. Depois liga-lhe e passa-me a chamada.
- Tencionas mudar de importador? - perguntou Cesarina, preocupada, sabendo que não era fácil encontrar um bom importador nos Estados Unidos.
- O Clifford é sério, vi-o em algumas feiras de vinhos e falaram-me bem dele. Só lida com vinhos de qualidade e fornece os melhores restaurantes e garrafeiras da Costa Leste. Não sei mais nada.
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Portanto, procura todas as notícias que lhe digam respeito. Entretanto, eu falo com ele e tento marcar uma reunião.
- Angelica, tens a certeza de que não estás a dar um passo em falso? Angelica tinha aprendido a nunca tomar decisões precipitadas.
-Há dois anos que refletia sobre a hipótese de deixar Giacomo Gangi e, agora, aquele e-mail tinha-a levado a tomar uma resolução que talvez não fosse definitiva, mas que prenunciava um possível corte de relações com ele. Gangi vendia bem os vinhos Brugliani que não implicavam despesas de envelhecimento, mas deixava margens mínimas de lucro, sublinhando sempre que tinha conseguido impor no mercado americano a marca Brugliani, que agora era tão procurada como a de outras sólidas empresas vinícolas italianas, muitas vezes conduzidas por mulheres empreendedoras. Tal como todas elas, Angelica tinha procurado uma via internacional para escoar a sua produção, continuando a obra do pai, que fora o primeiro a dar um novo impulso à marca. No decurso dos últimos trinta anos, a política dos Brugliani, como de tantos outros produtores, tinha sido a de apostar mais na qualidade do que na quantidade do produto, na certeza de que aquele longo período despendido para obter um vinho excelente os compensaria dos investimentos onerosos. Agora que, por causa da crise, havia sinais evidentes de recessão em Itália, as exportações para todo o mundo compensavam as perdas no mercado nacional e consolidavam no estrangeiro a imagem de grande profissionalismo do país. Em todos os domínios do setor agroalimentar, o made in Italy era muito apreciado e procurado. Angelica tinha assimilado aquela filosofia quando era ainda jovem e o pai a levava com ele, quando andava pelas vinhas a controlar o trabalho dos empregados, quando escutava as opiniões do agrónomo ou discutia com os funcionários ligados à produção. Ainda agora Angelica controlava pessoalmente os complexos processos da produção do vinho: acompanhava o envelhecimento nos monumentais toneis de madeira da Eslavónia e assistia ao trabalho dos homens que, quando os toneis ficavam vazios, lá entravam com escovas, soda e outros produtos para os lavar e desincrustar sedimentos que se depositavam na madeira e que podiam conter microbactérias prejudiciais à qualidade do vinho.
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Ela própria se tinha enfiado dentro dos toneis para observar o trabalho daqueles especialistas que, empoleirados numa escada, começavam a limpar o interior a partir da parte superior. O preço de um tonel novo, que pode conter cem hectolitros de vinho, anda à volta dos vinte mil euros. Já para não falar do custo das garrafas, compradas em França, nas vidrarias Saint-Gobain, das rolhas de cortiça e, finalmente, dos custos de engarrafamento, de embalar e de distribuição. Angelica refletia em todos estes aspetos e e chegou à conclusão que, para suportar todos aqueles custos, precisava de obter uma margem de lucro muito mais alta no mercado americano. Por isso, era tempo de deixar Mr. Gangi e arranjar um novo importador com quem pudesse negociar em melhores condições. Entretanto tinha ficado tarde, os escritórios tinham ficado desertos, ela recolheu os papéis que Cesarina lhe tinha pousado em cima da secretária e dirigiu-se a casa. Ia passar o serão a estudar aquelas informações para discutir com William Clifford, o agente com quem queria encontrar-se em Nova Iorque. Entrou em casa e ouviu a voz de Rosina, que estava a falar ao telefone:
- A mãe está aqui, já vou passar - e, a sorrir, estendeu o auscultador a Angelica. Logo a seguir, a voz excitada de Elisabetta disse-lhe:
- Mamã, estou no carro com os avós e vamos agora para o hotel. A avó quer falar contigo. Espera que eu vou passar. Cristina apresentou-lhe o programa, sempre igual ao de todos os anos. Os pais e a filha ficariam em Londres alguns dias antes de seguir para Bristol e regressar à mansão, no West Dorset. Depois Cristina Acerbi disse:
- Eu e o teu pai pensámos que podias vir ter connosco quando regressasses dos Estados Unidos. Para conversarmos tranquilamente, e assim a Elisabetta podia regressar a Itália contigo.
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Angelica ficou assim com a certeza de que Elisabetta tinha referido aos avós a notícia da sua separação de Raffaello. Portanto, cortou a conversa, dizendo:
- Já tinha pensado nisso. Voltamos a falar nos próximos dias. Depois subiu ao quarto para mudar de roupa e, quando desceu, Rosina já tinha posto a mesa para dois no pátio: Ortensia, que se tinha feito convidada para jantar, estava a chegar. Angelica serviu-se de uma flúte de Falce di Luna e foi saboreá-la na cadeira de baloiço, em frente da piscina, à espera da amiga, que foi ter com ela pouco depois.
- Encontrei o Raffaello na cidade e ele disse-me que o tinhas deixado - começou Ortensia. Angelica abraçou-a e desatou a chorar.
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- O meu marido engana-me, eu podia ter morrido num acidente de moto, os clientes não pagam, o meu agente americano aperta-me nos preços, a minha filha foi-se embora, em suma, tenho o mundo a cair-me em cima - disse, a soluçar. Ortensia meteu-lhe na mão um lenço de papel e perguntou, a sorrir: - Só isso?
- Eu armo-me em dura, faço de conta que enfrento todos os obstáculos com a garra de uma mulher segura de si, mas estou cheia de incertezas - desabafou, em lágrimas. Depois olhou para a amiga e acrescentou de um fôlego: - E morro de inveja das mulheres tranquilas como tu. Ortensia abraçou-a e replicou:
- Mas tu és forte e corajosa. Rosina materializou-se ao lado delas com um prato de aperitivos. Olhou para Angelica, que estava a limpar as lágrimas, abanou a cabeça e disse:
- Por favor, Ortensia, tente ajudar esta cabeça tonta que tem tudo para ser feliz e, parece que nunca nada está bem para ela. Se continua assim, eu faço as malas e volto para as freiras, onde sei que fico finalmente sossegada - ameaçou, num tom pouco convincente. Pousou diante de Angelica o prato cheio de tostas apetitosas e acrescentou, a sorrir:
- Come, minha menina.
Tinha escurecido. As andorinhas, depois de um último voo rasante sobre a água da piscina, regressavam aos ninhos.
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Ao longo da sebe, à volta do muro, brilhavam os pirilampos, a gata perseguia sabe-se lá que pequeno animal que corria pela relva, e da cozinha chegava o aroma do risotto al parmigiano.
- Não tenho fome - protestou Angelica, como se fosse uma criança.
- Está a ver como ela se pôs? Ficou pele e osso, e vai acabar por adoecer se continua assim. Diga-lhe isso também, já que é médica pediu Rosina, dirigindo-se à amiga de Angelica. Ortensia fez-lhe sinal para as deixar sozinhas e Rosina afastou-se a protestar:
- O risotto está pronto e eu vou pô-lo na mesa. Se depois o comerem frio, a culpa não é minha.
- A Rosina é uma santa - comentou Ortensia.
- É uma irmã mais velha e eu também a invejo, por aquela índole simples e prática - observou Angelica.
- Então é melhor não a fazermos zangar, vamos para a mesa decidiu Ortensia, ao mesmo tempo que dava o braço à amiga.
- Já eram horas! - disse Rosina, mais animada, quando as viu chegar ao pátio. E acrescentou: - O jantar está na mesa. Eu vou à aldeia respirar alguma alegria com as minhas amigas. Angelica e Ortensia começaram a comer o risotto em silêncio. O segurança, que passava a noite de vigília, passou a poucos metros delas. Angelica convidou-o a beber um copo de vinho, mas o homem, como sempre, declinou a oferta. Mas informou-a de que tinha visto duas toupeiras que estavam a escavar uma galeria no fundo do jardim.
- Sei que a senhora não quer que eu as mate, mas aviso-a já de que estão a comer os rizomas das flores. Esteja atenta, porque elas reproduzem-se e fica com a propriedade infestada.
- O que é que se pode fazer? - perguntou Angelica à amiga.
- Apanhá-las e mandá-las para outro sítio - concluiu Ortensia.
- Por mim, façam como quiserem. Eu antes quero ver-me com um ladrão do que com aqueles animais - resmungou o segurança, afastando-se.
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Quando terminaram a refeição, as duas amigas levantaram a mesa e passaram para a sala de estar. Angelica enfiou no leitor o CD Concerto nº 2 para Piano e Orquestra, de Rachmaninov, pousou em cima da mesa uma taça de bombons e aninhou-se no sofá, de frente para a amiga, que lhe estava a contar as proezas dos filhos.
- Quando vão de férias? - perguntou Angelica.
- Em agosto, como sempre, e como sempre vamos para a montanha, porque o meu marido não gosta de praia. Mas julho vai ser fantástico, porque os meus sogros levam as crianças para Jesolo, e assim eu e o Guido vamos ter algum tempo para nós.
- O teu marido nunca te traiu? - perguntou Angelica, de repente.
- Sinceramente, não sei. E, se assim fosse, também não queria saber.
- Preferes esconder a cabeça na areia?
- Sim, se se tratar de uma aventura sem significado - admitiu Ortensia, placidamente.
- Não posso acreditar! - retorquiu Angelica.
- Em quê? Que ele me tenha traído ou que eu prefira ignorar o facto?
- As duas coisas.
- Minha amiga, acorda. No hospital, nunca faltam ocasiões aos médicos. Eu sei que o meu marido me ama e me respeita, que estamos bem juntos, que temos ambos uma excelente relação com os nossos filhos. O que mais se pode querer da vida?
- Mas se alguém te fosse dizer que o Guido tinha uma amante, como é que tu reagias?
- Pensaria que me tinha casado com um mentiroso, um infame que não assume as suas ações, e punha-o na rua.
- Foi exatamente aquilo que eu fiz com o Raffaello.
- Mas ele está apaixonado pela amante?
- O Raffaello só está apaixonado por ele próprio e pela sua carreira.
- Mas quando casaram ele amava-te. Apesar de eu não ter a certeza de que tu tenhas alguma vez estado doida por ele.
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Depois do fracasso da tua primeira experiência conjugal, desejavas uma vida de conjugal enquadrada na normalidade, pensando assim dar alguma ordem à tua existência e fazer feliz a tua família.
- Estás a ser injusta. Eu também amei o Raffaello - protestou. E prosseguiu: - No início, ele enchia-me de atenções, fazia-me a corte como se fosse sempre o nosso primeiro dia juntos.
- Mas diz-me lá, alguma vez ele conseguiu tornar-se amigo dos teus irmãos? Os Brugliani olhavam para ele como quem diz: tu não passas de um remedeio para a nossa menina, que merecia alguém melhor do que tu. Estou errada?
- Parece que era assim, uma vez que até o Gaspare admitiu isso. Eu nunca me apercebi.
- Como é evidente. Tinhas-te atirado ao trabalho de cabeça e havia a Elisabetta para amamentar e acarinhar. Espanta-me que tenhas parado no primeiro filho, porque tens instinto maternal.
- Mas tu de que lado estás?
- Do teu, obviamente - garantiu a amiga.
- Dito isto, espero a sequência, porque sinto que tens mais coisas para me dizer - insistiu Angelica.
- Tu é que és a mestra dos golpes de teatro. Vamos ver o que é que vais arranjar - concluiu Ortensia, que ainda queria ter feito um reparo a Angelica sobre o facto de há muito tempo ela não se mostrar particularmente afetuosa com Raffaello. Mas preferiu ficar calada.
- Repito-te: como eu gostava de ser pacífica e tranquila como tu, minha amiga - suspirou Angelica.
- Confidência por confidência, eu sempre quis ser como tu, que és uma torrente de simpatia, efervescente como as bolhinhas do teu vinho, sempre pronta para atirar o coração para além do obstáculo e, obviamente, para sofrer as consequências disso. Eu nem sequer tenho fantasia para imaginar qualquer impulso. Tu tens qualquer coisa de especial, e quando falas as pessoas ouvem-te e acham-te fascinante - explicou Ortensia.
- Acho que cada um de nós gostava de ser diferente daquilo que é - concluiu Angelica.
- E agora é quase meia-noite, e se não me despacho a regressar o meu marido vai pensar que fui raptada.
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Angelica foi com ela até ao carro. Antes de se sentar, Ortensia quis tranquilizá-la: - Fica sossegada, tenho a certeza de que tudo se vai resolver da melhor maneira.
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Quando fazia voos longos sozinha, Angelica estendia o assento, inclinava as costas, pegava na manta que a hospedeira lhe entregava e pedia para ser acordada com um café muito forte e açucarado meia hora antes da aterragem. Depois enfiava os tampões nos ouvidos e adormecia. Também desta vez, quando o avião abriu as portas para o desembarque dos passageiros, ela estava tranquila e repousada. Uma limusina do Hotel Pierre levou-a até à entrada, na Quinta Avenida. Deram-lhe a suíte habitual, no décimo sexto andar com vista para o Central Park, uma empregada desfez-lhe as malas e um empregado serviu-lhe na sala uma refeição fria. Enquanto depenicava a comida, telefonou primeiro à filha, em Inglaterra, e depois para casa. Agora tinha muito tempo para se arranjar e relaxar. À noite ia jantar com William Clifford, o mais conhecido importador de vinho italiano de qualidade em território americano. Se não fechasse negócio com ele, ia encontrar-se com outros importadores, tendo decidido cortar definitivamente relações com Giacomo Gangi. Naquele momento, bateram à porta da suíte: era um empregado que lhe trazia um grande ramo de rosas vermelhas, acompanhado por um bilhete de Mr. Gangi que dizia: «Estou aqui em baixo, no bar. Preciso de te ver». Ligou imediatamente para o escritório, em Borgofranco, e quando ouviu a voz de Cesarina, perguntou-lhe:
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- Como é que o mister Filho-da-mãe conseguiu saber que eu cheguei a Nova Iorque? - Porque me perguntas a mim? Tu disseste para eu ignorar o e-mail dele e foi o que todos nós fizemos - respondeu a secretária, agastada.
- Está bem. Só estava a tentar perceber de onde partiu o rumor neste mundo bisbilhoteiro dos importadores. Só que neste momento ele está aqui, no hotel, e eu preferia estar com ele depois de ter chegado a acordo com o outro.
- E agora, o que é que vais fazer? - Grandes sorrisos e mais nada, para já - concluiu Angelica. Logo em seguida, rabiscou na parte de trás do bilhete de Gangi: «Vou ter contigo ao bar às sete». Depois voltou-se para o empregado e disse-lhe: - Por favor, entregue este bilhete ao senhor que me mandou as flores. Tomou um longo duche e penteou os cabelos com cuidado, amarrando-os num chignon sobre a nuca com a ajuda de dois ganchos de coral e pérolas assinados por Gerardo Sacco. Vestiu um vestido muito justo, em crepe de seda negro, que tinha um decote profundo nas costas e mangas compridas e apertadas até aos pulsos. Pôs os brincos de diamantes que tinham pertencido à avó Violante, calçou uns sapatos de cetim negro de saltos altos, enrolou no pescoço uma écharpe comprida de seda branca, pôs o seu perfume Sisley especialmente preparado para ela e desceu ao bar. Mr. Giacomo Gangi estava sentado diante de um copo de whisky com gelo e, ao vê-la, ergueu a sua massa imponente da poltrona e abriu os braços. Ela limitou-se a dirigir-lhe um sorriso radioso e estendeu-lhe a mão, que ele apertou, depois de a ter beijado, ao mesmo tempo que lhe dizia: - Querida Angelica, estás mais resplandecente do que o sol. Meu Deus, que feliz eu estou por te ver. Toma alguma coisa e deixa- me olhar para ti. Estás um bocadinho zangada, e por isso vieste a Nova Iorque sem me avisar. Mas eu conheço-te muito bem e vim aqui dizer-te: vamos lá conversar. - E indicou-lhe a poltrona à frente dele.
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Angelica achava muito pitoresca a sua maneira de falar, mas avidez e o cinismo daquele homem rico incomodavam-na. Não lhe perguntou por quem tinha sabido da sua chegada e apenas limitou a responder.
- Já falámos o suficiente, tu e eu.
- Entretanto diz-me se te posso oferecer a sparkling water habitual - propôs Giacomo, rapidamente, enquanto fazia sinal ao empregado. E prosseguiu: - Agora tenho de te explicar, que é para perceberes que eu continuo a gostar muito de ti e te considero, a partir de agora, o meu melhor cliente. Achas possível que eu te queira aborrecer? Tu és a Angelica Brugliani, a menina dos meus olhos, e santa Rosalia é testemunha de que digo a verdade. - Neste momento parou para levar a mão ao coração. Bebeu um gole de wisky e esperou que o empregado servisse a água com gás a Angelica. Depois prosseguiu: - Sabes que o mercado americano também está em recessão? Do Velho Continente, vocês continuam a ver a América como a terra da abundância, mas já não é assim. Neste momento, Mr. Obama está a jogar tudo por tudo, é um excelente rapaz, mas tem umas ideias estranhas. Agora anda com a ideia da igualdade social. Diz que os ricos devem pagar mais impostos para ir de encontro às necessidades dos pobres. Mas como? Assim, quem tem dinheiro tem medo de o gastar e, por conseguinte, o mercado dos produtos de excelência está a marcar passo. Relativamente ao passado, as encomendas dos meus clientes diminuíram nove por cento. Agora tu vens propor-me um vinho fantástico a um preço estratosférico, e eu digo-te: OK, eu coloco-to em todo o lado, mas tens de mo vender mais barato, digamos vinte por cento menos. Por isso insisto em que temos de conversar. Angelica tinha-o ouvido sem o interromper, enquanto observava as gotinhas de suor que iam aparecendo na pele perfeitamente barbeada daquele rosto maciço de camponês siciliano. Giacomo Gangi andava pelos 70 anos mal cuidados, porque tinha excesso de peso, respirava com dificuldade por causa de um enfisema, sofria de diabetes e tinha outros achaques que o obrigavam a engolir comprimidos como se fossem rebuçados.
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Mas a tenacidade nos negócios era a mesma dos seus 20 anos. Enquanto simples empregado de uma loja de produtos alimentares tinha tido a ideia de contactar os parentes, que tinham ficado na Sicília, para importar pequenas quantidades de vinho avulso, produzido na sua terra, Marsala, e vendê-lo aos amigos do bairro. Do pequeno escritório com armazém em Little Italy chegara aos escritórios de representação na rua Quarenta e Cinco e ficara riquíssimo. Angelica olhava para ele, observava o grande diamante que trazia no mindinho, acompanhava os seus gestos, escutava aquela linguagem pitoresca, e apercebia-se de que tudo nele era uma ostentação de riqueza. Era rico, mas não seria nunca um senhor. Disse-lhe então:
- Ainda me lembro quando fui ter contigo, há oito anos, te dei a provar o nosso vinho e te perguntei se aceitavas distribui-lo no mercado, depois de outros importadores me terem fechado a porta na cara. Disseste-me que te inspirava ternura, porque era muito nova e ingénua e tinha um nome lindíssimo que te fazia lembrar a Claudia Cardinale do Leopardo. «E o teu Tancredi, onde está?», perguntaste-me. Não conseguias levar-me a sério. Mas, por um instante, o teu instinto paternal levou a melhor sobre o teu cinismo. O meu vinho era excelente e gostaste dele. Encomendaste uma quantidade pequena e pediste-me uma percentagem legítima. A partir daí as coisas mudaram. O meu vinho tinha sucesso, tu aumentavas as encomendas e reduzias a minha margem de lucro. O teu último e-mail foi um insulto. O que foi que te aconteceu, Giacomo? Se eu aceitar o teu pedido, só ganho para as despesas. Eu trabalho para ganhar, tal como tu, como toda a gente. E não posso aceitar as tuas condições.
- Por isso é que eu digo que temos de conversar. Eu sou o mesmo de sempre e continuo a gostar muito de ti. Mas o mercado mudou. Torna-se cada vez mais difícil, e para me manter na praça tenho de cativar os meus clientes, tenho de fazer concessões, tenho de duplicar as despesas de representação. Agora tu ofereces-me este Falce di Luna, que é da cor das estrelas, um sabor que nos põe em êxtase, uma laboração excelente, um preço vertiginoso. Como é que eu o coloco no mercado? Tenho de o promover, percebes? Vamos lá conversar - repetiu.
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Angelica viu as horas no seu Piaget de pulso e disse:
- Vou ter de te deixar. Liga-me na quarta-feira, mas só se tiveres uma proposta menos ofensiva. Levantou-se, beijou-o na face como se fosse o seu pai e saiu rapidamente. Às sete e meia estava em frente a porta de casa de William Clifford. Tocou. Estava à espera de que fosse o cinquentão, cuja imagem tinha visto no seu site, a abrir-lhe a porta. Mas o que viu a frente foi um enorme mastim.
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Angelica já se tinha encontrado com Mr. Clifford por ocasião de uma feira americana organizada pela Wine & Spirit Company, uma prestigiada associação de comerciantes de vinho que contava com clientes muito selecionados. A família de Mr. Clifford possuía vinhas a nordeste de São Francisco, em Napa Valley, e produzia vinho a partir de uma variedade de uvas brancas de origem francesa, sobretudo Chardonnay e Sauvignon Blanc, e uma quantidade minima de Cabernet Sauvignon. A Califórnia era considerada há mais de cinquenta anos o Mediterrâneo do Novo Mundo. Tal como Angelica, também ele tinha crescido no meio das vinhas. Aos 30 anos tinha-se afastado da família, mudando-se para Nova Iorque, onde se dedicara ao comércio, aproveitando ao máximo os seus conhecimentos no setor e criando uma vasta rede de amizades com expoentes do setor vinícola. A família, no entanto, ignorava que o impulso decisivo lhe tinha vindo de uma arrebatadora love story com uma mulher da upper class, casada com um magnata da construção civil, que vivia em Manhattan. A história concluíra-se no dia em que o marido dela os encontrou na cama juntos e, cego de ciúmes, pegou numa pistola para matar os dois amantes. Ela conseguiu fugir antes que ele disparasse e Clifford apanhou uma bala na perna. Nenhum dos dois denunciou o agressor, o escândalo foi abafado, mas a história soube-se, ainda assim. No hospital, William declarou que se tinha ferido ao limpar a pistola, feliz por ter salvado a vida saindo daquele acidente apenas a mancar ligeiramente.
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Mas o poderoso construtor, assim que soube a notícia da recuperação do rico comerciante, fez-lhe saber que um dia havia de o matar. Desde então, William vivia protegido por guarda-costas e tinha em casa um mastim como cão de guarda. Angelica conhecia a história toda, mas não sabia que William coabitava com um animal feroz, que foi afastado pelo empregado que a recebeu. Entrou no apartamento, no último andar de um arranha-céus de Park Avenue, e foi escoltada até uma sala de estar com grandes divãs brancos, mesas baixas e uma enorme janela da qual se podia admirar a cidade.
- Mr. Clifford vem já ter com a senhora - disse o empregado. Propôs-lhe uma bebida, que ela recusou. Ficou em pé, diante da janela, para admirar o pôr do sol sobre Manhattan: um espetáculo que a fascinava. Antes de sair de Itália, Angelica tinha telefonado a Clifford para lhe pedir aquela reunião e ficou espantada quando ele a convidou para jantar em sua casa, dizendo-lhe:
- Não lhe quero mostrar a minha coleção de borboletas mas, como sei que não vem aqui de férias, acho que em minha casa podemos falar mais tranquilamente. Na sala reinava um silêncio perfeito, que transmitia uma sensação de tranquilidade. Angelica sentiu um ruído, virou-se de repente e encontrou os olhos fosforescentes do mastim fixos nela. O cão estava sentado sobre as patas posteriores, com as anteriores tensas, rígidas, prontas para um salto em frente. Angelica imobilizou-se e susteve a respiração, enquanto os batimentos do coração aceleravam. Ficaram assim a olhar um para o outro durante um instante que a ela pareceu uma eternidade. Lentamente, o cão aproximou-se dela, que não mexia um músculo, encostou-se a cheirar-lhe as pernas, depois virou-se e, com um breve salto cheio de agilidade, instalou-se num sofá, aninhou-se e fechou os olhos. Angelica continuou em pé sem se mexer e foi então que, da porta da sala, chegou até ela uma voz límpida e severa que ordenou:
- Kira, deixa-nos sós!
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O cão desceu preguiçosamente do sofá, encostou-se ao homem que sorria para Angelica e, esfregando-se contra a sua perna, saiu placidamente da sala. Ele, com um passo impercetivelmente vacilante, aproximou-se da convidada que lhe estendia a mão e, tocando-a levemente com os lábios, disse:
- Senhora Brugliani, muito bem-vinda. Ela estava ainda sem fôlego. Já por outras vezes tinha sido obrigada a lidar com as extravagâncias dos americanos, sobretudo se pertenciam à classe mais alta, mas um cão feroz como comité de acolhimento ia muito para além da sua imaginação.
- Faz isso de propósito para deixar os convidados pouco à-vontade? - perguntou, ainda apavorada, a apontar um dedo na direção em que o cão tinha desaparecido.
- Devia tê-la avisado e peço-lhe desculpa por não o ter feito. A Kira é apenas um animal manso que fareja a índole dos desconhecidos. A senhora transmitiu-lhe ondas positivas. Mas sente-se, por favor. Dentro em pouco vamos para a mesa.
- O senhor precisa daquela fera para se sentir seguro? - perguntou, esforçando-se por conter a irritação que começava a sobrepor- se ao medo.
- Precisei, há muitos anos. A Kira é filha da Sarna, o meu primeiro mastim. Quando fiquei com ela já estava grávida. A filha nasceu em minha casa, não aqui, nos Hamptons. Arranjei a Sarna porque estava aterrorizado com o marido da minha ex-amante que me queria matar. Acho que qualquer pessoa estaria, depois de aquele louco ter descarregado em cima de mim uma rajada de tiros. Felizmente tinha uma pontaria péssima e só conseguiu trespassar-me uma perna - explicou, enquanto servia água mineral num grande copo de cristal. Entregou-lho e, ostentando um sorriso de cumplicidade, revelou: - Como vê, informei-me sobre os seus gostos e sei que não bebe bebidas alcoólicas, tal como a senhora se informou sobre mim e conhece a minha história.
- Em linhas muito gerais - replicou Angelica, que começava finalmente a descontrair. William fez-lhe companhia, bebendo água como ela, que começou então a observar aquele cinquentão que possuía a marca aristocrática da upper class americana.
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Vestia com desenvoltura um fato escuro que lhe sublinhava a figura esguia, e o colarinho branco da camisa fazia realçar um rosto bronzeado e magro, sulcado por algumas rugas. Tinha umas mãos de dedos longos e fortes que tamborilavam sobre a almofada do sofá, sinal evidente de um certo nervosismo.
- Está preocupado com alguma coisa? - perguntou Angelica.
- Sim, com a sua beleza e com a sua juventude - respondeu.
- É um elogio? - indagou.
- Sim e não. Dei uma vista de olhos à sua biografia e sei a sua idade. Ainda é uma menina, mas tem muita experiência. Isto significa que está acima da média. Tudo em si indica que não deve ser subestimada. Angelica sorriu e disse:
- Parece-me um bom ponto de partida para começar a falar de negócios. O empregado que lhe tinha aberto a porta veio anunciar que o jantar estava na mesa. Ao contrário da sala de estar, a sala de jantar era pequena, muito recolhida, e a mesa de vidro estava posta com cuidado. Mr. Clifford afastou uma acolhedora poltrona revestida de pele cor de marfim para que ela se pudesse sentar. Uma empregada negra tirou uma garrafa de Falce di Luna de um balde cheio de gelo. O dono da casa sentou-se em frente de Angelica e fez sinal para que a bebida fosse servida nos copos de ambos. William Clifford ergueu o dele num gesto de brinde, imitado por Angelica, e ambos saborearam o primeiro gole.
- Este vinho é muito interessante - comentou William, e explicou: - Quando o recebi, provámo-lo todos no escritório. É suficientemente seco, como todos os brut, mas tem um toque de macieza absolutamente fantástico, que o distingue de todos os outros. Gostava muito de saber como chegaram a este resultado. O empregado serviu, de um grande prato oval, lombo de robalo fumado com vinho branco, acompanhado de batatas e tomates assados no forno.
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Começaram a comer e, pouco depois, o dono da casa disse:
- Sei que tem um contrato de ferro com Giacomo Gangi.
- O ferro pode enferrujar - respondeu Angelica.
- Foi isso que aconteceu? - perguntou William.
- Depende de si, Mr. Clifford - disse ela, com um sorriso.
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Angelica perscrutava de soslaio aquele homem que lhe fazia lembrar os da dinastia Kennedy. Não era tão rico como eles, mas provavelmente conhecia e frequentava os sobreviventes daquela grande família.
- Disse a Mr. Gangi que no íamos encontrar esta noite - comunicou-lhe.
- Porquê? - perguntou-lhe, irritada com aquela invasão de campo.
- Nos negócios, a correção é fundamental.
- Está a dar-me uma lição de ética profissional? Está a tentar embaraçar-me? Sei perfeitamente o que os americanos pensam de nós, italianos. Então fique sabendo que só com a correção e o profissionalismo eu e a minha família construímos o sucesso da nossa empresa. E, já que falo nisso, informo-o de que são muitos, em Itália, os empresários que agem assim, apesar da ilegalidade que, há demasiados anos, inquina a nossa economia e empobrece cada vez mais o nosso país. Portanto, Mr. Clifford, não me dê lições de deontologia. Tinha abandonado os talheres em cima do prato e estava em vias de se retirar. Mas foi ele quem se levantou, inclinou a cabeça, ao mesmo tempo que um ligeiro rubor se lhe espalhava no rosto, e sussurrou:
- Peço-lhe que me perdoe. Não queria referir-me a si, senhora Brugliani, nem aos outros produtores vinícolas italianos, que conheço bem, e dos quais sempre apreciei a extraordinária correção.
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Peço-lhe desculpa também por ter informado Giacomo Gangi antes de falar consigo e de saber exatamente o motivo do nosso encontro.
- Não me deu tempo para explicar - replicou ela, levantando-se por sua vez.
- Em qualquer caso, tencionava apenas dizer que, como sabe, existem algumas regras não escritas às quais nós, importadores, nos cingimos, e uma delas é a de não roubarmos clientes uns aos outros. Uma vez que a senhora é uma cliente importante, achei correto, em relação a Mr. Gangi, informá-lo do facto de nos irmos encontrar - disse-lhe.
- Não achava que devia tê-lo feito eu? - sibilou ela, e preparou-se para sair da sala de jantar. Naquele momento, silencioso e plácido, o mastim entrou na sala.
- E tire-me o seu cão da frente! - pediu-lhe com severidade. Ele fez um gesto com a mão, a grande Kira deu meia-volta e, a abanar as ancas como uma show girl, saiu.
- Não era este tipo de abordagem que eu tinha em mente - disse William Clifford, desolado, e continuou, aproximando-se dela:
- Por favor, Angelica, não se vá embora, já lhe pedi desculpa. Que mais posso fazer para que esqueça o meu disparate?
- Acompanhe-me à saída do seu apartamento - replicou, irritada. Então o belo cinquentão levantou ligeiramente a voz e perguntou:
- A senhora é tão perfeita que nunca tenha cometido um erro?
- O senhor cometeu dois, Mr. Clifford: pôr em causa a minha correção e informar o meu agente do nosso encontro. Eu, como toda a gente, cometo erros, uns atrás dos outros, e falhei agora também, pensando vir ter consigo para examinar a possibilidade de substituir Gangi por si. Passou ao lado dele e saiu para o corredor com um passo decidido. O mastim parou diante dela, levantou o lábio, mostrando os dentes afiados, e emitiu uma rosnadela ameaçadora. William chegou num instante junto de Angelica, petrificada de medo, e pôs-se diante dela enquanto dizia com uma voz firme:
- Kira, fora! O animal sossegou imediatamente e afastou-se, enquanto William se virava para Angelica.
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- Está bem? A Kira está treinada, mas continua a ser um animal agressivo, com um instinto formidável para captar as situações de tensão. Angelica, ainda aterrorizada, desatou a soluçar. Então ele abraçou-a com ternura e sussurrou-lhe:
- Já passou... Ela balbuciou, em lágrimas:
- Quero ir-me embora. Nunca tive tanto medo na minha vida. Ele manteve-a apertada nos seus braços, repetindo-lhe: Já passou... sossega... Naquela noite, Angelica não regressou ao hotel. De manhã acordou numa grande cama de casal. Tinha vestido o casaco de um pijama de homem, estava sozinha e pensou: o que é que eu fui arranjar! Pareceu-lhe ouvir a voz do pai a dizer: «És uma Acerbi, como a tua mãe». Deslizou para fora da cama e enfiou-se na casa de banho. Meteu-se debaixo do chuveiro e esperou que o jato de água lhe aclarasse as ideias. Precisava de se vestir depressa e fugir daquela casa, daquele estranho William Clifford que vivia com um mastim feroz, e perguntava a si mesma como tinha sido possível ir parar à cama dele. Vestiu um roupão e procurou a roupa. Encontrou-a cuidadosamente dobrada e passada no quarto de vestir. Saiu do quarto a olhar em volta, circunspecta, com receio de tropeçar novamente na fera da casa. Tudo era silêncio. E também ele, William, tinha desaparecido. A alcatifa que cobria o chão do corredor sufocava o ruído dos passos. Esperou não se cruzar com ninguém e encontrar a porta naquele labirinto de corredores e vestíbulos, seguramente idealizado por um arquiteto sádico para aprisionar os hóspedes.
- Bom dia, Angelica - disse William, surgindo diante dela. Estava descalço e vestia uns jeans e uma camisa branca.
- Onde está o cão? - perguntou ela, olhando em volta, preocupada.
- Estamos sós. Os empregados e a Kira partiram de madrugada para o campo.
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Preparei-te o pequeno-almoço - explicou, ao mesmo tempo que lhe dava a mão e a levava para um aposento com as paredes e o teto pintados com frescos que faziam lembrar um jardim viçoso sob um céu azul com algumas nuvenzinhas brancas.
Havia uns cadeirões de vime em volta da mesa sobre a qual estava servido um abundante pequeno-almoço, que emanava um aroma convidativo. Queres cativar-me pela boca? - brincou ela, sentando-se. William instalou-se em frente dela.
- Tento fazer o melhor possível para te conquistar - replicou ele, enquanto lhe enchia uma chávena de café. Angelica bebeu um longo gole, depois levantou-se e aproximou-se da janela para admirar o panorama: de entre todas as cidades estrangeiras que conhecia, Nova Iorque era uma das mais fascinantes. Virou-se lentamente para o seu anfitrião, que a observava com apreensão e ternura, e disse:
- Queimei a possibilidade de trabalhar contigo. A nossa relação acaba aqui. Ele foi até junto dela e replicou:
- Nem penses nisso. Eu vou impor e vender da melhor maneira todos os teus vinhos, mesmo os de menor qualidade, se tu quiseres. Angelica sabia que era um erro misturar uma história de cama com uma relação de trabalho e limitou-se a sorrir. William prosseguiu:
- Eu também nunca confundo sexo com trabalho e estou confuso em relação àquilo que aconteceu entre nós ontem à noite. Mas aconteceu e eu estou feliz por isso, porque foi maravilhoso.
- Também o foi para mim, mas não vai repetir-se nunca mais. Não preciso de um amante, mas de um bom agente - esclareceu Angelica. Ele deu-lhe o braço e sentaram-se ambos novamente à mesa para acabar o pequeno-almoço.
- Então falemos de negócios - começou ele, ao mesmo tempo que barrava com manteiga uma fatia de pão torrado.
- Era esse o assunto que devíamos ter discutido ontem à noite - observou ela.
- Vieste procurar-me porque o Gangi te pede percentagens que não te satisfazem. É isso?
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Como é que sabes?
- Foste tu que mo deste a entender quando me pediste uma reunião.
- O Gangi é muito bom, mas muito ávido.
- Eu vou fazer-te chegar as minhas propostas e cabe-te a ti avaliá-las. Fica sabendo que tenho em mente um lançamento em grande estilo tanto para o Falce di Luna como para o teu brut. - E acrescentou: - Quando acaba o teu contrato com o Giacomo Gangi?
- Em finais de agosto.
- Então em setembro vamos trabalhar juntos. Vou fazer-te chegar muito em breve um esboço do contrato.
- Agora tenho de me ir embora. Podes chamar-me um táxi?
- Tu és uma convidada muito importante, eu mesmo vou levar-te ao hotel - decidiu ele.
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Angelica passou o segundo dia em Nova Iorque a cumprir o apertado programa de encontros para visitar as garrafeiras e os restaurantes que vendiam os seus vinhos, do Heights Chateau em Brooklyn, ao Morrell & Company no One Rockfeller Plaza, ao Eataly, ao restaurante do Hotel Four Seasons. Registou as habituais queixas dos proprietários e diretores dos estabelecimentos e ficou satisfeita com os elogios dirigidos aos seus vinhos, que alguém definiu como largamente melhores do que os franceses. Aceitou um convite para um lunch no Locanda Verde, um dos restaurantes de Robert de Niro. Pendurada numa parede, no meio das fotografias que retratavam vários personagens famosos, estava também a sua a brindar com o famoso ator. Para o jantar foi convidada pelo Eleven Madison Park. A todos falou do novo vinho da casa Brugliani e anunciou os eventos que acompanhariam o lançamento do Falce di Luna. Quando regressou ao hotel, à noite, estava exausta. Em cima de uma mesa, na sala da suite, encontrou numa jarra de cristal um ramo de rosas perfumadíssimas cor de pó de arroz acompanhado por um bilhete de William Clifford: «Querida Angelica, a nossa união de trabalho vai dar muitos frutos, e eu vou empenhar-me em mantê-la durante o tempo que quiseres». Até àquele momento, tinha conseguido não pensar na noite anterior. Agora perguntou a si mesma por que razão se tinha abandonado nos braços de William, um desconhecido que tinha conhecido poucas horas antes. Nunca tinha traído Raffaello, apesar de já não fazerem amor há algum tempo. O que lhe tinha acontecido?
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Não se tinha sentido atacar por nenhuma seta de Cupido, mas fora parar a cama de William Clifford com uma extrema naturalidade. Teria, mesmo inconscientemente, querido vingar-se das traições do marido? A resposta que deu a si mesma foi que não era o tipo de mulher que reage assim as frustrações. Não o tinha feito por um capricho, mas também não pelo facto de William ser irresistível, apesar de pertencer ao tipo de homem aristocrata que ela apreciava muito. Como dizia o pai, talvez se parecesse mesmo com a mãe e tivesse herdado dela o lado transgressor da família Acerbi. Naquele momento, foi assaltada por uma suspeita aterradora: e se tivesse feito amor com William só para o ligar ao negócio do seu vinho? Agarrou no telemóvel e, num impulso, marcou o número da mãe.
- Oh, meu Deus, o que foi que te aconteceu? - respondeu Cristina Acerbi imediatamente, com a voz empastada de sono.
- Eu estou bem, só preciso de falar contigo - respondeu ela.
- Mas são três da manhã - queixou-se a mãe.
- Aqui são só dez da noite. E há menos de vinte e quatro horas fui parar a cama de um importador americano com quem tinha um encontro de trabalho - contou-lhe.
- A sério? - perguntou a mãe, curiosa, e continuou: - Valeu a pena?
- Mãe, por favor! Telefonei-te porque este tipo de coisas não faz o meu género, já sabes - esclareceu Angelica.
- Ai isso é que faz. Até porque aconteceu.
- O que eu quero dizer é que não tenho relações com o Raffaello há meses, e este William Clifford, que vive com um mastim feroz no trigésimo andar de um arranha-céus em Park Avenue é um bonito homem. Mas não é este o ponto.
- Então, qual é o problema?
- Preciso de um agente para o nosso vinho, não de um amante - explicou a filha.
- Bem, houve um tal Maquiavel que elaborou a teoria do fim que justifica os meios. Estou enganada?
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- Mas, não sei...
- Angelica, não me atormentes. Não lançaste a bomba atómica sobre Hiroshima, estás a separar-te do teu marido e fizeste amor com um homem a quem achaste graça. Fica sossegada e deixa-me dormir.
- Não consigo ficar sossegada - gritou Angelica.
- Então vai tomar um duche e descontrai-te. Estavas a precisar de um homem e arranjaste um. Precisavas de um agente e conseguiste. Precisavas de desabafar comigo e já o fizeste. Pára de te martirizar e deixa-me em paz a mim também - concluiu a mãe, com um tom que era um convite para desligar a chamada. Ela fingiu que não percebeu e insistiu:
- Achas mesmo que eu não fiz uma coisa assim tão horrível?
- Não fizeste - garantiu a mãe.
- Sinto tanto a tua falta, mãe - confessou Angelica.
- Às vezes, mas só às vezes, também eu sinto a tua falta - brincou a mãe, e prosseguiu:
- Quando regressares dos Estados Unidos, apanha um avião para Londres e vem a nossa casa.
- Vou fazer isso, porque também tenho muita vontade de abraçar a minha menina e quero conversar com o pai sobre o trabalho que estou a fazer.
- Ótimo. Assim contas-me a evolução da história com esse agente. Como disseste que se chama?
- William Clifford.
- Mas não era um italo-americano?
- Esse é o Giacomo Gangi, o agente que quero substituir pelo Clifford.
- E foste arranjar um tolo que vive com urn mastim? Acho essa coisa muito divertida. Boa noite, querida - rematou rapidamente. Angelica comparava a mãe a uma leoa que cria os filhotes com amor, alimentando-os, mimando-os, brincando com eles. No entanto, uma vez crescidos, se insistem para ter a sua atenção, ao fim de algum tempo afasta-os com uma patada para lhes dar a entender que têm de se desenvencilhar sozinhos. Mas, apesar de perder a paciência com facilidade, Cristina escutava-a sempre e conseguia de todas as vezes desdramatizar os problemas dela.
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Dormiu profundamente e foi acordada pelo telefone. Era Giacomo Gangi.
- Esqueceste-te de que hoje nos íamos encontrar? - ressoou a sua voz, quebrando aquela paz em que tinha mergulhado até há um instante atrás.
- Que horas são? - perguntou Angelica, ensonada.
- Já passa das dez há um pedaço e eu estou aqui, na sala do pequeno-almoço à tua espera. Depois daquele despertar brutal, ia precisar pelo menos de uma hora para ficar apresentável, e disse-lho.
- Qual é o problema? Encomendo o pequeno-almoço para dois e mando-o levar para a tua suite - propôs ele, determinado a não a deixar escapar.
- Giacomo Gangi, tinha-te prometido que hoje íamos conversar, mas não te marquei nenhum encontro. Esta tua intromissão é irritante.
- É pena que não me queiras ver. Desiludiste-me, Angelica - replicou ele com uma voz falsamente aflautada.
- Tu desiludes-me há muitos anos e já não faz sentido encontrarmo-nos. A nossa colaboração acabou. O seu terceiro dia em Nova Iorque tinha começado mal, porque não era assim que queria concluir os anos de colaboração com Gangi, durante os quais os vinhos Brugliani tinham conquistado um espaço importante no mercado americano, ainda que com um lucro exíguo. No fim de agosto, o contrato que a ligava a ele ia terminar. Teve um pensamento de gratidão para com o pai que, oito anos antes, ao ler o contrato que a vinculava a Mr. Gangi, a tinha mandado acrescentar uma cláusula que previa a revogação do contrato trinta dias antes do termo. Durante o dia, entre uma reunião e outra, enviou um e-mail para Cesarina, no escritório: «Manda o nosso advogado enviar a revogação do contrato a Giacomo Gangi». «Fechaste negócio com Mr. Clifford? Boa jogada, Angelica. Que percentagem conseguiste?», perguntou a secretária. «Vais ver quando chegarem os documentos», respondeu rapidamente.
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Não lhe queria dizer que, naquele momento, apenas tinha na mão um bilhete que acompanhava um ramo de rosas cor de pó de arroz. Agora, a meia voz, perguntou a si mesma:
- E se ele não voltasse a dar sinais de vida?
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A dúvida de que William pudesse desaparecer no vazio atormentou-a durante todo o dia. Entre uma reunião e outra, verificava os e-mails que entravam à espera de receber algum de Clifford, mas não chegou nada. Pensava: vendi a pele do urso antes de o apanhar. O pessimismo era uma característica herdada do pai que, no entanto, tal como ela, nunca tinha deixado de se impor objetivos elevados, e esta particularidade sempre lhe tinha dado uma grande ajuda. Na noite do seu terceiro dia em Nova Iorque, durante o qual trabalhara intensamente, foi dormir depois de ter decidido que, se Clifford não desse sinais de vida rapidamente, ela ia procurar outro agente. Quando acordou de manhã pediu o pequeno-almoço no quarto; estava cheia de fome e de excelente humor. Enquanto saboreava um croissant fresquíssimo, recheado com xarope de Acer, ergueu os olhos para o céu sereno daquela cidade que amava, a única em que poderia viver se tivesse de sair de Borgofranco. Pensou no burgo como uma colmeia em contínua atividade e acariciou a ideia de que, dentro de uma dezena de anos, a sua menina ia estar ao seu lado na profissão da família, tão difícil e tão recompensadora. Apoiaria a filha com toda a sua experiência, enquanto ela se ia dedicar a gerir uma espécie de hotel de luxo para hóspedes selecionados, com quartos lindíssimos e jantares requintados servidos no jardim, de verão, e no grande refeitório com frescos do século xv, de inverno.
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Para esta nova atividade em Borgofranco, tinha muitas ideias que ia aperfeiçoando à medida que, nas suas contínuas deslocações por todo o mundo, se ia hospedando em lugares encantadores. Aqueles programas para o futuro apaixonavam-na. Agora, naquela clara manhã de julho, enquanto se preparava para deixar Nova Iorque e ir a Filadélfia, depois a Boston e mais tarde a Atlantic City visitar os seus clientes americanos, Angelica apercebeu-se de que nunca tinha contado com a presença de Raffaello ao seu lado na sua vida profissional. Nunca sequer lhe falara dos seus projetos. Naquele momento perguntou a si mesma a razão disso e a única resposta honesta que conseguiu encontrar foi que o marido era estranho àquela realidade, como um berlinde de vidro num cacho de uvas. Tanto ele como o primeiro marido eram muito diferentes dela, que tinha raízes camponesas profundamente ligadas à terra. Pensou que os maridos não tinham errado, que tinha errado ela por eles, e que era muito difícil encontrar um homem com quem partilhar o amor pela terra, pelas vinhas, pelo vinho. Concluiu que, provavelmente, acabaria por ficar sozinha, aliás, que evitaria no futuro outros envolvimentos sentimentais. Antes de fazer a mala, abriu o tablet, procurou o correio e encontrou o e-mail que esperava: «Querida Angelica, aqui vai um esboço do nosso contrato de colaboração para a venda de todos os teus vinhos e para o lançamento do Falce di Luna. As condições são as mesmas que a minha sociedade aplica a todos os clientes. Se quiseres fazer alguma correção, peço-te que me informes o mais depressa possível, para que possas receber o contrato e assinar dentro de pouco tempo. Até breve. William Clifford». Angelica leu atentamente as propostas, que eram decididamente vantajosas. Clifford era uma pessoa em quem podia confiar. Assim, enquanto viajava para Filadélfia, mandou um e-mail para a empresa, para Cesarina: «Agora que arrumei com o Filho-da-mãe, manda examinar a proposta que te envio.
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Li-a com atenção e as condições parecem-me excelentes. Não te esqueças de que o contrato com ele deve arrancar no dia 1 de setembro deste ano». No domingo à noite terminou a sua visita aos Estados Unidos. De Atlantic City embarcou num voo para Londres, depois de ter comunicado a sua chegada a Elisabetta e aos pais. Achou que merecia uma semana inteira de férias com eles antes de enfrentar, em agosto, uma nova viagem para a China, onde tinha lançado há alguns anos bases sólidas para a difusão dos seus vinhos: a China era um mercado emergente que se estava a revelar muito interessante. Como sempre, quando o avião estabilizou, estendeu o assento, reclinou as costas, embrulhou-se na manta e descontraiu à espera do sono. Pensou em William Clifford e perguntou a si mesma se poderia ser um homem para ela, unidos como estavam pelas mesmas raízes ligadas à terra e pelo amor pelas vinhas. Apesar disso, e apesar de ter sido agradável a intimidade com ele, concluiu que Clifford lhe interessava muito mais como agente dos vinhos Brugliani no mercado americano do que como eventual companheiro de vida. Tinha a certeza de que ia funcionar magnificamente ao lado dela na promoção e que saberia descobrir os sítios mais sugestivos para o dar a conhecer a um público selecionado. As apresentações organizadas por ela em Itália tinham produzido, apesar da crise, excelentes resultados. Tinham sido preparadas nos jardins de palacetes lindíssimos, junto às muralhas de alguns castelos, em salões de residências nobiliárias, nos restaurantes mais exclusivos para convidados sentados à mesa. Entre um prato e outro, Angelica explicava cada vinho com um acompanhamento musical diferente, e começava dizendo: «Esqueçam as palavras sonantes que estão tanto na moda para falar de uma coisa simplicíssima: o carácter de um vinho. Confiem apenas nas vossas sensações, naquilo que vos dirão os vossos olhos ao observar-lhe a cor, o vosso olfato ao cheirar o seu aroma, o vosso palato quando o levarem aos lábios e o provarem. Esqueçam as palavras vazias de muitos apresentadores que vos sugerem aproximações ousadas e obtusas para definir um sabor. Ouvi alguém comparar o paladar de um vinho, produzido na proximidade de um curso de água, aos seixos do rio; dizer de outro que tem o sabor das especiarias do Oriente ou dos pessegueiros em flor.
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Provem-no e abandonem-se ao prazer que sentirem». A pensar em tudo isto, Angelica adormeceu. Foi acordada por uma hospedeira que lhe serviu um café, dizendo-lhe:
- Dentro de meia hora aterraremos em Londres. Depois de ter tomado o café, endireitou o assento, levantou-se e abriu a bagageira para pegar na carteira. Ao retirá-la com algum vigor, porque tinha ficado entalada entre dois sacos, saltou também o tablet. Tentou apanhá-lo no ar, mas não conseguiu e ele foi cair em cheio na testa do passageiro que estava sentado atrás dela. O homem, que estava ainda a dormir, foi acordado bruscamente, e enquanto segurava no tablet com uma mão, levou a outra à testa atingida. Angelica sussurrou um «desculpe» cheio de aflição, enquanto ele lhe entregava o tablet e dizia:
- Não podia ter mais cuidado? Na testa do homem, junto da têmpora, havia um papo que continuava a inchar.
- Desculpe - repetiu ela, desolada, enquanto observava aquele rosto que lhe pareceu familiar.
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- Vou pedir para lhe trazerem gelo imediatamente - disse, ao mesmo tempo que tocava a campainha para chamar uma hospedeira. Poucos minutos depois, enquanto um assistente de bordo se aproximava com um copo cheio de pedras de gelo, também o homem olhou para ela com curiosidade. O assistente envolveu o gelo num guardanapo e entregou-lho. Ele encostou-o à testa e continuou a observá-la. Por fim, perguntou-lhe: - Mas nós não nos conhecemos? Angelica, que estava em pé a olhar para ele, respondeu: - É a mesma pergunta que eu estava a fazer a mim mesma. O avião tinha iniciado a descida que precedia a aterragem. O altifalante pediu aos passageiros para permanecerem sentados com os cintos apertados, ela sussurrou mais um «desculpe» e retomou o seu lugar. Sabia que Elisabetta e os pais tinham ido buscá-la e saboreava já a alegria de os abraçar de novo, mas entretanto não parava de se questionar sobre quem seria o homem sentado atrás dela. Voltou-se, sorriu-lhe, observou o papo que ele tinha na testa e perguntou: - Ainda lhe dói? - Está melhor - respondeu ele, ao mesmo tempo que enfiava um monte de papéis numa elegante pasta de trabalho. Depois desembarcaram e perderam-se de vista.
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Ela passou o controlo de passaportes na área reservada aos passageiros de primeira classe e nem sequer teve de se pôr na fila para retirar a bagagem porque apenas trazia consigo um trólei de cabina. Ao longo dos anos, tinha aprendido a levar nas viagens de trabalho o mínimo indispensável. Descobriu imediatamente, no meio da multidão que tinha vindo esperar os passageiros, os rostos risonhos da filha e dos pais. Elisabetta saltou-lhe ao pescoço e abraçou-a, feliz. Cristina Acerbi deu-lhe um beijo na face e Giovanni Brugliani fez o mesmo antes de tomar conta do trólei. Saíram para o ar livre, abrindo caminho no meio da multidão, enquanto Elisabetta, que estava agarrada a ela, começou a enchê-la de informações sobre as suas férias no Dorset. O avô interrompeu o rio de palavras da neta para dizer:
- Ainda temos um longo caminho para percorrer até ao estacionamento. Apetece-vos ir atrás de mim?
- Querido, deixa a bagagem connosco. Ficamos aqui à tua espera enquanto vais buscar o carro - replicou Cristina.
- Então, mamã, estava a dizer-te que conheci a Elaine Parker, filha de dois amigos do Edward. Tem exatamente a minha idade e monta um pónei lindíssimo. Estava a pensar que, no Natal, tu e o pai me podiam oferecer um cavalo. Parece-te um pedido exagerado? - continuou Elisabetta, enquanto o avô se afastava. Naquele momento as portas de correr por onde saíam os passageiros abriram-se e surgiu o homem que Angelica tinha atingido. Era um sujeito alto, magro, vestia uns jeans clássicos, um blusão preto de belíssima pele, assim como a mochila que trazia ao ombro, tinha a pasta na mão e, na testa, era bem visível o papo que ela lhe tinha provocado. Olhou em volta e cruzou o olhar com ela. Ela afastou-se da mãe e da filha e deu dois passos em direção a ele, enquanto tentava sorrir-lhe. Naquele instante, um relâmpago iluminou-lhe a mente e lembrou-se: era o homem que a tinha socorrido depois do acidente. O sorriso apagou-se e ela confessou:
- Estou desolada, mas receio ter chocado de moto contra o seu carro há um mês. Por isso me parecia que nos conhecíamos. O homem observou-a durante um longo instante, sem falar, e depois exclamou:
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- Agora me lembro, é a Angelica Brugliani e... - não pôde continuar porque um motorista de farda azul se aproximou e disse:
- Bem-vindo, Mr. D’Azaro. Quer dar-me a sua bagagem? Ele entregou-lhe a pasta e a mochila e, apressando-se a segui-lo, voltou-se para Angelica e disse:
- Lamento ser antipático, mas francamente espero nunca mais voltar a vê-la. Tenho a certeza de que está de acordo comigo. Angelica olhava para ele com uma expressão de tal maneira infeliz que, quando se despediu dela com um breve gesto de mão, ele não conseguiu conter um sorriso. Angelica viu o motorista abrir-lhe a porta traseira de um Bentley. O automóvel começou a andar devagar, metendo-se na fila de carros que saíam do aeroporto. A mãe e a filha dirigiram-lhe um olhar cheio de curiosidade.
- Podemos saber o que aconteceu? - perguntou Cristina.
- Porque é que aquele grande estúpido te tratou tão mal? - quis saber Elisabetta. Angelica, com um ar apoquentado, respondeu:
- Está zangado comigo, e tem razão.
- Se nos iluminares também a nós, talvez consigamos compreender - disse a mãe. Ela contou-lhes tudo.
- Mãe, és mesmo um desastre. Não se te pode deixar sozinha, porque tu arranjas logo maneira de armar uma confusão qualquer - gracejou Elisabetta.
