Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A VOLTA DOS GATOS ALADOS / Ursula K. Le Guim
A VOLTA DOS GATOS ALADOS / Ursula K. Le Guim

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

NUMA manhã chuvosa, bem cedo, Heitor e Susana atravessaram o morro na Fazenda Além da Colina e se dirigiram para o velho celeiro de feno. No alto havia um pombal, de onde os pombos costumavam entrar e sair. Olhando para os buracos, Susana começou a chamar — Psss-psss-psss; gatinhos de asas! Gatinhos de asas! Venham tomar café!

Do buraco surgiu... não um bico... mas um focinho canela...

dois olhos amarelos e redondos...

duas patas brancas da frente... — e então — pruuuuuum! — o gato saiu voando. Um gato de asas! Um gato da família Tabby, com asas da família Tabby.

A primeira a sair foi Telma, porque sempre acordava cedo. Depois apareceu Roger, em seguida (surgindo de outro buraco) a pequena Henriqueta e finalmente Jaime. Era mais lento que os irmãos porque sua pata esquerda tinha sido ferida tempos atrás por uma coruja zangada, mas ele conseguia acompanhar os outros em suas brincadeiras de voar, fazendo acrobacias no ar, ao redor do celeiro e deixando malucos os pica-paus do carvalho. Em seguida e ao mesmo tempo, os quatro gatos mergulharam no ar e dando cambalhotas desceram com miados famintos e alegres para o desjejum.
Heitor gostava de atirar ração para o alto e observar como Roger a apanhava; e Roger se divertia pegando-a no ar. Susana gostava de segurar a ração na mão enquanto Jaime a comia, fazendo cócegas em seus dedos com seus bigodes e ronronando alto. Telma e Henriqueta tomavam seu café da manhã compenetradamente, preferindo não brincar com a comida.
Assim, as crianças e os gatos estavam todos no velho celeiro, naquela manhã chuvosa, quando Heitor disse para sua irmã — Olha, acho que mamãe viu Roger ontem. Ele estava na colina, à vista da casa.

— Acho que ela já viu faz tempo. Ela não vai contar para ninguém — disse Susana, afagando o queixo de Telma.

 

 

 

 

 

 

 

Desde o momento em que descobriram os Tabby voadores, as crianças sabiam que deveriam manter isso em segredo. Tinham medo de que as pessoas quisessem colocá-los em gaiolas, exibi-los em circos ou shows ou laboratórios, para ganhar dinheiro com eles, ou mesmo vendê-los.

— Claro que mamãe não vai contar — disse Heitor. — Mas estou contente por ninguém aparecer perto do celeiro.

— Acho que eles sabem que devem continuar escondidos — falou Susana, coçando a barriguinha gorducha de Henriqueta. — Afinal, eles estavam escondidos na floresta quando nós os achamos. Eram selvagens.

O que Susana e seus irmãos não sabiam era que os gatos alados não tinham nascido perto da Fazenda Além da Colina. Chegaram ali vindo de longe. Nasceram na cidade, num depósito de lixo que ficava num beco, um lugar mais selvagem do que qualquer floresta.

Depois que as crianças saíram para pegar o ônibus da escola, Telma disse — Ah! Queria tanto saber como está mamãe! Penso nela todos os dias.

— Eu ainda sinto saudades dela — Roger disse.

— Eu também — emendou Jaime.

— Vamos voltar para vê-la! — propôs Henriqueta.

— Ah, não! — retrucou Roger, sério. — Há gente demais na cidade. É muito perigoso. Mamãe disse para usarmos nossas asas para fugir e nós fugimos. Devemos ficar onde estamos seguros.

— Mamãe ficaria tão contente — argumentou Henriqueta, e Jaime juntou — Nós poderíamos fazer uma visita rápida!


Telma balançou a cabeça. Ela concordava com Roger. Mas como os outros dois continuavam a falar nisso, ela disse:

— Pode ser um voo difícil para você, Jaime.

— Mas eu estou só ligeiramente manco, agora — retrucou Jaime, batendo as asas graciosamente para mostrar. — E nós éramos pouco mais do que gatinhos quando voamos de lá. Gostaria de rever o velho beco!

