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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VIRGEM E O CIGANO / D. H. Lawrence
A VIRGEM E O CIGANO / D. H. Lawrence

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A VIRGEM E O CIGANO

 

Quando a mulher do pastor fugiu com um homem ainda jovem e sem um tostão no bolso, o escândalo não conheceu limites. As suas duas pequenas filhas tinham apenas sete e nove anos, respectivamente. E o pastor era um marido tão bom! Sim, era verdade que tinha o cabelo grisalho, mas o bigode era escuro, ele era bonito e elegante e dominava‑o ainda completamente uma paixão secreta pela sua impulsiva e bela mulher.

           Por que é que ela se foi embora? Por que é que ela fugiu dali com um tão grande escândalo de revolta, repentinamente, como se acometida de loucura? Ninguém dava uma resposta. Apenas as beatas diziam que ela era uma má mulher, enquanto algumas das mulheres de bom coração se mantinham silenciosas. É que elas sabiam.

     As duas filhas pequenas nunca o souberam. Magoadas nos seus sentimentos, concluíram que era porque a mãe as considerava dignas de desprezo.

           Os maus ventos, que nunca trazem nada de bom para ninguém, arrastaram consigo a família do pastor. Então, quando assim acontece, cuidado! O pastor, até certo ponto um distinto ensaísta e polemista, e cujo caso suscitara algum movimento de simpatia entre os homens de letras, recebeu o benefício eclesiástico de Papplewick. O Senhor temperou os ventos da infelicidade com uma paróquia no Norte.

           A casa paroquial era um edifício de pedra, bastante feio, junto do rio Papple, antes de se entrar na vila. Mais para diante, para lá do sítio onde a estrada atravessa o rio, encontravam‑se as grandes e antigas fiações de algodão, outrora movidas a água. A estrada subia, às curvas, até às desoladas ruas de pedra da vila.

           Depois da sua transferência para a paróquia, a família do pastor sofreu profundas modificações. O pastor, agora pároco, mandou buscar a sua velha mãe e a irmã dele, bem como um irmão que vivia na cidade. Assim, as duas meninas tinham um ambiente muito diferente do que existira no antigo lar.

           O pároco tinha agora quarenta e sete anos; demonstrara um intenso e não muito dignificante desgosto, depois da fuga da sua mulher. Senhoras compreensivas’ tinham‑no mantido afastado do suicídio. O cabelo tornara‑se quase branco e a expressão do olhar era trágica e selvagem. Bastava olharmos para ele para vermos que terrível fora tudo o que lhe sucedera e como se transformara numa vítima.

           No entanto, algo soava a falso e algumas senhoras, que mais compaixão tinham mostrado pelo pastor, detestavam, em segredo, o pároco. Bem vistas as coisas, havia à sua volta uma certa aura de farisaísmo.

           As rapariguinhas, claro, daquela maneira vaga que é habitual nas crianças, aceitavam o veredicto familiar. A avó, que tinha já mais de setenta anos e cuja vista começava a falhar, tornou‑se a figura central da casa. A tia Cissie, que já passara dos quarenta, pálida e piedosa, consumida por um mal interno, tratava da lida da casa. O tio Fred, um homem de quarenta anos, mesquinho e de rosto acinzentado, ia para a cidade todos os dias. Tinha um aspecto esquálido e vivia apenas para si próprio. E o pároco, claro, era a pessoa mais importante, depois da avó.

           Chamavam‑lhe a Mater. Era uma daquelas pessoas fisicamente vulgares, velhas e espertas, que toda a sua vida tinham aberto o seu próprio caminho, bajulando as fraquezas dos homens. A Mater orientou‑se muito rapidamente. O pároco ainda “amava” a sua esposa delinquente e continuaria a “amá‑la” até morrer. Portanto, calemo‑nos! Os sentimentos do pároco eram sagrados. No seu coração encontrava‑se, como que encerrada num relicário, a pura jovem com quem ele casara e que adorara.

           Ao mesmo tempo e lá fora, no mundo diabólico, vagueava uma mulher mal afamada que traira o pároco e abandonara as suas criancinhas, e que estava agora submetida a um jovem desprezível que sem dúvida a conduziria até à degradação que ela merecia. Que isto fique bem claro e, depois,... calemo‑nos! Pois na majestade autêntica do coração do pároco ainda florescia a branca e pura flor da sua jovem noiva. Esta branca flor nunca murchava. Aquela outra criatura, a que fugira com aquele jovem desprezível, não tinha nada a ver com ele.

           A Mater, que se sentira um pouco desprezada e insignificante no seu papel de viúva, numa pequena casa, içava‑se agora à dignidade do cadeirão principal na casa paroquial e instalava de novo e com firmeza o seu velho corpanzil. Não permitiria que a destronassem. Astutamente, soltou um suspiro em homenagem à fidelidade do pároco à branca flor, enquanto fingia desaprovar. Numa dissimulada reverência pelo grande amor do seu filho, não murmurou nem uma palavra contra aquela vadia que florescia no diabólico mundo e que outrora fora chamada senhora Arthur Saywell. Agora, graças a Deus, e uma vez que ela se tinha casado de novo, já não se chamava senhora Arthur Saywell. Mulher alguma usava o nome do pároco. A branca e pura flor florescia in perpetuum, sem qualquer nomenclatura. A família até pensava nela como sendo A‑que‑fora‑Cynthia.

           Tudo isto era água para o moinho da Mater. Dava‑lhe a garantia de que Arthur não voltaria a casar‑se. Mantinha‑o seguro pelo seu ponto mais fraco, pelo seu acobardado amor‑próprio. Casara com uma imperecível, uma branca e pura flor. Que homem de sorte! Tinham‑no magoado! Oh, homem infeliz! Sofrera! Ah, que coração cheio de amor! E ele tinha perdoado! Sim, a branca e pura flor fora perdoada. Até contara com ela no seu testamento, enquanto aquele outro patife... mas silêncio! Não se deve sequer pensar demasiado naquela horrível vadia, à solta no vil mundo exterior! A‑que‑fora‑Cynthia. Deixemos que a branca flor floresça inacessível nos píncaros do passado. O presente é outra história.

           As crianças foram educadas nesta atmosfera de astuta auto‑santificação e de coisas não mencionáveis. Também elas viam a branca flor lá no alto, em alturas inacessíveis. Também elas a sabiam entronizada, num solitário esplendor, muito acima das suas vidas, nunca destinada a ser tocada.

           Ao mesmo tempo, do vil mundo exterior, surgia por vezes um grosseiro e diabólico odor de egoísmo e degradada luxúria, o odor daquela horrível vadia, A‑que‑fora‑Cynthia. Essa vadia conseguia, de vez em quando, fazer chegar um bilhetinho às mãos das suas raparigas, das suas filhas. Quando isso acontecia a Mater, com os seus cabelos prateados, tremia interiormente de ódio. Se A‑que‑fora‑Cynthia alguma vez regressasse, não restaria grande coisa da Mamã. Era então que uma secreta rajada de ódio saltava da velha avó para as crianças, filhas daquela lasciva vadia, daquela Cynthia, que demonstrara um desprezo tão afectuoso pela Mater.

           Misturado com tudo isto havia o facto de as crianças se recordarem perfeitamente da sua verdadeira casa, o vicariato no Sul, e da sua fascinante, mas pouco dependente, mãe, Cynthia. Ela brilhara muito, fora uma torrente de vida, um vivo e perigoso sol no lar, sempre a ir e a vir. Para elas, a presença da mãe estivera sempre associada ao brilho, mas também ao perigo; ao fascínio, mas com um assustador egoísmo.

           Agora o fascínio desaparecera e a branca flor, como uma grinalda de porcelana, gelava no seu túmulo. O perigo da instabilidade, essa espécie de egoísmo peculiarmente perigosa, como a dos leões e dos tigres, também desaparecera. Havia agora uma estabilidade completa, onde era possível sucumbir em segurança.

           Mas as raparigas estavam a crescer e à medida que cresciam tornavam‑se mais definitivamente confusas, mais activamente intrigadas. A Mater, à medida que envelhecia, via cada vez menos. Tinha de haver alguém para a guiar. Nunca se levantava antes do meio‑dia. No entanto, cega ou presa à cama, dirigia a casa. Além disso, não estava presa à cama. Sempre que estavam presentes homens, a Mater encontrava‑se no seu trono. Era demasiado astuta para cortejar a negligência, muito em especial porque tinha rivais.

           A sua grande rival era a rapariga mais nova, Yvette. Yvette tinha alguma da vaga e descuidada jovialidade de A‑que‑fora‑Cynthia. Mas esta era um pouco mais dócil. A avó talvez a tivesse agarrado a tempo. Talvez!

           O pároco adorava Yvette e mimava‑a com apaixonada ternura, o que era o mesmo que dizer: então não sou um homem indulgente e de terno coração? Ele gostava de ter fraquezas. Ela conhecia‑as, esta opinião que ele tinha de si mesmo, e a Mater também conhecia as opiniões dele e utilizava‑as, transformando‑as em enfeites para uso dele próprio, para lhe embonecarem o carácter. Ele desejava, a seus próprios olhos, possuir um carácter fascinante, tal como as mulheres desejam vestidos fascinantes. Assim, astuciosamente, a Mater colocava sinais de beleza por cima dos seus defeitos e deficiências. O seu amor maternal dera‑lhe a chave para as fraquezas dele, fraquezas que ela escondia dele próprio, enfeitando‑as. Enquanto aquela, A‑que‑fora‑Cynthia...! Mas a este respeito, não a mencionemos. Aos seus olhos, o pároco era quase um corcunda e um idiota.

           Mas o mais engraçado era o facto de a avó, secretamente, odiar mais Lucille, a rapariga mais velha, do que a mimada Yvette. Lucille, a inquieta e irritável, estava mais consciente de se encontrar sob o domínio do poder da avó do que a distraída Yvette, estragada com mimos.

           Por outro lado, a tia Cissie odiava Yvette. Odiava até o seu nome. A vida da tia Cissie fora sacrificada à Mater, a tia Cissie sabia‑o e a Mater sabia que ela o sabia. Este facto, enquanto os anos passavam, foi‑se tornando numa convenção. A convenção do sacrifício da tia Cissie era aceite por toda a gente, incluindo a própria Cissie. E ela rezava muito por causa disso. O que também queria dizer que, algures, tinha os seus próprios sentimentos pessoais, coitada dela. Deixara de ser Cissie, perdera a sua vida e o seu sexo. E agora que se arrastava em direcção aos cinquenta, surgiam nela estranhos e verdes clarões de ódio e, nessas ocasiões, ficava como louca.

           Mas a avó mantinha‑a sob o seu domínio e o único objectivo na vida da tia Cissie era o de tomar conta da Mater.

          Os clarões verdes de ódio infernal da tia Cissie dirigiam‑se, por vezes, contra tudo o que era jovem. Coitada dela, rezava e procurava conseguir o perdão dos céus. Mas aquilo que lhe fora feito ela não conseguia perdoar e o vitríolo corria‑lhe nas veias, de vez em quando.

           Não seria o mesmo se a Mater fosse uma alma bondosa e amável. Não era esse o caso. Só por astúcia é que revelava aquelas qualidades. Lentamente, as raparigas aperceberam‑se desse facto. Por debaixo da touca de renda, fora de moda, por debaixo do seu cabelo prateado, por debaixo da seda preta do seu corpo velho e dobrado para a frente, esta mulher tinha um coração manhoso, sempre buscando o seu próprio poder feminino. Por intermédio das fraquezas dos homens envelhecidos e cansados que ela criara, mantinha o seu poder, enquanto os anos passavam, dos setenta para os oitenta e dos oitenta para o salto seguinte, a caminho dos noventa.

           Isto porque na família havia toda uma tradição de “lealdade”; lealdade de uns para com os outros e especialmente para com a Mater. A Mater, claro, era o centro da família. A família era uma extensão do seu próprio ego. Muito naturalmente, cobria‑a com o seu poder. Os filhos e as filhas, fracos e desunidos, eram, naturalmente, leais. E fora da família o que é que existia para todos eles, além do perigo, dos insultos e da ignomínia? Como se o pároco não tivesse já experimentado tudo isso, no seu casamento! Portanto, agora cuidado! Cautela e lealdade enfrentando o mundo! Que surjam todos os ódios e todos os atritos que quiserem no seio da família. Para o mundo exterior, apenas um teimoso muro de união!

    

Porém, foi apenas quando as raparigas regressaram finalmente a casa, vindas da escola, que sentiram todo o peso da querida e velha mão da avó sobre as suas vidas. Lucille tinha agora quase vinte e um anos e Yvette dezanove. Haviam frequentado uma boa escola para raparigas, depois tinham passado um ano num colégio em Lausana e eram exactamente aquilo que é normal: criaturas jovens e altas, com rostos frescos e sensíveis, cabelos cortados curtos, maneiras varonis e despreocupadas.

           ‑ O que é tão aborrecido em Papplewick ‑ disse Yvette, quando ambas se encontravam a bordo do barco que atravessa o canal da Mancha, vendo as cinzentas falésias de Dover a aproximarem‑se ‑ é o facto de não haver lá homens. Por que é que o pai não tem bons companheiros como amigos? Quanto ao tio Fred, ele é o cúmulo!

           ‑ Oh, nunca se sabe o que é que poderá acontecer ‑ disse Lucille, mais filosófica.

           ‑ Sabes perfeitamente com o que podes contar - retorquiu Yvette. ‑ Coro aos domingos, e eu odeio coros mistos! As vozes dos rapazes são amorosas, quando não há mulheres. A Escola Dominical, a Sociedade Feminina de Socorro Mútuo, as reuniões sociais e todas aquelas velhas e queridas almas a perguntarem pela saúde da avó! Não há um rapaz decente muitos quilómetros à volta.

           ‑ Oh, não sei! ‑ disse Lucilie. ‑ Temos sempre de contar com os Framleys. E sabes bem que Gerry Somercotes te adora.

           ‑ Oh, mas eu odeio tipos que me adoram! ‑ gritou Yvette, erguendo o seu delicado nariz. ‑ Eles aborrecem‑me. Não nos largam!

           ‑ Então, o que é que queres, se não suportas que te adorem? Acho que está perfeitamente certo que sejamos adoradas. Sabes que nunca virás a casar com eles, portanto, por que é que não havemos de deixar que continuem a adorar‑nos, se isso os diverte?

           ‑ Oh, mas eu quero casar‑me! ‑ exclamou Yvette.

           ‑ Então, nesse caso, deixa que eles continuem a adorar‑te até que encontres um com quem te seja possível casares‑te.

           ‑ Dessa maneira, nunca! Nada me irrita mais do que um tipo adorador. Aborrecem‑me tanto! Fazem com que me sinta abominável.

           ‑ Oh, também a mim, quando se tornam insistentes. Mas, à distância, penso que são muito agradáveis.

           ‑ Gostaria de me apaixonar violentamente.

           ‑ É natural! Pois eu, nunca! Odiaria tal coisa. E, provavelmente, o mesmo sucederia contigo, se na verdade isso te viesse a acontecer. No fim de contas, temos de assentar um pouco, antes de sabermos o que é que queremos.

           ‑ Mas não te horroriza ter de voltar a Papplewick? ‑ perguntou Yvette, erguendo o seu delicado e jovem nariz.

           ‑ Não, nem por isso. E penso que nos vamos sentir muito aborrecidas. Gostaria que o pai arranjasse um carro. Creio que teremos de pôr cá fora as velhas bicicletas. Não gostavas de ir até ao pântano de Tansy?

           ‑ Oh, adoraria! Mas é um esforço terrível empurrar aquelas bicicletas velhas pelas colinas acima.

           O navio aproximava‑se das falésias cinzentas. Era Verão, mas o dia estava carregado. As duas raparigas usavam os seus casacos com as golas de pele erguidas e uns pequeninos chapelinhos à moda, puxados para cima das orelhas. Altas, elegantes, de rostos frescos, inocentes, mas confiantes, demasiado confiantes, na sua arrogância de meninas de escola, tinham um aspecto tão terrivelmente inglês! Pareciam tão livres, mas, na verdade, por dentro de si próprias, estavam tão emaranhadas e amarradas. Pareciam tão espirituosas e tão anticonvencionais e eram, na realidade, tão convencionais, como se tivessem fechado portas dentro de si mesmas. Pareciam‑se com veleiros, altos e elegantes, jovens e audaciosos, deslizando para fora do porto em direcção ao mar alto da vida. Mas eram, na realidade, duas pobres vidas sem rumo, deslocando‑se de um ancoradouro para outro.

           Quando entraram, a casa paroquial gelou‑lhes os corações. Parecia feia, quase sórdida, com o ar húmido daquele degenerado conforto de classe média, que já deixara de ser confortável e se tornara abafado e sujo. A casa de pedra, rígida, provocou nas raparigas uma violenta impressão de ser suja, sem que elas fossem capazes de dizer porquê. A mobília gasta parecia, de algum modo, sórdida, nada era novo. Até a comida, às refeições, apresentava aquela terrível e lúgubre sordidez que é tão repulsiva aos jovens chegados do estrangeiro. Carne assada, couve cozida, carneiro frio e puré de batatas, picles avinagrados e os pudins incríveis.

           A avó, “que adorava um bocado de carne de porco”, tinha também pratos especiais, caldo de carne e biscoitos, ou um louco de creme especialmente saboroso. A tia Cissie, de cara triste, não comia. Sentava‑se à mesa e punha no prato uma única solitária e nua batata cozida. Nunca comia carne. Assim, sentava‑se à mesa todo o tempo que a refeição durava em reclusão sórdida, enquanto a avó engolia rapidamente o seu bocado e só com muita sorte não entornava nada por cima do seu estômago protuberante. A comida, já por si, era pouco apetitosa: como é que o poderia ser, quando a tia Cissie odiava comida, odiava o facto de se comer e nunca conseguia manter uma criada durante mais de três meses! As raparigas comiam com repulsa, Lucilie aguentando com bravura, enquanto o delicado nariz de Yvette demonstrava claramente a sua repugnância. Apenas o pároco, de cabelos brancos, limpava os longos bigodes grisalhos com o guardanapo e dizia piadas. Também ele começava a ficar pesado e lento, passava todo o dia sentado no seu gabinete, sem nunca fazer qualquer exercício. Porém, estava todo o tempo a soltar piadinhas sarcásticas, ali sentado sob a protecção da Mater.

           A região, com as suas colinas íngremes e vales profundos e estreitos, era sombria e triste, mas tinha, em contrapartida, uma certa força, muito sua. A vinte milhas dali encontrava‑se a mancha negra do industrialismo setentrional, mas, no entanto, a vila de Papplewick, em comparação, dir‑se‑ia isolada, quase perdida, e nela decorria uma vida pétrea e rígida. Tudo era pedra, pedra de uma dureza que era quase poética, e de uma tal austeridade!

           Era tudo tal como as raparigas tinham previsto: regressaram ao coro, ajudavam na paróquia. Mas Yvette recusou‑se terminantemente a participar na Escola Dominical, na Banda da Esperança e na Sociedade Feminina de Socorro Mútuo, ou seja, manifestou‑se contra todas aquelas funções que eram dirigidas por velhas solteironas cheias de determinação e por velhotes estúpidos e obstinados. Evitava o mais possível os serviços da igreja e sempre que podia escapulia‑se da paróquia. Os Framleys, uma familia enorme, desordenada e divertida que vivia lá em cima na granja, eram uma grande ajuda. Se alguém a convidava para uma refeição, ou até se uma mulher, numa das casas dos operários, lhe pedia que ficasse para o chá, ela aceitava imediatamente. Na verdade, ficava encantada. Gostava de falar com os trabalhadores, pois tinham, frequentemente, umas cabeças belas e sólidas. Mas, claro, eles pertenciam a um outro mundo.

           Assim se passaram os meses. Gerry Somercotes continuava a ser um dos seus admiradores. Havia também outros, filhos de agricultores ou de proprietários de moagens. Na realidade, Yvette devia ter passado um tempo agradável. Estava sempre a sair para festas e bailes, os amigos iam buscá‑la, nos seus automóveis, e aí iam eles para a cidade, para as matinées dançantes, no hotel principal ou no novo e maravilhoso Palais de Danse, a que chamavam o Pally.

           No entanto, ela parecia sempre uma criatura hipnotizada. Nunca se sentia suficientemente livre para ser feliz. Algures, dentro de si própria, permanecia uma irritação intolerável que ela pensava que não devia sentir, e que odiava sentir, o que ainda tornava tudo pior. Nunca conseguiu compreender qual a sua causa.

           Em casa, mostrava‑se na verdade impaciente e imutável e ultrajosamente rude para com a tia Cissie. De facto, o terrível temperamento de Yvette tornou‑se, dentro da família, um dado adquirido.

           Lucille, sempre mais prática, arranjou emprego na cidade, como secretária particular de um homem que, necessitava de alguém fluente em francês e estenografia. Ia e vinha todos os dias, no mesmo comboio que o tio Fred, mas nunca viajava com ele e, chovesse ou fizesse bom tempo, ia de bicicleta para a estação enquanto ele ia a pé.

           As raparigas tinham ambas decidido que o que queriam era uma vida social realmente intensa e divertida e ficavam bastante ressentidas pelo facto de a casa paroquial ser, para os seus amigos, impossível. No andar térreo havia apenas quatro divisões: a cozinha, onde viviam as duas criadas descontentes; a escura sala de jantar; o gabinete do pároco e a enorme e caseira sala de estar ou sala de visitas. Na sala de jantar havia um fogão a gás. A sala de estar era o único local onde ardia um bom fogão a lenha, porque aí reinava a Mater.

           Era nesta divisão que a família se reunia. à noite, depois do jantar, o tio Fred e o pároco jogavam invariavelmente às palavras cruzadas com a avó.

           ‑ Então, Mater, estás pronta? N, espaço, espaço, espaço, espaço, W: funcionário siamês.

           ‑ Eh? Eh? M, espaço, espaço, espaço, espaço, W?

           A avó ouvia mal.

           ‑ Não, Mamã. Não é um M! N, espaço, espaço, espaço, espaço, W: funcionário siamês.

           ‑ N, espaço, espaço, espaço, espaço, W: funcionário chinês.

           ‑ Siamês.

           ‑ Eh?

           ‑ Siamês! Do Sião!

           ‑ Funcionário siamês! Que é que poderá ser? - dizia a velha senhora com um ar de profunda reflexão, dobrando as mãos por cima do arredondado do estômago. Os seus dois filhos começavam a fazer‑lhe sugestões, às quais ela respondia com um “Ah! Ah”. O pároco era surpreendentemente hábil nas palavras cruzadas e o tio Fred dispunha de um certo vocabulário técnico.

           ‑ Esta é certamente uma das difíceis ‑ dizia a velha senhora, quando todos ficavam calados, sem mais ideias.

           Entretanto, Lucille sentava‑se num canto com as mãos tapando as orelhas, a fingir que lia, enquanto Yvette desenhava nervosamente ou entoava melodias, num tom alto e exasperante para ajudar ao barulho familiar. A tia Cissie estendia continuamente a mão para levar chocolates à boca e os seus queixos trabalhavam sem parar. Vivia quase exclusivamente de chocolates. Sentada na outra ponta da sala, metia outro chocolate na boca e depois olhava de novo para a revista paroquial. A seguir levantava a cabeça e via que eram horas de ir buscar a chávena de chá para a avó.

           Quando ela saiu da sala, Yvette, exasperada e nervosa, quis abrir a janela. A sala nunca estava arejada e ela sentia que cheirava à avó. E a avó, que ouvia mal, ouvia perfeitamente quando não era preciso.

           ‑ Abriste a janela, Yvette? Creio que te devias lembrar que há pessoas mais velhas do que tu aqui na sala ‑ dizia ela.

           ‑ Está abafado! É insuportável! Não admira que todos nós estejamos sempre a apanhar constipações.

           ‑ Ora, a sala é suficientemente grande e está um bom lume a arder na lareira. ‑ A velha estremeceu um pouco. ‑ Uma corrente de ar que nos pode matar a todos.

           ‑ Não é nenhuma corrente de ar ‑ gritou Yvette. Apenas uma lufada de ar fresco.

           A velha tremeu de novo e disse:

           ‑ Estou a sentir!

           O pároco, em silêncio, avançou para a janela e fechou‑a firmemente, sem olhar para a filha, pois não gostava nada de a contrariar. Mas ela tinha de saber como era!

           O jogo de palavras cruzadas, inventado pelo próprio Satanás, continuava até a avó ter bebido o seu chá e preparar‑se para ir para a cama. Então vinha a cerimónia das “boas‑noites”! Toda a gente se levantava. As raparigas aproximavam‑se para serem beijadas pela velha cega. O pároco dava‑lhe o braço e a tia Cissie seguia‑os com uma vela.

           Mas isto era já perto das nove horas da noite, apesar de a avó estar realmente a ficar muito velha e devesse ir para a cama mais cedo. Mas quando ela já se encontrava deitada, não conseguia adormecer, enquanto não chegasse a tia Cissie.

           ‑ Sabem ‑ dizia a avó ‑, nunca dormi sozinha. Durante cinquenta e quatro anos, nunca dormi uma noite sem o braço do pai à minha volta. Quando ele nos deixou, tentei dormir sozinha. Mas era certo e sabido que logo que os meus olhos se fechavam para dormir o meu coração quase que saltava para fora do meu corpo e ali ficava eu, cheia de palpitações. Oh, podem pensar o que quiserem, mas era uma experiência terrível, depois de cinquenta e quatro anos de uma perfeita vida de casados! Teria rezado para morrer em primeiro lugar, mas o pai, bom, não creio que ele tivesse resistido a tal golpe...

           Assim, a tia Cissie dormia com a avó. Mas odiava fazê‑lo. Dizia que ela não era capaz de dormir. Deste modo, ficou cada vez com pior aspecto, cada vez mais acabrunhada, e a comida na casa cada vez pior e a tia Cissie teve de fazer uma operação.

           Mas a Mater levantava‑se, como sempre, perto do meio‑dia e, durante o almoço, presidia à refeição da sua cadeira de braços, com o estômago saliente, o rosto vermelho e oscilante, cheio de uma espécie de horrível majestade, uma face a cair da testa ampla e onde espreitavam uns olhos azuis que nada viam. O cabelo branco começava a escassear e tinha até um ar um pouco indecente. Mas o pároco, jovialmente, dirigia‑lhe piadas, que ela fingia desaprovar. No entanto, sentia‑se perfeitamente satisfeita consigo mesma, ali sentada com aquela obesidade antiga e, depois das refeições, fazendo sair o ar do estômago, premindo o peito com uma das mãos, arrotava, num prazer físico grosseiro.

