Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A VIÚVA CAPRICHOSA
1802
Lady Juliana Tallant não se lembrava da sua mãe. Tinha apenas quatro anos quando a marquesa fugira com um dos seus amantes e o marquês de Tallant decidira tirar o retrato da sua mulher da sala azul. E agora estava abandonado no sótão. O calor e a vitalidade da marquesa, tão habilmente capturados pelo jovem artista que fora outro dos seus amantes, dormiam nas sombras.
Quando as coisas ficavam particularmente feias em casa, Juliana costumava subir ao sótão, retirar o pano que cobria o retrato da sua mãe e ficar horas a observar aquele bonito rosto. Havia um pequeno espelho num canto do sótão e ela posava diante dele, com a camisa de dormir, tentando encontrar as parecenças entre os seus traços e os do quadro. Os olhos eram os mesmos, verde esmeralda com reflexos dourados, tal como o nariz pequeno e a boca generosa, talvez demasiado grande. O formato do rosto de Juliana era diferente e, além disso, tinha o que ela pensava ser o cabelo castanho-avermelhado dos Tallant. No entanto, ouvira o seu pai dizer que ela não era sua filha, portanto não sabia como pudera herdar o seu cabelo.
- É muito difícil para a menina estar sem a sua mãe - ouvira, uma vez, a sua tia Beatrix dizer ao marquês. Mas Bevil Tallant dedicara um olhar frio à sua irmã e dissera que era muito inocente e que a menina já tinha os criados e a tutora. Que mais poderia querer?
Naquela tarde de Verão em particular, Juliana, aborrecida com as aulas de francês da menina Bertie, pedira para que lhe permitissem ir apanhar sol. Por fim, a tutora assentira e Juliana correra escada abaixo, ignorando os conselhos da menina Bertie para levar uma sombrinha e comportar-se com decoro. As meninas levavam sempre chapéu; as meninas não corriam pelo prado; as meninas nunca falavam com um cavalheiro sem terem sido apresentadas antes... Inclusive com a tenra idade de catorze anos, Juliana sabia que ser uma menina podia ser muito aborrecido. Inclusive com apenas catorze anos, era uma rebelde.
A porta da sala azul estava entreaberta e pôde ouvir a voz do seu pai por cima do tinido das chávenas de chá. A tia Beatrix estava a fazer uma das suas raras visitas a Ashby Tallant.
- Marianne está a viver em Roma com o conde Calzioni - ouviu a sua tia solteira responder a uma pergunta do marquês. - Perguntou pelas crianças, Bevil - o marquês resmungou. - Suponho que gostaria de regressar a Inglaterra para as ver, mas é impossível, certamente.
O marquês resmungou novamente. Depois, houve um silêncio.
- Ouvi dizer que Joss está muito bem em Oxford - disse Beatrix, alegremente. - Surpreende-me que não mandes também Juliana estudar para fora. Tenho a certeza de que, desta vez, aproveitaria bem. Sabes que está desejosa de te agradar.
- Eu adoraria mandá-la para fora, mas é uma perda de tempo - disse o marquês. - Da última vez, fiz o que me sugeriste e vê o que aconteceu, Trix! A menina transformou-se numa libertina, tal como a sua mãe.
Beatrix fez um gesto de desaprovação.
- Não acho que devas condenar Juliana dessa maneira, Bevil. Aquele incidente na escola foi desafortunado...
- Desafortunado? Ler pornografia francesa? Eu diria escandaloso.
- Não se podia considerar pornografia. Eram fotografias travessas de outras raparigas... Além disso, se Juliana quisesse ler esse tipo de livros, só teria de procurar na tua própria biblioteca, Bevil.
O marquês resmungou pela terceira vez. Juliana confirmou se não havia nenhum criado e aproximou-se mais um pouco da porta para ouvir melhor.
- Há sempre a opção do casamento - disse Beatrix, pensativamente. -Ainda é um pouco jovem, mas dentro de alguns anos...
- Assim que fizer dezassete anos - respondeu o marquês, de mau humor, - casar-se-á e acabam-se as confusões.
- Esperemos que assim seja - replicou Beatrix, secamente. - Mas para Marianne não acabaram, pois não, Bevil?
- Marianne era uma lasciva - disse Bevil Tallant, friamente, da sua mulher. - Ela mesma perdia a conta aos seus amantes. E a menina está a caminho do mesmo, Trix. Ouve o que te digo: acabará mal.
As vozes continuaram, mas Juliana virou-se e atravessou a entrada de mármore preto e branco para descer os degraus de pedra da mansão Ashby Tallant. O calor do sol bateu-lhe assim que saiu das sombras do pórtico. Esquecera-se do chapéu. E da sombrinha. No dia seguinte, teria sardas na cara.
Seguiu pelo caminho que levava até ao rio, atravessando o prado. Caminhava devagar enquanto tentava compreender porque o seu pai queria sempre enviá-la para fora. Todos os dias, passava um doloroso quarto de hora com ele, a explicar-lhe o que aprendera nas aulas, mas ela, com o instinto das crianças, sabia que não estava realmente interessado. Quando o relógio dava as horas, o seu pai dispensava-a sem sequer olhar para ela. Adorara mandá-la para a escola da menina Evering e zangara-se terrivelmente quando ela regressara inesperadamente. Agora parecia que, se quisesse agradar-lhe, tinha de se casar o mais depressa possível. Juliana pensava que conseguiria fazê-lo. Sabia que era bonita e, além disso, uma vozinha dizia-lhe que conseguiria fazer isso e muito mais. E que o seu pai nunca estaria contente com ela. Que nunca a amaria.
Juliana seguiu pelo caminho que contornava o rio, a água fluía preguiçosamente numa série de curvas enquanto se aproximava da cidade de Ashby Tallant e havia um grande lago junto dos salgueiros onde os patos nadavam e se lavavam. Juliana afastou os ramos dos salgueiros e entrou na escuridão dourada.
Havia alguém ali. Quando os seus olhos se adaptaram à luz ténue, Juliana viu um rapaz que subia com dificuldade, limpando as palmas das mãos nas calças. Era alto e desajeitado, com o cabelo louro e a cara cheia de borbulhas. Juliana ficou imóvel e olhou para ele. Parecia o filho de um agricultor ou talvez um aprendiz de ferreiro.
- Quem é você? - perguntou, com o tom de condescendência que ouvira a sua tia Beatrix usar com os criados, esperando que tivesse o mesmo efeito.
No entanto, o rapaz, ou melhor dizendo, o jovem, já que teria pelo menos quinze anos, simplesmente sorriu ao ouvi-la. Juliana viu que tinha uns dentes branquíssimos. O jovem dedicou-lhe uma reverência engraçada, que parecia incongruente com a sua camisa suja de erva e as suas calças velhas.
- Martin Davencourt, para a servir, senhora. E a senhora é...?
- Lady Juliana Tallant, de Ashby Tallant.
O jovem voltou a sorrir. Tinha um sorriso encantador que lhe formava duas covinhas nas faces.
- A senhora da casa em pessoa! - exclamou ele.
Apontou para um monte de pedras, restos de um antigo moinho, que estavam espalhadas sobre a erva.
- Gostaria de se sentar comigo, minha senhora?
Quando Juliana baixou a vista para a erva viu o livro aberto, cujas páginas a brisa ligeira movia. Tinha esboços e desenhos, e junto dele havia papel e um lápis, onde Martin Davencourt desenhara algo. Junto do livro havia várias peças de madeira e alguns pregos.
- Não é da cidade! - exclamou ela, acusadoramente. Informara-o, com orgulho, da sua posição social, mas, naquele momento, sentia-se em desvantagem.
Martin Davencourt abriu muito os olhos e Juliana pensou que eram uns olhos muito bonitos, de um verde-azulado, rodeados de pestanas espessas e escuras.
- Disse que era? Agora, resido em Ashby Hall. Sir Henry Lees é o meu padrinho.
Juliana aproximou-se devagar.
- Porque não está na escola? Martin sorriu.
- Infelizmente, estive doente. Volto no fim do Verão.
- Para Eton?
- Para Harrow.
Juliana sentou-se na erva e pegou numa das peças de madeira.
- Estou a tentar construir uma fortaleza disse Martin, - mas não consigo encontrar o ângulo correcto do muro. A matemática não é o meu forte.
Juliana bocejou.
- O meu irmão Joss é como você, sempre a brincar com os seus soldadinhos e a construir edifícios. É aborrecido!
- De que tipo de jogos gosta, lady Juliana?
- Já não tenho idade para brincar. Tenho catorze anos e dentro de pouco começarei a procurar marido.
- Peço-lhe perdão - disse Martin, com os olhos brilhantes. - Mas é muito triste não brincar a nada. A que dedica o seu tempo?
- Oh, danço, toco piano, faço trabalhos de costura e... - Juliana calou-se. Dito assim, as suas actividades pareciam fúteis. - Estou sozinha, portanto tenho de me divertir sozinha.
- A passear junto ao rio nas horas de mais calor?
Juliana sorriu.
- Às vezes.
Ficou o resto da tarde sentada na erva, enquanto Martin tentava unir as peças de madeira para formar uma ponte levadiça, recorrendo, com frequência, ao livro. Quando o sol começou a pôr-se, Juliana despediu-se. Mas Martin mal levantou a vista dos seus cálculos e Juliana sorriu enquanto voltava para casa, imaginando-o sentado sob os salgueiros na escuridão, a perder o jantar.
Para sua surpresa, ele estava ali na tarde seguinte e na outra. Encontraram-se a maior parte das tardes durante a quinzena seguinte. Martin aparecia com algum modelismo militar em que estava a trabalhar ou trazia um livro para ler, de Filosofia, poesia ou literatura. Juliana tagarelava e ele respondia com monossílabos, quase sem levantar a vista dos seus papéis. Às vezes, ela repreendia-o pela sua falta de atenção, mas, geralmente, estavam ambos à vontade. Juliana conversava e Martin permanecia quase calado, o que agradava aos dois.
Uma tarde, no fim de Agosto, Juliana deixou-se cair na erva e queixou-se de que era uma tolice ir a Londres procurar marido, já que ninguém quereria casar-se com ela. Era feia e sem nenhuma habilidade, e todos os seus vestidos lhe estavam curtos. Não importava que ainda faltassem dois anos para ter de ir para a capital, porque as coisas piorariam em vez de melhorarem.
Martin, que estava a desenhar dois patos que nadavam no lago, concordou que os seus vestidos lhe estariam muito mais curtos daí a dois anos, se continuasse a crescer. Juliana atirou-lhe um dos livros e ele agarrou-o com cuidado, pegando novamente no lápis.
-Martin...
-Hum?
- Achas que sou bonita?
- Sim - não levantou a vista. Uma madeixa de cabelo loiro caiu-lhe sobre a testa. As suas sobrancelhas escuras estavam muito marcadas e quase juntas pela concentração.
- Mas tenho sardas.
- Sim. E também são bonitas.
- O meu pai diz que nunca arranjarei marido porque não sou feminina - Juliana começou a arrancar ervas, com a cabeça inclinada. - Diz que sou tão selvagem como a minha mãe e que acabarei mal. Eu não me lembro da minha mãe acrescentou, com tristeza, - mas tenho a certeza de que não pode ser tão má como todos dizem.
Martin ficou imóvel, com o lápis na mão. Ao levantar a vista, Juliana viu um brilho do que parecia ser raiva nos seus olhos.
- O teu pai não devia dizer-te essas coisas disse, bruscamente. - Foi ele quem te disse que eras feia e que não tinhas nenhuma habilidade?
- Suponho que tem razão - respondeu Juliana.
Martin disse algo muito ordinário que, felizmente, Juliana não compreendeu. Olharam-se em silêncio durante um longo momento e, depois, Martin disse:
- Se ainda andares à procura de marido quando tiveres trinta anos, adoraria casar-me contigo - a sua voz era rouca e havia timidez nos seus olhos.
Juliana ficou a olhar para ele e, depois, desatou a rir-se.
- Tu? Oh, Martin!
Martin virou-se e apanhou o seu livro de Filosofia. Juliana viu que uma onda de cor lhe subia pelo pescoço e lhe corava o rosto. Não voltou a olhar para ela, mas concentrou-se no livro.
- Trinta são muitos anos - disse Juliana, tranquilizando-se. - Atrever-me-ia a dizer que estarei casada há anos quando chegar a essa idade.
- Provavelmente - disse Martin, ainda sem levantar o olhar.
Fez-se silêncio entre eles. Juliana brincou com a bainha do seu vestido e olhou para Martin, que parecia absorto no livro, embora ela pudesse jurar que estava a ler várias vezes a mesma página.
- Foi uma oferta muito bonita - disse ela, estendendo lentamente uma mão para tocar na de Martin. A pele dele era quente e suave. Martin continuou sem olhar, mas também não lhe afastou a mão. - Se não estiver casada aos trinta anos, adorarei aceitar a tua oferta. Obrigada, Martin acrescentou, em voz baixa.
Finalmente, ele olhou para ela. Os seus olhos sorriam e os seus dedos fecharam-se firmemente em torno dos dela. Juliana sentiu um calor estranho no coração ao olhar para ele.
- De nada, Juliana.
Ficaram sentados durante um momento de mão dada, até que ela começou a sentir frio e disse que tinha de ir para casa.
No dia seguinte, choveu e no outro também. Depois daquilo, não voltou a encontrar Martin sob os salgueiros. Quando perguntou por ele, os criados disseram-lhe que o afilhado de sir Henry Lees fora para casa.
Teriam de passar quase dezasseis anos até Juliana Tallant e Martin Davencourt se encontrarem novamente e, então, ela estaria a cumprir o destino que o seu pai lhe prognosticara.
1818
A senhora Emma Wren era conhecida por dar as festas mais atrevidas e loucas, cujos convites eram esperados com impaciência pelo dissoluto grupo de mulheres casadas enlouquecidas e solteiros libertinos, cujos excessos eram denunciados pelas classes mais conservadoras da sociedade.
Estava uma noite tórrida de Junho e a senhora Wren dava um jantar muito especial para comemorar as núpcias iminentes do mulherengo lorde Andrew Brookes. O menu fora amplamente discutido entre a senhora Wren e o seu cozinheiro, que ficara relegado para segundo plano ao ser informado dos planos para a sobremesa. Por fim, tinham contratado um chef francês e o cozinheiro retirara-se para um canto da sua cozinha, murmurando que, sem dúvida, Carème, o chef do príncipe regente, fora a melhor escolha, já que estava mais habituado do que ele àquele tipo de imoralidades.
Já era tarde e a sala de jantar estava carregada de fumo e vapores de vinho quando serviram a sobremesa. Os convidados, cavalheiros na sua maioria, estavam recostados nas suas cadeiras, satisfeitos depois de terem comido e sido entretidos por algumas mulheres mundanas que a senhora Wren se atrevera a convidar. Uma delas estava sentada ao colo do noivo, a dar-lhe uvas da bandeja de prata que havia num canto da mesa e a sussurrar-lhe provocantemente ao ouvido. A mão dele já estava dentro do seu sutiã e acariciava-a distraidamente, enquanto o seu rosto corava mais um pouco pela bebida e o desejo.
Quando as portas se abriram e os criados entraram, a senhora Wren bateu palmas, pedindo silêncio.
- Senhoras e senhores... - começou, com um tom atrevido - vamos dar as boas-vindas à sobremesa, uma criação muito especial para comemorar esta triste ocasião... - houve murmúrios e gargalhadas. - Tenho a certeza de que André w não se afastará de nós assim tão facilmente continuou, com voz doce, olhando significativamente para Brookes, que tinha um copo de brandy numa mão e a outra sobre a saia da mulher. - É preciso algo mais que o casamento para se interpor entre um homem e os seus amigos... Andrew, este é o presente que te oferecemos!
Houve uma salva de palmas enquanto a senhora Wren fazia gestos aos criados para que pusessem a enorme bandeja no meio da mesa. Depois, afastaram-se e um criado com libré levantou a tampa de prata.
Fez-se silêncio. A surpresa era quase tangível à volta da mesa. Alguns solteiros endireitaram-se nas suas cadeiras, com a boca aberta pelo espanto. Brookes ficou imóvel e a rapariga desceu subtilmente do seu colo.
Na bandeja de prata, no meio da mesa, lady Juliana Myfleet repousava completamente nua, em todo o seu esplendor e provocante glória. O seu cabelo avermelhado estava preso por uma tiara de diamantes. Tinha uma liga com jóias incrustadas na coxa direita e uma corrente fina de prata ao pescoço. Tinham-lhe posto uma uva no umbigo e por todo o corpo tinha bocadinhos de natas, uvas, morangos e melão postos estrategicamente. Estava completamente banhada em açúcar de alcorça e, à luz das velas, brilhava como se fosse uma estátua de gelo, uma criada virginal de neve. Mas a expressão dos seus olhos verdes semicerrados não tinha nada de virginal. Estendeu uma colher de prata a Brookes enquanto lhe dedicava um sorriso provocador.
- A primeira dentada é para ti, querido...
Brookes tirou um pouco de fruta e de natas com tal entusiasmo que lhe tremeu a mão e esteve prestes a deixá-lo cair no chão. Os outros homens animavam-no com assobios e aclamações.
Sir Jasper Colling, um dos admiradores mais persistentes de lady Juliana, aproximou-se da bandeja.
- Quero colocar a minha colher neste pudim... Brookes afastou-o, rapidamente.
- Terás de esperar pela tua vez, amigo. Esta festa é minha e é o meu pudim.
Lady Juliana virou a cabeça preguiçosamente e o seu olhar recaiu sobre um cavalheiro que nunca vira antes nas noites de Emma. Era alto e magro, mas tinha uns ombros largos e um ar de força. Com o seu rosto bronzeado e forte, e a linha marcada do queixo, tinha o aspecto de ser um bom aliado em qualquer zanga. Estava recostado na sua cadeira, como se contemplasse os abutres ansiosos que rodeavam a mesa, e o seu olhar era indecifrável.
Juliana sentiu uma pontada de curiosidade. Dedicou-lhe um sorriso provocador.
-Aproxima-te, querido. Não sejas tímido...
O homem levantou a vista. Os seus olhos eram verde-azulados e olhavam para ela com uma total indiferença.
- Agradeço-lhe, senhora, mas nunca gostei de sobremesas.
Juliana não estava habituada a que a rejeitassem. Observou o homem mais atentamente. Parecia ter a mesma idade que ela, cerca de vinte e nove anos, ou talvez mais. Os seus lábios curvaram-se com um sorriso cínico enquanto lhe sustentava o olhar.
Durante alguns segundos, Juliana sentiu-se muito jovem e muito confusa, como se tudo aquilo fosse um erro terrível. Os homens que olhavam para ela como predadores, as mãos que queriam alcançá-la... Houve um momento em que esteve prestes a descer da bandeja e sair a correr, nervosa com os olhos daquele desconhecido. O seu sorriso desvaneceu-se, mas não conseguiu desviar o olhar dele.
Então, o homem virou-se para pedir a um criado que lhe enchesse o copo de vinho e aquela sensação estranha desapareceu. Juliana dedicou um sorriso ao homem mais jovem e excitado que havia na sala de jantar.
- Simon, querido, porque não lambes as natas que tenho... precisamente aqui?
Juliana arqueou ligeiramente o corpo para as mãos ansiosas e depois levantou-se, deixando cair pedaços de fruta no chão. Fez um gesto a uma empregada para que lhe passasse o seu robe e pôde ouvir as queixas de desilusão dos homens, mas as meretrizes mais ousadas e as damas mais atrevidas da sala de jantar apressaram-se a aproximarem-se da bandeja para oferecerem natas e fruta aos cavalheiros das suas próprias mãos. Juliana olhou brevemente por cima do seu ombro e viu que a noite estava prestes a transformar-se numa das famosas orgias de Emma.
Um criado, corado até às orelhas, manteve a porta aberta para que Juliana saísse. Ela atravessou-a descalça, deixando restos de comida sobre o mármore da entrada à sua passagem. As natas colavam-se à roupa e o açúcar estava a começar a picar-lhe a pele. Esperava que Emma se tivesse lembrado de dizer à criada para lhe preparar um banho.
A porta da sala de jantar fechou-se atrás dela e Juliana pôde ouvir que as conversas atingiam um novo e gélido ponto de excitação. Sorriu ligeiramente. Já tinham algo de que falar nos clubes! Por muito fino que fosse o casamento de Brookes, seria recordado pelos excessos da noite anterior. Mais uma vez, as mulheres casadas escandalizar-se-iam perante o comportamento de lady Juliana Myfleet, filha do marquês de Tallant, que, em tempos, fora uma delas, mas que perdera o decoro, rápida e espectacularmente.
- Por aqui, minha senhora - a criada indicava-lhe as escadas. Era muito jovem e nada agraciada, e Juliana recordou que Emma escolhia sempre aquele tipo de criadas, porque era incapaz de competir com alguém em beleza. A jovem conduziu Juliana até ao quarto que usara antes para se mudar. Uma porta dava para um quarto mais pequeno, onde outra criada vertia água quente numa banheira. Levantou a vista quando Juliana entrou e, ao vê-la, corou violentamente. Esvaziou o jarro de água, fez uma reverência trôpega a Juliana e saiu rapidamente, como se o facto de estar no mesmo quarto que a viúva mais perversa da cidade fosse um pecado.
Juliana sorriu à primeira criada, tirou o robe, inclinou-se para tirar a liga da perna e meteu-se na água.
- Obrigada. Já pode ir.
A rapariga devolveu-lhe um sorriso tenso e apanhou a roupa. Dedicou-lhe uma reverência que expressava toda a sua desaprovação e saiu do quarto. Juliana riu-se.
O açúcar de alcorça estava a transformar-se numa massa pegajosa em contacto com a água e Juliana estendeu a mão para uma escova com o punho de madeira para esfregar a pele. Preferia fazê-lo sozinha. O simples pensamento de ter ao seu lado uma criada trôpega a atacar a sua pele suave fazia-a estremecer. Os restos de natas flutuavam na água e havia um pedaço de maçã entre eles. Juliana fez uma careta. Precisaria de um segundo banho para se livrar dos resíduos do primeiro.
Inclinou-se para trás e fechou os olhos, revivendo o momento em que os criados tinham destapado a bandeja, deixando-a exposta em toda a sua glória. Fora divertido causar tal onda de murmúrios. As mulheres tinham ficado furiosas e os homens tinham-se transformado em meninos numa loja de doces. Juliana sorriu com satisfação. Gostava de ser capaz de provocar tais emoções. Admiração, desejo... e desprezo.
Endireitou-se bruscamente, recordando a expressão do desconhecido.
”Agradeço-lhe, senhora, mas nunca gostei de sobremesas.”
Que insolência! Como se atrevia a ser tão desdenhoso? Fora só uma brincadeira. E o que estava a fazer um puritano como aquele num dos jantares libertinos de Emma?
Por um momento, Juliana recordou o olhar daquele homem e voltou a sentir-se confusa. Tivera a certeza de que o conhecia, mas, pelo que parecia, enganara-se.
Levantou-se, entornando água num lado da banheira, e alcançou a toalha. Com um movimento de impaciência, tirou a tiara do cabelo e deixou-a sobre o toucador. De repente, sentia-se ansiosa por partir. Atravessou o quarto, deixando a marca das suas pegadas húmidas sobre o tapete. A sua roupa estava sobre a cama. Só tinha de tocar à campainha para que a jovem criada acudisse e a ajudasse a vestir-se, mas não queria esperar. Deixara Hattie, a sua própria empregada, na sua casa de Portman Square. Hattie também desaprovava o seu comportamento, ao ponto de os amigos de Juliana lhe perguntarem porque não arranjava outra criada, em vez de aguentar a censura de Hattie. Juliana nunca respondia. A verdade era que preferia ter uma criada rigorosa, o que tinha muito a ver com a mãe que não recordava.
Começou a vestir-se sozinha, mas teve problemas ao prender as meias de seda às ligas, enquanto afastava o sutiã. O vestido de noite que escolhera era muito simples, de gaze água-marinha. Mesmo assim, pareceu-lhe tremendamente difícil abotoá-lo sem ajuda. Supunha-se que o tecido, que era quase transparente, devia ajustar-se sedutoramente às suas curvas. Mas Juliana franziu o sobrolho ao ver-se ao espelho. O vestido caía sem nenhuma elegância e, certamente, não parecia nada sedutor. Ridículo! Não voltaria a vestir-se sem ajuda. Não podia permitir-se ter um aspecto descuidado.
Sentou-se à frente do toucador e observou a sua imagem ao espelho. Não sabia o que fazer com o seu cabelo que, sem a tiara, lhe caía pelas costas. O cabelo solto suavizava as suas maçãs angulosas do rosto e fazia-a parecer mais jovem. As sardas no nariz também intensificavam a ideia de juventude. Juliana inclinou-se para o espelho. Havia um sinal de vulnerabilidade nos seus olhos que não queria reconhecer. Fazia-a sentir-se estranha, como se sentira quando o desconhecido a olhara.
A porta abriu-se e Emma Wren entrou. Ao vê-la, Juliana soube que Emma bebera demasiado. Tinha as faces avermelhadas e estava ligeiramente despenteada.
- Juliana, querida! Foste magnífica! Os homens não falam de outra coisa! Estão todos à tua espera, querida. Estás pronta para descer?
Juliana virou as costas ao espelho.
- Ainda não. Preciso de ajuda com o vestido e com o meu cabelo.
- Devias ter chamado a minha criada. Dessié ajudar-te-á num instante. Embora... - Emma observou Juliana - assim tenhas um aspecto encantador e travesso. Tenho a certeza de que os homens o apreciarão. Os caracóis soltos fazem-te parecer mais jovem e inocente - deixou escapar uma gargalhada. - Certamente, deixá-los-ás sem fôlego!
Não pela primeira vez, Juliana pensou que Emma estava a desperdiçar a sua vida como esposa de um ministro do governo e que teria tido muito mais sucesso a gerir um prostíbulo. Na verdade, havia muito pouca diferença entre a elegante casa da senhora Wren e um bordel de Covent Garden.
Olhou para Emma. Podia sujeitar-se a alguns dos jogos da sua amiga por diversão, mas não tinha intenção de seguir as regras dos outros. A partida que tinham pregado a Brookes aliviara-a do aborrecimento durante pelo menos uma hora, mas não ia descer e comportar-se como uma rameira.
- Sir Jasper Colling está a perguntar por ti disse Emma, aproximando o seu rosto do de Juliana, de forma que esta pôde cheirar o vinho no seu hálito. - E Simon Armitage. É um rapaz muito doce, Ju... e muito jovem e ansioso. Pensa em quão divertido seria iniciá-lo...
Juliana sentiu aversão. Havia algo doce na adoração que Simon Armitage lhe professava e seria uma traição usar aquela adoração para seu próprio prazer. Estava decidida a rejeitar o que Emma lhe oferecia, mas antes de a decepcionar e libertar a sua raiva, queria saber uma coisa. Tentou que a sua voz soasse normal.
- Aquele cavalheiro, Emma... aquele que parece um libertino, mas que se comporta como um padre... quem é?
A expressão de Emma iluminou-se.
-Ah, entendo! Preferes alguém novo! Não há nada mais intrigante do que um desconhecido, não é, querida? - franziu o sobrolho. - Há algumas horas, ter-te-ia dito que não podias ter escolhido melhor, mas agora não tenho assim tanta certeza... - deixou-se cair na beira da cama. - É Martin Davencourt, dos Davencourt de Somersetshire, tu sabes. Não tem título, mas é riquíssimo e é aparentado com metade das famílias mais poderosas. Está em Londres desde o ano passado, quando o seu pai morreu.
- Davencourt - repetiu Juliana. O nome soava-lhe ligeiramente familiar, mas não conseguia recordar.
A voz de Emma adquirira um tom petulante.
- Sim, Martin Davencourt. Disseram-me que era divertido... e deve ser, porque viveu vários anos nas capitais europeias. Convidei-o porque pensei que seria divertido, mas é o tipo mais aborrecido que conheço. Talvez seja por querer ser membro do Parlamento e por se comportar com seriedade. Ou talvez seja por ter de cuidar dos seus meios-irmãos. Seja o que for, mostra-se resistente a participar na nossa festa, mas talvez tu consigas fazê-lo mudar de ideias.
- Martin Davencourt... - Juliana franziu o sobrolho. - O nome é-me familiar, mas acho que não nos conhecemos. Tenho a certeza de que me lembraria. Quase poderia jurar que já nos vimos, mas não sei dizer quando...
Emma arqueou um sobrolho.
- O seu trabalho diplomático manteve-o afastado do país durante uma boa temporada. Mas, se realmente não o conheces, podes sempre fingir. Desce comigo e convence-o a renovar a vossa velha amizade, Ju.
Juliana hesitou, mas depois abanou a cabeça. Levantou-se e pegou na sua capa, que estava sobre a cama.
- Acho que não, Emma. Os meus encantos não afectam o senhor Davencourt. Além disso, estou com uma enxaqueca. Acho que esta noite me deitarei cedo.
Emma levantou-se de um salto, indignada.
- Mas, Juliana, os homens esperam-te! Prometi-lhes...
- O quê? - Juliana olhou para ela. Sentira um pouco de pânico na voz de Emma e, de repente, soube o que acontecera. Tinham-na oferecido como parte do entretenimento... não só sobre uma bandeja. Emma prometera aos homens que também a teriam na orgia, juntamente com as prostitutas que contratara para a ocasião.
Aquela ideia enfureceu-a. Emma sabia muito bem que aceitava de boa vontade participar em certos jogos arriscados para se divertir e para entreter os seus amigos, mas prometer os seus serviços aos convidados era outra questão.
- Não vou descer e fazer de rameira para Simon Armitage, Jasper Colling, nem para nenhum outro - disse, o mais calmamente que conseguiu.
- Estou cansada e gostava de ir para casa.
Os lábios maquilhados da senhora Wren transformaram-se numa linha fina. Havia experiência nos seus olhos e, ao olhar para eles, Juliana sentia-se sempre ingénua.
- Não consigo ver porque estimular o seu apetite, aparecendo nua sobre uma bandeja, te parece mais aceitável do que passar algum tempo com os meus cavalheiros...
- Não é só o meu tempo o que queres que lhes dê - respondeu Juliana, friamente. Podia sentir que corava de indignação enquanto olhava para Emma.
Sabia que havia parte de verdade na afirmação da sua amiga. Provocara deliberadamente os homens e agora queria evitar as consequências das suas acções. Inspirou profundamente.
- Acedi a fazer o joguinho para Brookes porque era uma brincadeira, algo divertido que entreteria os teus convidados. Mas qualquer outra coisa está fora de questão.
- Pelo menos, as prostitutas são honestas no que fazem!
- Estão a fazer o seu trabalho. Não me apetece companhia masculina esta noite.
- Claro que te apetece - Emma olhava para ela com os olhos semicerrados. - Achas que não me apercebi? Vi-te seduzir, mas nunca dás o que prometes. Querida, acho que a tua reputação de libertina é só uma farsa.
Juliana riu-se. Era melhor ignorar Emma quando já bebera demasiado, porque, se lhe respondesse, poderia perder a sua amizade. E Juliana precisava daquela amizade.
- E eu acho que estás um pouco perdida, Emma. Talvez devesses regressar para os teus convidados. Vejo-te amanhã no casamento.
- E eu vejo-te no inferno! - Emma agarrou na escova que estava no toucador e atirou-a a Juliana, que se preparava para partir. - És uma fraca que não tem coragem para acabar os seus jogos! Vai-te embora, menina! Nunca te perdoarei por me teres arruinado a festa.
Juliana apressou-se a descer as escadas. Atrás dela, Emma atirava objectos contra as paredes, destruindo o quarto. Sempre soubera que Emma tinha mau feitio, vira-a descarregar a sua raiva em criados e empregadas, mas nunca a dirigira contra ela. Durante um segundo, veio à sua mente a imagem do seu pai, com uma expressão de desaprovação e voz fria e cortante: ”E dizes que esta mulher é tua amiga, Juliana? Uma peixeira mal-educada, que não tem gosto nem elegância? Pelo amor de Deus! Como chegaste a isto?”
Juliana sentiu um calafrio. Não era segredo nenhum que o marquês de Tallant desaprovava o comportamento da sua única filha, nem que pensava que, realmente, não era sua filha e que estava a seguir os passos imorais da sua mãe. Enquanto ele permanecia na sua residência de Àshby Tallant, ela participava em orgias por toda a cidade, apostava grandes quantias de dinheiro e rodeava-se de más companhias. Desde que o seu irmão Joss se casara há dois anos, herdara o rótulo de ovelha negra da família e, como vingança, fazia-lhe honra.
O hall da casa estava às escuras, excepto por uns candelabros de pé junto da porta principal. Da sala de jantar chegavam as gargalhadas masculinas e a música. Evidentemente, uma das prostitutas, ou talvez alguma convidada, estava a dançar a dança do ventre. Juliana pensou que a festa estava a correr bem sem necessidade de a sua anfitriã ou ela mesma se unirem ao entretenimento.
Viu um criado junto a uma das colunas e fez-lhe um gesto.
- Traga a minha carruagem, por favor - disse, com autoridade.
- Imediatamente, senhora - o homem desapareceu rapidamente e Juliana ficou junto da porta.
O seu motorista sabia que não devia fazê-la esperar. Em alguns minutos estaria longe daquela casa e de uma noite que fora amarga. A diversão que sentira com o jogo de Brookes evaporara-se com as palavras de Emma. Juliana suspirou. Se soubesse que a sua amiga devassa queria mais que uma simples brincadeira, a noite teria decorrido de outra forma.
Chegara aos degraus da entrada principal e estava à espera que o mordomo lhe abrisse a porta quando um homem saiu das sombras.
- Vai fugir, lady Juliana? Não vai acabar o que começou?
A voz profunda sobressaltou-a. O homem estava vestido para sair e, naquele momento, calçava as luvas. Dedicou-lhe um sorriso que, por alguma razão estranha, fez com que o pulso lhe acelerasse. Juliana reconheceu Martin Davencourt e sentiu uma sensação estranha de perda de segurança em si mesma. Ele olhava fixamente para ela e havia algo nos seus olhos que a fazia sentir-se vulnerável. Juliana poderia jurar que o seu irmão Joss era a única pessoa que a conhecia bem, mas, naquele momento, sentiu que o olhar intenso de Martin Davencourt via muito mais do que ela desejava. Levantou o queixo, num gesto instintivo de defesa.
- Vou para casa - permitiu-se deslizar o olhar por ele, da cabeça aos pés. - Parece que o entretenimento desta noite também não é do vosso agrado, senhor Davencourt.
- Certamente, não é. Sou o primo de Eustacia Havard, a mulher que vai casar-se com lorde Andrew amanhã. Não me tinha apercebido de que isto era a sua... - fez uma pausa, para acabar a frase com ironia - despedida de solteiro, suponho que poderia chamar-se assim.
Juliana sorriu, docemente. A desaprovação era algo com que conseguia lidar facilmente. Deparara-se com ela com muita frequência.
- Vejo que não aprova a nossa pequena festa, senhor Davencourt. Talvez devesse experimentar bailes para debutantes na sociedade. Ouvi dizer que lá servem limonada. Poderia ser mais do seu agrado, se esta noite tiver sido demasiado estimulante para si.
- Talvez siga o seu conselho - disse Martin Davencourt, devagar. Estava a olhá-la pensativamente e fez um gesto para a porta fechada da sala de jantar. - Surpreende-me ver que se vai embora tão cedo, lady Juliana. A festa está a começar e, depois de ver a sua actuação, pensei que fosse contribuir para o resto da noite.
Juliana riu-se. Embora os gostos de Martin Davencourt fossem tremendamente aborrecidos, a sua inteligência era apurada. Estava a desfrutar da luta verbal com aquele homem.
- Peço desculpa por frustrar as suas esperanças, senhor Davencourt - disse ela. - Os jogos de Emma não são do meu agrado esta noite - semicerrou os olhos e olhou intensamente para ele.
- Embora, se me acompanhasse, pudesse mudar de ideias.
Martin Davencourt dedicou-lhe um sorriso e um olhar que fez com que a sua temperatura corporal aumentasse e se sentisse incomodada. Falou educadamente.
- É sempre tão persistente, lady Juliana? Achei que uma recusa seria suficiente para si.
Juliana arqueou um sobrolho.
- Não estou habituada a que me rejeitem.
- Ah, bom! Isso é algo que acontece a toda a gente de vez em quando. Aceite.
Juliana sentiu uma onda de irritação, principalmente consigo mesma, por ter provocado uma segunda recusa. Desejara que Martin Davencourt se retractasse da sua indiferença por ela. Quisera que ele a desejasse, para assim poder entrar no seu jogo habitual, deixando que a admirasse, mas só até certo ponto. Era uma perita naquela arte. Mas Martin Davencourt não queria jogar aqueles jogos...
Juliana deslizou os dedos pela porta de madeira e olhou pensativamente para ele. Ele sustentou-lhe o olhar e Juliana achou ver uma certa diversão nos seus olhos azuis.
- Tinham-me dito que era um homem do mundo, senhor Davencourt - disse ela, friamente, - mas comporta-se como um padre. Receio que esteja deslocado nesta casa.
Viu que franzia o sobrolho e sentiu uma certa excitação, como uma criança travessa que provoca os adultos. Pensou que seria muito excitante provocar Martin Davencourt e ver até onde chegava a sua compostura. Ou talvez não. Havia algo nele que lhe dizia que podia ser perigoso levar as coisas demasiado longe.
Ele sorriu-lhe educadamente.
- Apercebo-me de que estou no lugar errado, mas talvez você também esteja. Siga o meu conselho, lady Juliana, e afaste-se disto tudo. Todos nós temos de crescer, inclusive uma libertina, como se proclamam.
Juliana riu-se.
- É isso o que pensam de mim? Que sou uma libertina?
- Não é essa a reputação que cultiva? Juliana encolheu os ombros.
- As reputações podem ser exageradas. Martin Davencourt inclinou a cabeça.
- Sim. Mas também podem ser fomentadas. Um ruído procedente do andar superior fez com que se sobressaltassem. A voz de Emma Wren subiu em crescendo. A porta do quarto das criadas abriu-se de repente e algumas empregadas, assustadas, apressaram-se a subir as escadas.
- Está na altura de me ir embora - disse Juliana. - Receio que Emma esteja zangada comigo esta noite. A recusa de entrar no jogo ofende, não é verdade? - sorriu. - Mas não preciso de lhe dizer isso, senhor Davencourt. Rejeitou-me como se sentisse felicidade em ofender-me.
- Eu sigo as minhas próprias regras. Não deixo que os outros escolham os jogos. Nesse sentido, acho que somos iguais, lady Juliana.
Juliana riu-se.
- Se for assim, acho que deve ser a única coisa que temos em comum, senhor.
Martin Davencourt inclinou ligeiramente a cabeça para ela.
- Tem a certeza disso? Juliana arqueou os sobrolhos.
- Como poderia ser de outra forma? Você é formal e ortodoxo, e a companhia desta noite escandalizou-o ligeiramente.
Martin riu-se.
- Descobriu muita coisa sobre mim em pouco tempo. E você? Supus que faria algum comentário sobre o vosso próprio carácter.
- Oh, bom! Eu sou pouco ortodoxa, rebelde e...
- Libertina? - havia uma certa ironia na sua voz, como se aquelas qualidades não fossem admiráveis.
- Somos como a água e o vinho. Totalmente diferentes e incompatíveis. Faz-me lembrar o champanhe sem bolhas: um grande potencial desperdiçado.
Ouviu Martin respirar. Nas sombras, não conseguia vê-lo claramente, mas sabia, pelo tom da sua voz, que estava a divertir-se.
- Lady Juliana, é sempre tão grosseira com as pessoas que acaba de conhecer?
- Invariavelmente - respondeu ela. - Mas isto não é nada comparado com o que consigo fazer, garanto-lhe. Estou a ser amável consigo.
- Acredito - o tom de Martin mudou. - Devia pensar melhor antes de entrar nestes jogos. Um dia, pode ver-se superada.
Houve alguns segundos de silêncio.
- Não acredito - disse Juliana, friamente. Sei cuidar de mim.
Os lábios de Martin Davencourt curvaram-se num sorriso. Percorreu-lhe lentamente o corpo com o olhar, da cabeça aos pés. Parou na curva da sua cintura e nos sapatos que apareciam por debaixo do vestido. Não fez nenhum movimento para ela, mas Juliana sentiu-se vulnerável. Abrigou-se mais um pouco com a sua capa, fechando-a firmemente numa tentativa de esconder o vestido leve. Era um gesto ridículo, tendo em conta que Martin Davencourt e todos os outros a tinham visto completamente nua uma hora antes, mas sentia a necessidade de esconder o seu corpo.
- Tem a certeza de que consegue cuidar de si? Juliana pigarreou e os seus dedos agarraram-se com mais força à capa.
- É claro que tenho a certeza! Vivo sozinho e faço o que me agrada, e é assim desde que fiz vinte e três anos.
Martin Davencourt endireitou-se. Estava a sorrir.
- Isso parece um mantra, lady Juliana. Algo que, se o repetir o suficiente, acabará por acreditar. Se é verdade que é uma libertina, é estranho que, por vezes, pareça uma menina assustada.
Juliana sentiu um calafrio. Não gostou daquele comentário, porque se aproximava demasiado do que vira ao espelho um momento antes.
- É uma qualidade muito útil, garanto-lhe. Os homens consideram fascinante que consiga parecer tão inocente. Mais de uma meretriz já me perguntou como o faço.
A expressão dos olhos de Martin endureceu.
- É bastante descarada, lady Juliana, mas dou-lhe um conselho. Se fizer uma proposta a um homem, certifique-se de que está disposta a oferecer-lhe o que lhe prometeu. De outra forma, passará por mentirosa.
Juliana voltou a sentir-se incomodada.
- Dois conselhos numa só noite. Devia cobrar por dar a sua opinião, senhor Davencourt. Ficaria milionário.
Martin Davencourt riu-se.
- Costumava ser uma menina muito doce, lady Juliana. O que lhe aconteceu?
Juliana olhou para ele com os olhos semicerrados.
- Pretende fazer-me acreditar que já nos conhecíamos, senhor Davencourt?
Viu fugazmente o brilho dos dentes de Martin na escuridão enquanto ele se ria.
- Não pretendo nada, lady Juliana. Suponho que não se recorda do nosso anterior encontro. Permita-me recordar-lhe. Conhecemo-nos em Ashby Tallant, junto do lago, sob os salgueiros, num Verão quente. Você tinha catorze anos e era uma menina muito doce e natural. O que aconteceu para que mudasse desta maneira?
- Suponho que cresci, senhor Davencourt. Eu gostaria de dizer que me lembro de si, mas não é assim - arqueou um sobrolho. - Pergunto-me porque...
Martin Davencourt olhou intensamente para ela e ela sentiu que corava. Estava prestes a dizer qualquer coisa quando ouviu o som dos cascos dos cavalos contra o pavimento. Poucas vezes sentira tanto alívio por escapar de uma situação.
- Oh, a minha carruagem! Martin sorriu.
- Que oportuno! Assim poderá fugir novamente, lady Juliana - abriu-lhe a porta da casa para que saísse. - Boa noite.
Martin saiu para a rua atrás dela e, fazendo um gesto indiferente com a mão, começou a andar.
Juliana parou e olhou para ele, com um pé no degrau da carruagem. Estava habituada a que os homens fingissem que já a conheciam, mas Martin Davencourt não parecia desses. Deixara claro que não a admirava e, se realmente se tivessem conhecido em crianças, isso explicaria a sensação estranha que ela tivera ao vê-lo.
As gotas de chuva que lhe caíram no rosto devolveram-na ao presente. Subiu para a carruagem e inclinou-se para afastar um pouco as cortinas. Ao fazê-lo, um movimento no outro lado da praça chamou a sua atenção. Havia um homem nas sombras e, naquele momento, entrou no feixe das luzes. Juliana olhou para ele e o coração começou a pulsar-lhe apressadamente. Estava a olhar directamente para ela e a forma de inclinar a cabeça era-lhe vagamente familiar. Parecia-se com o seu último e falecido marido, Clive Massingham. Mas Massingham estava morto, apunhalado num conflito numa prisão italiana.
A carruagem começou a mover-se com uma pequena sacudidela e as cortinas voltaram ao seu sítio, enquanto Juliana relaxava, recostada no banco. Fora um efeito visual provocado pela luz, mais nada. Aquilo e as partidas que a sua memória lhe pregava. Não havia nada com que se preocupar.
Quanto a Martin Davencourt, o melhor era deixar de pensar nele e na sua desaprovação. Mas Juliana tinha o pressentimento de que não seria assim tão fácil esquecê-lo.
Martin Davencourt inspirou o ar fresco da noite com alívio. O ambiente na casa de Emma Wren estivera carregado em mais de um sentido. Endireitou-se, tentando livrar-se da irritação que o invadira durante a noite toda. Fora sua culpa pensar que, no supostamente sofisticado jantar da senhora Wren, poderia ter encontrado conversas estimulantes. Estivera fora de Londres durante demasiado tempo. Isso ou estava a ficar velho.
O ambiente lascivo que presenciara aborrecera-o enormemente. Martin abanou a cabeça. Não se considerava nenhum santo, mas a imoralidade marcada dos convidados de Emma Wren parecera-lhe mais deprimente que outra coisa. Mas ainda mais deprimente era que Andrew Brookes ia casar-se com a sua prima no dia seguinte. Martin não conhecia bem Eustacia Havard, já que estivera fora do país durante vários anos e só mantinha uma relação de afecto, embora distante, com a sua tia e a sua família, mas não gostava que se casasse com um tipo como Brookes.
Dirigiu-se para Portman Square. A noite estava escura e chovia ligeiramente. Cheirava a fresco, como no campo. De repente, sentiu uma vontade quase incontrolável de visitar Davencourt. Talvez com a mudança de estação... Era impossível abandonar a capital naquele momento, não só devido ao seu trabalho, mas também porque as suas meias-irmãs mais novas estavam a desfrutar da novidade da sua visita e queixar-se-iam se ele a desse por finalizada bruscamente. Também seria injusto para com as suas irmãs mais velhas, especialmente com Clara, cuja apresentação à sociedade já fora adiada um ano, devido à morte do seu pai. Clara causara sensação e poderia arranjar um bom par se a convencesse a permanecer acordada o tempo suficiente para animar os seus pretendentes.
Se conseguisse vê-la bem e também conseguisse arranjar um marido para Kitty... Mas Kitty era um problema ainda maior.
Martin franziu o sobrolho. Kitty não demonstrara o mínimo interesse por nenhum dos entretenimentos que Londres oferecia, para além de perder intermináveis quantias de dinheiro nas mesas de apostas. Martin tinha consciência de que o comportamento da sua meia-irmã se devia a uma profunda infelicidade, embora ela jamais o tivesse revelado. Era bastante surpreendente, porque ele era dez anos mais velho e, mesmo assim, não se conheciam bem. E, entretanto, Kitty não parava de apostar e as pessoas, de murmurar.
Pensar nos jogadores fez com que a mente de Martin voasse para lady Juliana Myfleet, que já contava com dois casamentos e vários amantes. Ele, como toda a gente, ouvira falar dos seus excessos, mas não era de estranhar que Juliana não se lembrasse dele; não se viam há quase dezasseis anos.
Durante aquele tempo, Martin conhecera muitas mulheres como Juliana Myfleet: esposas vítimas do aborrecimento, cuja beleza se estragara, amargurando-as, ou viúvas sofisticadas, enfastiadas da sociedade. Martin fez uma careta. A única diferença entre Juliana Myfleet e as outras mulheres era que ela costumava ir demasiado longe. Pensou que o fazia deliberadamente, divertia-a experimentar e provocar, já que, afinal, era uma menina mimada que se transformara numa mulher mimada.
Mas quando os seus olhares se tinham encontrado pela primeira vez naquela noite, só vira uma rapariga vulnerável a interpretar um papel demasiado ambicioso, como uma menina vestida com roupas de adulto. A impressão fora muito forte e contrastara com a falta de vergonha provocadora da pose de Juliana sobre a bandeja. Enquanto todos os outros homens tinham sentido uma excitação lasciva, ele sentira a necessidade estranha de a proteger, mas, ao mesmo tempo, uma certa repugnância ao ver no que se transformara.
Talvez se tivesse enganado ao pensar que era vulnerável. Martin acelerou o passo. Juliana mostrara-lhe o aborrecimento que ele esperara, juntamente com uma certa malícia que escondia a sua infelicidade. De qualquer forma, não lhe dizia respeito e ele tinha muitas outras coisas com que se preocupar.
Entrou em Laverstock Gardens e começou a subir os degraus da sua casa. As luzes estavam todas acesas, embora já passasse das duas horas. Sabia que aquilo não era bom sinal.