— Lembra-se do cheiro delicioso das latas de sardinha no lixo? — falou Henriqueta.

— Lembra-se de como você voou para o alto e assustou aquele cachorro? — disse Jaime.

Assim, Jaime e Henriqueta decidiram visitar a mãe, dona Jane Tabby, na cidade. Telma e Roger resolveram ficar em casa com seus amigos Susana e Heitor.

— Pense como as crianças ficarão tristes — disse Roger — se voltarem para casa e todos nós tivermos ido embora!

E realmente as crianças ficaram preocupadas quando voltaram para o velho celeiro na manhã seguinte e descobriram que dois Tabby voadores estavam faltando. Chamaram e chamaram por eles. Roger e Telma ronronaram muito, mais do que sempre, mas não conseguiram explicar onde o irmão e a irmã tinham ido. Assim, todos no velho celeiro ficaram ansiosos, pensando em Henriqueta e Jaime, e se perguntando — Onde estarão agora? Será que voltarão sãos e salvos?


2

 

HENRIQUETA e Jaime voavam sob uma chuva fina e agradável. Quando clareou, ficaram contentes de que a chuva e as nuvens os escondessem da vista enquanto voavam. Como Jaime tinha dito — Ninguém olha pra cima quando está chovendo!

Olhando para baixo, Henriqueta viu colinas e campos e estradas, mas não viu a cidade.

— Acho que a gente deveria ir mais para a esquerda, Jaime — falou através dos pingos da chuva.

— Por quê? — perguntou Jaime, aproximando-se.

— Meu instinto me diz isso — falou Henriqueta. — A gente tem que seguir nosso instinto de retorno. Ele vai nos levar direto para o lugar onde nascemos!

Jaime estava impressionado. Seguiu sua irmã. Mas no final, quando estavam descansando no galho de uma grande árvore, ele disse — Henriqueta, nós voamos por horas. Não deveríamos já ter visto a cidade?

— Talvez ela tenha se mudado — supôs Henriqueta.

— Claro, eu sou lento no voar — disse Jaime com tristeza.

— Você é tão rápido quanto eu — consolou-o a irmã, também triste. — Talvez meu instinto esteja destreinado. O que tem falado o seu instinto?

— Nada — retrucou Jaime. — Mas meu nariz... meu nariz diz que alguma coisa cheira mal... naquela direção!


Henriqueta levantou seu nariz cor de canela e fungou. Entreabriu a boca para cheirar os cheiros que só gatos podem cheirar. Uma lufada de ar passou.

— Ah! — disse ela. — Lixo! É isso!

Por isso eles continuaram voando, pousando no alto de uma árvore ou num telhado quando se cansavam, acordando no meio da noite e voando de novo. Podiam ver o suficiente, porque as luzes da cidade grande ali em frente faziam o céu nublado brilhar com uma luz amarela e opaca. Quando a manhã chegou de novo, não havia nada abaixo deles, além de telhados molhados de chuva e ruas imensas abarrotadas de tetos de carros brilhantes e guarda-chuvas, quilômetro após quilômetro, após quilômetro.

Jaime não disse nada, mas sua asa esquerda doía e ele desejou não ter vindo.

Cheiraram o vento e, guiados pelo instinto de retorno ou por seus narizes que reconheciam cheiros familiares, voaram devagar, passando por todos os edifícios de escritórios bem altos, e de apartamentos, até o mais estreito e sujo beco na mais velha e pobre parte da cidade. Ali pousaram no canto de um telhado, recolheram as asas e olharam para baixo.

— Este não pode ser nosso beco, Jaime — sussurrou Henriqueta. — Onde está o lixão?

Ambos pensaram no lixão sob o qual tinham nascido e onde tinham brincado quando pequenos, como se fosse sua casa. Ele tinha sumido.

— Não sei. Tudo parece estranho — cochichou Jaime de volta. — Mas tenho certeza de que este é o lugar. Você não acha?


Henriqueta concordou.

— Mas se o lixão sumiu — falou ela bem baixinho — onde está mamãe?

Depois de um longo silêncio, Jaime disse apenas:

— É melhor a gente achar alguma coisa para comer, para conseguir pensar melhor.

