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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VIRGEM INDOMÁVEL / Margaret Moore
A VIRGEM INDOMÁVEL / Margaret Moore

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

   Kyryan ap Morgan ap Ianto resmungou uma torrente de imprecações em Gaulês e estremeceu ligeiramente quando o martelo do ferreiro golpeou seu elmo.

   - Não é prudente insultar o ferreiro, rapaz - seu amigo Elwy repreendeu-o - Não quando ele é o único que pode tirar-lhe o elmo da cabeça.

   O ferreiro atingiu o elmo novamente.

   - Eu vou exigir daquele cavaleiro uma boa indenização por este transtorno - Kyryan murmurou.

   - Desde que consigamos retirar essa coisa da sua cabeça. É bem possível que você se torne conhecido, a partir de hoje, como "Kyryan do Elmo".

   Kyryan grunhiu com mais um golpe do martelo, pensando com seus botões que Elwy provavelmente faria piadas até mesmo no próprio leito de morte.

   - Eu lhe disse que esse elmo não lhe servia, o' r annwyl! - elwy exclamou com uma risada - Ora, ora... aí vem ela.

   - Ela quem?

   - Você sabe. A garota que o deixou doente de amor.

   Kyryan remexeu-se, inquieto. Jamais havia contado a Elwy que considerava a filha de lorde Trevelyan a moça mais linda que já vira.

   - Não estou "doente de amor".

   Todavia, pela primeira vez ficou satisfeito por ter o elmo preso na cabeça. Assim, ninguém pôde ver que seu rosto ficara ridiculamente corado.

   - Ela vem acompanhada pela criada e deve passar bem por aqui - Elwy insistiu.

   - Seu mentiroso!O ferreiro golpeou o elmo com tanta força que Kyryan praguejou ferozmente numa linguagem que o homem não poderia deixar de entender.

   Então, para sua consternação e embaraço, ouviu o som de uma risada feminina. Na verdade, uma gargalhada constrangida. Oh, Deus, ele conhecia aquele riso! Escutara-o, maravilhado, na festa da noite anterior. Fora um tormento tentar desviar os próprios olhos de lady Liliana Trevelyan.

 

 

 

 

   Bom dia, cavaleiros.

   Oh, por todos os deuses! Teria sido menos doloroso se o ferreiro lhe tivesse martelado a cabeça em vez do capacete.

   - Bom dia, cara senhorita! - Elwy retribuiu o cumprimento com reverência.

   Kyryan não foi capaz de proferir uma palavra sequer.

   - Lamento por seu amigo - Lady Liliana comentou. - Acha que ele conseguirá livrar-se do elmo?

   - Ah, sim, cara senhorita - Elwy respondeu.

   A voz de lady Liliana era suave, como suave devia ser a sua pele alva, na imaginação de Kyryan. Agradava-lhe sobremaneira que a jovem demonstrasse preocupação a seu respeito. Ah, se ao menos tivesse sido ferido, a situação seria mais heróica e menos risível. Não precisava tratar-se de um ferimento grave, claro que não. Apenas o bastante para inspirar alguns cuidados... talvez um ou dois suspiros daquela bela moça.

   - ele devia ter abandonado o torneio mais cedo...

   - Oh não! - Elwy rebateu. - Kyryan jamais deixa uma luta pela metade, minha prezada lady.

   "Kyryan"? Seria possível que Elwy nunca se lembrasse de usar o título adequado, especialmente numa ocasião como aquela? Afinal, eram ambos cavaleiros, embora não possuíssem terras.

   - Foi o que percebi - ela replicou. - Fiquei muito impressionada durante as provas. Espero que tenhamos o prazer da companhia de vocês na festa desta noite. Seu amigo merece um jantar especial.

   - Nós dois aguardamos ansiosos pela celebração, lady Trevelyan.

   Após alguns minutos, durante os quais o ferreiro não cessara de martelar-lhe o elmo, Kyryan ouviu Elwy comentar:

   - Elas se foram.

   - Ótimo - Kyryan retrucou em tom aborrecido. Contudo, estava longe de sentir-se zangado. Como poderia, quando Liliana Trevelyan falara tão bem sobre ele?

   - Se o senhor puder ajudar-me agora, creio que conseguiremos remover este maldito capacete - o ferreiro dirigiu-se a Elwy com rudeza.

   - Já não era sem tempo - Kyryan resmungou enquanto o amigo e o ferreiro empurravam o elmo para cima de sua cabeça.

   Kyryan inspirou com força, usufruindo uma bem-vinda sensação de liberdade.

   - Por Deus, eu não suportava mais o confinamento! Estava ficando louco de claustrofobia! - exclamou, movimentando os ombros para massagear a musculatura dolorida. Seria bom tirar também a cota de malha. Relanceou os olhos pela túnica preta. Estava enlameada, mas inteira. Agradeceu aos céus por aquela pequena graça.

   Elwy riu.

   - A julgar pela sua cara, eu diria que você precisa de uma boa caneca de cerveja. Mas, a julgar pelo seu cheiro, concluo que precisa mesmo é de um bom banho!

   Kyryan fitou o amigo com desgosto.

   - Eu não tenho cheiro algum... tenho? - indagou com a testa franzida. Já havia sido ruim o bastante ter sido flagrado por lady Trevelyan no maio de uma torrente de impropérios, com o elmo preso na cabeça. Se, além disso, estivesse fedendo... seria um verdadeiro pesadelo.

   - Ah, só um pouco. O suor do ferreiro está bem pior.

   Kyryan avaliou os braços musculosos do homem e pensou que era uma sorte elwy estar falando em Gaulês.

   - Voltarei com algumas moedas dentro de poucos minutos - dirigiu-se ao ferreiro em Normando. - Enquanto isso, aceite meus agradecimentos.

   O ferreiro sorriu e começou a reunir as ferramentas. Ao sair, Kyryan esboçou um pequeno gesto com a mão e Mott, seu cachorro, abandonou o canto onde aguardara pacientemente pelo dono. Com o rabo abanando, correu à frente deles.

   - Nunca imaginei que você perdesse a língua diante de uma bela donzela - Elwy comentou em tom de ironia.

   - Afinal, com quem você estava conversando? Eu mal pude ouvir...

   - Além de covarde, é mentiroso.

   Kyryan franziu o cenho, agastado, mas não se deu ao trabalho de retrucar. Pensava em Liliana Trevelyan, no brilho dourado que o sol emprestava a seus cabelos, a tonalidade rara do verde de seus olhos, que lembrava as primeiras folhas de primavera, nas covinhas que se formavam em suas faces quando ela sorria.assomava-lhe à mente, também, a curva suave dos seios e a cintura delgada que terminava em quadris arredondados. Ah, ela lhe tirava o fôlego com sua simples presença.

   Neste momento chegaram à tenda que partilhavam, armada numa campina não muito distante do imenso castelo do lorde Trevelyan. Kyryan entrou e apressou-se a tomar um banho revigorante. Fazia questão de estar em perfeita forma e com seu melhor aspecto na festa daquela noite.

   Kyryan e Elwy haviam vindo para participar de um torneio, na esperança de ganharem alguns dos prêmios oferecidos pelos cavaleiros a seus desafiantes. O barão DeLanyea, aristocrata gaulês-normando para quem haviam trabalhados como escudeiros, de bom grado consagrou-os cavaleiros quando terminou seus períodos de escudeiros. Contudo, não lhe foi possível agraciá-los com nenhuma propriedade, como ditavam os costumes. Elwy costumava gracejar, afirmando que se nem o próprio Rei João possuía terras, como poderiam tê-las dois pobres cavaleiros? Não havia nada de errado em serem "Morgan e Elwy, os cavaleiros sem terras", tratando-se até de um gesto solidário para com Sua Majestade.

   De qualquer forma, eram ambos jovens e bem treinados, não restando ao barão nenhuma dúvida de que poderiam conquistar feudos com seu próprio esforço. Os dois também pensavam assim.

   Kyryan contava, além disso, com outros atributos. Feições atraentes, cabelos negros encaracolados, destemidos olhos escuros e corpo musculoso. As mulheres o devoravam ostensivamente com os olhos e muitas delas concordavam entusiasticamente em partilhar sua cama.

   Elwy por sua vez, era simples e rústico como um demônio. Contava, porém, com grande senso de humor e de uma voz mais do que apropriada para o canto, características que o faziam sobressair-se entre seus compatriotas. Sob esse aspecto, era muito superior a Kyryan, já que este, infelizmente, possuía uma voz que lembrava um buldogue ganindo, como dizia Elwy. Quanto às mulheres, Elwy era bem menos obcecado por companhia feminina do que seu companheiro, embora fosse capaz de conquistá-las com suas canções e piadas.

   A amizade entre os dois rapazes durava desde a infância. Graças longa convivência, Elwy sabia que Kyryan jamais abandonava uma luta até ganhá-la.

   Ele só ignorava pro quê.

  

   - Ele é muito bonito.

   Liliana voltou-se para sua ruiva criada de quarto, que atarefada, arrumava o imenso aposento. Estendidos sobre a cama e sobre as cadeiras havia vários vestidos. Liliana examinava-os, indecisa.

   - Maude, você acha bonito qualquer homem solteiro!

   Maude deu uma risada aguda, o que fazia com freqüência. Embora esse hábito a incomodasse, Liliana considerava-a sua única amiga.

   - Talvez, mas no caso de Kyryan Morgan, é a mais pura verdade. Você tem que admitir. O amigo dele pode ser um tanto feio, com aquele narigão e orelhas compridas, mas é uma simpatia. E tanto um quanto o outro tem umas pernas... - a moça revirou os olhos com malícia.

   - Maude! - Liliana repreendeu-a, removendo um vestido de sobre um banco para sentar-se. Reprimiu um bocejo. Acordara cedo, naquela manhã. Não era sempre que seu pai lhe permitia ir a um torneio e ela não desejara perder um único segundo da competição.

   O melhor de tudo fora testemunhar o feito brilhante de Kyryan Morgan, derrotando dois cavaleiros famosos... e ficando com o elmo preso na bela cabeça. Na noite anterior, ela ficara impressionada com o aspecto atraente do rapaz. Naquele dia, impressionou-se ainda mais com sua bravura e destreza durante os combates. Ele lhe parecera extraordinário, até ela perceber que o brilhante cavaleiro não conseguia tirar o capacete. O pequeno incidente o tornara mais... acessível.

   - Bem, os dois possuem pernas muito musculosas - Maude tornou a rir. - Eu vi a maneira como você olhou para Kyryan Morgan na ferraria. E o pobre lá sentado, todo murcho, como um cavalo recebendo ferraduras...

   Liliana não conseguiu conter uma gargalhada ao recordar a cena. Além disso, esperava que o riso disfarçasse o vivo rubor que lhe tingia as faces conta a sua vontade. Kyryan Morgan era possuidor das mais belas e másculas pernas que já vira. O mesmo se podia dizer de seus ombros largos... e do corpo inteiro, para ser franca. Contudo, o que mais a agradava era o rosto dele. Depois de fitá-lo, na véspera, não conseguira dormir, pensando nas feições bem delineadas, cheia de vigor e determinação. Era um rosto para não se esquecer jamais.

   Não queria, porém, que Maude soubesse disso.

   Outra criada entrou no quarto.

   - Perdoe-me, milady, mas seu pai deseja vê-la.

   Liliana balançou a cabeça, aquiescendo. Devia tratar-se de algum assunto relacionado à festa.

   Desde a morte de lady Viviana, sua mãe, quando ainda era uma criança, passou a desempenhar cada vez mais as funções de senhora do castelo. A princípio, tentando aparentar maturidade, ela manteve uma postura de forçada autoconfiança. Agora, porém, sua desenvoltura no cumprimento de seus deveres de castelã era totalmente natural. Liliana se perguntava, muitas vezes, se seria esse o motivo por que muitas vezes pessoas pareciam temê-la.

   - Decidi usar o vestido verde escuro - comunicou a Maude antes de sair, apontando para o elegante traje de brocado e seda bordada com fios de ouro.

   - Sim, milady.

   Liliana queria enfeitar-se para aquela noite. Afinal, era o que se esperava dela.

  

   Lorde Trevelyan caminhava de um lado para o outro no grande salão sem se dar conta dos criados que cuidavam da ornamentação para a festa, enfeitando as paredes e colunas com flores recém-colhidas e ervas aromáticas. Os cavaletes que sustentariam as mesas ainda estavam encostados nos cantos, mas logo seriam dispostos em seus lugares, ocultos sob vastas toalhas de linho branco. Um cheirinho apetitoso das iguarias que assavam no forno vinha do corredor que conduzia a cozinha. Como sempre, a festa seria um espetáculo de fartura e bom gosto, de forma que não era esse o motivo da preocupação expressa nas rugas das testas de lorde Trevelyan.

   - O senhor mandou me chamar? - indagou Liliana com um sorriso.

   - Mandei sim. Sente-se. - ele replicou apontando-lhe uma cadeira. Depois que ela obedeceu, acomodou-se ao seu lado.

   - Algum problema, papai?

   Trevelyan pigarreou.

   - Liliana, decidi que já é tempo de você se casar. - anunciou em tom solene.

   - De novo, pai? - ela perguntou com brandura, os lábios esboçando um sorriso divertido.

   Ele franziu a testa.

   - Digo-lhe que chegou a hora. Há vários nobres por aqui, participando do torneio, e quero que você escolha um deles.

   Liliana engoliu em seco. Pressentia que não seria fácil dobrar o pai, desta vez.

   - Nem tente argumentar comigo, Liliana. É a minha palavra final.

   A jovem fitou o pai, reconhecendo em suas feições a mesma teimosia e determinação que a caracterizavam. Ele falava sério.

   Normalmente, bastar-lhe-ia persistir um pouco para que o pai desistisse de pressioná-la. Contudo, conhecia aquele olhar e sabia que qualquer resistência seria inútil.

   Sua mente fervilhava, perdendo-se em reflexões. Sabia que este dia chegaria, mais cedo ou mais tarde. Não ignorava os mexericos ao seu respeito, até porque Averil Beaumare cuidara para que os falatórios lhe chegassem ao conhecimento. As más línguas apontavam-na como uma moça fria, apesar de bonita e arrogante, que se julgava boa demais para qualquer partido.

   Costumava tranqüilizar o pai com a alegação de que se casaria assim que encontrasse alguém que desejasse como marido. Ela até chegara a considerar a possibilidade com dois bons representantes da nobreza, mas... no fim, acabara desistindo. Afinal, onde encontrar um marido que lhe concedesse a mesma liberdade que seu pai lhe dava? Além disso, seria pedir demais que ele fosso bonito, gentil e terno?

   - Que tal Sir George de Gramercie? - lorde Trevelyan sugeriu.

   Liliana sacudiu os ombros. Sir George era simpático, mas não lhe inspirava a menor paixão. Por outro lado, exercia as funções de administrador do melhor amigo do pai dela, que o mantinha ocupado a maior parte do tempo. Talvez ele gostasse de uma esposa que o ajudasse nas tarefas.

   Lorde Trevelyan nomeou outro candidato.

   - Oh, não! É demasiado velho para mim - Liliana objetou.

   O pai sugeriu outro "bom partido".

   - Está brincando! Ele deve pesar uns duzentos quilos!

   Mais outro.

   - Bebe demais. Nunca o vi sóbrio.

   E outro.

   -Quer a minha infelicidade? Sabe muito bem que o cavalheiro não deixa uma criada em paz em todo o condado!

   Lorde Trevelyan ergueu as sobrancelhas, exasperado.

   - Liliana essa é a sua última chance de escolher. Se você não o fizer, eu mesmo decidirei quem será seu marido.

   Liliana mal podia acreditar no que ouvia. Seu pai jamais se dirigia a ela nesse tom autoritário.

   - Que tal Kyryan Morgan? - ele perguntou, recuperando a habitual paciência.

   Um brilho passou pelos olhos de Liliana. Não se podia acusar Kyryan Morgan de não inspirar paixão, com o seu corpo invejável e seu rosto atraente. Além disso, era jovem e vigoroso. Mas...

   - Ele não possui terra nenhuma - ela protestou sem convicção.

   - Eu posso dar-lhe uma de nossas propriedades - o pai argumentou.

   Liliana fitou-o com cautela e percebeu que o semblante de pai começava a expressar triunfo. Era como se ele tivesse acabado de conceber um plano maravilhoso.

   - Tenho negligenciado o castelo no limite extremo de nossas terras. Um gaulês jovem e ambicioso como Morgan seria o homem ideal para administrá-lo. Desde, é claro, que jurasse fidelidade a mim.

   Ela franziu a testa.

   - E oferecer-lhe a filha como esposa seria o meio mais eficaz para garantir tal fidelidade...

   - Não, a menos que você queira - Lorde Trevelyan rebateu, curvando-se em sua direção e encarando-a com profundo amor. - Liliana, conheço Kyryan desde a primeira vez em que ele participou de nossos torneios. Na época, não passava de um garotinho. Asseguro-lhe que é um bom rapaz. Não creio que encontrasse outro melhor.

   À medida que a idéia de torna-se esposa de Morgan se instalava em sua mente, Liliana sentia o coração pulsar com maior velocidade e força. Na noite anterior, ela o seguira com o olhar por toda parte. Tinha que admitir que ele a impressionara como nenhum outro homem jamais conseguira. Sem dúvida, ao passava de um gaulês rude, mas esse fato não chegava a constituir defeito. Ao contrário, faria com que o marido a respeitasse pela superioridade de seu conhecimento dos bons modos normandos.

   - Está muito bem, pai. Suponho que qualquer escolha é melhor do que nenhuma - Liliana cedeu, fingindo, principalmente para si mesma, uma aprofunda indiferença.

   Kyryan dirigiu o olhar lorde Trevelyan e remexeu-se, inquieto na cadeira. Não podia dar crédito ao que acabara de ouvir. Estaria sonhando?

   - O senhor...está-me oferecendo... uma propriedade?

   - Exatamente. O último administrador morreu recentemente. O castelo necessita reparos, pelo que fui informado. Charles não era, devo dizê-lo, muito afeito ao trabalho. Entretanto, estou certo de que você cuidará para que o castelo prospere e se torne confortável. A propriedade é muito grande, mas a terra é boa. Você terá que me jurar fidelidade é lógico.

   -Sim, milorde - Kyryan aquiesceu, ainda sob o efeito da perplexidade. Terra! Sua própria terra! Tudo com que sempre sonhou, objeto de seus planos e esforços desde que saíra de Gales. Trevelyan era homem justo. Em troca, exigia-lhe apenas, fide1i¬dade. O que mais poderia pedir?

   - Será uma honra servi-lo senhor.

   - Devo informá-lo que há rumores sobre um bando de malfeitores na região. Gauleses, pelo que falam.

   - Se desrespeitarem as leis, serão devidamente punidos - Kyryan ponderou, solene. Não alimentava qualquer simpatia pelos agitadores. Com seu esforço honesto, estava abrindo caminho para si mesmo entre os normandos. Qualquer homem poderia fazer o mesmo, se de fato desejasse.

   Lorde Trevelyan observou-o com atenção antes de anunciar:

   - Existe ainda uma outra condição...

   Kyryan aguardou em silêncio, esperando que a nova exigência não o obrigasse a recusar a proposta.

   - Eu ficaria muito satisfeito, se você desposasse a minha filha.

   - Como? - aturdiu, Kyryan não encontrou nada para dizer, limitando-se a um murmúrio débil.

   - Naturalmente, o dote da minha filha ajudará a promover melhorias no castelo.

   - Milorde, declaro-me... sem palavras - disse Kyryan, após uma pausa. O que era totalmente desnecessário, uma vez que o fato era evidente por si mesmo.

   Lorde Trevelyan sorriu.

   - Você é um bom rapaz,. Confesso que ficaria feliz se minha filha tivesse um marido digno da minha confiança. Além disso, ela continuaria perto de mim. Deve saber que eu a amo muito.

   Kyryan sentiu que seus caóticos pensamentos e emoções confusas organizavam-se rapidamente. A ameaça por trás das palavras gentis de lorde Trevelyan era patente. Se ele não se casasse com lady Trevelyan, não receberia terra alguma. Na hipótese de concordar, estaria sob constante vigilância. Se não tratasse a esposa bem, per¬deria tudo e seria castigado.

   Claro que Liliana Trevelyan era uma jovem muito bonita, que lhe despertara o desejo desde a primeira vez em que a viu. Contudo, o que sabia a respeito dela? Absolutamente nada. Como poderia conviver pelo resto da vida com uma pessoa com quem talvez não tivesse a menor afinidade?

   Mas, se recusasse o casamento, não conseguiria a propriedade.

   Kyryan quase deixou escapar uma gargalhada. Porque perdía tempo pensando? Só um idiota perderia uma oportunidade como aquela.

   - Será uma grande honra, milorde.

   Lorde Trevelyan tomou a sorrir, mal ocultando um suspiro de alivio.

   - Ótimo. O casamento será dentro de um mês... lhe parece suficiente para os preparativos?     .

   Por Deus, um mês pareceria uma eternidade!

   - Perfeito - Kyryan concordou, orgulhoso por representar tão bem uma serenidade que estava longe de sentir.         

  

   Liliana lançou um olhar carrancudo através da janela estreita de seu quarto.

   Era o dia de seu casamento e chovia torrencialmente.

   - Você terá que usar, uma capa sobre o traje nupcial, só isso. Podia ser pior.

   Liliana voltou-se para Maude com expressão soturna.

   - Podia, é? Como?

   - Bem, se você estivesse doente, por exemplo. Ardendo em febre... o noivo...

   - O quê? Estivesse ocupado demais para casar-se?

Maude mordeu o lábio inferior. Liliana sabia que a criada se arrependera de ter mencionado o noivo. Desde a festa, quatro semanas antes, em que seu pai anunciou o noivado e marcou a data do enlace, Kyryan Morgan só dedicava seu tempo livre a propriedade que lhe fora presenteada.

   Poucos dias depois de Kyryan deixar o Castelo Trevelyan, uma tempestade terrível causou muitos estragos na região. Liliana desculpou a ausência do noivo, compreendendo a necessidade de tomar mil providências para promover os reparos na propriedade. Contudo, após três semanas sem nenhum contato, ela começou a ressentir-se cada vez mais.

   - Agora, milady, sugiro que desenrugue a testa - Maude aconselhou-a. - Seu pai disse que o salão precisava de uma reforma. Aquela tempestade foi muito forte, talvez tenha danificado o telhado. Com toda a certeza, Kyryan está cuidando para que o castelo esteja pronto para recebê-la condignamente. É o que se espera de um noivo, não lhe parece?

   Liliana, praguejou deforma inadequada para uma dama.

   - Milady! - Maude escandalizou-se. .

   - Bem, será que é demais esperar que um noivo, visite sua futura esposa ao menos uma vez antes do casamento? É muita falta de consideração da parte dele!

   Liliana afastou-se da janela. Já era de esperar que, no dia de seu casamento, chovesse mais do que no grande dilúvio descrito pela Bíblia. Não fosse a férrea determinação de seu pai e ela teria dispensado a cerimônia, a despeito do dinheiro gasto com os preparativos.

   - Não amasse a saia desse jeito! Vai estragar o vestido! - ¬Maude admoestou-a. Ao ver a expressão severa no rosto de Liliana, porém, acrescentou com reverência - Milady...

   Liliana largou a fina renda, branca bordada com fios de prata e dirigiu-se à mesinha onde havia um cálice de vinho.

- Vá com calma, milady!

   Liliana fulminou a criada com o olhar.

   - Você já empacotou minhas escovas de cabelo?

   - Sim, milady. Todas as suas coisas estão devidamente guardadas nas malas, com exceção do traje que usará na viagem amanhã e a camisola de seda... desta noite.

   Liliana esforçou-se para não corar a menção da noite nupcia1. A simples idéia a perturbava, embora não tivesse a menor noção do que estava para ocorrer.

   Na verdade, incomodava-a sobremaneira a própria ignorância so¬bre certos assuntos. Parecia-lhe absurdo não saber o que se esperava de uma noiva na noite de núpcias. Seu pai sempre deixara claro que considerava aquele tema impróprio para uma conversa polida no salão. E como era no salão que pai e filha habitualmente se encontravam, jamais havia privacidade para que discutissem a respeito.

   E agora, sentia-se tentada a recorrer a Maude, justo Maude, que não guardaria um segredo mesmo que sua vida dependesse disso! Talvez a criada pudesse informar-lhe o que acontecia entre um ho¬mem e uma mulher depois que se fechavam as portas da alcova. Como faziam os bebês? Era prazeroso? Doía?

   Tudo o que ela sabia, e fora aprendido da forma mais indigna, prestando atenção nas conversas das criadas pelos corredores, era, que beijos e abraços eram importantes. Afinal sim era fundamental que uma parte do corpo do homem penetrasse numa parte do corpo da mulher. Mas, qual? Onde?

   Seria mais embaraçoso admitir seu total desconhecimento para Maude ou para o marido? Liliana abria boca para formular suas indagações quando ouviu o ruído de cascos de cavalo no pátio sob a janela. Maude correu para a janela, seguida por Liliana.

   Sim, era Kyryan Morgan que, afobado, disparou para a capela.

   - Bem, pelo menos ele não se atrasou - Maude comentou com evidente alívio. Ao perceber a censura no olhar da senhora do castelo, não conteve uma de suas risadas estridentes.

   - Às vezes você consegue ser bastante ferina.

   - Ora, deixe disso... milady. Venha, vou ajudá-la a vestir a capa.

   - Que bela noiva eu serei! - Liliana resmungou.

   - Não gostaria de estragar o belo vestido, certo? Seria uma pena, depois de todo o trabalho que tivemos para bordá-lo...

   Ouviu-se uma batida na porta. Maude abriu-a e, parado na soleira, estava lorde Trevelyan, empertigado em seu traje de brocado azul¬ marinho, os longos e grisalhos cabelos espalhados sobre os ombros. Sua postura era a mais digna de um nobre, o que aumentou em Liliana a determinação de ficar à sua altura, como filha de um legítimo aristocrata.

   - Está pronta, meu anjo? - ele perguntou com ternura. Ela ergueu o queixo.

   - Sim, meu pai.

  

   Kyryan sacudiu a cabeça, respingando gotas de chuva pela nave da capela. Seu cachorro, Mott, que já havia feito o mesmo para secar-se, jazia encolhido sob os pés do dono.

   - Você se incomodaria em parar com isso? - Elwy protestou, deslizando a mão pela roupa para enxugá-la.

   Kyryan sorriu e ajustou o cinturão sob a túnica negra.

   - Oh, desculpe.

   - Não tem importância. Você não me parece nem um pouco animado...

   - Ora, você é que está com inveja...

   Elwy suspirou.

   - Tem toda a razão, meu amigo. Se o meu nariz fosse pequeno e bem feito como o seu, fique certo de que ela estaria se casando comigo...

   - Duvido - Kyryan alisou a túnica e espanou a lama que recobria parte das botas, franzindo a testa com evidente desgosto. Havia planejado comprar roupas novas, mas gastara o dinheiro com pregos para conserto do celeiro. Além disso, pretendia chegar ao Castelo Trevelyan na véspera do casamento, mas teve que esperar o marceneiro a quem encomendara o novo leito, fizera questão de certificar-se de que o móvel fora talhado de forma apropriada.

   - Você está mais saltitante do que um macaco no galho...

   - Ora, cale a boca.

   - Oh, Virgem Santíssima! O que é isto no seu cabelo?

   Kyryan vociferou. Alguns impropérios esfregando a mão na cabeleira anelada. Então, viu o sorriso brincalhão de Elwy.

   - Afinal, há alguma coisa na minha cabeça ou não? - indagou exasperado.

   - Pelas chagas de Cristo, você está nervoso!

   - Olhe aqui, eu...

   - Shh! Aí vem a noiva!

   Mais tarde, nem, Kyryan nem Liliana se lembrariam bem da cerimônia. O padre era muito idoso, e murmurava palavras incompreensíveis. Ela fazia um esforço monumental para manter a postura: aristocrática, enquanto ele se remexia, inquieto, cônscio de sua aparência enlameada.

   As coisas não melhoraram durante a festa. O banquete, a exemplo, de outros jantares oferecidos por Lorde Trevelyan foi suntuoso, che¬gando ao limite do extravagante. Os servos uniformizados serviam iguarias temperadas com as ervas mais caras, numa sucessão de faisões, perus e carneiros assados. O pão fora feito com as farinhas mais finas, o vinho viera da França e as frutas haviam custado uma pequena fortuna.

   Liliana, porém, pouca atenção prestou a toda aquela opulência. Tudo em que podia pensar era no fato de que estava casada, unida pelo resto de sua vida ao homem sentado à sua direita, que se ocupava em embriagar-se o mais rapidamente possível. O homem que levava o cachorro para a capela e depois para a mesa junto com eles, para alimentá-lo com a comida do próprio prato!

   Não bastara o descaso durante o noivado, período em que Kyryan não lhe fizera uma visita sequer. Não, ele agora precisava humilhá-la na frente dos convidados, gesticulando e conversando em altos brados naquele idioma bárbaro com o idiota do amigo! Seu marido de¬monstrava ignorar completamente os bons modos característicos da nobreza.

   Barris Beaumare, gordo e velho, beirando os quarenta anos, estava à esquerda dela. Depois vinha sua esposa, Averil. A distância entre ambas era suficiente para poupar Liliana de manter conversação com lady Beaumare . Menos mal, pois ela não suportaria ouvi-lhe os comentários maldosos. Podia bem imaginar o que iriam dizer do comportamento do noivo...

   Contudo, era muito cedo para que os olhos aguçados e a língua afiada de Averil pudessem detectar o conflito entre os recém-casados. Ainda assim, Liliana afivelou um sorriso nos lábios, determinada a manter as aparências.

   Liliana já se julgava a salvo de Averil, quando Barris levantou-se da mesa e saiu. Lady Beaumare fitou-a com inveja mal disfarçada. Liliana experimentou uma sensação de triunfo, merecido após anos agüentando o ar de superioridade da arrogante jovem.

   - Não deixo de invejá-la pela noite de núpcias que a aguarda - Averil revelou, embora já tivesse denunciado seus pensamentos.

   Liliana sentiu-se corar até a raiz dos cabelos, pois sabia que o comentário não havia escapado do ouvido atento de Kyryan, que se voltara para ambas. Averil fingiu constrangimento e ela abaixou a cabeça. Por nada no mundo encararia o marido, naquele momento.

   Com um tremendo esforço, recuperou o autodomínio e sorriu para a convidada.

   - Tenho certeza de que será uma noite tão feliz quanto foi a sua, minha cara.

Um lampejo de contrariedade passou pelos olhos azuis opacos de Averil. Ela jamais se vangloriara pelo aspecto ou pelos modos do marido. Como poderia? Em compensação, Liliana fora obrigada a ouvir, repetidas vezes, seus comentários "casuais" sobre os bens, terras e riquezas dos Beaumare. Assim era natural que atacasse Averil em seu ponto fraco.

   Barris retornou, acomodando o corpo rotundo na cadeira. A esperança de Liliana era que o velho estivesse, àquela altura, embriagado demais para conversar.

   Liliana estendeu a mão para a taça de vinho e seu cotovelo esbarrou no musculoso antebraço do marido. Sem ousar fita-lo, ela ergueu a taça num gesto trêmulo. Sorveu um pequeno gole e pousou o vinho sobre a mesa apressadamente, receosa de que Kyryan notasse sua perturbação.

   Kyryan disse alguma a lorde Trevelyan, sentado a seu lado direito, e os dois caíram na gargalhada. O fato aparentemente inocente, causou a Liliana a sensação de ser vítima de uma conspiração.

   Erguendo o queixo, tentou, apaziguar-se, argumentando consigo mesma que seu pai jamais conspiraria contra a própria filha.

  

   Kyryan observava Liliana com o canto dos olhos. Ela parecia fria e rígida como um cadáver. Tinha este aspecto desde a cerimônia.

   Provavelmente, ela se zangara com ele por não tê-la visitado du¬rante o noivado. Bem que quisera, mas lorde Trevelyan não havia mentido ao afirmar que o castelo precisava de reparos. Encontrara o velho prédio praticamente em ruínas, o celeiro sem telhado, o muro em volta quase caindo. Ele suspeitava que os arrendatários estivessem roubando as pedras, da muralha para suas próprias construções. Para piorar, viera a tempestade e aumentara ainda mais os estragos. O moinho desabou sob o impacto de um relâmpago. Como era o mais importante, Kyryan começou os consertos por ele. Quando o moinho foi reparado, ordenou aos homens que cuidassem do celeiro. Os arrendatários e o magistrado, obviamente desabituados a receber ordens, obedeceram com ostensiva má vontade. Em vista disso, tivera que supervisionar todo o trabalho, pois não confiava que fossem seguir as instruções à risca.

   Certo dia precisou ir à cidade mais próxima, deixando Elwy en¬carregado de vigiar os homens. Não teve alternativa, já que neces¬sitava comprar algumas ovelhas. Com isso, gastou a maior parte do dinheiro que possuía.

   Quando criança, Kyryan fora pastor. Desde então, acreditava que poderia obter bons lucros com a criação destes animais. Junto com os impostos pagos pelos arrendatários, formaria uma renda bastante rasoáve1. Além das ovelhas, adquiriu um bom número de galinhas, um galo, umas poucas cabeças de gado e porcos.

   Kyryan tomou outro gole de vinho. Aquele era dos bons. Não que realmente apreciasse vinho, preferindo cerveja. Contudo, tinha a impressão de que os normandos atribuíam uma grande importância ã bebida feita de uvas. Então, beberia vinho!

   Na semana que antecedeu o casamento, ele tentou começar as obras do castelo propriamente dito. O prédio fora construído com dois andares, sendo o primeiro para depósito e o segundo contendo o salão e os quarto. Contudo, as vigas de madeira do andar superior apodreceram e desabara em vários lugares. O telhado também se encontrava em péssimas condições. Ao menos, conseguira remen¬dá-lo. Mas não dava para fazer muito em tão escasso tempo.

   Desesperado, Kyryan arrumou uma área nos fundos do andar in¬ferior para instalar o novo leito. Achava que o quarto improvisado não ficara desconfortável. Na primavera, instalariam as vigas do andar superior e teriam novamente o salão.

   Sorveu outro gole. Aquele era realmente o melhor vinho que já provara. Estava bebendo mais do que costumava, mas era o único jeito de abster-se de falar muito. Normalmente, considerava seu Nor¬mando bastante fluente. Na presença de todos aqueles nobres enfatuados, porém sentia-se como um mero camponês.

   Sua esposa - sua esposa! - estendeu o braço para alcançar uma fruta. Por um momento, ele ignorou as reminiscências saudosas de lorde Trevelyan e tomou a lançar um olhar furtivo para Liliana, como estava linda! Parecia um anjo com o vestido branco e prateado, o seio arfando ligeiramente sob o decote.

   As mãos alvas e esguias seguravam a maçã com delicadeza, os lábios carnudos sorriam com obstinação. Cachos dourados escapavam do véu fino, preso por uma pequena coroa de Prata e pedras preciosas, o rosto pálido, freqüen¬temente tingido pelo rubor, realçava o brilho dos olhos verdes. Estava claro que Liliana dispensava qualquer artifício, pois sua beleza na¬tural era inefável. Ah como ela tremera ao receber o anel nupcial em seu dedo... agora, voltara a tremer. Por que seria? Antecipação dos prazeres que os aguardavam?

   Kyryan sorriu. Liliana estava nervosa, pobrezinha, decerto sentia medo. A maioria das virgens mostrava hesitante e temerosa, ele pensou, sentindo uma pontada familiar na virilha.

   Bem, ele era experiente. Já estivera com várias mulheres e apren¬dera a brindá-las com o mesmo êxtase que experimentava ao pos¬suí-las.

   Bebericando o vinho, Kyryan contemplou, distraído, os músicos que chegavam. As mesas foram retiradas, abrindo espaço para as danças. Depois de curva-se numa mesura que ele supôs ser galante convidou a esposa para abrir o baile encabeçando a quadrilha.

   Atordoado e sorrindo como um idiota, Kyryan resmungou que não tinha muita prática nas artes de salão.

   - Isso é óbvio - Liliana rebateu em tom petulante. Dardejou-lhe um olhar furioso, mas tudo o que Kyryan percebeu foi obri1ho envolvente de seus olhos verdes.

   - Está ficando tarde - ela comentou. - Creio que é hora de me retirar - "E poupar-me de mais uma humilhação", pensou com desgosto.

   - Ótima idéia, minha cara, ótima idéia! - Kyryan aprovou com entusiasmo, sem se dar conta de que, ao sorver mais um gole, derramara vinho na túnica. - Em breve irei juntar-me a você.

   Liliana nem se deu ao trabalho de responder quando o pai, interceptando-a, perguntou:

   - Você está feliz, minha filha?

   Marchando na direção do quarto, Liliana sentia a fúria crescer em seu peito. O pai e o marido haviam decidido, sem consultá-la, que a primeira noite seria passada no Castelo Trevelyan. Só no dia seguinte rumariam para seu novo lar.

   Maude trotava ao lado dela, tentando acompanhar-lhe os passos apressados. Quando chegaram ao aposento, Liliana bateu a porta com toda a força. .

   - Ele é... ele é, intolerável!

   - É seu marido, não se esqueça!

   O olhar enraivecido de Liliana manteve a criada calada enquanto a ajudava a despir o traje nupcial Maude dobrou o vestido cuida¬dosamente e guardou-o numa das malas que seguiriam lady Morgan em sua jornada. Com um suspiro, acendeu a lareira. Ainda não era inverno, mas a temperatura já caía bastante durante a madrugada. Fazia muito frio, principalmente quando se usava uma camisola tão delicada.

   - Agora, deixe-me - Liliana ordenou impaciente.

   Maude balançou a cabeça, aquiescendo, e saiu. Tinha que terminar suas próprias malas, pois lorde Trevelyan concordara em deixá-la acompanhar a jovem esposa em sua nova vida.

   Liliana trajando a camisa de linho que usara sob o vestido de noiva em vez da camisola de seda especialmente bordada para aquela noite, começou a escovar o cabelo vigorosamente, dando vazão à sua ira. Após alguns minutos, seus gestos foram se abrandando até pararem por completo. Estava exausta.

   Ela franziu a testa, contemplando a cama que Maude preparara.

   Se Kyryan Morgan pensava que a encontraria pacientemente espe¬rando entre os macios lençóis, não tardaria a descobrir que se en¬ganara.

  

   Três horas mais tarde, Liliana ainda se encontrava sentada em frente ao leito. Ela ouvira os passos do pai pelo corredor quando ele se recolheu. Depois, escutou a cantoria enrolada dos convidados embriagados sob a janela. Por fim, chegou-lhe aos ouvidos vozes masculinas que se aproximavam do quarto dela. Liliana ergueu-se e cruzou os braços.

   A porta se abriu com estrondo e seu marido entrou cambaleando, mal conseguindo manter-se de pé. O cachorro vinha atrás, como era previsível. Contudo, deteve-se na soleira quando Kyryan gritou com o amigo naquele idioma abominável, antes de chutar a porta, fe¬chando-a.

   - Você está bêbado - ela acusou-o, proferindo as palavras com deliberada lentidão.

   - Não muito - ele replicou, reprimindo um soluço.

   - Tire o seu cachorro do meu quarto. .

   Kyryan franziu as sobrancelhas.

   _ Mott não dorme longe de mim.

   _ Muito bem. Espero que aprecie a companhia de seu cão em sua noite de núpcias, por que eu vou dormir em outro lugar.

   Liliana começou a dirigir-se para a porta, mas Kyryan agarrou-lhe o braço com surpreendente força ele puxou-a para si. Os dois ficaram próximos o bastante para que a respiração dele lhe penetra-se as narinas.

   - Você é minha esposa.

   - Pois não se esqueça disso. Você parece pensar que eu não passo de uma camponesa estúpida que não se importa em mendigar um pouco de atenção.

   Liliana lançou-lhe um olhar de desafio. Não temia um homem tão embriagado que não conseguia sequer manter o equilíbrio. Sentindo-se no controle da situação, ergueu o braço e apontou a porta.

   _ Saia daqui é leve seu cachorro com você!

   Kyryan não se móvel, limitando-se a sacudir a cabeça.

   - Oh, não. Você é minha esposa e esta é nossa noite de núpcias.

   Perdendo o que lhe restara de paciência, Liliana empurrou-o para a porta.

   - Saia daqui, seu beberrão, seu... gaulês! - exasperada ela praticamente cuspira as palavras, imprimindo à última um tom agressivamente pejorativo.

   No instante seguinte, Kyryan agarrou-a pela cintura, ergueu-a no ar é atirou-a sobre o leito. Postou-se diante dela e, pela primeira vez, Liliana deixou-se atemorizar. Principalmente por causa da raiva fria que vislumbrava nos olhos dele. E pela força de seus músculos.

   Então, Kyryan piscou e desabou sobre a cama, gemendo, as costas apoiadas sobre pernas dela. Em seguida, os gemidos cessaram.

   Por um momento terrível, Liliana julgou que ele estivesse morto. Um ronco pesado, porém, demonstrou que Kyryan havia adormecido.

   Liliana moveu as pernas, afastando-o com violência. O marido foi parar na extremidade da cama. Ela sentiu-se tentada a chutá-lo para o chão.

   Se aquele era o comportamento usual dos recém casados, toda a incerteza acerca,de seus deveres conjugais havia sido completamente injustificada.

   Com um último olhar furioso para o homem que dormia, ela virou-se de lado e tentou conciliar o sono.

  

   Kyryan teve a impressão de que o ferreiro lhe martelava nova¬mente a cabeça, desta vez de dentro para fora. Com um gemido de dor, tentou levantar-se da cama.

   Então, viu Liliana. Trajava um vestido de veludo verde, os cabelos ocultos sob um toucado que terminava num gracioso véu despeito do colorido da roupa, parecia tão severa como uma freira no convento. Liliana. Sua esposa. Sentada na cadeira em frente ao leito, observando-o com expressão de puro ódio.

   Ele lembrava-se vagamente da noite anterior, Ela usava alguma coisa branca que lhe revelava quase todo o corpo Haviam discutido...

   De alguma forma, apesar do lapso de memória, a expressão soturna da esposa e o fato de ela já estar vestida o levava a suspeitar que o casamento não fora consumado.

   - Vou conversar com meu pai - Liliana anunciou em tom feroz. - Quero anular o casamento.

   Kyryan fitou-a, perplexo.

   - Por quê? - indagou, incapaz de acreditar em semelhante absurdo.

   - Porque você não passa de um idiota beberrão. Não quero qualquer ligação com alguém de sua laia!

   Ela falava sério. Kyryan Morgan tinha-se comportado como um camponês bruto, e Liliana não dividiria sua vida com alguém como ele.

   Ela não o toleraria de forma alguma, não importava o ar de menino vulnerável que o cabelo anelado emoldurando o rosto lhe conferia. Liliana ergueu o queixo. Claro que não o toleraria, a despeito da beleza máscula do corpo dele, do olhar ferido e inquisitivo com que ele a contemplava.

   Kyryan levantou-se e despiu a túnica.

- Eu sinto muito...

   Ela esforçou-se para desviar os olhos do amplo tórax à sua frente.

   - É demasiado tarde, para se desculpar. Você me humilhou de¬mais.

   - Não foi minha intenção, eu juro. Suponho que o casamento...possa ser cancelado?

   Ele Parecia tão arrependido! Mais do que isso, sua expressão revelava uma profunda tristeza. Como era possível que aquele homem fosse o mesmo que vira nos torneios, cheio de determinação e dureza contra os adversários, capaz de lutar horas sem demonstrar medo ou cansaço?

   - Sim, pode - Liliana respondeu com brandura. Então, endi¬reitou os ombros, lutando contra a perturbação que o tórax nu do marido lhe causava. Começava a lamentar a embriaguez de Kyryan na véspera, que impediu que... fosse lá o que fosse... acontecesse.

   Contudo... seria assim tão incomum que um jovem noivo se em¬bebedasse na festa de casamento? Talvez ele não estivesse acostu¬mado a beber vinho, principalmente francês, consideravelmente mais forte. Ela já vira homens mais habituados a bebidas alcoólicas caírem após umas poucas taças.

   Kyryan fitava-a, expectante.

   Liliana levantou-se.

   - Desculpe, mas creio que será o melhor para nós. Pedirei a meu pai que deixe a propriedade em seu poder. Afinal, você lhe jurou fidelidade.

   - E jurei fidelidade a você. Como minha mulher.

   O brilho daqueles olhos negros despertou emoções desconhecidas em Liliana. Ela sentiu que vacilava, tomada por uma súbita fraqueza. Kyryan aproximou-se.

   - Estou profundamente arrependido por ter-me portado como um imbecil. Será que você... poderia... conceder-me uma nova chance?

  

   - Você está muito quieto homem, muito calado - Elwy observou o olhar bri1hando de malícia, para o amigo que, cabisbaixo, parecia encolher-se sobre a sela. - Deve ser cansaço... imagino que passou uma noite memorável ...

   Kyryan dirigiu-lhe um sorriso débil, grato por perceber que se sentia me1hor ao menos fisicamente.

   Endireitando a postura, para aliviar o pescoço, enrijecido pela tensão, consolou-se por ao menos não estar vestindo a pesada cota de      malha, embora portasse sua espada e algumas adagas. Tinha, também, o arco pendente do ombro e uma aljava com flechas presa no cinturão de couro.

   Kyryan o1hou por cima do ombro. Liliana, trajando um elegante vestido sob o manto de lã verde, cavalgava atrás deles. Por último,     vinha à carroça lotada com a bagagem dela e com os presentes.

   A criada acomodara-se ao lado do cocheiro, vigiando-o para que o ve1ho não ferrasse no sono.

   Ele deixou escapar um suspiro de alívio. Pôr um momento, quando ainda estava no castelo Trevelyan, chegou ele a pensar que Liliana iria de fato o pedir a anulação do casamento. O pior é que ela tinha motivos.

   Fora um idiota por beber tanto. Se a esposa lhe tivesse perguntado o motivo, ele teria inventado que aquele era um costume gaulês. Tudo, qualquer coisa, menos a verdade. Menos admitir que ele não pas¬sava de um camponês ignorante, capaz, de grosserias imperdoáveis e sem ,o menor traço da sofisticação que se espera de um nobre. Por mais que lutasse para vencer na vida, nada no mundo poderia modificar sua natureza simplória.      

   - Estou pensando em seguir seu exemplo - Elwy declarou em tom sério.

   - Que exemplo?

   - O de arranjar uma esposa rica. E a melhor forma de se obter uma propriedade.

   - Hã...

   Elwy piscou zombeteiro.

   - Pelo sangue de Cristo, homem, você está mais silencioso, do um defunto! Percebo que sua mulher também não está falando muito.

   - A viagem é longa, precisamos poupar o fôlego.

   - Certo. Tudo que você disser, companheiro - Elwy fez uma pausa antes de acrescentar - a criada até que é bem bonitinha...

   - Você considera bonita qualquer moça que ria das suas piadas.

   - O que demonstra que alem de beleza, ela tem tutano.

   - Julguei que estivesse interessado em desposar uma mulher rica.

   - E estou, mas não preciso dormir sozinho enquanto não me caso, concorda? - Elwy tornou a piscar e começou a cantar, enchendo a floresta com o som melodioso de sua voz:

  

   "Foi num dia, certa vez,

   de solstício de verão,

   que um cavaleiro gaulês

   de uma jovem quis a mão..."

  

   Dafydd ouviu uma gargalhada masculina e rastejou na direção da estrada. Era sua tarefa vigiar o caminho, prestando atenção aos viajantes ricamente vestidos. Em especial quando não havia soldados para protegê-los.

Com toda cautela, afastou o galho de um arbusto e viu dois homens e uma mulher montados em cavalos da melhor raça. Atrás, seguiam alguns criados e uma carroça coberta. A menos que sua intuição o traísse, podia jurar que ali ia um carregamento de bens de grande valor, talvez um dos homens fosse o novo senhor de quem falava, que ganhara o castelo nos limites da propriedade Trevelyan.

   Arrastando-se, Dafydd aproximou-se um pouco mais e notou o pequeno arco gaulês no ombro do homem de melhor aparência. Esse detalhe o intrigou, pois nenhum normando ousaria portar uma arma daquela. Na verdade, os normandos desprezavam qualquer tipo de arco.

   Seria verdade, então, que o novo senhor era gaulês? Não lhe parecia possível, a menos que Trevelyan lhe tivesse dado a filha em casamento.

   Mas arco...

   O homem dê nariz grande começou a cantar, deixando Dafydd de queixo caído. Aquela canção lhe era familiar...

   Ivor precisava ser informado a respeito disso.

  

   Li1iana parou de contemplar o marido e olhou em torno, tomada por grande nervosismo. () fato de estarem atravessando a floresta assustava-a. Afinal, a comitiva, era composta apenas por ela mesma, Kyryan e o amigo, Maude e o velho John. A carroça estava repleta de roupas, linhos, brocados, prataria, algumas peças raras de mobília, candelabros e até moedas de ouro. Eles formavam um alvo perfeito para os ladrões.

   Ouvira rumores de que um bando de malfeitores vivia na floresta. Todavia, seu pai não dava a impressão de acreditar muito nos fala¬tórios. Talvez estivesse se preocupando à toa. Kyryan recusara a escolta armada que o sogro lhe havia oferecido. Seu pai teria insistido, se achasse que a jornada envolvia riscos desse tipo. Obviamente, ele julgou, que Kyryan e seu amigo de nome ridículo eram suficientes para defender o grupo.

   Nuvens cinzentas recobriam o céu. Liliana torcia para que che¬gassem ao castelo antes que começasse a chover! Estavam, caval¬gando desde a manhã, e agora a tarde já findava. As árvores ainda gotejavam, em conseqüência do aguaceiro da véspera, e estrada reduzira-se a um lamaçal.

   O olhar de Liliana tornou a fixar-se nas costas largas do marido e no arco que lhe pendia do ombro. Dizia-se que Kyryan Morgan era um arqueiro excelente, mas ela atribuía pouca importância a isso. Os cavaleiros de verdade usavam lança, espadas, clavas ou achas; e não aquela arma relegada aos soldados de pés descalços.

   Sob vários aspectos, Kyryan era diferente de todos os nobres que conhecera. Talvez fosse essa explicação, de seu charme e carisma.

   Pensar que sua determinação em anular o casamento esvaneceu-se só com um olhar dele! Aquele olhar... provocou-lhe um verdadeiro tumulto emocional. Num instante queria, expulsá-lo de sua vidas, no outro, ansiava por atirar-se em seus braços. Quanta loucura! Talvez os homens tivessem razão quando afirmavam que as mulheres eram criaturas fracas. Jamais acreditara nisso, mas podia ser por não ter ainda encontrado o homem certo.

   De súbito, o cachorro de Kyryan disparou para a mata cerrada. Antes que ela se desse conta do que acontecia, o marido deteve o cavalo empunhou o arco. No momento seguinte, puxou uma flecha da aljava, encaixou-a no arco e disparou. A seta voou pelo ar e atirou alguma coisa ao chão. Logo depois, o cão voltou trotando, com um coelho preso entre os dentes.

   Kyryan virou-se para o amigo e despejou uma enxurrada de pa¬lavras em Gaulês antes de desmontar e apanhar o coelho. Arrancou a flecha de dentro do animal e Liliana percebeu uma sombra de desgosto escurecer-lhe o semblante ao limpar o sangue do bichinho. Então, ele a fitou-a com um sorriso um tanto embaraçado.

   - Nosso jantar - comunicou, piscand0-lhe um olho.

   Sem esperar que ela respondesse, Kyryan tornou a montar, pren¬dendo a pequena caça na sela e recolocando a flecha em seu lugar.

   - Estamos chegando. A entrada do castelo fica logo depois da próxima curva - Kyryan informou, apressando o cavalo para liderar comitiva.

   O que foi bom, pois evitou que Kyryan ouvisse a exclamação chocada de Liliana ao ver seu novo lar. Pelo que, se lembrava, o solar era um prédio bonito, e não aquele monte de escombros. A muralha externa estava literalmente ruindo. Ela pôde vislumbrar a parede de taipa da velha mansão através dos buracos no muro. A maior parte do telhado havia sido refeita recentemente, mas as pa¬redes encontravam-se num estado lastimável.

   As outras construções que cercavam o castelo não estavam em melhores condições, com exceção do celeiro, que era quase tão gran¬de quanto a mansão mostrava-se obviamente bem mais conservado. Na verdade, parecia que Kyryan passara o mês inteiro só cuidando do celeiro. Ao que tudo indicava, o marido preocupava-se muito mais com os grãos e com o gado do que com a esposa.

   Kyryan olhou para trás exibindo um sorriso que ela considerou odioso.

   -Precisa de alguns reparos, é claro, mas estou certo de que logo daremos um jeito em tudo.

   Liliana rangeu os dentes. Como Puderam submetê-la a tamanho desconforto? Seu pai ignoraria o quanto a propriedade estava aban¬donada? Com que ele pôde oferecê-la em casamento ao camponês ig¬norante que morava ali? E como Kyryan podia pensar quer uma mulher ficaria feliz em desmontar o cavalo e entrar naquela... choupana imunda? Se não tivesse começado a chover, ela faria meia-volta e retornaria ao lugar onde nascera e vivera até o casamento, sem ligar para a reação do marido.

   Mas recomeçara a chover forte.

   Liliana baixou o capuz para proteger a cabeça, enfurecendo-se ainda mais por notar que Kyryan não esperava por ela, disparando na frente sem a menor consideração pela esposa. Aliás, como já era de se esperar.

   A contragosto, seguiu o marido e seu amigo até o celeiro. Ao menos, conseguiram alcançar o abrigo antes de ficarem totalmente encharcados. Só depois de desmontar e retirar o capuz deu-se conta de que não estavam sozinhos.

   Cerca de vinte homens, que conversavam e riam, receberam Kyryan com tapinhas nas costas, enquanto ela permanecia junto da porta, ignorada. Galinhas ciscavam no chão sujo, vacas mugiam no estábulo, um cavalo relinchou, o cachorro de Kyryan corria de um lado para o outro como se estivesse endemoninhado. O cheiro inconfundível de porcos era insuportável.

   Não era a recepção que imaginara para a esposa recém-casada de um nobre.

   Pouco depois, Maude e o velho John entraram com a carroça, que gotejava por todos os lados.

   Então, Kyryan finalmente pareceu lembrar-se dela.

   - Deixe-me apresentar-lhes alguns dos meus mais prestativos amigos gauleses. São os melhores construtores de mundo! O Barão DeLanyea os enviou quando soube do meu casamento e ... - Kyryan calou-se de forma abrupta.

   - E imaginou que a sua propriedade necessitaria dos melhores "construtores do mundo?" - Liliana sugeriu o final da frase num tom repleto de sarcasmo.

   O que resultou inútil, pois Kyryan não deu mostras de perceber. Um largo sorriso, quase infantil, iluminou-lhe o rosto.

   - Exatamente! Não é maravilhoso?

   - Maravilhoso - ela ecoou, desalentada, aconchegando a manta para tentar aquecer-se. Kyryan tornou a esquecer-se de sua presença. Em gaulês, retomou a conversa com os compatriotas.

   Maude riu quando Elwy, o único homem ali capaz de demonstrar algum senso de cortesia, ajudou-a a descer da carroça.

   Liliana acercou-se da carreta, tomada por profundo desânimo. Todas as suas roupas, seus objetos valiosos, tudo devia estar enla¬meado.

   - A chuva diminuiu - Kyryan anunciou. - Vocês podem ir para o salão do castelo. Eu os encontrarei lá daqui a pouco.

   Liliana apressou-se a sair do celeiro e começou a atravessar o pátio com passos acelerados. Então, percebeu que estava molhando a barra do vestido nas poças e passou a evitá-las com cuidado. Subiu as escadas que conduziam ao salão. Ao chegar à soleira, parou e observou. O piso acima do andar inferior, que geralmente servia para armazenagem, não existia, com exceção de algumas vigas. Em vez disso, havia um andaime com uma rampa para descer ao andar de baixo.

