Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ABANDONADA
Aconteceu quando voltavam das férias.
No princípio ela não percebeu, mas passado algum tempo notou que alguma coisa mudara entre eles.
Gerard sempre fora um marido carinhoso. Não passava um aniversário, uma data importante, sem que lhe desse um presente. No entanto, há um ano, Gerard parecia viver muito distante dela. Dava a impressão de que vinha comer e dormir em casa por pura rotina.
— Mamãe — gritou Yul, no andar superior. Onde está minha camisa?
Kay Wills parou de pensar. Não podia divagar, concentrar-se em certos pensamentos tendo dois filhos, um lar e deveres de esposa e mãe. Talvez não ocorresse nada a Gerard. Era ela quem inventava coisas porque o amava demais.
— Onde está, mamãe?
Júlia, a empregada, apareceu no corredor e apressou-se a atender Yul.
Kay suspirou. Paul e Yul, seus dois gêmeos, estavam impossíveis. Tudo pediam para que Júlia procurasse.
Dirigiu-se ao salão. Era uma mulher elegante, de porte distinto e bem feminino. Loura, com olhos de suavíssima expressão. No fundo daqueles olhos notava-se algo que se poderia chamar de renúncia melancólica. Mas Gerard Wills ainda não o percebera.
Esbelta, muito fina, Kay Wills era admirada em todo Wyandotte, não só por seus dotes físicos como pelas suas qualidades morais.
Ouviu passos atrás de si. Poderia reconhecê-los entre mil. Há dezessete anos os ouvia. Era muito tempo para resignar-se a perder seu marido.
— Bom-dia — disse Gerard, entrando. — Faz uma péssima manhã.
Ela se aproximou do marido. Estava elegante como sempre.
— Olá querido. Como passou a noite?
Ele lhe deu um leve beijo na face e sentou-se a mesa.
— Bem, e os meninos?
— Descerão já.
Logo depois, os dois rapazes entraram na sala, cumprimentaram os pais e sentaram-se à mesa.
Júlia os serviu em silêncio.
Kay pensou que, em outro tempo Gerard a beijaria nos lábios e faria uma brincadeira com os meninos. Mas desde algum tempo Gerard nada dizia e suas atitudes, nos momentos que passava em casa, pareciam forçados.
Yul e Paul mal se diferençavam um do outro. Haviam feito, dias antes, dezesseis anos, mas pareciam ter vinte. Altos como o pai, bonitos como a mãe, tinham barba cerrada e olhos brilhantes. Também já possuíam seus segredinhos amorosos. Júlia sabia alguns deles.
— Suponho — disse o pai, sem nenhum interesse — que vocês ingressarão na universidade no próximo ano.
— Estamos fazendo o possível, não é, Yul?
— Certo.
— Seria interessante para mim que os dois fossem engenheiros — disse Wills, com certa frieza.
Os rapazes entreolharam-se. Já sabiam, como também sua mãe, que seu pai estava mudado. O lar dos Wills, um ano antes, era um lar perfeito onde não havia uma briga sequer. Tudo havia mudado desde as últimas férias. Sabiam muitas coisas, porém não as diziam. Adoravam sua mãe e consideravam-na a mulher mais bela e bondosa do mundo. Ofendê-la era feri-los profundamente.
— Paul deseja ser engenheiro naval, papai — disse Yul. — Mas eu... eu queria ser químico.
— Tolice.
Levantou-se, olhando o relógio.
— Já está tarde. Falaremos desse assunto noutra ocasião.
Todos os dias o pai dizia o mesmo. Os dois meninos lembraram como ele era há dois anos. Quando falavam dos estudos, o pai nunca tinha pressa. Que acontecia agora?
Gerard beijou a esposa ligeiramente e dirigiu- se à porta, dizendo que não o esperassem para a refeição, pois talvez se demorasse. Ela concordou mas, no fundo, sentia algo doloroso e amargo.
Os meninos também levantaram-se.
— Até logo, mamãe.
Ela os olhou afastaram-se. Eram seu orgulho. Mas um dia também iriam embora. Já eram homens feitos.
Os dois rapazes detiveram-se defronte à garagem.
— Será melhor levantar a capota — disse Paul. — Está chovendo.
— Não há coisa que me aborreça mais que a chuva — resmungou Yul, obedecendo.
— Quem dirige?
— Eu. Você o fez na semana passada. Ande logo! Já são dez horas. Não nos deixarão entrar na aula.
Entraram no automóvel e Yul pôs o carro em movimento. Devagar, deixaram a garagem e seguiram a estrada, até o centro da cidade.
Yul olhou para seu irmão. Sabia que este necessitava falar-lhe. Em que estaria ele pensando?
— Trata-se de papai — disse Paul, passados alguns instantes.
— Certo. Também estou preocupado.
— Você sabe quem é ela?
Yul fez um gesto vago. Apertou o volante com irritação.
— Não.
— Mamãe não merece isso. Todo mundo sabe, menos ela. Um dia desses eu lhe digo.
Yul olhou-o irritado.
— Você não fará isso. Enquanto não souber será melhor para ela.
— Quem lhe disse que assim é melhor?
— As mulheres perdoam aos homens quando estes as trocam por certas aventuras, mas não os perdoam quando é por uma determinada pequena. O que você acha de falarmos com papai?
Paul não concordou.
— Se fizermos isto, por certo que ele se aborrecerá conosco.
— Nem tanto — disse Yul — afinal somos dois homens. E ele, quando se casou não era tão mais velho que nós.
— Acho que era o casal mais feliz do mundo. E viveram bem durante muitos anos. Mamãe tinha dezesseis anos quando casou.
— Quem lhe contou tudo isto? — perguntou Paul.
— Foi nossa avó quem me contou antes de morrer. Desde pequeno que gostava de contar-me casos. Sabe como papai e mamãe se conheceram?
— Eu sei, Nossa avó também me contou. Conheceram-se quando eram estudantes. Mamãe era filha de um alto funcionário. Papai estudava Engenharia. Casaram-se, sem que papai terminasse o curso e foram morar com vovó. Quando papai terminou o curso foi trabalhar nos estaleiros, dos quais hoje é presidente.
O automóvel entrou no pátio da escola. Os irmãos Wills esqueceram-se de seus pais e uniram-se ao grupo que se aproximava.
Magda sempre lhe fora uma companhia grata. De algum tempo para cá já não o era. Isto porque, devido às suas múltiplas preocupações, a amiga a cansava.
— Esta noite há um grande baile no cassino, Kay. Você e Gerard irão, não?
— Não sei.
— Agora vocês saem tão pouco!
— Gerard tem muitas ocupações.
Magda sabia da história. Todos o sabiam em Wyandotte. Todos menos Kay.
— Dizem que as festas de fim-de-ano serão magníficas.
Também isso não interessava a Kay. Às vezes, detinha-se a recordar os tempos passados.
Mas era-lhe doloroso despertar e ver que nada mais era igual.
— Desde que faleceu sua sogra há dois anos que não a vejo quase sair.
— Ainda guardo luto. Foi uma verdadeira mãe para mim.
Magda consultou o relógio. Levantou-se.
— Céus! Robert espera-me na sorveteria Royal. Não posso demorar-me mais. Voltarei para vê-la qualquer dia, Kay.
Magda sempre dizia isso e não voltava senão passados três meses. Vivia no outro extremo da cidade. Haviam se casado na mesma época. Depois Robert fora nomeado médico da empresa e lhes haviam dado uma casa distante. Desde então pouco se viam. Kay preferia assim.
Acompanhou Magda à porta. Voltou-se, sentou-se no divã e acendeu um cigarro.
Fumou devagar, pensando. Haveria outra mulher na vida de seu marido? Não podia concebê-lo e, no entanto, aquela situação o indicava.
Durante vários anos haviam sido muito felizes. Quando nasceram os dois gêmeos. Gerard quase chorou de alegria. Depois esperaram ardentemente uma menina, que não veio. Mas isto não empanou a sua alegria. Amavam-se muito. E ela só tinha trinta e três anos.
Ainda um ano antes, quando ela fora para fora, Gerard a abraçara e a beijara na boca, ardentemente. Não parecia disposto a separar-se dela. E, no regresso, seu beijo já não fora igual. Depois, pouco a pouco, os beijos espaçaram-se. Fazia já seis meses que não vinha a seu quarto, procurá-la. Era horrível aquela situação.
Sempre haviam dormido em quartos separados, mas a porta de comunicação jamais se fechara. Ela a fechara dois meses antes e Gerard não lhe pedira que a abrisse.
Tinham quartos separados, mas a empregada só precisava fazer, pela manhã uma cama. Fora um ano antes que Gerard começara a dormir em seu quarto, pretextando cansaço. Mas Gerard era um homem de trinta e sete anos e forte. Por que estaria cansado? Ela insistira que consultasse um médico. Ele se negara. Ela entendeu. Se não a procurava era porque não necessitava dela. Teria outra? Gerard não era homem que passasse facilmente sem mulher. Ela o conhecia. Não tinha amigos além do marido. Só os filhos. E não podia preocupá-los com seus problemas.
A empregada chegou interrompendo o curso de seus pensamentos.
Tocaram a campainha.
— Entre.
George Seller entrou e fechou a porta às suas costas.
— Aqui você tem dois convites para o baile desta noite — riu George. — Aposto que você não vai. Mas como o Conselho os mandou...
— Deixe-os aí.
— Posso tomar um drinque, Gerard?
— Tome o que quiser — respondeu Gerard, sem levantar os olhos da mesa.
O vice-presidente dos Estaleiros abriu o bar e tirou uma garrafa de uísque e dois copos.
— Você quer, Gerard?
— Não. — E bruscamente acrescentou: — Diga logo o que você quer.
George riu-se. Era alto, elegante, de uns quarenta anos. Com o copo na mão, dirigiu-se à mesa. Sentou-se numa ponta.
— Você não tem vergonha? Uma mulher como a sua...
O presidente dos estaleiros respondeu rispidamente:
— Que tem você com isso? Acaso eu me meto na sua vida?
— Sou solteiro, Gerard.
— E não tem amantes?
— Uma coisa é ser livre e outra é ser casado. Você tem dois filhos, um lar maravilhoso, uma esposa encantadora...
Gerard não respondeu. Parecia consternado.
— Gosto de Kay. Nunca poderei esquecer o quanto representou para mim.
— Mas você sai por aí com uma qualquer...
— Isso não — gritou Gerard irritado. — Ela não é uma qualquer.
George riu. Disse, com desdém:
— Por acaso pensa que você foi o primeiro?
— Não. Já sei. É uma infeliz.
— A mesma enternecedora história que elas contam para comover o coração de um homem maduro mas sentimental, que só tem livres os meses do verão.
— George...
— Sempre fomos amigos, Gerard — falou gravemente. — Devo dizer que sempre lhe invejei a esposa e que não me casei porque não encontrei uma mulher como Kay. Por isto é que venho aqui, pela centésima vez, aconselhá-lo a que tire umas férias, leve a sua mulher e se esqueça de Judit Potten.
Gerard pôs a mão na testa.
— Não é fácil. Nada fácil, George. Bem sabe Deus que cada vez que engano Kay, sinto-me terrivelmente mal. Mas não posso. Gosto dessa moça. Kay para mim é o lar, os filhos, o lado espiritual. Mas Judit é como um pecado que não se pode evitar.
— A aventura, os prazeres, a mesquinhez de um homem que se apaixona pela segunda vez. Você vê Judit todos os dias, deu-lhe casa, e todos o sabem. Seus filhos não o devem ignorar, um dia lhe pedirão contas. E Kay, quando souber, requererá o divórcio. Você ficará só com essa mulher, que o enganará na primeira oportunidade.
— Mas ela me ama.
— Não seja ingênuo. Ela ama seu dinheiro. Esta classe de mulher jamais se apaixona.
— George, ela não é assim.
— Pois saiba que se sua mulher pedir o divórcio, eu me caso com ela. Com o correr dos anos você se sentirá só, porque Judit procurará outro mais jovem e com dinheiro, depois de acabar com a sua fortuna e a sua juventude.
— George...
— Já o avisei. Pense bem.
— Asseguro-lhe que há somente seis meses traio minha mulher.
— Mas faz um ano que a abandonou.
Gerard baixou a cabeça.
— Já não posso remediar. Quando deixo Judit penso que não vou mais voltar. Que amarei Kay. Mas não consigo. Não queria magoá-la.
— Se ela souber, isso a matará.
— Kay é forte.
— Gerard, você é um idiota. Esquecer uma mulher como a sua, bonita jovem, honesta, apaixonada...
— Por que apaixonada? Você não a conhece intimamente.
— Vê-se nos olhos dela.
— Você a observa demais — disse Gerard, com incontida revolta.
— Por que não? Principalmente agora. Penso em sair com Kay qualquer dia destes, se ela quiser.
— George, ela ainda é minha esposa.
— Então vá procurá-la.
— Você está me irritando.
George deu umas voltas pela sala.
— Não consigo entender. Trocar sua mulher, que é um verdadeiro exemplo de dignidade, por uma qualquer...
Gerard também se pôs de pé e retrucou:
— Aborrece-me que fale assim da minha mulher. Não sou o primeiro homem que trai a esposa.
— Muito bem, duas a um só tempo.
— Não gosto que fale assim de Kay. Já lhe disse.
— Pois então, respeite-a.
E George retirou-se apressadamente.
Gerard Wills afundou a cabeça nas mãos. Ele amava Kay, mas a outra o mantinha enfeitiçado.
Eram três horas da madrugada.
Entrou devagar. Sentia-se enojado, essa era a verdade. George tinha razão, Kay não merecia aquilo. Mas ele não podia voltar atrás.