- A verdade é que, apesar do papo na testa, é realmente uma grande estampa - observou Cristina.
- Avó, aprende a falar! Não se diz grande estampa, mas grande gato - brincou a neta. Cristina sorriu e perguntou à filha:
- Gostei mesmo daquele grande gato. O que é que ele faz?
- Não sei nada dele. Só sei o nome, porque constava da declaracão do seguro. Chama-se Tancredi D’Azaro - respondeu Angelica.
- Tancredi! É siciliano, sem sombra de dúvida. E tu és Angelica - comentou Cristina.
- Os dois heróis do Orlando Furioso! - concluiu Elisabetta.
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- Vamos parar de dizer idiotices? Se calhar referias-te as duas personagens de O Leopardo! - retorquiu ela, já sem paciência.
- Chegou o avô - disse Elisabetta, dirigindo-se ao Mercedes que tinha parado em frente delas. Elisabetta sentou-se ao lado do avô, Angelica e a mãe ocuparam os assentos traseiros.
- Tens a certeza de que não queres parar em Londres? - perguntou o pai.
- Temos duzentos quilómetros pela frente antes de chegarmos a Chipping Campden e eu preferia ir diretamente para casa, porque estou cansada - respondeu Angelica.
- Então ligamos o piloto automático e enfiamos em direção a Burton House - replicou Giovanni Brugliani alegremente.
- Tenta dormir - sugeriu a mãe. Ela apoiou a cabeça no encosto do assento, fechou os olhos e pensou no rosto lindíssimo daquele homem misterioso que nunca mais voltaria a ver.
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Quando chegaram ao destino, sir Edward estava a espera deles à porta da Burton House e recebeu Angelica com afeto.
- Bem-vinda, minha querida - exclamou, ao mesmo tempo que descia as escadas para ir ao encontro deles. Depois deu-lhe um abraço e acrescentou imediatamente: - Imagino que estejas cansada por causa dessa longa viagem, mas daqui a dez minutos vai ser servido o almoço, com meia hora de antecipação relativamente ao nosso horário, para tu poderes ir descansar. Sir Edward era um importante advogado e, naquele período, o seu escritório na City de Londres estava fechado para férias. Uma vez que tinha uma substancial carteira de associados, dedicava há alguns anos grande parte do seu tempo a estudar as obras de William Shakespeare: eram a sua paixão, partilhada por Cristina Acerbi, que o estava a ajudar a completar um ensaio sobre o grande dramaturgo e poeta inglês, nascido e crescido em Stratford-upon-Avon, uma localidade não muito distante de Chipping Campden. À mesa, Angelica conheceu um casal de convidados, Mr. e Mrs. Wood, que trabalhavam em Londres como encenadores de uma série televisiva inglesa de sucesso sobre a dinastia dos Tudor e sabiam poder conseguir algum material precioso para o seu trabalho na biblioteca de Sir Edward. Mas assim que foi servido um timbale de carne e legumes em massa folhada começaram a falar da situação meteorológica, que era o tema preferido de todos os ingleses. Angelica, sentada ao lado do pai, conseguiu informá-lo rapidamente sobre a mudança do agente nos Estados Unidos.
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- Logo à noite gostava de ler o esboço do contrato - disse-lhe ele, e acrescentou: - Apesar de ter a certeza de que a aluna ultrapassou há algum tempo o mestre.
- A aluna precisa sempre do faro do seu amado mestre. Nunca te esqueças disso, pai. Ele levou aos lábios uma mão de Angelica e beijou-a com afeto. Depois acrescentou:
- Dá-me ideia que estás outra vez a virar a tua vida de pernas para o ar.
- Estou a ver que a mãe te informou - suspirou ela.
- A tua mãe nunca teve segredos para mim. Aquela era uma afirmação que o pai repetia muitas vezes, e Angelica sabia que se referia ao afastamento de Cristina de Borgofranco. Depois disso, foi necessário todo o amor do marido para partilhar a mulher amada com o seu amante, ambos subjugados pelo seu fascínio e determinados a não rivalizar entre eles, para poderem estar junto dela.
- Nem eu tenciono esconder-te nada sobre mim - disse ela, e acrescentou: - Eu e o meu marido estamos a separar-nos.
- Ao longo destes anos aprendi a confiar em ti e sei que se agora decidiste deixá-lo deves ter as tuas razões para isso - afirmou Giovanni.
- Não aflijas a minha menina - interveio a mulher em voz baixa, uma vez que se tinha apercebido dos sussurros entre ele e Angelica. O comedido sir Edward e os seus convidados estavam empenhados numa subtilíssima análise sobre as relações entre Isabel, a rainha virgem, e William Shakespeare, personagem de sexualidade incerta. Elisabetta, que estava a aborrecer-se, engoliu rapidamente a sobremesa à base de fruta fresca e depois dirigiu-se à mãe:
- A Elaine convidou-me para conhecer os primos dela que vivem em Hong Kong e vão ficar aqui uns dias. Posso pedir a Mr. Daniel para me levar a casa dela? Mr. Daniel era o faz-tudo da Burton House. Acompanhava o trabalho dos jardineiros que tinham a seu cuidado os quatro hectares de bosque que rodeavam o edifício.
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Tratava da manutenção das instalações elétricas e hidráulicas da antiga mansão, levava a cozinheira à cidade para fazer as compras e fazia de motorista de sir Edward que, ao contrário de Giovanni Brugliani, detestava sentar-se ao volante do seu velho Rolls.
- Está bem - consentiu Angelica, e acrescentou: - Mas regressas para jantar. Depois dirigiu-se aos convidados e disse:
- Peço desculpa, mas não fico convosco para o café. Acho que preciso de algum descanso. Subiu ao segundo andar e fechou-se no seu quarto, chamado Chinese Room porque tinha as paredes forradas de seda cor de palha com desenhos chineses, de pagodes, bosques românticos e pássaros. Fechou as cortinas, estendeu-se na cama e foi envolvida pela essência de alfazema com que a mãe perfumava a roupa de casa. Cobriu a cabeça com uma almofada e pensou mais uma vez em Tancredi. Recordou que no hospital, depois do acidente, o irmão Gaspare lhe tinha dito: « O homem que conduzia o carro com que chocaste quis saber notícias tuas». Pensou que Tancredi D’Azaro tinha alguma coisa de diferente que a enchia de curiosidade. Então levantou-se da cama, foi buscar o tablet e digitou o nome de Tancredi no Google. Aquilo que leu deixou-a espantada.
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TANCREDI
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Tancredi saiu da limusina à porta do hotel Baglioni, em frente ao Hyde Park. O porteiro foi ao encontro dele e cumprimentou-o com um deferente «Bem-vindo, Mr. D’Azaro». Depois tirou do porta- bagagens a pasta e a mochila e avançou à frente dele para o interior do hotel. O chefe da receção recebeu-o com um sorriso cordial.
- A sua suite está pronta. Mas não vejo os outros hóspedes - observou.
- A minha equipa chega num voo de Roma, esta tarde, e pedia-lhe que mandasse uma carrinha ao aeroporto para transportar até ao hotel os meus colaboradores e os baús que vão trazer - disse Tancredi.
- Com certeza. Entretanto vou pedir que o acompanhem à sua suite - disse o chefe da receção. Depois aclarou a voz e acrescentou:
- Se me dá licença, li no Guardian a notícia do prestigiado prémio que lhe foi entregue em Oslo e congratulo-me pelo seu sucesso.
- Muito obrigado - replicou Tancredi, preparando-se para seguir o rapaz que o ia acompanhar até à suite. Na sala de estar, sobre uma grande mesa oval, encontrou um cesto de fruta fresca, uma taça com biscoitos e bombons, uma garrafa de champanhe francês dentro de um balde de gelo e um bilhete de boas-vindas assinado pelo diretor do hotel. Em Hampton Court, três dias depois, teria lugar um evento promocional organizado pela mais importante rede de televisão inglesa, que tinha pretendido fazer as coisas em grande confiando a Tancredi a preparação de um banquete para trezentas pessoas.
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Entrou no quarto, despiu-se e foi tomar um duche. Depois vestiu um roupão de felpo e encomendou pelo telefone um prato de roast-beef com acompanhamento de legumes e café americano. Enquanto comia, verificou no tablet o correio recebido, respondeu a alguns e-mails, marcou uma massagem ayurvédica no spa do hotel, depois estendeu-se na cama, fechou os olhos e esperou dormir até que o massagista o chamasse. Mas não conseguia conciliar o sono, porque o seu pensamento corria para aquela estranha mulher que tinha encontrado no avião: bonita mas perigosa, pensou. O dano que lhe tinha causado, ao chocar contra ele de moto, era mais grave do que o papo na testa, por isso era melhor evitá-la, apesar de ser fascinante e de lhe fazer lembrar Giulia Maria Nicastro di Leonforte, que lhe tinha aberto, era ele ainda um jovem, as portas do paraíso. Era muito bonita, Giulia Maria, tinha os cabelos e os olhos negros como a noite e a pele branca, os lábios vermelhos como cerejas e os dentes imaculados. Ele tinha 16 anos, ela 18, e estava para casar com um advogado rico de Palermo, Vincenzo Moncada, tal como decidira o pai, o barão Nicastro.
Quando a viu subir ao altar e ajoelhar-se ao lado de Vincenzo Moncada, diante do bispo de Petralia Sottana, fugiu da igreja, correu até à propriedade de Roccabruna, encontrou uma corda comprida e fez um laço. Meteu-se no bosque de faias, atou um cabo da corda a um ramo de árvore, subiu a uma pedra, enfiou o laço à volta do pescoço, deu um esticão e caiu ao chão porque o ramo não aguentou o seu peso. Então desfez-se em lágrimas. Tinham passado quase trinta anos desde aquele dia aterrador e ainda agora, quando pensava em Giulia Maria, sentia ferver o sangue. Angelica era parecida com ela: tinha um rosto perfeito, os cabelos macios apanhados na nuca, os olhos negros, grandes. Tancredi fingia ser um cidadão do mundo que se sentia em casa tanto em Nova Iorque como em Tóquio, em Melbourne como em Cape Town, em Washington como em Moscovo, mas na verdade era, e sempre seria, um camponês siciliano nascido em Petralia Sottana, a pequena cidade de telhados vermelhos, no coração das Madonie.
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Continuava a pertencer àquele lugar, era altivo e visceral, filósofo e sonhador, orgulhoso e humilde, sabia extrair acordes dilacerantes de um fiscaleddu ou de um pífaro e conseguia cavalgar o sceccu como um camponês e um cavalo de raça como um lorde. Dominava as suas pulsões, mas quando se zangava explodia como um vulcão em erupção. Depois de Giulia Maria Nicastro di Leonforte não voltara a apaixonar-se, apesar de ter tido muitas mulheres. E agora, aos 42 anos, Angelica estava prestes a abrir uma pequena brecha no seu coração; mas ele ia fechá-la, porque não queria voltar a sofrer por uma mulher como tinha sofrido quando era jovem. O telemóvel começou a vibrar. Atendeu imediatamente.
- Olá, Elvira - disse.
- Olá, chef- respondeu ela.
- Está tudo em ordem? - perguntou.
- Estamos a chegar ao hotel com a tralha toda, e também trazemos a tua bagagem. Todos nós queremos saber como correram as coisas em Washington.
- Muito bem. Não leram os jornais?
- Claro, mas queríamos ouvir da tua própria boca.
- A first lady, Michelle Obama, pediu-me para preparar um almoço em setembro, na Casa Branca, para oitenta convidados anunciou.
- Já pensaste no tema? O Giuseppe, que te está a ouvir em alta voz, quer saber se vai ser a nossa Sicília.
- Vai ser a nossa terra, as Madonie. Já expliquei isso a Mrs. Obama, que pensava que as Madonie eram doces exóticos. Mas agora temos de nos concentrar no menu para a próxima quinta-feira. Aliás, vão ter de se concentrar vocês, porque esta noite quero gozar uma pausa para descansar. Desligou a chamada, vestiu-se rapidamente e saiu. Ia passar o serão com Paulette Stanley, a afável amiga londrina que o esperava.
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Paulette Stanley, cronista do Sunday Mirror, vivia em Notting Hill, o bairro londrino onde moravam muitos personagens famosos do mundo do espetáculo. O jornal pagava-lhe um lauto ordenado porque era uma extraordinária caçadora de bisbilhotices maliciosas. Tinha 40 anos, uma infinidade de relações sociais que lhe garantiam sempre matéria atualizada para os seus artigos sensacionalistas, e permitia-se algumas distraçõ es com alguns dos seus preciosos informadores. Cerca de dez anos antes, o seu chefe tinha-a mandado ao Conference Center Queen Elizabeth II para conseguir uma entrevista com um dos oradores, um misterioso chef italiano de origem siciliana. Havia pouco tempo tinha sido atribuída ao seu restaurante a tão ambicionada terceira estrela do Guia Michelin e ele tinha-a recusado, restituindo as duas que já possuía e declarando que não precisava da pontuação dos franceses, considerando-os inaptos para julgar uma cozinha extraordinária, largamente superior à deles, que era a cozinha italiana. Não concedia entrevistas a ninguém e recusava-se a aparecer na televisão, mas era convidado por chefes de governo de muitos países, desde que abraçara a campanha para combater a fome no mundo. Paulette entrou na sala do congresso, em que participava também o primeiro-ministro britânico, e aguentou duas entediantes comunicações de grandes cientistas que apresentavam gráficos e tabelas de estatísticas incompreensíveis. Depois foi a vez de Tancredi. Impôs-se imediatamente ao auditório pela sua presença física. Tinha pouco mais de 30 anos, era bonito, falava um inglês perfeito e começou, com uma voz sedutora, a dizer:
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- Fui convidado para participar neste encontro de estudiosos para vos falar da cozinha pobre do Mediterrâneo, que ao longo de séculos matou a fome a populações inteiras, mesmo nos períodos de carestia, e que ainda sobrevive. Nós, cozinheiros, redescobrimo-la e reabilitámo-la. Mas depois de ter escutado os dois oradores precedentes, decidi que me ia sentir muito estúpido se me pusesse aqui a discorrer sobre a presença ou a ausência do bechamel nas lasanhas com carne picada, porque hoje aquilo que importa verdadeiramente é que até o homem mais pobre possa dispor do trigo para fazer a massa e da carne para fazer o recheio. Mas não tem. Seria injurioso esmiuçar a questão do amanteigado de um risotto porque hoje, no século há populações inteiras que não têm uma malga de arroz. Pegou nas folhas do discurso, pousadas à frente dele, e atirou-as ao ar. Na sala cheia de gente caiu o silêncio. Os oradores fizeram convergir sobre ele olhares atónitos. Tancredi D’Azaro continuou a falar. - O bom Deus, na sua infinita sabedoria, deu aos habitantes do planeta a possibilidade de matar a fome com os recursos do lugar onde vivem. O homem, na sua infinita sede de lucro, tornou estéreis as regiões mais férteis, inquinou os mares, tão generosos de alimento, e o ar de que precisam os animais e a vegetação para viver. Por sede de dinheiro, o homem abateu florestas inteiras e ergueu construções de cimento. Falou durante vinte minutos, ilustrando projetos concretos para iniciar a recuperação dos territórios mais contaminados, e concluiu dizendo: - Enquanto considerarmos estes projetos como uma utopia, o mundo estará cada vez pior. Temos de acreditar nos nossos recursos para modificar a realidade atual, pois só assim conseguiremos salvar-nos a nós mesmos e ao nosso planeta. O público levantou-se e um grande ruído de aplausos saudou o chef, que já se afastava, depois de os membros do congresso, um a um, terem ido apertar-lhe a mão. Naquele momento, a jornalista do Mirror esgueirou-se para fora da sala a correr para ir ao encontro dos congressistas que saíam do edifício.
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Tancredi estava a entrar numa limusina que o esperava e ela bloqueou-o literalmente, pondo-lhe uma mão no ombro.
- Concede-me um instante? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que lhe mostrava as credenciais do seu jornal. Ele sorriu-lhe.
- Miss Stanley, a menina é muito bonita, muito elegante e muito desenvolta. Se tivesse tempo, conceder-lhe-ia muito mais do que um instante.
- Quando poderemos encontrar-nos? - insistiu ela.
- Venha ter comigo.
- Onde? - perguntou-lhe, prontamente.
- Navega na Net? Indubitavelmente, sim. Procure o endereço do meu restaurante. É uma propriedade agrícola na montanha, no coração da Sicília. Escreva-me e eu respondo-lhe - disse Tancredi, enquanto se sentava no carro. A limusina partiu e ela ficou ali, no passeio, a olhar para o automóvel que se afastava, a pensar que aquele homem lindíssimo, inteligente, histriónico, devia ser também muito presunçoso para acreditar que ela podia ir até à Sicília entrevistá-lo. Depois regressou ao jornal e contou o encontro ao chefe.
- É um grandessíssimo malandro! - afirmou.
- Até pode ser um tímido que reage assim ao embaraço - objetou o chefe, e acrescentou: - Ouve, Paulette, aquele homem esconde um mistério. Não há entrevistas dele, não há notícias sobre a sua vida, é uma pessoa que despreza as estrelas Michelin que qualquer chef se danaria por ter. Toca-te a ti descobrir o que há por detrás disto. Portanto, vais à Sicília. Paulette escreveu a Tancredi e ele respondeu-lhe poucas horas depois, marcando-lhe um encontro na Sicília, em Roccabruna, uma propriedade rural com restaurante e bed & breakfast, rodeada por hectares de terreno cultivados com cereais e leguminosas, bosques de faias, azinheiras e carvalhos. De Londres, Paulette chegou diretamente a Palermo e instalou-se num antigo hotel restaurado, na piazza Borsa. Deambulou por aquela lindíssima cidade, alugou um carro e pediu ao porteiro que lhe indicasse o percurso para chegar a Petralia Sottana. O homem disse-lhe:
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- Tenho uma casa em Petralia que era dos meus avós. Foi lá que eu nasci.
- Conhece Tancredi D’Azaro? - perguntou ela.
- E quem não conhece? Ele é um mito.
- Em que sentido?
- Em todos os sentidos - respondeu. E não houve maneira de lhe arrancar outras informações. Na manhã seguinte, Paulette saiu de Palermo e seguiu pela estrada que levava ao maciço das Madonie. A medida que avançava em direção à montanha, a paisagem tornava-se cada vez mais sugestiva. A estrada desenrolava-se por entre doces declives verdejantes salpicados de flores do campo de cores fortes. Aqui e além, pelo meio dos campos, surgiam construções rurais pequenas e antigas. Quanto mais a estrada subia, mais fresco se tornava o ar, e começavam os bosques. A certa altura viu perfilar-se no cimo de um monte um aglomerado de casas com telhados vermelhos e paredes muito íngremes. O GPS indicava que aquilo era Petralia Sottana, e que Roccabruna ficava à sua direita, num planalto. Parou o carro num espaço coberto de saibro em frente a um edifício antigo e imponente com um letreiro que dizia: RESTAURANTEE BED & BREAKFAST ROCCABRUNA. Saiu do carro. Olhou em volta. Não havia vivalma. Logo a seguir, como que materializado do nada, Tancredi D’Azaro foi ao encontro dela.
- Bem-vinda - disse-lhe.
-Como vai? - respondeu ela. Tinham passado dez anos desde aquele dia. E tinham-se tornado amigos. Ela nunca chegou a escrever uma linha sobre ele, porque a sua história devia continuar a ser um mistério. Agora ele tocou à porta da casa de Paulette, que a abriu e o recebeu com um copo de vinho tinto na mão.
- Estava a provar um Primitivo da Puglia. Foste tu que mo mandaste. É ótimo.
Beijou-o afetuosamente na face e conduziu-o até à sala de estar.
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Tancredi deixou-se cair pesadamente numa poltrona, enquanto ela lhe estendia um copo de vinho.
- Como correu o teu circuito americano? - perguntou-lhe, sentando-se no braço da poltrona dele. Ele saboreou um gole de vinho e abraçou-lhe a anca, sentindo, através do tecido leve da saia, o calor do seu corpo.
- Muito bem - respondeu.
- Como estás? - perguntou-lhe ainda.
- Cansado - confessou. Pousou o copo numa mesa e puxou Paulette para cima dos joelhos. Abraçou-a e, mantendo-a apertada contra ele, fechou os olhos. Paulette passou-lhe os dedos pelos cabelos, com ternura. Tancredi afastou-a lentamente de si e sorriu-lhe.
- Estou mesmo muito cansado. Na próxima quinta-feira tenho de preparar um menu para trezentas pessoas em Hampton Court explicou.
- Eu sei. Os produtores da enésima série televisiva sobre as histórias dos Tudor vão apresentar à imprensa alguns episódios e decidiram fazer as coisas em grande, com um singularíssimo jantar elaborado por Tancredi D’Azaro.
- Também lá vais estar, para o teu jornal? - perguntou Tancredi. Ela assentiu.
- Será o último artigo que vou escrever para o Mirror - explicou, e foi sentar-se num divã em frente dele. Esperou inutilmente que Tancredi lhe pedisse mais explicações, apercebendo-se de que ele estava a observá-la sem a ver.
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Respeitou o seu silêncio. Viu-o pegar novamente no copo de vinho, observar a sua transparência em contraluz e beber mais um breve trago. Paulette nunca o conhecera profundamente, porque Tancredi sempre mantivera uma espécie de muro impenetrável entre eles. Tudo aquilo que sabia dele era a ternura com que a seduzira, as mil e uma pequenas atenções que lhe dedicava em cada encontro; quando a relação afetiva que mantiveram chegou ao fim, ele continuou a considerá-la uma amiga querida. Agora olhou para ele e voltou-lhe à memória a receção que lhe reservara naquele distante dia de junho, quando ela chegou pela primeira vez a Roccabruna, com a certeza de abrir uma brecha no seu retraimento e de o induzir a contar-lhe a sua vida. A herdade parecia deserta. Na realidade, os hóspedes tinham ido a Petralia para assistir aos preparativos da festa em honra de San Calogero, o padroeiro daquela pequena vila na montanha. O restaurante estava fechado, porque apenas à noite abria a sala aos clientes. Tancredi pegou na bagagem de Paulette e conduziu-a, através do átrio daquele edifício antigo, até um grande pátio inundado de sol, salpicado de vasos de barro com laranjeiras e limoeiros, para o qual se abriam as portas envidraçadas que davam acesso as suites dos hóspedes. Reinava um silêncio quase surreal.
- Parece que se entra num reino de fábula - observou ela, olhando em volta.
- Eu sou o rei deste reino - brincou Tancredi, e acrescentou:
- Quando eu era jovem, esta era uma das muitas propriedades agrícolas do barão Giuseppe Nicastro di Leonforte, senhor de Petralia. Agora pertence-me a mim. Abriu uma das portas e introduziu Paulette num aposento imenso, com uma sala e uma cama de casal.
- Este vai ser o teu refúgio durante todo o tempo que aqui estiveres - disse-lhe. Pousou o trólei de Paulette em cima de um banco de madeira muito delicado e explicou:
- Este banco chama-se firrizzo. É feito com madeira de uma planta espontânea que cresce nestes bosques.
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- E tu, onde vives? - perguntou-lhe.
- Na ala oposta - respondeu numa frase curta. Depois abriu uma porta que dava para uma casa de banho com uma banheira esmaltada, cadeirinhas de verga, uma cómoda antiga, toalhas de linho com longas franjas e um grande lavatório.
- Cá em casa almoça-se daqui a uma hora. Deixo-te descansar, enquanto vou à cozinha preparar alguma coisa que te conte, melhor do que as palavras, a riqueza de cores e de sabores, de amor e de sensualidade, da minha Sicília. À jornalista inglesa pareceu que aquilo podia ser o prelúdio de uma entrevista, finalidade com a qual o seu jornal a tinha mandado ali. Foi-se embora e ela seguiu com o olhar a figura atlética daquele homem lindíssimo e misterioso que se afastava. O restaurante tinha as paredes brancas intervaladas com arcadas, os travejamentos de madeira, as mesas separadas umas das outras por painéis também de madeira cobertos por plantas trepadoras. Ao fundo da sala havia uma ampla porta. Paulette abriu-a e encontrou um espaço com uma longa mesa onde estavam empilhados pratos e talheres. Uma porta comunicava com o aposento ao lado, de onde provinham ruídos de vozes e o tilintar de talheres. Cautelosamente, Paulette entreabriu a porta e viu uma espécie de imensa colmeia onde homens e mulheres, jovens e velhos, com grandes aventais e toucas imaculadas, limpavam carnes e legumes, fatiavam enchidos, batiam molhos, trituravam ingredientes. Dos tachos e das panelas erguia-se uma nuvem de vapor. Das prateleiras presas na parede pendiam grandes garfos, colheres, varas de arames e uma variedade de utensílios estranhos. Todos os olhares convergiram para ela, que esboçou um sorriso embaraçado quando reparou em Tancredi, com uma bata imaculada vestida, que acabava de meter um dedo num molho e o levava aos lábios para lhe experimentar o sabor. Os olhares de ambos encontraram-se e ele sorriu-lhe.
- Volta para o outro lado. Daqui a um instante sirvo-te o almoço. Ela foi-se sentar a uma mesa ao lado de uma janela aberta sobre o terreiro da quinta.
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Tancredi levou para a mesa dois pratos que continham folhas de alface dispostas de modo a formar uma flor que tinha no centro umas folhinhas vermelho-escuro salpicadas de pinhões e sultanas, tudo condimentado com uma vinagreta de azeite, limão e sabe-se lá que outros aromas campestres. Colocou um prato diante de Paulette e ficou com o outro para ele, sentando-se a frente dela.
- Vieste até aqui para saberes alguma coisa de mim. Aquilo que te ofereço falará por mim. A cozinha siciliana é a mais rica em especialidades e a mais cenográfica do nosso país. Pouca carne, muita verdura e legumes com ervas aromáticas dos nossos campos. Paulette observou o prato e disse:
- Esta comida é tão bonita e aromática que quase nem ouso tocar-lhe.
- Aquilo que comemos, antes de mais, deve satisfazer a vista, depois o olfato e, por fim, o palato. A comida é como o sexo: deve ser saboreada intensamente, com autêntica paixão.
- Tu fazes muito sexo? - perguntou, a queima-roupa. Ele riu-se e replicou:
- A medida certa. Mas não o faria contigo, que vieste aqui para trabalhar.
- Gostava que me contasses a tua vida - tentou Paulette.
- Isso é um património que pertence apenas a mim. Nós, sicilianos, minha cara Paulette, somos complicados e taciturnos - explicou.
Agora, na sala de estar daquele apartamento em Notting Hill, Tancredi estava uma vez mais diante dela, silencioso, e era evidente que alguma coisa o atormentava. Foi ela quem rompeu o silêncio, revelando: - Vou casar-me no outono.
- Parabéns - disse Tancredi, a sorrir.
- Tenho 40 anos, encontrei um homem que me ama, e sinto necessidade de ter uma família. - Fez uma pequena pausa e acrescentou: - Gostava de te convidar para o casamento. Tancredi levantou-se, foi até junto dela, levantou-a do sofá e abraçou-a com ternura.
- Espero que sejas feliz e vou dar-te um presente que seja digno de ti - sussurrou-lhe.
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- Em que é que estás a pensar?
- No teu banquete de casamento. Paulette encostou-se mais a ele, a chorar.
- Ele, o Auberon, é um homem sólido, fiável. Trabalha na universidade de Uppsala. É lá que vamos viver - contou, devagar.
- És uma mulher fantástica, Paulette, e eu gosto muito de ti disse - Tancredi.
- Um dia contas-me a tua história? - perguntou ela, soltando-se dos seus braços. Ele deu-lhe um beijo na testa e depois sorriu-lhe.
- Quem sabe! Quando ele saiu, Paulette sentou-se no sofá, ergueu o copo de vinho e sussurrou:
- Ao meu lindíssimo, inatingível Tancredi. Conseguirás alguma vez ser feliz?
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ANGELICA
1
A Burton House não era apenas uma residência muito bonita e confortável, era também um local que, segundo Angelica, emanava ondas positivas e, nas raras vezes em que ali se hospedava, sentia-se perfeitamente à vontade. Se tivesse tempo para isso, visitá-la-ia com mais assiduidade. Cristina Acerbi tinha introduzido ali grandes melhorias, conservando a traça originária do século XVIII. Tinha mandado refazer todas as casas de banho, tinha eliminado as alcatifas poeirentas que cobriam os pavimentos lindíssimos da época e tinha ainda mandado lavar as sedas preciosas que revestiam as paredes dos aposentos. Sir Edward estava a contar a Angelica: - A tua mãe só aqui estava há dois dias e já me tinha virado a vida de pernas para o ar, em todos os sentidos. Durante dois anos esta casa foi uma espécie de estaleiro, de tal maneira que eram mais as noites que passava no meu clube em Londres, em solidão total, do que as que passava com ela em minha casa. A certa altura, pensei comprar um apartamento em Mayfair e deixá-la aqui a tomar conta dos canalizadores, dos eletricistas, dos serralheiros, dos decoradores e dos empregados, atarantada e de cara zangada. Imagina que tinha descoberto o apartamento onde tinham vivido os meus avós e que o meu pai tinha vendido, quando decidiu voltar para aqui e criar ovelhas. Ia comprá-lo quando a tua mãe me telefonou: «Ed, vem a casa». Os pedidos da Cristina são ineludíveis. A minha casa era de novo a minha casa, nada tinha mudado e tinha mudado tudo. Até os empregados tinham voltado a sorrir.
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Naquele momento, achas que ela já estava satisfeita? Nem um pouco. Ao fim de um dia começou a dizer: «Tenho saudades do meu marido». Se não estou em erro, naquela altura tu tinhas acabado de regressar a Borgofranco depois da morte do teu primeiro marido. Seja como for, ela apanhou um avião para Itália e deixou-me aqui sozinho. Quando estava com o teu pai, sentia a minha falta. Quando estava comigo, sentia a falta dele. Um dia, não sei como, convenceu-o a vir cá passar o verão. Ao fim de alguns anos, começou a nossa convivência a três. Continuamos a ter alguns ciúmes um do outro, mas a tua mãe consegue oferecer-nos muita serenidade, tanto a ele como a mim... É uma mulher fora do comum. Se eu fosse um estudioso da psicologia do comportamento, escrevia um ensaio para tecer o elogio das mulheres bígamas, as únicas que conseguem ter maridos tão empenhados em disputar as suas graças que se tornam totalmente fiéis. Estavam sós numa pequena sala aquecida pela chama viva da lareira que mitigava a humidade da chuva. Apesar do tempo chuvoso, os pais tinham saído com os Wood, o casal de hóspedes, para visitar uma igreja católica destruída por Henrique VIII. Sir Edward tinha-lhe dito que Elisabetta tinha ido andar a cavalo nos bosques com Elaine e os primos. Então tinham mandado servir um chá e começaram a conversar. Mais do que outra coisa, dizia ele, grato por ter uma ouvinte atenta. Então ela sorriu perante as extravagantes considerações do insigne advogado e declarou:
- Esse vosso ménage à trois é uma invenção da minha mãe. Fez um protótipo que funciona convosco mas, felizmente, deitou fora o modelo, porque nem quero sequer imaginar uma cama habitada vez por dois maridos - observou ela. O anfitrião deu uma gargalhada fragorosa, libertou-se do saco de gelo que até àquele momento tinha mantido sobre o joelho dorido, levantou-se, deu alguns passos até ao centro da sala e depois disse:
- A tua imaginação vai muito para além da realidade. Somos três velhos, Angelica, apesar de que a tua mãe nunca vai ser velha. Gostamos de viver juntos, temos muitos interesses que partilhamos e que dão um sentido aos nossos dias. Só isso. A nossa convivência é completamente casta, sempre o foi, mas a tua mãe consegue fazer-nos sentir ainda dois jovens galispos que se disputam por um sorriso seu ou por uma carícia. Parece-te pouco?
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- Pelo contrário, é imenso - exclamou Angelica. A chuva parou e caiu a noite. Também o vento tinha acalmado. Ouviu-se o ruído de um automóvel que parou em frente à escadaria da entrada. Os pais de Angelica e os dois hóspedes tinham chegado. Sir Edward deixou-a para os ir receber e ela ficou ali, mergulhada nos seus pensamentos, até que a porta se abriu e a filha irrompeu na sala. Vinha afogueada e feliz.
- A Elaine tem um primo que é o fim do mundo. Sabes, no próximo ano vai para Oxford e por isso fica a viver aqui, enquanto o resto da família regressa à Índia. Diz que quer estudar oceanografia. De resto, já se sabe, os ingleses são gente de mar. Chama-se Cedric. Portanto, o Cedric diz que vai passar as férias de Natal em Chipping. Achas que eu também podia vir cá passar as minhas férias? - começou ela a dizer, deixando-se depois cair pesadamente num sofá.
- Eu acho que devias ir tomar um duche, porque estás a transpirar. E também devias acalmar, porque te vejo demasiado excitada replicou Angelica.
- É verdade, estou mesmo. Mas o Cedric é de mais. Contou-me coisas incríveis sobre a vida na Índia.Não achas que eu, quando acabar o liceu, podia entrar numa universidade em Inglaterra?
- E do pobre do Gianmarco, não te lembras? Durante um instante a filha olhou para ela como quem pergunta: quem é o Gianmarco? Depois sentou-se ao lado da mãe, pousou a cabeça no colo dela, como fazia sempre que estava a espera de festas, e revelou:
- Acho que os horizontes do Gianmarco são um bocadinho limitados. Dou-me bem com ele, mas só sabe falar de informática. Não sei. O que é que tu dizes, mamã?
- Digo que insististe tanto para eu vir aqui porque tinhas saudades minhas e, afinal, ainda eu não tinha chegado já tu me tinhas roído a corda - brincou Angelica.
- Claro que tinha saudades tuas. Se tu aqui não estivesses, quem é que me fazia estas festas?
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- E a mim, quem é que me faz festas?
- O que é que isso tem a ver? Tu és adulta e, em qualquer caso, o pai é que tinha de tas fazer. Mas tu puseste-o fora de casa. Angelica achou que aquele era o momento certo para confessar a verdade.
- E se o teu pai preferisse fazer festas a outras mulheres? - rebateu, simplesmente. Elisabetta sentou-se, esticou uma mão e afagou os cabelos da mãe. Ao fim de algum tempo disse:
- Já suspeitava, mas ele gosta tanto de nós.
- Nós também gostamos muito dele. Não é?
- Mas tu não queres que ele viva connosco.
- Ele pode ir a Borgofranco quando quiser, e estar contigo quando quiser. É tudo, para já - explicou Angelica.
- Tenho pena, mamã - disse a filha, abraçando-a.
- Também eu tenho muita pena - sussurrou Angelica.
- Não queres dar-lhe outra oportunidade? - perguntou Elisabetta.
- Não sei... Tenho de pensar nisso. Ficaram no sofá abraçadas uma à outra. E foi assim que Cristina as encontrou quando abriu a porta para anunciar:
- Combinámos com os Wood. Na quinta-feira à noite vamos todos a Hampton Court. Fomos convidados para assistir à projeção do primeiro episódio de uma nova saga sobre os Tudor, e depois vai haver um jantar de gala.
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2
- A história conta-nos que aquele assassino de mulheres, contaminado pela sífilis, se tinha escondido aqui, enquanto Ana Bolena era decapitada em Londres - contou Mrs. Wood, referindo-se ao rei Henrique VIII.
- E a filha, a grande Isabel, não era menos sanguinária do que ele - acrescentou Mr. Wood.
- Mas, sob o seu reinado, a Inglaterra deixou de estar em guerra. A grande Isabel andava demasiado ocupada a suprimir os inimigos no palácio para litigar com outras nações - disse Cristina. Estavam a entrar na grande sala dos banquetes do castelo de Hampton Court que, para a ocasião, tinha sido transformada em sala de projeções para um público de trezentas pessoas, em grande parte jornalistas, produtores e distribuidores de obras televisivas e cinematográficas de todo o mundo. A primeira série sobre os Tudor tinha tido um grande sucesso um pouco por todo o lado e, para a segunda, os produtores esperavam resultados ainda melhores. Angelica não apreciava aquele género de histórias baseadas só em parte em dados históricos, porque o resto era pura invenção e era recheado de cenas truculentas que não lhe agradavam. Como toda a gente, em qualquer caso, acompanhou em silêncio a projeção do primeiro episódio, que entusiasmou a filha.
- Quando eu contar às minhas amigas que vi o primeiro episódio com um ano de antecedência em relação à programação da nossa televisão, vão-me encher de perguntas - disse, muito excitada. Depois o público saiu da sala para se espalhar pelos jardins do castelo, onde tinha sido preparado um cocktail que ia preceder o jantar de gala.
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Elisabetta juntou-se à avó e a sir Edward, interpelando-os com a sua curiosidade sobre factos historicamente corretos e sobre aqueles que tinham sido seguramente inventados, enquanto Angelica e o pai se isolaram para discutir os problemas da empresa.
- Pai, lembras-te que, há cinco anos, o Richiedei nos veio propor a aquisição dos seus três hectares de vinha? - perguntou-lhe.
- Mas retirou a proposta logo a seguir, porque o filho parecia interessado em conservar a atividade - respondeu Brugliani.
- Voltou a dar sinais de vida. O filho foi trabalhar para outro sítio e ele está velho, cansado e já não aguenta. Os terrenos dele confinam com os nossos e privilegia-nos sobre outros possíveis compradores. Quer a nossa resposta para o início da próxima vindima. Eu diria que sim. O que é que tu achas?
- Estamos num momento de recessão, e três hectares de vinha significam cerca de duzentos e oitenta quintais de uvas, portanto mais vinte e três mil garrafas para colocar num mercado difícil. Também me preocupa pensar quem é que vai gerir a empresa depois de ti. Os teus irmãos e os filhos deles têm outros interesses. Vão todos para Borgofranco nas vindimas e vivem aquilo como um momento de grande euforia, mas esquecem-se logo a seguir, até porque sabem muito pouco da nossa profissão.
- Pai, eu tenho em mente grandes coisas, e tu sabes. Quanto ao futuro, aposto na Elisabetta. Ela bebeu esta profissão no meu leite e manifesta um forte interesse pelas dinâmicas da empresa. É muito provável que seja ela a continuar a tradição da família. E estou otimista quanto a uma reviravolta desta recessão. Entretanto, tenho mais do que um motivo para acreditar num salto das vendas nos Estados Unidos. Daqui por um ano espero que tenhamos bons resultados não só ali, mas também na China. O mercado chinês está em expansão e, no próximo mês, vou expedir uma grande encomenda. Em suma, eu comprava aquelas vinhas. Pensa nisso, pai.
- Compramos - conclui ele, ao mesmo tempo que tirava um copo de rosé do tabuleiro de uma empregada sorridente que fazia uma gincana por entre os convidados a oferecer vinho e aperitivos.
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Angelica conseguiu que lhe trouxessem um copo de água mineral e abriu caminho por entre os convidados para se dirigir, do outro lado de uma sebe, a um outro jardim com fontes de repuxos. Não estava ali ninguém. Sentou-se num banco a beber a sua água mineral. O ruído dos convidados chegava ali mais abafado. Observou os salpicos da água que, iluminados pelo sol muito baixo do entardecer, emanavam reflexos iridescentes. Pareceu-lhe sentir um rumor de passos e alguém exclamou nas suas costas:
- Angelica, és tu?
- Olá, Tancredi - respondeu ela sem se voltar, porque lhe tinha reconhecido a voz.
- Posso aproximar-me sem arriscar o pescoço? - brincou.
- Se eu fosse a ti, tinha muito cuidado - respondeu a sorrir. Tancredi sentou-se ao lado dela, deu um suspiro de alívio e disse, satisfeito:
- Até agora, correu tudo bem.
- O que é que estás aqui a fazer? - perguntou Angelica.
- Podia fazer-te a mesma pergunta. De qualquer modo, eu trabalhei durante todo o dia. Agora estou cansado, deixei a cozinha aos meus cozinheiros e saí para fumar um cigarro. Não fazia ideia de que o destino estava a preparar um complot nas minhas costas para me fazer tropeçar num novo perigo.
- Mas, quando me viste, paraste em vez de te afastares rapidamente.
- Eu adoro o risco - esclareceu Tancredi. Riram-se os dois. Ela reparou na brancura do casaco de cozinheiro e viu a brasa do cigarro que se consumia entre os seus dedos.
- O que é que me vais oferecer de jantar? Quando cheguei a Inglaterra fui ler o teu perfil no Google e fiquei a saber que és uma estrela internacional da cozinha.
- Não gosto dos perfis das pessoas no Google, porque muitas vezes são inexatos e vagos. Angelica pensou que a Internet não dizia que Tancredi tinha uma bela voz e um olhar inteligente e irónico. Pousou o copo já vazio em cima do banco e disse:
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- Ainda não me respondeste. O que é que me vais dar de comer neste jantar?
- Os pratos da minha terra, revistos e corrigidos pela minha fantasia. Um bom prato deve conter uma ideia, que pode surgir de uma emoção, de um estado de alma, de uma intuição. Aquilo que vais provar esta noite realizei-o a pensar em ti, sem saber que te ia encontrar.
Dizendo isto, aproximou-se dela e pegou-lhe delicadamente na mão. Ela retirou-a e disse:
- Agradeço-te, mas a minha vida já é muito problemática tal como está e não quero mais complicações. Desculpa... - sussurrou, ao mesmo tempo que se levantava do banco. E foi-se embora.
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3
- Onde é que te meteste? - perguntou Giovanni Brugliani à filha, e prosseguiu: - Desapareceste, e eu andava à tua procura. A tua mãe está a conversar com os Wood por causa de algumas invenções históricas completamente disparatadas, e o Edward dá-lhe razão. A tua filha já não se está a divertir e armou-se em muda. Eu não conheço ninguém e estava a aborrecer-me. Do outro lado da sebe vi-te falar com uma espécie de cozinheiro... Quem é? - perguntou o pai. A área reservada aos aperitivos começava a ficar deserta e eles, com os outros convidados, entraram no castelo.
- Não é um cozinheiro, é um chef, aliás, um grande chef É o sujeito com quem eu choquei com a moto no mês passado, que reencontrei no avião quando estava a chegar a Londres e que voltei a ver aqui, porque foi ele que preparou o jantar de gala desta noite. Queres saber mais alguma coisa? O pai abanou a cabeça, desconfiado, mas não insistiu para saber o que a filha lhe queria dizer. Perto da entrada estavam algumas jovens hospedeiras que pediam aos convidados os seus nomes e lhes entregavam um cartãozinho que tinha impresso o número da mesa atribuída. Os Brugliani ficaram sentados numa mesa redonda, coberta com uma toalha de brocado branco e dourado, no salão com as abóbadas pintadas de frescos onde, uma hora atrás, se tinha realizado a projeção do episódio sobre os Tudor. Um exército de empregados estava já perfilado ao longo de todo o perímetro da sala para servir o jantar.
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Na mesa dos Brugliani estavam dois desconhecidos que exibiam no peito os livre-trânsitos da imprensa. Eram, respetivamente, Mr. John Furley, fotógrafo do Mirror, e Miss Paulette Stanley, jornalista do mesmo jornal. Mr. Purley era um barbudo na casa dos trinta, com uma grande cabeça de cabelos escuros e encaracolados; Miss Stanley era uma radiosa jovem senhora de uma elegância sofisticada e o olhar indagador da cronista à caça de notícias. Mrs. Wood tentou imediatamente uma abordagem profissional, perguntando à jornalista a sua opinião sobre o episódio, mas Miss Stanley explicou que era cronista social e acrescentou:
- Olhe, por exemplo, o menu está escrito em italiano, e a tradução para a nossa língua não esclarece de todo aquilo que nos vão servir. Isto vai ser uma anotação para o meu artigo.
- Francamente, nem eu percebo o que vamos comer - interveio sir Edward.
- Eu estava à espera de um jantar que estivesse relacionado com o episódio, como por exemplo: carne de cordeiro no espeto, miúdos de carneiro grelhados e por aí fora - esclareceu Mr. Wood.
- Mas o que temos é pani cunzatu (pão cozido em forno de pedra, codimentado com azeite quente, sal e oregãos, típico da Sicília). A seguir, salada de laranja da Conca d’Oro com sal e limão, caponata (prato típico siciliano feito com beringela salteada em tomate, cebola e azeite temperado com alcaparras, vinagre e açúcar) siciliana com mel das Madonie e azeitonas da Piana Gioiosa, gateau de batatas como fazia a minha avó... - começou Angelica a ler.
- É típico do chef D’Azaro. É italiano, e deveria conhecê-lo. É considerado uma estrela de primeira grandeza no firmamento dos chefs internacionais - explicou Miss Stanley. Giovanni olhou para a filha e replicou:
- Conheço-o de nome, mas nunca provei os seus pratos.
- Eu conheço-o há uma dezena de anos, fui até hóspede da quinta de Mr. D’Azaro, na Sicília. Os seus pratos são uma sinfonia de cores, aromas e sabores inimagináveis - explicou a jornalista.
- Então conhece-o bem - deixou escapar Angelica.
- Para ser sincera, Mr. D’Azaro é o indivíduo mais indecifrável que alguma encontrei.
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Tem um discurso cativante e conta a história das civilizações através da comida, mas nunca conta nada de si próprio. A sua vida é um mistério onde nunca ninguém conseguiu penetrar - continuou a jornalista, entusiasmada.
- Mas os ingleses gostam da reserva, portanto devem compreender - replicou Angelica, que tinha captado nas palavras da jornalista um envolvimento pessoal.
- Nós, ingleses, temos o culto da privacy, mas os nossos jornais são muito mais bisbilhoteiros do que os vossos, e o gossip é a minha especialidade. Imagine a minha frustração e a dos meus colegas disse Miss Stanley a sorrir. Depois, com um ar frívolo, acrescentou: - Vou dar uma volta pela sala. - Levantou-se, fazendo sinal ao fotógrafo para a seguir, e avançou com ele por entre as mesas, cumprimentando alguns convidados com quem trocou comentários e gargalhadas, enquanto na sala se espalhavam as notas de uma tarantela siciliana e um batalhão de empregados de casaco preto e camisa imaculada começou a servir o primeiro prato do jantar.
- Uff, que seca! - sussurrou Elisabetta. Angelica calou-a com um olhar. Cristina Acerbi interveio em socorro da neta:
- Eu entendo-te. Aqui somos todos adultos, e tu precisavas de estar com gente nova. Estava a pensar que amanhã podíamos organizar um lanche na Burton House para a tua amiga Elaine e os primos dela, incluindo aquele Cedric que te é tão simpático. O rosto de Elisabetta iluminou-se. Enquanto o casal Wood exprimia a sir Edward o seu desapontamento por terem sido quase ignorados pela jornalista bisbilhoteira, Angelica sossegou a filha.
- Eu vou mandar preparar uns snacks, e depois tenho umas coisas para fazer com os avós e com o tio Ed. Por isso vais ter tu de fazer as honras da casa - disse-lhe.
- O que eu mais quero é que me deixem sozinha - confessou Elisabetta, enquanto tirava o telemóvel do bolso. - Posso dizer já à Elaine? - perguntou.
- Não enquanto estivermos à mesa - interveio a avó.
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- É melhor saíres para o jardim, até porque esta comida não te interessa e tem de ser saboreada em silêncio - sussurrou Angelica.
- Nunca provei nada de tão simples e requintado - comentou Giovanni Brugliani. Angelica entendeu, naquele momento, a diferença entre um cozinheiro e um artista. Acontecia o mesmo também com o vinho: a matéria-prima é igual para todos, saber transformá-la numa especialidade é prerrogativa de poucos. Mr. John Fur ley, o fotógrafo, retomou o seu lugar à mesa, enquanto Mrs. Wood lhe perguntava se tinha perdido Miss Stanley pelo caminho.
- A Paulette foi à cozinha falar com o chef, de quem é amiga, e acho que quer apanhar uma bisbilhotice qualquer em primeira mão - explicou o repórter barbudo.
- Muito amiga? - Angelica não conseguiu conter aquela pergunta.
- O suficiente para que seja ele a preparar-lhe o banquete de casamento. Este vai ser o último artigo da Paulette para o Mirror. Depois vai mudar-se para Uppsala com o marido e eu vou ter de andar ao lado de uma jornalista que não é tão agradável como ela. Paulette regressou à mesa só no momento da sobremesa, quando os empregados entraram na sala onde as luzes se apagaram e, na escuridão, brilhavam apenas as chamas dos candelabros pousados nas mesas. Cada um dos empregados segurava um grande tabuleiro oval contornado por velinhas acesas que iluminavam minúsculas oliveiras de folhagem brilhante cujos ramos retorcidos estavam salpicados de pequenas azeitonas iridescentes. Houve alguns instantes de silêncio estupefacto e depois rebentaram os aplausos. As pequenas árvores bonsai eram de chocolate, as folhas e os frutos de pasta de amêndoa e a erva verdejante sobre a qual estava pousada a planta era feita de açúcar caramelizado e menta.
- Tancredi D’Azaro consegue sempre surpreender-me - sussurrou Paulette, ao mesmo tempo que um empregado pousava aquela minúscula obra de arte no centro da mesa.
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Depois, no momento em que os convidados fotografavam a minúscula escultura com os telemóveis, a jornalista baixou mais a voz e sussurrou a Angelica:
- O chef deu-me uma coisa para si. Pousou-lhe no colo um biscoito redondo e acrescentou:
- Pediu-me para lhe dizer para o provar só quando estiver sozinha. - Depois passou-lhe um cartãozinho e disse: - Este é o meu cartão de visita. Posso ficar com o seu? - Angelica entregou-lhe um e depois pediu licença para se afastar, com o pretexto de ir procurar a filha. Saiu da sala, deu dois passos em direção ao jardim e, à luz de um lampião, abriu a mão onde tinha apertado o biscoito. Partiu-o e tirou de dentro um bilhetinho que dizia: "Não tenhas medo, Angelica, não fujas de mim". Voltou a dobrar o papelinho e enfiou-o no decote do vestido.
- Mamã, estás bem? - perguntou Elisabetta, que surgiu ao lado dela.
- Saí para te vir procurar - mentiu ela, a sorrir.
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4
- Temos de conversar os dois - disse Giovanni Brugliani a filha.
- Pai, é quase meia-noite - protestou ela.
- Durante o dia não há tempo e nunca conseguimos estar os dois sozinhos - replicou o pai, que trazia vestido um roupão de seda, enquanto se instalava na poltrona em frente ao sofá onde Angelica se tinha enroscado. Tinham regressado há pouco a Burton House e Angelica tinha-se fechado no quarto. Retirara do decote o minúsculo papelinho com a mensagem de Tancredi, relera-o e escondera-o no cofre das joias. Estava confusa e sem vontade de ir logo para a cama. Por isso aninhou-se no sofá para pensar naquele homem estranho que tinha entrado na sua vida como um ciclone. Agora o pai estava sentado à frente dela e parecia decidido a não a deixar. Com um tom a meio caminho entre a exasperação e a resignação, Angelica suspirou:
- Pai, diz lá o que queres saber. Por alguns instantes, o pai observou a sua lindíssima menina com satisfação, porque, depois dos anos tempestuosos da adolescência, Angelica tinha segurado as rédeas da sua existência com a tenacidade dos Brugliani. Tinha dado nova seiva a empresa, aumentado o volume de negócios, produzido novas etiquetas de prestígio e encontrado um equilíbrio sentimental com aquele marido que estava agora a fazê-la sofrer, mas que durante anos soubera dar-lhe serenidade e ser um pai extremoso para a pequena Elisabetta.
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Agora, porém, Angelica estava prestes a baralhar as cartas uma vez mais.
- A tua mãe e a tua filha dizem e não dizem, tu ficas calada e eu sinto-me um pouco posto de lado - suspirou o pai, por sua vez. Angelica sorriu-lhe com ternura e esticou-se para lhe acariciar uma mão.
- Querido pai! - disse num sussurro, enquanto observava aquele homem bom e severo que tanta importância tinha tido na sua formação. Passara a vida a lutar para levar avante a família e a empresa, tendo ainda que lidar com uma mulher que sempre amara e que sempre se esforçara por compreender. Aceitara-a até quando se tinha juntado com Edward. Sempre tivera o bom senso de não ligar a mínima importância aos mexericos e às maledicências do seu pequeno mundo provinciano e Angelica sabia que se havia alguém que podia compreendê-la completamente era o pai. Disse então:
- Estava hesitante em contar-te uma coisa sobre mim, para não te preocupar. Já devias saber que consigo desenvencilhar-me sozinha, mesmo nas situações mais complicadas.
- Estás a divorciar-te do teu marido. Não vejo nada de muito complicado - observou o pai.
- Entretanto conheci um indivíduo singular...
- Referes-te ao grande chef com quem te vi falar esta noite? perguntou Giovanni Brugliani.
- Sabes, as traições do meu marido feriram o meu amor-próprio. Estou desiludida e humilhada, porque tinha como certo que o Raffaello e eu íamos passar a nossa existência juntos. De repente, na primavera passada, descubro que o meu marido me trai sem que eu tivesse nunca dado conta. Será que uma mulher atenta pode nunca ter sentido nem o cheiro? Angelica levantou-se do sofá, pegou na garrafa de água de «boa-noite», que os empregados deixavam todas as noites ao lado da cama dos hóspedes e encheu um copo. Depois perguntou ao pai:
- Queres? Beberam os dois. Depois o pai tirou os cigarros e o isqueiro do bolso do roupão e olhou em volta à procura de um cinzeiro.
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Angelica estendeu-lhe um, sorridente.
- Trouxeste os cigarros porque tinhas a certeza de que íamos conversar?
- Esperava - respondeu ele, soltando com satisfação uma baforada de fumo.
- Pois eu estou a dar-me conta de que falar contigo me ajuda a clarificar as ideias.
- Começa então pela consciência de não teres sido uma mulher atenta. Disseste que tinhas como certo o teu casamento. Eu nunca tinha dado como certo o meu com a tua mãe, e a Cristina foi-se embora na mesma. Mas ela é uma Acerbi, e tu só o és em parte.
- Casei-me com o Raffaello porque o amava. Quanto ao meu lado Acerbi, as vezes pesa-me, porque, sem me armar em juiz dos meus pais, finalmente consigo confessar-te com franqueza que nunca entendi este vosso ménage à trois. Entre pai e filha caiu um silêncio. Angelica levou uma mão a nuca e começou a tirar os ganchos que lhe prendiam os cabelos sedosos, deixando-os cair sobre os ombros. O pai apagou o cigarro, bebeu mais um gole de água, abanou a cabeça e replicou:
- Francamente, nem eu o entendi nunca. Mas aprendi a não julgar uma situação ou um indivíduo só com base nas aparências. O nosso ménage, como tu lhe chamas, é o ideal para o Edward e para mim. Somos tão egoístas, como todos os apaixonados, que nos consideramos felizes por vivermos pacificamente ao lado da mesma mulher. Há momentos em que o nosso entendimento a três é absolutamente perfeito e a tua mãe sente-se feliz por isso. Não penso que haja muitas mulheres da idade dela que possam afirmar ter atingido a serenidade. Ela é serena e não tem remorsos, e eu também estou bem - declarou Giovanni Brugliani. Angelica tirou os sapatos elegantes que trazia e calçou uns sapatos de quarto. Depois sentou-se outra vez no sofá.
- Começo a perguntar a mim mesma que exemplo a nossa família está a dar a Elisabetta.
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Agora parece que já não se importa assim tanto, mas uma avó bígama, um tio que largou mulher e filhos parase juntar com uma aluna, uma mãe divorciada, não são exem plos de comportamento lineares - raciocinou em voz alta.
- Preferias que tivesse uma avó iracunda, um tio com a amante debaixo da cama e uma mãe que tolera um marido infiel? - perguntou Giovanni. E prosseguiu: - Olha em volta, e vais ver que a família ideal não existe. Pelo menos, na nossa há amor e harmonia, trabalho e sinceridade. Nenhum de nós é um mau exemplo para a tua filha.
