Biblio VT
Há cerca de cinquenta anos, a Sra. Gage, uma viúva já de certa idade, vivia na sua casa de campo na aldeia de Spilsby, em Yorkshire. Embora fosse coxa e terrivelmente míope, estava a remendar, da melhor forma que podia, um par de velhos tamancos, pois dispunha apenas de uns míseros xelins por semana. Enquanto martelava no tamanco, o carteiro abriu a porta e atirou-lhe uma carta para o colo.
No remetente lia-se: "Srs. Staggs & Beetle, Rua High Street, nº 67, Lewes, Sussex."
A Sra. Gage abriu a carta, que dizia o seguinte: "Cara senhora; Cabe-nos o dever de a informar da morte do seu irmão, o Sr. Joseph Brand."
- Deus seja louvado! - exclamou. - O meu velho irmão lá se foi!
"Deixa-lhe, em testamento, a sua propriedade" continuava a carta, "que inclui uma casa de habitação, um estábulo, um pequeno canteiro de pepinos, umas calandras, uns carrinhos de mão, etc., etc., na aldeia de Rodmell, perto de Lewes. Lega-lhe, também, toda a sua fortuna, a saber: £3000 (três mil libras esterlinas)."
A viúva quase caiu na lareira, tal foi a alegria. Não via o irmão há muito tempo. Ele nunca lhe respondera aos cartões de boas festas que lhe enviara todos os anos, pela altura do Natal, e ela acreditava que não recebia resposta devido à sua avareza, característica que tinha desde pequeno e que o impedia de gastar uns míseros sentavos no selo. Mas agora tudo parecia correr a seu favor. Com três mil libras, para não falar da casa, etc., etc., ela e a sua família poderiam viver para sempre de forma luxuosa.
Decidiu que devia visitar a aldeia de Rodmell o quanto antes. O padre da aldeia, o reverendo Samuel Tallboys, emprestou-lhe algum dinheiro para o bilhete e, no dia
seguinte, estavam finalizados todos os preparativos para a sua viagem. O mais importante de todos foi arranjar quem tomasse conta do seu cão, o Shag, durante a sua
ausência. Apesar de pobre, sempre se preocupara com os animais e, muitas vezes, preferia privar-se a ela do que deixar o cão sem comer.
Chegou a Lewes na terça--feira à noite. Naquele tempo, não havia nenhuma ponte sobre o rio em Southease, nem a estrada para Newhaven tinha sido construída. Para
se conseguir chegar a Rodmell era preciso atravessar o rio Ouse a vau. Ainda se podem encontrar vestígios destes locais de água rasa em algumas partes do rio, mas
apenas na maré baixa, quando as pedras que
estão assentes no leito ficam visíveis à tona de água. O Sr. Stacey, o agricultor, seguia para Rodmell na sua carroça e ofereceu-se, gentilmente, para lhe dar boleia.
Chegaram a Rodmell por volta das nove horas, numa noite de novembro. Amavelmente, o Sr. Stacey mostrou-lhe onde ficava a casa que o irmão lhe deixara. Bateu à porta.
Ninguém atendeu. Voltou a bater. Do outro lado, uma voz muito estranha e esganiçada bradou:
"Não está ninguém em casa!"
A Sra. Gage assustou-se de tal forma que, se não tivesse ouvido os passos de alguém a aproximar--se, teria fugido a sete pés. No entanto, uma velha senhora da aldeia
abriu a porta. Era a Sra. Ford.
- Quem foi que gritou lá de dentro "Não está ninguém em casa!"? - perguntou a viúva.
- Maldito pássaro! - exclamou a Sra. Ford, apontando para o papagaio grande e cinzento. - Às vezes, quase me cai o terço das mãos. Fica para ali todo o dia empoleirado,
como uma estátua, a gritar "Não está ninguém em casa!" de cada vez que alguém se aproxima do poleiro.
A Sra. Gage constatou que era, realmente, um pássaro muito bonito, mas as penas, infelizmente, estavam mal tratadas.
- Talvez esteja triste ou apenas com fome - concluiu. Mas a Sra. Ford apressou-se a explicar que tudo não passava de mau feitio;
tinha pertencido a um marinheiro e aprendera a falar no Leste. Contudo, acrescentou que o Sr. Joseph gostava muito dele e lhe pusera o nome de James.
Depois desta curta conversa, a aldeã foi-se embora e, assim que se viu sozinha, a viúva retirou de uma caixinha que trazia consigo um
bocado de açúcar para oferecer ao papagaio, sussurrando-lhe num tom de voz meigo que não lhe ia fazer mal, que era a irmã do seu velho dono que tinha herdado a propriedade
e que tudo faria para que ele fosse um pássaro feliz. Com a ajuda de uma lanterna, percorreu a casa para ver o que o irmão lhe deixara. Dececionou-se amargamente.
Havia buracos em todos os tapetes. Os assentos das cadeiras tinham caído ao chão. Ratos corriam pela lareira. Por entre os buracos do chão da cozinha começavam a
aparecer cogumelos. Não havia uma peça de mobília que valesse um tostão. A Sra. Gage só se conseguia animar ao lembrar-se das três mil libras que permaneciam sãs
e salvas no banco de Lewes.
Estava decidida a partir para Lewes no dia seguinte, a fim de reclamar o dinheiro da sua herança aos advogados Stagg & Beetle, seguindo depois para casa, o mais
rapidamente possível. O Sr. Stacey, que se dirigia para o mercado com uns belos porcos Berkshire, ofereceu-se novamente para lhe dar boleia e, durante a viagem,
contou-lhe histórias terríveis sobre uns jovens que se tinham afogado ao tentarem atravessar o rio com a maré alta. Como se não bastasse, mal a pobre viúva entrou
no escritório do Sr. Stagg, uma nova desilusão a esperava.
- Sente-se, por favor, minha senhora. - disse, com um ar grave e solene. - A verdade - continuou. - é que tem de se preparar
para enfrentar notícias muito desagradáveis. Desde que lhe enviei a primeira carta, estive a analisar cuidadosamente os documentos do Sr. Brand e lamento informá-la
de que não encontro qualquer vestígio das três mil libras. O Sr. Beetle, meu associado, foi pessoalmente a Rodmell e investigou o local com todo o cuidado, mas não
descobriu absolutamente nada - nem ouro, nem prata, nem qualquer valor de outro tipo - exceto um belo pássaro cinzento que a aconselho a vender pelo melhor preço.
Segundo o relato do Sr. Beetle, a linguagem do animal é pouco própria.
Mas isso é irrelevante. Receio que tenha feito a viagem em vão.
O local está em ruínas e os nossos honorários são, como sabe, consideráveis.
A esta altura, o Sr. Stagg silenciou-se e a Sra. Gage percebeu que aquela era a sua deixa para sair. Ficou desorientada com tamanha desilusão.
Não só pedira dinheiro emprestado ao reverendo Samuel Tallboys, como regressaria a casa de mãos a abanar, pois até o papagaio teria de vender para conseguir pagar
o bilhete de volta. Chovia torrencialmente, mas nem por isso o advogado lhe dissera para aguardar que a chuva abrandasse. E, na verdade, a Sra. Gage estava tão fora
de si que já nem sabia o que fazia. Apesar da chuva, atravessou a pé os prados em direção a Rodmell.
Como disse no início, a viúva coxeava
da perna direita. Num dia bom, caminhava devagar, mas, naquele dia, depois de tanta desilusão e atolada nas margens do rio, andava muito mais devagar do que o costume.
O dia foi escurecendo, enquanto a velha senhora se arrastava pela lama que ladeava o rio. À medida que caminhava, resmungava, lamentando-se do seu ardiloso irmão
Joseph que a fizera passar por "tamanho aborrecimento, só para me atormentar" pensou. "Foi sempre um garoto cruel, desde pequeno" continuava nas suas cogitações.