Sentou-se na beira da cama. Tirou os sapatos. Tinha asco de si mesmo. E pena dos filhos e da mulher.
Tudo fora acidental. Acontecera quando Kay passava o verão num sítio, a duzentos quilômetros de Wyandotte. Ele ia vê-la uma vez por mês. Era um sacrifício passar tanto tempo longe da mulher.
Certa noite voltava para casa, depois de ter estado com George. Dirigia pela avenida quando avistara alguém se atirar sob as rodas do carro. Desviando rapidamente, freiara e assim pudera evitar o acidente. Descera para ajudar a pessoa. Tratava-se de uma jovem de uns vinte e oito anos. Muito bonita, morena, de olhos claros que o fitavam com ansiedade.
— Que queria fazer, moça?
— Quero morrer... Quero morrer... — repetia ela.
— Que tolice — dissera ele. — A vida é bela, muito bela.
— Não para mim.
— Venha, vou levá-la em casa.
— Não tenho casa.
Apesar da brusca resposta, Gerard a fizera entrar no carro, sentando-se a seu lado. Em seguida acendera um cigarro que a jovem pedira.
Ela fumava nervosamente. Exclamando de súbito:
— Você não me matou, mas outro carro o fará.
Assim começara tudo. Ele se dedicara durante uma semana inteira a convencê-la a não fazer tal loucura: levara-a para um hotel afastado da cidade e, a princípio, julgara que a tinha convencido. Na verdade, a própria Judit percebera a inutilidade de seu gesto. Mas aproveitara-se da situação para conquistar aquele homem, que morava sozinho numa bela casa, na avenida residencial.
Quando soubera que era casado, não dera tudo por perdido.
Ele nada percebera. Apenas se felicitava de que, graças a seus conselhos, aquela jovem começara de novo a amar a vida. Fora ver Kay e, curioso, ele que tudo lhe contava, omitira o fato. Notara também que já não era tão feliz junto à sua mulher. Quando regressara, a Wyandotte fora imediatamente ao hotel. Ali encontrara Judit só e desesperada.
Tratara novamente de distraí-la.
E, um dia, quando Kay já estava na cidade, percebera que amava Judit. Quando se declarara tivera receio de que ela fosse se escandalizar. Mas Judit aceitara tudo naturalmente. Assim, começara a ser infiel a Kay. E a odiar-se.
Pôs-se de pé e começou a despir-se.
Não sentiu nem desejos de ver se a porta da comunicação estava aberta. Não notara sequer quando Kay a fechara. Jamais, desde há seis meses, pensara em abri-la. Para quê? Para enganar-se a si mesmo? Para enganar mais vilmente sua esposa?
Enquanto amara a esposa, a desejara ardentemente. Quando deixara de amá-la, soubera agir com lealdade. Não era como certos maridos que têm uma amante e a esposa nem o nota. Não sabia manter esta dupla existência.
Trancou-se no banheiro e meteu-se debaixo de uma ducha. Isto de certo modo o acalmou.
Odiava Judit por tê-lo afastado da esposa. Mas a desejava como um louco, não saberia viver longe dela. Quanto mais admirava Kay, tanto mais desejava Judit. Era muito estranho aquilo tudo.
Indignado consigo mesmo, saiu do banho. Vestiu o pijama e entrou no quarto.
Foi então que viu a esposa, belíssima, delicada, feminina, no umbral da porta que ela mesmo fechara meses antes.
— Kay...
— Olá, Ger.
O fato de chamá-lo de Ger o inquietou. Era recordar tempos passados. Aqueles tempos em que os dois se perdiam com ansiedade em suas paixões.
— Acabo de chegar.
— Já sei.
— E você ainda não se deitou?
Ela o fitou. Usava um robe azul-celeste e por baixo dele via-se o pijama branco. Belíssima, sem dúvida, mas essa beleza não mais o sensibilizava.
Pensou que ia iniciar um discussão. Mas, não. Kay era uma mulher digna e jamais se rebaixaria em qualquer situação.
Esperou.
— Ger, acho que eu e você devemos conversar. Vim aqui para isso. Durante o dia, os meninos estão em casa e quando eles saem você também não está. Há coisas que precisamos falar. Eu e você, sem testemunhas.
— Sente-se, Kay.
— Obrigada. Não é longo o que desejo falar. Não preciso sentar-me.
Gerard ficou em frente a ela, à distância. A serenidade de Kay o inquietava. Que poderia dizer àquela mulher? A verdade? Seria matá-la. Por outro lado, nunca mentira.
— Ger... Já sei — disse em seguida, depois de breve pausa — que não deveria chamá-lo assim, mas para mim você será sempre Ger.
— Kay, você é muito compreensiva.
— Não sou compreensiva, Ger. Somente não quero perder o meu marido. Não sei se poderei compreendê-lo se o perder.
— Kay, o que devo lhe dizer?
— A verdade. Por isso vim aqui.
Gerard sentou-se no sofá. Parecia bastante desolado. Ela se aproximou da mesa e tirou dois cigarros.
— Fume, Ger. Tenho um pressentimento de que nós dois vamos precisar de muita serenidade, para decidir um futuro que consideramos de muita importância. Eu, por um motivo, e você, por outro.
Ele pegou o cigarro e o acendeu nervosamente.
— Fume você, Kay. E sente-se. Não gosto de vê-la assim, de pé à minha frente. Pergunto-me que preocupação é a sua com respeito ao nosso futuro.
— Procuro um pouco de paz.
— Você a tem.
— Sabe que sou uma mulher que decido as coisas com clareza. Não considero paz esta inquietude. Preciso que você me dê uma razão. O que ocorre? Outra mulher?
Gerard mostrou-se perturbado, evitando encarar a esposa.
— Sente-se, Kay. Não me olhe assim. Sinto-me como um patife.
— Mas não pode fazer nada?
Ele balançou a cabeça.
— Não, não posso.
Kay manteve-se imóvel. Há muito que o pressentia, mas nunca pensara que fosse tão simples sabê-lo e tão cruel admiti-lo.
— Se fosse uma aventura somente, Ger, se você estivesse cansado de mim...
— Não, isso não... Por Deus, Kay, compreenda-me.
— Estou tentando.
— Mas não assim. Sente-se.
Kay não se moveu. Olhava-o. Gerard pôs-se de pé e segurou suas mãos.
— Kay, não quero magoá-la. Compreenda-me. Amo outra mulher. Não posso evitá-lo. Durante estes seis meses vivi um verdadeiro inferno. Você não compreende, Kay...
Ela parecia uma estátua, mas em nenhum momento deixou transparecer seu desfalecimento.
— Não posso compreendê-lo, Ger. Mas acho que este não é o momento adequado para decidir o nosso futuro. Nós dois temos que refletir muito. Demoradamente.
Ela se alterou por fim. Sua voz soou algo estranha.
— Você não irá contar-me como a conheceu, seria demais.
— Kay...
— Amanhã falaremos disto com mais calma.
— Mas você está calma. É a primeira vez na minha vida que não a compreendo.
— Isso é egoísmo, Ger. Por isso você não compreende.
— Nunca pensei que você aceitasse a verdade tão friamente.
Kay deteve-se à porta e o fitou com indiferença.
— Boa-noite, Ger — disse em tom sereno. — Amanhã falaremos no assunto. Amanhã ou depois. Eu o procurarei para achar uma solução.
Retirando-se, fechou a porta e deitou-se logo a seguir.
Toda a serenidade que aparentara frente ao marido deixara de existir. As lágrimas deslizavam lentamente por suas faces.
No seu quarto, Gerard estava a ponto de transpor aquela porta e de ir com ela para muito longe. George tinha razão. Uma longa viagem... Mas não o fez. Continuou sentado, imóvel, durante muito tempo.
Ela era católica. O sacerdote que os casara ainda vivia ali, em sua paroquia. Já estava bem velho, mas continuava sendo o confessor de Kay.
Não a recebeu na igreja. Ela foi encontrá-lo no presbitério, e ele a saudou com um sorriso.
— Tenho um grave problema, padre.
— Já sei.
Abriu muitos os olhos.
— O senhor já sabia?
— Sempre sei o que ocorre com os meus paroquianos, sobretudo, quando chega a afetar minhas amizades pessoais. Sente-se, Kay. Pensei que você ainda ignorasse o que ocorre.
— Quer dizer que o senhor já o sabia e não me disse nada na última vez que o vi, há mais de um mês.
— Pensei que a ignorância da sua parte era um sinal de felicidade, que as coisas não haviam mudado. Também pensei que talvez o assunto não fosse tão sério quanto diziam.
— O senhor a conhece?
— Conheço.
— E não pôde fazer nada?
— Já tentei. Mas ela é uma cínica, infeliz. Ele está completamente enganado. Mas tudo passará. Estou certo que, um dia, Gerard compreenderá.
— Não sou paciente, padre. Sou simplesmente uma mulher, e não posso sentar-me e esperar que meu marido caia em si.
— Que pretende fazer? Quem lhe contou tudo?
— Eu adivinhei e lhe perguntei. Ele não me negou a verdade.
— Diga-me o que decidiu a respeito.
— Por enquanto, nada. Mas saiba que não posso viver, com Gerard, sob o mesmo teto, sabendo que ele tem outra mulher.
O padre desfiou as contas do rosário, maquinalmente.
— E como vai evitá-lo?
— Pedindo o divórcio.
— Para se casar outra vez? Você ainda é jovem, Kay. É isso que você quer?
Ela sorriu amargamente.
— Nunca me casaria outra vez, padre. O senhor o sabe. Mas quero viver dignamente.
— Não posso aconselhá-la, Kay. Somente peço-lhe que reflita antes de decidir alguma coisa. Talvez se você lhe disser que quer o divórcio, ele se modifique.
— Vou dizer-lhe hoje mesmo.
— E depois venha ver-me.
Assim que Kay se retirou, a padre se dirigiu aos estaleiros, para ver se ainda uma vez mais conseguia mostrar a Gerard toda a sua loucura.
Ele o recebeu imediatamente.
Ao entrar, Gerard se pôs de pé e beijou-lhe a mão.
— Padre — disse respeitoso — deveria ter-me mandado chamar. Não precisava vir até aqui. Necessita de alguma esmola para seus pobres?
— Necessito.
— Minha secretária assinará um cheque.
— Você mesmo terá que assiná-lo. O pobre é você mesmo.
Gerard compreendeu.
— Sente-se — disse. — Sei que sou um miserável. Talvez o maior de todos.
— Mas — respondeu o padre — não sabe sair de sua miséria.
Gerard sentou-se e acendeu um cigarro. Fez-se silêncio.
— Ger...
— Somente Kay me chama assim... — murmurou com nostalgia.
— E eu, porque os casei. Diga-me, Ger, não há solução?
O presidente dos estaleiros fez um gesto de desânimo.
— Não creio que haja, padre.
— Tudo não passa de uma aventura, você percebe? O carinho, a ternura, a estima perduram, mas essas aventuras duram pouco.
— Eu sou humano.
— E de que adianta a sua condição humana, se irá destruir seu lar? Já pensou na reação de Kay?
— Não sei que atitude tomará.
— Pedirá o divórcio.
Gerard deu um pulo na cadeira.
— E ninguém conseguirá convencê-la do contrário — continuou o padre.
— Para quê? Para casar-se de novo?
— Não sei, Gerard. Como iria sabê-lo?
— O senhor é seu confessor. E ela é católica.
O padre esboçou um triste sorriso.
— Você também o é e está cometendo um pecado mortal. Além disso, Kay tem o direito de refazer sua vida.
— E é o senhor quem diz? O senhor que todos os dias faz sermões contra o divórcio?
Isso era verdade, e naquele momento o padre tentava por todos os menos unir suas vidas.
— Kay já se decidiu. Não sei o que pretende fazer depois. Resta saber se você concorda.
— Não sei. Estou desorientado.
— Gerard, procure Kay e faça com ela uma viagem. Seria uma segunda lua-de-mel. Quando você voltar será um novo homem.
— E se não me modificar, padre? Gosto de Kay, mas não estou certo de amá-la. Separar-me dela é o mesmo que matar-me. Mas como pode uma mulher digna tolerar um homem como eu?
O padre fitou-o com melancolia.
— Uma esposa cristã tem o dever de submeter-se a todas as provas que Deus lhe impõe. Sei que Kay concordará com essa viagem de prova.
— Que a fará mais infeliz ainda.
— Não creio. Você a amou demais.
George entrou naquele instante sem se anunciar. Beijou a mão do sacerdote e encarou o amigo.
— Vocês ao conversarem, esqueceram-se que meu escritório fica ao lado...
— Não precisamos então dizer-lhe do que se trata, Como amigo, o que acha você da idéia?
— Ótima. Deixe que eu cuido de seus filhos.
Gerard afundou o rosto nas mãos,
— Tenho medo de perder minha esposa para sempre. Não poderei ser o mesmo homem.
— Tente ao menos.
Kay não esperava que Gerard chegasse àquela hora. E Imaginou que este teria algo para falar- lhe. Algo que não queria que os filhos ouvissem, pois os mesmos não se encontravam em casa.
Ela estava na sala sentada. Quando ouviu o ruído da porta, voltou-se.
— Olá — disse ele, aproximando-se.
— Olá.
Nem sequer a beijou. Sentou-se em frente a ela.
— Está muito frio lá fora. — Fez uma pausa. Depois continuou: — Vim cedo para falar com você.
— Sobre o assunto de ontem?
— Sim, algo de suma importância. Escute, Kay — disse com voz rouca — pensei muito. Acho que não tenho o direito de destruir um lar como o nosso. Talvez esta situação que a humilha e me aborrece possa ser contornada.
Ela largou o bordado no colo e o encarou. Mas seu olhar nada deixava transparecer.