- Gostava de ser tão boa como tu a absolver-me. Mas vacilo nas incertezas.
- Por causa daquele chef que te manda mensagens escondidas dentro de um doce? Pensavas que eu não tinha dado conta? - perguntou o pai, e continuou: - Tu não sabes, mas há cerca de oito anos eu tentei de todas as maneiras meter o nosso melhor brut no restaurante dele. Nunca consegui encontrar-me com ele. É uma espécie de prima-dona que construiu à sua volta uma aura de mistério.
- Eu mal o conheço e não tenciono dar o flanco para aprofundar o conhecimento - garantiu Angelica.
- Mas ele intriga-te, e tu és ainda demasiado jovem para cortar com os sentimentos e com o amor.
- Estás enganado.
- É pena. Comida e vinho andam sempre de braço dado, por isso ele podia ser o companheiro ideal para ti. Pensa nisso.
- Pai, já é uma da manhã. Gostava de ir descansar - disse a filha, com um bocejo. Giovanni Brugliani levantou-se da poltrona, inclinou-se para lhe dar um beijo na testa e, a sorrir, sussurrou: Dorme bem, minha pequenina. A vida, para ti, começa amanhã.
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5
Raffaello Rovesti tinha-se refugiado no sossego do restaurante Michelangelo, no aeroporto de Linate, não só para almoçar mas também para pensar em paz no seu futuro profissional e afetivo, enquanto esperava o voo de Londres que, dali a duas horas, traria de volta a Itália Elisabetta e Angelica. A filha tinha-lhe ligado no dia anterior para lhe dar as coordenadas do voo, dizendo-lhe:
- Pai, estive lindamente em casa dos avós, como sempre, mas tenho saudades tuas e não vejo a hora de ir de férias contigo, só nós os dois. Referia-se à ideia que ele tinha elaborado e proposto, definindo-a como «sem rumo com o pai». Isso tinha acontecido um mês atrás, quando a foi levar ao aeroporto para apanhar o avião para Londres. Disse-lhe então:
- Nem quero pensar em passar as férias sem a minha menina.
- Tens alguma coisa em mente para nós os dois? - perguntou ela, cheia de curiosidade.
- Gostaria de te dizer que não gosto dos destinos exóticos que estão tanto na moda. Devo também confessar-te que, apesar de ter feito muitas viagens por esse mundo fora, conheço muito mal a nossa linda Itália. Não me refiro às cidades da arte, mas à província. Tu conheces os vales, os bosques, os cursos de água, as montanhas que estão à volta de Borgofranco? Conheces as pequenas igrejas românicas ou lombardas, só em parte recuperadas, alguma vez visitaste as ruínas de castelos e antigos burgos? Pensei em duas semanas à descoberta da nossa região.
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A noite podemos dormir numa albergaria, mas levamos também connosco um saco-cama porque nunca se sabe - propôs-lhe. A filha ouviu-o com interesse e depois respondeu-lhe, feliz:
- Seria uma grande aventura, pai. Eu e tu sozinhos, a desafiar os nossos limites e as nossas forças. És fantástico! Só tu podias ter uma ideia tão fantástica. Depois, durante aquelas semanas de afastamento da filha, tinha ocorrido uma situação devido à qual esperava que Elisabetta se tivesse esquecido daquele projeto. De facto, enquanto provava com pouca vontade o tagliatelle ai funghi que lhe tinham servido na mesa, estava obcecado com uma pergunta: poderia recusar o convite de Pippa Premoli? Alguns dias atrás, Pippa tinha-lhe dito:
- Daqui por uns dias vou fazer uma pausa no trabalho e vou retirar-me para a nossa quinta na Puglia. Raffaello sabia que os Premoli, como muitos outros empresários do Norte, tinham adquirido recentemente uma grande propriedade, não muito distante de Ostuni, que tinham restaurado para fazer dela uma residência de verão.
- É claro que não vai ser exatamente descanso, porque vai meio mundo visitar-me. Tens tempo para lá estar comigo? - perguntou, receando ouvir uma recusa. Pippa tornara-se muito mais dócil desde que Raffaello tinha deixado de ter a iniciativa de procurá-la. Naquele ambiente moderníssimo do Michelangelo, o fragor dos aviões que partiam e chegavam era atenuado pelas janelas insonorizadas. O fundo suave de uma música transmitida pela rádio e os poucos comensais que conversavam em voz baixa contribuíam para reforçar uma atmosfera acolhedora, que favorecia a reflexão. A uma mesa não muito distante da sua, Raffaello reparou numa senhora relativamente jovem, elegantíssima e muito bonita que bebia um vinho branco e olhava para ele de soslaio. Quando os olhares de ambos se cruzaram, ela esboçou um sorriso. Em qualquer outro momento teria aproveitado imediatamente aquela oportunidade para se aproximar dela.
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Agora, pelo contrário,limitou-se a retribuir um esboço de sorriso e voltou a mergulhar nos seus pensamentos. Devia desiludir a filha ou correr o risco de perder Pippa se não fosse com ela para a Puglia? Ele amava a sua menina e, acima de tudo, duas semanas sozinho com ela eram uma ocasião para se conhecerem melhor e tornar ainda mais forte a sua relação, especialmente agora que Angelica se queria divorciar dele. Mas recusar o convite de Pippa podia também excluir encontros interessantes na Puglia com os amigos influentes dos Premoli. Havia já algum tempo que a crise económica se refletia pesadamente no mundo da imprensa. As entradas da publicidade, que durante muito tempo tinham sustentado revistas e jornais, tornavam-se cada vez mais magras. Muitos jornalistas ficavam sem trabalho, muitos jornais fechavam, muitos agonizavam. O seu pequeno quotidiano ia-se governando entre cortes de despesas e outros expedientes para não sucumbir, de tal maneira que, antes de explodir a tempestade com a mulher, Raffaello se tinha reunido com os editores e proposto uma redução do seu salário. Eles acolheram com alívio aquele gesto espontâneo e responsável. Mas ele ainda ganhava muito, demasiado, atendendo ao período de crise. Raffaello temia que os editores, mais cedo ou mais tarde, decidissem fechar o jornal. Há algum tempo que já não dormia um sono tranquilo. As vezes acontecia-lhe olhar com rancor para Tiziana Scaroni, a secretária, atribuindo-lhe a responsabilidade dos seus problemas. Mas logo se apercebia de que a velha solteirona não era responsável pela instabilidade do país, nem pelo falhanço do seu casamento, causado pelas suas infidelidades.
- Porque é que eu fiz isto? - perguntou agora a si mesmo, quase desesperado. Observou no ecrã do restaurante a lista das chegadas. O voo de Londres tinha um atraso de trinta minutos. Portanto, ainda tinha uma hora de espera. Pagou a conta do restaurante e desceu ao andar inferior. Entrou numa loja onde se vendiam camisas, perfumes, livros e cigarros, no meio de uma multidão de viajantes.
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Não havia nada que lhe interessasse e então foi sentar-se no bar. Enquanto tomava um café verificou os e-mails recebidos. Respondeu a alguns deles e depois tirou uns apontamentos para os temas a aprofundar durante a reunião da redação do jornal, nessa noite. Verificou mais uma vez o placard das chegadas. O atraso do voo de Londres tinha aumentado para quarenta minutos. Viu no telemóvel as chamadas que não tinha atendido. Entre elas havia também algumas de Pippa, com quem não queria falar. Naquele momento, pela primeira vez, sentiu que tinha uma grande vontade de lhe dizer: entre ti e a minha filha, escolho-a a ela, porque é mais importante para mim do que tu. Imaginou a sua menina a sair pela porta, no meio dos passageiros que chegavam, a olhar em volta à procura do pai, que estava ali, no meio de uma multidão à espera de tornar a abraçar amigos e parentes. Pareceu-lhe sentir os braços ainda frágeis da sua Elisabetta à volta do pescoço. Haveria por acaso alguma coisa mais reconfortante do que aquele abraço? Quando o avião aterrou, viu abrir-se a porta das chegadas e aparecer Angelica com Elisabetta. Então comoveu-se, porque aquelas duas mulheres eram os seus tesouros. Uma, tinha-a perdido. Não cometeria o erro de perder também a outra.
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Sobre a cidade coberta pelas sombras da noite tinha descido um manto de ar abafado que era o prelúdio da chegada de um temporal. Ao regressar a casa dos Brugliani na cidade, depois do fecho do jornal, Raffaello tropeçou em Luigi, o cunhado mais novo, que regressava com Sabine de um serão em casa de amigos.
- Como é que isso vai? - perguntou Luigi.
- Tudo normal - respondeu Raffaello com um ar lacónico.
- A minha irmã contou-me que amanhã partes com a Elisabetta para umas belas férias - prosseguiu o cunhado.
- Disse-te mesmo assim? Umas belas férias? - perguntou ele, curioso.
- Sim. Não é verdade? Raffaello sorriu e replicou:
- Espero que seja, tanto mais que a ideia louca de percorrer a pé a nossa região partiu de mim. Sentia a necessidade de me confrontar com a minha filha, e se calhar ela também tem necessidade de se confrontar comigo.
- Eu estou cansada e vou dormir - interveio Sabine, nada interessada naquela conversa. Subiu as escadas e desapareceu.
- Como é que correm as coisas com ela? - perguntou ao cunhado, referindo-se a sua jovem companheira.
- Como boa germânica, a Sabine é uma pessoa que vai direta ao assunto, por isso espero que não me complique a vida, como fazia a minha mulher, que eu tinha apelidado de «luta contínua», porque cada palavra minha levantava um enxame de polémicas.
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Luigi Brugliani era um homem pouco expansivo. A verdade é que gostava dos seus livros e da paz doméstica, enquanto a mulher era uma hiperativa que tolerava mal um marido sempre pensativo.
- Eu, pelo contrário, compliquei a minha vida sozinho, porque a tua irmã nunca me causou problemas. Os dois cunhados tinham-se sentado nos degraus da entrada. Luigi tinha oferecido um cigarro a Raffaello e agora estavam ali a lançar baforadas de fumo no ar denso da noite.
- A minha irmã, que Deus a conserve, nunca tos criou só aparentemente, porque na essência não é uma pessoa fácil. Tenho pena que as coisas entre vós se tenham deteriorado, mas não te aflijas mais do que é preciso, porque há coisas piores nesta vida - comentou Luigi. E acrescentou: - Amanhã de manhã eu e a Sabine vamos para a Áustria, para casa dos pais dela. Também gostava de levar os meus filhos, mas eles agora já são crescidos e têm outros planos. Invejo-te um pouco por causa dessa viagem com a Elisabetta. Apagou o cigarro, abraçou o cunhado e entrou em casa. Raffaello acabou de fumar o seu antes de se decidir a entrar, e perguntava a si mesmo até quando poderia usufruir do apartamento na Villa Brugliani. Tiziana Scaroni, a secretária do jornal, talvez por se sentir culpada, tinha-lhe arranjado um apartamento de duas assoalhadas não muito distante da redação do jornal, dizendo-lhe que tinha ido vê-lo.
- É um edifício elegante e o aluguer, considerando que está mobilado e que há uma empregada que trata de o manter limpo, é quase irrisório - tinha-lhe dito. Ele foi vê-lo e falou com o proprietário, que o disponibilizaria em outubro. Até então devia contar com a hospitalidade da mulher. Passava já da meia-noite e Raffaello estava muito cansado. Namsala de estar estavam pousadas as compras feitas na véspera com a filha: mochila grande, saco-cama, botas e anoraque para as subidas das serras. Nessa tarde tinham combinado partir de Borgofranco às sete horas da manhã seguinte. Estava quase a dormir quando uma vibração do telemóvel lhe assinalou a entrada de uma mensagem.
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A tentação de a ignorar era forte, mas pensou que devia ser uma coisa importante se alguém tentava entrar em contacto com ele àquela hora da noite. Por isso voltou a acender a luz da mesa de cabeceira e leu o remetente: Pippa. A mensagem dizia: Estás acordado? Raffaello respondeu irritado: Agora, estou. Um instante depois ela ligou-lhe.
- Não consigo adormecer, sinto-me tão só na minha cama - começou a amante. Como tinham mudado as coisas entre eles! Poucas semanas antes teria ido a casa dela. De cada vez que pensava nela, sobrepunha à sua a imagem de Angelica e apercebia-se de que para ele era a única mulher desejável: a sua mulher. Mas uma vez que a tinha perdido, Pippa representava a sua âncora de salvação para não ficar sozinho.
- Amanhã vou ter um dia pesado, o primeiro destas férias tresloucadas com a minha filha, e preciso de dormir.
- Vê lá se fazes essas férias durar o mínimo.
- Não posso desiludir a Elisabetta. Sabes como são as crianças.
- Tenho suficiente bom senso para não me complicar a existência com criançada egoísta - respondeu ela, desapontada.
- Tem paciência - rematou Raffaello.
- Não, não tenho, mas preciso de te ter aqui e por isso vou esperar - concluiu ela, e desligou a chamada. Ele deu um suspiro de alívio, apagou a luz, fechou os olhos e esperou conciliar o sono. Não conseguiu. Não encontrava a posição certa, a almofada era demasiado baixa, o ar condicionado demasiado frio. Levantou-se, dirigiu-se pesadamente à cozinha e preparou um chá de camomila. O cheiro enjoou-o e despejou-o no lava-louça. Preparou um café, americano, aquele de que a mulher gostava e que ele sempre desprezara. Foi tomá-lo na varanda, a fumar um cigarro e a olhar para as estrelas, tão distantes e luminosas. Aquele café cor de âmbar tinha um perfume cativante e um sabor muito aromático. Quantas seriam as pequenas manias de Angelica para as quais ele sempre olhara com desconfiança? Porque é que, em vez de me concentrar na minha relação, me afastei e me meti nesta confusão?, perguntou a si mesmo. E finalmente: mas em que tipo de homem é que eu me tornei?
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O telefonema de Pippa, naquela noite, tinha cavado um sulco ainda mais profundo entre eles. A Pippa começa a enfadar-me, pensou, como me enfadaram as outras mulheres que eu gostava de seduzir para me sentir seguro. E apercebeu-se de que se desprezava por ter traído a confiança que a mulher depositava nele. Mas, ainda mais, desprezava-se por ter elaborado a estratégia de utilizar Pippa no caso de não conseguir reconquistar Angelica. Mas em que tipo de homem é que eu me tornei?, repetiu. Que exemplo estou eu a dar à minha filha? Quanto a Angelica, ela merecia realmente um marido melhor do que eu, e agora que a perdi dou-me conta de que ainda a amo. Acabou de tomar o café, atirou fora o cigarro e meteu-se outra vez na cama. Lembrou-se dos pais. Há quanto tempo não pensava neles? Duas pessoas humildes que o tinham criado ensinando-lhe o respeito pelos outros, a importância da honestidade e a dignidade do trabalho. Reviram-se nele quando, privando-se de tantos pequenos prazeres, apoiaram a sua inclinação para os estudos e ele retribuiu com resultados excelentes. Mas nunca imaginariam, com certeza, que acabaria por se tornar num homem desprezível.
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7
- Pai, estás cansado? - perguntou Elisabetta.
- Nem por sombras. Só estamos a andar há duas horas e ainda temos muita estrada a percorrer para chegarmos a Sarezzo antes que anoiteça - respondeu Raffaello, que avançava à frente dela pela vereda que serpenteava a margem do Mella.
- Eu acho que estás cansado mas não queres admitir. Os homens são assim: nunca querem parecer fracos diante de uma mulher - replicou a filha, com ar de quem é muito conhecedora.
- Muito bem, conseguiste ferir o meu orgulho, e agora sabes o que te digo? É verdade, estou cansado e também tenho fome disse ele, deixando-se cair sobre o relvado que bordejava o caminho. Tirou a mochila, limpou o suor do rosto com um lenço e apoiou as costas no tronco de uma amoreira, imitado pela filha. Depois perguntou-lhe:
- Ainda te dói o pé, não dói?
- Uff, já me apanhaste. Tu és como a mãe, descobres sempre tudo - queixou-se.
- Tira o sapato e deixa-me ver - disse ele, enquanto tirava da mochila uma garrafa de água mineral.
- Um momento, deixa-me recuperar o fôlego. Andavam a caminhar há três dias e, na noite anterior, quando pararam num pequeno hotel para dormir, Elisabetta mostrou-lhe uma bolha que se tinha formado no calcanhar. Foram à farmácia e a farmacêutica medicou-a e sugeriu que mudasse o tipo de calçado.
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- O facto é que o meu pai me obriga a caminhadas extenuantes, apesar de saber que eu não estou habituada a fazer tantos quilómetros a pé - disse, assumindo o tom de vítima.
- Miúda desenvergonhada! - retorquiu Raffaello a rir, divertido. E explicou à farmacêutica:
- No primeiro dia de marcha fui-me abaixo, e realmente estava cansado, porque vinha de uma noite sem dormir, e ontem ela quis exceder-se para me demonstrar que uma filha pode bater o pai aos pontos. Este pobre calcanhar ferido é a prova do quanto a minha filha é teimosa. Impôs-lhe umas Nike confortáveis e na manhã seguinte quis verificar as condições do calcanhar.
- Acho que hoje não devemos meter-nos ao caminho - sugeriu Raffaello.
- Estou fantástica com as Nike, o calcanhar vai ficar bom e eu tenciono prosseguir, de acordo com o programa - afirmou Elisabetta. Naquele momento sufocou um trejeito de dor, mas não se queria dar por vencida diante do pai e declarou:
- Não é o meu pé que me dói, são os insetos que se estão a banquetear na minha pele - insistiu, a mentir.
- Agora tens duas possibilidades: ou engoles a tua afirmação sobre os homens que não querem sucumbir diante de uma mulher, ou então vens atrás de mim até à noite, tal como estava programado - ameaçou Raffaello. Com os olhos brilhantes, Elisabetta replicou:
- Rendo-me, pai. Acho mesmo que não consigo continuar. Ele abraçou-a, a sorrir.
- És casmurra como a tua mãe, e eu gosto muito de ti. Agora vamos comer as sanduíches de presunto e depois carrego-te aos ombros e paramos na primeira albergaria que encontrarmos.
- Segundo a Internet, há uma a três quilómetros. Achas que consegues levar a tua filha e as nossas mochilas?
- Não sei, mas temos de tentar. Entretanto, vamos descansar decidiu Raffaello, que exultava de felicidade, porque nunca como naqueles dias tinha sentido tão profundamente proximidade com a filha.
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A hospedaria Tacconi ficava junto às ruínas de uma igreja lombarda destruída pelo tempo e pelas pilhagens, atrás de um bosque de faias e castanheiros. O rumorejar de uma torrente criava uma ideia de frescura naquele meio-dia cheio de sol.
- São loucos, a caminhar com este calor - disse uma mulher idosa que se materializou na penumbra do átrio, enquanto Raffaello depositava a filha em cima de um banco de madeira encostado à parede em frente ao balcão da receção.
- E com o meu doce peso em cima dos ombros - acrescentou Elisabetta, dirigindo um olhar de gratidão ao pai.
- Tencionávamos chegar a San Crispino até ao fim da tarde, mas a minha filha hoje não aguenta - disse Raffaello, sentando-se ao lado dela, exausto.
- Vou trazer-lhes duas limonadas frescas - ofereceu a velhota, com ar de cumplicidade. Saíu e voltou a aparecer poucos minutos depois com dois copos cheios de água açucarada com sumo de limão. Depois pôs-se diante deles enquanto bebiam e comentou:
- Vêm aqui muitos loucos, com aquelas coisas que têm umas rodas como os tanques de guerra, e dizem-me que estão de férias. Mas dois a calcorrear caminhos com estes dias tórridos nunca tinha visto. Ainda são mais malucos do que os outros - sentenciou com convicção. Depois observou Elisabetta, que tinha tirado a sapatilha e mostrava o pé com o penso, abanou a cabeça e acrescentou: - Esta menina precisa de pôr os pés de molho em água com sal. Dói um bocadinho, mas cura essas bolhas melhor do que todas as pomadas da farmácia. E depois, dois dias de repouso. Pai e filha entreolharam-se e Elisabetta assentiu.
- Tem dois quartos para nós, para dois dias?
- Eu tinha, mas esta noite estou à espera de dois casais alemães. Nesta zona, quando é verão, os bárbaros descem ao vale como potros. Na terra deles não há a mesma crise que na nossa. É claro, digo eu, forretas como são! Quando lhes apresento a conta, dão-me cabo da cabeça. Mas com certeza que esta pobre menina não pode andar por aí assim. Podia mandá-los para casa do sacristão.
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Ele tem dois quartos que aluga no verão e também faz de motorista. Podia levá-los a qualquer sítio.
- Eu gosto disto aqui - disse Elisabetta ao pai.
- Minha senhora, não podia mandar os alemães para casa do sacristão e dar-nos os quartos deles a nós? - perguntou Raffaello.
- Mas qual senhora! O meu nome é Barbarina. Eu depois cá me arranjo com os alemães. Agora venham comigo que eu levo-os aos quartos. Não são nada de especial, para os senhores da cidade, mas aqui é tudo limpo. À noite come-se o que houver, e esta noite há sopa de hortaliça e omeleta de ervas, feita com os ovos das minhas galinhas - anunciou, enquanto subia à frente deles por uma escada de pedra. Seguiram por um corredor estreito para o qual davam as portas dos quartos. Pai e filha encontraram-se pouco depois no jardim da hospedaria, no meio de limoeiros que começavam a apresentar frutos maduros, uma velha oliveira de tronco retorcido, arbustos de oleandros e uma piscina em miniatura.
- Como é o teu quarto? - perguntou Raffaello.
- Limpo, como disse a Barbarina - respondeu Elisabetta, sentando-se a sombra da oliveira. E acrescentou: - Não é um hotel de luxo, mas eu gosto dele. Tens rede no tablet? Aquela era a hora em que Angelica comunicava com eles, da China, onde tinha ido com Ye-Liu-Jie, uma encantadora provadora de vinhos que trabalhava em Itália havia já algum tempo.
- Claro que sim - respondeu o pai.
- Por favor, não vamos dizer nada a mãe do meu pé.
- Não queres que fique preocupada?
- Não quero que se zangue contigo.
- Desde quando te tornaste assim tão protetora com o teu pai?
- Desde que a mãe se zangou contigo.
- Gosto muito de ti - disse ele, fazendo-lhe uma carícia. Viram avançar Barbarina que, extremosa como uma avó de outros tempos, anunciou:
- Agora vem aí o meu ajudante. Colocou uma cadeira diante de Elisabetta e prosseguiu:
- Que coisa tão feia, ficar velho. Eu queria fazer mais coisas, como quando tinha setenta anos.
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Mas no mês passado fiz noventa e um e já não consigo tomar conta de tudo. Fico indignada ao ver como os jovens gostam de não fazer nada. Ainda agora disse àquele mandrião do Danilo para trazer cá para fora a bacia com a água quente, mas com ele é tudo muito devagar - resmungou, enquanto apontava para um rapaz que avançava lentamente em direção a eles com uma grande bacia de plástico cheia de água fumegante.
- Este é o último dos meus bisnetos. É o filho da minha neta Valeria, que agora está na cozinha a preparar o jantar. Aqui somos todos família e para aguentar isto fazemos nós tudo, porque se metêssemos pessoal não dava para as despesas - explicou, com muita vontade de contar coisas. Depois voltou-se para o bisneto:
- Anda lá, pequeno, pousa a bacia e traz-me o frasco do sal grosso e uma toalha limpa - disse-lhe. - E agora, menina, mostra lá essa bolha. Elisabetta mostrou-lhe o pé doente, dizendo:
- Eu posso fazer isso sozinha.
- Então, não confias em mim? Olha que eu tratei das feridas de sete filhos, nove gatos malandros, cinco cães vadios e as chagas de meia aldeia. Achas que não sou capaz de curar o teu pé? - perguntou-lhe num tom desafiante. Entretanto, deitou na água um grande punhado de sal e ordenou-lhe: - Mete aqui dentro esse pezinho delicado de menina da cidade e não te queixes se te arder. Eu, entretanto, vou preparar-te um lanche de substância.
- Está-se melhor aqui que no Grande Hotel - sussurrou Raffaello à filha, assim que ficaram a sós.
- É mesmo - concordou ela. - Num grande hotel eu nunca teria sido tratada por uma bisavó de noventa anos. E depois estou muito contente por estar com o meu papá - disse-lhe, e ele sorriu, satisfeito.
- Tenho pena que as coisas entre ti e a mãe não estejam bem disse num sussurro, quase a falar consigo mesma. - Mas, sem a vossa rutura, nós não estaríamos aqui os dois juntos - tentou consolá-lo. Ele não replicou. Inclinou-se para observar o calcanhar da filha, que lhe perguntou:
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- Achas que o remédio da Barbarina vai resultar?
- Acontece que os velhos sabem mais coisas do que nós. Mete os pés na água e descontrai-te - aconselhou.
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Naquele jardinzinho rústico, tratado com cuidado, o calor de agosto era mitigado por uma brisa que descia do monte Colombine. No ar pairava o zumbido frenético dos insetos e o rumor da água que corria, impetuosa, na torrente. Raffaello, deitado numa espreguiçadeira, com o boné enterrado até aos olhos, apanhava o sol do fim da tarde, gozando a paz daquele lugar, e bebia uma cerveja gelada. Elisabetta saboreava preguiçosamente um gelado de fruta e, entretanto, enviava mensagens do telemóvel.
- Não dás uma trégua ao desgraçado desse telefone - observou o pai. Entre ele e a filha havia apenas três décadas de diferença, e no entanto parecia-lhe que o mundo dos jovens estava a cem anos de distância do seu.
- Vá lá, pai, não te armes em severo - replicou ela, e continuou a escrever. Ele não fez comentários, mas perguntou a si mesmo o que teriam os jovens para contar uns aos outros com aquela modalidade histérica que excluía não só o contacto direto, mas até o som da voz.
- Está bem, já vou desligar - disse Elisabetta. E acrescentou:
- É que assim comunicamos através do WhatsApp e não gastamos dinheiro.
- Quem são os teus interlocutores? - quis saber.
- Colegas de escola.
- Só?
- E o Gianmarco.
- E mais?
- O Cedric.
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- O filho de Albione, aquele de quem tu gostas tanto?
- Sim, pai, sempre achei que o Gianmarco ia ser o meu companheiro daqui até à eternidade. Crescemos juntos, as vezes parece que ele me conhece melhor do que eu me conheço a mim mesma. Tanto que me escreveu: «Sinto-te um bocadinho fria. O que se passa contigo?». E eu evitei cuidadosamente referir-me ao Cedric - contou Elisabetta. E prosseguiu: - O Cedric tem uma maneira de olhar para mim que me põe doida. Tem um olhar magnético, não sei se consigo explicar-me. Imagina que ele só tem 19 anos e já viajou por meio mundo. Agora vai para Oxford. Eu disse à mãe que me queria inscrever em Oxford para estar perto dele, mas ela olhou para mim como se eu fosse doida.
- E és. Até te podia ler o futuro, se tu insistisses nesse disparate. Ele ia conhecer imensas universitárias que o iam intrigar muito mais do que tu, que ainda és uma miúda. Tu ias ficar desesperada, deixavas de estudar e suplicavas que te deixassem voltar para casa. Acho que a tua mãe tem razão - disse Raffaello.
- Mas como é que eu faço para deixar de pensar nele? É tão bonito! Nisso sou como a mãe, só gosto de rapazes bonitos. Os feios até podem ser mais inteligentes, mas eu não os suporto. Não paro de pensar nele. Traí o Gianmarco e não tenho sossego. O pai sorriu, porque as perturbações sentimentais da filha lhe faziam lembrar os anos da sua adolescência, quando era muito popular entre as colegas de escola que o consideravam muito bonito e competiam para receber os seus favores. Era um aluno brilhante e tinha até conseguido seduzir a professora de Ciências, matéria em que não se distinguia, para obter uma excelente nota. Aquele sucesso fizera-o intuir as potencialidades do seu fascínio sobre as mulheres. Mas isso ele não podia contar a filha, até porque só agora se apercebia com clareza da mesquinhez de muitos comportamentos seus.
- Vê lá, se quiseres podes falar com a mãe, mas a experiência diz-me que não devias abordar o assunto com o Gianmarco, porque ias fazer-lhe mal sem necessidade - sugeriu.
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Ouviram passos sobre o saibro e viram Danilo aproximar-se com um prato de figos.
- A minha avó Barbarina manda isto - disse, voltando-se para um casal de estrangeiros idosos que estavam a apanhar sol em fato de banho junto à piscina, a pouca distância deles. Os dois pronunciaram uma série de Danke, lieber Danilo, e mergulharam na pequena piscina a rir como crianças e a atirar água um ao outro.
- Aí está a raça eleita de hitleriana memória - sussurrou Raffaello à filha. E acrescentou: - Estou a destilar suor e esperava atirar-me para aquele tanque, mas agora decidi que vou ao meu quarto tomar um duche.
- Também eu - disse Elisabetta. O lieber Danilo foi ter com eles e anunciou:
- A avó foi à colmeia e mandou-me dizer-lhes que se janta às sete e meia. - Depois acrescentou: - Também querem figos?
- Não, obrigado, vamos tomar um duche - respondeu Raffaello, e entraram no edifício. Elisabetta, assim que ficou sozinha no quarto, ligou outra vez o telefone e recebeu, de Gianmarco e das amigas, uma série de mensagens. Apressou-se a lê-las e a responder. Escreveu ao namorado: A minha viagem com o meu pai está a correr lindamente. Tu diverte-te com os teus amigos. Vemo-nos em Borgofranco antes de começar a escola. Beijos grandes». Depois disse para si mesma: - Sinto-me um verme. - Logo a seguir mandou uma longa mensagem a Cedric, que concluiu com: Receio que os meus pais não me deixem ir fazer o liceu a Oxford. Espero voltar a ver-te no próximo verão. Entretanto, não olhes demasiado para as meninas que encontrares à tua volta, porque eu sou italiana, portanto sou ciumenta, e não te ia perdoar. Poucos instantes e chegou a resposta de Cedric: Mas eu sou inglês e não admito o ciúme. Não eram aquelas as palavras de que estava à espera. Desligou o telemóvel, sussurrando: - Estúpido! Às sete e meia o pai bateu-lhe à porta para descerem, e dirigiram-se a uma salinha rústica, com seis mesas postas. Os hóspedes do pequeno hotel já estavam nos seus lugares.
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Uma jovem andava de mesa em mesa a servir conchas de sopa que espalhava no ar o aroma dos legumes, enquanto Barbarina se aproximava dos clientes para desejar bom apetite.
- Esta noite, na praça, vai haver um concerto com a banda da vila - anunciou. E acrescentou: - Porque não vão também?É uma coisa boa, feita por gente de cá para aquela meia dúzia de turistas que passam por estes lados, mas depois dança-se. Raffaello dirigiu um olhar interrogativo a filha, que respondeu:
- Não me apetece assim muito. Elisabetta estava desgostosa com a resposta do seu apaixonado inglês, mas não queria falar sobre isso com o pai. Pensava que Gianmarco não assumiria nunca aquele tom arrogante com ela. Na realidade, o seu namoradinho não era arrogante com ninguém. Tinha uma personalidade linear e sincera e, sobretudo, respeitava os sentimentos dos outros, comentou para si mesma.
- Está a doer-te o tornozelo? - perguntou Raffaello, preocupado.
- Um bocadinho - respondeu, lacónica, como se o seu mau humor dependesse do pé magoado.
- Não vão chegar dois dias para que a pele cicatrize. Se calhar, devíamos voltar para casa - sugeriu ele.
- Pai, não exageremos! Eu gosto de estar aqui.
- Não mintas. Na realidade, tu agora querias estar no Dorset com aquele teu Cedric. - Uff, pai, porque é que não te metes na tua vida? - replicou ela, corando, quase a chorar.
- Porque tu és a minha menina, às voltas com o seu primeiro desgosto de amor - respondeu Raffaello a sorrir.
- Eu não tenho nenhum desgosto de amor - mentiu Elisabetta.
- Como quiseres. Mas lembra-te de que eu sei como se comportam os homens, já que sou um deles. Se esse Cedric tivesse apenas metade dos sentimentos que tu tens por ele, tinha arranjado maneira de vir ter contigo a Itália antes do início do ano escolar. Mas não o fez, nem o fará. Eu comportava-me da mesma maneira com as raparigas que me achavam graça.
- Se calhar eu não sou suficientemente fascinante para ele - afirmou Elisabetta, com um ar triste.
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- Tu és lindíssima, mas vieste embora e ele agora está a pensar noutras coisas.
- Odeio-te. Não devias dizer-me essas coisas - disse a filha, amuada.
- É importante enfrentar a realidade, e não é preciso ter medo. Até porque, aconteça o que acontecer, eu estarei sempre pronto para te ajudar - sossegou-a o pai. Elisabetta acalmou e sorriu-lhe.
- Obrigada, pai. - E acrescentou: - Como eram os teus pais? Nunca me contaste nada deles. Ao fim e ao cabo, eu chamo-me Rovesti e não sei nada dos meus avós. Morreram quando eu era pequena e não me lembro deles. Depois do jantar, em vez de irem assistir ao concerto da banda local, pai e filha sentaram-se no pequeno jardim da hospedaria e Raffaello falou-lhe durante muito tempo sobre ele e a família.
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RAFFAELLO
1
O comboio Wagon-Lit que ia de Munique para Roma entrou a bufar e a assobiar na estação de Bolzano. Eram dez horas da noite. Sob o alpendre Liberty, o vento gélido que descia do Renon picava o rosto de duas jovens mulheres enfiadas na sala de espera da estação, onde tinham permanecido durante mais de duas horas, à espera daquele longo comboio que, no desfiladeiro de Brennero, tinha ficado bloqueado pela neve. O carregador empurrou o carrinho com a bagagem das duas passageiras em direção à carruagem número três, da qual tinha descido o revisor. A jovem que estava embrulhada num casaco de pele de zibelina disse-lhe:
- Ajude-me a subir.
- O seu bilhete? - perguntou o revisor, enquanto o carregador colocava as malas no interior da carruagem.
- A minha assistente está à procura dos documentos de viagem e eu não tenho a mínima intenção de ficar mais tempo sob este gelo - replicou, irritada.
- Mas a senhora... a senhora é... Lorena Saltini! - disse o revisor, arregalando os olhos de espanto. Ajudou a diva a subir para o comboio, ignorando a sua assistente, que pagou ao carregador, deixando-lhe uma gorjeta generosa, e foi ter com eles.
- Gina, despacha-te! Quero imediatamente uma chávena de chá para me aquecer - pediu Lorena, que ainda não tinha tirado as luvas e mexia na carteira à procura de um lenço.
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- Vai para o teu compartimento e tenta acalmar-te - retorquiu Gina, ao mesmo tempo que entregava ao revisor o envelope da agência de viagens que continha os bilhetes. Entretanto, observava de soslaio aquele jovem expedito que controlava, obliterava e finalmente, enquanto o comboio retomava a marcha a bufar, lhe restituía o envelope, dizendo:
- Menina Miaselich, o seu compartimento comunica com o da senhora Saltini. Se desejarem, ainda podem jantar na carruagem-restaurante. Se preferirem, posso mandar um funcionário do serviço de compartimentos. A próxima paragem vai ser em Verona, mas só lá chegaremos daqui por duas horas. Durante a noite, para qualquer necessidade, basta tocar a campainha e eu venho imediatamente. Em nome da empresa ferroviária, peço desculpa por este atraso lamentável. Boa viagem, minhas senhoras.
- Boa viagem para si também, Sr. Emilio Rovesti - replicou Gina Miaselich, que tinha lido o nome do jovem na placa espetada no casaco. Ele olhou-a nos olhos e sorriu-lhe. Gina pensou: que bonito rapaz! Enquanto ela entrava no seu compartimento, ele afastou-se ao longo do corredor, mas voltou-se para olhar para ela e sorriu outra vez.
- Já acabaste a conversa de treta com o teu pinga-amor? - queixou-se a diva, que tinha despido o casaco de peles e procurava, no armário do canto, o mictório. Encontrou-o e disse: - Fecha a porta. Se não faço chichi imediatamente, rebento. Gina não fez comentários, entrou no compartimento contíguo, tirou as luvas, o chapéu de pele e o casaco. Lavou as mãos no lavabo, verificou ao espelho se os cabelos estavam em ordem e depois, erguendo a voz para se fazer ouvir, perguntou a Lorena:
- Aquele famoso chá, sempre o queres aqui ou preferes ir tomá-lo ao restaurante?
- Entra. Agora quero deitar-me. Dá-me a camisa de noite e traz-me um chá de camomila - gemeu Lorena Saltini.
- Eu vou comer qualquer coisa. Mando-te um empregado, e de certeza que consegues encontrar a camisa de noite sozinha - replicou Gina, com firmeza.
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A jovem, oriunda de Trieste, vivia há dois anos com aquela atriz caprichosa, exercendo as funções de secretária, governanta e mãe, apesar de ser cinco anos mais nova do que ela. Tinha percebido muito depressa que a única maneira de sobreviver ao lado dela era impor-se com autoridade. Gina entrou na carruagem-restaurante, onde estavam poucos comensais. O pessoal da cozinha era austríaco e, de facto, o menu propunha kneider (também com a designação de canedele, são bolas de massa à base de pão, farinha e especiarias que se servem como refeição principal ou acompanhamento e fazem parte da gastronomia austríaca, tirolesa, suiça e alemã) com toucinho e costeleta vienense. Pediu as duas coisas.
- E para beber, o que deseja, menina? - perguntou o empregado.
- Uma cerveja branca - respondeu Gina.
- Mas qual cerveja? Eu quero champanhe, e tu também queres - interrompeu a atriz, que tinha entrado na carruagem trazendo atrás de si uma lufada de Chanel, o seu perfume preferido. Os passageiros ergueram para ela olhares incrédulos. Ainda que não tivessem visto nenhum filme com ela, as imagens de Lorena surgiam havia já alguns anos na capa de todas as revistas.
- Pára de dar espetáculo quando não estás em filmagens - sibilou Gina. Lorena sentou-se à mesa, em frente dela, distribuindo pelos presentes sorrisos sedutores, e replicou num sussurro:
- Muito em breve, vou acabar por te despedir. Aquilo era uma ameaça que repetia como um refrão desde que a contratara como assistente, e a resposta de Gina era sempre a mesma:
- Vai ser um alívio, livrar-me de ti. Estavam as duas unidas pela humildade das origens. Gina tinha nascido em Trieste e, sendo órfã de pai e mãe, tinha sido criada pelas freiras, que lhe ensinaram costura. Aos 18 anos chegou a Roma, onde foi recebida numa residência de freiras da mesma ordem das de Trieste, que entretanto lhe arranjaram um emprego num atelier que confecionavam roupas para o teatro.
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Lorena tinha nascido numa pequena aldeia perto de Abruzzo e era filha de um carvoeiro, a mais nova de nove irmãos. Ganhou um concurso de beleza na zona onde vivia e aí começou a sua escalada no mundo do cinema. Descoberta, em todos os sentidos, por um produtor cinematográfico, usou toda a sua astúcia de rapariga do povo e a sua tenacidade camponesa para se impor como atriz, teve sucesso e prometia atingir metas ainda mais importantes. Aprendeu a vestir-se, a gesticular, a falar, e seria perfeita se tivesse percebido também como se comporta uma verdadeira senhora. Mas a essa meta não tinha ainda chegado, e achava que fazer birras e ostentar um ar emproado era o máximo do requinte. Gina Miaselich era um pouco o seu grilo falante. Ameaçava despedi-la, mas sabia que não podia passar sem ela. Gina, que tinha aprendido as boas maneiras com as monjas, chamou-a à ordem com um simples olhar também agora, enquanto Lorena levava ruidosamente à boca uma colher com o caldo dos knidel. Tinham passado as duas oito dias no planalto do Renon, em Soprabolzano, porque Lorena Saltini queria aprender a esquiar. Por enquanto apenas tinha conseguido fazer um pouco de esqui de fundo, sem lesionar a coluna. Naqueles dias Lorena tinha também lido escrupulosamente o guião de um filme sobre as Cruzadas, no qual ia interpretar o papel de uma princesa feita prisioneira por uma tribo guerreira do deserto. Gina, como sempre, tinha-a pacientemente ajudado a memorizar as falas dos diálogos. Agora iam para Roma, porque dentro em pouco iam começar os ensaios para o filme, que seria rodado em Marrocos. Regressaram aos compartimentos. Gina ajudou a atriz a meter-se na cama, deu-lhe o sonífero do costume e fechou a porta de comunicação com o seu compartimento, para onde se retirou quando ela adormeceu. Depois deixou-se cair pesadamente na cama, fechou os olhos e começou a refletir. Tratar de Lorena não era o máximo das suas aspirações, até porque aquele trabalho, embora bem pago, não lhe garantia um futuro. Pensou, embalada pela oscilação do comboio que avançava lentamente na noite, que estava a viver a vida de Lorena, não a sua própria.
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Tinha esperado tornar-se numa boa modista de figurinos de teatro, mas a atriz tinha-a dominado, impondo-lhe que se esquecesse de si mesma para se dedicar totalmente a ela. Levantou-se, procurou na carteira o maço de cigarros e o isqueiro e foi para o corredor fumar. A carruagem estava mergulhada no silêncio, realçado pelo monótono ruído metálico do comboio. Viu ao fundo do corredor, ao lado da porta que dava acesso a carruagem seguinte, o revisor sentado num banco. Estava também a fumar e a ler um livro. Entreolharam-se e sorriram. Ele levantou-se, foi ao encontro dela e disse: - Eu passo a noite acordado a trabalhar. Mas... a menina?
- Eu normalmente durmo pouco e, quando estou cansada, durmo ainda menos - replicou.
- Aceita um bom café? - perguntou-lhe.
- Só se for acabado de fazer, e bem açucarado - respondeu.
- Está agora a subir na minha cafeteira - afirmou ele. Nasceu assim a história de amor entre Gina Miaselich, órfã de Trieste, e Emilio Rovesti, ferroviário.
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2
- Tia Lorena! Tia Lorena! - gritava Raffaello, ou melhor, parecia-lhe gritar, porque da garganta apenas lhe saía ar, enquanto corria, ofegante, ao longo do corredor da villa sobre o lago onde estava a passar uns dias de férias, hóspede de Lorena Saltini, a quem ele chamava tia. O pequeno Rovesti tinha 8 anos e nascera quando Gina, a mãe, estava já perto dos 40. A ligação entre a mãe e a atriz nunca se quebrou, apesar de Gina ter deixado de trabalhar como sua assistente, secretária e ama ao casar com Emilio e ter ido viver com ele para o edifício dos ferroviários, próximo da estação de Brescia. Todos os anos, no verão, Gina levava o filho consigo e ia ter com a atriz, onde quer que fosse, para estar perto dela, tratando-lhe de tudo como noutros tempos, e Lorena tinha-se afeiçoado ao pequeno Raffaello, que a tratava por tia e dela recebia carícias e presentes. Naquele ano, poucos dias depois de terem chegado ao lago de Bracciano, onde Lorena possuía uma villa do século XIX, Gina regressou a Brescia porque Emilio, o marido, tinha sido internado de urgência no hospital com um problema cardíaco.
- Vai a correr para ao pé dele - disse-lhe Lorena. E garantiu: - Do pequeno tratamos nós, assim vais ter todo o tempo para estares junto do Emilio. Raffaello começava a apreciar o quão gratificante era estar com a atriz, que não lhe dedicava muito tempo, mas tinha à volta um batalhão de colaboradores, amigos e empregados que o acarinhavam de mil e uma maneiras: havia quem o levasse a pescar, quem o ensinasse a jogar ténis e quem o instruísse para montar a cavalo.
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Efetivamente, no parque da villa havia um estábulo com alguns cavalos sonolentos e um burro. Durante o dia deixavam-nos sair para o ar livre, dentro de um recinto, e assim davam à dona da casa a ideia de ser uma senhora do campo. Stelvio, o camponês que tratava deles, um dia selou um e ensinou Raffaello a montá-lo. Pouco depois, Raffaello e o seu cavalo tornaram-se amigos. Na propriedade que ficava ao lado do parque da villa também havia animais, e aquele mundo agreste fascinava-o. Da mesma forma que se sentia atraído por aquela mulher lindíssima que era a tia Lorena. Quando ela o abraçava, Raffaello era envolvido pelo perfume dela, acariciava a seda dos vestidos, escutava aquela voz pastosa que lhe chamava «meu doce», e sentia-se no paraíso. Quando falava dela às crianças que viviam na residência dos ferroviários, em Brescia, e lhes contava que a atriz cujas fotografias apareciam em tantos jornais era sua tia, elas olhavam-no com admiração, inveja e respeito, e ele, cheio de orgulho, mostrava as fotografias que o retratavam com ela e com a mãe e que tinham como fundo a villa do lago. O facto de o pai estar no hospital não o angustiava, até porque Gina tinha telefonado para a villa a dizer que Emilio estava melhor.
- Isso quer dizer que vens depressa ter connosco? - perguntou-lhe ele.
- Não, vais ficar mais uns dias com a tia, assim eu posso dedicar-me ao pai. Vai ser ela a trazer-te para casa - respondeu a mãe. Nesse momento o coração da criança transbordou de alegria por ter só para si a mulher pela qual alimentava uma paixão avassaladora. Quando, entre os colegas de escola, brincavam a dizer os nomes das apaixonadas, ele ficava calado.
- Não tens uma namorada? - perguntavam-lhe, incrédulos.
- Não - respondia timidamente, porque a eleita do seu coração era uma mulher, não uma menina, e era inatingível para quem quer que fosse, mas não para ele, que a amava com todo o seu ser e era correspondido. Na villa, acontecia-lhe às vezes vê-la namoriscar com alguns pretendentes e sentia pontadas lancinantes de ciúme.
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Mas depois ela voltava sempre para ele e abraçava-o, beijocava-o, sorria-lhe e dizia-lhe que ele era o «grande amor» da sua vida, e então ele tocava os cumes mais altos da felicidade. Naquela noite, como muitas vezes acontecia, a atriz tinha convidados na villa mas, como sempre, quando foi para a cama, no seu quarto situado no mesmo piso em que ficava o de Lorena, ela passou por lá para lhe desejar uma boa noite.
- Sonhos de ouro, meu doce, meu pequeno cavaleiro sem mancha e sem medo - sussurrou-lhe, ao mesmo tempo que lhe afagava o rosto, lhe despenteava os cabelos e depositava pequenos beijos sobre os olhos, o nariz e as faces de Raffaello. Depois regressou aos seus convidados, deixando-lhe aquele perfume delicioso. Ele observou o grande rosto luminoso da lua do lado de lá da janela e achou que ela lhe sorria. Gostaria então de lhe perguntar: porque é que eu não posso viver sempre com a tia Lorena? Porque é que tenho de voltar a atirar pedras com os meus amigos para a linha do caminho de ferro em vez de estar sempre aqui, neste lugar maravilhoso? Depois pensou que a sua vida era noutro lugar, que tinha um pai e uma mãe que amava e que também o amavam muitíssimo. Quando estava em casa, com os pais, depois de ter feito os deveres, a mãe deixava-o ver na televisão os desenhos animados japoneses do seu herói favorito, capaz de feitos impossíveis. A ele bastaria um pouco da sua força para realizar a empresa de unir a tia Lorena à sua família e viverem todos felizes ali, na margem do lago. Depois ele ia ficar grande como os homens que cortejavam a tia, mas tornar-se-ia ainda mais bonito e importante do que eles e Lorena ia apaixonar-se por ele, casar com ele e nunca mais se iam separar. Acabou por adormecer. Foi acordado a meio da noite por uma espécie de roçar de asas no rosto. Arregalou os olhos na escuridão ligeiramente atenuada pela luz das estrelas e viu uma criatura monstruosa a esvoaçar à volta dele. Dominado pelo terror, com o coração a bater loucamente, desceu da cama, saiu do quarto e começou a correr pelo corredor imenso, com as grandes janelas abertas sobre o jardim por onde entrava a claridade dos lampiões que o iluminavam.
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Raffaello corria e os seus passinhos nus sobre a passadeira de lã não faziam ruído; identificou o quarto da tia Lorena através da frincha de luz que passava por baixo da porta, que abriu de repente. E viu uma coisa horrível. A tia estava nua na grande cama e agitava-se sob o peso de um homem, tão nu como ela, que sibilava palavras numa lingua estrangeira. A luz do abat -jour exaltava os corpos, que brilhavam de suor. Raffaello gritou com todo o fôlego que tinha. A tia e o homem voltaram-se estarrecidos para ele que, naquele mesmo instante, saltou para a cama e desatou aos murros nas costas daquele energúmeno, um ator americano muito famoso que tinha interpretado um filme com Lorena quando ela tinha ido a Hollywood. A atriz tentou cobrir-se com o lençol, enquanto o americano imobilizou Raffaello, o levantou e o depositou no chão e, por fim, lhe disse, a rir:
- O que é que tu estás aqui a fazer?
- Shut up - ordenou Lorena, que entretanto tinha vestido um roupão. E, sempre dirigindo-se ao americano, proferiu uma série de palavras em inglês que o pequeno não entendeu, mas intuiu que estava a ralhar imenso com ele. Depois voltou-se para Raffaello e disse-lhe:
- Meu doce, agora vamos para o teu quarto. Pegou nele ao colo e o pequeno sussurrou-lhe ao ouvido:
- Ele estava a matar-te!
- E tu, meu amor, salvaste-me - murmurou ela, enquanto saíam do quarto.
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3
Mas quando Lorena entrou no quarto de Raffaello, este agarrou-se desesperadamente ao seu pescoço.
- Não, aqui não! - gritou, e acrescentou, aterrorizado, enquanto tapava os olhos para não ver: - Aqui há um monstro terrível que me quer comer.
- Então vamos enfrentá-lo juntos - respondeu Lorena, que acendeu a luz e viu, pendurado no candeeiro do centro do quarto, um pequeno morcego que estava imóvel e mais assustado do que a criança.
- Não é um monstro. Fica sossegado e abre os olhos - disse-lhe Lorena, e prosseguiu: - É apenas um morcego que queria encontrar o caminho para sair do quarto e voar para longe. Agarrando-se ainda mais ao pescoço da tia, Raffaello abriu os olhos e seguiu com o olhar o dedo que ela apontava para cima.
- Aquilo ali é um morcego? - perguntou.
- É sim, no campo há muitos. Dormem de dia e andam à caça de insetos durante a noite. O pobrezinho entrou pela tua janela e agora está cheio de medo, mas nós vamos ajudá-lo a sair.
- Faz tu isso - respondeu a criança, num sussurro. Lorena pousou Raffaello no chão, agarrou numa almofada e atirou-a ao animal, que começou a voar pelo quarto até que acertou na janela e voou para longe.
- Agora vamos fechar as janelas, porque assim não vem mais nenhum morcego acordar-te - disse a tia Lorena.
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Quando o meteu na cama, Raffaello tremia e tinha o rosto encharcado de suor.
- Mas tu estás cheio de febre - disse, alarmada, ao mesmo tempo que pousava uma mão na testa da criança. Acordou os empregados e mandaram chamar o médico da terra. Lorena chorava porque tinha a certeza de que Raffaello, para além de se ter assustado com um morcego, tinha ficado traumatizado por ter surpreendido a sua queridíssima tia a fazer amor. Imaginou as consequências na psique daquele pequeno homem que estava a crescer, e desprezou-se por não ter sabido tomar conta dele. O menino melhorou em poucos dias e pareceu não guardar nenhuma recordação daquela trágica noite, mas o seu comportamento tinha mudado. Tornou-se silencioso, estava muitas vezes amuado e um dia disse à tia que queria voltar para casa. No ano seguinte, quando a mãe começou a projetar umas novas férias que passariam com a amiga, ele disse:
- Os meus colegas de escola vão para uma colónia de férias, na praia. Eu também gostava de ir. Gina tinha intuído, embora vagamente, que devia ter acontecido qualquer coisa ao filho quando ela o deixara em Bracciano para socorrer o marido. Com prudência, indagou:
- Quando ficaste sozinho com a tia, zangaste-te com ela? Raffaello olhou para a mãe sem entender e disse:
- A tia é tão querida! Dou-me muito bem com ela. Mas não queria voltar a Bracciano, nunca mais. Perto do Natal, Lorena fez uma visita aos Rovesti para oferecer, como fazia muitas vezes, um monte de presentes.
- Dá-lhe um abraço por mim. Eu não vou poder estar, porque tenho treino na piscina - disse Rafaello à mãe. Não voltou a vê-la. Alguns anos depois, Lorena Saltini perdeu a vida quando, a bordo de um pequeno aeroplano, sobrevoava as Maldivas durante umas férias. O avião caiu ao mar. Em casa dos Rovesti tudo continuou como sempre. Gina pôs numa moldura uma fotografia a preto e branco que a retratava ao lado da diva e pousou-a, junto com as outras, no aparador da sala de jantar. Eram ambas jovens e belas e sorriam para a vida.
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Gina contou a Raffaello como era o mundo do cinema, no tempo em que conhecera grandes atores, atrizes brilhantes e pequenas estrelas sequiosas de sucesso.
- Aquilo é um ambiente estranho, feito de gente que não vive a sua própria vida, mas a das personagens que interpreta. Parecem todos amigos, fazem muitas festas uns aos outros, dizem «querido, adoro-te» e depois, assim que uma pessoa se vira, recebe uma facada. As amizades verdadeiras não existem. Uma vez, um ator que tinha rodado um filme com a tia Lorena disse-me: «Quando uma atriz cai em desgraça, eu fico mais feliz do que quando um filme meu tem sucesso». No entanto, durante aqueles anos, talvez porque era jovem, divertia-me a andar atrás da tia Lorena. Depois amadureci e percebi que a felicidade, pelo menos para mim, estava noutro lugar. Eu queria um marido e uma família.
- Mas os atores são ricos e famosos, enquanto nós somos pobres - objetou ele.
- Nós sabemos dar ao dinheiro o valor que ele tem, precisamente porque temos pouco. Mas tu, que és um aluno brilhante, vais ter um futuro luminoso que será o fruto do teu talento e do teu trabalho - concluiu Gina. Mais do que com paixão, Raffaello estudava com obstinação, porque tinha percebido que, para se impor entre os seus colegas de escola, que provinham de famílias da pequena burguesia, tinha de ser o primeiro na escola e o primeiro em tudo. Tinha também percebido que ser bonito como ele era uma coisa importante para ter sucesso. Por isso tratava da sua imagem com uma atenção quase maníaca. Os pais observavam-no e sorriam, poupando todos os tostões para lhe oferecer o melhor. Raffaello era muito ambicioso e sonhava vir a ser rico. Desde que fora hóspede da tia Lorena, desejava uma grande casa, empregados e automóveis fantásticos. Por enquanto, contentava-se com a motorizada em segunda mão que o pai lhe tinha dado ao concluir brilhantemente o liceu. De entre as colegas de escola que andavam loucas por ele escolhera Silvana, filha de um médico, que o adorava. Ele achava que a amava, de tal maneira que teve com ela a sua primeira relação sexual.
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Com o pretexto de preparar os exames de acesso à universidade, ela convidou-o para ir a sua casa no fim de semana.
- Os meus pais estão num congresso médico em Berlim, a empregada pediu dois dias de licença para ir à terra, o frigorifico está cheio, o ar condicionado funciona perfeitamente e eu estou à tua espera - disse-lhe pelo telefone. Raffaello pegou nos livros, montou na bicicleta e partiu como um raio ao encontro dela. Quando Silvana lhe abriu a porta de casa, com um gesto teatral deixou escorregar dos ombros o roupão de seda da mãe e ficou completamente nua. Raffaello levantou-a nos braços, foram para o quarto de Silvana, ele pousou-a na cama e abraçaram-se. Havia um grande espelho, na parede ao lado da cama, e Raffaello viu refletida a sua imagem. Pareceu-lhe que o coração ia parar, reviu-se criança, na soleira da porta do quarto da tia Lorena, enquanto ela lutava com o americano.