As janelas do velho prédio de apartamentos onde haviam se sentado estavam todas quebradas, e os quartos vazios eram uma pista de corrida de camundongos. Comer não iria ser problema.

Depois do desjejum, sentados de novo no telhado diante do pôr-do-sol fraco e tímido que se seguiu à chuva, os Tabby lavaram seus rostos como a mãe tinha lhes ensinado. E tiraram uma soneca curtinha, juntos, enroladinhos.

Foram acordados por barulhos estranhos — estrondos, ruídos de coisas se chocando, rangidos, marteladas, homens gritando, metal batendo em pedras. Eles subiram no alto do telhado e tiveram uma visão assustadora. Um velho edifício bem no fim do beco estava sendo destroçado e esmagado por uma imensa bola de metal presa a uma haste. Até que as paredes se abriram, o andar ruiu e o prédio todo se desfez em pedaços e pó.

Jaime estava tão apavorado que nem se mexeu, protegendo os olhos com as patas. Mas o medo de Henriqueta levou-a a subir aos ares e voar para cima e para baixo sobre o velho beco, gritando loucamente — Mamãe! Onde você está? Mamãe, nós estamos aqui! Onde está você, mamãe?


3

 

NINGUÉM ouviu a voz fraquinha de Henriqueta. Ninguém prestou atenção. Ratos e camundongos e besouros fugiam aterrorizados das fundações do edifício destruído. Um casal de pombos da cidade se aproximou para ver o que era aquela nuvem de poeira.

— Estão derrubando outro cortiço — disse um pombo, e o outro completou — Isso é o progresso — e continuaram voando.

Os homens e as máquinas no beco foram para o edifício seguinte e começaram a prepará-lo para a demolição. Ninguém tinha visto Henriqueta voando sobre os telhados, e finalmente, chorando, ela voltou até onde estava Jaime.

— Ajude-me a chamá-la, Jaime! — pediu ela. Ficaram lado a lado no canto do telhado e gritaram o mais alto que podiam: — Mamãe!

Depois puseram-se a escutar.

As máquinas tinham parado de rugir. Os edifícios vazios estavam silenciosos. Os homens encontravam-se sentados em volta das máquinas, no meio das ruínas, almoçando de suas marmitas. Nenhum carro desceu a rua coberta de entulhos. Ali reinava um completo silêncio, rodeado pelo barulho incessante que chegava da cidade. E, em meio a esse silêncio, Jaime e Henriqueta ouviram uma voz fíninha.

— Miau! — a voz choramingou. — Miau! Miau!

Os olhos de Jaime ficaram redondos e brilhantes.

A cauda de Henriqueta açoitou o ar.

O olhar dos dois cruzou o beco em direção à janela de um sótão, no telhado de um velho depósito.

— Não é a voz de mamãe — cochichou Henriqueta.

Ficaram olhando. Alguma coisa se moveu no lado de dentro da janela escura, alguma coisa preta.

— Provavelmente é o ninho de um estorninho — disse Jaime. — Estorninhos fazem ruídos esquisitos. Eu vou ver. — E se lançou no ar como uma andorinha, voando entre os telhados.

Henriqueta o viu pousar no alto da água-furtada e recolher as asas. Depois, lentamente, pata ante pata, deslizando do jeito que fazia para caçar, aproximou-se da janela quebrada e olhou para dentro.
No minuto seguinte estava ao lado de Henriqueta.

— É uma gatinha! — contou ele. — Uma gatinha preta, sozinha. Ela me viu, chiou e se escondeu.


— Mas a mãe deve estar por perto! — disse Henriqueta.

— Não sei. Não consegui ver direito. Mas não senti o cheiro de mais ninguém.

— Mas como uma gatinha iria subir ali sozinha?

— A mãe deve tê-la carregado para cima.

— Mas aquelas máquinas estão derrubando todas as casas! — choramingou Henriqueta. Ela não entendia, ou não se dava conta, que as máquinas só estavam fazendo o que os homens as mandavam fazer. — Eles vão derrubar esta casa também! Com a gatinha dentro! Nós temos que fazer algo, Jaime! — E ela abriu suas asas listradas.