           Aquilo com que as raparigas mais se importavam, quando levavam os seus jovens amigos lá a casa, era o facto de a avó se encontrar sempre ali, como um horrível ídolo de carne velha, que atraía sobre si todas as atenções. Só havia aquela única sala para todos e ali estava a velha senhora sentada, enquanto a tia Cissie mantinha sobre ela uma sarcástica vigilância. Toda a gente devia ser, em primeiro lugar, apresentada à avó e ela estava sempre pronta a mostrar‑se sorridente, pois gostava de companhia. Tinha de saber quem era toda a gente, de onde é que vinham, todas as circunstâncias das suas vidas. E, então, quando já estava au fait, monopolizava a conversa.

           Nada conseguia ser mais exasperante para as raparigas.

           ‑ Não é verdade que a velha senhora Saywell é maravilhosa?! Interessa‑se tanto pela vida, quase com noventa anos!

           ‑ Interessa‑se pela vida, sim, mas é pela vida dos outros! ‑ dizia Yvette.

           A seguir, sentia‑se imediatamente culpada. No fim de contas era maravilhoso ter quase noventa anos e uma mente ainda tão esclarecida! E a avó na verdade não fazia mal a ninguém! Acontecia apenas intrometer‑se. Era capaz de ser muito feio odiar alguém, só porque esse alguém era velho e intrometido.

           Yvette arrependia‑se imediatamente e tornava‑se, então, amável. A avó florescia em reminiscências de quando ela era uma rapariga e vivia na pequena cidade de Buckinghamshire. Falava pelos cotovelos e era tão interessante. Na verdade, ela era mesmo maravilhosa.

           Uma tarde, apareceram a Lottie, a Ella, o Bob Framley e o Leo Wetherell.

           ‑ Oh, mas entrem!

           E todos eles se atropelaram para entrarem na sala onde a avó, com a sua touca branca, estava sentada junto da lareira.

           ‑ Avó, este é o senhor Wetherell.

           ‑ É o senhor Que‑é‑que‑disseste? Tem de me perdoar, sou um bocadinho surda!

           A avó estendeu a mão ao jovem, já um pouco constrangido, e olhou silenciosamente para ele, sem o ver.

           ‑ Não é da nossa paróquia? ‑ perguntou‑lhe ela.

           ‑ De Dinnington! ‑ gritou ele.

           ‑ Queremos ir a um piquenique amanhã, a Bonsaíl Head, no carro do Leo. Bem apertados, cabemos todos ‑ disse Ella, em voz baixa.

           ‑ Foi Bonsaíl Head o que disse? ‑ perguntou a avó.

           ‑ Sim!

           Houve um incómodo silêncio.

           ‑ Disse que iam de carro?

           ‑ Sim! No do senhor Wetherell.

           ‑ Espero que seja um bom condutor. É uma estrada muito perigosa.

           ‑ Ele é muito bom condutor.

          ‑ Não é muito bom condutor?

           ‑ Sim, é muito bom condutor.

           ‑ Já que vão a Bonsaíl Head, podiam dar um recado a Lady Louth.

           Quando tinha companhia, a avó conseguia sempre puxar o nome desta famigerada Lady Louth para tema de conversa.

           ‑ Oh, não passaremos por ai ‑ gritou Yvette.

           ‑ Por onde? ‑ perguntou a avó. ‑ Mas têm que ir por Heanor.

           Todo o grupo se sentou, segundo a expressão de Bob, como se fossem patos embalsamados remexendo‑se nas cadeiras.

           A seguir, entrou a tia Cissie, acompanhada da criada, que trazia o chá. Lá estava o eterno bolo ressesso, que nunca mais se comia e parecia durar para sempre. Depois apareceu um prato com bolinhos pequenos, frescos. A tia Cissie mandara‑os buscar à confeitaria.

          ‑ O chá, Mamã!

           A velha senhora fincava as mãos nos braços da cadeira. Toda a gente se levantava e ficava imóvel enquanto ela, apoiada ao braço da tia Cissie, se deslocava lentamente e com dificuldade para o seu lugar à mesa.

           Durante o chá chegou Lucille, vinda do seu emprego na cidade. Estava completamente esgotada, com grandes olheiras. Soltou um grito ao ver toda aquela gente.

           Quando o barulho abrandou e voltou a surgir o constrangimento, a avó disse:

           ‑ Nunca me tinhas falado do senhor Wetherell, pois não, Lucille?

           ‑ Não me lembro ‑ respondeu Lucille.

           ‑ Não é possível que o tenhas feito. O nome é‑me inteiramente estranho.

           Com um ar ausente, Yvette pegou noutro bolo do prato que agora se encontrava quase vazio. A tia Cissie, que ficava quase louca pelas maneiras distraídas e imprudentes de Yvette, sentiu a raiva apertar‑lhe o coração. Pegou no seu próprio prato, onde ainda se encontrava o único bolinho de que se havia servido, e perguntou, com uma cáustica polidez, a Yvette:

           ‑ Não queres também o meu?

           ‑ Oh, obrigado! ‑ disse Yvette, parecendo acordar da sua irritada distracção. Depois, com o mesmo ar de vaga despreocupação, serviu‑se do bolo da tia Cissie, acrescentando: ‑ Se tem a certeza que não o quer...

           No seu prato, tinha agora dois bolos. Lucille ficou branca como um fantasma e debruçou‑se sobre o chá. A tia Cissie permaneceu imóvel, com um olhar esverdeado de envenenada resignação. O constrangimento estava a desaparecer.

           Mas a avó, sem perceber o que se passava, disse apenas, no meio do ciclone:

           ‑ Se vão amanhã de carro até Bonsaíl Head, então quero, Lucille, que leves um recado meu a Lady Louth.

           ‑ Oh! ‑ exclamou Lucille, lançando um olhar embaraçado para o outro lado da mesa, para a velha cega. Lady Louth era a coroa de louros da família, que a avó invariavelmente puxava à conversa para benefício das visitas. ‑ Muito bem!

           ‑ Ela foi muito simpática a semana passada. Enviou‑me o seu motorista com um livro de palavras cruzadas para mim.

           ‑ Mas tu agradeceste nessa altura! ‑ exclamou Yvette.

           ‑ Gostava de lhe enviar um bilhete.

           ‑ Podes mandá‑lo pelo correio ‑ gritou Lucille.

           ‑ Oh, não! Gostava que fosses tu a levá‑lo. Quando a Lady Louth telefonou da última vez...

           Os jovens sentados, imóveis, como um cardume de peixes abrindo e fechando a boca silenciosamente à superfície da água, enquanto a avó continuava a sua conversa a respeito de Lady Louth. A tia Cissie, as duas raparigas sabiam‑no bem, estava ainda desamparada, quase inconsciente, num paroxismo de raiva por causa do bolo. Talvez, coitada, estivesse a rezar.

           Foi um alívio quando os amigos se foram embora, mas nessa altura já as duas raparigas tinham os olhos encovados. Foi então que Yvette, olhando em volta, viu a inflexível, implacável fome de poder na velha e aparentemente maternal avó ali sentada, protuberante, na sua cadeira, impassível, a velha face avermelhada e oscilante, bastante manchada, quase inconsciente, mas implacável, o rosto como uma máscara que ocultava algo frio, inexorável. Era a inércia estática do seu repugnante poder; no entanto, daí a um minuto abriria a sua boca antiga para investigar todos os detalhes a respeito de Leo Wetherell. De momento estava a hibernar na sua velhice e senectude, mas dentro de um minuto a sua boca abrir‑se‑ia, a sua mente tremularia acordada e com a sua insaciável voracidade pela vida, a vida de outras pessoas, começaria o inquérito em busca de todos os detalhes. Era como um velho sapo que Yvette observara, fascinada, instalado na borda da colmeia, mesmo em frente do pequeno orifício por onde entravam e saíam as abelhas. O sapo, com um movimento diabolicamente rápido, como um relâmpago, apanhava com as suas mandíbulas enrugadas todas as abelhas que deixavam o cortiço e engolia‑as, uma a uma, como se fosse capaz de consumir todo o enxame dentro do seu corpo velho, protuberante, como um saco cheio de pregas. Engolira abelhas, quando elas mergulhavam no ar primaveril, ano após ano, durante gerações.

           Mas o jardineiro, que Yvette chamou, ficou raivoso e matou a criatura com uma pedra.

           ‑ Eles são bons para comer as minhocas ‑ disse ele, enquanto fazia a pedra descer. ‑ Mas este acabará por engolir toda a colmeia, se o deixarmos.

    

O dia seguinte apareceu nublado e feio e as estradas estavam péssimas, pois havia semanas que chovia, mas, no entanto, os jovens partiram para a sua viagem, sem levarem consigo o recado da avó. Escaparam‑se enquanto ela fazia a sua lenta caminhada para o andar de cima, depois do almoço. Por nada deste mundo teriam ido bater à porta da casa de Lady Louth. Essa viúva de um médico que recebera o título de Sir, uma pessoa na verdade inofensiva, transformara‑se numa das coisas detestáveis na vida de Yvette e Lucille.

           Seis jovens rebeldes instalaram‑se no carro, com ares muito insolentes, e seguiram, patinhando na lama. No entanto, tinham também um ar macilento, pois, no fim de contas, não havia nada contra que se pudessem revoltar, nenhum deles. Tinham‑lhes dado tanta liberdade nos seus movimentos, os pais permitiam‑lhes que fizessem praticamente tudo o que quisessem. Não havia grilhões para partir, nem grades de prisão para limar, nem ferrolhos para rebentar. As chaves das suas vidas encontravam‑se nas suas próprias mãos e aí balouçavam, inertes.

           É muito mais fácil limar as grades de uma prisão do que abrir desconhecidas portas para a vida, como as gerações jovens acabam por descobrir, com um certo desgosto. É verdade, tinham a avó. Mas à pobre e velha avó, quem é que lhe podia ir dizer: “Deite‑se e morra, velha!” Podia tratar‑se de uma velha aborrecida, de um estorvo, mas ela na verdade nunca fazia nada. Não era justo odiá‑la.

           Assim, os jovens partiram para o seu passeio, fazendo o possível para irem cheios de animação. Podiam fazer tudo aquilo que quisessem e, assim, claro, não havia nada para fazerem a não ser ficarem sentados no carro a falar, fazendo um montão de críticas a outras pessoas e entretendo‑se com galantarias e namoricos tolos que, bem vistas as coisas, até eram um aborrecimento. Se ao menos tivessem algumas “ordens estritas”, que pudessem ser desobedecidas! Mas não tinham nada: para além da recusa em levarem o recado a Lady Louth, recusa que o pároco acabaria por aprovar, pois também ele não apreciava aquela faceta da avó.

           Cantaram, de um modo desconexo, as mais recentes canções satíricas, enquanto atravessavam as aldeias sombrias. No grande parque, veados, corças e gamos viam‑se em grupos junto da estrada, aconchegados uns aos outros, na tarde sombria, por debaixo dos carvalhos ao lado do caminho, como se procurassem o estímulo da companhia humana.

           Yvette insistiu em que parassem e saissem para irem falar com os animais. As raparigas, com as suas botas russas, caminharam pela erva molhada, enquanto os veados as observavam com olhos enormes e sem medo. Um dos machos afastou‑se, num trote suave, mantendo a cabeça baixa por causa do peso dos cornos, mas a fêmea, agitando as enormes orelhas, não se levantou de debaixo da árvore e deixou‑se ali ficar com as suas crias já meio crescidas, até ao momento em que as raparigas quase que lhe puderam tocar. Só então se afastou, ligeira, a cauda erguida por cima do traseiro malhado, enquanto os mais pequenos trotavam agilmente.

           ‑ São tão bonitos e elegantes! ‑ gritou Yvette.

     Quem diria que podiam deitar‑se, tão aconchegados, nesta horrível erva húmida!

           ‑ Bom, creio que eles têm de se deitar de vez em quando ‑ disse Lucille. ‑ E está relativamente seco, por debaixo da árvore.

           Lucille ficou a olhar para a erva esmagada, no sítio onde os veados tinham estado deitados. Yvette avançou e pousou a mão na relva, para a apalpar.

           ‑ Sim! ‑ disse, com um ar duvidoso. ‑ Creio que até está um pouco quente.

           Os veados tinham‑se agrupado de novo a alguns metros de distância e mantinham‑se imóveis, na melancolia da tarde. Lá muito em baixo, para além dos declives de ervas e árvores, para lá do rápido rio e da sua ponte com balaustrada, via‑se o enorme palácio ducal, uma ou duas chaminés a libertarem um fumo azulado. Por detrás, erguiam‑se bosques, de um tom púrpura.

           As raparigas, erguendo as golas de peles até às orelhas, brandindo um longo ramo, ficaram ali olhando, silenciosas, as botas russas a protegerem‑nas da erva molhada. Lá em baixo estava o enorme edifício, quadrado, agarrado ao terreno, com um tom cinzento‑cremoso. Os veados, em pequenos grupos, estavam espalhados por debaixo das árvores, ali perto. Tudo aquilo tinha um aspecto tão parado, tão despretensioso e tão triste!

           ‑ Gostaria de saber onde estará o duque, agora - disse Ella.

           ‑ Aqui não está, com certeza ‑ respondeu Lucille. ‑ Provavelmente está no estrangeiro, onde brilha o Sol.

           A buzina do carro chamou‑as, da estrada, e ouviu‑se a voz de Leo:

           ‑ Vamos embora! Se querem chegar ao Head e depois a Amberdale para o chá, é melhor metermo‑nos a caminho!

           Amontoaram‑se de novo no carro, com os pés gelados, e avançaram pelo parque, para lá do silencioso pináculo da igreja, através dos grandes portões e por cima da ponte, para a larga, húmida e pedregosa aldeia de Woodlinkin, onde corria o rio. A partir dali e durante muito tempo, mantiveram‑se na lama, na humidade e escuridão do vale, por vezes com rocha limpa por cima deles, a água a correr ruidosamente, de um dos lados, e rochedos íngremes ou escuras árvores, do outro.

           Até que, através da escuridão das árvores suspensas sobre eles, começaram a subir e Leo mudou de velocidade. Lentamente, o carro abriu caminho na lama branco‑acinzentada, até à aldeia de pedra de Bolehill, pendurada a meio da encosta. Contornaram a velha cruz, com os seus degraus, que se ergue onde a estrada se divide, passaram pelas vivendas, onde de súbito lhes surgiu um maravilhoso cheiro a bolinhos quentes para lá delas, sempre a subir, por debaixo de árvores pingando água e passando por declives cobertos de fetos. Finalmente, o estreito vale tornou‑se cada vez menos profundo, as árvores acabaram e os declives, de cada lado da estrada, mostraram‑se nus, cobertos por uma erva triste e com muros baixos de pedra. Estavam a chegar ao alto do Head.

           O grupo mantinha‑se silencioso havia já algum tempo. De cada um dos lados da estrada só se via erva, depois uma baixa vedação de pedra e a seguir a ondulada curva do alto da colina, traçada com os muros de pedra. E por cima de tudo isto, o céu pesado e nebuloso.

           O carro avançou, sob o céu baixo e cinzento e os picos desguarnecidos.

           ‑ Paramos por momentos? ‑ perguntou Leo.

           ‑ Oh, sim! ‑ exclamaram as raparigas.

           Saíram de novo do carro, agitadas, para olharem em volta. Conheciam aquele lugar perfeitamente bem, mas, de qualquer modo, se se vai ao alto do Head, então é preciso sair e olhar.

          As colinas pareciam os nós dos dedos de uma mão, os vales estavam lá em baixo, entre os dedos, estreitos, íngremes e escuros. Lá no fundo, um comboio soltava vapor, avançando lentamente para norte: uma coisa pequenina, daquele mundo distante. Os ruídos da locomotiva ecoavam curiosamente para cima. A seguir, ouviram o som abafado e familiar de uma explosão numa pedreira.

           Leo, incapaz de estar parado muito tempo, moveu‑se rapidamente.

           ‑ Vamos andando? ‑ perguntou. ‑ Queremos ou não chegar a Amberdale a tempo do chá? Ou experimentamos noutro sítio mais próximo?

           Todos votaram por Amberdale, pelo marquês de Grantham.

           ‑ Bom, por que caminho vamos regressar? Vamos por Codnor e Crosshill, ou por Ashbourne?

           Este era o dilema do costume, mas, por fim, decidiram ir por Codnor, pela estrada de cima. E lá partiu o carro, corajosamente.

           Estavam agora no topo do mundo, nas costas da tal mão. E era um topo do mundo também nu, como as costas da mão, desolado, monótono e verde‑escuro, cortado por uma rede de velhos muros de pedra, dividindo os campos, interrompido aqui e acolá por ruínas de antigas minas de chumbo e de fábricas. Os edifícios de pedra de uma quinta isolada mostravam seis árvores espetadas e nuas. à distância, via‑se uma mancha de pedra cinzenta, uma aldeia. Nalguns campos, carneiros cinzento‑escuros alimentavam‑se silenciosa e tristemente. Não havia um som nem um movimento. Era o telhado da Inglaterra, pedregoso e árido como qualquer telhado. Para lá dele, lá em baixo, estavam os condados.

           “E vejam agora as províncias coloridas”, disse Yvette para si própria.

           De qualquer modo, aqui, as provincias não tinham nada de colorido. Um bando de gralhas surgiu, vindo de qualquer lado. Tinham andado a vaguear, debicando num campo nu que fora estrumado. O carro continuou a avançar por entre a erva e os muros de pedra daquela estrada do planalto e os jovens seguiam silenciosos, olhando por cima daquela rede de divisórias de pedra, por debaixo do céu, vendo as curvas inclinadas para baixo que indicavam um declive íngreme, em direcção a um dos vales, escondidos lá ao fundo.

           À frente seguia uma carroça conduzida por um homem e, caminhando penosamente ao lado, ia uma mulher, robusta e de idade avançada, com um fardo às costas. O homem da carroça tinha‑a apanhado e agora acertava o passo pelo dela. O caminho era estreito. Leo tocou a buzina, violentamente. O homem da carroça olhou em volta, mas a mulher, que ia a pé, limitou‑se a continuar a seguir em frente com maior firmeza e mais rapidamente, sem virar a cabeça.

           O coração de Yvette deu um salto. O homem que se encontrava na carroça era um cigano, um daqueles ciganos escuros, de corpo elegante e descontraído. Mantinha‑se sentado na carroça, de cabeça virada, olhando os ocupantes do automóvel, por debaixo da pala do boné. Mantinha uma pose descuidada e uma mirada insolente e cheia de indiferença. Tinha um fino bigode negro por debaixo do nariz estreito e direito e um grande lenço de seda, vermelho e amarelo, enrolado em volta do pescoço. Disse qualquer coisa à mulher. Esta parou por um segundo, virou‑se e olhou para os ocupantes do carro, que estava agora já muito perto. Leo accionou de novo a buzina, imperiosamente. A mulher, que usava um lenço cinzento e branco amarrado em volta da cabeça, virou‑se para a frente rapidamente, para acompanhar o andamento da carroça, cujo condutor também voltara à sua posição inicial e levantava as rédeas, movendo os ombros leves e elegantes. Mas continuava sem se desviar.

           Leo carregou na buzina, enquanto travava e o carro abrandava, já muito junto da traseira da carroça. Ao ouvir toda aquela barulheira, o cigano voltou‑se para trás, o riso estampado na sua cara morena, por debaixo do boné verde‑escuro, e disse qualquer coisa que eles não ouviram, mostrando os dentes muito brancos por debaixo da linha do bigode negro e fazendo um gesto com a mão magra e morena.

           ‑ Saiam do meio do caminho! ‑ gritou Leo.

           Como que em resposta, o homem puxou as rédeas delicadamente, fazendo o cavalo parar quando ele já se desviava para o lado da estrada. Era um bom cavalo ruão e uma boa carroça, verde‑escura e elegante.

           Leo, irado, foi forçado a travar e a parar também.

           ‑ Não quererão as meninas, tão bonitas, ouvir ler as suas sinas? ‑ perguntou o cigano da carroça, de rosto risonho, excepto os olhos, escuros e vigilantes, que saltavam de rosto para rosto, demorando‑se na face jovem e delicada de Yvette. Ela encontrou os olhos dele durante um segundo, aquela mirada superficial, a sua insolência, a sua completa indiferença para com pessoas como Bob e Leo, e houve qualquer coisa que se incendiou no seu peito. Pensou: “É mais forte do que eu! Não se rala!”.

           ‑ Oh, sim! Queremos! ‑ gritou imediatamente Lucille.

           ‑ Oh, sim! ‑ entoaram as restantes, em coro.

           ‑ Eh? Mas, então, e as horas? ‑ gritou Leo.

           ‑ Oh, deixa lá as horas! Há sempre alguém preocupado com as horas! ‑ exclamou Lucille.

           ‑ Bom, se vocês não se importam com as horas a que vão chegar, pois eu também não! ‑ disse Leo, heroicamente.

           O cigano mantivera‑se sentado na parte lateral da carroça, descontraído, observando os rostos. Depois, saltou para o chão, os joelhos um pouco entorpecidos. Era, aparentemente, um homem com mais de trinta anos e, à sua maneira, um janota. Usava uma espécie de jaqueta de caça, de peitorais duplos, que. lhe chegava à cintura, feita de um tecido de lã grosseiro, num tom verde‑escuro, umas calças pretas bastante justas, botas pretas e um boné verde‑escuro e ao pescoço um grande lenço de seda amarelo e vermelho. Tinha uma aparência curiosamente elegante e

     bastante dispendiosa, dentro do seu estilo cigano. Era bonito, também, de queixo erguido, com a tradicional vaidade cigana e, agora, aparentemente, sem já se importar com os estranhos, conduzia o seu cavalo para fora da estrada, preparando‑se para fazer recuar a carroça.

           As raparigas viram, então, pela primeira vez, uma profunda reentrância num dos lados da estrada e duas grandes carroças a deitarem fumo. Yvette desceu rapidamente. Tinham de súbito chegado a uma pedreira abandonada, cortada na falésia ao lado da estrada, e neste covil, quase como uma espécie de gruta, encontravam‑se três outras grandes carroças, desarmadas, até passar o Inverno. Havia também, lá mais para o fundo, um abrigo construído com ramagens, um estábulo para o cavalo. A rocha cinzenta e nua erguia‑se muito acima das carroças e curvava para fora, para o lado da estrada. O pavimento era constituído por lajes, entre as quais cresciam ervas. Era um acampamento de Inverno, confortável e quente.

           A mulher idosa, que carregava o fardo, entrara numa das carroças e deixara a porta aberta. Duas crianças espreitavam, exibindo as suas cabeças escuras. O cigano chamou alguém, enquanto fazia a carroça recuar para dentro da pedreira, e surgiu um homem já velho, para o ajudar a desatrelar o cavalo.

           O cigano subiu os degraus da carroça mais nova, a que tinha a porta fechada. Por debaixo da carroça estava amarrado um cão, que correu para a frente até ao limite da corda. Era um cão branco, malhado, de um tom castanho‑amarelado. Rosnou surdamente, quando Leo e Bob se aproximaram.

           Nesse mesmo instante, uma cigana de cara muito morena, com um grande lenço cor‑de‑rosa em volta da cabeça e enormes brincos de ouro nas orelhas, desceu os degraus da carroça mais nova, balançando a sua volumosa saia verde, cheia de folhos. Era de certo modo bonita, com uma cara comprida, atrevida, um pouco animalesca. Parecia‑se com uma daquelas ciganas espanholas, atrevidas e ondeantes.

           ‑ Bom dia, senhoras e cavalheiros ‑ disse, mirando as raparigas com os seus olhos ousados de ave de rapina. Falava com um certo sotaque estrangeiro.

           ‑ Boa tarde! ‑ responderam as raparigas.

           ‑ Qual das lindas meninas quer ouvir a sua sina? Qual é que me dá a sua mãozinha?

           Era uma mulher alta, com uma assustadora maneira de esticar o pescoço para a frente, como uma ameaça. Os seus olhos passavam de rosto para rosto, muito activos, numa busca impiedosa daquilo que ela desejava. Entretanto, o homem, aparentemente seu marido, surgiu no alto dos degraus da carroça, fumando um cachimbo e com uma criança pequena, de cabelos pretos, nos braços. Ficou de pé, apoiado nas suas pernas flexíveis, olhando distraidamente para baixo, para o grupo, como se estivesse a vê‑los à distância, as longas pestanas negras bem erguidas por cima dos olhos negros, presunçosos e impudentes. Um olhar peculiar, que transmitia qualquer coisa. Yvette sentiu‑o, sentiu‑o nos seus joelhos. Fingiu estar interessada no cão branco e castanho.

           ‑ Quanto é que quer para nos ler a sina a todos? ‑ perguntou Lottie Framley, enquanto os seis jovens cristãos de frescas faces recuavam, um pouco relutantemente, ante esta mulher paga e nómada.

           ‑ A todos? As senhoras e os cavalheiros, todos? ‑ perguntou a mulher, astutamente.

           ‑ Não quero que leiam a minha! Façam‑no vocês! ‑ gritou Leo.

           ‑ Eu também não ‑ disse Bob. ‑ Vocês, as quatro raparigas.

           ‑ As quatro senhoras? ‑ perguntou a cigana, olhando‑as perspicazmente, depois de ter observado os rapazes.

           Fixou então o preço:

           ‑ Cada uma dá‑me um xelim e mais qualquer coisa para dar sorte? Só um bocadinho mais!

           Sorriu‑se de um modo que tinha muito mais de bajulador que cruel, fazendo sentir a força da sua vontade, pesada como ferro, sob o veludo das palavras.

           ‑ Está bem ‑ disse Leo. ‑ Um xelim por cabeça. Mas não demore muito tempo com isso.

           ‑ Oh, tu! ‑ gritou‑lhe Lucille. ‑ Queremos saber tudo!

           A mulher tirou dois bancos de madeira de debaixo da carroça e colocou‑os perto da roda. Depois, agarrou a mão da alta e morena Lottie Framley e fê‑la sentar‑se.

           ‑ Não se importa que todos ouçam? ‑ perguntou, olhando curiosamente para a face de Lottie.

           Lottie corou, nervosa, enquanto a cigana lhe segurava a mão e lhe batia na palma com dedos duros, com um aspecto cruel.

           ‑ Oh, não me importo ‑ respondeu ela.

           A cigana espreitou‑lhe a palma da mão acompanhando as linhas com um dedo rijo e escuro, mas que parecia limpo.

           Lentamente, leu‑lhe a sina, enquanto os outros, que se encontravam à escuta, gritavam: “Oh, esse é o Jim Baggaley! Oh, não acredito! Oh, isso não é verdade! Uma mulher loura que vive debaixo de uma árvore! Quem é que já ouviu uma coisa dessas?!” - Até que Leo as calou, com um aviso.

