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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VIRGEM TRAIDA / Laurie Grant
A VIRGEM TRAIDA / Laurie Grant

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                               Inglaterra, 1536

Até que enfim, noviça Ancilla! Já não era sem tempo! Paguei um bom dinheiro para morrer em paz e confortavelmente, não em solidão e abandono! A jovem religiosa sorriu e tentou não fazer uma careta. Em voz calma, respondeu:

— Sem dúvida a espera lhe pareceu longa, mas vim vê-la um pouco antes da Assembléia das Irmãs. A senhora sabe que eu não poderia faltar.

—- Imagine! Desde quando noviças têm permissão para assistir à Assembléia como se já fossem freiras? — indagou a sra. Elizabeth Easington com a habitual irritação. — E o que uma jovem de sua idade entende de enfermagem? Você deveria estar fora daqui, levando uma vida diferente, tendo filhos, e deixar o convento para quando estivesse velha demais para fazer qualquer outra coisa.

Com medo de que a senhora ranzinza percebesse seu ar de preo­cupação, a moça desviou o olhar. Nessa manhã, a prioresa havia transmitido a notícia temida. Por ordem do rei Henrique VIII, o priorado de Kyloe tinha de ser fechado a exemplo de outros conventos e mosteiros espalhados pelo reino. Muitas da freiras, já bem idosas, não se lembravam de outro tipo de vida e ficariam no desamparo.

Todavia, a sra. Easington não se deu conta de nada e continuou:

— Você tem uma boca adorável, menina, feita para beijar e não para murmurar orações noite e dia.

Chocada com as palavras, Ancilla a fitou por um instante. Durante os anos passados atrás dessas paredes, muito poucas vezes pensara nas próprias feições. Uma freira não valorizava a beleza mundana. Por ser a única filha a sobreviver ao clima rigoroso ali da região norte, os pais a tinham dedicado à vida religiosa ainda em seu primeiro ano de vida. Antes de ter idade suficiente para ser uma pos­tulante, ela fora aluna interna do convento. Por um breve momento, desejou ter um espelho para se olhar.

— Ancilla — murmurou a velha senhora devagar. — Tenho cer­teza como esse nome de freira esconde outro bem feminino. E então, menina, com o qual foi batizada?

Concentrando-se para lembrar a voz amorosa dos pais pronunciando-lhe o nome, a jovem beneditina transportou-se mentalmente da enfermaria. Não pensava nisso desde a cerimônia durante a qual pedira ao convento para ser aceita como noviça.

— Ancilla era uma santa, mártir consagrada — respondeu lu­tando com as lembranças. — Agora, está na hora de preparar seu banho, senhora.

— Não lhe perguntei como arranjou o nome religioso, Está ficando surda? Seja boazinha e dê uma alegria a esta pobre moribunda. Qual é seu nome verdadeiro?                                                                

— Glória. Meu nome era Glória — respondeu com firmeza. — E a senhora não está à morte. Vou apanhar a água quente.

— Mocinha autoritária! Aposto como diz à prioresa o que fazer e quando — resmungou a velha senhora.

Ancilla já ia explicar que ninguém precisava dizer nada à delicada e bondosa madre Benigna quando a pesada porta de carvalho se abriu. Um golpe do vento frio de fevereiro precedeu a entrada de sir Herbert, o sacerdote do priorado.

— Padre?! — exclamou a noviça ao vê-lo envergando os para­mentos usados apenas para rezar missa e oferecer os sacramentos.

— Bom dia, noviça Ancilla — cumprimentou o homem corpu­lento, cujo sorriso afetado fez desaparecer os olhos miúdos entre as dobras do rosto balofo. — Sra. Easington, vim lhe ministrar a eu­caristia e também, caso queira, a extrema unção. E por que não? A senhora não vive dizendo que está à morte? Melhor aproveitar agora. Amanhã já não estará mais aqui. Não faz sentido eu ficar, visto o que está para acontecer a este lugar.

De maneira desastrosa, o padre acabava de revelar a notícia que a prioresa pretendia dar cuidadosamente à enferma.

— O que está insinuando? — perguntou a sra. Easington sem esconder a ansiedade. — E quanto a você, Ancilla, pare de fazer sinais ao padre. Ele já deu com a língua nos dentes — acrescentou soerguendo-se.

— Ah, ainda não tinha sido informada? — continuou sir Herbert sem tato algum e indiferente ao alarme estampado no rosto da velha senhora. — A irmandade terá de ser dissolvida. A propriedade já foi dada a um nobre de Sussex e seus ocupantes têm um mês para ir embora. Preciso me apressar para encontrar um novo meio de vida. Por isso, não posso é me delongar por aqui, mesmo sendo muito dedicado às necessidades  espirituais do priorado de Kyloe — declarou em tom pomposo.

O senhor quer dizer à vida mansa, à mesa farta e à rameira que mora no vicariato, pensou a jovem noviça, irritada com o verbalismo indiscreto de sir Herbert.

— Mas não podem me pôr para fora! Não podem! Paguei pelo direito de morar aqui até o fim de meus dias! — esbravejou a sra Easington em voz aguda.

— Controle-se, minha filha, o rei Henrique pode fazer o que quiser. Como é, vai querer os sacramentos? Preciso ir cuidar da vida.

— Meu coração — gemeu a enferma com as mãos crispadas no peito e enquanto enterrava a cabeça nos travesseiros.

Como ficasse claro que os últimos ritos não eram desejados, o sacerdote bateu em retirada. Mas a pobre noviça levou horas para acalmar a sra. Easington. O sino anunciando o almoço foi ignorado enquanto Ancilla continuava em seus esforços e rezava para que o xarope de papoula fizesse efeito contra a dor no peito da doente.

Finalmente, quando as pálpebras começavam a pesar sonolentas, a sra. Easington admitiu que poderia ir morar na casa da irmã, em York, embora não esperasse ser bem recebida pelos parentes.

Ao menos tem para onde ir, refletiu Ancilla. Ela mesma não contava com ninguém neste mundo. E pensar que em mais algumas semanas teria feito os votos perpétuos! Decidiu-se a acompanhar as freiras mais idosas e experientes quando deixassem o convento na esperança de encontrar um refúgio fora do alcance da ganância do rei Henrique.

 

 

 

 

                                     CAPÍTULO I

Sir Miles Raven praguejou eloqüentemente ao dirigir a montaria escarpa acima da baía Budle. A inten­sidade da chuva gelada aumentava a ponto de gotas escorregarem pelo seu pescoço entre a aba do chapéu e a gola de pele da capa.

A primavera jamais chegaria ao norte? O fim de abril já se apro­ximava e ali fazia mais frio do que em Sussex em janeiro. Estradas lamacentas e riachos transbordantes, que haviam atrasado sua viagem por um mês, agora o impediam de alcançar o priorado de Kyloe essa tarde.

A única alternativa seria procurar abrigo para si mesmo e para a montaria. Devagar, desviou o olhar da baía. A neblina tornava difícil distinguir muita coisa, mas ele teve a impressão de vislumbrar uma casa aninhada no promontório acima da baía. Teria de se con­tentar com ela. Estalou a língua para Cloud, o garanhão cinzento, e reencetou a cavalgada sob a chuva inclemente.

Cercas de pedra ladeavam a estrada até, a casa construída do mesmo material. A direita e um pouco afastado, havia um estábulo. Apesar da pressa em escapar da chuva gelada, Miles notou o estado de abandono da propriedade. As vidraças estavam baças de sujeira e, no segundo andar, uma delas coberta por tábuas, parecia um olho cego. Uma outra, no térreo, estava quebrada e pilhas de lixo acu­mulavam-se no jardim.

Ninguém atendeu à primeira batida na porta. Nem à segunda. Miles teria desistido se não houvesse escutado o choro de um bebê e a voz que o acalentava vindos pela janela quebrada. Convencido de que a casa era habitada, esmurrou a porta fazendo barulho suficiente para acordar até os mortos. Não pretendia continuar se enre­dando enquanto os moradores dali mantinham-se abrigados. Essas pessoas do norte não tinham noção de hospitalidade?, indagou-se.

Finalmente, a porta entreabriu-se apenas o bastante para mostrar um olhar desconfiado. Um instante depois, Miles ouviu o ranger das dobradiças e deparou-se com um homem de expressão astuta.

― Boa tarde. Sou sir Miles Raven. Gostaria de lhe pedir o favor de me oferecer abrigo contra o mau tempo. Esta chuva amaldiçoada está gelada!

Como se tentasse encontrar palavras para recusar o pedido, o homem continuou a observá-lo.

— O estábulo está muito bom, pois não pretendo me demorar. Tão logo a chuva amaine um pouco, vou continuar minha viagem. Quero chegar ao convento Kyloe antes do anoitecer, se for possível — declarou Miles em tom ríspido.

— Ora, não precisa se aborrecer — apaziguou o homem no so­taque carregado da Northumbria e aparentando ter se decidido. — O senhor é muito bem-vindo em minha casa. Hesitei porque quase nunca vemos cavalheiros finos do sul por aqui. Meu nome é George Brunt. Ned vai levar sua montaria ao estábulo — disse referindo-se a um menino de olhar curioso e cujo rosto fino indicava ser filho do dono da casa.

Este, numa afabilidade repentina, conduziu Miles pelo vestíbulo mal iluminado e ofereceu-lhe uma cadeira junto à lareira.

Se a parte externa da casa revelava abandono, o interior não es­condia o deleixo. Camadas de poeira cobriam todas as superfícies horizontais, teias de aranha pendiam pelos cantos das paredes e, no tapete imundo e esfiapado, espalhavam-se cacos de cerâmica.

— Mag! — gritou o dono da casa depois de também se acomodar numa cadeira.

Pouco depois, surgiu uma mulher de aspecto nervoso, com uma criancinha segurando-lhe o avental sujo.

— Providencie vinho para sir Miles, nosso futuro vizinho do priorado de Kyloe. Ele veio se abrigar da tempestade aqui.

Pelo tom de voz, Brunt parecia se achar do mesmo nível social de Miles e de considerar-lhe a visita inesperada muito agradável. Entretanto, não passou despercebida a Miles a troca de olhares tensos entre o homem e a mulher. Por que sua presença deixava Brunt apreensivo? conjeturou. Estranhou também que ele se conservasse calado enquanto esperavam pelo vinho.

Felizmente, o corpo enregelado começava a reagir ao calor do fogo, apesar das roupas molhadas. Como não lhe oferecessem uma toalha, ou pano qualquer, para se enxugar, levantou-se, tirou a capa e pendurou-a no encosto de uma cadeira. Pelo menos, um pouco da água escorreria para o chão.

O vinho, trazido pela mulher em copos rústicos de estanho, tinha sabor avinagrado. Não querendo ofender o dono da casa, Miles es­forçou-se para evitar uma careta ao sorver o primeiro gole. Brunt, todavia, tomou-o com prazer e tornou-se mais comunicativo.

— Não costumo beber vinho com freqüência, só quando recebo visitas importantes como a do abade. Geralmente, me contento com cerveja. Imagino que não tenhamos de nos preocupar mais com as vindas do abade, não é? — comentou Brunt dando um tapa na perna e rindo como se tivesse dito algo muito engraçado.

— Existia uma abadia na redondeza? — perguntou Miles com o fito de ser cortês e não porque tivesse algum interesse no assunto.

Ainda tentava tomar o vinho sem demonstrar o desagrado, mas já começava a sentir, no corpo, o calor provocado por ele.

— Abadia de Belford. Em minha opinião, a extinção das irmandades e ordens religiosas foi uma boa limpeza. Sanguessugas mal­ditas! Nunca deixaram de aparecer por aqui a fim de exigir um carneiro em paga do aluguel anual. Por acaso o senhor sabe o nome do cavalheiro a quem o rei presenteou Belford?

— Não, não sei — respondeu Miles com a intenção de descobrir, pois seriam vizinhos.

— Então, o senhor é o novo amo de Kyloe. Com certeza, já acertou a situação com as irmãs, calculo. Tanto melhor. Lugares como aquele só serviam como desculpa para mulheres preguiçosas levar uma vida inútil. Fingiam passar o tempo rezando quando, na verdade, fugiam da obrigação determinada por Deus, a de servir um homem e dar-lhe filhos.

Brunt, Miles desconfiava, não permitia que a mulher escapasse de tais deveres. Embora soubesse que a vida da maioria das religiosas era difícil e trabalhosa, absteve-se de qualquer comentário.

— Sim, Kyloe agora me pertence, mas não fui eu quem a solicitou e sim meu pai. Ele faleceu antes de tomar posse da propriedade.

— E o senhor a herdou — concluiu Brunt.

— Não. Meu irmão Thomas é o filho mais velho, portanto, o herdeiro legal. Mas como tal, já tinha trabalho suficiente tomando conta de Ravenwood, era Sussex. Também, meu irmão queria que eu tivesse minhas próprias terras.

— Não creio que o novo proprietário de Belford quisesse vir parar aqui no norte — opinou Brunt.

Não mais do que eu, pensou Miles. Thomas, sem dúvida, queria íhe proporcionar um centro de interesse longe do brilho superficial da corte e de seus freqüentadores gananciosos. Lady Célia Pettingham tratava-se de um bom exemplo. Recém admitido na corte, ele se deixara influenciar pela moça linda, de olhos escuros. Porém, ao encontrar um outro pretendente mais de seu agrado do que o segundo filho de um comerciante, sagrado ca­valeiro pelo último rei, lady Célia não hesitara em descartá-lo.

Mas quando havia mencionado o plano de criar cavalos na nova propriedade, o rei Henrique havia mostrado vontade de ir ao Norte. — Durante uma estação de caça, Raven, para conhecer os porres gerados por seu magnífico garanhão — explicara o rei.

Extraordinário como o fato de despertar a simpatia do monarca havia reacendido o interesse de lady Célia por Miles. Mas ele ig­norava-lhe os sorrisos renovados. Um dia, haveria de se casar, jun­tando-se a uma família nobre e poderosa que lhe fortalecesse a for­tuna. Porém tomaria cuidado para não se chamuscar como na primeira experiência.

Não sabia por que havia contado certos detalhes a Brunt. Língua solta. Efeito do vinho. Antes que o indivíduo indagasse mais sobre sua vida, resolveu controlar a conversa.

— Há quanto tempo mora aqui, Brunt?

Miles estava curioso. Apesar do estado deplorável da casa e do terreno à volta, percebia-se que a propriedade já tinha visto dias melhores. Por certo, fina e confortável demais para as posses desse camponês rude.

— Aqui em Mallory Hali? A vida inteira, quer dizer, na casa, só há alguns anos. Eu era pastor de ovelhas antes de sir e lady William falecer de febre nos pulmões. Como eles não tinham her­deiros, exceto a igreja, o abade achou melhor que eu morasse aqui para proteger o lugar para a abadia.

Claro! Não era à toa que esse pastor pobretão estava ansioso para ver os monges pelas costas. Isso o tornava senhor da casa!

— O cavalheiro não tinha parente algum? — perguntou Miles com ceticismo suficiente para provocar reação.

— Não, não! Nenhum! — afirmou Brunt em tom de desafio e incapaz de fitar Miles. — Ele era filho de um nobre que morreu em Bosworth, lutando por Ricardo o Usurpador — acrescentou sem disfarçar o desprezo por um seguidor do rei derrotado mais de cin­qüenta anos atrás.

Miles tinha certeza de que se Ricardo Plantagenet houvesse triun­fado em Bosworth, Brunt estaria expressando o mesmo desdém pelos aliados de Tudor. Ele era do tipo bajulador, a serviço de quem es­tivesse no poder. Concentrava-se apenas em suas vantagens.

O próprio pai não tinha sido diferente, reconheceu Miles. Se não houvesse lutado e contribuído para a causa Tudor, Thomas Raven teria morrido comerciante plebeu e os filhos não seriam, agora, os "novos homens" do rei.

Uma hora mais tarde, a chuva passou e Miles, menos molhado, continuou a viagem rumo a sua nova propriedade.

Cada acesso de tosse da prioresa, a noviça achava que seria o último. Eles eram mais freqüentes agora e o lenço encharcava-se de sangue, enquanto os espasmos sacudiam o corpo debilitado da pobre. O fim não demoraria muito mais, porém Ancilla não se atrevia a pensar além do último suspiro de madre Benigna.

Tiritava de frio ali na capela. Aconchegou mais o cobertor à volta dos ombros da prioresa e avivou as brasas tio fogareiro ao lado. Estariam mais aquecidas na enfermaria onde havia uma lareira, mas madre Benigna tinha insistido em esperar o desenlace diante do altar. Convencida de que não lhe restavam mais muitas horas de vida, Ancilla a ajudara a chegar até ali.

Elas eram as duas últimas beneditinas no priorado de Kyloe. As outras tinham partido um mês atrás, seguidas pela inconformada sra. Easington. O novo proprietário deveria chegar no dia seguinte, mas mesmo então, a idosa e enfraquecida prioresa não se encontrava em condições de viajar. Como não pudesse ficar ali sozinha, Ancilla havia se voluntariado para fazer-lhe companhia. Não teria sido capaz de agir de maneira diferente, pois amava a velha religiosa, mas fora com grande inquietação que vira a partida das outras. Até aquela data nenhum dos conventos a que tinham escrito havia respondido. Haveria ainda algum aberto na Inglaterra? Impossível de se saber, porém não poderiam continuar em Kyloe às vésperas de sir Miles Raven chegar para tomar posse do lugar. Elas tinham prometido mandar notícias tão logo encontrassem abrigo.

Todos os dias, enquanto cuidava da cada vez mais fraca prioresa, Ancilla esperava ver a chegada do nobre de Sussex a quem Kyloe pertencia agora. Mas ele não aparecia. Talvez as fortes chuvas de primavera que desabavam sobre toda a Inglaterra estivessem lhe impedindo a viagem. O mau tempo, entretanto, não atrapalhava os saqueadores.

Tão logo os empregados do priorado haviam sido dispensados e as freiras partido, os camponeses da região encararam o convento como um lugar abandonado. Individualmente, ou aos pares, come­çaram a aparecer a fim de pegar o que lhes poderia ser útil.

Há muito, os representantes do rei já tinham levado os tesouros da capela, como o cálice de prata e os castiçais de ouro dados pelo rei Henrique VI. Mas os saqueadores, gente humilde, queriam itens mais práticos como vidros das janelas ou pedras soltas das paredes. As mulheres procuravam roupa de cama e utensílios de cozinha que as beneditinas não podiam ter carregado. Era evidente que eles não se viam na obrigação de ser leais ao novo dono de Kyloe.

Na véspera, Ancila tinha surpreendido um casal no claustro car­regando enxergas.

— Ah, pensei que todas as irmãs tinham ido embora — dissera o homem. — Vai precisar disto aqui, irmã?

— Não. Estou dormindo ao lado da prioresa na enfermaria. Ela está à morte. Por isso, não fui embora ainda. Mas essas coisas não lhes pertencem, Tudo aqui tem um novo dono. Roubar é pecado.

O casal tinha ido embora com ar envergonhado e aborrecido. Mas não se oferecera para ajudar a cuidar da prioresa. Amargurada, Ancilla se indagara por que tinha sedado ao trabalho de defender os direitos do homem que estava prestes a expulsá-la dali. Esperava que o casal também não tivesse levado os dois últimos pães e o caldo de galinha. Quem sabe madre Benigna não teria forças para se alimentar um pouco no dia seguinte.

Mas a prioresa não havia ingerido nada. Apenas cochilava entre os acessos de tosse. Quando acordava, não desviava o olhar cansado do altar.

A certa altura, mostrou-se aflita e murmurou várias vezes:

— O armário... Vá remexer meu armário, minha filha. Madre Benigna referia-se ao móvel em seu escritório onde eram guardados os documentos importantes do priorado.

— Vou mais tarde, madre, quando a senhora estiver respirando melhor.

Já entardecia. Depois da tempestade, o sol brilhava no poente e seus raios avermelhados filtravam-se pelas janelas altas refletindo no altar.

— Olhe, Ancilla —sussurrou madre Benigna de repente. — Nosso Senhor está vindo... ao meu encontro.

Com esforço extraordinário, soergueu-se um pouco e apontou para o altar iluminado pelo sol.

— Quem está vendo, madre? — perguntou Ancilla imaginando se Cristo estaria ali chamando a bondosa beneditina para seu seio.

Jamais ficaria sabendo, pois novo acesso de tosse impediu a prio­resa de responder. Quando passou, ela mal respirava, mas não des­viava o olhar do altar.

Aflita, Ancilla tirou do bolso o frasco com óleo bento encontrado na casa abandonada de sir Herbert. Em lágrimas e em latim, enco­mendou a alma da agonizante a seu Criador.

Sentindo seu toque, a velha freira virou a cabeça e fitou Ancilla. Seu olhar de paz expressava gratidão e despedida. Suspirou e foi-se.

Em pânico, a jovem noviça viu-se sozinha.

A luminosidade havia desaparecido do altar e começava a escu­recer. Ancilla acendeu as últimas velas de que dispunha e as colocou ao lado do corpo de madre Benigna. Em seguida, endireitou-lhe o hábito e cruzou suas mãos no peito. Enquanto trabalhava, rezava em voz alta, mas acabou rompendo em soluços.

Sentia-se como uma criança abandonada. Havia mantido a fronte erguida e a expressão de coragem enquanto a prioresa vivia, mas após sua morte, o terror começava a dominá-la. Onde arranjaria forças para cavar uma sepultura digna da prioresa? Nem sabiá se encontraria uma pá no telheiro da horta. Os saqueadores deviam ter levado tudo. Mesmo se achasse uma, a terra estaria descongelada o suficiente para permitir-lhe preparar uma cova no cemitério do con­vento?

Da entrada da capela, Miles viu as velas acesas e foi tomado pela desconfiança. Seria possível que até os ladrões tinham uma ponta de religiosidade?, conjeturou, pois tinha notado a falta de vi­dros, dobradiças e outras evidências de saque.

Encontrava-se exausto e morto de frio. Havia esperado encontrar algum alimento na cozinha e uma cama para dormir, mas pelo que vira, os saqueadores já tinham limpado o lugar.

Olhando através da penumbra, pensou que as freiras tinham empilhado os hábitos na frente do altar. Só quando ouviu soluços, per­cebeu que a capela não estava vazia.

Forçou o olhar e distinguiu uma silhueta, vestida de preto, ajoe­lhada ao lado de uma enxerga sobre a qual havia uma outra pessoa com vestes semelhantes. As autoridades haviam lhe garantido que todas as irmãs tinham parentes com casas para recebê-las. Ele não desejava apossar-se do abrigo de religiosas.

Não só todas não tinham ido embora como a da enxerga devia estar doente. Fora um idiota ao acreditar nas autoridades.

Imaginava como e o que falaria à freira ajoelhada quando um espirro traiu-lhe a presença.

O ruído forçou Ancilla a abafar os soluços e virar-se. Esperava ver alguém da vila à procura de algo para roubar. Por uma questão de decência, o ladrão poderia se convencer a cavar a sepultura para madre Benigna. Com certeza, teria piedade.

Mas o homem em pé à porta não era um camponês da região. Mesmo com os olhos nublados de lágrimas, Ancilla podia ver que ele exibia as roupas finas de um cavalheiro rico. Na cabeça, assen­tava-se um chapéu de aba retesada para cima e enfeitado com uma grande pluma curva. O casaco de mangas acolchoadas e enfeitado de pele deixava o homem mais alto e corpulento do que, na realidade,era. Sob ele, usava um colete de veludo preto e uma camisa de linho branco. Os calções chegavam até os joelhos e as botas de cavalgar deixavam exposta uma boa parte das pernas musculosas, cobertas por meias compridas e escuras. Ela não podia ver muito do rosto nas sombras, exceto que era angular e tinha um nariz fino.

— Perdão se a sobressaltei, irmã — disse o homem ao aproxi­mar-se do círculo de luz das velas.

Algum ponto da mente da noviça registrou a voz profunda e suave, com um sotaque tão estranho ali no norte.

Mas foram os olhos que lhe prenderam a atenção quando ele tirou o chapéu e fez uma curvatura respeitosa. Num contraste com os cabelos negros, os olhos eram da tonalidade mais clara do azul, antes deste se confundir com o cinza. O reflexo prateado a fez pensar num riacho correndo entre as colinas de Kyloe: veloz, penetrante e gelado.

Sem perceber, ela estremeceu.

— Sou sir Miles Raven, o novo proprietário deste lugar, irmã. De repente, Ancilla ficou furiosa. Ali estava o responsável por toda a tristeza e ansiedade sofridas por madre Benigna nas últimas semanas de sua vida. Apesar de idosa, a prioresa ainda se sentia bem, mas ao receber a notícia de que teria de ir embora, pois o convento pertencia a este homem, sua saúde começara a fraquejar. E agora, estava morta.

— O senhor pensou que todas as freiras tinham ido embora. La­mento decepcioná-lo, mas duas de nós ficamos porque uma estava à morte. A prioresa de Kyloe acaba de falecer. Se o senhor for caridoso o suficiente para me ajudar a enterrá-la, irei embora logo em seguida a fim de poupar-lhe aborrecimentos — declarou Ancilla em tom frio e cerimonioso.

Ao fitá-lo, o coração, disparou e o sangue afogueou-lhe as faces. Ela não tinha consciência de que as semanas de incertezas sobre o futuro, de noites mal dormidas e de alimentação escassa cobravam seu preço. Um troar estranho ecoou em seu ouvidos enquanto o rosto surpreso de sir Miles desaparecia na escuridão a seu redor.

 

                                     CAPÍTULO II

Miles deu um pulo para a frente, mas tarde demais para amparar a noviça e impedir-lhe a queda. Ajoelhou-se e observou seu rosto que, momentos antes, expressava desafio. Com a cabeça e o pescoço escondidos pela touca de linho branco e pelo véu preto, ela o lembrava de um cisne ferido.

Enfiou os dedos sob o punho do hábito e tomou-lhe a pulsação. Estava fraca e a pele, gelada. O leve arfar do peito mostrava que ela continuava a respirar. Não seria melhor soltar a touca que lhe apertava o pescoço e a fronte? Não podia negar que estava curioso. A peça escondia qualquer vestígio de cabelo.

Como símbolo do sacrifício da vaidade, as freiras costumavam cortar os cabelos. Mas os mantinham curtos ou os deixavam crescer outra vez? Sua palidez não dava indicação alguma se os cabelos eram castanhos, ruivos, loiros ou pretos.

Ao remover a touca, satisfez a curiosidade. Caracóis loiro-acastanhados e curtos grudavam em sua testa. Num gesto distraído, afas­tou-os para cima. Como deveriam ser lindos antes que ela os cortasse. Miles os imaginou longos e sedosos caídos pelas costas, ou espa­lhados sobre um travesseiro.

Com a breca! A viagem extenuante e o mau tempo deviam ter lhe destruído o bom senso. Onde já se vira pensar em uma freira sob esse ângulo? Talvez estivesse sofrendo os efeitos da abstinência forçada. Ultimamente, tinha estado muito ocupado com os negócios de despachos marítimos e com as providências para reformar a nova propriedade. Dessa forma, não era possível aproveitar os favores das cortesãs freqüentadoras dos palácios reais. Tão logo resolvesse os problemas da prioresa morta e da freira, ele iria procurar uma mulher. Naturalmente, as vilas ali do norte tinham rameiras.

Apesar desse raciocínio, Miles não resistiu e tocou-lhe a face. Sentiu-a sedosa e macia.

Não podia deixá-la ali no chão junto ao corpo da prioresa. Pre­cisava descobrir um aposento, onde houvesse lareira, para levá-la. Tomou a freira inconsciente nos braços, apoiando-lhe a cabeça de encontro ao peito.

Embora fosse quase tão alta quanto ele, Miles surpreendeu-se com seu corpo esguio. O hábito preto o mantinha bem disfarçado. Estaria ela passando fome desde a partida das outras beneditinas? Seria não apenas um cisne ferido, mas também um agonizante?

Enquanto a carregava para a saída da capela, não a viu abrir os olhos. Num momento, ela encontrava-se largada em seus braços e, no seguinte, debatia-se como se fosse um cisne selvagem. Mas o cisne tinha voz.

— Por favor, me ponha no chão imediatamente! — ordenou e, ao vê-lo hesitar, levantou a mão com a intenção de estapeá-lo.

— Por Deus, a senhora está viva! Não precisa bater. Pronto — disse Miles pondo-a no chão. — Não foi minha intenção assustá-la, irmã, só a queria levar a um aposento onde a pudesse deitar.

— O senhor teria dificuldade. Os vizinhos levaram tudo que não estava pregado no chão — comentou Ancilla enquanto levava a mão à cabeça. — Meu véu! Minha touca! — O que o senhor fez com eles?

— A senhora precisava de mais folga para respirar, então, eu os tirei. Garanto-lhe que não quis desrespeitá-la. Estão ali — explicou ele apontando para as peças no chão.

Não muito convencida, a noviça o fitou com um misto de suspeita e acusação. Depois, foi apanhar o véu e a touca.

— Não há nenhum lugar adequado para se passar a noite aqui? — indagou Miles temendo ter de dormir ali na capela, enrolado na capa e, ainda por cima, ao lado de uma freira.

— Nenhum, exceto a enfermaria. E assim mesmo porque a man­tive trancada. Depois das visitas dos representantes do rei e dos saqueadores, sir Miles, só lhe restou a casca de uma casa — afirmou Ancilla com uma nota de satisfação na voz.

— Não tem importância. Eu já planejava fazer uma grande reforma aqui — respondeu ele com calma. — Então, vamos à enfermaria. Eu a ajudo.

Mas quando Miles tomou seu braço, ela o puxou e dirigiu-lhe um olhar furioso.

— Ora, por que tanta irritação, irmã? Eu apenas tentei ser atencioso. Pensativo, Miles afagou o bigode e a barba bem aparados. Esta freira não tinha nem um pingo do temperamento submisso e dócil que ele atribuía às religiosas.

— Obrigada, senhor, mas não preciso de seu amparo. Como já disse, conto apenas com seu auxílio para enterrar a prioresa. Em seguida, partirei.

— Não vai ser possível cavar a sepultura a não ser amanhã cedo, irmã. Já anoiteceu — informou Miles apontando para as janelas a oeste.

Ela acompanhou o gesto e os olhos, de um azul profundo, tor­naram-se maiores ainda.

— Ah, agora me lembro. O sol estava se pondo quando ela deu o ultimo suspiro.

Impaciente, reprimiu as lágrimas.

— Quanto tempo ficou sozinha ao lado da prioresa, irmã? E qual foi a última vez que se alimentou?

— Não sei. Estes dois últimos dias foram terríveis.

— Nesse caso, acho melhor lhe dar algo para comer. E um pouco de vinho também para recobrar um pouco de cor nas faces.

— Tudo que sobrou lá na enfermaria foi meio pão. Os ladrões levaram até o vinho da eucaristia. As galinhas e os carneiros foram vendidos para pagar a viagem das outras freiras.

— Não tem importância. Eu trouxe um pedaço de queijo, uma torta de frutas e um frasco de vinho. Com mais o seu pão, não vamos morrer de fome até amanhã cedo.

Ancilla sacudiu a cabeça e fez um gesto para que Miles a seguisse.

Embora de grande simplicidade, a enfermaria tinha lareira e ja­nelas bem fechadas que impediam a entrada do vento. Numa das paredes caiadas, diante de quatro camas, havia um crucifixo. Uma da camas, a mais próxima da lareira, estava com os lençóis revirados, obviamente a usada pela prioresa. O chão de pedras não tinha tapete.

Miles foi ao estábulo onde havia deixado Cloud. Depois de cuidar dele, voltou à enfermaria com os alimentos e o vinho. Viu que a noviça havia acendido o fogo na lareira e colocado o pão sobre uma mesinha.

Os olhos de Ancilla arregalaram-se ao ver o que Miles punha a sua frente. A princípio, fingiu não estar com fome, mas depois da primeira mordida num pedaço de torta, pôs-se a comer como se não o fizesse há dias.

— Já pensou no que vai fazer daqui em diante? — indagou Miles com o intuito de forçá-la a comer mais devagar.

Após um longo período de fome, essa pressa seria prejudicial.

— Fazer? Ah, sim. O senhor quer dizer amanhã, depois de enterrar a prioresa. Ora, vou me embora.

— E para onde, irmã? — perguntou Miles na esperança de que ela informasse ter parentes na região a sua espera.

Ela desviou o olhar e fixou-o no fogo.

— Espero descobrir onde as outras freiras desta comunidade estão. Elas partiram com a intenção de fazer parte de um outro convento.

Miles não sabia por que a idéia de vê-la partir o inquietava. Apesar de sua atitude firme e ríspida de momentos atrás, havia algo em seus olhos azuis que o levavam a pensar numa inocência intacta. Depois de Ana Bolena ter transformado o comportamento mundano numa quali­dade imprescindível, poucas mulheres na corte poderiam demonstrar tal pureza. Nem mesmo as jovens solteiras. Deixar a noviça partir sem lhe contar o que sabia do mundo, seria como soltar um carneirinho entre lobos famintos. A honestidade brutal era a melhor solução.

— Irmã, monges e freiras sem abrigo vagam pela Inglaterra inteira. Seria uma perda de tempo se a senhora percorresse as estradas à procura de outra comunidade religiosa. As poucas restantes estão superlotadas com refugiados como a senhora. E mesmo essas logo estarão fechadas. E melhor aceitar o fato a fim de poder começar uma nova vida. A senhora não tem parentes pela redondeza que possam recebê-la?

Ancilla ainda evitava fitá-lo, mas não conseguiu esconder as lágrimas. —Não, não tenho ninguém. Meus pais morreram.

— Nem irmãos ou primos distantes?

— Não. Fui a única filha a sobreviver.

— Bem, não há razão para ficar apreensiva. Use o dinheiro da pensão que lhe foi dado para pagar hospedagem em uma das vilas da região. Freiras são bem educadas e uma, com sua instrução, pode dar aulas a crianças, ou ser dama de companhia para uma mulher da nobreza. Talvez até venha a se casar — acrescentou com uma ponta de otimismo.

__Dinheiro da pensão?! Não sei a que se refere, sir Miles.

— Exato. Os fundos determinados pelo governo para ajudar os religiosos a recomeçar a vida depois que os mosteiros e conventos foram fechados.

— Nós não recebemos dinheiro de pensão algum, sir Miles.

— Como não? Eu mesmo verifiquei que fosse mandado. Veio numa soma total aos cuidados de seu sacerdote, sir Herbert, para que ele repartisse. Cada freira deveria receber várias libras.

Ancilla curvou os ombros e não escondeu o ar de tristeza.

— Agora entendo por que aquele sacerdote falso estava com tanta pressa de ir embora — comentou ela.

— Está insinuando que o padre do convento fugiu com o dinheiro da pensão?! — indagou Miles, incrédulo.

— Meu senhor, tudo que posso lhe dizer é que sir Herbert foi embora tão logo o fechamento do convento foi anunciado e ele jamais mencionou ter recebido pensão alguma. Enviar o dinheiro destinado às freiras para aquele homem foi o mesmo que pôr uma raposa para tomar conta do galinheiro — concluiu numa tentativa fraca de fazer graça.

Ele entendia agora por que a moça estava com tanto medo. Sem dinheiro e parentes, a pobre não tinha opções.

— Farei o possível para descobrir o paradeiro do malandro e recuperar seu dinheiro — prometeu Miles.

— Obrigada, senhor — murmurou ela em tom inexpressivo.

— Até então, vou considerar seu bem estar responsabilidade minha — informou ele num impulso.

— Por que deveria? O fato de o sacerdote ser ladrão não é culpa sua. Ou está querendo aliviar a consciência por haver adquirido o priorado de Kyloe, sr. Miles?

A expressão de desafio tinha voltado a seus olhos agora que ela estava alimentada, notou Miles.

Não, porque foi meu pai quem o fez e não eu — contou ele, surpreso por se pôr na defensiva.

Pela segunda vez naquele dia, Miles explicou como a propriedade tinha ido parar em suas mãos. Ela o ouviu calada.

— Quero assumir a responsabilidade porque a senhora não tem ninguém mais. É a atitude certa.

— Não, não posso aceitar — afirmou Ancilla encarando-o.

— Nesse caso, o que vai fazer? Vender o corpo? ― Sem se importar com sua exclamação de horror, ele prosseguiu, ríspido: — Não vejo outra escolha, pois não tem dinheiro, nem família. Como vai comprar seu pão? A não ser que se torne ladra.

— Naturalmente, não tenho a intenção de vender meu corpo ou de roubar. Sou freira — declarou, ofendida.

— Não mais. Queira, ou não, o rei Henrique aboliu esse meio de vida na Inglaterra. Portanto, moça, vai ter de enfrentar a realidade. Vou precisar de uma governanta quando o convento estiver transformado numa casa de campo. Por que não aceita esse emprego? — ofereceu ele, surpreso consigo mesmo e, para disfarçar, acrescentou: — Eu não deveria saber seu nome já que comeu seu jantar e o meu?

Ela olhou para as faíscas, quase todas a sua frente.

— Ah, perdão, senhor. Eu não tinha a intenção de comer tanto. Sou a irmã Ancilla.

— Não me referi a seu nome religioso e sim ao verdadeiro. Acho melhor começar a pensar a seu respeito dessa forma. A partir de hoje, deve deixar essas coisas para trás.

Ela o fitou imaginando se perderia a alma ao revelar-lhe o nome verdadeiro. Calado, ele aguardou.

— E Glória. Glória Mallory.

— Da família Mallory que apoiou Ricardo Plantagenet?

Ele tinha ouvido falar do velho barão que lutara tão ferrenhamente ao lado de Ricardo apenas para ser massacrado a seu lado. Depois, pensou na casa onde havia se abrigado. Seria possível?

Glória sacudiu a cabeça.

— Meu avô morreu em Bosworth, ao lado do rei Ricardo. Minha avó estava grávida e meu pai foi o único filho. Ela jamais voltou a se casar. Os Mallory perderam o baronato e ficaram apenas com uma casa simples, de campo, na Nortúmbria. Sua família, sem dúvida, lutou pelos Tudor, não é?

— Exato. Thomas Raven foi sagrado cavaleiro no campo de bataIha. Até então, era um comerciante bem sucedido.

― Sei. Ele não deixou escapar a oportunidade de progredir através da traição ao verdadeiro rei — comentou Glória em tom de desdém. ― O senhor deve ser um dos "novos homens" do rei de quem ouvimos falar. Os que o encorajaram a abandonar a mulher e a igreja.

Que grande atrevimento! Imagine atacar a suposta linha política de quem era dono do telhado sobre sua cabeça! A moça era corajosa, ele tinha de reconhecer.

— Srta. Mallory, cavalguei o dia inteiro sob uma chuva inclem­ente. Acabei encontrando uma freira morta em minha propriedade e outra que não posso, em sã consciência, mandar embora para morrer de fome na estrada. Podemos adiar para um outro dia essa conversa sobre Bosworth?

Gloria corou e baixou a cabeça.

— Perdão, sir Miles, por ter me mostrado ingrata. Os sentimentos ainda estão muito arraigados aqui no norte. Como sabe, fomos leais ao rei Ricardo até o fim. Eu não quis dar a entender que não apre­ciava sua oferta.

— Então, vai aceitá-la?

— Como o senhor disse, não tenho alternativa. Mas talvez o senhor devesse deixar sua mulher me entrevistar antes de um acordo final — sugeriu Glória.

— Não sou casado, srta. Mallory, portanto, a decisão cabe a mim. O emprego é seu por quanto tempo desejar.

Alegando cansaço, Miles a deixou em seguida, levando cobertores e lençóis de uma das camas e informando que dormiria numa das celas.

Encontrou uma onde ainda restava uma enxerga. Estava gelada, mas ele já havia dormido em lugares piores nas campanhas com o rei. Enrolado nos cobertores, pensaria em como transformar essa ruína numa casa de campo, digna de uma dama de boa família com quem se casaria algum dia.

Mas foi um rosto e não uma construção que dançou em seus olhos fechados. Tinha a forma de coração e, primeiro, estava emol­durado por uma touca branca e um véu preto. A dona possuía olhos de um azul profundo e com a expressão mais altiva possível.

 

                                         CAPÍTULO III

Glória imaginou que estivesse sonhando com a in­fância, pois o pai sempre a acariciava na face quan­do lhe dava boa noite. Sentiu o cheiro e o calor emanados das brasas na lareira. Aconchegou-se mais sob as cobertas, apreciando a sen­sação de conforto e segurança ausente há tanto tempo.

De repente, lembrou-se da prioresa morrendo em seus braços e a chegada do homem responsável pela tragédia. Com uma parte da mente, sabia que estava lembrando o toque dele na face e não a do pai tantos anos atrás.

Glória levantou-se e abriu a janela. Amanhecia. O sol de inverno começava a surgir no nascente. Sem o tocar dos sinos que tinham governado seu sono durante anos, havia dormido a noite inteira e acor­dado mais tarde. Depressa, vestiu o hábito, mas não colocou a touca e o véu. Não era mais Ancilla, a noviça beneditina e sim, Glória Mallory. O ar frio à volta dos caracóis curtos a fazia se sentir estranha.

Tinham sobrado umas duas fatias de pão e um resto de vinho. Talvez sir Miles estivesse esperando que ela se levantasse a fim de se alimentar.

Procurou-o nas celas, mas não o encontrou. Teria ele ido comprar mais comida? Foi ao estábulo e um garanhão cinza relinchou uma saudação. Naturalmente era dele. O homem devia estar em algum lugar, talvez no cemitério preparando a sepultura de madre Benigna.

Embora devesse ir procurá-lo, Glória não resistiu à vontade de entrar pela última vez no escritório da prioresa. Da porta, teve a sensação de ouvir-lhe as palavras bondosas. Se fechasse os olhos, lhe sentiria a presença.

O aposento, como os demais, não tinha mais nada, exceto o pesado armário de carvalho embutido na parede. Os saqueadores não tinham conseguido soltá-lo e logo, sem dúvida, voltariam com machados para uma nova tentativa.

Foi então que Glória lembrou-se das palavras de madre Benigna: Meu armário... Vá remexer meu armário, filha.

À luz do dia, o pedido parecia mais incisivo do que na véspera. Era seu dever verificar o que havia de tão importante, ali dentro, para a mulher agonizante. Quem sabe não encontraria uma carta para a família notificando seu falecimento? Mas não podia abrir o armário sem a chave que a prioresa sempre carregava num molho pendurado na cintura.

Teria sir Miles já enterrado a madre? Aflita, Glória desceu a escada correndo em direção à capela. Felizmente, a freira continuava ali com seu ar serene e as mãos cruzadas no peito. Mas do molho de chaves, nem sinal.

Desta vez, os passos apressados de Glória a levaram ao cemitério, além do muro do convento.

Lá estava sir Miles, em mangas de camisa e dentro de uma cova que lhe chegava ao peito. Uma pá jogava torrões de terra para fora, num movimento rítmico. Glória notou o flexionar dos músculos sob a camisa e as manchas de transpiraçâo entre as espáduas nas costas.

— Ah, srta. Mallory, já se levantou. Espero que esteja se sentindo melhor.

Ela havia aprendido a manter os olhos baixos diante de homens, mas sem a touca e véu sentia-se vulnerável. Via a necessidade de encarar esses olhos azul-claros, numa tentativa de evitar a invasão da alma. Forçou-se a observar detalhes de sir Miles. Notou os cabelos negros, caídos na testa, os ossos malares altos, o bigode e a barba que davam ênfase à linha arrogante da boca. Assim distraída, con­seguiu ignorar o tom aveludado de voz que ameaçava assaltar-lhe os sentidos.

― Estou bem, sir Miles. Preciso saber se o senhor tirou o molho de chaves da cintura da prioresa.

O leve tom acusatório o fez curvar as sobrancelhas.

― Claro. Não imaginava que eu fosse enterrar a madre com as chaves, não é? Vou precisar delas para abrir e fechar as portas de minha propriedade.

Ele não a deixava esquecer que era o novo dono do lugar. Brava Glória crispou as mãos sob as mangas do hábito.

— Naturalmente. Só preciso abrir o armário no escritório de madre Benigna e verificar se não há algum documento importante. Ela me pediu isso antes de morrer.

Miles encostou a pá e abriu o cinto para tirar o molho de chaves procurado.

— Vi o armário e fiquei curioso, mas ainda não cheguei a ex­perimentar a maioria das chaves — disse ele passando-as a ela.

— Obrigada. Eu as devolvo logo. Não se preocupe, não vou pegar nada que possa interessá-lo — disse Glória com frieza.

Miles a observou por um instante como se fosse comentar-lhe a atitude, mas disse apenas.

— Logo estarei pronto para enterrar a prioresa. Com certeza, a senhora vai querer estar presente a fim de verificar se faço tudo de maneira adequada.

Mentalmente, acrescentou: Já que me considera um herege opor­tunista.

— Não vou demorar -— prometeu ela ao afastar-se, sentindo o olhar penetrante nas costas.

Glória retornou ao cemitério no momento em que Miles saía da cova. Ela não conseguiu abafar o sentimento de triunfo ao vê-lo de joelhos e com as mãos no chão como se fosse um suplicante. Talvez isso se devesse ao fato de não depender mais da boa vontade dele.

— Descobri que não preciso mais aceitar sua oferta de emprego, sir Miles — disse enquanto ele, já em pé, limpava a terra das roupas.

— Ah.é?

— Achei este documento no armário da prioresa, O senhor lê latim? — perguntou ao tirar um rolo de pergaminho da manga.

— Terá de me dizer — respondeu Miles ao mostrar as mãos sujas de terra, mas sem mencionar o latim.

Ela abriu o documento e mostrou-lhe as letras góticas e as assi­naturas no fim.

— Trata-se do testamento de meus pais. Ele reza que Mallory Hall, nossa casa, ficaria sob a guarda do abade de Belford enquanto eu fosse freira e, só após minha morte, a propriedade passaria para a abadia. Deveria ser devolvida a mim caso eu deixasse o convento. Ora o abade foi destituído, sem dúvida, e eu não sou mais freira. Portanto Mallory Hall é minha. Agradeço muito sua oferta generosa, sir Miles mas não sou mais uma criatura sem teto e sim a proprietária de uma casa excelente.

Pela primeira vez, Miles não quis fitá-la. Por acaso teria preferido ter a moça completamente sob sua dependência? Com uma ponta de ironia, disse:

― Parabéns. Mas ainda podemos fazer um acordo. Desta vez,com a diferença de que será a senhora quem me fará um favor e não o contrário como antes.

— Não entendo.

― Quando aceitou o cargo de governanta, nós ainda não tínhamos falado sobre o que faríamos durante a reforma do convento. Não poderíamos morar aqui nesse período. A senhora, agora, se encontra na posição de me oferecer hospedagem. Mallory Hall não fica muito distante daqui. Seria o lugar ideal para eu morar, pagando é claro, até terminar os trabalhos aqui.

Só porque lhe era conveniente, esse nobre presunçoso estava con­vencido de que ela o acolheria, pensou Glória enraivecida. Pois estava muito enganado. Não podia ter esse homem sob seu teto, destruindo, com o olhar atrevido, a serenidade adquirida através dos anos de clausura!

— Talvez seja ideal para o senhor, mas para mim, não! Lamento, porém terá de arranjar outras acomodações, sir Miles.

Ele apertou os lábios e os olhos azul-claros estreitaram-se lem­brando lascas de gelo.

— Imagina que os encarregado de Mallory Hall vêm preservando a terra para a senhora, cuidando da casa como se fosse uma jóia e ansiando por sua volta?

O tom beligerante a irritou.

— Meus pais sempre tiveram bons criados. E eu detesto charadas, sir Miles. O que sabe sobre Mallory Hall?

Parei lá a caminho para cá. Mas prefiro que veja por si mesma — disse ele negando mais explicações. — Como a senhora não tem montaria e a estrada é acidentada, eu a levo até lá. Assim poderei presenciar seu encontro com os "bons criados". Se achar tudo como espera, basta me mandar embora. Irei procurar outra hospedagem. Caso contrário, ficarei como seu inquilino e prestarei qualquer serviço que seu temperamento irascível a permita aceitar — disse Miles em tom peremptório como se a desafiasse a contradizê-lo.

— Muito bem. Não vejo mal em concordar — Glória declarou evitando entrar em discussão.

— Olhe, srta. Mallory. Sei que não simpatiza comigo. A senhora se vê como parte da antiga aristocracia enquanto me considera um novo-rico. Também me acha responsável, e não o rei Henrique, pelo ocorrido ao priorado. Contudo, penso que podemos nos ajudar mu­tuamente. Vamos enterrar a madre e nos pôr logo a caminho.

Glória apenas fez um gesto de cabeça. Jurava provar a esse pretencioso como era capaz de administrar Mallory Hall.

O sepultamento de madre Benigna não levou muito tempo. Terminado, Miles se afastou deixando Glória a sós.

— Obrigada, madre Benigna, por ter sido tão boa para mim. Preciso de sua intercessão neste meu novo começo de vida. Confesso estar com medo de sir Miles Raven, apesar de ele ter me feito uma proposta honrada. Mas o meu maior temor é das insinuações dele sobre o que vou encontrar em meu antigo lar. Por favor, madre, me guie.

Quando Miles retornou, Glória ficou comovida com a cruz que ele havia improvisado com duas varetas, amarradas por uma corda, para marcar a sepultura da prioresa.

Acomodada na garupa do garanhão cinza e enquanto se afastavam, Glória dirigiu um último olhar para o convento. Amava cada pedra de sua construção e suas peculiaridades. O priorado de Kyloe tinha sido seu lar desde que contava dez anos de idade. Mesmo se voltasse quando ele estivesse transformado na moradia desse homem a sua frente, a emoção seria diferente. Cada aposento teria uma nova finalidade e a simplicidade desapareceria para dar lugar ao luxo pro­porcionado pela riqueza de sir Miles Raven.

A distância entre as colina de Kyloe e a baía de Budle não era longa, mas constava, em grande parte, de descidas escarpadas. Forcada a se segurar na cintura de Miles para não cair, Glória surpreen­dia-se com a musculatura rija escondida sob as camadas de roupa dele. Este nobre não era um cavalheiro estragado pelos prazeres mundanos oferecidos pela corte.

A voz profunda de sir Miles interrompeu-lhe os pensamentos.

― Que dia lindo! Começo a acreditar que a primavera possa chegar ao norte.

Desciam para a charneca de Buckton e Glória olhou à volta. Após a tempestade da véspera, o sol brilhava com vigor como se quisesse provar que a Nortúmbria era capaz de oferecer tempo ameno além de invernos rigorosos. Os campos da charneca, que estaria coloridos pelas urzes roxas e os tojos amarelos no verão e no outono, estavam cobertos do verde renovado da primavera. Ao longe, um casal de veados pastava, pássaros cruzavam o céu e um cuco fez ouvir seu canto monótono.

— Ah, essa ave prova que a primavera chegou. Meu pai dizia que ela passava o inverno na África, mas voltava à Inglaterra nesta época — comentou Glória.

— Para botar os ovos no ninho de outra ave, a preguiçosa — acrescentou Miles rindo.

Nada podia ter preparado Glória para a diferença de Mallory Hall dos dias de sua infância e a de agora. Perplexa, não conteve excla­mações ao ver as janelas imundas, ou quebradas, que brilhavam sob os cuidados da mãe, as pilhas de lixo no jardim, onde antes havia um gramado impecável, ou a tinta descascada nos batentes da porta.

Percebendo sua tristeza, sir Miles a consolou:

— Não se trata de nada que não possa ser remediado, srta. Mallory, e eu providenciarei o que precisar ser feito.

Ela ainda desmontava da garupa quando a porta se abriu. Uma mulher magra, mal vestida e com uma criança de um ano agarrada à saia, apareceu.

— Bom dia, sir Miles. Noviça?! — exclamou ela encarando Glória com o hábito incompleto. Depois, gritou por sobre o ombro: — George, é o cavalheiro que esteve aqui ontem. E uma freira, eu acho.

Brunt devia estar observando-os de uma das janelas, pois não demorou a surgir. Embora cumprimentasse o nobre de maneira amável, não conseguiu disfarçar a expressão de suspeita.

— Ah, sir Miles, espero que tenha encontrado tudo em ordem, no priorado. E esta, é uma das irmãs de Kyloe?

Miles acabava de desmontar e o fitou com uma sombra de sorriso,

— Sim, tudo estava em ordem, caso se ignore o roubo do que podia ser carregado. George Brunt, dona Mag, permitam que eu lhes apresente a ex-noviça Ancilla.

Enquanto retribuía as saudações, Glória imaginou por que sir Mi­les não tinha dado seu verdadeiro nome.

— Ela vai ter de encontrar uma nova ocupação, não é? Ah, sir Miles, espero que não tenha vindo procurar serviço para ela aqui. Minha mulher e eu não estamos em condições...