- Não me estou a sentir bem - disse, e depois, enroscando-se sobre si mesmo, começou a soluçar.
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4
Quando um rapaz mostra as suas fraquezas, torna-se irresistível. Se antes Silvana estava apaixonada por Raffaello, agora adorava-o, porque a sua dor tinha despertado nela a vocação de Cruz Vermelha que habita no coração de todas as mulheres. O seu lindíssimo colega de escola, a soluçar como uma criança, repetia: - Eu vi-os, eu vi-os. Silvana não conseguiu que ele lhe dissesse de que é que estava a falar, mas foi muitíssimo terna com ele e, quando a crise passou, arrastou-o até ao cinema para verem um filme divertido. E depois regressaram a casa e ela pediu-lhe para a ajudar a preparar um jantar regado com uma garrafa de um precioso Amarone della Valpolicella, surripiado da garrafeira do pai. E depois, mais eufóricos ainda por causa do vinho que não estavam habituados a beber, dançaram e riram e, finalmente, adormeceram no sofá da sala. De manhã entraram juntos na banheira, que era tão grande que lá cabiam os dois e, quase sem se darem conta, conseguiram cumprir o primeiro passo da sua vida amorosa. E foi muito bonito. Aquela história acabou ao fim de poucos meses, quando Silvana foi obrigada a acompanhar a família, que se mudou para Siena. Ela inscreveu-se na Scuola Norma le, em Pisa, e Raffaello na Universidade Luigi Bocconi, em Milão. Na mesma altura arranjou trabalho num escritório de contabilidade e não teve tempo para suspirar pela sua primeira namorada, nem para entretecer uma nova história. Mas agradava muito às mulheres, e a atração que elas sentiam por ele facilitou-lhe a vida.
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Era já suficientemente cauto para evitar as raparigas à procura de marido, privilegiando as mulheres casadas, que não lhe criavam complicações. Escolheu a faculdade de Economia porque não implicava a obrigação de frequência e lhe poupava as deslocações diárias de comboio, mas também porque tinha um objetivo preciso: tornar-se jornalista na área de Economia. Estudava, trabalhava no gabinete de contabilidade e, para além disso, tinha começado a escrever artigos para um pequeno jornal do setor, revelando uma excelente capacidade de análise. Depois da licenciatura, obtida com uma excelente nota, e depois de um parêntesis em outros jornais locais, foi-lhe oferecida a possibilidade de colaborar na página económica do Patti e Opinioni, o quotidiano da cidade, e ao fim de dois anos foi promovido a chefe de redação da página económica. O salário não era entusiasmante, mas divertia-se muito porque era enviado por conta do jornal aos congressos mais interessantes, conhecia gente, criava relações e era recebido nas salas das famílias mais importantes da cidade. Conhecia mais ou menos toda a gente e toda a gente o conhecia a ele. Dele diziam: «Excelente, aquele rapaz, ambicioso quanto baste. Vai longe». Uma noite foi convidado por Amalia Favaretto para um jantar em honra de um importante economista, acompanhado pelo editor do seu último ensaio, no qual explicava que o bem-estar do país tinha começado a declinar desde os anos 90 e profetizava uma catástrofe, se as forças políticas e empresariais não se unissem para limpar um sistema já minado pela corrupção e conivências a todos os níveis. Raffaello, que tinha lido atentamente o texto, esperava poder fazer-lhe algumas perguntas sobre o assunto, que lhe interessava muitíssimo. Mas o insigne professor parecia entediado, depenicava a comida e de vez em quando olhava para o relógio, enquanto dava respostas distraídas às perguntas dos convidados. Depois viu Giovanni Brugliani e pareceu animar-se.
- Meu caro amigo - cumprimentou-o afetuosamente.
- Caríssimo professor - respondeu Brugliani.
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Os dois conheciam-se há muito tempo e estimavam-se reciprocamente.
- Li o seu último ensaio - prosseguiu o viticultor, e acrescentou:
- Será que estamos assim tão mal?
- Se eu pensar naquilo que pode acontecer daqui a dez anos, diria que estamos ótimos neste momento - respondeu o estudioso.
- Eu acredito que o nosso país poderia evitar o pior se todos os empresários investissem na qualidade, em vez de andarem atrás dos mercados asiáticos, que apontam para uma qualidade cada vez pior. Nós, produtores da zona, decidimos que a melhor maneira de consolidar o mercado nacional e o externo é sacrificar uma parte dos lucros para otimizar o produto. Dentro de dez anos vamos dar que fazer aos franceses - afirmou Giovanni Brugliani.
- Meu amigo, comigo está a abrir uma porta aberta, mas vá tentar explicar essas estratégias àquele bando de incompetentes que estão sentados no parlamento. Raffaello escutava aquela conversa e prometeu a si mesmo basear naquele tema o artigo de abertura da página económica do seu jornal. Depois foi distraído pela dona da casa que, enfiando-lhe o braço, o afastou dos dois, dizendo-lhe:
- Caro Rovesti, venha ao gineceu, porque as senhoras precisam de regalar a vista com um belo jovem. Algumas senhoras conversavam numa pequena sala em estilo rococó, a beber um ótimo champanhe italiano da Franciacorta e a saborear umas minúsculas delícias de chocolate. Muitas delas tinham na mão o ensaio do ilustre convidado, oferecido por Amalia Favaretto, que tinha comprado algumas dezenas de exemplares. Esperavam o momento oportuno para pedir um autógrafo ao autor, o qual sabia que poucas delas o iam ler e, entre estas, não estaria a dona da casa. O galanteador de serviço, um antiquário riquíssimo e de consolidado profissionalismo, conversava com duas senhoras sobre uma pintura atribuída a Guercino, que descobrira numa feira de antiguidades, sem importância, e que agora estava nas mãos de um insigne especialista em arte, que o estava a analisar para certificar a sua autenticidade.
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Enquanto as convidadas escutavam a sua história, ele acariciava com um ar distraído o braço musculoso do amigo. O cirurgião plástico, que tinha um consultório importante na cidade, descrevia a uma senhora com alguma idade como lhe rejuvenesceria o décoleté com uma série de picadelazinhas revitalizantes». Um arquiteto paisagista mostrava, no seu computador portátil, as fotografias de umas plantas com flor de cores fortes, novíssimas no país, que se poderiam plantar para uma luxuriante floração invernal.
- Olhem quem eu vos trouxe - gritou Amalia Favaretto, entrando na sala com Raffaello. Ele sabia que aquelas senhoras, aparentemente frívolas, na realidade poderosas, eram capazes de destruir uma pessoa se assim o desejassem. Por isso dedicou um sorriso cativante a cada uma delas. Depois, o seu olhar cruzou o de uma jovem de cara lavada, sentada à parte, que ergueu os olhos das páginas do livro do ilustre economista. Enquanto as senhoras convidavam Raffaello a sentar-se ao lado delas, a jovem baixou novamente o olhar sobre o ensaio e recomeçou a ler, ignorando-o. A certa altura, aproveitando a chegada de um novo convidado, Raffaello sussurrou à dona da casa:
- Quem é aquela rapariga ali ao fundo?
- Querido, não conhece a pequena Angelica, filha do Giovanni Brugliani? - perguntou Amalia, espantada.
- E devia?
- Deve! Vou já apresentar-lha - decidiu, e sussurrou: - Ainda não tem 20 anos, mas já deu muito que falar. Agora está viúva, felizmente. A família dela é uma das mais ilustres da zona. Os Brugliani têm uma história de dois séculos na nossa região. Enquanto o jornalista e Amalia se dirigiam à jovem, esta fechou o livro que estava a ler e levantou-se, preparada para deixar a sala.
- Angelica, querida, quero apresentar-te o Dr. Rovesti, que tem a seu cargo a página económica do nosso jornal diário - anunciou Amalia. A jovem estava com um ar apressado. De facto, sorriu distraidamente e replicou:
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- Que bem! Parabéns. Peço desculpa, mas tenho de dar imediatamente o comprimido da tensão ao meu pai. E saiu rapidamente.
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Raffaello, que gostaria de ter ido atrás de Angelica, foi bloqueado por Melissa, a sua amante, que lhe lançou um olhar feroz de censura. A história entre os dois era do domínio público, e até o marido a conhecia. Em tempos, Melissa tinha sido secretária do comendador Roberto Speroni, mais conhecido por Popi, porque era assim que o tratavam desde criança. Por causa dela, Popi tinha-se divorciado da mulher e incompatibilizado com os filhos ao decidir casar com ela. A mulher retirara-se dignamente para a sua casa de Milão; os filhos, que trabalhavam com ele, tinham aguentado, alimentando o ressentimento e reunindo provas das traições da madrasta. Raffaello Rovesti, de facto, era apenas o último de uma série de amantes da fogosa ex-secretária. No momento em que espalharam em cima da escrivaninha do pai as provas das traições, o comendador limitou-se a abanar a cabeça e a sorrir, dizendo:
- Não me estão a contar nada que eu não saiba. A Melissa conta-me tudo. Depois, pacientemente, explicou aos dois filhos incrédulos:
- Se, para além do meu dinheiro, estivessem interessados também em mim, saberiam que as minhas numerosas deslocações à Suíça não eram viagens de lazer, mas de saúde, saberiam que tive um tumor do qual, felizmente, me curei, mas que me deixou completamente impotente. Tentei muitas vezes falar-vos dos meus problemas, mas tinham sempre outras prioridades e não me quiseram ouvir.
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Agora Raffaello dirigiu-lhe um olhar de impaciência e sussurrou-lhe:
- Estás com ciúmes de uma pessoa que eu não conheço? Ela não respondeu. Ele aproveitou para trocar uns comentários com algumas das senhoras presentes e depois esgueirou-se para fora da sala à procura de Angelica. Encontrou-a a falar com o professor de Economia e ouviu-a dizer:
- Pelo meio da extensão das nossas vinhas que, para darem frutos sãos, precisam de terrenos incontaminados e ar salubre, crescem horríveis armazéns industriais onde se produzem objetos de plástico e se trabalham materiais que contêm substâncias tóxicas e emitem fumos poluentes. O meu pai falava-me do afluxo de mão de obra para estas pequenas indústrias nos anos 60, quando os camponeses deixavam a terra e se armavam em operários, desperdiçando uma sabedoria antiga e muito importante na nossa terra. Contava-me que, a certa altura, a nossa gente se envergonhava da sua própria origem camponesa, enquanto se orgulhava de pertencer à classe operária. Agora, ao ler a sua análise e partilhando das suas previsões pessimistas, pergunto a mim mesma se os governos de outros tempos terão feito uma escolha acertada ao favorecer a indústria em detrimento da agricultura. De resto, o abandono dos campos, com as inevitáveis consequências desastrosas sobre o desequilíbrio hidro-geológico, é um fenómeno que progride há mais de sessenta anos. E, sempre referindo-me às suas previsões sobre a produtividade italiana, que se está a enfiar no «túnel da morte», para usar uma definição sua, interrogo-me se ainda estamos a tempo de inverter a rota. Sabe, professor, nós, as mulheres que trabalhamos no setor, temos uma associação que se chama Le Donne del Vino e tentamos pôr em campo novas estratégias. Raffaello escutava-a, arrebatado, enquanto admirava o seu perfil delicado em contraste com a força que se libertava das suas palavras.
- Eu tinha visto bem: achaste graça àquela deslavada - sibilou Melissa, que tinha aparecido de repente atrás dele e o fez estremecer.
- Estás com ciúmes - replicou ele, irritado, enquanto se afastava para procurar Amalia Favaretto e se despedir dela. Saiu para a rua e dirigiu-se a casa a pé.
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Era quase fim de novembro e o frio da noite picava-lhe o rosto. Gostava da cidade deserta, com as ruas varridas pelo vento gélido. Sentia-se contente por ter saído da casa dos Favaretto, com os seus salões sumptuosos, para se refugiar na calidez familiar do modesto apartamento onde vivia com os pais. Sabia que ia encontrar a mãe ainda acordada, a ver televisão na copa, enquanto esperava por ele, pronta para lhe oferecer uma chávena de leite quente com cacau, antes de lhe desejar boa-noite e de se retirar para o seu quarto, onde dormia sozinha quando o pai fazia o turno da noite no comboio. O som dos seus passos acompanhava os pensamentos que percorriam o rosto de Angelica, uma rapariga em flor, como a teria definido um grande escritor francês, e o de Melissa, uma trintona desejável que, no entanto, se estava a revelar uma mulher possessiva, apesar de o ter feito acreditar que não queria ligações sentimentais porque amava o marido, muito mais velho do que ela, mas que lhe tinha oferecido aquilo de que ela precisava: bem-estar económico e proteção. Melissa começava a aborrecê-lo, enquanto Angelica era o tipo de rapariga com quem gostaria de ter uma história séria. Mas uma Brugliani nunca se ligaria a um homem como ele, que não tinha ainda atingido uma posição segura numa pequena cidade que dividia os seus habitantes em duas categorias: os que contam e os que não contam para nada. Raffaello aspirava a fazer parte do primeiro grupo e, por isso, devia evitar os passos em falso, sobretudo agora que começava a gozar de um certo prestígio. De momento, o papel que lhe garantia maiores possibilidades de sucesso era o do solteirão brilhante, cortejado pelas senhoras mais notórias, como Melissa Speroni que, ao casar com aquele rico industrial, tinha feito esquecer as suas origens modestíssimas. Enquanto continuava o seu caminho solitário em direção a casa, com o som dos seus passos sobre o empedrado gélido por companhia, pensou mais uma vez em Angelica Brugliani, no seu olhar intenso, no seu discurso discreto e reflexivo, e perguntou a si mesmo se também ela o teria observado com algum interesse. Pensou imediatamente que não valia a pena criar ilusões, porque ela era inatingível. E, no entanto, gostava daquele sonho, constatou, apercebendo-se de que, de repente, lhe tinha dado uma grande vontade de se apaixonar.
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Depois daquela paixão infantil pela tia Lorena, não voltara a abandonar-se a um sentimento intenso e envolvente. Recordou então Melissa com uma sensação de enfado.
- Já não aguento. Está na hora de acabar com esta história - sussurrou, enquanto entrava no átrio do prédio onde morava.
- Estás com um ar cansado. Vou já aquecer-te uma boa chávena de leite com cacau - disse a mãe quando ele entrou em casa, ao mesmo tempo que o ajudava a tirar o sobretudo. Raffaello seguiu-a até à cozinha. Sentou-se no banco ao lado da janela e afastou uma cortina de renda branca para observar à distância o contorno sombrio da linha do caminho de ferro. Viu passar um comboio muito comprido que se dirigia a leste. Talvez o pai seguisse nele.
- Estás muito taciturno, esta noite - observou Gina, enquanto lhe entregava uma chávena fumegante. Raffaello agarrou nela e bebeu um gole do chocolate quente, sobretudo para agradar à mãe que, com aquele gesto que se repetia idêntico desde os anos da infância, lhe queria desejar uma boa noite com amor.
- Mãe, tu conheces mais ou menos toda a gente nesta cidade. O que sabes da Angelica Brugliani? - perguntou-lhe.
- Aquilo que toda a gente sabe - respondeu Gina.
- Ou seja?
- Foi muito falada, porque parece que era uma miúda indomável. Depois fugiu de casa para casar com um pobre diabo e as pessoas diziam, referindo-se ao pai: «Coitado do homem! Primeiro a mulher, agora a filha». Porque a mãe da Angelica tinha-os deixado, havia uns anos. Em suma, a Angelica regressou ao fim de um ano, e tinha ficado viúva. Eu nunca a vi, mas dizem que é bonita e muito reservada - revelou.
- É mais do que bonita, é uma verdadeira senhora - disse Raffaello.
- Viste-a em casa dos Favaretto? - perguntou Gina, curiosa. Ele assentiu. Depositou um beijo na testa da mãe e retirou-se para o seu quarto. Deitou-se e, quando estava quase a adormecer, recordou aquela estranha rapariga que lhe tinha dado vontade de se apaixonar.
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- Andaste à luta com o gato? - perguntou-lhe o pai, ao cruzar-se com ele no átrio do prédio. - Tens o cabelo todo despenteado e estás com cara de poucos amigos - constatou.
- Dormi pouco e mal. Agora vou ao ginásio e depois estou no jornal - disse Raffaello, suavizando a expressão do rosto, ao mesmo tempo que acomodava melhor sobre o ombro o saco em que tinha metido as sapatilhas e o fato de treino, o roupão e o gel de banho. Depois acrescentou: - Mas tu também não dormiste bem. - O pai estava com um ar cansado, tinha o colarinho da camisa amarrotado e a barba crescida.
- Não dormi de todo. Ontem à noite acabei o meu turno no Brennero e fui para o dormitório dos ferroviários, mas aquilo estava tão sujo e malcheiroso que não preguei olho. Apanhei o primeiro comboio às cinco da manhã e agora aqui estou, cansado e cheio de sono.
- Nem vale a pena dizer-te que podias ter ido para um hotel e dormido um sono sossegado, porque já sei a resposta: o hotel custa dinheiro. Mas quando é que tu e a mãe vão deixar de poupar a pensar em mim? Pai, eu já sou crescido e autossuficiente. De futuro ainda vou poder governar-me melhor, por isso já não precisam de se sacrificar por mim. Não percebem que me deixam um pouco constrangido? - protestou. O pai sorriu, abanou a cabeça e, sem responder, começou a subir as escadas. Ele saiu do prédio e dirigiu-se a pé ao centro da cidade para ir ao Gymnasium, o melhor da cidade, que oferecia aos sócios a assistência de pessoal treinado, cursos de várias disciplinas, uma piscina olímpica, saunas e massagens, um centro de estética, um bar e um restaurante.
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Os custos de inscrição neste ginásio eram muito elevados e Raffaello nunca o frequentaria se, como jornalista, não tivesse acesso gratuito. A profissão de jornalista proporcionava muitas facilidades e, como todos os seus colegas, Raffaello aceitava-as, não sem um ligeiro desconforto, porque preferiria pagar e pensava que, se algum dia atingisse uma estabilidade económica adequada, recusaria aquele e outros tratamentos de favor.
- Doutor, hoje está muito preguiçoso - observou o treinador, que o incitava a fazer exercícios para os abdominais.
- Não devia ter vindo esta manhã. Mas, já que estou aqui, faço aquilo que posso - justificou-se. Depois levantou-se e acrescentou:
- Aliás, não. Por hoje basta. Vou descer até à piscina, dou umas braçadas e depois vou para o jornal.
- Se quiser, preparo-lhe uma bebida a sério, uma bomba que o põe rapidamente na pista outra vez - propôs o jovem.
- Obrigado, mas deixo as bebidas para os treinadores - respondeu, dirigindo-se à cave. Enquanto nadava com amplas braçadas, ia refletindo na sua situação com Melissa. Tinha sido o telefonema que lhe fizera na noite anterior que o impedira de dormir como desejaria. A amante tinha-se convencido de que ele estivera a cortejar a jovem Brugliani e telefonara-lhe para se entregar a uma torrente de lágrimas e recriminações.
- Porque não admites que estás farto de mim e que pousaste os olhos naquela louca da Angelica? - queixou-se.
- Melissa, pára de me atormentar. Sabíamos desde o início que a nossa história ia durar pouco.
- Então admite que te apaixonaste pela Angelica.
- Mas se eu nem sequer a conheço! A Amalia Favaretto apresentou-ma. Ponto. E tu também assististe a isso.
- Eu vi como tu olhavas para ela e como ela olhava para ti.
- Por favor, não me obrigues a desligar o telefone. Estou cansado e quero dormir.
- Se ela te telefonasse, passava-te logo a vontade de dormir.
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- Para de me provocar! A minha mãe está no outro quarto e eu não a quero incomodar. Vamos despedir-nos como pessoas civilizadas.
- Pois. Agora tens a desculpa da mamã para não me confessares a verdade. Ofereci-me para te dar um apartamento e tu recusaste, porque queres evitar que eu possa aparcer-te em casa a controlar.
- Recusei o apartamento e todos os outros presentes loucos que insistes em me oferecer porque não me interessam. E agora, desculpa, mas vou desligar o telefone. - E assim fez. Passou o resto da noite a maldizer-se por se ter deixado apanhar por uma mulher que já não lhe parecia tão bonita nem sequer desejável. Tinha acreditado, ou melhor, ela tinha-o feito acreditar que era apenas um dos muitos companheiros de cama que não lhe perturbavam a relação com o marido impotente, o qual aceitava as transgressões de uma mulher jovem e cheia de vida. Raffaello nunca estivera apaixonado por Melissa e na noite anterior, pela primeira vez, começara a detestá-la. Agora só esperava não a voltar a ver. Ergueu-se na beira da piscina para recuperar o fôlego. Começava a sentir-se melhor. Olhou em volta e, do lado oposto, viu a figura esguia de uma rapariga em fato de banho olímpico e com os cabelos recolhidos dentro de uma touca azul, que escorregou elegantemente para a água e começou a nadar. Quando chegou ao outro lado da piscina, deu uma cambalhota e inverteu a direção. Subiu pela pequena escada de aço, tirou a touca e soltou uma longa trança de um bonito castanho dourado. Então Raffaello reconheceu-a. Também ela o reconheceu e lhe sorriu.
- Olá - disse. Enfiou os chinelos de plástico e pegou no roupão que estava pousado num banco ao lado do de Raffaello.
- Olá - cumprimentou ele. Estavam sós na luz azulada da cave e, por um breve instante, trocaram olhares embaraçados, ambos à procura de alguma coisa inteligente para dizer ou fazer.
- Estava a pensar vestir-me e tomar o pequeno-almoço aqui, no bar - disse por fim Raffaello.
- Eu estava a pensar no mesmo - respondeu Angelica.
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Um quarto de hora depois estavam sentados com outras pessoas a uma mesa do bar, a comer um brioche recheado com compota e a beber um cappuccino de espuma densa.
- Pensava que tinhas uma piscina em casa - disse ele.
- Em outubro é esvaziada e coberta, e eu venho aqui, de vez em quando - explicou.
- Eu venho cá muitas vezes, porque depois passo o resto do dia à secretária.
- As vezes leio os teus artigos - comunicou-lhe.
- Tento explicar aos outros coisas que nem eu entendo completamente - disse, com um sorriso. Ela riu-se, divertida. Pensou na quantidade de jornalistas de província que se armavam muito para compensar a escassa consideração em que eram tidos e apreciou a humildade de Raffaello. Levou aos lábios o cappuccino e bebeu-o lentamente, enquanto ele observava os seus gestos elegantes. Pousou a chávena e ele comentou:
- Tens dois fantásticos bigodes brancos sobre o lábio. Angelica limpou-se com a ponta dos dedos. Depois disse:
- Bem, até um dia destes. Levantou-se da mesa e dirigiu-se aos balneários.
- Até um dia destes - respondeu ele, levantando-se por sua vez. Quando chegou ao gabinete e se sentou à secretária para escrever um artigo sobre o ensaio do professor de Economia que encontrara em casa dos Favaretto, o telefone tocou.
- Meu caro amigo - começou uma voz que Raffaello conhecia bem -, nós os dois temos de conversar.
- Porquê? - perguntou o jornalista, inquieto.
- Meu caro, o motivo conhece-o bem. A minha pobre Melissa está num mar de desespero - disse Roberto Speroni.
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- Comendador Speroni, acontece que eu tenho de trabalhar para viver e não tenho tempo a perder - respondeu Raffaello, gélido.
- Arranje-o, por favor - disse o interlocutor, e desligou a chamada. O jornalista chamou Tiziana Scaroni, a secretária da direção, que filtrava também os seus telefonemas.
- Durante as próximas duas horas não me passe nenhuma chamada, nem sequer se for a minha mãe - disse-lhe.
- Quer um café, doutor? - perguntou ela, com uma voz suave.
- Obrigado. Duplo, por favor. - A calma daquela funcionária conscienciosa transmitiu-lhe algum conforto. Raffaello tinha elaborado e aperfeiçoado ao longo dos anos uma extraordinária capacidade de concentração que excluía o resto do mundo. Por isso esqueceu Melissa, o marido, o cansaço, e redigiu uma peça brilhante sobre o futuro da economia italiana. Duas horas depois tinha-a terminado. Imprimiu-a e deixou-a em cima da mesa do diretor, com uma nota: «Tenho um compromisso e volto ao fim da tarde. Diz-me se o artigo está bom». Estava de péssimo humor. Tiziana apercebeu-se e ficou curiosa.
- Posso fazer alguma coisa por si? - perguntou-lhe com solicitude. Ele, que tinha tomado a direção da casa de banho, respondeu, irritado:
- Não me parece, já viu para onde estou a ir.
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Detestava-o quando recebia aquele tipo de respostas, mas geralmente gostava dele porque, para além de ser um belíssimo rapaz, sabia também ser simpático como nenhum dos outros. Ficou preocupada porque nunca o tinha visto tão irritado. O céu estava coberto de nuvens carregadas de chuva. Ele levantou a gola do sobretudo, esquivou-se da escada que os funcionários municipais estavam a usar para montar as iluminações natalícias, mandou parar um táxi que ia a passar e deu-lhe o endereço dos escritórios da empresa Speroni, onde o marido da amante estava espera dele. Estava zangado com ele mesmo por não ter percebido que Melissa era uma mulher de equilíbrio frágil e, portanto, potencialmente perigosa. Encontrou Roberto Speroni no seu gabinete, sentado atrás de uma enorme secretária.
- Sente-se - disse-lhe quando ele entrou, sem se mexer.
- Explique-me porque me fez vir aqui - retorquiu Raffaello, parado no meio da sala. O comendador Speroni levantou-se, foi ao encontro dele e convidou-o a sentar-se numa poltrona de pele num canto mobilado como sala de estar, ao mesmo tempo que se instalava num sofá em frente dele. Por fim, confessou:
- Eu fico perdido perante as lágrimas da Melissa.
- Isso é um problema seu. O que pretende de mim? - replicou o jornalista.
- Compreensão por uma mulher que amo e que me ama, apesar das aparências - explicou o industrial. Raffaello abanou a cabeça, desolado.
- O senhor percebe aquilo que me está a dizer? - perguntou-lhe.
- Perfeitamente. Conhece muito bem a relação que eu e a minha mulher temos, na sequência da minha doença. Raffaello deu um suspiro resignado e olhou-o nos olhos com piedade e incredulidade.
- Aquela pobre rapariga está mesmo desesperada. Porque não lhe dá tempo para se cansar de si? - prosseguiu Roberto Speroni.
- Eu fui apenas uma aventura de passagem para a sua mulher e a nossa história acabou - respondeu, decidido.
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- Meu caro jovem, não se esqueça que se a minha mulher cometesse um ato insano, a responsabilidade iria recair sobre si - ameaçou. Nesse ponto, Raffaello explodiu.
- Não percebe que a Melissa só precisa de si? Um casal pode amar-se e ser feliz mesmo na ausência de uma vida sexual. A inteligência, a ternura, a lealdade, a partilha de um projeto de vida são muito mais importantes. A sua mulher é melhor do que julga e está apaixonada por si. É realmente absurdo que tenha de ser eu a explicar-lho. Recupere a sua dignidade e comporte-se como um homem, e peça a Melissa para se dedicar exclusivamente a si. A sua mulher podia ficar-lhe muito grata por isso, porque a vida que está a levar não a faz feliz, aliás, humilha-a. E com isto me despeço - concluiu Raffaello, ao mesmo tempo que se levantava e se dirigia a saída do gabinete.
- Um momento! - chamou Speroni, que o tinha escutado de respiração suspensa. Foi ao encontro de Raffaello e, estendendo-lhe a mão, murmurou: - Obrigado, o senhor é um cavalheiro.
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- Olá, Angelica. Ela olhou para ele perplexa, por um brevíssimo instante, depois o seu rosto iluminou-se e respondeu:
- Olá, Raffaello, certo?
- Tens boa memória - disse ele, com ar de troça. Era uma manhã de abril e ele tinha estado no ginásio. Antes de entrar no jornal, parou na Giuliani para encomendar uma caixa de biscoitos e pralinés de chocolate para levar à mãe, que fazia anos. Enquanto os escolhia um a um, viu no espelho, pendurado na parede que tinha em frente, uma bonita rapariga, com um casaco azul-turquesa e cabelo comprido castanho-dourado apanhado numa grande trança, sentada a uma mesa. Estava sozinha, não tinha ar de estar à espera de ninguém e bebia um cappuccino. Foi ter com ela para a cumprimentar.
- Limpa o lábio - disse-lhe. Ela passou a ponta dos dedos pela boca.
- Porque sorris? - perguntou-lhe.
- Fico contente por voltar a ver-te. Como estás?
- Bem. Hoje deixo a cidade e regresso ao meio das vinhas. Por isso concedi-me esta manhã de pausa. Passei o inverno entre a cidade e Borgofranco, a dar voltas pelas vinhas com o nosso enólogo e a estudar com ele, que é um mestre conhecedor e paciente. As vinhas nunca nos concedem um verdadeiro descanso. Aí estava a razão pela qual não a reencontrara no ginásio, pensou ele, que tinha esperado voltar a vê-la.
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- Queres ser viticultora? - perguntou-lhe.
- Já sou. Nasce-se viticultor. Há quem se torne depois, mas em geral quem produz vinho tem aos ombros várias gerações de produtores, porque esta profissão não é apenas uma ciência, é também uma tradição que passa de pais para filhos - respondeu ela, com entusiasmo.
- Não tens irmãos que te possam ajudar? - perguntou, curioso.
- Tenho dois e são muito mais velhos do que eu. Mas o Luigi dedicou-se à universidade e é responsável por uma cadeira em Trieste, o Gaspare é médico e trabalha no nosso hospital, e eu estou a aprender com o meu pai a tomar conta da empresa da família. E tu és jornalista económico e estás prestes a passar a subdiretor do nosso jornal diário. Eu sei isso porque há umas noites estive a jantar com o meu pai em casa dos teus editores, que nos falaram sobre o assunto e expressaram uma opinião muito lisonjeira a teu respeito. O que é que foi? Porque coraste?
- Senhor doutor, os doces para a sua mãe - anunciou a funcionária, ao mesmo tempo que lhe entregava a caixa. Ele agarrou nela e disse:
- Ponha na minha conta, por favor. - Depois voltou-se para Angelica: - Não sabia dessa promoção, e sinto-me um pouco embaraçado por ter sabido por ti - replicou, sem esconder uma nota de irritação. Angelica levantou-se da mesa e sussurrou:
- Desculpa, fui indiscreta por te ter falado no teu trabalho. Depois olhou-o com um ar sério e acrescentou: - Confesso-te que voltei à piscina várias vezes, nos últimos meses, à espera de te encontrar.
Voltou-se e saiu a correr. Raffaello ficou ali, petrificado por aquela brevíssima confissão que lhe tinha aberto as portas do paraíso. Quando se decidiu a sair da pastelaria, já ela tinha desaparecido.
- Sou um cretino, um grande cretino - resmungava ainda quando entrou na redação, fazendo oscilar numa mão o saco do ginásio e na outra o embrulho dos doces que tinha escolhido para a mãe.
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- Doutor, sente-se bem? - perguntou Tiziana. Ele então riu-se com gosto e replicou:
- Nunca me senti melhor.
- Sabe, quando eu era assim jovem, também me acontecia sentir os ares da primavera - disse a secretária, observando-o com uma ternura quase maternal.
- Menina Scaroni, hoje estou feliz - confessou-lhe, a sorrir.
- E eu fico feliz por si e desejo-lhe vivamente que a vida lhe sorria sempre. Já lhe levo o café.
- Nada de café esta manhã. Vá mas é buscar dois copos, um para mim e outro para si - pediu-lhe, ao mesmo tempo que agarrava numa garrafa de Franciacorta dos Fratelli Berlucchi que tinha em cima da escrivaninha.
- Tinha-a comprado para a minha mãe, porque ela faz anos hoje, mas estou cheio de vontade de a abrir consigo, deliciosa vestal dos segredos da redação inteira. Agora foi a vez de a solteirona de 50 anos corar também.
- Doutor, até me perturba - declarou. - E então não há borbulhinhas para a sua mãe?
- Despache-se a trazer os copos. Não quero que os outros nos vejam a confraternizar. A secretária saiu a voar do gabinete e, pouco depois, enquanto brindavam, perguntou-lhe:
- Posso saber a razão deste brinde?
- Estou apaixonado, querida Tiziana - disse ele, ao mesmo tempo que abraçava aquela criatura delgada e a levantava do chão, enquanto ela esperneava e, sempre a rir, dizia com um tom sedutor:
- Mas não me faça isso, doutor. O que é que os outros iam pensar, se nos vissem? Ele voltou a pousá-la no chão e, tapando hermeticamente a garrafa, entregou-lha com um sorriso.
- Logo a noite leve-a para casa e beba com a sua mãe o que sobrar. Tiziana gostaria de lhe perguntar quem era a felizarda, mas não ousou ir tão longe. Sabê-lo-ia de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde.
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E logo a seguir perguntou a si mesma por que razão o seu jornalista preferido tinha entrado na redação a chamar cretino a ele próprio. Também isso acabaria por descobrir, a seu tempo. Para já também ela estava feliz, porque naquela noite ia ter uma bela novidade para contar à mãe. Depois do almoço, Raffaello foi a Borgofranco, a casa de Angelica. Entrou de carro no pátio imponente que se abria na muralha do burgo e seguiu pela alameda coberta de saibro que passava ao lado dos primeiros edifícios. Parou o carro, saiu e olhou em volta. O sol da tarde iluminava o verde ainda ténue das trepadeiras nas paredes dos edifícios. Um gato apanhava sol estendido no meio do caminho e um basset petulante foi ao encontro dele a ladrar e a abanar a cauda. A uma porta que dizia ESCRITÓRIOS apareceu Angelica. Trazia uns jeans desbotados, sapatilhas e uma camisola azul. A longa trança enrolada na nuca estava presa com um lápis. Aproximou-se de Raffaello e sorriu-lhe. Ele abraçou-a e disse-lhe: - Estou apaixonado por ti.
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9
Da janela do seu gabinete, Giovanni Brugliani viu a filha nos braços do jornalista. Rosina aproximou-se dele com uma chávena de café acabado de fazer.
- Estás a ver aquilo que eu estou a ver? - perguntou-lhe ele.
- Quem é? - quis saber a governanta.
- Um jornalista que promete.
- E com muito bom ar - comentou ela.
- Eh! - foi o comentário lacónico do patrão.
- Se me permite, este é muito melhor do que o marido defunto observou - Rosina.
- Talvez - resmungou Giovanni Brugliani. Afastou-se da janela e sentou-se outra vez à secretária. Saboreou lentamente o café e entregou a Rosina a chávena vazia.
- O que é que não o convence? - perguntou ela, espreitando novamente pela janela. Viu que os dois jovens sorriam e se dirigiam a casa, muito juntos.
- A minha pequenina tinha jurado que não queria saber mais de homens.
- Mas o que é que quer? Ainda nem tem 20 anos e não me parece que o senhor deseje que ela fique uma solteirona para toda a vida, como eu.
- Eu não desejo nada. Só espero que, se isto for o início de uma história, dure pouco.
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A Angelica está a envolver-se muito no trabalho e tem ótimas qualidades para me substituir à frente da empresa. Preferia que não tivesse outras distrações, pelo menos durante mais alguns anos.
- Sabe o que eu lhe digo? Eu fico contente se ela arranjar um namorado de confiança, e aquele rapaz parece-me bem. Não é nada como o outro, que me fazia pele de galinha. Como disse que se chama?
- Não disse. Chama-se Rovesti. O nome próprio não me lembro. Escreve na página económica do nosso jornal e até diz coisas com bom senso. Às vezes é convidado pela Favaretto, pelos Cremonesi, pelos Mentasti. Há umas noites estive a jantar com a Angelica em casa dos editores do jornal, que falaram bem dele. Devia ter percebido que havia alguma coisa entre os dois, porque vi a minha filha corar quando referiram o nome dele - contou-lhe. Rosina voltou a pôr no tabuleiro a chávena de café vazia, enquanto Giovanni atendia o telefone. Tapou o auscultador e sussurrou-lhe:
- Vai a casa ver o que aqueles dois andam a fazer. Encontrou-os na sala de jantar que, com base na descoberta de algumas plantas desbotadas de data incerta, devia ter sido o refeitório dos monges. Ao longo das paredes estavam alinhados desenhos a tinta que reproduziam o burgo através dos séculos, tal como o imaginara o primeiro Brugliani que, no início do século XIX, adquirira o mosteiro com os terrenos que o circundavam.
- Só comemos aqui no Natal, quando se reúnem todos os Brugliani. Nessa altura vêm também uns parentes que vivem nos Estados Unidos há já setenta anos. E ainda temos uns primos na Áustria e no sul de França. Quando estamos todos juntos, somos uma tribo. Houve um tempo em que eu detestava estes reencontros, mas no Natal passado, quando estávamos todos aqui em volta desta mesa enorme, enfeitada para as festas, apreciei plenamente a alegria de poder fazer parte desta grande família. No nosso burgo, o Natal tem uma magia que não se consegue descrever - contou Angelica.
- Os Natais em casa dos Rovesti são uma coisa completamente diferente. Somos três, a minha mãe, o meu pai e eu. Não temos parentes próximos, e dos afastados perdemos a memória.
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A minha mãe é de Trieste e cresceu num orfanato, o meu pai era filho único, tal como eu, e é ferroviário. Imagina que até há pouco tempo viajei de graça em todos os comboios do nosso país. Eu ainda moro com a minha família. Só poderia comprar um apartamento se vendesse aquele que tenho em Roma, na via Margutta. Preferi alugá-lo, pelo menos para já - contou Raffaello.
- Tens um apartamento na via Margutta? Mas isso é o máximo! - exclamou Angelica, espantada.
- Foi uma doação testamentária de Lorena Saltini, que foi amiga da minha mãe e que eu tratava por tia.
- A Saltini? A atriz famosa? - perguntou ela.
- Essa mesmo. À minha mãe deixou algumas joias, que estão guardadas no banco, e a mim a casa de Roma. Rosina, através da porta entreaberta, tinha-os ouvido. Pensou que os dois estavam a aprender a conhecer-se e sorriu, porque gostou de Raffaello e esperava que o início daquela história tivesse uma sequência, apesar do ceticismo daquele pai resmungão. Raffaello foi-se embora e Angelica regressou ao escritório com um ar sonhador. Sentou-se à secretária, no gabinete que partilhava com as outras funcionárias, e recomeçou a trabalhar. Havia muito correio para despachar e pediu alguns esclarecimentos a Cesarina, a secretária, que estava sempre informada sobre tudo e sabia ser pródiga em explicações às muitas questões da jovem Brugliani. A certa altura, quando os escritórios estavam já para fechar, Giovanni foi ter com a filha e anunciou:
- Ligou-me um trabalhador. Parece que na vinha da Viúva alguém arrancou as rosas e as pisou. Cesarina e as outras funcionárias benzeram-se e a decana das secretárias disse num sussurro: - Mau sinal. Há dezenas de anos que, no início de cada fileira, os camponeses plantavam uma roseira e a tratavam com um cuidado quase obsessivo, não porque gostassem especialmente das flores mas porque, em caso de ataque dos parasitas da videira, a rosa era a primeira a dar sinais, adoecendo.
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Ao longo do tempo, a investigação ligada às culturas tinha desenvolvido métodos científicos mais fiáveis para assinalar o ataque dos parasitas, mas a rosa continuava a ter a sua valência de superstição: arrancar a planta era um insulto à vinha e a quem a possuía. Voltou-se para a filha e disse:
- Vamos lá ver. Encontraram alguns trabalhadores a confabular enquanto examinavam as plantas destruídas. O mais idoso, um camponês daquela região, foi ao encontro deles e disse:
- É melhor não se aproximarem. Angelica e o pai dirigiram-lhe um olhar perplexo.
- Destruíram-nas, arrancaram-nas e encheram a terra com os excrementos deles - explicou o homem.
- Patrão, a merda dá sorte - gritou um trabalhador estrangeiro que estava junto à primeira fileira.
- Foi uma afronta, senhor doutor. E até acho que sei quem foi - disse o camponês.
- Mas eu não quero saber. Tivemos sorte em não terem arrancado as estacas. Manda limpar tudo e, amanhã de manhã, vai à estufa buscar outra roseira. E atenção, não façam disparates, porque não quero entrar em afrontas piores. Giovanni Brugliani referia-se a um bando de rapazes dali que, algum tempo atrás, tinham tentado entrar no burgo durante a noite, escalando o muro. Os alarmes dispararam, o guarda-noturno pediu reforços, um dos rapazes partiu uma perna ao cair do muro e tinha-se seguido uma denúncia que Giovanni Brugliani se apressou a retirar, quando identificou o culpado, para não arranjar complicações aos pais do rapaz, que eram boas pessoas. Tinham sido precisamente eles a pedir-lhe que contratasse o filho como trabalhador, depois de a fábrica onde trabalhava ter fechado as portas. Giovanni Brugliani não estava à espera que ele fosse uma pessoa tão problemática, que se embebedava e armava brigas com os operários polacos, acusando-os de virem para ali roubar trabalho aos italianos. Por fim, foi obrigado a despedi-lo.
- Para a próxima vez podem fazer pior - disse o velho camponês.
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- Não vão fazer nada - rematou o patrão. Depois voltou-se para a filha: - Vamos ao restaurante. Hoje apetece-me um prato de polenta com brasato (carne cozinhada lentamente com vinho, especiarias e molho de tomate).
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- Quando eu era pequena, a mãe fazia uma compota que eu adorava, com pétalas da rosa-rubra - disse Angelica, quando se sentaram à mesa.
- Essa roseira fui eu que a plantei quando nasceu o Gaspare. Quando tu nasceste, meti a rosa mosqueta na vinha do Anjo - explicou Giovanni.
- Na estufa temos roseiras iguais à que destruíram. Eu sei porque sou eu que trato delas - disse, para tranquilizar o pai. Depois perguntou-lhe: - Se sabes quem cometeu aquele ato nojento, porque não fazes uma denúncia?
- Porque eu sou um senhor e o vândalo é um desgraçado. A não ser que ele e os amigos tentem dar-nos uma facada, não devemos cair em cima dos fracos. Para além do mais, corremos o risco de desencadear outras vinganças - explicou o pai.
- Nem vale a pena perguntar-te quem foi, porque não me ias dizer, mas e se as ofensas continuarem?
- Isso não vai acontecer. Confia no teu pai - rematou Giovanni Brugliani. Faustina, a dona do restaurante, colocou em cima da mesa dois pratos de polenta fumegante coberta com o molho de um suculento brasato cozinhado com Barolo.
- Se me dão licença, ofereço-lhes um Pinot bem redondo da minha vinha. Sei perfeitamente que não está à altura do teu vinho, meu caro Giovanni, mas é feito com amor - fez questão de dizer Faustina.
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- Quantas garrafas produzes? - perguntou ele, enquanto ela servia o vinho nos dois copos.
- A última vindima foi boa e conseguimos novecentas garrafas, quanto baste para nós e para os poucos amigos que, como tu, quando o rei faz anos, me honram com a sua presença. Aquilo que habitualmente sirvo aos clientes do restaurante, como tu bem sabes, é mais corrente. Prova-o e diz-me o que achas, sem me fazeres nenhuns favores. Ficou ali, com as mãos nas ancas, à espera do juízo de Giovanni Brugliani, que era um velho amigo de infância.
- Vamos deixar a minha filha provar primeiro - disse ele. Angelica sorriu ao pai, depois fez girar o vinho no copo e aproximou-o do nariz. Comentou:
- Sinto um ligeiríssimo aroma a violeta e uma nota, mais prolongada, de musgo. - Depois provou e emitiu a sua sentença: - Tem a textura de um vinho novo, mas o sabor persiste. No final deixa na boca um suavíssimo prazer. Faustina deu uma boa gargalhada.
- Minha menina, tens futuro como impostora. És mesmo filha do teu pai. Porque é que não me dizes se é uma porcaria ou se te soube bem?
- Faustina, é bom para ser um vinho feito em casa. É honesto como tu - disse Angelica.
- Estás contente com o veredito? - perguntou Giovanni à mulher.
- Comam o meu brasato, porque por ele ponho eu as mãos no fogo. E agora vou buscar água mineral, porque sei que preferem almoçar com água, como os presos, do que com vinho - resmungou a mulher, e foi-se embora, deixando-os sozinhos na pequena sala de jantar, separada do café por uma robusta porta de madeira.
- Então, tens alguma coisa para me dizer? - perguntou Giovanni à filha.
- A propósito de quê?
- Um assunto qualquer, escolhe tu. Pode ser sobre aquele jornalista que gosta de se enfiar na cama das mulheres casadas.
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- Então não vale a pena falar sobre isso, uma vez que já tens na mão o machado de guerra.
- Rendo-me, mas gostava de saber.
- Acho graça ao Raffaello e não acho graça ao facto de lhe achar graça, porque julguei que estava vacinada para sempre contra o fascínio masculino. Tomei consciência da minha fraqueza no momento em que o encontrei e, em qualquer caso, não fiz nada de comprometedor - confessou, emocionada.
- Comprometedor?
- Quero dizer que voltei a vê-lo por acaso no Giuliani, na cidade, e depois ele veio cá ter comigo. Mas isso já tu sabes, porque estavas a espiar-nos da janela do teu gabinete. Pensavas que eu não tinha dado conta? Estivemos a conversar durante algum tempo e descobrimos que temos muitas coisas em comum. Eu acho que é uma pessoa de confiança - explicou.
- Muito bem, já percebi. E agora, o que é que vai acontecer?
- Pai, és impiedoso. Dá-me tempo para refletir.
- A Faustina tem razão: este brasato com polenta está perfeito sorriu Giovanni, para aliviar a tensão. E acrescentou: - Decide-te lá a atender o telemóvel, porque estou a senti-lo vibrar há demasiado tempo.
- Sabes perfeitamente que é ele que está a telefonar-me, e também sabes que só vou falar com ele quando estiver sozinha. Acabou o interrogatório? O pai deu um suspiro resignado e, mais tarde, quando já estavam em casa e ela lhe foi desejar uma boa noite, limitou-se a dizer-lhe:
- Só espero que faças a escolha acertada. Pouco tempo depois, na capela de Borgofranco toda enfeitada para a festa, Angelica e Raffaello casaram. Quem os uniu pelo matrimónio foi um monge, conhecido especialista em textos bíblicos e amigo de Luigi Brugliani. Na homilia, que encantou todos os presentes, disse aos noivos:
- O matrimónio é um sacramento e, como tal, deve ser continuamente alimentado com a fé na sinceridade recíproca. Dias virão em que tereis vontade de andar à luta. Fazei-o honestamente e, sobretudo, falai sempre um ao outro com o coração aberto.
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Mas se acontecer que este vosso amor se desvaneça, confessem-no com honestidade, sabendo que o amor eterno é apenas o de Deus por nós. Não houve nenhuma viagem de núpcias, porque não sentiram necessidade dela. O importante era viver o dia a dia, ele a trabalhar no jornal, ela na empresa, e encontrarem-se à noite para estarem juntos e se amarem, discutirem e elaborarem projetos para o futuro. Pouco depois, Angelica ficou grávida, e numa manhã de março nasceu Elisabetta, que se tornou no centro das atenções de toda a família. Angelica, que não tinha nunca deixado de trabalhar até ao momento em que entrou em trabalho de parto e Raffaello a levou ao hospital a correr, voltou a ocupar a sua posição no escritório uma semana depois do nascimento da filha. Rosina levava-lhe a pequena Elisabetta, que ela alimentava e acarinhava, enquanto falava ao telefone ou discutia assuntos de trabalho. Giovanni mimava-a quando ela chorava, chamando-lhe os diminutivos mais estranhos e, quando não estava ninguém por perto, sussurrava-lhe: - Lembra-te que és uma Brugliani e que, se não tiveres irmãos, esta empresa tem de ser conduzida por ti. Quando a filha deixou de mamar, Angelica voltou a viajar com o pai, sabendo que a menina ficava em boas mãos, tratada por Rosina e também pelos pais de Raffaello, que não estavam em grande forma mas esqueciam as maleitas para irem a correr até Borgofranco sempre que eram precisos. O avô paterno, que tinha problemas de coração desde que Raffaello era criança, morreu quando Elisabetta tinha 2 anos. A mulher sobreviveu-lhe por pouco tempo. Partiu quando Elisabetta tinha 4 anos, deixando-lhe em herança as joias que recebera de Lorena Saltini. Aquele foi um período muito difícil para Raffaello. Até àquele momento não se tinha apercebido de como os pais tinham sido importantes para ele. De repente sentiu-se só, frágil, perdido.
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Tinha uma mulher que amava, uma filha lindíssima que adorava, um trabalho gratificante, mas sentia-se só, inseguro, e esbracejava à procura de alguma coisa onde se agarrar, ao mesmo tempo que se apercebia de que Angelica velejava segura na empresa familiar, totalmente concentrada nos cuidados de Elisabetta e na severa aprendizagem do negócio do vinho, sem se dar conta da sua necessidade de atenção. Foi então que começou a trair a mulher.
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Hoje
1
- Pai, não quero saber nada das tuas traições - declarou Elisabetta, que tinha escutado com avidez a longa narrativa de Raffaello. - Nem eu tenciono contar-tas, até porque os mosquitos me estão a devorar - replicou ele, ao mesmo tempo que agitava as mãos para afugentar aqueles insetos incomodativos. O pequeno jardim da estalagem estava iluminado por projetores encastrados por entre a relva, a lua cheia brilhava no céu e uma estrela cadente desenhou na noite uma longa estria de prata que logo desapareceu. Os arbustos de roseiras, regadas ao entardecer, espalhavam no ar imóvel um perfume intenso. De longe chegavam os acordes de uma ária famosa de Il Trovatore e Raffaello começou a cantarolar, acompanhando a música. - O que é isso? - perguntou Elisabetta. - Uma ária que a tua avó cantava muitas vezes. Ela gostava da música lírica e cultivou durante toda a vida o sonho de poder assistir a uma ópera no Scala de Milão, sem nunca o conseguir realizar. Eu, que não tenho ouvido para a música nem sei dançar, aprendi com ela muitos trechos de ópera, mas quando a minha mãe me ouvia cantarolar tapava os ouvidos e dizia-me: «Menino, pára com isso, porque és muito desafinado». - É verdade! Uma vez, quando era pequena, tentaste fazer um dueto com a mãe e quiseste imitar o Celentano. Ela desatou a rir, tu ficaste triste e disseste-lhe: «Não é verdade que eu desafino. Dentro de mim, sou melhor que o Pavarotti», e a mãe respondeu-te: «Está bem, continua a sentir-te o Pavarotti, mas só dentro de ti».
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Riam os dois, pareciam felizes, e eu também era feliz. E continuei a ser até há poucos meses, quando rebentou a bomba.
- Elisabetta, tenho de te dizer uma coisa importante: o teu pai é um cretino! - confessou Raffaello. Elisabetta ficou um instante calada e depois disse:
- Acho que te comportaste como se fosses, mas não és.
- Obrigado, meu pequeno tesouro.
- Também acho que devias fazer tudo por tudo para recompor as coisas com a mãe, porque eu não quero perder-vos. Mas está atento, porque a mãe afirma que acabou tudo contigo.
- E eu agora sei que nunca deixei de a amar. Precisei de armar esta grande confusão para me dar conta disso - admitiu. Elisabetta deu um grande bocejo.
- Pai, estou cansada. Vou dormir e, se conseguires, dorme tu também.
- Boa noite, pequenina. Gosto muito de ti - disse ele, abraçando-a.
- E eu de ti também - respondeu ela, e deu-lhe um beijo na face. Na manhã seguinte, enquanto tomavam o pequeno-almoço no jardim, a velha Barbarina andava de mesa em mesa a oferecer aos hóspedes uma tarte de damasco acabada de sair do forno. Chegou uma mensagem ao telemóvel de Elisabetta. Imaginou que fosse Cedric a desejar-lhe os bons-dias e a dar noticias, justificando a frieza dos dias anteriores. Abriu a mensagem e não conseguiu conter a desilusão:
- Ah, é a mãe.
- O que é que ela diz? - perguntou Raffaello, curioso. Elisabetta leu: Correu tudo melhor do que o previsto. Regresso a Itália amanhã. Como estão a correr as tuas férias com o pai? Ela olhou para o pai e perguntou-lhe:
- Digo-lhe que parámos por causa do meu pé magoado?
- Decide tu.
- Prefiro não dar muitas explicações, porque se não vai ficar preocupada, e ainda por cima o meu calcanhar está a ficar melhor. Barbarina foi ter com eles e disse:
- Temos umas bicicletas para vos emprestar. Há passeios muito bonitos para dar aqui à volta.
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Com certeza não querem ficar aqui enfiados todo o dia. Elisabetta olhou para o pai e propôs:
- O que dizes se voltássemos para Borgofranco?
- Estás disposta a aguentar as farpas da Rosina e da mãe quando virem que a nossa longa aventura terminou ao fim de quatro dias?
- A mãe nunca espeta farpas, devias saber isso. E a Rosina vai ficar feliz por me abraçar.
- Então, não há passeio de bicicleta? Elisabetta parecia hesitante. Depois voltou a pensar no assunto.
- Talvez seja melhor esperarmos ainda um dia ou dois, até para não ficarmos mal, o que achas? E depois eu estou bem contigo. O pai abraçou-a, feliz. Barbarina sorriu e foi com eles buscar as bicicletas. Andaram toda a manhã a pedalar pelas veredas no meio dos campos de milho, passaram ao lado de propriedades agrícolas onde se criavam vacas leiteiras, galinhas e porcos. Pararam numa taberna a comer pão e queijo. Visitaram duas igrejas da época medieval e admiraram, na de San Filastro, alguns frescos do século xv bem restaurados. Entraram num pequeno cemitério e leram os nomes nas campas dos defuntos, observaram as fotografias e decifraram datas de nascimento e de morte. Sorriram quando leram numa lápide de pedra de Sarnico uma frase que remontava ao início do século XIX e que dizia: «Aqui repousam os ossos de uma mãe que, em vida, nunca repousou».
- Como a Barbarina que, velha como é, continua a tratar de tudo e de todos - comentou Elisabetta.
- Pergunto a mim mesmo de onde lhe vem toda aquela energia - observou Raffaello, e acrescentou: - Eu devo confessar-te que estou cansadíssimo.
- Eu também estou cansada - admitiu Elisabetta. Regressaram à hospedaria e, depois do jantar, retomaram o seu lugar no jardim.
- Eu bebia uma cerveja antes de ir para a cama - disse Raffaello.
- Vou pedir para ta trazerem - ofereceu-se a filha, e dirigiu-se ao interior da casa.
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Na receção não estava ninguém. A cozinha estava deserta. A sala de jantar já tinha sido limpa e preparada para o pequeno-almoço do dia seguinte. Elisabetta perguntou a si mesma onde se teriam metido os donos. Depois viu uma porta entreaberta, abriu-a devagar e viu uma sala pequena iluminada por um candeeiro de pé. Sentiu um cheiro que conhecia porque já o tinha sentido outras vezes. A um canto, descontraidamente instalada numa poltrona acolhedora, Barbarina tinha os olhos fechados e fumava com ar plácido. Elisabetta observou a cena, estupefacta, depois correu para o jardim e anunciou ao pai:
- A velha Barbarina está a fumar um charro!
- O que é que estás a dizer? - reagiu Raffaello, incrédulo.
- Anda ver, se não acreditas - disse Elisabetta, divertida.
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2
Eram onze horas da noite. No seu quarto, Elisabetta tinha desligado o telemóvel e ligado o leitor de e-book, para escolher um título de entre aqueles que tinha adquirido para o verão. Era desde sempre uma grande leitora, tendo herdado, sobretudo do pai, a paixão pelos romances. Distinguia os livros entre aqueles que se liam de dia e aqueles que se liam à noite, quando já estava na cama e sentia a necessidade de histórias que a acompanhassem docemente em direção ao sono. De entre os títulos de que dispunha, e que tinham sido indicados pela professora de literatura, escolheu Diceria dell’untore, de Bufalino. Abriu-o e preparava-se para iniciar a leitura quando ouviu bater à porta. Era o pai, que olhou para ela com um ar severo.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Elisabetta.