           ‑ Ora, calem‑se, raparigas! Vocês assim estragam tudo!

           Lottie retirou‑se corada e confusa, e foi a vez de Ella. Esta era muito mais calma e perspicaz e tentou interpretar as palavras proféticas. Lucille interrompeu‑as permanentemente com exclamações, enquanto o cigano, no alto dos degraus, se mantinha imperturbável, sem qualquer espécie de expressão. Porém, os seus atrevidos olhos continuavam pousados em Yvette, que os sentia nas faces, no pescoço e que não ousava olhar para cima. Mas Framley olhava de vez em quando para ele e recebia de volta, do agradável rosto do cigano, dos seus olhos escuros, vaidosos e orgulhosos, uma mirada superficial. Era um olhar peculiar, naqueles olhos que pertenciam à tribo dos humildes: um olhar que mostrava o orgulho do pária, o desafio, meio trocista, do proscrito, que troçava dos cumpridores das leis e seguia o seu caminho. O cigano manteve‑se ali durante todo o tempo, segurando a criança nos braços, olhando, sem se preocupar com o que se passava à sua volta.

           Agora, era Lucille quem dera a sua mão a ler:

           ‑ Esteve do outro lado do mar e aí encontrou um homem... um homem de cabelos castanhos... mas ele era demasiado velho...

           ‑ Oh! ‑ exclamou Lucille, virando os olhos para Yvette.

           Mas Yvette estava abstracta, agitada, sem prestar qualquer atenção, pois encontrava‑se num dos seus estados hipnóticos.

           ‑ Casará dentro de poucos anos, não agora, dentro de alguns anos, talvez quatro, não será rica, mas terá o suficiente e irá para longe, numa grande viagem.

           ‑ Com o meu marido ou sem ele? ‑ perguntou LucilIe.

           ‑ Com ele...

           Quando chegou a vez de Yvette e a mulher olhou para ela, com um olhar arguto e cruel, procurando no seu rosto qualquer coisa, durante muito tempo, Yvette disse, nervosa:

           ‑ Não, creio que não quero que leia a minha sina. Não, não quero! De verdade, não quero!

           ‑ Tem medo de alguma coisa? ‑ perguntou a mulher cigana, de um modo cruel.

           ‑ Não, não é isso... ‑ respondeu Yvette, impaciente.

           ‑ Tem algum segredo? Tem medo que eu o diga. Venha, prefere ir para a carroça, onde ninguém nos ouve?

           A mulher era curiosamente insinuante, enquanto Yvette era sempre caprichosa, instável, perversa. Agora, no seu frágil e jovem rosto via‑se esse ar de perversidade, que lhe dava um estranho aspecto de dureza.

           ‑ Sim! ‑ disse ela subitamente. ‑ Sim! Poderei fazer isso mesmo!

           ‑ Oh! ‑ gritaram os outros. ‑ Não é justo!

           ‑ É melhor que não o faças! ‑ gritou Lucille.

           ‑ Sim! ‑ disse Yvette, com aquele seu jeito duro, que de vez em quando aparentava. ‑ Vou fazer isso mesmo, vou para a carroça.

           A cigana disse qualquer coisa ao homem que se encontrava no alto dos degraus. Este entrou na carroça, onde permaneceu alguns instantes, e depois reapareceu, desceu os degraus, pousou a criança no chão, sobre os seus pés ainda incertos e segurou‑a pela mão. Muito elegante nas suas botas pretas bem engraxadas, calças pretas justas e jaqueta verde‑escura, também justa ao corpo, caminhou lentamente, com a criança titubeante, em direcção ao cigano mais velho, que dava ao cavalo ruão uma ração de aveia, no abrigo de ramagens entre paredes de rocha cinzenta, com fetos secos a cobrir o chão de lajes. Olhou para Yvette quando passou por ela, fixando‑a directamente nos olhos, com a sua ousada, mas impudica mirada de pária. Dentro dela, houve qualquer coisa forte que a fez resistir ao olhar, mas a superfície do seu corpo pareceu transformar‑se em água. No entanto, a parte dela que tinha resistido registou as linhas peculiarmente puras do rosto dele, o seu nariz direito e delicado, o traçado das faces e das fontes, a curiosa e suave pureza de todo o seu corpo moreno, recortado na fazenda verde: uma pureza que era uma troça viva.

           Enquanto ele passou lentamente por ela, nos seus flexíveis quadris, ainda lhe parecia que ele era mais forte do que ela. De todos os homens que ela vira, este era o único que era mais forte do que ela, dentro da sua própria espécie de força, da sua própria espécie de compreensão.

           Assim, cheia de curiosidade, subiu os degraus da carroça atrás da mulher, com as abas do bem talhado casaco castanho a balançarem e quase expondo‑lhe os joelhos, por debaixo do vestido verde‑claro. Tinha umas pernas bonitas, compridas, que davam grandes passadas, umas pernas mais para o delgado do que para o gordo, e usava boas meias de algodão com um curioso desenho em dois tons de castanho, um claro e um escuro, que sugeriam as pernas de um qualquer animal exótico.

           No alto dos degraus, Yvette deteve‑se por um instante e virou‑se para os outros, com um ar jovial, dizendo naquele seu tom simultaneamente inocente e senhoril, e sem cerimónias:

           ‑ Farei por não demorar.

           A sua gola de pele cinzenta estava aberta, mostrando a garganta macia e o vestido de um verde muito claro, o chapéu pequenino e castanho puxado quase até às orelhas, rodeando‑lhe o rosto fresco e gentil. Havia nela um ar simultaneamente suave e, no entanto, dominador, inconsciente. Sabia que o cigano se virara para olhar para ela. Tinha consciência da sua nuca trigueira, o cabelo negro bem penteado. O cigano observou‑a a entrar na sua casa rolante.

           O que a cigana lhe disse, nunca ninguém o soube. Para os outros, a espera foi muito longa. O crepúsculo foi‑se aprofundando e transformando em escuridão e começou a ficar húmido e frio. Da chaminé da segunda carroça saía fumo e um cheiro a boa comida. O cavalo foi alimentado e enrolaram à sua volta um cobertor amarelo; os dois ciganos falavam um com o outro à distância, em voz baixa. Havia uma peculiar sensação de silêncio e de intimidade, naquela pedreira escondida e solitária.

           Finalmente, a porta da carroça abriu‑se e Yvette apareceu, inclinada para a frente e descendo os degraus com as suas longas e esbeltas pernas de feiticeira. Quando ela surgiu à luz do crepúsculo, havia à sua volta uma espécie de silêncio enfeitiçado, condescendente.

           ‑ Demorei muito tempo? ‑ perguntou, com o seu ar ausente, sem olhar para ninguém e escondendo os seus sentimentos por detrás daquelas suas maneiras indecisas e suaves. ‑ Espero que não se tenham aborrecido! ‑ continuou. ‑ Que bom que seria tomar um chá, agora! Vamos?

           ‑ Entra para o carro ‑ disse Bob. ‑ Eu pago! - As compridas saias de alpaca da cigana, de um verde‑metálico, baloiçaram nas escadas. Ergueu‑se com todo o seu esplendor: era uma mulher alta e com um ar triunfante e o rosto animalesco. O lenço de casimira cor‑de‑rosa, com rosas vermelhas estampadas, estava a escorregar‑lhe para um lado, por cima do seu cabelo negro e encrespado. Olhou para os jovens, à luz do crepúsculo, com ousada arrogância.

           Bob colocou‑lhe duas meias coroas na mão.

           ‑ Dê‑me um pouco mais, para lhe dar sorte, para dar sorte à sua jovem senhora ‑ pediu‑lhe, numa voz aduladora, como um lobo a atrair uma presa. ‑ Mais uma moeda de prata, para lhe dar sorte.

           ‑ Já tens uns xelins, para dar sorte, isso basta - disse Bob calmamente, enquanto avançavam para o carro.

           ‑ Uma moedinha de prata! Só uma moedinha, para lhe dar sorte no amor!

           Yvette, com um súbito, longo e surpreendente movimento das suas pernas compridas, virou‑se quando já estava a entrar no carro e com o longo braço estendido deu uma passada e pôs qualquer coisa na mão da cigana, depois, virou‑se e dobrou‑se para entrar no carro.

           ‑ Felicidades para a bela e jovem senhora, com as bênçãos da cigana ‑ ouviu‑se a sugestiva e semitrocista voz da mulher.

           O motor roncou, tornou a roncar com mais força e arrancou. Leo acendeu os faróis e a pedreira com os ciganos desapareceu imediatamente na escuridão da noite.

           ‑ Boa noite! ‑ gritou a voz de Yvette, quando o carro começou a andar. A sua voz foi a única que se ouviu, esganiçada, alegre e impudente no seu tom de desinteresse. Os faróis iluminaram o caminho de pedra.

           ‑ Yvette, tens de nos dizer o que é que ela te contou ‑ gritou Lucille, perante o silêncio de Yvette.

           ‑ Oh, não foi nada de especial ‑ disse Yvette, com uma falsa cordialidade. ‑ As coisas do costume: um homem moreno que me dará boa sorte, um loiro que me dará má sorte; uma morte na familia, que se for a da avó não será assim uma coisa tão terrível; que casarei quanto tiver vinte e três anos, que terei montes de dinheiro e montes de amor e dois filhos. Tudo muito bonito, mas são demasiadas coisas boas, sabem, para poderem ser verdadeiras.

           ‑ Oh, mas, então, por que é que lhe deste mais dinheiro?

           ‑ Oh, bem, porque quis! Com gente daquela, temos de nos mostrar um pouco liberais...

    

Houve uma terrível discussão na casa paroquial, por causa de Yvette e do Fundo do Vitral. Depois da guerra, a tia Cissie tinha dedicado todas as suas forças para conseguir um vitral para a igreja, em memória dos homens da paróquia que tinham caído no conflito. Porém, a maior parte deles não era conformista, pelo que a celebração tomou a forma de um pequeno e feio monumento, em frente da capela metodista.

           Porém, este facto não dobrou a vontade da tia Cissie. Angariou dinheiro, organizou quermesses, forçou as raparigas a organizarem espectáculos de teatro para conseguir fundos para o seu precioso vitral. Yvette, que até gostava da actividade e das facetas exibicionistas dessas iniciativas, encarregou‑se da farsa denominada Mary in the Mirror e guardou os lucros, que deveriam ser entregues ao Fundo do Vitral, quando se fizessem as contas. Em princípio, cada uma das raparigas devia ter uma caixa de dinheiro para o Fundo.

     A tia Cissie, pensando que as somas, todas juntas, talvez fossem já quase suficientes, perguntou de repente pela caixa de Yvette. Esta continha apenas quinze xelins. Houve um momento de puro horror.

           ‑ Onde é que está o resto?

           ‑ Oh! ‑ exclamou Yvette, com um ar casual. - Emprestei‑o a mim mesma. Também não era assim tanto.

           ‑ Mas, então, as três libras e treze xelins de Mary in the Mirror? ‑ perguntou a tia Cissie, num tom que parecia que as profundas do Inferno se estavam a abrir.

           ‑ Oh, essas! Emprestei‑as a mim mesma. Posso pagá‑las.

           Pobre tia Cissie! O tumor do ódio rebentou dentro dela e houve uma cena terrível e pouco vulgar, que deixou Yvette a tremer de medo e de nervosa repugnância.

           Até o pároco foi muito severo.

           ‑ Se precisavas de dinheiro, por que é que não me disseste? ‑ perguntou ele friamente. ‑ Já te recusámos alguma coisa razoável?

           - Eu pensei que não tinha importância ‑ gaguejou Yvette.

           ‑ E o que é que fizeste com o dinheiro?

           ‑ Creio que o gastei ‑ disse Yvette, os olhos muito abertos e perturbados e o rosto macilento.

           ‑ Gastaste‑o em quê?

           ‑ Não me lembro de nada: meias e coisas, e dei algum.

           Pobre Yvette! Os seus ares e maneiras senhoris estavam agora a eclipsar‑se. O pároco estava zangado: o seu rosto tinha um ar canino, de quem rosna, uma contracção de desprezo. Estava com receio que a sua filha estivesse a desenvolver algumas das grosseiras e corruptas qualidades de A‑que‑fora‑Cynthia.

           ‑ Eras capaz de viver à larga, com o dinheiro dos outros, não eras? ‑ perguntou, com um desprezo frio, quase animalesco, que mostrava a sua total falta de crença no seu coração. A inferioridade de um espírito sem qualquer réstia de calorosa crença, sem orgulho na vida. Não acreditava nela, total e inteiramente.

           Yvette ficou pálida e tomou um ar distante. O seu orgulho, esse frágil e precioso lume que toda a gente procura satisfazer, recuou como uma chama assoprada por um vento frio, como se tivesse sido apagada e o rosto dela, agora branco e ainda parecido com uma branca flor, a branca flor que era a sua vaidade, parecia não ter vida, ser apenas uma pura e estranha abstracção.

           “Ele não crê em mim!”, pensou ela, no interior da sua alma. “Para ele, eu sou... nada! Sou um zero, sou apenas uma coisa de que é preciso ter vergonha. É tudo uma vergonha, tudo uma vergonha!”

           Uma chama de paixão ou de raiva, apesar de a terem podido dominar ou enfurecer, não a teriam degradado tanto como o fizera a falta de crença por parte do seu pai, a sua última atitude de desprezo para com ela.

           O pai ficou um pouco assustado, naquele silêncio de pensamentos estéreis. No fim de contas ele necessitava de uma aparência de amor e crença e de uma vida luminosa, sem manchas, pois nunca ousaria encarar o gordo verme da sua própria descrença, o verme que se agitava no seu coração.

           ‑ Que desculpa é que tens para dar? ‑ perguntou.

           Ela limitou‑se a mirá‑lo com aquele rosto de branca flor, insensível, que o enchia de medo e lhe dava uma desamparada sensação de culpa. A outra, A‑que‑fora‑Cynthia, olhara para ele com o mesmo medo branco, o mesmo rosto estarrecido, o medo da sua degradante descrença, o verme que se encontrava bem no interior do seu coração. O seu maior receio era que alguém mais o viesse a saber. A angústia do seu ódio era contra todos os que sabiam e se retraíam. Viu Yvette humilhada e imediatamente as suas maneiras se modificaram, passando de novo a ser o mundano e bem‑humorado cínico que fingia ser.

           ‑ Ah, bom! ‑ exclamou. ‑ Terás de o pagar, minha menina, é tudo. Vou avançar‑te o dinheiro da tua mesada. Mas vou descontar‑te quatro por cento ao mês, de juros. Até o próprio diabo tem de pagar uma percentagem sobre os seus débitos. Para a próxima, se não podes confiar em ti mesma, não mexas em dinheiro que não seja teu. A desonestidade não é bonita.

           Yvette continuou esmagada, descoberta e humilhada. Arrastou‑se de um lado para o outro, em busca dos vestígios do seu orgulho. Sentia repulsa até por si mesma. Oh, por que é que ela tocara naquele dinheiro leproso! Toda a sua carne se contraía, como se estivesse corrompida. Mas porquê? Porquê, porquê tal coisa?

           Admitia ter feito mal ao gastar o dinheiro. “Claro que não o devia ter feito. Têm toda a razão para estarem zangados”, disse para si própria.

           Mas de onde lhe vinham aqueles horríveis estremecimentos da sua carne? Por que é que ela se sentia como se tivesse apanhado um qualquer contágio físico?

           ‑ Onde tu foste muito tonta, Yvette ‑ repreendeu‑a Lucille, a pobre Lucille, que estava muito perturbada ‑, foi em teres‑te deixado comprometer ante todos eles. Devias saber que descobririam. Podia ter‑te arranjado o dinheiro e poupar‑te a todo este aborrecimento. É perfeitamente horrível! Mas tu nunca pensas com antecedência qual virá a ser o resultado das tuas acções! Imagina, a tia Cissie a dizer‑te todas aquelas coisas! Que horror! Que diria a mãe, se tivesse ouvido?

           Quando as coisas corriam muito mal, pensavam na mãe e desprezavam o pai e toda a má raça dos Saywells. A mãe delas, claro, pertencera a um mundo mais elevado, apesar de talvez mais perigoso e mais “imoral”. Decididamente, mais egoísta, mas com gestos de maior ostentação. Mais sem escrúpulos e mais facilmente levado à desonra, mas menos humilhante.

           Yvette sempre considerara que recebera a sua fina e delicada carnação da mãe. Os Saywells eram todos um pouco coriáceos e imundos, algures dentro deles. Mas, por outro lado, os Saywells nunca deixavam ninguém ficar mal, enquanto A‑que‑fora‑Cynthia abandonara o pároco com um grande estoiro e deixara as suas criancinhas com ele. As suas criancinhas! Isso era uma coisa que não lhe perdoavam!

           De uma maneira indistinta, depois da discussão, Yvette começou a compreender qual era a sua outra santidade, a santidade da sua carne e do seu sangue limpos, que os Saywells, com a sua denominada moralidade, haviam conseguido corromper. Tinham sempre querido corromper, pois não possuíam crença, eram os descrentes da vida. Enquanto, talvez, A‑que‑fora‑Cynthia não passara de uma descrente moral.

           Yvette andou por ali entorpecida, adoentada, confusa. O pároco pagou o dinheiro à tia Cissie, com grande raiva dessa senhora. O descontrolado tumor da sua raiva ainda estava agitado. O que ela teria gostado de fazer era anunciar a delinquência da sobrinha no boletim da paróquia. Era uma angústia, para aquela mulher destruída, o facto de não poder publicar essa notícia, para conhecimento de todo o mundo. O egoísmo! O egoísmo! O egoísmo!

           A seguir, o pároco entregou à filha uma conta‑corrente: o que ela lhe devia, os juros, a importância descontada na sua pequena mensalidade. Porém, lançou a crédito dela um guinéu, que era a taxa que ele tinha de pagar por cumplicidade.

           ‑ Como pai da culpada ‑ disse ele, com humor ‑, sou multado em um guinéu. Com isso, considero‑me ilibado de responsabilidades.

           No que respeitava a dinheiro, era sempre generoso. Parecia que, de algum modo, ele pensava que, sendo liberal com o dinheiro, poderia chamar‑se a si próprio um homem generoso. Mas era o contrário, ele usava o dinheiro e até a generosidade como um domínio sobre ela.

           Mas o pai deixou esquecer aquele assunto. Nesta altura já estava mais divertido do que qualquer outra pessoa, a julgar pelas aparências. Pensava, ainda, que agora estava a salvo.

           A tia Cissie, contudo, não conseguia libertar‑se da sua agitação. Uma noite, quando Yvette se sentira miserável e fora muito cedo para a cama, quando Lucille estava fora, numa festa, e quando ela jazia, sem forças nas pernas, que lhe doíam com uma espécie de insensibilidade e aviltamento, a porta abriu‑se suavemente e apareceu a tia Cissie, a sua face esverdeada e acinzentada a espreitar pela abertura. Yvette deu um salto, aterrorizada.

           ‑ Mentirosa! Ladra! Patife! Egoísta! ‑ silvou a maníaca face da tia Cissie. ‑ Pequena hipócrita! Mentirosa! Egoísta! Estupor ambicioso!

           Havia um ódio tão extraordinário e tão impessoal naquela máscara cinzento‑esverdeada e naquelas palavras frenéticas, que Yvette abriu a boca para gritar de histeria. Mas a tia Cissie fechou a porta tão subitamente como a abrira e desapareceu. Yvette saltou da cama e deu a volta à chave. Depois, arrastou‑se de novo para o leito, meio demente de medo daquela esquálida anormal, meio insensibilizada pela paralisia do seu orgulho injuriado. E, no meio daquilo tudo, soltou uma gargalhada perturbada, que veio acima como uma bolha. Era tão porcamente ridículo!

           O comportamento da tia Cissie não magoou muito os sentimentos da jovem. No fim de contas, fora uma coisa quase fantástica. No entanto, sentia‑se ferida: ferida, nas pernas, no corpo, no sexo. Ferida, entorpecida e meio destruída, apenas os seus nervos vibravam e se agitavam. E era ainda tão jovem que não conseguia ter uma noção do que se estava a passar.

           Ali estava ela com desejo de ser uma cigana. Viver num acampamento, numa carroça, nunca pôr os pés dentro de uma casa, não saber da existência de uma paróquia, nunca olhar para uma igreja. O seu coração estava pesado de repugnância contra a paróquia. Odiava aquelas casas, com as suas instalações sanitárias e as suas casas de banho internas e a sua extraordinária repelência. Odiava a casa paroquial e tudo o que ela implicava. Odiava todo aquele tipo de vida, estagnada, vida de esgotos onde os esgotos nunca eram citados, mas cujo cheiro parece vir do centro de cada um dos seus ocupantes, desde a avó às criadas, um cheiro pavoroso. Se os ciganos não tinham casas de banho, então também não tinham esgotos. Havia ar fresco. Na casa paroquial, nunca havia ar fresco. E, nas almas das pessoas, o ar era tão poluído que fedia.

           O ódio incendiava‑lhe o coração, enquanto jazia deitada, de pernas entorpecidas, e pensava nas palavras da cigana: “Um homem moreno que nunca viveu numa casa e que te ama. As outras pessoas estão a espezinhar‑te o coração. Irão espezinhar‑te o coração até tu pensares que a morte chegou. Mas o homem moreno avivará a faísca que te restará e acenderá de novo o fogo, um bom fogo. Verás que bom que esse fogo será.”

           Mesmo no próprio instante em que a cigana lhe estava a dizer aquilo, Yvette sentiu que havia ali uma qualquer duplicidade. Mas não se importava. Odiava, com o frio e acre ódio de uma criança, o interior da casa paroquial, aquela espécie de podridão na vida. Gostava daquela cigana, grande, trigueira, que tinha ares de lobo, com os seus grandes brincos de ouro nas orelhas, o lenço cor‑de‑rosa sobre o cabelo negro e flutuante, o apertado corpete de veludo castanho, a saia verde, tão rodada que parecia um leque. Gostava das suas mãos escuras e fortes, incansáveis, que tinham sido tão firmes como garras de lobo, nas suaves palmas das suas mãos. Gostava dela. Gostava do perigo e da sua disfarçada audácia. Gostava da sua sexualidade, disfarçada, obstinada, que era imoral, mas que se apresentava com um duro orgulho em si mesma, como um desafio. Nunca nada conseguiria dominar aquela mulher. Ela desprezaria a paróquia e a moralidade da paróquia! Ela estrangularia a avó com uma só mão. E teria o mesmo desprezo pelo pai e pelo tio Fred, como homens, como teria pelo velho, gordo e babado Rover, o cão terra‑nova. Um grande e sardónico desprezo feminino por tais cães domesticados, que se denominavam a si mesmos como homens.

           E o próprio cigano! Yvette estremeceu subitamente, como se tivesse visto os seus olhos grandes e atrevidos pousados nela, carregados de uma declarada insinuação de desejo. A insinuação absolutamente clara de desejo fazia‑a jazer de borco e impotente na sua cama, como se uma droga a tivesse fundido e lançado para um novo molde.

           Nunca confessara a ninguém que duas das malfadadas libras que retirara do Fundo do Vitral tinham ido para a cigana. Se o pai e a tia Cissie soubessem disso! Yvette agitou‑se, languidamente, na cama. O facto de ter pensado no cigano devolvera‑lhe a vida às suas pernas e cristalizara no seu coração o ódio à casa paroquial. Assim, agora sentia‑se poderosa, cheia de força, em vez de impotente.

           Quando Yvette contou a Lucille, mais tarde, o dramático interlúdio da tia Cissie à porta do quarto, Lucille ficou indignada.

           ‑ Oh, que diabo! ‑ gritou. ‑ Ela já se podia ter esquecido desse assunto. Cá por mim penso que já se falou demasiado nisso! Céus, e quem vê a tia Cissie é capaz de pensar que ela é uma perfeita ave‑do‑paraíso! O pai já não fala nisso e, no fim de contas, o assunto diz‑lhe mais respeito do que a qualquer outra pessoa. Espero que a tia Cissie se cale de vez!

     Mas era exactamente o facto de o pároco ter esquecido o caso e também por ele tratar de novo a vaga e inconsiderada Yvette como se ela fosse uma qualquer espécie de ser privilegiado que mantinham a bílis da tia Cissie a ferver. O facto de Yvette passar, na realidade, a maior parte do tempo desconhecendo os sentimentos das outras pessoas e, por isso, não se preocupando com eles, quase endoidecia a tia Cissie. Por que razão é que aquela jovem criatura, com uma mãe delinquente, deveria poder atravessar a vida como um ser privilegiado, que até nem dava pela existência das outras pessoas, mesmo quando elas estavam debaixo do seu nariz?

           Lucilie, por esta altura, andava muito irritável. Parecia um pouco desequilibrada, quando entrava na casa paroquial. Pobre Lucilie, sempre a pensar em tudo, sempre tão responsável! Era ela quem tratava de todos os problemas que surgiam lá em casa, era ela quem pensava em médicos, remédios, criadas e esse tipo de coisas. Trabalhava como uma escrava, conscienciosamente, durante todo o dia, no seu emprego na cidade, numa sala com luz artificial, desde as dez da manhã até às cinco da tarde. Depois ia para casa, para submeter os seus nervos a uma tensão que quase chegava ao frenesim por causa da horrível e persistente curiosidade e pela caquexia parasitária da avó.

           O caso do Fundo do Vitral tinha aparentemente sido esquecido, mas continuava a existir uma atmosfera de abafada tensão. O tempo continuava mau. Lucille ficou em casa no sábado à tarde, o que não lhe serviu de nada. O pároco estava no seu gabinete, ela e Yvette faziam um vestido para a última, a avó descansava no sofá.

           O vestido era numa seda aveludada, azul, um tecido francês, e ia ficar muito vistoso. Lucille obrigou Yvette a experimentá‑lo de novo, pois sentia‑se nervosamente preocupada com a maneira como o vestido assentava debaixo dos braços.

           ‑ Oh, que diabo! ‑ gritou Yvette, esticando os seus longos e suaves braços de criança, que tinham tendência para ficarem azuis com o frio. ‑ Não estejas tão atrapalhada, Lucille! O vestido está muito bem!

           ‑ Se esse é o agradecimento que vou ter por passar a tarde a confeccionar vestidos para ti, então era melhor que tivesse feito qualquer coisa para mim!

           ‑ Ora, Lucille! Sabes bem que não te pedi nada! Tu é que não podes suportar que eu faça qualquer coisa sem te meteres! ‑ disse Yvette, com aquela sua irritante meiguice, enquanto levantava os cotovelos nus e espreitava por cima do ombro para o espelho comprido.

           ‑ Oh, pois! Não me pediste! ‑ gritou Lucille. - Como se eu não soubesse o que é que queres quando começas para aí a suspirar e a atirar coisas!