— Pensei em pedir o divórcio, Ger — disse ela com firmeza. — Julgo ser inevitável.
Gerard apertou os lábios com evidente nervosismo,
— Não o concederei, Kay. Não posso imaginar uma separação entre nós.
— Está pensando que vou tolerar esta vida de humilhações?
— Tem razão...
— Então?
— Escute-me. Precisamos fazer algo para evitar que o nosso casamento chegue ao fim. Talvez se fizéssemos uma viagem...
Kay, apesar de tudo, mostrou-se perturbada.
— Eu e você?
Ele assentiu com a cabeça.
— O padre Diego foi vê-lo, não?
— Sim — concordou. — Conversamos e ele disse que você ia pedir o divórcio. Isto fez-me pensar na viagem.
— Não resolveremos nada. Não queira enganar-se a si mesmo. Nem eu posso esquecer que você me foi infiel, nem você deixará de pensar na outra.
— Kay, não sei o que quero, só que desejo fazer uma viagem com você. Os laços que nos uniam não podem ter-se rompido tão facilmente.
Ela fez um gesto de desânimo.
— Somos muito infelizes, Gerard. Você por amar alguém que não o fará feliz e eu, por havê-lo perdido.
— Haveremos de evitar esta infelicidade. Eu quero ser para você o marido de antes. Por favor, esqueça isto e seja a esposa adorável que sempre foi.
Ela sorriu amargamente.
— Talvez seja um pouco tarde. Creio ter-me esquecido dos deveres de esposa para só lembrar-me de meus filhos. Talvez você não seja o único culpado.
— Falhamos os dois, Kay. Eu lhe peço, comecemos de novo.
— Se tentarmos esta viagem e falharmos, seremos mais infelizes ainda.
— Mas deveremos tentar.
— Está bem. Faremos a viagem.
— Obrigado, Kay.
— Com a condição de que você não irá se despedir dela.
— Prometo-lhe.
Kay conhecia seu marido. Sabia que não iria. Não foi, realmente. Aquela noite ficou com a família.
— Paul, pare de andar de um lado para o outro.
— Que está acontecendo? Papai vai viajar com a mamãe e nós ficaremos em casa de George.
Yul sentou-se na cama e acendeu um cigarro. Paul gracejou:
— Se mamãe chega agora e o vê com este cigarro...
— Que tem? Já somos homens, Paul. Você não fuma? Sabe de uma coisa? Quando os dois forem viajar, deixarei crescer a barba e conquistarei a garota do papai.
Paul soltou uma risada.
— Estou certo de que Judit Potten abandonará papai e me achará muito mais agradável.
— Não se meta em embrulhada que você sai perdendo: Imagine se você se apaixona por Judit.
— Não estou disposto a tolerar que uma mulher desta classe destrua nosso lar. Sempre fomos felizes. Lembra-se quando éramos pequenos? Os pais de nossos amigos viviam brigando. Alguns deles moravam seis meses com o pai e seis meses com a mãe. Mas em nossa casa havia tanta harmonia Não posso suportar a idéia de que os dois resolvam se separar. Hei de evitá-lo e você precisa me ajudar.
Ouviram-se passos e Yul guardou o cigarro no bolso da calça.
— Você vai se queimar, Yul — disse Paul sorrindo.
— Posso entrar? — perguntou a mãe.
Yul correu para o banheiro e Paul respondeu:
— Entre, mamãe.
Kay entrou e sentindo o cheiro de fumo, falou:
— Você estava fumando, Paul?
— Bem...
Neste instante entrou Yul.
— Boa-noite, mamãe. Não está sentindo cheira de fumo? Eu fiz uma aposta com Paul. De que eu seria capaz de soltar fumaça pelos olhos. Paul apostou um dólar. Fui ao salão, apanhei um cigarro e subi.
— Yul, já disse que não quero que você fume. Mais tarde poderá fazê-lo. Além disso, não acredito nesta história que me contou. Não quero que isso se repita. É para seu bem.
Yul baixou a cabeça e os dois irmãos admiraram-se de que a mãe, com tão grave problema na vida, ainda pudesse se preocupar com eles. Inclinaram-se para beijá-la e comentaram:
— Já sabemos que você viaja amanhã. Não tenha pressa em voltar. Prometo-lhe que nos portaremos muito bem.
Kay saiu rapidamente, pois não conseguia mais conter os soluços. Foi para seu quarto. Lá, sozinha, perguntou-se o que ocorreria durante aquela viagem. Não poderia dar certo, porque ela, por mais que o tentasse, não conseguiria esquecer que seu marido amava outra mulher.
Kay era uma mulher bonita e altiva. Sempre tivera dinheiro. Quando se casara levara um bom dote, Gerard soubera aumentar. Ele sempre fora um marido exemplar, até conhecer a outra.
No momento, estirado numa cadeira, fumava um de seus cigarros prediletos. A seu lado, ela estava maravilhosa, de calças compridas e blusa decotada. Ninguém lhe daria mais de vinte e seis anos.
Haviam deixado o porto ao amanhecer e já eram dez horas da noite. Durante o dia tinham conversado sobre diversos assuntos. Mas, como naquele instante, o silêncio também se impusera repetidas vezes.
Kay, sentada na amurada, comentou em dado momento:
— Aposto que amanhã estará chovendo.
— À noite deixaremos este mar. Amanhã talvez estejamos em algum lugar onde o sol afugentará este céu sombrio.
— Seria ótimo. — E acrescentou, pensativa: — Os rapazes agora devem estar pensando em nós.
— Já são bem crescidos...
Kay olhou para o relógio.
— É tarde, Ger. Vou deitar-me.
— Espere. — E ele se pôs de pé. — Vamos os dois juntos.
Juntos? No mesmo camarote? Não seria uma prova dura demais? Se ele não a amava, ela não poderia suportar a idéia de tê-lo a seu lado, pois pensaria na outra.
Mas nada disse. Caminharam juntos. Gerard passou o braço por seu ombro. Sorrindo, comentou:
— Quero ver como George resolve os problemas por lá. Mas creio que não há motivo para preocupar-me quanto aos estaleiros.
Chegaram ao camarote. Ela se deteve. Não queria que Gerard entrasse com ela. Não suportaria seu fingimento. Talvez, mais tarde... Se os dois realmente se quisessem, quem sabe? Mas não naquele instante.
— Kay... — sussurrou Gerard — Kay, posso passar a noite com você?
Ela o olhou de frente.
— Seria como um pecado, Ger.
— Como assim? Você é minha mulher. Eu sempre a quis.
— Eu ainda o quero, Ger. Mas você não poderá ser para mim o que era antes... Seria melhor que esperássemos. Amanhã nos arrependeríamos, tenho a certeza. Talvez pudéssemos esquecer tudo e nos lembrarmos somente que somos casados. Mas isso não basta, pelo menos para mim.
— Não sei o que dizer...
— Boa-noite e vá se deitar, Ger.
— Kay... Boa-noite.
Beijou-a ligeiramente nos lábios. Abriu a porta em frente e entrou no seu camarote.
Kay, imóvel, sentiu que as lágrimas lhe escorriam pelas faces.
Viajavam a uma semana. Uma semana em que se trataram com simpatia e ternura, mas sem que ele a procurasse mais. Ambos permaneciam tão distantes um do outro como no primeiro dia.
Apesar de conversarem muito, jamais tocavam em assuntos pessoais. Nem recordavam o que acontecera.
No fim de quinze dias, quando ambos se retiravam para seus respectivos camarotes, ele a segurou pelo braço.
— Kay.
Pela forma com que ele pronunciou seu nome, ela compreendeu que chegara ao fim aquela situação.
— Kay...
— Diga, Ger...
— Quero, quero ficar esta noite com você.
— Pode ser penoso para você.
— Não creio. Você é minha mulher e sinto falta de seu amor, de sua ternura. Quero senti-la em meus braços, esquecer que existem outras pessoas no mundo além de nós dois.
Ela sussurrou, temerosa:
— E amanhã?
Por resposta, Gerard a conduziu suavemente para dentro de seu camarote, onde ela passara as últimas noites chorando. Quando fechou a porta, segurou a mão de Kay entre as suas. Tudo era igual. Ela fechou os olhos, deixando que ele a beijasse, longamente. Sentiu que Gerard a amava e desejava como antes. Quis esquecer tudo o mais. Tinha esse direito.
Retribuiu os seus beijos com todo ardor, como jamais houvesse deixado de ser a esposa que ele sempre amara.
— Kay — sussurrou, abraçando-a fortemente.
Querida, nós somos os mesmos. Precisamos um do outro.
— É como se eu estivesse voltando a viver, Ger.
— Oh, Kay, perdoe-me! Jamais poderei viver sem o seu amor... Você acredita em mim?
Kay, mais do que nunca, acreditava em suas palavras. Os beijos de Ger eram apaixonados, absorventes. Naquele instante, ela não queria e não podia acreditar que Ger houvesse beijado outra mulher dessa maneira.
Era maravilhoso começar outra vez. Estava certa de que Ger jamais esqueceria aquela noite. Viviam uma segunda lua-de-mel. Porém agora ela sabia algo mais sobre Ger, suas carícias eram muito mais envolventes.
Voltaram a ser o casal exemplar, os amantes fervorosos que viviam um em função do outro. Porém um dia aconteceu o inevitável.
— Kay, querida, terminaram nossas férias. Mas nada mudará. Agora que a reencontrei Jamais poderia esquecê-la outra vez. Você é uma mulher maravilhosa.
Estava sendo sincero naquele momento. Nem por um momento passou por sua mente que ele poderia enganá-la outra vez. Aqueles foram dias dos quais jamais se esqueceriam. Um novo horizonte surgia em suas vidas.
Porém se equivocava. Kay não o imaginava, mas Gerard Wills, apesar de suas boas intenções, ainda iria decepcioná-la.
O casal conversava com George, o padre Diego e um grupo de amigos, no salão. Todos vieram cumprimentá-los.
Paul e seu irmão, no terraço, mantinham-se na expectativa.
— O quê você acha? — perguntou Paul.
— Eu não sei. Diria que estão felizes. Sabe de uma coisa, Paul? Eu mataria essa mulher que se interpôs na vida de nossos pais. Sabe de outra coisa? Tenho algumas economias.
Paul olhou-o intrigado.
— Vamos dar um passeio pelo jardim — prosseguiu Yul. — Temos de conversar. Você já viu a expressão dos olhos de mamãe? É a mulher mais feliz do mundo. Papai também é um homem feliz. Nós temos de evitar que essa felicidade desapareça. Você também tem economias, Paul.
— Sim, mas não sei o que quer dizer com isso.
— Essa mulher espera que papai volte a procurá-la. Ela é muito bonita e esperta. Espera casar-se com papai e esteve a ponto de consegui-lo. Por amor? Essas mulheres não amam ninguém.
— Estou de acordo com tudo o quê você disse — respondeu Yul. — Mas não compreendo por que falou em nossas economias.
— Papai prometeu-me um automóvel, se eu fosse aprovado. Com o nosso dinheiro e mais a importância do carro, que nós não compraremos, reuniremos uma quantia capaz de tentar qualquer um.
— E daí?
— Ainda não compreendeu? Vou fazer uma visita, amanhã mesmo, a Judit Potten.
Paul mostrou-se admirado.
— Se mamãe souber, eu não gostaria de estar em seu lugar.
— Mamãe não precisa saber. Nem tão pouco papai.
Paul suspirou. Yul Jamais seria um bom engenheiro, mas tinha uma grande imaginação para ser um escritor.
— Você pensa raptá-la?
O padre Diego e George já iam embora. Yul empurrou seu irmão para outro lado do jardim.
— Não quero que nos interrompam.
— Mamãe já vai nos chamar. Todos já começam a se despedir.
— Paul, escute. Isto é muito sério, extremamente grave. Iremos até essa mulher e lhe ofereceremos todo o nosso dinheiro. Amanhã vou pedir a papai o dinheiro do carro.
— E quando ele descobrir que você não o comprou?
— Papai gosta de fazer caridades. Eu lhe direi que dei ao padre Diego para seus pobres. Irei à casa dessa mulher, pedirei que pegue o dinheiro e nunca mais apareça em Wyandotte.
— Você é muito ingênuo, se pensa que ela o atenderá.
— Pode ser que sim. Terei que descobrir por mim mesmo.
— Yul, Paul! Onde estão vocês?
— Já vamos, mamãe. Estamos aqui!
— Venham meus filhos. Venham comer.
À hora da sobremesa, Yul pediu o dinheiro do carro. Gerard estava tão contente que daria tudo que lhe pedissem.
— Passe pelo escritório amanhã, Yul. Minha secretária lhe dará um cheque. Mas não compre um calhambeque. Não quero ficar preocupado com possíveis acidentes.
— Acho que você está agindo errado, Ger. Yul é impulsivo e acontecerá alguma coisa com ele.
— Diga a mamãe, Paul, como eu sou ao volante.
— Bem... é muito prudente.
Os pais puseram-se a rir. O lar voltara a ser o que era antes. Não havia mais do que um passado que não desejavam recordar.
Os rapazes retiraram-se cedo. Tinham que recontar suas economias, acrescentar a quantia que seu pai lhes daria no dia seguinte e fazer um plano para abordar a bela Judit Potten.
A lareira estava acesa. Gerard Wills, deitado no sofá, em frente, fumava um charuto.
— Sabe que ainda estou enjoado da viagem, Kay — riu, olhando para a esposa.
Ela estava em pé, preparando dois drinques. Gentil e feminina. A mulher que era indispensável à vida de um homem.
— Kay — sussurrou. — Venha aqui.
Ela se voltou, fitando-o com ternura.