Liddington, o mordomo, abriu-lhe a porta com uma expressão tão neutra que Martin sentiu um aperto no coração.
- é assim tão mau, Liddington? - murmurou, enquanto lhe dava o seu casaco.
- Sim, senhor. A senhora Lane espera-o na biblioteca. Sugeri-lhe que esperasse até amanhã, mas insistiu tanto...
- Senhor Davencourt! - a porta da biblioteca abriu-se e a senhora Lane apareceu no meio de um redemoinho de tecido.
Era uma mulher volumosa com o cabelo grisalho e uma expressão constante de agonia no rosto. Ao vê-la pela primeira vez, Martin perguntara-se se sofreria de alguma doença que lhe provocasse uma dor constante, mas agora sabia que a causa do seu sofrimento era o seu emprego como dama de companhia das suas irmãs.
- Senhor Davencourt, tenho de falar consigo! Aquela jovem é impossível, não faz nada do que lhe digo! Deve falar com ela.
- Suponho que se refere à menina Clara, não, senhora Lane? - perguntou Martin, pegando no braço da mulher e conduzindo-a novamente para a biblioteca. - Sei que é um pouco indolente...
- Indolente! Aquela rapariga é uma descarada
- a senhora Lane soltou-se de Martin. - Finge adormecer para não fazer caso dos seus pretendentes! Não é de estranhar que ainda não lhe tenham proposto casamento. Deve falar com ela, senhor Davencourt.
- É claro que o farei - disse Martin. A última vez que tentara falar com Clara sobre o seu comportamento, sentira-se como se tentasse apanhar um peixe muito escorregadio. Ela mostrara-se inocente e espantada, e dissera-lhe que se esforçava muito para parecer interessada, mas que aquele assunto dos pretendentes lhe parecia tremendamente aborrecido. Mas vira a teimosia no seu olhar e Martin estava convencido de que a sua meia-irmã estava a tentar enganá-lo.
- Quanto à menina Kitty... - começou a dizer a senhora Lane. - Aquela rapariga está a ir por um mau caminho. Como vai arranjar um marido se passa o tempo todo a jogar e a apostar?
- Também falarei com Kitty - disse Martin. Precisava desesperadamente de uma bebida. Posso oferecer-lhe um copo de brandy, senhora Lane?
- Não, obrigada, senhor Davencourt. Nunca bebo álcool depois das onze horas. E devo acrescentar que. se a menina Clara e a menina Kitty não modificarem, levarei os meus serviços para outro lado. Há muitas jovens que ficariam encantadas de me terem como dama de companhia e que não me dariam um só desgosto. Sabe que sou muito solicitada!
Martin sentiu pânico e irritação. A ideia de perder a senhora Lane, apesar do seu feitio horrível, era terrível. Nunca encontraria outra mulher de boa reputação que estivesse disposta a ser a dama de companhia de Kitty e de Clara, e, menos ainda, tendo em conta que as jovens estavam em idade de casar e lidar com elas era ainda mais difícil. A sua irmã Araminta tivera de se esforçar muito para convencer a senhora Lane de início. Uma casa com sete crianças e sem a mão firme de uma mulher podia ser um desastre, e agora as suas meias-irmãs estavam a encarregar-se de o demonstrar. Martin passou a mão pelo cabelo.
- Por favor, não nos deixe, senhora Lane! Até agora, fez um trabalho esplêndido - o próprio Martin podia ouvir a falta de sinceridade na sua voz.
- Vou pensar - disse a mulher. - Mas, é claro, se acha que fiz um trabalho tão esplêndido, senhor Davencourt, poderia considerar o facto de o reflectir nos meus honorários...
Martin suspirou.
- Verei o que posso fazer. Entretanto, tenha em mente que falarei com Kitty e com Clara...
- Martin! - uma vozinha chegou-lhe das escadas. Daisy estava sentada nos degraus centrais, deixando cair os pés entre as barras do corrimão. Agarrava com força no seu ursinho de peluche e estava despenteada. Daisy tinha cinco anos e fora uma filha tardia, o resultado da última tentativa de reconciliação da senhora e do senhor Davencourt. Martin apressou-se a subir as escadas para lhe pegar ao colo e sentiu o calor das suas lágrimas contra a camisa.
- Tive um pesadelo, Martin - disse-lhe a sua irmã mais nova entre soluços. - Sonhei que te tinhas ido embora e que nos deixavas para sempre...
Martin acariciou-lhe o cabelo.
- Calma, querida! Estou aqui e prometo-te que não me irei embora.
A ama apareceu pelo corredor com um candelabro na mão e um xaile sobre a camisa de dormir. Nos seus olhos havia sono e ansiedade. Estendeu os braços.
- Mas, menina Elizabeth, o que está a acontecer aqui? Vamos para a cama.
Daisy agarrou-se a Martin com força, apertando os seus braços gordinhos à volta do seu pescoço.
- Quero que Martin me leve para a cama e que me conte uma história!
Martin pensou com nostalgia no seu copo de brandy e no jornal que ainda não lera, mas o olhar da ama era suplicante.
- Se fizesse a gentileza, senhor... A menina Elizabeth tem andado a ter muitos pesadelos ultimamente e tenho a certeza de que dormirá melhor se o senhor a aconchegar.
Na entrada, a senhora Lane ainda o observava com um olhar de cobiça nos seus olhos cinzentos. Martin sentiu raiva e impotência, e virou-se deliberadamente, dando um beijo a Daisy nos seus caracóis despenteados.
- Vamos, querida, vou contar-te a história da princesa e da ervilha.
Daisy apertou-se contra ele e o calor da menina reconfortou-o. Ao saber da terrível notícia da morte dos seus pais no ano anterior, sentira-se aturdido e apavorado. A relação dos falecidos senhor e senhora Davencourt baseara-se quase sempre na indiferença e quase não passavam tempo juntos. Fora irónico que tivessem morrido juntos num incêndio da sua casa de Londres. Philip Davencourt fora um Tory convicto, que nunca perdoara ao seu filho as suas tendências Whig, mas, para além das desavenças políticas, pai e filho sempre se tinham respeitado e Martin sabia que o seu pai se sentira orgulhoso dele quando o tinham designado para a delegação de Castlereagh no Congresso de Viena. A única coisa que o seu pai não aprovara nele fora não se ter casado.
Talvez o seu pai tivesse razão, pensou Martin, enquanto levava Daisy para o seu quarto. Um homem que tinha de cuidar de sete meios-irmãos precisava de ajuda e de uma relação mais estável do que as aventuras que tivera no passado. Além disso, no futuro precisaria de uma mulher que fizesse de anfitriã.
Abraçou Daisy com mais força. A sua irmã Araminta, a outra e única filha do primeiro casamento do seu pai, insistira para que as mais novas fossem viver com ela depois da morte dos pais. Martin não acedera. Só tinha trinta e um anos de idade e não tinha esposa que o ajudasse, mas isso não era nada comparado com o carinho enorme que sentia pelas suas meias-irmãs mais novas. Já tinham sofrido muito depois da morte dos seus pais e ele não ia separá-las. Portanto, tinham ficado com ele e Martin estava a fazer tudo o que podia por elas. Mas precisava de uma esposa.
Juliana estava deitada na sua cama enorme com dossel, a observar o jogo de sombras e luzes na parede. A casa estava em completo silêncio.
Nem sequer durante o dia havia crianças nem nenhuma outra razão que interrompesse a paz e o silêncio quase sepulcral. Juliana vivia completamente sozinha, sem nenhuma companhia que a entretivesse e sossegasse os falatórios. Ela decidira-o assim, afirmando que viver com alguém que lhe oferecesse uma relação pobre e entediante a deixaria louca.
Juliana virou-se até ficar de lado e pressionou a face contra a almofada. Tinha calor devido ao esforço de conter as lágrimas e sentia raiva porque não sabia porque queria chorar, a menos que tivesse algo a ver com Martin Davencourt. Bateu na almofada. Como podia ser sensível? Tinha tudo o que podia desejar e não havia nenhum motivo para se sentir triste.
Recordou um jogo a que costumava jogar quando era pequena e começou a enumerar as razões pelas quais deveria sentir-se feliz.
Primeira: tinha dinheiro suficiente para comprar tudo o que pudesse desejar. Embora o seu pai não aprovasse o seu comportamento, resolvia-lhe sempre as dificuldades económicas, portanto nunca tinha de se preocupar com aquele assunto.
Segunda: no dia seguinte, Andrew Brookes casar-se-ia com Eustacia Havard e ela fora convidada para o casamento. Aquilo dava-lhe uma razão para sair da cama. No dia seguinte, não se aborreceria nem estaria sozinha, porque estaria rodeada de gente. Juliana sentiu-se um pouco melhor. Era um bom jogo.
Terceira: era bonita e poderia ter o homem que quisesse. Juliana franziu o sobrolho. Em vez de a fazer sentir-se melhor, aquele pensamento alterou-a ligeiramente. Nunca conhecera nenhum homem que desejasse realmente. Armitage, Brookes, Colling... todos comiam da sua mão, tal como muitos outros, mas só sentia indiferença por eles. Desde que o seu casamento desastroso com Clive Massingham acabara, receava o amor. Não deixaria que aquele sentimento a expusesse novamente ao ridículo.
E, depois, havia Martin Davencourt. Não tinha a certeza de por que razão se interessara por ele. Nem sequer gostava dele. Era tudo o que costumava rejeitar num homem. Talvez fosse precisamente por isso que tentara atraí-lo, para ver se realmente era tão honrado como parecia ser.
Juliana virou-se até ficar de barriga para baixo e apoiou os cotovelos na cama, segurando a cabeça com as mãos. Esperava que aquela fosse a razão, porque a horrorizava pensar que podia sentir-se atraída por um homem honesto. Aquilo arruinaria definitivamente a sua má reputação.
”Conhecemo-nos em Ashby Tallant, junto do lago, sob os salgueiros, num Verão quente. Você tinha catorze anos e era uma menina muito doce e natural...”
As palavras de Martin Davencourt tinham despertado certas lembranças na sua memória.
Geralmente, Juliana tentava não pensar na sua infância, porque não fora uma época particularmente feliz. Agora, no entanto, queria recordar deliberadamente aquele Verão. Sabia que existia um lago sob os salgueiros, onde, às vezes, ia para se esconder da sua tutora. Deitava-se na erva e observava o céu através das copas das árvores, e ouvia o chapinhar dos patos na água. Era o seu lugar secreto, um dia, durante o Verão em que ela tinha catorze anos, encontrara lá mais alguém. Um rapaz, alto e desajeitado, com o cabelo louro, que lia algum livro aborrecido sobre Filosofia...
Juliana endireitou-se, bruscamente. Martin Davencourt. É claro! Estava sempre absorto com algum livro ou com alguma invenção mecânica absurda. Não demonstrava nenhum interesse quando lhe falava dos bailes, das festas e dos pretendentes que teria quando fizesse a sua apresentação à sociedade...
Naquele Verão, tinham feito um pacto infantil. Juliana franziu o nariz, tentando recordar. Queixara-se de que nunca encontraria um homem com quem casar-se e, então, Martin levantara a vista da catapulta que estava a tentar montar e dissera-lhe que se casaria com ela se, aos trinta anos, nenhum dos dois estivesse casado. Juliana rira-se dele e dos seus impulsos cavalheirescos.
Mas ela viajara para Londres e apaixonara-se perdidamente por Edwin Myfleet. Casara-se com ele e não voltara a ver Martin Davencourt até àquele dia.
Aquele fora um bom Verão, apesar da obsessão de Martin pelos livros e de ser um pouco aborrecido. Sorriu. Algumas coisas nunca mudavam; fora um rapaz sombrio e agora era um homem insípido. O seu aspecto melhorara consideravelmente, mas isso era o melhor que lhe ocorria dizer dele.
Mas não, sabia que isso não era totalmente verdade. De alguma forma, e Juliana não estava muito certa de como acontecera, Martin Davencourt perturbara-a. As suas observações eram inteligentes e o seu olhar, muito perspicaz. Havia algo nele que a fazia sentir-se confusa, mas, ao mesmo tempo, sentia uma certa familiaridade quando estava com ele.
Pensou que Martin estaria no casamento de Andrew Brookes no dia seguinte e sentiu impaciência e alguma vergonha ao mesmo tempo. Sentia uma certa timidez ao pensar em vê-lo novamente depois do encontro que tinham tido naquela noite, embora não entendesse porquê. Os seus excessos em casa de Emma tinham sido apenas uma brincadeira e, além disso, Martin Davencourt não era ninguém para pensar alguma coisa sobre ela.
Juliana recostou-se contra as almofadas e depois voltou a sentar-se. Sabia que não conseguiria dormir quando a sua mente estava tão activa. Mas, se não dormisse, teria o aspecto de uma bruxa no casamento e ninguém a admiraria. Aquilo era algo inconcebível, portanto inclinou-se para acender uma vela e caminhou, descalça, para a cómoda de madeira que havia num canto do quarto. A caixa de comprimidos estava no fundo da gaveta superior, sob as suas meias de seda. Tomou dois comprimidos de láudano, engolindo-os com um gole de água do jarro que tinha na mesa-de-cabeceira. Já conseguia quase sentir a sonolência apoderar-se dela. Agora dormiria e, quando acordasse, seria de manhã, teria coisas para fazer, gente para ver e tudo correria bem. Cinco minutos mais tarde, estava a dormir.
- Dependemos de ti, Martin - Davinia Havard, a mãe da noiva, dedicou um olhar ameaçador ao seu sobrinho.
Por cima do seu ombro, Martin pôde ver a sua irmã Araminta, que estava a fazer-lhe gestos para lhe indicar que tentara tranquilizar a sua tia, mas sem sucesso. Martin sorriu-lhe. Araminta e ele sempre tinham sido muito unidos. Tinham sido os únicos filhos do primeiro casamento de Philip Davencourt e Martin estava agradecido pela ajuda e o carinho incondicionais de Araminta.
Estavam na igreja e só faltavam dez minutos para a cerimónia começar. Martin sussurrava com a sua tia, que se inclinava sobre ele. Martin recostou-se no seu banco e cruzou as pernas, desejando que a sua tia se afastasse um pouco. Cheirava intensamente a cânfora e o cheiro causava-lhe sempre ardor no nariz.
- Estou ao seu serviço, é claro, tia Davinia sussurrou, educadamente, - mas estou um pouco perdido. O que quer, exactamente, que faça?
Davinia Havard deixou escapar um longo suspiro.
- Eu dependo de ti, Martin - bateu-lhe no peito com um dedo para dar mais ênfase às suas palavras. - Dependo de ti para evitar que aquela horrível Juliana Myfleet arruine o casamento de Eustacia. Sabia que era um erro permitir que viesse! Lady Lestrange acabou de me contar o que fez ontem à noite no jantar que houve em honra de Andrew Brookes. Soubeste?
- Se soube? - murmurou Martin. Dedicou-lhe um sorriso compungido. - Receio que, para além de saber, o tenha visto com os meus próprios olhos.
As suas duas interlocutoras respiraram fundo bruscamente. Araminta, sua partidária incondicional, parecia reprová-lo e, ao mesmo tempo, divertir-se com a sua confissão. Inclinou-se para a frente e, sussurrando, interveio na conversa.
- Martin! Assististe, realmente, a uma das orgias de Emma Wren? Como pudeste ter tão mau gosto?
- Fui-me embora antes de a orgia começar sussurrou, sorrindo fracamente à sua irmã. - Cometi o erro de pensar que ”estimulante”, aplicado aos jantares da senhora Wren, significava que a conversa seria boa.
Araminta abafou um risinho e Davinia Havard fez uma expressão de desagrado. Martin arrependeu-se imediatamente do impulso que o levara a brincar. Ao contrário de Araminta, a sua tia não tinha sentido de humor.
- Então já sabes do que aquela criatura é capaz, Martin! Tenho a certeza de que fará algo insuportavelmente vulgar e de que humilhará a minha pobre Eustacia no dia do seu casamento!
Martin fez uma careta. Para sua própria surpresa, sentiu uma onda de irritação ao ouvir a sua tia referir-se a Juliana como ”aquela criatura” num tom tão desdenhoso.
- Acho que está a imaginar coisas, tia Davinia
- disse, com serenidade. - Estou convencido de que lady Juliana não pretende fazer tal coisa.
- Recordar-te-ei isso quando destruir o casamento! - baixou o tom de voz numa tentativa de reconciliação. - Talvez tenhamos sorte por seres um homem do mundo. Sei que posso confiar em ti para lidares com aquela criatura, no caso de acontecer algo indecoroso.
Então, quase todos os presentes olhavam para eles com uma curiosidade mal disfarçada e esticavam os pescoços numa tentativa de ouvir a sua conversa. Andrew Brookes estava sentado do outro lado do corredor e parecia enjoado e enfastiado. Ao vê-lo, Martin sentiu uma pontada de raiva, seguida de outra de resignação. Pelo menos, aparecera no casamento, embora acabasse de sair da cama de uma cortesã.
Martin agarrou no braço da sua tia e inclinou-se mais um pouco para ela, para lhe falar quase ao ouvido.
Possivelmente, todos os seus medos são infundados, tia Davinia, já que não vejo lady Juliana entre os convidados. No entanto, no caso de se dar a situação, farei o que puder.
A senhora Havard deixou-se cair nervosamente no seu lugar.
- Obrigada, Martin, querido.
Martin apertou-lhe a mão, sentindo uma onda de afecto pela sua tia.
- Não se preocupe. Eustacia chegará a qualquer momento e tudo se desenvolverá com normalidade. Não tenho nenhuma dúvida.
A senhora Havard procurou os sais na sua mala e um convidado riu-se disfarçadamente ao ver a mãe da noiva em tal estado. Martin, lamentando o público malicioso que estava no casamento da sua prima, fez uma nota mental: se alguma vez se casasse, seria uma cerimónia o mais privada possível. A maior parte das pessoas que estava ali naquele dia não se importava com a felicidade de Eustacia e só tinha ido para se entreter. Recostou-se no seu banco, junto da sua irmã, e franziu o sobrolho.
- Não creio que aconteça nada do que a tia Davinia teme, Araminta.
Araminta pôs-lhe uma mão no ombro.
- Martin, ainda não sabes que com a tia é sempre melhor dar-lhe razão? E, no caso improvável de lady Juliana Myfleet decidir... hum... despir-se no meio da igreja, acreditamos que saberás gerir a situação.
Martin deixou escapar um resmungo, combatendo o impulso de pôr a cabeça entre as mãos, o que chamaria ainda mais a atenção. Durante um momento, imaginou lady Juliana a despojar-se das suas roupas à frente do altar. Se por acaso se apresentasse ali como fizera na noite anterior, todos os presentes ficariam fascinados...
- Martin! - exclamou Araminta, bruscamente. Martin suspirou.
- Araminta, tenho quatro crianças para cuidar. Pretenderes que também faça de ama de lady Juliana é pedires-me demasiado. Não sei porque a convidaram se realmente é a amante de Andrew Brookes; parece-me um insulto a Eustacia.
Araminta suspirou e aproximou-se mais um pouco dele no banco.
- Suponho que isso nos dá uma ideia do tipo de homem que Andrew Brookes é.
- Certamente, já sabias.
- Eu sim, mas a tia Davinia, não. Pelo que parece, Brookes escolheu os convidados e a tia aceitou sem dizer nada. Quase lhe deu uma apoplexia quando descobriu a verdade!
Martin abanou a cabeça.
- Se não tivessem feito a loucura de casar Eustacia com Brookes...
- Eu sei. É um instável, mas é filho de um marquês e Eustacia sente afecto por ele.
- E qual desses dois factores importaram mais a Havard quando combinou o casamento? - perguntou Martin, sarcasticamente. Não sentia muito carinho pelo seu tio, que fazia todos os possíveis para ascender socialmente. Martin sempre pensara que Justin Havard entrara na família Davencourt através do casamento para fomentar as suas ambições sociais e agora estava a levar a sua filha pelo mesmo caminho. Uma fortuna aqui, um título ali... Aquela era a forma como os homens como Justin Havard conseguiam influência.
Araminta olhava para o seu irmão com resignação.
- Tens demasiados princípios, Martin.
- Peço-te perdão. Não tinha consciência de que isso era possível.
Araminta deixou escapar um suspiro de exasperação.
- Toda a gente tem de ceder um pouco e, como futuro membro do Parlamento, deverias sabê-lo.
Martin sabia mas, simplesmente, não gostava.
- No caso improvável de lady Juliana Myfleet causar algum alvoroço, prometo tirá-la da igreja pessoalmente. Mas, em troca, tens de me prometer que manterás Daisy vigiada.
Araminta inclinou-se para o beijar na face.
- E Maria e o resto da prole. Prometo-te. Obrigada, Martin! És verdadeiramente amável.
- Esperemos que não tenha de cumprir a minha promessa - disse o seu irmão, misteriosamente.
Lady Juliana Myfleet deslizou silenciosamente num banco ao fundo da igreja e dedicou um sorriso brilhante ao jovem que se oferecera para a acompanhar. Não se sentara ao fundo por discrição, mas, simplesmente, porque chegara tarde. Decidir o que vestir, se um vestido verde recatado ou outro escarlate escandaloso, fora difícil. Por fim, escolhera o vestido escarlate decotado, adornado com a gargantilha de prata em forma de lua crescente que costumava usar e um bracelete a condizer.
Apesar do seu lugar discreto ao fundo da igreja, os presentes aperceberam-se da sua presença. Preferira sentar-se sozinha, mas entre os convidados havia gente que conhecia, caras amigáveis e outras que nem tanto. Viu o seu irmão, Joss, e a sua mulher, Amy, sentados junto de Adam Ashwick e a mulher e o irmão deste, Annis e Edward. Edward Ashwick sorriu-lhe e inclinou-se ligeiramente em jeito de reverência. Juliana sentiu um pouco de calor. O seu querido Ed. Era sempre muito amável com ela, embora fosse pastor de uma igreja e ela, uma alma desencaminhada.
Outros, no entanto, mostraram-se menos amigáveis. Viu que várias cabeças se viravam e que as pessoas cochichavam, enquanto comentavam, certamente, as suas actividades na festa da noite anterior. Juliana sorriu ligeiramente. Sem dúvida, a história já passara de boca em boca, aumentando. As mulheres da alta sociedade já tinham outra razão para a criticarem quando a vissem. O seu pai descobrira todas aquelas razões, os seus excessos escandalosos, os seus jogos extravagantes e o desfile de supostos amantes. Muita gente pensava que Juliana e Andrew Brookes tinham tido uma aventura, mas não era verdade. Ele escoltara-a pela cidade durante vários meses, mas entre eles só existira conveniência e entretenimento. Ela tivera um acompanhante e ele, uma bonita mulher de braço dado, e nenhum dos dois tivera razão para se queixar.
Juliana achava divertido que, naquele momento, Brookes parecesse extremamente incomodado, enquanto esperava pela sua noiva, apesar de ter bebido copiosamente para conseguir a coragem de enfrentar o casamento. Estava a enfiar um dedo no colarinho da camisa, como se este lhe apertasse. Juliana pensou, cinicamente, que a ideia do casamento pareceria opressiva para Brookes, apesar da fortuna de cinquenta mil libras que o ajudaria a ultrapassar o aperto. Mesmo assim, certamente, o leito nupcial não teria tempo de arrefecer antes de ele regressar para a cama da sua última amante.
Juliana compôs as abas do seu maravilhoso vestido de seda escarlate e inclinou o seu chapéu, pensando distraidamente que o dinheiro nunca seria suficiente para prender um homem como Brooke. Quase sentiu pena da menina Havard.
Havia um homem a observá-la. Estava de pé, junto da porta, e Juliana tinha consciência de que estava a olhar atentamente para ela. Olhou para ele e sentiu um aperto no coração. Era Martin Davencourt.
Os seus olhares encontraram-se. Os olhos de Davencourt eram azuis-escuros e olhavam para ela com desagrado, fixando-se em todos os seus pormenores, desde a pena do chapéu até à ponta dos seus sapatos vermelhos. Desaprovava a sua escolha da cor escarlate, que chamava a atenção. Juliana sabia que não fora muito subtil, mas só naquele momento, ao enfrentar o olhar de Martin Davencourt, desejou ter escolhido o verde.
Durante um momento tenso, olharam-se e, depois, Juliana desviou a vista, fixando-a no anjo esculpido que havia sobre o órgão. Estava a tremer de surpresa e raiva, e sabia que corara. Aquilo não costumava acontecer-lhe. Como se atrevia Davencourt a provocar-lhe aquela reacção? Normalmente, a desaprovação só conseguia fazer com que se comportasse ainda mais escandalosamente.
A noiva chegara. Era uma jovem encantadora com o cabelo loiro e encaracolado. Juliana fez uma careta. Odiava aquelas meninas brandas, mas, naqueles dias, em que decorriam os acontecimentos sociais mais esperados, estavam em todo o lado, com os seus sorrisinhos tolos e a sua inocência.
A noiva usava um vestido de musselina branca, com um xaile branco por cima. Na bainha do vestido e na beira do xaile luziam umas flores brancas de cetim bordadas. Estava muito bonita e parecia emocionada. Seis pequenas damas de honor, também vestidas de branco, empurravam-se e formavam redemoinhos na porta. Pelo canto do olho, Juliana viu Martin Davencourt inclinar-se com um sorriso e acariciar a face à dama mais pequena. Recordou que Emma lhe dissera que Martin tinha várias irmãs mais novas e, inconscientemente, deixou escapar um suspiro.
A noiva começou a avançar pelo corredor e Juliana observou a expressão de terror que se reflectiu no rosto de Andrew Brookes. Já estava! Brookes fora apanhado. No fim, acontecia o mesmo a todos os solteiros. Somente restava Sebastian Fleet, o amigo de Joss, se não se contasse com tipos como Jasper Colling. Em breve, não teria ninguém que a acompanhasse pela cidade. Pelo menos, Brookes não escondera que se casava por dinheiro. Joss e Adam tinham sido horrivelmente sensíveis e tinham-se apaixonado pelas suas mulheres. Juliana não tinha tempo para tal sentimentalismo. Experimentara e parecera-lhe algo imperfeito.
Moveu-se um pouco no banco, desejando não ter ido. Uma coisa era armar confusão por ir ao casamento de um suposto amante, mas outra muito diferente era ser obrigada a permanecer sentada durante a cerimónia aborrecida. Naquele momento, ninguém estava a reparar nela, porque estavam todos atentos aos noivos. Juliana tentou não espirrar; já vira a grande jarra cheia de açucenas situada sobre um pedestal, à sua direita. Os filamentos estavam repletos de pólen cor de laranja e tinham um aspecto fecundo. Juliana perguntou-se se Eustacia também receberia tal bênção. Brookes nunca quisera ter filhos, porque dizia que interrompiam o prazer. Juliana estivera de acordo com ele, mas, ao ver a irmã mais nova de Martin, sentira uma pontada...
Juliana espirrou e levou o lenço ao nariz. Sentia a garganta seca pelo pólen e os olhos estavam a começar a ficar húmidos. Espirrou outra vez e algumas pessoas viraram-se para a calarem. O pároco falava monotonamente sobre as razões a favor do casamento e Juliana recordou-se diante do altar, aos dezoito anos, completamente apaixonada. Edwin pegara-lhe na mão com força e dedicara-lhe um sorriso radiante. Tinham passado onze anos desde então. Se, pelo menos, não a tivesse deixado...
A secura da sua garganta intensificou-se e os seus olhos ficaram tão húmidos que não conseguia ver com clareza. Sabia que tinha de sair dali.
Levantou-se e dirigiu-se para a ponta do banco, pisando alguns pés enquanto o fazia. Não conseguia ver bem para onde ia e, quando chegou ao fim do banco, alguém lhe pegou no braço para a conduzir e sentiu-se agradecida.
- Por aqui, lady Juliana - disse-lhe uma voz baixa ao ouvido. Sentiu que alguém lhe agarrava firmemente no braço e que a conduzia para a porta.
- Obrigada, senhor - disse ela.
Soube que saíra ao sentir o sol no rosto e uma brisa suave na pele. Os seus olhos ainda choravam e tinha a certeza de que ficara vermelha, mas não conseguia evitá-lo. Sofria de febre dos fenos há anos, mas tivera azar ao ter um ataque em público.
Sentiu que o nariz lhe gotejava e procurou um lenço com desespero. Só poderia assoar-se uma vez com a delicada cambraia e aquela não era a melhor opção. Enquanto hesitava entre a vergonha de limpar o nariz com a manga e deixar que gotejasse, puseram-lhe um lenço branco de homem na mão e ela agarrou-o, agradecida.
- Obrigada, senhor - repetiu.
- Por aqui, lady Juliana - voltou a dizer o homem.
Agarrou-lhe no braço com mais força, enquanto insistia para que descesse os degraus da igreja. Juliana perdeu um pouco o equilíbrio e sentiu que um dos braços masculinos a rodeava. Ia protestar, porque aquilo lhe pareceu inapropriado, mas já era demasiado tarde. Apesar dos seus olhos chorosos, viu uma carruagem à frente deles e, de repente, a porta abriu-se e o homem fê-la subir. Nem sequer teve tempo de gritar. Quase não conseguiu sequer respirar antes de o homem também se sentar e o motorista fazer os cavalos moverem-se. Aos tombos no banco, com a saia subida até aos joelhos e os olhos cheios de lágrimas, Juliana tentou recuperar o equilíbrio e a dignidade.
- O que acha que está a fazer? -Acalme-se, lady Juliana! - o homem parecia
divertido. - Estou a raptá-la. Certamente, é o normal para uma mulher da vossa reputação.
Juliana endireitou-se no banco ao reconhecer aquela voz cheia de ironia. A sua visão estava a começar a clarificar-se e podia ver a cara do seu companheiro.
- Senhor Davencourt! Não lhe pedi que me acompanhasse a lado nenhum! Por favor, peça ao motorista que pare os cavalos para que possa descer.
- Receio que não possa fazer isso - disse Martin Davencourt, imperturbavelmente. Sentou-se à frente dela e observou-a com indiferença. Juliana sentiu que o sangue começava a ferver-lhe de raiva.
- Porquê? É um pedido muito simples. Martin Davencourt encolheu os ombros.
- Conhece algum sequestro que acabe de maneira tão insossa? Não acredito. Não posso libertá-la, lady Juliana.
Juliana sentia-se prestes a explodir. Ainda tinha os olhos frágeis, doía-lhe a cabeça e aquele homem insuportável estava a comportar-se como um verdadeiro demente. Tentou falar com tranquilidade.
- Então, o mínimo que pode fazer é dar-me uma explicação. É-me difícil acreditar que costume raptar mulheres desta maneira, senhor Davencourt.
Juliana olhou pela janela e considerou a ideia de saltar da carruagem em andamento, mas desprezou-a por imprudente. Embora não viajassem muito depressa, poderia torcer um tornozelo.
Voltou a olhar para Martin Davencourt. Talvez tivesse desenvolvido uma certa paixão por ela na noite anterior e agora pretendesse levá-la para a ter só para ele. Mas não. Juliana tinha vaidade, mas também bom-senso e sabia que isso era altamente improvável. Há meia hora, Martin olhara-a com desagrado, não com apreço. E, naquele momento, estava a olhá-la novamente. Juliana levantou o queixo.
- E então?
Um sorriso curvou a boca firme de Martin Davencourt. Tinha rugas ligeiras à volta dos olhos que sugeriam que se ria com frequência e dois pequenos vincos ao lado da boca que se acentuavam quando sorria. De repente, Juliana recordou quão atraída se sentira por aquele sorriso quando era uma jovenzinha. Era bastante sugestivo. E ele era muito atraente. Sentiu irritação ao aperceber-se daquilo.
- E então, o quê? - perguntou Martin.
A sua frieza fez Juliana recuar um pouco. Pigarreou.
- Bom... ainda estou à espera de uma explicação. Sei que esteve fora de Londres durante muito tempo, mas não é habitual comportar-se desta maneira. Inclusive a mim, já me raptam poucas vezes hoje em dia.
Martin riu-se.
- Então, suponho que terei de a surpreender por outros meios. Tenho a sensação de que destruir o casamento do seu amante não era uma boa ideia, lady Juliana.
Juliana franziu o sobrolho.
- Destruir... Ah, compreendo! Pensavam que tinha intenção de fazer uma cena!
Não conseguiu evitar sorrir. Portanto, Martin, achava que ia armar-se em amante abandonada, atirando-se ao altar para fazer uma última e apaixonada despedida entre lágrimas. Abafou uma gargalhada. Andrew Brookes não merecia aquela cena, embora ela tivesse estado tentada a fazê-la. Olhou para Martin com os olhos brilhantes de regozijo.
- Está enganado, senhor. Não tinha tal intenção.
Mas Martin vira o seu sorriso e interpretara-o mal. Tinha os lábios apertados, formando uma linha fina.
- Poupe-me as suas palavras, lady Juliana. Os seus actos de ontem à noite já foram suficientemente escandalosos, mas isto é demasiado. O vestido escarlate, as lágrimas de crocodilo... É uma grande actriz, não é?
Juliana ficou sem fôlego.
- Lágrimas? Sofro de febre dos fenos... Martin olhou pela janela, como se as suas explicações não lhe interessassem.
- Pode poupar-me os pormenores. Já chegámos.
Juliana olhou para o exterior. Estavam num bonito e pequeno lugar com casas altas, muito parecidas com a sua. A carruagem passou por debaixo de um arco e entrou num pátio. Virou-se para olhar para Martin.
- Onde chegámos? O único sítio onde quero chegar é à minha própria casa!
Martin suspirou.
- Não posso deixá-la sozinha, portanto trouxe-a para a minha casa. Prometi à minha tia que a vigiaria para evitar que arruinasse o casamento.
- À sua tia? Refere-se à mãe da menina Havard?
- Precisamente. Ouviu dizer que era a amante de Brookes e receou que fizesse algo escandaloso. Parece que tinha razão.
- Entendo - Juliana inspirou profundamente.
- Pensei que era imaginativa, senhor Davencourt, mas você ultrapassa-me. No entanto, vendo a loucura que há na sua família, porque hei-de ficar surpreendida? Garanto-lhe que tanto o senhor como a senhora Havard estão enganados.
- Eu gostaria de acreditar nisso - disse Martin, educadamente, - mas receio que não possa correr esse risco. Se a libertasse agora, poderia chegar a tempo de estragar o copo-d’água.
- Talvez pudesse dançar sobre a mesa - disse Juliana, com sarcasmo. - E despir-me!
- Já o fez ontem à noite, se bem me lembro. E, agora, vai entrar de livre vontade em casa ou devo levá-la à força? Receio que fosse pouco digno para si.
Juliana olhou para ele.
- Nunca faço nada que não seja digno. Martin riu-se.
- É verdade? O que me diz de quando visitou os famosos banhos de lama do doutor Graham em Piccadilly e insistiu para que os criados a tirassem da banheira? Certamente, ofereceu um grande espectáculo à vila! Aquilo foi muito decoroso?
- Os banhos de lama são bons para a saúde - disse ela, com altivez. - Além disso, dificilmente poderia ter tomado banho vestida.
- Hum... Os seus argumentos não são convincentes. E aquela vez em que se vestiu como uma mulher de vida alegre para tentar fazer com que lorde Berkeley enganasse a sua mulher? Foi uma acção digna?
- Foi só uma brincadeira! - respondeu, mal-humorada. Começava a sentir-se como uma menina travessa a levar uma reprimenda. - Além disso, Berkeley não mordeu o isco.
- Mesmo assim, duvido que parecesse algo divertido a lady Berkeley. Ouvi dizer que esteve a chorar durante vários dias.
- Bom, esse problema é dela. E o senhor está a demonstrar ser muito aborrecido, senhor Davencourt! O que faz para se entreter? Lê o jornal? Ou isso é demasiado excitante para si?
- Às vezes, leio o Times - disse Martin. - Ou os relatórios do Parlamento...
- Devia ter imaginado!
Martin ignorou-a. Um criado abriu a porta da carruagem e pôs os degraus. Juliana aceitou, com certo desagrado, a mão de Martin para a ajudar a descer, largando-a assim que pôde.
Aquela situação parecia-lhe absurda, mas não lhe ocorria o que fazer a respeito. Martin Davencourt não parecia disposto a ouvir as suas explicações e Juliana estava tão zangada com ele pelas acusações que lhe fizera, que também não sentia vontade de esclarecer a situação. Estavam num impasse.
Olhou à sua volta com certa curiosidade. Encontravam-se num bonito pátio de tijolo no fim da fila de casas e Martin estava a conduzi-la para uma porta que dava para o edifício. Sentia o calor da sua mão na parte inferior das costas.
- Vai fazer-me entrar pela porta das traseiras, senhor Davencourt? Receia que arme um escândalo se alguém me vir?
- Não confio em si - disse ele, sorrindo ligeiramente. Manteve a porta aberta para que passasse. - Por aqui, lady Juliana.
A porta fechou-se atrás deles e entraram num corredor fresco de pedra. Quando os olhos de Juliana se habituaram à penumbra, viu que Martin estava a conduzi-la para uma entrada ampla, cujo andar era de pedra rosada, decorado com estátuas e plantas verdes. A maior parte da luz procedia de uma grande cúpula de vidro situada sobre as escadas e os raios de sol filtravam-se através das folhas. O efeito era encantador e aprazível.
- Oh, que bonito! - exclamou Juliana, sem pensar, e Martin olhou para ela algo surpreendido pelo seu sincero entusiasmo. Também pareceu lisonjeado.
- Obrigado. Senti-me muito satisfeito ao ver que a realidade se adequou aos meus planos.
Juliana olhou, surpreendida, para ele.
- Desenhou isto?
- Porque não? Garanto-lhe que não foi difícil. Vi muitos palácios italianos nas minhas viagens que me inspiraram. A minha irmã Clara ajudou-me com as cores e a decoração. Tem habilidade para estas coisas.
Juliana suspirou. Ela também visitara a Itália, mas o que vira não tinha nada a ver com os palácios. Hospedarias com camas cheias de pulgas e manchas de humidade nas paredes; canais fétidos onde flutuavam legumes podres e cadáveres de cães... O calor, o cheiro, o ruído... e Clive Massingham, que fugira com ela para fugir das suas dívidas, constantemente bêbedo. Abandonara-a apenas duas semanas depois de se casarem. Juliana tremeu.
Martin abriu-lhe uma porta e Juliana entrou numa sala pequena. Estava pintada de amarelo limão e branco, e parecia cheia de luz. Juliana pensou que Clara Davencourt certamente tinha habilidade para a decoração.
- Posso oferecer-lhe algo, lady Juliana? - perguntou Martin, cortesmente.
- Beberei um copo de vinho, obrigada. Ou, talvez, a minha estadia vá prolongar-se? Deveria pedir o jantar completo?
Martin sorriu.
- Espero que não tenha de ficar muito tempo...
- Oh, também o espera! Isso anima-me! - Juliana dedicou-lhe um sorriso enorme. - Estava a começar a recear que pretendesse impor-me a sua companhia durante horas! Martin suspirou.
- Por favor, sente-se, lady Juliana.
Juliana sentou-se no sofá cor-de-rosa, dando um salto um momento depois, ao sentir que algo afiado se cravava na anca. Era um pequeno barco de madeira, um brinquedo. Pô-lo com cuidado sobre a mesa.
- O barco da minha irmã, Daisy - disse Martin, passando-lhe um copo de vinho. - Peço-lhe perdão, lady Juliana. Daisy vai deixando os brinquedos por toda a casa. Agora, os seus favoritos são os barcos, já que estive a falar-lhe das minhas viagens.
Calou-se bruscamente, ao aperceber-se de que não estava a conversar com um conhecido, mas que aquele encontro tinha outro propósito. Fez-se um silêncio incómodo entre eles e, vários minutos depois, o relógio de ouro branco que havia sobre a lareira deu o meio-dia. Os dois sobressaltaram-se ao ouvi-lo.
Juliana estava a começar a divertir-se.
- Receio, senhor Davencourt, que, agora que me tem, não saiba o que fazer comigo! Acho que, já que parece que vamos passar algum tempo juntos, poderíamos conhecer-nos melhor, portanto, o que lhe parece se...?
- Não! - Martin não a deixou acabar. Tinha o sobrolho franzido. - Não tenho nenhum desejo de aceitar a sua oferta, lady Juliana. Além disso, o meu irmão regressará em breve de Cambridge...
- Então, talvez possa falar com ele, se não deseja falar comigo - disse, engenhosamente. Viu, com satisfação, que conseguira que Martin corasse.
- Falar! Achei que se referia a... - Martin Davencourt calou-se, repentinamente.
- Pensou que ia fazer-lhe outra proposta desonesta - Juliana compôs cuidadosamente as abas e bebeu um gole de vinho. Observou-o por cima do seu copo, com um olhar divertido. - Meu prezado senhor Davencourt, garanto-lhe que sei perceber uma indirecta. Além disso, o senhor mesmo sugeriu que não era uma conquista apropriada para mim e que deveria ter mais cuidado.
- Suponho que mereço - parecia compungido e Juliana não conseguiu evitar que isso lhe agradasse. A maioria dos homens orgulhava-se de não cometer erros, mas Martin não tinha problemas em admitir que o vencera.
- Já que tem tão claro que não conseguirei seduzi-lo - continuou ela, docemente, - porque não falamos dos velhos tempos? Há quanto tempo nos conhecemos em Ashby Tallant? Catorze anos? Quinze? - inclinou a cabeça e olhou apreciativamente para ele. - Devia imaginar que acabaria por ser assim. Um menino aborrecido acaba por ser um homem aborrecido, embora deva admitir que, pelo menos, o seu aspecto melhorou.
- A senhora também mudou, lady Juliana. Era uma menina muito doce.
- Ou a sua memória o engana ou não estava no seu juízo perfeito aos quinze anos. Tenho a certeza de que era exactamente como sou agora, embora me surpreenda que se lembre de mim, porque estava sempre a construir fortalezas.
Martin sorriu.
- Tenho a certeza de que ambos pensávamos que o outro era aborrecido, lady Juliana. Raramente, os rapazes e as raparigas em idade adolescente têm algo em comum. Só lhe interessavam os bailes e adormecia quando tentava explicar-lhe o plano de batalha de Nelson em Trafalgar.
- Atrever-me-ia a dizer que, então, tínhamos pouco em comum e que, agora, não temos nada
- alisou a saia escarlate e bocejou ostentosamente. - Isto vai durar muito?
Martin sentou-se numa cadeira e observou-a pensativamente.
- Satisfaça a minha curiosidade, lady Juliana. Achava, realmente, que Andrew Brookes deixaria Eustacia no altar por si ou só queria causar problemas?
Juliana suspirou. Portanto, voltava novamente àquilo. Sabia que não acreditara.
- Senhor Davencourt - disse, pacientemente, - não me parece um homem estúpido, portanto repetirei só mais uma vez. As suas suspeitas sobre mim são infundadas. Não tinha intenção de arruinar o casamento da sua prima e, muito menos, de ficar com Brookes. Já esgotei todo o seu potencial e garanto-lhe que não o quereria, mesmo que estivesse coberto de ouro!
Viu diversão nos olhos de Martin, mas desapareceu rapidamente. O seu olhar azul estava fixo nela.
- Mas foi seu amante.
Juliana levantou o queixo num gesto desafiador.
- Não foi. E mesmo que tivesse sido, eu não teria descido tão baixo ao ponto de estragar o casamento da sua prima.
- Não? O amor consegue levar-nos a fazer as coisas mais irracionais.
- Tenho consciência disso, mas duvido que alguma vez se tenha apaixonado. Não é de estranhar que o considere tão perigoso.
Martin riu-se.
- Está enganada, lady Juliana. Tenho a certeza de que todos os homens se apaixonam na sua juventude.
- Mas não quando chegam a uma certa idade. Suponho que já é demasiado velho para isso.
Martin recostou-se na sua cadeira.
- Touché, lady Juliana! Confesso que não sinto nada por nenhuma mulher há muitos anos.
E é melhor assim. Certas questões, como o casamento, é melhor lidar com elas com a mente clara. Mas estávamos a falar dos seus namoricos, não dos meus.
- Não, não estávamos - disse ela, bruscamente.
- Não tenho vontade de recordar o meu passado, nem de discutir moralidade consigo. Os homens são terrivelmente hipócritas nesse sentido.
- Somos? Está a dizer que desaprova a dupla moralidade de que tanto se fala?
- É claro que sim! Que mulher cordata não consideraria pouco razoável esse princípio, que diz que um homem comportar-se como um aventureiro não é censurável, mas que se uma mulher o fizer é uma prostituta? Certamente, foi um homem quem ditou essa regra, não lhe parece?
Martin riu-se.
- Reconheço que é injusto, mas há muita gente, homens e mulheres, que concorda com esse princípio.
- Eu sei. Mas falemos de outra coisa ou receio que ficarei com muito mau humor.
- Muito bem. Voltemos ao assunto que nos ocupa - Martin suspirou. - Se me enganei sobre as suas intenções no casamento, peço-lhe desculpas, lady Juliana. Foi um erro.
- Baseado num raciocínio ridículo - disse Juliana.
- Não tão ridículo assim. Não depois do seu comportamento de ontem à noite.
- Eu gostaria que parasse de falar disso! - exclamou, com fúria. Sentia-se muito frustrada. Ontem à noite foi uma brincadeira. E quanto às minhas lágrimas na igreja, se suspeita que estou a enganá-lo sobre a minha febre dos fenos, aproxime-me aquela jarra com rosas que há sobre a lareira e verá que não paro de espirrar - deixou o copo de vinho sobre a mesa e levantou-se. Acho que já esgotámos este assunto, senhor Davencourt, e estou aborrecida com a sua companhia. Já posso ir?
-É claro!
- Não o preocupa que volte para o casamento e arruine o copo-d’água?
- Acho que não. Disse-me que não é o seu propósito e acredito.
- Obrigada. Então, deveria arranjar-me um meio de transporte. É o mínimo que pode fazer.
Martin levantou-se.
- Pedirei para que lhe preparem a carruagem
- aproximou-se dela e olhou para a cara dela durante um momento. - Febre dos fenos - disse, lentamente. - Quando a vi na igreja estava convencido de que estava a chorar...
Levantou uma mão e enxugou-lhe suavemente o rasto de uma lágrima na face. Juliana sentiu um aperto no coração.
- Andrew Brookes não merece as lágrimas de ninguém - disse ela, bruscamente.
Martin deixou cair a mão e recuou.
- Partilho a sua opinião sobre Brookes, lady Juliana, mas quero que Eustacia seja feliz. Seria uma pena que se desiludisse tão cedo no casamento.
- Mais cedo ou mais tarde, acontecerá - disse Juliana, aproximando-se da porta. - E seria muito inocente se achasse o contrário. Andrew Brookes é incapaz de ser fiel.
Martin fez uma careta.
- Têm tão pouca confiança em todos os homens?
Juliana ficou calada durante alguns segundos. Havia algo em Martin Davencourt que a fazia dizer a verdade. Era desconcertante.
- Não - disse, lentamente. - Quando um homem ama a sério, pode confiar-se nele. Mas há alguns homens que são incapazes de amar e de ser fiéis, e Brookes é um deles.
- Pelo que ouvi, é o tipo de homem que prefere. Brookes, Colling, Massingham...
- Eu não escolho os homens pela sua fidelidade, senhor Davencourt, mas pela sua habilidade para entreter e divertir.
- Compreendo - respondeu Martin, com ironia. - Então, é melhor não a demorar mais. Não creio que encontre nesta casa o que procura.
- Não, não creio - fez uma pausa. - Suponho que a cerimónia já terá acabado.
- Certamente - Martin confirmou as horas no relógio de ouro branco. - Arrepende-se de ter deixado Andrew Brookes, lady Juliana?
- Não. Agora quem me preocupa é a sua irmã Daisy... Era a pequena dama de honor, não era? Estará a perguntar-se onde estará.
- A minha irmã Araminta está a cuidar dela e das outras. Além disso, está tão orgulhosa de ser uma dama de honor que, certamente, não estará a sentir a minha falta.
- Duvido. Garanto-lhe que as crianças se apercebem dessas coisas - o seu tom foi mais triste do que queria. Apercebeu-se de que Martin olhava intensamente para ela e dedicou-lhe um sorriso.
- Se me desculpar, senhor, devo ir. Tenho muitos casamentos para arruinar, como sabe! Embora, talvez, a minha má reputação aumente se se souber que me fizeram sair à força da cerimónia. Sim, acho que alimentarei esse rumor. Sentimos uma paixão selvagem e não conseguimos conter-nos.
- Lady Juliana - disse Martin, friamente, - se descobrir que está a fazer correr esse rumor, denunciá-lo-ei, e a si também, publicamente.
Juliana abriu muito os olhos.
- Mas foi por sua culpa, pelas suas suspeitas ridículas! Muitas jovens aproveitariam o seu sequestro para forçarem um casamento!