   Então, ela teria que viver numa despensa? Num lugar com o chão sujo e, pelo que pôde ver quando desceu a rampa, uma imensa lareira provisória no centro? Havia bancos espalhados ali por perto, bem como cavaletes de mesa encostado na parede, um biombo na extremidade da sala.

   Uma mulher encarquilhada, que presumiu tratar-se de Sara, estava de pé junto da porta, na outra extremidade. Seria ali a cozinha? A velha, dirigiu-lhe um sorriso desdentado.

   Exausta, Liliana deixou-se cair sobre um dos bancos. Kyryan lhe havia arranjado uma bruxa sem dentes como cozinheira! Deserto empregava olhos de sapo e pernas de morcego em suas poções! E onde estariam os demais criados? Por que não foram recebe-la? O que fora feito de Maude, que ainda não trouxera sua bagagem? Precisava tanto de roupas secas!        .

   Ela olhou para cima, onde deveria estar localizado o salão prin¬cipal. A luz mortiça do final da tarde escoava-se pelas janelas es¬treitas. As paredes nuas e manchadas, não sofriam uma boa limpeza havia anos.

   Liliana principiou tremer, enregelada, e aproximou-se do fogo. Ergueu um pouco as saias para secar os pés, que haviam perdidos a sensibilidade, de tão frios.

   Maude finalmente chegou.

   - Meu bom Deus! Estou molhada até os ossos! - resmungou, olhando a rampa, as vigas e o teto. Soltou uma de suas risadas irritantes. - Bem pelo menos ainda sobrou o telhado. Ele quase desabou na última tempestade, pelo que Elwy me contou.

   Ao ver a expressão de sua patroa, porém, Maude interrompeu a tagarelice e correu para ela, numa tentativa de reconfortá-la.

   - O velho John vem trazendo as suas malas. Demoramos um bom tempo para encontrá-la em meio a toda a bagagem. Bem que eu avisei na hora em que estavam colocando tudo na carroça, mas ninguém me ouviu!

   Liliana fitou-a com ar carrancudo. Não duvidava das palavras da criada, pois considerava bastante provável que não se desse grande importância ao transporte de seus pertences. Também, depois do que todos haviam bebido durante a festa, deviam estar com uma tremenda ressaca.

   John entrou com a arca que continha o enxoval de Liliana. Lençóis de seda e renda bordada para sua nova casa.

   - Onde ponho isto? - o criado indagou.

   - Lá - a velha apontou para o biombo, falando pela primeira vez.

   Os olhos de Liliana se estreitaram e seus lábios se contraíram. Kyryan Morgan esperava que ela dormisse ali? Pretendia consumar o casamento com um bando de homens a poucos metros de sua cama? Era ultrajante!

   Maude lançou um olhar preocupado para a patroa, como se lhe adivinhasse os pensamentos.

   - John agora traga a arca de carvalho. Lady Morgan precisa de roupas secas.

   Os dois desapareceram atrás do biombo.

   Neste instante, Kyryan entrou no salão, seguido pelos amigos gauleses. Saltou pela rampa como se estivesse praticando um esporte muito divertido e entregou o coelho para Sara.

   - Tome. Este será o nosso jantar de amanhã.

   A cozinheira assentiu e retirou-se.

   Kyryan voltou-se para a esposa com um sorriso radiante, que imediatamente desapareceu, dando lugar a uma expressão indagadora.

   - Você não vai tirar a manta?

   - Não. Estou com frio.

   Ele apanhou uma acha da pilha perto da porta por onde Sara havia saído e atirou-a no fogo.

   - Agora ficará mais quentinho - Kyryan prometeu aos amigos com jovialidade e todos desataram a rir.

   Então sentou-se ao lado da esposa enquanto os homens montavam as mesas sobre os cavaletes para o jantar, brincando de empurrar uns aos outros e gargalhando. Kyryan participava da conversa ininteligível, ponteada de risos e exclamações, e esticou as longas pernas para junto da lareira. À medida que sua roupa secava, tornava-se cada vez mais óbvio, pelo odor, que estivera mexendo com os animais no estábulo.

   Liliana mantinha-se obstinadamente calada, embora tivesse muito a dizer. Não via utilidade em discutir a inadequação dos modos de seu marido na frente de estranhos.

   Sara entrou pouco depois, carregada com travessas de carne, pão e cerveja. Liliana bem que gostaria, mas o fato era que a torturava. A jornada fora longa, com uma única parada para um lanche rápido, constituído por umas poucas frutas e um copo de vinho. Afora isso, nada comera o dia inteiro.

   Maude terminou sua tarefa e acomodou-se ao lado de alguns dos gauleses, numa das mesas, rindo como uma tola a maior parte do tempo. O comportamento da criada só aumentou a irritação de Liliana. John ao menos, limitava-se a comer, distante da balbúrdia geral.

   A comida, porém, revelou-se extremamente saborosa. Liliana não pode deixar de agradecer com um sorriso quando Sara serviu-lhe mais fatias de pão macio, ainda quentinho do forno. Talvez não fosse má idéia, afinal, conserva-la como cozinheira. A velha podia não ter dentes, mas possuía mãos de fadas para culinária. Assim, procurou mostra-se cortês para com a serviçal. A essa altura, não restava dúvida de que lhe caberia ensinar boas maneiras ao marido, empregando o próprio comportamento irrepreensível como exemplo. O que desgostava era perceber que, para Kyryan Morgan, a educação não parecia fazer falta.

   Após a ceia, Liliana ergueu-se com toda dignidade.

   - Tenha uma boa noite, milorde - despediu-se com frieza.

   O sorriso que ele lhe dirigiu em nada contribuiu para diminuir-lhe a raiva.

   - Já é assim tão tarde?

   - A viagem deixou-me exausta.

   - Oh, sim. Boa noite - Kyryan retribuiu o cumprimento e voltou-se para prosseguir a conversa com os compatriotas, que se entreolhavam com ar de entendimento e piscavam os olhos com malícia.

   Liliana atravessou o salão com o cenho franzido. Aparentemente, o marido planejava passar a segunda noite de casamento farreando com os amigos. Ficaria embriagado de novo. Bem, dessa vez ela não seria tão complacente, tão pronta a perdoar. Voltaria para a casa do pai e pediria a anulação daquele malfadado casamento, não importava o quão arrependido Kyryan se mostrasse.

   Indignada, cruzou o biombo. Alguma tentativa fora feita para arrumar o "quarto", mas, a julgar pelo desleixo com que Liliana se deparava, Maude devia estar pensando que agora não precisaria trabalhar tanto quanto no castelo Trevelyan. Teria que demonstrar-lhe que se enganara.

   Por ora, todavia estava cansada e zangada. Só queria dormir.

   As únicas peças de mobiliário no aposento improvisado eram as arcas que trouxera, uma mesinha com uma jarra de água e uma bacia, um braseiro e uma cama grande. Uma cama enorme. Feita ás presas com seus lençóis de linho enlameados.

   Ouviu-se uma eclosão de gargalhadas e canções desafinadamente entoadas pelos homens no salão. Liliana escutou um ruído de passos atrás dela. Virou-se e viu Kyryan aproximar-se com um sorriso lúbrico nos lábios.

   - Você espera que eu durma aqui?

   - Poe que não? Não há outro lugar, com exceção do celeiro.

   - Não consentirei em ser humilhada assim. Não estou habituada a deitar-me em chiqueiros.

   Kyryan a fitava com os olhos brilhando. Tinha diante de si a mulher mais linda que já encontrara, e a mais temperamental, também. Jamais desejara uma mulher dócil e submissa como esposa.

   - Bom, concordo que esse quarto precisa ser melhorado, mas...

   - "Melhorado"? Não existe quarto algum, este lugar não passa de um curral! Leve-me para a minha casa.

   Kyryan apertou os olhos.

   - Esta é a sua casa.

   - Não viverei sob este teto em ruínas por nada no mundo!

   - Você é minha mulher e vai morar comigo.

   - Não sou e não vou.

   Kyryan estava agudamente ciente do súbito silêncio que invadira o salão, do outro lado do biombo. Doía-lhe pensar que, momentos antes, recebia os cumprimentos pela beleza da mulher. E agora ela negava, com gritos veementes, ser sua esposa.

   - Estou lhe dizendo para levar-me de volta para casa - Liliana insistiu em tom de comando.

   Ele não seria diminuído perante os homens que conhecia desde a infância. Não se deixaria humilhar dentro dos limites de sua propeiedade.

   Além da raiva, um enorme ressentimento crescia em seu coração. Liliana, sem saber, havia-lhe causado uma grande mágoa. Ele lera no semblante da esposa a repulsa e o desapontamento ao ver o castelo, forçando-o a enxergá-lo através dos olhos dela. Liliana sequer suspeitava de como o solar parecia lindo para Kyryan, a despeito de suas más condições de conservação, pelo simples fato de que pertencia a ele.

   Numa reação inesperada, Kyryan ergueu-a no ar e atirou-a sobre o leito.

   Quando Liliana desabou sobre o colchão, o véu desprendeu-se de sua cabeça, soltando-lhe os cabelos, que espalharam em cachos dourados sobre os ombros. Ela ergueu o queixo, enrubescida de fúria.

   - Como se atreve...?

   - Você é minha mulher.

   Ela levantou-se da cama e correu para junto do biombo.

   - Seu... bruto! Eu não permitirei que você... não com todos esses homens aqui!

   - Eles já se foram.

   - O quê?

   - Arranjaram outro lugar para dormir.

   - Então...

   - Então estamos sozinhos.

   Liliana nem se moveu. Fitava-o com expressão inflexível.

   - Não ouse tocar-me. Não se aproxime de mim. Você cheira mal... como um camponês!

   Kyryan Morgan era um homem orgulhoso, e a esposa finalmente conseguira ultrapassar os limites de sua tolerância. Com os lábios apertados, ele devolveu-lhe o olhar duro. Após um segundo, agarrou-lhe o braço e puxou-a para si.

   - Você é minha mulher - tornou a afirmar, como se a desafiasse a contradizê-lo. - Da mesma forma como Mott é o meu cachorro e esta casa é a minha casa. Nunca mais tente negar esse fato. Entendeu?

   Liliana ficou chocada e realmente amedrontada. A serenidade com que o marido proferia aquelas palavras parecia mais ameaçadora do que se tivesse gritado. Os olhos negros contemplavam-na com um brilho intenso de determinação. Não restava dúvida de que se encontrava diante do homem mais perigoso com quem já se defrontara. Lembrou-se dele na arena, lutando feroz e incansavelmente até derrotar o adversário.

   Tinha que admitir, Kyryan Morgan era um guerreiro corajoso e hábil. Mais do que isso, era um homem passional, quase selvagem. Bom Deus quantas vezes ansiara por um marido com essa descrição, e agora...

   Com a rapidez e a força de um felino, Kyryan derrubou-a de novo sobre a cama. No instante seguinte, estava em cima dela, pren¬dendo-lhe os braços; o rosto a poucos centímetros de distância.

   Implacáveis, os lábios de Kyryan colaram-se aos de Liliana com firmeza e sensualidade.

   Ela jamais havia sido beijada daquela maneira. Tratava-se dê uma carícia possessiva e persistente. Um beijo de guerreiro. Tão diferente das poucas tentativas, débeis e quase repugnantes de outros homens a quem ela concedera tal liberdade.

   Então, algo inesperado surpreendeu-a. Kyryan forçou-a a entrea¬brir os lábios para permitir que sua língua tocasse a dela não entendia por que, ele fazia isso, mas sentia que gostava. E muito.

   E agora, o que estava acontecendo? Tomada por repentino pânico, Liliana esforçou-se inutilmente para fugir do marido. Seria aquilo a consumação do casamento? Era daquela forma que um homem apossava-se de uma mulher, tornando-a sua esposa? Abrindo-lhe o decote e mordiscando-lhe os seios?

   Assaltada por emoções incontroláveis e por uma forte curiosidade, parou de debater-se e aguardou, deixando escapar um longo suspiro. Kyryan disparava beijos em seus cabelos, faces, orelhas, pescoço, atordoando-a, levando-a a ansiar por alguma coisa que nem sabia o que era.

   Kyryan começou a gemer baixinho. Tinha em seus braços a moça mais linda do mundo. Nunca experimentara um prazer mais inefável do que sentir-lhe o cheiro, o calor, a suavidade da pele... ah, e poder sentir o sabor de sua boca, de seus seios...

   Logo iria possuí-la por completo, tornando-a só sua para sempre!

   Ele lhe perdoaria os insultos. Ela não tinha culpa, pois nem avaliava o quando o havia ferido! Além disso, apreciava seu temperamento¬ forte tanto quanto se deliciava com a maciez de seu ventre alvo.

   Liliana reclamara, tentara esquiva-se, mas agora, entregava-se de forma tão terna, quase apaixonada...

   Zangara com ela, mas, que diabo... por que ele teimava em agir como um camponês ignorante? A pobrezinha não merecia um tratamento tão rude.

   Kyryan suspendeu a cabeça para fita-la, brindando-a com um sorriso carinhoso.

   Então, Liliana ergueu o braço e desfechou-lhe uma sonora bofetada.

  

   - Saia de cima de mim - Liliana gritou, a voz vibrando de raiva e de indignação. - Afaste-se, seu bruto!

   Antes que ela pudesse agredi-lo novamente, Kyryan agarrou-lhe o pulso.

   - Nem tente - limitou-se a dizer.

   Ele fitou-a direto nos olhos, reconhecendo que havia subestimado sua oponente. Então, por uma fração de segundos, vislumbrou no semblante da esposa o medo que jazia sob a raiva.

   Medo! Liliana o temia!

   Num átimo, cruzou-lhe a mente a recordação de uma menina soluçando, a vergonha, o juramento de nunca mais atemorizar uma mulher. Kyryan largou-lhe o pulso e rolou de lado pelo leito, libertando-a.

   Desgostos por ter cedido à ira e à sua paixão egoísta, levantou-se.

   - Saia daqui, seu... gaulês! - Liliana bradou com desdém.

   Um travesseiro quase atingiu a cabeça de Kyryan, indo chocar-se contra o biombo. Ele voltou-se, devagar, sem mostrar vestígio de cólera.

   - Eu sou gaulês e me orgulho disso.

   Ela saiu da cama, os cabelos desfeitos chegando-lhe à cintura como uma cascata de ouro.

   - Já disse para deixar-me a sós!

   - Não sou seu criado, Liliana - Kyryan replicou, lamentando que a primeira vez em que a chamava pelo nome fosse com tanta frieza e em circunstâncias tão desagradáveis.

   Bem, ele esqueceria o quanto desejara desposá-la. Ignoraria o desejo que ainda o torturava. Ele se absteria até fita-la para verificar se o medo continuava estampado em seu semblante.

   - Entenda, Liliana. Eu sou seu marido - Kyryan aproximou-se da esposa. - Eu poderia jogá-la naquela cama e fazer o que bem entendesse, pois estaria no meu direito. Eu poderia bater em você, se quisesse. Mas, por Deus! Não farei nada, disso. Eu me prometi jamais possuir uma mulher contra a sua vontade e manterei a pro¬messa. Amanhã, poderá tomar as providências que achar melhor. Voltará para a casa de seu pai, se é o que quer.

   Liliana perscrutou-lhe os olhos negros repletos de mágoa e fúria. Em silêncio, voltou para a cama.

   - Mas eu não devolverei as terras - ele prosseguiu. - Eu cumpri a minha parte do trato. Diga isso a seu pai.

   Ela abaixou a cabeça. Se Kyryan Morgan cumprira sua parte do trato, então... o casamento havia sido consumado. Tornara-se, de fato, mulher dele. Nesse caso... como podia pretender mandá-la de volta para o Castelo Trevelyan como se nada houvesse acontecido?

   Ergueu o queixo, em seu gesto habitual de desafio. Lágrimas de indignação queimavam-lhe os olhos, mas ela se obstinava em contê-las. De forma alguma choraria diante daquele gaulês ignorante, e preferia morrer a deixar que Kyryan Morgan soubesse que era capaz de feri-la com suas palavras.

   - Vá embora - ordenou-lhe, lançando-lhe o olhar que havia aterrorizado os criados durante anos. Ela o havia surpreendido, tinha certeza. Obviamente ele esperara que ela se rendesse como uma serva qualquer.

   - Desta, vez, vou deixá-la porque eu preferi assim. E não retornarei ao seu leito até que me peça.

   -Eu nunca lhe pedirei tal coisa!

   Os lábios, de Kyryan retorceram-se num sorriso gé1ido.

   - Em seu lugar, eu pensaria duas vezes antes de falar. Já perdi a conta do número de mulheres que imploraram para partilhar a minha cama.

   Liliana sorriu com, escárnio.

   - Eu sou lady Liliana Trevelyan...

   - Morgan - ele completou.

   Ela prosseguiu, ignorando a interrupção.

   - E eu jamais lhe pedirei.

   O rosto do marido permaneceu irritantemente impassível.

   - É o que veremos. Tenha uma boa noite, normanda.

   Liliana ficou feliz, por vê-lo retirar-se. Ele tinha sido rude e cruel. Consumou o casamento sem demonstrar respeito ou consideração por sua inocência.

   Se, como afirmou, era tão experiente nesses assuntos, devia ter percebido como ela se sentia e proceder com maior gentileza. Mas "gentileza" era uma palavra que não constava no vocabulário de Kyryan Morgan.

   Ela era lady Liliana trevelyan... Morgan, maldição. Pertencia a uma família de nobres que remontava, à Conquista. Ninguém nem mesmo o marido, tinha o direito de falar com ela corno Kyryan Morgan fizera.

   Principalmente agora, que eram marido e mu1her de verdade.

   Aquele patife poderia até acusa-la de ter abandonada o lar. Todos, até o pai, iriam condena-la pelo fracasso da união.

   Como Averil se regozijaria com a novidade! Afinal, ela saboreava cada escândalo, cada pequeno detalhe sórdido da vida dos outros. Já conseguia até ouvi-Ia espalhando o mexerico: "Queridas amigas, estou chocada. Que infelicidade o que aconteceu com os Morgan! Quem diria que Liliana, tão bela, tão dócil, seria capaz de largar o marido? Um homem adorável!" - Averil comentaria com falsa consternação.

   O pior, porém, seria o desapontamento de lorde Trevelyan. Doía-lhe magoar o pai, que sempre a tratara com amor e depositara nela todas as suas esperanças. Como poderia decepcioná-lo?     

   E havia Kyryan Morgan. O que ele pensava? Que podia aproveitar-se do corpo dela e depois manda-la embora para ficar com as terras, seu único motivo para casar-se?

   Aquela propriedade era o grande sonho de Kyryan. Casar-se com a fi1ha de um nobre, consumar o casamento e, depois, expulsa-la. E, ainda por cima, assumindo o papel de vítima! Que estratégia perfeita!

   Não fora o desejo que o levara a possuí-la! Kyryan não a queria realmente.

   Ao longo de sua vida todas as pessoas, do mais humilde serviçal ao mais nobre dos lordes, haviam-na tratado com deferência buscando agrada-la e obter-lhe favores. Contudo, ela jamais tivera certeza se era por estima ou por mero interesse. Não pelo amor do pai, a carência afetiva e a solidão de Liliana seriam completas.

   Quando o noivado foi anunciado, Kyryan lhe pareceu tão feliz! Passou a noite contemplando-a com paixão.nenhum homem havia lhe provocado emoção mais avassaladora. Seria possível que fosse tudo fingimento ou obra de sua imaginação?

   Liliana despertou com o ruído de passos no quarto. Abriu os olhos, mas não moveu um músculo. A janela lá no alto filtrava a claridade do amanhecer.

   Era Kyryan. Dava a impressão de estar a procura de alguma coisa dentro de uma pequena arca encostada à parede. E ele estava totalmente nu.

   Aquela era a primeira vez que via um homem despido. Kyryan estava de costas para ela, mas era possível contemplar-lhe as longas pernas, os ombros e os braços musculosos. Uma onda de calor incendiou-lhe as veias ao fitar-lhe o corpo forte e esguio de cavaleiro.

   Ela não passava mesmo de uma mulher fraca. Ao menos em situações inusitadas como aquela.

   Neste instante, ele encontrou um par de culotes e começou a virar-se em sua direção.

   Liliana apressou-se a cerrar os olhos. Já vira o bastante para constatar que, com o rosto bonito e o corpo soberbo, Kyryan Morgan era o homem mais magnífico que uma moça poderia almejar como marido. Se ao menos ele a quisesse com a mesma intensidade com que ela o desejava agora!

   Durante a noite, ela se convencera de que Kyryan era orgulhoso e capaz de experimentar sentimentos profundos. O que mais se esperaria de um guerreiro tão envolvido emocionalmente com a luta?

   Contudo, na manhã seguinte à noite de núpcias, ele revelara uma face vulnerável, infantil. Custava-lhe crer, lembrando-se dele naquele momento, que Kyryan havia se casado apenas para obter terras e dinheiro.

   Quanto a consumação do casamento, tinha que admitir que não fora de todo desagradável. Embora ela estivesse apavorada demais para sentir qualquer coisa. Tudo acontecera tão depressa!

   Liliana também se recordava que, quando terminou, ele sorriu, não de triunfo, mas com genuíno carinho.

   Observando-o com os olhos semicerrados, sentia o corpo cada vez mais quente, como se uma estranha febre a fizesse queimar por dentro. Se Kyryan falasse com ela, decidiu que responderia. Talvez ele a beijasse de novo, desta vez com mais delicadeza, permitindo-lhe partilhar seu prazer.

   Em vez disso, porém ele retirou uma túnica de dentro da arca e vestiu-a. Liliana franziu a testa. Á túnica estava surrada, cheia de buracos. Era assim a roupa de baixo de um cavaleiro?

   Bem, sim, se o cavaleiro fosso pobre. E Kyryan não tinha dinheiro sobrando. Seu pai lhe dera uma soma considerável em moedas de prata e de ouro para uso próprio, mas ela empregaria uma boa parte em roupas para o marido.

   Talvez tivesse exagerado um pouco em relação ao castelo. Não era por culpa de Kyryan que o solar se encontrava em tal estado de abandono. Charles de Monteclare, o dono anterior do feudo, tinha sido notadamente negligente em seus deveres. Em um mês, Kyryan até que conseguira um resultado excelente na reconstrução do celeiro.

   O marido olhou-a de relance, surpreso. Ela fechou os olhos e prendeu a respiração, esperando que ele dissesse alguma coisa.

   Kyryan, porém, assobiou para o cachorro e saiu.

   Liliana sentou-se, buscando desesperadamente vencer a frustração que a dominava. Ele se quer tentara certificasse de que ela estava de fato adormecida. O desinteresse de Kyryan era patente.

   Ouvindo vozes do outro lado do biombo, ela percebeu que os criados já estavam se levantando. Maude logo chegaria, provavelmente rindo como uma parva.

   Depois de lutar com o nó do laço que amarrava o vestido, conseguiu tira-lo. Largou-o sobre o leito e correu para a arca onde sabia que Maude guardara um traje apropriado para o dia. Logrou a enfiá-lo de qualquer maneira antes de ouvir o risinho familiar.

   - Milady?

   - Sim? - respondeu com a voz serena, enquanto suas mãos se apressavam a prender os cachos dourados.

   Maude entrou.

   - Preciso de ajuda com esse vestido - Liliana lhe disse em tom brusco. Virou-lhe as costas, para evitar que lhe fizesse perguntas inconvenientes.

   Nem imaginava que desculpa kyryan teria inventado para justificar sua ausência do quarto na última noite, e não sentia a menor disposição de tolerar a curiosidade de Maude.

   A moça porém, obedeceu as ordens quase em silêncio. Claro que dentro dos padrões dela, pois ficar totalmente calada era algo impossível. Graças a isso acabou sendo informada que o vilarejo mais perto começara a crescer depois que se espalhou a notícia da existência de um novo senhor no castelo, e que havia rumores sobre um bando de fora-da-lei galeses atacando os normandos nas fronteiras.

   - Quanto tempo falta para a missa? Liliana indagou.

   - O suficiente para pentear o seu cabelo e colocar o toucado, milady - Maude replicou Com deferência. Em seguida, foi arrumar a cama. Suspirou, melancólica, ao ver os lençóis na mais completa desordem. E, sua patroa estava sem sorte mesmo.

   A pobrezinha decerto não pregara o olho um minuto sequer, na¬quela noite.

   Kyryan ajoelhou-se, aguardando com impaciência que a missa começasse. Havia uma quantidade de coisas que gostaria de fazer, começando por comer. Mal havia tocado no jantar, na véspera, an¬tecipando...

   Interrompeu o fluxo de lembranças que ameaçavam voltar a tor¬turá-lo, estremecendo de leve. O frio não o incomodava, nem mesmo a dureza das pedras do chão. Pouco ligava para o desconforto. Con¬tudo... não esperava passar a primeira noite em seu próprio castelo depois da chegada da linda esposa numa pilha de feno atrás do celeiro. E sozinho.

   Sua orgulhosa, teimosa mulher. Ou melhor, sua legítima, esposa até regressar para a casa paterna. Liliana provavelmente já estaria pronta para partir, belíssima em um de seus des1umbrantes vestidos, dando ordens aos criados para carregarem a bagagem para a carroça.

   Pois ela que se fosse. Ele ficaria com o dote e com a propriedade.

   Ninguém poderia inculpá-lo pela separação, já que lhe haviam sido negados seus direitos como marido. Explicaria a situação ao sogro quando este o chamasse, como certamente faria.

   Talvez o solar não pudesse ser comparado com o grande e con¬fortável Castelo Trevelyan, mas ele jamais mentira a Liliana a este respeito. Presumira, tolamente, que o pai a havia informado sobre as reais condições da mansão e que ela não se importou. Tanto que concordou com o casamento.

   Deus, ele era um imbecil! Pior, não passava de um idiota sem força de vontade e apaixonado, que mesmo agora não suportava a idéia de perder Liliana. Tentara convencer-se de que seu aborreci¬mento era conseqüência da humilhação de ser abandonado pela es¬posa dois dias após o casamento, e não por ela tê-lo considerado tão rude e grosseiro que não pôde tolerá-lo.

   Elwy, ajoelhado a seu lado, observou-o de soslaio e, com um sorriso malicioso, cochichou:

   - O casamento está acabando com você, rapaz! Dormir um pou¬co, vez por outra, faz bem...

   Kyryan sacudiu os ombros, mal conseguindo suavizar a expressão carrancuda.

   De súbito ouviu o som característico de saias arrastando nas pedras e, com o canto dos olhos, viu Liliana ajoelhar-se do seu lado direito. Virou-se para fitá-la e surpreendeu-se com o sorriso mais recatado e dócil com que uma esposa podia brindar o marido.

   Em nome de todos os santos, o que ela estaria fazendo ali? Por acaso pretenderia constrangê-lo agora que dispunham de "uma pla¬téia"?

   Nesse momento, a missa teve início e, corpulento padre Alphonse demorou-se mais do que o habitual em seu sermão, proferindo as palavras com pomposa lentidão. Sem dúvida, desejava impressionar a jovem senhora do castelo.

   A jovem senhora do castelo... sentara-se tão perto dele que Kyryan poderia tocar-lhe as mãos esguias se seus dedos sofressem o mais leve tremor.        .

   Ele contemplou-a disfarçadamente, percebendo pela primeira vez as olheiras escuras que contrastavam com o verde de seus olhos. Suas faces, normalmente rosadas, apresentavam-se pálidas, sem viço. Os sinais evidentes de cansaço denunciavam uma noite tão insone quanto à dele.

   Por fim, a missa terminou. Kyryan ergueu-se, seguido por Liliana. Ele hesitou por alguns instantes, mas como ela não dissesse nada, voltou-se para sair. Então, sentiu que a esposa apoiou a mão em seu braço. Tentou não demonstrar surpresa ou prazer, ciente de que Elwy e os outros habitantes do castelo os observavam.

   - Eu gostaria de conhecer o restante da criadagem interna ¬

   Liliana comunicou com suavidade enquanto retiravam-se da capela.

   - Você já conheceu - respondeu, o tom brusco tentando ocultar sua confusão. Se ela planejasse voltar para o solar do pai não demonstraria interesse pelos,criados de sua nova casa. -Sara e Maude, que veio com você. Não posso abrir mão de mais ninguém, por ora.

   Liliana franziu ligeiramente a testa.

   - Não é suficiente.

   Kyryan não desejava discutir em público, por isso não retrucou e encaminhou os passos na direção do pomar. Percebeu-lhe a resis¬tência, mas não se deteve. Mott trotava atrás do casal.

   As pessoas se dispersaram, em busca de seus afazeres, e não, tardou para que Kyryan e a esposa se vissem sozinhos debaixo de uma imensa macieira. O aroma de maçãs pairava no ar e o chão estava forrado de frutas caídas do pé.

   Liliana retirou a mão do braço dele.

   - Preciso de mais criados e de dinheiro para comprar tapeçarias e móveis para o salão.

   - Não - Kyryan objetou. - Não posso me dar ao luxo de gastar dinheiro com coisas supérfluas.

   Ele fixou o olhar na esposa. Ao longo dos anos, desenvolvera uma expressão inescrutável, que servia para confundir o adversário antes de uma luta. Seu semblante agora mostrava-se igualmente in¬sondável.

   Com Liliana, ocorria o oposto. De braços cruzados, fitava-o sem o menor sinal de medo. Pelas chagas de Cristo, ele já se defrontara com aquele ar feroz antes, mas nunca num rosto feminino.

   - Eu preciso do dinheiro - ela repetiu, quase cuspindo as pa¬lavras.

   Kyryan não sabia como agir com Liliana, pois jamais encontrara uma mulher como ela. Além disso, ainda não assimilara a idéia de que a esposa não pretendia partir. Debatia-se entre a esperança e um profundo desânimo diante da impossibilidade de os dois se entenderem. Ambos não pertenciam ao mesmo mundo nem falavam a mesma língua.

   - Terei que usar todo o ouro e prata que possuímos para os reparos nos prédios e no moinho e também para estocar alimentos para o inverno - ele, por fim explicou.

   - Neste caso, recorrerei às moedas que meu pai me deu.

   - Tudo agora pertence a mim.

   - O quê?

   - Como seu marido, os seus bens e o seu dinheiro...

   - Existe uma reserva só minha! É o que consta no contrato de casamento.

   Com um esforço sobre-humano, ele ocultou a surpresa e as dúvidas sob uma máscara de impassibilidade. Ele havia presumido que tudo passaria para as mãos do marido após o matrimônio, mais o fato era que não entendia bem desses assuntos. Na verdade, sabia ler tanto quanto podia voar. Por isso, correu os olhos pelo contrato e assinou seu nome, única coisa que havia aprendido a escrever.

  

   Liliana talvez estivesse certa, mas preferia caminhar sobre carvão em brasa a pergunta-lhe.

   - Será que você ficou tão rico que se dá ao luxo de desperdiçar a co1heita? - A voz de elwy vinda de trás de uma árvore. - Quase me acertou o olho com esta maçã, rapaz!

   Você escapou de uma boa surra...

   - Pois tente... - Kyryan retrucou com severidade.

   Elwy estreitou os olhos, fitando-o com estranheza por alguns segundos. Por fim, sorriu.

   - Adivinhe quem veio visitá-lo!

   Uma voz agradável começou a entoar uma velha canção de pastores. Kyryan disparou em sua direção.

   - Gareth!

   - Em carne e osso! - o jovem exc1am1ou em Gaulês, correndo para abraçá-lo.

   Kyryan estava genuinamente feliz por encontrar o amigo. Assim como acontecera com ele e com Elwy, Gareth também havia recebido a proposta de se tornar um escudeiro... mas a recusara. Gostava de ser livre, era o que dizia, e achava as armaduras restritivas demais. Assim, enquanto Kyryan e Elwy se dedicavam ao estudo das armas e de estilos de combate, Gareth continuou aprendendo as lições dos antigos pastores. Enquanto os amigos se aprimoravam na luta, ele remexia as tripas de ovelhas mortas para tentar descobrir o que as havia matado;

   - Trouxe-lhe o melhor presente de casamento que um noivo pode almejar. Da parte do barão DeLanyea... - o rapaz anunciou em tom solene.      .

   - Mas... o barão já me havia presenteado com cinqüenta ovelhas. - Kyryan comentou, surpreso. - E ainda me enviou homens para a reconstrução do castelo.

   Os olhos castanhos de Gareth brilharam bem-humorados.

   - Sim, mas isso não conta. Diga-me, o que o barão possui de melhor?

   Kyryan escancarou os olhos.

   - Um carneiro?         .

   - Não, meu, caro - Gareth de1iciava-se em promover, o suspense.,

   - Um, não. Ele mandou três!

   Ao ver o espanto do amigo, desatou a rir.

   - Estou falando sério! São os três maiores carneiros que já vi. E olha que já vi muitos. Eu devia ter chegado ontem, mas... quis ficar um pouco mais na companhia dos bichinhos, entende?

   Elwy deu um tapa nas costas de Kyryan.

   - Que sorte! Teremos o melhor rebanho das redondezas, afinal!

   - Calma, ainda nem vimos os carneiros - Kyryan ponderou, parecendo ainda em estado de choque. Ele estava simplesmente atô¬nito. Junto com Elwy, havia examinado os carneiros dos rebanhos da vizinhança, verificando que eram muito inferiores aos do barão. A espinha dorsal de qualquer rebanho era, sem dúvida, constituída pelos carneiros, por isso haviam chegado à triste conclusão de, que necessitariam de muitos anos para formarem um rebanho de que se pudessem orgulhar. Esta situação, porém, agora mudaria. - Os car¬neiros estão aqui?

   -- Claro! Acha que eu vim sozinho? Venha, eu os coloquei perto do celeiro.

   Kyryan começou a dirigir-se para o curral onde o rebanho se abrigava. Os pedreiros e britadores que vieram do castelo do barão, interromperam o trabalho para cumprimentá-los.

   Os galeses que haviam trazido as ovelhas já se haviam reunido no curral. Mott latia e saltava conto se fosse um filhote... ou como se estivesse de volta a Gales. O cachorro de Gareth, um animal já velho, observava as piruetas de Mott com uma expressão que se assemelhava ao desdém.

   - O barão lamentou profundamente não poder vir pessoalmente - Gareth comentou. - Também, aonde ele poderia ir com uma perna quebrada?   .

   Kyryan franziu as sobrancelhas.

   - Quebrada? O que aconteceu?

   - Caiu do cavalo quando caçava raposas, pobre homem. En¬viou-lhe lembranças e votos de felicidade.

   Kyryan balançou a cabeça, refletindo que precisaria de todos os votos do mundo no que se reteria ao seu casamento.

   - Quando você partirá?

   - Não partirei... isto é, se me aceitar aqui. O barão pensou que você talvez, necessitasse da ajuda de um verdadeiro mestre, como eu para formar seu rebanho.

   - Até parece que eu não entendo de carneiros... - Kyryan pro¬testou, fingindo-se zangado. Na verdade, estava encantado, demais com a presença do amigo e com o presente para ofender-se com a aparente falta de confiança do barão em seus talentos como pastor.

   - Bem, um lorde sempre sabe o que faz não acha? Há muito mais para você se preocupar, além de ovelhas. Como eu não tinha família, resolvi vir para o sul.

   Kyryan suspirou. Naquele instante, trocaria tudo o que havia ob¬tido desde que deixara sua terra natal para voltar à vida simples de pastor.

   - O barão não ficou aborrecido por perder você?

   - Ah, não. Eu treinei o seu primo, Iowerth. Ele é meio louco, como todos os Morgan... - Kyryan deu-lhe um soco de brincadeira no queixo e Gareth sorriu antes de prosseguir: - Mas é habilidoso e aprendeu depressa. Além disso, o barão sabe que, se precisar de mim, é só mandar me chamar.

   Tomando a balançar a cabeça, Kyryan expressou sua aprovação. Com três carneiros de DeLanyea, cinqüenta vigorosas ovelhas galesas e Gareth cuidando do rebanho, podia considerar-se um homem ver¬dadeiramente afortunado.

   Bem, quase afortunado, pensou, ao ver Maude correndo pelo pátio para encher o balde com água. Talvez ainda houvesse tempo para ajeitar as coisas com Liliana, se ela concordasse.

   - Você não vai convidar o homem para entrar? - Elwy indagou. - Ele gostaria de conhecer sua esposa - acrescentou, piscando o olho.

   - Claro! Por favor, Gareth, vocês todos também. Vamos entrar e comer.

   Quando entraram no salão, Kyryan mal pôde acreditar nos próprios olhos. Havia mesas montadas sobre cavaletes dispostas ao longo da parede, e uma delas, a mais próxima do biombo, fora armada sobre um pequeno estrado, de forma a sobressair-se das demais, e forrada com uma fina toalha de linho bordada. Padre Alphonse já se aco¬modara ali, bem como alguns dos trabalhadores. Uma profusão de travessas com alimentos variados fumegava sobre as mesas.

   Liliana ergueu-se da cadeira para receber os recém-chegados. Es¬tava adorável num vestido verde que lhe realçava, a cor dos olhos e a curva dos quadris. Pousou um olhar crítico no marido e este, de súbito, lembrou-se que trajava uma túnica surrada; perfeitamente adequada para lidar com os animais do estábulo, mas imprópria para o almoço, na opinião da mulher.

   Na verdade, porém, Liliana maravilhava-se com a nobreza do porte de Kyryan, a despeito dos trapos que lhe cobriam o corpo. Então recordou-se de sua nudez, vislumbrada na penumbra do quar¬to, e sentiu o rosto incendiar-se de rubor e o coração disparar no peito . .

   - Este é Gareth - Kyryan apresentou-lhe, sentando-se ao lado dela. - Ele é pastor - informou em tom de provocação, como se a desafiasse a esboçar qualquer protesto pela companhia inferior.

   Todavia, Liliana inc1inou a cabeça com graciosidade e sorriu para o convidado. .

   - Seja muito bem-vindo a esta casa, Gareth.

   Maude, sentada numa das mesas baixas, a mais próxima da prin¬cipal, contemplava o jovem pastor despudoradamente. Bem, ao me¬nos não estava rindo, para alívio de Liliana. De qualquer forma, ela pretendia advertir a criada para que abandonasse aqueles modos im¬pudicos. ¬

   O padre Alphonse resmungou uma bênção e todos começaram a comer.

   Liliana esquadrinhou o salão com o olhar atento. Muitos dos co¬mensais tagarelavam em gaulês, inc1usive o marido, Elwy e Gareth. Os três homens, sentados perto dela, entretinham-se em animada conversa, ignorando-1he por completo a presença.

   Ela franziu a testa ao curvar-se para a frente, para observar Gareth. Ele era mais ou menos da mesma idade que o marido e Elwy, mas nem de longe tão bonito quanto Kyryan. O rapaz não parecia muito à vontade e falava pouco. Era compreensível, pois dificilmente um pastor estaria habituado a sentar-se a uma mesa sofisticada como aquela.

   - Gareth, espero que tenha feito uma boa viagem - ela comentou com polidez.

   A conversação dos homens interrompeu-se, Kyryan voltou-se para fitá-la com a mesma expressão inescrutável que vira no pomar. Era terrível, pois não tinha como saber o que ele estava pensando.

   - Gareth só fala Gaulês - Kyryan informou com aspereza. Liliana tentou conter o rubor que lhe queimava as faces.

   - Oh, desculpe, mas ninguém me avisou - sorriu com doçura. - Terei que aprender seu idioma, como aprendi Saxão e Latim, para comunicar-me com você e seus amigos.

   A expressão de Kyryan transformou-se, e Liliana depreendeu que ele finalmente compreendera o quanto a desagradava ser excluída.

   - Não imaginei que uma dama da mais alta nobreza se interes¬sasse por conversas acerca de moscas-varejeiras e rins de ovelhas - Kyryan replicou com frieza. - Mas eu pedirei a Gareth pata lhe contar tudo a respeito, depois que você aprender nossa língua.

   Antes que Liliana pudesse retrucar, ele empurrou a cadeira para trás.

   - Nós agora iremos para a pastagem. Estaremos de volta para a ceia. Os aldeões só deverão chegar depois da refeição. Se realmente deseja pagar por mais criados, poderá escolhê-los nessa oportunidade.

  

   Kyryan deteve-se no canto do lamacento pátio perguntando-se onde estaria Liliana. Os aldeões chegaram havia horas e ele já tinha até terminado de ouvir seus juramentos de lealdade.

   Elwy lhe dissera que o vilarejo crescia a olhos visto desde que tomara posse do castelo. O que era muito bom. Quanto maior a população, maior seria a arrecadação e mais numerosa a mão-de-obra necessária para a restauração do solar.

   Todas aquelas pessoas que circulavam a passos lentos pelo pátio estavam começando a impacientar-se. Kyryan queria que eles ao menos vissem a nova senhora, a mulher que tanto insistira que precisava de mais criados, mas que desaparecera no melhor momento para consegui-los.

   Elwy veio em sua direção.

   - Pretende ficar aqui para sempre, rapaz? Temos muito trabalho a fazer.

   - Estamos aguardando a minha esposa.

   Elwy, notando os lábios contraídos do amigo, sabiamente retirou-se sem replicar.

   Kyryan cruzou os braços, depois descruzou-os, tentando disfarçar a ansiedade. Os aldeãos observavam-no expectantes. Seria aquilo algum "joguinho de salão" de Liliana para se divertir às custas dele na frente de todos? Ou teria ela finalmente compreendido que eles tinham outras prioridades e desistiu de contratar serviçais desnecessários?

   Ou, talvez, a orgulhosa filha de lorde Trevelyan não dispusesse de dinheiro suficiente para tais extravagâncias.

   De algum modo, porém, duvidava dessa hipótese. O castelo do sogro era bem cuidado e farto, com certeza ele providenciara para que sua herdeira não sofresse qualquer tipo de privação. O dote suntuoso era prova disso.

   Sua expressão carrancuda transformou-se num sorriso astuto. Se Liliana não chegasse logo, ele mesmo escolheria alguns criados. Assim, mostraria que não só pretendia prover-lhe a devida assistência, mas também que não era avarento.

   Nesse instante, todavia, Liliana apareceu no pátio, entrando pelo portão principal na companhia de padre Alphonse. Quando ela se aproximou, Kyryan observou com tranqüilidade.

   - Imaginei que você tivesse assuntos importantes a tratar com o reverendo, por isso todos a aguardávamos.

   A esposa brindou-o com um sorriso doce.

   - A paciência é uma das virtudes mais apreciáveis, meu caro marido.

   Liliana contemplava os aldeões, pensativa, enquanto Kyryan a apresentava. Não havia muitos, considerando o porte da propriedade. O padre Alphonse lhe havia feito a gentileza de guiá-la pelo vilarejo e contara-lhe tudo o que conhecia- ou presumia - a respeito de cada um de seus moradores. Preocupavam-no sobremaneira os novos habitantes que chegavam diariamente. E ninguém sabe nada sobre essa gente, milady. Ou quase nada...", ele comentara.

   O pároco receava, também, os malfeitores gauleses que, pelo que se dizia, agora infestavam as florestas.

   Liliana, contudo, descartara a maior parte dos receios de padre Alphonse. O castelo necessitava de mais serviçais para darem conta de todo o trabalho que havia para realizar. Quanto aos fora-da-lei, só esperava que fossem embora para outro lugar o mais rápido pos¬sível, se é que eles estavam mesmo na região. Tudo o que ouvira, até o momento, não passava de mexerico. O que a interessava de verdade era conhecer os a1deões, não apenas para escolher os melhores criados, mas também para descobrir quanto dinheiro teria que desembolsar em donativos. Seu pai lhe presenteara uma soma con¬siderável para uso pessoal, todavia, já que teria que gastá-la com alimento e roupas para os servos, além das despesas essenciais para cercar-se de conforto, toda a cautela seria insuficiente.

   Liliana correu os olhos pela pequena multidão de servos, embora já houvesse selecionado quem tomaria por criados. Nenhuma da¬quelas garotas bonitas e tagarelas perto do poço. Elas passariam o tempo flertando com os rapazes e mexericando em vez de trabalhar.

   Nenhuma das mulheres que a fitavam sem ocultar a impaciência pois este era,um.dos defeitos que mais abominava numa serviçal.

   Uma jovem corpulenta e feiosa aguardava sozinha num dos cantos do pátio prestando muita atenção a tudo o que ocorria ao seu redor.

   O padre Alphonse, feliz demais para ser-lhe de alguma valia, já havia, mencionado essa moça, cujo nome era Jhone. Uma órfã, pelo que lhe contara, quieta, e polida, que se habituara à idéia de que jamais seria desposada por ninguém, em conseqüência de sua falta de atrativos. Era óbvio que o pároco, a despeito de seu dever de amar todas as criaturas de Deus, não conseguia entender como o bom Deus pudera conceber uma criatura tão feia quanto Jhone. Liliana, entretanto, viu em seus olhos o brilho da inteligência. Sem dúvida, jhone era uma das escolhidas.

   Havia duas outras moças que também dariam boas criadas. Um pouco afastadas do restante dos aldeões, quase não conversavam men olhavam para os homens.

   Liliana acenou para que Jhone se aproximasse.

   - Você trabalhará no castelo - comunicou.

   A moça pareceu surpresa, e não era para menos. Acabara de ser distinguida com uma verdadeira honraria. Ainda perplexa, sorriu. O sorriso era sincero, embora um tanto cauteloso. Liliana teve certeza, então, de que fizera a escolha acertada. Aquela conhecia o seu lugar e não ignorava estar recebendo uma oportunidade de progredir na vida. Seria uma aia discreta, eficiente e nada bajuladora.

   Liliana convocou as duas outras garotas selecionadas, que declararam chamar-se Dena e Osyth.

   - Já terminou? - Kyryan indagou.

   - Sim - ela concordou, fitando-o com ar de satisfação.

   Kyryan ficou feliz por trajar sua melhor túnica, mas irritou-se por se incomodar com tal frivolidade. Afinal, não poderia passar o resto da vida preocupando-se com o que a esposa estaria pensando sobre a sua aparência.

   Contendo o acesso de mal humor, gesticulou para um homem alto postado na frente dos outros servos.

   - Este é Ralf, o capataz.

   Liliana inclinou a cabeça graciosamente. Contudo, em seu íntimo, experimentou uma aversão instintiva por ele. Magro da cabeça aos pés, cabelo oleoso caindo pela testa, corpo anguloso e desajeitado, seu aspecto tinha um quê de repugnante. O capataz curvou-se para cumprimentá-la sem tirar os olhos do rosto dela.

   Após a apresentação, Kyryan anunciou que todos poderiam voltar ao trabalho. Ralf' escapuliu, na direção do portão.

   - Vocês podem ir até a aldeia -buscar suas coisas - Liliana disse às novas criadas. Osyth e Dena responderam num murmúrio, enquanto Jhone nada disse.

   Liliana voltou-se e percebeu que Kyryan já se havia afastado. Tentando reprimir o desapontamento que preferia não ter sentido, regressou ao salão do castelo.

   O marido encontrava-se lá. Sozinho. E esperando por ela, ao que tudo indicava.

   - Onde você esteve? - ele indagou, a voz soando baixa porém firme. Fitava-a com intensidade.

   - Com padre Alphonse - a esposa informou, sustentando o olhar. - O bom padre se preocupa deveras com os ladrões gauleses que...

   - Já ouvi falar deles e não creio que nos perturbem. Por que demorou tanto, fazendo-nos esperar? Não foi muito gentil de sua parte.

   "Com que então, Kyryan Morgan pretendia ensinar bons modos a lady Liliana Trevelyan... Morgan?" Ela pensou com desdém. Todavia, procurou não demonstrar seu aborrecimento ao replicar:

   - Eu lhe disse. A paciência é uma virtude que prezo muito. Queria descobrir quem a possuía.

   - Incluindo a mim, não é? - Kyryan franziu a testa e uma mecha de cabelos negros caiu-lhe sobre a testa. Parecia um rapazinho petulante, não um senhor feudal. Um atraente rapazinho petulante, cujo cacho de cabelo ela adoraria tomar entre os dedos e recolocar no lugar!

   - Não, milorde. Já tive a oportunidade de percebê-la em você - ela fim entreabriu os lábios num sorriso cândido. - Eu o observei enquanto esperava que seu adversário tomasse a iniciativa, num dos combates do torneio promovido por papai.

   Agradou a Liliana notar que grande parte da tensão abandonou o semblante do marido, tomando-o mais acessível para ouvir o que ela lhe pediria em seguida.

   - Milorde, creio que deveria encontrar outro capataz.

Kyryan enrugou a testa.

   - Por quê? Ralf tem exercido essa função há anos.

   - Não confio nele.

   - Porque não?

   - Deu-me, a impressão de ser muito impertinente. Em nenhum momento baixou a, cabeça.

   - Pois eu confio em homens que me olham direto nos olhos.

   - Ele não conhece o próprio lugar. Não tem medo de você, nem de mim, tão pouco de nossa autoridade. Ralf o roubará, esteja certo disso - concluiu com convicção. Os anos de prática arrebanhando empregados para o pai haviam-lhe aguçado a percepção, e seu instinto, tomara-se infalível.

   Para Kyryan, no entanto, o que ocorria era que sua mulher, que lhe parecia mais linda e desejável do que nunca, a despeito de seus esforços para ignorar o fato, estava lhe dizendo o que fazer. Nova¬mente. Como se ele não fosse capaz de gerir os próprios negócios sozinho.

   - Ralf continuará em seu posto até que eu veja motivos para dispensá-lo.

   Contrariando a expectativa do marido, Liliana não protestou, limitando-se a comentar com serenidade:

   - Corno quiser, milorde. Agora, com a sua 1icença, preciso tomar providências para a ceia.

   - E dar mais ordens?

   - Como assim?

   - Não perguntou àquelas mulheres se desejavam trabalhar para você. Apenas informou-as de que o fariam.

   - São aldeãs. Provavelmente sentiram-se honradas por serem escolhidas.

   - Lady Roanna teria pedido, em vez de ordenar.

   - E quem, posso saber, é, lady Roanna?' - Liliana inquiriu, a voz calma ocultando a raiva e o ciúme que se agitavam em seu peito.

   - A esposa do meu antigo senhor. Uma mulher generosa e gentil.

   Liliana arqueou uma sobrancelha.

   - Como você mesmo declarou, eu não sou lady Roanna.

   - Obviamente.

   - Está mesmo disposto a passar o resto da noite tecendo criticas a meu respeito?

   Kyryan ignorou o protesto.

   - Por que optou por aquelas três?

   - Ouso afirmar que você está tentando encontrar defeito na minha decisão. Bem, se é o que quer, assim será - Liliana retrucou, após uma pausa. - Não sei ao, certo, quanto custará a reforma do castelo ou de quanto teremos que dispor em donativos e aumentos. Por isso, pensei em ver o que podia fazer com três criadas competentes, além de Maude e Sara. Selecionei Jhone porque ela deu-me a impressão de ter a idade e a sensibilidade necessárias para, cumprir bem o que lhe for ordenado. Além disso, não possui família a quem faça falta. Quanto às outras duas, pareceram-me fortes e recatadas - Liliana cruzou os braços e fitou-o com ar de desafio. - Então, milorde, o que há de errado na minha escolha? ¬

   Enquanto a esposa aguardava pacientemente que ele respondesse, Kyryan revirava a mente em busca de argumentos para objetar. Entre a admissão de que os critérios dela haviam sido excelentes e a reiteração de seu desgosto pela maneira como conduzira a seleção, não tinha muito a dizer.

   - Nada a declarar milorde? Neste caso, se me desculpar, preciso ir até a capela e agradecer a Deus pelo milagre. Parece que consegui fazer alguma coisa que não mereça a sua desaprovação.

  

   Liliana cerrou os olhos e, por fim, principiou a dormitar, vagamente consciente de que os ruídos no salão haviam cessado.

   Alguma coisa afundou no colchão ao lado dela. Com um gemido de susto, Liliana soergueu-se sobre os travesseiros... para descobrir Mott aninhado na ponta do leito. Sujando seus finos lençóis de linho limpinhos!

   - Saia daí, seu cão intrometido! - Exc1amou, empurrando-o

   Mott caiu, mas pôs-se de pé numa fração de segundo. Abanava a cauda com uma alegria que só os cachorros eram capazes de demonstrar.

   - Saia daqui, monstrinho!

   - Já lhe disse. Mott dorme junto de mim.

   Pela primeira vez, Liliana viu Kyryan de pé ao lado do biombo. Ele começou a aproximar-se. Ela sentiu uma estranha tensão enrijecer-lhe os músculos.

   - Não sê atreva á tocar-me.

   O marido deteve-se.

   - Vá embora daqui e leve esse animal!

   - Não está se esquecendo de que esta é a minha casa, Liliana? Esta cama me pertence, também. Não pretendo passar outra noite numa pilha de feno.

   Ela encolheu-se apertando as cobertas em volta do corpo. Adivinhava, pelo tom de voz e pelo brilho no olhar, que Kyryan Morgan, não estava brincando.

   - Mas... mas estes são os meus lençóis! - Liliana bradou desesperada. O coração pulsava num ritmo frenético e seus sentimentos caóticos confundiam-na. Queria que ele se fosse e, ao mesmo tempo, que ficasse. Só repudiava a idéia de ser possuída novamente, ou, talvez, era isso o que mais almejava...

   De súbito, sem uma palavra de aviso, Kyryan alcançou o leito e puxou os lençóis que a revestiam, atirando a esposa ao chão. Os gritos de protesto dela foram abafados pelos cobertores e pelas penas de ganso que escapavam de um dos travesseiros.

   - Tome. Aí tem a sua preciosa roupa de cama!

   Liliana desvencilhou-se da montanha de tecidos que a soterravam e levantou-se.

   - Como se atreve?! Como ousa tratar-me dessa maneira? - Enfrentou-o, furiosa demais para, intimidar-se com a presença do marido ou com o fato de que apenas a camisa de algodão lhe cobria o corpo. Na verdade, nem percebia estar seminua, pois a raiva a aquecia tanto que o frio não a incomodava.

   - Você é um camponês! - Gritou, cuspindo as palavras. - ¬Não avalia o preço desses lençóis que acaba de estragar e, depois, acusa-me de perdulária!

   - Se eu sou um camponês, querida esposa, por que se casou comigo? - Kyryan argumentou, acercando-se dela. Ficaram tão próximos, que podiam quase tocar as pontas do nariz. - Estou cansado e vou dormir: Na minha cama. Nàturalmente, consideraria um prazer se você e seus macios lençóis estivessem na cama comigo. Se isso não for possível, não tem importância. Um camponês como eu não faz questão de luxo.

   - Prefiro morrer a deitar-me com você!

   - Entendo. Assim sendo sugiro que procure um canto qualquer para se acomodar, milady - Kyryan retrucou sem perder a calma, enquanto, com toda a naturalidade, principiava-a despir-se.

   Com o rosto em chamas, Liliana virou-se de costas. A lembrança da nudez do marido invadiu-a, provocando-lhe um impulso quase incontrolável de tornar a contemplar aquele corpo magnífico! Contudo, em hipótese alguma poderia ceder à tentação. Envergonhou-se da própria luxúria. A fraqueza era um defeito que não tolerava em ninguém, quanto mais em si mesma!

   Tremendo da cabeça aos pés, ela procurou convencer-se de que era apenas o frio que a levava a tremer. Oh, Deus todo poderoso, estava quase despida!

   Sem coragem para encará-lo, não sabia o que Kyryan fazia atrás dela. De qualquer forma, seria algo ameaçador, Num esforço para vencer a inércia, estendeu o braço para apanhar um cobertor e enrolou-o em tomo dos ombros.

   Após um momento que lhe pareceu durar uma eternidade, ouviu o rangido da cama. Cautelosamente, voltou-se e viu-o refestelado sobre o colchão puro, coberto pelo próprio manto. Mott aninhara-se no chão, perto do biombo.

   Kyryan não dava a, impressão de estar muito confortável. Encerrado num mutismo obstinado, porém, ele não lhe diria. Nem ela perguntaria.