- Temos de conversar, nós os dois - anunciou ele. Estava ainda completamente vestido, agarrou numa cadeira e sentou-se ao lado da cama da filha.
- Pai, fazes o favor de me dizer o que queres? - perguntou Elisabetta, assustada.
- Como foi que reconheceste o cheiro do fumo? Refiro-me Barbarina, que estava a fumar um charro.
- Pai, mas em que mundo é que tu vives? - retorquiu ela, quase escandalizada.
- Quero saber em que mundo vives tu - replicou ele, preocupado.
- Sabes muito bem qual é o mundo em que eu vivo e agora queres saber se fumo erva. A resposta é não, apesar de ma terem oferecido mais do que uma vez.
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E sabes porque recusei? Porque tenho medo. E sabes por que tenho medo das drogas? Porque quero ter sempre o controlo de mim. Fui clara?
- Não completamente. Se nunca fumaste, como conseguiste reconhecer o cheiro?
- Exatamente da mesma maneira que o reconheceste tu que, tenho a certeza, nunca enrolaste um charro. Eu ando numa escola pública, onde o fumo corre à vontade e toda a gente, professores incluídos, sabe disso, apesar de fazer de conta que não sabe.
- Porque é que nunca me falaste no assunto? A mãe sabe?
- Eu não te entendo. A dependência da droga, como a do álcool, dos cigarros, do shopping, do ginásio e por aí adiante, fazem parte da nossa sociedade, quer tu queiras, quer não. Tu és jornalista e não conheces a sociedade em que vives? Se olhares à tua volta, encontras droga até em aldeias minúsculas como esta onde estamos agora. A Barbarina é a prova disso. Estou grata à minha família que, mesmo sem mo dizer, me ensinou a estar atenta ao que faço e a seguir o meu caminho. Escolho os amigos que quero e posso garantir-te que não se drogam e são pessoas de bem. No meu liceu, os rapazes e as raparigas que descambam muitas vezes seguem o exemplo dos pais, que têm roupa de marca, carros desportivos e consomem álcool e drogas. Raffaello levantou-se, debruçou-se sobre a filha e apertou-a nos braços.
- Gosto tanto de ti - sussurrou. - O que é que eu fiz para merecer uma filha como tu? - perguntou-lhe.
- Gostaste de mim. Quero dizer que és um bom pai. Mas como marido da mãe, és um desastre - concluiu Elisabetta, desolada.
- Achas que vou conseguir recuperá-la?
- Não sei - respondeu Elisabetta, com sinceridade. Voltou-lhe à ideia aquele homem bonito e estranho que a mãe tinha encontrado em Londres. Não quis falar sobre isso com o pai e limitou-se a abanar a cabeça e a repetir:
- Não sei mesmo. O pai fez-lhe uma festa e disse:
- Acontece que nós, adultos, conseguimos fazer burrices maiores do que as dos nossos filhos.
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A filha não fez comentários. Gostaria muito que o pai voltasse a viver com a mãe mas, se assim não fosse, ela tinha em qualquer caso a certeza de que era amada por ambos, e isso bastava-lhe.
- Pai, é quase meia-noite. Queres deixar dormir a tua filha?
- OK - respondeu, e estava quase a sair do quarto quando deu uma gargalhada.
- Disse alguma coisa cómica? - perguntou Elisabetta.
- Estava a pensar na velha Barbarina a fumar uns charros!
- Aquilo era digno de uma fotografia, quando ficou a olhar para nós com um ar sonhador e tentou explicar: «Este remédio para as dores nas pernas é mais eficaz do que aquele que me dá o médico. É o meu neto que mo arranja». Tenho a certeza que ela não sabe que aquilo é droga - disse Elisabetta, divertida.
- A Barbarina é uma velha fina como um alho e decidiu que, tendo chegado àquela idade, depois de uma vida de cansaço e sacrifícios, tem direito a um parêntesis noturno de evasão. Quem sabe se, quando eu chegar à idade dela e estiver cheio de dores, tu me vais oferecer o mesmo tratamento. Elisabetta desatou a rir, agarrou na almofada da cama e atirou-a ao pai que se esquivou, a apanhou e voltou a atirar-lha, após o que se esgueirou para fora do quarto, evitando por pouco um segundo arremesso.
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3
- Vamos fazer uma surpresa à mãe - disseram um ao outro, na manhã seguinte, depois de terem decidido pedir uma boleia para Borgofranco ao sacristão que também fazia serviços de taxi. Depois de terem amontoado na mala de um Mercedes decrépito mochilas e sacos-cama, a velha Barbarina quis dar-lhes um abraço e desejar-lhes um bom regresso com a oferta de uma tarte fresca e outras guloseimas que tinha preparado para eles.
- Se o bom Deus me mantiver viva, no próximo verão espero-os aqui de novo. Quando entraram no carro, Raffaello disse:
- No próximo ano vamos preparar-nos melhor para as nossas férias, e duas noites na hospedaria Tacconi estão garantidas.
- Desde que, entretanto, a Barbarina não tenha sido despachada para um centro de recuperação de toxicodependentes - sussurrou Elisabetta ao ouvido de Raffaello, a sorrir. Era 15 de agosto, ao meio-dia. Sob um sol impiedoso, passaram os muros do burgo, que repousava silencioso sobre o planalto, no abraço afetuoso das vinhas carregadas de cachos que prometiam uma boa vindima. Cruzaram-se com dois operários que vinham a sair dos escritórios e se dirigiam aos campos. Descarregaram a bagagem e, enquanto o sacristão-taxista se afastava do burgo, entraram em casa. Pousaram as mochilas na entrada, aos pés da escadaria que dava acesso ao andar superior, e entraram na sala de estar. Através das portas de vidro abertas para o pátio chegou o som de vozes e gargalhadas.
- Está gente na piscina - disse Elisabetta.
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- Parece que se estão a divertir bastante - comentou Raffaello, soturno, uma vez que tinha imaginado um acolhimento diferente para aquele regresso surpresa, convencido de que ia encontrar Angelica cansada, sozinha e triste devido à ausência deles.
- Tenta perceber quem é, mas não deixes que te vejam - pediu à filha, enquanto tirava uma garrafa de água fresca do móvel-bar. Elisabetta saiu para o pátio e, atrás de uma sebe de oleandros, espiou a zona da piscina. Nas camas, protegidas por guarda-sóis, viu Margot, a mulher do advogado Raimondo Agosti, e a sommelière chinesa Ye-Liu-Jie, que toda a gente tratava simplesmente por Ye, que regressara com a mãe da viagem à China. Em pé, junto à piscina, estava um belo homem loiro, de meia-idade, em fato de banho. Raimondo Agosti e a mãe nadavam na piscina, em sincronia. Regressou então a sala e ordenou ao pai:
- Anda atrás de mim. Ele pousou uma mão no ombro da filha e saiu com ela. Aquilo que Raffaello viu não lhe agradou nada. Enquanto Raimondo, a bufar e a deslocar metros cúbicos de água como uma baleia, continuava a nadar, imperturbável, Angelica tinha-se aproximado da beira da piscina e estendeu uma mão ao loiro atlético de meia-idade, que a agarrou para a ajudar a sair da água. Logo a seguir pousou-lhe uma toalha nos ombros e friccionou-lhe as costas. Angelica sorria, mas assim que viu Raffaello com Elisabetta o rosto iluminou-se-lhe de alegria e foi ao encontro da filha. Abraçou-a, mantendo-a apertada contra si.
- Que bela surpresa. Estou muito feliz por te ver, minha querida - exclamou. Depois cumprimentou Raffaello.
- O que é que esta gente toda está aqui a fazer? - perguntou ele em voz baixa, e acrescentou: - Quem é aquele atleta que olha para mim como se eu fosse um marciano?
- Ciúmes? - perguntou ela, com um ar malicioso.
- Ópai, é um velhote! - intrometeu-se Elisabetta.
- Tu não percebes nada de homens. Mas a tua mãe, pelo contrário, entende bastante - replicou ele. Angelica não se preocupou em contestar e, em vez disso, apresentou-lhe William Clifford.
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- O nosso novo agente para os Estados Unidos - disse, enquanto Elisabetta se deixava abraçar por Margot Agosti e pela frágil Ye.
- O pai da minha filha - acrescentou, enquanto os dois se cumprimentavam com um aperto de mão. - E agora desculpem-me, quero falar com a minha menina - concluiu, ao mesmo tempo que enfiava um roupão. Raimondo, entretanto, continuava a nadar, alheio a tudo o que se passava junto à piscina.
- Estava à espera que regressasses depois do dia 15. O que foi que aconteceu? - perguntou Angelica a Elisabetta, enquanto se dirigiam para o interior da casa.
- Dor aguda no calcanhar - confessou Elisabetta, mostrando-lhe o pé doente. A mãe inclinou-se para examinar a escoriação e depois proferiu a sua sentença:
- Vai levar alguns dias até que a pele se regenere. Vais precisar de meter os pés em água salgada de manhã e à noite, tens de usar só chinelos de dedo e, se tudo correr bem, daqui a uma semana a epiderme vai estar regenerada. Vamos para o teu quarto para podermos conversar.
- Não estava nada à espera de encontrar tanta gente cá em casa confessou Elisabetta, ao mesmo tempo que mergulhava o pé numa bacia cheia de água tépida com sal. Estavam na casa de banho e Angelica tinha-se sentado na extremidade da banheira.
- Nem eu - disse. E explicou: - Convidei a Ye, porque ia estar sozinha em Milão. Os outros caíram-me em cima como lapas. Mas vão-se embora cedo.
- O americano que provocou tantos ciúmes ao pai também se vai embora?
- Esquece isso. Eu quero mas é saber como é que ele pôde deixar-te chegar a este estado - disse Angelica.
- O pai não tem rigorosamente nada a ver com isto, aliás, até me tratou o melhor possível, e já que falamos nisso, devo dizer-te que estive otimamente com ele. O pai é uma excelente pessoa e eu gosto muito dele.
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- Queres dizer que comigo não estás assim tão bem?
- Ó mamã, isso está fora de discussão. Só quero dizer que tu és muito dura com ele - censurou-a.
- Elisabetta, vamos falar de outras coisas. A relação com o teu pai acabou e eu não quero voltar a esse tema - rematou. Aproximou-se da filha, levantou-lhe o pé e envolveu-o numa toalha de felpo macia para o secar. Elisabetta observou o olhar determinado da mãe e comparou-o com a expressão solar e um pouco infantil do pai. Na sua opinião, pareciam feitos para se completarem mas, provavelmente, estava enganada. Naquele momento tocou um telemóvel. Elisabetta pegou no dela e Angelica leu no ecrã luminoso o nome de quem ligava: Pippa. Levantou-se de repente e fulminou a filha com o olhar.
- Já não é só o teu pai, mas também tu, agora, te dás com ela? - gritou.
- Sinto muito, mamã, mas...este é o telemóvel do pai. Agora ele está com o meu! - constatou Elisabetta. Angelica abraçou com força a filha, enquanto lhe sussurrava:
- Desculpa, minha querida. Desculpa, por favor. Elisabetta tinha os olhos brilhantes de choro e começou a gritar:
- Pois, estás a ver como tu és? Sempre pronta para emitir sentenças sem parares um instante a raciocinar! Se queres saber tudo, o pai ainda te ama muitíssimo e eu estou furiosa com os dois, porque não quero que me metam no meio das vossas discussões nojentas - gritou, enquanto se soltava do abraço da mãe. No meio daquele emaranhado de braços, gritos e prantos, Raffaello, que tinha aparecido na soleira da porta da casa de banho, com o telemóvel da filha na mão, ficou ali, transtornado e confuso, enquanto dizia:
- Posso saber o que se passa aqui?
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Tinha caído a noite e Raffaello media a passos largos o perímetro exterior da villa dos Brugliani, com o telemóvel colado ao ouvido numa mão e na outra um cigarro que se consumia sem que ele o fumasse. Entretanto, escutava a torrente de recriminações de Pippa Premoli. Depois da cena de Elisabetta, que tinha acabado por culpabilizar tanto o pai como Angelica pela sua própria infelicidade, deixara Borgofranco sem se despedir de ninguém e refugiara-se ali, determinado a refletir em paz sobre a conclusão catastrófica de umas breves férias felizes com a filha. Felizmente, os cunhados tinham partido com as respetivas famílias e na villa tinham ficado apenas os porteiros, aos quais dissera que não precisava de nada e que não queria ser incomodado. Mas não conseguiu dar a mesma ordem a Pippa, que lhe ligava continuamente da quinta em Salento para solicitar a sua presença.
- Já te disse que a minha filha está em crise e eu não estou com o melhor dos humores para ir ter contigo - explicou-lhe, tendo ainda na cabeça o pranto de Elisabetta que, depois de uma aparente imperturbabilidade em relação ao divórcio dos pais, tinha despejado sobre os dois a sua dor.
- Éramos felizes, éramos uma bela família, e vocês estragaram tudo. Porquê? - gritava, a chorar copiosamente, enquanto ele e Angelica olhavam para ela sem saberem como a acalmar.
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- Eu já tenho os meus problemas e vocês os dois, que deviam ajudar-me a resolvê-los,
estão mais desatinados do que eu - gritou, a olhar para eles com desdém. Angelica e Raffaello olharam um para o outro, aflitos, incapazes de entender o que tinha desencadeado aquela fúria repentina, e acabando os dois por se sentirem culpados. Então Angelica tentou reagir com um assomo de autoridade maternal e disse à filha, com um tom severo:
- Como é que tu te permites armar-te em juíza das nossas decisões? Criámos-te com amor e demos-te tudo aquilo que achámos que te devíamos dar. Querias que fingíssemos uma harmonia que já não existe? Era isso que tu querias? Raffaello precipitou-se para abraçar a filha, e disse a Angelica:
- Porque a censuras com tanta dureza? Chama antes um médico. Não vês que a nossa filha não está bem? Elisabetta libertou-se do abraço do pai, foi a correr enfiar-se no seu quarto e fechou a porta à chave. O pai e a mãe bateram, suplicaram para que ela abrisse.
- Vão-se embora e deixem-me em paz - gritou Elisabetta, do outro lado da porta. Atraídos pelos gritos, Raimondo e a mulher, Margot, tinham subido ao primeiro andar para perguntar se podiam dar alguma ajuda.
- Onde estão os outros? - perguntou Angelica, no máximo da aflição.
- A chinesa e o americano meteram-se nos respetivos quartos - comunicou-lhes, e acrescentou: - Eu tento falar com a vossa filha. Bateu à porta de Elisabetta e disse-lhe:
- Sou o tio Raimondo, abre a porta. O advogado da família conseguiu entrar no quarto. Angelica, Raffaello e Margot desceram até à sala de estar. Nenhum dos três dizia nada, à espera da continuação daquela crise. Ao fim de mais de uma hora, ouviram finalmente os passos do amigo a descer as escadas. Entrou na sala de estar e disse:
- Angelica, dá-me um whisky com muito gelo, por favor. Deixou-se cair pesadamente num sofá e deu um longo suspiro. Angelica apressou-se a servi-lo. Raffaello perguntou:
- Vais deixar-nos suspensos ainda durante muito tempo?
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- Não sei como vos hei de dizer, mas a miúda está com um problema - decidiu, por fim, dizer.
- Ó meu Deus! O que foi que lhe aconteceu? - perguntou Raffaello, num sussurro, empalidecendo.
- Em Inglaterra andou a fazer disparates e agora tem medo de estar grávida - revelou Raimondo. Angelica e o marido olharam um para o outro e, ao mesmo tempo:
- Aquele Cedric!
- Pois, foi esse mesmo o nome que mencionou - anuiu Raimondo. Raffaello recordou os momentos de tristeza da filha, quando lhe falou dele, e Angelica recordou que ela lhe tinha pedido para ir para Inglaterra concluir os estudos. O advogado começou a contar.
- Tanto quanto eu percebi, aconteceu durante uma festa de miúdos na Burton House. Parece que os adultos nesse dia decidiram deixá-los sozinhos e livres para se divertirem. Ela estava completamente apanhada por esse Cedric. Foram para o quarto dela e lá aconteceu o que tinha que acontecer. Depois ele começou a distanciar-se e ela estava quase conformada com aquela desilusão quando somou dois e dois e percebeu que tinha um atraso no ciclo. Não sabia como havia de vos dizer, até porque vocês já têm os vossos problemas para lidar. Houve um longo silêncio, e depois Angelica disse de repente:
- Portanto, resumindo, a culpa foi nossa!
- A minha menina violada por um pau-de-virar-tripas inglês! retorquiu Raffaello, furioso.
- Acalmem-se os dois, por favor - interveio Raimondo, com um tom autoritário.
- Tinha-me prometido que me falava sobre o assunto, se alguma vez decidisse tomar alguma atitude - sussurrou Angelica. E acrescentou: - E eu tinha-lhe prometido que a levaria ao ginecologista para lhe receitar a pílula. Nesta idade, foi isso que a minha mãe fez comigo.
- Muito bem! Como se duas pessoas que se preparam para dar uma queca planificassem as coisas - ironizou Raffaello.
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- Pronto, falou o entendido - disse Angelica, sem se conter.
- Agora parem de discutir, porque há uma jovem que precisa dos pais - interveio Raimondo.
- Mas temos mesmo a certeza de que está grávida? - perguntou Margot.
- Pois! - replicou Angelica, com um fio de esperança. - Mas está tão assustada e é tão inexperiente que nem sequer deve ter pensado em fazer um teste - raciocinou. Os Agosti foram rapidamente à cidade, esperando encontrar uma farmácia aberta para comprar um teste de gravidez. Angelica e o marido ficaram sozinhos na sala, refletindo sobre aquele novo drama, que ultrapassava largamente as suas questões pessoais.
- Sinto muito - disse Raffaello.
- Eu sei - assentiu ela, desolada. A casa estava agora mergulhada em silêncio. Os dois estrangeiros estavam isolados na zona dos hóspedes e Rosina, que tinha ouvido os gritos e os choros, tinha-se barricado na cozinha.
- Devias ir ter com ela - sugeriu Raffaello.
- Vou esperar que eles regressem com o teste - foi a decisão de Angelica.
- Eu, para já, retiro-me e vou para a cidade. Peço-te que me ligues assim que a situação estiver esclarecida - decidiu o marido. Mas, em vez do telefonema da mulher, tinha recebido a chamada de Pippa Premoli, que estava furiosa e agora lhe dizia:
- Acho deplorável que me tenhas deixado só. Raffaello, escuta, eu nunca fui deixada por ninguém, e não vais ser tu o primeiro a fazê-lo. Portanto, sabes o que te digo? Espero não ter de te encontrar nunca mais. Ela desligou o telefone e ele suspirou de alívio. Finalmente, aquela relação demasiado absorvente tinha chegado ao fim. Nunca nenhuma das suas histórias tinha acabado mal, nem mesmo a de Melissa Speroni, a mulher do idoso e rico industrial que, ao encontrá-lo algum tempo depois de ter sido abandonada, lhe sorriu e o cumprimentou com afeto. Mas nenhuma das suas amantes era tão mimada como Pippa. Por fim, chegou o telefonema tão esperado.
- A nossa filha está bem. Não está grávida - disse-lhe Angelica.
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Raffaello deixou-se cair na cama, exausto, e adormeceu. No dia seguinte, decidiu planificar o seu futuro de pai. Precisava de dinheiro. Por isso ia pôr à venda o apartamento da via Margutta, em Roma.
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Superado o medo da gravidez indesejada, Elisabetta apercebeu-se de que tinha ultrapassado os limites da conveniência quando, acossada pelo pânico, se tinha lançado contra os pais com uma veemência que não lhe era habitual, e queria desculpar-se junto deles. O sol declinava e Angelica, com a filha ao lado, percorria as vinhas, onde ambas tinham crescido, num velho automóvel utilitário. Mãe e filha amavam aquela extensão infinita de plantas carregadas de frutos que a terra generosamente concedia.
- Vamos à vinha do Anjo? - propôs Elisabetta. - Gostava de conversar contigo.
- Parece-me um bom sítio para raciocinar com calma - concordou Angelica. Cada vinha tinha um nome: havia a dos Dois Caminhos, a da Fonte, a da Viúva e a do Anjo. A origem destes nomes perdia-se no tempo e só de alguns se conservava a memória, normalmente coberta de acontecimentos arcanos que se tinham tornado lenda. Mãe e filha gostavam da vinha do Anjo, a do Chardonnay, porque achavam que ali, mais intensamente do que nas outras, se sentia o perfume da terra, das videiras, das uvas. No topo da colina havia uma minúscula capela votiva que em 1600, durante uma epidemia de peste, tinha sido caiada com cal viva, o desinfetante da época. Os Brugliani tinham-na mandado restaurar e, nessa altura, surgiram partes de um fresco que representava um anjo, do qual a vinha recebeu o nome. Da erosão da cal tinham-se salvado uma asa branca, um perfil feminino rodeado de uma auréola e duas mãos bem modeladas, juntas em oração. Angelica parou o carro na berma de uma vereda e meteram-se pelo meio das fileiras das vinhas que emanavam ainda o calor do sol. Chegaram à capela e sentaram-se no degrau de pedra para admirar o horizonte que ia escurecendo.
- Peço-te desculpa, e vou também pedir desculpa ao pai, pela maneira como me comportei - começou Elisabetta.
- Não julgues que basta dizer: desculpa, mãe, desculpa, pai, para que esta história seja esquecida - esclareceu a mãe.
- O que mais posso fazer? - perguntou Elisabetta, que recomeçou a chorar. E prosseguiu: - Devo apanhar umas chicotadas? Devo suicidar-me? Diz-me o que queres que eu faça!
- Não encenes um espetáculo inútil e histérico. Aquilo que deves fazer é refletir sobre as razões que te atiraram para os braços daquele pau-de-virar-tripas inglês, como o definiu o teu pai. Porquê com ele e não com o Gianmarco, por exemplo? E depois, porque ficaste calada quando sabes perfeitamente, desde sempre, que a mim podes dizer-me tudo? - perguntou Angelica, com severidade. De repente caiu a noite e acenderam-se os lampiões espalhados ao longo dos caminhos por entre as áreas cultivadas.
- Conheço o Gianmarco desde sempre, somos namorados, mas também grandes amigos. O Cedric foi uma aventura em que me deixei envolver profundamente, sem me dar conta de que para ele eu era apenas uma nova conquista para apontar no ativo. De resto, eu tinha-o levado a acreditar que era uma italiana desinibida e sem complexos, em vez de lhe dizer que estava muito assustada. E, em qualquer caso, depois de termos feito amor, devo dizer-te que não me senti felicíssima. Tinha ficado com algum amargo de boca. Disse para mim mesma: é só isto o amor de que se fala tanto? Ainda assim, estava à espera de receber dele poemas de amor e ramos de flores. Que parva! Nada disso. Entretanto, sentia-me mal porque não encontrava as palavras para te confessar isto, a ti e ao pai. Depois sentia-me mal porque pensava que devia acabar com o Gianmarco. Continuava a sorrir e a parecer a mesma de sempre, esforçando-me por apagar aquela experiência.
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Hoje de manhã, quando regressava a Borgofranco e o pai dormitava, tive uma espécie de ausência: uma onda de calor que subia do estômago para a cabeça. Pensei: ó meu Deus, o que é que me está a acontecer? E, finalmente, um pensamento fulminante: tinha um atraso de três dias na menstruação. Foi então que comecei a tremer de medo. E ainda tremo, quando penso no momento em que vou falar do Cedric ao Gianmarco. Já o conheço e sei que vai ser um juiz muito mais impiedoso do que tu e o pai. Elisabetta refugiou-se a soluçar nos braços da mãe, que lhe afagou os cabelos, sussurrando-lhe:
- Ser adulto não é fácil. Por isso agora chora, mas depois tens de olhar em frente, como quando vais na tua moto: mantém um olho no espelho retrovisor, mas observa bem a estrada que tens de percorrer, porque se olhares só para trás vais chocar contra um obstáculo e vais magoar-te.
- E com o Gianmarco, o que é que eu faço? - perguntou Elisabetta, enquanto secava as lágrimas.
- Não sei. Isso é um problema só teu e eu não o posso resolver por ti. Também isso significa crescer, minha querida. Ouviram o ruído de um carro que subia a encosta. O carro parou e saíram de lá dois homens que se meteram pela vinha, munidos de lanternas. Eram os guardas-noturnos.
- Precisa de alguma coisa, minha senhora? - perguntaram, assim que a reconheceram.
- Está tudo bem, obrigada. Há algum movimento nas vinhas? perguntou Angelica.
- Um casalinho de namorados nos Dois Caminhos - respondeu um dos guardas.
- Deixemos que se amem em paz - replicou ela. Os dois homens regressaram ao carro, depois de se terem despedido das duas. A mãe gostaria de lhe dizer que não tinha assim tanto a certeza de ter realmente crescido, mas apenas disse:
- Nunca se para de crescer e de aprender. Os dissabores e as alegrias fazem parte da vida de cada um de nós e temos de os aceitar.
- É verdade que, quando eu tinha um ano, me pus em pé pela primeira vez e caminhei por esta vinha?
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- Eras muito engraçada. Andavas à volta da capela e não querias parar. Depois caíste, levantaste-te outra vez e recomeçaste a andar, a tropeçar e a rir.
- E tu, o que fazias?
- Deixava-te cair, e levantar, e tentar outra vez. É assim que se aprende.
- O Gianmarco e eu beijámo-nos precisamente aqui, por baixo do anjo, pela primeira vez. Estávamos felizes e trémulos. Queríamos imitar os artistas de cinema e não sabíamos como fazer.
- Estou exausta, Elisabetta. Vamos para casa.
- O que é que eu vou fazer daqui até ao fim do mês, quando o Gianmarco voltar de férias?
- Vais refletir. Os Agosti estavam no jardim, Rosina servia o jantar. Elisabetta disse a Angelica:
- Eu vou subir até ao meu quarto. Preciso de ligar ao pai e não estou assim de muito bom humor para estar com amigos.
- Saltas a refeição? - perguntou Angelica.
- Não - respondeu ela, ao mesmo tempo que corria pelas escadas acima. Naquela noite, quando os convidados se despediram, Rosina anunciou-lhe:
- Olha que a menina se alambazou de massa na cozinha. E acrescentou: - Veio-lhe a menstruação. Angelica foi ao quarto da filha, que estava enfiada na cama com o telemóvel colado ao ouvido. Viu a mãe e estendeu-lhe o telefone:
- O pai quer falar contigo. Raffaello disse-lhe que ia uns dias a Roma e que queria levar Elisabetta com ele.
- Desde que tu estejas de acordo - precisou. Angelica recebeu aquela proposta como uma bênção, porque precisava de tranquilidade.
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6
Os escritórios apenas abririam as portas na segunda-feira seguinte, mas entretanto Angelica não tinha parado de trabalhar. Quem a ajudava era Cesarina, que não saberia o que fazer se fosse obrigada a tirar férias. Para ela, a empresa era toda a sua vida. Angelica estava a acabar de pôr em ordem a correspondência que, apesar do período estival, não parava de chegar. De vez em quando faziam uma pausa e conversavam à vontade.
- Era importante que este novo agente americano participasse na nossa vindima - observou Cesarina a certa altura. Angelica sorriu-lhe.
- Eu também já tinha pensado nisso. Mas amanhã ele vai-se embora porque tem de visitar outros clientes. De qualquer maneira, passou a manhã com o enólogo, que lhe mostrou as nossas uvas.
- Gostava que fosse uma vindima boa como aquela de há muitos anos, quando voltaste para casa em lágrimas depois do exílio na Romagna. E, a propósito de lágrimas, como está a tua filha?
- Na segunda-feira vai para Roma com o pai. Parece que o Raffaello tem qualquer coisa que fazer lá e não se quis separar da nossa filha.
- Ou talvez a Elisabetta nunca tenha estado tão ligada a ele, apesar de sempre se terem dado muito bem os dois - comentou Cesarina.
- Como deves perceber, eu fui sempre a mãe amorosa mas severa, e ele é o pai indulgente que lhe perdoa tudo - esclareceu Angelica.
- Voltando ao trabalho, hoje de manhã, antes de tu chegares, estive a fazer contas às faturas não cobradas. Até quando poderemos aguentar os clientes que não pagam?
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Não te esqueças que, entretanto, pedem novas encomendas - disse Cesarina.
Os clientes devedores eram um grande problema. Os agentes, que acabam por ser os responsáveis diretos, escreviam e telefonavam para pedir adiamentos. Mas Angelica, que estava à frente da empresa, no fim do ano tinha sempre de acertar as contas e por isso ameaçava: «Escolham. Ou pagam eles ou pagam os senhores». Aquela era a parte mais ingrata da sua atividade e acontecia-lhe às vezes perder algum cliente. Dizia muitas vezes: «Um cliente dá muito trabalho a ganhar e perde-se num instante». Com aqueles que lhe pagavam regularmente, era pródiga em cumprimentos e cortesias. Pensou que devia dedicar mais tempo a estes.
- O instinto diz-me que, a partir deste ano, o mercado americano vai proporcionar-nos muita satisfação - revelou a Cesarina.
- Referes-te a William Clifford? Sabes que me parece uma pessoa séria? Inspira-me muito mais confiança do que o Mr. Gangi - comentou a secretária.
- Aí vem ele - disse Angelica que, da janela, o tinha visto entrar no burgo acompanhado pelo enólogo e por Ye.
- Achas que há alguma coisa entre aqueles dois? - perguntou Cesarina, num sussurro. Angelica sorriu e respondeu:
- E que tal se nos metêssemos na nossa vida?
- Em qualquer caso, é um belo homem, um verdadeiro senhor.
- Pois. E, tal como o meu marido, gosta muito de mulheres.
- Coitada da mulher dele! - exclamou Cesarina.
- Mas ele não é casado, e quando começar a sentir o peso dos anos vai voltar para a Califórnia, para o aconchego da família.
- E, se calhar, acaba por se casar com uma deslavada de 20 anos que vai esperar que ele patine para herdar os seus bens.
- Cesarina! Estás a fazer um filme. Vamos deixar-nos de bisbilhotices? - propôs Angelica, a sorrir, e ligou o computador. Olhou para o correio e leu um e-mail que vinha de Roccabruna, em Petralia Sottana. Era uma encomenda de trezentas garrafas de brut millésimé de 2008 e cento e cinquenta de rosé, com pagamento online contra entrega da mercadoria.
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A encomenda estava assinada por Tancredi d’Azaro. Desligou o computador, despediu-se de Cesarina e saiu do escritório. Estava surpreendida e desconcertada. Era evidente que Tancredi estava a tentar uma nova aproximação. No caminho encontrou alguns trabalhadores que carregavam um furgão com as ferramentas para irem trabalhar nas vinhas. Viu também William Clifford, que se exibiu numa vénia cómica, dizendo-lhe:
- Bom dia, minha pequena senhora do vinho. Como estás hoje?
- Muito bem, obrigada - respondeu Angelica. Dois dias atrás, quando William Clifford tinha chegado a Borgofranco, Angelica estava um pouco preocupada, porque receava que aquilo que tinha acontecido entre eles em Nova Iorque influísse na sua relação de trabalho. Pelo contrário, o americano demonstrou que estava interessado só e exclusivamente na venda dos vinhos Brugliani, revelando-se um interlocutor muito atento e mais do que nunca determinado a manter as promessas feitas. Ela conduziu-o na visita ao burgo e às caves, enquanto lhe contava a história dos Brugliani e a do ramo materno dos Acerbi, que compreendia o ramo nobre da bisavó Violante.
- No próximo ano, se ficares aqui durante mais tempo, levo-te a visitar Villa della Torre, em Fumane de Valpolicella. Agora pertence a uma outra senhora do vinho, Marilisa Allegrini, que produz um Amarone sensacional.
- Eu conheço-o. Nos Estados Unidos aquele Amarone é quase tão famoso como o Chianti e o Lambrusco que foi importado pelos militares americanos, que apanharam bebedeiras memoráveis em Itália com aquele vinho fresco e espumoso - explicou William.
- Vou apresentar-te a Marilisa, que está a transformar Villa de la Torre numa joia e que, de vez em quando, organiza umas festas espetaculares. Depois apresento-te a Pia Donata Berlucchi, outra extraordinária senhora do vinho. Vive e trabalha em Borgonato, um local em tudo idêntico ao nosso. Ela e outros produtores das Corti Franche desafiaram os espumantes franceses e, em algumas décadas, fizeram das suas vinhas uma flor na lapela da nossa produção vinícola.
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O brut millésimé que ela faz, assim como o Freccianera, é um mito, requintadíssimo - contou Angelica, entusiasmada. William Clifford lia naqueles olhos a paixão de Angelica por uma profissão que a enchia de alegria e incitou-a a continuar a conversa.
- Um dia levo-te a conhecer uma mulher do Piemonte, Mariuccia Borio. Ela administra sozinha uma pequena empresa em Costigliole d’Asti e produz um Barbera excecional na sua propriedade de Cascina Cast let. Sabes, a nossa associação de mulheres italianas do vinho favorece encontros e dá-nos coragem para fazermos cada vez melhor. Ao contrário dos homens, que estão sempre em competição entre eles, nós, mulheres, sabemos ser solidárias e aprender umas com as outras.
Clifford sorriu-lhe e depois perguntou-lhe:
- O que é que prevês de extraordinário para o futuro?
- Vou concentrar-me em algumas ideias para o lançamento no mercado americano do Falce di Luna que te proporei entretanto. Depois vais dizer-me o que achas.
- E tu vais dizer-me de onde te vem esta capacidade rara de motivar as pessoas que trabalham contigo. Acho realmente que, juntos, vamos traçar um ótimo percurso para o teu vinho. Eram estas as palavras que Angelica queria ouvir mais uma vez, enquanto se dirigiam à piscina onde a doce Ye, à espera deles, nadava sozinha. Angelica deixou-os e regressou a casa para falar com Elisabetta. Só à noite, quando Clifford e Ye se foram embora, se concentrou em Tancredi e no seu pedido de um fornecimento de vinho. E deu por ela a sorrir.
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- Prometo-te que em dezembro, quando voltares para a cidade, eu me vou embora. Mas se até lá pudesse continuar naquela casa, evitavas-me o problema da mudança, num momento em que estou a planear algo de muito importante para o meu trabalho - disse Raffaello. Estavam debaixo do alpendre da estação à espera do FrecciaArgent que os levaria a Roma, a ele e a Elisabetta.
- Tudo bem - concordou Angelica, e prosseguiu: - Mas aquilo que agora me preocupa é saber quando me trazes a nossa filha de volta.
- Não antes de uma semana, porque quero pôr à venda o apartamento da via Margutta e tenho de embalar e mandar buscar, para além dos móveis, tudo o que lá está. Angelica observou a filha, que se tinha afastado para digitar umas mensagens e ler as respostas no telemóvel. Duvidou que, atendendo ao período de crise, Raffaello conseguisse vender a um preço conveniente o grande apartamento romano herdado da famosa Lorena Saltini, mas não fez comentários, dizendo para si mesma que, afinal, não era nada com ela. Assim como não tinha nada a ver com as razões pelas quais o marido, obviamente, tinha necessidade de dinheiro.
- Não te esqueças de que, segundo as previsões do agrónomo, no dia 28 deste mês iniciamos a vindima do Chardonnay. A Elisabetta não a pode perder. Além disso, no dia 20 reabre o consultório do meu ginecologista e eu tenho de lhe marcar uma consulta e uma série de exames, porque chegou o momento de tomar a pílula. Organiza-te em função disto.
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- Está prometido - respondeu ele, e acrescentou: - Entretanto, o que é que tu vais fazer?
- Não me vou aborrecer, se é isso que queres saber. O altifalante anunciou a partida do comboio para Roma. Angelica abraçou a filha e beijou Raffaello na face.
- Mamã, o teu telemóvel está a tocar - disse Elisabetta.
- Estou a ouvir e vou ignorar. Tenho de te dar um abraço muito, muito forte, porque não te vou ver durante muitos dias... e vou ter saudades tuas - replicou.
- Mamã, fica sossegada, porque eu não vou fazer mais disparates e, a propósito, quando regressar vou contar tudo ao Gianmarco. Seja qual for a maneira como ele vai reagir, para mim vai ser uma grande libertação. Já percebi que dizer a verdade me faz sentir bem.
- Temos de nos despachar. O comboio vai partir - interveio Raffaello, dando a mão à filha.
- Obrigada por tudo - conseguiu ainda dizer Elisabetta, enquanto subia para a carruagem.
- Liga quando chegares! - recomendou a mãe. O comboio começou a andar e Angelica saiu da estação. Foi até ao carro, e só quando se sentou ao volante e pôs o motor a trabalhar para ligar o ar condicionado se decidiu a atender o telefone, que continuava a tocar. - O que é que se passa de tão urgente? - perguntou, depois de ler o número do escritório.
- Está aqui aquele sujeito com quem tiveste o acidente de moto. Diz que mandou para a empresa um pedido de um fornecimento de vinho, mas eu nunca recebi essa comunicação - explicou.
- Recebi eu - suspirou Angelica. - Chegou ao meu e-mail pessoal. O que é que ele quer?
- Se visses o homem, eras menos incisiva. É uma pessoa encantadora.
- Com um sentido de oportunidade excecional - disse Angelica ao desligar a chamada, enquanto considerava que aquele homem singular se tinha apresentado no preciso momento em que ela ficava sozinha em Borgofranco.
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Pôs o carro em movimento, mas em vez de seguir a direção de Borgofranco foi até A cidade e entrou pelo portão da casa dos Brugliani. Ao porteiro, que tinha ido recebê-la a correr, disse que tinha de ir procurar uma coisa que Raffaello se tinha esquecido de lhe fazer chegar. Na realidade, queria retardar a chegada a casa, porque temia o encontro com Tancredi. Deu nervosamente uma volta pelos aposentos e encontrou tudo meticulosamente limpo e arrumado. O caos era no escritório, onde a mesa e a escrivaninha estavam submersas em brochuras publicitárias sobre vinhos, sobre restaurantes, sobre os melhores bed breakfast e albergarias de toda a região. Por fim, em frente à secretária estava colocado um cavalete que sustinha uma enorme folha branca cheia de números e palavras escritas com um marcador. Na parte superior da folha Angelica leu uma legenda em letra de imprensa: CUSTOS DE INSTALAÇÃO E CUSTOS DE GESTÃO.
- Mas o que é que isto significa? - perguntou a si mesma em voz baixa. Recordou as palavras do marido enquanto estavam à espera do comboio: «Estou a planificar uma coisa muito importante para o meu trabalho». Agora ia a Roma para pôr à venda o único bem imobiliário que possuía. O que teria em mente o marido?, interrogou-se. Saiu do escritório quase em bicos de pés, como se tivesse violado uma intimidade. Foi à cozinha, tirou do frigorífico uma garrafa de água gelada e bebeu-a em longos goles. Sentiu, naquele momento, que uma grande paz a estava a envolver, ao fim de longos meses de tensão. Ligou para o escritório para falar com a secretária. Foi um trabalhador que atendeu.
- A Cesarina está a dar uma volta pelas vinhas com um visitante - comunicou-lhe. Então procurou-a imediatamente no telemóvel.
- Onde estás? - perguntou.
- Neste momento estou a chegar à vinha do Anjo com o chef Tancredi D’Azaro - respondeu ela.
- Muito bem. Entretém-no e diz-lhe que estou a chegar.
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Vinte minutos depois parou o carro no caminho que se desenrolava pelo meio das áreas cultivadas e entrou na vinha. Cesarina tinha ido embora, deixando Tancredi sentado no degrau de pedra da capela. Viu avançar uma silhueta esguia com um vestido branco de algodão, num passo lento e harmonioso. Levantou-se para a receber.
- Olá - disse-lhe a sorrir.
- Olá - respondeu ele, olhando-a com ternura. Ela sentiu um lampejo de felicidade enquanto se sentava nos degraus da pequena capela, imitada por Tancredi.
- Como é que conseguiste o meu e-mail pessoal? - perguntou-lhe.
- Através do cartão de visita que me deu uma amiga minha, durante o jantar em Hampton Court. - Referia-se a Paulette Stanley. Angelica anuiu sem replicar. Ficaram ali sentados, lado a lado, deixando vaguear o olhar pela extensão das vinhas.
- Porque quiseste que ficasse aqui à tua espera?
- Este não é um sítio qualquer. Observa os cachos destas plantas. É com estas uvas que, todos os anos, começamos a vindima. A vinha do Anjo é aquela de que eu gosto mais, mais do que todas as outras. Este lugar é mágico - sussurrou. O sol estava no seu ponto mais alto e queimava a pele. No ar imóvel, o zumbido dos insetos que voavam por entre a folhagem e o rumor dos pequenos jatos de água que regavam o terreno criavam um fundo perfeito para sublinhar a paz daquele meio-dia de agosto. Angelica fechou os olhos por um instante e sentiu-se em perfeita sintonia com o homem que estava ao seu lado. Levantou-se e disse:
- Anda. Vamos para casa. Tancredi dedicou-lhe um sorriso luminoso e foi atrás dela.
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Estavam sentados na cadeira de baloiço, do lado da sombra, em frente à piscina. Logo que entraram, Rosina sentou-os à mesa e serviu-lhes uma salada fria de arroz e uma omeleta, curgetes da horta e queijo caseiro. De sobremesa tinha preparado uns figos muito doces, acabados de colher, com um gelado de iogurte feito por ela. Depois perguntou:
- O senhor também fica para o jantar?
- O chef, pelo menos esta noite, vai cá dormir - respondeu Angelica sem o consultar. Depois acrescentou: - Manda preparar o quarto azul na ala dos hóspedes.
- Obrigado - disse Tancredi com um sorriso feliz. Agora saboreavam o café. Angelica observou a folha de um plátano que se tinha separado do ramo e descia ondulante até pousar suavemente na superfície da água. E pensou que também ela tinha a sensação de se ter libertado no ar e de ter pousado num mar de serenidade. Ouviram um carro percorrer a alameda, acompanhado pelo ladrar festivo dos cães. Cesarina tinha regressado ao escritório para trabalhar. Angelica ligou-lhe pelo telemóvel para lhe dizer: - O chef D’Azaro é nosso hóspede. Não me passes nenhuma chamada, a não ser que se trate de Elisabetta. Depois dirigiu-se a Tancredi e perguntou-lhe:
- Queres dizer-me por que razão encomendaste o meu vinho?
- Porque o provei num restaurante em Roma, quando vim de Londres, e gostei muito - respondeu, enquanto saboreava o café que Rosina lhes trouxera.
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Ficaram calados durante alguns instantes e depois ela disse:
- Confesso-te que a tua presença me transmite uma sensação de
paz e de tranquilidade. Tancredi segurou uma mão de Angelica entre as suas, levou-a ao rosto e pousou a face sobre ela, replicando:
- Conservemos estes momentos bem guardados, porque são preciosos. O baloiço oscilava suavemente, embalando-os.
- Porque foi que o destino quis que nos encontrássemos? - perguntou-lhe num sopro.
- Vou citar-te uma frase de Monod, um filósofo que elaborou ideias luminosas: «O destino é escrito no momento em que se cumpre, nunca antes».
- E então? - perguntou-lhe, enquanto pensava que nunca tinha lido Monod, nem Santo Agostinho, nem os muitos outros filósofos que lhe poderiam ter oferecido a chave para se entender melhor a ela e ao mundo.
- Vamos descobrir o nosso destino dia após dia. Não sejas impaciente - pediu Tancredi. Levantou-se da cadeira de baloiço. Angelica observou-o em contraluz. A claridade do início da tarde desenhou os contornos de uma figura masculina e de um rosto perfeito. Podia ser um anjo, pensou. Levantou-se ela também e conduziu-o ao interior da casa, ao mesmo tempo que lhe perguntava:
- Porque é que te tornaste cozinheiro?
- Farias essa pergunta a um músico ou a um alfaiate? - disse Tancredi em tom de brincadeira. E acrescentou: - Porque é que tu és vinicultora?
- Talvez porque esta profissão já estava no meu ADN - respondeu.
- Disseste-me que os teus irmãos desenvolveram outros interesses, e no entanto têm o mesmo ADN que tu. - Produzo vinho porque gosto.
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- Queres dizer que gostas do sabor do vinho? Eu só te vi beber água.
- Percebeste perfeitamente aquilo que quis dizer. Porque é que os sicilianos são sempre tão complicados? - queixou-se. Tancredi respondeu-lhe com uma boa gargalhada, enquanto se sentava num sofá da sala.
- Entretanto, não respondeste à minha pergunta - insistiu ela, ao mesmo tempo que tirava do balde de gelo, pousado numa mesa, uma garrafa de Falce di Luna. Abriu-a e serviu dois dedos numa flúte que lhe estendeu. Tancredi observou em contraluz as bolhinhas minúsculas que subiam do fundo do copo. Depois cheirou o vinho e, finalmente, provou. Após um breve instante, comentou:
- Tem um paladar soberbo.
- Desafiar os champanhes franceses é, desde sempre, o nosso objetivo. Não me refiro apenas a mim, mas a todos os vinicultores da zona - explicou, com orgulho. Depois prosseguiu: - E ainda não viste a embalagem, nem sabes o preço de venda! Mas não há outra maneira de recuperar as despesas de cinco anos de trabalho, tantos quantos foram precisos para afinar este novo vinho - disse com entusiasmo.
- Quando falas do teu trabalho, ficas ainda mais luminosa. Agora já tens a resposta à pergunta que me fizeste. Eu cozinho porque gosto de transformar os alimentos que a natureza nos oferece em algo de soberbo, de inigualável. Agora pergunta-me como cheguei a isto.
- Como chegaste a isto? - perguntou Angelica, aproveitando a deixa.
- A resposta ia ser longa e complexa. Tinha de te contar a história das minhas origens, da minha ilha, dos sicilianos, dos contrastes que desde sempre os caracterizaram, entre crueldade e generosidade, entre explosões de alegria e ataques agudos de dor, entre ignorância sombria e saber requintado; dos conflitos e da vontade de progresso e da necessidade extenuante de se abandonarem à preguiça. Sobre mim criaram uma lenda, só porque eu nunca quis contar a minha história a ninguém. Talvez a pudesse contar a ti, porque tu e eu somos iguais.
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As nossas duas vidas estão ligadas à terra, ao sol, ao céu, ao curso das estações e a muito mais ainda. Angelica esperava que nada nem ninguém os interrompesse, mas o telemóvel começou a vibrar.
- Não te mexas, por favor. Volto já - pediu-lhe, enquanto saía da sala para atender a filha que lhe anunciava que tinha chegado a Roma.
- Já estão no hotel?
- Deram-me uma suíte minúscula no Hotel Piranesi, com uma varanda linda para o interior, que é muito silencioso, e posso falar com o pai, que tem a varanda ao lado da minha. E tu, mamã, estás bem?
- Nunca estive tão bem.
- Estás com uma voz...
- Que voz?
- Não sei, estranha. Angelica pensou: cuidado com a minha filha e com as suas antenas compridíssimas. Então disse: - Minha pequenina, eu sou a mesma de sempre. O que vão fazer agora, tu e o teu pai?
- Vamos pôr à venda a casa da via Margutta e, esta noite, vamos jantar ao Babette, um pequeno restaurante que fica ao fundo da rua. O pai diz que se come lá muito bem. E tu, o que vais fazer?
- Aquilo que faço sempre: vou trabalhar. Liga-me antes de te deitares - pediu Angelica, despedindo-se da filha. Respirou fundo e regressou à sala de estar.
- Cá estou eu - anunciou. E olhou em volta, perplexa: Tancredi tinha desaparecido.
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9
Não o encontrou no jardim, nem na piscina. Regressou a casa e procurou-o nos outros aposentos, até que sentiu uma tagarelice que vinha da cozinha. Abriu a porta e encontrou Tancredi que, armado em mestre, explicava a Rosina como se faz um concassé de tomate e as suas mãos, de dedos longos e finos, moviam-se com agilidade enquanto fatiava com uma grande faca um tomate que reduziu a muitos cubinhos minúsculos.
- Não, Rosina, nada de alho, mata todos os sabores e também as pessoas que se aproximam de quem o comeu - dizia-lhe.
- E cebola? Podemos deitar aqui?
- De maneira nenhuma. Vamos usar hortelã, manjericão e tomilho. Angelica sorriu e perguntou: - Incomodo? Tancredi ergueu o olhar e fez-lhe um sorriso, enquanto Rosina comentava:
- Aí vem a dona da casa, que é excelente em tudo, mas na cozinha é um desastre.
- Porque tu me enxotas sempre que eu ouso invadir o teu reino reagiu ela. Com um único gesto, Tancredi juntou os cubinhos de tomate na lamina da faca e deixou-os cair dentro de uma tijela. Depois passou as mãos por água no lava-louça e disse a Rosina:
- Agora, minha preciosa assistente, deixo-a completar a preparação dos pãezinhos recheados. Atenção, a mozzarella deve ser bem escorrida, porque se não o soro vai amolecer o pão.
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E cuidado para não exagerar no azeite - concluiu. Depois, enfiou o braço no de Angelica e saíram da cozinha, enquanto lhe dizia:
- Vamos voltar à vinha do Anjo. Imaginei uma espécie de happy hour só para nós os dois. A Rosina vai levar-nos uns pãezinhos recheados e vinho. Daqui por pouco tempo vai chegar aquela hora um pouco melancólica do pôr do sol, que favorece as confidências. Quem sabe se eu não vou conseguir contar-te a minha história. Abriu-lhe a porta de um jipe, que tinha alugado no aeroporto para ir até Borgofranco, e ela sentou-se no lugar do passageiro. Na vinha encontraram o enólogo a falar com dois trabalhadores. Viu-os chegar e despediu-se dos homens, que estavam a controlar o temporizador da irrigação. Angelica apresentou-lhe o chef. O enólogo conhecia a sua fama e, depois de o ter cumprimentado, confessou-lhe que se tinha divertido muito, havia uns anos, ao ler nos jornais que tinha devolvido as três estrelas concedidas pela Michelin ao seu restaurante de Roccabruna.
- É realmente uma honra, chef, poder apertar-lhe a mão - concluiu.
- Obrigado - respondeu brevemente Tancredi, e acrescentou:
- Gosto desta vinha. Eu ia precisamente dizer à Angelica que nunca tinha visto cachos de Chardonnay tão bonitos e tão perfeitos como os deste ano. Vão dar um vinho excecional.
- A vinha do Anjo sempre me deu grandes alegrias. Talvez por sentir que a prefiro às outras - disse Angelica.
- Se é assim, reservo desde já mil garrafas desse vinho que vão produzir - decidiu Tancredi. Nesse momento, o enólogo fez uma meia vénia, despediu-se e afastou-se. Angelica e Tancredi sentaram-se no degrau de pedra da capela. Da aldeia chegavam os toques dos sinos a anunciar as vésperas.
- Onde tínhamos ficado? - perguntou-lhe Tancredi.
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- Em ti, que devias ter-me esperado na sala de estar, mas que afinal foste refugiar-te na cozinha a cortar tomates - respondeu ela, a sorrir. - Só queria ensinar a Rosina a preparar umas sanduíches como Deus manda. - Não deve ser fácil, para ti, comer o que aparece. - Não é verdade, quando viajo como o que encontro, inclusivamente comida de rua. Mas a única maneira de não esquecermos as nossas raízes é a comida de casa. Eu não como nada que a minha mãe não comesse, e uma vez que éramos muito pobres e os legumes eram o alimento principal, eu continuo a preferi-los As carnes. As verduras precisam de mais tempo do que a carne para serem apresentadas à mesa, mas são mais saudáveis e abrem as portas à criatividade. Sabes, Angelica, cozinhar é como sonhar acordado, e era a única maneira que eu tinha, quando era criança, de fazer alguma coisa que me tornasse feliz. Calou-se por um instante e depois continuou: - Estás a ver todos aqueles programas que passam na televisão feitos por cozinheiros, chefs, donas de casa, com paixão pela cozinha? Pois quanto mais as pessoas veem os outros cozinhar, menos cozinham. Hoje, uma pessoa dedica uma média de vinte e sete minutos por dia para preparar almoço e jantar. Isto significa que aquece comida já feita. Para cozinhar a sério é preciso tempo. Precisamente por isso, nos anos 70 os movimentos feministas diziam: «Libertemos as mulheres do fogão». Um princípio sagrado, que deveria continuar com «Ponhamos os homens ao fogão e ensinemos aos filhos o prazer de estar na cozinha». E deveria concluir-se com «Basta de comida pronta a comer, que seja só preciso aquecer». Mas isso iria contra os interesses das empresas que com esses produtos construíram fortunas colossais. Eu vivi numa cozinha imensa, onde os fogões estavam acesos desde a madrugada até ao fim do dia e onde as mulheres falavam, cantavam, discutiam e sonhavam, choravam e riam, enquanto cozinhavam. Aprendi com as mulheres a afinar o olfato ao cheirar os aromas das ervas e a perceber se a comida estava temperada só pelo cheiro. As mulheres e a cozinha salvaram-me, porque sem estes dois extraordinários elementos eu poderia ter-me tornado num criminoso, tanta era a raiva que me dominava. Tu conheces a Sicília?
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- Estive em Palermo, em Messina, na Catania, vi as igrejas e os castelos normandos, as praias e um mar encantador.
- Esquece tudo isso e pensa apenas na Sicília mais escondida, mais verdadeira, nas cadeias montanhosas desta ilha única no mundo. Refiro-me ao Parque Nacional das Madonie onde, quando eu era criança, subsistiam ainda os grandes feudos e em que os latifundiários já andavam à deriva mas continuavam agarrados aos seus privilégios, favorecidos nisso pela complacência atávica dos camponeses. Eu nasci ali, em Petralia Sotana, e a minha mãe era linda como a Nossa Senhora.
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TANCREDI
1
Gaetano D’Azaro, mais conhecido por Tanu, atou a mula ao aro de ferro espetado na muralha e entrou no terreiro que dava acesso à quinta de Roccabruna. Mantinha apertada, na sua mão calosa, a mão pequena de Tancredi, o filho de 8 anos, que tinha um ar aflito e as faces banhadas em lágrimas. Nannina, a empregada mais velha, foi ao encontro deles. - O que querem? - perguntou.
- Falar com o senhor barão - respondeu Tanu.
- O senhor barão não pode dar audiência ao primeiro camponês que se apresenta à porta - declarou a mulher, com uma voz áspera.
- São coisas de homens - acrescentou o camponês, sem se perturbar.
- Esperem aqui - ordenou Nannina, e desapareceu no átrio do palácio. Pai e filho sentaram-se num banco de pedra. Tancredi ergueu os olhos para as janelas do edifício e numa delas viu o rosto lindíssimo de uma menina. Meses antes, durante o inverno, Tancredi tinha adoecido. A febre devorava-o e a garganta estava tão inchada e dorida que quase lhe custava respirar. O pai carregou-o na mula e levou-o ao consultório do Dr. Nardone, o médico de Petralia. O médico, que tinha um temperamento irascível, mas era um homem generoso, começou por gritar com Tanu: - Estavas à espera que o menino morresse para o trazeres aqui?
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Depois sentenciou: - O teu filho tem quarenta graus de febre, duas amígdalas tão inchadas que metem medo, tem de tomar já um antibiótico e não o podes levar para a tua casa húmida e gelada. O nosso hospital está sobrelotado, porque com as maleitas que nos atormentam no inverno chegaram doentes de todos os estados unidos. Portanto... Com «estados unidos», o Dr. Nardone queria dizer que no hospital havia doentes de todos os lugares e aldeias das redondezas.
- Portanto? - perguntou Tanu.