- Não posso imaginar que queira casar-se comigo.
- Não, é claro que não! Mas o mínimo que pode fazer é permitir-me usá-lo para aumentar a minha reputação.
- De maneira nenhuma!
- Oh, é tão aborrecido! Mas suponho que tem razão. Ninguém acreditaria que pudesse sentir-me atraída por si!
Olharam-se fixamente durante um longo momento, mas antes que Martin pudesse responder ouviram vozes e passos na entrada. A porta abriu-se de repente e entrou um homem.
- Martin, eu... - parou, bruscamente, passando o olhar de Martin para Juliana e logo depois novamente para ele. - Lamento, não sabia que tinhas companhia.
- Lady Juliana, apresento-lhe o meu irmão Brandon. Brandon, esta é lady Juliana Myfleet.
Brandon olhou para o seu irmão mais velho com verdadeiro espanto.
- É um prazer conhecê-la, lady Juliana disse, suavemente.
Juliana viu que Martin franzia o sobrolho e cumprimentou Brandon com um carinho deliberado. Supunha que não devia ter mais de vinte e dois anos e tinha todo o encanto que faltava a Martin. Seria muito difícil resistir a Brandon Davencourt e, certamente, muitas mulheres nem sequer tentavam.
Brandon fez-lhe uma ligeira reverência e olhou para ela com sincera admiração.
- Não sabia que conhecia Martin, lady Juliana. Juliana dedicou um olhar brincalhão a Martin, que este devolveu.
- Quase não nos conhecemos, senhor Davencourt. Conhecemo-nos quando éramos crianças, mas não nos vimos nos últimos dezasseis anos.
- Pois, é uma sorte para mim que o conheça disse Brandon, com olhos sorridentes, - porque há vários meses que desejo que alguém nos apresente.
- Deveria ter ido visitar-me e apresentar-se respondeu Juliana, docemente. Pelo canto do olho viu o olhar de desaprovação de Martin. Eu adoro conhecer jovens bonitos!
Brandon riu-se e Martin pigarreou.
- Lady Juliana já estava de saída - disse. Naquele momento, a porta abriu-se e entrou
um mordomo.
- O senhor reverendo Edward Ashwick está aqui, senhor Davencourt. Diz que veio para acompanhar lady Juliana Myfleet a sua casa.
Juliana sorriu com satisfação.
- O meu querido Edward! Que cavalheiro! Martin pegou-lhe numa mão.
- Desejo-lhe um bom dia, lady Juliana. E, mais uma vez, peço-lhe desculpa pelo meu erro.
- Bom dia, senhor Davencourt. E, por favor, não me rapte novamente.
- O que raios foi aquilo tudo, Juliana? - perguntou Edward Ashwick, com a confiança de muitos anos de amizade. - Armaste uma grande confusão ao partires com Davencourt quando a cerimónia mal começara. Às vezes, pergunto-me se serás capaz de fazer algo sem chamares a atenção!
- Provavelmente, não - Juliana suspirou. De repente, sentia-se muito cansada, como se o láudano do dia anterior estivesse a fazer novamente efeito. Mas não podia ir para casa e dormir. A tarde acabara de começar, a sua casa estava vazia e, se fosse para lá, estaria sozinha, e não conseguia tolerar isso. Virou-se impulsivamente para o seu acompanhante. - Não podemos voltar para o copo-d’água, Eddie? Por favor? Seria tão divertido...!
Edward corou, como fazia cada vez que ela o chamava pelo seu diminutivo. Juliana sabia que estava a considerar a ideia e pressionou-o mais um pouco.
- Por favor, Eddie...!
- Acho que não, Juliana! - respondeu, bruscamente, para esconder a sua confusão. - Já chamaste bastante a atenção. Esquece. Vou levar-te a casa e...
- Não! - Juliana não ia admitir que estava sozinha. Era muito mais fácil fingir aborrecimento, dar a impressão de que precisava de se entreter.
- Não podemos visitar Joss e Amy? Ou Adam...
- Continuarão na festa durante várias horas disse Edward. - Antes de armares tanta confusão, devias ter pensado nisso. Além disso, toda a gente fala do que fizeste ontem à noite. É verdade que te apresentaste perante Brookes numa bandeja de prata? - Edward parecia prestes a sofrer um ataque.
- Temo que sim - respondeu Juliana, suspirando. - Era só uma brincadeira, Eddie...
- Uma brincadeira! Que Deus nos acuda, Juliana! A tua ideia de humor é cada dia mais extraordinária!
- Estás a começar a falar como o meu pai. Ou como o senhor Davencourt. O que fiz para merecer estar rodeada de tipos tão aborrecidos?
Edward franziu o sobrolho.
- Surpreende-te que estejamos todos horrorizados? E Joss está furioso contigo...
Juliana sentiu um aperto no coração. A opinião do seu irmão, Joss, era a única que lhe importava. Se também o perdesse, seria horrível. Já sofrera quando Joss se casara e ela tivera de partilhar a sua atenção.
- O meu pai, Joss e tu são iguais - disse ela, com amargura. - Não suporto que todos me digam o que tenho de fazer! Não costumavas ser tão carrancudo, Eddie.
Edward tinha a cara vermelha e evitava olhar para ela.
- Sabes que só te digo isto porque me preocupo, Juliana. Nenhum de nós quer ver-te a arruinares-te.
Juliana sabia que era verdade. Edward preocupava-se muito com ela e sempre fora um dos seus maiores admiradores. O seu querido Edward... Era muito amável, mas nada divertido.
- Devias casar-te novamente, Juliana - disse Edward e olhou directamente para ela, com certa esperança no olhar. - Foste muito feliz com Myfleet e poderias ser novamente.
Juliana sabia o que queria dizer e não conseguiu suportar ver a súplica nos seus olhos. Uma vez, propusera-lhe casamento e ela rejeitara-o suavemente. Até então, não tinham voltado a falar do assunto.
- A minha reputação é tão má que afastaria todos os homens honestos, Eddie. Ninguém quereria casar-se comigo.
- Querida Juliana, sabes que isso não é totalmente verdade. Seria uma honra para mim se considerasses o meu pedido.
Juliana olhou desesperadamente à sua volta, procurando um escape. A caminhar junto da carruagem onde viajavam estava Emma Wren, de braço dado com lady Neasden. Não importava que se tivessem separado zangadas na noite anterior; Emma estava tão bêbada que, com um pouco de sorte, não se lembraria. Juliana bateu no tecto para indicar ao motorista que parasse e desceu a janela, interrompendo Edward a meio da sua declaração.
-Emma! Mary! Esperem!
Viu que Edward se afundava mais um pouco no seu banco e dedicou-lhe um sorriso consolador.
- Eddie, querido, sabes que não resultaria. Mas obrigada por me salvares das garras do senhor Davencourt. Agora, devo ir! - inclinou-se para ele e deu-lhe um beijo breve na face. Depois, abriu a porta e fez um gesto ao motorista para que lhe preparasse os degraus.
- Vão às compras, Emma? Esperem, vou convosco!
- O que raios achas que estás a fazer, Juliana?
- perguntou-lhe Joss Tallant uma noite, na semana seguinte.
O seu tom era muito mais suave do que deveria ter sido, graças ao excelente jantar que a sua irmã lhe servira e à garrafa de uísque de malte que tinha junto do seu cotovelo. Estava uma noite quente e estavam sentados no terraço de Juliana. A lua brilhava sobre as árvores e as traças voavam à volta das velas. Às vezes, Juliana e Joss jantavam juntos, e ela costumava desfrutar da sua companhia. Mas não naquela noite. Naquela noite, Joss passara a engrossar a interminável lista de pessoas que desaprovavam o seu comportamento.
- Primeiro, foi aquela história escandalosa de te apresentares nua perante Brookes, numa bandeja de prata - continuou o seu irmão, - e agora...
- Por favor, não me recordes isso, Joss! - interrompeu-o Juliana. Estava a ficar farta de ouvir tantas vezes o mesmo. - Já te disse que foi só uma brincadeira, mas não param de me censurar!
- Talvez porque não vemos o lado divertido disse o seu irmão. - E se isso não fosse suficiente, há a história do casamento de Brookes! Ouvi o rumor ridículo de que te raptaram.
- Ridículo é a palavra exacta - respondeu Juliana, mal-humorada, servindo-se de outro copo de vinho do Porto. - Martin Davencourt nem sequer sabe como raptar alguém adequadamente. Não sei o que vai acontecer com a política quando aquele homem tão aborrecido for membro do Parlamento.
Joss riu-se.
- Devo supor que a sedução não é o ponto forte de Davencourt?
- É claro que não é! Mas tu já o conheces, não é? Sim, é verdade que me raptou, mas não pelas razões que todos acham. Pensou que ia atirar-me ao altar e rogar a Andrew Brookes que voltasse para mim, ou alguma tolice do estilo. Como se estivesse interessada em Brookes!
- Há muita gente que pensa que estás - disse Joss.
- Só porque os levei a pensarem isso - Juliana levantou uma mão indolente para espantar uma traça. - Tu sabes que nunca fui amante de Brookes.
- Também sei que não tens essa longa lista de amantes que toda a gente pensa - Joss semicerrou os olhos. - Porque deixas que pensem isso, Ju?
Juliana relaxou um pouco. Quando o seu irmão lhe chamava Juliana com um tom de voz severo, sabia que estava realmente zangado, mas quando usava o diminutivo, sentia-se em terreno seguro. Encolheu ligeiramente os ombros.
- Já que toda a gente pensa o pior de mim, para quê desenganá-los?
Joss franziu o sobrolho e respondeu à sua pergunta com outra pergunta.
- Para quê piorar ainda mais a tua reputação? Juliana hesitou, porque a verdadeira resposta
era uma mistura de razões que não queria admitir. ”Consinto em fazer aqueles jogos porque estou aborrecida, porque estou sozinha, porque não quero arriscar-me a amar outra vez...”
Mas confessar aquelas fraquezas fazia-a ser tremendamente vulnerável.
- Estou decidida a apagar a minha má reputação - Juliana dedicou um sorriso ao seu irmão. Já tinham tido antes aquela conversa e Joss estava sempre a tentar convencê-la a emendar-se.
- Mas, Joss, sabes que a minha reputação se perdeu quando fugi com Massingham. Nada do que diga ou faça agora melhorará as coisas, portanto para quê tentar?
Joss suspirou.
- Juliana, casaste-te com Massingham. Quando isso acontece, tudo se torna novamente respeitável. Se vivesses um pouco mais calmamente, as pessoas esqueceriam as tuas indiscrições passadas. Até o papá te perdoaria.
Juliana olhou para ele com ironia.
- Ganhar o perdão do papá? Para isso, precisarei de algo mais, Joss! Quanto ao resto da sociedade, como é possível que as pessoas sejam tão hipócritas? Não têm problemas em esconder tudo debaixo do tapete, desde que me comporte no futuro. Todos os meus escândalos poderão ser esquecidos, se me emendar. Afinal de contas, estive casada com Massingham... embora me tenha abandonado passadas duas semanas! Mas, claro, o casamento é a única coisa que conta.
Joss encolheu os ombros.
- Concordo que é uma postura hipócrita, mas são as regras da sociedade.
- Detesto-as! Toda a gente é desonesta.
- Todos sabemos que não gostas de seguir as regras, mas és a filha viúva do marquês de Tallant e, como tal, és aceitável na sociedade - o seu tom de voz suavizou-se. - Facilita-te as coisas, Ju. Deixa de ver esses a quem chamas amigos e faz algo melhor com a tua vida.
Juliana virou o rosto para o lado. Aquelas verdades incomodavam-na sempre e falar de Clive Massingham trazia-lhe más lembranças. A dor que o seu abandono lhe causara dois anos antes já se desvanecera, mas ainda se sentia traída. Apaixonara-se completamente por ele e só conseguira desilusão. Ele matara todo o seu amor no mesmo dia em que partira, levando todo o dinheiro e deixando-a sozinha num país estranho. Juliana apaixonara-se duas vezes na sua vida e as duas relações tinham-na feito chorar por uma ou outra razão, portanto jurara que nunca mais voltaria a ser vulnerável.
Olhou novamente para Joss com a cabeça levantada e os olhos brilhantes.
- Joss, falas como um metodista! Se Massingham ainda fosse vivo, pelo menos terias algum escândalo de que te queixares.
- É uma sorte para ele estar morto! - respondeu Joss, friamente, mas pôs uma mão sobre a da sua irmã. - Desculpa, Ju. Sei que te importava...
- Há muito tempo, importou-me, mas agora detesto a sua lembrança.
- Foi por isso que nunca aceitaste o seu apelido?
Juliana bebeu um gole de vinho.
- Queria ignorar a humilhação do meu casamento. É irónico, já que foi aquela união que me deu a pouca respeitabilidade que possuo. De qualquer forma, agora está tudo morto e enterrado, mas, como se diz, o escândalo nunca morre, não é, Joss?
Joss suspirou.
- E o último foi o teu sequestro por parte de Martin Davencourt. Um homem muito diferente de Massingham.
Juliana riu-se.
- Sim, muito diferente. Avisei-o que poderia arruinar a sua boa reputação!
- Então, o que pensas dele?
- É decepcionante. A própria história do sequestro poderia ter sido divertida, mas Martin Davencourt é um daqueles tipos com princípios que leva tudo a sério. Sabias que nos conhecemos quando éramos crianças? O seu padrinho era aquele idoso excêntrico de Ashby Hall.
Joss arqueou um sobrolho.
- Não me recordo de o ter conhecido em jovem.
- Não, tu tinhas ido para Oxford quando Martin Davencourt esteve em Ashby. Era um adolescente aborrecido, com borbulhas e o cabelo oleoso. Agora, o seu aspecto parece ter melhorado, mas continua a ser igualmente insípido. Suponho que, por um lado, se deve a ser responsável pelos seus irmãos todos e, por outro, a ter nascido aborrecido.
- Na outra noite, no jantar de lady Everley, pareciam dar-se muito bem - observou Joss.
- Pelo menos, há que tentar. Mas acho que Mary Everley me sentou ao seu lado de propósito.
- De que falaram?
- Bom, foi algo muito estranho... De início, tentei seduzi-lo, mas, de alguma forma, acabámos a falar de Davencourt. É uma casa grandiosa e é evidente que o senhor Davencourt lhe tem muito carinho.
- Então, surpreende-me que conseguisses seguir a conversa, já que odeias o campo.
- É verdade - ela mesma estava ligeiramente surpreendida.
- Eu gosto bastante de Martin - disse Joss. Parece um homem sensato. Compreendo que Charles Grey o valorize tanto. Definitivamente, será membro do Parlamento nas próximas eleições e acho que Grey pensa que tem um futuro brilhante pela frente.
- Política! Vou começar a bocejar, Joss - Juliana sorriu. - Mas não me surpreende que gostes de Martin Davencourt, já que me recorda de ti em alguns aspectos. Já o conhecias?
- Sim. Davencourt é amigo de Adam Ashwick desde que esteve no exército. Estava a jantar em casa dos Ashwick na semana passada. Acho que tu também estavas convidada - acrescentou.
- Convidaram-me como acompanhante de Edward, portanto declinei o convite. São demasiado transparentes nos vossos planos para me juntarem. Como se pudesse ser a esposa adequada para Edward Ashwick!
- Porque não? - perguntou o seu irmão, com suavidade. - Tem-te muito carinho.
- Eu sei. E eu também o adoro como um irmão - sorriu. - Embora não como ao meu irmão preferido. Não como a ti, Joss!
Joss sorriu ligeiramente.
- Obrigado, Ju. Mas, porque não aceitas Ashwick e melhoras a tua reputação?
- Ugh! - Juliana fez uma careta. - Não quero que Edward se sacrifique para me salvar. E sabes o que as pessoas diriam se um pastor se casasse com uma alma perdida. Além disso, Joss, não quero emendar-me. Não voltarei a casar-me. Há muitas razões pelas quais não devo fazê-lo.
Fez-se silêncio entre eles.
- Mesmo assim, terias desfrutado do jantar disse Joss. - Os Ashwick têm um chef excelente.
- Suponho que deveria ter aceitado. Hoje em dia, não recebo muitos convites respeitáveis.
Joss riu-se.
- Acho que até te terias divertido.
- Talvez. Embora ache que as mulheres eram um pouco insípidas, incluindo a tua, receio, querido Joss.
- Eu sei. Mas gostarias de Amy se te incomodasses em conhecê-la.
Juliana abanou a cabeça. Mesmo que fizesse esforços naquele sentido, sabia que nunca gostaria de Amy Tallant. Havia algo demasiado doce e saudável nela que não conseguia suportar.
- Não creio, querido. Os interesses de Amy e os meus são contrários. E quanto a Annis Ashwick... bom, devo confessar que me apavora. É uma sabichona!
- Estás a dizer tolices, Ju - olhou para o seu relógio. - Tenho de ir. Certamente, Amy já regressou do teatro. Annis e ela foram ver O Rei Lear.
- Shakespeare, ugh! - Juliana tremeu, exageradamente. - Nunca iria ver uma das suas tragédias!
Quando Joss partiu, Juliana ficou mais um pouco sentada, a ver como a vela se consumia. Estava a arrefecer, portanto levantou-se, apertando mais um pouco o xaile ao corpo. O seu vestido prateado novo, resultado das suas compras com Emma Wren, era uma desilusão, já que a apertava debaixo dos braços. Juliana comprara-o por impulso, mas devolvê-lo-ia à loja na manhã seguinte e negar-se-ia a pagá-lo. Não importava que já o tivesse estreado e que tivesse uma nódoa de vinho do Porto na saia prateada de gaze.
Entrou em casa precisamente quando o relógio dava as onze e meia. Havia algumas cartas sobre a lareira, mas Juliana acertara no que dissera ao seu irmão: muito poucos eram convites respeitáveis. Juliana pegou numa carta com os cantos prateados e olhou pensativamente para ela. O Crowns era um novo e exclusivo salão de jogo, propriedade de Susanna Kellaway, uma antiga mulher de baixa moral. Era o lugar perfeito para uma viúva pouco respeitável ir perder dinheiro. Juliana correu escada acima, chamando a sua criada.
A primeira pessoa que viu Juliana quando entrou no Crowns, uma hora depois, foi o seu irmão, Joss, que, juntamente com Adam Ashwick e Sebastian Fleet, estava a beber uma bebida num canto calmo. Juliana sorriu. A hipocrisia dos homens nunca deixava de a surpreender. Ali estava Joss, que dizia que ia regressar para casa com Amy. E Adam, que se casara só há um ano. Juliana abanou a cabeça, enquanto um sorriso cínico lhe curvava os lábios. Deveriam ter vergonha. Ela mesma envergonhava-se deles. Analisou os seus sentimentos e apercebeu-se de que uma parte dela estava decepcionada com o comportamento do seu irmão e do seu amigo. E aquilo era interessante, porque talvez significasse que não perdera completamente a fé na natureza humana.
Juliana apercebeu-se de que não era a única que os observava: um pequeno grupo de meretrizes de alto nível dirigia-se para eles. Não as culpava; Adam, Seb e Joss eram três dos homens mais atraentes de Londres e uma grande tentação para as cortesãs ambiciosas. Juliana adiantou-se às mulheres e sentou-se junto de Adam, enquanto sorria por cima do ombro.
- Só um minuto e depois serão todos vossos, senhoras.
As mulheres olharam para ela e afastaram-se um pouco.
Joss não pareceu contente por a ver, embora Adam e ele se tenham levantado educadamente. Sebastian afastou-se rapidamente, murmurando algo sobre ir buscar uma bebida para ela.
Não esperava ver-te novamente esta noite, Juliana - disse Joss.
- Isso é evidente - respondeu Juliana, apontando para as meretrizes. - O que achas que estás a fazer, Joss? O teu comportamento decepciona-me.
- Isso é muito engraçado vindo de ti, Juliana
- murmurou ele. - E tu, o que fazes aqui?
- Vim jogar, é claro! - olhou para ele, com os olhos semicerrados. - Mas não mudes de assunto, Joss. Estávamos a falar dos teus entretenimentos, não dos meus. Suponho que demasiada doçura em casa acaba por ser cansativa e precisas de um antídoto, não é? Não te culpo. Pessoalmente, acho que a virtude é extremamente aborrecida.
- Todos nos apercebemos de que a virtude e tu são grandes inimigas - disse Joss, secamente.
- Mas estás enganada, Ju. Não viemos jogar e, muito menos, pelas cortesãs.
Juliana arqueou os sobrolhos com incredulidade.
- A sério? - os seus lábios curvaram-se num sorriso. - Ah, entendo! Sim, claro, que desastrada! Quando vir Annis e Amy da próxima vez, recordar-me-ei do quão enganada estava ao pensar que vieram para se divertir. Suponho que merecem ser enganadas porque, de outra forma, não estariam aqui.
Adam olhou friamente para ela.
- Sabes, Juliana? Se fosses um homem, já te teria desafiado mais de uma vez.
Juliana sorriu-lhe.
- Mas não queres ofender Joss disparando contra mim.
O olhar de Adam encontrou-se com o de Joss.
- Não vou permitir isto, mas agradece ao facto de conservar o mínimo de cavalheirismo contigo, Juliana. Mesmo assim, és uma bruxa!
Juliana inclinou a cabeça para trás e riu-se.
- Só o dizes porque vos apanhei.
- Não nos apanhaste, independentemente do que pensares. Além disso, sabes que gostas de ser tão maliciosa.
Juliana virou-se para o seu irmão.
- Joss? Vais consentir isto? Joss encolheu os ombros.
- Concordo com Adam, Ju.
- São os dois cavalheiros menos galantes que conheço, mas não me ofenderei!
- Eu sei - respondeu Joss. - Este é um dos poucos traços do teu carácter que te tornam simpática, Ju. Agora, vai-te embora, por favor, já que temos de falar de negócios.
Juliana abriu muito os olhos.
- Oh, negócios! Compreendo! De que negócios têm de falar num salão de jogo?
- De política - disse Joss.
- É claro! Este é o lugar mais apropriado...
- Davencourt já chegou - disse Adam, levantando-se. - Dá-nos licença, Juliana.
Juliana também se levantou. Martin Davencourt estava a aproximar-se deles, evitando, com elegância, as mesas de jogo. De repente, as meretrizes começaram a cochichar assim que viram Martin. Juliana sabia porquê. Martin Davencourt era um homem muito viril e atraente. Sentiu uma pontada inexplicável de ciúmes.
Martin viu-a e observou-a com um olhar crítico. Juliana sentiu que corava ligeiramente e odiou-se por isso. Não havia nenhuma razão pela qual Martin Davencourt pudesse fazê-la sentir-se envergonhada e, mesmo assim, fazia-o...
- Boa noite, senhor Davencourt - cumprimentou-o e atirou um olhar às mulheres ansiosas. - Cavalheiros, deixo-vos com os vossos... negócios.
Uma hora e meia depois, depois de ter perdido uma razoável quantia de dinheiro e de beber vários copos de vinho, Juliana estava cansada de jogar e começou a deambular entre as mesas. Adam e Joss estavam prestes a ir-se embora e ela observou-os de trás de uma coluna, enquanto vestiam os casacos, se despediam de Martin Davencourt com um aperto de mãos e se dirigiam para a porta. As mulheres aproximaram-se deles, mas, depois de algumas palavras de Adam, afastaram-se, agitando as mãos com um gesto de desprezo. Portanto, os homens não tinham mentido. A fidelidade conjugal ameaçava estar na moda.
- Não é uma boa noite, pois não? - perguntou Susanna Kellaway ao ouvido de Juliana. - O que posso fazer quando alguns homens como o teu irmão e Ashwick são fiéis às suas esposas? É muito aborrecido! - olhou significativamente para Juliana. - Ouvi o que fizeste no jantar de Emma Wren. Porque não nos animas um pouco as coisas esta noite, querida?
Juliana estava prestes a declinar o convite e pedir a sua carruagem quando viu Martin Davencourt a observá-la com desaprovação. Ela franziu o sobrolho e decidiu fazer algo que o surpreendesse. Já que era tão dado a criticá-la, pelo menos que o fizesse com motivo. Sorriu a Susanna, tirou um copo de vinho da bandeja de um criado e bebeu-o de um só gole.
- Porque não? Diz ao quarteto para tocar uma jiga, Susanna.
Perante alguns homens atónitos, Juliana subiu para a mesa mais próxima, fazendo as cartas voarem. Houve um murmúrio de surpresa e de antecipação. A orquestra começou a tocar.
Juliana apanhou a saia com uma mão, provocando um voar de combinações e deixando à vista os seus tornozelos elegantes. A música era rápida e furiosa, e Juliana movia as ancas provocantemente. Os ganchos saltaram e o cabelo caiu-lhe sobre os ombros. A multidão, deixando-se levar pelo ambiente, começou a bater palmas ao ritmo da música e assobiar. Juliana perdeu ligeiramente o equilíbrio e quase caiu da mesa, mas algumas mãos entusiastas seguraram-na. Dançou tão furiosamente que lhe saiu um peito do corpete do vestido, causando o maior assobio da noite.
Ao acabar, estava corada, despenteada e quase sem fôlego, e aceitou com gosto o copo de vinho que alguém lhe pôs nas mãos. Por cima do rebordo do copo, viu Martin Davencourt com uma expressão séria. Nas mãos, trazia a capa de Juliana. Antes que ela pudesse adivinhar as suas intenções, Martin tirou-lhe o copo das mãos, deixou-o sobre a mesa, pôs-lhe a capa sobre os ombros e puxou-a fortemente para ele, passando-lhe um braço pela cintura. A sua voz era cortante quando lhe disse:
- Vamos, lady Juliana! Levá-la-ei a casa. Juliana olhou para ele e pensou que aquele
homem merecia passar um pouco de vergonha. Pensara que arruinaria o casamento da sua prima e achava que tinha amantes em Londres inteira, portanto comportar-se-ia como se realmente tivesse...
- Não precisa de se precipitar, querido. Sou toda sua - disse, docemente, olhando para ele.
- É um sortudo, Davencourt! - exclamou alguém, jocosamente.
Martin quase a levou de rastos até à porta, enquanto ela se agarrava ao seu braço. Juliana tinha consciência dos sorrisos e dos comentários da multidão.
- Mais devagar, querido - disse, em voz alta.
- Tem demasiada pressa para ficar a sós comigo!
- Cale-se! - respondeu-lhe Martin, num sussurro. Uma vez fora da sala, longe do seu público, Juliana afastou-se um pouco dele e alisou a roupa. Já não havia ninguém que a visse, portanto não precisava de fingir.
- Senhor Davencourt, a sua tendência para raptar as pessoas causar-lhe-á problemas um dia destes. Podia sentir-me lisonjeada por estar ansioso pela minha companhia, mas sei que não é esse o caso.
Martin dedicou-lhe um olhar furioso.
- Só estou a ajudá-la para fazer um favor ao seu irmão, lady Juliana.
- Acho que se engana com Joss. Garanto-lhe que ele me teria deixado neste lugar, até me embebedar completamente. Portanto, de futuro, pode deixar-me tomar as minhas próprias decisões. Obrigada pela sua ajuda, mas não é necessária.
Estavam a descer as escadas do clube e o ar frio da noite afectou Juliana. Até àquele momento, não se apercebera de que bebera demasiado e agarrou-se instintivamente ao braço de Martin para não enjoar. Ouviu-o suspirar, exasperado.
- Acho que bebi um pouco mais do que é devido.
- Está completamente bêbeda. Ainda quer que a deixe, como proclamava?
Juliana riu-se.
- Pode levar-me a casa, senhor Davencourt, desde que se aperceba do mal que a minha companhia pode causar à sua reputação.
Martin ajudou-a a subir para a carruagem.
- Portman Square, por favor - disse ao motorista, subindo atrás de Juliana.
Juliana apercebeu-se de que gostava de estar perto dele. Havia algo em Martin que a fazia ter muito mais consciência de si mesma e havia algo na grande quantidade de álcool que ingerira que a tornava desinibida. Aquela combinação era demasiado poderosa para resistir a ela, portanto passou os braços à volta do pescoço de Martin, negando-se a largá-lo, embora ele quisesse afastar-se.
- Largue-me, por favor, lady Juliana! - pediu, friamente, afastando-lhe os braços e empurrando-a para um canto.
Mas ela não se deu por vencida. Sentiu uma pontada surpreendente de desejo induzida pelo álcool e sentou-se no colo de Martin.
- Saia! Deixe-me em paz, por favor! Juliana sentiu que ficava tenso por debaixo
dela. Martin cheirava deliciosamente a perfume de canela e ao ar fresco da noite. Sentiu outra pontada de desejo. Mas era ridículo sentir-se atraída por Martin Davencourt, cuja ideia de diversão era ler o jornal. No entanto, havia algo muito atraente na sua masculinidade. Tentou recordar-se que o considerava insosso, mas, em vez disso, considerou-o perigosamente atraente. Quando ele a fez sentar-se novamente no seu lugar, Juliana suspirou, decepcionada.
- Não me deseja?
Juliana deslizou uma mão pela sua coxa e Martin agarrou-lhe no pulso com força, antes que os dedos de Juliana chegassem ao seu destino.
- Ai! - Juliana fez uma expressão de dor. Devo felicitá-lo pela rigidez dos seus... princípios, senhor Davencourt.
- Por favor, não me toque! - exclamou Martin, friamente, largando-a. - Não tenho nenhuma intenção de ser o objecto das suas atenções amorosas de bêbeda, lady Juliana.
- Não se desvalorize, senhor Davencourt. Acho que não é preciso uma mulher estar completamente bêbeda para o considerar atraente.
Martin encolheu os ombros, ignorando-a, e Juliana suspirou, abandonando as suas tentativas de sedução.
- Sei que não gosta de mim - continuou. - Já o deixou bastante claro.
- Está bêbeda, lady Juliana. Amanhã, arrepender-se-á de ter tido esta conversa.
- Duvido. Nunca me arrependo do que não posso mudar. É uma perda de tempo.
Houve alguns minutos de silêncio.
- Já não vai falar mais comigo? - perguntou Juliana.
Deslizou os dedos pelo banco de veludo e roçou nas costas da mão de Martin. O seu toque era quente e vital, e ela queria acariciá-lo. Arriscou-se a pegar-lhe na mão e, um momento depois, Martin suspirou com resignação e encostou a cabeça ao banco, relaxando o corpo.
Juliana aproximou-se mais um pouco dele.
- Portanto, não quer falar comigo e não quer beijar-me...
Martin virou ligeiramente a cabeça para ela. -Exacto!
- Como disse antes, é um homem de princípios.
- Hum... - Martin não parecia lisonjeado.
- Porque se incomoda em levar-me a casa se não gosta de mim?
Martin olhou para ela e Juliana sentiu a necessidade de lhe acariciar a face. Conseguiu conter-se com muita dificuldade.
- Não tenho a certeza. Não é que não goste de si, lady Juliana. Eu gosto. Só Deus sabe porquê, mas não consigo evitá-lo.
Juliana sorriu, docemente.
- Está bem. Na verdade, sou uma boa pessoa... Martin riu-se.
- Isso é dizer demasiado, lady Juliana. Além disso, você não gosta de mim. Disse-mo várias vezes.
- Os factos demonstram o contrário, não acha? - Juliana inclinou a cabeça para olhar para ele. - Não sou capaz de lhe resistir, senhor Davencourt.
- Tente com maior empenho. Só lhe interesso porque a recuso. Isso é uma novidade para si.
- Suponho que essa poderia ser a explicação, mas... Não, não acho que seja. Acho que há uma afinidade estranha entre nós. Talvez seja por sermos boas pessoas...
Martin riu-se.
- Já o disse. O que a faz pensar que é uma boa
pessoa?
- Sob a superfície, sou. A sério.
- Então, porque se comporta tão mal?
Juliana tinha consciência de que bebera demasiado, mas aquela conversa parecia importante. Esforçou-se para responder com coerência.
- éNa verdade, não me comporto assim. Só finjo.
- muito convincente para quem está somente a fingir - disse Martin, secamente.
- É só um jogo. Para me divertir.
- Para se divertir. Entendo - havia um tom irónico na sua voz. - E é divertido?
Juliana encolheu ligeiramente os ombros.
- Confesso que, neste momento, não é muito divertido. Falar consigo é como tentar fazer palavras cruzadas quando se bebeu demasiado brandy.
Ele inclinou-se um pouco para ela.
- O facto de me perseguir é um jogo?
- Não... sim. Suponho que sim. Foi só um capricho. Sabia que não sucumbiria.
- Tê-la-ia surpreendido se o tivesse feito? -Enormemente!
Martin riu-se.
- Pelo menos, é sincera, lady Juliana.
Ela encolheu os ombros e olhou para ele de esguelha.
- Já lhe disse que não minto. De qualquer forma, o que importa se agi por capricho? Sabia que não entraria no meu jogo e estava certa Martin sustentou-lhe o olhar e Juliana tremeu, embora não de frio. Inclinou-se mais um pouco para ele. - Senhor Davencourt...
- Lady Juliana? - perguntou, com voz ligeiramente rouca. Olhava para ela intensamente.
- Senhor Davencourt, se não pretende beijar-me, rogo-lhe que não me olhe desse modo. Considero-o muito perturbador.
- Não olho para si de um modo particular.
- Olha, sim - disse, sorrindo. - Vá lá, senhor Davencourt. Acho que é um homem honesto. Eu fui sincera consigo e agora é a sua vez. Admita que me considera atraente.
Houve um silêncio incómodo.
- Talvez devamos começar com algo mais simples - disse Juliana, depois de uma pausa. Achei que, em tempos, tinha pensado que era bonita.
- E é verdade. Então, tinha quinze anos. -Ah! E agora?
Houve outra pausa e, depois, Martin falou, contrariado.
- Agora acho que é bonita, lady Juliana.
- É demasiado sincero para um político, senhor Davencourt, mas obrigada pelo elogio - Juliana inclinou a cabeça. - Posso fazer-lhe outra pergunta? Pode imaginar que está na Câmara dos Comuns, se assim for mais fácil responder. Além disso, assim pode adquirir prática.
- Obrigado - disse Martin, - mas não acho que sirva de muita ajuda. Receio que não vá responder-lhe a mais perguntas.
Juliana riu-se.
- Portanto, afinal de contas, tem o que é necessário para a política! Ia perguntar-lhe se tinha a certeza de que não queria beijar-me. Mas tem sorte, senhor Davencourt, porque chegámos a Portman Square. Salvou-se.
Segsbury, o mordomo de Juliana, saiu para abrir a porta, mas Martin ajudou-a a descer da carruagem e, para surpresa de Juliana, levou-a ao colo até à porta principal. Juliana desfrutou daquele momento entre os seus braços, com a face apoiada no seu ombro. À entrada, Martin colocou-a no chão e Segsbury retirou-se discretamente.
- Durma bem - disse Martin, educadamente.
- Acho que precisa.
Ainda lhe rodeava a cintura com um braço e Juliana teve de resistir para não apoiar a cabeça no seu ombro. Pôs-lhe uma mão no peito.
- Senhor Davencourt...
- Sim? - Martin aproximou-se mais um pouco dela e tocou-lhe ligeiramente na face com o queixo. Juliana sentiu que as pernas lhe falhavam.
- Obrigada por me trazer a casa. É um cavalheiro. Mas já sabia disso.
Martin sorriu e aquele sorriso fez com que Juliana se sentisse ainda mais enjoada. Ele aproximou-lhe os lábios do ouvido.
- Não sou assim tão cavalheiro. Receio que as suas perguntas me tenham metido todo o tipo de ideias na cabeça - Juliana virou-se para olhar para a cara dele e viu que Martin sorria ligeiramente. - A resposta à sua pergunta é sim. Sim, desejava beijá-la. Mas, como cavalheiro que sou, tinha de resistir a aproveitar-me de...
Juliana sorriu, docemente.
- Oh, confesse, senhor Davencourt! Está a arranjar desculpas. Resistiu porque tinha medo de que beijar-me pudesse ser um passatempo demasiado perigoso - riu-se. - Não importa. Está perdoado.
- Um passatempo perigoso? Acho que conseguiria sobreviver a isso...
Puxou-a para ele e uniu a boca à sua, com uma mistura surpreendente de poder e suavidade. Até ao último momento, Juliana não achara que o fizesse. Esse fora o seu primeiro erro. O segundo fora pensar que beijar Martin Davencourt seria aborrecido...
Martin inclinou a cabeça para poder beijá-la mais profundamente. Segurava-a com firmeza e a carícia dos seus lábios era doce, mas, ao mesmo tempo, furiosa e sedutora. Juliana sentiu que o desejo se apoderava dela e soube que não conseguiria resistir-lhe. Tremia entre os seus braços. O que lhe dissera Martin apenas há alguns dias?
”Se fizer uma proposta a um homem, certifique-se de que está disposta a oferecer-lhe o que lhe prometeu.”
Bom, ela jogara e agora... tinha de pagar. E Juliana, que não beijara nenhum homem nos últimos três anos, viu que, afinal de contas, não era assim tão difícil. Deixando escapar um pequeno suspiro, devolveu-lhe o beijo, passando-lhe os braços à volta do pescoço e pressionando, instintivamente, o seu corpo contra ele. Ficaram abraçados durante um momento, até que os passos de Segsbury no chão de mármore os avisaram da sua chegada. Martin largou-a e olhou para ela com olhos escuros e quentes que a deixaram sem fôlego.
- Perigoso - disse Martin. Dedicou-lhe um leve sorriso que fez com que Juliana sentisse um aperto no coração. - Tem razão, lady Juliana pegou-lhe na mão e beijou-a. - Boa noite.
Juliana observou Martin enquanto saía e ficou na entrada, de pé. Segsbury fechou a porta atrás dele.
Juliana pôde ver a sua imagem no grande espelho que tinha na parede. Estava despenteada, os olhos brilhavam-lhe e tinha os lábios ligeiramente inchados pelos beijos de Martin. Raios!
Nunca pretendera chegar tão longe. Fora demasiado íntimo e sentia que dera demasiado de si mesma. Não queria que ninguém se aproximasse tanto, porque fora a afinidade com um homem o que a traíra no passado.
Juliana sentiu-se cansada e enjoada pela bebida, mas havia outra sensação sob o cansaço. Que Deus a perdoasse, mas estava a criar uma ligação afectiva com Martin Davencourt! Como podia sentir-se atraída pela sua moralidade incorruptível? Era inconcebível e absurdo.
Mas uma coisa era verdade: não havia nada de cavalheiresco na maneira como Martin Davencourt a beijara e nunca mais voltaria a pensar que era um homem aborrecido.
Segsbury estava a olhá-la com preocupação.
- Sente-se bem, senhora? Posso trazer-lhe algo?
- Sim, obrigada, Segsbury - disse Juliana, lentamente. - Beberei um copo de vinho do Porto no meu quarto. O vinho do Porto cura tudo. Especialmente, se se beber muito e se se cortar o problema pela raiz.
Martin observou a senhora Lane enquanto ajudava Kitty e Clara a sentarem-se em duas cadeiras situadas junto da pista de dança. Franziu ligeiramente o sobrolho. As duas raparigas tinham um aspecto sombrio e não conseguia entender porquê, já que estavam a assistir a um dos mais prestigiados bailes de máscaras da temporada. Kitty, vestida de cetim cor-de-rosa pálido, era supostamente a Bela Adormecida, mas parecia a Tristeza Adormecida. Clara, com um vestido de gaze cor de marfim, parecia uma fada voluptuosa. Martin, que vestia um fato preto conservador de dominó e máscara, perguntava-se porque parecia que as suas irmãs iam arrancar um dente, quando deveriam ser as raparigas mais felizes da sala.
Virou-se e dirigiu-se para a sala onde tinham disposto os refrigerantes. Parecera-lhe adequado assistir ao baile de lady Selwood para sossegar qualquer possível rumor sobre Kitty e Clara. A sua presença garantiria que as suas irmãs se comportariam correctamente e qualquer escândalo seria dissolvido ainda antes de ter começado.
A tarde prometia ser bastante aborrecida. A maior parte dos convidados eram jovens que se apresentavam à sociedade e possíveis pretendentes, já que lady Selwood tinha duas filhas casadoiras e estava decidida a dar a mão de, pelo menos, uma delas naquela temporada. Martin não sentia nenhuma vontade de dançar com jovens inocentes e tontas, e os seus conhecidos em Londres eram muito poucos, depois de ter passado tantos anos fora.
Ao voltar do estrangeiro, Araminta oferecera-se para dar alguns jantares em honra dele, mas Martin preferia os jantares pequenos com amigos, nos quais pudesse relaxar e falar de assuntos interessantes. Desagradavam-lhe as conversas vazias, embora, graças aos anos de missões diplomáticas, fosse capaz de falar com qualquer pessoa, de qualquer assunto. Excepto com os seus irmãos. Martin franziu o sobrolho ao pensar nas dificuldades de comunicação com os seus meios-irmãos e meias-irmãs. A sua participação no Congresso de Viena fora muito simples em comparação.
Tirou um copo de champanhe da bandeja que um criado lhe oferecia e observou os presentes.
Adam Ashwick, a sua mulher, Annis, Joss e Amy Tallant estavam de pé, um pouco afastados, a falar entre eles. Adam levantou uma mão para o cumprimentar e Martin inclinou levemente a cabeça em resposta. Estava prestes a atravessar a sala e unir-se a eles quando viu lady Juliana Myfleet.
Pelo menos, supôs que era ela. Estava envolta em gaze prateada e apanhara o cabelo castanho num penteado elaborado, adornado com uma lua e várias estrelas. Usava uma máscara prateada e um xaile muito fino sobre os ombros.
O instinto de Martin dizia-lhe que era Juliana, o que era motivo de preocupação. Não sabia explicar como conseguira reconhecê-la instintivamente depois de alguns encontros. Certamente, teria algo a ver com o facto de a ter beijado. Ela descrevera-o como ”passatempo perigoso” e, realmente, assim estava a ser, porque, depois de ter beijado Juliana uma vez, Martin sentia-se impulsionado por uma força estranha a repetir a experiência.
Raios! Aquela reacção não era própria de um homem sensato, especialmente se esse homem andava à procura de uma mulher respeitável e judiciosa para se tornar sua esposa. Deveria esquecer o beijo e concentrar-se na sua procura.
No entanto, não conseguiu evitar continuar a observar Juliana e viu que esta lhe dedicava um olhar rápido. Estava muito bela e tinha um aspecto inocente, e parecia demasiado jovem para ser a viúva caprichosa de todos os rumores, uma mulher de má reputação, de quem se dizia ter dúzias de amantes. Martin franziu o sobrolho. Havia algo misterioso em Juliana Myfleet, algo que não encaixava na sua imagem. Existira demasiada falta de confiança no modo como o beijara na outra noite. Fora reservada, quase tímida e, certamente, não existira nada de cortesão no seu beijo.
Martin pensou no mistério. A inocência de Juliana chocava com o seu comportamento e a sua reputação. Recordou o jantar de Emma Wren, quando o olhar nos seus olhos era totalmente contraditório com o seu comportamento descarado. Havia algo vulnerável em Juliana que despertava o seu instinto de protecção. Fez uma careta. Para ser sincero, aquilo não era a única coisa que o provocava e Martin estava a descobrir que aquele instinto, misturado com o desejo, era uma mistura explosiva. Devia tentar resistir-lhe, mas tinha a sensação intensa de que estava prestes a fazer precisamente o contrário.
Martin sabia que não podia permitir-se entrar nos jogos de Juliana, nem naquele momento, nem nunca. Ela era demasiado complicada e difícil, e isso era a última coisa de que precisava, sobretudo quando Kitty e Clara estavam a comportar-se como se enfrentassem a sua própria pena de morte, em vez de um baile de máscaras, quando Brandon se recusava a dizer-lhe porque se fora embora de Cambridge tão precipitadamente e desaparecia a horas inoportunas do dia e da noite, e quando Daisy continuava a ter pesadelos.
Juliana Myfleet desaparecera e Martin virou-se, encontrando a sua irmã junto dele. Alguns dias antes, cometera o deslize de dizer a Araminta que andava à procura de esposa e, desde então, a sua irmã envolvera-se no projecto com um ânimo que Martin considerava ligeiramente incómodo. Araminta apresentara-lhe tantas mulheres respeitáveis nos últimos dias que Martin corria o perigo de confundir os seus nomes. Apercebeu-se de que a candidata daquela noite estava junto da sua irmã e não sentiu nenhum entusiasmo perante a ideia de a conhecer. Era uma loira pequena, que a sua irmã estava a empurrar ligeiramente para ele.
- Martin, permites-me apresentar-te a senhora Serena Alcott? - perguntou Araminta. - Serena, este é o meu irmão, Martin Davencourt.
Martin fez uma reverência e a senhora Alcott devolveu-lhe a saudação, baixando, timidamente, a vista. Estava a corar e era extremamente bonita e delicada. Martin apercebeu-se e, um segundo depois, viu que, curiosamente, não sentia nada a esse respeito. Nem interesse, nem expectativa, nem nervosismo perante a ideia de conhecer a sua possível noiva. Mas talvez aquela reacção fosse previsível, e inclusive bem-vinda, já que a decisão de escolher uma esposa tinha de ser feita com a cabeça fria. A escolha era um processo totalmente racional, graças a Deus, não era como o início de uma relação amorosa, onde as emoções acabavam por toldar a razão. Durante um segundo, a imagem de Juliana Myfleet interpôs-se entre Martin e Serena Alcott, tal como a vira pela última vez ao afastar-se dela, corada e com os lábios ligeiramente inchados pelos seus beijos. Pigarreou.
-Eh...! Como está, senhora Alcott?
Serena Alcott olhou para ele. Havia um sorriso tímido nos seus lábios que sugeria que gostava do que via.
Araminta pigarreou significativamente e Martin saiu do seu ensimesmamento.
- Oh! Sim... Senhora Alcott, dar-me-ia a honra de dançar comigo?
Serena Alcott consultou o seu cartão de baile. Estava impressionantemente cheio.
- Posso reservar-lhe uma dança para mais tarde, senhor Davencourt - disse, com um bonito sorriso. - Seria muito agradável.
Martin fez-lhe outra reverência, um pouco mais rígida daquela vez, e Araminta e a sua protegida afastaram-se. Voltou a dar outra olhadela à sala. Kitty, com uma expressão tremendamente aborrecida, estava sentada junto da senhora Lane. Clara estava a dançar, mas agia como se considerasse a dança tremendamente difícil. Estava, pelo menos, dois metros atrás de todos os outros, destoando do resto dos pares. O seu par, o jovem duque de Ercol, estava ligeiramente incomodado pela sua falta de entusiasmo. Martin suspirou. Ercol era um partido óptimo, mas, evidentemente, não faria nenhuma proposta a Clara quando esta parecia prestes a bocejar na sua cara. Perguntou-se para onde teria ido lady Juliana Myfleet, mas depois obrigou-se a não pensar nela. Maldita mulher por interromper a sua paz de espírito!
- E então? - perguntou Araminta, inesperadamente, materializando-se novamente ao seu lado. - O que te pareceu?
Martin pestanejou, surpreendido, pensando, por um momento, que estava a referir-se a Juliana.
- Quem? Ah, sim, a senhora Alcott! Sim... acho que preenche todos os meus requisitos. Parece uma mulher tranquila e sensata.
- Que seco, Martin! Devias mostrar mais um pouco de entusiasmo. Não te parece bonita?
- Muito.
- Pois, não pareces muito contente. Não voltarei a expor-me por tua causa.
- Tenho a certeza de que não precisarás de o fazer - disse Martin. - A senhora Alcott parece-me perfeita em todos os sentidos.
Araminta olhou para ele com o sobrolho franzido.
- Explica-me como chegaste a essa conclusão em dois minutos! Isto não é como comprar um cavalo, Martin!
- É claro que não - os olhos de Martin brilharam. - Passaria muito tempo a examinar uma nova aquisição para os meus estábulos.
Araminta fez uma expressão de desaprovação.
- Se quiseres fazer uma comparação equestre, dir-te-ei que o pedigree de Serena é imaculado. É sobrinha do marquês de Tallant, prima de Joss Tallant e de lady Juliana.
Martin teve uma sensação desagradável. A ideia de fazer a corte a uma prima de Juliana não lhe agradava. Parecia-lhe uma traição.
- Não podia ter piores referências - respondeu.
- O que dizes? Joss Tallant é um dos homens mais encantadores e atraentes que conheço, e é teu amigo!
- Sim, mas duvido que ele próprio negasse a reputação dos Tallant.
- Lady Juliana talvez a tenha e Joss fez certos excessos na sua juventude, mas duvido que esses defeitos sejam herdados. O pai de Serena Alcott era um homem muito correcto e a sua mãe era irmã do actual marquês, e uma mulher muito respeitável. Serena teve uma infância plácida, um casamento louvável e uma vida tranquila durante a sua viuvez.