"Gostava de arreliar os pobres dos insetos e lembro-me de uma vez ter tentado cortar o pelo a uma lagarta peluda com uma tesoura, mesmo diante dos meus olhos. Era
um parasita miserável, o meu irmão. Costumava esconder a mesada dentro de uma árvore oca e, se alguém lhe oferecesse uma fatia de bolo com cobertura ao lanche, retirava
a cobertura e guardava-a para comer ao jantar. Não duvido que esteja a arder no inferno neste momento, mas que consolo é que isso me traz?"
Na verdade, não lhe trouxe consolo nenhum pois, absorta nos seus pensamentos, acabou por ir de encontro a uma vaca que seguia ao longo da margem, rebolando, depois,
na lama.
Levantou-se da melhor forma que pôde e seguiu caminho. Parecia-lhe que já estava a caminhar há horas. A noite era escura como breu e não se conseguia ver um palmo
à frente do nariz. De repente, lembrou-se das palavras do Sr. Stace sobre o vau do rio.
- Deus seja louvado, - exclamou. - como vou encontrar o caminho de volta? Se a maré estiver cheia ainda fico sem pé e sou arrastada para o mar num instante! Já tantas
pessoas se afogaram aqui; isto para não falar dos cavalos, das carroças, dos rebanhos inteiros e das medas de feno.
De facto, metera-se num belo sarilho, naquela escuridão e com toda aquela lama. Mal conseguia ver a água, quanto mais saber se tinha chegado ou não ao vau do rio.
Não se viam luzes nenhumas pois, como devem saber, a casa mais próxima era a Asheham House, a residência do Sr. Leonard Woolf. Não havia casas nem chalés daquele
lado do rio que ficassem mais perto. Parecia que nada mais havia a fazer do que esperar pelo nascer do dia. Contudo, na sua idade e com os seus ataques de reumatismo,
era muito provável que morresse de frio. Por outro lado, se tentasse atravessar o rio
era quase certo que se afogaria. O seu estado era tão miserável que não se importaria nada de trocar de lugar com uma das vacas que pastavam no campo. Não havia
mulher mais triste nem mais desgraçada em todo o condado de Sussex. Permanecia em pé, na margem do rio, sem saber se devia sentar-se, nadar ou, simplesmente, rebolar
pela relva molhada e adormecer ou morrer de frio, conforme o seu destino ditasse.
Mas, naquele momento, algo maravilhoso aconteceu. Uma luz incandescente surgiu, como uma tocha gigante, iluminando cada pedaço de relva e revelando-lhe o vau do
rio, a menos de vinte metros de distância. A maré estava baixa e seria fácil atravessá-lo, se a luz não se apagasse antes de ela chegar à outra margem.
- Deve ser um cometa ou qualquer outra monstruosidade maravilhosa! - disse, enquanto atravessava o rio a coxear. Já conseguia ver com clareza as luzes da aldeia
de Rodmell ao fundo.
- Deus nos abençoe e nos salve! - exclamou. - Está uma casa a arder, graças a Deus!
Uma casa levaria, pelo menos, uns bons minutos a arder, o que lhe daria tempo suficiente para conseguir chegar a Rodmell.
- Está um vento maldito que não traz nada de bom a ninguém. - disse, enquanto coxeava ao longo da estrada romana. Conseguia ver o caminho com facilidade e estava
quase a chegar à aldeia quando lhe ocorreu: "Se calhar é a minha casa que está a arder diante dos meus olhos!"
E estava certa.
- Venha ver a casa do velho Joseph Brand em chamas! - gritou um miúdo em pijama, saltando para a sua frente de rompante.
Todos os habitantes da aldeia estavam reunidos à volta da casa, passando baldes de mão em mão com água retirada do poço da cozinha da Monks House. Tentavam apagar
as chamas à baldada, mas o fogo era tão intenso que fez o telhado ruir, precisamente quando a Sra. Gage se aproximou.
- Alguém conseguiu salvar o papagaio? - perguntou, aflita.
- Dê graças a Deus por não estar a senhora lá dentro! - respondeu o reverendo James Hawkesford, o pároco da aldeia. - Não se preocupe com os animais irracionais.
Não tenho dúvidas de que o papagaio sufocou misericordiosamente no seu poleiro.
Mas a Sra. Gage estava decidida a verificar com os seus próprios olhos. Os habitantes da aldeia tiveram de segurá-la, dizendo-lhe que deveria ser 1 louca para querer
arriscar a vida por um pássaro.
- Pobre mulher, - exclamou a Sra. Ford. - perdeu tudo o que tinha, exceto uma velha caixa de madeira com os seus objetos de higiene e uma
camisa de noite. Qualquer um de nós ficaria tresloucado, no seu lugar.
E, posto isto, a Sra. Ford levou-a para casa, oferecendo-lhe guarida. O incêndio foi, entretanto, extinguido e toda a gente voltou para casa.
Mas a pobre Sra. Gage não conseguia dormir. Deu voltas e mais voltas na cama a pensar na sua desgraça e em como conseguiria voltar para Yorkshire e pagar ao reverendo
Samuel Tallboys o dinheiro que lhe devia. Para além disso, sentia-se ainda mais triste ao pensar no destino do pobre papagaio James. Afeiçoara-se ao pássaro e acreditava
que o animal deveria ter um grande coração para lamentar tão profundamente a morte do velho Joseph Brand, que nunca fora carinhoso com ninguém durante toda a vida.
"Que morte terrível para um pássaro indefeso", pensou. Se tivesse chegado a tempo, teria arriscado a sua vida para salvar a dele.
Estava deitada na cama, embrenhada nestes pensamentos, quando uma ligeira pancada no vidro da janela a assarapantou. A pancada repetiu-se três vezes. Saiu da cama
da forma mais célere que pôde e dirigiu-se à janela. Quando lá chegou,
para seu espanto, estava um enorme papagaio no parapeito. A chuva parara, dando lugar a uma bela noite de luar. A princípio, assustou-se, mas logo reconheceu James,
o papagaio cinzento, e ficou extasiada por ver que ele conseguira escapar ao fogo. Abriu a janela, acariciou-lhe várias vezes a cabeça e disse-lhe para entrar. O
papagaio respondeu-lhe, abanando delicadamente a cabeça de um lado para o outro. Em seguida, voou até ao chão, afastou-se alguns passos, olhou para trás como que
a verificar que ela o seguia, e voltou aoparapeito da janela, onde a viúva permanecia boquiaberta. "Os atos do animal têm mais significado do que as pessoas julgam"
pensou.
- Muito bem, James! - disse em voz alta, conversando com o pássaro como se ele fosse um ser humano. - Vou acreditar em ti. Espera só um minuto enquanto me ponho
decente para sair.
E, dizendo isto, atou um avental largo à cintura, desceu sorrateiramente as escadas e conseguiu sair de casa sem acordar a Sra. Ford.
James estava, visivelmente, satisfeito. Pulava energicamente alguns metros à sua frente, em direção à casa incendiada. A mulher seguia-o tão depressa quanto podia.
O pássaro saltitava como se soubesse de cor o caminho pelas traseiras da casa, onde ficava a cozinha. Nada restava dela, a não ser o chão de tijolo, ainda encharcado
da água que lhe tinham atirado para tentar apagar o fogo. A Sra. Gage permanecia pasmada enquanto James saltava de um lado para o outro, bicando aqui e ali, como
se estivesse a testar a rigidez dos tijolos com o bico. Tudo lhe parecia muito estranho e, não fosse a viúva estar habituada a lidar com animais, teria com certeza
perdido a paciência e, muito provavelmente, coxeado de volta para casa. Mas coisas mais estranhas estavam ainda por acontecer. Durante todo aquele tempo, o papagaio
não proferira uma palavra. De repente, entrou num estado de grande euforia, agitando as asas, batendo repetidamente no chão com o bico e exclamando "Não está ninguém
em casa!
Não está ninguém em casa!" com uma voz tão alta e esganiçada que a mulher temeu que a aldeia inteira acordasse.
- Não batas com tanta força, James! Ainda te magoas. - disse, carinhosamente. Mas o pássaro repetia os ataques aos tijolos de forma cada vez mais forte.