           ‑ Eu! ‑ exclamou Yvette, com uma vaga surpresa. ‑ Ora, quando é que eu comecei a suspirar e a atirar coisas?

           ‑ Sabes bem que o fizeste!

           ‑ Eu? Não fiz nada disso! Quando é que foi?

     Yvette conseguiu pôr um peculiar tom de aborrecimento nas suas suaves perguntas.

           - Não faço nada deste teu vestido se não ficares quieta e calada ‑ disse Lucille, num tom bastante sonoro e cortante.

           ‑ Sabes bem que és muito resmungona e irritável, Lucille ‑ observou Yvette, como se estivesse sentada em cima de tijolos quentes.

           ‑ Yvette! ‑ gritou Lucille, os olhos subitamente virados para o rosto da irmã e soltando clarões irados.

     ‑ Acaba com isso imediatamente! Por que é que teremos todos de aturar o teu abominável e arrogante temperamento?

           ‑ Olha quem fala do meu temperamento ‑ disse Yvette, contorcendo‑se lentamente para sair do vestido meio feito e enfiar de novo o que usava antes.

           Depois, com um ar obstinado no rosto, sentou‑se outra vez à mesa, à luz melancólica da tarde, e começou a coser o vestido azul. A sala estava literalmente coberta de retalhos azuis, a tesoura estava no soalho, o cesto da costura espalhado, num completo caos, em cima da mesa, e um segundo espelho estava periclitantemente equilibrado sobre o piano.

           A avó, que estivera numa espécie de semicoma, chamada modorra, ergueu‑se do sofá grande e fofo e endireitou a touca.

           ‑ Não me deixam descansada para fazer a minha sesta ‑ disse, apalpando lentamente o cabelo branco e ralo, para ver se estava em ordem. Ouvira uns vagos ruídos.

           A tia Cissie entrou, rebuscando num saco à procura de um chocolate.

           ‑ Nunca vi desarrumação tão grande! ‑ disse. - É melhor limpar parte desse lixo, Yvette.

           ‑ Está bem ‑ respondeu Yvette. ‑ Já arrumo, daqui a pouco.

           ‑ O que quer dizer nunca! ‑ resmungou a tia Cissie, que de repente avançou e apanhou a tesoura.

           Fez‑se silêncio durante alguns momentos e Lucille, lentamente, enfiou as mãos no cabelo, pois estava a ler um livro.

           ‑ É melhor limpares tudo, Yvette ‑ insistiu a tia Cissie.

           ‑ Eu limpo antes do chá ‑ replicou Yvette, levantando‑se uma vez mais e enfiando o vestido azul por cima da cabeça, agitando no ar os longos braços nus, para os enfiar pelos buracos das mangas. Depois, colocou‑se entre os dois espelhos, para se ver uma vez mais.

           Porém, quando o fez, bateu no segundo espelho, o que se encontrava descuidadamente equilibrado em cima do piano, fazendo‑o escorregar e cair no chão com ruído. Por sorte, não se partiu, mas toda a gente se assustou bastante.

           ‑ Ela partiu o espelho! ‑ gritou a tia Cissie.

           ‑ Partiu um espelho! Que espelho? Quem é que o partiu? ‑ ouviu‑se a aguda voz da avó.

           ‑ Não parti nada ‑ respondeu calmamente Yvette. ‑ Está tudo bem.

           ‑ É melhor não o colocares aí em cima de novo - disse Lucille.

           Yvette, com um pequeno encolher de ombros, impaciente com toda aquela agitação, tentou segurar o espelho noutro sítio, mas não teve êxito.

           ‑ Se tivesse uma lareira acesa no meu quarto - disse, zangada, ‑, não necessitaria de estar aqui no meio de gente que não sossega, quando quisesse coser.

           ‑ De que espelho é que estão a falar? ‑ perguntou a avó.

           ‑ De um dos nossos, um dos que vieram da casa velha ‑ respondeu Yvette, rudemente.

           ‑ Não o partam nesta casa, venha ele de onde vier ‑ respondeu a avó.

           A família tinha uma espécie de desdém pela mobília que pertencera A‑que‑fora‑Cynthia. A maior parte dela estava encafuada na cozinha e nos quartos das criadas.

           ‑ Oh, eu não sou supersticiosa ‑ disse Yvette. - Não me preocupo com espelhos nem com outras coisas desse género.

           ‑ Talvez não sejas ‑ respondeu a avó. ‑ As pessoas que nunca assumem a responsabilidade pelas suas próprias acções, em geral, não se preocupam com o que acontece.

           ‑ No fim de contas ‑ disse Yvette ‑, mesmo que o tivesse partido podia dizer que partira o meu espelho.

           ‑ E eu digo ‑ acrescentou a avó ‑ que, se for possível, não haverá espelhos partidos nesta casa e não interessa a quem pertencem ou a quem pertenceram. Cissie, a minha touca está direita?

           A tia Cissie dirigiu‑se a ela e endireitou a touca da velha senhora. Yvette começou a cantarolar, num tom alto e irritante, uma música qualquer, sem melodia.

           ‑ E agora, Yvette, fazes favor de limpar isto tudo ‑ disse a tia Cissie.

           ‑ Diabo! ‑ gritou Yvette, zangada. ‑ É terrível viver com um monte de pessoas sempre preocupadas e a resmungar por causa de insignificâncias.

           ‑ Que pessoas, posso saber? ‑ perguntou a tia Cissie, ameaçadora.

           Preparava‑se uma nova discussão violenta. Lucilie levantou os olhos, com uma estranha expressão. Nas duas raparigas, o sangue de A‑que‑fora‑Cynthia começava a ferver.

           ‑ Claro que pode saber! Sabe perfeitamente que me refiro às pessoas desta abominável casa ‑ respondeu Yvette, insultuosamente.

           ‑ Pelo menos ‑ disse a avó ‑ não descendemos de gente meio depravada.

           Houve uma pausa de um segundo, electrificante. A seguir, Lucilie deu um salto do banquinho baixo em que estava sentada, e toda ela parecia rodeada de faíscas.

           ‑ Ora, cale‑se ‑ gritou, numa explosão que atingiu em cheio a manchada majestade da velha senhora.

           O peito da velha agitou‑se, o céu sabe com que emoções. A pausa desta vez, tal como depois da queda de um raio, foi gelada.

           Então, a tia Cissie, lívida, saltou sobre Lucilie, empurrando‑a como se fosse uma fúria.

           ‑ Vai para o teu quarto! ‑ gritou, rouca. ‑ Vai para o teu quarto!

           A tia Cissie continuou a empurrar Lucilie, pálida, mas com os olhos em fogo, para fora da sala. Lucille deixou que a empurrassem, enquanto a tia Cissie vociferava:

           ‑ Ficas no teu quarto até teres pedido desculpa por isto! Até teres pedido desculpa à Mater por isto!

           ‑ Não pedirei desculpa! ‑ ouviu‑se a voz clara de Lucilie, vinda do corredor, enquanto a tia Cissie a empurrava.

           A tia Cissie empurrou‑a lá para fora ainda com maior violência.

           Yvette deixou‑se ficar na sala, de pé, alta e perturbada, com um aspecto que era simultaneamente de dignidade ofendida e de confusão e que nela era tão estranho. Estava ainda de braços nus, enfiada no vestido azul meio por fazer. E até ela estava meio horrorizada com o ataque de Lucille à majestade da idade. Porém, sentia‑se também indignada contra a difamação, por parte da avó, do sangue materno que lhe corria nas veias.

           ‑ Claro que não queria ofender ‑ disse a avó.

           ‑ Ah, pois não! ‑ retorquiu Yvette, friamente.

           ‑ Claro que não. Eu disse apenas que não somos depravadas só porque sucede sermos supersticiosas a propósito de espelhos partidos.

           Yvette mal podia acreditar nos seus ouvidos. Teria ouvido bem? Seria possível? Ou estaria a avó, com aquela idade, a dizer uma descarada mentira?

           Yvette sabia que a velha estava a dizer, a frio, uma mentira descarada. Mas a avó já estava muito rapidamente a acreditar na sua própria afirmação.

           O pároco apareceu depois de deixar que as coisas acalmassem um pouco.

           ‑ Que se passa? ‑ perguntou cautelosamente, muito cordial.

           ‑ Oh, nada ‑ respondeu Yvette, com lentidão. - A Lucille disse à avó para se calar, quando ela estava a dizer qualquer coisa. A tia Cissie correu com ela para o quarto. tanto barulho por uma coisa sem importância! No entanto, desta vez, Lucille ultrapassou um pouco as marcas.

           A velha senhora não captara tudo o que Yvette disse.

           ‑ Lucille devia aprender a controlar os seus nervos - comentou a velhota. ‑ O espelho caiu e eu fiquei preocupada. Disse‑o à Yvette, que respondeu qualquer coisa a respeito de superstições e das pessoas que vivem nesta casa abominável. Disse‑lhe que as pessoas desta casa não eram depravadas, só porque se ralam se um espelho se parte. E, então, a Lucille atirou‑se a mim e disse‑me para eu me calar. É uma desgraça a maneira como estas crianças cedem aos nervos. Sei bem que se trata apenas de nervos.

           A tia Cissie entrara, durante este discurso. Ao princípio, até ela ficou emudecida, mas depois pareceu‑lhe que as coisas se tinham passado tal como a avó dissera.

           ‑ Proibi‑a de vir para baixo até pedir desculpa à Mater ‑ disse.

           ‑ Duvido que ela peça desculpa ‑ retorquiu a calma e majestosa Yvette, cruzando os braços nus.

           ‑ E eu não quero nenhumas desculpas ‑ disse a velha senhora. ‑ São apenas nervos. Não sei o que será delas, se têm nervos assim com esta idade! Ela precisa de tomar Vibrofal. Arthur é capaz de querer o seu chá, Cissie!

           Yvette recolheu toda a sua costura para ir para cima e mais uma vez começou a cantarolar a tal música, muito aguda e sem melodia. Estava a tremer por dentro.

           ‑ Mais trapos bonitos! ‑ disse‑lhe o pai, muito amavelmente.

           ‑ Mais trapos bonitos! ‑ reiterou ela com sabedoria, enquanto se saracoteava para o andar de cima, com o vestido por cima do braço.

           Queria consolar Lucille e perguntar‑lhe como é que o vestido azul estava agora a cair.

           No primeiro patamar parou, como quase sempre o fazia, olhando através da janela que dava para a estrada e para a ponte. Tal como a Lady de Shalott, parecia sempre imaginar que alguém surgiria, vindo do lado do rio, cantando Tirra‑lirra! ou qualquer coisa do género.

    

Estava quase na hora do chá. Os galantos despontavam na beira do caminho curto que ia desde um dos lados da casa até ao portão e o jardineiro trabalhava displicentemente nos canteiros redondos e húmidos, no meio da relva molhada que cobria o declive para o rio. Do lado de fora do portão passava a estrada de lama esbranquiçada, que atravessava quase imediatamente a ponte de pedra e que trepava, descrevendo uma curva, até à íngreme, aglomerada, pedregosa e fumarenta aldeia nortenha, debruçada sobre as tristonhas fábricas têxteis, construções de pedra que Yvette podia ver na sua frente, lá em baixo no fundo do estreito vale, com a alta chaminé estreita e erecta.

           A casa paroquial erguia‑se numa das margens do Papple, num vale bastante íngreme: a aldeia ficava mais para diante, num ponto mais elevado, um pouco mais abaixo, no vale, do outro lado da rápida corrente do rio. Nas traseiras da casa paroquial, a colina continuava, muito inclinada, com um bosque de coníferas, escuras e nuas, no meio do qual desaparecia a estrada. Logo do outro lado do rio, em frente da casa paroquial, a margem erguia‑se íngreme e coberta de mato, até afingir os prados inclinados e melancólicos que continuavam a trepar até às escuras colinas cobertas de árvores, com grandes rochas cinzentas aqui e acolá.

           Porém, da ponta da casa, Yvette só conseguia ver a estrada a encurvar‑se, para lá do muro com a sua sebe de loureiro, descendo para a ponte, depois de novo a subir descrevendo uma curva, até ao primeiro grupo de casas de Papplewick, logo a seguir aos muros de calcário dos íngremes terrenos.

           Ela tinha sempre a esperança que alguma coisa surgisse descendo o pedaço de estrada que vinha de Papplewick e demorava‑se um pouco na janela do patamar. Por vezes aparecia uma carroça, ou um automóvel, ou uma camioneta carregada de pedra, ou um trabalhador, ou uma das criadas. Mas nunca aparecera ninguém a cantar Tirra‑lirra! junto ao rio. Os dias dos Tirra‑lirras pareciam já ter passado.

           Neste dia, contudo, descrevendo a curva da estrada branco‑acinzentada, entre as ervas e os pequenos muros de pedra, surgiu um cavalo ruão a descer a colina, numa passada viva e corajosa, conduzido por um homem com um boné, empoleirado na frente da sua carroça ligeira. O homem oscilava livremente acompanhando os balanços da carroça, enquanto o cavalo descia a colina, na silenciosa melancolia da tarde. Na parte traseira da carroça salientavam‑se os cabos de longas vassouras de junco e penas.

           Yvette aproximou‑se mais da janela e colocou as cortinas de tecido por detrás de si, enquanto segurava os antebraços nus com as mãos.

           Na base do declive, o cavalo iniciou um trote muito vivo em direcção à ponte. A carroça passou a ponte de pedra com estrépito, as vassouras saltitaram e agitaram‑se e o condutor seguia como que numa espécie de sonho, baloiçando‑se. Era como que qualquer coisa vista durante um sonho.

           Porém, depois de passar a extremidade da ponte e quando avançava ao longo do muro da casa paroquial, o homem olhou para cima, para a triste casa de pedra cinzenta, que parecia ter fugido ao portão, recuando em direcção à colina. Yvette agitou rapidamente as mãos e ao mesmo tempo, por debaixo da pala do seu boné, ele viu‑a e o seu rosto trigueiro e vigilante ficou alerta.

           Parou subitamente junto do portão branco, sempre a olhar para cima, para a janela do patamar, enquanto Yvette, agarrada aos seus braços, frios e sardentos, continuava a mirá‑lo da janela de uma maneira abstracta.

           A cabeça dele fez um movimento curto e rápido, um sinal, e logo de imediato conduziu o cavalo bem para um dos lados, para cima da erva. A seguir, flexível e rápido, virou‑se para trás, para a lona que cobria a carroça, puxou vários artigos cá para fora, agarrou em duas ou três das longas vassouras de junco com cabos de cana, tornou a cobrir a carroça e dirigiu‑se para a casa, olhando para Yvette enquanto abria o portão branco.

           Esta fez‑lhe um aceno de cabeça e correu para a casa de banho para enfiar o vestido, esperando ter disfarçado o seu cumprimento de modo que ele não tivesse bem a certeza se ela o saudara ou não. Entretanto, ouviu o áspero e baixo rosnar daquele estúpido cachorro velho, o Rover, acompanhado pelo latir do outro cão mais novo, o idiota do Trixie.

           Ela e a criada chegaram à porta da sala ao mesmo tempo.

           ‑ Era o homem a vender vassouras? ‑ perguntou

     Yvette à criada. ‑ Está bem! ‑ E abriu a porta. - Tia Cissie, está ali um homem a vender vassouras.

     Quer que lá vá?

           ‑ Que espécie de homem? ‑ perguntou a tia Cissie, que estava sentada à mesa, tomando chá com o pároco e com a Mater: desta vez as raparigas tinham sido excluídas da mesa.

           ‑ Um homem com uma carroça ‑ respondeu Yvette.

           ‑ Um cigano ‑ disse a criada.

           Claro que a tia Cissie se levantou imediatamente, tinha que ir vê‑lo.

           O cigano encontrava‑se na porta das traseiras, por debaixo da íngreme escarpa onde cresciam as coníferas. Brandia as longas vassouras numa das mãos e da outra pendiam diversos objectos de cobre e latão brilhantes: uma frigideira, um candelabro, pratos de cobre martelado. O homem tinha um aspecto limpo e asseado, com o seu boné verde‑escuro e o casaco verde aos quadrados. Mas as suas maneiras eram submissas, muito calmas e ao mesmo tempo orgulhosas, com um toque de condescendência e de desinteresse.

           - Precisa de alguma coisa hoje, minha senhora? - perguntou, olhando para a tia Cissie, com os seus olhos negros, astutos e inquisitivos, mas colocando na voz um calmo tom de ternura.

           A tia Cissie reparou que ele era muito bonito, viu‑lhe a flexível curva dos lábios por debaixo da linha do bigode preto e ficou alvoroçada. O mais pequeno sinal de dureza ou de agressão por parte do homem, levá‑la‑ia a fechar‑lhe a porta na cara, com desdém. Mas ele conseguiu insinuar uma tão subtil sugestão de submissão no seu comportamento masculino que ela começou a hesitar.

           ‑ O candelabro é lindo! ‑ disse Yvette. ‑ Foi feito por si?

           Yvette olhou para cima, para o homem, com os seus inocentes olhos de criança, tão capazes de expressarem duplos sentidos como os dele.

           ‑ Sim, minha senhora!

           Ele devolveu‑lhe o olhar apenas durante um segundo, com a tal clara sugestão de desejo que actuava nela como por magia e lhe roubava toda a sua força de vontade. O rosto dela pareceu entrar numa espécie de torpor composto por um baixo e grosso pedúnculo de cobre, erguendo‑se de um duplo vaso Com paciente indiferença, o homem atendia‑a, sem sequer olhar para Yvette, que se encostara à ombreira da porta e observava, absorta.

           ‑ Como está a sua mulher? ‑ perguntou‑lhe ela subitamente, quando a tia Cissie foi lá dentro para mostrar o candelabro ao pároco e perguntar‑lhe se achava que valia a pena.

           O homem encarou Yvette, frontalmente, com um ligeiro sorriso quase indefinível nos lábios. Os olhos não sorriram: a insinuação que neles existia endureceu, transformou‑se num clarão.

           ‑ Está bem. Quando é que vai outra vez para aquele lado? ‑ murmurou, numa voz baixa, acariciante e íntima.

           ‑ Oh, não sei ‑ respondeu Yvette, num tom vago.

           ‑ Vá à sexta‑feira, quando eu lá estou ‑ disse.

           Yvette olhava por cima do ombro dele, como se não o tivesse ouvido. A tia Cissie regressou com o candelabro e o dinheiro para o pagar. Yvette virou‑se e afastou‑se, desinteressada, entoando uma das suas melodias esganiçadas, abandonando tudo aquilo com uma certa rudeza.

           Desta vez, todavia, escondeu‑se atrás da janela do patamar, ficou à espera para ver o homem ir‑se embora. O que ela queria saber era se ele na realidade tinha algum poder sobre ela. Mas desta vez não queria que ele a visse.

           Viu‑o descer até ao portão, com as vassouras e as frigideiras e dirigir‑se à carroça. Arrumou cuidadosamente as vassouras e os cobres e prendeu a lona à carroça. Depois, com um salto lento e sem esforço dos seus flexíveis quadris, estava de novo em cima da carroça e a tocar o cavalo com as rédeas. O cavalo ruão partiu imediatamente, as rodas da carroça a chiarem, colina acima, e, em breve, o homem desaparecera, sem olhar para o lado. Desaparecera como um sonho que era apenas um sonho, mas que, no entanto, ela não conseguia afastar de si.

           “Não, não tem nenhum poder sobre mim!”, disse para si mesma, na verdade bastante desapontada, porque queria que alguém, ou alguma coisa, tivessem poder sobre ela.

           Foi para cima para falar com a pálida e exausta Lucille, repreendendo‑a por se enervar daquela maneira por uma coisa tão insignificante.

           ‑ Que é que interessa ‑ admoestou ‑ se disseste à avó para se calar! Ora, toda a gente devia ser mandada calar quando estivesse a ser desagradável. Mas ela não o disse por mal, sabes. Não, não foi por mal e já está arrependida de o ter dito. Não há razão para complicar as coisas. Anda daí, vamo‑nos vestir e aparecemos ao jantar como duquesas. É uma maneira de nos vingarmos! Anda, Lucille!

           Havia qualquer coisa de estranho e confuso, tal como ter teias de aranha na cara, na distraída jovialidade de Yvette; a sua desconcertante e nebulosa maneira de fugir aos dissabores. Era consoladora, também, mas era como passear num desses nevoeiros de Outono, quando a brisa empurra fios de teias de aranha para o nosso rosto. Fica‑se sem saber muito bem onde é que estamos.

           Conseguiu, contudo, persuadir Lucille e as duas raparigas envergaram os seus melhores vestidos de festa, Lucille de verde e prata, Yvette num suave lilás com ornamentos azul‑turquesa. Um pouco de pó‑de‑arroz e de rouge, os melhores sapatos e os jardins do paraíso começaram a florescer. Yvette cantarolava e olhava para si mesma e arvorou o seu ar mais desprendido, o ar de uma jovem marquesa. Tinha uma estranha maneira de inclinar as sobrancelhas e arquear os lábios e, a julgar pelas aparências, conseguia libertar‑se de todos os problemas terrenos deixando‑se flutuar através da nuvem cor de pérola da sua própria circunspecção. Era divertido e bastante pouco convincente.

           ‑           Claro que estou maravilhosa, Lucille ‑ disse ela com suavidade. ‑ E tu estás perfeitamente encantadora, agora que tens um aspecto um pouco acusador. Claro que és a mais aristocrática de nós duas, com esse nariz! E agora que os teus olhos parecem acusadores, isso dá‑te um ar atraente e estás perfeita, perfeitamente amorosa. Mas eu estou mais sedutora, de certo modo. Não achas? ‑ virou‑se para Lucilie, com uma brejeira e complicada simplicidade.

           Estava a ser absolutamente verdadeira naquilo que dissera. Era aquilo o que ela pensava. Mas as suas palavras não deixavam suspeitar a existência de uma outra sensação, completamente diferente, que também a preocupava: a sensação de que tinha sido olhada, não pelo lado de fora, mas pelo lado de dentro, a partir do seu eu feminino e secreto. Estava a vestir‑se procurando conseguir o seu mais belo aspecto possível, apenas para contrabalançar o efeito que o cigano nela provocara, quando a olhara, mas sem nada ver do seu rosto bonito, nem das suas maneiras encantadoras, mas apenas o sombrio, trémulo e poderoso segredo da sua virgindade.

           As duas raparigas começaram a descer para o andar de baixo com toda a pompa, quando soou o gongo para o jantar, mas suspenderam a sua caminhada até ouvirem as vozes dos homens. Só então acabaram de descer para a sala, Yvette envaidecendo‑se de si própria naquela sua maneira vaga e afável, sempre um pouco ausente, e Lucilie envergonhada, pronta para rebentar em lágrimas.

           ‑ Meu Deus! ‑ exclamou a tia Cissie, que ainda usava o seu desportivo casaco de malha castanho‑escuro. ‑ Mas que aparição! Onde é que vocês pensam que vão?

     ‑ Vamos jantar com a família ‑ disse Yvette com um ar inocente ‑ e vestimos tudo o que tínhamos de melhor, em honra da ocasião.

           O pároco riu‑se alto e o tio Fred disse:

           ‑ A família sente‑se altamente honrada.

     Os dois homens idosos comportavam‑se galantemente, que era o que Yvette pretendia.

           ‑ Venham cá e deixem‑me apalpar os vossos vestidos, venham! - disse a avó. ‑ São os melhores que têm? É uma vergonha eu não os poder ver.

     ‑ Esta noite, Mater ‑ disse o tio Fred ‑, teremos de conduzir estas jovens senhoras até à mesa de jantar, para procedermos de acordo com a honra que nos prestam. Importas‑te de ir com a Cissie?

           ‑ Claro que não ‑ respondeu a avó. ‑ A juventude e a beleza estão primeiro.

           ‑ Bom, só esta noite, Mater! ‑ disse o pároco, agradado.

           Ofereceu o braço a Lucilie, enquanto o tio Fred escoltava Yvette.

           Mas foi à mesma uma refeição arrastada e aborrecida. Lucille tentou ser brilhante e sociável, e Yvette foi muito agradável, mas no seu modo ausente, vago como as teias de aranha.

           Indistintamente, no fundo da sua mente, pensava: “Por que é que nós seremos todos apenas como peças de mobília, mortais? Por que é que nada é importante?”.

           Era essa a pergunta constante que fazia a si própria, como um estribilho: “Por que é que nada é importante?” Estivesse ela na igreja, ou numa festa de jovens, ou dançando no hotel da cidade, aquela mesma pergunta, como se fosse uma bolha, subia continuamente à sua consciência: “Por que é que nada é importante?”

           Havia jovens suficientes para fazerem amor com ela, mesmo devotadamente. Mas ela tinha de os sacudir, com impaciência. Por que é que eles eram tão pouco importantes? Tão irritantes!

           Ela nem sequer pensava no cigano. Fora um incidente perfeitamente desprezível. No entanto, a aproximação da sexta‑feira parecia ser cada vez mais significativa, por estranho que parecesse.

           ‑ Que é que vamos fazer na sexta‑feira? ‑ perguntou a Lucilie.

           A isto, Lucilie replicou que não iriam fazer nada e Yvette sentiu‑se contrariada.

           A sexta‑feira chegou e apesar dos seus esforços pensou todo o dia na pedreira ao lado da estrada, lá em cima, em Bonsail Head. Queria estar lá. Essa era a única coisa de que ela tinha consciência. Nem sequer lhe passara pela cabeça ir lá e, além disso, estava de novo a chover. Mas enquanto cosia o vestido azul, acabando‑o para a festa em Lambley Close, no dia seguinte, sentia que a sua alma estava lá em cima, na pedreira, entre as caravanas, com os ciganos. Tal como se estivesse perdida, ou como alguém a quem tivessem roubado a alma, Yvette não estava presente no seu corpo, na concha que era o seu corpo.

     O seu interior estava longe, na pedreira, entre as caravanas.

           No dia seguinte, na festa, não tinha ideia nenhuma de que estava a ser muito terna para com Leo. Não tinha ideia nenhuma de que estava a roubá‑lo à torturada Ella Framley. Não tinha ideia nenhuma do que é que estava a fazer, até que, quando comia o seu gelado de pistácio, ele lhe disse:

           ‑ Por que é que tu e eu não ficamos noivos, Yvette? Tenho a certeza absoluta que seria uma boa ideia para nós dois.

           Leo era um pouco vulgar, mas agradável e abastado. Yvette gostava dele. Mas... noivado? Que parvoice! Dava‑lhe vontade de lhe oferecer um dos seus jogos de roupa interior em seda e dizer‑lhe: “Toma, podes ser noivo disto!”.