Martin fez uma careta. Não sabia porque o irritava a história perfeita de Serena Alcott, mas assim era.
- Da forma como contas, soa tremendamente aborrecido, Araminta.
- Esta noite, estás contraditório, Martin! O que queres, um pouco de bom-senso ou uns quantos excessos? Porque podes ter a certeza de que não vais encontrar as duas coisas na mesma pessoa!
Virou-se, ofendida, e Martin suspirou, pensando que não tinha a certeza do que queria. Era evidente que Serena Alcott tinha todas as características de uma boa esposa, mas...
Lady Juliana Myfleet estava a dançar naquele momento com um homem que usava uma máscara de arlequim. Apoiou-se contra uma coluna para os observar. O seu acompanhante era Jasper Colling e Martin surpreendeu-se por lady Selwood ter descido tão baixo ao convidar Colling para o baile. Mas aquele homem tinha um título e dinheiro, e Martin sabia que muitas mães procuravam um marido assim para as suas filhas.
De facto, ele mesmo estava a chamar a atenção de várias jovens. Havia um pequeno grupo que se aproximara dele. As raparigas olhavam para ele por cima dos seus leques e deixavam escapar risinhos tolos. Martin fez uma ligeira reverência em direcção ao grupo e passou rapidamente ao seu lado, para ir buscar uma bebida.
- Que agradável vê-la novamente, lady Juliana! - Brandon Davencourt sorriu amplamente enquanto se aproximava dela. - Posso trazer-lhe um copo de vinho? Ou talvez lhe apeteça dançar?
Juliana sorriu.
- Eu adoraria, senhor Davencourt.
Ela quase nunca dançava, mas, ao aperceber-se de que Martin Davencourt estava a observá-la do outro lado da sala, sorriu docemente a Brandon e agarrou-se ao seu braço. Não vira Martin desde a noite em que a acompanhara a casa, há uma semana atrás, e Juliana pensou que aquilo demonstrava qual era a sua atitude para com ela. O beijo que tinham partilhado, embora muito doce, fora um erro que ambos tentavam esquecer.
- É estranho que aceite, lady Juliana - disse Brandon, conduzindo-a para a pista de dança. Pensei que recusaria. Dizem que nunca dança...
- Dizem?
- Os meus amigos. Vão morrer de inveja. Juliana riu-se.
- Bom, senhor Davencourt... eu gosto de ser imprevisível.
- Isso torna-me um homem sortudo - Brandon dedicou-lhe um sorriso brilhante. Chame-me simplesmente Brandon, lady Juliana - disse, iniciando a valsa. - Já que é amiga da família...
- Eu não diria isso. Acho que o seu irmão me desaprova, Brandon.
- Martin mostra a sua desaprovação por tudo - Brandon franziu ligeiramente o sobrolho. Hoje, deu-me um sermão horrível, garantindo-me que os estudos estão em primeiro lugar e que estou a desperdiçar a minha educação ao abandonar Cambridge no meu último ano. Acho que o decepcionei - Juliana olhou para ele e, quando Brandon se apercebeu de que estava a observá-lo, apressou-se a abanar a cabeça e a sorrir. - Peço-lhe perdão, senhora. Não é uma conversa agradável, nem apropriada para um baile.
- Não importa - afirmou Juliana. Afinal de contas, falar com jovens atraentes não era desagradável. Semicerrou ligeiramente os olhos. Não sabia que tinha abandonado os estudos, Brandon.
Ele assentiu.
- Prematuramente, receio. Não sou feito para ser um estudioso. Acho que essa foi uma das razões pelas quais decepcionei o meu irmão. Ele era um prodígio nos estudos.
Juliana sorriu e olhou para onde Martin se encontrava. Continuava apoiado numa coluna e tinha os braços cruzados. Juliana dedicou-lhe um sorriso e voltou a concentrar a sua atenção em Brandon.
- Lembro-me que o seu irmão passava o dia a estudar quando o conheci. Teria uns quinze anos e estava sempre a tentar resolver problemas matemáticos ou a ler poesia ou Filosofia. Receio que tais actividades me fizessem bocejar!
Brandon deu uma volta elegante.
- Filosofia, eh? Recordá-lo-ei quando sofrer um ataque de insónia! Suponho que a biblioteca esteja cheia de livros de Martin.
- Atrever-me-ia a dizer que o senhor Davencourt tem pouco tempo para os filósofos, agora que tem a responsabilidade de sete irmãos. Ou de seis, porque você parece capaz de cuidar de si mesmo, Brandon.
O jovem voltou a franzir o sobrolho.
- Suponho que somos um fardo para ele. E eu piorei a situação com a minha volta precipitada, mas... - interrompeu-se.
- Dificuldades económicas, talvez? - perguntou Juliana. Sabia que havia duas razões básicas pelas quais os jovens abandonavam os seus estudos.
Brandon olhou para ela e sorriu, timidamente.
- Não, não tenho problemas de dinheiro. São de outro tipo.
- Ah, um enredo amoroso! - Juliana sorriu. Não a surpreendia, pois tinha consciência de que muitas mulheres não conseguiam resistir aos encantos de Brandom. Bastava dar uma olhadela ao salão de baile para confirmar. As jovens que se apresentavam à sociedade naquele dia olhavam para ela como se lhes tivesse roubado o melhor solteiro.
- Sim, é verdade - assentiu Brandon. Parecia tão abatido que Juliana sorriu.
- Oh, querido! O seu irmão sabe?
- Ainda não. Não encontrei o momento adequado para lhe dizer.
- Nunca encontrará o momento adequado disse Juliana, com um suspiro. - Acredite em mim, Brandon, eu sei bastante sobre confissões difíceis. É melhor enfrentar isso, especialmente se o seu problema for de natureza vergonhosa.
- Não é! - respondeu Brandon, corando. - A questão, lady Juliana, é que há uma jovem que... estimo enormemente, mas os seus pais não aprovam a nossa união e, tenho a certeza, Martin também não o fará.
Deram outra volta e Juliana pôde olhar novamente para Martin Davencourt. Continuava a observá-los com uma expressão pensativa.
- Compreendo - disse ela. - Mas o seu afecto é sincero, Brandon?
- Bom, sim. Suponho que sim. Acha que sou demasiado jovem para pensar em casamento?
- Não. Eu era mais jovem quando me casei pela primeira vez e o meu marido era apenas alguns anos mais velho. Fomos muito felizes e acredito firmemente que, se Myfleet continuasse vivo, eu seria a mulher mais sortuda do mundo dedicou-lhe um sorriso brilhante. - O importante é que esteja convicto de que está a tomar a decisão certa.
A música estava a acabar. Deram uma última volta e Brandon largou-a, sorrindo amplamente.
- Foi esplêndido! Obrigado, lady Juliana. E obrigado pelo conselho. Gostei de falar consigo.
- Fico contente - respondeu ela, sorrindo. Agarrou-se ao braço de Brandon para atravessar a sala, mas Martin Davencourt interceptou-os quase imediatamente.
Martin observou o seu irmão com um sorriso irónico, um sorriso que se intensificou quando viu a cara corada de Juliana. Juliana não conseguira evitar corar ao encontrar-se perto de Martin, mas conseguiu sustentar-lhe o olhar.
- Brandon, acho que lady Juliana gostaria de beber um copo de vinho - disse Martin. - Fazes o favor de lhe trazer um e outro para mim, por favor?
Brandon dedicou um olhar cheio de desculpas a Juliana. Ela sabia que o jovem não ia protestar; as pessoas não discutiam com Martin Davencourt, especialmente o seu irmão mais novo.
- Com licença, senhora - desculpou-se Brandon. - Volto já.
- Não tenhas pressa - disse Martin, oferecendo o braço a Juliana. - Lady Juliana e eu temos muito para falar.
Juliana pousou a mão no braço de Martin, contrariada. Brandon era encantador e simples, fácil de lidar, mas Martin era totalmente diferente. O que começara como um jogo estava a transformar-se em algo muito diferente e tinha a sensação horrível de já não controlar a situação.
- Surpreende-me que pense que temos muito para falar, senhor. Pensei que já não tínhamos nada para dizer.
Martin sorriu.
- Porque diz isso?
- Bom, conseguimos evitar-nos durante a semana toda, não foi? - perguntou Juliana. - Esse facto contradiz a necessidade de procurarmos a companhia do outro.
Martin assentiu.
- Pensei que seria melhor mantermo-nos afastados, lady Juliana.
Os seus olhares encontraram-se e a tensão entre eles intensificou-se, como se fosse uma corda prestes a partir-se.
- Muito prudente da sua parte. Não teria esperado menos de si. Espero que o nosso último encontro não o tenha sobressaltado, senhor Davencourt. Sentir-me-ia responsável.
- Garanto-lhe que não me sobressaltou disse, educadamente, - embora acredite que me surpreendeu.
- Sim, assim foi. Tem profundidades ocultas, senhor Davencourt. E eu que me achava certa de estar a jogar à superfície!
- Já vê que consigo confundir as suas expectativas. Assim, não poderá sentir-se segura comigo.
Os seus olhares voltaram a encontrar-se e, daquela vez, custou ainda mais a Juliana desviar os seus olhos. Estava a tremer ligeiramente, mas não conseguia deixar de olhar para ele. Os olhos de Martin deslizaram pelo seu rosto, primeiro pelo seu cabelo, pelos seus olhos, pela sua boca... parou um instante nos lábios e depois voltou para os olhos de Juliana.
- Senhor Davencourt, estamos num salão de baile cheio de gente...
- Então, vamos sair.
A sua resposta deixou-a sem fôlego. Supunha-se que era ela quem tinha experiência, a má reputação. Era absurdo, mas Juliana sentia-se a lutar contra ela mesma.
- Talvez tenha razão, senhor Davencourt. É cheio de surpresas. Por exemplo, não esperava vê-lo aqui esta noite. Veio vigiar os seus irmãos?
Martin aceitou a mudança de assunto, levantando significativamente os sobrolhos. O gesto sugeria que estava disposto a deixar que ela marcasse o ritmo... por enquanto.
- Fá-lo parecer um baile de crianças, lady Juliana.
- É o que é... para si - Juliana dedicou-lhe um olhar brincalhão. Naquele momento, sim, sentia-se segura. - Os dias da sua juventude já acabaram, senhor. Como poderia ser de outra forma, tendo um monte de crianças para cuidar? Martin fez uma careta.
- Como pode ser tão desagradável, lady Juliana? Di-lo como se fosse um idoso.
- Bem poderia ser, já que não tem tempo para si. Ouvi dizer que cuidar de crianças é cansativo. Imagino que não terá tempo para o seu trabalho no Parlamento.
Martin riu-se.
- Então suponho que devo casar-me e assentar como um homem de família.
Juliana sentiu um aperto no coração, embora continuasse a sorrir.
- Vejo que faz grandes progressos nesse terreno - observou ela. - A minha prima, a senhora Alcott, seria a esposa perfeita para si.
Martin pareceu surpreendido.
- Está a precipitar-se, lady Juliana. Acabei de conhecer a senhora Alcott.
- E porquê perder tempo? Estou convencida de que é a mulher ideal para si.
Martin arqueou os sobrolhos.
- A sua prima é como a senhora?
- Absolutamente! É exactamente o contrário e, por isso, acho que terão muitas coisas em comum. Além disso... - Juliana sorriu, docemente - oferece uma situação muito tentadora a uma mulher. Uma família de sete! Serena não terá de se preocupar em ter filhos. O que mais poderia pedir?
- Ainda aspiro a ter filhos próprios - disse ele.
- Ah, bom, então precisará de uma verdadeira fortaleza.
Martin sorriu.
- Pergunto-me porque se incomodou em vir aqui esta noite, lady Juliana. Nunca teria pensado que isto seria do vosso agrado.
- Tem razão, é muito aborrecido. Mas vim por um impulso. Uma vez, ouvi dizer que lady Selwood se referia a mim como ”aquela espantosa criatura Myfleet” e disse que nunca me convidaria para uma das suas festas. Portanto, pensei demonstrar-lhe que estava enganada e decidi vir ao seu baile como castigo - dedicou um sorriso maravilhoso a Martin. - Como é um baile de máscaras, a pobre mulher não me reconheceu de início e deu-me umas calorosas boas-vindas. E pedi a Jasper Colling que me acompanhasse, já que lady Selwood pensa que é um libertino desagradável.
-E é.
- Eu sei. Mas não vê a piada da questão? Agora não pode expulsar-nos, porque isso causaria um escândalo ainda maior. Já sabe quem somos, tal como todos os seus convidados. E veja, Jasper está a dançar com a menina Selwood!
Martin estava a observá-la com uma expressão indecifrável. No entanto, Juliana achou ver que sentia pena dela. Pena e desilusão. Sentiu-se furiosa. Como se atrevia a sentir pena dela? Dedicou-lhe um olhar desafiador.
- Estou a ver que a sua ideia de diversão não corresponde à minha, senhor Davencourt. Não precisa de continuar a torturar-se, passando mais tempo na minha companhia... a menos que tenha algo para me dizer.
- Sim, há algo - disse Martin, devagar. Não estava a olhar para ela. Tinha a vista fixa em Brandon, que conversava com uma jovem particularmente bonita.
Juliana semicerrou os olhos.
- Tem algo a ver com o seu irmão, talvez? Os olhos azuis de Martin voltaram a fixar-se nela.
- É verdade. Sou assim tão transparente? perguntou, divertido.
- Como a água, senhor Davencourt. Gostaria que deixasse de falar com o seu irmão.
- É claro! Brandon é jovem e influenciável, e...
- Eu não acho que seja nenhuma dessas coisas. Parece extremamente maduro para a sua idade.
- Tem vinte e dois anos, lady Juliana. Ainda é um rapaz.
Juliana riu-se. Parecia-lhe absurdo que Brandon lhe confiasse o seu amor por outra mulher, quando Martin pensava que ia seduzir o seu inocente irmão.
- Os jovens desejam apaixonar-se, senhor Davencourt. Mas talvez já se tenha esquecido, porque se comporta como se tivesse noventa e cinco anos.
- Ficar-lhe-ia muito agradecido se não animasse Brandon, lady Juliana - disse, com calma.
- É a única coisa que lhe peço.
- Entendo. Que previsível, senhor! Decepciona-me. É exactamente o que teria esperado que dissesse.
- Não a surpreende?
- É claro que não! - Juliana não sentia surpresa, mas uma certa desilusão. - A hipocrisia nunca me surpreende. Portanto, há uma regra para si e outra para o seu irmão Brandon... Então, suponho que ninguém poderia descrevê-lo como jovem e influenciável, senhor Davencourt, nem sequer os seus familiares mais próximos e queridos.
- É claro que não! - Martin semicerrou os olhos enquanto olhava para ela. - E você também não é, lady Juliana, portanto, entendemo-nos bem.
Juliana virou-se. Sentia-se ferida, como se tivesse esperado que Martin tivesse uma opinião melhor dela. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se zangada consigo mesma. Afinal de contas, fora ela quem dera a Martin a impressão de que seduzia os homens por diversão, portanto não podia culpá-lo por acreditar nela. E tinha de parar de se sentir inexplicavelmente atraída por ele.
- Com licença - disse-lhe. - Jasper Colling está à minha procura para dançar comigo. Boa noite.
Martin agarrou-lhe no braço.
- Espere! Não aceitou desalentar Brandon.
- E não vou fazê-lo - respondeu Juliana, olhando desdenhosamente para ele. - O seu irmão é uma companhia excelente. É uma pena que não tenha herdado a mesma qualidade. Além disso, Brandon já tem idade para tomar as suas próprias decisões. Boa noite, senhor Davencourt.
Juliana viu o brilho de raiva nos olhos de Martin antes de ele a largar. Afastou-se dele, sentindo-se tremendamente aliviada. Algures na sua mente, tinha o pensamento de que tomara mais do que podia de Martin Davencourt. Como amante ou como adversário, não tinha a certeza do que era, aquele homem era formidável.
Ao atravessar a sala, encontrou-se com Brandon, que trazia dois copos de vinho e respirava com dificuldade, como se se tivesse apressado, apesar do que o seu irmão lhe dissera. Sabendo que Martin os observava, Juliana parou e pôs-lhe uma mão no braço.
- Obrigada pela dança, Brandon - inclinou-se para ele, até que as suas cabeças quase se tocaram. Tinha a certeza de que Martin veria o movimento como um gesto inaceitável de intimidade. Baixou a voz. - Aconselho a confiar a verdade ao seu irmão. Não importa o que fez, tenho a certeza de que o ajudará.
Brandon sorriu-lhe, mas parecia cansado.
- Prometo-lhe que tentarei encontrar o momento adequado, lady Juliana, e... - tocou-lhe ligeiramente no pulso - muito obrigado.
Juliana ficou a olhar enquanto Brandon se reunia com o seu irmão e este pegava num dos copos de vinho. Martin continuava a observá-la. Embora a sua expressão fosse indecifrável, ela sabia que continuava zangado. Virou-se para se reunir a Jasper Colling. Sabia que Martin ainda olhava para ela, podia sentir os seus olhos sobre ela.
Colling distraiu-a ao puxar-lhe suavemente a manga do vestido.
- Juliana, querida. Tenho uma pequena proposta para te fazer. Vais considerá-la muito divertida...
Com um último olhar para Martin, Juliana permitiu que Colling a afastasse e sorriu.
- Então, diverte-me, Jasper - disse-lhe.
Fazia muito frio em Hyde Park, às dez horas da noite. Escondida por um maciço de faias, Juliana pensava que aquela seria, talvez, a acção mais parva que já cometera em toda a sua vida. Tremeu ao pensar no que o seu pai, Joss ou inclusive Martin Davencourt diriam se descobrissem. Pela primeira vez na sua vida, estava a sentir remorsos.
Jasper Colling, Emma Wren e ela tinham planeado a brincadeira na semana anterior, no baile de lady Selwood. Colling e ela esperariam pela carruagem de Andrew Brookes no parque e fingiriam assaltá-lo. Juliana sempre quisera fazer-se passar por um salteador de estradas e, de início, parecera-lhe muito divertido. Mas, agora, mudara de ideias, embora fosse demasiado tarde para voltar atrás. Embora os dentes lhe tremessem e os seus pés, com botas de montar, tivessem ficado gelados, não podia ir para casa. Isso fá-la-ia ficar como uma covarde diante dos seus amigos.
- Isto é horrível - comentou, remexendo-se na sela e desejando que Colling não detectasse o nervosismo na sua voz, - e as calças são muito feias! Não podias ter arranjado algo melhor, Jasper? Se nos apanharem, não me denunciarão por assalto, mas por cometer crimes contra a moda.
Jasper Colling riu-se.
- Juliana, meu amor, não vão apanhar-nos, não te preocupes. Além disso, é só uma brincadeira. Daremos a Brookes e à sua mulher umas boas-vindas de que nunca se esquecerão!
Juliana tremeu. A lua estava cheia e a noite, fria. Usava uma grande capa preta e apanhara o cabelo. Colling proporcionara-lhe um chapéu velho de três bicos que pertencia ao seu motorista e também lhe dera uma pistola prateada que ela não sabia usar. Um quarto de hora antes, tudo lhe parecera tremendamente divertido, mas, agora, não a atraía minimamente e preocupava-a a possibilidade de que os prendessem.
Colling tocou-lhe no braço. Juliana conseguiu sentir a sua excitação, o que lhe provocou ainda mais nervos.
- Vêm aí!
Uma carruagem aproximava-se deles pelo caminho fracamente iluminado pela luz da lua. Juliana susteve a respiração.
- Acho que não... - começou a dizer, mas Colling já estava a fazer o seu cavalo avançar. Em alguns segundos, estava a galopar para o caminho e, depois de alguns segundos de hesitação, Juliana seguiu-o.
Demorou um minuto a aperceber-se de que não era a carruagem que esperavam, mas já era demasiado tarde. Colling fez a carruagem parar bruscamente. O motorista perguntou-lhe, com voz trémula:
- Quem são? O que querem?
Juliana viu que Colling quase não conseguia conter a gargalhada.
- A bolsa ou a vida!
Colling abriu a porta da carruagem, precisamente quando Juliana lhe puxava o braço.
- O que estás a fazer? Esta não é a carruagem de Brookes.
- E que diferença faz? É só uma brincadeira. Havia uma mulher idosa no interior. Nos seus
olhos via-se terror e tremiam-lhe os cantos dos lábios. As suas mãos trémulas tentavam abrir o colar de diamantes que usava, mas não conseguia. Juliana mordeu o lábio inferior. Um sentimento estranho apoderou-se dela e voltou a agarrar no braço de Colling, daquela vez com mais força.
- Não! Deixa-a estar.
- Cem guinéus ou a vossa honra! - exclamou Colling, tentando não desatar a rir-se à gargalhada.
A idosa, que não deveria ter menos de setenta anos, parecia prestes a desmaiar.
- Leve a minha bolsa, mas não me magoem! Sou tão velha e estou tão cansada... - a voz falhou-lhe.
- Pelo amor de Deus! - Juliana estava a começar a sentir-se nauseada. Largou Colling. Eu vou...
Ouviu o assobio de uma bala passar-lhe junto da orelha. Colling praguejou, virou rapidamente o seu cavalo e lançou-se a galope por onde tinham vindo, deixando Juliana junto da carruagem.
Juliana olhou à sua volta. Outra carruagem aproximava-se pelo caminho e, tanto o motorista como o passageiro, estavam a disparar. Juliana saltou rapidamente para o chão, pegou na bolsa da idosa, que caíra para o chão, e atirou-a para o interior, para o colo da mulher.
- Tome! Peço desculpa! Era só uma brincadeira...
Saltou para a sela e esporeou o cavalo. Colling saiu de entre as faias e cavalgou para o seu lado, mas quase não conseguiu seguir o seu ritmo frenético e perguntou-lhe, várias vezes, o que raios se passava. Juliana não respondeu. Enxugara as lágrimas das faces algumas vezes, mas tinha a certeza de que Colling não a vira fazê-lo e, quando chegaram às ruas iluminadas da cidade, impôs um trote lento ao cavalo e agradeceu pela aventura.
Colling estava eufórico.
- Dispararam contra nós! Que fuga esplêndida! Viste quem era, Juliana? Davencourt! Davencourt disparou contra nós!
Juliana sentiu uma mistura de apreensão e náusea.
- Martin Davencourt? Tens a certeza? Mas ele não te viu, pois não, Jasper?
- Duvido - disse Colling, alegremente. - De qualquer forma, não pode provar nada. Não roubámos nada, nem ferimos ninguém...
Mas Juliana estava a pensar no terror que vira nos olhos azuis da mulher. Havia mais de uma forma de ferir as pessoas.
Colling pôs-lhe uma mão sobre as suas.
- A noite ainda é uma criança. Porque não mudamos de roupa e vamos à noite de lady Babbacombe? Ou talvez... - baixou a voz, sugestivamente - pudéssemos celebrar a nossa fuga juntos, só tu e eu...
Juliana afastou-lhe a mão. Sentia aversão.
- Acho que não. A noite foi divertida, mas já acabou.
- Mas partilhamos o nosso pequeno segredo, eh, Juliana? Ainda não te tenho, mas... veremos.
Juliana não gostou de como aquelas palavras soaram. Tinham um certo gosto a chantagem e não queria sequer pensar em ver-se nas mãos de Colling. E havia Emma Wren, que também tinha conhecimento dos seus planos. Emma tinha pensado que era uma grande ideia, mas assim que descobrisse o que acontecera no parque, ligaria as pontas e aperceber-se-ia de tudo. Juliana sentiu um aperto no coração. Aquele assunto estava a complicar-se tremendamente.
Separou-se de Colling em Portman Square e entrou sozinha em sua casa. Havia uma dúzia de velas acesas no hall porque ela simplesmente o preferia assim. Fazia com que a casa parecesse menos vazia. No entanto, não podia fazer nada a respeito do silêncio, não podia preenchê-lo de nenhuma forma.
A porta do quarto dos criados abriu-se e apareceu Hattie, a criada de Juliana. Ao ver a sua senhora vestida com calças, a jovem ficou atónita.
- Pelo amor de Deus, senhora, porque está vestida assim? Não andou a cavalgar pela cidade, vestida de homem, pois não?
Juliana sentiu-se um pouco mais animada.
- Receio que sim, Hattie. E, agora, preciso da tua ajuda. Tenho de me transformar novamente em mulher em meia hora. E pede a Jeffers que tenha a carruagem pronta. Vou à noite de lady Babbacombe.
Só quando tirou as calças e a camisa de linho, Juliana se apercebeu de que a gargantilha com a meia-lua que usava sempre e que fora um presente do seu marido desaparecera. Procurou-a com desespero entre as dobras da camisa, mas em vão. Também não estava no chão, nem entre as dobras da capa. Perdera-a!
- Não sabes? - Emma Wren repartiu as cartas e recostou-se no seu lugar. - Assaltaram a carruagem da condessa de Lyon, há menos de duas horas em Hyde Park! Salteadores de estradas, Ju! Em Hyde Park! Achava que essas selvajarias tinham desaparecido há muito tempo.
Juliana conseguiu que as mãos não lhe tremessem enquanto se desfazia de uma carta e tirava outra. Estava a jogar num grupo de quatro e a sua companheira era a idosa lady Bestable, que, sabendo que poderiam assaltá-la quando voltasse para casa, estava a tremer tanto que nem sequer conseguia ver o que tinha nas mãos. Juliana sabia que iam perder.
Mas Juliana também não estava totalmente concentrada no jogo. Para além de a preocupar que Emma pudesse suspeitar dela, não parava de recordar a cara cheia de terror da condessa de Lyon e as suas palavras...
”Leve a minha bolsa, mas não me magoem! Sou tão velha e estou tão cansada...”
Juliana reprimiu um estremecimento. Tentara esquecer o incidente e a expressão aterrada da condessa; tentara dizer a si própria que não lhe importava, mas sabia que estava a mentir, o que a nauseava. Pela primeira vez na sua vida, as consequências das suas próprias acções preocupavam-na.
Podia sentir o olhar de Emma fixo nela, brilhante e malicioso, e forçou-se a sorrir.
- Alguém foi ferido?
- Aparentemente, não - respondeu lady Neasden, com os olhos muito abertos pela excitação.
- A chegada de outra carruagem espantou os malfeitores.
- Que sorte! - respondeu Juliana, educadamente, sem levantar a vista das suas cartas.
- Corre o rumor de que não eram salteadores comuns, mas jovens desalmados - comentou lady Bestable. - Se não fosse a chegada do senhor Davencourt, teriam roubado a pobre condessa Lyon e tê-la-iam deixado no caminho. E tudo para que alguns rapazes libertinos, com demasiado dinheiro e tempo para esbanjar, se divertissem!
Juliana obrigou-se a sorrir.
- É demasiado dura, senhora. Se calhar, só queriam pregar uma partida...
- Uma partida! Qualquer um que pense que é divertido assustar uma pobre idosa até quase a matar merece o inferno!
Jogaram em silêncio durante alguns minutos. Juliana ganhou, mas a satisfação do momento ficou toldada pela lembrança dos acontecimentos recentes. Perguntava-se quando iria para casa.
Por uma vez, a ideia de ir para a sua casa tranquila era atraente.
- O senhor Davencourt é o herói do dia murmurou lady Neasden, apontando com a cabeça para a porta aberta que dava para o salão de baile. - Acho que irei felicitá-lo - levantou-se, levando lady Bestable com ela.
Emma Wren inclinou-se para a frente.
- Pensei que tinhas planeado estar nas imediações de Hyde Park esta noite, querida. Tu sabes... o que organizámos com Jasper Colling.
Juliana olhou directamente para ela nos olhos. Não queria que lhe fizesse mais perguntas e sabia que havia uma explicação que a distrairia.
- Jasper Colling e eu estivemos juntos esta noite, mas não como tínhamos planeado de início - disse, com voz sugestiva. - Nem sequer pensámos em aproximar-nos de Hyde Park!
Emma Wren olhou para ela com os olhos muito abertos.
- Jasper pareceu-me um pouco cansado quando o vi antes. Parabéns, querida! - inclinou-se ainda mais para a frente, convidando às confidências.
- Ouvi dizer que tem muito talento...
Juliana encolheu os ombros.
- Conheci piores.
- Oh, é claro que sim! Sei que Massingham era horrível quando bebia demasiado. Ouvi dizer que, uma vez, adormeceu em cima de Harriet Templeton, mas, como lhe pagava, não se importou e, simplesmente, cobrou-lhe mais um pouco!
Juliana fingiu interessar-se pela conversa de Emma, mas, pelo canto do olho, viu Martin Davencourt, rodeado de mulheres que o admiravam. Já decidira evitá-lo, mas, naquele momento, parecia-lhe algo essencial. Se se tivesse aproximado da carruagem e tivesse falado com lady Lyon, saberia que um dos assaltantes era uma mulher. Embora Juliana soubesse que Martin não tinha nenhuma razão para a relacionar com o incidente, pensar naquilo fazia-a sentir horror.
Martin levantou a vista e, durante um instante, os seus olhares encontraram-se. Juliana levou a mão ao pescoço, onde costumava usar a gargantilha de prata. Já pusera outro colar, mas, quando os seus dedos acariciaram as esmeraldas, sentiu uma pontada de alarme. Martin estava a olhar-lhe para o pescoço e a observar como a sua mão brincava, nervosamente, com o colar.
Juliana virou-se bruscamente.
- Jogamos outra vez? - perguntou.
Martin Davencourt conseguiu, finalmente, afastar-se de toda a gente que se aproximara para o felicitar e dirigiu-se para a sala contígua, para ir buscar uma bebida forte. As suas meias-irmãs tinham ficado impressionadas ao saberem que impedira alguns assaltantes e tinham passado a tarde toda a comentar a história. Para Martin, no entanto, tanta atenção fora incomodativa, sobretudo pelo que sabia sobre a identidade de um dos assaltantes...
Martin estivera de mau humor durante o dia todo. Chegara à cidade naquela tarde, vindo de Davencourt, depois de ter tido de enfrentar um incidente em que uma criada se mostrara muito interessada na prata familiar. Martin despedira a jovem e recebera uma mensagem de Araminta a dizer-lhe que Kitty perdera várias centenas de guinéus ao jogo e que armara um grande escândalo. Chegara a casa no meio do caos e das recriminações; a senhora Lane acusava Kitty e Clara de perversidade, enquanto Kitty permanecia numa posição desafiadora e Clara se desfazia em lágrimas. O seu choro contagiara as suas irmãs mais novas, que tinham começado a chorar com tal desespero que Martin pensara que a cabeça lhe ia rebentar. Por fim, mandara Kitty e Clara para os seus quartos, entregara as outras crianças à ama e enviara a senhora Lane para a agência de emprego. A dama de companhia sentira-se indignada ao ser despedida e Martin suspeitava de que, naquele momento, estaria a espalhar rumores vingativos sobre a falta de moral das suas meias-irmãs.
À tarde, sentara-se no seu escritório e pensara que precisava de fazer algo a respeito de Kitty. E a respeito de Brandon, Clara, Maria, Daisy e
Bertram. Às vezes, sentia-se como se a sua vida estivesse totalmente fora de controlo. Já não era suficiente contratar uma tutora competente, uma dama de companhia ou uma ama, nem contar com a ajuda adicional de Araminta, que já tinha a sua própria família. Definitivamente, precisava de uma esposa. Uma mulher prática e hábil que se encarregasse da casa e que controlasse as crianças com mão firme.
Ele próprio acompanhara Kitty e Clara à noite de lady Babbacombe, numa tentativa de manter as aparências e sossegar os rumores que circulavam pela cidade sobre a sua casa ser uma barafunda. Sabia que Serena Alcott estaria lá, já que Araminta lho dissera. A sua irmã reforçara-lhe o modelo de virtudes conjugais que a senhora Alcott seria. Uma viúva formal podia ser uma boa influência...
O seu olhar pousou em lady Juliana Myfleet. Podia vê-la na outra sala, a jogar às cartas. As velas faziam brilhar as pequenas esmeraldas com que enfeitara o cabelo e o colar a condizer que usava. Parecia distante e altiva. Martin sorriu, tristemente. De todas as viúvas inapropriadas... Não podia negar que havia uma grande atracção entre eles. Tinha noção de que começara como um jogo. Juliana quisera brincar com ele e dera a volta ao assunto, respondendo com o desejo básico masculino de possuir. Mas, em seguida, tudo se complicara. Gostava da sua companhia. Gostava dela. Ou, pelo menos, gostara até àquela noite em Hyde Park...
Sentia aversão pelo que Juliana fazia. Quando se aproximara da carruagem da condessa de Lyon, a pobre mulher ainda parecia um novelo num canto, agarrando a sua bolsa com força e repetindo várias vezes ”Por favor, não me magoem!”. Martin demorara dez minutos a fazê-la compreender que estava a salvo. O motorista não estava muito melhor; era quase tão idoso como a sua senhora e a experiência amedrontara-o. Quando lady Lyon murmurara: ”Pensei que ela ia matar-me...”, Martin pensara que a entendera mal. Mas, quando descera da carruagem, a luz do farol fizera brilhar o fio de prata na erva. Ao apanhá-lo, deparara-se com uma pequena lua crescente e recordara imediatamente onde a vira antes. Quase conseguira visualizá-la à volta do pescoço de lady Juliana Myfleet...
Agora, o fio de prata estava no seu bolso. Voltando a olhar para Juliana, que parecia perfeitamente serena, Martin sentiu uma onda de calor e uma fúria irracional. Se realmente fosse culpada pela atrocidade de Hyde Park, então era o acto de delinquência mais atroz e irresponsável que podia imaginar. E tudo para se divertir, sem dúvida. Depois do mal-entendido do casamento, pensara que, talvez, lady Juliana não fosse assim tão má pessoa como ela mesma pretendia ser, mas agora sabia que não era assim. Aquela mulher era ainda pior.
Juliana agradara-lhe e também a desejara, mas agora estava furioso com ela... e com ele mesmo por se ter deixado enganar.
Juliana levantara-se e atravessava a sala em direcção ao salão de baile, cumprimentando todos os seus conhecidos com um sorriso felino. A maioria das suas amizades era homens e pareciam ter bastante confiança com ela. Portanto, lady Juliana Myfleet era imoral, com tendência para brincadeiras cruéis e obcecada com o jogo. Não deveria importar-lhe nada. Mas importava-lhe.
Alcançou Juliana com três passadas.
- Gostaria de dançar, lady Juliana?
Achou ver algo mais para além de surpresa nos olhos da mulher. Por um momento, pensou que no seu olhar se reflectiu algo parecido com medo, antes de o esconder e sorrir educadamente.
- Obrigada, senhor Davencourt, mas raramente danço. É demasiado cansativo.
- Certamente, não tanto como uma cavalgada enérgica - disse Martin, com gravidade. - Monta a cavalo, lady Juliana?
- Insuficientemente. Receio que quase todos os exercícios me repugnem.
Começou a andar mais depressa, mas Martin manteve-se ao seu lado.
- Então, não conserva um cavalo quando está em Londres?
Juliana dedicou-lhe um sorriso malicioso.
- Se está à procura de uma cavalariça, pedirei a algum dos meus amigos que lhe recomende uma.
- Preocupam-me mais as suas actividades do que as minhas - disse Martin. - Frequenta Hyde Park, lady Juliana?
Daquela vez, viu que se sobressaltava e sentiu uma certa satisfação por ter atravessado a sua fachada. No entanto, quando falou, fê-lo com muita calma.
- Vou lá algumas vezes. Porque pergunta, senhor?
- Sinto curiosidade em saber como emprega o seu tempo. Esta noite, por exemplo.
Ela dedicou-lhe outro sorriso, semicerrando os seus gloriosos olhos verdes. As suas pestanas escuras contrastavam com a claridade da sua pele. Naquele momento, estava a rir-se dele, decidida a perturbá-lo.
- Terá de perguntar a sir Jasper Colling se quiser saber as minhas actividades desta noite, senhor. No entanto, acho que é demasiado cavalheiresco para lhe responder e que o senhor também é para perguntar...
Os lábios de Martin curvaram-se em algo que pretendia ser um sorriso. Tinha de admitir que era boa, embora, inconscientemente, estivesse a trair-se: uma das suas mãos pousou nervosamente no pescoço, onde o colar de esmeraldas descansava sobre a beira do seu vestido de seda acobreada.
- Acho que perdeu o seu fio de prata - disse, educadamente.
- Um fio? - perguntou, com indiferença, e quase conseguiu convencer Martin. Quase.
- Tenho a certeza de que se lembra. O fio com uma pequena lua de prata que usava quando a serviram a Brookes naquela bandeja. Um presente de algum dos seus amantes, talvez...
Juliana contraiu os lábios e levantou o queixo, olhando desafiadora para ele.
- Foi um presente do meu falecido marido, senhor Davencourt. E não o perdi.
- É claro que não. Tenho-o aqui mesmo. Soube que era seu assim que o encontrei.
Martin tirou o fio do bolso. Viu que Juliana empalidecia e que olhava rapidamente à sua volta, para ver se alguém os observava.
- Deve ter caído aqui, esta noite.
- Muito inteligente, mas receio que não acredite, lady Juliana. Encontrei-o na erva, junto da carruagem da condessa de Lyon. Certamente, já a terão informado do que se passou... - arqueou um sobrolho, com ironia - a condessa foi assaltada por dois homens em Hyde Park, esta noite...
Juliana fez um gesto nervoso com as mãos.
- Já fui informada! Não ouvi outra coisa esta noite. Se está à espera que o felicite pelo seu heroísmo, vai ficar decepcionado. Acho que está a imaginar.
Martin riu-se.
- Talvez se a bala a tivesse atingido em Hyde Park, me levasse mais a sério.
Juliana olhou para ele nos olhos.
- Oh, não! - Martin afastou o fio ao ver que ela queria agarrá-lo. Com a outra mão, agarrou-lhe no pulso e conduziu-a até um canto escondido por algumas plantas.
Era como tentar conter uma gata selvagem. Estava totalmente tensa e esbracejava para resistir, e, assim que ficaram fora da vista da multidão, lutou com ainda mais ímpeto. Martin agarrou-lhe nos dois braços por cima dos cotovelos para fazer com que parasse.
- Largue-me! Gritarei e armarei um escândalo.
Falou com muita calma e Martin acreditou.
Armar um escândalo num salão de baile não seria nada para lady Juliana Myfleet. Seria um jogo de crianças comparado com outras das suas brincadeiras.
- Se é isso que quer, vá em frente. Mas eu armarei um ainda maior quando a denunciar aos agentes da polícia! Ou talvez o seu pai e o seu irmão gostassem de saber a sua última aventura... ou também não respeita a opinião deles? Talvez não tivesse descido tão baixo se o fizesse. Quão baixo consegue descer, lady Juliana?
Martin abanou-a brutalmente. A indiferença de Juliana punha-o ainda mais furioso, mas, um momento depois, largou-a e recuou. A aversão reflectia-se em cada gesto do seu corpo.
- Despir-se e comportar-se como uma prostituta não é nada comparado com o seu comportamento desta noite! Não compreende o que fez àquela idosa? Não compreende o seu medo e a sua dor? Importa-lhe um pouco ou também perdeu essa faculdade? - estendeu-lhe o fio de prata, com desagrado. - Tome! Mas se descobrir que fez algo parecido outra vez...
Juliana foi-se embora. Martin viu-a atravessar o salão de baile, afastando-se rapidamente. Não levou o fio, Martin ainda o tinha na mão.
Havia algo vulnerável na cabeça agachada de Juliana e nos seus ombros cansados. Martin envergonhou-se de si mesmo e enfureceu-se ao sentir-se assim quando sabia que tinha razão. Sentiu muita pena do que Juliana Myfleet era.
Como se tivesse sentido o seu olhar, Juliana endireitou os ombros e parou para falar com um homem. Dedicou-lhe um olhar por cima do ombro e, depois, agarrou-se ao braço de um dos seus admiradores, e abandonou a sala. Martin não conseguiu evitar admirá-la pelo seu aprumo, mas, ao mesmo tempo, sentiu desilusão ao ver que as suas palavras não tinham surtido efeito nenhum nela.
Juliana não sabia como conseguira sair da sala, sentindo que as pernas não a seguravam. Não reparou nas pessoas que a cumprimentavam e Edward Ashwick teve de a chamar três vezes antes que ela se apercebesse de que estava ali. No entanto, ninguém pareceu dar-se conta da sua confusão. Edward ofereceu-lhe alegremente o seu braço quando lhe disse que queria ser acompanhada até à sua carruagem e conversou incoerentemente disto e daquilo enquanto caminhavam, sem esperar resposta, o que foi uma sorte para Juliana, já que a única coisa que esta conseguia ouvir era as palavras de Martin Davencourt: ”Não compreende o que fez àquela idosa? Não compreende o seu medo e a sua dor? Importa-lhe um pouco ou também perdeu essa faculdade?”
E, como um eco, também ouvia a voz da condessa de Lyon: ”Não me magoem. Sou tão velha e estou tão cansada...”
- Estás bem, Juliana? - perguntou Edward, de repente. - Estás muito pálida.
- Estou um pouco cansada. Por favor, desculpa-me, Eddie. Eu... preciso de descansar um pouco. Vou ao toucador.
- É claro! Tens a certeza de que ficarás bem sozinha?
- Tenho a certeza. Obrigada.
- Então, aparecerei amanhã para saber como estás.
- Sim, por favor.
O corredor de mármore estava frio e, por um momento, pareceu-lhe deserto. Apoiou-se contra a porta mais próxima e levou uma mão à testa. Sentia-se cansada. E tremendamente triste.
Caiu-lhe uma lágrima de cada olho e Juliana enxugou-as com fúria. Deitou um olhar furtivo ao corredor, mas não havia ninguém, portanto, permitiu-se um soluço. A sua intensidade surpreendeu-a e foi muito difícil conter o seguinte.
Pensara que Martin Davencourt era um homem aborrecido, mas, ao ver tanta fúria e tanta paixão nos seus olhos, reconheceu o seu erro. Como seria provocar amor num homem assim... em vez de fúria e desdém? Só passara uma semana desde que a tomara nos seus braços e, naquele momento, ela desejava todo o seu amor e a sua paixão. Mas já nunca os teria.
Juliana soluçou novamente e cobriu a cara com as mãos. Aquilo era embaraçoso e inexplicável. Ela nunca chorava, mas também era verdade que nunca se sentira tão infeliz.
Alguém lhe pôs uma mão suavemente no braço.
- Lady Juliana?
Durante um segundo, confusa como estava, pensou que o seu irmão Joss a encontrara. Sabia que lhe daria um grande abraço. Mas, então, reconheceu a voz de Martin Davencourt. Afastou-se bruscamente dele, consciente de que tinha o rosto cheio de lágrimas e de que não havia maneira de as esconder.
Durante um longo momento, olharam-se fixamente. As feições de Martin eram severas, mas nos seus olhos havia uma amabilidade que fez com que Juliana desejasse atirar-se nos seus braços e sentir-se amada e protegida para sempre. Recordou-lhe a amabilidade que lhe mostrara em Ashby Tallant naquele Verão. Inclusive aos quinze anos, Martin Davencourt mostrara-lhe o verdadeiro significado de honra e integridade. Agora, desejava-as desesperadamente.
- Lamento se... - começou a dizer Martin, mas ela olhou, desafiadora, para ele e interrompeu-o.
- Se pensa que estou aborrecida por algo que me tenha dito, está tremendamente enganado.
Afastou-se pelo corredor, a caminhar com as costas muito direitas e não se virou para olhar para ele. Mas sabia que ele a observava.
- Podemos falar, Juliana, por favor?
O tom incisivo de Joss atravessou a sala e fez com que a sua irmã se levantasse, contrariada, da mesa. Desculpou-se perante as suas companheiras de jogo e deixou que o seu irmão lhe agarrasse no braço, e a levasse para um canto mais tranquilo. Juliana achava saber o que Joss queria dizer-lhe. Nos últimos cinco dias, andara a apostar muito alto e a cidade toda já estava ao corrente das suas perdas. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, Joss lhe perguntaria o que estava a acontecer. Mas não queria explicar-lhe o que se passava quando nem ela mesma compreendia. Encontrara-se algumas vezes com Martin Davencourt e tratara-o com educação fria, mas isso era só uma parte da sua desdita. O resto era composto por sonhos deprimentes, nos quais o rosto da condessa de Lyon a perseguia, tal como a sensação horrível de que tudo estava a tomar o caminho errado e que ela não conseguia resolvê-lo.
E, agora, Joss queria falar com ela e, a julgar pela sua expressão, esperava-a um belo sermão.
- Estás com bom aspecto, Joss - disse, quando o seu irmão lhe passou um copo de vinho. - A vida de casado faz-te bem, querido. Como está Amy?
Joss sorriu ao reconhecer as suas técnicas de evasão.
- Muito esperta, Juliana, mas não resulta. A saúde de Amy não te importa e eu estou aqui para falar das tuas dívidas, não para passar o tempo.
Juliana fez uma careta.
- És muito rude ao dizeres que não me preocupo com Amy. Claro que me preocupo.
O seu irmão suspirou.
- Amy está muito bem - disse. - Estamos a planear passar uma temporada em Ashby Tallant dentro de um mês, mais ou menos. Porque não vens connosco, Juliana? Talvez seja precisamente o que precisas.
Juliana tremeu. A ideia de estar isolada no campo, a ver como o seu irmão fazia de marido perfeito, revolvia-lhe o estômago. Se agora se sentia infeliz, lá, sem companhia, sem o jogo e sem ir às compras, ficaria louca.
- Não tenho nenhuma vontade de fazer de vela - respondeu, iradamente. - Ainda estão tão apaixonados que fazem os outros sentir-se deslocados. Além disso, sabes que odeio o campo, Joss, e as minhas diversões estão todas na cidade.
- Foi o que ouvi! - dirigiu um olhar penetrante à sua irmã e, durante um segundo, Juliana perguntou-se se teria sabido do assunto de Hyde Park, mas, em seguida, apercebeu-se de que a única coisa que o preocupava era o jogo. - Quanto foi desta vez, Ju?
Juliana deu um gole ao seu copo de vinho e pensou se havia de lhe contar a verdade ou não. Por um lado, seria útil pedir algum dinheiro emprestado a Joss, mas, por outro, sentir-se-ia decepcionado com ela. Já o fizera muitas vezes no passado.
- Só quinze mil, querido.
Joss arqueou os sobrolhos com incredulidade.
- E o resto?
Juliana encolheu ligeiramente os ombros.
- Bom, talvez um pouco mais - sorriu. - Se pudesses emprestar-me alguns milhares, Joss...
- Receio que não, Juliana. Desta vez, não. De início, ela achou que o ouvira mal, mas
depois franziu o sobrolho.
- Porquê? Também estiveste a jogar e perdeste dinheiro? Amy ficará desgostada...
- Não - disse o seu irmão, com dureza. - Não estive a jogar, mas não posso continuar a apoiar-te enquanto te arruinas, Ju. Não paras de me pedir dinheiro. Ou ao teu pai.
Juliana sentiu-se confusa e em pânico.
- Mas tens de mo dar. Ou o papá. Pela honra da família.
- Quanto te importa a honra da família, Ju?
- Mas eu... - bebeu o resto do vinho, sentindo-se um pouco mais forte ao sentir o calor do líquido no seu estômago. - Suponho que Amy te obrigou a fazeres isto.
- Amy não tem nada a ver com isto - disse Joss, com calma. - É para o teu próprio bem, Juliana. Tens de o aceitar.
- Olha quem fala! Tu, que eras o jogador mais empedernido de todos! E agora suponho que me dirás que foi o amor de uma mulher que te salvou. Estás horrivelmente sensível!
- Diz o que quiseres - os seus lábios curvaram-se ligeiramente num sorriso. - E, em tempos, já foste bem casada, Juliana. Não o recomendarias?
- É claro que não! Atrever-me-ia a dizer que quando era jovem e sonhadora concordava, mas agora preciso de entretenimento, não de uma rotina entediante. Não me verás novamente casada!
- É uma pena - disse Joss. - Pode ser o que precisas. E não conseguimos tentar-te com o campo? Então... - encolheu os ombros - espero que comeces a ganhar depressa, querida fez uma pausa. - O papá esteve doente - acrescentou, bruscamente. - Peço-te que não o incomodes com os teus últimos excessos. Agora está demasiado fraco para se ocupar com os teus melodramas e o senhor Ivinghoe está a passar-me todos os seus assuntos financeiros.
Juliana sentiu que o medo lhe oprimia o peito.
- Joss, espera! Se o papá está demasiado doente e tu te recusas a ajudar-me...
-Sim?
Juliana conseguiu ver que estava decidido e também o quanto estava a custar-lhe. Joss e ela sempre tinham sido muito unidos, e tinham-se apoiado durante a sua infância solitária. Uma parte dela sentia que estava a traí-la, mas outra sugeria-lhe que Joss estava a tentar ajudá-la. Queria culpá-lo, mas não tinha forças para o fazer.