- O que poderá querer dizer isto? - questionava-se, enquanto olhava para o chão da cozinha. À luz do luar, podia ver-se uma ligeira irregularidade na colocação dos
tijolos, como se tivessem sido retirados e colocados novamente no sítio, sem ficarem devidamente alinhados com os restantes. O alfinete de ama que usara para prender
o avental serviu para ajudar a escavar os espaços entre os tijolos, que se moviam com facilidade. Conseguiu, rapidamente, retirar um deles e o papagaio saltou para
o tijolo seguinte bicando-o, inteligentemente, e repetindo "Não está ninguém em casa!" A Sra. Gage percebeu que deveria retirá-lo também. Continuaram nesta labuta
até criarem um buraco de cerca de dois metros por um. O papagaio parecia achar o espaço suficientemente grande. Mas para quê?
A dada altura, a velha viúva decidiu descansar um pouco e deixar-se guiar totalmente pelo comportamento do papagaio James. Mas não pôde descansar muito tempo. Depois
de remexer o chão arenoso durante alguns minutos, como uma galinha a esgaravatar a areia, o papagaio encontrou o que, a princípio, parecia ser uma pedra
redonda e amarelada. Ficou tão entusiasmado com a descoberta que a Sra. Gage decidiu ajudá-lo. Para seu espanto, percebeu que o buraco que tinham escavado estava
cheio daquelas pedras redondas e amareladas, tão bem alinhadas que era difícil conseguir movê-las. Mas o que seriam? E por que razão estariam escondidas debaixo
do chão da cozinha? Só depois de retirarem a primeira camada de pedras, e um pedaço de oleado que estava por baixo delas, é que conseguiram ter a visão mais extraordinária
de sempre - ali estavam, fila após fila, maravilhosamente polidas e reluzindo à luz da lua, milhares de moedas de ouro!!!!
Então era este o esconderijo do avarento, que se assegurara de que ninguém o descobriria tomando duas notáveis precauções. Em primeiro lugar, como se provou mais
tarde, mandara construir um fogão mesmo em cima do local onde o seu tesouro estava escondido, de forma a que, se não fosse o incêndio, ninguém teria conhecimento
da sua existência; em segundo lugar, revestira a primeira fileira de moedas de ouro com uma substância pegajosa, cobrindo-a depois com terra para que, se por algum
acaso ficasse exposta, fosse imediatamente confundida com uma pedra vulgar,
Assim sendo, a artimanha do velho Joseph só foi descoberta devido à extraordinária coincidência do incêndio e à astúcia de James.
A Sra. Gage e o papagaio tratavam, agora, de remover do esconderijo todo o tesouro - que continha nem mais nem menos do que três mil moedas - colocando-o no avental
que a viúva estendera no chão. Assim que assentaram a última moeda no topo da pilha, o papagaio voou triunfante e pousou suavemente na cabeça da velha senhora. E
foi nestes preparos que voltaram
para casa da Sra. Ford, a passo lento, pois a Sra. Gage era coxa, como já vos expliquei, e, ainda por cima, o peso do avental era difícil de suportar. No entanto,
conseguiu chegar ao quarto sem ninguém se aperceber da sua visita à casa incendiada.
No dia seguinte, voltou para Yorkshire. O Sr. Stacey levou-a novamente até Lewes mas, desta vez, surpreendeu-se com o peso que a caixa de madeira tinha agora.
Como não era homem de se meter na vida dos outros, concluiu que os generosos habitantes de Rodmell deveriam ter oferecido algumas bugigangas à pobre senhora para
a reconfortarem
pela terrível perda de todos os seus bens no incêndio. Por pura bondade, o Sr. Stacey ofereceu--se para lhe comprar o papagaio por meia coroa, mas a Sra. Gage recusou
a oferta com tal indignação - respondendo que não venderia o pássaro por toda a riqueza das índias -, que o pobre homem depreendeu que a senhora não deveria estar
no seu perfeito juízo, depois de tudo o que lhe acontecera.
Resta apenas dizer que a Sra. Gage voltou para Spilsby sã e salva; levou a caixa de madeira até ao banco e viveu muito feliz e em grande conforto com o papagaio
James e o seu cão Shag até ser muito velhinha.
Só contou toda esta história ao padre (filho do reverendo Samuel Tallboys), no seu leito de morte, acrescentando que tinha a certeza de que a casa tinha sido propositadamente
incendiada pelo papagaio James que, tendo consciência do perigo que ela correra junto à margem do rio, voara para a copa e virara o óleo do
fogão onde estavam a aquecer uns restos para o jantar. Assim, não só a salvou de afogar-se como também lhe mostrou onde estavam as três mil libras que, de outra
forma, nunca seriam descobertas. Esta era, segundo as suas palavras, a recompensa por tratar bem os animais.
O padre julgou que a velha senhora já não dizia coisa com coisa. Mas a verdade é que, assim que se ouviu o seu último suspiro, o papagaio James exclamou "Não está
ninguém em casa! Não está ninguém em casa!" e caiu morto do seu poleiro. O cão Shag morrera uns anos antes.
Os visitantes da aldeia de Rodmell ainda podem ver as ruínas da casa incendiada há cinquenta anos e é comum ouvir-se dizer que, durante a noite, se ouve o papagaio
a bicar o chão de tijolo. Há, também, quem afirme ter visto uma velha senhora com um avental branco, junto às ruínas da casa.
Há cerca de cinquenta anos, a Sra. Gage, uma viúva já de certa idade, vivia na sua casa de campo na aldeia de Spilsby, em Yorkshire. Embora fosse coxa e terrivelmente míope, estava a remendar, da melhor forma que podia, um par de velhos tamancos, pois dispunha apenas de uns míseros xelins por semana. Enquanto martelava no tamanco, o carteiro abriu a porta e atirou-lhe uma carta para o colo.
No remetente lia-se: "Srs. Staggs & Beetle, Rua High Street, nº 67, Lewes, Sussex."
A Sra. Gage abriu a carta, que dizia o seguinte: "Cara senhora; Cabe-nos o dever de a informar da morte do seu irmão, o Sr. Joseph Brand."
- Deus seja louvado! - exclamou. - O meu velho irmão lá se foi!
"Deixa-lhe, em testamento, a sua propriedade" continuava a carta, "que inclui uma casa de habitação, um estábulo, um pequeno canteiro de pepinos, umas calandras, uns carrinhos de mão, etc., etc., na aldeia de Rodmell, perto de Lewes. Lega-lhe, também, toda a sua fortuna, a saber: £3000 (três mil libras esterlinas)."
A viúva quase caiu na lareira, tal foi a alegria. Não via o irmão há muito tempo. Ele nunca lhe respondera aos cartões de boas festas que lhe enviara todos os anos, pela altura do Natal, e ela acreditava que não recebia resposta devido à sua avareza, característica que tinha desde pequeno e que o impedia de gastar uns míseros sentavos no selo. Mas agora tudo parecia correr a seu favor. Com três mil libras, para não falar da casa, etc., etc., ela e a sua família poderiam viver para sempre de forma luxuosa.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_VIUVA_E_O_PAPAGAIO.png
Decidiu que devia visitar a aldeia de Rodmell o quanto antes. O padre da aldeia, o reverendo Samuel Tallboys, emprestou-lhe algum dinheiro para o bilhete e, no dia
seguinte, estavam finalizados todos os preparativos para a sua viagem. O mais importante de todos foi arranjar quem tomasse conta do seu cão, o Shag, durante a sua
ausência. Apesar de pobre, sempre se preocupara com os animais e, muitas vezes, preferia privar-se a ela do que deixar o cão sem comer.
Chegou a Lewes na terça--feira à noite. Naquele tempo, não havia nenhuma ponte sobre o rio em Southease, nem a estrada para Newhaven tinha sido construída. Para
se conseguir chegar a Rodmell era preciso atravessar o rio Ouse a vau. Ainda se podem encontrar vestígios destes locais de água rasa em algumas partes do rio, mas
apenas na maré baixa, quando as pedras que
estão assentes no leito ficam visíveis à tona de água. O Sr. Stacey, o agricultor, seguia para Rodmell na sua carroça e ofereceu-se, gentilmente, para lhe dar boleia.