— Não quer uísque?
— Quero você, aqui, junto de mim.
Kay aproximou-se com os copos. Ele retirou-os de sua mão e a puxou para si.
— Querida...
Ela fechou os olhos e sentiu que Gerard a beijava, longa e apaixonadamente. Ela o abraçou mais forte.
— Ger — sussurrou.
— Parece impossível, meu amor.
Jamais haviam se referido ao que acontecera naqueles seis meses. Seria quebrar a harmonia enfim reencontrada. Tinham medo. Não bastava que tivessem um lar e que Gerard gostasse de Kay. Era preciso que eles se procurassem e se desejassem.
E aquela nova sensação de felicidade ele não queria deixar que escapasse. Por isso buscava sua esposa procurando reviver todo seu amor.
Os minutos pareciam intermináveis até que, depois, subiram ao quarto. Gerard, com a maior naturalidade, abriu a porta de comunicação e disse:
— Não a fecharemos mais, Kay.
Novamente sentiu medo... um medo que a envolvia desde que chegara em casa. Se algum dia aquela porta voltasse a se fechar, não restaria mais nenhuma esperança. Sabia que teria muito que esquecer. Mas ela estava confiante, apesar de tudo.
No dia seguinte, a empregada comentou na cozinha:
— Os patrões parecem tão felizes!
E todos respiraram aliviados, como se durante muito tempo houvessem esperado por esse momento.
— Graças a Deus! — exclamava a cozinheira. — A patroa bem que merece ser feliz.
George entrou e se dirigiu diretamente ao amigo. Sentou-se, como de costume, na beirada da mesa, fumando um charuto.
— Penso que não preciso perguntar-lhe como vão as coisas — disse ele sorrindo.
Gerard sorriu também, olhando para o amigo.
— Às vezes, George, eu me pergunto como pude cometer a loucura de ser infiel à minha mulher.
— Isso é o que perguntam todos os homens depois que a cometem, por isso não me casei ainda.
Gerard riu.
— Você é jovem, ainda pode fazê-lo.
O amigo alisou o bigode e respondeu com certa ironia:
— Somente me casaria com uma mulher como a sua. Por um certo tempo tive a esperança de que, se ela pedisse o divórcio, eu talvez pudesse conquistá-la. Não me olhe assim, Gerard, sou bastante sincero para lhe falar assim.
— Saiba, George, que em nenhum momento pensei em abandonar minha esposa.
— Você não achava que ela iria tolerar certas coisas, não é?
— Por isso ela me pediu que refletisse. Mas, às vezes, tenho medo.
— Medo?
— De mim mesmo. Da atração que essa outra mulher exerce sobre mim.
— Quer que eu a afaste? Ela não desistirá tão facilmente de você.
— Não sou tão covarde assim, George. Penso que se um dia voltar a vê-la, já terei superado tudo.
Nesse momento, o interfone soou. Gerard atendeu prontamente.
— Fale, Mitsy.
— É para lembrá-lo, senhor, da reunião ao meio-dia.
— Obrigado, Mitsy.
Gerard dirigiu-se ao amigo:
— Sinto deixá-lo, George, mas tenho que ver uns documentos antes da reunião.
— Ótimo, já tinha me esquecido desta reunião. Passarei aqui para buscá-lo. Até já!
Quando o amigo saiu, Gerard pegou o telefone e ligou para sua casa. Queria ouvir a voz de Kay.
A empregada disse-lhe que Kay não estava, que fora à igreja e que ainda não regressara. Ele sorriu. Padre Diego ficaria satisfeito ao tomar conhecimento dos resultados daquela viagem.
— Não se preocupe — disse Yul ao irmão. — Está aqui comigo.
— Cuidado para não perdê-lo.
Os dois iam apressados, pela rua. Sabiam onde vivia aquela mulher, pois um amigo fizera referências a respeito.
— E se ela não nos receber?
— E por que não receberia? Não sabe quem somos.
— Isso é o que você pensa.
— Ande, Paul. Precisamos tentar.
Chegaram até a casa. Estavam um pouco perturbados, mesmo Yul, que antes mostrava-se tão animado.
— Vamos.
Bateram à porta. Atendeu-os uma senhora idosa, que lhes perguntou o que queriam.
— Desejamos ver a Senhorita Judit. Seria possível?
— Acho que ela não os espera.
— Não. Não nos espera. Viemos trazer-lhe um recado.
A mulher olhou-os de cima a baixo e, finalmente, disse-lhes que iria avisá-la.
Os rapazes ficaram esperando no hall, mobiliado com um gosto duvidoso. Yul e Paul entreolharam-se. Estariam agindo como deviam?
— Tudo o que fazemos é defender um lar, Paul.
— Sim, mas quem sabe papai não pensa mais nessa mulher?
— Talvez. Porém ela não o largará tão facilmente.
Neste momento foram interrompidos.
— Bom-dia.
Os dois se voltaram. Era Judit. Uma bela mulher, realmente. No entanto, não tinha nem a ternura nem a suavidade de sua mãe, Kay.
— Que desejam? — perguntou secamente.
— Somos... — Yul gaguejava. — Bem... este é meu irmão e eu sou Yul Wills.
Se esperavam com estas palavras impressioná-la, haviam se enganado. Ela permaneceu indiferente.
Yul engoliu em seco e continuou:
— Nossos pais voltaram ontem de uma longa viagem por mar. Sabe, amamos nossos pais. Compreende?
Judit os fitava sem demonstrar sequer interesse.
— Veja... Pensamos que talvez você precise sair de Wyandotte. Trouxemos dinheiro para...
Judit fez um gesto e respondeu com rudeza:
— Dê-me o dinheiro. Entendo bem.
— Ora, você é muito amável.
Ela continuava com a mão estendida. Yul fitava-a desconcertado.
— Dê logo esse dinheiro — disse Paul. — O que está esperando?
— É verdade — respondeu Yul. — Nós viemos para isso. Você terá o suficiente para viver dois ou três anos, falava em tom irônico. — É claro, se não se casar.
— Quando irá embora? — perguntou Paul.
Judit olhou-o por um momento e, imediatamente, desviou o olhar para o maço de nota.
— Quanto? — perguntou.
— Não sabemos. Muito...
— Podem ir embora. — Encaminhou-se para a porta e abriu-a.
— Passar bem.
Os dois rapazes viram-se na escada, perplexos.
— E o dinheiro?
— Nós lhe demos, não?
— Isso parece. Acho que fomos idiotas. Ela não nos fez nenhuma promessa. Nem sequer disse obrigado.
— Paul, nós nos portamos como uns tolos. Ficamos sem o carro, sem economias e essa mulher não irá embora.
Tristes e cabisbaixos, atravessaram a rua e dirigiram-se para a escola.
Passaram-se os dias. E Judit continuava na cidade.
Yul, ao levantar-se certa manhã, segurou Paul pelo braço e disse:
— Temos direito a uma explicação. Nós demos o dinheiro a essa mulher, mas ela ainda continua na cidade. Papai nos perguntará, pelo automóvel.
— Temos que pensar em algo.
— Paul, essa mulher terá que sair da cidade ou devolver-nos o dinheiro.
— Não conte comigo para ir reclamá-lo. Não quero vê-la outra vez.
Do lado de fora ouviram sua mãe dizer.
— Já é tarde, rapazes. O que estão esperando?
— Já vamos, mamãe.
Seu pai tomava café quando eles chegaram a sala.
— O que aconteceu com o carro, Yul? Todos os dias espero vê-lo chegar com um conversível e, até agora, nada.
— Está para chegar.
Paul não levantava os olhos da xícara de chocolate, não ousava fitar o pal.
Gerard Wills precisou ir a Nova Iorque, a negócios. Por ter sido a viagem marcada às pressas, Kay não pôde acompanhá-lo, e quando o marido voltou, notou-lhe certa frieza. Não lhe disse nada, porém suas sensibilidade e intuição levaram-na a crer que aquela mulher aparecera novamente na vida de Ger.
À medida que os dias foram passando, sua desconfiança tornava-se mais forte. Ger, pouco a pouco, afastava-se dela. Fazia mais de quinze dias que não a beijava, nem a convidava para sair. Aquela breve lua-de-mel já findava, não voltaria nunca mais.
Sofreu sozinha sua dor. Nem sequer procurou o seu confessor. Para quê? Ninguém seria capaz de reparar aquele casamento. Percebeu também a dura expressão de seus filhos para com o pai. Eles sabiam de alguma coisa. Possivelmente toda a cidade sabia. Que lhe restava fazer? Os filhos tinham sua vida. Quanto ao marido, ela já o perdera. A porta de comunicação permanecia aberta, mas Ger não a cruzava.
Kay, às vezes, notava que o marido a olhava com profundo pesar, como que recriminando-se pela dor que lhe causava. Ela sorria como se nada tivesse acontecido e Gerard enrubescia. Assim passavam-se os dias.
Uma noite, quando ouviram o pai chegar, Yul e Paul, em silêncio, desceram as escadas para o terraço. Chegaram ao jardim. Eram quatro horas da madrugada. Na rua, ninguém. Os irmãos caminharam em direção à casa de Judit Potten. Enquanto andavam iam conversando:
— Não compreendo como papai pôde trocar mamãe por essa mulher. Mamãe é mil vezes mais bonita.
— Mesmo que não o fosse, Yul, ele é chefe de família, não pode deixar seu lar e seus filhos por qualquer aventura desse tipo.
— Isso é verdade — concordou, tão indignado quanto Paul.
Detiveram-se ante a casa de Judit.
— Terá que devolver-nos o dinheiro do carro — disse Yul, furioso.
— Não será um pouco de atrevimento nosso, Yul?
O outro olhou-o desdenhosamente.
— Se você tem medo, pode ficar aqui. Eu vou subir.
Paul, de má vontade, acompanhou-o. Juntos entraram e subiram as escadas.
Yul, com decisão, tocou a campainha e, como ninguém atendesse, voltou a tocar até que ouviu passos.
— Quem está aí? — gritou alguém, sem abrir a porta.
— Abra — exclamou Yul. — Somos os filhos de Gerard Wills.
Imediatamente perceberam que os passos se afastavam. Yul e o irmão entreolharam-se. Então, compreendendo, Paul tocou a campainha insistentemente.
Silêncio absoluto.
— Vamos — disse Yul, quase gritando. — Não nos abrirão. Foi tolice dizer quem éramos.
Lentamente desceram as escadas e ganharam a rua.
Não foi uma decisão repentina. Naquele dia, Kay achou conveniente esclarecer certos pontos e agir quanto antes.
Gerard chegou em casa às sete, disposto, ao que parecia, a vestir-se e sair de novo. Sua esposa, que cortava flores no jardim, o deteve.
— Ger...
Ele voltou-se.
— Uma só palavra, Ger. Pode escutar-me?
— Naturalmente.
— Será melhor conversarmos na sala.
Ele admirou a serenidade de Kay. Olhou-a. Como era possível que ele deixasse de amar aquela mulher que tanto admirava? Mas assim era. E não havia remédio.
Toda a culpa fora daquela viagem. Se Kay o houvesse acompanhado... nada teria acontecido. E na estação tornara a encontrá-la. Ela também ia para Nova Iorque. O encontro fora inevitável. E tudo recomeçara. Não haveria mais jeito de fugir, porque a atração que o dominava ganhara mais intensidade ainda.
Sofria em agir dessa forma com Kay. Era um canalha. Até no escritório olhavam-no com um certo desprezo.
— Ger... Penso que não será preciso muitas palavras.
Ele não soube o que responder. Acendeu um cigarro e esperou. Kay continuou:
— Penso que desta vez você irá me conceder o divorcio.
Gerard estremeceu.
— Ger — murmurou ela suavemente. — Estou decidida.
— Não o faça. Sairei de casa. Não creio que será preciso o divórcio.
— Talvez você queira se casar com ela.
Ele a olhou surpreso. Ela falava de modo tão tranqüilo que parecia não mais amá-lo.
— Amanhã mesmo irei consultar meu advogado, Ger.
— Gostaria que nos separássemos como dois bons amigos.
— Está bem, Ger — disse Kay, sentindo o coração pulsar com violência.
Deu meia volta. Gerard aproximou-se e a abraçou. Foi como se tivesse levado uma bofetada. Voltou-se e disse friamente:
— Não me toque, Ger.
— Gostaria de compreendê-la, Kay.
— Você não é capaz de me compreender. E como acaba de sugerir, devemos separar-nos sem brigas.
— Hoje mesmo irei embora, e quando pedir o divórcio não me oporei. Darei ordens a meu advogado para que aceite todos os seus termos.
Ela não falou nada. Nem poderia fazê-lo sem cair em prantos.
Dirigiu-se à porta e saiu. Subiu ao quarto. Parecia ter um peso nos pés. Jogou-se na cama. Sua dor era indescritível. Ninguém jamais poderia compreender o que sentia. Era como se todo o seu mundo se desmoronasse.
— Já está decidido, George. Não insista.
— Mas você não percebe o que vai fazer? Não me diga que pretende se casar com ela...
— Não sei o que farei. Só sei que não quero mais aborrecer Kay, a minha presença a incomoda. Às vezes, ela me dá impressão que quer ver-me longe o mais rápido possível — concluiu com um sorriso desdenhoso.
— Você não conhece sua mulher, Gerard.
Este o olhou indignado,
— Acaso você a conhece melhor que eu?
— De certo modo, sim. Você, Gerard, me dá pena, muita pena. Os homens sentem as paixões com intensidade, mas há algo que devemos respeitar: o lar, os filhos, e a esposa. Você poderia ter sido mais discreto com a sua conquista.
— Não sou homem de sustentar este tipo de situação.
— Você é um estúpido, Gerard. Não sei o que lhe acontecerá quando sair de casa, quando conhecer de verdade esta mulher. Você não saberá viver sem Kay. Não sabe o que ela significa para você.
— Sei muito bem o que Kay significou para mim — respondeu Gerard em tom pausado.
— O Padre Diego quer vê-lo.
— Não quero recebê-lo. Não farei nova viagem. Está decidido. Vou separar-me de Kay. Aceito todas as acusações que me fizeram. Nada mais posso fazer por ela a não ser dar-lhe a liberdade.
— Você lhe destruiu a vida. Talvez você se case com a sua amiguinha, mas Kay é católica. Irá separar-se, mas não se casará de novo.
— Terminou?
— Oh, não! Poderia dizer-lhe muito mais, porém não vale a pena.
— Tenho muito trabalho. Será melhor que volte ao seu escritório, George.
— Gerard, pense. Kay admitirá ainda uma tentativa.
— Está resolvido — retrucou. — Deixe-me em paz.
George saiu.
Gerard escondeu o rosto entre as mãos. Estava desesperado, mas nada podia fazer para evitar o seu fracasso matrimonial.
O ditafone tocou.
— Diga, Mitsy.
— Seus filhos estão aqui, senhor. Querem vê-lo.
Gerard enrugou a testa. Seus filhos? Nunca haviam vindo a seu escritório. Que desejariam? Já lhes dera o dinheiro do carro. Talvez tivessem gasto o dinheiro com as garotas. Sorriu. Afinal, já eram homens!
Mandou-os entrar.
Pela expressão dos filhos percebeu qual era o motivo da visita. Não! Não permitiria que eles se imiscuíssem na sua vida particular;
— Que aconteceu? — perguntou secamente.
— Mamãe acaba de dizer-nos que vocês vão se divorciar — respondeu Yul.
— Exatamente.
— Entendemos que ela vai dar este passo obrigada pelas circunstâncias.
— Não sei. Mas penso que é a melhor solução.
Paul comentou:
— Mamãe não merece isso.
— Nós o censuramos, papai.
— Como se atrevem?
— Já somos homens. Temos direito de expressar nossa opinião. E além disso, essa mulher com quem o senhor vai se casar...
— Não disse que vou casar-me, Yul — respondeu Gerard, algo constrangido. — Sou católico, mas há coisas que vocês não compreendem.
Paul, com uma inusitada segurança, disse:
— Sim, papai. Nós compreendemos muito bem. Não somos mais crianças. Mamãe o ama e você a ama também.
— Não pode fazer isso, papai — falou Yul quase soluçando. — Não pode destruir nosso lar. Essa mulher...
— Não quero que a mencionem.
— Mas vamos procurá-la. Nós a conhecemos. Sabe o que fizemos com o dinheiro que nos deu para o carro? Nunca pensamos em comprá-lo.
— Cale-se; Paul — falou Yul.
— Não, papai precisa saber.
Gerard estava curioso.
— Que é que Paul não pode dizer?
Os dois ficaram calados. Tinham os olhos cheios de lágrimas.
— O senhor não pode esquecer — disse Paul, baixinho — a felicidade que havia em nosso lar. Os cuidados de mamãe. Lembra, no ano passado, quando o senhor esteve doente? Ela não saía do seu lado. Lembra, papai?
Gerard apertou os lábios. Seu filho o comovera. Mas agora já não podia voltar atrás. Odiava a si mesmo por destruir todo aquele passado de felicidade.
— Rapazes — sussurrou emocionado, — algum dia, quando vocês forem homens, compreenderão certas coisas.
— Nunca compreenderei e admitirei o sofrimento de mamãe. Não posso desculpá-lo, papai — respondeu Paul.
Gerard voltou-se para Yul.
— E você, que diz?
— Paul já falou por mim.
— Vocês se referiram ao dinheiro do carro. Onde está ele?
— Não fale, Paul — quase gritou Yul. — Vamos embora daqui.
Gerard sentiu-se desesperado.
— Eu não pedi à sua mãe que se separasse de mim.
— E o senhor acredita — gritou Yul, fora de si — que uma mulher como mamãe possa suportar esta situação?
— Yul!
— É verdade. O senhor é meu pai e devo-lhe respeito, mas diante dos fatos não posso tê-lo.
Segurou o irmão pelo braço e saíram.
— Esperem.
— Somente se o senhor nos prometer que não sairá de casa.
— É sua mãe quem me obriga.
— É o senhor quem abandona mamãe. Vamos, Paul.
Os dois se retiraram precipitadamente, Gerard ficou só.
— Mamãe.
— O que é, Yul?
Os três se encontravam na sala. A televisão estava ligada, mas nenhum deles prestava atenção.
— Já estamos em férias, mamãe. Que tal passarmos uns dias na praia?
Kay sorriu. Já havia transcorrido dois dias e esperava a resposta do seu advogado. Gerard não voltara à casa. O padre Diego a procurara e lhe dera conselhos, mas ela não poderia segui-los. Queria a liberdade para viver uma vida digna com seus filhos.
— Temos uma casa no norte, mamãe. Nada nos impede de ir para lá.
— Ainda não.
— Por que não?
— Pensarei.
Fez-se uma pausa. Em seguida, Paul disse, como se não pudesse mais conter-se:
— Fomos procurar papai.
Kay os olhou com ar de censura.
— Não deviam tê-lo feito.
— Papai se arrependerá. Por que a senhora não esquece o divórcio? Poderíamos ir para fora e tudo se resolveria.
— Não quero falar sobre isso. Acho melhor vocês irem deitar-se.
— Não queremos deixá-la só.
— Vocês são ótimos filhos.
— Nós gostamos da senhora, mamãe.
— Não me façam chorar, queridos.
Eles a beijaram. Depois, Yul disse:
— Odiamos papai pelo muito que faz a senhora sofrer.
Ela fitou-os com ternura.
— Não pensem assim. Seu pai está atravessando uma fase difícil. Talvez um dia tudo passe e ele volte para nós. Então deveremos recebê-lo de braços abertos.
— Depois de tudo que fez a senhora sofrer?
— Mesmo assim.
— É odioso o seu modo de proceder.
— Não o julguem. Vocês não conhecem a vida.
Nenhum deles percebera o vulto que surgira à porta. Quando se voltaram, os três emudeceram: era o pai.
Os filhos se retiraram.
Gerard aproximara-se de Kay. Ambos queriam resolver aquele assunto. Há muitos dias que ele não vinha em casa. Ver sua esposa ali, causou-lhe uma amarga sensação de culpa.
— Você emagreceu, Ger — disse ela com ternura.
Mas ele retrucou com aspereza:
— Por que você é assim? Por quê?
Deu uma volta, apertou os punhos e, de costas para ela, gritou:
— Sou um patife. Fazer tanto mal a você é que me deixa revoltado comigo mesmo. No entanto, continuo a agir da mesma forma.
— Não é sua a culpa, Ger. É esse demônio que o dominou.
— E você acredita que ele um dia desapareça?
— Não. Já não sei se você é capaz de destruí-lo.
— Ainda assim, desculpe-me.
— Não o desculpo — disse rispidamente. — Ante nossos filhos sim. Pois sabe bem que o condeno.
— Você fará todo o possível para esquecer-me. E acho que o conseguirá.
— Não fale de costas, prefiro encará-lo enquanto discutirmos este assunto.
Ele deu meia volta e pôs-se de frente. Estava pálido e seus olhos traíam uma profunda amargura.
— Não tente mais, Ger. Esqueça-se de nós e vá embora.
— Vocês também se esquecerão de mim.
— Não é fácil esquecer um homem com quem se viveu durante dezessete anos. Porém lutarei até consegui-lo.
— Você se casará de novo. Amará outro homem como me amou.
Era absurdo. Claro que não estava disposta a amar outro homem nem casar-se outra vez. Porém não tinha intenção de dizer-lhe isso. Seus sentimentos pertenciam, agora, somente a ela.
— Não sei. Não posso adivinhar o futuro. A partir de agora, tudo o que eu sinta ou deseje pertence-me.
— Não me censure, então, se eu fizer o mesmo.
Gerard foi até a porta e voltou-se subitamente:
— Somente vim para levar minhas coisas e dizer-lhe que seus filhos tomaram a liberdade de procurar-me esta manhã.
— Já sei.
Ela olhou-o. Como estava diferente do homem que sempre a fizera feliz.
— Foi você quem os mandou? Pretendia que me comovessem?
Ela simplesmente continuou a fitá-lo.
— Você fala de seus filhos como se fossem parentes distantes.
— Perdoe-me.
— É melhor que você se vá, Gerard.
— Não voltarei, Kay. Mas, se algum dia sentir que não posso viver sem você...
— Não sei o que acontecerá, então, Gerard — disse ela serenamente. — Não sei se o receberei.
— Há pouco você dizia a seus filhos...
— O que dizia a meus filhos relacionava-se ao meu papel de mãe. Agora falo como mulher. Adeus, Gerard.
— Adeus, Kay. Já não sou mais aquele Ger para você.
— Desde o momento em que sair desta casa não será nada mais para mim. É a indiferença que me obrigou a sentir por você.
Ele deu meia volta e foi-se embora.
Os seis meses transcorridos assemelhavam-se a um suplício para Gerard, que foi procurar George.
O amigo olhou-o assombrado.
— Kay não está em Wyandotte. Foi passar o fim de semana com os filhos na casa da praia. Estão felizes.
Gerard baixou a cabeça. Estava envelhecido, pálido...
— Kay continua a dar andamento no divórcio — disse em voz baixa.
— Não. Susteve-o. Seus filhos pediram-lhe que o fizesse. Gerard, por que continua com essa mulher se não é feliz? Você não é homem de aceitar este tipo de vida...
— Não estou mais com ela.
Esta resposta apanhou George de surpresa.
— O que está dizendo? Que não vive com ela? Desde quando?
George encarou-o e disse em voz alta, quase gritando:
— A falsidade sempre vem à tona. Sobe à superfície mesmo que não o queiramos. É pena que só se veja as coisas com clareza quando elas já não têm mais remédio. Tudo era muito diferente de meu lar. Aquela paz, aquela ternura de Kay, a suavidade de sua voz, o amor de meus filhos. Eu não podia viver com aquela mulher. Dei-lhe dinheiro... Acho que já foi embora.
— Gerard, vá até a casa da praia.
— Mendigar o carinho de Kay depois de tê-lo desdenhado? Não quero caridade — gritou exasperado. — Dela só quero seu amor.
— Isso é pedir demasiado, Gerard.
— Eu sei — admitiu. — Não consigo entender como fui tão louco. Judit era mesquinha. Enganava-me com outros. Eu saí do céu e fui meter-me no inferno.
— Meu caro Gerard, volte para Kay. Diga-lhe o que se passa.
— É o mesmo que me pedir para suicidar.
— E o que vai fazer? Kay não se divorciou ainda. Ela não precisa de liberdade, pois não tenciona casar-se de novo. Volte para ela.
— Voltar! Nunca poderei impor-lhe a minha presença. E meus filhos desprezam-me tanto quanto ela.
George pôs-lhe a mão no ombro, num gesto afetuoso.
Fez-se silêncio por instantes. George foi o primeiro a falar.
— Você quer que eu vá conversar com eles?
— Não — gritou Gerard. — Nunca. Eu nunca o perdoaria.
— Mas Kay deve saber que você não vive com essa mulher.
— Isto não iria adiantar de nada. — Encolheu os ombros.
Neste momento Gerard atendeu pelo interfone.
— O que é, Mitsy?
— Uns senhores desejam vê-lo. O senhor marcou-lhes entrevista para o meio-dia.
— Faça-os entrar. — Desligou e, olhando para o amigo, falou: — Pode ir, George. Resolverei esse assunto. É sobre a construção de um navio.
George fitou-o longamente.
— Nunca pensei que você fosse capaz de tratar de negócios no estado em que está.
Gerard limitou-se a balançar os ombros. Logo a seguir abriu-se a porta e a secretária anunciou a visita. George apressou-se em sair.
Yul freou o carro em frente ao luxuoso restaurante. Saltou, dirigindo-se à porta principal.
Sentia-se feliz em Wyandotte. Estava só. Paul preferira ficar, por causa de uma garota que arranjara. Ele não tinha compromissos como o irmão. Era mais divertido manter algumas aventuras do que ficar preso a uma namorada. Se quisesse poderia voltar à cidadezinha na costa. Mas preferia ficar ali, aproveitando ao máximo a sua mocidade.
Empurrou a porta. Eram duas horas da tarde e quase todas as mesas estavam ocupadas. Um garçom veio atendê-lo.
— Mesa, senhor?
— Naturalmente — respondeu com ar displicente. — De preferência junto à janela.
— Pois não. Queira acompanhar-me.
Yul o seguiu. Foi então que avistou seu pai. Estava ali, a dois passos deles, de costas, e só. Sua reação foi imediata. Disse ao garçom:
— Vou ficar nesta mesa com este senhor.
— O Senhor Wills nunca admite companhia — respondeu-lhe respeitosamente.
Apesar de tudo, Yul sentiu orgulho ao dizer:
— É meu pai.
E inclinou-se para ele que ainda não o vira.
— Papai, como vai?
Para Gerard foi uma verdadeira surpresa a presença do filho. Voltou-se e disse, em tom emocionado:
— Yul...
Pelas palavras do garçom, o rapaz deduziu que seu pai habitualmente comia sozinho naquele restaurante.
— Posso sentar-me? — perguntou.
— Claro, sente-se. Não pensei que estivesse em Wyandotte. Que está fazendo aqui?
— Mamãe me pediu que resolvesse alguns assuntos. Pensei que o caminho de volta seria longo e resolvi comer aqui — concluiu ruborizando- se, como a desculpar-se.