   Não que isso tivesse alguma importância. Para ela, o bem-estar de Kyryan não possuía a menor relevância. Se lhe agradava deitar-se sobre o colchão puro, muito bem não havia problema,

   Sacudindo os ombros de leve, Liliana estendeu os lençóis sobre o chão de pedra e deitou-se.

  

   Quando acordou, na, manhã seguinte, ela teve a sensação de que todos os seus ossos se haviam partido. Além disso, a cabeça latejava de forma insuportável. Nem quando adoecera, com uma febre terrível, sua cabeça doeu tanto. Soergueu-se com movimentos vagarosos, porque os músculos também se encontravam em péssimas condições. Nunca, em toda a sua vida, passara uma noite tão tenebrosa quanto aquela.

   Liliana pressionou as têmporas com a ponta dos dedos, massa¬geando-as de leve. Isso lhe trouxe um pouco de alívio. Era provável que uma pequena cavalgada, livre de preocupações e respirando ar puro, pudesse curá-la em definitivo.

   Ouviu um ruído perto da cama e, ao voltar os olhos em sua direção, deparou-se com Kyryan que, completamente vestido, fitava-a em silêncio.

   - O que foi? Inquiriu-o com rispidez. - Por acaso pretende comunicar-me que as pedras do chão também lhe pertencem?

   De cenho franzido, Kyryan encaminhou-se para o biombo, ace¬nando para que Mott o seguisse.

   - Você fica adorável quando dorme - ele observou com frieza antes de retirar-se, - e sua boca permanece fechada...

   Aborrecida, Liliana levantou-se. Talvez devesse reconsiderar a possibilidade de regressar ao lar paterno. Lá, ao menos, teria uma cama decente onde dormir. Seu pai compreenderia que a culpa do fracasso do casamento, não lhe cabia. Decerto ela poderia engolir o próprio orgulho e...

   A agitação das criadas no salão interrompeu-lhe o fluxo de pensamentos. Ouviu o marido gritar alguma coisa em Gaulês e a resposta, no mesmo idioma dos amigos. Todos riram.

   Engolir o próprio orgulho? Permitir que Kyryan Morgan triunfasse? Nunca, nem em mil anos!

   Desgostosa, contemplou os lençóis no chão. Ainda não ouvira a risadinha de Maude, mas, sem dúvida, não tardaria para que a moça chegasse.

   Em hipótese alguma deixaria que os desentendimentos entre ela e o marido transpirassem, tomando-se o tema principal dos mexericos da criadagem. Da criadagem? Do vilarejo inteiro!

   Sem perder mais um segundo, Liliana sacudiu as cobertas e colocou-as no leito. Contudo, não estava acostumada a arrumar a cama, e precisou tentar várias vezes. Por fim, deu um passo atrás e observou com ar crítico.

   Não estava nada bom, porém era preferível assim. Apanhou os travesseiros e jogou sobre o colchão, agora forrado.

   Correu para uma das arcas e vestiu o primeiro traje que encontrou. Não era dos seus preferidos, mas caía-lhe bem. Considerando-se que morava numa verdadeira estrebaria, estava até, bom demais.

   Foi bem a tempo. Maude entrou naquele instante. Arregalou os olhos azuis e não conteve sua característica risada ao ver os lençóis mal encaixados sob o colchão e os travesseiros ameaçando cair das beiradas. Voltou o olhar para a patroa, escandalizada.

   - De novo?! Meu bom Deus, que marido!

   Liliana tentou manter a expressão inescrutável.

   - Jhone, Dena e Osyth estão aí?

   - Sim, milady.

   - Ótimo. Vou passar-lhes algumas tarefas e depois sair para cavalgar.

   - Lá fora está um lamaçal, senhora.

   - Está chovendo?

   - Não, mas...

   - Então, eu irei. Sozinha.

   - Mas, milady, não convém sair sozinha e...

   - Ficarei nas imediações. Quero cavalgar sozinha.

  

   - Onde está Gareth? - Kyryan indagou, entrando no estábulo.

   - Foi verificar o pasto lá de cima - Elwy respondeu, examinando-o com perspicácia. Pobre amigo, vivia exausto, ultimamente, o que era de se esperar num recém-casado. Entretanto, havia algo em seu olhar que não lhe agradava, embora não se atrevesse a tentar descobrir de que se tratava. Afinal, podia esbarrar o dedo na ferida, sem querer, e não desejava magoá-lo.

   - Certo. E as ovelhas?

   - No pasto de baixo.

   - Viu Ralf por ai? Quero que ele termine o conserto do telhado ainda hoje.

   - Deve estar cuidando disso. Os homens foram buscar palha. Resmungaram um bocado, mas este capataz consegue mantê-los sob controle.

   Kyryan sorriu e aproximou-se de seu cavalo.

   - Eu o considero muito bom empregado.

   Elwy pensou que por certo andara imaginando coisas, pois Kyryan parecia o mesmo de sempre.

   - Creio que alguém por aqui cometeu um engano - declarou com solenidade.

   - Quem? - Kyryan sobressaltou-se.

   Elwy fez uma pausa antes de responder.

   - Eu, ora essa. Se minha intenção é encontrar uma noiva rica, pode apostar que vim parar no lugar errado.

   Kyryan começou a selar o cavalo.

   - Talvez você seja mais feliz se continuar solteiro - murmurou.

   - O que vai fazer?  

   - Nada de especial. Acho que vou visitar os vizinhos.

   - É por isso quê vestiu sua segunda melhor túnica?

   - Claro.

   - E sua esposa, o que fará hoje?

   - Não tenho a menor idéia.

   - Hã... posso ir junto ou prefere que eu fique? Melhor ficar. Há muitos ladrões rondando as propriedades, pelo que dizem...

   - Eles não virão aqui, pois não devem ignorar que há um novo senhor no castelo - Kyryan ponderou. Relanceou os olhos para o amigo, abrindo um sorriso juvenil. - Ficarei muito feliz com a sua companhia, Elwy.

   - Ótimo. - Elwy correu para selar o cavalo.

   - Pode ser até que encontremos um vizinho rico com uma filha bonita... - Kyryan comentou, rindo.

   - pois eu não acalento nenhuma esperança - o amigo respondeu, também rindo. No íntimo, porém, continuava torturado pela sensação de que havia algo errado. Por mais que kyryan tentasse disfarçar, era óbvio que o bom humor o havia abandonado, deixando-o amargo e irascível,

   Enquanto encilhava a montaria, Elwy buscava descobrir o que teria ocorrido para aborrecê-lo. Não devia ser nada relacionado com o castelo. Ele franzia a testa ao ver o estado lastimável em que a propriedade se encontrava, mas a contrariedade não durara um minuto. A necessidade de pôr mãos à obra o animava, levando-o a fazer planos para o futuro e trabalhar como um escravo.

   A perspectiva de desposar a linda filha de lorde Trevelyan também o encantara. Também, pudera! Kyryan não parara de pensar um só instante na garota desde o momento em que a viu pela primeira vez! Elwy jamais vira um noivo tão feliz.

   - Como é, vai demorar muito? - Kyryan indagou, impaciente. - O passeio é para hoje!

   - Já estou pronto - Elwy encaixou o pé no estribo e montou no cavalo. " O'r annwyl", praguejou mentalmente, "que Liliana faça as pazes com ele, e logo! "   - "Foi num dia, certa vez..." - cantarolou saindo a trote.

  

   Liliana conduzia a égua lentamente pela trilha estreita. A dor de cabeça que a torturava durante horas começava a desaparecer. A manhã havia sido longa. Passara a maiôs parte dela explicando a Jhone e às outras garotas as tarefas que teriam que cumprir todos os dias. O serviço não rotineiro, como lavar as paredes do salão e sacudir os tapetes, teria que ficar para outro dia.

   Puxou as rédeas para deter a égua. Encontrava-se junto da orla da floresta, um pouco além do prado de feno. O rio serpenteava devagar à sua direita. Atrás, podia ver alguns servos trabalhando em suas lavouras, na extremidade do vilarejo.

   Baixou o capuz do manto e perscrutou a floresta. O padre Alphonse acreditava que no mínimo um bando de malfeitores, se não mais, se escondia ali.

   Agora, sob a brilhante luz do sol de uma tarde do fim do verão, o bosque lhe parecia seguro e tranqüilo.

  

   - Um belo animal - Ivor observou para seu companheiro em Gaulês. Os dois homens se ocultavam nos galhos de um carvalho alto, vigiando a estrada embaixo.

   - Qual, a potranca ou a égua? - Dafydd cochichou com malicia.

   - Ambas, embora, para abraçar, prefira a potranca - Ivor, respondeu, piscando um olho. - Pobres garotas perdidas...

   Dafydd riu baixinho antes de replicar:

   - Esta é a nova senhora do castelo.

   - Cavalgando sozinha? Não pode ser.

   - Tenho certeza - Dafydd insistiu. - E ela é bonita demais para uma criada. Eu lhe avisei que viria um cavaleiro para governar estas terras. Eu já o vi, também.

   - É verdade que ele é gaulês?

   - Isso não posso afirmar.

   Ivor curvou os lábios com desgosto.

   - Se for, não passa de um traidor.

   - Ela não é de Gales Deve ser saxônia ou normanda.

   - Pelo jeito como a beldade monta, como se tivesse uma tábua nas costas, arrisco o palpite de que é normanda. . .

   - Com aqueles cabelos dourados?

   Ivor voltou-se para o companheiro com um olhar lúbrico.

   - Um homem pode perder a cabeça por esses cachos de ouro, hein? .

   Sem hesitar, começou a descer da árvore, enquanto à mulher levava a égua para dentro da floresta.

   - Vamos Ver isso de perto...

  

   Ivor, retornou, sem produzir um ruído, ao galho ,onde estivera equilibrado. Franziu a testa quando percebeu que os homens vinham entretidos numa animada conversação em Gaulês. Com certeza, nenhum dos dois era oriundo daquela região. Havia, também, um certo sotaque. Da costa oeste, talvez.

   - É ele! - Dafydd sussurrou, enquanto os recém chegados pas¬savam sob a árvore, acercando-se da mulher. - E o cavaleiro de quem lhe falei.

   O semblante de Ivor turvou-se de fúria.

   - Gostaria de pegar minha espada e... - deteve-se, de súbito para acompanhar o encontro dos três. A mulher pareceu, empertigar-se sobre a sela, e sua face tomou-se rubra. - Bem ... é óbvio que ela não ficou nem um pouco satisfeita em vê-lo...

   Dafydd também se mostrou perplexo.

   Calaram-se para ouvir o diálogo em Francês Normando. Dafydd conseguia entender apenas uma palavra aqui, outra ali. Julgava que Ivor compreenderia mais porém o líder não revelou nenhum interesse maior pela conversa até que a mulher fez meia-volta e os três rumaram para o castelo.

   - Com que então, ela é normanda - Ivor concluiu pensativa¬mente. - E ele não passa de um lacaio normando, não merecendo ser chamado de gaulês. Acho que devíamos fazer-lhes uma visitinha, hein, Dafydd? Nós e os homens.

   Dafydd nutria o mesmo desgosto de Ivor pelo fato de um gaulês ter desposado uma normanda, tomando-se vassalo de um nobre nomando. Contudo, sempre fora, por natureza, mais cauteloso do que o chefe do bando.

   - Scha que seria prudente? Sua amante não lhe,disse que ele é um guerreiro dos melhores? E que cercou-se de camaradas igualmente durões?

   - Em torneios, meu caro. Competições de mentirinha para entreter as damas. Não são páreos para nós.

   - Não sei, não...

   Ivor esperou Dafydd descer da árvore e seguiu-o. Uma vez no chão o líder hesitou.

   - Talvez você tenha razão. Não devemos ir com tanta sede ao pote...

   Dafydd mostrou-se aliviado, embora ainda um tanto inquieto. Co¬nhecia Ivor havia muitos anos, mas jamais conseguia, prever o que o homem decidiria fazer em seguida.

   Exceto com relação a um aspecto. Ivor odiava os normandos e qualquer um que traísse os gauleses. Diante desse tipo de inimigos, não demonstrava a menor complacência.

  

   - Eu falei sério, Liliana - Kyryan declarou com serenidade, enquanto cavalgavam, de volta ao castelo. - Você não deve arriscar-se a sair sozinha por aí.

   Sem se virar para encará-lo, ela retrucou:

   - Eu não ultrapassei os limites da propriedade. Simplesmente, não agüento ficar trancada naquele chiqueiro dia ap6s dia.

   - Não havia perigo. Os servos das redondezas podiam ver, caso alguma coisa lhe acontecesse - Elwy interveio em favor de Liliana. Arrependeu-se logo, porém, ao se tornar alvo dos olhares carrancudos tanto do marido quanto da esposa. Bem se dizia que, em briga de casal, não era aconselhável intrometer-se.

   - Não, sou criança, portanto não preciso que me vigiem.

   Kyryan franziu a testa.

   - Não, você é uma mulher bem crescidinha, o que só complica a situação. Não permito que saia por sua própria conta e risco, nãoé seguro.

   - Então, designe alguns homens para ficarem à minha disposição. Nunca se sabe quando necessitarei de escolta.

   - Impossíve1. Não posso dispensar um homem sequer. Caso Contrário o inverno nos surpreenderá sem te1hado.

   Elwy, que acabara de prometer a si mesmo ficar de boca fechada, esqueceu a promessa e comentou:

   - Ele tem razão, milady. Tudo indica que este será um, longo e gélido inverno. Basta observar os esquilos e... - a voz dele morreu-lhe na garganta, ao notar que nenhum dos dois o escutava. Também, por que diabo repetira o erro de meter o nariz onde não fora chamado? Encabulado, tentou mudar o rumo da conversa: - Que coincidência encontrarmos os Northrup, não?

   Liliana puxou as rédeas do cavalo, o rosto iluminado, por um amplo sorriso.

   - Não sabia que eles moravam tão perto! Não ignorava que suas terras ficavam nesta direção, mas não fazia idéia que fosse tão próximo...

   Kyryan experimentou um certo prazer ao vê-la contente. Contudo, preferia morrer a admitir uma pontada de desapontamento pelo fato de não ser ele a causa de seu contentamento. Assim, manteve a expressão impassível.

   - Lady Eleanor enviou-lhe lembranças e convidou-a para visitá-la quando desejar. - Kyryan transmitiu-lhe o recado em tom neutro.

   Liliana balançou a cabeça de leve, em sinal de aquiescência, mas não disse nada.

   Kyryan apressou o cavalo para a frente de forma a nem sequer sentir-se tentado a decifrar o semblante da esposa. A dificuldade de entendê-la crescia a cada minuto, e enlouquecia-o o esforço para apreender seus sentimentos - pelas chagas de Cristo, o que ela sentia por ele?

   Com isso, e com o desejo desesperado pela mulher que não o queria, mal conseguia pensar em outra coisa senão nela.

  

   Por algum tempo, depois que descobriu que os vizinhos mais próximos eram os Northrup, cujo castelo localizava-se poucos quilômetros ao sul, logrou esquecer os problemas que o torturavam. Os Northrup eram amigos de lorde Trevelyan, e ele os conhecia desde a época em que não passava de um humilde escudeiro.

   Lady Eleanor, rechonchuda e bem-humorada, cujo marido havia saído para caçar quando ele e E1wy chegaram, brindara-os com uma calorosa acolhida. Kyryan não pôde deixar de notar o conforto lu¬xuoso do Castelo de Nevil Hall, a endiabrada alegria dos filhos dela a prestimosidade de seus bem alimentados criados.

   Nevil Hall e seus habitantes ofereciam um contraste quase cho¬cante com o outro solar, mais ao norte, que haviam visitado primeiro, na parte da manhã. Embora apresentasse, uma decoração faustosa, tudo parecia em mau estado, incluindo o cavaleiro e sua filha. Sir Wi1liam Horton era magro, velho e beberrão. A filha, Priscilla, era igualmente descarnada, bem como arrogante, rude e bem passada do primeiro viço da juventude. Os poucos servos que viram tinham o aspecto doentio e trajavam farrapos.

   Kyryan comentou com Elwy, a caminho de casa, que Priscilla Horton era solteira, mas o amigo declarou que não nutria um interesse assim tão grande por esposas ricas. Se, de fato, os Horton ainda possuíssem alguma fortuna digna de menção, coisa que ele duvidava. Sir William provavelmente gastava todo o dinheiro em bebida. O vinho que lady Priscilla lhes oferecera fora o pior que já haviam provado.

   Ambos haviam percebido a insistência com que Priscilla fizera perguntas acerca do número de homens aptos para a luta que tra¬balhavam para eles.

   Enquanto conversavam sobre. os vizinhos, Kyryan sentia-se bem disposto, alegre mesmo. A companhia de Elwy lhe fazia bem, como pos velhos e despreocupados tempos de solteiro.

  

   - Eu realmente gostaria de rever lady Eleanor - Liliana declarou, rompendo o silêncio. Pela entonação que imprimira às palavras, dava a impressão de sentir-se uma prisioneira.

   - Nunca disse que você não podia vê-Ia - Kyryan replicou brusco.

   A expressão de Liliana não revelou seu prazer diante da pers¬pectiva de visitar a amiga nem traiu-lhe a irritação perante o autoritarismo do marido. Tampouco seu alívio.

   Pouco antes de Kyryan e Elwy aparecerem ela fora acometida por um medo súbito. Tivera a incômoda sensação de ser espionada, parecera-lhe ouvir murmúrios incompreensíveis. Tolices, claro; ou¬vira boatos demais a imaginação resolvera pregar-lhe peças.

   Quando o marido e o amigo surgiram por trás dela, um arrepio de susto percorreu-lhe a espinha. Em seguida, sentiu-se como, uma criança surpreendida pela ama ao cometer uma travessura. Não sabia que Kyryan pensava ao vê-Ia cavalgar sozinha, mas sua intuição a advertia de que ele a condenaria.

   Seu receio provou-se plenamente justificado. Kyryan repreendeu-a com dureza, como se ela fosse de fato uma garotinha. Na frente de Elwy, para piorar a situação.

   Contudo, por estranho que fosse, ela não podia deixar de expe¬rimentar uma certa satisfação por constatar que o marido se preo¬cupava com sua segurança. Talvez, ela tivesse corrido riscos desne¬cessários. O padre Alphonse por certo seria dessa opinião.

   Elwy interrompeu-lhe os pensamentos ao começar a cantar. Os gauleses viviam cantando, refletiu com azedume. Era como respirar, para eles. Mesmo dali, podia escutar o canto dos homens que tra¬balhavam na reconstrução da muralha.

   Bem, nem todos os gauleses cantavam. Seu marido, por exemplo, não o fazia.

   Ela fitou-o de maneira disfarçada. Jamais o ouvira entoar uma só canção, mas Kyryan decerto arriscava algumas notas quando estava na companhia dos compatriotas. Com uma pontada de pesar, pergun¬tou-se se sua presença o inibia ou se ele pensava que ela não desejava ouvi-lo.

   Como seria a voz dele? Falando, soava grave e cheia. Talvez Kyryan soubesse até tocar uma daquelas pequenas harpas que tanto a agradavam. Ele se sentaria aos pés dela, no salão, dedilhando o instrumento e enchendo o aposento com suas canções preferidas. Ela ouviria de olhos fechados, deixando-se envolver pelos sons aca¬riciantes e...

   - Elwy! - Kyryan gritou, de súbito, apertando os flancos do cavalo - Os porcos!

Eles puseram-se a galopar para o castelo, enquanto a égua que conduzia Liliana empinou as pernas dianteiras com excitação.

   Os suínos haviam escapado do curral e, liderados por uma porca, fugiam por uma enorme fenda na muralha.

   Diversos homens já se empenhavam em perseguir os animais e quase atropelaram Kyryan e Elwy que, no último instante, frearam os cavalos. Com isso, as montaria se desequilibraram e os atiraram ao chão.

   Os homens estavam prestes arrebanhar os porcos perto da mar¬gem do rio, mas o chão se revelava demasiado escorregadio. Elwy deslizou pelo barro, indo parar numa poça repleta de lama. A porca, percebendo a oportunidade, arremessou contra ele, seguida pelos demais.

   - Detenham os portões - Kyryan berrou, lançando-se para frente até ficar entre o amigo e os animais que o ameaçavam. Abriu os braços como se, assim, pudesse bloquear o estouro. Os outros homens o imitaram, incluindo Elwy.

   A porca pareceu hesitar e diminuiu a velocidade procurando uma saída por onde escapar.

   De repente, a líder estacou e ergueu as orelhas. Todos os homens ficaram imóveis, prendendo a respiração.

   Então, escutaram um murmúrio suave, uma espécie de chamado irresistível.

   - Su-i! Su-i! Aqui, porquinhos, venham...

   Liliana olhou para o portão. Jhone, com uma cesta de maçãs nos braços, conclamava os animais fugitivos.

   - Su-i! Venham, porquinhos...

   A porca, obedientemente, fez meia-volta e trotou na direção da mulher. Jhone atirou-lhe uma fruta, que a abocanhou de imediato. Submissa, a porca seguiu a criada portão a dentro. Os outros porcos foram atrás dela.

   Kyryan e Elwy se entreolharam, perplexos, e desataram a rir.

   Num segundo, o riso havia contagiado todos os presentes.

   Liliana conteve o ímpeto de romper em gargalhadas, limitando-se a sorrir discretamente, enquanto se esgueirava para guardar a égua no estábulo.

   Liliana ia na direção do salão quando ouviu a voz do marido altear-se anda mais, desta vez enraivecida. Virou-se para observar o que acontecia. Talvez ele estivesse repreendendo o culpado pelo incidente. A cena com que se deparou, contudo, era totalmente di¬versa. Elwy o havia agarrado, mantendo-o firmemente preso pelo punho.

   O marido de lady Liliana, Sir Kyryan Morgan, vassalo de lorde Trevelyan e senhor do castelo, havia sido içado para cima dos ombros de seu amigo, berrando todo o tipo de maldições e pragas em gaulês. Sem se importar com os veementes protestos, Elwy carregou-o para junto dó estábulo e atirou-o numa poça de água imunda.

   Kyryan sentou-se. Os cabelos negros empastados na cabeça pin¬gavam sobre a testa e sua expressão era de furiosa indignação. Le¬vantou-se e sacudiu-se, esparramando água para todos os lados.

   Liliana desviou a atenção para Elwy, que quase sufocava de tanto rir. Amigo ou não, aquele homem não demonstrava o menor senso de respeito e reverência para com seu superior e ...

   De súbito, com um rugido rouco, Kyryan arremessou-se contra Elwy e os dois rolaram pelo chão, trocando socos e praguejando em Gaulês. Os trabalhadores, que deviam dedicar-se às suas tarefas, dividiram-se em duas torcidas, uma a favor de Kyryan e outra a favor de Elwy, e começaram a gritar, estimulando-os com em altos brados. Elwy conseguiu erguer-se e desapareceu pelo lado direito do ce¬leiro. Kyryan saltou, disparando no encalço do amigo.

   Então, Liliana viu Elwy escondido atrás da porta do celeiro. Ele decerto pulara uma janela para entrar. Nesse instante, percebem Kyryan vindo pela extremidade do galpão.

   - Cuidado, ele se escondeu no celeiro! - ela advertiu o marido.

   Tarde demais, pois Elwy já derrubava o amigo no chão, atacando-o pelas costas.

   - Levante-se! Anda! - Li1iana gritou, correndo para juntar-se ao grupo de homens que rodeava os lutadores.

   Elwy tentou rastejar para fora, mas a camada grossa de barro que forrava o chão impediu-o de mover-se com a rapidez necessária para esquivar-se da mão de Kyryan, que lhe agarrou o tornozelo. Ele puxou Elwy para trás e segurou-lhe o cinturão. Com esforço, levantou-se e arrastou o amigo até o cocho.

   Liliana prendeu a respiração, ansiosa para que o marido castigasse Elwy pela humilhação que lhe infligira. Com um brado de triunfo, Kyryan ergueu-o no ar e jogou-o dentro da água.

   - Você conseguiu! - Liliana exclamou, batendo as mãos e dando pulinhos no ar.

   Kyryan virou o rosto sorridente para fitá-la.

   Li1iana abaixou as mãos, enrubescendo. O que em nome de Deus, ela estava fazendo? Comportava-se como uma criada qualquer, não como uma dama.

   Constrangida, segurou as saias para não sujar-lhes o barrado na lama e apressou na direção do salão. Teria que trocar o vestido antes da ceia. Além disso, precisava verificar se Jhone, Dena e Osyth haviam, cumprido as tarefas da maneira apropriada e se Sara já pre¬parara a refeição.

   Liliana pigarreou e tentou fazer-se de séria. Desfez o laço, intrigada com a ausência de Maude. Bem, depois iria atrás dela. No momento, podia arranjar-se sozinha.

   Escolheu um vestido gracioso para usar durante a ceia. Gostava do decote, que lhe realçava o colo alvo. Não que tivesse um motivo especial claro que não. Apenas cedia ao impulso de colocá-lo.

   Ao ouvir um ruído atrás dela, ordenou:

   - Maude, ajude-me aqui, por favor.

   Um par de mãos um tanto inábeis puxaram o vestido para baixo, através da cabeça. Liliana estranhou o silêncio da criada. Nada de sua tagarelice habitual, nem mesmo uma risadinha. Desconfiada, voltou-se e se deparou com Kyryan.

   A túnica molhada fora atirada ao chão. Com as ceroulas enchar¬cadas grudadas nas coxas musculosas, o cabelo ainda pingando, ele a fitava com um ligeiro sorriso nos lábios.

   Kyryan não fez qualquer tentativa de falar, pois sabia que fra¬cassaria. Mal podia respirar, depois de roçar as mãos pelo corpo estonteante de Liliana. Sua pele era tão macia, tão imaculada! Se ao menos ele pudesse...

   Liliana o contemplava com expressão indecifrável. Kyryan limpou a garganta e esforçou-se para dizer alguma coisa.

   - Também preciso de roupas secas... - murmurou com voz rouca.

   - Com toda a certeza - ela replicou, afastando-se dele.

   Kyryan observou-lhe a silhueta delicadamente talhada, os cabelos que se esparramavam pelas costas e, como atraído por um ímã, deu alguns passos, em sua direção.

   Liliana sentiu-se pregada no chão. Queria recuar, mas as pernas não lhe obedeciam. Aquele sorriso era tão devastador! Não havia nenhum traço de ironia ou de frieza... era um sorriso bom, acolhedor, repleto de admiração e ternura. Seu coração batia como louco em seu peito e ela começou a ofegar.

   Kyryan, todavia, passou pela esposa e alcançou a arca onde guar¬dava seus poucos trajes.

   Ela suspirou, frustrada. Bem, se ele podia ignorar-lhe a presença, ela não teria dificuldade em pagar-lhe na mesma moeda.

   Não tardou a descobrir, porém, que não era assim tão simples ficar indiferente ao marido. Não quando ele, quase nu, remexia na arca em busca de uma túnica, a poucos metros de distância.

   Inquieto, Kyryan revirava as peças de vestuário sem vê-las, ao entrar, pretendia agir com naturalidade, como se Liliana nem esti¬vesse ali. Cada polegada de seu corpo, entretanto, fazia questão de reagir à proximidade da esposa. Seu perfume adocicado pairava no ar, envolvendo-o por inteiro. Aquela doce feminilidade, o vestido, o roçar de mãos... Deus, era demais para um simples mortal! Jamais se sentira tão atraído por uma mulher... nem jamais a vira tão excitada.

   Ouvia-a ofegar de leve. Quem sabe, em breve, ele teria o privilégio supremo de tomá-la entre os braços sem medo e sem culpa?

   - Preciso trocar as ceroulas... - Kyryan declarou em tom he¬sitante, como se fosse um garoto tímido e não um homem diante de sua esposa.

   A despeito de seus esforços para evitá-lo, Kyryan sentiu um vivo rubor queimar-lhe o rosto e praguejou baixinho. Ora, quantas mu¬lheres o haviam visto nu, sem, que isso O constrangesse! Que diabos, Kyryan Morgan era um cavaleiro, um nobre, não um rapazinho idiota!

   Liliana prendeu os cabelos apressadamente e relanceou os olhos para o marido.

   - Eu precisava de Maude para atar o vestido atrás - ela declarou, deixando claro que não poderia retirar-se do quarto com o vestido ainda aberto.

   - Eu poderia ajuda-la, mas sou um tanto desajeitado para essas coisas..

   - Eu sei - ela replicou com suavidade, olhando para o chão.

   Pela primeira vez desde que a conhecera, Liliana lhe parecia in¬segura e sem o menor vestígio de sua arrogância costumeira. Como ficava adorável com aquela expressão de esposa modesta, bem me¬lhor do que a máscara de orgulhosa aristocrata, normanda.

   - Venha, deixe-me tentar - Kyryan ofereceu-se.

   - Talvez não convenha...

   Kyryan aproximou-se, cavalheiresco.

   - Permita-me, milady...

  

   Os olhos de Liliana se arregalaram por um instante. Sem proferir uma palavra, ela virou-se de costas para que o marido lhe atasse as presilhas do vestido, erguendo as mechas luxuriantes de cabelo com as mãos.

   Inebriado com a visão de suas costas bem torneadas e da nuca aveludada, Kyryan acercou-se da esposa. Com gestos trêmulos, co¬meçou a prender o vestido, roçando os dedos pelo tecido fino e aveludado de sua camisa.

   O silêncio de Liliana o fez imaginar se ela sentiria a mesma exaltação que ele. Provavelmente sim, pois todo o seu corpo também tremulava.

   Pelas chagas de Cristo, que não fosse por medo! Não dele... Queria ser desejado, não temido.

   Sem aviso, Kyryan depositou um beijo suave em sua Nuca.

   - O que... o que está fazendo? - a esposa indagou em tom alarmado.

   - Ajudando minha esposa a vestir-se - replicou. Tomou a beijá-la, desta vez entre as espáduas. - Quer que eu pare?

   - Não. - Liliana sussurrou, curvando-se de leve par atrás.

   Com delicadeza, Kyryan começou a fechar o vestido. Ao apertar um dos laços, puxou-a para mais perto de si.

   - Ei, assim você vai rasgar o tecido - ela protestou, porém sua voz carecia de convicção e Kyryan sorriu.

   - Garanto que não.

   A despeito dessa promessa, que ele tinha intenção de cumprir à risca, Kyryan lutava contra a tentação de despedaçar-lhe a roupa, desnudando-lhe o corpo perfeito. Transformando a tarefa em uma sucessão de carícias discretas, mas sensuais, ele continuou atando nó por nó, sem resistir mais correu os dedos ao longo de suas costas.

   - Já terminou? - Liliana indagou um murmúrio rouco.

   - Não - Kyryan respondeu, percorrendo-lhe os braços com as mãos. Percebeu que ela relaxava um pouco.

   - Tem... certeza? - a tensão em sua voz era evidente.

   - Eu lhe avisei que era um tanto desajeitado. Contudo, não se preocupe. Tive tantas amantes que, apesar da falta de talento, acabei por lidar com essas coisas uma centena de vezes.

   Liliana deu um passo para frente.

   - Não comigo - rebateu, enraivecida.

   Kyryan praguejou baixinho contra a própria indiscrição. Afinal, não tinha cabimento gabar-se daquela forma diante de uma jovem inocente.

   - Liliana, eu...

   Ela dardejou-lhe um olhar de indignação.

   - Não precisa contar-me, pois já sei! Você não passa de um libidinoso, uma criatura lasciva e sem um pingo de vergonha!

   Kyryan posou as mãos nos quadris e encarou-a.

   - Eu sou um homem, caso ainda não tenha reparado - retrucou. - Não um monge de sangue frio.

   - O que quer dizer com isso? Que eu deveria rejubilar-me porque um homem resolveu lançar sobre mim seus desejos mais animalescos? Que eu deveria considerar-me honrada porque você decidiu comportar-se comigo como um camponês vulgar e grosseiro? - Ela estreitou os olhos. - Ou que eu deveria arrastar-me aos seus pés e suplicar que repita comigo as suas mais fantásticas proezas masculinas?

   Antes que o marido pudesse replicar, Liliana avançou em sua direção.

   - Por favor, milorde, sinta-se livre para ampliar seu repertório de proezas em outro lugar. Eu não estou interessada.

   Com essa ultima frase, ela contornou o biombo e afastou-se.

   Kyryan despejou uma torrente de imprecações em Gaulês enquanto apanhava uma túnica para vestir-se.

   Que diabos fizera ao casar-se com Liliana Trevelyan? A moça tinha a língua mais afiada do que sua espada!

   E o corpo de uma Deusa...

   A única providência a tomar seria ficar longe dela. Talvez arranjar uma amante, para evitar que seu desejo insatisfeito o enlouquecesse.

   Não que houvesse na Inglaterra uma mulher capaz de atraí-lo como a sua própria esposa.

   Com um suspiro, sentou-se na beirada do leito. Por que se surpreendera com a reação violenta dela? Mencionar outras mulheres e seus casos anteriores fora um estupidez inominável!

   Quiçá toda aquela raiva fosse um bom sinal. Liliana se importava, quem sabe até sentiu ciúme?

   Grande amante ele era! Ao que parecia, esquecera tudo o que havia aprendido a respeito das mulheres. Mostrara-se sempre tão hábil com elas, mas, quando se tratava da esposa, cometia todos os erros, como um parvo.

   Na noite de núpcias, embebedara-se como nunca antes. Bela hora escolhera para descobrir as conseqüências do excesso de vinho! Habituado à cerveja, entornara a taça, certo de que os efeitos seriam idênticos. Bem, para ser totalmente honesto, teria que admitir que, em determinado momento, percebeu que estava perdendo o controle. Contudo, não fez qualquer esforço no sentido de parar de beber. O fato era que queria embriagar-se e esquecer o sentimento de inferioridade que o assaltava perante a noiva. Não se sentia à altura da filha de lorde Trevelyan.

   De qualquer forma, fora ingenuidade sua supor que teria condições de fazer amor naquele estado de embriagues. Era óbvio que uma mulher da estirpe de Liliana ficaria ofendida com seu comportamento execrável.

   Na segunda noite, permitiu que a avidez de seu desejo assumisse as rédeas da situação. O resultado foi inflamável. Atirou-a sobre a cama como um camponês num bordel. Claro que ela ficou furiosa. E com razão.

   E hoje, quando pela primeira vez, uma atmosfera de suave sensualidade se instalara entre ambos, veio com aquela história de "outras mulheres"!

   Oh, por Deus e todos os santos, será que nunca lhe diria as palavras certas? Existiria alguma maldição pairando sobre sua cabeça, que a única mulher que realmente desejava era justamente aquela que ele não parava de magoar?

   Kyryan levantou-se magoado, amargurado. Tinha diante de si duas opções. A primeira, já considerada, era a de manter-se afastado de Liliana e tomar uma amante.

   A segunda era de começar tudo outra vez, conquistando a esposa.

   Tendo em vista que Liliana Trevelyan era a única mulher que desejava, ele, na verdade, não dispusera de escolha alguma.

  

   - Liliana? - Kyryan chamou com suavidade.

   A esposa não se moveu debaixo das cobertas. Mais uma vez, arrumara os lençóis no chão, bem perto da parede, deixando-o sozinho na cama. Agora encolhida em seu leito improvisado, fingia dormir.

   - Ei, Liliana? - ele tornou a sussurrar.

   Ele sentia-se enfraquecer com aquele murmúrio envolvente. Gostava do jeito como ele pronunciava o nome, com um certo sotaque gaulês. O som parecia penetrar-lhe não apenas os ouvidos, mas todos os poros, e uma espécie de langor a entontecia, como acontecera horas antes, quando o marido a ajudara a se vestir.

   Com um esforço inaudito, resistiu, advertindo a si mesma que precisava ser forte. Em hipótese alguma, poderia permitir que ele percebesse o quanto o desejava. Não depois de tê-lo ouvido jactar-se a respeito de suas inúmeras mulheres.

   Percebeu que ele suspirou e parou de chamá-la, levantando-se e movendo-se calado pelo quarto. Após alguns minutos de silêncio, Liliana, curiosa, arriscou-se a abrir um olho para ver o que o marido fazia na penumbra.

   Surpresa descobriu que o marido havia-se deitado no chão, na outra extremidade, enrolado apenas em seu manto.

   Uma ruga de preocupação formou-se na testa dela. Daquela forma, Kyryan poderia resfriar-se, as pedras no chão eram enregelantes, e ele já se havia exposto a umidade - para não dizer que se molhara inteiro naquela poça imunda - naquela tarde.

   Liliana distinguiu o vulto de Mott estendido ao lado do dono. Isso era bom, pois o cachorro poderia transmitir-lhe um pouco de seu calor.

   Bem, ele que sofresse, que congelasse até os ossos. Kyryan Morgan não merecia nada melhor.

   Mas as pedras do chão... poderiam causar-lhe tanto mal! Kyryan talvez adoecesse seriamente. Quem sabe até morreria?

   O coitado se mostrou tão solícito durante a ceia... como se reconhecesse que se portou mal.

   E como se portara mal! Muito, mesmo. Ele lhe havia dispensado um tratamento deplorável. Chegara até a contar vantagem acerca de suas diversas conquistas! Como se, com fanfarronices, pudesse impressioná-la...

   Agora, porém, na quietude da noite, ousava admitir que adorara as carícias e os beijos delicados que Kyryan lhe dera, sob o pretexto de ajuda-la com a roupa. Também reconhecia que, se o marido não tivesse feito aquele comentário atrevido sobre ter prática em vestir - e despir - outras mulheres, ela não o teria impedido de prosseguir.

   Quem era mais digno de crítica: o marido, por agir como um homem, ou ela mesma, por derreter-se em seus braços?

   Kyryan revirou-se, inquieto. Mais uma vez, disse a si própria que o bem-estar do marido não era de sua conta.

   Contudo, alegrava-se por ele não ter buscado conforto no leito de outra mulher, seguido o conselho que lhe dera num momento de raiva.

   Liliana aguardou ainda alguns momentos, até ter certeza de que ele dormia a sono solto. Então, movendo-se com todo cuidado, cobriu-o com um cobertor que ficara na cama.

   Voltou para seu canto, na outra extremidade do quarto e deitou-se virada para a parede. Assim não o veria. E, não o vendo, talvez não pensasse nele.

  

   Kyryan, totalmente desperto, abriu os olhos para contemplar a esposa.

   Um sorriso brincava em seus lábios.

  

   Liliana saiu para o pátio banhado de sol e estacou ao deparar-se com Kyryan montado em seu cavalo, segurando as rédeas da égua dela, devidamente encilhada.

   - Pensei que, se quisermos visitar os Northrup, é melhor sairmos logo. Assim, estaremos de volta antes do anoitecer - ele declarou sorridente.

   - Oh! - ela exclamou entusiasmada. - Vou buscar meu manto.

   Com medo que o marido mudasse de idéia, disparou na direção do salão. Não lhe dissera nada a respeito de ir ao solar dos Northrup, embora desejasse muito fazê-lo, e julgara que Kyryan havia esquecido o convite recebido dos amigos.

   Enquanto prendia o manto de lã vermelha em volta do pescoço com um broche de ouro, imaginava se ele teria algum motivo oculto, que ela não conseguia vislumbrar, para fazer-lhe aquela surpresa. Se assim fosse, porém, que importava? Sir Nevil com certeza arrastaria Kyryan para conhecer seus falcões, dos quais era extraordinariamente orgulhoso, deixando-a na agradável companhia de lady Eleanor. Por alguns momentos, deixaria de preocupar-se com o que Kyryan pensava.

Retornou depressa para o pátio, ignorando os olhares curiosos que a observavam enquanto tentava decifar a expressão inescrutável do marido. Notou que ele usava sua segunda melhor túnica sob o manto e trazia a espada presa no cinturão. A brisa suave agitava-lhe os cabelos negros e sedosos.

   Não podia deixar de admitir que, naquela manhã, Kyryan tinha o aspecto de um verdadeiro nobre. A idéia de cavalgar ao seu lado a excitava. Afastou todas as dúvidas a cerca das intenções dele, a fim de não estragar a alegria do momento, e pousou o pé no estribo para montar.

   - Pronta? - Kyryan indagou ao vê-la acomodada sobre a sela.

   - Onde está a nossa escolta?

   - Não necessitamos de nenhuma. Afinal, o castelo dos Northrup não fica longe - argumentou. Após uma pequena pausa, acrescentou num tom mais baixo: - Quero ficar sozinho com minha mulher.

   Liliana não conseguiria discutir com ele se lograsse emitir qualquer som. Um calor súbito percorreu-lhe o corpo e o fôlego escapou-lhe ao controle. Para disfarçar, esporeou a égua para que trotasse e, ao lado do marido, cruzou a ponte e alcançou a estrada.

   Era tão bom ausentar-se do castelo, deixando suas obrigações e tarefas para trás! Considerou que seria oportuno demonstrar ao marido o quanto lhe alegrara o seu inesperado gesto.

   - Muito obrigada - agradeceu com sinceridade.

   - Por quê?

   - Por levar-me para visitar lady Eleanor.

   - Você a estima de verdade, não é?

   - Ela foi boa para mim quando minha mão morreu. Daí em diante, tornamo-nos grandes amigas.

   - Eu também a aprecio - ele replicou com simplicidade. Liliana, porém, percebeu um certo tom de louvor e perguntou-se se Kyryan sentira o mesmo pela esposa.

   - Foi uma pena sua família não ter vindo para o nosso casamento. Eu gostaria de conhecer sua mãe - ela comentou, fingindo casualidade.

   - Todos na minha família estão mortos.

   - Oh! - embaraçada, ela sentiu o sangue fugir-lhe das faces. Como conhecia pouco o homem com quem se casara! - Lamento muito...

   Kyryan sacudiu os ombros.

   - Meu pai morreu antes de eu nascer e mamãe ficou doente durante muito tempo. Para ela, a morte se constituiu numa benção dos céus. Isso aconteceu há cinco anos - ele fitou-a e sorriu. - Mas eu gostaria de apresentá-la a meu tadmaeth.

   - Seu o quê?

   - Meu pai adotivo, o barão DeLanyea. Uma pessoa excelente. Eu o convidei para a cerimônia, mas ele não pôde vir. Havia quebrado a perna e sua esposa, lady Roanna, de quem já lhe falei...

   - Lembro-me do nome.

   Relanceando os olhos na direção dela, limpou a garganta e prosseguiu:

   - Bem ela e a velha aia estão cuidando dele como de um bebê.

   Liliana balançou a cabeça. Imaginava um ancião preso ao leito, doente e necessitado de cuidados constantes.

   - Que infelicidade... pobre velho...

   Kyryan lançou-lhe um olhar atônito e explodiu numa gargalhada.

   - Oh, não Liliana! Não se deve sentir pena dela. De forma alguma! Meu Deus, o barão revelou ser mais resistente e saudável que eu, muitas vezes. Imagine que foi abandonado para morrer na Terra Santa, onde combatia, mais voltou sozinho, caminhando para o acampamento! - Receando que a esposa se ofendesse por sua reação, acrescentou: - Eu não ri de você, Liliana. Mas a cena que descreveu era engraçada, considerando-se que o "velho" era DeLanyea...

   Em vez de zangar-se, ela sorriu diante da preocupação do marido.

   - Eu ficaria feliz em conhece-lo- declarou, enquanto pensava: "e descobrir mais a seu respeito..."

   Acompanhando-lhe o olhar, percebeu o interesse de Kyryan pelo carneiros que pastavam na pradaria, um pouco afastado do gado.

   - Por que arranjou tantos carneiros? - indagou intrigada. - Papai sempre diz que a maioria dos castelôes desta região cria gado.

   - Eles são nosso presente de casamento do barão.

   - Oh...

   - Quanto às ovelhas, dessas eu sei cuidar - ele explicou. - Receio que meus conhecimentos sobre bois e vacas seja bastante precários.

   - Mas certamente não deve ser difícil!

   - Gosto dos carneiros. Fui pastor de ovelhas até os oito anos de idade. Meu avô ensinou-me a lidar com elas e com os cães, também.

   Um pastor? Ela havia desposado um pastor? Não ignorava sua origem plebéia, mas nem lhe passara pela cabeça que pudesse ser tão humilde!

   Contudo, ele se aventurara pelo mundo bem mais do que imaginara, vindo do norte de Gales até o castelo de seu pai. E percorrera o longo caminho que separava o menino pobre de cavaleiro e senhor feudal.

   No mínimo, Kyryan Morgan merecia o respeito devido a alguém com tamanha habilidade. E ainda, capaz de falar do avô com ternura e orgulho.

   - Ele deve ter sido um homem encantador - comentou com suavidade.

   - Foi sim.

   - Por que deixou o trabalho junto aos carneiros?

   Kyryan não respondeu de imediato, parecendo imerso em reflexões e lembranças do passado. Quando Liliana já desistira de esperar, ouviu-o replicar:

   - Quando vovô morreu, o barão DeLanyea adotou-me. Então, tornei-me escudeiro e, mais tarde, cavaleiro.

   - Elwy, também era guardador de ovelhas?

   - De jeito nenhum... - ele abriu um amplo sorriso e Liliana tranqüilizou-se ao constatar que o bom humor lhe voltava.

   - Deixe-me adivinhar... era filho adotivo do barão?

   - Também não, Elwy é bastardo.

   Kyryan lançou-lhe um longo olhar de esguelha. De certa forma, aliviava-o perceber que a esposa não se mostrara escandalizada com a revelação. Os normandos, em geral, nutriam idéias bastante peculiares acerca de crianças ilegítimas, enquanto os gauleses tendiam a aceita-las com naturalidade.

   - Do barão DeLanyea?

   - Pelas chagas de Cristo, não! - kyryan soltou uma gargalhada. - Ele simplesmente apareceu, certo dia, perto de Craig Fawr, o castelo do barão. Logo em seguida, Jacques, o cozinheiro - um camarada enorme de gordo - encontrou-o na despensa, com a túnica repleta de pães. Elwy disparou por entre as pernas de Jacques, e foram necessários dez homens para persegui-lo através do pátio antes que finalmente o agarrassem. O pobre era franzino, estava fraco, exausto, morto de fome e de sede! Suas condições eram as piores do que as daquele dia, quando o joguei no cocho.

   Liliana não conteve o riso, recordando a cena. Kyryan prosseguiu a história, após um pausa:

   - Neste momento, Emryss, barão DeLanyea, e a esposa saíram pra ver que balbúrdia era aquela em seu próprio pátio. Emryss, fitou-o. - Kyryan imitou-o, fechando os olhos. - Ele tem apenas um olho - explicou. - Bem, Emryss fitou-o com severidade. Elwy, porém, empertigou-se e sorriu do modo mais cativante possível.

   - E foi punido por roubar comida?

   Kyryan sacudiu a cabeça.

   - Lady Roanna perguntou ao marido o que pretendia fazer com o menino. " O que acha que devo fazer?", Emryss respondeu com outra pergunta. Aí, a esposa replicou, como se fosse a coisa mais natural e evidente do mundo: "Aceita-lo como seu escudeiro, ora! Qualquer um que consiga escapar por entre as pernas de Jacques e escapar de dez homens fortes e valentes é, sem sombra de dúvida, inteligente e ágil demais para que o desperdicemos". E foi essa a atitude que Emryss tomou.

   Liliana ouviu a narrativa e franziu a testa. Kyryan percebeu e observou:

   - Elwy nuca mais roubou coisa alguma. Não conheço ninguém mais honesto e confiável do que ele.

   - Eu não disse que era desonesto.

   - Ainda bem - Kyryan retrucou, mordendo os lábios. Ao longo da manhã, vinha-se esforçando para ser agradável. Até aquele instante, tudo caminhava melhor do que esperava, e não queria que nada estragasse a atmosfera de cordialidade que se instalara entre ambos.

   Contudo, a única coisa pior que ofendê-lo ou a seu país era insultar seu melhor amigo. isso ele não permitiria, em hipótese nenhuma.

   Para evitar o conflito iminente, considerou de bom alvitre mudar de assunto.

   - Suponho que lady Eleanor tenha sido de grande ajuda para você, nos momentos difíceis...

   Ele sabia, desde os primeiros torneios de que participara, que havia uma grande amizade entre Sir Nevil e lorde Trevelyan. Não seria de estranhar que sua esposa, portanto de bom grado prestasse assistência a Liliana, depois da perda da mãe.

   - É verdade. Contudo, logo entendi quais seriam os meus deveres, no castelo e o que se esperava de mim.

   - Quantos anos você tinha quando sua mãe morreu?

   - Dez. houve alguns rumores de que eu seria enviada para longe, para ser criada por uma parenta distante, mas...

   - Mas?

   - Eu me recusei a ir.

   Era fácil imaginar que lorde Trevelyan não teve alternativas senão ceder aos desejos de sua determinada e teimosa filha.

   Como se lhe adivinhasse os pensamentos, Liliana acrescentou, num tom defensivo:

   - Papai ficou feliz por ter desistido da idéia de mandar-me embora, pois, em pouco tempo, assumi as tarefas domésticas antes desempenhadas por minha mãe.

   Sim, isso também Kyryan podia visualizar. Havia observado que ela administrara o castelo do pai com a habilidade e diplomacia de uma mulher bem mais velha.

   De imediato, apreendeu todo o processo de amadurecimento precoce da esposa. Claro! Obrigada a substituir a mãe quando ainda não passava de uma menina, acabou abrindo mão de sua infância, que, em conseqüência, foi abruptamente interrompida.

   Comovido, Kyryan apontou na direção do rio, que caía em cascata pelas pedras de um pequeno desfiladeiro, e freou o cavalo.

   - Estou com sede - anunciou, desmontando. - Não gostaria de beber um pouco de água?

   - Oh, sim... seria refrescante.

   Sem aviso, ele segurou-lhe a cintura delgada e puxou-a de sobre a égua. Quando os pés de Liliana tocaram o solo, cada centímetro de seu corpo parecia cônscio da proximidade tentadora de Kyryan.

   Ao vê-lo disparar na direção da cachoeira, foi tomada por uma sen¬sação de desapontamento. Afinal, o que esperava? Que ele a abraçasse, que a tocasse como na noite em que consumaram o casamento? Ora, isso era ridículo! Pois não jurara que jamais permitiria que o marido voltasse a encostar a mão nela?

   Liliana olhou em torno. A floresta, naquele ponto, se fechava ao redor deles. Sem nenhum motivo específico, sentiu-se invadir por uma vaga apreensão, que a levou a correr atrás de Kyryan.

   - Não acha que devíamos ficar atentos? Pode haver malfeitores por aqui - comentou, tentando ocultar o medo.

   Ele, porém, sacudiu a cabeça.

   - Bobagem. Meus homens esquadrinharam este bosque e não encontraram nenhum vestígio do tal bando. Se esses fora-da-lei es¬tiveram aqui, provavelmente já fugiram.

   Ela ergueu a cabeça e fitou-o com perspicácia.

   - Nesse caso, por que insiste que é perigoso eu cavalgar sozinha?

   Kyryan pigarreou.

   -Bem, o que eu disse agora não passa de conjecturas. Ninguém pode afirmar com certeza que todos os homens abandonaram as florestas. Se ainda restaram alguns, esses decerto não atacariam homens armados. Com lindas e solitárias mulheres, contudo, seria diferente.

   O coração de Liliana falhou uma batida diante do elogio. Não esperava ouvir de Kyryan que ele a achava bonita e, assim, não encontrou nada para replicar. A fim de disfarçar sua perturbação, inclinou-se com as mãos em concha para beber água.

   O marido contemplou-a enquanto sorvia pequenos golinhos do líquido cristalino. Como Liliana conseguia ser tão sedutora nos mí¬nimos gestos, mesmo os mais triviais? Custava-lhe um esforço inau¬dito conter o ímpeto de tomá-la nos braços e possuí-Ia ali mesmo, sobre a relva, ouvindo o suave murmúrio da cachoeira.

   Todavia, a determinação de esperar até ter certeza de que ela o desejava revelou-se mais forte. Ele não queria cometer outros erros, permitindo que seus instintos o dominassem.

   Um movimento súbito nos arbustos, na margem oposta do rio, atraiu-lhes a atenção.

   Num reflexo, Kyryan pousou a mão no cabo da espada. Liliana aproximou-se do marido, assustada, e agarrou-lhe o braço.

   - O que foi isso? - cochichou.

   Como em resposta à sua indagação, a cabeça de um cervo delineou-se por entre os galhos do arbusto. Ao farejar-lhes o cheiro, voltou-se e fugiu correndo.

   Liliana soltou abraço do marido, num misto de embaraço e alívio, e afastou-se.

   - Talvez seja melhor prosseguirmos a jornada - sugeriu, já se encaminhando para os cavalos que pastavam, lado a lado.

   Kyryan, todavia, nem se moveu.

   - Talvez...

  

   Liliana percorreu com o olhar as árvores que os cir¬cundavam e apertou as mãos, num gesto de aflição, enquanto esperava que o marido decidisse partir.

   - Não devemos chegar muito tarde à casa dos Northrup - ele comentou, atendendo a seu apelo mudo. Tomou-lhe a mão, pousou-a no próprio ombro e ergueu a esposa a fim de que se acomodasse na sela.

   Como Liliana se mostrasse apreensiva e ansiosa, Kyryan resolveu não dedicar demasiada atenção, por mais tentador que parecesse, ao desejo que o inflamou com o leve toque de sua mão e com a inebriante sensação de segurar-lhe a cintura estreita.

   Em breves minutos, estavam de volta à estrada. Alcançaram seu destino pouco antes do meio-dia. Sir Nevil e lady Eleanor os rece¬beram com efusividade, evidentemente satisfeitos com a visita.

  

   Lady Eleanor dirigiu-lhe um sorriso doce.

   - Está tão calada, minha querida. É cansaço? Por algum motivo especial?

   Um vivo rubor tingiu as faces de Liliana, que desviou os olhos para o chão.

   - Não creio que eu esteja... prenhe - murmurou. Acalentara a esperança de conversar com a amiga mais velha a respeito dos mis¬térios que cercavam a intimidade entre marido e mulher. Agora, porém, que o assunto surgia, uma estranha timidez a cerceava. - Ainda é muito cedo - Lady Eleanor afirmou com bondade. Porém, ao notar que ela se mantinha silenciosa perscrutou-lhe o semblante com ar de preocupação. - Está tudo bem, Lili? Você não está doente, não é?

   Liliana torceu a saia do vestido e, respirando fundo, gaguejou:

   - Kyryan e eu... isto é... não tenho certeza...

   Lady Eleanor pousou o bordado na cesta.

   - Lili, o que há? Algum problema quê queira contar-me?

   De súbito, ela percebeu que, se não desabafasse agora com sua, generosa amiga, em quem tanto confiava, jamais o faria com ninguém. E seu casamento redundaria num fragoroso desastre. Assim, lutando contra a inibição, inclinou-se na direção da anfitriã.

   - Não estou certa se... Kyryan e eu...

   - Você e Kyryan o quê?

   - Consumamos o casamento.

   Não importando o que lady Eleanor esperava ouvir, com certeza nada tinha a ver com aquela confidência. A bondosa senhora rec1i¬nou-se no espaldar da cadeira, espantada.

   - Nunca pensei que á esposa de Kyryan Morgan... - começou a dizer, mas calou-se ao contemplar a expressão angustiada de Li¬liana. - Isto é... bem... minha querida, sei que Kyryan é um excelente rapaz. Não duvido que haja uma boa explicação para isso. Seu... período... feminino?..

   Liliana sacudiu a cabeça, engolindo em seco. Lady Eleanor sentiu que a jovem amiga enfrentava dificuldade em confiar nela. Em todos aqueles anos, desde que se conheceram, a, menina poucas vezes a procurou para pedir conselhos. Ao que parecia, não precisava de nenhum. Contudo, tinha pena dela, pois sua vida tomou-se bastante árdua após a morte da mãe, embora ela não o demonstrasse.

   Agora, entretanto, tomava todo o cuidado para que seu semblante não revelasse a compaixão que a moça lhe inspirava. Se isso ocorresse, sabia que Liliana jamais voltaria a pedir-lhe ajuda.