           ‑ Mas eu pensei que era com Ella! ‑ exclamou ela, admirada.

           ‑           Bom! Poderia ter sido, se não fosses tu. A culpa é tua, sabes! Desde que aqueles ciganos te leram a sina, senti que era eu o ninguém, para ti, e tu o ninguém, para mim.

           ‑ Ah, sim? ‑ exclamou Yvette, completamente perdida de espanto. ‑ Ah, sim!

           ‑ Não sentes um pouco o mesmo? ‑ perguntou ele.

           ‑ Ah, sim! ‑ murmurou Yvette, aspirando o ar suavemente, como um peixe à superfície.

     ‑ Sentes o mesmo, não sentes? ‑ perguntou ele.

           ‑ O quê? O mesmo a respeito de quê? ‑ inquiriu ela, acordando.

           ‑ A meu respeito, como eu sinto a teu respeito.

           ‑ Porquê? Como? Ficarmos noivos, queres dizer? Eu? Não! Mas como é que posso? Nunca seria capaz de imaginar uma coisa assim!

           Falou com a sua habitual candura negligente, inteiramente despreocupada a respeito dos sentimentos dele.

           ‑ Não eras capaz de imaginar, porquê? ‑ perguntou ele, um pouco picado. ‑ Pensei que sim.

           ‑ Ah, sim, de verdade? ‑ murmurou ela, num espanto, com aquela suave, virginal, descuidada candura que lhe ganhava tanto amigos como inimigos.

           Yvette estava tão completamente espantada que ele não podia fazer mais nada além de girar os polegares de aborrecimento.

           A música começou a tocar e ele olhou para ela.

           ‑ Não! Não dançarei mais ‑ disse Yvette levantando‑se e olhando para longe, do alto, por cima da assembleia ali reunida, como se esta não existisse. Havia um toque de perplexa admiração na sua fronte e a sua suave e melancólica face de virgem sugeria na verdade a branca flor da patética imaginária do seu pai.

           ‑ Mas claro que tu danças ‑ disse ela, virando‑se para ele com uma juvenil condescendência. ‑ Pede a alguém para que dance esta contigo.

           Ele levantou‑se, zangado, e dirigiu‑se para outro lado da sala.

           Ela permaneceu lassa e absorta, no seu espanto. Nunca esperara que Leo lhe fizesse uma tal proposta! Era mais fácil para si imaginar o velho Rover, o terra‑nova, a propor‑lhe casamento. Ficar noiva de um homem qualquer? Céus, não, nunca, não conseguia imaginar coisa mais ridícula.

           Foi então, num fugaz pensamento secundário, que compreendeu que o cigano existia. Ficou instantaneamente indignada. Ele, entre todas as coisas! Ele! Nunca!

           “Mas porquê?”, perguntou a si mesma, de novo mergulhada num silencioso espanto. “Porquê? É absolutamente impossível: absolutamente! Portanto, porquê?”

           Um problema difícil para resolver. Olhou para os jovens que dançavam, os cotovelos para fora, ancas proeminentes, cinturas elegantemente estreitas. Não lhe davam nenhuma chave para a resolução do seu problema. No entanto, ela tinha um particular desagrado pela forçada elegância das cinturas e das ancas proeminentes, sobre as quais caíam os casacos bem talhados, com uma discrição tão efeminada.

          “Há em mim qualquer coisa que eles não vêem e nunca verão”, disse ela para si mesma, zangada. Ao mesmo tempo sentiu‑se aliviada por eles não verem nem poderem vir a ver. A vida assim era muito mais simples.

           E, novamente, uma vez que ela era daquelas pessoas que tomam consciência das coisas através de imagens visuais, viu o tecido de jersey verde‑escuro por cima das calças pretas do cigano, os seus quadris finos e flexíveis, vivos como os seus olhos. Esses sim, eram elegantes. A elegância destes dançarinos parecia tão forçada, os quadris enchumaçados de carne. E Leo também, ele que pensava que era tão bom dançarino! E que tinha tão boa figura. Então, viu o rosto do cigano, o nariz direito, os delgados lábios móveis, o olhar superficial, significativo dos seus olhos negros, que pareciam atirá‑la para um qualquer lugar vital e infalível, ainda não descoberto.

           Endireitou‑se, irada. Como ousava ele olhá‑la assim?! Contemplou, com os olhos a brilharem, os insípidos beauxt na pista de dança. E desprezou‑os, tal como as esfarrapadas ciganas desprezam homens que não são ciganos, a sua maneira canina de andar pelas ruas, também ela se encontrou a desprezar aquela multidão. Onde entre ela se encontrava o subtil, solitário e insinuante desafio capaz de a tocar?

           Não queria acasalar com um cão doméstico.

     Ali sentada, meditando, com o seu sensível nariz bem levantado, o seu suave cabelo castanho caía como uma aura macia em volta do seu rosto delicado como o de uma flor. Parecia tão virginal. Ao mesmo tempo tinha com ela um pouco do aspecto de uma virgem feiticeira alta e jovem, que fazia com que os homens caninos a receassem. Poderia metamorfosear‑se em qualquer coisa sinistra, antes de sabermos o que se passara.

           Isto fazia‑a solitária, apesar de tão cortejada. Ou talvez fossem os cortejos que a faziam solitária.

           Leo, que era uma espécie de mastim entre os cães domésticos, regressou para junto dela depois da dança, com a coragem refrescada.

           ‑ Já pensaste um pouco no assunto, não foi? - perguntou ele, sentando‑se ao seu lado: um tipo cheio de determinação, satisfeito e bem alimentado. Ela não conseguia perceber por que é que o facto de ele puxar as pernas das calças para cima, nos joelhos, a irritava tanto. Leo tinha umas pernas razoáveis, mas não muito distintas, e sentara‑se numa cadeira, com convicção.

           ‑ Eu? ‑ perguntou ela, distraída. ‑ Acerca de quê?

           ‑ Sabes bem a respeito de quê ‑ respondeu ele. ‑ Já te decidiste?

           ‑ Já me decidi a respeito de quê? ‑ perguntou, com um ar inocente.

           Na superfície da sua consciência ela tinha‑se na verdade esquecido.

           ‑ Oh! ‑ exclamou Leo, puxando de novo as pernas das calças. ‑ A respeito de tu e eu ficarmos noivos, sabes. ‑ Ele era quase tão sem‑cerimónias como ela.

           ‑ Oh, isso é absolutamente impossível ‑ respondeu Yvette, com uma suave amabilidade, como se se tivesse tratado de uma pergunta secundária, no meio de tudo o resto. ‑ Oh, eu nem sequer pensei mais no assunto. Ora, não fales nessa espécie de tolices! Essa espécie de coisa é absolutamente impossível ‑ repetiu ela, como uma criança.

           ‑ Que espécie de coisa? ‑ insistiu ele com um estranho sorriso, provocado pela afirmação dela, tão calma e distante. ‑ Bom, então que espécie de coisa é que é possível? Não queres morrer como uma solteirona, ou queres?

           ‑ Oh, não me importo ‑ respondeu, com um ar ausente.

           ‑ Pois eu importo‑me ‑ disse ele.

           Yvette virou‑se e olhou para ele, admirada.

           ‑ Porquê? ‑ perguntou. ‑ Por que é que te havias de importar por eu vir a ser uma velha solteirona?

           ‑ Por todas as razões do mundo ‑ respondeu Leo, olhando para Yvette com um sorriso audaz e carregado de significado, um sorriso cujo significado era para ser óbvio, se não manifesto.

           Mas em vez de penetrar nalgum lugar secreto e profundo, acertando‑lhe aí, o audaz e óbvio sorriso de Leo limitou‑se a atingi‑la no exterior do corpo, como se fosse uma bola de ténis, causando a mesma espécie ide súbita reacção irritada.

           ‑ Penso que este tipo de coisas são muito estúpidas ‑ disse ela, com a malvadez de uma qualquer jovem atrevida. ‑ Ora, tu estás praticamente noivo de... de... ‑ Yvette susteve‑se a tempo ‑, provavelmente, de meia dúzia de outras raparigas. Não me sinto nada lisonjeada por aquilo que disseste. Odiaria que alguém o viesse a saber. Não direi uma palavra a esse respeito e espero que tenhas o bom senso de também não o fazeres. Ali está Ella!

           E, mantendo o rosto desviado dele, deslizou como uma flor, alta e suave, para ir ter com a pobre Ella Framley.

           Leo bateu com as luvas brancas.

           “Putazinha traiçoeira!”, disse para si próprio. Mas ele era do tipo mastim, daqueles que gostam que as garotas brincalhonas tentem escapar‑se mesmo na frente deles. Começou, decisivamente, a prestar‑lhe uma maior atenção.

    

Na semana seguinte a chuva caiu novamente. Isto irritou Yvette, enchendo‑a de uma estranha ira. Ela pretendera que o tempo estivesse bom. Insistia especialmente em que devia estar bom lá para o fim da semana. Porquê, era uma coisa sobre a qual não se interrogava.

           Quinta‑feira, em que metade do dia era feriado, surgiu com sol, mas com um frio de enregelar. Leo chegou no seu carro com o grupo habitual. Yvette, de uma maneira desagradável e inesperada, recusou‑se a acompanhá‑los.

           ‑ Não, obrigado, não estou com disposição - disse.

           Na verdade, ela até gostava, de vez em quando, de ser a desmancha‑prazeres do grupo.

           A seguir foi passear sozinha, pelas colinas geladas, até Black Rocks.

           O dia seguinte surgiu também ensolarado e muito frio. Era Fevereiro, mas ali, a norte, o terreno não descongelava ao sol. Yvette anunciou que ia dar uma volta de bicicleta e que levava almoço, pois podia só estar de volta da parte da tarde.

           Partiu sem pressas. Apesar do frio, o sol tinha um toque de Primavera. No parque, viam‑se os veados à distância, ao sol, para se aquecerem. Um deles, com malhas brancas, caminhava lentamente através da paisagem imóvel.

           A andar de bicicleta, Yvette descobriu que era difícil conseguir manter as mãos quentes, mesmo quando o corpo estava bastante quente. Só o conseguia quando tinha de caminhar para subir até ao topo de uma colina e não havia vento.

           O planalto estava muito nu de vegetação e muito sombrio. Dir‑se‑ia um outro mundo. Ela já trepara até ao nível seguinte. Pedalou lentamente, um pouco receosa de meter pelo caminho errado, no vasto labirinto de muros de pedra. Enquanto avançava ao longo do caminho que pensava ser o correcto, ouviu um fraco ruído de batidas, com uma ligeira ressonância metálica.

           O cigano estava sentado no chão, encostado a um varal do carro, martelando uma vasilha de cobre. Estava ao sol, de cabeça descoberta, mas com a jaqueta verde. Ali em volta moviam‑se três crianças pequenas, brincando silenciosamente no abrigo do cavalo. Tanto o cavalo como a carroça tinham desaparecido. Uma mulher velha, dobrada, com um lenço em volta da cabeça, cozinhava em cima de um fogo de lenha. O único som que se ouvia era o das marteladas rápidas e metálicas na peça de cobre sem brilho.

           O homem olhou imediatamente para cima, quando Yvette desmontou da bicicleta, mas não se moveu, apesar de ter deixado de martelar. No seu rosto havia um subtil sorriso de triunfo dificilmente perceptível.

     A mulher virou‑se para olhar, penetrantemente, por debaixo do sujo cabelo cinzento. O cigano disse‑lhe uma palavra meio audível e ela virou‑se de novo para o fogo. Ele olhou para cima, para Yvette.

           ‑ Como é que vão todos? ‑ perguntou ela, polidamente.

     ‑ Muito bem! Senta‑se um minuto? ‑ virou‑se, sentado, e puxou um banco de debaixo da carroça para Yvette. Depois, enquanto ela empurrava a bicicleta para um dos lados da pedreira, começou a martelar de novo, com aquelas pancadas rápidas e leves, como se fossem as de um pássaro.

           Yvette dirigiu‑se à fogueira para aquecer as mãos.

           ‑ Está a fazer o jantar? ‑ perguntou infantilmente à velha cigana, enquanto esticava as longas e delicadas mãos para as brasas.

           ‑ Jantar, sim! ‑ respondeu a velha. ‑ Para ele! E para as crianças!

           Apontou com o garfo comprido para as três crianças de olhos negros espantados, os olhos a brilhar por debaixo das repas de cabelo negro. As crianças estavam limpas. Só a velha estava suja. Até a própria pedreira tinham mantido perfeitamente limpa.

           Yvette agachou‑se em silêncio, aquecendo as mãos. O cigano martelava rapidamente com intervalos de silêncio. A velha bruxa subiu lentamente os degraus da terceira carroça, a mais deteriorada. As crianças começaram de novo a brincar, como pequenos animais selvagens, agitados, mas silenciosos.

           ‑ As crianças são suas? ‑ perguntou Yvette, levantando‑se de junto da fogueira e virando‑se para o homem.

           Ele olhou‑a nos olhos e fez um aceno de confirmação.

           ‑ Mas onde é que está a sua mulher?

           ‑ Saiu com o cesto. Saíram todos, carroça e tudo, vendendo coisas. Eu não vendo coisas. Faço‑as, mas não vou vendê‑las. A não ser raramente. Só raramente.

           ‑ E faz todas essas coisas de cobre e latão? ‑ perguntou Yvette.

           Ele tornou a confirmar com um aceno e de novo lhe ofereceu o banco. Ela sentou‑se.

           ‑ Disse que estaria aqui às sextas‑feiras ‑ continuou ela ‑, por isso vim por aqui, estava um dia tão bonito.

           ‑ Um dia muito bonito! ‑ confirmou o cigano, olhando para as faces dela, ainda um pouco empalidecidas pelo frio, e para o cabelo solto por cima das orelhas vermelhas e para as mãos, ainda arroxeadas.

           ‑ Apanhou frio a andar de bicicleta? ‑ perguntou.

           ‑ As minhas mãos! ‑ respondeu, fechando‑as e abrindo‑as nervosamente.

           ‑ Não usa luvas?

           ‑ Usava, mas não eram grande coisa.

           ‑ O frio atravessa tudo ‑ disse ele.

           ‑ Sim! ‑ respondeu ela.

           A velha desceu lentamente os degraus da carroça de uma maneira grotesca trazendo pratos de esmalte.

           ‑ O jantar está pronto? ‑ perguntou ele baixinho.

           A velha murmurou qualquer coisa, enquanto colocava os pratos junto do fogo. Estavam duas panelas penduradas de uma longa barra de ferro, colocada horizontalmente por cima das brasas da fogueira. Um pequeno tacho repousava sobre um tripé de ferro. O vapor dos cozinhados tremulava ao sol.

           O cigano pousou as ferramentas e a vasilha de cobre e levantou‑se.

           ‑ Come qualquer coisa connosco? ‑ perguntou a Yvette, sem olhar para ela.

           ‑ Oh, eu trouxe o meu almoço ‑ disse Yvette.

           ‑ Come um pouco de guisado? ‑ perguntou ele.

           Disse de novo qualquer coisa à velha, numa voz baixa e secreta, ela murmurou‑lhe uma resposta e empurrou a panela de ferro para a ponta da barra.

           ‑ Alguns feijões e um pouco de carneiro, lá dentro ‑ disse ele.

           ‑ Oh, muito obrigada! ‑ exclamou Yvette. Porém, tomando subitamente coragem, acrescentou:

           - Bem, sim, apenas um bocadinho, se me permitem. - Dirigiu‑se à bicicleta para ir desamarrar o seu almoço e ele subiu os degraus da sua própria carroça. Passado algum tempo, apareceu de novo, limpando as mãos a uma toalha.

           ‑ Quer subir e lavar as mãos? ‑ perguntou.

           ‑ Não, creio que não ‑ respondeu ela. ‑ Tenho as mãos limpas.

           O cigano atirou fora a água em que se lavara e caminhou pela estrada fora levando um jarro alto, de latão, para ir buscar água limpa da fonte que borbulhava para um pequeno lago, levando também uma chávena para a recolher.

           Quando regressou, colocou o jarro e a chávena junto do fogo e procurou para si um tronco curto, onde se sentou. As crianças sentaram‑se no chão, perto do fogo, todas juntas, comendo os feijões e bocados de carne com uma colher ou com os dedos. O homem sentado em cima do tronco comeu em silêncio, absorto. A mulher fez café na panela preta sobre o tripé, manquejando pelos degraus acima para ir buscar chávenas. Havia silêncio no acampamento. Yvette estava sentada no banco, tirara o chapéu e sacudira o cabelo ao sol.

           ‑ Quantos filhos tem? ‑ perguntou Yvette de repente.

           ‑ Digamos cinco ‑ respondeu ele lentamente, enquanto a olhava nos olhos.

           E de novo a ave que era o seu coração afundou‑se e pareceu morrer. Distraidamente, como que num sonho, recebeu dele a chávena de café. Estava consciente apenas da sua silenciosa figura, sentada ali em cima do tronco, como se fosse uma sombra, com uma chávena de esmalte nas mãos, bebendo o café em silêncio. A vontade fugira‑lhe das pernas, ele tinha poder sobre ela: a sombra dele estava nela.

           O cigano, enquanto soprava o café quente, tinha consciência apenas de uma coisa, do misterioso fruto da sua virgindade, a perfeita candura do seu corpo.

           Acabou por pousar a chávena de café junto do fogo e por se virar para olhar para Yvette. O seu cabelo caía‑lhe sobre a face, enquanto tentava beber da chávena quente. No seu rosto havia aquela terna aparência de sono, que tem a flor adormecida quando se abre por completo e, ela, como uma misteriosa flor temporá, estava inteiramente desabrochada, como uma flor branca que abre as suas três pétalas como asas, para um voo no sonhar acordado da sua breve florescência. O sonhar acordado da sua virgindade totalmente desabrochada, fascinante como uma branca flor brilhando ao sol, caíra sobre ela.

           O cigano, absolutamente consciente dela, esperava‑a como o corpo de uma sombra, tal como a sombra espera e está sempre presente.

           Por fim, a voz dele disse, sem quebrar o encantamento:

           ‑ Quer ir agora à minha carroça para lavar as mãos?

           Os olhos que pareciam de criança, sonhando acordados com o seu momento de perfeita virgindade, olharam para os dele, sem verem. Estava apenas consciente da escura e estranha emanação que vinha dele e que lhe banhava as pernas, deixando‑a inteiramente sem vontade própria. Estava consciente dele como um poder negro, completo, total.

           ‑ Creio que sim ‑ respondeu.

           O cigano levantou‑se silenciosamente, depois virou‑se para falar, num tom baixo e de comando, para a velha. A seguir olhou de novo para Yvette e, colocando o seu poder sobre ela, fez com que não sentisse o peso do seu próprio fardo, nem o peso dos seus actos.

           ‑ Venha! ‑ disse.

           Ela seguiu‑o, muito simplesmente, seguiu o silencioso, secreto e dominador movimento do corpo dele na sua frente. Não lhe custou nada. Ela entrara na vontade dele.

           O cigano encontrava‑se no alto dos degraus e ela em baixo, quando começou a tomar consciência de um som intruso. Imobilizou‑se junto dos degraus. Vinha aí um automóvel. Ele imobilizou‑se também no alto dos degraus, olhando em volta de uma maneira estranha. A velha disse qualquer coisa, asperamente, à medida que o som aumentava. O carro aproximava‑se e ia a passar.

           Ouviram então o grito de uma voz de mulher e o ranger dos travões do carro. Detivera‑se, logo a seguir à pedreira.

           O cigano desceu os degraus, depois de ter fechado a porta da carroça.

           ‑ Quer pôr o chapéu? ‑ disse‑lhe ele.

           Obedientemente, dirigiu‑se para o banco que se encontrava junto do fogo e pegou no chapéu. Ele sentou‑se perto do varal da caravana, sombrio, e pegou nas ferramentas. O ruído do bater do martelo, rápido e zangado, como o som de uma pequena metralhadora, quebrou‑se quando se ouviu uma voz de mulher a gritar:

           ‑ Podemos aquecer as mãos na fogueira?

           A mulher avançou, vestida com um elegante mas volumoso casaco de peles de zibelina. Seguia‑a um homem, num sobretudo azul, tirando as luvas e puxando por um cachimbo.

           ‑ A fogueira parecia dali tão tentadora - disse a mulher vestida com o casaco de muitas peles de animais mortos, exibindo um largo sorriso afectado, meio condescendente, meio hesitante, dirigido a todos eles.

           Ninguém disse uma palavra.

           A mulher avançou para o fogo, estremecendo um pouco dentro do casaco com o frio. Tinham viajado num automóvel aberto.

           Era uma mulher muito pequena, com um nariz bastante grande, provavelmente uma judia. Pequenina como uma criança, naquele casaco de zibelina, parecia muito mais volumosa do que deveria ser, e os seus grandes olhos castanhos, um pouco ressentidos, de uma judia estragada com mimos, miravam‑nos de uma maneira curiosa, por cima das suas dispendiosas roupas.

           Baixou‑se junto do fogo, esticando as pequenas mãos, onde brilhavam diamantes e esmeraldas.

           ‑ Uf! ‑ exclamou, estremecendo. ‑ Claro que não devíamos ter vindo num carro aberto! Mas o meu marido nem sequer me deixa dizer que tenho frio!

           Virou‑se para ele com os seus enormes olhos de criança ressentida que tinham ainda a cautelosa astúcia de uma burguesa judia, provavelmente rica.

           Aparentava estar apaixonada, numa curiosa maneira judaica, por aquele homem grande e louro que olhava para ela com os seus abstractos olhos azuis que pareciam não terem pestanas, enquanto um pequeno sorriso lhe encovava as faces curiosamente macias e O sorriso não tinha qualquer espécie de significado. Era um daqueles homens que instantaneamente relacionamos com desportos de Inverno, esqui e patinagem. Atlético, desligado da vida, enchia devagar o cachimbo, premindo o tabaco com dedos compridos, poderosos e avermelhados.

           A judia olhou para ele para ver se tinha alguma resposta da sua parte. Nenhuma, a não ser aquele estranho sorriso parado. Virou‑se de novo para o fogo, inclinando as sobrancelhas e olhando para as mãos abertas, brancas e pequenas.

           O homem tirou o sobretudo de espesso forro e apareceu com uma daquelas bonitas camisolas de malha, de desenhos bastante nítidos, em amarelo, cinzento e preto, por cima de calças bem talhadas, um pouco largas, e as duas peças eram muito dispendiosas. Tinha uma figura magnífica, com um peito proeminente, atlético. Como um campista experiente, começou a atiçar o fogo, silenciosamente, tal como um Soldado em campanha.

           ‑ Acha que eles se importam se eu meter algumas pinhas para avivar as chamas? ‑ perguntou a Yvette, observando, silencioso, o cigano que martelava.

           ‑ Até gostarão, suponho ‑ respondeu Yvette, num torpor, enquanto a magia do cigano a abandonava lentamente e ela se sentia como que fracassada e vazia.

           O homem dirigiu‑se ao carro e voltou com um pequeno saco de pinhas, de onde tirou uma mão‑cheia.

           ‑ Importa‑se que anime o fogo? ‑ perguntou ao cigano.

           ‑ O quê?

           ‑ Importa‑se que atice o fogo com as pinhas?

           ‑ Faça favor! ‑ respondeu o cigano.

           O homem começou a colocar as pinhas, cuidadosamente, por cima das brasas vermelhas. Em breve, incendiaram‑se uma a uma e arderam como rosas de fogo, com um cheiro doce.

           ‑ Ah, belo! Belo! ‑ gritou a pequena judia, olhando de novo para cima, para o seu homem. Ele olhou para ela, para baixo, de uma maneira calorosa, como o sol sobre o gelo.

           ‑ Não gosta do fogo? Oh, eu adoro‑o! ‑ gritou a pequena judia para Yvette, por cima do martelar.

           O martelar aborrecia‑a. Olhou em volta, com um ligeiro estremecer das pequenas e finas sobrancelhas, como se fosse pedir ao homem para parar. Yvette olhou também. O cigano estava dobrado sobre a sua vasilha de cobre, de pernas abertas, cabeça baixa, o braço ágil levantado. Parecia já tão distante dela!

           O homem que acompanhava a pequena judia caminhou calmamente até junto do cigano e ficou de pé em silêncio a olhar para baixo, para ele, segurando o cachimbo junto da boca. Eram agora dois homens, como dois cães que não se conhecessem e tivessem que se farejar um ao outro.

           ‑ Estamos em lua‑de‑mel ‑ disse a pequena judia, olhando para Yvette com um ar malicioso e ressentido. Falou num tom bastante agudo, numa voz de desafio, como se fosse um pássaro, um gaio ou um corvo a chamar.

           ‑ Ah, sim? ‑ interrompeu Yvette.

           ‑ Sim! Antes mesmo de nos casarmos! Já ouviu falar de Simon Fawcett? ‑ Referia‑se a um rico e conhecido engenheiro do Norte. ‑ Bom, sou a senhora Fawcett e ele está a tratar do nosso divórcio!

           Olhou para Yvette com um curioso ar de desafio e anseio.

           ‑ Ah, sim? ‑ repetiu Yvette.

           Compreendia agora o olhar de ressentimento e desafio que se via nos grandes olhos castanhos e infantis da pequena judia. Ela era honesta, coitada, mas talvez a sua honestidade fosse demasiado racional. Talvez em parte explicasse a notória falta de escrúpulos do bem conhecido Simon Fawcett.

           ‑ Sim! Logo que obtenha o divórcio, vou casar‑me com o major Eastwood.

           As cartas dela estavam agora todas na mesa. Não pretendia enganar ninguém.

           Por detrás dela, os dois homens conversavam, com poucas palavras. Virou‑se e fixou o cigano com os seus grandes olhos castanhos.

           Este olhava para cima, como que timidamente, para o tipo grande com a camisola vistosa que estava ali de cachimbo na boca, homem para homem, olhando para baixo.

           ‑ Com a cavalaria de Arrás ‑ disse o cigano, em voz baixa.

           Estavam a falar da guerra. O cigano servira na artilharia, no próprio regimento do major.

           ‑ Em schoner Mensch! ‑ disse a judia. ‑ Um homem bonito, não é?

           Para ela também o cigano era apenas um homem vulgar, um “tommy”.

           ‑ Muito bonito! ‑ concordou Yvette.

           ‑ Vai de bicicleta? ‑ perguntou a judia, num tom de surpresa.

           ‑ Sim! Vou para Papplewick. O meu pai é pároco de Papplewick, o senhor Saywell!

           ‑ Ah! ‑ exclamou a judia. ‑ Eu conheço! Um escritor inteligente! Muito inteligente! Li coisas dele!