Chegaram a Rodmell por volta das nove horas, numa noite de novembro. Amavelmente, o Sr. Stacey mostrou-lhe onde ficava a casa que o irmão lhe deixara. Bateu à porta.
Ninguém atendeu. Voltou a bater. Do outro lado, uma voz muito estranha e esganiçada bradou:
"Não está ninguém em casa!"
A Sra. Gage assustou-se de tal forma que, se não tivesse ouvido os passos de alguém a aproximar--se, teria fugido a sete pés. No entanto, uma velha senhora da aldeia
abriu a porta. Era a Sra. Ford.
- Quem foi que gritou lá de dentro "Não está ninguém em casa!"? - perguntou a viúva.
- Maldito pássaro! - exclamou a Sra. Ford, apontando para o papagaio grande e cinzento. - Às vezes, quase me cai o terço das mãos. Fica para ali todo o dia empoleirado,
como uma estátua, a gritar "Não está ninguém em casa!" de cada vez que alguém se aproxima do poleiro.
A Sra. Gage constatou que era, realmente, um pássaro muito bonito, mas as penas, infelizmente, estavam mal tratadas.
- Talvez esteja triste ou apenas com fome - concluiu. Mas a Sra. Ford apressou-se a explicar que tudo não passava de mau feitio;
tinha pertencido a um marinheiro e aprendera a falar no Leste. Contudo, acrescentou que o Sr. Joseph gostava muito dele e lhe pusera o nome de James.
Depois desta curta conversa, a aldeã foi-se embora e, assim que se viu sozinha, a viúva retirou de uma caixinha que trazia consigo um
bocado de açúcar para oferecer ao papagaio, sussurrando-lhe num tom de voz meigo que não lhe ia fazer mal, que era a irmã do seu velho dono que tinha herdado a propriedade
e que tudo faria para que ele fosse um pássaro feliz. Com a ajuda de uma lanterna, percorreu a casa para ver o que o irmão lhe deixara. Dececionou-se amargamente.
Havia buracos em todos os tapetes. Os assentos das cadeiras tinham caído ao chão. Ratos corriam pela lareira. Por entre os buracos do chão da cozinha começavam a
aparecer cogumelos. Não havia uma peça de mobília que valesse um tostão. A Sra. Gage só se conseguia animar ao lembrar-se das três mil libras que permaneciam sãs
e salvas no banco de Lewes.
Estava decidida a partir para Lewes no dia seguinte, a fim de reclamar o dinheiro da sua herança aos advogados Stagg & Beetle, seguindo depois para casa, o mais
rapidamente possível. O Sr. Stacey, que se dirigia para o mercado com uns belos porcos Berkshire, ofereceu-se novamente para lhe dar boleia e, durante a viagem,
contou-lhe histórias terríveis sobre uns jovens que se tinham afogado ao tentarem atravessar o rio com a maré alta. Como se não bastasse, mal a pobre viúva entrou
no escritório do Sr. Stagg, uma nova desilusão a esperava.
- Sente-se, por favor, minha senhora. - disse, com um ar grave e solene. - A verdade - continuou. - é que tem de se preparar
para enfrentar notícias muito desagradáveis. Desde que lhe enviei a primeira carta, estive a analisar cuidadosamente os documentos do Sr. Brand e lamento informá-la
de que não encontro qualquer vestígio das três mil libras. O Sr. Beetle, meu associado, foi pessoalmente a Rodmell e investigou o local com todo o cuidado, mas não
descobriu absolutamente nada - nem ouro, nem prata, nem qualquer valor de outro tipo - exceto um belo pássaro cinzento que a aconselho a vender pelo melhor preço.
Segundo o relato do Sr. Beetle, a linguagem do animal é pouco própria.
Mas isso é irrelevante. Receio que tenha feito a viagem em vão.
O local está em ruínas e os nossos honorários são, como sabe, consideráveis.
A esta altura, o Sr. Stagg silenciou-se e a Sra. Gage percebeu que aquela era a sua deixa para sair. Ficou desorientada com tamanha desilusão.
Não só pedira dinheiro emprestado ao reverendo Samuel Tallboys, como regressaria a casa de mãos a abanar, pois até o papagaio teria de vender para conseguir pagar
o bilhete de volta. Chovia torrencialmente, mas nem por isso o advogado lhe dissera para aguardar que a chuva abrandasse. E, na verdade, a Sra. Gage estava tão fora
de si que já nem sabia o que fazia. Apesar da chuva, atravessou a pé os prados em direção a Rodmell.
Como disse no início, a viúva coxeava
da perna direita. Num dia bom, caminhava devagar, mas, naquele dia, depois de tanta desilusão e atolada nas margens do rio, andava muito mais devagar do que o costume.
O dia foi escurecendo, enquanto a velha senhora se arrastava pela lama que ladeava o rio. À medida que caminhava, resmungava, lamentando-se do seu ardiloso irmão
Joseph que a fizera passar por "tamanho aborrecimento, só para me atormentar" pensou. "Foi sempre um garoto cruel, desde pequeno" continuava nas suas cogitações.
"Gostava de arreliar os pobres dos insetos e lembro-me de uma vez ter tentado cortar o pelo a uma lagarta peluda com uma tesoura, mesmo diante dos meus olhos. Era
um parasita miserável, o meu irmão. Costumava esconder a mesada dentro de uma árvore oca e, se alguém lhe oferecesse uma fatia de bolo com cobertura ao lanche, retirava
a cobertura e guardava-a para comer ao jantar. Não duvido que esteja a arder no inferno neste momento, mas que consolo é que isso me traz?"
Na verdade, não lhe trouxe consolo nenhum pois, absorta nos seus pensamentos, acabou por ir de encontro a uma vaca que seguia ao longo da margem, rebolando, depois,
na lama.
Levantou-se da melhor forma que pôde e seguiu caminho. Parecia-lhe que já estava a caminhar há horas. A noite era escura como breu e não se conseguia ver um palmo
à frente do nariz. De repente, lembrou-se das palavras do Sr. Stace sobre o vau do rio.
- Deus seja louvado, - exclamou. - como vou encontrar o caminho de volta? Se a maré estiver cheia ainda fico sem pé e sou arrastada para o mar num instante! Já tantas
pessoas se afogaram aqui; isto para não falar dos cavalos, das carroças, dos rebanhos inteiros e das medas de feno.
De facto, metera-se num belo sarilho, naquela escuridão e com toda aquela lama. Mal conseguia ver a água, quanto mais saber se tinha chegado ou não ao vau do rio.
Não se viam luzes nenhumas pois, como devem saber, a casa mais próxima era a Asheham House, a residência do Sr. Leonard Woolf. Não havia casas nem chalés daquele
lado do rio que ficassem mais perto. Parecia que nada mais havia a fazer do que esperar pelo nascer do dia. Contudo, na sua idade e com os seus ataques de reumatismo,
era muito provável que morresse de frio. Por outro lado, se tentasse atravessar o rio
era quase certo que se afogaria. O seu estado era tão miserável que não se importaria nada de trocar de lugar com uma das vacas que pastavam no campo. Não havia
mulher mais triste nem mais desgraçada em todo o condado de Sussex. Permanecia em pé, na margem do rio, sem saber se devia sentar-se, nadar ou, simplesmente, rebolar
pela relva molhada e adormecer ou morrer de frio, conforme o seu destino ditasse.
Mas, naquele momento, algo maravilhoso aconteceu. Uma luz incandescente surgiu, como uma tocha gigante, iluminando cada pedaço de relva e revelando-lhe o vau do
rio, a menos de vinte metros de distância. A maré estava baixa e seria fácil atravessá-lo, se a luz não se apagasse antes de ela chegar à outra margem.
- Deve ser um cometa ou qualquer outra monstruosidade maravilhosa! - disse, enquanto atravessava o rio a coxear. Já conseguia ver com clareza as luzes da aldeia
de Rodmell ao fundo.