   - Na nossa festa de núpcias, Kyryan se embebedou.

   Lady Eleanor balançou a cabeça.

   - Eu sei, eu estava lá.

   - Bem... fiquei muito zangada...

   A amiga limitou-se a aquiescer com um gesto, sem tecer comen¬tários.

   - Ele entrou no quarto como um furacão e...

   _E?...

   - Dormiu.

   - Desapontador, não é? Lady Eleanor admitiu, recomeçando a bordar. - No entanto, muitos homens se embriagam no dia do casamento. Ó próprio Nevil, coitado, não conseguiu sequer levan¬tar-se da mesa.

   Esboçando um sorriso abatido, Liliana concordou.

   - É verdade. Por isso eu o perdoei.

   - Generoso de sua parte, minha menina: Foi o que fiz, também. Liliana relanceou os olhos na direção da amiga, mas esta continuou o trabalho com a agulha.

   - Então, Kyryan levou-me, para nossa casa - havia mais do que amargura em sua voz ao recordar aquele dia. - O castelo está em ruínas! Como Kyryan pode pretender que eu more naqueles es¬combros? Não existe andar superior, porque o piso desabou, muito menos um quarto para dormir!

   - Oh, pobre menina... - Lady Eleanor exclamou. Contudo, não parecia muito impressionada.

   Tentando fazê-la entender a gravidade da situação, Liliana acres¬centou, em tom de tragédia.

   - É uma completa desgraça!

   A amiga fitou-a de soslaio e revelou.

   - Quando Nevil e eu nos casamos, tivemos que morar com os pais dele durante um ano enquanto reconstruíamos este castelo. Você se lembra de minha sogra?

   - Não - Liliana respondeu com cautela.

   Lady Eleanor suspirou.

   - Não é correto falar mal dos mortos, por isso, tentarei abster-me de cometer esse erro. Só lhe direi que teria sido preferível morar com meu marido num castelo em ruínas, ou até embaixo da ponte, a viver sob o mesmo teto que a velha lady Northrup. Na verdade... - ela corou de leve - implorei a Nevil que nos mudássemos para cá antes de a reforma terminar. Não me incomodaria de instalar-me no celeiro, se fosse necessário. A essa altura, eu já tinha dado Alice à luz e minha gravidez de Lugínia já ia bem adiantada. Bem, nós viemos, Mesmo com todos aqueles homens trabalhando o dia inteiro ao meu redor... - um novo suspiro interrompeu-a. Após uma pausa, olhou para, a amiga e acrescentou: - Às vezes precisamos de grande capacidade de adaptação...

   - Mas os homens dormem no salão, também! - Liliana protestou.

   - Naturalmente.

   - Não estou acostumada a essa... mistura....

   - É óbvio que não. O que é compreensível.

   - Só desejo um pouco de privacidade. Será que é pedir demais? - ela alterou a voz, agastada. A conversa seguia um rumo que não previra.

   - Não está satisfeita com seu novo lar - Lady Eleanor declarou com serenidade. - O que não a impediria de... conte-me, Lili, você não recusou a Kyryan os seus direitos de marido, recusou?

   Liliana sentiu uma onda de calor avermelhar-lhe as faces, aumentando-lhe a sensação de desconforto.

   - Eu lhe supliquei que ele levasse de volta para casa - respondeu de modo quase inaudível.

   - Quer dizer a casa de seu pai?

   - Sim - ela confirmou em tom de desafio. - Antes, porém, que ele concordasse...

   Pela primeira vez, a amiga pareceu chocada.

   - Ele concordou?!   

   - Ah, sim. Mas, primeiro, ele.., ele... - Constrangida, Liliana não conseguiu completar a frase.

   Lady Eleanor pousou o bordado e, inclinando-se, deu-lhe tapinhas leves na mão, no intuito de tranqüilizá-la e demonstrar sua compreensão e solidariedade. Era evidente que a pobre garota atravessava sérias dificuldades em seu princípio de casamento. Lorde Trevelyan, embora fosse um pai dedicado como poucos, não soubera criar a filha sozinho e, se por um lado exigira demais dela, por outro, es¬tragara-a com mimos e com falsas idéias a respeito do matrimônio. O conceito de Liliana sobre a vida de casada fora formado a partir dos cânticos românticos dos menestréis que animavam as ceias e os torneios promovidos pelo pai. Também, com um marido tão bonito e habilidoso quanto Kyryan Morgan, quem poderia culpá-la por confundi-lo com os heróis descritos pelos menestréis?

   Além disso, era capaz de apostar como lorde Trevelyan jamais havia conversado com a filha sobre as exigências fundamentais do casamento, como, por exemplo, tolerância, paciência e capacidade de adaptação. Provavelmente, nem lhe passou pela cabeça que dois jovens tão orgulhosos e obstinados como Liliana e Kyryan Morgan precisariam ser advertidos quanto a esses "pequenos detalhes".

   Assim, Kyryan exerceu suas prerrogativas no leito nupcial, mas, surpreendentemente, Liliana não, soube aproveitar. A noiva mostra¬ra-se nervosa e apreensiva ao longo da cerimônia e da festa, como ela própria constatara, mas isso era normal, não justificando as quei¬xas da moça contra o marido. Nevil sempre se divertia com as peripécias amorosas do quase lendário cavaleiro Morgan, e nunca dei¬xava de narrar-lhe tudo o que lhe chegava aos ouvidos.

   - Ele foi indelicado com você? - indagou com gentileza, ao ver que a amiga se calara, incapaz de prosseguir.

   Liliana corou ainda mais.

   - Está tudo bem, Lili. Eu tive dez filhos e minhas três filhas mais velhas já estão casadas. Duvido que possa escandalizar-me, não importa o que me conte. Ele machucou-a de alguma forma?

   - Oh, não! De maneira alguma.

   Os olhos de lady Eleanor se estreitaram ligeiramente.

   - Mas você não sentiu dor?

   - Não. Eu... fiquei mais perplexa do que dolorida.

   - Perplexa? Por causa do sangue, ou em conseqüência de alguma coisa que ele tenha dito?

   - Não houve sangue nenhum - Liliana revelou, inquieta. ¬- Devia haver?

   - Às vezes acontece - Lady Eleanor pigarreou. Precisava agir com extrema diplomacia, para não assustá-la mais do que já estava. Que falta fazia uma mãe! Com toda a certeza, lorde Trevelyan nunca instruiu à filha sobre os aspectos fisiológicos do matrimônio.

   - Minha querida, quero que me descreva com exatidão tudo o que ocorreu.

   - Com exatidão?

   - Hum, hum. Prometo que suas confidências morrerão aqui. Por minha boca, ninguém jamais saberá.

   Liliana respirou fundo e trançou os dedos com força.

   - Bem... como já lhe disse, nós discutimos. Então, Kyryan me agarrou e arremessou-me na cama. Quando Maude, minha criada, entrou com um de meus baús, ordenou-lhe com rudeza que fosse dormir na cozinha.

   - Entendo - Lady Eleanor comentou com um sorriso.

   - Eu bradei que não queria que ele me tocasse. Reclamei, tam¬bém, que... que ele cheirava como um camponês.

   Lady Eleanor esforçou-se para não esboçar qualquer reação. Con¬tudo, imaginava a indignação de Morgan. Nenhum homem no mundo admitiria ouvir isso da esposa na noite de núpcias.

   Liliana mordeu o lábio inferior.

   - Kyryan empurrou-me de volta para o leito. Beijou-me e eu... eu percebi... - sua voz reduziu-se à um murmúrio - sua língua introduzir-se na minha boca.

   - E depois?

   - Depois, eu o esbofeteei.

   Dessa vez, a surpresa foi tanta que a boa senhora não logrou oculta-la.

   - Você o quê?!

   - Eu esbofeteei-lhe o rosto, para que parasse.

   - E ele parou?

   - Sim.

   - O que aconteceu em seguida?

   - Suponho que, uma vez que Kyryan já havia conc1uído o que precisava fazer, não restavam motivos para permanecer no quarto. Assim, ele se retirou. Na manhã seguinte, Kyryan anunciou que eu poderia partir, se quisesse - Liliana prosseguiu. - Mas eu não pude. Não era justo que, por causa de um marido desses, a vergonha e o escândalo recaíssem sobre mim. Não após a consumação do casamento - concluiu, mal reprimindo a exaltação. - Acha que eu podia?

   Lady Eleanor refletiu alguns minutos sobre o que lhe responderia.

   - Lili, seu marido permitiu que você regressasse à casa paterna não porque desejasse desonra-la, mas porque... não houve consumação alguma.

   Liliana manteve-se ereta na cadeira.

   - O que ele fez... não passou de uma beijo mais íntimo, só isso - à amiga revelou com a maior delicadeza possível.

   Ainda assim, Liliana sentiu-se a mais estúpida criatura sobre a face da Terra.

   - Contudo, o seu, equívoco é bastante compreensível, minha querida - Lady Northrup sorriu com bondade. - O que Kyryan comentou ao notar que você decidira ficar?

   - Nada. Meu marido... fala muito pouco, seja lá sobre o que for. Hoje, na verdade, na vinda para cá, foi a primeira vez que conversamos.

   - Kyryan não tentou mais desde aquela noite?

   - Não... sim... não estou certa.

   - Vocês não dormem juntos?

   - Não.

   Lady Eleanor franziu as sobrancelhas.

   - Bem, deve admitir, minha cara amiga, que Kyryan Morgan tem demonstrado muita paciência com você.

   Liliana lançou-lhe um olhar incrédulo.

   - Paciência?! Comigo?

   - Ora, seu marido poderia tê-la forçado, como sabe. É direito dele.

   - Mas Kyryan me forçou! - ela rebateu com veemência.

   A amiga mais velha sacudiu Ia cabeça.

   - Talvez ele tenha sido um pouco rude, mas deteve-se quando viu que você não o queria.

   Por alguns instantes, Liliana quedou-se em silêncio, absorvendo o que acabara de ouvir. Então, curvou-se para a frente e indagou em tom de conspiração:

   -O que deveria ter acontecido na nossa noite de núpcias?

   Antes que lady Eleanor pudesse responder, ambas ouviram a voz tonitruante de Sir Nevil e os passos dos dois homens entrando no salão.

   - Creio que seu marido gostaria de levá-la para casa agora. ¬- A amiga ponderou, relutante. Então, abriu um largo sorriso, como que inspirada por alguma idéia repentina: - Julgo que â melhor pessoa pára sanar suas dúvidas e instruí-Ia sobre esses, assuntos é Kyryan Morgan. Pergunte tudo a ele!

  

   Durante a viagem de volta ao castelo, Liliana tentou diversas vezes abordar o assunto que a preocupava. Ia tentar mais uma vez, quando um homem pulou do galho de uma árvore à frente deles. O desconhecido ergueu-se de imediato, postando-se, de pernas abertas, no meio da estrada, contemplando-os com expressão indecifrável.

   Liliana puxou o freio, detendo a montaria. Ouviu um ruído me¬tálico quando Kyryan desembainhou a espada. De súbito, vários ou¬tros homens saíram das sombras da floresta, deslizando para as mar¬gens da trilha com a agilidade silenciosa dos felinos. Embora mal¬trapilhos, estavam armados até os dentes.

   Ela olhou de soslaio para o marido, que se mantinha sereno sobre o cavalo, com a espada cruzada sobre o colo.

   - Boa tarde - Kyryan saudou-os com frieza, vigiando aquele que saltara da árvore. Tratava-se, provavelmente, do líder.

   Com discrição, Liliana conduziu a égua para mais perto do marido, em busca de sua proteção.

   O suposto líder do bando respondeu num idioma que ela reco¬nheceu como Gaulês. Kyryan replicou em tom descontraído, mas não guardou-a espada.

  

   Ivor fitou-o com expressão carrancuda. O homem diante de si sabia com quem estava falando. Ainda assim, tratava-o como a um servo.

   - Eu precisava certificar-me da veracidade do que o povo anda comentando por aí. Que um traidor agora é o senhor do castelo.

   - Não sou traidor.

   - Você é vassalo de um suserano normando, pertence a ele.

   - Não pertenço a ninguém. Apenas, devo fidelidade a lorde Trevelyan.

   - E casou-se com uma normanda - Ivor acusou-o, aproximan¬do-se. Em seus lábios, desenhava-se um sorriso desagradável. ¬Não que o culpe por isso. A potranquinha aí não é de se jogar fora... está madurinha como fruta no pé e...

   Ivor não conseguiu concluir a frase. Numa fração de segundo, Kyryan desmontou e lançou-se contra seu ofensor, agarrando-o pelos cabelos enquanto encostava aponta da espada em sua garganta.

   - Reúna seus homens e saia das minhas terras! - Morgan or¬denou, cuspindo as palavras com fúria.

   Ele vociferou algumas poucas palavras para o bando, que se dis¬persou, ocultando-se por entre as árvores. Voltou os olhos para a lâmina da espada, mas não se moveu.

   - Estas terras pertenciam a nós, não aos normandos.

   Morgan afastou a espada ligeiramente.

   - Podia ser um de nós, Kyryan ap Morgan. Com a ajuda de homens como você, expulsaríamos os invasores daqui no prazo de um ano.

   Com a espada, Kyryan apontou para a floresta.

   - Vá! Senão, eu o matarei por assustar minha esposa.

   Ivor fitou Morgan nos olhos e correu para a floresta.

  

   Liliana contemplou o marido, que voltava a montar em seu cavalo com uma expressão fria, difícil de decifrar.

   - Pensei tê-lo ouvido afirmar que os bandidos haviam partido - observou, tentando não demonstrar o medo que a corroia.

   - Eu estava enganado.

   - Obviamente.

   - Não há o que recear da parte deles.

   - Não?

   - Foi o que eu disse.

   - Sofremos uma emboscada de um bando de salteadores que se ocultam nos galhos das árvores, você ameaça o líder com a espada, mas este não se mostra muito impressionado, e ainda espera que eu acredite que nada temos a temer?

   - Foi o que eu disse - Kyryan repetiu com obstinação.

   - Quem era aquele homem? .

   - Ele não nos fará mal.

   - Você sabe quem ele era, não sabe? - Liliana insistiu.

   - Sim, mas isso não importa.

   - Kyryan Morgan, exijo que me conte o que aconteceu. Não sou uma criança para receber tapinhas tranqüilizadores nos ombros e conselhos para não me preocupar.

   - Não há nada para contar. O homem fez-me uma proposta, que eu recusei. Ameacei-o com a espada porque não gostei do jeito como ele olhou para você.

   - Está escondendo alguma coisa de mim. Por quê?

   Kyryan fitou-a de relance.

   - Duvido que entenderia.

   - Como poderia, se não falo seu idioma e você, não me diz nada? Talvez eu devesse consultar um vidente para descobrir o que, ocorre dentro dos limites do meu castelo.

   Kyryan ignorou o sarcasmo, do comentário.

   - O bando deixará as florestas.

   - Como pode ter certeza?

   - Porque tenho!

   Liliana esporeou a égua, induzindo-a a um galope furioso.

   Soltando uma imprecação, Kyryan pressionou os flancos do cavalo e seguiu-a. Perseguiu-a pela estrada, mas a égua era mais leve e, conseqüentemente, mais veloz. Além disso, a esposa revelava-se uma excelente amazona, logrando manter-se bem à frente sem nenhum esforço aparente.

   Ele ignorava por que motivo fazia questão de alcançá-la e o que lhe diria, caso conseguisse. Assim, afrouxou as rédeas e diminuiu o passo do animal que, visivelmente aliviado, voltou a trotar, e imer¬giu em dolorosas reflexões.

   Não bastasse descobrir que se equivocara ao supor que as florestas não ofereciam perigo, o que era bastante ruim, ainda acabou por constatar que o bando não tinha a menor intenção de ir embora, apesar de ter afirmado o contrário para Liliana.

  

   Minutos depois, alcançou a ponte e atravessou-a. Já não havia sinais da passagem de Liliana.

   Elwy o esperava no pátio, rodeado por um pequeno grupo de fazendeiros da região. Seus semblantes denunciavam ansiedade e preocupação.

   - O que houve? - Kyryan indagou, desmontando às pressas. Elwy chutou uma galinha que se encontrava perto de seus pés.

   A ave moveu-se como alguém que tivesse bebido um tonel de vinho, arrastando uma das asas pela terra. Então, Kyryan reparou que cada homem presente carregava uma galinha morta nos braços. Aflito, voltou o olhar para Elwy.

   O amigo balançou a cabeça lentamente.

   - Esta aqui não tem mais cura - comentou em tom de lamento. - E as outras... já morreram.

   Kyryan praguejou baixinho, sabendo que nada havia a fazer. A doença, que paralisava as aves, contaminaria todo o rebanho, sem contar que os pássaros a levariam para contagia os animais distantes dali.

Elwy aproximou-se.

   - As más notícias ainda não terminaram.

   Kyryan fitou-o com ar interrogativo.

   - Há um mensageiro de seu sogro aguardando-o no salão.

  

   Liliana cavalgava num estado de profunda agitação, enraivecida e frustrada pela teimosia do marido em esconder-lhe a verdade. Só lhe havia pedido uma explicação acerca do ocorrido na floresta, nada mais. Afinal, assustara-se terrivelmente com a emboscada. Fora tudo tão repentino, aquele bandido com ar insolente pulando da árvore no meio da estrada, os outros espalhan¬do-se ao redor, barrando o caminho... e todos a fitarem-na com um olhar tão concupiscente! Ora, tinha o direito de saber o que se passara!

   No entanto, em vez de contar-lhe, Kyryan refugiara-se numa ati¬tude obstinadamente evasiva, como se o incidente não fosse de seu interesse ou como se ela não possuísse capacidade para entendê-lo.

   Sob a fúria, porém, abrigava-se um sentimento ainda pior. Liliana experimentava um profundo desapontamento por não ser depositária da confiança do marido. Para ele, seu papel restringia-se ao de uma reles esposa, a quem a maioria dos homens negava o privilégio de participar e opinar sobre os acontecimentos que a envolviam.

   Atravessou o portão principal como um furacão e deteve a égua em frente ao estábulo. Desmontou apressada, entregando as rédeas ao cavalariço, disparou pelo pátio. Com o canto dos olhos, viu Elwy conversando com dois ou três servos, mas não parou para verificar do que se tratava.

   Naquele momento, só queria compreender os motivos de Kyryan para evitar que ela soubesse com exatidão o que se sucedera entre ele e o líder do bando. Uma razão que não fosse falta de confiança nela.

   Uma idéia cruzou lhe a mente e Liliana, absorta, caminhou com menor rapidez. Talvez Kyryan conhecesse aquele homem. Porque não? Afinal, ao que tudo indicava, o tal malfeitor também era gaulês. Ao menos, falava aquele idioma selvagem.

   Ninguém ignorava que vários grupos de rebeldes gauleses inva¬diam os limites dos feudos, e os senhores pouca ou nenhuma ajuda recebiam do Rei João para rechaçá-los. Claro que Kyryan não com¬pactuava com os fora-da-lei. Ao contrário, ele os desprezava. Além disso, jurara lealdade ao pai dela, um aristocrata normando.

   O tom irado com que se dirigiu ao bandoleiro, fossem lá quais fossem as palavras que lhe disse, demonstrou sem sombra de dúvida que, se o marido o conhecia, não era seu amigo nem aliado.

   Ao entrar no salão, ocorreu-lhe que devia ser terrível viver com um traidor.

   Derrick, um dos mais antigos e leais soldados de seu pai, aguar¬dava, de pé, no centro do aposento. Liliana nem tentou disfarçar a surpresa, mas esforçou-se para não franzir a testa ao perceber a expressão de incredulidade no semblante do velho soldado ao ob¬servar as más condições do interior do castelo.

   - Derrick - saudou-o com tranqüilidade - que prazer em vê-lo!

   Assustando-se, o homem voltou-se na direção dela, o rosto en¬rugado iluminando-se num amplo sorriso.

   - O prazer é todo meu, milady!

   - A que devemos a honra de sua visita? - Liliana indagou, indicando-lhe um banco perto de parede para sentar-se.

   - Fui encarregado de trazer isto, milady - o soldado respondeu, retirando um pergaminho de dentro da sacola de couro amarrada no cinturão.

   Liliana estendeu a mão para o documento, mas Derrick hesitou.

   - Lamento, lady Morgan - desculpou-se com evidente cons¬trangimento, - mas fui instruído para entregá-lo a seu marido.

   - Naturalmente - ela aquiesceu com um sorriso contrafeito.

   Não estranhava que, sob a ótica masculina, ela não passasse de um apêndice de menor importância do marido. Contudo, não esperava uma atitude dessas do próprio pai.

   - Como está papai?

   - Muito bem, graças aos céus.

   - Os convidados do casamento já partiram?

   Derrick balançou a cabeça, sorrindo.

   - Com exceção dos Beaumare.

   Liliana retribuiu o sorriso. Devia ter adivinhado que Averil e o idiota que a desposara seriam os últimos a deixar o confortável castelo de lorde Trevelyan e sua generosa hospitalidade.

   - E quanto à sua jornada? Algum problema no caminho?

   - Não, de forma alguma. Saí bem cedinho, antes de o sol nascer, e o tempo revelou-se muito agradável para uma boa cavalgada.

   Subitamente, as portas principais se abriram e Kyryan entrou no aposento. Liliana e Derrick ergueram-se de imediato. Kyryan cum¬primentou o visitante com uma inclinação de cabeça.

   - Meus cumprimentos, milorde - o soldado saudou-o com re¬verência. - Lorde Trevelyan pediu-me para entregar-lhe este per¬gaminho.

   Kyryan segurou o documento.

   - Obrigado. Alguma coisa urgente? - inquiriu com secura, ig¬norando deliberadamente a presença de Liliana.

   - Acredito que não, senhor.

   Por fim, Kyryan resolveu lançar um olhar à esposa. Seu semblante, porém, permanecia gélido.

   - Já ofereceu uma taça de vinho a nosso hóspede?

   - Ia fazê-lo neste momento - ela mentiu com candura. Na verdade, o conteúdo da mensagem aguçava-lhe tanto a curiosidade que até se esquecera de seus deveres como anfitriã. Pensar que Ky¬ryan Morgan, o homem mais sem modos que já conhecera, precisou chamar-lhe a atenção a respeito de etiqueta! Quanta ironia! - Se me derem licença, vou pedir a Jhone que lhes sirva algo para beber e avisar Sara que temos um convidado para a ceia.

   Liliana quase voou pelo corredor, na direção da cozinha. A ten¬tação de voltar e espionar o salão era quase irresistível. Será que Kyryan já abrira o documento?

   Contudo, o orgulho ajudou-a a conter o impulso. Com toda a dignidade, entrou na cozinha e deu as ordens necessárias para as criadas.

   Quando retomou ao salão, poucos minutos mais tarde, não en¬controu nem o marido nem o visitante.

   - Oh, homens!... - resmungou, pousando as mãos nos quadris.

  

   A mensagem de lorde Trevelyan encontrava-se guardada no cinturão de Kyryan desde o momento em que a guardou ali, antes de levar Derrick para ver as ovelhas. Sentia como se o pergaminho lhe queimasse a pele, pois ainda não vislumbrava um meio de desco¬brir-lhe o conteúdo sem pedir a Liliana que o lesse. Não podia dar-se ao luxo de ignorar um comunicado do suserano e sogro, mesmo que não se tratasse de algo urgente, mas também não desejava revelar à esposa a extensão de sua ignorância.

   Elwy soltou uma gargalhada sonora, atraindo-lhe a atenção de volta à conversa. Kyryan reprimiu o ímpeto de juntar-se ao amigo, acomodado na outra extremidade da mesa, pois seria uma descortesia para com Liliana e Derrick. Não que isso o incomodasse muito, pois, além de não atribuir grande importância à etiqueta, arrogava-se o direito de fazer o que bem entendesse dentro da própria casa. Contudo, não desejava ofender nem o convidado nem a esposa.

   Liliana inclinou-se em sua direção. Kyryan sabia que ela apenas tentava aproximar-se mais de Derrick, que lhe esmiuçava os detalhes da mais recente briga entre o casal Beaumare, mas não conseguia impedir-se de reagir ao toque suave de seu ombro no braço dele. Na verdade, era como se o braço se incendiasse, espalhando ondas de calor ao longo do corpo inteiro.

   Aparentemente, porém, a esposa nem se apercebia da perturbação que lhe provocara. Interessada no assunto que a divertia, aconche¬gava-se ao marido sem sequer dar-se conta disso.

   Kyryan encolheu-se para trás, fugindo ao contato e Liliana, então, dardejou-lhe um olhar inescrutável. Num gesto instintivo, ele sacudiu os ombros de leve. Já possuía problemas demais para resolver e não podia perder tempo preocupando-se como que a esposa pensava ou deixava de pensar.

   Fechou a mão em torno do pergaminho, alisando-o num movi¬mento distraído até romper-lhe o lacre de modo inadvertido. Largou-o e alcançou a taça de estanho. Sorveu um gole de vinho, tentando apaziguar a inquietação. No dia seguinte, encontraria um jeito de decifrar a mensagem de lorde Trevelyan. De nada lhe adiantava agitar-se daquela maneira. Precisava agir e com toda a discrição.

   Naquele exato instante, Liliana voltou o rosto em sua direção.

   Um profundo aborrecimento ensombrecia-lhe o semblante.

   - Desculpem, mas sinto-me exausta. Vou para a cama - ela anunciou.

   Cama? Como gracejo, não era ruim. Afinal, ela iria deitar-se sobre o chão frio e pétreo do quarto, como acontecia todas as noites.

   Liliana aproximou-se do marido.

   - Com certeza você ficará até de madrugada bebendo com os amigos. Será que poderiam fazer menos barulho, só para variar?

   - Prometo esforçar-me para não perturbar o seu sono - ele replicou com, um sorriso encantador.

   Um ar de confusão estampou-se por um segundo em seu olhar, o que causou grande satisfação a Kyryan. Embaraçada, ela virou-se para o convidado.

   - Eu lhe desejo uma boa noite, caro Derrick.

   - Durma bem, milady - o velho soldado respondeu.

   - Um bom repouso, meu amor - Kyryan murmurou.

   A esposa fitou-o com severidade e girou nos calcanhares para retirar-se.

   Ele convidou Elwy para cantar outra balada. Então, encheu a taça com vinho.

  

   No dia seguinte, escandalizada, Liliana esquadrinhou o salão em desordem. De súbito, visualizou um pergaminho caído sob um ban¬quinho e reconheceu a chancela de seu pai.

   Com cuidado, caminhou por entre as taças e homens que jaziam sobre as pedras e alcançou o papel. O selo já havia sido rompido! Liliana desenrolou o documento e leu-o o mais depressa que pôde.

   Abalada, contemplava o pergaminho quando ouviu um vozerio vindo do corredor que conduzia à cozinha. Uma das vozes pertencia a Kyryan, mas a risadinha estridente.

   Enfurecida, Liliana caminhou na direção dos ruídos. Ao chegar à cozinha, parou, chocada com o que se deparou. O marido, ajoe¬lhado, tinha o rosto distante apenas poucos centímetros dos seios de Maude.

   - O que está acontecendo aqui? - Indagou sem esconder a raiva.

   Kyryan pestanejou, parecendo um tanto zonzo.

   - Eu bati a cabeça.

   Com o rosto enrubescido, Maude fitou a irada patroa.

   - É verdade, milady - a criada tartamudeou. - Eu estava limpando o ferimento na testa. - Vê? - ela mostrou uma toalha en¬sangüentada.

   Liliana deu alguns passos para a frente, reparando pela primeira vez em Sara, que observava a cena com ar aflito.

   - Voltem ao trabalho! - ordenou para as duas.

   Maude largou a toalha e retirou-se num piscar de olhos. A co¬zinheira começou a lavar uma travessa de prata.

   Aproximando-se do marido, Liliana examinou-lhe a testa com atenção. De fato, havia um corte junto ao couro cabeludo, de onde um filete de sangue ainda escorria.

   - O que houve?

   Kyryan ergueu-se, num movimento um tanto desequilibrado, e sentou-se num banquinho.

   - Eu caí.

   - Este é um dos riscos que um homem corre quando se embriaga - Liliana observou com, azedume. Então, estendeu o pergaminho.

   - Por que não me falou sobre isto?

   Mal-humorado, Kyryan segurou-lhe o braço e levantou-se.

   - Vamos lá para fora. Não gosto de discutir nossos assuntos na frente de estranhos.

   Num esforço para ganhar tempo, conduziu-a para o pátio. Elwy, roncando tão alto quanto Derrick, dormia no chão, alheio aos perigos de se expor ao ar gelado da madrugada.

   Liliana torceu o nariz com desgosto.

   - Ele, sempre gostou de dormir ao relento - Kyryan comentou.

   - Bem, qual é o problema, desta vez?

   - Por que não me contou?

   Kyryan fitou o pergaminho de relance, tentando raciocinar a des¬peito de sentir-se como se um cavalo lhe tivesse chutado a cabeça.

   - Por que está tão preocupada?

   - E ainda, pergunta o motivo? Porque mal teremos tempo para ajeitar as coisas, ora essa! - ela exclamou com impaciência.

   - Que coisas?

   - O castelo, para começar. Não espera que meu pai durma no salão ou na cozinha, com o resto dos homens. E o que me diz de lorde Beaumare e a esposa? Devemos acomodá-los no celeiro?

   Kyryan piscou, finalmente compreendendo. Era esta a mensagem de lorde Trevelyan. Ele e os Beaumare viriam visitá-los. Mas quando?

   - Creio que um mês é suficiente para...

   - Se dispuséssemos de um mês, o que não é o caso, eu concor¬daria. É óbvio que você não leu a carta com atenção. Eles chegarão dentro de quinze dias.

   Kyryan sufocou um gemido. Quinze dias - e seu sogro viria para verificar se ele estava tratando bem a sua filhinha mimada!

   - Quero todos os homens trabalhando na colocação do piso do andar superior - Liliana declarou com determinação. As paredes precisam ser caiadas, e necessitamos demais mesas e bancos, para não mencionaras camas e...

   - Não - Kyryan interrompeu-a. Por mais que desejasse im¬pressionar lorde Trevelyan, havia tarefas mais importantes, que não poderiam ser adiadas. - Empenhei minha palavra a Sir Nevil que lhe mandaria homens para o abate do gado.

   - Meu pai não pode dormir no salão! - Liliana insistiu, cruzando os braços e encarando-o com obstinação. - Além disso, você e seus homens não podem passar as noites cantando aquelas canções gaulesas idiotas, pois eu...

   Kyryan aproximou-se tanto que quase encostava a ponta de seu nariz no dela.

   - Você o quê?

   De repente, Elwy resmungou alto, sentando-se no chão.

   - O' r annwyl! Não me divertia tanto desde o torneio em Londres! - exclamou em Gaulês. Então, com um sorriso bem-humorado, ergueu o rosto para o casal que o contemplava. - Excelente hos¬pitalidade, Kyryan Morgan! Você é o orgulho de Gales - exclamou antes de deitar-se novamente. - Só preciso descansar um pouco para ficar novinho em folha!

   Kyryan enlaçou os ombros de Liliana com força, levando-a para longe de Elwy.

   - Eu sou o amo e senhor aqui - declarou entre os dentes. ¬Eu determino aonde os homens vão e o que devem fazer. Se você e seu pai julgam que o salão não é confortável o bastante, então os dois podem instalar-se no celeiro. Ou no estábulo. Até mesmo na floresta, se preferirem. Para mim, é indiferente. Eu tenho um castelo para administrar, querida esposa. Ao meu modo. Ficou claro?

   Enquanto observava o marido afastar-se, Liliana sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Quem ele pensava que era para falar-lhe naqueles termos? E como se atrevia a referir-se com tanta descortesia ao pai dela, que, no final das contas, fora quem propiciara a Kyryan Morgan a possibilidade de tomar-se "amo e senhor" da propriedade? Doía-lhe, também, a incerteza sobre ó que acontecera entre Kyryan e Maude.

   - Milady? - Jhone chamou-a da porta do salão.

   - Sim?

   - Devo servir o desjejum? Os homens estão...

   - Dormindo como porcos num curral. Eu sei - Liliana franziu a testa. - Eu vou à missa. Quando voltar, quero todos fora da minha sala!

   Liliana ergueu as mãos para baixar o véu e percebeu que o havia esquecido. Voltou-se para buscá-lo antes de dirigir-se à capela.

   Prendendo o tecido leve e transparente nos cabelos, considerou que, se Kyryan Morgan era o grande senhor, ela era, a grande senhora. Conhecia seus deveres. Um deles consistia em providenciar acomodações razoáveis para seus hóspedes, e ela o cumpriria, com ou sem a ajuda do marido.

  

   No final da manhã, Liliana despediu-se de Derrick, encarregando-o de transmitir a lorde Trevelyan o recado de que ela e o marido ficariam encantados com a visita dele e dos Beaumare. Depois que o velho soldado partiu, foi a procura de Elwy.

   Aparentando ter-se recuperado da ressaca e da noite ao relento, Elwy trabalhava na reconstrução da muralha com toda a disposição. Kyryan, felizmente, não se encontrava em parte alguma. Liliana sor¬riu. Sabia o que precisava ser feito e não desejava interferências de qualquer tipo.

   - Procurador, necessito dos seus préstimos.

   Elwy voltou-se para encará-la.

   - Seu marido foi até o moinho, milady - ele informou em tom respeitoso. - Para ajudar a recolocar a pedra de amolar no lugar.

   Liliana reparou que, quando se dirigia a ela, Elwy não demonstrava a mesma espontaneidade com que tratava todos no castelo. Esse detalhe agradou-a sobremaneira.

   - Sei.

   - Quer que eu vá buscá-lo?

   - Não, muito obrigada. O andar superior deve ser refeito o quanto antes. Mande alguns homens para lá imediatamente.

   - Bem, milady, os rapazes e eu temos que terminar esse trecho da muralha hoje. Ordens de Kyryan, a senhora compreende e... Liliana ignorou o aparte e ordenou:

   - Ordeno que fique pronto no domingo, sem falta.

   Farejando problemas, Elwy coçou a cabeça.

   - Mil perdões, senhora, mas não poderemos ajudá-la hoje.

   - Quer dizer que não farão o serviço... - Liliana replicou, franzindo a testa.

   - Quero dizer não podemos fazê-lo - Elwy argumentou com uma ponta de desafio na voz.

   Por um segundo, Liliana fitou-o nos olhos com fúria contida.

   - Está muito bem - aquiesceu, admitindo a derrota com dig¬nidade. Girou nos calcanhares e quase colidiu com Jhone.

   - Não olha por onde anda? O que deseja? - indagou, agastada, enquanto Elwy retomava à muralha.

   - Eu posso colocar as vigas e o piso, milady. - Jhone declarou com simplicidade.

   - O quê? Como assim?

   - Disse que posso reconstruir o andar de cima - a criada insistiu. - Meu pai era carpinteiro e eu costumava auxiliá-lo, antes dele morrer.

   - Mas... você não teria força suficiente para carregar as pranchas.

   Pela primeira vez desde que conhecera a moça, Liliana viu-a sorrir.

   - Tenho, sim - a criada rebateu, os olhos brilhando de deter¬minação. - E conheço alguém que providenciaria às vigas. A se¬nhora nada terá a perder, se me deixar tentar.

   Liliana examinou com atenção a serva diante de si, notando a musculatura poderosa dos braços. Quiçá ela se revelaria forte o su¬ficiente para o trabalho. Aquelas camponesas trabalhavam duro, desde pequenas, tomando-se quase tão vigorosas quanto os homens. E, se o pai de Jhone havia sido carpinteiro, decerto lhe ensinara, os segredos de seu ofício. Afinal, não devia ser difícil construir um piso.

   Além disso, a moça talvez lograsse poupá-la da humilhação de receber as visitas sem oferecer-lhes um mínimo de conforto. E da vergonha de mostrar a Averil Beaumare um castelo em ruínas.

   - Está certo, dou-lhe minha autorização - Liliana concordou.

  

   Maude contemplou a desordenada pilha de tecidos sobre o leito de sua ama.

   - O que pretende milady? - perguntou-lhe quando Liliana re¬tirou outra pilha de dentro de uma das arcas.

   - Eu devia ter, adivinhado que meu pai me faria uma surpresa dessas! - Ela exclamou, triunfante. - Ele me contou quantas peças de linho comprara para o meu enxoval, mas eu nem desconfiei que houvesse muitos mais. Na verdade, quase o dobro!

   - É, parece que lorde Trevelyan exagerou um pouco. Pensativa, Liliana fitou a criada.

   - A maioria não foi bordada nem tem bainha, sem dúvida porque não deu tempo, já que meu noivado durou apenas um mês. Teremos que correr para aprontarmos tudo dentro do prazo.

   - Prazo? Que prazo?

   - Receberemos hóspedes dentro de quinze dias - Liliana co¬municou-lhe.

   Maude arregalou os olhos, surpresa.

   - Quem?

   - Papai e os Beaumare. Precisaremos de muita guarnição de cama e de mesa.

   Soltando uma de suas costumeiras risadas, a jovem comentou:

   - Especialmente de mesa, pois lorde Beaumare vive derrubando vinho sobre as toalhas.

   Liliana franziu a testa.

   - É verdade. Também teremos que providenciar tapetes para o andar superior.

   - Ah, mas não haverá andar superior. Está em cima da hora e...

   - E nós atingiremos o objetivo. Basta que nos concentremos nas tarefas e esqueçamos os homens.

   Maude corou violentamente.

   - Ouça, milady, ele cortou a testa e pensei que... devesse lavar o ferimento para...

   - É claro, Maude - Liliana aquiesceu, ordenando as peças de linho pelo tamanho. - Admito que meu temperamento seja um tanto... explosivo. Eu tendo a zangar-me com muita facilidade. Tra¬ta-se de um defeito que procuro sempre corrigir, embora com pouco sucesso.

   A criada baixou o olhar, constrangida.

   - Tome esta peça de linho e comece a bordá-la - Liliana es¬tendeu-lhe o tecido alvo. - É imprescindível que aprontemos tudo em tempo.

   - Sim, milady - Maude concordou num fio de voz. Em seu íntimo prometeu a si mesma meter-se o mais longe possível do marido de sua ama.

  

   - Maldita pedra! - Kyryan praguejou em altos brados ao tentar empurrar a pedra de moinho para o lugar.

   Ao redor dele, outros homens resmungaram imprecações em Gau¬lês, Saxão e Normando enquanto, num esforço conjunto, imprimiam toda a força para mover a pesada mó.

   -Está indo! Mais um pouco, agora! - Jack, o moleiro, gritou empoleirado sobre a viga colocada sobre a mó para encaixá-la no lugar. - Pronto! Conseguimos!

   - Pelas chagas de Cristo, já era hora! - Kyryan murmurou, ofegando. Vestiu a túnica velha e rasgada e espanou a poeira das sobrancelhas e do peito nu. Embora o dia estivesse frio, todos os trabalhadores dentro do moinho haviam despido as túnicas enquanto consertavam a engrenagem e recolocavam a mó.

   - Agora posso começar a trabalhar - Jack se regozijou. ¬ Muito obrigado a todos.

   - Só não quero descobrir que você está trapaceando comigo. - Kyryan replicou, franzindo a testa.

   O moleiro corou de indignação.

   - Jamais trapaceei, isso é uma deslavada mentira! - protestou com veemência até perceber que o amo estava brincando.

   Kyryan fitava-o com um sorriso travesso.

   - Atenção, pessoal! Nossa próxima tarefa é tomar uma boa ca¬neca de cerveja! - Bradou, cercado de "hurras" por todos os lados.

   - Nós bem que merecemos. Todos para o salão neste minuto!

   Eufóricos, os trabalhadores seguiram-no até o castelo.

   Com satisfação, Kyryan notou que a reconstrução da muralha se adiantara bastante naquele dia, graças à competente supervisão de Elwy. Não fazia idéia de onde o capataz encontrava-se, mas havia mulheres e crianças no pomar colhendo maçãs, de forma que Ralf devia estar lá.

   Enquanto atravessava o portão, acenou em saudação para Elwy, para os pedreiros e preparadores de argamassa. Então, quase esbarrou numa pilha enorme de toras junto da entrada principal do salão.

   - O que é tudo isto? - gritou para Elwy.

   O amigo aproximou-se correndo.

   - Não fui eu que coloquei as toras aí. Esta manhã, sua esposa mandou aquela criada feia como a peste ao vilarejo. Pensei que ela fosse comprar víveres no mercado, mas a diaba voltou com uma carroça carregada com essa tralha. O carroceiro era um velho que eu nunca tinha visto antes. Quando lhe perguntei do que se tratava, ele respondeu que fora informado por Jhone que a senhora neces¬sitavam de pranchas, e que lhe fora ordenado que cortasse árvores da floresta para fazê-las. Olhe, lá vem ele.

   Os dois amigos observaram boquiabertos, quando o homenzinho, pequeno e tão franzino que qualquer brisa poderia carregar para longe, puxou uma tora grande e pesada da carroça e colocou-a no chão com cuidado. Em seguida, arrastou-a com agilidade. Espalhados sobre a pedra, a poucos passos de distância, havia uma porção de pregos e um martelo. Era evidente que o homem estava rachando a lenha para transformá-la em pranchas.

   - Vá chamar Ralf - Kyryan ordenou intrigado.

   Elwy balançou a cabeça e saiu em disparada. Kyryan contemplava o trabalho do velho com verdadeiro fascínio. Apreciava a habilidade e eficiência com que manejava as ferramentas e tentava decifrar o significado das palavras que ele resmungava enquanto desempenhava sua tarefa.

   Então, Ralf chegou.

   - Desculpe milorde, ninguém me contou que...

   - Onde você se enfiou o dia inteiro?

   - Fui ao vilarejo. Agora porém, ajudava acolher frutas no pomar. - o capataz explicou, ofegando. Seus olhos estreitaram-se ao notar a presença do homem. - O que Wynn está fazendo aqui?

   -Prefiro saber por que ele ainda não tinha vindo trabalhar no castelo - Kyryan rebateu. - Jamais encontrei alguém mais ligeiro nesse serviço. Por que esse homem não foi empregado no moinho, ou mesmo no celeiro?

   - Bem, senhor, o homem ficou um tanto fraco da cabeça, como pode perceber, por isso pensei que...

   - Ele é um excelente carpinteiro, talvez o melhor que já vi.

   - Mas onde eu o colocaria? - Ralf argumentou em tom falsa¬mente submisso.

   - Deixe-o continuar com o que está fazendo - Kyryan respon¬deu, demonstrando certa irritação, - até segunda ordem.

   - Muito bem, se é o que deseja.

   - É sim.

   - Alguma outra ordem, senhor?

   - Comunique aos servos que o moinho começará a funcionar depois de amanhã. O imposto permanece o mesmo.

   - O mesmo?! Mas, milorde, com toda a despesa extra de reparos, e...

   - Eu disse que o imposto não sofrerá alterações.

   Ralf balançou a cabeça, aquiescendo.

  

   Se Kyryan percebeu o andaime que Jhone construíra ao longo do dia, não teceu nenhum comentário a respeito. Tampouco mencionou o trabalho que se desenvolvia, numa azáfama, no interior do castelo.

   Nem naquele dia, nem no seguinte ou em qualquer outro. Era como se não enxergasse o que acontecia a seu redor.

   Liliana procurou convencer-se de que apreciava a indiferença do marido, que se estendia a todos os assuntos relacionados a ela, pois, assim, tinha liberdade para agir sem sua interferência. Contudo, reconhecia que o observava com atenção sempre que ele se aproximava, em especial se conversasse com alguma mulher. Uma ou duas vezes Kyryan surpreendeu-a espionando-o e quase desfaleceu de embaraço, como se, dos dois, fosse ela a pessoa interessada em arranjar um amante.

   Além disso, seu humor revelava-se pior do que nunca. Liliana vivia tomada por uma profunda ansiedade, o que a tornava facilmente irritável. Entretanto, desculpava-se porque não era fácil lutar contra o tempo. Em breve, seu pai chegaria e só Deus sabia em que condições encontraria o castelo.

   Em conseqüência, Liliana percebeu que todos a evitavam, temendo um acesso de raiva. Não que isso a incomodasse. A única coisa que lhe importava era concluir a restauração do andar superior.

   No quarto dia, Liliana foi ao pátio para verificar se Wynn pre¬cisava de mais toras para o piso. Viu o cavalo de Kyryan selado, aguardando o dono perto do estábulo. Um pequeno grupo de homens, já montados, também parecia esperar.

   Enrugando a testa, ela imaginou aonde o marido pretendia ir.

   - Vamos caçar raposa - disse Kyryan, como se lhe adivinhasse a pergunta, declarou em tom casual, por trás dela.

   Assustando-se, Liliana virou-se em sua direção. Os cabelos negros esvoaçavam, movidos pela brisa suave, e seu rosto mostrava-se ver¬melho por causa da baixa temperatura do outono.

   - Gareth acha que deve haver uma porção deles na colina¬ - o marido acrescentou.

   Uma mecha dourada escapou de sob a touca de Liliana. Kyryan estendeu a mão e tirou-a da testa da esposa num gesto delicado, quase carinhoso.

   - Você está tremendo...

   - É o frio - ela mentiu, percebendo, para seu desgosto, que corava. - Quando vocês voltarão?

   - Tarde - ele aconchegou o manto em torno dela, agasalhando-a. Seus lábios se curvaram mim sorriso cativante. - Ficou mais quentinho?

   - Sim - Liliana murmurou expectante. Talvez Kyryan se apro¬ximasse mais e a beijasse!

   Mas ele não o fez. Ao contrário, afastou-se e, subindo em sua montaria, reuniu-se aos homens.

  

   Liliana entrou na cozinha com o semblante tão altivo como se fosse a rainha em pessoa.

   - Sara - dirigiu-se à cozinheira em tom tranqüilo, ignorando as outras duas criadas, - meu marido e alguns dos homens saíram para caçar e só retomarão no final da tarde. Portanto, deverá preparar o almoço para um número menor de pessoas, entendeu?

   Só então Liliana voltou-se para as jovens que a fitavam com os olhos esbugalhados.

   - Suponho que já adiantaram bastante às tarefas que lhes destinei, já que podem dar-se ao luxo de desperdiçar o tempo com tagarelices.

   Em seguida, virou-lhes as costas e retirou-se.

  

   A lua já se exibia no meio do céu quando Kyryan e os compa¬nheiros regressaram de sua bem-sucedida caçada.

   Gareth tinha razão, pois localizaram e abateram muitos filhotes de raposa que poderiam ter devorado as valiosas ovelhas. Depois de dar cabo do perigo, os homens beberam cerveja juntos, para ce¬lebrar.

   Exausto, Kyryan ansiava por dormir, embora a perspectiva de deitar-se sobre, as pedras geladas do chão não o animasse. Além disso, considerava absurdo que, a poucos metros; no mesmo quarto, jazesse a mulher mais linda e atraente que já vira e ele não pudesse tocá-la, apesar de tratar-se da própria esposa.

   Nos dias anteriores, quase cedera à tentação de buscar um meio de superar suas diferenças com Liliana. Muitas vezes, ele, Kyryan ap Morgan ap Janto, tinha chegado perigosamente perto de pedir perdão, como se fosse o único responsável pelo distanciamento entre ambos.

   Refinada tolice. Ela era demasiado arrogante é orgulhosa, além de autoritária, e não merecia que se desculpasse por erros que não cometera.

   Por outro lado... ah, como a desejava! Precisava exaurir todas as forças no trabalho para conseguir conciliar o sono, à noite. Sabia que Liliana não era feliz, embora fingisse o contrário, encerrada por livre e espontânea vontade na "torre" que construíra para si mesma e que a isolava do resto do mundo. Contudo, não imaginava o que poderia fazer para ajudá-la. Em vez de bancar o tolo, seduzindo-a como se fosse uma mulher qualquer e não sua solitária esposa pre¬ferira manter-se a uma respeitosa distância até adquirir alguma con¬fiança nos sentimentos dela.

   Os companheiros auguraram-lhe uma boa noite e recolheram-se ao dormitório, um galpão que haviam acabado de construir com essa finalidade.

   Kyryan encaminhou-se para o salão, curioso para descobrir o que encontraria. Cada hora que entrava no aposento, maravilhava-se com o progresso do trabalho de Jhone. A moça demonstrava habilidade maior do que a de muitos carpinteiros, e os homens enviados pelo barão DeLanyea estavam mais impressionados do que admitiam. Quanto a Maude, pouco a via, mas fora informado por Elwy que ela passava cada minuto do dia bordando toalhas e lençóis de linho.

   Kyryan franziu a sobrancelha. A jovem tinha sido tão... amigável... não entendia por que, de repente, decidira retrair-se e sumir de vista. Ou ela percebera que ele não sentia o menor interesse por seus "favores" e se constrangera, ou Liliana repreendeu-a depois de sur¬preendê-la limpando o corte em sua testa.

   Um sorriso insinuou-se nos lábios de Kyryan. Preferia a segunda hipótese, pois significaria que a esposa se enciumara. Ciúme era uma qualidade que apreciava nas mulheres.

   Empurrou a pesada porta de madeira maciça e entrou, examinando o salão com admiração. Metade das vigas do andar superior já havia si dó colocada. Liliana estava certa. As paredes lá em cima ficariam bem mais bonitas se fossem caiadas. Talvez pudesse dispor de um homem ou dois para ajudar a completar o trabalho.

   Quando seus olhos se ajustaram à penumbra, divisou um vulto ajoelhado e ouviu o barulho de um martelo. Aproximou-se, intrigado, para descobrir quem era aquela pessoa que trabalhava sob a luz da lua. Pelos cabelos compridos e pelo vestido, deduziu que se tratava de uma mulher. Contudo, não achou que fosse Jhone. A serva sabia manejar um martelo, o que não se podia afirmar sobre aquela criatura.

   A ferramenta escapou e caiu no chão. A trabalhadora misteriosa praguejou sem qualquer elegância, num palavreado próprio de cam¬poneses rudes. Embora as palavras não combinassem, aquela voz... Aquela voz pertencia a Liliana! Reconheceu-a de imediato. Seria capaz de distinguir-lhe o timbre cálido e sensual mesmo que uma multidão estivesse falando ao mesmo tempo.

   Ainda assim, custava-lhe crer que Liliana se submeteria àquele tipo de tarefa. Justo ela, tão altiva!

   Sem conter um sorriso divertido, encostou-se na parede, ocultando-se na sombra. Estaria sua esposa assim tão desesperada para concluir o andar superior?

   Bem, quiçá pudesse dispor de mais três ou quatro homens para satisfazer-lhe o capricho.

   O martelo tomou a escapulir. Dessa vez, Liliana gemeu e esfregou o polegar.

   Kyryan correu em sua direção.

   - Você se machucou?

   Ela ergueu a cabeça, assustada, ao vê-lo ajoelhado a seu lado.

   - Por que voltou tão cedo? - indagou sem esconder o aborre¬cimento.

   - Cedo?! Já passa de meia-noite. Deixe-me examinar esse dedo.

   Liliana, porém, esquivou-se.

   - Não foi nada.

   - Deixe-me examiná-lo - Kyryan insistiu.

   Com relutância, ela estendeu a mão e ele segurou-a com delica¬deza.

   - Não inchou nem ficou roxo, portanto creio que não se quebrou.

   - Eu disse que não era grave.

   Kyryan sentou-se no chão.

   - Por que está fazendo isso? - questionou, apontando para as pranchas.

   Com os cabelos soltos encobrindo-lhe o rosto, Liliana sacudiu os ombros com indiferença.

   - Alguém tinha que fazer.

   - Mas não você.

   Tomando a mover os ombros, ela evitou encará-lo.

   - Por que não olha para mim? O que há?

   - Nada. -Meu polegar dói, é só.

   Liliana mordeu o lábio carnudo.

   - Eu não consigo encaixar as tábuas direito - confessou a contragosto.

   Kyryan contemplou os pregos tortos que saíam das pranchas. Es¬tavam tão mal colocados que poderiam ser obra de um cego bancando o carpinteiro.

   Humilhada, ela esperava ouvir um riso de deboche do marido a qualquer instante, consciente do quanto ela e seu trabalho deviam parecer ridículos. Se ao menos tivesse percebido que já era tarde, teria largado martelo, pregos e pranchas antes de o marido retomar.

   Com amargura, refletiu que errara ao dar atenção aos mexericos das criadas. Sempre realizara as tarefas que lhe competiam. Que tolice, tentar executar um trabalho tão árduo, para o qual não fora treinada, só porque umas camponesas bobas ignoravam os verdadeiros deveres de uma dama.

   Em vez de rir, todavia, Kyryan apanhou o martelo e um prego.

   - Você não está empunhando a ferramenta do modo correto - explicou. Em sua voz não havia vestígio de zombaria. - Segure-a aqui, quase no final do cabo, e deixe o peso do ferro pressionar o prego. Assim, vê? - Kyryan martelou um prego à guisa de demonstração.

   Liliana observou com interesse.

   - Existe algo que você não saiba fazer? - indagou com falsa indiferença.

   - Pergunte a Elwy. Ele de certo enumerará uma porção de coisas. - Era claro que Kyryan replicaria com gracejos, pois não levava ¬nada a sério. Exceto quando se tratava de recusar-lhe um pedido. Nessas ocasiões, seu semblante tornava-se grave e sua argumentação soava irretorquível.

   Definitivamente, sua vida ia de mal a pior sob todos os aspectos. O casamento não passava de uma farsa, o castelo estava uma lástima, as criadas a odiavam.

   Acossada pelo sentimento de fracasso e de solidão, Liliana virou a cabeça, pestanejando. Contudo, o esforço para conter-se não foi suficiente e lágrimas quentes principiaram a escorrer-lhe dos olhos. Em breve, todo o seu corpo era sacudido por soluços incontroláveis.

   - Oh, Liliana... o que foi? - Kyryan perguntou-lhe com gen¬tileza. - Por que está chorando?

- Vá embora - ela bradou, enxugando as faces com as costas das mãos. - Por favor, vá embora!

   - Não irei a lugar nenhum enquanto não me disser qual é o problema.

   Teria sido fácil ignorá-lo se ele se mostrasse arrogante ou rude. Contudo, seu tom de voz revelava uma genuína preocupação. Liliana não achou o que dizer nem logrou reprimir o pranto convulsivo.

   Em silêncio, Kyryan enlaçou-a e começou a afagar-lhe os cabelos com uma ternura infinita.

   Por um instante, ela se permitiu desfrutar a inebriante sensação de estar aconchegada em seus braços fortes, a cabeça apoiada nos ombros largos.

   Quando reparou que o choro se acalmara, Kyryan sussurrou em seu ouvido:

   - O que a entristeceu assim? Por favor, conte-me.

   O arraigado hábito de ocultar a própria vulnerabilidade, que a mantinha isolada do mundo havia tantos anos, impelia-a a fugir da pergunta e a ignorar a ansiedade que lia nos olhos negros. Por outro lado, seu coração lhe suplicava que não perdesse aquela oportunidade, talvez a última, de tentar encontrar a verdadeira felicidade. O coração falou mais alto que o orgulho.

   - Eu não faço nada direito - queixou-se, sem retirar a cabeça de sobre o ombro do marido.

   - Não é verdade - Kyryan discordou, intensificando as carícias nas mechas douradas que se espalhavam pelas costas. - Graças a sua eficiência, as criadas estão realizando um bom trabalho no interior do castelo.

   Liliana, por fim, afastou-se. Não muito, apenas o suficiente para encará-lo.

   - Oh, sim. Sou perita na arte de dar ordens, mas...

   - Mas o quê?

   Ela desviou o olhar para o chão.

   - Ninguém gosta de mim - confessou.

   A declaração apanhou-o desprevenido. Jamais lhe ocorrera que Liliana pudesse preocupar-se com a opinião dos outros a seu respeito. Sempre a considerara altiva demais para isso.

   Ao mesmo tempo, reconhecia e apreciava a confiança que a esposa estava depositando nele. Naquele instante, algo mudava entre ambos e isso o inundava de alegria.

   - Ninguém a odeia - ponderou.

   - Tampouco me estima.

   Havia um tom de avassaladora tristeza em sua voz que o comoveu.

   Num impulso, puxou-a de volta para seus braços.

   - Eu a estimo muito.

   Liliana lançou-lhe um olhar entre incrédulo e esperançoso, mas não retrucou.

   - Sempre gostei de você - Kyryan prosseguiu com sinceridade. - Há anos eu a estimo.

   - Anos? Do que está falando? Só nos conhecemos no torneio de papai, há dois meses!

   - Só fomos apresentados nessa ocasião, mas eu já a conhecia, garanto-lhe.

   Ele percebeu que parte da tensão abandonou o corpo da esposa, que se aninhou em seu colo. Um calor agradável envolveu-o. Por um minuto, os dois permaneceram calados, abraçados sob o luar que se infiltrava pela janela.

   - Foi há muito tempo - Kyryan começou a narrar, rompendo o silêncio, - quando lorde Gervais organizou um torneio. Eu era escudeiro e você devia ter... hã... cerca de dez anos de idade. Era o dia de competição entre escudeiros. Já havia escolhido meu ad¬versário, um homenzarrão que parecia rico o bastante para garan¬tir-me um bom prêmio. Só que estava mais difícil derrotá-lo do que eu havia previsto. O grandalhão acertava-me golpes e mais golpes, e pensei que eu não resistiria. Então, vislumbrei uma garotinha numa árvore ali perto. Uma linda garotinha.

   Liliana suspirou de leve, mas não o interrompeu. Kyryan prosseguiu.

   - Todos sabem que não é permitido que mulheres e crianças assistam às provas, mas a menina havia subido num galho e de lá observava-me. Imagine, uma garotinha atrevida o bastante para de¬safiar até o poderoso lorde Trevelyan! Eu jamais havia visto aquela encantadora criaturinha de vestido azul antes.

   Kyryan fez uma pequena pausa antes de continuar.

   - Meu adversário aproveitou o segundo em que me distrai e desfechou-me mais um golpe, jogando-me no chão. Contudo, eu tinha consciência de que uma menina de cabelos dourados contem¬plava-me e preferiria morrer a desapontá-la. Assim, levantei-me e reagi, derrotando-o em poucos minutos. Orgulhoso da vitória, que pouco antes julgava impossível, virei-me para a minha musa inspiradora. Então, ela piscou um olho para mim. Qualquer outra mocinha teria sorrido, mas aquela... era diferente. Piscar o olho sig¬nificava cumplicidade, compreensão. Bem, eu apreciei o gesto e gostei dela por tê-lo feito. E ainda gosto - Kyryan concluiu com suavidade.

   O semblante de Liliana foi iluminado por um sorriso tímido.

   - Por que nunca me contou? Eu não sabia que o rapazinho era você estava com o elmo, não pude distinguir-lhe as feições. E, como, não tinha autorização, não compareci à festa ou a qualquer dos ban¬quetes em homenagem aos cavaleiros. Papai não julgava a companhia deles adequada para mim.

   - É por isso que você não se recorda do barão DeLanyea. Se o tivesse visto, jamais o esqueceria.

   - Você podia ter-me dito quando nos tomamos a encontrar.

   - Fiquei com vergonha.

   - Vergonha? Você?

   - Eu mesmo.

   - Mas... sempre o achei tão... autoconfiante!

   - Somos parecidos, não?

   Liliana surpreendeu-se.

   - Sim - concordou, pensativa -, somos. Engraçado... você disfarça muito bem a timidez.

   - É uma questão de prática.

   - Entendo. Afinal, o que é que você não faz com eficiência? Kyryan franziu a testa. Por um momento, ela julgou que o havia irritado. Mas, então, ele voltou a sorrir.

   - Embora seja desonroso para um gaulês confessar, eu... não tenho voz boa para o canto.

   - É mesmo?

   - Não precisa exibir esse ar de triunfo. Não saber cantar é um defeito sério, acredite.

   Fitando-o com ceticismo, ela comentou:

   - Seus amigos não utilizam essa falha contra você.

   - É verdade.

   - Além disso, você tem amigos - Liliana acrescentou melan¬cólica.

   Kyryan abraçou-a com mais força.

   - Eu seria seu amigo, se me permitisse - declarou com gentileza.

   Liliana ofegou com o beijo cálido que o marido lhe deu em se¬guida. Depois, contemplou-lhe o rosto iluminado pela lua, sentindo-se mais próxima dele do que já estivera de qualquer pessoa.

   - Eu não sei... conquistar amizades.

   - Talvez consiga, se abandonar essa máscara de auto-suficiência que afasta as pessoas. Deixe Jhone ensiná-la a trabalhar com as vigas para que possa ajudá-la. Admita que não sabe tudo.

   - É assim que você faz?

   Kyryan hesitou.

   - Eu tento, pelo menos.

   - Não sei se funcionará...

   - Garanto que sim.

   Ela balançou a cabeça, aquiescendo.

   - Está bem, procurarei mudar meu comportamento, daqui em diante - prometeu. Depois, acrescentou, mudando de assunto: ¬Confesso que gostei de você ter-me visto, naquele dia do torneio.

   - Não mais do que eu. - o marido replicou antes de tomar a beijá-la, desta vez com volúpia.

   Para sua alegria e excitação, Kyryan percebeu que a esposa cor¬respondia com a mesma intensidade apaixonada, entreabrindo os lá¬bios de leve.

   De um salto, levantou-se e puxou-a junto, sem deixar de beijá-la. Abraçados no meio do salão, começaram a trocar carícias que se aprofundavam em intimidade e ousadia.

   De olhos cerrados, Liliana sentia a rigidez do corpo másculo contra o dela e espantava-se com a veemência das próprias reações. Sem resistir, abriu os olhos para contemplá-lo.

   Aquele homem era seu marido e ela o desejava com ardor. Não lutaria mais contra o impulso de entregar-se aos anseios que ele despertava. .

   - Você tem medo de mim? - Kyryan indagou num murmúrio ansioso, acariciando-lhe o pescoço com os lábios trêmulos.

   - Sim. Não. Não sei... - com um gemido, Liliana, instintivamente, comprimiu os seios no peito amplo e musculoso do marido.

   Kyryan, porém, afastou-a.

   - Não quero que tenha medo de mim.

   Constrangida, ela abaixou a cabeça.

   - É que eu não...

   - O quê?

   - Não sei nada sobre...

   - Sim?

   Liliana respirou fundo e tentou sorrir. Contudo, morria de ver¬gonha de sua ignorância e custava-lhe muito admiti-Ia.     

   - Não sei nada sobre o que acontece entre um homem e uma mulher.

   - Como?

   - Quero dizer... quando estão juntos... na cama.

   - Pelas chagas de Cristo! - Kyryan exclamou. - Então, é por isso que...

   Kyryan não conteve o riso e Liliana empurrou-o.

   - Entende por que não gosto de revelar a minha ignorância? Não suporto que riam de mim, como você está rindo agora! Ah, eu não devia ter-lhe contado!

   - Perdoe-me - Kyryan enlaçou-lhe a cintura esguia. - Não quis zombar de você. Apenas, fiquei feliz. Eu pensei que você... não me quisesse, que estivesse zangada comigo.

   - E estava. Não me agradou a sua rudeza.

   - Suplico-lhe que me perdoe. Se eu suspeitasse da sua... inex¬periência total, teria agido de modo diferente. Além disso, você me ofendeu...

   Lembrando-se de tê-lo acusado de cheirar como um camponês, ela corou.

   - Eu não fiz o comentário com o intuito de insultá-lo. Tratava-se de uma mera constatação. De qualquer forma, desculpe-me. Foi gros¬seiro de minha parte.

   Em tom solene, mas com um sorriso nos lábios, Kyryan declarou:

   - Reconheço os meus erros e peço desculpas por tê-los cometido.

   - Aceito e retribuo o pedido.

   - Também está desculpada.

   Liliana levantou o rosto para que o marido a beijasse. Em vez disso, porém, Kyryan ergueu-a no colo.

   - Estou pronto, querida esposa, para ensiná-la tudo o que aprendi... ao menos, o que for possível em uma noite.

  

   - Kyryan? - Liliana chamou baixinho, fi¬tando-o com insegurança enquanto o marido a levava no colo para a alcova improvisada.

   - Sim?

   - Se eu lhe disser uma coisa... promete que não rirá de mim?

   - Não antes, nem durante. Quanto a depois, não garanto nada...

   - Ah; você está debochando de mim!

   Kyryan contornou o biombo, entrando no quarto.

   - Olhe, confesso, estou mesmo. É o meu jeito, eu gosto de gracejar. Receio que terá que se acostumar.

   Liliana não replicou, deixando que o marido a sentasse sobre a cama com docilidade. Contudo, suas mãos crispavam-se uma na outra, traindo-lhe o nervosismo.

   - Não há o que temer, confie em mim - Kyryan tentou apaziguá-la.

   - Eu... não posso evitar. Lady Eleanor disse que...

   Ele fitou-a com ar sério e preocupado.

   - O que foi que lady Eleanor disse?

   - Que às vezes... dói.

   O marido enrugou a testa.

   - Então foi sobre isso que vocês duas tanto conversaram naquela tarde?

   Corando, ela mordeu o lábio.

   - Não exatamente - respondeu com sinceridade. - Ela me aconselhou a consultar você a respeito... desse assunto.

   Aliviado, kyryan sorriu.

   - Ainda bem.

   Ele abraçou-a com força e beijou-a com doçura, tomado por uma ternura quase tão grande quanto seu desejo.

   Para Liliana, parecia que jamais havia sido tocada antes. Todos os seus sentidos aguçaram-se, capturando um turbilhão de percepções excitantes. O sabor dos lábios dele, a odor másculo de sua pele, a textura de seus músculos, a calor de suas mãos, o murmúrio incompreensível em seu ouvido, a visão de seu rosto bonito. Ela queria mais, queria... algo que ainda não sabia bem o que, mas que ansiava com todo o coração. Gemendo de mansinho, aconchegou-se entre as braças dele num movimento faminto.

   Ao senti-Ia estreitando o abraço, os seios túrgidos comprimindo-se de encontro ao peito dele, Kyryan fez um esforço sabre-humano para controlar o ímpeto de rasgar-lhe a roupa, desnudando-lhe a corpo cobiçado par tanta tempo.

   Todavia, precisava refrear a impulso e agir com calma, com gentileza. Afinal, procedera assim com outras virgens, coma poderia dispensar um tratamento rude à própria esposa?

   A despeito dessa resolução, Kyryan mal se dava conta dos próprios gestos. Jamais sentira um desejo tão' abrasador tão poderoso. Era quase uma dor. Seus beijos prolongavam-se, cada vez mais volup¬tuosos, e seus afagos alcançavam os recantos mais íntimos, mais ocultos.

   Liliana lhe pertencia e estava ali, trêmula, úmida e cálida, em seus braços. Seus olhos verdes brilhavam com um ardor profundo e ela aprendia, adivinhava, moldava-se de acordo com as carícias.

   Kyryan perdeu a batalha interna. Já não lhe era possível conter-se. Com as mãos tremendo, arrancou os incontáveis laços que prendiam-lhe o vestido, despiu-lhe a camisa branca e, por fim, sentiu a pele aveludada nua sob seus dedos ávidos.

   Então, percebeu que mais uma vez a medo ensombrecia o olhar de Liliana.

   Buscando dentro de si o que lhe restava das forças, tornou a lutar para sofrear seus instintos. Afastou-se um pouco e pigarreou.

   - Os gauleses cultivam um hábito. [i] Caru yn y gwely [/i] - comentou com voz rouca.

   Liliana fitou-o com um misto de curiosidade e timidez.

   - E o que significa essa expressão?

   - "Cortejar na cama".

   - Hã?

   - Significa que devíamos deitar-nos de modo civilizado.

   - Sem roupas?

   Kyryan limpou a garganta novamente e balançou a cabeça, as¬sentindo. Levantou-se para puxar as cobertas, preparando o leito. Pelas chagas de Cristo, quem estava se comportando como se não tivesse a menor noção do que ocorria? Nunca se sentira tão inseguro e temeroso, nem quando fez amor com Efa no celeiro, e era a sua primeira vez. Bem, claro que Efa havia conquistado a fama de mulher que concedia favores de bom grado a quem lhe pedisse, título esse que de forma alguma se aplicaria a Liliana.

   Depois de ajeitar o leito, ele apressou-se a despir a própria túnica e, sem olhar para a esposa, escorregou para debaixo do cobertor com rapidez. Só então dirigiu os olhos para ela, que desvencilhara-se de toda a roupa e fulgurava ao luar no esplendor da nudez, mais bela do que Eva no Paraíso.

   Ele prendeu a respiração, sucumbindo perante a imagem onírica com que se deparava.

   - Você é a mulher mais linda do mundo - murmurou, percor¬rendo cada centímetro do corpo dela com os olhos até deter-se em seu semblante, que expressava sentimentos antagônicos. Lascívia e vergonha. - Eu não a mereço.

   Sorrindo, Liliana enfiou-se sob as cobertas.

   - Jamais quis outro homem em minha vida... só você - con¬fidenciou num sussurro repleto de sensualidade. E era verdade. Ago¬ra, estava pronta para revelar ao marido.

   Kyryan retribuiu o sorriso.

   - Fico muito feliz em saber. E orgulhoso, também.

   Tomando a iniciativa, Liliana curvou-se para beijá-lo como apren¬dera, acariciando-lhe os lábios com a ponta da língua, espalhando ondas de calor pelas veias de Kyryan.

   Desde que assumiu a direção do castelo, após a morte da mãe, Liliana acreditava ser livre, pois fazia o que bem entendia e seu pai não a impedia. Contudo, os deveres excessivos cerceavam-na sobre¬maneira. Só agora, nos braços de Kyryan ap Morgan ap Ianto, des¬cobria o verdadeiro sentido da palavra liberdade, em sua acepção mais primitiva e inebriante. Como a embriagava poder expressar toda a paixão avassaladora que pulsava em seu peito, quanta alegria em retribuir cada carícia, dando prazer em troca do prazer que re¬cebia.

   Quando Kyryan segurou-lhe os seios com as mãos em concha, ela arquejou surpresa. Sem perceber, gemia baixinho, como um gato ronronando, mal se dando conta de outra parte do corpo do marido, rígida, quente, fremindo contra o ventre dela, até que o estranho apêndice alojou-se entre suas pernas.

   - Liliana - Kyryan cochichou em seu ouvido, - não tenha medo. Agora, eu vou tocá-la de forma especial...

   - Oh, sim, por favor! - ela suplicou, mergulhando as mãos nos cabelos negros de que tanto gostava. Ergueu-se ligeiramente para depositar um beijo no tórax amplo e musculoso.

   Contudo, sobressaltou-se quando os dedos de Kyryan deslizaram abaixo de seu umbigo.

   - Calma, não deve temer, minha querida - ele procurou tran¬qüilizá-la, afagando-lhe o pescoço com os lábios.

   - O que... está fazendo? - ela indagou, tensa, enquanto os dedos do marido prosseguiam a exploração.

   - Ajudando-a a preparar-se para mim.

   Liliana não compreendeu. Mas não lhe importava. Confiava no marido, e sentia-se cada vez mais entorpecida, como se cada carícia equivalesse a uma taça de vinho. E sua sede revelava-se infinita...

   De repente, o corpo de Kyryan ergueu-se ligeiramente no ar e, no instante seguinte, Liliana deu-se conta de que algo a um só tempo, rijo e macio penetrava-a. Uma pontada de dor afligiu-a por um mo¬mento, mas desapareceu pouco depois.

   Kyryan beijou-a com carinho.

   - Esta é a dor de que lady Eleanor lhe falou. Ainda está inco¬modando?

   - Não - ela sussurrou intrigada por notar que os movimentos de Kyryan para dentro e para fora de seu corpo intensificavam-se e tomavam-se mais rápidos, proporcionando-lhe um prazer crescente. Enlaçou-o com mais força, percorrendo-lhe as costas com as unhas. Uma necessidade premente de unir-se a ele da forma mais estreita possível impelia-a a abraçá-lo cada vez mais apertado.

   Os movimentos atingiram uma velocidade vertiginosa. Liliana mordiscou o lóbulo da orelha de Kyryan para não gritar, pois o prazer chegara a uma tal intensidade que era quase insuportável, e ela pensou que fosse explodir de êxtase.

   Então, Kyryan gemeu alto e liberou um jato de líquido quente no interior de seu corpo. Nesse momento, Liliana não agüentou mais e um grito rouco escapou-lhe da garganta.

   Após um longo e enlevado instante de imobilidade, Kyryan saiu de dentro dela, deitando-se a seu lado. Fitou-a com um sorriso embevecido nos lábios.

   - Creio que valeu a pena esperar - declarou com suavidade, acarinhando-lhe os cachos dourados que se esparramavam pelo travesseiro.

   - Como assim? - Liliana indagou, esforçando-se para raciocinar com clareza. Era como se voltasse de uma viagem ao mundo dos sonhos. A sensação agradava-a tanto que não se importaria se, não conseguisse mais pensar com coerência. Só almejava aninhar-se no ombro do marido e esquecer-se de todo o resto.

   - Você não está dolorida, está? - ele indagou com solicitude.

   - Oh, não - ela virou-se para ele e estremeceu. - Bem, talvez um pouquinho.

   Kyryan franziu a testa.

   Liliana sorriu e afagou-lhe os cabelos.

   - Sossegue, estou bem.

   O marido beijou-lhe a ponta do nariz.

   - De qualquer modo, esta foi só a primeira vez.

   - Quer dizer que haverá outras? Maravilhoso!

   - Você é maravilhosa.

   - Não, é você.

   - Está certo - ele riu conciliador. - Nós dois somos. E fazer amor também é.

   - Kyryan?

   - O quê?

   - Com que, freqüência nós faremos isso?

   Dessa vez, ele soltou uma gargalhada.

   - Sempre que quisermos...

   - À noite?

   - A qualquer hora - Kyryan replicou com um brilho travesso no olhar.

   Liliana pareceu escandalizada. Então, sorriu com o mesmo jeito maroto.

   Kyryan envolveu-a entre os braços e suspirou.

   - Eu sou um homem de sorte, e o mais feliz de todos!

   A esposa contemplou-o com satisfação.

   - Eu receava tanto que você só me tivesse desposado por causa da propriedade e do dinheiro...

   - E foi por isso.

   Ela afastou-se e fitou-o, perplexa.

   - O que disse?

   Ele, porém, puxou-a de volta, sorrindo calidamente.

   - Seu pai ofereceu-me as terras e o dinheiro... e você. Não pude recusar nenhum dos três itens.

   - Você está zombando de mim, não é?

   Num gesto solene, Kyryan balançou a cabeça em sinal de assen¬timento.

   - Está aprendendo, minha querida esposa. Eu me teria casado com aquela garota da árvore mesmo que não passasse de uma cam¬ponesa que mendigasse para sobreviver.

   - E se eu fosse feia... como Jhone?

   - Neste caso, eu definitivamente não me casaria.

   - Espero que esteja gracejando.

   - Bem, essa não foi uma pergunta justa - Kyryan protestou. - E se você não fosse você? Claro que não a desposaria! É linda como um anjo e sabe disto - tomou a beijar-lhe a ponta do nariz. - Você se interessaria por mim se eu fosse feio como o diabo?

   Liliana refletiu por alguns segundos.

   - Não, creio que não.

   - Está vendo? Sejamos honestos, minha cara. Você só me aceitou como marido porque me considera bonito.

   - Para ser franca... é verdade, em parte.

   Kyryan virou-se na cama, deitando-se de costas. Seus olhos fi¬tavam os raios da luz que se infiltravam pela janela estreita, lá em cima.

   - Liliana?

   - Sim?

   - Por que se casou comigo?

   - Já lhe disse. Porque é bonito - ela tentou rir, mas a proxi¬midade de seu corpo despido perturbava-a em demais. Num gesto instintivo, começou a acariciá-lo. - Já é tarde, milorde, e nós dois devíamos dormir um pouco.

   Voltando a girar para o lado, ele tomou-lhe a mão e fitou-a com intensidade.

   - Não me respondeu. Por que se casou comigo? - Insistiu.

   Ela percebeu-lhe a necessidade premente de saber a verdade.

   - Não sei bem. Acho... que me apaixonei por você no momento em que o vi com aquele elmo entalado na cabeça - replicou com sinceridade, aninhando-se entre seus braços. - Eu já havia visto muitos cavaleiros corajosos e habilidosos como você. Alguns também eram bonitos. Contudo, quando reparei que não conseguia tirar o elmo e brincava com seu amigo a respeito do ridículo da situação... alguma coisa dentro de mim mudou para sempre. Você me pareceu... jovial e humano, desprovido da arrogância insuportável tão comum entre os guerreiros que eu conhecia. Movida por um impulso irre¬sistível, segui-o até o ferreiro. Tinha certeza de que você me ouvira chegar, mas fingia não ter notado a minha presença. Foi muito en¬graçado e... não pude evitar... principiei a amá-lo.

   - Oh, Liliana... - Kyryan aconchegou-a, enternecido como nun¬ca antes em sua vida. Descobrir que era amado acrescentava uma doçura inefável ao desejo que o abrasava. Dessa vez, a esposa não só correspondeu ao abraço como tomou a iniciativa de estreitá-lo, depositando-lhe um beijo faminto nos lábios.

   - Eu sou geniosa, como já deve ter reparado - ela murmurou com um sorriso. - O fato é que costumo zangar-me quando...

   - Quando?

   - Quando sinto medo. Como no dia em que encontramos aquele bando de assaltantes, lembra-se? Fiquei tão assustada, você, porém, recusou-se a conversar comigo sobre o que acontecera na estrada.

   - Não havia nada, para dizer.

   - Quem era aquele homem?

   - Um gaulês que tem os normandos na conta de invasores. Ele não ignora, e desaprova, o meu juramento de lealdade a lorde Tre¬velyan.

   Liliana contemplou-o com gravidade.

   - Não acha que seria melhor certificar-se de que os malfeitores abandonaram a floresta? O tal gaulês contava com tantos homens...

   - Rapazes, alguns ainda meninos. E mal armados. Ele, o líder, pareceu-me um bocado inteligente. Decerto tem consciência de que não haveria a menor chance de vencer, caso atacasse o castelo.

   - Mas a muralha...

   - Logo ficará pronta - Kyryan beijou-lhe a testa, acalmando-a.

   - Você se preocupa demais com os problemas de seu senhor. E eu só quero pensar nisso... - beijou-lhe os lábios - e nisso... -¬acariciou-lhe o bico dos seios - e em fabricar bebês...

   Liliana esboçou um protesto. Afinal, se os problemas atingiam-na também, devia preocupar-se com sua resolução tanto quanto o marido. Contudo os beijos e afagos de Kyryan distraíram-na. Em segundos, esqueceu o ladrão e seu bando. Eles que esperassem...

  

   - Kyryan?

   Ele esforçou-se para abrir os olhos.

   - O quê? Já amanheceu? Não pode ser!

   Liliana riu com suavidade e apertou-lhe de leve a bochecha.

   - Já é de manhã, seu preguiçoso. Se não nos apressarmos, per¬deremos a missa.

   Kyryan acariciou-lhe os quadris, descendo a mão pelas coxas.

   - Que pena... iremos à missa outro dia.

   Ela afastou-o.

   - Não faça isso. Não seria correto - ponderou com relutância - como se procurasse convencer a si mesma. - Eu preciso fazer uma oração em agradecimento...

   - Agradecimento?

   - Foi o que eu disse.

   Demorou alguns minutos para Liliana desvencilhar-se, a contra¬gosto, dos braços do marido. Como lhe custava sair da cama! Reuniu toda a força dê vontade de que dispunha e levantou-se. Correu até a bacia, e banhou-se com movimentos rápidos.

   - Precisamos ir. As pessoas podem comentar...

   -Pois que comentem. Eu não me importo.

   - Mas eu me importo - ela argumentou, colocando um vestido de corte severo e elegante, que Kyryan odiou de imediato. Agora que tinha se deslumbrado com a nudez da esposa, não tolerava vê-Ia com roupa.

   - Eu sei - ele assentiu, empurrando as cobertas e expondo o corpo despido ao olhar esgazeado de Liliana. Ao surpreender-lhe a expressão dê cobiça, todavia, cobriu-se logo.

   - O'r annwyl, eu criei uma amante devassa! - gracejou um tanto embaraçado.

   Lentamente, ela caminhou em sua direção e tomou-lhe o rosto entre as mãos.

   - Desagrada-lhe que eu o fite desse modo?

   Kyryan gemeu e olhou para o lençol que enrolara na cintura. O tecido fino pouco servia para esconder a evidência de sua excitação.

   - Por Deus, mulher! Como pode pretender que eu vá à missa agora?

   - Bem, acho que ainda, temos algum tempo...

   - Então, deixe-me ajudá-la a tirar o vestido.

   - Ei, não me entenda mal! - Liliana objetou, afastando-se. - Eu disse que havia tempo para você se recompor.

   Franzindo a testa, Kyryan apanhou a ânfora e derramou, toda a água fria sobre a cabeça, espalhando-a por todo o corpo.

   - É mesmo melhor adiar pra depois - declarou, enxugando-se.

   - Com toda certeza. A qualquer momento, Maude chegará para arrumar a cama e não quero que o veja sem roupa.

   - Do jeito que ela tem me evitado, duvido que perceba - ele observou vestindo a túnica reservada para ocasiões especiais.

   - Ah, é? - Liliana perguntou fingindo inocência.

   - O que foi que lhe disse?

   - Nada. Apenas admiti que possuo um gênio difícil.

   - Só isso?

   - Bem, talvez tenha acrescentado que podia tornar-me violenta. Ela decerto pensou que se tratava de uma ameaça, caso prestasse demasiada atenção a meu marido.

   - Ah eu sabia! - Kyryan exclamou triunfante.

   - Não seja pretensioso!

   Ele colocou o cinturão de couro sobre a túnica.

   - Não sou pretensioso.

   - É sim. E arrogante também.

   - Não sou.

   - então meu humilde senhor, revele-me algo que não seja capaz de realizar com eficiência.

   - Como assim?

   - Ontem à noite, você afirmou que havia uma porção de coisas que não sabia fazer e citou o canto como exemplo. Estou lhe pedindo pra me dar outro exemplo.

   Kyryan fitou-a pensativo.

   - Meus modos não são muito bons.

   - Isso eu já havia notado.

   Carrancudo, ele não replicou.

   - Ah, viu só? Você espera que eu confesse minha total ignorância acerca de tudo, mas não tem coragem de reconhecer as próprias limitações!

   - Muito bem - Kyryan fitou-a com seriedade.

   Liliana ardia de curiosidade para ouvir o que o marido lhe confidenciaria. O que poderia haver de tão grave para ensombrecer-lhe tanto o semblante?

   - Eu não aprendi a ler.

   De um salto, Liliana aproximou-se do marido, segurou-lhe as mãos e beijou-as com carinho. Intuía que aquela confissão estabelecia um novo relacionamento entre ambos, baseado em sinceridade e confiança, uma felicidade profunda invadiu-lhe o coração.

   Sorrindo, murmurou:

   - Eu jamais suspeitaria disso... se quiser, posso ensiná-lo.

   - Não - Kyryan recusou, sacudindo a cabeça com ar magoado. - Estou velho demais.

   - Que tolice! Eu o ensinarei a ler e a escrever. Em troca, você me dará lições de Gaulês.

   Ainda entristecido, Kyryan sorriu.     

   - A proposta não deixa de ser interessante. Todavia, não acredito que dê certo. Considerando nosso temperamento instável, as aulas não iriam muito longe.

   Liliana mordeu o lábio.

   - Tem razão...

   - E precisaremos esperar até concluirmos a reforma do castelo.

   - Mas... isso pode levar anos!

   - Eu sei.

   - Oh, você é terrível!

   - Considera-se assim tão inteligente para aprender Gaulês agora?

   - Com certeza.

   Kyryan voltou a sorrir.

   - E afirma que o pretensioso sou eu... está certo, trataremos desse assunto após a visita de seu pai. Ah, por falar nisso, pedirei a Elwy que designe alguns homens para ajudar a colocar o piso de cima.

   - De forma alguma.

   Ele perscrutou-lhe o semblante obstinado.

   - Por que não?

   - Jhone e eu daremos conta do serviço - Liliana declarou com convicção. Em seguida, enlaçou a cintura do marido. - Mas aceito sua ajuda para caiar as paredes e comprar algumas tapeçarias...

   - Eu já desconfiava que isso ocorreria... - ele comentou em tom melancólico, correspondendo ao abraço.

   - O quê? A visita de papai?

   - Não. Que me persuadiria a fazer tudo o que você quisesse.

   - Ora, não se lamente. Até aqui, tem demonstrado grande habilidade em recusar todos os meus pedidos - Li1iana rebateu com secura.

   - Até aqui... ou seja, antes de nos tomarmos marido e mulher de fato - Kyryan, retrucou, acariciando-lhe a nuca com a ponta dos dedos.

   - Oh! Procurarei lembrar-me de meu novo poder, caro milorde. - ela redargüiu em tom solene, enquanto acompanhava, excitada, o movimento das mãos dele descendo-lhe pelas costas, por dentro do vestido.

   - Kyryan?

   - Hum? - respondeu, distraído, abandonando-lhe as costas para dedicar atenção aos seios dela.

   - Lembra-se... da nossa... primeira noite... aqui? - Liliana in¬dagou, ofegante.

   - Lembro-me muito bem - Kyryan, mordeu-lhe lóbulo da orelha.

   - Você mencionou... qualquer coisa acerca de... um juramento. Sobre... mulheres. Do que... se... tratava?

   Kyryan deu um passo para trás, franzindo a testa.

   - Não importa mais.

   - Mas eu quero saber - Liliana insistiu, esperançosa de que o marido não voltaria a erguer uma parede de mistério entre ambos.

   Sacudindo os ombros, Kyryan tornou a abraça-la, aninhando uma das mãos dentro do decote do vestido.

   - Aconteceu depois daquele torneio em que vi você na árvore - começou a narrar fitando-a direto nos olhos. - Eu e outro es¬cudeiro nos embebedamos. Havia uma, moça mais jovem do que nós, uma loirinha bonitinha. Então, nós dois... - Kyryan hesitou, respirou fundo, incapaz de prosseguir. - Quer mesmo que lhe conte essa história?

   - Faço questão absoluta.

   - Não queríamos magoá-la, nem mesmo assustá-la, mas estávamos embriagados demais pára raciocinarmos com clareza. De qualquer modo, ela nos tratou com hostilidade, ou assim nos pareceu. Só queríamos conquistar-lhe a simpatia. Na verdade, nossa intenção era beijá-la. Eu lhe dou minha palavra Liliana, que não pretendia causar-lhe qualquer ma!

   - Acredito em você.

   - Urien Fitzroy surpreendeu-nos e mostrou-se bastante zangado. Conhece Fitzroy, não é? O sujeito que treina os escudeiros de lorde Gervais.

   - Já o vi uma ou duas vezes. Céus, não gostaria de ser alvo da ira daquele grandalhão! O que ele lhe fez?

   - Esmurrou-nos e jogou água fria sobre nossas cabeças. Então, obrigou-nos jurar que nunca mais voltaríamos a molestar uma mulher. Eu mantive a minha promessa.

   - Por isso você não me forçou a?..

   Ele anuiu.

   - Por mais que o desejo me corroesse, e a despeito da fúria que você me provocou, não o fiz nem faria.

   Liliana sentiu os olhos encherem-se de lágrimas de arrependimento.

   - Oh, como devo tê-lo ofendido com as minhas palavras ásperas!

   - Não tem importância.

   Segurando-lhe as mãos carinhosamente, ela fitou-o com fervor. Nesse instante, ouviram uma risadinha familiar.

   - Pelas chagas de Cristo! - Kyryan exclamou, espantado com a inesperada interrupção. Observou o desapontamento no semblante da esposa ao afastar-se dela, cruzando o biombo.

   - Bom dia, Maude! É um prazer vê-la nesta linda e ensolarada manhã!

   - Mas... está chovendo, milorde - a criada replicou, perplexa.

   Liliana levou a mão aos lábios para conter uma gargalhada. Se continuasse daquele jeito, em breve ficaria igual a Maude, rindo por qualquer motivo.

   De súbito, deu-se conta de que estava feliz demais para incomodar-se com isso.

  

   Uma semana mais tarde, lady Eleanor sentou-se, alegre, ao lado do marido durante a festa, de celebração do final do outono, estação em que procediam ao abate do gado. Era um período de fartura, comemorado igualmente por camponeses e senhores.

   O salão estava repleto de convidados. Entre todos ali presentes, os que maior prazer ofereciam ao olhar satisfeito da boa senhora eram os Morgan, o jovem e apaixonado, casal à sua esquerda.

   Ela cutucou o braço de Sir Nevil com delicadeza.

   - Creio que Kyryan e Liliana estão se entendendo muito bem - cochichou-lhe no ouvido.

   - Rã? O quê? Ah, sim, claro que estão! Por que não se enten¬deriam? - Ele replicou.

   Lady Eleanor sorriu. O marido jamais poderia ser louvado como possuidor de um raciocínio rápido de brilhante. Ela, porém, mais observadora, percebia que, fossem quais fossem os problemas en¬frentados pelo casalzinho já haviam sido superados.

   Nem era necessária muita perspicácia para notar que Kyryan mal podia desviar os olhos de sobre a adorável esposa, que lhe sorria a todo o momento. Na verdade, Liliana pouco tocou na comida, em¬bevecida na contemplação da figura máscula de Morgan.

   - Sir Nevil - Kyryan ergueu a taça para o anfitrião - Na próxima semana, o senhor e sua digníssima senhora nos honrarão com sua presença em nossa casa, para o nos galan gaeaf! Mostra¬r-mos como são as festas gaulesas.

   - Sem dúvida, gozaremos desse privilégio - Sir Nevil, que jamais recusava um convite, proclamou.

   Lady Eleanor balançou a cabeça, ratificando a resposta do marido com um sorriso de aprovação. Sentia-se feliz por ver que tudo ia bem. Os fora-da-lei aparentemente haviam ido embora, o abate trans¬correra sem problemas, Kyryan e Liliana estavam apaixonados.

   Seu olhar, que passeava pelos convivas, deteve-se em Priscilla Horton, sentada na outra extremidade da mesa principal. A austera moça devorava a comida como um faminto cão vira-lata roendo um pernil de carneiro assado.

   Pobrezinha, pensou com simpatia. Ela podia mesmo estar pas¬sando fome, a julgar por sua magreza excessiva, com os ossos sobressaindo sob o vestido velho e gasto.

   - Meu querido - murmurou para o marido, depois de cutucar-lhe o braço outra vez, - talvez devêssemos ajudar Priscilla Horton.

   - Ela não aceitaria dinheiro emprestado - o marido ponderou.

   - Eu sei. Estava pensando em outra forma de auxílio. Se con¬seguíssemos arranjar-lhe um marido...

   - Para aquele corvo esquelético?Ah, duvido!

   - A garota não tem culpa de ser feia.

   - Ela não é mais uma garota. Já está bem passada...

   - Ora, não seja cruel. Sabe o que quero dizer. Quiçá algum conhecido nosso precise de uma esposa.

   - Não conheço ninguém tão necessitado assim.

   - Nevil, tenha compaixão! Acho que Priscilla é muito infeliz. Seu pai tomou-se um ébrio avarento - Lady Eleanor enviesar os olhos na direção do homem que a essa altura, já engolira mais vinho do que podia agüentar. - Não é de estranhar que a coitada tenha ficado tão rígida. Um marido faria muita diferença.

   - Ele teria que operar um milagre!

   - Nevil, eu falo sério.

   _ Eu também. Em todo o caso, prometo manter-me atento. Se vir um pobre sujeito tão desesperado que aceitaria uma harpia como esposa, eu a avisarei.

   - Priscilla Horton é uma dama da nobreza, não se esqueça.

   - Pena que essa seja sua única virtude.

   - Mas já significa alguma coisa. Quem sabe aquele amigo de Kyryan...

   - Elwy? Não creio. Parece que a atenção dele já se voltou para uma viúva, pelo que escutei. Uma recém-chegada ao vilarejo - Sir Nevil elevou o tom de voz, voltando-se pata Elwy. - Não é verdade, meu caro?

   - O quê? - o rapaz indagou, erguendo os olhos do prato de comida.

   - Que você está interessado por uma viúva?

   - Ah, sim. Só que ela não é muito inteligente - ele replicou em tom lamuriento.

   - Não?

   - Em absoluto. Imagine que a senhora em questão ainda não se dignou a notar-me. Só posso atribuir o fato a uma lamentável falta de esperteza.

   Todos os convidados riram diante da expressão comicamente con¬tristada de Elwy.

   Exceto Priscilla Horton. Havia percebido a forma piedosa com que lady Eleanor a contemplara, pouco antes. Também percebera o espetáculo nauseante oferecido pelos Morgan, que exi¬biam sua paixão em público.

   Repugnava-a o modo como trocavam olhares, dando a impressão de mal esperarem o momento de irem para a cama. E seguravam-se as mãos sob a toalha da mesa, como crianças estúpidas.

   Sempre tivera Liliana Trevelyan na conta de uma moça fútil e vaidosa, que se limitava a cuidar dos cabelos e a desfilar roupas novas.

   Priscilla examinou com inveja o belo vestido de seda adamascada e o manto também de seda que pendia elegantemente sobre os ombros alvos. Só a tiara que lhe prendia os cachos dourados, de prata cra¬vejada com fios de ouro, devia valer mais do que todas as roupas que ela, lady Horton, já possuíra em sua vida inteira.

   Como seria Liliana se houvesse suportado um canalha bêbedo como pai, em vez de um homem doce e afável? Seria agora tão sofisticada e bonita se tivesse levado surras e passado fome desde a infância? Se o pai a tivesse despertado no meio da noite e a forçado a...

   Não. Com certeza, lady Morgan não seria tão linda. Tão pouco teria desposado um cavaleiro bonito e valente que, no entanto, não conseguira disfarçar o desagrado diante de Priscilla, apesar de não passar de um pobre diabo que tivera a sorte de vencer alguns torneios.

   Ressentida, a moça estendeu a mão na direção da taça de vinho, empurrando o pai, sem cerimônia, para fora de seu caminho. Que aquelas pessoas ricas e felizes se apiedassem dela. Pouco lhe Importava. Não lhes negaria o prazer, diante de sua triste imagem, de se sentirem superiores. De lhe oferecerem dinheiro. De fingirem que se preocupavam.

   Ninguém jamais havia tentado ajudá-la de verdade. Ela precisara do apoio deles, anos antes, quando ainda era jovem e inocente. Com certeza, não ignoravam quão miserável era lorde Horton e deviam supor de que brutalidades ele era capaz.

   Priscilla sorriu. Havia encontrado um meio de controlar o pai e de vingar-se de todos aqueles "bondosos" nobres normandos.

   Demorou um pouco, mas ela descobriu um modo de entrar em contato com o líder dos rebeldes. Por acaso, vira Ralf, o capataz de Morgan, numa feira, conversando com ar conspirador com um ho¬mem que ela sabia tratar-se de um gaulês que morava num vale próximo. Depois disso, interrogou Ralf a respeito do diálogo mis¬terioso, afirmando com convicção que o tal homem pertencia ao bando de salteadores.

   O idiota tentou negar, mas o nervosismo em seu semblante traiu-o e Priscilla, triunfante percebeu que acertara em cheio. Ela não tinha a menor intenção de denunciá-lo a lorde Trevelyan ou a qualquer outro nobre normando. Em vez disso, considerou a possibilidade de os dois lucrarem com a ajuda dos gauleses.

   Ralf terminou revelando que havia dado - ou melhor; vendido - informações acerca das idas e vindas de seu senhor. Priscilla sabia que poderia fornecer informações mais valiosas, já que fre¬qüentava o círculo da nobreza normanda. Assim, persuadiu-o a ar¬ranjar-lhe uma entrevista com o líder do bando.

   A princípio, Ivor não demonstrou grande disposição em confiar nela. Contudo, deixou-se persuadir a dar-lhe crédito. O motivo era simples. Ivor se interessou não pelo que lhe poderia contar, mas por ela própria, como mulher. Coisa que nenhum outro homem havia feito até então.

   Priscilla desviou o olha mais uma vez, para Liliana que cochi¬chava com o marido. Bem, talvez não fosse tão bonita quanto a jovem lady Morgan, mas possuía um amante, um nobre gaulês da melhor estirpe. Além disso, poderia ensinar à arrogante filha de lorde Trevelyan alguns truques acerca de como satisfazer um, homem na cama.

   Tomando a sorrir, Priscilla sorveu um longo gole de vinho. Não, ela não era tão infeliz e desafortunada como a julgavam. Um dia, dentro em breve, faria todos pagarem pela omissão, por ignorarem uma pobre criança brutalizada pelo pai. Isso aconteceria quando seu amante se tomasse o senhor de todas aquelas terras. E marido dela.

  

   Liliana recuou um passo para apreciar o próprio trabalho. Um sorriso de satisfação iluminou-lhe o rosto.

   - Bem, Jhone o e que acha?

   - Acho que faltou caiar este pequeno trecho - a criada observou apontado para um canto da parede perto ao chão.

   Liliana praguejou baixinho e espalhou a,mistura de cal sobre a área.

   - Pronto.

   - Oh, ficou encantador! - a moça elogiou com genuína admiração.

   Novamente, Liliana deu um passo para trás.

   - Ficou mesmo, se me desculpa a falta de modéstia. Acredito que seque até amanhã, de forma, que poderemos pendurar as tapeçarias logo após ai missa.

   - Se fosse a senhora esperaria mais um dia, por precaução - Jhone objetou.

   - Sério? Meu pai deverá chegar dentro de dois dias. É difícil ser paciente.

   - A senhora trabalhou bastante! Seria uma pena estragar, às tapeçarias com cal...

   Liliana não podia deixar de concordar lançou um olhar desconsolado para a criada, reparando que sua roupa mostrava-se imaculada. Já o vestido dela, que fora apenas marrom, parecia, completamente estampado de branco.

   -Suponho que eu esteja ansiosa demais para ver o salão terminado.

   - Os homens farão o apainelamento amanhã à tarde?

   - Sim, a esta parede que terminamos hoje, onde colocarei a mesa principal. Não dará tempo de fazermos mais nada antes da chegada das visitas.

   - Oh, mas já será uma grande melhoria - Jhone assegurou-lhe.

   Liliana assentiu. O salão apresentava um aspecto que superava suas mais ousadas expectativas.

   Os conhecimentos de Jhone rivalizavam com os de qualquer carpinteiro e a moça trabalhava com afinco e em silêncio, duas qualidades que a agradavam sobremaneira. Liliana ajudara-a, aprendendo a desempenhar as tarefas com razoável eficiência, embora seu entusiasmo ainda fosse maior do que sua habilidade.

   Maude percebeu uma mudança profunda no relacionamento entre a ama e o marido, o que lhe provocou um grande alívio, devolvendo-lhe a jovialidade. De bom grado, varou as noites costurando as barras e bordando as guarnições de linho, além de tecer uma imensa tapeçaria que seria pendurada na parede, atrás da mesa. Liliana havia sonhado decorar toda a parede com tapetes, porém, cedendo ao seu habitual senso prático e realista, contentou-se com um grande, por ora.

   Sara, Osyth e Dena tinham excedido o próprio talento para culinária inventando receitas novas para impressionar os hóspedes. Algumas deram certo, outras, não. De qualquer modo, Liliana deixou de preocupar-se com o cardápio, confiante de que o trio daria conta do recado. Assim, encarregou as duas servas de auxiliar Maude com o bordado, além de arear o chão e as mesas e até mesmo de construir duas camas.

   Em vez de apenas supervisionar o trabalho, Liliana arregaçou as mangas e pôs mãos à obra junto com as criadas. A princípio, enfrentou alguma dificuldade em admitir seu desconhecimento e aprender com as camponesas. Contudo, era inteligente e agradava-lhe desenvolver novas habilidades, o que serviu para fazê-la progredir em pouco tempo. Também descobriu que as moças apreciaram sua honestidade em reconhecer as limitações e, diferentemente do que esperara, não zombaram dela, passando a respeitá-la muito mais. Kyryan tinha razão, afinal. Liliana experimentou grande satisfação observando a maneira como as servas se dispunham a ensinar-lhe e exaltavam tudo o que a patroa realizava. Em contrapartida, escutavam com atenção e deferência as explicações da ama acerca do que desejava que fosse feito e como.

   - Milady?

   Lílian interrompeu o trabalho e voltou-se para Jhone, que a fitava com ar preocupado.

   - O que foi? - indagou receando que houvessem esquecido algum detalhe importante.

   - Eu ouvi rumores... inquietantes.

   Sabedora de que Jhone não era de prestar atenção aos mexericos do vilarejo, Liliana pousou a broxa para escutá-la.

   - Que rumores?

   - Dizem que há alguém prestando ajuda aos rebeldes, gauleses. Alguém da vizinhança:

   - Quem seria estúpido o bastante para apoiar os fora-da-lei?

   - Há diversas famílias gaulesas morando tanto no vilarejo quanto no vale. Contudo, parece tratar-se de um normando.

   Liliana fitou com astúcia.

   - Por que resolveu contar-me essa historiai neste momento?

   - Por que tinha a esperança de que cessassem quando o seu marido veio para cá. Mas eles continuaram, milady, por isso eu acho que seria aconselhável, que lorde Morgan mantivesse patrulhas extraordinárias.

   -Eu sugerirei a ele que o faça - Liliana aquiesceu - No entanto, Kyryan tem certeza de que esses bandoleiros foram embora...

   O comentário porém, não pareceu aliviar a criada.

   - Queira Deus...

   - Eu também rezo para que ele esteja certo - Liliana replicou, procurando tranqüilizar-se com a idéia de que a opinião do marido valia mais do que os boatos do vilarejo. Apanhando o balde, acrescentou: - Creio que já basta, por hoje. Preciso colocar um vestido menos... colorido antes da ceia.

   Jhone brindou-a com um de seus raros sorrisos.

   - Maude tem uma surpresa para a senhora. Acredito que gostará milady. O semb1ante de Liliana iluminou-se.

   -Oh, não me diga que ela transportou meus pertences para cá?

   Kyryan havia insistido para contentamento dela, que os homens separassem uma área do andar superior para servi-lhes de quarto de dormir. Contudo, ficara decidido que só promoveriam a mudança na véspera da chegada de lorde Trevelyan.

   - Não senhora.

   - Deixe-me adivinhar... Maude optou por seguir a carreira religiosa. Quando irá para o convento?

   A gargalhada de Jhone significou uma verdadeira recompensa para Liliana, que sempre se considerara desprovida de senso de humor. Também assinalava que a criada conseguira relaxar um pouco de sua preocupação com os rebeldes.

   - Desisto. O que é?

   - Não sei... vá e veja por si mesma - Jhone ordenou, corando de imediato pelo atrevimento. - Eu levarei o balde, se me der licença, milady - acrescentou com reverência.

   Liliana desceu as escadas correndo, sem conter a curiosidade, e atravessou o biombo.

   Estacou, deliciada, ao se deparar com uma enorme tina. Em seu interior, a água fumegava exalando um delicioso odor de ervas e flores campestres. Ao lado, havia uma ânfora com água fria para misturar e toalhas macias de linho para enxugar-se.

   Sem hesitar, Liliana desvencilhou-se da roupa e experimentou a temperatura com os dedos do pé. Estava demasiado quente. Então, despejou metade do liquido frio da ânfora e sentou-se dentro da tina, com um suspiro langoroso.

   Fora uma surpresa e tanto! Caiar a parede se constituía numa tarefa árdua, especialmente para pessoas inexperientes como ela. Entretanto, pensou enquanto afundava na água até o queixo, não deixava de ser gratificante. Estava desenvolvendo sua habilidade a cada dia e orgulhava-se dos resultados.

   Nesse instante, ouviu a familiar risadinha estridente. Sem abrir os olhos, Liliana murmurou em tom descontraído:

   - Maude, aceite meu agradecimento pela brilhante idéia.

   - Trouxe-lhe mais água, caso deseje lavar os cabelos - a criada replicou sorridente. - Esta aqui está morninha.

   - Maravilhoso! Pode despejá-la sobre a minha cabeça. Ótimo, obrigada, De quanto tempo disponho antes da ceia?

   - Oh, ainda vai demorar um pouco para a comida ficar pronta.

   - Perfeito.

   - Eu vou auxiliar as meninas, milady. Se precisar de mim, basta chamar.

   - Humm... - Liliana resmungou, lânguida demais para dizer qualquer coisa. Esfregou as madeixas douradas com sabão, massageando o couro cabeludo. Sem perceber, começou a cantarolar.

   Estendeu a mão para apanhar a ânfora, a fim de enxaguá-las. Todavia, por mais que tateasse, não a localizava.

   - Deixe-me ajuda-la.

   - Kyryan?

   -Bem, prefiro pensar que você não esperava outro homem, considerando-se o estado em que se encontra.

   Liliana sorriu.

   - Oh, nesse caso, você serve. Pode enxaguar meus cabelos, por favor? A água morna deve estar.

   Um jato de água fria jorrou-lhe sobre a cabeça, fazendo-a gritar.

   - Pare, estou congelando! - bradou, abrindo os olhos, que se encheram de sabão, e começaram a arder de imediato. Pestanejando, praguejou: - Oh, pelas chagas de Cristo!

   Kyryan não conteve uma gargalhada. Sem dúvida, a esposa mudara muito nas últimas semanas.

   - Perdoe-me, Liliana. Não era minha intenção. Pronto, irá aquecer-se num instante.

   A água agitou-se, esparramando-se por todos os lados e, antes o que ela pudesse acusá-lo de tentar afogá-la, percebeu que o marido havia entrado na tina.

   - Kyryan!

   - Desculpe-me pela balbúrdia. Chegou o seu aquecedor, cara senhora.

   - Quem o convidou para o meu banho?

   - Ninguém. Mas abater bois e vacas é um trabalho penoso e cansativo, além de desagradável. Não acha que eu mereço?

   Embora não ignorasse que o marido estava despido, Liliana agora podia vê-lo em toda a sua beleza máscula. E senti-lo, também...

   - A tina é demasiado pequena para nós dois - protestou, fingindo-se zangada.

   - Oh, que pena! Sorte que não me incomodo com a falta de espaço - Kyryan replicou, sorrindo com malícia.

   Liliana não pôde conter-se e retribuiu o sorriso. Contudo, a visão - e o toque - da nudez do marido perturbava-a sobremaneira. Daquela forma, não conseguiria relaxar.

   - Bem, pelo menos não terei motivos para afirmar que você cheira como um camponês. Só não sei o que os homens irão dizer do seu aroma de flores e ervas.

   Kyryan retorceu o rosto numa careta.

   - Não havia pensado nisso.

   - Tal era a sua vontade de juntar-se a mim?

   - Hum, hum... - ele curvou-se sobre a esposa. - Você fica tão linda sem roupa, com os cabelos molhados.

   - Você vai fazer atina virar...

   - Não me importo.

   - Mas eu sim.

   Kyryan franziu o cenho e afastou-se o quanto era possível na banheira exígua.

   - Está bem.

   Liliana puxou as mechas que lhe encobriam o rosto para trás.

   - Conseguiu concluir o trabalho?

   - Graças a Deus. Agora só no próximo ano, embora, com a ajuda divina, espero que tenhamos muito mais cabeças para abater.

   - Teremos, sim. E quanto às galinhas? A epidemia está sob controle?

   Ainda não posso afirmar com certeza, mas não apareceu mais nenhuma com a doença.

   Tentando ocultar a própria excitação, Liliana insistiu em manter a conversa sobre assuntos práticos.

   - Nós acabamos de caiar as paredes.

   - Ótimo - Kyryan replicou, apoiando a cabeça na borda da tina.

   - Cansado?

   Ele abriu os olhos e voltou a sentar-se ereto.

   - Depende... o que sugere?

   - Maude pode entrar aqui a qualquer momento e a ceia será servida em breve - ela objetou.

   - O´r annwyl!

   - O que significa essa expressão, afinal? Você a repete com freqüência.

   - Ah, não pretende começar as aulas agora, não é?

   - Por que não?

   Kyryan sorriu.

   - Certo. Por que não? Bem, trata-se de uma interjeição que corresponde a "Valha-me Deus".

   - Oh. Só isso?

   - Pode apostar que sim. Próxima palavra... - Kyryan tocou-lhe os lábios com a ponta dos dedos - "ceg".

   - Ceg - Liliana ecoou, procurando imitar-lhe a pronúncia. Kyryan deslizou os dedos até seu pescoço.

   - "Gwddf"

   Ela suspirou e cerrou os olhos.

   - O quê?

   - Pescoço.

   - Oh, seu idioma é muito agradável.

   - "Bron". Seios.

   A respiração de Liliana acelerou-se.Ofegante, ela encolheu-se na borda da banheira.

   - "Teth" - ele sussurrou, curvando-se sobre a esposa - Bico do seio - como para ilustrar a lição, acariciou com a língua o ponto anatômico em questão provocando-lhe, gemidos de prazer.

   - Como posso dizer "faça amor comigo"? - ela indagou, num murmúrio rouco.

   Kyryan escorregou para debaixo dela.

   - Seu corpo já disse isso... - replicou, segurando-lhe os quadris com firmeza. Em seguida, ergueu-a ligeiramente e guiou-a de forma a montar sobre ele, com as pernas flexionadas no lado de seu torso.

   - Não há espaço suficiente - Liliana protestou sem convicção.

   Quando sentiu que ele a penetrava, mordeu os lábios para não gritar.

   De imediato, esqueceu o tamanho da tina, a possibilidade de Maude entrar e a ceia que seria servida dali a pouco. Só conseguia ter consciência do prazer inefável que experimentava nos braços do marido. Era incomparável, aquela sensação de completitude, de segurança e de amor! Aos poucos, adequou-se aos movimentos de Kyryan e passou a cavalgá-lo, aprendendo com rapidez como proceder. Arqueando-se, ofereceu-lhe os seios para que ele os mordiscasse com gentileza. Então, beijou-o com profundo ardor.

   A exaustão do trabalho árduo desapareceu. O prazer a revigorava mais do que o repouso. Os dois intensificaram o ritmo e a volúpia das carícias. Liliana e Kyryan gemiam juntos, afagando o corpo um do outro com sofreguidão, até que um espasmo violento contraiu-os, envolvendo-os numa onda de êxtase inigualável. Sem poder conter-se, Liliana gritou.

   - Shhh, o que os criados vão pensar? - Kyryan indagou ofegante.

   - Isso não tem... a menor... importância - ela replicou, sem fôlego, pousando a cabeça em seu ombro.

   Kyryan acarinhou-lhe as costas, permanecendo dentro de seu corpo. Se lhe fosse possível, jamais sairia de lá.

   - "O'r annwyl", mulher. Desta vez, você me apressou...

   Liliana ergueu o rosto sorridente.

   - O tempo era curto. Além disso, precisamos sair desta banheira e nos vestirmos antes que Maude atravesse aquele biombo.

   O marido beijou-lhe os cabelos.

   - Uma boa criada sempre percebe quando não deve interromper os patrões.

   - Pois eu não apostaria na discrição de Maude.

   - Até que ela guarda segredos muito bem.

   - Como sabe? - Liliana indagou, saindo de sobre o marido, que suspirou, contrariado. Ignorando o protesto, ela abandonou a tina e enrolou-se na toalha.

   - Se não é verdade, então me diga por quem ela está apaixonada? - Kyryan desafiou-a, colocando a perna para fora da banheira.

   Liliana estendeu-lhe outra toalha e deu-lhe um tapinha brincalhão.

   - Contanto que não seja o meu marido, pouco me importa.

   - Você não esquece, hein?

   Sentada na beira da cama, ela começou a escovar os longos cabelos.

   - Não há nada para esquecer. Ou há?

   - Claro que não!

   - Ótimo.

   - Mas, voltando ao assunto, Maude se apaixonou por Gareth.

   - Seu amigo pastor de ovelhas?

   - O próprio. Deixe que eu termine de escová-los para você - ofereceu-se, aparentemente sem lembrar que ainda estava despido. - Adoro fazer isso.

   Liliana limitou-se a suspirar. Kyryan Morgan era incorrigível. Se deixasse por sua conta, não faria mais nada na vida além de ocuparem-se um do outro. E sem roupas.

   - Devo admitir que esta é uma experiência inédita. Jamais fui penteada por um, criado nu.

   - Pois eu não consentiria que você fosse servida por um servo. A menos que se tratasse de um eunuco.

   - Coisa que você não é, como posso ver muito bem.

   - Eis aí uma coisa que não deve esquecer.

   Liliana levantou o rosto para fitá-lo. Em seu olhar havia um brilho travesso.

   - Oh, jamais esquecerei - prometeu, deslizando as mãos por suas pernas musculosas e bem torneadas. -Nós não terminamos a aula de Gaulês.

   - Já basta de lições, por algumas horas.

   - Não concordo mestre. Como se chama esta parte do corpo, em seu idioma?

   Agora chegara a vez de Kyryan ofegar sob as carícias ousadas da esposa. Deliciado e surpreso, conseguia reponde-lhe as perguntas atrevidas.

   - Bonita palavra, soa bem - ela comentou, beijando-lhe o ventre com suavidade. - E qual o nome disso aqui?

   Kyryan gemeu baixinho.

   Perturbada, Liliana por fim afastou-se.

   - O que está tentando fazer comigo Lili?

   Ela fitou-o com fingida inocência.

   - Eu?! Nada milorde. Isto é, estou interessada, em aprender o belo idioma do seu povo. Você prometeu ensinar-me.

   De súbito, ouviram um ruído estridente no salão, do outro lado do biombo.

   - Viu? Eu lhe disse que você deixaria cair! - Osyh esbravejou.

   - Pelo jeito, estava bem próxima do quarto.

   - A culpa foi sua! Quem mandou esbarra em min? Dena reclamou.

   Liliana sentiu o rosto em chamas e Kyryan correu para vestir a túnica. Ele também se sentia constrangido por ter sido surpreendido num momento tão íntimo.

   - Oh, você enrubesceu! - Liliana observou admirada. Então, o marido não mentia ao confessar que era tímido. O fato agradou-a não só por provar a sinceridade dele, mas também por considerar adorável aquela faceta de seu caráter.

   - Não tire conclusões precipitadas. Fiquei vermelho porque abaixei-me para apanhar a roupa dentro da arca, só isso - ele negou, esforçando-se para parecer sério. Seus olhos porém brilhavam de divertimento. - Por mais que deteste, sou obrigado a sugerir que abotoe o vestido, milady. Caso contrário, não me responsabilizo pelo que possa acontecer... - ameaçou em tom malicioso, enquanto se aproximava para fazer-lhe cócegas nas costas nuas.

   Rindo, Liliana esquivou-se das mãos ávidas de Kyryan.

   - Ah, não vejo a hora de termos um quarto de verdade para nós. Essa falta de privacidade é terrível!

   Kyryan lançou-lhe um sorriso lúbrico.

   - começo a crer que foi o maior erro que cometi na vida. Que idéia infeliz, a de não construir uma alcova onde ninguém nos interrompesse... de qualquer modo, as criadas já nos ouviram mesmo. Assim, por que não aproveitamos e fazemos o que elas já sabem que estamos fazendo?

   Liliana balançou a cabeça em sinal de concordância e despiu o vestido.

  

   Torcendo os lábios num esgar de ódio, Priscilla ergueu a cabeça do pai e deixou-a cair novamente sobre a escalavrada mesa, produzindo um ruído surdo. O homem emitiu um grunhido, mas não despertou do estupor provocado pela embriaguez.

   - Durma bem, papaizinho - murmurou com escárnio, sacudindo o jarro de vinho. Estava completamente vazio.

   Dinheiro bem empregado, pensou com um sorriso satisfeito.

   Depois de suportar anos de miséria em conseqüência da devassidão do pai, Priscilla descobriu que a melhor coisa a fazer era mantê-lo em estado de permanente intoxicação. Com esse objetivo, abstinha-se de comprar alimentos para assegurar que haveria bebida suficiente para os seus propósitos. Apesar da fome, valia a pena, pois assim ele a deixava em paz.

   Quando a lua atingiu o meio do céu, ela vestiu o manto. A noite estava fria e úmida, mas ela precisava sair. Negócios importantes e também muito prazer, a aguardavam na floresta.

   Os poucos criados que restaram no castelo eram demasiado velhos ou estúpidos para prestarem atenção em suas atividades. Deviam estar na cozinha, queixando-se da falta de comida, como de hábito. Sem se incomodar com eles, Priscilla apressou-se a ir ao encontro de seu amante. Nem o ar gelado do inverno podia espantar a excitação que lhe fervilhava o sangue com a simples antecipação das carícias que a esperavam.

   Priscilla arrancou as roupas do namorado, empurrando-o para o chão enquanto o beijava com sofreguidão.

   Ele já se havia acostumado com seu jeito frenético e correspondeu com igual avidez, levantando a saia de seu vestido surrado para penetrá-la por inteiro com uma só estocada. Pouco depois, soltando um grito rouco, deu o ato de amor por encerrado e afastou-a, saciado.

   Em seguida, Ivor ap Rhodri levantou-se e, vestiu os calções e a túnica esfarrapada.

   - Senti sua falta - comentou, imprimindo um tom de sinceridade às palavras.

   - Diga isso de uma forma que me convença - ela replicou.

   Ivor suspirou e satisfez-lhe o capricho. Pacientemente, proferiu as expressões normandas que ela lhe havia ensinado.

   - Fiquei com muita saudade, meu amor.

   Contente, priscilla sentou-se e, com um gesto, chamou-o para acomodar-se a seu lado.

   - Onde você estava? - inquiriu.

   Ele acocorou-se perto dela, embora não tão próximo que pudesse roçar seu corpo.

   - Esta floresta é muito perigosa para mim.

   - Antes não era.

   - A presença de Morgan faz muita diferença.

   - Aquele bastardo! - Priscilla exclamou em Normando.

   Embora não compreendesse os vocábulos, Ivor captou a fúria em sua voz.

   - Quanto tempo pode ficar comigo?

   Ivor sorriu. Embora não fosse uma mulher atraente, ela era prestativa e ansiava tanto por obedecer qualquer ordem que lhe desse que às vezes ele se indagava até onde a amante iria para agradá-lo.

   - Não muito - replicou com uma ponta de genuíno pesar. - Você decerto saberia informar-me se lorde Trevelyan está vindo para cá.

   - Ele virá sim. Kyryan Morgan está preparando uma festa. Como se eu quisesse assistir ao comovente espetáculo amoroso do casal mais apaixonado do mundo! Oh, é repugnante! - Priscilla desabafou.

   - Uma festa?

   - Suponho que gostem de me "proteger". Talvez pensem que, com isso, conquistam o reino dos céus. Como quando dão esmolas aos mendigos. Bem, dessa vez não lhes darei este prazer. Eu não irei.

   Ele relançou os olhos em sua direção, ignorando a tagarelice incessante pela qual não sentia o menor interesse. Priscilla pareceu-lhe mais magra do que um cachorro vira-lata, rude, envelhecida e amarga. Comparada com à esposa de Kyryan Morgan... bem não havia comparação.

   Ao lembrar-se da beldade loira que vira cavalgando como uma deusa sob o vento, ivor sentiu uma pontada na virilha.

   - Seu pai pretende comparecer a festa?

   Como sempre ocorria quando mencionava lorde Horton, ela fulminou-o com um olhar homicida.

   - Sim - sibilou.

   - E você não?

   - Já lhe disse que não.

   - Mas você poderia obter informações importantes para mim. Preciso descobrir quando terminará a reconstrução do castelo de Morgan e se lorde Trevelyan lhe enviou mais homens.

   - Não quero ir - Priscilla rebateu com impertinência - Não suporto esse homem, muito menos sua mimada mulherzinha.

   Ivor refletiu por alguns segundos e optou por não forçá-la. Priscilla lhe havia ensinado um bocado do idioma normando, arranjava comida para ele e seu bando e mantinha-o a par de detalhes da vida dos nobres da região. O que ela lhe dissera já valia muito, e ainda lhe poderia ser útil por um bom tempo. Apesar de saber que, um dia, teria que livrar-se de Priscilla. Uma amante ciumenta e ressentida constituía-se num verdadeiro perigo. Se por alguma razão, se sentisse ameaçada de perdê-lo, era bem capaz de contar o que não devia, às pessoas erradas, só para se vingar. E esse dia talvez estivesse próximo. Melhor não obrigá-la a ir a festa dos Morgan.

   - Você conhece a mulher dele? Priscilla observou-o com astúcia.

   - Por quê?

   Sem responder, Ivor sacudiu os ombros, simulando indiferença.

   - Aquela bruxa estúpida e imprestável!

   Mais uma vez, ele apreendeu o sentido mais pelo tom irado do que pelas palavras. Ainda se atrapalhava com o Normando, um idioma que desprezava. Quanto a fúria de Priscilla, esta reforçava sua suspeita de que a amante nutria uma profunda inveja de lady Morgan, por sua riqueza. Mas também pelo marido.

   - Está bem, não precisa ir - declarou com serenidade.

   Ela sorriu e subiu a mão ao logo do quadril dele.

   - Não demore a procurar-me, meu querido. Anseio pelo momento de voltarmos a ficar juntos...

   - Quando é a festa?

   - Dentro de dois dias.

   Ivor franziu a testa.

   - Então, não poderei voltar logo. Não seria seguro, principalmente sozinho.

   - Nem você nem seus homens têm nada temer de minha parte.

   - Sei disso - ele aproximou-se e tirou o manto dos ombros de Priscilla.

   - Preciso de você - murmurou, colando os lábios nos dela. Com movimentos apressados, desatou os laços do vestido. Quando desnudou-lhe os seios diminutos e emurchecidos, a amante gemeu.

   Ivor deteve-se por um instante.

   - Talvez eu devesse trazer meus homens. Eles podem quere-la também.

   - Você me protegeria, não é?

   - Protege-la?

   - Salvar-me.

   - Se você desejasse. Mas você apreciaria os rapazes, tenho certeza. Espero que a minha mulher seja...

   - Condescendente? - havia um traço de aborrecimento no tom de Priscilla.

   - O que você quer dizer?

   - Que você adoraria ficar observando enquanto entrego-me a seus companheiros. Não é isso?

   Ele assentiu com veemência, dardejando-lhe um olhar concupiscente. A volúpia que ela vislumbrou em sua expressão era o sentimento mais próximo do amor que já recebera.

   - Ah, minha querida... você faz tudo que mando, satisfaz todas as minhas fantasias! Eu devia desposá-la.

   Com um sorriso lúbrico, Priscilla Horton deitou-se sobre as folhas do chão e puxou-o para cima de seu corpo esquálido.

   - Quantos homens pretende trazer? - cochichou-lhe no ouvido.

  

   Liliana suspirou contente, ao inspecionar o piso superior, já quase pronto. As paredes estavam praticamente secas, com exceção de alguns trechos onde ela havia espalhado a mistura de cal, tinha que admitir, mas as tapeçarias escondiam as manchas de maneira satisfatória. Os homens que Kyryan enviara fizeram um bom trabalho de apainelamento com carvalho, que Osyth e Dena poliram até brilhar.

   Contudo, a melhor de todas as benfeitorias era sem dúvida, a separação de uma ala com quartos de dormir. Diante da iminente chegada das visitas, decidiram dividir o espaça em dois dormitórios, com uma saleta entre ambos. Kyryan insistiu em paredes de carvalho maciço, que isolaria os ambientes de modo a impedir que os ruídos de um fossem ouvidos no outro. Dado o abandono com que ele e Liliana faziam amor, aquela era uma providência essencial.

   Liliana encaminhou-se a uma das mesas e forrou-a com uma toalha de linho delicadamente bordada. Queria tudo arrumado antes que seu pai e os Beaumare aparecessem. Por sorte, Kyryan e os servos haviam terminado o abate de outono, nenhuma outra galinha apresentara sintomas da doença, as maçãs tinham sido colhidas e Sir Nevil não apenas mandara a forragem prometida, como também os presenteara com vinho da melhor qualidade.

   - Ficou encantador, por isso pare com tanto rebuliço.

   Liliana sorriu ao escutar Kyryan aproximar-se por trás e enlaçou-lhe a cintura. Com uma das mãos ao redor de seu seio, beijou-lhe o pescoço.

   Enlevada, ela virou-se para examiná-lo da cabeça aos pés com ar crítico.

   - Não gostei - gracejou. - Você está demasiado bonito para andar por aí...

   Kyryan puxou-a pelas mãos, abraçando-a.

   - Cometi um erro ao ensiná-la a zombar. Agora, não pára mais.

   - Se realmente quiser, posso parar.

   - Não - murmurou antes de depositar-lhe na boca um longo e intenso beijo.

   -Você, é um professor muito eficiente - Liliana suspirou recuando um passo, depois que seus lábios se separaram. - Competente da mais, na verdade. E sempre acaba por distrair-me...

   Kyryan franziu a testa. Já a conhecia o suficiente para adivinhar quando algo a perturbava.

   - O castelo está pronto para receber os hospedes. O que a preocupa agora Lili?

   - Nada,.. é que.., Priscilla Horton deixou-me intrigada - Liliana confidenciou. O mensageiro que enviara aos Horton com o convite para, a festa retornou com o recado de que ela não compareceria. Uma recusa pura e simples, em nenhuma explicação.

   Kyryan lançou-lhe um olhar de incredulidade.

   - Por quê? Por mim, fico feliz que não venha. Lady Horton seria uma nota dissonante na alegria da festa.

   Liliana recordou ódio que vislumbrou nos olhos da moça durante o banquete dos Northrup. Não apenas ódio, mas também amargura e ressentimento, que chegava a inspirar medo. O pior era que dirigia-se a todos, sem distinção.

   - Ela me assusta - revelou.

   - Concordo que sua feiúra seja um tanto assustadora, mas... é apenas uma moça.

   Liliana cruzou os braços, tomada por uma súbita sensação de frio.

   - Só uma moça, talvez, mas capaz de causar mal, se assim decidir. Jhone comentou que há rumores a respeito da existência de uma pessoa ajudando os rebeldes. Alguns acreditam tratar-se de alguém entre os normandos.

   - Creia-me, Lili, não temos traidores em nosso meio, caso contrário, eu saberia.

   Liliana desejava sentir-se tão confiante quanto o marido, porém o instinto a advertia, para o seu temor, que havia um fundo de verdade nos boatos do vilarejo. Abriu a boca para replicar, todavia Kyryan adiantou-se:

   - Estou ouvindo cavalos. Acho que eles chegaram.

   - Mesmo?! - Todas as preocupações envolvendo Priscilla Horton e os bandoleiros sumiram de sua mente, e ela arregalou os olhos, quase em pânico. - Como está meu aspecto? Pareço cansada, ou despenteada? Devo mudar o vestido? Oh, meu Deus!

   - Calma! Lady Morgan, declaro-lhe que, jamais a vi tão bela quanto neste momento. Olhe só este salão! É o mais maravilhoso de todos!

   - Não brinque Kyryan!

   - Falo sério, Lili. Não precisa enervar-se, está tudo perfeito. Da anfitriã ao castelo, passando pelo marido, claro.

   Liliana lançou-lhe um sorriso breve e inseguro antes de disparar escada abaixo para receber o pai. Torcia para que ele não se desapontasse. Não depois de todo o trabalho que tiveram.

   Na verdade, a impressão de lorde Trevelyan estava longe do desapontamento. Ignorava qual haveria sido a reação, da filha ao descobrir as péssimas condições do castelo, e não se teria surpreendido se ela voltasse para a casa paterna poucos dias após o casamento. Surpresa foi constatar que ela não o fez.

   Agora, examinando a reconstrução da muralha e a restauração dos prédios agregados, bem como o semblante radioso de Liliana, ele experimentou uma grande sensação de alívio e contentamento.

   A alegria era tanta que o recompensava pelo aborrecimento de aturar a companhia dos Beaumare.

   - Seja bem-vindo, papai! - Liliana saudou-o com euforia, correndo em sua direção enquanto ele desmontava.

   Lorde Trevelyan envolveu-a num sorriso caloroso, também endereçado a Kyryan, que se postara atrás da esposa.

   -Vocês operaram milagres aqui! - elogiou, olhando em torno.

   - Lorde Beaumare, lady Beaumare, sejam bem-vindos - Liliana cumprimentou-os com maior formalidade.

   Os lábios de Averil se curvaram ligeiramente, num esboço de sorriso. Barris, com esforço, desceu do cavalo, suando e bufando.

   - Estou morto de sede - anunciou em alto brado.

   Averil resmungou uma censura, lembrando ao marido que a educação mandava retribuir as saudações dos anfitriões.

   Liliana, porém, sorriu com jovialidade.

   - É natural, após uma jornada dessa. Venham, eu preparei suco de maçã para vocês - convidou, conduzindo-os ao salão, no andar de cima; Kyryan deu o braço a lady Beaumare, como um, bom cavalheiro.

   Barris, entretanto dispensou o suco, argumentando que só o vinho poderia, devolver-lhe as forças após uma árdua viagem.

   Sem, perder a desenvoltura Liliana mandou servir a bebida solicitada.

   Averil sorveu o conteúdo da taça de um só gole e observou o salão, atenta aos menores detalhes.

   - É lamentável - comentou em tom de fingida solidariedade - como os criados de hoje são desprovidos de habilidade. Pobre querida, deve ter sofrido tanto tentando fazer com que os homens realizassem um bom trabalho aqui. Se me houvesse avisado, eu lhe teria enviado alguns especialistas que conheço.

   Muita gentileza sua - Liliana respondeu com igualmente falsa doçura. - Não se trataria de servos da sua propriedade, com certeza. Você passa tão pouco tempo lá que encontraria grande dificuldade em saber quais deles são eficientes.

   A expressão confusa de Averil deixou claro que ela não conseguira perceber se a anfitriã a louvara ou não. E o semblante neutro de Liliana não acrescentava nenhuma informação a respeito.

   - Sim, bem... na verdade, eu me referia a alguns homens de lorde Gervais.

   - Devido ao pouco tempo que dispúnhamos - Kyryan interveio, - tivemos que lançar mão de alguns aprendizes. No futuro, porém, cuidaremos para que os mestres aperfeiçoem o que for necessário.

   - Oh, espero que sim - Averil exclamou.

   -Excelente vinho, este! - Barris intrometeu-se, pouco interessado na pintura das paredes, enquanto, tornava a encher a taça.

   - Presente de Sir Nevil - Liliana contou.

   Lorde Trevelyan sorriu.

   - Jamais duvidei que os Northrup seriam bons vizinhos para vocês. Como vai Nevil?

   Por algum tempo conversaram a respeito de lorde Northrup e sua esposa, que viriam para a festa no dia seguinte.

   Averil, obrigada a manter-se calada por minutos inteiros, interrompeu o diálogo entre pai e filha para queixar-se da jornada.

   - As árvores invadiram a estrada, estreitando-a tanto - reclamou - que um passarinho sujou meu melhor manto.

   - Em Gales, isso seria considerado um sinal de boa sorte - Kyryan comentou com expressão séria.

   Liliana imaginou se o que o marido dissera era verdade, todavia, captou-lhe o brilho divertido no olhar e conteve-se para não rir.

   - Depois de sua terrível viagem, estou certa de que apreciaria descansar antes da ceia - declarou, levantando-se.

   Ao vê-la erguer-se, Averil não teve outra alternativa além de imitá-la. Todavia, aquela precipitação contrariou-a. Afinal, ainda não terminara de falar a respeito de suas peripécias. Agora, sua narrativa teria que esperar. Que bela anfitriã estava-lhe saindo a "adorável" lady Morgan!

   De pé ao lado da lareira, Kyryan fazia companhia a Elwy. Havia se banhado e vestido para a ceia desde antes da chegada do sogro.

   - Ele me pareceu bastante satisfeito com as benfeitorias na propriedade - Elwy disse.

   - Também achei. Rapaz, nem lhe conto o quanto fico aliviado. - Kyryan concordou. - Pelas chagas de Cristo! Era como se eu tivesse voltado à condição de escudeiro, ansioso por aprovação.

   - Bem, console-se. Você obteve total aprovação.

   - Graças a Deus.

   Elwy lançou-lhe um olhar enviesado.

   - Claro que o que mais deve ter impressionado o velho foi a expressão de felicidade no rosto da filha. Sua esposa, ultimamente, vive nas nuvens.

   Kyryan soltou uma risada bem-humorada.

   - Pois é lá que tenho vivido também.

   - Enquanto o moinho não arrebentar de novo, nem aparecer galinha doente, nem der gafeira no gado...

   - Ei, chega! Adoro amigos animadores como você!

   - Apenas considerei conveniente lembrar-lhe que este mundo é um vale de lágrimas.

   Kyryan olhou-o com ceticismo.

   - Só se for para você. Como vai a sua encantadora viuvinha?

   - Falou em lágrimas, tinha que mencionar a viúva! Rapaz por qualquer coisa ela se desfaz em pranto! Pelo visto, o marido era um santo.

   - Então, não há a menor esperança?

   - Nenhuma. Todavia, mudou-se recentemente para o vilarejo um mercador com três filhas lindas e solteiras. Desta vez...

   Elwy calou-se com a entrada de lorde Trevelyan. Os dois homens mais jovens curvaram-se em saudação.

   - Quero parabenizá-los pela restauração do salão. Ficou excelente - ele observou com genuína satisfação. - Não pensei que pudessem fazer tanto em tão pouco tempo.

   - Pois cumprimente sua filha pela proeza milorde - Kyryan replicou.

   - Como?

   - Liliana organizou tudo. E trabalhou muito também. Embora lady Beaumare talvez a aconselhasse a aperfeiçoar suas habilidades...

   - O quê? - Lorde Trevelyan mostrou-se perplexo. - Está querendo dizer que Liliana...

   - Bem, é possível que ela nunca venha a se tornar uma grande carpinteira. Como pintora porém, creio que há possibilidades...

   - Eu sabia que e minha filha possuía, muitos dotes, mas este... francamente, declaro-me surpreso.

   Os três riram, partilhando o mesmo contentamento. De súbito, lorde Trevelyan fitou-os com ar grave.

   - Vi muitas fogueiras sendo preparadas no caminho para cá - confidenciou com cenho franzido. - Ouvi dizer que há salteadores na floresta, como deve ignorar, mas não imaginava que o problema fosse tão sério que justificasse essas fogueiras de aviso.

   - Como medida de precaução - Kyryan explicou - tenho enviado patrulhas para os bosques. Até agora porém, nem sinal dos rebeldes, o que me leva a julgar que eles devem ter ido para outra região. Quanto às fogueiras, mandei prepará-las para celebrar a véspera do Dia de Todos os Santos, amanhã à noite.

   - Ah, fico aliviado, acredite - lorde Trevelyan confessou ao genro.

   O casamento dos dois estava se revelando muito melhor do que ousara sonhar. Considerava Kyryan Morgan um rapaz de caráter, além de cavaleiro dos mais hábeis e corajosos. Contudo, temera que Liliana reagisse mal ao ver o castelo em ruínas. De certa forma, ele reconhecia, submetera a filha a um duro teste de força de vontade e determinação. Só agora, que tudo parecia haver dado certo, admitia que sua decepção seria profunda, se ela tivesse fracassado.

   - Está preocupada de novo. O que é desta vez? - Kyryan indagou à esposa, na noite seguinte, enquanto a observava vestir-se para a ceia, refestelado sobre a cama. Apreciava-lhe o bom gosto, especialmente no que se referia a vestuário. Para aquela ocasião, Liliana escolhera um vestido de brocado vermelho, ornamentando os cabelos com um véu de seda branca. Kyryan sorriu, deleitado.

   - Contaram-lhe mais algum boato sobre os bandoleiros?

   - Não - Liliana reprimiu um suspiro de aborrecimento pelo tom irônico da pergunta. Tentando manter-se imperturbável, ajustou o véu aos bandós dourados. - Só estou ansiosa para que a ceia seja perfeita.

   - Não somos santos, portanto ninguém pode esperar perfeição de nossa parte.

   Liliana deu de ombros, colocando uma faixa de couro flexível sobre o vestido. Inspecionou o marido com ar crítico. Kyryan trajara sua melhor túnica e escovara os cabelos negros, embora não houvesse no mundo escova capaz de domar-lhe as mechas revoltas - de que ela tanto gostava.

   - Se ao menos Averil Beaumare não tivesse vindo! Ela está sempre procurando defeito nas coisas!

   - Coitada... com aquele marido, decerto não lhe resta nada melhor para fazer. Provavelmente, sua única fonte de prazer é encontrar chifre em cabeça de boi.

   - Talvez você tenha razão.

   - Se quer um conselho, esqueça-a e trate de divertir-se.

   - Tentarei.

  

   - Magnífica festa! - Sir Nevil exclamou, entusiasmado, para quem o ouvisse. - É impressionante o que algumas pessoas são capazes de fazer com um porco!

   Liliana sorriu, feliz. A carne preparada por Sara, com a ajuda de Osyth e Dena, ficara mais saborosa do ela podia esperar. Precisava agradecer-lhes pelo esmero. Jhone organizara a ordem com que os pratos eram servidos, de forma que as iguarias se sucediam com precisão militar. Até Averil Beaumare parecia considerar o serviço irrepreensível. Pelo menos, até ali.

   Liliana fitou o marido e o pai, desviando o olhar na direção da desagradável convidada.

   Averil contemplava, com ar crítico a mancha, de vinho sob a taça de Barris, convenientemente esquecendo que ele era o responsável pela nódoa, derramando a bebida sobre a toalha de linho que Liliana bordara com tanto trabalho.

   Será que nada agrada esta mulher? Ela pensou com desgosto.

   Nesse instante, lorde Beaumare arrotou alto e Averil ficou rubra de vergonha.

   Liliana olhou para Kyryan, tão bonito e charmoso, contando ao sogro alguma história relativa a ovelhas. Bem, talvez ele estivesse certo e Averil só conseguisse alcançar um pouco de felicidade com as falhas e desgraças alheias.

   Kyryan ergueu-se, nesse momento, e anunciou que chegara a hora de começarem o baile.

   Com uma velocidade que deixou Liliana atônita, os homens afastaram as mesas. Gareth, que se mantivera silencioso e quase invisível até aquele instante, apanhou sua pequena harpa e começou a tocar. Kyryan tomou a mão da esposa e conduziu-a para o centro do salão, para o estampie, um tipo de quadrilha em que cada casal exibia-se sozinho, um após, o outro.

   Kyryan não era um dançarino brilhante, como Liliana descobrira no baile de casamento, mas se esforçava tanto e parecia tão à vontade que ela acabou gostando. De qualquer forma, só o fato de estar abraçada com ele já lhe agradava sobremaneira.

O casal seguinte, os Northrup, sucedeu-os e depois foi a vez dos Beaumare. Por fim, lorde Trevelyan e a filha. A essa altura, todos no salão batiam palmas e alguns cantavam a melodia tocada por Gareth.

   Uma carole veio em seguida. Aqueles que desejavam dançar de¬ram-se as mãos, formando um grande círculo que se movia para os lados, para a frente e para trás, no ritmo agitado da música.

   Osyth e Dena se esbofavam para servir vinho e cerveja aos sedentos convivas. Por fim, foram tragadas pelo círculo e dançaram junto com os participantes.

   Liliana estava a ponto de repreendê-las por negligenciarem o ser¬viço quando Jhone surgiu diante da mesa principal trazendo jarro intricadamente talhado em que se viam três saliências redondas perto da borda, cada um deles com um pequeno orifício, e uma alça que se estendia até a base. Kyryan apanhou o jarro e ofereceu-o ao sogro.

   - Faz parte da tradição gaulesa que todos os convidados bebam deste vaso na véspera do Dia de Todos os Santos - declarou em tom solene.

   Lorde Trevelyan, sorrindo, aceitou o jarro e sorveu um gole. Averil, sentada ao lado de Liliana, comentou:

   - Este jarro é a coisa mais feia que já vi em minha vida. Como pode alguém beber através de um orifício tão diminuto? Bem que me disseram que os gauleses são avarentos. Só não imaginava que fossem tanto assim...

   Esforçando-se para não dar atenção à tagarelice maldosa de Averil, que não parava de falar sobre o povo gaulês e seus estranhos costumes, e enquanto Sir 'Nevil e lady Eleanor tomavam cada um o seu gole, Liliana reparou que eles haviam segurado o vaso de uma maneira peculiar, cobrindo com os dedos os dois outros orifícios.

   Para beber, todos utilizavam a mesma abertura, junto da alça.

   Quando Kyryan passou o jarro para Averil, que parecia de alguma forma abrandada em sua mordacidade com o gesto delicado do anfitrião, Liliana notou as risadinhas abafadas das pessoas que observavam os convidados da mesa principal. Relanceou os olhos na direção dele, porém Kyryan exibia uma expressão nobre e virtuosa, o que a deixou desconfiada.

   Averil levou o vaso aos lábios e colou-os no orifício mais distante da alça. Imediatamente das duas outras aberturas transbordou cerveja sobre seu rosto, escorrendo até o vestido.

   Liliana mordeu um dedo a fim de reprimir uma gargalhada diante da cena cômica. Com os cabelos pingando cerveja, a indignada lady

   Beaumare olhava para a frente com olhos vítreos de perplexidade é susto. Todos no salão, incluindo o marido da dama, contorciam-se de tanto rir, o que em nada ajudava Averil a refazer-se do choque.

   Kyryan inclinou-se na direção dela, apressado e solícito. Arrancou-lhe o véu ensopado - infelizmente, revelando a cabeleira rala de Averil - e começou a dar-lhe palmadinhas nas faces.

   - Oh, lady Beaumare, que azar. Eu pensei que conhecesse o truque do jarro! Que lástima!

   - Eu... Oh, é abominável! - ela gaguejou, atirando o véu para longe. - Oh... meu vestido ficou arruinado!

   -Jamais gostei desse vestido, de qualquer modo - Barris rugiu com bom humor - Sossegue, eu lhe comprarei outros novos... e mais bonitos. Até que a despesa vale a pena, pelo prazer de vê-Ia tão engraçada!

   Averil bufou, ofendida, e, juntando o que restava de sua arrogância, levantou-se e marchou para o aposento que lhe fora destinado.

   - Isso não foi muito gentil - Liliana cochichou no ouvido do marido, de pé atrás dela.

   - Tem razão - ele respondeu baixinho, - mas agora poderemos divertir-nos sem a presença dela para nos aborrecer, certo?

   - Ainda bem que papai acertou o lado para beber. Eu ficaria enfurecida se ele....

   - Eu lhe contei o "segredinho". E aos Northrup também.

   Liliana não pôde deixar de rir.

   - Você é um demônio Kyryan Morgan!

   - Eu sei. Não é maravilhoso?

   Em seguida, Kyryan pediu silêncio e acenou para Elwy, que levantou-se e apanhou a harpa. Dedilhou algumas cordas e começou a entoar sua balada predileta:

  

   "Foi num dia, certa vez,

   de solstício de verão,

   que um cavaleiro gaulês

   de uma jovem quis a mão...

   não sabia obrava herói

   a quem o amor corrói

   que teria que lutar

   pelo amor da linda donzela

   a quem ousar erguer o olhar...

   pois normanda era a sua bela

   a quem o orgulho comanda

   e seus anseios destrói

   camponês de origem ele era

   e ela, nobre donzela..."

  

   Enquanto Elwy prosseguia a interminável canção, lorde Trevelyan aproximou-se da filha com um sorriso.

   - Eu acalentava a esperança de que Morgan a tornasse feliz ¬murmurou. - E não me decepcionei. Não a via tão alegre desde que era uma garotinha.

   - É verdade. O mérito é seu papai, pois soube escolher-me um excelente marido.

   - Eu soube mesmo, não?

  

   Depois da cantoria, as brincadeiras, incluindo diversas que profetizavam o futuro dos participantes, sucederam-se por várias horas.

   Depois, o baile recomeçou e só parou quando cansados, os dançarinos preferiram cantar. Por fim, Barris Beaumare embriagou-se a ponto de cair estatelado num canto, Maude e Gareth desapareceram juntos, Jhone principiou limpar a, mesa a despeito dos homens que ainda bebiam, e Osyth e Dena adormeceram sentadas no chão.

   - Não, não, esperem. Lembrei como terminou o caso, mas é melhor contá-lo do começo - Elwy tartamudeou, tomando a encher a taça de vinho, tentando pela décima vez narrar uma história - Havia um velho moendeiro... ou será que era um padre?

   Kyryan sorriu para a esposa, que, pestanejando, lutava para man¬ter-se acordada.

   - Desculpe, mas acho que terei que ouvir a narrativa numa outra ocasião - Lorde Trevelyan disse ao levantar-se. Em seguida, diri¬giu-se para Liliana. - Receio que amanhã eu durma até tarde, por isso não se preocupe comigo. Devo confessar que me diverti como nunca, minha querida. Boa noite.

   - Boa noite, pai - ela respondeu, observando-o afastar-se na direção do dormitório que improvisaram para ele.

   - Ah, agora eu lembrei - Elwy bradou com a voz enrolada. - Havia um velho frade que resolveu partir para Canterbury... ou teria sido Roma?

   Kyryan sacudiu a cabeça e ergueu-se.

   - Tenha bons sonhos, Elwy.

   - Vai abandonar-me aqui? Justo no momento, em que ia contar o caso do frade...

   - Amanhã, companheiro.

   - Desmancha-prazeres...

   Kyryan estendeu a mão e ajudou a esposa a levantar-se.

   - Durma bem, Elwy - ela resmungou, engolindo um bocejo. Ele sabia que Liliana estava exausta. Ainda assim, em vez de conduzi-la ao quarto, levou-a para o pátio.

   - Aonde estamos indo? - Liliana indagou sonolenta.

   - Há algo que eu gostaria de fazer antes de irmos dormir.

   - Oh! - ela exclamou, repentinamente desperta.

   - Você é um demoninho devasso mulher - Kyryan gracejou, - e está cansada demais, de qualquer forma, trata-se apenas de outra tradição - revelou, saindo para o ar gelado da noite. O negrume do céu fulgurava de estrelas prateadas.

   - Oh...

   - Contudo, se ficou desapontada... - ele estacou e puxou-a para si, beijando-a com paixão.

   Liliana agarrou-se ao marido, movendo os lábios com tamanha volúpia que Kyryan quase esqueceu o que fora fazer lá fora.

   - Está frio demais! Preciso do meu manto.

   - Logo focará aquecida - ele replicou, disparando para o portão. Liliana teve que correr para alcançá-lo.

   Então, Kyryan abaixou-se e apanhou uma pedrinha do chão.

   - Pegue um - solicitou a esposa, apontando para os seixos que os pedreiros haviam deixado cair.

   Liliana apressou-se recusar, tiritando de frio. Tudo o que desejava era ir para a cama. Com Kyryan.

   O marido, todavia, insistiu. Depois que ela a contragosto, obe¬deceu, Kyryan levou-a para um dos locais onde os servos gauleses tinham acendido, uma grande fogueira. O lugar agora, encontrava-se deserto.

   - Para onde foram todos? Liliana indagou chegando perto do fogo.

   - Para suas casas - Ele explicou em voz baixa - seus espíritos estão rondando pôr ai, nesta noite.

   Liliana relanceou os olhos por cima do ombro com nervosismo.

   - Então, é melhor irmos também.

   - Daqui a pouco. Primeiro, jogue sua pedra na fogueira.

   - Para quê?

   - De manhã voltemos para procurá-la. Se nós encontramos, isso significa que você terá boa sorte no próximo ano.

   - E se não a achamos?

   - Má, sorte, naturalmente.

   Liliana observou o seixo, a luz bruxuleante das chamas, duvidando que fosse capaz de reconhecê-la no dia seguinte. Bem, não custava tentar. Respirou fundo e atirou a pequena pedra no fogo. Com gestos solenes, Kyryan limitou-a. em seguida, os dois deram-se as mãos e correram de volta para casa.

   - Puxa, fiquei sem fôlego! Liliana arquejou.

   - Não pare! Quer que os espíritos a apanhem?

   Sem se atrever a indagar o que aconteceria caso os espíritos o fizessem, ela esforçou-se para manter o ritmo desabalado até chegarem ao castelo.

   - Podemos ir para a cama agora?

   - Existe outra tradição gaulesa que manda fazer amor no Dia das Bruxas - Kyryan declarou com voz rouca.

   Sentindo o coração díspar e os joelhos vergarem, Liliana suspirou.

   - É mesmo?

   - Não - Kyryan sorriu com malicia - Nada nos impede, porém de iniciarmos uma. Que tal se afirmarmos que traz sorte?

   - Acho que sou a mulher mais, feliz de toda a Inglaterra. - Liliana murmurou com suavidade, deixando-se conduzir rumo à al¬cova.

  

   - Kyryan, pare, - Liliana exclamou, na manhã seguinte reme¬xendo o monte de cinzas. - Creio que encontrei minha pedra!

   - Tenho que achar a minha - ele replicou com firmeza, agachando-se ao lado do que restou da fogueira. - Estou certo de que a joguei bem aqui.  

   - Ora, isso, não passa de superstição, você sabe.

   Ele ergueu-se com lentidão, o cenho franzido.

   - E uma tradição relativa à sorte.

   - Logo começará a chover. Depois que a água lavar as cinzas, poderemos procurá-la de novo.

   - Se quiser, pode ir para o castelo - Kyryan retrucou, obstinado. - Eu ficarei mais um pouco.

   Liliana deu-lhe um beijo no rosto, e encaminhou-se sozinha para casa.

   Um homem saiu de trás de uma árvore próxima da fogueira.

   - Saudações Kyryan ap Morgan - cumprimentou em Gaulês.

   Kyryan levantou a cabeça devagar, cônscio de que não trazia qualquer arma.

   - Saudações, Ivor ap Rhodri - retribuiu no mesmo idioma.

   - Alegra-me ver que você mão esqueceu o dia das Bruxas.

   - Pensei ter lhe dito para sair de minha propriedade, Ivor.

   Havia movimentação entre o arvoredo. E não era causado pelo vento.

   - Nenhum lacaio dos normandos pode expulsar-me das terras de meus ancestrais - Ivor bradou com altivez, esboçando um sorriso pouco amistoso. - Eu tenho razão e você sabe disso. Esta região não pertence aos nobres normandos, mas aos gauleses. Já estávamos aqui havia muito tempo quando os invasores chegaram - ele aproximou-se ainda mais. - Os malditos normandos roubaram nossa terra, acabaram com nossos reis, destruíram nossas igrejas, baniram nossas tradições. Vieram com seus castelos, ordens, leis e arrogância. Tratando-nos como escravos, dando-nos as filhas casa¬mento numa espécie de suborno para pensarmos que nos consideram como iguais.

   Kyryan crispou os punhos

   - O que você quer?

   - Posso entender o quanto foi tentador, Morgan. Talvez eu mesmo sucumbisse, se alguém me oferecesse uma mulher como ela.

   - Saia já da minha propriedade, Ivor.

   - Pretende desafiar-me com as mãos desarmadas, Kyryan? - ¬Ivor sorriu e sacudiu a cabeça. - Você é um homem corajoso, mas está perdendo seu tempo. Não vim aqui para lutar com você.

   - Para que, então? Para celebrar nos galan gaeaf comigo?

   - Queria convidá-lo a juntar-se a nós, para ajudar-nos a rechaçar os invasores normandos. Você poderia tornar-se um grande líder.

   - Apesar de minha família não ter a menor importância? Não ostento duas dúzias de sobrenome, como não ignora - Kyryan re¬plicou com ceticismo.

   Impassível, Ivor não moveu um músculo.

   - Seus filhos... falarão Normando ou Gaulês?

   - O que lhe importa isso?

   - Eu sou um gaulês. Você também costumava ser. Se nos tiram a terra, a religião, a linguagem e a poesia, o que nos sobra?

   Kyryan contemplou o semblante desdenhoso de seu compatriota.

   - Acha mesmo que nós, gauleses, somos tão fracos que não podemos sobreviver aos normandos? Que nosso idioma e nossa poesia nos podem ser roubados? Somos muito mais fortes e resistentes do que imagina Ivor. Além disso, estas terras jamais nos pertenceriam. As fronteiras estão bem definidas. - rebateu com serenidade.

   - Não é verdade. Desde que Gui1herme, o Conquistador, ultra¬passou os 1imites de nossas propriedades, os normandos vêm agindo como sanguessugas, alimentando-se de nossas vidas.

   - Eu fui criado por um homem que é tanto gaulês quanto nor¬mando. Creia-me, estou certo de que todos podemos conviver em paz - Kyryan deu um passo na direção do rebelde. - Além disso, os "velhos tempos" não eram tão bons assim, como muitos homens podem atestar. Eu prefiro julgar as pessoas por seus próprios méritos, não pelo seu parentesco ou riquezas.

   Ivor fungou,

   - Diz isso porque conheceu um normando decente?

   - Bem mais de um.

   - Você vendeu sua herança gaulesa por um punhado de terras e uma mulher bonita.

   - Não pretendo justificar para você minhas decisões e meus deveres de lealdade. Se eu tomar a encontrá-lo em minha propriedade, garanto-lhe que não estarei desarmado. Agora, reúna seus homens e vá embora.

   - Se você não se juntar ao meu bando, será considerado um inimigo do povo gaulês.

   - E se lutar contra mim, você será meu inimigo.

   Ivor deu de ombros e preparou-sé para ir ao encontro de seus companheiros.

   - Nesse caso, nós somos inimigos, Kyryan ap Morgan ap Ianto.

   Enquanto se afastava, Ivor experimentou um grande alívio com a recusa de Morgan. Era inquestionável que o homem assumiria a liderança assim que ingressasse no bando, a despeito de sua origem humilde. E ele, Ivor ap Rhodri, descendente de uma família de pres¬tígio, seria preterido por um reles soldado.

   - O que foi que ele disse? - Dafydd indagou quando Ivor regressou para junto dos rapazes.

   - Não importa. Kyryan Morgan não é mais um gaulês.

  

   Kyryan jamais encontrou sua pedra.

   E, a despeito do desejo de subestimar o fato como "mera superstição", parecia que sua sorte desaparecera junto com o pequeno seixo.

   A epidemia recrudesceu de uma hora para outra, dizimando praticamente todas as galinhas do galinheiro. A temperatura baixou de modo repentino, chovia seis dias em cada sete, o que diminuiu o ritmo do trabalho da reconstrução da muralha. Algumas ovelhas também se contaminaram e, embora Gareth sustentasse que apenas os animais mais fracos, abatidos com a jornada para o sul, haviam sido atingidos, Kyryan sabia que o pastor estava preocupado. O rapaz, agora, raras vezes aparecia no salão, passando a maior parte do tempo junto ao rebanho.

   Bem, pelo menos Ivor e seus homens não tornaram a aparecer e Elwy, o constante, leal e sempre jovial amigo, mantinha o bom humor.

   No meio de tantos dissabores, porém, Kyryan vivenciou um dia de suprema felicidade, quando a esposa lhe confidenciou que suspeitava estar grávida. Contudo, a euforia revelou-se prematura, pois tratava-se de um simples atraso no período menstrual de Liliana.

   Certo dia em dezembro, Kyryan deteve-se diante da muralha externa. O dia estava frio, ensombrecido por nuvens escuras que se acumulavam no horizonte. Por ora não choveria, mas o aspecto do céu não o agradava nem um pouco.

   - Kyryan!

   Ele voltou-se e sorriu para a esposa que se aproximava, caminhando com cuidado por entre as pilhas de pedras utilizadas na reforma do muro.

   - Quando acha que a muralha ficará pronta?

   - Quando for possível - ele respondeu. - O tempo está de¬masiado úmido

   - Você não poderia fazer uma paliçada provisória de madeira? Só para agilizar o serviço...

   O sorriso de Kyryan esvaneceu-se, apesar do prazer que experimentou ao segurar a mão de Liliana.

   - A muralha é assunto meu, Lili. A você cabe cuidar do interior do castelo.

   Ela suspirou de leve, notando as linhas de preocupação na testa do marido. Supôs que ele talvez tivesse razão, por isso mudou de assunto.

   - Queria pedir-lhe que conversasse com Gareth.

   - Gareth? Por quê?

   - Está afligindo Maude.

   Kyryan lançou-lhe um olhar de perplexidade.

   - Mas... não tenho nada a ver com isso.

   Ignorando o protesto, Liliana explicou:

   - O rapaz só cuida do rebanho e não dá a menor atenção à namorada. Maude anda nervosa há dias!

   Liliana sentiu um grande alívio ao perceber que as feições do marido se descontraiam.

   - O que espera que eu faça? As ovelhas são importantes. Além disso, julguei que você ficasse feliz por não ter que ouvir aquela risadinha irritante de Maude o tempo inteiro.

   - Confesso que, sob esse aspecto, estou contente. Contudo, ela tem negligenciado as tarefas. Será que Gareth não poderia aparecer no castelo por algumas horas?

   - Pensarei nisso.

   Liliana sorriu, satisfeita, e ergueu-se na ponta dos pés para bei¬jar-lhe o rosto.   

   - Muito obrigada.

   Kyryan, todavia, não retribuiu o carinho e nem sequer fitou a esposa. Seu olhar perdia-se no horizonte plúmbeo.

   - Onde está Elwy?

   - No castelo.

   - Diga-lhe que quero vê-lo.

   Ela empertigou-se ligeiramente diante do tom autoritário, mas preferiu não replicar, limitando-se a dar meia volta e regressar para casa. Desde a festa, Kyryan não parecia o mesmo homem. Talvez a perda da pedra o tivesse impressionado demais. O fato era que o encontrava sempre taciturno, quando não irritadiço e pessimista. Claro, estavam enfrentando problemas em demasia, mas o mau humor não ajudava em nada a melhorar a situação.

   Ela ficara tão animada com a perspectiva de dar-lhe um filho! O próprio Kyryan deixara-se contagiar pelo entusiasmo, voltando a mostrar-se alegre e bem disposto. Tinham rido muito e passado horas sentados junto à lareira, procurando um nome que agradasse aos dois.

   O que se revelou uma empreitada árdua. As sugestões de Kyryan eram todas gaulesas. O que equivalia dizer "impronunciáveis". Quan¬do ele lhe perguntou, com uma expressão estranhamente grave e ansiosa, que idioma a criança falaria, respondeu que, como era óbvio, que falaria a língua de sua mãe e da babá. O marido, então, fitou-a com tal desapontamento que Liliana retrocedeu, afirmando ter dito uma bobagem. Os filhos deles provavelmente aprenderiam tanto o gaulês quanto o Normando.

   Sem dúvida, ela se precipitara ao mencionar o bebê antes de ter certeza da gravidez. Fizera-o no afã de devolver a Kyryan sua jovialidade costumeira, afastando-lhe da mente a "má sorte" de que ele se julgava vítima desde que seus esforços para achar a pedra resultaram inúteis.

   Contudo, a despeito de não acreditar nas superstições do povo gaulês, Liliana sentia-se um tanto apreensiva. Em especial porque estava demorando demais para engravidar, considerando-se que fazia amor com Kyryan no mínimo uma vez por dia. Quando não duas ou três... o marido revelara-se um amante vigoroso e apaixonado, mesmo no auge das preocupações.

   Liliana entrou no salão. Elwy lá estava, de pé junto do fogo, reclamando de sua habitual falta de habilidade na conquista de uma noiva. Enfrentava decepção após decepção, vendo todas as suas pro¬postas matrimoniais serem recusadas sem maiores explicações.

   - Não compreendo as mulheres! Ele resmungou em voz alta. ¬Está certo que não sou tão bonito quanto alguns homens que existem por ai, mas também, não me considero tão feio assim...

   - Talvez seja a sua reputação - Liliana arriscou um palpite, sentando-se na cadeira em frente à lareira.

   - O que há de errado com ela, milady? Pensei ter, fama de corajoso cavaleiro.

   - Não me refiro a sua bravura - replicou, tentando manter um tom de seriedade. - Quem sabe se você não mudasse de namorada com maior freqüência do que troca a túnica.

   - Mudar de namorada? Não faço isso. Como espera que eu reaja quando Uma mulher rejeita meu pedido de casamento? Que eu me acovarde e chore?

   - Pode ser que elas o submetam a uma espécie de prova, para verificar se você de fato as deseja. Se assim for, lamento informar que não tem se saído muito bem...

   Elwy fitou-a, confuso.

   - Acha mesmo que se trata de um teste?

   Liliana sacudiu os ombros, mas não pôde reprimir um sorriso.

   - Ah, ia-me esquecendo. Kyryan deseja conversar com você. Ele está na muralha, perto do portão principal.

   - Hum... quiçá eu devesse tomar a pedir a mão da viúva. - ¬Elwy murmurou pensativo, enquanto se retirava para ir ao encontro do amigo.

   Quando o alcançou, já havia esquecido a viúva e todas as mulheres que pretendera desposar. O frio se intensificara com um vento cor¬tante que fustigava o pátio e agora a neve começava a cair, cada vez mais forte, cobrindo o chão como um espesso tapete branco.

   Kyryan balançou a cabeça à guisa de saudação.

   - Parece que teremos uma nevasca e tanto...

   - Que Deus nos proteja - Elwy replicou, também preocupado.

   - Amém. Se piorar, teremos que abrigar o rebanho.

   Ambos sabiam que as ovelhas sempre conseguiam encontrar abrigo, em caso de nevasca. Mesmo que a neve as recobrisse, elas se enroscariam umas nas outras de forma a construir uma espécie de iglu, com ar suficiente para garantir-lhes a sobrevivência. O grande perigo era que sucumbissem à inanição, pois, depois de comerem a grama sob os pés, passariam a consumir, a própria lã do corpo.

   E então morreriam.

   - Onde está Gareth?

   - No celeiro, cuidando do último carneiro doente.

   - Vá buscá-lo. Chame Ralf e reúna quantos homens puder, no vilarejo.

   - É para já.

  

   Kyryan e Elwy regressaram ao castelo com grande dificuldade, ofegando de exaustão. Durante todo o dia, haviam dado busca às ovelhas presas na neve. Gareth se encarregara, liderando vários homens de procurar ¬ nas colinas e Ralf se dirigira para o vilarejo, para arrebanhar mais gente para aquele trabalho.

   A neve caía incessante, havia dois dias. Elwy e Kyryan, que avaliavam bem a gravidade   da situação e sabiam o que estava em jogo, e Gareth, que valorizava cada animal, tinham ficado sob a nevasca de forma quase ininterrupta, caminhando pelas montanhas, vasculhando cada riacho com o auxílio de uma longa vareta, receando que alguma ovelha pudesse ter-se escondido ali. Mott, o cachorro de Kyryan, revelou-se um ajudante inestimável, localizando-as pelo cheiro, graças a seu olfato apurado.

   Também haviam achado diversas ovelhas e alguns carneiros amontoados na floresta, abrigados nos arbustos.

   Liliana correu para recepcionar os homens que, enregelados, arrastavam-se para dentro do salão.

   - Venham para perto do fogo e descansem - ela sugeriu, servindo-lhes vinho aquecido com especiarias. Em seguida, dirigiu um olhar aflito ao marido, que mancava, gemendo de dor. Seu rosto estava anormalmente pálido, com exceção de duas manchas vermelhas nas bochechas, causadas pelo frio.

   - O que houve Kyryan? Está doente?¬

   - Rolei de um barranco, acho que torci o tornozelo. Não se preocupe, logo ficarei bem.

   Ela relanceou os olhos para o pé dele e franziu o cenho.

   - Está sangrando! - exclamou, forçando-o a sentar-se num ban¬co.

   - Creio que me cortei num galho de árvore - Kyryan comentou, sorvendo um gole de vinho. - Arranje-me um pouco de comida e faça um curativo. Gareth já voltou?

   - Não - Maude respondeu, aproximando-se com uma tigela de sopa quente.

   Liliana dobrou-lhe a barra da calça, expondo um ferimento feio.

   - Se a temperatura não estivesse tão baixa, você poderia ter sangrado até morrer - murmurou apavorada - talvez se sinta um pouco enfraquecido, por causa da perda de sangue...

   - Amarre uma tira na perna, para evitar que continue sangrando - Kyryan pediu-lhe.

   Ela contemplou o rosto empalidecido e angustiado do marido. Por um instante, indagou-se o que fora feito do rapaz alegre com quem se casara. Quem lhe devolvia o olhar com tanta frieza e de¬terminação era um, homem maduro, um guerreiro em plena batalha. Contudo, ela não permitiria que aquele soldado morresse, Não por causa de uma maldita ovelha.

   - Você não pode sair novamente - afirmou num tom que não admitia contestação, enquanto limpava o corte.

Kyryan começou a tomar a sopa.

   - Só preciso de um pouco de comida e de bebida - ele retrucou com obstinação. - Esqueceu que já fui pastor, Lili? Já fiz isso antes. Sei onde e como procurar os animais melhor do que os homens do vilarejo.

   Num movimento lento, Liliana ergueu-se.

   - Seu ferimento é grave. Você não pode sair. Ora, Kyryan, trata-se apenas de ovelhas...

   Ele fitou-a com dureza.

   - Não queira dar-me ordens, cara esposa. Meu rebanho é im¬portante e deve ser encontrado.

   - Deixe que os outros procurem. Você não precisa ir.

   - Este talvez seja o procedimento dos normandos. Eu, porém, sou gaulês - Kyryan amarrou um garrote na perna, e levantou-se. - Venha, Mott.

   Dirigiu-se para a porta. Elwy, fazendo um sinal para Liliana de que era inútil opor resistência, imitou-o.

   - Sossegue - o rapaz sussurrou para ela, numa tentativa de confortá-la. - Seu marido voltará ao normal assim que o rebanho estiver em segurança.

  

   Quando a noite chegou, Kyryan, Elwy e Gareth se reuniram no portão. Embora exauridos e enregelados, exibiam sorrisos de satisfação. Haviam conseguido localizar, e abrigar a maior parte do re¬banho.

   Trocaram cumprimentos pela missão cumprida e entraram. Gareth voltou-se para fechar o portão e quase tropeçou em Kyryan, que jazia de bruços sobre a neve.

  

   - Ele se recusa a ingerir o remédio que preparei - o padre reclamou com certa irritação - a menos que o tome, não há mais nada que eu possa fazer.

   Liliana cheirou a mefítica infusão que o pároco lhe estendera, rezando para que aquela poção desse resultados. Haviam tentado de tudo para curar Kyryan, depois que Gareth o trouxe para dentro do castelo, febril e delirando, mas, até o momento; nada surtira efeito.

   Nem os caldos nutritivos de Sara, nem o carinho com que Liliana o tratava, varando as noites sem dormir, aplicando-lhe toalhas frias sobre a testa. A febre não cedia.

   Seu pai enviara Derrick com um convite para passarem o Natal e o Dia de Reis em sua companhia. O velho soldado foi mandado de volta quase imediatamente com a notícia da doença de Kyryan, de forma que lorde Trevelyan pediu ao padre Peter, reputado corpo operador de milagres com seus remédios, que fosse acudi-l o. Além disso, colocou-se à disposição no que fosse necessário para que o genro se recuperasse.

   Às vezes todos, se enchiam de esperança, supondo que a febre havia desaparecido. Quando a tarde findava, porém, a temperatura voltava a subir. O padre Peter deixara escapar que jamais havia se defrontado com um caso assim.

   Liliana, por seu turno, nunca experimentara um medo tão pro¬fundo. Sempre ao lado do marido, rezava para que Deus não o levasse.

   Por sorte, Elwy se encarregou de todos os detalhes da adminis¬tração do castelo. Seguindo o conselho de Liliana, mandou erguer um tapume de madeira ao longo da muralha. A essa altura, ninguém mais ignorava que o trabalho de reconstrução só seria concluído na primavera.