— Não deixe eles verem você — falou Jaime.

— Não vou deixar. — E ela voou rápido e direto para o outro telhado, como ele tinha feito, para que ninguém, olhando para cima, pudesse vê-la. Pousou no telhado em frente ao sótão e olhou para dentro. Um momento depois, Jaime juntou-se a ela.

O sótão do depósito estava deserto e quase vazio. Não havia assoalho de tábuas, só vigas com papel isolante entre elas. Engradados e caixas de papelão estavam espalhados pelos cantos. Cheirava a pó e sujeira de rato, misturado com um delicioso perfume de gatinho.

— Não tenha medo — disse Henriqueta com doçura. — Viemos ajudar você!

Silêncio.

— Você não quer sair? — perguntou Jaime.

Silêncio.

Jaime e Henriqueta afastaram-se da janela quebrada, no canto do sótão. Um de cada lado, como leões-de-chácara, deitaram-se de bruços com as patas da frente dobradas no peito. Semicerraram os olhos. E esperaram. Os gatos são pacientes. Mesmo quando estão ansiosos e assustados, eles esperam com calma, observando para ver o que acontece.

Por um bom tempo nada aconteceu. Os homens e as máquinas lá embaixo no beco haviam terminado a tarefa diária de produzir poeira e entulho.

Os homens foram embora. As máquinas ficaram esperando, mais tranquilamente ainda do que os gatos, mas muito mais estúpidas.

No momento em que as luzes começaram a se acender nas incontáveis ruas da cidade, algo se moveu na janela do sótão. Uma carinha apareceu. A gatinha se aproximou cautelosamente dando um pulinho por sobre o vidro quebrado no caixilho da janela. Foi direto à poça de água da chuva formada junto à calha do telhado. Ali se agachou e bebeu com sofreguidão, lambendo e lambendo. Era muito pequena, muito magrinha, tinha o pelo malcuidado, preto do nariz à ponta da cauda, todo preto, mesmo suas pequenas e empoeiradas asas encolhidas.


Henriqueta e Jaime ficaram olhando em total silêncio, um de cada lado da água-fortada.

A gatinha virou-se para retornar ao sótão, seu esconderijo, e viu os dois. Ela deu um pulo de medo. Depois suas costas se arquearam. Sua cauda curta e preta arrepiou-se. Suas asinhas se abriram e se agitaram. Seus olhos amarelos brilharam como faróis... e, mostrando seus minúsculos dentes brancos de gatinha, gritou corajosamente para eles:

— Ódio! Ódio! Ódio!


Henriqueta e Jaime ficaram sentados quietos. Jaime sorriu. Henriqueta ronronou.

A gatinha olhou selvagemente para um e para outro e então, com um salto no ar, retornou ao sótão. Eles podiam ouvi-la se arrastando sobre as lajes para se esconder dentro de uma das caixas de papelão.

Henriqueta desceu do telhado, Jaime também, até se encontrarem em frente à janela quebrada. Ali sentaram-se. Jaime lavou a orelha direita de Henriqueta e Henriqueta apoiou a cabeça em seu ombro.

— Sua pobre asa ficou doendo, depois de tanto voo? — perguntou ela.

— Não muito. Espero que a gente encontre mamãe logo — disse Jaime. Ambos falavam alto o suficiente para que a gatinha, dentro do sótão, pudesse ouvi-los.

— Mamãe deve ter encontrado um novo lugar para morar, quando destruíram o lixão.

— Mas ela não iria longe, tenho certeza.


— Não se tivesse uma gatinha aqui!

— Mamãe nunca deixaria um gatinho sozinho um minuto a mais que o necessário.

— Ela sempre voltava para nós, quando éramos pequenos.

— Claro que sim. E quando eu me perdi, lembra- se? Caçando um pardal, antes que eu pudesse voar bem. Ela me encontrou escondida atrás do assento de um carro velho...

— E ela pegou você pela nuca e trouxe para casa! Sim, eu me lembro! Que bronca ela deu! E depois, lavou você duas vezes.

— E ronronou... Lembra-se como mamãe ronronava para a gente dormir?