— Não, Brunt, não foi por isso que viemos — interrompeu Miles e, enquanto o homem e a mulher trocavam olhares desconfiados, ele tirou um pergaminho do bolso. — Esta freira é a srta. Glória Mallory, filha de sir William Mallory, o falecido proprietário desta casa. Este testamento atesta que ela é a única herdeira da propriedade caso deixe o convento. Como foi forçada a fazê-lo, ela está de volta a Mallory Hall como sua legítima dona.

Num misto de surpresa e espanto, Brunt dirigiu um olhar de ódio a Glória.

— Ora, sir Miles, o senhor não pode aparecer aqui, com uma moça vestida de freira, alegando que ela é dona da casa. Como vamos saber se, de fato, ela é quem diz ser?

Pelo canto dos olhos, Glória viu sir Miles pôr a mão no cabo da espada e ouviu-lhe a voz mudar de um timbre agradável para outro ameaçador.

— Você tem de saber porque é um cavalheiro quem lhe afirma tratar-se da verdade. Se isso não for suficiente...

Glória não sabia que outro método de persuasão ele usaria, mas temendo violência, interrompeu-o:

— Sr. Brunt, eu não o culpo por sua surpresa e desconfiança, porém posso provar ser Glória Mallory, a filha de sir William. Sou filha única, embora minha mãe tenha dado à luz dois meninos, num espaço de três anos, que morreram pouco depois de nascer. Seus cabelos eram loiros bem claros e ela se chamava Anne Egremont antes de se casar com meu pai.

― Isso é verdade — murmurou Mag.

― Fique quieta, mulher. Qualquer pessoa por aqui poderia saber essas coisas.

Glória voltou a falar:

― O senhor se lembra quando tivemos uma nevasca já na pri­mavera e eu o ajudei a carregar uma dúzia de carneirinhos lá das colinas até o estábulo aqui? Eu me lembro, sr. Brunt.

Com essas palavras, ela viu a expressão beligerante do homem desaparecer e dar lugar a uma de derrota.

―Acho que é mesmo a filha de sir William. Peço-lhe perdão,srta Mallory. Eu me acostumei com esta casa como se fosse minha e, depois que o abade foi embora, passei a considerá-la minha de verdade. Espero que nos dê uns dias para arrumar nossas coisas...

— Mas minha intenção não é mandá-los embora, sr. Brunt — interrompeu Glória. — A não ser que queiram sair daqui. Vou pre­cisar de um administrador. O senhor aceitaria esse cargo?

Brunt olhou para a mulher que o fitava com ansiedade. Depois de um momento, ele sacudiu a cabeça e sorriu para Glória.

— E muita bondade sua, srta. Mallory. Eu sempre disse que tinha um coração de ouro, pois vivia me ajudando com os carneiros. Não é verdade, Mag?

A mulher, mais relaxada, concordou com um gesto de cabeça.

— Então o senhor aceita? — indagou Glória.

— Com a maior gratidão. Temos três bocas para alimentar e mais uma a caminho. Não seria bom sair por aí procurando trabalho. Vou cuidar de Mallory Hall como se, de fato, fosse minha.

Glória olhou para sir Miles e viu que ele observava Brunt com expressão perscrutadora. Sentindo-lhe o olhar, ele virou-se com ar sarcástico.

Então sir Miles despreza e condena minha bondade para com esta família, adivinhou ela. Graças a Deus! Nem todos nós fomos contaminados pelo o ceticismo da corte!

— Não. Sou eu quem deve se sentir grata por poder contar com sua ajuda para dirigir a casa. Como fiquei afastada, durante sete anos, da vida leiga, vou depender muitíssimo de sua orientação.

Com essa ajuda, tenho certeza de que vamos conseguir restaurar o antigo conforto de Mallory Hall. Mag, espero que você possa trababalhar como governanta e cozinheira, pelo menos até eu poder contratar alguém para ajudá-la. Sei que é pedir muito, pois você tem seus filhos para cuidar. Ah, ia esquecendo de dizer que sir Miles será nosso hóspede até terminar a reforma de sua casa em Kyloe. Miles interceptou o olhar de surpresa de Brunt antes que ele abaixasse a cabeça. Teria o homem imaginado a possibilidade de tirar vantagem da ingenuidade de Glória quando ela se visse desa­companhada? Era preciso observar Brunt e Miles ficava contente de poder fazê-lo, pelo menos por uns tempos.

 

                           CAPÍTULO IV

Houve um momento de silêncio constrangedor en­quanto Glória e sir Miles, a um passo atrás, ficaram olhando para George Brunt e a mulher parados diante da porta.

— Posso entrar? — perguntou ela finalmente ao dirigir-se aos degraus de pedra.

— Claro! Desculpe, senhora — disse Brunt depressa, afastando-se para o lado a fim de lhe dar passagem.

Sir Miles, consciente do olhar avaliador de Brunt, seguiu-a.

Para Glória era como se voltasse no tempo. A sua frente e a poucos passos da entrada, estava o enorme painel de carvalho en­talhado que protegia o vestíbulo de correntes de ar. Podia-se passar para o interior da casa por qualquer uma de suas extremidades.

A evidência do desleixo estava em todos os cantos, mas Glória esforçou-se para não mostrar desagrado. Os Brunt já tinham sofrido o choque de passar, em instantes, de senhores para criados da casa. Bastava por um dia. Poeira acumulava-se no mantel da lareira e teias de aranha pendiam do teto, mas não custaria muito removê-las. Ainda bem que a responsável pelas noviças a tinha ensinado como limpar uma casa. Se desse o exemplo, Mag Brunt acabaria apren­dendo. De forma alguma se contentaria em passar o tempo sentada bordando e dando ordens.

No momento, decidiu, se concentraria em apreciar as lembranças enquanto percorria os cômodos. Lá estava o sofazinho onde o pai gostava de se sentar ao lado da mãe antes de se retirarem à noite. E a mesa longa, de cavaletes, à qual se sentavam todos, inclusive os criados, pois os Mallory não gostavam de ostentação e só usavam o salão em ocasiões especiais.

Glória sabia que o rei Ricardo tinha estado ali, na época dos avós, quando era ainda o duque de Gloucester. Que grande trabalho deveriam ter dado os preparativos para recebê-lo! Seria impossível convencer alguém que Mallory Hall, no estado em que se encontrava, tinha sido fina o suficiente para recepcionar tal hóspede.

Havia um oratório no vestíbulo. Embora o crucifixo continuasse a ocupar o centro, a imagem da Virgem e uma caixa com relíquias da túnica de Thomas à Becket tinham desaparecido. Perguntou a Brunt por elas.

— Depois que Sua Majestade condenou essas tolices ensinadas pelo papa, tomei a liberdade de tirá-las daí. Mas não se preocupe, estão bem guardadas.

— Eu gostaria de vê-las de volta aqui — disse Glória em tom firme. — Não acredito que o rei Henrique VIII condenasse a Mãe de Deus, nem o santo a quem até Henrique II se curvou. De qualquer forma, a responsabilidade é minha.

Em sinal de obediência, Brunt assentiu com um gesto de cabeça,

Atrás dele, Miles ouvia em silêncio, apreciando a firmeza de Glória. Talvez ela se saísse bem.

Em seguida, embora Glória ansiasse subir a escada e rever o quarto dos pai, retrocedeu os passos e foi à cozinha. Ali também, precisaria ensinar a Mag métodos mais eficientes de higiene. Panelas e pratos sujos espalhavam-se pela mesa. Um menino, de cabelos engordurados, dormia a sono solto perto do fogo, enquanto um pernil de veado queimava no espeto, enchendo o ar com seu odor acre.

Brunt aproximou-se e o acordou com um pontapé.

— Este aqui é Jack, meu filho mais velho. Curve-se para sua nova patroa, a srta. Glória Mallory. E cuide melhor dessa carne, rapaz.

Assustado, o menino pulou, fez a curvatura ordenada e foi virar o pernil no espeto.

— Isso não vai acontecer outra vez, d. Glória. Jack é meio re­tardado e eu tenho sido muito tolerante com ele.

Glória desviou o olhar. Tinha notado o ar assustado, a magreza e os braços escalavrados da criança. George Brunt podia ser tudo, menos tolerante com o filho.

Ao lado da cozinha havia uma saleta onde a mãe, lady Anne passava horas bordando enquanto sir William trabalhava na conta­bilidade das terras e dos arrendatários. Estava atulhada de móveis quebrados, arreios e ferramentas.

Finalmente, Glória subiu a escada e percorreu o corredor até a outra extremidade onde ficava o quarto dos pais. A cama de casal continuava no cento, mas estava desarrumada, com cobertores ras­gados e lençóis encardidos. Brunt e a mulher ocupavam o quarto, sem dúvida. Um berço pequeno mostrava que o filho mais novo também dormia ali.

— Vamos tirar nossas coisas esta tarde mesmo, d. Glória. Sei que vai querer ficar aqui — disse Mag.

— Na verdade, estou planejando acomodar sir Miles neste quarto. Fico no outro ao lado, usado por minha mãe.

— Por favor, srta. Mallory, este aposento lhe pertence por direito — protestou Miles.

— Para ser sincera, minha atitude não é de amabilidade. Eu ficaria perdida num quarto tão grande. No convento, me acostumei a uma cela minúscula e simples. Preciso de tempo para me adaptar a meu novo estado.

— Muito bem, então, embora ache que eu não esteja agindo com cavalheirismo ao concordar. Essa outra porta dá para onde? — in­dagou ele.

— Para o quarto ao lado — respondeu Glória.

Miles lhe dirigiu aquele seu olhar penetrante e ela deu-se conta de que deveria ter escolhido o quarto na outra ponta do corredor. Mas não podia mudar de idéia agora. Isso mostraria que havia en­tendido a expressão dos olhos azul-claros.

Pois ele que tentasse abrir a porta! Haveria de encontrá-la bem trancada! Sua moral era sólida e não lassa como as das freqüentadoras da corte.

Ansiosos, George e Mag Brunt continuavam à porta esperando ordens. Com um certo esforço, Glória desviou a atenção de sir Miles Kaven e, depressa, percorreu os outros quartos. Eram quatro e es­tavam praticamente vazios.

— Sr. Brunt, pode ficar com os dois aposentos que dão para o oeste a fim de se instalar com sua família. Talvez, mais tarde, seja possível construir um chalé, à entrada do jardim, para lhes propor­cionar mais espaço e privacidade. Mag, você poderia nos preparar um almoço simples? Não restou muita comida no convento e sir Miles, tenho certeza, está com fome. Eu pelo menos, estou.

Após uma rápida refeição de assado frio de carneiro, pão de cen­teio meio encruado, queijo e cerveja, Glória dirigiu-se a Mag que, aflita, esperava ser censurada pelo péssimo almoço.

— Pronto! Já me sinto bem melhor e preparada para o trabalho desta tarde. Você pode me mostrar, Mag, onde guarda as vassouras e os panos de limpeza? Ah, outra coisa. Você não teria um vestido velho para me emprestar? Um que já esteja pensando em jogar fora, pois vai ficar imundo.

Porém vendo a expressão de alarme da mulher, Glória concluiu que a pobre devia ter apenas uns dois. Depressa, acrescentou:

— Tudo bem, não se aflija. Não faz mal se este hábito se estragar. Não pretendo continuar usando-o por muito tempo.

— Mas d. Glória, a senhora não precisa...

— Tolice. Temos de trabalhar muito para aprontar o quarto para sir Miles e o meu antes do jantar. Quanto mais cedo começarmos, melhor.

Glória sorriu, pois detectava, na própria voz, o tom autoritário da prioresa.

No antigo quarto da mãe, remexeu um baú e encontrou uma touca com a qual cobriu os cabelos a fim de protegê-los da poeira.

Glória tinha deixado sir Miles, no vestíbulo, sentado com as pernas esticadas para a frente. Sabia que ele estava apreciando sua maneira de tomar o controle da casa nas mãos. Com certeza, não o veria até a hora do jantar.

Entretanto, qual não foi sua surpresa quando ele surgiu no segundo andar, em mangas de camisa e empunhando uma vassoura e um pano de pó.

Sir Miles ignorou-lhe os protestos e Glória calou-se. Afinal, além de haver muito trabalho, não deixava de ser divertido vê-lo obede­cendo suas ordens para mudar móveis de um lado para o outro. No princípio, George e Mag não escondiam o constrangimento com o fato de uma dama e um cavalheiro executarem o trabalho de serviçais. Acabaram se conformando e logo a poeira começava a desaparecer dos móveis e o chão a ser esfregado.

Lá pelo meio da tarde, Mag voltou à cozinha a fim de preparar o jantar. George ocupava-se em mudar os pertences da família para os dois quartos na outra ponta do corredor. Glória e Miles, traba­lhando num silêncio amistoso, não lhes notaram a ausência. Um pouco mais tarde, ela se deu por satisfeita.

— Bem, o começo deu resultado. O ambiente ficará melhor quan­do pendurarmos as tapeçarias, mas antes temos de lavar esta parede e caiar as outras.

— Calma, lady Ventania! — exclamou Miles rindo. — Deixe algo para amanhã!

Glória ignorava como o nariz estava manchado de pó e que vários caracóis tinham escapado da touca. O exercício físico havia lhe dei­xado corada, mas sua aparência era de cansaço. Mesmo assim, Miles a achava bem desejável. Imaginou qual seria sua reação se ele lhe limpasse a poeira no nariz com um beijo.

Idiota! Como se atreve a imaginar tal coisa a respeito de uma jovem inocente e, ainda por cima, sua anfitriã? — censurou-se ele.

Pensou em lady Célia e sorriu com o contraste. Caso se encontrasse em situação semelhante, ela não estaria espanando e varrendo. Sem dúvida, se sentaria no sofazinho de onde daria ordens até ver o serviço terminado. Faria questão de mostrar a todos o quanto ela, a filha de um marquês, estava aborrecida por se encontrar em ambiente tão desagradável.

— Fizemos bastante hoje, não acha? Mas ainda falta tanto! — comentou Glória.

Em voz alta, ela fez uma lista das prioridades a seguir. Não per­cebeu que Miles não a ouvia mais. Apenas a admirava.

O jantar foi simples, mas ficou evidente o esforço de Mag para compensar o almoço ruim. A parte queimada do pernil de veado tinha sido cortada fora e, além dessa carne, havia três frangos assados. Uma torta de pombo e pão fresco completavam o cardápio. O vinho era o mesmo da safra avinagrada tomado por Miles na véspera.

Depois de prová-lo, Glória pediu cerveja. Mag atendeu-a e avisou que estaria na cozinha à disposição.

— Eu deveria ter insistido com os Brunt para jantar aqui conosco — murmurou Glória.

Ela havia sentido uma certa camaradagem por Mag, trabalhando a seu lado, e lembrava-se das refeições na infância durante as quais os criados ocupavam uma parte afastada da mesa.

— Não, srta. Mallory. Mag estava certa em não concordar. Tente não esquecer quem é a dona da casa e quem são os serviçais.

Embora as palavras de sir Miles não passassem de um conselho, Glória se ressentiu delas. Acabava de deixar um tipo de vida em que a humildade e a renúncia eram virtudes.

— Sei que o senhor não concorda com o fato de eu ter dado o cargo de administrador a Brunt.

— Sim, não concordo. Não entendo como um homem, que se considerava senhor de uma propriedade como esta, aceitasse perder a posição tão facilmente e se dispusesse a servir a pessoa que o destituiu. Acho que ele precisa ser observada. Espero estar errado.

— Que lugar horroroso a corte deve ser se as pessoas lá são tão céticas e desconfiadas! — explodiu Glória.

Tinha vindo jantar em estado de euforia por ter se saído bem nesse primeiro dia. Sir Miles tinha lhe estragado a sensação agra­dável.

Ele a observou por um instante.

— Eu disse que espero estar errado. De qualquer forma, ficarei aqui tempo suficiente para verificar se o homem é de confiança. Quanto à corte ter me ensinado a ser cético, também me ensinou a sobreviver. Muitos lá, que se sentiam seguros, perderam a posição por falta de cuidado. A rainha Catarina de Aragão, por exemplo. E agora, a rainha Ana Bolena.

A notícia de que a mulher responsável pelo "Grande Divórcio" já não mais gozava de privilégios distraiu a atenção de Glória. No convento, falavam muito sobre ela e a culpavam pelo infortúnio sofrido.

— Ana Bolena não domina mais a vontade do rei Henrique?

— Quando saí de Londres, sua posição era bem precária. Ela ofendeu não só o rei, mas também a maioria das pessoas, exceto o círculo de seus admiradores jovens. Foi uma pena a rainha ter perdido o bebê em janeiro, pois era um menino.

Embora Glória quisesse ouvir mais detalhes, sir Miles terminou de jantar em silêncio. Em seguida, pediu licença e retirou-se ao dar boa noite.

Ela continuou à mesa por mais alguns momentos. Gostaria de ter conversado um pouco e descobrir quais eram os planos para a reforma do convento, se sir Miles pretendia criar carneiros lá, ou passar muito tempo na corte.

Na manhã seguinte, enquanto tomava o café, Glória foi informada por Mag que sir Miles tinha ido a Berwick contratar trabalhadores para a reforma de Kyloe. Não deveria ser esperado para jantar, pois passaria a noite lá.

Ela sentiu um leve desapontamento, mas reprimiu-o. Com a au­sência de sir Miles, o trabalho renderia mais, pois não precisaria interrompê-lo mais cedo a fim de se arrumar para o jantar.

Com o hábito já em péssimo estado, ela voltou a empunhar a vassoura e o pano de pó. Varreu e espanou até os músculos ficarem doloridos e, se não fosse por insistência de Mag, não teria parado para almoçar .

A refeição foi simples, apenas frango assado frio, pão, maçãs e cerveja.

— Sente-se e coma sossegada, d. Glória. Vou até o estábulo levar o almoço de George, mas volto logo.

Ao ouvir a porta da cozinha se fechar, Glória imaginou estar sozinha na casa. Mas pouco depois, teve a sensação de que alguém a observava. Virou-se depressa na cadeira e viu duas cabeças de criança desaparecerem atrás da porta da sala.

— Quem está aí? — indagou. Como não ouvisse resposta, insistiu:

— Apareçam e venham falar comigo. Prometo que não vou ficar brava.

Esperou e, então, um menino de uns nove anos surgiu devagar. As feições miúdas mostravam que era filho de Brunt. Ele não tinha o ar aparvalhado de Jack e sim expressão de vivacidade.

— Olá — cumprimentou Glória sorrindo. — Você deve ser Ned. Sir Miles me falou sobre você e como cuidou bem do cavalo dele. Alguém mais está aí com você?

Numa atitude acanhada, o menino foi se aproximando devagar. Pela mão. trazia a mesma criança que Glória vira agarrada ao avental de Mag.

— Que menino bonito! Como se chama? — perguntou ela em voz suave.

— Ele é Harry e não tem dois anos. Ainda não sabe falar muito bem — explicou Ned.

— Fico contente em conhecer os dois. Ontem, vi Jack, mas já estava achando que vocês não existiam. Sempre ouvi dizer que me­ninos gostam de correr e de fazer barulho. Até agora, não ouvi nada.

Ned a fitou com desconfiança.

— Não conte para minha mãe, nem para meu pai, que viu a gente. Está bem, dona? Ele disse que a senhora podia nos expulsar daqui se Harry chorasse muito, ou se a gente fizesse barulho.

Desgostosa com a atitude de Brunt, Glória morreu de pena do menino.

— Fique sossegado. Jamais vou mandá-los embora, mesmo que façam muito barulho.

— Está bem. Ouvi dizer que a senhora era freira — confidenciou Ned.

— É verdade. Mas o rei está fechando os conventos e os mosteiros.

Por isso, deixei de ser freira.

— Ficou contente ou triste com isso?

— Essa é uma boa pergunta, Ned Brunt — disse Glória, admirada com o interesse do menino. — No começo, senti medo, pois não vivia aqui fora há muitos anos. — Mas agora... — Calou-se pensativa quando a imagem dos cabelos negros e dos olhos azul-claros de sir Miles surgiu-lhe na mente. — Não sei ao certo. Você já se sentiu entusiasmado e com medo ao mesmo tempo?

Com ar de compreensão, Ned sacudiu a cabeça. Jamais alguém tinha lhe falado dessa forma, percebeu, encantado. Sem se dar conta. pôs-se a conversar com desembaraço.

Quando Mag voltou, encontrou Harry sentado no colo de Glória saboreando uma maçã.

— Por favor, d. Glória, perdoe! Eu avisei os meninos para não a aborrecer. Juro que isso não vai acontecer outra vez — disse Mag com os olhos dilatados de terror.

A surpresa de Glória não conheceu limites. A mulher achava mesmo que ela estivesse brava?! Levantou a mão e, em voz calma, garantiu:

— Nesse caso, vou ficar muito desapontada. Seus filhos. Mag, são encantadores. Por favor, não os force a se comportar de maneira anormal para crianças.

Mag suspirou aliviada.

— A senhora é muito bondosa.

— Quanto a este hábito, Harry não pode sujá-lo mais do que já está. Hoje mesmo, pretendo me descartar dele. Vou procurar, no guarda-roupa de minha mãe, algo que ainda possa ser usado.

 

                             CAPÍTULO V

Miles passou dois dias fora. Nos arredores de Berwick, encontrou um excelente pedreiro, um es­cocês chamado Angus MacDougall. Casado com uma inglesa, que não queria deixar a mãe doente ali, ele acabara esquecendo a terra natal, mas jamais o sotaque carregado.

— Então, quer transformar um convento numa casa de campo? Vai precisar de bons trabalhadores. Meus cunhados estão procurando serviço. São rapazes competentes e de confiança — tinha dito o escocês.

Já escurecia quando Miles alcançou o jardim de Mallory Hall. Sentia-se satisfeito não só com a perspectiva de iniciar os trabalhos em Kyloe como também com a de rever Glória ao jantar.

Sua imagem o tinha acompanhado nos quilômetros de ida e volta da viagem. Lembrava-se dela com o hábito de beneditina, a touca para proteger-lhe os cabelos contra a poeira, as faces coradas pelo exercício físico e os olhos brilhando com os planos para a decoração da casa. Ele, contudo, havia destruído sua alegria com o conselho a respeito de Brunt. Seu rosto tinha ensombreado e os cílios dourados baixado para esconder as lágrimas. Precisava lembrar a mudança drástica em sua vida e tratá-la com mais tato e delicadeza.

Glória, na verdade, era uma criatura resistente, refletiu ele. Apenas um dia após perder a pessoa que ocupava o lugar de sua mãe, fora atirada numa nova e atribulada maneira de viver. Em vez de deses­perar-se, como a maioria das mulheres faria, ela estava enfrentado o desafio com coragem e determinação.

Miles deu-se conta de estar ansioso para contar-lhe o encontro com o pedreiro escocês e as idéias trocadas por ambos sobre a reforma de Kyloe.

Glória cumprimentou-o da porta. Provavelmente, tinha ouvido Ned levar o garanhão ao estábulo.

As lembranças guardadas não o tinham preparado para a mudança ocorrida nos dois dias de ausência.

O hábito preto, que escondia a silhueta esguia, havia desaparecido. O vestido usado por Glória não era novo e devia ter pertencido à mãe, concluiu Miles. O veludo estava gasto e cerzido em alguns lugares, mas que progresso! O azul do tecido ressaltava a tonalidade dos olhos, o decote quadrado e generoso revelava as rendas da camisa e as mangas justas enfatizavam-lhe os ombros delicados. O estilo, do reinado anterior, já estava ultrapassado, naturalmente. Um capuz, do tipo usado pela rainha Catarina, cobria parte dos caracóis loiros, mas emoldurava-lhe o rosto de forma encantadora. Se Glória o tinha lembrado de um cisne ferido, agora o fazia pensar na ave na glória de sua plumagem.

— Srta. Mallory, as roupas mundanas lhe assentam muito bem — elogiou Miles ao tirar o chapéu e curvar-se.

Ela, porém, ainda desconhecia os costumes da vida fora do con­vento. Não soube disfarçar o sorriso e o brilho dos olhos provocados por tais palavras.

— É muito bom vê-lo de volta a Mallory Hall, sir Miles. Tenho certeza de que este vestido está bem fora de moda e não se compara com os usados na corte atualmente. Mas ele e outros vão ter grande utilidade até que eu mande fazer novos. Aliás, elegância não tem muita importância aqui no norte. Contudo, eu tinha me esquecido como é bom sentir a maciez da cambraia e do veludo na pele. Passei anos usando roupas de linho cru e de lã.

Miles teve de desviar os olhos dos seus. Sentia a boca seca, pois Glória, em sua ingenuidade, o tinha feito imaginar-lhe as curvas do corpo acariciadas pela cambraia da camisa sob o veludo do vestido. Por que não havia aproveitado os favores da moça bonitinha da taverna de Berwick? Ela deixara claro que gostaria de tê-lo em sua cama. Se houvesse aceitado, talvez não se sentisse perturbado com a conversa inocente de Glória.

— Entre, por favor. O senhor deve estar cansado da viagem. Vou mandar Mag e Jack levar água quente, a seu quarto, para um banho. Depois, poderemos jantar. Mag esmerou-se no prepara da refeição — contou ela sem perceber-lhe a luta íntima.

Pouco mais tarde, enquanto relaxava os músculos na banheira de carvalho, Miles ponderava como Glória daria uma esposa excelente a algum felizardo. Ela o tinha recebido de maneira alegre e sem reclamar do dia extra de ausência, ou de, quanto havia trabalhado nesse período. Ao passar pelo vestíbulo, tinha notado as evidências de seu esforço. Em vez disso, Glória pensara apenas no conforto dele.

Sorriu lembrando de seu prazer com as roupas "novas". Escreveria à mãe, em Ravenwood, encomendando-lhe cortes de seda, brocado e veludo de cores variadas. Seria uma boa maneira de agradecer a Glória pela bondade de hospedá-lo em Mallory Hall durante a re­forma de Kyloe.

O jantar, de fato, estava ótimo. Mag tinha preparado cordeiro temperado com cerefólio e cebolas, enguia ensopada, torta de cebola com passas e manteiga. Para substituir o vinho avinagrado, Miles havia trazido um muito bom de Berwick. A bebida, além de com­plementar a refeição, provocou um leve corado nas faces de Glória.

Atenta, ela ouviu o relato sobre o pedreiro escocês e de como ele pretendia reformar Kyloe. Fez perguntas inteligentes e não mos­trou o mínimo ressentimento com o fato de o convento, seu lar por tantos anos, passar por tal transformação. Surpreso, Miles comen­tou-lhe a atitude.

— Se não pode mais haver uma comunidade religiosa lá, prefiro que venha a ser uma casa confortável para seus moradores. Seria horrível ver o convento transformado em ruínas — declarou ela.

— Generosidade sua, devo admitir.

— O senhor, por acaso, está insinuando que, como não tenho nada a perder, posso ser altruísta? Nesse caso, não se trata de um elogio, sir Miles — gracejou ela baixando os cílios dourados.

— Garanto-lhe, srta. Mallory, eu só quis demonstrar admiração por seu caráter.

Estaria Glória flertando com ele? Sua maneira de fitá-lo bem dentro dos olhos não era a de uma freira. Não podia ter aprendido no convento. Teria ela noção do que fazia? Em caso afirmativo, atração sentida por ele não seria recíproca? O vinho tomado o estava deixando inquieto. Sem pensar duas vezes suspirou e fez uma sondagem:

― A casa de Kyloe vai ser muito grande para eu morar só com os criados, não acha?

A resposta de Glória foi imediata e despreocupada.

— Ora, sir Miles, o senhor vai passar grande parte do tempo na corte, calculo. Nenhum dos "novos homens" pode resistir ao apelo dos favores dos Tudor, não concorda? Provavelmente, o senhor vai se casar com uma das beldades da corte. Sua mulher, tão logo cumpra a obrigação de dar-lhe um herdeiro, vai convencê-lo a ir embora daqui. Ou pode ser que se case com uma jovem mais prática. Sa­tisfeita em ter seu nome, ela não se importará em morar aqui, recebendo-o de vez em quando e dando-lhe filhos enquanto o senhor acompanha Henrique Tudor de palácio em palácio.

Miles semicerrou os olhos. A espertinha tinha lhe atirado de volta o comentário de sondagem! Fez uma careta exagerada.

— A senhorita me ofende com essa avaliação cruel de meu caráter! A seus olhos, pareço um bajulador da corte?!

Mais uma vez, ela o fitou bem dentro dos olhos, mas a resposta foi enigmática.

— O tempo dirá.

— E quem sabe se vou, ou não, me casar com alguém da corte? — provocou ele na esperança de uma resposta reveladora.

— Ninguém. Aliás, quem diz que precisa se casar? Afinal, o senhor não é herdeiro de Ravenwood e pode preferir ficar solteiro a fim de se livrar das amolações de uma mulher disposta a contro­lar-lhe a vida — rebateu Glória.

Incrível! A moça era a calma em pessoa! Se tivesse a oportuni­dade, venceria um debate com o próprio Henrique Tudor! Miles deu de ombros.

— Pode ser.

Pensou em Célia. Ela era do tipo que lhe imploraria para voltar ao brilho dos palácio de Henrique VIII tão logo desse à luz um herdeiro. Largaria a criança com uma babá e jamais olharia para trás.

Célia talvez fosse mais impiedosa do que a maioria das mulheres Mas não era um bom exemplo do tipo ambicioso e rico com quem ele pretendia se casar a fim de progredir e conquistar poder? Imaginava o que Glória pensaria a seu respeito se pudesse ler-lhe o pensamentos. Sentia uma atração perigosa por ela, tinha de admitir, mas ambos pertenciam a mundos diferentes, Não se tratava de um; questão de fé, ou de riqueza, porém de objetivos tão divergente: que um tornaria a vida do outro um verdadeiro inferno. Isso caso Glória quisesse se casar. Embora não tivesse feito votos perpétuo e apesar de seu fascínio sem segundas intenções, talvez ela preten­desse manter a castidade e gastar a vida consigo mesma.

Miles teria gostado de saber da punhalada sofrida por Glória ao comentar, despreocupada, a idéia de ele se casar e trazer a mulher para Kyloe a fim de lhe dar filhos. A sensação de pesar aliviou um pouco quando ele insinuou que, talvez, não escolhesse a esposa na corte, ou permanecesse solteiro.

Como podia pensar assim, censurou-se, se quase fizera os voto: perpétuos ao noivo celestial? Está usando as ações de um rei vaidoso para justificar sua simpatia por um cortesão, cujo interesse primor dial é o próprio bem-estar?

Contudo, ele se deu a um grande trabalho por sua causa, argumentou uma voz em sua mente.

Pois sim! Veja o que ele ganhou em troca! Hospedagem confortável a pouca distância da nova casa. E ainda nem mencionou a questão do aluguel! Talvez ele considere o privilégio de hospedá-lo pagamento suficiente!

Quando Glória voltou a falar, foi em voz calma e controlada:

— Vai se ausentar outra vez amanhã, sir Miles, ou dispõe de algumas horas para me acompanhar pela propriedade e visitar os arrendatários? É quase impossível entender as anotações de George Brunt. Ele é semi-analfabeto. Vou precisar de dinheiro se quiser fazer as melhorias necessárias aqui.

— Não, não pretendo viajar amanhã. Angus me pediu uns dois dias para organizar a equipe dele. Eu só o atrapalharia. Portanto estou a seu dispor. Talvez fosse melhor me mostrar hoje as tais anotações. Assim, estaremos mais preparados para conversar com os arrendatários amanhã.

Terminado o jantar, passaram à saleta onde Brunt guardava as anotações, com uma lamentável falta de precisão. Ele marcava o tamanho do rebanho de carneiros pelo método antiquado de varetas nas quais fazia marcas de acordo com o número de cabeças.

Se as anotações estivessem corretas, o rebanho estava reduzido a um quarto do que era na época de sua ida para o convento, comentou Glória. O que teria acontecido? Doenças? Lobos? Ladrões? Uma combinação dos três por causa do desleixo de Brunt?

Quanto aos aluguéis, as únicas anotações estavam na letra bem feita de Glória, escritas na véspera, de acordo com as informações de Brunt.

Havia cinco fazendolas que pagavam aluguel a Mallory Hall, mas o total não significava uma boa soma.

— Na verdade, os arrendatários não estão em débito, segundo Brunt, pois pagam trimestralmente. Contudo, ele não me mostrou uma única moeda. Diz que o dinheiro foi gasto na manutenção de Mallory Hall e no sustento da família. Mas os coitados vivem na maior pobreza! E se ele fez algum conserto na casa, imagine como estaria ela em caso contrário!

Miles a fitou com expressão eloqüente.

— Eu sei. O senhor me aconselhou a não confiar em Brunt e talvez tivesse razão — admitiu Glória. — Mas o que posso fazer agora?

Miles gostaria de apagar a preocupação de seu rosto lindo, pelo menos até percorrerem as terras no dia seguinte.

— Ainda não é necessário mudar de atitude. Brunt deve estar com medo de ter de lhe dar qualquer moeda guardada, pois Mallory Hall voltou a ser sua quando o convento fechou. Ele não a conhece o suficiente para saber que a senhorita não faria tal exigência. Brunt só pode ter umas míseras economias. Amanhã, indagaremos dos arrendatários se estão em dia com o pagamento. Daqui em diante, a senhorita receberá os aluguéis e pagará um salário a Brunt. Queira, ou não, ele terá de ser honesto.

Miles alisou o bigode e a barba antes de prosseguir.

— O trimestre da Páscoa terminou há pouco e até o fim do outro ainda temos um bom tempo. Só então, entrará algum dinheiro. Eu disse que seria um prazer ser seu inquilino, mas não falamos sobre o pagamento. Digamos, cinco libras por mês, pagas no primeiro dia? Concorda?

A proposta, feita logo depois de sua desconfiança sobre sir Miles estar se aproveitando da situação, a deixou envergonhada. Ele, por outro lado, entendeu mal sua expressão.

— Não hesite, srta. Mallory. Não lhe será fácil conseguir algum dinheiro, a não ser que venda carneiros e reduza mais seu rebanho. Levará um bom tempo antes de uma horta produzir alimentos para sua mesa. E como mencionou a casa precisa de reparos.

E se lhe pagar aluguel, talvez eu possa manter nosso relaciona­mento em base de negócios, acrescentou para si mesmo.

— Trata-se de uma soma principesca — murmurou Glória com o olhar baixo dessa vez. — Como segundo filho, o senhor parece estar muito bem de vida.

— Investi algum dinheiro herdado no negócio de despachos ma­rítimos. Isso vem sendo muito lucrativo.

— Entendo. O senhor já mencionou várias vezes minha falta de recursos e ofereceu os seus como minha única tábua de salvação. Seria criancice alegar falso orgulho e recusar sua oferta. Portanto, eu a aceito.

Miles percebeu que Glória preferia não depender de sua ajuda. O fato de fazê-lo a irritava.

"Seja paciente meu pequenino cisne. Aprecie minha colaboração neste curto espaço de nossa convivência. Depois, você já estará em condições de enfrentar a vida e, se Deus quiser, atrairá um homem merecedor de sua pessoa. Caso exista um."

 

                                     CAPÍTULO VI

Na manhã seguinte, em pé ao lado do garanhão no pátio do estábulo, Miles surpreendeu-se assobian­do. E por que não?, indagou-se. Estava um dia lindo, quase tão ameno quanto em Sussex, com apenas uma brisa soprando das co­linas. Algumas nuvens esgarçavam-se na linha do horizonte, mas nada que prometesse problemas no decorrer do dia.

Enquanto tomava o café da manhã, Mag o tinha avisado que a patroa já havia feito a refeição matinal e o esperava no estábulo. Teria de aconselhá-la a adquirir uma montaria melhor, Miles refletiu ao ver o pangaré encilhado para o uso de Glória. O animal, além de pertencer ao administrador, não era digno da senhora de Mallory Hall.

— Sei que esse cavalo não aparenta ser grande coisa, mas anda bem — disse Glória de repente, a suas costas, como se lhe tivesse lido os pensamentos. — Eu o experimentei ontem. Queria ver se ainda sabia cavalgar.

Pelo jeito, ela havia encontrado o costume de cavalgar da mãe. Era de lã verde escura e justo na cintura. Um capuz da mesma cor, com um veuzinho curto, completava a toalete. Como o tempo esti­vesse bom, Mag tinha preparado um lanche para levarem, explicou ela justificando a cesta pendurada no braço.

O pangaré manteve-se impassível enquanto Miles ajudava Glória a sentar-se de lado. A sela especial, sem dúvida, era uma relíquia dos velhos tempos. Ao ajeitar as saias e segurar as rédeas, ela sorriu com ar matreiro.                                                                                      

— Para ser sincera, eu preferiria montar de frente. Costumava fazer isso no meu pônei quando era criança. Meu pai me chamava de menina mal comportada e sem modos, mas como risse ao falar, não devia me achar assim.

Miles a visualizou com a saia levantada até os joelhos, as pernas bronzeadas pelo sol de verão e os cabelos loiro-acastanhados esvoaçando ao vento enquanto ela galopava pelas colinas. Fascinado pela imagem, sorriu.

— Como mudou tanto a ponto de se tornar freira? — provocou ele.

— Durante meses, fui uma cruz para a irmã encarregada das noviças — admitiu Glória. — Mas pelo menos, eu queria ficar no convento. Algumas das meninas, não. Estavam lá forçadas pelos pais. Foi nestas colinas que senti, pela primeira vez, o chamado para ser noiva de Cristo. — As feições sombrearam-se um pouco, mas logo desanuviaram-se. — Estou contente por voltar a cavalgar — afirmou ao estalar as rédeas e partir acompanhada por um surpreso sir Miles.

Subiram a encosta atrás da casa e do estábulo e passaram pelos carneiros que pastavam. Era uma terra erma, sem os atraentes chalés com telhado de sapé do sul e, por causa do vento impiedoso, despida de vegetação, exceto a rasteira.

No topo da colina mais alta, Miles sentiu-se revigorado com a força do vento. Olhou para Glória e viu-a com o rosto virado para o sol, os olhos fechados, absorvendo-lhe o calor e a energia.

Desceram a outra encosta da colina e chegaram à primeira fazendola com o estábulo e a casa de construção sólida de pedra.

Um cachorro branco e preto anunciou-lhes a chegada com latidos estridentes. Sem dúvida, a notícia das mudanças em Mallory Hall já havia se espalhado, pois o fazendeiro que veio recebê-los não demonstrou surpresa alguma ao ver Glória.

— Ah, me lembro tão bem quando era menininha, cavalgando na frente da sela de seu pai, no primeiro dia do trimestre. Estou contente com sua volta a Mallory Hall.

— Eu também me lembro de você, Tom Small, e de sua mulher que fazia a melhor coalhada aqui do norte.

— Ainda faz e vai ter muito prazer em servir-lhes uma porção. Bess! — chamou ele virando-se para a casa.

― Este aqui é sir Miles Raven, o novo proprietário do priorado He Kyloe. Vai ficar hospedado em Mallory Hall enquanto reforma o convento — apresentou Glória.

Em silêncio, o homem observou Miles, cumprimentando-o apenas rom um gesto de cabeça, sem o apreço dedicado a Glória. Com certeza, Brunt devia ter manchado a reputação de Miles referindo-se a ele como um cortesão interesseiro que se aproveitara do fechamento de conventos e mosteiros para se apossar de terras.

O mesmo aconteceu nas outras fazendas. Os homens e mulheres cumprimentavam Glória com efusão, lamentavam a situação das frei­ras, mas expressavam alegria por tê-la no controle de Mallory Hall e das fazendas. Contudo, mostravam-se silenciosos e reservados com Miles. Pelas aparências, ele teria de provar ser um bom vizinho antes de receber um tratamento cordial.

Todos eles juraram ter pago o aluguel do último trimestre a Brunt, mas não se aventuraram a opinar como o ex-pastor de ovelhas gastara o dinheiro. Quanto à redução do rebanho, deram as desculpa conjeturadas por Glória e Miles. Também citaram o fato de Brunt in­corporar carneiros ao próprio rebanho quando eles não podiam pagar o aluguel em moeda.

— Não que o rebanho dele esteja em melhor situação — disse Jock, o pastor de Mallory Hall, a quem Glória e Miles encontraram num cercado a certa altura do caminho. — O homens tem grandes idéias, mas não entende nada de carneiros. Diz que a raça cheviot daqui não tem lã muito fina. Gastou um bom dinheiro para. mandar buscar uma dúzia de machos merinos da Espanha. Ora, qualquer idiota sabe que um carneiro criado em clima seco e quente não pode se dar bem no norte da Inglaterra. Foi o que aconteceu. Os animais ficaram doentes e morreram, mas não sem antes cruzar com as fêmeas daqui. Os carneirinhos nasceram, porém não eram muito mais re­sistentes do que os pais. Aí, Brunt teve a idéia de trazer machos cotswold. Com todo o respeito, sir Miles, não faz sentido trazer carneiros acostumados às férteis pastagens do sul para estas colinas. Do que precisamos para recuperar o tamanho do rebanho, Jock? — indagou Glória.

—- De carneiros highland, de cara preta. Eles têm lã espessa, desenvolvem-se depressa, dão boa carne e são resistentes ao clima daqui — respondeu o pastor sem pestanejar.

— Tão logo eu possa, vou providenciar alguns — prometeu Glória, Mas a atenção de Jock já estava numa ovelha que balia sem parar e andava em círculos pelo cercado como se procurasse algo.

— Ela está sentindo falta do filhote que sumiu. Eu e meu cachorro já procuramos, mas não encontramos o fujão. Os senhores não viram nenhum carneirinho perdido por aí?

Glória sacudiu a cabeça e prometeu se manter atenta durante a volta para casa.

— É bom mesmo irem embora. Aquelas nuvens estão subindo muito depressa —avisou Jock.

Para Miles, elas continuavam no mesmo nível dessa manhã, Gló­ria , contudo, levou a sério o conselho do pastor.

— Embora o tempo continue firme, Jock tem razão. As tempes­tades se formam com grande rapidez nesta região. Acho melhor voltarmos para casa sem parar no caminho.

Miles lamentou que o tempo apressasse o retorno sem lhes dar a oportunidade de saborear o lanche preparado por Mag. Depois de compartilhar a companhia de Glória com os arrendatários, ele gostaria muito de sentar-se a seu lado, numa encosta ensolarada, e almoçar antes de devolvê-la a seus afazeres em Mallory Hall.

O carneirinho perdido, entretanto, tornou-se um aliado secreto da vontade de Miles. Já estavam bem perto de casa quando um balido aflito, vindo de trás de umas pedras, chamou-lhes a atenção. Lá estava o pobrezinho com uma das pernas presa numa armadilha para lobos. Glória o segurou enquanto Miles soltava a trava enferrujada.

— Coitado! Onde já se viu colocar uma arapuca onde carneiros podem passar? Mais uma coisa para falar com Brunt.

Tiveram de voltar até Jock a fim de devolver o carneiro perdido. Contaram onde o tinham encontrado, ouviram-lhe os agradecimentos e o observaram enquanto enrolava uma atadura na perna machucada do animal. A essa altura, Miles já não duvidava da mudança de tempo. O céu estava encoberto e o vento cheirava à chuva. Jock ofereceu-lhes abrigo em seu chalé, porém Glória, depois de um olhar especulativo pelas nuvens ameaçadoras, recusou e agradeceu.

— Acho que podemos chegar em casa antes de a chuva desabar.

Isso caso sir Miles não se oponha a um bom galope — disse ela com olhar de desafio e, sem esperar pela resposta, partiu a rédeas soltas.

Miles não hesitou em calcar as esporas em Cloud a fim de al­cançá-la. De forma alguma queria repetir a experiência de molhar-se até quase a medula dos ossos com a chuva gelada ali do norte. Em instantes, ele emparelhava as montarias.

O pangaré emprestado provava ser digno de confiança. Embora não tivesse a energia do garanhão, mantinha a velocidade. Miles relanceou o olhar por Glória e a viu rindo, divertida, obviamente apreciando o galope tanto quanto ele. Uma rajada de vento derru­bou-lhe o capuz para trás, porém ela não deu importância.

Num momento, encontravam-se secos e, no seguinte, viram-se envolvidos pelo aguaceiro torrencial que lhes bloqueava a visão do caminho, forçando-os a parar. Relâmpagos ziguezagueavam pelo céu seguidos por trovões ensurdecedores.

— Devíamos ter ficado com Jock! — gritou ele para ser ouvido.

— Ainda estamos um tanto longe de casa. Temos de procurar abrigo. Se não me engano, existe uma cabana no sopé desta colina — explicou Glória com esforço, levando o pangaré na direção in­dicada.

Estava certa. Pouco depois, amarravam os animais num telheiro e entravam na construção rústica ao lado.

Jock devia usar a cabana de vez em quando em seu trabalho de pastor, pois ela estava equipada com lareira, lenha, gravetos secos, pederneiras, alguns cobertores e uma pilha de sacos de linho cru. Glória apanhou um destes e tentou enxugar os cabelos enquanto Miles arrumava a lenha e os gravetos na lareira. Depois de produzir faíscas esfregando duas pederneiras, ele conseguiu uma chama pe­quena que pôs-se a assoprar com força.

— Sinto muito. Eu deveria saber que não chegaríamos em casa a tempo — desculpou-se Glória.

— Não tem muita importância — disse Miles com sinceridade. Que tal comer nosso lanche agora?

Glória riu.

— Devo estar com jeito de um rato afogado. Está — concordou ele — mas eu também.

Não fazia ela idéia de como era linda, mesmo com os cabelos curtos e molhados que, grudados na cabeça, lhe enfatizavam a linha delicada das faces e do queixo?

— Vou buscar nosso lanche. Continue cuidando do fogo — re­comendou Glória

Saiu ao telheiro e voltou logo com a cestinha. Felizmente, Mag tinha enrolado os alimentos num oleado, o que os conservou secos. Estendeu um cobertor no chão, em frente da lareira, e colocou nele um pão, um pedaço grande de queijo e um frasco de cerveja.

Momentos depois, comiam com apetite e conversavam pouco. A chuva continuava a cair sem dar sinais de amainar.

— Meus arrendatários parecem gente boa, não acha? — comentou Glória quebrando o silêncio.

— Sim. Eles lembram os Mallory com afeto, o que pode lhe ser útil. Não creio que tentem enganá-la.

— Tenciono tratá-los com bondade e justiça. Tão logo eu possa comprar reprodutores, vou emprestá-los para que cruzem com suas ovelhas e melhorem os rebanhos. Deve haver muitas outras coisas para eu fazer a fim de beneficiá-los.

— O simples fato de voltar a cuidar de Mallory Hall já foi ex­celente para eles — declarou Miles em tom seco.

Glória sabia que ele a recriminava por ter permitido a permanência de Brunt na propriedade. Não respondeu e ambos continuaram a comer em silêncio.

O luxo da corte de Henrique VIII estava a uma distância infinita. O universo parecia reduzido à pequena choupana, com o cheiro acre de carneiro e o barulho da chuva. Miles tinha tirado a jaqueta mo­lhada, mas a camisa e o calção também estavam úmidos. Glória espirrou e ele se deu conta de seu desconforto com as roupas en­charcadas.

— Veja em que estado está! Por que não tira o costume e o pendura naquele gancho perto da lareira? — perguntou ele.

Indignada, Glória o fitou e não disfarçou a suspeita da voz:

— Está sugerindo que eu fique apenas com a roupa de baixo?! Imagina que eu seja boba só porque acabo de sair do convento?! A chuva não vai demorar muito mais para parar e nós poderemos re­tomar o caminho para casa.

— Não se alarme tanto, senhorita! — protestou Miles, ofendido. — Achei que pudesse se enrolar num dos cobertores em vez de continuar assim e acabar apanhando uma febre.

— Desculpe, não pensei nisso. Eu... O senhor deve me considerar uma tola implicante.

— Não, srta. Mallory, jamais — garantiu Miles ao pensar o quanto Glória estava certa em desconfiar dele.

Ainda um tanto hesitante, ela se levantou e, de costas, começou a despir o costume. Miles tentou não olhar, mas antes de virar o rosto, a imagem de suas formas graciosas, de costas eretas, nádegas arredondadas, coxas bem torneadas, tudo visível sob a camisa úmida, gravou-se na mente dele. Um segundo depois, ela se enrolava no cobertor.

Glória foi até a janela e entreabriu-a para observar a chuva.

— Continua bem forte. Talvez não passe...

Nesse instante, um relâmpago e o estrondo quase simultâneo do trovão deram a impressão de que a faísca poderia atingi-la. Assustada, ela afastou-se depressa da janela e, com um grito aflito, atirou-se nos braços de Miles.

— Pronto, pequenininha, já passou. Você está em segurança — murmurou ele deixando de lado o tratamento cerimonioso.

Glória o fitou com olhar perplexo, como se duvidasse do que tinha feito. Ele também estava surpreso e mais ainda ficou com a própria reação seguinte.

Desmentindo a afirmativa de segurança, Miles uniu a boca a sua.

Ao correr da janela, Glória tinha derrubado o cobertor. Não havia nada entre eles a não ser as peças íntimas e úmidas de ambos. Ele sentia-lhe a maciez dos seios e o enrijecimenío dos mamilos exci­tados. Afoito, sorvia o mel de sua boca. Numa fração de segundo, a tempestade no interior da cabana vibrava com tanta violência quanto a de fora. Encantado por não encontrar resistência, Miles empurrou, com os pés, os restos do lanche para fora do cobertor e deitou-se com Glória entre os braços.

Ele a desejava mais, muito mais. Enfiando a mão pelo decote rendado da camisa, aconchegou um dos seios na palma e, com a outra em sua nuca, mantinha-lhe a boca firme na dele. Com um pouco de pressão, conseguiu abrir seus lábios, forçando a passagem para que a língua explorasse os recônditos de sua boca.

Um novo trovão ecoou nos ares, porém já mais distante. E então, o garanhão relinchou no telheiro ao lado.

Como. se tivesse acordado, Glória soltou-se de Miles e o fitou, estarrecida. Estava ofegante e o peito arfava.

— Deus misericordioso! O que eu fiz?! O que aconteceu comigo?! — exclamou ela.

Apanhou o cobertor derrubado enquanto corria da janela e en­rolou-se nele outra vez. As faces estavam coradas e os olhos bri­lhavam de excitação, mas afastou-se de Miles.

Para ele, foi muito mais difícil manter-se no mesmo lugar e não voltar a tomá-la nos braços.

— Você não fez nada, Glória. Assustou-se com o raio e o que aconteceu depois foi por culpa minha. Não há justificativa para meu comportamento. Lamento muito e só posso prometer que isso não se repetirá.

Como num acordo mútuo, afastaram-se para lados opostos da cabana. Glória postou-se junto à janela enquanto Miles, encostado na parede, evitava olhar em sua direção.

Glória não podia imaginar sobre o que Miles pensava. A respiração tinha voltado ao normal, mas os seios ansiavam pelas carícias de instantes atrás e uma insatisfação estranha dominava seu âmago. Ao lembrar-se da invasão da boca, o pulso disparou.

O contato da pele de Miles na sua, a pressão do peso dele e o aconchego do corpo rijo e viril em sua maciez resultavam em sen­sações jamais imaginadas enquanto vivera enclausurada no convento. Nunca soubera o que algumas das moças lamentavam abandonar para trás no mundo, ou que as deixava tão ansiosas para retornar quando o convento se fechara.

Mãe Santíssima, seria isso o que a velha Elizabeth Easington tinha insinuado ao comentar a sensualidade de suas feições? Teria sido criada para gozar o amor de um homem, o deste a sua frente? Não seria pecado desejá-lo como o fizera momentos atrás?

Havia se sentido como um pássaro voando em direção ao sol, pois ser consumida por seu calor constituiria o maior dos prazeres.

Miles poderia tê-la possuído, deu-se conta. Se tivesse voltado a tomá-la entre os braços, beijando-a e acariciando-a com tanta per­suasão, ela teria permitido que ele fizesse o que desejava, pois esse era também seu anseio.

O fato de Miles não ter feito isso significava que era uma pessoa muito melhor do que o cortesão vaidoso e fútil julgado por ela a princípio. A atitude dele não mostrava que não a considerava do tipo de mulher a quem um homem podia seduzir sem peso de cons­ciência? Miles teria parado porque começava a pensar nela como alguém a quem só amaria, de maneira honrada, através dos laços matrimoniais?

Glória ainda estava entregue a conjunturas quando, depois de a chuva passar, eles retomaram o caminho para casa, imersos no maior silêncio.

 

                                    CAPÍTULO VII

Quando Glória se levantou na manhã seguinte, Miles já tinha saído, tirando-lhe a oportunidade de ave­riguar como se sentia a seu respeito. Sem dúvida, havia ido cuidar da reforma de Kyloe.

Miles, entretanto, deixara o aluguel do primeiro mês, do qual ela resolveu fazer uso imediatamente. Por ordem sua, Brunt foi a Ross, o lugarejo mais próximo, comprar mantimentos, pois a despensa estava bem vazia. Outra incumbência era adquirir uma vaca leiteira, caso encontrasse uma boa, e uma meia dúzia de galinhas para juntar às três e ao galo que ciscavam pelo quintal.