- Deus nos abençoe e nos salve! - exclamou. - Está uma casa a arder, graças a Deus!
Uma casa levaria, pelo menos, uns bons minutos a arder, o que lhe daria tempo suficiente para conseguir chegar a Rodmell.
- Está um vento maldito que não traz nada de bom a ninguém. - disse, enquanto coxeava ao longo da estrada romana. Conseguia ver o caminho com facilidade e estava
quase a chegar à aldeia quando lhe ocorreu: "Se calhar é a minha casa que está a arder diante dos meus olhos!"
E estava certa.
- Venha ver a casa do velho Joseph Brand em chamas! - gritou um miúdo em pijama, saltando para a sua frente de rompante.
Todos os habitantes da aldeia estavam reunidos à volta da casa, passando baldes de mão em mão com água retirada do poço da cozinha da Monks House. Tentavam apagar
as chamas à baldada, mas o fogo era tão intenso que fez o telhado ruir, precisamente quando a Sra. Gage se aproximou.
- Alguém conseguiu salvar o papagaio? - perguntou, aflita.
- Dê graças a Deus por não estar a senhora lá dentro! - respondeu o reverendo James Hawkesford, o pároco da aldeia. - Não se preocupe com os animais irracionais.
Não tenho dúvidas de que o papagaio sufocou misericordiosamente no seu poleiro.
Mas a Sra. Gage estava decidida a verificar com os seus próprios olhos. Os habitantes da aldeia tiveram de segurá-la, dizendo-lhe que deveria ser 1 louca para querer
arriscar a vida por um pássaro.
- Pobre mulher, - exclamou a Sra. Ford. - perdeu tudo o que tinha, exceto uma velha caixa de madeira com os seus objetos de higiene e uma
camisa de noite. Qualquer um de nós ficaria tresloucado, no seu lugar.
E, posto isto, a Sra. Ford levou-a para casa, oferecendo-lhe guarida. O incêndio foi, entretanto, extinguido e toda a gente voltou para casa.
Mas a pobre Sra. Gage não conseguia dormir. Deu voltas e mais voltas na cama a pensar na sua desgraça e em como conseguiria voltar para Yorkshire e pagar ao reverendo
Samuel Tallboys o dinheiro que lhe devia. Para além disso, sentia-se ainda mais triste ao pensar no destino do pobre papagaio James. Afeiçoara-se ao pássaro e acreditava
que o animal deveria ter um grande coração para lamentar tão profundamente a morte do velho Joseph Brand, que nunca fora carinhoso com ninguém durante toda a vida.
"Que morte terrível para um pássaro indefeso", pensou. Se tivesse chegado a tempo, teria arriscado a sua vida para salvar a dele.
Estava deitada na cama, embrenhada nestes pensamentos, quando uma ligeira pancada no vidro da janela a assarapantou. A pancada repetiu-se três vezes. Saiu da cama
da forma mais célere que pôde e dirigiu-se à janela. Quando lá chegou,
para seu espanto, estava um enorme papagaio no parapeito. A chuva parara, dando lugar a uma bela noite de luar. A princípio, assustou-se, mas logo reconheceu James,
o papagaio cinzento, e ficou extasiada por ver que ele conseguira escapar ao fogo. Abriu a janela, acariciou-lhe várias vezes a cabeça e disse-lhe para entrar. O
papagaio respondeu-lhe, abanando delicadamente a cabeça de um lado para o outro. Em seguida, voou até ao chão, afastou-se alguns passos, olhou para trás como que
a verificar que ela o seguia, e voltou aoparapeito da janela, onde a viúva permanecia boquiaberta. "Os atos do animal têm mais significado do que as pessoas julgam"
pensou.
- Muito bem, James! - disse em voz alta, conversando com o pássaro como se ele fosse um ser humano. - Vou acreditar em ti. Espera só um minuto enquanto me ponho
decente para sair.
E, dizendo isto, atou um avental largo à cintura, desceu sorrateiramente as escadas e conseguiu sair de casa sem acordar a Sra. Ford.
James estava, visivelmente, satisfeito. Pulava energicamente alguns metros à sua frente, em direção à casa incendiada. A mulher seguia-o tão depressa quanto podia.
O pássaro saltitava como se soubesse de cor o caminho pelas traseiras da casa, onde ficava a cozinha. Nada restava dela, a não ser o chão de tijolo, ainda encharcado
da água que lhe tinham atirado para tentar apagar o fogo. A Sra. Gage permanecia pasmada enquanto James saltava de um lado para o outro, bicando aqui e ali, como
se estivesse a testar a rigidez dos tijolos com o bico. Tudo lhe parecia muito estranho e, não fosse a viúva estar habituada a lidar com animais, teria com certeza
perdido a paciência e, muito provavelmente, coxeado de volta para casa. Mas coisas mais estranhas estavam ainda por acontecer. Durante todo aquele tempo, o papagaio
não proferira uma palavra. De repente, entrou num estado de grande euforia, agitando as asas, batendo repetidamente no chão com o bico e exclamando "Não está ninguém
em casa!
Não está ninguém em casa!" com uma voz tão alta e esganiçada que a mulher temeu que a aldeia inteira acordasse.
- Não batas com tanta força, James! Ainda te magoas. - disse, carinhosamente. Mas o pássaro repetia os ataques aos tijolos de forma cada vez mais forte.
- O que poderá querer dizer isto? - questionava-se, enquanto olhava para o chão da cozinha. À luz do luar, podia ver-se uma ligeira irregularidade na colocação dos
tijolos, como se tivessem sido retirados e colocados novamente no sítio, sem ficarem devidamente alinhados com os restantes. O alfinete de ama que usara para prender
o avental serviu para ajudar a escavar os espaços entre os tijolos, que se moviam com facilidade. Conseguiu, rapidamente, retirar um deles e o papagaio saltou para
o tijolo seguinte bicando-o, inteligentemente, e repetindo "Não está ninguém em casa!" A Sra. Gage percebeu que deveria retirá-lo também. Continuaram nesta labuta
até criarem um buraco de cerca de dois metros por um. O papagaio parecia achar o espaço suficientemente grande. Mas para quê?
A dada altura, a velha viúva decidiu descansar um pouco e deixar-se guiar totalmente pelo comportamento do papagaio James. Mas não pôde descansar muito tempo. Depois
de remexer o chão arenoso durante alguns minutos, como uma galinha a esgaravatar a areia, o papagaio encontrou o que, a princípio, parecia ser uma pedra
redonda e amarelada. Ficou tão entusiasmado com a descoberta que a Sra. Gage decidiu ajudá-lo. Para seu espanto, percebeu que o buraco que tinham escavado estava
cheio daquelas pedras redondas e amareladas, tão bem alinhadas que era difícil conseguir movê-las. Mas o que seriam? E por que razão estariam escondidas debaixo
do chão da cozinha? Só depois de retirarem a primeira camada de pedras, e um pedaço de oleado que estava por baixo delas, é que conseguiram ter a visão mais extraordinária
de sempre - ali estavam, fila após fila, maravilhosamente polidas e reluzindo à luz da lua, milhares de moedas de ouro!!!!
Então era este o esconderijo do avarento, que se assegurara de que ninguém o descobriria tomando duas notáveis precauções. Em primeiro lugar, como se provou mais
tarde, mandara construir um fogão mesmo em cima do local onde o seu tesouro estava escondido, de forma a que, se não fosse o incêndio, ninguém teria conhecimento
da sua existência; em segundo lugar, revestira a primeira fileira de moedas de ouro com uma substância pegajosa, cobrindo-a depois com terra para que, se por algum
acaso ficasse exposta, fosse imediatamente confundida com uma pedra vulgar,
Assim sendo, a artimanha do velho Joseph só foi descoberta devido à extraordinária coincidência do incêndio e à astúcia de James.