— Sim, lembro. Era assim: — e Henriqueta começou a cantar uma canção de ronronar, e Jaime se juntou a ela, cantando alto e baixo, alto e baixo... até que na janela quebrada uma carinha zangada, preta e amedrontada apareceu, olhando para eles.

Henriqueta e Jaime fingiram não perceber. E começaram a conversar de novo.

— Tenho certeza de que mamãe está bem, Henriqueta. Ela aprendeu a se cuidar, morando neste beco toda a vida.

— Eu sei. As famílias se separam nos maus tempos. Mas depois se encontram de novo.

— Mas mamãe não pode voar. Então é mais fácil para nós descobri-la, porque nós temos asas.

— Pobre mamãe! — disse Henriqueta com tristeza.

Atrás dela uma voz fininha gemeu — Miauuuuuu! — A gatinha chorava.

Henriqueta fez um ruído suave — Prrrrt! — que sua mãe costumava fazer quando voltava para o lixão. Então se levantou, virou-se muito calmamente para a janela, e começou a lavar as orelhas da gatinha. A gatinha ficou quietinha, tremendo.

— Que tal alguma coisinha para comer? — disse Jaime alegremente, voando para longe.

Voltou em poucos minutos com uma presa, apanhada nos quartos vazios do depósito. Henriqueta ia comer só um ou dois bocados, mas não deu tempo. A gatinha, morrendo de fome, rosnou, agarrou e carregou o jantar para fora do sótão, onde o devorou todinho.

Mais tarde, quando a gatinha estava dormindo na caixa grande de papelão, toda enroladinha e aninhada no calor peludo de Jaime, Henriqueta foi caçar seu próprio jantar. Mas metade do que caçou reservou para o desjejum da gatinha.


TODA aquela noite e o dia seguinte e a noite eles ficaram com a gatinha. Os três se deitaram enroladinhos dentro da caixa de papelão e falaram e ronronaram e se lavaram e dormiram. A gatinha estava precisando de um bom banho. Henriqueta sussurrou para o irmão — Coitadinha, ela tem pulgas, Jaime! — (Toda aquela lavação não agradou nem um pouco às pulgas. Muitas pularam fora para procurar uma casa mais tranquila.) Depois de algumas boas refeições e muita lavagem e ronronagem, a gatinha não parecia mais esquelética e zangada. Mas ainda se sentia amedrontada e chiava sempre que uma tábua rangia, e também não queria falar. Não conseguia contar para Jaime e Henriqueta como se perdera, ou onde sua mãe poderia estar. Tudo que conseguia produzir era um chorinho “Miau!” e um grito desafiador de “Ódio”.

À noite e pela manhã, Jaime e Henriqueta revezavam-se em voar para fora e observar a vizinhança em busca de notícias de dona Jane Tabby. Mas não sobrara um só gato nas redondezas do beco. Nem um cachorro. Nem um ser humano, exceto os trabalhadores durante o dia. Só os camundongos e ratos e besouros e pulgas, que não sabiam para onde ir, e as máquinas. Durante o dia um guindaste com sua bola de demolição aproximou-se mais e mais do depósito.

Preocupados com a gatinha e preocupados em encontrar a mãe, Jaime e Henriqueta esqueceram-se de prestar atenção ao guindaste. Não ficaram olhando para ele. Estavam cochilando juntos dentro da caixa, quando o guindaste se instalou bem em frente ao edifício onde estavam, e a enorme bola de metal deu um impulso e abriu um grande buraco na parede da frente. Então, em pânico, Jaime correu para a janela do sótão gritando — Voe, Henriqueta! Voe!

A gatinha, aterrorizada, encolheu-se chiando e salivando no canto da caixa. Henriqueta não perdeu tempo discutindo com ela. Fechou suas eficientes e delicadas mandíbulas na nuca da gatinha, levantou-a e correu pelas lajes até a janela. Voou para fora, a gatinha balançando entre suas patas, exatamente quando o destruidor bateu de novo. O edifício todo tremeu e estremeceu, e os andares ruíram.


Acima dela, Jaime voava em círculos gritando — Por aqui, Henriqueta!

Ela o seguiu obedientemente através da nuvem de poeira.