Sir Miles permaneceu ausente por cinco dias. No fim desse pe­ríodo, Glória estava quase convencida de ter imaginado o incidente na cabana. Pelo menos, descartava a possibilidade de Miles ter se contido por causa de um sentimento mais profundo por sua pessoa. Tratava-se apenas de um cavalheiro cuja noção de respeito não estava totalmente morta. A tempo, ele se dera conta de não ter o direito de seduzi-la. Ela precisava tomar cuidado para não se humilhar re­velando a esperança por algo mais profundo.

Raciocinando dessa forma, Glória encontrava-se despreparada quando, na manhã do sexto dia, Miles chegou ao pátio do estábulo com uma égua preta, de sangue árabe, presa à sela de Cloud, anun­ciando que era para ela.

A ida a Berwick não tinha o objetivo de adquirir um cavalo para Glória e sim material de construção. Mas ao ver a égua à venda, Miles não resistira à tentação de comprá-la.

Glória viu-se dominada por uma profunda onda de alegria. Nunca tinha visto égua tão linda. Talvez o presente significasse que Miles, de fato, sentisse um afeto profundo por ela.

— Ah, Miles, nem sei o que dizer! — murmurou ao se aproximar do animal com cuidado.

Segundos depois, acariciava-lhe o pescoço.

— Ela se chama Sultana — contou ele ainda montado em Cloud. — Tem três anos e está mais acostumada à sela para senhoras, mas também aceita a regular para...

Foi interrompido pelo tropel vindo da estrada. Ambos olharam para essa direção e viram um cavaleiro em um baio.

— Está esperando alguém, Glória? — perguntou Miles firmando o olhar no cavaleiro que se aproximava.

— Não. Eu não o conheço.

— Pois eu, sim — declarou ele em tom seco como se o fato o desagradasse.

O homem era alto, atarracado e o rosto pálido mostrava a falta de atividades ao ar livre. Exibia roupas finas de um cavalheiro e, ao tirar o chapéu, revelou cabelos castanhos e ralos. Com elegância estudada, curvou-se.

— Bom dia, my lady — cumprimentou sorridente. — Como ouvi dizer que tinha uma nova vizinha, resolvi vir conhecê-la e oferecer-lhe meus préstimos.

— Srta. Glória Mallory, permita-me apresentar-lhe sir Oliver Lang, vindo da corte de Sua Majestade — disse Miles a suas costas.

Sir Oliver não tinha prestado atenção ao outro homem, porém ao reconhecer a voz de Miles, alarmou-se e o encarou por sobre a cabeça de Glória. Confuso, gaguejou:

— En... encantado, srta. Ma... Mallory.

— Prazer em conhecê-lo, sir Oliver — respondeu ela percebendo que o recém-chegado lançava um olhar hostil a Miles.

— Ah, sir Miles Raven! Interessante encontrá-lo! Segundo me contaram, você, como eu, tomou posse de uma propriedade aqui no norte.

— Foi você, então, quem adquiriu Belford?! — exclamou Miles.

— As notícias correm depressa por aqui. Sua propriedade também deve ficar pelas redondezas, calculo. Estaria você, por acaso, cum­prindo a mesma missão que eu, a de cumprimentar nossa bela vizinha e oferecer-lhe seus serviços? — indagou sir Oliver cuja afabilidade não combinava com a expressão de suspeita.

Glória notou a tensão crescente entre os dois homens e, embora desconhecesse a causa, tentou dissipá-la.

— Sir Miles está hospedado em Mallory Hall durante a reforma de sua casa em Kyloe — explicou ela.

— Grande sorte sua contar com anfitriã tão encantadora, sir Miles! Calado, Miles concordou com um gesto de cabeça enquanto Glória intuía ter piorado a situação. Olhou de um homem para o outro, porém não detectou nada esclarecedor. Por um momento, fez-se um silêncio constrangedor, mas então, sir Oliver notou a égua preta cujas rédeas Glória segurava.

— Animal excelente, srta. Mallory! A égua é sua? Parabéns pelo julgamento acertado da aquisição!

Glória lembrou-se das conversas do pai, com outros homens, sobre cavalos. Na esperança de que o assunto, sempre popular, pudesse amenizar o antagonismo visível entre Miles e Oliver, disse:

— Não é linda? Sir Miles a comprou para mim. Aliás, ele acabava de chegar com a égua quando o senhor apareceu. Não foi gentil da parte dele?

— Claro, muito! — concordou sir Oliver com os olhos brilhando como se ele houvesse ganhado alguma vantagem.

— A srta. Mallory não tinha montaria e não estava certo ter de emprestar o pangaré do administrador — aparteou Miles depressa.

—- Não, naturalmente — sir Oliver concordou com voz untuosa demais.

Glória teve a sensação de haver caído numa armadilha.

— Gostaria de tomar um copo de vinho, sir Oliver? Eu ia oferecer um a sir Miles tão logo puséssemos os animais nas baias.

Sir Oliver olhou para os dois e hesitou.

— Não, obrigado, srta. Mallory. Fica para uma outra ocasião quando, talvez, aceite passear comigo a cavalo.

— Será um prazer — respondeu Glória apenas por cortesia. Ante de se encontrar com esse homem outra vez, queria descobrir por que Miles antipatizava tanto com ele.

— Então, até mais ver, srta. Mallory — disse sir Oliver curvando-se. — Passe bem, Miles.

Glória esperou até terem desencilhado o garanhão de Miles e acomodado os dois animais nas baias para comentar:

— Você e sir Oliver não são amigos, desconfio.

Ao ver-lhe os olhos azul-claros como duas lascas de gelo, ela sentiu que pisava em terreno perigoso.

— Não somos mesmo. Por que você tinha de contar, a um absoluto estranho, aquelas coisas? Não era da conta dele saber onde eu estava hospedado durante a reforma de minha casa.

Ela estremeceu diante de tanta veemência.

— Ora, Miles, por acaso está envergonhado de suas acomodações humildes? Para alguém acostumado a Greenwich, Richmond e Hampton Court, deve ser uma degradação ficar em Mallory Hall!

Tendo vociferado essas palavras, Glória virou-se para ir embora. Mas antes de dar dois passos, Miles a segurou pelo pulso.

— Não se trata disso! Você não pode me acusar de orgulho falso! Eu simplesmente queria preservar sua reputação!

Boquiaberta, Glória o fitou.

— Se hospedar-se em minha casa prejudica meu bom nome, por que pediu para ficar aqui? A idéia foi sua, lembre-se.

— Certo. Mas eu não esperava encontrar, por aqui, uma língua de trapo como Lang. Nem queira saber quantas vidas e carreiras na corte a maledicência de nosso vizinho já arruinou. Não percebe como um leva-e-traz desses pode pintá-la com as piores cores possíveis? E como se bastasse sua ingenuidade ao informá-lo sobre minha hos­pedagem em Mallory Hall, você ainda teve de contar que eu lhe comprei a égua! Por que não disse, de uma vez, que éramos amantes?

Sem refletir, ela o estapeou no rosto. Em seguida, correu para casa, deixando-o entregue à fúria.

Miles não tivera a intenção de insultá-la. Deus era testemunha. Mal acabava de pronunciar as palavras e já se arrependia. Mas a bobinha precisava saber do que aquele desgraçado era capaz. Mal­dição! Por que Lang tinha de se mudar para tão perto? Miles ima­ginava ter deixado esses patifes traiçoeiros lá no sul!

Não desejava explicar a razão toda de sua raiva por Lang saber onde se hospedava e do presente da égua. Sir Oliver conhecia lady Célia Pettingham e havia tentado conquistá-la antes de Miles. Voltara a fazê-lo ao saber que a moça tinha rompido o namoro. Ciente do quanto Miles havia se interessado por lady Célia e ainda ambicio­nando atraí-la, Lang não hesitaria em distorcer a verdade, para ela, de maneira perversa.

Teria ele coragem? O fato de Miles saber do relacionamento cia destino de Lang com a rainha Ana Bolena não seria suficiente pa mantê-lo de boca fechada?

Um ano atrás, Miles tinha se deparado com a rainha e o amante em posição comprometedora, por mera casualidade. Fugindo de u comerciante importuno, que desejava favores do rei, ele tinha pro­curado se esconder num quarto supostamente vazio. Ao abrir a porta, vira os dois entrelaçados num abraço apaixonado. A rainha estava coma saia levantada e sir Oliver acariciava a coxa que apenas o rei tinha o direito de tocar.

Ambos haviam reagido à aparição inesperada com exclamações assustadas, conscientes de que a descoberta de Miles poderia resultar em desastre. Mas ele, chocado com a cena, tinha apenas fechado porta e se afastado a passos rápidos.

Após umas poucas horas, Lang o tinha procurado com uma sacolinha de moedas de ouro e promessas de favores caso ele manti­vesse o caso em segredo. Com um riso sarcástico, Miles o havia dispensado sem dizer se pretendia, ou não, informar o rei Henrique VIII.

Naturalmente, ele não tinha tal intenção. Adultério com a rainha constituía o maior dos desatinos, mas Miles não era do tipo de tirar vantagem da desgraça alheia.

Não muito depois, Miles retornava à residência Raven quando foi atacado por dois bandidos. Não teve problemas para se livre deles, mas com a repetição do fato uma semana mais tarde, conclui que Lang tinha contratado assassinos para eliminá-lo. O sujeito devia estar cansado da incerteza quanto a Miles guardar, ou não, segredo.

Agora, que o domínio de Ana Bolena sobre Henrique VIII começava a declinar, sir Oliver, sem dúvida, achara prudente vir ins­pecionar a propriedade no norte, longe das intrigas da corte.

Lang, entretanto, não tinha aprendido muito com os erros come tidos, Miles desconfiava. Há poucos instantes, vira-lhe a inimizade estampada no olhar, como se ressentisse lhe dever a vida. Residindo na região, Lang encontrava-se em posição de causar dano irreparável a ele e a Glória.

Tempo demais havia passado desde a descoberta de Miles sobre Ana Bolena e Oliver Lang. Adultério com a rainha era considerado traição e se ele revelasse o fato agora, seria questionado por não ter falado antes. Acobertar traidores era crime.

Frustrado, Miles esmurrou a parede do estábulo. Como Lang ado­raria descrever, a lady Célia, sua atraente hospedeira e interpretar o presente da égua como o de um amante.

Por que se importar com a opinião de lady Célia?, Miles inda­gou-se. Não gostava mais dela. Porém algo lhe dizia que, aliada a Lang, ela poderia ser perigosa.

No caminho de volta para casa, Miles tinha classificado Sultana como um presente em sinal de amizade e até de reconhecimento por Glória não o ter deixado fazer-lhe amor.

Ela, entretanto, não lhe dera a oportunidade de apresentar a dádiva dessa forma. Antes de começar a falar, vira-lhe o brilho nos olhos azuis.

Era a luminosidade do amor, o júbilo de alguém cujos sentimentos começavam a ter esperança de retribuição. Glória considerava o pre­sente como o prelúdio honrado de uma proposta de casamento que ele não estava preparado a fazer. Nem desejava.

Era sir Miles Raven, digno da estima e da confiança do rei. Ainda não passava de um mero cavaleiro, mas com o apoio permanente de Henrique VIII a que altos patamares da nobreza não chegaria? Para tanto, precisaria escolher a esposa certa, uma que contribuísse para sua escalada social. Teria de esquecer Glória Mallory, membro da destituída aristocracia Plantagenet, com seus olhos azuis, cabelos trigueiros, e a paixão que começava a despontar em ambos.

O caminho a seguir estava claro. Bem como a sensação de des­prezo por si mesmo. Havia permitido que uma jovem inexperiente se apaixonasse por ele. Também tinha começado a amá-la.

Mas desse momento em diante, jurava, haveria de impedir o cres­cimento desse amor. Para Glória, seria melhor desiludir-se agora, antes de ter o coração despedaçado.

Quanto a ele, não calculava como enfrentaria a perda, mas sem dúvida, o faria. Tinha errado ao brincar com a chama perigosa da atração mútua. Arrependia-se. Nesse dia mesmo, começaria a apa­gá-la.

A maneira mais eficiente seria passar uma temporada na corte. A separação ajudaria Glória a recuperar-se do amor impossível com mais facilidade.

Contudo, não o agradava ficar afastado de Kyloe durante o período de restauração. Não conhecia Angus MacDougall suficientemente para saber se não seria enganado durante a ausência.

Existia ainda a promessa de proteger Glória enquanto ela aprendia a dirigir a propriedade. Havia aqueles, como Brunt, dispostos a ex­plorar sua boa fé. Também não gostara nem um pouco da maneira de Lang olhar para Glória.

Sem dar atenção ao olhar curioso de Mag, Glória correu escada acima e refugiou-se no quarto. Só depois de bater a pesada porta de carvalho, deu-se a liberdade de chorar de raiva pela humilhação sofrida.

Miles a tinha classificado de ingênua. Dava-lhe razão. Ela não passava de uma tola, recém-saída do convento, pronta para acreditar que sir Miles Raven poderia admirar e até amar uma jovem simples. Ele havia sentido vergonha e ficado com medo de que sir Oliver Lang o achasse capaz de ter intenções séria e honradas pela filha de um nobre da decaída aristocracia do norte. O fato de haver nascido em berço digno não contava nada para alguém acostumado ao luxo da corte. Os argumentos contra a falta de caráter de sir Oliver não a tinham convencido. Sir Miles Raven ambicionava progredir na vida através de um casamento vantajoso, Glória desconfiava. Isso não seria possível caso sir Oliver espalhasse o boato de seu rela­cionamento com uma ex-freira.

Ficara eufórica com o presente de Sultana, porém teria de insistir com Miles para vendê-la. A visão da égua sempre a recordaria da presunção de um amor impossível.

Bem pouco tempo atrás, ela não ambicionava nada deste mundo a não ser cumprir a vocação religiosa. Mas a vida tranqüila de freira já não era mais possível e ela, confiando nas possibilidades apre­sentadas, passava por uma experiência dolorosa. Se não podia voltar para o convento, precisava confiar no bom senso. Miles não lhe retribuía o afeto, embora as razoes para lhe dar a égua não estivessem claras.

Glória acabava de lavar os olhos inchados na bacia sobre o lavatório quando ouviu uma batida imperiosa na porta. Mag sempre batia com delicadeza e Brunt tinha saído. Só restava Miles.

— Vá embora! — gritou ela.

— Preciso falar com você. Temos um negócio pendente — disse ele em voz fria e tão imperiosa quanto a batida na porta.

"Claro", pensou Glória, "eu o estapeei no rosto". Não importava quão ofensivas tinham sido as palavras de Miles, elas não justifica­vam seu gesto afrontoso. Devagar, aproximou-se da porta e a abriu.

— Quero lhe pedir desculpas por tê-lo agredido — murmurou com os olhos pregados no chão.

— Não, Glória, sou eu quem deve pedir perdão pelas palavras rudes. Minha indelicadeza passou dos limites. Só posso me defender alegando preocupação. Em sua inocência, você não imagina o mal que um homem, como Lang, é capaz de praticar.

— Você se refere à inocência como se fosse uma doença inde­sejável — criticou Glória.

— Engana-se. Eu a considero uma virtude muito rara hoje em dia. Meu medo é que você venha a se magoar caso continue a confiar cegamente nas pessoas.

— Por que me deu a égua?

Miles desviou o olhar. Iniciava o processo doloroso de extinguir o sentimento amoroso de ambos.

— Você precisava de uma montaria — respondeu ele em tom indiferente.

— Ah, sim, claro. Bem, levando em consideração as circunstân­cias, acho que você deve vendê-la. Por que não a oferece a sir Oliver? Ele gostou de Sultana. Além do mais, não queremos que ele faça uma idéia errada de nosso relacionamento, não é?

Sua voz era suave, mas exibia a mesma frieza que a dele. Miles foi tomado por uma grande vontade de derreter um pouco daquele gelo.

— Pense bem, Glória. Só não desejo que Lang manche seu bom nome, mas quero muito que você fique com Sultana. Ela é perfeita para você. Não gostou de seu jeito, dos movimentos calmos, do pêlo sedoso?

Apreciava tudo isso e muito mais, reconheceu Glória. Deveria se manter intransigente, porém apanhou-se dizendo:

— Muito bem, Miles, fico com Sultana, mas com a condição de lhe dar a quantia paga por ela. Farei isso tão logo receba algum dinheiro dos arrendatários.

Miles desejava muitíssimo discordar e declarar que a égua era um presente de amor. Porém isso destruiria a resolução de exterminar o afeto nascente enquanto era tempo. Ao agir dessa forma, nada mais justo do que deixar Glória conservar o orgulho intato.

— Concordo. Considero ajuizado de sua parte tratar nossos as­suntos em base de negócios. Afinal, não passo de um inquilino tem­porário.

 

                           CAPÍTULO VIII

Na semana seguinte, Glória quase não viu Miles. Ele saía ao primeiro sinal do alvorecer e só voltava tarde da noite.

Se ele a estivesse evitando, tanto melhor, tentava se convencer. Seria muito mais fácil esquecer o cortesão atraente de Sussex se não o encontrasse. O trabalho na recuperação de Mallory Hall ocu­pava-lhe todas as horas do dia. Se detestava as noites, quando se revirava na cama acordada, ninguém ficava sabendo. Seu maior pra­zer era, de vez em quando, cavalgar Sultana pelas colinas. Encan­tava-se em percorrer suas terras e observar o que restava do antigo rebanho.

Um dia, encontrou-se com Jock que carregava um carneirinho órfão.

— Talvez uma das ovelhas possa adotá-lo — sugeriu ela.

— Não, patroa, já tentei. Todas têm o seu filhote e algumas, até dois, por isso não aceitam um estranho. Fui às outras fazendas à procura de ovelhas que tivessem perdido o carneirinho, mas não encontrei nenhuma. O único remédio é sacrificar o bichinho e antes que ele morra de fome. A senhora não gostaria de saborear, no jantar, carne macia de cordeiro?

— Não! — exclamou Glória horrorizada. — Ele não pode ser alimentado com uma garrafa? Fizemos isso no convento umas duas vezes.

Jock deu de ombros.

— Dá muito trabalho e eu não tenho tempo para isso. Preciso ir com o cachorro procurar o lobo que matou a ovelha a fim de evitar mais perdas e preparar tudo para a tosquia. Já está quase na época.

— Eu quis dizer levá-lo para casa e tentar. Brunt comprou uma boa vaca em Ross e temos leite de sobra. Ned poderia me ajudar. Você acha que o carneirinho é capaz de sobreviver?

Jock a observou por um instante e, depois, olhou para o animalzinho que tentava, em vão, mamar em uma das ovelhas.

— A senhora tem um coração de ouro, d. Glória. Pode ser que consiga, mas vai ter de alimentar o cordeiro umas seis vezes por dia. Ele é muito determinado. Talvez chegue a ser um bom repro­dutor.

De volta a Mallory Hall, Glória encontrou Ned limpando as baias no estábulo. Como tinha previsto, o menino mostrou-se entusiasmado em ajudá-la a cuidar do carneirinho. Segundo ele, havia um bico, em algum lugar da cozinha, que já fora usado com uma garrafa vazia de vinho para dar leite a um bezerrinho.

Ned voltou quando Glória ainda desencilhava Sultana.

— Mamãe está amornando o leite — avisou ele enquanto obser­vava o carneirinho balindo aflito numa baia. — Pode deixar que eu cuido dele. Mamãe disse que a senhora tem uma visita lá na sala. É melhor ir ver quem é.

— Ah, está bem, Ned. Obrigada — disse Glória ao afastar-se imaginando quem a aguardava.

— D. Glória? — chamou o menino. — Posso dar um nome para o carneirinho?

Distraída, ela deu uma resposta afirmativa. Havia apenas uma pessoa que falara em aparecer em Mallory Hall. A lembrança pro­vocou-lhe mal-estar.

Sir Oliver levantou-se do sofá quando a viu entrar e Glória, cons­trangida alisou a saia salpicada de lama.

— Sir Oliver! Que surpresa! Lamento minha aparência, mas não esperava visita.

Em poucas palavras, explicou a história do carneirinho sem mãe.

— Srta. Mallory, quanta bondade sua se encarregar do animal! Porém não deveria se surpreender em me ver aqui. Como lhe disse outro dia, gostaria que fosse cavalgar comigo.

— Uma pena, pois já fiz um longo passeio hoje — respondeu ela, aliviada por ter a resposta perfeita para não acompanhá-lo.

— Descobri isso ao chegar aqui e fiquei muito decepcionado.

Como a esperei por um longo tempo, acho que mereço aquele copo de vinho oferecido quando a vim conhecer. Sua governanta já me ofereceu um, mas preferi aguardá-la, senhorita.

Glória chamou Mag e pediu-lhe que servisse o vinho.

Apesar da primeira impressão sobre sir Oliver, ela começava a relaxar em sua presença. De maneira agradável, ele falava sobre assuntos variados. A certa altura, perguntou:

— Meu amigo sir Miles foi inspecionar a nova casa?                              

— Foi, sim. A reforma está caminhando bem. Sir Miles conseguiu um excelente pedreiro escocês com idéias muito boas de como trans­formar um convento numa casa de campo confortável.                                

Oliver, entretanto, não estava interessado em conversar sobre arquitetura.                                                                                                  

— Ouvi contar que a senhorita era freira. Isso me deixou curioso.

O que teria feito se Raven não tivesse aparecido e a ajudado a recuperar sua casa?                                                                                    

Então a história de Miles a ter encontrado já havia se espalhado, percebeu Glória. Sem dúvida, graças a Brunt que a deveria ter aumentado até tomá-la irreconhecível.                                                        

— É verdade que o padre de nosso convento fugiu com o dinheiro da pensão destinado às freiras. Quando sir Miles me encontrou, eu estava fraca de cansaço e fome. Ele me convenceu da inutilidade de procurar outro convento e da necessidade de achar um lugar para morar. Mas fui eu quem descobriu os documentos que provavam               meus direitos sobre Mallory Hall — Glória explicou com uma nota de orgulho na voz.

Oliver ignorou-lhe as últimas palavras.                                                    

— A senhorita deve considerar sir Miles um herói de extrema fidalguia — comentou ele em voz suave, mas encarando-a para não perder detalhe algum de suas reações.

Dias atrás, sob o primeiro impacto do amor, Glória teria concordado, entusiasmada. Agora, contentava-se em dizer em tom calmo:

— Sir Miles foi apenas bondoso. Ele não toleraria uma situação injusta.                                                                                                      

— Está sendo muito modesta, sita. Mallory! Tem certeza de que ele não a ajudou com o intuito de conquistar-lhe a admiração e gratidão?

— De forma alguma! Qualquer cavalheiro teria feito a mesma coisa — garantiu Glória, ciente do olhar perscrutador de Oliver.

— Nesse caso, foi muito louvável da parte dele. Mas com aqueles cabelos negros e olhos azul-claros, Miles é um sujeito bonitão, não concorda? Todas as damas da nobreza lá na corte se sentem atraídas por ele, posso lhe garantir.

— Com certeza, sir Miles tem de lutar para se livrar delas — respondeu Glória com a maior indiferença.

— Não quer se juntar a suas fileiras?!

Ela sacudiu a cabeça num gesto negativo e forçou-se a fitar os olhos escuros de sir Oliver.

— Parabéns, srta. Mallory! E muito sensata! Posso esperar, então, que exista lugar em seu coração para um outro admirador muito diferente?

As palavras foram seguidas de expressão de interesse sincero, mas Glória não se emocionou. Precisava desencorajá-lo, porém sem ferir-lhe o orgulho. Conseguiu suspirar e fitá-lo com olhar triste.

— Fui destinada a ser freira, sir Oliver. Infelizmente, o decreto do rei não permite mais esse tipo de vida na Inglaterra. Mesmo assim, muitas mulheres não foram feitas para o casamento. Vivo muito feliz como estou.

Sir Oliver não escondeu o desapontamento. — Srta. Mallory, com certeza fala sem conhecer as coisas deste mundo! Uma dama, especialmente da nobreza, não está segura so­zinha! Ela será uma vítima fácil para aqueles que tentarem enganá-la e desonrá-la. Quando a surpresa de sua nova situação passar, a senhoríta pensará de maneira diferente. Tenho muito a oferecer a uma dama. Belford já contava com uma suntuosa casa para o abade e não foi preciso muito para aumentar seu conforto. Além disso, possuo vastas terras em Kent e um lugar seguro na corte de Sua Majestade.

Nesse instante, Ned entrou correndo na sala.

— D. Glória, o carneirinho tomou a garrafa inteira de leite! Eu dei o nome de Rabicho porque ele me segue para todos os cantos, está vendo? — disse o menino ao dar um passo ao lado e deixar o animal provar suas palavras.

— Estou vendo, sim, Ned. Mas os bichos não devem entrar em casa porque... — Calou-se ao ver o cordeiro sujar o chão. — Leve-o já de volta ao estábulo e volte aqui para limpar o que ele fez.

— Sim, senhora. Mas o nome...

— Rabicho está muito bom. Agora, me obedeça depressa. Glória pediu desculpas pela interrupção, embora se sentisse ali­viada com a oportunidade de escolher as palavras com cuidado.

— Talvez o senhor tenha razão, sir Oliver, porém sou uma mulher simples. Agradeço-lhe pela honra oferecida, porém reconheço não ser a dama adequada para o senhor. A perspectiva de ir à corte, como o senhor deve fazer periodicamente, me atemoriza. Não, fico muito melhor entre minhas colinas e meu rebanho.

Oliver deu de ombros.

— Não vou perder a esperança. Talvez a senhorita precise de tempo para avaliar as dificuldades assumidas. Bem, se me der licença, vou deixá-la agora.

Nesse dia, Miles voltou a tempo de jantarem juntos. Apesar de se tratarem com cordialidade espontânea, cada um percebia o olhar de desconfiança do outro. As tentativas para conversar não tinham muito sucesso e nenhum dos dois conseguia perceber o que o outro pensava.

Glória preferiu não mencionar a visita de sir Oliver, ciente de que ela provocaria advertências veementes. Mais do que nunca, de­sejava saber as razões da inimizade entre os dois homens.

Havia tópicos mais seguros. Contou a história do carneirinho e como Ned, entusiasmado com a nova incumbência, tinha pedido à mãe para dormir no estábulo a fim de cuidar do animal durante a noite.

Já terminavam o jantar quando ouviram o barulho de uma car­ruagem se aproximando.

— Não estou esperando ninguém. E você? — indagou Glória.

— Também, não.

Pouco depois, batidas na porta os fizeram ir ver de quem se tratava. Já havia escurecido e, naquela região, não eram comuns visitas à noite.

Glória, tendo ido na frente, abriu a porta e deparou-se com uma senhora alta, exibindo uma capa com gola de pele que, entreaberta, mostrava um vestido fino de brocado. Embora a luz do lampião fosse um tanto fraca, notou algo familiar em suas feições.

— Boa noite. Estou procurando sir Miles Raven — disse ela numa voz cuidadosa e com o sotaque característico do sul.

A informação de Glória, de que ele estava ali, perdeu-se na ex­clamação efusiva da senhora ao vê-lo logo atrás.

— Miles! Que alegria encontrá-lo!

Surpresa, Glória afastou-se para o lado enquanto a desconhecida passava por ela sem nem mais um olhar. Foi então que viu a moça, a poucos passos da escada, numa atitude de incerteza tímida. Ela também vestia-se com elegância. O capuz da capa francesa emol­durava-lhe o rosto lindo.

Atônito, Miles murmurou:

— Mamãe! O que está fazendo aqui na Nortúmbria? Eu a ima­ginava em Ravenwood à espera de seu primeiro neto!

— De fato, estava — concordou ela rindo, alegre. Mas já nasceu. Você é tio de um menino forte e bonito. Com Lyssa e o bebê passando bem, voltei a me preocupar com você.

Miles também riu e. um tanto constrangido, fez um gesto para Glória se aproximar.

— Eu lhe garanto que não havia necessidade. Lady Kathryn Ra­ven, quero apresentar-lhe minha hospedeira, a srta. Glória Mallory.

Glória viu-se sendo observada com um misto de atenção e sim­patia.

— Então, esta é a srta. Mallory — lady Kathryn murmurou sem esconder a satisfação. — Desculpe aparecermos assim de repente e...

Nesse instante, Miles notou a moça ainda junto à escada.

— Você trouxe Linnet! — exclamou ele correndo para fora. Glória sentiu um aperto no coração ao ver o homem, a quem já amava, estreitar a moça entre os braços. Essa é a razão que o impede de me amar! Uma namorada! E a mãe a trouxe para ele!, pensou amargurada. Se pudesse, sumiria dali.

Mas depois de instruir o cocheiro para levar a carruagem ao estábulo e cuidar dos cavalos antes de ir à cozinha a fim de jantar, Miles virou-se para ela sem o menor sinal de constrangimento.

— Srta. Mallory, também quero apresentá-la a Linnet, minha irmã. O alívio de Glória foi imenso. Ao prestar mais atenção na moça, notou-lhe os olhos azul-claros e os caracóis negros, à borda do capuz, como os de Miles.

— Muito prazer em conhecê-la, Glória. Também quero pedir des­culpa pela chegada inesperada. Sabe, nossa mãe quando põe uma idéia na cabeça, dispensa formalidades, como um convite neste caso.

— São ambas muito bem-vindas — disse Glória, ainda um tanto atordoada com a aparição repentina.

— Ótimo! — exclamou lady Kathryn dirigindo-se, sem hesitação, para a sala. — Estou morta de fome! Quase não comemos o dia inteiro. A hora do almoço, passamos junto a uma colina enquanto o cocheiro tentava tirar a carruagem de um buraco lamacento na estrada. Fiquei morta de medo. Estou velha demais para essas aven­turas.

— A senhora jamais será velha, mamãe! Tem a força da natureza — afirmou Miles enquanto as acomodava à mesa.

Glória notou o afeto entre ambos e sentiu uma ponta de inveja. Como gostaria de contar com a mãe a seu lado para orientá-la.

— Tem ouvido as notícias terríveis da corte, mano? — perguntou Linnet quando já haviam começado a comer.

— Não. Ficamos um pouco isolados aqui no norte. Contudo, quando deixei Londres, a queda da rainha Ana parecia inevitável. Conhecedora do egoísmo do rei, ela deveria se dar conta da culpa de sua arrogância e ambição.

— Jamais gostei dela, mas lamento que ela corra o risco de uma sina pior do que ser posta de lado corno a pobre rainha Catarina de Aragão — confessou lady Kathryn.

— Pior?! — indagou Miles, incrédulo.

— Isso mesmo, mano. Quando passamos por Londres a notícia da prisão de dois cortesões do círculo da rainha corria de boca em boca. Durante um torneio em Greenwich, Henrique VÍII o abandonou com ar ofendido. Dizem que sir Henry Norris apanhou o lenço da rainha do chão e isso deixou o rei furioso.

— Parece que o rei está prestes a acusar Ana Bolena de adultério,— comentou Miles com ar irônico.

— Para uma rainha, isso é traição — disse Linnet.

— Cuja pena é a morte -— concluiu Miles. Glória não conteve uma exclamação.

— O rei seria capaz de mandar matar a mãe da própria filha?!

— Espera-se que não — disse lady Kathryn. — Por outro lado sabe-se que o rei cobiça lady Jane Seymour, uma das damas da rainha. E ele ainda não tem um filho. Nesse caso, a princesa Elizabeth poderá ser declarada bastarda como Mary, a meia irmã, foi.

Chocada, Glória sacudiu a cabeça.

— Como é horrível que essas coisas aconteçam de acordo com a vontade um homem egocêntrico — comentou, mas ao dar-se conta de tê-lo feito diante de cortesões de Henrique Tudor, acrescentou:

— Desculpem. Lamento que o defeito da franqueza não tenha sido corrigido pelo convento.

— Aqui tão longe da corte, não há perigo de ser franca. Nenhum de nós três iria denunciá-la. Mas diante de outras pessoas, especial­mente de nosso vizinho, sir Oliver Lang, será prudente tomar cuidado com as palavras — advertiu Miles.

Enquanto ele explicava, à mãe, a aquisição da abadia de Belford por Lang, Glória não notou a mínima indicação da maneira de Miles pensar sobre as ações do monarca. Sem dúvida, a discrição era um hábito arraigado nos cortesões de Henrique VIII, concluiu ela.

Numa tentativa de desviar o tópico perigoso, Miles virou-se para lady Kathryn e perguntou:

— Por que veio até aqui, mamãe?

Ela sorveu um bom gole de vinho antes de falar dirigindo-se a Glória:

— Ah, é muito embaraçoso explicar em sua frente, minha cara. Nem sei por onde começar. Bem, estava preocupada com meu filho. Mas tudo mostra-se tão aceitável — acrescentou com um gesto em volta.

— O que quer dizer, mamãe? — Miles quis saber.

— Tolice minha — respondeu ela corando. — Quando Linnet e eu recebemos a carta contando que você estava hospedado na casa de uma ex-freira, fiquei muito aflita.

Com dificuldade para continuar calou-se. Todos ficaram à espera e Glória notou a expressão divertida de Linnet.

— O que mamãe que dizer, Miles é que o imaginou vivendo num chalé rústico de pedra, ao lado de uma mulher disposta a exercer sua má influência em você.

— Linnet! Quantas vezes não censurei por falar demais? — lady Kathryn repreendeu a filha e, com ar humilde, acrescentou: — O caso é bem diferente.

— Naturalmente — concordou Miles em tom seco. — Glória deve nos considerar uma família muito indelicada.

— Ah, minha querida, peço-lhe perdão — disse lady Kathryn a Glória. — Sua casa é excelente e você, adorável.

— Obrigada — Glória murmurou.

Sentia-se atordoada, mas não ofendida. Simpatizava com as hós­pedes e estava contente por ter restaurado boa parte da casa em tão pouco tempo. Ainda na véspera, ajudara Mag a caiar paredes.

— A casa não está como antigamente, mas voltará a ser.

— Tenho certeza — disse lady Kathryn. — Glória, você poderia nos hospedar por esta noite? Prometo que não vou abusar de sua bondade.

— Claro. A senhora e Linnet poderão ficar aqui pelo tempo que quiserem. Não vieram para tão longe com o intuito de voltar no dia seguinte. Além do mais, sir Miles há de querer lhes mostrar o an­damento da reforma em Kyloe. Infelizmente, só há um quarto em condições. Espero que não se importem de ficar juntas.

— Não, está ótimo! Meu filho, Glória é encantadora!

Glória desviou a atenção de lady Kathryn para os olhos de Miles. A mãe, certamente, percebia que o relacionamento entre o filho e a hospedeira não era o de inquilino para com a dona da casa. Miles, entretanto, manteve-se calado. Era muito educado para dizer á mãe, em sua frente, que se enganava, concluiu ela.

Pediu licença e, chamando Mag, foi arrumar o quarto para as hóspedes. Esperava que, em sua ausência, Miles explicasse a situação real à mãe.

 

                             CAPÍTULO IX

Quando Glória voltou, encontrou os três ao redor da lareira. Enquanto descia a escada, tinha ouvido a voz de Miles elevar-se exaltada, mas estava longe demais para entender as palavras. Notou-lhe os punhos cerrados, as sobrancelhas franzidas e a tensão.

Lady Kathryn dava a impressão de estar um tanto aborrecida, mas determinada, e a expressão de Linnet só podia ser de desafio e despreocupação. Glória imaginou o que teriam conversado em sua ausência para provocar emoções tão variadas. Miles só poderia ter explicado que haviam interpretado mal a situação.

Nesse instante, notou a pilha de cortes de tecido ao lado do sofá. Deviam ter vindo dentro de um dos malões que Brunt e o cocheiro estavam trazendo da carruagem.

Havia, pelo menos, uns oito cortes de cores e fazendas diferentes. Uma caixa aberta ao lado mostrava peças de renda, botões e outros acabamentos.

— São lindos! — comentou Glória. — Por acaso cruzaram com um comerciante de tecidos no caminho para cá?

— Não. Eu trouxe tudo de Ravenwood. São para você, minha cara. Na carta, meu filho contou que você, recém saída do convento, não tinha quase roupas, a não ser as de sua falecida mãe. Por isso ele me pediu que providenciasse uns cortes de tecido. Linnette muito prazer em ajudá-la a fazer os vestidos. Ela é uma costureira bem habilidosa.

Glória perdeu a fala e Linnet, com os olhos brilhando, declarou entusiasmada:

— Vamos nos distrair bastante, Glória. Estou a par dos últimos modelos da corte e posso desenhá-los para você escolher os de que mais gosta.

Miles mal continha a irritação. Ao escrever para a mãe, avisando-a de sua moradia temporária, devia ter pressentido que ela apareceria ali. Esposa dócil e obediente, lady Kathryn tinha desabrochado com a viuvez. Teria a mãe sido infeliz com o marido um tanto autoritário? Enquanto Thomas Raven era vivo, ela sempre se mostrara acomodada e disposta a cuidar do bem-estar da família. Agora, adorava viajar.

Sabendo como a mãe apreciava se inteirar de detalhes interes­santes, ele havia contado a história de Glória e a situação precária de seu guarda-roupa. Deveria ter se limitado a descrever Mallory Hall para que lady Kathryn não o imaginasse morando num pardieiro com uma ardilosa caçadora de homens. Talvez ela não tivesse vindo tão cedo.

Durante a ausência de Glória, ele só ouvira elogios a ela. Linnet estava encantada com sua beleza enquanto a mãe não se cansava de exaltar-lhe a delicadeza e simpatia.

— Glória é muitíssimo bem educada e qualquer um pode ver que ela sente atração por você, meu filho.

Miles tinha permitido que as duas falassem à vontade, mas esse último comentário de lady Kathryn, feito com ar de satisfação, foi demais.                                                                                                        

— Em sua opinião, estamos quase casados, não é? — resmungou. — Sim, a srta. Mallory é muito bonita, fina e atraente, mas acho bom esquecerem essas idéias. Ela é apenas minha hospedeira.

— Bobagem, Miles! Vi bem como você olha para ela — disse a mãe.

Ele precisava convencê-la.

— Por favor, minha mãe. Ela e eu não combinamos.

Lady Kathryn mostrou-se preocupada.                                                        

— Não existe alguém mais, não é? Ninguém como aquela mimada e egoísta Célia Pettingham? Por favor, diga que não está pensando nela outra vez.                                                                                              

— Não, acalme-se! O ponto é que não estou à altura de Glória Mallory.

— Quem disse isso? Ela? — reagiu lady Kathryn, exasperada.                    

— Não, mamãe, eu mesmo cheguei a essa conclusão. O que sou eu? Um cortesão apreciador da vida fausta dos palácios reais. Glória despreza esse tipo de vida por considerá-la de pura hipocrisia. Ela é uma pessoa sem complicações, simples e natural como as colinas aqui do norte. E incorruptível. Preciso de uma mulher como eu, mamãe, capaz de compreender o que quero e de me proporcionar ligações vantajosas. E, quem sabe, mais riqueza — acrescentou ele quase em tom de desafio.

Lady Kathryn suspirou.

— Miles, seu pai progrediu muito na vida, mas a época em que fomos mais felizes foi quando ele era apenas um comerciante de vinho em Londres, Você não vai convencer sua mãe que é apenas um cortesão ambicioso. Estou mais inclinada a acreditar no que disse primeiro, meu filho. Então acha mesmo que não está à altura de Glória? Muito bem. Um homem deve sempre se julgar assim em relação à mulher amada.

Linnet sorriu em sinal de aprovação.

Miles não pôde discutir mais, pois ouviu os passos de Glória na escada. Lady Kathryn e Linnet, alegando o cansaço da viagem, re­tiraram-se logo. Glória foi lhes mostrar o quarto deixando-o, na sala, a sós com os pensamentos.

Miles continuava sentado no sofá, entregue às reflexões, quando Glória voltou com a capa sobre os ombros.

— Aonde vai a essa hora? — indagou ele em tom áspero.

— Ao estábulo dar leite ao carneirinho. Ned já cuidou dele boa parte do dia e eu me ofereci para fazer isso à noite. Também quero me divertir um pouco — acrescentou em voz alegre e sem se importai com a rispidez de Miles.

O que lady Kathryn teria dito ao filho para piorar-lhe o mau humor dos últimos dias?, conjeturou. Surpreendeu-se ao ver Miles acompanhá-la até a cozinha, onde se manteve em silêncio enquanto ela amornava o leite e o colocava na garrafa. A surpresa aumentou quando ele a seguiu ao estábulo, mas sempre calado.

Além do círculo de luz da vela na mão de Glória, a escuridão era absoluta e o silêncio só era quebrado pelo garanhão de Miles que, tendo sentido o cheiro do dono, batia com as patas no chão.

Depois de receber um agrado atrás da orelha, Cloud voltou a comer um resto de feno na manjedoura. Glória também foi ver Sultana que espichou a cabeça por cima da grade a fim de ser acariciada. Um laço de afetividade já se formava entre a égua e a dona.

Sentindo o cheiro de leite, Rabicho aproximou-se balindo da en­trada da baia.

— Mas que fome! — brincou Glória quando o carneirinho pôs-se a chupar o bico com avidez.

A luz da vela mostrou Ned dormindo encolhidinho num canto. Miles afastou-se e voltou com um cobertor de sela para cobri-lo, pois durante a noite, sempre fazia frio.

Glória supunha que Miles tinha vindo ao estábulo a fim de lhe contar alguma coisa, talvez as razões para se perturbar com a mãe e a irmã durante sua ausência. O cuidado em não tocá-la e de se manter afastado mostrava que ele não tinha a intenção de usar a escuridão para um gesto amoroso. Finalmente, ela quebrou o silêncio.

— Sua mãe e sua irmã são muito simpáticas, Miles. Ficou surpreso ao vê-las?

— Muito — foi a resposta lacônica. Glória fez nova tentativa.

— Linnet é linda! Em pouco tempo, estará destruindo corações.

— Já começou, a danadinha. Pretendentes apaixonados não saem de Ravenwood quando ela está lá. Quase todos são rapazes do campo e amigos de infância de minha irmã. Logo, ela irá para corte onde será uma das damas da rainha. Assim poderá fazer um bom casa­mento.

Glória notou o tom carinhoso de Miles, mas temendo ser indis­creta, mudou de assunto.

— Fiquei atônita com o presente dos tecidos. Foi muito generoso.

— Uma ninharia, Glória — resmungou ele. — As duas têm um depósito cheio de cortes como aqueles para satisfazer-lhes qualquer capricho. Como você sabe, minha família é rica. Aproveite o presente sem peso de consciência.

Glória quase respondeu que sua consciência estava tranqüila, mas a dele, aparentemente, não. Porém, não quis provocá-lo e disse ape­nas:

— É o que farei. Será um prazer planejar modelos de roupas com o auxílio do conhecimento de Linnet sobre moda.

O leite terminou e Glória deu um último tapinha no cordeiro. Em seguida, apontou para a porta indicando que deveriam voltar para casa.

A lua havia surgido enquanto se encontravam no estábulo e inun­dava o pátio com uma luz de prata-azulada. Luar era a única coisa de que Miles não precisava em sua luta contra os impulsos.

— Espero que, depois de me conhecer, sua mãe tenha se acalmado quanto à segurança do nome Raven.

— Ah, ela está bem tranqüila e mais ficaria caso visse isto. Instigado pelo brilho do luar nos olhos azuis de Glória e por sua voz suave, Miles perdeu o controle e a tomou nos braços de maneira brusca. Afoito e irritado ao mesmo tempo, beijou-a antes que ela tivesse tempo de indagar-lhe a intenção. Um momento depois, a surpresa cedeu lugar à excitação e ela enlaçou-o pelo pescoço, re­tribuindo a carícia. Nem se lembrava mais de que, dias antes, tinham resolvido manter o relacionamento na base de negócios.

E então, tão de repente com a tinha abraçado, ele a soltou. Fitou seu rosto como se tentasse encontrar a maneira de culpá-la pelo próprio comportamento. Praguejando baixinho, dirigiu-se para casa sem verificar se ela o seguia, ou não.

Acima dele, a janela do quarto de hóspedes fechou-se sem fazer ruído.

Lady Kathryn e Linnet não se mostraram aborrecidas quando, no dia seguinte, se levantaram e souberam que Miles já tinha saído. Provavelmente, ele as tinha avisado que o trabalho na casa de Kyloe exigia sua presença lá bem cedo, concluiu Glória. Por seu lado, imaginava se ele havia se arrependido do beijo ao luar.

Como a resposta a sua indagação só pudesse ser dada por Miles, resolveu não-pensar nela e dedicar-se às hóspedes, pondo-as à vontade e tentando conhecê-las melhor.

Lady Kathryn era uma mulher ativa, incapaz de ficar sentada esperando que lhe dessem atenção. Não muito depois do café da manhã, ela já estava na cozinha, com as mangas arregaçadas, ensinando Mag a preparar coelho ao molho de creme e pimenta, um dos pratos preferidos de Miles.

Linnet acompanhou Glória ao estábulo e encantou-se com Rabi­cho. Insistiu em alimentá-lo. Também gostou muito de Sultana e parou, junto à baia, para acariciá-la.

— Você disse que Miles a comprou para você? Ai, Glória, como deve ter ficado contente!

— O preço pago foi apenas um empréstimo. Vou devolvê-lo a seu irmão tão logo eu possa. Eu precisava muito de uma montaria.

Linnet não pareceu muito convencida. Glória quis insistir, mas percebeu que não adiantaria. Iria dar a impressão de. falsa modéstia.

Após a ida ao estábulo, Linnet mostrou-se ansiosa em cortar o primeiro vestido para Glória. Primeiro, tirou as medidas e, depois, estendeu o tecido na mesa, uma lãzinha azul acinzentada. Na opinião de Glória, era lindo além de prático.

— Sugiro um decote quadrado, baixo e com enchimento de linho pregueado. As mangas serão abertas do lado e amarradas no punho com um cordão dourado. A saia também terá uma abertura para mostrar a anágua — explicou Linnet desenhando ao mesmo tempo.

Glória sentiu-se meio atordoada com o modelo. O decote exage­rado parecia-lhe indecente, mas a irmã de Miles garantiu que era o usado na corte até por matronas.

— Para completar a toalete, você poderá usar meu capuz francês, com pérolas nas bordas. Vai ficar tão elegante, você vai ver!

Glória não sabia do que adiantaria tal sofisticação ali entre as colinas do norte e pessoas simples como os Brunt. Mas não quis desapontar Linnet.

A bem da verdade, estava se divertindo também. Todos aqueles anos do monótono hábito preto pareciam há séculos de distância. A lã fina e macia a fascinava.

As horas foram passando. Pararam para almoçar e retomaram o trabalho. Quando Glória deu por si, a tarde já ia avançada. Deixando Linnet costurando a blusa do vestido e lady Kathryn começando a bordar uma anágua, ela foi ajudar Mag a preparar o jantar.

Miles voltou ao anoitecer. Embora não a procurasse para falar em particular, ele não se mostrou aborrecido ao vê-la, Glória achou. Percebia que ele a fitava quando não o observava e, nas poucas vezes em que o olhar de ambos se cruzou, Miles não conseguiu desviar o dele. Estava menos zangado e, apesar de não entender as razões da mudança, Glória decidiu aceitá-lo quando e se ele a pro­curasse.

Miles falava sobre os trabalhos em Kyloe, como a casa ficaria depois de pronta e o que Angus MacDougall planejava terminar até o final da semana, porém lady Kathryn o interrompeu.

— Quando pretende nos mostrar esse lugar maravilhoso, meu filho?

— Isso mesmo, mano, quando? — ecoou Linnet. — Que tal amanhã? Pelo jeito, vai fazer bom tempo.

Miles sorriu do alvoroço da irmã.

— Acho que não seria má idéia ir a Kyloe amanhã. A distância é curta. Não levaremos mais de uma hora. Mamãe e Linnet vão de carruagem, Glória e eu, a cavalo.

— Que tal levar um lanche e fazer um piquenique? — sugeriu Linnet.

Vendo o aceno afirmativo de Miles, Glória concordou:

— Será muitíssimo agradável. Vou já falar com Mag sobre o lanche.

— Glória! Deixe eu entrar! Tenho uma coisa para você — disse uma voz vinda do corredor.

Glória, sonolenta ainda, mal acabava a toalete matinal. Foi abrir a porta e deparou-se com Linnet, já pronta para o passeio a Kyloe, e com algo pendurado no braço.

— Trouxe um costume de cavalgar para você. Não quer usá-lo hoje? — ofereceu a irmã de Miles.

— Entre, Linnet — convidou Glória. — É muita amabilidade sua, mas eu tenho um costume para cavalgar.

— Lindo como este? — perguntou a outra ao estendê-lo na cama e, em seguida, abrir a janela.

O costume era de veludo roxo violeta e lembrou Glória das flores silvestres nas escarpas das colinas durante a primavera. O casaquinho justo tinha botões dourados e uma gola alta em estilo Mediei. As mangas eram bufantes junto ao ombro e afunilavam-se até ficarem justas do cotovelo ao punho.

Numa demonstração de puro prazer feminino, Glória suspirou.

— Ai, é lindíssimo! Mas por que você não o usa?

— Não vou cavalgar hoje e ele está um pouquinho largo no busto. Para você, ficará perfeito. Além do mais, este meu vestido cor de vinho combina mais com minha pele do que o roxo. Vamos, experimente.

Embora não entendesse a insistência de Linnet em vê-la vestida com elegância, Glória não resistiu.

O costume serviu-lhe maravilhosamente bem e, o efeito, ela pôde ler no olhar de admiração de Linnet. Apesar de saber que a vaidade era pecado, foi olhar-se no espelho.

Como se tivesse sido feito para ela, o casaquinho justo ressalta­va-lhe as curvas e o roxo escurecia o azul de seus olhos.

— Ai, Linnet, muito obrigada — murmurou comovida.

— Ah, espere! Esqueci o principal! Já volto!

Linnet desapareceu porta afora e retornou, logo depois, com as mãos para trás. Com um gesto floreado, mostrou o que escondia.              

Tratava-se de um chapeuzinho de aba levantada, do mesmo tom violeta do costume, enfeitado com ametistas e uma pluma de avestruz.            

— Ele é colocado de lado — explicou Linnet ajeitando-o na cabeça de Glória no ângulo correto.                                                          

Glória viu no espelho a imagem de uma dama elegante o suficiente para freqüentar qualquer corte.                                                                

— Não estou muito exagerada? Afinal, só vamos fazer um passeio e um piquenique.                                                                                    

— Você vai vestida assim — ordenou Linnet como se não fosse dois anos mais nova do que Glória. — Você gostou do costume e vai me dar muito prazer se for com ele.

Glória não seria muito feminina se não apreciasse sua imagem linda no espelho. E, no fundo do coração, queria que Miles a visse com o costume.

— Você é muito boa — disse finalmente ao abraçar Linnet. Pouco depois, descia a escada.

A expressão de sir Miles Raven foi a prova de que ela precisava para se convencer de estar certa ao aceitar a oferta de Linnet.  

 

                             CAPÍTULO X

A elegância de Miles não ficava atrás. Ele usava um gibão e calção azuis, ambos com cortes laterais para mostrar o forro de seda escarlate. O chapéu era do mesmo estilo do emprestado por Linnet e as botas, de pelica espanhola, tinham punhos virados para baixo. Meias brancas e compridas mo­delavam as pernas musculosas. A espada pendia do cinto colocado um pouco abaixo da cintura. O efeito todo era de virilidade marcante e Glória sentiu o coração disparar. Sem perceber, ela hesitou uma fração de segundo ao vê-lo, mas o suficiente para chamar a atenção de lady Kathryn.

Miles não permitiu que o olhar de admiração se transformasse em palavras, porém sua expressão bastava para Glória.

A Nortúmbria estava num de seus melhores dias de primavera, com um céu azul quase sem nuvens. Lady Kathryn e Linnet comen­tavam a beleza do panorama quando um cavaleiro, vindo de noroeste, fez o grupo parar.

— Maldição! O único ser humano a nos encontrar haveria de ser Lang — resmungou Miles em voz baixa para não ser ouvido pela mãe e a irmã. — Vamos ver que desculpa ele vai dar para estar tão longe de Belford. Aposto como foi espionar Kyloe.

Glória não disse nada, limitando-se a observar a aproximação do outro, a meio-galope, e com a mão levantada num gesto de saudação.

— Bom dia, sir Oliver! — cumprimentou-o quando ele os alcan­çou. — Está vindo de Kyloe? Nós estamos indo para lá. Diga uma coisa. A reforma está indo tão bem como sir Miles alega?

As perguntas francas deram a impressão de ingenuidade, porém Glória foi recompensada com a expressão de culpa no olhar de Lang.

— Ora, nada disso. Como amanheceu um dia lindo, resolvi ca­valgar pela charneca e ver se conseguia caçar algum galo silvestre — explicou ele apontando para o arco e as flexas presos à sela. — Bom dia, sir Miles. Quem são as senhoras lindas na carruagem? Cada vez que o encontro aqui no norte, vejo-o rodeado pela beleza!