A Sra. Gage e o papagaio tratavam, agora, de remover do esconderijo todo o tesouro - que continha nem mais nem menos do que três mil moedas - colocando-o no avental
que a viúva estendera no chão. Assim que assentaram a última moeda no topo da pilha, o papagaio voou triunfante e pousou suavemente na cabeça da velha senhora. E
foi nestes preparos que voltaram
para casa da Sra. Ford, a passo lento, pois a Sra. Gage era coxa, como já vos expliquei, e, ainda por cima, o peso do avental era difícil de suportar. No entanto,
conseguiu chegar ao quarto sem ninguém se aperceber da sua visita à casa incendiada.
No dia seguinte, voltou para Yorkshire. O Sr. Stacey levou-a novamente até Lewes mas, desta vez, surpreendeu-se com o peso que a caixa de madeira tinha agora.
Como não era homem de se meter na vida dos outros, concluiu que os generosos habitantes de Rodmell deveriam ter oferecido algumas bugigangas à pobre senhora para
a reconfortarem
pela terrível perda de todos os seus bens no incêndio. Por pura bondade, o Sr. Stacey ofereceu--se para lhe comprar o papagaio por meia coroa, mas a Sra. Gage recusou
a oferta com tal indignação - respondendo que não venderia o pássaro por toda a riqueza das índias -, que o pobre homem depreendeu que a senhora não deveria estar
no seu perfeito juízo, depois de tudo o que lhe acontecera.
Resta apenas dizer que a Sra. Gage voltou para Spilsby sã e salva; levou a caixa de madeira até ao banco e viveu muito feliz e em grande conforto com o papagaio
James e o seu cão Shag até ser muito velhinha.
Só contou toda esta história ao padre (filho do reverendo Samuel Tallboys), no seu leito de morte, acrescentando que tinha a certeza de que a casa tinha sido propositadamente
incendiada pelo papagaio James que, tendo consciência do perigo que ela correra junto à margem do rio, voara para a copa e virara o óleo do
fogão onde estavam a aquecer uns restos para o jantar. Assim, não só a salvou de afogar-se como também lhe mostrou onde estavam as três mil libras que, de outra
forma, nunca seriam descobertas. Esta era, segundo as suas palavras, a recompensa por tratar bem os animais.
O padre julgou que a velha senhora já não dizia coisa com coisa. Mas a verdade é que, assim que se ouviu o seu último suspiro, o papagaio James exclamou "Não está
ninguém em casa! Não está ninguém em casa!" e caiu morto do seu poleiro. O cão Shag morrera uns anos antes.
Os visitantes da aldeia de Rodmell ainda podem ver as ruínas da casa incendiada há cinquenta anos e é comum ouvir-se dizer que, durante a noite, se ouve o papagaio
a bicar o chão de tijolo. Há, também, quem afirme ter visto uma velha senhora com um avental branco, junto às ruínas da casa.
Há cerca de cinquenta anos, a Sra. Gage, uma viúva já de certa idade, vivia na sua casa de campo na aldeia de Spilsby, em Yorkshire. Embora fosse coxa e terrivelmente míope, estava a remendar, da melhor forma que podia, um par de velhos tamancos, pois dispunha apenas de uns míseros xelins por semana. Enquanto martelava no tamanco, o carteiro abriu a porta e atirou-lhe uma carta para o colo.
No remetente lia-se: "Srs. Staggs & Beetle, Rua High Street, nº 67, Lewes, Sussex."
A Sra. Gage abriu a carta, que dizia o seguinte: "Cara senhora; Cabe-nos o dever de a informar da morte do seu irmão, o Sr. Joseph Brand."
- Deus seja louvado! - exclamou. - O meu velho irmão lá se foi!
"Deixa-lhe, em testamento, a sua propriedade" continuava a carta, "que inclui uma casa de habitação, um estábulo, um pequeno canteiro de pepinos, umas calandras, uns carrinhos de mão, etc., etc., na aldeia de Rodmell, perto de Lewes. Lega-lhe, também, toda a sua fortuna, a saber: £3000 (três mil libras esterlinas)."
A viúva quase caiu na lareira, tal foi a alegria. Não via o irmão há muito tempo. Ele nunca lhe respondera aos cartões de boas festas que lhe enviara todos os anos, pela altura do Natal, e ela acreditava que não recebia resposta devido à sua avareza, característica que tinha desde pequeno e que o impedia de gastar uns míseros sentavos no selo. Mas agora tudo parecia correr a seu favor. Com três mil libras, para não falar da casa, etc., etc., ela e a sua família poderiam viver para sempre de forma luxuosa.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/A_VIUVA_E_O_PAPAGAIO.png
Decidiu que devia visitar a aldeia de Rodmell o quanto antes. O padre da aldeia, o reverendo Samuel Tallboys, emprestou-lhe algum dinheiro para o bilhete e, no dia
seguinte, estavam finalizados todos os preparativos para a sua viagem. O mais importante de todos foi arranjar quem tomasse conta do seu cão, o Shag, durante a sua
ausência. Apesar de pobre, sempre se preocupara com os animais e, muitas vezes, preferia privar-se a ela do que deixar o cão sem comer.
Chegou a Lewes na terça--feira à noite. Naquele tempo, não havia nenhuma ponte sobre o rio em Southease, nem a estrada para Newhaven tinha sido construída. Para
se conseguir chegar a Rodmell era preciso atravessar o rio Ouse a vau. Ainda se podem encontrar vestígios destes locais de água rasa em algumas partes do rio, mas
apenas na maré baixa, quando as pedras que
estão assentes no leito ficam visíveis à tona de água. O Sr. Stacey, o agricultor, seguia para Rodmell na sua carroça e ofereceu-se, gentilmente, para lhe dar boleia.
Chegaram a Rodmell por volta das nove horas, numa noite de novembro. Amavelmente, o Sr. Stacey mostrou-lhe onde ficava a casa que o irmão lhe deixara. Bateu à porta.
Ninguém atendeu. Voltou a bater. Do outro lado, uma voz muito estranha e esganiçada bradou:
"Não está ninguém em casa!"
A Sra. Gage assustou-se de tal forma que, se não tivesse ouvido os passos de alguém a aproximar--se, teria fugido a sete pés. No entanto, uma velha senhora da aldeia
abriu a porta. Era a Sra. Ford.
- Quem foi que gritou lá de dentro "Não está ninguém em casa!"? - perguntou a viúva.
- Maldito pássaro! - exclamou a Sra. Ford, apontando para o papagaio grande e cinzento. - Às vezes, quase me cai o terço das mãos. Fica para ali todo o dia empoleirado,
como uma estátua, a gritar "Não está ninguém em casa!" de cada vez que alguém se aproxima do poleiro.
A Sra. Gage constatou que era, realmente, um pássaro muito bonito, mas as penas, infelizmente, estavam mal tratadas.
- Talvez esteja triste ou apenas com fome - concluiu. Mas a Sra. Ford apressou-se a explicar que tudo não passava de mau feitio;
tinha pertencido a um marinheiro e aprendera a falar no Leste. Contudo, acrescentou que o Sr. Joseph gostava muito dele e lhe pusera o nome de James.
Depois desta curta conversa, a aldeã foi-se embora e, assim que se viu sozinha, a viúva retirou de uma caixinha que trazia consigo um
bocado de açúcar para oferecer ao papagaio, sussurrando-lhe num tom de voz meigo que não lhe ia fazer mal, que era a irmã do seu velho dono que tinha herdado a propriedade
e que tudo faria para que ele fosse um pássaro feliz. Com a ajuda de uma lanterna, percorreu a casa para ver o que o irmão lhe deixara. Dececionou-se amargamente.
Havia buracos em todos os tapetes. Os assentos das cadeiras tinham caído ao chão. Ratos corriam pela lareira. Por entre os buracos do chão da cozinha começavam a
aparecer cogumelos. Não havia uma peça de mobília que valesse um tostão. A Sra. Gage só se conseguia animar ao lembrar-se das três mil libras que permaneciam sãs
e salvas no banco de Lewes.