Embaixo, no beco, o motorista do guindaste olhou para cima, através da poeira, e piscou várias vezes.


— Pássaros — disse ele. — Só podem ser pássaros.

Mais tarde, comendo um sanduíche que tirou da marmita, perguntou ao amigo que estava sentado na mesma pilha de tijolos — Você alguma vez viu um pássaro que tivesse bigodes? E patas da frente?

— Nunca — respondeu o outro homem. — Não posso dizer que já tenha visto. Quer picles?


4

 

NO COMEÇO, a gatinha ficou dependurada bem quietinha e obediente, deixando Henriqueta carregá-la. Mas não era mais bebê, e pouco depois começou a debater-se e a girar, tentando se libertar.

Henriqueta era uma gata pequena, e não estava acostumada a carregar gatinhos meio crescidos enquanto voava. Na medida em que a gatinha se debatia, ela perdia o prumo e tinha que bater as asas mais forte, tentando manter a direção. De repente, a gatinha deu um giro completo e soltou-se — sobre uma rua abarrotada de carros barulhentos!

Ela foi caindo... Henriqueta freneticamente tentando segui-la, e Jaime, desesperado, tentando voar por baixo dela para impedir a queda. E ela caindo... caindo... Até que de repente as pequenas asas se abriram amplamente e começaram a se agitar, e a gatinha subiu e subiu passando por cima dos carros, dos fios telefônicos, sobre os telhados, e voou.

Aliviados, mas irritados, Jaime e Henriqueta voaram atrás dela.

— Espere! — gritaram. — Gatinha! Espere!

Logo depois, sem fôlego e sem forças, a gatinha começou a oscilar e a voar mais baixo. Jaime voou por baixo dela e deixou-a pousar em suas costas, entre as asas. Depois, ele voou direto para o telhado plano mais próximo. E ali os três se agacharam, ofegantes e exaustos.

Um estorninho, cujo ninho ficava no alto da chaminé, olhou para eles.

— Ei! — disse ele indignado. — Sumam daqui! Não precisamos de mais nenhum desses gatos malucos nos telhados!

— Gatos? — admirou-se Jaime. — Diga-nos onde estão os outros gatos e nós iremos embora!

— Na próxima rua, lá em cima — respondeu o estorninho, empertigando-se. — Com os vasos de barro. — E fez um ruído grosseiro.

— Obrigada — disse Henriqueta com dignidade. — Gatinha, venha. Vamos procurar mamãe.

A rua que o estorninho havia indicado era calma, embora não estivesse deserta como o velho beco. Um pequeno poodle ganiu com tristeza por detrás da janela fechada, quando os gatos passaram. Nenhuma pessoa andava nas calçadas.

— Mãe! — chamou Jaime.

— Mãe! — chamou Henriqueta.

E a gatinha, voando corajosamente entre eles, guinchou — Miaaaaau!

Então uma voz retrucou acima deles, uma voz macia, límpida, muito lembrada.

— Crianças?

Eles olharam para cima e voaram até ela.

No telhado plano do mais alto edifício de apartamentos na rua havia uma pequena cobertura, como um chalé, com um jardim em toda sua volta — crescendo em vasos e tinas, mas um verdadeiro jardim. E ali, entre os vasos, as tinas e regadores e o varal de roupas, estava a mãe deles, dona Jane Tabby, ronronando de alegria.

— Minha querida Henriqueta! Meu querido Jaime! E minha pobre gatinha perdida! — Dona Jane nunca chorava, mas seu ronronar estava um pouco trêmulo quando ela beijou todos eles. Imediatamente começou a lavar o pescoço da gatinha e ás orelhas, mas enquanto fazia isso foi dizendo — Vocês estão bem, meus queridos? Parecem ótimos; cresceram bonitos. E Telma? e Roger?


— Estamos muito bem, mamãe...

— Nós vivemos no pombal de um celeiro no campo.

— Ninguém vai lá, nenhum ser humano, quer dizer.

— Fora dois muito jovens e simpáticos que nos dão comida e carinho...

— Mas, mamãe, e você? Como abandonou o beco?

— Como a gatinha se perdeu?