   Enxugando a testa de Kyryan com movimentos suaves, Liliana pensou, pela milésima vez, que ele devia ter-lhe dado ouvido. Não havia necessidade de sair debaixo de neve para procurar ovelhas desgarradas, principalmente com a perna ferida, quando havia tanta gente para empreender a busca. Como era teimoso, aquele homem!

   - Por favor, meu amor, tome ao menos um gole! Sei que o gosto não é agradável, mas vai fazê-lo ficar bom depressa - ela rogou, encostando a tigela em sua boca, enquanto o pároco o soerguia. Kyryan resmungou em gaulês e cerrou os lábios ressequidos. Afastando os delicadamente com as mãos, Liliana logrou derramar algumas gotas dentro da boca.

   Elwy, que interrompera seus afazeres nas obras da muralha pê:U'a ver como Kyryan estava, parou na porta com expressão ansiosa. Cochichou alguma coisa para Maude enquanto o padre Peter franzia o cenho, mal-humorado.

   - O que houve? - Liliana indagou, receando outra notícia ruim. Em seguida, esperançosa de que o rapaz tivesse traduzido as palavras de Kyryan no ouvido da criada, acrescentou outra pergunta: - O que foi que ele disse?

   - Kyryan já esteve doente assim antes, milady.

   - E quanto tempo demorou para recuperar-se?

   Elwy sacudiu os ombros.

   - Uns dois dias.

   - Ele já está mal há uma semana.

   - Talvez tenha se curado com rapidez graças ao remédio que Mamaeth lhe deu.

   - Que remédio é esse? - Padre Peter inquiriu visivelmente ofendido.

   Liliana, porém, calou-o com um olhar de súplica.

   - Quem é Mamaeth?

   - Uma velha curandeira que vive na propriedade do barão De¬Lanyea.

   Pensativa, ela mordeu o lábio inferior. O castelo do barão, onde o marido foi criado, distava muitos quilômetros na direção norte.

   - Fica muito longe daqui?

   Elwy fitou-a com pesar.

   - No inverno, levará vários dias para ir e voltar.

   - Padre Peter!

   - Sim, milady?

   - Quanto tempo acha que Kyryan sobreviverá?

   O pároco coçou o queixo.

   - Minha cara senhora, seu nobre marido poderia recuperar-se rapidamente se tomasse o remédio que lhe prescrevi. Ou talvez re¬sistisse por algumas horas. Ou, ainda, morresse... a qualquer mo¬mento.

   - Em outras palavras, meu bom padre, o senhor não faz a menor idéia - Liliana retrucou, contendo a exasperação.

   O servo da Igreja corou.

   - Longe de mim contradizer uma dama.

   Ela desviou o olhar para Elwy.

   - Nesse caso, não nos restam alternativas. Você poderia partir agora para o castelo do barão, a fim de trazer Mamaeth?

   O rapaz sacudiu a cabeça, desconsolado.

   - Infelizmente, não.

   - Por que não?

   - Kyryan confiou-me a administração da propriedade. Não posso abandonar meus deveres.

   - Mas eu ficarei aqui - ela argumentou.

   - As ordens de Kyryan são as ordens do meu senhor. Enquanto ele viver, não as desobedecerei.

   Um profundo desespero apossou-se de Liliana, que enterrou as unhas na palma das mãos para não gritar.

   - Alguém terá que ir. Não posso sentar-me neste quarto e esperar, de braços cruzados, que meu marido morra!

   Enquanto sua mente fervilhava em busca de uma solução, seu olhar esgazeado percorreu o quarto e deteve-se em Maude.

   - Gareth! - anunciou, ignorando a careta de desgosto da criada.

   - Que Gareth parta imediatamente!

   - Mas, milady, a neve... - Maude tentou protestar.

   Liliana, porém, nem lhe deu atenção. Com a vida do marido em jogo, não perderia tempo, tão escasso e precioso, discutindo com a moça.

   - Vá logo, Elwy. Encontre-o e diga-lhe o que deve fazer.

   Elwy hesitou. Nesse momento, Kyryan remexeu-se na cama, gemendo.

   - É para já, milady.

   Maude girou nos calcanhares e seguiu-o escada abaixo, enquanto Liliana tentava introduzir mais algumas gotas da mal cheirosa infusão por entre os lábios do marido.

  

   Ralf parou, tomado por calafrios, no meio do salão do castelo dos Horton. As chamas na lareira eram tão débeis que ele duvidava que pudessem aquecer sequer um dos muitos camundongos que de¬viam infestar a decadente mansão.

   Lady Priscilla, trajando nada além de seu habitual vestido surrado, parecia imune ao frio, ou talvez já tivesse se acostumado. De má    vontade, ela indicou-lhe uma cadeira perto do fogo.

   - E então? Que notícias me trouxe?

   Ralf relanceou os olhos para Sir William, deitado sobre o tampo riscado e sujo da mesa, ainda agarrando uma garrafa vazia.

   Percebendo a preocupação do capataz, Priscilla declarou com secura.

   - Meu pai está dormindo, portanto não nos escutará.

   - Muito bem. Kyryan Morgan adoeceu. Pelo jeito, é grave.

   - Como assim? Ele vai morrer?

   - Eu não sei.

   - Nesse caso, por que me procurou?

   - Porque a esposa dele mandou que os homens prosseguissem a reconstrução da muralha.

   - Não sou tola, Ralf. O tempo está frio e úmido demais para qualquer trabalho de alvenaria.

   - Elwy e seus rapazes decidiram construir um tapume provisório de madeira. Eles estão progredindo depressa, por isso, se Ivor tiver a intenção de atacar...

   - Não conheço os planos de Ivor.

   - Bem, se ele pretende atacar o castelo, deve apressar-se. Ab, o outro amigo de Morgan, o pastor, partiu em busca de ajuda. Priscilla ergueu a sobrancelha.

   - Mais homens?

   - Não tenho certeza. Só sei que ele saiu esta manhã bem cedo, antes de amanhecer o dia. Levou o melhor cavalo...

   Recostando-se na cadeira, ela fitou o informante com argúcia. - É tudo?

   Ralf levantou-se.

   - O que lhe contei deve valer um bocado.

   - Isso é Ivor quem decide. Transmitirei a ele o que me disse.

   - Não esqueça de acrescentar que não poderei permanecer muito tempo por aqui. Já estão suspeitando de mim.

   - Quem?

   - Jhone, por exemplo.

   - Ora, ela é apenas uma criada.

   - Acho que lady Morgan lhe dá ouvidos. De qualquer modo, não pretendo ficar para descobrir. Preciso de dinheiro para fugir, e logo.

   - Você está dando ordens a Ivor ap Rhodri, Ralf? Não creio que ele goste disso.

   Ralf baixou a cabeça, escapulindo dos olhos escuros e penetrantes de Priscilla Horton.

   - Não. Claro que não.

   - Ótimo. Agora, volte para casa. Providenciarei para que receba seu pagamento.

   O capataz fitou-a com um sorriso bajulador em seus lábios descarnados.

   - Eu só estou pedido o que me é devido. Arrisquei-me demais, espionando meus senhores. Se Morgan descobrir que...

   - Você será um homem morto. Sim, eu sei. Tenha um bom dia, Ralf.

   O homem virou-se e disparou para a porta, ansioso por sair do ambiente opressivo daquele castelo. Na pressa, quase tropeçou nos próprios pés.

   Ivor abandonou as sombras do salão onde se ocultara.

   - Esse idiota vai escapar.

   Priscilla balançou a cabeça, concordando.

   - Sugiro-lhe que o detenha, meu querido.

   Ivor aproximou-se dela, observando o desejo que flamejava nos olhos da mulher.

   - Hoje não, meu amor. Dentro em breve, mas não agora...

  

   - Lili? - Kyryan debateu-se num grande esforço para sentar-se e distinguiu a fi¬gura feminina sentada numa cadeira ao lado da cama, na penumbra. Pestanejou, tentando organizar os pensamentos. Sabia que tinha es¬tado doente, mas por quanto tempo?

   - Não, milorde. Sou eu, Jhone - a criada ajeitou os travesseiros de Kyryan, acomodando-o com maior conforto e apanhou uma taça cheia de água fresca. - Beba um gole, vai sentir-se melhor.

   Ressequido, Kyryan engoliu todo o conteúdo do copo. Por que Jhone cuidava dele, em vez de Liliana?

   - Onde está minha mulher?

   - No pátio, conversando com Elwy a respeito da muralha. Agora, o senhor deve...

   - Muralha? Como assim? Ninguém pode trabalhar lá no inverno - O lugar da esposa era junto do marido. Que outra ocupação seria tão importante a ponto de afastá-la de seu dever principal?

   - Pois ela deu ordens para que os homens erguessem uma pa¬liçada de madeira.

   - O quê?! -Esquecendo-se da própria fraqueza, Kyryan sole¬vantou-se abruptamente. De imediato, o quarto começou a girar ao seu redor, forçando-o a recostar-se de novo. Por dentro, sua agitação era imensa. Receava que a construção do tapume pudesse compro¬meter o trabalho já realizado em alvenaria. Nem cogitara de explicar a Liliana os riscos que sua idéia implicava, porque o muro era responsabilidade dele. Por outro lado, conhecendo a esposa, devia ter adivinhado...

   - Tome um pouco do remédio, por favor - Jhone estendeu uma tigela com uma beberagem escura, com cheiro de ervas - Eu irei buscar lady Morgan.

   - Argh... o que é isto?

   - Já disse, remédio.

   Com uma careta, Kyryan engoliu metade da infusão que a criada lhe dera. Enxugou a boca com as costas da mão. Há quanto tempo estou doente?

   - Bem, o senhor já estava de cama havia uma semana, milorde. Ela julgou melhor...

   - Vá chamar minha mulher, ande. E Elwy também.

   - O padre Peter logo chegará. Ele vem todos os dias mais ou menos a esta hora e...

   - Pelas chagas de Cristo, eu não ligo a mínima... - sem fôlego, Kyryan interrompeu o que dizia para respirar. Perder a calma só lhe faria mal. Além disso, se sua esposa resolvera assumir o papel de chefe da casa, a culpa não podia ser atribuída a Jhone. - Vá buscar Liliana e Elwy, por favor...

   Exausto, afundou nos travesseiros macios. Uma centena de perguntas lhe fervilhava na cabeça, mas suspeitava que não iria gostar das respostas.

  

   - Você acha que isso bastará? - Liliana indagou pensativa, contemplando a muralha de madeira.

   Elwy balançou a cabeça em sinal de concordância.

   - Ah, sim. Qualquer coisa a mais exigiria um apoio mais forte, o que poderia prejudicar a construção de alvenaria.

   - Entendo.

   - Milady!

   Ela voltou-se para Jhone, que corria em sua direção, atravessando o pátio congelado. Por um momento temeu que Kyryan tivesse piorado. Sua aflição, porém, durou apenas alguns segundos, cessando ao ver o sorriso, que iluminava o semblante da fiel criada.

   - O que houve Jhone? Kyryan despertou?

   - E aparentando grande disposição. Ele quer falar com a senhora. Liliana, contudo, mal a ouviu, pois já disparava rumo ao quarto, ansiosa para ver o marido.

   Jhone observou-a desaparecer no interior do castelo e virou-se para Elwy.

   - Lorde Morgan mandou-me chamar você também.

   - O'r annwyl, criatura de Deus. Por que não me disse logo? ¬Elwy reclamou, atirando ao chão a vareta que estivera usando para fazer as medições da paliçada.

   - Porque imaginei que lady Liliana gostaria de ficar uns minutos a sós com ele, ora essa.

   O rapaz sorriu.

   - Nisso você tem toda a razão.

   - Mas eu não esperaria muito antes de subir, se fosse você. O patrão não pareceu nada feliz com as novidades sobre o tapume...

   Ele praguejou baixinho.

   - Eu sabia que me arrependeria por obedecer às ordens dela - murmurou, olhando Jhone com ar de cachorrinho perdido. - Mas eu não tinha escolha... lady Liliana me ordenando as coisas e Kyryan desacordado, doente...

   A criada apontou para a ponte de pedra.

   - Aí vem padre Peter. E melhor deixá-lo entrar.

   Com um suspirou, o rapaz concordou.

   - É, e depois irei ver Kyryan. Embora preferisse enfrentar um boi xucro.¬

   - Eu vou com você.

   Elwy fitou-a e endereçou-lhe um sorriso caloroso.

   - Nada como poder contar com os amigos na hora de enfrentar um boi bravo...

   O rosto de Jhone manteve-se imperturbável. Contudo, a moça sentiu o coração disparar, emocionado, diante daquele sorriso - Era verdade, ele a rotulara de "amiga"... porém não devia perder as es¬peranças. Talvez, com o tempo, o rótulo acabasse mudando.

  

   Liliana entrou no quarto como um furacão.

   - Kyryan! Oh, meu amor! - ela o aconchegou entre os braços, embalando-o com suavidade.

   O marido, abrandado pela alegria dela e pela ternura do carinho, enlaçou-lhe a cintura.

   Por um instante, ficaram abraçados em silêncio. Por fim, Liliana afastou-se um pouco e colocou a mão na testa de Kyryan.

   - A febre passou, mas o seu aspecto ainda não me agrada... ¬- observou franzindo a testa.

   - Isso é coisa que se diga ao marido? - ele gracejou. Seu tom, entretanto, soou um tanto rabugento. - Foi por esse motivo que você não estava aqui quando acordei.

   Liliana corou. Para o marido, ela jamais parecera tão bela, com os olhos brilhando com um misto de alívio, preocupação e constrangimento.

   - Claro que não, seu bobo! Eu conversava com Elwy...

   - A respeito da muralha. Jhone contou-me. Não creio que tenha sido uma boa idéia; Lili.

   - Mas nós estávamos tão vulneráveis...

   - Cabia a mim, resolver esse problema - a despeito da repreen¬são, Kyryan puxou-a de volta para seus braços. Ah como era bom aquecer-se com o calor do corpo dela, sentir-lhe o cheiro adocicado e a maciez da pele. - A você, compete cuidar do marido e providenciar para que nada lhe falte, para que fique confortável e... - beijou-a nos lábios com doçura - feliz, muito feliz...

   Embora apreciando as carícias, Liliana contraiu as sobrancelhas.

   - Ainda acho que... 

   - Com sua licença, milady.

   Kyryan desviou o olhar para a porta e examinou o alto e esque¬lético homem trajando uma batina, parado em seu umbral. Cochichou no ouvido da esposa, antes de afastá-la ligeiramente:

   - Em nome de todos os santos, quem é esse?

   Embaraçada por ter sido surpreendida num momento de intimidade, Liliana levantou-se de um salto.

   - Entre, por favor, padre Peter. Como pode constatar, nosso doente melhorou muito, hoje.

   - Pelo que posso constatar, milady - o pároco concordou, acei¬tando o convite para ingressar no quarto. - E óbvio que não precisam mais de mim, nem há necessidade daquela... outra pessoa que mandaram, buscar.

   Intrigado, Kyryan contemplou a esposa com ar de interrogação. Nesse momento, Elwy e Jhone chegaram. Vendo que o aposento já estava demasiado cheio, a criada retirou-se.

   - Que outra pessoa? - Kyryan indagou.

   - Ela enviou Gareth até a propriedade do barão com a incum¬bência de trazer Mamaeth - Elwy explicou.

   - Mamaeth? Coitado do Gareth, tendo que percorrer todo o ca¬minho de ida e volta! Mas que coisa estúpida!

   O semblante do padre Peter iluminou-se, expressando sua integral concordância. Elwy pigarreou, sem jeito, e Liliana cruzou os braços num gesto de desafio.

   - Pensamos que você fosse morrer - declarou, articulando cada palavra. - Lembrando-se de que você já havia adoecido desse modo e que Mamaeth, o curou, e diante do insucesso de padre Peter, resolvi chamá-la. Julguei que a curandeira pudesse ajudá-lo.

   - Bem, todos vocês se enganaram.

   _ Eu... acho que vou até o galinheiro, verificar se está tudo bem com as galinhas... - Elwy anunciou, quebrando o silêncio carregado de tensão.

   - Apareceu mais alguma com os sintomas? - Kyryan inquiriu. - Como estão as ovelhas? E os carneiros?

   Sentindo-se injustiçada, Liliana mordeu os lábios. Passara dias de medo e angústia, rezando para que a morte não lhe levasse o marido, e agora via-se ignorada como se não tivesse a menor im¬portância. E tudo por quê? Por não ter ficado todos os segundos em volta dele? Bem, ela ficara. Enquanto a febre ardia no corpo de Kyryan, não saíra de seu lado. Depois, porém, quando o padre Peter lhe assegurou que o pior havia passado, ela desviou sua preocupação para a propriedade. Não queria que todo, o trabalho já realizado se perdesse enquanto ele jazia doente, sobre a cama. Principalmente porque ela entendia bem de administração de castelos, talvez melhor do que o próprio marido, que estreava nessa atividade.

   Como ela adivinharia o momento em que ele despertaria de um sono que se prolongava havia uma semana?

   Por que ele não se mostrava grato por ela ter assumido o controle da situação?

   E por que não expulsava todos do quarto, para que pudessem ficar a sós mais um pouco? Afinal, havia muito tempo que eles não gozavam de um instante de privacidade, devido à enfermidade e aos problemas que enfrentaram com a nevasca.

   - Já que se sente melhor, milorde - Liliana Interrompeu a conversa a respeito de bois e vacas, - peço a sua licença para retirar-me. Preciso cuidar da ceia.

   Com uma graciosa mesura, ela virou as costas e abandonou o aposento. Em silêncio, padre Peter seguiu-a.

   Elwy esperou que os dois saísse e dirigiu-se a Kyryan.

   - O que há com você, homem? A febre torrou-lhe os miolos?

   - De que diabos você está falando?

   - Sua mulher quase morreu de aflição por sua causa, e você a trata dessa maneira?

   - Embora o assunto não seja da sua conta, digo lhe que não admito que ela dê ordens aos meus homens no meu lugar. Liliana não tinha esse direito. O certo seria esperar até que eu me recuperasse.

   - Seu imbecil! Nós não sabíamos quando - ou se - você se recuperaria... Não até recentemente, de qualquer modo.

   - Ela devia ter permanecido ao meu lado.

   Elwy perscrutou o semblante do amigo longamente.

   - Então é isso, não é rapaz? Você se irritou porque sua esposa não estava ensopando de lágrimas a cabeceira da cama... Kyryan virou o rosto.

   - Não precisava mandar buscar Mamaeth. Você devia ter-lhe dito.

   - Eu não entendo nada sobre doenças, Kyryan. Não sabia o que havia de errado com você. E se morresse? Era de cortar o coração, vê-la sentada nesta cadeira, sem comer direito, sem dormir, lutando contra a febre. Ela precisava agarrar-se a qualquer esperança, por mais remota que parecesse.

   - Suponho que eu não, tenha motivos para estar zangado. Con¬tudo, você sabe que a jornada até a propriedade do barão oferece muitos perigos, principalmente no inverno. Gareth foi acompanhado Por uma pequena escolta, não foi?

   - Destaquei três homens para acompanhá-lo - Elwy assentiu. - Entretanto, não é a mim que deve desculpas, mas à sua mulher.

   Ignorando as palavras que o amigo proferiu por último, Kyryan indagou, desviando o rumo da conversa:

   - Algum sinal dos rebeldes?

   - Não.

   - Quero que derrube a paliçada o quanto antes.

   Elwy fitou-o com assombro.

   - Você enlouqueceu! Nem viu o que fizemos lá!

   - Com certeza estragará a argamassa do topo.

   - Acha mesmo que somos idiotas? Pedimos orientação aos pe¬dreiros e trabalhamos com todo o cuidado para preservarmos o muro de pedras.

   - Oh... - Kyryan mexeu-se debaixo das cobertas. - O tapume já ficou pronto?

   - Quase.

   - Nesse caso, sou favorável a que o terminem, já que os pedreiros não fizeram objeções.

   Elwy levantou-se.

   - Preciso voltar aos meus afazeres. E você, trate de repousar.

   - Deixe comigo. Ah... poderia pedir a Liliana que voltasse aqui? O rapaz suspirou com visível alivio.

   - Por Deus, Kyryan! Com você, sua esposa e esse seu gênio terrível, acabarei indo para a cova mais cedo...

  

   Kyryan contemplou a figura esbelta de Liliana, parada na soleira da porta. Seu porte, altivo como de hábito, não indicava que a esposa pretendesse desculpar-se ou qualquer outra coisa no gênero. Contudo, seu olhar traía uma certa insegurança. O que não estranhava, pois, afinal, fora demasiado rude com ela.

   - Eu não devia ter-me zangado com você - admitiu em tom conciliador.

   No mesmo instante, um sorriso luminoso desenhou-se nos lábios de Liliana, que caminhou até o leito, fechando a porta atrás de si.

   - Não quis ofendê-lo. Apenas, procedi como julgava mais acer¬tado.

   - Eu sei. Você ainda me conhece pouco. Eu sempre fico mal¬-humorado quando adoeço. Não tenho paciência para ficar na cama e acabo descontando minha irritação em cima das pessoas que mais amo. Na próxima vez, você já estará avisada.

   Ela estremeceu.

   - Nem pense em "próxima vez". Se adoecer de novo, sou eu que me aborrecerei com você - tentou gracejar. Sentou-se na beira da cama, a cama onde não se deitava por tantos dias, e fitou o marido.

   Seus cabelos negros e normalmente rebeldes encontravam-se des¬grenhados e fios escuros de barba ensombreciam-lhe o queixo. Sob os olhos, olheiras fundas haviam-se formado. A despeito de tudo isso, ele lhe parecia mais atraente do que nunca.

   - Como anda o estado de espírito de Maude, depois da partida de Gareth?

   - Receio que não muito bem. Ela tem-se mostrado tristonha e arredia, mas creio que voltará ao normal quando o namorado regressar.

   - Quanto a mim, Lili, comunico-lhe que já "voltei ao normal"...

   Ela curvou-se para beijá-lo.

   - Oh! É mesmo?

   Kyryan pousou as mãos nos seios da esposa.

   - Dou-lhe minha palavra...

  

   Poucos dias mais tarde, Kyryan inspecionou a paliçada de madeira em volta da muralha de pedra. Restavam alguns trechos para completar, mas isso não demandaria muito tempo. Acariciou a cabeça de Mott, sentado a seu lado.

   - O aspecto é sólido - observou em tom casual, ignorando a expressão de "não lhe disse?" estampada no semblante de Elwy. - Onde está Ralf?

   O amigo deu de ombros.

   - Não o vejo desde ontem. Parecia um bocado nervoso... vai ver ficou doente também.

   - Devemos pedir ao padre Peter para cuidar dele ou poupá-lo por uns dias? - Kyryan indagou em tom sério, embora seus olhos brilhassem de divertimento.

   Sem responder, Elwy limitou-se a rir da brincadeira.

   - Podemos procurá-lo mais tarde. Que tal se saíssemos para caçar? Rapaz, estou louco por um pouco de movimento.

   - A idéia me agrada - Elwy aprovou. - Eu adivinhei que você me faria esse convite, já que veio com o arco e as flechas.

   - E eu que me julguei tão esperto quanto uma raposa... pensei que o surpreenderia.

   - Rapaz, quando você aparece com a mó, eu já moí o trigo... - o amigo gracejou. - O que sua esposa dirá sobre o nosso plano?

   Kyryan franziu a testa. Dessa vez, seus olhos também demonstravam seriedade.

   - Quero caçar. Ninguém tem nada a dizer a esse respeito.

   O amigo balançou a cabeça.

   - Sim, milorde.

   De súbito, Mott farejou alguma coisa no ar e, inquieto, pôs-se de pé.

   - Está sentindo o cheiro, Elwy? - Kyryan indagou, perscrutando o horizonte. - É de fumaça - concluiu, apontando para a nuvem densa, e escura que voluteava no céu, ao norte. Só havia uma ex¬plicação para uma fumaceira tão intensa como aquela - um incêndio de grandes proporções, provavelmente um prédio enorme. Restava saber se tratava-se de um acidente ou de um ataque.

   - É na propriedade dos Horton, Convoque os homens - Kyryan bradou, disparando para o estábulo.

   Elwy gritou para os trabalhadores que se dedicavam a diferentes tarefas, espalhados pelo pátio.

   - Parem o que estão fazendo e sigam-me! - ordenou.

   Liliana saiu correndo do salão, alarmada com o alarido, para ve¬rificar o que estava acontecendo.

   Nesse momento, Kyryan saiu do estábulo, já montado em seu cavalo. Parou ao lado dela e fitou-a.

   - Vamos à propriedade dos Horton para ver o que se passa. Aquele velho bêbedo deve ter ateado fogo à própria casa. Não vol¬taremos antes de apagar o incêndio.

   - Acha que... foi um ataque?

   - Duvido. Não encontramos qualquer vestígio dos rebeldes há semanas.

   - Kyryan... precisa mesmo ir? Você ainda está convalescendo...

   - É meu dever. Os Horton também juraram lealdade a seu pai, não se esqueça. Além disso, não se trata de uma batalha.

- Eles... seriam um alvo fácil.

   - Tem razão - Kyryan remexeu-se na sela, tomado por súbito desconforto. Jamais nutrira a menor simpatia pelos dois membros da família Horton, porém não desejava que mal algum os atingisse. Preocupado, berrou para os homens - Todos os que possuírem armas devem trazê-las!

   A aflição de Liliana tornou-se mais aguda ao ver os homens correndo como que preparando se para um combate feroz.

   - Pretende levar todos os homens?

   - Como você mesma afirmou, os Horton são um alvo fácil.

   - Se só as mulheres permanecerem aqui, então nós também seremos.

   A essa altura, os trabalhadores já se haviam organizado para partir, munidos de arcos, flechas e espadas.

   - Elwy! - Kyryan chamou, esquadrinhando o pátio à sua pro¬cura.

   - Aqui! - o rapaz bradou, aproximando-se.

   - Você ficará para proteger o castelo - comunicou, ignorando a expressão de desapontamento no rosto dele. - Escolha alguns homens para montar a guarda.

   Elwy relanceou os olhos para Liliana, desviando-os em seguida na direção de Kyryan.

   - Sim, milorde -, respondeu de má vontade.

   O sorriso agradecido da esposa fez com que o desagrado de Elwy perdesse a importância para Kyryan. Ele inclinou-se para depositar um beijo de despedida nos lábios de Liliana.

   - Sossegue... tenho certeza de que estará em segurança - con¬fortou-a. - Voltaremos o mais breve possível.

   - Kyryan... cuidado! Receio que se trate de uma cilada.

   Ele sorriu-lhe com autoconfiança.

   - É improvável. Regressaremos para a ceia. Você verá.

   Com um sinal, Kyryan pôs em marcha, seguido pelos companheiros.

  

   Ivor virou-se para Dafydd com ar de triunfo ao ver o grande grupo que se deslocava pela floresta galopando. Escondidos numa vala a curta distância da estrada, puderam constatar que a maioria dos homens da propriedade de Morgan se encontravam naquele bando.

   Dafydd, porém, não se sentia tão exultante.

   - Pretende matá-la também? - indagou num tom que exprimia vergonha e reprovação.

   - Ela é uma traidora, e os traidores devem morrer - Ivor de¬clarou com desdém. Acreditava naquelas palavras de coração, ou do que restara dele.

   - Atear fogo para afastar Morgan de seu castelo, eu entendo, assassinato a sangue-frio, porém...

   - Ora, pare com essas tolices. O que se perde matando um normando?

   - Priscilla Horton era sua amante.

   - Ela era amante de todos, com exceção de você - Ivor replicou.

   Agarrando o companheiro pela túnica, puxou-o em sua direção até encará-lo bem de perto. - Priscilla foi Útil até o momento em que começou a chantagear-me. Imagine, ameaçar revelar meus planos a Morgan caso não a desposasse.

   - E quem poderia culpá-la por isso? - Dafydd argumentou, batendo na mão de Ivor para que o soltasse. - Você não repetia sempre que a desposaria se ela cumprisse todas as suas ordens?

   - Esta conversa não tem cabimento. O importante é que Morgan e seus homens saíram do castelo, deixando-o desguarnecido. Agora, cale a boca e vamos embora.

   A boca de Dafydd, todavia, transformara-se numa linha rígida e, determinada.

   - Se você tocar na esposa de Morgan, Ivor, juro que o matarei.

   - Desde quando o bem-estar da potranca normanda é da sua conta?

   - Antes de ser normanda, ela é uma mulher e como tal deve ser tratada. Não permitirei que lhe encoste um dedo, fui claro?

   Ivor fitou-o com raiva.

   - Engraçado... você mesmo me descreveu as barbaridades que os normandos fizeram com sua irmã, na sua frente, antes de matá-la.

   - É verdade. Por isso não consentirei que você os iguale em infâmia.

   Sorrindo com frieza, Ivor ordenou:

   - Se é assim, você não irá conosco. Fique no esconderijo, como uma velha reumática. Os outros companheiros são homens de fibra, não preciso da sua ajuda.

   Dafydd levantou-se, contemplando com pesar o líder por quem perdera todo o respeito.

   - Não se trata de coragem. Na verdade, é uma questão de honra. Se você perdeu a sua, corroído pelo desejo de vingança, o problema, é eu. Eu não permitirei que maltrate uma dama.

   Sem aviso, Ivor deu-lhe um pontapé, num gesto rápido e imprevisível, derrubando-o. Os homens ao redor, que não haviam acompanhado o ponto principal da discussão, fitavam a cena com espanto.

   - Ele é um traidor - Ivor declarou. Todo o seu ódio pelas pessoas que atraiçoavam a própria gente agigantou-se em seu peito, circulando-lhe pelo sangue como um veneno mortal. - Serei obri¬gado a matá-lo, Dafydd, para impedir que rasteje para o lado de Morgan?

   Sem esperar pela resposta, ele atacou o companheiro que ainda jazia no chão.

   Dafydd girou o corpo, porém não tão rápido que pudesse esqui¬var-se do golpe com a espada. Soltou um grito de dor, apertando o ombro de onde o sangue jorrava em profusão, empapando-lhe a túnica esfarrapada. Os companheiros ergueram-se de um salto, observando a cena com ar confuso e amedrontado.

   Então, Ivor enterrou a espada na barriga de Dafydd. Franzindo a testa, retirou-a e enxugou a lâmina nos calções, guardando-a na bainha. Em seguida, chutou o antigo amigo para baixo de um arbusto.

   - Vamos deixá-lo aqui. Temos coisas mais urgentes a fazer.

   Sem sequer um olhar na direção daquele que fora seu braço direito, Ivor acenou para os homens, que, ainda aturdidos, atenderam ao comando e o seguiram rumo ao castelo de Morgan.

  

   - Milady!

   Liliana pousou a túnica de veludo que costurava para o marido ao perceber a agitação na voz de Jhone. Kyryan e seus homens haviam partido havia pouco para o solar dos Horton, mas parecia-lhe que um século havia transcorrido desde que os vira desaparecendo na estrada, depois de cruzarem a ponte de pedra. Uma vaga inquietação se apossara dela, e buscou nos trabalhos manuais uma distração que pudesse afastar o mau pressentimento. Agora, com a entrada afobada da criada, nutria a esperança de que esta viesse anunciar o retomo de Kyryan.

   - O que foi? - indagou, perscrutando-lhe o rosto afogueado.

   Bastou um olhar para Jhone e Liliana começou a tremer. - O que foi?

   - Há uns homens vindo pela estrada!

   - Que homens? - enquanto perguntava, ela levantou-se, caminhando na direção da porta.

   - Eu não sei... mas estão armados.

   - Mande fechar os portões! - bradou, saindo para o ar gelado do pátio. Se os homens fossem amigos, os portões poderiam ser reabertos. Contudo, não queria correr riscos, principalmente na ausência do marido e contando apenas com um grupo reduzido para defender o castelo.

   Dois dos pedreiros que haviam ficado correram para obedecer à ordem. Liliana inquiriu-os:

   - Onde está Elwy?

   - No celeiro.

   Liliana virava-se para ir ao celeiro quando ouviu um grito de alarme.

   Os trabalhadores não conseguiram agir com a rapidez necessária.

   No momento exato em que um deles começou a empurrar a pesada porta de carvalho, o líder de um bando armado até os dentes invadiu o pátio. Liliana encarou-o, reconhecendo-o de imediato. Tratava-se do rebelde gaulês que os emboscara na estrada.

   O bandoleiro gritou, em seu idioma arrevesado, o que soou como comandos para seus liderados. Dois deles desmontaram.

   Então, eles cerraram os portões, empurrando os pedreiros e atirando-os ao chão. Desta forma, todos ficaram trancados do lado de          dentro da muralha.

   Nesse instante, Elwy surgiu na porta do celeiro, empunhando a espada. Encostada à parede e movendo-se com lentidão para não atrair a atenção dos malfeitores, Liliana entrou no salão, postando-se num canto de onde podia avistar o pátio todo.

   - Quem são eles, milady? - Jhone murmurou, por trás dela. Liliana olhou para a criada por sobre o ombro.

   - Maude e as outras ficaram na cozinha? - cochichou em tom de urgência, voltando a fitar atentamente o líder dos revoltosos e Elwy.

   - Sim milady.

   - Vá para junto delas e escondam-se na despensa. Não quero nenhuma de vocês por aqui a menos em caso de incêndio.

   - Mas... senhora...

   - Você me ouviu, Jhone - sussurrou em tom que não admitia contestação.

   Com as moças em segurança, admitindo-se a hipótese de existir lugar seguro no castelo, Liliana concentrou a atenção no que ocorria no pátio.

   Observou Elwy aproximar-se do chefe do bando.

   - Quem são vocês e o que desejam? - ouviu-o indagar em Francês.

   O homem, porém, respondeu com desdém em gaulês. O restante dos fora-da-lei apeou dos cavalos e começou a empurrar os trabalhadores, dividindo-os em pequenos grupos.

   Elwy replicou com palavras carregadas de fúria.

   De súbito, os rebeldes cercaram-no e arrancaram a espada de sua mão. Antes que o rapaz pudesse revidar, derrubaram-no no chão.

   O líder soltou uma gargalhada malévola e ergueu a própria espada, pronto para golpeá-lo.

   - Parem!

   Poucas gerações antes, os ancestrais de Liliana Trevelyan eram constituídos por bárbaros vindos da Dinamarca, guerreiros ferozes e selvagens que saíram de suas terras frias e rochosas para aterrorizar as costas européias. Agora enquanto avançava pelo pátio para enfrentar os homens que ousaram ameaçar a sua gente, o castelo e os amigos do marido, toda a bravura que herdara dos antepassados vinha à tona, correndo-lhe pelo sangue, conferindo-lhe uma coragem que nem suspeitava possuir.

   Contudo, quando o chefe dos bandoleiros viu quem o havia, detido com um brado tão autoritário, esboçou um sorriso que era um misto de ódio, irreverência e luxúria.

   Liliana endireitou os ombros.

   - O que deseja de nós? - inquiriu.

   As sobrancelhas escuras do homem ergueram-se por um momento, refletindo-lhe a surpresa com o atrevimento da bela normanda, antes de responder com arrogância. Ele caminhou em sua direção, profa¬nando-lhe o corpo com o olhar concupiscente.

   Liliana sentiu que a coragem a abandonava. Todavia, manteve o queixo erguido e o rosto impassível. Apertou as mãos caídas sobre a saia para impedir que tremessem. Não queria demonstrar o medo que a invadira. Disse a si mesma que aquela não era a primeira vez que um homem a despia com os olhos e, de qualquer modo, os homens sempre a observavam, fosse com reverência ou com interesse. E aquele espécime diante dela não passava de um covarde, a julgar pela maneira como atacara Elwy. Um cavaleiro jamais pro¬cederia com tamanha falta de ética. Um homem digno sempre daria ao oponente a oportunidade de defender-se. E Liliana Trevelyan não temia nem respeitava os covardes.

   Além disso, Kyryan já devia estar voltando. Tudo o que precisava fazer era ganhar tempo.

   Liliana fitou Elwy com ar de interrogação quando o bandoleiro fez uma pausa do que dizia. Não entendera uma só palavra de seu pequeno e insolente discurso.

   O revoltoso notou a troca de olhares e sorriu antes de recomeçar a falar. Quatro homens levantaram Elwy do chão, mas não lhe soltaram os braços.

   O chefe do bando, então, esperou que Elwy fizesse a tradução para Liliana:

   Com o rosto retorcido de raiva, Elwy traduziu a seu modo:

   - Esse monte de esterco quer que eu lhe diga que veio para incendiar o castelo de um traidor, depois de liquidar todos os que o ajudaram, como fez com os Horton.

   Liliana franziu a testa.

   - Ele assassinaria os próprios compatriotas? - indagou, cru¬zando os braços, lutando para preservar o que lhe restava das forças.

   O homem ouviu quando Elwy lhe transmitiu a pergunta em Gaulês e replicou.

   - Ele afirma - Elwy interpretou, contrariado - que nós não somos gauleses porque atraiçoamos nosso povo e merecemos morrer.

   Em seguida, o rapaz dirigiu uma série de pragas e impropérios ao líder dos rebeldes, que lhe desfechou um murro na boca. Um filete de sangue começou a escorrer-lhe pelo queixo, mas ele o ig¬norou e continuou a encarar o inimigo com desdém, como se con¬templasse um rato desprezível, pronto para exterminá-lo.

   Liliana tomou a endireitar os ombros, reanimada com a bravura de Elwy.

   - Ele compreende as conseqüências do que pretende fazer? ¬perguntou com frieza, quando o malfeitor dirigiu a atenção para ela. - Tem consciência de que meu pai jamais descansará até que todo o bando seja capturado e executado? Que o Rei, ao tomar conhecimento dos fatos, enviará tropas para ajudar o xerife a prendê-los? Que as próprias pessoas que ele julga beneficiar com a nossa morte certamente sofrerão as represálias por sua estupidez e o amaldiçoarão para sempre?

   Elwy traduziu tudo da forma como ela proferira.

   Quando o fora-da-lei respondeu, os olhos do rapaz se estreitaram.

   - Esse imbecil alega que jamais será aprisionado e que os gau¬leses homenagearão seu nome em verso e prosa, por ter sido o único capaz de expulsar os invasores normandos desta região.

   O homem acrescentou mais alguma coisa. Elwy, porém, mante¬ve-se calado. Ele, então, golpeou-lhe o estômago e bradou uma or¬dem. Elwy continuou mudo.

   - O que ele disse? - Liliana inquiriu nervosa. - Conte-me, o que foi que ele disse?

   - Não fica bem repetir, milady.

   O chefe do bando, enfurecido, ergueu a espada e encostou a ponta da lâmina na garganta de Elwy, enquanto derramava uma enxurrada de palavras incompreensíveis. Uma gota de sangue desceu-lhe pelo pescoço, mas o rapaz sacudiu a cabeça, insistindo na negativa.

   Então, o homem baixou a arma e voltou-se para Liliana.

   - Este é um cavaleiro corajoso - afirmou num Francês sofrível, para surpresa dela. - Pena que morrerá.

   Com essa declaração, levantou o braço num gesto inesperado e enterrou a espada no peito de Elwy.

   Um grito estrangulado de horror escapou da boca de Liliana. Elwy fitava com ar de incredulidade o rosto do traiçoeiro adversário, enquanto o sangue jorrava aos borbotões, ensopando-lhe a túnica. Então, sua cabeça pendeu para a frente e os homens o largaram, deixando-o tombar no chão.

   Os trabalhadores, coma raiva e o terror estampados no semblante, soltaram um brado selvagem. Empregando as ferramentas em vez de armas, partiram para cima dos bandoleiros.

   Liliana disparou na direção de Elwy, mas, antes que pudesse alcançá-lo, o chefe dos malfeitores agarrou-a. Ela debateu-se, arra¬nhando-lhe o rosto. Conseguiu atingir-lhe os ombros com os punhos crispados, porém de nada adiantou. O homem era demasiado forte.

  

   Kyryan contemplou o corpo de Priscilla Horton.

   Às vezes a morte conferia uma expressão de paz às feições de uma pessoa. Não era o caso dela. Seus lábios mostravam-se crispados e retorcidos como se paralisados no meio de um rosnado selvagem. Pelo visto, morrera vomitando ódio e bílis.

   Repugnado, ele apanhou um lençol meio chamuscado e cobriu-a. Parecia-lhe a única coisa a fazer, além de murmurar uma prece para que Deus a acolhesse em seu reino.

   Com um suspiro, inspecionou as ruínas do castelo Horton. Nada escapara, com exceção de uma pilha de pedaços de madeira enegrecida, perto da qual encontraram outro cadáver. Tratava-se, pro¬vavelmente, de William Horton.

   Os homens de Kyryan, que haviam se espalhado na busca por sobreviventes que pudessem revelar o que ocorrera, regressavam aos poucos. Todos abanavam a cabeça, assinalando que não tinham lo¬calizado ninguém. Só lhes restava a esperança de que os criados houvessem conseguido fugir.

   Contudo, mesmo essa esperança logo se desfez. O último grupo voltou informando sobre a existência de um punhado de corpos brutalmente assassinados perto dá margem do rio.

   Quando Kyryan chegou lá, encontrou Ralf entre os mortos, com a garganta cortada e um pergaminho preso em seus dedos. Com reverência, ele puxou o papel e olhou-o. Horrorizado, deu-se conta de que se tratava de um desenho rabiscado em carvão da paliçada que defendia seu castelo. Murmurou uma praga dirigida contra. Ralf e contra si mesmo.

   Mott, que permanecera tranqüilo, sentado ao lado do dono, er¬gueu-se de súbito, farejando o ar. Então, começos à latir com, fúria e disparou, desaparecendo no meio das árvores.

   Kyryan engoliu em seco, Seu olhar ia do pergaminho para o arvoredo onde o cachorro sumira.

   - Deus, o que fiz eu?

   Desesperado, correu para o cavalo e montou-o, berrando para os homens:

   - Foi uma cilada! Precisamos voltar!

   Esporeou os flancos de animal, induzindo-o a galopar. Os companheiros, a princípio imobilizados pela perplexidade, acabaram por segui-lo quando viram a fumaça escura que seq;ep.tyava para o céu, a distância.

  

   Liliana procurava atingir seu agressor com golpes desferidos a esmo, ao mesmo tempo em que tentava esquivar-se de seus lábios vorazes e dos olhares libidinosos. O homem, porém, mantinha-a fir¬memente presa entre os braços, enquanto combate entre os bando¬leiros e os trabalhadores prosseguia no pátio. Ele a havia levado para o galpão do andar térreo e a imprensara contra a parede.

   - Não lute comigo - cochichou-lhe no ouvido, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha - Se você implorar, e se for boazinha, posso deixá-la viver...

   - Jamais! - Liliana cuspiu a exclamação. - Prefiro morrer mil vezes a submeter-me a um verme como você, - replicou em tom enojado.

   Se Ivor fosse tão inteligente quanto julgava ser, poderia ter de¬duzido que uma mulher bonita e atraente como Liliana estava acos¬tumada a repelir investidas daquela natureza. Seu conhecimento das fraquezas masculinas era razoável, e agora serviam-lhe para rechaçá-lo com sabedoria. Ela respirou fundo, buscando tranqüilidade, e força. Então, no momento em que a boca viscosa do malfeitor co¬lou-se na sua, cravou os dentes em seus lábios até sentir o sabor do sangue e visando ao alvo com precisão ergueu o joelho num golpe tão certeiro quanto inesperado.

   Por um momento, ele soltou-a, contraindo-se de dor e de espanto.

   Foi o suficiente para que Liliana lhe escapasse e corresse para a porta. Viu os homens defrontando-se lá fora e as labaredas que lambiam o celeiro. Quis disparar naquela direção, mas já era demasiado tarde. Recuperado do chute e da mordida, Ivor a alcançou e agarrou-a pelo vestido, rasgando-o. Empurrou-a de forma a obrigá-la a ajoe¬lhar-se. Sem hesitar, ela tentou engatinhar para fora, mas ele a puxou de volta.

   Segurando-a pela cintura, forçou a levantar-se e a encará-lo.

   - Por mais que me agrade vê-la de joelhos, normanda, quero que contemple meu rosto gaulês.

   Quando Ivor aproximou a boca para tomar a beijá-la, ela desfe¬chou-lhe um murro na base do pescoço com toda a força de que dispunha, o que, considerando o medo, a raiva e, a determinação que a dominavam, era substancial.

   Estonteado, ele procurou prender-lhe as mãos, porém Liliana já se afastara, tomando o rumo do corredor que conduzia à cozinha.

   Ivor correu atrás dela. Não permitiria que sua recompensa lhe escorregasse pelos dedos. Haveria de ouvir a arrogante normanda suplicar que lhe poupasse a vida, custasse o que custasse.

   Liliana cruzou o corredor a toda a velocidade, impulsionada pelo pavor e pelos passos do gaulês em seu encalço. Entrou na cozinha e disparou para o balcão onde guardavam os utensílios domésticos. Apanhou a faca maior e mais afiada que pôde encontrar. Então, ouviu o som de soluços abafados. Olhando por sobre o ombro, deparou-se com as criadas encolhidas num canto, escondidas atrás da pilha de lenha estocada para o fogão. Uma sombra de contrariedade ensombreceu-lhe os olhos.

   - Por que não se refugiaram na despensa, como mandei? ¬- cochichou.

   - Desculpe milady - Jhone murmurou. - Achamos que po¬deria precisar de nossa ajuda.

   - Grande ajuda! Agora, terei que protegê-las também...

   Entretanto, não havia tempo para discussões. Liliana voou para a porta. O líder dos rebeldes estava do outro lado dela. Incerta sobre que atitude tomar, dirigiu-se com ligeireza para o pátio e viu a maioria dos bandidos pulando o muro para escapar, enquanto outros se apres¬savam a abrir os portões.

   - Ivor!! Rápido, homens! Morgan está voltando! - um dos revoltosos berrou em pânico, montando, em seu cavalo.

   - Voltem! - o líder, passando por Liliana, conclamou os homens em fuga desordenada. - Covardes!! Idiotas!

   - Ivor!

   O brado atravessou o ar como um raio, Liliana voltou-se, curiosa, na direção do dono daquela voz cortante como um punhal. Deparou-se com um homem esfarrapado, sujo e ensangüentado, que entrava pelos portões com a espada em riste. Seu ombro parecia despedaçado e, de seu ventre, o sangue ainda jorrava aos bordões.

   - Pensei que tivesse morrido, Dafydd - Ivor declarou com ligeiro tom de alarme.

   - Ainda não.

   De súbito, o recém-chegado arremeteu contra seu ex-líder. Liliana afastou-se, temerosa da espada erguida, prestes a atacar.

   Ivor desviou-se do golpe, enquanto apanhava uma adaga escondida dentro da túnica. Ato contínuo espetou-a na barriga já ferida de Dafydd, que tombou no chão, arrastando Ivor consigo.

   Tentando desvencilhar-se do antigo companheiro, o obstinado chefe dos rebeldes conseguiu levantar-se. Uma mancha de sangue crescia em suas calças, na altura da coxa.

   -Vou deixá-lo aqui, Dafydd, com seus amigos normandos - proferiu, cuspindo no chão.

   Em seguida, lançou um olhar sarcástico a Liliana e sorriu-lhe com frieza.

   - Teremos que adiar nosso encontro amoroso, bela dama. Quem sabe, num outro dia?...

   Mancou até o cavalo, montou-o com dificuldade e cruzou os portões a galope.

   Liliana sentiu o corpo inteiro tremendo. Deixou-se ficar ali, imóvel, com a faca ainda na mão. Uma fumaça densa obscurecia-lhe a visão. Alguém, não muito distante, gritou por socorro. Os animais escapavam do estábulo, apavorados por causa do fogo, criando tumulto no pátio.

   Ignorando tudo o mais, jogou a faca no chão, caminhou até onde Elwy jazia e ajoelhou-se a seu lado. Gentilmente, com genuíno carinho, aninhou-lhe a cabeça no colo e contemplou seu rosto tão familiar e querido.

   - Agora fiel amigo, você cantará suas lindas canções para os anjos... - murmurou, cerrando-lhe os olhos num gesto piedoso.

   Jhone apoiou-se na parede para não cair. Nenhum gemido lhe escapou os lábios, mas em seu rosto as lágrimas escorriam incontroláveis.

  

   A todo o galope, Kyryan cruzou os portões e apeou antes mesmo que o cavalo parasse. A balbúrdia no pátio era total, com os animais correndo sem direção, as criadas cuidando como podiam dos feridos, enquanto o resto dos trabalhadores apanhavam água no poço para apagar o incêndio no celeiro.

   Em meio à confusão, ele conseguiu divisar Liliana, por entre a fumaça, ajoelhada, ao lado de Elwy, embalando-o com suavidade.

   Correu para ela, notando com horror seu vestido rasgado e manchado de sangue, os cabelos desgrenhados e os lábios cortados.

   - Lili, você se feriu?

   Ela ergueu o rosto molhado de pranto.

   - Ele está morto - anunciou em tom sombrio, como se ainda não conseguisse acreditar naquela catástrofe. - Morto...

   Por alguns segundos, Kyryan não pôde respirar. Não, Elwy não! Bom Deus, não o seu companheiro de infância, o seu mais leal e estimado amigo! Amigo? Não, ele era mais do que isso. Era um verdadeiro irmão.

   Liliana começou a soluçar.

   - Eles... eles a magoaram?

   Ela negou.

   - Chegaram pouco depois que vocês partiram... os rebeldes - ela fitou-o com ar de recriminação. - Os bandidos que você sempre afirmou, que haviam ido embora, que não ofereciam perigo! Você ignorou as minhas advertências, não deu importância aos meus receios, e nos deixou aqui, com tão poucos homens para nos proteger!

   Kyryan encolheu-se, recebendo cada palavra como um golpe de punhal em seu peito.

   - Elwy morreu porque você julgou que nada havia a temer!

   Com delicadeza, Liliana deitou a cabeça do rapaz no chão, e levantou-se.

   - Seu primeiro dever, antes de acudir os Horton, era defender suas terras, sua gente... sua esposa! - A dor de Kyryan transformou-se em raiva diante dela, de pé no centro do pátio, repreendendo-o como se ele fosse um menino, estúpido que aprontara uma travessura qualquer, enquanto seu melhor amigo jazia morto sobre as pedras.

   - Não ouse dizer a mim quais são os meus deveres! - gritou.

   Ela encarou-o, rubra de indignação.

   - Poderia obedecer-lhe a ordem senhor meu marido,se eu não tivesse razão! Você estava errado, não estava? Admita ao menos uma vez que se enganou! Liliana continuou as acusações, compelida pelo sofrimento e pela fúria que se seguia ao medo. - Você não me deu ouvido. Só porque sou mulher, considerou-me estúpida e ignorante, não merecedora de sua preciosa atenção.

   - Basta! - Kyryan exclamou, exasperado - É claro que eu devia estar aqui. Pensa que não sei disso? Você está certa, sim. Aliás, você sempre está, não é Liliana? Entende de tudo melhor que ninguém, não é mesmo?

   Kyryan girou nos calcanhares e contemplou os homens, que haviam parado para observá-los.

   - Como era o homem que matou Elwy? Vocês o viram?

   - Era o mesmo que nos deteve na floresta, lembra-se? Aquele que, de acordo com a sua opinião, não nos causaria maiores problemas... - Liliana informou com ironia.

   Sem responder, Kyryan encaminhou-se de volta para o cavalo.

   - Aonde vai? - ela indagou, aflita - Não me diga que pretende abandonar-nos de novo...

   Virando-se para a esposa, Kyryan dardejou-lhe um olhar repleto de cólera fria.

   - Vou procurar o assassino de Elwy. Como lhe a.praz dar ordens, você pode ficar e organizar este caos - declarou, apontando para a desordem reinante no pátio.

   Temerosa pelo marido, Liliana deu alguns passos em sua direção. Já conhecia Ivor o suficiente para prever que ele lutaria contra Kyryan de modo traiçoeiro e sujo, desrespeitando todas as regras de combate dos cavaleiros. Além disso, Kyryan ainda se achava em convalescença. Embora curado da enfermidade, não podia contar com seu antigo vigor.

   - Preciso cumprir meu dever para com Elwy. Nem tente impedir-me - ele acrescentou, numa, advertência, que não admitia réplica.

   - Por favor, não nos deixe! - Liliana rogou, tomada por um profundo desespero. Sua mente febril buscava, um argumento capaz de dissuadi-lo da infeliz idéia. - Se você se for, partirei para a casa de meu pai. Ele me dará a proteção que não encontro aqui. Kyryan ergueu as sobrancelhas, porém sua expressão manteve-se distante e gelada.

   - Já fez essa ameaça uma vez, cara senhora, e não a realizou. Devo lembar-lhe que lhe compete, como esposa, permanecer na casa do marido? Não, claro que não. Você sabe tudo a respeito de obrigações, não é?

   Impotente, Liliana observou-o enquanto se afastava. E se aquela fosse a última vez em que o via?

   Ela estremeceu. Para afugentar o medo. Considerou que Kyryan voltaria são e salvo, depois de derrotar o inimigo. Quem melhor do que ele para aprisionar o bandido? Em nenhum momento, o xerife se dera ao trabalho de ajudar os habitantes da região a rechaçar os revoltos, os quais, sem nenhum amparo legal, haviam transposto a fronteira para reclamar direitos que não possuíam. E o Rei João... ah, esse estava demasiado longe, preocupado em recuperar as terras que perdera. E kyryan, além de guerreiro hábil e corajoso, seguia para o confronto motivado pela dor da perda do amigo, para não mencionar a cólera causada pela invasão de sua propriedade.

   Enfraquecido ou não, seria um adversário dos mais perigosos. Ivor que se cuidasse...

   Tendo tranqüilizado a si própria, Liliana voltou a atenção para as pessoas que circulavam, ansiosas para receberem orientações.

   Eram tantos os rostos que a perscrutavam, expectantes. Maude, Sara, Jhone... os trabalhadores.

   Há quanto tempo estariam ali parados? O bastante para terem ouvido sua discussão com o marido? Para terem escutado as palavras duras que ele lhe dissera?

   E a expressão reprovadora em seus semblantes! Será que não percebiam que a razão estava do lado dela? Pelo modo como a fitavam, davam a impressão de atribuir-lhe a culpa pela tragédia que se abatera sobre o castelo. Contudo ela havia prevenido o marido. Não fosse por sua teimosia, por sua recusa em dar-lhe atenção, nada daquilo teria acontecido.

   Altiva, Liliana ergueu o queixo. Kyryan menosprezara suas opiniões vezes sem conta, não admitindo jamais a possibilidade de ela estar certa e ele errado. Humilhara-a na frente de todos e ignorou sua súplica para que não tornasse a partir.

   Nada disso, porém, importava. Ela era lady Liliana Trevelyan Morgan e homem algum a faria curvar-se diante dos servos. Nem mesmo Kyryan.

   - Levem Elwy para dentro - ordenou. Cuidaria para que o corpo fosse levado e vestido adequadamente. Depois, partiria para o castelo do pai, como havia anunciado.

  

   Kyryan esquadrinhou o chão à sua frente, seguindo as marcas evidentes dos cascos de um cavalo, impressas no barro. Ivor Rhodri devia estar muito ferido para mostrar-se tão negligente.

   Esforçou-se para concentrar os pensamentos na tarefa que se impusera. Primeiro, precisava localizar o homem e em seguida... bem, trataria disso quando chegasse o momento. Por ora, tinha que afastar da mente as acusações que Liliana lhe fizera e sua ameaça de abandoná-lo.

   A lembrança do corpo de Elwy, no chão do pátio, ensangüentado e imóvel voltou-lhe à lembrança, provocando uma dor aguda.

   Nesse instante, visualizou um homem, caído sobre as raízes de uma árvore e o cavalo que pastava tranqüilo a seu lado.

   Pelas chagas de Cristo, só esperava encontrar Ivor ainda com vida! Só assim poderia matá-lo e vingar o amigo.

   Apeou a montaria e aproximou-se cautelosamente, brandindo a espada. Ivor não se mexeu.

   - Ora, ora... talvez um pouco de lama lhe faça bem... - Kyryan comentou com sarcasmo antes de chutá-lo com a ponta da bota de couro. Por um segundo manteve-se em guarda, esperando um contra-ataque.