- Vai ficar em minha casa até estar curado. Vem cá buscá-lo daqui a uma semana - disse. E uma vez que o camponês continuava a olhar para ele, perplexo, gritou:
- Mexe-me esse cu! Não vês que tenho o consultório cheio de gente? O Dr. Stefano Nardone tinha uma mulher ainda mais irritadiça e generosa do que ele. Tinham sete filhos e, durante uma semana, Tancredi foi o oitavo. Foi metido na cama com o mais pequeno dos Nardone, Stefanino, a quem chamavam Faninu. Também ele tinha uma amigdalite, mas já estava sem febre e os irmãos mais velhos, quando regressavam da escola, juntavam-se no quarto para brincar com os doentes. A irmã mais velha de Faninu, Elvira, aparecia sempre com uma boneca lindíssima, que tinha uns cabelos negros e encaracolados, um tom de pele diáfano, umas faces rosadas e uns olhos grandes e escuros como o carvão. Tinha um vestido branco cheio de rendas e folhos e, quando se lhe apertava o peito, dizia «mama». Tancredi ficava fascinado com aquela boneca, que se chamava Elvira como a menina. Gostava das longas pestanas escuras, dos lábios cor de morango e da sua voz arcana quando dizia «mama».
- Posso pegar na tua Elvira ao colo? - ousou perguntar-lhe um dia.
- Os rapazes não brincam com bonecas - observou Elvira, perplexa. Tancredi também não queria brincar, mas só pegar nela, como se fosse sua. Não conseguiu.
282
Agora, enquanto estava sentado com o pai no terreiro em frente ao imponente palacete branco da quinta, pareceu-lhe que a boneca de Elvira, que lhe tinha sido negada, tinha ganhado vida e estava ali, no vão de uma janela, com uma mão esticada para manter afastada a cortina de linho imaculado. O pequeno Tancredi passou as costas da mão para enxugar as faces banhadas de lágrimas, sem afastar o olhar daquele rosto maravilhoso, emoldurado por uma massa de caracóis negros. A certa altura, a menina levantou a outra mão, fazendo-a oscilar docemente em sinal de saudação. Tanu D’Azaro, seguindo o olhar do filho, assistiu à cena; quando Tancredi lhe perguntou quem era, ele respondeu:
- Chama-se Giulia Maria. É a filha do barão. A menina deixou cair a ponta da cortina, que se fechou como a cortina de um palco, e o homem acrescentou:
- A pequena baronesa tem 10 anos. Está aqui a passar o verão, porque de resto está no continente, num colégio suíço para os filhos dos senhores, porque a mãe, dona Sabedda, não pode tratar dela. - Porquê? - perguntou o pequeno.
- É doente dos nervos, e depois é estrangeira. É inglesa.
- O que significa doente dos nervos?
- Que não funciona bem da cabeça - respondeu Tanu. Naquele momento, Nannina abriu o portão de casa e gritou com uma voz estridente: - Podem passar.
- Vamos embora - sussurrou Tancredi.
- Não me obrigues a dar-te uns pontapés à frente do barão ameaçou o pai. Nannina conduziu-os em direção ao pátio da quinta, que se abria sobre um jardim viçoso. Aqui e ali erguiam-se alguns carvalhos seculares de folhagem escura que se recortava contra um céu de cristal no qual, lenta e majestosa, voava uma águia-real a perseguir uma presa. Um réptil ou uma raposa, pensou Tancredi, enquanto a observava. Um empregado colocava saibro na alameda. Do interior da casa provinha o canto de vozes femininas alegres que lhe recordou Perla, a sua mãe, quando lavava a roupa na fonte com as outras mulheres e cantava com elas.
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Então os olhos da criança encheram-se de lágrimas. Tanu apercebeu-se, mas fez de conta de que não viu.
- Esperem aqui - disse ainda Nannina, antes de os deixar sozinhos. Tancredi recordou a última carícia que a mãe lhe tinha feito. Tinha sido apenas há uns dias e já lhe parecia que tinha passado muito tempo. Tinha ido vê-la ao hospital de Petralia. Há mais de um mês que ia todos os dias ter com ela e, antes de passar a porta da entrada, lia o que estava escrito por cima da fachada: HOSPITAL PAOLO ALLIATA.
- Paolo Alliata, barão de Polizzi e de outros feudos, era um senhor generoso. Este hospital, foi ele que o mandou construir, para que as pessoas doentes como eu pudessem ser tratadas e curar-se - explicou-lhe a mãe. Tinha sido o Dr. Nardone a impor ao pai que a levasse para ali.
- Ela não está assim tão mal - objetou o pai.
- Tu és uma besta, aliás, não, porque as bestas são mais inteligentes do que tu. Não percebes que a tua mulher está a morrer? Mas a mãe tinha dito a Tancredi que ia curar-se e ele, sempre que ia ao hospital, esperava encontrá-la de pé, vestida, pronta para sair. Esperava que lhe desse a mão e, a sorrir, lhe dissesse: «Estou pronta, vamos para casa». Era linda, a sua mãe, mas ali, naquele hospital que a devia tratar, Perla ficava cada dia mais fraca, mais magra, mais pálida. As outras doentes observavam com olhos piedosos a mãe e o menino e sussurravam Puviriddi (pobrezinhos, em dialeto siciliano). - Uma voz de barítono, firme e autoritária, perguntou:
- O que posso fazer por vós? Pai e filho voltaram-se de repente. Tanu D’Azaro tirou o boné, Tancredi arregalou os olhos para uma espécie de gigante com uns cabelos negros que se iam tingindo de prata. Estava de tronco nu, vestia umas bermudas e calçava chinelos de borracha. Em volta do .pescoço tinha uma toalha de felpo branca que descia sobre o tórax musculoso recoberto de penugem escura. Com uma ponta da toalha secava os cabelos, que cintilavam molhados.
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Era o barão Giuseppe Maria Nicastro Piccolomini, senhor de Leonforte e de numerosos outros feudos. Tanu inclinou a cabeça e disse: - Anteontem a minha mulher morreu. Ontem devolvemo-la à terra. Eu fiquei sozinho e não posso criar este filho. Vim perguntar a Vossa Excelência se o quer acolher.
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2
Tanu D’Azaro tinha exteriorizado a sua súplica de cabeça inclinada, mas não havia servilismo na sua voz. Naquele momento, Tancredi pensou que o pai parecia seguro de que ia receber uma resposta positiva. Um criado saiu de casa com um passo apressado para trazer um roupão ao barão. Na aldeia contava-se que, muitos anos antes, o pai de don Peppino, nome com que o barão era tratado pelos íntimos, tinha mandado construir uma piscina no subsolo da propriedade para que as mulheres da casa pudessem tomar banho e nadar. Dizia-se que era toda de mármore e espelhos, mas ninguém, além da criadagem, a vira nunca. Dizia-se que a água era aquecida por uma instalação térmica muito sofisticada. Isto acontecera em 1908 quando, em Petralia, foi implantada a primeira central hidroelétrica. O pai e o avô de don Peppino gastavam ãs mãos-cheias, tinham enriquecido as igrejas com obras de arte e iam a Londres mandar fazer roupas e sapatos. De Inglaterra tinham mandado vir um Rolls-Royce cintilante e da América chegavam cantores negros que vinham animar as festas no palácio de Palermo. O dinheiro brotava como de uma fonte milagrosa dos seus cofres e provinha das dízimas que os camponeses dos seus feudos entregavam pontualmente, extenuados de trabalho. Mas quando um puviriddu lhes pedia para acolher um filho ou uma filha, eles acolhiam-no e punham-no a engrossar a fila de criados que viviam nos seus palácios. Quando um puviriddu arranjava mulher, eles ofereciam-lhe o quarto, e quando morria pagavam-lhe uma lápide no cemitério.
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Depois, no pós-guerra, houve as greves dos camponeses. Muitos foram reduzidos ao silêncio pela classe dominante, armados de scupetta (espingarda, em dialeto siciliano), mas as suas mortes assinalaram o fim do latifúndio. Os barões perderam terras, palácios e dinheiro, mas não a sua autoridade. Os camponeses tratavam-nos ainda com aquele respeito que agora Tanu D’Azaro demonstrava ao barão Giuseppe Nicastro, enquanto o observava a enfiar um roupão que parecia macio como veludo de seda, para secar aquele corpo escultural.
- Sinto muito, e apresento-lhe as minhas condolências - disse então, e acrescentou: - A baronesa e eu estávamos a fazer um pouco de treino na piscina, quando a Nannina veio dizer-me que queriam falar comigo. - Peço muita desculpa, mas não sabia - retorquiu Tanu.
- O pequeno-almoço está servido no escritório - anunciou o empregado.
- Então segue-me - ordenou o barão ao camponês. Depois olhou para Tancredi e disse: - Anda também. Tancredi sentiu que tinha passado a soleira de um lugar sagrado. Nunca, antes daquele momento, tinha posto os pés num aposento tão rico em móveis, tão cheio de livros, tão a cheirar a cera, a alfazema e a outros aromas desconhecidos, mais cativantes do que o perfume do incenso que sentia nas igrejas, do feno a secar ao sol, dos bosques, quando acompanhava o pai a apanhar maná. O barão sentou-se diante de uma mesa redonda, colocada junto à janela, ao lado de uma secretária imponente, coberta com uma toalha imaculada sobre a qual havia jarros de vários tamanhos em porcelana decorada, talheres de prata reluzente, taças que continham manteiga, compotas de fruta, mel e fatias de pão quente, acabado de sair do forno. - Sentem-se - disse o barão, ao mesmo tempo que lhe indicava um sofá forrado de seda azul celeste. Pai e filho obedeceram. - Como foi que morreu a tua mulher? - perguntou o barão, enquanto deitava café fumegante numa grande chávena.
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- Um tumor devorou-lhe as vísceras - respondeu Tanu.
- Sofreu? - perguntou ainda o barão. Tancredi escutava o tilintar da colherzinha que mexia o açúcar dentro da chávena.
- Não se queixava. Nunca se queixou - replicou Tanu tristemente.
- Quantos filhos tens? - quis saber.
- Só este, Excelência. O barão trincou uma fatia de pão barrada com manteiga e mel. Depois olhou para Tancredi e disse: - Queres? Tancredi corou e não respondeu. Não queria aceitar nada do barão, nem sequer ser acolhido debaixo do seu teto.
- Comeste a lingua? - perguntou o barão, a sorrir. Tinha uns dentes branquíssimos e um belo sorriso.
- Desculpe-o, Vossa Excelência. É selvagem - interveio Tanu.
- É parecido com o pai - comentou o barão. E acrescentou: - Em que classe anda? Tancredi tinha acabado a terceira. Na escola era muito bom e gostava de estudar. Assim explicou o pai. A porta da sala abriu-se e Tancredi vislumbrou a menina vestida de branco que o tinha cumprimentado da janela. Era mais alta do que ele, e por baixo do corpete do vestido adivinhava-se já um esboço de seios.
- Anda cá, Giulia Maria, vem conhecer o Tancredi. Tem menos dois anos do que tu e, tal como tu, gosta de estudar. A menina entrou, chegou junto do pai, que lhe estendia uma face, e beijou-o. Depois pegou numa fatia de pão com compota e ofereceu-a ao rapazinho.
- Prova - disse-lhe. - Fui eu que fiz esta compota de ameixa e tens de me dizer se gostas. Tancredi achou que o mundo estava prestes a desabar sobre ele. Aquela menina tão bonita, mais velha do que ele, antes tinha-o cumprimentado da janela e agora pedia-lhe a sua opinião sobre uma compota que tinha feito com as suas mãos de dedos finos, perfumados como o ar que da ponta de Piano Battaglia descia por entre os bosques, recolhendo essências de flores.
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Lançou de esguelha uma olhadela fugaz as suas próprias mãos de unhas sujas e pensou que, se aceitasse a comida que a pequena baronesa lhe oferecia, ela as ia ver. No entanto, percebeu que tinha de responder e fê-lo num italiano perfeito:
- Obrigado, menina. Sei desde já que vou gostar muitíssimo, mas por agora não posso aceitar. Estou triste pela morte da minha mãe e não consigo comer. Nunca pensaria manter um discurso tão longo diante de uma menina tão importante, e ficou espantado consigo mesmo.
- O teu filho não só tem lingua, como a usa bem - disse, satisfeito, o barão Giuseppe Nicastro, dirigindo-se a Tanu. E acrescentou: - Fico com ele cá em casa, desde já. Tu podes ir. Sem dar tempo ao camponês de responder, Giulia pegou na mão de Tancredi e convidou-o a segui-la, dizendo:
- Agora vou apresentar-te as mulheres da casa. Tancredi retirou a mão da de Giulia Maria porque aquele contacto o tinha emocionado a tal ponto que lhe parecia que o coração lhe explodia no peito. Para além disso, gostaria de ficar ainda um momento com o pai antes de o deixar. Por isso, voltou-se para ele e fitou-o nos olhos, sem falar.
- Vai - disse o camponês, com ternura. - Era isso que queríamos.
- Que tu querias - sussurrou Tancredi tristemente.
- A tua mãe também teria ficado satisfeita - acrescentou Tanu e, benzendo-se, disse: - Falou-me disso no leito de morte. Tanu D’Azaro não mentia e disso Tancredi tinha a certeza. Perguntou a si mesmo por que razão a mãe não tinha falado sobre isso com ele, já que era o direto interessado, em vez de falar com o pai. Talvez outros pobres como ele tivessem ficado felizes por entrar na casa do barão, mas ele não estava. O seu orgulho sugeria-lhe que era melhor jantar um pane cunzatu, pelo qual não precisava de agradecer a ninguém a não ser ao pai, e dizia-lhe que era melhor dormir num colchão de palha, na sua enxerga, em vez de ter de agradecer ao barão por tudo aquilo que recebia. Tanu deve ter entendido tudo aquilo, porque nesse momento fez-lhe uma carícia e confessou-lhe:
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- Eu aqui sozinho, sem a tua mãe e sem ti, não posso ficar. Vou para a Alemanha ter com os meus irmãos, que têm trabalho para mim. Tu vais ter uma vida melhor do que a minha. O barão e a filha ouviram aqueles sussurros sem intervir. Giulia Maria aproximou-se de Tancredi, pousou-lhe uma mão no ombro e tranquilizou-o: - Vais sentir-te aqui muito bem e eu, que estou dois anos à tua frente na escola, vou ensinar-te muitas coisas.
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3
Dona Sabbeda, que na realidade se chamava Elizabeth, era magra como um fio de erva, loira como uma espiga de milho e pálida como a lua. Alimentava-se de salada temperada com iogurte de ovelha e fruta afogada em sherry. Exprimia-se num italiano incipiente, e com o marido e a filha só falava inglês. Tancredi escutava, fascinado, os diálogos entre mãe e filha. Depois perguntava a Giulia Maria:
- O que é que disseram? Às vezes Giulia Maria explicava-lhe, outras vezes dizia:
- São coisas que não te dizem respeito. O ar tinha-se tornado mais fresco e em Petralia iam festejar-se as colheitas com uma antiga dança típica das Madonie. Rapazes e raparigas, com os fatos típicos da região, dançavam à volta de um pau entrecruzando fitas coloridas, chamadas i curdeddi, que depois desfaziam dançando em sentido inverso, ao ritmo de uma tarantela. Naquela ocasião, os Nicastro deixavam a quinta de Roccabruna, onde só regressariam no ano seguinte, e subiam por alguns dias a Petralia, ao palácio da via Umberto, para depois se dirigirem à residência da família em Palermo. De seguida, acompanhariam Giulia Maria à Suíça, ao seu colégio, após o que se mudariam para Londres. Grande parte da criadagem acompanhava estas deslocações, o resto ficava em Roccabruna e em Palermo, com exceção do criado pessoal do barão e da criada de dona Elizabeth, que os acompanhavam a todo o lado. O património da família Nicastro já não era o de outros tempos, mas don Peppino parecia não se aperceber disso e continuava a viver à larga, recorrendo de vez em quando à venda de um feudo para encher os cofres moribundos.
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Tancredi tinha sido informado de que passaria o inverno no palácio de Petralia com Nannina e os outros quatro criados, que tinham a tarefa de arejar os quartos e, de vez em quando, de fazer limpezas à espera da Páscoa, quando o barão regressava para o ritual do encontro entre Nossa Senhora e Jesus depois da Ressurreição. A festa chamava-se U´ Ncontru e nunca um Nicastro tinha faltado àquela procissão solene que partia da Igreja Matriz e se desenrolava pelas ruas da vila até chegar às imagens de Cristo e da Virgem, diante do Colégio de Santa Maria, no meio de um estrépito de morteiros e de bandas de música. Tancredi tinha retomado a escola e, no palácio, tinha de ajudar as mulheres que estavam na cozinha. Também agora saía da cozinha de Roccabruna com um balde cheio de restos de alimentos que deveria esvaziar num contentor onde se colocava a comida para os animais. Ergueu os olhos em direção à varanda e viu Giulia Maria a ler um livro e a baronesa, sentada diante de um cavalete, a pintar. A jovem reparou nele, sorriu-lhe e fez-lhe sinal para esperar por ela. Desceu as escadas e foi ter com ele. Entretanto, Tancredi dirigiu-se a uma sebe de oleandros, ela foi atrás e contou-lhe: - A minha mãe disse-me que a noite passada não dormiu por causa de um réptil e de uma borboleta que estavam no teto a fazer amor.
- Estás a gozar comigo? - perguntou ele.
- Ela é que goza com ela própria, porque deve ter sentido o meu pai a entreter-se toda a noite com uma mulher - contou Giulia Maria, que era muito inteligente e falava com desenvoltura dos devaneios paternos.
- Eu não quero saber dessas coisas.
- Ela também não quer saber, disfarça-as de sonhos e visões e depois conta ao meu pai, que nunca perde a compostura. Tancredi esvaziou os restos no contentor, ela arrancou-lhe o balde da mão e começou a correr em direção ao fundo do jardim. Ele foi atrás dela e apanhou-a.
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Aspirou o perfume da sua pele, sentiu-lhe as batidas do coração, viu o rosto afogueado pela corrida e desejou abraçá-la. Mas limitou-se a reapropriar-se do balde e foi-se embora a correr, em direção ao refúgio seguro da cozinha, o único lugar de toda a propriedade onde se sentia em segurança, onde esquecia a dor pela perda da mãe e a fuga do pai, onde conseguia tornar-se útil. Giulia Maria era o seu pesadelo e a sua alegria. De manhã fazia os deveres de férias com ela, que efetivamente lhe ensinava aquilo que a professora ainda não tinha explicado. Ensinava-lhe ainda os rudimentos da lingua inglesa. Ofereceu-lhe uma gramática e incitava-o a memorizar muitas palavras e a sua pronúncia. À noite, quando estava na cama, no quarto que partilhava com a velha Nannina, enquanto ela rezava o terço, ele repetia as palavras inglesas. Nannina, de vez em quando, mandava-o calar, e dizia-lhe: - Devias rezar o terço comigo, de qualquer maneira és pacóvio e pacóvio vais ser sempre, ainda que aprendas a língua da dona Sabedda. Ele ria-se e dizia: - Se me escutares, também aprendes. Não gostavas de rezar a ave-maria em inglês?
- Nunca. Nossa Senhora não entende aquelas palavras esquisitas.
De manhã o barão levantava-se cedo e, às vezes sozinho, às vezes com a mulher, descia a piscina para nadar. Depois era Tancredi que lhe estendia o roupão de felpo para se secar, enquanto dona Sabedda continuava a nadar, imperturbável. Uma manhã, enquanto ele lhe entregava o roupão, don Peppino agarrou-o por um braço e fé-lo cair à piscina. Tancredi, que não sabia nadar, assustou-se e começou a agitar os braços e a engolir água. Ouviu a gargalhada do barão e depois a sua mão forte a segurá-lo.
- Tens de aprender a nadar, rapaz - advertiu-o. - Tenho medo! - gritou ele.
- Um homem nunca tem medo. Se não te estenderes na água dou-te um murro e, quando desmaiares, vais boiar, porque na água os nossos corpos são como folhas. Imagina que és uma folha e vais ver como flutuas.
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A baronesa continuava a nadar como se nada daquilo que se passava tivesse a ver com ela. Naquele dia Tancredi aprendeu a nadar. De vez em quando, o barão observava-o com atenção e, depois, sorria-lhe com benevolência. Um dia perguntou-lhe: - Como era a tua mãe? - Linda - respondeu ele, num sussurro.
- Isso já eu sei. Como era contigo? Tancredi pensou durante alguns instantes e replicou: - Era a minha mãe. Era boa e eu gostava muito dela.
- Mas o que te dizia?
- Contava-me muitas histórias de tempos antigos, de quando a lua beija o sol e então o dia fica noite.
- E o que mais?
- O que mais quer saber?
- Nada - respondeu ele, abanando a cabeça. Depois entregou-lhe uma carta. - O teu pai escreveu-te. Tancredi rasgou o envelope que vinha de Estugarda e decifrou, com alguma dificuldade, a caligrafia incerta do pai, que dizia: «Eu estou bem e assim espero que tu estejas. Os teus tios receberam-me em sua casa e amanhã começo a trabalhar com eles, pois têm um restaurante onde se cozinha à italiana. Quando puder, mando-te algum dinheiro. Um beijo».
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No palácio de Petralia, a cozinha, a lavandaria e os quartos da criadagem ficavam na meia cave do edifício, com umas janelas que se abriam para o pátio interior e uma entrada para a viela adjacente à via principal. Tancredi vivia naqueles aposentos com os criados do barão. Escondia a tristeza e o sentimento de abandono pela falta dos pais. O instinto dizia-lhe que não voltaria a ver o pai do qual, perto do Natal, recebeu uma segunda carta acompanhada, conforme prometido, por algum dinheiro. «Isto são marcos alemães, que me dizem ser uma moeda forte. Bom Natal, filho», concluiu. Aquele dinheiro não lhe aqueceu o coração. Não tinha capacidade para o avaliar, mas era de qualquer modo um sinal de afeto do pai por ele, e assim escondeu os marcos por detrás de um mosaico do chão do quarto que, também em Petralia, partilhava com a velha Nannina. Entretanto continuava a ser um aluno diligente, animado pelo desejo de aprender. Quando regressava ao palácio, encontrava sempre uma malga de sopa quente, um pedaço de pão fragrante e de queijo saboroso. Depois sentava-se a um canto da cozinha, que era o dobro da de Roccabruna, e fazia os deveres, aquecendo-se ao calor de um grande fogão no qual Rosaria, a cozinheira, preparava a comida para toda a gente. Ao seu lado sentava-se sempre Nannina, que fazia croché e bordava panos lindíssimos que reproduziam as flores do sabugueiro, uma planta típica daquele lugar. Oferecia-os à paróquia e assim contribuía para a tômbola.
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Rocco e Pino, os homens dos trabalhos mais pesados, jogavam às cartas. Rosaria, a cozinheira, e Bonaria, a filha, cozinhavam e passavam o dia ao fogão. Antes de chegar a casa dos Nicastro, Tancredi não sabia o que era uma verdadeira cozinha; agora descobrira que era uma espécie de laboratório de alquimista. Ficava fascinado com aquela gama infinita de caçarolas, frigideiras, panelas e recipientes de todas as formas e tamanhos, e depois as facas, colheres de pau, garfos enormes, picadoras, coadores, batedeiras, máquinas para moer carne, varas de arame e muitos outros objetos misteriosos cuja utilização não tinha ainda descoberto. Era tudo uma cintilação de cobre, latão e prata. Fascinava-o a riqueza das despensas, que transbordavam de sacos cheios de farinhas e legumes secos e recipientes cheios de banha, frascos de conservas, enchidos que maturavam com o passar do tempo. Tancredi cheirava aqueles aromas penetrantes ora doces, ora ásperos, ora picantes, ora delicados. Observava os gestos de Rosaria e de Bonaria que, durante várias horas por dia, peneiravam, picavam, amassavam, refogavam, cortavam, fatiavam, mexiam, coavam, prensavam e regavam alimentos que, tratados por elas e cozinhados no fogão, se transformavam em assados, timbales, molhos, cremes, tartes salgadas e doces. No final, quando arranjavam as travessas, cada alimento era uma pequena obra de arte. Acabava rapidamente os deveres da escola e enfiava-se entre as duas mulheres, que lhe pediam para escolher o arroz ou os legumes, descascar as cenouras, as maçãs e as batatas, assar as castanhas e tirar-lhes a pele para elas as poderem depois glacear ou fazer compota. Comprazia-se naquelas incumbências que o distraíam da dor pela falta da família e pelo incómodo de viver numa casa que não era a sua. Regularmente, de Palermo chegava Corrado, o motorista do barão, que enchia a mala do carro de conservas e outras iguarias para a mesa dos patrões. Depois de cada fornecimento de comida que seguia a estrada de Palermo, a cozinha repousava durante alguns dias e então, abrigados do frio, os criados repousavam na tepidez daquele grande aposento acolhedor, a contar histórias de tempos passados, a sussurrar mexericos da vida da terra e a jogar as cartas.
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Ele aninhava-se debaixo da grande mesa a fingir que aquele espaço reduzido era um quarto só para ele, e lia banda desenhada dos Peanuts e do Corto Maltese que o barão lhe fazia chegar de Palermo, juntamente com o Corriere dei Piccoli. Quando Rosaria e Bonaria se aproximavam da mesa para preparar o jantar, ele observava-lhes as saias esvoaçantes, as pernas pesadas de Rosina e as magras de Bonaria, protegidas por meias de lã. As vezes acabava por adormecer debaixo daquela mesa, e então Bonaria ia buscá-lo, pegava nele ao colo, levava-o para o quarto de Nannina e enfiava-o na cama, assim vestido como estava, tirando-lhe só os sapatos. Ele acordava, mas não abria os olhos. Esperava que Bonaria lhe afagasse os cabelos e, ao fazer isso, se inclinasse sobre ele, libertando o perfume do seu peito, com o qual se deliciava e do qual extraía alguma intima inquietação, mais aguda do que aquela que experimentava ao lado de Giulia Maria, em quem pensava muitas vezes com desejo. Quando Giulia Maria deixou a propriedade de Roccabruna com os pais, Tancredi chorou em solidão, com o peito sacudido de soluços, como quando lhe tinha morrido a mãe. A velha Nannina acordou uma noite ao ouvi-lo soluçar. Então levantou-se, aproximou-se da cama dele e deu-lhe a beber um copo de água. - Acalma-te - disse-lhe com ternura. - Tiveste um sonho mau?
- Sim, tive um sonho mau - mentiu ele. - Mas agora estou bem concluiu, para a sossegar. Nannina voltou a enfiar-se debaixo dos cobertores, a resmungar:
- A nossa vida de pobres é uma vida desgraçada. Somos esquecidos por todos.
- O que é que estás a rezingar? - perguntou Tancredi.
- Nada. Agora dorme. - E apagou a luz. Ele adormeceu mas, nos dias seguintes, as palavras daquela velha rude, que com ele conseguia ser afetuosa, tinham voltado a martelar-lhe a cabeça. Ele não tinha sido esquecido pela mãe, nem sequer pelo pai, que tinha emigrado para a Alemanha e lhe mandava dinheiro.
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Depois convenceu-se de que Nannina falava para si mesma, porque uma vez contara-lhe que tinha crescido num orfanato e que o barão benfeitor, pai de don Peppino, a recebera em casa como criada, quando tinha 10 anos, por recomendação das monjas, que lhe tinham gabado a inteligência e a retidão. Nannina não sabia quem eram os pais, porque tinha sido abandonada na roda do convento ainda bebé. Nunca se tinha casado e gabava-se de nunca ter conhecido um homem.
- Nasci desgraçada, não quero morrer desesperada - dizia. E explicava: - Os homens são uma brincadeira de mau gosto que Deus se divertiu a armar contra as mulheres. São todos uns infames!
- O São Calogero também? - brincou Tancredi.
- Os santos ficam excluídos. Esses socorrem-nos desde o paraíso. Faltavam agora dois dias para o Natal e o motorista do barão, que foi a Petralia buscar mais uma provisão de iguarias para serem servidas em casa dos Nicastro, trouxe um embrulho para Tancredi.
- É o presente de Natal de don Peppino para ti - disse, quando lho entregou. O barão mandara-lhe um sobretudo, um par de luvas e outro de sapatos, duas camisolas de lã e uma quantidade de revistas de banda desenhada.
- Vai imediatamente escrever-lhe um bilhete a agradecer - sugeriu-lhe Nannina.
O motorista regressou com a carta escrita por Tancredi, que tinha a consciência de ter recebido peças de roupa muito caras, e não tinha a certeza de querer usá-las, para não suscitar a inveja dos colegas de escola. Na tarde da véspera de Natal, enquanto no fogão se cozinhava a comida para a festa, ele enfiou-se debaixo da mesa a ler as aventuras de Corto Maltese; entretanto ia ouvindo a tagarelice das mulheres, que de vez em quando baixavam o tom de voz, e captou uma frase sibilina:
- Vai envelhecendo e lembra-se do seu amor impossível - disse Rosaria.
- E quem sabe? De qualquer maneira, não é nada connosco comentou Bonaria.
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Tancredi espreitou para fora do seu esconderijo e perguntou:
- Quem é o amor impossível?
- Já que tens tempo a perder para ouvires aquilo que não te diz respeito, sai daí de baixo e anda escolher estas lentilhas. Tem cuidado para não deixares pedrinhas, porque te podem partir um dente quando as comeres.
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Passaram outros invernos e outros verões. Tancredi era agora um adolescente saudável, forte e inquieto como um cavalo selvagem. Bastava que alguém lhe dirigisse um olhar atravessado ou uma palavra inadequada para lhe escurecer o humor e o precipitar numa crise de mutismo. Tinha agora acabado o preparatório com notas excelentes e não sabia o que ia fazer no outono, assim como não sabia qual era o seu papel em casa dos Nicastro. Não era um servo, apesar de viver com os criados, porque às vezes, quando o barão estava sozinho em Petralia ou em Roccabruna, o convidava para tomar as refeições com ele à mesa. Ele aceitava com relutância aqueles convites e era precisa toda a paciência do barão para o levar a dizer alguma palavra. Acontecia-lhe às vezes acordar a meio da noite dominado por uma inquietação dolorosa. Então esgueirava-se para fora da cama e refugiava-se na cozinha, porque a atmosfera daquele grande aposento lhe transmitia uma sensação de segurança. Durante um inverno, a meio da noite, Nannina acordou e, não o vendo, foi procurá-lo um pouco por todo o lado. Finalmente encontrou-o à frente do fogão a fritar uns corações de aipo; ao longo da mesa, viu pequenos recipientes alinhados, cheios dos ingredientes que eram necessários para aquilo que Tancredi estava a cozinhar.
- São três horas da manhã. O que estás a fazer? - perguntou-lhe, atordoada.
- A caponata de Natal - respondeu ele. Viu-o mexer-se com graça ao mesmo tempo que, numa caçarola de cobre, fazia saltear o aipo, que antes tinha escaldado e, com gestos elegantes, ia acrescentando azeitonas, alcaparras e sultanas.
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E entretanto, noutra caçarola, preparava uma redução de vinagre, açúcar, amêndoas torradas e moídas e pão ralado. Algum tempo antes, numa tarde de feriado, tinham ido todos à igreja. Tancredi ficou em casa sozinho e, quando chegaram, tinha cozinhado para toda a gente pappardelle com lebre. Rosaria sentenciou: - Está melhor do que o que eu faço. Espero que não me queiras roubar o emprego.
- O emprego não, mas a profissão sim - respondeu ele, e acrescentou a sorrir: - Tens uma profissão muito bonita e, ao fim de tantos anos a ver-te e a escolher cereais, a picar verduras e a descascar batatas, deu-me vontade de cozinhar.
- Isso são tarefas de mulher - disse Rocco.
- És muito ignorante. Em Palermo o barão tem um cozinheiro em casa - replicou Bonaria.
- É verdade, mas é só meio homem - sublinhou o jovem Pino.
- Sabes o que é melhor do que um homem vivo? Um homem morto, e vocês vão ser em breve dois cadáveres se não param de gozar o pequeno - gritou Nannina, enquanto apontava a sua faca a Rocco e a Pino. À noite em que a velha criada surpreendeu Tancredi às voltas com a caponata de Natal acabou com os dois a banquetearem-se. A seguir limparam tudo, mas deixaram um pedaço para Bonaria que, depois de ter provado, emitiu a sua sentença:
- O Tancredi vai ser cozinheiro. Agora era verão e o barão, regressado à propriedade de Roccabruna, serviu-se do pretexto do almoço para submeter Tancredi a uma espécie de interrogatório.
- Chegou o momento de te inscrever no liceu - começou a dizer don Peppino.
- Com sua licença, don Peppino, eu gostaria de ir ter com o meu pai a Estugarda. O restaurante dos meus tios vai bem e eu gostava de trabalhar com eles - replicou Tancredi. Don Peppino olhou para ele com benevolência.
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- Sentes-te assim tão mal em minha casa? - perguntou.
- Tratou-me sempre como um filho. Devo-lhe uma gratidão eterna.
- Cresceste - constatou o barão. E prosseguiu: - Daqui a pouco vai crescer-te a barba, estás a mudar de voz e estás quase tão alto como eu. Mas voltemos aos teus estudos. Tínhamos ficado em que queres ir para Estugarda lavar pratos na tasca do teu pai. Isso não é nada! - afirmou don Peppino.
- Já aproveitei de mais a sua benevolência - disse Tancredi.
- Não é esse o ponto. Agora tens de te mudar para Palermo e continuar a escola. As mulheres daqui dizem-me que queres ser cozinheiro. Está fora de questão. Gostavas de ir parar a casa de algum novo-rico que te exibisse para poder dizer aos amigos que também tem um munsù, criado em casa do barão Giuseppe Maria Nicastro Piccolomini di Leonforte? Era isso que querias? As finanças dos Nicastro estão de rastos, mas ainda há o suficiente para te fazer chegar a uma licenciatura. Tu vais ser advogado, ou professor, ou o que raio quiseres, mas vais ter uma licenciatura. De outra forma, que sentido fará a tua presença em minha casa? Tancredi baixou os olhos para o prato e disse num tom baixo:
- O que acha deste pastelão de massa gratinada?
- Ótimo! A Rosaria está cada vez melhor com os anos.
- Fui eu que o cozinhei.
- Se em vez de andares atrás de mulheres, como eu sempre fiz, preferes perder tempo no fogão, ninguém to proíbe. Mas entretanto vais continuar os estudos - rematou o barão, com um tom de meter respeito até a Nosso Senhor. Logo a seguir bastou-lhe um gesto para comunicar a Tancredi que a conversa tinha acabado. Don Peppino proibira-o de fazer aquilo de que mais gostava: dedicar-se ao fogão. Tancredi estava desesperado, conteve as lágrimas com dificuldade e saiu rapidamente da sala. Correu como um louco em direção As cavalariças, selou Tornado, o cavalo da baronesa e, picando-o com os calcanhares, afastou-se como uma seta em direção ao campo e ao bosque. Desceu a grande velocidade para o lago onde desaguava a água fresca que brotava de uma nascente no monte, atou o animal extenuado ao tronco de um carvalho, despiu-se e mergulhou na água, que estava tão gelada que lhe paralisou os membros.
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Então saiu a tremer e expôs-se ao sol de junho, secando-se com a camisa. Um instante depois, o barão Nicastro, montado no seu belíssimo baio, parou em frente dele. Levantou-lhe o rosto com a ponta do chicote e disse-lhe, a sorrir: - Vamos lá ver se chegamos a um compromisso.
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- Nós, sicilianos, somos uma raça altiva, mas os das Madonie como tu juntam a altivez a um orgulho transbordante. E agora ouve bem aquilo que eu te vou propor - disse o barão, ao mesmo tempo que descia do cavalo e cobria os ombros do rapaz com o seu casaco. Tancredi estava a bater os dentes enquanto se inclinava para recuperar as cuecas, porque tinha vergonha de se mostrar nu. Don Peppino riu-se e comentou: - Tens um instrumento que não está nada mal, aí debaixo. Vais fazer muitas mulheres felizes. Tancredi não replicou, corou e apressou-se a enfiar também as calças de fustão nas pernas ainda molhadas. Depois vestiu a camisam e devolveu o casaco ao barão, dizendo-lhe: - Obrigado. Perdoe-me. Estou a ouvir. Sentaram-se numa pedra no meio do prado. A erva ondeava com a brisa do início da tarde. O barão deixou vaguear o olhar sobre a erva salpicada de flores brancas, vermelhas e amarelas que nasciam espontaneamente e pensou que nenhum pintor, por muito extraordinário que fosse, seria alguma vez capaz de transferir para uma tela uma harmonia tão perfeita. No verão seguinte ia fazer 50 anos e pensou que uma parte importante da sua vida já tinha passado. Observou Tancredi e pareceu-lhe rever-se a ele próprio naquela idade. Era altivo e orgulhoso como ele porque, como ele, era das Madonie e pertencia aquela raça de gente orgulhosa, suscetível e mais teimosa do que uma mula que desde sempre habitara no meio daqueles montes e vales agrestes.
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Ele, que queria ensinar como se vive àquele rapaz sem família, tinha acreditado que os brasões, os feudos e os palácios, as mulheres, as viagens, a riqueza e o respeito que ainda lhe tributavam poderiam dar um sentido à sua vida. Naquele momento, enquanto observava aquele rapaz lindíssimo que tinha ainda a vida inteira pela frente, apercebeu-se de que era um homem só, sem amor. O pai tinha-o amado? Talvez. Mas ele nunca tinha dado conta. Elizabeth amava-o? Quem sabe! Dera-lhe uma filha e depois fechara-lhe a porta do seu quarto. E a sua belíssima Maria Giulia? «Odeio-te», gritara-lhe, quando a prometera em casamento ao advogado Vincenzo Moncada, parlamentar democrata-cristão, rico, influente, que enriqueceria o património da família Nicastro que ele tinha dissipado. E os criados, e todas as pessoas a quem tinha feito bem, amavam-no? Respeitavam-no e temiam-no, sobretudo. Tirou um cigarro do bolso do casaco, acendeu-o, aspirou avidamente o fumo e voltou a olhar com ar pensativo para Tancredi, o filho que gostaria de ter tido. Teria mesmo a certeza de que aquilo que queria para ele era o melhor? - Vamos lá ver se chegamos a um compromisso - propôs-lhe por fim, e prosseguiu: - Continuas os estudos em Palermo, mas vou deixar-te frequentar, durante o verão, uma grande cozinha, a do hotel Ritz em Londres.
- Em Inglaterra?
- Sim senhor. Em Londres, em Inglaterra.
- Vou ter de ir até lá acima?
- Não querias ir lavar pratos para Estugarda? Estugarda também fica longe.
- Em Estugarda tenho os meus parentes, em Londres não tenho ninguém - replicou, assustado, pensando que não conhecia sequer a lingua, apesar de Giulia Maria lhe ter ensinado algumas palavras nos meses de verão que passavam juntos na propriedade de Roccabruna. Com ela aprendera as letras de algumas canções, algumas frases, mas uma vez que não se viam há alguns anos tinha esquecido tudo. Giulia Maria tinha ido para a América, voltara à Sicília em raras ocasiões, mas não saíra de Palermo.
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Ele detestara-a por isso, apesar de ela, de vez em quando, lhe ter escrito umas cartas breves a que juntava, de todas as vezes, uma florinha seca ou uma fotografia, e que assinava com a marca do bâton dos seus lábios. Tinha-as escondido por baixo do mosaico do quarto, juntamente com os marcos alemães que o pai continuava a mandar-lhe. E tinha consumido as marcas daquele bâton, de cada vez que a distância lhe dilacerava o coração. Tancredi respondia-lhe com mensagens igualmente breves, porque não tinha coragem de lhe dizer que estava apaixonado por ela. No entanto, durante o inverno, com os votos natalícios, tinha-lhe mandado uma fotografia dele tirada na escola, durante um jogo de futebol, e ela tinha-lhe escrito: «Estás a ficar lindíssimo. Tenho a certeza de que as tuas amiguinhas fazem fila atrás de ti, mas tem cuidado, porque eu sou ciumenta». Tinha gostado imenso daquela resposta, mas não ousara dizer-lhe que também ele era ciumento. E, em qualquer caso, o que é que ia adiantar? Às vezes pensava que era melhor arrancá-la do coração, porque a pequena baronesa não era pão para os seus dentes. Então olhava em volta, para as amiguinhas da aldeia que andavam doidas por ele. Nenhuma delas, nem a mais engraçada, tinha comparação com Giulia Maria. - Em Londres não vais estar sozinho. Conheço pessoalmente o diretor do Ritz e hoje, se estiveres de acordo, telefono-lhe e digo-lhe quem és e o que queres fazer. Ele, tenho a certeza, vai arranjar maneira de te meter no meio dos jovens aprendizes. Assim também ganhas umas libras e logo vês se a profissão de cozinheiro é aquilo que imaginas. Se assim for, regressas a Londres todos os anos no verão e se, no fim do liceu, continuares a achar que a tua profissão deve ser aquela, em vez de te matriculares na universidade, vais preparar-te para enfrentar aquele longo percurso que te permitirá ganhar uma ou mais estrelas do Guia Michelin. Porque talvez não saibas, mas as estrelas são o equivalente a uma licenciatura, e o atual chef do Ritz tem três estrelas, a pontuação máxima que se pode atingir. Tancredi escutou atentamente aquelas palavras. Tanto quanto sabia, pôr-se ao fogão a preparar pratos requintados não era assim tão difícil, nem complicado.
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A ele bastara-lhe observar Rosaria e a filha para cozinhar pratos excelentes. Três meses em cada verão, durante três anos, tanto quanto o tempo de liceu que lhe faltava, não bastariam para fazer dele um cozinheiro? Teria ainda de enfrentar um longo percurso para conquistar as estrelas Michelin que equivaliam a uma licenciatura. Seria preciso uma licenciatura para cozinhar timbales, cassatas, caponate ou cannoli?
- Acho que não estou a perceber - disse por fim, perplexo.
- Mas vais entender quando entrares numa cozinha a sério, que não é como a de nossa casa. Seguramente não é sequer como a do restaurante dos teus parentes em Estugarda. Eu visitei muitas, nas minhas deslocações por esse mundo fora, e garanto-te que as cozinhas de maior prestígio são laboratórios imensos onde trabalham dezenas de pessoas, cada uma das quais com uma tarefa específica: há os que trabalham nos legumes, nos molhos, nas carnes, nas massas, nos doces, e por aí adiante. É um exército comandado por um senhor ao qual todos devem obediência absoluta: o chef Já alguma vez viste um concerto na televisão? Há um grande número de músicos que tocam vários instrumentos e há um senhor que os dirige porque conhece a partitura de cada instrumento: piano, violino, fagote, trompa, contrabaixo, bateria, etc.
- É verdade! A comida é como a música - comentou Tancredi. Depois acrescentou: - E eu podia entrar numa cozinha assim tão grande?
- Dá-me tempo para me informar e fazer o pedido.
- Se a resposta fosse sim, podia partir já?
- Não antes do início de julho. Daqui a pouco chegam dona Elizabeth e a nossa filha, Giulia Maria, que se vai casar - anunciou o barão.
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Foi como se o céu lhe tivesse caído em cima e o esmagasse, impedindo-o de respirar. Procurou o ar que lhe faltava e viu que o barão olhava para ele com apreensão.
- O que foi que te aconteceu? Estás pálido como um cadáver disse don Peppino, alarmado. Tancredi dobrou-se sobre ele mesmo e vomitou. O barão esperou que superasse a crise e depois ajudou-o a montar no seu cavalo, agarrou também as rédeas do Tornado e regressaram à quinta.
- Já estou bem - balbuciou Tancredi. Não era verdade, continuava a tremer. O barão disse ao criado que foi ao encontro deles: - O rapaz tomou banho no lago gelado e sentiu-se mal. Mete-o na cama e chama o Dr. Nardone. Tancredi estava com febre alta. O médico diagnosticou uma congestão e receitou-lhe os medicamentos indicados. Depois, enquanto tomava um café com o barão, sentenciou:
- O Tancredi vai ficar bom em dois dias. As mulheres da casa fizeram turnos para tratar dele, compor-lhe a roupa da cama, dar-lhe os medicamentos, medir-lhe a temperatura e alimentá-lo com sumos de fruta. No dia seguinte estava sem febre, e dormia quando uma mão fresca e perfumada lhe afagou o rosto e uma voz doce lhe sussurrou:
- Estás tão bonito!
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- Mãezinha - murmurou, pensando que tinha sonhado com a mãe. Abriu os olhos e viu Giulia Maria inclinada sobre ele.
- Olá, Tancredi - disse ela, a sorrir.
- O que é que estás aqui a fazer? - disse ele, confuso, ainda suspenso entre o sonho e a realidade.
- Ontem à noite o meu pai ligou-me para me dizer que estavas doente. Saí de Palermo de madrugada para vir ter contigo - respondeu ela. Tancredi sentou-se na cama. Aquela mulher lindíssima, que estava sentada ao lado dele e o olhava com amor, ia casar-se e não lhe tinha dito nada. Tancredi odiou-a com todas as suas forças.
- Como te sentes? - perguntou ela, ao mesmo tempo que aproximava um banco da cama e se sentava junto dele.
- Bem - respondeu Tancredi, num tom severo.
- É só isso que tens para me dizer? - perguntou, aflita. - E tu, também não tens nada para me dizer? Ela olhou para ele por um instante, sem responder, depois baixou a cabeça e disse: - Vou casar-me com o Vincenzo Moncada, assim decidiu o meu pai. Os Nicastro precisam deste casamento. - Calou-se, e os olhos encheram-se-lhes de lágrimas. Depois prosseguiu: - Os Nicastro precisam de conservar as propriedades que lhes restam, e os Mancada são muito ricos e vão pagar as dívidas do meu pai; em troca, vão ter uma baronesa na família - explicou, a chorar.
- Mas quem é que acredita nisso? Essas coisas aconteciam no passado - reagiu Tancredi.
- Como vês, nada mudou, porque hoje é este o meu destino disse ela com amargura.
- Tu ama-lo?
- Eu só te amo a ti, Tancredi - respondeu Giulia Maria, com um fio de voz.
- Não é verdade, e ainda que fosse nunca poderíamos ficar juntos - afirmou Tancredi, desesperado. Giulia Maria calou-se. Afastou o banco da cama, levantou-se e, quando estava já prestes a sair, disse: - Para os Nicastro, a obediência ao pai é absoluta.
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O meu pai obedeceu ao meu avô e casou com a minha mãe, apesar de amar outra mulher. Em qualquer caso, viria despedir-me de ti antes do casamento. E, entretanto, temos uns dias só para nós - concluiu, e saiu rapidamente. Tancredi apresentou-se na cozinha. Sentia-se muito fraco e tinha a cabeça a andar à roda, estava desesperado porque Giulia Maria se ia casar e rebentava de felicidade porque ela lhe tinha dito que o amava.
- Aqui está o morto ressuscitado - gritou Rosaria, assim que o viu aparecer.
- Um dia de febre e cresceste mais um palmo - observou Bonaria, ao mesmo tempo que lhe punha à frente uma tigela cheia de leite e biscoitos.
- Come, meu filho. Come, porque precisas mesmo de te alimentar - disse Nannina. Depois de ter esvaziado a tigela, sentiu-se refeito. Então saiu e foi até às cavalariças. Giulia Maria estava lá, a selar o seu cavalo. - Aonde vais? - perguntou-lhe Tancredi.
- Ao bosque - respondeu.
- Vou contigo - disse. Depois lembrou-se que devia ir cumprimentar don Peppino e acrescentou: - Com a autorização do barão.
- O meu pai foi a Petralia falar com o padre sobre o meu casamento.
Montou o cavalo, picou-o e saíram juntos das cavalariças. Avançaram lado a lado para o meio do bosque, nas encostas de Pizzo Carbonara, onde nasciam o astrágalo e a violeta. Chegaram junto de uma clareira, desmontaram, deixaram os animais livres a pastar e sentaram-se na erva, um em frente ao outro, olhos nos olhos, sem falar. Uma cobra tímida deslizou de debaixo de uma pedra. Tancredi ergueu-a com a ponta do chicote e atirou-a para longe. - Disseste-me que o teu pai estava apaixonado por outra mulher?
- Precisamente - anuiu ela.
- Quem era?
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- Uma camponesa aqui da zona, lindíssima, inteligente e meiga. Quando o meu avô soube que ele queria casar com ela organizou o casamento com a minha mãe, a filha de sir Thomas Dalton, que possuía um palácio em Londres, um castelo com muitos hectares de terreno em volta nas Highlands e uma vasta propriedade em Norfolk. Informou o meu pai da sua decisão e mandou-o para Inglaterra conhecer a futura esposa. Foi a avó que me contou isto, em grande segredo - concluiu Giulia Maria.
- E a bela camponesa, o que lhe aconteceu depois?
- Ao fim de alguns anos casou-se com um camponês e tiveram um filho. Ela chamava-se Perla e o filho és tu.
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- Agora percebes por que razão o meu pai aceitou tratar de ti - explicou Giulia Maria, e acrescentou: - Aquela paixão juvenil pela tua mãe ficou-lhe no coração. Quando ela morreu, o teu pai confiou-te a ele porque terias uma vida melhor e não se enganou, porque o meu pai tem grandes projetos para ti, já que lhe fazes lembrar o seu primeiro, impossível amor.
- Parece a nossa história - sussurrou Tancredi, e enterrou o rosto nos cabelos de Giulia Maria. Depois abraçou-a, cingindo o seu corpo ao dela, com paixão. Ela afastou-se suavemente daquele abraço e sussurrou, aflita: - Vamos para casa, por favor. Levantou-se e montou o seu cavalo, seguida de Tancredi. Desceram lentamente para Roccabruna. Ela, de vez em quando, observava o rosto belo e pensativo de Tancredi, fechado num mutismo obstinado, e recordava o menino com as faces molhadas de lágrimas que tinha visto da janela do seu quarto quando, com o pai, estava à espera de ser recebido pelo barão. Gostou dele desde logo, porque lhe parecera triste e só, tal como ela. Giulia Maria, de facto, recordava com nostalgia os anos em que passava as férias em Inglaterra, com os Dalton e a tribo dos priminhos, ou na Sicília, na praia de Mondello, onde convergiam os vários ramos da família Nicastro e onde havia também muitos primos barulhentos com os quais se divertia muito. Depois o avô morrera, a avó retirara-se para o seu palácio em Ortigia e o pai decidira regressar às Madonie longe de toda a gente, porque ninguém queria passar o verão na montanha.
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Viu Tancredi e decidiu que ele seria o amigo de quem havia de gostar. Quando regressaram a quinta, ouviram a voz estridente de Nannina a chamar por Tancredi.
- O que foi? - perguntou o rapaz, enquanto desmontava do cavalo.
- Já que ontem estavas morto e hoje andas como um doido pelos campos, faz alguma coisa de útil, porque és preciso na cozinha. O barão tinha regressado de Petralia anunciando que o padre, o presidente da câmara, dois assessores municipais, o médico e o farmacêutico, o comandante da polícia e o diretor do banco iam chegar à tarde, com as mulheres, e iam ficar para jantar. Portanto era preciso trabalhar, fazer refrescos e preparar um jantar que tinha de ser requintado e abundante. Tancredi recebeu a ordem de Nannina como uma bênção, porque cozinhar ia ajudá-lo a diluir a tensão e a acalmar a dor. Enquanto fatiava cenouras, refogava ervilhas, batia claras em castelo e fritava cannoli, assimilava as revelações perturbadoras de Giulia Maria sobre o amor impossível entre a mãe e o barão. Cozinhava, mexia os tachos e arranjava travessas, e em tudo aquilo despejava a sua infelicidade. E o que dali saiu, com a ajuda de Rosaria e das outras mulheres, foi um jantar que era um triunfo de cores vivas, sabores fortes, perfumes inebriantes. Os empregados que serviram o jantar regressaram a cozinha e contaram-lhe que os convidados continuavam a elogiar os pratos que comiam.
- Em suma, gostaram de tudo - disse Rosaria, satisfeita.
- E ainda querem mais. Os senhores estão a pedir mais cassatelle di Sant´Agata (Doce típico da Catânia, Sicilia, feito com pão de ló embebido em licor de pétalas de rosa e recheado com ricotta, chocolate e fruta cristalizada; tem uma cereja cristalizada em cima e a forma de um seio, em homenagem a Santa Águeda a quem foi amputado um seio durante o seu martírio) e as senhoras cannoli di ricotta - anunciou Saverio, o criado do barão. Caiu a noite, os convidados agradeceram, despediram-se, entraram nos seus carros e dirigiram-se à vila. Na cozinha, as mulheres limparam os fogões, os balcões e o chão.
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Duas ruidosas máquinas de lavar a louça marchavam a pleno ritmo, lavando pratos e copos. Tancredi saiu e dirigiu-se ao seu quarto para ir dormir. Quando estava a atravessar o jardim, deparou-se com o barão à sua frente. O jantar desta noite não era o jantar habitual da Rosaria disse-lhe. - Não correu bem, don Peppino? - perguntou Tancredi, que estava cansadíssimo e não via a hora de descansar.
- Foste tu que cozinhaste? - perguntou o barão.
- Dei uma mão - respondeu ele, quase como quem se desculpa. Don Peppino acendeu um cigarro e suspirou. - E eu que pensava fazer de ti um advogado ou um professor observou, a abanar a cabeça. E acrescentou: - Tu tens nas veias o fogo destas montanhas, o da gente das Madonie. Nós somos o cruzamento das civilizações mais antigas que chegaram a esta ilha maravilhosa, a partir dos fenícios, dos gregos, dos cartagineses, depois dos árabes e ainda dos normandos, e em seguida os espanhóis e os franceses. Os mais ousados de todos estes deixaram o litoral e embrenharam-se no interior, subiram estes montes e reproduziram-se entre eles. O mar acabou por descaracterizar um pouco aqueles que ficaram ao longo da costa, mas aqui, durante séculos, esta raça conservou-se intacta. Gente altiva, quezilenta, vingativa, mas capaz de ternuras sublimes, de impulsos clamorosos, de amores impetuosos e celestiais, de fantasias inatingíveis. Eu acho que tu nasceste artista, mas em vez da paixão pela pintura, pela escultura, pela poesia, pela literatura, tu tens a da cozinha, que resume as outras todas. E eu que queria fazer de ti um advogado ou um professor! - repetiu.
- Então posso ir para a Alemanha, ter com o meu pai? - perguntou Tancredi, que não via a hora de fugir para longe dali para arrancar do coração o amor por Giulia Maria.
- Ontem, quando estiveste doente, falei com o diretor do Ritz, em Londres. Há pouco ele ligou-me. Poderás partir depois do casamento da minha filha, que te quer aqui, connosco. No Ritz, o chef é um italiano famoso, Andrea Barbero. Parece que o rapaz encarregado da limpeza dos legumes fez um grande corte numa mão e só vai poder retomar o trabalho daqui a dois meses.
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O Barbero está a tua espera - comunicou-lhe.
- Porquê exatamente Londres?
- Porque vais frequentar também uma escola de inglês. Tens de aprender a língua que agora se fala em todos os lugares do mundo. E acrescentou: - Ainda não acabei. A instrução é fundamental, e tu vais mesmo ter de frequentar o liceu, e vais aprender latim e grego. Agora cozinhas seguindo o instinto que te deu o bom Deus. Mas o instinto não te vai levar a lugar nenhum, se não for guiado pela cultura. Esta é a diferença entre um bom cozinheiro e um grande chef. Para saíres do país precisas de um passaporte e da autorização do teu pai. Já alertei o comandante da polícia e vou telefonar ao teu pai para nos mandar rapidamente uma declaração escrita. Depois ficas pronto para levantar voo. Em agosto tenho de acompanhar a dona Elizabeth a Londres, e aí vou ver como te estás a portar. E agora vai depressa dormir, meu filho - concluiu o barão.