- Não posso acreditar que estejas a fazer-me isto - disse-lhe.
-Juliana...
- Eu sei - pôs-lhe uma mão no braço. - Sei que queres o melhor para mim - deixou escapar um suspiro. - Mas, se não tiver dinheiro, como vou entreter-me? Tenho de ir às compras, preciso de dinheiro para jogar e... Oh! Como vou sustentar-me, Joss? Não posso ir a todas as festas e a todos os bailes com a mesma roupa!
- Tenho a certeza de que te ocorrerá algo disse, suavemente, o seu irmão. - Encarregar-me-ei de pagar as contas da tua casa, é claro, e, se acederes a ir para Ashby Tallant, encarregar-me-ei das tuas dívidas de jogo.
Por um momento, Juliana sentiu-se tentada. Ter as dívidas todas pagas e começar do zero era uma ideia muito atraente. Depois, imaginou como seria estar presa no campo, sem o entretenimento do jogo e sem visitas, vendo como o seu irmão adorava Amy e sentindo inveja porque ninguém olhava para ela com tal devoção.
- Agradeço-te, mas não - respondeu, tentando salvar o seu orgulho.
- Sabes onde me encontrar, se precisares.
- Não precisarei de te encontrar, já que não vais ajudar-me.
Durante um momento, olharam-se fixamente e, então, Juliana atirou-se nos seus braços, alheia aos olhares curiosos dos jogadores. Abraçou-se fortemente a ele, com o rosto apertado contra o seu peito.
-Oh, Joss...!
O seu irmão devolveu-lhe o abraço.
- Por favor, Ju...! Por favor, tenta. Juliana largou-o e assentiu.
- Fá-lo-ei. E, agora, vai-te embora, antes que me arrependa. Como bem disseste, sei onde te encontrar.
Joss deu-lhe um beijo na face.
- Boa noite, Ju.
Ao voltar para a mesa de jogo, Juliana viu que uma jovem pálida, de cerca de vinte anos, se unira a Emma Wren e a Mary Neasden. Usava um vestido simples, mas caro, e agarrava nas cartas com força. Pelo seu olhar, podia dizer-se que estava muito nervosa.
- Juliana, querida, esta é Kitty Davenport disse Emma, Usou o seu tom de voz mais reconfortante, que empregava para atrair jovens inocentes. - Kitty acabou de fazer a sua apresentação à sociedade e sei que adorará fazer novas amizades. Kitty, querida, esta é lady Juliana Myfleet.
Juliana sobressaltou-se. Durante um momento, achou ter ouvido mal e que Emma dissera Davencourt, mas depois apercebeu-se de que a sua amiga também conhecia os Davenport, uma família extremamente rica e aborrecida. Sem dúvida, aquela jovem era uma esposa aborrecida ou uma filha caprichosa que procurava alguma emoção.
- Como está, senhora? - perguntou a rapariga, submissamente.
- Como está? - respondeu Juliana e encontrou-se com o olhar de Emma, que lhe piscou um olho para lhe dar a entender que estavam diante de uma jovem a quem conseguiriam arrebatar tudo.
Juliana ainda estava irritada pela recusa de Joss em ajudá-la, mas parecia haver uma certa justiça no facto de o destino lhe proporcionar uma maneira de ganhar algum dinheiro. Deitou um olhar rápido a Kitty e dispôs-se a depená-la.
Acabou tudo muito depressa. Em apenas meia hora, Kitty perdera doze mil guinéus e estava muito pálida. Emma Wren baralhou as cartas e comentou:
- Esta noite, estás com sorte, Ju. Com os dez mil que te devo e os doze mil da pequena Kitty, vais recuperar depressa.
Kitty estivera muito calada durante o jogo todo e, naquele momento, disse, gaguejando um pouco:
- Perdoe-me, senhora, mas, posso passar-lhe uma promissória? Não posso saldar a dívida até... - falhou-lhe a voz - até receber a minha próxima mesada.
Juliana olhou para ela, pensando que uma jovem como ela, certamente, não receberia uma mesada de doze mil guinéus. Emma Wren estava a tentar não se rir.
Juliana suspirou.
- Como queira - disse, com indiferença, embora soubesse que, daquela maneira, poderiam passar meses até conseguir o dinheiro. Era uma pena, porque planeara usá-lo para ganhar mais.
Emma levantou-se da mesa e pediu tinta e papel a um criado. Kitty começou a rabiscar.
Juliana começou a tamborilar com os dedos na mesa, enquanto Kitty escrevia. Alguns minutos depois, a jovem continuava com a cabeça inclinada sobre o papel e as faces coradas. Parecia estar a escrever um romance e Juliana perguntou-se porque demoraria tanto.
Então, viu que uma lágrima caía no papel, junto da mão direita de Kitty. Juliana observou-a, enquanto a jovem tentava limpá-la, mas só conseguiu borrar o documento.
- Meu Deus! - exclamou Juliana.
Kitty sobressaltou-se e dirigiu um olhar culpado a Juliana.
- Peço-lhe perdão, senhora. Se pudesse dar-me outro papel...
Juliana inspirou profundamente. A luz das velas fazia brilhar as lágrimas nas faces de Kitty, que parecia culpada e desesperada. Juliana inclinou-se para a frente, pegou na folha e rasgou-a ao meio.
- Não se incomode em escrever outro disse-lhe. - A dívida fica cancelada.
Kitty ficou sem fôlego.
- Senhora...
- Não tem meios para a pagar, pois não? Kitty desviou o olhar.
- Não, mas ia contar ao meu irmão...
- Não o faça.
Juliana sentiu um aperto no coração. No fundo da sua mente, ainda persistia a lembrança de outra jovem que perdera oitenta mil libras. Naquele momento, Joss salvara-a. Se agora pudesse fazer algo por Kitty... inclinou-se para a frente.
- Não diga, Kitty. Não há nenhuma necessidade. Só... - tocou na mão da jovem - não jogue se não puder permitir-se fazer a aposta. Não, ignore este conselho. Não jogue absolutamente. A amabilidade das suas palavras fez com que Kitty se desfizesse em lágrimas. A jovem chorou, soluçou e fez com que Juliana desejasse não ter dito nada. Vários minutos depois, quando a corrente de lágrimas pouco diminuíra e já começavam a chamar a atenção, Juliana levantou-se e agarrou-lhe no braço.
- Menina Davenport... Kitty... deixa-me levar-te para outro sítio...
Conduziu-a para um pequeno salão e ali deu-lhe um pouco de brandy.
- Detesto brandy! - respondeu Kitty.
- Mas ajudar-te-á a recuperar. Tens um lenço? Kitty não tinha. Suspirando, Juliana tirou o
seu e deu-o à jovem para que limpasse a cara. Um momento depois, Kitty bebeu um pouco de brandy, tossiu e suspirou.
- Assim estás melhor - disse Juliana. - E, agora, diz-me, Kitty, porque jogas? É uma pergunta inapropriada vindo de mim, mas o jogo não é feito para raparigas tão jovens.
Kitty bebeu mais um pouco de brandy e pareceu envergonhar-se.
- Eu sei que é bastante desagradável, lady Juliana - inspirou profundamente. - A verdade é que tinha esperanças de perder cada vez mais, até as coisas ficarem tão feias que o meu irmão me mandaria para casa. Foi a única forma que me ocorreu de cair em desgraça e, assim, conseguir que me deixassem viver calmamente no campo!
Juliana observou-a com incredulidade.
- Querias que te mandassem para casa por teres caído em desonra? Isso não é um bom plano, Kitty.
- Eu sei. Mas não me ocorreu outra coisa. De que outra maneira pode uma jovem cair em desonra?
- Bom, podias ter fugido com um homem... começou a dizer Juliana, mas parou. - Não, talvez não. Por favor, esquece o que acabei de dizer. Portanto, esta noite querias acumular uma grande dívida...
- Sim. Perdi uma quantia considerável de dinheiro durante as últimas semanas, lady Juliana, portanto já estou em desgraça. Sabia que jogar agora seria a gota de água, mas, quando o fiz, senti-me mal e com medo ao ver o quanto tinha perdido. Apercebi-me da estupidez que estava a fazer.
- Sim, foi uma estupidez - disse Juliana, pensativamente. - Mas, porque querias que te mandassem para casa?
O lábio inferior de Kitty tremeu.
- Queria ir para casa porque odeio Londres! Odeio o ruído, as pessoas e as ruas sujas. Pensei que encontraria alguém agradável com quem casar-me, mas só conheço homens aborrecidos que não param de falar de si mesmos. Se conseguisse encontrar alguém que gostasse do campo, seria diferente...
- Há muitos homens que gostam de caçar e de pescar...
Kitty fez uma expressão de desespero.
- Sim, mas preferia casar-me com alguém que conserve a natureza em vez de a destruir.
- É um ponto de vista bastante fora do comum e não me surpreende que ainda não tenhas encontrado o homem certo - Juliana olhou, pensativamente, para Kitty. - Verei se consigo pensar em alguém que te convenha, Kitty. E, se não, mudaremos o plano, pensaremos em algo que não te faça cair em desgraça - olhou para o relógio que havia sobre a lareira. - Agora, é melhor voltares para junto da tua dama de companhia, antes que sinta a tua falta.
- Neste momento, não tenho dama de companhia - disse Kitty. - E lady Harpender, que se supõe que tinha de cuidar de nós, não gosta de o fazer porque a minha irmã Clara é mais bonita do que a sua filha.
- Sim, entendo - disse Juliana. - Mesmo assim, devias voltar.
Os olhos escuros de Kitty encheram-se de lágrimas de gratidão.
- Obrigada pela sua amabilidade, lady Juliana.
- Por favor, não voltes a chorar, Kitty.
- Não, não! E também não voltarei a jogar. É tão boa e amável, lady Juliana...! Agradeço-lhe muito!
Quando Kitty se foi embora, Juliana serviu-se de um copo generoso de brandy e bebeu-o de um gole. Sentia-se como se tivesse de se.recuperar da impressão de ser descrita como boa e amável. Não podia acreditar no que acabava de fazer. Cancelar uma dívida, dar conselhos a uma jovenzinha, fazer de confidente... Devia estar louca! Juliana suspirou e serviu-se de mais brandy. Tinham sido as lembranças o que tinham deitado abaixo as suas defesas. Kitty recordara-lhe ela mesma quando, aos dezassete anos, jogara e perdera tanto que quase arruinara a sua família.
Juliana abanou a cabeça para afastar aqueles pensamentos. Bom, tentara salvar Kitty. E, embora tivesse prometido ajudá-la, realmente não tinha de ver novamente a jovem. De qualquer forma, a família de Kitty não o permitiria. E ainda bem, porque não desejava ser novamente incomodada.
Martin Davencourt chegou à soleira de lady Juliana Myfleet na manhã seguinte, como se o próprio diabo o perseguisse. Quando o mordomo lhe disse que lady Juliana ainda não se levantara, desanimou-se um pouco, mas decidiu que esperaria. Passada meia hora, perguntou-se se lady Juliana estava sozinha e se o início da manhã não seria o pior momento para a visitar. Depois de uma hora, Martin sentia-se indeciso e com muita tensão, e estava prestes a ir-se embora quando Juliana entrou na biblioteca.
- Senhor Davencourt. Martin levantou-se.
- Bom dia, lady Juliana. Obrigado por me receber. Peço-lhe perdão por vir a estas horas inoportunas.
Juliana sorriu e Martin sentiu um aperto no coração.
- Não se preocupe. Não estava ocupada. Mas surpreende-me que queira ver-me, senhor Davencourt. Ou veio exortar-me outra vez? Garanto-lhe que a sua última conversa foi muito eficaz. Não precisa de a repetir.
Martin abanou a cabeça. Apercebeu-se de que, apesar da longa espera, não preparara o que queria dizer. Ser tão impetuoso era algo fora do comum nele.
- Vim... Queria... Há algo de que gostaria de falar consigo.
Juliana arqueou um sobrolho.
- Entendo. Bebe café? Ainda não tomei o pequeno-almoço.
- Adoraria beber café consigo.
Juliana assentiu. As suas defesas estavam bem estabelecidas naquela manhã, pensou Martin. Se não a tivesse visto chorar no baile de lady Babbacombe, teria jurado que aquela mulher não tinha sentimentos. E se Kitty não lhe tivesse contado o que acontecera na noite anterior, teria pensado que a generosidade não era precisamente uma das suas qualidades. E, mesmo assim, sabia que havia muito mais nela...
Observou Juliana enquanto o mordomo trazia uma bandeja de prata com uma cafeteira e duas chávenas. Sabia que ela tinha consciência do seu olhar e que estava a fazer sérios esforços para manter a calma. Não olhava para ele, mas Martin sabia que tinha tanta consciência da sua presença como ele da dela.
O café cheirava deliciosamente e Martin apercebeu-se de que não comera nada naquela manhã e que estava faminto. Juliana serviu as chávenas com eficiência e passou-lhe uma delas.
- Então... Do que queria falar-me, senhor Davencourt?
- Tem a ver com Kitty - disse Martin. - A minha irmã, Kitty Davencourt. Disse-me que, ontem à noite, perdeu doze mil guinéus e que você lhe perdoou a dívida.
Juliana desviou o olhar e pousou, suavemente, a sua chávena na bandeja.
- Não sabia que era sua irmã. Apresentaram-ma como Kitty Davenport.
Martin levantou os sobrolhos.
- Teria feito alguma diferença se soubesse? Achou ver um brilho de diversão nos olhos de Juliana.
- Talvez tivesse pensado duas vezes antes de cancelar a dívida.
Martin perguntou-se se estaria a gozar com ele. Pigarreou.
- Sim. Bom... Disse-me que cancelou a sua dívida. E perguntava-me porque o fez.
Juliana olhou intensamente para ele antes de responder.
- E eu perguntava-me o que fazia lá a menina Davencourt.
- Eu perguntei primeiro. Porque libertou Kitty da dívida?
Podia ver que a sua insistência irritava Juliana, embora não deixasse entrever os seus sentimentos. Fez um gesto vago com a mão.
- Cancelei a dívida porque queria fazê-lo. Ontem à noite, sentia-me generosa.
Martin sabia que estava a esconder algo. Sabia que havia algo mais, mas duvidava que Juliana lhe contasse a verdade.
- Não foi por sentir pena dela? Juliana sorriu, levemente.
- É claro que não! Na mesa de jogo não há lugar para a pena, senhor Davencourt.
- Essa é uma regra que você mesma segue, suponho - disse, suavemente, - embora tenha ouvido dizer que deve uma quantia que não consegue pagar.
Juliana olhou para ele com dureza.
- Isso não lhe diz respeito.
- Suponho que não. Mas a minha irmã diz que sim. E não quis que caísse na má influência de certos jogadores.
- Então, deveria mantê-la afastada das mesas de jogo, senhor Davencourt. E não respondeu à minha pergunta. O que fazia ela lá?
Martin suspirou. Não devia nenhuma explicação a lady Juliana, mas, de repente, encontrou-se a dar-lha.
- As minhas irmãs perderam recentemente a sua dama de companhia. Ontem à noite, supunha-se que Kitty estaria ao cuidado de lady Harpender, mas parece que se distraiu e não se apercebeu de que Kitty tinha entrado no salão de jogo. Lady Harpender ficou muito confusa quando descobriu e, por isso, Kitty viu-se obrigada a contar-me tudo - fez uma pausa. - Disse-me que a aconselhou a não contar, lady Juliana.
Juliana encolheu os ombros.
- Que sentido tinha contar, depois de já ter cancelado a sua dívida? - suspirou. - Infelizmente, as mulheres jovens sentem um desejo incontrolável de confessar os seus pecados.
Martin sustentou-lhe o olhar.
- E as que não são assim tão jovens?
- A experiência ensina a nunca divulgarmos os segredos - disse Juliana e franziu o sobrolho.
- Há algo que preocupa a sua irmã, senhor Davencourt. Ontem à noite, confessou-me isso e acho que deveria falar com ela.
- Fá-lo-ei - respondeu, com brusquidão. Sentia-se profundamente irritado. Porque era mais fácil para Kitty falar com lady Juliana Myfleet do que com o seu próprio irmão? Primeiro Brandon, agora a sua irmã... - Já não é necessário preocupar-se com Kitty, lady Juliana. Eu encarregar-me-ei do assunto.
- Compreendo. Mais café, senhor Davencourt?
Martin levantou-se.
- Não, obrigado. E também devo agradecer-lhe a sua amabilidade com Kitty, suponho. Ou devo chamar-lhe impulso generoso?
Juliana também se levantou. Era alta e não precisava de inclinar a cabeça para trás para olhar para Martin nos olhos.
- Pode chamar-lhe o que quiser, senhor Davencourt.
- Se voltar a vê-la num salão de jogo...
- Não receie. Depená-la-ei sem piedade. Mantenha Kitty afastada das cartas, senhor Davencourt. Tenho a certeza de que não deseja que desenvolva paixão por elas.
Martin suspirou, sonoramente. Sentia-se deprimido.
- Talvez seja demasiado tarde para isso.
- Absolutamente! A sua irmã não joga por querer fazê-lo... mas para atingir um objectivo. Prometeu-me que não voltaria a jogar, mas tem de falar com ela. Mas já discutimos este assunto e o senhor não aprecia a minha intromissão.
Juliana aproximou-se da lareira e pegou numa campainha. Martin pôs-lhe uma mão sobre as dela. Sabia que havia algo mais naquele assunto que um simples capricho de generosidade de Juliana. Mais uma vez, conseguira surpreendê-lo e não era capaz de resolver o enigma.
- Espere, lady Juliana! Sabe como acabar com a dependência das cartas?
- É uma pergunta sobre o meu próprio comportamento para com o jogo ou sobre o da sua irmã?
- Encare-a como quiser, mas deixá-lo-ia? Juliana riu-se.
- Na verdade, não. Jogar às cartas entretém.
- Isso e pregar partidas cruéis - Martin enfiou uma mão no seu bolso. - Ainda tenho o seu fio.
- Obrigada - disse Juliana. Estendeu uma mão e Martin deu-lho.
- Lamento o que disse ontem à noite - desculpou-se ele. Não havia o mínimo sinal de calor no rosto de Juliana.
- Porque deveria lamentá-lo, senhor Davencourt? Disse a verdade tal como a viu.
- Fui demasiado rude. Juliana encolheu um ombro.
- Consigo enfrentar isso, senhor Davencourt. Não está a falar com uma jovenzinha que acabou de ser apresentada à sociedade; já ouvi muitas palavras rudes. Além disso, tinha razão: foi o pior acto que alguma vez cometi.
Martin surpreendeu-se com a sua honestidade e recordou a imagem decaída que lhe oferecera no baile de lady Babbacombe, precisamente depois de ter falado com ela.
- Ouvi dizer que alguém enviou uma cesta enorme cheia de flores e um pedido de desculpas a lady Lyon - disse ele.
A expressão de Juliana não se suavizou.
- Suponho que alguém se arrepende verdadeiramente do que aconteceu. E também acho que já prolongou bastante a sua visita, senhor Davencourt. A porta é por ali. Por favor, dê lembranças à sua irmã.
Martin hesitou.
- Devo pedir-lhe que se mantenha afastada de Kitty - disse, cautelosamente. - Tem a ideia inapropriada de a procurar outra vez. Tenho a certeza de que compreende. É jovem e impressionável, e eu não gostaria que estivesse sob influências pouco desejáveis.
- Está a ofender-me, senhor Davencourt respondeu Juliana, friamente. - Sou suficientemente boa para que me beije, quando sente o impulso de o fazer, mas não para falar com a sua irmã. Acho que é só isso o que preciso de saber sobre a sua opinião de mim! Quanto a Kitty, ela não deseja falar consigo, engano-me? Talvez eu seja inaceitável, mas você é inadequado. Em muitos sentidos.
Martin semicerrou os olhos e agarrou-lhe num braço.
- Não pensava que era inadequado na noite em que regressámos do Crowns.
Juliana riu-se.
- Não estava a referir-me às suas habilidades amorosas, senhor Davencourt, como certamente sabe. Acho que, nesse aspecto, é aceitável.
Martin sabia perfeitamente que não devia continuar aquela conversa, mas não conseguiu evitá-lo. Juliana irritava-o e também o surpreendia, e ele queria descobrir o que havia sob a sua fachada.
- Comparado com a sua longa lista de admiradores, suponho - disse, em voz baixa.
- É você quem o diz, senhor Davencourt, não eu. Já lhe disse uma vez que não desejo falar consigo das minhas conquistas.
- Você, não, mas eu, sim! Quero saber...
- O que quer saber, exactamente, senhor Davencourt? Os nomes e as características de todos os meus amantes? Porque deseja sabê-lo? Estará com ciúmes?
Fez-se silêncio entre eles durante vários segundos.
- Sim - disse Martin. - Sim, estou com ciúmes.
Então, conseguiu ver por debaixo da fachada de Juliana. Viu que a cor desaparecia do seu rosto e que abria os olhos com incredulidade. Parecia tremendamente vulnerável.
- Esperava que mentisse - disse, com voz ligeiramente trémula.
Martin aproximou-se dela e o tempo pareceu parar enquanto inclinava a cabeça para a beijar. O roçar dos seus lábios foi muito suave, mas acendeu alguma coisa neles. Um segundo depois, puxara Juliana contra o seu corpo e beijara-a outra vez. Juliana apoiou-se contra ele, entreabrindo os lábios para ceder à pressão irresistível de Martin. Naquele momento, não houve nada fingido, só uma doçura e uma urgência que invadiram Martin, deixando-o sem fôlego e acendendo o fogo do desejo. Enredou a sua língua com a de Juliana num beijo faminto e ansioso, mas, então, Juliana afastou-se. Martin pôde sentir o esforço que lhe custou fazê-lo e, embora uma parte dele desejasse vencer os escrúpulos de Juliana e voltar a puxá-la para os seus braços, deixou cair as mãos.
Juliana estava a morder o lábio inferior.
- Não! - exclamou. Levantou a cabeça e olhou para ele, directamente nos olhos. - Está confuso, senhor Davencourt, e está a confundir-me. Lembre-se de que não têm uma boa opinião de mim. Acho que deveria ir-se embora.
Martin estendeu uma mão para ela. -Juliana...
- E - acrescentou ela, muito claramente, não respondo bem à oferta de carte blanche.
Carte blanche. Martin sentiu um estremecimento. Nem sequer pensara em oferecer-lha. Juliana agitou a campainha com força e Segsbury apareceu imediatamente, como se estivesse à espera do outro lado da porta. Em seguida, Martin encontrou-se fora da casa e afastou-se tão ofuscado do número sete de Portman Square que uma carruagem poderia tê-lo atropelado.
Há muito tempo que desejava beijar Juliana. Desde a última vez que o fizera, para ser mais exacto. E agora que acontecera, queria fazê-lo novamente. E com frequência. Deixou escapar um resmungo. Não era nada oportuno. Estava a fazer a corte a outra mulher, a uma viúva respeitável que poderia ser a esposa ideal. Não era o momento adequado para beijar outra viúva, uma de má fama.
Quanto à carte blanche, Martin sabia que não poderia oferecê-la a Juliana, e que ele não era o tipo de homem disposto a manter uma esposa e uma amante ao mesmo tempo. Não podia oferecer carte blanche a Juliana porque seria um insulto.
Não seria suficientemente bom para ela. Martin assimilou aquele pensamento. Porque é que aquela situação não era suficientemente boa para ela? Era uma mulher de reputação duvidosa que, aparentemente, tivera relações com inúmeros homens. Praticamente, não tinha nenhuma possibilidade de voltar a casar-se, porque a sua reputação estava arruinada. Se tivesse uma fortuna, talvez fosse diferente, mas a única coisa que tinha era dívidas de jogo. Estava quase arruinada e só a sua viuvez e o facto de ser a filha do marquês de Tallant lhe davam uma certa protecção na sociedade.
”Está confuso, senhor Davencourt, e está a confundir-me.”
Tinha razão, pensou Martin. Estava terrivelmente confuso e terrivelmente ciumento. Quando a tomara nos seus braços, sentira que era ali onde ela devia estar.
Mas não podia deixar que tais pensamentos lhe toldassem o pensamento. Juliana era imprevisível e perigosa, e a sua influência sobre Kitty poderia ser tremendamente prejudicial. Franziu o sobrolho ao pensar na generosidade de Juliana ao cancelar a dívida de Kitty. Não era um acto próprio de uma mulher disposta a arruinar a reputação da sua irmã.
Sentia-se destroçado. Desejava Juliana Myfleet, mas sabia que não podia tê-la e, naquele momento, não via nenhuma solução para aquele problema.
- Está aqui uma jovem que deseja vê-la, senhora - disse Segsbury, quando Juliana voltou da sua saída para ir às compras, na tarde seguinte. Disse-o com total indiferença, apesar de as jovens nunca baterem na porta do número sete de Portman Square. - Na verdade, são duas jovens, para ser exacto: as meninas Kitty e Clara Davencourt, senhora. Mandei-as entrar para o salão azul.
- Obrigada, Segsbury - entregou o chapéu e o casaco ao mordomo, deitou um olhar satisfeito para a enorme pilha de embrulhos que um criado estava a tirar da carruagem e dispôs-se a receber as raparigas.
Não sabia o que Kitty e Clara Davencourt poderiam querer dela, mas do que tinha a certeza era de que o seu irmão não sabia que estavam ali. Decidiu livrar-se das jovens o mais depressa possível.
Parou à frente do espelho, compôs o cabelo e alisou o vestido. O pior que podia acontecer era que a visita de Kitty e Clara traria Martin Davencourt novamente à sua porta. E não queria vê-lo, porque, cada vez que o fazia, desejava-o. Queria a sua honra, a sua protecção e a sua integridade, mas também desejava que a amasse, o que a enfurecia. Jurara não voltar a apaixonar-se e estava a começar a desesperar-se, particularmente por ter escolhido um homem cuja opinião sobre ela era insultantemente desfavorável. Portanto, manter-se-ia afastada de Martin Davencourt e das suas irmãs.
As duas jovens levantaram-se quando Juliana entrou na sala. Kitty estava bonita, com o seu vestido cor-de-rosa pálido, mas Clara eclipsava-a completamente, já que era uma criatura bonita e transbordante de saúde e vitalidade. Clara herdara os traços mais atraentes dos Davencourt. O seu cabelo loiro comprido caía-lhe em caracóis engraçados ao lado do rosto, tinha uns lindos olhos azuis-escuros e a pele branca e perfeita.
- Lady Juliana! - exclamou Clara. Olhava para ela com muita atenção e Juliana teve de se conter para não se rir. Que mexericos teriam ouvido sobre ela? Talvez as mães e as damas de companhia usassem o seu nome para assustarem as jovens?
”Porta-te mal e ficarás como lady Juliana Myfleet!”
- Viemos... - começou a dizer Clara, sem parar de olhar para ela. - Queríamos falar consigo...
- Sim? - perguntou Juliana. - Porque vieram? Clara pareceu confusa por um momento, mas
depois sorriu. E foi um sorriso glorioso, como se o sol acabasse de nascer. Juliana pensou que devia ir arrastando os pretendentes à sua passagem.
- Viemos porque queríamos vê-la, certamente. Kitty falou-me muito de si.
Juliana olhou para Kitty e esta corou.
- Posso imaginar - disse Juliana, secamente.
- No entanto, não sou nenhuma atracção. E tenho a certeza de que o vosso irmão não sabe que estão aqui. Deveriam ir-se embora antes que descubra.
Kitty deu uma palmadinha no braço da sua irmã.
- Lady Juliana tem razão, Clara. Não devíamos tê-la incomodado...
Juliana sentiu uma onda de compaixão. Kitty parecia tão abatida e tão decepcionada... Recordou que lhe prometera que a ajudaria a arranjar marido. Devia estar louca.
Apesar de ter um exterior tão doce, Clara demonstrou ser muito mais forte do que a sua irmã.
- Mas eu queria pedir ajuda a lady Juliana! exclamou, dirigindo-se à sua irmã. - Disse que te ajudaria.
- Não sou nenhuma fada-madrinha - disse Juliana, mas não conseguiu evitar que a sua voz se suavizasse.
- Por favor, lady Juliana! Precisamos do seu conselho e Kitty disse-me que foi tão amável...
Juliana hesitou. Não previra que Kitty a descrevesse como um anjo milagroso. Olhou para Clara, que lhe devolveu o olhar com os seus lindos olhos azuis. Juliana sorriu. Sempre pensara que Martin devia ser o Davencourt mais teimoso, mas isso fora antes de conhecer Clara. Suspirou.
- Muito bem, menina Clara. Acho que posso dedicar-vos algum tempo. Porque não nos sentamos, bebemos uma chávena de chá e me contam do que se trata?
Meia hora depois, a cabeça de Juliana andava às voltas. Entre bolos e chávenas de chá, Clara contara-lhe não só os seus problemas, mas também os da sua irmã. Kitty permanecera na sua sombra, assentindo ocasionalmente e deixando cair uma palavra aqui e outra ali.
- Não é que não queiramos casar-nos, lady Juliana - disse Clara, abrindo muito os olhos, mas os cavalheiros que conhecemos não nos parecem apropriados. Kitty deseja encontrar alguém que goste do campo e eu... Bom, até ao momento não conheci ninguém por quem valha a pena permanecer acordada - colocou outro bolo na boca. - Tenho o hábito horrível de adormecer. Considero os eventos sociais muito cansativos e este calor adormece-me. Receio que adormeça nos lugares mais inoportunos. Nos bailes, no teatro...
- Oh, toda a gente adormece no teatro - disse Juliana. - Se deixarem de falar o tempo suficiente, claro. Mas suponho que não adormeces quando os homens estão a tentar falar contigo, Clara.
- Adormece - interveio Kitty. Clara corou.
- É verdade, mas todos os meus pretendentes são tremendamente aborrecidos, lady Juliana! Receio que não consigam fazer nada para me manterem acordada!
- Não? Bom, os homens são insossos, mas ainda restam alguns interessantes. E, certamente, terás muitos admiradores, Clara. És uma jovem muito bonita.
Clara encolheu, ligeiramente, os ombros.
- Oh, tenho muitos pretendentes! Além disso, Kitty e eu temos uma grande fortuna, portanto não nos faltam admiradores. E isso dificulta tudo, porque tenho de me manter acordada para muita gente! E tento. O duque de Ercol fez-me um pedido, ontem de manhã, mas acho que adormeci enquanto falava comigo. Martin zangou-se muitíssimo comigo e, ontem à noite, Ercol não nos falou na ópera.
- Não podes culpá-lo - interveio Kitty. Foste muito rude, Clara.
- Infelizmente, a tua irmã tem razão - disse Juliana, secamente. - A maioria dos homens gosta de pensar que são os oradores mais fascinantes do planeta, particularmente quando falam sobre eles mesmos. Mas se encontrasses um homem de que gostasses, Clara, aperceber-te-ias de que quererias permanecer acordada para desfrutar da sua companhia.
- Eu sei. Mas é tão difícil...!
- Desejas viver sozinha no campo, como Kitty?
- Na verdade, não, lady Juliana. Viver no campo é muito aborrecido. Passear, montar a cavalo e jogar croquet... Não, simplesmente preocupa-me pensar que cuidar da minha própria casa seria tão cansativo...
Juliana franziu o sobrolho.
- Portanto, Kitty quer um pretendente que goste do campo e tu precisas de um homem que contrate um monte de criados para cuidarem da tua casa. São condições difíceis. Terei de pensar nisso, Clara, e ver se alguém se adequa a elas.
- Poderia pensar depressa, por favor? - perguntou Clara, esperançada. - A senhora Alcott sugeriu que seria uma boa ideia casar-me com o seu irmão.
- Não podes casar-te com Charlie Walton disse Juliana, rapidamente. - É um dos homens mais aborrecidos que conheço. Tal como a sua irmã!
Clara deixou escapar um risinho e pareceu mais animada.
- É tremendamente insípida, não é? E está sempre a recriminar-me e a Kitty. Se estou demasiado gorda, se sou demasiado preguiçosa, se estou mal vestida...
- És demasiado bonita e demasiado rica disse Juliana. - Diria que tem ciúmes de ti, Clara.
Clara abriu muito os olhos.
- Oh! Acha? Sim, talvez tenha razão! É incrivelmente doce com Martin, mas é horrível comigo! E Martin não se dá conta de como a senhora Alcott é. Receio que se case com ela. Porque é que os homens são tão inúteis, lady Juliana?
- Não conseguem evitá-lo. Normalmente, não vêem um palmo à frente do nariz. Não poderiam falar com o senhor Davencourt acerca das vossas preocupações? Confiar nele?
As duas jovens pareceram horrorizar-se.
- Oh, não! - exclamou Kitty. - Nunca poderíamos falar com Martin. Está sempre muito ocupado e não tem tempo para nós.
- É um irmão esplêndido - acrescentou Clara,
- e amamo-lo muitíssimo, mas temos um pouco de medo dele, lady Juliana.
- Têm medo dele? Tenho a certeza de que não têm razão para isso.
- Não... - Kitty pareceu hesitar. - É que está sempre...
- A desaprovar tudo - disse Clara. - Receio que sejamos uma desilusão para ele. E Brandon também. Algo preocupa Brandon, mas nunca o contará a Martin.
- Eu sei - disse Juliana e suspirou. - Mas o senhor Davencourt preocupa-se com todos vocês
- riu-se. - Eu também tenho um irmão mais velho e sei como se sentem.
Os olhos de Kitty brilharam.
- E tem medo dele, lady Juliana?
- Muitíssimo! - respondeu Juliana. - Não, só um pouco, Kitty. Mas as suas opiniões e os seus conselhos interessam-me.
- O seu irmão é Joss Tallant, não é? - perguntou Clara, com voz sonhadora. - É um homem realmente atraente. E tem um amigo que, certamente, me manteria acordada...
Juliana sentiu um aperto no coração. A ideia de Clara se apaixonar por algum dos conhecidos libertinos de Joss seria o pesadelo de qualquer pai. Só Deus sabia o que Martin diria se descobrisse.
- Um amigo do meu irmão? Qual deles, Clara?
Clara corou.
- O duque de Fleet. É muito bonito, não é, lady Juliana?
- Muito - assentiu, mas depois franziu o sobrolho. - No entanto, Sebastian Fleet é um jogador empedernido, Clara, e um libertino. É totalmente inapropriado para ti. O teu irmão nunca aprovaria a união.
- Mas ouvi dizer que Fleet é muito rico e poderia sustentar-me. Apresenta-mo, lady Juliana?
- Não. Se fosse qualquer outro, fá-lo-ia. Bom, quase qualquer outro - acrescentou, pensando em Jasper Colling. - Mas Seb Fleet está fora de questão.
Clara baixou a vista, mas, em seguida, voltou a olhar para Juliana.
- E o irmão de lady Tallant, Richard Bainbridge? É terrivelmente encantador!
- Richard é um cabeça-de-vento e um esbanjador. Além disso, não tem dinheiro. Clara, o teu gosto para os homens é quase tão mau como o meu!
Clara riu-se.
- É estranho que todos estes cavalheiros sejam seus amigos.
- Não é assim tão estranho. Eu sou a última pessoa no mundo que teria a responsabilidade de vos arranjar um pretendente, a ti ou a Kitty. Sei que todos estes cavalheiros são inapropriados.
- Também há Martin - indicou Kitty. - Também o conhece e ele é adequado.
- O vosso irmão é a excepção que confirma a regra - disse Juliana. - É o único homem respeitável que conheço.
Kitty suspirou.
- Espero que Martin não se case com Serena. Seria muito mais divertido se se casasse consigo! Escolheu a prima errada.
- Obrigada, Kitty, mas o teu irmão e eu não encaixaríamos.
Clara estava a olhar inquisitoriamente e com interesse para ela. Juliana pensou, de repente, que os dias de solteiro de Sebastian Fleet estavam contados. Se Clara desejava algo, não pararia até o conseguir...
Tocaram à campainha e Juliana sentiu um aperto no coração. Esperava que não fosse Emma Wren ou, pior ainda, Jasper Colling. Tremeu ao pensar no que Jasper diria se encontrasse Clara e Kitty sentadas na sua sala.
As duas jovens olhavam, assustadas, para ela.
- Acha que...? - começou a dizer Kitty. - Pergunto-me se Martin descobriu.
- Oh, não! - exclamou Clara. A porta abriu-se.
- O senhor Davencourt - disse Segsbury. Mando fazer mais um pouco de chá, senhora?
Juliana observou a expressão culpada de Clara, a palidez de Kitty e o sobrolho franzido de Martin Davencourt.
- Sim, Segsbury - disse, educadamente. - Tenho a certeza de que mais um pouco de chá é precisamente o que precisamos.
Martin sentiu uma onda de alívio ao ver Kitty e Clara inocentemente sentadas no sofá de Juliana Myfleet. Também não pensava que Juliana fosse corromper as suas irmãs, já que tinha a certeza de que a ideia fora de Clara. Sabia que a sua irmã era muito teimosa e que, quando decidia fazer algo, ultrapassava todos os obstáculos até o conseguir. E o que decidira fazer fora falar com lady Juliana Myfleet. Não com ele. Nenhum deles queria falar com ele. Brandon nunca o faria e Clara e Kitty preferiam-na. Era inexplicável... e irritante.
Martin olhou para as suas irmãs. As duas pareciam sentir culpa e apreensão, e, ao vê-las, o seu aborrecimento desapareceu. Não queria que as suas irmãs tivessem medo dele.
Juliana levantou-se e dirigiu-se para ele com um sorriso forçado. Estendeu-lhe uma mão. Martin apertou os dentes e, pegando-lhe, fez-lhe uma ligeira reverência. O olhar de Juliana dizia que tinha consciência de como ele se sentia e de que não faria uma cena diante das suas irmãs.
- Boa tarde, senhor Davencourt - disse Juliana. - Beberá uma chávena de chá connosco?
Martin esteve tentado a rejeitar o convite, mas, então, viu a cara de angústia de Clara e tentou que não se reflectisse na sua expressão o aborrecimento que sentia.
- Adoraria - disse num tom de voz que sugeria o contrário. Sentou-se à frente do sofá.
- Martin... - disse Kitty, quase num sussurro. -Viemos...
- Kitty e Clara foram muito amáveis ao virem visitar-me - disse Juliana, suavemente, servindo o chá a Martin. - Leite, senhor Davencourt? Açúcar?
- Sem açúcar. Obrigado - respondeu, automaticamente. - Não era preciso virem ver lady Juliana, raparigas. Eu já a visitei para lhe agradecer pela sua amabilidade.
Viu que os lábios de Juliana se curvavam num sorriso cínico e sentiu irritação. Clara corou.
- Pensei que lady Juliana poderia... - começou a dizer, mas parou quando Kitty lhe bateu no tornozelo.
- Poderia o quê? - perguntou Martin.
- Poderia ter apanhado o lenço que Kitty perdeu na noite de lady Badbury - disse Juliana. Mas não foi assim.
Martin olhou para ela. Sabia que estava a mentir. E que Juliana sabia que ele sabia. Também sabia que não lhe importava.
- Sei que Kitty e Clara não têm dama de companhia neste momento, senhor Davencourt continuou Juliana. - Escoltá-las-á você mesmo no futuro? Um homem a trabalhar como dama de companhia seria uma verdadeira revolução!
Clara deixou escapar um risinho.
A conversa acalmou. Nem as raparigas nem Juliana pareciam dispostas a dizer mais nada e Martin tinha a certeza de que Juliana estava deliberadamente a manter silêncio para o fazer sentir-se incomodado. Perguntou-se do que raios poderiam ter estado a falar quando chegara. Durante um instante, quando a porta se abrira, Clara parecera-lhe tremendamente emocionada e Kitty, muito mais animada do que alguma vez recordava tê-la visto. Então, ele entrara e estragara tudo. Acabou a sua chávena de chá.
- Bom... Vamos, Kitty. Vamos, Clara - disse, com pouca convicção.
Enquanto faziam o curto caminho de volta para Laverstock Gardens na carruagem, Martin decidiu convencer as suas irmãs de que era muito imprudente visitarem viúvas dissolutas. Mas a conversa não correu nada bem.
- Porque sentiram necessidade de visitar lady Juliana, raparigas? - perguntou, suavemente.
Kitty apertou os lábios e Clara evitou o seu olhar.
- Queríamos agradecer-lhe por ter sido tão amável com Kitty. Ah, e perguntar-lhe pelo lenço, é claro!
Martin ignorou a mentira.
- Mas eu disse-vos que a visitaria para lhe agradecer. Não era necessário que vocês fizessem o mesmo. Foi bastante inapropriado – Clara encolheu ligeiramente os ombros. - Preferia que não voltassem a visitá-la. Nenhuma das duas.
Houve um momento de silêncio. Kitty assentiu, mas Martin pôde ver que Clara estava prestes a rebentar.
- Porquê, Martin? - perguntou-lhe. - Porque não podemos visitá-la?
- Lady Juliana não é o tipo de mulher com quem devem relacionar-se.
- Porquê?
Martin recordou os dias passados, nos quais, enquanto jovem, as suas irmãs o seguiam para todo o lado e não paravam de lhe fazer perguntas comprometedoras. Algumas coisas nunca mudavam. Suspirou.
- Porque não é uma mulher de boa reputação.
- Porquê?
- Clara, tenho a certeza de que, na tua idade, já entendes o que significa ter boa ou má reputação. E a de lady Juliana é má. Joga demasiado e...
-E?
- E é uma influência pouco desejável! - exclamou Martin.
- Achas que Kitty e eu nos deixaríamos influenciar facilmente, Martin?
- Espero que não. Mas não pode fazer-vos nenhum bem...
- Sobretudo, se nos tivéssemos encontrado com homens perversos enquanto estávamos em sua casa - disse Clara. - Araminta diz que lady Juliana conhece muitos homens perversos.
Martin apercebeu-se de que a situação estava a escapar do seu controlo.
-Clara...
A sua irmã olhou para ele.
- Eu gosto de lady Juliana. E Kitty também. E Brandon. Inclusive tu gostas de lady Juliana, não é, Martin? Vi como olhavas para ela.
- Clara, por favor! - Martin apertou os dentes. Sabia que a sua irmã tinha razão. - Nem Kitty, nem tu voltarão a ver lady Juliana.
- Porquê? - perguntou Clara.
- Porque não - respondeu, franzindo o sobrolho.
Os olhos azuis de Clara olharam acusadoramente para ele. Inclusive Kitty parecia desaprová-lo. Martin recordou que sempre odiara quando os seus pais lhe davam aquela resposta. Não fora uma boa razão quando eram crianças e também não era agora.
- Atrasou-se dez minutos, senhor Davencourt
- disse Juliana, quando Martin regressou a Portman Square.
- O quê? - Martin arqueou os sobrolhos. Juliana olhou para o relógio.
- Dez minutos para levar as suas irmãs a Laverstock Gardens, cinco minutos para dar a volta e dez minutos para regressar aqui. Vinte e cinco minutos no total. Portanto, atrasou-se dez minutos.
- Como sabia que ia voltar?
Juliana dedicou-lhe um olhar brincalhão.
- Vá lá, senhor Davencourt! Tem de me dizer tudo o que tinha vindo dizer-me quando encontrou as suas irmãs aqui.
Martin permitiu-se um pequeno sorriso. Apesar de tudo, admirava a frieza de Juliana.
- Gostaria de me dizer o que temos para falar? - perguntou ele.
Juliana encolheu, elegantemente, os ombros.
- Qual foi a frase que usou antes? Gostaria que me mantivesse afastada das suas irmãs. São jovens e impressionáveis e não quer submetê-las à minha má influência.
- Obrigado. Acho que o disse com as palavras exactas.
- Disse a Kitty e a Clara para se manterem afastadas de mim, senhor Davencourt? Afinal, foram elas que me procuraram, não ao contrário.
- Tenho consciência disso. E não voltarão a fazê-lo.
Juliana virou-se. A sua voz demonstrava sarcasmo.
- Certamente, terá ficado aliviado ao encontrar Clara e Kitty a beberem chá, e não a darem-se aos vícios que esta casa pode oferecer.
- Senti-me aliviado, certamente, mas não surpreendido. Não acho que esta casa seja um templo de perversidade. Mas confesso que teria gostado que tivessem tido o bom-senso de compreender que não é conveniente virem aqui.
- A companhia das suas irmãs parece-me maravilhosa, senhor Davencourt. Ao contrário de si, não sofrem de um excesso de desaprovação.
Martin sentiu-se, profundamente, irritado.
- Lady Juliana, tenho a sua palavra de que não se aproximará delas no futuro?
- Não me aproximarei das suas irmãs, mas, se elas falarem comigo, também não as afastarei. Eu gosto de Kitty e de Clara, senhor Davencourt, e acho que precisam... de alguém com quem falar.
Martin semicerrou os olhos. Sentia uma frustração profunda pela forma como os acontecimentos estavam a desenrolar-se, mas sabia que Juliana tinha razão. Ele não conseguira nada ao falar com Kitty e com Clara, e tinha a sensação horrível de que algo estava a escapar-lhe.
- Não desejo que essa pessoa seja você, lady Juliana.
- Não? - Juliana arqueou um sobrolho. - A sua nova esposa seria mais apropriada?
- Sem dúvida!
Juliana virou-se bruscamente para olhar para ele, provocando um redemoinho de seda acobreada.
- Porquê, senhor Davencourt? Diga já, não fique com isso entalado na garganta.
- Achei que já estava claro. A minha esposa será uma boa influência. Você é...
-Sim?
Martin suspirou.
- Não é que ache que vá influenciá-las negativamente de propósito, lady Juliana. Acho que tem integridade suficiente para não fazer isso...
- Obrigada. Mas, mesmo assim, não quer correr o risco e deixá-las na minha companhia.
- Tem de ter consciência de como os outros a vêem! Não é a minha opinião que conta, mas a da sociedade. Se Kitty e Clara passarem tempo consigo, só conseguirão prejudicar a sua reputação.
Juliana afastou-se dele e Martin inspirou profundamente. Sentia o mesmo remorso de quando a vira a chorar no baile de lady Babbacombe. Uma grande parte dele desejava tomá-la nos seus braços e reconfortá-la, mas não podia. Ambos sabiam que o que ele estava a dizer era verdade.
- Só quero proteger as minhas irmãs - disse, em voz baixa.
Juliana assentiu.
- Sim, entendo - levantou a vista e olhou para ele nos olhos. - Mais vale que encontre logo a sua noiva, senhor Davencourt. As suas irmãs precisam de alguém que as aconselhe.
- E pensaram em si?
- Bom, certamente, não foi em si - disse Juliana, friamente. - E foi uma decisão acertada. O que sabe de moda feminina, senhor Davencourt? Sabe que tipo de luvas se usa com um vestido de passeio e quais as que se usa com um vestido de noite? O que diria a uma jovem que pensa que não quer casar-se? Ou a outra que quer, mas que escolheu o homem inapropriado?
- Está a dizer-me que as minhas irmãs estão apaixonadas?
Juliana sorriu.
-Absolutamente, senhor Davencourt! Mas, se estivessem, saberia que conselho dar-lhes? sustentou-lhe o olhar. - Não desejam falar consigo, mas preferiram fazê-lo comigo. Isso deveria dizer-lhe alguma coisa. Tenha um bom dia, senhor Davencourt.
Juliana sentiu frio quando Martin partiu. A casa, antes cheia com as gargalhadas de Kitty e de Clara, agora estava silenciosa e vazia.
Juliana ordenou a uma criada que acendesse a lareira e sentou-se junto dela para tentar aquecer-se. Disse para si mesma que não se importava se não voltasse a ver Kitty e Clara, e que os Davencourt não lhe importavam, mas aquelas palavras pareceram-lhe vazias.
Fora uma parva ao achar que poderia ser uma presença permanente nas vidas das irmãs de Martin. Não se apercebera de que os seus pensamentos iam naquela direcção até Martin lho fazer ver.
Juliana levantou-se e começou a olhar para os convites que lhe tinham enviado. Ultimamente, descuidara os seus velhos amigos. Emma Wren oferecia um jantar naquela noite e poderia ser divertido...
Juliana voltou a sentar-se, deixando cair os convites. Não queria sentar-se a jogar às cartas nas salas excessivamente aquecidas de Emma, a ouvir mexericos maliciosos. Queria estar no baile de lady Eaton, a tentar arranjar um pretendente para Kitty, a ver como Clara conseguia que lhe apresentassem o duque de Fleet, como, certamente, aconteceria e a adivinhar por quem Brandon sentia aquela paixão secreta. Queria envolver-se, mas sabia que não fazia parte daquela história. Nunca fizera e Martin encarregara-se de lho recordar.
Levantou-se e tocou à campainha para chamar Hattie. Se o jantar de Emma era o único entretenimento que havia, teria de ir.