Glória teve de fazer esforço para não rir.                                                  

— Mamãe, Linnet, apresento-lhes sir Oliver Lang, vindo da corte, e o recente proprietário da abadia de Belford. Sir Oliver, lady Kathryn Raven, minha mãe, e Linnet, minha irmã.                                                    

Lang relanceou o olhar pelos músculos tensos do rosto de Miles.

— Lady Kathryn, srta. Linnet, estou encantado em conhecê-las! Eu tinha ouvido falar na beleza de sua irmã, Miles, mas devo confessar...            

— Tolice! Linnet ainda é uma criança — resmungou Miles interrompendo-o.                                                                                                  

Teria dito algo mais, e nada muito cortês, percebeu Glória, se lady Kathryn não falasse nesse instante.                                                        

— Sir Oliver, que prazer conhecê-lo! Miles nos falou tanto a seu respeito.                                                                                                        

Glória ficou curiosa sobre a palidez súbita de sir Oliver, provocada pelas últimas palavras de lady Kathryn. Porém sua expressão não revelava se estava a par da antipatia do filho pelo outro homem.

Sem corar, ou mostrar-se constrangida, Linnet inclinou a cabeça e sorriu aceitando o elogio de sir Oliver. Glória maravilhou-se com a naturalidade da mocinha, mas lembrou-se de que ela havia sido exposta às maneiras sofisticadas da aristocracia. Por seu lado, tinha vivido isolada no convento, estudando manuscritos antigos em companhia de mulheres.

— Bem, não queremos atrapalhar sua caçada — declarou Miles incisivamente.                                                                                              

— Ah, eu gostaria muito de ir junto e conhecer sua casa de campo. Aliás, Raven, eu estaria lhes fazendo um favor no papel de acompanhante extra. Nunca se sabe quando os belicosos escoceses vão transpor a fronteira novamente.

Lang não se importou com o olhar feroz de Miles. Nem Linnet.

— Claro, sir Oliver, o senhor deve ir conosco. Estamos levando um lanche suficiente para dez pessoas — informou ela com outro sorriso cativante.

— As damas ordenam e eu obedeço — disse Lang dirigindo um olhar satisfeito para Miles. — Mas esperem um pouco. Vou amarrar minha montaria atrás da carruagem e me sentar ao lado das senhoras.

Enquanto ele fazia isso, Glória notou a irritação mal contida de Miles.

— Não se preocupe — murmurou para não ser ouvida pelos outros. — Sua irmã me deu a impressão de saber julgar bem o caráter das pessoas.

— Ah, isso me tranqüiliza muito, irmã Ancilla — ironizou ele, mas ao ver-lhe a expressão magoada, suavizou a voz. — Desculpe, Glória. Fui muito indelicado. Mas gosto bastante de minha irmã e não queria que ela conhecesse esse patife. O único consolo é estar junto e poder vigiá-lo.

Durante parte do resto do percurso, Glória ouviu lady Kathryn responder a indagação de Lang sobre os motivos de sua viagem ao norte. Estava com saudades do filho e desejava conhecer sua nova propriedade. Ficara muito aliviada em encontrá-lo tão bem instalado em Mallory Hall.

— Ele tem uma ótima hospedeira, não concorda?

— Sem dúvida. A srta. Mallory nos recebeu muito bem e insiste para que fiquemos o quanto quisermos.

— Excelente! Serei um freqüentador assíduo de Mallory Hall. Também gostaria de recebê-los para jantar em Belford. Minha casa fica bem perto.

— Será um prazer — respondeu lady Kathryn sem perceber o desagrado do filho.

Começaram a subir a estrada sinuosa que levava às colinas de Kyloe. De repente, surgiu o priorado, ou o que restava dele.

Glória observou a diferença operada pelos pedreiros. Uma das alas tinha sido demolida e pilhas de pedra acumulavam-se no pátio do claustro. Um homem, empurrando um carrinho, levantou o olhar e viu os visitantes a quem cumprimentou.

— Bom dia, Wat. Seu cunhado está por aí? Trouxe umas pessoas para conhecer seu trabalho — explicou Miles.

— Angus está na capela. Vai ficar contente em vê-lo, senhor. Ele tem bastante para mostrar.

A capela tinha perdido o aspecto da casa de oração onde as bene­ditinas entoavam seus cânticos de louvor. A galeria do coro fora re­movida, bem como os vitrais que retratavam a Anunciação, A Fuga do Egito e a tristeza da Mãe de Deus diante do Cristo crucificado.

Ao entrar, Glória manteve-se imóvel por uns instantes, observando as mudanças. Lá estava a parte mais elevada onde, antes, ficava o altar. Fora ali que acompanhara os últimos momentos de madre Benigna. Fazia apenas poucas semanas?, indagou-se. Olhou para Miles e viu que ele a fitava. Também devia estar rememorando a cena triste.

Diante de uma das janelas, um homem estudava um rolo de papel aberto sobre uma mesa. A aproximação deles, levantou o olhar.

— Ah, sir Miles! Eu estava esperando que aparecesse hoje. E trouxe visitas. Sejam bem-vindos!

Miles apresentou a mãe, a irmã, Glória e, depois de uma ponta de hesitação, Lang. Este, Angus ignorou, distraído em cumprimentar as mulheres.

— Então a senhorita é uma das irmãs que moravam aqui? Uma pena não poder continuar servindo a Deus neste lugar. Diga uma coisa, é triste vê-lo assim? — indagou de Glória com um gesto ao redor.

— Lamento ver tanto entulho onde, antes, reinava ordem. Mas sir Miles elogiou muito seu talento. Estou certa de que o senhor deixará lindo o que hoje parece uma ruína.

As palavras honestas de Glória agradaram o pedreiro. Satisfeito, MacDougall virou-se para o patrão:

—- Sir Miles, o senhor não gostaria de ver isto? É o desenho de meu sobrinho para o estuque do salão. Não é lindo? — perguntou mostrando o rolo de papel para que todos pudessem vê-lo.

Desenhado a carvão, estava o emblema da família, um corvo de olhar penetrante, com o ramo de alguma planta no bico. Com as asas abertas e os pés estendidos, a ave dava a impressão de estar prestes a aterrissar. Flores e hera decoravam as bordas e, embaixo, lia-se o lema: “Preservo o que é meu".

— Seu sobrinho pode esculpir isso no estuque? — indagou Miles. A resposta afirmativa do escocês provocou uma exclamação de Linnet:

— Maravilhoso! O pássaro parece tão real! Só falta grasnar, não acha, mamãe?

Lady Kathryn concordou enquanto Glória imaginava o desenho na antiga capela que seria transformada no grande salão de sir Miles Raven. Seria a decoração perfeita para a casa de um cavalheiro.

— Pretendo pôr a mesa de banquete onde era o altar. Normal­mente, poderei jantar no salão do segundo andar aonde é fácil chegar por aquela escada ali — explicou Miles apontando.

— Ela era usada, durante a noite, quando descíamos para entoar Laudes e as outras horas canônicas — contou Glória.

— Só ao pensar em levantar a noite inteira desse jeito, fico com sono — disse Linnet.

-— Para mim, foi a parte mais difícil da vida no convento. Mas a irmã encarregada das noviças tinha uma vara comprida que usava para nos manter acordadas. Logo, aprendi a não cochilar durante os serviços noturnos — admitiu Glória.

— Vamos lá para cima — convidou Miles conduzindo o grupo pela escada de pedra. — Como a srta. Mallory pode confirmar, aqui era o escritório da prioresa e será o salão. Depois, vem um pequeno vestíbulo dando para meu quarto.

— E onde serão os outros, meu filho? — lady Kathryn quis saber.

— Ficarão nas duas alas onde eram os dormitórios das irmãs. Vai ser construída uma outra escada no fim do corredor.

-— Dessa forma, sua privacidade será bem grande — comentou sir Oliver com um sorriso malicioso, porém Miles continuou a ignorá-lo.

Glória sentiu um arrepio imaginando-se ao lado de Miles, no aconchego do aposento luxuoso, isolados do resto da casa, numa intimidade deliciosa. Tola! Ela jamais conheceria o quarto de sir Miles Raven na casa de Kyloe. De nada adiantava torturar-se so­nhando com uma noite de inverno, o fogo da lareira irradiando calor e luz nos amantes na cama...

— E a cozinha, Miles, onde vai ser? — perguntou-lhe a mãe.

— Atrás do lugar da mesa de banquete, com uma passagem ele­vada para o aposento.

— Idéia muito inteligente — aprovou lady Kathryn. — Detesto como a comida esfria vinda de cozinhas distantes.

— Muito bem. Por que não vão procurar um lugar onde possamos saborear nosso lanche? Enquanto isso, trato de alguns assuntos com MacDougall — sugeriu Miles apontando para o escocês que o aguar­dava em atitude respeitosa.

Sob seu olhar observador, Lang acompanhou as mulheres pela escada e só quando os viu desaparecer de vista, Miles dirigiu-se ao pedreiro:

— Algum problema, MacDougall?

— Não, sir Miles. Tudo está caminhando muito bem. O tempo anda firme e os rapazes podem trabalhar bastante. Eu só queria per­guntar se o senhor sabe que o outro cavalheiro vive cavalgando pelas colinas, espionando a gente aqui?

— Lang, você quer dizer? Eu já desconfiava. Nós o encontramos vindo daqui, porém ele não admitiu quando foi questionado.

— Não confio no homem. Ele tem algo de matreiro.

— Ele e eu somos inimigos na corte — disse Miles e explicou como a mãe e a irmã, ignorando a inimizade entre ambos, o tinham convidado para acompanhá-los no passeio. — Caso o veja por aqui outra vez, me avise.

— Sim, senhor.

— Mais alguma coisa, Angus?

— Não, quer dizer... Bem, fiquei impressionado com a beleza da srta. Mallory e, se o senhor não se importar, gostaria de saber se ela é a sua prometida e a futura senhora da casa de Kyloe.

— Não — negou Miles com uma ponta de desconfiança, pois o escocês jamais tocava em assuntos particulares. — Mas você tem um bom olho. Na verdade, a srta. Mallory é linda.

Virou-se e desceu a escada depressa, consciente de que Angus o seguia com olhar curioso. Lamentava ter concordado com o passeio. Devia ter trazido apenas a mãe e a irmã, mas isso seria muito in-delicado com Glória. Com ela a seu lado ali, fascinante no costume violeta, não podia deixar de imaginá-la como a senhora da casa que estava construindo. E agora, tinha de se juntar ao grupo e tolerar a companhia daquele sem-vergonha. Precisava arranjar um jeito de ignorar os olhares de cobiça lançados pelo homem, alternadamente, para Glória e Linnet.

Tinha a impressão de que ele olhava para a irmã a fim de pro­vocá-lo. Lang sempre dera preferência a mulheres mais velhas, sem se importar com as jovenzinhas. Quanto a Glória, Miles sentia-se enraivecido, ainda mais por não poder levantar objeções caso o sujeito fizesse uma proposta honrada a ela.

Eles haviam colocado o lanche sobre uma toalha estendida no gramado atrás do convento.

— Venha se sentar, mano, estamos esperando por você - convidou Linnet apontando para o lugar entre ela e Glória.

Estaria a irmã tentando uma aproximação deles?, desconfiou Miles. Mas então, viu Lang do outro lado de Glória e não pensou mais nos possíveis motivos de Linnet.

— Mag pensou em tudo — comentou Glória ao servi-lo de uma coxa de frango assado e de uma grossa fatia de pão de trigo integral.

Havia também queijo, torta de carne, salada de cebola, alho-poró e dente-de-leão e bolinhos confeitados.

A comida estava deliciosa e, durante alguns minutos, a única conversa resumiu-se em elogiá-la. Então, notando o ar pensativo do filho, lady Kathryn dirigiu-se a ele:

— Esqueci de contar quando chegamos, Miles, que seu encar­regado de negócios mandou relatórios muito bons sobre a companhia de despachos. O Raven's Pride trouxe uma excelente carga de Bordeaux. Não entendo como você consegue fazer transações tão boas com os franceses.

— Intermediários competentes — resmungou Miles. Lady Kathryn tentou um outro tópico:

— Você já teve tempo para pensar na criação de cavalos? Sei que o rei está interessado num potro filho de Cloud.

Miles preferia que a mãe não falasse sobre seus negócios diante de Lang, mas não tinha como fazer-lhe um sinal sem que o outro percebesse.

— Tenho andado muito ocupado com a reforma aqui e ainda não encontrei as éguas adequadas para cruzar com Cloud. A de Glória foi um achado muito bom, mas uma palafrém como Sultana é muito pequena. O estábulo daqui vai servir no início, ou até eu poder construir um maior.

A mãe contentou-se com as respostas e virou-se para sir Oliver:

— Imagino, senhor, que tenha ouvido falar dos acontecimentos vergonhosos ocorridos na corte.

Lang mostrou-se visivelmente constrangido, notou Miles.

— Já faz algum tempo que deixei a corte, my lady, porém a situação, entre o rei e a rainha, já estava um tanto indefinida quando parti para cá.

— Pois se definiu bem depressa — afirmou lady Kathryn para, em seguida, repetir o que havia contado a Miles e Glória. — Ora, sir Oliver, sua aparência não está muito boa. Poderia ser o vinho? Não o vi exagerar da bebida.

Miles não tinha contado, à mãe, a descoberta de Ana Bolena nos braços de Lang. Agora, divertia-se intimamente ao ver o rosto do patife passar do lívido para o esverdeado.

— E quanto à rainha? — indagou Oliver.

— Levando-se em consideração o que Henrique VIII fez a Ca­tarina de Aragão, Ana Bolena não sairá ilesa, calcula-se. Lamentável que ela tenha abortado o filho no inverno.

— Que Deus proteja a rainha — balbuciou Lang com um olhar nervoso para Miles.

— Tudo isso é horrível! Vamos deixar de lado os irresponsáveis da corte, pois estão tão longe! — protestou Linnet. — Miles, onde você vai fazer um labirinto de arbustos?

—- Seria muito estranho se eu não fizesse um?

— Claro! Onde já se viu uma casa moderna sem um labirinto com seus caminhos ladeados por cercas vivas? Sugiro aqui atrás. E ponha um banco na alameda central onde você e sua amada possam se sentar numa noite de luar.

Com ar inocente, Linnet desviou o olhar para Glória, mas voltou a fitar o irmão.

— E quanto ao jardim, sita. Mallory, qual é sua opinião? O que devo plantar nele? — Miles perguntou de repente, fitando-a.

— Apenas rosas Tudor — respondeu ela retribuindo-lhe o olhar como se estivessem sozinhos.

— Talvez umas duas mudas de rosa branca não ficassem mal — disse ele para, em seguida, acrescentar como se falasse consigo mes­mo: — Quem sabe eu não construa um lago no centro e ponha um cisne branco nele?

Lang, sentado ao lado, achou interessante escrever, a uma certa pessoa na corte, contando o que se passava ali no norte.

 

                                 CAPÍTULO XI

Nessa noite, Glória deixou a mesa do jantar enquanto os outros ainda saboreavam um último copo de vinho. Queria agradecer a Mag o ótimo lanche do piquenique e amornar leite para Rabicho. Não gostava de sobrecarregar Ned com mais essa incumbência, pois o menino já desempenhava muitas ta­refas determinadas pelo pai.

Na cozinha, só encontrou Ned, Jack e Harry. Ned contou que o pai tinha chamado a mãe para conversar. Talvez já tivessem subido e Brunt tentasse convencer a mulher a descansar, pensou Glória, embora achasse a hipótese pouco provável. Agradeceria a Mag no dia seguinte.

No estábulo, Glória já estava na baia dando leite para o carneirinho quando ouviu um ruído abafado vindo de uma outra. Era como se um animal batesse, sem parar, com a anca na divisória. Uma série de resmungos, misturados a gemidos queixosos, mostrou-lhe que os causadores do barulho eram pessoas. Sentiu o rosto arder ao dar-se conta da presença de Brunt e Mag e do que faziam. Pensou em escapar depressa dali, mas como Rabicho não tivesse terminado de mamar, faria um estardalhaço caso ela lhe tirasse o leite. Isso revelaria sua presença no estábulo. Glória resolveu ficar bem quieta e esperar que o casal fosse embora.

Por alguns momentos, fez-se silêncio e, depois, Glória ouviu Brunt falar:

— Agora, vá arrumar meu jantar, mulher. E trate de me servir uma comida melhor do que aquela porcaria do almoço. Para os nobres, você preparou frango e bolinhos!

O fato de satisfazer a luxúria não tinha melhorado a disposição irascível do homem. Horrorizada, Glória o ouviu   prosseguir numa voz mais raivosa ainda:                                                                                

— Você só me deu pão velho e queijo! Vou ensinar você a tratar melhor seu senhor, mulher! Tenho de me contentar com comida de camponês quando eles se fartam com tortas e saladas!        

O som de um tapa ecoou pelo estábulo acompanhado pelo soluço e mulher.                                                                                                  

— Mas George, foi o que você sempre comeu! D. Glória é quem compra a comida e nós somos seus empregados.                

— Não era assim até aquele rei maldito soltar os parasitas dos conventos!                                                                                                  

— A culpa não é de d. Glória, George! Ela ocupa esse lugar por direito e nos trata com bondade. Temos mais para comer agora e ela podia ter nos mandado embora, você sabe muito bem.                    

— Só sei que você não costumava me responder quando eu era senhor de Mallory Hall!                                                                            

Mais tapas, numa sucessão rápida, se fizeram ouvir seguidos por gemidos de dor.

Glória esqueceu-se da resolução de manter-se escondida e saiu da baia com a intenção de impedir Brunt de judiar mais de Mag.                  

— Pare já! Neste instante, ou eu o ponho para fora de Mallory mas sozinho, Brunt! Sua mulher não merece esse tratamento, ainda mais no estado em que se encontra! Estado, aliás, do qual você é responsável!

Brunt fora apanhado, literalmente, com o calção abaixado, por­tanto, em posição de desvantagem para enfrentar esse justiceiro anjo loiro. Ele não sabia se a patroa já estava no estábulo durante a relação sexual com Mag e isso retardou-lhe mais a reação. Porém raivoso, ressentiu-se da interferência.

— Tenho o direito de fazer o que entender com minha mulher. Não é de sua conta, d. Glória, além de não ficar bem a senhora andar espionando a gente num momento de privacidade!

Com as palavras, saiu o odor forte de álcool.

— Vim aqui alimentar o carneirinho! — esbravejou Glória. — Não tinha a mínima intenção de ouvi-lo gozar seu prazer, no estábulo, como um animal selvagem! Duvido que Mag, nessa gravidez adiantada, tenha apreciado. Se voltar a bater nela, eu o despeço. Mag e as crianças poderão ficar aqui se quiserem.

— Por misericórdia, senhora, não faça isso. Brunt só bebeu um pouco demais e eu já estou acostumada.

Glória não se convenceu, porém sua defesa poderia piorar a si­tuação quando não estivesse por perto para impedir a brutalidade de Brunt.

— Está bem, Mag. Brunt, considere-se avisado. Tenha mais cui­dado com sua mulher. E seu filho que ela carrega na barriga.

Carrancudo, o administrador a fitou. Custou um pouco, mas aca­bou dizendo:

— Sim senhora, d. Glória.

Enquanto a patroa se afastava, ele pensou nas muitas vezes em que já tinha cobiçado possuí-la como acabava de fazer com Mag.

Trêmula, da cabeça aos pés. Glória entrou em casa. Miles estava certo a respeito de Brunt e ela arrependia-se por tê-lo mantido ali como empregado. Mas se houvesse agido de outra forma, Mag e as crianças ainda poderiam estar vagando pelas estradas, passando fome. Para impedir isso, ela tivera de conservar Brunt em Mallory Hall.

Estariam os nobres em melhor situação? A própria rainha corria perigo, caso as notícias da corte fossem verdadeiras. As mulheres da nobreza não eram mais imunes à violência caprichosa de seus senhores do que as do povo.

Jamais serei escrava de homem algum, jurou Glória. Aprenderei a ser auto-suficiente e a dirigir Mallory Hall tão bem como qualquer homem!

Na manhã seguinte, Glória tomava o café sozinha, pois os hós­pedes ainda dormiam, quando Mag parou junto à mesa e disse:

— Estou muito grata à senhora, dona Glória, pelo que fez ontem à noite. Foi muito corajoso de sua parte.

— Bobagem, Mag. Eu não poderia deixar seu marido espancá-la e não vou permitir que a maltrate!

— Obrigada, d. Glória. Rezo pela senhora todas as noites — disse a empregada com os olhos baixos.

Glória sentiu-se comovida e um tanto envergonhada. Agora que não tinha o sino do convento anunciando o horário das preces, suas orações eram feitas às pressas e só de manhã. Ao deitar-se à noite, estava sempre preocupada com assuntos deste mundo, como dirigir Mallory Hall, ou o homem que dormia no quarto ao lado.

Uma semana depois, ocorreu a tosquia. Os arrendatários mostra­vam-se animadíssimos, pois lembravam-se da festa oferecida por sir William após o término do trabalho executado em conjunto. Durante os anos de Brunt, cada um cuidava de seu próprio rebanho e não havia comemoração alguma quando essa tarefa de primavera acabava.

Glória tinha boas recordações de festas da tosquia, de pastelões de carne, bolos e tortas preparados pelas mulheres dos fazendeiros e destes cantando, alegres, depois de umas canecas de cerveja. Era mais fácil fazer a tosquia com o maior número possível de pessoas e Glória estava determinada que o evento fosse tão prazeroso quanto os de anos atrás.

Na fazenda sede, havia um cercado grande aonde os arrendatários tinham levado seus rebanhos bem cedo de manhã. Cada animal tinha um sinal colorido na anca para mostrar a quem pertencia. Azul era da fazenda sede, amarelo de Tom Small, vermelho de Will Rowe e assim por diante. Quando Glória chegou no meio da manhã, o cercado vibrava com a cacofonia de carneiros balindo em protesto ao processo atormentador.

Numa das pontas do cercado havia um rancho longo, com pas­sagem para fora, onde os tosquiadores podiam trabalhar na sombra. Eram muito hábeis e conseguiam cortar toda a lã apesar da luta do animal para escapar. Outros esperavam o carneiro já tosquiado para besuntá-lo com breu a fim de afastar moscas de qualquer esfoladura na pele.

As mulheres dos fazendeiros ocupavam-se em servir-lhes água entre um carneiro e outro. Havia sempre umas duas tosquiando tam­bém.

— Como está indo tudo, Jock? — perguntou Glória ao desmontar e amarrar Sultana na grade do cercado.

— Muito bem, senhora. Todos estão trabalhando com afinco e boa vontade. Sabem que, quando tudo terminar, poderão se divertir à vontade.

— E o nosso rebanho? Vamos conseguir lã suficiente para ter um bom lucro em Ross?

Jock cocou o queixo antes de responder.

— Não tão bom quanto o de anos atrás. O rebanho diminuiu bem de tamanho — explicou com um olhar significativo na direção de George Brunt que saboreava uma caneca de cerveja enquanto "supervisionava" os tosquiadores. — Mas haveremos de manter o lobo afastado. E vamos precisar ficar com mais machos das crias deste ano. Os dois que temos não darão conta de cobrir as quase cem ovelhas do rebanho.

Glória corou com a simplicidade de Jock explicar o cruzamento de carneiros e ovelhas. Mas o empregado já voltava ao trabalho.

Percorrendo o olhar pelos tosquiadores, Glória descobriu sir Miles Raven trabalhando como qualquer um deles. Ele usava um calção velho e uma camisa branca aberta no colarinho. Por causa do esforço físico, tinha o rosto corado e brilhante. No momento, ele ria de algo dito pelo homem ao lado. Miles ainda não a tinha visto.

A imagem desse cortesão de Henrique VIII, vestido como um camponês, executando um trabalho manual e sujo, a enterneceu. Ela estava ocupada na cozinha, ajudando a preparar pratos para a festa, quando Miles saíra. Surpreendeu-se ao encontrá-lo ali, pois tinha imaginado que ele havia ido, como todos os dias, a Kyloe. Como­via-se com a decisão dele de tomar parte na tosquia. Os arrendatários também se mostravam satisfeitos com a presença do nobre de Sussex e o tratavam com a maior naturalidade. Uma das mulheres aproxi­mou-se dele e ofereceu-lhe uma caneca de cerveja.

Miles acabava de tosquiar uma ovelha que balia aflita. Ele a pôs de volta ao chão, deu-lhe um tapa na anca e, então, viu Glória aproximando-se.

— Ora, será este sir Miles Raven, cortesão de Greenwich e amigo do rei? — gracejou ela. — Por acaso essa atividade é mais de seu agrado do que vestir-se bem e conviver com a realeza?

Na verdade, Miles estava apreciando bastante a atividade ali. Ven­do que ele não se importava de trabalhar como um deles, os arren­datários o tratavam de maneira amistosa. A simplicidade e a boa índole deles era genuína e não artificial como a sociabilidade na corte.

E agora, Glória estava ali, num vestido marrom que, apesar de velho, ressaltava-lhe a cor dos cabelos e a silhueta esguia. Ele a viu retribuir os cumprimentos de todos, mostrando interesse em cada um.

Logo ficou claro que Glória não tinha vindo apenas para verificar o andamento do trabalho. Depois de observar o movimento por alguns minutos, ela enrolou as mangas e pôs-se a tosquiar ovelhas também.

Foram horas longas e cansativas, pois os rebanhos reunidos so­mavam mais de trezentos carneiros e ovelhas para ser tosquiados. Mas para Miles, consciente da mulher trabalhando a seu lado, o tempo voava.

De vez em quando, relanceava o olhar por ela e encantava-se com suas faces coradas, com os caracóis que escapavam da touca de linho e com o arfar dos seios sob a blusa justa do vestido marrom.

De repente, Miles deu-se conta de nunca haver se sentido tão feliz como ali, longe das intrigas e manobras da corte, de homens e mulheres exibindo roupas luxuosas e tão ocupados em granjear favores do rei que não tinham tempo para seus cônjuges.

Ele jamais seria feliz longe dessa mulher capaz de dedicar-se inteiramente a tudo que fazia. Sua vida sofrerá grandes mudanças, as quais ela enfrentava com coragem e sem hesitação.

Miles desejava ser feliz. Tinha imaginado que o seria casado com uma nobre de quem se orgulharia de acompanhar na corte. Se tal dama gostasse de esquentar-lhe a cama, tanto melhor. Mas de repente, a vida sem Glória Mallory parecia-lhe sem sentido e vazia.

Nos últimos quinze dias, convencido da necessidade de exterminar o afeto pela moça ao lado, Miles andava com o coração pesado. O esforço para matar o amor, que teimava em viver, o deprimia muito. Já não o agradava mais a idéia de se casar com uma mulher que, provavelmente, detestaria morar ali no norte e, portanto, o atormen­taria para voltar à corte.

No meio da tosquia de um carneiro velho e teimoso, Miles des­cobriu o que precisava fazer. Talvez jamais subisse ^às altas esferas sociais e descesse à obscuridade como um rústico do norte. Já não importava mais. Queria se casar com Glória. Começara a amá-la, deu-se conta, no momento em que ela o havia informado da neces­sidade de sepultar a prioresa.

Tendo tomado a decisão, Miles virou-se para Gloria. Ela o ob­servava como se soubesse de sua luta íntima. Seus olhos azuis pren­deram-se nos dele como se, apesar do balido e do cheiro acre dos carneiros, existissem só os dois no mundo. Num gesto inconsciente, ela passou a língua nos lábios deixando-o com a boca seca. Foi preciso um grande esforço para Miles não tomá-la nos braços e a beijar até que ela abrisse a boca deixando-o entrelaçar a língua na sua cor-de-rosa.

Miles a viu corar e imaginou se ela podia ler-lhe os pensamentos. Quis dizer qualquer coisa, embora não soubesse o que, mas foi im­pedido pela chegada da mãe, de Linnet e de Mag. Elas tinham vindo na carruagem trazendo a contribuição de Mallory Hall para a festa.

Terminada a tosquia, os homens deixaram o cercado e aproxi­maram-se das mesas de cavalete, armadas perto da casa de Jock. Como Glória se lembrava, havia os deliciosos pastelões de carne e tortas de frutas preparados pelas mulheres dos arrendatários. Durante o dia todo, elas haviam assado leitões em espetos nos fornos a carvão. De. Mallory Hall tinham vindo um barril grande da cerveja feita por Mag, um veado assado, bolos de frutas cristalizadas, vários pães e manteiga fresca.

Com a mesma animação dedicada à tosquia, todos entregaram-se ao banquete. As crianças corriam em volta de suas famílias sentadas na grama, servindo-se à vontade. Os homens, depois de amainar um pouco o apetite, contavam vantagem de quanta lã haviam tosquiado. Cada um achava ter feito mais do que o outro.

— Nunca imaginei poder me divertir tanto — comentou lady Kathryn ao aceitar uma nova dose de cerveja oferecida por uma das mulheres.

Ela havia se misturado às pessoas como se tivesse crescido entre elas e essa falta de pretensão foi muito apreciada.

A animação dos homens aumentava a cada nova caneca de cerveja e eles começaram fazer brindes a Glória, cada um tentando sobrepujar o outro nos elogios. Ela agradecia num misto de constrangimento e prazer.

Linnet tinha trazido um alaúde e alguém, uma flauta. Começaram a tocar melodias conhecidas e logo todos cantavam. A certa altura, Linnet tocou uns acordes e disse:

— Acho que você conhece esta, mano.

— Claro — respondeu ele ao levantar-se para cantar. A canção falava de um homem apaixonado e inconsolável com a indiferença da mulher amada. Ela significava seu único bem e alegria na vida.

Miles parecia cantar só para Glória. A voz profunda de barítono a elevava acima do ambiente rústico para um plano encantado. Estaria ele usando as palavras da canção para fazer-lhe uma declaração de amor? Ou estaria apenas cantando versos bonitos e bem rimados?

 

                             CAPÍTULO XII

Para Glória, passou-se uma eternidade antes que descobrisse a verdade. Os arrendatários, tendo desco­berto um trovador entre eles, não o deixaram se sentar por muito tempo. Mantiveram Miles cantando, atendendo sugestões e, quando estas acabaram, continuaram insistindo em ouvi-lo. Ele os atendeu entoando cantigas em voga na corte e que eles desconheciam. Às vezes Linnet emprestava sua voz suave de soprano e eles faziam um dueto harmonioso.

Miles, claro, apreciava a atenção dessas pessoas que, no início, o tinham tratado com tanta frieza. Porém a certa altura, parou a fim de molhar a garganta com cerveja e lançou um olhar de desânimo para Glória. Como desejava estar a sós com ela em outro lugar, declaravam os olhos azul-claros.

Glória entendeu e sentiu um arrepio ao longo da espinha. O que aconteceria depois dessa declaração de amor silenciosa? Teria ele também enfeitiçado as damas da corte, hipnotizando-as com a magia do olhar e da voz?, conjeturou ela.

E quanto a sua resolução de não ser escrava de um homem? Com o amor por Miles correndo-lhe nas veia, achou que o sacrifício da auto-suficiência não seria perda, mas, ganho. Ele não a escravizaria, mas uniria-se a ela no amor. Juntos, seriam mais fortes do que cada um sozinho.

Ela o viu levantar a caneca, em sua direção, num brinde silencioso. Depois, dirigiu-se a todos:

— Homens e mulheres bons e trabalhadores, eu lhes confio a senhora de Mallory Hall, d. Glória!

Os aplausos foram entusiásticos e vibrantes, porém, ela apenas notou o tributo do olhar de Miles.

Enrubescida, Glória levantou-se e agradeceu, curvando-se várias vezes. Antes de se sentar, lady Kathryn acenou-lhe.

— Não gostaria de cantar para nós, Glória? Você passou um bom tempo no convento cantando. Aposto como tem uma voz linda.

— Lamento, mas só sei cânticos religiosos. Não tínhamos per­missão para aprender outros.

— Está certo, assim que deveria ser — gritou um homem. — Cante os que sabe. Não é culpa sua não estar mais no convento. Sorte nossa tê-la como patroa!

Ela cantou Angelus ad Virginem sem acompanhamento musical. Depois, Linnet tocou o alaúde enquanto ela entoava Louvo uma Virgem ímpar. Sob os aplausos, sentou-se depressa.

— Um anjo esta nossa patroa! Um verdadeiro anjo! — ela ouviu um homem, bem tocado pela cerveja, dizer.

— Discurso! Discurso! — ecoou pelos ares.

Glória olhou para Miles, lady Kathryn e Linnet, porém nenhum dos três mostrou-se disposto a livrá-la da incumbência. Sem alter­nativa, levantou-se.

— Agradeço a todos vocês por terem vindo e ajudado na tosquia, pois cooperação torna o trabalho mais suave. Desejo-lhes sorte ao vender a lã no mercado e obrigada por serem tão bons arrendatários. Vou sempre me esforçar para ser uma patroa tão boa como meus pais. Se precisarem de alguma coisa que esteja em meu alcance, eu os atenderei. Mas agora, já está ficando tarde. Voltem para casa em paz e segurança.

Glória teve de ser paciente, pois cada arrendatário achava-se no dever de despedir-se pessoalmente e desejar-lhe felicidade. Os re­banhos já tinham sido levados embora mais cedo, mas eles ainda gastaram algum tempo reunindo seus pertences, sobras de comida e crianças sonolentas. Só então, partiram.

Num acordo tácito, Glória e Miles esperaram até a última família se pôr a caminho. Desejavam cavalgar sozinhos a fim de explorar os sentimentos confessados através de olhares.

Lady Kathryn, alegando cansaço e intuindo-lhes a vontade, já tinha ido embora com Linnet e Mag. Finalmente, despediram-se de Jock e iniciaram o retorno para casa.

A lua, em quarto minguante, iluminava a ondulação suave das colinas.

— Foi um dia muitíssimo agradável — disse Miles fitando-a. O luar tornava os olhos azul-claros prateados. Mesmo admirando-os, Glória fingiu não acreditar.

— Você gostou daquele trabalho fatigante e sujo?! Vai ter de se esforçar para me convencer disso! Não me deixo tapear com facilidade.

— Para ser sincero, houve momentos não muito agradáveis — admitiu ele massageando a coxa dolorida, onde uma ovelha lhe dera um coice. — Mas, sim, ria o quanto quiser, Glória querida, eu me diverti muito tanto durante a tosquia como na festa. Seus arrendatários são pessoas muito boas.

Ainda perdida nos olhos azul-claros, ela concordou com um gesto de cabeça.

— Quando meu irmão me deu as terras de Kyloe — prosseguiu ele — detestei a idéia de vir para o norte, tão longe de Ravenwood e das atrações da corte. Como você já disse, Sussex é uma terra mais acolhedora, mas cheguei à conclusão de que posso ser feliz aqui, Glória.

Ela mal podia acreditar. Miles aprendera a gostar dessa terra inós­pita tanto quanto ela.

— Ah, Miles, fico tão contente! Isso quer dizer que você planeja morar na casa de Kyloe e não apenas usá-la como um refúgio oca­sional da corte?

— Sim, porém se o rei requisitar meus serviços em caso de guerra, terei de ir embora. A vida à volta da realeza já não me fascina mais. — Deu de ombros, achando difícil expressar os sentimentos. — Posso ser feliz aqui, mas só a seu lado, Glória.

Atônita e com o coração disparado, ela freou Sultana.

— O que... quer dizer?

Miles desmontou e segurou-lhe as mãos.

— Que eu te amo, srta. Glória Mallory, e a quero para mim. Quando a conheci, eu sei, você estava prestes a fazer os votos per­pétuos para servir a Deus. Ainda deseja ser freira?

— Aprendi que existem outras maneiras de se servir a Nosso Senhor, Miles — admitiu ela.

— Então, quer se casar comigo e ter meus filhos? Glória escorregou da sela para os braços acolhedores dele.

— Sim, Miles! Ai, sim!

Felizmente, tanto Sultana quanto Cloud eram animais bem treinados, pois ao começar se beijar, o casal apaixonado largou as rédeas. A égua e o garanhão afastaram-se apenas alguns metros e puseram-se a pastar.

Miles a amava, queria se casar com ela! Seu coração exultava, le­vando-a a entregar-se, completamente, ao beijo ardente. Na cabana, ele havia falado apenas em desejo e as carícias quase a tinham feito ceder. Ao beijá-la no pátio do estábulo, sob o luar, ele não tinha proferido palavra alguma e a empurrado como se a atração sentida fosse inde­sejável. Mas agora, os motivos que o impediam- de comprometer o coração já não existiam. Ela não precisava mais temer o risco de amá-lo. O fato de sabê-lo seu tomou-se um afrodisíaco potente.

— Ai, Miles, eu também te amo — murmurou quando ele afastou os lábios dos seus para beijá-la ao longo do pescoço. — E preciso confessar que também te desejo — acrescentou ao senti-lo acari­ciar-lhe os seios.

Minutos, repletos de beijos, toques e carícias, voavam. Glória sentia uma sede feroz que só Miles poderia matar. Ouviu-o gemer. Ele também estava atormentado.

— Miles, precisamos esperar até nos casar? — perguntou ela num sussurro aveludado pelo desejo.

Ele riu de sua ansiedade que se igualava à dele.

— Ah, meu amor, não quero possuí-la no chão frio e duro como se fosse uma pastora. Além do mais — provocou rindo — você está com cheiro de ovelha.

— Ora, você também — respondeu ela meio brava, mas sorrindo. Glória percebeu que ele preferia esperar. Embora morresse de vontade de dizer-lhe que não se importaria se fizessem amor, pela primeira vez, nas colinas forradas de urzes, um certo acanhamento a impediu.

Havendo chegado em casa bem antes da patroa, Mag usou bem o tempo. Ao entrar no quarto, Glória viu a governanta e Jack esva­ziando baldes de água fumegante na banheira de carvalho.

Surpresa alguma poderia ser mais agradável nesse momento. Até então, estava certa de que teria de se lavar com a água fria da jarra no lavatório a fim de se livrar do cheiro dos carneiros, pois Mag já deveria estar dormindo. Afinal, ela trabalhara o dia inteiro, apesar de pesadona e de não contar com o estímulo do amor.

— Vocês são, sem dúvida, os melhores criados da Inglaterra — disse antes de Jack sair com os baldes vazios, deixando a mãe no quarto. — Vá descansar, Mag. Eu me arranjo sozinha e não vou dormir na banheira — garantiu Glória.

Mas cochilou na água tépida e relaxante. Depois de se ensaboar, inclusive os cabelos, afundou na água e fechou os olhos.

Glória despertou subitamente, embora Miles tivesse fechado a porta sem fazer ruído algum.

Ele vestia uma camisa sob o robe, tinha os cabelos úmidos e exalava perfume de sabonete. Por um instante, ele deu a impressão de ser personagem de um sonho. Sonolenta, ela piscou e sorriu-lhe. Miles fitou-a com os olhos refletindo a luz das velas na mesinha ao lado.

—Glória, meu amor...

A voz a despertou completamente. Deu-se conta de estar nua e de que a água não chegava a cobrir-lhe os seios. Com um gritinho assustado, apanhou a toalha deixada à mão por Mag.

Não se atreveu a olhar para Miles até estar fora da banheira e enrolada na toalha.

— Como você... Quer dizer, eu não esperava...

A.s palavras esmorecerem ao fitá-lo e ver-lhe o olhar apaixonado.

— Esqueceu-se da porta de comunicação entre nossos quartos, amor? Não estava trancada e eu pensei... Não sou bem-vindo?

Não havia arrogância, ou autoconfiança, na voz de Miles, apenas uma suavidade tentadora. O mesmo desejo que a tinha dominado uma hora atrás, sob o luar pálido, ressurgiu. Jamais se sentira tão segura de alguma coisa na vida, mas sua voz tremeu um pouco ao falar:

— Não, Miles, você é muito bem-vindo.

— Precisamos enxugá-la, ou você se resfriará — disse ele ao apontar para a pele arrepiada nos ombros acima da toalha que tentou soltar, mas encontrou resistência. — Não, amor, não se envergonhe de seu corpo diante de mim, pois ele é perfeito.

Delicadamente, tomou a toalha e enxugou-a bem, demorando-se mais nos seios e nos quadris. Em seguida, tirou o robe e colocou-o sobre seus ombros, indicando-lhe para se sentar diante do espelho da mesinha de toalete. Então, friccionou seus cabelos e penteou-os, enquanto Glória observava-lhe a imagem.

— Venha, amor — convidou ele erguendo-a nos braços e diri­gindo-se à cama no outro lado do quarto.

Ao deitá-la, o robe entreabriu expondo um dos seios, mas Glória não tentou mais escondê-lo.

Num gesto impaciente, Miles tirou a camisa e o calção curto e franzido, ficando em pé a sua frente, com o membro distendido orgulhosamente.

Aos olhos inocentes de Glória, ele era imenso. De repente, o desejo inebriante dissipou-se para dar lugar ao medo. Se todos os homens fossem assim, então o ato de amor seria uma brutalidade! Teria a mãe, tão delicada, recebido o pai dessa forma?

Ao vê-la encolher-se com os olhos arregalados, Miles praguejou mentalmente. Glória não era uma mulher experiente, conhecedora dos segredos da paixão, mas inocente. Sua única defesa contra a dor de perder a virgindade resumia-se ao amor por ele. E como também a amasse, jurou que sua iniciação no amor físico seria glo­riosa e livre do medo.

— Glória, não se assuste — sussurrou ao deitar-se a seu lado, mas permitindo que o lençol ficasse entre os corpos de ambos.

Por uns momentos, acariciou-lhe os cabelos. Depois, prosseguiu:

— Prometo, meu amor, que não farei nada contra sua vontade. Basta dizer uma palavra para eu parar.

Ele sentiu seu corpo rígido relaxar um pouco, mas seus olhos continuavam arregalados e com expressão de desconfiança.

— Eu não sabia, Miles... Eu não sabia...

— Não, naturalmente. Mas também ignora como seu corpo é maravilhosamente feito, meu amor. Ele pode me receber com per­feição se fizermos tudo direitinho. Não vou apressá-la, minha querida.

Temos a noite inteira e o resto de nossas vidas. Deixe que eu mostre como você pode conhecer o êxtase.

Mais confiante, Glória acomodou a cabeça no travesseiro. Sen­tia-se aliviada por Miles não ter a intenção de cair sobre ela como um lobo faminto e por poder interrompê-lo se quisesse. Algo nos olhos azul-claros a estimulavam a ir em frente, a deixar-se ser levada ao paraíso que a aguardava. Só teria a perder se deixasse o medo dominá-la.

— Glória, me beije.

Esse era um pedido fácil de atender, pois já o tinha beijado antes. Por longos momentos, foi só o que fizeram. Ele a beijou com sua­vidade, depois demoradamente, a língua executando uma dança fascinante em sua boca, o que reacendeu-lhe as chamas da paixão. Sem hesitar, abraçou-o. Miles abaixou o lençol o suficiente para expor seus seios, mas voltou a beijá-la. Deixou-a experimentar a sensação excitante dos seios prensados de encontro a ele e o contato de sua pele macia nos pêlos que lhe cobriam o peito. Então, acariciou-lhe um dos seios, circulando o mamilo até ela suspirar de prazer.

— Você é tão linda, Glória, meu tesouro.

Miles poderia estar falando em grego que Glória entenderia, tão em harmonia estava ela com o universo. Este resumia-se no quarto, na cama e nas sensações deliciosas em seu corpo.

Miles já não a beijava na boca. Devagar, escorregou os lábios por seu queixo, pescoço e continuou até alcançar um dos mamilos. Com a mão, afagava o outro.

Leve de alegria, Glória arqueou o corpo de encontro a ele. O lençol continuava entre ambos, da cintura para baixo, mas mesmo assim, ela podia sentir-lhe, na coxa, o pênis rijo e quente. Lembrava um ferro em brasa, todavia, não a queimava.

Deveria haver mais. Tinha de haver. O caminho estendia-se à frente deles, porém bloqueado pelo linho, O fogo que antes bruxuleava, expandiu-se em labaredas.

Não sabendo bem o que fazia, Glória afastou o lençol e sentiu Miles aceitar o convite silencioso.

Temendo assustá-la novamente, ele permaneceu imóvel permi­tindo que ela lhe notasse o desejo. Esperava por um sinal seu. Este veio na forma de um gemido suave e de um leve movimento de seus quadris. Delicadamente, ele desceu a mão até entre suas coxas. A umidade encontrada e sua respiração ofegante mostravam a pro­fundidade de sua excitação, constatou ele, feliz. Glória era maravi­lhosa. Todos esses anos passados no convento não tinham estragado esta mulher feita para o prazer, criada para amá-lo.

Com os dedos, Miles começou a massagear sua entrada secreta, cada vez com mais pressão e até sentir-lhe as unhas nas costas. Embora não soubesse para que, Glória estava pronta. Seus sons inarticulados confirmavam.

— Glória, preste atenção, amor. Posso machucá-la por um se­gundo, apenas um segundo, uma vez e nunca mais. E então, só haverá prazer.

Miles não lhe deu tempo para sentir medo. Penetrou-a com um movimento firme e cuidadoso ao mesmo tempo. Com um beijo aba­fou-lhe o grito de dor. E então, começou os impulsos, vagarosos no início, mas cada vez mais rápidos depois de senti-la acompanhar o ritmo com os quadris. Só quando Glória alcançou as alturas de êxtase, ele se permitiu acompanhá-la. Eram, finalmente, um só ser.

 

                                   CAPÍTULO XIII

Saciados, Miles aconchegou Glória entre os braços e disse-lhe o quanto a amava. Depois, sob a luz bruxuleante das velas, fizeram planos lindos.

— Vamos nos casar o mais depressa possível. Continuaremos a morar aqui até a casa de Kyloe ficar pronta — sugeriu ele.

— Mas vamos alternar as duas moradias, Miles, porque amo Mallory Hall. Naturalmente, vou considerar sua nova casa como um lar também.

Miles concordou com um gesto de cabeça e beijou-a.

— Quando já estivermos em Kyloe, começaremos a restaurar os móveis daqui — prometeu ele. — Você dará uma excelente esposa de cavaleiro, minha querida.

— Lady Glória Raven, do solar de Kyloe e de Mallory Hall. Sir Miles e lady Glória — murmurou ela bem devagar, saboreando os nomes. — Ai, meu amor, mal posso acreditar! Eu te amo muitíssimo!

— E eu, a você. Espere um pouquinho. Volto já — disse ele. Glória o viu vestir o robe e desaparecer pela porta de comunicação dos dois quartos. Sorriu lembrando-se de como havia jurado manter sempre a porta trancada. Deu-se conta de que, há vários dias, não verificava se ela continuava bem fechada.

Após alguns minutos, Miles voltou trazendo uma garrafa de vinho e um copo.

— Estou com sede, e você? Vamos ter de beber no mesmo copo, mas tive medo de ir buscar outro na cozinha, a esta hora, e acabar acordando alguém.

Em silêncio, ela observou a luz trêmula das velas em seu rosto viril, enquanto ele servia o vinho. Em seguida, Miles entregou-lhe o copo, tirou o robe e acomodou-se novamente a seu lado na cama.

— Você acha que alguém nos ouviu durante... Sua mãe... Lady Kathryn gostava dela, mas poderia mudar os sentimentos se soubesse que o filho fora recebido em sua cama antes da celebração do casamento.

— Não se preocupe. Caso ela tenha nos ouvido, não vai deixar de gostar de você. Ela te adora. Minha mãe ficará felicíssima quando souber que eu recobrei o bom senso e pedi sua mão em casamento — garantiu ele.

— Tem certeza? — perguntou Glória em tom de dúvida. — Afinal, você pertence a uma família próspera, que lutou pelos Tudor, e goza da amizade de Henrique VIII. Você poderia almejar alguém de po­sição social bem mais alta do que a de uma ex-noviça empobrecida, cuja família apoiava Plantagenet. Lady Kathryn não preferiria ver você casado com uma mulher que o ajudasse a subir mais na escala social? Alguém de uma família também respeitada pelo rei?

— Não, minha preocupadinha — disse Miles aconchegando-a mais ao peito com um dos braços, enquanto com a outra mão, levava o copo à boca e sorvia um bom gole de vinho. — Na verdade, minha mãe sabia, bem antes de eu me dar conta, que esse tipo de mulher não servia para mim. Ai, Glória, andei perdido por tanto tempo! Minha mãe vai exultar e Linnet também. Você se importa se o casamento for realizado na capela de Ravenwood? Ela gostaria disso, pois seria uma oportunidade para a família inteira conhecer você. Mamãe poderia se ocupar dos detalhes.

Havia ganho a lua. Teria coragem de pedir uma estrela também?, indagou-se Glória. Contudo, precisava ser fiel a seus princípios. Miles tinha de amá-la como era, ou, nada.

— Para mim, não faz diferença onde vamos nos casar. Mas o padre lá reconhece Henrique VIII como chefe supremo da Igreja Anglicana, conforme o rei exige desde que rompeu com Roma?

Pensativo, Miles afagou a barba e o bigode.

— O casamento não será válido para você caso o padre tenha jurado fidelidade à nova igreja, não é?

Com medo de falar, Glória assentiu com um gesto de cabeça.

— Lamento, mas acho que sim. O padre Ambrose é um homem bom, mas prático também. Como vamos fazer, minha querida? Pe­direi ao próprio papa para nos casar se você quiser.

— Existe um padre em Ross que, segundo Mag, ainda segue os ritos antigos. Muito poucas pessoas sabem onde encontrá-lo. Ele não poderia nos casar primeiro, secretamente? Depois, casaríamos outra vez com seu padre.

— Podemos nos casar mil vezes se você achar necessário, meu amor — disse Miles com um sorriso amoroso.

— Você é o melhor dos homens! — murmurou Glória abraçando-o.

— Não. Você precisa saber que tenho sido tão corrupto e egoísta como qualquer outro freqüentador da corte. Mas não mais, minha freirinha. Eu não a mereço, Glória Mallory, porém vou sempre te amar.

Beijaram-se profundamente por um longo tempo, recostados numa pilha de travesseiros.

— Miles, não pretendo me casar com um santo — brincou Glória, firmada no cotovelo e roçando-lhe o mamilo com os caracóis loiros.

Ele estremeceu, sentindo o desejo ressurgir.

— Mocinha insaciável! Sem dúvida, você não aprendeu essas artimanhas no convento! Toda a filha de Eva já nasce sabendo como enfeitiçar um homem?

Glória sorriu, feliz com a reação de Miles.

— Uma vez, uma velha senhora me disse que minha boca fora feita para beijar, mas naquele dia, não acreditei.

Diante do olhar de incompreensão de Miles, ela repetiu o diálogo com a sra. Elizabeth Easington.

— Sei, sei. Pois trate de reservar essa boca adorável só para mim. Ela é minha — disse ele com severidade fingida.

— Sou inteirinha sua, Miles, só sua. Deixe eu mostrar, outra vez, como sou completamente sua.

A semana seguinte foi o período mais feliz da vida de Glória. Quando Miles informou lady Kathryn e Linnet sobre o casamento, ambas mostraram-se mais alegres do que ele havia predito. No mesmo instante, as duas começaram a planejar a cerimônia em Ravenwood.

Glória surpreendeu-se quando Miles também lhes contou sobre o casamento secreto, oficiado por um padre que não tinha assinado o juramento de fidelidade a Henrique VIU. A surpresa aumentou com o fato de lady Kathryn não levantar objeção alguma.

— Você deve fazer aquilo, minha querida, que julgar necessário para uma união verdadeira com meu filho.

As palavras foram acompanhadas por um sorriso tão compreensivo que Glória imaginou se lady Kathryn não sabia onde o filho tinha dormido na noite passada. Que mulher extraordinária!

Sentiu-se comovida e segura por ser aceita como a futura mulher de Miles. Sorriu revelando a felicidade. Essa segurança e a do amor de Miles tornaram seus passos leves, o riso alegre e o bom humor contagiante. Todas as vezes que olhava para o homem amado, ou pensava nele, seus olhos brilhavam. Glória Mallory, no apogeu do amor, mostrava-se tão sedutora que Miles tinha de lutar contra a tentação de tocá-la quando estavam perto um do outro.

Ele, que não precisava mais evitá-la e refugiar-se na formalidade dos negócios, voltara a ser o homem por quem Glória havia se apai­xonado. Nem mesmo o prometido convite de sir Oliver Lang, para jantar na abadia de Belford, conseguiu aborrecê-lo.

Glória, conhecedora de sua antipatia por Lang, desconfiava que ele recusaria o convite. Miles, entretanto, vendo a vontade da mãe e da irmã em conhecer a casa de sir Oliver, achou indelicado de sua parte não aceitar.

— Vai ser uma comemoração de seu noivado! — exclamou Linnet batendo palmas. — Como sir Oliver vai ficar surpreso! Ele bem que tinha olhos para Glória. Não notou, mano?