           As pinhas já se tinham consumido inteiramente, a labareda era agora um monte de rosas de fogo fragmentadas e desagregadas. O céu estava a ficar enevoado. Talvez nevasse, lá mais para a noite.

           O major aproximou‑se e enfiou o sobretudo.

           ‑ Pensei reconhecer a cara dele ‑ observou. - Foi um dos nossos impedidos, um homem de primeira a lidar com os cavalos.

           ‑ Olhe! ‑ disse a judia para Yvette. ‑ Podemos levá‑la até Normanton. Vivemos em Scoresby. Podemos prender a bicicleta na traseira do carro.

           ‑ Bom, creio que vou ‑ concordou Yvette.

           ‑ Venham! ‑ chamou a judia, virando‑se para as crianças que espreitavam, enquanto o homem louro transportava a bicicleta. ‑ Venham! Venham cá! chamou outra vez.

           E pegando na bolsa exibiu um xelim.

           ‑ Venham! ‑ gritou. ‑ Venham e peguem nisto!

           O cigano abandonara o trabalho e fora para a sua carroça. A velha chamava asperamente pelas crianças. Os dois mais velhos aproximaram‑se devagar. A judia deu‑lhes duas peças de prata, um xelim e um florim, que tinha na bolsa e mais uma vez se ouviu a voz áspera da velha, invisível, na carroça.

           O cigano desceu da carroça e caminhou calmamente em direcção ao fogo. A judia examinou‑lhe o rosto com a peculiar ousadia burguesa da sua raça.

           ‑ Esteve na guerra, no regimento do major Eastwood!

           ‑ Sim, senhora!

           ‑ Imaginem, e agora estão os dois aqui!... Vai nevar... ‑ disse ela, olhando para o céu.

           ‑ Mais tarde ‑ informou o cigano, olhando também para o céu.

           Também ele se tornara inacessível. A sua raça era muito antiga, na sua peculiar batalha com a sociedade estabelecida há muito que não obtinha uma vitória. Só de vez em quando conseguia marcar pontos.

           Porém, desde a guerra, a velha e desportiva hipótese de marcar um ponto de vez em quando ficara muito reduzida, mas não se falava em submissão. Os olhos do cigano mantinham o olhar atrevido, mas agora endurecido e dirigido para longe, o toque de intimidade insolente desaparecera. Ele passara pela guerra.

           Olhou para Yvette.

           ‑ Vai regressar no automóvel? ‑ perguntou.

           ‑ Sim! ‑ respondeu ela, com um maneirismo bastante afectado. ‑ O tempo está muito traiçoeiro!

           ‑ O tempo está traiçoeiro! ‑ repetiu ele, olhando para o céu.

           Ela não era de maneira nenhuma capaz de dizer quais seriam os sentimentos dele e, na verdade, também não estava muito interessada. Agora, sentia‑se bastante mais fascinada pela pequena judia, mãe de duas crianças, que estava a tirar a sua riqueza ao engenheiro muito conhecido e a transferi‑la para o pobretanas do jovem desportista major Eastwood, que devia ser cinco ou seis anos mais novo do que ela. Muito intrigante!

           O homem louro regressou.

           ‑ Um cigarro, Charles! ‑ exclamou a pequena judia, num queixume.

           Puxou da cigarreira com movimentos lentos e atléticos. Havia nele qualquer coisa sensível, que o fazia lento, cauteloso, como se já se tivesse magoado de encontro a alguém. Deu um cigarro à mulher, depois um a Yvette e a seguir ofereceu a cigarreira, muito simplesmente, ao cigano. Este tirou um cigarro.

           ‑ Obrigado, senhor!

           Depois, dirigiu‑se, calmamente, para o fogo e, parando, acendeu o cigarro nas brasas vermelhas. As duas mulheres observaram‑no.

           ‑ Então, adeus! ‑ disse a judia, com o seu estranho ar de camaradagem burguesa. ‑ Obrigado pelo calor do fogo.

           ‑ O fogo é de todos ‑ observou o cigano.

           A criança mais pequena aproximou‑se dele, com pés inseguros.

           ‑ Adeus! ‑ disse Yvette. ‑ Espero que não venha a nevar, não é bom para vocês.

           ‑ Não nos importamos com um bocado de neve - observou o cigano.

           ‑ Não? ‑ perguntou Yvette. ‑ Pois eu pensava que sim!

           ‑ Não! ‑ respondeu o cigano.

           Com um ar imponente, Yvette atirou o lenço por cima dos ombros e seguiu o casaco de peles da judia, que parecia caminhar por si próprio, sobre pernas pequeninas.

 

Yvette estava muito impressionada com os Eastwoods, pois era assim que ela lhes chamava. A pequena judia tinha agora que esperar apenas três meses pelo veredicto final. Ousadamente, alugara uma pequena vivenda de Verão, junto dos pântanos de Scoresby, não muito longe das colinas. Estava‑se agora em pleno Inverno e ela e o major viviam num relativo isolamento, sem qualquer criada. Ele já se tinha demitido da sua comissão de serviço no exército e chamava‑se a si mesmo o senhor Eastwood. De facto, eles eram já, para as pessoas vulgares, o senhor e a senhora Eastwood.

           A pequena judia tinha trinta e seis anos de idade e as suas filhas já tinham passado dos doze anos.

           O marido concordara em que ficassem a cargo dela, assim que ela se casasse com Eastwood.

     Pois ali estavam eles, este estranho casal, a pequenina e delicada judia com os seus enormes olhos ressentidos, a sua espessa cabeleira negra, encaracolada e cuidadosamente tratada, uma coisinha elegante à sua maneira, e o homem enorme de olhos claros, poderoso, certamente restos de uma qualquer estranha raça dinamarquesa, vivendo juntos numa casa pequena e moderna, perto do pântano e das colinas, e tratando eles próprios da lida da casa.

           Era um lar curioso. A vivenda fora alugada mobilada, mas a pequena judia trouxera consigo as suas peças de mobília preferidas. Tinha um gosto especial pelo rococó, por estranhos armários cheios de curvas e embutidos de madrepérola, tartaruga, ébano e o diabo a quatro; estranhas cadeiras, altas e vistosas, vindas de Itália, com brocados num tom verde‑mar; espantosas figuras de santos com roupas entalhadas, ricamente coloridas e com rostos cor‑de‑rosa; prateleiras cheias de extraordinárias estatuetas da Saxónia e de Capo di Monte; e, finalmente, um estranho sortido de espantosas gravuras pintadas em vidro, provavelmente dos primeiros anos do século XIX ou dos finais do século XVIII.

           Foi neste interior assombroso e abarrotado que ela recebeu Yvette, quando esta a foi visitar às escondidas. Tinham instalado na vivenda um perfeito sistema de fogões, pelo que todos os cantos estavam quentes. E ali deambulava a minúscula figurinha rococó da própria judia, enfiada num vestido pequeno e perfeito e num avental, colocando fatias de presunto no prato, enquanto o grande pássaro das neves que era o major, de camisola branca e calças cinzentas, cortava pão, misturava a mostarda, preparava o café e fazia tudo o resto. Até fora ele quem preparara o prato de lebre estufada que se seguiu às carnes frias e ao caviar.

           As pratas e a louça da China eram realmente valiosas, faziam parte do enxoval da noiva. O major bebeu cerveja por uma caneca de prata, a pequena judia e Yvette beberam champanhe por belos copos, o major serviu o café. E conversaram. A pequena judia tinha uma indignação ardente contra o seu primeiro marido. Ela era intensamente moral, tão moral, que era divorciada. O major também, estranha ave invernosa, tão poderoso, tão bonito também, à sua maneira, mas pálido em volta dos olhos, como se não tivesse pestanas, também ele tinha uma curiosa indignação contra a vida, por causa da falsa moralidade. Aquele peito poderoso e atlético escondia uma espécie de ira glacial. A sua ternura para com a pequena judia baseava‑se no seu sentido de justiça ultrajada e a abstracta moralidade do Norte arrastava‑o, como um vento estranho, para o isolamento.

           Lá mais para o fim da tarde, foram para a cozinha, o major arregaçou as mangas, mostrando os poderosos braços, brancos e atléticos, e lavou os pratos hábil e cuidadosamente, enquanto as mulheres os limpavam. Não era por acaso que ele tinha os músculos treinados. Depois deu a volta a toda a casa, cuidando dos diversos fogões, que só necessitavam de uns momentos de atenção durante todo o dia. A seguir, foi buscar o pequeno automóvel fechado e conduziu Yvette a casa, debaixo de chuva, deixando‑a na porta das traseiras, uma pequena cancela entre as coníferas, onde uns degraus de terra batida conduziam até à casa.

         Yvette estava realmente assombrada com este casal.

           ‑ É verdade, Lucille! ‑ disse. ‑ Encontro sempre as pessoas mais extraordinárias! ‑ Depois deu‑lhe uma descrição detalhada.

           ‑ Parecem ser muito simpáticos! ‑ comentou Lucilie. ‑ Gosto do major a fazer a lida da casa e, ao mesmo tempo, continuar a parecer tão Bond Street. Creio que, quando eles estiverem casados, será divertido conhecê‑los.

           ‑ Sim! ‑ disse Yvette, distraída. ‑ Sim, sim, será!

           A própria estranheza da ligação entre a pequena judia e o jovem e atlético oficial de olhos claros levou‑a a pensar de novo no cigano, que estivera inteiramente ausente da sua consciência, mas que agora regressava com súbita e dolorosa força.

           ‑ O que é, Lucille ‑ perguntou ‑, que junta as pessoas? Pessoas como os Eastwoods, por exemplo? E o pai e a mãe, tão assustadoramente instável?... E aquela cigana que me leu a sina e que parecia um grande cavalo, e o cigano, com um ar tão fino e delicado? O que será?

           ‑ Suponho que é o sexo, ou qualquer coisa assim - respondeu Lucille.

           ‑ Sim, o que será? Não é com certeza uma coisa vulgar, como a sensualidade vulgar, sabes, Lucille. Não é!

           ‑ Não, suponho que não é ‑ disse Lucille. ‑ Pelo menos, suponho que não é necessário que seja.

           ‑ Porque, sabes, os tipos vulgares, aqueles que fazem com que uma rapariga se sinta baixa, ninguém se preocupa muito com eles. Ninguém sente nenhuma ligação com eles. No entanto, supõe‑se que eles são do tipo sexual.

           ‑ Suponho que há duas espécies de sexo, o inferior e o outro tipo, o que não é inferior. É tremendamente complicado, na verdade! Repugnam‑me os tipos vulgares. E nunca sinto nada de sexual... ‑ respondeu Lucille, salientando a palavra com um tom de grande aversão.... pelos tipos que não são vulgares. Talvez eu não tenha sexo.

           ‑ É isso mesmo! ‑ disse Yvette. ‑ Talvez nenhuma de nós tenha. Talvez na verdade não tenhamos nenhum sexo que nos possa ligar com os homens.

           ‑ Que mal que isso soa: ligar com os homens! - exclamou Lucille, com repulsa. ‑ Não odiarias estar ligada com os homens desse modo? Oh, creio que é uma pena que tenha de haver sexo! Seria muito melhor se pudéssemos continuar a ser homens e mulheres, mas sem essa espécie de coisa.

           Yvette ficou a meditar. Lá muito no fundo, em último plano, estava a imagem do cigano, via‑o quando ele olhara para ela, quando ela dissera: “O tempo está traiçoeiro.” Quando o negava, sentia‑se quase como São Pedro quando o galo cantou três vezes. Ou antes, ela não negava o cigano; não se preocupava com a parte que ele desempenhava no espectáculo. Era uma qualquer parte sua, escondida, que ela negava: aquela parte que misteriosa e inconfessadamente respondia ao cigano. E era um estranho e brilhante galo preto que cantava, troçando dela.

           ‑ Sim! ‑ concordou, com o seu ar abstracto.

     Sim! O sexo é um terrível aborrecimento, sabes, Lucilie. Quando não o tens, sentes que tens de o ter, de qualquer maneira. E quando o tens, ou se o tens ‑            levantou a cabeça e franziu o nariz desdenhosamente ‑, então, odeia‑lo.

           ‑ Oh, não sei! ‑ exclamou Lucille. ‑ Penso que adoraria estar terrivelmente apaixonada por um homem!

           ‑ Tu pensas que sim! ‑ contestou Yvette, franzindo o nariz mais uma vez. ‑ Mas se estivesses, já não pensavas assim!

           ‑ Como é que sabes? ‑ perguntou Lucille.

           ‑ Bem, na verdade não sei ‑ respondeu Yvette. - Mas creio que será assim. Sim, penso que sim!

           ‑ Oh, é muito possível! ‑ disse Lucilie, enfastiada. ‑ Mas de qualquer modo tínhamos a certeza de que viríamos a deixar de estar apaixonadas, o que tornaria tudo num mero aborrecimento.

           ‑ Sim ‑ concordou Yvette ‑, é um problema.

           ‑ Oh, não interessa. Para já não é um problema para nós. Nenhuma de nós está verdadeiramente apaixonada e se calhar nunca o estaremos, portanto, o problema está resolvido.

           ‑ Não estou assim tão certa disso! ‑ disse Yvette, prudentemente. ‑ Não estou assim tão certa. Acredito que, um dia, ficarei terrivelmente apaixonada.

           ‑ Talvez nunca ‑ disse Lucille brutalmente. ‑ Isso que dizes é o que a maioria das velhas solteironas estão sempre a pensar.

           Yvette olhou para a irmã com olhos pensativos, mas aparentemente despreocupados.

           ‑ Ah, sim? ‑ disse. ‑ Pensas na verdade que sim, Lucille? Que coisa terrível para elas, pobrezinhas! Mas por que é que se ralam?

           ‑ Porquê? ‑ perguntou Lucille. ‑ Talvez não se ralem de verdade... Talvez seja só porque as pessoas dizem: “Pobrezinha, não foi capaz de arranjar um homem.”

           ‑ É capaz de ser! ‑ concordou Yvette. ‑ Importam‑se com as coisas terríveis que as pessoas dizem sempre acerca das solteironas. Que vergonha!

           ‑ De qualquer modo, nós divertimo‑nos e temos montes de rapazes que andam atrás de nós ‑ disse Lucille.

           ‑ Sim! ‑ concordou Yvette. ‑ Sim! Mas eu não era capaz de casar com nenhum deles.

           ‑ Nem eu ‑ retorquiu Lucille. ‑ Por que é que haveríamos de o fazer? Por que é que havemos de nos preocupar com o casamento, quando nos divertimos tanto com os rapazes, que são bons tipos e, temos de o dizer, Yvette, terrivelmente amáveis e decentes para connosco.

           ‑ Oh, isso são! ‑ concordou Yvette, distraída.

           ‑ Creio que é tempo de começar a pensar em casar com alguém ‑ disse Lucille ‑, quando sentes que já não te estás a divertir. Então, o melhor é casar e assentar.

           ‑ É mesmo! ‑ concordou Yvette.

           Mas agora, por debaixo da sua branda e suave amabilidade, estava aborrecida com Lucille. Subitamente, apetecia‑lhe virar as costas à irmã.

           Além disso, olhem para as olheiras da pobre Lucille, e para o anseio que se vê nos seus maravilhosos olhos. Oh, se um homem simpático, amável e protector quisesse casar com ela! E se Lucilie lho permitisse!

            Yvette não falou ao pároco, nem à avó, a respeito dos Eastwoods. Isso serviria apenas para provocar uma série de falatórios, que ela detestava. O pároco, só por si, não se importaria. Mas também ele advogaria a necessidade de se manterem o mais afastados possível da serpente venenosa e de muitas cabeças que é a língua do povo.

           ‑ Mas eu não quero que aqui venha, se o seu pai não sabe ‑ gritou a pequena judia.

           ‑ Suponho que terei de lho dizer ‑ respondeu Yvette. ‑ Na verdade tenho a certeza de que ele não se importa. Mas se o soubesse, teria de se importar, suponho.

           O jovem oficial olhava para ela com um estranho divertimento, com os seus olhos atentos e sem emoções, como os de um pássaro. Também ele estava a caminho de se apaixonar por Yvette. Era a sua peculiar ternura virginal e o seu ar perdido, abstracto, de quem não liga às coisas que o atraíam.

           Ela tinha consciência do que se estava a passar, o que a levava a cuidar mais de si mesma. Eastwood espicaçava‑lhe a imaginação. Um oficial tão jovem e elegante, com tanta classe, tão calmo e tão espantoso, com um automóvel, um verdadeiro campeão de natação, era intrigante vê‑lo sossegada e silenciosamente a lavar pratos, fumando cachimbo, fazendo o trabalho de um modo tão atento e perfeito. Ou então, com o mesmo cuidado interessado com que investigava as misteriosas entranhas de um automóvel, preparando lebre estufada na cozinha da vivenda. Depois, saía para o frio da rua e limpava o carro até ele parecer uma coisa viva, como um gato depois de se ter lambido todo. Após isto tudo, entrava para falar, de uma maneira tão despretensiosa e modesta, com a pequenina judia. E, aparentemente, nunca se aborrecia. Sentado à janela com o seu cachimbo, quando o tempo estava mau, silencioso durante horas, abstracto, meditando, embora o seu corpo atlético continuasse alerta, apesar da sua imobilidade.

           Yvette não o namoriscava, mas gostava dele.

           ‑ Mas, então, e o seu futuro? ‑ perguntou‑lhe.

           ‑ Que é que há com o meu futuro? ‑ inquiriu ele, tirando o cachimbo da boca, um ligeiro despontar de um sorriso sem emoções nos seus olhos de pássaro.

           ‑ Uma carreira! Então os homens não têm todos de tentar a sua sorte numa carreira? ‑ Olhou‑o, com uma singular inocência.

          ‑ Sinto‑me perfeitamente bem hoje e estarei assim amanhã ‑ disse ele, com olhos frios e decididos.

     Por que é que o meu futuro não há‑de ser uma sucessão de hojes e amanhãs?

           Olhou para ela, numa interrogação.

           ‑ Tem razão, odeio empregos e toda essa faceta da vida ‑ disse Yvette, mas estava a pensar no dinheiro da judia.

           A isto, ele não deu resposta. As suas iras eram suaves, macias como a neve, das que abafam confortavelmente a alma.

           Já tinham chegado ao ponto de filosofarem juntos. A pequena judia parecia um pouco abatida. Era curiosamente inocente e nada possessiva, na sua atitude para com o homem. Nem sequer era um pouco malévola para com Yvette. Ficava apenas abatida e silenciosa.

           Yvette, num súbito impulso, pensou que talvez fosse melhor justificar‑se.

           ‑ Creio que a vida é terrivelmente difícil ‑ disse.

           ‑ É difícil! ‑ exclamou a judia.

           ‑ E o que é abominável é toda a gente esperar que nos apaixonemos e que casemos! ‑ disse Yvette, torcendo o nariz.

           ‑ Não quer apaixonar‑se e casar? ‑ perguntou a judia, com os olhos grandes e brilhantes, plenos de uma espantada censura.

           ‑ Não, não particularmente! ‑ respondeu Yvette.

     ‑ Em especial quando sentimos que não podemos fazer mais nada. É uma horrível armadilha em que temos de nos meter.

           ‑ Mas você não sabe o que é o amor? ‑ perguntou a judia.

           ‑ Não! ‑ respondeu Yvette. ‑ E você sabe?

           ‑ Eu! ‑ berrou a minúscula judia. ‑ Eu! Meu Deus, então não sei! ‑ Olhou com expressão pensativa para Eastwood, que fumava o seu cachimbo, com as covinhas a verem‑se na sua face suave e impecável. Tinha uma pele muito fina e macia, ainda de maneira nenhuma marcada pelo clima, pelo que o seu rosto parecia nu como o de um bebé. Mas não era um rosto redondo, era suficientemente característico e ficava com covinhas irónicas, como uma máscara cómica mas gelada, parada. ‑ Quer dizer que não sabe o que é o amor? ‑ insistiu a judia.

           ‑ Não! ‑ respondeu Yvette, com despreocupada candura. ‑ Não creio que saiba! É assim tão mau, na minha idade?

           ‑ Nunca houve nenhum homem que fizesse com que se sentisse muito, muito diferente? ‑ perguntou a judia, virando de novo os seus enormes olhos para Eastwood, que fumava, com um ar de quem não está envolvido na conversa.

           ‑ Não creio que exista ‑ respondeu Yvette. ‑ A não ser... sim!... a não ser que seja aquele cigano - acrescentou, a cabeça caída para o lado, pensativa.

           ‑ Qual cigano? ‑ perguntou a pequena judia.

           ‑ Aquele que foi soldado e tomava conta dos cavalos no regimento do major Eastwood, durante a guerra ‑ respondeu Yvette friamente.

           A pequena judia olhava para Yvette com enormes olhos de espanto.

           ‑ Não está apaixonada por aquele cigano! ‑ exclamou.

           ‑ Bom! ‑ respondeu Yvette. ‑ Não sei. Ele é o único que me faz sentir... diferente! O único!

           ‑ Mas como? Como? Já alguma vez lhe disse alguma coisa?

           ‑ Não! Não!

           ‑ Então como? Que é que ele fez?

           ‑ Oh, só olhou para mim!

           ‑ Como?

           ‑ Bom, sabe, não sei. Mas diferente! Sim, diferente! De uma maneira muito diferente da que qualquer outro homem tenha olhado para mim.

           ‑ Mas como é que ele olhou para si? ‑ insistiu a judia.

           ‑ Bom... como se ele na verdade, mas, na verdade, me desejasse ‑ respondeu Yvette, a sua face meditativa a parecer um botão de flor.

           ‑ Mas que tipo mais vil! Que direito tem ele de a olhar dessa maneira? ‑ gritou a indignada judia.

           ‑ O gato pode olhar para o rei ‑ interpôs calmamente o major, cujo rosto apresentava agora sorrisos como os do focinho de um gato.

           ‑ Pensa que ele não o devia ter feito? ‑ perguntou Yvette, virando‑se para o major.

           ‑ Claro que não! Um cigano, com meia dúzia de mulheres sujas a seguirem‑no! Claro que não! ‑ gritou a minúscula judia.

           ‑ Duvido muito! ‑ exclamou Yvette. ‑ Porque, na verdade, foi maravilhoso! E foi uma coisa totalmente diferente na minha vida.

           ‑ Penso ‑ disse o major, tirando o cachimbo da boca ‑ que o desejo é a coisa mais maravilhosa da vida. Quem quer que seja que o possa sentir é rei e não há ninguém de quem eu sinta mais inveja. ‑ Tornou a meter o cachimbo na boca.

           A judia olhou para ele, estupefacta.

           ‑ Mas, Charles! ‑ gritou. ‑ Todos os homens vulgares, em Halifax, não sentem mais do que isso!

           Tirou de novo o cachimbo da boca.

           ‑ Isso é apenas apetite ‑ contrapos.

           Tornou a meter o cachimbo na boca.

           ‑ Pensa então que o cigano e... uma coisa a sério? ‑ perguntou‑lhe Yvette.

           Respondeu encolhendo os ombros:

           ‑ Não me cabe a mim dizê‑lo. Se eu estivesse no seu lugar, sabia‑o, não andaria a fazer perguntas a outras pessoas.

           ‑ Sim... mas... ‑ gaguejou Yvette.

           ‑ Charles! Estás enganado! Como é que podia ser a sério? Como se ela pudesse casar‑se com ele e ir viver numa carroça!

           ‑ Não falei em casar com ele ‑ disse Charles.

           ‑ Ou um caso amoroso! Mas é monstruoso! Que pensaria ela de si mesma!... Isso não é amor! Isso... isso é prostituição!

           Charles ficou a fumar durante alguns instantes.

           ‑ Aquele cigano era o melhor homem que nós tínhamos para lidar com os cavalos. Quase morreu de pneumonia. Pensei que ele estava morto. Para mim, é um homem ressuscitado. Mas, no fim de contas, também eu sou um homem ressuscitado. ‑ Olhou para Yvette. ‑ Fiquei enterrado debaixo de neve durante vinte e quatro horas ‑ disse. ‑ E isso não foi o pior de tudo quando me desenterraram.

           Houve uma pausa gelada na conversação.

           ‑ A vida é terrível! ‑ disse Yvette.

           ‑ Desenterraram‑me por acaso ‑ acrescentou ele.

           ‑ Oh! ‑ exclamou Yvette, arrastadamente. Pode ter sido o destino, sabe.

           A isto, ele não respondeu.

 

O pároco teve conhecimento da intimidade de Yvette com os Eastwoods e ela ficou um tanto assustada com o resultado. Pensara que ele não se iria importar. Verbalmente, na sua maneira de ser quase humorística, era um homem pouco convencional, um bom companheiro. Como ele próprio se classificava, era um anarquista conservador, o que queria dizer que era, como uma grande parte das pessoas, um simples descrente. A anarquia era extensiva à sua maneira de falar jocosa e aos seus pensamentos secretos. O conservadorismo baseava‑se num medo animal da anarquia e controlava todas as suas acções. Os seus pensamentos, os secretos, eram algo de meter medo. Por isso, na sua vida, mostrava‑se fanaticamente receoso de tudo o que fugisse ao convencional.

           Quando o seu conservadorismo e a sua abjecta espécie de medo vinham ao de cima, ele levantava sempre um pouco o lábio superior e mostrava um bocado dos dentes, numa espécie de rosnar de cão.

           ‑ Ouvi dizer que os últimos amigos que arranjaste são a semidivorciada senhora Fawcett e o proxeneta Eastwood ‑ disse ele a Yvette.

           Ela não sabia o que era um proxeneta, mas sentiu o veneno nas presas do pároco.

           ‑ Conheço‑os mal ‑ respondeu ela. ‑ São muito simpáticos, na verdade. Casar‑se‑ão dentro de cerca de um mês.

           O pároco olhou com ódio para o seu rosto despreocupado. Algures, lá muito no seu íntimo, estava amedrontado, nascera amedrontado. E aqueles que nascem amedrontados são escravos naturais, a quem um instinto profundo os leva a recear, com um medo venenoso, todos aqueles que subitamente podem vir a rebentar a coleira de escravos que trazem em redor do pescoço.

           Fora por essa razão que o pároco tão abjectamente se torcera todo e tão abjectamente se continuava ainda a torcer perante A‑que‑fora‑Cynthia: por causa do medo que o escravo sentia pelo seu desprezo, o desprezo de uma criatura nascida livre por uma criatura nascida escrava.

           Também Yvette tinha a qualidade dos nascidos livres. Também ela um dia o viria a saber e então colocaria rapidamente, em volta do pescoço dele, o colar do seu desprezo, o colar do escravo.

           Fá‑lo‑ia, porém? Desta feita e pela primeira vez, iria lutar até à morte, porque o escravo dentro dele estava encurralado como um rato e com a coragem de um rato encurralado.