Estava decidida a partir para Lewes no dia seguinte, a fim de reclamar o dinheiro da sua herança aos advogados Stagg & Beetle, seguindo depois para casa, o mais
rapidamente possível. O Sr. Stacey, que se dirigia para o mercado com uns belos porcos Berkshire, ofereceu-se novamente para lhe dar boleia e, durante a viagem,
contou-lhe histórias terríveis sobre uns jovens que se tinham afogado ao tentarem atravessar o rio com a maré alta. Como se não bastasse, mal a pobre viúva entrou
no escritório do Sr. Stagg, uma nova desilusão a esperava.
- Sente-se, por favor, minha senhora. - disse, com um ar grave e solene. - A verdade - continuou. - é que tem de se preparar
para enfrentar notícias muito desagradáveis. Desde que lhe enviei a primeira carta, estive a analisar cuidadosamente os documentos do Sr. Brand e lamento informá-la
de que não encontro qualquer vestígio das três mil libras. O Sr. Beetle, meu associado, foi pessoalmente a Rodmell e investigou o local com todo o cuidado, mas não
descobriu absolutamente nada - nem ouro, nem prata, nem qualquer valor de outro tipo - exceto um belo pássaro cinzento que a aconselho a vender pelo melhor preço.
Segundo o relato do Sr. Beetle, a linguagem do animal é pouco própria.
Mas isso é irrelevante. Receio que tenha feito a viagem em vão.
O local está em ruínas e os nossos honorários são, como sabe, consideráveis.
A esta altura, o Sr. Stagg silenciou-se e a Sra. Gage percebeu que aquela era a sua deixa para sair. Ficou desorientada com tamanha desilusão.
Não só pedira dinheiro emprestado ao reverendo Samuel Tallboys, como regressaria a casa de mãos a abanar, pois até o papagaio teria de vender para conseguir pagar
o bilhete de volta. Chovia torrencialmente, mas nem por isso o advogado lhe dissera para aguardar que a chuva abrandasse. E, na verdade, a Sra. Gage estava tão fora
de si que já nem sabia o que fazia. Apesar da chuva, atravessou a pé os prados em direção a Rodmell.
Como disse no início, a viúva coxeava
da perna direita. Num dia bom, caminhava devagar, mas, naquele dia, depois de tanta desilusão e atolada nas margens do rio, andava muito mais devagar do que o costume.
O dia foi escurecendo, enquanto a velha senhora se arrastava pela lama que ladeava o rio. À medida que caminhava, resmungava, lamentando-se do seu ardiloso irmão
Joseph que a fizera passar por "tamanho aborrecimento, só para me atormentar" pensou. "Foi sempre um garoto cruel, desde pequeno" continuava nas suas cogitações.
"Gostava de arreliar os pobres dos insetos e lembro-me de uma vez ter tentado cortar o pelo a uma lagarta peluda com uma tesoura, mesmo diante dos meus olhos. Era
um parasita miserável, o meu irmão. Costumava esconder a mesada dentro de uma árvore oca e, se alguém lhe oferecesse uma fatia de bolo com cobertura ao lanche, retirava
a cobertura e guardava-a para comer ao jantar. Não duvido que esteja a arder no inferno neste momento, mas que consolo é que isso me traz?"
Na verdade, não lhe trouxe consolo nenhum pois, absorta nos seus pensamentos, acabou por ir de encontro a uma vaca que seguia ao longo da margem, rebolando, depois,
na lama.
Levantou-se da melhor forma que pôde e seguiu caminho. Parecia-lhe que já estava a caminhar há horas. A noite era escura como breu e não se conseguia ver um palmo
à frente do nariz. De repente, lembrou-se das palavras do Sr. Stace sobre o vau do rio.
- Deus seja louvado, - exclamou. - como vou encontrar o caminho de volta? Se a maré estiver cheia ainda fico sem pé e sou arrastada para o mar num instante! Já tantas
pessoas se afogaram aqui; isto para não falar dos cavalos, das carroças, dos rebanhos inteiros e das medas de feno.
De facto, metera-se num belo sarilho, naquela escuridão e com toda aquela lama. Mal conseguia ver a água, quanto mais saber se tinha chegado ou não ao vau do rio.
Não se viam luzes nenhumas pois, como devem saber, a casa mais próxima era a Asheham House, a residência do Sr. Leonard Woolf. Não havia casas nem chalés daquele
lado do rio que ficassem mais perto. Parecia que nada mais havia a fazer do que esperar pelo nascer do dia. Contudo, na sua idade e com os seus ataques de reumatismo,
era muito provável que morresse de frio. Por outro lado, se tentasse atravessar o rio
era quase certo que se afogaria. O seu estado era tão miserável que não se importaria nada de trocar de lugar com uma das vacas que pastavam no campo. Não havia
mulher mais triste nem mais desgraçada em todo o condado de Sussex. Permanecia em pé, na margem do rio, sem saber se devia sentar-se, nadar ou, simplesmente, rebolar
pela relva molhada e adormecer ou morrer de frio, conforme o seu destino ditasse.
Mas, naquele momento, algo maravilhoso aconteceu. Uma luz incandescente surgiu, como uma tocha gigante, iluminando cada pedaço de relva e revelando-lhe o vau do
rio, a menos de vinte metros de distância. A maré estava baixa e seria fácil atravessá-lo, se a luz não se apagasse antes de ela chegar à outra margem.
- Deve ser um cometa ou qualquer outra monstruosidade maravilhosa! - disse, enquanto atravessava o rio a coxear. Já conseguia ver com clareza as luzes da aldeia
de Rodmell ao fundo.
- Deus nos abençoe e nos salve! - exclamou. - Está uma casa a arder, graças a Deus!
Uma casa levaria, pelo menos, uns bons minutos a arder, o que lhe daria tempo suficiente para conseguir chegar a Rodmell.
- Está um vento maldito que não traz nada de bom a ninguém. - disse, enquanto coxeava ao longo da estrada romana. Conseguia ver o caminho com facilidade e estava
quase a chegar à aldeia quando lhe ocorreu: "Se calhar é a minha casa que está a arder diante dos meus olhos!"
E estava certa.
- Venha ver a casa do velho Joseph Brand em chamas! - gritou um miúdo em pijama, saltando para a sua frente de rompante.
Todos os habitantes da aldeia estavam reunidos à volta da casa, passando baldes de mão em mão com água retirada do poço da cozinha da Monks House. Tentavam apagar
as chamas à baldada, mas o fogo era tão intenso que fez o telhado ruir, precisamente quando a Sra. Gage se aproximou.
- Alguém conseguiu salvar o papagaio? - perguntou, aflita.
- Dê graças a Deus por não estar a senhora lá dentro! - respondeu o reverendo James Hawkesford, o pároco da aldeia. - Não se preocupe com os animais irracionais.
Não tenho dúvidas de que o papagaio sufocou misericordiosamente no seu poleiro.
Mas a Sra. Gage estava decidida a verificar com os seus próprios olhos. Os habitantes da aldeia tiveram de segurá-la, dizendo-lhe que deveria ser 1 louca para querer
arriscar a vida por um pássaro.
- Pobre mulher, - exclamou a Sra. Ford. - perdeu tudo o que tinha, exceto uma velha caixa de madeira com os seus objetos de higiene e uma
camisa de noite. Qualquer um de nós ficaria tresloucado, no seu lugar.
E, posto isto, a Sra. Ford levou-a para casa, oferecendo-lhe guarida. O incêndio foi, entretanto, extinguido e toda a gente voltou para casa.
Mas a pobre Sra. Gage não conseguia dormir. Deu voltas e mais voltas na cama a pensar na sua desgraça e em como conseguiria voltar para Yorkshire e pagar ao reverendo
Samuel Tallboys o dinheiro que lhe devia. Para além disso, sentia-se ainda mais triste ao pensar no destino do pobre papagaio James. Afeiçoara-se ao pássaro e acreditava
que o animal deveria ter um grande coração para lamentar tão profundamente a morte do velho Joseph Brand, que nunca fora carinhoso com ninguém durante toda a vida.
"Que morte terrível para um pássaro indefeso", pensou. Se tivesse chegado a tempo, teria arriscado a sua vida para salvar a dele.
Estava deitada na cama, embrenhada nestes pensamentos, quando uma ligeira pancada no vidro da janela a assarapantou. A pancada repetiu-se três vezes. Saiu da cama
da forma mais célere que pôde e dirigiu-se à janela. Quando lá chegou,
para seu espanto, estava um enorme papagaio no parapeito. A chuva parara, dando lugar a uma bela noite de luar. A princípio, assustou-se, mas logo reconheceu James,
o papagaio cinzento, e ficou extasiada por ver que ele conseguira escapar ao fogo. Abriu a janela, acariciou-lhe várias vezes a cabeça e disse-lhe para entrar. O
papagaio respondeu-lhe, abanando delicadamente a cabeça de um lado para o outro. Em seguida, voou até ao chão, afastou-se alguns passos, olhou para trás como que
a verificar que ela o seguia, e voltou aoparapeito da janela, onde a viúva permanecia boquiaberta. "Os atos do animal têm mais significado do que as pessoas julgam"
pensou.
- Muito bem, James! - disse em voz alta, conversando com o pássaro como se ele fosse um ser humano. - Vou acreditar em ti. Espera só um minuto enquanto me ponho
decente para sair.
E, dizendo isto, atou um avental largo à cintura, desceu sorrateiramente as escadas e conseguiu sair de casa sem acordar a Sra. Ford.
James estava, visivelmente, satisfeito. Pulava energicamente alguns metros à sua frente, em direção à casa incendiada. A mulher seguia-o tão depressa quanto podia.
O pássaro saltitava como se soubesse de cor o caminho pelas traseiras da casa, onde ficava a cozinha. Nada restava dela, a não ser o chão de tijolo, ainda encharcado
da água que lhe tinham atirado para tentar apagar o fogo. A Sra. Gage permanecia pasmada enquanto James saltava de um lado para o outro, bicando aqui e ali, como
se estivesse a testar a rigidez dos tijolos com o bico. Tudo lhe parecia muito estranho e, não fosse a viúva estar habituada a lidar com animais, teria com certeza
perdido a paciência e, muito provavelmente, coxeado de volta para casa. Mas coisas mais estranhas estavam ainda por acontecer. Durante todo aquele tempo, o papagaio
não proferira uma palavra. De repente, entrou num estado de grande euforia, agitando as asas, batendo repetidamente no chão com o bico e exclamando "Não está ninguém
em casa!
Não está ninguém em casa!" com uma voz tão alta e esganiçada que a mulher temeu que a aldeia inteira acordasse.
- Não batas com tanta força, James! Ainda te magoas. - disse, carinhosamente. Mas o pássaro repetia os ataques aos tijolos de forma cada vez mais forte.
- O que poderá querer dizer isto? - questionava-se, enquanto olhava para o chão da cozinha. À luz do luar, podia ver-se uma ligeira irregularidade na colocação dos
tijolos, como se tivessem sido retirados e colocados novamente no sítio, sem ficarem devidamente alinhados com os restantes. O alfinete de ama que usara para prender
o avental serviu para ajudar a escavar os espaços entre os tijolos, que se moviam com facilidade. Conseguiu, rapidamente, retirar um deles e o papagaio saltou para
o tijolo seguinte bicando-o, inteligentemente, e repetindo "Não está ninguém em casa!" A Sra. Gage percebeu que deveria retirá-lo também. Continuaram nesta labuta
até criarem um buraco de cerca de dois metros por um. O papagaio parecia achar o espaço suficientemente grande. Mas para quê?
A dada altura, a velha viúva decidiu descansar um pouco e deixar-se guiar totalmente pelo comportamento do papagaio James. Mas não pôde descansar muito tempo. Depois
de remexer o chão arenoso durante alguns minutos, como uma galinha a esgaravatar a areia, o papagaio encontrou o que, a princípio, parecia ser uma pedra
redonda e amarelada. Ficou tão entusiasmado com a descoberta que a Sra. Gage decidiu ajudá-lo. Para seu espanto, percebeu que o buraco que tinham escavado estava
cheio daquelas pedras redondas e amareladas, tão bem alinhadas que era difícil conseguir movê-las. Mas o que seriam? E por que razão estariam escondidas debaixo
do chão da cozinha? Só depois de retirarem a primeira camada de pedras, e um pedaço de oleado que estava por baixo delas, é que conseguiram ter a visão mais extraordinária
de sempre - ali estavam, fila após fila, maravilhosamente polidas e reluzindo à luz da lua, milhares de moedas de ouro!!!!
Então era este o esconderijo do avarento, que se assegurara de que ninguém o descobriria tomando duas notáveis precauções. Em primeiro lugar, como se provou mais
tarde, mandara construir um fogão mesmo em cima do local onde o seu tesouro estava escondido, de forma a que, se não fosse o incêndio, ninguém teria conhecimento
da sua existência; em segundo lugar, revestira a primeira fileira de moedas de ouro com uma substância pegajosa, cobrindo-a depois com terra para que, se por algum
acaso ficasse exposta, fosse imediatamente confundida com uma pedra vulgar,
Assim sendo, a artimanha do velho Joseph só foi descoberta devido à extraordinária coincidência do incêndio e à astúcia de James.
A Sra. Gage e o papagaio tratavam, agora, de remover do esconderijo todo o tesouro - que continha nem mais nem menos do que três mil moedas - colocando-o no avental
que a viúva estendera no chão. Assim que assentaram a última moeda no topo da pilha, o papagaio voou triunfante e pousou suavemente na cabeça da velha senhora. E
foi nestes preparos que voltaram
para casa da Sra. Ford, a passo lento, pois a Sra. Gage era coxa, como já vos expliquei, e, ainda por cima, o peso do avental era difícil de suportar. No entanto,
conseguiu chegar ao quarto sem ninguém se aperceber da sua visita à casa incendiada.
No dia seguinte, voltou para Yorkshire. O Sr. Stacey levou-a novamente até Lewes mas, desta vez, surpreendeu-se com o peso que a caixa de madeira tinha agora.
Como não era homem de se meter na vida dos outros, concluiu que os generosos habitantes de Rodmell deveriam ter oferecido algumas bugigangas à pobre senhora para
a reconfortarem
pela terrível perda de todos os seus bens no incêndio. Por pura bondade, o Sr. Stacey ofereceu--se para lhe comprar o papagaio por meia coroa, mas a Sra. Gage recusou
a oferta com tal indignação - respondendo que não venderia o pássaro por toda a riqueza das índias -, que o pobre homem depreendeu que a senhora não deveria estar
no seu perfeito juízo, depois de tudo o que lhe acontecera.
Resta apenas dizer que a Sra. Gage voltou para Spilsby sã e salva; levou a caixa de madeira até ao banco e viveu muito feliz e em grande conforto com o papagaio
James e o seu cão Shag até ser muito velhinha.
Só contou toda esta história ao padre (filho do reverendo Samuel Tallboys), no seu leito de morte, acrescentando que tinha a certeza de que a casa tinha sido propositadamente
incendiada pelo papagaio James que, tendo consciência do perigo que ela correra junto à margem do rio, voara para a copa e virara o óleo do
fogão onde estavam a aquecer uns restos para o jantar. Assim, não só a salvou de afogar-se como também lhe mostrou onde estavam as três mil libras que, de outra
forma, nunca seriam descobertas. Esta era, segundo as suas palavras, a recompensa por tratar bem os animais.
O padre julgou que a velha senhora já não dizia coisa com coisa. Mas a verdade é que, assim que se ouviu o seu último suspiro, o papagaio James exclamou "Não está
ninguém em casa! Não está ninguém em casa!" e caiu morto do seu poleiro. O cão Shag morrera uns anos antes.
Os visitantes da aldeia de Rodmell ainda podem ver as ruínas da casa incendiada há cinquenta anos e é comum ouvir-se dizer que, durante a noite, se ouve o papagaio
a bicar o chão de tijolo. Há, também, quem afirme ter visto uma velha senhora com um avental branco, junto às ruínas da casa.
Virginia Woolf
O melhor da literatura para todos os gostos e idades