Martin Davencourt estava sentado a ouvir uma ária italiana. Ao seu lado, estava Clara, muito elegante com um vestido cor-de-rosa. Junto dela, estava Kitty, de amarelo-claro, e, no fim do banco, estava Brandon, sem fazer nenhum esforço para se mostrar interessado pela música. Atrás de Martin, fora do alcance da sua vista, mas constantemente na sua mente, sentava-se lady Juliana Myfleet. Embora estivesse três filas mais atrás e um pouco à sua direita, Martin tinha consciência da sua presença.
Passara uma semana desde a última vez que a vira e pensara nela todos os dias. Perguntara-se se deveria ter-se desculpado pelo seu último encontro e fora quase vê-la... até que fora a um baile e a vira de braço dado com Edward Ashwick. Sentira-se furioso ao vê-la e o facto de Ashwick também estar a acompanhá-la naquela noite era outra boa razão para manter as distâncias.
Do outro lado do corredor, Serena Alcott inclinou-se para a frente, conseguindo que Martin olhasse para ela. Ela sorriu e ele devolveu-lhe o sorriso, escondendo a sua irritação. Quando a ária acabou e foi anunciado um intervalo, Serena fez-lhe um pequeno gesto para o chamar. Martin sentiu um aperto no coração, mas as suas boas maneiras obrigaram-no a aproximar-se dela.
Serena deu algumas palmadinhas no lugar vazio que havia ao seu lado e Martin sentou-se.
- Está a desfrutar da música, senhora Alcott?
- Oh, sim! Muito - Serena olhou para ele. - É muito bonita.
- Não acha que as notas altas são demasiado...?
- Agudas? Não. La Perla é excelente.
- Acho que canta muito...
- Bem? Sim, é verdade.
Martin franziu ligeiramente o sobrolho. Sabia que Serena o observava atentamente, tentando antecipar-se ao que pudesse dizer em seguida. Era bastante desconcertante, como se tivesse adoptado o hábito, que existia em alguns casamentos, de ler os pensamentos e de acabar as frases pelo outro. Martin voltou a tentar.
- A senhora Duston oferece sempre noites muito...
- Elegantes? Sim, certamente.
Era extraordinário. Martin não podia acreditar que não se tivesse apercebido antes. Perguntou-se se alguma vez conseguiria acabar uma frase na sua vida. Levantou-se.
- Deseja que lhe traga...?
- Limonada? Oh, sim! Obrigada. Traga também vinho para si.
- Obrigado. Fá-lo-ei.
Afastou-se rapidamente, fazendo uma careta quando olhou por cima do seu ombro e viu que Serena lhe sorria e o cumprimentava com a mão. O seu humor não melhorou ao ver Brandon a conversar com Juliana Myfleet. Ela estava muito elegante, com um vestido cor de ouro velho, e enfeitara o cabelo com uma corrente de ouro a condizer. Martin apercebeu-se de que Juliana mandara Edward Ashwick buscar uma limonada para Kitty. A sua irmã corara e parecia feliz, e observava Edward enquanto este atravessava a sala. Edward Ashwick não era um mau partido, mas estaria Juliana a tentar juntá-los deliberadamente? Afinal de contas, Ashwick era o seu admirador mais constante e o único respeitável.
Tirou um copo de vinho para ele e estava prestes a tirar um de limonada quando viu um brilho cor-de-rosa. Clara estava de pé, junto de uma porta que dava para o salão de jogo, a conversar animadamente com um cavalheiro que Martin identificou como o duque de Fleet. Durante um instante, ficou tão surpreendido por ver a sua irmã a prestar atenção a um homem que ignorou o facto de o duque de Fleet ser um jogador empedernido, um libertino e, portanto, o pretendente menos apropriado para a sua irmã.
Estava prestes a aproximar-se para intervir quando viu algo que o parou. Juliana afastara-se educadamente de Brandon e chamara a atenção de Clara. Clara, obediente mesmo ao mínimo gesto de Juliana, desculpou-se graciosamente perante o duque de Fleet e foi ter com ela. Martin viu que Juliana dizia algo em voz baixa a Clara, abanando a cabeça. Clara mostrou-se obstinada e Juliana voltou a abanar a cabeça. Não conseguia ouvir nada do que diziam, mas entendeu tudo perfeitamente. Juliana estava a avisar Clara para se manter afastada de Fleet e a sua teimosa irmã, surpreendentemente, estava a ouvi-la. Martin deixou escapar um suspiro, atónito e, ao mesmo tempo, admirado.
Como se estivesse consciente do seu escrutínio, Juliana levantou a vista e os seus olhares encontraram-se. Viu que Juliana corava ligeiramente e que desviava os olhos dele, mas só para voltar a olhar para ele, como se não conseguisse parar de o observar. Quase imediatamente, Martin sentiu um desejo incontrolável por ela.
- Martin? - Martin sobressaltou-se ligeiramente e virou-se. Brandon estava a olhá-lo inquisitoriamente. - Estavas a ter um encontro difícil com a senhora Alcott?
Martin bebeu um gole de vinho.
- Era assim tão evidente? Brandon riu-se.
- Dolorosamente evidente. Martin suspirou.
- Pergunto-me se será demasiado tarde para...
- Retirares a tua proposta?
- Por favor, não faças o mesmo! Serena fala assim com toda a gente?
- Receio que sim.
- Porque não me apercebi antes?
- É muito bonita. Talvez te ofuscasse. Martin ficou calado. Parecia-lhe irrelevante
dizerem-lhe que Serena Alcott era bonita quando a única mulher em que conseguia pensar era Juliana.
- Não sejas néscio, Brandon!
- Eu? Acho que o único néscio que há aqui és tu, Martin. Estás a fazer a corte à mulher errada e estás a meter-te numa confusão. Lady Juliana Myfleet é encantadora, amável e generosa, tudo o que a senhora Alcott não é. Mas duvido que lady Juliana te aceitasse. É demasiado boa para ti.
Olharam-se por um momento e, então, Martin desatou a rir-se.
- Que raios, Brandon! Tu estás a dar-me conselhos sobre casamento?
Brandon encolheu os ombros. Já não sorria.
- O que se passa, Martin? Podes dar conselhos, mas não podes aceitá-los?
Martin pestanejou.
- Talvez tenhas razão - disse devagar. - Eu não gosto de correr riscos.
- Eu não sou um jogador - respondeu Brandon, - mas sei que, às vezes, vale a pena arriscar tudo para ganhar tudo.
Levantou o copo numa saudação meio brincalhona e afastou-se. Martin foi com a sua bebida para o terraço em busca de ar fresco, esquecendo-se completamente da limonada de Serena Alcott.
Recordou as palavras de Juliana: ”Lembre-se de que não tem uma boa opinião de mim”. E, depois, as de Brandon: ”É demasiado boa para ti”.
Talvez o seu irmão tivesse razão, pensou. Mostrara a sua desaprovação, ignorando os argumentos do seu próprio coração a favor das opiniões das outras pessoas. Ignorara os seus instintos e os seus sentimentos, e não havia nada de admirável nisso. Nem sequer dera uma oportunidade a Juliana Myfleet.
Um segundo depois, viu-a. Estava de pé nas sombras, no final da balaustrada, onde as madressilvas se enrolavam no corrimão de pedra e enchiam o ar com o seu cheiro. Juliana estava apoiada contra a balaustrada, a olhar para a escuridão, e tinha os ombros ligeiramente caídos.
O gesto fez Martin pensar em vulnerabilidade e solidão, e sentiu um nó no estômago.
Deve ter feito algum movimento, porque Juliana se virou e olhou para ele.
- Boa noite, senhor Davencourt.
Martin inclinou-se em jeito de saudação. Queria falar com ela, não lhe importava do quê. Queria tocar-lhe, sentir o seu cabelo sedoso entre os dedos. Queria beijá-la até os dois ficarem trémulos. Deu um passo para ela e depois outro.
Juliana não se moveu. Parecia muito frágil nas sombras. Martin deu o último passo para ela, até ficar demasiado perto para fazer outra coisa que não fosse beijá-la. Podia cheirar o cheiro das madressilvas e também o perfume de Juliana. Podia sentir o calor do seu corpo e ouvi-la respirar. Estendeu uma mão... e Juliana afastou-se dele. Martin apercebeu-se de que sustinha a respiração e, um momento depois, já se fora embora com um redemoinho de ouro velho, deixando Martin a sentir mais frio do que alguma vez sentira em toda a sua vida.
As notas da orquestra penetravam pelas portas abertas. Martin ouviu passos. Serena Alcott estava à sua procura no terraço. A sua sombra aproximou-se e ele ouviu-a chamá-lo em sussurros.
- Martin? Onde estás, querido?
A irritação de Martin atingiu proporções inesperadas e, sem parar para pensar, deslizou silenciosamente para as portas abertas para voltar para o recital.
- Suponho que Joss te mandou - disse Juliana. Tremeu-lhe um pouco a mão e entornou algumas gotas de chá no pires enquanto passava a chávena à sua cunhada. - Mas sabes que não era preciso teres vindo, estou bem.
- Vim porque estava de passagem e recordei que, há dois dias, na noite de lady Stockley, não parecias estar bem, e perguntava-me...
- Se estaria bêbeda? Se teria perdido o meu dinheiro todo?
Havia algo irritante em Amy. Era sempre demasiado boa e, além disso, tinha razão. Durante as últimas semanas, Juliana andara a sentir-se muito infeliz e aquele sentimento ainda a invadia.
Vira Clara e Kitty várias vezes nos últimos quinze dias, embora não de propósito. Tinham-se encontrado em Bond Street, onde Clara a cumprimentara, encantada, e Kitty lhe pedira conselho sobre um xaile para usar com o seu vestido. Tinham falado em vários bailes, no teatro e no recital. Brandon confessara-lhe que ainda não falara a Martin do seu romance e Clara continuava a perseguir o duque de Fleet, mas, pelo menos, Kitty conseguira um pretendente respeitável. Sobre Martin, não podia dizer nada, para além da peculiar afinidade que os unia.
Necessitara de toda a sua força de vontade para o deixar no terraço do recital, mas sabia que era o que devia fazer.
- Pensei que Joss e tu iam para o campo disse, com irritação. - Porque ainda estão aqui?
- Joss foi retido por negócios - houve um certo brilho de tristeza nos olhos de Amy. - Se quiseres contar-me o que se passa, Juliana...
- Não, obrigada!
- Às vezes, pergunto-me porque me incomodo em vir ver-te. Está claro que estou a perder o meu tempo.
Juliana sentiu um nó na garganta.
- Sim, é verdade. Por favor, não te incomodes novamente em fazê-lo.
Amy olhou para ela, deixou a sua chávena intacta sobre a mesa e levantou-se.
- Muito bem, não o farei. Adeus!
Então, Juliana surpreendeu-se e à sua cunhada ao começar a chorar.
- Raios! Já é a segunda vez que me acontece este mês. Não sei o que se passa comigo - levantou o olhar e viu que Amy a observava. - O que foi?
- Não sabia que conseguias chorar.
- Claro que consigo! Toda a gente consegue fazê-lo!
Amy sorriu.
- Sim, mas pensava que tu tinhas algum impedimento físico para o fazer. Pareces sempre tão serena...
Surpreendentemente, Juliana sentiu que começava a sorrir e o seu sorriso fez com que as lágrimas cessassem imediatamente.
- Tens um lenço, Amy? Eu nunca tenho, porque, normalmente, não preciso.
Amy deu-lhe um lenço sem fazer nenhum comentário e Juliana começou a sentir mais simpatia pela sua cunhada. Secou os olhos, olhou para o lenço e devolveu-lho.
- Então, vou-me embora - disse Amy, guardando o lenço.
- Não! - replicou Juliana, repentinamente. Olhou para Amy e tentou não parecer demasiado suplicante. - Por favor, fica e bebe o chá comigo, Amy.
- Muito bem - voltou a sentar-se e ficaram um momento em silêncio, a olharem-se. - Então, o que se passa?
Juliana hesitou.
- Receio que me tenha apaixonado.
- Entendo - disse Amy.
- Também me achas fisicamente incapaz de fazer isso?
- Absolutamente! - Amy bebeu um gole de chá. - Por quem te apaixonaste?
- Bom... - Juliana evitou o seu olhar. - Por toda a família Davencourt, acho eu.
Amy deixou a sua chávena sobre a mesa de apoio e olhou fixamente para Juliana.
- Pelo amor de Deus, Juliana, pela família toda? Como aconteceu isso?
Juliana inspirou profundamente e contou-lhe tudo: os problemas de Kitty com o jogo e a sua infelicidade na cidade, o aborrecimento de Clara e a sua tendência para escolher homens inapropriados, e o romance secreto de Brandon. Amy assentia e fez algumas perguntas, mas, basicamente, ouviu-a em silêncio.
- E, então, Martin Davencourt disse-me que eu não era uma companhia apropriada para as suas irmãs - acabou Juliana de contar e olhou para Amy. - Sinto-me tão estúpida, Amy!
- Apaixonaste-te pela ideia de teres uma família, Juliana.
- Mas agora sinto-me doente ao pensar que nunca mais vou voltar a vê-los. Não posso acreditar que tenha sido tão imbecil! - Juliana levantou-se e começou a passear pela sala. - Eu nunca me comporto assim!
- Suponho que isto é um choque para ti.
- Sim! E eu não gosto. Qual achas que é a solução?
Amy abanou a cabeça.
- Não sei dizer-te, Juliana. Nem sequer tenho a certeza de saber a resposta.
- Talvez deva arranjar outro entretenimento... Agora que começara a confessar os seus receios, não podia parar. Nunca tivera uma confidente feminina, já que nunca se sentira cómoda a falar com Emma Wren, mas agora sentia-se surpreendentemente bem. Era muito fácil falar com Amy.
- Pensei que, se calhar, podia começar a fazer trabalhos de costura - disse, tristemente.
Amy riu-se.
- Achas, realmente, que vais sentir a mesma paixão pelos bordados que pelos Davencourt?
Juliana suspirou. Sabia que Amy tinha razão.
- Então, talvez pudesse comprar um cão. Dizem que são muito carinhosos e que se pode confiar neles...
- É uma ideia - Amy olhou, inquisitoriamente, para a sua cunhada. - E Emma Wren, Jasper Colling e os teus velhos amigos? Eles não poderiam consolar-te?
- Não quero que o façam - disse Juliana e depois suspirou. - Faz-me parecer ingrata e inclusive desleal, mas... não tenho a certeza de querer procurar novamente a sua companhia.
- Porquê?
Fez-se silêncio durante alguns segundos!
- Não são o tipo de pessoas que admiro disse Juliana, devagar. - Não há muito tempo, divertia-me com eles, mas agora acho que o fazíamos porque não tínhamos nada melhor para fazer. Agora... não sei... Sinto que não é suficiente.
Amy assentiu.
- Precisas de uma razão e achas que a encontraste nos Davencourt.
- Suponho que sim. Isto é muito estranho em mim, não é?
- Nem tanto. Espero que consigas encontrar outro entretenimento para preencher o teu tempo. Como ajudar crianças órfãs ou os pobres...
Juliana fez uma careta. Não era uma ideia muito atraente.
- Acho que não consigo ser assim tão boa! Isso está fora das minhas capacidades.
- Bom, talvez possamos encontrar algo que seja mais apropriado para ti. Vou pensar - Amy encheu a chávena com mais um pouco de chá e tirou uma bolacha. - Mencionaste a família Davencourt no geral, mas o que me dizes do senhor Davencourt, Juliana?
Juliana desviou o olhar e tentou ganhar tempo, fingindo que via quanto restava na chaleira. Confiara muito em Amy e estava a começar a arrepender-se. A sua cunhada era extraordinariamente perspicaz.
- O que tem?
- Também gostas dele? - perguntou Amy. Juliana franziu o sobrolho.
- Na verdade, não. O senhor Davencourt é rude e muito crítico. Além disso, vai casar-se com aquela insípida, com a nossa prima, Serena Alcott.
- Eu ouvi. Serena é bastante aborrecida.
- São iguais - disse, embora a magoasse pensar que Martin ia casar-se com Serena. - Para dizer a verdade, Amy, penso bastante no senhor Davencourt. Preocupa-se muito com os seus irmãos e eu quero...
-Sim?
- Suponho que quero que alguém se preocupe comigo da mesma maneira. Quero que alguém me ame como Joss te ama. Que sensível, não é?
- Absolutamente! De facto, acho que é bastante razoável.
- De qualquer forma, acho que me passará. Possivelmente, é um capricho.
- É isso que achas que sentes por Martin Davencourt? Achas que é um capricho?
-Bom...
- Beijou-te? - perguntou Amy.
Juliana ficou surpreendida. A sua cunhada não era a mulher afectada que parecia ser.
- Amy! Que tipo de pergunta é essa?
- Fê-lo ou não? Certamente, saberás como te sentes se o fez.
Juliana mordeu o lábio inferior.
- Sim, fê-lo. Como é claro, não deveria, porque vai casar-se com Serena. Foi muito pouco cavalheiresco da sua parte. Os homens conseguem ser muito decepcionantes, não achas?
- Muitas vezes, mas nem sempre. E não mudes de assunto, Juliana. Pareceu-te decepcionante beijar Martin Davencourt?
Juliana franziu o sobrolho e sorriu ao mesmo tempo.
- Não exactamente.
- Como foi?
Juliana hesitou um momento e, depois, sorriu mais amplamente.
- Oh... quente, doce e excitante! E muito, muito apaixonado... - olhou para Amy. - Porque me olhas assim?
Amy riu-se.
- Estás apaixonada por ele e sabes disso.
- Não, não pode ser! - respondeu, nervosa. Não tem lógica.
- O amor costuma ser assim - Amy suspirou.
- Há algo poderosamente atraente num homem íntegro, não é?
Juliana também suspirou.
- Mas não há futuro nisto. Eu não vou casar-me novamente. Não posso. E Martin não pode casar-se comigo! Seria bastante inapropriado.
Amy desatou a rir-se.
- Sabes, Juliana? Acho que tu és a única que impõe os obstáculos. Não protestes mais e deixa que aconteça! - olhou para o relógio. - Desculpa, mas combinei almoçar com Annis Ashwick
- hesitou um momento. - Talvez possa visitar-te outra vez...
- É claro! - respondeu Juliana. - Obrigada, Amy.
Surpreendeu-se ao ver quão triste lhe parecia perder a companhia de Amy. Uma parte dela também queria ser convidada para partilhar o almoço. A ideia de ficar entre as suas quatro paredes naquela tarde parecia-lhe intolerável.
Tocaram à campainha e Segsbury fez Emma Wren entrar. Emma surpreendeu-se um pouco ao ver Amy e cumprimentou-a friamente, para depois a ignorar rapidamente.
- Juliana, querida! Vou a Bond Street, onde penso gastar um monte de dinheiro em roupa. Queres vir comigo?
Juliana viu que Amy a observava. Não tinha vontade de passar o dia com Emma, mas, se não o fizesse, ficaria sozinha e... havia Bond Street e a conversa animada de Emma. Assentiu.
- Irei contigo, Emma. Perdoa-me, Amy.
A expressão de Amy não mudou, mas Juliana sentiu-se culpada e dirigiu um olhar desafiador à sua cunhada.
- Tenho de me entreter, Amy. Afinal de contas, o que resta quando o amor nos decepciona?
- Não sei o que Juliana quer - disse Joss Tallant à sua esposa naquele dia, na intimidade do seu quarto. - Mas acho que nem ela mesma sabe.
Amy contara-lhe o seu encontro com Juliana e, naquele momento, deixava a escova sobre o toucador e virava-se para o seu marido.
- Acho que quer duas coisas. Martin Davencourt e... uma razão para viver.
Joss arqueou um sobrolho.
- E essas duas coisas não são a mesma? Amy olhou para ele, com dureza.
- Que arrogante! Uma mulher não tem de depender inteiramente de um homem.
Joss riu-se.
- Peço-te perdão. Queria dizer que, se Juliana se casasse, isso lhe daria um bom motivo para viver feliz.
- Mas isso não seria suficiente. Juliana não tem nada a ver com a mulher indolente que todos imaginam. Basta reparares como tentou ajudar os irmãos de Martin.
- A esposa de um político? - perguntou Joss, devagar.
- Porque não? Juliana é encantadora, inteligente e bem organizada. Poderia ser formidável.
- Não está interessada na política. Amy encolheu os ombros.
- Isso, na verdade, não importa, Joss. É suficientemente inteligente para aprender.
- É verdade. Mas, interessar-lhe-ia? Quando está aborrecida, Ju é como uma borboleta. Além disso, imagina-la como mãe de sete filhos?
- Mais como uma irmã. E todos eles já gostam dela. Não te apercebeste de como procuram a sua companhia? Além disso, Brandon Davencourt tem idade suficiente para ser independente e acho que Kitty se casará em breve.
Joss olhou para a sua mulher, totalmente assombrado.
- A sério? Mas pensei que não tinha admiradores...
- Juliana já lhe encontrou um pretendente que adora o campo. Não te apercebeste, ontem à noite, no musical, de que Edward Ashwick estava a prestar-lhe muita atenção?
- Edward Ashwick? Achei que era o maior admirador de Ju...
- E era. Ao ponto de o converter num hábito, não achas? Juliana foi incrivelmente inteligente ao pôr Kitty no seu caminho, ontem à noite. E tenho muito interesse em ver quem escolhe para a menina Clara. Quando a tiver convencido de que Seb Fleet não é apropriado para ela, claro.
- E Martin Davencourt é apropriado para Juliana? - perguntou Joss.
- Pelo menos, começa a importar-lhe a opinião que tem dela.
- Santo Deus! - Joss parecia estupefacto. Juliana está muito mais habituada a manter a sua má reputação. Além disso, não vi nela nenhum sinal de fraqueza por Martin Davencourt e ele está prestes a comprometer-se com Serena.
- Sim - Amy inclinou a cabeça para observar a imagem de Joss no espelho. - Isso é algo desafortunado, mas ainda não lhe propôs casamento formalmente.
- Precisas de uma aliada? - perguntou Joss, sorrindo, ligeiramente. - Se for assim, tenho a pessoa apropriada. O meu pai escreveu-me ontem, a dizer-me que a tia Beatrix está a caminho.
- A tia Trix! - os olhos de Amy iluminaram-se.
- Ela detesta Serena, não é?
- Sim... Diz que é uma convencida. Amy desatou a rir-se.
- Entre nós, Joss, tenho a certeza de que a tia Trix e eu conseguiremos unir Juliana e Martin. E enfrentar Serena, se for necessário!
Juliana acordou lentamente do sono induzido pelo láudano. Só tinha lembranças vagas do dia e da noite anteriores, que começara com uma saída para as compras em Bond Street e acabara com um jantar de bêbedos em casa de Emma Wren, onde Jasper Colling escalara as paredes da sala, usando os apliques como pontos de apoio e se pendurara no lustre. Toda a gente se rira à gargalhada, até que Colling caíra sobre a mesa, aterrando no meio do veado assado. Depois, tinham bebido mais e tinham jogado às cartas.
Juliana deu uma volta na cama e gemeu. A noite fora um aborrecimento completo e não podia fingir outra coisa. No jantar, comportara-se como uma sombra, desejando estar em qualquer outro lugar. Os seus velhos amigos tinham perdido definitivamente todo o seu encanto e, como não tinha nada com que os substituir, sentia-se perdida.
Do andar inferior chegou-lhe o som de móveis a serem movidos e de vozes que pareciam discutir. Vestindo um robe sobre a camisa de dormir, Juliana correu para o cimo das escadas, disposta a repreender os criados desajeitados que, aparentemente, eram incapazes de mover o mobiliário silenciosamente.
A cena que apareceu diante dos seus olhos deixou-a atónita. Segsbury estava no meio do hall com as mãos nas ancas e uma expressão de impotência, enquanto dois homens musculados, vestidos de preto, entravam e saíam pela porta principal, levando peças do mobiliário. Lascaram a secretária ao saírem com ela e Juliana tremeu. Desceu as escadas a voar.
- O que raios está a acontecer aqui?
Os dois homens pararam bruscamente, deixando cair uma cadeira no chão. Observaram-na atentamente e deixaram escapar um assobio significativo.
- Meu Deus! O que lhe parece se chegarmos a outro acordo de pagamento, querida?
Juliana sentiu-se enjoar. Recordou Joss a falar-lhe das suas dívidas. Esquecera-se totalmente delas, ou melhor, decidira ignorá-las. Quanto gastara no dia anterior? Quanto perdera à noite? Olhou para os dois homens.
- Perguntei o que raios estão a fazer com os meus móveis.
- A levá-los como pagamento, querida – disse um deles. Voltaram a levantar a cadeira. - Com quarenta mil libras de dívida, certamente teremos de esvaziar a casa.
- Pelo amor de Deus! - Juliana pôde ver as pessoas na rua que, curiosas, assomavam ao interior da casa, a murmurar. - O que significa isto? Poderiam ter tido a cortesia de me avisarem antes de começarem a esvaziar-me a casa!
O homem coçou a cabeça.
- O senhor Needham pagou todas as suas dívidas, senhora, e ordenou-nos para virmos cobrá-las. Já não há tempo para cortesias, senhora.
- Peço-lhe perdão, senhora - Segsbury parecia destroçado. - Não tive tempo para a acordar antes de começarem a levar-lhe tudo...
Juliana não deixava de olhar para os homens, que assobiavam, alegremente, enquanto voltavam para um quarto carregamento.
- Devolvam os móveis à sala e deixem-nos exactamente onde estavam. Tenho um conjunto de diamantes que será suficiente, e muito mais, para pagar ao senhor Needham.
O homem de mais idade pareceu hesitar. O mais jovem humedeceu os lábios.
- Diamantes... Acho que valeria a pena darmos uma olhadela, senhor Maggs.
- Suponho que sim - disse o outro, contrariado. - Podemos sempre voltar.
- Por cima do meu cadáver! - exclamou Juliana, com fúria. Seguiu-os até ao hall e fechou a porta de repente, perante a multidão. - Vou buscar as jóias e vocês voltarão a pôr os móveis no seu lugar, entendido? E fechem a maldita porta!
Subiu as escadas e entrou no seu quarto, onde começou a remexer numa das suas gavetas de roupa interior até encontrar o estojo de veludo que continha o colar de diamantes, os brincos e a pulseira. Nunca gostara daquele conjunto de diamantes. Fora um presente de casamento do seu pai e sempre lhe parecera demasiado pesado e fora de moda. Fez uma careta ao pensar no que o marquês diria quando descobrisse o que estava prestes a fazer. Mas já era demasiado tarde, tinha demasiadas dívidas: dívidas de jogo, facturas da compra de vestidos em Bond Street, nas lojas das modistas da moda, contas de comerciantes...
Juliana sentou-se na beira da cama com os diamantes na mão. Queria culpar o seu irmão pela sua situação, mas sabia que não podia fazê-lo. Joss avisara-a que não a ajudaria mais e ela não quisera ouvi-lo. Procurara a humilhação sozinha. Voltou a colocar os diamantes no estojo e apressou-se a descer as escadas. Os seus pés nus tinham ficado frios. A porta principal estava novamente aberta e fazia corrente de ar. Podia ouvir vozes na sala e as queixas dos homens, enquanto voltavam a pôr os móveis no seu sítio. Sentiu que a fúria a invadia.
- Disse-lhes que fechassem a maldita porta! exclamou Juliana, enquanto entrava na sala. – E se tiverem danificado algum móvel, processarei o senhor Needham até lhe tirar o último tostão!
Parou, de repente. Uma idosa estava de pé, no meio do tapete, a observar com interesse os homens enquanto punham os móveis. Era alta, magra e estava muito elegante com um vestido cinzento de seda e pérolas imaculadas. Virou-se quando Juliana entrou na sala e olhou para ela com olhos brilhantes.
- Juliana, querida. Pareceu-me reconhecer a tua voz.
-TiaBeatrix!
Juliana olhou para ela com horror e, depois, o seu olhar desviou-se para a figura que havia junto de lady Beatrix Tallant. Martin Davencourt estava a olhá-la intensamente e, de repente, Juliana teve consciência da transparência do seu robe, dos seus pés descalços e de como o cabelo despenteado lhe caía sobre os ombros.
- O que raios estão a fazer aqui? - perguntou, descortês.
- Referes-te a mim ou ao senhor Davencourt, Juliana? - perguntou a sua tia.
- A qualquer um dos dois!
- Hum...! Bom, eu estou aqui porque voltei das minhas viagens e preciso de um sítio para ficar - Beatrix olhou para Martin. - E o senhor Davencourt está aqui porque se ofereceu, amavelmente, para me acompanhar desde a casa do teu irmão. O que me recorda... - franziu, ligeiramente, o sobrolho. - Estás em trajos menores, querida, um estado inapropriado para te apresentares diante de um cavalheiro e inaceitável para a vista destes trabalhadores. É melhor ires vestir-te.
Juliana viu que Martin tentava, sem sucesso, conter um sorriso. Olhou para ele.
- Por favor, tia, peçam chá enquanto me visto. Senhor Davencourt, obrigada por escoltar a tia Beatrix até aqui. Tenho a certeza de que já terá ido quando descer...
Enganou-se naquilo. Três quartos de hora depois, Juliana entrou na sala e encontrou Beatrix e Martin, sentados juntos no sofá, a beberem chá e a comerem bolachas, e a conversarem animada e comodamente. Juliana sentiu que a sua irritação aumentava.
Lady Beatrix levantou a vista e sorriu.
- És muito amável ao ofereceres-me um tecto, Juliana.
- Não tinha consciência de o ter feito - respondeu. Pegou na chaleira e serviu-se de uma chávena. Não se deixou enganar pelo ar distraído que a idosa fingia. Sabia que a sua tia tinha uma mente afiada e uma língua a condizer.
Lady Beatrix serviu outra chávena a Martin e outra para ela, ignorando o comentário de Juliana.
- Estarei muito pouco tempo em Londres, mas será agradável ter companhia.
- Há muito bons hotéis - disse Juliana. - O Bertram, o Grand... Além disso, não poderia... ficar com Joss e Amy, tia Beatrix?
- Tentaram convencer-me a ficar - disse a idosa, sorrindo, - mas sabia que tu precisavas mais de mim, Juliana - abanou a cabeça, com tristeza. Quando estive em Bath, na semana passada, ouvi dizer que pretendias casar-te com aquele homem que irrompeu no jantar de lady Milton, tentando apagar as velas com a sua pistola.
- Sir Jasper Colling - interveio Martin.
- Isso! Pertence a uma família horrivelmente vulgar - lady Beatrix tremeu. - Além disso, a brincadeira das pistolas não é nova. Lorde Dauntsey fê-la pela primeira vez quando eu era jovem.
- Não tenho intenção de me casar com sir Jasper, portanto pode ficar descansada a esse respeito.
- Alivia-me tanto sabê-lo, querida! - lady Beatrix sorriu e olhou para Martin. - Pelo contrário, se decidisses escolher um cavalheiro como o senhor Davencourt...
- Duvido que haja mais cavalheiros como o senhor Davencourt - disse Juliana. - Ele é único
- Martin sorriu. - Além disso, receio que o senhor Davencourt já não esteja livre, tia Trix acrescentou. - A sua outra sobrinha, Serena, é a mulher sortuda cuja mão aspira.
Beatrix desviou o olhar de Juliana para Martin.
- Serena Alcott. Que horror, senhor Davencourt! Que horror!
- Deveria desejar-lhe felicidades - disse Juliana.
- Não mudaria nada se o fizesse - respondeu lady Beatrix, tristemente. - Mais bolachas, Martin?
- Não, obrigado. Devo ir - Martin levantou-se. - Espero que seja adequado vir visitá-la para ver como está, lady Beatrix...
- Só se não trouxer Serena consigo - disse lady Beatrix, dando uma dentada à bolacha de avelã. - Mas visite-me, senhor Davencourt! Estarei várias semanas aqui.
- Oh, não, não ficará! - respondeu Juliana, sem fôlego, enquanto acompanhava Martin para fora da sala.
- Esta manhã, está, especialmente, de mau humor, lady Juliana - observou Martin, enquanto atravessavam o hall. - Suponho que é por ter sido acordada antes das onze horas.
- Obrigada por ter trazido lady Beatrix para me perseguir, senhor Davencourt.
- De nada. Parecem-se em muitos sentidos. Ambas gostam de falar claramente e não suportam os néscios.
- Isso é verdade - Juliana sorriu, pensando em Serena Alcott.
- Portanto, tenho a certeza de que se darão muito bem - disse Martin e dedicou-lhe um sorriso quente e íntimo, que fez com que Juliana esquecesse que estava com ele no hall e que desejasse que a abraçasse e a beijasse. Ele pegou-lhe numa mão. - Lady Juliana, fico contente por ter vindo esta manhã, porque preciso de falar consigo.
- Duvido, senhor - disse Juliana, cerimoniosamente, afastando a sua mão.
- Pelo contrário. Queria desculpar-me... Juliana recuou.
- É muito amável da sua parte, senhor Davencourt, mas garanto-lhe que não é necessário.
Martin seguiu-a, encurralando-a entre uma coluna e uma palmeira. Aproximou-se dela até que os seus corpos se tocaram. Juliana sentiu que a temperatura do seu corpo aumentava e, pelo canto do olho, pôde ver o criado na porta principal, a olhar fixamente para o chão. Juliana baixou a voz até se transformar num sussurro.
- Pelo amor de Deus, senhor Davencourt, comportar-se assim diante dos meus criados...
- Lamento - inclinou-se para a frente e falou-lhe ao ouvido. - Mas esteve a evitar-me desde a noite do recital, portanto, que outra coisa podia fazer?
- Largue-me! - sussurrou Juliana. - Afaste-se!
- Só quero falar consigo. Já lhe disse que tinha de me desculpar e preciso de discutir certos assuntos consigo.
- Não deveria! - Juliana conseguiu sair do canto e alisou o vestido com mãos trémulas. Era com a minha prima, a senhora Alcott, que deveria estar a falar.
Martin suspirou.
- Se pudéssemos esquecê-la por um momento...
- É claro que não! Quer esquecê-la mesmo antes de se ter casado com ela!
- Não queria dizer isso. Não estou comprometido com a senhora Alcott e estarei ainda menos comprometido com ela dentro de pouco tempo.
Juliana arqueou os sobrolhos.
- Não compreendo o que isso tem a ver comigo.
Martin agarrou-a pela cintura e puxou-a para ele. Ela pôs-lhe as mãos no peito, mas não conseguiu escapar, já que Martin a abraçava firmemente.
- Dir-lhe-ei o que tem a ver consigo. Não é Serena quem quero, mas a si, a ti. Desculpa, Juliana. Fui sentencioso e rude...
Juliana tapou os ouvidos com as mãos. Aquilo era um erro. Os seus seios pressionavam o peito de Martin de uma maneira desconcertante e para falar com ele tinha de levantar a cara, até quase tocar na dele.
- Espero que não esteja a tentar transferir os seus afectos de uma prima para a outra, senhor Davencourt. Isso demonstra que tem um carácter instável. Sem falar do facto de que sou totalmente inapropriada, é claro.
Martin sorriu e beijou-a. A sua boca era quente, doce e dura, e Juliana sentiu que a cabeça lhe andava às voltas pela surpresa e o prazer.
- Veremos - disse ele e largou-a. - Voltarei mais tarde e, então, espero que possamos falar adequadamente. Bom dia, lady Juliana.
Martin foi-se embora e Juliana encontrou-se a olhar fixamente para a palmeira. O seu corpo ainda respondia aos beijos de Martin. Um momento depois, respirou fundo e voltou para a sala.
Lady Beatrix olhou fixamente para ela quando entrou.
- Estás encantadoramente despenteada, querida. Tem algo a ver com o senhor Davencourt? É muito agradável, não é?
- É insuportável - disse Juliana. - É arrogante, dominador... Odeio-o!
- Isso é bom sinal - respondeu a sua tia, sorrindo. - O seu pai era como ele. E também muito potente. O homem mais fecundo de Londres.
Juliana, que bebera um gole de chá para acalmar os seus nervos, quase se engasgou.
- Tia Beatrix! Como pode saber isso?
- É óbvio! Teve nove filhos no total. E teriam sido mais se aquela insípida da Honoria não lhe tivesse batido com a porta no nariz no fim. Bom, onde vamos almoçar? Podíamos visitar a Academia Real. Tu virás comigo, Juliana. Já está na altura de adquirires alguma cultura.
- É demasiado tarde para isso - disse Juliana.
- Os meus gostos formaram-se há doze anos!
- Nunca é demasiado tarde. E hoje há uma representação de Romeu e Julieta no Coburg. Gostarás, Juliana.
- Está disposta a fazer-me chorar de uma maneira ou de outra, tia Trix! - exclamou, sorrindo.
Recordou que Martin dissera que voltaria mais tarde e pensou que poderia fugir dele, saindo com a sua tia. O que começara como um jogo estava a tornar-se realidade. Agora Martin perseguia-a, o que a fazia sentir-se nervosa. Mas o que era ainda pior: apaixonara-se, o que jurara que nunca voltaria a fazer. Não fazia ideia do que ia fazer.
Eram onze e meia e acabavam de regressar do teatro quando tocaram várias vezes à campainha, quase com urgência. Juliana e Beatrix, que estavam a beber uma chávena de chocolate, olharam-se.
- Alguém está impaciente por te ver - observou Beatrix. - Quem poderá ser?
Reinava o caos no hall. A voz de um homem levantava-se imperativamente e, por cima de tudo, ouvia-se o choro de um bebé.
Brandon Davencourt estava junto da porta, a abraçar protectoramente uma jovem. Ela estava pálida e parecia assustada. Nos seus braços segurava algo que emitia gritos fortes e constantes. Segsbury estava junto deles, tão perto do pânico como um mordomo com a sua experiência poderia estar. Tanto ele como Brandon se viraram para Juliana, com uma expressão idêntica de alívio.
- Lady Juliana! - exclamou Brandon. - Graças a Deus que está aqui. Preciso da sua ajuda!
- A tua esposa! - exclamou Juliana. - Oh, Brandon!
Instalara Emily Davencourt e o seu filho no segundo melhor quarto de hóspedes. Beatrix retirara-se para o seu quarto e Juliana levara Brandon para o andar inferior, para beber um pouco de brandy e para que lhe desse algumas explicações.
Brandon passou uma mão pelo cabelo, já despenteado.
- Sim, a minha esposa. Portanto, agora sabe quão difícil era! Não podia dizer a Martin que era casado e, menos ainda, quando estava tão zangado por ter deixado Cambridge. E, depois, quanto mais adiava, mais piorava tudo. Por fim, vi-me obrigado a pedir a sua ajuda, porque não podia deixar Emily e Henry naquela hospedaria horrível!
- Acho que subestimas o teu irmão - disse Juliana, suspirando. - Tenho a certeza de que te teria apoiado, independentemente do que tivesses feito - serviu um copo de brandy a Brandon, ele aceitou-o e sentou-se no sofá. Brandon tinha olheiras, estava visivelmente preocupado e parecia ter muito mais de vinte e dois anos. - Tens de te animar, Brandon. Estás casado e tanto Emily como Henry estão bem. Brandon levantou a vista.
- Não me perguntou - disse, surpreendido. Quando trouxe Em e ordenou que lhe preparassem um quarto... não fez uma só pergunta.
- Porque deveria tê-lo feito? Que tipo de pessoa seria se, vendo que Emily estava exausta e faminta, tivesse insistido em confirmar que eram casados antes de lhe permitir entrar em minha casa? Tu trouxeste-a e isso é a única coisa que importa - Brandon apertou-lhe ligeiramente a mão e, para sua surpresa, Juliana sentiu um nó na garganta. - Porque não me contas a história toda? - perguntou, antes de começar a chorar pela terceira vez no mesmo mês.
Brandon sorriu, fracamente.
- Começou tudo no ano passado, quando saí uma noite com vários amigos em Cambridge. Tínhamos bebido demasiado e, quando voltávamos para a escola, encontrámos uma rapariga. Ia a andar depressa na escuridão e alguns dos meus amigos... - Brandon encolheu os ombros, - bom, suponho que tiraram algumas conclusões erradas.
- Enquanto tu tiveste imediatamente consciência das suas qualidades, é claro.
- É claro! Convenci os outros a deixarem-na em paz e depois acompanhei-a a sua casa. Era Emily. Tinha estado numa reunião na cidade e, tendo decidido, tolamente, regressar sozinha para casa a pé, um tipo começara a armar-se em chato com ela.
- Isso é perigoso - Juliana franziu o sobrolho.
- Porque estava sozinha?
Brandon suspirou.
- Emily vive... vivia com o seu pai e a sua madrasta. O seu pai é um bom homem, suponho
- Juliana apercebeu-se de que estava a esforçar-se para ser justo, - muito correcto e sempre disposto a fazer o que é correcto. É lojista. A madrasta é uma inválida que nunca mostrou nenhum interesse por Emily.
- Pobre Emily! Então, o que se passou quando começaste a cortejá-la, Brandon?
O jovem fez uma careta.
- Plunkett, o pai de Emily, horrorizou-se quando eu me mostrei interessado. Tentou afastar-me da maneira mais educada possível e proibiu Em de voltar a ver-me. Estava convencido de que as minhas intenções não eram honestas.
- E eram?
- É claro! - Brandon parecia indignado. - Eu sempre quis casar-me com Emily, mas Plunkett desconfiava da aristocracia e sempre tentou que Em se casasse com algum dos seus amigos. Embora eu não tenha nenhum título, via-me como um jovem esbanjador. Portanto, tivemos de fugir. Em só tem dezanove anos...
- Oh, meu Deus...
- Havia um vigário numa paróquia perto de Cambridge - continuou Brandon - que estava disposto a casar-nos sem fazer muitas perguntas. Por um preço, é claro...
- É claro! - Juliana perguntou-se se o casamento teria sido legal, já que Emily era mais nova e não tinha o consentimento dos seus pais. Provavelmente, não.
- Emily conseguiu sair naquele dia sem levantar suspeitas, dizendo que ia visitar uma amiga. Voltou à noite, como se nada se tivesse passado - Brandon bebeu um longo gole de brandy. - Eu sabia que era uma loucura, mas não nos ocorria mais nada. Não podia permitir-me alugar quartos para os dois e, quanto mais o tempo passava, mais complicado ficava tudo para contar a verdade.
- E suponho que continuavam a ver-se quando podiam...
- Encontrávamo-nos à mínima oportunidade. Às vezes, Emily ia para o meu quarto... - viu o olhar de Juliana e estendeu as mãos. - Sei que mereço todas as recriminações...
- Acalma-te! - respondeu Juliana. - Tenho a certeza de que tu mesmo já te reprovaste muitas vezes.
- É claro que sim! Sei que não tenho desculpa
- Brandon afundou a cabeça entre as mãos.
- E Emily ficou grávida, como é natural...
- Sim, e Plunkett expulsou-a de casa. Não quis ouvir as suas explicações, nada sobre o casamento, nem sobre qualquer coisa que pudesse amenizar o pecado, conforme ele o via. Disse-lhe que não queria voltar a vê-la. Ela veio ter comigo completamente angustiada e eu... Bom, o que podia fazer? Vi-me obrigado a arranjar alojamento para os dois e vivemos da minha mesada, mas, depois, o bebé nasceu, Emily adoeceu e pensei em deixar Cambridge, e convencer Martin a conseguir-me um posto de oficial.
- Querias alistar-te no exército?
- Não particularmente, mas ter-me-ia permitido sustentar Emily e Henry... - abanou a cabeça. Mas Martin ficou furioso quando lhe disse que deixara Cambridge e recusou-se a ajudar-me, dizendo que eu não era feito para uma carreira militar.
- Porque não lhe disseste a verdade?
- Sabia que acabaria por saber. Suponho que não queria decepcionar Martin e sabia que se desiludiria muitíssimo quando soubesse a verdade.
- Porquê? Não te envergonhas de Emily, pois não?
Brandon levantou, rapidamente, a cabeça.
- Claro que não! Mas arrependo-me de como me comportei.
Naquele momento, bateram violentamente na porta principal e, ao mesmo tempo, a casa encheu-se com o choro de um bebé que estava faminto e disposto a que toda a gente soubesse.
A porta da sala abriu-se e Segsbury entrou, mais descomposto do que Juliana alguma vez o vira.
- O senhor Martin Davencourt está aqui, senhora. Faço-o entrar?
Juliana passou ao seu lado e saiu para o hall. O choro de Henry parecia ecoar nos tectos altos. Martin estava junto da porta, irritado e, ao mesmo tempo, atónito.
- Lady Juliana, lamento incomodá-la a estas horas, mas pergunto-me se saberá onde posso encontrar Brandon. Não está no seu clube e um cavalheiro chamado Plunkett apareceu em minha casa a dizer as coisas mais extraordinárias...
- Henry voltou a gritar e Martin franziu o sobrolho. - Ó que raios...?
- A sua chegada é muito oportuna, senhor Davencourt - disse Juliana, sorrindo. - Brandon, porque não levas o teu irmão para a sala e lhe explicas algumas coisas - perguntou ao jovem, que a seguira até ao hall. - Se precisarem de brandy, está no aparador.
E, com um sorriso enorme, fez os irmãos Davencourt entrarem em casa e fechou firmemente a porta atrás deles.
Brandon chegou na manhã seguinte e passou o dia em Portman Square, com a sua mulher e o seu filho. Tentara mudá-los para Laverstock Gardens, mas Emily tinha febre e decidiram ficar com Juliana até estar recuperada. Juliana não apresentara nenhum inconveniente. Emily parecia uma rapariga muito doce e estava absolutamente apaixonada por Brandon, enquanto Henry era um bebé adorável com um apetite atroz, como os ouvidos de Juliana podiam confirmar. Entretanto, Beatrix e ela despachavam os curiosos que chegavam de visita, depois de terem ouvido os mexericos sobre Brandon e Emily. Uma das primeiras visitas foi de Serena Alcott, que expressou a sua desaprovação pelo comportamento de Brandon e que foi expulsa por Beatrix.
Brandon trouxera uma mensagem escrita de Martin. Quando Juliana teve um momento de intimidade, desdobrou a carta e leu as linhas escritas com a letra de Martin. Estava escrita em termos formais. Martin agradecia-lhe pela sua amabilidade por ter ajudado Emily e Brandon, e esperava que tê-los em sua casa não lhe causasse nenhum transtorno. Juliana sorriu ligeiramente enquanto o choro de Henry a pedir mais comida se misturava com os gritos de Beatrix Tallant, que despachava outro curioso.
No fim do bilhete de Martin havia um pequeno pós-escrito. Passaria por lá naquela tarde, assim que pudesse, e desejava falar com ela. O coração de Juliana, que ela achava imune ao amor, disparou de impaciência.
Naquela noite, vítima da ansiedade, não parava de andar de um lado para o outro. Brandom regressara a sua casa e Beatrix estava com Emily, cuja febre piorara. Estava uma noite húmida e Juliana abriu as portas que davam para o terraço, mas não soprava uma brisa. Por fim, decidiu passear pelo terraço em vez de pela casa e, enquanto o fazia, teve a boa ideia de ir à câmara frigorífica buscar gelo para fazer uma compressa para Emily. Tirou um castiçal do aparador e entrou na escuridão.
A câmara frigorífica ficava ao fundo do jardim, rodeada de árvores que proporcionavam sombra durante os dias mais quentes do Verão. O marquês mandara-a construir há quinze anos atrás e Juliana sempre pensara que era um excesso ter a sua própria câmara frigorífica quando havia uma excelente de uso público em St. James Park. No entanto, era pequena e muito útil, e Juliana pousou o castiçal no chão para abrir a porta, certificando-se de que ficava aberta graças a uma pequena pedra no chão. Pegou no balde que havia à entrada, atravessou o pequeno corredor e desceu os degraus que conduziam ao poço de gelo. Estava a remexer entre as camadas de palha, a desfrutar do fresco do frigorífico, quando a chama da vela se apagou e ouviu o som inconfundível da porta exterior a fechar-se.
Martin esperara dez minutos na sala antes de entrar no terraço para ver se Juliana estava lá fora. Estava insuportavelmente impaciente por a ver, e não só para falar da situação do seu irmão. Estava apoiado na balaustrada quando viu uma luz apagar-se no jardim e, pegando noutro castiçal, saiu para investigar. O jardim, fragrante, fresco e iluminado pela luz da lua, era muito agradável e mais ainda com a frescura do frigorífico. Atravessou o corredor até chegar ao cimo das escadas e pôde ver o rosto de Juliana, virado para ele, iluminado pela luz que ele trazia.
- O que está a fazer aqui? - perguntou Martin. Juliana parecia irritada.
- Boa noite para si também, senhor Davencourt. E o que faz você aqui? Isto é a minha câmara frigorífica.