           ‑ Suponho que eles são do teu tipo! ‑ rosnou ele.

           ‑ Bem, pois são, na verdade ‑ disse ela com aquela sua jovialidade confusa. ‑ Gosto muito deles. Parecem tão verdadeiros, sabe, tão honestos.

           ‑ Tens uma peculiar noção de honestidade! ‑ escarneceu ele. ‑ Um jovem parasita que foge com uma mulher mais velha do que ele para poder viver do dinheiro dela! A mulher a abandonar o lar e as crianças! Não sei onde é que foste buscar essa tua ideia de honestidade. Não de mim, espero... e pareces saber muita coisa a respeito deles, para uma pessoa que diz que mal os conhece. Onde é que os encontraste?

           ‑ Quando saí, para passear de bicicleta. Vinham de automóvel e começámos a conversar. Ela disse‑me imediatamente quem era, para que não houvesse qualquer engano. Ela é honesta.

           A pobre Yvette lutava para se manter firme e aguentar.

           ‑ E, depois disso, quantas vezes os viste?

           ‑ Oh, só lá estive duas vezes.

           ‑ Lá, onde?

           ‑ Na casa deles, em Scoresby.

           O reitor olhou para Yvette com ódio, como se quisesse matá‑la. Recuou, afastando‑se dela, até tocar nas cortinas da janela do seu gabinete, como um rato encurralado num canto. Algures, no fundo da sua mente, pensava em indizíveis depravações a respeito da sua filha, tal como as pensara a respeito de A‑que‑fora‑Cynthia. Era impotente contra as mais vis insinuações da sua própria mente. E estas depravações que ele atribuía à assustada rapariga que se encontrava na sua frente fizeram‑no recuar, mostrando todas as garras no seu rosto agradável.

           ‑ Portanto, mal os conheces, não é? ‑ disse. - Tens a mentira no sangue, segundo vejo. Não creio que tenhas recebido isso de mim.

           Yvette desviou o seu rosto mudo e pensou na descarada mentira da avó. Não respondeu.

           ‑ O que é que te faz andar em volta de tais casais? ‑ perguntou, num escárnio. ‑ Não há suficiente gente decente no mundo para tu conheceres? Qualquer pessoa poderá pensar que és um cão vadio, que tens de andar em volta de casais indecentes, porque os decentes não te querem receber. Tens alguma coisa pior do que a mentira no teu sangue?

           ‑ Que é que tenho pior do que a mentira no meu sangue? ‑ perguntou ela. Começava a sentir‑se invadida por um frio mortal. Seria ela uma anormal, uma daquelas anormais semicriminosas? A ideia fê‑la sentir‑se gelada e morta.

           Aos olhos dele, estava apenas a sustentar descaradamente a depravação oculta sob a sua face de ave, virgem e delicada. A‑que‑fora‑Cynthia também tinha sido assim: uma branca flor. E ele experimentava convulsões de sádico horror quando pensava em qual poderia ser a verdadeira depravação de A‑que‑fora‑Cynthia. Mesmo o seu próprio amor por ela, que tinha sido o amor concupiscente dos que nascem amedrontados, fora para ele e em segredo uma depravação. Então, o que é que não seria um amor ilegal?

           ‑ Sabes melhor do que ninguém o que é que tens lá dentro ‑ respondeu ele com sarcasmo. ‑ Trata‑se de algo que deves dominar, e bem depressa, se não queres acabar num asilo para loucos criminosos.

           ‑ Porquê? ‑ perguntou ela, pálida e em voz inaudível, paralisada por um medo gelado. ‑ Porquê loucos criminosos? O que é que eu fiz?

     ‑ Isso é entre ti e o Criador ‑ escarneceu ele. - Eu nunca o perguntarei. Mas certas tendências acabam em demência criminosa, a não ser que sejam dominadas a tempo.

           ‑ Quer referir‑se ao facto de eu conhecer os Eastwoods? ‑ perguntou Yvette, depois de uma pausa provocada pelo medo paralisante.

           ‑ Se me refiro ao facto de andares em volta de pessoas como a senhora Fawcett, uma judia, e do ex‑major Eastwood, um homem que foge com uma mulher mais velha por causa do seu dinheiro? Sim, é a isso mesmo que me refiro!

           ‑ Mas não pode dizer uma coisa dessas! ‑ gritou Yvette. ‑ Ele é um homem muito simples e muito correcto.

           ‑ E, aparentemente, um do teu tipo.

           ‑ Bem... de certa maneira pensei que sim, que é. E também pensei que iria gostar dele ‑ disse com simplicidade, sem ter ideia nenhuma do que acabara de dizer.

           O pároco recuou para dentro das cortinas, como se a jovem o ameaçasse com qualquer coisa medonha.

           ‑ Não digas mais nada ‑ rosnou, enojado. ‑ Não digas mais nada. Já disseste demasiado para te comprometeres. Não quero saber de mais nenhum horror.

           ‑ Mas qual horror? ‑ persistiu ela.

           A própria ingenuidade da sua inocente inconsciência repelia‑o, amedrontava‑o ainda mais.

           ‑ Não digas mais nada! ‑ repetiu ele, em voz baixa e sibilante. ‑ Prefiro ter de te matar, antes de permitir que sigas o caminho da tua mãe.

           Ela olhou para o pai, de pé, encostado às cortinas de veludo do seu gabinete, o rosto amarelo, os olhos perturbados como um rato com medo, raiva e ódio, e sobre ela desceu uma entorpecente e gelada solidão. Também para ela, tudo acabara de perder o significado.

           Era difícil quebrar o gelado e estéril silêncio que se seguiu. Finalmente, olhou para ele. E mau grado seu e sem que disso tivesse conhecimento, o desprezo que por ele sentia via‑se nos seus jovens, claros e perplexos olhos. Ele sentiu como que a coleira de escravo no seu pescoço.

           ‑ Quer dizer que não me devo dar com os Eastwoods? ‑ perguntou ela.

           ‑ Podes dar‑te com eles, se assim o desejares - respondeu o pai, ironicamente. ‑ Mas não poderás mais associar‑te à tua avó, à tua tia Cissie e à Lucille. Não posso permitir que elas sejam contaminadas. A tua avó foi uma esposa e uma mãe fiel, como nenhuma outra. Já teve de enfrentar a vergonha e a abominação. Nunca permitirei que fique exposta a outro desgosto.

           Yvette ouviu tudo indistintamente, meio atenta.

           ‑ Posso enviar um bilhete a dizer que desaprova - sugeriu ela, com voz balbuciante.

           ‑ Faz o que entenderes. Mas lembra‑te, tens de escolher entre gente limpa e entre o respeito pela irrepreensível velhice da tua avó e pessoas que têm as mentes e os corpos sujos.

          Fez‑se de novo um silêncio. Depois, ela olhou para ele e o seu rosto reflectia mais espanto do que qualquer outra coisa. Porém, por detrás da sua perplexidade, estava aquela peculiar calma, o virginal desprezo dos nascidos livres pelos nascidos escravos. Ele e todos os Saywells tinham nascido escravos.

           ‑ Está bem ‑ disse ela. ‑ Vou escrever e dizer que desaprovas.

           Ele não respondeu. Sentia‑se em parte lisonjeado, secretamente triunfante, mas odioso.

           ‑ Tentarei esconder isto da avó e da tia Cissie - disse ele. ‑ Não necessita de vir a ser do conhecimento público, uma vez que preferiste que essa tua amizade fosse clandestina.

           Houve um pesado e assustador silêncio.

           ‑ Está bem ‑ concordou ela. ‑ Vou escrever.

           E arrastou‑se para fora do quarto.

           Yvette endereçou o seguinte bilhete à senhora Eastwood:

           Querida Sra. Eastwood, o papá não aprova que eu lhe faça visitas. Portanto, deve compreender que terei de as interromper. Lamento muito.

     E foi tudo. Porém, depois de ter metido o bilhete no correio, sentiu como que um terrível vazio. Agora até tinha medo dos seus próprios pensamentos. Queria, neste momento, sentir‑se apertada de encontro ao elegante e esbelto peito do cigano. Queria que ele a apertasse nos braços, ao menos uma vez, uma só vez, para que a confortasse e fortalecesse. Queria ser apoiada por ele, contra o pai, que tinha dela apenas um medo repulsivo.

           Ao mesmo tempo encolhia‑se e estremecia a tal ponto que mal podia andar, com medo que esse pensamento fosse obsceno, uma demência criminosa. O medo parecia enredar‑lhe os calcanhares. quando ela andava. O medo, o grande e frio medo dos nascidos escravos. Tudo isso era humano e fervilhante. Como se a humanidade fosse um grande pântano que a puxasse e ela se afundasse nele, fraca dos tornozelos, cheia de repulsa e de medo por cada uma das pessoas que encontrava.

           Ajustou‑se, no entanto, muito rapidamente à sua nova concepção da sociedade. Tinha de viver. É inútil discutir. E é pueril esperar grandes coisas da vida. Assim, com a rápida capacidade de adaptação da geração do pós‑guerra, ajustou‑se aos novos factos. O pai era o que era. Representaria sempre o seu papel para manter as aparências. Ela faria o mesmo. Também ela iria representar, por causa das aparências.

           Assim, por debaixo da jovial despreocupação, flutuante e vaga, formou‑se uma certa dureza, como rocha a cristalizar‑se no seu coração. Perdeu as ilusões no colapso das suas simpatias. Por fora parecia a mesma. Por dentro, era dura e desinteressada e, sem que ela própria o soubesse, vingativa.

           Por fora, dir‑se‑ia a mesma. Isso fazia parte do seu jogo. Debaixo da aparência nobre e liberal do pároco, via a débil e fraca nulidade. E desprezava‑o. No entanto, de certo modo, também gostava dele. Os sentimentos são tão complicados...

           Mas foi a avó quem ela começou a detestar com todas as forças da sua alma. Aquela velha obesa, ali sentada na sua cegueira, como uma qualquer espécie de fungo manchado de vermelho, o pescoço oculto nuns ombros soerguidos, aqueles rolos de carne debaixo do queixo, ao ponto de se assemelhar a uma batata dupla, a tudo isso tinha Yvette um ódio verdadeiro, um ódio total e puro, um ódio que era quase uma alegria.

         A velha senhora permanecia sentada, com a sua grande cara avermelhada empurrada um pouco para trás, a touca de renda empoleirada sobre os seus escassos cabelos brancos, o nariz achatado, ainda agressivo, e a boca fechada como uma armadilha. A boca traía aquela velha alma maternal. Fora sempre uma boca de tipo fino, comprimido. Porém, agora, com a idade avançada, tornara‑se numa espécie de boca de sapo, sem lábios, a queixada inferior sempre a fazer força para cima, como se fosse a peça de uma ratoeira. O que Yvette mais odiava era o aspecto daquela queixada inferior sempre a empurrar para cima, num antigo impulso prógnata, de modo que o nariz achatado era por sua vez obrigado a fazer força para cima e todo o rosto acabava por parecer um pouco empurrado para trás, por debaixo da testa alta como uma parede. A determinação, a antiga e obscena vontade de sapo, que a velha mostrava, era medonha, depois de a termos visto. Uma obstinação de sapo, impiedosa e menos do que humana! Uma obstinação que pertencia à velha e resistente raça dos sapos, ou das tartarugas, que nos dava a sensação de que a avo nunca morreria. Continuaria a viver, tal como esses répteis superiores, num estado de semicoma, para sempre.

           Yvette nem sequer ousava sugerir ao pai que a avó não era perfeita, pois ele tê‑la‑ia ameaçado com o manicómio. Era essa a ameaça que parecia ter sempre escondida na manga: o manicómio. Exactamente como se não gostar da avó e não gostar daquela horrível casa de parentes fosse por si só uma prova de demência, de perigosa demência.

           No entanto, numa das suas fases de depressão irritável, deixou uma vez escapar:

           ‑ Que perfeitamente abominável que esta casa é! Chega a tia Lucy, a tia Nell e a tia Alice e fazem um círculo, um círculo de corujas, com a avó e a tia Cissie, todas a levantarem as saias e a aquecerem as pernas à lareira, e correm comigo e com a Lucille. Não somos mais do que estranhas nesta abominável casa!

           O pai mirou‑a curiosamente, mas ela conseguira dar um certo ar de petulância ao seu discurso e um mero toque de rude zanga ao olhar, de modo que ele pudesse rir‑se, como se se tratasse de uma birra de criança. No entanto, lá no fundo, sabia que aquilo que ela dissera assim de uma maneira tão fria e venenosa era, na verdade, o que pensava, pelo que reagiu prudentemente.

           A sua vida parecia‑lhe agora apenas uma permanente e irritante fricção contra o lar dos Saywells, no qual estava imersa. Detestava a casa paroquial, com uma repugnância que lhe consumia a vida, uma repugnância tão forte que, na realidade, nem conseguia afastar‑se daquele lugar. Enquanto ele existisse, estava ligada a ele por um feitiço e por um estado de revolta.

           Esqueceu‑se dos Eastwoods outra vez. No fim de contas, que significado tinha a revolta da pequena judia comparada com a avó e aqueles Saywells?! Um marido nunca era mais do que uma coisa semicasual! Mas a família! Uma horrível e malcheirosa família que nunca dispersaria, agarrada, meio morta, junto da base de um velho fungo! Como é que uma pessoa podia encarar tal coisa?

           Não se esqueceu inteiramente do cigano, mas não tinha tempo para ele. Ela, que estava aborrecida quase até à agonia, que não tinha absolutamente nada para fazer, não tinha tempo até para pensar seriamente fosse no que fosse. Deixava, no fim de contas, que a corrente da alma seguisse o seu fluxo.

           Viu o cigano duas vezes. Na primeira, ele foi lá a casa, com coisas para vender, e ela, observando‑o da janela do patamar, recusou‑se a descer. Ele também a viu, enquanto voltava a arrumar as suas coisas dentro da carroça, mas também não se manifestou. Sendo de uma raça que existe apenas para acossar as franjas da nossa sociedade, para sempre hostil e vivendo apenas da pilhagem, era demasiado senhor de si próprio e demasiado cauteloso para se expor abertamente à enorme e horrível garra da nossa lei. E já passara pela guerra. Dessa vez fora escravizado, contra a sua vontade.

           Por isso, agora, ali estava no exterior da casa paroquial e lenta e silenciosamente atarefava‑se na sua carroça, do lado de fora do portão branco, com aquele ar de sempre eterno e inflexível intruso, que lhe dava uma graça tão própria e singular. Sabia que ela o tinha visto. Mas mantinha‑se impassível, exibindo sossegadamente os seus vasos de cobre, numa velha maneira, subtilmente acintosa, que punha contra as pessoas da laia dela.

           Pessoas da sua laia? Talvez ele estivesse enganado. O coração dela, ao bater, batia tão forte como o martelo dele sobre o cobre, batendo contra as circunstâncias. Mas ele batia em segredo, no exterior, enquanto ela batia, ainda em maior segredo, no interior dos valores instituidos. Gostava dele. Gostava da sua calma, silenciosa e bem talhada presença. Gostava daquela misteriosa resistência que nele existia, que resiste mesmo em circunstâncias adversas, sem qualquer ideia de vitória. E gostava também daquela peculiar inexorabilidade adicional, a desilusão na hostilidade, que fazia parte do pós‑guerra. Sim, se ela pertencia a qualquer lado, ou a qualquer clã, era ao dele. Quase poderia encontrar no seu coração a força para ir com ele e ser uma mulher pária, uma cigana.

           Mas ela nascera dentro da paliçada. Além disso, gostava do conforto e de um certo prestígio. Mesmo como uma simples filha de pároco, tinha‑se um certo prestígio. E ela gostava disso. Gostava também de desbastar os pilares do templo por dentro. Queria sentir‑se segura sob o telhado do templo. No entanto, divertia‑se a arrancar lascas aos pilares que o suportavam. Sem dúvida que muitos tinham sido os fragmentos arrancados aos pilares do templo filisteu, antes de Sansão o ter deitado abaixo.

          “Não estou certa se deveria perder a cabeça antes dos vinte e seis anos e depois assentar e casar!”

           Esta era a filosofia de Lucille, aprendida de mulheres mais velhas. Yvette tinha vinte e um. O que queria dizer que tinha ainda mais cinco anos para perder a cabeça em aventuras. E a aventura significava, de momento, o cigano. O casamento, com vinte e seis anos, significava Leo ou Gerry.

           Assim, uma mulher podia comer o bolo e ter depois o pão com manteiga.

           Yvette, lançada numa horrível e paralisante hostilidade para com a familia Saywell, dir‑se‑ia muito velha e muito sábia, tinha a velhice e a sabedoria dos jovens, que se sobrepõe sempre à velhice e à sabedoria dos velhos, ou dos mais velhos.

           Da segunda vez, encontrou o cigano por acaso. Era Março, fazia sol, depois de chuvas excepcionais. As ervas‑andorinhas estavam amarelas, nas sebes, e havia primaveras entre as rochas. Mas havia também um cheiro a enxofre, suspenso no céu azul‑metálico, cheiro proveniente das distantes fábricas de aço.

           E, no entanto, era Primavera.

           Yvette seguia devagar, de bicicleta, ao longo de Codnor Gate, para lá das minas de cal, quando viu o cigano a sair a porta de uma vivenda de pedra. A carroça estava ali, na estrada. Regressava à carroça com as vassouras e os objectos de cobre.

           Yvette desmontou da bicicleta. Quando o viu, amou com curiosa ternura as delgadas linhas do seu corpo envolvido no tecido verde, a forma do seu rosto silencioso. Sentiu que o conhecia melhor do que a qualquer outra pessoa na Terra, até Lucille, e que lhe pertencia de certo modo para sempre.

           - Fez alguma coisa nova e bonita? ‑ perguntou inocentemente, olhando para os objectos de cobre.

           ‑ Creio que não ‑ respondeu ele, devolvendo‑lhe o olhar.

           O desejo continuava lá, nos seus olhos, ainda estranho e curioso. Mas agora era mais remoto, o descaramento diminuira. Havia também um pequeno clarão, como se ela lhe fosse antipática, mas este dissolveu‑se, quando a viu a observar os seus objectos de cobre e de latão, que rebuscava diligentemente.

           Havia uma pequena placa de latão, oval, com uma estranha figura martelada, como se fosse uma palmeira.

           ‑ Gosto disto ‑ disse ela. ‑ Quanto é?

           ‑ O que quiser ‑ observou ele.

           Isto pô‑la nervosa; ele parecia calmo, quase trocista.

           ‑ Preferia que me dissesse o preço ‑ afirmou ela, olhando‑o.

           ‑ Dê‑me aquilo que quiser ‑ respondeu ele.

           ‑ Não! ‑ retorquiu ela subitamente. ‑ Se não me disser quanto é, não a levo.

           ‑ Está bem ‑ respondeu ele. ‑ São dois xelins. - Yvette encontrou meia coroa e ele puxou do bolso uma mão‑cheia de moedas de prata, da qual lhe devolveu seis dinheiros.

           ‑ A cigana velha sonhou qualquer coisa a seu respeito ‑ disse ele, mirando‑a com os seus olhos curiosos e perscrutadores.

           ‑ Ah, sim? ‑ exclamou Yvette, imediatamente interessada. ‑ O que foi?

           ‑ Ela disse: “Sê forte no teu coração ou perderás o jogo.” Disse‑o desta maneira: “Sê forte no teu corpo ou a sorte abandonar‑te‑á.” E disse também: “Escuta a voz das águas.”

           Yvette ficou muito impressionada.

           ‑ E que é que isso quer dizer?

           ‑ Perguntei‑lhe ‑ respondeu ele ‑ e ela diz que não sabe.

           ‑ Diga‑me outra vez o que foi ‑ pediu Yvette.

           ‑ “Sê forte no teu corpo ou a sorte abandonar‑te‑á.” E: “Escuta a voz das águas.”

           Olhou em silêncio para o rosto dela, suave e meditativo. Algo que era quase como um perfume parecia fluir do seu jovem seio directamente para ele, numa grata ligação.

           ‑ Deverei ter coragem no corpo e deverei ouvir a voz das águas! Muito bem! ‑ disse ela. ‑ Não compreendo, mas talvez o venha a entender.

           Olhou para ele com os seus olhos puros. Homens e mulheres são feitos de vários “eus”. Com um “eu” ela amava este cigano. Com muitos “eus” ignorava‑o ou tinha aversão por ele.

           ‑ Já não vai mais vez nenhuma ao Head? ‑ perguntou ele.

           Yvette olhou de novo para ele com um ar ausente.

           ‑ Talvez vá ‑ respondeu. ‑ Quando calhar!

           ‑ É tempo de Primavera! ‑ disse ele, sorrindo ligeiramente e olhando para o Sol. ‑ Vamos levantar o acampamento, em breve, e vamos partir.

           ‑ Quando?

           ‑ Talvez para a semana.

           ‑ Para onde?

           Ele fez de novo um movimento com a cabeça.

           ‑ Talvez para norte ‑ respondeu.

           Ela olhou‑o.

           ‑ Está bem! ‑ disse. ‑ Talvez eu vá lá, antes de partirem, para vos dizer adeus, à sua mulher e à velhota que me enviou a mensagem.

    

Yvette não cumpriu a sua promessa. Aqueles poucos dias de Março foram encantadores e ela deixou‑os correr. Tinha sempre uma curiosa relutância em iniciar qualquer acção ou tomar qualquer iniciativa por si só. Queria sempre que fosse qualquer outra pessoa a iniciar os acontecimentos, tal como se não quisesse jogar o seu próprio jogo da vida.

           Vivia como era costume, saía para ir ter com os amigos, para ir a festas e dançava com Leo, que não se sentia diminuído pela sua primeira recusa. Ela queria lá ir acima e dizer adeus aos ciganos. Queria ir. E nada a impedia.

           Teve vontade de lá ir muito especialmente na sexta‑feira à tarde. Estava sol e os últimos açafrões amarelos junto do caminho que conduzia a casa tinham atingido o seu máximo esplendor, inteiramente abertos, e as primeiras abelhas giravam por cima deles. O rio Papple corria por debaixo da ponte, anormalmente cheio, quase tapando os arcos da ponte. No ar pairava o cheiro do mezereão.

           Mas sentia‑se demasiado preguiçosa, demasiado preguiçosa, demasiado preguiçosa. Vagueava pelo jardim junto ao rio, meio a sonhar, aguardando qualquer coisa. Enquanto durasse o brilho do sol da Primavera, manter‑se‑ia fora de casa. Lá dentro estava a avó, recostada como um velho e terrível prelado, o corpo coberto de seda negra e a touca de renda branca, aquecendo os pés junto do fogo e ouvindo tudo o que a tia Nell tinha para dizer. A sexta‑feira era o dia da tia Nell. Aparecia geralmente para almoçar e ia‑se embora depois de um chá servido um pouco mais cedo. Assim, a mãe e a enorme e um tanto grosseira filha, que era viúva aos quarenta anos, sentavam‑se junto ao fogo contando mexericos, enquanto a tia Cissie entrava e saia. A sexta‑feira era o dia do pároco ir à cidade e era também o dia em que a criada tinha a tarde livre.

           Yvette sentou‑se num banco de madeira, no jardim, apenas a umas dezenas de centímetros acima da margem do rio transbordante, cujas águas rolavam numa estranha e assustadora massa. Os açafrões estavam a murchar nos canteiros ornamentais, a relva mostrava‑se verde‑escura nos sítios onde tinha sido aparada, os loureiros pareciam um pouco mais viçosos. A tia Cissie surgiu no cimo das escadas do pórtico e perguntou se Yvette queria uma chávena de chá. Por causa do barulho do rio, logo por debaixo dela, Yvette não pôde ouvir o que a tia Cissie dizia, mas calculou o que fosse e abanou a cabeça. Uma chávena de chá, lá dentro de casa, quando o sol brilhava? Não, obrigada!

           Tinha a mente concentrada no cigano, enquanto permanecia ali sentada, meditando ao sol. Experimentava a sensação meio dolorosa, meio tranquilizante de que a alma estava a abandonar‑lhe o corpo para qualquer outro lado, para junto de alguém que lhe tivesse cativado a imaginação. Nalguns dias sentia‑se dominada pelos Framleys, apesar de nem sequer se aproximar deles. Noutros, permanecia durante todo o tempo, em espírito, com os Eastwoods. Hoje, eram os ciganos. Encontrava‑se lá em cima, no acampamento deles, na pedreira. Viu o homem a martelar no cobre e a levantar a cabeça para olhar para a estrada, as crianças a brincarem no abrigo para o cavalo, as mulheres, a mulher do cigano e a mulher velha e forte, regressando a casa com os seus fardos, acompanhadas pelo cigano velho. Esta tarde, sentia intensamente que aquela era uma casa para si: o acampamento cigano, o fogo, o banco, o homem com o martelo, a velha encarquilhada.

           Fazia parte da sua natureza ter destes ataques de ardente desejo por um qualquer lugar dela conhecido; de estar num certo lugar, com alguém que de algum modo significasse “lar” para si. Esta tarde, era o acampamento dos ciganos. O homem vestido de verde fazia desse acampamento o seu lar. Estar onde ele estava era estar num lar. As carroças, os garotos, as outras mulheres: tudo era natural, era o seu lar, era como se tivesse lá nascido. Interrogou‑se sobre se o cigano estaria a pensar nela. Seria ele capaz de a ver, sentada no banco, junto da fogueira? Ergueria a cabeça para a ver levantar‑se, olhando‑o, com uma mirada lenta e significativa, e dirigindo‑se para os degraus da carroça? Ele saberia? Ele saberia?

           Distraidamente, olhou para a ladeira coberta de escuras coníferas, a norte da casa, onde a invisível estrada subia em direcção ao Head. Não havia nada para ver e o seu olhar vagueou de novo cá para baixo. Na base do declive, o rio descrevia uma curva pronunciada e atirava‑se ameaçador contra as rochas baixas da outra margem e a seguir passava junto ao jardim e dirigia‑se para a ponte. Estava anormalmente cheio, barrento e corria pesado. “Escuta a voz das águas”, disse para si mesma. “Não é necessário escutar, se a voz significa apenas barulho!”

           Olhou de novo para o rio que espumava, zangado, ao descrever a curva. Sobre esta via‑se a horta, com um tom escuro, e as árvores de fruto ainda verdes. Tudo que se encontrava a sul e a sudoeste parecia prestes a cair. Atrás, por cima da casa e da horta, suspendia‑se o pequeno bosque de coníferas, com um aspecto seco e mirrado. O jardineiro trabalhava na horta, lá em cima, junto do bosque de coníferas.