O pai sorriu.
Yul interrogava-se. Que estaria sucedendo ao pai? Onde estaria Judit Potten? Aquela maldita mulher que os separara? Achava tudo muito estranho.
— Como está sua mãe?
— Muito bem. Bastante queimada do sol. Vamos sempre à praia e ela joga conosco e com George, quando ele vai lá. Estamos todos bem. Paul arranjou uma namorada.
— Começa cedo.
O garçom se aproximou, interrompendo a conversa.
— Peça o que quiser, Yul.
— Bem... não tenho muita fome.
— Você não veio para almoçar? Sempre foi um bom prato.
— Sim, é verdade. Peça o mesmo que para o senhor.
— O mesmo pedido para os dois, Tom.
— Sim, Senhor Wills.
Fez-se silêncio. Os dois não sabiam o que falar.
À sobremesa, Gerard perguntou:
— Quando vocês pensam em voltar?
— Não sei. Talvez mamãe fique por lá. Eu e Paul devemos entrar na Universidade este ano.
Às três e meia despediram-se, à porta. Yul subiu no carro e durante o percurso foi fazendo mil perguntas a si mesmo, as quais não conseguia responder.
Nada disse à sua mãe do encontro logo que chegou. Mas, à noite, quando estavam os três reunidos na sala, Yul comentou...
— Hoje almocei com papai.
Kay olhou para o filho. Nem Paul nem seu irmão perceberam que ela se perturbara.
Nada perguntou, no entanto. Pois era incapaz de articular uma só palavra nesse momento. Foi Paul quem indagou:
— Como foi?
— Encontrei-o por acaso.
— Onde?
Yul contou com todos os detalhes como se dera o encontro. Concluiu, virando-se para a mãe:
— Perguntou-me pela senhora, mamãe.
Kay esboçou um sorriso.
— E o que fazia sozinho no restaurante? — perguntou novamente Paul.
A mãe procurou contê-lo com o olhar. Mas Yul não fez caso.
— Também achei muito estranho. Comendo sozinho num restaurante. Não parecia um homem feliz. Depois, quando disse que almoçaria com ele, o garçom falou: “O Senhor Wills nunca admite companhia”. Isto quer dizer que é freguês da casa.
Paul não conseguia disfarçar sua curiosidade:
— E ela? Você a viu?
— Paul — censurou a mãe.
— Desculpe-me, mamãe, mas é muito estranho o fato de papai estar só.
— É melhor vocês irem se deitar. Já é tarde.
Os dois rapazes levantaram-se de má vontade. Deram um beijo na mãe. Mas, no meio da escada, Yul resmungou:
— Parece que a solidão de papai não a afeta.
Paul se indignou.
— Não diga tolices. Você não entende? Mamãe sofre todos os momentos com essa situação, mas não quer que nós percebamos. Também não gosta que censuremos papai.
— Mas a atitude dele é censurável.
— Mesmo assim. Você o viu e emocionou-se, não foi?
Yul mordeu os lábios.
— É meu pai! Por mais que faça nunca deixará de sê-lo.
Chegaram ao quarto. Yul acendeu um cigarro.
— Que tal a sua garota, Paul? Está indo bem ou precisa que eu lhe dê uns conselhos?
— Não me amole. Sei resolver sozinho minhas conquistas.
— Muito bem. — E, mudando de assunto, acrescentou: — Sabe, as mãos de papai tremiam ao acender o cigarro e parecia ter uma certa dificuldade em falar comigo com naturalidade. Posso jurar que ele se sente só.
— Não queira me comover. O que ele fez com mamãe é imperdoável. Ela não guarda rancor porque é uma santa.
— Escute, Paul, que tal se procurássemos papai?
— Mamãe não gostaria.
— Ela ainda o ama. Viu como não se divorciou dele?
— Não sei...
— Pois bem, qualquer dia destes irei vê-lo. Se você quiser, venha comigo.
— Pensarei no assunto. Por nada neste mundo quero aborrecer mamãe.
Não foram à cidade e acabaram abandonando a idéia de procurar o pai.
No fim da semana, George foi visitá-los.
— Seu marido não vive mais com essa mulher, Kay — disse, num momento em que se encontrou a sós com ela.
Kay não moveu um só músculo do rosto. Aceitou o cigarro que George lhe ofereceu.
— Kay...
Ela o fitou severamente.
— Por que você me fala disso? Sabe que me desagrada bastante.
— Gerard está só.
— Eu também.
— Kay, não me diga que tudo terminou.
— E você ainda duvida? Não viu a minha dor? Nós, mulheres, temos que esquecer muitas coisas e suportas outras, mas não nos contentar com migalhas de amor. Não acho que Ger tenha deixado de amar essa mulher. Sabia que ele acabaria só. Mas agora é muito tarde para voltar atrás.
George olhou-a. Aquelas palavras de indiferença não poderiam partir de Kay. Devia ter sofrido muito para ficar assim.
— Você não vai dizer que esqueceu-se de Gerard.
Ela o olhou e respondeu duramente:
— Somente não mais acredito nele. Por acaso me considera tão compreensiva? Ou uma tola? Acreditei em Gerard a princípio, quando concordei com aquela viagem. Nunca poderia imaginar que tudo fosse recomeçar. A primeira vez ele voltou tarde para casa, depois de nossa reconciliação, foi como se me apunhalassem. Desde então vivo somente para meus filhos. Isto pode lhe dar uma idéia exata do que a infidelidade de Ger foi para mim.
— Mas ele se modificou. Não é o mesmo, garanto.
— Sabe por quê? Conheço meu marido. Modificou-se por si mesmo, não por mim ou pelos filhos, mas porque aquela mulher nunca poderia entendê-lo e ele não se conformaria com isso.
— Você mudou muito — disse George com ar melancólico.
— Sim, o rompimento me tornou dura e me fez ver as coisas como elas realmente são. Jamais voltaria a ser aquela mulher apaixonada que Gerard conheceu. Eu o decepcionaria e, desta vez, definitivamente.
— Sabe, suas palavras são muito parecidas com as de Gerard.
Ela sorriu, tristemente, George perguntou-lhe:
— Quando você volta à cidade?
— Na próxima semana. Os rapazes começarão as aulas. Assim passarei o inverno sozinha, pois eles só regressarão a Wyandotte nas férias.
— Você encontrará Gerard na cidade. Isto não a preocupa?
Ela o olhou admirada.
— Claro que me preocuparei, George, pois ainda amo meu marido.
— E, apesar disso, não voltaria para ele.
Kay ficou perturbada.
— Não posso negar-lhe o seu lugar em nossa casa, pois que continua sendo dele, já que não pediu divórcio. Jamais impedirei que retorne, somente não o receberei como a esposa dedicada que sempre fui.
— Então, Kay, acho que não voltará. Quer que diga a ele alguma coisa?
Ela retrucou algo irritada;
— Naturalmente que não, George. Será que você ainda não me compreendeu?
George assentiu com um movimento de cabeça.
— É uma pena, Kay, que você não se divorcie, para que eu possa ter alguma esperança.
— Por favor, não falemos mais nisso. Você sabe o que eu penso a este respeito.
Ela dirigiu o carro pela cidade. Estava muito elegante e bonita. Tinha que apanhar umas coisas em sua casa. Os rapazes haviam ido fazer uma excursão pela manhã e não voltariam até a noite.
Estacionou o carro e saltou, atravessando rapidamente o jardim. Cumprimentou a empregada, indo ao seu encontro.
— Bom-dia, Julie.
A moça mostrou-se surpresa.
— Oh, senhora! Não a vi chegar. O patrão — acrescentou nervosa — apareceu hoje aqui. Veio apanhar uma roupa... Viaja amanhã.
Kay empalideceu. Dirigiu-se à casa. Subiu devagar as escadas. Se o encontrasse ali, falaria com ele com naturalidade, muito embora se sentisse bastante perturbada. Teria que fazer um grande esforço para aparentar serenidade.
Chegando ao vestíbulo, viu-o sair de seu quarto com uma maleta na mão. Ao vê-la, ele mostrou-se constrangido.
— Kay — sussurrou.
Ela se dominou.
— Olá, Gerard. O que faz você por aqui?
Ele estava mais magro e pálido. Sentiu pena, mas nada disse.
— Resolvi apanhar umas roupas. Pensei que você não se importasse.
— Vim dar algumas ordens... Não sabia que viria aqui.
— E os rapazes? Vi Yul outro dia. Estranhei que não houvessem comprado o carro. Não sei aonde gastaram o dinheiro. Olhei suas contas no banco. Estão a zero.
Kay admirou-se.
— Mas como? Se eles tinham quase uma fortuna?
— Também não compreendo.
Sem perceberem, tratavam de seus filhos como jamais tivessem se separado. Dirigiram-se ao salão.
— Terão que explicar-me — disse Kay. — Não os vejo gastar dinheiro. Você nunca deveria ter dado ordem ao banco para movimentar sua conta. Eles têm dezessete anos, apenas não sabem ainda o que fazem.
Gerard estava em frente a ela, de mala na mão.
— Posso sentar-me um pouco, Kay?
Ela concordou. Gerard sentou-se e pôs-se a observá-la. Ela estava mais linda que nunca, muito elegante em seu costume azul. Mas seus olhos também azuis, já não o fitavam com a mesma ternura.
Sentia-se como um colegial diante de sua primeira namorada. Lembrou-se das vezes que a tivera nos braços, submissa, apaixonada, ardente... Os beijos de Kay. As carícias tão envolventes, o seu hálito perfumado...
Desviou os olhos, algo perturbado, e disse devagar:
— Um pai não deve pressionar seus filhos. Eles devem ter liberdade de ação. Nunca tivemos motivos para não confiar neles.
— Mas gastaram o dinheiro que você lhes deu para o carro e mais as contas do banco.
— Terão que dar uma explicação.
Fez-se silêncio. Parecia que de repente nada mais tinham a se falar. Foi ele quem o rompeu.
— Você está muito bonita!
— Devo agradecer o elogio? — E acrescentou com rapidez: — Tenho muito que fazer, Ger. Não vim à cidade a passeio.
— Você quer almoçar comigo? — perguntou ele.
Kay esboçou um sorriso.
— Não sei se terei tempo de almoçar, mas obrigada de qualquer modo.
— Kay...
Ele se levantou e a olhou profundamente. Ela também se erguera.
— Peço-lhe perdão por tudo que lhe fiz, Kay.
— Não se preocupe, Ger. Eu já o perdoei — respondeu em voz baixa.
— Você está muito diferente.
— Por mais que eu queira não consigo esquecer.
— Será que nunca o conseguirá? Kay, que posso dizer-lhe? Sou um fracasso, como você vê.
— Não acho.
— Mas eu sou. Não podemos falar com mais calma?
— Impossível, Gerard.
— Gostaria de vê-la mais tarde, ou quando você quiser.
— Devo voltar assim que terminar tudo que tenho a fazer. Além disso, você também vai viajar, não?
— Só por esta noite. Tomarei o avião às onze. É uma viagem de negócios. Regressarei amanhã.
— Boa viagem.
— Nada mais pode dizer-me?
Ela o olhou com firmeza, quase com agressividade. Realmente, ela mudara. Fria, distante, cruel. E não o insultava, não o reprovava, nem se alterava. Mas a sua frieza representava uma acusação muda. E era o que mais o magoava.
— Adeus, Gerard.
— Queria mostrar-lhe que ainda...
— Não, Gerard. Agora nada mais é possível.
— E me condena a uma solidão insuportável.
— Isso não. Tem sua casa e pode voltar a ela quando quiser.
— Mas, quanto a você...
— Eu, não.
— O que seria esta casa para mim sem você?
— Eu nada lhe disse quando me deixou só.
Ele abaixou a cabeça.
— Por que não pediu divórcio, Kay? Talvez fosse feliz com George...
— Por favor, não continue. Amei uma vez, só uma, e por nada deste mundo gostaria de recomeçar.
Ele a olhou longamente.
— Não entendo, Kay, como pude me interessar por outra mulher.
— Você deve saber melhor do que eu.
— Kay!
— Você será capaz de me desmentir? Pode fazê-lo diante de mim, mas não seria verdade.
— Está muito agressiva.
— Foi você quem me fez assim.
— Kay, não sei o que acontece comigo. Às vezes, como agora, olho ao meu redor e vejo que o único lugar onde poderia encontrar felicidade é aqui. Mas não soube aproveitá-la.
— Sinto muito, mas nada posso fazer. Esta ainda é sua casa.
Ele se encaminhou para a porta, lentamente.
— De que me serve uma casa sem a mulher que amo? Kay, você me amava.
— Prefiro não falar nisso. Até logo, Gerard.
Ele ainda a acompanhou com o olhar. Depois disse baixinho:
— Até logo.
E foi-se embora com passo incerto. Kay esteve a ponto de correr atrás dele, mas continuou imóvel. Lembrou-se das intermináveis noites de solidão. E da frieza com que ele lhe dissera que amava outra mulher.
— Ger...
— Boa-tarde; Padre Diego.
O padre sorriu enternecido.
— Já sei, filho. Você está só, derrotado como todos que cometem seus atos sem pensar nas conseqüências. Sente-se, meu filho.
— Não vim com nenhum objetivo certo. Acabei de sair de uma reunião seguida de uma festa.
— Já sei que você não vive com aquela mulher. Sempre sei tudo a respeito dos meus amigos. Você é tão-somente um infeliz.
— Vi Kay esta manhã.
— Faz tempo que ela não vem aqui. Não a vejo desde que você a deixou. Mas vieram seus filhos.
Gerard levantou a cabeça com interesse.