Henriqueta e Jaime não conseguiam fazer as perguntas tão depressa quanto gostariam, e a mãe começou a falar. Enquanto falava, curvou-se sobre a gatinha preta que, exausta, já estava caindo de sono.

— Bem, meus queridos, aquele foi o pior dia da minha vida. E desde então tenho estado muito triste, pensando que minha gatinha mais nova tinha se perdido! Ela era minha única filha, nascida não muito antes de a rua começar a ser destruída. O pai dela era o senhor Tom Jones. Vocês se lembram dele, tenho certeza.

Henriqueta e Jaime assentiram.

— Ela se parece com o pai — disse a mãe com orgulho. — Mas ele foi chamado a negócios em outra parte da cidade. E antes de ele voltar aconteceu uma coisa terrível. O lixão, que foi meu lar a vida toda, foi removido. E enquanto eu estava instalada atrás das latas de lixo, as pessoas viram a gatinha, viram-na tentando usar as asas, exatamente como vocês crianças costumavam fazer: galgando o monte de latas de lixo e voando para baixo. As pessoas ficaram agitadas, fazendo um barulho infernal, gritando e berrando. Correram para agarrá-la. E eu corri para defendê-la. Nós fomos separadas! A pobre gatinha, fortalecida pelo terror, voou e atravessou uma janela quebrada no alto do telhado. Não pude segui-la. As pessoas não conseguiram entrar no edifício, estava trancado. Elas ficaram com tanta raiva que me perseguiram. Corri tão apavorada que me perdi no caminho.


— Oh! Mãe! — sussurrou Henriqueta, e Jaime tremeu, escutando.

— Vaguei por horas, gritando pela minha gatinha. Os cachorros tentaram me pegar. Afinal, quando eu já estava meio morta de cansaço, umas mãos de repente me levantaram. Eu mal percebia o que estava acontecendo, e fui levada para dentro de casa. Subimos várias escadas e me colocaram finalmente aqui. E desde então vivo nesta casa! Tenho uma verdadeira amiga na velha e gentil senhora cujas mãos me levantaram. Ela me dá comida e carinho e seu colo é muito confortável. Sou velha demais para desfrutar a vida da rua, e eu estaria bem feliz aqui, não fosse a lembrança da minha pobre gatinha perdida. A porta para a escada está trancada e não encontrei nenhum jeito de descer e procurar minha filhinha. Mas agora vocês, minhas muito, muito queridas crianças, salvaram-na e trouxeram-na de volta para mim!

A gatinha preta estava profundamente adormecida. Dona Jane levou Henriqueta e Jaime para perto de um prato grande e bem servido de ração, e uma tigela de água limpa. Quando acabaram de comer e beber, ela falou de novo.

— Vocês acham que a gatinha sabe voar bem o suficiente para voltar com vocês para a casa no campo?

— Acho que sim — disse Jaime — se ela viajar nas minhas costas parte do caminho.

— E nas minhas também — juntou Henriqueta. — Mas não queremos tirá-la de você de novo, mamãe...

— Ah, meus queridos, ela precisa ir — disse dona Jane. — Agora que sei que ela está viva e bem, e junto de quem pode olhar por ela, tudo que quero é que fique a salvo. E não há lugar nesta cidade para uma gata com asas viver em segurança. Vocês sabem disso, crianças.

Com tristeza, Henriqueta e Jaime concordaram.

— Levem-na com vocês e eu ficarei satisfeita — pediu dona Jane. — Vou deitar ao sol no meu jardim suspenso e sonhar que ela está voando com vocês, em liberdade. E isso me deixará feliz.


Depois, pela última vez, eles se enrodilharam todos, a gatinha, os jovens gatos e a mãe, e juntos ronronaram uns para os outros uma canção de ninar, alto e baixo, alto e baixo.


5

 

A PRIMEIRA noite da viagem para casa foi a mais difícil. A gatinha preta voava corajosamente o tanto que podia, mas suas asas eram curtas e tinha enfraquecido pelos dias em que ficara sem comer no sótão do depósito. Logo ela teve que subir nas costas de Jaime e depois nas de Henriqueta. Depois os três, exaustos, tiveram que encontrar um telhado para descansar. Em seguida voltaram a voar, mas pouco depois tiveram que descer e descansar de novo. E parecia que nunca a cidade ou a noite iriam terminar.