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Saverio, o criado do barão, bateu à porta do quarto de Nannina, que se tinha retirado depois do almoço para a sesta e acabara por adormecer. - O que foi? - perguntou a velha criada.
- Dona Sabedda chegou e quer a Concetta, que hoje foi a Polizzi, a casa dos parentes - anunciou.
- Jesus, José, Sant’Ana e Maria! E agora quem nos salva da fúria da louca? O barão devia ter avisado - disse Nannina, levantando-se da cama.
- Foi a Enna com o administrador e esta noite vai dormir no feudo de Gangi - explicou Saverio.
- Vai acordar a Bonaria e diz-lhe que se apresente a dona Sabedda - ordenou, enquanto penteava os cabelos ao espelho que havia por cima da velha cómoda.
- Não veio sozinha. Com ela estão dois ingleses que querem ir visitar as ruínas do castelo de Sperlinga, mas entretanto estão a pedir o chá. Em suma, Nannina, despacha-te - concluiu Saverio, antes de se retirar.
- A menina sabe que a mãe chegou? - perguntou Nannina.
- Ela foi para o bosque andar a cavalo e o Tancredi acompanhou-a - comunicou o criado. Nannina abriu as portadas das janelas para deixar entrar no quarto a luz da tarde, aproximou-se novamente da cómoda, onde se destacava uma estatueta em plástico de Nossa Senhora, fez o sinal da cruz e murmurou:
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- Virgem Santa, deita um olho cá para baixo, para aqueles dois inconscientes que andam sempre juntos. Suspirou, compôs o vestido e saiu do quarto. Estava um dia de uma beleza rara, um dia daqueles em que parece que o céu e a terra se unem para glorificar a natureza em todo o seu esplendor. Os dois jovens, mantendo os cavalos a passo, tinham atravessado o bosque e chegado ao pequeno lago; observaram a superfície, levemente encrespada por uma brisa ligeira.
- Apetece-te tomar banho? - perguntou ela, enquanto desmontavam. Encostou-se ao tronco de uma velha faia para descalçar umas Nike já gastas. Tancredi observou o rosto de Giulia Maria, a sua pele de porcelana transparente que, naqueles dias, se tinha tingido de rosa, os grandes olhos, fundos, escuros, a brilhar.
- Hoje a água está quente - disse-lhe, enquanto se aproximava da margem do lago. Ele imaginou os seus corpos nus mergulhados na água, a nadar e a entretecer uma dança de amor. E pensou que, depois, seria terrível vê-la ajoelhada no altar ao lado do homem que a teria para sempre, enquanto ele, para sempre, ficaria sem ela. Sacudiu a cabeça e disse-lhe: - Toma tu, se quiseres. Eu não vou contigo - e sentou-se debaixo de uma árvore.
- Pior para ti - gritou ela, enquanto despia os jeans e a T-shirt. Pareceu a Tancredi que os raios de sol confluíam todos sobre aquele fantástico corpo de mulher para o iluminar, escurecendo o resto do mundo para melhor exaltar a sua perfeição absoluta. Viu-a dar uns passos incertos na água e depois desaparecer. A cabeça dela reemergiu pouco depois e começou a nadar com braçadas lentas e cadenciadas até à margem oposta. Saiu do lago e gritou: - Anda buscar-me. Ele não conseguia mover-se, olhava para ela e ficava como que paralisado, dividido como estava entre o desejo de ir ter com ela e a dor por nunca mais a poder ter. Giulia Maria atirou-se novamente ao lago e, como se estivesse a ser perseguida por um monstro marinho, atingiu rapidamente a margem.
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- Tancredi, anda, ajuda-me a secar - gritou, a bater os dentes de frio. Então ele foi ter com ela, tirou a camisa e pôs-lha nas costas para a aquecer. Depois endireitou-se e acrescentou: - Vou voltar para casa. Preciso de estar sozinho. Montou a cavalo e desapareceu no bosque. Nos dias que se seguiram, Tancredi evitou encontrar-se com Giulia Maria, passando o seu tempo na cozinha ou em Petralia, onde se encontrava com alguns colegas de escola. Muitos deles trabalhavam no campo com os pais e poucos se dedicavam aos deveres de férias para preparação do outono, quando recomeçassem as aulas. Ele fazia esses trabalhos com eles e calava-se quanto ao futuro. Um dos amigos, em grande segredo, mostrou-lhe uma revista pornográfica. Era o filho do barbeiro.
- Olha para isto, Tancredi! - disse-lhe. Ele observou a fotografia de uma mulher nua numa pose obscena e corou, atirando a revista para longe.
- Estas porcarias não me interessam - afirmou.
- Uhe! Queres dizer que és um dos do outro lado? - perguntou o colega, espantado.
- Tu és um imbecil! - replicou Tancredi, e regressou rapidamente à quinta, na moto que o barão lhe tinha dado de prenda pela sua passagem no fim do ano letivo. Estava furioso, porque a mulher da fotografia humilhava o amor, que era um sentimento divino.
- O barão andou à tua procura - disse-lhe o camponês que estava a limpar os arbustos floridos do jardim. Tancredi foi encontrá-lo no escritório, ocupado a discutir as finanças com o administrador.
- Queria entregar-te o teu passaporte - disse-lhe. E acrescentou: - Já reservei o teu voo para Londres. Vais receber o bilhete em Palermo, para onde vais connosco depois do casamento da minha filha.
- Muito obrigado - disse Tancredi, e saiu apressadamente, com receio de encontrar Giulia Maria. Refugiou-se no seu quarto a folhear o passaporte, que continha os seus dados pessoais e a sua fotografia.
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Leu também a assinatura do pai ao fundo da folha da autorização de saída para o estrangeiro, e desejou estar já longe daquelas montanhas, da Sicília, do amor insensato pela pequena baronesa Giulia Maria Nicastro di Leonforte que se ia casar com Vincenzo Moncada, sem amor, mas apenas por obediência.
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- Oh Jesus! O que foi? - perguntou a velha Nannina, que tinha regressado cedo à quinta de Roccabruna e tinha entrado no seu quarto para tirar aqueles sapatos apertados de cerimónia e enfiar os chinelos do costume, tão cómodos. Tancredi estava em cima da cama e tinha a cabeça ligada o melhor possível com gaze e adesivo.
- Nada, caí - respondeu ele.
- E como foi? - indagou, enquanto punha os óculos e se sentava ao lado dele, na beira da cama, onde Tancredi estava deitado ainda vestido com a roupa da festa.
- Caí - resmungou Tancredi. O grande ramo de uma faia no qual tinha tentado enforcar-se, para pôr fim à sua dor, tinha-se partido sob o seu peso e caíra-lhe na cabeça. Nannina segurou uma mão do rapaz entre as suas e afagou-a, falando-lhe com ternura.
- Andámos todos à tua procura e tu tinhas desaparecido. Estavas na igreja connosco e um momento depois já não estavas. Onde foste? Como é que caíste, meu filho lindo?
- Nannina, para com essa lengalenga! Estou com uma grande dor de cabeça e quero ficar sossegado - sussurrou ele, irritado. Tinha percebido como fora insana a sua necessidade de desaparecer perante aquele acontecimento inelutável que era o casamento de Giulia Maria. Quer ela quisesse, quer não, o barão tinha feito para ela uma escolha sensata, casando-a com um homem rico que lhe garantiria uma existência apropriada ao seu estatuto. Pensando apenas nele, tinha perguntado a si mesmo que tipo de vida seria capaz de lhe oferecer, se decidissem ficar juntos.
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Pão e miséria, foi a resposta, na melhor das hipóteses, ou seja, se o barão não o matasse primeiro. E don Peppino teria todas as razões para matar um infame que traía a confiança de quem o tinha acolhido, vestido, alimentado e planeado para ele um futuro maravilhoso. Se queria realmente tornar-se num homem digno desse nome, tinha de aprender a raciocinar com a cabeça.
- Perdeste uma cerimónia lindíssima. Havias de ver.., toda a gente chorava, mas mais do que toda a gente chorava a menina. O bispo teve de lhe perguntar por três vezes se queria casar com o Vincenzo Moncada, porque ela soluçava e não respondia. Por fim parece que disse que sim, apesar de nós não termos ouvido - contou Nannina.
- Vê-se logo que não estava assim tão contente por ter um marido - observou Tancredi.
- Mas o que é que tu estás a dizer? O que ela sentia era uma emoção que, graças ao Senhor, eu nunca senti, porque não tive marido e isso foi uma bênção do céu. Quem te tratou depois da queda, meu filho? - perguntou, solícita, ao observar a palidez do rapaz.
- Foi o homem dos porcos e a mulher. Pelo menos é o que eu acho, porque desmaiei. Ele e a mulher trataram-me e depois ele trouxe-me à quinta. Agora já sabes tudo. Vai-te embora e deixa-me dormir. Nannina saiu, interrogando-se por que razão Tancredi, que estava sentado na igreja no banco atrás do dela, a certa altura tinha desaparecido e rachado a cabeça. Pensou que não tinha aguentado a emoção daquela grande cerimónia, apesar de o instinto lhe dizer que devia ter acontecido outra coisa. Decidiu então que talvez fosse melhor não indagar mais nada e foi à cozinha aquecer o caldo de carne para lhe levar, porque estava demasiado pálido e precisava de alimento. Dali a poucos minutos os criados iam regressar à quinta, enquanto parentes e amigos iam sair de Petralia em direção a Palermo para participarem na festa de casamento e depois acompanhar os noivos ao aeroporto, onde embarcariam para uma ilha distante cujo nome não recordava, mas onde o mar, as palmeiras, a natureza e os peixes eram bastante semelhantes aos da sua Sicília, como explicara Saverio, o criado do barão, que tinha visto fotografias daquele lugar exótico.
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- Qual é a necessidade de ir tão longe para encontrar uma coisa que já há aqui, mesmo à mão? - tinha perguntado Nannina, sem obter uma resposta. Nannina regressou ao quarto com a tigela de caldo quente para Tancredi, que tinha os olhos fechados e respirava tranquilamente. Talvez estivesse a dormir, talvez quisesse apenas que o deixassem em paz. Conhecendo o seu temperamento selvagem, Nannina não o incomodou. Na manhã seguinte, o barão regressou à propriedade de Roccabruna, mandou-o chamar e disse-lhe para fazer a mala imediatamente, porque o seu voo partia nessa tarde para Londres e ali encontraria alguém do Ritz que o conduziria ao seu destino. Quando Tancredi estava já no carro com Corrado, que o ia levar a Punta Raisi, don Peppino foi ter com ele e disse-lhe:
- Fui eu que te recomendei. Não me deixes ficar mal e mantém os teus impulsos sob controlo. Tancredi sorriu, prometeu, enfiou a boina que escondia em parte a ligadura, menos vistosa do que a que fora improvisada pelo seu salvador, e partiu. Enquanto o automóvel percorria a estrada tortuosa que descia da montanha e se desenrolava ao longo das encostas da cadeia montanhosa das Madonie, respirou o ar fino e tépido da sua terra, que naquele período estava no auge do esplendor, e sentiu que ia passar muito tempo antes de poder reencontrar aqueles lugares de beleza incomparável. Sentiu no peito um esticão semelhante àquele que tinha sentido quando a mãe morrera e quando o pai o deixara em Roccabruna. A sua vida estava a mudar outra vez e teve medo, sentiu-se perdido e só. Tinha apenas 16 anos e ia ao encontro de uma realidade nova. No Ritz não iria conhecer aquela menina linda como uma boneca que o tinha recebido em Roccabruna e o tinha feito sentir-se menos só. Pensou outra vez nela, que naquele momento tinha já desembarcado numa ilha tropical e se ia entregar àquele odioso Vincenzo Moncada que, se quisesse ser objetivo, era um belo homem, tinha a postura de um verdadeiro senhor e, aos pés do altar, tinha recebido Giulia Maria com um sorriso que irradiava gentileza.
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Pensou que ela que dizia amá-lo acabaria por se apaixonar pelo marido e por o esquecer a ele. Ele dirigia-se a um mundo desconhecido, povoado de pessoas que falavam uma língua incompreensível, que certamente não teriam a paciência dos criados do barão e não se preocupariam em saber se estava bem ou se estava mal, se se sentia triste ou feliz. Apenas lhe pediriam para trabalhar o melhor possível e não seriam meigos perante os seus erros, não lhe seriam nem hostis, nem amigáveis, mas apenas indiferentes, e dependia dele fazer-se aceitar. Nunca tinha entrado num avião antes e sentia um verdadeiro terror. Mas dominou-se e controlou as suas emoções. Pensou que, se os passageiros estavam tranquilos, também ele devia estar. Sabia que, uma vez aterrado em Londres, à saída da alfândega, encontraria alguém a segurar um cartaz com o seu nome escrito. Apresentar-se-ia e deixar-se-ia levar. Não era preciso saber inglês para seguir aquelas indicações. Do céu viu uma parte da sua ilha, as costas recortadas, os promontórios, o mar e as embarcações que pareciam pontinhos minúsculos que, ao mover-se, deixavam uma estria branca sobre a água. Depois o avião subiu e ele agarrou-se aos braços da cadeira, com medo de cair. Mas, a certa altura da viagem, quando o avião voava entre novelos de nuvens brancas, sorriu e deixou de ter medo. Voltou a sorrir quando, no aeroporto, viu um homenzinho de uma certa idade com um cartaz que dizia: «Mr. Tancredi D’Azaro». Foi ao encontro dele e disse: - Sou eu o Tancredi. - Então segue-me, rapaz, que eu vou levar-te ao Ritz. Eu sou o Carmelo, o motorista dos VIP’s e dos moços de cozinha como tu.
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Carmelo era um grande conversador. Disse-lhe que tinha nascido em Nicósia e que vivia em Inglaterra há quarenta anos. Tinha casado com uma inglesa e não regressaria nunca àquela ilha onde os seus parentes morriam de fome. Tinha agora 60 anos, uma bela casa e três filhos que andavam num college, e dentro de cinco anos ia reformar-se e retirar-se para o seu cottage, no Dorset, com a mulher, um cão e três gatos. Disse-lhe que na Sicília «um pobre de Cristo tinha de trabalhar de uma forma desumana para sobreviver com dificuldade. Aqui dão-te cabo do juízo se não trabalhares, mas se cumprires o teu dever tens o pão, o acompanhamento e até o supérfluo. Tornas-te num senhor, em suma». Passaram de carro em frente à entrada iluminada do Ritz e Carmelo disse-lhe, abrandando: - Olha bem para ele, porque por aqui nunca vais entrar. O teu acesso será o da porta de serviço, na viela atrás do hotel. Deves apresentar-te a Mr. Sam Prescott, que é o diretor do pessoal. Diante dele vais tirar a boina, dizes o teu nome e ele, que arranha qualquer coisa de italiano, vai dar-te instruções. Tancredi assimilava aquelas informações e ficava calado. Ficou calado também diante daquela estranha figura que era Mr. Prescott, um sujeito seco e magríssimo, com umas grandes patilhas que lhe chegavam ao queixo e que lhe fez lembrar uma personagem de um teatro de marionetas.
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Num italiano macarrónico, o homem pediu-lhe o passaporte e leu os seus dados, escreveu algumas notas num cartãozinho que depois enfiou dentro de um ficheiro, convocou através do intercomunicador Miss Morrison, uma funcionária já com alguma idade, de aspeto severo, e entregou-o a ela, que observou Tancredi por detrás de uns óculos pequeninos que trazia na ponta do nariz e lhe sorriu, dizendo algumas coisas em inglês que ele não entendeu. Falou rapidamente com o seu chefe, voltou a sorrir e fez-lhe sinal para ir atrás dela. Seguiu-a ao longo de um dédalo de passagens estreitas, despidas, impregnadas de um cheiro desagradável a bolor, e entraram num aposento onde havia grandes estantes cheias de roupas dobradas. A mulher falou com um homem que estava atrás de um balcão. Ele mediu-o da cabeça aos pés e, sem falar, tirou de uma prateleira uma casaca branca, umas calças de fustão aos quadrados pretos e brancos, umas socas em pele negra e um avental branco. Tudo cheirava a lixívia. Aquela ia ser a sua farda de trabalho. Tancredi estava cansado, perturbado, e só tinha vontade de fugir. Pensou que a sua terra era um canto do paraíso e que agora ele estava numa espécie de antecâmara do inferno, rodeado de personagens estranhas que o observavam como se ele fosse apenas um objeto. Pensou que don Peppino lhe tinha pregado uma péssima partida. Passou uma mão pelo casaco, à altura do peito, onde guardava o dinheiro que o pai lhe tinha mandado ao longo dos anos e o que o barão lhe entregara para qualquer eventualidade». Tinha o suficiente para chegar ao aeroporto, comprar um bilhete e regressar a Roccabruna. A quantia que tinha consigo deu-lhe uma sensação de segurança. Só viu a cozinha no dia seguinte, às seis da manhã, quando um jovem indiano, seu companheiro de quarto, o acordou e, por gestos, o mandou lavar-se, vestir-se e apresentar-se ao trabalho. Então percebeu o que era uma grande cozinha: uma espécie de formigueiro imenso, onde homens de todas as idades, de raças diversas, de níveis diferentes, se moviam entre lava-louças, fogões e bancadas, no meio de um eflúvio de cheiros de comida, com um ritmo que parecia perfeito. Ele foi colocado diante de uma pequena bancada onde estava pousado um cesto cheio de cabeças de alho. - Tens de separar estes cloves of garlic e descascá-los todos - ordenou-lhe um colega. Era um napolitano de ar despachado. Chamava-se Ciro, tinha 20 anos e trabalhava no corte da caça.
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Explicou-lhe que ali dentro cada um tinha uma tarefa e todos, ao fim, deviam prestar contas ao chef, um homem de Turim que se chamava Andrea Barbero e que ganhava um salário enorme. Era um dos vinte mestres de cozinha mais famosos do mundo. Nos dias seguintes, Tancredi apercebeu-se de que o chef, ali dentro, era uma espécie de divindade. - Primeiro está Deus e a seguir está Mr. Barbero - explicou-lhe Ciro. Quando o chef falava, ficava toda a gente em silêncio. Era capaz de reprimendas ferocíssimas contra um ou mais colaboradores, quando considerava que tinham cometido um erro. Era também pródigo em palmadas encorajadoras perante um trabalho bem feito. Tancredi soube que vivia num belíssimo apartamento, pago pelo Ritz, não muito distante do seu local de trabalho, com a mulher, violinista, que dava aulas numa escola de música. Ao fim de duas semanas passadas a escolher verduras, a lavá-las cuidadosamente e a transportá-las dentro de grandes recipientes até às bancadas dos encarregados do corte, Mr. Barbero dirigiu-lhe a palavra pela primeira vez.
- Andas em alguma escola de inglês? - perguntou-lhe.
- Todas as tardes, chef. Cinco dias por semana - respondeu Tancredi, pondo-se em sentido.
- Reparei que és rápido e escrupuloso a apresentar os legumes. A partir de amanhã podes aprender a cortá-los. Vê como fazem os teus colegas e aprende com eles. Observa sobretudo o chinês, porque é um mestre do corte - disse. Deu-lhe uma pancadinha no ombro e deixou-o para ir agredir alguém que estava a deixar queimar um molho. Aquele foi o primeiro cumprimento que recebeu. Corou de emoção e jurou a si mesmo que ia aprender tudo o que pudesse com o chinês, que trabalhava noutra bancada, nunca falava e sorria ainda menos. À tarde, armado de caderno e gramática, ia às aulas de inglês numa pequena escola a três quarteirões do Ritz, onde ensinavam duas irmãs cinquentonas que reuniam alunos entre os jovens trabalhadores daquele bairro de prestígio provenientes de várias partes do mundo.
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Eram sobretudo empregados de comércio e funcionários de hotéis. Davam aulas a grupos de cinco ou seis pessoas, cada aula durava duas horas e os horários variavam em função das exigências dos trabalhadores. Tancredi frequentava o turno das três às cinco da tarde e impôs-se imediatamente naquele grupo restrito pela sua capacidade de memorização e prontidão de aprendizagem.
- Tu onde trabalhas? - perguntou-lhe uma colega de turma.
- Na cozinha do Ritz - disse ele, quase com orgulho. - E tu? quis saber.
- Na Cashmere Only - respondeu ela, com o seu cómico sotaque francês. Chamava-se Linette Vincent, vinha de uma pequena cidade de província em França, tinha chegado a Londres na primavera e fora contratada porque era muito bonita e tinha uma graça particular a lidar com os clientes da loja.
- Qual é o teu dia de folga? - indagou.
- Segunda-feira à tarde - disse Tancredi.
- Fantástico! Eu também folgo à segunda. Então temos de nos encontrar.
- Para quê? - perguntou ele, um pouco confuso. A tarde de segunda-feira era o momento em que conseguia finalmente dormir até a madrugada do dia seguinte.
- Porque fora da tua cozinha e da minha loja há Londres, há vida e nós - disse-lhe a sorrir. Ele estava em Londres há um mês e ainda não tinha visto a cidade. Conhecia apenas, e mal, as ruas do bairro porque tinha um único objetivo, o de aprender inglês e uma profissão. Linette morava no último andar de um prédio em Oxford Street, numa mansarda em mau estado pela qual pagava, no entanto, uma renda considerável, e que partilhava com uma cubana, empregada numa perfumaria em Jermyn Street, atualmente em férias. Na segunda-feira seguinte saíram juntos e acabaram por fazer um festim de bolos e chá no Tea Room que ficava no último andar dos grandes armazéns Fortnum & Mason. Ela contou-lhe alguma coisa da sua vida, ele não lhe contou nada. Fizeram umas compras na secção da alimentação e depois ela disse:
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- Apetece-te preparar um jantar para dois, em minha casa? Tancredi acolheu aquele convite inesperado com entusiasmo. Desde que chegara a Londres não voltara a cozinhar e estava a morrer de vontade de preparar uma coisa que tinha visto fazer na cozinha do chef Barbero. Linette afagava-lhe a nuca, enquanto ele cozinhava, dizendo-lhe que era muito mais sexy do que o Alain Delon, o seu ídolo, e muito mais jovem, felizmente. Comeram de olhos nos olhos e a tirar a comida do mesmo prato. Acabaram os dois na cama e Tancredi, que nunca tinha feito amor com uma mulher até então, orientou os movimentos por instinto. Aquele exercício acabou por lhe agradar de tal maneira que o repetiu várias vezes durante a noite. Quando se apresentou ao trabalho, estava desfeito.
- Onde andaste esta noite? - perguntou-lhe Ciro.
- A tocar as estrelas - respondeu ele.
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Numa tarde de fim de agosto Tancredi estava a exercitar-se a cortar um tomate, com a ponta afiada de uma faca minúscula, para fazer uma espécie de rosa. As verduras e a fruta, sabiamente manipuladas e cortadas por um especialista, serviam para guarnecer as travessas. Era um trabalho que requeria paciência, habilidade e fantasia, mas também velocidade de execução. A velocidade adquiria-se com muito treino. Tancredi estava a aplicar-se com paixão. Tocou um telefone, alguém atendeu e depois berrou: - D’Azaro à direção. Tancredi estremeceu, a faca afiada desviou-se e fez-lhe um corte na ponta de um dedo. Quando Mr. Sam Prescott convocava alguém para o seu escritório, estava em jogo uma promoção ou um despedimento. Ele pensou que o iam mandar embora antes de terminar o seu contrato de trabalho daquele período de verão. Foi ao vestiário, lavou as mãos, tirou o avental, trocou as socas pelos sapatos, assegurou-se de que a casaca branca não tinha nódoas e saiu com o coração na garganta. Bateu à porta do diretor e entrou no gabinete. Placidamente sentado atrás da secretária de Mr. Prescott estava o barão Giuseppe Nicastro a sorrir para ele. - Eu bem te disse que te ia manter debaixo de olho - disse-lhe, ao mesmo tempo que o convidava com um gesto a sentar-se na poltrona ao lado da sua. Antes de o fazer, Tancredi dirigiu um olhar interrogativo ao homem das patilhas compridas que, por sua vez, sorriu e assentiu.
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- Como está, don Peppino? - perguntou Tancredi.
- Quero saber como estás tu - retorquiu o barão.
- Estou bem - respondeu num sopro.
- Tens o dia livre. Podes ir mudar-te - disse o chefe de pessoal.
- Espero-te daqui a meia hora em frente à entrada do hotel acrescentou o barão. Ao fim de meia hora, Tancredi surgiu na esquina da viela e foi ao encontro do barão que o esperava ao lado de uma limusina. O porteiro do hotel abriu a porta traseira para deixar entrar o barão, que fez sinal a Tancredi para se sentar ao lado dele. Ao volante estava Carmelo, o motorista que o tinha ido buscar ao aeroporto, mas fez de conta que não o conhecia. O automóvel arrancou.
- Reparei que a bainha das tuas calças encurtou e que o casaco te fica apertado. Cresceste, nestes dois meses. Vai ser preciso refazer-te o guarda-roupa - disse don Peppino.
- Estava a pensar comprar um fato novo, nos grandes armazéns, antes de regressar a Palermo - replicou Tancredi.
- Mas vamos agora ao Marks & Spencer. Daqui a duas semanas começam as aulas e tens de ter alguma coisa decente para vestir.
- Gostava de o fazer com o meu dinheiro.
- Ainda tens dinheiro?
- Todo aquele que me deram o senhor e o meu pai e ainda o que ganhei aqui.
- Guarda-o para qualquer eventualidade.
- Está bem - anuiu, enquanto procurava maneira de saber notícias de Giulia Maria.
- Eu estava à espera que a experiência numa grande cozinha e a disciplina dura que a governa te desencorajassem e pedisses para voltar para casa antes do tempo. Mas afinal parece que estás determinado a aprender esta estranha profissão. Mr. Prescott disse-me muito bem a teu respeito. Quanto à lingua, ouvi-te falar com ele e parece-me que te estás a sair muito bem.
- Obrigado, don Peppino. Gosto de aprender coisas novas. Na secção de homem daquele grande armazém o barão escolheu algumas peças para Tancredi e comprou-lhe também roupa interior nova.
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- Don Peppino, com todo o respeito, parece-me que está a exagerar - disse Tancredi, aborrecido, quando foi arrastado para a secção de desporto e dotado de dois equipamentos de ténis e uma raquete caríssima.
- Vais ter de jogar ténis, não para te tornares num profissional, mas porque é um desporto bonito e um rapaz como tu deve saber praticá-lo - disse-lhe. Depois sentaram-se no restaurante do grande armazém a almoçar.
- Há alguns dias estive numa outra sala de chá, com uma rapariga - contou Tancredi.
- Bonita? - perguntou o barão, entusiasmado.
- Razoavelmente - respondeu ele, pensando em Giulia Maria que, para ele, representava a beleza absoluta.
- Quantos anos tem?
- Vinte. Eu pensava que ela tinha 18. Ela pensava que eu também tinha 18. Tancredi tinha guardado para si aquela história com Linette e agora perguntou a si mesmo por que razão se tinha aberto com don Peppino. Corou, baixou os olhos para o esturjão que estava a comer e apressou-se a dizer:
- É uma coisa sem importância. O barão dedicou-lhe um sorriso malicioso e insistiu:
- Fizeste ou não fizeste?
- Fiz - sussurrou ele. Então o barão sorriu, satisfeito, e constatou:
- Tornaste-te num homem, meu filho. Espero que a tenhas feito feliz. Porque, estás a ver, a mulher que levares para a cama tem de ser respeitada em todos os sentidos, antes de mais porque é uma mulher, depois porque se entrega a ti e finalmente pelo prazer que te oferece. Tomaste alguma precaução?
- Tomou ela. Eu nem sequer sabia. Don Peppino riu com gosto.
- Mandaste-lhe flores?
- Levei-lhas. E ainda lhas levo.
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- És um verdadeiro senhor siciliano. Muito bem, é assim mesmo. Já lhe disseste que esta história vai terminar em breve?
- Se quer saber se estou apaixonado, a resposta é não. Mas gosto da francesinha e considero-a uma amiga. Se no próximo ano vier outra vez e ela ainda aqui estiver, espero voltar a vê-la. Passaram a tarde como turistas a passear por Hyde Park e a falar um pouco de tudo, como se fossem verdadeiramente pai e filho, mas o barão não falava nem da mulher nem da filha. Alugaram duas espreguiçadeiras e estenderam-se nelas, em frente ao lago, debaixo de um sol já outonal.
- Amanhã de manhã regresso a Itália - disse o barão. E acrescentou: - Vou ficar em Roma, em casa da minha filha.
- Está a dizer que ela vive em Roma?
- Os Moncada têm uma casa na piazza Farnese. Espero que ela seja feliz - sussurrou. Tancredi susteve a respiração.
- Tem dúvidas?
- A Giulia Maria sempre foi uma boa filha. Ao contrário da dona Elizabeth, tem um temperamento linear. Mas quando a abracei, no regresso da viagem de núpcias, pareceu-me um bocado apagada. Por isso quero estar com ela. Tancredi, que ainda a trazia no coração, sentiu um aperto doloroso no peito. Amava-a tanto que gostaria que estivesse feliz. Agora descobria que não era assim.
- Não gostaria que ficasse doente como a mãe. As doenças nervosas são difíceis de tratar. A minha mulher nunca mais se vai curar, pelo contrário, com o passar dos anos está cada vez mais estranha. Agora quer ir à Índia, ver um santo que dá serenidade, ou pelo menos é o que ela diz. Eu acho que a serenidade a encontramos dentro de nós próprios. Quem sabe! - concluiu, com uma voz amarga. Tancredi apercebeu-se de uma profunda tristeza no desabafo do barão. Naquele momento gostaria de ter asas e voar até Giulia Maria, de a apertar nos braços, de chorar com ela sobre aquele destino infeliz de ambos, que os mantinha separados.
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- Espero que a minha filha esteja assim tão apática por estar grávida - concluiu o barão, com um suspiro. Tancredi recebeu aquele anúncio como uma alfinetada no coração.
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O primeiro contacto com a escola de Palermo, com um ambiente tão diferente do de Petralia, causou-lhe algum desconforto. Via os seus coetâneos como aquilo que eram: rapazes preocupados em estudar, mas sobretudo em brincar e divertir-se, sabendo que tudo lhes era devido. Consideravam o estudo como uma obrigação aborrecida. Às vezes viravam-se para as companheiras mais ingénuas ou mais feias para encenar brincadeiras estúpidas, por vezes cruéis, contra elas. Faziam competições para receber as graças das mais bonitas e depois não viam a hora de contar a todos os outros que tinham tocado o seio de uma, que tinham enfiado a mão debaixo da saia de outra. Tancredi, que era o mais adulto da turma, era também o mais silencioso. Observava tudo e ficava sempre calado. Não se dava com ninguém, mas estava sempre pronto para ajudar quem lhe pedia um favor. Toda a gente sabia que vivia no palácio dos Nicastro, que era filho de um camponês emigrado no estrangeiro, que tinha crescido na montanha e que o barão o protegia. Considerando a sua beleza aristocrática, alguns insinuavam que era filho bastardo de don Giuseppe Nicastro. Avaliando a sua força, a tranquila retidão e a seriedade das suas atitudes, ninguém ousava quebrar a couraça invisível que parecia trazer sobre ele. Até os professores pareciam intimidados diante dele, que era o melhor aluno. As colegas adoravam-no em silêncio e ele tinha sempre uma palavra ou um sorriso simpático para elas. Uma das colegas, Elvira, um dia arranjou coragem para o abordar.
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Aconteceu que, durante um jogo de vólei, no campo da escola, Tancredi caiu e magoou o joelho esquerdo. Então foi sentar-se fora do campo, tirou da pasta o texto de literatura latina e pôs-se a estudar. Elvira, expulsa pela professora por ter empurrado uma colega, foi sentar-se ao lado dele e observou-o durante alguns minutos. Depois decidiu-se a dizer-lhe:
- Queres vir estudar para minha casa, uma destas tardes? Tancredi olhou para ela, sorriu-lhe e replicou:
- És realmente muito simpática. Agradeço-te pelo convite, mas não posso aceitar.
- Porque é que não podes?
- Eu estudo e faço os trabalhos de casa só à noite.
- A noite fazem-se outras coisas, não se estuda, normalmente objetou ela.
- Ganhei este hábito durante o verão, quando frequentava um curso de inglês - respondeu, sem se estender em mais explicações.
- E de dia, o que fazes depois da escola? - insistiu, decidida a desmantelar aquele muro de silêncio.
- Faço outras coisas - foi a resposta lacónica.
- Porque és tão misterioso? Ele olhou para ela um bocado atrapalhado, depois sorriu e revelou:
- Ajudo o chef de don Nicastro. Gosto imenso de cozinhar e aprendo muito com ele.
O cozinheiro do barão era do Piemonte, tal como o chef do Ritz, e ao saber que Tancredi tinha passado dois meses naquela cozinha a cortar frutas e legumes foi ele próprio que lhe perguntou se queria aprender mais. Ao contrário da cozinha do Ritz, onde havia um funcionário para cada tarefa, aqui era o cozinheiro que tratava das entradas, dos primeiros pratos, dos segundos e da sobremesa.
- Um cozinheiro deve saber fazer tudo, quer tenha ajudantes, quer não, como no meu caso, que só tenho este totò - explicou-lhe o monsù, referindo-se ao seu ajudante de cozinha. Tancredi recordava a forma como o chef Andrea Barbero controlava o trabalho de todos os empregados da cozinha.
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Observava os que arranjavam o peixe, os que estendiam a massa, os que emulsionavam os molhos, os que batiam as claras, os que faziam os refogados, e não era meigo com nenhum. Encontrava sempre alguma coisa que devia ser corrigida, melhorada. Criticava até a postura diante do fogão, ou os movimentos do pulso quando alguém batia as claras ou mexia a maionese. Tinha ainda nos ouvidos a sua voz baritonal quando dizia: «Põe essas costas direitas, ou não vais conseguir chegar à noite. O que é que tens no lugar do pulso, uma haste de madeira? Usa o pulso com leveza, como se estivesses a acariciar as asas de uma borboleta. Esta massa folhada não está suficientemente fina. Levanta-a e olha para ela em contraluz, onde é que está a transparência? Estás a cozer demasiado esse esturjão. Queres servir um peixe ou uma papa?» A réplica dos colaboradores era sempre um respeitoso: «Sim, chef. Desculpe, chef, porque acreditavam verdadeiramente no valor do seu mestre e tinham a consciência de que cada prato devia ser perfeito para sair da cozinha. Quando não o era, devia ser feito novamente. O monsù do barão era muito mais complacente, mas sabia reconhecer a paixão e o talento de um cozinheiro. Meteu imediatamente Tancredi debaixo da sua asa. Nos dias de férias da escola levava-o com ele ao mercado e ensinava-o a distinguir o peixe fresco do «refrescado», como ele dizia, a escolher as melhores verduras com o tato e com o olfato, a avaliar a qualidade de uma carne pela cor e pela textura. Tancredi ouvia e aprendia. Mas, sobretudo, era feliz. Assim como era feliz por estudar. Quando assimilava uma lição, parecia-lhe que valia a pena aprofundá-la. Então ia para o escritório de don Peppino, que era um aposento enorme, forrado de livros do chão até ao teto, e procurava um texto para ampliar os seus conhecimentos. Lia avidamente as biografias dos personagens que animavam os textos de História, as dos exploradores que enriqueciam os programas áridos da geografia e as dos escritores e poetas dos quais tinha de decorar excertos ou versos.
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Precisava de sentir dentro de si as vidas deles para entender o significado das suas obras, assim como precisava de acariciar um pé de alface ou de aipo, uma peça de carne ou a forma de um peixe, antes de entender como os devia cortar ou cozinhar. Ao domingo, don Peppino levava-o com ele ao clube de ténis. Tinha-lhe arranjado um professor e Tancredi apaixonara-se imediatamente por aquele desporto, tanto que, ultimamente, no fim da aula, o barão disputava uma partida com ele. Tancredi perdia sempre, mas não desistia.
- Mais dia, menos dia, vou ter de o derrotar, don Peppino - dizia-lhe.
- Nunca vais conseguir, se não melhorares a tua esquerda - insistia o barão, que continuava a ver nele o filho que a mulher não lhe tinha dado. Dentro de si, o barão cultivava o projeto de o adotar, mas não ousava ainda falar-lhe nisso. Esperava com paciência o momento oportuno para exteriorizar aquele desejo. Chegou a Páscoa e don Peppino preparou a sua partida para Roma. - Não volto cá até que a minha filha dê à luz. Agora é uma questão de dias - anunciou a Tancredi. Depois propôs-lhe: - Porque não vens comigo? Aquela era a última coisa que Tancredi queria fazer. Não conseguia pensar em Giulia Maria sem sentir a fisgada do ciúme.
- Só se o senhor mo ordenar, caso contrário tenho aqui muito que fazer - respondeu, com uma ponta de irritação. O barão tinha partido há dois dias apenas quando chegou um telefonema seu ao palácio. Estavam todos a almoçar na copa e foi ele atender. Quase lhe custou reconhecer a voz do barão, enquanto este lhe dizia:
- Meu filho, fui atingido pela maior das desgraças. Tancredi sentiu-se gelar. Não disse nada e esperou. Ao fim de alguns instantes de silêncio, desatando num pranto convulsivo, o barão disse: - A minha filha morreu ao dar à luz a minha neta. Tancredi sentiu o mundo desabar sobre ele.
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Pousou o auscultador, olhou para os outros e disse:
- Vou a Roma. Imediatamente. Bruno, leva-me.
- O que foi? - perguntou o motorista.
- A Giulia Maria já cá não está - anunciou com uma voz quase não se ouvia. Chegou a Roma ao fim da tarde. Saiu do táxi em frente à clínica onde a mulher dos seus sonhos tinha sido internada na véspera. Ontem ainda estava viva, pensou Tancredi, e parecia-lhe impossível que, vinte e quatro horas depois, tivesse deixado de viver.
- Vim ver a baronesa Nicastro - disse a um funcionário fardado que estava sentado atrás do balcão da receção. O homem consultou o registo e depois olhou para ele, perplexo.
- Giulia Maria Nicastro faleceu - anunciou, com uma expressão impassível.
- Por isso quero vê-la - esclareceu ele.
- No corredor da esquerda tome o elevador e desça até à cave. Encontrará uma seta com a indicação da câmara mortuária - explicou o funcionário, sucintamente. Na cave leu duas indicações: capela e câmara mortuária. Abriu uma pesada porta de vidro que dava acesso à segunda. No centro de um aposento gélido, iluminado por uma potente lâmpada de neon, estava uma maca sobre a qual viu estendido o corpo sem vida de Giulia Maria, com uma veste branca que a cobria do pescoço à ponta dos pés, calçados com umas sabrinas prateadas.
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As mãos estavam juntas sobre o ventre e seguravam uma rosa escarlate. Tancredi aproximou-se dela em bicos de pés, como se receasse acordá-la porque, observando-a, lhe pareceu que estava a dormir. Afagou com dedos leves os cabelos escuros encaracolados em volta do rosto diáfano e sereno. De repente, soltou-se-lhe um soluço do peito e chorou desesperadamente. Alguém disse atrás dele: - Vem cá, meu filho. Deixa-me abraçar-te. Tancredi voltou-se. O barão Giuseppe Nicastro, dilacerado pela dor, abria os braços para o acolher, e apertou-o com força, a soluçar.
- Eu sabia que gostavas muito dela, e ela gostava muito de ti - sussurrou don Peppino, e acrescentou: - Agora ainda me és mais querido, porque me resta muito pouco da minha filha, uma vez que a menina foi ter com ela ao céu poucas horas depois de nascer. Tancredi regressou a Palermo no último voo da noite. Fechou-se no seu quarto e só saiu de lá depois que os restos mortais de Giulia Maria e da filha foram depositados no cemitério, na capela dos Nicastro di Leonforte. Só então soube que dona Elizabeth, que estava na Índia há algum tempo, não tinha vindo acompanhar a filha à última morada. Disse ao marido que os restos mortais de Giulia Maria não importavam porque a sua alma ia reencarnar em breve numa nova criatura e ela ficaria na Índia a meditar, a rezar e a queimar incenso para a acompanhar ao seu novo corpo. Tancredi demorou todo o tempo necessário a cumprir o seu luto em solidão e depois regressou à escola e ao seu trabalho na cozinha. O barão vendeu mais um feudo e partiu para os Estados Unidos com dois amigos. Oficialmente, tratava-se de uma viagem de trabalho, uma vez que acalentava a ideia de adquirir para Itália a representação de uma marca americana de automóveis. Na realidade, precisava de esquecer a sua dor. Quando regressou já era verão e disse a Tancredi: - Anuncio-te com alegria que a minha mulher pediu o divórcio. Quer tornar-se monja budista. Que lhe faça bom proveito. Tancredi não fez comentários.
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Dona Sabedda sempre fora uma entidade abstrata, mesmo quando estava presente, e sempre a sentira como um objeto estranho. Estava uma manhã quente de fins de junho e preparava-se para sair quando encontrou o barão no vestíbulo do palácio. Parecia sereno. - Já tomaste o pequeno-almoço, meu filho? - perguntou-lhe.
- Já sim, obrigado, don Peppino - respondeu ele, observando a figura imponente e aristocrática daquele belo homem que tinha já passado os 50 anos. Distinguiu alguns fios brancos no meio dos cabelos negros.
- Ainda não terminaste as aulas? - Há três dias. Vou ver as notas esta manhã.
- Tens medo de não passar?
- Não exatamente. Quero ver as notas.
- As pautas não desaparecem se formos daqui a meia hora. Por isso, dá-me tempo de tomar o pequeno-almoço e eu vou contigo à escola - decidiu o barão. Sorriu-lhe, deu-lhe uma pancadinha no nariz e acrescentou: - Quero ter o prazer de ler «Aprovado» ao lado do teu nome. Enquanto, depois de saírem do palácio Nicastro, se dirigiam a pé à escola, a fazer uma gincana pelo meio dos carros estacionados nos passeios, don Peppino regressou ãs memórias de quando era jovem e esperava que o pai fosse com ele ver as notas do fim do ano. Às vezes, chegava a duvidar que o pai soubesse que ele frequentava uma escola. Don Gioacchino Nicastro apenas se tornava numa presença marcante quando queria dar-lhe uma reprimenda ou exercer a sua autoridade de pai. Olhou para o rapaz, que estava agora da sua altura e caminhava ao lado dele com um passo largo e cadenciado. O grande pátio em frente ao liceu fervilhava de estudantes, uns sós, outros acompanhados pelos pais, uns exultantes, outros muito tristes.
- Ei, D’Azaro! És o único da turma com dez a tudo (nota máxima na classificação do curso liceal em Itália) - disse-lhe uma colega que se cruzou com ele no átrio.
- É uma brincadeira - comentou ele, incrédulo.
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Mas na pauta, na letra D, leu o seu nome, D’Azaro Tancredi, e uma fila de dez em todas as disciplinas.
- Muito bem! - exclamou don Peppino, pousando-lhe uma mão no ombro. Para Tancredi aquele resultado era quase excessivo porque considerava que estudar, tal como trabalhar, era um prazer, e as suas origens camponesas tinham-lhe ensinado que os resultados que mais se apreciam são aqueles que se obtêm com fadiga e sacrifício.
- Se a tua mãe aqui estivesse, ia sentir-se orgulhosa de ti - disse ainda o barão.
- A minha mãe, don Peppino, está sempre comigo. O barão acrescentou tristemente:
- Também a nossa pequena Giulia Maria se ia sentir orgulhosa de ti. Agora só a tenho a ela no meu coração. - Depois retomou o tom autoritário de sempre e disse: - Hoje temos de festejar. Vou levar-te ao Hotel Villa Igiea. Enquanto saboreavam um prato de linguini com pesto de pistácio na esplanada daquela antiga villa sobre o mar, que se transformara num grande hotel, Tancredi anunciou: - Com a sua licença, no próximo domingo parto para Estugarda. O meu pai mandou-me o bilhete de avião.
- Parece-me bem. Já não se veem há anos. Duvido que te reconheça, crescido como estás - observou o barão.
- O meu pai voltou a casar, com uma alemã, e têm um filho de dois anos - revelou-lhe Tancredi. Depois acrescentou: - Quero ir conhecer este irmão.
- É um desejo legítimo. E depois?
- Depois, don Peppino, como já sabe, Mr. Sam Prescott aceita-me novamente, com um contrato para o verão, na cozinha do chef Barbero.
- Isso significa que não te vou ver até setembro. Portanto, mais vale ir já direto ao assunto. É um projeto que acalento há algum tempo e acho que chegou o momento de te falar nele.
- Estou a ouvir, don Peppino - disse Tancredi, com alguma apreensão, porque não sabia o que o barão tinha em mente.
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- Gostava de te adotar, se estiveres de acordo - propôs-lhe o barão.
- Por que razão quer adotar um camponês como eu que já tem um pai?
- Porque deixaste de ser um camponês no dia em que entraste na propriedade de Roccabruna, porque o teu pai agora tem uma família nova e sobretudo porque não tenho herdeiros, já que morreu a minha única filha e a filha dela também. Portanto, com a minha morte, o ramo dos Nicastro di Leonforte extinguir-se-ia se eu não te adotasse. E tu, agora tenho a certeza, vais ser um Nicastro de pleno título.
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HOJE
1
- Obrigada por me teres contado aquilo que nunca tinhas dito a ninguém - sussurrou Angelica, comovida. Tancredi pegou-lhe numa mão e beijou-a delicadamente. Ouviram o motor ruidoso do velho carro a subir a vereda que dava acesso ao topo da vinha e, pouco depois, Rosina foi ao encontro deles com um grande cesto. Tancredi libertou-a do peso. Pousou o cesto no chão e tirou de lá uma garrafa enfiada num recipiente térmico. - Espero ter seguido à risca as suas instruções, chef - disse Rosina, enquanto trocava com Angelica um sorriso divertido.
- Quer juntar-se a nós, gentil senhora? - perguntou Tancredi, entrando na brincadeira.
- Muito obrigada, mas já tenho um encontro marcado com os esfregões e os detergentes na cozinha - replicou Rosina que, imitando uma vénia cómica, se afastou. Antes de entrar no carro, gritou: - Se precisarem de mim mais tarde, ficam a saber que não vou cá estar, porque vou à vila gozar um serão de liberdade com os meus amigos.
- Gosto muito de ti - gritou Angelica por sua vez, a rir. Tancredi levantou o guardanapo imaculado que cobria o cesto e descobriu uns pãezinhos recheados ainda quentes e fragrantes. Pegou num, partiu-o ao meio e estendeu metade a Angelica.
- Ainda estou emocionada. Acho que não vou conseguir comer - desculpou-se ela.
- Eu nunca falei durante tanto tempo com uma mulher como o fiz hoje contigo. Também não tenho fome.
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Mas tenho sede, e por isso vamos beber as tuas requintadíssimas borbulhinhas à saúde desta vinha encantada - propôs ele. Encheu dois copos de Falce di Luna e entregou um a Angelica.
- Espera, primeiro quero brindar ao barão de Nicastro - disse ela, ao mesmo tempo que tocava com o seu copo no de Tancredi.
- Há já alguns anos que ele está a fazer companhia à filha e neta. As vezes gosto de pensar que a minha mãe também está com eles e que todos juntos, do céu, me fazem companhia - disse, com um sorriso. O perfume das uvas quase maduras espalhava-se pelas vinhas. - Porque escondes de toda a gente essa história lindíssima? perguntou Angelica.
- Conto-a de cada vez que cozinho um prato para os meus clientes. Quem souber ir para além das aparências, consegue adivinhá-la. Angelica trincou então uma sanduíche de mozzarella com concasse de tomate e depois disse:
- Isto fala-me das tuas origens camponesas. E se pensar na caponata de beringela que preparaste para o jantar de Hampton Court, reencontro as emoções mais profundas da tua paixão pela Giulia Maria.
- Enquanto eu, se beber um gole deste vinho, me apercebo da tua graça efervescente, da tua necessidade de harmonia, da elegância de uma mulher com classe e de um toque de ligeira amargura, logo pronta para se dissipar num sorriso. Este vinho soberbo és tu, Angelica. A luz do teu olhar faz-me lembrar o da Giulia Maria, a rapariga maravilhosa que eu amei, e que nunca mais tinha encontrado antes de te conhecer. Caiu a noite. Angelica e Tancredi regressaram a Borgofranco. A casa estava deserta, mas havia um jantar frio preparado na cozinha. - Apetece-te comer? - perguntou ela.
- Apetece-me ouvir-te - respondeu ele, ao mesmo tempo que lhe punha um braço a volta dos ombros e a conduzia em direção ao pátio. - Conta-me a tua história. Sentaram-se na cadeira de baloiço, em frente à piscina.
- Quando era uma miúda, este burgo abafava-me, queria outra coisa, mas não sabia o quê. Sentia-me prisioneira das muralhas de Borgofranco como uma princesa das histórias, segregada no castelo de um monstro mau.
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O monstro mau, obviamente, era o meu pai, que tinha planeado o meu futuro desde que eu usava fraldas e decidido depositar sobre os meus ombros o peso desta empresa. Os meus irmãos, mais velhos do que eu, escolheram outros caminhos e o meu pai não lhes criou obstáculos, enquanto eu estava de mãos e pés amarrados ao trabalho das vinhas. Parecia-me uma injustiça imperdoável. Assim, na primeira ocasião, levantei voo. Casei-me assim que fiz 18 anos. O Andrea, o meu primeiro marido, era um alcoólico, escrevia versos que me pareciam sublimes e que efetivamente o eram, uma vez que alguns dos seus poemas estão hoje incluídos nos livros escolares da minha filha. Não foi fácil viver com ele, ainda que à distância dos anos eu tenha de reconhecer que foi uma experiência muito importante para mim. Morreu quando eu fiz 19 anos e nesse momento percebi que o meu pai tinha razão: a terra era a minha vida e o meu futuro. Depois conheci o Raffaello, apaixonámo-nos, casámos e nasceu a minha queridíssima Elisabetta, que tem a mesma paixão que eu tenho pela terra e pelas vinhas.
- Anda cá - disse Tancredi, puxando-a para si.
- Gosto do teu perfume - disse ela, a sorrir.
- E eu gosto do teu - replicou ele, e inclinou-se para lhe beijar o pescoço. Tancredi reforçou a pressão do braço em volta dela e aproximou os lá bios dos de Angelica, enquanto ela pensava que aquele, provavelmente, era mesmo o homem da sua vida. Bonito, culto, inteligente e complicado, pensou, enquanto os lábios de ambos se fechavam num beijo muito terno. Naquele momento tocou o telefone de casa. Ela estremeceu.m- Ignora-o - disse Tancredi. Angelica libertou-se dos seus braços e foi a correr à sala de estar atender.
- Mamã, finalmente! - disse a voz cristalina de Elisabetta.
- Porquê, finalmente?
- Estou há uma hora a ligar-te para o telemóvel e tu não atendes. Ela tirou o telemóvel do bolso do vestido, examinou-o e apercebeu-se de que estava em silêncio.
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- Desculpa, pequenina. Sem querer, desliguei o som. Está tudo em ordem, aí em Roma?
- Tudo bem, fica sossegada. Boa noite, mamã. O pai diz que te manda um beijo.
- Já está entregue. Obrigada. Angelica pousou o auscultador. Tancredi, que tinha entrado na sala, aproximou-se dela, acariciou-lhe o rosto e sorriu-lhe, dizendo:
- Acabou o momento mágico.
- Vai voltar - garantiu ela.
- Tens mesmo a certeza?
- Não sei - sussurrou Angelica.
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2
Sentaram-se à mesa da cozinha e começaram a depenicar presunto e figos, de olhos nos olhos.
- Porque foi que me contaste precisamente a mim a tua história? - perguntou-lhe Angelica, e apressou-se a esclarecer: - Quero o motivo verdadeiro, por isso não entres em argumentações nebulosas que não explicam nada. Tancredi sorriu, divertido.
- Será que eu podia esquecer que tu és uma setentrional com os pés bem assentes na terra? Por isso, vou dizer-te a verdade. Há três meses, quando te socorri depois do acidente e te tirei o capacete, pareceu-me que tinhas o rosto banhado em lágrimas. Por um instante, ao teu rosto sobrepôs-se o da Giulia Maria quando, a chorar, me disse que me amava. Foi apenas um instante, mas bastou-me para que, desde aquela noite, o meu pensamento corresse para ti com mais frequência do que eu gostaria. Depois houve o segundo encontro, ou melhor, desencontro, no avião. Naquele momento fiquei realmente perturbado. E por fim, poucos dias depois, voltei a ver-te em Hampton Court. Então disse para mim mesmo que tudo isto devia efetivamente significar alguma coisa, que o destino me estava repetidamente a enviar um sinal inequívoco para me dizer que todo o caminho que percorri para chegar até ti tinha uma finalidade precisa. E comecei a gostar de ti e a desejar-te, sensações que não experimentava há tanto tempo que não conseguia controlá-las. Angelica interrompeu-o para confessar:
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- Também eu detesto não ter o controlo das minhas emoções, e em algum sítio, no meu cérebro, há uma luz vermelha que pisca de um modo furioso e que me avisa de que estou prestes a entrar numa estrada perigosa. Tancredi levantou-se, pousou o prato no lava-louça, depois aproximou-se dela, serviu-lhe um copo de água fresca e disse-lhe:
- Bebe e descontrai-te. Estás uma pilha de nervos. Era verdade. Angelica reclinou a cabeça e pousou-a no peito de Tancredi que estava de pé, diante dela. Então ele pousou-lhe as mãos na cabeça e, com as pontas dos dedos, começou a massajar-lhe as têmporas com movimentos circulares e lentos.
- Que delícia! - disse ela, que começava a descontrair.
- «Mais, mais», dizia eu, quando era pequeno, à minha mãe, que me fazia a mesma coisa quando achava que eu estava mais desenfreado.
- Só que eu sou uma mulher e tu provocas-me algum desejo - brincou ela. Depois agarrou-lhe nos pulsos e afastou da cabeça aquelas mãos demasiado sapientes.
- Como dizem os sicilianos? Non è cosa ( expressão coloquial usada na Sicília e Sul de Itália, que significa: «Não é uma boa ideia»). Dizem assim, não dizem? Afastou a cadeira, levantou-se e, em frente a ele, prosseguiu:
- Quando eu era criança e uma brincadeira se tornava demasiado perigosa, dizíamos uma palavra mágica: arimortis, que queria dizer: para já, chega.
- Eu estou a ver piscar loucamente a tua luzinha vermelha. Aquilo que tu não vês, é que a minha está a piscar também.
- Então o melhor é desejarmos uma boa noite um ao outro - concordou ela. Olharam-se intensamente nos olhos, sem se tocarem. Separaram-se naquele momento difícil para ambos. No entanto, sorriram.
- Boa noite, minha deliciosa anfitriã - sussurrou-lhe ele, a sorrir. Ela anuiu e viu-o sair e dirigir-se à ala dos hóspedes. Sozinha, na sua cama, Angelica recordou aquele dia intenso, exaltante e atormentado.
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A vida não parava de a colocar perante muitas provas, mas esta, tinha agora a consciência disso, era difícil de superar. Instintivamente, sentiu a necessidade de falar com a filha. - Acordei-te? - perguntou.
- Não, mas por pouco. Andei a passear pelas ruas de Roma com o pai, comemos um megagelado no Rosati e chegámos há pouco. Agora estou cheia de sono, mamã - disse Elisabetta.
- Soubeste porque é que o pai tem assim tanta necessidade de dinheiro para vender aquele apartamento fantástico da via Margutta?
- Não faço ideia. Mas a ti que te importa? De qualquer maneira, já decidiste divorciar-te. Porque é isso que tu queres, não é? - perguntou a filha, com um tom de quem espera um desmentido:
- Mas trata-se sempre do teu pai e, em qualquer caso, algumas das decisões económicas dele deviam dizer-te respeito a ti também. O teu avô ensinou-me que os muros não se vendem, quando muito compram-se.