Ele concordou, mas apenas Glória viu seu olhar sombrio. O jantar transcorreu muito bem. Sir Oliver, um anfitrião perfeito, ofereceu congratulações ao "grande amigo" pela sorte de haver con­quistado a srta. Mallory. Das três mulheres, apenas Glória percebia o olhar frio e os músculos tensos da face de Miles todas as vezes que ele se dirigia a Lang, no esplendor da abadia de Belford.

Embora os dias fossem alegres e cheios de atividades, Glória e Miles ansiavam pela noite. Quando todos já tinham se retirado e o silêncio reinava na casa, Miles transpunha a porta de comunicação dos dois quartos.

Da cama, ela olhava para a passagem mágica, pois quando se abria, surgia o amante. Então, seguiam-se horas de encantamento e paixão. Através de maneiras jamais imaginadas por ela, Miles a levava ao delírio. Às vezes, ao sentir Glória prestes a alcançar o clímax, ele a provocava, retraindo-se um pouco, a fim de aumen­tar-lhe o desejo, deixando-a a ponto de gritar de desespero. Final­mente e acompanhando-a, ele lhe dava o céu.

Depois de refeitos, conversavam muito. Contavam histórias da infância de cada um, falavam dos sonhos e dos planos para o futuro.

Miles sempre se retirava antes do amanhecer. Não queria provocar constrangimentos a Glória caso o relacionamento de ambos fosse descoberto por lady Kathryn ou pelos criados. Não se surpreenderia se a mãe já soubesse de suas visitas noturnas ao quarto de Glória. Mas se essa mulher esperta notava as olheiras da noiva, não comen­tava e continuava a afirmar como se sentia feliz pela escolha da futura nora.

Mag devia ter adivinhado que Miles era seu amante, Glória temia. Na manhã após a primeira noite de amor, ela só notou a mancha de sangue no lençol quando a criada a mencionou enquanto trocava a roupa de cama. Sem jeito, conseguiu pôr a culpa na menstruação adiantada. Mag não era boba e não devia ter acreditado, ainda mais depois de Glória haver lhe pedido que arranjasse um encontro com o padre escondido em Ross.

E se a menstruação não viesse, se Miles a tivesse engravidado? Sabia que essa possibilidade aumentava cada vez que tinham relação. Mas não se preocupava muito. Eles iam se casar logo, ao menos, pelo padre de Ross. Pouco se importava se a data do nascimento do bebê pusesse as mulheres a contar, nos dedos, os meses trans­corridos após a cerimônia em Ravenwood. Ela jamais sacrificaria essas noites no paraíso, por medo da maledicência.

Elizabeth Easington estava certa. Ela, Glória, era de natureza mui­to sensual. Depois de Miles a iniciar nos prazeres do amor físico, ansiava por suas carícias e maravilhava-se com o poder da atração que os unia.

Era noite e logo Miles chegaria em casa. Ele tinha ido a Ross para ver o padre Bertimus que queria conhecê-lo antes de oficiar o casamento na manhã seguinte. Glória mal tocava na comida, pois esperava que Miles chegasse para acompanhá-la. Ele já estava atra­sado.

Nenhuma das três mulheres falava muito. Tinham medo de men­cionar algo que Brunt não pudesse ouvir. Ele desconhecia a existência do padre em Ross a quem Mag procurava periodicamente.

― Mais vinho, lady Kathryn? — ofereceu Glória.

― Não. obrigada, minha cara. — Depois, abaixou bem a voz

embora Brunt tivesse deixado a sala no início da refeição: — Não acho que seja cedo para me chamar de mãe, mas talvez você prefira a expressão francesa belle-mère.

Glória sorriu.

― Não passo de uma moça simples do norte, mamãe.

― Você é adorável e Miles, um homem de sorte — afirmou lady

Kathryn afagando a mão de Glória. — Mas amanhã é um grande dia e eu quero dormir cedo para acordar descansada. Miles deve chegar a qualquer momento, mas não fique acordada até tarde, minha querida. A noiva não pode ter olheiras.

— Eu também vou subir. Preciso pôr os últimos retoques no vestido de Glória — anunciou Linnet seguindo a mãe.

Glória cochilava no sofá, em frente à lareira, quando acordou sobressaltada ao ouvir uma batida insistente na porta. Quem poderia ser? Miles não bateria.

— Mag? — chamou, mas Brunt já ia a caminho da porta.

Ao mesmo tempo em que um golpe de ar frio fazia as chamas da lareira crepitar, Glória sentiu uma premonição ruim. Teria Miles sofrido um acidente a cavalo, ou sido atacado por salteadores? Um momento depois, o administrador acompanhava uma moça à saia.

— Lady Célia Pettingham — anunciou ele.

A recém-chegada vestia-se em veludo preto e os cabelos, que haviam se soltado da touca francesa, eram uma cortina negra como o ébano. Chegavam-lhe à cintura e algumas madeixas emolduravam o decote exagerado. Eles contrastavam com a alvura de sua pele c com a tonalidade rara dos olhos lilases.

Sem saber de quem se tratava e intuindo que a moça estava ali para destruí-la, Glória levantou-se, meio hesitante.

— Deseja alguma coisa?

Com o nariz empinado, mas bem feito, lady Célia a encarou como se estivesse num plano mais alto, embora fosse mais baixa do que Glória. Por alguns segundos, estudou-a em silêncio.

— Desejo, sim — respondeu com um olhar de desdém em volta como se estivesse em uma pocilga e imaginasse como fora parar ali. — Estou procurando sir Miles Raven.

— Ele não está, mas não deve demorar. Posso saber qual é seu assunto com ele? — acrescentou devagar.

Com expressão divertida, lady Célia soltou uma risadinha estri­dente.

— A senhorita deve ser Glória Mallory, a dona da casa — disse voltando a observá-la da cabeça aos pés. — Não está aqui para me receber? Que rapaz indelicado! — Tornou a rir levando Glória a crispar as mãos. — O assunto com meu noivo?! Sem querer ofendê-la, srta. Mallory, trata-se de algo particular.

 

                         CAPÍTULO XIV

Noivo?! — Glória se ouviu repetir. — Sir Miles não mencionou estar noivo! Virgem Santíssima, faça com que eu esteja sonhando e acorde já!

— Ah, ele é um malandro, não concorda? — lady Célia comentou em tom condescendente e enquanto afagava um pingente de rubi, pendurado num fio de pérolas à volta do pescoço. — Devo confessar que ele tinha seus motivos. E por culpa minha — confidenciou. — Nós discutimos um pouco antes de sua partida de Londres. Eu queria me casar logo a fim de fazer-lhe companhia nesta terra atrasada do norte. Ele, porém, atencioso demais, não admitia me expor à atribulação alguma. Preocupa-se tanto comigo!

Célia tinha vindo ao norte imediatamente após haver recebido a carta de Lang. Nesta, o intrigante não poupara palavras para elogiar a atraente ex-freira em cuja casa Miles se hospedava. Muito antes, ao ouvir falar na nova propriedade do antigo namorado e do quanto Henrique VIII o estimava, ela já havia decidido reconquistá-lo, mas no momento oportuno. Agora, que a vida na corte se tomara um jogo perigoso, estava na hora de vir ao norte e apossar-se do que era seu.

Glória Mallory não era a camponesa simples e esperta que Célia tinha imaginado. Observou bem os olhos azuis dessa moça de cabelos loiros e curtos que, em pé a sua frente, a fitava como se estivesse diante de um fantasma.

Célia não teria sobrevivido as intrigas da corte por tanto tempo se não gozasse de um alto grau de percepção. Tinha quase certeza de que Miles e a moça eram amantes. Agora entendia por que sir Oliver a tinha aconselhado a vir ao norte o mais depressa possível. Abençoada fosse sua alma astuciosa!

— Deve haver algum engano...

— Eu sei, e foi meu — interrompeu lady Célia. — Eu devia ter procurado sir Miles antes de sua vinda para cá, mas o orgulho me impediu.

Glória fervia de raiva. Era óbvio que a moça tinha sido uma das parceiras de cama de Miles. Como se atrevia a procurá-lo ali? Num voz tão controlada quanto a de lady Célia, perguntou:

— Afirma que a senhorita e sir Miles estão formalmente com­prometidos? Não acredito, pois ele me pediu em casamento. Vamos nos casar muito em breve.

A beldade da corte não se mostrou nem um pouco perturbada e seu riso estridente irritou Glória.

— Lamento muito. Sei que não é justo para com a senhorita. Já vi isso acontecer antes. Miles é capaz de dizer qualquer coisa quando vê algo, ou alguém, que deseje muito. Ele é um cortesão, como deve saber. Os fins justificam os meios para os "novos homens" do rei.

— Esse hábito de que o acusa não a aborrece? — indagou Glória. Lady Célia aproximou-se e, num gesto de conforto, colocou a mão cheia de anéis em seu ombro.

— Não, porque ele é um homem e, como tal, deve ser viril. Suas escapadelas não têm nada a ver com nossa união, um casamento baseado no mesmo nível social das famílias e de propósitos seme­lhantes. Entendo desse assunto. Apenas lamento que ele tenha brin­cado com seus sentimentos.

Glória empurrou-lhe a mão do ombro, provocando uma expressão de surpresa nos olhos cor de ametista. Começou a dizer, a lady Célia, o que pensava, exatamente, a seu respeito:

— Eu não...

— O que isto significa? Célia, com todos os demônios, o que está fazendo aqui? — trovejou uma voz atrás de Glória.

Nenhuma das duas tinha ouvido Miles chegar. Depois de aco­modar Cloud no estábulo, ele havia entrado pela cozinha.

Com uma exclamação de alegria, lady Célia atirou-se nos braços dele.

― Ah, meu querido! Até que enfim!

― Célia, o que está fazendo aqui? Não deveria ter vindo —

Miles repetiu a indagação enquanto se desvencilhava, com dificul­dade, da moça agarrada a ele.

Manteve-a afastada, penosamente cônscio da expressão chocada de Glória.

― Eu sei. Deveria tê-lo avisado de minha vinda. Foi uma viagem horrível, portanto, meu amor, não me censure, pois paguei todos os meus pecados. — Virou-se de costas para Glória como se tivesse esquecido sua presença. — Mas, eu tinha de me ausentar da corte, querido! Foi tudo medonho! A execução da rainha e de todos aqueles rapazes...

— Ana Bolena foi executada?! — exclamou lady Kathryn que aparecera na escada.

— Sim, lady Kathryn. Ai é tão bom vê-la também, madame. E a você, Linnet! — acrescentou com efusividade para a moça que surgia ao lado da mãe. Depois, assumiu expressão trágica. — A rainha foi decapitada na Torre, a dezenove de maio, um dia depois de cinco homens, acusados de cometer adultério com ela, serem mortos. Inclusive seu próprio irmão.

— Deus misericordioso! — murmurou lady Kathryn.

— E o rei já se casou com lady Jane Seymour! — contou Célia começando a chorar. — Foi terrível, Miles, terrível! Qualquer pessoa, que tivesse sido amiga da rainha, temia pela vida. Por isso, tive de vir.

Querido. Meu amor. As palavras carinhosas de Célia, entremeadas no relato da notícia pavorosa, não tinham passado despercebidas a Glória. E Miles, cuja face pálida cobria-se de uma máscara indeci­frável, não havia dito nada além de: "Não deveria ter vindo".

Lady Kathryn, aflita demais com os acontecimentos na corte, não devia ter notado o tratamento amoroso. Linnet, obviamente cons­trangida, parecia pregada ao chão.

Glória sentia-se enojada. Por que haveria de se importar com o destino de uma rainha na distante Londres? Miles jamais fora livre para amá-la e a mulher, com direito anterior ao seu, ao coração dele, acabava de aparecer. Talvez ela esperasse que Glória cedesse seu quarto, com a porta de comunicação, e mais o homem a quem amava.

— Lady Célia, lamento informar, mas não tenho um quarto de hóspedes para acomodá-la — Glória declarou e foi recompensada ao ver a outra virar a cabeça e fitá-la com ar ofendido.

— Teria coragem, srta. Mallory, de me largar na charneca à noite, contando apenas com dois lacaios?! Isso é o que chamo de caridade cristã! — ironizou Célia.

— A srta. Mallory não mentiu. Mas você não precisa ir além de Belford. Sem dúvida, seu amigo Lang a receberá de braços abertos — disse Miles.

Com olhar feroz e avaliando bem as próximas palavras, Célia apertou os lábios enquanto encarava Glória e Miles.

— Muito bem, Miles, mas duvido que aqueles dois idiotas con­sigam encontrar o caminho para Belford e eu não estou disposta a passar a noite ao relento. Por favor, você não poderia nos acompa­nhar?

— O administrador pode... — Miles começou, porém não pros­seguiu.

Estava furioso com Célia por haver vindo e transtornado Glória na véspera do casamento. Levando-se em consideração a maneira com que ela o havia descartado, seu atrevimento ultrapassava os limites. Seria melhor conversar com Célia em particular e deixar claríssimo que não queria mais nada com ela.

— Está bem, eu a acompanho — resmungou. — Preciso de uns minutos para selar meu cavalo.

Amarraria Cloud atrás da carruagem e iria dentro afim de con­versar com Célia. Cavalgaria de volta, pois não queria passar a noite em Belford.

Viu a mãe e Linnet subindo de volta ao quarto. Virou-se para Glória e murmurou:

— Sinto muitíssimo, amor. Vou chegar tarde. Vá dormir. Amanhã cedo, nos vemos.

Piscou-lhe para lembrá-la de como o dia seguinte seria especial, mas Glória desviou o olhar. Em vão, tentou levantar-lhe o queixo, porém ela esquivou-se do contato.

― Vou ver se Lady Kathryn precisa de alguma coisa. Talvez um copo de leite quente. Ela ainda está muito aborrecida com as notícias da corte.

De cabeça e ombros erguidos, ela deixou a sala.

Miles cerrou os punhos. Devia ter chamado o mau humorado Brunt para acompanhar Célia. Seu lugar era ao lado de Glória. Pre­cisava aconchegá-la ao peito e desmanchar, com beijos, sua expressão magoada. Porém, já se comprometera. Observando-o com olhar ávido e sorridente, Célia o aguardava. Tão logo terminasse de lhe dizer o que pretendia, aquele sorriso fingido desapareceria.

— Minha cara, você não deve pensar... quer dizer, você precisa confiar em Miles. Ele não sente mais nada por aquela atrevida falsa, estou certa — afirmou lady Kathryn quando Glória entrou no quarto com o copo de leite quente.

— Imagino que tenha razão — desconversou Glória, sem querer dar vazão à raiva.

Essa senhora, embora a tivesse tratado carinhosamente, devia sa­ber do tal noivado. Perante a igreja, provavelmente até a de Henrique VIII, esse era um compromisso quase tão sério quanto o casamento. Como lady Kathryn e Linnet a tinham deixado se iludir tanto? Numa voz inexpressiva, disse:

— Com licença. Vou me deitar como Miles sugeriu. Estou com dor de cabeça.

Com olhar preocupado, Linnet comentou após sua saída:

— Pobrezinha, está muito aborrecida. Talvez fosse melhor eu ir conversar com ela.

— Não. Depois do susto sofrido, Glória precisa ficar sozinha, desabafar chorando. Uma noiva sempre fica nervosa na véspera do casamento, mesmo se tudo estiver correndo bem. Apague as velas, Linnet. Amanhã, a situação já estará esclarecida.

Lembrando-se dos passos comedidos e silenciosos dos tempos de beneditina, Glória controlou-se para não correr até o quarto. Tão logo entrou, trancou a porta, atravessou o aposento e fez o mesmo com a de comunicação com o de Miles.

Como tinha sido ingênua e boba ao acreditar que um nobre tão poderoso e bem conceituado como sir Miles Raven pudesse amá-la e casar-se com ela! Lady Célia, sim, era do tipo de mulher a quem ele se uniria. Não se tratava de uma ex-freira, sem família e dona de uma reduzida criação de carneiros na Nortúmbria. O atraente mentiroso, a quem havia se entregado, com certeza se divertira bastante, até mesmo quando se apossara de sua virgindade. E estava comprometido com outra!

O aborrecimento evidente de Miles com a chegada de lady Célia não influenciou seu julgamento pessimista da situação. Ele, o apro­veitador, ficara perplexo. Sem dúvida, planejava mantê-la como par­ceira de cama por um bom tempo. Talvez até tencionasse realizar o casamento secreto, sabendo que este poderia ser anulado pelo clé­rigo poderoso de Henrique VIII. Durante esse tempo, Miles conser­varia a noiva no sul, tão ignorante quanto ela,Glória, fora. Teve vontade de rir de si mesma. Quase chegava a ter pena de lady Célia Pettingham, obrigada a enfrentar o fato de o noivo lhe ter sido infiel enquanto se preparava para o casamento.

Glória fervia de raiva ao lembrar-se de que lady Kathryn e Linnet tinham testemunhado sua humilhação. Elas não podiam ignorar o noivado de Miles. Como haviam tido a coragem de mostrar satisfação e aprovar a conquista amorosa dele? Ambas deviam estar rindo, divertidas, da mocinha simplória que se deixara seduzir por juras de amor e promessas de casamento. Quantas mulheres, inebriadas com as palavras doces de Miles Raven, tinham se vendido tão barato? Ela havia se sentido orgulhosa das melhorias feitas em Mallory Hall, satisfeita porque, sob a orientação de Miles, o solar começava a prosperar e os arrendatários mostravam-se tão felizes como nos tempos de sir William e lady Anne. Seus sonhos estilhaçavam-se na mente ridicularizando-a, planos para continuar dirigindo Mallory Hall enquanto, como lady Glória, passava temporadas em Kyloe e fazia viagens ocasionais a Ravenwood, em companhia do marido, sir Miles Raven.

Com os olhos nublados pelas lágrimas, Glória refletiu sobre como seria continuar morando ali depois de Miles se casar com lady Célia. Ele faria isso, estava convencida. Ambos eram farinha do mesmo saco. Tão logo tivesse a oportunidade de ficar a sós com a noiva novamente, Miles se daria conta do fato.

Glória podia visualizar a expressão desdenhosa de lady Célia caso se encontrassem outra vez.

E sir Miles Raven, cuja alma merecia as chamas eternas do inferno, encontraria motivos para permanecer em Mallory Hall. Ele sabia que apesar de o odiar pela duplicidade, ela não deixaria de amá-lo com facilidade.

Não! Impossível continuar ali e enfrentar, sozinha, uma luta per­dida, pois seria uma presa fácil para Miles. De repente, o privilégio de possuir Mallory Hall tornava-se uma sobrecarga indesejável.

Possuir bens corrompia a alma, rezava o preceito beneditino. Aos olhos de Deus, a pobreza era melhor. E os santos tinham sido sábios ao pregar o celibato, pois unicamente sofrimento resultava do amor de uma mulher por um homem. Só agora, ela percebia o quanto tinha sido feliz com o hábito de beneditina, sem bens terrenos, aman­do apenas a Deus e as irmãs da comunidade religiosa.

Muito bem. Não podia retornar ao convento, mas também não precisava ficarem Mallory Hall. Percorrendo os olhos pela penumbra do quarto, Glória decidiu o que fazer.

A porta do quarto de Glória ainda estava fechada quando lady Kathryn e Linnet tomaram o café da manhã.

— Deixe sua patroa dormir, Mag. Ela sofreu um aborrecimento ontem à noite e, com certeza, custou a pegar no sono. A pobrezinha precisa se refazer— aconselhou lady Kathryn provocando um sorriso de compreensão na criada.

Embora da nobreza, essa senhora sempre se expressava com in­teligência e bondade. Mag podia ver de quem sir Miles havia herdado o encanto. Pedia a Deus que não fosse tarde demais para esse charme salvar o amor entre o nobre e a patroa.

Sentado à mesa, com o olhar perdido e sem tocar no prato, Miles afagava a barba. Depois de deixar Célia em Belford, tinha voltado, de madrugada, a Mallory Hall, sentindo-se emocionalmente exausto. Os comentários maldosos de Célia não o tinham afetado, nem o fato de vê-la atirando-se nos braços de Lang, queixando-se dos maus-tratos sofridos. A expressão sorridente e pretenciosa de sir Oliver o tentara a lhe dar uma boa sova, porém, esqueceu-a ao afastar-se a galope.

Durante o trajeto todo, não tinha pensado em outra coisa a não ser transpor a porta de comunicação dos quartos. Se Glória estivesse dormindo, não a acordaria, mas caso contrário, tentaria aliviar-lhe o coração magoado. Desejava apenas ter certeza de que a mulher amada estava bem. Todavia, tinha encontrado a porta trancada.

O sol já ia alto no céu quando Mag, conhecedora do hábito da patroa de se levantar ao amanhecer, atreveu-se a verificar seu quarto. A porta abriu com facilidade, pois tinha sido destrancada por Glória, horas atrás, ao deixar o aposento.

 

 

                                 CAPÍTULO XV

“Casar-se com ela, Miles?! Você enlouqueceu convivendo só com esta gente rude aqui do norte!", eu disse a ele. "Cometa suas estroinices, tenha um affaire, caso esteja tão enfeitiçado pela moça! Você não pode ter perdido o juízo a tal ponto de pensar em casamento com ela!" Mas não consegui convencê-lo, Oliver! Ele está determinado a se unir àquela mulherzinha sem importância, mesmo que isso arruine sua posição na corte!

Enquanto falava com sir Oliver Lang, na luxuosa sala da abadia de Belford, Célia ria, nervosa.

— Ele diz que a ama Pode acreditar, Oliver? Então, expliquei: "Miles querido, a palavra é cobiça. Luxúria é o que sente por ela. E por que não? Com aqueles olhos azuis enormes, cabelos loiros e corpo perfeito, a moça é linda. Nada mais natural que você a cobice, ainda mais depois de minha leviandade em descartá-lo. Mas caí em mim a tempo. Ainda podemos reviver nossa paixão".

Célia calou-se rememorando o que se passara na carruagem. Debruçada sobre Miles, havia tirado a touca francesa e soltado os cabelos negros, deixando parte deles cair pela frente dos om­bros.

— Confesso meus pecados, querido — tinha murmurado ao se­gurá-lo pelos braços, com pressão suficiente para ele sentir-lhe as dez unhas cravando-se nas mangas do gibão. — Perdoe meus erros, amor. Eu deveria saber que homem algum me satisfaria como você. Eu o quero de volta em minha cama. E não apenas isso. Desejo ser sua mulher. Beije-me, amor, me possua agora, aqui mesmo — sussurrara ao inclinar-se mais sobre ele, roçando-lhe os braços com os seios.

Miles permanecera impassível, fitando-a com olhar gélido. Célia havia lhe tomado a mão e a colocado sobre o seio. Ao lembrar-se de como ele tinha se afastado, recusando-se a tocá-la, suas faces arderam de vergonha e raiva.

— Não faça isso, Célia, pois não adiantará nada — ele dissera. — Você é uma mulher linda e atraente. Será Uma honra para muitos homens tê-la como esposa, porém, você e eu não combinamos.

— Como assim?! Sou a filha do marquês de Brockworth, um dos nobres mais importantes do reino! Minha linhagem é impecável e, uma ligação com minha família, seria vantajosa para qualquer cavalheiro da corte de Henrique VIII! Eu poderia ter escolhido al­guém de posição mais elevada da nobreza. Até ser duquesa se quisesse. E, sem muito esforço!

— Ainda pode Célia — Miles tinha respondido, imperturbável.

— Deve ser aquele ar de desprotegida de Glória Mallory que o enfeitiçou, Oliver. Até posso ouvi-la dizendo: "Ah, por favor, sir Miles, não quer ajudar uma pobre enclausurada a percorrer os ca­minhos deste mundo?" — remedou Célia em tom de falsete. — Aposto como ele ficou felicíssimo em atendê-la!

No instante seguinte, ela se deu conta da voz estridente, mas con­seguiu oferecer uma imitação razoável da mulher desesperada pela perda do homem amado. Com o rosto banhado em lágrimas, curvou os ombros.

— Pronto, pronto, meu amor. Não fique tão triste — Lang con­solou-a sentando-se a seu lado e oferecendo-lhe o lenço de renda perfumado. — Já não lhe disse muitas vezes, querida, o quanto eu te amo e como me consideraria feliz com um pouco de atenção sua? Esqueça sir Miles, Célia, e case-se comigo!

Apesar de Lang encontrar-se no mesmo patamar da nobreza que Miles, Célia acalmou-se com a oferta. Estava determinada a conseguir algo melhor, mas, soluçando mais alto ainda, recostou-se nele.

— Ai, Oliver, você é tão bom para mim! Miles é um monstro!

Miles percorreu os olhos pelo quarto vazio.

— Sultana não está no estábulo — avisou Linnet que tinha ido lá após a descoberta de Mag.

— Com certeza, Glória foi cavalgar para espairecer um pouco. Ela ficou muito aborrecida ontem à noite — disse Miles.

— E com toda a razão! — aparteou lady Kathryn com severidade. __ Que grande audácia dessa Célia! Bem, você deve estar certo, meu filho.

— Vou procurá-la e verificar se ainda vai haver casamento hoje — disse ele suspirando.

Visualizava Glória percorrendo as colinas com expressão de tris­teza. Queria muito conseguir fazê-la sorrir novamente. Nesse instante, Mag apareceu no quarto.

— Sir Miles, d. Glória não me avisou, nem a Brunt, que ia sair. Ela não costuma fazer isso. — Deu uns passos à frente e parou diante do guarda roupa aberto. — Olhem, estão faltando algumas roupas! Acho que ela foi embora, sir Miles!

— Bobagem! Glória está aborrecida, eu sei, mas tem uma pro­priedade para dirigir. Em vez de ir, provavelmente ela teria me pedido para deixar Mallory Hall, pois a seus olhos, não passo de um patife! — afirmou Miles, esquecido de que falava com uma criada.

— Deve ter ido a Ross comprar suprimentos a fim de se distrair, embora eu tenha lhe dito para não ir tão longe sozinha.

Entretanto, ele mesmo não estava convencido e não podia impedir as ferroadas da dúvida.

Glória não tinha levado muita roupa, apenas os vestidos herdados da mãe, constatou Miles. Os elegantes, feitos por Linnet, continuavam pendurados no guarda-roupa. Os que faltavam eram os mais práticos, usados quando ela trabalhava. Esses, ela levaria caso tencionasse fugir.

No estábulo, Miles encontrou Ned olhando para a baia vazia, em frente à de Cloud. O menino contou que tinha dado pela falta da égua, ao amanhecer, quando viera dar leite a Rabicho. Mas havia imaginado que a patroa fora dar um passeio antes do café da manhã.

Cinco minutos depois, Miles cavalgava rumo à cabana nas colinas. Felizmente, o tempo estava bom, ensolarado, e não como naquele dia em que tinham se abrigado lá da tempestade. Glória podia ter procurado o lugar isolado com o intuito de enfrentar o sofrimento sem ser perturbada. Ele se consolava com a expectativa de encontrá-la a tempo de curar-lhe a mágoa com beijos ardentes.

Mas a cabana estava vazia. Tão vazia, que Miles mal acreditava que ele e Glória tinham compartilhado momentos de paixão intensa ali.

Ela só podia estar em Ross, tentou se convencer. Haveria de encontrá-la na ruazinha estreita, sobraçando as compras feitas. Mes­mo se tivesse de usar força, a obrigaria a ouvi-lo. A imagem da cena o manteve em calma relativa durante o trajeto de quilômetro e meio até o vilarejo.

Os proprietários dos poucos estabelecimentos conheciam d. Glória muito bem, mas não a tinham visto nessa manhã, informaram a Miles.

Completamente alarmado, ele voltou a Mallory Hall, passando por todas as fazendolas. Mas a resposta era sempre a mesma. D. Glória não havia aparecido por ali.

George Brunt atravessava o pátio do estábulo quando Miles, apres­sado, pulou da sela.

— Sua patroa voltou? — perguntou rezando por uma resposta afirmativa.

— Não, sir Miles — respondeu o administrador.

— Você faz alguma idéia aonde ela tenha ido?

Fingindo tristeza, mas na verdade escondendo o olhar de triunfo, Brunt abaixou a cabeça.

— Não, sir Miles, não faço.

— Deus o proteja se eu descobrir que você mentiu, Brunt. Cuide de Cloud. Ele precisa andar um pouco até se refrescar. Depois, es­cove-o bem e lhe dê de comer. Talvez eu tenha de sair outra vez.

O empregado dirigiu um olhar ressentido para as costas de Miles que se afastava. Consolava-se com o fato de não ter contado que ouvira os passos de Glória, rumo à cozinha, de madrugada. Alguns minutos depois, ele a tinha visto, pela janela, cavalgando a égua preta em direção ao sul.

Amarrada à sela, havia uma trouxa de roupas e de alimentos, sem dúvida. Nesse instante, Brunt tinha percebido que ela estava fugindo. Grandessíssima idiota permitir que uma briga com aquele arrogante sir Miles a forçasse a abandonar a propriedade e a segurança de um lar. Seria uma pena se ele, Brunt, não viesse a ter a oportu­nidade de humilhar a cadela orgulhosa da maneira com que só um homem poderia fazer. Mas se isso significasse que ele seria dono de Mallory Hall outra vez, boa viagem para d. Glória!

Glória parou a montaria numa duna abaixo da cidadezinha lito­rânea de Lynemouth. Estranhamente insensível, ela não conseguiu admirar a visão magnífica das ondas, livres de ilhas ou baías, es­tourarem borbulhantes na praia.

Como poderia perceber a beleza do mar se o coração morria? Pelo menos, era como se sentia. Uma dor tão profunda e constante só poderia significar a aproximação da morte.

Apenas nessa manhã, quando já estava longe de Mallory Hall, ela havia dado vazão absoluta ao sofrimento. O sol refletia nas lá­grimas profusas e o vento ecoava seus soluços. Ao ouvi-los, Sultana mexia as orelhas.

Pelo resto da vida, não precisaria mais de lágrimas e do coração, refletiu Glória. Não fazia a mínima idéia do que pretendia fazer. Apenas tinha certeza plena de não poder continuar em Mallory Hall, fingindo estar contente com a criação de carneiros e a remodelação da casa, enquanto a poucos quilômetros, a vitoriosa lady Célia e o marido instalavam-se no novo solar de Kyloe.

Talvez Miles tivesse se enganado tanto quanto ela. Até a chegada de Célia, ele devia estar convencido de conseguir virar as costas para o casamento vantajoso que o atraía com seu canto de sereia, prometendo mais riquezas e prestígio na corte.

Mas Glória tinha certeza de que Miles, à luz do novo dia, tinha percebido a grande insensatez de jogar tudo fora para se casar com ela. No caminho para a abadia de Belford, a linda e graciosa lady Célia, com seus incríveis olhos lilases, o devia ter reconquistado. Consciente de quase tê-lo perdido, talvez ela o tivesse seduzido a lhe fazer amor. E Glória não duvidava, nem um pouco, que sua paixão inocente não podia competir com a experiência da cortesã. Não havia lhe restado estímulo algum para prosseguir na luta da remodelação da casa, para lidar com o mau humorado e desleal Brunt, ou para mostrar aos arrendatários como era capaz de ser bon­dosa e compreensiva. Embora sentisse uma ponta de tristeza por deixar Mag e os meninos, sabia que enfrentariam a vida sem ela.

Tinham feito isso até sua saída do convento e continuariam, nem melhor e nem pior, do que a maioria das pessoas.

Um barco de pesca, aproximando-se da praia, chamou a atenção de Glória. Ela viu o homem pular e puxar a pequena embarcação para fora da água. Em seguida, ele ajudou duas crianças, de cabelos pretos, a saltar também. Eram um menino e uma menina que se puseram a correr pela areia à cata de conchas. Por um instante, o homem os fitou com expressão paternal e sorridente. Depois, co­meçou a tirar as redes do barco.

Uma nova tristeza confrangeu o coração de Glória ao olhar para eles. Ali estava uma alegria que jamais conheceria, a de ter filhos. Havia visualizado muitos deles concebidos com Miles. Quase todos teriam cabelos pretos como os do pai. Talvez só uma menininha herdasse seus caracóis loiros. Havia sonhado com eles brincando a sua volta, ou ensinando-os a ler, aproveitando a boa instrução ad­quirida com as freiras.

Do que lhe adiantaria a educação dali em diante?, indagou-se com amargura. Nunca iria conhecer a alegria da maternidade. Mas isso não queria dizer que não pudesse conviver com crianças. Não lhe seria possível transmitir a dádiva do conhecimento? Talvez, se não desse à luz um filho, em algum lugar deveriam existir crianças a quem ela pudesse ensinar.

Essa foi a primeira fagulha de propósito paia continuar a exis­tência. Embora não soubesse como realizá-lo, Glória sentiu-se um pouco melhor. Tinha um alvo além da prioridade de apenas evitar sofrimentos futuros.

Tentaria encontrar um lugar no qual não fosse reconhecida e onde sir Miles, dificilmente, a achasse.

Tola!, censurou-se. Ele nunca irá procurá-la. Vai se considerar um homem de sorte por se casar com a lindíssima lady Célia e se lembrará de você apenas como a jovem ingênua a quem ele seduziu.

Em algum lugar, ela encontraria trabalho honesto que lhe con­sumisse todas as horas do dia. A noite, haveria de estar tão cansada que não teria forças para pensar em olhos azul-claros, cabelos negros e lábios cujos beijos lhe prometiam o paraíso.

Jamais darei, a um homem, o poder de me magoar outra vez ― , jurou. Esperava vencer, com o passar do tempo, essa vontade de sentir as carícias das mãos de um homem, de seus beijos, das chamas paixão correndo-lhe nas veias...

Com esse voto sincero, virou Sultana na direção de Lynemouth, na intenção de procurar uma pousada.

 

                           CAPITULO XVI

Ao partir de Mallory Hall, Glória tinha levado o resto do dinheiro pago por Miles pelo aluguel do primeiro mês. Duas semanas mais tarde, quando chegou a Bootham Bar, o portal norte da cidade de York, só lhe restavam umas parcas moedas. Isso começava a afligi-la.

Havia esperado encontrar trabalho em Newcastie, pois nessa ci­dade movimentada, às margens do Tyne, havia muitos construtores de navios e comerciantes prósperos e abastados. Nenhum deles se mostrara interessado em contratar uma moça linda como governanta da casa, ou professora de crianças. Alguns tinham lhe oferecido empregos duvidosos e um chegara a propor dar-lhe um estabeleci­mento, sob sua "proteção", naturalmente. Glória havia fugido da cidade quando o indivíduo ignorara sua recusa.

Depois disso, ela limitou-se a procurar trabalho nos solares no campo, porém os donos dessas propriedades não precisavam contratar mais uma mulher que vagava, solitária, pelas estradas. Muitos já tinham oferecido abrigo a freiras, ou monges, e não se sentiam obrigados a fazer mais um ato de caridade. Outros, imaginando o que uma jovem à procura de trabalho fazia com um animal tão valioso, olhavam a égua preta com desconfiança. Um chegara a acusá-la de ter roubado Sultana. Porém, ela vira o olhar de cobiça a tempo e, temendo que o homem atiçasse os mastins para pegá-la, havia montado depressa e partido a galope.

Enquanto viajava por Yorkshire, pelas várzeas entre as charnecas ermas, uma idéia horrível começou a tomar forma em sua mente. Se não encontrasse trabalho honesto logo, teria de vender a égua para se sustentar.

Mas em algum canto da grande cidade de York, ela haveria de conseguir emprego. Talvez fosse um cargo mais humilde e não os que tinha cm mente. Sendo honrado, não importava.

A tarde já ia adiantada quando Glória entrou na cidade. Os guardas de Bootham Bar foram atenciosos e lhe indicaram uma estalagem barata, nas proximidades do portal. Por um pêni extra, ela poderia deixar Sultana no estábulo de lá.

Glória pensou em perguntar ao estalajadeiro onde seria o melhor lugar para se procurar emprego. Mas vendo o olhar de desconfiança com que a mulher dele, gordíssima, a encarava, não se atreveu. Se a tal criatura soubesse que ela só contava com unas míseras moedas, poderia muito bem pô-la na rua com medo de que escapasse sem pagar pela hospedagem.

O jantar de galinha assada, acompanhada de sangria de vinho, foi servido na mesa comum e consumiu mais um pêni. Já era tarde no dia para sair procurando emprego, mas cedo demais para se deitar. Além disso, fazia calor e, por ser verão, o sol não se poria ainda por um bom tempo. Seu quarto era pequeno e com uma única janela que, mesmo aberta, não refrescava o ambiente.

Sentindo-se irrequieta e preocupada com o futuro incerto, Glória saiu paia dar uma volta.

A estalagem ficava a uma curta distância da Yorkminster. Ao chegar à imponente catedral, Glória ficou desapontada, pois as vés­peras já tinham terminado. Restava-lhe visitar o templo e voltar na manhã seguinte a fim de assistir à missa antes de ir procurar trabalho. Saindo da catedral, Glória afastou-se mais pela cidade antiga e confinada pela muralha em volta. Percorreu a rua St. Leonard e chegou à ponte Lendal sobre o Ouse. Este era o maior dos dois rios que atravessavam York. Com o olhar preso na correnteza mansa das águas marrom-esverdeadas, ela imaginava o que a aguardava no dia seguinte. De repente, gritos cortaram o ar.

Do outro lado da ponte, viu uma mulher idosa, mal vestida, ten­tando se defender de dois rapazinhos. Para Glória, era inacreditável que alguém, de aspecto tão pobre, tivesse algo para ser roubado. Mas então, percebeu que o alvo era uma bolsinha de pano presa ao cinto da mulher, Esta, apesar da idade avançada, mostrava-se deter­minada a não se deixar roubar. Seus gritos estridentes tinham alertado Glória e, agora, a infeliz brandia uma bengala. Um dos meninos agarrou a arma improvisada, fazendo a velha cambalear, enquanto o outro, de punhos cerrados, pulava sobre ela a fim de subjugá-la antes de arrancar-lhe a bolsinha.

Havia algo familiar na postura curvada e na voz da mulher, mas Glória não tinha tempo para analisar isso no momento. Os dois Iadrões não teriam escrúpulos em machucar a pobre velhinha e esta não poderia continuar se defendendo até que um guarda fosse chamado. A bengala, tomada por um deles, estava jogada a uns passos dos dois que tinham a mulher acuada.

Indignada com o fato de ambos não se importar em atacar unia criatura tão idosa, Glória apanhou a bengala e entrou na briga, dando pancadas nos atrevidos e gritando mais alto do que a vítima.

Os golpes acertavam os alvos seguidamente e provocavam ge­midos e palavrões. Reconhecendo que a presa já não era tão fácil e que o barulho começava a atrair mais pessoas, os rapazes resolveram fugir por uma ruela lateral.

Glória inclinou-se sobre a velha caída e ajudou-a a se levantar.

— A senhora está bem? Aqueles bandidos a machucaram?

— Não, mas aposto como amanhã estarei com o corpo todo do­lorido. Pelos menos, eles não pegaram o que queriam — acrescentou com um sorriso na face toda enrugada. — Obrigada pelo socorro, dona. Mas, espere um pouco. Eu não a conheço, moça?

Tratava-se da mesma senhora idosa, pensionista do priorado de Kyloe, que havia partido com as outras freiras a fim de encontrai um convento aberto! Enquanto Glória, boquiaberta com a coinci­dência de encontrá-la em York, não conseguia dizer nada, Elizabeth Easington tornou a falar:

— Já sei! Jamais esqueço um rosto! — gritou triunfante. — Noviça Ancilla, não é?

— Sim, mas voltei a usar meu nome de batismo, Glória Mallory. De repente, surgia a esperança. Se a sra. Easington estava ali.

— O resto da comunidade está com a senhora? Todas encontraram abrigo aqui em York?

— Pois sim! Aquelas avoadas espalharam-se pelos quatro canto do país. Não faço idéia onde estejam. Tanto melhor, pois nenhuma delas era capaz de cuidar de um animal ferido, quanto mais de uma velha!

Tornava-se evidente que o humor da sra. Easington não havia melhorado após a saída do convento, percebeu Glória reprimindo um sorriso.

― E madre Benigna? Você veio embora e a deixou para trás? ― perguntou a velha senhora.

Seu tom era acusatório como se fosse ela quem tivesse ficado no convento, e não Glória, para cuidar da prioresa enferma.

― Madre Benigna morreu antes de eu deixar Kyloe, senhora.

― Ah! — murmurou a outra persignando-se. — Ela era uma pessoa muito bondosa, sempre me tratou bem e não como as outras. Que Deus a tenha.

Glória não entendeu se estava, ou não, incluída no grupo, mas não quis esclarecer o ponto.

— Como a senhora veio parar aqui? — indagou.

— Uma boa pergunta! Quando ficou claro que suas irmãs reli­giosas acabariam morrendo de fome pelas estradas, pois não chega­vam a um acordo sobre coisa alguma, nem mesmo a respeito de onde procurar um convento, exigi que me trouxessem para a casa de minha irmã aqui.

— Ainda bem que a senhora contava com ela para recebê-la.

— Isso não me ajudou muito. Encontrei minha irmã doente e eu, que também não gozo de muita saúde, você sabe, tive de cuidar dela. Acabou morrendo duas semanas depois, me deixando sozinha outra vez. Herdei uma casa bem grande e uma corja de criados ineficientes e desmazelados. Eles me roubariam até a roupa do corpo se eu deixasse. E por isso que sempre carrego meu dinheiro e jóias comigo — contou apalpando a bolsinha e elucidando, a Glória, o motivo do assalto. — Minha sobrinha mora lá também e...

― Nesse caso, a senhora não está sozinha — disse Glória.

― Ah, Margaret não ajuda em nada, só estorva. Como se não bastasse ser viúva com um bando de praguinhas, ela é meio tonta! Os filhos correm o dia inteiro como selvagens pagãos e analfabetos. Não tenho sossego. É demais para uma pessoa idosa!

Bem típico dessa mulher rabugenta não reconhecer as bênçãos recebidas quando havia tanta gente sem teto e na miséria, refletiu Glória. Imaginava por que ela se vestia tão mal se devia contar com uma ampla reserva monetária. Pelas aparências, Elizabeth Easington tinha se tornado a pessoa excêntrica das redondezas.

Todavia, a menção dos filhos barulhentos da sobrinha deu uma idéia a Glória.

— Sra. Easington, durante algum tempo, trabalhei numa fazenda de carneiros perto de Kyloe, mas não deu certo — começou Glória peneirando certos fatos. Não queria contar a essa megera abelhuda que era dona de um solar. Ela jamais entenderia suas razões para fugir. — Bem, vim para York à procura de trabalho. Talvez eu possa ser uma dama de companhia para a senhora e ajudá-la a tomar conta da casa.

A mulher idosa a fitou por um longo tempo. Depois, foi direto ao ponto.

— Ótimo! Você vai ser minha governanta. Isso vai mostrar à cozinheira qual é o lugar dela, sem dúvida! Minha menina, você é exatamente de quem preciso para pôr aqueles vagabundos na linha! E você poderá entoar as horas canônicas para mim. Vai ser tão reconfortante ouvi-las outra vez!

Glória refletiu se ainda se lembrava, pelo menos da metade, das palavras latinas. Os dias de convento pareciam-lhe há séculos de distância.

— E mais — continuou a velha senhora, entusiasmada. — Você é instruída e vai ler para mim à noite. Minha irmã tinha muitos livros, mas não enxergo mais as letras.

— A senhora disse que sua sobrinha tinha filhos?

— Sim, mas os pestinhas sabem que precisam ficar longe de mim. Eles são um tormento!

— Talvez, quando eu não estiver ocupada com a casa, possa dar aulas a eles.

— Duvido que aprendam a ler e a fazer contas muito bem. Mesmo assim, se você não deixar de lado as obrigações determinadas por mim, poderá dar umas aulas, de vez em quando, para as crianças. Vai ter de ser no estábulo atrás da casa. Você vai desistir dessa idéia tão logo perceba como vai ser difícil. Isso se resolve depois. Quando pode começar?

Glória explicou que já havia pago uma noite de hospedagem.

― Tolice! Por que haveria de dormir num colchão infetado de pulgas se poder ter um de penas, num quarto só para você?

Como a velha senhora não se contentasse com nada, exceto em ir imediatamente à estalagem buscar os pertences de Glória, as duas rumaram para lá.

A sra. Easington recusou-se a oferta cavalgar Sultana e Glória viu-se forçada a ir a pé, acompanhando-lhe os passos vagarosos, puxando a égua pelas rédeas.

― Está bem claro que você não me contou tudo, menina — disse

Elizabeth Easington ao apontar para Sultana. — Como uma freira pobre, forçada a deixar o convento, consegue um animal de raça como este? Não tente me enganar, Glória. Não vou abrigar uma ladra em minha casa.

Glória suspirou. Tinha de contar a verdade a fim de tranqüilizar a sra. Easington. Mas não mencionaria sir Miles Raven. Gostaria muito de desabafar as tristezas com alguém, contudo, não desejava que seu relacionamento com o nobre atraente do sul fosse roído como um osso.

— Pelo sangue no madeiro, madame, não sou ladra. Sultana é minha. Eu lhe contei que trabalhava numa fazenda de carneiros, porém omiti o fato de ser a proprietária do lugar. Após o falecimento da prioresa, mexi nuns papéis em seu armário e descobri o testamento de meus pais. Eu era sua única herdeira viva. Comprei a égua para poder percorrer minhas terras. Confesso ter sido vaidade minha ad­quirir um animal tão bom, mas não resisti quando a encontrei. Glória deu uns tapinhas no pescoço de Sultana e esta meneou a cabeça como se soubesse ser o assunto da conversa.

Ela esperava que Deus a perdoasse por modificar um pouco os fatos.

Começava a escurecer e, por alguns momentos, caminharam em silêncio. Em ambos os lados da rua, os moradores das casas fechavam as janelas, preparando-se para a noite.

Qual é mesmo seu sobrenome? Mallory? Agora me lembro! — exclamou a sra. Easington. — Mallory Hall, naturalmente. Ora, não se trata apenas de uma fazenda de carneiros, menina. Se não estou enganada, é um solar bem grande com várias fazendolas arrendadas ao redor. E você abandonou tudo para trás? Por quê? — indagou, incrédula.

Glória esperava que sua expressão piedosa fosse suficiente para afastar as suspeitas da sra. Easingfon.

— Fui freira por algum tempo e vivi no convento durante anos. Por isso, não me sentia bem possuindo tanta coisa e ainda recebendo dinheiro de meus arrendatários. Deixei a propriedade com meu ad­ministrador, resolvida a assumir uma vida mais humilde, trabalhando por minha subsistência.

As últimas palavras foram ditas em voz bem baixa enquanto, disfarçadamente, observava se a velha senhora se convencia com elas.

— Sei, sei! Como se o fato de ser dona de um solar não significasse trabalho árduo! E você não se importou em conservar um animal valioso! — comentou a sra. Easington com sua astúcia peculiar.

Glória baixou os olhos para as pedras do calçamento.

— Não, e isso deve lhe parecer contraditório, mas adoro Sultana.

— Claro, ela é lindíssima! Mas o resto é conversa fiada, menina, Existe um homem nessa história, não é verdade? Ah, eu sabia! — exclamou ao ver Glória morder o lábio a fim de se controlar.

— Por favor, não posso falar sobre isso. Talvez mais tarde, mas não agora. Não insista porque, senão, não poderei ficar com a senhora.

— Ai, pare de choramingar, menina! Não suporto mulher manhosa. Conte, ou não, como quiser -— resmungou a velha senhora em tom exasperado. — Mas eu sabia que você, eventualmente, ha­veria de se enredar com um homem. Eu não lhe disse alguma coisa assim quando morávamos no convento? Jamais me engano com essas coisas.

Elizabeth Easington não fez mais perguntas sobre o homem de quem, tinha certeza, Glória havia fugido. Limitou-se a falar das lem­branças guardadas do convento, de sir William e de Lady Anne. Pouco depois, chegavam a sua casa, uma construção muito boa, parte em madeira e de dois andares, perto do portal Micklegate Bar.

 

                                 CAPÍTULO XVII

Dois meses após um atormentado Miles ter partido, a galope, à procura de Glória, ele retornava a Mallory Hall. Num trote apressado, subia pela estrada íngreme, esperando desesperadamente que ela houvesse voltado durante sua ausência.

Passara um mês vasculhando a Nortúmbria, em vilas, cidades, fazendas e abadias desertas. Em todos os lugares, indagava se tinham visto uma jovem linda, de olhos azuis e cabelos loiro-acastanhados, possivelmente cavalgando uma égua preta, de sangue árabe. Às res­postas recebidas eram sempre negativas. Acabou-se tomando óbvio que Glória não desejava ser encontrada. Amargurado, Miles maldizia os próprios erros que a tinham levado a fugir dele num misto de mágoa e raiva.

No fim do primeiro mês, ele havia voltado a Mallory Hall apenas para apanhar lady Kathryn e Linnet e acompanhá-las até Ravenwood. Durante o trajeto para o sul e em todas as oportunidades, Miles prosseguia nas indagações sobre Glória.

Depois de deixar a mãe e a irmã em casa, ele tinha ido a Greenwich apresentar seus respeitos ao monarca. Recebido em particular, sen­sibilizara-se com a honra.

— Esperamos que ela já esteja grávida — confidenciou Henrique VIII, a certa altura do excelente jantar, referindo-se à nova esposa.

— Faço votos que sim, Majestade — Miles murmurou para, em seguida, falar sobre as reformas do priorado de Kyloe.

— Acha que o solar ficará pronto até a época de caça ao galo silvestre no outono, Miles? — perguntou o rei em sua voz possante.

— Assim espero, Majestade, pois meu pedreiro escocês é muito diligente.

Não podia imaginar o cada vez mais obeso monarca percorrendo as charnecas. Talvez ele planejasse permanecer no conforto do solar enquanto seus nobres alvejavam os pássaros.

— E quanto a um potro de seu garanhão? Já está a caminho? Você me prometeu um, lembra-se?

Henrique VIII a cavalo era outra imagem inconcebível.

— Ainda não, sire. Não encontrei, lá no norte, uma égua à altura de Cloud.

Miles deu-se conta de não ter pensado muito no pedido do rei desde que conhecera Glória. E após ela o ter abandonado, a questão do potro perdera importância.

Henrique mostrou-se desapontado e, em seguida, pensativo.

— Você não parece mais o mesmo, meu malandro Raven. O que o preocupa?

Surpreso com a percepção do rei, Miles levantou o olhar.

— Ah, nada, sire. Talvez uma visita a Smithfield amanhã, em busca de uma égua para Cloud, anime meu espírito. Suplico o perdão de Vossa Majestade.

— Não, Miles, você está precisando de uma esposa. Gostaríamos que todos aqueles, a quem estimamos, gozassem a mesma felicidade doméstica descoberta por nós. Quem sabe não conseguiremos en­contrar a mulher perfeita para ser sua esposa?

Não seria possível recusar tal oferta, porém Miles esperava que o monarca a esquecesse.

— Vossa Majestade é muito atenciosa e eu, muito grato.

Na manhã seguinte, Miles não foi a Smithfield procurar uma égua, mas ao escritório de sua companhia de despachos marítimos. O encarregado de seus negócios deu-lhe um relatório completo e satisfatório da situação. Então, cedendo à irresistível atração exercida pelo norte, ele tomou a estrada novamente.

E agora, aproximava-se de Mallory Hall, esperançoso de que fosse Glória quem lhe abrisse a porta. Com os braços estendidos, correria para ele, pronta para perdoá-lo pelo sofrimento que lhe causara.

Mas foi Ned quem lhe veio ao encontro com Harry, o irmãozinho, agarrado a sua camisa esfiapada.

— Bom dia, senhor — cumprimentou o menino ao apanhar as rédeas de Cloud. — Por acaso o senhor encontrou d. Glória?

— Não. Ela não voltou para cá? -— indagou Miles.

Sentiu um peso enorme no coração ao ver o menino sacudir a cabeça num gesto negativo. Já ia perguntar por George Brunt quando um grito lancinante, vindo do segundo andar da casa, ecoou no ar.

— Minha mãe está tendo o bebê — explicou Ned com ar preocupado demais para sua idade e enquanto o outro começava a chorar. — Não, Harry, não podemos ir para perto de mamãe. Hoje ela vai nos dar um novo irmãozinho. — Sem esconder o medo, virou-se para Miles: — Ela está gritando assim desde a madrugada. Vai ficar bem, não é?

Miles curvou-se para responder. Em voz suave, disse:

— Naturalmente. Mulheres têm filhos todos os dias e, segundo me contaram, todas gritam assim.

Esperava não estar dando uma esperança falsa. Mulheres também morriam de parto, ou em conseqüência dele. A última vez em que tinha visto Mag Brunt ela se mostrava muito abatida. A ajuda de Jack e Ned não era suficiente para aliviá-la do trabalho pesado da casa e das exigências do marido egoísta. Ao perguntar-lhe como se sentia, Mag se queixara da dor constante nas costas e dos pés inchados. Com ar de gratidão, ela havia sorrido e escondido, no decote, a moeda dada por Miles.