- Sim, mas que necessidade tem de gelo a estas horas da noite?
Juliana suspirou.
- Emily tem febre e pensei que uma compressa fria poderia aliviá-la - agarrou na saia e aproximou-se da beira dos degraus. - O que está a fazer aqui, senhor Davencourt?
- Vim à sua procura, é claro. Estive à sua espera e, como não aparecia, saí para o terraço. Então, vi a sua luz...
- E entrou e fechou a porta. Isso não foi muito inteligente. Trancou-nos.
- Eu não fechei a porta - disse Martin, franzindo o sobrolho.
- Não, fechou-se atrás de si porque mexeu a pedra ao entrar. Ouvi a porta fechar-se.
Martin deixou escapar um suspiro exasperado.
- E como haveria de saber? Claramente, há uma falha em qualquer porta que não pode abrir-se por dentro.
- Devia ter imaginado que o preocuparia o aspecto mecânico da situação - deixou o seu castiçal junto dos degraus. - E eu não poderia sentir-me mais incomodada por estar aqui fechada consigo. Duvido que este lugar seja suficientemente grande para não acabarmos à bofetada.
Martin fez uma careta e olhou à sua volta. Compreendeu o que ela dizia ao ver que não tinham muito espaço. O poço de gelo era muito pequeno e solidamente construído em tijolo, com um tecto abobadado.
- É bastante íntimo - disse ele, que estava encantado por ter ficado fechado com ela. De facto, é bastante útil...
- Útil em que sentido?
- Preciso de falar consigo e, assim, pelo menos não poderá fugir. Embora suponha que os seus criados não demorarão muito a adivinhar onde estamos - olhou para ela. - Afinal de contas, alguém deve saber onde veio.
Juliana deixou escapar um suspiro de frustração.
- Infelizmente, ninguém sabe. A tia Beatrix está lá em cima com Emily e não disse a ninguém que vinha aqui. Os criados assumirão que saí consigo - Juliana começou a andar impacientemente pelo corredor. - Suponho que não terá uma gazua, pois não?
Martin riu-se.
- Receio que não. Não é algo que costume , trazer comigo.
- Não importa - respondeu ela, suspirando. - Se ninguém se lembrar de procurar aqui antes, ” virão de manhã. Vêm sempre buscar gelo de manhã.
- Se nos sentarmos junto da entrada, talvez vejam a luz e venham à nossa procura. De qualquer forma, não fará tanto frio ao lado da porta, já que está uma noite húmida.
Alguns instantes depois, Juliana assentiu. Precedeu-o e sentou-se no degrau de pedra que havia à entrada da câmara frigorífica. Através dos barrotes da porta podiam ver o bonito jardim iluminado pela luz da lua.
Martin, ainda de pé, aproximou-se dela.
- Disse que eu era a última pessoa com quem gostaria de estar fechada - disse. - Quem gostaria de ter aqui consigo?
- Para além de um serralheiro? Talvez o duque de Wellington. Pelo menos, poderíamos passar o tempo com uma interessante conversa.
- Pode falar comigo - disse Martin. - Consigo ser interessante quando me proponho a isso.
Juliana olhou, brevemente, para ele.
- Então, é melhor sentar-se.
Martin sentou-se. O degrau era pequeno e a sua coxa ficou a roçar na de Juliana. Respirou fundo e tentou concentrar-se na conversa.
- Do que gostaria de falar?
- Fale-me do seu trabalho.
Martin lançou-lhe um olhar divertido.
- Não acho que lhe interesse.
- Experimente - disse Juliana.
- Muito bem. Neste momento, estou a solicitar apoio para conseguir ser eleito para o Parlamento nas próximas eleições. Henry Grey Bennet solicitou a minha ajuda para se conseguir abolir o trabalho de limpa-chaminés, já que é uma prática desumana.
- Sobretudo, tendo em conta que não é necessária. Acho que há máquinas que fazem o mesmo trabalho com a mesma eficácia.
Martin ficou surpreendido.
- Leu alguma coisa a respeito?
- É claro que não! Mas observo. Porque me olha assim, senhor Davencourt?
- Suponho que o seu irmão fala de tais assuntos - disse, com cuidado.
- Sim, Joss é um político convicto. E os Ashwick sempre estiveram interessados na reforma social.
Martin sorriu.
- Era exactamente isso o que estávamos a discutir naquela noite no Crowns. Precisamos de todo o apoio que conseguirmos reunir na Câmara dos Lordes.
- Mas Joss não pertence aos Lordes.
- Não, mas tem influência. Tal como Ashwick
- fez uma pausa ao observar o rosto de Juliana, A política interessa-lhe?
- Não especialmente - Juliana dedicou-lhe um olhar brincalhão. - Está surpreendido, não está? Sei que me considera uma mulher muito simples.
- Absolutamente! - respondeu Martin, rápida e sinceramente. - Tenho a sua inteligência em alta estima, lady Juliana. Simplesmente, achei que não se interessaria.
- Prefiro pensar que o surpreendi - disse Juliana, sorrindo ligeiramente.
Os seus olhares encontraram-se e sentiram algo mais entre eles, algo mais profundo. Juliana engoliu em seco e desviou o olhar.
- Fale-me das suas experiências no mundo diplomático, senhor Davencourt.
Martin tentou vencer a sua frustração. Sabia que Juliana pretendia que continuasse a falar para não tocar em assuntos mais pessoais. Mas tinham uma longa noite pela frente, portanto fá-lo-ia a pouco e pouco. De qualquer forma, uma coisa estava clara: ela não poderia fugir.
Martin começou a falar e, enquanto o fazia, observava-a. Cada vez que tentava perguntar algo a Juliana, ela voltava a desviar a conversa para ele.
Quando a conversa começou a esmorecer, Juliana disse:
- Devia ter-lhe perguntado pelo senhor Plunkett. O pai de Emily já aceita a união?
- Consegui acalmá-lo um pouco - disse Martin. - Plunkett é um cidadão muito correcto, aterra-o o escândalo e tudo o que saia da sua pequena esfera de experiência. Desaprova profundamente o comportamento de Brandon e de Emily, mas...
- Mas como o irmão mais velho de Brandon é um dos pilares da comunidade, o senhor Plunkett pensou que Brandon não deve ser assim tão mau - disse Juliana.
Martin riu-se.
- Talvez sim, talvez não. Plunkett desconfia de todos os políticos. Acha que só nos dedicamos à política para aumentarmos o nosso próprio orgulho.
- De onde tirou tal ideia? - perguntou Juliana, ironicamente.
- De qualquer forma - respondeu Martin, ignorando o comentário, - tenho a certeza de que a alegrará saber que já vê a união de outra maneira e que, inclusive, está preparado para dar o seu consentimento.
- Então, não haverá perguntas incómodas sobre a ilegalidade?
- Espero que não.
- Graças a Deus! - exclamou Juliana, visivelmente relaxada. - Emily é uma jovem muito doce e seria injusto que a sociedade a considerasse uma desonrada. Uma fuga, um bebé fora do casamento... E a reputação de Emily seria a única que sofreria. É sempre a mulher quem sofre.
- Já falámos disto antes. Sei que esse assunto a preocupa muito e consigo entender porquê.
- Então, cederá a quinta de Davencourt a Brandon? Ele gostaria de se instalar lá e criar cavalos, e tenho a certeza de que faria um grande trabalho.
- Estou a ver que lhe contou tudo. Sim, a quinta será para Brandon. E espero que, nos próximos cinco anos, crie um cavalo vencedor com o qual possa devolver todos os meus investimentos! - fez uma pausa. - Sugeri que Brandon e Emily se mudem para Davencourt assim que Emily se recupere; entretanto, agradeço-lhe muito que lhes tenha oferecido um lar.
Juliana encolheu os ombros.
- Não poderia ter-lhes negado a minha ajuda.
- Outras pessoas tê-lo-iam feito, tenho a certeza. Por favor, aceite os meus agradecimentos.
- Em vez da sua censura? - Juliana sorriu-lhe e Martin sentiu um aperto no coração. - Isso é uma grande mudança. O que me recorda... Como estão Kitty e Clara?
- Estão muito bem - os olhos de Martin brilharam. - O senhor Ashwick promete ser um visitante assíduo de Laverstock Gardens. Já apareceu duas vezes, enviou flores e levou Kitty a passear.
Juliana levantou a vista.
- Fico contente. Pensei que Kitty e Edward se dariam muito bem.
- É verdade - Martin pareceu preocupado. Mas não se importa? O senhor Ashwick sempre foi um dos seus admiradores.
Juliana riu-se.
- Oh, Edward é um dos meus amigos mais queridos, mas não tenho nenhum outro interesse nele! Eu adoraria se Kitty e ele acabassem juntos. Ela é muito tímida, mas Edward é o homem mais amável que conheço e tenho a certeza de que será bom para ela.
- E gosta do campo, portanto Kitty não teria de ficar na cidade, coisa que odeia.
- Ela disse-lhe isso?
- Sim, finalmente! - Martin riu-se. - Confessou-me o plano que tinha para que a enviasse novamente para Davencourt. Tenho de dizer que não consigo entender como as mentes dos meus irmãos funcionam. Costumava achar que não compreendia as raparigas, mas depois da história de Brandon resigno-me ao facto de que nenhum deles deseja confiar em mim.
Juliana aproximou-se mais um pouco dele. A pouco e pouco, estavam a entrar num terreno mais pessoal. Mais perigoso...
- Estou convencida de que confiarão em si depois disto. Antes, não o conheciam muito bem e, agora, que se aperceberam de que não é um monstro...
- Um monstro! - exclamou Martin. - Bom, suponho que deveria ser um monstro com Clara se insistir em perseguir Fleet.
- Não se casará com ele - disse Juliana, com voz suave. - Falei com ela no recital.
- Sim, eu vi. Obrigada, Juliana.
- De nada. Mas não poderia aproveitar-se da situação? Tendo Fleet como cunhado, seria muito influente.
Martin riu-se.
- Por muito tentadora que a ideia seja, não me seduz.
- Não, bem me pareceu. É um homem com demasiados princípios.
- Não sou um homem com princípios suficientes para a senhora Alcott, pelo que parece.
Juliana olhou para ele.
- O que quer dizer?
- Que não está disposta a ter um parente que seja um comerciante. Disse-me isso hoje e não admitia discussão. Quando lhe disse que ninguém lhe pedia para se rebaixar por meio do casamento para se unir à família, partiu, ofendida, fazendo um grande drama.
Juliana deixou escapar um risinho.
- Que pouco cavalheiresco, Martin!
- Eu sei - respondeu ele com satisfação.
- Sempre soube que Serena tinha... consciência da sua posição de sobrinha de um marquês.
- Consciência da sua posição! Isso é pouco. Andou a comportar-se como uma arquiduquesa! De qualquer forma, nunca tive intenção de levar as coisas tão longe. Horrorizei-me ao aperceber-me de que quase me tinha comprometido com ela.
- Deveria ter mais cuidado - disse Juliana. E agora terá de recomeçar a sua procura de uma esposa.
- Assim parece. Mas talvez não tenha de procurar muito.
Fez-se um silêncio intenso entre eles. Juliana baixou o olhar e alisou a saia. Martin inclinou-se para a frente enquanto ela virava a cabeça e olhava directamente para ele.
- Porque me olha assim? - perguntou Juliana. Martin permitiu-se observá-la mais um pouco.
- Peço-lhe perdão. Suponho que estou mais habituado a vê-la com vestidos de seda em vez de com vestidos simples.
- É estranho que se tenha apercebido, senhor Davencourt. Pensei que não reparasse na roupa das mulheres.
- Reparo muito em si, garanto-lhe.
Juliana pigarreou e desviou o olhar, e Martin teve a impressão de que procurava, desesperadamente, outro assunto.
- Sim, bom... Não seria muito apropriado vir aqui buscar gelo com um vestido de baile, não lhe parece?
- Suponho que não. Mas porque não enviou o mordomo?
- Porque tive a ideia e pu-la, imediatamente, em prática. Teria demorado mais a chamar Segsbury, a dizer-lhe o que queria e a esperar por ele, do que fazendo eu - Juliana suspirou. - Há quanto tempo acha que estamos aqui?
- Há cerca de uma hora e meia, calculo. Levantou-se algum vento que penetrou pelos barrotes e a vela apagou-se. Na escuridão, todos os sentidos de Martin se apuraram. Tinha muito mais consciência da presença e da respiração de Juliana, que acelerara por causa do medo. Martin estendeu uma mão e localizou a de Juliana, que, alguns momentos depois, se agarrou a ele.
- Tem medo da escuridão? - perguntou ele, com suavidade.
- Não. Não exactamente - a voz de Juliana soava diferente. Perdera o seu tom de autoridade e parecia vulnerável. - Eu não gosto da escuridão, mas, na verdade, o que receio são os morcegos. Não gosto da ideia de os ter a voar à volta da minha cabeça quando não consigo vê-los.
Martin riu-se e apertou-lhe mais um pouco a mão.
- Isso parece-me perfeitamente razoável.
A escuridão envolvia-os. Alguns raios de lua iluminavam o chão e Martin conseguia sentir o cheiro suave e doce de lilases da pele e do cabelo de Juliana. Aquele perfume era incrivelmente perturbador. Fresco, subtil, suave... Sentiu vontade de enterrar o rosto no cabelo de Juliana...
O pensamento fez com que se sobressaltasse.
- Está bem, senhor Davencourt? - perguntou ela, com cortesia. Martin apertou os dentes.
- Eu... Sim, estou bem, obrigado.
- Tem medo da escuridão?
- Não, na verdade, não.
- Não há razão para se envergonhar. Toda a gente tem as suas fraquezas, como sabe.
Martin sabia. E sabia exactamente qual era a sua fraqueza naquele momento. Estava sentada ao seu lado.
- Tem frio? - perguntou Juliana. Parecia preocupada. - Neste lugar, não faz precisamente calor.
Martin tentou ignorar a atracção que sentia por aquela mulher e concentrar-se na conversa. Infelizmente, uma conversa sobre o seu bem-estar físico não era muito útil, porque o fazia pensar no seu desconforto. Não tinha frio. De facto, tinha certas partes muito quentes... a queimar.
- Não tenho frio, obrigado, lady Juliana. E você? Pode vestir o meu casaco, se precisar.
Assim que pronunciou aquelas palavras, Martin apercebeu-se de que tirar a roupa não era uma boa ideia. Se começasse, já não conseguiria parar, e depois começaria com as roupas de Juliana...
- Neste momento, estou bem e não desejaria privá-lo do seu casaco. Tenho o xaile, que é bastante grosso - riu-se. - Estamos a ser tão educados um com o outro, senhor Davencourt! Parece que, se nos propusermos a isso, conseguimos fazê-lo.
- O que temos de fazer é conservar o calor corporal, caso a temperatura baixe. Se pusesse o meu braço à sua volta, lady Juliana, objectaria?
Houve alguns segundos de silêncio.
- Acho que seria bastante aceitável - disse Juliana. Moveu-se ligeiramente para que Martin pudesse libertar o braço que ficara preso entre os seus corpos e passar-lho pelos ombros. Um momento depois, ela encostou-se ao seu corpo, descansando a cabeça no ombro de Martin.
Que confortável! - exclamou, com um pequeno bocejo. - Obrigada, senhor Davencourt.
Houve alguns momentos de silêncio, nos quais Martin teve muita consciência do roçar do cabelo de Juliana contra a sua face, do perfume embriagador de lilases, do calor da mão de Juliana, que descansava na sua cintura, e do facto de a boca dela estar a apenas alguns centímetros da sua...
- É uma pena que não viva com ninguém disse Martin. -Assim, poderia haver alguém que desse o alarme ao ver que desapareceu.
Juliana levantou, ligeiramente, a cabeça.
- Eu não tenho nenhuma pena - tinha a voz ligeiramente sonolenta. - Porque haveria de aguentar a companhia de alguém aborrecido, só para o caso de alguma vez desaparecer e terem de me encontrar?
Martin riu-se.
- Posto dessa maneira, consigo compreender.
- Você tem uma casa cheia de familiares. Às vezes, não lhe parece demasiado?
Martin hesitou.
- Na verdade, não. Eu gosto de companhia.
- Você é um homem. Tem muito mais liberdade para fazer o que quiser.
Martin pensou que, naquele momento, não tinha nenhuma liberdade para fazer o que queria, embora a única coisa que o afastava do objecto dos seus desejos fosse o seu controlo. Pigarreou.
- Juliana, quero desculpar-me pelo que disse sobre não se aproximar de Kitty e de Clara. Sei que devo ter parecido muito pomposo. Peço desculpa.
- Foi horrivelmente pomposo - respondeu ela. - Mas suponho que, agora que a tia Beatrix está aqui, Kitty e Clara poderão vir a minha casa.
- Não tem nada a ver com lady Beatrix.
- Claro que sim! Não lhes permitiria virem visitar-me se vivesse sozinha. Sei que acha que esta é uma casa de má reputação, mas agora que a minha tia está aqui, temos visitantes respeitáveis. Inclusive, está a conseguir que eu seja outra vez respeitável. É bastante incómodo.
Martin sorriu.
- Lady Juliana, isto não tem nada a ver com lady Beatrix, mas com a minha própria estupidez. Foi muito amável com Kitty e com Clara... e com Brandon, e isso já deveria ter sido suficiente para a incluir no meu círculo de amizades. Infelizmente, fui um arrogante e peço-lhe desculpa.
Sentiu que Juliana se movia ligeiramente.
- Aceito as suas desculpas, mas só se prometer não voltar a desculpar-se.
Martin voltou a apertar-lhe a mão.
- Isto é muito importante para mim, Juliana. Quero que acredite que estou a fazer isto porque me dou conta dos meus erros, não por lady Beatrix, pela sua nova respeitabilidade ou por qualquer outro factor.
Viu a luz da lua reflectida nos olhos de Juliana. Tinha-os muito abertos e estavam escuros.
- Não pode pensar, de repente, que sou boa, quando, antes, me considerava o contrário.
- Não. Estou a explicar-me mal. É muito simples. Antes, era muito crítico e agora...
- Agora?
- Agora não me importa. Sei o que quero. Algo saiu da escuridão e roçou ligeiramente
na cara de Martin. Deu um salto e Juliana tremeu ligeiramente, aproximando-se mais um pouco dele.
- Era um... morcego? - perguntou ela, quase sem fôlego.
- Acho que sim - Martin abraçou-a com firmeza. - Está nervosa?
-Eu... Sim, um pouco.
- Não lhe farão mal. Embora voem directamente para o seu rosto, são bastante inofensivos.
- Prefiro não confirmar - Juliana tentava estar tranquila, embora não parecesse consegui-lo.
Martin sentiu-a tremer e, um segundo depois, também a rodeou, suavemente, com o outro braço. Quase teria esperado que resistisse, mas ela aproximou-se ainda mais. Os seus seios pressionavam-lhe o peito, fazendo do contacto uma tortura deliciosa. Martin sentia o fôlego de Juliana contra a sua face como se fosse a carícia mais delicada.
Era demasiado para conseguir resistir...
Beijou-a suavemente e Juliana, deixando-se levar pela protecção que sentia nos braços de Martin, agarrou-se à lapela do seu casaco para o puxar mais para ela.
-Por favor...!
Martin respondeu à súplica da sua voz, beijando-a com paixão e fazendo com que as chamas do desejo se acendessem em Juliana. Ela sentia-se como se tivesse estado muito tempo à espera daquele beijo e beijou Martin quase grosseiramente, até ficar sem fôlego.
Martin começou a dar-lhe pequenos beijos, deslizando a boca pelo seu pescoço. Juliana não conseguia pensar com clareza. Abraçou-o com força e apoiou as costas no seu braço, mas a posição que tinham no degrau era frustrante, já que não conseguiam aproximar-se um do outro. Por fim, Martin resolveu o problema, descendo para o chão e arrastando-a com ele. O chão era duro e frio, mas Juliana mal reparou. As mãos de Martin deslizavam pelas suas costas e apertavam-na contra ele. Beijou-a novamente, acariciando-lhe o lábio inferior com a língua e introduzindo-a na boca.
Juliana sentiu que as mãos de Martin lhe cobriam os seios e que lhe acariciava os mamilos com os polegares por cima da seda do seu vestido. Depois, sentiu o calor da sua mão contra a pele nua e o coração disparou-lhe de impaciência e desejo.
Martin começou a deslizar-lhe o sutiã para baixo, mas Juliana pôs-lhe uma mão no peito para o parar. De repente, pareceu-lhe muito importante que ele não a achasse uma libertina.
-Não...!
- Porquê? - sussurrou-lhe ao ouvido. Juliana sabia que Martin conseguia sentir o seu desejo, tal como ela tinha consciência do dele. - Pensei que não te importava quem te visse. No jantar de Brookes e no salão de jogo...
Juliana mordeu o lábio inferior.
- Então, não me importava.
- E, agora, sim? Lisonjeia-me...
Estava a beijá-la novamente, profunda e insistentemente. O corpo masculino apertava-se contra o de Juliana, adaptando-se, perfeita e deliciosamente, a cada curva. Juliana quase se esquecera de quão bem a fazia sentir...
Martin deslizou-lhe o vestido para baixo, deixando-lhe um ombro a descoberto, e beijou-lhe a pele, fazendo com que Juliana estremecesse. E quando tentou tirar-lhe novamente o sutiã, ela não protestou, mas gemeu de prazer quando sentiu o calor da mão sedosa de Martin sobre o seu peito, ficando sem fôlego quando ele inclinou a cabeça para a acariciar suavemente com a língua.
Juliana virou-se e quase bateu com a cabeça na parede.
- Martin, este não é o momento, nem o lugar...
Martin, a pouco e pouco, começou a recuperar o bom-senso. Abraçou-a fortemente e, um momento depois, ajudou-a a sentar-se novamente no degrau, junto dele. Ela virou a cabeça e apoiou-a no seu ombro.
- Não te desculpes, Martin - disse. - Teria de te repreender seriamente se me dissesses que lamentas.
Martin beijou-lhe o cabelo.
- Não me atreveria a fazê-lo. Além disso, não lamento. Gostei muito.
Juliana olhou para ele de esguelha. -Oh!
- Por favor, não me digas que tu não gostaste. Para além de ferires a minha auto-estima, teria de me desculpar pela minha má técnica...
Juliana tentou não se rir. Olhou para ele com os olhos semicerrados.
- Se eu gostei ou não, não é importante. Agora o que me importa é ser novamente respeitável e não tenho intenção de te permitir que estragues isso.
Martin arqueou os sobrolhos.
- Como poderia eu fazer algo do género? Beijar-te não é respeitável?
- Certamente, não. Como podes sequer perguntá-lo? As mulheres solteiras, e inclusive as viúvas, têm de cuidar da sua reputação - Juliana afastou-se, ligeiramente. - Por isso, não beijei ninguém, para além de ti, em quase três anos.
Sentiu que Martin dava um pequeno salto.
- Não beijaste ninguém em três anos?
- Quase três anos. Já te disse uma vez que havia muitas coisas de mim que assumias, Martin.
- Mas, nesse caso, não podes ter... quer dizer... todos aqueles amantes...
Juliana olhou para ele com o sobrolho franzido.
- Agora, estás a ser mal-educado, Martin. Um cavalheiro não faz tais perguntas a uma dama.
- Não, mas Andrew Brookes... e Jasper Colling...
- Já te disse que não fui amante de Andrew Brookes. E quanto a Colling, não tenho tão mau gosto.
Martin abraçou-a fortemente.
- Por favor, pára de gozar comigo, Juliana! O que estás a dizer-me exactamente?
Juliana olhou, directamente, para ele nos olhos.
- Já que és tão insistente, dir-te-ei que só fui para a cama com dois homens na minha vida e casei-me com os dois. E se estás a perguntar-te porque a minha reputação é precisamente do contrário, é porque não estou disposta a aceitar o julgamento da sociedade e a comportar-me como uma viúva dócil, só porque é o que as pessoas esperam de mim, ou a fazê-las saber que me comporto assim para que não me condenem! parou bruscamente e levou uma mão à boca. Não posso acreditar que te tenha contado isto!
Martin estava a rir-se, suavemente.
- Juliana, acho que acabaste de deitar por terra definitivamente a tua má reputação.
- Por favor, esquece o que disse!
- Não creio que possa fazê-lo. E também não quero fazê-lo.
Juliana livrou-se do seu abraço.
- Claro que não! Todos os homens gostam de pensar que as suas mulheres são inocentes... ou, relativamente, inocentes - levantou-se e afastou-se dele o máximo possível, apoiando as costas nos barrotes da porta. - Pensa nisto, Martin. Não é só a imoralidade sexual que marginaliza uma mulher. As festas selvagens, as brincadeiras cruéis, o excesso no jogo, o egoísmo e a libertinagem no meu comportamento... Recorda o que me disseste quando soubeste de Hyde Park! E não sabes nada! Quando tinha apenas dezoito anos, quase arruinei a minha família com o jogo. Joss salvou-me, assumindo ele a responsabilidade, tal como me salvou há três anos, quando tentei chantagear um velho amigo, levada pelo rancor e os ciúmes. Queres acreditar que sou virtuosa, mas lembra-te que tive uma aventura com Clive Massingham antes de me casar com ele. Cometi erros suficientes para várias vidas e, depois, levei a minha estupidez ao cúmulo, fazendo de viúva escandalosa, porque tinha demasiado orgulho para pedir perdão.
Martin levantou-se, mas não fez menção de se aproximar dela. Não parara de olhar para ela enquanto falava.
- Não entendo porque tentas fazer com que pense mal de ti - disse, em voz baixa.
- Porque, às vezes, odeio-me e quero que tu também me odeies.
- Não podes obrigar-me a fazer isso.
- Eu sei. És um homem a quem custa mudar de ideias. Agora que decidiste que gostas de mim, receio que não conseguirei mudar isso. Era tudo muito mais fácil quando me detestavas.
Martin sorriu ligeiramente e aproximou-se mais um pouco dela.
- Nunca te detestei, Juliana.
- Não? Pois tu desgostavas-me, Martin! És demasiado bom para mim e fazes-me desejar conseguir alcançar os teus altos níveis de moralidade. Olha para mim! A minha tia solteira invadiu a minha casa, dei refúgio a uma jovem esposa que fugiu e ao seu bebé, dou conselhos às tuas irmãs e ao teu irmão... O que vai acontecer a seguir? Provavelmente, abrirei um orfanato!
- Agora, olha tu para mim, Juliana. Eu era o homem mais teimoso e cheio de preconceitos que possivelmente conheceste, mas tu mudaste-me. Fizeste-me ver que a minha obstinação em certos aspectos nem sempre era boa. Estava cego - aproximou-se dela e tomou-a nos seus braços. - Não me faças ver-te de outra forma - disse-lhe, contra os seus lábios. - A única coisa que consigo ver és tu e és... -Sim?
- Adorável! - apanhou-lhe a boca com os lábios, beijando-a, profunda e longamente.
Naquele momento, ouviram gritos no exterior e viram várias luzes. Martin largou-a. Beatrix Tallant estava junto da porta, acompanhada de Segsbury, que trazia um candelabro e várias mantas. O mordomo abriu a porta e Juliana apressou-se a sair, quase caindo nos braços da sua tia. Martin pegou numa das mantas e tapou Juliana com ela.
Agora que estavam salvos, Juliana não sabia o que sentia. A surpresa, o atordoamento e um júbilo maravilhoso lutavam no seu interior.
- Estou perfeitamente bem, senhor Davencourt - a sua voz tremia ligeiramente. - Por favor... preciso de tempo para pensar...
- Muito bem, lady Juliana. Amanhã, tenho de ir para fora da cidade, mas voltarei cedo e vê-la-ei então.
Soou como uma promessa. Juliana não respondeu, excepto para lhe desejar boa-noite, e Segsbury acompanhou Martin até à porta.
- Espero que estejas bem, querida - disse Beatrix, com um brilho nos olhos. - Deixei-vos sozinhos o tempo que pensei que poderiam precisar. Fizeram amor?
Juliana olhou para ela, totalmente surpreendida.
- Fala como a proprietária de um bordel, tia Trix!
Beatrix riu-se.
- Aquele homem está loucamente apaixonado por ti. Possui-o e desfruta.
Juliana sentiu um calafrio. Não era assim tão fácil. Uma parte dela estava emocionada por Martin a amar e outra parte estava aterrorizada.
- Não posso casar-me outra vez, tia Trix. Não posso... - tentou continuar, mas a voz falhou-lhe.
Beatrix pegou-lhe na mão.
- É por causa de Myfleet? Amaste-o muito...
- Não continuo apaixonada por ele - disse Juliana. - Mas, quando o perdi, fiquei com o coração partido e se isso acontecesse novamente... abanou a cabeça. - Não conseguiria suportá-lo.
- Vejo que agora tens uma dama de companhia - disse Joss à sua irmã, num tom divertido, quando se encontraram na noite seguinte, no salão de baile de lady Knighton. - Na tua idade, Ju!
- Só porque tu e Amy se negaram a acolher a tia Trix em vossa casa. O que podia fazer? Expulsá-la também?
Joss arqueou um sobrolho.
- Confessa: desfrutaste de ter alguém com quem sair. Ouvi dizer que até se viram durante o dia!
- Sim, ontem fomos a um concerto e hoje estivemos num museu aborrecido. Quase receei adormecer!
- Quanto tempo Beatrix pensa ficar?
- Não sei. Quer ir a Ashby Tallant antes de continuar com as suas viagens. Sabes que esteve fora a maior parte dos últimos vinte anos.
- Tendo visto tantas coisas e países, não é de estranhar que não a assuste o desafio de enfrentar uma sobrinha recalcitrante - disse Joss.
- Talvez devesse virar a sua atenção para Clara Davencourt - respondeu Juliana, com uma gargalhada.
- Ouvi dizer que tu és a única pessoa que Clara escuta. Mas tens trabalho para fazer: Fleet acabou de desaparecer e Clara já está a dar atenção a Richard, o irmão de Amy. E parece encantada com ele.
Juliana levou uma mão à boca.
- Que descarada! Acautelei-a contra ele. É um jogador empedernido...
- Mas é alto, muito atraente e anda à procura de uma esposa rica.
Juliana passeou o olhar pela sala e viu, com agrado, que Edward Ashwick estava sentado junto de Kitty Davencourt. A cadeira que havia ao seu lado estava vazia, já que Clara decidira ir dançar. Seguia muito bem o ritmo e ria-se ao dançar com Richard Bainbridge. Juliana franziu o sobrolho.
- Terei de falar novamente com ela. Tem tendência para escolher os homens menos apropriados. Porque te ris?
- Por nada, Ju. E concordo contigo, Clara Davencourt não pode casar-se com Richard.
- E o que pensa Amy?
- Amy é contra Richard casar-se com qualquer mulher.
- Não é de estranhar. Só tem de recordar o que o seu pai fez à sua mãe com o seu vício do jogo, para ver quão infeliz será a esposa de Richard.
- Tens razão em parte, Ju, mas olha para mim. Não me custou abandonar os meus maus hábitos do jogo. Poderá acontecer o mesmo a, Richard quando decidir assentar.
Juliana pôs-lhe a mão no braço.
- Ah, mas tu és como eu, Joss! Só jogamos para aliviar o nosso aborrecimento. Mas acho que Richard Bainbridge, tal como o seu pai, joga porque não consegue evitá-lo.
Joss não fez caso do último comentário.
- Então, paraste de jogar, Ju?
- Que outra coisa poderia fazer, se não tenho recursos?
- A falta de dinheiro nunca te tinha detido observou Joss. - Descobri que o nosso pai desempenhou o teu colar.
- Sim, não é uma infelicidade? É horrível!
- E pediu-te que vás a Ashby Tallant.
- Sim. Mas não quero ir.
- Desejaria que fosses, Ju. Tenho a certeza de que o nosso pai quer reconciliar-se contigo. É teimoso e difícil, mas está a fazer o máximo que pode...
- É demasiado tarde, Joss - disse Juliana.
- É uma pena. Di-lo-ei a Davencourt, que estava a pensar em viajar e que se ofereceu para te acompanhar. Pelo que parece, pensa visitar o seu padrinho em Ashby Tallant. Agora também não te sentes tentada?
- Menos ainda! - sentiu que o pânico a invadia. A ideia de viajar com Martin Davencourt punha-a muito nervosa. - Preferia que tu me levasses. Porque tens de me impor a companhia de Martin, Joss?
Joss parecia divertido.
- Perdoa-me. Só queria ajudar.
- Pois, não me ajudas absolutamente! Estou a tentar evitar Martin... o senhor Davencourt.
- E por que raios estás a fazer isso?
- Porque... - Juliana evitou o olhar do seu irmão.
- Porque gostas muito dele e tens medo do que possa acontecer?
- Porque gosto muito dele e estou a tentar fazer com que não seja assim! - exclamou Juliana.
- Pelo amor de Deus, porquê, Juliana? Porque não aceitas o teu destino? - olhou para onde Amy estava e sorriu. - Eu fi-lo.
- Devo recordar-te que resististe enormemente - disse Juliana. - Garanti-te várias vezes que estavas apaixonado por Amy e tu negaste.
- Agora, os nossos papéis inverteram-se e posso devolver-te o favor. Estás apaixonada por Martin Davencourt e acho... não, tenho a certeza, de que ele também está apaixonado por ti.
Então, qual é o problema? Do que tens medo, Juliana?
- Achei que era evidente. Não tive sorte nos meus casamentos e, além disso, sabes que um homem como Martin Davencourt não pode casar-se com uma mulher com a minha reputação. Portanto, estou a tentar pôr alguma distância entre mim e Martin Davencourt antes que seja demasiado tarde e volte a ficar com o coração partido.
Joss voltou a olhar para Juliana.
- Não é assim que funciona, Ju. Quanto mais tentares ignorar os teus sentimentos, mais intensos ficarão.
- Obrigada pelos teus conselhos. Esta noite, estás a ser uma grande ajuda.
- Além disso, Davencourt terá de decidir com quem quer casar-se. Pára de tomar decisões por ele.
- Não estou a fazê-lo! Só tento evitar que a sua escolha recaia sobre mim, porque, senão, ver-me-ei obrigada a rejeitá-lo.
- Então, aceita-o - Joss encolheu os ombros.
- Eu vejo tudo claro.
- Falou o perito! Quanto tempo demoraste a aperceber-te dos teus sentimentos por Amy?
- Demasiado. Mas fi-lo. Por isso, acho que podes beneficiar da minha experiência.
- Obrigada, mas sabes que ninguém aprende pela cabeça dos outros - Juliana suspirou. – É melhor acompanhares-me até junto da tia Beatrix. Uma dama de companhia é precisamente o que preciso neste momento!
No dia seguinte, Juliana, Joss, Amy e Beatrix Tallant partiram para a casa familiar. Beatrix decidira que estava na altura de visitar o seu irmão, Joss concluíra os seus negócios em Londres e Juliana aceitara, contrariada, acompanhá-los, para cumprir o dever de visitar o seu pai.
O marquês recuperara um pouco, mas ainda estava de cama. Reclinado sobre as almofadas, ofereceu à sua filha uma face pálida que ela beijou. Juliana pensou que estava mais envelhecido e sentiu uma onda de receio ao perceber o cheiro azedo da doença, apesar de terem aberto as janelas. O seu pai fora uma constante na sua vida, apesar da sua relação sempre difícil, e, se agora o perdesse, não sabia como ia sentir-se.
Mas estava claro que o marquês não tinha intenção de abandonar esta vida antes de estar preparado. O seu olhar e a sua língua continuavam perspicazes e afiados. Fez um gesto à sua filha para que se sentasse numa cadeira que havia junto da cama e cravou nela os seus olhos cor de âmbar.
- Ouvi dizer que o afilhado de sir Henry Lees te ofereceu a sua companhia, Juliana. Martin Davencourt, eh? É a tua última conquista ou é demasiado cavalheiresco para tentar alguma coisa?
Juliana riu-se.
- O senhor Davencourt é um cavalheiro. Mas não. Ele e eu não estamos... juntos.
- Não tens muito boa opinião dos homens, pois não, Juliana? Depois daquele desastre com Massingham, acho que deixaste de te interessar por eles.
- A sua informação está sempre certa, senhor.
- Também ouvi coisas interessantes sobre ti, Juliana. Agora que partilhas a casa com a tia Beatrix, sei que deixaste de ver os teus antigos amigos, que te relacionas mais com Amy e Annis Ashwick, e que vais à ópera e ao teatro... - o marquês assentiu. - Fico muito contente, filha.
- Não se entusiasme muito, senhor - disse Juliana. - Certamente, é só uma fase que estou a atravessar.
- A tua fase respeitável, eh? - respondeu o marquês, a rir-se. - Ainda tens aquele sentido de humor estranho. Tal como eu.
- Não acredito, senhor - disse ela, friamente.
- Pensei que não tinha herdado nada de si.
Houve um silêncio incómodo e o marquês remexeu-se na cama.
- Queria falar sobre heranças. Não durarei muito mais, portanto estive a falar com os advogados. Joss, é claro, encarregar-se-á deste velho mausoléu. No entanto... cobrirei as tuas dívidas pela última vez e informei que te deixo cento e cinquenta mil libras.
- Cento e cinquenta mil libras...! - repetiu Juliana, surpreendida com a quantia.
- Sim. Não é muito, se perderes tudo às cartas, - mas é o suficiente para tentares alguns pretendentes.
Juliana franziu o sobrolho.
- Perdão?
O marquês suspirou.
- Parece-me que a única vez que foste feliz foi quando estiveste casada com Myfleet, querida. Portanto, pensei em dar-te um dote para tentares alguns pretendentes. Essa é a única condição para o dinheiro, Juliana. Tens de te casar, no máximo, três meses depois de fazeres trinta anos.
Juliana ficou em silêncio enquanto um milhão de pensamentos lhe passava pela cabeça. O seu pai queria comprar-lhe um marido, pensando que não haveria maneira de a casar, a menos que o pagasse...
Levantou-se e, lentamente, aproximou-se da janela e respirou fundo.
- Se entendi bem, fez saber a toda a gente que herdarei uma fortuna se me casar até três meses depois do meu próximo aniversário, é assim?
- Sim. Mas com um. homem de honra, se não te importares. O teu aniversário é na semana que vem, não é?
- Sim - Juliana mordeu o lábio inferior. - No entanto, receio que não haja nenhum homem que me pareça suficientemente bom para me casar com ele.
O marquês olhou, ligeiramente confuso, para ela.
- Pois, tens três meses para o encontrares. Além disso, com o dinheiro como incentivo...
- O dinheiro não é nenhum incentivo para mim - disse Juliana, educadamente. - E se for para os meus pretendentes, então não quero nenhum deles.
- Estás a rejeitar a minha oferta, querida?
- Sim - voltou a aproximar-se da cama e sentou-se junto do seu pai. - Só me casarei por amor, pai. A razão pela qual fui tão feliz com Edwin Myfleet foi porque nos amávamos. Isso é a única coisa que poderia tentar-me a casar-me.
O seu pai fez um gesto de desprezo.
- Casares-te por amor! Acho que é aí que te enganas, Juliana.
- O pai casou-se por razões dinásticas e não funcionou muito bem, pois não? - o seu pai quis interrompê-la, mas ela continuou a falar com determinação. - Acho que subestima o amor, senhor, olhe para mim. Tenho o cabelo castanho dos Tallant. O meu rosto tem a mesma forma que o seu e disse que partilhamos o mesmo sentido de humor. No entanto, nestes trinta anos, nunca acreditou que fosse sua filha. Nunca me amou. Embora não dissesse expressamente as palavras, toda a gente sabia. Todos sabiam que pensava que não era sua filha e que, por isso, não tinha de se preocupar comigo. -Eu...
- E talvez não seja. Talvez, apesar de todas as parecenças que vejo, seja filha de um dos amantes da minha mãe. Isso é o que certamente acha, pai, porque me castigou por isso durante os últimos trinta anos - levantou-se e a voz tremeu-lhe ligeiramente. - Mas não foi minha culpa! Teria dado cada centavo das cento e cinquenta mil libras por uma palavra de carinho ou de aprovação, mas nunca a tive. Por fim, deixei de tentar. Portanto, confesso que fiz quase todas as coisas que me fizeram ganhar a sua desaprovação durante todos estes anos. E agora é demasiado tarde, pai. Agora não podemos saldar as nossas diferenças com dinheiro.
- Juliana, espera! - exclamou o marquês. Juliana abanou a cabeça. Voltou para a cama e
inclinou-se para lhe beijar a face.
- Perdoe-me, pai, mas vou regressar a Londres. Nunca gostei do campo e agora desejaria não ter vindo. Desejo-lhe as melhoras e... - sorriu - que viva muitos mais anos.
Juliana não queria falar com Joss, nem com Amy, mas também não desejava regressar imediatamente a Londres, portanto seguiu pelo caminho que levava ao rio. Afastando os ramos dos salgueiros, deslizou pela escuridão verde que havia junto da borda, sentou-se na erva e levou os joelhos ao peito, tal como fizera tantas vezes em menina. Sentia-se infeliz. Uma lágrima rolou pela sua face e ela limpou-a, apoiando a testa nos joelhos e abraçando as pernas com força. Cento e cinquenta mil libras eram uma fortuna. Mas o que era o dinheiro comparado com o amor e o carinho que o seu pai fora incapaz de lhe dar?
Comprar um marido...! Estava claro que o marquês pensava que, sem o dinheiro, nenhum homem quereria casar-se com ela e esquecer o seu passado escandaloso. A ideia era intolerável. Ela mesma dissera a Joss que nenhum homem honrado aceitaria a sua reputação, mas pensar nisso doía-lhe.
Ouviu o som de um ramo a partir-se atrás dela e virou-se. Martin Davencourt estava sob os salgueiros, sem dizer nada. Aproximou-se dela, abraçou-a fortemente e, depois, beijou-a com uma violência que lhe pareceu terrível e, ao mesmo tempo, terna.
Depois de vários minutos, ela libertou-se do seu abraço.
- Martin... - a sua voz era uma mistura de espanto e recriminação.
- Juliana... Estás bem?
- É claro! Vim aqui para encontrar alguma calma antes de regressar a Londres.
Martin pegou-lhe numa mão e levou-a aos lábios. Juliana olhou para ele e desviou rapidamente a vista. A ternura que viu nos olhos de Martin provocou-lhe um nó na garganta.
- Martin - disse, novamente.
- Porque estavas a chorar? - perguntou ele. Juliana afastou-se dele e virou-se.
- Oh, não foi nada! O meu pai acabou de me oferecer uma fortuna e rejeitei-a. Estava a perguntar-me porque fui tão néscia...
- Porque te ofereceu uma fortuna?
Juliana ficou gelada. Queria confiar nele, mas não lhe ocorria nada mais embaraçoso que contar a Martin Davencourt que o seu pai queria comprar-lhe um marido.
- É melhor não falarmos disso, é demasiado aborrecido. Tenho de regressar a Londres.
Martin não se moveu.
- Se não queres falar da tua fortuna, podemos falar do que aconteceu entre nós? - perguntou. Na outra noite, na câmara frigorífica...
- Não há nada para falar - interrompeu-o ela.
- A atracção repentina não é fora do comum, Martin, mas morre tão rapidamente como nasce.
- Tolices! - Martin semicerrou os olhos e Juliana considerou o gesto tremendamente atraente.
- Se insistires em comportares-te como uma pessoa superficial e manteres-me afastado de ti, terei de encontrar outra maneira de me aproximar de ti.
- Mas eu sou superficial! Não paro de te dizer isso. Porque não me ouves?
- És muito obstinada. Qualquer pessoa que beije assim e finja que não lhe importa...
Juliana estava desesperada por fugir da situação. Mais um pouco e admitiria que o amava. Tinha de se livrar dele, antes de perder completamente a cabeça,
- Desculpa, Martin, mas não desejo continuar com isto. Não significa nada para mim.
Durante alguns segundos, ele não disse nada, mas depois pôs-lhe as mãos nos braços enquanto a virava para que olhasse para ele. Quando falou, fê-lo com voz suave.
- Juliana, estás a esgotar a minha paciência. Nunca mais voltes a fingir comigo. Tremeste quando te beijei e recuso-me a acreditar que não significou nada para ti - deslizou-lhe um dedo pela face, até chegar ao queixo, e acariciou-lhe o lábio inferior. O seu toque era quente e Juliana tremeu. - Vês? E isto é só o princípio... - Juliana tentou afastar-se dele, mas Martin impediu-a. Lembra-te que és indiferente a mim e que não tens nada a recear - disse ele. A sua boca estava muito perto da de Juliana. - Absolutamente nada...
Quando a beijou, a primeira coisa que Juliana sentiu foi alívio, seguido por uma onda poderosa de desejo. Apoiou o seu corpo todo contra ele e Martin afastou-a um pouco para a rodear com os seus braços e aproximá-la ainda mais do seu corpo. Ela rendeu-se, tremendo, desejosa e agradecida.
- Absolutamente indiferente - disse ele. Beijou-a novamente, afastando-lhe os lábios e enroscando a língua com a de Juliana. Ela pôs-lhe as mãos no peito para se afastar, embora o seu corpo todo desejasse que a acariciasse.
- Martin, já demonstraste o que querias.
- Não - virou-se para os salgueiros.
- Onde vais? - perguntou Juliana, com incredulidade.
- Vou pedir permissão ao teu pai para te fazer a corte.
- Não me casarei contigo!
- Não estou a pedir a ti... ainda.
- Quando o fizeres...
- Quando o fizer, tu estarás de acordo. Juliana sentia-se totalmente indignada.
- Quando o fizeres...
Mas Martin já se fora embora.
O marquês de Tallant levantara-se da cama e estava a beber um copo de vinho com o seu filho na biblioteca quando anunciaram Martin Davencourt. Martin entrou, cumprimentou-os e Joss olhou para o rosto do seu amigo antes de pousar o seu copo e dirigir-se à porta.
- Suspeito que o que tens para tratar com o meu pai é sério, portanto deixo-vos. Estarei na sala, caso queiras falar depois - disse Joss. Martin levantou uma mão.
- Por favor, não saias por minha causa. Fico contente por poder falar com os dois - virou-se para o marquês. - Senhor, vim pedir a sua filha em casamento.
- Quer casar-se com Juliana? - perguntou o marquês. - Falou com ela esta manhã, senhor Davencourt?
- Sim, senhor - Martin parecia surpreendido.
- Acabei de falar com ela e fiz-lhe saber as minhas intenções de lhe pedir permissão para a cortejar.
- Entendo. E o que disse?
- Que podia perguntar-lhe, mas que ela não daria o seu consentimento.
Joss riu-se e o seu pai atirou-lhe um olhar reprovador.
- Peço-lhe perdão, senhor - disse Joss, - mas Juliana é assim. Fico contente que seja Davencourt a querer casar-se com ela, porque não se intimida perante os seus desplantes.
- Obrigado, Tallant. Senhor - disse, dirigindo-se ao marquês, - se me der o seu consentimento...
- Um momento, senhor Davencourt. A minha filha falou-lhe da sua fortuna?
Martin franziu o sobrolho.
- Só me disse que lhe ofereceu uma fortuna e que a rejeitou. Mas não quero casar-me com ela pelo dinheiro, senhor! Não preciso de o fazer e não sou nenhum caçador de fortunas!
- Acalme-se, Davencourt. Nunca suspeitei isso de si. Estou em dívida para consigo, e agradecido, por querer casar-se com Juliana.
Martin inclinou-se ligeiramente, aliviado.
- É um prazer, senhor.
- A minha filha planeia regressar imediatamente a Londres - continuou o marquês. - Suponho que também quererá voltar... e convencê-la dos seus sentimentos.
-É claro!
- No entanto, eu gostaria que o casamento se celebrasse aqui, em Ashby Tallant - estendeu uma mão e Martin apertou-a. - Traga a minha filha de volta, Davencourt - disse, suavemente, o marquês. - É a única coisa que lhe peço.
Quando Martin se foi, o marquês deu um gole no seu copo e riu-se.
- Juliana rejeita a sua herança e, mesmo assim, encontra um marido. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis, não te parece, Joss?
O seu filho riu-se.
- E rápidos. Muito rápidos.
Juliana estava exausta quando, por fim, chegou a sua casa e não muito contente por encontrar sir Jasper Colling à sua espera no hall.
Ao vê-la, Colling aproximou-se rapidamente e beijou-lhe a mão. Juliana sentiu uma onda de desagrado e perguntou-se como, alguma vez, pudera considerar a sua companhia divertida.
- Juliana - cumprimentou-a, fazendo-lhe uma reverência. - Como estás?
- Muito bem, obrigada, Jasper - dirigiu-se para a biblioteca e ele seguiu-a.
- Há muito tempo que não te via, portanto pensei em vir visitar-te. Ouvi dizer que estiveste em Ashby Tallant.