- Só me disse que tem em mente um projeto para realizar com aquele dinheiro. Agora desculpa, mamã, mas tenho sono e estou quase a dormir. Muitos beijos e boa noite - disse Elisabetta, e desligou o telefone. Angelica sentiu Rosina entrar. Então chamou-a pelo intercomunicador. - Estou na cama. Não me queres fazer uma camomila? - pediu-lhe. Cinco minutos depois, a velha empregada entrou no quarto para lhe levar uma chávena de tisana perfumada.
- Estás sozinha? - perguntou, olhando em volta.
- Com quem pensavas que estava?
- Não é preciso um adivinho para perceber que entre ti e aquela flor de homem saltam faíscas. Conheço-te há demasiado tempo para não saber que se está aqui a preparar outra reviravolta - disse Rosina, enquanto se sentava ao lado dela, na beira da cama, e lhe chegava a chávena.
- Porque é que lhe chamas flor de homem? - perguntou Angelica, curiosa e divertida com aquela expressão.
- Então não é uma flor, aquilo! É lindíssimo, tem uma pose e uma elegância de grande senhor e, na sua profissão, deve ser um vencedor.
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Se eu fosse jovem e bonita, um homem como aquele, a olhar para mim como ele olha para ti, agarrava logo nele - concluiu Rosina, com absoluta franqueza.
- Eu gosto imenso do Tancredi, Rosina, mas se me abandonasse ao desejo, isso quereria dizer que não aprendi nada com os meus casamentos. As desilusões ensinaram-me a ser cuidadosa. Lembras-te de quando regressei, destruída e amargurada, depois da morte do meu primeiro marido? Tinha jurado a mim mesma que nunca mais queria saber de homem nenhum. Mas, afinal, poucos meses depois apaixonei-me pelo Raffaello. E agora estou quase a divorciar-me. O siciliano fascina-me. É uma pessoa excecional em todos os sentidos, é demasiado perfeito para ser verdade, e se eu me ligasse a ele alguma coisa correria mal de certeza absoluta. Porque é que nós, pobres mulheres, temos sempre de sofrer por causa dos homens?
- Porque é assim desde que o mundo é mundo, minha menina suspirou a velha empregada, ao mesmo tempo que retirava a chávena já vazia das mãos de Angelica. Levantou-se e, quando estava para sair, acrescentou: - Tenta descansar, sossega, porque bem precisas. Angelica apagou a luz e no silêncio do seu quarto pensou em Raffaello. Talvez se tivesse apaixonado por ele porque ele era jornalista e nunca se iria ocupar da empresa, deixando-a livre para viver a sua vida de trabalho sem interferir nas suas decisões. Talvez, pelo contrário, se tivessem trabalhado juntos em Borgofranco, aquela união se tivesse reforçado e ele não sentisse a necessidade de andar por outros lados sem ela dar conta. Continuava às voltas na cama, sem conseguir adormecer. Voltou a acender a luz. O despertador na mesa de cabeceira marcava meia-noite. Num impulso, pegou no telefone e ligou à sua amiga Ortensia. Sabia que a ia acordar, mas precisava de conversar com ela. Quando Ortensia atendeu, Angelica disse:
- Estou metida numa trapalhada. Conheci um homem de quem gosto imenso.
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Angelica apercebeu-se do suspiro resignado de Ortensia que, com uma voz ensonada, replicou - Quem é, desta vez, o homem da tua vida?
- Se eu pensar nos equívocos anteriores, primeiro com o poeta alcoólico e depois com o jornalista traidor, acho que devo avançar pé ante pé. Mas eu nunca tinha encontrado um homem tão bonito e tão fascinante. Para não me deixar arrastar por ilusões, preciso da tua sensatez, querida Tessi.
- Por acaso também é rico? - perguntou a amiga, que começava a despertar.
- É o chef mais conceituado do mundo, portanto é seguramente rico. Esqueci-me de te dizer que também tem um título nobiliário: é o barão Tancredi D’Azaro Nicastro di Leonforte.
- Caso renuncies ao produto, passa-mo a mim porque pode interessar-me - brincou Ortensia.
- Não me gozes. Ele está aqui, em Borgofranco, e mandei-o dormir na ala dos hóspedes, em vez de o receber, como deveria, na minha cama. Isto para te dizer como me tornei prudente. Mas não sensata, infelizmente.
- Estás apaixonada por ele? - perguntou-lhe Ortensia. Ao fim de um instante de silêncio, Angelica disse: - É qualquer coisa que supera o amor e posso-te garantir que, se conhecesses o Tancredi, ele te suscitaria algum arrepio mesmo a ti. É a síntese da perfeição.
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Ortensia balbuciou um bah!» muito desconfiado, recordandoos entusiasmos amorosos de Angelica que, aos 35 anos, estava ainda a sonhar como uma adolescente. Então replicou: - Achas que, se existisse o homem perfeito, Nosso Senhor o tinha destinado precisamente a ti?
- Olha que não tens graça nenhuma! - retorquiu ela, irritada.
- O que mais posso eu dizer à minha amiga do peito que se está outra vez a atirar para o precipício? Angelica suspirou.
- Ainda que de má vontade, agradeço-te por me teres feito assentar novamente os pés no chão. Precisava do teu duche frio para deixar de voar. Amanhã de manhã vou arranjar um pretexto para fugir daqui sem o encontrar, porque se o voltar a ver, já sei, vou cair na armadilha. Com a força daquela decisão, Angelica adormeceu e, de manhã, desceu à cozinha para tomar o pequeno-almoço. Rosina, que estava a cortar fruta para a salada, comunicou-lhe imediatamente: - O chef partiu esta noite. Angelica olhou para ela, perplexa. - O que é que me estás a dizer? - perguntou.
- Disse-me o segurança, hoje de manhã. Teve de desativar o alarme para lhe abrir o portão.
- Eu não sei de nada. Vou ver o que se passa - decidiu Angelica, e saiu em pijama. Tinha-lhe destinado uma suíte com uma sala e um quarto. A cama, com uma colcha de linho azul e branca, estava intacta, mas era evidente a depressão de um corpo que ali tinha estado estendido. Angelica inclinou-se e acariciou a colcha, e depois levantou-se de repente, dizendo em voz baixa: - Mas que raio estou eu a fazer? Entrou na sala e, sobre a mesa baixa, em frente ao televisor, viu um envelope fechado pousado ao lado de uma taça de porcelana dourada. O chef tinha-a enchido com cascas de laranja e limão cobertas de chocolate e contornadas por pétalas de rosa brancas. Pegou no envelope, que continha o logótipo da empresa vinícola Brugliani, abriu-o, tirou uma folha e leu:
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Olá, Angelica. Foste tu que forneceste a despensa da ala dos hóspedes? Mas é claro. Encontrei uns limões de Garda não tratados e umas laranjas da Sicília aceitáveis, atendendo à estação. Reparei também que havia chocolate Domori. Otimo! Como precisava de te sentir por perto, resolvi preparar alguma coisa que juntasse a tua terra e a minha. Primeiro, com a janela aberta para um céu cheio de estrelas, tentei adormecer. Mas era um tormento saber-te aqui ao lado e não te poder abraçar. Por isso desci a cozinha e reparei que está bem equipada. Tenho a certeza de que foi a Rosina que a dotou do necessário. Pus-me ao fogão e preparei para ti estas cascas de citrinos cobertas de chocolate. Agora, vou-me embora, até porque sei que, se ficasse, amanhã de manhã eras tu que fugias. Tal como eu, tens medo que a atração tão intensa que sentimos um pelo outro seja apenas um sonho destinado a desvanecer-se. Porque é que o ser humano é assim tão complicado? Gostava que fôssemos dois gatos estupendos, porque assim não tínhamos estes receios. Ou duas crianças inocentes. Também elas não temem o futuro. Amo-te intensamente e fujo de ti. Mas, se me quiseres, bastará um toque de telefone e eu venho imediatamente ter contigo. Dei um nome a estes doces: angélicas. Vou prepará-las sempre que as saudades de ti se tornarem demasiado dolorosas.
Releu por várias vezes aquela carta atormentada, doce e amarga, como as angélicas que ia saboreando. Não conseguiu conter as lágrimas, enquanto provava aqueles doces requintados.
- O que foi que aconteceu? Porque é que estás a chorar? - perguntou Rosina, que apareceu à entrada da sala.
- O que é que achas da ideia de, por uma vez, te meteres na tua vida? - gritou ela. Enfiou a carta no bolso do pijama, agarrou na taça dos chocolates e saiu. Meteu-se no carro no momento em que, pelo grande portão do burgo, entravam os carros dos trabalhadores e da secretária. Foi até à vinha do Anjo e parou no topo da colina. Saiu do carro e, sem se preocupar com a terra que se enfiava nos chinelos de quarto, meteu-se por entre as videiras até chegar à minúscula capela. Sentou-se no degrau e pousou no chão a taça com os chocolates, determinada a comê-los todos e a chorar em paz. Dizia para si mesma que devia estar feliz por ter encontrado um homem como Tancredi. Sentia-o dentro de si, vivo e palpitante. Aquele encontro tinha sido perfeito e nunca mais o ia esquecer. Olhou para o céu sereno e para o sol que iluminava a crista das colinas distantes, aspirou os aromas que se erguiam da terra e dos cachos do Chardonnay, saboreou até ao fim o último chocolate que Tancredi tinha preparado para ela e dispersou no ar, com um sopro, as pétalas de rosa branca sobre as quais os tinha pousado. Por fim saiu da vinha do Anjo, a mais amada de todas, e entrou no carro para regressar a casa. Do alto da colina, Tancredi viu-a. Tinha passado ali as horas que precedem a madrugada, a pensar em Angelica, a única mulher que o tinha feito reviver as emoções juvenis da sua paixão por Giulia Maria. Quando o carro de Angelica começou a descer, ele saiu da propriedade dos Brugliani, voltou à estrada onde tinha estacionado o carro, entrou e foi-se embora.
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- Dr. Rovesti, não pode deixar-nos logo agora, no momento em que o jornal está a recuperar - disse Mario Minossi, o sócio maioritário da editora que publicava o quotidiano Fatti e Opinioni.
- Gostaria de esclarecer que este pico de vendas se deve a um acontecimento sensacionalista: um caso de prostituição que mete expoentes destacados aqui da zona - replicou Raffaello, e acrescentou: - Quando a perversidade dos leitores acalmar, as vendas voltam a cair. A não ser que estoure outra história local, das feias. Mas isso, francamente, ninguém deseja. Era um dia de fins de agosto e Raffaello estava a almoçar num pequeno restaurante de Milão, a convite do Dr. Mario Minossi, que tinha querido encontrar-se com ele num lugar distante dos mexericos da província, depois de ter recebido a sua demissão.
- Quando se apercebeu das nossas dificuldades, foi um dos primeiros, aliás, o único, a reduzir o seu próprio salário. Um gesto de verdadeiro senhor, que nós não menosprezámos. Eu e os outros sócios chegámos a avançar a hipótese de que estivesse à espera de ser despedido. Quero que saiba que nenhum de nós teve nunca essa intenção. Fatti e Opinioni ganhou um novo impulso sob a sua direção. Se nos últimos anos houve uma diminuição de leitores, isso não é certamente imputável à sua liderança. Com uma crise económica cada vez mais pesada que pode vir a derrubar-nos, muitos jornais fecham e os quotidianos menores sobrevivem o melhor que podem. Ora, como sabe, nós não temos nenhuma intenção de fechar, sobretudo agora que, embora timidamente, a publicidade está a aumentar.
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Conhece tão bem como eu a equação: mais publicidade, mais dinheiro. Portanto, com toda a franqueza, diga-me a verdade. Diga-me se teve uma proposta melhor e nós veremos o que lhe podemos oferecer para não se ir embora - declarou Mario Minossi. Depois levou aos lábios um grande cálice, no qual o empregado tinha servido dois dedos de Amarone Allegrini, e saboreou-o com evidente prazer. Raffaello, que estava com veia de sinceridade, disse: - Cheguei mesmo a recear que o senhor e os outros sócios tivessem ponderado o fecho do jornal e esperei encontrar alguém que me servisse numa bandeja de prata uma oportunidade melhor. Até podia ter acontecido, mas afinal aconteceu algo diferente: percebi que tinha uma maneira melhor para pôr a render as minhas modestas capacidades de jornalista e decidi tornar-me eu mesmo diretor de um jornal, ou melhor, de uma revista de uma área específica. - Da maneira que as coisas estão? - perguntou o seu interlocutor, com um sorriso vagamente irónico e amargo. - Pois, precisamente da maneira que as coisas estão - confirmou Raffaello. E explicou: - Quero fazer uma revista mensal que fale de vinho. Vino e Dintorni1(literalmente Vinho e Arredores) vai ser o título. Neste setor conheço mais ou menos toda a gente, do extremo norte ao profundo sul. Quero divulgar esta realidade do nosso país que, apesar da corrupção e da péssima gestão política e empresarial, continua a ser maravilhoso para muitas pessoas que nunca deixaram de trabalhar bem e, apesar de mil e uma dificuldades, não deixam de acreditar no que fazem. - Está a falar da sua mulher? - Não só dela, mas de todos os produtores, especialmente das mulheres que, a todos os níveis, operam no terreno. - Olhe que há dezenas de revistas especializadas nesse setor - observou o editor, sem esconder o interesse que as palavras de Raffaello tinham despertado nele. - Julga que eu não sei? Mas eu não vou publicar artigos pomposos, autopromocionais, sensacionalistas.
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Vou rodear-me de colaboradores competentes, vou dar a conhecer as histórias mais bonitas de quem dá a alma para manter bem alto o prestígio produtivo deste país, vou falar das mulheres do vinho, que são muitas e extraordinárias, vou denunciar os desastres ambientais que envenenam a terra. O Dr. Minossi interrompeu-o. - Está a falar com um entusiasmo que, nos tempos que correm, se encontra raramente. Anda à procura de um sócio? Pergunto-lhe isto porque, neste momento, o projeto me alicia.
- Agradeço-lhe, mas eu só lhe queria explicar o motivo que me leva à demissão - respondeu tranquilamente Raffaello.
- Para uma empresa como essa é preciso dinheiro, meu amigo.
- E eu tenho. E, já que falo no assunto, devo esclarecer que os Brugliani não têm nada a ver com isto: vendi uma bela propriedade que tinha há anos. A minha mulher ainda não sabe nada sobre a revista que vou publicar. Raffaello, que tinha regressado de Roma com Elisabetta há apenas dois dias, tinha prometido a si mesmo informá-la. Só não o tinha feito ainda porque Borgofranco andava em grande agitação. A vindima ia começar com uma semana de antecipação relativamente aos prazos habituais e já confluíam ao burgo amigos e parentes. Tinha chegado ali com Elisabetta ao fim da tarde e a filha quis que ele ficasse para jantar. Por isso se encontrara à mesa com Gaspare, a mulher e os filhos. Luigi e Sabine iam chegar no dia seguinte.
- Amanhã chegam também a minha mãe e o meu pai - disse Angelica.
- Tal como todos os anos - sublinhou Gaspare, e perguntou: - Eles estão bem?
- Quem não está muito bem é o Edward. Parece que o joelho não quer ir ao sítio. Estão em Itália há alguns dias. Primeiro pararam em Milão e internaram o Ed no Hospital Pini. O pai vai ficar connosco e a mãe vai andar para lá e para cá, daqui para Milão. Raffaello não comentou, mas percebeu que aquele não era o momento certo para falar dos seus projetos. Agora disse ao editor: - Deixo-lhe todo o tempo que for preciso para encontrar um novo diretor, até porque, como quero elaborar um plano sólido, não vou publicar o primeiro número da revista antes de seis meses.
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- Meu amigo, o que quer que lhe diga? Desejo-lhe as maiores felicidades. Mas entretanto não se esqueça da minha oferta de vir a fazer parte do seu projeto. Quando estavam já a despedir-se, porque o Dr. Minossi ia ficar em Milão, Raffaello perguntou:
- Teria alguma coisa em contrário se eu pedisse a Tiziana Scaroni para ir comigo? Sei que se vai reformar no fim do ano.
- Vejo que está decidido a arrancar da melhor maneira. A Tiziana é um elemento precioso e vai ficar contente por ir consigo. Despediram-se, e Raffaello foi até ao carro. Apanhou a autoestrada em direção a Borgofranco. Queria falar com Angelica, antes de começar a vindima.
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Elisabetta tinha-se afastado com Gianmarco para o pequeno pátio relvado atrás da ala dos hóspedes, o único lugar tranquilo do burgo que, por todo o lado, fervilhava de gente, porque na manhã seguinte começava a vindima. O namorado meteu-lhe na mão uma caixinha que continha uns brincos em forma de estrela-do-mar. Tinha-os comprado para ela durante as férias que passou na praia. Ela observou-os, comovida, sussurrou um tímido «Obrigada» e pousou-os na beira da pedra do poço. - Então, não os pões? - perguntou Gianmarco. - Talvez depois. São lindíssimos e agradeço-te - disse ela, preocupada com a confissão que se preparava para lhe fazer. Ele aproximou-se para lhe dar um beijo e ela retraiu-se, mascarando aquela recusa com a oferta do seu presente, uma bolsa para o telemóvel com as cores da Juventus, a equipa do coração de Gianmarco. Tinha-a comprado durante a sua viagem a Roma.
- Que giro! - exclamou ele, entusiasmado, e apressou-se a enfiar o telemóvel na nova capa. Enquanto tentava encaixar perfeitamente o aparelho, acrescentou: - Tu consegues sempre saber as coisas de que eu gosto. Eu raramente acerto.
- Preciso de falar contigo - disse ela.
- Tem mesmo de ser? - perguntou Gianmarco, que temia uma notícia desagradável.
- Não posso deixar de te dizer - sussurrou Elisabetta.
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- Eu adianto. A nossa história já não te interessa e eu vou-me embora - disse ele, decidido.
- Se acabou ou não, depende de ti - esclareceu ela, segurando-o por um braço. Gianmarco olhou para ela sem perceber e Elisabetta dirigiu-lhe um sorriso embaraçado, replicando: - Ufa, como é difícil encontrar as palavras.
- Deixa-te de rodeios, porque estou a perder a paciência - incitou-a, carrancudo.
- Quando estive no Dorset, em casa dos meus avós, eu fiz... disparou Elisabetta.
- Fizeste o quê?
- Vá lá, Gianmarco, não faças de conta que não percebes.
- Perceber o quê? - gritou.
- Fiz amor com um rapaz mais velho do que tu. Seguiram-se uns longuíssimos instantes de silêncio. Depois ele deu um murro no ar e sibilou: - E dizes-me isso assim?
- Como é que havia de dizer? Está feito. Ponto final.
- Agora tu segues o teu caminho e eu sigo o meu - gritou Gianmarco, desesperado.
- Gianmarco, pára. Deixa-me explicar-te - suplicou ela.
- O que é que me queres explicar? Não me dizes o que é que há para explicar? - Tinha os olhos cheios de lágrimas. Elisabetta reviu-se criança. Ela tinha 8 anos e Gianmarco 10; andavam sempre juntos e ele assumira o papel de paladino, protegendo-a das brincadeiras dos outros colegas. Eram os dois namoradinhos de quem os Brugliani falavam com ternura. Ela era uma rapariguinha engraçada e um pouco frívola, ele um rapazinho responsável e prático. No entanto, um dia ele perguntou-lhe, corando:
- Queres ser a minha namorada? Ela corou também e, baixando os olhos, sussurrou:
- Para sempre.
- Isso quer dizer que, quando formos grandes, nos vamos casar esclareceu Gianmarco, com um tom muito sério.
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Confecionou para ela um anelzinho feito com fio de embrulho e uma perolazinha de vidro vermelho e enfiou-lho no dedo, dizendo-lhe: - Pronto, agora estamos noivos. Ela andou às voltas pela empresa a mostrar a toda a gente o anel que tinha no dedo e a dizer: - Estou noiva.
Desde então nunca mais se tinham afastado um do outro. Quando Elisabetta tinha 13 anos e ele 15, no autocarro que os levava para a escola, ela propôs-lhe:
- Queres vir a minha casa hoje? A minha mãe vai preparar um lanche para os meus amigos. Gianmarco chegou na motorizada do irmão. Naquele dia beijaram-se pela primeira vez, na vinha do Anjo. Gianmarco era o seu confidente e a ele contava muito mais coisas do que contava à mãe. Ele era muito ponderado, responsável, e dizia sempre a palavra certa no momento certo. Agora perguntou-lhe:
- Queres destruir toda a nossa história?
- Olha, minha menina, se alguém a destruiu, foste tu - sibilou. E depois gritou: - Porque fizeste isso?
- Não sei - sussurrou Elisabetta.
- Pois podias-me ter poupado essa. Tens 14 anos e não sabes porque deste uma queca com outro, em vez de fazeres amor comigo, que sempre te respeitei, colocando-te num altar, como se fosses uma santa. Não podes não saber. Poderia ela dizer ao namorado, que era também o seu melhor amigo, que tinha sido vítima de uma paixão fulminante por Cedric que em relação a ele era um homem, e que se tinha deixado envolver pelas suas histórias sobre a vida na Índia? Cedric tinha-lhe mostrado os filmes rodados durante as expedições subaquáticas no oceano, enquanto lhe descrevia os hábitos dos peixes tropicais, a força das correntes, o mistério dos fundos do mar. Não lhe poupara elogios sobre a sua beleza, reparara nos reflexos dourados na íris escura dos seus olhos, elogiara a força e a precisão dos seus lançamentos quando jogavam ténis.
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- Ele envolveu-me de elogios, coisa que tu nunca fizeste - confessou Elisabetta.
- Então és mesmo parva! Achas que eu ia ficar assim furioso se não me tivesse apercebido de que tinha perdido a melhor namorada que existe à face da terra?
- Dizes-me isso agora, quando aos teus olhos deixei de ser a melhor. Antes nunca mo tinhas dito.
- Estava implícito. Conheces-me e sabes que não sou de salamaleques. É mesmo verdade que vocês, os ricos, são uma raça à parte. Precisam de palavras, quando os factos falam por si. O senhorinho inglês de nariz arrebitado se calhar tem uma namorada num sítio qualquer e diverte-se a traí-la. Eu nunca te traí. Traz-mo aqui, aquele imbecil, porque primeiro parto-lhe a cara e depois denuncio-o por abuso de menores. Naquele momento, Elisabetta mediu toda a sua estupidez, teve consciência da dor profunda de Gianmarco, mas sobretudo percebeu que, apesar de tudo, o namorado ainda a amava. Então sentiu uma profunda vergonha de si mesma.
- Tens razão, Gianmarco. Sou superficial, insegura e presunçosa a ponto de ter pensado que me ias perdoar. Mas aquilo que eu fiz não tem desculpa. Os meus pais, que se zangaram a sério quando souberam, acabaram por me perdoar. Tu não o podes fazer e tens razão, porque eu sei que, se a mesma coisa tivesse acontecido contigo, eu te teria deixado - disse num sussurro, e depois desatou num pranto convulsivo.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Raffaello, que tinha acabado de chegar de Milão e tinha dado a volta ao burgo inteiro à procura da filha.
- Pai, por favor, desaparece - soluçou Elisabetta.
- Para já, desapareço eu - disse Gianmarco, e foi-se embora, sem se despedir de nenhum dos dois.
- Parece muito zangado, o teu namorado - constatou o pai. Estendeu-lhe um lenço para ela enxugar as lágrimas e, afagando-lhe o cabelo, prosseguiu: - Tu contaste-lhe tudo e ele ficou danado. O que mais esperavas que fizesse?
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- Faltou pouco para me chamar um nome feio - disse ela, banhada em lágrimas.
- Minha menina, eu e tu estamos no mesmo barco. Eu fiz sofrer a minha mulher e tu fizeste sofrer o teu namorado. Em qualquer caso, não te preocupes, porque o Gianmarco vai voltar. Quem não volta mais, receio eu, é a tua mãe.
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6
Os três irmãos Brugliani estavam reunidos no escritório de Angelica, que tinha avisado Cesarina, a secretária, para não lhe passar nenhum telefonema, uma vez que queria abordar com Gaspare e Luigi o assunto que a inquietava e sobre o qual já tinha falado com o pai. - Temos de retirar algum dinheiro dos lucros da última vindima e, para isso, temos de estar os três de acordo - disse Angelica, depois de ter explicado a importância de adquirir mais alguns hectares de terreno para ampliar a produção vinícola. - Devemos ter presente que, neste momento, pelo preço a que aqueles terrenos nos são vendidos, é um excelente negócio - prosseguiu, e acrescentou:
- Prometi dar uma resposta aos Richiedei até logo à noite, e por isso temos de decidir, num sentido ou noutro.
- Não achas que estamos a gastar demasiado num momento em que o mercado se contrai? - perguntou Gaspare.
- Leste o meu relatório sobre os novos agentes nos Estados Unidos e na China? A crise instalou-se em toda a parte, mas na América estão a sair dela e a China está muito melhor do que nós. Eu estou otimista - declarou Angelica.
- Eu também o li - interveio Luigi. - Dizia-te já que sim, se não fosse o caso de a Sabine me atormentar porque quer a lua - sussurrou timidamente, com o seu ar professoral.
- Explica-te - pediu Gaspare.
- Está grávida e vou ter em cima dos ombros um quarto filho, que vai nascer na próxima primavera. Já tenho três para sustentar e, francamente, não era preciso o quarto.
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Entretanto a Sabine, para além de querer ter o filho, reclama agora um novo apartamento em Trieste. Diz que a casa alugada em que estamos não serve e que eu tenho de comprar um apartamento com mais um quarto para o bebé. Os nossos ordenados são o que são, eu faço muitos trabalhos extra, bem remunerados, e isso basta-nos. Mas se tiver de empregar o capital investido para comprar mais uns hectares de terra, não vou poder comprar também uma casa. Por isso, não sei o que dizer. Com a autoridade de irmão mais velho, Gaspare interveio, dirigindo-se a Luigi.
- Ora deixa lá ver se eu entendo. O apartamento onde vives é o mesmo onde vivias com a tua mulher e os vossos três filhos. Agora vai nascer uma criança tua e da Sabine, e acham a casa pequena? Luigi encolheu os ombros, como era seu hábito, quando tinha de enfrentar problemas que tinham a ver com a jovem companheira.
- Não sei. A Sabine queixa-se por causa do excesso de livros. Diz-me que, se não saem livros, ela se vai embora. Por isso precisamos de mais espaço. Por outro lado, ela também ensina e devia saber que a leitura e a consulta constante de textos é a nossa vida. Felizmente, eu ouço-a pouco.
- Não me quero intrometer na tua vida, mas interessa-me saber se estás interessado ou não na aquisição de mais terra. Eu estou, a Angelica está, falta o teu acordo - insistiu Gaspare.
- Ouçam, perguntem à Sabine - foi a grande decisão de Luigi. Angelica, que até àquele momento não tinha interferido na discussão entre os irmãos mais velhos, declarou então:
- O que é que a alemã tem a ver com os nossos negócios? Ela nunca tinha conseguido estabelecer uma relação fraterna com Sabine, apesar de a ter acolhido com entusiasmo quando se conheceram durante a vindima dezasseis anos antes. De resto, Sabine não tinha fraternizado com nenhum dos Brugliani, de tal maneira que tinha sido Giovanni a chamar-lhe crucca (termo depreciativo para alemã), afirmando:
- É dura em todos os sentidos. Não sei com que armas atraiu o Luigi.
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Cristina tinha reforçado a dose, ao conhecê-la: - É uma calculista. Serviu-se daquele banana do meu filho para chegar à licenciatura, depois de lhe ter avaliado a situação financeira, e agora manobra-o como uma marioneta. Luigi replicou então, timidamente:
- É só para evitar discussões. Para além do mais, nem sequer sei o valor do capital de que disponho. O primogénito e a «menina» da casa trocaram um olhar de entendimento e Gaspare declarou:
- Eu e a Angelica avançamos com o dinheiro da tua parte e vamos abatendo com os lucros futuros. Achas bem?
- Muito bem, isso parece-me uma ótima solução - disse Luigi, sentindo-se aliviado, e acrescentou: - Sabem o que vos digo? A vida a dois sempre me asfixiou, até porque eu estava muito bem sozinho. Sempre gostei de mulheres, e vocês sabem disso. Mas sou mais o tipo de uma queca e adeus. No entanto, primeiro a minha mulher e depois a crucca conseguiram apanhar-me. Até estava a pensar entrar num convento e tornar-me monge. Pelo menos, podia estar em paz com os meus livros, sem mais chatices. Os três irmãos riram-se, divertidos. Depois Angelica disse: - Vamos tomar um café, os três? Poucos minutos depois, Cesarina entrou na sala com as chávenas fumegantes e anunciou: - A vossa mãe ligou. Ela e o vosso pai estão cá à hora do jantar. Depois baixou a voz e sussurrou a Angelica: - O teu marido está no meu gabinete à espera de falar contigo.
- Diz-lhe que vou ter com ele assim que tivermos acabado - respondeu ela. Finalmente chegava a parte agradável daquele encontro. Os três irmãos conseguiam isolar-se muito raramente, mas quando acontecia, como naquela tarde, então voltavam a ser crianças, trocando comentários divertidos para evocar uma infância feliz e reviverem juntos os episódios já históricos daquela grande família. Raffaello, entretanto, tinha-se enterrado num sofá ao lado da secretária de Cesarina e observava pela primeira vez o trabalho daquelas funcionárias, muito eficientes e profissionais.
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Naquele momento, a responsável pelo pessoal estava a falar com o pároco da terra para tentar arranjar, até à manhã seguinte, dois trabalhadores temporários para substituir dois dos deles que não se iam apresentar. Um deles era um jovem polaco que tinha ido de férias e que sofrera um acidente de automóvel no regresso, pelo que fora internado em Brennero com um pé fraturado. O outro estava à cabeceira da mãe moribunda e não se sabia quando ia regressar ao trabalho. Raffaello esperou que Cesarina acabasse de falar e depois disse-lhe: - Amanhã podes contar com a minha ajuda. Posso dispor de todos os dias que forem necessários para a vindima.
- Era capaz de fazer isso, doutor? - perguntou Cesarina, incrédula, e acrescentou: - E como é que vai fazer com o jornal?
- Estás a ver como é que se colhem as uvas? Trabalha-se com as mãos, enquanto através do auricular se fala com a redação e com os outros jornalistas.
- Obrigada, doutor. Tira-nos um peso de cima, uma vez que don Pierino só nos arranja um romeno, pelo qual nem se responsabiliza.
- Então diz-lhe que não é preciso. Também temos o Gianmarco, que vai ficar feliz por trabalhar lado a lado com a Elisabetta - disse Raffaello.
- A sua filha trata de o avisar?
- Alguém há de fazê-lo - concluiu Raffaello, ao mesmo tempo que saía dos escritórios. Era agora evidente que aquela reunião de família estava para durar, e ele tinha de ir a correr para o jornal.
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7
Angelica entrou no quarto de vestir da mãe, que estava sentada à mesa de toilette a maquilhar-se diante de um espelho de aumentar.
- Incomodo? - perguntou a filha.
- Senta-te aqui, ao pé de mim, porque a minha obra de restauro é longa e trabalhosa - disse Cristina Acerbi. Cristina sempre tivera uma atenção obsessiva pelo seu aspeto, convencida de que uma mulher, quando tem cuidado consigo, é bonita em qualquer idade. Agora, enquanto espalhava no rosto uma ligeira camada de um creme antirrugas que fazia milagres, censurou Angelica.
- Não percebo porque é que tu sempre recusaste maquilhar-te e ter cuidados com a tua pele. A filha estudou os traços do rosto, observando-se no espelho grande, e replicou:
- Talvez para estar sempre em conflito contigo.
- Deixa passar os anos, e vão começar a despontar-te bigodes odiosos sobre os lábios e grandes pelos brancos entre as sobrancelhas escuras, as faces vão começar a ficar flácidas e a pele do pescoço cheia de rugas, e então quero ver se insistes nessa estúpida polémica.
- Não faço muita questão de agradar aos homens - afirmou Angelica.
- Não deves agradar-lhes a eles, mas a ti mesma, minha querida - corrigiu-a, enquanto traçava com um lápis verde uma fina linha escura em volta dos olhos.
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Depois olhou para o rosto da filha refletido no espelho, sorriu e prosseguiu: - Desta vez, no entanto, acho-te muito bem. Pareces quase rejuvenescida. Estás com um aspeto solar. Portanto, as hipóteses são duas: ou fizeste acupunctura revitalizante, e isso nunca me dirias nem sob tortura, ou fizeste amor com alguém que te deu muita satisfação.
- Mãe, pára de ser assim tão indiscreta. De qualquer modo, para tua informação, não fiz uma coisa nem outra - esclareceu Angelica, e recordou Tancredi. Aquele encontro tinha sido um sonho lindíssimo, mas a realidade era outra coisa, era o trabalho, a filha, Raffaello, a sua família, os amigos com as suas qualidades e defeitos, os seus limites e os seus problemas. Tinha sido importante conhecê-lo e desfrutar da sua beleza, cultura e sensibilidade. Mas tinha sido ainda mais importante encontrar a força para se afastar dele. De resto, Tancredi tinha feito a mesma escolha e pelos mesmos motivos: a perfeição pertence a um mundo ideal, fantástico, suspenso entre o céu e a terra, onde vivem os sonhos. Esta consciência tinha-lhe dado uma serenidade que a fazia sentir-se bem, como não lhe acontecia há muito tempo. Disse então à mãe:
- Estou num período de graça e considero-me uma mulher de sorte, porque te tenho a ti, ao pai, aos meus irmãos, à minha filha, o trabalho na empresa e, com os devidos esconjuros, estamos todos de boa saúde. Isso faz com que me sinta muito bem. Estava a ser sincera, e Cristina entendeu isso.
- És uma mulher lindíssima, mesmo sem maquilhagem - disse-lhe, a sorrir, e afagou-lhe o rosto com amor. Depois concluiu, em ar de graça: - Ainda que uma sombra de blush nas faces não te fizesse mal nenhum.
- É sempre agradável estar contigo - disse Angelica, com um sorriso.
- Obrigada, querida. E agora vai arranjar-te para o jantar, porque me parece que este ano temos mais hóspedes do que o habitual. A Rosina reforçou a ajuda na cozinha?
- Podes ter a certeza. Este ano vamos ter uma bela vindima.
- Sabes que só aqui vim marcar presença, porque vou ter de passar estes dias em Milão, ao lado do Edward, não sabes?
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Só mesmo para fazer ciúmes ao pai - insinuou Angelica, com um ar divertido.
- Mas que conversa! Faria a mesma coisa por ele, se tivesse um joelho partido, mas felizmente o teu pai está muito melhor do que o Edward.
- Em qualquer caso, é uma loucura trazer de Inglaterra um homem naquelas condições, como se em Londres faltassem hospitais e médicos excelentes.
- Devo dizer-te que nem o teu pai tinha alma para o deixar sozinho, e eu não queria renunciar a esta visita, porque estava de algum modo ansiosa por tua causa. Quando foste ter connosco, não te achei tranquila, e esperava que tivesses arranjado uma love story que te fizesse bem. Mas agora vejo-te sossegada, sem novos envolvimentos sentimentais e isso é muito melhor - concluiu Cristina. A obra de restauro tinha terminado, Cristina tinha posto um requintado vestido country e estava bem penteada e sorridente. Angelica sentiu-se contente por ter uma mãe tão bonita.
- Minhas senhoras, não se querem despachar? - ressoou a voz de barítono de Giovanni Brugliani, que entretanto tinha aparecido à entrada do quarto de vestir. E acrescentou: - Já estão todos lá em baixo e preparam-se para se sentarem à mesa.
- Como vês, querido, eu estou pronta. Mas a tua filha ainda tem de se vestir e de se arranjar - disse Cristina.
- Então começa tu a fazer as honras da casa - despachou-a ele, enquanto dava o braço à filha. Saíram e dirigiram-se aos aposentos de Angelica.
- Diz-me lá, minha querida, que história é essa do Luigi que, com aquela idade, se mete a ter outro filho? - perguntou Giovanni.
- Porque não lhe perguntas a ele? - sugeriu Angelica, que estava com pressa de tomar um duche e mudar de roupa.
- Sabes muito bem que o professor me deixa sempre um bocadinho atrapalhado - respondeu.
- O professor é teu filho e, quanto a mim, bem nos leva com aquele ar de quem anda sempre nas nuvens, com o delegar nos outros as suas decisões, com o demitir-se das suas responsabilidades; mas é tudo menos distraído - concluiu Angelica, e enfiou-se na casa de banho.
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Saiu de lá pouco depois com um roupão vestido. O pai estava espera dela no quarto de vestir. Angelica começou a secar o cabelo e o pai continuou a conversa que mais o preocupava. - Estavas a dizer-me que o Luigi é tudo menos distraído.
- Precisamente. A mulher nunca pediu o divórcio e ele sempre evitou avançar com isso, apesar de viver com a Sabine há tantos anos. Nem sequer o vai pedir agora que ela está à espera de um filho. Já perguntaste a ti mesmo porquê?
- Porque é um preguiçoso.
- Porque sabe o que quer.
- Com um filho, a alemã apanhou-o mesmo - comentou Giovanni Brugliani. E perguntou: - O que é que achas que ele vai fazer?
- Vai ajudar em tudo o que for necessário àquele filho que vai nascer, mas nunca casará com a mãe. Quanto a mim, ele conhece bem a companheira e, dos dois, é ele o mais forte. Nunca vai casar com ela e vai esperar pacientemente que ela arranje um companheiro mais maleável. Não lhe disse que, pouco antes de subir para ir ter com Cristina, Luigi a tinha procurado porque tinha tomado uma decisão:
- Não quero que tu e o Gaspare fiquem sobrecarregados com a minha parte para aquele terreno. Eu vou pagar a minha parte. Liguei ao gerente do meu banco e descobri que estou muito bem, e por isso até podia comprar um apartamento novo e ficar ainda com um capital discreto. Isto graças a ti, que te matas a trabalhar e trazes para a casa ótimos resultados. Mas a Sabine não sabe disso nem deve saber, porque eu não tenciono comprar um apartamento novo e ela vai ter de se conformar e pôr de lado as suas manias expansionistas. Mais cedo ou mais tarde, vai acabar por se cansar deste professor velho e tacanho.
- És capaz de me dizer porque é que nós nunca gostámos da alemã? - perguntou agora o pai. - Porque é uma estúpida! - foi a resposta despachada de Angelica.
- Vai vestir-te. Eu vou descer para ir ter com os convidados - disse Giovanni Brugliani, a sorrir.
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Na manhã seguinte, quando Angelica chegou ao grande terreiro onde tinha já sido instalada a máquina para a prensagem das uvas, alguns camiões já tinham partido para as vinhas com os trabalhadores que iam vindimar. O último estava a iniciar a marcha e, a bordo, estavam Raffaello e Gianmarco.
- O que é que aqueles dois estão aqui a fazer? - perguntou Angelica a uma empregada que preparava a mesa dos refrescos.
- A Cesarina disse-me que estão a substituir os trabalhadores que faltam - respondeu laconicamente a mulher. Depois, perante a perplexidade de Angelica, explicou: - O doutor é extraordinário, resolveu-nos o problema e hoje de manhã cedo foi buscar também o Gianmarco. O professor Gaspare foi no primeiro camião, e o professor Luigi foi no segundo com o pai. Raffaello viu a mulher e, enquanto o camião saía do burgo, disse-lhe adeus com a mão e dedicou-lhe um sorriso resplandecente. Ela retribuiu com um gesto da mão.
- Alguém viu a minha Elisabetta? - perguntou, a olhar em volta.
- Ia no camião com o seu marido - comunicou um funcionário do armazém. Angelica regressou a casa, decidida a tomar o pequeno-almoço na cozinha para não encontrar ninguém. Entretanto, perguntava a si mesma o que estaria Raffaello a tramar. Na noite anterior, depois de jantar, tinha passado pelo quarto da filha para ver como ela estava, depois de Elisabetta se ter mantido silenciosa durante todo o serão.
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Elisabetta estava aninhada em cima da cama a ouvir música com os auscultadores. Apertava nas mãos uns brincos de plástico em forma de estrela-do-mar. Quando viu a mãe, tirou os auscultadores e dirigiu-lhe um olhar de cão escorraçado.
- Como estás? - perguntou Angelica, ao mesmo tempo que se sentava na cama ao lado dela.
- Imagina tu como é que eu posso estar depois de o Gianmarco me ter colocado perante a minha estupidez e a superficialidade do meu sentimento em relação a ele. Senti-me um verme. Por isso estou mal - disse a filha.
- Como é normal que estejas - concordou Angelica.
- Mas eu amo-o muitíssimo. Se é que isso é possível, ainda o amo mais agora, depois da desilusão que sofri com aquele inglês de quem não quero recordar nem o nome. Mas vai dizer isso àquela cabeça de abóbora do Gianmarco. Ele, um dia, até pode vir a ganhar o Nobel da Informática, mas vai ser sempre um camponês mesquinho.
- Ele gosta muito de ti - disse-lhe ternamente Angelica.
- E isso adianta-me muito! Deixou-me. Que rico verão eu tive! Sou uma pobre coitada, abandonada por um cretino irresponsável e pelo rapaz mais maravilhoso do mundo.
- Deixa-me que te diga que te puseste a jeito.
- Pronto, falou o oráculo. Achas que eu não sei que a culpa é minha? É isso que me faz ficar desesperada. Cavei a minha própria desgraça. Nunca mais vou ter coragem de olhar para o Gianmarco cara a cara, quando o encontrar, e ainda por cima vou vê-lo sempre que entrar naquele maldito autocarro para ir para a escola. E já estou a ver as minhas amigas a contarem, extasiadas, as conquistas do verão, enquanto eu não vou ter nada para dizer, apenas chorar sobre o leite derramado.
- Minha querida, deixa ver se eu entendo. Tu sofres porque achas que perdeste o rapaz que amas, ou porque não vais ter nada para contar às tuas amigas? - quis esclarecer Angelica.
- Uma coisa e a outra. Não quero ser objeto de compaixão.
- Todos nós gostaríamos de ser sempre vencedores, mas isso não é possível. O primeiro a quem tu infligiste uma derrota pesada é o próprio Gianmarco.
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Tens ideia de quanto ele pode sentir-se infeliz neste momento? - perguntou, para a fazer raciocinar.
- Agora entendo que sentir-se traído deve ser uma coisa realmente difícil de digerir. Também te entendo a ti, mãe. Entendo bem a tua desilusão em relação ao pai. Mas, há pouco, tu disseste-me que, apesar de tudo, o Gianmarco ainda gosta muito de mim. Então deixa-me que te diga que o pai também ainda gosta muito de ti.
- Isso é o que ele te diz.
- Pronto, lá voltamos ao mesmo. Se tu não acreditas nele, como é que o Gianmarco pode acreditar em mim?
- Elisabetta, cansaste-me e eu estou exausta. Tenta dormir, se puderes, até porque amanhã é outro dia, como dizia a Scarlett O’Hara. Mais tarde, na sua cama, Angelica tinha refletido durante muito tempo naquela afirmação tão sincera da filha a propósito de Raffaello e acabou por concluir que as suas palavras eram ditadas pelo egoísmo filial. Elisabetta queria os pais juntos porque, no fim de contas, era uma rapariga forte e acreditava no valor da família. Agora, sentada na cozinha, pensava que o marido, sem dar muito nas vistas, tinha arranjado maneira de juntar os dois jovens apaixonados e imaginou Elisabetta e Gianmarco a cortar cachos na vinha do Anjo. Iria aquela vinha realizar o milagre de reunir os dois namorados?
- O que é que estás aqui a fazer sozinha? - perguntou Rosina, que entrou com um enorme tabuleiro carregado de louça.
- Estava a pensar - respondeu Angelica, enquanto saboreava o seu café.
- Se tens de pensar, é melhor fazê-lo noutro sítio, porque agora vêm aí as mulheres e temos de cozinhar para um exército.
Já tinha ido toda a gente embora do terreiro, com a exceção de Sabine que, sentada no murete, depenicava um figo acabado de colher e olhou para ela com uma expressão desagradável. - Estás zangada comigo? - perguntou Angelica.
- Quem, se não os Brugliani, convenceu o Luigi a levar a zero as suas poupanças para investir na empresa, em vez de se preocupar em garantir um teto para o nosso filho? - respondeu ela, agressiva.
- Nós não temos mesmo nada a ver com isso, e não acredito que o Luigi possa ter-te contado essa mentira.
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Sabes uma coisa, Sabine? A primeira vez que vieste cá na vindima eras uma rapariga simpática, mas depois transformaste-te numa mulher azeda e desagradável - disse-lhe, e afastou-se para ir trabalhar com os outros. Mas, entretanto, aquelas palavras que acabava de pronunciar davam-lhe que pensar, porque ela própria se tornara particularmente azeda com Raffaello. O marido tinha-a cumprimentado com um sorriso radioso e ela respondera-lhe com um aceno e mais nada. Ele tinha por várias vezes pedido para conversarem e ela tinha-o ignorado. Ele estava a tentar o possível para se fazer perdoar e ela mantinha-o à distância, como se tivesse peste. Entrou no camião que ia partir e foi trabalhar para a vinha com os outros empregados. Viu o marido a trabalhar afincadamente e a falar ao telemóvel ao mesmo tempo. Ouviu-o dizer: - Já ditei o meu editorial. Que alguém me ligue e mo releia, antes de o mandar imprimir. Obrigado.
Angelica passou para a fila ao lado da dele e perguntou-lhe:
- Consegues ser diretor do jornal e vindimar ao mesmo tempo?
- Obviamente que sim - respondeu ele.
- A Elisabetta ainda aqui está? - quis saber.
- Olha lá para baixo. Está a trabalhar com o Gianmarco. Arrulham como duas pombas.
- Como é que conseguiste juntá-los outra vez?
- Não foi difícil. Aqueles dois estão mesmo apaixonados - disse Raffaello, e tinha um ar feliz. - Ele perdoou-lhe - concordou Angelica.
- Ele, sim. Há outros que mantêm a sua posição, obstinadamente - gracejou ele. Angelica não acusou a insinuação, apenas disse:
- Qual é a coisa importante de que me querias falar?
- Pedi a demissão. Estou a vender a casa de Roma e já tenho no bolso um bom adiantamento. Quero fazer uma revista mensal que fale de vinho. Durante estes anos adquiri alguma experiência no setor.
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Ela parou de cortar cachos e olhou para ele, espantada. Estava à espera de tudo, menos que Raffaello renunciasse a uma carreira brilhante para realizar alguma coisa que os ligasse. - Fica no burgo, esta noite. Assim contas-me melhor - propôs ela. E recomeçou a trabalhar com vigor.
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Foi uma excelente vindima. Angelica preparou-se para fazer as contas daqueles longos dias de trabalho frenético, e ficou satisfeita. Os hóspedes tinham partido e Borgofranco voltou aos ritmos habituais. Giovanni Brugliani e a mulher tinham regressado a Milão para se encontrarem com sir Edward, que já estava bem do joelho, e iam partir para Inglaterra. Ficariam em Londres durante o tempo da fisioterapia numa clínica especializada. Gaspare e a família tinham voltado à cidade, Luigi e Sabine regressaram a Trieste. Elisabetta retomou a escola e todas as manhãs apanhava o autocarro onde Gianmarco a esperava, como sempre. Raffaello retomou o seu lugar no jornal, assistindo os editores na escolha do seu sucessor. Durante os dias de vindima, apesar do convite de Angelica, tinha preferido ocupar ainda o apartamento na cidade, na Villa Brugliani. Uma manhã, quando saiu para se dirigir ao escritório, Angelica viu estacionada, na pequena alameda em frente a casa, uma moto Guzzi resplandecente, com uma fita vermelha no manípulo e um bilhete do marido. Leu-o. A mensagem dizia: «Farei tudo para que sejas feliz». Angelica ficou comovida e ligou-lhe imediatamente para o telemóvel. - Sei que andas à procura de uma sede para a tua revista de vinho. Aqui temos uma parte das antigas cavalariças que podia ser adaptada para isso. Podias arranjá-la e diminuías os custos. Entretanto, agradeço-te o presente fantástico da moto - disse-lhe.
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- A moto nova nunca vai pagar, nem em parte, o acidente horrível que tiveste por minha causa. A oferta de um espaço para a minha revista é um gesto realmente generoso e eu agarro-a já. Porque não inauguras a Guzzi e vens até à cidade? Gostava de te convidar para almoçar - respondeu ele. Angelica desceu à cidade e foi ter com Raimondo Agosti, o seu advogado.
- Em que ponto é que estás com o meu pedido de divórcio? perguntou-lhe.
- Está ali no meio da papelada que quero mandar para a reciclagem. Mas posso recuperá-lo, se me pedires - respondeu o amigo, que tinha em cima da secretária um cappuccino, o segundo desde o início da manhã de trabalho, e dois brioches recheados de compota.
- Um pouco de dieta, não é? - comentou ela, enquanto o observava a devorar um deles em três dentadas.
- Não espetes mais a faca na ferida - resmungou ele, enquanto sorvia um longo trago do cappuccino. Depois, momentaneamente satisfeito, continuou: - Então, o que é que decidiste? - Não sei - respondeu ela, titubeante.
- Vieste até aqui para me dizeres que ainda não sabes?
- Acho que o Raffaello está mudado - afirmou.
- E essa ideia da mudança vem-te de uma simples sensação ou de algum facto concreto? - insistiu o advogado.
- De muitos factos concretos que achei desconcertantes e que revelam uma grande tomada de consciência. De repente, o Raffaello dá-me a ideia de ser um homem responsável. Comportou-se de uma forma irrepreensível com a nossa filha, comigo, com a empresa e até com o seu trabalho. Em suma, esta mudança radical e repentina... eu não estava à espera dela - declarou, e contou-lhe tudo aquilo que acontecera a partir do momento em que tinha partido de férias com a filha. Depois concluiu: - O mais extraordinário é que eu própria tenho a sensação de ter amadurecido nestes meses.
- Sabes, minha menina, quando te exprimes com esse entusiasmo, voltas a ser a menina que eu conheci em jovem e que me divertia tanto.
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- Tu, pelo contrário, és sempre o irmão mais velho, sensato e paciente, que fazia de conta que me levava a sério - replicou Angelica.
- Eu sempre te levei a sério, mas obrigando-te a raciocinar. Exatamente como fiz há três meses, quando estavas decidida a pedir o divórcio. E fiz bem, porque, se tivesse avançado, agora não podia queimar o processo Brugliani contra Rovesti.
- Mas eu ainda não te disse isso.
- De que é que precisas mais para tomares uma decisão nesse sentido?
- Hoje vou almoçar com o Raffaello e sei que ele só está à espera que eu abra os braços para o receber. Durante a vindima, tinha-lhe até proposto regressar a Borgofranco, mas ele ficou na cidade e eu sei porquê.
- Diz-me a mim também.
- Estava à espera que eu lhe dissesse: vamos voltar a viver juntos, vamos recomeçar do princípio.
- Diz-lhe isso hoje, menina. Essa é a solução mais lógica, acredita - disse Raimondo, ao mesmo tempo que levantava o corpanzil da poltrona. Era uma despedida. Quando Angelica chegou ao restaurante, Raffaello já lá estava espera. Foi ao encontro dela e, enquanto a abraçava, perguntou-lhe:
- Queres fazer as pazes comigo? Ela anuiu, e depois disse:
- Vamos fazer as coisas de maneira a que seja um retorno gradual à normalidade, se estiveres de acordo.
- Preciso de saber o que me espera se nos juntarmos outra vez.
- Olha que engraçado. Eu também queria saber a mesma coisa - rebateu ela.
- Aquilo que te posso dizer com toda a certeza é que tu, Angelica, és a única mulher que eu amo. Não estou à espera que ponhas uma pedra no passado, mas farei tudo para to fazer esquecer. Quero viver contigo e com a nossa filha. Fui um idiota, Angelica querida. Enquanto lhe dizia estas poucas palavras, tinha os olhos brilhantes de lágrimas. Ela sorriu e apertou-lhe a mão. Depois sussurrou:
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- Nem tu nem eu somos perfeitos, mas eu também te amo de verdade, e aconteça o que acontecer nunca esquecerei isto, se tu também fizeres a mesma coisa.
- Farei, sim - garantiu ele. - Vamos lá dar conta destes tagliolini com cogumelos antes que arrefeçam? - disse, e tinha o ar de um rapaz feliz. Naquele dia, quando regressou à empresa, Angelica despachou uma quantidade enorme de trabalho. Respondeu a todos os e-mails dos seus agentes em Itália e no estrangeiro. Esteve muito tempo ao telefone com William Clifford, que tinha planeado ao pormenor um lançamento clamoroso para os seus vinhos. Estudou com atenção as propostas que lhe apresentou e depois decidiu voltar a ligar-lhe.
- Para a apresentação do Falce di Luna em Nova Iorque, gostaria de servir uma refeição preparada por uma estrela internacional da cozinha, e pensei em Tancredi D’Azaro - disse-lhe.
- Conheço-o muito bem, mas receio que seja inabordável - replicou o agente.
- Dá-me tempo para falar com ele e depois eu digo-te.
- Se ele cá viesse, os canais de televisão americanos iam acorrer aos magotes.
- Mais uma razão para tentar - concluiu ela, antes de se despedir. À noite, Raffaello apresentou-se pontualmente a hora do jantar. Agora a família tinha prioridade sobre tudo, incluindo a nova revista mensal dedicada ao vinho. Quando Rosina estava a servir os cappelletti no caldo, Elisabetta perguntou: - Posso sair com o Gianmarco hoje a noite? - Onde é que queres ir? - perguntou o pai.
- Ao cinema, com outros amigos que estão a nossa espera na cidade - respondeu Elisabetta.
- Vou mandar o Bruno levar-vos de carro, e depois fica à espera para vos trazer a casa - decidiu Angelica.
- Não é preciso. Eles vêm buscar-nos no carro de um colega de escola do Gianmarco que já tem carta - explicou Elisabetta.
- Nem penses, minha menina. Se queres ir à cidade hoje à noite, fazes como a tua mãe disse - impôs-se Raffaello.
- Ufa! E pensar que tinha desejado tanto que vocês se voltassem a juntar!
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Belo resultado. Agora decidiste fazer coro com a mãe - resmungou ela. Mas mudou logo de tom e murmurou: - Está bem. Já percebi que têm razão. Os pais olharam-se nos olhos e sorriram. Elisabetta saiu e Raffaello disse a Angelica:
- Vou lá para cima ligar para o jornal. Queres ir ter comigo?
- Daqui a pouco - respondeu ela. Quando ficou sozinha foi até à sala de estar, pegou no telemóvel e mandou uma mensagem a Tancredi: Precisava de um pequeno fornecimento de angelicas, escreveu. Poucos instantes depois, chegou a resposta: Levo-tas eu ou vens buscá-las? Angelica respondeu: Se bem me lembro, vais voltar em breve aos Estados Unidos para te encontrares com a Michelle Obama. Eu volto na próxima quarta-feira; se estiveres de acordo, podias oferecer-me as angélicas no avião, apanhando o mesmo voo que eu. Em Nova Iorque vou precisar da tua ajuda para o meu vinho. Vou enviar-te um e-mail a explicar tudo. Manda-me as coordenadas do teu voo e eu lá estarei, foi a resposta concisa de Tancredi. Angelica fechou os olhos e imaginou aquela viagem iminente aos Estados Unidos. Ia encontrar-se com Tancredi no avião. Ia sentar-se ao lado dele, e ele ia oferecer-lhe uma caixinha de cascas de laranja e limão cobertas de chocolate. Então ela ia pedir à hospedeira que abrisse para eles uma garrafa de Falce di Luna para brindarem os dois. Depois ela iria proteger os olhos com a máscara e finalmente ia adormecer, sabendo que o seu lindíssimo sonho estava ao lado dela. Voltou a abrir os olhos, levantou-se da poltrona e subiu as escadas para ir ter com o marido.
Sveva Casati Modignani
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