— Posso falar com seu pai, ou ele está lá com Mag?

Ned o fitou como se ele houvesse perguntado se o pai estava na lua.

— Não, claro! A sra. Small é quem está ajudando minha mãe. O pai disse que esse negócio de ter filhos é trabalho de mulher.

Miles não se surpreendeu. A única incumbência desempenhada por George Brunt com prazer era a de engravidar a mulher. O parto em si era sempre deixado aos cuidados de mulheres experientes, mas lady Kathryn costumava mencionar, com orgulho, como o marido ficava a seu lado a fim de encorajá-la. Miles se imaginava fazendo a mesma coisa quando seu filho estivesse nascendo. Seu e de Glória...

Pesaroso, Miles afastou a idéia da mente. Glória tinha desapare­cido, portanto, não haveria filhos de ambos.

— Bem, nesse caso, vou lá em cima ver se precisam de algo. Por favor, faça Cloud andar um pouco para se refrescar. Só depois, o leve para a baia.

Na sala, Miles encontrou Brunt completamente embriagado e com a cabeça caída na mesa. Ao lado, havia um garrafão, pela metade, de cerveja.

— Acorde, Brunt — chamou sacudindo-o.

Um gemido foi a resposta. Depois, o homem soergueu a cabeça e o fitou com os olhos baços e avermelhados.

— O que foi? Não me amole! Minha mulher está tendo um filho e eu preciso descansar.

Miles observou o estado de sujeira de Brunt e enojou-se com o mau cheiro exalado por ele. Sentiu a tentação de esvaziar o garrafão de cerveja fria sobre sua cabeça a fim de poder conversar com ele. Porém, desistiu. Se Brunt tivesse alguma notícia de Glória não a daria, caso ele o irritasse.

— Enquanto estive fora, você viu d. Glória, ou ouviu alguma coisa sobre ela? Fale a verdade, pois saberei se estiver mentindo.

Os gritos no segundo andar tornaram-se mais freqüentes. Talvez o trabalho de parto estivesse no fim.

A quantidade de cerveja tomada por Brunt, com o estômago vazio, o tornava imprudente e atrevido.

— Procurando sua rameira, meu caro cavalheiro? Eu também nâo desistiria dos prazeres encontrados entre suas pernas! Quem sabe eu não a instalei numa casa em Ross, como minha amante, e vou lá sempre que sinto um comichão? Nesses últimos tempos, não posso ter prazer com minha mulher imprestável.

Teria continuado a falar se Miles não o tivesse esmurrado até deixá-lo inconsciente. Devia saber que o salafrário imundo sonegaria qualquer informação sobre Glória. Ouvindo os meninos voltar do estábulo, ele arrumou a cabeça de Brunt com o rosto apoiado nos braços cruzados na mesa. As escoriações não demorariam a aparecer e os filhos não precisavam vê-las.

— Seu pai tomou muita cerveja e está dormindo — avisou com naturalidade quando Ned e Harry entraram na sala. — Fiquem longe dele, pois ao acordar, ele vai estar com uma terrível dor de cabeça e de muito mau humor.

Nesse instante, um novo grito de Mag foi acompanhado por um choro persistente e agudo.

― Seu irmãozinho nasceu — informou Miles às crianças, cujos olhos não poderiam estar mais arregalados.

Alguns minutos depois, a sra. Small descia a escada carregando algo.

― Sua filha nasceu. É uma belezinha e... Oh! — disse ela ao ver Miles e, depois, Brunt debruçado sobre a mesa, sem sentidos.

― O pai da criança bebeu um pouco demais e não vai entender nada agora. Mas estes dois aqui gostariam muito de conhecer a irmãzinha, não é, meninos?

Cuidadosamente, Miles pegou a recém-nascida, embrulhada num cobertor, e sentou-se fazendo um sinal para Ned e Harry se aproximarem.

― Vejam só, não é bonitinha? — disse para as crianças que, com olhar duvidoso, fitavam o rosto vermelho do bebê.

— Ora, a gente esperava um irmão. Meu pai vai ficar bravo. Ele disse que precisa de mais filhos homens porque voltou a ser dono do solar — contou Ned, preocupado, mas ao dar-se conta de ter falado demais, pôs a mão na boca.

Miles podia imaginar como Brunt, sentindo-se triunfante com a possibilidade de possuir Mallory Hall sem interferências, tinha se tornado mais autoritário ainda.

— Não podemos pensar que d. Glória se foi de vez. De repente, ela reaparece por aqui. Quanto a seu pai, ele não vai ficar desapontado por ter nascido uma menina. Quando crescer, ela vai ajudar sua mãe. Escutem, é muito bom a gente ter uma irmã. Gosto muito da minha. A de vocês ainda é bem pequenininha. Reparem só no ta­manho das mãos, dos dedos, das unhas, tudo tão delicado — sugeriu Miles ao afastar um pouco o cobertor.

Esquecidos da surpresa desagradável, Ned e Harry sorriram.

— Preciso voltar lá para cima. Daqui a uns dez minutos, o senhor já pode subir para ver Mag — disse a mulher do arrendatário ao tirar o bebê dos braços de Miles. — Sinto que não tenha encontrado d. Glória. Andamos muito tristes sem ela aqui.

Miles esperou os minutos determinados e mais alguns. A sra. Small tinha trocado a roupa de cama e tirado, do quarto, a bacia e as panelas de água quente usadas durante o parto. Embora exausta, Mag sorria, feliz, com a filhinha deitada na cama a seu lado.

Sir Miles, a sra. Small avisou que o senhor estava lá embaixo com os meninos. Muito obrigada. Eles estavam tão assustados!

— Sua filha é linda, Mag. Parabéns — disse Miles com um sorriso.

— Também acho bonitinha. Gostaria de batizá-la com o nome de Glória, mas George não deixará. Ele vai ficar furioso comigo porque tive uma menina. Não faz mal. Eu sempre quis uma filha — confessou ela, meio acanhada.

— Você deve lhe dizer o quanto ela vai ajudá-la na cozinha e como as filhas gostam do pai. Além do mais, Brunt ajudou a fazê-la.

— Mas George afirma que filhas nascem por culpa da mulher.

— Ah, sei. E ele se acha o único responsável pelo sexo dos meninos, naturalmente — comentou ele com um sorriso.

Mag o retribuiu, mas ficou séria em seguida.

— Soube que o senhor não achou d. Glória.

— Procurei por todos os lugares, Mag, na Nortúmbria inteira e no caminho daqui a Sussex. Acabei me convencendo que Glória não quer ser encontrada.

Miles curvou os ombros num gesto de desânimo. De repente, o cansaço da viagem se fazia sentir, porém, ele não queria ficar em Mallory Hall. Quando acordasse, Brunt estaria furioso como um urso picado por abelha.

— Por favor, sír Miles, não desista. Sei que os dois foram feitos para viver juntos e o senhor acabará encontrando d. Glória, se con­tinuar procurando.

Impossível, refletiu Miles, pois não sabia onde mais poderia achá-la.

Prometendo continuar na busca, despediu-se de Mag. Que Deus o perdoasse pela mentira, pensou uma hora mais tarde, ao cavalgar rumo a Kyloe. Pretendia verificar o andamento do trabalho de Angus MacDougall. Pela primeira vez, dormiria lá essa noite. No dia se­guinte, tomaria o caminho de volta para a corte.

— Agora, vamos repassar a lição de hoje mais uma vez. Depois, vocês podem ir brincar — Glória disse às três meninas sentadas à mesa da sala.

O verão já chegava ao fim. Estavam em setembro e anoitecia mais cedo. As crianças tinham feito por merecer algum tempo de distração no quintal atrás da casa.

— Vai brincar com a gente? — perguntou a mais nova das três e as gêmeas, de oito anos, Faith e Hope, aplaudiram a idéia.

No início, a boa vontade de Glória não tinha sido fácil de se conseguir. Elizabeth Easington não havia exagerado muito ao afirmar que as pestinhas comportavam-se como selvagens pagas. Antes de sua chegada, elas não tinham noção de disciplina. A mãe, Margaret Nutting, embora não fosse boba, ainda não havia se recuperado da morte do marido, ocorrida três anos atrás. Com expressão aérea, vagava pela casa como se vivesse num outro mundo. A tia avó, mulher egoísta, contentava-se em suborná-las para irem brincar no quintal.

As gêmeas, de cabelos vermelhos e altas para a idade, agiam como uma só pessoa e tinham transformado a irmã mais nova numa cúmplice cordata das traquinagens. Adoravam a liberdade usufruída e detestavam qualquer tentativa para limitá-la. Glória tivera de lançar mão de todo seu encanto e firmeza para conseguir convencê-las de como seria interessante e proveitoso aprender a ler.

Embora não muito, a mãe a tinha apoiado. Margaret via a pos­sibilidade de Glória educar-lhe as filhas sem que ela precisasse des­pender esforço algum. Elizabeth Easington custara mais a dar seu apoio. Ressentia-se do tempo gasto por Glória com as crianças a fim de conquistar-lhes a amizade. Porém com o tempo, começara a perceber como a casa ficava quieta durante as aulas. Devagar, foi parando de reclamar e Glória passara a trabalhar com mais sossego.

Suas obrigações com a velha senhora não eram muito onerosas. Elizabeth Easington exigia sua companhia durante várias horas do dia, mas quase sempre para ler. Havia cantado algumas vezes, mas a sra. Easington, ao perceber o quanto seu latim estava esquecido, não lhe pedira mais para entoar os cânticos religiosos. De vez em quando, saiam para um passeio a pé pela cidade antiga. Sua com­panhia deixava a patroa mais tranqüila quanto ao perigo de assaltos.

Nas primeiras horas da tarde, entretanto, Elizabeth Easington dor­mia e isso dava liberdade a Glória para fazer o que entendesse. Quando o tempo estava bom, ela levava Sultana para fora dos muros da cidade e cavalgava pelas charnecas. Muitas vezes, durante os passeios solitários, Glória debulhava-se em lágrimas. Indagava-se por que sua nova vida confortável não a impedia de acordar, durante a noite, ansiosa por sentir as carícias do homem atraente, o respon­sável por seu coração estraçalhado.

 

                               CAPÍTULO XVIII

Fortes motivos forçavam o retorno de Miles ao sul. A casa em Kyloe ainda não estava habitável e seria impossível continuar hospedado em Mallory Hall. George Brunt, sem dúvida, tornara-se um inimigo mortal, capaz de cometer qualquer traição. Miles não o temia, mas também não queria passar o tempo todo protegendo as costas.

Também não desejava procurar outras acomodações. No momen­to, era-lhe insuportável cavalgar pelas colinas da Nortúmbria. Tudo o recordava de Glória. Talvez, quando a casa estivesse terminada, ele voltasse a sentir alguma alegria ali.

Á volta à corte poderia ser divertida. Seria interessante observar Henrique VIII com sua nova rainha e lady Célia tentando conquistar um nobre, rico e poderoso, que a interessasse.

Miles foi diretamente a Whitehall. Como não houvesse conhecido a rainha na visita anterior, achou conveniente marcar uma audiência com o casal real. Vestido com elegância suntuosa, sentiu-se um cor-tesão novamente. As camisas de linho e os calções de couro, usados para cavalgar pelas colinas ao redor de Mallory Hall, estavam np fundo da arca, em seu apartamento no palácio. Aquelas roupas per­tenciam a uma outra época, a uma vida diferente.

— Miles, meu rapaz, é muito bom vê-lo novamente. Venha co­nhecer nossa rainha — trovejou a voz possante de Henrique quando este o viu endireitar-se da curvatura. — Minha querida, apresento-lhe sir Miles Raven, um grande malandro, mas muito sedutor.

Miles não se surpreendeu por, só então, notar a rainha. Jane Seyniour era pequena, com feições pálidas e calmas que não chamariam atenção em ambiente algum. Os olhos, de expressão dócil e desinteressante, o lembravam os de uma ovelha. Que grande contraste a exuberância elegante de Ana Bolena! Evidentemente, aí estava diferença procurada por Henrique VIII, pois ele mostrava-se bem satisfeito.

― Sir Miles, nós lhe damos as boas-vindas em nossa corte e

esperamos que permaneça conosco por mais tempo desta vez. Meu marido fala muito a seu respeito — a rainha Jane disse numa voz suave e pouco digna de nota.

― Estou aqui para servir — afirmou Miles sorrindo antes de se curvar outra vez.

― Como eu, sir Miles. Meu lema escolhido é "destinada para obedecer e servir".

Muito apropriado, refletiu ele, mas não disse nada. Desejava-lhe sorte.

— Você está suportando a rejeição muito bem, Miles. Ouvimos falar que lady Célia está procurando marido por outras bandas. Fi­camos surpresos. Vocês dois formavam um casal bonito — comentou o rei.

— A dama em questão e eu descobrimos que não combinávamos, Majestade — disse Miles.

— Sensato, meu rapaz, muito sensato. Jamais confie numa feiti­ceira de cabelos pretos. Aprenda conosco.

Com esforço, Miles controlou a expressão para não demonstrar a reação provocada pelo comentário sem tato do rei diante da su­cessora de Ana Bolena.

— Tenho aprendido muitas coisas coro. Vossa Majestade — de­clarou ambiguamente.

Mais tarde naquela semana, uma eufórica lady Célia Pettingham retornava à corte pelo braço do noivo. Tratava-se do marquês de Craningbourne, um homem já meio obeso e baixote. Sua cabeça, de cabelos ralos, mal alcançava os ombros da noiva. Mas o que lhe faltava em aparência, o bolso farto compensava. Pelo menos, era o que provava o anel de noivado, de brilhantes e rubis, ostentado por Lady Célia.

Sorridente, ela o apresentou a Miles num baile. Teria Célia contado ao noivo feioso seu relacionamento com ele?, indagou-se. Po­rém, o nobre calvo estava muito encantado com a noiva para dar importância a seus namoros anteriores e nem ao fato de estar sendo exibido como um troféu. Em tom calmo, Miles desejou-lhes felici­dades, o que provocou um olhar furioso de Célia. Depois desse encontro, ela não o procurou mais.

No fim do verão, a corte instalou-se no castelo de Windsor. O rei e os cortesãos distraiam-se na companhia das damas, enquanto os irmãos da rainha, Edward e Thomas Seymour, manobravam Cromwell, o conde de Essex, em busca de poder. Quase todas as noites, o rei visitava a cama da rainha, mas, se já tinha conseguido engravida-la, ainda não se sabia.

No outono, ocorreram alguns incidentes que forçaram o rei a esquecer os prazeres da vida.

Em Hexham, na Nortúmbria, os comissários do rei, encarregados de fechar mosteiros, encontraram resistência numa abadia. Vinte monges e seus pensionistas impediram-lhes a entrada. Três dias de­pois, em Lincolnshire, os coletores de impostos de Cromwell foram assassinados pelo povo. Em pouco tempo, um exército furioso, mas ordeiro, de trinta mil plebeus, marchava em Lincoln com uma lista de queixas para apresentar ao rei.

A cidade de York fervilhava com as notícias do alastramento da rebelião no norte. Glória e a sra. Easington tomaram conhecimento do fato numa manhã de outubro quando saiam da missa. Uma mul­tidão, reunida no pátio da catedral, ouvia um camponês ler a lista de queixas e uma petição enviada ao rei pelos revoltosos de Lincoln, onde o levante se centralizava.

Um murmúrio elevava-se da multidão à leitura de cada novo item. O ruído lembrava Glória do sussurrar do vento entre as colinas de Mallory Hall. Mas o barulho foi tomando força até que, quando os novos impostos foram mencionados, ele se tornou como o rugir de uma tempestade.

— E o mais importante, pedimos que os mosteiros fechados te­nham permissão para reabrir — leu o jovem fazendeiro.

— Glória, você poderia voltar para o priorado! — exclamou a sra. Easington, excitada.

― Meu convento não existe mais —- disse Glória, meio distraída.

Outros pontos da petição a perturbavam. Teria Henrique VIII, de fato feito todas aquelas coisas? Apossado-se das jóias e orna­mentos preciosos das igrejas e, depois, fechado-as para o povo devoto e tão dependente delas? Caso sim, ele havia provocado a rebelião. O norte conservador, ainda fiel ao catolicismo, tinha tolerado o di­vórcio do rei e o fato de ele se proclamar Chefe Supremo da igreja, porém não agüentaria muito mais.

Glória nunca tinha visto Elizabeth Easington tão animada. Suas faces estavam coradas e o andar, lépido ao acompanharem as pessoas que voltavam para casa comentando a petição e os boatos sobre os planos do rei.

Ainda perturbada com o que tinha ouvido, Glória mantinha-se calada. A sua volta, homens e mulheres prometiam resistir se os emissários do rei viessem a York para se apossar dos tesouros da catedral, ou das igrejas menores, e para arrecadar aqueles impostos absurdos.

— Glória, você quase chegou a fazer os votos perpétuos! Será que ficou tão mundana a ponto de não querer voltar para o convento, caso possa?

Glória mal pôde acreditar nos ouvidos. Primeiro, a sra. Easington havia comentado a sensualidade de suas feições e aconselhado-a a pensar em casamento. Agora, a instigava a voltar para o convento. Mas no estado de entusiasmo da velha senhora, seria impossível argumentar com ela.

Na verdade, Glória não sabia se desejava voltar para o convento, mesmo se pudesse. Apesar de sua vida atual ser simples è limitada, duvidava poder se adaptar novamente à antiga, na qual todos seus atos e pensamentos faziam parte de uma rotina.

— E por causa daquele homem não é? O tal de quem você não quer falar. Ainda espera encontrá-lo, confesse.

— Não, sra. Easington. Está tudo acabado e eu não penso mais nele — mentiu Glória. — Estou muito satisfeita com a vida em sua casa.

— E eu aprecio sua companhia, minha cara. Gosto muito de você, menina. Entretanto, considero um dever para com Deus de­volver-lhe uma das noivas, caso os conventos sejam reabertos.

— A senhora precisa levar em consideração o fato de Henrique VIII ser muito senhor de si. Só porque o povo lhe pede algo, ele não precisa atendê-lo. E até pode ficar muito zangado com a audácia dos moradores de Lincoln por enviar-lhe a petição.

— Pois sim! Ele tem de respeitar a vontade do povo! Quando York e as outras regiões se juntarem ao levante, o rei perceberá o quanto tem errado. Se não atender a petição, perderá a coroa!,

Pelas palavras altas ditas à volta, muitas pessoas pensavam da mesma forma. Bastaria jurar fidelidade ao rei para garantir o aten­dimento de seus pedidos.

Um rei, que mandava executar a própria esposa e seus supostos amantes de maneira tão selvagem, não se submeteria a receber su­gestões imperiosas. No fundo do coração, Glória desejava que a revolta não se alastrasse para outras regiões e que Henrique VIII respondesse a petição com tato e comedimento. Porém, tinha sérias dúvidas.

O medo em Henrique Tudor sempre se transformava em raiva e ele, vendo a autoridade seriamente ameaçada, deu vazão à fúria pe­rigosa. Sem perda de tempo, escreveu uma resposta violenta da pe­tição.

— Miles! Quero que você acompanhe o duque de Suffolk em sua viagem a Lincoln, a fim de abafar a maldita insurreição!

—- Sim, sire.

Nesse momento, a rainha entrou no aposento e curvou-se.

— O que foi, minha querida? Você parece perturbada — o rei disse estendendo-lhe a mão.

Miles suspirou aliviado. Jane Seymour não poderia ter escolhido momento melhor para aparecer. Só ela conseguiria apaziguar a ira do rei.

— Estou sim, caro marido — Jane Seymour disse após cumpri­mentar Miles com um aceno de cabeça. Em seguida, ajoelhou-se diante do homenzarrão que a tinha feito rainha. — Fiquei sabendo da petição e alguns dos itens são justos, acredito. Eu lhe suplico a reabrir as casas religiosas como o povo pede. Não vê que essa rebelião é um julgamento contra você?

Miles prendeu a respiração e esperou pela erupção do vulcão humano. A terceira rainha de Henrique VIII não poderia ter dito nada mais enraivecedor. Ninguém acusava o rei de estar errado. Ele empalideceu e, depois, ficou rubro.

— Já não lhe disse para não meter seu nariz longo e aristocrático no que não é de sua conta? Levante-se, madame, e lembre-se do destino de sua antecessora!

Com um gemido de medo, a rainha obedeceu e deixou o aposento.

― Mulheres! A criaturas mais estúpidas feitas por Deus! Ele não deveria ter lhes dado língua! — rugiu Henrique Tudor ao virar-se para Miles. — Não fique aí parado com a boca aberta, rapaz! Vá procurar o duque e mostrar à plebe que não serei desafiado por ela como não sou por mulher alguma!

A rebelião sibilou e morreu em Lincolnshire. Os grupos de re­beldes tinham procurado seus magistrados, mas estes não eram in­gênuos e sabiam que não conseguiriam nada. Mandaram avisar o rei e o duque de Suffolk que estavam sendo coagidos e não desejavam liderar rebelião alguma.

O exército do duque chegou a Lincoln no fim de uma semana e, a treze de outubro, reuniu-se com os magistrados a fim de discutir os termos da rendição.

Miles sentiu um grande alívio quando esses membros da pequena nobreza começaram a entregar as armas. Graças a Deus pelo bom senso! Sabia que o duque ia sugerir, ao rei, o perdão geral e Henrique, talvez, se mostrasse magnânimo. Miles gostaria muito de voltar para a corte, onde não ficaria procurando o rosto de Glória como o fazia nas ruas de Lincoln.

Entretanto, o levante popular não terminou. Logo chegava a no­tícia de que a curta rebelião em Lincolnshire tinha atravessado o Trent e atingido York. Nessa cidade, os mais entusiasmados eram, justamente, da pequena nobreza. O exército já era maior do que o do duque de Suffolk e recebera o nome de "Peregrinação da Graça". Apesar da conotação religiosa, Miles sabia que Henrique VIII a veria como um monstro perigoso e digno de ser esquartejado.

 

                                       CAPÍTULO XIX

― Jesus crucificado, pelas vossas chagas, guiai-nos, pobres pecadores, na Peregrina­ção da Graça! — entoava a multidão ao percorrer as ruas de York. A frente, ia Robert Aske, advogado de York, com escritório ern Londres. Estando ali de passagem, vira-se atraído pelo movimento político-religioso. Homem instruído e bem articulado, logo passou a ser chamado de Grande Capitão pelos membros desse exército que, segundo alguns, já contava com sessenta mi! pessoas. E a cada passo, mais se agregavam a ele. Eram padres, monges, freiras e seus simpatizantes, mercadores, fazendeiros, advogados, viajantes e donas de casa, todos tendo deixado seus afazeres como se nada fosse mais importante do que marchar seguindo a bandeira das Cinco Chagas.

— Glória! Eles vêm vindo para cá! — exclamou Elizabeth Easington, parada em frente da casa e prestando atenção ao vozerio cada vez mais alto.

— Tem razão. Talvez a senhora consiga ver, de relance, o famoso Aske — concordou Glória sorrindo da animação da velha senhora.

Embora fosse bom ver a patroa interessada em alguma coisa, preocupava-se com ela. Uma expressão de fanatismo marcava-lhe o rosto. A pobre via, nessa procissão de plebeus, a possibilidade de se restaurar o passado. Glória temia que ela desse todo seu dinheiro para a causa, sem se importar em deixar as sobrinhas, e a si mesma, na miséria.

De fato, a multidão se aproximava da casa de Elizabeth Easington. Ela e Glória já podiam ver a bandeira das Cinco Chagas ondulando-se na frente da procissão. Logo depois, vinha um homem com uma capa roxa, montado num cavalo branco.

Abanando o chapéu, Aske cumprimentava os cidadãos de York que, debruçados nas janelas, acenavam e atiravam moedas. Rapazes e meninos as apanhavam depressa para que nenhuma se perdesse, notou Glória.

Quando passavam bem em frente da casa da sra. Easington, esta saiu correndo e gritou:

— Sr. Aske! Grande Capitão! Venha tomar um copo de cerveja! Honre a minha casa!

O advogado, transformado em líder político-religioso; sorriu e observou a casa. Depois, dirigiu-se aos seguidores:

— Por que não? Estou com sede e esta boa mulher se oferece para matá-la. Quem sou eu para recusar seu convite? Não passo de um humilde servidor de Cristo.

Glória notou que ele não pensava na sede dos outros, mas ninguém parecia se importar.

— Peregrinos dedicados, continuem a marchar e recrutem aqueles que receberam o chamado divino. Esperem por mim na campina fora do portal Monk Bar. Estarei lá dentro em pouco.

Eles prosseguiram atrás da bandeira empunhada e Glória foi levar a montaria do líder ao estábulo.

Quando entrou em casa, alguns minutos depois, viu Robert Aske sentado à cabeceira da mesa, sendo servido por uma excitada Margaret Nutting, enquanto a sra. Easington sorria, feliz.

— Ah, aqui está a moça de quem lhe falei, sr. Aske, Glória Mallory, ex-noviça Ancilla. Era beneditina no priorado de Kyloe, na Nortúmbria, outra a quem o senhor ajudará quando nossa causa conquistar o coração pecador de Henrique VIII.

Robert Aske sorriu e virou-se para Glória.

— Sua fé é elogiável, minha boa noviça, e será recompensada, prometo. Nós, os peregrinos, haveremos de levar não só as freiras de volta a seus conventos como também a fé verdadeira ao reino. Para tanto, contamos com suas orações, srta. Mallory, quer dizer, noviça Ancilla. Quero convidá-la para marchar com a bandeira das Cinco Chagas. Aceita?

Com todos os olhares voltados para ela, Glória perdeu a fala por uns instantes. Finalmente, murmurou:

— Sr. Aske, sinto-me honrada com o convite, mas devo recusá-lo. Assumi a responsabilidade de cuidar da sra. Easington e de sua casa.

Por um momento, fez-se silêncio. A sra. Easington ficaria brava com ela, mas Margaret sentiria alívio, refletiu Glória olhando para os pés.

— Percebo como o meu egoísmo pode impedir sua satisfação espiritual, minha cara menina — declarou a velha senhora devagar.— Você não pode retomar seu destino enquanto se sente presa ao dever de cuidar de uma velha mulher. Eu a dispenso de sua respon­sabilidade, Glória.

Novamente, todos os olhares fixaram-se nela.

— Não, sra. Easington. Lamento, mas não posso fazer isso. Deus bondoso, não a deixe insistir.

— Nesse caso, não me resta escolha, Era mesmo o que eu queria fazer, mas tinha medo. Voa marchar com o senhor, Grande Capitão — anunciou Elizabeth Easington.

Glória olhou para Margaret. Sua expressão pedia-lhe para fazer alguma coisa, pois a tia, muito frágil, não poderia ir. Morreria pelo caminho.

Como criada, Glória sabia, não cabia a ela explicar que a decisão, além de impraticável, era ridícula. Robert Aske não teve o bom senso de fazê-lo e Margaret não seria ouvida.

Tornava-se imperioso convencer a sra. Easington a não se aven­turar em algo além de suas forças.

— Madame, se a condição para a senhora ficar em casa é a minha participação na marcha, eu vou — prometeu Glória rezando para ser atendida, embora, juntar-se aos peregrinos fosse a última coisa que desejava fazer. — Suas sobrinhas precisam de sua orien­tação e sabedoria — acrescentou apontando para Margaret e as me­ninas.

— Não tenho o direito de impedir ninguém de cumprir seu dever para com Deus. Graças à ajuda da srta. Mallory, aprendi como cuidar de uma casa. Ficarei mais tranqüila, em relação a minha tia, se a srta. Glória a acompanhar—declarou Margaret falando pela primeira vez.

Glória a fitou a tempo de ver-lhe os olhos brilhando. Entendia. Margaret via a oportunidade de se livrar da autoridade da tia e da interferência de uma estranha.

― Obrigada por mudar de atitude, Glória. Ouço o chamado de Nosso Senhor para tomar parte na peregrinação, mas vou me sentir melhor se contar com sua companhia. Quando devemos chegar ao acampamento, sr. Aske? — indagou a velha senhora.

― Umas duas horas lhes seriam suficientes para arrumar roupas e alimentos? Não levem mais nada, pois poderemos percorrer dis­tâncias longas a fim de ir ao encontro de Sua Majestade.

Poderia se recusar a seguir essa idéia absurda, refletiu Glória. Mas Margaret não permitiria sua permanência na casa, mesmo se as filhas suplicassem. Também não poderia abandonar a sra. Easington, idosa e fraca, nessa loucura. Embora egoísta e implicante, ela a tinha recebido, dado-lhe teto, alimento e até amizade. Por uma questão de decência, deveria acompanhá-la e cuidar dela.

Apesar de Robert Aske lhe parecer um tanto enfatuado e estranho, quem sabe não seria capaz de provocar as mudanças almejadas por seus compatriotas do norte?

— Estaremos lá, sr. Aske — prometeu Elizabeth Easington sem dirigir nem mais um olhar a uma Glória aturdida.

Em lugar da permissão para voltar para casa, após ter ajudado a abafar o levante em Lincoln, sir Miles Raven recebeu ordens para se juntar às forças reais em Newark. Não ficou aborrecido, embora não compartilhasse a fúria do rei contra os rebeldes decididos a restaurar as instituições religiosas abolidas por ele. Na verdade, sen­tia-se inquieto demais para representar o papel de cortesão elegante em Whitehail e Greenwich e até para visitar a família em Ravenwood.

Miles não conseguia esquecer Glória Mallory. As elegantes e lindas filhas da aristocracia, tanto na corte como em Sussex, tinham renovado os esforços para chamar sua atenção. Umas o queriam como marido e outras, já casadas, propunham consolá-lo pela rejeição de. lady Célia, amplamente anunciada. Mas nenhuma conseguia pro­vocar-lhe reação alguma além de um sorriso desinteressado.

Que fim teria levado Glória? Onde se escondia? Quanto mais Pensava, menos dormia à noite. Lembrava suas qualidades e persistência, lealdade e ingenuidade, admiráveis mas capazes de lhe provocar problemas. A última já estava um pouco atenuada, pois Glória começava a ser realista. Porém Miles temia que não fosse o suficiente para fazê-la enxergar a maldade sob o verniz de bondade em certos indivíduos.

Miles começava a desconfiar que ela estivesse envolvida com a rebelião. Monges e freiras, após passar fome e vagar pelas estradas, haviam se juntado, às centenas, ao movimento. Depositavam nele a esperança de voltar à tranqüilidade da vida religiosa. E por que não Glória também? Poderia muito bem estar em algum lugar por onde a Peregrinação da Graça houvesse passado. Desiludida e magoada, teria visto nela, como os outros religiosos, o caminho de retorno ao convento.

Mas não existia uma solução perfeita e fácil para os desmandos do rei. Henrique Tudor não passaria a mão na cabeça dos rebeldes, nem lhes pediria para refletir sobre o erro de criticar os atos do monarca. Quando ameaçado, o rei reagia como um touro acuado. Que Deus protegesse quem o desafiasse, fosse homem, mulher ou criança. Miles temia pela vida dos plebeus idealistas, convencidos de poder vergar a vontade de um rei voluntarioso e ameaçador.

Se fosse humanamente possível, haveria de encontrar Glória en­quanto acompanhava os generais enviados para defender a vontade do rei, refletiu Miles. Provavelmente, teria de protegê-la contra a conseqüência de seus atos.

Certa noite, Miles e os companheiros aqueciam-se ao redor da fogueira, no centro do acampamento, enquanto falavam da rebelião.

— Dizem que a Peregrinação da Graça tem de cinqüenta mil a sessenta mil pessoas e nós só contamos com sete mil — comentou sir Nicholas Hampton, um rapaz jovem, em tom preocupado. — Outro boato é como a rebelião está se alastrando pelo norte inteiro Lancashire, Furness, Cumberland, Westmoriand clamam contra rei.

Estava claro que a idéia de uma batalha o amedrontava. Miles já ia dizer algo para tranqüilizá-lo quando uma outra voz soou atrás dele.

— Eles não passam de monges, fazendeiros e comerciantes mal armados, enquanto nós somos treinados tão bem quanto os soldados profissionais. Vamos esmagar esses traidores como os cachorros que são.

Miles virou-se para trás e deparou-se com sir Oliver Lang. A capa e as botas estavam empoeiradas e o rosto dele revelava cansaço.

— Olá, Raven. Prazer em vê-lo. Estou chegando da Nortúmbria e trouxe uns homens para lutar a meu lado. Você deve se lembrar de George Brunt — continuou fazendo um gesto para o outro se aproximar. — Ele é meu braço direito. Não vejo a hora de castigar os rebeldes papistas que querem nos privar das terras concedidas pela benevolência real.

— Imagino. Muito louvável de sua parte — disse Miles com um olhar indecifrável para Lang.

Em seguida, olhou para Brunt. Não podia se lembrar de dois homens cujo encontro o desagradasse mais, porém não se deixaria provocar.

— Para um homem que corre o risco de perder a propriedade na qual vem empregando dinheiro, você encara a situação com muita displicência — comentou Lang.

— Duvido muito que as antigas freiras de Kyloe se reencontrem para tomar o convento — respondeu Miles numa voz arrastada e indiferente, provocando o riso dos companheiros.

Irritado, Lang tomou-se veemente.

— Talvez não, mas parece que você não se incomodaria nem um pouco se isso acontecesse, ou se os monges ocupassem novamente a abadia de Belford. Tal atitude, pode ser classificada de traição, fique sabendo.

Aparentemente imperturbável, Miles continuou a observar Lang. Não precisava temer os outros homens ao redor da fogueira, pois não eram maledicentes, porém Lang seria capaz de qualquer perfídia.

— Em minha opinião, um homem que deseja manter a boa re­putação perante o rei, não pode se descuidar de sua posição política — prosseguiu Lang estudando a expressão dos outros homens. — Afinal, você protegeu uma ex-freira, não é verdade? Sabe-se que elas estão entre os súditos mais sediciosos de Sua Majestade. Talvez você planeje dar Kyloe para Glória Mallory, caso a rebelião tenha sucesso, e fazê-la a nova prioresa.

Num piscar de olhos, Miles estava em pé, com a espada desembainhada. Quando sir Oliver Lang se deu conta, a ponta da lâmina cutucava-lhe o pescoço e o olhar gélido de sir Miles Raven o de­safiava.

— O que sabe sobre Glória Mallory? Você a viu? — indagou Miles numa voz tão fria quanto o olhar e tão cortante quanto a espada.

— Quem, eu? Não, é claro, mas aposto como faz parte da Pe­regrinação da Graça, não concorda? Ela nunca encontrou, em sua cama, a mesma satisfação obtida com as rezas papistas. Ouvi dizer que ela fugiu de suas atenções. Para onde mais teria ido a rameira?

— Desembainhe a espada, Lang. Você está prestes a morrer e eu não quero ser acusado de matar um homem desarmado.

Impotentes para conter a fúria dos dois homens, os outros se afastaram. O primeiro estalar das espadas já havia ocorrido quando o conde de Shrewsbury surgiu para pôr fim ao duelo.

— Parem neste instante, cavalheiros, eu exijo! — gritou ele e, a um gesto seu, dois homens se interpuseram entre os oponentes. — O que isso significa? O inimigo está do outro lado do Trent! Quem foi o primeiro a desembainhar a espada? Digam já, ou mandarei chicoteá-los como criminosos comuns! Lang apontou para Miles.

— Meu senhor, ele ofendeu a honra de uma dama que me era muito querida — reclamou Miles sem tirar os olhos de Lang.

— Lamento, meu senhor, mas não sabia que falávamos de uma dama. Pensei tratar-se da rameira de Raven!

Miles tentou atacar Lang novamente, mas dessa vez, o conde o segurou.

— Cavalheiros, não estamos aqui para brigar por causa de mu­lheres! Não vou mais avisá-los. Miles, vamos até minha tenda tomar um copo de vinho a fim de acalmar esse seu temperamento exaltado.

Lung e Brunt logo afastaram-se do círculo de homens, pois todos culpavam o primeiro pela desavença entre ele e Miles.

— Acredita mesmo, sir Oliver, que d. Glória faça parte da Pe­regrinação da Graça? Acha que vamos encontrá-la? — indagou Brunt.

— Eu não ficaria surpreso se isso acontecesse. Você gostaria bem de vê-la humilhada, não é, Brunt?

— Ah, muitíssimo! Ela tem um nariz tão empinado! Imagine, tomar a propriedade e me impedir de castigar minha própria mulher! Depois, tornou-se a rameira de Raven como qualquer vagabunda por aí!

— Você ficaria satisfeito se pudesse possuí-la, estou percebendo, Brunt. Pois vou lhe confiar um segredo. Eu também. A cadela me rejeitou com a desculpa de querer manter a castidade de freira. Quan­do encontrarmos a rebelde, haveremos de lhe dar o que merece. Primeiro eu, pois como nobre, tenho o direito. Não se preocupe, sobrará bastante para você. Depois de dispensar-lhe o castigo digno de seu atrevimento, nós a entregaremos à justiça magnânima do rei.

E então, meu caro Brunt, você não terá mais de se preocupar com a posse de Mallory Hall!

 

                                       CAPÍTULO XX

No dia seguinte, os peregrinos marcharam para o sul, rumo a Pontefract e Doncaster. Embora sendo outono, o tempo mostrava-se clemente, seco e não muito frio.

Cavalgando Sultana, Glória sentia-se aliviada por haver conven­cido a sra. Easington a montar o cavalo velho que fizera companhia à égua no estábulo em York. No início, a velha senhora tinha se negado, alegando que, pela causa santa, deveriam caminhar. Na ver­dade, cia não gostava de cavalos, Glória desconfiava. Mas no seu andar vagaroso, acabariam ficando para trás. Margaret tinha ajudado a vencer-lhe a resistência argumentando que, se fossem a pé, não poderiam levar a quantidade necessária de alimentos e roupa. E assim, resmungando sem parar, Elizabeth Easington tinha partido de York a cavalo.

Mais e mais, nobres e plebeus juntavam-se à procissão. Entre os primeiros, estavam os lordes Scrope, Latimer, Lumley e Darcy e sir Robert Constable.

Para pertencer ao movimento, todos precisavam fazer o Juramento do Peregrino. Glória imaginava se não teria assinado a própria sen­tença de morte ao repetir as palavras com uma das mãos na Bíblia e a outra numa relíquia da cruz.

Os peregrinos de York enviaram, ao rei, uma petição semelhante à dos de Lincolnshire. Acrescentaram dois pedidos: que lady Mary, filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão, fosse legitimada e que a autoridade papal voltasse a ser reconhecida.

Agora, só lhes restava aguardar a resposta, ou afligir-se, como no caso de Glória. Esses idealistas não percebiam que, se lady Mary voltasse a ser filha legítima, o casamento de Henrique VIII e Catarina de Aragão tinha sido válido, fato combatido muitíssimo pelo rei? Eles acreditavam mesmo que esse soberano teimoso se submeteria humilde e novamente à autoridade do papa?, Glória refletia.

A personalidade de Elizabeth Easington tinha passado por uma mudança radical. Já não se ouviam mais suas lamúrias, sobre dores e achaques, tão comuns no convento e na casa em York. Outras coisas, como crianças correndo e gritando pelo acampamento, não a incomodavam mais. Ela passava os dias longos e insípidos com expressão de beata, contentando-se com o convívio dos companheiros sonhadores. Insistia com Glória para se juntar a algum dos grupos de freiras desalojadas.

— Dessa forma, você poderá ir para um convento tão logo o rei Henrique corrija seus erros — argumentava ela, otimista.

Glória não lhe dava ouvidos. Além de não se sentir mais uma freira, não acreditava no sucesso da Peregrinação da Graça. Estava ali apenas para proteger a velha senhora, mantê-la agasalhada e ali­mentada. Isso estava se tornando difícil com a chegada contínua de novos adeptos, muitos dos quais, pobres.

Satisfeito com o apoio recebido, Aske aceitava qualquer um sem questionar. Muitos eram tão dedicados como os primeiros peregrinos, mas outros, Glória suspeitava, estavam ali para escapar dos patrões e se alimentar sem ter de trabalhar. Davam a impressão de ser capazes de roubar qualquer coisa que não estivesse segura. Portanto, enquanto Elizabeth Easington cantava e rezava com a multidão, Glória passava os dias vigiando os alimentos e os cavalos. Estes estavam presos do lado de fora da tenda que ela havia improvisado com uns metros de sarja. Quando finalmente a velha senhora retornava, Glória mon­tava Sultana e ia à procura de lenha e alimentos.

Ela havia colocado arapucas entre a vegetação rasteira, a uma meia hora de distância do acampamento, e, volta e meia, apanhava coelhos.

Uma noite, voltava com dois deles, quando viu um homem sentado ao lado da sra. Easington, perto da fogueira. Outro pedinte faminto?, conjeturou aborrecida. Muitos dos mais pobres tinham descoberto como era fácil conseguir uma refeição de graça da velha senhora.

E esta mantinha-se alheia ao fato de Glória se esforçar tanto para arranjar carne para ambas.

O homem levantou-se enquanto ela desmontava e, acompanhado da sra. Easington, aproximou-se.

— Veja só, minha cara, encontrei um velho amigo seu — anunciou a patroa.

Ao lado dela, postava-se George Brunt, sorrindo de sua perple­xidade. Os olhos miúdos não tinham perdido a expressão furtiva e a barba por fazer provava o desleixo permanente. A única mudança era nas roupas. Embora simples e com as habituais marcas de gordura, pareciam novas. Brunt raramente gastava dinheiro comprando roupa para si e a família. Quem lhe teria dado essas?, indagou-se Glória, desconfiada.

— Boa noite, d. Glória. É uma grande alegria encontrar a senhora — cumprimentou ele com efusividade a fim de impressionar a sra. Easington. — Não devia ter desaparecido daquela forma. Ficamos tão preocupados! Mag não se conforma e...

— Boa noite, Brunt — respondeu Glória interrompendo a falsa manifestação de alegria. — Lamento ter afligido Mag, mas fiz o que precisava. Ela já deu à luz? Tudo correu bem?

— Nasceu uma menina, Como católicos fiéis, nós a batizamos como o nome de Mary, mas insisti em dar também o de Glória, em sua honra — contou o mentiroso ao lançar um olhar de soslaio à sra. Easington.

— Que maravilha, um bebê! — exclamou a velha senhora como se gostasse muito de crianças. — O senhor teve coragem de deixá-lo e...

— Isso mesmo, Brunt, o que está fazendo aqui? — Glória voltou a interromper, encarando-o com firmeza. — Você só teria a perder se as abadias fossem reabertas. Não haveria de querer ser arrendatário do abade outra vez, se eu deixei Mallory Hall em suas mãos!

— Sou um filho devotado da igreja, juro — protestou Brunt em voz chorosa.

— Calculando que gostaria de ter notícias de sua antiga casa, convidei o sr. Brunt para jantar conosco — avisou a sra. Easington, aflita com a expressão descontente de Glória.

Nem mesmo para ser agradável a ela, Glória poderia tratar Brunt com cortesia. Entre outras coisas, lembrava-se muito bem de sua agressão a Mag no estábulo. Calada, continuou a encará-lo com firmeza.

— Não, muito obrigado. Nesta situação precária, não seria direito abusar de sua hospitalidade — declarou ele diante da hostilidade inflexível de Glória.

Tinha encontrado o que procurava e não precisava permanecer ali. Lang ia ficar contentíssimo.

Muito depois de Elizabeth Easington começar a roncar, Glória ainda continuava acordada, pensando no aparecimento inesperado de George Brunt. O que fazia ele ali? Só quem não o conhecesse bem, acreditaria em sua adesão aos ideais da peregrinação, "Uma Fé, Um Deus, Um Rei". O único deus para Brunt era ele mesmo. O que esperava ganhar ao lado dos peregrinos e expondo-se aos riscos da rebelião?

Por que pressentia que a presença do ex-administrador, no acam­pamento, tinha a ver especificamente com ela? Agora, além da ira do rei, precisava se preocupar com o que Brunt tramava.

 

O duque de Norfolk, ainda robusto e enérgico, apesar de mais de sessenta anos de idade, chegou para liderar as forças reais.

Miles achou estranha a escolha de Henrique VIII, pois não só o duque era tio de Ana Bolena como também não havia mantido se­gredo de seu catolicismo fervoroso e do desdém dedicado a Cromwell. Miles não se surpreenderia se Norfolk liderasse a Peregrinação da Graça, muito embora ele houvesse lucrado com o fechamento dos mosteiros.

Mas talvez Henrique Tudor tivesse feito uma escolha sensata. O velho duque fora um general de sucesso na campanha de Flodden e em muitas outras. Além do mais, ele tinha um irmão preso na Torre. Thomas Howard cometera a audácia de ficar noivo da irmã viúva do rei. Sendo assim, o duque de Norfolk seria perfeito para negociar com os rebeldes. Com a lealdade sob suspeita e o destino do irmão à mercê de Henrique, caberia a ele, acima de tudo, provar sua tempera ao real senhor.

— Eu disse a Sua Majestade que precisamos negociar com os rebeldes, pois não temos tantos homens quanto eles — o duque de Norfolk anunciou aos oficiais do exército real.

Muitos respiraram aliviados. Não só não queriam matar compa­triotas como também compartilhavam os ideais dos rebeldes. Miles não se tranqüilizou e o duque prosseguiu:— O rei exigiu execução em massa, mas acho que consegui per­suadi-lo a manter a um mínimo.

— Um mínimo? O que considera um mínimo, Alteza? — Miles se ouviu perguntando.

O velho duque dirigiu-lhe o olhar firme.

— Ah, Raven, é muito bom contar com você nesta companhia. A vida de quem deve ser sacrificada? Certamente a daqueles abades e monges desprezíveis que se atreveram a enfrentar os enviados do rei. Sua Majestade não abre mão disso. Depois, haveremos de ver, sir.

Então, Henrique VIII enforcaria os sacerdotes. Miles, de certa forma, duvidava que o rei parasse por aí.

— Vamos nos reunir com os líderes rebeldes amanhã, em Doncaster — continuou Norfolk. — Meu objetiVo é conseguir um acordo com eles, o de se dispersarem em paz e voltarem para casa. Mas para salvar a maioria deles, preciso avisá-los da necessidade de guar­dar segredo do que foi dito aqui.

— Preocupado com a sua freirinha, não é? — provocou uma voz baixa o suficiente para só Miles ouvir.

Este virou-se para encarar a expressão debochada de sir Oliver Lang. Como sempre, Brunt o acompanhava.

— Não sei como isso pode ser de sua conta — respondeu Miles numa frieza tão cortante como o vento que varria o acampamento militar nessa manhã de fim de novembro.

— Ora, por que essa hostilidade, sir? Pois sei de algo de seu interesse, Raven.

Miles esperou calado, encarando Lang e ignorando Brunt. Preferia morrer a ter de suplicar informações a esses dois patifes. Lang concentrou a atenção na maçã que descascava.

— Brunt voltou, com os outros espiões, do acampamento dos rebeldes em Doncaster. Sua freirinha está lá.

— Glória em Doncaster? — murmurou Miles entre aliviado e aflito.

Se estava em Doncaster, poderia cair em qualquer armadilha que o rei resolvesse armar.

— Sim, ela está lá e, tal qual os outros rebeldes, usando o emblema das Cinco Chagas. Tome cuidado, Raven. Não deixe que seus sen­timentos por uma mulher o levem a cair no desagrado do rei. Mu­lheres, você encontra às dúzias por aí.

— E você, tome cuidado para não se imiscuir no que não lhe diz respeito — Miles recomendou ao virar-lhes as costas e se afastar.

Providenciaria para fazer parte da escolta do dia seguinte. Haveria de encontrar Glória e levá-la para a segurança, mesmo se tivesse de arrastá-la até Sussex.

 

                           CAPÍTULO XXI

O duque de Norfolk tinha uma outra razão para ne­gociar com os líderes da Peregrinação da Graça em vez de confrontá-los abertamente. Esta, porém, não confiou a subordinado algum. A questão resumia-se ao fato de as forças reais contar com muito menos homens do que as dos peregrinos. Além disso, um bom número dos soldados sob seu comando, nobres e plebeus, simpatizava tanto com a causa dos rebeldes que não seria recomendável confiar neles em caso de combate.

Ele não havia sobrevivido as vicissitudes do reinado Tudor sem desenvolver a habilidade de conhecer o coração humano. Sir Miles Raven, por exemplo, não tinha revelado pela atitude, ou tom de voz, não aprovar a execução de compatriotas. Porém, ele havia lido isso em sua expressão.

Havia alguns, entretanto, cujos olhos brilhavam com a perspectiva de derramamento de sangue, ou com a oportunidade de obter ganhos através da morte de "traidores". Sir Oliver Lang pertencia a esse grupo, refletiu Norfolk. Jamais gostara do homem, mas isso não tinha nada a ver com o fato de havê-lo apanhado dirigindo olhares de cobiça a sua sobrinha Ana Bolena.

Todavia, não precisava gostar de um homem para usá-lo. Sus­peitava que iria precisar de indivíduos como Lang quando as nego­ciações terminassem e a armadilha estivesse preparada.

No dia seis de dezembro, uma grande animação alastrava-se pelo acampamento dos rebeldes. O duque de Norfolk, chefe do exército real, tinha vindo ouvir os pedidos que os peregrinos apresentariam ao rei.

― Vamos vencer! — diziam uns aos outros. — Sua Majestade,

o rei, reconhece os erros, sabe que nós o amamos e só queremos o bem da Inglaterra! Ele vai nos ouvir! Se não fosse, não mandaria 0 poderoso duque de Norfolk para negociar conosco!

Chovia desde o amanhecer e, com o vai-e-vem das pessoas, as passagens entre as tendas logo se transformaram num lodaçal in­transponível. Mas o frio úmido não abatia o entusiasmo das pessoas. Elas aglomeravam-se à volta da tenda onde seus líderes liam a petição ao duque e sua escolta. Ninguém queria perder o anúncio das boas novas.

Elizabeth Easington, apesar dos pedidos de Glória para levar em consideração o mau tempo, insistia em se juntar à multidão.

— Ora, ora, menina, você se preocupa muito com minha idade e suposta fraqueza, mas não sou eu quem está resfriada — ralhou ela ao olhar para os olhos lacrimejantes e o nariz vermelho de Glória.

— Tome seu chá e trate de melhorar. Você não há de querer perder a comemoração da vitória.

Horas mais tarde, ela estava de volta contando que o duque havia se retirado para refletir sobre a petição. As perspectivas pareciam promissoras, pois Norfolk havia acenado para o povo que, ajoelhado, conferia-lhe o respeito digno do representante do rei.

— E havia um cavalheiro, na escolta do duque poderoso, que perguntou por você, menina.

Glória que, deitada, mal ouvia as palavras entusiasmadas da sra. Easington, sentou-se depressa.

— É mesmo? — indagou, esperançosa.

Controlou-se logo, pois seu amor por sir Miles Raven era coisa do passado, morto pela duplicidade dele.

— Sim, menina. Um homem muito atraente, com cabelos negros e olhos azuis, quase prateados. Ele é o tal, não é? O que você deixou na Nortúmbria?

Com os olhos baixos para que a sra. Easington não lhe visse a emoção, Glória respondeu com um gesto de cabeça. Pela descrição da velha senhora, não podia ser mais ninguém.

— Eu estava errada em querer forçá-la a voltar para o convento — declarou Elizabeth Easington. — Você foi feita para esse homem.

— A senhora não contou que eu estava aqui, não é?

— Não, mas só porque ele não me perguntou diretamente e sim às pessoas a meu lado, que não a conheciam. Eu não poderia mentir — acrescentou em tom piedoso.

Apesar da tristeza profunda, Glória murmurou:

— Eu não quero vê-lo.

Após três dias, a Peregrinação da Graça recebeu a resposta. O rei, representado pelo duque de Norfolk, consentia em instituir um parlamento, no norte, para que pudesse estudar, pessoalmente, os itens da petição. Ele já havia concedido perdão geral para todos os atos de rebelião cometidos de Doncaster ao norte, antes do dia sete de dezembro, véspera do Natal da Virgem. A fim de ser perdoado, Robert Aske havia tirado, do gibão, o emblema das Cinco Chagas e ajoelhado-se diante de Norfolk. Em obediência ao rei, ordenara que o exército rebelde se dispersasse.

— Não vejo a hora de chegar em casa, Glória! — declarou a sra. Easington enquanto acomodavam os pertences em sacolas presas às selas. — Vou ficar contente até em ver aquelas praguinhas, filhas de Margaret, juro!

Glória sorriu com mais essa evidência da mudança radical na personalidade da patroa. Porém, imaginava qual seria a reação de Margaret Nutting' ao ver a tia de volta. Afinal, ela havia gozado inteira liberdade durante semanas. Mas seria muito bom dormir numa cama, e não numa enxerga no chão, sob um teto sem goteiras e não se preocupar se acabaria na forca, junto com os outros rebeldes, acusada de traição.