   O líder rebelde rolou e abriu os olhos.

   - Vim recolher as galanas do meu companheiro - Kyryan declarou.

   Ivor sentou-se. Sua mão tateou em busca da arma, mas Morgan já havia pousado o pé sobre a lâmina.

   - O preço em sangue? - indagou com serenidade. - Quanto quer traidor?

   - Sua vida vale quanto eu decidir - Kyryan replicou.

   Ivor levantou-se devagar.

   - Se puder tomá-la, lacaio dos normandos!

   Kyryan empurrou a espada para Ivor, que abaixou-se para apanhá-la. Ao fazê-lo,m puxou a espada para Ivor, que abaixou-se para apanhá-la. Ao fazê-lo, puxou a adaga de dentro da túnica e avançou para o compatriota. Kyryan aparou o golpe e arremessou a pequena arma longe. Ivor, então, ergueu a espada, mas kyryan, usando a sua, arrancou-a da mão dele. A arma foi parar no meio dos arbustos.

   Ivor tentou buscar a adaga de volta. Nesse meio-tempo, Kyryan desfez-se da própria espada e partiu para cima do adversário com as mãos nuas.

   Derrubou-o no chão, prendendo-lhe os braços estendidos para cima da cabeça.

   - Vou matá-lo, Ivor ap Rhodri - em tom solene, contemplando os olhos esgazeados do rebelde.

   Os lábios de Ivor se retorceram num sorriso desdenhoso.

   - Traidor, lacaio dos normandos... mate-me, se tiver coragem!

   Sem titubear, Kyryan apanhou a adaga de Ivor e, com um golpe, cortou-lhe a garganta de um lado a outro.

  

   Liliana virou-se abruptamente quando Maude entrou no quarto.

   - Meu marido regressou? - indagou-lhe, tentando não demonstrar qualquer emoção através da voz, embora a idéia de que Kyryan estaria em casa lhe causasse um misto de alívio, alegria e medo.

   - Ainda não, milady.

   Ocultando também o desapontamento, ela voltou a ocupar-se com as roupas que guardava numa pequena arca.

   - Já arrumou suas coisas? - perguntou após um momento. - Devemos partir imediatamente. O pior é que teremos que viajar no escuro, pois esta quase anoitecendo.

   - Eu não vou com a senhora - Maude anunciou com frieza.

   - Você é minha criada pessoal, além de serva - Li1iana replicou. - Irá aonde eu for.

   - Não sairei daqui enquanto Gareth não chegar.

   Li1iana apertou os lábios. Era óbvio que a criada não aprovava o que estava prestes a fazer. Contudo, não passava de uma serva.

   Com que direito julgava os atos de sua ama?

   - Levaram o corpo de Elwy para a capela?

   - Sim. Padre Alphonse rezará uma missa em intenção de sua alma amanhã de manhã.

   Liliana suspirou. Não queria, perder a missa de Elwy, a última homenagem a um amigo querido. Entretanto, declarara em alto e bom som que partiria. Agora, não poderia recuar.

   - E quanto ao outro homem? Aquele que feriu o líder antes de morrer?

   _ Receberá um enterro cristão.

   Liliana assentiu. Fechou o baú e trancou-o.

   - Leve esta arca para a carroça - ordenou, fingindo indiferença.

   - Sim, milady - Maude ergueu a mala pesada e caminhou para a porta. - Desejo-lhe uma jornada boa e segura, senhora - acrescentou com suavidade ao sair.

   Ignorando a teimosia da criada, ela apanhou o manto e vestiu-o, prevendo o frio que a aguardava. Depois, parou no centro da alcova e percorreu-lhe cada canto com olhos saudosos. Obrigou-se a procurar algum objeto que pudesse ter esquecido, pois não desejava deixar nada que lhe pertencesse.

   Seu olhar deteve-se no leito. Contra a própria vontade, sua mente foi assaltada por lembranças doces e excitantes. A imagem de Kyryan dormindo, o rosto descontraído reassumindo um ar juvenil, o braço largado em cima dela, seu ressonar sereno. Pelas manhãs, costumava acordar sorrindo, feliz pelo dia que começava. Quando se deitava, era incapaz de adormecer antes de fazerem amor... Ah, como eram voluptuosos os seus beijos e gentis, ternas e ousadas as suas caricias. Tantas noites de êxtase... por Deus, como o amava Kyryan Morgan, seu adorável cavaleiro...

   Respirou fundo para reprimir um soluço, sacudindo a cabeça. Não devia perder tempo relembrando esses momentos. Não discutia a habilidade de Kyryan nas artes amorosas. Fora da cama, porém, tudo mudava. O amante ardente transformava-se num marido orgulho, obstinado e autoritário, incapaz de admitir um erro, muito menos de ouvir-lhe os sensatos conselhos.

   Voltaria para a casa do pai e ponto final. Ele a trataria com o respeito que merecia e permitiria que governasse o solar da forma que considerasse melhor. Lorde Trevelyan não ignorava o grande valor de sua filha.

   Erguendo o queixo com altivez, mentiu para si mesma, pensando que se daria por contente se Kyryan Morgan jamais a procurasse de novo.

   Em seguida, saiu da alcova com passos decididos. No salão, Jhone a esperava com uma trouxa nas mãos.

   - Parece que Maude recusa-se a acompanhá-la, milady. Se concordar, senhora, seria um prazer substituí-la como sua criada pessoal.

   Liliana perscrutou-lhe o semblante imperturbável.

   - Eu também teria muito prazer com isso, mas esta é a sua casa.

   - Não tem importância - Jhone murmurou e a máscara de impassibilidade rompeu-se, denunciando uma profunda dor em seus olhos úmidos.

   Tanto sofrimento surpreendeu-a. Depois, entendeu que o ataque ao castelo a havia amedrontado além do que era capaz de suportar. A tensão, o horror e a morte que reinaram no solar durante horas foram demais para a moça. Aliás, para ela também.

   Olhou de relance para a carroça, cercada pelo pequeno grupo de homens que lhe serviria de escolta. Não desejava forçar Maude a partir, já que seu coração não a seguiria por outro lado, desagradava-a a perspectiva de viajar sem uma companhia feminina. Além disso, gostava de Jhone. Apreciava-lhe a circunspecção e o bom senso. Valorizava, principalmente, sua lealdade.

   Por fim, resolveu-se. Balançou a cabeça em sinal de aquiescência.

   - O que está esperando, menina? Suba logo nessa carroça!

   Sem hesitar, a criada jogou a trouxa no interior da carreta e acomodou-se ao lado do cocheiro.

   Minutos depois, o diminuto cortejo atravessou a ponte de pedra, seguindo na direção do Castelo Trevelyan.

  

   Um desespero frio e agudo apossou-se de Kyryan Morgan quando ouviu o tropel de cavalos. Num segundo adivinhou quem seria a pessoa tão inconseqüente a ponto de lançar-se pela estrada numa noite de inverno. De qualquer modo, ocultou a montaria e sua carga junto com o cachorro por entre as árvores e aproximou-se da trilha, observando-a por detrás dos arbustos. Não tardou para que vislumbrasse a carroça, defendida por poucos homens. Reconheceu o manto verde de lã que a esposa usara após o casamento, quando a trouxe para seu novo lar.

   Liliana o estava abandonando. Ele devia, ter previsto que ela, obstinada e orgulhosa por temperamento, cumpriria a pa1avra.

   Bem, se era o que desejava, então... que fizesse boa viagem. Kyryan Morgan jamais prendera ninguém a seu lado, não iria começar agora. Levaria o cadáver de Ivor ap Rhodri para o solar e esqueceria a bela filha de lorde Trevelyan, com suas ordens e sua arrogância. Já perdera a conta de quantas vezes havia se desculpado perante ela, humilhando-se, implorando por novas oportunidades. Agora, bastava. Se Liliana quisesse, que viesse pedir perdão por suas acusações injustas e despropositadas.

   Quanto a ele, concentraria sua atenção na propriedade, cuidando dos animais e do castelo. Trataria, também, de arregimentar guerreiros para constituir um pequeno exército. Morava demasiado próximo da fronteira para considerar-se a salvo de rebeldes como Ivor.

   Da próxima vez poderiam ser os escoceses, que viviam em conflito com os gauleses por causa de terras. Nada os impedia de se voltarem contra os normandos, também. Enquanto não organizasse uma força militar, seria sempre acossado pela incerteza quanto a existência de revoltosos nas colinas e florestas.

   Revoltosos nas colinas e florestas. Liliana se embrenharia no bosque protegida por apenas cinco trabalhadores pouco hábeis com armas. Rilhando os dentes, arrancou o corpo sem vida de Ivor de sobre a sela e depositou-o no chão. Em seguida, montou.

   - Fique aqui e tome conta dele - comandou para Mott, que sentou-se obedientemente ao lado do cadáver, como se entendesse o significado das palavras do dono.

   Apertou os flancos do cavalo para que trotasse e começou a seguir o cortejo a uma distância discreta para garantir que a esposa chegaria incólume ao castelo de lorde Trevelyan.

   Não que ela parecesse muito preocupada, agora, com a segurança.

   Depois de viver ao seu lado, de sentir o êxtase inigualável de abraçá-la, de possuí-la, de escutar-lhe a voz e de vislumbrar seu sorriso na penumbra do quarto, tornara-se simplesmente impossível tirá-la do pensamento.

   Pelos anos que lhe restavam, carregaria no peito as doces recordações da mulher amada... e a mais profunda dor.

  

   Lorde Trevelyan ergueu os olhos do tabuleiro para fitar a hóspede com quem jogava ums partida de xadrez.

   - Xeque-mate! Desculpe-me, minha cara, mas receio que ganhei - Declarou em tom brincalhão.

   Nesse momento, porém, seu olhar foi atraído pela figura esguia que, envolta num manto verde, entrava no salão.

   - Filha - exclamou, levantando-se. Apressou-se a tomá-la nos braços e percebeu que tremia - O que houve? Onde está seu marido?

   - No castelo dele - ela replicou. Ao menos, era onde supunha que Kyryan se encontrasse agora. Estava vivo, disso tinha certeza, pois vira-o na estrada, metros à frente da carroça. Quando vislumbrou a silhueta máscula de Kyryan Morgan em seu cavalo, com Mott do lado, precisou morder o lábio para não gritar-lhe o nome, para não correr para seus braços e certificar-se de que não fora ferido. Ele, entretanto, não esboçou o menor movimento em sua direção. Ao contrário, embrenhou-se na floresta. Não quis encontrá-la nem pedir-lhe para ficar. Por que o faria? Seria melhor assim, com o caminho livre para administrar a propriedade do jeito como bem entendesse, sem a incômoda presença da esposa para atrapalhá-lo - Os Horton foram atacados. Estão todos mortos e o castelo foi incendiado.

   - Oh, por Deus! - Lorde Trevelyan bradou, chocado. Como pudera subestimar a gravidade da situação? Ouvira tantos rumores e, no entanto, ignorara-os de forma deliberada. Devia estar ficando velho... mesmo assim, não se perdoaria jamais por não ter mando soldados para a propriedade do genro. Examinou-a com grande preocupação. A pobrezinha, além de trêmula, achava-se pálida como a neve. Menos mal que, ao que parecia, não estava ferida.

   - Morgan enviou-a para cá para que eu a proteja? Muito sábio da parte dele.

   Notou que a filha dirigira o olhar para a hóspede, que observava a cena em silêncio.

   - Querida, deixe-me apresentar-lhe lady Jane Cotterill.

   Liliana curvou-se ligeiramente, numa saudação polida. Lorde Trevelyan chamou a criada e ordenou-lhe que servisse vinho quente e bolos.

   Depois que a filha comeu e a cor voltou-lhe as faces, deu-lhe um tapinha carinhoso no braço e pediu:

   - Agora, conte-me o que aconteceu.

   - O ataque aos Horton não passou de uma cilada. Para afastar Kyryan e os homens da propriedade, compreende? Assim que eles partiram, os rebeldes invadiram minha casa. Os malfeitores porém... não obtiveram sucesso em reduzir o castelo a cinzas.

   - Graças a Deus! - O pai louvou com fervor. Seus olhos, todavia, continuavam esquadrinhando o semblante angustiado de Liliana. Havia mais alguma coisa, além do já narrado, que a entristecia, - Alguma baixa?

   - Elwy. O líder do bando matou-o.

   - Que notícia terrível! Posso entender por que Kyryan não veio com você.

   - A idéia foi minha - Liliana interrompeu-se. Já era muito tarde e estava exausta. Além disso, não queria desabafar na frente da estranha.

   Seu único consolo era saber que dormiria no seu velho quarto.

   O mesmo quarto onde passara a malfadada noite de núpcias.

   Afugentou as lembranças quando Jhone e o cocheiro entraram, trazendo sua bagagem. Ambos a fitaram, expectantes.

   Liliana acenou para uma das criadas de seu pai, que chegava com outra jarra de vinho quente.

   - por favor, mostre-lhes o caminho para os meus aposentos. Jhone, precisarei primeiro do conteúdo da arca pequena.

   Depois que os servos saíram, ela voltou, discretamente, a atenção para a hóspede. Lady Jane aparentava ter poucos anos menos que lorde Trevelyan. Seus olhos azuis fitavam-na calorosos e repletos de brandura.

   De certo modo, agradava-lhe a presença da convidada. Lorde Trevelyan não lhe faria perguntas inconvenientes diante dela. Isso a pouparia de explicações sobre seu casamento que não tinha a menor disposição de oferecer a ninguém, muito menos ao pai. Amava-o demais para afligi-lo e incomodava-a trazer-lhe problemas.

   - Espero que não se importe com a minha visita - comentou, tomando consciência de que ele não pedira a lady Jane que os deixasse a sós.

   Lorde Trevelyan sorriu, mas evitou encará-la.

   - Ora, é óbvio que sua vinda me alegra, embora os motivos não sejam animadores. Será bom contar com a sua companhia outra vez, como antigamente - ele pigarreou. - Entretanto, como só esperava no Natal, receio que encontre as coisas um tanto... hã... fora do lugar.

   Liliana estendia a mão para tornar a encher a taça do pai com o vinho temperado com ervas aromáticas quando, para sua desagradável surpresa, percebeu que lady Jane havia-se inclinado com o mesmo propósito.

   O papel de anfitriã naquele solar sempre lhe coubera. Por que uma hóspede, uma estranha, se arrogaria o direito de desempenha-lo?

   Ergueu os olhos para o pai, que corou.

   - Eu... pretendia contar-lhe quando viesse para a comemoração do Natal. Todavia, como os acontecimentos se precipitaram... lady Jane e eu decidimos casar-nos. Na verdade, eu planejava acompanha-la de volta á sua propriedade amanhã.

   Liliana forçou-se a sorrir. Em seu íntimo, porém, sentia como se o chão lhe desabasse sob os pés.

   - Oh! Aceitem meus... cumprimentos - murmurou - por favor, não deixe que a minha chegada atrapalhe seus planos. Pensei em visitar lady Eleonor e ...

   Lorde Trevelyan tornou a clarear a garganta.

   - Os Northrup são esperados em breve para as festas.

   - Entendo. Nesse caso, eu poderia ficar aqui e preparar tudo... se me permitir, naturalmente.

   - E claro, Li1i - o pai concordou com um sonisso afetuoso. - Esta casa lhe pertence...

   A despeito das palavras dele, Liliana pensou que aquela casa jamais voltaria a pertencer-lhe. Ao menos, não como antes. A maneira como lady Jane se comportava, agindo como a senhora do castelo, o fato inegável de que seu pai já não sentia o mesmo prazer em recebê-la e até mesmo detalhes de menor importância, como a troca de certas peças do mobiliário, todos esses fatores demonstravam sem sombra de dúvida que tudo havia mudado em definitivo.

   - Você parece cansada, querida - Lady Jane observou com simpatia - Deve ter sido uma jornada extenuante e...

   - Foi, sim - Liliana cortou-a, levantando-se. De fato, aquele fora o dia mais longo e mais difícil de sua vida inteira e ela queria, não, precisava, ficar sozinha em seu antigo quarto de solteira. Com certeza, esse aposento não sofrera mudanças desde seu casamento. - Desejo-lhe bons sonhos, lady Jane. Boa noite, papai.

   - Descanse bem, filha. Conversaremos mais amanhã de manhã - ele a abraçou carinhosamente.

  

   Na escuridão da noite invernal, Kyryan entrou no pátio de seu castelo, puxando o cavalo pelas rédeas. O celeiro se transformara em ruínas enfumaçadas. Para seu alívio, constatou que os trabalhadores haviam conseguido salvar os animais, reunindo-os do melhor modo dentro de um cercado erguido às pressas.

   Alguns homens aproximaram-se dele, em silêncio, contemplando o cadáver de Ivor que pendia da sela.

   - Onde está Elwy? - Kyryan indagou, melancólico.

   - Na capela - um deles informou.

   - Irei velá-lo.

   Os rapazes balançaram a cabeça e se dispuseram a ajudá-lo naquela árdua tarefa. Todos queriam prestar a homenagem ao companheiro.

   Apontando para o corpo de Ivor, Kyryan ordenou:

   - Quanto a este aqui... enterrem-no. Não importa onde. Girou nos calcanhares e viu Maude saindo para o pátio. Ficou surpreso, pois julgara que a criada havia partido junto com a ama.

   - Quem era a mulher que seguiu com Liliana?

   - Jhone, meu senhor.

   - Oh...

   Maude posou a mão em seu braço.

   - Aquele homem - indicou Ivor com o olhar - estava ferido quando o encontrou?

   - Hum, hum...

   - Foi um dos rebeldes quem o feriu. Eu vi os dois lutando.

   Kyryan fitou-a de soslaio.

   - Por que? Quem é ele?

   A criada meneou a cabeça.

   - Não disse uma só palavra antes de morrer. Creio que nunca saberemos.

  

   Na manhã seguinte, antes de Lorde Trevelyan partir em sua jornada, ouviu o relato detalhado de Liliana sobre as razões que a levaram a regressar a casa paterna. A primeira vista, os motivos pareceram-lhe válidos. Kyryan não quis aceitar seus conselhos nem considerou seus receios. Sua arrogância havia contribuído para a vulnerabilidade do castelo, que ficou exposto ao ataque dos rebeldes.

   Contudo, conhecia a filha. Imaginava com facilidade o modo como ela fez sugestões ao marido. Como se dominasse todos os assuntos e, por isso, não admitisse contestação.

   Ele suspirou e murmurou vencido:

- Repito que esta casa é sua. Pode morar aqui, se for esta a sua vontade.

   - Obrigada papai - ela replicou, levantando-se.

   Os dois se abraçavam.

  

   Duas semanas mais tarde, Liliana trabalhava numa tapeçaria que começara depois de sua mudança para o Castelo Trevelyan. Já estava quase terminando, pois, com o excesso de tempo livre de que dispunha na qualidade de "hóspede", pouco tinha a fazer além de tecer e bordar.

   - Cansada, milady? - Jhone indagou com solicitude, percebendo-lhe a palidez. Sentara-se perto da ama, separando os diferentes fios pela cor.

   - Oh, não. Apenas uma ligeira indisposição - Liliana replicou, tentando ocultar a preocupação. Acalentava uma suspeita inquietante. Embora os sintomas fossem claros, não queria sequer admitir a possibilidade. - Eu... não tenho dormido bem, ultimamente. Devo estar estranhando o quarto.

   Claro que nada tinha a ver com a solidão das noites, disse a si mesma. Muito menos com seu espanto diante da indiferença do marido, que não se importava sequer em pedir notícias para saber se ela havia chegado bem.

   Embora o pai não declarasse de modo explícito, ela intuía que sua decisão de separar-se de Kyryan não contava com a sua aprovação. Talvez, como homem, ele tendesse a dar razão ao genro por mera solidariedade masculina. Ou a proximidade de seu matrimônio com lady Jane o fizesse encarar seu retomo como um transtorno.

   Não importando o que ele pensasse, a cada dia se fortificava em seu íntimo a certeza de que procedera bem ao romper o casamento. Quis deixar o marido na manhã seguinte à noite de núpcias, quando percebeu que Kyryan não a amava. Só não o fez porque... bem, ele lhe pedira uma segunda oportunidade.

   Então, após um período de conflitos, ela se permitiu viver um sonho. Um lindo sonho, mas que não passou disso. A realidade impôs-se e ela despertou.

   - É uma pena que lorde Trevelyan tenha decidido reformar o seu antigo aposento de solteira - Jhone observou.

   - De fato - Liliana concordou, perfurando a tela grossa com a agulha.

   - Não acha que deveria parar um pouco de tecer? - a criada sugeriu, fitando a tapeçaria de soslaio. Sufocou um suspiro e voltou a atenção para os fios.

   Liliana ergueu os olhos para a serva, habitualmente serena, e desviou-os de volta para o trabalho em suas mãos. Tratava-se de uma cena de banquete, com cavaleiros e damas dançando enquanto um menestrel cantava. Um dos músicos, de pele morena e cabelos negros, possuía um nariz volumoso. Deu-se conta, então, de que se assemelhava demais com Elwy.

   Pousando a tapeçaria, desabafou uma tristeza que trazia dentro do peito:

   - Gostaria de ter assistido a missa em homenagem a Elwy. Você podia ter ido.

   Jhone contemplou-a com firmeza. Mais uma vez, embora o semblante permanecesse impassível, seu olhar traia uma dor inexplicável, brilhando com lágrimas jamais derramadas.

   - Não, eu não podia - a criada retrucou com voz embargada.

   Num átimo, Liliana descobriu o quanto se mantivera cega perante o sofrimento de Jhone. Cega, ou egoísta demais, concentrada apenas nos próprios problemas.

   - Eu não teria suportado... - a moça acrescentou.

   - Oh, eu... sinto tanto! -Liliana murmurou, segurando uma das mãos da fiel serva. - Não imaginava que...

   - Ninguém sabia, milady. Nem ele...

   - Algum dia, você encontrará outro rapaz e...

   - Não - Jhone atalhou-a em tom categórico. Sua expressão suavizou-se ligeiramente. - Creio que não pode entender, senhora, mas eu o amava com toda a minha alma. Agora, ficou um vazio dentro de mim que ninguém poderá preencher.

   - Não ignoro o quanto o amor é capaz de magoar... - Liliana retrucou, enrubescendo ao ver o ceticismo estampado no rosto da criada. - Com que direito ousa questionar meus sentimentos?

   - A senhora abandonou seu marido. Se o amasse de verdade, não o faria por nada no mundo!

   - Não tive escolha, fui obrigada! - defendeu-se. - Você presenciou a discussão, ouviu as palavras ásperas, o tom agressivo com que Kyryan se dirigiu a mim na frente de todos! Antes disso... oh, Deus... quantas vezes tentei alertá-lo para o perigo, mas ele sempre desprezou minhas opiniões!

   - Lorde Morgan a ama - Jhone declarou com simplicidade e convicção.

   Liliana não respondeu. Virou o rosto, para esconder os olhos úmidos, e respirou fundo para conter o pranto. Ela também o amava. Tanto ou até mais, do que Jhone amara Elwy. Desde que se separou de Kyryan, vivia infeliz e amargava noites da mais tenebrosa solidão. Nos momentos de melancolia, que eram todos, maldizia a si mesma por ter saído de casa. Graças à própria arrogância e teimosia, bem como à sua capacidade de ferir com as palavras, arruinara o casamento com o melhor marido que uma, mulher podia esperar.

   Tentara persuadir-se de que, se recuasse e voltasse para ele, demonstraria fraqueza, defeito que não admitia em ninguém. E ela era Liliana Trevelyan, uma mulher forte, digna e valorosa.

   Contudo, o que teria mais importância, a honra e o auto-respeito ou a felicidade nos braços do homem amado? Do homem que a amava com igual ardor?

   - Oh, querida! Vim o mais depressa que pude, assim que soube! - Averil Beaumare exclamou em tom dramático, disparando salão adentro sem ser anunciada. - Que infelicidade a sua, pobrezinha...

   Liliana rangeu os dentes e ergueu-se da cadeira. Devia ter esperado por aquela visita desagradável. Não a surpreendia que Averil, como um corvo, correria para satisfazer-se com os despojos de um casamento destroçado.

   - Eu e Barris estávamos no solar dos Cotterill quando seu pai chegou. Fiquei com pena, pois sei o quanto ele se preocupa com o bem-estar da filha. Assim, para tranqüilizá-lo, disse-lhe que viria consolá-la.

   Jhone levantou-se para ceder o lugar à recém-chegada.

   - Agradeço a sua solicitude - Liliana replicou com formalidade. - Queira sentar-se, por favor.

   Com seu costumeiro ar bonachão, Barris entrou. Saudou a anfitriã distraidamente, examinando a mobília luxuosa do aposento.

   - Está muito frio, lá fora - observou.

   - Jhone, providencie vinho quente e frutas para os meus... "convidados". Ah, sim, peça a alguém para trazer mais lenha para a lareira.

   - Barris - Averil dirigiu-se ao marido com a voz esganiçada, sentando-se sem sequer se dar ao trabalho de despir o pesado manto de lã pardacenta, - vá verificar se estão cuidando direito da bagagem. O marido com uma careta de enfado, saiu para obedecer-lhe a ordem e ela voltou-se para Liliana com um suspiro: - Ah, como a vida é irônica! Enquanto o pai, a despeito da idade, faz planos para casar-se, a filha... devo declarar, minha cara, que o seu aspecto não é dos melhores!

   - Estou cansada apenas.

   - Ele...batia em você?

   Liliana perscruto-lhe os olhos brilhantes de curiosidade, de avidez por detalhes sórdidos.

   - De modo algum - negou com determinação.

   - Menos mal. Teve muita sorte, se me permite dizer. Não queria preveni-la antes, pois você parecia tão apaixona da e feliz com o casamento, mas todos sabem que esses gauleses não passam de bárbaros.

   Liliana esboçou um sorriso. Lembrando-se dos rebeldes e, principalmente, de seu líder, inclinava-se a concordar. Contudo, ao recordar de kyryan, Elwy, Gareth e tantos outros que trabalhavam no castelo, as tradições românticas e o gosto pela música, não podia dar-lhe razão em hipótese nenhuma.

   - Averil querida, como decerto não ignora, nós, os normandos, é que descendemos dos bárbaros. Nossos ancestrais vieram da Dinamarca. Eles eram rudes e selvagens - retrucou.

   Jhone entrou com a bandeja e serviu maçãs e vinho quente à hóspede.

   - O que lorde Trevelyan pretende fazer em relação ao seu marido? - Averil indagou depois de sorver um gole, ignorando a resposta de Liliana.

   Ela lhe dirigiu um olhar surpreso.

   - Como assim?

   - Ora, o que todos esperamos é que "lorde" Morgan retorne a condição de cavaleiro sem terras.

   Liliana brincou com um dos fios do novelo que Jhone estivera separando. Aquela questão também lhe havia ocorrido. Kyryan trabalhara como um servo na propriedade e a defendera da melhor maneira possível. Não seria justo que o solar lhe fosse tirado. Decidiu conversar com o pai e pedir-lhe que deixasse o castelo nas mãos hábeis e valorosas de Kyryan Morgan.

   - Até porque - Averil voltou à carga, obviamente interpretando o silêncio da interlocutora como concordância - esse rapaz, para começar, não merecia o privilégio. Ele pode ser um campeão de torneio ou mesmo um bom soldado, mas não tem a menor noção de etiqueta! Na festa de vocês, estragou meu vestido predileto com aquela brincadeira estúpida!

   A recordação de um momento tão alegre, que lhe parecia tão distante no tempo, e a despeito da saudade que lhe provocou, conseguiu arrancar-lhe um sorriso genuíno. Sim, era verdade que a Kyryan faltava um pouco do que Averil chamara de "noção de etiqueta". Contudo, agora que regressara ao convívio de pessoas "civilizadas", percebia quão frívolos e destituídos de qualquer propósito eram os "bons modos" que tanto havia prezado.

   - Ah, esses homens... imagine que Barris considera o comportamento social de Morgan como perfeitamente aceitável. Insistiu que o visitássemos no caminho para cá, tem cabimento? Eu, porém, fui irredutível. Pensando em você, meu bem, no seu sofrimento, só admiti permanecer lá durante a manhã.

Liliana, que levava a taça de vinho aos lábios, quase derrubou-a no chão. Com mãos trêmulas, apressou-se a pousá-la sobre a bandeja.

   - Você o viu esta manhã?

   - Por apenas alguns minutos, asseguro-lhe. Nenhum homem que trate uma de minhas melhores amigas tão mal a ponto de obrigá-la a voltar para a casa do pai pode contar com a minha aprovação. Devo afirmar-lhe que você fez muito bem em sair de lã. O castelo transformou-se num chiqueiro! Não ,que estivesse muito melhor, antes.

   Liliana empertigou-se na cadeira.

   - Como... vão todos? - indagou, fingindo desinteresse.

   Averil dirigiu-lhe um olhar arguto antes de sacudir os ombros com indiferença.

   - Bem, eu acho.

   - Como assim, "acha"? Há alguém doente? Kyryan?

   Com um sorriso afetado, Averil adiou a resposta e tomou a observá-la, desta vez de modo sorrateiro. Então, bebericou um gole de vinho e deu uma mordida na maçã. Liliana sabia que ela lhe adivinhara a curiosidade e se comprazia em aumentar-lhe a ansiedade. Contudo, isso não importava. Precisava ter notícias dele.

   - Ninguém está doente, suponho. Todavia, aquela sua criada... como se chama?

   - Maude?

   - Maude. Não que essa moça algum dia tenha sido eficiente, mas agora... devia ver a negligência com que ela tem cuidado do castelo! As toalhas de mesa estão encardidas, o chão sem arear, enfim... um horror. Sinto comunicar-lhe que seu antigo lar parece uma taverna da pior qualidade.

   Liliana pensou com sarcasmo que lady Beaumare lamentava ser portadora dessa notícia tanto quanto desgostava de ser rica. De certo modo, porém, admitia que a culpa lhe cabia ao menos em parte. Afinal, não se utilizava do fato de possuir um marido jovem, forte, bonito e ardoso para humilhá-la? Agora, era a vez de averil vingar-se.

   - E Kyryan? - indagou por fim.

   - Desleixado, minha querida. Absolutamente desleixado. Não creio que aquela cozinheira esteja cumprindo suas tarefas. Morgan, porém, nem parece perceber. Quando chegamos, cuidava de um carneiro doente. Sorte teve lorde Trevelyan, que pode contar novamente com a sua ajuda para supervisionar as criadas.

   Liliana não replicou. Na verdade, o castelo do pai estava sendo administrado muito bem sem a sua participação. Á medida que os dias transcorriam, lentos e tediosos, percebia que estava deslocada em sua antiga casa. O fato era que aquele não era mais o ser lar e jamais voltaria a sê-lo. Averil mordiscou outra maçã e cochichou em tom de conspiração:

   - Quanto à criada, a tal de Maude, desconfio que esteja grávida. Talvez fosse conveniente você dar a entender a seu marido que já sabe de tudo... - acrescentou piscando-lhe um olho.

   Liliana nem se preocupou em esconder o sorriso.

   - Maude namora o pastor do rebanho, um jovem chamado Gareth. Ele é o pai da criança.

   Averil pareceu confusa, mas não muito.

   - Bem, longe de mim afirmar o contrário. Mas a moça é bonita, e você sabe o que dizem a respeito dos gauleses e sua falte de...

   - Com certeza você está cansada e gostaria de repousar um pouco Liliana cortou-ª

   Neste instante, Barris entrou.

   - Mãe de Deus, o frio lá fora congela até os ossos. Ah, vinho quente!

   Sem esperar que o servissem, apanhou a taça da esposa e engoliu todo o conteúdo de um só gole.

   - A que horas vamos cear?

   - Grata por lembrar-me - Liliana levantou-se, aproveitando a deixa. - Preciso dar algumas ordens na cozinha. Jhone os acompanhará até o quarto de hóspedes.

   Averil também ergueu-se.

   - Obrigada, minha querida. Volto a repetir que você tomou a decisão certa, fugindo de uma situação intolerável.

   Liliana fitou-a com candura.

   - Agradeço muito por ter vindo. Nem sabe o quanto me ajudou! - replicou com tamanha sinceridade que Averil quase se arrependeu por ter corrido para consolar a "pobre lady Morgan".

  

   - Kyryan?

Resmungando uma resposta, Kyryan ajoelhou-se para examinar um carneiro. O animal adoecera, sem dúvida, uma vez que se recusava a comer.

   - Kyryan!

   - Pelas chagas de Cristo, o que... - relanceou os olhos para cima e pôs-se de pé num salto - Gareth! Finalmente! Quase me matou de preocupação, homem!

   - Você quase nos matou, de susto com aquela febre! - o rapaz replicou. - Mas, pelo visto, já se recuperou. E eu que fiz uma jornada longa para buscar Mamaeth...

   - Melhorei pouco depois de você partir.

   Gareth sorriu.

   - Nesse caso, por que não dá a notícia a Mamaeth?

   - Ela veio?

   - Ah, sim! E o barão também.

   - Deus do céu!

   - Por isso, acho melhor que você mesmo lhes conte que empreenderam uma viagem inútil. Enquanto isso, eu cuido desse carneiro.

   Kyryan arrumou os cabelos em desalinho e examinou a roupa que trajava. Sujara os calções no estábulo e a túnica não se achava em melhores condições. Paciência. Trocaria as vestes mais tarde.

   Não se apressou a sair do celeiro parcialmente reconstruído. Toda a ansiedade para rever pessoas tão queridas se esvaia ao pensar nas novidades que teria para contar.

   E eles certamente desejariam conhecer sua esposa. Não seria nada agradável revelar-lhes que ela o abandonara.

   Kyryan franziu a testa. Nunca, desde o dia em que a seguira até o castelo do pai, recebera qualquer comunicado por parte de Liliana, que sequer enviara um mensageiro para certificar-se de que o marido continuava vivo.

   Uma semana após o enterro de Elwy, padre Alphonse rezou outra missa em sua memória e Kyryan acalentou a esperança de que ela viesse para a homenagem póstuma. Doce ilusão... era como se Liliana quisesse esquecer que um dia fora casada.

   Entretanto, se isso fosse verdade, como justificar que, até o mo¬mento, lorde Trevelyan não lhe tivesse tomado a propriedade de volta? Esperava o procurador de seu suserano a qualquer instante para reclamar a posse do castelo, a despeito de seu juramento de lealdade.

   Por que o sogro ainda não o fizera? Todas as noites, quando se deitava, solitário e triste, embalava-se com a idéia de que Liliana regressaria ao lar, retribuindo seu amor na mesma desesperada me¬dida.

   O tempo passava, porém, sem que a esposa aparecesse e o de¬sânimo se apossava, implacável de seu coração.

   A despeito da melancolia que o dominava, ao entrar no salão, Kyryan forçou um sorriso.

   - Barão! Mamaeth! Que bom vê-los!

   A curandeira, que agora lhe parecia mais sábia e arguta do que percebera quando criança, volveu os olhos escuros e penetrantes em sua direção.

   - Você não está doente. Pelo menos, não fisicamente - ela observou.

   Fazia anos que Kyryan não a encontrava e acabara esquecendo, a franqueza rude da mulher e o pouco respeito que nutria por títulos de nobreza ou pelos atos de bravura masculinos.

   - É verdade. Eu me recuperei bem.

   O barão Emryss DeLanyea, apoiando o peso do corpo sobre a perna sadia, perscrutou-o com seu único olho.

   - É, rapaz, você está com aspecto saudável.

   - Melhor assim - Mamaeth declarou com animação, - pois, não vim aqui por sua causa. Eu Já sabia que você estava curado e só me decidi a enfrentar essas estradas congeladas para conhecer a sua esposa. Gareth me contou que se trata de uma moça linda, o que é bom. Mas, a julgar pelo estado lastimável desta casa, não deve ser muito competente nos assuntos domésticos. Onde, em nome de Deus, está ela?

   Kyryan pigarreou, constrangido.

   - Liliana? Ah... foi visitar o pai - mentiu. Emryss ergueu uma das sobrancelhas, fazendo-o corar. - Mas, sentem-se, por favor. Vamos tomar uma cerveja? Maude!

   Osyth assomou à porta.

   - Maude foi ao encontro de Gareth milorde.

   - Sirva-nos um pouco de cerveja e providencie acomodações para os hóspedes.

   - Sim, milorde.

   Mamaeth contemplava as chamas na lareira com olhar fixo. De súbito, voltou-se e proclamou:

   - Ela está grávida.

   - Quem?

   - Sua esposa, ora essa. De quem mais poderia estar falando? Vocês terão um bando de filhos.

   - Não diga tolices! - Kyryan bradou, exasperado.

   - E por que não? Por acaso acha que a má sorte perdura para sempre?

   - Má sorte?

   - Refiro-me à pedra que perdeu. Seus efeitos já estão cessando. Quanto a Elwy, não se preocupe. Ele regressará.

   - Ora, não me venha com essas idiotices! Assim já é demais! O barão sorriu conciliador.

   - Não se aborreça rapaz. Conhece bem essa velha bruxa... vive tentando atrair a atenção de todos com suas "profecias".

   - Por que o senhor veio?- Kyryan inquiriu-o com aspereza.

   Sentia-se demasiado cansado e sofrido para agir de forma cortês.

   O barão fitou-o, espantado. Tamanha rudeza não era própria do menino que ajudara a criar.

   - Como não pude vir para seu casamento, aproveitei para acom¬panhar Mamaeth, já que minha perna ficou boa.

   - Entendo...

   - O que aconteceu com o celeiro?

   - Foi incendiado pelos rebeldes. Eles mataram Elwy.

   Empalidecendo, o barão sentou-se na cadeira.

   -Jesus Cristo, não!

   - Deus do céu... - a curandeira murmurou, igualmente chocada. - Eu devia ter adivinhado. Sonhei com um castelo em chamas e alguém sendo atraiçoado...

   Kyryan balançou a cabeça. Não o surpreendiam os sonhos pre¬monitórios de Mamaeth. Desde garoto ouvia-a dizer que era dotada, com um poder antigo e estranho. Os antigos chamavam-no de "visão".

   Jamais acreditara muito, todavia, em suas palavras.

   - Armaram uma cilada para afastar-me do castelo. Então, inva¬diram-no e assassinaram Elwy, que ficara com uns poucos homens para proteger as mulheres - A voz de Kyryan falhou, reduzindo-se a um sussurro. - Eu não devia ter saído. Era meu dever defender minha propriedade. Disseram-me que Elwy... não teve a menor oportunidade de lutar.

   DeLanyea relanceou os olhos para Mamaeth que permanecia tão imóvel quanto às pedras da parede, e em seguida tornou a fitar Kyryan.

   - Que cilada foi essa? Por que abandonou sua casa?

   - O castelo dos Horton estava em chamas.

   - Compreendo - o barão suspirou. Agora entendia o mau humor de Kyryan. - O que mais você poderia ter feito, rapaz? Trata-se de uma lei que, embora não escrita, é obedecida por todos, sem exceção. Em caso de incêndio, os vizinhos mobilizam-se pára ajudar a apagá-lo. Agora, Mamaeth, é melhor irmos repousar - ele ajudou-a a levantar-se num gesto cavalheiresco. - Conversaremos durante a ceia. Está bem assim, Kyryan?

   - Sim, barão. Lamento ser portador de tão má notícia.

   - Eu também, menino. Eu também...

  

   Mais tarde, depois que a ceia acabou e os criados retiraram as mesas, Kyryan e Emryss acomodaram-se perto do fogo.

   Exausto, Kyryan recostou-se na cadeira e suspirou.

   - Mamaeth é tão vigorosa que acabei esquecendo sua idade avançada. Devia ter tido mais cuidado ao contar sobre a morte de Elwy....

   O barão concordou, pensativo. Por fim, comentou:

   - Nunca é fácil ouviu ou falar sobre a morte. Contudo, Mamaeth é experiente e forte, acostumada a lidar com esses mistérios. Claro que amava Elwy como se fosse seu filho, da mesma forma que ama você. É natural que se abale com a perda. Amanhã, porém, garanto-lhe estará de pé, firme como um rochedo - após uma pausa, indagou: - Esses rebeldes... acha que ainda lhe darão dor de cabeça?

   - Não creio. Matei o líder do bando.

   - Você não disse que estava ausente do castelo na hora do ataque?

   - E estava. Mas Ivor, o tal líder, se ferira e não foi difícil segui-lo. Quando o encontrei...

   - Sim?

   - Cortei-lhe a garganta - revelou com simplicidade.

   Se o barão se surpreendeu com o modo frio com que Kyryan relatou seu feito, não o demonstrou.

   - Então, não houve um duelo de acordo com as regras? Bem, suponho que o canalha merecia esse fim. E quanto ao resto dos homens?

   - Fugiram.

   Emryss balançou a cabeça.

   - Tiveram medo de enfrentar a fúria de um cavaleiro - observou com serenidade. - É compreensível.

   - O espantoso é que Ivor não foi atingido por nenhum dos meus homens, mas sim por um dos revoltosos - Kyryan refletiu em voz alta.

   Dessa vez, o barão mostrou-se atônito. Contudo, sacudiu os om¬bros com indiferença.

   - Suponho que os rebeldes, habituados à truculência e à falta de ética, acabam brigando entre si. O que aconteceu com esse que se insurgiu contra o próprio líder? Também fugiu?

   - O infeliz morreu. Dei-lhe um enterro decente.

   O barão balançou a cabeça em aprovação.

   - Não. A atitude incompreensível desse homem... pode soar como tolice, mas... Sinto que ele não era meu inimigo - declarou e ergueu os olhos para o nobre gaulês-normando. - Será que teremos que lutar sempre pelas terras, DeLanyea?

   Emryss suspirou.

   - É impossível prever, rapaz. Pode ser que não, depende apenas da boa vontade de normandos e gauleses.

   - E o que devemos fazer, enquanto isso? Continuar essa guerra?

   - É o que deseja? Seguir lutando?

   - Todos os combates resultam em morte. E a morte, muitas vezes, é um desperdício tão grande...

   Os dois amigos se calaram por instantes, imersos em angustiadas reflexões. Por fim, Kyryan rompeu o silêncio.

   - O que um homem pode fazer, além de cuidar de seus afazeres da melhor maneira, com honra e dignidade?

   - Quase nada, meu rapaz...

   - Queria que minha esposa entendesse isso.

   - Por quê? Ela não compreende?

   - Receio que não.

   - Em contrapartida, você compreende os sentimentos dela, não é?

   - De que modo? Liliana é orgulhosa, arrogante, teimosa. Vive dando ordens como uma... uma...

   - Normanda?

   Kyryan arregalou os olhos.

   - E, como uma normanda.

   - E o que esperava da filha de lorde Trevelyan?

   - Tem razão. Mas ela é tão linda! Sua companhia me agrada, seu sorriso me aquece por dentro...

   - Pelo jeito, você gosta da moça.

   - Gosto.

   - E ela retribui o seu afeto?

   O semblante de Kyryan tomou a nublar-se.

   - Costumava retribuir...

   - Costumava?

   - Depois do ataque dos rebeldes, Liliana acusou-me de deixar o castelo, e também a ela, completamente vulneráveis - Kyryan baixou a cabeça, embaraçado. - No que tem toda a razão...

   - Você subestimou o inimigo - Emryss apoiou a perna que havia quebrado sobre um banco. - Contudo, não foi o único. Eu cometi o mesmo erro, bem como lorde Trevelyan. Por que não lhe apresentou esse argumento?

   Exasperado, Kyryan ergueu-se e começou a caminhar a esmo, como uma fera enjaulada.

   - Eu ia fazê-lo, mas... estava zangado demais para raciocinar com clareza. De certa forma, eu mesmo me culpava pela morte de Elwy. Contudo, não podia admitir que, minha esposa me repreendesse na frente de todos. Só agora percebo que Liliana foi injusta comigo.

   - Sim, ela foi. E agora, você a odeia...

   - Deus, não! - ele bradou, estacando. - Essa é a pior parte, DeLanyea - sua voz reduziu-se a um murmúrio angustiado. - Eu a amo.

   - Nem a morte se reveste de tanto mistério quanto o amor. - ¬O barão filosofou, disfarçando um sorriso. - Nesse caso, devo supor que sua mulher o odeia?

   - Como vou saber?

   - Que tal perguntar-lhe?

   - E humilhar-me mais uma vez? Ah, não! Também tenho orgulho. Emryss levantou-se com certo esforço.

   - Estou cansado. Toda essa conversa sobre amor me deixou com saudade da minha esposa. Durma bem, menino.

   Distraído, Kyryai1 resmungou:

   - Oh, sim. Boa noite, barão.

   Antes de retirar-se, DeLanyea dirigiu um longo olhar ao rapaz que educara e estimava como a um filho.

   - Não acho que seja a sua vez de ceder... afinal, o orgulho vale mais que o afeto, não é o que pensa? - Provocou-o, afetando in¬diferença.

   Kyryan fitou-o enquanto mancava para a porta. Ceder?! O barão pensava que ele estava a ponto de ceder?

   Pensava?

   Cerrando os olhos com força, rememorou o dia em que seu avô foi assassinado. Escondido atrás de um arbusto, apavorado, ele jurou que, quando crescesse, jamais se esquivaria de uma luta, como fazia naquele momento.

   No entanto, ali estava ele, refugiado no castelo, desistindo de lutar por sua felicidade por mera... covardia?! O que receava, afinal? Que Liliana não o amasse?

   Ah, mas ela o amava! Tinha que amar. Ninguém fingiria tão bem um sentimento desses. E ele vira o brilho em seu olhar todas as vezes em que a tomara nos braços.

   De pé no meio do salão, tendo apenas o silêncio por companhia, Kyryan Morgan tomou uma decisão.

   Iria procurar a esposa e pedir-lhe, suplicar-lhe se preciso fosse, que voltasse para casa.

   E não desistiria até que ela concordasse.

  

   Liliana avançou, decidida, pelo pátio do castelo de lorde Trevelyan e montou no cavalo que Derrick, a contragosto, havia selado.

   - Milady, eu lhe suplico - o velho soldado voltou à carga, suas palavras deixando rastros de fumaça no ar frio da manhã. ¬Não podemos viajar com uma escolta tão pequena.

   - Você mesmo disse que não pode dispor de mais homens na ausência de meu pai - ela argumentou com determinação. Aconchegou o manto e desceu o capuz.

   - É verdade, mas...

   - Então, terei que contentar-me com esses. Além disso, Derrick, confio em sua experiência. Sei que pode defender-me melhor do que um exército. Creia-me, não posso esperar mais.

   - Que mensagem devo enviar a lorde Trevelyan? - ele indagou, vencido, enquanto acenava para um dos criados.

   Liliana sorriu com ar travesso.

   - Diga-lhe que a filha voltou para casa e deseja-lhe um casamento tão feliz quanto o dela.

   Derrick subiu na montaria e conduziu o diminuto cortejo através da ponte levadiça. Atravessaram o pequeno vilarejo e entraram na floresta.

   O chão sob os cascos dos cavalos havia congelado e as árvores exibiam galhos despidos de folhas. Assim, pensou que poderia ver e ouvir qualquer sinal dos bandoleiros em tempo de safar-se de uma emboscada. De qualquer modo, parecia que os gauleses haviam-se desvanecido nas brumas da manhã de inverno. Lorde Trevelyan tinha ordenado que patrulhassem a estrada ao longo de todo o percurso até o castelo de Morgan, para evitar novas surpresas desagradáveis, e ninguém encontrara qualquer vestígio dos fora-da-lei.

   Lorde Trevelyan também ordenara que vigiassem as terras do genro, mas essa informação era mantida em segredo, para não ferir o orgulho dele. O amo não pretendia ofender Morgan, porém não desejava arriscar a segurança da filha e de seu marido novamente. Já cometera esse erro no passado e amargava um grande arrepen¬dimento pela negligência.

   Mesmo assim, Derrick vasculhava com o olhar atento a paisagem árida ao seu redor. Quando se tratava dos revoltosos, todo o cuidado era pouco. Quando atingiram a parte mais perigosa da floresta, ergueu o braço para deter a comitiva.

   - O que foi? - Liliana indagou nervosa.

   - Não estou certo, milady - Derrick replicou, parecendo alerta. Nesse momento, ela também ouviu um ruído a distância. Sem dúvida, um cavalo se aproximava a todo o galope.

   Liliana voltou-se para Jhone, aflita.

   - Talvez devêssemos ter esperado, como Derrick sugeriu.

   Antes que a criada pudesse replicar, um cavaleiro solitário surgiu por entre os arbustos queimados pelo gelo.

   Liliana estreitou os olhos, depois arregalou-os, abrindo um amplo sorriso.

   - Kyryan! É Kyryan!

   Derrick contemplou o recém-chegado como se visse uma assom¬bração. Liliana esforçou-se para manter o semblante sério, mas de¬sistiu.

   Kyryan puxou as rédeas de súbito e o cavalo empinou antes de parar. Ele fitou-a com ar interrogativo e ansioso. O coração de Liliana disparou no peito.

   Depois de apear da montaria, Kyryan caminhou direto para a esposa.

   - Podemos conversar milady? - indagou, oferecendo-lhe a mão para descer da liteira.

   - É claro, milorde - ela replicou com igual formalidade, a despeito da euforia que a embriagava como o mais forte dos vinhos.

   Quando suas mãos se tocaram, Liliana mordeu o lábio para conter o ímpeto de lançar-se em seus braços.

   Derrick, Jhone e os homens da escolta acompanhavam a cena com atenção.

   Kyryan guiou-a até um recanto mais afastado, junto de um pe¬queno lago, para que pudessem escapar da curiosidade de todos. Calados, sentaram-se sobre uma pedra.

- Liliana - Kyryan rompeu o silêncio.

   - Kyryan - ela murmurou ao mesmo tempo, - peço-lhe que me perdoe. Não conseguia enxergar as coisas pelo seu ângulo. Era teimosa e arrogante demais para isso. Contudo, tive tempo para refletir e percebi que...

   - Lili... - o marido enlaçou-lhe o ombro.

   - Deixe-me concluir, por favor. Juro que, doravante, procurarei não ser orgulhosa nem impor minhas opiniões. Aprendi que nada é simples como aparenta, e que nem sempre... o que estou tentando dizer é que... eu não devia ter repreendido você. A culpa não foi sua, agora eu sei. Na verdade, sempre soube, mas estava amedrontada e com raiva...

   - Liliana! Por mais que me agrade o seu pedido de desculpa, não posso aceitá-lo. Eu estava errado, entende? Devia ter ouvido suas advertências. Afinal, você foi à única que desconfiou da cilada. É uma mulher esperta, lady Morgan, e eu não passaria de um tolo se continuasse dispensando seus conselhos.

   - Oh, Kyryan... - ela o abraçou, comovida, e ergueu a cabeça para que o marido a beijasse. Quanta saudade, quanto desespero havia naquele beijo.

   - Lili - Kyryan sussurrou, os lábios trêmulos ainda encostados nos dela, - você... me ama?

   - Sim... oh, sim, de corpo, alma e coração. Agora, rogo-lhe que me leve para casa. Mais um dia longe de você e eu morreria de tristeza. ¬

   Ele fitou-a com assombro.

   - Está mesmo pedindo que a leve de volta?

   Ela sorriu.

   - Não, meu amor. Estou suplicando! Afinal, não gostaria que nosso primeiro filho nascesse fora de nosso castelo, não é?

   - Filho?! - Tomado por profunda emoção, beijou-a longa e ternamente. - Então, Mamaeth tinha razão? - Kyryan sentiu os olhos encherem-se de lágrima. Parecia-lhe impossível reconquistar a mulher que amava e ainda tomar-se pai! A vidente acertara mais uma vez... a boa sorte voltara!

   - Mamaeth?

   - Sim. Gareth a trouxe. Ah, e o barão também veio!

   - Oh, que maravilha! Finalmente irei conhecê-lo! Precisamos cuidar para que Gareth e Maude se casem...

   - Por quê? Os gauleses não são tão rigorosos quanto a detalhes desse tipo... o principal., eles já fizeram - Kyryan objetou com malícia.

   - Detalhes?! Kyryan Morgan! Não esqueça que Maude é nor¬manda.

   Kyryan suspirou.

   - E eu conheço as normandas. Está bem, conversaremos com padre Alphonse.

   - Vamos querido, não podemos deixar nossos hóspedes esperando...

  

   Liliana pousou o bordado e espreguiçou-se. A gra¬videz a deixava tão sonolenta...

   - Cansada, milady? - Jhone indagou, entrando no salão com uma bandeja de chá e bolinhos.            

   - Um pouco - Liliana respondeu.

   Observou a criada. Dez anos haviam transcorrido desde a morte de Elwy, e ela não voltara a apaixonar-se por ninguém. Contudo, após um certo tempo, o sofrimento começou a atenuar-se e Jhone resignou-se. A lembrança do amor, ao em vez de entristecê-la, con¬ferira-lhe uma nova doçura.

   - Como estão os preparativos Para o aniversário de Emryss?

   - Quase tudo pronto, senhora. Devia repousar um pouco. Seu pai e lady Jane não tardam a chegar.

   - E também o barão DeLanyea. Como padrinho de meu filho, ele faz questão de ser um dos primeiros a vir para a festa.

   Nesse momento, Kyryan entrou, rodeado pelas crianças:

   - Emryss, Viviana, Eleanor, Roanna, Morgan, vocês estão enlameados! Vão já se lavar, andem! - Liliana repreendeu-os, fingindo-se aborrecida. Só então seu olhar pousou sobre o menino mo¬reno e narigudo que se encolhia atrás dos outros. - Quem é esse garoto? - indagou ao marido.

   - Nós o encontramos na estrada - Kyryan contou. - Pobrezinho, não conheceu o pai e a mãe... morreu de inanição esta manhã.

   - Oh! - Liliana sentiu o coração apertado. Contudo, aquela criança lhe parecia estranhamente familiar. Percebeu que Jhone tam¬bém o examinava atentamente. - Venha cá, menino. Não tenha     medo. Como é o seu nome?

   - Elwy, senhora.

   Liliana desviou o olhar, assombrada, para o marido. Este, porém, mostrava-se igualmente atônito. Quem seria o pequeno Elwy? Filho bastardo do antigo e querido amigo? Talvez...

   - Quantos anos você tem?

   - Onze, milady.

   - Diga-me, você sabe cantar?

   O garoto balançou a cabeça, tristonho. De súbito, um sorriso ilu¬minou-lhe o rostinho sujo de barro.

   - Conheço uma cantiga - e entoou:

  

   "Foi num dia, certa vez,

   de solstício de verão,

   que um cavaleiro gaulês

   de uma jovem quis a mão..."

  

   Lágrimas comovidas inundaram os olhos de Liliana. Kyryan pi¬garreou, afugentando o nó que se formara em sua garganta.

   - Venha, Elwy - Jhone, que se aproximara, estendeu-lhe a mão. - Deve estar faminto. Antes, porém, vamos dar um jeito nessa sujeira toda...

   Liliana segurou as mãos dadas da criada e do menino, numa espécie de bênção.

   - Elwy, Deus lhe levou a mãe, mas teve a infinita misericórdia de conceder-lhe outra. Jhone, você perdeu seu amor, mas a bondade divina lhe confiou esse fi1ho. Cuide dele, como se tivesse saído de seu próprio ventre...

   Sem replicar, Jhone balançou a cabeça em assentimento. Um brilho feliz avivava-lhe os olhos.

   Depois que os dois se afastaram, Kyryan correu para ela:

   - Lili, você acha que...

   - Eu não sei Kyryan... talvez Elwy fosse o pai dele. Quem poderia afirmar o contrário?

   - Quem é esse garoto, mamãe? - Emryss perguntou.

   - Provavelmente o me1hor amigo que você e seus irmãos po¬deriam encontrar...

   Kyryan envolveu a esposa e os fi1hos num olhar emocionado. A última das profecias de Mamaeth se cumprira: Elwy, finalmente, havia regressado para eles.

 

 

                                                                                                    Margaret Moore

 

 

 

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