— Meus filhos?
— Sim, estavam aflitos. A mulher por quem você deixou sua casa e sua família os havia enganado.
Ger levantou-se, mas tornou a sentar-se.
— Que têm eles a ver com tudo isso?
— Entregaram-lhe dinheiro para que ela fosse embora.
Gerard estremeceu.
— Dinheiro!
— Sim, todas as suas economias e o dinheiro do carro, que você lhes dera. Ela prometeu que iria embora, mas ficou.
— Quando foi isso? — perguntou Ger.
O Padre Diego contemplou-o por instantes. Gerard estava arrasado e seu olhar traduzia uma profunda melancolia.
— Quando, não importa. Seus filhos queriam denunciá-la, mas pedi-lhes que esquecessem o assunto.
— E foi por essa mulher que abandonei Kay, os meus filhos... Fui um louco!
— Você tem uma esposa admirável, Ger. Ela o perdoará.
— Não creio.
— Espere, tenha paciência.
— Esperar. Minha vida é um vazio. Quem ressuscita os que parecem mortos?
— Acontecem milagres. E sua vida não é um fracasso total, pois você percebeu em tempo seu erro. Só resta conquistar Kay e seus filhos, voltando para casa.
Gerard replicou desalentado.
— E ver Kay fria e distante... Não posso. Sou um homem normal e a amo. Não poderei dominar minha paixão e minha ternura.
Falaram muito, sem grandes resultados. Quando se despediram, Padre Diego insistiu:
— Deixe seu orgulho de lado. Vá pedir a Kay para que o receba novamente.
— Não quero as coisas assim. Não quero a sua piedade, padre. Quero seu amor.
O sacerdote sorriu compreensivo.
— Você destruiu esse amor, Gerard. Agora terá que conquistá-lo.
— O senhor sabe que não será fácil.
— Meu filho, sempre há esperanças para os que amam verdadeiramente.
Kay acabava de chegar na casa da costa, quando viu o carro de seu marido entrar no pequeno jardim.
Surpreendeu-se. Que desejaria Gerard?
Viu-o saltar e caminhar até ela. Ergueu-se e esperou.
— Kay — disse, um pouco nervoso. — Achei que devia vir para dizer-lhe algo. Vim falar não de você nem de mim, mas de nossos filhos. Já sei em que gastaram o dinheiro. Por favor não lhes pergunte.
— E eu, não posso sabê-lo?
— Não vale a pena.
— Então, para que veio?
Estava desconcertado.
— Posso sentar-me, Kay? Um instante somente.
Sentou-se na cadeira e acendeu um cigarro.
Tremia.
— Seus filhos, nossos filhos, queriam evitar a destruição de nosso lar. Reuniram o dinheiro e o levaram àquela mulher.
Kay estremeceu.
— Ela os enganou. Não se foi. Eu nada sabia.
— Meus filhos — sussurrou Kay — fizeram isso!
— Sim, Kay. E eu, perturbado, eu que nada percebia...
— Não se recrimine agora. O que me admira é que sendo você como é se apaixonasse por uma mulher assim.
— Você nunca me perdoará, não é?
— Perdoei-o, mas não sei se poderei desculpá-lo. Você viaja esta noite — acrescentou. — Vai perder o avião.
— E quando voltar sentirei a solidão do hotel, da rua, do lar, do escritório.
Ela propôs friamente:
— Volte para casa.
Era impossível que aquela fosse a mesma mulher de antes. A companheira apaixonada, cheia de ternura, que o compreendia e compartilhava suas tristezas suas alegrias íntimas. Não era a mesma mulher que o olhava. Perdera-a para sempre.
— Sinto muito, Gerard mas não posso remediar seus erros.
Ele a olhou longamente.
— Você, Kay, nada mais sente por mim?
— Piedade, talvez.
Gerard levantou-se e falou com voz amargurada.
— O mesmo que você sentiria por um mendigo que batesse à sua porta.
— Sim, com a diferença — disse Kay, com uma melancolia que procurava dissimular — de que o “mendigo” é o pai dos meus filhos.
— Você já se esqueceu do quanto fomos felizes?
— Eu não, mas você sim. Quero esquecer o passado. Volte para casa, se quiser, viva conosco. Sinta o carinho de seus filhos e minha presença.
— Sua presença vazia.
— Você não quererá que, apesar de tudo, eu o ame e o admire.
— Não, Kay. Não peço tanto. Na verdade não sei o que lhe peço.
Levantou-se e se dirigiu ao carro.
— Obrigado, Kay.
— Por quê?
— Por haver me ouvido, ao menos. Adeus.
Regressaram a Wyandotte no fim da semana. Os dois filhos olhavam a mãe interrogativamente, sem se atreverem a fazer-lhe a pergunta que os preocupava. Yul, como sempre, foi o mais ousado.
— Você vai ficar sozinha, mamãe, quando nós formos para a escola.
— Vocês ainda passarão um mês aqui. E a solidão não me assusta.
— Eu acho, mamãe, que se o papai...
— Yul — cortou ela bruscamente, — peço-lhe que não se meta neste assunto.
Yul abaixou a cabeça e quando se retirou com seu irmão, disse-lhe:
— Amanhã irei ao escritório de papai.
— Que vai dizer-lhe?
— Ainda não sei.
No dia seguinte, George e Gerard estavam juntos no escritório quando Mitsy anunciou a visita de Yul.
Os dois amigos entreolharam-se. George saiu e naquele instante Yul entrou. Aproximou-se do pai, beijou-o e sorriu.
— Vim vê-lo, papai.
— E como está você? — perguntou Gerard, emocionado. — E sua mãe? E Paul?
— Paul ficou lá embaixo. Não se atreveu a subir.
Gerard sentia-se emocionado e confuso.
— Sente-se, Yul. Quer almoçar comigo hoje, filho?
Yul titubeou. Queria dizer-lhe algo mas não sabia como.
— Você não quer ir Yul?
— Sim, papai. Mas talvez seja melhor você vir comer conosco, em casa.
Gerard estremeceu. Perguntou ansiosamente.
— Foi sua mãe quem o mandou?
— Não.
— Sendo assim, Yul, agradeço a sua boa intenção, mas não posso ir.
— Se mamãe me houvesse mandado, você iria?
— Se sua mãe me telefonasse ou me convidasse pessoalmente, sim. Não quero ser um intruso em seu lar.
— Mas o senhor é meu pai.
— Você é um bom rapaz, Yul. Mas ainda falta um pouco para ser um homem. Quando o for, não cometa certos erros. Paga-se caro por eles.
Mudando de tom, Gerard acrescentou:
— Vamos comer no restaurante daquele dia? Vá e diga a Paul que venha conosco.
— Ele não pode deixar mamãe sozinha.
— Está certo, meu filho. Muito certo.
Paul não se atrevia a dizer-lhe. Adorava sua mãe. Mas também gostava de seu pai, embora reprovasse o que fizera com sua mãe.
— Onde está Yul? — perguntou Kay.
— Bem, ele foi ao escritório de papai, almoçar com ele — completou, um pouco temeroso de aborrecê-la.
Kay sorriu. Talvez Paul considerasse que aquilo era uma ofensa para ela. Mas ele não sabia que Gerard não deixaria de ser o homem que ela sempre amara.
— Por que você não foi? Devia ter ido.
O rapaz espantou-se.
— Eu? Com eles? Claro que não.
— Por quê? Seu pai os quer muito, Paul. E amava a mim também. Você não pode compreender certas coisas. Há fatos na vida de um casal que não se esquecem nunca. Espero que você se lembre disso.
— Sim, mamãe.
— Agora, depois que terminemos de almoçar, você irá ao restaurante onde eles estão, para vê-los. Você não ama seu pai?
— Ele foi cruel com você, mamãe — respondeu algo rancoroso.
— Você está enganado. Ele fez mal a si mesmo. Eu o amo. Nunca deixarei de amá-lo, compreende?
— Não, mamãe.
— Faltam alguns anos para que você possa compreender isto. Eu lhe falo como mãe e esposa, não como mulher. Agora, vá procurar seu pai.
Ao anoitecer, quando seus dois filhos estavam no escritório, Padre Diego veio visitá-la.
— Padre, não o esperava tão cedo.
— Sou velho, mas não ainda o suficiente para deixar de ver os amigos. Já sei que Yul almoçou com o pai hoje. Isso significa que os laços familiares não foram rompidos. Você Kay terá que vencer seu rancor, como mulher, e permitir que Gerard volte para casa.
— Ele pode vir. Não o impedirei.
— Não basta isso. Você terá que ter resignação, paciência e, sobretudo, perdoar e esquecer.
— O senhor me pede coisas demais.
— É seu dever, Kay.
— E como devo recebê-lo?
— Como uma simples visita e o ajude quando ele falar no futuro do seu lar.
— Nas condições que quer, não. Não poderia.
Ele a olhou fixamente.
— Compreenda a situação de seus filhos. Faça pelo bem deles.
— Está bem, padre. Prometo-lhe.
— Sabia que você o faria, Kay.
No dia seguinte recebeu a visita de Gerard.
Bonita e elegante dirigiu-se vagarosamente ao salão. Parecia que aquele homem nada representava para ela. Mas não era verdade. Amava-o ainda. Mas isso não era suficiente para que mudasse seu modo de pensar sobre a convivência com ele. O fato de Gerard ter saído de casa, dela ter pensado em divórcio e de que ele tivesse amado e desejado outra mulher a impedia de pensar de outra forma.
Estava atraente no seu vestido cor-de-cereja. Seu corpo moreno se destacava. Assim se dirigiu ao salão.
Quando empurrou a porta e apareceu ante Gerard, este estava de costas, olhando um quadro que um amigo pintara deles dois juntos, há muito tempo.
— Bom-dia, Gerard — cumprimentou com naturalidade.
Ele se voltou. Ali estava sua mulher. A mesma que a amara, que nunca o reprovara, até o dia em que ele destruíra tudo. Ali estava ela e olhava como se ele fosse um desconhecido qualquer.
— Kay, voltei. Não me resta nem a dignidade de poder viver longe de vocês. Só quero um pouco do aconchego do lar. Não peço sua ternura nem seu amor.
— Seria o cúmulo que você os pedisse.
— Você não tornará a acreditar em mim, Kay?
— Não sei, Gerard. Não quero discutir sobre isso. Você voltou para casa. Fique. É só o que lhe posso oferecer.
— Será triste para mim viver assim.
— Mais triste foi vê-lo partir.
Ele nada disse. Parecia muito abatido, envelhecido.
— Trouxe suas coisas? — perguntou ela, naturalmente.
— Sim, estão no carro.
— Direi à empregada que as leve para seu quarto.
— Qual?
Ela o olhou com ar de censura.
— O seu, naturalmente.
— Com a porta trancada.
— Claro.
— Nunca pensei que você fosse tão inflexível.
Kay voltou-se com violência.
— Que você esperava? Que o felicitasse? Você me humilhou perante todos. Mas nada disso levo em consideração. O que me dói e não posso esquecer é que você houvesse pensado que amava outra mulher.
— Não a amei, Kay.
— Para que falar disso, se aborrece a nós dois? Você parece cansado. Vá se deitar que é melhor.
Gerard esteve a ponto de afastar-se dali correndo, mas já não podia. Ali era seu lar. Ali estavam seus filhos e ela. Deu um passo em frente e saiu.
— Papai voltou.
Paul não se moveu, já o esperava. Tinha um livro nas mãos e continuou a lê-lo.
— Ouviu, Paul? — insistiu Yul.
— Ouvi, e não gostaria de estar no lugar dele.
— É verdade que ele errou, mas sempre foi bom pai e bom marido.
Paul o olhou serenamente.
— Jamais havia visto mamãe chorar, Yul. E agora a tenho visto assim muitas vezes. Porque papai a abandonara.
— São problemas dos homens.
— Nunca farei estas coisas por mais homem que seja. — E, sem mudar de tom, prosseguiu: — Não sei o que farão eles quando nós dois formos para Nova Iorque. Não será fácil para eles.
— Mas eles já se amaram. Poderão voltar a se amar.
— Pode ser que sim, do contrário, mamãe sofrerá muito.
— Quer dizer que você preferia que papai não morasse conosco?
— O que prefiro é que mamãe não sofra. O resto não me importa.
Yul se inclinou para o irmão.
— Admiro e gosto de mamãe, mas também aprecio e gosto de papai, encontro desculpas para ele.
— Pois eu, não.
— Porque você não quer.
— Não. Penso diferente. Não acho que as paixões humanas sejam tão fortes que possam dominar um homem como papai. Sabe que mais, Yul? Não admito que um homem tenha uma amante. Eu só amarei minha mulher. E sabe, jamais me esquecerei das minhas obrigações. Este foi um fato de que me lembrarei sempre.
Yul nada respondeu. Para ele, aquela situação era bem difícil, mas ele reagira de modo diverso de Paul. Eram gêmeos, mas de modo de pensar bem diferentes.
— Tenho pena de papai — disse Yul, pensativo. — Ontem, quando almoçávamos, ele me pareceu muito abatido.
— Tenho tanta pena de papai quanto de você. Nós já somos homens. Sabemos o que é uma mulher e o que são certos desejos. Com um pouco de força de vontade podem ser vencidos.
Yul riu, irônico.
— Você será um herói, Paul.
— Não, apenas um homem. Um homem digno, que será respeitado e que respeitará os demais.
— Pretende com isso que eu o admire?
— Não, somente que você entenda que, para mim, o que papai fez não foi uma brincadeira. Foi algo sério.
— E você não vai aceitá-lo?
— Não sei.
E saiu para dar uma volta.