- Acabei de regressar, portanto não posso ficar muito tempo contigo - Juliana olhou, fixamente, para ele. - Portanto, ouviste que estive em casa? Não acho que estejas aqui por isso. O que ouviste?
Colling sorriu, deixando ver os seus dentes amarelos.
- Portanto, o velho, finalmente, libertou o dinheiro, não foi? Sabia que não te deixaria sem nada. Os laços de sangue são muito fortes.
Juliana suspirou. Deveria ter imaginado que o seu pai teria posto o plano em marcha, gritando aos quatro ventos que lhe deixara uma fortuna. Inclinou, educadamente, a cabeça.
- E o que sugeres, Jasper?
- Casamo-nos, esbanjamos o dinheiro e, depois, cada um vai para seu lado. Eu não te incomodarei... Há muito tempo que me apercebi de que não estavas interessada em mim. Acho que, possivelmente, serás frígida. Massingham costumava dizer...
- Poupa-me os comentários de Massingham, está bem? - Juliana levantou-se. - Vou dizer-te algo que não sabes: dentro de alguns dias, toda a gente saberá que rejeitei a oferta do meu pai e, então, já não parecerei tão tentadora - olhou para Jasper, cujo rosto se acendeu de aborrecimento. - Não tinhas pensado nisso? Sim, é verdade, rejeitei as cento e cinquenta mil libras.
- Pelo amor de Deus! Porquê, Juliana? - exclamou, levantando-se.
- Eu não gostava das condições do meu pai.
- Estás louca! Eu teria feito tudo por aquele dinheiro.
- Exacto! - Juliana sorriu, amavelmente. - E acabaste de o demonstrar, Jasper. Boa tarde.
Disse a Segsbury que despachasse as outras visitas e foi directamente para a cama, caindo rapidamente num sono profundo.
Na manhã seguinte, as coisas não tinham melhor aspecto. Juliana tomou o pequeno-almoço e retirou-se para a biblioteca, desejando que a sua tia estivesse ali e que Joss e Amy não tivessem saído da cidade. Já que tivera algum tempo para pensar, agora precisava de alguém com quem falar. A casa parecia-lhe novamente muito solitária. Estava a considerar a possibilidade de ir visitar Annis e Adam quando Segsbury anunciou Edward Ashwick.
- O senhor Ashwick veio visitá-la, lady Juliana. Sei que me disse que não recebia nenhuma visita, mas pensei que talvez quisesse fazer uma excepção.
Juliana saiu para o hall e estendeu as mãos para Edward.
- Eddie! Que agradável ver-te!
Edward Ashwick parecia incomodado. Com o chapéu na mão, inclinou-se para lhe dar um beijo rápido na face.
- Juliana. Como estás?
- Muito bem. Mas e tu? Pareces triste.
- Absolutamente! - exclamou, adoptando uma expressão falsa de alegria. - Vim... Queria... Bom, soube da oferta do teu pai.
-Ah, entendo! - o sorriso de Juliana desvaneceu-se. Fez-lhe um gesto para que a seguisse até à biblioteca.
- Queria dizer-te que não deves sentir-te obrigada a aceitar nenhum homem só para cumprires as condições. Quero dizer que não gostaria que te casasses com qualquer um só para receberes o dinheiro.
- Obrigada - respondeu Juliana, recomeçando a sorrir. - Não te preocupes, não penso fazê-lo.
- Não, é claro - Edward parecia envergonhado. - Acho-te muito melhor do que tudo isso. E também não quero que penses que sou eu quem quer conseguir uma fortuna, mas... - calou-se, franzindo o sobrolho. -Mas?
- Mas ouvi o rumor de que rejeitaste a oferta do teu pai e, assim, perderás tudo o que tens. Querida Juliana, já te disse antes que seria uma honra para mim se aceitasses ser minha esposa. Por favor, Juliana! Estou desejoso que recuperes a aprovação do teu pai e um lugar respeitável na sociedade.
Juliana suspirou., Sentou-se e fez um gesto a Edward para que fizesse o mesmo.
- Eddie, querido, agradeço muito a tua oferta. És o homem mais amável que conheço, mas...
- Vais rejeitar-me.
- É verdade. Não posso deixar que te sacrifiques por mim. Isso seria injusto.
- E as tuas dívidas? Se o marquês não quer ajudar-te, tens de deixar que te ofereça a protecção do meu nome...
- Eddie, não posso aceitar a tua proposta.
- Porquê?
- Há várias razões. De um tempo a esta parte, tenho andado a pensar que me propuseste casamento mais por hábito do que por, realmente, o desejares.
- Mas eu adoro-te, Juliana! Toda a gente sabe.
- Escuta o teu coração, querido. Durante muitos anos, foste constante na tua afeição e eu aproveitei-me disso.
- Bom... - Edward olhou para ela pelo canto do olho, como se hesitasse em estar de acordo ou não.
- Admite que os teus sentimentos por mim mudaram ultimamente - continuou Juliana. Não me amas mais como um irmão do que como um possível marido? Porque é assim que eu gosto de ti. Tenho-te em grande estima, mas nunca poderia casar-me contigo.
Edward corou, ligeiramente.
- Bom... Suponho... - Edward suspirou. - É verdade que, de início, me deslumbraste, Juliana...
- Mas agora pensas em mais alguém - disse Juliana, amavelmente. - Nunca me interporia entre ti e Kitty, Edward, e, menos ainda, agora que estás a começar a amá-la.
- Então, o que vais fazer, Juliana?
- Ainda não sei. Suponho que venderei as minhas jóias e os móveis para pagar as minhas dívidas, e depois terei de encontrar uma maneira para viver. Logo me ocorrerá algo.
- Sabes que podes ir para Eynhallow sempre que quiseres. E tenho a certeza de que Adam e Annis diriam o mesmo.
- Com certeza que sim. Mas espero que a minha situação não fique assim tão desesperada.
- Não estarás a pensar em trabalhar? - perguntou Edward.
- Espero não ter de o fazer! Imagina? Quem me contrataria? Mal tenho habilitações para ser tutora ou professora.
- Talvez o marquês mude de ideias.
- Não contes com isso - estendeu a mão e tocou a campainha. - E agora que resolvemos amigavelmente este assunto, Edward, queres beber algo comigo? Podias contar-me como vai o teu romance com Kitty Davencourt. Se não tiver dinheiro no futuro, talvez possa fazer de casamenteira!
- O senhor Davencourt está aqui, senhora disse Segsbury, às cinco horas daquela tarde. Diz que é urgente.
Embora tivesse estado à espera de Martin e, ao mesmo tempo, desejosa de que não a visitasse, Juliana sentiu uma onda de pânico. Não parara de pensar na declaração de Martin. Sabia que o amava. Mas também sabia que não podia casar-se com ele.
- Por favor, diga ao senhor Davencourt que não estou em casa.
- O senhor Davencourt diz que esperará até que decida que está em casa, senhora.
Juliana apertou os lábios.
- Oh, está bem! Faça-o entrar - viu a figura alta de Martin atrás de Segsbury. - Ah, parece que já entrou! Obrigada, Segsbury. Boa tarde, senhor Davencourt.
- Boa tarde, lady Juliana.
Segsbury fechou a porta. Martin aproximou-se dela e, ao olhar para ele, Juliana sentiu que se lhe secava a garganta.
- Chego demasiado tarde? - perguntou ele.
- O quê?
- Sei que precisas de um marido e talvez já tenhas aceitado a primeira oferta.
- A primeira oferta foi de Jasper Colling. Gostarias que tivesse aceitado?
Martin aproximou-se mais um pouco.
- É claro que não! E a segunda?
- A segunda foi de Edward. O coitado estava dividido entre a sua antiga lealdade e o seu novo amor.
Martin deu um último passo, até ficar junto dela.
- O que lhe disseste?
- Agradeci-lhe a sua amabilidade. E fi-lo voltar para Kitty.
Martin dedicou-lhe um sorriso terno e pegou-lhe nas mãos.
- E a terceira?
- Não tenho a certeza de querer receber uma terceira proposta.
- Ainda continuas a fugir, Juliana? Mas não podes rejeitar-me. Eu tenho vantagem em relação aos outros pretendentes.
- Ah, sim?
- É claro! Acedeste a casares-te comigo quando tinhas catorze anos, lembras-te?
Juliana franziu o sobrolho, mas depois riu-se.
- Oh, sim! Estava a queixar-me de que nunca encontraria marido e tu...
- E eu disse-te que, se precisasses de um marido quando chegasses aos trinta anos, me casaria contigo.
- Não foi uma proposta particularmente elegante - disse Juliana, sorrindo. - Mas foi muito cavalheiresco da tua parte, Martin, e peço desculpa por me ter rido de ti.
Martin agarrou-a pela cintura e aproximou-a dele.
- Estás a rir-te agora?
- Não, mas deves saber que não desejo casar-me.
- Pois, eu ouvi o contrário. Que precisas de te casar e depressa.
- Então, já ouviste os mexericos - Juliana tentou libertar-se e Martin largou-a, mas não se moveu. - É verdade que o meu pai ofereceu a quantia de cento e cinquenta mil libras para me convencer a casar - Juliana desviou o olhar, para pagar a um homem que esteja disposto a ignorar a minha má reputação, que é o mesmo.
- Isso é muito insultante, Juliana. Não acho que devas pensar nisso dessa maneira.
- Então alegrar-te-á saber que rejeitei a sua oferta. Eu não estou à venda e não quero dar-me a um homem a quem só interesse o dinheiro. Portanto, não preciso de um marido, mas... agradeço-te a tua amabilidade.
- Não estou a dizer-te isto por amabilidade, Juliana, mas porque quero casar-me contigo voltou a pegar-lhe nas mãos. - Juliana, fico contente por saber que rejeitaste a proposta do teu pai e não faria nada para te fazer mudar de ideias a esse respeito. O único assunto em que desejo que mudes de ideias é na tua recusa ao meu pedido de casamento. Quero casar-me contigo.
- Mas não é necessário! - Juliana franziu o sobrolho. - Não entendeste o que te disse?
- Perfeitamente! Tu é que não me entendeste. Quero casar-me contigo. É assim tão complicado?
Juliana inspirou profundamente.
- Lamento, mas não desejo voltar a casar-me. Além disso, não seria uma esposa apropriada.
Martin suspirou.
- Poupa-me à tua autocomiseração, Juliana. És perfeitamente apropriada...
- Não, não sou! Oh, Martin, seria a pior esposa que um membro do Parlamento poderia ter! Não te apercebes de que não faria nenhum bem à tua carreira?
-Tolices!
- O quê, ter uma esposa que se comportou imoralmente com metade de Londres?
- Juliana, não me importa o passado, só o nosso futuro. Pára de arranjar desculpas, meu amor.
- Mas tens de ter noção de que o que estou a dizer é verdade.
- Neste momento, a única coisa de que tenho noção é da tua maldita obstinação e... - a sua voz suavizou-se e o seu olhar pousou no rosto de Juliana - da tua boca sedosa e sensual. Juro que enlouquecerei se não te beijar agora.
- Agora?
- Imediatamente! Neste instante - Martin tomou-a nos seus braços e o beijo apaixonado fez com que Juliana perdesse o fôlego. Largou-a. Ainda te recusas?
- Sim. O facto de quereres beijar-me não significa que fosse uma esposa apropriada.
- Raios! - Martin passou uma mão pelo cabelo. - É verdade que, em tempos, fui suficientemente estúpido para achar que não eras conveniente. No entanto, é irónico que, agora que mudei de ideias, sejas tu a dizer-me que não és apropriada - parou alguns segundos e olhou intensamente para ela. - Anda cá!
- Para quê?
- Para que possa beijar-te outra vez.
- Esses são os teus meios de persuasão? Se for assim, devo dizer que estás a perder tempo mas Martin beijou-a novamente e Juliana tremeu. - És bastante persuasivo - disse, quando conseguiu respirar novamente.
- Amo-te, Juliana, casas-te comigo? Juliana olhou para ele.
- Martin, eu...
- Amas-me?
- Sim, mas não posso casar-me contigo. Juliana libertou-se do seu abraço e afastou-se.
Sabia que tinha de lhe explicar as suas verdadeiras razões. Devia-lhe isso. Mas não era fácil.
- Só houve outro homem a quem amei realmente e foi Edwin Myfleet, e, quando faleceu, fiquei com o coração partido. Não quero que isso volte a acontecer-me.
- Mas se já me amas, não deixarás de o fazer só por me rejeitares!
Juliana mordeu o lábio inferior.
- Não, mas posso evitar que a situação piore. Se me casasse contigo, correria o perigo de te amar mais todos os dias.
- Assim espero... - disse Martin, sorrindo meigamente e puxando-a para ele. - Juliana, isto é uma tolice. Sou forte, tenho uma boa saúde e nenhuma intenção de morrer e deixar-te, como Myfleet fez.
Juliana abanou a cabeça.
- Como podes saber isso, Martin? - os seus olhos encheram-se de lágrimas. - Odiei Edwin por me deixar. Odiei-o! Nunca lhe perdoei! Amava-o muitíssimo e abandonou-me, e pensei que morreria de desgosto! Como pôde fazer-me aquilo? Deixar-me quando precisava tanto dele...
A voz falhou-lhe com um soluço e afundou o rosto no ombro de Martin.
Martin limitou-se a acariciar-lhe o cabelo, enquanto os soluços sacudiam o corpo de Juliana. Ela parecia muito frágil nos seus braços. Quando o choro cessou, Martin afastou-a ligeiramente e olhou para a cara dela.
- Era por isso que não deixavas que as pessoas se aproximassem de ti, Juliana?
- Em parte. Quando Myfleet morreu, pensei que poderia recuperar a felicidade com Clive Massingham. Pensei que estava desesperadamente apaixonada por ele, mas agora sei que não era verdade... E quando Massingham se revelou um traidor, decidi não voltar a arriscar-me a sofrer. Portanto, decidi manter sempre os meus pretendentes afastados...
- Não só os homens. Também as pessoas que poderiam ter-te dado amizade, como Amy e Annis Ashwick, e inclusive a tua própria família.
Juliana encolheu ligeiramente os ombros.
- Tinha ciúmes de Amy. A única pessoa que realmente sempre me importou foi Joss. Ele foi o único que sempre me demonstrou lealdade. Quando se casou, fiquei furiosa... e invejei a sua felicidade. Mas é verdade que rejeitei a amizade de Amy e também a de Annis, porque é mais fácil manter a distância. Inclusive, atrever-me-ia a dizer que poderia ter-me reconciliado com o meu pai, se me tivesse esforçado mais um pouco, mas não queria voltar a amar ninguém.
- Mas, então, começaste a deixar que as pessoas se aproximassem de ti.
- Sim... Primeiro, foi Clara, Kitty e Brandon, depois a tia Trix e Amy, e inclusive o meu pai, um pouco. E, depois, tu. Tu foste o mais perigoso de todos porque te desejei desde o início e, quando me apercebi de que te amava... senti-me perdida.
Martin deu alguns passos para ela.
- Eu não partirei, Juliana, tu sabes. E não vou aceitar uma recusa. Não quando sei que te importo.
Juliana suspirou. Sabia que a sua resistência estava a fraquejar e que realmente não queria resistir.
- Mas, Martin, se te perdesse...
- Não me perderás. Nunca!
Juliana estava novamente nos seus braços, a sentir que as lágrimas desapareciam. Fez um último esforço.
- Não me transformarei numa mulherzinha doce e respeitável. Quando for uma idosa, transformar-me-ei numa daquelas pessoas que gostam de ser um aborrecimento para os seus familiares, como Beatrix.
Martin sorriu.
- Estou desejoso de o confirmar - e inclinou-se para a beijar.
Juliana Davencourt sentou-se à frente do espelho e observou a sua imagem. Por alguma razão, esperara ver-se diferente, como se o facto de se tornar a mulher de Martin implicasse alguma mudança visível. Ainda não conseguia assimilar o que acontecera naquela manhã. Agora, era lady Juliana Davencourt. A esposa de Martin.
Jurara não voltar a casar-se. Amara Edwin Myfleet do fundo do coração e Clive Massingham com uma paixão desesperada, mas o que sentia por Martin era muito mais... Era amor, paixão, ternura e desejo. Tudo junto, como um presente extraordinário que alguém lhe tivesse oferecido. Sentia medo ao pensar que o merecia, mas, ao mesmo tempo, uma alegria imensa. Nem sequer o afastamento do seu pai diminuíra aquela felicidade. Quando Martin sugerira, amavelmente, que se casassem em Ashby Tallant, Juliana aceitara, contrariada. E, naquela manhã, quando o seu pai a conduzira até à capela para se casar com Martin, juntamente com Beatrix, Joss e Amy como únicas testemunhas, sentira que o coração ia explodir-lhe de alegria.
Juliana sorriu ao seu reflexo. Talvez houvesse uma diferença. Os olhos brilhavam-lhe e os lábios curvavam-se num sorriso. Sentia felicidade. E impaciência. Em breve, Martin unir-se-ia a ela e sentia-se ridiculamente nervosa.
Juliana levantou-se e atravessou o quarto para se aproximar da janela. Afastou as cortinas para observar a paisagem tingida pela última luz do entardecer de Julho. Não recordava ter visto Ashby Tallant tão bonita.
Ouviu vozes na divisão contígua. Era Martin, a despedir-se do seu ajudante de câmara. De repente, sentiu a boca seca. Agora...
A porta abriu-se e Martin entrou. Fechou, suavemente, a porta atrás de si e parou para olhar para ela. Juliana usava uma camisa de dormir branca simples, apanhara o cabelo numa trança e estava junto dos pés da cama. Martin sorriu com ternura.
- Com o cabelo assim, aparentas dezoito anos, meu amor - deixou o castiçal que trazia na mesa-de-cabeceira. -Anda cá!
Juliana, descalça, aproximou-se dele, devagar. Tinha o coração descontrolado e sentia-se um pouco enjoada. Quando chegou, pôs-lhe uma mão no peito.
- Martin, estou... bastante assustada.
- Não há nenhuma necessidade de teres medo, querida - respondeu ele, com um sorriso.
Beijou-a com muita ternura, mal lhe roçando os lábios com os seus. Juliana suspirou.
- Hum... É muito agradável...
- Vês? - sentiu que Martin sorria contra a sua boca. - Não há nenhuma razão para estares assustada.
Daquela vez, beijou-a mais profundamente, acariciando-lhe o lábio inferior com a língua e deslizando-a para dentro da sua boca. Abraçava-a firmemente pela cintura e as sensações doces começavam a conseguir fazer com que Juliana perdesse a cabeça. Ela puxou-o pelas lapelas da sua camisa de noite e aproximou-o ainda mais do seu corpo, até que os seus seios pressionaram o peito de Martin. Tremiam-lhe as pernas.
- Martin... Não tenho a certeza de conseguir ficar de pé durante muito tempo...
- Ainda bem - respondeu, com voz um pouco rouca. Pegou-lhe ao colo e deixou-a, com suavidade, no meio da enorme cama. Depois, sentou-se ao seu lado. Começou a desfazer-lhe a trança e, muito devagar, inclinou-se para a beijar novamente, afundando os dedos no seu cabelo. O seu cheiro, quente e masculino, despertou o desejo de Juliana, que lhe tirou a camisa com impaciência, deslizando os dedos pela pele nua dos ombros de Martin.
Martin gemeu e levantou uma mão para lhe acariciar os seios através da camisa de dormir. Com cuidado, desatou as fitas e afastou a roupa, deixando um trilho de beijos desde o pescoço de Juliana até à curva dos seus seios. O roçar da sua boca era uma tortura deliciosa.
-Amo-te, Juliana...
As palavras fizeram com que o olhasse com assombro e aceitação. Juliana viu o desejo contido nos olhos de Martin e sentiu um aperto no estômago de excitação.
Quando sentiu o peso de Martin sobre ela, duro e premente, a única coisa que sentiu foi prazer. Abriu-se para ele com uma mistura de alívio e desespero, e sentiu que se movia dentro dela, suave e insistentemente, com ferocidade, mas com doçura, dando-lhe um prazer infinito. Juliana gritou e, quando os últimos estremecimentos desapareceram, Martin abraçou-a, apertando-a contra ele.
Então, os pesadelos abandonaram-na: Edwin a morrer e a partir-lhe o coração, Massingham a abandoná-la e a deixá-la só perante todos os seus receios. Sentia-se segura e amada, e virou a cabeça para o pescoço de Martin para o beijar.
- Eu também te amo - sussurrou, apertando-se ainda mais contra ele.
Martin fez um som de satisfação sonolenta e abraçou-a. Um momento depois, agitou-se levemente.
- Juliana, de que te ris?
- Rio-me de ti, meu amor. Costumava pensar que eras tão sério, tão controlado...
Ficou sem fôlego quando Martin voltou a colocar-se sobre ela.
- E agora?
- Agora, vejo quão enganada estava - sussurrou, enquanto ele a beijava novamente.
Depois do jantar, na noite seguinte, Juliana desculpou-se perante a família e saiu, sozinha, para o jardim. Todos a deixaram ir sem fazerem nenhum comentário, trocando sorrisos ao verem a felicidade nos seus olhos. Martin beijou-a com doçura e disse-lhe que, se não regressasse dentro de meia hora, iria à sua procura.
Estava um lindo entardecer e Juliana caminhou sem rumo, sentindo o cheiro das árvores e desfrutando da carícia da brisa. Todos os seus sentidos estavam mais despertos do que nunca. Era a primeira vez que se sentia verdadeiramente feliz em Ashby Tallant, mas tinha pouco tempo, já que regressariam a Londres dentro de alguns dias. Juliana desejava ver novamente Kitty e Clara, e cuidar da sua nova família. Uma parte dela quisera que estivessem no casamento, mas tinham-no organizado tão depressa e tão discretamente que não houvera tempo. Esperava que a perdoassem e que se alegrassem por a terem como irmã.
Chegou ao lago e, depois, começou o caminho de volta. As portas do terraço estavam abertas e podia ouvir a música do piano, as gargalhadas e as vozes. Andou um pouco mais depressa ao pensar em reencontrar-se com Martin e voltar para o seu lugar na sala. Já estava a pensar na noite que os esperava quando sentiu um calafrio que, mais do que de impaciência, foi de medo. Olhou à sua volta. Seria capaz de jurar que alguém a observava.
Juliana andou um pouco mais depressa, ansiosa por entrar. Já escuíecera totalmente e começava a sentir frio.
Então, alguém apareceu no caminho, à frente dela, e falou-lhe. Era uma voz que Juliana reconheceu imediatamente, mas que pensava que jamais ouviria novamente.
- Boa noite, Juliana - disse Clive Massingham. - Tenho estado à tua espera.
- Massingham! - exclamou Juliana, quase sem fôlego.
Clive Massingham saiu das sombras, até ficar iluminado pela luz da lua. Juliana observou os seus traços, os olhos semicerrados cheios de raiva, a boca carnuda, curvada num sorriso irónico. Não podia acreditar que alguma vez o tivesse amado, parecia-lhe algo totalmente impossível.
- Pensei que estivesses morto.
- Não pareces muito perturbada ao ver que não é assim.
- É porque sempre tive a sensação estranha de que não me tinha libertado de ti.
- E porque quererias fazer isso?
Juliana apercebeu-se de que Massingham esperara que se atirasse nos seus braços, com lágrimas de júbilo.
- Há muitas razões. Por onde começo? - perguntou ela, friamente.
- É por causa do teu novo marido? Desta vez, acertaste, Juliana. É um homem íntegro, não é como...
- Não é como tu?
O rosto de Massingham escureceu.
- Houve uma altura em que gostavas da minha companhia, Juliana.
- Isso foi antes de roubares o meu dinheiro todo e de me deixares sozinha em Veneza. Disseram-me que tinhas morrido numa prisão.
Massingham riu-se.
- Aí foi parar parte do teu precioso dinheiro, querida. Foi bastante fácil comprar a minha liberdade... e uma nova identidade.
- Nunca te preocupaste comigo, pois não? Nunca te importei, Clive. Oxalá não tivesses voltado!
- Estás apaixonada por Davencourt? - perguntou, num tom brincalhão. - Finalmente, transformaste-te numa mulher respeitável ao casares-te com um tipo frio e aborrecido.
- Quererás dizer com um homem de honra e integridade. E sim, amo Martin do fundo do coração. Tem todas as qualidades que te faltam.
Massingham enfiou as mãos nos bolsos e falou com calma.
- Bom, isso muda um pouco as coisas, mas não para pior. Receava ter de fingir que tinha sentido a tua falta, mas agora podemos tratar de negócios sem fingirmos um afecto que não sentimos.
- Tratar de negócios? - Juliana olhou para ele, sem compreender.
- Não esperas que desapareça, sem mais nem menos, enquanto tu vives um sonho maravilhoso, pois não? Um maravilhoso e rico sonho.
- Ah, entendo! Claro, não estarias aqui se não quisesses algo!
-É claro!
- Dinheiro, suponho.
- É claro! - repetiu Massingham. - Descobri que agora tens muito e Davencourt também. Só Deus sabe porque se casou contigo. Não têm nada em comum - olhou para ela, com intensidade. - Suponho que te desejou. Ainda és uma mulher bonita, embora sejas tão fria como um bloco de gelo. Esperemos que isso não o decepcione, tal como me decepcionou a mim.
Juliana fechou os punhos com força.
- Bela maneira de me convenceres a pagar-te, Clive.
- Bom... - Massingham encolheu os ombros.
- Não estás em posição de te queixares, querida. Afinal de contas, és minha mulher. Uma só palavra minha e acabará tudo.
Juliana mordeu o lábio com força. Sua mulher. Aquilo era algo em que não queria pensar naquele momento, porque receava que, quando o fizesse, todo o seu mundo se desmoronasse. Inspirou profundamente.
- O que queres exactamente? Massingham riu-se.
- Eu gostaria de dizer que a única coisa que quero é que me dês dinheiro para partir. Mas, infelizmente, é muito mais lucrativo ser teu marido do que chantagear-te, meu amor. Quero as cento e cinquenta mil libras que o teu pai vai dar-te. Essa foi a razão pela qual regressei dos mortos... como teu marido.
Juliana ficou gelada.
- O meu pai nunca me dará o dinheiro se souber que vai para ti! Não há ninguém que deteste mais!
- O velho é um homem realista, ao contrário de ti, Juliana. Sabe que o dinheiro é a única coisa que faz com que tudo funcione.
-Mas...
- Isto é o que vai acontecer - disse Massingham, com um tom de voz que a fez estremecer: Anunciarei a minha volta dos mortos e reclamarei a minha esposa. O teu pai pagar-me-á para amenizar o escândalo. Se te recusares, ver-me-ei obrigado a contar todos os pormenores íntimos da nossa aventura e sujarei tanto o teu nome que, desta vez, não recuperarás a respeitabilidade. E arrastarei Davencourt contigo. É melhor começares a despedir-te dele, querida. Desejo reclamar o meu lugar na sociedade.
- Quererás dizer o dinheiro - disse Juliana, com voz trémula. - Isso é a única coisa que te importa.
- Não é completamente verdade. Também me importa a vingança. Quero que todos sofram. O teu pai, Davencourt, tu... Isso dar-me-ia uma satisfação enorme.
- Estás louco, Clive!
- Estou cansado de ser pobre e de não ter um lugar no mundo. É só isso. Agora, quero que digas a Davencourt que voltei e que ele tem de desaparecer. Legalmente, és minha mulher, não dele, e não há mais nada para dizer.
- Ele nunca o aceitará - disse Juliana. - Não me deixará.
- Fá-lo-á se lhe disseres que sempre estiveste apaixonada por mim e que, como regressei, queres voltar para mim.
- Não posso fazer isso!
- Claro que podes! - Massingham aproximou o seu rosto do de Juliana. - Podes, se não quiseres ver a carreira de Davencourt destruída. Pensa em como seria afectado se eu armar um escândalo. O marido da bígama... Gostarias que isso lhe acontecesse, Juliana? A sua reputação ficará de rastos, para não falar dos projectos das suas bonitas irmãs...
Juliana ficou sem fôlego. Até àquele momento, só pensara nela própria e em Martin, mas, agora, apercebia-se de que aquele escândalo afectaria a família Davencourt. Provavelmente, não afectaria os planos de casamento de Kitty, já que Edward Ashwick estava profundamente apaixonado por ela, mas Clara era outra história e, além disso, havia as irmãs mais novas...
- Contar-lhe-ei imediatamente - disse Juliana, com a boca seca. - Mas tens de me dar algum tempo para resolver as coisas. Um dia? Voltarei a ver-te amanhã à noite.
- Então, falaremos outra vez - havia satisfação na voz de Massingham. - Pobre Davencourt, perder a sua amada esposa...! Quase tenho pena dele.
Juliana entrou e foi directamente para as escadas, para subir para o seu quarto. Uma vez lá dentro, trancou a porta e deitou-se na cama, a olhar fixamente para o tecto.
De repente, sentou-se. Massingham era o seu marido e não podia mudar aquilo. O seu casamento com Martin era falso. Graças a Deus que fora uma cerimónia simples só com a família!
No que dizia respeito ao resto das pessoas, fora só uma festa familiar. Poderiam desfazer tudo com discrição, Martin voltaria para a sua carreira parlamentar, as suas irmãs não seriam afectadas pelo escândalo e, dentro de algumas semanas, poderia anunciar que o marido que achara morto regressara...
Afundou a cabeça nas mãos. Não era assim tão fácil. O seu pai recusar-se-ia a pagar, porque desprezava Massingham e, então, este contaria todas as histórias desagradáveis e vingativas sobre ela e, o que era ainda pior, sobre a sua mãe. E isso seria demasiado para o pobre marquês.
Mas tudo isso não era nada, comparado com a desolação de perder Martin. Amava-o desesperadamente e tinham sido felizes durante tão pouco tempo... Mas, o que podia fazer? Ela era a esposa de Massingham, o que a transformava na amante de Martin. Não poderiam viver juntos abertamente, porque o escândalo arruinaria a carreira de Martin e destruiria a vida das suas irmãs.
Mas sabia que Martin não a deixaria ir. Insistiria para que se divorciasse de Massingham ou desafiaria Massingham para um duelo. Martin nunca a abandonaria, sabia disso.
Levantou-se da cama e saiu do quarto.
Da sala, chegavam-lhe as vozes e as gargalhadas. Juliana inspirou profundamente. Aquela gente era a sua família e não poderia esconder-lhes aquilo, especialmente se iam estar juntos na história que iam contar às outras pessoas.
Durante um momento, quando parou na soleira da sala, todos se viraram para ela com caras sorridentes e Juliana pensou que recordaria aquele instante para sempre. Mas, a pouco e pouco, os sorrisos desvaneceram-se e alguém lhe perguntou o que se passara.
Mas Juliana estava a olhar para Martin, que já se levantara e que se aproximava dela com o sobrolho franzido.
- Com licença - disse Juliana, sem deixar de olhar para Martin. - Preciso de falar com Martin e, depois, acho de terei de falar convosco.
Martin abraçava-a com tanta força que pensava que ia partir-lhe as costelas, mas Juliana não protestou. Martin afundava o rosto no cabelo da sua mulher e repetia:
- Não te deixarei. Não te deixarei. Nunca...!
Juliana afastou-se um pouco. Estavam na sala vazia e era muito tarde. Contara tudo a Martin, insistindo que tinham de o manter em segredo, mas Martin respondera que a única coisa que importava era que iam permanecer juntos e enfrentar as consequências. Aquilo era o que Juliana sabia que ia dizer, e o que queria que dissesse, a prova definitiva de que a amava acima de tudo.
Juliana afastou o cabelo despenteado da cara e sentou-se no sofá.
- Martin, já demos todas as voltas possíveis. Não há alternativa. Sou a esposa de Massingham, por muito que nos custe.
- Tens a certeza? - perguntou Martin, que começara a andar, nervosamente, pela sala. - Tens a certeza de que o casamento foi legal?
Juliana desviou o olhar. Não suportava ver a esperança nos seus olhos, ouvi-la na sua voz e, menos ainda, ter de a destruir.
- O casamento com Massingham foi legal. Casou-nos um pastor inglês em Veneza. Lamento, Martin.
Martin passou uma mão pelo cabelo.
- Então, tens de te divorciar dele.
- Martin, já falámos sobre isto. Não conheces aquele homem! Espalhará os rumores mais escandalosos sobre ti e sobre mim.
- Não importa. Ainda tenho Davencourt... e a ti.
- E as raparigas? - perguntou Juliana. - Como se sentirão ao saberem que a sua nova irmã é uma bígama?
- Terão de o aceitar - respondeu ele, depois de um breve silêncio. - Ou isso, ou mato Massingham. Decide tu.
- Por muito tentadora que seja, essa não é a solução. Não a estamos a pensar com clareza.
- Não te deixarei - repetiu Martin. - E se houvesse um filho, Juliana? Não conseguiria suportar que Massingham o reclamasse como dele, nem que tu o criasses sozinha.
O pensamento de carregar um filho de Martin e de permanecer afastada dele pareceu-lhe insuportável.
- O nosso filho? Oh, Martin, não penses nisso...!
- Devo fazê-lo. Tu negas a possibilidade? Juliana fechou os olhos.
- Não, não posso fazê-lo, é claro. Ainda não. Mas saberemos dentro de pouco tempo.
- Essa é outra razão pela qual não deixarei que enfrentes isto sozinha.
Juliana afundou a cabeça entre as mãos.
- Já não consigo pensar. Vamos dormir e, amanhã, continuaremos a falar.
- Não consigo dormir - as feições de Martin suavizaram-se. - Mas tu pareces exausta, meu amor. Devias ir para a cama.
- Não sem ti.
Martin estendeu uma mão e ajudou-a a levantar-se do sofá. Beijou-a com todo o amor, desejo e desespero que ambos sentiam.
- Está bem, vamos para a cama. Amanhã de manhã, veremos tudo com mais clareza.
A casa estava às escuras e em silêncio.
Subiram as escadas de mão dada, mas, quando chegaram ao patamar, Martin fez menção de ir para o seu quarto.
- Devia deixar-te dormir sozinha. Juliana acariciou-lhe a face com uma mão.
- Achei que tinhas dito que não me deixarias. Vais quebrar a tua promessa tão depressa?
Martin gemeu, virando a cabeça para beijar a mão de Juliana.
- Juliana, só Deus sabe que te desejo. Amo-te. Mas... não deveria tocar-te agora.
- Então, Massingham já ganhou - disse Juliana, com voz cansada, - e não há mais nada a dizer.
Virou-se, mas Martin puxou-a pelo braço. Abriu a porta do quarto de Juliana com violência, atravessou a soleira com ela e fechou a porta atrás deles. Começou a beijá-la com urgência, puxando-a para si com uma mão, situada nas suas costas, enquanto, com a outra, começava a desabotoar-lhe o vestido para libertar os seus seios.
Juliana ficou sem fôlego. A urgência e o desespero de Martin excitaram-na. Ele despojou-se rapidamente das suas roupas e, em seguida, acabou de despir Juliana, deitando-a na cama, junto dele. Lambeu o espaço entre os seus seios e todo o corpo de Juliana tremeu quando Martin lhe acariciou um mamilo com a língua. Depois, deslizou os lábios para o seu estômago e Juliana afastou as pernas sob a doce reclamação dos seus beijos. Martin voltou para a sua boca, para a beijar profundamente, e ela gemeu e puxou-o ainda mais para o seu corpo. Abraçou-o com força, sentindo os músculos das suas costas nuas. Viraram-se na cama e acabaram no chão. Juliana quis endireitar-se, mas Martin impediu-a, prendendo-lhe o corpo com o seu. Em alguns instantes, estava sobre e dentro dela, a acariciar-lhe os seios, a pronunciar o seu nome e a levá-la ao êxtase.
Mas, depois, quando o seu corpo recuperou a calma, Juliana virou a cabeça e chorou desalmadamente. E embora Martin a tivesse levado para a cama e abraçado para a consolar, ela sabia que nunca poderia ser igual. Pela segunda vez na sua vida, tinha o coração destroçado e sabia que estava a acontecer o mesmo ao de Martin.
A família reuniu-se depois do pequeno-almoço e falou durante o dia todo, mas não conseguiu encontrar nenhuma solução. O marquês estava disposto a pagar a Massingham e Juliana ficou com o coração ainda mais destroçado quando se inclinou para o beijar e sentiu lágrimas nas faces do seu pai.
- Eu dar-lhe-ia um tiro - disse Joss. - Um duelo. Rápido e eficaz. O que achas, Martin?
- Essa também foi a minha primeira opção, mas Juliana não aprova.
- Se alguém tem o direito de disparar contra Clive Massingham, sou eu - interveio Juliana. Mas temos de pensar nas consequências. Se algum de nós acabasse na prisão por assassinato, não valeria a pena.
- Livrar-nos-emos do corpo - disse Joss. Ninguém sentirá a falta dele e aquele tipo merece.
- É tentador - respondeu Juliana, - mas não podemos fazê-lo - deixou escapar um suspiro. Não sei o que podemos fazer.
Amy pegou-lhe na mão num gesto reconfortante.
- Quando disseste que te encontrarias novamente com ele?
- Esta noite. Dentro de uma hora, junto do lago. O que vamos fazer?
Houve alguns segundos de silêncio, durante os quais Joss e Martin trocaram um olhar.
- Vai encontrar-te com ele - disse Martin. - E tenta ganhar tempo. Precisamos de tempo para pensar... ou para traçar um plano.
- Diz-lhe que ainda não conseguiste falar com Martin, mas que o farás esta noite - disse Joss. - Diz-lhe que os teus sentimentos estão confusos desde que reapareceu. Martin e eu estaremos perto e, se as coisas ficarem feias, ajudar-te-emos.
- Acho que tudo piorará, se se deixarem ver respondeu Juliana, com um estremecimento. - É melhor deixarem isso comigo, eu sei lidar com Massingham. Não mudou muito.
Massingham não apareceu. Juliana esperou junto do lago e o fresco da noite fê-la estremecer com uma mistura de frio e nervosismo. Uma hora depois, Martin saiu do seu esconderijo entre as árvores e levou-a novamente para casa. Nenhum dos dois falou e, naquela noite, Juliana dormiu sozinha.
Na manhã seguinte, sentados à mesa do pequeno-almoço, todos pareciam derrotados e cansados. Juliana obrigou-se a comer algo enquanto pensava que não conseguiria suportar outro dia de incerteza. Quando o mordomo entrou com uma carta para ela, teve quase a certeza de que era de Massingham e agarrou-a, agradecendo-lhe.
Olhou-a com curiosidade. Não parecia a letra de Massingham, mas não podia ter a certeza. Deslizou uma faca por debaixo do lacre e olhou para a assinatura.
- É dele? - perguntou Martin.
- Não - respondeu ela. - Está assinada por uma mulher chamada Marianne.
O marquês deixou cair a sua faca e Juliana olhou para ele. Estava pálido. Beatrix agarrou-lhe na mão para o tranquilizar e Amy lançou um olhar inquisitivo a Joss. Juliana franziu o sobrolho.
- O que é isto?
A porta abriu-se e o mordomo voltou a entrar.
- O senhor Creevey, o chefe da polícia, está aqui, senhor. Diz que é urgente. Digo-lhe que espere?
O marquês deixou o seu guardanapo na mesa.
- Recebê-lo-emos todos, Edgar. Fá-lo entrar para a sala azul.
Dirigiram-se todos para a sala e Edgar fez entrar o chefe da polícia. O homem parecia muito nervoso e alterou-se mais um pouco ao ver que teria de falar diante das senhoras.
- Lamento incomodá-lo, senhor, mas pensei que deveria saber imediatamente disto. Aconteceu algo terrível! Há anos que não tínhamos um assassinato em Ashby Tallant! E era um estranho!
Juliana olhou significativamente para Martin, mas ele abanou a cabeça. Então, Juliana olhou para Joss, que encolheu ligeiramente os ombros.
- Um assassinato - disse, lentamente, o marquês. - Deixa-nos atónitos, senhor Creevey. Quem é a desafortunada vítima?
- Um cavalheiro que estava hospedado em Lãs Plumas, senhor. Um estranho de Londres, conforme parece. O cavalheiro... - consultou o seu bloco. - Um tal senhor Masham, segundo os seus documentos, estava de passagem. Acham que voltava para Londres. Conhecia-o, senhor?
O marquês abanou, lentamente, a cabeça.
- Receio que não, Creevey.
- O senhor Masham não viajava sozinho. Conforme parece, havia uma dama com ele. Uma mulher muito discreta e de poucas palavras, segundo Cavanagh, o dono de Lãs Plumas.
Martin pôs uma mão sobre a de Juliana, que estava agarrada com força ao sofá. Não fazia ideia de onde o chefe da polícia queria chegar, mas tinha a certeza de que a vítima era Clive Massingham. A questão era como...
- Como aconteceu? - a voz do marquês era bastante firme.
- Bom, senhor... - o homem olhou, nervosamente, para as mulheres. - Parece que houve alguns jogos amorosos e... algo correu mal - o homem folheou as páginas do seu bloco. - Encontrámos o corpo nu, amordaçado e atado de pés e mãos aos quatro postes da cama. Havia um recipiente com plumas sobre a lareira e...
- Já temos pormenores suficientes, Creevey disse o marquês, com voz grave. - Qual foi a causa da morte?
- Asfixia, senhor. A mordaça... - o senhor Creevey parecia incomodado - estava muito apertada. Os olhos saíam das órbitas do pobre homem, numa tentativa de se libertar e respirar. Mas estava bem atado e...
- Sim, obrigado, Creevey - interrompeu-o o marquês. - Acho que fazemos uma ideia. E a mulher?
Creevey suspirou.
- Foi-se embora, senhor. Ontem à noite, levou a carruagem e os cavalos, e disse que o senhor Masham não desejava ser incomodado, já que tinha de trabalhar. Disse que ele alugaria um cavalo para se reunir com ela em Londres e Cavanagh deixou-a ir, sem imaginar... - Creevey encolheu os ombros. - Esta manhã, foi ver se o cavalheiro queria tomar o pequeno-almoço e deparou-se com aquilo!
- Acha que há alguma possibilidade de encontrar a mulher, Creevey? - perguntou Joss.
- Nenhuma. Cavanagh não sabe como se chama e ninguém consegue descrevê-la adequadamente.
- Bem, obrigado, Creevey - disse Joss, trocando um olhar com o seu pai e levantando-se para acompanhar o chefe da polícia à porta. Tenho a certeza de que nos manterá informados se souber mais alguma coisa.
- É claro, senhor - Creevey fez uma ligeira reverência. - Senhoras...
A porta da sala fechou-se e todos ficaram em silêncio, até que ouviram Edgar fechar a porta principal.
- O seu próprio vício matou-o - disse lady Beatrix, com um tom de satisfação. - Que poético!
Juliana apoiou-se em Martin, atónita e aliviada ao mesmo tempo.
- Não posso acreditar! - podia sentir o calor do corpo de Martin a reconfortá-la e apertou-se ainda mais contra ele. - Que coincidência...!
- Não há nenhuma coincidência - disse o marquês, com voz rouca. - Onde está a carta, Juliana?
Juliana franziu o sobrolho. Esquecera-se da carta com a surpresa do assassinato. -Estáaqui, mas...
- Sugiro-te que a leias - o seu pai levantou-se, com dificuldade. - Se quiseres dizer algo, estaremos na sala de pequeno-almoço.
O marquês saiu, apoiando-se no braço de Beatrix, e, um momento depois, Amy e Joss seguiram-nos. Martin fez menção de ir com eles, mas Juliana agarrou-o pelo braço.
- Não... Martin, por favor, fica comigo!
Ele regressou para o seu lado, olhando amorosamente para ela, e Juliana sentiu que o seu coração gelado começava a derreter-se. Talvez tudo fosse correr bem...
Desdobrou a carta e começou a ler.
Minha querida Juliana,
nunca pretendi que esta carta fosse uma confissão, mas, se precisares que seja, deixo ao teu critério. Talvez Clive Massingham te tenha dito que adoptou uma nova identidade em Itália e duvido que a verdade alguma vez se saiba. Espero que não. Agora está morto e, quando tu receberes estas linhas, eu também terei partido.
Há alguns meses, Massingham veio à minha procura a Itália. Tinha-me deixado há mais de vinte anos, mas pensou que ficaria feliz de voltar para ele. Estava enganado, mas Massingham sempre teve uma opinião exagerada sobre os seus encantos. Estava prestes a expulsá-lo da minha casa quando começou a falar de ti, de como brincara contigo, casando contigo, e como te tinha abandonado em Veneza. Parecia orgulhoso do seu comportamento.
De início, não podia acreditar no que estava a ouvir. Causar tal sofrimento à minha filha... e a minha dor era ainda maior porque eu nunca tinha feito nada por ti. Acho que, naquele momento, fiquei um pouco louca, porque, se tivesse alguma arma à mão, tê-lo-ia matado ali mesmo.
Quando sugeriu que regressássemos a Inglaterra, para convencermos o teu pai a pagar-nos e, assim, fazermos uma fortuna, não precisei que me convencesse. Não foi pelas razões que Massingham achava, já que era um arrogante; eu sabia que ele pretendia causar-te mais problemas e não podia permiti-lo. O que houve entre mim e o teu pai está morto e enterrado há muito tempo, mas Massingham já te fez mal suficiente. Demasiado.
Primeiro, fomos a Londres, onde ele fez averiguações discretas sobre o teu paradeiro e a tua situação. Adorou descobrir que Martin Davencourt andava a cortejar-te, já que podia tirar proveito disso. Acho que, de início, só quis fazer chantagem, mas, quando soube da fortuna que o teu pai queria dar-te, ocorreu-lhe o plano de reaparecer como teu marido, reclamar o dinheiro e, depois, gastá-lo comigo. Ele estava convencido de que, assim, poderíamos vingar-nos do teu pai e nunca duvidou de que o meu propósito era outro. Esse foi o seu erro.
O resto foi fácil. Na noite em que Massingham ia ver-te pela segunda vez, consegui colocá-lo no seu quarto. Como digo, foi fácil. Ele sempre teve uma opinião demasiado boa sobre os seus encantos e eu ainda sou atraente... Não suspeitou de nada até ao momento em que lhe pus a mordaça na boca com mais força do que a necessária para um jogo amoroso. Poupar-te-ei os pormenores desagradáveis da sua morte, mas receio que tenha sofrido bastante.
Querida Juliana, nunca estive presente para cuidar de ti quando eras menina e, sem dúvida, haverá gente que pensa que o que acabei de fazer por ti é muito pouco ortodoxo, inclusive para uma mãe. No entanto, rezarei para que sejas feliz com o teu marido. Casa-te novamente com ele, depressa, e nunca o deixes. Este é o único conselho que te darei, mas é do fundo do coração. Desejo-te toda a sorte do mundo.
A tua mãe,
Marianne
- Juliana? - perguntou Martin, mas, quando olhou para a cara dela, simplesmente abraçou-a, sem dizer nada.
Mais tarde, depois de ter falado com a família, Juliana subiu ao sótão, retirou o tecido que cobria o retrato da marquesa de Tallant e observou o seu bonito rosto. Definitivamente, os olhos eram iguais aos seus: verde-esmeralda, com reflexos dourados, e tinham o mesmo espírito luminoso e indomável. Oh, sim, Marianne Tallant era pouco ortodoxa, inclusive imoral...! Haveria muita gente que a condenaria, se soubesse o que fizera. Depois, havia outros, como o seu marido, o marquês, que levariam o segredo para a cova, e outras pessoas, como a sua própria filha, que saberiam que, à sua maneira, a sua mãe a amara e libertara...
Juliana sorriu tristemente e voltou a tapar o retrato. Sabia que nenhum deles voltaria a ver Marianne Tallant.
No dia seguinte, Juliana e Martin desceram até ao rio. Afastaram os ramos dos salgueiros e deslizaram sob a protecção das árvores. Naquele lugar, Martin espalhara os seus livros e os seus papéis, enquanto Juliana, sentada ao seu lado, falava de bailes e festas. Juliana quase conseguia vê-los sentados ali e ouvir o eco das suas palavras.
”Se ainda estiveres à procura de marido quando tiveres trinta anos, adorarei casar-me contigo.”
”Se não estiver casada aos trinta anos, adorarei aceitar a tua oferta.”
Juliana sorriu, ligeiramente. A vida era imprevisível, mas, finalmente, o círculo fechara-se. Naquela manhã, tinham-se casado novamente, com o marquês, Beatrix, Amy e Joss como testemunhas.
Sem dizer uma palavra, Martin puxou-a para ele e abraçou-a. Juliana apoiou a cabeça no seu ombro e acariciou-lhe o cabelo.
- Estás bem, Juliana?
Ela pressionou a face contra a de Martin e, depois, passou-lhe os braços à volta do pescoço e beijou-o.
- Estou bem - respondeu, a sorrir. - Na verdade, estou muito bem.
Nicola Cornick
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