Artur Azevedo
ESCRITA A PROPÓSITO DA ÓPERA-CÔMICA: "A BELA HELENA" DE HENRIQUE MEILHAC E LUDOVICO HALÉVY
PERSONAGENS: ABEL (professor público) NICOLAU (fazendeiro) PANTALEÃO DE LOS RIOS CASCAIS (vigário da freguesia) ALFERES ANDRADE (comandante do destacamento) GÓIS & COMPANHIA (negociantes) FILOMENO (sacristão, sineiro, etc.) EUSTÁQUIO (ferreiro) HELENA (afilhada de Nicolau) PEDRINHO JUCA SÁ (estudante de férias) BENJAMIM MARCOLINA (mucama) UM FEITOR UM EMPREGADO DO CORREIO Devotas, rapazes, negros, povo, músicos, etc. A cena passa-se em uma freguesia da província do Rio de Janeiro. Atualidade.
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ATO I
QUADRO I
(A MISSA) Praça pública. Ao fundo a Matriz e a casa de residência do Padre Cascais. É dia de festa. CENA I Povo, depois Cascais e Filomeno. (Ao erguer do pano homens e mulheres, defronte da porta de Cascais, apresentam flores, frutas, velas de cera e frango. Flores em mais abundância) CORO Aceite, ó senhor padre, os mimos que lhe dão de coração os que aqui ‘stão com devoção!
E lhe pedimos já cheíssimos de fé, que rogue a Deus por nós, se nosso amigo é. Aceite, ó senhor padre, etc.
UMA RAPARIGA (oferecendo um ramalhete a Cascais) Aceite estas cravinas aceite por favor Não são tão purpurinas? Não têm tão linda cor? OUTRAS RAPARIGAS Se o seu padre não aceita este raminho já, tomamos por desfeita e não voltamos cá... CORO Aceite estes presentes, se nos quer ver contentes. Aceite ó senhor padre, etc.
(Acabado o Coro, continua a música na orquestra, enquanto o povo depõe os seus presentes nas mãos de Filomeno, e vai se retirando) CENA II Cascais e Filomeno. CASCAIS Guarde tudo isso, seu sacristão.
FILOMENO Sim, senhor vigário. (Vai aos poucos levando as oferendas para a casa de Cascais)
CASCAIS Ora, valha-me Deus! Que presentes! Que presentes! Duas velas de cera, apenas um frango, e flores, flores, e mais flores! (Com desgosto) Pra que flores? – Ah! Já vai o tempo dos perus e das galinhas gordas... O tempora, o mores! E viva um pobre vigário da modesta côngrua! Já não há fé nos vigários! Já não há fé nos vigários!
FILOMENO Não é tanto assim, senhor vigário; o seu colega de Itapiri...
CASCAIS É exato. É o homem mais feliz que conheço. Até o sermão de hoje mo tiraram para dar-lho, a ele! E levam-lhe bois, porcos, sacos de farinha e de feijão...
FILOMENO Deve fazer bom negócio...
CASCAIS Ora se faz! Mas por cá é o que você está vendo: flores, flores e mais flores! (Como quem se resigna) Enfim! você há de levar este ramalhete à comadre... (Dá-lhe um ramalhete que tem conservado na mão)
FILOMENO Sim, senhor vigário.
CASCAIS E o sino?! Trouxeram o sino, que tinha ido ao mestre ferreiro, para segurar o badalo?
FILOMENO Ainda não.
CASCAIS Como ainda não?!
FILOMENO Estou à espera...
CASCAIS Olhe que hoje não podemos passar sem sino! Um dia de tanto júbilo! Festa literária depois da missa das dez...
FILOMENO Vossa Reverendíssima não me explicará o que vem a ser essa festa literária?
CASCAIS Coisas do Senhor Pantaleão de los Rios, que não tem mais o que fazer! Dá um prêmio a quem decifrar uma charada, responder a uma pergunta enigmática e glosar um mote! Ah! Senhor Pantaleão, Senhor Pantaleão! Ne sutor ultra crepidam.
FILOMENO Ora o Seu Pantaleão!
CASCAIS Já vê você que não podemos passar sem o sino! Preciso do sino!
FILOMENO Falai no mau. Aí vem o Mestre Eustáquio com ele.
(Eustáquio entra pela direita carregando um pequeno sino) CENA III Os mesmos e Eustáquio. CASCAIS Então, Mestre Eustáquio, que demora foi essa?
EUSTÁQUIO Vossa Reverendíssima desculpe; mas estive ocupado a arranjar umas ferraduras para o senhor juiz de paz, e... Mas cá está o sino, e desta vez, bem seguro o badalo.
CASCAIS Veja lá se o arranca de novo, seu sacristão!
EUSTÁQUIO Olhe! (Agita o sino)
CASCAIS (precipitando-se para sufocar o som) Pare, pare, homem de Deus! vai o povo persuadir-se de que o estou chamando à missa...
EUSTÁQUIO Desculpe...
CASCAIS Também já são horas. Ali vêm algumas devotas e entre elas a juíza da festa. Vamos, seu sacristão, leve o sino para a torre, pregue-o no lugar, e chame à missa. (Filomeno entra na igreja com o sino. A Eustáquio) Este sacristão acumula, hein? Ele é sacristão, sineiro, oficial de justiça, vende cera e faz a escrita da loja do Polidoro.
(Outro tom) Mestre Eustáquio, venha amanhã receber as duas patacas do ajuste.
EUSTÁQUIO Não há novidade... (Vai-se)
CENA IV Cascais e a juíza da festa, devotas de mantilha, Helena e Marcolina.
CASCAIS (à juíza da festa) Viva a juíza! Entre, Dona Bárbara!
(Acompanha-a até a porta da igreja. Nisto entra Helena acompanhada por Marcolina. Helena, durante o Coro, cumprimenta o vigário) CORO DE DEVOTAS MOÇAS Eis de sinhá, falange honesta que também vem gozar a festa, pois jovem ser não é razão que justifique a reclusão. HELENA Ah! que satisfação ser moça como eu sou! coração se me alvoroça! quem foi que amores inventou?
(Filomeno tem aparecido na torre da igreja, e prega o sino a uma pequena trave)
HELENA Meu coração palpita, pulsa por quem chegar vai hoje aqui! Sinto-me, ó céus, toda convulsa, como jamais me senti. Mas, ah! não sei se meu padrinho me deixará ou não casar com meu benzinho.
Ele não tem... (Faz sinal de dinheiro) A ver navios eu ficarei talvez, até, só porque dois sacos vazios não se poderão ter em pé. Mas, ah! não sei se meu padrinho me deixará ou não casar com meu benzinho (Continua a música. O Coro entra na igreja. O vigário vai a entrar também, mas Helena o agarra e obriga-o a descer com ela à cena. Marcolina conserva-se no fundo) CENA V Helena, Cascais e Marcolina. HELENA Dá-me uma palavrinha?
CASCAIS Duas e três, se quiser, mas a missa...
HELENA Tem tempo.
(Cessa a música)
CASCAIS Estou às suas ordens...
HELENA (dando com Marcolina) Vá para a matriz, Marcolina.
MARCOLINA Iaiá, sinhô velho me disse que não deixasse vossemecê sozinha.
HELENA Faze o que te digo!
MARCOLINA Tá bom, eu vou mas depois não quero cumo-chama comigo. (Entra na igreja) CENA VI Helena e Cascais. HELENA Padre, vim reclamar sua proteção.
CASCAIS Minha proteção, Dona Heleninha? Explique-se.
HELENA Padre, eu já estou em idade de casar-me: vinte e quatro anos não são vinte e quatro horas.
CASCAIS Ciente.
HELENA À última vez que estive na corte, quis o destino que me encontrasse com ele.
CASCAIS Ele quem?
HELENA Abel.
CASCAIS Que Abel?
HELENA Um moço que se apaixonou por mim e por quem tive a fraqueza de me apaixonar.
CASCAIS (sorvendo uma pitada) Ciente.
HELENA Desde que voltei para a roça, a sua imagem não me saiu mais do coração. Ai! o padre não sabe o que é o amor!
CASCAIS Tolitur questio
HELENA Amo-o como só se ama uma vez.
CASCAIS Deveras?
HELENA E Abel não tarda aí!
CASCAIS Aí onde?
HELENA Aqui.
CASCAIS Aí aqui?
HELENA Por um desses meios difíceis que só lembram os namorados, Abel conseguiu que uma cartinha me chegasse às mãos.
CASCAIS Por meio de alguma pomba?
HELENA Agora apresentou-se candidato à cadeira de primeiras letras cá da freguesia, fez o exame e apanhou o lugar.
CASCAIS Mas, enfim, o que deseja de mim, Dona Heleninha?
HELENA Sua proteção, repito. Abel é muito pobre e meu padrinho e tutor, como Vossa Reverendíssima sabe, só quer casar-me com sujeito rico. Como Vossa Reverendíssima exerce influência em dindinho, escrevi a Abel, dizendo-lhe que o procurasse.
CASCAIS A quem? ao dindinho?
HELENA Nada! Ao padre. Peço-lhe que seja seu amigo e o apresente a dindinho, já sabe: com alguma recomendação. Ah! ele! sempre ele!.
CASCAIS Ele quem?
HELENA O caiporismo. Já estou ficando tia, e nada de novo!
CASCAIS Tia, Dona Heleninha! A senhora, tia! Distingo!
HELENA Se dindinho não consente em meu casamento com Abel, mato-me!
(Ouve-se rumor fora)
CASCAIS (depois de olhar à direita)
Ai, ai! Quem vem ali! Está na terra aquele vadio?!
HELENA Quem?
CASCAIS O Pedrinho! vem deitar a freguesia de pernas para o ar! e com que súcia! Entre, Senhora Heleninha, entre...
HELENA Não se esqueça de mim, padre...
CASCAIS Hei de fazer o possível. (Helena entra na igreja) Com toda a certeza o Nicolau abana as orelhas, mas tudo se há de arranjar. CENA VII Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e rapazes vadios da freguesia, dos quais um toca flauta e o outro violão. OS RAPAZES (entrando ruidosamente e envolvendo Cascais) Ora viva o senhor vigário! Viva!
I PEDRINHO (a Cascais) Na cidade me aborrecia: as férias cá passar, pois vim, e trouxe em minha Companhia o Juca Sá e o Benjamim (Apresentando Juca Sá e Benjamim a Cascais) O Benjamim e o Juca Sá! que lhos apresente consinta. CASCAIS Grande prazer é o que me dá! Senhores eu tenho a distinta...
PEDRINHO O Benjamim e o Juca Sá! TODOS O Benjamim e o Juca Sá! (Dançam em volta de Cascais) Tsing lá lá, tsing lá lá! Lá rá lá rá, lá rá lá rá! II PEDRINHO Sem mais extensos palanfrórios: estudantes ambos e dois: não passam dos preparatórios... Hão de os fazer lá pra depois... O Benjamim e o Juca Sá! que lhos apresente consinta. CASCAIS Grande prazer é o que me dá! Senhores eu tenho a distinta... PEDRINHO O Benjamim e o Juca Sá! TODOS O Benjamim e o Juca Sá! (Repetem com mais vivacidade as danças) Tsing lá lá, tsing lá lá! Lá rá lá rá, lá rá lá rá!
(No fim das coplas, acha-se de novo Cascais envolvido no grupo) PEDRINHO
Ora ouça o que aqui nos traz, senhor vigário: saltei do trem, há pouco, com os meus dois colegas. Conhece-os? Apresento-lhe os senhores... CASCAIS Basta! basta! Você já mos apresentou por música.
PEDRINHO Havíamo-nos reunido a esta rapaziada, quando vimos de longe negrejar a túnica de Vossa Reverendíssima. – O que é aquilo? – O quê? – Aquele ponto negro? – Aquilo é o vigário! – Ah! é o vigário aqui da freguesia? perguntou o Benjamim. – Como se chama? acrescentou o Juca Sá. – Cascais, respondi eu. – Cascais? o ilustre Cascais?! – É o próprio. – Quero vê-lo de perto! – Queremos vê-lo! – E aqui estamos. (A Benjamim e Juca Sá) Rapazes, aqui têm o vigário! Que tal o acham?
BENJAMIM Bom
JUCA SÁ Muito bom.
CASCAIS Meus bons amigos, a Companhia é muito agradável, mas... Com licença... Os deveres do meu cargo estão a reclamar-me.
PEDRINHO Nada de cerimônias, senhor padre, nada de cerimônias; faça de conta que está em sua casa...
(Cascais entra na igreja)
CENA VIII Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e rapazes.
BENJAMIM Então, não vamos à missa?
PEDRINHO Qual! Vocês ainda não viram a vila. Quero mostrar-lhes todas as curiosidades.
JUCA SÁ Ora! Na matriz é que está o madamismo!
PEDRINHO O madamismo é uma das curiosidades, lá isso é!...
BENJAMIM Nada conheço mais curioso do que a mulher.
PEDRINHO ...Mas teremos tempo de sobra para apreciá-lo, e com todos os ff rr, em casa do Senhor Pantaleão de los Rios.
BENJAMIM Quem é esse Senhor Pantaleão de los Rios?
PEDRINHO É o delegado literário da freguesia: um espanhol que aqui reside há muito tempo; está naturalizado brasileiro, e tem a mania de ser literato.
BENJAMIM Nesse caso, é também uma das curiosidades?
PEDRINHO É. Acaba de promover nada menos que uma festa literária!
BENJAMIM Uma festa literária? Conta-nos lá isso!
PEDRINHO Vocês hão de ver. (Ao da flauta) Ó Frederico, para que horas está marcada a festa em casa do los Rios?
O DA FLAUTA Para o meio dia.
PEDRINHO Já veem vocês que temos tempo de percorrer a vila.
BENJAMIM Siga a passeata!
JUCA SÁ Viva a pândega!
PEDRINHO Olha essa música!
(Os Rapazes tocam. Saída ruidosa. Repetição do último Coro: Tsing lá lá, etc.) CENA IX Abel, com uma mala na mão, acompanhado de um negro que traz um baú na cabeça, depois Cascais. ABEL Então, é esta a casa do vigário? (O negro afirma) Vejamos (Vai bater à porta do vigário)
UMA VOZ DE MULHER Quem é?
ABEL Sou eu. Está em casa o vigário?
A VOZ Não, senhor: está aí apegado na matriz.
ABEL Obrigado. (Dirigindo-se para a igreja) Pelo que vejo há festa hoje por cá...
(Cascais sai da igreja, sem reparar em Abel)
CASCAIS (consigo) Está lá dentro um calor... Engrolei uma missa em três tempos! Já tenho habituado este povo a ouvir missas instantâneas, como as fábulas do Mosquito. Agora está pregado o colega de Itapiri.
ABEL Vossa Reverendíssima não é o vigário cá da freguesia?
CASCAIS (modestamente) À falta de homens...
ABEL Pode dar-me uma palavrinha?
CASCAIS Estou às suas ordens, mas... se se trata de ir confessar alguém muito longe da freguesia... Em dia de festa...
ABEL Não se trata disso. Primeiro que tudo, consinta que este preto vá a deixar em sua casa aquele baú e esta mala...
CASCAIS Mas...
ABEL Descanse. (Dando a mala ao negro) É por uma hora, se tanto. (Ao negro) Leva isso lá para dentro. (O negro entra com a carga em casa de Cascais) Vossa Reverendíssima não recebeu uma cartinha de seu irmão, o Senhor Doutor Cascais?
CASCAIS Uma carta de meu irmão? Há dois meses que não escreve!
(O negro sai de casa de Cascais; Abel vai ter com ele e dá-lhe dinheiro. Sai o negro) CENA X Abel e Cascais. ABEL Veja como são as coisas! Eu queria trazer a carta para trazer em mão própria... É uma carta de recomendação...
CASCAIS Ciente.
ABEL Mas o Doutor Cascais me disse que seria melhor viesse a carta adiante, porque, assim, Vossa Reverendíssima preparar-se-ia para receber-me. Mas não importa!
CASCAIS (apontando para a direita) Olhe, ali vem o caixeiro do agente do correio; talvez traga a carta.
ABEL Queira Deus que assim seja.
CENA XI Os mesmos e um empregado do correio.
O EMPREGADO DO CORREIO (entrando. A Cascais)
Seu padre-mestre, a benção! O patrão manda pedir-lhe muitas desculpas, por não lhe ter mandado entregar logo esta carta. Estava metida em outros papéis e ninguém deu por ela.
CASCAIS Está bom, dê cá. (A Abel) É a história eterna dos nossos correios.
O EMPREGADO DO CORREIO Passar bem, seu padre-mestre.
CASCAIS Viva! (O empregado do correio sai) É, na verdade, letra de meu irmão. Como está ele? Bem? Gordo?
ABEL Bem gordo. (Vendo que Cascais arranca o selo da carta e guarda-o) Para que guarda isso?
CASCAIS Eu faço coleção de selos...
ABEL Ah!
CASCAIS (abrindo a carta) Dá licença?
ABEL Essa é boa...
CASCAIS (lendo, com acompanhamento na orquestra) "Com a saúde que se quer vá te achar esta cartinha, pois vai menos mal a minha, como a de minha mulher. Para essa freguesia nomeado professor, para lá segue o Senhor Abel de Souza Faria. (Abel cumprimenta) A amizade que me tem a apresentar-to me impele: o que fizeste por ele a mim me farás também. Um verdadeiro romance hás de ouvir de meu rapaz, e, nesse ponto, far-lhe-ás o que for a teu alcance. Sem assunto para mais – sou teu irmão obrigado, venerador e criado, Ambrósio Teles Cascais."
(Cessa a música) Quanto ao romance de que fala meu irmão, ciente. A Senhora Dona Heleninha contou-me tudo. Antes desta (mostra a carta) já tinha recebido a sua recomendação.
ABEL E então? O que acha Vossa Reverendíssima de tudo isto? Venço ou não venço?
CASCAIS Não vence. Asseguro-lhe que o senhor não vence. A vitória estará sempre do lado do Nicolau, o padrinho e tutor de Dona Heleninha.
ABEL Mas Reverendo, esse homem não me conhece! Nunca lhe pedi, nem ele me recusou coisa alguma!
CASCAIS Senhor Abel, eu não sou homem de paliativos. Gosto das coisas – anda mão, enfia dedo. Se o senhor for pedir ao Nicolau a mão da afilhada, não ganha terreno; perde, ao contrário: escabreia o homem! O Nicolau de vez em quando retira-se de casa e vai passar um, dois, três dias na fazenda. Deixa a casa entregue à afilhada e a afilhada aos fâmulos.
ABEL Deveras?
CASCAIS Deveras. Na primeira ocasião que se oferecer, tire a menina de casa e traga-a cá, que os caso.
ABEL Mas o Nicolau é capaz de zangar-se com Vossa Reverendíssima.
CASCAIS Deixe estar, eu cá me arranjo... Todo o meu desejo é uni-los e para isso, envidarei bons esforços. Agora, diga-me cá: é certo que faz mestre-escola só para estar perto de sua pretendida?
ABEL Assim foi... Olhe que sempre fui muito atrevido.
CASCAIS Como assim?
ABEL Não entendo patavina da matéria em que fui examinado.
CASCAIS Está brincando. Isso pode lá ser!
ABEL Duvida, Reverendíssimo? Não sabe o que é empenho?
CASCAIS Não sei, não sei! Pois se não fosse ele, o empenho, teria eu esta modesta côngrua?
ABEL Pois o empenho e o amor fizeram responder a perguntas de gramática àquele que nem por fora a conhecia!
CASCAIS Horresco referens!
ABEL Sabe quem foi um de meus examinadores? Adivinhe.
CASCAIS Quem foi?
ABEL (a rir) Seu irmão.
CASCAIS O Ambrósio! Ah! Ah! Ah!... (Dando uma pancadinha no ventre de Abel, e arrependendo-se, gravemente) Oh! Perdão.
ABEL Ouça e pasme.
RONDÓ Quando fiz o meu exame, veio ter comigo o doutor e disse: – Nada de vexame! Sou seu examinador...
Olaré! que os professores assim são feitos é que são! Com tais examinadores fazem sempre um figurão!
– Este nome, ele me disse, que valor é que aqui tem?
Respondi-lhe uma tolice, mas valeu-me um "Muito bem!"
A mais de um adjetivo eu chamei de conjunção; o verbo era substantivo, e o advérbio interjeição!...
Olaré! tantas sandices de mim próprio nunca ouvi! Olaré! mil parvoíces disse, disse e repeti... Repeti, e repeti...
O auditório, de espantado, muita vez fazia assim: (Abre a boca) mas eu, muito sossegado, estava bem senhor de mim! Oh! que exame esbodegado! Oh! que exame malandrim! O doutor estava calmo, mas assim como quem diz: – Ele não enxerga um palmo adiante do nariz... Olaré! que vale o estudo, se o patau consegue tudo o que quer em meu país? Aprovado plenamente, minha carta, enfim tirei, e venho escandalosamente, ensinar o que não sei.
Olaré! minha pequena bem contente vai ficar! Olaré! Abel e Helena afinal vão se juntar!
CASCAIS (apertando-lhe a mão) Muito bem! Fez uma belíssima figura! Os meninos cá da freguesia sabem, felizmente para o senhor, distinguir o adjetivo do substantivo. É o que lhe vale. Aprenderá com eles... (Aparece o Filomeno de novo na torre, e põe-se a repicar) Hein? Está acabado o sermão? Depressa! (A Abel) Vai ter o prazer de ver Dona Heleninha.
(Música na orquestra; saem os que tinham entrado na igreja, dispersam-se e desaparecem. Helena sai por último, acompanhada sempre por Marcolina) CENA XII Cascais, Abel, Helena, Marcolina e povo. CASCAIS (baixinho a Abel, apontando para Helena) Audaces fortuna juvats!
(Entra em sua casa. O povo tem desaparecido completamente) CENA XIII Abel, Helena, Marcolina depois Cascais. ABEL (correndo para Helena) Helena!
HELENA (tomando-lhe as mãos) Abel! (Permanecem embevecidos, a olhar um para o outro)
MARCOLINA (depois de alguma pausa) Iaiá! (Aparece Cascais à janela de sua casa)
HELENA Abel!
ABEL Helena!
CASCAIS (consigo) A bela Helena... há uma tragédia com este título.
MARCOLINA Iaiá, vamo prá casa.
HELENA Vai esperar ali na esquina.
MARCOLINA Depois sinhô velho me ralha...
HELENA Vais ou não vais?
MARCOLINA Tá bom! depois não quero cumo-chama. (Sai) CENA XIV Abel, Helena e Cascais, à janela. ABEL Finalmente estamos sós.
HELENA Não imaginas como estou satisfeita!
ABEL Mas a minha presença não basta, minha boa Helena... Teu padrinho, segundo me informou nosso reverendo protetor, é o homem mais inexorável desta vida... Em vez de buscar ardis que podem falhar, o melhor seria darmos logo... o golpe de estado!
HELENA Como o golpe de estado?
ABEL A fuga!
HELENA A fuga!
ABEL Fujamos, sim! Fujamos para bem longe, onde não nos possa chegar aos ouvidos a maldição importuna que ele te há de lançar! gozemos de nosso amor no meio das florestas, ao ciciar da brisa, ao arrular da rola, ao murmurar da cascata...
CASCAIS (consigo) Tytire, tu patulae recubans...
ABEL Fujamos, sim! Oh! não me digas que não! Não tragas o desespero a este coração que é teu, e que despedaçarias, se o contrariasses, Helena!
HELENA Mas o que dirá dindinho, a quem devo tantos favores?... a única pessoa que me tem valido neste mundo, e que, apesar da vontade que quer exercer em meu destino, ama-me como sem fosse meu pai?
ABEL E o que dirá teu amante? O que dirá aquele que, por teu respeito, deixou os prazeres ruidosos da corte, para sepultar-se na roça?... Que, por teu respeito, expõe-se a apanhar uma carga de chumbo, ou pelo menos, uma dita de pau, de algum malfeitor, peitado por teu dindinho?... Que, por teu respeito, confundiu advérbios com substantivos diante de um auditório, que sabia distinguir substantivos de advérbios?...
HELENA Meu Abel!
ABEL Oh! mas o que importa? Eu, nesse momento, só pensava em ti. Quem pode saber gramática, quando sente o coração invadido pelo amor? Quem pode amar quando tem a cabeça sublocada pela gramática?
CASCAIS (à parte) Coitadinho...
HELENA Como és bonito, Abel!
ABEL (com faceirice) Helena!
CASCAIS (arremedando-o) Ai, gentes!
HELENA Deixa ver-te de perfil... Vira-te um poucochito!... De três quartos agora... Como és lindo, meu bem! Agora do outro lado... Este sinalzinho dá-te uma graça... Levanta a cabeça... Não abras a boca... Admirável!
ABEL Mas, afinal de contas, em que ficamos?
HELENA Ficamos em que estou por tudo que quiseres.
ABEL Bem, faremos por afastar teu padrinho, e, vendo-o pelas costas...
HELENA O golpe de estado!
CENA XV Os mesmos e Marcolina.
MARCOLINA Iaiá, Iaiá, vamos embora!
HELENA Tens razão, Marcolina. (Dá a mão a Abel)
ABEL Até sempre, Helena... (Pausa) Adeus!
HELENA (vai saindo e volta) Olha: se a desgraça...
MARCOLINA Iaiá!
HELENA (de mau humor, a Marcolina) Espera, diabo! (A Abel) Olha: se a desgraça for persistente...
ABEL Morramos juntos!
(Helena retira-se, acompanhada de Marcolina. Abel entra em casa de Cascais, que fica só, à janela)
CASCAIS (levantando as mãos para o céu) Improbus amor, quod, mortalia pectora cogis! (Mutação)
QUADRO II
CENA ÚNICA Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá, e povo, depois sucessivamente, Góis & Companhia, Alferes Andrade, Nicolau, Helena, Pantaleão, quatro músicos italianos, depois Abel, e, afinal um Feitor. CORO E MARCHA Chega, chega, minha gente, a casa do inteligente literato Pantaleão! Muita comida e bebida (Isto é coisa decidida!) deve haver nesta função.
(Durante o Coro colocam dois negros algumas cadeiras à direita) I GÓIS & COMPANHIA (entrando) Somos Góis & Companhia qualquer mais cotó! GÓIS Nos vimos um bom dia lá no Cabrobó. COMPANHIA Desde então – quem tal diria? somos dois e um só! CORO Eis o Góis & Companhia, qualquer mais cotó!
II ALFERES ANDRADE (entrando) Eis o Alferes Andrade que vem se mostrar! Incompatibilidade entre o militar e o escritor, em verdade, ninguém pode achar!
CORO Eis o Alferes Andrade, bravo militar!
III NICOLAU (entrando com Helena, que vai se sentar à direita) Eis o padrinho de Helena! Eis o Nicolau! Quero casar a pequena porém, sem... (Sinal de dinheiro) babau! Mas enfim não vale a pena me fazer de mau. (Senta-se ao lado de Helena) CORO Eis o padrinho de Helena! Eis o Nicolau! PANTALEÃO (entrando) Este pimpão literato é o Pantaleão! Vou dar sem espalhafato, uma reunião, só para ver se combato o ignorantão! CORO Este pimpão literato é o Pantaleão. REPETIÇÃO DO CORO Chega, chega, minha gente, etc.
(Durante o Coro, tomam todos lugares. O povo e os músicos no fundo. Entra Abel e confunde-se com o povo) PANTALEÃO Está aberta a sessão! Tem a palavra, como presidente desta reunião, meu amigo, compadre...
PEDRINHO ...e quase parente...
PANTALEÃO ...Senhor Nicolau Madureira.
NICOLAU (ergue-se. Pausa) Meus senhores e minhas senhoras... Não! Quero dizer: Minhas senhoras e meus senhores... (As mulheres primeiro, depois os homens)... eu não estou acostumado... eu não tenho o hábito... eu não tenho o hábito de falar em público... (Por esse lado nunca irei à glória)... Meus senhores... Minhas senhoras e meus senhores... Não!... meus... minhas... eu não tenho o hábito de falar em público... de falar em público... em público...
ALFERES ANDRADE Está bom! Já se sabe!
NICOLAU Minhas senhoras e meus senhores, ei não tenho o hábito de falar em público... eu não tenho o hábito... (Hilaridade. Nicolau protesta) O hábito da rosa! (Baixo a Helena) Isto foi para não dizer sempre a mesma coisa... (Aos circunstantes) Eu não tenho a prática... (Satisfeito por ter achado outro termo) A prática! a prática!... Eu não tenho a práticas das lides oratórias... Consenti, minhas senhoras e meus senhores, que eu presida sem falar e que aqui o compadre Pantaleão fale sem presidir. (A Pantaleão) Compadre, restituo-lhe a palavra! Mande vir um copo de água para molhar a minha. (Pantaleão faz um sinal a um negro que sai. Nicolau senta-se. Silêncio)
PEDRINHO Fale o dono da casa.
TODOS Apoiado.
(O negro volta; traz uma bandeja com dois copos d’água. Nicolau serve-se de um e Pantaleão toma conta de outro)
PANTALEÃO (erguendo-se e deitando o copo sobre a cadeira em que estivera sentado) Povos desta freguesia, não é a uma festa vulgar que aqui vindes assistir! Não se trata de batizar alguma criança, isto é, de encher o pandulho à minha custa! (Bebe um gole de água)
PEDRINHO Mesmo porque, se houvesse rega-bofes, a entrada não seria franca...
BENJAMIM Não interrompas o orador! Adiante!
PANTALEÃO Este dia é especialmente consagrado às coisas da inteligência! Nós temos capitalistas, proprietários, fazendeiros, negociantes, etc. mas ah! não temos literatos!...
TODOS Apoiado! Apoiado!
PANTALEÃO Esta freguesia embrutece-se! (Bebe um novo gole d’água)
TODOS Apoiado! Apoiado!
PEDRINHO Viva a adesão!
PANTALEÃO (apontando para Pedrinho, Benjamim e Juca Sá) Aqui estão estes senhores: três estudantes, isto é, três homens do futuro! Os moços que a pátria contempla com alguma esperança, que vivem mais em contato do que nós com a literatura, que são da corte, que o digam: Meninos... mancebos! em algum dos que aqui estão achais uma fisionomia que indique as longas noites de insônia passadas na Companhia amiga de um bom livro?
PEDRINHO (a Benjamim e Juca Sá) Vamos procurar! (Examinam, cada um de seu lado, as caras dos circunstantes e voltam a seus lugares. O Alferes Andrade fica muito despeitado) O senhor vigário é o que tem a melhor cara.
BENJAMIM Nem uma olheira!
JUCA SÁ Nada!
PANTALEÃO E, caramba, isto é uma pouca vergonha!... (Com o caramba! de Pantaleão Alguns se assustam. Góis & Companhia, que estavam a cochilar, caem sentados. O Alferes desembainha instintivamente a espada. Restabelece-se o silêncio) A fim de descobrir entre nós homens de talento foi que instituímos este concurso. Todos, sem distinção alguma, serão igualmente admitidos. (Bebe outro gole d’água) São três as provas de hoje: decifrar uma charada, responder a uma pergunta enigmática e glosar um mote. Quem glosar o mote, responder à pergunta e decifrar a charada, receberá das mãos da Senhora Dona Helena, este livro... (Entrega a Helena um exemplar impresso da Filha de Maria Angu)
PEDRINHO E que livro é esse? Dá licença? (Toma o livro e lê o título) A Filha de Maria Angu.
ALFERES ANDRADE Ora via! Uma paródia! uma paródia!...
NICOLAU E o que tem que seja uma paródia?
ALFERES ANDRADE Vi-a representar... É a maior bagaceira... (Com energia, puxando pela espada) E não me digam que não é!...
NICOLAU Quem foi que disse, Seu Alferes? Guarde a durindana, homem!
ALFERES ANDRADE É assim que o Senhor Pantaleão de los Rios quer fazer literatos: dando-lhes de presente A Filha de Maria Angu!
PEDRINHO Não seja tolo, Seu Alferes!
ALFERES ANDRADE (tirando a espada) Isso é sério?
PEDRINHO Muito sério!
ALFERES ANDRADE (embainhando a espada) Eu logo vi! Comigo ninguém brinca...
NICOLAU Ora ali está uma espada de que não se pode dizer: – Nunca saiu da bainha.
PANTALEÃO Eu continuo! Meus senhores, ânimo! Puxai pela inteligência! Disputai gloriosamente A filha de Maria Angu! (Aos músicos) E vós, ilustres maccaroni, fazei vibrar as cordas de vossas harpas e rabecas! (Bebe água)
TODOS Apoiado! A música! A música!
(A música toca desafinadamente)
NICOLAU Excelente orquestra, compadre!
PANTALEÃO Meia dúzia de maccaroni, que estão de passagem na freguesia... Tocam regularmente... (Outro tom) Vamos principiar a luta da inteligência. (Tirando do bolso um periódico) Neste número da Gazeta de Notícias acha-se a charada. (Tirando outro periódico) Neste, a decifração. (Dando uma das gazetas a Nicolau) Leia compadre: é a que está marcada à margem.
NICOLAU (lendo) “Assuntos do dia... Houve grande rolo ontem na Rua de São Jorge... A feiticeira vermelha...” Não é isso! “O nosso amigo...” Onde está? Ah! “Charadas”, cá está ela! (Lendo) “Uma, três. Tomo esta fazenda, sento-me nela; tem graça!”
PEDRINHO Convém observar que a charada é da novíssima reforma; portanto “Tomo esta fazenda"...
ALFERES ANDRADE (triunfante) Eu sei, eu sei!... Eu sei o que é!...
PANTALEÃO (em tom de zombaria) Então você sabe o que é?
ALFERES ANDRADE Sei! quem é que diz que não sei?... (Tirando meia espada) “Tomo esta fazenda... (Aponta com malícia para Helena) Ora, quem há de ser a fazenda?
PANTALEÃO Isto é de mau gosto, seu Alferes. Está enganado! Vamos: “Toma esta fazenda, uma...”
GÓIS Uma... uma o quê?
PANTALEÃO Uma sílaba! É boa!
GÓIS O quê? a sílaba?
COMPANHIA Não; ele disse: "É boa", assim como quem diz: "É burro".
PANTALEÃO Tomo esta fazenda, sento-me nela, três...
GÓIS Três o quê?
COMPANHIA Cala-te.
PANTALEÃO O conceito: – Tem graça...
GÓIS Não acho.
NICOLAU (repetindo, de mau humor) “Uma, três. Tomo esta fazenda e sento-me nela; tem graça!”
PANTALEÃO Vamos! vamos! É matar no ar.
GÓIS Mosca!
COMPANHIA Pilhéria!
ALFERES ANDRADE Paródia
PANTALEÃO Fala cada um por sua vez! Quem disse – mosca?
GÓIS Fui eu.
PANTALEÃO Como é que explica?
GÓIS O senhor disse que era de matar no ar. O que é que se mata no ar? (Como quem mata uma mosca) Mosca...
NICOLAU Mosca me parece você.
PANTALEÃO Quem disse pilhéria?
COMPANHIA (timidamente) Fui eu, mas retiro a expressão.
ALFERES ANDRADE Eu disse paródia! E ele é! O que é que tem graça? Paródia! (Murmúrios)
PANTALEÃO Venham outros! Então? Ninguém?
(Todos se põem a pensar. Cascais, Pedrinho e Pantaleão são os únicos que observam)
ABEL (apresentando-se) Dá licença?
PANTALEÃO Pois não! A entrada é franca! (À parte) Quem será?
NICOLAU Decifrou a charada? (À parte) Quem será?
ABEL Sim, senhor. Tomo esta fazenda: brim; sento-me nela, cadeira...
ALFERES ANDRADE (interrompendo) Brincadeira! Brincadeira! Achei!
ABEL Brincadeira, sim.
ALFERES ANDRADE (triunfante) Fui eu que disse!
PANTALEÃO Seu Alferes, está ficando insuportável! Cale-se!
ALFERES ANDRADE (tirando a espada) Insuportável! retire a expressão!
PANTALEÃO Ora, deixe-se disso.
ALFERES ANDRADE (tranquilamente) Está bom. (Guarda a espada)
HELENA (satisfeita, à parte) Foi ele, foi ele!
NICOLAU O que tem você, menina? Parece estar sentada em alfinetes!
PANTALEÃO Toque a música! (Música dos italianos) Vamos agora à pergunta enigmática. (Dando um papel a Nicolau) Leia, compadre.
NICOLAU (lendo) “Que diferença há entre o senhor vigário e um rei?”
ALGUNS Nenhuma! Nenhuma!
CASCAIS Como nenhuma?
ALFERES ANDRADE (triunfante) Nenhuma! nenhuma!... Desta vez achei!
GÓIS Eu sei: é que o senhor vigário diz missa e um rei ouve.
COMPANHIA É que um rei é barbado e seu vigário não é. (Aparece Abel)
HELENA Ele! ele!...
NICOLAU O que é isso, menina? (A Abel) O senhor sabe a diferença?
ABEL Sim, senhor.
NICOLAU (à parte) Este diabo tem cabeça!
ABEL Deixai-me dizer-vos, senhores, que a diferença é bem certa: o rei tem c’roa fechada e o padre tem c’roa aberta.
TODOS Muito bem! Muito bem! (Abel é cumprimentado)
PANTALEÃO Um belo improviso!
PEDRINHO Toquem a música. (Os italianos obedecem)
PANTALEÃO Agora o mote: (Dando outro papel a Nicolau) Compadre, leia...
NICOLAU Eis o mote. (Lendo) “Meu bem será sempre meu.”
ALFERES ANDRADE Ora, isto é fácil! Eu já adivinhei!
PEDRINHO Adivinhou o quê, seu Alferes?
ALFERES ANDRADE Adivinhei o mote!
PEDRINHO (à parte) Forte bruto! (Alto) Pois diga.
ALFERES ANDRADE (a Nicolau) Como é a adivinhação?
NICOLAU Que adivinhação?
ALFERES ANDRADE O mote.
NICOLAU (maçado) “Meu bem será sempre meu.”
ALFERES ANDRADE (depois de repetir, com ênfase) Eu juro por tudo quanto é mais sagrado eu juro por meu pobre pai que há muito já morreu que meu bem será sempre meu!
PEDRINHO Pode limpar as mãos à parede!
PANTALEÃO Isso não são versos, meu amigo!
ALFERES ANDRADE Então o que são?
PEDRINHO Ora cale-se!
(Gesto do Alferes Andrade)
COMPANHIA Dá licença?
PANTALEÃO Diga.
COMPANHIA (com lirismo) Na brisa dos meus ardores, dos belos anjos de Deus, cai um fonte nas flores, meu bem será sempre meu.
PANTALEÃO (depois de uma pausa. A Nicolau) Você entendeu, compadre?
NICOLAU Homem, não entendi... mas os versos me parecem harmoniosos...
PANTALEÃO Tenha paciência, repita.
COMPANHIA (com certo receio) Na brisa dos meus ardores dos belos anjos de Deus
PEDRINHO Cai uma fonte nas flores meu bem será sempre meu. É harmonioso, mas não tem sentido. Você há de fazer escola, você há de fazer escola!
GÓIS (avançando timidamente) Brincadeira!
PANTALEÃO Saia, saia! (Abel aparece)
HELENA Ele outra vez! Ele!
NICOLAU O que é isto, menina?
ABEL Dirijo-me ao Senhor Nicolau Madureira e a esta interessante senhora...
HELENA Fale, fale!
NICOLAU Menina!
ABEL ...e digo: Que importa um tutor das dúzias um desalmado tutor as suas bênçãos recuse-as a meu puro e casto amor, se no peito casto e puro um coração tenho eu, porque baixinho murmuro: – no presente e no futuro meu bem será sempre meu!
TODOS Muito bem! muito bem!
HELENA (depois das mais) Muito bem!
NICOLAU Menina!
PANTALEÃO O que diz dos versos, compadre?
NICOLAU Homem, aquela alusão aos tutores... Isso quanto à essência. Quanto à forma, não há o que se lhe diga.
PANTALEÃO (dirigindo-se a Abel) Dou-lhe sinceros parabéns, senhor... Como se chama?
ABEL Abel de Souza Faria.
PANTALEÃO Ah! então é o professor, cuja nomeação me foi comunicada, como delegado literário que sou?..
ABEL Sou eu mesmo.
PANTALEÃO Então, viva o novo professor!
TODOS Viva! viva! Toca a música! Viva! (Final) CORO Bravo, meu caro professor! Do prêmio foi merecedor! Bravo, meu caro professor.
ALFERES ANDRADE (com raiva) Eu fiz figura má...
PANTALEÃO Caramba! me venceu!...
ABEL O prêmio! Venha o prêmio! O vencedor fui eu!
TODOS Venceu!
HELENA (à parte) Mete Abel, por ser tão belo, a todos num chinelo!
ABEL Venha o meu prêmio!
TODOS Venha esse prêmio! sem mais proêmio!
HELENA Pois um ditado, muito acertado, o prometido diz que é devido.
TODOS Demos-lhe o prêmio!
NICOLAU (amável a Abel) Há de deixar que o presidente sinceramente o cumprimente... Folguei de descobrir que tem ilustração quem vem distribuir a pública instrução nesta povoação. (A Helena) Olha esse prêmio que saia!
HELENA O prêmio aqui está! (Nicolau tropeça) Não caia!
TODOS (enquanto o livro é entregue por Helena a Abel) Bravo, meu caro professor, etc.
NICOLAU (a Abel) Às suas ordens nossa casa está Sem cerimônia, pois não há senhoras, vá hoje mesmo jantar lá.
HELENA (com sentimento) Nós jantamos às três horas... Para a mesa vamos às três horas...
ABEL (cortesmente) Eu pontual serei; às três horas não faltarei.
HELENA (à parte) Ai! que prazer o meu!... Jantar ao lado seu!
CASCAIS (baixo a Abel) Então, está contente?
ABEL (baixo a Cascais) Mais estaria, certamente, se o Nicolau ‘stivesse ausente! De nós afaste este sandeu, conforme já me prometeu.
CASCAIS (no mesmo) Ainda não; depois... Não passe de nós dois...
(Ouvem-se fora vozes confusas e tropel de animal)
PANTALEÃO Estranhos ruídos. milhões de alaridos a nossos ouvidos eu sinto morrer!
TODOS Nós todos ouvimos, nós todos sentimos, mas não descobrimos o que possa ser!
O FEITOR (entrando pelos fundos) Eu caio aqui como uma bomba para trazer notícia má! Seu Nicolau, não faça tromba!
TODOS Vamos ouvir... O que será?!
NICOLAU (declamando) É o Feitor lá da fazenda!
O FEITOR Vim a galope de longe anunciar um caso de espantar! Oh! que desgraça horrenda! Houve um levantamento e muito violento...
NICOLAU (declamando) Aonde? quando, homem de Deus?
O FEITOR Esta manhã, lá na fazenda!
NICOLAU Bom! vou partir pra fazenda!
HELENA Dindinho, vá para a fazenda!
ABEL (a Cascais) Então? Que diz? Nem de encomenda!
NICOLAU Que maço! partir pra fazenda!
ALFERES ANDRADE Vá s’embora pra fazenda!
TODOS (cercando Nicolau) Vá pra fazenda! Vá, vá! vá já!
HELENA Vá já, meu dindinho; é bom o caminho... (Consigo) Ah! ah!... Vai-se o dindinho de Helena; e ela vai ficar... Ai! com certeza a pequena há de aproveitar Sim, porque não vale a pena desaproveitar Vai-se o dindinho de Helena Helena vai ficar!
TODOS (a Nicolau) Vá pra fazenda! Vá, vá! Vá já!
ABEL Senhor, atenda: Vá pra fazenda! Não se arrependa!
TODOS Vá sem tardar, sem demorar! Corre! corre, ó Nicolau! Segue! segue o teu Feitor! Corre, corre tudo a pau! Volta, volta vencedor!
(Durante o Coro, carregam Nicolau com um grande capote, mala, guardachuva, botas de montar, chicote e chapéu de palha. Despedidas de Nicolau e Helena)
ATO II
QUADRO III (O VÍSPORA) Sala de engomar em casa de Nicolau. Ao fundo, porta, deitando para o, quintal, e no meio de um parapeito com janelas envidraçadas. Portas laterais. Canapé à direita. Na tábua de engomar, ao fundo, está estendida uma peça de roupa branca. Cadeiras. É noite. CENA I Helena, Marcolina e moças. CORO DAS MOÇAS Por que razão, ó Dona Helena, tão triste está que causa pena? Diga-nos já, e ao seu penar talvez possamos consolar.
MARCOLINA (deixa o seu trabalho e vem também para junto de Helena) Iaiá, não ‘steja assim tão triste.
HELENA Meu Deus! Meu Deus! o meu coração não, resiste a tamanha dor a tanto dissabor! Eu desejava neste instante a solidão corroborante; portanto, se de mim tiverem dó, dois minutos ou três deixem-me só...
MARCOLINA Mas quem ‘sta assim amargurada deve ser acompanhada.
CORO DAS MOÇAS Fique só, já que não quer, ó Dona Helena nos confiar sua pena. Sim, como quer sozinha estar, vamos embora sem tardar.
(As moças retiram-se pela esquerda. Marcolina põe-se de novo a engomar, cantarolando alguma cantiga da roça) CENA II Helena e Marcolina. HELENA Marcolina?
MARCOLINA (deixando o trabalho) Iaiá?
HELENA Cala-te!
MARCOLINA Iaiá não vai pra sala?
HELENA Não.
MARCOLINA Iaiá, isso não é bonito! As moças vêm visitar vossem’cê e vossem’cê pede a elas que se retire! Os brancos tudo rumado lá na sala e vossem’cê não vai pra lá! Ué!
HELENA Quem está lá dentro?
MARCOLINA Seu Pantaleão, Seu Arfere, Seu Pedrinho, aqueles dois estudante da cidade, aqueles dois lojista da rua do Imperadô, e que andam sempre cumo unha com carne, e mais um punhado deles. Tá tudo na sala, e vosssem’cê metida na sala do engomado, no lugar das pretas...
HELENA Essa gente toda, se vem aqui, não é por minha causa, mas por amor do víspora.
MARCOLINA Vossem’cê deve ir conversar com eles, porque sinhô velho tá na fazenda.
HELENA Cala-te.
MARCOLINA Iaiá, arrefrita...
HELENA Essa gente toda me aborrece...
MARCOLINA Mas o que quer?
HELENA Se me favorecessem com sua ausência...
MARCOLINA Sinhô véio, quando vortá, não há de gostá dessa farta de cumo-chama.
HELENA Não quero sentenças, ouviu?
MARCOLINA Tá bom, tá bom...
HELENA Vá para a cozinha!
MARCOLINA (à parte) Cabeça dela tá virada por aquele marreco dess’outro dia... (Vai saindo, e olha para o quintal) Então? Quando uma coisa me parpita... (Alto) Iaiá?
HELENA O que é? Ainda aí estás?
MARCOLINA Faça favô de vim na jinela; veja quem tá ali...
HELENA (erguendo-se pressurosa) Aonde? aonde?
MARCOLINA No quintal... (À parte) O moleque sartou pelo muro...
HELENA (chegando-se à vidraça) Quem é? (Vendo) Ah!...
MARCOLINA O que Iaiá vai fazê?
HELENA (consigo) Meu Deus! meu Deus! dai-me forças!
MARCOLINA Iaiá vai mandá ele entrá?
HELENA (no mesmo) Ó céus! Não posso sustentar por mais tempo esta luta entre o amor e o dever... E nada me lembra... nada me ocorre... Não tenho uma pessoa que me ouça, que me aconselhe... (Com uma ideia) Ah!
MARCOLINA (à parte) Hoje é dia dos ah! Iaiá já sortou dois...
HELENA Vá ao quarto de dindinho e traze o seu retrato, que está pendurado na parede.
MARCOLINA O retrato?
HELENA Sim! Avia-te!
MARCOLINA Mas o que Iaiá vai fazê com o retrato de sinhô véio?
HELENA Não tenho que dar satisfações! Vá e volte já!
MARCOLINA Tá bom, tá bom; (à parte) um... (Sai)
CENA III
HELENA Talvez que, tendo presente a imagem daquele que eu desejava estivesse presente, possa evitar as seduções daquele que eu estimava fosse o meu futuro. Ah! meu Deus! fiz um trocadilho no estado em que me acho! CENA IV Helena e Marcolina. MARCOLINA (trazendo um enorme retrato de Nicolau) Aqui está!
HELENA Bom. Deita-o sobre aquela cadeira. (Marcolina obedece) Fecha aquela porta.
MARCOLINA (hesitando) Pra quê, Iaiá?...
HELENA (de mau humor) Fecha aquela porta!
MARCOLINA Tá bom... (Vai fechar a porta da esquerda)
HELENA Retira-te.
MARCOLINA O que é que Iaiá vai fazê?
HELENA Não é da tua conta.
MARCOLINA Mas sinhô véio...
HELENA Já viram desavergonhada mais teimosa?
MARCOLINA Iaiá vai pintá o sete, e depois...
HELENA Hein?
MARCOLINA Tá bom; depois não quero cumo-chama comigo. (Sai) CENA V
HELENA (toma nas mãos o retrato do padrinho e, depois de contemplá-lo largo tempo, exclama com entonação dramática) Ó meu querido, meu venerado! (Outro tom) Este retrato está muito bem apanhado... Para macaco falta-lhe... Não lhe falta nada... (Tragicamente) Ó meu venerável padrinho, por que te ausentaste? Não me deixaste outra guarda mais do que Marcolina e minha consciência... Tanto minha consciência como Marcolina são fracas, e meu coração é tão forte! Oh! eu também fazia Coro com aquela gente! Oh! eu também te dizia. – Vá pra fazenda! vá pra fazenda! Quanto me pesa haver contribuído também para tua ausência inoportuna... (Vai colocar o retrato onde estava)
COPLAS
I Dindinho foi para a fazenda: deixou-me ficar sobre mim... Queira Deus que não se arrependa de ser tão imprudente assim! Por isso que vítima imbele de um grande amor, pois sou mulher, se vejo Abel, fujo com ele, fujo com ele, haja o que houver, diga dindinho, o que disser (Dirigindo-se ao retrato) Por quê, por quê dindinho, vossam’cê sozinha me deixou aqui me abandonou?...
II O ser honesta e ter bom senso é minha preocupação; mas ao romance é bem propenso meu machucado coração.. Não devo, sei, fugir de casa de quem me adora como pai; mas sinto lacerante brasa que no meu peito ardente cai... Amor me chama, amor me atrai Por quê, por quê, dindinho, vossam’cê sozinha me deixou, aqui me abandonou? Agora sinto-me forte. Pode vir, Senhor Abel, pode vir! (Apontando para uma trouxa que deve estar debaixo do canapé) Ah! se ele soubesse que já tenho a trouxa pronta... (Abre a porta do fundo e acena para fora) Ele aí vem... coragem! CENA VI Helena, Abel, depois Marcolina. ABEL (apertando com efusão as mãos de Helena) Como estás, meu anjo?
HELENA Abel, que imprudência!
ABEL Não me crimines: estou autorizado por ti... (Pausa) Então? estás pronta?
HELENA (estremecendo) Pronta? para quê?
ABEL Para... Faze-te agora de esquerda...
HELENA Não me lembro...
ABEL Helena?
HELENA Abel?
ABEL Estás zangada comigo?
HELENA Não.
ABEL Só fala por monossílabos! (À parte) É a única coisa que sei de gramática... (Alto) Não temos tempo a perder... Vamos!
HELENA Meu Deus!
ABEL Hesitas?
HELENA Não sei...
ABEL (depois de pequena pausa) Helena, a ocasião não pode ser mais favorável. Arranja a trouxa... Ainda não arranjaste a trouxa?
HELENA (estremecendo e olhando de soslaio para trouxa) Mas...
ABEL Pois arranja depressa a trouxa e partamos. Daqui a meia hora temos um trem.
HELENA Meu amigo...
ABEL Tens escrúpulos?
HELENA Ouve cá: não seria melhor revelarmos o segredo do nosso amor a dindinho? (Aponta para o retrato)
ABEL (dando com o quadro) Ah! pois não! É o que menos custa! (Tirando o chapéu e com toda a cortesia, ao retrato) Meu caro Senhor Nicolau, participo-lhe que eu e a senhora sua afilhada nos amamos... e fugimos...
HELENA Não zombes, Abel! Quem sabe o resultado de uma revelação que lhe fizéssemos? Donde não se espera...
ABEL (enterrando o chapéu na cabeça e em tom resoluto) Dize-me cá: já te achaste algum dia em presença de um homem que trouxesse uma resolução?
HELENA Metes-me medo!
ABEL Pois olha: eu trouxe uma resolução, entendes? Não te digo mais nada... HELENA Abel, se te mereço piedade...
ABEL Vamos! Arranja a trouxa!
HELENA Ah! mas não serás capaz...
ABEL Tu sabes que sou muito atrevido! Quem se apresentou candidato à cadeira de primeiras letras desta freguesia, sem saber pitada de gramática, é capaz...
HELENA (assustada) De quê?
ABEL Vais ver! (Avança para ela)
HELENA (evitando-o, a gritar) Marcolina! Marcolina!...
MARCOLINA (entrando) Iaiá chamou?
HELENA (a tremer) Nada é... nada é...
ABEL (descobrindo-se)
Vejo que me enganei... Supus que sua palavra não voltava atrás... Adeus! Oh! mas ainda me resta um meio...
HELENA Qual é?
ABEL Veremos... (Cobre-se e sai resolutamente)
HELENA (depois de pequena reflexão, como que caindo em si) Marcolina! Marcolina! vai ter com ele!
MARCOLINA Com ele quem?
HELENA Com esse moço que acaba de sair daqui; chama-o!
MARCOLINA Iaiá!
HELENA Dize-lhe que já tenho a trouxa pronta...
MARCOLINA Ué!
HELENA Vai depressa!
MARCOLINA Nada! Não me meto em fundura! Não quero cumo-chama comigo. (Música) Olhe: aí vem os brancos... Vêm pro víspora.
HELENA Malditos amoladores! Não podem jogar em outro lugar! Vai abrir a porta.
(Marcolina abre a porta da esquerda, vai colocar-se ao fundo da cena. Helena senta-se no canapé) CENA VII Helena, Marcolina, Pantaleão, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e visitas. (Marcha do Víspora)
CORO Joguemos por distração, mas... pelo sim, pelo não, companheiros folgazões, paguemos só dois tostões por cartão tão tão tão tão!
(O Alferes Andrade tem trazido grande quantidade de cartões para o jogo do víspora. Trazem a mesa para centro da cena e preparam o jogo) CASCAIS (aproximando-se de Helena) O que é que tem, Dona Heleninha? Tão retirada hoje...
HELENA Desculpe, se não apareci. O padre bem sabe...
CASCAIS (em voz muito alta) Sei! Uma forte enxaqueca... (Baixinho) Em que ficaram?
HELENA Não tenho ânimo; é-me impossível abandonar assim a casa de dindinho...
CASCAIS Está bem, minha senhora: ad impossibilia nemo tenetur...
HELENA Dê-me um conselho, padre.
CASCAIS Já lhe dei um conselho; não lhe digo mais nada, porque conheço Nicolau como as palmas de minhas mãos...
HELENA Aí, padre! Vossa Reverendíssima nunca amou!
CASCAIS De mínimis non curat proetor...
PANTALEÃO (sentando à mesa) Já vieram notícias do compadre?
CASCAIS Cá está ele... (Pega no retrato e vai colocá-lo a um canto da cena)
HELENA Nenhuma.
PEDRINHO É sinal que não há novidade.
ALFERES ANDRADE (impaciente) Começa o víspora ou não?
BENJAMIM Ao que parece, o Senhor Alferes dá o beicinho pelo víspora.
ALFERES ANDRADE E o que lhe importa a você, seu pelintra?
BENJAMIM Não seja malcriado!
ALFERES ANDRADE (tirando a espada) Até este fedelho!
BENJAMIM (fazendo-lhe uma careta) Uh!
ALFERES ANDRADE (guardando tranquilamente a espada) Vamos ao víspora. (Hilaridade) Cada cartão custa dois tostãos.
PEDRINHO Tostãos! Ah! Ah! Ah!
ALFERES ANDRADE Tostões! Arre! Não puxo pela espada porque estou com as mão ocupadas. (Procede à separação dos cartões) Quantos quer, seu vigário?
CASCAIS Se quer que lhe fale com franqueza, Senhor Alferes: eu não gosto de jogar com o senhor...
ALFERES ANDRADE Por quê? Por quê?
CASCAIS O outro dia, no solo, o senhor foi mão três vezes seguidas! Eu não disse porquê, enfim...
ALFERES ANDRADE Então, cuida que para ser mão só padre? Quantos cartões quer?
CASCAIS De cá lá dez. Aqui tem dois mil réis. (Recebe os cartões e paga-os – mão lá, mão cá)
PANTALEÃO Dê-me outros dez. (Paga e recebe-os)
PEDRINHO Quem me empresta dez tostões? (Fazem-se todos desentendidos) Quem me empresta dez tostões? (Aproxima-se de Helena, que está pensativa) Ó Dona Helena, a senhora me empresta dez tostões?
HELENA (despertando de sua cisma) Hein?
PEDRINHO (impaciente) A senhora me empresta dez tostões?
HELENA Empresto. (Dando-lhe uma nota) Aqui tem dois mil réis; com os outros dez tostões compre cinco cartões para mim. (À parte) Talvez me distraia.
PEDRINHO (ao Alferes) Dê cá cinco. (Recebe e paga) Quantos queres, ó Juca Sá?
JUCA SÁ Dez. (Compram, etc.)
GÓIS (ao sócio) Quantos queres?
COMPANHIA Quantos quiseres.
GÓIS E quantos hei de querer?
COMPANHIA Dez para cada um.
GÓIS Então dez e dez... dez e dez são... (Calcula)
COMPANHIA (contando nos dedos) Dez, onze, doze, treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte, vinte e um...
GÓIS Já basta! Dez e dez são vinte. (Ao Alferes) Dê cá vinte, Seu Alferes Pancada... quero dizer, Andrade.
ALFERES ANDRADE (tirando meia espada) Eu dou-lhe mais são vinte espadeiradas! (Guarda a espada tranquilamente e dá os cartões) Dê cá quatro mil réis. (Góis paga. Acham-se todos munidos dos competentes cartões) Quem mais quer? quem mais quer?
PEDRINHO Já todos tem... Vamos com isso!
ALFERES ANDRADE (estendendo muitos cartões que restam diante de si) Tomem lugares! (Remexendo os números em um saquinho) Vamos principiar!
CASCAIS (ao Alferes) Mas, com licença, o senhor não pagou!
ALFERES ANDRADE Como não paguei?...
PEDRINHO Ainda não, senhor!
TODOS Não, senhor! Pague! Pague e não bufe!
ALFERES ANDRADE Pois vá lá... pela segunda vez! Contra força não há resistência. (Tirando dinheiro) Cá está!
(Marcolina sai pela direita)
PEDRINHO Esta nota ainda não está recolhida?
ALFERES ANDRADE Eu é que te recolho já esta espada no bucho! Falta um tostão! Quem empresta um níquel?
PANTALEÃO Ninguém.
ALFERES ANDRADE Pois bem: quem tirar a mesa tem o direito de me exigir um níquel!
BENJAMIM Mas haverá crédito?
ALFERES ANDRADE Menino, eu sou comandante de um destacamento!
BENJAMIM Folgo muito.
CASCAIS Se a dificuldade é um níquel, dignus est entrare.
(Marcolina, que tinha saído, volta com um saco de milho, do qual distribui um punhado a cada jogador. Os personagens estão colocados do seguinte modo: Helena, no canapé em que já estava sentada, estende seus cartões. No canapé, onde cabem duas pessoas, vai sentar-se também outra moça. Cascais puxa uma cadeira para a boca de cena e coloca seus cartões sobre a cúpula do ponto. A banca é ocupada pelo Alferes, no centro, e nos dois lados por Pantaleão e Pedrinho. Góis senta-se numa cadeira e estende os cartões no chão. O sócio vai buscar o retrato de Nicolau, coloca-o nas costas de Góis, e, de pé, por trás da cadeira, espalha seus cartões na tela do retrato. Benjamim e Juca Sá sentam-se no chão defronte um do outro. Na tábua de engomar devem jogar três ou quatro moças. Os mais distribuem-se por todos os lados. Marcolina vai guardar o saco de milho e, quando volta, coloca-se por trás do canapé)
ALFERES ANDRADE (depois de contar o dinheiro que está sobre a banca) Vamos! A banca é de vinte e quatro mil e setecentos... Com o tostão que estou a dever, vinte e quatro mil e oitocentos. Pronto.
TODOS Pronto!
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Sete.
ALGUNS Sete!
(Uns marcam, outros não, assim por diante)
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Sessenta e nove... Não! não! Ou é!...
PEDRINHO Veja no que fica!
ALFERES ANDRADE Eu não sei se é sessenta e nove ou noventa e seis...
PANTALEÃO Deixe ver: é sessenta e nove.
CASCAIS Ligere et non inteligerre, burrigere est.
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Muito obrigado! Oitenta e oito.
ALGUNS Oitenta e oito.
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Vinte! ALGUNS Vinte.
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Trinta e seis!
ALGUNS Trinta e seis.
CASCAIS Duque.
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Noventa e nove!
PEDRINHO Olha que é sessenta e seis...
ALFERES ANDRADE É verdade: sessenta e seis!
BENJAMIM Terno.
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Dois!
ALGUNS Dois
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Noventa!
PANTALEÃO Terno
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Doze!
ALGUNS Doze.
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Vinte e quatro!
CASCAIS Terno.
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Quatorze! (Desta vez ninguém responde) Quatorze!
CASCAIS Ciente.
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Sessenta e quatro!
CASCAIS Venha a boa!
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Trinta. (Com força) Víspora!
TODOS Hein?
ALFERES ANDRADE (muito tranquilamente) Quero dizer: duque... (Gritando) Um!
GÓIS (levantando timidamente a cabeça e em tom de lástima)
Terno
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Vinte e três!
PANTALEÃO Venha a boa!
ALFERES ANDRADE (remexendo no saco e tirando um número) Oitenta e seis!
PANTALEÃO (erguendo-se enfurecido) Por um ponto! (Batendo o pé com toda a força) Caramba!
(Góis & Companhia assustam-se e cai um por cima do outro. Caindo, Góis enterra a cabeça na tela do retrato, que lhe fica em volta do pescoço. Confusão geral, Helena deita as mãos na cabeça. Marcolina tira o retrato, leva-o para dentro e volta. O Alferes aproveita-se da confusão para procurar no saco o número que lhe convém. Só Pantaleão vê esta trapaça)
ALFERES ANDRADE (achando o número) Dez! Víspora! Víspora! Dez! Aqui está! Dez!...
(Chegam-se todos para o Alferes, menos Helena e Marcolina, que voltam a seus lugares) CANTO ALFERES ANDRADE É como se vê: são dez!
TODOS Dez!
ALFERES ANDRADE (atirando-se ao dinheiro) São meus os vinte e quatro mil e setecentos. (Guarda o dinheiro)
PANTALEÃO É muito atrevimento! Patota fez você!
ALFERES ANDRADE (puxando a espada) Quem foi? quem foi que fez?
PANTALEÃO Guarde o chanfalho, ó toleirão!
GÓIS Não seja tão parlapatão!
CASCAIS Então? então? Dê-me o que é meu!
ALFERES ANDRADE Vocês quem pensam que sou eu?
HELENA Seu Alferes, tal não fará!
PEDRINHO Entregue esse dinheiro e nada se dirá!
ALFERES ANDRADE Do meu bolso não sairá!
TODOS Dê-nos o cobre! Dê-nos já!
ALFERES Raspem-se já senão, senão, vai haver cá revolução!...
CORO DE HOMENS Se não nos dá nosso quinhão, gritamos já: pega ladrão!...
TODOS Pega ladrão! Pega ladrão!...
GÓIS & COMPANHIA (colocam-se um de cada lado do Alferes, que tenta fugir) O valentão que tanto arrota, e que no jogo fez patota, não leva já tunda de pau, em atenção ao Nicolau... ALFERES Raspem-se já, etc. CORO DE HOMENS Se não nos dá, etc.
TODOS Pega ladrão! Pega ladrão!
ALFERES ANDRADE Não sou ladrão, não sou ladrão! (Foge)
TODOS (acossando-o) Pega ladrão! Pega ladrão!
(Saída ruidosa pela esquerda. Helena e Marcolina ficam sós) CENA VIII Helena e Marcolina. (Marcolina deita a mesa em seu lugar, arranja os móveis e coloca os cartões sobre a mesa)
HELENA Que sempre há de haver disto! Por isso não gosto que se lembrem de jogar aqui o maldito víspora!
MARCOLINA (arranjando os trastes) Também aquele Seu Arfere é um tipo.
HELENA É um tipão.
MARCOLINA Fazer trapaça não é nada, mas deixar-se apanhar...
HELENA Vai para dentro; preciso estar só.
MARCOLINA Outra vez, Iaiá!
HELENA Deixa-me!
MARCOLINA Vossem’cê não vai cear com as visitas?
HELENA Não; quero descansar.
MARCOLINA Então, vá pro seu quarto.
HELENA Não quero.
(Aparece Cascais)
MARCOLINA Aqui está...
HELENA (sobressaltada) Quem?...
MARCOLINA Sinhô padre-mestre.
HELENA Ah!
MARCOLINA (à parte) Outra ah! Já sortou três!
CENA IX As mesmas e Cascais.
CASCAIS Aquele Alferes Andrade é um tipo!
HELENA Um tipão!
MARCOLINA Ele arrestituiu o dinheiro, sinhô padre-mestre?
CASCAIS Só a metade... Que trapaceiro! Vade retro!
HELENA Deixa-nos a sós, Marcolina. Vai dizer a esses senhores desculpem minha ausência... mas a enxaqueca...
CASCAIS (em voz mito alta) Sim, uma forte enxaqueca...
MARCOLINA Mas...
HELENA Vai!
MARCOLINA Tá bom! (Sai)
CENA X Helena e Cascais.
HELENA Ó padre!
CASCAIS O que temos?
HELENA Ainda há pouco não pudemos falar à vontade. Vossa Reverendíssima não calcula o quanto padeço...
CASCAIS Horribili dictu!
HELENA Ele esteve ainda agora aqui...
CASCAIS Quando?
HELENA Antes do víspora.
CASCAIS E não... fez víspora?
HELENA Oh! fiz-me esquecida... Hesitei... Ele saiu... Deixei-o sair, mas sabe Deus com que vontade... Oh!
CASCAIS (à parte) Hoje é dia dos ohs! A rapariga já soltou dois...
HELENA O que diz, padre?
CASCAIS O que digo é isto... (Prepara-se para dizer uma sentença latina)
HELENA Oh! não! não! Fale português.
CASCAIS Então sabia que eu ia falar latim?
HELENA Já conheço pela sua cara.
CASCAIS Então, o que digo é isto: nada de hesitações. Deixe-se levar, e o resto fica por minha conta...
HELENA (com piedade) E o dindinho?
CASCAIS Ora! dindinho que vá plantar mandioca. A senhora ou bem há de querer o dindinho, ou bem o Abel. Ambos juntos é impossível! São incompatíveis. Dois proveitos não cabem num saco...
HELENA Oh!
CASCAIS (à parte) Mais um oh! (Alto) E daí, quem sabe? Podem muito bem fazer as pazes e meter ambos os proveitos em um saco só. Ande daí; venha cear.
HELENA Não. Tenho uma tal tristeza n’alma...
CASCAIS Triste est anima mea.
HELENA (sentando-se no canapé) Verei se posso sossegar.
CASCAIS Aqui? Não é melhor ir para o seu quarto?
HELENA Irei depois.
CASCAIS (querendo retirar-se) Nesse caso, Dona Heleninha...
HELENA Não se vá embora por quem é! Sua presença faz-me bem.
CASCAIS Favores que não mereço...
HELENA (recostando-se no espaldar do canapé) Estou com um sono... (Fechando os olhos) Ó padre, se eu dormir, peça aos céus que me enviem um sonho benfazejo; sim?
CASCAIS Sim (à parte) Ora! para o que lhe havia de dar!
HELENA (no mesmo) Por que não é dindinho amigo de Abel? Se eu pudesse vê-lo em sonhos...
CASCAIS A quem? Ao dindinho?
HELENA (enfadada) Não.
CASCAIS O outro...
HELENA O outro... Se pudesse vê-lo em sonhos... Que mal havia nisso? Padre, peça, peça aos céus que me enviem um belo sonho... Estãose-me a agarrar as pálpebras... Peça... (Outro tom) Peça... se não fico mal com Vossa Reverendíssima... (Adormece)
CASCAIS Tem graça! pedir um sonho assim como quem pede um charuto! – Oh! Fulano, dá cá um charuto. – Ó céu, manda lá um sonho à Senhora Dona Helena. (Contemplando-a) Como é bonita! (Dá dois passos para ela, e arrependendo-se, benzendo-se) Est ne nos induca in tentationem. (Nisto, Abel, que tem aberto lentamente a porta do fundo, entrado e avançado, toca no ombro de Cascais, que se assusta) Ai!
ABEL Não se assuste! Sou eu. Cale-se; não a desperte...
CASCAIS O senhor pregou-me um susto...
ABEL Não vá agora pregar-me um sermão... Ah! desculpe...
CASCAIS Essa é boa! Inter amicus non habet geringonça.
ABEL Silêncio...
(Entra Marcolina; Abel oculta-se atrás de Cascais) CENA XI Helena, Cascais, Abel e Marcolina. MARCOLINA Então Iaiá não quer ir pro seu quarto!
CASCAIS Psiu... Está dormindo... Não a desperte, senão volta aí a enxaqueca.
MARCOLINA Mas isto não tem jeito! Dormir aqui!
CASCAIS Não faz mal.
MARCOLINA Então, vamos embora.
CASCAIS Vai fechar a porta. (Marcolina fecha a porta da esquerda. Cascais seguelhe os movimentos e Abel os de Cascais, de modo que se conserve sempre a salvo dos olhares de Marcolina) Agora, vamos, passa adiante...
MARCOLINA Sim, sinhô... (Sai)
CASCAIS (à porta do fundo) Oc opus hic labor est... (Sai)
CENA XII Abel e Helena.
ABEL (contemplando-a) Como é bonita, ó minha casta Helena! Vamos! Ânimo, Abel! o Nicolau está na fazenda e o deus do amor te protege!... (Ouve-se fora, à esquerda, o Coro seguinte)
CORO Olá! que vinho tem na adega Seu Nicolau! Pode apanhar-se uma broega, pois não é mau!
Quem saúde ambiciona tome, com moderação, de vez em quando uma mona, de vez em quando um pifão! Lá lá lá lá lá lá...
ABEL (durante o Coro) O que é isto? (Vai olhar pelo buraco da fechadura) Estão ceando. Que grande patuscada! (Deixa a fechadura e ajoelha-se perto de Helena)
HELENA (despertando) Abel! Tu aqui?!...
ABEL Sim, sim, o teu Abel!
HELENA Mas... estarei sonhando?
ABEL (à parte) O que diz ela?
HELENA Sim... é o sonho que ainda agora pedi ao padre...
ABEL Um sonho! Muito bem! Confunde-me com um sonho...
(Helena ergue-se maquinalmente. Abel condu-la à boca de cena) DUETO. HELENA O céu já me enviou o sonho celestial que o padre suplicou! Que prazer vou sentir! Que sonho venturoso Helena vai fruir
JUNTOS Céus! ai! que sonho, que sonho de amor! A noite dá-lhe seu mistério... A noite dá-lhe seu favor... Sinto um contentamento etéreo! Ai! que gentil sonho amor! Céus! ai! que sonho, etc.
HELENA Repete, ó Abel, e me farás feliz... Diz – "Eu te amo"; – diz e rediz! Pois te quero seguir...
ABEL Seguir-me, minha Helena?
HELENA A casa em que nasci, por ti deixo sem pena. Mas... tu não me abandonarás?
ABEL Ó minha bela, tal suspeita do coração não vem direita! Revoga-a já e já, com beijos ao rapaz!
HELENA Quantos então!
ABEL Só três...
HELENA Na mão?
ABEL Não, não, não, não; porém no rosto, de perfeições almo composto, que vida e morte a um tempo dá! Oh! dá-me, dá-me beijos! Satisfaz meus desejos!
HELENA Se não é mais que um sonho... vá lá... (Deixa-se beijar)
JUNTOS Céus! ai! que sonho de amor, etc.
HELENA Agora, ó meu Abel...
ABEL Ó minha Helena, agora... é fugir
HELENA Fugir!
ABEL Sem demora! não há tempo a gastar... o trem já vai chegar...
HELENA Serás meu bom amigo?
ABEL Sim!
HELENA Não mangarás comigo?
ABEL Não! Um protetor em mim terás, ó coração! Amanhã de manhã, manhã pura e serena, esplêndida louçã, Um padre que eu cá sei casar-nos-á, Helena... Esposos, meu amor, seremos amanhã!
HELENA Amanhã?
ABEL Amanhã... Deixa portanto, Helena, a sala do engomado, e vem, longe daqui, seguir teu namorado!
HELENA (apoderando-se da trouxa que está embaixo do canapé) Se não é mais que um sonho... vá lá...
JUNTOS Céus! ai! que sonho, que sonho de amor! A noite dá-lhe seu mistério... A noite dá-lhe seu favor... Sinto um contentamento etéreo! Ai, que gentil sonho de amor! Céus! ai! que sonho, etc.
(Terminado o dueto, Helena deita sobre os ombros uma manta e dispõe-se a sair com Abel, pelo fundo, quando a porta se abre de repente e surge Nicolau que solta um grito) CENA XIII Os mesmos e Nicolau. HELENA (caindo, confundida, nos braços de Nicolau) Dindinho! Oh! então não era um sonho! (Atira para longe a trouxa)
NICOLAU (deixando cair por terra todos os preparos de viagem com que saíra no final do primeiro ato)
Um sonho! Eu é que estou a sonhar!
HELENA Vossemecê fez boa viagem, dindinho?
NICOLAU (procurando ver Abel, que Helena trata de esconder) Fiz... fiz... Mas aquele sujeito...
HELENA Os negros já estão acomodados?
NICOLAU Já... já... É o senhor...
HELENA E qual foi o motivo do levantamento?
NICOLAU (tirando Helena da frente de Abel) Ah! é o senhor?! Veio cá decifrar uma charada?
HELENA Esteve sempre de saúde? Caçou muito por lá?
NICOLAU Eu cá sei o que cá sei...
HELENA O que caçou?
NICOLAU Eu cá sou muito tolo: a dar resposta. (Gritando) Aqui del-rei! Aqui del-rei!...
ABEL Cale-se! O senhor é um imprudente!
NICOLAU Eu cá sei o que cá sou! (Gritando) Aqui del-rei! Aqui del-rei!... O senhor Abel... Qual Abel nem meio Abel! De hoje em diante só o hei de chamar de Caim! O senhor Caim não pode dotar a ofendida; pode? Não pode! Logo – aqui del-rei! Ó de casa!
HELENA Olhe que estão visitas! (Tira a manta)
NICOLAU Ah! estão... Melhor! (Vai abrir a porta)
ABEL Vem tudo aí! Sai cá um barulho...
NICOLAU
Eu cá sei o que cá sai! Mas que é da Marcolina?...
FINAL
NICOLAU (gritando) Vem cá, ó Marcolina! Aqui!
HELENA Ó que imprudente.
ABEL Vai sair cinza incontinente!
HELENA Meu Deus! Meu Deus! estou metida em bons lençóis! (Desmaiando. Abel corre para junto dela)
NICOLAU Aqui del-rei! aqui del-rei! aqui del-rei! Que dois heróis!
CENA XIV Helena, Abel, Nicolau, Pantaleão, Cascais, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Marcolina e visitas. (Os homens, menos Cascais, vêm ligeiramente alcoolizados)
PEDRINHO Olá! que vinho tem na adega Seu Nicolau! Pode apanhar-se uma broega, pois não é mau! Quem saúde ambiciona tome, com moderação de vez em quando uma mona, de quando em vez um pifão! Lá lá lá lá lá lá lá...
PANTALEÃO (dando com Nicolau) O Nicolau!
TODOS Olá!
NICOLAU (tragicamente) O Nicolau cá está! (Agarrando Marcolina pelo pulso e trazendo-a à boca de cena) Helena ia fugir co’aquele sedutor! Responde já, ó Marcolina, tu, que eras a guarda da menina: que foi feito de seu pudor?
TODOS Que foi feito de seu pudor?
(Nicolau deixa, furioso, o braço de Marcolina que foge para o fundo)
NICOLAU Sim, seu pudor?
ALGUNS Ora! o pudor!
TODOS Ai! o pudor! Você não deve estar zangado, pois, de algum modo, é o mais culpado!
NICOLAU Pois sou culpado?
HELENA (tornando a si, e aproximando-se do padrinho) Qualquer parente que, estando ausente em casa entregue a si deixou linda afilhada enamorada entrar não deve como entrou. Bem procedido tinha um marido assim chegando de supetão: mas meu dindinho, devagarinho não entra em casa um solteirão!
TODOS Mas, ó dindinho, devagarinho não entra em casa um solteirão! HELENA Que o namorado desconfiado observe a bela sem descansar; pai ciumento em mau momento filha querida possa encontrar noivo zeloso e cauteloso queira por gosto ser espião: mas, meu dindinho, devagarinho não entra em casa um solteirão!
TODOS Mas, ó dindinho, devagarinho não entra em casa um solteirão!
NICOLAU Bem: mas se meus amigos são, mandem-no embora a pescoção!
PANTALEÃO É já! É já... Seu professor, seu proceder me causa horror!
ABEL Ir-me daqui sem minha bela! Então, senhores meus, então, voltarei noutra ocasião, e irei com ela! e irei com ela!
TODOS Vai-te, ó sedutor! Vai-te, parlapatão!
HELENA (baixo a Abel) Oh! vai-te! meu amor te seguirá... O meu amor seguir-te-á... Danados estão! Vê que olhar tão furibundo!
Capazes que são de mandar-te pr’outro mundo! ABEL Sim! sou fanfarrão! Pois aqui, só num segundo, sou capaz, verão! de matar a todo mundo
CORO Ó que fanfarrão! Ó que professor imundo! O parlapatão quer matar a todo mundo!
ABEL (fazendo os gestos indicados nos seguintes versos) Eu sou capoeira! Não me assustam, não! Passo um rasteira: tudo vai ao chão! Puxo um canivete pra desafiar! Ai, que pinto o sete! Mato dezessete e vou descansar!...
CORO Feroz punição vamos dar ao badameco! Merece ladrão ser corrido a peteleco!
(Procuram todos evitar Abel, que se mostra satisfeito de seu triunfo)
PANTALEÃO (a Abel) Ai, não se perfile, file, file, file!
Não temo a você! Não se rejubile, bile, bile, bile, pois não tem de quê!
CORO (perseguindo a Abel) Ai, não se perfile, file, file, file, etc.
ABEL Sou eu que direi: Ai não se perfile file, file, file!
(Grande disputa em que só não tomam parte Helena e Cascais, que tentam, em vão, apaziguar os ânimos)
CORO Feroz punição vamos dar ao badameco! Merece o ladrão ser corrido a peteleco!
(Abel retira-se pelo fundo, ameaçando sempre, e Helena desmaia nos braços de Marcolina)
ATO III
QUADRO IX (O TREM DE FERRO) Estação da estrada de ferro (espécie de alpendre). À esquerda um balcão em que se vendem vinhos e pastéis. Ao fundo a estrada. Paisagem em perspectiva. Quadro animado; uns bebem e outros comem.
CENA I Pedrinho, Benjamim, Juca Sá, Góis & Companhia, Alferes Andrade e povo. CORO Comer! beber! Viva o prazer! Aproveitamos nossa idade! Brincar! folgar! Quem não gostar de ser assim, que vá ser frade. Beber! comer! Viva o prazer!
RECITATIVO
PEDRINHO O tal Nicolau é da pá virada! É um trapalhão!
TODOS Ninguém diz que não!
PEDRINHO Contrariando o professor, deu grandessíssima patada, por isso que irritou um deus chamado – Amor!
VOLTAS
I Abel ama a Dona Helena... Não lhe vejo nenhum mal
TODOS Abel ama a Dona Helena... Não lhe vemos nenhum mal!
PEDRINHO Quer casar-se co'a pequena: isso é muito natural! Mas o grande Nicolau não quer dar-lha nem a pau. Ah! Ah! Passa fora, Nicolau! Passa fora, meu patau!
TODOS Passa fora, Nicolau! II PEDRINHO Por orgulho, que apoquenta, não quer dar-lha por mulher!
TODOS Por orgulho, que apoquenta, não quer dar-lha por mulher!
PEDRINHO Presunção e água benta cada qual toma a que quer e... Quer ele queira, quer não, marido e mulher serão! Ah! Ah! Passa fora, Nicolau! Passa fora, meu patau!
TODOS Passa fora, Nicolau!
PEDRINHO Mas, enfim, o que resolveu o Nicolau?
BENJAMIM Há casamento?
GÓIS Fuga?
COMPANHIA Surra?
ALFERES ANDRADE Qual fuga nem surra! Não há nada disso!
GÓIS Corre por toda a freguesia... Mas ao que corre pela freguesia não podemos dar ouvidos...
PEDRINHO Se aqui estivesse o vigário, diria: Vox populi...
ALFERES ANDRADE Mas o que corre pela freguesia, seu Góis & Companhia?
GÓIS Góis & Companhia sdomos nós dois, eu e este. Eu só sou o Góis.
COMPANHIA E eu a Companhia.
BENJAMIM (ao Alferes) Assim como do senhor pode-se também dizer: Alferes & Companhia...
ALFERES ANDRADE (tirando a espada) Qual é a Companhia?
BENJAMIM Qual há de ser? A durindana...
ALFERES ANDRADE Ah! (A Góis) mas vamos: o que é que corre?
GÓIS Corre por toda a freguesia que, no trem das oito e três quartos, Dona Helena vai para a corte, em Companhia de um frade que a tem de vir buscar.
PEDRINHO Não sei se é isso um maranhão, mas, com certeza, é o motivo pelo qual nos achamos aqui todos reunidos: confessem!
GÓIS Deixe-se disso! Sempre foi costume encher-se a estação de gente.
PEDRINHO Eu nunca vi aqui nem você nem seu sócio...
ALFERES ANDRADE Está visto que, se não viu um, não podia ver o outro...
BENJAMIM Ora até que afinal o Alferes disse uma coisa quase com graça!
ALFERES ANDRADE (brandindo a espada) Quase!
PEDRINHO Seu Alferes, quero dar-lhe um conselho.
ALFERES ANDRADE Dar ou receber?
PEDRINHO Ouça primeiro e depois esbraveje à vontade...
TODOS Ouça, seu Alferes, ora ouça!
ALFERES ANDRADE Vocês tomaram-me à sua conta! Deixem estar que eu os ensinarei!
PEDRINHO O conselho é este: deite fora a bainha de sua espada.
ALFERES ANDRADE Por quê? Então não está nova?
PEDRINHO Não é por isso: é porque de nada lhe serve a bainha! A lâmina não para dois minutos lá dentro.
ALFERES ANDRADE Menino! (Brande furioso, a espada, que tem conservada em punho)
PEDRINHO Então! O que dizia eu? Lá está de espada em punho!
TODOS Ah! Ah! Ah!
ALFERES ANDRADE Protesto! Já estava fora da bainha!... Já estava fora da bainha!...
TODOS Ah! Ah! Ah!
PEDRINHO O que vale é que, se o chanfalho não leva muito tempo na bainha, também na mão... É só mandá-lo guardar!
TODOS Guarde, guarde o chanfalho!
ALFERES ANDRADE (guardando tranquilamente a espada)
Vocês pedem com tão bons modos...
GÓIS Seu Alferes não é mau rapaz...
COMPANHIA Tem suas coisas... Ora! quem não as tem?
JUCA SÁ No fundo é um bom moço...
ALFERES ANDRADE Pois não se fiem muito! Um dia faço aqui uma estalada! Vocês não me conhecem! CENA II Os mesmos e Cascais. CASCAIS Dominus vobiscum!
PEDRINHO Ora aqui está o senhor vigário, que é quem nos pode explicar a coisa.
CASCAIS Que coisa?
PEDRINHO O que há e o que não há sobre Dona Helena?
CASCAIS E o que têm vocês com isso?
BENJAMIM Interessa-nos a sorte dessa desventurada senhora.
CASCAIS Já que querem com tanta instância saber da vida alheia, o caso é este...
PEDRINHO Atenção!
CASCAIS Dona Helena deixa o lar paterno.
ALFERES ANDRADE Paterno, não: padrinherno!
BENJAMIM Bico, Seu Alferes!
ALFERES ANDRADE Ora bolas! o lar é do padrinho!
PEDRINHO Mas Dona Helena casa-se ou não se casa com o mestre-escola?
CASCAIS Nada.
ALFERES ANDRADE Então o mestre-escola que se casa com ela?
GÓIS Seu Alferes, não interrompa!
ALFERES ANDRADE (com força) Não me interrompa você!
CASCAIS Dona Helena vai entrar para um convento.
TODOS Ah!
PEDRINHO Mas como pode isto ser? Quem a pode obrigar a meter freira?
COMPANHIA Ela é maior...
BENJAMIM É até maior do que eu!
ALFERES ANDRADE Vocês é que estão interrompendo; não sou eu!
CASCAIS Quem a pode obrigar? O padrinho! Regis est imperare.
PEDRINHO Ouvimos dizer que vinha um frade buscá-la; é para levá-la ao convento?
CASCAIS Adivinhou.
ALFERES ANDRADE (à meia voz) Ela, então, vai entrar para um convento de frades?...
CASCAIS Nada: o frade leva-a para um convento de freiras.
BENJAMIM Mas por que não a leva o Nicolau em pessoa ao convento? JUCA SÁ Em vez de entregá-la a um estranho?
CASCAIS Vocês bombardeiam-me com perguntas!
ALFERES ANDRADE Pois bombardeie-nos com respostas!
CASCAIS Não é um estranho tal: o Nicolau me disse que não tinha ânimo de levar a afilhada para a cidade e lá deixá-la metida entre quatro paredes; confrangia-se-lhe o coração... Pediu-me que me encarregasse disso.
COMPANHIA Pobre Nicolau!
ALFERES ANDRADE E então?
CASCAIS Recusei por dois motivos: primo, não podia abandonar a freguesia. (Tenho medo de uma ex-informata que me pelo) secundo, quem me visse em Companhia de uma senhora, poderia fazer um juízo desairoso, tanto para mim como para ela.
ALFERES ANDRADE E o terceiro?
PEDRINHO Como o terceiro? Eram só dois!
CASCAIS Há; ainda há um terceiro.
BENJAMIM Vejamos.
CASCAIS Tercio, Dona Helena, me quereria mal, se fosse eu que a levasse para o convento...
ALFERES ANDRADE Bem pensado. E o quarto?
CASCAIS Não há mais.
ALFERES ANDRADE E o quinto?
CASCAIS (encarando-o) O quinto é que você é um tolo!
ALFERES ANDRADE Ora é boa! Podia não haver um quarto, mas haver um quinto...
CASCAIS Então, pediu-me o Nicolau que lhe lembrasse um alvitre qualquer, que fosse eficaz. Disse-lhe que havia na corte um frade, amigo meu de velha data e pessoa de maior confiança, que viria buscar Dona Helena, se lho eu pedisse por meio de uma cartinha.
PEDRINHO E o Nicolau aceitou a alvitre?
CASCAIS Aceitou. O frade entrega-a à superiora do convento, que já está prevenida para recebê-la e competentemente autorizada. Deo Gratia.
PEDRINHO Isso é inverossímil! Isto só se vê em comédias!
ALFERES ANDRADE Ou em paródias!
CASCAIS Pois é a pura verdade. Eu sou como o outro. A Deo veritatis diligens era, ut ne loco quidem mentiretur... Ora adeus! Vocês não sabem disso; estou perdendo meu latim...
ALFERES ANDRADE Mas é uma maldade roubar uma deidade à sociedade e entregá-la a um frade para levá-la para a cidade! É uma atrocidade!...
CASCAIS Oh! Senhor Alferes! quanta rima perdida! Quando quiser dizer versos, previna a música: cante-os.
PEDRINHO Rapaziada, vamos dar uma volta; o trem ainda se demora um quarto de hora.
BENJAMIM Contanto que não deixemos de ver o frade!
ALFERES ANDRADE Voltaremos. Vamos, vamos dar uma volta; eu também não sei estar parado.
PEDRINHO Irá, com a condição de não puxar a espada em caminho...
ALFERES ANDRADE Vocês tomaram-me à sua conta; vocês não me conhecem!
TODOS Até logo, senhor vigário.
BENJAMIM (batendo com liberdade no ombro de Cascais) Até logo!
CASCAIS (tomando-o pelo braço)
Menino, adolescentis est majore nutu vereri...
BENJAMIM Fiquei na mesma.
CASCAIS (recomeçando) Adolescentis...
TODOS Vamos! Vamos! (Saem)
(Alguns têm já se retirado pouco a pouco da cena. A orquestra toca em surdina o estribilho das voltas cantadas por Pedrinho na cena primeira. Cascais fica só) CENA III Cascais (só). CASCAIS (dirigindo-se ao público com toda naturalidade) Os senhores hão de estar lembrados daquela cartinha que recebi de meu irmão no primeiro ato. Pois bem: ouçam a resposta. (Tirando uma carta e lendo) “Meu mano e prezado amigo, estimo que passes bem, pois é o que se dá comigo e coa comadre também. Os pequerruchos vão indo, mas muito mal, caro irmão: com coqueluche o Clarindo e o Nho-nhô com dentição” (Declama) Isto não, intimidades. Inter amicus... (Continuando) “Recebi a tua carta com data de vinte e três e vou, antes que o trem parta, respondê-la, como vês.
Não quero que seja diverso o meu sistema do teu: como escreveste-me em verso, em verso respondo eu. O Abel, teu recomendado, há dias pra lá voltou; foi demitido (coitado!) do cargo que abiscoitou. Não pode cantar vitória, nada pode conseguir; que ele te contasse a história é muito de presumir... Se tirá-la por justiça decerto a pequena vai, de volta de alguma missa, que só é quando ela sai. Que ao tutor ninguém dissuade, tenho de mim para mim, pois quod natura dat... não sei se sabes latim. Não posso ser mais extenso: vou minha missa dizer; ex-informata suspenso, caro irmão não quero ser. Lembranças cá da comadre, não só a ti, como aos mais, teu irmão e amigo, o Padre Bernardo Teles Cascais” (Declama) Há um post-scriptum, mas não vem ao caso. Enfim... (Lendo) “Post sciptum: É um dos maiores o calor que faz aqui por isso em trajos menores desculpa escrever-te a ti”. (Guardando a carta) — Esta resposta, tinha-a eu escrito ontem. Ia deitá-la no correio, quando encontrei o Nicolau que me pediu um meio para mandar a afilhada para o convento. Lembrei-me, então, de que o Abel poderia muito bem passar por frade barbadinho, e arranjei uma farsa... Em vez de mandar esta carta a meu irmão, escrevi uma outra a Abel, dizendo que se apresentasse hoje, no trem que vai chegar, com o competente disfarce, e... O resto adivinha-se... Não me posso sair bem desta brincadeira: o Nicolau há de cair-me em cima como uma bomba, bumba! Mas, com meios brandos e suasórios, tudo conseguirei... CENA IV O mesmo e Pantaleão. PANTALEÃO Andava à sua procura, padre. Como passou?
CASCAIS Doente.
PANTALEÃO Doente?
CASCAIS Ou velho: senectus est morbus. O que deseja?
PANTALEÃO Falar-lhe sobre este maldito acidente...
CASCAIS Da pequena?
PANTALEÃO Sim.
CASCAIS O que quer que lhe faça? Mortus est pinto in casca.
PANTALEÃO É preciso que o compadre se esqueça de mandar Dona Helena para o convento.
CASCAIS A boas horas lembra-se você disso...
PANTALEÃO Como assim?
CASCAIS Você pintou...
PANTALEÃO (formalizado) Eu não pinto, padre!
CASCAIS Não se precipite! Não quero dizer que o senhor pinta o padre! – Você pintou... ao Nicolau todo este negócio com as mais negras cores e, como delegado da instrução pública, arranjou a demissão do pobre rapaz; Dona Helena há de agradecer-lhe...
PANTALEÃO E quem se encarregou de chamar o frade? Dona Helena há de agradecer-lhe!
CASCAIS Não estejamos a trocar palavras, Senhor de los Rios; resolvamos alguma coisa!
PANTALEÃO O que há de ser?
CASCAIS Em vindo o Nicolau, chamemo-lo de parte...
PANTALEÃO E...
CASCAIS Toca catequizá-lo! Tais considerações faremos...
PANTALEÃO Tais argumentos apresentaremos...
CASCAIS Aí vem ele e a pequena. (Afastam-se) CENA V Os mesmos, Nicolau e Helena. NICOLAU (sem dar com a presença de Cascais e Pantaleão) “Oh! então não era um sonho!” É esta frase, Helena, é esta frase que espero que você me explique!
HELENA Dindinho!
NICOLAU Você é uma sonsa! pode vir com esses modos de santinha de pau carunchoso: não tomo nada!
HELENA Dindinho!
NICOLAU Não tomo nada, ouviu?! Não tomo nada!...
HELENA Pois bem, já que não toma nada, tome lá este pião à unha...
NICOLAU Hein?
HELENA De hoje em diante quero viver sobre min!
NICOLAU Olé!
HELENA Ah! supõe que não sei que estou emancipada por lei?...
NICOLAU Olá!
HELENA Até hoje tenho passado por tola!
NICOLAU Olé!
HELENA Mas de hoje em diante hei de mostrar quem sou!
CASCAIS (a Pantaleão) Scintilla excitavit incendio!
NICOLAU A Senhora Dona Helena como deita as manguinhas de fora!
HELENA Onde me levam? Para que me obrigam a arrumar bagagem? O que venho fazer à estação do caminho de ferro?...
NICOLAU Não é da sua conta!
HELENA Tome sentido, dindinho!
NICOLAU Olé!
HELENA Vossemecê não me conhece!
NICOLAU Olá!
PANTALEÃO (intervindo) Então! Então!... O que é isto, compadre?...
CASCAIS (idem, à Helena) O que está fazendo, Dona Helena? (Baixinho) Não grimpe! Obedeça passivamente... Ele quer mandá-la para um convento! Vá, vá sem respingar.
HELENA Mas...
CASCAIS Fie-se em mim: amicus certus in re incerta cernitur.
NICOLAU Desavergonhada! Faltar-me ao respeito!
CASCAIS (deixando Helena e dirigindo-se a Nicolau) Dona Helena acaba de significar-me seu arrependimento...
HELENA (humildemente) É verdade, dindinho: esqueci-me por um momento do quanto lhe devo. Perdoe.
PANTALEÃO Perdoe.
CASCAIS Perdoe.
HELENA Perdoe.
NICOLAU (sombrio) Perdoo.
COPLAS
I HELENA Não sou culpada, ó meu dindinho: nunca fui mais pura que sou: não me perdeu do bom caminho este amor que cá dentro entrou. Ai! tomo o céu por testemunha, queira ou não queira acreditar: quando eu ia fugir, supunha dormisse a bom dormir, sonhasse a bom sonhar! Se, por um sonho só, retira-me a amizade. o que fará então pela realidade?... II Nos sonhos dão-se circunstâncias, que se não podem revelar... Eu já sonhei – que extravagâncias! – eu já corei, mesmo a sonhar... Fosse punido quem as sonha: Helena, onde estarias tu? Ou em Fernando de Noronha, ou presa em Catumbi, ou morta no Caju. Se, por um sonho só, retira-me a amizade, o que fará pela realidade...
NICOLAU (depois de pequena pausa) Fiquei na mesma.
CASCAIS (a Pantaleão) Este seu compadre é muito tapado!
PANTALEÃO (com acatamento, a Cascais) Não costumo desmentir os ministros de Deus...
CASCAIS Ó seu Nicolau, diga à menina que vá sentar-se àquela sala. Nós temos que falar-lhe em particular...
NICOLAU A quem? a ela?
CASCAIS Nada; a você. (A Pantaleão, enquanto Nicolau acompanha Helena, que se retira para a direita) É preciso resolver o homem a abdicar da ideia do convento.
PANTALEÃO Faremos o possível.
CASCAIS (á parte) Se terminar tudo na santa paz do Senhor, minha responsabilidade ficará salva. CENA VI Cascais, Pantaleão e Nicolau. NICOLAU (voltando) Sim, senhores: a rapariga tem me feito suar o tapete... quero dizer, o topete!
PANTALEÃO A culpa é sua!
CASCAIS Pode dizer: Mea máxima culpa.
NICOLAU Então, por quê?
CASCAIS Decerto! Quem é que se lembra de mandar uma rapariga para o convento em pleno 1877!
NICOLAU Lembro-me eu! Oh! deixem-na estar, deixem-na estar, que o convento há de ensiná-la! uma rapariga que sabe o código! Depois, eu cá tenho minhas tenções...
PANTALEÃO Ah!
NICOLAU Passados cinco anos, tiro-a do convento. Há de vir de lá um modelo de virtudes...
CASCAIS Há de vir de lá fazendo muito boa goiabada...
NICOLAU Venha como vier: virtuosa ou quituteira, ou quituteira e virtuosa ao mesmo tempo... (Observando a impressão deixada por suas palavras nas fisionomias de Pantaleão e Cascais)... caso-me com ela!
PANTALEÃO Hein?
CASCAIS Casar o padrinho com a afilhada!
PANTALEÃO Ah! Ah! Ah!
CASCAIS (benzendo-se) Abrenuntio!
PANTALEÃO Ah! Ah! Ah! que lembrança!
CASCAIS Pois você não vê que tem mais do dobro da idade de sua afilhada?
NICOLAU Mas daqui até lá, ela já tem vivido mais cinco anos.
CASCAIS E você fica parado durante todo esse tempo?
NICOLAU É verdade...
PANTALEÃO Vamos, vamos! Pense bem, compadre!
CASCAIS Não contrarie o amor de Dona Helena!
PANTALEÃO A liberdade, compadre, a liberdade! TERCETO PANTALEÃO Hoje, que o tempo é só de liberdade, da lei do elemento servil. tu vais meter num claustro da cidade Helena, a moça mais gentil!
CASCAIS Poupe à menina essa desgraça!
PANTALEÃO Tem dó de Dona Helena.
CASCAIS Um convento é prisão onde não morre o coração...
NICOLAU O que vocês querem que eu faça?
PANTALEÃO e CASCAIS Hoje, que o tempo é só de liberdade, da lei do elemento servil. tu vais meter num claustro da cidade Helena, a moça mais gentil!
NICOLAU Eu vou meter num claustro da cidade Helena, a moça mais gentil!
CASCAIS Se p’rum convento a pobre entrar há de bem cedo se finar...
PANTALEÃO E se acaso morrer a Dona Helena, o responsável será tu, pois és tu só quem a condena!
CASCAIS Sim, é você! pobre pequena! Seu Nicolau, há de sentir fatal remorso, atroz pungir!
PANTALEÃO Ouve lá, de um amigo velho, salutaríssimo conselho:
I Já os conventos não têm crédito, não dão exemplo de moral; Diz a Gazeta de Notícias que de um dos tais (não sei de qual) saltaram três freiras intrépidas – caramba! – os muros do quintal!
II Chame o Abel; não seja ríspido, e deixa correr o marfim... Com o casamento e sem escândalo, há de ter tudo airoso fim. Se tal fizer, cheios de júbilo, hemos de dançar todos assim! (Dança) Nicolau, para que hás de ser assim tão mau?!
(Juntos)
PANTALEÃO e CASCAIS Nicolau para que hás de ser assim tão mau?!
NICOLAU Não sou mau! Nunca fui, não sou, nem serei mau!... CASCAIS É bom refletir bem!
PANTALEÃO Convém pensar melhor!
CASCAIS A reflexão é o que convém...
PANTALEÃO e CASCAIS O casamento é dos males o menor... reflita bem, reflita bem!
PANTALEÃO Ele hesita...
CASCAIS Ele hesita...
PANTALEÃO e CASCAIS Ó que padrinho austero! (Examinam Nicolau, que reflete profundamente)
NICOLAU (decidindo-se) Não quero...
PANTALEÃO e CASCAIS. Se você manda a moça pro convento, arrepender-se-á! É natural que ela perca moral cento por cento saltando o muro do quintal...
NICOLAU Se eu mando a rapariga pro convento, não hei de arrepender-me! É natural que ela ganhe em moral cento por cento; não salte o muro do quintal... (Dirigindo-se, ora a Cascais, ora a Pantaleão) Dessas razões, padre, compadre, a mim bem pouco se me dá! Freira há de ser, compadre, padre! Disse e direi, ora aqui está! Há de ser freira! há de ser freira!
PANTALEÃO Isto é que é: queira ou não queira!
PANTALEÃO e CASCAIS Teimar assim desta maneira eu vejo, enfim, a vez primeira!
(Juntos) PANTALEÃO, CASCAIS Se você manda, etc.
NICOLAU Se eu mando, etc. NICOLAU (a Pantaleão) Compadre, ponha o negócio em si: se sua filha estivesse no lugar de Helena, você não a mandava para o convento?
PANTALEÃO Minha filha! Deus me livre! Minha mulher, vá...
NICOLAU Mas você mesmo foi que me aconselhou...
PANTALEÃO Refleti.
CASCAIS Mas, enfim, em que ficamos?
PANTALEÃO Sim.
NICOLAU Como?
CASCAIS A menina vai?
PANTALEÃO Vai, compadre?
NICOLAU Com padre não; vai com frade.
CASCAIS É sua última palavra?
NICOLAU É minha última palavra!
CASCAIS (avança solenemente para Nicolau e desconserta-se) Diabo! Não me lembra um trecho latino a propósito... CENA VII Os mesmos, Alferes Andrade, Góis & Companhia, Pedrinho, Benjamim, Juca Sá e povo. PEDRINHO Está aí o trem!
BENJAMIM Lá vem! Lá vem!
CASCAIS Já o trem?
TODOS Já! O trem! Ele aí vem! etc.
CORO GERAL Co’alvoroço o
trem de ferro corre já para cá! (Ouve-se ao longe o silvo da locomotiva) Eu já ouço-o! Ai! que berro! Sem tardar vai chegar. Da cidade vem um frade receber uma mulher! Ei-lo já; já parou; aqui está; já chegou!
(Durante os últimos versos, um trem de ferro vem, da esquerda, parar em frente à estação. Entre Alguns passageiros que saem e desaparecem, desce à cena Abel, disfarçado em frade. Barbas longas e grisalhas, óculos e capuz. Cercam todos o frade. Durante a cena seguinte, movimento de passageiros, etc.)
CENA VIII Os mesmos e Abel.
CORO Ó reverendo, este povinho só para vê-lo é que aqui está, pois dantes nunca um barbudinho por cá passou, passou por cá.
TIROLESA E CORO
I ABEL Eu, antes de mais nada, participo, caríssimos irmãos, que sou um tipo! Ai! tenho muito horror ao cantochão... Pesar de frade ser, sou muito folião!
ABEL e CORO Sou muito folião, pesar de frade ser! É muito folião, pesar de frade ser!
CORO A cantar e a dançar ele aqui quer nos ver!
ABEL Lá lá itu, lá lá lá lá!
CORO Lá lá itu, lá lá lá lá!
(Dança geral e desenfreada) ABEL O meu sistema a todo mundo espanta; mas quem não gosta de pintar a manta? Quem assim fala hipócrita não é! A mesmíssima coisa eu fiz em Taubaté!...
ABEL e CORO Sou muito folião, pesar de frade ser! É muito folião, pesar de frade ser!
ABEL Sou.
CORO A cantar e a dançar ele aqui quer nos ver!
ABEL
Lá lá itu, lá lá lá lá!
CORO Lá lá itu, lá lá lá lá!
REPETIÇÃO DA DANÇA
CASCAIS (baixinho a Abel, apertando-lhe a mão) Olha que esse modos não são próprios de um frade!
ABEL (no mesmo) Foram copiados do natural... (Alto) Il signore Nicolau? Onde está Il tutore de la fanciulla?
NICOLAU (que tem ido comprar bilhetes de passagem) Estou aqui, Reverendíssimo, estou aqui! Tome Vossa Reverendíssima os cartões de passagem e esta carteira com que muito mal desejo gratificar seus bons serviços.
ABEL Grazia. Aceito i biblietti, ma il denaro no. Noi altri, ministri de l’altare, siamo tropo... tropo... Io parlo mal is portoghese... siamo tropo... desinteressati.
NICOLAU Oui, monsieur, merci
CASCAIS (à parte) Aquilo será tudo, menos italiano.
ALFERES ANDRADE (a Pedrinho) Aquilo é que é língua! O italiano, oh! o italiano! La dona é mobile qual piuma al vento!
ABEL Má onde está metida la sorella que devo conducire al claustro? (Apontando para uma mulher do povo) É questa dona?
NICOLAU Nada.
ABEL É questa?
NICOLAU Nada, nem questa também. Minha afilhada está ali; vou buscá-la. (Saída falsa)
(Ouve-se ao longe a locomotiva)
CASCAIS E não há tempo a perder, porque já se ouve o silvo do trem que os deve levar.
ABEL (baixo a Cascais) Então? que tal estou?
CASCAIS (a Abel) Muito bom, homem; você está muito bom! Mas o italiano está melhor.
ABEL (a Cascais) Que italiano? (Procurando em volta de si) Ah! Sim! o italiano que eu falo! (Outro tom) Ainda nos havemos de ver.
CASCAIS Assim o espero.
NICOLAU (voltando) Vem, minha filha, vem.
ABEL (contemplando Helena, que ainda não aparece ao público) Ah! Ecco la sorella! Oh! Cielo, si 120ndaimo, cosi linda, giá desterrata em um claustro! Povera fanciulla! Má, enfim, 120ndaimo! 120ndaimo presto. (Aparece Helena)
CASCAIS (á parte) Finis Coronnat opus!
CENA IX Os mesmos e Helena.
FINAL
CORO Ela aí vem! É ela! Ela vem para cá. Meu Deus, como é bela! Mas tão triste está!
(Durante este Coro, chega outro trem, em sentido contrário ao primeiro. Movimento de passageiros, etc.)
HELENA Ouvi, suponho, voz amiga, que nunca mais me sai de cá. (Do coração)
NICOLAU Para o convento é seguir já, com este frade, ó rapariga! Bem caro vai pagar-me o mal que me causou.
ALGUNS O mal que lhe causou!
HELENA Ir pro convento! Não! Jamais! Eu lá não vou!...
(Gesto de impaciência de Cascais)
ABEL Io lá parlaré!
PEDRINHO Que lhe dirá o frade?
ALGUNS Sim, sim! que lhe dirá?
ABEL Il cielo inspirerá! (Baixinho a Helena) Pois não viste que este frade era o repelido Abel?...
HELENA (à parte, comovida) Abel?...
ABEL Vem comigo pra cidade; segue o noivo fiel.
HELENA (com escrúpulo) Abandonar o meu dindinho!
NICOLAU Há de partir, que o quero eu!
PANTALEÃO e CASCAIS São só três horas de caminho...
HELENA (á parte) Vou por meu gosto e pelo seu!
TODOS Vá já, Dona Helena; nos dá muita pena; mas vá! Vá já!
NICOLAU Então? Vá pro convento! Assim quero eu!
ALGUNS Ó que grande judeu!
PEDRINHO Deus a leve a salvamento!
CASCAIS (à parte) Muito me hei eu rir...
ALGUNS O frade é já seguir!
PANTALEÃO Vão, embarquem num momento: Vai partir o trem!
ABEL e HELENA É já partir pro convento! Obedecer convém!
CORO Vá para convento, já neste momento! Vá para o convento! Vá com vento em popa! Já! Vá! vá! vá! vá! vá!
(Durante o Coro, Abel sobre para o trem com Helena, e aparece com ela a uma portinhola)
RECITATIVO
ABEL Ó Nicolau, triste papel fizeste em cena: cá levo Helena... Eu sou Abel! (Tira o capuz, as barbas e os óculos. Assombro geral)
UNS Segue Helena, o professor; segue, segue o teu amor.
OUTROS (a Nicolau) Que maldito professor! Vingá-lo-emos, senhor! (Uns riem e outros estão indignados. O Alferes puxa pela espada e corre atrás do trem. Nicolau cai fulminado por um ataque de apoplexia. Confusão)
Artur Azevedo
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