No fundo do coração, Jaime estava com medo de que não fossem encontrar o caminho de volta para a Fazenda Além da Colina. No fundo do coração, Henriqueta tinha o mesmo medo. Nenhum dos dois queria admitir isso. Voaram em frente animadamente, com a esperança de que seu instinto de retorno soubesse o que estavam fazendo.


— Jaime! — chamou Henriqueta, apontando com a pata para baixo. — Lembra-se deste telhado?

Era o telhado de uma igreja, e Henriqueta tinha se sentado no alto do campanário quando era ainda uma gatinha, vindo da cidade com seus irmãos e sua irmã.

— Sim! Lembro-me! Estamos na direção certa! — gritou Jaime. — Estava tão excitado que deu uma volta ao redor da ponta da torre da igreja. Amedrontada, a gatinha preta enterrou suas pequenas unhas nas costas dele para se segurar. — Está tudo bem, gatinha! — disse Jaime. — Segure-se, agora. Estamos indo para casa!


TELMA estava sentada na cumeeira do velho celeiro em Além da Colina. O sol estava se pondo. O céu a oeste estava dourado sobre as montanhas. Mas Telma olhava para o leste.

Roger estava sentado no galho mais alto do grande carvalho na colina atrás do celeiro. Quem o visse, teria pensado que era uma coruja, assim sem se mexer, esperando a noite. Olhava para o leste.

No alto da colina, Heitor e Susana estavam sentados lado a lado e não diziam nada. Tinham estado na floresta durante uma hora, chamando Henriqueta e Jaime.

De repente, Telma subiu voando do telhado do celeiro, e Roger, do carvalho, gritou — Eles estão ali! Eles estão chegando!

E os viajantes, cansados e famintos, desceram lentamente do céu que estava escurecendo para cumprimentar, com muita alegria, o irmão e a irmã. Heitor e Susana vieram correndo colina abaixo, gritando — Henriqueta! Jaime! Onde vocês estiveram! Ah, Jaime! Ah, Henriqueta!

Daí todo mundo se juntou no curral para olhar a gatinha preta.


— Mamãe mandou-a morar com a gente — disse Jaime, e Henriqueta completou: — Ela é nossa irmãzinha!

A gatinha olhava em volta para todo mundo.

Quando seu olhar caiu sobre Heitor e Susana, ela começou a se arquear, seu pelo preto ficou arrepiado, e ela estendeu suas lindas asinhas como se fosse voar. Depois sentou-se e coçou uma orelha. Em seguida, deitou-se de lado e retorceu-se, olhando de esguelha para Susana.

— Miau? — fez a gatinha.

Todo mundo riu.

— Ela precisa de leite! — gritou Heitor, deu um pulo e correu como uma flecha. Quando voltou, cinco minutos depois, com uma jarra de leite fresco, a gatinha estava voando em cambalhotas e caçando mariposas por todo o celeiro. Susana sentou com Jaime e Henriqueta, exaustos, no seu colo, dizendo-lhes que gatos magníficos eles eram e como todo mundo tinha sentido saudades deles.

— Aqui, psss-psss, gatinha! — chamou Heitor, servindo o leite cremoso da jarra.

— Não, Roger, espere a gatinha tomar primeiro. Como é seu nome?

— Miau? — gritou a gatinha, enfiando a cara no leite.

— Mimi? — perguntou Heitor.

— Acho que não — disse Susana, olhando para a gatinha. — Acho... Acho que seu nome poderia ser Jane.

A gatinha parou de lamber o leite e olhou para cima.

— Miau! — fez em voz alta e alegre. Depois continuou a lamber, espalhando pingos de leite por toda sua carinha preta.

— Está bem — disse Heitor. — Acho que será Jane!

— Claro que sim — confirmou Telma. — Beba seu leite agora, Jane, e depois vamos tomar banho e para a cama. Foi um dia muito muito longo para uma gatinha!

 

 

                                                                  Ursula K. Le Guim

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades