Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VIÚVA INDECISA / Georgette Heyer
A VIÚVA INDECISA / Georgette Heyer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A VIÚVA INDECISA

 

Anoitecia quando a diligência que fazia o trajeto Londres—Little Hamp-ton desviou-se subitamente e entrou no povoado de Billingshurst, e um ne­voeiro frio à altura do joelho começava a avançar furtivamente pela região rural que se avistava indistintamente. O coche parou à porta de uma estalagem e os degraus foram arriados para que uma pessoa pudesse descer. Quem desceu foi uma senhora sobriamente vestida numa peliça de cor cas­tanha e um chapéu redondo, tipo boina escocesa, sem pluma. Enquanto ela esperava que uma grande mala atada com cordas e uma valise fossem retiradas do compartimento sob a boléia, o cocheiro, ao saber que estava alguns minutos adiantado em seu horário, prendeu as rédeas, desceu da bo­léia e, a despeito dos regulamentos que determinavam a conduta dos co-cheiros de diligência, entrou gingando na taberna, à procura de algo revigorante que lhe permitisse realizar o restante da viagem sem compro­meter uma constituição aparentemente enfraquecida.

Nesse ínterim, a passageira ficou parada no meio da rua, com a mala aos seus pés, olhando em redor, um pouco indecisa. Supunha que a fos­sem receber, porém, como a experiência lhe ensinara que um cabriolé se­ria mais comumente empregado para apanhar a nova governanta do que a carruagem usada pelos patrões, ela hesitava aproximar-se do único veí­culo que conseguia distinguir, um brilhante e possante coche, parado do outro lado da rua. Enquanto ela permanecia olhando em redor, contudo, um criado pulou da boléia e, aproximando-se dela, levou a mão ao chapéu e indagou se ela seria a jovem senhora vinda de Londres, atendendo a um anúncio. À sua aquiescência, ele lhe fez uma pequena reverência, apanhou a valise e foi o primeiro a atravessar a rua em direção ao possante coche. Ela entrou no veículo, seu ânimo elevando-se inconscientemente diante dessa atenção inesperada ao seu conforto; e ficou mais encantada ainda com o gesto do criado ao estender uma manta sobre os seus joelhos e expressar sua esperança de que ela não ficasse gelada com o ar da noite. Os degraus foram levantados, a porta fechada, a mala grande depositada na capota e, em poucos instantes, o coche pôs-se em marcha, prosseguindo suave­mente num modo satisfatório de locomover-se, formando um agradável contraste com a diligência sacolejante que a passageira tivera de suportar durante várias horas.

Ela reclinou-se no encosto almofadado, com um suspiro de alívio. A diligência viera apinhada e a viagem fora desconfortável. Perguntava-se a si mesma se um dia chegaria a se acostumar com as economias desagradáveis da pobreza. Desde que tinha tido todas as oportunidades de habituar-se a essa contingência num período de seis anos, parecia improvável. De­salentada, porém determinada a não dar lugar a reflexões melancólicas, afastou seus pensamentos dos infortúnios de sua situação e procurou es­pecular sobre a possível característica de sua nova posição.

Fora sem grandes esperanças que ela partira de Londres bem cedo na­quele dia. Sua patroa, vista apenas uma vez em uma entrevista intimidante no Fenton's Hotel, não deixara nenhuma referência do generoso impulso que a induzira a enviar sua própria carruagem para ir esperar a governanta. A srta. Elinor Rochdale enganara-se ao julgar com severidade tanto seu busto avantajado quanto seus olhos mais proeminentes ainda, e, tivesse qualquer outra opção, não teria hesitado em recusar o cargo em sua casa. Nenhuma outra opção, porém, se lhe oferecia. Geralmente havia jovens cavalheiros em idade sensível nas famílias que solicitavam uma governanta, e a srta. Roch­dale, aos olhos das mamães mais prudentes, era muito jovem e muito bonita para ser uma candidata apropriada para o lugar. Felizmente, todavia — pois as economias da srta. Rochdale eram insignificantes, e seu orgulho ainda muito grande para permitir que ela permanecesse por mais tempo como hós­pede da sua própria ex-governanta —, o único filho da sra. Macclesfield era um robusto menino de sete anos. Segundo o relato da própria mãe, ele era alegre e de um temperamento tão suscetível que era preciso empregar o maior tato e persuasão para controlar suas atividades. Seis anos atrás, a srta. Roch­dale teria se encolhido por causa dos ataques de horror evidentemente reser­vados para ela, mas esses anos todos a ensinaram que a situação ideal dificilmente seria encontrada, e que onde não houvesse criança mimada para tornar a vida da governanta um fardo, provavelmente haveria a obrigação de poupar a bolsa da patroa, executando as tarefas subalternas geralmente con­feridas à ajudante de criada.

A srta. Rochdale aconchegou mais a manta ao redor de suas pernas. Um espesso tapete de pele de carneiro sobre o piso do coche protegia seus pés contra a corrente de ar, e ela os aninhou ali muito grata, quase capaz de imaginar-se mais uma vez a srta. Rochdale de Feldenhall, dirigindo-se a um sarau na carruagem de seu pai. As maneiras corretas do criado en­viado para apanhá-la, a elegância da carruagem com cav alos ajaezados e a libre do lacaio surpreenderam-na um pouco; não julgara que a sra. Mac­clesfield estivesse em condições financeiras tão confortáveis. Ao avistar o coche pela primeira vez, pensara ter visto um escudo na porta, mas na cla­ridade indistinta do lusco-fusco era fácil cometer um engano. Começou a avaliar o provável nível de nobreza do estabelecimento à sua frente, assim como as diferentes características de seus moradores, e uma vez que estava com alegre disposição de ânimo, logo se perdeu nas malhas de várias his­tórias bastante improváveis.

Ela foi chamada de volta ao ambiente que a cercava por um perceptí­vel afrouxar na andadura dos cavalos; ao olhar pela janela, viu que a escu­ridão já se aproximara a essa altura. Não tendo a lua ainda aparecido, era impossível distinguir alguma coisa da região através da qual estava sendo conduzida, mas ela tinha a vaga sensação de um caminho estreito e sem dú- vida tortuoso. Não sabia há quanto tempo estava ali no coche, mas pare­cia um tempo considerável. Lembrava-se de que a sra. Macclesfield des­crevera sua casa em Five Mile Ash como estando a curta distância de Billingshurst, e só podia supor que o caminho para se chegar até lá devia ser mais tortuoso do que o costumeiro. Mas, à medida que o tempo pas­sava, evídenciou-se que ou as noções de distância da sra. Macclesfield eram rústicas, ou ela havia sido deliberadamente mentirosa.

A viagem começava a parecer interminável; contudo, no momento exato em que a srta. Rochdale nutria a suspeita de que o cocheiro se per­dera na escuridão, os cavalos passaram da velocidade de um trote lento e regular para um andar a passo, e o veículo fez uma conversão em um ân­gulo agudo, suas rodas chocando-se com a superfície de cascalho irregular da mal conservada entrada de carruagem. A andadura foi retomada e mantida durante algumas centenas de metros. Então o coche imobilizou-se, e, mais uma vez, o palafreneiro pulou da boléia.

Uma tênue luz argêntea começava a iluminar o panorama, e, enquanto descia do coche, a srta. Rochdale podia ver que a casa na qual estava a ponto de entrar era de um tamanho respeitável, embora construída em um estilo impreciso, e com um telhado de águas de pequena empena. Dois frontões In- m definidos e alguns grupos de chaminés muito altas apareciam em si­lhueta contra o céu noturno; e uma candeia ardendo em um dos aposentos revelava que as janelas eram de rótula.

Poucos momentos antes, o palafreneiro puxara com força o grande sino de ferro, e o eco do seu clangor distante ainda soava quando a porta foi aberta. Um homem idoso, usando uma libre surrada, ficou segurando a porta para a srta. Rochdale entrar na casa, obsequiando-a, enquanto ela passava por ele, com um olhar perscrutador, atento e um tanto ansioso. Ela mal notou isso, pois sua atenção foi atraída pelo ambiente que a cercava, surpreendente o bastante para obrigá-la a deter-se na entrada, olhando em redor de si num grande atordoamento. O que, seu cérebro espantado perguntava, a mulher que ela vira no Fenton's Hotel tinha a ver com toda essa grandeza decadente?

O vestíbulo onde ela se encontrava era um grande aposento modelado irregularmente com uma suntuosa escadaria de carvalho numa das extremidades e, na outra, uma colossal lareira de pedra, grande o suficiente para assar um boi inteiro, pensou a srta. Rochdale, e com uma chaminé que poderia lançar fumaça a qualquer hora que algum imprudente acendesse o fogo no lajeado debaixo dela. O teto de estuque, enegrecido entre as vigas de carvalho, revelava como a observação prosaica da moça era correta. As escadas, como o piso do vestíbulo, não estavam atapetadas e careciam de polimento, longas cortinas de brocado outrora bonitas, mas agora desbotadas e em certos lugares puídas pelo uso, estavam corridas em toda a extensão das janelas; uma pesada mesa tipo console no centro do aposento portava, além de uma película de poeira, um rebenque, uma luva, um jornal amassado, um alguidar de latão embaçado possivelmente destinado a comportar flores, mas, agora, cheio de bugigangas, duas canecas de peltre e uma tabaqueira; uma armadura completa e enferrujada achava-se junto ao final da escadaria; havia um brasão entalhado, pendurado em uma das paredes, com uma confusão de casacos lançados em seu topo; várias ca­deiras, uma com o assento de palhinha rompido, e as outras estofadas de couro já surrado, estavam espalhadas aqui e ali; e nas paredes havia mui­tos quadros com pesadas molduras douradas, três cabeças de raposas roídas pelas traças, dois pares de chifres, além de várias pistolas grandes, usadas outrora pelos cavalarianos, e espingardas para a caça de aves sel­vagens.

O olhar fixo e espantado da srta. Rochdale pousou em seguida no criado que a recebera, e ela achou que ele a fitava com uma espécie de cu­riosidade melancólica. Algo na conduta dele, aliado, por assim dizer, à de­cadência deprimente que a cercava, forçosamente a fez recordar os roman­ces mais fantásticos que se pode obter de uma biblioteca pública. Podia quase imaginar-se ter sido seqüestrada, e foi forçada a concentrar todo o seu bom senso para dispersar a idéia ridícula.

Com sua voz agradável e melodiosa, ela disse:

Eu não julgava que fosse tão distante do ponto de parada da dili­gência. Cheguei mais tarde do que esperava.

Ao todo são quase vinte quilômetros, senhorita — respondeu o mordomo. — Deve vir por aqui, por favor.

Ela o seguiu pelo assoalho irregular até uma das portas que davam para o vestíbulo. Ele abriu-a, mas sua idéia de anunciá-la pareceu consistir ape­nas em um movimento súbito e brusco da cabeça, significando que ela de­via entrar. Após um momento de hesitação, ela entrou, ainda mais aturdida, e, desta vez, consciente de uma pequena sensação de receio.

Achava-se numa biblioteca. Era praticamente tão desordenada como o vestíbulo, mas uma grande quantidade de velas nos candelabros emba­çados das paredes lançava uma claridade generosa no aposento, e um fogo de lenha ardia na lareira, na extremidade mais afastada da sala. Diante desse fogo, com uma das mãos apoiada no consolo e um pé calçado de bota so­bre o guarda-fogo da lareira, encontrava-se um cavalheiro usando culotes de couro de gamo e um paletó cor de amora, olhando fixamente para as chamas crepitantes. Quando a porta se fechou depois que a srta. Rochdale entrou, ele ergueu os olhos em sua direção, de modo avaliador, que pode­ria ter desconcertado uma pessoa menos acostumada a ser examinada como uma mercadoria à venda.

Teria qualquer idade entre trinta e quarenta anos. A srta. Rochdale imaginava que ele devia ser o marido da sua patroa, e ficou bastante enco­rajada ao constatar que, além de ser um homem de aspecto e maneiras dis­tintas, com um semblante bonito e um ar inconfundível de civilidade, estava vestido com esmero e propriedade, em discordância agradável com o am­biente. Na realidade, ele tinha toda a aparência de um homem elegante.

Ele não se moveu para ir ao encontro dela, portanto a srta. Rochdale caminhou para a frente, dizendo:

-— Boa noite. O criado quis que eu entrasse neste aposento, mas talvez...?

Pareceu distinguir uma leve expressão de surpresa no rosto do homem, mas ele respondeu, num tom frio:

ao final da escadaria; havia um brasão entalhado, pendurado em uma das paredes, com uma confusão de casacos lançados em seu topo; várias ca­deiras, uma com o assento de palhinha rompido, e as outras estofadas de couro já surrado, estavam espalhadas aqui e ali; e nas paredes havia mui­tos quadros com pesadas molduras douradas, três cabeças de raposas roí-das pelas traças, dois pares de chifres, além de várias pistolas grandes, usadas outrora pelos cavalarianos, e espingardas para a caça de aves sel­vagens.

O olhar fixo e espantado da srta. Rochdale pousou em seguida no criado que a recebera, e ela achou que ele a fitava com uma espécie de cu­riosidade melancólica. Algo na conduta dele, aliado, por assim dizer, à de­cadência deprimente que a cercava, forçosamente a fez recordar os roman­ces mais fantásticos que se pode obter de uma biblioteca pública. Podia quase imaginar-se ter sido seqüestrada, e foi forçada a concentrar todo o seu bom senso para dispersar a idéia ridícula.

Com sua voz agradável e melodiosa, ela disse:

Eu não julgava que fosse tão distante do ponto de parada da dili­ gência. Cheguei mais tarde do que esperava.

Ao todo são quase vinte quilômetros, senhorita — respondeu o mordomo. — Deve vir por aqui, por favor.

Ela o seguiu pelo assoalho irregular até uma das portas que davam para o vestíbulo. Ele abriu-a, mas sua idéia de anunciá-la pareceu consistir ape­nas em um movimento súbito e brusco da cabeça, significando que ela de­via entrar. Após um momento de hesitação, ela entrou, ainda mais aturdida, e, desta vez, consciente de uma pequena sensação de receio.

Achava-se numa biblioteca. Era praticamente tão desordenada como o vestíbulo, mas uma grande quantidade de velas nos candelabros emba­çados das paredes lançava uma claridade generosa no aposento, e um fogo de lenha ardia na lareira, na extremidade mais afastada da sala. Diante desse fogo, com uma das mãos apoiada no consolo e um pé calçado de bota so­bre o guarda-fogo da lareira, encontrava-se um cavalheiro usando culotes de couro de gamo e um paletó cor de amora, olhando fixamente para as chamas crepitantes. Quando a porta se fechou depois que a srta. Rochdale entrou, ele ergueu os olhos em sua direção, de modo avaliador, que pode­ria ter desconcertado uma pessoa menos acostumada a ser examinada como uma mercadoria à venda.

Teria qualquer idade entre trinta e quarenta anos. A srta. Rochdale imaginava que ele devia ser o marido da sua patroa, e ficou bastante enco­rajada ao constatar que, além de ser um homem de aspecto e maneiras dis­tintas, com um semblante bonito e um ar inconfundível de civilidade, estava vestido com esmero e propriedade, em discordância agradável com o am­biente. Na realidade, ele tinha toda a aparência de um homem elegante.

Ele não se moveu para ir ao encontro dela, portanto a srta. Rochdale caminhou para a frente, dizendo:

-— Boa noite. O criado quis que eu entrasse neste aposento, mas talvez...?

Pareceu distinguir uma leve expressão de surpresa no rosto do homem, mas ele respondeu, num tom frio:

Certo, essas foram as minhas ordens. Por favor, sente-se! Espero que não tenha ficado esperando no ponto de parada da diligência.

Não fiquei, realmente! — respondeu ela, ocupando uma cadeira ao lado da mesa e cruzando as mãos sobre a bolsa em seu colo. — A car­ruagem aguardava por mim. Devo agradecer-lhe por tê-la enviado.

Eu seguramente tinha minhas dúvidas de que houvesse um veículo apropriado nestes estábulos — replicou ele.

. Esta observação, pronunciada como foi em um tom de indiferença, pareceu extremamente estranha para a srta. Rochdale. Ela deve ter mos­trado que estava confusa, pois ele acrescentou, formalmente:

Quero crer que a natureza exata da posição que lhe foi oferecida tenha sido explicada em Londres, não?

Creio que sim — ela respondeu.

—      Decidi que você devia ser trazida para cá diretamente — disse ele. Ela parecia surpresa.

Eu pensei... tinha a impressão... de que este era o lugar para onde deveria vir.

E é — respondeu ele, um tanto severamente. — Contudo, eu real­mente não desejo que deva ficar sujeita a qualquer equívoco. Estou lhe dando a oportunidade para que veja com seus próprios olhos o que pode não lhe ter sido descrito adequadamente, antes de chegarmos a qualquer acordo definitivo. — Seus olhos cinzentos e francos percorreram o aposento desordenado enquanto ele falava, e depois voltaram para o exame que faziam do semblante da moça.

Ela esperava que tivesse sucesso em preservá-lo inalterado. Disse:

—      Eu de fato não o compreendo, senhor. De minha parte, considereime definitivamente contratada quando parti de Londres para vir para cá.

Ele inclinou-se ligeiramente.

—      Oh, sim! Se ainda desejar o lugar!

Ela não estava certa de que desejava, mas a perspectiva de voltar para a cidade para procurar outra colocação obrigou-a a dizer, alegremente:

Farei o possível, senhor, para ocupar o lugar satisfatoriamente. — Ela detectou ironia no olhar firme de espanto dele e ficou embaraçada. Com um rubor ligeiramente intensificado, acrescentou: — Contudo, eu não sa­bia que era o senhor quem me havia contratado. Pensei...

Não era necessário que soubesse — respondeu ele. — Uma vez que você se decidiu favoravelmente ao acordo, nada mais tenho a dizer a res­peito.

Pelo que vira de sua esposa, ela acreditou nisso sem grande esforço; a única surpresa que sentia era de que ele nada mais tinha a dizer a respeito. Contudo, suas maneiras eram muito próprias de um homem acostumado a mandar. Sentindo-se embaraçada, ela disse, depois de uma pequena pausa:

—      Talvez fosse aconselhável eu não perder tempo e travar logo co­nhecimento com meu pupilo.

Ele franziu os lábios.

—      Um termo apropriado! — observou ele secamente. — Infelizmente, seu pupilo, no momento, não se acha no local. Logo o verá. Se o que já deve ter observado não a desanimou, você me encoraja a esperar que sua resolução não enfraquecerá quando for levada à sua presença.

Acredito que não, realmente — respondeu ela, com um sorriso. — Foi-me dado a entender, confesso, que eu poderia achá-lo um pouquinho... um pouquinho alegre, talvez.

Ou é um gênio para entender, madame, ou a verdade não lhe foi dita, se o que entendeu foi isso.

Ela riu.

—      Bem, o senhor é muito franco! Eu não devia esperar que toda a verdade me fosse dita realmente, mas pude captá-la, lendo nas entrelinhas, imagino.

—      É uma mulher corajosa! — disse ele. A curiosidade dela aumentava.

—      Estou certa de que não sou nada disso! Apenas planejo o melhor que posso. Ouso afirmar que ele tem sido um pouco estragado com mimos?

—      Duvido que haja alguma coisa a ser estragada — respondeu ele. O tom frio e imparcial com que ele pronunciou essas palavras levou-a a responder num tom igualmente frio:

Estou convencida de que o senhor não deseja que eu me estenda demais sobre o que acabou de falar, senhor. Estou muito esperançosa de poder ensiná-lo a obedecer-me com o tempo.

Ensiná-lo a obedecê-la? — repetiu ele, com uma forte inflexão de surpresa na voz. — De fato você terá realizado algo importante se tiver su­cesso fazendo isso! Além do mais, terá a honra de ser a única pessoa a quem ele tomou em consideração em toda a sua vida!

Sem dúvida, o senhor...? — Ela não conseguiu concluir.

Meu bom Deus, não! — respondeu ele impacientemente.

Bem... bem, devo aplicar meus melhores esforços — disse ela.

Se pretende ficar, seria mais prudente voltar sua atenção para os males que possa remediar mais facilmente — disse ele, com outro olhar de desagrado pelo ambiente que o cercava.

Ela ficou irritada e permitiu a si mesma responder com um toque de aspereza:

—      Não fui informada, senhor, de que era para preencher o lugar de governanta da casa que fui contratada. Estou acostumada a manter meus próprios aposentos em ordem e limpos, mas posso garantir-lhe que não me ocuparei do controle geral da casa.

Ele deu de ombros e virou-lhe as costas para atiçar com o pé a lenha agora ardendo sem chamas.

—      Você fará como lhe parecer melhor — replicou ele. — Isso não com­pete a mim. Mas tire da cabeça qualquer idéia romântica que possa estar acalentando! Seu pupilo, conforme preferiu chamá-lo, talvez possa ser in­duzido a aceitá-la, mas isto porque eu o forçarei a fazê-lo, e não por qual­quer outra razão. Não se iluda que ele venha a olhá-la com complacência! Eu de fato não espero que fique além de uma semana, nem precisa ficar tanto, a menos que prefira.

Não ficar além de uma semana! — exclamou ela. — Ele não pode ser tão ruim como o senhor quer que eu pense! É um absurdo falar desse modo! Perdoe-me, mas o senhor não deveria falar assim!

Quero que conheça a verdade, que tenha a oportunidade de recon­siderar sua decisão.

Profundamente desanimada, ela só pôde dizer:

Devo fazer o que posso. Confesso, eu não tinha imaginado... mas não estou em condições... em condições de recusar evianamente...

Acho que não tinha imaginado mesmo. Suspeitei disso — disse ele. — Não poderia ter sido de outro modo.

Ela olhou-o atentamente.

—      Bem! Isso é franqueza realmente! Estou certa de que não consigo imaginar por que, depois de me ter contratado, o senhor agora deveria es­tar tão inclinado a me mandar embora!

Não obstante, ele sorriu, o que fez seu semblante um tanto amedrontador parecer muito mais agradável.

—      Sem dúvida é um absurdo — concordou ele. — Você não é o que eu esperava. Devo dizer-lhe, madame, que a considero jovem demais.

A coragem da moça soçobrou.

Não fiz segredo da minha idade, senhor. Talvez eu seja mais velha do que imagina. Tenho 26 anos.

Parece mais jovem — comentou ele.

Espero que não precise denotar, senhor. Asseguro-lhe, não sou inexperiente.

Dificilmente teria tido uma experiência à altura da que se encontra à sua frente — retorquiu ele.

Uma suspeita terrível passou pela mente da srta. Rochdale.

Deus do céu, ele não é... ele por certo não pode ser... perturbado, não é? — exclamou ela.

Nada disso, ele é totalmente equilibrado — respondeu ele. — É ao conhaque, não à loucura, que se atribui a maior parte da sua propensão ao mal.

—      Conhaque! — ela deixou escapar um grito ufocado. Ele franziu o cenho.

—      Conhaque, sim. Eu suspeitava que não tivesse sido informada de tudo — disse ele. — Sinto muito. Tencionei... e, na verdade, ordenei... o contrário.

Agora a srta. Rochdale supunha que não era o seu pupilo mas o pa­trão que estava mentalmente perturbado. Levantou-se de um salto, dizendo com uma firmeza que ela esperava pudesse ocultar seu pânico interior:

Julgo, senhor, que seria melhor se eu me apresentasse sem mais perda de tempo à sra. Macclesfield.

Quem? — perguntou ele, bastante confuso.

Sua esposa! — respondeu ela, retirando-se estrategicamente em di­reção à porta.

Totalmente calmo, ele disse:

—      Eu não sou casado.

Não é casado? — exclamou ela. — Então... Teria eu me equivo­cado? Não é o sr. Macclesfield?

Por certo que não — replicou ele. — Sou Carlyon.

Ele pareceu julgar esta declaração suficiente para informá-la de tudo que possivelmente ela desejasse saber sobre ele. A moça estava completa­mente aturdida e só conseguiu balbuciar:

Queira desculpar-me! Eu pensei... Mas onde, então, está a sra. Macclesfield?

Eu acho que não conheço realmente a dama.

Não a conhece? Esta não é a casa dela, senhor?

Não — respondeu ele.

Oh, houve um terrível engano! — exclamou ela, de modo angustiante. — Não sei como isto pôde suceder! Na verdade, lamento muito, sr. Carlyon, mas creio que me apresentei em casa errada!

Assim parece, senhora.

É a situação mais mortificante! Queira desculpar-me! Mas quando o criado perguntou se eu estava me apresentando em resposta a um anún­cio, julguei... Eu devia ter pedido maiores informações!

Você veio respondendo a um anúncio? — interrompeu ele, er­guendo a sobrancelha. — Não o meu, imagino!

Oh, não! Fui contratada pela sra. Macclesfield para ser governanta de seus filhos... mais especificamente do garotinho. — Contra a vontade, ela começou a rir. — Oh, meu Deus, será que alguma coisa poderia ser mais absurda? O senhor bem pode imaginar que efeito suas palavras me causa­ram!

Imagino que deve ter julgado que estou maluco.

Julguei mesmo. Mas, de qualquer modo, isto não é um caso para rir! Por favor, onde estou, senhor?

Está em Highnoons, madame. Onde gostaria de estar?

A residência da sra. Macclesfield fica em Five Mile Ash — respon­deu ela. — Espero que não seja muito distante daqui, não?

Receio que fique uns 25 quilômetros a leste daqui — esclareceu ele. — Dificilmente chegará lá esta noite.

Meu Deus, senhor, o que vou fazer? Ela pode ter ficado muito ofen­dida, e, sem dúvida, não sei como lhe explicar minha tolice!

Ele não parecia estar ouvindo com cuidadosa atenção. Perguntou de súbito:

Não havia outra moça na diligência que tivesse descido em Billinghurst?

Não, não havia mais ninguém a não ser eu — assegurou-lhe ela.

Calculo que a coragem a abandonou — observou ele. — Não é de admirar.

Deduzo que o senhor também esperava alguém. Na verdade, os acontecimentos tomaram um rumo inesperado. Quem me dera saber como me livrar de tal apuro!

Ele favoreceu-a com outro de seus olhares avaliadores.

—      Bem, ainda podemos tirar bom proveito da situação. Antes de decidir apresentar-se em Five Mile Ash, você poderia considerar a posição que tenho a oferecer, em vez de fazer algo pior.

O senhor não precisa de uma governanta!

De falo. Preciso de uma mulher... de preferência uma mulher respeitavel... que estivesse disposta, condicionalmente, a casar-se com um jovem parente meu — replicou ele. Durante alguns momentos, ela ficou privada de todos os poderes da fala. Ao encontrar a língua finalmente, perguntou:

Está falando sério?

Sem dúvida.

Acho que o senhor realmente deve estar louco!

Não estou não, mas ouso afirmar que assim pode parecer.

 

Para casar-se com um jovem parente seu! — ela exclamou desdenhosamente. — Por certo o cavalheiro cujas propensões maldosas são atri­buídas ao conhaque!

Exatamente.

Sr. Carlyon — disse a srta. Rochdale, sem rodeios —, não estoucom disposição de espírito para gracejos como esse! Queira ter a bondade...

Não estou gracejando com você e nem sou o sr. Carlyon.

Queira me desculpar! Foi o que me disse!

Pronunciou meu nome corretamente, mas seria mais apropriadoque me chamasse de Lorde Carlyon.

Oh — exclamou a srta. Rochdale. — Bem, isso não melhora em nada, senhor!

Não melhora o quê?

Essa... essa sua pilhéria ridícula e fora de propósito!

Minha proposta pode ser ridícula, mas não é uma pilhéria. Há ra­zões pelas quais estou ansioso para ver meu primo casado o mais breve possível.

Não pretendo compreendê-lo, meu senhor, mas se for isso mesmo, seria mais recomendável oferecer seu primo a alguma dama de suas relações.

Indubitavelmente. Mas seu caráter é muito conhecido para torná-lo aceitável a qualquer mulher de suas relações. Nem ele tem mais a reco­mendação de uma fortuna respeitável.

Ora já se viu! — exclamou a srta. Rochdale, mal sabendo se ria ou ficava indignada. — E por que, diga-me, o senhor imagina que eu pu­desse aceitar esse monstro?

Não imagino — respondeu ele calmamente. — Você pode deixá-lo na porta da igreja, se preferir. Na verdade, acho que faria isso.

Ou estou sonhando — disse a srta. Rochdale, mantendo o controle com grande esforço — ou o senhor é de fato maluco!

 

ele parecia um pouco divertido com aquilo, mas apenas respondeu sa­cudindo a cabeça. Bastante exasperada por essa conduta, a srta. Rochdale disse rispidamente:

—      Isso não é maneira de falar! Pode fazer a gentileza de me dizer como chegar a Five Mile Ash antes que seja tarde demais para partir?

Ele lançou um olhar para o relógio sobre o consolo da lareira; como este havia parado, retirou o seu do bolso.

Já é tarde demais — declarou. — Faltam dez minutos para as nove.

Santo Deus! — exclamou ela, empalidecendo bastante. — O que vou fazer?

Desde que pareço ter sido de certa forma responsável por sua si­tuação desagradável, seria melhor que confiasse em mim para cuidar de você.

É muito prestativo, meu senhor — retorquiu ela —, mas prefiro não depositar minha confiança em alguém cuja razão evidentemente está em desordem!

Não seja tola! — replicou ele no mesmo tom que ela mesma pro­vavelmente teria usado ao falar com uma criança impertinente. — Sabe muito bem que minha razão não está nem um pouco em desordem. Você faria bem em sentar-se outra vez enquanto arranjo algo que lhe restaure as forças.

Seu procedimento teve o efeito de acalmar-lhe os nervos exasperados, e ela só pôde reconhecer que sua oferta de algo que lhe reanimasse as for­ças seria recebida com prazer. Não tinha comido nada desde a refeição da manhã. Voltou para a cadeira, mas disse, com desconfiança:

Não sei como pode pretender cuidar de mim, pois com toda a cer­teza não vou me casar com seu primo!

Será como deseja — respondeu ele, puxando o cordão da campai­nha.

Pelo que já vi de sua casa — observou a srta. Rochdale asperamente—, é provável que a campainha esteja quebrada.

Mais do que provável — concordou ele, dirigindo-se para a porta. Mas esta não é minha casa.

A srta. Rochdale levou a mão à testa.

—      Começo a suspeitar que o meu próprio juízo está ficando em de­sordem! — queixou-se. — Se esta casa não é sua nem da sra. Macclesfield, então de quem é?

De meu primo.

De seu primo! Mas não posso ficar aqui!— exclamou ela. — Não pode pretender conservar-me aqui, senhor!

Certamente que não. Seria muito inconveniente — disse ele, e saiu da sala.

Idéias absurdas de uma fuga precipitada passaram pela mente da srta. Rochdale, mas, uma vez que careciam de bom senso, foram rejeitadas. Ficar perambulando a noite toda por uma região rural desconhecida certamente não melhoraria suas dificuldades, e embora o comportamento do seu anfitrião pudesse ser extraordinário, ele não parecia nutrir nenhuma idéia de coagi-la. Portanto, ela ficou sentada tranqüila e aguardou que ele reaparecesse.

Isto ele logo fez, dizendo ao entrar na sala:

Parece não haver nada na casa exceto carne fria, mas ordenei-lhes que fizessem o melhor que pudessem.

Um pouco de chá e pão com manteiga é tudo que preciso — assegurou-lhe ela.

Sua refeição virá imediatamente.

Obrigada. — Ela retirou as luvas e dobrou-as. — Estive pensando no que seria melhor fazer. Há alguma carruagem ou diligência postal, tal­vez, que eu pudesse alugar para me transportar para Five Mile Ash, senhor?

Se isso fosse necessário, eu a transportaria na minha própria car­ruagem, mas dificilmente você granjearia a estima da sua futura patroa che­gando à meia-noite.

A veracidade dessa declaração forçosamente abalou-a muitíssimo. A imagem da temível sra. Macclesfield surgiu em sua mente e quase fez com que ela estremecesse.

Há uma estalagem decente em Wisborough Green, onde poderá hospedar-se por esta noite — sugeriu ele. — Pela manhã, se estiver deter­minada a manter seu propósito, mandarei que a levem a Five Mile Ash.

Fico-lhe muitíssimo grata — balbuciou ela. — Mas o que direi à sra. Macclesfield? A verdade não bastará; ela irá achá-la fantástica!

Sem dúvida será inconveniente. Seria aconselhável que você lhe dis­sesse que se enganou a respeito do dia, e que só chegou naquele instante em Sussex.

Estou com muito medo de que ela possa estar zangada, com razão, e acabe me mandando embora.

Nesse caso, você poderia voltar para mim.

Claro. Para casar-me com seu odioso primo! — exclamou ela. — Agradeço-lhe, ainda não estou reduzida a tão pouco!

Você é o melhor juiz — respondeu ele, imperturbável. — Natural­mente, não sou muito versado nos deveres de uma governanta, mas, portudo que já ouvi dizer, acho que praticamente qualquer outra coisa seriapreferível.

Havia tanta verdade no que ele falou que ela foi obrigada a reprimir um suspiro. Num tom mais brando, disse:

—      Isso mesmo, menos casar com um bêbado, garanto-lhe.

—      É provável que ele não viva muito — declarou ele.

Ela começou a sentir muita curiosidade, agora que seu pânico fora apa­ziguado, parecendo pedir mais informações.

Sua constituição tem sido sempre doentia — prosseguiu ele. — Se não conhecer a morte através da violência, o que não é de modo algum im­provável, o conhaque logo acabará com ele.

Oh! — exclamou a srta. Rochdale debilmente. — Mas por que de­ seja vê-lo casado?

Se ele morrer solteiro, devo herdar sua propriedade — respondeu ele.

Ela só pôde olhá-lo atentamente. Para sua sorte, uma vez que se achava no momento incapaz de encontrar palavras para expressar sua perplexidade, o criado entrou na sala naquele exato instante trazendo uma bandeja com chá, pão com manteiga e carne fria, que colocou sobre a mesa ao lado dela. Ele olhou para Carlyon e disse, com voz preocupada:

O sr. Eustace ainda não veio, meu senhor.

Não tem importância.

Se não estiver em alguma enrascada! — murmurou o homem. — Ele saiu num dos seus repentes, meu senhor.

Carlyon mostrou desinteresse, dando de ombros. O criado suspirou e retirou-se. A srta. Rochdale, depois de ter puxado a cadeira para mais perto da mesa, servindo-se de uma xícara de chá, voltou-se gratamente para a carne de carneiro fria e começou a sentir-se mais capaz de enfrentar as circunstâncias.

Não desejaria parecer vulgarmente curiosa, meu senhor — disse ela —, mas disse que herdaria a propriedade se seu primo morresse sem ca­sar?

Disse.

E não deseja herdá-la?

De modo algum.

Ela fortaleceu-se com um gole de chá.

—      Parece muito estranho! — Foi só no que conseguiu pensar para dizer... Ele aproximou-se da mesa e ocupou uma cadeira defronte a ela.

Ouso afirmar que pode parecer, mas é a verdade. Preciso explicar-lhe que, durante cinco anos nada invejáveis, fui tutor do meu primo. —Ele parou, e ela viu seus lábios se crisparem. Um momento depois, ele con­tinuou, no mesmo tom de voz: — Sua carreira em Eton terminou abrupta­mente, o que levou a maior parte de seus parentes paternos a responsabi­lizar-me por isso.

Ora, mas como poderia ser? — perguntou ela, admirada.

Não faço idéia. Era comum dizerem que se o pai dele não tivesse morrido quando ele era criança ou se minha tia tivesse preferido apontar um de seus cunhados para tutor em lugar da minha pessoa, a tendência do rapaz teria sido totalmente diferente.

Bem, sem dúvida isso parece muito difícil! Mas... queira me per­doar!... não foi estranho que tivesse sido escolhido para ser o tutor dele?O senhor devia ser muito jovem!

Da sua idade. Eu estava com 26 anos. Era bastante natural. Mi­nha tia era a irmã mais velha de minha mãe; ela herdou esta propriedade do meu avô. Minhas propriedades ficam a uns onze quilômetros daqui, e as relações entre as nossas duas famílias têm sido constantes. Eu próprio fiquei sem pai durante muitos anos, uma circunstância que talvez me te­nha tornado mais velho do que minha idade conta. Aos dezoito anos de idade, encontrei-me chefe de uma família cujos membros mais jovens ainda usavam fraldas, praticamente.

Santo Deus! Não me diga que exigiram que o senhor se encarre­gasse de uma família naquela idade! — exclamou a srta. Rochdale.

Ele sorriu.

—      Não, não exatamente assim. Minha mãe na época ainda vivia, mas não gozava de boa saúde, e era natural que eles contassem comigo.

Ela olhou-o, abismada.

Eles?

Tenho três irmãos e três irmãs, madame.

E todos sob sua responsabilidade!

Oh, não! Minhas irmãs agora estão casadas; um dos meus irmãos pertence ao corpo de assistentes de Sir Rowland Hill, na Península Ibérica; outro é secretário de Lorde Sidmouth, no Ministério dos Negócios Interio­res, e, de um modo geral, mora em Londres. Pode-se dizer que só tenho em minhas mãos o caçula. Ele cursa o primeiro ano em Oxford. Mas na ocasião da qual falo, estavam todos em casa. — Novamente o sorriso ilu­minou seus olhos. — Sua experiência mesmo, madame, deve lhe dizer que uma família de seis, com idades variando da infância à adolescência, não é um fardo leve para se lançar sobre uma mulher delicada.

De fato não é! — respondeu ela, sensibilizada. — Mas todos de­viam ter tutores... governantas, não é?

Sem dúvida, perdi a conta de quantos — concordou ele. — Dois dos meus irmãos conheciam as maneiras mais engenhosas de se livrarem de seus preceptores. Mas, afinal, não sei mesmo por que a estou aborre­cendo com esses assuntos! Pretendia apenas explicar como foi que minha tia veio a deixar seu filho sob meus cuidados. Devo confessar que, noto­riamente, fui incapaz de reprimir sua inclinação por todas as formas maisdesastrosas de dissipação ou de influenciá-lo de algum modo para o bem. Só obtive sucesso em transmitir-lhe uma profunda aversão por mim. Não posso culpá-lo: sua aversão não é nada, comparada com os sentimentos que sempre nutri por ele. — Carlyon olhou para o outro lado da mesa, para ela, e acrescentou deliberadamente: — E uma tarefa difícil lidar de modo justo com um jovem por quem não se sente nada a não ser des­prezo e desagrado, madame. Um dos tios do meu primo poderia lhe dizer que sempre procedi duramente com ele. Talvez tenha sido isso: não pre­tendia. Quando fui obrigado a retirá-lo de Eton, coloquei-o sob a res­ponsabilidade de um excelente preceptor. Não resolveu. Foi criada uma grande celeuma em torno da minha recusa em alimentar a idéia de deixá-lo ir para Oxford. Na verdade, havia pouca probabilidade de ele revelar-se candidato qualificado, mas de qualquer modo eu teria feito oposição.

Contudo, fui considerado como tendo procedido levado pelo rancor.

Pergunto a mim mesma se teria dado ouvidos a uma tolice tão mal­dosa! — observou a srta. Rochdale, de modo um tanto caloroso.

Não dei. Depois de várias vicissitudes, o rapaz interessou-se em en­trar para o Exército. Achei que se ele pudesse ser afastado da sociedade que o estava arruinando, talvez tivesse alguma esperança de alcançar a respei­tabilidade; assim, comprei-lhe a patente de alferes. Imediatamente fui acu­sado de estar cobiçando sua herança, e de ter escolhido esse meio para pôr fim à sua existência. Felizmente para a minha reputação, ele foi convidado a pedir demissão antes de ter participado de qualquer serviço ativo. Nessa ocasião ele já era maior de idade, e minha responsabilidade havia chegado ao fim.

Estou surpresa de que não se tenha eximido da responsabilidade dele!

Em grande parte procurei eximir-me; contudo, segundo a interpre­tação dele, em nosso relacionamento íncluía-se a crença de que ele não es­tava livre apenas para penhorar meu crédito, mas para ligar minha assi­natura a várias contas; portanto, era um pouco difícil ignorá-lo.

Ela estava abaladíssima.

E seus parentes paternos acusam o senhor! Palavra de honra, que lástima!

É, isso se torna um pouco cansativo — reconheceu ele. — Culpo a mim mesmo por ter propiciado uma boa dose de pretexto às suspeitas de­les, resgatando certa vez uma hipoteca sobre parte da terra desembaraçada. Minha intenção, de fato, foi das melhores, mas eu não deveria ter caído nessa esparrela. Estivesse ele para morrer agora, e sua casa viesse parar em minhas mãos, iriam dizer abertamente em certas esferas que eu não só o encorajara a cometer todos esses excessos que o levaram à morte, mas que tinha, por meios não muito específicos, evitado que ele se casasse.

Confesso que é muito desagradável para o senhor — disse ela —,mas estou convencida de que a sua própria família e seus amigos não acre­ditariam numa difamação dessas!

Sem dúvida alguma.

O senhor mesmo não deveria permitir-se levar isso em considera­ção.

Não, talvez não devesse, se eu tivesse unicamente a minha pessoa para considerar. Mas esses mexericos podem ser extremamente maldosos. Meu irmão John, por exemplo, talvez os achasse constrangedores, e eu não tenho nenhum desejo de lançar algum empecilho, por mais involuntário que seja, em seu caminho. E Nicky... não, Nicky jamais suportaria saber-me difamado! — Interrompeu-se, como se relembrasse de que se dirigia a uma estranha, e disse abruptamente: — A maneira mais simples de colo­car um ponto final em toda essa tolice é providenciar uma esposa para o meu primo, e isso é o que estou determinado a fazer.

Mas não compreendo corretamente, senhor! Se, como o senhor diz, seu primo lhe tem aversão, por que ele mesmo não procura uma esposa? Ele não pode desejar que o senhor herde seus bens.

De modo algum deseja. Mas nem todas as exposições de seu mé­dico têm sido suficientes para convencê-lo de que sua vida não vale um vin­tém. Ele pensa que há tempo de sobra antes de precisar sobrecarregar-se com uma esposa.

Se é assim, como tem conseguido convencê-lo a se casar com uma mulher desconhecida, que, pelo que deduzi, o senhor tenta encontrar para de através de um anúncio de jornal? É fora de propósito!

—      Eu disse que saldaria seus débitos atuais se ele assim procedesse. Ela olhou-o fixamente, com certa malícia.

Mas ele ficaria com o fardo de uma esposa às mãos. Ou o senhor também se comprometeu a prover a subsistência dessa infeliz mulher?

Naturalmente — respondeu ele de modo banal. — Não houve ne­nhuma sugestão de minha parte de que o casamento devesse significar algoalém de uma cerimônia. Na verdade, eu não pediria a nenhuma mulher paraviver com meu primo.

Ela franziu a testa e, enrubescendo ligeiramente, disse:

Seu objetivo estaria alcançado? Queira me perdoar, penso que não refletiu bem, senhor! Para excluí-lo da sucessão, não deve haver um her­deiro?

Não, isso é irrelevante. A propriedade é legada do modo mais tolo. Meu primo herdou-a do avô dele e meu, através de sua mãe, mas o casa­mento dela com Lionel Cheviot desagradou tanto ao meu avô que ele se esforçou para evitar que ela caísse nas mãos do genro ou da sua família. Com este objetivo, legou-a ao neto, com a condição de que, Eustace mor­rendo solteiro, a casa revertesse para a sua filha mais moça ou o filho delamais velho: na verdade, eu mesmo.

Presumo que isto esteja vinculado.

Não, não é precisamente um vínculo. No dia em que se casar, Eus­tace poderá dispor da propriedade como desejar. É um acordo canhestro, e muitas vezes perguntei a mim mesmo que fantasia pode ter entrado na cabeça do meu avô. Ele tinha umas tendências estranhas, entre as quais uma forte crença de que casamentos precoces são benéficos para homens jovens. Isso pode ter passado pela sua mente quando tomou essas providências. Não posso dizer. — Parou e acrescentou calmamente: — Deve reconhecer, madame, que meu plano atual não é tão fantástico como a princípio parecia.

Ela não pôde deixar de sorrir diante dessa observação, mas disse ape­nas:

—      Será que encontrará alguma mulher disposta a se prestar a um casamento desses? Devo crer que isso represente uma séria dúvida.

—      Ao contrário, espero que possa já ter encontrado — retorquiu ele. Ela sacudiu a cabeça resolutamente.

—      Não, meu senhor, não encontrou mesmo, caso tenha em mente a minha pessoa. Eu não poderia alimentar uma idéia dessas.

Por que não? — perguntou ele. Ela fitou-o com os olhos semicerrados.

Por que eu não poderia? — ela repetiu.

—      Sim, diga-me.

Ela viu-se totalmente incapaz de agir de acordo com essa solicitação, embora estivesse certa de que conhecia as próprias razões. Depois de esforçar-se para colocar isso em palavras, procurou refúgio na evasiva, e respondeu, irritada:

Deve ser perfeitamente óbvia a razão pela qual eu não poderia!

Não para mim.

Aparentemente, ele não seria dissuadido com evasivas. Olhando-o com certo ressentimento, a srta. Rochdale disse:

O senhor de fato não me parece desprovido de bom senso!

E não sou mesmo, nem estou tão preso em minha própria vaidade que não possa ser convencido. Estou esperando que o faça.

Esse discurso muito sensato fez com que a srta. Rochdale sentisse uma irritação bastante injustificável. Ela disse friamente:

Não posso prometer fazer isso. Pode dizer, se lhe aprouver, que ainda tenho orgulho suficiente para recuar diante de tal contrato.

O que me apraz dizer possivelmente não é importante — respon­ deu ele pacientemente. — Essa é a sua razão?

É... não é! O senhor deve saber que é impossível colocar em pala­vras o que sinto! É uma ofensa à minha sensibilidade!

Você é noiva de alguém? — perguntou ele.

Não, não sou.

Talvez esteja na expectativa de ficar então?

Já lhe disse que tenho 26 anos — respondeu a srta. Rochdale brus­camente. — É improvável sob todos os aspectos que um dia eu venha a fi­car noiva!

Nesse caso — respondeu ele prosaicamente — talvez seja muito bom para você realizar esse acordo comigo. — Ele viu como o colorido de suas faces acentuou-se, e sorriu com muita compreensão. — Não, não se enfureça comigo! Reflita um pouco! Você parece estar comprometida com uma vida de trabalho servil. Eu nem sequer sei seu nome, mas é óbvio para mim — era desde o início — que você não nasceu para a posição que agora ocupa. Se está sem expectativa de contrair uma aliança vantajosa, o que o futuro lhe reserva? Você deve estar bastante ciente, também, dos infor­túnios de sua situação sem que se torne necessário chamar sua atenção para o fato. Case-se com meu primo; deve admitir que as vantagens dessa aliança seriam mais importantes que os inconvenientes, os quais, asseguro-lhe, posso entender tão claramente como você mesma. O caráter dele é indigno, mas ele é de uma boa família; como sra. Cheviot, com legal qualificação para assim se intitular, você deve impor respeito. Não precisa fazer outra coisa além de pegar na mão de meu primo na igreja; prometo que ele não a molestará depois. Poderá passar o resto da vida no conforto; poderá até casar-se de novo, pois falo sério quando digo que meu primo não pode es­perar continuar por muito tempo em seu modo de vida atual. Pense seria­ mente antes de me dar uma resposta!

     Ela ouviu-o em silêncio, encontrando seu olhar fixo e firme a princí­pio; em seguida abaixou os olhos para contemplar as próprias mãos, fortemente unidas com os dedos entrelaçados, em seu colo. Para ela era impossível ouvi-lo calmamente. Raras foram as vezes em que havia encontrado um semelhante que entendesse uma parte dos infortúnios da sua situação. Esses conhecidos casuais, quando os possuía, pareciam pensar que a natureza elegante da ocupação que escolhera devia fazê-la aceitável para ela. Mas esse homem estranho, lacônico, com seus olhos um tanto duros e seu modo prosaico quase frustrante, qualificara seu modo de vida de servil. Dissera isso sem um traço de simpatia na expressão ou na dissera, e somente os que já suportaram tal vida poderiam saber quanto isso era verdadeiro.

   Ela esperava que tivesse muita delicadeza de princípios para permitir que a  tentação que sentia superasse seus escrúpulos. Que era uma tentação seria inútil negar. Na verdade, seu futuro era incerto, e a ela estava sendo oferecida — apenas para dar sua mão em um casamento nominal — segurança, talvez até os meios de dispor novamente um pouco dos refinamentos da vida. Permanecer firme na recusa devia ser um esforço violento; só depois de alguns minutos pôde confiar em si mesma para erguer os olhos. Procurou sorrir; foi uma tentativa deplorável. Sacudiu a cabeça.

Não posso. Não me pressione mais, peço-lhe! Já me decidi. Ele curvou-se ligeiramente.

Como desejar.

Julgo que deve perceber que não posso fazer o que me pede, senhor.

 

Você me pediu que não a pressionasse mais, e não o farei. Você será conduzida a Five Mile Ash amanhã, a qualquer hora do dia que préferir.

O senhor é muito bondoso — disse ela, muita grata. — Tomara que a sra. Macclesfield não me faça voltar da sua porta! Estou convencida de que é o que faria se soubesse da verdade!

Você terá tempo para pensar em alguma explicação mais aceitá­vel. Beba seu chá! Quando tiver terminado, eu a conduzirei à estalagem de que falei e providenciarei acomodações para você.

Ela agradeceu-lhe humildemente e apanhou sua xícara. Sentiu alívio ao descobrir que ele não parecia estar contrariado ou mesmo desapontado diante da sua recusa em não concordar com seus planos. Sentiu-se sedu­zida a dizer:

Lamento não atendê-lo, meu senhor.

Não sei de nenhuma razão por que deveria atender-me — respon­deu ele. Tirou a caixa de rape do bolso e abriu-a. — Ainda tem uma vanta­gem sobre mim — observou ele tranqüilamente. — Posso saber seu nome?

Meu nome é Rochdale — respondeu ela, depois de um segundo de hesitação. — Elinor Rochdale.

A mão dele continuou pousada sobre a caixa aberta; ele ergueu os olhos rapidamente e repetiu o nome dela em um tom inexpressivo:

—      Rochdale.

Ela estava consciente do colorido acentuando-se em suas faces; de modo desafiante, completou:

—      De Feldenhall!

Ele inclinou a cabeça em um gesto que não significava nada além de uma civilidade indiferente, mas ela estava certíssima de que ele conhecia sua história. Observava-o inalar o rape, e, de repente, disse:

—      Está certo no que está pensando, senhor: sou a filha de um homem que, entre a especulação desventurada e a mesa de jogo, veio a arruinar-se e a suicidar-se.

Se esperava constrangê-lo, foi condenada ao desapontamento. Ele tor­nou a guardar a caixa de rape no bolso, observando apenas:

Eu não teria imaginado que a srta. Rochdale de Feldenhall tivesse necessidade de ir ao encalço de uma posição de governanta, qualquer que pudesse ter sido a desventura de seu pai.

Meu caro senhor, não tenho um centavo neste mundo, mas o que adquiri! — disse ela mordazmente.

Posso acreditar prontamente, mas você não está, creio, sem parentes.

Novamente o senhor está certo! Mas sou a mais estranha das cria­turas! Se sou uma trabalhadora servil, como o senhor me descreveu, pre­firo receber um salário pelo meu trabalho!

Certamente você não tem sorte com seus parentes — comentou ele.

Bem — disse ela candidamente. — Não posso exatamente cul­pá-los, afinal. Não é uma questão fácil ter uma jovem sem vintém impingida a alguém, estou certa. E, além disso, uma pessoa a cujo nome está ligado um estigma desagradável. O senhor mesmo sabe algo sobre o que significa ser motivo de mexericos; o senhor seria capaz de entender minha decisão em não causar constrangimento nem aos meus paren­tes nem aos meus amigos. O senhor dirá que eu poderia ter mudado meu nome por um outro qualquer! Talvez pudesse ter feito isso se tivesse tido menos orgulho.

Eu não diria uma coisa dessas — respondeu ele calmamente. — Contudo, concordo que tem bastante orgulho... sendo que um pouco dele é falso.

Falso! — exclamou ela, um tanto confusa.

Certamente. Que a levou a exagerar as conseqüências da morte de seu pai.

O senhor não conhece as circunstâncias que o levaram a isso — disse ela em voz baixa.

Ao contrário. E nunca ouvi dizer que você, de algum modo, esti­vesse envolvida.

Talvez esteja certo, e eu permiti a mim mesma ficar demasiado mortificada. Minha primeira experiência sobre como o mundo deve conside­rar nossos assuntos foi bastante infeliz. O senhor precisa saber que, por ocasião da morte de meu pai, eu estava noiva de um certo cavalheiro que... que ficou extremamente aliviado ao se livrar de suas obrigações. — Ela er­gueu o queixo, acrescentando: — Não que eu me importasse a mínima por causa disso, asseguro-lhe!

Ele continuava totalmente impassível.

—      Na verdade, como poderia?

   Ela teria rejeitado qualquer expressão de piedade, mas sentiu-se irritada com essa reação insensível, e disse, um tanto rispidamente:

_ _- Bem, não é uma coisa muito agradável ter o noivado desfeito, afinal.

—      É verdade, mas a constatação de que felizmente estava livre de um mau negócio logo deve ter suavizado sua mortificação, imagino.

Um brilho relutante tomou posse dos olhos dela.

—      Não tenho a mínima idéia, meu senhor, dos motivos pelos quais o extremo bom senso de suas observações me induziria a não ser benevolente com o senhor, mas assim é! — disse ela. — O senhor faria bem em conduzir-me à sua decente estalagem antes que eu seja motivada a responder-lhe em um estilo muito inadequado as nossas diferentes posições sociais

           Ele sorriu.

—      Ora, lamento se a irritei, srta. Rochdale. Mas não posso imaginar que expressões de simpatia de minha parte poderiam de algum modo beneficiá-la ou ser, na verdade, aceitas, aceitas por você. Ela começou a calçar as luvas.

Como essa sua característica de ser sempre precisamente certo é odiosa! Seus amigos de um modo geral sentem-se extraordinariamente tolos quando estão com o senhor?

Como sou um felizardo por ter muitos amigos, creio que não — respondeu ele, com seriedade.

       Ela riu e levantou-se. No momento em que assim o fez, uma sineta ressoou vigorosamente, como se puxada por mão muito ansiosa. Ela sobressaltou-se volveu os olhos para Carlyon, com uma expressão de indagação consternada. Ele também se levantara e se dirigira à porta, dizendo:

Sem dúvida alguma é meu primo. Por certo não vai querer conhecê-lo. Não precisa ficar assustada. Não o deixarei entrar nesta sala.

Mas a casa é dele, afinal! — disse ela, achando graça. — Imagino que ele não irá me devorar!

É pouco provável, creio eu. Mas possivelmente estará bêbado, e eu detestaria sujeitá-la a mais algum aborrecimento além do que já sofreu.

     O criado devia estar mais próximo do que qualquer um dos dois poderia saber, pois antes que Carlyon pudesse chegar até a porta, ouviram-se vozes no vestíbulo, um ruído de passos apressados soou e um jovem cavalheiro esguio, irrompeu justamente na sala, exclamando numa entonação de alivio sincero:

—      Oh, Ned, graças a Deus que está aqui! Eu quase fui até em casa,só que Hitchin me avisou no último momento que você tinha vindo para cá numa situação extremamente difícil! Na verdade, não sei o que deve ser feito, e pensei que seria mais aconselhável chegar até você imediatamente, mesmo que não fique muito satisfeito comigo!  

   um olhar de relance para este jovem de cabelos louros, de feições sadias, com seus olhos azuis francos e faces bronzeadas, fora suficiente para convencer a srta. Rochdale de que, fosse quem fosse, sem dúvida não era o primo dissoluto de Carlyon. Um segundo olhar foi preciso para lhe per­mitir distinguir uma semelhança indefinível com Carlyon, pois não era acen­tuada. Obviamente que se achava num estado de grande agitação e parecia bastante assustado. Seu conhecimento de Carlyon, embora insuficiente, impediu-a de sentir qualquer surpresa diante da sua reação contida às pa­lavras impetuosas do rapaz.

—      Sim, certamente foi a melhor coisa a fazer — disse ele. — Mas não posso acreditar que haja necessidade de toda essa comoção, Nicky. O que esteve fazendo?

O irmão caçula arrancou do peito um suspiro profundo e sorriu-lhe fascinado.

—      Oh, Ned, você sempre faz um sujeito sentir que não há nada tão desesperadamente ruim afinal! Mas na verdade há! Lamento muitíssimo, mas eu matei Eustace Cheviot!

 

UM SILÊNCIO traumático abateu-se sobre o aposento. Carlyon ficou completamente imóvel, lançando um olhar atento para o irmão sob as so­brancelhas subitamente franzidas. Nicky retribuiu o olhar, escusatoriamente, mas confiante. Ele fazia a srta. Rochdale lembrar-se fortemente de um filhote de cachorro que, depois de ter mastigado o sapato do dono, não estava certo de obter aprovação.

Foi Carlyon quem quebrou o silêncio:

Vai haver o diabo se o matou! — disse ele calmamente.

Matei sim — afirmou Nicky. — - E sei que você não vai gostar, Ned. Eu realmente jamais pretendi fazer uma coisa dessas! Sabe, era... Bem, você sabe como ele...

Espere um momento, Nicky! Conte-me desde o princípio! O que você fez em Sussex?

Oh, eu fui suspenso! — explicou Nicky. — Estava indo para casa quando...

Por quê? — interrompeu Carlyon.

Bem, não é nenhuma coisa ruim, Ned. Sabe, havia um urso dan­çarino...

—      Oh — exclamou Carlyon. — Compreendo. Nicky esboçou um largo sorriso.

Sabia que compreenderia! Keighley estava comigo... provocando a maior confusão, você sabe! E; é claro, quando vi aquele urso... bem, tive de tomá-lo emprestado, Ned!

É claro — Carlyon concordou secamente.

O Cabeleira disse que eu o roubei, mas é mentira! Como se eu fizesse uma coisa dessas! Isso me deixou enfurecido, posso lhe assegurar! Bem, não me importo por ele me tratar como um batedor de carteira só por ter instigado o animal a fazer dois daqueles graúdos e subirem numa árvore -_ e fez mesmo, Ned! Foi a coisa mais espetacular que já se viu na vida!

Acho provável, mas nunca vi.

Não viu mesmo, e quem dera que tivesse visto, pois acho que teria gostado. Bem, lá estava ele, e naturalmente eu esperava que tivesse de gas­tar todos os meus trocados ou quase isso, e nem fiz caso. Mas por outro lado Como eu disse, o deão afirmava que eu tinha roubado o urso, apesar de eu lhe contar que apenas o tinha tomado emprestado; acabei me irritando, dizendo que não precisava roubar, porque se você soubesse que eu queria um urso, era muito provável que me desse um...

Seria a última coisa no mundo que eu lhe daria.

Bem, eu não quero um urso; não saberia o que fazer com ele. Mas não nego que o que eu disse deixou o Cabeleira de mau humor, pois, resu­mindo a história, estou suspenso o resto do período. Mas não acho que ele ficou tão zangado assim, você sabe, porque em primeiro lugar ele não gosta de um dos graúdos atrás dos quais o urso correu, e, em segundo lugar, ga­ranto que ele piscou o olho, porque eu vi. Ele é um homem de grande valor.

Muito bem, e o que aconteceu depois?

Oh, então, é claro que eu tinha de vir para casa! Keighley me le­vou até Londres em seu novo faéton. Ele tem a mais linda parelha de baios, Ned! Duas éguas que fazem uma marcha regular de 25 quilômetros por hora e...

Esqueça isso! Quero saber o resto da história.

Oh, sim! Bem, de Londres tive que vir o resto do caminho na dili­gência para Wisborough Green...

Por que, em nome de Deus?

Oh, algibeira vazia! Para lhe dizer a verdade, depois que paguei minha passagem só me restaram algumas moedas de meio xelim.

Isso posso acreditar muito bem, mas você não poderia ter ido para Mount Street?

Poderia, mas achei que era muito provável que John estivesse lá, e você sabe como ele é, Ned! Teria ficado arengando sem parar, e eu não me importo se você me repreende, mas eu não queria ter John me pregando sermões, porque ele não é meu tutor, afinal, e isso só me deixa furioso!

Você está totalmente sem sorte, porque John está em casa.

Sim, eu sei que está; Hitchin me contou. Gostaria que não estivesse, porque ele é bem capaz de amarrar a cara a respeito do que aconteceu e dizer que eu não tinha o direito de ter feito aquilo, como se ele não tivesse feito o mesmo, como eu sei que teria feito; porque, com todos os seus jei­tos maçantes, ele é uma pessoa correta, não é, Ned?

É sim; e o que é isso que ele teria feito?

Eu já ia chegar lá. Quando desci em Wisborough Green, pensei em entrar no Buli e pedir emprestado o cabriolé do velho Hitchin para que me conduzisse até a Mansão. Jem disse que ele estava no salão de jantar, eu entrei; ele estava lá, e também aquele maldito sujeito, Eustace. Tudo teria ficado certo e seguro se não tivesse sido por aquilo, Ned!

Havia mais alguém no salão?

         -   Não, só Hitchin e eu. Bem, fui muito educado com Eustace, e ele também comigo. Hitchin disse que eu poderia levar o cabriolé emprestado e perguntou se eu gostaria de comer alguma coisa enquanto o matungo es­tava sendo atrelado. Eu estava terrivelmente faminto, posso lhe garantir, e Hitchin tinha um belo pernil lá, portanto eu disse que sim. E foi quando tudo começou. Porque, enquanto eu comia o pernil, Eustace se sentou ali, resmungando, num acesso de mau humor. Você sabe como ele faz! Eu nãoestava prestando muita atenção nele, e não teria prestado mesmo, só que ele começou a falar sobre você, Ned. — Ele parou, e suas feições juvenis se contraíram. Observando-o com curiosidade, a srta. Rochdale julgou que ele rilhava os dentes. — Ele disse certas coisas que não havia como suportar!

—      Não havia como suportar, eu compreendo. Ele estava alto, Nicky? Nicky deu sua opinião:

—      Bem, ele não estava bêbado de ser carregado — explicou. — Apenas um pouquinho tocado, você sabe como é. Como ele está sempre. Eu o avisei que não ficaria ali do lado dele enquanto ele ofendesse você, mas tudo em vão. Ele disse... Bem, não interessa! Derrubei-o com um soco... e John teria feito o mesmo!

—      Teria, esqueça isso! Continue!

—      Ele jamais suportaria que alguém o mandasse calar a boca, e eu...joguei-o ao chão com um soco e tanto! Ele estava disposto a me matar!Levantou-se e veio na minha direção; antes que um dos dois pudesse mu­dar de idéia, já estávamos em atividade, na maior pancadaria! Joguei-o ao chão novamente, a mesa foi junto de roldão, e todos os pratos e as coisas foram parar no chão, inclusive o facão que Hitchin usara para trinchar o pernil . Por Deus, Ned, Eustace tem um parafuso frouxo, impressionante! Sabe que ele agarrou aquele facão e tentou me apunhalar com ele? Tive­mos uma luta dos diabos, e lá estava Hitchin, procurando me ajudar, ar­rancando o facão da mão dele e só atrapalhando e... Oh, Deus, Ned, não sei como aconteceu, e juro que jamais pretendi fazer aquilo! Eu tinha agar­rado o facão e de repente ele o soltou... ou ele deu um passo em falso ou foi Hitchin tentando agarrá-lo... ainda assim não pretendo dizer que foi culpa de outra pessoa, mas minha!... seja lá como for, ele caiu para a frente, e antes que eu tivesse conhecimento... antes que eu tivesse tempo de me mover...! — Ele interrompeu-se, cobrindo o rosto com as mãos.

Na verdade foi um acidente, não?

Sim, foi um acidente. É claro que foi um acidente! Ora essa, en­tão você acha que eu...

Não, certamente que não. Mas não há necessidade de ficar tão agi­tado, se é o que aconteceu. O caso não é desesperador.

Oh, Ned, você acha mesmo? Terei de me submeter a julgamento? Eles vão dizer que assassinei Eustace? Pois imagino que foi isso que fiz, embora não pretendesse.

Nada disso! Não seja tolo, Nicky! Quanto a ser submetido a jul­gamento, isso não acontecerá. Você terá de enfrentar um inquérito que se realiza em casos de morte suspeita, mas o testemunho de Hitchin deve isentá-lo de culpa.

Oh, sim! — exclamou Nicky ingenuamente. — Hitchin me disse para ficar calmo, porque se tivesse sido dez vezes pior, ainda assim ele ju­raria por todos os demônios do inferno a nosso favor!

Acho provável que ele possa ter dito isso, mas seria aconselhável você não ficar repetindo.

Não, claro que não. Além disso, ele só tem que dizer a verdade, pois aconteceu exatamente como lhe contei. E não que eu lamente que ele esteja morto, porque não lamento, mas jamais pensei que seria tão horrível! Quando penso no modo como a faca penetrou em Eustace, fico com­pletamente engulhado!

Não tem utilidade nenhuma você continuar pensando nisso.

Não mesmo. Bem, não vou pensar, mas posso lhe garantir, Ned, isso quase me faz desejar que não tivesse sido suspenso de modo algum.

Nesse instante, a srta. Rochdale, que durante o tempo todo ficara de pé ao lado da mesa, ouvindo com um interesse cada vez maior a narrativa ingênua do jovem sr. Carlyon, foi denunciada ao deixar escapar um som entre um engasgo e um grito sufocado. Isso levou a cabeça de Carlyon a se virar rapidamente; ele disse:

Nós dois negligenciamos nossas maneiras. Permita-me apresentar-lhe meu irmão Nicholas, srta. Rochdale. Nicky, você não conhece a srta. Rochdale, penso eu.

Oh, não! Queira me perdoar! Não notei imediatamente... Como vai? — gaguejou Nicky, fazendo sua reverência.

Ela estendeu a mão.

Por favor, não se incomode! Era muito natural que não percebesse. Eu deveria ter deixado você com seu irmão, mas não sabia como sair desta casa sem me atrapalhar, e não tinha uma idéia muito clara do lugar para onde deveria ir. Talvez, meu senhor, eu pudesse aguardá-lo em...

Não, eu lhe peço que continue sentada, srta. Rochdale. Não a deterei por muitos minutos mais, pelo menos espero.

Ned, por favor, não diga isso, sei muito bem que você não po­de ter gostado do acontecido! — Nicky desatou a falar. — E na verda­de eu sabia sem dúvida que você deveria me amaldiçoar por colocá-lo nesse apuro, pois é claro que vejo que é exatamente o que fiz, embora não pretendesse, e Bedlington e o resto deles vão declarar que você que­ria que eu provocasse uma briga com Eustace, e não consigo ver como tudo isso vai acabar!

Realmente não gostei nem um pouco do ocorrido — replicou Carl­yon —, só que haveria pouquíssimo bom senso de minha parte em amaldiçoá-lo pelo que você não pôde evitar. Foi uma grande desgraça, mas devemos confiar que inverteremos a situação. Acho que isso é provável. O facão penetrou em algum órgão vital? Ele morreu na hora?

Oh, não! Na verdade, a princípio eu não pensei... parecia tão im­provável que eu... Mas quando Greenlaw o viu...

Greenlaw está lá? — interrompeu Carlyon.

Está... oh, está! Bem, é claro que assim que eu vi o que tinha ocor­rido, corri imediatamente para buscá-lo. Achei que você diria que eu de­veria agir assim, embora jamais imaginasse que fosse alguma coisa que não pudesse ser facilmente reparada. Mas Greenlaw disse que ele não passa desta noite e...

Você está dizendo que Eustace ainda está vivo? — perguntou Carl­yon bruscamente.

Eu não sei, mas imagino que sim. Greenlaw disse que não pode­riam ser muitas horas, mas...

Bom Deus, Nicky, por que não me contou isso antes? A questão adquire um aspecto totalmente diferente dessa maneira!

Melhora? — perguntou Nicky, esperançoso.

—      É mais do que certo! No mínimo, uma conseqüência funesta pode ser afastada. Como chegou aqui? No cabriolé do Hitchin?

—      Sim... e agora, pensando bem, eu o deixei parado lá fora, portanto seria aconselhável eu...

—      Matthew pode levá-lo de novo para Wisborough Green. Diga-lhe isso! Você encontrará minha carruagem no pátio do estábulo; peça a Steyning que o leve para a Mansão e diga que não precisarei mais dele esta noite. Agora vá, Nicky! E preste bem atenção: não fale disto a ninguém, exceto John!

Certo, mas Ned, eu de bom...

Não, faça como mandei!

Certo, mas onde você vai, Ned?

 

Vou ver Eustace, é claro, ver o que posso fazer para reparar essa confusão.

Bem, acho que eu deveria ir com você. Pois afinal...

Você só iria atrapalhar, e muito. Cumprimente a srta. Rochdale e desapareça!

Ele foi obedecido, mas com relutância. Quando a porta se fechou de­pois da saída do rapaz, Carlyon virou-se para Elinor e disse, sem preâmbulos:

É uma circunstância auspiciosa que esteja aqui. Imagino que não preciso explicar-lhe que o homem que agora se encontra em Wisborough Green é meu primo.

De fato não precisa! Já concluí que ele deve ser o homem com quem eu devia me casar.

Ele é o homem com quem você vai se casar — replicou ele, com decisão.

Ela olhou-o atentamente.

O que está pretendendo dizer?

Você ouviu meu irmão: Cheviot ainda não está morto. Se pudermos chegar a Wisborough Green enquanto ele ainda respira e está de posse de seus sentidos, você poderá se casar com ele, e a sua propriedade ficará longe das minhas mãos. Vamos, não tenho tempo a perder.

Não! — ela exclamou. — Não, não farei uma coisa dessas!

Você precisa fazer; agora a questão se tornou tão grave que eu não posso permitir que fale até esgotar seus argumentos. Enquanto não havia ne­nhuma perspectiva imediata da morte de Eustace, eu poderia respeitar os es­crúpulos que a levavam a recusar casar-se com ele, mas tudo isso mudou. Ao fazer o que lhe digo agora, você não correrá nenhum risco de descobrir con­seqüências desagradáveis no futuro. Será viúva antes do amanhecer.

Há uma conseqüência que permanece imutável! — retorquiu ela.— O senhor está me pedindo que eu me venda, que me case com um homem moribundo pelas vantagens que isso possa me trazer, e todos os sentimentos devem ficar ofendidos por tais...

Não estou fazendo uma coisa dessas. Não lhe ofereço nada.

—      O senhor disse... deu-me a entender que eu devia me tornar, palavras sem rodeios, sua dependente!

O que eu disse uma hora atrás já não é mais pertinente. Estou lhe pedindo que me ajude.

Oh, isso é errado! Eu sabia que era errado, e uma loucura também! — exclamou ela, apertando as mãos, com emoção. — Como pode me co­locar numa posição dessa? Não percebe...

Sim, percebo, mas no momento não estou pensando muito em você. Comprometo-me a protegê-la com toda a minha influência contra mexericos escandalosos, e creio que sei como agir nesse sentido, mas tudo isso é para o futuro.

Oh, o senhor é abominável! — disse ela, indignada.

—- Sou qualquer coisa que desejar, srta. Rochdale, mas haverá tempo suficiente para me dizer isso mais tarde. Agora vou buscar meu coche. Não demorarei muito.

—      Lorde Carlyon, não irei com o senhor!

Ele parou, com a mão na porta, e olhou para trás.

—      Srta. Rochdale, tem sido bastante franca comigo e eu com você. Ambos conhecemos as circunstâncias de cada um. Agora lhe digo que ao fazer como lhe mando, nada tem a perder. Não tenha medo de que o mundo irá olhá-la de esguelha! Curiosidade e conjecturas talvez haja, mas quem ousará lançar criticas sobre você enquanto for reconhecida por Carlyon? Comporte-se como uma mulher sensata que acredito que seja, e não faça tempestade num copo d'água. Bem, já fiquei falando tempo demais e pre­ciso ir apanhar meu coche.

Ela ficou sem uma palavra para dizer. A convicção de que o caso não era tão simples, quase banal, como parecia quando ele o descrevia, não po­dia ser afastada; porém, quer devido ao fato de estar muito cansada pelos acontecimentos do dia, quer por causa do seu reconhecido receio de ter de se apresentar em Five Mile Ash pela manhã com uma trêmula desculpa pouco convincente nos lábios, ela se sentia totalmente incapaz de continuar discutindo ou desafiar alguém que parecia muito acostumado a mandar na vida dos outros para tolerar qualquer oposição à sua vontade. Assim, quando o velho criado entrou na sala poucos minutos mais tarde para lhe dizer que Lorde Carlyon aguardava por ela na porta, a moça levantou-se humildemente da cadeira e acompanhou-o até o coche. Ela pôde ver, em pleno luar agora, que sua mala grande e a valise já estavam atadas na bo-léia; por absurdo que pareça, isso dava a impressão de resolver a questão. Ela segurou a mão que Carlyon lhe havia oferecido e subiu na carruagem ao seu lado. Os cavalos estavam inquietos, mas ele os mantinha firmes.

—      Receio que ficará com frio — disse ele, numa atitude de censura, examinando o agasalho dela. — Barrow, vá apanhar um sobretudo pesado para mim, por favor! Um dos do sr. Cheviot: isso não especifica qual. Acon­chegue bem a manta à sua volta, srta. Rochdale; felizmente, só temos uns dez quilômetros a percorrer, e a noite está ótima.

Ela fez como ele recomendou, dividida entre o divertimento e a humi­lhação. As maneiras de Carlyon não demonstravam nem alívio nem triunfo diante da capitulação da moça. A srta. Rochdale desconfiava que não ocor­rera ao lorde que ela poderia não fazer como ele desejava, e começou a cogitar seriamente que ele estava precisando com urgência de uma humilha­ção astuciosa.

0       criado tornou a aparecer com um pesado sobretudo de viagem, que entregou a Carlyon. A srta. Rochdale foi envolta nele; os cavalos moveram-se rapidamente em seus arreios, e a carruagem tomou impulso para a frente, em bom andamento. Assim que atravessaram os portões, a marcha foi ace­lerada de um modo um tanto alarmante. Carlyon disse:

Espero que não faça objeção a viajar mais rápido. É bastante se­guro: esta estrada me é muito familiar.

Sim, essa é uma maneira de falar muito interessante — respondeu Elinor —, quando sabe muito bem que não tem a mínima intenção de di­minuir esta marcha chocante, diga eu o que disser.

Na opinião dela, ele dava a impressão de que estava se divertindo.

Certo. Contudo, você realmente não precisa ficar ansiosa. Eu nãoa deixarei cair.

Não estou ansiosa — respondeu ela friamente. — O senhor me pa­rece ser um cocheiro competente.

—      Sem dúvida você seria um bom juiz, pois seu pai também o era. Ela foi apanhada desprevenida, e respondeu pensativamente:

—      Ele era, não é mesmo? Lembro-me... — Ela conteve-se, incapazde continuar.

Ele pareceu não notar sua hesitação.

O que nós chamamos de incomparável... praticamente sem igual! Sc me lembro bem, ele costumava conduzir uma parelha de cavalos cinzen­tas num faéton daqueles com lugar separado para o condutor. Muitas vezes cobicei aqueles cavalos.

Todos os que o dirigiam também cobiçavam. Creio que Sir Henry Peyton os comprou quando... Acho que o senhor mesmo é membro da So­ciedade Hípica, não?

Sou, embora não esteja em Londres com muita freqüência. Para dizer a verdade, ficar dirigindo continuamente uma caleça até Salt Hill e voltar torna-se um pouco monótono.

De fato, e sempre naquele trote preciso!

Sabe conduzir uma caleça, srta. Rochdale?

Estava acostumada. Meu pai mandou fazer um faéton para mim. — Novamente ela mudou de assunto. — O senhor também é caçador?

Também, mas raramente caço em Sussex. É uma região insignifi­cante. Tenho uma pequena casa em Leicestershire.

Ela recaiu em silêncio, que não foi rompido até que subitamente disse:

Oh, isto é absurdo! Certamente devo acordar logo e descobrir que estive sonhando!

Receio que deva estar realmente cansada — foi só o que ele res­pondeu.

Ela estava tão irritada que ficou por algum tempo quebrando a cabeça para pensar em alguma observação que pudesse desconcertá-lo. Encontrou-a.

— Eu realmente não sei por que me forçou a entrar neste veículo ou por que está com tanta pressa para me levar ao seu primo, meu senhor — disse ela —, pois sem uma licença não poderei me casar.

—      Está certíssima — respondeu ele. — Eu a tenho em meu bolso. Em um tom de voz trêmulo, ela proferiu:

—- Eu já deveria saber que o senhor a teria!

—      Atrevo-me a dizer que você pode não ter pensado nela antes. Nenhuma palavra adequada com que pudesse responder-he apresentou-se a ela. Só conseguiu dizer:

Imagino que tenha até providenciado o padre necessário para rea­lizar a cerimônia?

Vamos parar no presbitério em nosso caminho — disse ele.

Então espero muitíssimo que o padre se recuse a ir conosco! — ex­clamou ela.

Não há dúvida de que ele vai se juntar a nós — admitiu ele —, mas não será por muitos minutos, afinal.

O peito dela avolumou-se.

Tenho muita vontade de dizer a ele que estou sendo obrigada con­tra a minha vontade e que não tenho vontade de me casar com seu primo!

Você não tem a mínima necessidade de lhe dizer tal coisa; só pre­cisa dizer a mim — respondeu ele calmamente.

Houve outra pausa.

Imagino que me julga extremamente tola! — disse Elinor ressentidamente.

Não, percebo muito bem o constrangimento da sua situação. Vocêpode ser perdoada por sentir certa irritação nervosa. Mas se pelo menos pudesse resolver-se a confiar em mim, faria muito bem. Não fique tortu­rando a si mesma constantemente com pensamentos sobre o que vai acon­tecer a seguir! Cuidarei disso.

A moça sentia que sua raiva suavizava-se, e embora por alguma ra­zão não conseguisse reconhecer, a perspectiva de poder lançar seus fardos nos ombros dele só pôde seduzi-la. Ela não disse mais nada, mas deixou de sentar-se reta como um fuso ao lado dele; ao contrário, recostou-se, como se, ao relaxar o corpo, sua mente também relaxasse. Ainda nutria uma vaga impressão de que lamentaria esta aventura, mas o ar da noite a deixava sonolenta; era agradável estar avançando suavemente com a leve brisa so­prando em suas faces; a necessidade desagradável de enfrentar uma patroa colérica já não se agigantava diante dela; e era decisivamente fácil permi­tir a si mesma ser transportada para um sonho fantástico onde ela apenas teria de agir como lhe mandavam.

Quando fez os cavalos pararem diante do portão do presbitério, Carlyon entregou-lhe as rédeas, dizendo:

Se eu me demorar além de dez minutos, poderia fazê-los andar, srta. Rochdale?

Sim — respondeu ela, em um tom de voz doce.

Era obrigada a fazer isso, mas não chegou a dar mais do que uma volta quando ele tornou a se reunir a ela, desta vez com um homenzinho robusto logo atrás dele. Ela perguntava a si mesma que argumentos tinham sido usa dos para convencer o clérigo a realizar o que certamente devia ser uma ce­rimônia não-ortodoxa, mas realmente não ficou surpresa por eles terem ven­cido. Afastou-se para o sr. Presteign sentar-se ao seu lado e devolveu as rédeas a Carlyon. Este agradeceu e disse!

—      Esta é a srta. Rochdale, Presteign.

O sr. Presteign disse "Como vai?" em um tom de voz aturdido. E acrescentou:

Naturalmente, se o senhor tem a licença, não há nenhuma obje­ção a esse respeito. Mas, sabe, meu senhor „ se cada uma das partes estives­sem relutante, eu não poderia, mesmo para favorecê-lo... não que eu pretenda sugerir que o senhor... pois espero ter um respeito muito grande por sua benevolência para imaginar...

Meu caro senhor, conhece as circunstâncias! Raras podem sei, mas irregulares, tomei cuidado para que não o fossem. O senhor achará meu primo... se pudermos encontrá-lo de algum modo... muito disposto a fa­zer o que ele acredita deve contrariar-me; a senhora pode desfazer o acordoa qualquer momento que desejar.

O padre pareceu satisfeito; a srta. Rochdale só conseguia lançar dú­vidas sobre a teimosia da sua própria disposição, o que lhe tornou im­possível desfazer o acordo no instante em que lhe era oferecida essa opor­tunidade.

Não era distante o caminho entre o presbitério e a estalagem de Wis-borough Green. A srta. Rochdale foi logo introduzida numa sala de estar agradável, onde ardia um pequeno fogo, diante do qual ela ficou muito sa­tisfeita por aquecer seus dedos gelados. O sr. Presteign juntou-se a ela, e a moça viu, em plena luz da vela, que ele era um clérigo de aparência jo­vial, com faces rosadas e um par de olhos azuis um tanto inocentes, neste exato momento mais arregalados do que de hábito, numa expressão de ner­vosismo em mistura com curiosidade.

Um empregado a quem Carlyon chamou de J em os recebera. Elinor o ouvira dizer, com cerrado sotaque de Sussex, que o médico estava com o sr. Eustace no melhor quarto, e que tinha havido uma confusão dos dia­bos, certamente, mas de maneira alguma por culpa do sr. Nick, como todo mundo, presente ou não, testemunharia para o magistrado.

Tolice! Onde está Hitchin? — perguntou Carlyon, tirando as lu­vas de dirigir.

Vou buscá-lo para o senhor — respondeu o taberneiro, esperando para ajudar Carlyon a retirar seu sobretudo longo, com mais de uma pelerine. — Ele deve estar no salão. Desnorteado de tão abalado, isso ele está. Bem, certamente, não me lembro quando tivemos um acontecimento iguala esse no Bull, e o senhor sabe que estou com o sr. Hitchin nem sei há quan­tos anos.

O proprietário, um homem respeitável, de meia-idade, cujo semblante comumente alegre estava agora revestido de desânimo, entrou nesse mo­mento. Ao avistar Carlyon, seu rosto suavizou-se, e ele disse:

—      Não sei quando fiquei mais contente ao ver o senhor. Estive pen­sando comigo mesmo que foi uma ocasião feliz quando por acaso o vi na estrada para Highnoons; foi assim mesmo, pois o coitado do sr. Nick es­tava em grande apreensão, e pouca responsabilidade cabe a ele! Mas o que eu digo e poderei jurar a qualquer hora, meu senhor, é que ele nunca teve a idéia de ir metendo a minha faca no sr. Eustace! E quanto ao começo disso tudo, direi ao magistrado que de sua livre escolha o sr. Nick estava falando decentemente, como o senhor gosta, com o sr. Eustace, até que o sr. Eus­tace foi além do que a natureza humana poderia suportar, quanto mais um jovem cavalheiro com alto grau de bravura, como nós todos sabemos que o sr. Nick é!

O sr. Eustace está vivo? — indagou Carlyon.

Oh, sim, meu senhor! Ele está vivo, mas nem um pouco tão va­lente, pelo que eu ouvi do médico. Não fique apreensivo por causa do sr. Nick, meu senhor! Eu vi tudo, e não existe magistrado que vá me assustar.

Quase todo o povoado vai dizer como foi que o sr. Eustace fez a coisa! — disse o solícito Jem animadamente.

Vou subir para ver o sr. Eustace. Não deixe este tolo, Jem, estra­gar tudo, Hitchin! E traga café para a senhora e para o sr. Presteign!

Ele saiu da sala, o proprietário logo atrás dele, e transpôs de um passo o pequeno corredor até a escada. Hitchin disse:

Vi que o senhor trouxe o vigário, mas, com perdão de vossa senho­ria, não é um padre que o sr. Eustace está com disposição de ver, disposi­ção, aliás, que ele nunca teve. Desconfio que o vigário não vai gostar disso, pois ele não tem um sermão agradável, estou certo. Contudo, não faz mal ter tudo em boa ordem e correto, ouso afirmar.

Exatamente! — concordou Carlyon.

 

O QUARTO EM QUE Carlyon entrou de mansinho, na frente da escada, era um cômodo revestido de lambris, decorado com cortinas de tecido de al-godio, c continha uma cama de quatro colunas, que sobressaía no aposento. Debaixo da colcha de retalhos e amparado por travesseiros, achava-se dei­tado um rapaz, com a cabeça um pouco tombada para o lado. Um cacho do seu cabelo liso e escuro caía-lhe na testa; seus lábios, quase exangues, estavam levemente separados; e a sua respiração era curta e rápida. A luz lançada pelas velas de um candelabro sobre uma mesa próxima mostrava que seu semblante adquirira uma palidez cadavérica; ele parecia estar dormindo.

   Um homem grisalho, vestindo a convencional sobrecasaca, sem a peruca, de um doutor em medicina, estava sentado ao lado da cama; ergueu os olhos ao ouvir a porta se abrir e levantou-se imediatamente, indo ao en­contro de Carlyon.

Achei que viria, meu senhor — disse, em tom baixo. — Palavra de honra, este é um negócio ruim — um negócio muito ruim!

De acordo. Como está ele?

Não posso fazer nada por ele. A faca penetrou no estômago. Ele está se esvaindo, e não creio que passe desta noite.

—      Ele está de posse de suas faculdades mentais? O médico esboçou um sorriso implacável.

—      Suficiente para ficar procurando em sua mente um meio de lhe fazer uma ofensa, meu senhor.

Carlyon lançou um olhar de soslaio para a cama.

Espero que ele não possa ter acesso ao único meio que lhe possibilite realizá-la.

Ele já a realizou, mas o senhor não precisa ficar assustado a esse respeito.

Ele já a realizou?

Oh, sim! Mas ninguém a não ser Hitchin e eu ouvimos o que eletinha a dizer. Quando descobri o que pretendia, providenciei para mandar a enfermeira cuidar da própria vida. Se isto tinha de acontecer, não faz mal ter acontecido onde ele é bastante conhecido pelo dom de fomentar discórdia.

Do que você está falando?

O médico lançou-lhe um olhar por baixo das sobrancelhas.

—      Não, imagino que isso não lhe ocorreria, meu senhor. O sr. Cheviot, contudo, sabe muito bem que pode feri-lo através de seus irmãos. Ele me disse que o sr. Nicholas começou com a intenção de assassiná-lo, e ins­tigado pelo senhor. Ele gostaria de pensar que poderia levar o sr. Nick para o cadafalso.

Por um momento, Carlyon não falou; a luz das velas tremeluzindo numa pequena correnteza de ar lançou nitidamente suas feições contra a parede; o médico viu um músculo contrair-se ao lado de seuis lábios de tra­ços fortes. Então ele disse:

—      Deixe-o pensar nisso. Confio em Hitchin. Tenho esperança de dar uma outra direção para os seus pensamentos. Ele pode passar por uma ce­rimônia de casamento?

As sobrancelhas do médico ergueram-se rapidamente.

Então o senhor ainda pretende, não é? — murmurou ele. — Pode sim, mas quem o senhor vai encontrar? Isso tem estado em minha mente, mas não vejo nenhuma solução.Resta pouquíssimo tempo.

Eu trouxe uma moça que está disposta a se casar com ele. Está láembaixo, com Presteign.

O médico olhou-o atentamente, um olhar compreensivo de diverti­mento insinuando-se em seus olhos.

Trouxe, é? Meu senhor, depois de todos esses anos que o conheço, isso mesmo, e depois das entaladelas em que o tenho visto, e dos ossos que encanei para o senhor, admiro-me que ainda tenha o poder de surpreender-me! Mas será que ele consentirá?

Consentirá, pois você jamais conseguiria fazê-lo acreditar que eu não cobiço sua propriedade. Ele vem suspeitando de mim desde que pela primeira vez mencionei o assunto.

Ele parou, pois Eustace Cheviot se mexera e agora abria os olhos. O médico aproximou-se da cama e tomou-lhe o pulso.

—      Maldito seja, tire as mãos de mim! —- sussurrou Eustace. — Sei que estou nas últimas.

Carlyon aproximou-se pelo outro lado da cama e ficou ali parado, olhando para o primo. Os olhos toldados o fitaram estupidamente por al­guns instantes e pareceram adquirir inteligência aos poucos. Uma expres­são de malevolência passou pelas feições agressivas; Eustace falou, com voz debilitada:

Gostaria de ter me casado para contrariá-lo, por Deus, como eu gostaria! Achou que poderia me enganar, mas eu não era tão imaturo como você pensava, Carlyon!

Não era? — perguntou Carlyon tranqüilamente.

Você sempre dispôs de esquemas preciosos para lançar poeira nos olhos do mundo. Não estou a par de tudo, mas imagino que eu devia estar casado para que parecesse que você não tinha intenções sobre Highnoons. E depois você teria me matado, não teria? Ah, mas eu sou mais esperto do que você pensava, meu querido primo, pois teria deixado em testamentoque Highnoons ficasse longe do seu alcance uma hora depois de ter deixado a igreja. Você pensava que eu não teria bom senso suficiente para fazer meu testamento prontamente, mas tive!—    Está se prejudicando, falando tanto, sr. Cheviot — interrompeu o médico.

Um espasmo de dor contraiu as feições de Cheviot; seus olhos se fe­charam por um instante, mas abriram-se de novo e fixaram-se mais uma vez no rosto de Carlyon.

Seu precioso Nick foi muito rápido para você! —escarneceu ele.

Muito rápido para você também, Eustace.

Este moveu a cabeça com impaciência no travesseiro.

Foi mesmo, por Deus! — resmungou. — Você terá tudo! Maldito seja, maldito seja!

Sim, terei tudo.

Oh, mas eu reduzirei tudo a cinzas para você! Você terá de ver Nick submetido a julgamento! Ele me assassinou, ouviu? Ele pretendia me assassinar!

Talvez eu tenha de vê-lo submetido a julgamento, mas o crédito de Nick é melhor do que o seu, primo, e a única testemunha da briga é pessoa devotada aos meus interesses. Verei Nick ser declarado inocente.

A certeza tranqüila com que falou produziu seus efeitos. O moribundo deixou escapar um gemido e fez uma tentativa convulsiva para soerguer-se com dificuldade, apoiando-se em um cotovelo.

Pelo amor de Deus, meu senhor, cuidado com o que está querendo fazer — murmurou o médico, procurando dominá-lo.

Mas ele terá de ser submetido a julgamento! — disse Eustace com voz entrecortada. — Seu orgulho não suportará isso, seja qual for o resultado!

- Não suportará mesmo — concordou Carlyon. — Tanto os meus planos quanto os seus fracassaram. Você verá sua propriedade a salvo das minhas maquinações; eu salvarei Nicky das suas, se puder. Bem, Nicky vale mais para mim do que Highnoons; abrirei mão dela.

Cheviot lançou-lhe um olhar penetrante, seu cérebro enevoado apenas compreendia parcialmente o que lhe era dito, aferrando-se, obstinado, a uma só idéia.

- Como? Como? — perguntou com voz ofegante.

—      Você pode casar-se, aqui e agora, e legar Highnoons para sua esposa.

Cheviot franziu a testa, como se tentasse concentrar suas faculdades mentais

- Como isso servirá a você? —- perguntou, desconfiado.

Servirá.

Não obterá posse da minha propriedade? - Não obterei posse de sua propriedade.

- Então eu me casarei! — disse Cheviot, dando um safanão no lençol - si m, eu me casarei! Não me importo com Nicky. Morrerei feliz sabendo que frustrei você!

Carlyon assentiu com a cabeça e dirigiu-se para a porta. O médico acompanhou-o até o patamar da escada.

Não fará isso, meu senhor.

Farei. É o que ele deseja.

Ele não pode entender nem a metade do que o senhor está a ponto de fazer! Em todos esses anos de profissão, jamais conheci uma criatura tão devotada ao bem! Sei quanta paciência precisou usar para com ele, quanta indulgência! Isso parece fazê-lo odiar ainda mais o senhor! Ele é um sujeito mau! Mas isso...! Não, isso não serve, meu senhor!

Vai servir muito bem. De fato ele não sabe por que faço isso, mas é o que ele quer, e uma vez que não tenho nenhum propósito em mente a não ser livrar-me de uma herança que não desejo, não dormirei menos pro­fundamente por tê-lo, até certo ponto, enganado.

—      Certo, mas isso será conveniente, meu senhor? — insistiu o médico. — Casá-lo imediatamente agora poderia não ser de utilidade para o sr. Nicholas. Deve parecer...

—      Oh, não estou pensando em Nicky! — disse Carlyon. — Ele não corre nenhum perigo. Mas será melhor para a senhorita se ninguém sou­ber que ela viu Cheviot pela primeira vez esta noite. Penso que quanto a isto pode-se dar um jeito.

—      Meu bom Deus! — exclamou o médico debilmente. — Pode-se mesmo? O senhor caminha muito na minha frente, meu senhor! Que jeito poderá dar?

Oh, um noivado há muito existente, talvez... mantido em segredo.

Mantido em segredo! — explodiu Greenlaw. — E por quê? Carlyon estava na metade do caminho, descendo o primeiro lance da escada, mas parou e ergueu os olhos, seu sorriso bastante raro suavizando-lhe o semblante.

Meu caro senhor! Por temer meus estratagemas diabólicos, é claro!

Sr. Edward! — pronunciou Greenlaw solenemente. — Isto é, Lorde Carlyon!

—      O que é?

O médico olhou-o atentamente, com uma expressão terrível.

—      Nada! — exclamou ele e voltou para o seu paciente. Carlyon encontrou-se ao pé da escada com o proprietário, que aca­bara de sair do salão para ir ao seu encontro.

Meu senhor, a moça não quis comer nada — disse ele. — E o pa­dre preferiu tomar um gole de gim holandês, como é seu costume.

Muito bem. Você tem caneta, tinta e papel?

O proprietário admitiu, com o cenho franzido pelo aturdimento, que tinha esses artigos. Sua testa clareou-se subitamente.

Por certo! O sr. Eustace estará ansioso para fazer seu testamento!— concluiu ele subitamente. — Mas isso ainda me deixa um pouco intri­gado... bem, meu senhor, quanto à moça!

A moça é noiva do sr. Eustace.

Os olhos de Hitchin o fitaram, com expressão penetrante.

Noiva do sr. Eustace! — exclamou ele, com voz entrecortada. —E o seu modo de falar, tão agradável e distinto!

E o sr. Eustace — prosseguiu Carlyon, ignorando esse transporte de emoção involuntário — está querendo casar-se com essa moça para que ela possa ficar com sua subsistência garantida depois da morte dele.

O proprietário parecia ter dificuldade para controlar a voz. Apenas conseguiu dizer:

—      Sim, meu senhor! — E afastou-se, cambaleando, para apanhar a caneta e o papel. Depois de alguma procura, encontrou uma pena de es­crever aproveitável. Olhou-a fixamente e com expressão severa, tornando-a receptora de uma enérgica confidencia. "O sr. Eustace, é?" disse ele sarcasticamente. "Não sei não! O sr. Eustace nunca teve uma idéia dessas em sua cabeça perversa, e você sabe muito bem! O sr. Eustace ficar se preocu­pando com essas coisas! Da sua cabeça foi que veio, meu senhor, não pre­cisa me dizer!"

A pena, muito naturalmente, lhe respondeu. Hitchin fungou e apa­nhou o tinteiro. "E, hum, uma coisa boa para o senhor seria ficar livre do sr. Eustace!" disse ele.

Nesse meio tempo, Carlyon tinha entrado na sala de estar. Encontrou a srta. Rochdale e o padre sentados um de cada lado da lareira. A srta. Roch-dale parecia cansada e um pouco pálida, e em seus olhos notava-se uma expressão um tanto assustada quando ela os ergueu para ele. Carlyon sor­riu, tranqüilizando-a, e disse:

—      Agora, queira vir comigo ao andar superior, srta. Rochdale, por favor!

Ela não disse nada; o sr. Presteign levantou-se da cadeira e perguntou nervosamente:

Meu senhor, devo concluir que o sr. Cheviot está disposto a ter esta cerimônia realizada?

Muito disposto.

 

Lorde Carlyon! — exclamou a srta. Rochdale indistintamente.

Sim, srta. Rochdale, dentro em pouco. Não há nada para alarmá-la. Venha!

Ela levantou-se e depositou a mão no braço que ele lhe oferecia. Carlyon deu-lhe uma palmadinha breve na mão e conduziu-a .até a porta. A moça sussurrou:

—      Oh, por favor, realmente não... estou certa... - Não, confie em mim apenas! — disse ele.

Ela não conseguia pensar em nenhuma razão por que deveria, mas não parecia possível dizer isso; foi com ele para o andar de cima e entrou no quarto do doente.

Os olhos de Eustace Cheviot estavam abertos, sua cabeça voltada para a porta, A srta. Rochdale fitou-o quase temerosamente, mas ele não olhava para ela. Seus olhos permaneciam fixos no rosto do primo, sondando-o com desconfiança e uma espécie de ávida impaciência que lhe conferia algo do olhar de uma ave de rapina. Instintivamente, a mão da srta. Rochdale retesou-se _ no braço de Carlyon.

_ Ele nãoo deu a impressão de perceber, mas conduziu-a para a frente.

- Continua com a mesma opinião de sempre, Eustace? — perguntou ele em sua maneira fria.

- Continuo, como lhe disse.

O médico olhava com curiosidade para a srta. Rochdale. Ela sentiu o rubor subir-lhe às faces e ficou contente por se achar à cabeceira da cama, fora da luz direta das velas. Só algum tempo depois, ocorreu-lhe que nem então, nem em qualquer momento durante a cerimônia irreal, seu noivo olhara para ela. Sentia-se idiota, como se estivesse drogada ou hipnotizada para proceder contra a sua vontade. Olhava para o médico, para o padre, para Carlyon, vendo que eles conferenciavam, mas sem compreender o que diziam; observava seus movimentos, mas tão alheia que nem mais tarde con­seguiria lembrar-se bem do que tinha acontecido naquele quarto intimida-flor, decorado com cortinas de tecido de algodão. Tudo que se estampava em sua memória era o padrão do papel da parede, os alegres losangos co­loridos que combinavam com a colcha de retalhos que cobria a cama, e o modo como um cacho de cabelo de Cheviot aderia-se desagradavelmente úmido em sua testa. Quando sua mão foi colocada na dele, a moça estre­meceu e olhou desvairadamente para todos os lados. Dentre os travessei­ros desarrumados saía a voz fatigada que sussurrava depois do padre palavras que este precisava inclinar a cabeça para entender.

Repita depois de mim...

Eu, Elinor Mary... — repetiu ela, obediente.

Houve uma pausa; o padre olhou aturdido, erguendo sobrancelhas afli­tas para Carlyon, de pé, do outro lado da cama. Carlyon moveu-se, reti­rando o anel de sinete do dedo e colocando-o na mão do primo. Mas foi ele quem fez o anel avançar sobre o nó do dedo de Elinor, orientando a mão fraca de Cheviot. A srta. Rochdale permaneceu inteiramente passiva, não se movendo até que poucos instantes depois seu braço era agarrado com firmeza e ela era levada até a mesa que se achava contra a parede, onde lhe foi solicitado que assinasse seu nome. Ela assinou e ficou um tanto surpresa ao descobrir que sua mão não tremia. O papel foi retirado da sua frente e levado para a cama; ela viu o médico amparar Cheviot enquanto ele tra­çava sua assinatura lentamente. Então Carlyon voltou para junto dela e no­vamente tomou-lhe o braço, conduzindo-a até a porta.

—      Pronto, isso é tudo — disse ele. — Desça e vá para a sala de estar; não demorarei para reunir-me a você.

Depois que ela saiu, ele fechou a porta, lançando um olhar sombrio para a cama. O médico tinha preparado um cordial e o mantinha firme nos lábios separados de Cheviot. Deu com o olhar de Carlyon com uma expres­são significativa. O sr. Presteign disse:

—      Realmente, confio que eu tenha feito certo! Confio mesmo! Es­tou certo de que jamais...

Os olhos de Cheviot se abriram.

Certo? Sim! O melhor dia de trabalho de sua vida, padre! — ex­clamou ele. — Mas não morrerei até que tenha feito meu testamento! Pa­pel... tinta, seu cirurgião maldito! Onde está meu primo? Ele me trapacearia se pudesse, mas viverei tempo suficiente para contrariá-lo, vocês verão!

Sr, Cheviot, sr. Cheviot, não vai fazer as pazes com seu Criador?— Implorou Presteign.

     Cheviot voltara a prostrar-se nos travesseiros, esgotado pelo acesso de exaltação, suas pálpebras se fechando. O médico permanecia ao seu lado, os dedos contando a tênue pulsação do enfermo, os olhos atentos na face lívida. À mesa, Carlyon escrevia com perseverança. Parou uma vez, olhando pensativamente para Cheviot. Depois a pena prosseguiu em seu leve rangido.

Cheviot voltou a sair da sua letargia.

Meu testamento! Luzes! Não consigo ver plenamente nesta escu­ridão infernal!

Paciência! Você terá bastante tempo para assinar seu testamento— disse Carlyon, sem levantar a cabeça.

Cheviot perscrutou o aposento à procura dele.

Você está aí, não está?

Sim, estou aqui.

Sempre odiei você — disse Cheviot de modo familiar.

Sr. Cheviot, eu o conjuro com a maior seriedade a afastar esses pen­samentos de sua mente, e antes que seja tarde demais para...

Deixe-o, homem, pelo amor de Deus! — pediu Greenlaw a meia voz.

   —  Sim, sempre odiei você — repetiu Cheviot. — Não sei por quê.    Carlyon sacudiu o papel, levantou-se com ele em suas mãos e apro­ximou-se da cama.

Pode assinar seu testamento, primo? — perguntou.

Posso, posso! — Cheviot sussurrou impacientemente, procurando agarrar a pena que era colocada entre seus dedos.

Você lega todos os bens, dos quais é legítimo dono, para sua es­posa, Elinor Mary Cheviot: é o que deseja?

Cheviot foi sacudido por um pequeno acesso de riso. Tomou fôlego, sofrendo dores lancinantes, e disse, com voz entrecortada:

Sim, sim, não me interessa! Se ao menos eu pudesse ver com mais nitidez!

Aproximem mais o candelabro!

O sr. Presteign apanhou o candelabro com mão trêmula.

Não é isso, meu senhor — murmurou o médico.

Eu sei. Vamos, Eustace, eis a caneta, e há luz suficiente agora. Assine!

O moribundo parecia fazer um grande esforço. Por um momento, am­parado nos braços de Carlyon, ele examinou estupidamente o papel sob suas mios; então seus olhos desanuviaram-se um pouco e o aperto desnorteado com que segurava a pena retesou-se. Lentamente, ele traçou sua assinatura ao pé da página. A pena escapou de seus dedos, a tinta que ainda havia nela sujou-a.

—      Oh, sei o que deveria fazer! — disse ele, como se alguém tivesse provocado isso. — Ponha minha... ponha minha mão sobre o papel, e pode dizer... e podem considerar isto como minha última vontade e testamento. Isso mesmo. Por Deus, derrotei-o no último momento, Carlyon!

Carlyon o fez abaixar até os travesseiros e retirou a folha de papel de sua mão.

—      Vocês dois são testemunhas — declarou aos outros homens. — As­sinem, por favor!

—      Se ele está em sã consciência — disse Presteign, hesitante. O médico sorriu desagradavelmente.

Não se torture com esse assunto! A mente dele está perfeita como sempre esteve.

Oh, se o senhor está seguro disso...! — disse Presteign, e assinou o papel rapidamente.

Alguém bateu de leve na porta; Carlyon foi até ela e abriu-a para fa­zer entrar Hitchin, com a informação de que o sr. Carlyon estava lá embaixo.

O sr. Carlyon?

O sr. John, meu senhor. Levei-o para a sala de estar. O sr. Carl­yon deseja muito vê-lo.

Muito bem, irei imediatamente.

O médico levantou-se da mesa e devolveu o testamento de Cheviot a Carlyon.

Pronto, está terminado, e espero que não venha a lamentar a obra desta noite, meu senhor — disse ele.

Obrigado, espero não lamentá-la.

Está lançando uma bela propriedade aos quatro ventos por escrú­pulos! — o médico resmungou.

Carlyon sacudiu a cabeça e saiu do quarto. No andar de baixo, encon­trou Elinor sentada ao lado da lareira na sala de estar, e seu irmão, John Carlyon, de pé no meio do aposento, olhando-a em perplexidade. Virou-se ao ouvir a porta se abrir e disse rapidamente:

Ned! Pelo amor de Deus, o que significa essa confusão absurda?Fui recebido por esse idiota do Hitchin, que me disse que eu encontraria a noiva de Cheviot na sala de estar, e agora esta moça me informa que aca­bou de se casar com ele!

Sim, isso é realmente verdade — respondeu Carlyon. — Meu ir­mão John, a sra. Cheviot. Estou contente que esteja aqui, John: você é jus­tamente o homem de que eu preciso.

Ned! — exclamou o sr. Carlyon, numa explosão. — Que diabo es­teve fazendo?

Exatamente o que você sabia que eu pretendia fazer. Nicky lhe con­tou o imprevisto que aconteceu?

Sim, Nicky me contou! — respondeu John sombriamente. — No­vidades muito bonitas, palavra de honra! Mas ele não me disse tudo!

Não disse porque não sabia. Tive a sorte de encontrar uma moça disposta a casar-se com Eustace, e devo-lhe muito. — Sorriu ligeiramentepara Elinor enquanto falava, e acrescentou: — Srta. Rochdale... ou me­lhor, sra. Cheviot... deve estar muito cansada e ansiosa para recolher-se. Teve um dia exaustivo.

De fato — concordou Elinor, olhando-o, com expressão fascinada. — Sim... um pouco exaustivo!

Bem, vou entregá-la aos cuidados de meu irmão. Ele cuidará de você e a levará para minha casa. John, como veio para cá?

A cavalo.

Muito bem. Deixe o cavalo para mim e leve a sra. Cheviot em meu cabriolé. Diga à sra. Rugby que providencie para que ela fique instalada confortavelmente e certifique-se de que ela coma alguma coisa antes de recolher-se.

Bem... sim, certamente! É claro! Mas e você, Ned?

Preciso ficar. Irei mais tarde.

Eustace está vivo?

Sim, ele está vivo. Eu lhe contarei tudo logo. Agora seja um bom rapaz e leve a sra. Cheviot para casa!

Pensei — disse Eliíior debilmente — que deveria passar esta noite aqui.

É que as circunstâncias mudaram, e eu acho que você estará me­lhor na Mansão. Ficará completamente segura nas mãos de meu irmão e vai achar minha governanta pronta a atendê-la em todas as suas necessi­dades. John, a bagagem da sra. Cheviot já se encontra no cabriolé, por­ tanto você não tem que esperar mais nada.

Mas o que vou fazer? — perguntou Elinor desamparadamente.

Discutiremos isso amanhã — respondeu Carlyon.

Saiu do aposento apenas cumprimentando o irmão com a cabeça ao passar por ele; a sra. Cheviot e o sr. Carlyon ficaram olhando um para o outro, em dúvida.

Vou agoi a e trarei o cabriolé até a porta — disse John lentamente.

Creio que eu não deveria ir.

Oh, sim, creio que deveria! Não vai querer ficar aqui com aquela criatura moribunda lá em cima. — Deteve-se e enrubesceu. — Queira me perdoar! Havia me esquecido...

Não precisa desculpar-se. Jamais vi seu primo antes de unia hora atrás — esclareceu ela.

Você... sra. Cheviot, não me diga que você respondeu ao anúncio que meu irmão mandou...

Oh, não! Foi tudo um equívoco. Sou governanta: vim para ocu­par essa posição em outra casa, e, por engano, entrei na carruagem do seu irmão, que estava à espera na parada da diligência. Mas por que permiti a mim mesma ser impelida a casar-me com seu primo pavoroso, não posso lhe dizer! Creio que devia estar tão louca como seu irmão!

Bem, é tudo muito estranho — declarou John —, mas se Carlyon julgou que você deveria casar-se com Cheviot, pode confiar que fez a coisa certa. Não deve ficar pensando que ele é louco; na verdade, não posso ima­ginar como o conseguiria, pois jamais conheci alguém de maior discerni­mento. Vou buscar o cabriolé.

Forçosamente, Elinor teve que aquiescer, e poucos instantes depois su­bia mais uma vez nesse veículo. John foi atencioso ao aconchegar a manta ao redor dela, e partiu, mantendo os cavalos num passo rápido e regular.

—      Sabe de uma coisa, se você não fizesse objeção, eu ficaria muito satisfeito de saber como esse negócio todo aconteceu —- pediu ele.

Ela lhe contou sua parte nos acontecimentos dessa noite. Ele ouviu-a muito surpreso, e seus comentários foram os de um homem sensível. John tinha um modo ponderado de falar, e ela achou que ele se assemelhava mais a Carlyon do que ao irmão caçula. Na aparência, assemelhava-se muito e ele, embora quase uma cabeça mais baixo. Tanto a atitude quanto o modo de falar eram louváveis, e suas maneiras eram conciliatórias. Elinor achou fácil confiar nele, pois, embora parecesse ser pouco severo em criticar as ações de Carlyon, avaliava a delicada posição da moça e mostrava-se ple­namente solidário com os sentimentos dela acerca do acontecimento.

—      É uma situação constrangedora, de fato! — disse ele. — E é lamen­tável por causa de Nicky! Como se meu irmão já não tivesse o bastante para suportar sem esta catástrofe!

Ela aventurou-se a sugerir que Nicky parecia não ter podido evitar o choque.

Certo, mas tudo é conseqüente! Instigando os ursos a atacarem os membros graduados da universidade! Posso até imaginar como foi! E ouso afirmar que Ned nem sequer lhe disse que ele não deveria ter feito isso!

Não disse •— considerou ela. — Penso que não.

-_ Não! — exclamou ele. —- Mas é sempre assim! — Ele continuou conduzindo o veículo num silêncio de fúria durante algum tempo. Timidamente, ela disse:

Penso que seu irmão Nicholas ficou muito abalado com o que acon­teceu.

Eu deveria esperar que ficasse, realmente! Estar causando todo esse transtorno a Ned! Isso supera tudo! Jamais fiquei tão zangado com ele emminha vida!

Ela ficou calada. Depois de um instante, ele disse, em um tom severo:

—      Não pretendo dizer que Nicky seja mal-intencionado, mas ele é por demais estouvado, e agora podemos ver aonde isso o levou. Contudo, ima­gino que Carlyon resolverá tudo, e devemos esperar que venha a ser uma lição para Nicky.

—      Sim — concordou ela, esboçando um pequeno sorriso. — O sr. Ni­cholas parecia também pensar que o irmão resolveria tudo.

—- Sim, ele e Harry sempre foram iguais! — exclamou John. — Sem­pre se metendo em enrascadas e recorrendo a Ned para livrá-los. Enquanto minha irmã Georgiana... Mas eu não deveria estar falando dessa maneira! Sabe de uma coisa, srta... sra. Cheviot... Ned é o melhor dos rapazes, e fico insuportavelmente irritado quando vejo alguém querendo tirar vanta­gens dele! Veja aquela criatura, Eustace Cheviot! Tenho quase certeza de que ninguém sabe a metade do que Ned tem feito por ele ou a paciência que tem demonstrado, mas Ned recebe uma palavra de gratidão por isso? Não! Acredito piamente que Cheviot o odeia!

Ela ficou trêmula.

—      Você está certíssimo. Quando o vi, havia tal expressão de ódio em seus olhos ao pousarem em seu irmão que quase senti medo. Por que se­ria? É terrível!

Concordando, ele acrescentou:

—      Há homens, senhora, que possuem natureza tão deturpada que não conseguem ver virtude em outra pessoa sem odiá-la. Meu primo era um des­ses. Ressentia-se da autoridade de meu irmão; toda vez que Carlyon o ti­rava de alguma enrascada resultante de sua própria conduta, o ciúme só fazia aumentar o seu ódio. É uma coisa boa para todos nós que ele esteja morto. Mas gostaria que ele não tivesse ido ao encontro do seu fim pela mão de Nicky.

Ele recaiu em seu silêncio taciturno, que continuou inalterado até o cabriolé dobrar a estrada e ultrapassar um par de grandes portões forja­dos em ferro, ocasião em que o rapaz saiu do seu alheamento para dizer:

—      Agora só temos um pequeno trajeto para percorrer. Ficará satis­feita por aquecer-se diante de um bom fogo, não nego. Esfriou muito.

Logo o cabriolé parou diante de uma grande mansão feita de pedra; e num espaço de tempo bem curto Elinor estava sendo conduzida através de um vestíbulo majestoso até um salão agradável, mobiliado no máximo da elegância e iluminado por uma grande quantidade de velas. Nicholas Carlyon levantou-se de um salto de uma bergère ao lado do fogo e inda­gou impacientemente:

Você viu Ned? Como foi? Eustace está morto? Onde está Ned?

Ned estará logo aqui. Pelo amor de Deus, Nicky, observe suas ma­neiras! Ofereça uma cadeira para a sra. Cheviot agora mesmo! Enquanto se acomoda, senhora, eu gostaria que a governanta preparasse seu quarto.

Saiu imediatamente da sala, e Nicky, corando com a reprimenda, apressou-se para conduzir Elinor até uma cadeira ao lado do fogo.

Queira me perdoar! — gaguejou ele. — Mas o que significa isso? John disse... Mas não pode ser a sra. Cheviot!

Bem que você pode admirar-se —disse ela. — Seu irmão obrigou-me a casar com seu primo; assim, imagino que eu deva ser a sra. Cheviot.

Ele obrigou? — exclamou Nicky. —- Oh, isso é formidável! Tive medo que tivesse estragado tudo! Eu poderia ter adivinhado que Ned ja­mais permitiria a si mesmo ser ludibriado!

Pode parecer formidável para você — retorquiu Elinor, com certa mordacidade —, mas posso assegurar-lhe que não pareceu a mim! Não te­nho o mínimo desejo de estar casada com seu odioso primo!

É claro que não, mas ouso afirmar que a esta altura ele pode já estar morto — disse Nicky animadamente. — Não houve nenhum prejuízo no fim!

Sim, houve! Houve muito prejuízo, pois eu devia ter ido para Five Mile Ash como governanta da família da sra. Macclesfield, e agora não sei mesmo o que vai ser de mim!

Oh, meu irmão arranjará tudo! — Nicky garantiu-lhe. — Não precisa ficar aflita, senhora. Ned sempre sabe o que a gente deve fazer. Além disso, você não gostaria de ser governanta, gostaria? Você não se parece de modo algum com as governantas que minha irmã já teve! Creio que está erendo me pregar uma peça!

   Ela não se sentia capaz de discutir o assunto com ele. Desatou as tiras l Chapéu e retirou-o, com um suspiro de alívio. Os pequenos anéis do seu macio cabelo castanho achavam-se lamentavelmente achatados; ela pro­curou arrumá-los, mas sentia-se realmente cansada demais para se impor­tar muito com a sua aparência, e logo recaiu na imobilidade, a face apoiada em uma das mãos, os olhos vigiando preguiçosamente as chamas da lareira. Ergueu-se com a chegada do sr. Carlyon, que entrou com uma bandeja que colocou sobre uma mesa ao seu alcance.

—' Creio que deveria beber um copo de vinho, senhora — disse ele, servindo-a. — A governanta aprontará seu quarto imediatamente. Aceita um biscoito?

Ela aceitou, e ficou bebericando o vinho e ouvindo a breve conversa trocada entre os dois irmãos, até que a governanta entrou para levá-la para o quarto. Ela foi de muito bom grado, só imaginando o que John Carlyon poderia ter contado à governanta para fazer com que a tranqüila mulher a aceitasse com essa pretensa placidez. Foi conduzida por uma escada am­pla, pouco profunda, até um quarto que, desde a morte do pai, não havia sido ocupado. Uma criada passava entre os lençóis uma caçarola fechada, de cabo comprido e com carvão em brasa dentro, para aquecer a cama; na lareira, um fogo havia sido aceso; e suas escovas e pentes encontravam-se sobre a penteadeira. A governanta garantiu-lhe que estava tudo em ordem, que desejava que a sra. Cheviot tocasse a campainha caso precisasse de al­guma coisa, despediu-se dela com um boa-noite respeitoso e retirou-se.

Deixando que o futuro cuidasse de si mesmo, a sra. Cheviot preparou-se para entregar-se ao luxo de uma cama aquecida, e dentro de meia hora caía num sono profundo e sem sonhos

 

No andar DE baixo, no salão, o sr. John Carlyon comunicou de maneira severa ao jovem irmão que a melhor coisa que ele agora poderia fazer se­ria ir para a cama. Depois que esta sugestão foi rejeitada com indignação, ele disse:

Não há mais nada para você fazer, e Ned talvez só chegue em casa pela manhã. Ele não sairá de lá enquanto Eustace estiver vivo, ouso afirmar.

Bem, ficarei acordado até ele chegar — disse Nicky. — Deus do céu, eu não conseguiria pregar olho! Como pode pensar numa coisa des­sas? Mas, John, como essa moça veio a estar com Ned em Highnoons? Te­nho procurado decifrar isso. Parece muito estranho!

Seria aconselhável perguntar ao Ned — respondeu John reservadamente.

Bem, assim farei, e tem mais, ele vai me contar — replicou Nicky, um tanto irritado.

É muito provável.

De qualquer modo — disse Nicky —, o caso não é tão ruim como poderia ter sido, não é? Pois se Eustace se casou com essa moça...

Não tão ruim como poderia ter sido! — exclamou John. — Eu real­mente não sei como poderia ser bem pior! E tudo por causa de uma brin­cadeira; pergunto a mim mesmo se você não deveria envergonhar-se por pensar em fazer uma coisa dessas na sua idade!

Nicky dirigiu-se para a cadeira ao lado do fogo, deixou-se cair pesa­damente nela, dizendo:

Oh, tolice! Aquilo não deu em nada, tenho certeza! Ora, quando Harry estava na universidade, você sabe muito bem que ele...

Sim, eu sei que vocês sempre foram praticamente idênticos, infe­lizmente! Mas ao menos Harry nunca foi um rapaz tolo que iria permitir ser levado a brigar com Eustace Cheviot!

John! — exclamou Nicky, desesperado. — Continuo dizendo que agüentei enquanto pude, mas não havia como suportar! Se ele tivesse me ofendido eu não me teria importado, mas ouvi-lo dizer aquelas coisas do Ned foi mais do que um ser humano poderia suportar! Além disso, jamais pretendi fazer outra coisa senão moê-lo de pancada, afinal!

John resmungou, mostrando desagrado, mas ante a disposição do jo­vem irmão de justificar-se ainda mais, interrompeu-se para repreendê-lo tão duramente sobre a questão da sua inconstância, irreflexão e instabili­dade geral de caráter, que Nicky ficou calado e teve de sentar-se, tolerando em mudo ressentimento essa homília compreensível. Quando ela terminou, ele arqueou um ombro ofendido e fingiu enterrar-se no Morning Post, que, providencialmente, achava-se à mão. John foi até a escrivaninha e ocupou-se com alguns documentos seus que ali se achavam.

Muito mais de uma hora depois, os irmãos não tinham trocado ne­nhuma outra palavra, quando um passo firme se fez ouvir atravessan­do o vestíbulo e Carlyon entrou na sala.

Nicky levantou-se de chofre.

Ned, como terminou tudo? — perguntou ansiosamente. — Pen­sei que você não viria mais! Eustace está morto?

Sim, agora está. Você devia estar na cama, Nicky. Providenciou para que a srta. Rochdale fosse cuidadosamente instalada, John?

Esse é o nome dela? Sim, ela subiu para deitar-se há mais de uma hora. Você foi um pouco arbitrário naquele aposento, não foi?

Na verdade, receio que sim. Realmente não havia mais nada a ser feito, depois que as coisas chegaram a um ponto crítico.

Ned, você sabe o quanto lamento! — disse Nicky. — Eu não teria posto você em apuros por coisa alguma deste mundo!

Sim, isso é o que você sempre diz — interrompeu John. — Mas vai de enrascada em enrascada! Agora resultou nisso. Você pode se conside­rar feliz se não for submetido a julgamento por assassinato!

Eu sei — Nicky disse. — É claro que sei disso! E talvez não acredi­tem que foi um acidente.

Meu querido Nicky, provavelmente nada disso irá além do inqué­rito que se faz nos casos de morte suspeita — disse Carlyon. — Suba e vá para a cama, e não se martirize mais esta noite!

Nicky suspirou; John, percebendo que ele estava pálido e muito can­sado, disse asperamente:

Não se preocupe! Não deixaremos que o arrastem para a prisão,Nicky!

Nicky sorriu sonolentamente, mas grato, e afastou-se.

Incorrigível! — exclamou John. — Ele lhe disse por que foi man­dado para casa?

Disse, havia um urso-dançarino — respondeu Carlyon, distraído.

Imagino que isso seja suficiente para explicar tudo!

Bem, foi suficiente para explicar tudo para mim — admitiu Carl­yon. — Uma vez que o urso-dançarino chegou a entrar na órbita de Nicky, o resto era inevitável. Esteve acordado esperando por mim? Não devia ter feito isso.

Você parece morto de exaustão! — disse John, em seu modo brusco de falar. — Sente-se, enquanto lhe sirvo um copo de vinho!

Carlyon sentou-se numa cadeira ao lado do fogo e esticou as pernas calçadas com botas diante dele.

—      Estou cansado — admitiu. — Espero que não me peçam para com­ parecer a mais nenhum outro leito de morte. Mas nós nos sairemos desta muito bem se Hitchin não deixar sua lealdade descontrolá-lo.

John entregou-lhe o copo de vinho.

   - Oh, não duvido que nos sairemos muito bem, mas nunca devería­mos ler sido colocados nesta situação! É o que eu venho lhe dizendo sempre, Ned: decididamente, você é muito complacente com Nicky! Não há um pingo de maldade no rapaz, mas ele é muito rebelde. Como eu disse pouco tempo atrás: ele se mete em enrascadas e depois recorre a você para livrá-lo.

Bem, graças a Deus que ele corre para mim! — replicou Carlyon.

Sim, tudo isso está muito bem, mas por que você precisa encorajá-lo a roubar ursos e...

Meu querido John, de que modo posso eu ter encorajado Nicky a fazer uma coisa dessas? — protestou Carlyon.

Bem, não pretendi dizer isso exatamente, mas sei tanto quanto se tivesse estado presente que você não lhe disse o quanto ele estava errado!

Ele sabe sem que eu lhe diga.

Ele precisa ser repreendido com bastante severidade!

Eu esperava que você já o tivesse feito.

Ele não me leva em consideração como leva a você.

—      Mas poderia, se você fosse mais moderado em suas reprimendas. John deu de ombros e não disse mais nada durante uns instantes.

Quando falou novamente, foi sobre outro assunto.

Quem é essa mulher com quem você casou Cheviot? — perguntou.

A filha de Tom Rochdale de Feldenhall.

 

Daquele homem! Santo Deus! Então foi por essa razão que ela veio a ser governanta! Coitada! Mas o que vai ser dela agora?

Bem, até agora não sei como estão os negócios de Cheviot, mas acho provável que algo possa ser salvo da ruína. Ele fez seu testamento a favor dela.

Fez seu testamento a favor dela? — repetiu John incredulamente. — Ned, isso foi procedimento dele ou seu?

Meu, é claro.

Bem — disse John, em dúvida —, imagino que alguma compen­sação tinha de ser dada a ela, e, certamente, eu jamais concordaria que saísse do seu bolso. Mas a propriedade não deve ir para o parente mais próximo?

O velho Bedlington, por exemplo? — disse Carlyon.

Imagino que sim; afinal, ele é tio de Cheviot.

Mas não quero que o velho Bedlington fique morando muito perto de mim — declarou Carlyon.

Por Deus que não! — concordou John, abalado por essa opinião evidentemente sensata. — Embora eu ache provável que ele vá fazer uma confusão dos diabos.

Pois acho que não. Ele jamais teve qualquer esperança de herdar a propriedade.

Ele estará caindo sobre você logo que souber disso — disse John melancolicamente. — Pode estar certo, ele vai culpá-lo por tudo. Imaginoque ele deva ser a única pessoa viva que tinha alguma benevolência por Eustace... e se tivesse sabido o que sabemos, mesmo ele, não poderia tê-lo mi­mado e encorajado tanto!

Imagino que até seu próprio filho não possa ser uma fonte de muita satisfação para ele — disse Carlyon, bocejando.

Uma fonte de despesa, mais provavelmente, mas eu jamais soube que Francis Cheviot fosse membro do Conselho Municipal de Londres como o primo! Só sei que está com jeito de arruinar Bedlington, se conti­nuar levando a vida dissipada atual; soube que ele perdeu cinco mil no Almack's na semana passada, e ouso afirmar que isso não é nem a metade. Eu deveria lamentar Bedlington, se ele não fosse um velho tão idiota. —Deu uma pequena risada. — Ele está muitíssimo perturbado com os pro­blemas que estão enfrentando na Cavalaria de Guarda. — Carlyon ergueuas sobrancelhas numa indagação demorada. — Oh, vazamento de infor­mação! Não no meu departamento, graças a Deus! Isso está acontecendosempre. Os agentes de Bonaparte conhecem muito bem seu ofício.

Achei que sua expressão pareceu um pouco grave. É sério?

Bastante sério, mas todos estão fechados como ostras a respeito. Naturalmente, as coisas de fato vazam... bem, se você tem velhos idiotas como o Bedlington trabalhando como amadores em assuntos de Estado, o que se pode esperar? Há muita gente igual a ele que não consegue man­ter a língua sossegada. Oh, eles não pretendem deixar escapar os segredos, mas são terrivelmente indiscretos! Essa é a razão por que Wellington tem conservado seus planos ocultos desta vez. Mas, pelo que Bathurst contouao doutor, há mais do que indiscrição neste caso. Não repita isto, Ned, mas há um relatório importante extraviado, e todos estão alvoroçados por causa dele. Pelo que posso entender, está relacionado com a campanha de Wel­lington para esta primavera, e existem apenas duas cópias. Você pode fa­zer uma idéia do que Bonaparte não daria para ter uma vaga noção do que Wellington pretende fazer, isto é, se vai marchar sobre Madri pela segunda vez ou se vai atacar em alguma outra direção!

Posso fazer idéia mesmo! Você disse que o relatório foi roubado?

Não, eu não disse isso, mas sei que está desaparecido. Porém, por tudo que já tenho visto do modo como continuam agindo na Cavalaria de Guarda, é muito provável que ele venha a aparecer no arquivo errado ou algo assim.

Você está sarcástico! — disse Carlyon, parecendo divertido.

Ora, ouso afirmar que Torrens diria o mesmo, pois você deve sa­ber que há muitas criaturas de Prinny introduzidas subrepticiamente na Cavalaria de Guarda, e um bando dos sujeitos mais vis, que você enfren­taria mais dificuldades para achar do que a maioria deles! Essa é a espe­culação.

Oh, agora você volta para Bedlington!

Para ele e alguns outros. Lorde Bedlington! — declarou John desdenhosamente. — E lorde por quê? Pode me dizer?

Carreira militar notável — murmurou Carlyon.

Bobagens militares notáveis! — corrigiu John, com desdém. — Ajudantes-de-ordens do Regente! Alcoviteiros do Regente, seria mais ade­quado! Ora, não sei por que continuo maçante desse modo. Você acredita que poderá salvar Nicky, acredita?

Acredito. Embora Eustace tivesse ficado contente se tivesse ferido Nicky, caso pudesse.

Que sujeito abominável ele era! — disse John calorosamente. —Gostaria de saber que mal Nicky lhe teria feito!

Bem, parece que esta noite ele o tratou com muita grosseria — sa­lientou Carlyon. — Mas ele não pretendia magoar Nicky e sim a mim, atra­vés de Nicky. Felizmente, Greenlaw mandou a enfermeira embora assim que Eustace começou a falar, portanto não houve nenhum dano.

Oh, você contava com Greenlaw lá, não é? Bem, ele é um sujeito irreverente, mas bastante digno de confiança! Eu daria tudo para saber o que deve ter pensado sobre as suas loucuras desta noite!

Carlyon sorriu.

Submeti sua civilidade ao extremo, e ele chegou a lembrar-se de me ter ajudado a descer da torre da igreja e de retirar a bala de sua perna, John, naquela ocasião em que roubamos uma das espingardas para caça de meu pai, e eu acertei você em cheio... lembra-se? Ele estava a ponto de me pre­gar um sermão tão severo como aqueles que você provavelmente tem pre­gado a Nicky.

Velho tratante descarado! — disse John, esboçando um largo sor­riso. — Quisera que ele tivesse pregado mesmo! Mas, Ned, esse testamento! Está em ordem? Não poderia ser contestado?

Creio que está suficientemente legal. Sem dúvida não o contestarei.

Você não! Mas Bedlington deve ser o parente mais próximo de Eus­tace, e ocorreu-me que ele poderá tentar anular o testamento por causa disso. Só que, agora, Eustace já está casado...

Não, você está se esquecendo de uma coisa. Pelos seus termos ou determinação original, por falta de anotações de Eustace, a propriedade deve ser delegada a mim. Invalidar o testamento não beneficiaria Be­dlington.

Correto, era isso mesmo. Você pensou em nomear um testamenteiro?

Sim, eu mesmo e Finsbury.

Foi uma boa idéia, trazer um advogado — aprovou John. — Con­tudo, devo dizer, gostaria que você estivesse completamente fora do as­sunto!

Ora, logo estarei, espero — disse Carlyon, colocando o copo va­zio sobre a mesa e levantando-se.

Parece-me que você ficou com essa viúva sob a sua responsabili­dade!

Tolice! Assim que a aprovação oficial do testamento for concedida, é quase certo que ela venda a propriedade, e espero que possa viver muito confortavelmente com o dinheiro apurado.

A propriedade tem sido tão mal administrada desde que Eustace atingiu a maioridade, que a moça talvez ache difícil encontrar um compra­dor — disse John, com pessimismo. — Aposto dez contra um que haverá tantos encargos sobre ela que a pobre moça se achará em pior situação do que nunca. Sabia que ele estava nas mãos dos agiotas?

Não sabia, mas acho bem possível. Seus débitos terão de ser pa­gos, é claro.

Não por você! — disse John asperamente.

Bem, veremos como correm as coisas. Quanto tempo vai ficar co­nosco, John?

Preciso estar em Londres amanhã, mas voltarei, é claro, agora que a situação revelou-se desse modo.

Não precisa.

Oh, não duvido que conseguirá sair-se muito bem sem mim! — disse John, sorrindo-lhe. — Mas aquele jovem patife terá de dar seu teste­munho no inquérito, e, naturalmente, não quero estar longe nessa ocasião.

Carlyon assentiu com a cabeça.

Como desejar. Apague as velas, se estiver indo para a cama; eu disse aos criados que não precisavam ficar acordados até tarde.

Tenho uma carta que preciso terminar primeiro. Boa noite, meu velho!

Boa noite. — Carlyon apanhou o candelabro que ficara sobre uma das mesas e dirigiu-se para a porta.

John tornara a instalar-se na escrivaninha, mas olhou em redor.

—      Não sei por que eu deveria surpreender-me com as maneiras im­petuosas de Nicky, afinal! — refletiu. — Ainda tenho as cicatrizes daque­les tiros em minha perna!

Carlyon riu e saiu, fechando a porta atrás de si. John ficou olhando para ele por um momento, com um meio sorriso nos lábios, depois suspi­rou, sacudiu a cabeça e voltou-se para a sua correspondência.

A sra. Cheviot dormiu até tarde naquela manhã, sendo acordada fi­nalmente por uma criada, que lhe trouxe uma xícara de chocolate e a in­formação de que o café seria servido na sala, ao pé da escada. Colocou uma vasilha de latão de água quente na pia, e, depois de certificar-se de que ma-dame não necessitava de ajuda em sua íoalete, tornou a retirar-se.

Elinor sentou-se na cama, sorvendo seu chocolate, deleitada, e per­guntando a si mesma quantos dos acontecimentos fantásticos do dia ante­rior tinham tido existência apenas em sua imaginação. Sua presença nessa família bem ordenada parecia indicar que alguns ao menos tinham sido reais. Não podia deixar de comparar sua atual situação com o que teria sido, com toda a probabilidade, seu destino na casa da sra. Macclesfield, e não teria sido humana se não tivesse gostado da diferença bastante surpreen­dente. Levantou-se logo, e olhou pela janela. Que dominava uma vista de jardins tradicionais, naquela exata ocasião exibindo apenas um pouco de anêmonas em flor, e, além desses jardins, as cercanias de um parque. Evi­dentemente, Lorde Carlyon era um homem de importância social e fortuna, e nada, refletiu ela, poderia ser mais diferente da sujeira da casa do primo do que a elegância serena da sua própria casa.

   Ela preparou-se, usando um vestido de cor sóbria, de saia rodada, e colocou um xale Paisley sobre os ombros, dirigindo-se para o andar de baixo. Enquanto hesitava no vestíbulo, não sabendo bem para onde deve­ria ir, o mordomo apareceu na porta dos fundos da casa e inclinou-se educadamente para ela, conduzindo-a para uma sala bem arrumada, onde seu anfitrião e seus dois irmãos a estavam aguardando, diante de um fogo bri­lhante.

Carlyon foi imediatamente ao seu encontro, tomando-a pela mão.

Bom dia. Espero que tenha descansado, senhora.

Descansei realmente, obrigada. Não creio que tenha acordado al­guma vez durante a noite toda. — Ela sorriu e cumprimentou, inclinando-se diante dos outros dois homens. — Receio que os tenha feito esperar.

Não, nada disso. Não gostaria de se sentar? O café será trazido agora mesmo.

Ela ocupou seu lugar à mesa, sentindo-se acanhada e satisfeita com a presença do mordomo na sala, o que tornava impossível a conversa pros­seguir além da trivial. Enquanto Carlyon trocava opiniões com John so­bre a provável natureza do tempo, ela fazia uma avaliação velada dele. Visto à luz do dia, ele provava ser de fato um homem tão tem-apessoado como imaginara que fosse. Sem ser precisamente bonito, suas feições eram agra­dáveis, seu porte desembaraçado, e seus ombros, sob um paletó bem ta­lhado de tecido super-requintado, amplos. Estava vestido com esmero e propriedade, e, embora usasse culotes e botas de cano alto, em vez de cal­ças e botas enfeitadas com borlas, preferidas pelos citadinos, não havia ne­nhuma indicação em sua aparência do fidalgo rural desmazelado. Seu irmão John estava igualmente elegante; mas a tradicional camisa de colarinho alto de Nicky e sua exótica gravata indicavam aos olhos experientes de Elinor um dandismo incipiente. Logo se tornou aparente que o traje de Nicky fora assunto de discussão, pois, à primeira oportunidade, ele disse em um tom insubordinado:

Na verdade, não vejo por que deveria vestir luto por Eustace. Quero dizer, quando se considera...

Eu não disse que você deveria vestir luto — interrompeu John. — Mas esse seu colete está além dos limites do tolerável.

Deixe-me informá-lo — disse Nicky de modo indignado — que esta moda de coletes é o máximo do requinte em Oxford!

Não nego que possa ser, mas você não está em Oxford no presente momento, e seria extremamente impróprio ficar andando pela redondeza, com nosso primo recém-falecido, trajando colete listrado de vermelho-cereja.

— Ned, você pensa o mesmo? — perguntou Nicky, apelando para Carlyon.

—      Penso ser impróprio agora ou em qualquer outra ocasião — res­pondeu seu mentor insensivelmente.

Nicky acalmou-se, com uma crítica em sotto você sobre preconceito antiquado, e consagrou-se a um formidável prato, cheio de lombo de vaca assado e frio. Carlyon fez sinal para o mordomo sair da sala; após sua saída, esboçou um sorriso imperceptível para Elinor e disse:

Bem, sra. Cheviot, precisamos considerar o que deve ser feito a seguir.

Eu desejo realmente que não me chame por esse nome! — pediu ela.

—      Receio que terá de acostumar-se a ser chamada assim — respon­deu Carlyon.

Ela depositou no prato a fatia de pão com manteiga que estivera a ponto de levar aos lábios.

Meu senhor, casou-me de verdade com aquele homem? — inda­gou ela.

Certamente que não; não sou ordenado. Você foi casada pelo vi­gário da paróquia.

Isso não vem ao caso! Sabe muito bem que tudo foi obra sua! Mas a minha esperança era que eu tivesse sonhado! Oh, céus, que perturbação! Como vim a fazer uma coisa dessas?

Você fez para obsequiar-me — disse ele suavemente.

Não fiz mesmo. Para obsequiá-lo, francamente! Quando o senhor praticamente seqüestrou-me!

Seqüestrou-a? — exclamou John. — Não, não, estou certo de que ele não faria uma coisa dessas! Ned, você não foi tão louco assim, foi?

É claro que não. Um acaso levou-a até Highnoons, sra. Cheviot, e se, enquanto lá esteve, eu a convenci um pouco...

Bem, isso é o que diz, mas pelo que pude observar da sua conduta, meu senhor, não deveria ficar surpresa se descobrisse que tudo fora uma trama para me apanhar numa armadilha! Fui interrogada pelo criado se tinha vindo em resposta ao anúncio. O senhor de fato publicou um anún­cio pedindo uma esposa para o seu primo?

Sim, publiquei — respondeu ele. — Nas colunas do Times. Mui­tas vezes saem anúncios dessa natureza.

Ela fitou-o, sem falar nada. John disse:

—      É verdade. Mas confesso que realmente não considero uma coisa respeitável. Sempre fui contra. Só Deus sabe que espécie de mulher pode­ria ter chegado em Highnoons. Contudo, por uma casualidade feliz, tudo se apresentou da melhor forma possível.

Ela voltou os olhos para ele. Eram olhos notavelmente belos, especial­mente quando cintilavam com indignação.

Talvez tudo tenha se apresentado da melhor forma possível no que se refere ao senhor — disse ela —, mas e quanto à situação abominável em que agora me encontro? Eu sinceramente não sei se continuarei a ter al­gum grau de crédito junto à sociedade!

Fique descansada quanto a isso! — disse Carlyon. — Já comecei a revelar que seu noivado com seu primo era de natureza duradoura, em­bora secreto.

Oh, isso ultrapassa os limites! — exclamou ela. — Não tenho es­crúpulos em lhe dizer, meu senhor, que nada teria me induzido a fazer parte de um noivado com uma pessoa tão odiosa como seu primo!

—      Um sentimento muito desculpável — concordou ele. Ela reprimiu suas emoções, bebendo café.

—      Os sentimentos da sra. Cheviot são perfeitamente compreensíveis— disse John reprovadoramente. — Estou certo de que ninguém pode se admirar com eles.

Certo, mas Eustace está morto! — objetou Nicky. — Não posso compreender por que ela deveria sentir isso tão particularmente! Ora, por Deus, senhora, agora pensando bem, a senhora é viúva!

Mas eu não quero ser viúva! — declarou Elinor.

Receio que, no momento, é tarde demais para alterar isso — disse Carlyon.

Além disso, se tivesse conhecido meu primo melhor, teria desejado ser viúva — assegurou-lhe Nicky.

—      Cale-se, Nicky! —ordenou Carlyon. Elinor mordeu o lábio esolutamente.

Isso é muito melhor — encorajou-a Carlyon. — Na verdade, ava­lio seus sentimentos acerca desse acontecimento, mas é totalmente inútil esse tipo de angústia por um fato consumado. Além disso, não creio real­mente que achará que as conseqüências do seu casamento venham a ser tão desagradáveis como imagina.

Não, pode estar certa, cuidaremos para que não venham a ser — disse John. — Talvez haja um pequeno constrangimento em algumas es­feras, mas o apoio do meu irmão deve protegê-la de algum mexerico mal­doso. Se nós devemos tratar de aceitá-la com complacência, não pode havernenhum motivo para escândalo, sabe disso.

Ela suspirou.

Compreendo, é claro, que não pode haver nenhum meio de anu­lar o que aconteceu. Recebi o que mereço, pois sabia desde o princípio que estava procedendo errado. Mas não pretendo mesmo importuná-lo inutil­mente! Imagino que possa ser governanta, sendo viúva ou solteira.

Sem dúvida alguma, mas quero crer que não haverá nenhuma ne­cessidade de continuar no que estou convencido deva ser uma profissão de­sagradável — disse Carlyon.

Ela olhou para ele, analisando rapidamente a situação.

Não, não, já lhe disse que não seria sua dependente, meu senhor, e nisso, pelo menos, persistirei com firmeza!

Nada disso. Meu primo assinou um testamento deixando todos os seus bens para você.

O quê? — exclamou ela, tornando-se muito pálida. — Oh, bom Deus, o senhor não está falando sério, está?

Certamente que estou falando sério.

Mas eu não poderia... Seria muito chocante eu... — balbuciou ela.

Está imaginando que se tornou uma mulher rica da noite para o dia? — indagou Carlyon. — Quem dera fosse assim, mas receio que não será nada disso. O mais provável é você se descobrir responsável por só Deus sabe quantos débitos.

A viúva procurou em vão palavras com que expressar seus sentimentos.

Céus, é mesmo! — disse Nicky alegremente. — Eustace jamais teve um níquel para gastar, e creio que os agiotas tinham suas garras firmes nele!

E eu — disse Elinor, controlando a voz com grande esforço — es­tou na posição vantajosa de herdar esses débitos?

Não, não — objetou John. — Eles devem ser pagos pela proprie- dade, é claro! Felizmente, ele não podia hipotecar a terra... não que você possa obter muito por ela, caso resolva vendê-la, pois desde que meu ir­mão cessou de administrá-la, tudo tem ficado entregue à ruína.

Mas que perspectiva encantadora para mim! — disse Elinor, com grande ironia. — Sobrecarregada com uma propriedade arruinada, impren­sada por débitos, viúva antes mesmo de ser esposa... é a coisa mais abomi­nável que já ouvi!

Oh, dificilmente ficará provado ser tão ruim assim! — disse Carlyon. — Quando tudo estiver terminado, tenho esperança de que você se encontrará com uma respeitável renda.

Na verdade, também espero, meu senhor, pois começo a pensar que terei merecido! — retorquiu ela.

Agora está falando como uma mulher sensata — disse ele. — Está disposta a ser orientada por mim no modo como deverá proceder?

Ela olhou-o com certa indecisão.

Não há nenhum meio que me possibilite escapar dessa herança?

Absolutamente nenhum.

Mas se eu desaparecesse, o que gostaria muitíssimo...

Estou convencido de que não será tão pobre de espírito a ponto de retroceder diante deste momento crítico.

Ela acreditou piamente nisso e, depois de alguns instantes, disse em um tom de voz resignada:

O que devo fazer então?

Já considerei isso e acredito que será mais natural você assumir sua residência em Highnoons — respondeu ele.

Em Highnoons! Oh, não, realmente, eu preferia que não fosse! — replicou ela, parecendo alamardíssima.

Por que preferiria que não fosse? — quis saber ele.

Pareceria muita presunção de minha parte ficar residindo ali!

Presunção ficar residindo na casa de seu marido?

Como pode falar assim? As circunstâncias...

As circunstâncias são precisamente o que todos nós desejamos ocul­tar. Seria inaceitável você permanecer sob o meu teto, pois a minha casa é de um homem solteiro.

Não tenho nenhum desejo de permanecer sob o seu teto!

Então não precisamos desperdiçar tempo quanto a esse aspecto. Você poderá, muito apropriadamente, buscar refúgio com algum parente seu, mas será forçada a atender muitos assuntos, e uma vez que estarei junto com você nessa atividade, o mais aconselhável será ficar a pequena distân­cia desta casa.

Não iria para junto dos meus parentes numa situação difícil como esta por coisa alguma deste mundo! — declarou Elinor, com um estreme­cimento.

Nesse caso, de fato não tem escolha.

Mas como poderia viver numa casa daquelas? — indagou ela. — Estou certa de que está inteiramente coberta de poeira e teias de aranha, e muito provavelmente infestada de ratos e baratas, pois vi quantidade su- ficiente de ambos ontem para convencer-me de que foi relegada ao aban­dono de maneira chocante!

—      Exatamente, e essa é uma razão por que eu ficaria satisfeito de vê-la instalada lá.

A respiração da viúva tornou-se tensa.

É mesmo, meu senhor? Eu deveria ter calculado que diria algo odioso!

Não estou dizendo nada odioso. Se pretendemos dispor de Highnoons, com vantagem, ela deve ser posta em certa ordem. Comprometo-me a fazer o que puder com a terra, mas não posso encarregar-me de arru­mar a casa. Fazendo isso, você imediatamente estará me favorecendo e dando a si mesma uma ocupação que desviará de sua mente todos esses pro­blemas que imagina estar aglomerando em sua cabeça.

Favorecê-lo deve ser, é claro, um objetivo meu — disse Elinor, em tom trêmulo.

Obrigado, você é muito gentil! — respondeu ele, com uma calma sem igual.

Nicky deixou escapar uma risadinha. Esboçou um largo sorriso para Elinor, do outro lado da mesa.

Oh, queira me perdoar, mas sabe, não adianta nada discutir com Ned, porque ele sempre leva a melhor! É o parceiro mais completo! E quer saber de uma coisa? Se achar que há ratos em Highnoons, irei com meu cão e abateremos bom número deles!

Agora, Nick, fique calado! — pediu John. — Mas sabe, senhora, há muita lógica no que Carlyon disse. A casa não pode ficar sem alguém para controlar as coisas, e realmente não sei quem poderia ir lá.

Mas os criados! — protestou ela. — O que devem pensar se de re­pente me introduzo lá, mandando neles?

Pelo que sei, somente Barrow e a mulher dele estavam emprega­dos ultimamente a serviço de Eustace — disse Carlyon. — O que me faz lembrar que você faria bem se contratasse umas duas moças para traba­lhar na casa. Mas não precisa alimentar apreensões, pois Barrow se acha em Highnoons há muitos anos e está necessariamente familiarizado com todas as circunstâncias que culminaram com a cerimônia na qual você to­mou parte ontem. Ele era extremamente ligado à minha tia, razão pela qual tem permanecido com meu primo. É provável que nem ele nem sua mu­lher lhe causem o mínimo constrangimento. Mas receio que não o achará um mordomo eficiente; ele estava acostumado a ser palafreneiro e só veio para os serviços da casa quando nenhum outro criado continuaria ali.

Sabe, Ned, acho que a sra. Cheviot deveria ter uma mulher respei­tável para lhe fazer companhia — interrompeu John.

Certamente que deveria, e vou descobrir uma para ela.

Se eu quiser uma mulher respeitável para viver comigo naque­la casa medonha, pedirei à minha antiga governanta para vir! — disseElinor.

Uma excelente sugestão. Se me der seu endereço, mandar-lhe-ei uma carta imediatamente — prontificou-se Carlyon.

Sentindo-se praticamente subjugada, Elinor disse documente que es­creveria para a srta. Beccles.

—      E não deve pensar que ficará solitária — assegurou-lhe Nicky. — Pois iremos visitá-la, sabe disso.

Ela agradeceu, mas virou-se mais uma vez para Carlyon:

E o que será feito com respeito à sra. Macclesfield? — perguntou.

Será muita incivilidade de nossa parte, sem dúvida, mas estou in­clinado a prosseguir com as nossas vidas sem me empenhar em explicações que só podem ser embaraçosas — ele replicou.

Depois de refletir, ela foi obrigada a concordar com ele.

 

   POUCO DEPOIS do meio-dia, resignada, mas de modo algum convencida, a sra. Cheviot foi conduzida a Highnoons pelo seu anfitrião. Foram na car­ruagem dele, muito seriamente, e Carlyon procurou afastar o tédio, mos­trando à senhora os diversos pontos de referência; ocasionais quedas-d'água da região, vislumbres do bosque que, ele lhe disse, mais tarde ficaria ata-petado de campainhas azuis. A sra. Cheviot respondeu com fria civilidade e permaneceu em silêncio.

Esta região não é do tipo grandioso — disse Carlyon —, mas há alguns passeios muitos bonitos, próximo de Highnoons, queveu lhe propor­cionarei qualquer dia.

Deveras? — perguntou ela.

Sem dúvida... quando tiver se recuperado do seu mau humor.

Não estou de mau humor — disse ela irônica. — Qualquer pessoa, com um mínimo de sensibilidade, compadecer-se-ia de mim nesta situação causada pelo senhor! Como pode esperar que eu esteja de bom humor? Não tem nem um pingo de sensibilidade, meu senhor!

Não tenho, receio que seja isso mesmo — replicou ele seriamente.— Uma acusação que me tem sido lançada muitas vezes, e que acredito ver­dadeira.

Ela virou a cabeça para olhá-lo com um pouco de curiosidade.

Diga-me, quem o tem acusado, senhor? — perguntou ela, desconfiada.

Minhas irmãs, quando não pude participar dos seus sentimentos em certos acontecimentos.

Estou surpresa. Pelo que deduzi, seus irmãos e irmãs lhe são muito devotados.

Ele sorriu.

—      Eu desejaria que entendesse, ouso afirmar, que o forte grau de união que existe entre nós provocou uma disposição naturalmente autori­tária.

Ela foi obrigada a rir.

—      Devo dizer-lhe, meu senhor, que acho esse hábito que adquiriu, de reduzir os mais intransigentes termos expressos com a máxima delicadeza, completamente odioso! O que é mais, estou muito disposta a pensar que se eu tivesse dor de dentes e lhe dissesse que estava morrendo de dor, o se­nhor se daria ao trabalho de anunciar-me que ninguém morre de dor de den­tes!

—      Sem dúvida alguma era o que eu faria — concordou ele —-, se ima­ginasse que alimentava algum medo a respeito.

—      Odioso! — exclamou ela.

A essa altura, tinham chegado a Highnoons e estavam subindo a mal­tratada entrada para carruagens, entre densas moitas de arbustos cresci­dos e árvores cujos galhos quase cruzavam sobre suas cabeças.

Como isso forçosamente nos faz recordar todos os nossos roman­ces favoritos! — observou a sra. Cheviot afavelmente.

A maior parte daqueles arbustos deveria ser retirada e o resto po­dado — respondeu ele. — Alguns desses galhos de árvore estão precisando ser desbastados, e vi pelo menos três árvores mortas que devem ser derrubadas.

Derrubadas! Meu caro senhor, vai destruir toda a característica do lugar! Espero que haja um carvalho amaldiçoado. Não vou exigir que um espectro percorra os caminhos com a cabeça debaixo do braço, pois isso seria realmente uma loucura extraordinária!

Seria — concordou ele, sorrindo.

—      É claro! Evidentemente a casa está assombrada. Não tenho a me­nor dúvida de que essa é a razão por que só dois criados sinistros puderam ser trazidos para residirem nela. Acho provável que encontre, depois de pas­sar uma noite no interior dessas paredes, alguém fisicamente em ruínas e mentalmente abalado, que o senhor será obrigado a transferir para o hos­pício sem mais delongas.

— Tenho a maior confiança na firmeza de sua mente, senhora.

Neste ponto, a carruagem encontrava-se parada diante da casa. Eli-nor consentiu em ser ajudada a descer do veículo, dando a mão a Carlyon; por um momento, ficou parada, examinando criticamente o ambiente.

O tanto de jardins agradáveis que Elinor conseguia ver estava com er­vas daninhas demasiado grandes, e ela pouca atenção lhe dedicou. A casa propriamente dita, agora vista à luz do dia, ela achou que era uma bela cons­trução, de duzentos anos, com janelas chanfradas e altas chaminés. Tal­vez fosse construída para o gosto moderno, em um estilo longo e indefinido, e grande parte da sua harmoniosa alvenaria de tijolos estava oculta por um espesso emaranhado de trepadeiras; mas Elinor era obrigada a admitir para si mesma que estava agradavelmente surpresa com ela.

Toda essa hera deve ser arrancada — disse Carlyon, também exa­minando a fachada.

Nada disso — objetou Elinor. — Veja só como a trepadeira cobrealgumas das janelas! Ouso afirmar que dificilmente se tem luz suficientepara se costurar naqueles quartos, mesmo nos dias ensolarados! Por ou­tro lado, penso como o menor vento deve manter as gavinhas batendo nas vidraças como dedos fantasmagóricos. Como pode falar em arrancar fora? O senhor não é nada romântico!

Não sou de maneira alguma. Vamos, ficará resfriada se permane­cer mais algum tempo neste vento leste! Vamos entrar.

A porta já tinha sido aberta pelo velho Barrow. Para Elinor, tornava-se evidente que esta não era a primeira visita de Carlyon a Highnoons desde que ele a deixara na companhia da moça, na noite anterior. Sem dúvida Barrow a olhava com curiosidade, mas não havia surpresa em sua expres­são, e uma olhadela pelo vestíbulo mostrou a Elinor que fora feita uma ten­tativa para tornar a casa habitável.

- Barrow, aqui está sua patroa — disse Carlyon, depositando o cha­péu sobre a mesa. — Sra. Cheviot, achará Barrow muito atento ao seu con­forto. Estou certo de que desejará ver a sra. Barrow imediatamente, ouso afirmar, e dar-lhe suas ordens. Nesse meio tempo, eu a conduzirei pela casa, se não estiver cansada demais pela viagem.

De maneira alguma — respondeu Elinor debilmente.

A sra. Barrow e a moça que o senhor mandou da Mansão já apron­taram o Quarto Amarelo para a patroa — revelou o mordomo. — Elas acharam que a patroa não se importaria de dormir no quarto do pobre sr.Eustace, já que, afinal, ele não adoeceu e nem morreu ali. Contudo...

Sim, isso é o bastante! — interrompeu Carlyon. — Sra. Cheviot,a biblioteca, que a senhora já tinha visto. A sala de jantar é aqui. — Ele abriu a porta de um aposento à esquerda do vestíbulo da entrada. — Não é bonita... nenhum dos cômodos aqui é grande, e a altura em toda parte é baixa... mas eu a conheci nos tempos em que era muito bonita.

Certo, isso conheceu mesmo, meu senhor — concordou Barrow, com um suspiro de quem se recorda.

Barrow, seja gentil e vá pedir à sra. Barrow para mandar um pouco de café à biblioteca para a sra. Cheviot!

Depois de o mordomo ter sido afastado desse modo, Carlyon condu­ziu Elinor pelo resto da casa. Ela a julgou um tanto desconcertante, pois era composta do que parecia ser uma aglomeração de pequenos cômodos e corredores muito longos. Muitos dos cômodos eram revestidos de lam-bris até o teto, e a mobília era antiquada e, de um modo geral, estava co­berta de poeira.

A maior parte desses quartos não tem sido usada desde a morte de minha tia — Carlyon explicou.

Por que, em nome de Deus, não puseram capas de holanda nas pol­tronas? — exclamou Elinor, seus instintos próprios de dona-de-casa muito revoltados. — Santo Deus, que tarefa me designou, meu senhor!

Sei muito pouco a respeito desses assuntos, mas imagino que es­tará ocupadíssima. — Ele acrescentou: — Isso talvez a impeça de favore­cer sua imaginação com idéias sobre espectros sem cabeça.

Ela lançou-lhe um olhar muito eloqüente, e precedeu-o no apartamento que havia sido preparado para o seu uso. Este ao menos mostrava sinais de ter sido esfregado e encerado, e, uma vez que dava para o sul, a pálida luz do sol de primavera entrava através das vidraças encaixilhadas de chumbo, emprestando ao cômodo um aspecto alegre. Elinor tirou o cha­péu e a peliça, depositando-os na cama.

Bem, de qualquer modo, a sra. Barrow mostrou que tem bom senso na escolha do dormitório para mim — observou. — E quem é, a propó­sito, a jovem trazida da Mansão, meu senhor?

Não sei o nome dela, mas a sra. Rugby julgou que ela poderia ser uma criada adequada e prestativa para você. É claro que irá contratar os criados que considerar necessários, mas nesse meio tempo essa moça ficará aqui para servi-la.

Êlinor sensibilizou-se com essa preocupação com seu conforto, mas disse apenas:

É muito gentil, meu senhor. Contudo, com referência aos criados que me recomendou contratar, diga-me, como serão pagos seus salários?

Serão pagos pela propriedade — respondeu ele, indiferente.

Mas, segundo deduzi, senhor, a propriedade já está excessivamente sobrecarregada...

Não precisa se preocupar, haverá fundos suficientes para cobrir asdespesas necessárias.

—      Oh! — exclamou ela, duvidando um pouco.            Eles foram interrompidos.

—      Seria aconselhável colocar os brasões do sr. Cheviot na porta — disse Barro w seriamente.

Carlyon virou-se rapidamente. O mordomo achava-se parado na so-leira da porta, observando-os com uma expressão sombria.

O quadro dos brasões — repetiu.

Tolice! — disse Carlyon, com impaciência. — Situada como está esta casa na zona rural, não vejo a menor necessidade de tal demonstração.

Quando a patroa adoeceu e morreu — disse Barrow obstinada­mente —, tivemos os brasões em exibição, como deve ser feito.

 

Então, por favor, coloque-os na porta novamente! — disse Êlinor. Barrou olhou-a, com aprovação.

E a aldrava combinando com crepe, senhora? — perguntou ele.

Sem dúvida!

 

Isso dará uma impressão civilizada, isso dará — assentiu Barrow com a cabeça, e saiu para cuidar desse assunto.

Você é uma mulher de determinação — observou Carlyon.

Confio ter minha presença de espírito, meu senhor. Seria inútil ofender as opiniões dessa gente.

Meu primo desligara-se tanto da sociedade rural que duvido que você venha a ser perturbada com visitas.

Eu realmente espero que esteja certo, senhor! — Foi tudo que ela disse.

Foram para o andar de baixo novamente, e para a biblioteca, onde ar­dia fogo na lareira e as xícaras de café já tinham sido postas à disposição. Carlyon recusou participar do café, mas Êlinor sentou-se ao lado da mesa e serviu-se de uma xícara. Ele dirigiu-se à escrivaninha e abriu uma gaveta. Estava abarrotada de papéis; depois de uma olhadela rápida, ele tornou a fechá-la, dizendo:

Preciso vir aqui dentro de um ou dois dias com o advogado, para examinar todos esses papéis. Seria melhor, sra. Cheviot, deixar qualquer papel que encontrar para que eu cuide.

Sem dúvida — respondeu ela calmamente. — Se o senhor é o exe­cutor daquele testamento abominável, como estou certa de que seja, deve­ria trancar a escrivaninha, creio eu.

—      Suponho que sim — concordou ele. — Mas como parece não ha­ver uma chave para a escrivaninha e estou convencido de que posso con­fiar em você para conservar tudo intacto, devo dispensar essa formalidade. Imagino que pouca coisa haja aqui que mereça o trabalho. — Abandonou a escrivaninha e aproximou-se dela, estendendo a mão. — Devo deixá-la agora, senhora. Fique certa de que sua carta será remetida para a srta. Beccles sem perda de tempo. Espero vê-la cuidadosamente instalada aqui dentro de poucos dias.

Ela apertou a mão dele, mas disse, perdendo um pouco o domínio de si:

Obrigada. Mas o senhor não me deixará sozinha aqui por muito tempo, não é?

Não, realmente. Se desejar minha presença, mande alguém até a Mansão, e eu virei. Este caso me trouxe muitos afazeres, e talvez eu fique fora de casa um ou dois dias, mas um recado logo me trará de volta . Man­darei Nicky pela manhã para ver como você está. Adeus! Creia-me, em­bora tenha pouca sensibilidade, estou plenamente consciente do quanto lhe devo.

Ele se fora, e ela ficara com uma disposição de espírito pouco elevada, imaginando o que faria, e qual seria o fim dessa estranha aventura. Um período de reflexão em silêncio ajudou-a a acalmar a natural agitação de sua mente; desde que consentira em assumir sua residência nesta casa re­duzida a pó, devia fazer o melhor que pudesse. Para essa finalidade, tocou imediatamente a campainha, esquecendo-se de que o fio estava rompido. Após um intervalo, foi forçada a ir à procura dos criados, e, assim, pela primeira vez, achou o caminho das cozinhas.

Estas eram antiquadas, mas ela ficou satisfeita ao notar que o chão e a mesa estavam bem esfregados. O casal Barrow se encontrava ali, com uma camareira de aparência respeitável e um cavalariço, que não perdeu tempo em eclipsar-se. A sra. Barrow era uma mulher de aspecto asseado e proporções agradáveis. No mesmo instante, levantou-se e fez uma reve­rência.

Elinor julgou mais sensato adotar uma atitude franca com os Barrow, e logo descobriu que eles não estavam dorciinados por quaisquer equívo­cos constrangedores quanto à naturezaxdo seu casamento. Depois de lhe ter apresentado a camareira, a sra. Barrow despachou a moça com uma in­cumbência e aguardou com as mãos cruzadas sobre o avental para ouvir o que sua nova patroa tinha a dizer.

Com uma certa dificuldade, Elinor disse que ela devia estar achando estranho lhe terem imposto uma patroa desconhecida, nessas circunstân­cias, mas a sra. Barrow imediatamente respondeu:

—      Oh, não, senhora! Não se o meu senhor achou certo!

Essa confiança no julgamento de Carlyon sobre criados que não eram seus parecia estranha, mas a aceitação da infalibilidade dele pela sra. Bar­row ficou logo explicada quando a mulher informou Elinor que tinha sido empregada da Mansão até se casar com Barrow. Ela era mais bem-educada que o marido, o qual ela mantinha em estreita e ostensiva disciplina, rara­mente permitindo que sua linguagem mergulhasse no cerrado dialeto de Sussex, que surgia à língua de Barrow com a maior presteza. No mesmo ins­tante ela se ofereceu para conduzir Elinor mais uma vez pela casa e para mostrar com maiores detalhes do que fizera Carlyon o que poderia ser limpo ou renovado, e o que devia ser posto fora.

Pois, senhora, sem dúvida as coisas chegaram a uma situação crí­tica e do tipo que deve fazer minha pobre patroa se retorcer na sepultura, mas o que uma mulher pode fazer, afinal; e eu sem ajudante na cozinha?Em consideração à minha patroa, eu e Barrow permanecemos com o sr. Eustace. Ah, aquela era uma santa mulher, sem dúvida, e tão distinta em suas maneiras... bem, não adianta ficar falando, mas o que sempre disse­mos e diremos é que o sangue Cheviot não valia nada e nunca valerá, e o sr. Eustace era todo Cheviot! Uma Wincanton, minha finada patroa era, e a outra finada senhora também, pois elas eram irmãs, e tão unidas como nunca se viu igual! Ela era mais jovem do que a minha patroa dois anos, e o velho sr. Wincanton, ele deixou Highnoons para a minha patroa, e vin­culada, como dizem, a Lorde Carlyon.

Isso mesmo, o velho patrão, ele nunca levou os Cheviot em consi­deração por nada deste mundo — interrompeu Barrow. — Um estrangeiro, o sr. Cheviot era. Veio de Kent, creio.

Shhh! — fez a mulher, reprovando. — Mas o que é bem verdade, senhora. Ninguém por aqui considerava muito o sr. Cheviot, e foi em res­peito à patroa que permanecemos aqui depois que ela morreu.

Além da aposentadoria — garantiu Barrow a Elinor.

Elinor permitiu que a sra. Barrow continuasse sem interrupção en­quanto caminhava pela casa com ela, inspecionando os gabinetes sanitá­rios e os armários da roupa branca, pois não tinha nenhuma vontade de alhear-se da boa mulher, desconsiderando-a; além disso, estava suficien­temente curiosa para não fazer objeção a ficar ouvindo algum mexerico. Concluiu que a carreira do seu finado marido fora de dissipação desastrosa, e que quando ele visitava sua casa, o que não era freqüente, de um modo geral era em companhia de um grupo de homens... e, às vezes, não só de homens, disse a sra. Barrow, comedida... uma aliança da qual dificilmente se poderia ter esperado que melhorasse o caráter do seu pensamento.

—      E pensar que ele não devia ter estado em casa além de um dia, quando teria encontrado seu fim daquele jeito! — disse a sra. Barrow. — E nas mãos do sr. Nicky, ainda por cima, o que mais dói, eu diria! Nunca fiquei tão abalada em toda minha vida, senhora, eu que conheci o sr. Nicky desde que nasceu. Mas Lorde Carlyon resolverá tudo!

Elinor logo descobriu que Carlyon era o grande homem da vizinhança, um senhor da terra generoso, como fora seu pai, e, na opinião da sra. Bar­row, um personagem cuja vontade era lei, e cujas ações estavam acima de críticas. Ela precisou reprimir um sorriso enquanto ouvia; no momento, porém, em que levava em consideração a lealdade de uma mulher nascida na propriedade dele, ligada à sua família por muitos interesses, adquiriu a noção de um caráter respeitável que tinha a habilidade de se fazer esti­mar pelos seus dependentes.

Logo a tarde se foi, mas só depois que as duas mulheres haviam feito alguns planos e chegado a certas decisões. Na ocasião em que Elinor sentou-se para um jantar cedo, ficara acertado que uma sobrinha da sra. Barrow deveria ser contratada pela manhã, e a mulher do antigo cocheiro chamada na pequena casa onde moravam, no alojamento dos empregados, para fa­zer a faxina; e Elinor encontrara tempo para dar um passeio pelos jardins abandonados. Havia uma moita de arbustos, que outrora devia ter propor­cionado agradáveis passeios de inverno, mas que estava tão crescida que certos lugares se mostravam quase intransitáveis. Elinor resolveu determi­nar o cavalariço para limpá-la, uma medida extremamente aplaudida por Barrow, que ficara muito apreensivo, temendo que ela viesse a se decidir por ele como sendo a pessoa mais adequada para a tarefa.

Depois do jantar, ela voltou para a biblioteca, e mandou Barrow bus­car algumas velas mais resistentes, próprias para trabalho noturno. O baú da roupa branca continha tarefas suficientes para a mais zeloza costureira, e uma tremenda pilha de lençóis, toalhas e toalhas de mesa tinha sido tra­zida para baixo, para fins de conserto. Até Barrow tjrazer a bandeja do chá um pouco depois, Elinor continuou entretida com esse trabalho, seu cére­bro ocupado com esquemas para o futuro imediato, e com reflexões sobre tudo que se passara desde que viera para Sussex. Com a chegada da ban­deja do chá, ela deixou o trabalho de lado e começou a olhar ao longo das empoeiradas prateleiras cheias de livros, à procura de algo para distrair-lhe a mente por uma hora. Nenhum dos livros era de data muito recente, e um espaço muito grande parecia devotado a coleções de sermões, histó­rias muito desinteressantes e autores clássicos antigos, encadernados em couro já em estado de desintegração; contudo, depois de percorrer as pra­teleiras durante algum tempo, cada vez mais decepcionada, deu com alguns livros evidentemente adquiridos pela finada sra. Cheviot. Aqui, mistura­dos com várias edições encadernadas de Lady 's Magazine, estavam os poe­tas favoritos de Elinor e vários romances em encadernações com aspecto de mármore. Muitos deles já eram conhecidos seus, porém, no momento em que hesitava entre Tales of Fashionable Life, da sra. Edgeworth, e um volume danificado de Thaddeus of Warsaw, seu olhar foi atraído por um título que parecia tão apropriado à sua situação que ela não pôde deixar de ficar curiosa. Retirou The Schoolfor Widows e ficou alguns momentos folheando suas páginas. Infelizmente, notava-se a falta de muitas, o que impedia uma leitura cuidadosa dessa obra muito apropriada. Restituiu-o ao seu lugar e retirou, como substituto, um romance promissor, porém não tão manuseado, do mesmo autor, intitulado The Old English Baron. Com este na mão, recolheu-se novamente à sua poltrona, colocou outra tora no fogo e instalou-se para ficar aconchegada durante uma hora, antes de ir para a cama.

Para alguém que tinha tido pouca ociosidade nos últimos anos para satisfazer o gosto de ler à luz artificial, isto era de fato um luxo, e nem mesmo o tom deprimente da história da srta. Clara Reeve ou o comporta­mento lacrimoso da sua heroína teve o poder de desagradar Elinor. Ela con­tinuou lendo, sem prestar atenção ao tempo, ora divertindo-se e ora interessando-se pelas façanhas do perfeito Orlando, e lendo superficialmente com muita sensatez sobre as vertigens por demais freqüentes de sua Monimia. Ao derreter-se uma das velas, finalmente ela recuperou a noção do tempo; instintivamente consultou de relance o relógio sobre o consolo da lareira, mas seus ponteiros ainda apontavam falsamente cinco e quinze. As velas, contudo, tinham se consumido tanto nos bocais do candelabro que, evidentemente, a hora era muito avançada. Elinor levantou-se, sen­tindo-se um pouco culpada, como se um patrão irado pudesse mais tarde perguntar-lhe qual a razão do gasto excessivo das velas; e voltou a guardar o romance em seu lugar na estante. Um ruído, como de um degrau esta­lando, provocou-lhe um estremecimento. Ela percebeu que tudo ficara em silêncio na casa durante um longo tempo, e que certamente era de se supor que os criados há muito já tivessem se recolhido. Por um momento, ficou assustada; depois lembrou-se como os degraus antigos ainda ficavam es­talando muito tempo depois de terem sido pisados, apanhou o castiçal do quarto que Barrow lhe trouxera e acendeu o pavio numa das velas que ainda iluminavam o aposento. Deu uma olhada rápida para a lareira, para assegurar-se de que não havia nenhum perigo de que o pedaço de lenha ar­dendo no fogo lento caísse para fora e ateasse fogo na casa, apagou as ve­las do candelabro e dirigiu-se para a porta. Abriu-a e saiu para o vestíbulo exatamente para ficar imobilizada subitamente diante da visão assustadora de um completo estranho, no momento em que ele ia cruzar o vestíbulo, em direção à biblioteca.

Ela deixou escapar um grito sufocado com o choque e, por um ins­tante, sentiu o coração parar. Contudo, diferente de Monimia, da srta. Smith, ela não foi vítima de um excesso de sensibilidade, ao contrário, foi uma jovem mulher muito equilibrada, não levando mais do que um ins­tante para perceber que o estranho parecia igualmente consternado.

A candeia ainda acesa na mesa do vestíbulo revelava-o como sendo um homem jovem, com a aparência de um cavalheiro, usando traje de mon­taria, um casaco azul e um sobretudo de tecido grosso e pesado de cor pardacenta por cima. Estava de chapéu, mas, depois dos primeiros segundos de imobilidade causada pelo espanto, retirou-o e inclinou-se, balbuciando:

—      Peço-lhe mil perdões! Eu não sabia! Não tinha idéia... Queira me desculpar, peço-lhe!

Ele falava com um levíssimo traço de sotaque estrangeiro. A retirada do chapéu permitiu que se visse que seus olhos eram escuros, bem como o cabelo. No momento, ele parecia estar extremamente desconcertado, mas seu porte e suas maneiras eram corretas, e a expressão do seu semblante demonstrava um grau tranqüilizador de refinamento. Sentindo todo o cons­trangimento de sua própria situação, Elinor enrubesceu e respondeu:

—      Receio que deve ter vindo, senhor, para visitar alguém que já não está mais aqui. Eu realmente não sei como foi que o criado o deixou de pé aqui no vestíbulo. Na verdade, não ouvi a campainha da porta, e imaginava que Barrow já tivesse se recolhido. — Enquanto falava, seus olhos pousaram no relógio-armário, e, com um sobressalto, ela notou que falta­vam dez minutos para a meia-noite. Volveu o olhar atônito para o visitante desconhecido.

Ele parecia estar plenamente ciente da necessidade de uma explicação, mas em dúvida quanto à melhor maneira de dá-la. Depois de uma curta hesitação, ele disse:

Eu não toquei a campainha, madame. É tão tarde! O sr. Cheviot e eu somos amigos de longa data e estou acostumado a entrar na casa sem me fazer anunciar. Na verdade, sabendo que o bom Barrow já devia estar deitado, entrei por uma porta lateral. Mas não sabia... não tinha a mínima idéia...

Entrou por uma porta lateral! — repetiu ela, num tom de perplexidade.

O constrangimento dele aumentou.

Minha amizade com o sr. Cheviot sempre foi nesses termos, ma­dame, e vendo luz acesa em uma das salas de estar, tive o atrevimento... Mas tivesse eu sabido... A senhora precisa entender que, estando eu hos­pedado com amigos na vizinhança, contara... na verdade, eu julgara que teria o prazer de encontrar o sr. Cheviot em... em uma pequena soirée esta noite. Ele não apareceu, e, portanto, receando que pudesse estar indisposto, talvez, e não desejando partir sem vê-lo... resumindo, madame, cavalguei até aqui. Mas a senhora disse, creio eu, que ele não está?

O sr. Cheviot sofreu... sofreu um acidente fatal a noite passada, senhor, e lamento ser obrigada a informá-lo de que ele morreu — disse Elinor.

Ele parecia estupefato e quase incrédulo.

—      Morreu? — exclamou.

Ela assentiu com a cabeça. Fez-se silêncio por um momento. Ele o rom­peu, dizendo num tom de voz que tentava expressar calma:

Por favor, como foi isso? Estou muitíssimo abalado. Mal posso acreditar ser isso possível!

Contudo, é verdade. O sr. Cheviot envolveu-se numa briga numa estalagem a noite passada e foi acidentalmente morto.

Um lampejo de raiva brilhou em seus olhos escuros. Ele exclamou: —- Oh, sapristi! Sem dúvida estava bêbado! O idiota! Ela nada respondeu. Depois de outra pausa, tempo em que permane­ceu de cenho franzido, sacudindo a correia do chicote, ele disse:

Isto ocorreu a noite passada, a senhora disse? Em Londres, sem dúvida?

Não, senhor, foi aqui, em Wisborough Green.

Então ele veio ontem aqui!

Assim creio — concordou ela.

Os olhos dele percorreram o vestíbulo, como se à procura de inspira­ção. Volveu-os para o rosto dela e disse, com um sorriso forçado:

—      Perdoe-me! Estou muitíssimo chocado! Mas a senhora, madame? Eu realmente não entendi direito...?

Ela já previra a pergunta e agora respondia-a o mais friamente possível:

—      Sou a sra. Cheviot, senhor.

Uma expressão do mais puro espanto dominou o rosto do rapaz. Ele continuou olhando-a fixamente e só pôde repetir:

Sra. Cheviot!

Isso mesmo — confirmou Elinor friamente.

Mas... quer dizer, a esposa do meu amigo?

Sua viúva, senhor.

Santo Deus!

Não nego que a notícia surge como uma surpresa para o senhor — disse ela —, mas é verdade. Os amigos de meu... meu marido naturalmente são bem-vindos a esta casa, mas o senhor prontamente compreenderá, es­tou convencida, de que a esta hora tardia, e nas atuais circunstâncias, não posso oferecer-lhe a hospitalidade que... que...

Ele readquiriu o domínio de si, dizendo rapidamente:

Perfeitamente! Eu a deixarei neste instante, madame, e com as mais profundas desculpas! Mas, queira me perdoar! A senhora é jovem e sozi­nha, não é? E esta terrível tragédia, que se abateu sobre a senhora com tal subitaneidade... nem é bom pensar! Como amigo íntimo do pobre Cheviot, eu desejaria ser de alguma utilidade! Ai de mim, receio que tudo será en­contrado na maior desordem, pois sei bem que ele não tinha o costume de... resumindo, madame, se eu puder ajudá-la, ficarei honrado!

É extremamente amável, senhor, mas os assuntos do sr. Cheviot estão nas mãos de seu primo, Lord Carlyon, e estou certa de que não care­cem de ajuda.

Ah, bem...! Isso muda a questão, pois Lorde Carlyon, isto é certo, fará tudo que se poderia desejar. Os papéis do meu pobre amigo, por exem­plo, na confusão em que estavam... pois a senhora deve saber que eu go­zava muito de sua confiança!... mas Lorde Carlyon certamente se terá encarregado de tudo, não tenho dúvidas.

—- Certamente, senhor — concordou ela. — Se está interessado em algum dos assuntos do sr. Cheviot, deverá consultar Lorde Carlyon. Es­tou certa de que o achará pronto a obsequiá-lo. Creio que no momento ele está bastante ocupado com as... as tristes conseqüências da morte do seu primo, mas espero vê-lo aqui dentro dos próximos dias ou algo assim, com o advogado do sr. Cheviot, para examinarem quaisquer papéis pertencen­tes ao falecido.

—      Oh, não, não! — exclamou ele. — Não estou interessado nesse as­pecto, madame! Apenas desejava, caso pudesse, ser de alguma ajuda. Mas percebo que já está em boas mãos, e a deixarei imediatamente, com reno­vadas desculpas pela minha intrusão a esta hora!

Ela agradeceu a reverência que o rapaz lhe fez com uma inclinação de cabeça, passando por ele em direção à porta da frente, para abri-la. Os ferrolhos estavam no lugar, e a corrente firme, e o rapaz imediatamente aproximou-se rápido de Elinor para aliviá-la da necessidade de puxar os ferrolhos. Logo ele tinha a porta aberta e, numa saudação graciosa, cur­vava o corpo sobre a mão dela, pedindo-lhe que não permanecesse no ar frio da noite. Ela ficou muito satisfeita por fechar a porta atrás dele e co­locar a corrente no lugar outra vez, pois, embora as maneiras do rapaz fos­sem irrepreensíveis, não gostaria de ficar sozinha com um completo estranho a essa hora da noite.

Estava a ponto de subir as escadas para o seu quarto quando se lem­brou que o visitante tinha entrado por uma porta lateral. Não poderia ir para a cam a de modo algum à vontade enquanto uma porta da casa per­manecesse destrancada, portanto voltou e foi ver que porta seria essa.

Mas a mais zelosa busca não foi suficiente para descobrir uma porta sem os ferrolhos passados, uma circunstância que a deixou pesarosa e con­fusa. Começou a imaginar que o cavalheiro poderia ter mentido um pouco, tendo entrado, na verdade, por uma janela. Mas, indo com o castiçal de cômodo em cômodo, Elinor não achou nenhuma que não estivesse segura, e sua surpresa deu lugar a uma sensação de grande inquietação. Devia ha­ver alguma explicação natural para a presença do visitante, disse a si mesma, mas não conseguia pensar em nenhuma; finalmente, subiu e foi deitar-se, com o coração batendo um tanto rápido. Tivesse o rapaz sido menos ami­gável e justificativo, teria ficado muito inclinada a despertar a criadagem, mas ela não conseguia acreditar que o motivo de ele entrar tão misteriosa­mente tivesse sido sinistro, e como a essa altura ele já devia ter ido embora, pouca razão havia em acordar Barrow para ir atrás dele. Contudo, por mais amigável que ele pudesse ter sido, não era muito agradável a idéia de que estranhos pudessem, aparentemente, entrar na casa à vontade, e a despeito das portas e janelas aferrolhadas. Elinor ficou satisfeita ao ver uma chave na fechadura da porta do seu quarto e não hesitou em trancá-la.

Continuou acordada por algum tempo à luz do fogo, com os ouvidos bem atentos, mas nenhum ruído perturbava o silêncio da casa, e ela ador­meceu finalmente, dormindo profundamente até de manhã.

 

na manhã seguinte, Elinor não perdeu tempo para informar ao casal Barrow o que tinha ocorrido durante a noite. No mesmo instante Barrow declarou-se pronto a jurar por tudo que era mais sagrado que ele trancara todas as portas e janelas contra intrusos, mas a sra. Barrow disse, numa disposição de espírito muito conjugai, que ele não cuidava de nada, e se os olhos dela não estivessem em cada tarefa, nenhuma era executada.

Mas a verdade é que quando fui em busca da porta aberta para trancá-la, não encontrei nenhuma que não estivesse fechada — declarou Elinor. — De fato, estive quebrando a cabeça com esse assunto, pois não consigo imaginar como alguém pode ter entrado na casa. Será que existe alguma porta que não conheço? Como...

Não atormente sua cabeça, senhora! — disse a sra. Barrow, com vigor. — Pode estar certa, o homem entrou por uma das janelas! Mas es­tou amolada por uma coisa dessas ter acontecido, e gostaria que a senhora tivesse me acordado, pois eu teria mandado meu prestimoso senhor cui­dar da sua vida prontamente.

Não havia a menor necessidade de acordá-la. Não pretendo dizer que o cavalheiro causou-me aborrecimento, pois ele foi muito educado e ficou praticamente tão confuso quanto eu mesma.

Bem, me intriga quem possa ter sido, senhora — declarou a sra. Bar­row. — Não que... Pergunto a mim mesma, não seria o honrado Francis Cheviot, talvez? Como ele é filho de Lorde Bedlington, tio do pobre sr. Eustace...

Eu de fato não sei. Foi estupidez minha, mas esqueci de perguntar seu nome.

Tinha aparência de um cavalheiro distinto? — perguntou Barrow. — Criado no algodão, como dizem?

N... não. Quer dizer, eu não sei realmente. Tinha porte elegante, mas não parecia exatamente um almofadinha. Era moreno e muito jovem. Oh, sim, falava com um ligeiro sotaque estrangeiro!

Oh, elel — exclamou Barrow, com desdouro. — Deve ser o fran­cês, deve ser. Eu o vi aqui antes, mas não lembro de algum dia ele ter en­trado pela janela.

Um francês! Ora, isso mesmo, ele proferiu uma blasfêmia em fran­cês, agora você me fez lembrar! Diga-me, quem é ele?

Certa vez ele veio com o sr. Francis — falou Barrow, como quem está meditando. — Tinha um nome esquisito, mas não sei como era. Veio para a Inglaterra num cesto de repolhos, foi como veio.

Veio para a Inglaterra num cesto de repolhos!

Pare com isso, Barrow! — disse a mulher, indignada. — Não foi nada disso, senhora!

Foi o que o sr. Eustace me disse — argumentou Barrow. — O fran­cês não passava de um bebê e coube num cesto de repolhos como um camundongo num queijo, ouso afirmar.

Era uma carroça cheia de repolhos, e certamente ele não fez todo o caminho para a Inglaterra nessa carroça! Foi no princípio daquela hor­rível revolução que tiveram, senhora, e eles dizem que o único meio de fuga para gente decente, para a nobreza e algo semelhante, era sair clandestina­ mente da cidade de todas as maneiras de disfarce e estratagemas desse tipo.

 

Isso mesmo, de truques esquisitos sem fim, esses franceses são ca­pazes — assentiu Barrow com a cabeça. — Não que eu acredite em tudo que escuto, e sempre calculei que isso era inacreditável demais.

Uma família emigrei Compreendo! — disse Elinor. — Eu devia ter calculado, realmente.

—      Não sei que espécie de família poderia ser — disse Barrow caute­losamente —, mas o que o terá feito vir visitar o sr. Eustace àquela hora da noite? Nunca o vi a não ser algumas vezes em toda minha vida, e apesar de ser francês, ele entrava pela porta da frente como um cristão.

—      Acho que ele disse que estava visitando amigos na vizinhança. Barrow parecia inclinado a contestar isso capciosamente. Coçou o queixo.

—      Bem, ele não está visitando Lorde Carlyon, isso é certo. Nem está no priorado, pois o velho sr. Matthew é terrivelmente contra todos os fran­ceses. E nem pode estar em Elm House, pois duas damas mais respeitá­veis que a srta. Lynton e a srta. Elizabeth, a senhora não encontrará, e hos­pedando cavalheiros é que elas não estão. E se foi ao Hurst que ele se refe­riu, o sr. Frinton e sua senhora foram para Londres e não voltam esta semana.

—      Provavelmente ele veio de Hill — sugeriu a sra. Barrow, em um tom agradável. — Estou certa de que isso não tem nenhuma importância.

—      Sim, provavelmente veio de lá — concordou Barrow. — Não se pode dizer o que eles vão fazer, uma vez que moram em Hill.

Depois de expressar-se adequadamente como um homem do Weald, ele pareceu achar que o problema estava resolvido e foi fazer um inventá­rio de toda a prata existente na casa.

Elinor deixou o assunto extinguir-se e logo absorveu-se em alguns de­talhes domésticos com a sra. Barrow. Mas quando a boa mulher já havia zarpado para a cozinha, seus pensamentos retornaram ao episódio, e en­quanto começava várias tarefas que se achavam mais próximas, viu-se ainda procurando decifrar o enigma.

Às onze horas, o ruído de patas de cavalo na entrada para carruagens a fez olhar pela janela. Viu o honrado Nicholas Carlyon caminhando a passo rápido em direção à casa, num baio elegante, com um cão de raça cruzada, metade mestiço, metade mastim, saltitando ao lado do cavalo. Nicky avistou-a e acenou com o chicote, gritando:

—      Como vai? Ned me disse que eu devia vir para ver se o seu conforto era razoável.

—      Fico muito grata aos dois! — respondeu ela. —- Por favor, leve o cavalo para os estábulos, que descerei e o deixarei entrar!

No momento em que ele voltava dos estábulos, ela já estava de pé na entrada. Ele aproximou-se em passadas largas e imediatamente tirou o cha­péu, dizendo:

—      Bom dia, senhora! Será que faz objeção ao Bouncer? Eu o deixa­rei do lado de fora se preferir, só que se fizer isso, acho que ele ficará ca­çando, e o objetivo serão as reservas florestais de Sir Matthew Kendal, limítrofes com esta terra, e ele está longe de gostar de ter Bouncer ali.

—      Não, na verdade isso não seria bom — disse ela. — Não faço a mí­nima objeção a ele, pois durante toda a minha vida estive acostumada com cães. Por favor, traga-o com você!

Ele parecia grato e mandou o cão segui-lo. Barro w, que por acaso atra­vessava o vestíbulo naquele momento, olhou para a sua patroa com muita reprovação e deu uma abalizada opinião, dizendo que se o sr. Nicky devia trazer seus cães para dentro de casa, arranhando os assoalhos, não havia lógica em chamar a mulher do jardineiro para encerá-los. O inteligente cão, contudo, levantou o focinho para ele, numa atitude de obstinação, e Barrow afastou-se, resmungando.

Meu irmão foi fazer uma pequena viagem em seu coche, sra. Cheviot — informou Nicky, seguindo sua anfitriã em direção à biblioteca. — Oh, você não gosta quando alguém a chama por esse nome! Bem, sabe, estive pensando, e se você não desgostar demais, creio que eu poderia chamá-la de prima Elinor. Pois você é nossa prima, não é?

Pelo casamento, suponho que deva ser — reconheceu Elinor. — Não desgosto que me chame assim, de qualquer modo... primo Nicholas.

Oh, não, eu gostaria que não me chamasse de Nicholas! — pro­testou ele. — Ninguém me chama assim, exceto John, às vezes, quando me prega um dos seus sermões! Ned nunca me chama de Nicholas. Ora, como você já mudou tudo aqui! Confesso, isto está excelente!

Ela o convidou para sentar-se ao lado do fogo; ele recusou participar de qualquer conforto mas estava ansioso para saber se havia algum modo de ser útil.

—      Porque você deve saber que estou praticamente desocupado — contou-lhe. — E Ned disse que eu poderia ser útil.

Ela achou que a ajuda do rapaz em pôr em ordem a roupa branca não seria uma ajuda muito prática, mas ocorreu-lhe que ele talvez pudesse es­clarecer ao menos a identidade do seu visitante da meia-noite. Portanto, descreveu seu encontro com ele. Nicky ouviu com muito interesse, e, no final, disse que seu primo Eustace fora um sujeito de parafuso muito frouxo e que quaisquer amigos seus provavelmente seriam sujeitos perigosos. Mas ele estava menos preocupado com o nome do francês do que com a ma­neira pela qual ele entrara na casa.

—      Um tanto suspeito, prima! — disse ele. — Um sujeito não vai en­trando sorrateiramente na casa de um homem à meia-noite se tem boas intenções. Pode estar certa, Eustace estava envolvido em alguma malandra­gem qualquer.

Espero que esteja errado! — disse ela. — Pois se não estiver, nem ouso pensar nas estranhas pessoas que possam procurar obter entrada aqui na esperança de encontrá-lo!

É verdade. Está bem certa de que não havia nenhuma porta esque­cida aberta?

Não consegui achar nenhuma. É a coisa mais estranha! Confesso que não consigo ficar à vontade por causa disso.

Vou lhe dizer do que se trata, prima Elinor! — disse Nicky, seus olhos cintilando.— Eu não ficaria de modo algum surpreso se houvesse uma passagem secreta na casa que não conhecemos!

Ela olhou-o, bastante desanimada.

Não, por favor, não coloque essas idéias desagradáveis na minha cabeça! — suplicou ela.

Certo, mas acho provável que haja sim — insistiu ele. — Costu­mavam dizer que Carlos II escondera-se nesta casa depois de Worcester. Ned diz que é tudo tolice e que ele nunca chegou a 16km de Highnoons, mas imagine só se fosse isso mesmo!

Imagine só! — repetiu Elinor, em um tom vazio.

Nicky levantou-se de um salto e começou a andar pelo aposento, exa­minando as paredes.

Acho que pode haver um painel corrediço em alguma parte, exata­mente como já vi em certas casas antigas, com uma passagem para o jardim.

Não nesta sala — disse Elinor, com firmeza. — Ele não entrou aqui... eu gostaria que você não falasse dessa maneira! Não pregarei olho a noite inteira!

Não mesmo! Acho que não! — concordou Nicky. — Precisamos encontrá-la, é claro! Por Deus, este será um divertimento formidável!

Nada seria melhor para ele do que uma oportunidade de dar uma busca pela casa. Elinor foi com ele, dividida entre o divertimento diante do entu­siasmo dele e um medo horrível de que o rapaz pudesse realmente desco­brir uma porta secreta. Bouncer os acompanhava, confiando encontrar ratos, mas logo ficou desgostoso com a falta de diversão e deitou-se no chão, dando enormes bocejos. Nicky bateu em todas as paredes revestidas de lam-bris dos aposentos do rés do chão, sem produzir a nota oca que tão arden­temente desejava ouvir, e Elinor começava a respirar outra vez, quando ele insistiu em ir para o andar superior. Ela julgava improvável que uma pas­sagem secreta na casa devesse ser encontrada em algum dormitório, mas Nicky disse que vira uma que começava na queijaria, no último andar de uma casa.

Santo Deus, aqui há um sótão grande, provavelmente muito usado como queijaria em tempos passados! — exclamou Elinor, bastante cons­ternada.

Há mesmo, com a breca! — exclamou Nicky. — Subirei até lá agora mesmo!

Ela não o acompanhou e ele logo reapareceu levemente abatido por ter sido incapaz de descobrir sequer uma cela de padre na queijaria. Nicky, forçosamente, a fazia recordar-se dos irmãos colegiais de diversos ex-alunos seus, de modo que ela logo abandonou toda a formalidade com ele, um ar­ranjo que pareceu contentá-lo muito. Sua convicção de que o grande ar­mário embutido na parede do quarto de dormir dela era exatamente o lugar onde se poderia esperar logicamente encontrar um alçapão oculto, obrigou-a a interrompê-lo para chamá-lo de menino odioso, uma forma de trata­mento à qual ele parecia estar acostumado, pois esboçou um largo sorriso e disse:

Eu sei, mas que divertimento se fosse verdade, prima Elinor! Ima­gine só!

Estou imaginando — disse ela. — E deixe-me informá-lo de uma coisa, Nicky; se está tentando horrorizar-me, perde o seu tempo. Lembre-se de que eu era governanta, e as governantas, você sabe bem, não têm idéias românticas, e raramente são dadas a desmaios ou a melancolia!

Oh, não são dadas pouco! — retrucou ele. — Minhas irmãs tive­ram uma governanta certa vez que desmaiava continuamente. Dissemos a ela que a Mansão era mal-assombrada; Gussie... minha irmã Augusta, você sabe... envolveu-se num lençol, e Harry e eu sacudimos correntes e produ­zimos os ruídos dos gemidos mais espetaculares! Ela não ficou com a gente além de um mês.

Estou pasma que tenha ficado tanto tempo com vocês — disse Eli­nor. —- Cheguei a pensar que a minha sina era difícil, mas vejo que tenho bons motivos para ser grata porque pelo menos jamais fui contratada para lecionar para suas irmãs.

Ele riu.

Oh, não teríamos tratado você assim, pois de modo algum você se parece com uma governanta. Posso entrar neste quarto?

Pode, sem dúvida! — respondeu ela cordialmente. — Se achar al­gum esqueleto atrás do lambri, por favor não hesite em me chamar! Esta­rei na destilaria, no final do corredor.

Ela separou-se dele e afastou-se para verificar o estoque das provisões. Estava entretida arranjando uma fileira de potes de conserva numa prate­leira, quando ouviu Nicky gritar por ela em um tom de voz de grande excitação. Ela saiu para o corredor, dizendo calmamente:

Você encontrou uma caveira. Que encantador, sem dúvida!

Não, não encontrei uma caveira, mas venha ver só, prima Elinor! Não a estou enganando! Venha ver!

Muito bem, mas não terei escrúpulos em lhe dizer que minhas ex­pectativas são elevadas e menos que uma caveira não me bastará.

Ele a levou para um pequeno cômodo quadrado, revestido de lambri até o teto e que continha pouca coisa além de uma cama, um baú entalhado e duas cadeiras.

Você está zombando de mim, mas não zombará quando vir o que descobri! Agora, olhe à sua volta, prima! Você não imaginaria que hou­vesse algo extraordinário aqui, imaginaria?

Não, realmente — concordou ela. — Porque, depois de ter inspe- cíonado rigorosamente esta casa, estou ciente de que há um armário oculto à direita da lareira. Na verdade, está, de algum modo, perfeitamente oculto, e foi usado, imagino, como guarda-roupa.

—      Certo — interrompeu ele, de modo algum desalentado. — Mas você sabe o que existe nesse armário?

Ela o olhou, com desconfiança.

Nicky, se colocou alguma coisa horrenda ali, só para me ver en­trar em fortes convulsões...

Eu já lhe disse, não a estou enganando, senhora! Ora, seria possí­vel que eu fizesse uma coisa feia dessas?

Seria — respondeu Elinor francamente. — Muitíssimo possível.

Bem, eu não fiz. Veja!

Ele dirigiu-se ao painel que formava a porta do armário e a fez cor­rer. Elinor olhou cautelosamente o seu interior, mas o armário estava va­zio. Lançou um olhar indagador para Nicky e notou que seus inocentes olhos azuis estavam claramente brilhantes de excitação.

Pelo amor de Deus, diga-me agora mesmo o que significa isto! — pediu ela.

Veja! — disse ele de novo e entrou no armário pouco profundo,ajoelhando-se e, com certa dificuldade, puxando com força uma parte trian­gular das tábuas de carvalho que formavam o piso. Eram tão sutilmente unidas que quando o alçapão que formavam estava no lugar, só um exame minucioso revelaria o fato de que o assoalho não era sólido. Com olhos arregalados, Elinor presenciou o triângulo levantar-se e uma cavidade es­ cura e estreita surgir aos seus pés.

É mais fácil levantar por baixo — explicou Nicky, apoiando o triân­gulo contra a parede.

Mais fácil levantar por baixo! — repetiu Elinor, com voz fraca.

Sim, porque experimentei. Acho que, em outros tempos, podem ter usado uma certa artimanha para abri-la deste lado — veja como as tá­buas se contraíram, eu até posso enfiar minhas unhas debaixo delas — e isso não pode ter acontecido quando a casa foi usada a sério. Veja, prima Elinor, consegue ver? É uma escada secreta, descendo ao longo do grande grupo de chaminés!

Santo Deus! — exclamou ela debilmente.

Sabia que você ficaria surpresa! — assentiu ele com a cabeça. — Gostaria de saber se Ned tem conhecimento da existência dela!

Ela o olhou com uma expressão fulminante.

Se eu descobrir que seu... seu odioso irmão sabia de uma coisa des­sas e me deixou aqui à mercê de algum saqueador que tem o capricho de entrar furtivamente na casa altas horas da noite... oh, é abominável demais da parte dele! Aonde leva essa escadinha horrível?

Ainda não sei. Não a exploraria antes que você a tivesse visto, pois é sua casa, afinal, e seria realmente uma pena se eu conservasse toda essa diversão só para mim.

Foi sensato da sua parte. Sou-lhe muito grata! — replicou Elinor, com sentimento. — Gostaria de saber se há amoníaco na casa.

Oh, agora você está caçoando de mim novamente! Mas não per­camos mais tempo! Vou primeiro?

Descer por essa horrível escada? — gaguejou Elinor. — Imagina mesmo, sua criatura horrível, que vou dar um passo nela?

O rapaz olhou-a, um pouco surpreso.

—- Não vai mesmo? Oh, você está pensando que provavelmente ela está empoeirada! Bem, acho que pode estar, mas não vou levar isso em con­sideração. Você fica aqui, e logo descobrirei aonde ela vai dar!

Ela fez um movimento para a frente e agarrou-o pela manga.

Nicky, pelo amor de Deus, não se arrisque, descendo por aí, sem ao menos levar uma vela! Você não sabe o que poderá descobrir!

Tolice! Estou certo de que há luz suficiente para mim! Deve dar no jardim, é claro, mas como é que não vimos a porta? Não há nada a te­mer, prima Elinor!

Você não pode saber disso! Pode cair e quebrar uma perna ou en­contrar algo aí... oh, gostaria que não fosse!

Ele esboçou um largo sorriso.

Não espere que eu encontre algo, só isso! Se houver uma caveira, trago-a para você!

Não ouse fazer algo desse tipo! — disse ela, estremecendo. — Se está determinado a descer, só me deixe chamar Barrow para ir com você!

Barrow! Não, agradeço! Não pretendo lhe contar sobre isto! — disse Nicky, desaparecendo pela abertura.

Elinor ficou esperando no topo, muito aflita, com apreensão, e, vez por outra, chamava-o para saber se ele ainda estava em segurança. Ele garantia-lhe que estava e que havia luz suficiente penetrando através da abertura para ver o caminho. Ela afastou-se e deixou-se cair pesadamente numa poltrona, para aguardar os acontecimentos. Parecia que havia trans­corrido um século quando ele reapareceu, mas o fez finalmente, e entrou no quarto, sacudindo a poeira das roupas.

É a coisa mais espetacular! -— informou. — Exatamente como eu imaginava! A escada desce ao longo do grupo de chaminés... da chaminé da padaria, você sabe! E há uma porta no final, só que está tão coberta de trepadeiras que jamais se conseguiria vê-la, a menos que a procurássemosde propósito! Pergunto a mim mesmo como a ocultavam antigamente.

Gostaria de saber? — perguntou Elinor, fitando-o, fascinada. — Imagino que não haja nenhuma dificuldade para abrir a porta pelo lado de fora.

De modo algum deste mundo! Há um trinco; você só precisa afas­tar as trepadeiras, e poderá vê-la tão claro como água! Prima Elinor, nada me deu mais satisfação em minha vida! É sensacional! Ora, não temos nada semelhante na Mansão!

Que infortúnio para você! — disse Elinor.    

Bem, acho injusto que um sujeito insignificante como Eustace tivesse uma coisa tão sensacional, quando penso que ele provavelmente nunca fez o mínimo uso dela! Imagine só o que Harry e eu teríamos feito se tivés­semos tido uma passagem dessas na Mansão!

Prefiro nem imaginar — replicou Elinor. — Mas, de todo meu co­ração, gostaria que você tivesse uma lá!

Certo — disse ele pensativamente. — Mas não adianta nada ficar pensando. Só me parece uma pena mesmo que eu jamais tivesse sabido da sua existência a não ser agora. Por Deus, gostaria que Harry estivesse aqui. Se ao menos ele tivesse visto essa passagem quando éramos meninos, teria pensado em algo sensacional para fazer com ela, pois sempre foi o parceiro mais completo, sabe! Ora, poderíamos ter dado a Eustace o maior susto da vida dele! Harry é um dos meus irmãos, não sei se sabe. Está na Penín­sula Ibérica, e eu realmente gostaria que não estivesse! Você iria gostar muito dele.

Estou certa que sim — respondeu Elinor, com simpatia. — Ele pa­rece ser uma criatura encantadora! Mas nesse meio tempo eu lhe ficaria grata se procurasse imediatamente um martelo, alguns pregos fortes, e pren­desse aquela porta secreta!

Prendê-la com prego! Mas, prima Elinor, você não está por acaso pensando que o homem que encontrou na casa a noite passada entrou por esse caminho, não é? — exclamou ele.

Elinor fechou os olhos por um sugestivo momento.

—      Sim, Nicky, estou de fato pensando nisso mesmo — respondeu ela. — E desde que não tenho o menor desejo que ele repita sua visita, gostaria que você prendesse a porta!

—      Bem, estou certo, sem dúvida, que é isso que devemos fazer — disse ele, franzindo o cenho. — Quanto mais penso, mais convencido fico de que há algo danado de suspeito nesse negócio. Pense só, prima! Um homem que precisa entrar na casa furtivamente por uma escada secreta não está bem-intencionado!

—      Exatamente. Há uma tal falta de sinceridade num comportamento desses, que qualquer um fica forçosamente chocado, e a minha indigna­ção é não prosseguir nessa amizade.

As sobrancelhas do rapaz ainda estavam franzidas.

—      Por que ele teria feito isso, se não sabia que Eustace estava morto e que você estava aqui na casa dele? Ou acredita que ele não era amigo de Eustace de modo algum e queria entrar na casa sem que ele soubesse?

Ela pensou na possibilidade.

—      Não — disse ela por fim. — Ele deve ter notado a luz brilhante por debaixo da porta da biblioteca e pensado que seu primo estava ali. Não te­nho dúvidas de que ele se dirigia à biblioteca no momento em que eu dela saía. Na verdade, ele deve ter-me ouvido andar na sala! Se não desejasse ser visto, devia ter-se escondido, pois certamente teve tempo suficiente para fazê-lo. Estou convencida de que ele contava ver seu primo.

Os olhos de Nicky começaram a faiscar novamente.

—      Com a breca, imagine só se nós tivéssemos topado com uma cons­piração que ele e Eustace estivessem maquinando! Gostaria de saber o que teria sido! Pode estar certa, ele veio pela passagem secreta para que os cria­dos não soubessem de sua visita! Diga-me outra vez o que ele lhe disse exa­tamente.

Ela agiu de acordo com o pedido, o melhor que pôde. Ele ouviu aten­tamente, questionando-a vigorosamente sobre vários tópicos de sua nar­rativa. Sacudiu a cabeça.

É por demais estranho! — exclamou. — Note bem, embora eu ad­mita não ter idéia do que ele estaria procurando, não acredito que fosse tão inocente como você pensa! Bem, se assim fosse, ele não teria o tipo de relacionamento com meu primo que descreveu! Disse que tinha sido íntimo dele, não disse?

Disse, decididamente. Na verdade, falou que estava a par da con­fusão em que deviam estar os assuntos do seu primo e ofereceu-se para ajudar-me a pôr seus papéis em ordem.

Nicky olhou-a fixamente.

Ofereceu-se, não foi? Agora vejamos, por que você precisaria da ajuda de um estranho, quando é perfeitamente sabido que meu primo ti­nha uma quantidade enorme de parentes aos quais você poderia apelar, caso necessitasse? Por Deus, você acertou em cheio, prima! Seu precioso visi­tante veio aqui para obter algo de Eustace, e o seu desejo de examinar os papéis o comprova! Oh, é extraordinário! Vamos descer imediatamente e descobrir o que possa ser isso!

Não, isso você não fará! — declarou Elinor severamente. — Seu irmão deixou todos aqueles papéis sob minha responsabilidade, e ninguém deve vê-los a não ser ele próprio e o advogado, os executores do testamento do seu primo! Além disso, é tolice! O que poderia haver para interessar a mais alguém?

Não sei, mas juraria que há alguma coisa! É claro, pode não ser um papel; gostaria de saber se Eustace roubou alguma coisa de valor! Ele estava sempre preso e...

Não admitirei que isso seja possível! — disse Elinor. — Você quer que eu acredite que seu primo era um ladrão comum? Tal idéia só pode ser absurda!

Bem, certa vez Eustace roubou o melhor caniço de Harry — argu­mentou Nicky —, que ele havia obtido em troca de sua bóia de linha de pes­car. Harry correu para minha tia se queixando da grosseria com que fora tratado. Eustace era o sujeito mais perigoso que se possa imaginar!

Não nego, mas há uma diferença entre um menino tomar empres­tado o que não lhe pertence e...

Ele não tomou emprestado! Ele roubou o caniço e jurou que não fazia idéia de onde poderia estar! Só que Harry tinha um palpite muito forte do lugar em que ele o escondera e achou-o. Se não acredita em mim, pode perguntar a Ned! E embora não seja uma coisa que falemos de um modo geral, foi por roubo que expulsaram Eustace de Eton. Pelo menos teria sido, só que Ned convenceu-os a deixá-lo retirar o primo sem nada ser dito quanto à causa.

Santo Deus! — exclamou Elinor, com amargura. — Com que belo marido me casei, sem dúvida!

Oh, ele era um sujeito revoltante! — disse Nicky jocosamente. — Assim sendo, você compreende...

Não me interessa quão revoltante ele possa ter sido, não permiti­rei que mexa em seus papéis! — disse Elinor, com determinação. — Não seria adequado de minha parte. Além disso, não dou a mínima importân­cia a toda essa tolice! Você acrescentou detalhes demais ao que deve ter uma explicação bastante simples.

Aposto com ampla margem de vantagem como está errada! — pro­pôs Nicky. — É claro, se julga que eu não deveria dar uma olhada nos pa­péis de Eustace, não farei isso. Creio que deveria voltar para a Mansão e contar a Ned o que descobrimos. Acho provável que, a essa altura, ele já tenha regressado.

Certo, acho que deveria fazer isso — respondeu Elinor gratamente. — Mas gostaria que você prendesse aquela porta antes de ir!

—      Não, não, não devemos pensar numa coisa dessas — respondeu ele. - Tenho grandes esperanças de que o sujeito volte outra vez. Na verdade eu apostaria 25 libras como ele voltará, e não vamos querer afugentá-lo! - Ele sorriu insinuantemente para sua anfitriã fascinada. — Não deseja­mos, não é, prima Elinor?

 

Certamente que não! — declarou ela, mostrando-se à altura da si­tuação com fidalguia. — Se ele voltar, vou oferecer-lhe um lanche. Se ao menos eu tivesse pensado nisso antes! Espero realmente que a minha falta de hospitalidade não lhe tenha causado aversão a esta casa!

Sabia que você era uma pessoa justa! — exclamou Nicky. — Mas seja cautelosa, senhora! Veja bem, se estou certo em minhas deduções, e creio que possa estar, ele voltará para obter o que deseja, seja lá o que for, e precisamos ficar de emboscada para apanhá-lo em flagrante. Sei que Ned diria isso!

—      Posso acreditar prontamente que diria — confirmou Elinor ironi­camente.

Nicky recolocou o alçapão no lugar e fechou o armário.

—- Não vejo mais nada que possamos fazer aqui no momento — disse ele. — Vamos descer outra vez, prima. E não deve dizer nem uma palavra disto aos Barrows, você sabe, porque não desejamos que ninguém saiba o que descobrimos, pois aposto dez contra um que ficariam assustados e fugiriam, deixando-a aqui sozinha, e isso não seria bom de maneira alguma.

—      Finalmente você expressou um sentimento com o qual estou de pleno acordo! — replicou Elinor. — Mas não se engane imaginando que pretendo passar outra noite nesta casa com aquela horrível porta destran­cada, porque nada me levaria a fazer isso! Embora não tenha, sem dúvida, a mínima esperança de receber outra visita semelhante daquele homem!

O rapaz descia a escada atrás dela.

—      Bem, se não tem esperança, talvez não faça a mínima objeção a que eu deixe aquela porta aberta — disse ele sensatamente.

Ela entrou na biblioteca e sentou-se ao lado da lareira.

—      Não deveria, eu sei — confessou ela. — Mas as mulheres têm fantasias tão inexplicáveis! Você vai me considerar uma criatura tão in­significante como seu primo, acho, mas devo admitir que há algo muito desagradável na idéia de que existe uma passagem nesta casa, usada por alguém que você me garantiu deva ser um indivíduo ameaçador. Na ver­dade, mesmo agora, em plena luz do dia, noto que não posso ter o espírito tranqüilo, e estou bastante apreensiva por ser forçada a ir lá para cima.

—      Oh, não precisa ficar apreensiva, senhora! — garantiu-lhe. — Não há nenhum perigo de que alguém possa entrar por aquela porta durante a luz do dia! Mas quer saber de uma coisa? Enquanto vou até a Mansão para contar a Ned a descoberta, deixarei Bouncer para protegê-la. A senhora ficará bem à vontade então, porque ele é muito feroz, garanto-lhe! No ou­tro dia ele deu uma dentada na perna do ferreiro. É um cão esplêndido e bastante jovem ainda!

Duvidando, ela olhou para o cão, que se achava estirado diante do fogo, dormindo profundamente.

Bem, se você acha... Mas talvez ele não fique^ se você não estiver aqui.

Fica sim, ele vai ficar. Eu o tenho treinado para fazer todos os ti­pos de façanhas! Aqui, Bouncer! Aqui, garoto!

O cão acordou e levantou-se, baixando as orelhas e arquejando afe­tuosamente para o seu dono. Nicky deu-lhe uma palmadinha incentivadora.

—      Bom cachorro, Bouncer! — disse ele. — Agora você fica aqui e toma conta dela! Entendeu, senhor? Sente-se! Isso mesmo! Em guarda, Bouncer, obedeça! — Ele endireitou o corpo, olhando orgulhosamente para o animal de estimação. — Pode ver como ele me compreende, não? — per­guntou Nicky. — Agora vou indo. Não se dê ao trabalho de acompanhar-me até a porta! E não fique nervosa, sim, prima? Estarei de volta imedia­tamente, e vou lhe trazer Ned. Sentado, Bouncer! Em guarda!

Ele saiu do aposento enquanto falava, tomando a precaução de fechar a porta atrás de si. O fiel Bouncer foi saltitando até a porta, fungou du­rante algum tempo e alto, quando ela estalou ao fechar-se, soltou um ga­nido e ficou arranhando a madeira. Vendo que ela não se movia, ele retornou para junto do fogo e deitou-se com a cabeça sobre as patas, os olhos fixos em Elinor.

Ela recostou-se na poltrona, muito transtornada realmente com a des­coberta da escada secreta e sentindo que precisava de um período de silên­cio durante o qual pudesse apaziguar a mente. O bom senso garantia-lhe que as teorias de Nicky não passavam de produtos de uma imaginação ar­dente; contudo, por mais que tentasse, não conseguia encontrar uma ex­plicação mais razoável a respeito da presença do francês na casa, na noite anterior. Ele não lhe parecera em absoluto o tipo de rapaz que fizesse uso da porta secreta levado pelo desejo bem-humorado de dar um susto em seu anfitrião; nem ela poderia acreditar que ele fosse um arrombador comum. Algum motivo ele devia ter tido, mas que motivo seria esse, ela estava muito inclinada a pensar que só ele mesmo saberia. Que ele voltaria da mesma maneira parecia-lhe ir além dos limites da probabilidade; de qualquer modo, por mais irracional que isso fosse, ela não conseguia pensar naquela escada secreta sem sentir os pulsos latejarem com apreensão

— Esforçou-se ao máximo para livrar-se desses receios tolos, e disse a si mesma que estaria melhor ocupada consertando a roupa branca em vê? de permanecer inativa e tendo um ataque de nervos de tanto pensar.

         Levantou-se da poltrona, e teria se dirigido até a porta se não lhe tivesse sido demonstrado inequivocamente que o inteligente cão aos seus pés encontrava-se sob uma confusão de idéias. Colocando-se diante dela, rosnando, ele também levantou-se, com o pêlo rijo eriçando-se ao longo de suas costas, o focinho crispando-se, deixando à mostra um conjunto de den­tes admiráveis.

Elinor ficou imóvel, olhando para ele duvidosamente.

—      Bom cachorro! — disse ela, no qual ela esperava fosse uma voz tranqüila. — Deite-se, senhor!

Bouncer latiu.

—      Sua criatura estúpida, ele não quis dizer que você precisava me con­servar presa à cadeira! — ralhou Elinor. — Deite-se imediatamente!

Bouncer não mudou de posição e continuou rosnando, numa espécie de crescendo que só podia ser considerado como ameaça. Elinor sentou-se novamente. Satisfeito com seu sucesso, Bouncer seguiu o exemplo, deixou a língua pender para fora e ficou arquejando suavemente.

 

uma vez que o relógio da biblioteca não funcionava, Elinor não tinha meios de saber durante quanto tempo ficou confrontando-se com o zeloso animal de estimação de Nicky. Parecia um tempo bastante longo. Enquanto permanecia imóvel, Bouncer continuava muito pacificamente, com sua ca­beça sobre as patas e os olhos semicerrados; mas o menor movimento fazia sua cabeça e pêlos levantarem-se, enquanto uma tentativa de con­quistá-lo através de agrados ele levou tão a mal que Elinor achou prudente desistir. Sua caixa de costura e a pilha de roupa branca para consertar es­tavam igualmente fora do seu alcance, mas ela achou que esticando o braço poderia alcançar a estante que ficava próxima à poltrona. Havia um livrinho numa das prateleiras, e ela conseguiu pegá-lo sem incorrer na censura do seu guardião. Era um exemplar de Turf Remembrancer, e durante uma hora e tanto este foi o único consolo de Elinor. Extraiu dele muitas infor­mações valiosas, tantas quantas não tinham aparecido em seu caminho an­tes, e seguiu com interesse desconcertante a carreira de vários animais cujos nomes causavam prazer e eram de uma variedade que ia desde o relativa­mente banal até o naturalmente fantástico. Despertavam pouco entusiasmo os nomes de Corisco e Trovão, mas ela lia com grande satisfação o relato da linhagem e mestria de um Vigilante Captor e de Intrépido Vitorioso, e quase se mostrou disposta a responder a um questionário sobre o preparo físico deles, e o peso que provavelmente agüentariam em qualquer corrida futura.

Contudo, por mais fascinante que os nomes dos cavalos de corridas pudessem ser, o Turf Remembrancer só pôde entediá-la. Quando Barrow entrou no aposento, já no meio da tarde, ela estava fortemente enjoada dele, e teve grande dificuldade para não atirá-lo na cabeça de Nicky, se tivesse sido ele, e não Barrow, a entrar ali.

Não comeu nada do que a sra. Barrow mandou para a sala de jan­tar, senhora — observou Barrow reprovadoramente. — Ela certificou-se de que a senhora ficaria satisfeita com uma refeição ligeira também.

Certo, e eu ficaria mesmo — respondeu Elinor, com irritação —,mas este cachorro idiota do sr. Nicholas não me deixará sair da poltrona! Por favor, distraia a atenção dele!

Por que o sr. Nicky deixou esse animal detestável aqui? — inda­gou Barrow, olhando Bouncer com desagrado.

Ele... bem, ele achou que eu devia tê-lo para proteger-me! — ex­plicou Elinor não muito convincente.

—      Ter o cachorro para protegê-la? — repetiu Barrow incredulamente. —   É lua de solstício de verão com o sr. Nicky, sem dúvida! Por que estaria querendo proteção, senhora?

—      Eu não quero proteção de maneira alguma, e gostaria que você o distraísse, afastando-o daqui!

Barro w olhou para o cão com muito receio. Bouncer retribuiu o olhar enigmaticamente.

A questão é a seguinte — disse Barrow. — Esse cachorro aí é um animal desagradável de tão feroz, senhora, e eu preferiria, de bom grado, que o sr. Nicky fizesse isso.

Mas o sr. Nicky não está aqui!

Barrow parecia embaraçado. Como sua patroa, evidentemente, espe­rava que fizesse alguma coisa, ele bateu de leve na perna, um tanto hesi­tante, e convidou Bouncer para ir com ele. O cão ganiu em retribuição.

Isso fez com que o mordomo se retirasse estrategicamente para a soleira da porta, vendo que Bouncer ficara em pé e latia com todo o entu­siasmo de um cão que descobre que suas ameaças obtêm sucesso além das expectativas.

Procure conquistá-lo oferecendo-lhe um pouco de carne! — orde­nou a exasperada prisioneira.

Sim, é o que farei! — concordou Barrow, e afastou-se, indo em busca de um pouco de carne de carneiro, reservada para a refeição de Elinor.

Regressou com a carne e com a sra. Barrow também, que se aproxi­mou sorrateiramente, armada com uma vassoura de cabo longo, declarando suas intenções de libertar logo a patroa da desagradável criatura. Bouncer, naturalmente, desaprovou a vassoura de imediato, e seguiu-se um tal pan­demônio de latidos, repreensões e ganidos que Elinor só pôde implorar à sua suposta libertadora que fosse embora. Então Barrow depositou o prato com a carne no chão, dirigindo-se alegremente a Bouncer, que fez uma de suas investidas contra ele, obrigando-o, assim, a deixar cair o prato e re­cuar de um salto para a porta. Bouncer consumiu apressadamente a oferta, lambeu os beiços e aguardou esperançosamente por mais.

Só há uma coisa a ser feita, senhora — disse Barrow. — Terei de matá-lo, isso é o que eu tenho a fazer.

Santo Deus, não! — exclamou Elinor. — Eu não o deixaria fazer uma coisa dessas por nada deste mundo! Ora, o que diria o Sr. Nicky?

O sr. Nicky, com efeito! — exclamou a sra. Barrow, indignada. —  Deixe-me pôr os olhos nele! A idéia de fazer uma sujeira dessas com a senhora! Tenho muita vontade de lhe dizer que rapaz levado ele é!

—      Na verdade, eu... eu penso que ele teve a melhor das intenções! — disse Elinor. — E disse que voltaria logo. Julga que poderia dar um jeito de me trazer uma bandeja, com um pouco de pão com manteiga e café? E talvez pudesse também empurrar aquela mesa até onde eu possa alcançá-la, de modo que pelo menos possa ocupar-me, cerzindo aquelas toalhas de mesa!

A princípio, Bouncer não pareceu inclinado a permitir esse desarranjo na sala, mas a sra. Barrow teve a feliz idéia de suborná-lo com um osso com tutano. Ele aceitou e deitou-se com ele entre as patas, roendo-o, e, além de rosnar de maneira ameaçadora, não fez mais objeção quanto à mesa ser empurrada para junto de Elinor. Assim, ele parecia tão concentrado no osso que ela chegou a tentar levantar-se da cadeira. Entretanto, isso era ir longe demais, e ela foi obrigada a sentar-se novamente às pressas. Então Boun­cer retornou ao seu osso. Seus dentes pareciam estar em excelentes condi­ções. Quando a sra. Barrow retornou cautelosamente à sala com a bandeja, ele enviesou um olhar vigilante na direção dela e parou com sua obra de demolição para considerar as possibilidades da bandeja. Evidentemente, ele achou que valia a pena investigar, pois levantou-se e aproximou-se da mesa. A sra. Barrow mandou-o afastar-se, porém ele afugentou-a da sala e voltou para experimentar que chantagem obteria relativa ao sustento. Eli­nor deu-lhe uma casca de pão, que ele rejeitou desdenhosamente. Voltou para o seu osso e permaneceu ditosamente ocupado durante algum tempo; finalmente, enfiou o que sobrara debaixo de uma das almofadas do sofá.

—      Você é um animal odioso! — disse Elinor seriamente. — Espero que seu dono bata em você!

Ele bocejou insolentemente, deitou-se no chão diante do fogo outra vez e recomeçou a vigília.

Não antes das cinco horas, aproximadamente, Nicky voltou a High-noons, e, àquela altura, Elinor estava em tal estado de irritação que pode­ria ter puxado alegremente suas orelhas. Ele foi introduzido por Barrow, que, evidentemente, tinha lhe contado como seu plano fracassara, pois ele entrou logo na biblioteca, rindo alegremente e dizendo:

Oh, prima Elinor, peço-lhe que me perdoe de fato! Ficou aí o dia todo? Não pretendia rir, mas é a coisa mais engraçada! — Ele curvou-se para Bouncer, que saltitava em volta dele festivamente. — Seu maroto, o que andou fazendo? Certo, meu bom animal, deite-se! Deite-se!

Ele não é um bom animal! É um cão extremamente ruim! — disse Elinor, bastante exasperada. — Está tudo muito bem para você, que fica aí rindo e encorajando essa criatura horrenda, mas eu estou muito sem pa­ciência com você!

Bem, eu realmente lamento muitíssimo — disse Nicky contritamente —, mas a culpa não foi de Bouncer! Ele não me entendeu correta­mente! Mas imagine só ele protegendo você assim esse tempo todo! Não posso deixar de ficar satisfeito com ele, pois, se quer saber, eu não estava nem a metade certo de que ele protegeria alguma coisa! Você deve admitir que ele é um cão inteligente.

Não admito nada — respondeu Elinor, levantando-se e sacudindo as saias. — Ele me parece ter a inteligência bem desordenada. E diga-me, o que esteve fazendo esse tempo todo? E onde está seu irmão?

Oh, ele não está aqui! — respondeu Nicky jovialmente. — Quando cheguei em casa, nosso mordomo me disse que ele tinha ido a Londres. Acho provável que só volte amanhã. Mas não se perturbe, senhora! Pretendo fi­car com você, e imagine só se apanharmos esse estranho sem que Ned saiba de coisa alguma a respeito! Seria algo e tanto, não seria?

Nicky, não estou com disposição para essa tolice, portanto vou preveni-lo! — disse Elinor. — Se Lorde Carlyon está ausente de casa, in­sisto que tranque aquela porta!

Oh, não, tenho uma idéia melhor do que essa! — replicou Nicky jovialmente. — Se não lhe desagradar, pretendo passar a noite naquele cô­modo no alto da escada, e então, se alguém subir pela escada secreta, eu o apanharei.

Chocada, a viúva deu-lhe a entender nos termos mais simples que nada poderia desagradar-lhe mais do que esse projeto. Ele não ficou de todo con­vencido, pondo-se simplesmente a induzi-la com agrados e a adulá-la para que cedesse. Depois de vinte minutos de eloqüência persuasiva do rapaz, ela começou a afrouxar, em parte porque era uma mulher generosa, tendo percebido que uma recusa em deixá-lo divertir-se desse modo o desapon­taria amargamente, e em parte porque, depois de ter-se relacionado muito com cavalheiros de tenra idade, estava bem ciente de que, por mais can­sada da discussão que pudesse estar, ele estaria disposto a continuá-la com vigor imbatível até altas horas da noite. Ela finalmente cedeu e, com uma áspera referência ao efeito notório da água mole em pedra dura, disse que ele poderia fazer como lhe agradasse.

Ignorando o comentário com toda a aparência de quem está tão acos­tumado a ouvir comparações odiosas que nem lhes dá mais atenção, Nicky obsequiou-a com um dos seus sorrisos ofuscantes, e disse que tinha conhe­cimento... desde o princípio de que ela era corajosa até a medula. A moça agradeceu-lhe por este tributo e perguntou como ele pretendia justificar sua presença na casa aos Barrow.

Oh, não há nenhuma dificuldade — respondeu ele. — Direi que você está nervosa pelo que aconteceu a noite passada, e que vim para que possa ficar à vontade.

Bem, se está determinado a ficar à espreita naquela escada, acho que deveria contar tudo a Barro w e deixá-lo fazer-lhe companhia.

Entretanto, com isto ele de modo algum concordaria, perguntando in­dignadamente se ela o considerava incapaz de lidar, sem ajuda, com qual­quer saqueador da madrugada. Mentindo, ela garantiu-lhe que tinha total confiança em sua capacidade para capturar, sozinho, qualquer quantidade de pessoas insensatas, e ele enterneceu-se o suficiente para mostrar-lhe uma pistola que havia tido a intuição de trazer.

Ela olhou para a arma com apreensão.

Está carregada? — perguntou.

Carregada! Sim, é claro que está carregada! — respondeu ele im­paciente. — Qual seria a utilidade dela se não estivesse? Mas não está engatilhada; assim, se você está pensando que posso fazê-la detonar, fiquetotalmente descansada a esse respeito.

Oh! — exclamou ela. — É sua?

Bem, não — admitiu ele gentilmente. — Essa é uma das de Ned. Mas ele não fará objeção por eu tê-la apanhado emprestado.

Oh! — tornou ela a exclamar. Depois acrescentou desatentamente:

— Ouso afirmar que você está muito acostumado a usar armas de fogo, não está?

Santo Deus, é claro! — replicou ele. — Ora, que tolo você deve estar pensando que sou! Ned ensinou-me a lidar com uma arma quandoeu mal tinha saído dos calções.

Ensinou mesmo? — indagou Elinor cortesmente. — Que prodígio você deve ter sido! Eu não fazia idéia! Queira me perdoar!

Ele esboçou um largo sorriso.

Bem, estou certo de que não tinha mais do que doze anos, de qual­quer modo. E, naturalmente, já participei de caçadas em Manton inúme­ras vezes. Não pretendo dizer que seja exímio atirador, como Ned e Harry, mas já ganhei mais de um torneio.

Você me põe bastante à vontade. Contudo, não posso deixar de pensar que talvez fosse melhor se não atirasse em ninguém, a menos que se visse absolutamente forçado.

Na verdade, não vou atirar! Principalmente agora que esse inqué­rito está nos ameaçando a todos. Não desejo colocar Ned em mais encren­cas, sabe.

Isso mesmo — concordou ela. — Eu realmente acho que esperar que ele consiga libertá-lo de dois inquéritos talvez seja considerar sua engenhosidade um tanto excessiva.

Oh, ele conseguiria, fique descansada! — disse ele alegremente. — Mas não se preocupe! Não pretendo fazer nada mais a não ser deter o tal desconhecido e descobrir que travessuras ele está tramando. E quer saber de uma coisa, prima Elinor? Se ele vier de novo, não me mostrarei imedia­tamente. Vou segui-lo, para ver aonde vai e o que procura. Creio que é isso que devo fazer, não acha?

Ela concordou, diplomaticamente escondendo dele sua tranqüila con­vicção de que absolutamente nenhum visitante da madrugada recompen­saria sua vigília. Acreditava que se tivesse tido mesmo algum receio de que o francês voltaria, teria relatado tudo a Barrow e afastado seu jovem hós­pede para sempre. Estava satisfeita por não se sentir forçada a estragar a diversão dessa maneira triste, e, em vez disso, ofereceu-se para participar aos Barro ws a intenção dele de passar a noite em Highnoons.

A notícia foi recebida na cozinha com limitada simpatia. A sra. Bar­row opinou sombriamente que conhecia muito bem o sr. Nicky para ter cer­teza de que ele tramava alguma travessura; enquanto que Barrow disse que, em sua opinião, ter o sr. Nicky saltitando por ali como mosca em pote de açúcar não poderia oferecer qualquer satisfação, fosse qual fosse, a alguém que sofresse dos nervos.

—      Eu lhe digo, para sua informação, senhora, que o sr. Nicky, não estou falando em limpeza de roupa, é desagradável de tão desleixado! — disse ele severamente.

A sra. Barrow, com uma censura passageira para que ele se calasse, informou sua patroa de que esta declaração pessimista significava simples­mente que o sr. Nicky, sendo apenas um rapazinho, quase não devia ser levado em conta.

— Mas isso não importa! — disse a mulher. — Será uma companhia para a senhora, não nego. Mas, note bem, faça ele prender aquele seu ca­chorro detestável!

Isso, na prática, provou ser desnecessário. Nicky já decidira que Bouncer devia ficar confinado em um dos cubículos vazios do estábulo, com re­ceio de que ele denunciasse a aproximação de um estranho. O fiel cão, portanto, depois de ser presenteado com um grande prato cheio de carne e biscoitos partidos, foi conduzido aos estábulos, carregando em suas man-díbulas o restante do osso com o qual sua anfitriã bondosamente o presen­teara. Agora, sua atitude para com ela era a de alguém que, embora no cumprimento do seu dever, não usa de malícia para com a vítima. Ela não o inocentaria de arreganhar os dentes para ela, e lhe disse que ele era uma criatura ruim, um tributo que Bouncer aceitou com um achatamento das orelhas e um abano mecânico do rabo.

A sra. Cheviot e o honrado Nicholas Carlyon jantaram, muito como­damente: costelas de vitela, suavizadas com arroz, cebolas e pimenta em grão, acompanhadas de pastéizinhos de maçã e ramequins (espécie de em-padinha de queijo), que induziram Nicky a mandar um recado à cozinha, assegurando à sra. Barrow um tratamento favorável, caso um dia desejasse lugar de cozinheira na Mansão. Depois Barrow colocou uma garrafa de cris­tal com vinho do Porto sobre a mesa, e Elinor, muito corretamente, retirou-se para a biblioteca, para onde seu convidado logo a seguiu, com a suges­tão de que eles deviam passar o tempo agradavelmente com uma ou duas partidas de piquet. Enquanto as carteiras de ambos os jogadores permitjram, frase de Nicky, eles ganharam partidas fabulosas, mas imaginárias; disso resultou que, quando a bandeja do chá foi trazida, Elinor achava-se vários milhares de libras na frente. Muito elegantemente, Nicky disse que desejava poder pagar-lhe pelo menos a metade de tal quantia, e sentaram-se para beber o chá em perfeita harmonia.

Nicholas obsequiou sua anfitriã com algumas reminiscências de sua carreira, o que a fez rir entusiasticamente; por sua vez, ela extasiou-o com um relato das proezas de seu pai em todos os campos de esporte, e, desse modo, algumas horas muito agradáveis e divertidas se passaram. Na ver­dade, quando subiram para os seus quartos, Elinor sentia-se em condições tão tranqüilas com Nicky, que pôs seriamente em risco a honrada posição que ocupava na estima do rapaz ao lhe sugerir que devia permitir que ela mandasse aprontar a cama no quarto em que ele pretendera ocupar, para que passasse a noite confortavelmente. Contudo, a expressão de choque no rosto do rapaz a fez voltar à razão, e ela apressou-se em lhe pedir des­culpas, garantindo-lhe que falara sem pensar. Ele explicou, com a máxima paciência, que a visão de um cavalheiro dormindo naquele quarto efetiva­mente amedrontaria qualquer intruso, levando-o a fazer uma retirada pre­cipitada; ela confessou que fora estouvada como uma criança; e eles se separaram em excelentes relações mútuas: ela, para deitar acordada por al­gum tempo, sorrindo, por causa do entusiasmo simples de um jovem cati­vante; ele, para esticar-se na cama por fazer, no quartinho quadrado, de­terminado a não adormecer.

Isto, depois da primeira hora, provou ser mais difícil do que Nicky previra, e, mais de uma vez, ele pensou melancolicamente na cama preparada para si no melhor quarto de hóspede. Havia retirado as botas e as escon­dera atrás de uma poltrona, e seus pés tornavam-se seguramente mais frios à medida que a noite prosseguia. Foi obrigado, finalmente, a jogar um dos seus travesseiros sobre eles, o que aliviou tanto seu desconforto que ele logo começou a pegar no sono. Se ao menos Elinor tivesse percebido que ele acre­ditava apenas em parte nos próprios argumentos, e que não tinha nenhuma convicção verdadeira de que uma aventura de fato lhe estava reservada! Nicky achava-se naquele estágio de seu desenvolvimento em que, sem ter abandonado todas as esperanças de que o maravilhoso aconteceria, ape­nas uma parte do seu cérebro ávido o esperava. Por essa razão, foi com uma sensação de incredulidade deliciosa que ele foi despertado, enquanto ainda se achava no limite entre a vigília e o sono, por um ruído que vinha do lado do armário oculto. Isso o sacudiu, acordando-o totalmente, e ele soergueu-se apoiado no cotovelo, mal acreditando nos próprios ouvidos. Mas não poderia haver nenhuma dúvida: alguém estava levantando o al­çapão dentro do armário.

Com um grito sufocado de excitação, Nicky arrancou o travesseiro que cobria seus pés, restituiu-o ao seu lugar na cabeceira da cama de quatro co­lunas, e deslizou discretamente da cama para o chão, a pistola firmemente segura em uma das mãos. A lua não estava iluminando o aposento pela ja­nela aberta, mas havia no quarto uma tênue claridade acinzentada, permitindo-lhe distinguir os contornos das poucas peças do mobiliário.

Ele ouviu o rangido do painel deslizando para trás e vislumbrou o re­flexo de um feixe de luz amarela lançada na parede. Quem quer que tivesse entrado pela escada secreta havia trazido uma lanterna. O coração de Nicky batia rápido, porém, embora ele sentisse a boca um pouco seca, de repente ficou sinceramente encantado. Tomou cuidado para permanecer agachado atrás da armação da cama, e, ofegante, aguardou os acontecimentos. O feixe de luz mudou de lugar; ele ouviu pés calçados cruzarem suavemente o aposento, em direção à porta, e mal conseguia deixar de erguer a cabeça para averiguar. O trinco da porta girou com um pequenino rangido, e uma corrente de ar arrepiante informou a Nicky de que a porta continuava aberta. Procurou examinar por debaixo da cama e foi recompensado por um reflexo de formato oblongo daquela luz amarela, estendendo-se na so-leira da porta do quarto. Outro instante e a luz desaparecia; o visitante des­conhecido saíra para o corredor. Resolutamente, Nicky contou até vinte antes de permitir-se levantar do chão. Estava sozinho no quarto indistinto, e a porta, como imaginara, continuava aberta. Aproximou-se dela, cui­dando para engatilhar sua pistola, e viu a luz amarela no topo da escada atapetada. A luz tornou a desaparecer; o desconhecido imobilizou-se, pro­vavelmente apurando o ouvido para algum ruído de atividade na casa, pen­sou Nicky. À medida que seus olhos se acostumavam com a escuridão, ele podia perceber vagamente o perfil de uma figura. Achatou-se contra a pa­rede e aguardou. Aparentemente satisfeito porque a casa estava inativa, o vulto moveu-se outra vez, descendo furtivamente a escada. Nicky seguia

a uma distância discreta, seus pés calçados de meias não provocando ne­nhum som no piso de assoalho de madeira. A essa altura, estava tão exci­tado que a batida forte do seu coração o fazia sentir-se quase nauseado. Descia a escada furtivamente, deslizando a mão ao longo do corrimão, dei­xando que este escorasse a maior parte do seu peso, evitando, assim, qual­quer estalido traiçoeiro dos degraus de madeira. Lá embaixo, o vestíbulo estava rigorosamente fechado e em densa escuridão, salvo pelo reflexo oblongo da luz lançada pela lanterna do intruso. Nicky chegou ao final da escada a tempo de ver o feixe de luz erguer-se para a porta da biblioteca. A luz desapareceu repentinamente, depois começou a girar em roda, como se seu portador tivesse ouvido algum barulho e se virado para descobrir a causa. Instintivamente, Nicky deu um passo atrás, colidindo com a arma­dura enferrujada às suas costas e fazendo-a cair estrondosamente no chão, ele próprio junto. Com uma imprecação exasperada, levantou-se camba­leando, grato porque seu dedo não estivera no gatilho da arma, e gritou:

—      Não se mexa! Tenho uma arma apontada para você!

O feixe de luz encontrou-o; antes que ficasse completamente de pé, houve um brilho súbito de luz mais clara, uma forte detonação, e ele foi derrubado outra vez, e sabia, enquanto caía, que tinha sido baleado. Con­seguiu soerguer-se, apoiado em um cotovelo, e atirar na direção da lanterna, porém, embora espatifasse a lanterna, a bala não atingira seu portador, que se perdeu na espessa escuridão. Nicky ouviu o som estridente dos ferrolhos ao se abrirem e gritou freneticamente:

—      Barrow! Barrow! — No instante seguinte, um raio de luar e uma corrente de ar frio penetraram através da porta da frente aberta, e ele sa­bia que sua presa fora bem-sucedida em sua fuga.

No andar de cima, no Quarto Amarelo, a sra. Cheviot tinha acabado de pegar no sono. O primeiro tiro acordou-a, e mesmo quando começava a levantar-se, mal acreditando em seus ouvidos, um segundo tiro seguiu-se ao primeiro, o que a fez sair da cama num instante, procurando pelos chinelos. Elinor mantinha uma candeia em fogo baixo ao lado da cama, e aumentou-o com dedos trêmulos. Vestindo às pressas o penhoar, saiu cor­rendo do quarto, gritando:

Nicky, onde está você? Oh, o que está fazendo, pelo amor de Deus?

Estou no vestíbulo — respondeu ele, com voz um pouquinho fraca, mas indubitavelmente alegre. — O diabo é que perdi o sujeito!

Ela desceu apressadamente as escadas, erguendo a candeia, e viu-o levantando-se um tanto vacilante.

Nicky! Santo Deus, não me diga que ele realmente voltou!

Voltou? É claro que voltou! — respondeu Nicky cautelosamente apalpando o ombro. — O que é mais, eu o teria apanhado, se você não con­servasse essa maldita armadura no lugar mais estúpido que alguém pode­ ria imaginar. Oh, perdoe-me! mas de fato é demais para testar a paciência de um santo!

Nicky, você está ferido! — exclamou ela, bastante horrorizada. — Oh, se eu tivesse imaginado que alguma coisa iria acontecer, eu jamais... meu pobre rapaz, apóie-se em mim! Ele atirou em você? Ouvi dois tiros, e nunca fiquei tão assustada em minha vida! Santo Deus, você está san­grando! Deixe-me ajudá-lo a acomodar-se numa poltrona agora mesmo!

Creio que ele me acertou — disse Nicky, permitindo-se ser ampa­rado até uma poltrona de couro em farrapos, deixando-se afundar nela. — Não consegui acertá-lo, mas estilhacei a lanterna dele, e teria sido um tiro bem razoável, garanto-lhe, se minha mira tivesse sido melhor. Mas foi o mais amaldiçoado dos azares, prima! Não tenho a mínima idéia de quem ele era ou o que ele queria, exceto que se dirigia a biblioteca, o que eu cal­culei que ele queria de qualquer modo.

Oh, esqueça isso! — disse ela, colocando a candeia sobre a mesa e correndo para fechar a porta da frente. — Contanto que você não esteja gravemente ferido! Oh, o que dirá Lorde Carlyon a esse respeito, santo Deus? Eu sou a culpada!

Nicky esboçou um sorriso pálido.

—      Ele dirá que foi muito próprio de Nicky fazer um trabalho malfeito desses. Não fique tão apreensiva! É apenas um arranhão!

A essa altura, Barrow tinha aparecido em cena, portando vacilante-mente uma vela de sebo em uma das mãos, e no rosto uma expressão com­posta de espanto e consternação. Trajava calções amarrados abaixo do joelho e seu camisão de dormir, mas esqueceu dessa indumentária incon-vencional quando viu Nicky apertando o ombro esquerdo com a mão e des­ceu apressadamente as escadas, mostrando sua aflição, soltando uma espécie de cacarejo. Foi quase que imediatamente seguido pela esposa, ra-Ihando e gritando ao mesmo tempo. No meio deles, ela e Elinor arriaram o paletó dos ombros de Nicky e desnudaram o ferimento, que, embora san­grasse seriamente, foi considerado pela sra. Barrow como não sendo de modo algum fatal.

Creio que está certa! — concordou Elinor, com um suspiro de alí­vio. — É alto demais para ter atingido algum ponto vital! Mas deve-se bus­car um médico imediatamente!

Oh, tolice! Não é nada! — disse Nicky, procurando livrar-se delas.

Não se mexa, sim, sr. Nicky? — disse a sra. Barrow. — Provavel­mente está com a bala cravada no ombro! Mas quem atirou no senhor? Valha-me Deus, o que sucedeu? Barrow, não fique parado aí como um basbaque! Vá buscar um pouco de conhaque do sr. Eustace agora mesmo, ho­mem! Oh, Deus, que confusão isto aqui, realmente!

Nesse meio tempo, Elinor tinha arrebatado a vela da mão de Barrow e entrava apressada na biblioteca. Voltou com uma das toalhas de mesa que estivera consertando e começou a rasgá-la em tiras. Nicky parecia muito pálido e tinha os olhos fechados, mas reanimou-se quando Barrow forçou um pouco de conhaque pela sua garganta abaixo, engasgou, tossiu, e disse novamente que era apenas um arranhão. Elinor mandou Barrow carregá-lo para o andar de cima, para o quarto de hóspedes, e seguiu ansiosamente atrás deles, levando a toalha em tiras e a garrafa de conhaque. Enquanto Nicky era posto na cama, a sra. Barrow tinha ido buscar uma bacia de água e estava pronta para lavar o ferimento. Ela e Elinor estancaram o sangra- mento e ataram o ombro o mais apertado que puderam. O ferido sorriu docemente para as duas e murmurou:

Que tumulto que vocês fazem! Estarei perfeitamente bem pela ma­nhã.

Fanfarrão grande, caça pequena! — resmungou Barrow, cobrindo-o com uma colcha. — Seria melhor eu ir buscar o médico, sem dúvida. Mas quem atirou no senhor, sr. Nicky? Não me diga que aquele francês desa­gradável esteve na casa outra vez, porque eu dei duas voltas nos ferrolhos de cada porta, e quanto a isso posso até jurar, como verificar!

Não sei se foi ele ou outra pessoa — respondeu Nicky, mexendo-se intranqüilamente nos travesseiros. — Não pretendia contar a vocês, masele entrou por uma escada secreta que desce ao longo da chaminé da pada­ria. Eu a descobri esta manhã.

A sra. Barrow soltou um grito e deixou cair a tira de toalha que estava enrolando para servir de atadura.

Pare com isso, Martha! — ordenor Barrow, feliz de poder assu­mir um tom autoritário com ela. — O sr. Nicky está brincando com você. Aquela velha escada tem estado fechada há muitos anos!

Bem, não tem não — replicou Nicky, irritado ao descobrir que Bar­row sabia da sua descoberta. — E não estou brincando. Eu estava naquele quarto onde se encontra a entrada para a escada e vi o sujeito sair do armário.

A sra. Barrow deixou-se cair pesadamente na poltrona mais próxima e expressou sua convicção de que era improvável que um dia se recobrasse do choque que seus nervos tinham sofrido.

Não devia ter ficado lá sem a minha pessoa para providenciar que nada lhe acontecesse de mal, sr. Nicky! — disse Barrow. — Agora está tran­qüilo, sem dúvida, porque o que Lorde Carlyon terá a dizer sobre a obra desta noite, não ouso, ai as minhas orelhas, nem pensar! — Uma alusãoà perda das orelhas como castigo. — Como se não fosse próprio do senhor, para satisfazer todas as ambições, e sem jamais pensar no que podem re­sultar! Ah, bem, vou selar um dos cavalos e buscar o dr. Greenlaw agora mesmo!

Mas o que, em nome de Deus, alguém pode querer nesta casa? — indagou Elinor.

Não há como saber o que um francês pode querer — respondeu Barrow seriamente —, mas a senhora pode apostar a própria vida que não é coisa boa.

 

passara-se bem uma hora quando o grato som de vozes no vestíbulo in­formou Elinor de que o médico tinha chegado a Highnoons. Ela achara tempo de vestir-se; a sra. Barrow despertara a prestativa criada da Man­são, mandando-a recuperar o fogo brando da cozinha e colocar água para ferver, enquanto ela própria, assumindo um tom autoritário com Nicky, provocava-o e convencia-o com agrados a permitir que ela o despisse e o enfiasse debaixo das cobertas. Ele estava tão desconcertado devido às mais embaraçosas reminiscências de sua distante adolescência, que ela achou con­veniente lembrá-lo de que seus protestos careciam de convicção, e que ela tivera menos trabalho com ele do que talvez se pudesse ter esperado.

À vista de Elinor, o dr. Greenlaw demonstrou um pouco de surpresa, mas cumprimentou-a com uma inclinação de cabeça, muito educadamente, antes de voltar a atenção ao seu paciente.

Nicky sorriu-lhe.

Com a gente, seu trabalho não tem fim, hein, Greenlaw? — ob­servou ele.

É verdade, sr. Nicky, mas lamento encontrá-lo nessa situação — respondeu o médico, começando a desenrolar as ataduras. — Em que en­rascada se meteu agora?

O diabo é que não sei exatamente — confessou Nicky. — Se pelo menos eu tivesse evitado que o sujeito escapasse não me importaria!

Barrow esteve tagarelando uma tolice sobre franceses. Foi um arrombador, senhor?

Sim, é claro —- respondeu Nicky, lançando um olhar rápido de ad­vertência na direção de Elinor. — Bem, qual foi o dano? Apenas um arra­nhão, não foi?

Foi, o senhor nasceu sob a proteção de uma boa estrela, como já lhe disse antes — declarou Greenlaw, abrindo um estojo de instrumentos com uma aparência assustadora.

Disse, quando caí do telhado do estábulo e quebrei a perna — re­ plicou Nicky, vendo os preparativos com certa apreensão. — O que está pretendendo fazer comigo, seu carniceiro?

Preciso extrair a bala, sr. Nicky, e receio que irei causar-lhe um pouco de dor. Um pouco de água fervendo, senhora, se me permite incomodá-la.

Já a tenho aqui — disse Elinor, apanhando a vasilha de latão de perto do fogo, esperando que não desse a impressão de nauseada, como começava a se sentir.

Igualmente, ela e Nicky suportaram a experiência penosa com grande coragem. Elinor, a poder de desviar os olhos das mãos profissionais de mé­dico, e Nicky, cerrando os dentes e retesando cada músculo. O médico en­corajava ambos com uma torrente gentil de assuntos irrelevantes ao qual nenhum dos dois prestava atenção. Elinor ficou satisfeita ao descobrir que ele era hábil e rápido. A bala não se achava alojada muito profundamente, e logo foi extraída, o ferimento sendo lavado e tratado com basilicão em pó. Greenlaw atou-o confortavelmente, preparou um cordial e obrigou Nicky a bebê-lo.

Pronto, o senhor ficará muito bem! — disse ele, cobrindo o pa­ciente com as cobertas. — Não o sangrarei.

Não, isso não fará mesmo! — redarguiu Nicky, debilitado, mas indômito.

Até amanhã — concluiu Greenlaw, muito sério.

Em seguida, fez um gesto a Elinor para sair do quarto, deu-lhe algu­mas instruções, disse-lhe que, como Nicky iria dormir profundamente por algumas horas, seria melhor que ela voltasse para a cama, e, depois de pro­meter que voltaria mais tarde naquele mesmo dia, foi embora. De fato, Nicky parecia sonolento; portanto, assim que tomou a precaução de tran­car a porta do quarto que dava acesso à escada secreta, Elinor retirou-se para o seu quarto e mais uma vez foi para a cama.

Contudo, só muito tempo depois foi que ela dormiu. Pondo de lado seu comportamento desesperado, o retorno do misterioso visitante fora o que mais seriamente a alarmara. Que ele realmente queria algo de Highnoons agora estava provado, e uma vez que sua conduta indicava clara­mente que ele não hesitaria diante de nada para conseguir seu objetivo, ela não conseguia ver com a menor serenidade uma permanência contínua na­quela casa. O ruído de um camundongo no assoalho a deixara quase sobressaltada, e ela continuara acordada durante um longo tempo, devido a uma ansiedade incontrolável de apurar o ouvido à menor oportunidade de captar qualquer barulho estranho na casa. Seus sonhos, quando final­mente adormeceu, foram perturbadores, e ela acordou pela manhã sentin­do-se muito pouco descansada e consideravelmente exasperada com Carlyon por tê-la colocado em Highnoons.

Nicky, que ela encontrou sentado na cama e tomando um lauto café da manhã, parecia sentir-se pouco derrotado pela sua aventura. A sra. Bar­ro w ajustara uma tipóia para o seu braço esquerdo, e sempre que não pre­cisava fazer uso do braço, ele a satisfazia, introduzindo-o na tipóia. Ele também ficara pensando na aventura daquela noite, e recebeu Elinor com a sugestão agradável de que seu assaltante tinha sido um espião francês.

Um espião! — exclamou ela. — Oh, não diga uma coisa dessas!

Bem, um dos agentes de Boney — corrigiu ele. — John disse que ele tem grande número deles, e não os conhecemos todos, de qualquer modo.

Mas o que um agente francês poderia querer com seu primo?

- Não sei, e, para lhe dizer a verdade, eu não teria julgado que Eustace fosse o tipo de sujeito da mínima utilidade para alguém — respondeu ele. — Mas, pode estar certa, é isso mesmo! — Introduziu uma porção generosa de carne fria na boca e acrescentou, com voz um tanto grossa: — Acho que não vimos aquele sujeito pela última vez, não por um tempo muito longo. Bem, por uma coisa que nós sabemos, tropeçamos numa aventura realmente sensacional!

Era óbvio que ele via a perspectiva com entusiasmo. Elinor não con­seguia compartilhá-lo com ele. Disse, com um arrepio!

Gostaria que não falasse assim! Se isso fosse verdade, pense só no que nos poderia acontecer nesta casa horrível!

Era exatamente o que eu estava pensando — assentiu Nicky com a cabeça, espalhando mostarda em outro pedaço de carne. — Não há o que dizer realmente! Ficarei aqui.

Bem, eu não! — declarou Elinor acremente. — Não tenho nenhum desejo de levar uma vida de aventura desse tipo!

Não gostaria de apanhar um dos agentes de Boney? — perguntou Nicky incredulamente.

De maneira alguma. Não saberia o que fazer com ele se o apanhasse. Embora ache que sim! Colocaria seu horrendo cachorro para vigiá-lo!

—- Certo, e ele bem que faria isso, não faria? — Nicky esboçou um largo sorriso. — Oh, prima Elinor, será que você seria tão condescendente a ponto de deixá-lo sair do estábulo? Falei com Barrow para fazer isso, mas ele não fez. É uma criatura mesquinha!

Ele não vai me morder se eu soltá-lo? — indagou Elinor.

Oh, acho que ele não faria uma coisa dessas! — respondeu Nicky, encorajando-a. — Mas, por favor, não o deixe fugir! Não gostaria que aque­les malditos guardas de Sir Mátthew o matassem.

—      Não deixarei! — replicou Elinor, saindo para soltar o prisioneiro.        Bouncer, longe de fazer menção de mordê-la, recebeu-a como uma benfeitora de quem estivera separado há anos. Pulou várias vezes diante dela, latindo num timbre alto, ensurdecedor, arremessou-se três vezes em redor do pátio do estábulo a toda velocidade e, finalmente, trouxe-lhe um pesado galho de árvore aparentemente na suposição de que ela talvez gostasse de atirá-lo para ele apanhar. Ela recusou-se a entrar numa brincadeira da qual, a moça calculava, ele não se cansaria tão depressa, e convidou-o a acom­panhá-la até em casa. Apanhando o galho, ele foi trotando ao lado dela. Teria entrado com o brinquedo no vestíbulo se ela não o tivesse impedido. Uma vez que Bouncer permaneceu surdo às suas súplicas para que largasse o galho, Elinor agarrou uma das extremidades e tentou puxá-lo. Satisfeito porque ela estava disposta a jogar um jogo que ele conhecia e adorava, Bouncer lançou-se entusiasticamente ao cabo-de-guerra, rosnando de ma­neira pavorosa e abanando furiosamente o rabo. Felizmente, visto que Eli­nor não era páreo para ele, o cavalariço surgiu numa esquina da casa exatamente naquele momento, e Bouncer, notando-o, largou o galho a fim de correr atrás dele até seu alojamento. Mais do que depressa, Elinor jo­gou o galho no meio de um conjunto espesso de sarças. Bouncer voltou logo para junto dela, andando de maneira empertigada, como um cão que se comporta bem, aprumando as orelhas em expectativa. Consentiu em acompanhá-la pela casa adentro, mas, obviamente, considerou-a pobre de gosto ao preferir ficar dentro de casa numa bela manhã. Mas quando Elinor levou-o para o andar de cima, para o quarto de Nicky, nada teria su­perado sua alegria ao unir-se ao seu dono, a quem ele não via há dez horas. Subiu na cama de um salto, soltando latidos agudos e lambendo o rosto de Nicky arrebatadoramente. Em seguida, sendo forçosamente obrigado a isso, ele voltou a pular para o chão, onde se deitou perto da lareira e fi­cou arquejante.

É claro que o que ele precisa é de uma boa corrida — disse Nicky, olhando-o afetuosamente.

Precisa é? — indagou Elinor educadamente.

Só estava pensando, prima, que se por acaso fosse dar um passeio, talvez gostasse de levá-lo com você — explicou.

Sei que era nisso que estava pensando — retrucou ela. — Sou bem capaz de imaginar o que seria esse passeio, agradeço-lhe.

Oh, mas ele está realmente bem-comportado agora! — assegurou-lhe Nicky. — Eu o tenho treinado muito de perto a não matar galinhas ou acossar ovelhas, e se você não encontrar outros cachorros, não terá o mí­nimo problema com ele.

Ele já fez um ótimo exercício, correndo atrás do cavalariço — disse Elinor, sem piedade. — E de fato não pretendo sair para passear hoje.

Oh, bem, acho que eu mesmo poderei levá-lo agora! — disse ele.

Você hoje não pode levantar-se!

Não posso levantar-me? Santo Deus, é claro que posso! Não há nada de errado comigo, além desse furo no ombro!

Ela arrancou dele a promessa de que pelo menos não levantaria en­quanto o dr. Greenlaw não o visse, e afastou-se para falar com a sra. Bar-row. No momento em que voltava da cozinha, o cabriolé do médico já estava à porta e ele retirava o sobretudo no vestíbulo. Ela pôde fazer-lhe um relato satisfatório quanto ao estado do seu paciente, mas rogou-lhe, enquanto o conduzia ao andar de cima, que não permitisse que Nicky dei­xasse o leito naquele dia. Ele respondeu que duvidava que alguém pudesse segurar Nicky na cama se ele já tivesse decidido levantar-se.

Gostaria que o irmão dele estivesse aqui! — disse ela.

Sim, a ele o sr. Nicholas atenderia — concordou o médico.

 

Culpo-me inteiramente pelo que aconteceu!

Ele pareceu surpreso.

Realmente não sei por que deveria, senhora.

Elinor lembrou-se de que Nicky não contara ao médico o segredo, e disse rapidamente:

—      Por permitir que ele ficasse aqui a noite passada, quero dizer!

—      Ah, bem! — exclamoy ele. — Se não for uma coisa relacionada com o sr. Nicky, deve ser outra! O ferimento dele não é grave, senhora.

Quando examinou Nicky, o médico achou que o ferimento se curava tão bem como era de se esperar, e que a pulsação, embora um pouco acele­rada, não era de modo algum desordenada. Em termos categóricos, con­denou o café da manhã que, segundo soube após indagações, Nicky consumira, e disse que o sangraria para não se arriscar.

Oh, não vai me sangrar não! — disse Nicky, puxando as cobertas até o queixo.

Vou sim, sr. Nicky — replicou Greenlaw, mais uma vez retirando o estojo com os instrumentos. — Não queremos correr o risco de alguma febre.

Não tenho febre nenhuma, e macacos me mordam se o deixarei aplicar ventosas em mim.

—      Bem, o senhor sabe que já fiz isso muitas vezes e que melhorou!        De modo algum Nicky iria admitir que tivesse sido assim, e vociferavaseus protestos em tão altos brados que Bouncer aprumou-se, eriçando os pêlos. Até aqui não prestara atenção no médico, com o qual estava fami­liarizado, porém agora percebia claramente que sua atitude era ameaça­dora, e, com um rosnado de advertência, pulou para cima da cama e escarranchou-se nas pernas de Nicky, desafiando Greenlaw a tocá-lo. Nicky soltou um berro de prazer e agarrou o animal pelo cangote.

—      Bom cachorro, Bouncer! Isca!

—      Muito bem — disse Greenlaw, sorrindo, com relutância. — Mas se tiver febre alta ao anoitecer, não me culpe, senhor!

Depois desse episódio, Elinor não ficou surpresa ao encontrar Nicky, uma hora depois, um tanto vacilante, descendo as escadas. Usava um robe de feitio tão surpreendente e colorido tão diversificado que ela chegou a pestanejar. Nicky disse-lhe que o comprara em Oxford, e que era de pri­meira categoria.

Imagine, o velho tratante queria me sangrar! — disse ele. — Ora, já devo ter perdido alguns quartilhos, pois estou fraco como um gato!

É claro que está, e devia estar na cama! — replicou ela. — Deve deitar no sofá da biblioteca, e, preste atenção, se não ficar lá quieto, deve ir para a cama, e irá!

Ele fez uma careta, mas ficou muito satisfeito por esticar-se no sofá e permitir que ela ajustasse a tipóia mais confortavelmente. Mas mostrou-se muito recalcitrante quando Barrow trouxe uma tigela de mingau, e disse que se houvesse cerveja na casa, gostaria de um canecão, com um sanduí­che para acompanhar. Sendo-lhe isto firmemente negado, ele resolveu con­cordar com uma tigela de canja e um copo de soro de vinho branco. Depois de ter consumido este leve repasto, pôs-se a discutir exaustivamente com Elinor o que devia ser feito a seguir para armar uma cilada para o inimigo. Contudo, não conseguira ir muito além em seus propósitos, quando a cam­painha da porta frente soou ao longe, e Bouncer levantou-se, rosnando.

Era tal o estado de irritação nervosa em que Elinor se encontrava; que não pôde reprimir um sobressalto ou banir da mente o medo de que o visi­tante, fosse quem fosse, viera com um objetivo cruel em vista. Algo seme­lhante também parecia ocupar o cérebro de Nicky, pois ele soergueu-se com a cabeça um pouco inclinada, apurando os ouvidos atentos. Bouncer ca­minhou compassadamente e sem ruídos até a porta e começou a farejar o vão debaixo da porta, com o rabo e o pêlo das costas levantados. Barrow cruzou o vestíbulo à sua moda costumeira, sem pressa, e um murmúrio de vozes fez-se ouvir. Os pêlos de Bouncer abaixaram e ele começou a abanar o rabo e a fungar ruidosamente.

É Ned! — exclamou Nicky, seu rosto iluminando-se.

Oh, espero que realmente seja! —- declarou Elinor, e correu para a porta, abrindo-a.

Não teria acreditado, 24 horas antes, que a visão daquela figura alta, em uma capa de viagem com mais de uma pelerine, pudesse lhe ser tão bem-vinda.

Graças a Deus que chegou, meu senhor! — pronunciou ela, com um tom de voz onde havia genuíno alívio. Então seus olhos pousaram numa senhora de idade, baixa, ao lado de Carlyon, com um chapéu antiquado e uma peliça parda sobre um vestido simples, rodado, e um casaco curto e justo, e ela gritou: — Becky! — avançando para frente, para envolver a pequena mulher num caloroso abraço.

Minha querida! — exclamou a srta. Receies. — Minha querida sra. Cheviot!

Oh, Becky, por favor, não me chame assim! — suplicou Elinor. Ela virou-se para Carlyon, com as faces afogueadas. — Não tinha idéia de que pretendia traze-la para mim tão rapidamente, senhor! Sou-lhe muitís­simo grata! Oh, Deus, isso me faz desejar mais do que nunca que não lhe tivesse pregado uma peça dessas...! Não sei mesmo o que dirá quando sou­ber, mas, na verdade, jamais imaginei, quando o deixei... Mas, por favor, venha até a biblioteca!

Ele ficara entretido com Bouncer, que puxava suas luvas, porém, ao ouvir isso, levantou os olhos, fitou-a, e suas sobrancelhas se ergueram.

Minha cara sra. Cheviot, como pode ter-me pregado uma peça? Aconteceu alguma coisa?

Aconteceu! — declarou ela.

Ele mantinha sua calma costumeira, apenas parecia um pouco surpreso quando disse:

—      Sem dúvida, isso se pode compreender. Vejo que Nicky está aqui. Certo, agora basta, Bouncer! Sossegue!

Naquele instante, Nicky apareceu na porta da biblioteca, o braço es­querdo repousando curiosamente numa tipóia.

—      Ned, confesso que estou contente demais em ver você! — disse. — Tivemos uma farra e tanto aqui!

Carlyon olhou-o sem sequer demonstrar desânimo ou surpresa.

Bem, o que esteve fazendo? — perguntou ele, em um tom de voz resignado.

Bem, vou lhe contar, mas tire sua capa e venha!

Muito bem, mas cumprimente a srta. Beccles. Meu irmão mais moço, senhora.

A srta. Beccles fez uma reverência, dizendo, com voz suave:

Estou muito feliz por conhecê-lo, senhor, mas acha que deveria es­tar de pé aí, na corrente de ar? Perdoe-me, mas o senhor não me parece estar muito bem!

Não, é claro que ele não deveria estar de pé! — disse Elinor, reco­ brando seu senso de responsabilidade. — Deveria estar na cama! Gostaria que você voltasse para o sofá, Nicky! Que menino cansativo que você é!

Carlyon parecia um pouco divertido.

Faça como lhe é ordenado, Nicky! Creio que a srta. Beccles ficaria satisfeita de tomar uma tigela de sopa, sra. Cheviot; fez frio durante a viagem,

Oh, não! — protestou a pequena mulher, olhando-o agradecida,— Vim tão agasalhada! Com sua carruagem tão luxuosa e todo tipo de atencão para o meu conforto!

Na verdade, deve tomar um pouco de sopa e um copo de vinho tambem! — disse Elinor, conduzindo-a para a biblioteca. — Barrow, por fa­vor, fale com a sra. Barrow! Tem a canja que foi feita para o sr. Nicky. Venha, minha querida Becky!

Por Deus, isso mesmo, ela pode tomar a minha canja toda e aquele soro de vinho branco também — ofereceu Nicky generosamente.

A srta. Beccles dirigiu-se ao sofá e afofou as almofadas, sorrindo para ele, de modo convidativo. Ele agradeceu-lhe e deitou-se de novo.

Assim que for possível, vou preparar para o senhor um pouco de gaspacho — disse ela. — Vai gostar, senhor.

Vou? — perguntou ele, em dúvida.

Vai sim — afirmou ela, gentil e confiante. Olhou para Elinor e disse: — Meu bem, se desejar ficar a sós com Lorde Carlyon, irei lá para cima e começarei a desfazer minhas malas.

Não, não, Becky, não vá! Eu realmente não pretendo permanecer outra noite nesta casa horrível, mas visto que você veio até aqui, é perfei­tamente correto que saiba que espécie de coisas nos acontece aqui!

Está me alarmando, sra. Cheviot — interrompeu Carlyon. — Vai me dizer que se encontrou realmente com um espectro sem cabeça?

Isso mesmo — respondeu ela com amargura. — Eu estava ciente de que o senhor esclareceria tudo.

Talvez possa fazê-lo, mas não vou me comprometer antes de sa­ber o que a está perturbando tanto. Como foi que se feriu, Nicky?

Fui baleado! — respondeu Nicky, de modo a causar impressão.

Você foi baleado!

Sim, mas a bala apenas alojou-se em meu ombro e Greenlaw a extraiu logo.

Mas quem atirou em você e por quê?

É exatamente isso, Ned. Não temos idéia de quem foi! E é a coisa mais fantástica, imagine só: se não tivessem me mandado vir para cá, nada teria acontecido, e talvez jamais soubéssemos de coisa alguma a respeito,

Creio — disse Carlyon — que seria mais aconselhável você me contar essa história desde o início, se devo entendê-la.

Bem, o começo da história aconteceu com a prima Elinor. Eu não estava aqui. Conte, prima, como tudo se passou.

Sim, por favor, conte! — pediu Carlyon, aproximando-se do fogo e ficando de costas para ele. — Seja como for, estou feliz ao descobrir que está reconciliada com sua sorte, senhora, a ponto de aceitar o... parentesco que existe entre nós.

Ela foi obrigada a sorrir.

—      Bem, eu preferiria ser chamada por qualquer outro nome, talvez, em vez de Cheviot! — ela se justificou.

—      Não esquecerei. Bem, o que houve por aqui?

Começando a sentir, um tanto absurdamente, que estivera fazendo tempestade em copo d'água, ela descreveu, o mais breve que pôde, seu en­contro com o jovem francês. Ele a ouviu em silêncio, atento. Discretamente, a srta. Receies retirou o chapéu e a peliça e sentou-se numa cadeira com as mãos cruzadas placidamente no colo.

—      Você diz que ele era jovem e moreno e falava com um ligeiro sota­que, não é?

Ela concordou, acrescentando que o francês era de estatura mediana, compleição esguia e tinha suíças bem-feitas.

Carlyon abriu sua caixa de rape e serviu-se de uma pitada enquanto pensava.

—      Então imagino que deve ter sido o jovem De Castres — disse ele.

Nicky soergueu-se.

O quê, Louis De Castres? — exclamou. — Mas, Ned, ele é muito importante! Ora, você pode encontrá-lo em toda parte!

Exatamente. A sra. Cheviot parece tê-lo encontrado inclusive aqui.

Ora bolas, Ned, ele não é o tipo de parafuso solto para ficar inva­dindo a casa dos outros altas horas da noite! Porque a história que ele con­tou para a prima Elinor era um monte de mentiras! Você ainda não sabe tudo!

Bem, posso estar enganado — admitiu Carlyon. — Suponho ape­nas que pode ter sido ele devido ao fato de algumas vezes tê-lo visto em com­panhia de Cheviot.

Santo Deus, eu não teria imaginado que ele se tornasse amigo de um sujeito como Eustace! — disse Nicky, muito chocado. — Acre­dito que ele pudesse ter um relacionamento até certo ponto bom com Francis Cheviot, mas não há nada disso, afinal! Eu mesmo não gosto de Francis, mas ele sabe muitíssimo bem o que é bom-tom... de primeira ordem mesmo!

Barrow abriu a porta e entrou com uma bandeja que depositou sobre uma mesa perto da srta. Beccles.

Barrow — disse Carlyon —, você sabe o nome de um francês com quem o sr. Cheviot mantinha relacionamento?

Eu sabia, meu senhor — admitiu Barrow. — Mas não tomei em consideração, não aprovo os franceses.

O nome seria De Castres?

Sim, o nome é esse — assentiu o mordomo com a cabeça. — Eu sabia que era algo de esquisito, meu senhor.

Bem, com a breca! — exclamou Nicky. — Mas... oh, espere até ouvir o resto, Ned!

Carlyon fez um sinal para que Barrow se retirasse e ele se afastou no­vamente. A srta. Beccles, aproximando a cadeira da mesa, disse:

—      Minha querida, como parece banal, realmente, estar comendo e be­bendo... um caldo excelente desses... com tantas coisas emocionantes acon­tecendo!

A placidez em sua voz obrigou sua ex-discípula a olhá-la com reprovação.

 

Não desejo mais esse tipo de emoção, Becky!

Não, minha querida, mas espero francamente que Lorde Carlyon saiba o que deve ser feito. Estou certa de que você pode ficar muito tran­qüila.

Elinor percebeu que sua antiga governanta sucumbira muito facilmente à sedução tranqüilizante que Lorde Carlyon parecia exercer sobre seus ad­miradores, e torceu o nariz, desafiadora.

Mas, Ned, ouça o que veio a seguir! — interrompeu Nicky. — Quando cheguei aqui ontem, como você me mandou, a prima Elinor me contou tudo, e, é claro, na mesma hora eu me lembrei do que dizem, que Carlos II escondia-se nesta casa, e pensei que muito provavelmente pode­ria haver uma passagem secreta na casa...

Você a achou?

O rubor das faces da viúva intensificou-se. Ela fixou um par de olhos acusadores no rosto de Carlyon e perguntou:

Meu senhor, responda-me, por favor! O senhor sabia da existên­cia da escada secreta quando me trouxe para cá?

Sim, certamente que sabia, mas julguei que estivesse fechada há muitos anos — respondeu ele.

—- Oh, isso é demais! — exclamou Elinor.,— E, diga-me, por que não me contou sobre ela?

—      Receava que isso pudesse aumentar seu desagrado pela casa — ex­plicou ele.

Ela esforçou-se para manter a serenidade.

—      Oh, não, como pôde pensar numa coisa dessas? — perguntou, sar­cástica. — Estou certa de que era a única coisa que faltava para me deixar totalmente à vontade!

Ele sorriu.

Na verdade, você tem motivo para estar aborrecida comigo — re­conheceu ele. —- Queira me perdoar! Devo deduzir então que a escada não está fechada como eu imaginava?

Fechada! De maneira alguma! Todos os tipos de pessoas desespe­radas têm-a liberdade de subi-la a qualquer hora que desejarem!

Sem dúvida isso é bastante desagradável — replicou ele, impertur­bável. — Se já não cuidou do assunto, creio que devem ser tomadas medi­das para fechar aquela entrada.

Espanta-me, meu senhor! Não tinha esperado tanta consideração! Deixe-me dizer-lhe que se eu não tivesse permitido que o meu bom senso fosse dominado pelas alegações do seu irmão, aquela porta teria sido se­lada ontem, e ele não estaria agora deitado ali com o braço numa tipóia! Nicky, por favor, ponha o braço na tipóia! O dr. Greenlaw disse que você deve mantê-lo imobilizado, lembre-se!

Oh, isso não tem importância, prima! Ned, estou convencido de que você não teria me deixado trancar aquela escada! Quanto mais penso no fato, cada vez mais me convenço de que o sujeito... De Castres, quero dizer, caso realmente tenha sido ele... tenha vindo com um objetivo secreto qualquer.

Eu disse à prima Elinor que deveríamos procurar descobrir o que poderia ser, e que passaria a noite no quartinho de hóspedes, onde está o alçapão, para o caso do sujeito voltar para roubar. — Carlyon assentiu com a ca­beça. — Para dizer a verdade — confessou Nicky —-, quase contei com que ele não viesse.

E eu não contava com isso de modo algum! — interrompeu Eli­nor. — Peço-lhe que acredite, senhor, que nada me teria induzido a per­mitir que Nicky me convencesse a deixá-lo ficar naquele quarto se tivesse tido a mínima idéia do que estava para acontecer! Estou tão constrangida! Se está zangado comigo, não posso culpá-lo!

Zangado? Como poderia eu estar zangado com a senhora?

Ned, sei que tudo saiu errado, mas agi certo ao deixar aquela porta aberta, não agi? — perguntou Nicky.

Sim, muito certo. Quer dizer que seu visitante de fato reapa­receu?

Reapareceu, e desci a escada furtivamente atrás dele. Nunca houve nada semelhante! Pensar em aventura tão arriscada, e tudo porque fui sus­penso! Jamais calculei que uma coisa particularmente boa viesse daí, sabe, mas imagine só!

Um exemplo muito digno de nota das manipulações da providên­cia — concordou Carlyon. — Como chegou a ser baleado?

Oh, esse foi o azar mais amaldiçoado! O sujeito dirigiu-se a esta sala, e eu já tinha chegado ao pé da escada, quando ele parou subitamente e olhou em redor. Eu dei um passo atrás mais que depressa para que ele não me visse e só o que fiz foi cair sobre aquela idiota armadura que a prima Elinor precisa conservar no final da escada!

Eu não conservo aquilo ali! — protestou Elinor, indignada. Já en­contrei ali!

Bem, não sei como pode ser, mas eu fazia idéia de que você a tivesse removido para um lugar melhor. Contudo, isso não importa, só que estragou tudo. Eu tinha sua pistola engastada de madrepérola na mão, Ned, e gritei para o sujeito não se mover pois eu tinha uma arma apon­tada para ele, mas o desgraçado atirou em mim antes que eu soubesse o que ele estaria fazendo, e continuei me aproximando. Atirei imediata­mente, e estilhacei a lanterna que ele trazia, mas acho que não o atingi, pois ele fugiu pela porta da frente antes que alguém pudesse vir em meu socorro. Mas o diabo disso tudo é que ainda não sei o que é que ele que­ria e receio muito que agora ele sabe que o jogo acabou, não vai voltar mais. Fiz um péssimo trabalho!

De fato é uma pena que ele tivesse de descobrir sua presença — con­cordou Carlyon. Contudo, não adianta lamentar o que não pode ser con­sertado. Isso é sem dúvida muito interessante, Nicky.

Sim, é mesmo! Não foi divertido? — interrompeu Elinor, com vio­lência.

Ele olhou-a pensativamente, mas não disse nada.

Em que está pensando, Ned? — perguntou Nicky ansiosamente.

Eu estava desejando que John não tivesse voltado para Londres —     replicou Carlyon inesperadamente. — Não importa! Ele estará aqui outra vez depois de amanhã!

John! — exclamou Nicky. — Ora, de que utilidade ele seria? Eu gostaria de saber.

Ele esteve me contando algo que não posso deixar de sentir que tal­vez tenha alguma relação com esse episódio extraordinário.

O rosto de Nicky iluminou-se.

Oh, Ned, você realmente acha... É possível que... Você sabe, eu disse à prima Elinor esta manhã que achava muito provável que o sujeito pudesse ser um dos agentes de Boney; há pouco você disse que era De Cas­tres, e eu então achei que não seria possível!

Sem dúvida é algo imprevisto. Contudo, acredito que não seria exa­tamente a primeira vez que um herdeiro de uma dessas famílias émigrées compartilharia da sorte de Bonaparte.

Muito chocante, sem dúvida! — disse a srta. Beccles, sacudindo a cabeça. — Isso faz com que nos sintamos assim, especialmente por causa dos pobres pais. Mas temo que os jovens sejam de um modo geral muito desconsiderados.

Não é bem assim! — protestou Elinor. — Ora, no passado conheci algumas dessas famílias, e eles ficariam desgostosos com a simples idéia de uma coisa dessas!

—- Sem dúvida, os membros mais velhos dessas famílias ficariam, se­nhora, mas de fato a carreira de Bonaparte e o regime que ele estabeleceu fizeram despertar um entusiasmo por essa causa no peito de alguns dos membros mais jovens. Afinal, não é de se admirar! Na Inglaterra, eles têm pouco a esperar, e, imagina-se, pouco podem encontrar para lhes inspirar confiança num rei Bourbon e no grupo de homens que ele conserva ao seu redor. Mas essas são apenas suposições! Estamos nos precipitando.

Nicky, que se sentara com as sobrancelhas franzidas, disse:

Está muito bem, Ned, mas como Eustace teria tido alguma coisa a tratar com os espiões franceses? Eu nunca imaginei que ele tivesse sequer bom senso!

Um agente irresponsável, alguém poderia dizer — concordou Carlyon. De cenho franzindo, fitava a tampa da caixa de rape. — Contudo —     disse ele —, devo admitir que muitas vezes perguntei a mim mesmo onde Eustace arranjaria dinheiro para pagar alguns dos seus prazeres mais dispendiosos. Talvez isso fosse a resposta.

Um agente bonapartista! — exclamou Elinor. — Bem, pensei que soubesse o pior do meu noivo, mas parece que estava enganada!

No meu julgamento — disse Carlyon — ele seria mais exatamente um intermediário.

Não vejo como isso o tornaria melhor!

Ao contrário, decididamente pior.

Oh, que homem abominável o senhor é! — exclamou Elinor, bastante impaciente.

Shhh..., minha querida! — interveio a srta. Beccles, censurando a gentilmente. — Como sabe, uma dama jamais deve ser mal-educada

Lorde Carlyon deve estar bastante chocado ao ouvi-la expressar-se com uma violência tão inconveniente.

Quem me dera eu pudesse chocá-lo! — disse Elinor, irônica.

Bem, não vejo por que deveria desejar! — disse Nicky, irritando-se. — E Ned não é um homem abominável!

Nicky — disse Carlyon, sério como um juiz —, um cavalheiro ja­mais deve desmentir uma dama.

A srta. Beccles assentiu com a cabeça, concordando inocentemente com essa máxima. A viúva fitou Carlyon, manifestando emoção reprimida, mas mantendo um silêncio cauteloso.

Depois de lançar-lhe um olhar um tanto irônico, Carlyon pareceu envolver-se em suas próprias meditações. Nicky, ficando nervoso e descon­tente durante algum tempo, finalmente rompeu o silêncio, dizendo:

Você acha que deveríamos trancar a passagem secreta? Quero di­zer...

Oh, sim — Carlyon replicou distraidamente. — Não creio realmente que possamos esperar que ele torne a entrar por aquele caminho pela terceira vez.

Bem, mas então, Ned, o que devemos fazer? Seria tão maçante dei­xar a coisa como está!

Certamente que não deixaremos. O assunto me parece tão impor­tante que certamente não poderemos deixá-lo de lado. Devemos esperar al­guma nova forma de abordagem. O tempo mostrará qual.

 

Para mim, chega! — declarou Elinor, decidida. — Não passarei outra noite nesta casa, isso eu garanto!

Oh, prima Elinor, você não seria tão medrosa! — exclamou       Nicky incredulamente. — Além disso, do que deveria ter medo, quando eu esta­rei com você, e a srta. Beccles e Bouncer também?

—      Como pode ter a desfaçatez, Nicky, de oferecer-me aquele cão hor­rendo como consolo? É algo que dá uma idéia muito pobre do seu cavaIheirismo! — retorquiu Elinor. — E mais, não sou tão desumana a ponto de pedir à minha querida Becky que fique uma hora nesta casa! Não é de modo algum ao que ela está acostumada, asseguro-lhe.

— Exatamente, minha querida— suspirou a srta. Beccles. — Quando era jovem, eu desejava muitíssimo poder deparar-me com uma aventura, mas nenhuma jamais surgiu em meu caminho, e, no final, já não pensava mais nisso. E agora, ela se me apresenta, e tudo por intermédio do meu se­nhor, que tão bondosamente me trouxe até você!

Becky, toda a minha esperança está em você! — Elinor quase cho­rava. — Não pode desejar continuar nesta casa horrível!

Mas, minha querida sra. Cheviot, me parece uma casa tão confor­tável! E agora que meu senhor, Lorde Carlyon, deve trancar a porta se­creta, que, admito, eu não gostaria muito de ver aberta, não consigo vera mínima razão para você abandona Ia. E estou certa de que se o querido cãozinho ficar conosco, ficaremos totalmente a salvo.

O inteligente animal, que se empertigara à primeira menção do seu nome, achatou as orelhas e deixou pender a língua, cheio de satisfação.

Se você soubesse tanto quanto eu a respeito do querido cãozinho — declarou Elinor —, dificilmente ficaria no mesmo aposento que ele! — Virou-se para Carlyon e acrescentou: — Ao lhe ser comunicado que eu fi­caria sob sua guarda, a criatura manteve-me presa à minha cadeira a maior parte do dia!

Bem, isso foi realmente minha culpa! — argumentou Nicky. — Ele não entendeu direito o que eu disse. E você deve admitir que ele permane­ceu em seu posto como um consumado buldogue!

Exato! E consumiu um prato cheio de carne, e um grande osso com tutano, que ele escondeu atrás das almofadas do sofá!

Pobre rapaz! — exclamou a srta. Beccles, em um tom de voz ca­rinhoso.

Bouncer, reconhecendo uma simpatizante, levantou-se e meteu o focinho frio e úmido na mão dela, ao mesmo tempo em que assumia a ex­pressão comovedora de um cão que só tem um interesse benevolente por gatos, animais domésticos de um modo geral e visitantes estranhos. A srta. Beccles afagou-lhe a cabeça e murmurou palavras doces para ele.

Elinor fixou seu olhar em Carlyon.

Meu senhor, espera que eu continue aqui? — indagou ela, seve­ramente.

Espero, sra. Cheviot, realmente espero — respondeu ele.

Mas eu posso ser assassinada em minha cama!

 

Acho improvável. Ela engoliu em seco.

Mas o que gostaria que eu fizesse? Ele olhou-a pensativãmente.

 

Creio que seria acertado você começar a procurar roupas de luto disse ele. — Avalio que seu tempo, desde que a deixei aqui, tem sido dedicado a outros assuntos, mas isso deveria ter sido levado em conta tambem. Mandarei minha carruagem para ficar à sua disposição, no caso de desejar ir até Chichester. Lá encontrará um grande estabelecimento de tecidos, aceitável, onde poderá escolher algo adequado à sua condiçâo.

Mas quem deve receber os agentes franceses que possam aparecer enquanto eu não estiver? — perguntou ela.

Oh, eu farei isso! — Nicky esboçou um largo sorriso.

Meu caro Nicky, estou com intenção de levá-lo para casa. Acho provável que, a esta altura, a sra. Cheviot já tenha tido sua companhia em excesso.

Oh, Ned, não! — exclamou Nicky, consternado. — Não poderia me pedir que deixasse Highnoons agora! Ora, talvez aconteça qualquer coisa!

Provavelmente não vai acontecer nada.

De fato não sei o que o faz pensar assim, meu senhor — observou Elinor. — Um homem que invade uma casa duas vezes e atira na pessoa que o descobre...

Estou inclinado a pensar que foi um engano.

Foi um engano! — exclamou Nicky, apalpando o ombro, com ar pesaroso.

Ouso afirmar que você o assustou, meu caro, e ele atirou antes que tivesse tempo de pensar no que fazia. Talvez não desejasse fazer tal estardalhaço. Na verdade, seu modo de conduzir o caso parece-me traba­lho de principiante. Pode estar certo, alguém deve estar por trás de De Castres, se era De Castres.

Alguém mais astuto, eu ousaria dizer — sugeriu Elinor cortesmente.

—- Sem dúvida alguma.

—- E que talvez venha a me atacar, por sua vez?

Ele sorriu.

Talvez — concordou.

E o único conselho que o senhor tem a me dar é que eu deveria ir a Chichester para comprar roupas de luto que, asseguro-lhe não pre­tendo usar!

Espero que mude de idéia sobre essa decisão, senhora. É sempre lamentável irritar as pessoas. Vejo que já tornou esta sala pelo menos mais habitável. Mas ainda deve haver muito trabalho a ser feito na casa, que deverá mantê-la ocupada durante algum tempo. Creio que não precisa sentir nenhum alarme indevido; a violência não é interessante para essaspessoas, e não é possível que tentem alguma coisa da mesma natureza ou­tra vez. O que precisamos agora é procurar algo um pouco mais sutil.

Bem, então, Ned, você não acha que eu deveria continuar aqui? —     insistiu Nicky. — Prima Elinor ficará mais à vontade se eu ficar, não é, prima?

Naturalmente que está fora de questão sua ida para casa enquanto está tão fraco! — disse ela. Dificilmente poderá levá-lo nesse frio, quando ele deve ficar na cama, meu senhor! Asseguro-lhe que a srta. Beccles e eu tomaremos todo cuidado com ele.

Não tenho dúvidas quanto a isso e fico muitíssimo grato a am­bas. Você ou ele examinou o conteúdo da escrivaninha, para descobrir alguma pista para esse mistério?

Não, mas eu teria feito isso! — disse Nicky. — Só que a prima Elinor não permitiu.

Extremamente correto. Estou contando com Finsbury em Sussex amanhã e vou traze-lo aqui. Mas em todo caso seria sensato nos assegu­rarmos de que nenhum documento perigoso se encontra na escrivaninha.—    Enquanto falava, para lá dirigiu-se e sentou-se, abrindo a primeira ga­veta. Logo a escrivaninha era uma confusão de papéis, que Carlyon pôs em ordem, depositando os documentos em pilhas separadas. As outras gavetas estavam na mesmíssima condição, e a convicção de Nicky, ex­pressa com ansiedade, de que a escrivaninha possuía um esconderijo se­creto, revelou-se infundada.

Carlyon tornou a guardar os papéis, dizendo calmamente:

Há muito pouco aqui além de contas e notas promissórias.

Santo Deus! — exclamou Elinor. — Então imagino que eu deva ser a próxima a ser importunada! Como é sensato pensar que se eu nunca o tivesse encontrado, meu senhor, talvez agora estivesse instalada pacifi­camente na casa da sra. Macclesfield!

Realmente sensato. Estou convencido de que teria descoberto que ela é uma mulher insuportável e seus filhos excessivamente mimados.

Tolice! Acho que é uma família muito agradável — replicou Elinor com firmeza.

Bem, minha querida, você bem sabe que não teve opinião muito agradável do caráter da sra. Macclesfield! — lembrou-a a srta. Beccles.

— Estive contando a Lorde Carlyon com que coragem você suportou seus reveses e como estou grata por encontrar-se agora em tão boas mãos.

Boas mãos? — reagiu, arfante, a viúva ofendida. — Becky, você está em seu juízo perfeito? Se você se refere a Lorde Carlyon, eu real­mente acho que não pode estar. Jamais lhe fiz o mínimo mal, e imagine só como ele me obsequiou! Forçou-me a casar com essa criatura dada a todas as formas de vício; trouxe-me para esta casa onde tudo está empoeirado e em andrajos, os camundongos correm pelo chão do quarto e agentes franceses entram e saem à vontade, alvejando quem quer que ouse dizer-lhes não; revela-me com o que só posso descrever como a despreocupação mais insensível e imaginável, que meu finado marido mor­reu aparentemente coberto de dívidas que, sem dúvida, serei intimada a saldar; e quando lhe pergunto o que devo fazer, ele só consegue dizer que eu devo comprar roupas de luto para mim mesma!

A srta. Beccles sorriu para Lorde Carlyon.

A querida Elinor sempre foi uma jovem tão viva! — murmurou ela. — Tão corajosa! Sei que o senhor levará em conta.

Ficaria feliz por fazê-lo — respondeu ele. — Mas não a consi­dero de modo algum corajosa. Ao contrário, ela me parece ter opiniões desanimadoras de sua situação. Não há realmente necessidade, que eu saiba, sra. Cheviot, de ficar em tal estado de aborrecimento.

Oh, ela não é uma pessoa tão medrosa como imagina, Ned! — disse Nicky alegremente.

As palavras lhe faltando, a sra. Cheviot levantou-se e deu várias vol­tas agitadas pela sala. Carlyon foi até ela e pegou-a pela mão.

—      Por favor! — disse ele, tranqüilizador. — Não a deixaria aqui,sabe disso, se soubesse que correria algum perigo. Fugir pode ser absurdo. Ficando, como uma mulher sensata, você pode ser muito útil. Estou convencido de que você deve entender, à luz do que aconteceu, que colocá-la responsável aqui foi uma oportunidade muito feliz.

Elinor olhou-o fixamente.

—      Uma oportunidade muito feliz! — repetiu ela debilmente. — Meu senhor, quando o encontrei pela primeira vez, passou-me pela cabeça a suspeita de que seu cérebro estava desordenado. Agora estou certa de que isso é verdade!

 

depois de uma busca exaustiva no quarto de Eustace Cheviot, que não esclareceu nada além da existência de mais algumas contas amarrotadas e vários papéis irrelevantes metidos nos bolsos de alguns casacos, tornou-se evidente que se Eustace Cheviot tivesse tido realmente em seu poder algum documento destinado aos olhos franceses, ele o escondera em al­gum lugar onde seria improvável que fosse achado. Até Nicky ficou um pouco desanimado diante da perspectiva de ser obrigado a dar uma busca minuciosa numa casa abarrotada de baús, armários, cômodas, mesas em forma de barril e velhos cofres.

E quando tivermos rebuscado cada gaveta da casa, aposto dez contra um que será encontrado numa chaminé de lareira ou no forro de uma cadeira! — disse ele, pessimista. — Eu realmente não sei como deve­mos fazer!

Será — disse Elinor, que, sem querer, começara a interessar-se por essas atitudes — que não poderia estar em suas coisas pessoais?

Carlyon sacudiu a cabeça.

Tenho tudo que estava em seus bolsos — respondeu ele.

Pergunto a mim mesma — disse a srta. Beccles timidamente — se ele não o teria posto entre as páginas de um livro. Não posso deixar de achar que esse seria um esconderijo muito bom, e notei que há muitos livros naquela sala lá embaixo. Se for do seu agrado, meu senhor, a que­rida sra. Cheviot e eu podemos amanhã nos ocupar dessa tarefa, retirando-os e espanando-os ao mesmo tempo.

—      Uma excelente idéia — disse Carlyon. — Fico-lhe muito grato, senhora.

—      Pois eu não! — intrometeu-se Elinor. — Ora, acho que há mais de mil livros naquelas prateleiras!

Nicky, que começava a sentir-se cansado, sentou-se na beira da cama e disse, pesaroso:

Oh, Deus! Não acabam nunca os lugares onde devemos procurar!

Não acha, senhor, que se fosse trazido um braseiro cá para cima, para aquecer as cobertas, o que ouso dizer seria feito imediatamente, e o fogo aceso em seu quarto, ficaria mais confortável em sua cama? —- sugeriu a srta. Beccles, em seu modo gentil de falar.

É claro que Nicky desprezou essa idéia, declarando que não deveria retirar-se para o quarto antes do jantar; porém, ao ser tranqüilizado de que não seria enganado com mingau, e sim abastecido com uma bandeja cheia de iguarias substanciosas e apetitosas, ele começou a pensar com mais indulgência em sua cama, e, finalmente, consentiu, numa disposi­ção de espírito magniloqüente, a meter-se novamente debaixo das cober­tas. Carlyon desceu para dar ordens no sentido de trancarem a porta secreta, e Elinor levou a srta. Beccles para instalá-la no quarto ao lado do seu. A srta. Beccles suspirou de prazer diante da visão do fogo já aceso na lareira e esboçou um leve sorriso para a sua anfitriã:

Não precisava, meu bem, todo esse conforto só para mim! Eu realmente não sei se pulo de tanta alegria ou se procuro me dominar! Desde o momento em que Lorde Carlyon chegou, tenho estado em tal alvoroço! Confesso que não podia acreditar na clareza dos meus ouvidos quandoPolly... lembra-se de Polly, minha querida, uma jovem muito prestativa!... quando Polly veio me dizer que Lorde Carlyon queria me ver! E eu emmeu velho vestido de merinó verde-oliva, pois você deve saber que eu es­tava ocupada, lustrando os móveis, e de modo algum esperando receber uma visita, muito menos um visitante nobre! Mas ouso afirmar que ele não notou, pois graças a Deus tive a presença de espírito suficiente para retirar meu avental e enfiá-lo debaixo de uma almofada. Mas receber avisita de um cavalheiro distinto em meu pobre quartinho...! Confesso que fiquei tão desarmada que mal tive energia para lhe fazer uma reverência! Mas ele é verdadeiramente um cavalheiro! Conquistou-me facilmente em questão de segundos!

Sem dúvida, as maneiras de Lorde Carlyon são de uma pessoa de boa estirpe, mas...

Oh, minha querida, percebi num relance que ele estava habituado a circular nas altas esferas! E a lata de cera sobre a mesa, o trapo da lim­peza e o meu merinó todo amassado! Fiquei quase acabrunhada! O que ele poderia querer de mim, eu não sabia mais do que Polly, mas logo foidito. Você pode imaginar meu espanto! Receio que ele deve ter imagi­nado que tenho menos bom senso do que o normal, pois fui obrigada a pedir-lhe que repetisse a história toda para que eu pudesse acreditar!

Não é de admirar! Você deve ter ficado extremamente chocada ao saber em que horrível complicação eu me havia metido!

Confesso que minha primeira reação diante do acontecimento levou-me a um tal estado de agitação, que fui obrigada a deixar-me cair pesadamente na poltrona mais próxima. Mas logo tudo foi explicado! Em seguida, soube que viria para Sussex no dia seguinte mesmo, para ficar com você! Fiquei com a minha cabeça num redemoinho, e mal sabia o que estava fazendo ou que jeito daria na minha vida!

Pobre Becky, você foi indignamente tratada! — disse Elinor, com entusiasmo. — Por nada deste mundo eu a teria feito arrumar suas coisas nessa pressa tão desagradável! Mas eu já deveria ter sabido como isso se­ria! Ele é a criatura mais abominável e acha que a conveniência de todo mundo deve ceder à sua!

Oh, não, minha querida, na verdade eu não sei mesmo como você pode falar dessa maneira! Imagine só o convite dele para conduzir-meem sua própria carruagem e para me fazer sentar ao seu lado o caminho todo, exatamente como se eu fosse uma pessoa de grande importância social! Ai de mim, querida sra. Cheviot, você deve saber tão bem como eu o quanto é raro deparar-se com tal extraordinária cortesia quando se é apenas uma governanta!

Sim, de fato, eu sei, mas...

Cada observância me foi dispensada! A mais notável das aten­ções! E tantas considerações gentis! E eu em tal estado de agitação que cada uma das minhas faculdades corria o risco de tornar-se nula! Estou certa de que ele me deve julgar a pessoa mais antiquada e nervosa, pois o que pensa que devo ter esquecido senão a minha sacola de tricô? Fico realmente envergonhada ao pensar que devo ter exclamado que estava certa de que esquecera de traze-la, pois Lorde Carlyon, sem a mínima demons­tração de contrariedade, no mesmo instante ordenou aos postilhões para voltarem! E o oferecimento de um cálice de licor de amêndoas e frutas com biscoitos durante a viagem, embora eu lhe tivesse garantido que não estava acostumada a comer nada no meio do dia!

Admito que ele seja atencioso em assuntos dessa natureza, mas...

E uma mente tão bem informada! E não esperava que ele se desse ao trabalho de conversar comigo, realmente, e ele foi tudo que há de mais amável! Pode calcular meu alívio ao saber que você estava aos cuidados de alguém que eu podia respeitar verdadeiramente!

Becky, deixe-me esclarecer-lhe que eu não estou aos cuidados de Carlyon! Como vim a deixar-me envolver nesta confusão, não consigo imaginar! E agora ouvir você, que toda a minha vida acreditei ser um mo­delo de retidão, falando como se eu tivesse tirado a sorte grande, me faz perder totalmente a paciência! Porque é realmente chocante, Becky!

Na verdade, meu bem, eu compartilho dos seus sentimentos, mas pode estar certa de que agiu corretamente ao confiar em Lorde Carlyon para ser o melhor juiz de suas ações.

Agi corretamente ao deixar-me casar e enviuvar em algumas ho­ras? Como pode dizer isso?

É claro, quando você fala nesses termos, de fato parece um pouco incomum — admitiu a srta. Beccles. — Mas nunca fui capaz de suportar a idéia de vê-la condenada à vida que eu tenho sido obrigada a levar. E você sabe, minha querida Elinor — se é que ainda posso chama Ia assim, embora saiba que não deveria —, de tudo que Lorde Carlyon foi condes­cendente o bastante para me dizer, parece realmente ter sido um ato mi­sericordioso da providência que o rapaz esteja morto. Não que alguém fosse gostar de dizer algo assim cruel, mas não posso acreditar que ele fosse inteiramente o ideal, e ouso afirmar que teria sido um mau marido para você. Quantas vezes somos forçados a constatar que os acontecimen­ tos mais trágicos são para o nosso bem!

Simplesmente era inútil esperar que a pequena governanta se mos­trasse solidária para com os seus sentimentos a respeito; assim, Elinor deixou-a para que ela desfizesse as malas e foi para o andar de baixo, para saber o que Carlyon pretendia fazer a seguir.

Verificou que ele vestira a capa de novo e estava prestes a partir. En- quanto ela descia as escadas, ele ergueu os olhos e disse:

—      Agora a porta está fixa, senhora, e realmente espero que não pre­cise passar por mais nenhum susto. Lembre-se eu lhe rogo, de que tudo até agora são apenas conjecturas! Seríamos imprudentes ao nos estendermos muito sobre o que aconteceu antes de obtermos provas mais positi­vas de que nossas suspeitas são bem fundadas. Estarei visitando-a pela manhã, com p advogado do meu primo. Nesse meio tempo, estive procu­rando uma aliança para você, que espero possa ajustar-se mais ao seu dedo do que esse meu anel com sinete.

Ele estendeu-lhe a aliança, de modo que ela foi obrigada a pegá-la e devolver-lhe o anel. Parecia que ele calculara a medida do seu dedo com satisfatória precisão. Ela enfiou rapidamente a aliança, mas indagou:

Meu senhor, quanto tempo pretende me manter nesta casa?

Receio não poder responder-lhe até saber mais precisamente como se encontram as coisas.

Ouso afirmar que o senhor não ficaria nem um pouco comovido se chegasse amanhã e nos encontrasse a todos mortos, deitados em nos­sas camas, não é? — disse ela em um tom de amargura.

—      Ao contrário, ficaria muitíssimo surpreso. Ela não pôde deixar de rir.

Criatura odiosa! Muito bem, vejo que tem um coração de pedra e perco meu tempo com solicitações inúteis! O que gostaria que eu fizesse, senhor?

O que lhe pedi, mas você achou tão ofensivo que hesito em repeti-lo, sra. Cheviot.

Oh, sim! O senhor gostaria que eu me vestisse de crepe preto!Não sou tão hipócrita assim!

Eu de fato não sei o que seria apropriado para você vestir, mas devo chamar sua atenção para o fato de que é mais do que provável que o tio do meu primo, Lorde Bedlington, venha a Sussex para assistir ao funeral, senão ao inquérito também, e certamente ele virá visitá-la. Suas roupas de cor provocarão comentários.

O senhor tem uma resposta razoável para tudo, meu senhor. É o que particularmente desagrada em sua pessoa! Diga-me, o que devo di­zer a Lorde Bedlington?

Empenhe-se em dizer apenas o que for necessário. Para ele, será melhor imaginar que você foi noiva do meu primo durante muito tempo. Quanto ao incidente da noite passada, Nicky garantiu-me que deixou Greelaw supor que havia sido alvejado por um arrombador comum. Já pedi aos Barrows que contassem a mesma história. Nosso cuidado agora deve ser o de não dizer ou fazer algo que possa trair nossas suspeitas.

Exatamente! Que revoltante se afugentarmos algum espião!

Sim, creio que você cuidaria para que fosse revoltante mesmo — concordou ele, sorrindo e estendendo a mão. — Devo deixá-la agora. Se ficar nervosa, recomendo-lhe que deixe o cachorro de Nicky perambular à vontade pela casa durante a noite. Na certa ele começará a latir à apro­ximação de algum estranho.

—      Como alguém pode imaginar que vale tão pouco! — observou ela, virando a cabeça para olhar para Bouncer, que se revolvia, satisfeito, no tapete em frente à lareira. — Jamais imaginei que viveria para ser grata àquele animal horrível!

Ele riu, apertou-lhe a mão e foi embora. Bouncer levantou-se, sacudiu-se e ficou abanando o rabo, na expectativa.

—      Se é no jantar que está pensando — disse Elinor severamente —, seria melhor vir comigo até a cozinha e ser gentil com a sra. Barrow.

Ele foi saltitando à frente dela, ao longo do corredor pavimentado de pedra que levava às cozinhas. Ali, nada teria excedido sua afabilidade, mas só o poder de persuasão de Elinor induziu a sra. Barrow a lhe dar um prato de sobras. Ela disse que ele já havia comido a parte do quarto dianteiro do carneiro destinada ao próprio jantar de Elinor. Mas o es­perto cão ouviu as reprimendas de Elinor com uma tal expressão com­posta de inocência e suplício de fome, que ela achou difícil acreditar numa coisa dessas e insistiu para que o animal fosse alimentado. Não havia nada na maneira como ele consumiu sua porção que emprestasse a mínima ve­rossimilhança à alegação feita contra o seu caráter.

A noite transcorreu tranqüilamente. A srta. Beccles, que não perdera tempo em se dar bem com a sra. Barrow, fez um gaspacho para o doente, que declarou ser o prato de primeira ordem; Elinor perdeu para ele toda a enorme soma que havia ganhado no piquei na noite anterior; e Boun­cer, de repente, alcançou popularidade com a sra. Barrow ao apanhar um rato grande na despensa, para onde se dirigira à procura de algo para man­ter suas forças durante as vigílias noturnas. A sra. Barrow foi levada a conceder-lhe um grande osso de pernil. Subseqüentemente, ele o escon­deu debaixo da cama de Elinor, e sua lembrança do paradeiro do osso no meio da noite, com insistentes pedidos para ser admitido no quarto dela, fora só o que ocorrera para estragar-lhe o resto da noite.

A manhã encontrou a moça com outra disposição de ânimo, recupe­rando rápido o domínio de si. Nicky parecia estar muito melhor; e a pre­sença da srta. Beccles era ao mesmo tempo tão agradável e tão calmante que Elinor recebeu a notícia de que a carruagem de Lorde Carlyon estava à porta, pronta para levá-la a Chichester, com uma docilidade surpreen­dente em alguém tão decidida. As duas senhoras iniciaram a viagem nesse veículo luxuoso e passaram algumas horas agradáveis fazendo compras, retornando à tarde com tantas caixas empilhadas no banco à frente delas que Nicky disse que se admirava não terem elas pensado em alugar uma carreta ou até mesmo uma carroça Pickford.

Para Elinor teria sido inútil ter tentado fingir que sua mente era de ordem elevada demais para regozijar-se com a aquisição de roupas no­vas, e ela não perdeu tempo para subir correndo para o seu quarto a fim de experimentar o vestido de musselina cinza-chumbo, com fitas pretas, e o lindo vestido preto de seda, enfeitado de renda e um babado triplo. Acabava de verificar o efeito de uma touca de renda muito bonita, com abas que se uniam debaixo do queixo formando um laço preto, quando ouviu Bouncer soltar um latido forte no estábuio.

No momento seguinte Nicky batia à sua porta, dizendo-lhe que se apressasse e descesse, pois uma diligência postal acabara de parar à porta.

—      É o velho Bedlington, prima, pois estiquei meu pescoço fora da ja­nela e tive a mais clara visão dele! Santo Deus, gostaria de saber o que ele dirá quando encontrá-la aqui! Quem dera que Ned estivesse aqui ainda para desfrutar da pilhéria!

Ela correu para a porta e abriu-a.

Oh, Nicky, o que direi a ele? Onde está seu irmão?

Oh, ele já voltou para a Mansão. Ele e Finsbury levaram todos os papéis de Eustace, e gastaram não sei quanto tempo tentando descobrir onde se ajustam as chaves dele. Acho provável que a maioria pertença aos ar­mários de Cork Street... ele tinha aposentos lá, você sabe. Oh, e Ned me mandou dizer que lhe pedia desculpas, mas esqueceu-se de informá-la que tomou a liberdade de pagar e despedir o camareiro pessoal de Eustace quando ele foi a Cork Street ontem, porque você dificilmente irá precisar dele, e é um tipo de sujeito desprezível, pronto para qualquer trapaça. Por Deus, prima Elinor, se este vestido não é a coisa mais espetacular que já vi! Você está maravilhosa!

Nicky, por favor, desça comigo! — pediu ela. — Estou realmente embaraçada, sem saber o que dizer a Lorde Bedlington!

Bem, não me importo de confessar que daria quinhentas libras só para ver a cara dele — declarou Nicky, com franqueza. — Mas Ned disse que se por acaso ele aparecesse aqui, eu não devia ser visto, por causa da situação constrangedora de ser por minha culpa que Eustace está morto.

Santo Deus, é isso mesmo, de fato! Eu tinha esquecido completa­mente esse pormenor! Minha esperança deve ficar toda em Becky. Meu cha­péu está correto?

Ele assegurou-lhe que estava e ela foi para o andar de baixo, sentindo certa satisfação no impressionante ruge-ruge de suas saias de seda, mas pá­lida por causa do medo de passar por uma viúva inconsolável.

Barrow introduzira o visitante na sala de estar da frente, onde a srta. Beccles ocupava-se em dispor as cadeiras mais confortavelmente ao redor do fogo recém-aceso. Ao entrar suavemente na sala, a sra. Cheviot chegou a tempo de ouvi-la garantir a Lorde Bedlington, com uma placidez inaba­lável, que a sra. Cheviot desceria imediatamente.

—      Ei-la que chega, realmente! — disse ela, avistando Elinor. — Mi­nha querida sra. Cheviot, aqui está Lorde Bedlington, que veio fazer-lhe uma visita de condolências!

Elinor fez-lhe uma reverência, admirando-se diante da desfaçatez de sua dócil e pequena dama de companhia.

—      Sra. Cheviot! — exclamou Bedlington. — Palavra de honra, eu realmente não sei o que dizer! Estou completamente embaraçado!

Ele passava o lenço pelo rosto enquanto falava, e ela pôde lançar um olhar furtivo em sua direção. Era um cavalheiro corpulento, de cerca de cinqüenta anos, de estatura mediana e um rosto redondo, onde olhinhos azuis habitualmente ficavam abertos ao máximo. Usava calções muito jus­tos e as pontas do colarinho muito altas e rigidamente engomadas, o que lhe dificultava virar a cabeça; e quando ele se curvou, um ligeiro estalo de­nunciou que sua pança protuberante achava-se confinada num espartilho. O forro amarelo do casaco e os botões Prince, que o embelezavam, indica­vam seu cargo oficial.

Minha cara senhora... essa notícia chocante... meu pobre sobri­nho! Fiquei tão transtornado que fui obrigado a consentir que me tirassem meio quartilho de sangue! — declarou ele.

Ah, uma sábia precaução, meu senhor! — assentiu a srta. Beccles com a cabeça. — Tenho a maior fé nos bons efeitos de uma ventosa crite­riosa.

Animado, ele voltou-se para ela.

—      Não há nada igual! — assegurou-lhe. — Meu prezado amigo, sua Alteza Real, o Príncipe Regente, tem grande confiança nisso, sabe! Eu real­mente não sei quantos quartilhos ele já mandou que lhe tirassem! Mas essa não é a questão! Meu pobre sobrinho! Ah, ninguém a não ser eu tinha es­tima pelo rapaz!

Elinor achou prudente manter o olhar discretamente abaixado. Lorde Bedlington levou o lenço aos olhos outra vez.

—      Morreu tão jovem! — suspirou. — Sempre fui benevolente para com ele, pois deve saber que era muito parecido com meu querido irmão, portanto isso não podia deixar de afetar-me extremamente! Mas de fato não entendo, para ser exato... resumindo, senhora, eu não tinha idéia de que ele estava casado! Na verdade, duvidei que isso fosse verdade, porém percebo... É muito estranho!

—- Meu casamento com o sr. Cheviot — disse Elinor, em um tom de voz baixo — realizou-se enquanto ele jazia em seu leito de morte. Nosso... nosso noivado era um segredo conhecido apenas... conhecido apenas por Lorde Carlyon!

Ele pareceu ficar muito abalado.

—      Conhecido por Carlyon! A senhora me surpreende! Eu não ima­ginaria... Ele não pode ter tomado conhecimento desse casamento!

Ela replicou com mais firmeza:

Está enganado; devo meu casamento unicamente ao empenho de Lorde Carlyon em realizá-lo.

Impossível! — exclamou ele. — Ora, isso anula todas as suas es­peranças! Isto é, se o pobre rapaz fez seu testamento antes de morrer, mas acho que não teve tempo.

Ao contrário, meu senhor, o sr. Cheviot redigiu seu testamento a meu favor.

A senhora não fala realmente a sério! Essa é a notícia mais espan­tosa! Um homem estranho, esse Carlyon! Não há nenhum modo de compreendê-lo, em absoluto! Ah, minha querida, se minha pobre cunhada tivesse deixado as coisas de outro modo, quem diria que eu estaria aqui de pé, hoje, nesta melancólica ocasião!

Ela viu-se forçada a dizer:

—      Creio que Lorde Carlyon não pode ser culpado pela... pela morte prematura de meu marido, senhor.

Ah, acho provável que não, mas direi sempre que ele tratava o po­bre rapaz com severidade imerecida! Mas como isso aconteceu? Vi Eustace na cidade não faz nem cinco dias, e ele gozava de boa saúde! Mas deduzo que sofreu algum acidente, pois não?

Sofreu. Isto é... Queira me perdoar, mas me é doloroso ser obri­gada a comentar... estou certa de que Lorde Carlyon o informará melhor do que eu como foi o ocorrido!

Ah, não é de admirar! — suspirou ele, tomando-lhe a mão e apertando-a comovidamente. — De fato é doloroso para você! Um noi­vado secreto! É fácil de compreender por que deve ter sido assim! Contudo, o pobre rapaz Eustace poderia ter-me contado! Sempre fui seu amigo. Evocê diz que Carlyon assistiu ao seu casamento? Bem! Estou extremamente admirado, realmente não finjo compreender como isso pode ter sido as­sim! Mas, minha querida, diga-me: quem deve apoiá-la e aconselhá-la em todos os negócios a serem empreendidos agora? Falo com você sem reser­vas; receio que os interesses do pobre Eustace serão encontrados numa triste confusão. Seria conveniente se eu desse um jeito de tirar um dia para via­jar até aqui e visitá-la! Você permitirá que eu a alivie desse fardo... o triste dever... de designar os bens! É natural que eu a ajude, senhora, pois deve saber que eu era extremamente ligado a Eustace. Apesar das suas levian­dades próprias da mocidade, bem entendido! Não nego mesmo que ele nem sempre se conduziu como deveria, mas não devemos falar mal dos mor­tos.

O senhor é muito gentil — ela conseguiu dizer. — Mas creio... isto é... sei... que Lorde Carlyon é o executor do testamento, e eleja se encar­regou de tudo. Não tenho nada a fazer.

Ele pareceu muitíssimo insultado por isso, e ruborizou-se ao exclamar:

—      Sem me dizer uma palavra! Espero não ser daqueles a avaliar seus direitos alto demais, porém, como parente mais próximo do pobre Eustace, era de se supor que eu fosse consultado antes que Carlyon chamasse a si essa responsabilidade... Mas tem sido sempre assim! Carlyon é um homem de tão pouca sensibilidade que ouso afirmar que ele nem sequer pensa que há relíquias que devo desejar possuir! Ele só se preocupa com os interessesdos Wincantons, mas meu pobre irmão era o pai de Eustace, embora qual­ quer um dos Wincantons ou dos Carlyons pouco o tivessem considerado! Não gosto de pensar em Carlyon revolvendo papéis que não podem ser do interesse de ninguém a não ser um parente de meu irmão! Minhas cartas para ele!... creio que todas foram conservadas! Gostaria que fossem des­truídas ou a mim devolvidas.

Elinor só pôde sugerir que ele deveria abordar Carlyon a respeito. A boquinha vermelha do homem formou um beicinho desconsolado; ele disse que estranhava que não tivesse sido chamado; e parecia encontrar-se sob tal sensação de dignidade ferida que ela se viu pedindo-lhe desculpas por uma omissão que não lhe dizia respeito. Depois de saber por ela que Carl­yon havia retirado todos os papéis de Eustace Cheviot de Highnoons, cie disse algo sobre métodos abusivos que ela julgou melhor ignorar. Solícitu, a srta. Beccles sugeriu que Lorde Bedlington talvez precisasse de um lanche depois da viagem que fizera; e enquanto não vinha uma bandeja com vinho e bolos, ele foi convencido a sentar-se ao pé do fogo. Parecia estar muito desconcertado ao constatar que a viúva não necessitava do seu apoio e conselhos, e ela logo notou que ele era um homem com uma noção muito elevada da própria importância. Elinor disse tudo que era conciliatório e teve a satisfação de vê-lo ficar mais jovial com ela. Lorde Bedlington ofereceu-se para continuar em Highnoons até depois do funeral, e ela en­frentou dificuldades para saber como recusar sem ofender. Evidentemente, ele estava muito abalado com a morte do sobrinho, pois sentou-se, suspi­rando com estrépito ao mesmo tempo em que sacudia a cabeça, até que Eli­nor começou a perguntar a si mesma se ele algum dia iria embora. Mas, finalmente, ele assim o fez, dizendo que iria até a Mansão e exigiria toda a verdade de Carlyon. Disse a Elinor que embora estivesse muito ocupado com os negócios de Estado, sem dúvida compareceria ao funeral, e, mais uma vez, segurando a mão de Elinor, disse que reivindicaria o privilégio de tio ao pedir-lhe permissão para se hospedar em Highnoons por uma noite. A educação forçou-a a garantir-lhe que ele seria recebido com pra­zer; Lorde Bedlington agradeceu; finalmente, subiu na carruagem e partiu.

— Velho idiota maçante! — exclamou Nicky. — Você se saiu bem da escaramuça, prima? O que ele disse? Pensei que fosse ficar aqui para sem­pre, e fiquei imaginando se não deveria lançar Bouncer para afugentá-lo! Mas, por outro lado, achei que provavelmente você não gostaria que eu as­sim procedesse, portanto conservei o bicho comigo. Mas ouso afirmar que ele gostaria de dar uma mordida no gorducho Bedlington, não gostaria, Bouncer?

Extasiado, Bouncer avançou para ele de um pulo, aparentemente sob a impressão de que esse regalo lhe estava reservado de fato.

 

NÃO havia nada entre os papéis de Eustace Cheviot para ocupar a mente dos dois executores durante muito tempo, e logo ficou acertado entre am­bos que o primeiro passo a ser dado com respeito a estimular a proprie­dade seria determinar o número exato de obrigações. Desta tarefa p advogado encarregou-se, suspirando, abaixando os cantos da boca e di­zendo que receava que a metade delas ainda não era conhecida. Leu com cuidado o testamento de Cheviot, de maneira reprovadora; contudo, em­bora em voz alta manifestasse impaciência com o uso de interjeições como 4'ora" e sacudisse tristemente a cabeça, admitiu que serviria, pois estava suficientemente bem redigido.

—- Mas, meu senhor — acrescentou, sério. — Com isto não quero dizer que este documento está redigido exatamente nos termos que eu te­ria usado se tivesse sido solicitado a satisfazer meu finado cliente neste assunto. Contudo, parece ser válido e pedirei sua homologação imediata­mente.

Em seguida, com um pedaço de cadarço, atou os papéis, uma vêz, que se propunha a levá-los consigo: desculpou-se por não permanecer na Mansão naquela noite, como fora gentilmente convidado a fazer, em ra­zão de já ter reservado um quarto na estalagem de Wisborough Green; garantiu a Carlyon que não deixaria de estar presente no inquérito na ma­nhã seguinte; com uma reverência, retirou-se.

Ainda não tinham decorrido dez minutos que ele se fora, quando a porta do gabinete de Carlyon se abriu novamente e seu irmão John en­trou no aposento, esfregando as mãos e soltando uma exclamação contra a inclemência do tempo.

—      Meu caro John! — exclamou Carlyon. — Só contava ver você amanhã!

—      Bem, julguei que poderia chegar muito tarde se protelasse a via­ gem, assim recorri a Sidmouth para que autorizasse minha ausência ime­diatamente. Encontrei-o de bom humor, portanto eis-me aqui — res­pondeu John, caminhando até a lareira e inclinando-se para aquecer as mãos.

Estou muito contente de vê-lo. Veio na diligência postal?

Não, vim dirigindo eu mesmo, e que maldito frio fazia! Como têm estado as coisas desde que nos vimos pela última vez? Onde está Nicky?

—      Nicky está em Highnoons, com um buraco no ombro — respondeu Carlyon, atravessando a sala em direção à mesa onde o mordomo co­locara uma garrafa de cristal e copos. — Xerez, John?

Nicky está o quêl — indagou John, endireitando o copo com um movimento brusco e súbito.

Não é nada sério — disse Carlyon, servindo o xerez em dois copos.

Santo Deus, Ned, será que Nicky não consegue ficar longe de en­crencas por uns dois dias?

Aparentemente não, mas por esta aventura ele não pode ser res­ponsabilizado. Sente-se que eu lhe conto tudo: imagino que se interessará,

John deixou-se cair numa poltrona funda ao lado da lareira, dizendo, sarcástico:

—      Não precisa me dizer que você não o responsabiliza! Bem, em que travessura ele se meteu desta vez?

Mas quando acabou de ouvir o relato simples de Carlyon sobre os acon­tecimentos de Highnoons, abandonou sua atitude cética e olhou atenta­mente para o irmão, com e cenho franzido.

Santo Deus! — exclamou devagar. — Mas... — Parou e pareceu mergulhar em profunda abstração. — Santo Deus! — repetiu, e se levan­tou, indo servir-se de outro copo de xerez. Ficou segurando o copo na mão por alguns minutos, antes de retornar à poltrona ao lado do fogo. — Eustace Cheviot? — indagou ele, com uma nota de incredulidade na voz: — Quem seria idiota o bastante para empregar um beberrão inveterado em tal tarefa? Não posso dar crédito a isso!

Realmente não, parece improvável — concordou Carlyon, polindo seu monóculo e erguendo-o para observar o resultado. — Mas devo admi­ tir que ele sempre teve uma propensão notável para a intriga. Todavia, ouso afirmar que essa suspeita não me passaria pela cabeça se não fosse o que você esteve me contando uma noite dessas, sobre vazamento de informaões. Ficarei feliz se souber que meus comentários sobre esse assunto são falsos e absurdos, —r Com uma indagação no olhar, Carlyon fitava John enquanto falava, mas ainda o achou de cenho excessivamente franzido. — De qualquer maneira, o que você sabe de Louis De Castres?

Nada. Ele não é suspeito, ao que me é dado saber. Mas seria inútil negar que tem havido exemplos de homens tão bem-nascidos quanto ele... Isso deve ser investigado, Ned.

Carlyon assentiu com a cabeça. John começou a atiçar o fogo como se estivesse revidando.

Que diabo! Quisera... Mas não é nada pertinente, é claro! Se hou­ver alguma verdade nisso, Ned, provocará um escândalo dos infernos. Con­fesso, gostaria que estivéssemos bem longe disso. Não encontrou nada entre os papéis de Eustace?

Não, nada.

Nicky não reconheceu a pessoa que atirou nele?

—- Não. Mas o próprio fato da sua entrada na casa pela escada se­creta parece excluir a hipótese de se tratar de um ladrão comum. Além disso, a biblioteca dificilmente teria atraído um ladrão comum, e pode­mos admitir que o homem conhecia bem a casa. Parece não ter tido nenhuma hesitação para entrar, dirigindo-se diretamente para a biblioteca. John resmungou e continuou atiçando o fogo da lareira.

O que pretende fazer?

Continuar aguardando os acontecimentos.

John lançou-lhe um olhar indagador.

 

Está pensando que pode ser aquele relatório do qual falei, não está? — perguntou bruscamente. — Se for isso mesmo, ele precisa ser en­contrado!

Sem dúvida, mas julgo igualmente importante descobrir o homem que o vendeu para De Castres.

Por Deus, é isso! Mas, Ned, não posso concordar inteiramente com você! O pessoal de Boney daria tudo para ter uma cópia, mas roubá-lo sig­nifica que os planos de Wellington são conhecidos!

Sob certos aspectos, já passou do tempo. Em sua opinião, seria pos­sível que Wellington alterasse seus planos?

John olhou-o atentamente.

Como posso dizer? Imagino que não. Os transportes... — Inter­rompeu-se, controlando-se. — Maldito seja! Ned, não vou acreditar que possa ser assim! Embora seja tarde demais para alterar agora quaisquer pre­parativos que ele tenha feito, informá-lo de que são conhecidos deve ser obra de um idiota! Os agentes de Boney conhecem seu trabalho bem de­mais para isso!

Assim eu imaginava e tinha assegurado para mim mesmo. Con­tudo, calculo que possa haver várias respostas para esse raciocínio. Se exis­tisse alguma suspeita das intenções de Eustace na mente de De Castres, ele poderia ter exigido ver o relatório. Considere por um momento que resul­tado desastroso seria para o francês, se Eustace tivesse dado informação falsa de propósito! Concentrar tropas sem prova incontestável de que é pre­cisamente naquela direção que um poderoso inimigo vai atacar seria cor­rer um risco que não posso imaginar algum general aceitando.

Você pensaria assim, sem dúvida. Acredita que De Castres tenha negociado uma olhada no relatório, com o intuito de roubá-lo ou de reproduzi-lo?

Talvez qualquer coisa desse tipo. Você mesmo disse que era muito provável ele ser descoberto, em arquivo errado. Talvez tivessem pretendido restituí-lo exatamente dessa maneira.

Eu falei como pilhéria! Jamais poderia ficar em um arquivo, é claro! Digo-lhe que se trata da coisa mais secreta!

Pode ser que ainda haja meio de restituí-lo.

Sim, imagino que haja... mas não meios conhecidos de Eustace Cheviot, Ned! Agora, pelo amor de Deus, meu caro amigo, considere bem. Você conhecia Eustace melhor do que ninguém! Isso não serve!

Carlyon levantou-se para tornar a encher o copo.

—      Certo, mas nunca imaginei que Eustace pudesse ser mais do que um intermediário. Se todas essas suspeitas estão corretas, alguém de muito mais importância devia estar por trás dele. Alguém que tem medo de apa­recer no caso, por isso emprega um joguete.

- Não vou admitir ser isso possível! — exclamou John, de modo explosivo. — Nunca vi um sujeito como você, Ned, para fazer ou dizer as coisas mais ultrajantes e depois fazê-las parecer as mais banais! É bas­tante lamentável de sua parte, e eu o conheço muitíssimo bem para estar enganado!

Ora, o que tenho feito ou dito para merecer isso de você? — per­guntou Carlyon, com voz suave.

Eu poderia enumerar uma vintena de coisas! — retorquiu John. — Mas uma só será o bastante! Se não foi a coisa mais ultrajante forçar aquela desventurada moça a casar-se com Eustace, então não entendo mais nada! E nem procure me explicar como veio a ser a coisa mais sensata que você já fez, porque acabarei acreditando, e sei muito bem que não foi nada disso!

Carlyon riu.

Muito bem, não vou mesmo, pois não posso acreditar que sua opi­nião seja subjugada tão facilmente.

Se Eustace realmente estava vendendo informações para os fran­ceses — disse John —, então devo lançar toda a responsabilidade sobre Be­dlington! Ouso afirmar que Eustace muitas vezes o visitou na Cavalaria de Guarda, e posso até jurar que ele sabia aproveitar ao máximo suas oportu­nidades! Nunca foi um tolo: na verdade, ele possuía um tipo de astúcia incomparável. Você deveria saber disso! Eu não ficaria nem um pouco surpreso se Bedlington tivesse deixado escapar alguma pista, sem a menor intenção de fazê-lo, mas o suficiente para Eustace! Não podemos dizer como isso aconteceu, mas estar tentando implicar alguém realmente importante... Bathurst, sem dúvida!... é ir longe demais!

Não, eu não pensava em Bathurst — disse Carlyon com toda a calma.

Isso é algo de fato! — exclamou John, com extrema ironia. — Pode estar certo, Ned, tudo isso é uma fantasia da imaginação, e o que quer que De Castres estivesse querendo, acabaremos descobrindo não ter nada a ver com assunto de Estado, seja ele qual for!

Espero que esteja certo. Não estou de fato ansioso para arrastar toda a família num escândalo desses, como você já previu.

O mordomo entrou e fez uma reverência.

—      Queira me perdoar, senhor, mas Lorde Bedlington acaba de che­gar e gostaria de falar-lhe imediatamente. Conduzi Lorde Bedlington para o Salão Encarnado.

John engasgou enquanto bebia o xerez e foi acometido de um acesso de tosse. Depois de uma pausa infinitesimal, Carlyon disse:

—      Diga a Lorde Bedlington que irei ter com ele agora mesmo, e leve xerez e madeira para o Salão Encarnado. Seria melhor instruir a sra. Rugby para preparar a Suíte Azul, uma vez que Lorde Bedlington sem dúvida pas­sará a noite aqui.

O mordomo fez outra reverência e retirou-se. Carlyon lançou um olhar para o irmão.

—      O que você tem a dizer agora? — indagou.

—      Maldito seja, Ned! — praguejou John, ainda tossindo. — Foi só por ele ser anunciado tão a propósito! Você devia estar contando com a vinda dele!

—      Contava — respondeu Carlyon. — Mas não antes que ele tivesse recebido minha carta, notificando-o da morte de Eustace.

—      O quê? — exclamou John. — Então deve ser o anúncio que você publicou no Gazette, é claro! Ele o viu!

—      Dificilmente poderia tê-lo feito, uma vez que só sairá amanhã — retorquiu Carlyon.

Com os olhos arregalados, John levantou-se da poltrona.

—      Ned! Você quer dizer que acredita que Bedlington... Você acha que De Castres avisou Bedlington... Não é possível!

—      Não, não foi isso que passou pela minha cabeça — respondeu Carl­yon. — Estava pensando em alguém que sei ser amigo íntimo de De Cas­tres.

Francis Cheviot! O espalhafatoso peralvilho!

Bem, só poderia me ocorrer esse pensamento — disse Carlyon. — Ele é filho de Bedlington... e aqui temos Bedlington, 24 horas antes de ser esperado em Sussex.

—- Certo, eu sei, mas... um sujeito que não se importa com outra coisa a não ser o caimento de sua gravata e a marca certa do rape!

Ah! — exclamou Carlyon pensativamente. — Mas lembro-me de que, pelo menos em três ocasiões no passado, constatei que Francis Che­viot de modo algum carecia de inteligência. Na verdade, meu caro John, nunca o subestimei como oponente. Sempre soube ser ele... espantosamente cruel quando tenciona atingir suas metas.

Eu não teria acreditado! É claro, você está mais familiarizado com ele do que eu. Não suporto o sujeito!

Nem eu — concordou Carlyon. — Não foi você quem me disse que ele sofreu severas perdas nas mesas de jogo?

É, assim acredito. Ele joga excessivamente alto... mas devemos ser justos, mesmo com Francis Cheviot; você sabe que ele herdou uma fortuna da mãe! Não que eu devesse questionar se foi muito generosa para agüen­tar... Mas isso não vem ao caso, Ned!

Certo. Vamos dar as boas-vindas ao nosso hóspede!

Eles encontraram o mordomo dispondo as garrafas de cristal em uma mesa no Salão Encarnado, e Lorde Bedlington diante do fogo. Quando Carlyon entrou no aposento, ele precipitou-se para a frente, exclamando:

Carlyon, que negócio terrível é esse? Vim logo que pude... embora dificilmente pudesse ser dispensado! Nunca fiquei tão chocado em minha vida! E preciso lhe dizer que me admiro você não me ter avisado imediata­mente sobre o ocorrido! Oh, como vai, John?

Passei pela sua casa na cidade, mas lamentei descobrir que você não estava — disse Carlyon, cumprimentando-o com um aperto de mão. — Assim escrevi uma carta para você, que imagino chegará em sua casa amanhã. Diga-me, por intermédio de que fonte você soube da morte de Eus­tace?

Os olhos azuis-claros olharam-no fixamente. Houve uma nítida pausa antes de Bedlington responder, com irritação:

Como alguém pode dizer de que modo uma notícia dessas se espalha?

Eu por certo não posso. Onde soube, senhor?

O criado pessoal do meu pobre sobrinho contou para o meu. A esta altura, a cidade inteira já sabe! Mas como aconteceu? Que acidente sofreu Eustace? Fala-se de uma rixa em uma estalagem! Procurei-o para saber a verdade!

Saberá, mas pode acreditar que será tão doloroso para mim relatála como para você ouvi-la. Eustace encontrou a morte pelas mãos do meu irmão Nicky.

Carlyon! — exclamou Bedlington, com voz sufocada, recuando um passo e agarrando-se ao espaldar de uma cadeira para equilibrar-se. — Meu Deus, a coisa chegou a isso?

Ao receber tal resposta, Lorde Bedlington procurou refúgio em seu lenço, e disse, em inflexões entrecortadas, que nunca teria acreditado em tal coisa.

Acreditado em tal coisa como o quê? — perguntou John por sua vez, sem piedade, mantendo-se fiel às suas táticas esmagadoras.

Eu gostaria muito que você ficasse calado, John! — pediu Carl­yon. __ Por favor, sente-se, senhor! Não preciso lhe dizer que o caso todo foi um acidente! Se Eustace tivesse imposto sua vontade, teria sido Nicky a morrer, sou obrigado a lhe dizer; teria sido um nítido caso de assassinato.

Ah, você sempre foi injusto para com o pobre rapaz! Estou certo de que protege seu irmão!

 

Sem dúvida pode dizer isso, mas, felizmente, este caso não depende do meu testemunho. Para ser breve com você, Bedlington, Eustace estava, como sempre, embriagado, e, nessas condições, foi muito imprudente ao provocar Nicky para uma briga. Nessa briga, ele agíirrou um trinchante e tentou matar Nicky. Nicky conseguiu arrebatar-lhe o facão, Eustace pa­rece ter dado um passo em falso e caído sobre o facão. Morreu algumas horas depois. Lamento a ocorrência tanto quanto qualquer um, mas não posso responsabilizar Nicky.

Nem Nicky e nem outra pessoa! — disse John em tom de voz ás­pero.

Bedlington, que parecia estar muito acabrunhado, apenas gemia, oculto pelo lenço. Carlyon serviu um copo de vinho e ofereceu-o a Bedlington.

—      Por favor, senhor! Avalio sua ansiedade, mas, para ser franco, não posso lamentar uma partida que estou muito inclinado a pensar que pode ter ocorrido exatamente a tempo de evitar que a Inglaterra nos lance a to­dos num escândalo que muito nos prejudicaria.

Bedlington surgiu de trás do lenço para perguntar, com voz trêmula:

—      O que quer dizer com isso? Algumas irregularidades... as extrava­gâncias da mocidade, e de um jovem educado sob o domínio de alguém... mas não digo mais nada! É melhor que saiba o quanto você é culpado pe­los excessos do pobre rapaz!

Por Deus, isso é demais — explodiu John, seu rosto adquirindo uma expressão sombria.

Então não aumente mais, John. Não tinha nenhuma suspeita se­nhor, de que essas irregularidades talvez tivessem ultrapassado os limites do que ate mesmo o senhor poderia perdoar?

Bedlington ruborizou-se.

- Isso é uma difamação desprezível! Você jamais gostou de Eustace! Não lhe darei ouvidos! Eu de fato não sei o que pretende, mas o filho do meu irmão...! Não, não, não lhe darei ouvidos!

Carlyon fez uma ligeira reverência e aguardou em silêncio enquanto o outro bebia sofregamente o vinho. Isto pareceu restaurar um pouco o equilíbrio mental de Lorde Bedlington. Ele permitiu que John tornasse a encher seu copo, perguntando abruptamente:

—      Como ele veio a se casar com aquela jovem que encontrei instalada em Highnoons? Sim, já estive lá e realmente não sei quando fiquei mais confuso em minha vida! Quem é ela e como aconteceu uma coisa dessas? Eu realmente não entendo, por que Eustace me teria excluído de sua con­fiança?

Ela é filha de Rochdale de Feldenhall — respondeu Carlyon. Os olhos azuis lançaram um olhar para Carlyon.

O quê! Aquele que se matou e deixou a viúva e a família na miséria? Carlyon assentiu com a cabeça.

—      Bem! — exclamou Bedlington, enfunando os lábios. — Se é assim naturalmente sei por que ele não se preocupou em me contar! De fato não gostei do casamento, e teria feito o impossível para evitá-lo. Na verdade isso é maravilhoso! E foi você quem planejou o casamento? Não sei mesmo o que dizer! A moça disse que foi tudo deixado para ela!

Carlyon tornou a assentir com a cabeça.

Maravilhoso! — exclamou Bedlington, sacudindo a cabeça — Você é um homem estranho, Carlyon! Não há como conhecê-lo a fundo!

O senhor me lisonjeia, Lorde Bedlington. Se pudesse ao menos resolver-se a acreditar que eu jamais quis herdar Highnoons, não me acharia uma pessoa insondável.

Bem, Carlyon, devo confessar que estava errado a seu respeito — disse Bedlington, suspirando. — Mas essa tragédia transtornou-me tanto que de fato não sei o que dizer!

-- É muito natural — replicou Carlyon. — Acho que gostaria de fi­car só. Deixe-me conduzi-lo aos aposentos que mandei preparar para o se­nhor! O jantar será servido dentro de uma hora.

—      Você é muito generoso. Confesso que ficaria satisfeito com um pe­ríodo de reflexão em silêncio - declarou Bedlington, levantando-se, com um gemido, e, vacilante, seguindo seu anfitrião até a porta.

John permaneceu no salão, aguardando com certa impaciência pelo regresso do irmão. Passou-se algum tempo antes de Carlyon reunir-se a ele e quando o fez, foi para dizer:

—      Com efeito, John, você é tão tolo como Nicky! Precisava vir em minha defesa tão violentamente assim?

Esqueça isso! — disse John. — Não consigo suportar aqueles mo­dos fingidos dele, jamais consegui! Que achou dele?

Nada de mais.

Ora, por Deus, não acreditei no que você esteve me dizendo, masposso jurar que o homem está num estado de agitação dos diabos! Fiquei admirado ao ouvir você lhe dar uma pista e tanto do que suspeita!

Queria ver qual o efeito que poderia lhe causar. Pode-se dizer que fui bem-sucedido.

Acho que ele ficou assustado.

Muito bem. Não pode nos prejudicar em nada. Se ele próprio não tem nenhuma suspeita, não lhe contei nada; se, como eu penso que seria bem possível, ele tem motivo para achar que Francis Cheviqt poderia estar tramando alguma intriga, espero que eu possa tê-lo incitado a tomar pro­vidências. Ficaria satisfeito de me ver livre dele.

Você acreditou na história que ele contou de ter sabido da morte de Eustace pelo criado?

Carlyon deu de ombros.

—      Pode ser. Não, acho que não acredito. John não parecia satisfeito.

Bem! E o que ele tinha para lhe dizer lá em cima? Você demorou muito para voltar!

Ele ficou me aborrecendo com lembranças do tio Lionel. Posso acrescentar que nenhuma delas condizia com as minhas, mas deixemos isso de lado. Ele ficaria contente de entrar na posse das cartas que escreveu para o tio. Mas como não achei nenhuma, não pude satisfazê-lo.

Ned, estaria ele tentando descobrir se você encontrou aquele mal­dito relatório entre os papéis de Eustace? — indagou John.

-— Meu caro John, Bedlington pode ser um velho tolo, mas não tem trabalhado num departamento do governo sem ter aprendido a não se com-premeter. Se resolvo dar rédeas às minhas suspeitas, posso dar às indaga­ções dele exatamente uma interpretação com esse objetivo; se, por outro lado, me mantenho imparcial, não devo ver nada nelas a não ser o desejo natural de um tio extremoso, informando-se quanto à natureza exata das extravagâncias e obrigações de seu sobrinho. Fui muito franco com ele.

Muito franco com ele? — exclamou John, um tanto desanimado.

Sim, dei-lhe a entender que pouco havia encontrado além de con­tas, notas promissórias e certa correspondência erótica que propus quei­mar — respondeu Carlyon tranqüilamente.

John desatou a rir.

Você é ótimo! Não lhe contou sobre a última aventura de Nicky?

Ao contrário, contei-lhe que a sra. Cheviot ficara lamentavelmente transtornada por causa de um ladrão que entrara na casa.

E o que ele disse?

Disse que esperava que nada de valor tivesse sido roubado.

Ora, ora, e depois?

Eu disse que, até onde pudemos averiguar, nada tinha sido rou­bado — replicou Carlyon.

Gostaria de saber o que ele fará a seguir! — disse John.

Ele me informou que deve regressar a Londres pela manhã, mas voltará a Sussex para assistir ao funeral. Ocasião em que — acrescentou Carlyon, cheirando uma pitada de rape — se hospedará em Highnoons para passar a noite.

Santo Deus, Ned, começo a acreditar que você tem estado certo.

Sim, posso ver que sim — replicou Carlyon. — Mas começo a pen­sar que talvez possa ter-me enganado!

 

Ao REAPARECER na hora do jantar, Lorde Bedlington parecia ter-se libe­rado de sua petulância. Deixava escapar suspiros profundos de vez em quando, e, por duas vezes, foi obrigado a enxugar os olhos, mas seus anfi­triões ficaram gratos ao observarem que sua consternação não lhe afetara o apetite. Comeu profusamente de cada prato, e ficou tão estimulado pela excelência das galinhas de Devenport, recheadas, escaldadas e cozidas na manteiga em fogo lento, que chegou a enviar um recado lisonjeiro à cozi­nheira, parabenizando Carlyon por ter adquirido tal tesouro. Quando já conseguira transpor com esforço a trajetória da sopa hessena e o guisado, que deu início à refeição, à carpa assada, preparada à moda portuguesa, alguns bifes com molho de ostras, galinhas, ovos nevados e torta de fru­tas, estava resignado com a morte do sobrinho, bem como apto a contar minuciosamente três das últimas boas histórias que circulavam pela cidade, e confiar a Carlyon, enquanto saboreava extasiadamente o buquê do porto, que de fato não podia concordar com seu velho amigo Brummell, que o considerava um vinho só adequado às camadas sociais mais inferiores. Não restam dúvidas de que bebeu muitos copos, todavia quaisquer esperanças que John pudesse ter acalentado de sua língua soltar-se logo desaparece­ram. Lorde Bedlington não andara em companhia do Regente durante anos sem adquirir e astúcia de uma raposa velha e a digestão de um avestruz. Tivesse ficado meio embriagado, histórias indiscretas sem dúvida teria con­tado, mas nem seu pior inimigo o teria acusado de estar bêbado.

Quando por fim ele conseguiu afastar-se das garrafas, Carlyon levou-o para a biblioteca, excluindo John com firmeza, dizendo que sabia que ele ti­nha cartas que desejava escrever. John fez uma careta, mas curvou-se diante da sentença e afastou-se para esperar, impaciente, em um dos salões.

Depois de comentar sobre o conforto de um fogo de lenha, o luxo da poltrona onde estava sentado e as qualidades superlativas do conhaque que fazia rolar no céu da boca, Lorde Bedlington parecia ocupar o pensamdlto no sobrinho de novo e lembrar as tristes circunstâncias que o trouxeram a Sussex. Admitiu muito generosamente que acreditava que Carlyon pro­cedera sempre com as melhores intenções, e confessou até que sua própria parcialidade para com o único filho do seu querido irmão talvez o tivesse tornado por demais indulgente com respeito às faltas de Eustace, que ele não deixava de notar com a mesma clareza que qualquer outra pessoa. Res­ponsabilizou a maioria dessas faltas às más companhias que Eustace man­tinha, e, abaixando o tom da voz à nota confidencial, perguntou a Carlyon

se ele tinha alguma razão para recear que Eustace tivesse se metido em al­guma enrascada ainda pior, de que nenhum deles pudesse suspeitar.

Muitas vezes perguntei a mim mesmo de onde ele obtinha os meios para viver tão dispendiosamente — respondeu Carlyon, no mesmo nível de voz.

Isso mesmo! — exclamou Bedlington, ansioso. — Isso mesmo, eu também tenho perguntado a mim mesmo! Realmente espero que não pos­samos encontrar nada de grave contra ele! Não posso vangloriar-me de que o pobre rapaz me tomasse para confidente tanto quanto eu teria desejado.

E certamente não o fez comigo também.

Não, ora! Eu não desejo estragar a harmonia desta noite, repro­vando-o, e, assim, não direi mais nada. Contudo, não posso deixar de sen­tir que se você o tivesse tratado com mais simpatia...

Meu caro senhor, estou convencido de que o tratou com um grau de simpatia realmente notável, mas isso não parece tê-lo feito merecer suaconfiança.

Certo. Isso é certíssimo! Muitas vezes perguntei a mim mesmo se o mimei demais, dando-lhe margem a um abuso de liberdade. Sabe de uma coisa, desde a morte do pai, ele sempre foi livre para considerar à minha casa como seu lar... isto é, desde que ele tinha idade para alegrar-se por ter uma casa na cidade, onde poderia estar certo de ser bem recebido. Na verdade, sempre o tratei como meu próprio filho, mas realmente não sei se ele correspondeu. Espero que eu não tenha sido o meio inocente de levá-lo à tentação!

Carlyon parecia levemente surpreso.

—      Como poderia, realmente?

—      Oh, quanto a isso...! Numa casa igual à minha, você compreende: minha posição como ajudante-de-ordens do Regente; não preciso dizer mais nada! Decididamente não conheço nem a metade das pessoas que vêm à minha casa, e como poderia eu dizer com quem o pobre Eustace ali estaria se encontrando? Nem sempre podemos confiar que os rapazes se mante­nham na linha, e, ai de mim, ele tinha uma fraqueza... devemos admitir!... que poderia tê-lo levado a deixar-se seduzir por más companhias.

Ele prosseguiu nesse modo de falar durante certo tempo, porém, como seu anfitrião permanecesse cortesmente impassível, acabou abandonando-o e reincidiu numa abstração melancólica. Despertou da apatia para inda­gar sobre os preparativos do funeral, desejando que Carlyon adiasse sua data, para permitir que ele assistisse à cerimônia, e, quase lacrimoso, suplicou-lhe que não negligenciasse o mínimo detalhe de pompa. Ao sa­ber que o cortège sairia da capela onde o corpo de Eustace jazia no mo­mento, e não de Highnoons, ele pareceu muito abalado, e não conseguiu achar isso certo. Desejou conhecer o tipo de convite que Carlyon sem dú­vida enviara, e o número de carruagens que encomendara, sem mencio­nar os acompanhantes pagos, e os penachos, e só foi silenciado por Carlyon dizendo que, visto ter Eustace, depois de fazer-se odioso pela vizinhança inteira, encontrado seu fim numa rixa de bêbados, o que devia diminuir seu crédito ainda mais junto aos seus conhecidos, quanto mais primitivn e sem ostentação fossem suas exéquias, melhor seria para todos os inte­ressados.

Assistirei ao funeral! — declarou Bedlington. — Pretendo passar uma noite com aquela pobre jovem em Highnoons. Ouso afirmar que ela gostará do conselho de um velho: certamente não sei o que vai ser dela, pois não se deve esperar que Eustace a tenha deixado na abundância. Aquela velha casa desconjuntada, bem próxima das ruínas, pelo que cheguei a ver! Custaria uma fortuna restaurá-la, e lá está ela, sobrecarregada com sua ma­nutenção, e ninguém para ampará-la ou orientá-la!

A sra. Cheviot não reside lá sozinha; tem uma dama de companhia com ela..

Sim, sim, uma pobre governantazinha! Não sei qual seria sua idéia, Carlyon, m as eu a aconselharia a vender a casa, se fosse possível encontrar-se alguém que comprasse algo tão desengonçado e antiquado.

Sem dúvida que ela venderá, porém, até termos aprovação, é cedo demais para se fazerem planos.

Sim, é claro; isso é compreensível! Mas ela não pode gostar de ter uma casa daquelas nas mãos e ser obrigada a fazer despesas com o pagamento de salário de uns quatro ou cinco criados. Sinto que devo fazer tudo que pu­der pela... pela noiva do pobre Eustace, você sabe, e sua situação econômica tão desagradável, pois não há como esconder o fato de que o pai morreu em dificuldades! Eu declaro, estou disposto a convidá-la a ir para Londres co­migo, e ficar em Brook Street até saber como andam as coisas! Então os cria­dos podem ser despedidos e a casa fechada. O que você diz?

—      Não posso defender a idéia de deixar a casa desocupada, senhor — foi a única resposta que pôde obter de Carlyon.

Logo depois, ele retirou-se para dormir, e Carlyon conseguiu junt#r-se a John , o qual encontrou bocejando diante de um fogo quase extinto.

Alô! — exclamou John. — Ele continua entediando você sem pa­rar? Você devia ter deixado que eu lhe fizesse companhia!

Não, você é severo demais com ele: Bedlington não fala à vontade diante da sua expressão carrancuda. Eu mesmo acho difícil.

Você! — exclamou John, desatando a rir. — Bem, ele tinha alguma coisa relevante a dizer?

 

Está muito apreensivo, imagino. Conversamos um pouco sobre o fato de ele ter deixado, inadvertidamente, Eustace sujeito às tentações, como se suspeitasse de algum dano pior do que ele sabe que poderia estar reservado.

Deixado Eustace sujeito às tentações! Diga-me, como?

Aparentemente, ele acha que sua casa está sempre cheia de más companhias. Diz que realmente não conhece nem a metade das pessoas que a freqüentam, e atribuiu isso ao fato de ele ser ajudante-de-ordens do Re­gente — informou Carlyon, apenas com o trejeito de um sorriso.

Um encantador raciocínio sobre Prinny! De uma honestidade reanimadora, juro!

—      Vou deitar-me — disse Carlyon. — Uma noite em companhia de Bedlington é a coisa mais fatigante que conheço. Tenho pena da sra. Che­viot! Ele é totalmente maçante.

Ele ainda mantém a ameaça de impor sua presença a ela, não é?

Ainda, e pretende convidá-la a voltar para Brook Street com ele, enquanto Highnoons é fechada e os criados despedidos.

Ha! Para que ele possa dar busca na casa a seu bel-prazer! — disse John, esboçando um largo sorriso. — Ele é muito condescendente! — Saiu em companhia do irmão para o corredor e apanhou o candelabro do seu quarto. — Para quando providenciou o funeral? Devo assistir?

Como quiser. Eu sou obrigado, de qualquer maneira. Está adiado para daqui a dois dias, pois Bedlington tem assuntos que devem prendê-lo na cidade.

Que o diabo carregue o velho nervoso! — resmungou John. — Você ficará satisfeito por ter terminado com isso, Ned, e saber que Eustace está seguro debaixo da terra!

Sem dúvida que ficarei satisfeito por ter terminado com isso, e to­mara visse minha missão terminada também.

John agarrou-o pelo cotovelo, apertando-o rudemente.

Sim, tem sido uma tarefa dos infernos. Quanto a você ver sua mis­são terminada, eu realmente não vou me admirar se não conseguir! Aí está essa viúva deixada em suas mãos, como já lhe disse antes! Bem, isso é bem feito para você, meu velho!

Tolice! — exclamou Carlyon.

Pela manhã, Lorde Bedlington apareceu já vestido para a viagem. A uma sugestão um tanto maliciosa apresentada por John, de que ele devia certamente desejar assistir ao inquérito, o qual seria efetuado no salão da estalagem de Wisborough Green, ele reagiu com um forte estremecimento, Sua mente parecia dividida entre o horror diante do processo de um inqué­rito a ser realizado envolvendo um membro de sua família, e a constata­ção chocante de que viera para Sussex muito impropriamente vestido. Sua ansiedade de logo vestir-se de luto, unida ao medo de que Schultz, seu al­faiate, não pudesse remediar suas necessidades no devido tempo, fornece­ram os assuntos de sua conversa à mesa do café, e, sem dúvida, apressaram sua partida. Por volta das dez horas, seu coche afastava-se, deslizando pela avenida, e Carlyon dava ordens para que sua própria carruagem fosse tra­zida até a casa.

Ele e John dirigiram-se a Highnoons para apanharem Nicky, e encon­traram este jovern cavalheiro com a saúde quase completamente recupe­rada, seu estado de espírito só desalentado com a idéia do que se apresentava diante dele. Grato, sorriu para John e disse que era muito bom ele ter vindo de Londres.

Ora, é claro que eu viria! — replicou John, com severidade. — Se isso que está pendurado em seu pescoço for uma tipóia, ponha o braço nela e cuide para que aí permaneça!

Ora, o ferimento praticamente já não me incomoda de modo algum! Não preciso da tipóia, e só a uso para contentar Becky! — respondeu Nicky, que não perdera tempo em fazer camaradagem com a srta. Beccles.

E muito provável, mas dará melhor aparência. Conheço essas péssoas do júri de Sussex.

Certo, mas não me feri na luta com Eustace! — objetou Nicky.

Não há necessidade de dizer isso, a menos que seja questionado, quando então dirá que saiu ferido ao enfrentar assaltantes — disse o cínico irmão.

Virou-se para apertar calorosamente a mão de Elinor e fazer um cum­primento com a cabeça para a srta. Beccles. Dirigiu algumas observações a Elinor; ela as respondeu; então, aguardando em vão algum comentário so­bre seu vestido cinza, com fitas e rendas pretas, zombou dele, dizendo:

—      Bem, deve ter notado, espero, que acabei colocando meio-luto final­mente! Contava ser elogiada com entusiasmo!

—      Está encantadora, senhora — replicou ele. Ela ficou desconcertada.

—      Oh, não, não, não! Não estava pedindo para ser cumprimentada quanto à minha aparência, mas quanto à minha docilidade.

Surgiu uma expressão divertida nos olhos dele; no entanto, Carlyon res­pondeu com perfeita seriedade.

—      Esquece que tenho três irmãs? Espero ter aprendido com elas evitar fazer essas observações, uma vez que devo ser considerado sem diplomacia ao extremo.

Ela riu com a resposta dele.

Ora, é muita injustiça se não devo ser elogiada por mostrar-me tão dócil! Ontem recebi Lorde Bedlington, usando o vestido mais negro possí­vel. Ele esteve com o senhor, imagino; ele lhe disse de suas intenções de ficar em Highnoons para o funeral?

Disse, e estou ciente de que você tem razões de queixa. Acredite-me, eu de fato não pretendia que sofresse tal contratempo quando lhe pedi que fixasse sua residência aqui.

—      Não! Isso estraga inteiramente a tranqüilidade da minha estada aqui! — opôs-se ela. — Quando tudo tem sido tão agradável até agora!

Ele sorriu, mas disse apenas:

Espero que seu descanso não tenha sido perturbado a noite passada.

Nem faz idéia! O odioso cão do seu irmão arranhou com tanto vi­gor a porta do meu quarto, que fui obrigada a levantar-me para deixá-lo entrar!

—      Ele deve ter-se agradado incrivelmente da senhora — respondeu Carlyon educadamente.

—      Ele agradou-se incrivelmente do osso de pernil que guardou debaixo de minha cama! — retorquiu ela. Carlyon riu.

—      Ora, isso é bastante lamentável, sem dúvida, mas esqueça! Estou livrando-a de ambos: dele o do meu desajeitado irmão.

Oh, não! — exclamou ela rapidamente. — Não, por favor, não faça isso, senhor! Bouncer é um excelente cão de guarda e me dá a maior sensa­ção de segurança! Imagine só! ele não permitiu que o padeiro se aproxi­masse a menos de cinqüenta metros da casa!

     - Que negócio é esse? — indagou Nicky. — Você não me fará voltar para a mansão ainda, Ned! Continuo empenhado em encontrar aquele precioso documento, seja ele qual for. Além disso, a prima Elinor não gostará de ficar sem o Bouncer, e você sabe que ele jamais ficará se eu for embora. Tanto Elinor quanto a srta. Beccles associaram suas súplicas sinceras às dele, e finalmente ficou acertado que Nicky voltaria para Highnoons de­pois do inquérito. Com ingenuidade, ele informou o irmão de que desco­brira um sótão atulhado de trastes velhos e pretendia passar umas horas extraordinárias fuçando em meio às relíquias fascinantes que encontrara ali.

Você não faz idéia, Ned! Há uma velha pistola, provavelmente tão velha quanto a rainha Anne, e alguns pares de floretes completamente en­ferrujados, e não sei o que mais!

Esplêndido! — exclamou John, irônico. — O lugar ideal onde você esperaria encontrar um documento do governo!

Ora, quanto a isso, não há nenhuma indicação onde poderia es­tar, afinal — argumentou Nicky. — Mas pense só, John ! Você se lembra daquela pipa fabulosa que Eustace tinha e nunca deixou Harry soltar? Eu a encontrei ali, debaixo de um monte de coisas sem valor, e a reconheci na mesma hora!

Não! — exclamou John, muito impressionado. — Ora, faz tantos anos! Admiro-me que se lembrasse dela!

Oh, eu lembro sim! Tinha listras vermelhas! Eu não poderia esque­cer!

Sim, tinha mesmo. E um rabo comprido, que Harry arrancava fora quando Eustace mostrava-se tão mesquinho a ponto de não deixá-lo sol­tar a pipa! Ora, palavra de honra!

Começava a dar a impressão de que revolver brinquedos meio esque­cidos, em vez de comparecer a um inquérito, fosse a ordem do dia, mas Carl-yon fez os dois irmãos recobrarem a consciência do momento; um tanto pesarosos, eles o seguiram até a carruagem. A srta. Beccles suavizou a ré primenda, sugerindo que soltassem a pipa mais tarde.

Por Deus, isso mesmo! Vamos, John? — exclamou Nicky.

Tolice! — replicou John. — Pipas, com efeito! Gostaria de saber se é tão fascinante como antes!

Levando-os, a carruagem afastou-se, e as duas mulheres voltaram à tarefa interrompida de retirar todos os livros das prateleiras da biblioteca, batendo uns contra os outros, espanando as capas e recolocando-os em sem lugares. Era um trabalho exaustivo, e as camadas de poeira tornavam o ar carregado, fazendo as senhoras espirrarem, o que parecia indicar que Eustace Cheviot não tivera a mentalidade de quem é dado a leitura. Objetos estranhíssimos, quando flutuavam para o chão no momento em que os livros eram batidos, evidentemente tinham sido colocados entre as paginai por mãos femininas. Foram encontradas várias flores secas, um velho rol de roupa para lavar e uma receita para fazer caldo de enguia, que a srta, Beccles julgou que seria um alimento substancioso para um doente. De de segredos de Estado, porém, não havia nenhum vestígio, e embora a srta. Beccles tivesse grande satisfação ao saber que nenhuma poeira, teias de aranha ou as próprias aranhas se ocultavam mais nas prateleiras, Elinor só pôde achar que haviam perdido seu tempo.

Acabavam de sentar-se para o almoço, que consistia em carne fria, fru­tas e chá, quando a carruagem de Carlyon mais uma vez parou na porta da frente e os três irmãos apearam. Elinor correu imediatamente para indagar se tudo correra bem, e encontrou-se com Nicky, que exclamou alegremente:

Não me puseram a ferros, prima Elinor! O magistrado foi notável. Eu não tinha imaginado que seria tão simples! Para lhe dizer a verdade, não estava gostando nem um pouco da idéia de ter de prestar meu testemunho, mas ninguém teria sido mais educado! Logo estava me sentindo à vontade. E Hitchin falou com grande classe! O veredicto foi "morte acidental", e ima­gine só: metade das pessoas que lotavam o recinto para ouvir o processo sol­tou um viva! Garanto-lhe uma coisa, fiquei satisfeito de poder entrar correndo na carruagem e fugir dali!

Oh, com sinceridade, fico satisfeita! — exclamou Elinor. — É claro que o resultado devia ter sido esse, mas não se pode evitar a ansiedade.

Impulsiva, estendeu a mão para Carlyon, enquanto falava, e ele apertou-a, dizendo:

Obrigado. Felizmente está acabado, e, na verdade, tudo se passou sem o mínimo agravo. — Ele acrescentou, com um sorriso nos olhos: — A julgar pela conduta da audiência, teria custado caro ao júri se tivessem apresentado outro veredicto! Fui obrigado a abrir caminho aos empurrões para tirar Nicky, pois só o que as pessoas do povoado queriam fazer era tentar apertar-lhe a mão, como se tivesse sido um benfeitor público!

Ora, não seria adequado, mas não se pode deixar de admirar tam­bém — disse John. — Cheviot não deixou pedra por mover para fazer-se odioso na região.

Ela os conduziu à sala de jantar e insistiu para que comessem um pouco de carne fria. Nicky exclamou:

—      O quê, lavando as entranhas com chá novamente! Não, obrigado!

—      Isso mesmo, na verdade é errado estar bebendo chá numa hora des­sas — admitiu a srta. Beccles. — Mas é luxo bastante agradável!

Felizmente para Nicky, Barrow vira a carruagem parar na frente da casa, e agora trazia para a sala uma grande jarra de cerveja e três canecas de estanho. Assim, os cavalheiros puderam usufruir de um almoço aceitá­vel, e, durante esse tempo, comentaram o inquérito com as senhoras, informaram-nas sobre os preparativos que tinham sido feitos para o fune­ral e anunciaram a intenção de passar a tarde em Highnoons, para procu­rar qualquer documento secreto que pudesse haver ali.

A parte de Carlyon na busca foi metódica e sem pressa. Durante algum tempo, foi auxiliado totalmente por John; os dois irmãos achavam-se na bi­blioteca: Carlyon, diante de uma cômoda antiga, cujas gavetas e prateleiras estavam atulhadas com o acúmulo de anos; John, no sofá, com uma caixa de madeira danificada a seus pés, aberta com uma das chaves de Eustace, que se constatou encaixava-se perfeitamente. A caixa estava repleta de papéis, ve­lhos livros de contabilidade, livros razão e maços de cartas, e tudo isso em tal confusão que ele ficou muito satisfeito ao aceitar a oferta de Elinor para colocá-los em ordem. Mas, depois de meia hora de trabalho disciplinado, ocorreu uma interrupção. Nicky apareceu na sala, dizendo:

Veja, John, não é a própria?

Sim, é ela mesma — respondeu John, erguendo os olhos para a vis­tosa pipa, se bem que um tanto desbotada, que lhe estava sendo exibida.

Bem, pretende vir comigo e tentar ver se ela pode voar?

Soltar pipas na minha idade! Penso que não irei, é claro! Não vê que estou ocupado?

Oh, com um trabalho maçante desses! — disse Nicky, tornando a desaparecer.

John voltou ao trabalho, porém, minutos depois, levantando a cabeça por acaso, avistou Nicky no jardim. Sua atenção continuou concentrada e, pouco depois, ele exclamou:

—      Alguém o imaginaria um colegial! Insensato incorrigível! Nem Carlyon nem Elinor deram resposta, e, depois de uma ligeira pausa, durante a qual continuou olhando pela janela, John disse, irritado:

Não é dessa maneira que se solta uma pipa! Por que ele não a leva para a campina? Neste vale não pode haver vento suficiente!

Eis um livro de contabilidade doméstica de vinte anos atrás — disse Elinor. — Deixo-o de lado para ser queimado?

Pode deixar, sim — respondeu ele, distraído. — Pronto! A pipa ficou presa na cerca! Ned, aquele garoto vai ferir o ombro se insistir! Vou ajudá-lo!

Deixou a sala abruptamente enquanto falava, e, cinco minutos depois, Elinor tinha uma excelente visão dele no gramado, discutindo com Nicky, Os dois irmãos então partiram na direção da campina, com Bouncer atrás deles, e não foram mais vistos até que a claridade começou a ficar insufi­ciente, e Carlyon mandou que trouxessem sua carruagem. Eles então vol­taram, corados e desalinhados, mas cheios de satisfação por terem descoberto que a pipa estava em grande forma, e muito irados contra o fi­nado primo pelo egoísmo que o fizera negar-se a deixá-los que a soltassem anos atrás, quando, como John disse um tanto inconvenientemente, eles poderiam ter realmente usufruído de tal folguedo infantil. Pareceu um pouco embaraçado quando percebeu o quanto era tarde e disse que pediu desculpas por ter abandonado o trabalho.

Mas achei que seria melhor eu me certificar de que Nicky não se machucaria — explicou ele. — Além disso, não acredito que haja alguma coisa de valor nesse monte de velharias dessa casa; teria sido mais aconseIhável tê-las queimado vinte anos atrás!

Começo a concordar com você — disse Carlyon, olhando pesaroso para a colossal pilha de papéis inúteis no chão. — Contudo, o trabalho ti­nha de ser feito, e quer eu ache algo de valor ou não, devo continuar alô o fim. Sra. Cheviot, peço-lhe que não vá esgotar-se nessa busca! Voltarei amanhã, e não há a mínima necessidade de você ficar examinando mais ga­vetas ou armários por hoje.

         Ele e John despediram-se dela, John dizendo que, embora devesse lê tornar a Londres pela manhã, tentaria estar em Sussex para assistir ao funeral. Quando eles deixaram a casa, Bouncer entrou, muitíssimo ofegante e fartamente coberto de lama. A srta. Beccles deixou escapar um grito estridente de desânimo e correu imediatamente em busca de um pano para secar as pernas e patas do animal, ralhando gentilmente enquanto traba­lhava. No mesmo instante, Bouncer assumiu o semblante intimidado de um cão sofrendo sob tortura, mas, ao ser solto, moveu-se impetuosamente ao redor da sala três vezes, a toda velocidade, mandando todos os tapetes para o ar e terminando com um pulo no sofá, onde se sentou, arreganhando os dentes e arquejando até ser mandado embora dali pelo seu dono.

A noite transcorreu tranqüila. Na manhã seguinte, Carlyon chegou a Highnoons bem cedo e permitiu ser levado até o sótão por Nicky, onde es­vaziou um grande espaço, removendo objetos; esse trabalho teria sido mais drástico se a srta. Beccles não tivesse subido a passo rápido, com um prato cheio de sonhos fritos (pois ela acreditava que os cavalheiros estavam em constante necessidade de alimentação), e resgatado da pilha no chão vá­rios vestidos antigos, cujo brocado grosso, ela garantiu a Carlyon em en­tonações escandalizadas, cortaria para produzir maravilhas; uma grande alfineteira; um alguidar de cerâmica exatamente do tipo que a sra. Barrow clamava estar precisando; um cartão cheio de alfinetes, um pouco enfer­rujados, sem dúvida, mas de modo algum inúteis; e um livro de Referên­cias Domésticas, contendo informações valiosas, tais como o modo de tirar manchas de roupa branca, aplicando sal de absinto, e a infalibilidade do rape escocês como um meio de acabar com os grilos.

Enquanto ela estava lá em cima, Elinor foi para o jardim, acompa­nhada de Bouncer, para dar algumas instruções ao jardineiro, e estava ten­tando convencê-lo da conveniência de ele devotar seu tempo para limpar as ervas daninhas demasiado crescidas da entrada para carruagens, quando um coche alugado entrou pelo portão. Quando o veículo parou diante da casa, um indivíduo corpulento desceu, com toda a aparência de um nego­ciante. Elinor deu um passo à frente para indagar do seu objetivo exata­mente a tempo de evitar que Bouncer o agarrasse pela barriga da perna. Perturbado por esta recepção, o visitante abandonou qualquer tentativa de civilidade e estendeu-lhe uma conta enorme e detalhada, a qual, asse­gurou-lhe em voz alta, ele a queria paga imediatamente ou então a protes­taria com a respectiva penhora. Ao saber que seu cliente infrator estava morto, ele pareceu ficar extremamente confuso, mas, depois de alguns se­gundos de aturdimento, disse que não estava surpreso de saber disso e que seria pago de qualquer maneira. A viúva ofendida recomendou-lhe que apresentasse sua exigência aos testamenteiros do sr. Cheviot, e quando o homem parecia inclinado a pensar que ela bem poderia pagar-lhe alguma coisa por conta, visto ser ele um homem pobre e, lamentavelmente, às portas da falência, ela anunciou-lhe sua incapacidade de continuar controlando o cachorro por mais tempo. O visitante subiu no coche outra vez com mais rapidez do que dignidade, e a sra. Cheviot dirigiu-se ao sótão para infor­mar Carlyon, com muita satisfação, de que, exatamente como esperara, agora estava sendo importunada por credores à porta.

— Sim, não nego que esta foi apenas a primeira de muitas confron­tações hostis — respondeu Carlyon. — Será publicado um aviso nos jor­nais, mas, certamente, muitos não o lerão.

Encantador! Então devo acostumar-me com o fato de ser ofendida na minha própria porta!

Não consigo entender por que você deveria estar atendendo a porta da frente — disse Carlyon. — Barrow é muito hábil para lidar com esse tipo de gente.

Mas eu estava no jardim e naturalmente aproximei-me do homem para saber o que ele queria! — replicou Elinor, indignada.

Imprudente. Da próxima vez não cairá nessa — foi a única satis­fação que ele lhe deu.

Felizmente, a atenção dela foi desviada pela srta. Beccles, que lhe mos­trava o esplendor dos vestidos de brocado que resgatara.

Oh, bem posso me lembrar de mamãe usando um vestido desses! — exclamou ela. — Devia ter uma armação para a saia, não devia, Becky? E o cabelo puxado para cima, pulverizado com algo brilhante e rematado por uma tiara ou plumas ou algo semelhante! Imagino como se sofria para usar um traje desses! Sinta só o peso dele! Mas o brocado é aquele mesmo de que precisamos para as almofadas da sala. — Ela olhou para todos os cantos do sótão, maravilhando-se com a coleção de ornamentos, mobília e trastes an­tigos. — Santo Deus, será que tudo que precisava apenas de um ponto ou de um prego teria sido jogado nesta mansarda?

Sim, acho que sim — concordou a srta. Beccles, sacudindo a cabeça tristemente. — Receio que tenha havido uma lamentável falta de administração e economia. E aqui está Lorde Carlyon negando-se a me deixar salvar esta cadeira da fogueira, e só o que ela precisa é do assento empalhado de novo! E olhe só para este espeto de churrasco também! Estou certa de que poderia ser consertado se ele ao menos me deixasse levá-lo para a cozinha

 

Pode levá-lo, querida Becky — disse Elinor pretensiosamente. — Você pode poupar da fogueira tudo que quiser!

Oh, não, meu bem! Se Lorde Carlyon acha melhor jogar as coisas fora, eu não pensaria...

Esta é minha casa — disse Elinor em um tom muito arrogante —, e diga a Lorde Carlyon que ele não tem nada a dizer a respeito!

Elinor, meu bem! Na verdade, você deixa a vivacidade de sua mente traí-la dizendo coisas que de modo algum ficam bem!

"E diga a Lorde Carlyon, com meus cumprimentos" — corrigiu Carl­yon. — Você deve sempre acrescentar "meus cumprimentos" a qualquer men­sagem que deseje converter em excessiva desconsideração.

Ela lançou-lhe um olhar fulminante e preparou-se para retirar-se sem demora. Para sua surpresa, ele a seguiu na saída do sótão, descendo as escu­das e dizendo:

Seu visitante indesejável lembrou-me de uma coisa que eu devia ler falado antes, sra. Cheviot. Vamos para a sala de estar?

Bem, que surpresa horrível pretende fazer-me agora? — perguntou ela, desconfiada.

Palavra de honra, nenhuma em absoluto! Mas ocorreu-me que seria adequado de minha parte, como testamenteiro do meu primo, adiantar-lhe dinheiro suficiente para pagar todas essas pequenas coisas, uma tal quantidade, ouso afirmar, que nem seria conveniente declarar.

Não, por favor, não faça isso! Não há a menor necessidade!

Ao contrário, você não deve ficar gastando do próprio dinheiro.

Não gastarei. Ora, em que deveria gastá-lo?

Pode estar certa, haverá dezenas de coisas. — Ele acrescentou comum ligeiro sorriso: — A qualquer momento, um mascate pode bater à sua porta, e você poderá comprar uma vassoura ou retalho de chintz ou qual­quer coisa assim!

Bem, se eu fizer isso, é inteiramente da minha conta. Eu preferiria que o senhor não me desse nenhum dinheiro.

É escrupulosa demais, senhora, mas desde que possui uma sensibi­lidade tão aguçada, colocarei uma importância aos cuidados da srta. Beccles.

Recalcitrante, ela quase bateu o pé.

       — Desejo que não me trate como uma colegial, meu senhor! — disse ela. Elinor viu a resposta nos olhos dele e acrescentou mais do que depressa: — E não me diga que me comporto como tal, porque não é verdade!

—      Certamente que não! Sei que é uma mulher sensata, um pouco acos­tumada demais a impor sua vontade.

Positivamente Elinor ficou boquiaberta.

Tal censura vindo do senhor, Lorde Carlyon!

Exatamente. Concordamos, que meu temperamento é autoritário, não foi? Mas você deve admitir que a minha vontade, de um modo geral, é mais razoável do que a sua.

Não admito, enquanto estiver de posse de minhas faculdades men­tais! — declarou ela. — Na verdade, não sei mesmo como ousa fazer tal reivindicação! Tira-me completamente a respiração! Quando penso na si­tuação em que me colocou, e depois ser obrigada a ouvi-lo falar como se não tivesse feito nada de extraordinário, mas, ao contrário, como se tivesse procedido da melhor maneira possível...

—      Ora, sabe bem, senhora, que, dada uma situação extremamente em­ baraçosa, acho que procedi — respondeu ele.

A sra. Cheviot deixou-se cair numa poltrona e cobriu os olhos com a mão.

Carlyon a olhava com certo divertimento.

Ainda lamentando a sra. Macclesfield, senhora?

Oh, não! Como eu poderia, senhor? — retorquiu ela. — Como eu ficaria aborrecida naquela casa! Provavelmente ela nunca teve um agente francês perambulando por lá, quanto mais a ameaça de ver sua mobília penhorada!

Estou certo de que a casa dela é a mais respeitável. Eu ficaria sur­preso se o marido algum dia já tivesse feito algo um tanto reprovável como procurar um barrilete de conhaque em sua porta dos fundos. — Interrompeu-se. — Sim, isso me faz lembrar de outra coisa — disse ele. — É a época em que podemos contar com a possibilidade de achar alguns desses barriletes. Estou certo de que Eustace obtinha seu conhaque de contrabandistas. Se der com algum barrilete em algum lugar inesperado, como a privada lá de fora, por exemplo, basta avisar-me, senhora! Não levante um protesto!

Era só o que faltava! — exclamou Elinor. — Agora tenho que co­meçar a lidar com um bando de contrabandistas! Afinal, talvez fosse acon­selhável o senhor deixar mesmo algum dinheiro, pois acho que vão desejar ser pagos pelo trabalho! E embora a vida em Highnoons tenha sido um pouco monótona nestes dois últimos dias, sem dúvida não devo fazer caso de ficar em desavença com um bando de pessoas insensatas que, acho pro­vável, não teriam escrúpulos, nem por um instante, em matar!

Ora, não acredito de modo algum que a matariam! — respondeu ele. — Contudo, mandarei um aviso aos lugares certos de que qualquer en­trega de encomenda feita por meu primo seja feita na Mansão.

E não tenho a menor dúvida — declarou a sra. Cheviot — de que o senhor é o juiz de paz!

Por certo.

Admiro-me que não fique envergonhado de admiti-lo! — disse ela, com muita retidão.

Minha cara senhora, não há nada desairoso em ser juiz de paz! — replicou ele, em seu tom de voz mais delicado.

A sra. Cheviot procurou em vão por palavras adequadas à ocasião, e só pôde olhá-lo com mudo ressentimento.

 

O DIA SEGUINTE, véspera do funeral, passou-se quase do mesmo modo atarefado, mas tranqüilo. As pilhas de trastes inúteis continuavam a crescer; a srta. Beccles alegrou-se por ser autorizada a fazer da destilaria e dos ar­mários de roupa branca seus interesses particulares; Elinor começava a pen­sar que, no devido tempo, a casa poderia se tornar muito agradável; e Nicky passava as horas da manhã levando Bouncer até uma fazenda vizinha e empenhando-se na caça aos ratos, que poderia ter sido mais vitoriosa se Bouncer não tivesse tirado conclusões precipitadas e impulsivas de que seu primeiro dever seria livrar o mundo do terrier infestado de pulgas que o teria ajudado em sua obra de eliminar todos os ratos do grande celeiro. No meio da tarde, ao voltar da sua diversão cotidiana, Nicky dirigia-se para casa despreocupadamente pelo atalho que levava através do bos­que cincunjacente a tempo de ver uma elegante carruagem de viagem, pu­xada por quatro cavalos, parar diante da porta da frente. Ao deter-se, to­mado pela surpresa, viu um criado pular do veículo com uma nécessaire na mão, que ele depositou cuidadosamente na varanda antes de voltar para ajudar o amo a apear.

Uma figura esguia e refinada desceu languidamente ao chão e ficou parada com a máxima paciência enquanto o criado endireitava as várias pelerines do seu manto pesado e passava rapidamente um lenço na super­fície brilhante das botas alemãs bem-feitas. Um chapéu cinza de feltro de copa alta e de aba ondulada estava posto em ângulo levemente inclinado sobre a cabeça de cachos castanho-acetinados do cavalheiro. Ele usava uma luva cinza e trazia a outra na mesma mão, juntamente com uma bengala de ébano. Sob a aba do chapéu, um par de olhos azuis entediados contem­plava com intolerável aborrecimento nada em particular. A expressão de cinismo mundano os faziam ajustar-se estranhamente a um rosto decidi­damente redondo, com um nariz arrebitado, e uma boca e queixo delica­dos, quase femininos.

— Diabos o levem! — exclamou Nicky, num sussurro, reconhecendo o visitante.

Bouncer, que ficara parado com o rabo empinado e as orelhas levan­tadas, não precisou de mais encorajamento do que o murmúrio dessas pa­lavras para fazê-lo avançar como um raio, para executar seu nítido dever. Latindo como um demônio, ele arremessou-se em direção ao intruso.

O refinado cavalheiro girou sobre si mesmo ao primeiro latido, e en­quanto Bouncer vinha a toda velocidade pelo gramado malconservado, sua mão direita sem luva agarrou o topo da bengala, torceu-o destramente c sacou da bengala de ébano que formava sua bainha uma lâmina fina, cruel, que chegou a sibilar.

—      Fuja, Bouncer! — berrou Nicky, o receio pela vida do animal de estimação emprestando tal ferocidade à sua voz que Bouncer conteve-se no meio da corrida, abaixando o rabo e as orelhas, e agachou-se na terra, assustado e consternado.

Nicky aproximou-se, andando com passadas largas, os olhos cintilantes de cólera, o semblante corado, repreendendo severamente Bouncer.

O visitante mantinha a bengala-espada imóvel, mas levantou os olhos, escancarando-os de repente, ao fitar o rosto de Nicky. Ele respirava um pouco rápido, mas os lábios sorriam, e ele disse calmamente:

Eu realmente não gosto de cães!

Por Deus, Cheviot, se chegasse a tocar no meu cão com essa es­pada, eu a enterraria na sua goela! — ameaçou Nicky, lançando-lhe um olhar penetrante.

O sorriso aumentou, as sobrancelhas arqueadas elevaram-se; Francis Cheviot fez a espada voltar para a sua bainha.

—      O que é isso, Nicholas? Determinado a expurgar os Cheviots do mundo?

O rubor de Nicky acentuou-se e seus punhos se apertaram involuntariamente. Francis Cheviot riu de mansinho e deu uma palmadinha em seu ombro com mão alvíssima.

Pronto, pronto! — disse, tranqüilizador. — Estava apenas brin­cando, meu caro rapaz! Estou certo de que você realmente não enterraria minha espada em minha garganta.

Se machucasse meu cão, você não estaria tão certo disso — respon­deu Nicky agressivamente!

Oh, mas estou, Nicholas! Não posso deixar de estar certo — repli­cou Francis, com entonações melodiosas. — Mas diga-me, querido rapaz, é realmente... é realmente de bom-tom você ficar aqui? Nas circunstâncias — e, por favor, não imagine que o culpo por elas, pois nada poderia estar tão longe da minha cabeça! —, nas atuais circunstâncias, você não acha.,, Não, vejo que não acha, e, na verdade, quem sou eu para ter a pretensão de eleger-me árbitro? A situação está completamente fora da minha especialidade.

Estou hospedado aqui — disse Nicky, lacônico.

Ah, está mesmo? Que picante, sem dúvida! Crawley, espero realmente que tenha tocado aquela campainha, pois se eu ficar parado aqui neste vento desagradável, você sabe que ficarei resfriado, e os meus resfriados sempre me atacam o peito. Que falta de idéia a sua me ter feito descer do coche antes de a porta ter sido aberta. Ah, esses criados de confiança deploráveis! Sim, Barrow, sou eu mesmo. Tome meu chapéu... não, seria conveniente Crawley tirar o meu chapéu talvez. Mas se ele se ocupar com isso, quem me ajudará a tirar o manto? Como todos esses arranjos são difíceis! Ah, feliz idéia que você teve de colocar meu chapéu sobre a mesa, Crawley! Realmente eu não sei onde estaria sem você. Agora o meu manto, e, por favor, tome cuidado! Onde tem um espelho? Crawley, você não pode ter sido tão tolo a ponto de ter guardado todos os meus espelhos de mão! Não, acho que não: levante mais um pouco, peço-lhe, e me dê meu pente! Sim, assim está bom. Barrow, agora você pode anunciar-me à sua patroa!

Sim, não propriamente, mas posso! — respondeu o mordomo, de cenho cerrado. — Deixa-me intrigado o que o traz aqui, senhor, mas vou dizer, para sua informação, que não é desejado!

Ah, e agora que já me disse, anuncie-me, Barrow! — respondeu Francis afavelmente. — E, por favor, não traga aquele cachorro, querido Nicholas! Tenho o maior pavor de cães, e sei que não gostaria de trans­tornar-me. Realmente é uma antipatia, sabe? Não é estranho? Dizem que gostar de cães é uma característica dos ingleses, e estou certo de que sou inglês mesmo. Mas os gatos! Há algo admirável em um gato, não concorda? Não, é claro que não concorda! Barrow, devo ficar aguardando aqui pa­rado neste vestíbulo cheio de correntes de ar durante muito tempo ainda? Porque, se assim for, preciso vestir meu manto outra vez.

Bufando, Barrow deu vazão aos seus sentimentos, porém dirigiu-se à sala de estar e escancarou a porta, dizendo com ríspida cerimônia:

—      O honrado Francis Cheviot, senhora!

Elinor, sentada à secretária ao lado da janela, virou o rosto alarmado e levantou-se rapidamente.

O...?

Sim, é Francis Cheviot — disse Nicky, amuado. — Mas o que ele quer aqui, não sei!

Com elegância, Francis caminhou até o outro lado do aposento, em direção à sua anfitriã, a mão estendida e um rosto emoldurado em sorrisos.

—      Minha cara sra. Cheviot, como está? Ah, que pergunta tola! Como pode estar nesta triste hora? Permita oferecer-lhe minhas mais sinceras con­dolências por esse infausto acontecimento.

Um tanto confusa, ela estendeu-lhe a mão, fazendo uma ligeira reve­rência. Ele inclinou-se sobre a mão dela com meticulosa graça. Ela disse, um pouco balbuciante:

Como está? Queira perdoar-me... eu não o estava esperando...

Não me estava esperando? — indagou ele, com voz abalada. — Mi­nha cara sra. Cheviot... ou posso chamá-la prima? ... minha querida prima, quem lhe tem dado tal imagem falsa e maldosa de mim? Estou certo de que não foi Nicholas! Essa pequena rusticidade de maneiras, que estou conven­cido tornar-se-á polida com o devido tempo, oculta um coração de ouro, você deve saber! Não, não devo julgar o querido rapaz isento de culpa! Mas meu pobre primo Eustace... você não poderia ter imaginado que eu me au­sentaria de suas exéquias! Jamais negligenciei esses gestos que me custam tão pouco afinal! Mas estou realmente desconcertado por encontrar Nicho­las aqui! Não que eu não esteja encantado por encontrá-lo, na verdade es­tou entusiasmado; mas não sei mesmo como devo exatamente conduzir-me com respeito a ele. Veja bem, sou uma pessoa enlutada, e ele... meu Deus, que terreno delicado pareço estar pisando!

Gostaria que deixasse de mistificação de uma vez! — falou Nicky bruscamente. — Você não se importava a mínima com Eustace!

Ora, isso não é justo, Nicholas! Nem parece você falando! Pobre­zinho do Eustace! Um caráter tão deplorável! O pior que existe em oposi­ção ao bom-tom! Sempre uma fonte de dor para mim, mas não falemos mal dos mortos! A morte torna respeitável o pior dos homens no mesmo instante, como sabe. Ah, cara sra. Cheviot, deveria ter explicado que es­tou aqui representando dois papéis! É isso mesmo, o de primo e de tio ao mesmo tempo. Como parece estranho! Eu realmente espero que possa en­frentar a situação com graça.

Lorde Bedlington não vem para o funeral? — balbuciou Elinor, bastante aturdida com toda sua galante eloqüência.

Coitado! Seus generosos cumprimentos, querida prima, seu mais profundo pesar. Sou o portador das suas mais sinceras desculpas! Prostrado!

—      Como? — exclamou Nicky, com voz sufocada. Francis suspirou.

Deixei-o acamado, na maior angústia. Sua velha inimiga, você sabe: a gota, querido rapaz! A agitação que tem sofrido — ou talvez tenha sido aquela viagem terrivelmente fria, quem sabe? — resultou em um dos seus ataques mais graves. Impossível para ele arriscar-se a sair de casa! Assim, aqui estou eu em um duplo papel. Realmente espero... não sou bem-vindo?

Oh, não é isso! — disse Elinor rapidamente. — Como pôde pen­sar... Por favor, não gostaria de se sentar? Vai hospedar-se... isto é, es­pero que se hospede em Highnoons.

Você é a própria gentileza, prima! Na verdade, meu pai encorajou-me a confiar que eu encontraria boa acolhida em Highnoons. Mas, por fa­vor, não se preocupe, peço-lhe! Ouso afirmar que ficarei muito confortá­vel em qualquer quarto que resolver conceder-me, contanto que a lareira não faça fumaça — sim, ainda guardo a mais odiosa lembrança da minha última visita a esta casa — e que a vista não seja para o norte. Meus médi­cos me advertem particularmente contra quartos frios, você compreende, pois minha constituição não é de modo algum forte.

Ela não sabia o que dizer, porque os ditames da educação proibiam-na de proferir a única resposta que lhe surgiu à mente. Nicky, cujas noções não eram tão sutis, disse rudemente:

—      É provável que não queira ficar aqui, Cheviot! A estalagem de Wisborough Green tem vários quartos decentes.

Francis respondeu-lhe com inabalável urbanidade:

-— Eu não ousaria correr tão grande risco, pois precisa saber que eu não trouxe meus próprios lençóis, e estabeleci uma regra de jamaisj hospedar-me numa estalagem sem eles. Nunca se pode estar certo de que os leitos tenham sido adequadamente arejados. Meu Deus, fico muito acabrunhado ao pensar que poderia estar causando incômodo à sra. Cheviof !

Elinor sentiu-se obrigada a negar, e a dizer que daria ordens para lhe prepararem um quarto. Cheviot agradeceu-lhe e disse que ficaria feliz no Quarto Amarelo.

—      Bem, nesse não ficará! — exclamou Nicky, incorrigível. — Esse é o quarto da sra. Cheviot!

—      Ah, ora, de forma alguma eu desejaria que ela saísse dele! — disse Francis. — Na verdade, não faz a mínima diferença para mim; assim sendo, peço-lhe, prima, nem sonhe em abrir mão dele! Isso me deixaria em posi­ção embaraçosa. Coloque-me no quarto do pobre Eustace! É um pouco sombrio, talvez, mas não levarei isso em consideração.

Elinor descobriu os olhos de Nicky fixos em seu rosto com tal expres­são significativa que sentiu o rubor subir-lhe às faces, e levantou-se da ca­deira, murmurando que ia falar com a sra. Barrow. Ao mesmo tempo, Nicky seguiu-a, dizendo impetuosamente que precisava verificar se Boun-cer estava em segurança dentro de casa. Cauteloso, fechou a porta da sala atrás de si e dirigiu-se a Elinor num sussurro ansioso:

De modo algum podemos deixá-lo sozinho, prima Elinor! Por Deus, Ned estava certo! Ele veio para procurar aquele documento; não há nenhuma dúvida! Mas seremos adversários à altura! Algum dia você viu um sujeito empolado como esse?

Oh, Nicky, confesso que não gosto dele! Na verdade, ele chega a me assustar! Gostaria que você o convencesse a mudar-se para a Mansão!

—      Assusta você? Ora, um sujeito desses, que berraria se um camundongo atravessasse em seu caminho? Não pode estar falando sério! Estou certo de que Ned diria que devemos permitir que ele fique aqui. Imagine só, prima, se ele soubesse onde Eustace escondeu aquele documento e nos levasse até ele! Não me admiraria se os papéis estivessem no quarto de Eus­tace, pois você deve ter notado a sugestão dele de ficar lá. Tudo perfeito demais, eu acho! Quer saber de uma coisa? Você vai trancar aquele quarto e mandar preparar o quarto ao lado do meu! Então se ele tentar algum dos seus truques durante a noite, poderei ouvi-lo. Será algo realmente extraor­dinário se o apanhar em flagrante, e antes de Ned saber que ele está aqui!

—      Nicky, vou enlouquecer! Quero que mande um recado para o seu irmão, informando-o dessa visita! Não — acrescentou ela com amargura —, pois é provável que ele não represente o mínimo conforto para mim, já que é tão ruim como você e talvez diga que é uma feliz circunstância ou algo igualmente tão cruel!

—      Ora, eu não me admiraria se ele dissesse isso mesmo. O único pro­blema é que terei grande dificuldade em ser educado com esse sujeito! Sabe que ele teria matado Bouncer com aquela bengala-espada se eu não esti­vesse por perto? Um sujeito que gosta mais de gatos do que de cachorros! Gatos! — exclamou Nicky, com terrível desprezo.

Ele mesmo se parece com um gato. Oh, eu gostaria que ele não ti­vesse vindo! Ou eu!

Bobagem! É um divertimento e tanto! — disse Nicky, e voltou para a sala.

O hóspede, até agora longe de examinar o aposento, achava-se ainda sentado graciosamente ao lado do fogo, uma perna esguia, num tecido cinza, cruzada sobre a outra. Sorriu docemente para Nicky e fez um gesto com o monóculo de haste longa para as borlas de prata de suas botas,

— Observe! — disse ele. — Eu não deveria dizer isso, pois é uma cria­ção minha, mas estou realmente embevecido. Borlas prateadas, meu que--rido, não douradas, mantendo, assim, a nota delicada de luto. Devo usar calças pretas para a cerimônia, é claro. Hesitei durante muito tempo antes de permitir que Crawley me ajudasse a vestir estas cinzas, pois não deseja­ria mostrar o mínimo desrespeito, mas acho o relacionamento suficiente­mente remoto para permitir que as use, não acha? Contudo, vanglorio-me de que minha gravata preta imprima com precisão a nota correta. Ou você acha que me faz parecer um militar?

Não — respondeu Nicky, com franqueza. — Nada o conseguiria!

Oh, que encanto de sua parte, querido! Na verdade, você tirou um peso da minha cabeça! — disse Francis, com um largo sorriso. — Agora, diga-me: Devo lançar meu último olhar para o rosto de Eustace ou será que estarei satisfazendo demais meu otimismo, contando com quç o caixão já esteja selado?

É claro que já está!

Fico muito grato. A morte é extremamente dolorosa para mim, e embora não esteja determinado a não omitir o mínimo... Ah, não está nesta casa, espero?

—      Não. Está na capela.

—      Novamente você me tirou um grande peso. Eu trouxe meu frasco de sais, é claro, e Crawley sabe como me reanimar, mas admito que teria ficado excessivamente relutante se tivesse que dormir sob o mesmo teto... com o caixão. Minha sensibilidade sempre foi extremamente acurada, e ouso afirmar que teria sofrido um espasmo. Mas, agora, a menos que eu tenha apanhado uma friagem na viagem, espero que não tenhamos nada a recear. Presumo que não deva ser um cortège muito longo, não?

—      Carlyon providenciou para que fosse o mais privativo possível — replicou Nicky.

—      Não se pode discordar dele — murmurou Francis. Notou que Nicky enrubescera e acrescentou, como se justificando: — Jamais soube ter sido tão inábil! Na verdade, não pretendia cometer a mínima ofensa, querido Nicholas! Pobre Eustace, ai de mim, não era benquisto nesta vizinhança! Mas espero que esteja previsto um número suficiente de carruagens, pois ele tinha alguns amigos, você sabe. Estou convencido de que honrarão suas exéquias com sua presença. Na verdade, eu mesmo avisei Louis De Castrês sobre o triste acontecimento, e não tenho dúvidas de vê-lo aqui amanhã.

Nicky quase deixou escapar um grito sufocado diante dessa desfaçatez, e só pôde lançar-lhe um olhar, boquiaberto.

—      Você já deve conhecer Louis, não? — perguntou Francis, um tanto surpreso. — Uma criatura encantadora! Um velho amigo, um dos mais antigos!

—      Acho que sim — respondeu Nicky. — Sim, imagino que já o conheço!

Nesse exato momento, Elinor voltou à sala, com a srta. Beccles, e, aproveitando o ensejo da apresentação necessária, Nicky safou-se, para es friar a cabeça no jardim. Uma vez que o horário da cidade não era obede­cido em Highnoons, dentro em breve teriam de aprontar-se para o jantar, e o grupo constrangido separou-se: Francis para entregar-se aos cuidados de seu criado pessoal, a srta. Beccles para supervisionar a arrumação da mesa a fim de que não passassem vergonha diante de um cavalheiro tão dis­tinto, e Elinor para procurar por Nicky, para mais uma vez implorar-lhe que mandasse o cavalariço à Mansão, com um recado para Carlyon.

Isso ele não faria de modo algum, insistindo que a ajuda de Carlyon não era necessária para lidar com um sujeito insignificante como Francis, e ela foi embora para o seu quarto, demonstrando total má vontade com ele.

O grupo que um pouco depois sentou-se para jantar estava — com ex­ceção da srta. Beccles, que para dignificar a ocasião usava seu melhor ves­tido de seda cor de lavanda — tão fúnebre como a crítica mais exigente teria desejado. Francis engalanara-se num casaco preto e calções de cetim, que pareciam mais adequados para os salões do Almack's do que para uma re­sidência no campo; Elinor vestira seu vestido preto de seda; e Nicky, para não ser sobrepujado por Francis, colocara um traje semelhante ao dele, em­bora confeccionado sem a extrema elegância do outro, como ele mesmo notou, com inveja.

Nada teria excedido a afabilidade do hóspede, mas a srta. Beccles não seria atraída a contribuir com seu óbolo à conversa; Elinor estava aflita, do­minada por uma sensação de pânico indefinível; e as tentativas de Nicky para ocultar sua aversão por Francis só serviam para enfatizá-la. Elinor pergun­tava a si mesma como iriam passar a noite toda. Quando ela e a srta. Beccles retiraram-se para a sala de estar, a srta. Beccles confidenciou-lhe que tinha de admitir que não conseguia gostar nem um pouco do tom da conversa do sr. Gheviot, e receava muitíssimo que não fosse um homem sincero.

Eu o acho um homem horrível! — disse Elinor.

Ora, meu bem, uma vez que você diz isso, não terei escrúpulos emlhe dizer que achei aquela história que ele contou, sobre o sr. Romeo Coates... um nome tão esquisito também!... um tanto picante, e de modo al­gum o tipo de coisa que sua querida mãe teria desejado que você ficasse ouvindo.

Gostaria que ele não tivesse vindo! Tenho medo dele!

Minha querida sra. Cheviot! Oh, querida! Meu bem, tranque sua portal Ou não precisa! Dormirei no sofá do seu quarto!

Elinor não pôde deixar de rir.

Oh, não, Becky, realmente! Estou certa de que ele não tem minha virtude em mira! Mas depois que passei algumas horas na companhia dele, não posso duvidar das justas suspeitas de Carlyon. É ele mesmo o homem que está fazendo algo perverso, traiçoeiro! Não devemos deixá-lo sozinho nesta casa nem por um instante! Se ao menos aquele menino odioso tivesse mandado avisar Carlyon! E além do mais, como, em nome de Deus, va­mos passar a noite? Nunca estive tão constrangida em toda minha vida!

Bem, minha querida — disse a srta. Beccles, em dúvida —, se você acha que ele gostaria, posso oferecer-me para jogar gamão com ele.

Felizmente, ela não foi obrigada a fazer isso. Nem bem o cavalheiro tinha entrado na sala de estar, e todo o alvoroço de quem está chegando se fez ouvir no vestíbulo; e, poucos minutos depois, a porta foi aberta para admitir Carlyon, seu irmão John e uma dama e um cavalheiro que tinham todo o jeito de pertencer à mais alta posição social.

A dama, que entrou pelo braço de Carlyon, decididamente era mais jovem que Elinor. E tão bonita, com cabelos louros em pequenos anéis e uns olhos azuis tão cintilantes, que não foi preciso o grito de Nicky — "Georgy!" — ou a apresentação calma de Carlyon — "Minha irmã, Lady Flint" — para informar Elinor qual a sua identidade. Enrubescendo, ela levantou-se imediatamente, fazendo uma reverência, e encontrou sua mão presa entre duas mãozinhas cálidas, e ouviu que uma voz doce, maliciosa, a chamava:

—      Sra. Cheviot! Minha nova prima! Oh, você é uma heroína e tanto! Fiz Carlyon trazer-me para conhecê-la! Este é Flint, meu marido, como sabe! Oh, Nicky!

A mão de Elinor foi largada; a criatura atraente afastou-se numa né-voa de gaze para lançar seus braços ao redor do pescoço de Nicky; depois para conceder a mão e um sorriso para Francis; e enquanto Elinor mur­murava o nome de sua acompanhante, um aperto de mão também para a srta. Beccles. Tagarelava o tempo todo, explicando que estava a caminho de Hampshire, para passar algumas semanas com a sogra, mas não des­cansaria enquanto não tivesse descoberto toda a verdade sobre o que John estivera lhe contando. Nada conseguira demovê-la e Flint fora obrigado a traze-la, não saindo tanto assim do caminho deles, afinal, para passarem uma noite com Carlyon. Enquanto continuava tagarelando nesse mesmo estilo, o marido, um homem de aparência sensível, alguns anos mais ve­lho, permanecia observando-a com profunda admiração, e Nicky a crivava de perguntas a que ela respondia sem fazer uma única pausa.

           Carlyon aproveitou-se dessa vivacidade para aproximar-se de Elinor e e explicar que sua irmã, depois de ouvir o relato de Johns obre o seu casa mento, tivera tal desejo de conhecê-la que chegara a adiantar o jantar uma hora para poder conduzir o grupo todo até Highnoons, para tomar o chá.

- Eu não os teria trazido para o jantar — disse ele. — Teria sido uma amolação para você. Espero que agora sejamos bem-vindos, não?

É claro que são! — respondeu ela, em voz baixa. — A noite toda estive querendo que Nicky mandasse alguém avisá-lo da chegada daquele cavalheiro!

Sem dúvida é interessante — disse ele, lançando um olhar para Francis, que conversava com Flint.

Eu sabia que diria isso, criatura irritante!

Onde está Bedlington?

—      Prostrado! Com a gota!

Ele pareceu ficar pensativo, mas não deu nenhuma resposta.

Pelo amor de Deus, o que gostaria que eu fizesse?

Discutirei com você a respeito numa ocasião mais conveniente.

Nesse meio tempo, ele pode ficar andando pela casa a noite toda, à procura sabe bem do quê

         Dificilmente eu acreditaria numa coisa dessas. O cão de Nicky nãoestá com vocês? Deixe-o perambular à vontade!

Não houve tempo para mais nada. Lady Flint aproximou-se dele toda esvoaçante, determinada a adquirir um conhecimento mais extenso da nova prima. Evidenciou-se logo que John não lhe contara nada sobre os estra­nhos acontecimentos ocorridos na casa. Fora o casamento que fascinara a imaginação da jovial dama. Pouco depois, arrastou Elinor para o sofá e sentou-se ao seu lado, travando uma conversa amigável, interrompida de vez em quando por ela mesma para que pudesse lançar uma palavra para um dos irmãos ou para Francis, com quem parecia estar em excelentes re­lações de amizade. Mas logo, sob determinado pretexto, ela subiu rapida­mente com Elinor até o quarto desta, e lhe disse, com seu lindo ar de candura:

—      Carlyon disse que íamos colocá-la em situação embaraçosa, um grupo tão grande, sem o menor aviso! Mas você não fez caso, fez? Oh, quando vi a notícia no Morning Post, pode imaginar como fiquei ansiosa para saber tudo detalhadamente! Fui imediatamente a Mount Street, para procurar John! Confesso, eu teria feito meu pobre Flint tumultuar o Mi­nistério do Interior, tal era o meu estado de agitação para saber mais! Diga-me... não me considere impertinente, embora eu até possa ser!... como veio a fazer isso?

Elinor respondeu com uma pequena reserva:

—      Na verdade, eu quase não sei de nada! Lorde Carlyon convenceu-me, mas devo imaginar que eu havia perdido o juízo.

Lady Flint deu uma risadinha.

—      Querido Carlyon! Como vou provocá-lo! Mas e quanto a essa his­tória de assaltantes? Confesso que parece um romance! Como Nicky deve ter ficado feliz por ter sido alvejado! Tenho vontade de fazer Flint ficar aqui um século, pois nunca me diverti tanto em minha vida! Mas acho que não seria bom. Estou grávida, você sabe, e o pobrezinho do meu Flint tem criado tantas fantasias em sua mente! Nunca estive tão bem, juro! Mas não adianta nada, tenho de ir para o campo, e aposto dez contra um que Carl­yon ajudará a convencê-lo. Você gosta dele?

Na verdade — respondeu Elinor, muito surpresa —, Lorde Flint me parece o mais amável...

Tola! Flint não! Carlyon!

Elinor ficou irritada ao sentir que enrubescia. Respondeu formalmente.

—      É claro. De fato, suas maneiras e seu modo de falar são do tipo que geralmente agradam.

A outra fez um beicinho, lançando um olhar brejeiro.

Oh...! Que coisa triste! Você discute com ele? Ele a deixa muito contrariada?

Se quer saber a verdade — disse Elinor —, ele é o homem mais odioso, insuportável, desconsiderado, abominável que já conheci!

No mesmo instante foi abraçada.

—      Excelente! Quantas vezes eu disse o mesmo! Vocês vão se dar admiravelmente juntos. Estou satisfeita por tê-la conhecido. Oh, mas o simples fato de vê-la tão bonita nesse vestido preto é suficiente para fazer al­guém desejar ficar viúva! É chocante eu dizer uma coisa dessas, pois você deve saber que sou louca por Flint! Francis Cheviot vai ficar muito tempo com você? Fiquei tão surpresa!

—      Imagino que apenas uma noite. É um pouco embaraçoso, mas ele veio como representante do pai, para... para o funeral.

As delicadas sobrancelhas arquearam-se.

—      Oh, você não gosta dele! Mas ele não é homem de segundas inten­ções, sabe, e poderá tê-lo como amigo a vida inteira! Eu sempre o convido para todas as minhas festas; todo mundo faz isso, pois é a criatura mais divertida, e de extraordinário bom-tom! O sr. Brummell diz que é seu al­faiate que o faz: já se ouviu algo tão cruel? Ele é muito boa companhia e sempre sabe que cores assentam melhor em alguém e como se deve decorar uma nova sala de estar.

Elinor deu uma resposta evasiva e, depois de um pouco mais dessa con­versa inconseqüente, Lady Flint admitiu ser acompanhada novamente para o andar interior. Já estava na hora do grupo da Mansão partir, se tivessem de chegar em casa antes do amanhecer; portanto, assim que beberam o chá e as despedidas foram feitas, a carruagem foi solicitada. Não houve opor­tunidade para Elinor manter uma conversa particular com Carlyon; ela só pôde lançar-lhe um rápido olhar significativo enquanto permaneciam no vesííbulo, olhar esse que foi recebido apenas com um ligeiro sorriso. Ehi foi obrigada a representar até o fim seu papel de anfitriã com um rosto sor­ridente e conseguiu apenas sussurrar quando ele apertou-lhe a mão, despedindo-se:

—      Como ousa deixar-me aqui com essa criatura?

—      Minha confiança está em Bouncer — respondeu ele. Carlyon deixou a casa em companhia do cunhado, não dando tempo a ela de responder, e logo estavam na carruagem, afastando-se de High-noons.

Meu querido Carlyon, ela é encantadora! — Georgiana disse, em meio à escuridão, ao lado dele.

Uma jovem de muito boa estirpe — declarou Fliní.

Ela é uma Rochdale de Feldenhall.

Muito estranho. Realmente não consigo entender.

Querido Flint, onde estaria a graça se alguém pudesse? — perguntou a esposa. — Mas, Ned, você não me disse que ela era tão bonita! Se­nhora de grande autodomínio e dignidade também — muito mais do que eu, tenho certeza.

O que significa dizer mais do que absolutamente nada!

É verdade! Não é o meu forte e nunca foi! Mas há um certo mistério que você não me contou a respeito! É intrigante!

Que existe só na sua cabeça.

Não! John está tão calado!

John sempre está calado.

Ora! Não sou tão tola que podem se livrar de mim com evasivas! Algo eu descobri, mas não tudo; quisera não ter de ir para Hampshire!

Ele mudou de assunto, fazendo referência à projetada estada dela com a sogra; a atenção da irmã foi desviada, e a conversa não voltou mais para Highnoons até o grupo descer da carruagem na Mansão. Foi então que John, detendo Carlyon quando este ia entrar num dos salões seguindo a irmã, disse:

—- Por Deus, Ned, você estava certo! O que fazer agora?

Creio que teríamos esperado vê-lo aqui.

Sim! Mas o que terá ele feito com o pobre do velho Bedlíngton?Como o terá convencido a permanecer em Londres? E o que ele pretende?

Encontrar o seu relatório, deduzo.

E você com essa maldita calma, palavra de honra.

Não estou calmo, estou preocupado, e, até agora, incerto quanto à minha atitude. O caso é obviamente desesperador, e devo alimentar es­peranças de que ele irá se trair. Shhh! Não fale sobre isso na frente de Georgy!

Ela havia saído do salão e vinha na direção deles.

Vou deitar-me. Como é odioso em vocês isso de ficarem trocando segredinhos!

Não é nada disso! — respondeu John. — Onde está Flint? Quero dar uma palavrinha com ele!

Ela ficou observando-o afastar-se em direção ao salão e volveu os olhos de novo para o irmão mais velho, com uma expressão marota.

—      Oh, Ned!

—      Ora, o que é agora? Uma covinha surgiu.

Gussie e Eliza ficariam ansiosas se eu lhes contasse, mas não sei se o farei. Considero você um caso perdido!

Tolice! O que quer dizer?

Ela passou os braços ao redor do pescoço dele e ficou na ponta dos pés para beijá-lo no rosto.

—      Dos irmãos bondosos e irritantes, você é o melhor, e não vou provocá-lo... nem um pouquinho! Mas acho que você é muito astucioso!

 

DEPOIS QUE AS visitas partiram, Elinor ficou grata ao constatar que Fran-cis Cheviot estava disposto a recolher-se, contanto que pudesse estar seguro de que todas as portas e janelas estavam protegidas contra intrusos. Para o ceticismo associado ao desdém de Nicky, a história de um ladrão ter for­çado a entrada da casa parecia ter-lhe dominado fortemente a mente. Fran-cis acreditava ser incapaz de fechar os olhos a noite toda se existisse a mínima possibilidade de alguém poder entrar na casa, e ponderou na conveniência de mandar seu criado pessoal ficar de vigília com uma arma carregada.

Se ao menos eu pudesse confiar que ele não dispararia a arma a um mero alarme falso! — disse ele. — Mas Crawley é a criatura mais ignorante que eu conheço! Se não soubesse engraxar minhas botas com a maior habi­lidade, eu o teria mandado embora há anos! Como é difícil decidir o que fa­zer, mesmo com a melhor das intenções! Seria um consolo para nós saber que ele estaria montando guarda enquanto dormimos? Mas, por outro lado, se ele se assustasse com uma sombra e nos acordasse a todos com seus tiros, como seria chocante! Meus nervos, eu sei, mal suportariam, e devo crer, mi­nha querida prima, que os seus não se recuperariam prontamente.

Não há nenhuma necessidade de que esse pobre homem fique acor­dado a noite toda — respondeu ela calmamente. — Bouncer é um excelente cão de guarda, e adquirimos o hábito de deixá-lo perambular pela casa à vontade. Ao menor ruído na casa ele dará o alarme.

Eu diria que sim! — corroborou Nicky, com um sorriso malicioso. — Ora, quando a srta. Beccles apenas abriu a porta do seu quarto ontemà noite, ele começou a latir tanto que chegou a despertar o velho Barrow!

Despertou mesmo? — perguntou Francis cortesmente. — Quero crer que eu não seria considerado desarrazoado se solicitasse à srta. Bec­cles que não abrisse sua porta esta noite. Se eu acordar durante meu pri­meiro sono, encontro muita dificuldade para adormecer de novo, e ficar deitado acordado a noite toda, vocês sabem, prejudica a constituição mais vigorosa.

A srta. Beccles garantiu-lhe que não faria tal coisa e o grupo foi para o vestíbulo, onde os castiçais para os quartos estavam à disposição sobre a mesa. Bouncer achava-se deitado sobre o capacho, ao lado da porta, e Francis colocou o monóculo para examiná-lo. Suspirou.

Um cão de caça estranhamente feio! — disse.

Muito você sabe sobre isso! — falou Nicky brusca e rispidamente, pois não podia suportar críticas ao seu estimado cão.

Ou foi o seu tom de voz ou a natural antipatia do cachorro por Fran-cis, o certo é que fez com que Bouncer emitisse um rosnado controlado. Ele estava em dúvida sobre como isso seria recebido, mas quando nenhuma censura apresentou-se, ele levantou-se e latiu agressivamente para Francis.

Francis estremeceu.

Por favor, segure-o, querido Nicholas! — suplicou. — Como meu caráter deve ser impressionante! Dizem que os cães sempre revelam, não é verdade? Espero que esta seja outra mentira que se descobriu!

Oh, enquanto eu estiver aqui ele não morderá você! — disse Nicky alegremente.

Então, eu lhe peço, acompanhe-me enquanto subo as escadas! — pediu Francis.

Isto foi feito, e Francis entregue aos cuidados ternos do seu criado. Nicky confidenciou a Elinor que dormiria com um olho aberto, e só espe­rava que Francis saísse do quarto, pois estava disposto a apostar quinhen­tas libras que Bouncer o pegaria mesmo. Com esse desejo veemente, dirigiu-se ao próprio quarto, para lá deixar-se cair no sono profundo e tranqüilo da juventude, do qual, Elinor sensatamente julgava, só um cataclismo o despertaria.

Mas a srta. Beccles, para quem Bouncer não usava de ameaças, não podia estar satisfeita, e atemorizou Elinor — entrando furtivamente em seu quarto quase meia hora depois que os passos do criado de Francis foram ouvidos, quando ele se retirava para a ala reservada aos empregados — com a informação de que ela tornara impossível a saída de Francis do seu quarto naquela noite.

O que está pretendendo dizer, Becky? — indagou Elinor, sentando na cama e abrindo o cortinado do dossel.

Meu bem, lembrei-me da corda de secar roupa! — sussurrou a pe­quena governanta significativamente. — Eu a prendi firmemente no trinco da porta dele e também no da porta do querido sr. Nicky!

Becky! — exclamou Elinor. — Não, não, você não devia ter feito isso! Estou certa de que Bouncer é suficiente! Imagine só se o sr. Cheviot descobrir! Jamais poderei olhá-lo no rosto de novo!

Meu querido cãozinho! — disse a srta. Beccles, olhando afetuo­samente para o fiel cão, que entrara no quarto atrás dela e agora estava sen­tado sobre as pernas traseiras, com as orelhas achatadas e com uma expressão de amabilidade inconsciente. — Estou certa de que ele não é um cão assustador e feroz, não é, Bouncer?

Imediatamente Bouncer assumiu um semblante de um spaniel tolo e sentimental, e começou a arquejar.

Becky, quando os criados descobrirem o varal amanhã cedo, pense que impressão deve dar!

Certo, meu bem, mas eu sempre acordo antes que eles comecem a se mexer, e retirarei o varal, é claro. Não fique preocupada, minha que­rida sra. Cheviot! Só achei que você gostaria de saber que eu tomei todas as precauções. Vamos, Bouncer, meu bom cãozinho!

     Afastou-se furtivamente, deixando Elinor agitada, apoiada em seus travesseiros, ensaiando explicações pouco convincentes que poderia ser in­timada a dar pela manhã a um hóspede justamente ofendido. Mas a única perturbação resultante da brilhante proeza da srta. Beccles foi causada por Nicky, que, ao acordar cedo e atribuir esse fato incomum a um ruído que devia ter afetado profundamente sua consciência, levantou-se da cama de um salto e tentou abrir a porta furtivamente. O varal estava bem preso, e Nicky, concluindo, como era muito natural, que seu aprisionamento devia-se à astúcia maligna de Francis Cheviot, no mesmo instante começou a gritar por socorro. O primeiro a atender ao chamado foi Bouncer, que subiu as escadas em disparada e, depois de lançar-se inutilmente contra a porta do quarto do seu dono, pôs-se em atividade para soltá-lo, pelo processo de es­cavação furiosa.

A srta. Beccles, só parando para jogar um xale sobre a camisola, saiu correndo e agarrou Bouncer pela coleira, pedindo freneticamente a Nicky que se calasse! Nem ele e nem Bouncer deram a mínima atenção a esse pe­dido, e só depois que ela, com dedos trêmulos, conseguiu desfazer os nós, e que Elinor e Barrow foram atraídos ao local pelo tumulto, foi que as im-precações do prisioneiro e o latido excitado do cão extinguiram-se.

Sendo o caso explicado rapidamente a Nicky, no mesmo instante ele explodiu numa gargalhada, ruidosa o suficiente para despertar quem tivesse planejado continuar dormindo depois do rebuliço anterior.

     Elinor estava angustiada de apreensão mas nenhum sinal demovimento vinha do quarto de hospedes.

Bem, isso me deixa intrigado quanto aos motivos por que alguém faria uma coisa tola igual a essa! — disse Barrow, olhando surpreso para o varal. — Seria uma confusão dos diabos se o sr. Francis viesse a saber!

Barrow, por favor, não mencione o caso para ninguém! — pediu Elinor, aturdida. — A srta. Beccles teve uma idéia... isto é, foi tudo tolice, é claro! Pelo amor de Deus, não vamos ficar parados aqui!

Barrow olhava ora para um, ora para outro, com tal expressão de es­panto, que Nicky voltou para sua própria ala, obsequiando-o, de passa­gem, com uma explicação que o obrigou a dizer com desprezo fulminante:

- A patroa não tem nenhum motivo para suspeitar de umapessoa como o sr .Francis Cheviot! No último estágio da dissolução, ele não vale um níquel.

O que você disse a Barrow? — perguntou Elinor, quando Nicky voltou.

Ele esboçou um largo sorriso.

Não vou lhe dizer. Você estaria disposta a me engolir.

Menino odioso! Do que se trata?

Não, você iria corar.

Oh! — exclamou ela, indignada. — Odioso!

Ora, não sei mais o que poderia lhe dizer.

Bem,esqueça! – elaabaixou aindamais a voz e apontou para a porta do quarto de Francis Cheviot. – Elenão pode ter dormido com todo esse barulho! Por que nãoveio aqui fora ou nos chamou parasaber o que estava acontecendo?

         — Provavelmente escondeu-se debaixo da cama — respondeu Nicky de maneira cáustica.

Ele fatalmente tem que comentar a respeito!

Eu conto uma história qualquer para ele — prometeu Nicky.

Apesar dessa promessa, foi na expectativa de sofrer bastante constran­gimento que, um pouco depois, a viúva desceu para tomar seu café. Con­tudo seu hóspede voluntário não se apresentou na sala, e Barrow explicou, torcendo o nariz em sinal de reprovação, que Crawley levara uma bandeja para o quarto. O sr. Cheviot, dissera Crawley arrogantemente, nunca saía do quarto antes do meio-dia.

—      Oh, por Deus, ele não sai? — exclamou Nicky. — Bem, desta vez, sairá, pois o funeral é ao meio-dia!

E não perdeu tempo, depois de haver consumido seu costumeiro café reforçado, em dirigir-se ao andar de cima para transmitir essa notícia a Fran-cis. Este porém, que se encontrava sentado diante da penteadeira, envol­vido num robe exótico e tendo suas unhas cuidadosamente aparadas pelo criado, continuava irritantemente calmo.

—      Certo, meu querido rapaz, assim fui informado, e veja você como levantei-me cedo! Empenho-me de boa vontade, mas não sei como conse­guirei ficar pronto a tempo. Já passa das dez horas e acho que devemos sair por volta das onze! Crawley, devemos ter em mente que se as Parcas fica­rem contra mim, o que, espero, não será o caso, eu talvez seja obrigado a despender mais de uma hora no arranjo da minha gravata, e isso me atra­saria, você bem sabe. Talvez eu devesse fazer as primeiras tentativas agora mesmo.

Nicky olhou fixamente para a pilha de gravatas pretas, cada qual no mínimo com trinta centímetros de largura, que se achava sobre a mesa.

—      Santo Deus, você não precisa nem de meia com esse tipo de gra­vata! — exclamou ele. — Pretende ficar aqui um mês?

Francis olhou para a pilha apreensivamente.

—      Acha que não precisarei? — perguntou. — Espero que esteja certo realmente, querido Nicholas, mas me é totalmente desconhecido estragar um resultado quando já obtive as dobras corretas. Seria bastante desres­peitoso para com o pobre Eustace se eu comparecesse às suas exéquias usando uma gravata com deselegância. Terá de ir embora, querido rapaz: acho por demais perturbador ser observado enquanto estou ocupado com a parte mais penosa da minha toalete. Todavia, antes de ir, diga-me, por favor, por que fui despertado esta manhã com tanta grosseria?

Oh, então você não estava dormindo durante o tumulto? — per­guntou Nicky.

Meu querido Nicholas, não sou surdo nem tenho sono pesado. Qualquer um teria imaginado que um regimento tivesse tomado a casa de assalto!

—      Admiro-me que não tivesse saído do quarto para descobrir a causa! Francis lançou-lhe um olhar chocado.

—      Sair do meu quarto antes que tivesse me barbeado! — exclamou. — Querido rapaz, você é louco?

—" Oh, bem! — exclamou Nicky, com impaciência. — Não foi nada, afinal! Eu não conseguia abrir a porta do meu quarto, ela estava presa, sabe; todas as portas desta casa estão tão empenadas como nunca se viu coisa igual! Barrow foi obrigado a investir contra ela com o ombro, pois achei que se puxasse a maçaneta com força, provavelmente a arrancaria.

—      Valha-me! — exclamou Francis suavemente. — Que rapaz violento que você é, querido Nicholas!

Nicky afastou-se para procurar Elinor e dizer-lhe que não havia mo­tivo para imaginar algo de Francis.

—- Você acha que ele tentou abrir a porta do quarto? — perguntou ela, com ansiedade.

—      Santo Deus, não sei, mas não me surpreenderia! Ele é um sujeito tão astuto e ágil na mentira como um cachorro trotando, ouso afirmar! Mas espere só até eu contar a John sobre as gravatas que ele trouxe! John não suporta dândis!

Aparentemente, naquele dia as gravatas não estavam recalcitrantes, pois, pontualmente às onze horas, Francis descia as escadas todo vestido de preto fúnebre, com exceção do colete cinza, e seguido por Crawley, que carregava o manto forrado de pele, as luvas, o chapéu e a bengala de ébano. Sua carruagem achava-se à porta, e fora acertado que ele também levaria Nicky até Wisborough Green, onde as carruagens do funeral deviam aguardá-los.

Francis cumprimentou sua anfitriã com toda a urbanidade costumeira, assegurando-lhe que, a não ser por algumas coisinhas desagradáveis, como um camundongo roendo o lambri, o passatempo predileto de Bouncer de ficar se cocando no piso exatamente do lado de fora do seu quarto, os há-bitqs matutinos de, aparentemente, uma centena de frangos novos e o in­feliz contratempo de Nicky com a porta do seu quarto, ele passara uma excelente noite. A única coisa que de fato ameaçava perturbar sua placi­dez era o medo inextirpável de que o vento voltasse a soprar para o nor­deste; neste caso, ele, desculpando-se, avisava Elinor que lhe seria impossível deixar Highnoons naquele dia, começando uma viagem, como seria o caso, a uma hora avançada da tarde e sem a esperança de chegar a Londres an­tes do anoitecer. A educação da moça obrigou-a a dizer o que era adequado, mas seu coração afundou, e quando Francis fora cuidadosamente acomo­dado na carruagem e a porta fechada à frente dele e do seu acompanhante impaciente, Elinor afastou-se para perguntar ao jardineiro qual sua opi­nião quanto ao tempo. Ele disse que havia um vento desagradável de frio ameaçando soprar. Desalentada, ela voltou para casa, para dar o devido aviso a sra. Barrow, mas a competente mulher estava tão encantada por ter duas moças do povoado à sua disposição, sem falar na mulher do jar­dineiro, a quem estivera apoquentando a manhã toda sem parar, que ape­nas perguntou se a patroa preferia fazer uma torta de faisão ou servir algumas galinhas assadas com cogumelos para o jantar.

Nesse meio tempo, o funeral correu com a tranqüilidade desejada, Francis ocupando a primeira carruagem sozinho, os três irmãos Carlyons em segundo lugar; ao mesmo tempo que, dispersas, pessoas de projeção social que viviam na vizinhança, e que tinham comparecido mais devido ao desejo de agradar Carlyon do que por qualquer consideração para com o finado, fizeram o cortège respeitável. A parte final era composta por al­guns personagens mais humildes, dentre os quais o mais importante era o médico.

Uma refeição fria fora preparada na Mansão para as pessoas mais im­portantes; todas as personalidades mais distintas para lá se encaminharam depois do enterro, quando Carlyon teve a oportunidade de observar que, embora Louis De Castres estivesse ausente, achavam-se presente dois ca­valheiros que tinham vindo de Londres, a mando de Francis, e que esta­vam quase tão belamente engalanados como ele próprio. Desculparam-se por saírem cedo, sob o pretexto de terem de realizar a viagem de volta a Londres; e os aristocratas locais, considerando o constrangimento da oca­sião, e talvez oprimidos pela conduta do sr. Cheviot, que parecia aniqui­lado pelo desgosto, logo seguiram o exemplo deles, sendo Sir Matthew Kendal o último a sair, ocasião em que apertou a mão de Carlyon, dizendo sem muito tato que tudo estava bem se terminara bem. Achando que os sentimentos subjacentes nesta observação poderiam ter sido expressos mais apropriadamente, ele enrubesceu até a raiz dos cabelos grisalhos e procu­rou encobrir sua confusão, virando-se para lançar uma feroz advertência a Nicky no sentido de manter aquele maldito cachorro longe das suas ré-» servas florestais se não o queria ver recebendo um tiro e pendurado, como um aviso para outros saqueadores semelhantes. Depois dessa ameaça, que ele suavizou com um soco jocoso nas costelas do seu jovem amigo, ele tam­bém se retirou, e John viu-se livre finalmente para dar vazão ao aborreci­mento que o estivera consumindo desde o regresso do grupo do funeral para a Mansão. Ao falar com moderação, que só serviu para enfatizar a nature­za profunda da sua irritação, ele olhou para Francis de cima a baixo e disse:

—      Eu não sabia que você nutria sentimentos tão fortes por nosso primo. Ouso afirmar que seu pesar faz justiça ao seu coração; todavia, agora que só restamos nós para nos sensibilizarmos por ele, eu ficaria grato se você reduzisse seu exagero!

Nicky, que acabara de levar o copo de vinho madeira aos lábios, foi ata­cado por um acesso de engasgo que, enquanto por essa vez não fez abater-se sobre sua cabeça nenhuma reprimenda do irmão severo, o fez merecer um olhar magoado de Francis...Um suspiro profundo foi a única resposta que Francis concedeu a John. Ele levou o lenço aos olhos e ali o manteve.

Os lábios de John crisparam-se por um momento, depois ele disse:

—      Vamos, Cheviot, isto já passa dos limites! Francis sacudiu a cabeça, falando em meio às dobras do lenço: — Ai de mim, como você está enganado! Recebi as notícias mais angustiantes. Estas lágrimas indignas de um homem não são, coro ao con­fessar, pelo nosso infeliz parente, mas por alguém mais chegado a mim por laços de afeição. Queiram me perdoar! Tem-me custado um esforço tremendo suportar com certa coragem minha parte nesta festa. Não, festa não é a palavra correta: eu devia ter dito velório, mas é estranho, quantasvezes os salgadinhos dos funerais são consumidos com um espírito quase de alegria. Meu caro John, sofri um terrível choque, que quase me des­controlou!

John e Nicky ficaram ali de pé, olhando para ele, as mais absurdas pos­sibilidades cruzando o cérebro de ambos.

—      Por quê... o quê...? — balbuciou Nicky, colocando o copo de vi­nho na mesa.

Francis levantou o rosto, afastando o lenço, para responder, com voz entrecortada:

Vocês dificilmente deixariam de notar a ausência de Louis hoje!

O jovem De Castres? — perguntou John, impaciente. — Bem, e o que tem isso?

Francis fez um gesto desesperado com a mão alvíssima.

—      Morto! — exclamou e mergulhou o rosto no lenço outra vez.

—      O quê? — explodiu Nicky, ansioso. — Mas... John agarrou-o pelo cotovelo, silenciando-o. E, disse:

—      Realmente lamento o ocorrido. Imagino tê-lo visto ainda outro dia, na cidade. Deduzo que sua partida foi súbita...

Francis estremeceu convincentemente.

Apunhalado até a morte! — gemeu. — Deixaram seu corpo debaixo de um arbusto em Lincoln's Inn Fields! Um dos meus amigos mais anti­gos! Estou completamente arrasado.

Santo Deus! — exclamou John, confuso.

Da soleira da porta, ouviu-se a voz tranqüila de Carlyon. Voltava à sala depois de despedir-se de Sir Matthew exatamente a tempo de ouvir essa revelação, e parou na entrada, olhando Francis atentamente.

Onde obteve essa notícia?

Está no Morning Post, que Godfrey Balcombe, tão atencioso, me trouxe — respondeu Francis. — Pobre rapaz, achou que seria uma genti­leza, mas mal sabia o golpe que estava me dando! Ele não conhecia Louis você sabe... mal reparou no parágrafo fatal! Você precisa me perdoar, meu pobre Louis! Um amigo tão chegado!

Carlyon fechou a porta e aproximou-se deles.

—      Sem dúvida, você deve estar sentindo sua morte — disse ele. Sei que há muito tempo seu relacionamento com De Castres tem sido nos ter­mos da mais íntima amizade. Não pode haver nenhuma dúvida, presumo.

— Oh, você estaria me encorajando a ter esperanças! Mas não adianta: “ M. L. — De C...", você sabe... o herdeiro de uma ilustre família de imi­grantes franceses! Ai de mim, não tenho dúvidas de que seja o meu pobre Louis! Aquele desastroso costume que ele tinha de caminhar, em vez de cha­mar uma liteira ou uma hacanéia! E nunca um pajem ao menos com um archote para acompanhá-lo! Quantas vezes o preveni dos perigos desse há­bito, mas jamais me atendeu, e agora vemos o final trágico. E eu mandando um bilhete à sua residência naquele mesmo dia que deixei Londres, pedindo-lhe que me desse apoio no enterro de Eustace. Pobre rapaz, receio que já na ocasião não existisse mais!

—      É muito chocante, realmente. Você disse que ele foi morto em Lincoln's Inn Fields? Diga-me, a que horas ele foi assaltado?

Francis sacudiu a cabeça.

—      No jornal não diz. Foi à noite, é claro, mas provavelmente jamais será descoberto quando ou pela mão de quem exatamente. O que teria le­vado o coitado do Louis a um local daqueles e àquela hora? Despojado da sua bolsa e de todas as suas jóias! Abandonado banhado no próprio san­gue! Horrível!

Tornou a estremecer, e com tanta revulsão que era óbvio que fora muito afetado. Carlyon fez sinal a Nicky para servi-lo de um copo de co­nhaque e disse:

—      Acredita-se que tenha sido trabalho de salteadores, não?Francis assentiu com a cabeça e apanhou o copo de Nicky, agradecen­ do-lhe, com voz embargada.

Um motivo tão sórdido! Assassinado por algumas bugigangas in­significantes, e, ouso jurar, nada além de cinco ou dez guinéus, pois ele não era um homem rico, vocês sabem. Deve ser um aviso para nós todos! E pen­sar que... Mas preciso tentar me compor ou receio que ficarei completa­mente indisposto. Para uma pessoa da minha sensibilidade delicada, é particularmente desagradável pensar em derramamento de sangue, e, na verdade, em todas as formas de violência. Já na escola, eu não podia resolver-me a participar até do exercício de boxe, pois a visão de um nariz sangrando invariavelmente me fazia desmaiar. Certo, para vocês, sinto que devo parecer uma criatura insignificante, mas é isso mesmo, e sirva-me mais do seu excelente conhaque, Carlyon, e depois, se me desculparem, acho que terei de deixá-los. Repouso, e... sim, talvez um copo de carbonato de amônia e água: Crawley poderá preparar para mim. Estou convencido de que a sra. Cheviot respeitará meu desejo por solidão até eu ter conseguido dominar minha emoção. Querido Nicholas, se pretende acompanhar-me, gostaria de saber se poderá ser cortês não falando comigo.

Obrigado, pretendo ir a cavalo um pouco mais tarde.

Você deve se orgulhar por ser um rapaz de tal consideração, que­ rido Nicky. Fico muito grato.

Ele bebeu de uma vez só o segundo copo e levantou-se. Usando de sin­ceridade, disse:

—- Graças a Deus eu trouxe um colete preto! Este cinza ficou bem para Eustace, mas agora está totalmente em desarmonia com minha disposição de espírito. Meu pobre Louis!

Nem John e nem Nicky puderam encontrar algo para dizer em resposta a tudo isso, mas Carlyon respondeu com seu tranqüilo bom senso costu­meiro, e, assim que chegou o aviso de que a carruagem do sr. Cheviot aguar­dava na porta, conduziu-o até o veículo. Quando voltou, descobriu que John apanhara da cadeira de Francis uma edição do Morning Post, dobrado na página escolhida, e estava começando a ler em voz alta, devagar, estu­pefato: "Um fato melancólico aconteceu há duas noites no Lincoln 's Inn Fields, onde o corpo de um rapaz, assassinado em circunstâncias de horrí­vel barbaridade, foi descoberto ontem de manhã pelo sr. B., um escrevente empregado nos escritórios de um certo advogado famoso. Concluímos que o infeliz rapaz era M. L. De C. herdeiro de uma das distintas famílias de imigrantes franceses, o que ainda existe em abundância na metrópole. Pa­rece não haver dúvida possível de que o motivo desse brutal assassinato f oi roubo, visto que os bolsos de M. L. De C. foram saqueados, e o relógio, algibeiras, selos, alfinetes, anéis... na verdade, todos os acessórios de um traje de cavalheiro, ar rançados de sua pessoa. Consideramos conveniente nos reportar ainda uma vez mais nestas colunas à chocante supremacia de batedores de carteira na metrópole, e exigir um pouco mais de proteção para os nossos concidadãos contra a violência desses piratas do que a Vigilân­cia dos Velhos Caducos Decrépitos que no momento patrulham nossas ruas, e... Oh, et cetera, et cetera! — concluiu John, impaciente. — Meu Deus, Ned, que estratagemas diabólicos estamos enfrentando? Batedores de car­teira! Gostaria que fosse assim mesmo!

É só isso que traz no Post? — perguntou Carlyon.

Só, com exceção das acusações costumeiras à inépcia da ronda no­turna e dos policiais. É o bastante, meu Deus!

Nicky, vá perguntar a Chorley se os jornais de Londres já chega­ram, sim? Talvez haja mais alguma coisa no Times ou no Advertizer.

Nicky deixou a sala imediatamente. John jogou o Morning Post para o lado e disse, em tom grave:

Ned, isto é um caso chocante! Não me admira que Cheviot ficasse tão acabrunhado. Não pode haver nenhuma dúvida de que ele está aliado a De Castres nessa questão, e àqueles que devem estar por trás de De Cas­tres. Se ele não descobre o que é tão desesperadamente necessário, deve tre­mer de medo ao pensar qual será sua sorte!

Você acredita que De Castres foi assassinado por agentes franceses?

Realmente não sei, mas isso se me apresenta como a resposta mais provável para um enigma que posso até jurar jamais será decifrado! Se De Castres prometeu aos seus superiores aquele relatório ou sua cópia...! Ele pode até já ter recebido dinheiro, ou pode ter entrado na cabeça deles a sus­peita de que De Castres os estava iludindo com uma história plausível, com a pretensão, talvez, de colher todas as vantagens. Jamais acreditei que ele fosse um dirigente nessa questão, e ainda não acredito. Alguma coisa deve ter sido descoberta contra ele para ocasionar isso, e não consigo imaginar que ele seja mais suspeito do que qualquer outro jovem francês livre neste país.

Certo — disse Nicky, que voltara à sala. — Ou quem sabe ele não foi morto por um dos nossos, não podia? Um dos nossos espiões, quero dizer.

Presumo que seja possível — replicou John, com relutância. — Contudo, seria por demais impróprio, e prefiro pensar... não que os rapa­zes que somos forçados a empregar nesse trabalho tenham necessariamente algum escrúpulo. Bem, o que o Times tem a dizer, Ned?

Nada além do que você já leu no Post — respondeu Carlyon, entregando-lhe o jornal.

-— Não encontro nenhum registro no Advertizer — disse Nicky, exa­minando rapidamente as colunas. — Que matéria que eles publicam, fran­camente! Aqui fala sobre Groselha (Planta) Enxertada! Eu gostaria de saber quem é que dá a mínima importância para isso! Na sexta-fefra, um açou­gueiro pôs sua mulher à venda no mercado de Smithfield... Santo Deus! Curioso incidente em Rotherhithe: Um filhote de baleia apareceu no rio... Quem dera eu morasse em Rotherhithe, por Deus! Um jantar muito ele­gante oferecido pelo prefeito de Londres, em sua residência oficial... Oh, aqui está, finalmente, mas só um trechinho insignificante! O corpo do in­feliz rapaz descoberto no Lincoln 's Inn Fields ontem de manha está con­firmado agora ser o de um distinto imigrante f rances, notório nos círculos elegantes. Ora! Não podia ser mais pobre! Oh, Ned, eu não perderia isso por nada que você pudesse me oferecer! Voltarei para Highnoons agora mesmo, pois pode estar certo de que Cheviot só está aguardando o momento oportuno para roubar aquele documento de nós!

Certo — disse Carlyon lentamente. — Certo.        John fitou-o com olhos semicerrados.

O que está pensando?

Carlyon virou-se para responder; porém, depois de um instante, disse abruptamente:

Vou para Londres. Nicky, quer dizer a eles para trazerem outra vez a carruagem de viagem assim que puderem?

Vai para Londres? — repetiu John. — Para quê, santo Deus?

Para tentar descobrir o que puder. Voltarei o mais rápido que me for possível. Você continua aqui, John, e não deixe Nicky cometer nenhuma imprudência! Nicky, preste atenção, você pode ficar em Highnoons e vi­giar Francis Cheviot o quanto lhe aprouver, contanto que possa fazê-lo sem que ele venha a considerá-lo um obstáculo, pois poderia ficar tentado a afastá-lo do caminho. Mas não se arrisque, de forma alguma!

Santo Deus, Ned, não tenho medo de um sujeito como Francis Cheviot!

Francis Cheviot é um homem muito perigoso — disse Carlyon su­mariamente e saiu da sala.

Nicky olhou para John, pestanejando.

Que diacho faz ele pensar assim? — perguntou. — Com todos os poltrões...

Eu não sei, mas há dias ele esteve me dizendo qualquer coisa desse tipo. É claro, se Francis comprometeu-se a entregar certo documento aos franceses e sabe que seu parceiro nesta grande obra de traição está morto, acho que será tão perigoso quanto um rato encurralado. Bem, trate de fa­zer como Ned lhe disse, Nick! Eu mesmo irei a Highnoons daqui a pouco, mas não é para ficar esperando que Francis faça alguma tentativa de dar busca na casa durante o dia, pois ele dificilmente ousaria correr o risco de ser descoberto nessa atividade. Estou disposto a passar a noite em High­noons secretamente, é claro.

Ora, ele tem o maior pavor de que Bouncer possa mordê-lo! — Nicky riu. — E sabe que Bouncer fica solto na casa a noite toda!

Então tenha cuidado para não descobrir que aquele seu cachorro foi envenenado! — replicou John sombriamente.

 

elinor E A srta. Beccles tinham passado uma manhã tranqüila, própria de donas-de-casa, e durante esse tempo a governanta comentara com sim­ples satisfação que acreditava que Highnoons logo ficaria uma residência tão bonita como se encontrava em toda parte. Ela imaginava com tanta na­turalidade uma estada prolongada, que Elinor foi obrigada a lembrá-la de que, tão logo tivesse liberdade para tanto, venderia a casa. A srta. Beccles disse que de modo algum estava convencida de que isto seria o melhor ca­minho.

— Poderíamos ficar tão confortáveis aqui! — disse, com um pequeno suspiro.

Elinor só pôde garantir-lhe que aonde quer que ela fosse, haveria um lugar para sua querida Becky, mas que não podia haver dúvidas quanto à sua permanência em Highnoons. Ao que a srta. Beccles replicou que cer­tamente Lorde Carlyon decidiria o que ela devia fazer. Isto instigou Eli­nor a externar uma censura enérgica à tendência tirânica de Lorde Carlyon, e à total falta de consideração pelos escrúpulos de uma mulher decente. Pe­sarosa, a srta. Beccles disse que gostava muito de homens dominadores, uma observação que fez a viúva deixar o aposento com algo perigosamente próximo a um salto.

Era inútil esperar que a srta. Beccles partilhasse dos seus sentimentos. Na verdade, ninguém com quem agora estava em contato diário parecia ter o mínimo apreço pela sua situação constrangedora. Ela não podia dei­xar de perceber que estava permitindo a si mesma ser arrebatada em dire­ção a um futuro impenetrável, envolto num atordoamento especulativo. Não conseguia imaginar o que seria feito de si. Era provável que pouca coisa além de uma renda suficiente apenas para as suas necessidades seria salva da fortuna destroçada de Eustace Cheviot: na verdade, jamais poderia ter alimentado a idéia de que um dia se encontraria vivendo na riqueza em con­seqüência do seu casamento, e, dizia a si mesma, que lhe seria legada uma propriedade considerável por intermédio de uma escritura de doação. Con­tudo, visto ser uma mulher honesta, ela estava inclinada a confessar para si mesma que, depois desse interlúdio em sua existência insípida, acharia muito difícil voltar para a sua ocupação anterior. Uma casinha, que pode ria compartilhar com Becky, em um bairro modesto da cidade, parecia ser o melhor que poderia esperar, e embora isto, uma semana antes, houvesse representado a soma total de suas ambições, por qualquer razão já não exercia atração sobre ela.

Os primeiros frutos da breve notícia de suas núpcias, que Carlyon man­dara publicar nos jornais de Londres, já lhe chegavam às mãos. Cartas de duas de suas primas e do menos amado dos tios chegaram em Highnoons, levadas do correio de Billingshurst pelo cavalariço, que lá estivera com uma incumbência. A carta do tio, expressa em termos exaltados, dava prova de que ele ficara ofendido diante da discrição do seu casamento, e a lembrava em mais de duas páginas inteiras, que não fora por sua vontade ou instiga-ção que ela abandonara a proteção do seu teto. Aparentemente, ele não lera a outra notícia, a do falecimento de Eustace Cheviot, e escreveu que espe­rava que ela não viesse a lamentar uma aliança com uma pessoa de quem todos falavam mal.

As primas salpicaram suas cartas com pontos de exclamação, e, ob­viamente, estavam impacientes de curiosidade para saberem tudo que ha­veria por trás do anúncio formal no Times. Ambas pediam que ela não esquecesse da afeição que nutriam por ela, e que não hesitasse em convidá-las para Highnoons se lhe pudessem ser de alguma utilidade nessa hora de aflição. Elinor não perdeu tempo para responder a essas ofertas generosas em termos educados, porém de recusa.

A volta de Francis Cheviot do funeral, em tal estado de abatimento que se tornou necessário recorrer a Crawley para ampará-lo, foi uma sur­presa, mas nada igual à surpresa ocasionada por sua explicação titubeante sobre o seu pesar principal. Elinor só conseguia olhá-lo, horrorizada. Como Carlyon ela não acreditava que o assassinato do jovem francês tivesse sido obra dos batedores de carteiras. Uma força assustadora e sinistra estava em ação e ela não podia imaginar que cessaria com a morte de De Castres. Não fazia a mínima idéia de quem pudesse ser o assassino, se um agente inglês ou francês, mas que tinha ligação com algum documento que De Cas­tres, Francis Cheviot e talvez outros também acreditavam estar escondido em Highnoons, ela não duvidava. Consternada, sua primeira intenção foi derrubar a casa tijolo por tijolo, só para se livrar do que quer que estivesse escondido tão astutamente ali, mas uma reflexão mais sóbria deu aos seus pensamentos uma direção mais adequada, e ela não podia deixar de reco­nhecer que o papel de uma inglesa leal era fazer o possível para frustrar os inimigos do seu país, por mais cruel que isto pudesse ser. Mas desejava que não tivesse sido ela a inglesa escolhida.

   Olhando para o semblante pálido de Francis, não se admirava do seu transtorno. Embora pouca ligação pudesse ter com o sentimento que o lan­çara nesse aparente infortúnio, ela não duvidava que ele estivesse sob con­siderável tensão nervosa. Que se exprimia por uma nota mais aguda em sua voz, e pela impaciência com que se virava contra o criado por alguma falta. Seu sorriso parecia forçado, e seus movimentos menos comedidos e gra­ciosos do que tinham sido antes do recebimento das notícias de Londres. Elinor quase o teria lamentado, caso não tivesse ficado temerosa de que o pavor que ele sentia do superior implacável, a quem ambos — ele e De Cas­tres — serviam, pudesse levá-lo a empreender algum ato desesperado no qual ela poderia envolver-se. Estava ansiosa para desabafar tudo com Carl­yon, e, assim que Francis fora para o andar de cima a fim de deitar-se, com sais aromáticos, carbonato de amônia e as venezianas fechadas, ela quase não conseguiu afastar-se das janelas da sala de estar que dominavam a vista da entrada para carruagens, na frente da casa. Irritante , o prosaico Carlyon podia ser, mas ela admitia que seria um conforto indescritível ver sua figura alta entrando na casa e ouvir sua voz tranqüila aliviando placida-mente seu pânico.

Porém não foi Carlyon quem finalmente apareceu cavalgando no por­tão, mas apenas Nicky, que trocara o traje de enterro em sinal de desafio ao irmão John, por um casaco azul com grandes botões prateados e calças de couro de gamo muito amarelas, e estava montando um cavalo de caça excessivamente magro que no mesmo instante desaprovou a saudação es-fuziante de Bouncer ao seu dono. Por uns minutos, Nicky ficou totalmente ocupado numa contenda com o cavalo, mas logo avistou Elinor, acenou-lhe e gritou:

—      Vou levar Rufus para o estábulo! Não é um autêntico puro-sangue? Está só exibindo suas façanhas, você sabe! Ele não dá a mínima importân­cia para Bouncer, é claro. Não vale o que come, coitado!

Ela assentiu com a cabeça e sorriu, capaz de solidarizar-se com o or­gulho dele pelo cavalo, mesmo no estado de espírito agitado em que se en-tontrava. Nicky continuou cavalgando em direção aos estábulos, e ela resignou-se a uma espera prolongada enquanto ele cuidava para que o no­bre animal fosse tratado adequadamente e alojado.

Cerca de vinte minutos depois, Nicky entrou em casa em largas pas­sadas, e, depositando o chapéu e o chicote sobre a mesa do vestíbulo, per­guntou em voz baixa, em um tom vibrante de excitação:

Onde está Cheviot?

Em seu quarto com as venezianas fechadas e Crawley friccionando-Ihe os pés. Oh, Nicky...

Shhh! Vamos para a biblioteca, prima; não devemos ficar falando aqui, onde poderiam nos ouvir.

Oh, não devemos mesmo! — concordou ela, indo obedientemente para a biblioteca. — Mas, na verdade, eu acho que ele de fato está deitado. Está passando pela maior irritação nervosa. Não posso admitir que isto seja posto em dúvida.

Por Deus, e eu não sei? — exclamou ele, fechando a porta firme­ mente e caminhando até a lareira para lançar outra acha no fogo. — Doente como um cavalo! Ele contou que Louis De Castres foi assassi­nado?

Contou, e as idéias que este acontecimento chocante faz sugerir são tão horríveis que meus próprios nervos estão em lamentáveis condições. Onde está seu irmão? Eu tinha esperança que ele viesse com você!

Não, não, hoje você não verá Ned! —respondeu Nicky. — Ele foi a Londres... às pressas, você sabe, e assumindo a direção dos próprios baios até as duas primeiras mudas! Excelentes corredores, aqueles baios! Belos cavalos marchadores!

Foi a Londres! — exclamou ela, estupefata.

Foi. Ele disse que voltaria o mais rápido que pudesse. Mas... Ele sabe da morte do francês? — perguntou ela, interrompendo-o, sem remorso.

Oh, sabe, sim! Bem, é claro que sabe! Por causa disso é que ele foi à cidade, embora não nos dissesse o que pretendia fazer lá. John ainda está na Mansão, e se for do seu agrado, ele disse que passará a noite aqui, sem ser percebido por Francis, é claro. E, por Deus, prima Elinor, preciso tomar cuidado para que Bouncer não coma nada que eu mesmo não lhe dê, pois John acha que Francis ou aquele sabujo do empregado dele podem procu­rar envenená-lo! Mas tenho treinado Bouncer para não aceitar comida da mão de estranhos; assim, acho que não há o mínimo perigo quanto a isso.

Ela absteve-se de lhe dizer que seu cãozinho, aparentemente, consi­derava a oferta de um osso ou de um pedaço de carne apresentação sufi­ciente para colocá-lo em termos de amizade com o mais maltrapilho dos estranhos, e disse:

Seu irmão sabia disso e partiu para a cidade sem me conceder uma palavra?

Oh, ele sabia que eu estava voltando para cá e que a informaria de sua viagem! É o caso mais famoso, prima! Não sabemos o que pode acontecer a seguir!

Exatamente! E por essa razão eu estava desejando ter uma conversa com Lorde Carlyon!

Bem, imagino que ele não sabe tão pouco, mas não me oponho em lhe dizer isto, prima: ele acha que Francis é um homem muito perigoso! Ele disse isso, e me mandou tomar cuidado com o que eu fizesse aqui.

—      Oh, ele disse, é? — exclamou Elinor, rígida de cólera. — Sem dú­vida fico-lhe muito grata! E eu devo tomar cuidado com o que fizer aqui ou isso não tem importância?

Nicky lançou-lhe um olhar simpático.

Bouncer e eu cuidaremos bem de você, prima Elinor.

Estou muito inclinada a fazer minha mala e partir desta casa den­tro de uma hora!

Você não partirá!

Não, não partirei — respondeu ela, irritada. — Mas é a coisa mais abominável! Quando eu vir seu irmão — se algum dia chegar a vê-lo outra vez, o que provavelmente não acontecerá, uma vez que acho que logo serei encontrada com a minha garganta cortada de orelha a orelha —, terei algo para lhe dizer! Oh, quando penso na situação hedionda em que estou, e tudo por intermédio de seus planos malucos, que ele tem a desfaçatez de dizer que são muito sensatos, a impressão é de que... de que vou ter um ataque histérico!

Nicky riu.

Sim! Você terá um ataque, ouso afirmar, igual ao da governanta de uma das minhas irmãs! Mas não é hora para ficar brincando, prima!

Brincando!

Bem, vamos falar sério! Oh, prima Elinor, você algum dia imagi­nou.. . quando era bem criança, quero dizer: na sala de aula... que um dia se encontraria envolvida contra agentes franceses?

Não, Nicky, nunca imaginei. Nada do que aconteceu comigo du­rante a semana passada eu esperava, nem quando estava na sala de aula... onde eu gostaria muitíssimo de estar agora!

Estou convencido de que não gostaria! Ora, como poderia? Mas a coisa é esta: o que Francis fará agora?

Essa idéia já ocupa minha mente há uma hora.

Ele é um sujeito tão pobre de espírito, você sabe, que não acredito de modo algum que tente algo de natureza violenta. Eu gostaria que tentasse!

Sim, estou certa de que gostaria.

Não — disse Nicky, desatento. — Se Ned está certo, e ele de fato é um sujeito perigoso... mas confesso que não posso acreditar numa coisa dessas... que um sujeito que prefere gatos a cães, e que não se move sem ter à mão seus sais aromáticos, possa valer um botão!... mas se este for o caso, então eu juro que irei agir de uma maneira tão astuciosa que nem você nem eu jamais teríamos sonhado!

É bem provável que esteja certo, e cada palavra do que diz aumenta minha convicção de que seria aconselhável eu fazer as malas e ir para a casa da sra. Macclesfield hoje mesmo.

—- Sra. Macclesfield? Oh, para aquela senhora que você devia ter ido. Foi uma coisa boa Ned não ter deixado, não foi? Você não teria gostado de ter perdido todo este divertimento!

Elinor não convivera com adolescentes durante seis anos sem ter apren­dido quanto era inútil insistir na tentativa de lhes transmitir idéias total­mente estranhas às suas mentes, e agora ela não fez mais esforços para levar Nicky a uma apreciação de seus sentimentos. Concordou que teria sido uma coisa chocante ter deixado de passar uma semana num estado de alerta quase que contínuo; e ele retribuiu-lhe, dizendo com ardor quase impulsivo que sabia o tempo todo que ela era a pessoa certa. E, então, fez o que estava em seu poder para enfraquecer fosse qual fosse a firmeza que Elinor ainda tinha ao recontar, com riqueza de detalhes, as teorias de John sobre o as­sassinato de De Castres.

John não acha que possa ter sido um dos nossos agentes — disse ele, andando de um lado para outro da sala em passadas largas, com toda a impaciência energética de um jovem cavalheiro ansioso para estar em ati­vidade. — Ele disse que, é claro, não há conhecimento a respeito do queesses homens estarão fazendo, mas é favorável à opinião de que Louis deve ter sido morto por aqueles que o contrataram.

Só por ele não conseguir achar o que estavam querendo? — balbuciou ela.

Oh, não! John tem idéia de que podem ter suspeitado de que ele não estava lidando muito honestamente com eles. Sabe, meu irmão está convencido de que Louis nunca foi um dirigente, porque parecem não saber nada sobre ele, e, é claro, nossa gente de um modo geral é bem cautelosa, e sabem mais do que se imaginaria. O fato é que provavelmente há alguém, e, ouso dizer, mais do que apenas um homem, por trás de tudo. Eu não deveria ficar de modo algum surpreso se houvesse alguém de quem ninguém suspeita nem de longe. Que grande divertimento será se ele próprio vier a ter contato conosco.

Isso mesmo. E para tornar a coisa até melhor, ouso afirmar, visto ser ele um tipo desesperado, que nada o deterá até obter seus objetivos.

Exatamente isso! Principalmente se ele pudesse imaginar que te­mos aquele papel cuidadosamente em nosso poder!

Ela não pôde reprimir um grito sufocado de desânimo, mas o bom senso veio em seu socorro, e ela sugeriu timidamente que se eles tinham o papel, deviam certamente restituí-lo aos seus legítimos donos.

Depois de considerar isso com certa contrariedade, Nicky foi obrigado a admitir que havia algo sensato no que ela dissera. Alguns momentos de­pois animou-se e disse:

—      Mas imagine só que complicação formidável; já que o único ho­mem que sabia onde estava o papel está morto, e você está morando nesta casa, então o que quer que seja feito para encontrá-lo tem que ser feito na calada da noite! Quanto mais penso, mais acredito que estão deitando o caso a perder lamentavelmente. O certo teria sido entrar em Highnoons porintermédio de um estratagema. Santo Deus, isso mesmo! Alguém poderia ter sido enviado a você como criado, e pense só como um suposto criado facilmente revistaria a casa!

A mente de Elinor voou para as duas jovens criadas contratadas pela sra. Barrow, para o carpinteiro que fora chamado para consertar dobra-diças defeituosas e pernas de cadeiras quebradas, e até para o rapazinho que fora empregado para ajudar o jardineiro. Ela ameaçou levantar-se da poltrona, exclamando:

—      Santo Deus! Você não está realmente pensando que aquele homem que esteve trabalhando aqui a manhã toda... ou as empregadas... ou...

—. Não, acho que não — disse Nicky pensativãmente. — Você diz Redditch, não é? Devo dizer que é uma idéia de primeira qualidade, mas co­nheço Redditch há muito tempo. E quanto às empregadas, uma delas não é sobrinha da sra. Barrow, e a outra do povoado?

É claro — respondeu ela, tornando a afundar na poltrona. — Não sei como cheguei a ser tão idiota! A culpa é sua, seu garoto horrível, por colocar idéias tão assustadoras em minha cabeça! E agora, pensando bem, não preciso ter um pingo de medo de que algum estranho sinistro chegue a Highnoons, pois de modo algum é sensato imaginar que o homem que contratou De Castres possa saber que seu primo estava contratado como intermediário.

Por que não? — perguntou Nicky, olhando-a fixamente.

Porque se essa pessoa abominável sabia que era o homem com quem De Castres obtinha informações, por que então ela mesma não teria se aproximado de Eustace? Por que o governo francês estaria pagando a duas pessoas, quando uma só bastaria? Estou certa de que jamais fariam isso!

Nicky refletia no que ela dissera.

—      Bem, isso é verdade — admitiu ele um tanto descontente. — Acho provável que possa ser assim. Razão pela qual o próprio Francis seria for çado a agir no caso, o que, aposto, ele jamais quis fazer! Devo dizer, será profundamente maçante se Francis for o único homem com quem teremos de ajustar contas!

Ele continuava a andar pela sala, desenvolvendo e descartando teo­rias, até que chegou o alívio para a sra. Cheviot na figura sólida do sr. John Carlyon, o qual, depois de apertar a mão de sua anfitriã, recomendou pro­saicamente que Nicky saísse para uma vigorosa caminhada.

Caminhar! Não quero sair para caminhar! — disse Nicky, bastante ofendido.

Então sente-se, e pare de inquietar a sra. Cheviot dessa maneira. O que foi feito do seu hóspede, senhora?

—      Está deitado em seu quarto. Ele sorriu.

—      Bem, meu irmão pode dizer o que quiser, mas não estou inclinado a acreditar que tenhamos alguma coisa a temer de Francis Cheviot. Espero que não se tenha deixado ficar alarmada pelo que, tenho certeza, Nicky an­dou lhe contando.

Ela o olhou com patente hostilidade.

Meu Deus, você se parece demais com seu irmão Carlyon, com efeito! — comentou ela.

Com Ned? Não, estou certo que não! — replicou ele, rindo.

Está enganado. A semelhança é muito pronunciada. Eu poderia imaginar ter sido ele dirigindo-se a mim. Que absurdo seria eu me deixar ficar alarmada com uma coisa insignificante como um assassinato!

Minha querida sra. Cheviot, é provável que nenhuma coisa desse tipo a ameace, acredite-me! Mas não posso deixar de sentir que não é ani­mador para você ficar com Cheviot em sua casa à noite, quando é possível que ele faça uma tentativa para se apoderar daquele relatório.

Ei! — exclamou Nicky, irritando-se. — Estarei aqui!

Certo — disse John, com dureza. — Caindo sobre armaduras, creio eu. Diga-me, senhora, posso encarregar-me da sua proteção? Posso ficar perfeitamente confortável no sofá desta sala, sabe? Mandaria o velho Barrow ficar de guarda, se não fosse nosso propósito manter os criados na ig­norância das nossas suspeitas.

Ela agradeceu, mas, depois de pensar melhor, recusou a oferta, dizendo que estava contente por confiar em Nicky e em Bouncer, o qual tomara tal aversão por Francis que latia sempre que o encontrava fora do quarto, du­rante a noite. Bouncer abriu um par de olhos sonolentos e bateu gentilmente com o rabo no tapete.

Certo — respondeu Nicky, muito grato —, e se eu o prender ao pé da escada, depois que Francis tiver se recolhido, não poderá haver risco de ele lhe dar carne envenada, por que a criatura jamais seria capaz de aproximar-se tanto do cão. Bouncer acordará a casa inteira antes que Fran­cis tenha tido tempo de chegar ao topo da escada.

       - Bem, senhora, penso realmente que é sensata para não acrescentar demasiados detalhes às suspeitas que ainda podem se revelar sem fundamento — disse John. — Na verdade, quando reflito seriamente, vejo-me relutante em acreditar que não estamos — todos nós — em busca de algo ilusório maravilhoso.

Uma observação tão desanimadora não podia ter sido prevista para agradar a Nicky, que foi motivado a travar um debate com o irmão de ma­neira muito acalorada. Mas quando, poucos minutos antes do jantar ser anunciado, Francis saiu do seu quarto e desceu, seu comportamento deu aspecto de verdade às idéias prosaicas de John. Ele exibia, além de um traje preto, embelezado com um lenço debruado de crepe, um semblante tão aca-brunhado, que era difícil suspeitar de sua duplicidade. Seu pensamento pa­recia estar inteiramente absorvido por dois infortúnios: o da morte de seu amigo e o do seu resfriado incipiente, e não era fácil determinar qual se agi­gantava mais em seu cérebro. Sempre que o pensamento em Louis De Cas­tres vinha4he à mente, lançava-o num silêncio rompido apenas por profun­dos suspiros; mas sua conversa em sua maior parte girava em torno de uma garganta inflamada que ele esperava não ter que descobrir que estava in-feccionada. Comeu frugalmente um pouco de torta de faisão, brincou com o creme à base de licor de amêndoas e, pesaroso, recusou-se a provar o queijo assado. Nicky, cuja ambição era instigá-lo para que se traísse, revelou-lhe a descoberta da escada secreta, mas como a revelação foi rece­bida com um forte estremecimento e uma súplica insistente para que a sra. Cheviot trancasse com segurança essa característica indesejável da casa, não se poderia dizer que ele obtivera muito proveito com esse ardil. Nenhuma referência aos papéis de Eustace Cheviot alcançou melhor sucesso. Fran­cis disse que não tinha dúvidas de que estivessem na maior das confusões, mas rogava que ninguém lhe pedisse para ajudar a esclarecê-la.

—      Pois não tenho cabeça para negócios, queridos rapazes; positiva­mente nenhuma! Seu estimável irmão fará muito melhor sem mim. Estou muito grato que seja ele e não eu o executor do testamento do pobre Eus­tace!

Quando o grupo se reuniu na sala de estar depois do jantar, ele logo detectou uma corrente de ar, e orientou Nicky quanto à colocação do lindo biombo bordado para que ele pudesse ficar protegido contra ela. Mas nem isso serviu, e, com muitas desculpas a Elinor, ele desejava que Nicky cha­masse Crawley para ajudá-lo.

—      Pois se eu apanhar um dos meus resfriados, vocês sabem, posso ter de ficar preso em Highnoons por um mês — disse ele seriamente. — A idéia de submeter a sra. Cheviot a tal inconveniência é muito perturbadora.

Elinor só podia esperar que seu semblante não denunciasse o quanto concordava inteiramente com ele. A srta. Beccles apresentou-se com tra­tamentos, e Crawley imediatamente aconchegou-lhe o manto aos ombros e prometeu aprontar um escalda-pés de água quente e mostarda quando ele fosse para a cama. O que logo ele fez, permitindo que Nicky exclamasse:

—      E o sujeito mais insignificante! Ora, eu o considero pior que o Eus­tace, e quanto a ficar com medo dele, ora bolas!

Até a. srta. Beccles permitiu que a dissuadissem de amarrar o varal no­vamente no trinco da porta do quarto de Nicky. Bouncer foi amarrado no corrimão ao pé da escada, e munido de um tapete onde pudesse estender-se. Contudo, isto revelou-se um fracasso, porque o animal de espírito livre,incapaz de tolerar essa restrição à qual não estava acostumado, latiu tão persistentemente que Nicky foi obrigado a soltá-lo.

     Depois disso, a paz desceu sobre a casa e não foi rompida até que obarulho das pás de lixo e das escovas anunciasse que os criados estavam mais uma vez em atividade.

Mal Elinor levantara-se da mesa do café, e Crawley apresentava-se a ela, exibindo a expressão mais lúgubre e informando-a de que seu amo não se achava nem um pouco melhor e pedia-lhe que fosse chamado um mé­dico. Ela prometeu que um recado seria enviado ao dr. Greenlaw e espe­rava que o sr. Cheviot pudesse comer alguma coisa.

—      Obrigado, madame, apenas um pouco de mingau ralo — disse Crawley. — Tomei a liberdade de pedir à cozinheira para fazer gelatina de araruta para o meu amo, que ele talvez possa comer um pouco mais tarde.

—      Carne de carneiro e verduras fazem um caldo muito substancioso — sugeriu a srta. Beccles, muito prestativa.

O criado fez uma reverência, mas sacudiu a cabeça.

—      Obrigado, senhorita, meu amo não tolera carne de carneiro. To­mei a precaução de trazer na valise maior um pote de Geléia Suína Reconstituinte do Dr. Ratcliffe, e vou tentar convencer meu amo a tomar uma colher de vez em quando.

Uma indagação na cozinha corroborou esse relato, juntamente com uma tirada da sra. Barrow sobre os hábitos enfermiços de um jovem cava­lheiro que devia, julgava ela, deixar de tratar-se como um inválido dessa maneira.

Não lembro de nenhuma vez que o sr. Francis estivesse aqui sem fi­car doente — comentou Barrow calmamente. — Lembro de uma vez quando ele torceu o tornozelo e ficou histérico como se estivesse sendo consumido pelo fogo. Acho que vamos ter ele esta semana inteira brigando com a gente.

Santo Deus, não o teremos aqui, não! — declarou Nicky, quando isto lhe foi comunicado. — Já entendi o jogo dele, prima; ele pensa conti­nuar aqui até que possa nos pegar desprevenidos, mas isso não nos con­vém! Eu mesmo vou buscar Greenlaw... Rufus precisa de um bom galope, você sabe!... e veremos se não o trago para que ele tire Francis da cama hoje mesmo! Sim, e a caminho de Londres, o que é mais importante!

—      Tomara que consiga! — disse ela. — Mas não sei como seria possível.

Os olhos dele dançaram.

—      Ainda não sabe? Varíola no povoado!

Ela foi obrigada a rir, mas duvidava que ele pudesse convencer o res­peitável médico a pregar uma mentira tão revoltante.

—      Oh, meu Deus, convenço, nada mais fácil! — garantiu-lhe Nicky. — Sempre consigo com que o velho Greenlaw faça o que eu quero. A única dificuldade é que talvez tenha de caçá-lo por toda parte. Mas acho que des­cobrirei em que direção ele foi fazer suas visitas. Todo mundo conhece seu cabriolé!

   Saiu em direção aos estábulos, acompanhado por Bouncer, o qual, en tretanto, ele trouxe de volta, fechando-o firmemente em casa. Bouncer, de­pois de ficar arranhando vigorosamente a porta da frente durante algum tempo, e voltando-se para ela em um crescendo dos mais angustiantes sons, foi atraído pela srta. Beccles, que lhe estendia um osso como isca para que ele a seguisse até os fundos da casa. Ali ele consumiu a oferta, partindo de­pois para uma expedição de pilhagem por conta própria, pulando por uma janela baixa que ele encontrou convenientemente aberta. Elinor, que o avis­tara de uma janela do andar superior, ordenou-lhe severamente que vol­tasse, uma ordem à qual ele fez ouvido de mercador. Uma chance de usufruir de um divertimento matutino era algo que não lhe acontecia ulti­mamente, e ele não era daqueles que deixavam escapar uma oportunidade.

     Elinor, aceitando a derrota, fechou a janela e desceu em direção à co­zinha para uma prolongada conferência com sua chatelaine. Afastando-se por fim da volubilidade da sra. Barrow, foi para a biblioteca, para es­crever uma cuidadosa carta de explicação nada convincente à sua tia So-phia, a qual, segundo uma de suas primas a prevenira, estava com a intenção de mandar seu submisso marido a Sussex para descobrir a verdade sobre as núpcias condenáveis da sua infeliz sobrinha. Estava ocupada com essa tarefa quando a srta. Beccles entrou com um inventário que a deixou im­pressionada, de toda a roupa branca da casa, escrito em sua caligrafia de estilo delicado e elegante, com anotações prolixas na descrição de rasgões, cerzimentos e remendos pouco consistentes, uma formalidade que a pe­quena governanta insistia que devia ser observada. Depois a srta. Beccles tornou a afastar-se, determinada a compilar com todo o zelo um inventá­rio adicionai, desta vez de todos os picles, conservas, frutas secas e remé­dios caseiros disponíveis na destilaria. Elinor terminou sua carta, colocou-a no envelope, selou-a e colocou-a de lado a fim de que Carlyon a enviasse para ela. Para agradar a srta. Beccles, passou os olhos descuidadamente pelo inventário, rubricou-o, como fora orientada, e dobrou as folhas grossas com capricho. Ocorreu-lhe que Nicky, a esta hora, já devia ter voltado, e lançou um olhar para o relógio sobre o consolo da lareira, só para ficar exas­perada pela décima quinta vez desde que viera para Highnoons, ao cons­tatar que estava parado. Levantou-se com o inventário dobrado ainda na mão, e encaminhou-^ para a lareira, pretendendo descobrir se o relógio estava quebrado, como tudo levava a crer, ou se estava apenas com falta de corda. O mecanismo só podia ser alcançado por trás; assim, ela deposi­tou o inventário no consolo, cuidadosamente, deslocou o pesado relógio aproximadamente em ângulo reto para a parede. Descobriu que a porti-nha para o mecanismo estava fechada e que resistia aos seus esforços para abri-la; portanto, foi obrigada a abandonar a tentativa e recolocar o reló­gio no lugar. Apanhou de novo o inventário e estava exatamente arrumando a posição do relógio, que ela não colocara direito, quando um leve ruído chegou aos seus ouvidos, como de uma tábua estalando. Suas mãos larga­ram o relógio; ela já se aprontava para se virar quando algo atingiu-a, um golpe atordoante na cabeça, e derrubou-a sem sentidos.

 

entrando por uma das portas laterais que se abria para uma ante-sala, Nicky pendurou o chapéu e o chicote, e, em largas passadas, dirigiu-se ao vestíbulo da frente, gritando para a srta. Beccles, que ele viu no topo da escada:

—      Onde está prima Elinor? Tive um trabalho dos diabos para achar o médico! Mas eleja está vindo, não há perigo! Ora, o quê está havendo?

Esta indagçãofoi causada pela voz de Francis Cheviot, que, agitado, chamava aos gritos na biblioteca:

—      Srta. Beccles! Crawley! Barrow! Nicholas! Ninguém me ouve? Ve­nham imediatamente! Oh, Deus, o que pode ter acontecido?

Em dois tempos Nicky chegou à porta da biblioteca. Parou subitamente diante da visão de sua anfitriã inanimada, estendida no tapete da lareira, com Francis Cheviot ajoelhado ao lado dela, aturdido, salpicando água de um vaso de anêmonas no rosto pálido da moça. As anêmonas estavam es palhadas ao lado dela; a almofada de um dos assentos da janela fora lan cada ao chão; e uma folha da janela balançava escancarada nas dobradiças.

- Seu miserável, o que você fêz?- trovejou Nick, precipitando-se para eles.

Não perca tempo em perguntar o que eu fiz! — suplicou-lhe Francis. — Chame a srta. Beccles, meu querido rapaz! Penas calcinadas! Onde está Crawley? Ele saberá o que fazer para reanimá-la! Oh, Deus, o que será que aconteceu com ela? Meus pobres nervos!

A essa altura a srta. Beccles chegara ao local, e, com um grito, correu em direção ao grupo ao lado da lareira.

—      Elinor, meu bem! Sra. Cheviot! Oh, o que é que há? O que a fez desmaiar? Por favor, deixe-me chegar até aí, sr. Nicky! Corra rapidamente até a cozinha e peça a sra. Barrow um punhado de penas de faisão!

—      Isso, isso, e chame aquele idiota do meu criado! — implorou Francis. — Ele nunca está onde é necessário! Preciso que me traga meus sais aromáticos e o carbonato de amônia imediatamente. Ela parece extremamente pálida! Não sei quando passei por um choque desses! Há quanto tempo ela está deitada aqui? É uma sorte que suas roupas não tenham ficado em chamas por uma fagulha desse fogo! Apresse-se, meu querido rapaz!

O que fez a ela? — perguntou Nicky exasperado.

Querido Nicholas, o que eu poderia fazer! Não tive tempo de fazer outra coisa a não ser agarrar esta jarra de flores e jogar água nela, e nem ao menos adiantou! Por favor, vá buscar Crawley! Ele é muito expe­dito, sempre sabe o que fazer em casos de doença!

Nicky permaneceu irresoluto por um momento, mas diante das súpli­cas da srta. Beccles para que se apressasse, virou-se de repente e precipitou-se em direção à cozinha. Quando chegou com os Barrows, entrando alvoro­çados na biblioteca, teve oportunidade de refletir na improbabilidade de Francis ter participado de alguma forma dessa situação difícil em que Eli-nor estava. Não conseguia imaginar uma razão plausível para assaltarem-na, e começou a pensar que ela devia ter sido surpreendida por uma verti­gem. Ainda estava inconsciente, mas a srta. Beccles, em resposta a uma in­quieta indagação de Francis, assegurou-lhes que o pulso dela batia. Aban­donando suas tentativas de auxiliar a srta. Beccles, Francis deixara-se cair numa poltrona e parecia estar precisando tanto de reanimação quanto sua anfitriã. Seja como for, assim também pensou o criado quando chegou, em resposta ao berro de Nicky, e, na mesma hora, retirou do bolso o frasco de sais e o manteve sob o nariz do patrão. Foi logo rejeitado.

— Leve-o para a sra. Cheviot! — Francis disse debilmente. — Não devo ser egoísta, e acho que não terei um dos meus espasmos se ficar bem quieto por alguns minutos.

A corrente de ar que vinha da janela aberta fazia com que o fogo ex­pelisse jatos de fumaça no aposento; Nicky disse:

— Está certo que você tenha aberto a janela, mas é mais provável ela ser asfixiada por esta fumaça do que obter o mínimo benefício dessa dia­bólica corrente!

— Aberto a janela! Você não imagina que eu tenha sido tão impru­dente! — exclamou Francis. — Santo Deus, eu não tinha notado! Por fa­vor, feche-a imediatamente, querido rapaz! Quer que eu morra de uma inflamação pulmonar?

           Nicky fechou-a com um puxão, mas virou-se para lançar um olhar de suspresa.

         — Não foi você que escancarou a janela? Então quem foi? Elinor nãoestaria sentada aqui com todo esse vento entrando na sala! E como essa almofada veio parar no chão?

       O cheiro de penas queimadas começou a misturar-se com a fumaça; a srta. Beccles ergueu os olhos e disse:

— Não, não, ela não teria sentado aqui com a janela aberta num dia como este! Eu sei que ela não estava aberta quando entrei nesta sala ape­nas meia hora atrás! Oh, o que pode ter acontecido? É possível que alguém tenha estado aqui e fugido pela janela?

Não com Bouncer na casa! — garantiu Nicky.

Oh, mas o cachorrinho levado saiu para suas caçadas! Eu não de­via tê-la deixado, mas, francamente, nunca imaginaria... e também em plena luz do dia!

Você está me dizendo — falou Francis, com voz balbuciante — quealgum alucinado pôde entrar nesta casa sem qualquer impedimento?

Pode ter sido assim, pois a porta lateral não está trancada —- disse Nicky bruscamente. — Eu mesmo entrei por ela. Mas que alguém tivesse ousado... — Ele interrompeu-se, pois uma campainha soava ao longe.

É na porta da frente, é sim — disse Barrow, metendo na mão da es­posa a garrafa de cristal com o conhaque que tinha nas mãos, e foi atender.

Crawley — disse Francis fracamente —, se a srta. Beccles não está usando meus sais, por favor, traga-os para mim! Obrigado... e talvez um pouco desse conhaque. Sim, chega. Agora vá e tranque toda porta que en­contrar aberta! Não consigo entender como alguém poderia ser tão descui­dado, pois como se pode dizer que não há malfeitores na vizinhança, aguardando apenas uma chance para roubar uma casa? Acho que talvez haja ciganos na redondeza, e tenho o maior pavor de ciganos! Não respondo pelas conseqüências se houver alguma possibilidade da casa ser assaltada de novo, pois já estou com o maior medo de ter um dos meus espasmos. Talvez fosse bom, também, querido Nicholas, se você tomasse precauções, dando uma busca no jardim. Não consigo ficar tranqüilo até saber que nin­guém está escondido naqueles arbustos assustadoramente crescidos, como acho que bem poderia ser o caso.

— Ah, ela está voltando a si! — exclamou a srta. Beccles, friccionando ternamente as mão lassas de Elinor. — Pronto, meu bem! Pronto, pronto!

Ouviu-se um passo rápido e firme aproximando-se pelo vestíbulo; mais um instante e Carlyon já entrava na sala, ainda vestindo sua capa de via­gem e luvas. Com um olhar rápido, percebeu a cena; retirando as luvas, disse:

O que é isso? O que a fez desmaiar?

Nós realmente não sabemos! — respondeu a srta. Beccles. — O sr. Cheviot encontrou-a estendida aqui, e nos chamou para socorrê-la. Mas ela está melhor! Veja, ela começa a se mexer, e a recuperar um pouco as cores! Elinor, meu bem!

—      Ned! Encontrei esta janela escancarada e esta almofada no chão, como se tivesse sido chutada do assento! E olhe para isto! Acabei de ver que dois ganchos da cortina foram arrancados!

Carlyon lançou um rápido olhar superficial para a janela, transpôs de um passo a sala até a lareira, apoiou-se em um joelho no chão, ao lado de Elinor, e levantou-a. Ergueu-se com ela em seus braços e caminhou até o sofá. Ela soltou um gemido e abriu os olhos, murmurando algo que ele não conseguiu captar. Carlyon disse calmamente:

Procure não falar, sra. Cheviot! Ficará melhor logo. Tenha a bondade de ajuntar um pouco mais essas almofadas, srta. Beccles! Nicky, vá buscar um pouco de conhaque para ela!

Já está aqui, se Francis não bebeu todo! — replicou Nicky.

Então ponha um pouco num copo — pediu Carlyon, depositando seu fardo no sofá, mas conservando um braço sob os ombros de Elinor.

Nicky apressou-se para colocar um copo em sua mão estendida com autoridade. Ele levou o copo aos lábios de Elinor, apoiando-lhe cuidadosamente a cabeça, e disse:

—      Tente beber um pouco, senhora! Vai se sentir muito melhor. Seus olhos, toldados a princípio, começaram a clarear; ergueu-os maneira aturdida para o rosto dele e sussurrou:

—      Minha cabeça! Oh, minha cabeça!

Ele a obrigou a beber um pouco do conhaque. Ela engasgou enquanto bebia, mas o líquido reanimou-a. Ela tremia convulsivamente, e, com uma das mãos, agarrou-o pelo pulso.

Fui atingida por alguma coisa! — disse, com voz rouca. — Oh, es­tou contente que tenha vindo! Por favor, não me deixe!

Não, certamente que não a deixarei — respondeu ele. — Mas se­ria melhor se você ficasse quieta por uns momentos. Não há nada para assustá-la agora. — Ele a deitou nas almofadas enquanto falava, e ela gri­ tou quando a cabeça pousou sobre elas.

Santo Deus, alguém atingiu-a na cabeça! — exclamou Nicky. — Prima Elinor, quem foi?

Ela estava deitada com os olhos fechados, e uma das mãos compri­mindo a testa.

Não sei. Ouvi um barulho. Depois algo me atingiu. Não sei de mais nada.

Pelo amor de Deus! — exclamou Francis, em voz estridente —, al­guém quer ir lá fora certificar-se de que ninguém está escondido no jardim? Como pode ser tão desatencioso, Nicky? Não tem consideração pelos ner­vos de outras pessoas menos insensíveis do que você? Se não for, então Crawley deve fazê-lo, mas diga-lhe para armar-se com a minha bengala-espada, pois seria chocante se ele fosse ferido por algum facínora! Não su­porto ter estranhos ao meu redor, e se ele estiver impossibilitado, serei obrigado a fazer isso eu mesmo.

 

Bem, irei lá fora dar uma olhada, mas pode estar certo de que não há ninguém lá — disse Nicky. — Se houvesse, há muito já deve ter ido embora!

Vá examinar —- mandou Carlyon. Ele assentiu com a cabeça para a sra. Barrow, que havia trazido uma bacia com água e algumas tiras de roupa branca velha. — Obrigado, sra. Barrow, isso é tudo. — Ele esperou que ela saísse da sala e em seguida curvou-se sobre Elinor outra vez. — Onde dói?

Ela virou a cabeça de lado na almofada, e agora levava a mão caute­losamente para a parte de trás, logo acima da nuca. O simples toque a fez encolher-se; ela abriu os olhos, dizendo:

Oh, tenho um machucado e tanto! Já posso sentir latejar!

Quer me deixar levantá-la, para que isso possa ser cuidado? — per­guntou ele, introduzindo o braço sob os ombros dela outra vez.

Ela suportou em silêncio, mas tinha uma sensação de tontura que a obrigou a pousar a testa contra o braço dele. A srta. Beccles já estava embebendo uma compressa na água fria e a teria levado à cabeça de Elinor se Carlyon não tivesse tirado a compressa de sua mão e aplicado ele mesmo gentilmente sobre o machucado. Elinor suspirou de alívio e murmurou:

Obrigada. Você é muito gentil.

- Se alguém pudesse chamar Crawley para mim outra vez, eu gosta­ria que ele misturasse carbonato de amônia e água num copo — disse Fran­cis. — Dois copos, pois creio que vou tomar um pouco também. Minha mão ainda está terrivelmente trêmula e me sinto muito indisposto. Pensar nessa horrenda violência, seguida, como se seguiu, do choque que já tive de suportar, foi demais para mim. Se não tiver certeza de que pude ser de alguma ajudinha para a sra. Cheviot, ficarei quase inclinado a desejar que não tivesse deixado meu quarto. Mas achei certo fazer o esforço e assim fiz. As janelas do meu quarto estão muito mal ajustadas; há uma corrente de ar terrível e nenhum bem resultaria da minha permanência ali.

Beba mais um pouco de conhaque, sra. Cheviot — disse Carlyon, apanhando novamente o copo e desconsiderando inteiramente as observa­ções de Francis.

Oh, eu preferiria não beber — suplicou ela.

Beba, acho que só lhe fará bem. Vamos!

Ela ergueu a mão vacilante para apanhar o copo e bebeu um pouco, aos golinhos, murmurando entre os espaços:

Estou certa de que meu crânio está quebrado!

E eu ainda estou mais certo de que não está — respondeu ele. — Você está se sentindo muito tonta e acho que sua cabeça dói atrozmente, mas é apenas um machucado.

Eu já devia ter calculado que seria odioso e insensível.

Sem dúvida que devia, pois sabe que não tenho um pingo de sensi­bilidade. Vamos, você já está melhor! Já começa a falar mais como você mesma.

Se minha cabeça não rodasse dessa maneira, eu teria muita coisa a lhe dizer! O senhor me tem tratado abominavelmente!

Vai me dizer de que modo eu tenho feito isso dentro em pouco — respondeu ele em tom tranqüilo.

Eu o avisei que era bem possível eu ser encontrada assassinada em minha cama!

Certo, mas não foi encontrada assim, e não consigo imaginar que isso possa vir a acontecer.

Realmente — disse Francis, levantando-se e cambaleando até a mesa —, fico feliz por ouvi-lo falar com tanta confiança, Carlyon, mas não posso compartilhar das suas persuasões otimistas! Quando penso que esta, segundo soube, é a segunda vez que um facínora assalta esta casa e comete um ato de violência brutal, admiro-me que continue tão calmo! Invejo sua feliz disposição, palavra de honra, invejo mesmo! — Ele tornou a encher seu copo e acabara de erguê-lo para levá-lo aos lábios quando Nicky vol­tou à sala.

O quê! Ainda restaurando as energias? — perguntou Nicky, com desdém. — Pode ficar tranqüilo! Não há ninguém no jardim, e Bouncer não voltou. Como vai, prima Elinor? Está mais disposta?

Oh, sim, obrigada! Estou melhor. Não há a menor necessidade de ficar segurando esse chumaço na minha cabeça, meu senhor, pois posso fazer isso muito bem eu mesma.

Meu bem, deixe-me umedecê-lo novamente, e depois farei uma atadura para segurá-lo no lugar — disse a srta. Beccles, que ficara rondando ansiosamente atrás do sofá.

—      Prima Elinor, aquela janela estava aberta quando você foi atacada? — perguntou Nicky.

—      Oh, não! Isto é, não tenho lembrança se estava. O vento sopra­va para este lado da casa, e estou certa de que teria notado. Por quê? Encontrou-a aberta?

—      Sim, escancarada, e a cortina parcialmente arrancada! Nervosa, sobressaltou-se e olhou temerosamente para a janela.

Não diga uma coisa dessas! Alguém fugiu por ela? Mas como con­seguiu entrar? Não ouvi nada, até que uma tábua, como eu supus, estalou bem atrás de mim. Becky, você fechou a porta quando me deixou, não fe­ chou? Certamente eu teria ouvido se alguém a tivesse aberto!

Oh, não teria não, meu bem! — disse a srta. Beccles, atando ternamente o chumaço na posição outra vez. — Admiro-me de que não te­nha percebido que estive esfregando sabão nas dobradiças! Rangiam tão horrivelmente, você se lembra? Mas não há nada como sabão para conser­tar uma porta que range!

Alguém pensou em verificar se alguma coisa de valor está faltando? —         indagou Francis. — Realmente não desejo dar a impressão que estou me pondo em evidência demais, mas me parece... Entretanto, se não lhes ocorre dar importância ao fato, por favor, não permitam que alguma preo­cupação de minha parte possa influenciá-los.

Como ninguém lhe prestava a mínima atenção, essa recomendação pa­receu desnecessária. Carrancudo, Nicky concentrava-se nas próprias preo­cupações; a srta. Beccles ocupava-se, dando um nó na atadura; a vítima repousava com os olhos fechados; e Carlyon permanecia ao lado do sofá, olhando para ela.

Foi Nicky quem quebrou o silêncio.

Não vejo como pôde ter acontecido! — declarou ele subitamente.

Acho que imaginei a coisa toda — murmurou Elinor.

Bem, quero dizer, não vejo por que alguém atacaria você na ca­beça, prima. O que estava fazendo?

Nada — respondeu ela, deprimida. — Estivera escrevendo uma carta que deixei de lado na esperança de que Lorde Carlyon pudesse enviá-la para mim.

Sem dúvida que enviarei, mas não se preocupe com isso agora, sra. Cheviot.

Certo, mas não faz sentido! — insistiu Nicky. Seus olhos pousa­ram no inventário dobrado, ainda caído no tapete da lareira. No mesmo instante, apoderou-se dele. — O que é isto? Seis pares de lençóis de linho, com monogramas, em bom estado. Quatro idem, com ligeiros cerzimentos...

É apenas o inventário de toda a roupa branca, que Becky acabara de me entregar. Eu devia estar com ele na mão, mas não lembro com exati­dão. Eu tinha ido até o consolo da lareira, para ver se poderia dar corda no relógio, mas ele está trancado, e eu acho... sim, tenho certeza... de que tornei a pegar o inventário, pretendendo colocá-lo num lugar seguro, quando de repente algo me atingiu com um golpe e tanto!

Nicky estava a ponto de dizer alguma coisa, seus olhos cintilando de excitação, quando surpreendeu o olhar sensato de Carlyon; então calou-se, corando até a raiz dos cabelos, muito arrependido. Contudo seu cons­trangimento foi breve, pois Barrow, naquele exato momento, enfiou a ca­beça na sala para anunciar, com sua falta de cerimônia costumeira, que o cabriolé do médico subia a entrada para carruagens.

As sobrancelhas de Carlyon arquearam-se, indicando uma ligeira sur­presa, porém ele disse:

Ele é muito bem-vindo. Peça ao dr. Greenlaw que venha até aqui, Barrow!

Ora, sem dúvida que é bem-vindo! — exclamou Francis. — Fica­rei muito satisfeito em subordinar minhas exigências às da sra. Cheviot, mas você precisa saber que o médico veio para me ver, meu caro Carlyon. Contraí uma das minhas infecções de garganta no funeral do pobre Eustace; eu já temia muitíssimo que isso viesse a acontecer, pois lá soprava um vento horrivelmente penetrante, e eu não ficaria absolutamente admirado se a umidade tivesse penetrado nas minhas botas enquanto ficamos ao re­dor daquela sepultura deprimente. Mal pude fechar os olhos a noite toda, asseguro-lhe, pois a mínima coisa é capaz de provocar meu tique nervoso, e você sabe que muita coisa tive de suportar. E agora esse choque brutal, com a chegada infeliz da notícia cruel sobre o meu pobre e querido Louis! Mas eu não gostaria que me julgasse egoísta, e certamente o digno médico... uma pessoa antiquada, ouso afirmar, mas, de qualquer modo, talvez possa preparar uma dose de calmante para mim que não me irá envenenar... sem dúvida ele virá para a sra. Cheviot primeiro.

Quando ele chegou ao fim deste discurso que demonstrava o grande sacrifício que fazia, o médico já se encontrava na biblioteca e fazia uma reverência para Carlyon. Com mão lânguida, Francis acenou para o sofá e disse:

—      Quer ter a gentileza de cuidar da sra. Cheviot, senhor, e depois su­bir até meu quarto? Eu a deixarei agora, senhora, na esperança fervorosa de que logo venha a se encontrar muitíssimo melhor. Ah, Barrow, mande Crawley para mim, por favor! Precisarei do seu braço para ajudar-me a subir as escadas. Na verdade, não posso imaginar por que ele não está à mão! Que desumano! É incrível!

Com uma expressão de absoluta perplexidade, o médico ficou olhando para ele enquanto Francis se afastava, em seguida desviou o olhar para Nicky, no qual havia uma indagação.

—      Sim, é esse sujeito que você tem de fazer sair correndo desta casa — disse Nicky, sem rodeios.

Carlyon interrompeu, dizendo em voz baixa:

—      Chegou no momento exato em que precisávamos de você, Greenlaw. A sra. Cheviot sofreu uma queda e contundiu a cabeça de maneira dolorosa. Por favor, faça o que puder para torná-la mais confortável! Vou deixá-la, senhora, neste momento.

Ao ouvir isso, ela abriu os olhos.

—      Lorde Carlyon, se deixar esta casa antes que eu tenha tido a opor tunidade de lhe falar, isso será a coisa mais monstruosa que já imaginei pos­sível... até no senhor! — declarou ela francamente.

—      Não pretendo fazer isso, sra. Cheviot! Voltarei quando Greenlaw tiver terminado de fazer o que puder por você. Venha, Nicky!

Nicky admitiu que fosse levado da sala. Estava simplesmente explo­dindo com algo que desejava dizer, e mal podia esperar até conseguir ar­rastar o irmão para a sala de estar, fechar firmemente a porta e exclamar:

Ned! Compreendi tudo! Você estava certo!

Estava? De que maneira?

Ora, em dizer que Francis era perigoso, é claro! Pois nada pode­ria ser mais óbvio! A princípio não compreendi por que ele teve de fazer uma coisa dessas, mas assim que encontrei aquele inventário, deixei-o ex­citado! Deus do céu, e você impediu a tempo que eu falasse sem pensar so­bre o que suspeitava! Fiquei tão surpreso, sabe, que não refleti no que estava a ponto de fazer. Mas imagino que nenhum mal causei!

Não, absolutamente nenhum. Na verdade... Mas continue, Nicky!

Estou tão certo como estou aqui de pé que foi Francis quem ata­cou prima Elinor! Não sei como um sujeito franzino daqueles conseguiufazer isso, mas...

Calculo que ele tenha usado o pesa-papéis da escrivaninha.

O quê? Você sabia, então?

Não, mas não vi nenhum outro instrumento que pudesse ter sido apanhado por ele ao entrar na biblioteca.

Santo Deus, você pensou em olhar? Isso não passou pela minha cabeça, como às vezes acontece, mas acho que poderia ter passado. Mas escute só, Ned! Você ainda não sabe de tudo!

Estou ouvindo. Já deduzi, é claro, que se livraram de você, mandando-o em busca do médico.

Exato, eu fui... só que essa também era minha intenção, mas acho que ele teria encontrado outro meio se eu tivesse deixado o cavalariço ir. Suponho que ele contava que fosse eu a pessoa a ir, quando disse que pre­cisava que fossem buscar Greenlaw. Mas o caso é o seguinte, Ned, ele dei­xou que todos soubessem que estava muito doente para sair do quarto e pediu à sra. Barrow que lhe preparasse gelatina de araruta, que só comeria mingau no café da manhã... essa baboseira toda! Em seguida, nem bem me pusera a caminho e Bouncer saiu para caçar... embora isso tenha sido a mais pura sorte, pensando bem agora, pois talvez ele contasse que eu le­vasse Bouncer... de qualquer modo, desembaraçou-se de nós dois, e era pro­vável que as mulheres estivessem ocupadas pela casa, como costumam estar àquela hora, embora eu realmente não saiba o que elas tanto fazem, e as­sim o sr. Francis desce, na esperança de não encontrar ninguém. Entra de mansinho na biblioteca, e o que vê?

A sra. Cheviot, com um documento na mão, exatamente igual ao que ele está procurando.

Isso mesmo! Ele deve ter calculado que ela o encontrara de repente, talvez na escrivaninha, numa gaveta secreta, onde eu mesmo pensei que pu­desse ter estado. Ele estava decidido a tirá-lo dela, a todo custo, você sabe, e assim aíacou~a, Santo Deus! Eu daria tudo só para ter visto a cara dele ao descobrir que era apenas uma lista qualquer de lençóis e toalhas! E de-duzo, Ned, que deve ter sido nesse momento que apareci no vestíbulo e co­mecei a chamar pela prima Elinor. Ele deve ter calculado que eu entraria direto na biblioteca, portanto não teve tempo de fugir; em vez disso, es­cancarou a janela e criou aquele estrago só para nos fazer pensar que al­guém pulara para o jardim, e espalhou uma porção de anêmonas ao redor da prima Elinor, e...

Ele realmente fez isso? Parece um julgamento um pouco apressado — disse Carlyon secamente.

É? Oh, compreendo! — exclamou Nicky, com uma risada. — Não sei, mas ele borrifou o rosto dela com a água da jarra para que eu acredi­tasse que fazia o possível para reanimá-la. Não pensei nada disso, pois es­pero não ser tão bobo! Mas e se aquele fosse o documento, Ned, e eu não tivesse tido a oportunidade de entrar exatamente naquela momento?

imagino que ele teria voltado para a cama — respondeu Carlyon.

Julgo que teria mesmo — admitiu Nicky. — E julgo que não po­deríamos responsabilizá-lo pelo roubo. Não que... Contudo, isso não im­porta, pois ele não está em melhor situação do que estava! Mas o que fará a seguir?

Sim, o que fará?

Ned, você tem alguma idéia? — perguntou Nicky, desconfiado.

Tenho muitas idéias.

Não, não deixarei que me provoque! isso é muitíssimo sério!

É mesmo, e lá está Greenlaw, imagino, vindo da biblioteca. Seriamelhor você levá-lo ao quarto de Francis — disse Carlyon, indo em dire­ção à porta.

Ned! Se você não me contar, será muito vergonhoso de sua parte! Você sempre sabe tudo!

Será vergonhoso, Nicky, mas você pensa que sei tudo porque nunca lhe conto algo do qual não esteja totalmente certo — respondeu Carlyon, virando-se para olhá-lo, com um leve sorriso. — Que triste golpe seria para a minha vaidade se você descobrisse que eu posso enganar-me tão facilmente como qualquer outra pessoa! Você precisa deixar que eu mantenha a mi­nha reserva até que esteja certo. E agora preciso voltar para junto da sra. Cheviot.

 

A sra. cheviot encontrava-se recuperada o bastante para poder ficar de pé. Uma atadura um pouco mais profissional rodeava-lhe a cabeça, e ela, repugnada, bebia aos golinhos um preparado de péssima aparência. À vista de Carlyon, conseguiu esboçar um débil sorriso, mas a moça ainda estava pálida e, evidentemente, muito abalada. Mas um pouco da sua vivacidade de espírito já parecia ter-se restaurado, pois Carlyon nem bem chegara a avançar dois passos no aposento, quando ela, em um tom imparcial, ob­servou:

—      Estive relembrando que o senhor me disse que eu poderia ficar certa de que nenhuma conseqüência desagradável resultaria do meu casamento com seu primo. Gostaria, meu senhor, que me dissesse o que considera uma conseqüência desagradável?

Ele sorriu.

Eu disse isso?

Junto com algumas outras coisas falsas. Na verdade, praticamente me disse que estava me salvando de todos os horrores da casa da sra. Macclesfield, propondo-me paz e prosperidade para o resto dos meus dias. Nunca fui tão enganada!

Gostaria de saber por que sua mente recorre constantemente à sra. Macclesfield — replicou ele.

Oh, como sabe, há uma propensão natural de se pensar com tris­teza no que poderia ter sido!

Meu bem! — interrompeu a srta. Beccles, ansiosa. — Não gosta­ria de ir lá para cima e deitar em sua cama, como o bom dr. Greenlaw aconselhou-a a fazer? Sei que está com dor de cabeça, e ele receitou esse calmante para fazê-la dormir, lembre-se!

Sim, querida Becky, eu vou, mas nem todos os calmantes do mundo conseguiriam me fazer dormir antes que eu tivesse tido a oportunidade de falar com Lorde Carlyon. Vá primeiro e peça a Mary para colocar um ti­jolo quente na minha cama; irei ter com você daqui a pouco!

à srta. Beccles parecia indecisa, mas Carlyon interveio para assegurar-lhe que mandaria a sra. Cheviot para cima dentro de alguns minutos; as­sim, depois de colocar os sais aromáticos ao alcance da sua mão e pedir a Elinor que não esquecesse de terminar de beber a poção, ela afastou-se, em movimentos rápidos.

—      Bem, sra. Cheviot — exclamou Carlyon, caminhando até a lareira e parando para aquecer as mãos. — Já passou por uma experiência um tanto desagradável, receio, e estou convencido de que me responsabiliza pelo fato.

O que o levaria a pensar assim? — admirou-se a viúva. — Afinal sei que esteve em Londres desde ontem.

Oh! É isso, não é? Mas pareceu-me conveniente ir a Londres, e achei que reconheceria meu mérito por ter feito o máximo possível para vol­tar rápido para você.

Não reconhecerei mérito nenhum. Acho que o senhor foi até lá para encomendar um novo par de botas!

Não foi isso, mas se eu lhe contasse meu objetivo, você o julgaria insignificante, ouso afirmar. — Ele endireitou o corpo e disse, sorrindo: — Está muito contrariada comigo por tê-la deixado, senhora?

A sra. Cheviot sentiu o rubor subindo-lhe às faces e apressou-se em responder:

Contrariada! Não, é claro que não! Principalmente quando foi tão atencioso ao informar Nicky de que acreditava que o sr. Francis Cheviot fosse um homem perigoso! Realmente devo-lhe ser muito grata pelo aviso, e deve ser minha culpa, sem dúvida, que eu agora tenha um inchaço grande como um ovo na cabeça!

É lamentável que Nicky não consiga aprender a ficar calado — ob­servou ele. — Na realidade eu não esperava que Cheviot fosse perigoso para a senhora.

A sra. Cheviot conseguiu beber mais outro gole do calmante.

—      Naturalmente, tudo que se passou eu sonhei! — disse. — E nem sequer fui atingida na cabeça!

Ele riu.

Está fazendo o acontecimento estender-se muito, sra. Cheviot. Es­tou certo de que ficou assustada, mas não houve grande dano, e é impro­vável que venha a sofrer qualquer outra contrariedade.

Oh! — exclamou ela num grito sufocado. — Oh, como o senhor é abominável! Não houve grande dano, com efeito! Outra contrariedade! Por favor, com que termos teria descrito meu assassinato?

Ele não respondeu durante algum tempo, depois disse, laconicamente:

Não estamos falando sobre assassinato, senhora.

Mas estará, se pretende me manter ligada a esta casa horrível!

Tolice! Se foi Francis Cheviot quem atacou você, como acredito que foi, acho que era a última coisa que ele desejava ser obrigado a fazer.

Talvez aceite o conforto que isso possa me dar! Mas por que ele teria sido obrigado a fazer algo dessa espécie?

Ele hesitou, depois disse:

—      Você estava com alguns papéis dobrados na mão que talvez pudes­sem ser os benditos papéis que ele deseja.

Ela ergueu os olhos para ele, com uma das mãos comprimindo n têmpora.

Com que então devo agora cuidar para nunca ter um papel na mão por temer ser atacada pelas costas? Meu senhor, isso é monstruoso! Acho que ele já deve me ter visto com papéis na mão uma dúzia de vezes!

Sim, possivelmente, mas...

Mas o quê? — perguntou ela quando ele parou de falar e afastou-se para ajeitar o fogo.

Talvez isso o tenha assustado, senhora, e ele lançou-se a uma falsa conclusão. Qualquer que seja a resposta, dou minha palavra, não creio real­mente que esteja correndo algum perigo! — Houve uma pausa, enquanto ela o olhava, em dúvida. O semblante do rapaz descontraiu; ele disse: — Na verdade, minha pobre criança, você tem passado um período desagra­dável em Highnoons, e eu sou um miserável por conservá-la aqui. Permita que a leve, juntamente com a srta. Beccles, para a Mansão.

O rubor invadiu-lhe as faces com esse convite; Elinor tinha o mais es­tranho desejo de desfazer-se em lágrimas e buscou refúgio em uma de suas expressões caçoístas:

O quê? E deixar aquela criatura revistar a casa à vontade? Não, não mesmo! Espero ser mais corajosa do que isso, senhor! Se devo ser uma mártir dessa causa, por certo assim foi ordenado, e eu confio no senhor para ter uma linda sepultura!

Sem dúvida que pode confiar! — respondeu ele, sorrindo e esten­dendo a mão. — Isto é um pacto então, e você continua aqui.

Ela colocou a mão na dele.

É um pacto. Mas por quanto tempo devo agüentar aquela criatura lá de cima?

Eu não ficaria admirado se você ficar livre dele mais cedo do que espera. Peço-lhe que não se preocupe, pensando em Cheviot.

Os olhos dela sondaram o rosto dele.

Mas ele irá embora sem o que veio procurar, senhor?

Espero que possa ser induzido a fazê-lo.

O senhor irá induzi-lo? — perguntou ela.

Talvez. Farei o que for possível. Você já se aborreceu demais com a permanência dele aqui.

Ela concordou, mas acrescentou, depois de um momento de reflexão:

Contudo, se ele se for, quem será capaz de dizer quais os próxi­mos horrores que podem estar reservados para mim?

Não haverá nenhum, dou minha palavra.

Muito bonito, meu senhor, mas tenho sido forçada a observar mui­tas vezes a disparidade notável que existe entre as minhas noções do que é horrível e as suasl Algum dia já lhe fizeram perder a calma?

Muitas vezes.

Ela sorriu um pouco maliciosamente.

Irá me considerar muito insolente, meu senhor, se eu disse: que essa confissão me dá uma idéia excessivamente estranha da vida que deve levar na Mansão? Por que o senhor tem tratado todos os acontecimentos ocorridos na última semana como as mais simples banalidades, desde a morte do seu primo pelas mãos de Nicky até a descoberta de uma traição perigosa com a qual topou por acaso. Essas coisas não parecem ter o po­der de perturbar o controle de sua mente! Eu o invejo!

Bem — respondeu ele, pensativo —, duas das minhas irmãs e meu irmão Harry sempre estiveram fazendo coisas tão extravagantes que eu penso que devo ter perdido o costume de ficar muito surpreso com alguma coisa.

Ela riu e ficou de pé, um tanto trêmula. Ele a tomou pelo cotovelo para ajudá-la, e acompanhou-a até a porta. Ela separou-se dele no vestíbulo, recusando seu oferecimento de levá-la até o andar de cima.

Eu realmente estou bem agora! Não pretende ir outra vez a Lon­dres, espero.

Não, creio que ficarei retido em Sussex durante algum tempo. Você só tem de mandar um recado à Mansão, se desejar falar comigo. Permita que eu novamente insista em que não precisa ficar mais assustada.

Ela exibia uma expressão zombeteira, mas como o médico naquele mo­mento apareceu no topo da escada, não lhe deu nenhuma resposta, ao con­trário, continuou subindo, apoiando-se no balaústre, e disse:

—      Pretende censurar-me, dr. Greenlaw, mas na verdade estou indo para o meu quarto, e já bebi aquela poção horrível toda!

-— Fico satisfeito, senhora; asseguro-lhe que ficará melhor com ela. Voltarei amanhã para ver como está passando, se me permite.

Ela agradeceu-lhe; Greenlaw aguardou que ela passasse por ele, em seguida continuou a descer as escadas até onde Carlyon se achava, no ves­tíbulo.

Queira perdoar um velho que o conhece desde o berço, meu senhor — disse ele francamente —, eu realmente não entendo como essa senhora arranjou aquele machucado na cabeça, mas garanto que houve alguma mal­dade aqui!

Eu o perdôo prontamente, mas se isso significa uma censura a mim, errou o alvo. Garanto-lhe que não fui eu quem machucou a sra. Cheviot.

O médico esboçou um sorriso severo.

Muito bem, meu senhor, eu sei como me calar, espero.

Como achou a sra. Cheviot?

Oh, ela vai muito bem! Mas alguém desferiu-lhe um golpe formidável... por mais que o senhor diga que ela caiu e assim machucou a cabeca.

—      E seu outro paciente? O médico resmungou.

Não achei nada de errado com ele, só uma pronunciada irritação nervosa. Receitei algumas gotas de láudano, mas quanto à inflamação do garganta, não vi nem sinal! — Lançou um olhar indagador e acrescen­tou: — O sr. Nicky queria que eu o afugentasse daqui com uma história de varíola no povoado, mas o senhor pode lhe dizer que o que quer quetenha ocorrido em Highnoons causou-lhe profunda aversão ao lugar, de modo que imagino que ele não ficará incomodando a sra. Cheviot por muito mais tempo. Quanto ao próprio sr. Nicky, o senhor gostará de saber que eu o obriguei a que me deixasse dar uma olhada em seu ombro quando ele me encontrou hoje, e eu achei que está se curando como o desejado.

Ora, obrigado! Ele sempre foi daqueles que se restabelecem rápido

Sorte a dele! — replicou Greenlaw, em seu modo irônico. — Eleme disse que Lorde e Lady Flint passaram uma noite com o senhor. Espero que sua irmã goze de boa saúde como sempre, não?

Ele continuou, durante alguns minutos, indagando sobre os vários membros da família de Carlyon, em seguida vestiu o sobretudo e partiu. Carlyon voltou para a biblioteca.

Uns quinze minutos depois, Nicky o encontrou ali. Entrou com a testa franzida de preocupação, dizendo que estivera assobiando e chamando por Bouncer por toda a mata, e receava que ele devia ter-se extraviado para as terras de Sir Matthew.

Então seria melhor você recuperá-lo sem perda de tempo — disse Carlyon.

Sim, eu sei que seria, e tenho o maior medo que ele possa ser apa­nhado numa armadilha, ou talvez que leve um tiro de um daqueles guar­das desalmados. Pois Sir Matthew jurou que mandaria matar Bouncer se ele perturbasse seus pássaros, e...

Bem, imagino que Sir Matthew não chegará a esses extremos, mas, sem dúvida, você devia ir procurá-lo ou terá que enfrentar a má vontade de Sir Matthew.

Não me importo com isso, contanto que o pobre do Bouncer não esteja em apuros. Sabe, certa vez ele ficou preso na toca de uma raposa, Ned, e teve de ser desencavado. Confesso, gostaria de sair agora mesmo para procurá-lo, você acha que devo?

Decididamente sim.

Certo, mas há Francis Cheviot para se pensar, afinal! — lembrou-o Nicky.

Estou certo de que Bouncer é mais importante que Francis Cheviot.

Eu pensava exatamente o mesmo! Ora, ele vale uma dúzia de Fran­cis! Imagine só, Ned, ele Iate para o Francis sempre que o vê! E eu não o ensinei a proceder assim! É muito inteligente! Ainda assim, nunca o deixei morder Francis, porque com um sujeito desprezível desses não se pode di­zer o que aconteceria. Como eu gostaria que ele entrasse agora!

Do que rne é dado saber de Bouncer, não é provável que ele o faça antes do anoitecer.

Ned, não posso ficar vadiando aqui, quando ele pode estar preso em alguma armadilha!

Meu caro rapaz, não há nenhuma razão para ficar aqui.

Muito bem então, vou procurar por ele. Mas previno-o, Ned, tal­vez eu leve horas até encontrar o malandro, e enquanto eu estiver fora, Fran­cis pode ficar tramando mais alguma das suas!

Não acho provável.

É claro — disse Nicky, amuado —, se você resolveu não me con­tar o que tem em mente, não precisa, mas eu acho muito indigno de sua parte!

Não recebendo outra resposta a essa observação além de um olhar di­vertido, ele deixou a sala com um modo de andar majestoso, e logo afastava-se em passadas largas na direção das terras de Sir Matthew Kendal. Carl­yon deixou a biblioteca e pediu a Barrow que mandasse vir seu coche dos estábulos. A srta. Beccles encontrou-o calçando as luvas no vestíbulo, e, tímida e um pouco ansiosa, perguntou:

—      Está nos deixando, meu senhor? Ele sorriu e assentiu com a cabeça.

Ouso perguntar: não há mais necessidade da sua permanência? — arriscou ela.

Nenhuma, creio eu. Já pedi à sra. Cheviot que não pensasse mais no que aconteceu aqui hoje.

Estou certa de que se o senhor acha ser seguro para ela permanecer aqui, Lorde Carlyon, deve ser assim realmente — disse ela, com simplicidade.

Os olhos de Carlyon iluminaram-se, divertidos, mas ele deixou pas­sar, apenas fez uma reverência e disse em um tom grave, impecável:

É muito gentil, srta. Beccles.

Oh, eu não! Quando é o senhor, Lorde Carlyon, quem... Na ver­dade, sou muito grata! Um costume tão distinto! Nunca hesitante na mí­nima atenção! Estou certa de que podemos depositar toda a confiança no seu julgamento. E quanto a... Bem, estou certa! Quando a querida sra. Cheviot fica agitada, eu sempre lhe digo: "Pode estar certa, meu bem, quando Lorde Carlyon chegar, seja como for, tudo ficará resolvido!"

Ele parecia um pouco triste.

—      Ê o que a sra. Cheviot normalmente responde, senhora?

A pobre mulher corou até a raiz dos cabelos, e ficou enredada numa profusão de meias frases, as quais revelaram... que embora a querida sra. Cheviot tivesse uma mente muito ativa, na verdade algo mais de vivacidade do que na maioria das mulheres, o constrangimento da sua situação a le­vava a entregar-se ultimamente a estranhas extravagâncias.

Receio que a sra. Cheviot não tenha uma idéia muito elevada da minha habilidade — observou ele.

Oh, meu senhor, estou certa...! Ela tem um tipo de jocosidade es­portiva que... Mas o senhor tem uma compreensão tão superior! Não pre­ciso apresentar a mínima desculpa pela vivacidade ocasional nas maneiras da sra. Cheviot!

 

A mínima — concordou ele. — São sensatas as ofensas que me dirige?

O senhor sabe que é o modo dela de deliciar-se com muita brinca­deira, meu senhor! — explicou a srta. Beccles veementemente. — Por ou­tro lado, ela tem estado por demais inquieta, o senhor sabe! Estou certa de que não é de surpreender! Mas com toda a disposição do mundo para imaginar-se capaz de conseguir tudo sem ajuda, e talvez com um pouco de aversão a submeter-se à autoridade, é incontestável que ela só ficará à von­tade quando o senhor for condescendente o bastante para aconselhá-la como deve prosseguir.

Ele estendeu a mão.

—      Obrigado. Conto com os seus bons serviços, srta. Beccles. Adeus! Voltarei a Highnoons amanhã.

Ele se foi, deixando-a num estado de perplexidade, piscando os olhos enquanto ele se afastava.

Menos de uma hora mais tarde, depois de ter-se certificado de que Eli-nor dormia profunda e pacificamente, a srta. Beccles, consciente de estar muito exausta pelos acontecimentos da manhã, foi para o andar de baixo com a intenção de pedir à sra. Barrow que mandasse à sala de estar um pouco de chá e pão com manteiga numa bandeja. Parou subitamente à vista de Francis Cheviot, parado de pé no vestíbulo, envolto em seu manto for­rado de pele, um cachecol enrolado ao redor do pescoço, e já de chapéu na mão. Dava a Barrow algumas orientações em voz lânguida, mas virou-se quando ouviu os passos da governanta na escada, e disse:

Ah, estou feliz por ter esta oportunidade de me dirigir à senhora! Eu não a teria mandado chamar, caso estivesse cuidando da pobrezinha da sra. Cheviot, mas estou satisfeito que tenha vindo, muito satisfeito! E como está passando a doente?

A sra. Cheviot está dormindo, senhor, obrigada — respondeu ela, fazendo-lhe uma pequena reverência cerimoniosa.

Era de se esperar. "A segunda grande ordem natural das coisas", como sabe. De modo algum eu a teria perturbado.

Oh, eu nem pensaria em fazer uma coisa dessas, senhor! — disse ela ingenuamente.

Ah, sabia que poderia convencê-la disto! Contudo, o decoro da ele­gância exige que não deixe de me despedir dela! Como é difícil decidir o que se deve fazer!

O senhor está... o senhor está nos deixando? — exclamou ela, mal podendo acreditar nos próprios ouvidos.

Ai de mim! Com toda a vontade de mostrar consideração à que­rida sra. Cheviot, vejo que não posso permanecer em Highnoons sem al­gum grau de conforto. Meus nervos já estão lamentavelmente afetados, senhora; não seria aconselhável que eu ficasse. Eu não seria de nenhuma utilidade para a minha prima. — Ele ergueu a mão branca. — Sim, sim, eu sei o que a senhora diria! Serei sensato em correr o risco de expor-me, a despeito de todo o perigo de uma viagem empreendida neste tempo in­clemente? É muito justo, mas estou convencido de que devo fazer a tenta­tiva; e se Crawley agasalhar-me bem, e eu enrolar meu cachecol sobre a boca, devemos confiar que nenhum mal resultará... nenhum mal irreme­diável!

Ela estava tão grata por saber que ele estava de fato deixando High­noons, e concordou com suas palavras com tanta animação, que Francis franziu o cenho e, gentilmente, lembrou-a de que as propriedades maléfi­cas do vento leste provavelmente não deveriam ser superestimadas. Con­fiante, ela disse que talvez se descobrisse que o vento não estava tão no leste como ele receava.

—      Mas não irá sem uma refeição ligeira, senhor! Oh, meu Deus, se é que já não passa de uma hora. Realmente aconteceram tantas coisas hoje que nem percebi como o tempo voou! Mandarei um recado à cozinha ime­diatamente!

—      É muito amável, querida senhora, mas se devo chegar em Londres à hora do jantar, preciso partir agora mesmo. E eu não toleraria a idéia de jantar numa estalagem no meu lamentável estado de saúde atual. Não res­ponderia pelas conseqüências! Já pedi minha carruagem; na verdade, não posso imaginar por que não está à porta, mas esses sujeitos sentem prazer em vadiar, como bem sabe! Gostaria de saber se Crawley já providenciou um tijolo quente para colocar aos meus pés. Onde está Barrow? Ah, ele foi bus­car o relógio, como pedi que fizesse! Srta. Beccles, estive quebrando a cabeça para descobrir de que modo poderia obsequiar minha bondosa anfitriã, pois uma pessoa deve desejar dar prova de que conhece as regras da boa educa­ção! Aquele relógio, que a tem contrariado tanto devido à sua lamentável ha­bilidade de dar todas as horas menos um quarto para as cinco! Um belo relógio, e tão próprio do meu pobre primo Eustace deixá-lo ficar parado! Mas eu o mandarei consertar, senhora, e o meu próprio relojoeiro se encarregará dessa tarefa. Não o confiaria a nenhum outro, pois alguns, como sabe, são mais enxeridos do que competentes. Por favor, informe à sra. Cheviot que o seu relógio ser-lhe-á devolvido em perfeito estado de funcionamento tão logo esteja pronto! Ah, aqui está Barrow! Por favor, coloque-o cuidadosa­mente na minha carruagem, Barrow! Srta Beccles, queira apresentar meus cumprimentos mais respeitosos à sra. Cheviot, e, é claro, minhas sinceras des­culpas por não me despedir dela pessoalmente. Confio que ela me perdoará! Não duvido que irá avaliar minha ansiedade para estar a salvo em minha pró­pria casa antes do anoitecer. Ela tem uma sensibilidade tão refinada! Estou feliz por saber que uma mulher tão estimável teria se tornado membro de nossa família. Ah, e o querido Nicholas! Bem, onde está o querido Nicho-las? Um rapaz encantador, realmente, desde que supere seu gosto por vira-latas ferozes. Barrow, você pode mandar chamar o sr. Nicholas: sei que ele gostará de se despedir de mim, e por nada deste mundo eu o magoaria com a mínima demonstração de desatenção!

O sr. Nicky saiu à procura do cachorro e não tem hora para vol­tar, senhor — resmungou Barrow.

Que lamentável! Meus cordiais cumprimentos a ele, srta. Beccles. Assegure-lhe da felicidade que me concederá se resolver honrar minha re­sidência com sua presença em qualquer ocasião em que se encontrar na ci­dade! Mas o seu cão, não! Tenho a maior aversão por cães. É você, Crawley? Minha carruagem está pronta finalmente? Alguém poderia di­zer que você a teria ido buscar na Austrália! Srta. Beccles, seu criado muito obediente! Por favor, não esqueça de dar meus cumprimentos e agradeci­mentos à sra. Cheviot! Por favor, nem sonhe em acompanhar-me até a porta! Se apanhasse um resfriado em conseqüência de alguma culpa de mi­nha parte, eu jamais me perdoaria!

Totalmente atordoada por esse fluxo de eloqüência cortês, ela só pôde fazer uma nova reverência e assegurar-lhe que seus recados não seriam es­quecidos. Ele retirou-se, com todas as formalidades, e foi conduzido à car­ruagem por Crawley, que, então, enrolou várias mantas ao redor dele e colocou um tijolo quente da cozinha aos seus pés.

—      Bons ventos o levem! — disse Barrow, enquanto o veículo se afas­tava em direção à entrada para carruagens. — A ele e seus trejeitos! O que ele estará querendo com aquele velho relógio, senhorita?

Mandar consertá-lo para a sra. Cheviot. Estou certa que é muita gentileza e que ela ficará contente!

Mandar consertá-lo! — exclamou Barrow, em um tom de acen­tuada censura. — Aquele velho relógio está parado há nem sei quantos anos! Nem lembro quando vi aquele relógio fazer tique-taque!

Era óbvio que ele não concordava com o fato de que o estado de coisar atuais tivesse interferido. A srta. Beccles sentia-se incapaz de discutir e apenas repetia que era muita gentileza do sr. Cheviot. Acrescentou que se a sra. Barrow fizesse um pouco de chá, ela ficaria muito satisfeita; as­sim, Barrow afastou-se em direção à cozinha, murmurando contra os cos­tumes de certas visitas intrometidas.

O alívio de saber que Francis tinha deixado Highnoons foi tão grande que, depois de ter bebido o chá e comido várias fatias de pão com man­teiga, a srta. Beccles (deliciou-se corn .um cochilo diante da lareira da sala de estar. Foi despertada por Nicky, que entrou pouco antes das três horas, com a notícia infeliz de que não tinha ainda tido êxito em encontrar Boun-cer, apesar de procurar por toda parte nas reservas florestais de Sir Mat-thew Kendal, e duas vezes desentender-se com seus guardas.

Mas achei que devia voltar, para certificar-me de que tudo estava bem aqui — disse ele — e que aquele maldito Cheviot não estava mais fa­zendo das suas!

Oh, mas ele se foi, querido sr. Nicky! — disse a srta. Beccles, apressando-se em endireitar sua touca. — Uma grande caridade, não acha?

Se foi! — exclamou, com uma expressão estupefata.

Partiu, e se quer saber, não posso acreditar que tenha sido ele quem atacou a pobre sra. Cheviot, pois foi por ela ter sido atacada que ele to­mou a resolução de nos deixar! Mas fiquei imensamente grata, pois, como sabe, eu não conseguia gostar dele, e a sra. Barrow estava ficando tão irri­tada por ser obrigada a fazer gelatinas e mais gelatinas, que eu mal ousava mostrar minha cara na cozinha!

Oh, muito bem! — disse Nicky, dando de ombros, e depois fe­chando os olhos por um instante devido à dor que esse gesto lhe causara. — Imagino que seja obra do Carlyon, e não me diz respeito! De fato estou muito satisfeito de saber que ele se foi, pois isso me deixa livre para ir à pro­cura de Bouncer, o que seria preferível a me meter onde não sou necessá­rio!

A srta. Beccles olhou-o, aflita.

Receio que não esteja muito satisfeito, querido sr. Nicky! — balbuciou.

Satisfeito! Nada disso! Estou extremamente satisfeito, senhora! Dou um pouco mais de valor a Bouncer do que a Francis Cheviot, garanto-lhe! E se por acaso Carlyon perguntar por mim, pode lhe dizer que fui cui­dar dos meus próprios interesses e que não tenho idéia de quando estarei de volta, mas que ele não precisa se preocupar comigo, pois saberei cuidar muito bem de mim mesmo!

Depois de ter pronunciado esse exacerbado discurso, ele saiu da sala com a maior indiferença, deixando a srta. Beccles num estado de apreensão bastante agitado, e incapaz de arriscar um palpite quanto à causa do aborrecimento dele.

A sra. Cheviot só apareceu às quatro horas. Embora descendo ao an­dar inferior, parecia um pouco pálida ainda, mas declarou estar inteira­mente recuperada.

Devo ter dormido durante horas! — exclamou ela. — Não, Becky, eu realmente já não tenho dor de cabeça agora... só aquele finalzinho, nada para se fazer caso!

Meu bem, eu gostaria que continuasse na cama! E você tirou a atadura! Bem, minha querida sra. Cheviot, será que foi sensato? Foi prudente?

Você não ia querer que eu continuasse andando por aí corn uma aparência ridícula! — protestou Elinor.

Estou certa de que não era nada disso! Além do mais, não há nin­guém para vê-la a não ser eu, meu bem, pois o sr. Nicky está fora, procu­rando pelo pobre Bouncer, e disse que não sabia quando voltaria. Eu realmente não sei o que teria ocorrido para irritá-lo, mas o fato é que ele estava lamentavelmente triste quando chegou uma hora atrás.

Oh, Nicky está irritado? Talvez o sr. Cheviot o tenha contrariado! Aquela odiosa criatura foi levada novamente para a cama? Tenho muita vontade de dizer à sra. Barrow para não ficar preparando mais nenhuma papinha para ele; assim, quem sabe, talvez ele possa ser induzido a deixar Highnoons!

 

Oh, meu bem, não há necessidade! Ele já se foi! Elinor olhou-a, espantada.

Becky! Você está brincando comigo!

 

Não, eu não faria uma coisa dessas! Ele disse que não suportaria ficar depois do que aconteceu com você esta manhã. Devo dizer que jul­guei covardia da parte dele e nada próprio de um homem, mas fiquei tão grata de me despedir do sujeito que não colocaria a mínima dificuldade em seu propósito!

Não, por nada deste mundo! Mas isso é realmente maravilhoso! É obra de Carlyon! Ele me disse que o sr. Cheviot talvez partisse antes que eu esperasse por isso! Bem, como ele conseguiu essa salvação abençoada? Isso me faz ficar mais benevolente com ele, afirmo mesmo.

Meu bem, eu gostaya que você não falasse dessa maneira impe­tuosa, insensata! Não lhe fica bem, quando Lorde Carlyon só tem se mos­trado, estou certa, condescendente, e o próprio cavalheiro! Um contraste e tanto com o sr. Cheviot também! Só se pode ficar impressionada com isso!

Elinor apresentou um colorido bastante acentuado, mas, alegre, disse:

Oh, sei que basta um homem ser bem-parecido e mostrar-se do­minador para que você morra de admiração por ele, Becky! Mas o que le­vou o sr. Cheviot a deixar Highnoons com tanta pressa?

Na verdade, meu bem, receio que nos enganamos com ele, e não foi por obra sua que você se machucou. E acho que não pode ter sido Lorde Carlyon quem o mandou embora, pois eleja havia deixado esta casa uma hora antes, você sabe. O sr. Chevioí deixou-lhe seus gentis cumprimentos e suas desculpas por não se despedir de você pessoalmente; disse que não ficaria para vê-la com receio de não estar na cidade a tempo para o jantar. Embora eu ache que ele poderia, sem dúvida, ter um jantar bem-feito, sim­ples, numa estalagem. Mas ele tem uns caprichos tão estranhos!

Ele só quer mingau! Sou grata a ele por sua cortesia, e espero que jamais me peçam para recebê-lo em minha casa de novo.

Certo, meu bem, mas eu penso que ele pretende ser conciliador. Foi muito amável quando disse que desejava acima de tudo dar-lhe prova de que conhece as regras da boa educação, e teve a feliz idéia de levar aquele irritante relógio a fim de consertá-lo para você.

Elinor reclinara-se na poltrona, porém, ao ouvir isso, aprumou-se, so-bressaltada, e disse:

Levou o relógio? Que relógio?

Ora, o da biblioteca, meu bem, que a tem irritado tanto! O pró­prio relojoeiro dele se encarregará de consertá-lo, e...

Becky, você não podia ter deixado ele fazer isso! — exclamou Eli­nor, seu semblante empalidecendo de súbito.

Mas, minha querida sra. Cheviot, que objeção pode haver?

Objeção! Quando você sabia do que tanto tínhamos medo! O que ele veio buscar aqui!

Elinor, essa é a mais pura irritação nervosa! Diga-me, o que um relógio que não funciona tem a ver com documentos secretos?

Elinor parecia não estar prestando atenção. Tinha ambas as mãos comprimindo as têmporas, como se num esforço para concentrar os pen­samentos.

—      O relógio estava trancado — disse ela. — Estive tentando abri-lo. Então coloquei-o de novo no lugar, e... isso, isso, foi então que tornei a apanhar o inventário do consolo da lareira, onde eu o colocara! Depois vi que o relógio não ficara direito e ajeitei-o, com os papéis na mão! E foi en­tão que me atacaram! Becky, Becky, que tola tenho sido por não ter per­cebido antes! Foi por isso que ele me atacou! Ele pensou que eu conseguira abrir a parte de trás do relógio e tivesse descoberto os papéis ali dentro! Vejo tudo claro agora, e é tarde demais! Ele sabia que estavam ali, e esta­ria só aguardando o momento oportuno para tirá-los! Oh, Becky, que des­graça! Oh, como você pôde deixar que ele levasse o relógio? Mas a culpa é minha! O que farei? Precisamos reavê-lo! Nicky... — Ela interrompeu-se. — Não, Nicky não! Ele sairia correndo em perseguição de Cheviot e muito provavelmente sairia ferido, e eu jamais me perdoaria, e acho quenem Carlyon me perdoaria! Becky, o que devo fazer?

A srta. Beccles parecia muito agitada, mas disse:

—      Eu realmente lamento muito! E não sei o que deve ser feito, e sem dúvida você, meu bem, não está em condições de fazer esforço! Por favor, acalme-se! Você vai provocar sua dor de cabeça se permitir ser dominada por essa agitação!

Impaciente, Elinor respondeu:  

-— Dor de cabeça! O que isso significa diante dessa desgraça... por­que não é menos do que isso! Talvez seja tarde demais para reaver o docu­mento, mas pelo menos é meu dever avisar Carlyon imediatamente .sobre o que ocorreu! Oh, por que ele deixou Highnoons? Talvez tivesse calcu­lado que tudo daria errado se ele fosse embora! É bem próprio dele! Que homem odioso, irritante! Becky, vá correndo procurar Barrow e diga-lhe que eu preciso que a carruagem esteja aqui na porta da frente o mais rá­pido possível! Se não houver nada em condições a não ser o cabriolé, irei nele mesmo, e o cavalariço que se apronte para me acompanhar. Não fi­que aí sentada olhando para mim, Becky, ande logo, suplico-lhe! Vou lá em cima buscar meu chapéu e minha capa!

—      Sra. Cheviot! — a srta. Beccles exclamou, num grito sufocado. — Não será tão louca a ponto de arriscar-se! E num cabriolé! Elinor!

A sra. Cheviot bateu positivamente o pé.

—      Faça como estou mandando, Becky, pois nunca falei mais sério em toda a minha vida! E quando o sr. Nicky chegar, veja bem, nem uma pala­vra sobre o sr. Cheviot ter levado o relógio!

 

depois que havia tomado essa resolução, nem todas as orações — e ela fazia muitas — da srta. Beccles teriam o poder de evitar que Elinor par­tisse à procura de Carlyon. A caleça que a finada sra. Cheviot usara ainda se encontrava na cocheira, mas tão coberta de poeira que obviamente era inútil esperar que ficasse pronta no pequeno espaço de tempo de que Eli­nor dispunha. Em vez da caleça, a moça aceitou a sugestão de Barrow de levar o faéton de Eustace Cheviot, um veículo muito mais para o seu gosto do que o cabriolé. O cavalariço, bastante satisfeito por ter algo mais para fazer em sua especialidade no lugar da jardinagem da qual tinha sido in­cumbido, apressou-se em vestir sua libre e atrelar um dos cavalos de Eus­tace Cheviot à carruagem. Quando descobriu que a patroa tinha intenção de dirigir ela mesma, e exigia sua presença apenas para sentar-se ao lado dela e orientá-la, pareceu em dúvida, aventurando-se a informá-la de que a égua, não tendo sido exercitada já havia alguns dias, estava muito fogosa. A sra. Cheviot não se dignou a responder, mas apanhou as rédeas de ma­neira eficiente e partiu em marcha veloz. No momento em que a observou dar laçada na rédea, quando eles dobraram no portão para pegar a estrada, e apanhar a correia do chicote apenas olhado-o de relance quando muito, o rapaz ficou muito impressionado e tratou-a com toda a deferência que ela poderia ter desejado.

Highnoons distava apenas um pouco mais de onze quilômetros da Mansão, mas o trecho era composto de estradas estreitas e cheio de cur­vas, de modo que só cerca de 45 minutos depois é que a sra. Cheviot pa­rava na frente da Mansão. A viagem contribuíra muito para equilibrar a agitação nervosa da moça, e ela pôde perguntar por Lorde Carlyon em um tom de voz razoavelmente sereno. O mordomo e o lacaio que a fizeram en­trar eram muito bem treinados para demonstrar qualquer surpresa com sua chegada informal, e imediatamente ela foi convidada a entrar, com mesura, num elegante salão, e solicitada a sentar-se enquanto Lorde Carlyon seria informado de sua visita. Ela não precisou esperar muito; o passo firme que começava reconhecer logo chegou aos seus ouvidos, e ela levantou-se da cadeira exatamente no momento em que o mordomo abria a porta de par em par para Carlyon entrar no salão.

—      Minha cara sra. Cheviot! — disse ele, aproximando-se dela com a mão estendida. — Deveria estar deitada ainda! Como é isso?

Com a mão enluvada, Elinor agarrou-se à dele, com ansiedade.

—      Meu senhor, tive de vir! Sinto-me ótima; o ar fresco fez-me bem, inclusive. Era obrigada a vir, mesmo que estivesse mil vezes mais indisposta!

Não pode duvidar da minha felicidade em recebê-la em minha casa, senhora. Só a convicção de que isso pode não lhe fazer bem pelo esforço despendido tão insensatamente tem o poder de frustrá-la. Mas não gosta­ ria de ir à biblioteca? Está frio aqui, e penso que você já está gelada.

Obrigada. Isso não tem nenhuma importância! Tenho algo seriíssimo para lhe revelar!

Ficaremos perfeitamente a sós na biblioteca — disse ele, abrindo a porta para ela e conduzindo-a pelo vestíbulo. O lacaio abriu-lhes a porta da biblioteca e foi-lhe ordenado que trouxesse vinho e bolo ao aposento.

Na verdade, não quero nada — disse Elinor.

Permita-me que eu seja o melhor juiz, senhora — respondeu Carlyon, fechando a porta. — Quer me dar sua peliça? Pergunto a mim mesmo o que pensava ao sair nesse tempo apenas com isso para se proteger contra o vento.

Impaciente, ela repeliu a peliça.

O que poderia ser? Meu senhor, esta tarde, enquanto eu dormia, o sr. Cheviot deixou Highnoons, levando o relógio da biblioteca!

Ah, então ele levou? — perguntou, aparentemente um tanto diver­tido.

Não entende! Eu mesma não pensei no relógio ate Becky me dizer que ele o levara com o pretexto de consertá-lo para mim! Meu senhor, acre­dito que o documento possa estar escondido nele! E Cheviot devia saber, e agora o tem!

Não, não, sra. Cheviot, ele não o tem, garanto-lhe! — disse ele, tranqüilo. — Por favor, deixe-me retirar-lhe a peliça!

Exasperada, ela chegou a bater palmas.

Precisa me atender, meu senhor! Não compreendeu... como po­deria realmente?... que eu tinha nas mãos aquele relógio quando fui ata­cada? E...

Eu compreendi, sra. Cheviot. Se tentar lembrar, você nos contou quando recuperou a consciência. Receio que foi você quem não me enten­deu; eu não lhe disse que não havia mais necessidade de ficar assustada? Acho que merece que eu fique um pouco zangado com você por correr o risco de prejudicar sua saúde dessa maneira.

Ela lançou-lhe um olhar de assombro.

—      O senhor então compreendeu! Mas não pensou o que isso poderia significar?

—      Ao contrário, ocorreu-me que isso poderia ser a resposta, e quando você subiu para o quarto, procurei ver se uma das chaves do meu primo serviria naquela fechadura. E serviu, e descobri que minhas suspeitas esta­vam certas. Retirei os papéis, e agora eles estão a salvo, em meu poder.

Ela ficou destituída do poder da fala, e só podia ficar olhando atenta­mente para ele, num estado de indignação concentrada. Por duas vezes seus lábios chegaram a se separar, e por duas vezes ela os tornou a fechar at£ conseguir readquirir suficiente domínio de si mesma para dizer:

—      O senhor retirou os papéis! Mas isso ultrapassa tudo! Acho quepensou que eu não estaria interessada numa notícia tão insignificante!

Não foi isso, mas...

Vasculhei cada baú e armário daquela casa horrível, só para agradá-lo! Não desfrutei de um momento de paz a semana toda! Fui brutalmente atacada, e tudo por causa dos papéis que agora estão a salvo, em seu po­der! Bem! Fico feliz ao saber desse pormenor, senhor, mas considero mons­truoso o fato de eu ter sido obrigada a percorrer mais de onze quilômetros para saber!

—      Sem dúvida foi imprudente — respondeu ele calmamente. — Você teria sido informada disso amanhã, em Highnoons. Agora deixe-me aliviá-la dessa peliça!

—      Não farei uma coisa dessas! Desejo que mande vir meu faéton ime­diatamente! — vociferou a viúva.

—      Não seja tola, sra. Cheviot! — disse ele. — Não tenho tanta culpa assim, sabe disso, basta que reflita por um momento! Até eu abrir o reló­gio, tudo não passava de suposição, e eu não iria preocupá-la ainda mais sobre o assunto, no estado de nervos — muito natural — em que você se encontrava no momento. Minha primeira preocupação foi cuidar para que você ficasse deitada em sua cama e se recuperasse do choque que sofrerá. Quando descobri que minhas suspeitas se justificavam, outro motivo for­ taleceu minha resolução de conservar a descoberta só para mim. Quase se torna desnecessário que quaisquer palavras minhas a informem da delica­deza peculiar desse assunto todo. Creio saber que curso de ação deveria seguir, mas antes de tomar qualquer providência a respeito julguei certo discutir a questão com meu irmão John. Foi por essa razão que ocultei de você, e, na verdade, também de Nicky, o conhecimento de que os papéis foram encontrados. Tivesse eu encontrado John aqui quando regressei esta tarde, e estabelecido com ele o que eu deveria fazer, certamente teria vol­tado para Highnoons esta noite, para tranqüilizar o espírito de todos. In­felizmente, entretanto, soube que John saíra com uma arma para caçar coelhos. Eu o espero a qualquer momento agora. Permita que eu retire sua peliça, senhora?

Ela permitiu e também ficou satisfeita por tirar o chapéu, porém, em­bora estivesse um pouco apaziguada pelo tranqüilo bom senso do que ele acabara de dizer, ainda sentia que fora duramente tratada, e percebia, com uma boa dose de amargura, que já deveria ter sabido que ele teria uma res­posta sensata preparada.

— Só lhe contei a verdade, senhora — continuou ele. — Lamento muito se a irritei, contudo peço-lhe que não hesite em me dizer agora como minha conduta tem sido odiosa! Achará o conforto daquela poltrona ra­zoável, creio, e ela está a salvo de corrente de ar. A sua dor de cabeça está mais suportável? Vejo que tirou a atadura. Não devia ter feito isso.

Se não tivesse sido obrigada a sair, poderia ainda estar usando-a! — declarou Elinor, mentindo. — Imagino que nem o senhor esperaria que eu me mostrasse fora de casa apresentando uma aparência tão estranha!

De modo algum, mas também não esperava que me mostrasse fora de casa hoje, senhora, e não posso aprovar tal medida.

Ela foi impedida de pronunciar uma resposta devido à entrada do mor­domo com uma bandeja, que ele colocou sobre a mesa. Ele retirou-se de novo, e Carlyon serviu um cálice de madeira e levou-o para sua convidada, com um prato de biscoitos de amêndoas. Ela foi obrigada a aceitar o copo da mão dele, mas recusou friamente os biscoitos. Ele colocou o prato ao lado dela e foi servir um segundo copo de vinho para si mesmo. A viúva observava as costas dele maldosamente.

- Lamento não ter mandado Nicky atrás do sr. Cehviot, ao menos para contrariá-lo – disse ela.

- Estou convencido de que poderia confiar que o seu bom senso não adeixaria fazerisso – respondeu ele

Se ele estivesse em casa, acho que teria feito, mas ele havia saído!

Sim, eu cuidei disso – replicou ele,virando-se evoltando para a lareira.

O peito dela avolumou-se.!

—      Sou-lhe grata, meu senhor! Agora percebo o valor dos seus cumprimentos.

Ele sorriu.

- Oh, não foi por temerque você pudesse fazer alguma coisa! Mas o que quer que Francis Cheviot tencionasse fazer,eu não queria que Nicky impedisse.

Ela demonstrou desprezo, e reincidiu num silêncio rebelde. Depois de beber o vinho aos golinhos durante alguns minutos, seus olhos pousaram nos biscoitos, e, distraída, ela apanhou um e começou a comê-lo, notando que estava faminta, e, na verdade, não comera nada desde o café da ma­nhã. Alguns biscoitos muito contribuíram para restaurar-lhe a serenidade; ela ergueu os olhos, descobriu Carlyon observando-a com atenção, com um brilho furtivo no olhar, e de repente riu.

—      Bem, o senhor tratou-me de maneira abominável, mas, na verdade, eu devia ter sabido que o faria, pois tem feito isso desde o princípio! Mas o que fará o sr. Cheviot quando descobrir que não há nada naquele relógio?

—      Isso é o que nos resta saber, senhora. Queira desculpar-me en­quanto me ausento para mandar um recado ao seu cavalariço. Acho que ele deveria voltar imediatamente para Highnoons, para informar à srta. Beccles que você está a salvo, aos meus cuidados, e que eu a levarei para casa em minha carruagem depois do jantar.

Ela fez um protesto desanimado, que não foi considerado. Ele deixou o aposento, e estava dando ao mordomo suas instruções no vestíbulo, quando John Carlyon entrou em casa, carregando sua arma e alguns coe­lhos, que ele entregou ao lacaio.

— Alô, Ned, então já está de volta! — exclamou ele. — Fiquei em casa a manhã inteira, para o caso de ser obrigado a ir até Highnoons, mas, como não veio nenhum recado, achei que poderia me distrair um pouco enquanto estava em casa.

Carlyon assentiu com a cabeça.

Fui informado disso. Venha até a biblioteca!

Irei depois que tiver lavado as mãos — prometeu John.        Carlyon voltou para a biblioteca, dizendo ao entrar no aposento:

—      Meu irmão chegou neste instante, e estará conosco dentro de al­guns minutos, sra. Cheviot.

Ela fez menção de se levantar da poltrona.

Vai desejar estar a sós com ele, claro. Eu o deixarei agora, senhor.

Realmente, peço-lhe que não vá! Conto com a sua discrição. Já sabe tanto que deve saber de tudo.

É muito bondoso, senhor, mas talvez o sr. John Carlyon não goste de discutir esses assuntos na minha presença, e eu não...

—      O sr. John Carlyon fará como lhe for ordenado — respondeu ele.

Ela sorriu.

Ah, agora me lembro, eu o conheci como sendo um déspota!

Isso só acontece muito raramente, asseguro-lhe! Parece que aquele dia já vai longe.

—      Parece, e muitas vezes eu temi que não passasse de uma compa­nhia maçante — comentou a viúva afavelmente. — Deve responsabilizar as circunstâncias em que me encontro, senhor, o que me tem feito perder a arte de me tornar agradável em sociedade.

—      De qualquer modo, notei, que elas não a fizeram perder sua saga­cidade na linguagem, senhora! Tem desejado ver-me desconcertado, e agora não pode duvidar de que seu desejo foi atendido!

Ela riu, mas sacudiu a cabeça. John entrou no aposento naquele mo­mento, esfregando as mãos geladas. Parou de súbito quando notou Elinor, e exclamou num tom de voz de surpresa:

—      Sra. Cheviot! Eu não fazia idéia... Ned, você devia ter me avisado que tinha uma convidada! Eu não teria entrado aqui nesta sujeira toda! Por favor, desculpe-me, senhora! Estive fora, caçando, e não tive tempo de mu­dar o paletó!

A sra. Cheviot o desculpará prontamente — disse Carlyon. — Es­tive esperando vê-lo a tarde toda. O relatório foi encontrado.

O quê! Não em Highnoons! — exclamou John.

Sim, em Highnoons, trancado no relógio do consolo da lareira da biblioteca.

—      Santo Deus! Você não está falando sério! E é cópia autêntica do que está desaparecido?

—      Não o examinei em detalhes, mas li o suficiente para me conven­cer de que não poderia ser outro. Você pode lê-lo. — Retirou um maço de papéis dobrados do bolso e entregou-o ao irmão.

John quase arrancou-o da mão dele e desdobrou as folhas, examinan­do-as rapidamente, com olhos arregalados.

Meu Deus, não pode haver nenhuma dúvida! Quem encontrou isto?

Eu encontrei... através da participação da sra. Cheviot — respon­deu Carlyon.

O olhar intenso de John voltou-se respeitosamente para ela. Elinor disse:

—      Certo, na verdade ele dificilmente teria tido êxito sem a minha pes­soa. Pode imaginar como fiquei feliz por ter suportado que me quebrassem a cabeça por causa disso! De fato, no princípio fiquei um pouco desa­cordada, pois deve saber que por alguma razão não tenho muito o costume de ser atacada na cabeça, e, assim, minha tendência foi estender-me bas­tante sobre o acontecimento. Mas o raciocínio poderoso de seu irmão logo mostrou-me que era absurdo de minha parte ficar contrariada por causa de uma coisa tão insignificante! Não fiz nenhuma queixa. Vi que tudo fora feito com a melhor das intenções.

Minha cara sra. Cheviot! Certamente está gracejando! — disse John, muito confuso.

Não me admiro da sua surpresa. O senhor não teria imaginado que eu pudesse desempenhar um papel tão importante na recuperação desse do­cumento! Nem eu mesma imaginava, e admito que poderia ter desejado que a minha parte no caso tivesse sido de uma natureza menos passiva.

John virou a cabeça para dirigir um olhar suplicante para Carlyon, que disse, com um leve sorriso:

É verdade, meu caro John, mas a sra. Cheviot tem a sua própria maneira de descrever o que ocorreu. Ela desejou ver se poderia fazer o re­lógio funcionar, e enquanto se esforçava para abri-lo — em vão, visto que estava trancado, e eu tinha a chave —, Francis Cheviot deve ter entrado na biblioteca por trás dela. Viu-a com o inventário da casa na mão, no ato de ajeitar o relógio, e tirou uma falsa conclusão. Penso que ele deve ter usado o pesa-papéis que notei sobre a escrivaninha para atacá-la. Estou con­vencido de que tomou cuidado para não acertá-la com suficiente força e causar-lhe um ferimento sério, mas...

Está convencido mesmo? — interrompeu Elinor. — Quanta con­sideração da parte dele! Pergunto a mim mesma se não deveria escreverlhe para expressar meu senso de gratidão.

Gratidão? — exclamou John, sua mente por demais associada à barbaridade do ocorrido para ser suscetível à ironia. — Isso ultrapassa tudo! Espero que você tenha prendido o sujeito, Ned!

Não prendi. Ele já voltou para Londres, levando o relógio — res­pondeu Carlyon, cheirando uma pitada de rape.

John olhou-o atentamente.

—      Creio que você perdeu o juízo! Elinor apanhou outro biscoito.

Devo confessar que muitas vezes perguntei a mim mesma quando essa melancólica suspeita entraria em seu cérebro, senhor — disse ela. — Desde o início, percebi que a mente de Lorde Carlyon estava lamentavel­mente afetada, mas acho que esse desequilíbrio foi se apossando dele aos poucos, e talvez por isso o senhor não tenha notado logo.

Tolice! — replicou John, irritado. — Ned tem a mente tão perfeita como qualquer um dos meus amigos! Mas como é isso, Ned? Não pode que­rer mais prova!

Acredito que não, mas também acredito que procederemos bem tomando cuidado com a maneira de prosseguir nesse caso. Eu não faria nada antes que o tivesse consultado. Imagino que nenhum de nós deve es­tar ansioso para tornar pública essa questão. O parentesco que temos com os Cheviots é muito próximo para nos deixar à vontade. Se as questões pu­derem ser resolvidas sem escândalo, confesso que preferiria.

Você não pode pensar que eu não tenha considerado esse lado! — disse John, dando uma volta rápida pela sala. — Mas não adiantará! Mesmo se eu soubesse como repor o relatório em seu lugar secretamente, não o fa­ria! Não é papel de um homem honesto deixar que um traidor continue li­vre por consideração à família!

Ou, na verdade, por qualquer outra consideração. Mas e se esti­véssemos certos de que o traidor se tornaria impotente para o futuro?

Como? — perguntou John, deixando de olhá-lo.

Imagino que deve ser feito de algum modo.

Ned, que diabo esteve fazendo?

Não é obra minha. Eu até posso estar enganado. Isso deve ficar apurado, é claro.

Realmente não sei o que você pretende! Você tem aqui, em seu po­der, um documento que deve ser levado imediatamente a Lorde Bathurst, com a história completa da sua descoberta! Não pode estar pensando em fazer diferente! Será abafado, não tenho dúvidas; ninguém estará ansioso para que saibam como um documento desses extraviou-se tão facilmente!

De cenho franzido, calado, Carlyon fitava o relatório, que ele tornara a apanhar e dobrava. Um momento depois, ergueu os olhos e dirigiu um dos seus olhares sensatos para o irmão.

—      Penso que faríamos melhor dando estes papéis a Francis Cheviot — disse ele.

Suas palavras deixaram seus dois ouvintes mudos. Estupefatos, não ti­ravam os olhos dele. Carlyon falara num tom ponderado, como se deliberasse intimamente, e não parecia perceber o efeito produzido por suas palavras.

Você... pensa... que... nós... devíamos... Ned, você realmente en­louqueceu? — balbuciou John.

Não enlouqueci. Não tenho tido oportunidade de lhe dizer o que descobri — ou melhor, verifiquei — em Londres. Louis De Castres foi apu­nhalado.

Uma verdadeira consternação estampava-se no rosto de John.

Ned, meu velho, você está fora de si! O que uma coisa tem a ver com a outra? Isso nós sabíamos!

Sabíamos porque Francis nos contou. Não estava no Morning Post, através do qual ele disse que soubera das notícias, nem em qualquer outro jornal que consegui encontrar. "Apunhalado até a morte" foi a frase que ele usou. Guardei principalmente isso.

Santo Deus, era o que qualquer um poderia ter dito, presumindo que tivesse sido assim!

Acontece, porém, que foi exatamente assim. Você pode lembrar que ele falou que o corpo de De Castres tinha sido deixado debaixo de um arbusto. Isso também era verdade, mas não estava declarado em nenhuma parte dos jornais.

John deixou-se cair pesadamente na poltrona, repetindo com voz en­torpecida:

—      Santo Deus! Elinor disse:

Pretende insinuar... será que pretende... que foi o Sr. Cheviot quem assassinou aquele infeliz rapaz francês?

Penso que sim. Eu já suspeitava de tudo há muito tempo, mas pre­cisava de algumas provas.

Ned, não é possível! — exclamou John. — De Castres era amigo dele! Isso é bastante notório para dar margem a dúvidas.

— Mas não ponho em dúvida esse fato. Já lhe disse que Francis Che­viot é um homem muito perigoso. Há muitos anos que estou ciente disso. Realmente não sei o que o deteria: muito pouco, ouso afirmar.

Maldição, não gosto do sujeito menos do que você, mas está mostrando-o como uma pessoa inacreditavelmente ignóbil.

Ignóbil, talvez, mas não o vilão dessa trama, penso eu. Esse, se não estou muito enganado, é Bedlington.

Bedlington! — exclamou John.

Sempre foi uma possibilidade, você compreende, embora eu ad­mita que parecia improvável. Só quando tive tempo disponível para anali­sar a questão com mais cuidado foi que percebi como a minha primeira suposição —- realmente um tanto tola — era muito mais improvável. É claro que jamais poderia ter sido Francis.

 

Não sei realmente o que quer dizer! Suspeitar de um homem da po­sição do velho Bedlington em vez do filho me parece fantástico!

Não, eu acho que não — respondeu Carlyon. — Se Francis, que era amigo íntimo de De Castres, fosse o traidor, por que contratar Eustace como intermediário? Não haveria nenhuma razão. O fato de um instru­mento como Eustace ser utilizado deveria ter-me mostrado desde o princí­pio que o homem que estávamos tentando descobrir devia ser alguém ansioso para não ser conhecido pelo agente francês com quem ele estava negociando. Então, ao usar Eustace — dificilmente uma escolha ideal, sem dúvida — também ele revelou uma inabilidade que não teria nada a ver comFrancis.

John ficou calado por um momento, ponderando.

É verdade! — disse ele, finalmente. — Não sei como posso ter sido tão obtuso para não pensar nisso. Confesso que não pensei. Há quanto tempo está convencido disso?

Convencido! Realmente não sei se estou convencido agora. Vim a suspeitar disso aos poucos, imagino. Minhas investigações sobre as par­ticularidades da morte de De Castres, a constatação de que Bedlington fora para o campo, e a informação dada pelo seu mordomo, de que o seu es­tado de saúde era de tal natureza insatisfatório que ele precisava de repouso e sossego absoluto, convenceram-me tanto quanto convenceriam qualquer um que não tivesse uma prova positiva, a qual, devo admitir, não tenho. É por essa razão que eu não faria nada sem consultar você.

Franzindo o cenho, John anuiu com a cabeça. Caminhou até a mesa e serviu-se de um cálice de madeira, e ficou ali de pé, olhando pensativa mente para a bebida.

Não é fácil saber o que se deve fazer.

Não é mesmo.

Você mesmo disse que é suposição. Se estiver certo, como Cheviot teria vindo a saber o que o pai estava fazendo?

Carlyon deu de ombros.

—      Talvez haja várias respostas, mas não as conheço. John bebeu um pouco do vinho.

—      Se Cheviot de fato matou De Castres... — Ele interrompeu-se. — Coletes pretos! — disse ele, em tom reprovador. — Argh! O homem me enoja!

Timidamente, Elinor perguntou:

—      Queiram me perdoar, mas se o sr. Cheviot não estava envolvido na trama, como ele veio a saber do esconderijo no relógio?

—      De novo não sabemos a resposta — respondeu Carlyon. John levantou os olhos.

Sim, e se Louis De Castres não sabia quem estava por trás de Eus­tace, como Bedlington soube da morte de Eustace antes que a notícia ti­vesse aparecido nos jornais?

Ele nos contou que soube pelo criado particular de Eustace.

E eu perguntei se você acreditava nisso, e você disse que não! Não está pensando que De Castres, ao tomar conhecimento da notícia pela sra. Cheviot, tivesse corrido para Bedlington a fim de informá-lo, está?

Estou sim. Ainda acredito nessa possibilidade.

Como?

Meu caro John, se tivesse um segredo a esconder, você o confiaria a Eustace?

Por Deus que não! — John soltou uma risada curta. — Acha que ele pode ter contado a De Castres, quando embriagado, que era Bedling­ton que estava vendendo informações?

Muito provavelmente. Ou pode ser que De Castres pudesse ter adi­vinhado a verdade.

John virou-se para Elinor.

Sra. Cheviot, quando Bedlington a visitou, fez alguma tentativa para se aproximar daquele relógio ou deu um jeito de ficar sozinho na bi­blioteca?

Nem uma coisa nem outra — respondeu ela. — Eu o recebi na sala de estar, e ele não demonstrou nenhuma disposição de ficar. Mas disse que voltaria, para assistir ao funeral, e que se hospedaria em Highnoons.

Ele estava assustado — disse John lentamente. — Na época, não dei crédito às suspeitas de Ned, mas a verdade é que ele estava extremamente constrangido. Ned, porém, pensava então que Francis Cheviot fosse o ho­mem que estávamos procurando, e eu considerei que Bedlington estava sus­peitando de alguma coisa. Ned, você acha que ele teria perdido a cabeça e contado tudo a Francis? Ou que Francis inclusive estivesse informado da trama desde o começo?

—      Certamente não. Se Francis estivesse ligado ao pai na traição, não duvido que De Castres ainda estivesse vivo hoje. É possível que, ao descobrir que seus planos tinham tomado um rumo desastroso, Bedlington, ti­nha se voltado para Francis em busca de ajuda, para salvá-lo da desgraça. O fato de Bedlington com o caso nessa situação incerta, ter-se retirado para o campo sob a alegação de estado de saúde abalado, parece-me sugerir que Francis tomou as rédeas, e que está sendo rigoroso com o pai.

Carrancudo, John voltou a olhar fixamente para o copo de vinho.

E você daria o relatório a ele? — perguntou.

Por que não? — disse Carlyon. — Se descobrirmos que minhas su­posições estão corretas, você concordará comigo que Francis Cheviot não irá permitir nenhum imprevisto. De Castres era seu amigo, mas agora está morto. Não sei realmente como ele pretende lidar com Bedlington, mas eu, se fosse Bedlington, acharia melhor obedecer a Francis... irrestritamente.

Por certo ele não faria nenhum mal ao próprio pai! — exclamou Elinor.

Gostaria de saber: será que o pai pensa assim? — indagou Carl­yon secamente.

Ned, isto não é uma coisa para se decidir de repente.

Não é mesmo. Pense um pouco. Se está inclinado a desmascarar tudo, muito bem, assim será. — Consultou o relógio. — Por certo gostará de mudar de vestido antes do jantar. Não falaremos mais sobre o assunto no momento. Sra. Cheviot, se desejar, eu a levo para a sra. Rugby. Janta­remos dentro de meia hora.

Ela agradeceu-lhe e levantou-se, mas nem bem chegaram a dar dois passos em direção à porta, esta se abriu, e Nicky entrou no aposento subi­tamente, parecendo cansado, a barba por fazer, mas triunfante.

Eu o encontrei! — anunciou.

Santo Deus! — exclamou John. — Onde, Nicky?

Ora, você nunca acreditaria! Em nossa própria floresta, a oeste!

O quê!

Isso mesmo! E estive procurando o tempo todo, mas nunca pen­sei, até entrar em total desespero, que ele pudesse ter tomado esse rumo! Ele também sabia que eu estava atrás dele, e numa irritação dos diabos, pois se escondeu de mim, debaixo de um arbusto! Foi por puro acaso que o avistei, e ele não pretendia sair dali!

Escondido de você, debaixo de um arbusto? — repetiu John, confuso.

—      Isso mesmo, e tive que puxá-lo à força. Está tão enlameado que fui obrigado a fechá-lo no estábulo, onde ele pode ficar rolando no feno. Santo Deus, como estou grato por tê-lo de volta a salvo!

John falou, com a respiração entrecortada:

Está falando daquele seu maldito vira-lata? — indagou.

Ele não é vira-lata! É mestiço! Ora, do que mais eu poderia estar falando, posso saber?

Pensei que estivesse procurando Cheviot!

Cheviot! Com Bouncer desaparecido? Não, obrigado! Além do mais — disse Nicky, lembrando-se do seu ressentimento, e de repente fa­lando com altivez alarmante — eu lavei completamente minhas mãos a respeito desse negócio, visto que Carlyon de bom grado já logrou seu intento, sem minha ajuda. Na verdade, não é assunto para mim, e não me importo nem um pouco!

—      Se eu tivesse o infortúnio de ser Carlyon, perceberia que o ofen­dera de maneira imperdoável — observou seu mentor. — Mas creio que você poderia dizer boa-noite à sra. Cheviot.

Nicky deu-se conta da presença de Elinor, e piscou para ela.

Ora, alô, prima Elinor! — disse ele. — Como veio aqui? Pensei que estivesse acamada! — Lançou um olhar em redor, desconfiado. — Oh! Imagino que algo tremendamente excitante aconteceu, e que vocês não pre­tendem me contar!

Nicky, deixe de ficar tão zangado sem razão! É claro que pretendo lhe contar!

Não fará isso! — disse John precipitadamente.

Tolice! Isto tem sido mais uma aventura de Nicky do que minha, e penso que ele tem o direito de saber o seu final.

Quanto menos pessoas souberem, melhor. É um caso por demais sério, Ned, mas é bem próprio de você tratá-lo como um fato banal, dos mais corriqueiros!

Nicky, que enrubescera até a raiz dos cabelos, disse, muito sério:

—Se pensa não ser seguro me contar, não precisa fazê-lo então! Em­ bora eu não saiba por que não deveria, pois era sempre Gussie quem reve­lava todos os segredos, não eu!

Ao perceber que havia ferido seriamente os sentimentos do irmão ca­çula, John disse, num tom de voz irritado:

Ora, Nicky, não seja um rapaz tão tolo, pelo amor de Deus! É que você é um tanto desmiolado e pode deixar escapar algo sem querer! Entre­tanto, Ned é quem decide! Não tenho nada a dizer a respeito. O fato é que os papéis foram encontrados, e Ned afirma que era Bedlington quem os estava vendendo a Boney; Francis tentava apenas recuperá-los e abafar o escândalo, caso o roubo viesse a público!

Bedlington! — disse Nicky num grito abafado. — Bedlingtonl Oh, por Deus, se isso não é lamentável! Eu mantive Bouncer ao meu lado du­rante todo o tempo em que Bedlington ficou em Highnoons com medo de que ele o mordesse!

 

Só algum tempo depois foi que Nicky pôde ser convencido a suspender suas perguntas ansiosas e subir para trocar seu casaco e calças de couro de gamo enlameados por trajes mais adequados à mesa do jantar. A princí­pio ele se mostrou incrédulo em relação às suposições de Carlyon, mas sua incredulidade era vista como procedendo mais da aversão arraigada por Francis Cheviot do que de alguma objeção razoável a elas. Teria ficado sa­tisfeito em reconhecer em Francis um traidor, e estava inclinado a pensar que seria uma grande vergonha ele ser perdoado. A descoberta do relató­rio no relógio da lareira feita por Carlyon, por outro lado, fez reviver nele, durante algum tempo, a sensação de que não tinha sido tratado como de­via, e ele olhava para o irmão mais velho com severidade reprovadora, dirigindo-se a Carlyon em termos educados tão frios que a todos ficou evi­dente que seria preciso muito tato para induzi-lo a voltar ao seu bom hu­mor costumeiro. Todavia, para alguém com um temperamento tão radiante era impossível guardar rancor por muito tempo, e ele acabou se enterne­cendo quando Carlyon subiu a ampla escada ao lado dele e enfiou a mão em seu braço, dizendo:

Não seja inflexível demais comigo, Nicky!

Bem, eu realmente acho que foi uma coisa feia o que você fez, Ned, não posso evitar dize-lo!

A coisa mais feia — concordou Carlyon.

Como se eu não merecesse confiança!

Que absurdo!

Na verdade, penso que foi excessivamente arbitrário de sua parte, e você foi egoísta também, além de intrometido, porque era mais uma aven­tura minha do que sua, afinal! E depois você nem me deixou sequer parti­cipar da parte mais excitante!

Sou uma pessoa totalmente mesquinha e de espírito mau — disse Carlyon, com humildade. — Realmente não sei como tem me suportado há tanto tempo. Mas se eu tentar corrigir minhas maneiras de proceder, tal vez mereça ser perdoado, não?

Ned! — explodiu Nicky, furioso. — Jamais conheci pessoa tão matreira como você! Completamente senhor de si como sempre! E se pensar que sou tão imaturo que não consigo perceber quando está tentando me ridicularizar, engana-se redondamente!

Ofenda-me o quanto desejar, Nicky, eu mereço tudo isso! Mas para o jantar teremos ganso assado, e se você se atrasar...

—Não vou! — exclamou Nicky, no mesmo instante desviado do seu propósito. — Tem mesmo? Então lamento ter sovado o pobre do Bouncer, pois se não tivesse sido obrigado a ir ao encalço dele por todos os can­tos, teria perdido o jantar.

Nicky apressou-se em ir trocar de roupa, e fez sua toalete com tanta rapidez que se juntou ao grupo exatamente quando estavam todos sentando à mesa. Enquanto os criados se achavam na sala, a conversa tinha de ater-sè aos assuntos rotineiros conforme se apresentavam às mentes de quatro pessoas preocupadas com um tópico excitante, e era, por força das circuns­tâncias, um tanto vaga. Quando, porém, o ganso foi retirado e um bolo coberto com chantilly posto na mesa, flanqueado por um prato de puits d'amour e um prato de creme à base de xerez, Carlyon fez sinal ao mor­domo de que podia se retirar com seus dois lacaios. No mesmo instante em que a porta se fechara atrás deles, John, que estivera sentado em profundo silêncio, disse lentamente que, por mais que tentasse, não conseguia decidir-se pela melhor coisa a fazer.

—Por que você deveria decidir? — perguntou Nicky alegremente. —Ned resolverá!

A sra. Cheviot não pôde reprimir um sorriso, mas John disse:

—Confesso que desejaria nunca ter ouvido uma palavra desse as­sunto. Eu não deveria dizer isso, e é claro que isso não significa que teria preferido que a coisa não fosse descoberta, mas... Bem, é uma encrenca dos diabos, e há mais uma coisa a ser considerada, pois Ned nos quer ver fora disso! Se ao menos não fôssemos parentes de Eustace!

Nicky disse que não via o que isso deveria significar, e essa observa­ção imediatamente conduziu a uma discussão que durou até que Carlyon, que não tomara parte, interveio para salientar que nem a expulsão de Nicky nem o caráter prosaico de John, tópicos férteis que se insinuaram na dis­cussão e ameaçavam monopolizá-la, tinham qualquer relação com o ponto efetivo em debate.

—Não vejo por que devo ser chamado de prosaico apenas por que...

—Bem, Ned, você deve admitir... A porta abriu-se.

—Meu senhor — anunciou o mordomo, imparcial —, o sr. Cheviot acabou de chegar e quer vê-lo. Levei-o para o Salão Encarnado.

Ele ficou aguardando, a mão na porta, mas, enquanto Carlyon le­vantava-se, John fez o mesmo, dizendo em um tom insistente:

—Espere, Ned!

Carlyon olhou-o por um momento, em seguida falou por sobre o ombro:

—Diga ao sr. Cheviot que estarei com ele em poucos minutos.

O mordomo fez uma reverência e saiu de novo. Com os olhos brilhan­tes de excitação, Nicky exclamou:

—Santo Deus, isto está além de qualquer coisa! Pensar que ele ousa­ria vir atacar-nos! Deus, ele deve ter aberto o relógio antes de chegar à ci­dade! Agora o assunto é seu mesmo, Ned! Posso ir com você e ver que truque ele tentará impingir?

Carlyon sacudiu a cabeça. John disse:

—Ned, cuidado! Você não vai ao encontro dele desarmado!

As sobrancelhas de Carlyon ergueram-se numa expressão irônica.

Meu caro John! Realmente não é de se esperar que eu receba mi­nhas visitas com uma pistola na mão!

Você mesmo disse que ele era um homem muito perigoso!

Posso ter dito isso, mas nunca disse que ele era um tolo. Assassinar-me na minha própria casa, depois de ter sido introduzido por meu mor­domo? Creio que suas faculdades mentais entraram em devaneio, John!

John corou e riu, meio relutante.

—Bem, talvez você permita ao menos que eu o acompanhe!

No mesmo instante Nicky levantou a voz num protesto indignado. Foi silenciado por um dedo autoritário.

Não — disse Carlyon. — Penso que ele poderia achar sua presença constrangedora. Ademais, desejo que vocês entretenham a sra. Cheviot en­quanto eu não estiver aqui. Eu o verei sozinho.

Mas, Ned, o que pretende fazer? — perguntou John, apreensivo.

Isso deve depender das circunstâncias.

Bem! Confesso que o fato de ele ter a desfaçatez de vir aqui faz parecer como se... Mas não concordo com a decisão de entregar-lhe o do­cumento!

Então fique aqui — disse Carlyon, e deixou a sala.

Ele encontrou Francis Cheviot de pé, ao lado do fogo, no Salão En­carnado, um pé, calçado de bota alemã polida, apoiado no guarda-fogo da lareira, a mão branca agarrada à borda do consolo. Ele ainda vestia o manto forrado de pele, mas retirara o cachecol. Havia uma certa determi­nação no sorriso com que recebeu seu anfitrião, mas ele disse, com todo o seu langor costumeiro:

Meu querido Carlyon, deve desculpar-me por aparecer em sua casa a esta hora! Estou certo de que o fará: seu senso de justiça deve obrigá-lo a reconhecer que a culpa é mais sua do que minha. Perdoe-me mas deve­mos continuar neste recinto de veludo encarnado? Essa cor irrita meus ner­vos deploravelmente. Também está excessivamente frio aqui, e você sabe como sou suscetível a resfriados.

Sei o quanto você diz ser suscetível a resfriados — respondeu Carl­yon, em um dos seus tons mais secos.

Oh, está perfeitamente certo! — assegurou-lhe Francis. — Não deve pensar que eu minto sempre, pois só faço isso quando sou obrigado.

Venha para a biblioteca! — disse Carlyon, seguindo à frente.

Ah, isto é melhor! — aprovou Francis, olhando em redor de modo critico. — Encarnado e dourado... ouso dizer, muito apropriado para de­terminadas ocasiões, embora esta não seja uma delas. — Ele desatou os cor­dões do manto junto ao pescoço e retirou o pesado agasalho. O sorriso desapareceu aos poucos dos seus lábios; ele aproximou-se do fogo e disse: — Você sabe, meu querido Carlyon, estou bastante cansado — na verdadetotalmente exausto! — desse jogo de esconde-esconde no escuro que venho mantendo com você. Gostaria que não tivesse tanta reserva: é uma falta de sua parte; deve admitir que é uma falta! Se ao menos me tivesse tomado para seu confidente, eu teria sido poupado de muitos problemas.

—E a sra. Cheviot de uma cabeça quebrada? Francis estremeceu.

Por favor, não relembre uma coisa tão repulsiva a alguém com uma sensibilidade tão refinada! Que necessidade horrível! Espero realmente que ela esteja recuperada agora! Eu mesmo ainda estou lamentavelmente aba­lado com o caso. Sabe, Carlyon, eu me veria com uma tarefa bem mais fá­cil se você simplesmente cultivasse aquela excelente virtude, a franqueza. No princípio, é claro, notei que você nutria suspeitas; porém, embora acre­dite não ser considerado de um modo geral uma pessoa obtusa, jamais pude descobrir a extensão do seu conhecimento, nem como veio a obtê-lo.

Soube por John que um determinado relatório estava desaparecido — respondeu Carlyon.

Ah, então foi assim! O ubíquo John, que não tem o direito, estou certo, de saber nada acerca do assunto. Como é chocante pensar na indis­crição que parece prevalecer em certas esferas! A propósito, espero que te­nha o relatório a salvo.

Tenho.

Bem, devo dizer graças a Deus por isso, de qualquer modo. Permita-me cumprimentá-lo pela sua rapidez, meu querido Edward. Tive esperança de que a referência da sra. Cheviot àquele relógio pudesse ter pas­sado despercebida. Devia ter-me lembrado de que você sempre teve a de­sagradável habilidade de gravar justamente os pontos que se desejaria lhe tivessem escapado.

Tenho o relatório a salvo — interrompeu Carlyon — e deduzo que está aqui para tentar ver se pode me induzir a entregá-lo a você.

De acordo — sorriu Francis. — Estou convencido de que seria o caminho mais sensato a seguir.

Talvez, mas será necessário que me convença disso.

Certo, eu receava que fosse, e, assim, terei de convencê-lo, a des­peito de todos os meus esforços — esforços realmente esmerados e muitas vezes desagradáveis — para evitar essa necessidade. Ah, talvez eu devesse esclarecer imediatamente que, embora seja suscetível a resfriados e prefira infinitamente gatos a cães, não tenho estado vendendo informações aos agentes de Bonaparte. Que degradante ser obrigado a declarar isso! Meu interesse nesse caso não é pessoal nem patriótico... você notou, espero, o exemplo que mencionei há pouco sobre aquela virtude admirável! Contudo, estarei sendo absolutamente franco quando digo que meu interesse não é pessoal? Vamos dizer mais exatamente que estou ansioso para evitar um escândalo. De alguma forma, estou certo de que um homem do seu exce­lente bom senso também estaria.

Você está certo, mas nada menos do que toda a verdade me será suficiente.

Francis suspirou.

—Muito bem, entre estas quatro paredes, então, vamos revelar toda a verdade. Como imagino que você já adivinhou, meu lastimável pai é o maquinador um tanto inábil que você tem tentado desmascarar. — Ele pa­rou, mas Carlyon apenas continuou a olhá-lo firmemente. Ele tornou a sus­pirar. — Compreende-se por que, é claro.

Compreende-se mesmo?

Oh, acho que sim! Sua fortuna nunca foi grande, como sabe, e ele não tem a mínima noção de administração. Aquele pariato que o promove com satisfação infelizmente não veio acompanhado de um subsídio que tal­vez pudesse facilitar-lhe manter seu novo cargo num estilo que ele julga ade­quado à sua posição. Meu querido Edward, você já teve oportunidade de ver as ampliações que ele decidiu empreender no Solar Bedlington? Uma coisa realmente horrível, asseguro-lhe! Basta lhe dizer que ele teve o Re­gente como conselheiro-arquiteto, o que torna desnecessário qualquer ou­tro comentário. — Cobriu os olhos com uma das mãos e estremeceu de maneira significativa. — Inclusive há uma sala em estilo chinês. Você mesmo talvez pudesse imaginar algo assim na pequena residência de verão do pobre Prinny, em Brighton. O único consolo é que quando for posta à venda, como seguramente será, não tenho a menor dúvida de que alcan­çará uma importância fantástica. É exatamente o tipo que deve empolgar um comerciante da cidade com ambições sociais.

E seu pai pretende vendê-la? — indagou Carlyon cortesmente.

Sim — respondeu Francis. — Sim, querido Edward, ele pretende. Já o convenci a ver a sensatez de tal medida. Felizmente, tenho uma certa influência sobre ele: nem sempre tanta quanta eu poderia desejar, porém, se me empenho, suficiente. Ele já não é tão jovem, como sabe, e é necessá­rio que se reconheça que relações prolongadas com o Regente raramente são proveitosas à saúde e à prosperidade. Quando se adiciona a isso uma tendência para jogar uíste em Oatlands com o duque de York, que meu po­bre pai vem manifestando ultimamente, imagino que não precise procurar mais longe uma razão que o fizesse empenhar-se para obter sua riqueza dessa maneira tão tola. Não tem aptidão para um jogo tão perigoso. Na verdade, tampouco tem aptidão para ocupar-se dos assuntos de Estado, e estou feliz por poder lhe dizer que ele foi induzido a admitir isso. Sim, ele está se aposentando. Como sabe, a gota tem estado impertinente. Ele vai se aposentar pleno de anos e honrarias, e, do que me é dado saber do seu temperamento alegre, não duvido que os acontecimentos desses últi­mos meses rapidamente desaparecerão de sua lembrança.

Como você veio a saber de suas atividades? — perguntou Carlyon.

Ele mesmo me contou — respondeu Francis.

O quê?

Oh, contou sim! Sob interrogatório, você sabe. Certamente eu já começara a sentir que ele estava um pouco inquieto. Bem, meu relaciona­mento com muitos dos seus colegas está baseado numa intimidade muito agradável! Estou certo de que você pode me encontrar em todos os setores dos círculos políticos: sou uma pessoa de muito bom-tom, como sabe. Na verdade, muitas vezes perguntei a mim mesmo se não deveria desafiar Brummell, pois há um grupo que afirma que a minha maneira de prender uma gravata é superior à dele. Os dândis mais jovens já estão muito inclinados a seguir meu exemplo.

Vamos voltar ao ponto desta discussão? — sugeriu Carlyon.

Ah, desculpe-me! Que procedimento correto o seu fazendo-me lem­brar! Sim, o ponto! O ponto, meu querido Edward, é que, sendo abençoado com um grande círculo de amizades, sem dúvida ouço muitas coisas que suponho não deveria ouvir de modo algum. Por exemplo, soube que havia algo provocando uma certa perturbação na Cavalaria de Guarda. Vaza­ mento de informações não é, ai de mim, exatamente um fato inédito: sem­pre se ouve falar de deslizes, mas fui induzido a dar a essa específica perturbação uma atenção mais do que passageira. Algumas circunstâncias, nas quais não preciso envolvê-lo, obrigaram-me a considerar que nem tudo estava bem com meu pai. Já lhe disse que ele é totalmente inadequado à vida de intrigas. Isso começou a atormentar-lhe a mente. Você bem sabe que um filho devotado não pode ficar indiferente à inquietação que afeta seu pai. Minha devoção levou-me a manter um olho filial em suas ativida­des... até onde me era possível. Inclusive comecei a visitá-lo com mais fre­qüência, como uma prova para os meus nervos... como os dele também, não tenho dúvidas. Ai de mim, nunca concordávamos exatamente como se desejaria. Nossos gostos, você compreende, são muito diferentes! Mas eu não fazia minhas visitas de má vontade, por mais que elas pudessem ter enfraquecido meu ânimo. Pois se eu não tivesse adquirido o hábito de visitá-lo para ver como ele estava, jamais teria sabido de sua repentina viagem a Sussex. Apresentei-me em Brook Street para ser informado pelo serviço secreto de que meu pai fora chamado subitamente, e o mais simples gesto de erguer uma sobrancelha trouxe à baila a informação adicional de que o pobre sr. Eustace sofrerá um acidente e estava morto. A notícia em si não me surpreendeu: sempre se soube que o pobre Eustace, mais cedo ou mais tarde, sofreria um acidente. Apenas por um cortês interesse, indaguei como essa notícia chegara ao meu pai. Foi então que eu soube da visita de Louis De Castres a Brook Street. O mordomo achou que ele havia trazido a triste notícia. — Francis parou, e, com o cenho franzido, fitava as unhas da sua mão direita. — Bem, você sabe, achei isso surpreendente. Que eu soubesse, Louis não tinha relacionamento de amizade com meu pai. É claro, você pode dizer que era natural que ele levasse a notícia para alguém que tinha valor para Eustace. Mas o que — confesso — eu não conseguia entender era como Louis, que positivamente me informara apenas no dia anterior que estava indo para Hertfordshire por uma noite, para visitar seus esti­mados pais, viera a estar em Sussex.

 

O que eu não consigo entender — interrompeu Carlyon — é por que Eustace foi empregado no caso, se De Castres conhecia a identidade do homem que estava por trás dele.

Meu querido Edward, Louis não era nenhum tolo! Acho que ele adivinhou desde o princípio, pois quem neste mundo a não ser meu pai te­ria sonhado em usar um instrumento tão discutível? Provavelmente ele ob­teve a verdade em alguma ocasião em que Eustace estava embriagado. Louis tinha tato para isso! Uma percepção tão refinada! Ele seria o primeiro a compreender que os pequenos caprichos de meu pai deviam ser satisfeitos. Mas quando Eustace morreu tão inoportunamente, e ele descobriu que a viúva entrara na posse de Highnoons, estranhamente deixando de efetuar uma busca discreta na casa, então já não era mais o momento de ficar con­siderando o ponto fraco de meu pobre pai. A propósito, só posso ser grato a Nicky por ele ter falhado na pontaria. Na verdade, o escândalo que re­sultaria se ele não tivesse falhado teria sido maior do que você ou eu pode­ríamos ter evitado.

—      Para mim, sem dúvida, era melhor que ele encontrasse a morte nas suas mãos, não nas de Nicky — replicou Carlyon.

Os olhos arregalados de Francis ergueram-se rapidamente para o rosto de Carlyon.

Então, também sabe sobre isso? — perguntou em voz baixa. — Bem, como veio a saber, Carlyon?

Você me contou.

Contei mesmo? E como fiz isso?

Um lapso de sua língua muito solta — disse Carlyon. — Você nos informou que De Castres fora apunhalado e que seu corpo fora abando­ nado debaixo de um arbusto. Mas isso não estava declarado no jornal em que você disse ter lido a notícia. Descobri que você dissera exatamente a verdade.

—      Certo, esse seu hábito — já me referi a ele antes — de fixar pontos banais é quase cativante — disse Francis, com uma ligeira aspereza na voz. — Como estou satisfeito por você ter tido pelo menos o bom gosto de não introduzir uma terceira pessoa nesta nossa entrevista! É exatamente a ver­dade, é claro; liquidei o pobre Louis. Lamento a necessidade; na verdade, o episódio todo foi muito doloroso, mas que outra coisa poderia ter feito? Não se poderia permitir que um agente inimigo continuasse em atividade; não havia meios de apurar quanto eleja sabia do conteúdo daquele relató­rio; e uma pessoa se esquiva de apresentar informação contra um amigo querido. Na verdade, seria inconcebível fazer isso! A sensibilidade de qual­quer um recusaria tal idéia!

—De fato! — Carlyon ergueu as sobrancelhas. — Deduzo que a idéia de convencer De Castres, por meio de que falsos recados não sei, de apresentar-se no Lincoln's Inn Fields, para que ali fosse assassinado, não tenha provocado nenhuma reviravolta em suas entranhas, pois não?

Francis parecia um pouco magoado.

—Meu querido Edward, você se engana a meu respeito! Nada evita­ria essa reviravolta! De todas as coisas deste mundo, aquela a que mais sou avesso é derramamento de sangue ou, na verdade qualquer forma de vio­lência. Meu pobre querido Louis! Exatamente um dos meus amigos mais antigos, você sabe! Tão constrangedor o fato de que ele teria dado um passo tão imprudente! Um homem da sua linhagem tornar-se um espião, e para Bonaparte, de todas as pessoas vulgares! É de assombrar qualquer um. Eu acreditava que ele fosse um homem de bom-tom quase tão irrepreensível como eu. Confesso, foi um choque terrível para mim. Conhece o pai dele, o marquês? Uma criatura verdadeiramente respeitável; o objetivo de seus amigos seria o de esconder-lhe a lamentável verdade. Mas quanto a man­dar falsos recados para o pobre Louis — realmente, fico arrasado sempre que penso nele! — eu não tinha necessidade de fazer algo tão repugnante aos sentimentos de um cavalheiro. Ele morava perto do Strand's, eu tinha um compromisso em Holborn; nada teria sido mais natural para ele do que fazer-me companhia. Caminhamos juntos em perfeita cordialidade. Para mim, o maior conforto é pensar que ele jamais soube o que lhe aconteceu. Oh, sim! Ele morreu quase instantaneamente; teria sido uma coisa chocante se eu tivesse feito um trabalho malfeito. Não poderia ter suportado a idéia de que ele tivesse sofrido. A amizade acarreta a mais séria das obrigações. Sempre fui sensível a isso. Sinto de fato que cumpri o último dever possí­vel para com ele. Imagine só se ele fosse baleado como um espião vulgar! Recuso-me a continuar pensando numa coisa tão horrível: afeta-me pronfundamente.

Carlyon tomou fôlego.

Você deveria ser felicitado quanto à sua resolução! — disse.

Obrigado, Carlyon, mil vezes obrigado! É sempre um erro permi­tir que o sentimento seja mais importante que o julgamento, não é? Eu sa­bia que você devia sentir isso também.

Não me conceda o crédito da resolução semelhante, peço-lhe! Ja­mais alcançaria meu objetivo!

Você me desaponta — disse Francis, pesaroso. — Julgara que ti­vesse compreendido meus sentimentos neste acontecimento. Seu bom senso é tão surpreendente! Aonde o sentimento me teria levado? O que seria de nossas famílias, da família do pobre Louis também? Não posso pensar que você teria preferido que eu fechasse os olhos para as atividades de alta trai­ção. Não, não, o sentimento teria levado Louis a uma morte ignominiosa, arrasado a minha família, constrangido a sua, e destroçado completamente o pobre marquês e sua encantadora esposa! Agora devemos passar uma es­ponja no caso todo, e em silêncio total.

Eu realmente não sei. Mas, por favor, continue!

Tivemos tão grande digressão que esqueci em que ponto havia che­gado. Ah, sim! O fracasso de Louis em vasculhar Highnoons, não foi? Sua subseqüente falta de decisão encorajou-me a esperar que ele não tivesse fi­cado por muito tempo comprometido com aquela tarefa. Nenhum caminho melhor veio-lhe à lembrança a não ser dirigir-se a Londres, para relatar tudo a meu pai. Sim, a descoberta de que sua cumplicidade era de perfeito conhecimento de Louis arrasou totalmente meu pai. Como você sabe, ele veio imediatamente para Sussex, mas com que objetivo em mente eu não sei. Ele não fazia a menor idéia de onde procurar o relatório. Para mim é uma fonte de constante admiração o fato de como vim a ter um sujeito tão medroso como pai. Entretanto, não tenho o mais leve motivo para acre­ditar que minha pobre mãe o traísse. Deve permanecer um enigma. Seu cé­rebro entrara em tal redemoinho quando de novo chegou em Brook Street, que fiquei lisonjeado com o fato de ter saudado minha chegada à sua porta com alívio. Era preciso apenas um pouco de persuasão — e você sabe que sou muito persuasivo — para induzi-lo a fazer-me seu confidente. Raras foram as vezes em que o encontrei mais disposto a ouvir meus conselhos. Foi muito recompensador. Fui obrigado a salientar-lhe que o seu estado de saúde exigia que ele se retirasse da vida pública. Eu realmente não po­deria responder por sua vida se ele continuasse no gabinete. Graças a Deus, pude levá-lo a reconhecer a justeza do meu raciocínio! Ele não se dera conta do perigo em que estava: com que freqüência um homem continua exer­cendo sua profissão muito tempo depois que seus amigos já compreende­ram que a época da aposentadoria já chegou!

Isso foi dito no mais gentil dos tons, mas teve o efeito de fazer passar um calafrio ao longo da espinha de Carlyon. Seu rosto continuava impas­sível; ele disse apenas:

Creio que entendo você.

Sim, achei que entenderia. — Francis sorriu, retirando cuidado­samente uma partícula de poeira da manga.

Carlyon ficou calado por um momento, olhando para o fogo de ce-nho franzido. Seu hóspede afundara numa poltrona, e agora cruzava uma perna esguia sobre a outra, admirando as borlas prateadas das botas ale­mãs. Carlyon ergueu os olhos e disse abruptamente:

Como veio a saber onde o relatório estava escondido?

Meu querido Edward, nada poderia ter sido mais óbvio para mim! Eustace garantira a meu pai que tinha um esconderijo do qual jamais al­guém poderia suspeitar. Você deve saber que o pobre rapaz nutria uma con­sideração comovente por mim. Sim, de fato: durante anos tentou imitar minha maneira de usar uma gravata, também com resultados tão lastimá­veis! Devo confessar que seus freqüentes convites para que eu o visitasse em Highnoons contribuíram muito para angustiar a minha vida. Em mui­tas ocasiões cheguei a desejar não ser uma criatura de boa índole. Várias vezes me senti obrigado a satisfazer seu desejo de receber-me em Sussex. E não tenho muita inclinação para o conhaque, você sabe! Mas lembro-me bem de Eustace colocar uma valiosa caixa de rape — jamais descobri a quem pertenceu — dentro daquele relógio, e informar-me, com todo o mistério engendrado por um estado de espírito um tanto sentimental, que sempre que precisava esconder alguma coisa de outros, colocava-a nesse lugar engenhoso. Contou com alegria que certa vez cobiçara e obtivera do seu irmão Harry uma bugiganga qualquer e permitira que ele a procurasse pela casa toda, certo de que até uma pessoa tão desconfiada como Harry não pensaria em olhar no relógio. Felizmente, como por acaso aconteceu, na manhã seguinte ele não se lembrava de me ter feito seu confidente. Quando eu soube que todos os papéis dele estavam em suas mãos, e que o relatório obviamente não estava entre eles, pareceu-me de todo provável que o relógio mais uma vez fora utilizado para escondê-lo.

Santo Deus, Cheviot, por que você não veio a mim, como um ho­mem honesto, e me contou tudo? — perguntou Carlyon.

Realmente, meu querido Edward, isso não é digno de você! — pro­testou Francis. — Imagina por acaso que outra coisa além da mais terrível necessidade me tenha levado a fazer-lhe estas confidencias hoje? Considere, por favor! Ser obrigado a ficar sentado aqui, contando as façanhas peculiares de meu pai, é uma experiência da qual não me recuperarei tão facil­mente. Sua reserva tornou impossível a mim descobrir a extensão precisa do seu conhecimento; meu maior desejo era recuperar o relatório enquanto suas suspeitas permanecessem frágeis. Se Nicky não tivesse entrado na casa no momento mais inoportuno, eu teria tido êxito. Pobre rapaz! Ouso di­zer que ele lamentaria muito imaginar que me deixou constrangido!

—Você é, sei muito bem, um jogador irresponsável, mas não o acon­selharia a arriscar nenhuma grande quantia nessa hipótese! — respondeu Carlyon, mordaz.

Francis sorriu, mas não disse nada. Carlyon curvou-se e ajeitou outra acha de lenha no fogo, ficando a observar as chamas enroscarem-se ao seu redor.

Bem, e agora? Francis suspirou.

Estou praticamente em suas mãos, meu querido Carlyon. Carlyon dirigiu-lhe um olhar com o cenho franzido.

Espera que eu lhe entregue o relatório?

Seria muito sensato de sua parte se procedesse assim. — Viu o bri­lho irônico nos frios olhos cinzentos de Carlyon e levantou a mão. — Oh, por favor, não me compreenda mal! Nada estará mais longe de mim do que tentar qualquer violência contra você! Não, não, apenas pretendo sugerir que posso restituir mais prontamente esse documento do que você. Mas, desde que seja restituído, e sem escândalo, ficarei extremamente satisfeito de me livrar dele.

Para ser franco com você, também ficarei! — disse Carlyon.

Meu querido Edward, nunca duvidei disso nem por um instante. Como é agradável nos descartarmos da nossa reserva! Diga-me, julga que poderíamos entregá-lo a salvo aos cuidados de seu irmão John, ou ele já não está mais com você?

Ele está aqui. Não sei o que dirá a respeito, mas não agirei sem o consentimento dele. Você não fará objeção a que eu mande chamá-lo, pois não?

 

De modo algum, chame-o! — respondeu Francis cordialmente. Carlyon dirigiu-se ao cordão da campainha e puxou-o.

Você já jantou? — perguntou.

—Já, obrigado, se é que se pode chamar aquilo de jantar. Se pre­tende convidar-me para passar a noite aqui, o que acredito possa ser o caso, pois estabeleci uma regra de nunca viajar à noite, mesmo com o lua mais cheia, um pouco de caldo e talvez um copo de Borgonha — poisdevo empenhar-me para manter as energias — enviados numa bandeja ao meu quarto seriam um final adequado para um dia singularmente de­sagradável. Estou convencido de que não preciso pedir-lhe que mande sua governanta certificar-se de que minha cama esteja apropriadamente aque­cida. Não nego que ela seja absolutamente confiável. E tenho Crawley comigo, é claro!

Sério, Carlyon curvou-se, e quando o mordorpo entrou no aposento, repetiu esse pedido.

 

—E queira ter a bondade de mandar o sr. John reunir-se a mim — acrescentou.

John não demorou muito para atender ao chamado. Entrou com seu andar pesado, assentiu cortesmente com a cabeça para Francis e lançou um olhar indagador para Carlyon.

Bem, Carlyon? Queria falar comigo?

Sim, desejo seu conselho — respondeu Carlyon. — Vejo que Cheviot e eu estamos de acordo em restituir aquele relatório sem envolver qual­quer uma das nossas famílias em um escândalo. Ele sugeriu que, no caso de eu preferir não encarregá-lo do assunto, talvez você pudesse tirá-lo das mãos de nós dois.

Restituir o documento secretamente, quer dizer? — perguntou John. — Não, não, não posso ter nada a ver com tal providência! Seria mais impróprio para mim, mesmo se soubesse como executá-la, o que, felizmente para mim, não é o caso!

—Que funcionário excelente você é, John! — murmurou Francis. Carlyon sorriu de leve e retirou o relatório do bolso, entregando-o a Francis.

Tome-o, então.

Ned!

—Bem, John, o que você queria que eu fizesse? Não posso levá-lo a Bathurst sem revelar a participação de Bedlington no roubo, e se você deseja expor-se a esse tipo de escândalo, só posso dizer que eu não.

John ficou calado, sua expressão muito preocupada. Francis introdu­ziu as folhas dobradas no bolso.

—Não vou agradecer-lhe — disse. — Não se agradece a um homem por entregar-lhe um carvão em brasa. Penso que tomarei providências para viajar para Cheltenham Spa quando finalmente me livrar deste assunto. Sempre achei o ar de lá toleravelmente de acordo comigo.

—Se isto um dia se tornar público! — exclamou John. Francis deu de ombros, à sua maneira expressiva.

John, meus nervos já foram obrigados a suportar mais do que es­tão em condição de fazê-lo. Por favor, não evoque horríveis espectros! Acho que, nestas circunstâncias, não pregarei olho esta noite!

Bem! — disse John bruscamente. — Não desejo insultá-lo, Cheviot, mas confio em Deus que Ned esteja certo em encarregá-lo dessa ta­refa!

Na verdade, eu também! — concordou Francis amável. — Se eu fosse detido em meu caminho para Londres por salteadores, por exemplo, seria chocante!

Está muito bem transformar o caso num gracejo, mas realmente não sei como conseguirá restituir o relatório sem ser descoberto!

Suponho que ficará mais feliz se eu não lhe contar, querido John. Não será tão difícil assim. Na verdade, só tenho de decidir qual a pessoa de quem menos gosto na Cavalaria de Guarda. Será uma escolha, confesso, mas não perco a esperança de acertar exatamente o homem que seria ideal para responsabilizar.

John parecia horrorizado.

Eu preferiria não saber nada do que você pretende fazer! — disse impetuosamente.

O funcionário perfeito! — sorriu Francis, levantando-se. — E agora, meu querido Carlyon, permita-me que eu me retire. Tive um dia ex­tremamente fatigante, e essas excursões pelo campo são exatamente o que o meu médico condena com mais severidade. Pergunto a mim mesmo se estou certo preferindo Cheltenham a Bath. Meu Deus, não há fim para os problemas que nos perseguem, não é?

 

quando carlyon, depois de acompanhar seu hóspede até o andar de cima, para um quarto adequadamente aquecido, e passá-lo aos cuidados do seu criado pessoal, juntou-se ao grupo da sala de estar, descobriu que Nicky, em termos acalorados, dava vazão à sua revolta diante do desfecho da aventura. Nada, insistia ele, teria sido mais insípido, embora, quanto à presença prolongada de Francis Cheviot na casa, uma circunstância — a única — pudesse, de algum modo, reconciliá-lo com uma coisa tão abo­minável, e esta circunstância seria Bouncer mordê-lo. Bouncer, que fora libertado da prisão e estava estendido diante do fogo, abanou o rabo de boa vontade, embora estivesse ligeiramente cansado, e soltou um suspiro de cão que tivera um dia vitorioso apesar de cansativo.

Não era de se esperar que John pudesse acostumar-se prontamente à lembrança da conduta heterodoxa do irmão. Possibilidades apavorantes continuavam a surgir na cabeça deles, nem a menor delas pondo em dú­vida a sinceridade de Francis. Seus argumentos foram recebidos por Carl-yon com tranqüila paciência, e embora não o convencessem exatamente, ele pôde finalmente admitir que não sabia o que mais poderia ter sido feito, e apenas estava grato por não ter sido a questão entregue ao seu julgamento.

Quando ouviu o breve relato das atividades de Francis, Elinor só pôde dizer que estava satisfeita ao pensar que não sonhara que caráter insensato estivera abrigando em Highnoons.

Sim, imagine só se ele estivesse com aquela sua bengala-espada na mão quando a descobriu tentando abrir o relógio! — exclamou Nicky. — Acho que não teria hesitado em apunhalá-la, pois se um homem investe con­tra seu melhor amigo, não se pode dizer onde irá parar!

Exatamente o que eu estava pensando — concordou Elinor. — Eu posso estar grata, embora entenda que teria sido uma coisa muito excitante. Como Highnoons será monótona agora!

Por Deus, é mesmo! Será insuportável. Sabe, Ned, creio que nunca me diverti tanto em toda a minha vida! Só lamento o trabalho deplorável que vocês fizeram no final, você e John juntos!

Pelo amor de Deus, Nicky, não fique dizendo que tive algo a ver com isso! — suplicou-lhe John. — Ned sabe o quanto desaprovo a con­duta dele.

A viúva parecia muito abalada.

—É mesmo? Será que ouvi corretamente o que disse, sr. Carlyon? Carlyon sorriu, mas John parecia confuso, e, muito sério, disse:

—Nunca fiz o mínimo segredo dos meus sentimentos no que se re­fere a este caso, senhora. Mas, com meu irmão, é sempre assim! Sempre conseguirá impor sua vontade, por mais louca que seja!

—Ora, John, não seja tão prosaico outra vez! — pediu Nicky. — Ned é um grande sujeito... dentro do seu elemento, nunca destoando.

Certo, tudo isso está muito bem, e não duvido que as idéias dele servem aos seus interesses, mas não é justo. Não foi uma coisa certa. A se­nhora é uma mulher sensata, sra. Cheviot: apelo para a senhora! Deve es­tar ciente da natureza caprichosa do seu comportamento em todo esse assunto!

Mais do que qualquer outro, senhor! — assegurou-lhe Elinor. — E o que eu acho particularmente desagradável nele, é o hábito de fazer as piores coisas parecerem as mais simples e banais! Ouso afirmar que posso não ter mencionado isso antes, mas não terei escrúpulos em lhe dizer, sr. Carlyon, que o considero uma pessoa estragada pela indulgência mostrada por sua família, até ter se tornado insuportável, obstinado, cruel, indisci­plinado, inflexível em seu próprio conceito, insensível às reivindicações dos outros...

Ora, prima Elinor, pensei que gostasse dele! — exclamou Nicky, muito chocado.

Não posso imaginar onde foi arranjar tal idéia — disse Elinor, com firmeza. — Diga-me, que motivo tenho eu para gostar de alguém que me sujeitou a todos esses males que sofri em suas mãos? Minha boa reputação foi destruída, minha oportunidade de encontrar um lar numa casa apro­priada, anulada, e fiquei exposta a todos os perigos de uma trama de alta traição.

Isso é verdade, palavra de honra! — afirmou John. — Ned, você bem sabe que realmente julgo que não tenha procedido bem com a sra.Cheviot.

Não concordo — replicou Carlyon. — Estabeleci uma regra de sem­pre atravessar um terreno acidentado o mais ligeiro que pudesse, e vocês dificilmente poderão negar que topamos com um terreno bastante aciden­tado do princípio ao fim deste negócio. Agora chegamos ao fim a salvo, e isso só nos custou a bagatela de um furo no ombro de Nicky e um ma­chucado na cabeça da sra. Cheviot.

Oh! — exclamou Eiinor, indignada. — Isso ultrapassa tudo!

Bem, não guardo ressentimentos da minha participação, garanto-lhes! — declarou Nicky. — Mas sei que está brincando, prima Elinor! Não teria perdido um divertimento desses, teria?

Carlyon riu e levantou-se.

Você jamais irá convencê-la a admitir tanto, Nicky. Vamos, se­nhora, está na hora de levá-la de volta à srta. Beccles antes que tenha aba­lado completamente meu crédito junto a meus irmãos.

Na verdade, meu senhor, não é necessário que se dê ao trabalho de acompanhar-me — replicou Elinor, levantando-se também. — Afinal, já fiz esse trajeto; uma viagem de apenas onze quilômetros, mesmo supondo que seria detida por salteadores, não me assusta.

É claro que não precisa vir, Ned! — disse Nicky. — Ela não irá so­zinha! Estarei com ela, e Bouncer também. Não fará objeção de levar Bouncer na carruagem, fará, prima? Ele está cansado demais para correr atrás.

Meu caro Nicky, não há mais o menor perigo ameaçando a sra. Cheviot, e já é tempo de voltar para casa.

Ora, e assim farei, Ned, mas não seria melhor eu voltar a Highnoons esta noite? Sabe, deixei minha roupa lá, e...

Você tem muita roupa aqui — disse Carlyon.

Isso mesmo, e o que é mais, você está parecendo morto de cansaço! — disse John, no mesmo tom rude que usava para ocultar qualquer preo­cupação com respeito ao irmão caçula. — Eu realmente não sei o que Ned pretendia ao encorajá-lo a ficar perambulando quilômetros sem fim à pro­cura daquele seu cão!

Oh, bobagem! Nunca estive melhor em toda a minha vida!

Nunca! E acho que seu ombro também não o está atormentando, e que você fica inquieto na cadeira porque está nervoso!

Gostaria que desse uma olhada nisso, John — pediu Carlyon. — Você está com a razão: eu não devia tê-lo deixado sair atrás de Bouncer. Entretanto, parecia preferível a entrar em confronto com Francis.

A observação descuidada fez Nicky enrijecer com o choque da surpresa.

—Ned! Você me aconselhou a ir atrás dele só para me tirar do cami­nho! Oh, isso é mesquinho de sua parte! Nunca poderia imaginar que pu­desse me tratar dessa maneira!

Não poderia mesmo! — disse Elinor. — Estou certa de que nenhum de nós tinha alguma razão para supor tal solicitude. Lamento por você Nicky, e se quiser voltar comigo para Highnoons, ficarei muito feliz de acei­tar sua companhia.

Bem, eu irei! — disse Nicky.

O olhar de John encontrou-se com o do irmão mais velho, e ele agar­rou Nicky pelo braço.

—Oh, não, você não irá! — disse ele. — Você vai é para a eama, e chega dessa tolice. Eu cuidarei dele, Ned.

Nicky, que na verdade estava extremamente cansado, disse:

—Oh, muito bem, mas não sou nenhum bebê! Não preciso ser posto na cama! Boa noite, prima Elinor! Acho que estarei lá pela manhã para apanhar minhas roupas. Vamos, Bouncer!

Despedindo-se, John apertou a mão da viúva.

—Preciso dizer adeus, senhora, pois parto amanhã para Londres e não sei quando estarei novamente em Sussex. Espero que ao vê-la da pró­xima vez, esteja confortavelmente instalada em Highnoons, sem outras pas­sagens secretas descobertas. Mas Ned cuidará de você!

Ela respondeu qualquer coisa, e ele então retirou-se com Nicky. Carl­yon fora buscar o chapéu e a peliça para Elinor, e ela os colocou, permi­tindo que ele a conduzisse até onde a carruagem já estava aguardando.

—Gostaria que não se desse a esse trabalho, meu senhor — disse ela, enquanto ele a ajudava subir, dando-lhe a mão. — Na verdade, não tenho absolutamente medo nenhum de ir sozinha!

—Mas eu quero ir com você — respondeu ele, abrindo uma manta de pele sobre os joelhos dela e sentando-se ao seu lado.

A carruagem pôs-se em movimento. A sra. Cheviot disse:

—Espero que não venhamos a descobrir que Nicky prejudicou seu ombro.

—Creio que não. Houve uma pausa.

Bem, parecerá estranho não viver mais aterrorizada! — observou Elinor. — Tanta coisa aconteceu nesta semana que não houve oportuni­dade de discutir com o senhor o que devo fazer a seguir. Mas é preciso pensar nisso agora, meu senhor, como estou convencida que já deve ter percebido.

Há pouca coisa que poderá fazer até que a homologação seja con­cedida — respondeu Carlyon.

Pretende me manter em Highnoons até lá?

Com certeza isso ficou acertado entre nós, não ficou?

Ficou? — perguntou ela, parecendo em dúvida.

Sem dúvida. Você deve vender Highnoons, e precisamos esperar que os débitos de meu primo não engulam todo o dinheiro obtido.

Ela virou-se, mas, na escuridão, só podia distinguir-lhe indistintamente as feições.

Meu senhor, esse assunto não me diz respeito! Eu não poderia harmonizá-lo com a minha consciência para tirar proveito desse horrível casamento! Por favor, entenda que estou falando sério!

Como quiser — disse ele indiferente.

Ela ficou surpresa, pois calculava que ele argumentaria a respeito e preparara-se para resistir às suas persuasões. Depois de outra ligeira pausa, ela disse:

Eu lhe peço que concorde em permitir que eu deixe Highnoons ime­diatamente, senhor. Já sabe da minha situação; preciso procurar uma ocu­pação apropriada, e de nada me servirá ficar retardando dessa maneira tal providência.

A sra. Macclesfield — murmurou ele. — Sempre achei que volta­ríamos a ela.

Elinor riu.

Não, ai de mim! Receio que meu crédito com a sra. Macclesfield não seja muito elevado! Mas, por favor, seja sincero, senhor! Talvez se pas­sem muitos meses até que se encontre um comprador para Highnoons, e até lá o que farei, com tanto tempo disponível?

Já considerei isso, senhora, e se não estiver disposta a voltar para a casa de algum parente seu, penso que seria um arranjo excelente você vi­sitar minha irmã, Lady Hartlepool. Imagino que irá gostar dela. Tem um gênio cativante. Eu não sugeriria que fosse para a casa de Lady Flint, pois ela está na expectativa de ter um bebê. E minha irmã Augusta tem sempre uma vida movimentada na cidade, de um modo que dificilmente sçria ade­quado para você durante o seu período de luto. Minha irmã Elizabeth es­tará me visitando dentro em breve, e se me permite, eu a levarei paraconhecê-la.

Mas., mas Lady Hartlepool precisa de uma governanta? — per­guntou Elinor.

Oh, não! Seus filhos ainda não estão em idade de ler e escrever.

Então... Meu senhor, realmente não sei que arranjo pode ter em mente, mas...

Espero que venha a mudar de idéia quanto a procurar outro lugar de governanta.

Bem, não mudarei, asseguro-lhe, senhor! Já lhe disse uma vez que não serei sua dependente, e lhe peço que acredite que estava sendo sincera!

Espero que venha a ser minha esposa — replicou ele, com toda a sua calma habitual.

O choque a fez calar, e ela não estava ciente de mais nada, a não ser das batidas violentas de seu coração.

Depois de um instante, ele continuou:

Eu ainda não deveria estar fazendo tal declaração a você, mas ima­gino que meus sentimentos não lhe sejam desconhecidos.

Totalmente... totalmente desconhecidos, meu senhor! — disse ela, em um tom de voz que não parecia ser o seu.

Tentei escondê-los. É muito cedo, e de modo algum desejaria embaraçá-la. Mas quando terminar o período de luto estrito, é meu mais ardente desejo que me seja permitido fazer-lhe a corte.

Ela só conseguiu dizer:

É um absurdo! Estou convencida de que isto é mais uma de suas surpresas extravagantes, meu senhor!

Minhas surpresas extravagantes! Não mesmo! Nunca falei tão sé­rio em toda a minha vida. Você é a única mulher que pude pensar em pedir para ser minha esposa. Você já deve ter notado, pelo menos, que tenho achado um prazer extraordinário em sua companhia.

Não! Não, não, eu não tinha a mínima noção... Oh, por favor, meu senhor! Essa é uma idéia quixotesca! Não pode estar falando sério!

Ele parecia divertido.

—Minha querida criança, como é que você pode imaginar que eu seja dado a esse tipo de fantasia romântica? Na verdade, receio que meus hábitos insuportáveis, obstinados, possam ter lhe dado tal aversão a mim que nem todos os meus esforços futuros servirão para erradicá-la. Não é mesmo?

—Não! — respondeu Elinor. —.Oh, não! Mas... Ele pegou sua mão e levou-a aos lábios.

—Bem, eu a tenho tratado de maneira um tanto abominável, mas não farei mais isso. Pretendo cuidar muito de você, se me permitir.

Ela foi obrigada a procurar apressadamente um lenço na bolsa. Esforçando-se para falar de maneira controlada, ela disse:

Não será bom! O senhor é muito condescendente, mas considere, por favor!

Já considerei, e é um absurdo dizer que sou condescendente.

Oh, pare, pare! É loucura! Pense só em suas irmãs. O que irão di­zer? O senhor se casando com alguém que não passa de uma governanta sem vintém!

O que significa esse novo disparate? Esquece que até uma semana atrás você era a srta. Rochdale de Feldenhall?

Não, não esqueço, mas creio que o senhor não deve esquecer as cir­cunstâncias... da morte de meu pai!

Lembro-me perfeitamente, mas o que elas têm a ver com você con­tinuará, receio, um mistério para mim.

Ela ficou calada, mas, depois de um momento, conseguiu dizer:

Estou convencida de que suas irmãs não vão dizer exatamente isso. Pense só que choque seria para elas saberem da notícia do seu noivado co­migo!

Se conheço um pouco minha irmã Georgy — respondeu ele —, ela já deve ter escrito para Eliza e Gussie, e provavelmente, para Harry tam­bém, contando que Ned está profundamente apaixonado afinal.

Ela enrubesceu na escuridão.

Oh, não! Não diga isso! Ela não pode ter pensado numa coisa des­sas!

Bem, ela disse que eu era muito astucioso, mas que não iria me pro­vocar.

Não devo lhe dar ouvidos! — disse Elinor, muito abalada. — Oh, é a coisa mais ridícula! Só me conheceu há uma semana, e depois obrigou-me a casar com seu horroroso primo!

—Foi uma sorte que eu não a conhecesse melhor, pois, caso contrá­rio, jamais teria feito isso, sem dúvida.

Ela soltou uma risada que ficou suspensa no meio.

Odioso, homem odioso!

Conto com você para ensinar-me a ser menos odioso. Serei muito feliz por aprender com você.

Elinor concentrou suas energias.

—Lorde Carlyon! — começou ela. Ele a interrompeu:

—Sabe que ultimamente tornou-se uma ambição para mim ouvir meu nome, em vez de meu título, pronunciado por seus lábios?

—Certamente que não! — disse Elinor, resoluta. Ele ficou calado.

E quando penso no costume odioso que tem de me chamar de sra. Cheviot, quando sabe que não gosto — acrescentou a viúva, com suas for­ças bastante reduzidas —, admiro-me que me fizesse tal pedido!

Muito bem. Quando nos encontrarmos em público, eu a chama­rei de prima, como faz Nicky. Mas aqui, na privacidade da minha carrua­gem, não tenho nenhum escrúpulo de dizer: Elinor, estou profundamente apaixonado por você, e rogo-lhe que me dê a honra de pedir a sua mão em casamento.

Está dizendo muita tolice, e um dia me agradecerá por não lhe dar atenção! — respondeu Elinor, em um tom de censura.

Agora você está sendo rude — disse ele, imperturbável. — Terei de ensiná-la como responder a uma declaração com mais propriedade, meu amorzinho.

Ela estremeceu.

Oh, não! Por favor... Oh, pense apenas um momento! Se casasse comigo, todos iriam dizer que tinha feito isso para obter a posse de Highnoons!

Certamente que não. Você vai vender Highnoons, e só vamos nos preocupar em colocá-la razoavelmente em ordem. Ouso dizer que ela vale uma bagatela. Se sobrar algum dinheiro, depois que os débitos de Eustace Cheviot forem saldados, você comprará seu vestido de noiva com ele, e as­ sim nos livraremos de toda preocupação. Tem mais alguma objeção a apre­sentar?

Oh, se ao menos eu soubesse o que devo fazer! — exclamou Elinor.

Seria melhor você deixar tudo por minha conta, pois não tenho a menor dúvida a respeito.

Oh, meu senhor, como não acreditar que o senhor só me fez esta oferta por causa de alguma tolice que falei... a mais simples brincadeira!... de o senhor ter arruinado todas as minhas perspectivas?

Carlyon virou-se e puxou firmemente a agitada viúva para os seus braços.

—Sabe, jamais pensei que pudesse ser tão simplória! — disse ele e beijou-a.

Um tanto sem entusiasmo, Elinor tentou afastá-lo, mas, ao descobrir que era impossível, pareceu resignar-se, apenas dizendo, quando pôde di­zer realmente alguma coisa:

Oh, Edward, não!

Elinor, passei grande parte da minha vida ouvindo pacientemente muita insensatez. Nas minhas irmãs, posso suportar com tolerável sereni­dade; em você, não posso e nem quero! Você quer aceitar o meu pedido de casamento ou não?

Ao reconhecer que o estado de perturbação mental de Lorde Carlyon era irrecuperável, a viúva abandonou a tentativa de fazê-lo voltar à razão, e, feliz, apoiou a face contra o ombro dele e disse com a maior docilidade.

—Sim, Edward, por favor! Eu gostaria mais do que qualquer outra coisa no mundo!

 

                                                                                Georgette Heyer  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"