Apesar de toda a alegria reinante no acampamento, Glória se sentia apreensiva com o tal perdão. Fora dado com muita facilidade. Não acreditava que Henrique Tudor deixasse todo mundo escapar ileso. A sra. Easington tinha lhe contado que Robert Aske recebera o convite para ir à corte apresentar, pessoalmente, sua causa ao rei e comemorar com ele as festividades santas. Em seu lugar, Glória não iria.

Havia uma outra razão para ficar contente com o retorno para York. Quando a a velha senhora lhe contara que Miles estava no acampamento indagando por ela, havia começado a se sentir exposta, vulnerável, como se pudesse encontrá-lo a qualquer momento. Perdia o sono e, quando conseguia dormir, sonhava com as carícias do homem de cabelos negros e olhos azul-claros. Durante o dia, jurava não se deixar enganar, novamente, pelas mentiras ardilosas.

— Está tudo pronto. Vamos embora, sra. Easington.

— Gostaria que fosse comigo, Glória — disse uma voz a suas costas.

Já com as rédeas de Sultana "na mão, Glória virou-se depressa. Empalideceu primeiro e, depois, corou enquanto o coração disparava.

— Como conseguiu me encontrar? — balbuciou.

Miles Raven estava elegantíssimo com uma roupa de veludo azul-escuro e sorria-lhe com uma meiguice imensa, capaz de derreter o coração de uma santa de alabastro.

O que ela não era. Feita de carne e osso, talvez fosse uma entre muitas mulheres, a quem esse canalha atraente havia seduzido e enganado.

— Desde o início das negociações, venho vasculhando o acam­pamento. Alguns peregrinos a conheciam, mas não sabiam dizer onde ficava sua tenda. Então, na esperança de que você ainda tivesse Sultana, comecei a procurar pela égua. Não tinha muito mais tempo, pois todos já se preparavam para partir. Estava desesperado, Glória. Vamos embora comigo, amor.

Miles tomou-lhe as mãos com firmeza. Sob o olhar perscrutador e interessado da sra. Easington, ela tentou, em vão, soltá-las. Lutava para não se ofuscar com o brilho dos olhos azul-claros.

— Não, não posso. Não irei com você, Miles. Não vou permitir que me magoe outra vez.

— Prefiro a morte a ter de danificar um único fio de cabelo seu!

— Isso, dito pelo homem que me pediu em casamento com a intenção de me levar para cama, enquanto estava noivo de outra moça no sul, não merece crédito.

Por um instante, Miles ficou perplexo. Depois, entendeu.

— Célia lhe disse que estávamos noivo?! Mentirosa pérfida! Não é verdade! Juro por tudo quanto é sagrado, Glória! Não nego que gostei dela. Mas isso foi há muito tempo, quando eu era um recém-chegado à corte. Namoramos um pouco, porém, logo ela rompeu comigo. Eu não estava a sua altura. Quando Célia ouviu falar de minha propriedade em Kyloe e da amizade do rei para comigo, tomou a se interessar por mim! Ela mentiu para afugentá-la, Glória. Entende? Eu teria lhe contado tudo, mas você fugiu! — acrescentou ele ao apertar-lhe as mãos.

— Estou livre! Livre para amá-la, me casar com você e gostaria de fazer isso o mais depressa possível — declarou lançando um olhar à velha senhora que não perdia uma única palavra. — Glória, não poderíamos conversar a sós em algum outro lugar?

— Não há necessidade. Não tenho nada para lhe dizer que não possa fazê-lo diante da sra. Easington, para quem trabalho. Não vou embora com você, Miles. Meu lugar é ao lado de minha patroa, em sua casa.

— Não, é em Mallory Hall. Eles lá precisam de você tanto quanto eu — afirmou ele naquela voz envolvente que lhe aquecia o coração.

— A propriedade já não me pertence mais. Eu a devolvi a seu ex-dono. Não posso continuar tomando-a da família Brunt.

— Se deixar George Brunt cuidar de lá, logo a terra se tornará num deserto inculto — afirmou Miles com franqueza. — Brunt esteve aqui, não esteve?

— Sim. Ele apareceu uma noite e me deixou muito inquieta. Deve estar planejando alguma coisa, não acha?

— Bem possível. Talvez Brunt seja apenas um espião de Lang. Qualquer um dos dois é capaz de vender a alma a quem pagar mais. — Vendo o olhar surpreso de Glória, explicou: — Os dois se aliaram, sabe, pelo menos por uns tempos. São farinha do mesmo saco.

Glória o observou enquanto ele terminava de falar.

— Bem, preciso me despedir, Miles. Temos muitos quilômetros pela frente até chegar à casa de minha patroa. — Tomou cuidado para não mencionar onde aquela ficava. — Adeus — disse com firmeza não sentida.

— Moça teimosa! Depois de procurá-la por boa parte do reino, não vou deixá-la escapar tão facilmente. Eu a acompanharei até a casa de sua patroa.

— Não há necessidade. As estradas estarão cheias de peregrinos voltando para casa — argumentou Glória.

— E de ladrões prontos para assaltá-los. Desista, Glória. Eu já me decidi.

— Será um prazer ter a companhia de sir Miles durante a viagem — aparteou Elizabeth Easington dando todo seu apoio ao nobre bonitão que, obviamente, adorava-lhe a criada.

O que haveria de errado com Glória? Como não enxergava o amor reluzindo nos olhos de Miles Raven se ela, uma velha quase , cega, o fazia? Quanto aos erros talvez cometidos por ele, Glória devia perdoar, pois o homem não tinha vindo de coração aberto?

— Então, está decidido. Vão ter minha companhia daqui até... Madame, onde mora? — indagou Miles desejando que fosse o mais distante possível a fim de ter tempo suficiente para reconquistar Glória.

— York, sir Miles.

Perto demais, pensou ele. Mas agora, sabendo onde Glória morava, a esperança renascia. Com o inverno chegando, ela não se atreveria a fugir novamente.

— Está vendo, alteza? Eu lhe disse que sir Miles tinha uma na­morada entre os rebeldes. Secretamente, é um deles — Lang falou baixinho.

Escondidos atrás do tronco grosso de um carvalho, espiavam sem ser vistos.

Mantendo o olhar atento, Norfolk resmungou:

— Pode ser, mas ainda não estou convencido de que os senti­mentos de sir Miles pela moça façam dele um traidor. Afinal, ele não tomou parte na peregrinação.

— Apenas por medo de perder a rica propriedade conseguida com a dissolução dos conventos. Ele é dono do priorado de Kyloe — Lang informou.

"Que você cobiça", pensou Norfolk.

— Vou observá-lo, sir Oliver — declarou dispensando-o com um gesto.

 

                            CAPÍTULO XXII

Já era quase meio-dia quando as duas mulheres terminaram de se despedir de novos amigos e os três tomaram a estrada de York. Como Elizabeth Easington não supor­tasse cavalgar depressa, percorreram apenas a metade do trajeto nesse dia. Pararam numa hospedaria em Snaith, onde Miles pediu dois quartos com uma saleta entre eles.

Durante a tarde, enquanto os quilômetros passavam sob as patas das montadas, Miles Raven tinha exercido a força total de seu en­canto. Em pouco tempo, a sra. Easington ria, divertida, de suas histórias sobre a corte e o rei.

Glória sentia o impacto de seu magnetismo e tinha consciência dos olhares destinados só a ela. Estar perto de Miles outra vez, ouvir-lhe a voz e fitá-lo nos olhos era como se estivesse dentro de uma onda que ameaçava puxá-la para correntes traiçoeiras. Estava determinada a não ceder. Mantinha-se numa posição rígida na sela e só falava por monossílabos.

Embora se sentisse bem melhor do que nos dias passados de cama com o resfriado, irritava-se com o nariz vermelho e com os espirros que a forçavam a usar o lenço continuamente. Detes­tava o fato de Miles vê-la desse jeito e censurava-se por essa reação. Não tinha de se importar com a aparência diante dele. Tão logo chegassem a York, deixaria claro que não queria en­contrá-lo nunca mais.

— Minha querida Glória, precisamos providenciar um bom fogo na lareira e um tijolo quente para esquentar sua cama esta noite — disse Miles após ouvi-la espirrar quatro vezes seguidas.

— Não sou sua querida Glória — protestou ela, porém, Miles continuou a sorrir-lhe como se tivesse ouvido palavras carinhosas.

Ela precisava lutar contra a sensação de conforto dada pela voz acariciante e pelo olhar solícito dele. Mas era tão bom ter alguém que se importasse com seu bem-estar!

— Ora, Glória, isso lá é jeito de se falar com o caro sir Miles? — repreendeu a velha senhora. — Mal posso acreditar que vou dormir sob um teto esta noite! Nem vou perceber se houver pulgas na cama! Tão logo me deite, vou cair num sono profundo! Graças a ele!

Elizabeth Easington continuou a advogar a causa de Miles. No jantar, servido pelo dono da hospedaria na saleta, ela comeu pouco e, alegando cansaço, levantou-se para se recolher. Porém, vendo Glória pronta para segui-la, protestou:

— Nada disso! Vou me deitar e não preciso de você. Fique aí com o caro sir Miles recuperando o tempo perdido. Ambos devem ter muito para conversar e sobre assuntos que não interessam a uma mulher idosa.

Não deu atenção ao olhar atônito de Glória que, no instante se­guinte, viu-se a sós com Miles.

— Venha se sentar perto do fogo — convidou ele.

— Não. Também estou cansada e acho melhor ir me deitar.

— Tolice. A sra. Easington tem razão. Temos muito para dizer um ao outro. Sente-se aqui no sofá. Prometo que não vou mordê-la e nem fazer qualquer coisa da qual você não goste — insistiu com um sorriso ao vê-la hesitar.

Glória sentou-se como se não tivesse vontade própria. Enquanto Miles, abaixado, arrumava o fogo na lareira, ela deu-se ao luxo de admirar-lhe os músculos, das costas e dos ombros, flexionando de acordo com os movimentos.

— Mamãe e Linnet vão ficar muito aliviadas ao saber que eu a encontrei e que você está bem. Quer dizer, mais ou menos — acres­centou ao ouvi-la espirrar outra vez.

— Espero que elas também se encontrem bem — disse Glória de maneira neutra.

— Ah, sem dúvida. Mamãe ocupa-se bastante com o neto e Linnet continua a conquistar corações da redondeza. Isso quando não está ocupada em desenhar vestidos maravilhosos para usar na corte algum dia.

A conversa morreu.

O fogo crepitava irradiando calor. Uma acha de lenha queimou pelo centro e partiu-se produzindo uma chuva de fagulhas. Glória sentia o olhar de Miles, mas continuava a fitar as chamas como se estivesse hipnotizada por elas. Depois de algum tempo, perguntou:

— O que vai acontecer aos peregrinos, Miles? Henry Tudor não os vai perdoar com facilidade.

Miles notou que ela havia dito os e não nós como se não fizesse parte do movimento popular. Tinha ido apenas para ajudar a velha senhora, esperava, pois seria muito mais fácil protegê-la se não fosse um membro fanático da causa. Quanto poderia lhe contar sem co­meter traição?, indagou-se. Morreria feliz para salvá-la, mas jamais arriscaria o pescoço numa tentativa vã para socorrer outros que pre­feriam ser mártires da causa defendida.

— Vou contar o pouco que sei, Glória, mas você precisa guardar segredo — disse fitando-a com olhar preocupado até vê-la concordar com um gesto de cabeça.

—- O rei está a fim de derramar sangue. Esse levante o assustou muito, mais do que qualquer ameaça externa de invasão quando ele se declarou chefe supremo da igreja. A revolta foi do próprio povo dele, um aviso de que os súditos sabem pensar também.

— Mas Aske e os outros líderes reverenciam o rei. São seus ministros maus que gostariam...

— Eu sei — interrompeu Miles. — Infelizmente, Henrique VIII não entende assim. Ele transformaria o norte num cadafalso imenso se soubesse que a maioria dos nobres aprovaria.

Um gemido assustado escapou dos lábios de Glória. Os olhos arregalados brilhavam com as lágrimas contidas.

— Deus misericordioso! Foi muito insensato de minha parte não impedir a ida da sra. Easington, e a minha, ainda por cima! Porém ela é tão idosa, Miles. Por certo, eles não farão mal a uma mulher velha! Ela não representa ameaça alguma para o reino!

— Creio que Norfolk e outros tentarão moderar a ira de Henrique VIII, mas não sem umas poucas execuções para servir de exemplo. Homens como Aske, Darcy, Latimer, bem como abades e monges que retornaram aos mosteiros fechados, servirão a esse propósito. Todos esses, Glória, sabiam do risco enfrentado.

— Talvez alguns, mas não acredito que Robert Aske compreen­desse, realmente, o que estava arriscando. O rei não irá lhe fazer mal algum, Miles. Até o convidou a ir a Londres e lhe deu um salvo-conduto! A honra de Henrique VIII ficaria desmoralizada caso ele não respeitasse esse compromisso!

Miles desviou os olhos dos seus.

— Espero, Glória, que ao ir a Londres, Aske não tenha posto a cabeça na boca do leão. Enquanto aguardamos o desenlace da si­tuação, quero garantir sua segurança. Você não pode repetir nenhuma palavra minha à sra. Easington. Tudo foi explicado, em confiança, pelo duque de Norfolk aos oficiais do rei. Se ela repetir o que lhe contei, mesmo a poucos peregrinos, os boatos se espalharão provo­cando pânico e, talvez, uma insurreição. Aí então, nada deste mundo poderá deter a fúria de Henrique Tudor e nós todos seremos exe­cutados como traidores.

Vendo-a estremecer, Miles teve de lutar contra a vontade de acon­chegá-la entre os braços e afugentar seus temores, mas Glória pre­cisava conhecer a extensão do perigo.

— Se você, bem como a sra. Easington, voltarem a levar uma vida normal e sossegada, estarão em segurança, acredito. Ela deverá agir como se nunca tivesse saído de York. Algum vizinho tem queixa dela?

— Não. Aliás, a maioria fez parte da Peregrinação da Graça — respondeu Glória.

— Nesse caso, estarão ocupados cuidando da própria vida.

— E eu ficarei a seu lado protegendo-a.

As palavras foram como uma deixa e Miles teve de aproveitá-la.

— Pensei que não fosse continuar morando em York, amor. Posso muito bem cuidar de sua segurança. Quero que se case comigo.

Expressara-se mal. Percebeu ao ver Glória encolher-se.

— Casar com você? Está me pedindo isso a fim de me dar a proteção do nome Raven? Apenas para garantir minha segurança? Não me deve esse favor, fique sabendo! — exclamou Glória e virou-se de costas para que Miles não lhe visse as lágrimas.

— Não, meu amor, não se afaste de mim — suplicou ele segurando sua mão. — Não foi o que eu quis dizer. Perdoe minha falta de jeito com as palavras. — Ela continuou virada, mas não puxou a mão e esse pequeno sinal promissor o fez prosseguir. Com uma leve pressão em seu queixo, a fez fitá-lo. — A vontade de protegê-la, meu amor, não passa de uma pequena parte de meu amor por você. Eu a desejo a meu lado para sempre, como minha mulher. Se Deus me abençoar dando filhos, quero que você seja a mãe.

Palavras lindas, meigas, verdadeira música a seus ouvidos. Já havia acreditado nelas antes e o resultado fora desastroso. Glória levantou-se depressa e pôs a maior distância possível entre ambos. Encostada na parede, deu vazão às lágrimas.

Um segundo depois, Miles estava a seu lado.

— Glória, o que foi? Existe alguém mais? — indagou apreensivo. Apesar das lágrimas, ela riu.

— Não, seu bobo, naturalmente não existe ninguém. Mas você me magoou muito, Miles e eu não sei se, jamais, voltarei a confiar em suas promessas. Não quero mais sofrer tanto.

Ele tomou seu corpo tenso entre os braços, abafando-lhe os soluços de encontro ao peito.

— Vamos, meu amor, não chore tanto. O que a sra. Easington pensaria se acordasse com seus soluços? Eu não poderia amar nin­guém a não ser você, jamais uma criatura tão vaidosa e egoísta como lady Célia. Prometo dedicar a vida para provar-lhe que confiou na pessoa certa.

Glória estremeceu e deu um longo suspiro.

— Não sei, Miles. Preciso pensar.

— Então volte para perto do fogo, amor. Vou ajudá-la a pensar. No instante seguinte, beijou-a. A carícia inebriante e persuasiva, com a meiguice bem guardada em sua lembrança, começou a en­fraquecer a força de vontade de Glória, porém, ela reagiu.

— Não, Miles, por favor. Preciso de tempo. Não sei de quanto. Não vou me entregar a você como antes, quando era tola e ingênua.

Miles ansiava por apagar a desconfiança de seu olhar. Sabia como. caso ela o deixasse lhe fazer amor. Sem dúvida, a sra. Easington já dormia profundamente e não os ouviria. Queria muito estender a capa no chão para se deitar com Glória nos braços e, aos beijos e carícias, afogar seus temores.

Desejava sua confiança, mas talvez fosse melhor ela encontrar, por si mesma, o caminho para sair desse labirinto, de dúvida e mágoa, onde se embrenhara por causa das mentiras de lady Célia. Com esforço, dominou a excitação e o desejo.

— Muito bem, meu amor, vá se deitar. Amanhã cedo, continua­remos a viagem para York. O que acha se eu lhe der uns quinze dias para pensar e for receber sua resposta nos feriados de Natal? — Percebendo-lhe o ar de reflexão, acrescentou: — Se sua resposta for sim, meu amor, poderemos planejar sua ida para Ravenwood a tempo de preparar o enxoval antes do casamento.

Glória pôs as mãos no peito de Miles para o impedir de beijá-la novamente. Se ele o fizesse, acabaria pedindo que lhe fizesse amor ali mesmo e a levasse para Ravenwood no dia seguinte.

— Boa noite, Miles. Durma bem — disse com firmeza.

 

                                 CAPÍTULO XXIII

Bem, senhoras, preciso me despedir — disse Miles uma hora após a chegada à casa da sra. Easington em York.

— Ora, sir Miles, por que tanta pressa? Seu cavalo nem teve tempo para descansar. Seria melhor passar a noite aqui.

— Agradeço o convite, sra. Easington, mas não posso aceitá-lo —- respondeu ele com um olhar de relance a Glória.

Ela sabia que, a um mínimo sinal seu de encorajamento, Miles ficaria até o dia seguinte. Porém, estava determinada a exigir tempo para pensar. Isso não conseguiria fazer com ele a seu lado, acariciando-a com os olhos.

— Vou passar uns dias na corte, mas volto para ò Natal, Glória. Ela notou o ar de censura da velha senhora, mas manteve a voz firme.

— Muito bem, Miles. Até o Natal.

— Sra. Nutting, foi um prazer conhecê-la, bem como a suas filhas — disse ele ao curvar-se diante de Margaret.

Glória a viu enrubescer enquanto respondia o cumprimento desse cavalheiro simpático e bonitão que as havia acompanhado. Imaginava o que Margaret pensava dele. Com uma piscadela significativa, Elizabeth Easington o tinha apresentado como "o amigo de nossa Glória, de Mallory Hall". Porém Margaret não demonstrara reação alguma.

A chegada dos três não fora uma surpresa, pois muitos peregrinos já haviam voltado e espalhado a notícia da provável capitulação do rei. Pulando e gritando de alegria, as três meninas tinham ido ao encontro da tia-avó e de Glória na rua. A mãe, enxugando as mãos no avental, as seguira mais devagar, lutando para disfarçar o desa­pontamento. O temperamento de Elizabeth Easington tinha abran­dado bem e ela, talvez, tivesse sensibilidade suficiente para permitir que Margaret continuasse a dirigir a casa.

No pouco tempo passado ali, Miles havia conquistado as meninas. Faith, uma das gêmeas, dissera a certa altura:

— Ah, d. Glória, sir Miles é tão bonito! Parece um chevalier corajoso de um romance. A senhora vai se casar com ele?

Gorando até a raiz dos cabelos, Glória ficara sem resposta. Mas brava, a velha senhora a tinha salvado repreendendo a menina.

Ao amanhecer do dia seguinte, após uma noite quase sem dormir, Glória já tinha a resposta para Miles. Podia ser insensatez sua, mas o amava e a única solução era confiai' no amor que acreditava ter visto nos olhos azul-claros.

Os dias de espera pelo retorno dele seriam intermináveis! Por um instante, ponderou sobre a possibilidade de contratar um acom­panhante e ir até a corte, mas desistiu da idéia. Tinha pouquíssimo dinheiro economizado do salário ínfimo e havia muitos assattantes pelas estradas depois de a peregrinação haver terminado. Também, não conhecia alguém em quem pudesse confiar e não sabia onde a corte estava nessa época do ano. Poderia ser em Greenwich, em Windsor ou em qualquer outro palácio. Mesmo se encontrasse Miles com facilidade, que impressão lhe causaria? Não, esse comporta­mento a lembrava muito do que lady Célia tinha feito. Só lhe restava ter paciência. Enquanto aguardava o encontro com Miles, continuaria a cuidar da sra. Easington e sua família. E ainda sobraria tempo para preparar as palavras para lhe dizer que, casar-se com ele, era seu maior desejo na vida.

Num trote apressado, Miles entrou no pátio do palácio Whitehall pelo Holbein Gate. Não via a hora de aquecer o corpo enregelado. O inverno havia atingido o reino com toda a sua força. O Tâmisa, em cuja margem o palácio fora construído, já estava congelado.

Graças a Deus Glória tinha voltado a morar sob um teto. Deixá-la imersa na indecisão sobre a resposta a dar, fora a coisa mais difícil que ele tinha feito na vida. Na hora da despedida, havia lutado contra a tentação de colocá-la, à força, na frente da sela de Cloud e galopar até encontrar um padre para casá-los.

Mais tarde, ao passar pela Long Gallery, Miles surpreendeu-se ao encontrar lady Célia apoiada no braço de sir Oliver Lang. Ela vestia-se de preto da cabeça aos pés. Alguém muito chegado a ela devia ter morrido, percebeu ele ao curvar-se cumprimentando-a.

— Lady Célia, estranho vê-la de luto. Espero que não seja pelo marquês, o senhor seu pai.

— Não, é por Reginald, infelizmente.

Quem seria?, indagou-se Miles. Depois, lembrou-se do marquês, gorducho e calvo, que Célia exibia no baile, como um troféu, pouco tempo atrás.

— Craningbourne, seu noivo — resmungou Lang. Miles o ignorou.

— Lamento muitíssimo esse acontecimento triste. Você parecia tão contente.

— E estava mesmo. Ele sofreu um ataque de sezão quando foi ajudar a reprimir os rebeldes de Lincoln.

— Alguns dos homens de Sua Majestade morreram servindo-o e não farejando saias de rebeldes — provocou Lang, decidido a não ser menosprezado.

Miles apenas lhe dirigiu um olhar gélido. Depois, disse com pesar sincero:

— Célia, se há alguma coisa que eu possa fazer, por favor...

— Estarei sempre a seu lado para confortá-la — declarou Lang dando um passo à frente como se quisesse se interpor entre Célia e Raven.

Com a morte do marquês, obviamente Lang tinha esperança de que a linda e rica lady Célia Pettingham lhe desse atenção.

— Muito bem — murmurou Miles intimamente aliviado. — Seu servo, lady Célia — acrescentou curvando-se.

Ela o observou afastar-se pela galeria até que estivesse fora do alcance de suas palavras. Só então, perguntou a Lang a respeito da insinuação sobre a conduta de Raven durante a campanha.

— Meu amor, você não está... Quer dizer, não sente mais nada por Raven, não é verdade?

— Não, de jeito nenhum!

Enquanto sacudia a cabeça com veemência, os olhos lilases bri­lharam com a constante malignidade sentida desde a morte de Re­ginald, o marquês de Craningbourne. Ele era riquíssimo, mas agora, um sobrinho, e não ela, herdaria a fortuna.

— Pois bem. Encontrei a maneira de você se vingar de Raven desgraçando-o.

Célia e Lang não agiram imediatamente. Miles deixou a corte, um pouco antes de esta descer o rio até Greenwich a fim de come­morar o Natal com o digno convidado do rei, o ex-rebelde Robert Aske. Aí então, eles começaram a fazer comentários mordazes sobre sir Miles Raven, um dos cavaleiros de confiança do rei, que amava uma traidora do reino.

 

Na véspera de Natal, Faith, Hope e Grace não continham a ani­mação enquanto Glória tirava, do forno, as tortas de frutas secas. Cada uma era retangular como uma rnanjedoura e estava enfeitada com uma escultura de massa representado o Menino Jesus.

— A senhora vai fazer um bolo isca, d. Glória? — perguntou Hope rindo.

— Que bolo é esse? — indagou Glória, desconfiada.

— A senhora faz um qualquer e não precisa ser grande. Quando estiver pronto, leva para esfriar na despensa e marca suas iniciais nele. A meia-noite, o homem com quem a senhora vai se casar, rouba o bolo e marca as iniciais dele também. É assim que pode descobrir quem vai ser seu marido — explicou Hope com ares de importante.

— Muito interessante comentou Glória.

Ela não havia contado a ninguém da casa sua decisão de se casar com Miles, mas achava que todos desconfiavam por causa de sua animação e bom humor.

— Sua boba, d. Glória não precisa fazer esse bolo. Ela já sabe que vai se casar com sir Miles — disse Faith.

— Meninas! D. Glória deve estar cansada de amolação de criança!

— repreendeu Margaret ao entrar na cozinha, dando a entender ter ouvido parte da conversa, ou toda. — Vão bordar um pouco e deixem d. Glória trabalhar em paz. Bordem direito se quiserem ir ver a representação quando os mascarados chegarem.

As meninas desapareceram depressa da cozinha, pois nenhuma delas queria perder a tradicional visita dos atores, homens da vizi­nhança, ou a cerveja com especiarias que seria servida depois.

Margaret foi supervisionar o trabalho das filhas e Glória, vendo-se sozinha, suspirou. Preferia que as meninas tivessem ficado. Lem­brava-se de como essa data era comemorada de maneira solene e comedida no convento. Ali era diferente. Gostava do entusiasmo das meninas e das lendas de Natal que lhe contavam. De algumas, como a fábula dos animais que podiam falar à meia-noite da véspera de Natal, ela se lembrava vagamente de ter ouvido na infância. Ou­tras, desconhecia. Gostara daquela em que os espíritos maus perdiam o poder também à meia-noite do mesmo dia.

A animação das meninas refletia seu próprio tumulto íntimo com a expectativa da chegada de Miles. Ele dissera que viria pela época do Natal, mas não exatamente quando.

 

Elizabeth Easington, Margaret, as filhas e Glória, bem como vários vizinhos, já estavam sentados na sala quando os atores mascarados, conduzidos por Papai Noel, entraram e ocuparam o espaço diante da lareira.

Mascarados jamais eram mulheres, alguém contara a Glória. O grupo de comediantes vinha ensaiando desde o fim de novembro. Alguns dos papéis eram hereditários, passando de pai para filho.

O fogo da lareira iluminava os atores cm suas fantasias tradicio­nais. Havia o médico, o advogado, Rumouk, o soldado valente, São Jorge, o herói da história, e, finalmente o vilão, o cavaleiro turco.

Este último era o mais alto do grupo e Glória apanhou-se comparando-lhe a estatura com a de Miles. Tola!, censurou-se. Estava tão ansiosa pela chegada de seu amor que começava a vê-lo num habitante alto e forte de York.

— Não reconheço aquele lá — murmurou Margaret.

— Fique quieta. Não é de sua conta reconhecer ninguém — re­preendeu a tia.

A representação teve início. Glória logo se divertia com o enredo, narrado por Papai Noel, no qual o valente São Jorge enfrentava o perverso cavaleiro turco numa luta de morte. O ar enchia-se com o som metálico das espadas.

Após uns poucos minutos, São Jorge, claro, saiu vitorioso. Ao cair ferido, o cavaleiro turco soltou uma exclamação de dor tão convincente que provocou gritos de susto nas crianças. Mas o santo herói foi acometido pelo remorso e, desolado, apelou para os outros personagens. Nenhum conseguiu resolver o problema, porém todos, de maneira cômica, apresentaram razões absurdas para justificar a incompetência. Arrancaram boas risadas dos espectadores.

Finalmente o médico, com seu elixir mágico, foi convocado e, numa voz retumbante, ordenou:

— Tome uns goles desta poção!

Todos prenderam a respiração à espera de o turco ingerir a bebida miraculosa. Mas este, improvisando, desviou-se do texto conhecido.

— Nem São Jorge poderá me ajudar esta noite. Apenas o poder de uma jovem loira me salvará.

Apoiado no cotovelo, soergueu-se e apontou para Glória com a outra mão.

— Você, donzela de faces rosadas e cabelos dourados!

Por causa da máscara, a voz soou abafada, porém Glória, emo­cionada, a reconheceu. Olhou em volta e percebeu que as pessoas, apesar de confusas com a mudança da peça, estavam dispostas a aceitá-la e a instigavam a ir salvar o turco.

Trêmula, levantou-se e foi até o médico que lhe deu o cálice com o elixir.

O cavaleiro turco esperou até que ela se ajoelhasse a seu lado para tirar a máscara e tomar, de um gole só, a poção.

Glória não conteve um grito de alegria quando ele, erguendo-se, deu-lhe um abraço apertado. Era Miles.

 

                                 CAPÍTULO XXIV

― Miles! Como... Alheio aos espectadores que aplau­diam o fim improvisado da peça, ele a interrompeu com um beijo longo.

— O homem que sempre faz o papel de cavaleiro turco foi muito bem pago para me deixar tomar seu lugar. Eu queria lhe fazer uma surpresa.

— Pois fez mesmo!

Atrás deles, a cerveja com especiarias, fumegante em uma poncheira, começava a ser servida nas xícaras especiais. O primeiro brinde foi aos namorados que. sorridentes, ergueram suas bebidas no ar. Seguiram-se outros numa rápida sucessão: "A York e sua prosperidade!", "À Peregrinação da Graça!", "A Aske e lorde Darcy!", A saúde do rei e à esperança de um herdeiro real no próximo ano, e assim por diante e cada vez mais acalorados.

Enquanto todos se distraiam com os brindes, Miles levou Glória à saleta ao lado. Estava iluminada por uma única vela.

— Aqui não há tanto barulho e eu preciso conversar com você. Isso sem falar em matar as saudades — disse ele com um sorriso, sentando-se numa cadeira e acomodando-a no colo. — Pela sua recepção alegre, posso concluir que você decidiu me confiar seu amor e casar-se comigo?

Não havia mais motivos para hesitar e forçá-lo a suplicar. Jamais voltaria a se preocupar com a fidelidade de Miles. O amor brilhava nos olhos azul-claros.

— Pode, sim — respondeu ela deixando-o ver sua expressão confiante antes de oferecer-lhe os lábios.

Beijaram-se por um longo tempo e então, Miles perguntou:

— O que acha de irmos embora para Sussex depois de amanhã?

— Concordo, mas não tenho nada adequado para vestir, Miles. Quando saí de Mallory Hall, deixei lá os vestidos feitos por Linnet. Só trouxe os velhos.

— Não tem importância. Minha irmã já começou a fazer seu vestido de noiva. Ela estava convencida de sua resposta afirmativa. Mais do que eu, admito, mas só até beijá-la. Ah, meu amor, você vai ser a noiva mais linda do mundo!

Trouxe-a para mais perto e tirou-lhe a touca. Seus cabelos já tinham crescido até os ombros. Ele os afastou e, com os lábios, percorreu uma linha por seu pescoço enquanto acariciava-lhe os seios, apertando levemente os mamilos excitados e rijos. Seu corpo infla­mava-se de desejo por ele.

— Ai, Miles, te amo tanto! E te quero — murmurou sem acanhamento.

Haviam deixado a porta entreaberta e, pela fresta, entrava uma réstia de luz. A alegria barulhenta das pessoas no salão os atingia, meio difusa.

— Você passa esta noite comigo, Glória? — Miles perguntou e, ao vê-la concordar com um aceno, acrescentou: — Prefere que eu a leve a uma...

De repente, a porta abriu-se e o aposento ficou mais claro.

— Ah, aí está você, Glória! — exclamou Margaret em tom exas­perado e sem se importar em invadir a privacidade do casal. — Minha tia precisa de sua ajuda para ir se deitar, as meninas, apesar de já ser tarde, continuam zanzando por aí e as visitas demandam atenção. Não posso fazer tudo sozinha. Você ainda é criada desta casa, pelo menos, por enquanto, acredito.

Embaraçada, Glória tinha se levantado do colo de Miles antes de Margaret terminar de falar. Esta, como se não quisesse ouvir explicações, virou-se e saiu da saleta.

— Mulher invejosa! — reclamou Miles. — Não se aborreça, amor. Logo você estará longe daqui.

O ressentimento de Glória por Margaret desapareceu tão depressa quanto tinha surgido.

— Acho melhor atendê-la, Miles. Não quero fazer unia cena neste dia festivo, ainda mais quando a sra. Easington é tão boa para mim. Não julgue mal a sra. Nutting, meu querido. A vida não tem sido fácil para ela. Perdeu o marido quando as filhas eram novinhas e a mãe, ao morrer, deixou a casa para a irmã e não para ela.

— Sem dúvida, essas coisas azedaram-lhe o temperamento. Pa­ciência. Ponha isto antes de ir ajudar a sra. Easington a se deitar — disse Miles ao tirar um saquinho de couro do bolso, de onde tirou algo. Um momento depois, um anel escorregava pelo dedo de Glória. Era de ouro com um brasão cujo corvo segurava uma enorme safira nas garras. — Considere-se noiva, Glória Mallory. Agora, apresse-se para poder voltar logo para mim — disse com severidade fingida enquanto ela o deixava.

— Lamento que Margaret tenha atrapalhado seu reencontro com sir Miles. Foi uma alegria ver você feliz novamente — afirmou Elizabeth Easington quando Glória a acompanhou até o quarto. — Recomendei que ela deixasse os dois em paz. Afinal, não preciso de ajuda para me deitar.

— Eu não me importo, sra. Easington, com toda a sinceridade — disse Glória sabendo que se encontraria com Miles depois.

— Você é muito boa, minha querida menina, e Margaret, uma criatura despeitada. Sabe, vou sentir muita falta sua quando se for com sir Miles, mas fico feliz por você. Ele vai ser um bom marido.

— Nós viremos visitá-la, sra. Easington, e quem sabe a senhora não irá a Mallory Hall e ao solar de Kyloe quando estiver terminado?

— A Nortúmbria fica muito longe para estes ossos cansados, minha menina. E, depois da Peregrinação da Graça, não quero mais saber de andar sacolejando pelas estradas.

Faith, Hope e Grace não ofereceram muita resistência para ir para cama, embora os sinos de York já começassem a badalar a meia-noite quando Glória acabou de acomodá-las.

— Jesus nasceu! O diabo morreu! — gritaram as gêmeas.

— É Natal! É Natal! — exclamou Grace. Obviamente, as meninas não pegariam no sono tão cedo.

Lá embaixo, a festa continuava animada, pois Margaret mantinha a poncheira cheia da bebida quente de cerveja com especiarias. Diante da fartura, os atores e os outros vizinhos relutavam em ir embora. Miles ainda estava presente, mas pouco depois, alegando cansaço extremo por causa da viagem, foi para a cama arrumada na saleta. Se esperava que os festeiros entendessem a indireta, desapontou-se, pois eles continuaram lá por mais uma hora.

Glória teve ainda de trancar a porta de entrada, arrumar o fogo da lareira e apagar as velas da sala. Só então, recolheu-se.

Uma hora mais tarde, caminhava na ponta dos pés pelo corredor escuro, em direção à escada, quando a porta do quarto das meninas abriu-se.

Margaret, segurando um toco de vela, recuou assustada.

— Glória! O que faz andando no escuro no meio da noite? Grata pelas sombras, Glória enrubesceu, embora tivesse vontade de dizer a sra. Nutting não ser de sua conta o que fazia.

— Ah, entendo. Como eu, você deve ter ouvido o choro de Grace e veio acudir. A pobrezinha está com uma terrível dor de barriga! — disse a mulher, embora soubesse muito bem aonde Glória ia, porém, por pura maldade, estava disposta a impedi-la. — Você é tão boa, Glória. Eu ia preparar um chá de camomila para acalmar a cólica, mas Grace não queria ficar sozinha e não parava de chamar por você. Na verdade, eu estava indo buscá-la.

E assim, Miles e Glória passaram a noite separados. Ela, sentada numa cadeira dura no quarto das meninas e ele na cama na saleta, ambos desejando estar juntos.

Quando Glória deu por si, a luz entrava pelas frestas da veneziana e a sra. Easington a sacudia a fim de acordá-la.

— Minha pobre menina! Passou a noite aí por causa de minha sobrinha-neta mimada, não foi? Pois ela está ótima e você, abatidíssima! Nada de culto de Natal na igreja para você. Vá já para sua cama e não se preocupe conosco — a velha senhora insistiu diante dos protestos sonolentos de Glória. — As três meninas já estão pron­tas e se vestiram sem acordar você. Pudera, depois de uma noite em claro! Se não tomar cuidado, vai ficar doente. Acho bom sir Miles também não ir à igreja. Você pode precisar de alguma coisa e nós vamos demorar bem umas três horas para voltar. Sei como o ressentimento de Glória por Margaret desapareceu tão depressa quanto tinha surgido.

— Acho melhor atendê-la, Miles. Não quero fazer uma cena neste dia festivo, ainda mais quando a sra. Easington é tão boa para mim. Não julgue mal a sra. Nutting, meu querido. A vida não tem sido fácil para ela. Perdeu o marido quando as filhas eram novinhas e a mãe, ao morrer, deixou a casa para a irmã e não para ela.

— Sem dúvida, essas coisas azedaram-lhe o temperamento. Pa­ciência. Ponha isto antes de ir ajudar a sra. Easington a se deitar — disse Miles ao tirar um saquinho de couro do bolso, de onde tirou algo. Um momento depois, um anel escorregava pelo dedo de Glória. Era de ouro com um brasão cujo corvo segurava uma enorme safira nas garras. — Considere-se noiva, Glória Mallory. Agora, apresse-se para poder voltar logo para mim — disse com severidade fingida enquanto ela o deixava.

— Lamento que Margaret tenha atrapalhado seu reencontro com sir Miles. Foi uma alegria ver você feliz novamente — afirmou Elizabeth Easington quando Glória a acompanhou até o quarto. — Recomendei que ela deixasse os dois em paz. Afinal, não preciso de ajuda para me deitar.

— Eu não me importo, sra. Easington, com toda a sinceridade — disse Glória sabendo que se encontraria com Miles depois.

— Você é muito boa, minha querida menina, e Margaret, uma criatura despeitada. Sabe, vou sentir muita falta sua quando se for com sir Miles, mas fico feliz por você. Ele vai ser um bom marido.

— Nós viremos visitá-la, sra. Easington, e quem sabe a senhora não irá a Mallory Hall e ao solar de Kyloe quando estiver terminado?

— A Nortúmbria fica muito longe para estes ossos cansados, minha menina. E, depois da Peregrinação da Graça, não quero mais saber de andar sacolejando pelas estradas.

Faith, Hope e Grace não ofereceram muita resistência para ir para cama, embora os sinos de York já começassem a badalar a meia-noite quando Glória acabou de acomodá-las.

— Jesus nasceu! O diabo morreu! — gritaram as gêmeas.

— É Natal! É Natal! — exclamou Grace. Obviamente, as meninas não pegariam no sono tão cedo.

Lá embaixo, a festa continuava animada, pois Margaret mantinha a poncheira cheia da bebida quente de cerveja com especiarias. Diante da fartura, os atores e os outros vizinhos relutavam em ir embora. Miles ainda estava presente, mas pouco depois, alegando cansaço extremo por causa da viagem, foi para a cama arrumada na saleta. Se esperava que os festeiros entendessem a indireta, desapontou-se, pois eles continuaram lá por mais uma hora.

Glória teve ainda de trancar a porta de entrada, arrumar o fogo da lareira e apagar as velas da sala. Só então, recolheu-se.

Uma hora mais tarde, caminhava na ponta dos pés pelo corredor escuro, em direção à escada, quando a porta do quarto das meninas abriu-se.

Margaret, segurando um toco de vela, recuou assustada.

— Glória! O que faz andando no escuro no meio da noite? Grata pelas sombras, Glória enrubesceu, embora tivesse vontade de dizer a sra. Nutting não ser de sua conta o que fazia.

— Ah, entendo. Como eu, você deve ter ouvido o choro de Grace e veio acudir. A pobrezinha está com uma terrível dor de barriga! — disse a mulher, embora soubesse muito bem aonde Glória ia; porém, por pura maldade, estava disposta a impedi-la. — Você é tão boa, Glória. Eu ia preparar um chá de camomila para acalmar a eólica, mas Grace não queria ficar sozinha e não parava de chamar por você. Na verdade, eu estava indo buscá-la.

E assim, Miles e Glória passaram a noite separados. Ela, sentada numa cadeira dura no quarto das meninas e ele na cama na saleta, ambos desejando estar juntos.

Quando Glória deu por si, a luz entrava pelas frestas da veneziana e a sra. Easington a sacudia a fim de acordá-la.

— Minha pobre menina! Passou a noite aí por causa de minha sobrinha-neta mimada, não foi? Pois ela está ótima e você, abatidíssima! Nada de culto de Natal na igreja para você. Vá já para sua cama e não se preocupe conosco — a velha senhora insistiu diante dos protestos sonolentos de Glória. — As três meninas já estão pron­tas e se vestiram sem acordar você. Pudera, depois de uma noite em claro! Se não tomar cuidado, vai ficar doente. Acho bom sir Miles também não ir à igreja. Você pode precisar de alguma coisa e nós vamos demorar bem umas três horas para voltar. Sei como o padre gosta de pregar um sermão sem fim sobre o nascimento de Cristo!

O brilho nos olhos da velha senhora era inconfundível. Que Deus a abençoasse, desejou Glória. Ela havia percebido o que acontecera à noite e estava determinada a proporcionar privacidade aos namo­rados.

Glória teve tempo de fazer a toalete matinal antes da saída das cinco mulheres. Instantes depois de a porta de entrada bater, ela ouviu os passos de Miles na escada.

— Não podemos esquecer de convidar essa boa mulher para ser madrinha de nosso primeiro filho — disse ele ao entrar no quartinho do fundo do corredor.

Glória riu.

— Que poderá dar o ar da graça nove meses a partir desta manhã se você não for cuidadoso.

Embriagou-se com a visão dele em pé junto à porta. Miles vestia camisa branca, aberta em cima revelando os pêlos negros e encara-colados, e meias compridas e escuras que modelavam as coxas musculosas. Os cabelos estavam úmidos e ele cheirava a sabonete e água da Hungria.

— Quem há de querer ter cuidado depois de esperar tanto tempo? Prefiro ver sua barriga crescer com meu filho a ter de me preocupar com pessoas que gastam os dedos contando meses, semanas e dias.

Glória estendeu-lhe os braços.

Sua camisola de linho não continuou vestida mais do que uns momentos após Miles deitar-se a seu lado na cama. Arrancaram-se as roupas numa ansiedade quase frenética, pois estavam famintos demais para esperar enquanto cada um se despia.

Depois da noite em claro, Glória surpreendeu-se com a onda de energia que a invadiu quando Miles a tocou. Sentiu-se enlouquecer quando, pele na pele, encostaram-se ao longo dos corpos.

Miles havia imaginado ser preciso um período vagaroso de re­conhecimento, de uma nova aprendizagem das carências mútuas, mas estava enganado. A longa privação os tinha deixado febris de desejo e nenhum dos dois teve tempo para solicitude e desvelo.

A relação foi quase selvagem, porém totalmente compensadora para ambos.

A segunda vez, depois de um incrível curto espaço de tempo, foi mais vagarosa, cheia das carícias excitantes às quais não haviam dado atenção durante o primeiro encontro ansioso. Toques suaves, palavras carinhosas, beijos embriagadores que foram se tornando mais exigentes até reacender as chamas da paixão.

Exaurida, mas repleta de satisfação, Glória adormeceu logo nos braços de Miles. Seu último pensamento foi a esperança de a sra. Easington e a família, ao retornar da igreja, não os encontrassem juntos ali.

Completamente revigorada e sentindo-se no auge da felicidade, Glória acordou, no meio da tarde, sozinha na cama. À noite, todas as pessoas da casa colaboraram para a alegria da ceia de Natal. Por unanimidade, Miles foi encarregado de ser o "Mestre da Anar­quia", a pessoa responsável pela direção das brincadeiras. De­sempenhou-se muitíssimo bem. Elegeu Elizabeth Easington a Rai­nha do Amor e da Alegria, o que a fez sorrir de satisfação. In­cumbiu Faith, Hope e Grace de tirar a mesa, mas de maneira tão persuasiva que elas obedeceram de boa vontade. A Margaret coube entoar uma canção de amor para todos reunidos a sua volta. Ela o fez numa voz trêmula e áspera, porém Miles a elogiou tanto que ela esqueceu a irritação. A Glória, ele reservou um castigo por ter dormido quase o dia inteiro. Ela teve de beijar o Mestre da Anarquia sob as ramagens de visco penduradas à volta do batente da porta. Corada e com os olhos brilhando, ela o atendeu sob os aplausos de todos.

Quando tudo terminou, já tinha começado a nevar. A princípio, os flocos eram pequenos e esparsos, mas foram aumentando até produzir uma nevasca forte, acompanhada de um vendaval.

Na manhã seguinte, tornou-se evidente a impossibilidade de Glória e Miles viajar nesse dia. Nos seguintes, nevou mais confinando-os em York.

Determinados em não se importar, esperaram pelas comemorações do Dia de Reis. Tão logo as estradas estivessem desimpedidas, ru­mariam para Ravenwood para se casar.

Todas as noites, Miles ia ao quartinho de Glória e lhe fazia amor.

Sabiam que esses encontros furtivos não passavam despercebidos. Elizabeth Easington mostrava-se indulgente, porém Margaret não escondia o olhar de ressentimento por vê-los tão felizes. Mas logo estariam longe de York e da necessidade de amar às escon­didas.

 

                                   CAPÍTULO XXV

Tudo já estava arrumado e eles partiriam tão logo Glória terminasse de se despedir de todos. A vés­pera tinha sido Dia de Reis e os sete haviam comemorado a data com um bolo e presentes em memória das dádivas dos reis magos ao Menino Jesus. Miles dera a Glória um berloque de ouro com o corvo igual ao do anel de noivado e ela lhe havia feito uma camisa de linho branco, com bordados pretos na gola e nos punhos.

Glória também tinha providenciado, com as próprias mãos, um xale de lã para a senhora Easington, capuzes de veludo para as meninas e uma capa bordada para o livro de orações de Margaret. Esta, com ar condescendente, se mostrara agradecida. A sra. Easington havia presenteado Glória com uma camisola de cambraia de linho tão fina e transparente que ela se sentiu encabulada.

— Está pronta para partir, amor? — perguntou Miles do pé da escada, quando o sol já brilhava por sobre a muralha de York.

— Só mais um minutinho. Vou...

Foi interrompida por uma batida forte na porta de entrada. Eram dois homens com o uniforme real e a capa verde ostentando a rosa Tudor.

— Sir Miles Raven? Fomos mandados para conduzi-lo imedia­tamente à corte.

Ele não teve permissão para levar Glória, embora explicasse que iam se casar logo. Não, Sua Majestade precisava falar-lhe com ur­gência e ele teria de vir buscar a noiva depois.

Uma hora após chegar a Greenwich, Miles foi preso pela guarda real sob a acusação de, sem consultar sua majestade Henrique VIII, pretender se casar com uma suspeita de rebelião e de traição à coroa. Em poucas horas, havia sido levado pelos oito quilômetros do rio Tâmisa até a Torre, onde foi colocado numa cela com apenas uma mesa e uma cama. O dinheiro dos bolsos foi confiscado pelo policial em serviço com a desculpa de que seria usado para comprar suas refeições, pois ele não haveria de querer se alimentar com a comida da prisão. Miles garantiu que comeria isso de bom grado caso pudesse mandar umas duas mensagens. Até o momento, não havia julgamento marcado.

Tudo indicava que Henrique VIII queria mantê-lo incomunicável. Iria Glória pensar que ele o abandonara outra vez e entregar-se à amargura e ao desespero?

Como o rei ficara sabendo de seus planos para se casar com Glória Mallory?, indagou-se Miles. Antes de partir para York, não tinha certeza se ela o aceitaria, ou não. De repente, lembrou-se do encontro com lady Célia c sir Oliver em Whitehall. Lang devia ter contado ao rei não só seus planos de casamento como também o fato de sua noiva ter tomado parte na Peregrinação da Graça. Maldito! Mas por que o rei se interessava pelo casamento de um mero cavaleiro com uma jovem cuja participação na Peregrinação da Graça fora irrelevante? Teria Lang exagerado as mentiras a ponto de atribuir mais responsabilidade a Glória na rebelião?

E como Henrique sabia onde encontrá-lo? Teria enganado Thomas a fim de obter a informação? Estas e muito mais perguntas criva­vam-lhe a mente enquanto olhava pela janela da Torre Beauchamp. Lá embaixo, numa extensão do gramado, Ana Bolena havia co­locado o pescoço esguio no cepo diante do carrasco que a tinha decapitado. Por todos os santos, o rei estava assim tão ofendido por não ser consultado sobre seu casamento, ou considerava-lhe o amor por Glória tão pérfido a ponto de exigir a penalidade máxima?! Estaria Glória também correndo perigo? Frustrado, esmurrou a parede de pedra. Não podia fazer nada, exceto maldizer Henrique Tudor. Com o passar dos dias, Miles descobriu que o carcereiro era imune a adulação e não se deixava influenciar por coisa alguma. Como houvessem lhe tirado o dinheiro, Miles não tinha com o que barganhar. E então, chegaram notícias do norte que, com suas im­plicações, o deixaram no auge da aflição.

Cheio de entusiasmo, Aske já tinha voltado a York, quando um novo levante eclodiu em East Riding. Era liderado por um tal sir Francês Bigod que não havia tomado parte na Peregrinação da Graça. Ele insuflava o povo a não acreditar nas promessas do rei trazidas por Robert Aske.

Alarmados com a possibilidade de a nova revolta provocar a anu­lação do perdão real, Aske e lorde Darcy escreveram imediatamente ao rei. Afirmavam não ter participado da conspiração de Bigod para tomar Hull e pediam a vinda de Norfolk, como enviado real, a fim de ajudar Aske a tranqüilizar os cidadãos de York.

Norfolk foi, mas não como pacificador. Ele marchou com a ban­deira real a sua frente, sinal de que tinha poder para enforcar rebeldes sem julgamento. Sem perda de tempo, foi o que fez. Corpos pen­durados por correntes nos patíbulos tornaram-se um quadro horrível e freqüente. Logo, sem dúvida, os oficiais do rei não teriam mais correntes para enforcar os condenados e seriam obrigados a voltar a usar corda.

Preocupada demais pelos possíveis motivos pelos quais Miles fora chamado à corte, Glória não conseguia se interessar pela volta de Aske a York.

Embora muitos cidadãos o olhassem com desconfiança e o con­siderassem aliado de Henrique Tudor, outros, como Elizabeth Easington, encorajavam-se com seus relatórios. Animada, ela contou, em casa, que a rainha Jane seria coroada na catedral de York no verão e que o rei constituiria um parlamento na cidade. Com toda a certeza, um longo período de paz e prosperidade iniciava-se na Inglaterra e logo, sir Miles Raven voltaria para buscar Glória.

E então, a notícia da rebelião de Bigod e das represálias cruéis chegou a York.

O terror se espalhou pela cidade. Norfolk estava indo para lá, onde as execuções começariam como em todo o norte. Pessoas ame­drontadas, até crianças, passaram a usar o uniforme do rei, uma túnica branca com uma cruz vermelha, a fim de provar a lealdade ao soberano.

Em vão, Glória tentou convencer a sra. Easington a ir com ela para Mallory Hall. Sem dúvida, Norfolk e seus lacaios não as pro­curariam lá, mas ali em York, onde era sabido que ambas tinham tomado parte na Peregrinação da Graça, corriam perigo.

— Eles não podem enforcar todo mundo, minha cara, e duvido que se interessem por duas mulheres como nós. Além disso, estou muito velha para ir até a Nortúmbria no rigor do inverno. Talvez, você devesse ir, não sei.

Mas como poderia fugir, largando a velha senhora entregue a um destino incerto, como se ela, Glória, não se importasse? Todavia, depois de ouvir relatos sobre as atrocidades cometidas pelo norte inteiro, considerava loucura permanecer em York.

No início, animava-se com a esperança de Miles aparecer e sal­vá-la do perigo iminente. Porém como ele não chegasse, nem man­dasse notícias, Glória começou a ser dominada por uma lassitude paralisante como a que um camundongo deveria sentir ao se ver acuado por um gato.

Então, numa manhã, sua oportunidade de fuga acabou. Norfolk chegou à cidade e sua primeira providência foi fechar todos os portais. O gato havia aparecido e os ratos encontravam-se trancados para seu deleite.