Durante os primeiros dias, Gerard andou como uma sombra pela casa. Saía de manhã para o trabalho e voltava para o jantar. Cumprimentava a todos e comia em silêncio. Só Yul é que conversava com ele. Depois de tomar o café, saía e voltava às sete em ponto. Os meninos saíam, mas Kay, não. Onde ela estivesse ele se sentava perto. A conversa entre eles era banal.
Yul sempre que estava em casa, procurava o pai. Já Paul, era como se mal notasse sua presença. A tal ponto que, um dia Gerard resolveu conversar sobre isso com Kay. Aproximou-se dela, sentou-se e iniciou:
— Entre nós aconteceram certos fatos pelos quais sou responsável e me encontro arrependido...
Kay alçou as sobrancelhas. Que queria ele dizer com aquilo?
— Quero falar de Paul, Kay.
— Paul? — perguntou admirada.
— Está certo que você me censure e sinta desdém, mas ele? Foge de mim e se por acaso tem que me dirigir a palavra o faz sem levantar os olhos para mim. Ele não me perdoa.
— Não vi em Paul atitude diferente da de seu irmão.
— Pois é. É doloroso para mim, como pai, sentir isto.
Falaria com Paul. Não poderia suportar que seus filhos responsabilizassem o pai por tudo. Muitas coisas haviam concorrido para que ele perdesse a cabeça. Paul não podia censurá-lo.
— Sinto, Kay. Não queria aborrecê-la, mas não pude evitá-lo.
— Cale-se, Gerard.
— Já não me chama de Ger.
Ela apertou os lábios. Bem que desejaria. Cada dia que passava mais esquecia a humilhação por que passara. Mas não ainda por completo.
Naquele instante, Gerard aproximou muito a cabeça dela e a olhou fixamente. Parecia que eram dois namorados.
— Kay, não me chamará mais de Ger?
— Não sei.
— Por consideração ao passado? — E imediatamente percebeu que só por isso não lhe bastaria. Retificou: — Desculpe-me, Kay, foi um absurdo. Não sei o que se passou comigo. Quis fugir mas não pude. Você era a minha vida, aqui era o meu lar. Você me entende, não?
Kay assentiu com a cabeça. Gerard estava ali, ao seu lado, falando perto de seu ouvido. Afastou o olhar. Mas Gerard não se moveu.
— Kay, viver a seu lado é uma felicidade e uma tortura. Não há em você nem um pouco de afeto por mim? Um pouco. Não peço sua paixão. Só sua tolerância.
— Amei-o muito — sussurrou ela — para dar-lhe só minha tolerância. Mas ao dar-lhe uma parte só, você não se conformaria.
— Não, talvez. Mas vivo muito só. Morar em casa, como um hóspede, ver aquela porta fechada à noite, é uma agonia.
Ela nada respondeu. Também o era para ela.
— Um dia — acrescentou Gerard baixinho — não agüentarei mais. Irei para longe.
— Não seja louco.
— Irei sim.
Nesse momento, ouviram-se as vozes dos rapazes no corredor. Afastaram-se bruscamente.
Paul estava no portão, quando a mãe o chamou.
— Procurei a senhora pela casa toda para me despedir. Para que a senhora quer tantas flores?
E apontou para as dálias que Kay estivera a cortar.
Ela sorriu por resposta e deu-lhe o braço.
— Meu filho, quero falar-lhe. Yul já se foi. Você não se diverte com ele?
— Cada um tem seus gostos.
— Dos quais você não participa. Por acaso considera-se superior a Yul?
— Não, mamãe. Claro que não.
— Pois venho observando seu comportamento. Todos nós cometemos erros. Não é porque você deixa de sair com as garotas que não vai cometê-los. São provações que Deus nos envia.
— É a senhora que fala isso? A quem tanto ofenderam?
— Talvez esta provação tenha sido enviada por Deus. Por favor, Paul, desça das nuvens. Observe com olhos humanos tudo que nos rodeia. Não quero que você continue a falar com seu pai com desdém.
— Ele a humilhou.
— E eu, por infelicidade, estou humilhando a ele. Você acha pouco?
— Eu nunca cometeria esse erro.
— Você cometerá outros mais. Depois, quem sabe, a atitude de seu pai não foi também por culpa minha?
— Mamãe...
— Peço-lhe, Paul que seja para seu pai como sempre foi.
— Não entendo como a senhora o defende.
— Eu o amo, e ele me ama, nós dois cometemos erros.
— A senhora, não. Sabe, uma vez sacamos todas as nossas economias e o dinheiro do carros e demos para aquela mulher para que ela se fosse.
— Eu sei.
Paul arregalou os olhos.
— A senhora o sabe?
— Sim, seu pai me disse, pois o Padre Diego lhe contara. Vocês erraram. Não quero mais conversar sobre isso. Seu pai está em sua casa e não quero que você o desconsidere.
— A senhora me pede isso.
— Não, meu filho, não lhe peço. Exijo-lhe. Sei que você me quer bem, e eu não seria feliz sem isso.
— Você é muito boa mamãe.
— Não, Paul. Sou mulher, mãe e esposa e os amo a todos apesar de tudo.
Aconteceu na hora do jantar.
— Gostaria de ir ao teatro, Kay. Você quer acompanhar-me?
Ela sentiu-se sufocar. Aparecer em público com ele...
— Não, Gerard, não estou com vontade.
Então, Yul insistiu:
— E por que não, mamãe? A peça é ótima. Fomos vê-la hoje à tarde.
— Querido, não se intrometa neste assunto.
Paul, que até então estivera calado, falou:
— A senhora deve ir. A peça é boa e além disso, há anos que vocês não saem de casa.
Gerard olhou agradecido para o filho.
— Peço-lhe que vá, Kay.
Os três agora insistiram. Ela cedeu.
— Está bem — terminou por dizer. — Irei vestir-me.
Estava nervosa. Era a primeira vez que se sentia assim desde que Gerard voltara para casa. Subiram as escadas e foram vestir-se.
Kay arrumou-se com cuidado. Pôs um vestido decotado que a tornava ainda mais esbelta. Pintou-se um pouco e perfumou-se. Nisto, ouviu Gerard que a chamava através da porta de comunicação trancada.
— Kay... Posso entrar um instante?
Como um autômato, ela foi até a porta e a abriu.
— Não sou capaz de dar o nó na gravata, Kay.
Ela se aproximou para dá-lo. Estavam muito próximos. Ele a enlaçou pela cintura.
— Kay...
— Solte-me, por favor — pediu com um fio de voz. Sentia um calorzinho agradável percorrer-lhe o corpo.
Mal conseguia dar o nó. Finalmente acertou. Mas ele não a soltou. Era tão maravilhoso tê-la junto a si.
Olhou-a muito. Depois seus lábios se aproximaram. Ele sentiu que para ele nunca existira outra mulher além da sua. Foi como um milagre. Mas mesmo assim se separaram.
— Vamos chegar tarde — sussurrou ela. — Falta meu xale.
— Eu o apanharei. Está no mesmo lugar?
— Sim.
Ele o apanhou e colocou-o nos ombros dela. A seguir a enlaçou.
— Vamos, minha querida.
E saíram abraçados.
Ela mal viu a peça. Pensava naquele beijo que recebera no quarto. Tampouco se importava com os olhares das pessoas que os conheciam.
Gerard estava ao seu lado. Não se falavam. Somente no intervalo do primeiro ato foi que ele perguntou se ela estava gostando da peça.
— Não está mal — respondeu.
Alguns amigos vieram curnprimentá-los. Falaram a todos com naturalidade. Depois deixaram-nos em paz.
Ao final da peça, retiraram-se. Tomaram o carro.
Gerard dirigia bem devagar.
— Kay, pretendo viajar. Pedi ontem a autorização e me concederam.
— Pretende ir para longe?
— Não quero ir só.
Ela o olhou por um segundo.
— Gostaria que você me acompanhasse.
Ela não respondeu.
— É impossível, Kay?
— Acho que sim.
— Pelos rapazes?
— Não, eles irão embora dentro em pouco.
— Você não quer ir comigo — concluiu ele. — Kay — continuou — vou no iate. Devo passar um mês fora. Não vou insistir com você. Só quero que saiba, a sua reposta é muito importante para mim. Desejo tanto a sua companhia...
O carro parou em frente à casa. Saltaram. Ela tomou-lhe o braço.
— Eu errei, mas você já conhece meu arrependimento.
Calou-se. Subiram as escadas juntos.
— Kay, eu a amo. Necessito de você.
— Por favor, discutamos isso amanhã.
— Não, quero resolver nossa vida futura hoje.
Kay deu um passo em direção a seu quarto. Ele a seguiu. A porta de comunicação ainda estava aberta.
— Kay... Preciso passar a noite com você.
Ela também necessitava dele. Não conseguia pensar em nada. Só sentia a boca de Gerard pertinho da sua. E ele a beijou.
— Kay...
Instintivamente se achegou a ele. Foi como se o mundo não mais existisse para os dois. Acordavam para a vida, perceberam que se amavam, se desejavam e que sem aquilo a vida nada significava para eles.
Os dois o sentiram quando suas bocas se buscaram.
— Kay, meu amor, minha vida...
Kay enlaçou seu pescoço. Gerard olhou a porta aberta. Morreria de dor se ela novamente se fechasse.
— Kay...
— Ger... Oh! Ger...
— Eu não posso responder-lhe, Yul. Converse com seu pai.
— Papai dirá o que você disser.
— Você não acha que é muito jovem? Terminou a Faculdade este ano, não sabe ainda o que é o amor.
Yul respondeu sério:
— Quero casar-me, mamãe. Há mais de dois meses que estou lhe dizendo.
— Por que não fala com seu pai
— Ele não quer saber de nada. Diz que sou muito jovem, mas sou mais velho que ele quando se casou.
Haviam se passado sete anos. Paul e Yul já haviam terminado a Faculdade e trabalhavam nos estaleiros. Eram engenheiros competentes e inovadores.
Yul desejava realmente casar-se. Suspirou.
— Já falei com papai. Ele me disse que vivesse a vida e que quando me cansasse então, aí sim, me casasse. Assim evitaria muitos erros.
Kay sorriu. Aquele fora o único erro de sua vida. Depois nunca mais. Aqueles sete anos haviam sido uma lua-de-mel maravilhosa.
— Quero — continuou Yul — que você interceda.
— Farei o que você me pede. Mas acho que um homem deve namorar, conhecer as moças antes de escolher sua esposa.
— Papai o fez?
— Está certo. Você ganhou. Falarei com seu pai.
Gerard chegou tarde. Abraçou a mulher e a beijou carinhosamente.
— Ger, querido, precisamos conversar sobre os rapazes.
— Já sei, mas não quero que Yul se case assim e um ano depois abandone a mulher.
Mas ainda assim, Yul casou-se naquele mesmo ano. E Paul, apesar dos protestos da família, casou-se um ano após.
Achavam-se os dois sentados no salão. Naquele dia, Kay parecia preocupada.
— Sabe, Ger, preciso dizer-lhe algo sério: Yul pretende separar-se da esposa.
Ele a beijou nas mãos e, em seguida, retrucou:
— Já sabia.
— E o que você pretende fazer?
— Recordar-lhe um passagem de sua vida que talvez já tenham esquecido. Convidei Paul, Yul e as esposas para virem aqui.
— Mas Yul já conhece a nossa história.
— Ele a esqueceu. Só eu e você ainda nos lembramos dela.
À noite, os quatro chegaram. Paul estava sereno. Yul, nervoso e pálido. As esposas, preocupadas.
— Sentem-se. Posso saber as causas de sua decisão, Yul?
Mildred, sua esposa, começou a chorar.
— Ele me enganou. Não quero mais viver com ele.
— E você, Yul, está disposto a mudar seu comportamento?
Paul interrompeu-o.
— Antes que Yul responda, quero lembrar-lhe algo, que parece-me que ele esqueceu.
Ger e Kay olharam-se com ternura. Paul continuou:
— Foi como uma repetição do que aconteceu com vocês dois, papai e mamãe. Aquilo foi decisivo para mim. Desde aquele instante pensei que seria como você, papai, a minha esposa como você, mamãe. Não se lembra da história, Yul?
Yul abaixou a cabeça. De súbito, inclinou-se para sua esposa e falou:
— Mildred... Perdoe-me. Lembro-me muito bem, Paul. Eu lhe contarei a história, Mildred.
— Eu também quero conhecê-la — disse Susana, esposa de Paul.
— O que você acha, papai. Não seria melhor que cada um de nós a contasse, em particular, a suas esposas?
Gerard olhou para Yul e respondeu:
— Parece-me uma boa idéia, filho. E espero, Yul, que no futuro você seja fiel a sua esposa, porque assim evitará que ela e você sofram.
Mildred chorava.
Yul inclinou-se para ela.
Tomou sua cabeça entre as mãos e a olhou com ternura.
Yul, o impetuoso e temperamental Yul, a acariciava suavemente.
— Desculpe-me, Mildred, eu errei. Obrigado, papai, por haver-me alertado. E você, mamãe, se algum dia eu errar novamente, procure-me, segure-me a mão a impeça-me de cair. Vocês são maravilhosos.
Kay sorria. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Lembrava-se de tudo por que passara e da sua felicidade agora, ao lado de Gerard.
Quando os dois jovens casais se foram, eles se abraçaram.
Recordavam-se daquele tempo. Agora que tudo passara, parecia um pesadelo.
— Kay...
— Ger...
No outro dia, Gerard dizia a seu amigo George:
— É extraordinário o que um passado doloroso provoca na vida de um homem.
— Você se refere a Yul.
— Sim.
— Ele hoje chegou aqui mais eufórico do que nunca.
Gerard sorriu.
Era o sorriso de um homem feliz.
Corin Tellado
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