           Ouviu um grito de chamamento. Eram a tia Cissie e a tia Nell. Encontravam‑se no caminho que conduzia à casa e acenavam‑lhe adeus. Yvette respondeu ao aceno. Depois, a tia Cissie, levantando a voz de modo a poder ser ouvida por cima do fragor das águas, gritou:

           ‑ Não demoro! Não te esqueças que a avó está sozinha!

           ‑ Está bem! ‑ gritou Yvette, um tanto asperamente.

           Tornou a sentar‑se no banco e observou as duas mulheres deselegantes, vestindo casacos compridos, caminharem lentamente pela ponte e começarem a avançar pela estrada que subia em curva no declive do outro lado, a tia Nell transportando uma espécie de mala na qual trouxera alguns artigos para a avó e que agora levava cheia de vegetais ou fosse o que fosse que naquele momento existisse na horta ou na dispensa da casa paroquial. Lentamente, as duas figuras diminuíram de tamanho, na estrada esbranquiçada e curva, avançando para Papplewick. A tia Cissie ia até à vila fazer qualquer coisa.

           O Sol estava a declinar e começava a ficar amarelado. Que pena! Oh, que pena que aquele dia de sol se estivesse a ir embora e agora ela tinha de voltar lá para dentro, para aqueles odiosos quartos e para a avó! A tia Cissie não deveria demorar, eram quase cinco horas. Os outros todos também deviam estar a chegar da cidade, irritáveis e cansados, logo depois das seis.

           Enquanto olhava em volta, despreocupadamente, ouviu por cima do fragor da água a correr os sons nítidos de um cavalo e de uma carroça chocalhando na estrada escondida entre as coníferas. O jardineiro também estava a olhar para cima. Yvette voltou‑se de novo, demorando‑se, dando uns passos lentos junto ao rio, com pouca vontade de ir para casa e olhando para a estrada para ver se a tia Cissie vinha aí. Se a visse, iria para dentro.

           Ouviu alguém a gritar e olhou em volta. Do caminho por entre as coníferas, o cigano corria aos saltos.

     O jardineiro, muito mais longe, também corria. Simultaneamente tomou consciência de um grande fragor que, antes dela se conseguir mover, se transformou numa enorme e ensurdecedora confusão. O cigano gesticulava. Yvette olhou em volta para trás de si.

           Então, para seu horror e espanto, viu uma enorme massa de água amarelo‑acastanhada, uma autêntica muralha de água, que avançava como uma barreira de leões. O som, o barulho abafava tudo. Ficou impotente, demasiado espantada e aturdida, e queria ver o que se passava.

           Antes de lhe ser possível pensar duas vezes, já estava perto, uma verdadeira falésia de água. Quase desmaiou de horror. Ouviu o grito do cigano e olhou para cima para o ver saltando na sua direcção, os seus olhos negros quase a saírem‑lhe das órbitas.

          ‑ Corra! ‑ gritou, agarrando‑lhe um braço.

           No mesmo instante a primeira onda atingia‑a e fazia com que os seus pés escorregassem debaixo dela, girando, num ruído insano, que, subitamente e por qualquer razão, dir‑se‑ia ter‑se acalmado ao passar por cima do jardim. Horrível remoinho de água!

           O cigano arrastava‑a com força, desequilibrando‑se, mergulhando, mas conseguindo ambos aguentar‑se e avançando em direcção à casa. Yvette estava quase inconsciente, como se a inundação fosse na sua alma.

           Havia uma espécie de terraço relvado, no jardim, junto do caminho que corria em volta da casa. O cigano conseguiu arrastar‑se até ao cimo desse terraço, para a zona seca do caminho, arrastando‑a atrás dele e saltando com ela, pelas janelas, até junto dos degraus do pórtico. Mas antes de lá conseguirem chegar veio outra muralha de água, derrubando tudo, arrancando árvores e deitando‑os também a eles abaixo.

           Yvette sentiu‑se arrastada por uma agonizante corrente de água gelada, redemoinhante, apenas com o terrível aperto da mão do cigano no seu pulso. Ambos tinham caído e sido arrastados pela água. Yvette sentiu bater contra qualquer coisa, uma pancada abafada mas atordoante.

           A seguir, o cigano puxou‑a para cima. Ele estava de pé, avançando contra a corrente, agarrando‑se ao caule da grande glicínia que crescia de encontro à parede e esmagado de encontro a esta pela pressão da água. A cabeça dela estava fora da água e ele segurava‑lhe o braço até este lhe parecer deslocado, mas não conseguia pôr‑se de pé. Horrivelmente entontecida, como num sonho, lutava contra a água e não conseguia pôr‑se de pé. Só a mão dele a segurava, presa no seu pulso.

           Ele arrastou‑a para mais próximo até que a mão que ela tinha livre lhe agarrou uma perna. O cigano quase caiu de novo, mas a glicínia aguentou‑o e ele puxou‑a para si. Agarrou‑se‑lhe de uma maneira horrível e conseguiu pôr‑se de pé, com ele pendurado, como um homem partido em dois, no caule da glicínia.

           A água passava‑lhes por cima dos joelhos. O cigano e ela olharam para os pálidos rostos um do outro, escorrendo água.

           ‑ Vá para os degraus! ‑ gritou o cigano.

           Era logo ao virar da esquina, quatro passos! Olhou para ele: não era capaz de ir. Os olhos do homem brilharam como os de um tigre e afastou‑a de si com um empurrão. Agarrou‑se à parede e a água pareceu descer um pouco. Do outro lado da esquina cambaleou, mas quando cambaleou rolou sobre si mesma e foi empurrada de encontro à cornija da balaustrada dos degraus do pórtico, com o cigano logo atrás dela.

           Chegaram aos degraus quando se ouviu outro rugido por cima do fragor geral e a parede da casa estremeceu. A água subiu outra vez, enrolando‑se‑lhes em volta das pernas de novo, mas o cigano tinha aberto a porta do vestíbulo. Entraram com a água, rolando até às escadas. Enquanto o faziam viram o curto mas estranho volume da avó emergir no vestíbulo, afastando‑se da porta da sala de jantar. Tinha as mãos erguidas, abrindo‑as e fechando‑as, procurando agarrar qualquer coisa quando a primeira água girou em volta das pernas e a boca, como um caixão, se abria num grito rouco.

           Yvette estava cega para tudo menos para as escadas. Cega, inconsciente de tudo, excepto para os degraus que se erguiam sobre a água, degraus que escalou de gatas, como um gato molhado e estremecendo, num estado de inconsciência. Foi apenas quando se encontrou no patamar, escorrendo e a tremer de tal maneira que não conseguia manter‑se de pé, agarrada ao corrimão, enquanto a casa abanava e a água se enfurecia lá em baixo, que ela tomou consciência do cigano encharcado, sacudido por paroxismos de tosse, no cimo da escada, a cabeça descoberta, o cabelo negro sobre os olhos, espreitando por entre madeixas molhadas para o assustador crescer das águas lá em baixo, no vestíbulo. Yvette, a perder as forças, olhou também e viu a avó vir à superfície como uma estranha bóia, o rosto cor de púrpura, os cegos olhos azuis a girarem, a espuma a sair‑lhe da boca. Uma mão encarquilhada agarrou‑se a uma das barras do corrimão e aguentou‑se um momento, mostrando o brilho de uma aliança de casamento.

           O cigano, que já parara de tossir e puxara o cabelo para trás, disse para aquela horrível cara que parecia uma bóia, que flutuava lá em baixo:

           ‑ Não é o suficiente! Não é o suficiente!

           Com um som baixo e surdo, como um trovão, a casa foi atingida de novo e estremeceu e começou então um estranho som de coisas a estalar, a tombar, a esguichar. A água subiu de novo como um mar. A mão desaparecera, tudo desaparecera, só havia água a subir.

           Yvette virou‑se, num frenesim cego e inconsciente, cambaleando como um gato molhado para a escada de cima e trepando rapidamente. Só parou quando se encontrou à porta do seu quarto, paralisada pelo medonho som de coisas a rebentarem e a caírem, enquanto a casa balançava.

           ‑ A casa está a cair! ‑ gritou o cigano, cuja cara estava esverdeada.

           Ele fixou a cara enlouquecida de Yvette.

           ‑ Onde é a chaminé? A chaminé das traseiras? Em que quarto? A chaminé aguentará...

           Mirou‑a com uma estranha ferocidade, forçando‑a a compreender. Ela acenou com a cabeça, com uma anormal e enlouquecida pose, acenou quase que serenamente, dizendo:

           ‑ Aqui! Aqui! Está bem!

           Entraram no quarto dela, que tinha um estreito fogão. Era um quarto das traseiras com duas janelas, uma de cada lado do grande cano do fogão. O cigano, tossindo terrivelmente e com os membros todos a tremer, foi à janela para espreitar.

           Lá em baixo, entre a casa e a íngreme ladeira da colina, a água girava em turbilhão, cheia de despojos, incluindo a casota verde do Rover. O cigano, a tossir, sempre a tossir, olhou lá para baixo, com os olhos vazios, sem expressão. As árvores caíram, umas atrás das outras, ceifadas pelas águas, que deviam ter três metros de altura.

           Tremendo e apertando os seus braços encharcados contra o peito molhado, um olhar de resignação na face lívida, virou‑se para Yvette. Um assustador ruído de coisas partidas abalou a casa e depois ouviu‑se uma gigantesca explosão de água. Alguma coisa caíra, alguma parte da casa, o soalho saltou e abanou por debaixo deles. Durante alguns instantes ficaram ambos imóveis, estupefactos. Então ele levantou‑se.

           ‑ Não é suficiente! Não é suficiente! Isto vai aguentar. Isto aqui vai aguentar. Veja essa chaminé, é como uma torre. Sim! Estamos bem! Estamos bem! Tire as roupas e vá para a cama ou morrerá de frio.

           ‑ Estou bem! Estou bem! ‑ disse‑lhe ela, sentando‑se numa cadeira e olhando para cima com o seu pequeno rosto branco e transtornado, redondo, com os cabelos molhados.

           ‑ Não! ‑ gritou ele. ‑ Não! Tire as suas coisas e eu esfrego‑a com esta toalha. E também me esfrego. Se a casa cair, morre quente. Se não cair, então, vive, não morrerá de pneumonia.

          Tossindo, tremendo violentamente, puxou para cima a bainha da sua apertada camisola de malha, lutando contra os tremores, para se libertar dela.

           ‑ Ajude‑me! ‑ gritou ele com o rosto tapado. Ela pegou na ponta da camisola, obedientemente, e puxou com todas as suas forças. A camisola saiu‑lhe por cima da cabeça e ele ficou de suspensórios.

           ‑ Tire as roupas! Esfregue‑se com esta toalha! - ordenou‑lhe, ferozmente, parecendo haver nele toda a selvajaria da guerra.

           Como se estivesse obcecado, tirou as calças, libertou‑se da camisa molhada que se lhe pegava ao corpo e emergiu, franzino e lívido, com todas as suas fibras a tremerem, de frio e de nervos.

           Agarrou numa toalha e começou rapidamente a esfregar o corpo, os dentes a baterem uns nos outros como castanholas. Yvette compreendeu, de uma maneira indistinta, que o que ele fazia era o correcto. Tentou libertar‑se do vestido. Ele puxou‑lhe aquela horrível coisa molhada, que trazia consigo a morte, arrancou‑lha do corpo e, depois, continuando a esfregar‑se, foi nas pontas dos pés, sobre o soalho molhado, até à porta.

           Parou aí, nu, de toalha na mão, petrificado.

           Olhou para oeste, na direcção onde existira a janela do patamar superior, e viu‑se a olhar para o pôr do Sol, por cima de um louco mar de águas, cheio de árvores arrancadas e destroços. O canto da casa onde existira o pórtico e as escadas fora levado. A parede caíra, deixando os soalhos à mostra, suspensos. As escadas tinham desaparecido.

           Imóvel, observou a água. Um vento frio soprou sobre ele. Com um grande esforço de vontade, conseguiu cerrar os dentes que continuavam a bater e virou‑se de novo para o quarto, fechando a porta.

           Yvette, nua, tremendo tanto que até estava agoniada, tentava limpar‑se com a toalha.

           ‑ Muito bem! ‑ exclamou ele. ‑ Muito bem! A água já não sobe. Muito bem!

           Com a toalha começou a esfregá‑la, ele próprio, tremendo todo, mas agarrando‑a com força pelo ombro, e lenta e entorpecidamente friccionava‑lhe o corpo delicado, tentando até secar‑lhe um pouco o cabelo que lhe emoldurava a pequena cabeça, cabelo que se encontrava num estado lamentável.

           Subitamente parou.

           ‑ É melhor meter‑se na cama ‑ ordenou. ‑ Eu próprio quero friccioná‑la.

           Os dentes dele continuavam a bater cortando‑lhe as palavras. Yvette arrastou‑se para a cama a tremer e apenas semiconsciente. Ele, fazendo um grande esforço para se conseguir dominar e manter imóvel para se poder aquecer, esfregando‑se, dirigiu‑se de novo para a janela virada a norte, para olhar lá para fora.

           A água subira ligeiramente. O Sol tinha desaparecido e havia um clarão avermelhado no céu. Esfregou o cabelo, transformando‑o num emaranhado negro e molhado, depois fez uma pausa para ganhar fôlego, num súbito acesso de tremores, a seguir esfregou de novo o peito e começou outra vez a tossir, por causa da água que tinha engolido. A toalha estava vermelha: tinha se ferido em qualquer lado, mas não sentia nada.

           Ouvia‑se ainda o estranho e medonho ruído das águas e os horríveis choques de coisas a baterem de encontro às paredes da casa. Com o pôr do Sol, o vento estava a levantar‑se, frio e forte. A casa abanava, com pancadas explosivas, e ouviam‑se estranhos e misteriosos ruídos lá de baixo.

           Com o terror a infiltrar‑se‑lhe na alma, dirigiu‑se de novo para a porta. O vento, rugindo com as águas, entrou por ali dentro quando ele a abriu. Através do monstruoso buraco cavado nas paredes da casa, viu, o mundo, as águas, o caos de horríveis águas, o crepúsculo, a Lua, perfeita e bem acima do poente, uma coisa ainda fraca, as nuvens avançando escuras, no céu, empurradas pelo vento frio e tempestuoso.

           Cerrando de novo os dentes, o medo a misturar‑se na sua alma à resignação ou ao fatalismo, entrou no quarto e fechou a porta, pegando na toalha dela para ver se estava mais seca do que a sua e menos manchada de sangue, esfregando de novo a cabeça e tornando a dirigir‑se para a janela.

           Afastou‑se novamente, incapaz de controlar os seus espasmos de frio. Yvette desaparecera por completo por debaixo das roupas da cama e dela nada era visível, excepto um volume que tremia sob a coberta branca. Pousou a mão naquele volume que tremia, como se fosse fazer‑lhe companhia. Mas ele não deixou de tremer.

           ‑ Está tudo bem! ‑ disse. ‑ Está tudo bem! A água está a descer.

           Ela destapou repentinamente a cabeça e espreitou‑o, o seu rosto estava branco. Observou‑lhe a face esverdeada, curiosamente calma, semiconsciente. Os dentes dele ainda batiam, mas parecia não dar por isso enquanto olhava para baixo, para ela, os olhos negros ainda cheios do fogo da vida e de uma certa calma vagabunda de resignação fatalística.

           ‑ Aqueça‑me! ‑ gemeu ela, os dentes a baterem.

     ‑ Aqueça‑me! Vou morrer com estas tremuras.

           O corpo dela, branco e contraído, passou por uma terrível convulsão, na verdade suficiente para a matar.

           O cigano fez um aceno de concordância, tomou‑a nos braços, segurando‑a num amplexo de ferro, para deter os seus próprios estremecimentos. Ele também tremia terrivelmente e estava apenas semiconsciente. A causa fora o choque.

           O amplexo de ferro dos braços dele em volta dela pareciam‑lhe ser o único ponto estável da sua consciência. Era um tremendo alívio para o seu coração, esforçado quase ao ponto de rebentar, e apesar de o corpo dele, enrolado à volta do dela, estranho, flexível e poderoso como tentáculos, ser percorrido por estremecimentos, como uma corrente eléctrica. No entanto, a rígida tensão dos músculos que a agarravam acalmavam‑nos aos dois e, gradualmente, a terrível violência das tremuras causadas pelo choque começou a diminuir, primeiro no corpo dele, depois no dela, e o calor renasceu entre eles. à medida que o calor aumentava, as suas mentes, torturadas e semiconscientes, tornaram‑se inconscientes e desvaneceram‑se no sono.

           O Sol brilhava no céu antes de os homens terem conseguido atravessar o Papple com escadas. A ponte desaparecera. Mas a inundação baixara e a casa, inclinada para a frente, como se estivesse a fazer uma vénia ao rio, erguia‑se agora no meio de lama e destroços, com um grande monte de alvenaria e entulho na esquina sudoeste. Eram terríveis aquelas bocas escancaradas dos quartos!

           Lá dentro, não havia sinal de vida. Mas do outro lado do rio aproximara‑se o jardineiro para fazer um reconhecimento do terreno e a cozinheira também apareceu, cheia de curiosidade. Escapara‑se pela porta das traseiras e, através das coníferas, para a estrada lá de cima, quando vira o cigano precipitar‑se para a casa: pensara que ele ia assassinar alguém. Lá em cima, junto do pequeno portão das traseiras, encontrara a carroça do cigano. O jardineiro levara o cavalo para o Red Lion, em Darley, quando a noite caíra.

           Tudo isto souberam os homens de Papplewick quando, finalmente, conseguiram atravessar o rio com as escadas e chegaram às traseiras da casa Estavam nervosos, receando um desabamento do edifício cuja frente estava toda minada e as traseiras abaladas. Olharam horrorizados para as silenciosas prateleiras que suportavam as filas de livros do pároco, no seu gabinete destruído; olharam também para a grande cama de latão do quarto da avó, uma cama de colchão alto e confortavelmente feita, em que uma das pernas estava suspensa no vazio; olharam ainda para os destroços do quarto da criada, lá no alto. A criada e a cozinheira choravam. Então, houve um homem que trepou cuidadosamente por uma janela rebentada da cozinha, penetrando no caos e no pântano do pavimento térreo. Encontrou o corpo da velha senhora, ou, pelo menos, viu os pés dela, nas suas chinelas pretas, saindo de debaixo de um montão de destroços enlameados. O homem fugiu.

           O jardineiro afirmou ter a certeza de que a menina Yvette não estava em casa. Vira‑a, a ela e ao cigano, a serem arrastados pela água. Mas o polícia insistia numa busca e os rapazes dos Framleys, finalmente, apressaram‑se e as escadas foram unidas umas às outras. Depois, todo o grupo soltou um grito, mas sem resultado. Não veio qualquer resposta lá de dentro.

           Levantada uma escada, Bob Framley subiu, partiu uma janela e entrou no quarto da tia Cissie. A perfeita familiaridade caseira de tudo aquilo aterrorizou‑o como se fossem fantasmas. A casa podia cair de um momento para o outro.

           Tinham acabado de encostar uma escada para chegar ao último andar, quando apareceu um homem a correr, vindo de Darley, dizendo que o cigano velho fora ao Red Lion em busca do cavalo e da carroça, deixando o recado de que o filho dele vira Yvette no alto da casa. Mas, nessa altura, já o polícia estava a quebrar os vidros da janela do quarto de Yvette.

           Yvette, profundamente adormecida, surgiu de debaixo das cobertas, com um grito, quando o vidro se partiu. Segurou os lençóis em redor da sua nudez. O polícia gaguejou um grito espantado, que se transformou numa exclamação: “Menina Yvette! Menina Yvette!”

           Virou‑se para trás, em cima da escada, e gritou para os rostos que o olhavam lá em baixo:

           ‑ A menina Yvette está na cama!... Na cama!... - E ali estava ele empoleirado na escada, um homem solteiro, correndo perigo e agarrado à janela, sem saber o que fazer.

           Yvette sentou‑se na cama, o cabelo numa massa emaranhada, olhando‑o com olhos dementes, agarrando os lençóis por cima do seu peito nu. Estivera a dormir tão profundamente que ainda não se sentia ali.

           O polícia, aterrorizado pela frágil escada, entrou no quarto, dizendo:

           ‑ Não fique assustada, menina! Não se preocupe mais! Agora está salva!

           Yvette, confusa, pensou que ele se referia ao cigano. Onde é que estava ele? Esta foi a primeira coisa que surgiu na sua mente. Onde é que estava o seu cigano daquela noite de fim do mundo?

           Partira! Fora‑se embora! E estava um polícia no quarto! Um polícia!

           Esfregou a testa, confundida.

           ‑ Se se vestir, menina, podemos pô‑la lá em baixo, a salvo. A casa pode cair. Suponho que não há ninguém nos outros quartos?

           Avançou com um passo vivo para o corredor, olhou aterrorizado pelo buraco que era agora a outra ponta da casa e viu o pároco a chegar num automóvel, na colina iluminada pelo sol.

           Yvette, de face estarrecida e desapontada, levantou‑se rapidamente, segurando as roupas da cama, olhou para si própria por momentos e depois abriu as gavetas em busca de roupas. Vestiu‑se, olhou para o espelho e viu, com um certo horror, o seu cabelo emaranhado. No entanto, não se importou. De qualquer modo, o cigano fora‑se embora.

           As suas próprias roupas jaziam no chão, num montão encharcado. Havia uma grande mancha molhada no tapete, onde as dele tinham estado, e duas toalhas sujas e manchadas de sangue. Além disso, não havia qualquer outro sinal dele.

           Tentava arranjar o cabelo quando o polícia bateu à porta. Disse‑lhe que entrasse. Este viu com alívio que ela já estava vestida e que recuperara a presença de espírito.

           ‑ É melhor deixarmos a casa o mais depressa possível, menina ‑ insistiu. ‑ Pode cair a qualquer momento.

           ‑ Ah, sim!? ‑ exclamou Yvette calmamente. - Está assim em tão mau estado?

           Ouviram‑se grandes gritos e ela teve de ir à janela. Lá em baixo, estava o pároco com os braços abertos, as lágrimas a escorrerem‑lhe pela cara.

           ‑ Estou perfeitamente bem, pai! ‑ disse ela, com a calma que lhe era dada pelos seus sentimentos contraditórios. Manteria o cigano como um segredo seu, não lhe contaria. Ao mesmo tempo, as lágrimas rolaram‑lhe pela face.

           ‑ Não chore, menina, não chore! O pároco perdeu a mãe, mas está a agradecer ao Céu por lhe ter salvo a filha. Todos pensámos que também tivesse morrido, lá isso pensámos!

           ‑ A avó afogou‑se? ‑ perguntou Yvette.

           ‑ Receio bem que sim, pobre senhora! ‑ disse o polícia com rosto sério.

           Yvette limpou as lágrimas a um lencinho que teve de ir buscar a uma gaveta.

           ‑ É capaz de descer por esta escada, menina? - perguntou o polícia.

           Yvette olhou para as profundezas inclinadas da escada e disse imediatamente para si mesma: “Não! De maneira nenhuma!” Mas depois lembrou‑se de a cigana ter dito: “Sê forte no teu corpo.”

           ‑ Já esteve em todos os outros quartos? ‑ perguntou, cheia de cuidados, virando‑se para o polícia.

           ‑ Sim, menina! Mas a menina era a única pessoa na casa, sabe, tirando a velhota. A cozinheira fugiu a tempo, a Lizzie encontrava‑se em casa da mãe. Estávamos preocupados apenas consigo e com a pobre senhora. Acha que consegue descer por esta escada?

           ‑ Oh, sim! ‑ respondeu Yvette com indiferença. De qualquer modo, o cigano fora‑se embora.

           Agora, o pároco, aflito, observava a sua alta e esbelta filha a descer, lentamente, de costas, a escada inclinada, enquanto o polícia, espreitando da janela partida com ar de herói, segurava as extremidades superiores.

           Na base da escada, Yvette, muito apropriadamente, desmaiou nos braços do seu pai e foi levada dali com ele, no automóvel, conduzido por Bob, para casa dos Framleys. Aí a pobre Lucille, um fantasma entre os fantasmas, chorou de alívio até ficar histérica e a própria tia Cissie gritou, entre lágrimas:

           ‑ Que os velhos se vão e que os jovens sejam poupados! Oh, não posso chorar pela Mater, agora que Yvette está salva!

           E chorou copiosamente.

           A cheia fora causada pelo súbito rebentamento do grande reservatório, lá em cima, em Papple Highdale, a oito quilómetros da casa paroquial. Descobriu‑se mais tarde a existência, por debaixo da represa, de um velho túnel de mina, talvez romano. Esse túnel, que ninguém conhecia e com o qual ninguém sonhara, acabara por abater, minando assim toda a represa. Era por isso que o Papple estivera tão estranhamente cheio durante todo aquele dia. A seguir, a represa tinha rebentado.

           O pároco e as duas raparigas ficaram em casa dos Framleys até conseguirem arranjar uma nova habitação. Yvette não compareceu no funeral da avó. Ficou na cama.

           Ao contar a sua história, disse apenas que o cigano a tinha colocado no interior do pórtico e que ela se livrara das águas gatinhando escada acima. Sabia‑se que ele havia escapado, tinha‑o dito o velho cigano quando fora buscar o cavalo e a carroça ao Red Lion. Yvette pouco mais podia dizer. Estava aturdida, confusa, parecia não se lembrar de quase nada. Mas isso era mesmo dela.

           Foi Bob Framley quem disse:

           ‑ Sabem, creio que esse cigano merece uma medalha!

           Toda a família ficou, subitamente, chocada.

           ‑ Oh, mas nós temos de lhe agradecer! ‑ gritou Lucille.

           O próprio pároco seguiu com Bob no automóvel. Mas a pedreira estava deserta. Os ciganos tinham levantado o acampamento e partido, ninguém sabia para onde.

           Yvette, deitada na cama, sentia o seu coração apertar‑se‑lhe: “Oh, eu amo‑o! Eu amo‑o! Amo‑o!” O desgosto, pela sua ausência, manteve‑a prostrada. No entanto, também ela concordava com o facto dele ter desaparecido. A sua jovem alma reconhecia a sensatez da atitude.

           Mas depois do funeral da avó, recebeu uma cartinha, datada de um sítio qualquer desconhecido.

           Querida menina:

           Vi no jornal que está bem depois do mergulho e o mesmo se passa comigo. Espero vê‑la de novo um dia, talvez na feira de gado de Tideswell, ou talvez passemos outra vez por aí. Naquele dia eu ia dizer‑lhe adeus. Nunca lhe cheguei a dizer, a água não me deu tempo, mas vivo com esperanças.

                                     Um seu respeitoso criado.

                                     Joe BOSWELL

           Foi apenas nesse momento que ela reparou que o cigano tinha um nome.

 

                                                                                            D. H. Lawrence  

 

                      

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