A notícia percorreu as ruas estreitas e antigas da cidade fechada, mas poucos passos adiante dos homens do duque. Estes iam de casa em casa, pondo para fora os moradores e indagando-lhes se tinham tomado parte na Peregrinação da Graça.

Muitos, orgulhosamente, admitiam a participação e recebiam or­dens para se juntar ao grupo de peregrinos confessos que caminhava sob a vigilância dos guardas. Outros, com menos vocação para már­tires, negavam e mostravam a túnica branca com a cruz vermelha. Geralmente, suas palavras eram respeitadas.

Quando as batidas soaram na porta, Glória quase se sentiu aliviada ao abri-la. Havia um oficial, com a libre Tudor, ladeado por outros vestidos da mesma forma, mas empunhando lanças.

— Em nome de Henrique VIII, rei da Inglaterra, há alguém nesta casa que tenha marchado na Peregrinação da Graça?

— Eu — respondeu ela num murmúrio, fechando a porta às costas a fim de impedir o oficial de ver Elizabeth Easington que se apro­ximava.

— Espere, senhor! — gritou Margaret reabrindo a porta. — Sou conhecida como leal servidora do rei! Na verdade, há uma outra peregrina aqui — declarou apontando para a tia.

Atônita, Glória viu o ríctus triunfante nos lábios de Margaret Nutting enquanto os soldados prendiam Elizabeth Easington.

— Como foi capaz de trair seu próprio sangue?! Uma velha mu­lher?!

As três meninas olhavam a cena sem compreender e apenas Grace, a menorzinha, gritou:

— Tia Elizabeth, não vá! Mamãe, não deixe esses homens levar titia e Glória!

A mãe empurrou-a, bem como as irmãs, para dentro de casa. Elizabeth Easington ergueu os ombros o quanto suas costas curvadas lhe permitiam e encarou a sobrinha.

— Não precisava ter sido um Judas, Margaret. Eu não permitiria que os soldados levassem Glória sem mim.

 

                                 CAPÍTULO XXVI

Deus Santíssimo! Você parece um tigre enjaulado! — Thomas Raven exclamou certo dia no final de fevereiro.

O carcereiro acabava de deixá-lo entrar na cela de Miles na Torre.

Os dois irmãos abraçaram-se e, depois, observaram-se por um instante. Thomas era um pouco mais baixo e corpulento, mas magro também. Os cabelos tinham a mesma negrura dos de Miles, embora já contassem com alguns fios prateados nas têmporas, e os olhos, a mesma tonalidade azul-clara. Porém as linhas dos lábios mostravam uma severidade ausente nas do irmão. Talvez isso se devesse à res­ponsabilidade de ser o herdeiro das propriedades da família Raven.

— Você emagreceu, mano — disse Thomas depois de um mo­mento. — Sem ter o que fazer além de dormir e de se alimentar com a excelente comida patrocinada pelo rei, você deveria estar tão gordo como um ganso de Natal.

O olhar sério desmentia o tom de pilhéria.

— Acho que o dinheiro tirado de meu bolso deve ter acabado há muito tempo, pois a comida piorou bem. Mas é muito bom ver você, mano. E a primeira visita que recebo desde que entrei aqui, um mês e meio atrás. Como descobriu onde eu estava? Não deixaram me comunicar com ninguém.

Sentaram-se ambos na cama, pois não havia cadeiras na cela.

— O que você fez, Miles? Andou lançando olhares amorosos à rainha Jane? Disse a Sua Majestade que ele estava ficando barrigudo? Você sempre foi mais audacioso do que eu, mas jamais, um idiota. Não se preocupe, o carcereiro foi bem pago para não ficar ali no corredor de onde pudesse nos ouvir — acrescentou ao ver a expressão alarmada do irmão.

— Não fiz nada disso, claro.

Em poucas palavras, Miles contou os fatos ocorridos desde sua última ida a Ravenwood e como desconfiava que sir Oliver Lang e lady Célia o tinham caluniado para o rei.

— Por isso, não sei se Henrique está me mantendo aqui pela simples petulância Tudor, a fim de me ensinar uma lição, ou se pretende me fazer encontrar com o fantasma de Ana Bolena lá em­baixo no gramado. E durante esse tempo todo, não faço idéia do que aconteceu a Glória. Isso está me deixando louco. Você não sabe de nada?

— Não. Meus contados do norte não mandaram resposta alguma às minhas indagações. Talvez estejam presos — respondeu Thomas.

— Você vem me visitar outra vez? Pode ser que, daqui a uma semana, tenha chegado alguma notícia.

Na verdade, Miles queria pedir ao irmão para ir a York, porém não se atrevia. Não porque o irmão se recusasse a atendê-lo, pelo contrário, ele iria. Temia, com isso, expô-lo ao perigo.

— Não vou precisar voltar aqui — afirmou Thomas com um sorriso animador e enquanto tirava um rolo de papel de dentro do gibão. — Tenho aqui a ordem para você ser solto. Assinada pelo próprio Henrique.

— O quê?! Por que não me contou logo? — disse Miles ao pular em pé e pegar o documento a fim de estudá-lo. — Por que ele fez isso? Não entendo! Mandar me soltar depois de me manter preso e incomunicável durante semanas? Muito estranho!

— Henrique VIII fez alguma coisa lógica depois de ser enfeitiçado por Ana Bolena? — indagou Thomas. — Todavia, um presente opor­tuno, de várias centenas de libras, dos cofres Raven, ajudou bastante.

— Suborno, apesar de eu não ter cometido crime algum — co­mentou Miles em tom de amargura.

— Claro, mas não questione sua sorte, mano. Aceite-a e fuja. Há uma cláusula, entretanto, da qual você não vai gostar. Está nas últimas linhas antes da assinatura.

Miles encontrou-a e, enquanto a lia, seu rosto foi se tornando lívido.

— Que absurdo é esse? Aqui diz que todos os membros da família Raven têm de permanecer no sul até quando o rei considerar a Pe­regrinação da Graça completamente extinta. Sob circunstância algu­ma, podemos ir a York. Absurdo, repito! Tenho de ir procurar Glória, ver se ela não foi apanhada pela rede de Norfolk e tentar salvá-la. Verificar se, pelo menos, continua viva! — argumentou Miles numa voz enrouquecida por um misto de revolta e desespero.

Thomas levantou-se e pôs a mão no ombro do irmão.

— Calma. Naturalmente você deve ir procurá-la. Nem por um instante, duvidei que pensasse de maneira diferente. Você não seria um Raven se permitisse que um pedaço de papel, ou uma ordem real, o mantivesse afastado da mulher amada. Seu garanhão cinza está esperando no estábulo da Torre e eu trouxe uma muda de roupas para você vestir quando estiver bem longe de Londres. Com elas, você não se parecerá com sir Miles Raven, um nobre do reino. Não há necessidade de anunciar quem realmente é e de estar desobede­cendo uma ordem do rei. Quando você a encontrar — Miles notou que ele não dissera "se" — cavalgue sem parar até chegar bem além da fronteira com a Escócia.

— Deixar a Inglaterra?! Para sempre?!

— Só enquanto Henrique VIII viver. Por que arriscar a vida outra vez nas mãos desse tirano caprichoso e irascível?

Miles refletiu sobre as palavras do irmão apenas por um segundo.

— Porque esse tirano caprichoso e irascível poderá descontar a raiva no resto da família Raven e eu não vou permitir que você, mamãe e Linnet sofram a fúria real. Também não vou deixar que Lang me obrigue a fugir de minha própria terra. Ele se esquece do quanto é vulnerável. — Miles semicerrou os olhos. — Não, se Glória estiver viva, nós nos casaremos e iremos morar em nossas terras do norte. Henrique terá de se contentar em me ter lá tão longe da corte.

—- Se não for por um milagre, como pretende conseguir isso? — perguntou Thomas.

Miles, então, lhe contou a terrível cartada que precisaria dar depois de encontrar Glória.

Tremendo, Glória virou-se da alta janela pela qual só podia olhar se ficasse na ponta dos pés. Queria ver se estava nevando, porém tinha sido impossível não avistar a cena horrível, no pátio interior do portal Micklegate. Oito corpos, em decomposição, balançavam ao vento de março, ainda pendurados em correntes como se pudessem fugir.

Esses oito tinham sido vítimas da severidade de Norfolk e esco­lhidos a esmo entre as mais de cem pessoas, homens e mulheres, presos em duas salas convertidas em celas. Haviam sido executados antes de o duque partir de York para outros lugares no norte. Dizia-se que a mesma justiça cruel estava sendo praticada neles.

Será que iriam enforcar todos os prisioneiros?, indagou-se Glória ao enrolar-se melhor no cobertor esfarrapado. Seriam todos execu­tados de uma vez só, num medonho espetáculo de morte, ou em pequenos grupos para dar uma lição melhor aos revoltosos do norte? Uma mulher, que se atrevera a visitar o marido preso, contara que Norfolk estava formando júris. Dessa forma, os réus seriam executados sob a condenação dos próprios vizinhos, ansiosos por provar a lealdade à coroa. Sua graça estava dando preferência àqueles que haviam acusado os parentes e não porque apresentassem um julgamento mais clemente. Instigando irmão contra irmão, filho con­tra pai, a coroa acabaria vencendo. Sem dúvida, Margaret Nutting se apressaria em fazer parte de um dos júris.

Caso Norfolk agisse com lentidão, uma forma de tortura, Glória duvidava que a sra. Easington vivesse até ser enforcada. Ela havia enfraquecido muito e apanhado uma tosse que ecoava, noite e dia, pela cela. Nessa manhã, ela acordara com febre.

Fazia menos de um ano que Glória tinha cuidado da prioresa de Kyloe, cujo corpo esvaia-se com a doença nos pulmões. Conhecia bem os sinais. Ignorava apenas quem levaria a velha senhora, o carrasco ou a doença.

Esperava que fosse esta. Ninguém deveria morrer sufocando-se devagar e ouvindo os gritos de espectadores. Gostaria muito também de adoecer, mas a resistência da juventude a mantinha saudável apesar do frio, da alimentação parca e ruim e de seu desânimo.

Onde estaria Miles? Teria o rei o mandado a um lugar distante aonde não chegassem as notícias sobre os acontecimentos ali do norte? Seria uma grande ironia se estivesse cuidando dos negócios de Sua Majestade na França, por exemplo, enquanto a noiva fosse executada em York.

Passou pelas pessoas encolhidas no chão, dirigindo-se para junto da sra. Easington.

— Sinto muito, Glória. Tentei, mas não consegui engolir esta comida de porco — desculpou-se a velha senhora.

— Não faz mal, sra. Easington. Não vale mesmo a pena comê-la. Glória acabava de ajoelhar-se ao lado dela quando a voz do car­cereiro soou:

— Há uma mulher aqui chamada Glória Mallory? Um visitante quer vê-la — anunciou ele.

Seu coração disparou de alegria.

— Só pode ser Miles, sra. Easington! Talvez ele consiga nos tirar daqui hoje mesmo!

— Assim espero, minha querida — murmurou a velha senhora. Os companheiros de cela abriram caminho quando Glória correu até a porta, onde esperou, impaciente, que o carcereiro a abrisse.

Quando ele a escancarou, o que ela viu a fez recuar, hesitante. Ali estava sir Oliver Lang com George Brunt logo atrás.

— O que deseja, sir Oliver? — indagou em voz seca.

— Que recepção! Corri o risco de desagradar o duque de Norfolk ao vir vê-!a, pois sirvo a sua graça em sua missão de aplicar a justiça aqui no norte. Portanto, você deve me tratar bem e...

— O carrasco do rei, o senhor quer dizer — contestou Glória. — Carcereiro, não quero falar com este homem! — avisou virando-se pronta para se afastar ao interior da cela.

Lang agarrou-lhe o braço e a puxou.

Elizabeth Easington, que a tinha seguido, ao ver o gesto e a expressão de Glória, deu um passo em frente.

— Largue a moça, seu desgraçado! Carcereiro, faça o homem soltá-la! Ele não presta!

— Ele é oficial do duque, mulher enxerida! Não se meta onde não é chamada! — vociferou o carcereiro, cerrando os punhos como se fosse agredi-la.

Elizabeth Easington não recuou com a ameaça.

— O homem não presta, repito! E minha criada não quer falar com ele!

— Quem é você para dar ordens aqui, sua rebelde atrevida? Em pouco tempo, estará balançando o corpo numa corrente no cadafalso! Ignorando os apelos assustados de Glória e desviando-se do car­cereiro com uma agilidade incrível, a sra. Easington pulou sobre Lang. Não tinha armas, mas com as mãos e as unhas, atacou-o, bem como a Brunt, num esforço inútil para afastá-los de Glória.

Ao ver o brilho da lâmina na mão de Brunt, Glória gritou um segundo antes de ele cravar a adaga nas costas de Elizabeth Easing­ton. O gemido agudo da velha senhora foi abafado por uma golfada de sangue. Seus olhos arregalaram-se e as mãos debateram-se no ar. E então, ela caiu ao chão com um baque surdo.

A mulher de um jovem comerciante acorreu depressa e pôs a mão sobre seu coração. Após um minuto, levantou-se.

Já não haveria cadafalso para Elizabeth Easington.

Glória manteve-se imóvel por um momento, esperando para ver qual seria a atitude do carcereiro. Este, porém, mostrava-se indeciso.

— Assassino! — gritou para Blunt que havia recuado. Lang con­tinuava a segurá-la. — Carcereiro, não vai prender este criminoso? O senhor o viu matar uma velha mulher indefesa! E sir Oliver Lang também é culpado, pois Brunt é capanga dele!

O carcereiro, um homem desleixado e sujo, desviou o olhar.

— O senhor disse que precisava interrogar a prisioneira. Pode levá-la.

Glória recomeçou a gritar e a dar pontapés. Um assassinato aca­bava de ser cometido diante de dezenas de testemunhas e o carcereiro ia permitir que esse par repugnante a levasse só Deus sabia para onde.

— Quieta, criatura! — gritou Lang e, depois, disse baixinho em seu ouvido: — Se não se comportar, não vou lhe contar o que sei sobre o desaparecimento de seu amante. Isso mesmo, tenho notícias do querido sir Miles Raven.

— Miles?! O que sabe sobre ele? — perguntou Glória tentando ver sir Oliver através das lágrimas.

— Não tão depressa, senhorita. Vamos conversar em outro lugar. Meu amigo carcereiro arranjou um quartinho onde poderemos falar em particular — explicou Lang com um olhar para as mulheres aglomeradas à porta.

Glória sentiu um arrepio de nojo ao ver a expressão insolente com a qual ele observava seus cabelos despenteados e o vestido de sarja imundo. Usava o mesmo desde que fora presa, pois não tinham lhe dado permissão para trazer roupas. Com um olhar de ódio para sir Oliver, resignou-se a ser levada pelo corredor.

— Este é o quartinho do carcereiro — explicou Lang quando Glória viu a cama num canto. Era o único disponível para nossa conversa — acrescentou em voz mansa, como se falasse com um cavalo assustado, e enquanto se aproximava.

Glória recuou.

— O senhor disse que tinha notícias de Miles. Onde está ele? Para onde o rei o mandou? Ele sabe que estou presa?

— Talvez saiba, mas não há absolutamente nada que ele possa fazer, minha cara — afirmou Lang com um sorriso mau e chegando mais perto.

— O que quer dizer? Onde está ele?

— Ora, na Torre, é claro, onde todos os inimigos de Sua Majestade ficam até enfrentar o destino merecido. — Lang soltou uma garga­lhada. — Ele pagará o preço por haver pretendido se casar com uma traidora conhecida, ou seja, com você, minha linda.

— Miles... na Torre?

Sua mente ainda tentava entender a importância das palavras de Lang quando outra pessoa entrou no quartinho e bateu a porta.

— Brunt, você tem de esperar no corredor até eu chamá-lo — disse Lang.

Brunt deu uma risadinha.

— Tem certeza, sir Oliver, que não quer que eu segure a moça enquanto o senhor goza seu prazer? Eu gostaria de assistir a um cavalheiro, como o senhor, domar a cadela. Antes de mim, natural­mente.

Ao ouvir as palavras de Brunt, Glória redobrou os esforços e começou a gritar e a se debater, como louca, a fim de soltar os braços, mas as mãos de Lang tinham a firmeza do aço.

— Não será preciso — garantiu Lang em voz bem alta para ser ouvido através do barulho feito por Glória. — _ Já lhe disse que poderia tê-la depois de mim e a terá, mas só se sair daqui e montar guarda no corredor como mandei.

Glória não interrompeu a luta desesperada quando Brunt, com ar emburrado, deixou o quartinho. Ela, empenhada em se defender e Lang, em dominá-la, não viram que Brunt deixara a porta entreaberta para poder assistir à humilhação de Glória Mallory.

 

                       CAPÍTULO XXVII

Passando a mão engordurada pejo queixo, o carce­reiro observou os dois homens levar a moça rebelde pelo corredor. O nobre tinha dito estar a serviço do duque de Norfolk, mas na verdade, o suborno de várias libras havia pesado mais do que qualquer palavra daqueles dois sujeitos mal-encarados. Tinha ficado óbvio que estavam mais interessados em estupro do que em interrogatório. Paciência. A moça estava mesmo prestes a morrer.

O fato de o carcereiro se deixar influenciar tanto por suborno ajudou Miles a obter a informação desejada. A moça que procurava estava, de fato, presa numa das celas de Micklegate. Naturalmente deixaria o cavalheiro vê-la, mas ele teria de esperar até os oficiais do duque terminar de interrogá-la.

A maneira maliciosa do homem dizer interrogá-la deixou Miles de cabelo em pé.

— Como assim? Eles a levaram ao quartel-general do duque na cidade?

— Não, senhor. Os dois estavam com muita pressa e eu lhes emprestei meu quarto.

— Eu também sou da comitiva do duque — Miles, que já tinha dado um nome falso, mentiu. — Eu deveria estar presente a esse interrogatório, mas pelo jeito, eles começaram sem mim. Por favor, me indique o caminho para seu quarto.

Ao ver o homem hesitar, deu-lhe mais um guinéu.

— Ignore o que possa ouvir e o fato de que estive aqui, ou a prisioneira. O cadafalso não vai perceber a falta de uma mulher inocente — Miles recomendou ao sujeito rude.

O carcereiro sorriu ao imaginar esse cavalheiro interrompendo a festa dos outros dois. Estava soltando um gato no meio dos pombos, pois não acreditava que os primeiros o esperassem.

Mas o homem estava certo. Os oficiais do rei não dariam pela falta de uma mulher entre tantas outras rebeldes.

— Obrigado, senhor. É só subir a escada e seguir pelo corredor. O quarto fica à direita.

Miles galgou os degraus esforçando-se para não fazer barulho algum. Não sabia quem estava com Glória e seria bom chegar de surpresa. Não usava esporas, pois tinha deixado o símbolo dourado, de seu posto de cavaleiro do rei, com Thomas quando partira de Londres com as roupas simples e quentes providenciadas pelo irmão.

No corredor, o soalho antigo rangia a cada passo seu, mas nem uma vez o fulano, parado à porta do tal quarto, se virou para trás. Ele estava muito entretido olhando pela fresta.

E então, ouviu-se um grito vindo do aposento. Grito de mulher. Grito de Glória!

Sacando a adaga, Miles a enterrou depressa no alto das costas do homem. Ele escorregou para o chão com um gemido e, nos estertores da morte, virou-se. Era George Brunt.

Ouviu-se o som de uma bofetada e um grito feminino de dor.

Miles atirou-se contra a porta enquanto desembainhava a espada. Numa fração de segundo, observou a cena. Na cama, com a saia levantada, Glória contorcia-se sob sir Oliver Lang. A calça e a roupa de baixo deste estavam jogadas no chão ao lado da cama. A seminudez e o estado de excitação do homem constituíam uma confir­mação medonha dos temores de Miles.

— Vá para o inferno, Brunt. Eu disse para esperar sua vez — vociferou Lang, furioso com a interrupção, mas arregalou os olhos ao reconhecer Miles. — Raven!

— Eu devia saber que eram você e seu amigo idiota, Brunt. Prepare-se para morrer como acaba de acontecer a ele, rapidamente e em estado de pecado.

Com um olhar de pavor para a espada longa de Miles, Lang pulou ao chão.

— Brunt está morto?! E... e você quer me... me matar sem da... dar chan... chance de me defender? — gaguejou Lang. — Por causa de uma rebelde?

De posse de uma calma gélida, Miles respondeu com um gesto de cabeça. Viu Glória fitando-o como se ele fosse o personagem de um sonho.

Inconscientemente, notou que ela estava mais magra e muito suja. Depois de matar esse verme, haveria tempo para cuidar dela.

—- Eu não deixaria ninguém machucar mulher alguma, mas es­pecialmente Glória.

— Pronto, fique com ela — disse Lang gesticulando, frenético, para a cama. — Afinal, tanto faz uma mulher, ou outra.

Lang sabia que apresentava um quadro ridículo enfrentando a morte seminu. Não via sinal de clemência no olhar de Raven, nem de que ele fosse se apossar da moça e deixá-lo viver. E já tinha matado Brunt, o idiota. Num gesto de desespero, agarrou Glória e a atirou sobre Raven, na esperança de poder alcançar a espada largada num canto.

Já quase a pegava quando sentiu a ponta da de Raven no pescoço. Ficou rígido.

Miles tinha colocado-se à frente de Glória, pois não queria que visse quando ele cortasse a garganta de Lang de orelha a orelha. Não, não haveria um combate honrado entre ele e esse porco imundo.

— Não, Miles! Não faça isso! Não mate sir Oliver! Ele não conseguiu o que queria. Já houve mortes demais — suplicou Glória puxando-lhe a manga, mas não a do braço que empunhava a espada.

Lang não merecia sua intercessão, porém ela não suportaria ver outra pessoa ser morta após haver presenciado o assassinato de Elizabeth Easington.

Houve um momento terrível durante o qual ela pensou que Miles enterraria a lâmina no pescoço flácido de Lang.

— Por favor, Miles! Nós podemos amarrar e amordaçar sir Oliver e fugir antes que ele se solte.

— Muito bem — Miles concordou finalmente, baixando a espada. — Mas nunca houve um porco que merecesse tanto morrer pelo que quase fez a você.

Ele achou um rolo de corda num canto do quarto e amarrou Lang muito bem, mas não o amordaçou. Ignorava se a corda era do car­cereiro ou se Lang e Brunt a tinham trazido para amarrar Glória caso ela não se deixasse subjugar.

— Sei que vai ser desamarrado, Lang. Mas antes de aparecer na corte fazendo acusações contra mim, lembre-se de que eu o apanhei com a falecida Ana Bolena, numa posição muito comprometedora. Pre­tendo contar isso a Henrique VIII e só Deus sabe por que não o fiz antes. Eu o teria poupado, e ao reino, de muita tristeza. Seria conveniente, e até vantajoso para você, ir embora da Inglaterra, não concorda?

— Você é um maldito, Raven!

— Talvez eu seja, mas vou ficar muito satisfeito ao vê-lo cair na desgraça e fugir para o exílio. Está pagando muito barato pelo que fez, fique sabendo.

— Você não vai escapar ileso disto aqui. O rei...

— Chega, já ouvi o suficiente — declarou Miles ao deixá-lo inconsciente com dois murros.

— Eu deveria tê-lo matado — disse ao abrir os braços para Glória. Ela não conteve as lágrimas e, por uns instantes, Miles a deixou

chorar, afagando-lhe os ombros trêmulos.

— Acalme-se, meu amor. Não há mais nada a temer. O carcereiro foi muito bem pago para permitir sua fuga. — De repente, lembrou-se de algo. — E a sra. Easington? Ela foi presa com você?

Seus soluços aumentaram.

— Brunt a matou quando ela tentava impedi-los de me levar embora da cela.

— Mais uma razão para eu ter matado este desgraçado! — disse Miles, enraivecido. — Bem, agora preciso tirá-la daqui.

— Miles, não há um jeito de libertar os outros prisioneiros? Ne­nhum deles, homem ou mulher, é um rebelde perigoso e não amea­çaria um fio de cabelo de Henrique VIII.

— Não mais do que você, eu sei — disse ele com olhar pesaroso. — Mas há guardas e homens de Norfolk pela cidade inteira. Nós mesmos teremos muita sorte se conseguirmos escapar com o nome limpo. Sinto muito, amor. Gostaria de poder ajudar a todos.

Por um longo momento, fitaram-se com tristeza. Depois, ela aper­tou-lhe a mão num sinal de compreensão.— O que vamos fazer a seguir?

 

                           CAPÍTULO XXVIII

Glória abafou uma exclamação de horror ao se de­parar com o corpo contorcido de Brunt no chão. Estremeceu quando Miles puxou a adaga das costas dele e, antes de recolocá-la no cinto, limpou o sangue no gibão do próprio morto. Pelo menos, seu antigo administrador não atormentaria mais a pobre Mag, refletiu ela.

Miles conduziu Glória, com as mãos amarradas às costas, pelos guardas do portal Micklegate.

— Esta mulher vai ser interrogada pelo duque — comunicou ele ao tomar a direção do quartel-general de Norfolk na cidade.

Quando estavam fora de vista, levou-a para uma ruela lateral. Lá, no pátio de uma taverna, vigiada apenas por um meninote mal­trapilho, havia duas montarias, Cloud e a égua preta.

— Sultana! — exclamou Glória abraçada ao pescoço do animal. — Mas como...

— Fui ao estábulo da casa da sra. Easington e a peguei. Não havia ninguém por perto e eu não sabia da prisão da pobre mulher. De qualquer forma, não queria dar explicações.

— Pois fez muito bem — aprovou Glória e, enquanto Miles a ajudava a montar, contou-lhe como Margaret havia traído a sra. Ea­sington.

O rosto dele sombreou-se.

— Maldita mulher! Vai ficar bem contente com a morte da tia, pois a casa será dela.

Só imagino o que as filhas pensarão a seu respeito — murmurou Glória, mas então, lembrou-se de algo. — Miles, Lang contou que o rei o tinha prendido na Torre. É verdade?

— Sim. Fiquei incomunicável durante semanas a fio, sem saber se seria executado, ou posto em liberdade. Finalmente, meu irmão apareceu com uma ordem, assinada pelo rei, para eu ser solto. Thomas teve de pagar uma alta soma em dinheiro para obter minha liberdade. Henrique, com certeza, achou que já havia me dado uma boa lição. Minha prisão foi uma trama urdida por Lang e lady Célia. Eles devem ter contado, a Sua Majestade, a história de meu relaciona­mento com uma rebelde perigosa, ou seja, você. Sem dúvida, acres­centaram detalhes escabrosos. Pensou que eu tivesse esquecido minha promessa, amor? — perguntou Miles admirando-lhe a beleza, apesar do rosto magro e dos cabelos emaranhados.

— Às vezes — admitiu Glória. — Mas geralmente, eu o imaginava cumprindo uma missão do rei, em algum lugar distante, onde não ficaria sabendo dos acontecimentos daqui. Se eu tivesse sabido de sua prisão na Torre...

Calou-se e estremeceu.

— Você parece uma princesa — elogiou Miles alguns dias depois e ao tomar-lhe as mãos entre as dele. — Mas está gelada!

— Pudera, Miles, estou morta de medo. Imagine se o que con­tarmos ao rei não o agradar!

Num gesto nervoso, ajeitou o colar de ouro e pérolas à volta do decote. O vestido de brocado verde Tudor, com a sob-saia acolchoada, balançava enquanto Glória se mexia.

As roupas eram de Linnet, guardadas nas acomodações da família Raven em Londres. Eles haviam parado lá para descansar e trocar as roupas simples, o disfarce usado durante a viagem. Depois, tinham vindo a Greenwich, onde aguardavam na ante-sala da câmara de audiências.

Miles tinha aconselhado Glória para escolher o vestido mais re­catado da irmã.

— Henrique VIII está apaixonado por Jane Seymour, uma mulher simples e dócil, o oposta da fascinante Bolena. Se você se apresentar com a discrição da rainha Jane, sem exageros mas também não com a falta de gosto e desleixo de Catarina de Aragão, será mais difícil ser avaliada como uma rebelde religiosa.

Como se quisesse lembrar ao rei de ter pertencido ao círculo íntimo de Sua Majestade, um cortesão e amigo de confiança e incapaz de traí-lo, Miles estava vestido de acordo com sua posição de ca­valeiro do reino. O casaco curto, cinza-escuro, exibia gola e punhos de pele de esquilo. O gibão e a calça eram pretos e a camisa de cambraia de linho, branca. Usava um chapéu achatado, de veludo preto, com um medalhão de ouro no centro e uma pluma do lado.

Finalmente, a porta da câmara de audiências abriu-se e um homem baixo, com a corrente de ouro de oficial, informou:

— Sir Miles e sita. Mallory, sua majestade os receberá agora. Chegara o momento temido, pensou Miles tomado pelo pânico.

Não havia retorno. Glória caminhava a um passo à frente, com a cabeça erguida, a saia balançando suavemente. Ela parecia ter aba­fado o medo sentido por esse encontro.

Ele desejava poder tomá-la pela mão e voltar correndo pelos cor­redores do palácio e rio abaixo pelo Tâmisa. A vida no exílio não seria um preço alto demais para se pagar pela segurança. Como havia sido um tolo arrogante ao garantir a ela que Henrique VIII se aplacaria com a versão verdadeira dos fatos. O rei era um tirano imprevisível, capaz de fazer qualquer coisa num piscar de olhos. Era tarde demais para admitir que, talvez, tivesse agido erradamente. Fez o que lhe restava, rezou.

— Levante-se, srta. Mallory, para que possamos vê-la — soou uma voz distante que a aqueceu no ar frio.

Havia uma leve entonação musical na fala, uma reminiscência da origem galesa da família Tudor.

Glória olhou para o homem vestido de brocado branco e enfeites dourados, sentado no trono. Era grande, sólido. Nos ombros e nas coxas, a gordura forçava as costuras da roupa. Uma boina, enfeitada com topázios, assentava-se sobre os cabelos loiros e ralos, já bem grisalhos. O rosto rodeava-se por uma barba curta e pálpebras empapucadas quase escondiam os olhos azuis. A expressão era de auto-satisfação espalhafatosa. Embora visse um homem que já havia ultrapassado a juventude e cuja aparência envelhecida revelava a vida desregrada, Glória sentiu a força da personalidade de Henrique Tudor.

Levantando a mão de dedos gorduchos e cheios de anéis, ele fez um gesto para que se -aproximasse.

— Srta. Mallory, queremos apresentá-la a nossa amada esposa, a rainha Jane.

Absorta com a figura maciça, envolta em branco, Glória não havia notado a mulher sentada ao lado, seu trono um pouco mais baixo do que o do real marido. Depressa, curvou-se novamente. Jane Seymour era uma criatura de aparência insignificante, ainda mais junto à imponência do rei. O vestido de veludo cor de amora e o colar de rubis não conseguiam lhe colorir as faces pálidas. Os cabelos, que escapavam do capuz, eram de um loiro acinzentado e opaco. Os lábios finos mostravam-se esbranquiçados e apenas os olhos exi­biam alguma vivacidade, embora não fosse possível discernir-lhes a cor exata.

Com um olhar nervoso, a rainha fitou o marido. Ao constatar-lhe a expressão calma, virou-se para Glória com uma sombra de sorriso encorajador, porém se manteve calada.

— Encantadora, encantadora... — disse o rei.

De perto, até um murmúrio desse homem imenso tinha uma certa ressonância, mas agradável aos ouvidos. Embora soubesse que o rei falava dela, Glória considerou o elogio mais apropriado a ele mesmo. Havia algo de hipnótico no encanto de Henrique VIII. Não fora à toa que Robert Aske, depois de passar o Natal na corte, tinha voltado convencido da sinceridade do rei.

— Mulher, pode acreditar que esta moça foi freira num convento, noiva de Cristo? — indagou Henrique.

Glória não se atreveu a informá-lo de que não chegara a fazer votos perpétuos.

A rainha Jane respondeu com um murmúrio e não ficou claro se sabia, ou mostrava espanto.

— Observe sua beleza, seu corpo escultural! Certamente fizemos um favor ao sexo forte ao tirá-la da vida estéril do convento. Não concorda, sir Miles?

— Sim, Majestade.

A voz de Miles veio de suas costas dando-lhe vontade de segu­rar-lhe a mão a fim de manter a coragem.

— A senhorita percebeu logo o grande favor concedido através de nosso decreto real?

Aí estava um terreno perigoso. Ela se atreveria a revelar os sen­timentos verdadeiros? Nada escapava ao olhar penetrante do rei.

— Imediatamente, não, Majestade.

Tremia por dentro, mas a voz saíra calma e clara. Henrique franziu as sobrancelhas.

— Não?! Mas a senhorita recebeu uma quantia em dinheiro, a título de pensão. Não ficou sem recursos — disse ele num leve tom de censura.

— Majestade, se me der permissão para falar...

— Não, ainda não, sir Miles — disse o rei com um gesto pe­remptório da mão, — A sita. Glória tem voz.

Seus joelhos tinham parado de tremer.

— Não, sire. Não recebi nada porque o padre do convento se apossou do dinheiro. Nós não sabíamos que tínhamos direito à pen­são. As freiras mais jovens voltaram para a casa de suas famílias, porém umas dez, as mais idosas, saíram à procura de outro convento. Não sei o que aconteceu a elas, sire.

— E a senhorita?

— Permaneci no convento. Tinha de cuidar da prioresa que estava à morte.

— E quando ela morreu, a senhorita se viu sozinha na erma Nortúmbria — Henrique concluiu. — Ficou muito revoltada contra nos, senhorita? — perguntou num tom de suavidade ilusória.

As palavras não passavam de uma armadilha para apanhá-la, re­conheceu Glória. Uma onda de revolta a dominou. Não mentiria a esse homem! Não por medo que ele percebesse, mas por respeito aos próprios princípios.

— Sim, Majestade. Durante o mês em que passei vendo a madre morrer, imaginava como iria sobreviver sem me tornar uma ladra, ou vender meu corpo. Eu não tinha parentes. A meu ver, meu so­berano havia, através de um decreto, extinguido o único meio de vida honesto a meu alcance e não providenciara recursos para me ajudar na busca de um emprego.

— Mas a senhorita ignorava nosso prêmio financeiro para as freiras e monges — argumentou o rei.

— Sim, majestade.

Glória manteve os ombros erguidos e não desviou os olhos dos de Henrique. De repente, ele vergou a cabeça para trás e riu.

— Ora, não temos aqui uma ovelha assustada, mas uma jovem leoa! Depois, o que aconteceu, srta. Mallory?

— Sir Miles chegou para tomar posse da propriedade e me en­controu. Eu achei, entre os papéis do convento, o testamento de meus pais que me fazia herdeira de Mallory Hall, acima da baía de Budle.

— Enfim, descobriu que sua situação não era tão precária. En­tendemos que a senhorita começou a administrar o solar e ofereceu hospedagem a sir Miles. Ele, por sua vez, foi se apaixonando por sua pessoa — comentou o rei enquanto seus olhos se arregalavam. — Isso mesmo, senhorita, sabemos muitas coisas sobre nossos sú­ditos. E, ao também se apaixonar pelo nosso atraente cavaleiro, per­deu a revolta contra seu soberano?

— Sim, Majestade. Comecei a me reconciliar com a idéia de uma vida no mundo aqui fora — respondeu Glória esforçando-se para não enrubescer, pois lembrava como a paixão de Miles a tinha ajudado a se adaptar à nova vida.

Henrique virou o corpo volumoso e relanceou o olhar pela rainha.

— A essas alturas, já devia se sentia satisfeita com seu quinhão, feliz em ocupar o lugar certo de uma mulher ao casar-se com um valoroso cavaleiro do reino e ter filhos como uma esposa obediente. Como, então, caiu nas malhas da rebelião, marchando contra nós, numa insurreição fora da lei, ao lado daqueles idiotas desorientados da Peregrinação da Graça? E mais, como enfeitiçou nosso amigo de confiança — apontou para Miles — a ponto de sua estada na Torre não lhe ter devolvido o bom senso? Ele chegou ao cúmulo de desobedecer nossas ordens expressas, indo a York na tentativa alucinada de salvá-la das conseqüências inevitáveis de sua loucura. Não se afligiu nem um pouco ao provocar a queda deste dedicado cavaleiro, mulher tola?

Em poucas sentenças, Henrique Tudor tinha se transformado do bem humorado inquisidor em um ser sacudido pela fúria. O rosto estava apoplético e os olhos faixavam. Glória sentiu um aperto ge­lado no coração.

— Sire, jamais tive a mínima intenção de me rebelar contra Vossa Majestade. Tomei parte na peregrinação da Graça apenas para acom­panhar minha patroa, uma mulher idosa e fraca, necessitada de meus cuidados

— Sua patroa?! Por que a senhorita, dona de um solar, precisava trabalhar para alguém?

Glória estava certa de que o rei sabia a resposta, mas brincava com ela como um gato com o rato.

— Eu havia abandonado o solar depois de uma briga com sir Miles.

— Nessa época, já havia concordado em se casar com ele, certo?

— Sim, Majestade. Mas eu...

Ia contar que imaginava sir Miles noivo de outra moça, porém Henrique a impediu.

— A senhorita demonstra uma maldita tendência para a insubor­dinação, seja contra seu soberano, ou seu futuro marido e senhor. Naturalmente, isso lhe foi insuflado no ambiente artificial do con­vento onde a mulher é quem governa, contra as leis da natureza, claro. A mulher nasceu para ser dócil e obediente, para servir o marido, não é, minha rainha? — indagou ao dar um tapinha na mão de Jane Seymour que apenas o fitou e balançou a cabeça como um boneco.

Apesar do abismo a sua frente, Glória ainda conseguiu sentir pena da mulher no trono ao lado de Henrique Tudor. Embora rainha, ela devia ser de uma subserviência absoluta para sobreviver com esse homem imprevisível, que havia condenado a esposa da juventude a uma morte solitária e mandado a segunda para o cepo. Miles jamais aceitaria uma mulher assim!

Não lhe restava nada para dizer que não enraivecesse mais o rei, por isso, manteve-se calada.

— E você, sir Miles, desprezou a filha de um de nossos melhores homens para propor casamento a esta moça?

Miles deu um passo à frente e, como se respondesse sua prece, segurou a mão de Glória. Diante da ira do rei, o gesto provocou uma exclamação abafada da rainha.

Saboreando o calor e a energia transmitidos pelo contato, Glória fechou os olhos. Se fosse diretamente dali para o cadafalso, o toque do homem amado permaneceria com ela para sempre.

— Sire, eu me apaixonei pela srta. Mallory motivado por sua bondade, firmeza e determinação, qualidades que deveriam adornar todas as damas de vosso reino.

— Contudo, ela o abandonou a fim de se juntar aos rebeldes — provocou Henrique.

— A srta. Mallory pensou que eu já estivesse comprometido com outra moça. A seus olhos, eu não passava de um impostor. Partiu antes que eu tivesse a oportunidade de lhe explicar a verdade. Fossem outras as circunstâncias, não acredito que ela houvesse marchado ao lado dos peregrinos. Tão logo a encontrei, tudo ficou esclarecido e nós fizemos planos para nos casar. Majestade, posso jurar que Glória Mallory, através dos erros cometidos, aprendeu muitas lições. Ela será uma esposa dedicada e fiel a mim, seguindo o exemplo de sua majestade, a rainha.

Glória sentiu a pressão dos dedos de Miles avisando-a para não discordar.

— Você planejou se casar com uma mulher envolvida em insur­reição antes de consultar seu soberano?! Contra nossas instruções específicas, você ousou tirar essa mulher da prisão onde ela aguar­dava, juntamente com outras pessoas, o castigo por seus crimes. Felizmente, nossos súditos leais têm nos mantido informados. Apre­sente-se, lady Célia!

 

                                   CAPÍTULO XXIX

Quando teria lady Célia entrado na Câmara de Au­diências? Com um sorriso de triunfo, ela saiu de um canto e aproximou-se. Miles notou que ela ainda usava luto, sem dúvida para apresentar uma imagem mais compassiva.

— Cara lady, você nos manteve informada sobre o comportamento de sir Miles, como ele a seduziu para, depois, abandoná-la cruelmente por causa desta moça a nossa frente. Com coragem, continuou vi­vendo, mas foi lesada pela morte prematura do marquês de Craningbourn. Sentiu-se, então, na obrigação de nos avisar que o novo amour de sir Miles não era leal ao rei.

Com olhar de ódio, Célia fitou Glória e Miles. Em seguida, in­clinou a cabeça para Henrique. Tudor.

— Sim, sire, embora com grande tristeza, pois ainda amava sir Miles. Fiz isso indignada por vossa Majestade que havia lhe confiado sua amizade real.

— A menção de confiança me leva a conjeturar se lady Célia confiaria em seu companheiro de acusação se soubesse que ele tirou a srta. Mallory da cela com intenção de violentá-la — aparteou Miles.

O riso de Célia foi meio estridente.

— E daí? Afinal, ela não passe de uma rameira rebelde — disse ela, embora ficasse visivelmente pálida.

Miles a observou da cabeça aos pés antes de prosseguir.

— Sim, Majestade sir Oliver Lang tirou Glória da cela com o intuito de forçar-lhe luxúria, bem como a de seu capanga, George Brunt. Ele se ressentia do fato de suas atenções não ter sido retribuídas tempos atrás. Ainda me indago o que lady Célia diria se soubesse também que sir Gliver permitiu o assassinato de uma mulher idosa. A sra. Elizabeth Easington tentava apenas impedi-lo de praticar o ato ver­gonhoso. Cheguei a tempo de evitar o estupro, mas não o assassinato. Admito, Majestade, haver tirado Glória Mallory da prisão sem esperar pelo veredicto do duque, porém confiava apenas na mercê de meu rei.

Ansioso pelo crédito real, Miles fitou o rei bem dentro de seus olhos céticos.

— Isso é verdade, srta. Mallory?

— Sim, Majestade. Eu estava prestes a ser violentada quando sir Miles me socorreu.

— O que fez ao homem que quase desgraçou a mulher a quem ama, sir Miles?

— Eu o amarrei, Majestade.

— Não o matou?! A um homem decidido a cometer um crime brutal?! — exclamou Henrique VIII.

Obviamente, ele duvidava da alegação de estupro, pois sir Oliver não fora morto pelo acusador.

Glória falou antes que Miles abrisse a boca.

— Eu não permiti, Majestade — declarou em voz firme. — Já tinha sido necessário matar George Brunt, o assassino impiedoso da sra. Easington.

— Você subjugou sir Oliver e trouxe esta mulher até mim? — indagou Henrique. — Bem, lady Célia, se a história de sir Miles e da srta. Mallory não fosse verdadeira, seu amigo sir Oliver teria vindo correndo à corte a fim de protestar inocência.

Todavia, lady Célia ainda não estava totalmente derrotada.

— Como eles disseram, foi o capanga quem cometeu o assassinato e não sir Oliver. Apenas alegam que ele sancionou o ato. E daí? A velha já estava quase condenada à forca, certo? Quanto a sir Oliver forçar-se a esta mulher, sire, entende-se. Vossa Majestade pode cons­tatar com os próprios olhos como se trata de uma criatura fascinante. — Num gesto audacioso e antes de Glória perceber, Célia tirou-lhe o capuz de linho, soltando-lhe os caracóis loiros. — Observe os cabelos dourados, os lábios sensuais, o corpo provocante! Que ho­mem resistiria a tal tentação?

Fora um movimento ousado, calculado para agradar um homem, que desde a mocidade, era um freqüentador assíduo do templo de Vênus. Henrique Tudor passou a língua pelos lábios enquanto olhava para Glória. Sem o capuz, símbolo de modéstia, ela se sentiu nua. Constrangida, Jane Seymour mexeu-se no trono.

— Os homens serão sempre homens, não é, lady Célia? — iro­nizou Miles. — Talvez. Mas o que dizer de uma mulher disposta a dar seu afeto a um homem capaz de violentar uma prisioneira in­defesa?

Novo riso estridente de Célia.

— Quem garante que se tratava de estupro? Quem sabe se a srta. Mallory não via nisso a oportunidade de escapar da execução.

O rei considerou a possibilidade e Miles percebeu a necessidade de usar sua última arma.

— Provavelmente, sir Olíver não veio à corte protestar inocência porque é culpado de crime muito mais grave, o de traição — disse Miles ao desviar os olhos de lady Célia para o rei, enquanto falava.

— Traição?! Explique-se melhor, sir Miles.

Célia havia empalidecido mais ainda. Com certeza, Lang tinha admitido a verdade a ela e, quem sabe, até se vangloriado. Respirou fundo.

— Sir Oliver Lang é culpado de contato carnal com a falecida rainha Ana Bolena. Isso foi definido, em um tribunal de justiça, como crime de traição. Correto?

Henrique encarou-o com expressão ameaçadora.

— Sim, crime de traição, bem como o ato de escondê-lo. Há quanto tempo sabe das ações de Lang, sir Miles?

Os murmúrios e o farfalhar de sedas e brocados das roupas de mulheres e homens, presentes na Câmara de Audiências, cessaram por completo. As pessoas mal se atreviam a respirar.

— Desde a consumação do fato, Majestade. Eu os interrompi casualmente.

Pronto. Contei. Admiti saber que Lang corneara Henrique e não o avisei. Praticamente, coloquei minha cabeça no cepo. Mas por favor. Deus amantíssimo, faça com que meu sangue seja suficiente. Poupe o de Glória!

Com as veias saltadas no pescoço, Henrique soltou um urro fu­rioso.

— E por que não veio diretamente a mim contar sua história, sir Miles? Sir Oliver Lang era uma amigo tão querido a ponto de seu pescoço valer mais do que a honra de seu soberano?

Miles não chegou a responder, pois a rainha Jane foi mais rápida.

— Querido senhor meu, por favor! É obvio que sir Miles agiu dessa forma não por querer esconder um ato errado, mas por amor, para poupá-lo de um grande sofrimento. Vossa Majestade estava apaixonado! Ao ser informado, teria suportado a mágoa profunda, caso desse crédito à história?

O espanto de Miles não conheceu limites. Jane Seymour, ao argumentar publicamente com o marido, lembrá-lo de sua paixão pela antecessora fascinante e de sua incapacidade de ver a maldade sob a aparência encantadora de Ana, exibia uma audácia desco­nhecida.

Henrique empalideceu visivelmente.

Deus do céu!, pensou Glória. A rainha morrerá a meu lado e de Miles!

O rei fitou a mulher. Embora soubesse que o esposo real poderia agredi-la em público, Jane manteve a aparência calma e não des­viou o olhar. A última vez em que lhe desafiara a autoridade, ao defender a reabertura dos mosteiros, o rei a lembrara do destino de Ana Bolena.

— É muito atrevida — disse ele finalmente.

— Não, sire. Devo mencionar os motivos de minha atitude. Sir Miles sempre se mostrou leal a meu senhor e marido.

Henrique baixou os olhos do rosto de Jane para observar-lhe o corpo. Imaginou-o como o tinha visto na noite anterior quando se deitara a seu lado. Por causa da dor crônica na perna ulcerosa, fazia um mês que não exercia a função de marido. Seria imaginação sua, ou os seios de Jane estavam mais cheios, a barriga mais arredondada? Estaria ela enceinte de seu filho? Sem dúvida, finalmente! Nesse caso, a última coisa que queria era aborrecê-la, enraivecendo-se com ela e condenando o cavaleiro e a moça, diante de si, à morte. O filho se firmaria melhor em seu ventre caso ela se sentisse contente com a dispensa da clemência real. Afinal, pretendia mesmo perdoar alguns rebeldes, e até uns poucos líderes.

A culpa de Raven limitava-se a ter desafiado o rei libertando a moça e em avaliar mal o caso de Bolena, refletiu estremecendo com a lembrança das infidelidades de Ana.

— Lady Célia! — chamou numa voz retumbante e peremptória. — Sugerimos que informe sir Oliver Lang, onde quer que ele se encontre, sobre sua situação de pessoa indesejável na Inglaterra. Suas propriedades serão confiscadas. No dia em que virmos sua cara de doninha traiçoeira, sua cabeça será posta no cepo!

O tom indicava que lady Célia Pettingham também não era mais bem-vinda à corte. Numa pressa desrespeitosa, e com olhar de fúria impotente, ela deixou a Câmara de Audiências. Henrique Tudor di­rigiu-se a Glória:

— Srta. Mallory, seria possível se tornar dócil e submissa como a minha adorada rainha, obediente ao senhor seu marido, caso fosse perdoada?

Com o coração disparado, Glória mal podia respirar. Mesmo as­sim, não resistiu à tentação de olhar para a rainha.

Ambas fitaram-se. Jane Seymour sabia que parecia-se tanto com essa mulher quanto uma pomba com um cisne. Tinha vivido seu momento de audácia, subido em direção ao sol, arriscando-se a cha­muscar as penas. Bastava.

— Sim, Majestade. Nunca aspirei nada além de ser sua súdita obediente. — Embora eu jamais o perdoe por muitos de seus atos. Mas não viverá para sempre. Peço a Deus que seu filho seja um governante melhor. — Tudo o que desejo é ser a esposa amorosa de sir Miles Raven e dar à luz seus filhos.

Fitou Miles cujos olhos brilhavam de orgulho. Ele sabia que não era dócil e submissa, e nem queria, tinha certeza. Provavelmente, Henrique Tudor também não ignorava isso.

— E quanto a você, sir Miles, vai conseguir manter esta adorável súdita nossa longe de complicações?

Miles sorriu para Glória, porém assumiu expressão solene ao di­rigir-se ao rei:

— Com o exemplo da autoridade amorosa de Vossa Majestade para com sua esposa, conseguirei, sire.

— Então, não haverá mais demora — declarou Henrique ao levantar-se com os braços erguidos. — Prepare a capela para as­sistirmos a oficialização de seus votos. Alguém providencie um padre!

 

                                         EPÍLOGO

No decorrer do verão, todos os sinais da instabili­dade ocorrida após a Peregrinação da Graça, de­sapareceram. Robert Aske foi enforcado em York e muitos outros líderes tiveram o mesmo destino. Alguns foram perdoados. Centenas de rebeldes, sem haver julgamento, receberam sentença de morte.

A rainha Jane, de fato, estava grávida. A 12 de outubro de 1537, deu à luz Edward, o único filho homem de Henrique VIII. Durante a gravidez, todos seus desejos eram atendidos, especialmente aqueles em relação a alimentos suculentos. Poucos dias após o parto difícil, conseguiu assistir ao batizado do filho, mas faleceu pouco depois, vítima de febre puerperal. Henrique Tudor viu-se novamente à pro­cura de uma esposa.

Lady Célia encontrou-se com sir Oliver Lang em York. Contou-lhe os eventos desastrosos ocorridos em Greenwich, os quais resultaram no banimento imediato dele, seguido do perdão e da restauração dos favores reais a sir Miles Raven e Glória Mallory, cujo casamento deu-se imediatamente. Ambos deixaram a Inglaterra juntos. Lang preferia ir para a Escócia, mas Célia considerava o lugar uma terra de bárbaros, por isso insistiu na França. Embora desmoralizada, man­tinha a esperança de um futuro melhor. No momento, só contava com Lang para protegê-la, mas quem sabe, na França, um duc ou comte não a roubasse de um mero cavaleiro?

O rei deu a abadia de Belford a sir Miles Raven, tornando-o, de uma penada só, o proprietário de terras mais rico do norte da In­glaterra. Isso pouco importava a sir Miles e a lady Glória Raven. Transformaram a abadia em um lar para mulheres desamparadas, na maioria, freiras de conventos fechados. Após um ano, a reforme de Kyloe terminou. O solar era o mais bonito da região. Acompanhados do primeiro filho, sir Miles e lady Glória mudaram-se para lá. Entretanto, passavam temporadas em Mallory Hall, especialmente na época da tosquia dos carneiros.

Por uma questão de necessidade. Jock, o pastor, começou a gastar mais tempo no solar a fim de ajudar Mag Brunt a tomar conta da casa na ausência de lady Glória. Mag remoçou com a viuvez, pois George Brunt já não lhe atormentava a vida. Jock não demorou a reparar na mudança e a pediu em casamento, prometendo ser um bom pai para os três meninos e a filha ainda bebê.

Miles acabou, finalmente, presenteando o rei com um potro, filhe de Cloud, mas o animal foi dado a Edward, o príncipe, pois Henrique já não mais cavalgava. Permanentemente enfermo pelo resto da vida ele jamais conseguiu ir ao solar de Kyloe para caçar galos silvestres

Henrique VIII viveria até 1547. Divorciou-se da quarta mulher, mandou decapitar a quinta, prima de Ana Bolena, mas a sexta sobreviveu a ele. Duas de suas constantes reclamações eram: não conseguir atrair, à corte, sir Miles e lady Glória com a freqüência desejada e, por mais que tentasse, jamais encontrar, no casamento felicidade semelhante à desse casal. 

 

                                                                                Laurie Grant 

 

 

                      

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